RESUMO
Esse artigo pretende lançar as bases para um estudo taxonômico da memória dos cinemas de rua
– estabelecimentos ou salas de projeções cinematográficas erguidas no espaço urbano em meio às
construções habituais: comércios, serviços, residências – da cidade do Rio de Janeiro sob a ótica
da patrimonialização material e imaterial. Estamos pensando o circuito exibidor carioca,
problematizando-o como parte do patrimônio cultural brasileiro. Através dos novos instrumentos
de reconhecimento e valorização, propomos uma discussão sobre a preservação e tombamento
dos cinemas de rua na capital fluminense. Acreditamos ser o momento ideal para uma proposição
dessa natureza devido às importantes ações de renovação e ampliação das concepções do
patrimônio para além da pedra e cal advindas da nova legislação – que versa sobre a
imaterialidade de bens móveis e imóveis – implementada recentemente.
ABSTRACT
This article intends to create the bases for a systematic study of the memory of street cinemas –
cinematographic exhibition rooms in the urban sidewalks – in Rio de Janeiro under the
patrimonial aspects. The carioca cinemas are rendering problematic as a part of Brazilian cultural
patrimony. Through the new instruments of recognition and valorization, we propose a discussion
about preservation and governmental protection of street cinemas in Rio. We believe now is the
perfect moment to discuss its on account of important renovation and enlargement actions of the
immaterial patrimony conceptions succeeds of new legislation recently implemented.
INTRODUÇÃO
*
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social - PPGMS/UNIRIO. Bolsista CAPES.
1
ou imóveis que podem contemplar ações de preservação no Rio. Acreditamos ser o momento
ideal para uma proposição dessa natureza devido às importantes ações de renovação e ampliação
das concepções do patrimônio para além da pedra e cal advindas da nova legislação
implementada recentemente.
Estamos vasculhando o processo de extinção das salas de cinema das calçadas da cidade e
tentaremos recuperar o impacto dessa mudança na configuração do espaço citadino;
referenciando um patrimônio material – do prédio, da arquitetura, dos equipamentos – e imaterial
– da experiência cinematográfica, dos vestígios. Trabalhamos, sobretudo, através dos rastros
deixados pelos antigos cinemas de rua – vestígios inscritos no texto da cidade.
A maior parte dos cinemas de rua foi vendida e virou outra coisa. Algumas poucas salas
ainda permanecem fechadas aguardando seu destino incerto. Outras poucas figuram dentre os
cinemas reformados. Em número infinitamente mais reduzido temos novas salas inauguradas nas
ruas. Temos ainda poucas notícias do reconhecimento dos cinemas de rua como parte do
patrimônio cultural de nossa cidade. A patrimonialização a partir do tombamento contempla
atualmente poucos cinemas de rua no município do Rio de Janeiro. E esse tombamento não
significa o resguardo do bem por completo – protege, muitas vezes, somente a fachada ou até
mesmo a edificação, mas não garante a salvaguarda de seu uso.
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Das fotografias animadas ao cinema como experiência estética, o espaço que acolheu
estas imagens em movimento passou das pequenas salas improvisadas do final do século
para o requinte dos Roxys e Capitols disseminados pelo mundo inteiro. A definição do
programa arquitetônico sala de exibição, do fato mesmo de ter sua origem na afirmação
e desenvolvimento de um cinema dominante, foi profundamente marcada pelos valores
que este cinema estabeleceu. No Rio de Janeiro, a cadeia de cinemas que a Metro-
Goldwyn-Mayer fez construir para exibir as suas produções com exclusividade fez com
que o comércio cinematográfico sofresse um forte impacto e que, junto ao público, se
1
Complexos contendo várias salas de exibição concentrados em shopping centers. Geralmente associados a um
plano de exportação do produto cinematográfico norte-americano. Os multiplex oferecem uma “otimização total do
espaço, oferta múltipla de filmes, economia de escala na administração, projeto inteligente de automação, oferta de
serviços adicionais, além de uma pulverização do risco de fracasso de bilheteria (devido à possibilidade de
manutenção de um título em cartaz por um tempo maior) e a alta rotatividade entre as várias salas”. (ALMEIDA;
BUTCHER, 2003, p. 65)
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2
Os Cines Santa Teresa e Cine Arte Bangu são legítimos cinemas de rua inaugurados em 2003 e 2006
respectivamente.
4
dos shoppings centers se dão de forma isolada, provando que é cada vez mais difícil a comunhão
entre rua e cinema.
erigimos das narrativas que elas exprimem e das estruturas que as colocam em ordem, as
motivam ou podem até modificá-las.
Uma série de fatores contribuiu para a precipitação e desenrolar do processo de extinção
dos cinemas de rua. A pressão da indústria cinematográfica dominante; a força do capital
estrangeiro; a estrutura sustentada pelos grandes exibidores; a resistência da cinematografia local,
o diálogo estabelecido entre o filme brasileiro e seu público e o poder aquisitivo do público
nacional; a violência urbana; o comércio de rua perdendo a força, a migração para os shoppings
centers e a mudança de hábitos de consumo da população; a entrada em cena da televisão, do
videocassete, da TV por assinatura; as novas tecnologias digitais e a implantação do conceito
multiplex nos grandes centros urbanos brasileiros.
Cada vez mais intenso, o fenômeno do desaparecimento das salas de exibição
cinematográfica das calçadas do Rio não é uma singularidade de nossa região. O Brasil todo, o
mundo inteiro – salvo raríssimas exceções, como a Índia, que só servem para vir confirmar a
regra – experimenta o esvaziamento dos cinemas de rua do espaço urbano.
Parece que os cinemas de rua carregam consigo várias das características necessárias para
que possam ser incluídos dentre os bens que reivindicam um estatuto de reconhecimento como
patrimônio cultural. Os cinemas de rua podem ser compreendidos como forma de expressão; são
passíveis de reconhecimento também como modos de criar, fazer e viver; figuram,
indubitavelmente, entre as mais significativas criações científicas, artísticas e tecnológicas de
nosso tempo; podem ainda ser incluídos dentre as edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais e conjuntos urbanos de valor histórico, paisagístico, artístico e
científico.
3
Ver mais detalhes em SOUZA, William V. De cinema a igreja: a memória do Cine Palácio Campo Grande. Rio de
Janeiro: dissertação de mestrado, PPGMS/UNIRIO, 2009.
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A maior parte dos antigos cinemas de rua brasileiros tornou-se igreja.
7
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no Rio de Janeiro5. Mas como há também
possibilidades de tombamentos por parte de instituições patrimoniais estaduais e municipais
deparamo-nos com a informação de que o Cine Íris – que possui uma clarabóia projetada por
Eiffel, o mesmo da torre francesa – está tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural
(INEPAC).6 Encontramos ainda, via Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do
Rio de Janeiro (CMPC) – subordinado à Secretaria Extraordinária de Promoção, Defesa,
Desenvolvimento e Revitalização do Patrimônio e da Memória Histórico-Cultural da Cidade do
Rio de Janeiro (SEDREPAHC) –, um Decreto de Lei Municipal (Decreto 20.048/2001) que prevê
a proteção dos imóveis construídos até o ano de 1937.7 Nesse caso, a demolição ou alteração
destes imóveis ficariam subordinadas a um pronunciamento favorável do CMPC. Em
contrapartida, o Projeto de Lei nº 558/25/03/1984 já dispunha “sobre a demolição de imóveis que
contenham instalações para projeções cinematográficas, de cunho comercial ou não.” (FERRAZ,
2009, p. 317) No início do mês de setembro de 2008, a prefeitura publicou em Diário Oficial um
decreto que tombava temporariamente o cinema Palácio (salas 1 e 2)8 para que ele pudesse
abrigar as sessões de gala da edição do Festival do Rio daquele ano. O prédio foi comprado pelo
Hotel Ambassador, que pretende expandir o seu espaço e transformar o cinema num centro de
convenções.9 Com uma arquitetura Art Déco, o cinema Carioca – “palácio cinematográfico da
Praça Saenz Peña” (GONZAGA, 1996, p. 306), na Tijuca – teve seu prédio tombado na primeira
metade da década de 1990, mas funciona como igreja evangélica desde 1999. Para o cinema
Leblon o tombamento decretado não foi empecilho para que a sala fosse dividida em duas e
várias reformas fossem feitas em seu interior – sem caráter de restauração. O Grupo Severiano
5
http://www.iphan.gov.br (faleconosco@iphan.gov.br). Acesso em 29/09/2008.
6
http://www.inepac.rj.gov.br/modules.php?name=Guia&file=guia. Acesso em 29/09/2008.
7
http://www.rio.rj.gov.br/sedrepahc/. Acesso em 29/09/2008.
8
Art. 1o – Fica tombado provisoriamente, nos termos do Art. 5o da Lei 166, de 27 de maio de 1980, o imóvel onde
funcionam os Cinemas Palácio 1 e 2, situado na Rua do Passeio nº 38 e 40, no Centro do Rio de Janeiro.
http://oglobo.globo.com/blogs/cinema/post.asp?cod_post=124211. Acesso em 03/10/2008.
9
Como o prédio - cuja fachada de arquitetura mourisca foi feita pelo espanhol Adolfo Morales, nos anos 20 - não era
tombado, tudo podia acontecer com o imóvel. Agora, resta aos cariocas esperarem pelo tombamento definitivo e para
que o Ambassador não destrua mais uma das poucas salas de cinema de rua que ainda restam na cidade.
http://oglobo.globo.com/blogs/cinema/post.asp?cod_post=124211. Acesso em 03/10/2008.
8
Ribeiro, responsável pelo cinema, explica que, o formato das salas em slope (parábola) é
diferente do stadium – formato característico do Multiplex. “Isso não pode ser alterado por conta
do tombamento do cinema. Há quatro anos, a sala 1 passou por uma grande reforma. Foram
alteradas a curvatura e a distância entre as poltronas, que foram trocadas e seguem o mesmo
padrão das salas Kinoplex.'” (Rio Show, 2010, p. 25) O “cinema de rua” Leblon ainda está em
funcionamento.
É na relação instituída entre memória e patrimônio que se ostentam exuberantemente as
coleções e as narrativas patrimoniais nacionais, regionais e locais. Notamos que gradativamente
as narrativas nacionais concebidas de forma mais geral e dignas de epopéias tem cedido lugar
para novos portadores. Indícios de uma sociedade cada vez menos uníssona. Uma identificação
exclusiva está completamente envolvida nas combinações das narrativas urbanas, regionais e
locais, com possibilidades de estabelecer conexões com muitas outras, no que diz respeito a
práticas comuns delimitadas por um modelo despoticamente instituído. Esse modelo regulador
deseja ainda fazer preponderar uma função mediadora em relação ao que é local, nacional e
global. Quando escolhemos enquadrar as conhecidas narrativas locais e urbanas, acabamos por
direcionar as pesquisas que privilegiam as práticas colecionistas do Rio de Janeiro dando espaço
merecido à memória e a constituição de um patrimônio cultural específico de nossa cidade –
concedemos direito de expressão aos falares, saberes e bens culturais locais.
REFERÊNCIAS
ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Introdução. In ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.).
Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. p. 13-16.
ALMEIDA, Paulo S.; BUTCHER, Pedro. Cinema, desenvolvimento e mercado. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2003.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e cultura. São Paulo:
Brasilense (Obras escolhidas; v. 1), 1994.
FALE CONOSCO. Disponível em: < http://www.iphan.gov.br >. Acesso em 29 ago. 2008.
GONZAGA, Alice. Palácios e poeiras: 100 anos de cinemas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Record/ FUNARTE, 1996.
SOUZA, William V. De cinema a igreja: a memória do Cine Palácio Campo Grande. 2009.
Dissertação (Mestrado e Memória Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2009.
VIEIRA, João. L.; PEREIRA, Margareth C. S. Cinemas da Metro e a dominação ideológica. In:
CALIL, Carlos Augusto M.; AVELLAR, José Carlos; ESCOREL, Eduardo (Diretores
responsáveis). Cinemas. Filme Cultura, N° 47 (agosto). Rio de Janeiro: Embrafilme, 1986.
_______________________. Cinemas cariocas: da Ouvidor à Cinelândia. In: CALIL, Carlos
Augusto M.; AVELLAR, José Carlos; ESCOREL, Eduardo (Diretores responsáveis). Cinemas.
Filme Cultura, N° 47 (agosto). Rio de Janeiro: Embrafilme, 1986.