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XXIX ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

Outubro de 2005
GT 10 Imagens e Sentidos: a produção conhecimento na ciências sociais

Caleb Faria Alves

A imagem depois do ritual da serpente

Um dos episódios mais significativos para o pensamento moderno sobre arte foi
a viagem empreendida por Aby Warburg aos Estados Unidos em 1895/6 na qual entrou
em contato com os índios pueblo, após o que ele alterou completamente sua maneira de
olhar a arte ocidental. Há, no entanto, uma profunda controvérsia sobre a herança e
significado desse contato entre esse pesquisador dedicado á história da arte e esses
índios. Conquanto haja acordo que tenha marcado de maneira seminal o pensamento
desse que chega a ser apontado por seus admiradores como tão influente como Freud, o
texto que testemunha diretamente os fatos que se sucederam durante a viagem foi
produzido em condições extremamente peculiares: Warburg o escreveu afim de
demonstrar pleno domínio sobre suas faculdades mentais e conseguir provar sua cura
enquanto interno da Clínica Bellevue na Suissa. A sua apresentação ao público ocorreu
em 21 de abril de 1923 para o público dos internos dessa mesma clínica. Ele estava
internado desde de 1921, e antes disso havia passado por uma clínica privada em
Hamburgo por ter, em 1918, ameaçada sua esposa e filhos com uma arma. Warburg
tencionava assassinar seus próprios familiares para evitar serem eles capturados, presos
e torturados até a morte em prisões secretas por persecutores anônimos, bolcheviques ou
por fúrias punindo seu abandono do judaísimo.

A proposta desse texto é menos a de apresentar esse texto seminal e mais


discutir algumas das apropriações da qual foi alvo. Não se trata propriamente de um
balanço mas de discernir algumas contribuições importantes para o seu entendimento
bem como das divisões e constituição do pensamento sobre a arte. Começarei com um
breve relato do trajeto de Warburg para depois passar à história do texto e suas leituras.

Em setembro de 1895 Warburg aporta em Nova Yorque a bordo do Furst


Bismark em viagem cuja finalidade original era assistir ao casamento de seu irmão Paul
com Nina Loeb. Em 23 de outubro ele vai ao Smithsonian Institute em Washington
onde trava contato com J. W. Fewkes, F. H. Cushing e J. Mooney. O primeiro o
apresenta a uma grande coleção de cerâmica encontrada em escavações arqueológicas e
os dois últimos eram importantes etnógrafos membros do Bureau of American
Ethnology. Em novembro ele segue para Colorado Springs e encontra em Durango dois
navajos que muito o impressionam. Pouco depois Warburg visita os cânions e segue
dias depois para um encontro com os índios pueblos situados a leste do rio Grande.
Desanimado com suas limitações de comunicação por não saber espanhol ele se dirige
para o oeste e visita o instituto de pesquisa de Palo Alto onde encontra Earl Barnes,
pesquisador da psicologia infantil, com quem aprende técnicas de investigação de
sobrevivências culturais e míticas entre os hopi. Em 21 de abril de 1896 ele faz sua
incursão mais significativa entre os índios. Parte de Holbrook, Arizona, para as vilas
hopis situadas em Black Mesa. Após uma viagem cansativa faz contatos com alguns
índios em Keam’s Cañon, para se dirigir, juntamente com o reverendo H. R. Voth,
também marchand e fotógrafo, para Walpi e Oraibi. Antes de ir para esse último destino
ele passa a noite numa casa cerimonial (kiwa) e assiste à dança humiskatcina na manhã
seguinte. É somente nesses últimos momentos que ele toma contato com a famosa
manipulação das serpentes num ritual que pretende intervenção junto às nuvens para
produção de chuvas. A parte mais rememorada dessa cerimônia, devido ao seu apelo
sensacionalista, é o momento em que grupos de índios manipulam as serpentes com as
mãos nuas e as prendem na boca para soltá-las em seguida e esperar seu retorno em
forma de raio. Em seguida volta para Hamburgo.

Tratar desse texto, assim como de toda obra de Warburg, implica um intrigante e
aparente contrasenso: o descompasso entre sua fama e o volume e condições de acesso
de sua obra. Aby Warburg é uma das personagens mais instigantes do pensamento nas
ciências humanas no século XX. Com grande influência em autores como Carlo
Ginsbug, Ernest H. Gombrich ou Michael Baxandall. Mais recentemente podemos
traçar suas marcas em Timothy J. Clark e Pierre Bourdieu. Algumas referências ao seu
pensamendo aparecem por tabela, através da citação de autores que se inspiraram
fortemente em seu trabalho. Clifford Geertz, por exemplo, em seu famoso ensaio sobre
a arte como sistema cultural, aponta o trabalho de Baxandall como exemplo do que ele
sugere e entende por uma etnografia das obras de arte.

Um dado espantoso, no entanto, dado uma presença tão forte em tantos autores
tão conhecidos, é o fato de que Warburg publicou pouco em vida e que as traduções de
seus textos são igualmente escassas. A biblioteca do Instituo Warburg em Londres
registra poucas obras suas. Há apenas um texto com data mais antiga, de 1939, sobre
sua viagem aos Estados Unidos, citada acima, cujo índice indica tratar-se de uma
conferência sobre povos pueblos (a chamada contém uma observação que ressalta que o
material disponível é uma cópia de artigo do jornal do próprio instituto). Ao todo são 78
entradas, mas a maioria é de publicações póstumas, como a já citada. Há algumas
traduções para o italiano, uma publicação completa de suas obras em japonês (tradução
de Tetsuhiro Kato de 2003) e pouco mais do que isso. Há também uma publicação de
1997 intitulada Photographs at the Frontier: Aby Warburg in América 1895-1896,
organizado por Benedetta Cestelli Guidi e Nicholas Mann, ralizada por Merrell
Holberton. Aparentemente este livro traz apenas as reproduções das fotografias tiradas
por Warburg durante sua viagem. A maior parte dos títulos está em alemão e foi
publicado a partir dos anos 80 e as referência são de várias edições da mesma obra.
Uma busca exclusiva por edições de trabalhos de Aby Warburg indica apenas 41
registros (infelizmente a lista que os especificava estava indisponível e não pude saber
quantos são livros, artigos de revistas especializadas ou outros textos quaisquer, como
artigos de jornal).

Em forma de livro, há apenas uma biografia, escrita por Gombrich, intitulada:


Aby Warburg: an intellectual biography, editado pela Phaidon Press em 1997 (não se
trata da data da primeira edição). No entanto há um número razoável de estudos sobre
Warburg, a biblioteca do instituto registra 155 entradas para esta chamada.
Provavelmente a maioria diga respeito a artigos e textos produzidos para o próprio
instituto ou produções do gênero (infelizmente, quando realizei esse consulta, essas
referências também não estavam disponíveis). Uma das mais importantes é, sem dúvida,
a homenagem rendida a Warburg por Fritz Saxl. Escrita em 1929/30, pouco após o
falecimento do pensador, o texto foi publicado em inglês pelo próprio instituto apenas
em 1957 e recebeu uma edição em alemão em 1980.

A explicação para a falta de publicações desse autor pode estar ligada a duas
razões: primeiro, ao próprio perfil do Instituto; segundo porque talvez a influência de
Warburg tenha sido muito maior por suas posturas e perspectivas de trabalho do que
propriamente por uma grande obra. O Instituto apresenta-se como voltado,
principalmente, ao estudo da tradição clássica na qualidade de tema que unifica a
história da civilização ocidental. A sua origem é a biblioteca do próprio Warburg
centrada no contexto intelectual e social da arte renascentista. Em 1921 essa biblioteca
tornou-se um centro de estudos em história cultural. Em 1933 o instituto mudou-se para
Londres afim de escapar do regime nazista e em 1944 foi incorporado à Universidade de
Londres1.

No que diz respeito especificamente ao texto O Ritual da Serpente, Warburg


orientou F. Saxl de seguinte forma: “Esta atroz convulsão de uma rã decapitada não
poderá ser mostrada a ninguém senão a minha querida esposa ( ....) Mas absolutamente
nada dessas coisas deverá ser impressa.”2 Em 1938, no entanto, Saxl elabora, com
Gertrud Bing (ex-secretária de confiança de Warburg) uma versão para o inglês afim de
publicá-la no jornal do Instituto. Preparada a partir de rascunhos, esta versão é
publicada sem comentários ou revisões. Saxl planejava, na verdade, uma edição de
obras póstumas de Warburg afim de estabelecer uma reputação de autor, mas do que de
uma lenda. Infelizmente isso jamais ocorreu. Segundo Joseph Leo koerner, professor de
história da arte da Universidade de Londres, o editor responsável, Ernest. H. Gombrich
decidiu ele mesmo escrever sua própria grande obra (sic) e publicou em 1970 Aby
Warburg. An Intellectual Biography. O texto, ainda segundo Koerner, cita
exaustivamente extratos de textos inéditos de Warburg afirmando que o que restava era
inutilizável. Ainda hoje um número considerável de seus escritos permanece inacessível

1
Informações extraídas do site do instituto (http://www.sas.ac.uk/warburg ), no
original: “The classical tradition is conceived as the theme which unifies the history of
Western civilization. The bias is not towards 'classical' values in art and literature:
students and scholars will find represented all the strands that link medieval and modern
civilization with its origins in the ancient cultures of the Near East and the
Mediterranean. It is this element of continuity that is stressed in the arrangement of the
Library: the tenacity of symbols and images in European art and architecture, the
persistence of motifs and forms in Western languages and literatures, the gradual
transition, in Western thought, from magical beliefs to religion, science and philosophy,
and the survival and transformation of ancient patterns in social customs and political
institutions. The Institute stems from the personal library of the Hamburg scholar Aby
Warburg (1866–1929), whose research centred on the intellectual and social context of
Renaissance art. In 1921 this library became a research institute in cultural history, and
both its historical scope and its activities as a centre for lectures and publications
expanded. In 1933 it moved from Germany to London to escape the Nazi regime, and in
1944 it was incorporated in the University of London. It is now a member-Institute of
the University’s School of Advanced Study. Its first Director was Fritz Saxl followed by
Henri Frankfort, Gertrud Bing, E. H. Gombrich, J. B. Trapp, Nicholas Mann and
Charles Hope”
2
WARBURG, Aby. Cópia de carta datada de 26 de abril de 1923 enviada por Warburg a F. Saxl e
publicada como encarte em Koener, p. 58.
e, para Koener, as duas únicas boas traduções de seu alemão difícil são justamente do
Ritual da Serpente: uma de 1990 intitulada Essais Florentins, de Sibylle Muller, e outra
de Philippe-Alain Michaud que contém em anexo o rascunho inédito da conferência. Há
uma tradução para o alemão, de 1988, coordenada por Ulrich Raulff, que foi produzida
a partir de um texto original datilografado e não sobre o que foi elaborado para tradução
em 1938. A nova tradução para o inglês, de Michael Steinberg, se afirma completa, no
entanto, o texto datilografado que Warburg tinha diante dos olhos enquanto falava havia
sido elaborado por Saxl e Bing a parti de rascunhos manuscritos que ele os havia
enviado de Kreuslingen. O autor ainda os cobriu de anotações e correções e, para
completar, não leu, mas discorreu sem olhar para o papel. Apenas ao fim dos anos 80
esse texto foi organizado com a ajuda de Anne-Marie Meyer em cujo trabalho baseou as
versões inglesa e alemã.

O exame desse material, no entanto, deve levar em conta também as suas


condições de publicação. Assim como Carlo Ginsburg aponta que na Itália houve o
aparecimento quase simultâneo de textos de Aby Warburg, F. Saxl, E. H. Gombrich e
Panofsky, o que indicava uma vontade atualização cultural, cujo sentido ele desenvolve
em seguida, devemos nos perguntar também o sentido dessas aparições na França, bem
como do interesse em sua absorção no Brasil.

Ginsburg destaca como questão central ao pensamento de Aby Warburg a


utilização de testemunhos figurativos como fontes históricas. Esse ponto é retomado na
França hoje, mas associado a outras questões: a memória e o movimento. Não
necessariamente devemos concordar com as divisões de área do conhecimento
propostas nessas retomadas desse pensador, o que importa realmente é o quanto essas
apropriações nos ajudam a esclarece as matrizes das inquietações de Warburg e nos
permitem lançar novas luzes sobre seus desdobramentos, que, conforme frisei, são
bastante amplos. Sem querer discorrer sobre as divisões entre história, ciências sociais
ou outras áreas das humanidades, parece claro que qualquer avanço na incorporação de
testemunhos figurativas na análise histórica é impactante para o conjunto.

Uma primeira distinção entre as leituras na frança e na Itália da obra de Warburg


está no fato de que o texto sobre a sua viagem aos Estados Unidos não recebeu tradução
para o italiano, enquanto que, para os franceses, é apontado como essencial para o
entendimento de seu pensamento e foi publicado na integra em dois livros recentes.
Ginsburg não o cita, mas menciona a viagem como essencial para a interpretação de
Warburg sobre a Antiguidade Clássica e o Renascimento na medida em que ele sobre a
influência do contato com um “mundo de emoções primitivas e violentas” (Ginsburg: p
43). Ressalta ainda, a partir de uma observação de C. G. Heise, que o objetivo de
Warburg era duplo: “por um lado, era preciso considerar as obras de arte à luz de
testemunhos históricos, de qualquer tipo e nível, em condições de esclarecer a gênese e
o seu significado; por outro, a própria obra de arte e as figurações de modo geral
deveriam ser interpretadas como uma fonte sui generis para a reconstrução histórica.”
(Ginsburg: p. 56)

Há uma recusa, portanto, em proceder uma passagem direta dos testemunhos de


qualquer tipo à obra de arte. Isto é, mesmo que um autor declare sua interpretação
daquilo que produziu, não necessariamente suas palavras devem ser tomadas como
definitivas ou mesmo totalmente explicativas do sentido dessa mesma obra. Não se trata
obviamente de mentira ou falta de capacidade, mas de ausência de domínio absoluto
sobre o sentido do que foi produzido. Ou seja, nenhum autor é totalmente consciente
das referências que mobiliza ao produzir uma imagem qualquer. Pierre Bourdieu definiu
essa questão como postulado básico das ciências sociais: os agentes sociais não detêm
verdades objetivas sobre suas posições na sociedade. Acaso o inverso fosse verdadeiro
não seria necessária toda uma investigação sobre relações sociais para compreendermos
a verdadeira conseqüência de certas tomadas de posição e das ações daqueles que
investigamos, bastaria inquiri-los diretamente e tomar suas respostas como dados
acabados e completos.

Por outro lado, está bastante claro, a partir de Warburg, que a idéia de uma
explicação puramente interna para o sentido das obras de arte é insuficiente. Ele recusa
a existência no homem de uma faculdade que o torne capaz de julgar o belo, seja esse
julgamento anterior ou posterior à obra, mais ainda de que esse julgamento seja
universal, por qualquer processo que isso se realize. Esse julgamento é condicionado
por um contexto histórico determinado. Toda a dificuldade que surge, no entanto, a
partir dessa proposição inicial, que, inclusive, é facilmente demonstrada, está no fato de
que as tentativas de buscar uma explicação para o sentido da obra de arte por forças
específicas e claramente discerníveis no próprio mundo da arte e que não remeta nem ao
puramente estético, nem ao reflexo imediato de outras esferas da vida social, segundo
Ginsburg, fracassaram. Ou seja, se o pressuposto pode ser validado a partir de
comparações entre épocas ou culturas distintas, não se pode dizer o mesmo da maioria
das pesquisas que procuraram tratar as obras de arte buscando outros recursos que não
uma leitura estética fechada em si mesma. A maioria dos mesmos acabou escorregando
para um determinismo disfarçado que não fez outra coisa senão apresentar a produção
iconográfica como resultado de ações movidas em outras atividades, como a política ou
a religiosa, como se ela não tivesse independência alguma, o que lhe retira o interesse
enquanto material investigativo autônomo.

Esse diagnóstico bastante pessimista de Ginsburg é amenizado pelo


reconhecimento do grande avanço que esse problema recebeu após a obra de um
sucessor de Warburg, Gombrich. Ele teria produzido a melhor demonstração de que o
pintor não pode copiar a realidade, de que ele não pinta o que vê. Entre a intenção do
registro e faculdade da visão interpõe-se um aprendizado que permite ver e representar,
aprendizado, nos termos de Gombrich, de esquemas. Esses esquemas são aprendidos
sobretudo a partir de outros registros visuais e, inclusive, extrapolam o próprio universo
da arte. Daí uma primeira relação mais sólida entre o mundo da arte e o contexto social
no qual ela existe. Se não estava resolvido o método ou os pressupostos a partir dos
quais investigar uma realidade social usando fontes iconográficas, pelo menos estava
demonstrado com mais clareza que o olhar depende de uma tradição do ver.

Há uma questão, no entanto, que permanece aberta. A demonstração de


Gombrich, se correta, tem um campo de aplicação que extrapola em muito um projeto
de entendimento da Antiguidade Clássica e de suas influências. Gombrich trabalha com
um universo relativamente fechado, retrocede dos pintores e fotógrafos modernos,
lentamente, passo a passo, aos que informaram os esquemas nos quais eles se
inspiraram e transformaram, mas que permanecem essenciais para a recuperação do seu
olhar na medida em que constituíram sua própria possibilidade de ver e de retratar. Uma
das bases para esse procedimento é o fato, segundo Gombrich, de que o homem não é
capaz de memorizar tons de cores, por exemplo, mas relações entre tons. Essa
capacidade seria uma importante aquisição evolutiva, permite ao homem,
independentemente das variações de luminosidade, recuperar distinções entre elementos
cuja percepção das cores varia conforme a hora do dia. Ao invés de lembrar das cores,
lembra das distinções, fazendo com que consiga sempre se situar no mundo que vê.
Assim, para podermos ver o que certos pintores ou seus admiradores viram, é preciso
construir uma série, uma sequência que nos permita olhar como ele.
Para Koerner, o entendimento da contribuição da obra de Warburg e do papel de
seus herdeiros passa por uma revisão mais detalhada de sua biografia, do material que
ele produziu e das suas apropriações. Esse seu comentador rememora fatos que
permitiriam situar melhor o sentido, sobretudo, desse texto em particular. Warburg
pertenceu à família de banqueiros mais velha do mundo, no entanto, não apenas
abandonou a profissão como também rompeu com judaísmo. Ao se inscrever numa
disciplina tida como anti-semita na universidade de Bonn em 1886, história da arte,
Warbug desperta os protestos dos parentes que o queriam profissional liberal ou rabino.
Em 1892 desposa, a contra gosto da família, Mary Hertz, uma estudante de artes de
família luterana. A insanidade de Warburg encontrou alimento nos próprios
acontecimentos daqueles anos: um policial que protegia um seu irmão ameaçado de
morte, era, na verdade, espião nazista; um amigo da família havia sido assassinado 1922
por um membro desse mesmo grupo. Ela tinha no imperador uma figura tolerante que se
retirara do poder após a derrota de 1918 abrindo caminho para o anti-semitismo.

O diagnóstico de seu internamento foi: esquizofrênico e maníaco depressivo. Em


uma carta a Freud, Ludwig Binswanger, o médico de Warburg atesta que não lhe resta
qualquer lugar para a atividade intelectual no domínio científico. O ambiente na clínica,
no entanto, não representava para ele um grande deslocamento de sua posição
intelectual ou de classe. Entre os internos daquela época encontravam-se o dançarino
Nijinsky, o artista expressionista Ernst Ludwig Kirchner, o químico e industrial Adolf
Werner, o poeta Leonard Frank e a feminista Bertha Pappenheim (Koerner, p. 15). A
platéia, cujos nomes não se pôde recuperar, provavelmente tinha uma capacidade de
ouvir as palavras de Warburg e seu conteúdo maior do que o comum.

Durante seus devaneios na clínica ele acredita que toda sua família lá estava em
algum lugar secreto esperando para ser massacrada e que a carne servida durantes as
refeições vinha dos corpos de seus próprios filhos. Sua terapia era composta de repouso,
ópio e terapia. Com a ajudar de Fritz Saxl ele consegue que seus médicos prometam sua
alta se ele conseguisse redigir e pronunciar uma conferência erudita sobre um tema à
sua escolha. Ele decide falar sobre a serpente e interpela seus dados à busca de
elementos para discorrer sobre diagnósticos com que ele mesmo é identificado: quer
saber se os índios que as manipulam são mesmo esquizóides e se realmente vivem entre
o delírio e a razão (Koerner: p 19).
Apesar dessas condições absolutamente anormais de produção de uma
conferência o resultado é absolutamente equilibrado. No entanto, para Koerner, o
interesse dessa conferência não está no que revela sobre o Hopis e seus rituais, mas na
importância que tem para o entendimento da personalidade de Warburg e sua
contribuição à história da arte. Para esse comentador de sua obra, embora seja ela seu
maior interesse, a maneira como Warburg lidou com as agruras da guerra, seu judaísmo
e sua relação com a Alemanha, sua herança e sua saúde mental, constitui uma espécie
de fábula sobre nossa própria identidade no mundo moderno (Koerner, p. 23). Ao fim
de seu texto, afinal, há um julgamento sobre a modernidade: a eletricidade teria
destruído o espaço como zona de contemplação dotada de uma dimensão espiritual
formada pelo conflito entre o pensamento mítico e o simbólico.

O texto de Koerner afasta a possibilidade de qualquer interesse antropológico em


relação ao relato de Warburg. Para ele a descrição contida sobre os índios pueblos é tida
como desimportante e no máximo pertence à pré-história dos estudos americanistas. O
comentador destaca algumas frases de Warburg que atestariam seu próprio descrédito
quanto a certas qualidades de seu trabalho, em resumo, passagens nas quais ele afirma
que: os fatos tratadas datam de mais de 27 anos antes de sua apresentação; que não teve
tempo de rever suas anotações e trabalha-las suficientemente; que suas impressões não
eram penetrantes porque ele nunca aprendeu a língua dos índios; e que de todo modo
uma viagem de poucas semanas não poderia pretender a impressões profundas; e que a
cultura indígena havia sido transformada pelas missões espanholas no século XIX.
Assim, segundo esse comentador, o próprio autor considerava que os nativos estavam já
demasiadamente influenciados pela cultura ocidental e haviam se assemelhado muito a
eles para poderem encarnar a natureza face à cultura, pressuposição inversa ao rápido
comentário de Ginsburg que destaquei anteriormente.

Um dos elementos mais destacados do pensamento de Warburg é a sua atenção


ao detalhe e ao elemento disruptivo da imagem e é exatamente a partir dessa herança tão
ressaltada de seu método que Koerner constrói a principal diferença entre o interesse de
sua obra para a antropologia e para a história da arte em detrimento da primeira. O que
Warburg teria aprendido com os antropólogos com quem teve contato nos Estados
Unidos seria sua postura desprendida, desenvolvida a partir do contato com outras
culturas, e que poderia ser aplicada à sua própria cultura através do tratamento
desapaixonado do familiar, como se faria com qualquer coisa estranha, ao mesmo tempo
que explorando no passado histórico o familiar.

Koener aponta como exemplo dessa sua exploração do estranho a sua análise da
igreja florentina da Santíssima Anunziata. A partir de documentos inéditos ele nos
mostra a presença de pessoas contemporâneas ao artista nas telas sobre passagens
sagradas por ele pintadas, fazendo do espaço da igreja um campo de jogo do mundo
profano (Koerner: 34). Os exemplos podem se multiplicar em muitos, talvez à própria
extensão da obra de Warburg. Ele nunca se constituiu, assim, em um grande pensador
da cultura ocidental ou da modernidade nos moldes especulativos de outros grandes
autores. Ao contrário, foi sua postura diante dos problemas da cultura ocidental,
bastante inovadora, que lhe rendeu sua fama. Warburg rompeu com a noção de que telas
constituíam totalidades fechadas sobre si mesmas em estado de perfeição. Ele evidencia
nelas a presença não apenas dos rostos mundanos, mas também de elementos de
religiões pagãs contrapondo-se á idéia de uma nifestação religiosa pura, chegando,
através das rupturas, às contradições da cultura e do pensamento sobre a arte e a
civilização ocidental.

Essa qualidade tão rica é, para koerner, exatamente o que o afasta da


antropologia. Para esse comentador a antropologia recusa a diferença radical dos povos
que lhe são aparentemente estranhos ao estudar a totalidade de culturas exóticas e
rendendo crenças e práticas irracionais à lógica de um sistema amplo. Como exemplo
do que profere Koerner cita o nome de Mauss e o dom (sic.). A antropologia histórica,
ao contrário, redescobre a diferença procurando-a nas fraturas e margens do passado de
sua própria cultura.

Em termos mais precisos, no entanto, a posição da antropologia não pode ser


expressa de modo tão simples. Pode-se facilmente, com base na história dessa ciência,
chegar à proposição exatamente inversa: o que nos diferencia não é a constituição física
e biológica, mas a forma através da qual o que há de universal em nós se mostra em
várias formações culturais sempre dinâmicas. Mesmo em seus primórdios a
antropologia buscava os elementos disruptivos em nossa própria cultura, tomava-o
como sobrevivência do passado, traço a partir do qual era possível reconstruir a linha
evolutiva geral das sociedades. Assim, a diferenciação, porque ampla e geral demais,
não se sustenta.
Uma vez descartadas tanto as pretenções de Warburg pela antropologia quanto o
possível viés antropológico do texto o autor remete o seu interesse pelos índios pueblos
a causas psicológicas. Nas anotações ao texto apresentado em Bellevue Warburg teria
remarcado sua necessidade de compensar sua dispensa do exército, de mostrar virilidade
após ter abandonado sua esposa e filhos no meio de uma epidemia de cólera e de nutrir
uma fantasia romanesca. Completa o raciocínio com lembranças da infância de Warburg
nas quais, aos sete anos, ele alega ter se salvado da opressão de sacerdotes hebraicos e
da de seu preceptor ao alimentar-se às escondidas de lingüiça de carne de porco e de ter
consumido relatos sobre os índios da América, deliciosos por sua crueza romântica. A
riqueza da perspectiva aberta de Warburg para com os índios é atribuída a uma
associação entre a condição dos mesmos e a sua própria, ambos ameaçados por um
poderio superior e por preconceitos racistas (Koerner: 34 a 45).

O interesse dos alemães por esta obra em especial, para Koerner, estaria ligada
ao anti-americanismo de Warburg. Ele chama a atenção para um genocídio que se
passou não nas mãos do alemães, mas na dos americanos. A sua viagem aconteceu
cinco anos depois da batalha de Wounded Knee na qual a última grande sublevação
indígena sofreu sua derrota definitiva. Lamentar-se-iam os alemães de que os ingleses
não souberam valorizar o tesouro que tinham em mãos (Koerner: p. 42 e 43).

Koerner atesta, ao final, que a conferência foi um movimento de refluxo à


Europa. Warburg teria explicado o que viu em Oraibi pelo que sabia da antiguidade
Clássica e aplica em seguida o que sabia sobre os pueblos à antiguidade, num
movimento circular. O último item do texto de Koerner remete justamente ao ponto de
partida de Carlo Severie afim de evidenciar o quanto Warburg devia à antropologia.
Warburg declarou que desejava para si mesmo o papel de “sismógrafo da alma” capaz
de lidar e de romper com as distâncias entre oriente e ocidente, entre a antiguidade pagã
e a renascença cristã.

Antes de passar ao texto de Severie, gostaria de destacar algumas passagens da


publicação na qual ele leu pela primeira vez o relato tratado aqui, trata-se do livro de
Philippe-Alain Michaud, Aby Warburg et l’image en movement. Há um capítulo
especialmente dedicado a esta viagem, em tom também psicológico, mas bastante
diverso do de Koener. Começa, por exemplo, com uma informação bem humorada
sobre as relações familiares de Warburg: na oração fúnebre de Warburg seu irmão Max
contou a anedota de que quando ambos ainda eram crianças o primogênito lhe cedeu
seus direitos à frente dos negócios da família em função da promessa de que ele lhe
compraria todos os livros que quisesse durante toda sua vida. (Michaud, p. 172 )

Michaude recupera que em uma nota dirigida ao seu médico, kreuslingen, em


março de 1924, enquanto preparava a conferência, Warburg escreve que “sentia uma tal
repugnância pelo vazio da civilização do leste americano ele resolveu empreender uma
fuga em direção às coisas reais e ao saber, à aventura, indo a Washinton visitar o
Smithsonian Institution.”3 Mais adiante na mesma missiva ele conta que estava tão
descontente das tagarelices estéreis envolvendo a história da arte que depois de sua
viagem a Berlim pensava em dedicar-se à medicina.

As notas para a conferência revelam ainda que sua viagem foi inspirada pela
obra de Gustav Nordenskiold, arqueólogo sueco que publicou The Cliff-Dwellers of the
Mesa Verde, Southwestern Colorado, publicado em Estocolmo em 1893, mais
particularmente por uma reprodução fotográfico contida neste livro, que, apesar da sua
má qualidade, cativou fortemente a atenção de Warburg. O tema era uma fotografia de
um povoado índio encrustrado numa grande falha de um rochedo. É a esta obra que o
ele confere a base científica de sua viagem. (Michaud: 176) Em outra nota Warburg se
diz profundamente em débito com esses índios pois sem esta viagem não estaria em
condições de dar um fundamento amplo à psicologia da Renascença (Michaud: 183).

Muito orgulhoso de seu desempenho, Warburg conta que não leu o texto, mas
declamou-o sem perder o fio narrativo. Michaud concorda que a apresentação, além de
testemunhar sua recuperação, destinava-se a mostrar que os caminhos do pensamento
apresentam certas similitudes com a concepção de mundo dos índios e poderiam ser
explicados através dele (Michaud: 187). Para ele, o contraste entre a magia fantástica e
os fins materiais não teriam nada de esquizóide, ao contrário, revelariam a ausência de
barreiras entre o homem e o mundo que o rodeia. A partir, portanto, de seu contato com
a arqueologia, Warburg teria descoberto um novo filão para a história da arte entendida
com reconstituição do passado.

Vemos nesses apontamentos e nessa apropriação do texto e das notas de


Warburg como os mesmo elementos destacados por Koerner embasam posições
exatamente inversas às suas. Não há aqui distância da antropologia, nem demissão
frente ao problema de entendimento dos povos pueblos, não há também compensação

3
Warburg, apud Michaud, p. 174.
psicológica fundamentada na sua condição de judeu, mas sobretudo a busca de uma
postura científica que ele credita a autores de grande importância coetâneos a Warburg.
A sua disposição e atenção não estariam voltadas para a Europa, mas justamente o
inverso, revelariam profundo descontentamento tanto com o pensamento como para
com a cultura ocidental.

Carlo Severi, leitor de Michaud, tomou contato mais aprofundado com o


pensamento de Warburg durante uma temporada como pesquisador e professor na Getty
Research Institute for the History and the Humanities em Los Angeles do qual
participam, entre outros, Carlo Ginsburg e Michaell Baxandall. Depois de seu retorno
organizou um seminário na École de Hautes Etudes en Sciences Sociales em janeiro de
1999. Atualmente continua nesta linha de pesquisa desenvolvendo uma reflexão
inovadora sobre a memória que tem em Warburg um de seus principais pilares4.

O ponto central do trabalho de Severi é a conclusão de que a palavra e a imagem


articulam conjuntamente uma técnica de memória, particularmente no contexto ritual, e
que trata-se de uma alternativa que prevaleceu em muitas sociedades sobre o exercício
da escrita (Severi:77). O ponto de partida para a apropriação de Warbug nessa sua
empreitada é justamente o desejo do mesmo em pretender o sentido de sua vida como
um sismógrafo colocado na linha divisória entre culturas. Severi procura se diferenciar
dos historiadores ao afirmar que por lado o pensador alemão inaugurou uma importante
linha de estudos sobre o sentido da imagem enquanto inseparável do contexto no qual
foi produzida e cujas representações sociais veicula. Um segunda possibilidade restaria,
entretanto, inexplorada, a investigação de uma psicologia geral da expressão humana
através das imagens. Esta ambição teria um caráter notadamente antropológico e
poderia ser verificada justamente no texto sobre sua viagem aos Estados Unidos
(Severi: 79).

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Assim se apresenta o programa de Carlo Severi na EHESS: Traditions iconographiques et
mémoire sociale. À partir d’une réflexion sur Aby Warburg et l’anthropologie de l’art, ce séminaire collectif est consacré à l’étude du
mode de fonctionnement des traditions iconographiques. On essaiera, comme les années précédentes, d’évaluer la relation de ces
traditions avec des pratiques liées a la mémoire sociale, et de les distinguer d’autres types de tradition, qu’elles soient écrites ou orales.
Cette année, on poursuivra dans le travail de généralisation anthropologique du concept warburghien de nachleben (« vie posthume »)
des iconographies, en focalisant sur la notion de réinterprétation des images dans le contexte d’échange ou de conflit entre cultures
différentes.
Partindo de uma suposição radicalmente inversa àquela dos autores anteriores,
Severi recupera vários pensadores fundamentais para o pensamento de Warburg que
acabam por conformar um projeto para além da revisão do renascimento, com alta
relevância para a antropologia contemporânea, e que ele primeiro experimenta em sua
viagem aos Hopis. Uma das questões fundamentais que ele procura esclarecer é: como
se dá a formação e transmissão cultural de símbolos. A primeira pista que Severi segue
afim de traçar as origens dessa questão é um texto de Edgar Wind no qual ele destaca a
importância de Robert Vischer para a compreensão dos pontos de vista de Warbug. Em
1873 Vischer publicou um pequeno ensaio revolucionário sobre a “empatia visual”. A
questão que ele se colocava é: porque certas imagens são mais intensas do que outras?
A resposta implicava um exame do nosso olhar bem como de nossa imaginação.
Vischer, influenciado, por sua vez, pelo pensamento de Scherner, conclui que “de fato,
assim como a imagem onírica, a projeção inconsciente de emoções intensifica a
representação visual através de dois caminhos: ela liga intimamente o observador à
imagem criando uma espécie de compromisso entre o que emana da imaginação e o
que se encontra representado pela percepção, e ela enriquece a imagem de cadeias
associativa de idéias.” (Severi: 81). Ou seja, o ato de perceber implica sempre uma
participação particular daquele que percebe pois requer uma projeção do que é
percebido, o que dota esse ato de uma complexidade histórica e cultural.

É munido dessa perspectiva que Warburg descobre nas suas observações sobre
os Hopis que a representação realista e a abstrata não são opostas, ao contrário, podem
ser complementares. Essas conclusões teriam encontrado eco no pensamento de Franz
Boas para quem existiria uma representação realista, imitando a perspectiva unifocal do
olho, e outra imitando como os objetos são representados pelo espírito. O que Warburg
descobre entre os Hopis é exatamente que a representação mental excede aquilo que a
imagem permite ver. A figura de uma ave, por exemplo, pode ser decomposta em suas
partes essenciais e aparecer como uma espécie de abstração heráldica que requer não
apenas um olhar mas um processo de decifração (Severi: 83/84). Esse foi o primeiro
passo para romper com a idéia de que a leitura de uma obra de arte deve ser realizada
apenas a partir de seus elementos constituintes, pois isso deixa de lado capacidades
específicas de ver.

Até este ponto, na verdade, não há muito porque considerar, como Severi
pretende, que estamos diante de uma brecha esquecida do pensamento de Warburg e
que poderia configurar uma outra linha de pesquisa diferenciada e ligada
especificamente à antropologia. Na verdade, a obra de Gombrich, na melhor tradição do
pensamento do Instituto, procura responder a essas mesmas questões e as toma com
ponto de partida. Através de referências muito mais elaboradas sobre o ato físico e
biológico do ver e também de dados sobre as história da arte, Gombrich demonstra o
quanto ao olhar é indispensável aquilo que ele denomina de “esquemas”, ou referências
visuais que tornam possível a representação e sua observação.

Ao invés de seguir os passos dos sucessores de Warburg, no entanto, Severi


retoma outras raízes do pensamento de Warburg. O jovem visitante dos Estados Unidos,
ao encontrar Boas, Holmes, Powell, Cushing e Mooney, no Smithsonian Institute, teria
vislumbrado por um momento a possibilidade de se tornar antropólogo e segue os
conselhos desses fundadores da disciplina nos Estados Unidos ao partir para o Arizona
em sua busca pelos índios Hopi. Haveria, no entanto, muito mais a ser decifrado, para
Severi, desse encontro. Toda uma tradição esquecida da antropologia norte-americana,
cujo traço praticamente se perdeu, estaria presente nas figuras com quem Warburg
travou contato. Este ramo atrofiado da antropologia seria o da biologia das imagens ou
biologia dos ornamentos e é nele que, segundo Severi, Warburg lança as raízes de suas
reflexões (Severi:88). A maneira como Severi se refere a Warburg é altamente
significativa da sua interpretação: “a antropologia Warburgiana” (sic.) Haveria mesmo
uma tentativa, ou ensaio de tornar-se antropólogo. As motivações psicológicas estão
totalmente ausentes de seu relato, e as inclinações para o pensamento ocidental também.
Não há desconfiança em relação ao intento de Warburg ou ao seu projeto, ele desejava
produzir uma etnografia ou ao menos contribuir para com um problema importante da
antropologia de sua época. Seria absolutamente certo que Warburg conhecia esse ramo
da antropologia, mesmo porque Vischer estaria impregnado dela.

Um dos principais nomes dessa antropologia foi Alfred Haddon, que tornou-se,
em 1910, primeiro professor de antropologia de Cambridge. Ao lado de Pitt-Rivers,
Stolpe e Colley March, foi um dos pensadores mais importante a dedicar-se a uma
antropologia das imagens. O objetivo principal desse ramo esquecido da antropologia
seria o de estudar a distribuição geográfica das formas na arte primitiva, projeto que
estava maculado por uma perspectiva evolucionista, tratava-se de definir linhas
seqüenciais de formas afim de reconstruir um passado perdido através de suposições
extraídas das conclusões fundamentadas na distribuição ainda visível e encontrada nos
povos primitivos. Pitt Rivers já havia postulado que o primeiro reflexo do homem
primitivo não é o de traçar uma forma sobre um suporte, mas de reconhecer uma forma
no ambiente. Uma pedra, por exemplo, na qual se pode projetar a forma de uma foca.
Esse passo de análise nos faz trocar a idéia da imitação pela da interpretação de seu
conteúdo. Através de processo de simplificação e projeção chegamos à questão
fundamental do sentido. Após uma seleção que retém os traços essenciais do objeto
representado, passar-se-ia à elaboração de um modelo gráfico que se poderia repetir.
Suas variações e desenvolvimento histórico poderiam ser traçados mesmo se os povos
que os produziram já não tivessem consciência de sua origem. A contribuição de
Warburg, para Severi, estaria justamente em deslocar a questão da investigação de
linhagens de formas de representação para a forma pela qual a memória se instaura nas
sociedades primitivas. Severi desenvolve seu texto a partir desse ponto na direção de
fornecer alguns avanços nesse aspecto.

Sem querer cansar o leitor com mais uma leitura dessa obra, gostaria de destacar
algumas passagens à guisa de conclusão. Warburg abre a conferência ressaltando a
distância temporal entre os fatos que ele passará a narrar e o momento presente, o que
pretende superar em parte pelas suas anotações e outras lembrança que trouxe e que
gostaria de ter examinado melhor. Apresenta um duplo objetivo: transmitir aos seus
ouvintes, ao menos através das fotografias, uma impressão sobre um mundo e de uma
cultura que morrem; e também de também de expor um problema decisivo para a
história em geral, saber em que medida devemos ver nesses povos as características
essenciais de uma humanidade pagã primitiva? (Warburg: 59)

Esta última pergunta é melhor formulada em seguida na medida em que torna


mais precisa a riqueza de estar entre os pueblo para lidar com a possível resposta. A
condição particular desses povos os torna um campo fértil de investigações na medida
em que estão justamente em contato com outras culturas. Warburg se pergunta “Como,
no meio de um país que fez da civilização tecnológica uma admirável arma de precisão,
um enclave de humanidade pagã primitiva pôde se manter – lutando com muito
pragmatismo pela sobrevivência – se entregar tão frequentemente, para favorecer
justamente a agricultura e a caça, a práticas mágicas que nós nos contentamos
habitualmente de condenar como sintoma de uma humanidade ultrapassada?”
(Warburg: 59) A pergunta encerra desde a sua formulação uma abertura otimista para
com a maneira como esses índios lidam com o meio em que vivem e aponta para uma
ampliação das possibilidades de investigação para além das sobrevivências deslocadas
ou dos comportamentos esquizóides ou propriamente primitivos. Warburg escreve logo
na página seguinte que a convivência entre magia e atividades pragmáticas aparece para
nós como sintoma de contradição interna, mas que, ao contrário, abre infinitas
possibilidades de relação entre o homem e a natureza.

O olhar de Warburg, portanto, está bastante disposto a explorar uma incerteza,


ou um leque de possibilidades que ele não está em condições de antecipar, ou pelo
menos propõe que este seja o princípio a partir do qual abordar uma cultura marcada
pela convivência entre o fantástico e o pragmático. Ao apontar a existência de fatores
objetivos nas práticas hopi, entre os quais o principal é a escassez de água, ele não as
está necessariamente interpretando num continuum humano temporal e necessariamente
evolutivo de respostas que caminham da menos para a mais adequada, ele está definindo
o contexto, ou os elementos fundamentais que garantem a sobrevivência desses povos
afim de entender como esses fatores tidos como antagônicos operam. Está definindo um
elemento a partir do qual selecionar e investigar as práticas indígenas.

O que me parece deslocado nessas discussões todas sobre sua obra, que
destaquei acima, na verdade, é a importância atribuída ao que fundamentou posições tão
renovadoras do pensamento sobre as artes. Mais ainda tentar, a partir disso, delimitar
campos específicos aos quais aplicar legitimamente suas descobertas ou posturas.
Parece-me mesmo que estamos diante de uma dinâmica extremamente voltada para
núcleos auto centrados de investigação que pensam seus contatos esquartejando
pensadores e pesquisas de modo bastante aleatório. As incursões na psicologia para
explicar certas atitudes de Warburg certamente são muito especulativas, no seu caso
alimentaram apropriações e divagações bem pouco justificáveis e cuja consistência
permite justificarem qualquer posição que seja. Obviamente temos um caso muito
evidente a particular de mistura entre necessidades psicológicas e a produção de um
texto. Isso não quer dizer que tenha sido diferente em outros autores cujos dados sobre a
vida particular estão indisponíveis ou são considerados irrelevantes. Na verdade, muito
claramente, a biografia desse grande pesquisador é um desafio que cresce na medida das
suas poucas publicações, que servindo de argumento explicativo de qualquer posição.

Esse tipo de abordagem talvez tenha dificultado uma leitura mais ampla e mais
neutra da contribuição de Warburg. Há alguns elementos muito ricos na sua leitura, por
exemplo, o fato de que ele, em nenhum momento, toma os desenhos ou os elementos
tomados com sendo a serpente como meros desenhos ou representações distanciadas e
irreais em relação ao representado. Ele as trata o tempo todo nos termos dos índios, ou
seja, o raio é a serpente. Há mesmo considerações contemporâneas na antropologia que
imaginam essa postura como novidade quando na verdade data de mais de cem anos.

É certo que, como ressalta Saxl, a viagem permitiu a Warburg rever um


problema central na história da arte, o de saber porque a antiguidade clássica aparece de
maneiras diferentes no primeiro renascimento (século XV – em pintores como Boticelli,
Pollaiuolo e Ghirlandaio) e no segundo (século XVIII). Porquê num primeiro momento
esse passado aparece como uma exuberância e festividade e num segundo como nobre
simplicidade. No entanto, não há qualquer motivo para reduzir a pergunta orientadora
de Warburg, como se constitui a forma simbólica?, a uma ramo específico do
pensamento.

Sem querer fazer um balanço, julgar essa ou aquele leitura mais exata ou correta,
nem mesmo uma conciliação forçada, o que me parece sempre artificial pois seria tentar
reconstruir uma totalidade por justaposição ou encaixe de peças imaginadas como
isoladas, menos ainda desprezar contribuições importantes, há alguns pontos que
poderiam ser orientadores de uma leitura mais aberta e rica de Warburg, sobretudo
desse texto em especial. Particularmente importante é a conclusão que extrai da
observação do ritual da serpente: “Mitologia não é regida por energia mínima, não há
fator que desperta racionalidade, ao contrário, para dar conta das coisas conhecíveis se
institui um ser saturado de energia demoníaca, afim de poder manipular à plena mão as
causas dos eventos misteriosos.” (Warburg: 126). Warburg está tratando, assim, a
criação simbólica como um ato de emancipação intelectual (conforme aponta Saxl: p.
150), proposição preciosa não apenas por romper com a noção de que o comportamento
indígena era esquizóide, involuído ou anacrônico em relação aos recursos da sociedade
que o circundava, mas também por questionar de modo geral a distinção e a separação
entre o racional e o simbólico. Soma-se a isso outra proposição igualmente importante e
central ao seu método que pode ser melhor expressa em uma frase que, segundo seus
discípulos, ele gostava de repetir: Deus está no particular. Warburg nos ensina a seguir
as pistas mais mundanas, os dados mais imediatos, a nos deixar levar por nossos objetos
de pesquisa de modo mais intenso e livre, para alcançar uma superação que de modo
algum é redutora ou restrita à racionalidade ou ao espírito, é sistemática e
metodicamente preso aos dados concretos tendo como objetivo final a amplitude do
entendimento do homem.

Bibliografia:

GINSBURG, Carlo. “De A. Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre um problema de


método.” In.: ________ . Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo, Companhia das Letras,
1989.
GUIDI, Benedetta Cestelli. “La collection pueblo d’Aby Warburg”. In.: WARBURG,
Aby. Le Rituel du Serpent. Paris, Macula, 2003, pp. 163 a 192.
KOERNER, Joseph Leo. “Introduction”. In.: WARBURG, Aby. Le Rituel du Serpent.
Paris, Macula, 2003, pp. 9 a 54.
MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg et l’image en movement. Paris, Macula,
1998.
SAXL, Fritz. Le voyage de Warburg au Noveau-Mexique”. In.: WARBURG, Aby. Le
Rituel du Serpent. Paris, Macula, 2003, pp. 149 a 162.
SEVERI, Carlo. “Warburg anthropologue ou le déchiffrement d’une utopie – De la
biologie des images à l’anthropologie de la mémoire”. In.; L’Homme 165/2003, pp. 77
a 128.
WARBURG, Aby. Lê Rituel du Serpent. Paris, Macula, 2003.
WARBURG, Aby. Souvenirs dun voyage en pays Pueblo, 1923. In.: MICHAUD,
Philippe-Alain. Aby Warburg et l’image en movement. Paris, Macula, 1998, pp. 247 a
280.

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