OS TRÊS DESERTORES
Autor
KURT MAHR
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Um oficial da Força Espacial
Terrana é seqüestrado...
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No momento em que viu Ronson Lauer, Gunter Chellich compreendeu que o jogo
estava perdido.
Aos poucos, foi recuperando a capacidade de raciocinar. Olhou para Lauer e para
Suttney, que continuava parado ao lado de sua poltrona. De repente compreendeu a tática
deste último.
“Suttney sabe que eu não posso resistir às suas exigências”, pensou Chellich. “Mas
eu posso confiar na inexperiência dele e de Roane no terreno da galatonáutica. Por isso
prefiro crer na possibilidade de enganá-los a investir sem armas contra dois homens
armados.”
Por dedução, concluiu que Lauer fora mantido oculto, para que não houvesse
problemas com a decolagem.
“E agora está sendo apresentado, a fim de convencer-me de que eu devo desistir de
meus planos”, imaginou pleno de certeza.
Ronson Lauer ficaria sentado a seu lado assim que os dados do segundo hipersalto
começassem a ser calculados. E ele não se deixaria enganar.
— O senhor acaba de ouvir o que Suttney quer do senhor — disse, dando início à
palestra. — Ligue o aparelho de leitura e escolha um setor no qual estejamos seguros.
Vamos logo! O que está esperando?
Ronson Lauer era um homem pequeno e ágil. Era difícil calcular sua idade.
“Deve estar entre os quarenta e os cinqüenta”, pensou Chellich.
Assumiu um ar petulante e demonstrava certo senso de humor, mas era um tipo de
humor que não agradava a Chellich.
Este resolveu não tomar conhecimento da ordem de Lauer. Virou-se para Suttney,
por considerá-lo o porta-voz do grupo. Lançou-lhe um olhar indagador.
— É isso mesmo — confirmou Suttney. — Lauer tem razão. Não podemos perder
tempo. Comece a preparar o salto. O senhor já dispõe de assessoramento — disse,
apontando para Lauer. — Dessa forma poderá trabalhar mais depressa, não é?
Chellich não viu motivo para responder a esta pergunta. Voltou a girar a poltrona,
colocando-se de frente para o painel, e comprimiu o botão do aparelho de leitura. A tela
do intercomunicador, que ficava acima do painel, começou a acender-se. Chellich leu
tranqüilamente os dados atuais sobre a velocidade da gazela, enquanto a imagem adquiria
contornos nítidos.
A gazela desenvolvia uma velocidade de mil e quinhentos quilômetros por segundo.
Nos arredores da nave, ou seja, num raio de dez horas-luz, não havia nenhuma
porção de matéria suficientemente grande para provocar a reação do rastreador. Segundo
uma medição de eixos paralelos não muito precisa, a estrela mais próxima ficava a três
anos-luz.
A tela do intercomunicador mostrou o frontispício do catálogo galático. Chellich
voltou a virar a cabeça e perguntou a Suttney:
— O senhor tem algum lugar específico em vista? Para onde vamos saltar?
Suttney apontou em direção a Lauer. Este se fez de desinteressado e respondeu no
tom apressado que lhe era peculiar:
— Pouco importa. O principal é que não paremos em qualquer lugar “quente”. A
proximidade de naves terranas é totalmente indesejável. Sugiro que sigamos
aproximadamente em direção ao centro da Galáxia.
Chellich fez um gesto afirmativo. Puxou para perto de si um instrumento semelhante
a uma pequena calculadora de mesa, no qual se viam várias teclas com algarismos e
letras. Comprimiu uma série de teclas e um botão vermelho. O frontispício do catálogo
desapareceu da tela, que passou a apresentar outra imagem. A mesma consistia, em
essência, num ajuntamento confuso de pontos, algarismos e letras. Alguns pontos
estavam ligados por linhas, geralmente apenas tracejadas. O quadro era encimado pelos
seguintes dizeres: Mapa geral do setor 10-000-12.000 pc, 0 a 1 graus, 89 a 90 graus.
— Está bem — disse Ronson Lauer, sem que ninguém lhe tivesse perguntado. — É
o que estamos procurando. Projete o mapa parcial onze mil a onze mil e cem, zero grau a
zero grau e dez minutos, e noventa e oito graus e cinqüenta minutos a noventa e nove
graus.
Chellich obedeceu. Seus dedos bateram habilmente o teclado da pequena
calculadora, segundo a indicação que acabara de receber. A pressão das teclas deu início
ao “processo de busca”.
Dali a alguns segundos, outro mapa surgiu na tela. Na extremidade superior deste
lia-se a indicação fornecida por Ronson Lauer. Chellich viu que o mapa não tinha
qualquer colorido além do fundo branco e dos pontos e linhas negras. Com isso, passou a
sentir-se ainda mais inseguro. A área escolhida por Lauer realmente não estava submetida
à influência de quem quer que fosse. Ao que tudo indicava, os três desertores pretendiam
escolher um recanto em que pudessem passar tranqüilamente o resto dos seus dias.
Fitou a tela e esperou que Lauer dissesse alguma coisa. Deixou que os olhos
vagassem pelos números que identificavam os pontos negros representativos das estrelas.
Na verdade, sua mente não os absorveu. Estava curioso para ver qual, dos mais de dois
mil pontos, Lauer escolheria.
O catálogo galático era um produto arcônida, como todos os catálogos estelares
utilizados pela Astronáutica terrana. A elaboração de uma mapoteca dessa extensão e
perfeição consumira mais de dez mil anos. Milhares de naves registradoras percorreram o
cosmos para recolher os dados.
Nem por isso se poderia dizer que o catálogo registrava todas as estrelas que
compunham a Galáxia. Pelos cálculos dos peritos terranos, dele deveriam constar de
setenta e cinco a oitenta por cento dos astros. Só uns sete por cento desse total foram
visitados por alguma nave. O resto era assinalado por meio de cifras e letras necessárias
para que o observador do mapa conseguisse orientar-se.
A Terra reproduzira o catálogo de Árcon. E os nomes foram conservados. Apenas as
medidas de extensão e de angulação foram substituídas segundo os padrões terranos, pois
do contrário a interpretação dos mapas exigiria o domínio da matemática arcônida. A
unidade de comprimento era o parsec ou pc. A unidade de ângulo era o grau. O ponto de
referência do sistema de coordenadas em que se baseava o catálogo era Árcon. Muita
gente do planeta Terra manifestou a opinião de que, neste ponto, o catálogo deveria ser
modificado.
A Terra, que era uma potência jovem, em expansão, não tinha necessidade de usar
um catálogo em que Árcon figurava como centro. Na verdade, o recalculo dos dados do
catálogo em função de um novo centro, a Terra, não apresentaria maiores dificuldades,
muito embora o trabalho fosse bastante volumoso.
As razões, que determinaram a manutenção do sistema de coordenadas de Árcon,
foram totalmente diversas. A posição galáctica da Terra tinha de ser mantida em segredo,
pois só assim o Império Solar poderia prosseguir tranqüilamente no seu processo de
desenvolvimento. O inimigo em potencial dispunha de uma série de recursos e, por isso,
a manutenção do segredo, em relação ao mapa, seria bastante difícil. Exigiria uma série
de providências complicadas e dispendiosas. E seria totalmente impossível manter o
segredo, caso existissem mapas onde a Terra, ou melhor, o sol terrano, servisse de ponto
de origem das coordenadas. Com isso bastaria comparar algumas indicações do catálogo
arcônida com as indicações correspondentes do catálogo terrano, para descobrir a posição
da Terra. Assim Árcon foi mantido como centro do sistema de coordenadas.
Esse sistema era esférico-simétrico. O vetor do raio indicava a distância do
respectivo objeto em relação ao ponto de origem das coordenadas, ou seja, em relação a
Árcon. Essa indicação era feita em parsec. O ângulo phi era o formado com o eixo
horizontal do sistema. O sistema estava ordenado de tal maneira que o centro geométrico
da Galáxia ficava em noventa graus theta e zero grau phi. O comprimento do vetor do
raio até o centro galático era de 10.986 parsec.
Cada folha do catálogo representava um setor da Galáxia. E os setores eram
escolhidos de maneira a terem aproximadamente o mesmo conteúdo espacial. O
microfilme do catálogo só admitia a representação bidimensional. Por isso as altitudes
das diversas estrelas, em relação ao plano do filme, eram indicadas por cifras
representativas de parsec.
Além disso, as estrelas traziam outras marcações, que eram as coordenadas
necessárias à sua fixação no hiperespaço. E essas coordenadas eram transmitidas, através
de um fator constante de conversão, em forma de volumes energéticos necessários, para
que o propulsor da nave alcançasse a respectiva estrela por meio de uma transição, ou
seja, por meio de um salto através do hiperespaço. Guardavam uma relação estreita com
aquilo que os galatonautas costumavam chamar de dados do salto.
Ronson Lauer tomou sua decisão. Pegou o pequeno aparelho semelhante a uma
calculadora, girou uma rodinha e colocou uma das duas mil estrelas no centro da tela. No
momento em que o ponto negro, representativo da estrela, cobria a cruz traçada na tela,
Lauer acionou outro botão, que fez com que o aparelho ampliasse a seção do catálogo,
que coincidia com o centro da tela. As minúsculas indicações que se encontravam junto
ao ponto tornaram-se legíveis.
— É este — disse Lauer em tom lacônico. — É do tipo do sol. É o que nos convém.
Gunter Chellich viu Lauer virar-se para Suttney. Este fez um gesto afirmativo e
disse:
— Faça o que achar melhor.
Lauer apontou em direção à tela.
— Pois bem, Chellich; comece a calcular! — ordenou. — O senhor sabe
perfeitamente como funciona isso: diferença entre a posição atual e o destino, dimensões
do veículo, conversão por meio dos dados constantes do catálogo. Vamos logo! O que
está esperando?
Chellich compreendeu que Lauer pretendia mostrar que era versado no assunto.
Acontece que já sabia disso e achou esse tipo de exibicionismo um tanto ridículo.
Enquanto realizava os cálculos, de forma automática e com a mente distraída,
Chellich ficou refletindo sobre o que três desertores esperariam encontrar nas
proximidades de um sol sem nome, que ficava a pouco menos de vinte e cinco mil anos-
luz do lugar onde se encontravam, numa área em que nem os terranos nem os arcônidas
jamais puseram os pés.
Por enquanto tateava no escuro.
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Oliver Roane ficou desconfiado. Chellich notou que refletia intensamente sobre o
que deveria fazer.
— Foi mesmo apenas o ar condicionado?
Chellich fez que sim.
Roane ainda não havia chegado a qualquer conclusão. Sabia perfeitamente que
Suttney devia ser informado sobre o incidente. Mas, para avisá-lo, teria de sair da sala de
comando, já que o sistema de intercomunicação fora desligado.
Roane, que se sentia bastante inseguro, olhou em torno e procurou verificar se já
notava alguma diferença na regulagem do sistema de condicionamento de ar. Mas o calor
continuava o mesmo.
Gunter Chellich, que já se voltara novamente para seu painel, estava de costas para
Roane. Parecia indiferente a tudo.
“Bem”, pensou Roane, “direi a Suttney quando ele voltar.”
Enquanto isso, Gunter Chellich examinava as letras luminosas que se encontravam
abaixo de dois botões coloridos:
“Impulso de fechamento sistema distribuição compensador S. Os dois botões devem
ser acionados simultaneamente.”
Não fizera isso. Comprimira primeiro o botão da esquerda e depois o da direita.
Não sabia que efeito poderia causar...
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A frota terrana viajava pelo espaço. As naves formavam uma larga rede de malhas.
As gazelas e os girinos esforçavam-se para fechar essas malhas. O General Deringhouse,
um veterano dos primeiros tempos do Império Solar, que se conservara jovem, dirigia a
operação a bordo da Barbarossa, um supercouraçado da classe Império. Uma única nave
não obedecia as ordens de Deringhouse. Era a Drusus, a nave capitania da frota terrana,
comandada por Perry Rhodan.
O plano seguido na operação de busca fora preparado pelos matemáticos. Havia
uma série de maneiras pelas quais se poderia localizar a pista da gazela desaparecida e,
por isso, todos os aparelhos que estivessem em condições de ver, rastrear, registrar
Irrupções energéticas, analisar remanescentes de combustíveis e constatar abalos do
espaço einsteiniano tinham de trabalhar ininterruptamente.
Uma coisa parecia impossível: a nave não poderia ser localizada em virtude do
abalo estrutural causado por uma transição. Esta provocava um choque energético. A
energia liberada durante o processo era de estrutura bastante complicada, mas sua
disseminação se regulava pelas leis simples do espaço de cinco dimensões. Sua presença
podia ser constatada por meio dos rastreadores estruturais, a não ser que a nave, que
realizasse a transição, estivesse equipada com um compensador estrutural, que absorvia o
choque energético e fazia com que este se exaurisse num espaço vazio, especialmente
criado para esse fim, de maneira que nada ou quase nada chegava ao mundo exterior.
Com isso só restavam os campos remanescentes, que se espalhavam pelo espaço
com uma potência dez mil vezes menor, em forma de vibrações típicas para o veículo
espacial e seu compensador. Esses campos remanescentes só poderiam ser registrados por
rastreadores ultra-sensíveis, criados pela raça de microtécnicos dos swoons. Acontece que
a nave em transição poderia neutralizar até mesmo esses campos remanescentes desde
que dispusesse de um neutralizador de vibrações, também denominado absorçor. Esse
aparelho não deixava escapar nem mesmo os campos remanescentes. Captava-os e
absorvia-os, fazendo com que nenhum vestígio da transição, por menor que fosse,
chegasse ao mundo exterior.
A gazela desaparecida estava equipada com ambos aparelhos. Dispunha tanto do
compensador estrutural como do neutralizador de vibrações. Sua presença no hiperespaço
tornava-se impossível de ser detectada.
Para Perry Rhodan havia uma esperança, caso Chellich ainda estivesse vivo.
“Talvez o tenente pudesse fazer surgir certas ‘ocorrências’ que se harmonizariam
com o curso normal e prefixado da operação de busca”, concluiu mentalmente.
3
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O desejo de ganhar tempo era tão intenso que, mesmo durante o estado de
inconsciência, não o esqueceu. Quando recuperou os sentidos soube imediatamente o que
havia acontecido e compreendeu que a coisa mais tola que poderia fazer seria abrir os
olhos e deixar que todos soubessem que já não estava inconsciente.
Ouviu ruídos nas proximidades, mas a cabeça zumbia tanto que não sabia do que se
tratava. Depois de algum tempo reconheceu a voz de Suttney.
— Por que foi intrometer-se? Alguém lhe deu ordem para isso?
A resposta foi proferida por Lauer.
— Não recebo ordens de ninguém. Sei agir por minha conta. Haja o que houver,
ainda acertarei minhas contas com esse sujeito, quando não precisarmos mais dele.
— Você vai deixá-lo em paz, Ronson! — disse Suttney em tom tranqüilo e com uma
raiva contida. — Não estamos interessados em matar gente.
Depois de algum tempo, Lauer respondeu cheio de ódio:
— Você acha? Realmente acredita que manda em mim? Cuide de si mesmo quando
chegar a hora.
Suttney não disse mais nada. Chellich ouviu alguém dar alguns passos e acomodar-
se numa poltrona. Devia ser Suttney. Ao que parecia, o último incidente contribuíra para
perturbar a harmonia entre os desertores.
Subitamente Chellich ouviu a voz de Suttney:
— Se, daqui a uma hora, ainda não tiver recuperado os sentidos, jogaremos um
balde de água em cima dele.
Chellich resolveu aproveitar muito bem a hora que ainda lhe restava. Graças a seu
miserável estado, não teve a menor dificuldade em adormecer imediatamente.
***
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Gunter Chellich acordou sobressaltado, quando a água fria desabou sobre ele. Rolou
rapidamente para o lado e assim escapou ao resto do conteúdo do balde que Ronson
Lauer despejava sobre ele.
Lauer ficou aborrecido com a rapidez de sua reação. Deu-lhe um pontapé e, assim
que Chellich se levantou, deixou cair o balde e segurou a arma, apontando-a contra
Chellich.
— Venha! — gritou em tom furioso.
Depois do curto período de sono, Chellich sentia-se muito melhor. A dor de cabeça
cessara quase por completo e as pontas dos dedos coçavam.
Quando viu Ronson Lauer, começou a rir. Lauer recebera o “primeiro golpe” de
Roane, e os sinais do desastre ainda eram perfeitamente visíveis.
A risada de escárnio do tenente fez com que Lauer fervesse de raiva. Levantou a
pistola e Chellich notou que seu dedo se curvava em torno do gatilho.
— Você ainda perderá a vontade de rir, meu caro! — exclamou.
— Chega! — gritou Suttney, que se encontrava em lugar mais afastado. — Ronson,
eu já lhe disse o que acho dessa sua atitude de cão raivoso.
Chellich forçou-se a esboçar um sorriso de superioridade. Virou-se e fez de conta
que a arma apontada para ele não o incomodava nem um pouco. Viu Suttney aproximar-
se e, no mesmo instante, descobriu Oliver Roane, que esticava as pernas e se mantinha
profundamente reclinado numa poltrona. Respirava pesadamente e três quartas partes de
seu rosto estavam cobertas por ataduras que, segundo tudo indicava, haviam sido
colocadas por ele mesmo.
— Para o senhor também chega, Chellich — prosseguiu Suttney. — Daqui em
diante, não terá mais nenhuma oportunidade de causar-nos problemas. Vá para seu lugar
e descubra qual foi o dano que produziu.
Chellich obedeceu. Enquanto caminhava em direção à poltrona do piloto, olhou para
o relógio. Ficara deitado durante três horas, inconsciente ou dormindo. Mas, ao que tudo
indicava, essas três horas não foram suficientes para que as naves empenhadas na
operação de vasculhamento localizassem a gazela perdida.
Sentiu uma tensão que, só com grande dificuldade, conseguiu ocultar ao sentar-se à
frente do painel, a fim de fazer os preparativos para a transição. Só sabia que comprimira
dois botões na seqüência errada. Não tinha a menor idéia das avarias que poderia ter
causado. Nem sequer tinha certeza sobre se houvera alguma avaria.
Porém, de uma coisa tinha certeza: o sistema de regulagem era um mecanismo
extremamente complicado. Não se tratava de um aparelho de rádio, no qual se podem
realizar manipulações contraditórias sem produzir o menor dano. Caso o sistema de
regulagem fosse manipulado de forma a contrariar as normas, alguma coisa se estragaria.
Restava saber o que ficara estragado.
Enquanto Chellich fez o teste geral, suas mãos tremiam. As luzes do pequeno painel
luminoso, que eram mais de duzentas, acenderam-se, mostrando que até lá tudo estava
em ordem.
Mas duas luzinhas permaneceram apagadas. Chellich leu os pequenos letreiros
existentes embaixo das lâmpadas: Distribuidor no 255, Ponto de Controle XVII e
indutividade 15 microhenry S-Compensador.
Suspirou aliviado — muito discretamente, para que ninguém o ouvisse. Seu plano
fora bem sucedido. Os reparos apenas demorariam uma hora e meia, talvez menos.
Suttney não desconfiaria de que apenas pretendia ganhar tempo. E, principalmente, o
distribuidor 255 e a espula inutilizada com a indutividade 15 microhenry ficavam no
mesmo compartimento em que estava instalado o neutralizador de vibrações.
— Então, o que foi? — perguntou Suttney.
Chellich apontou para as lâmpadas de controle que estavam apagadas.
— Um distribuidor e uma espula estão estragados.
— São difíceis de reparar?
— A espula nem pode ser reparada. Os reparos do distribuidor deverão durar umas
duas horas.
Suttney arregalou os olhos.
— Então o senhor quer dizer que, uma vez que a espula não pode ser reparada, não
poderemos sair mais do lugar?
Chellich sorriu e sacudiu a cabeça.
— Não, não é isso que eu quero dizer. A espula é fabricada com metal volatilizado.
Logo, não pode ser reparada. Mas pode ser substituída. Temos muitas espulas no depósito
de peças sobressalentes, se é que o senhor por acaso não as jogou fora.
Suttney lançou-lhe um olhar desconfiado.
— Pare de fazer piadas — disse em tom áspero. — Quanto tempo durarão os
reparos?
— Já disse que são duas horas — respondeu Chellich.
— E a espula?
— Precisarei de dois minutos para procurá-la no depósito e de um minuto para
colocá-la.
— Muito bem. Ponha-se a trabalhar. Precisa de ferramentas?
— Preciso de várias — disse Chellich com um sorriso.
— Pois vá procurá-las. E não acredite que poderá atrapalhar-nos mais uma vez.
Ronson vigiará seu trabalho. Ronson, vá com ele.
— Será um prazer — disse Lauer.
Uma vez no depósito de ferramentas, Chellich pegou alguns instrumentos de
medição, entre eles um oscilógrafo, que entregou a Lauer para que este o carregasse, um
pequeno aparelho automático de solda, um sortimento de fios, pinças e material de solda
e outras coisas. Enquanto procurava aquilo que precisaria, procedia lenta e
tranqüilamente. Não estava interessado em que os reparos fossem concluídos muito
depressa.
No depósito de peças sobressalentes, Chellich foi pegar apenas uma espula, igual à
avariada, e alguns elementos de ligação que seriam utilizados no reparo do distribuidor.
Abriu a escotilha que dava do corredor para o poço e desceu a escada. Ronson
seguiu-o a uma distância de cinco degraus. Deixou a escotilha bem aberta.
Pela parede do poço corria grande quantidade de fios. De repente Chellich, que
ainda não sabia como levar avante o resto de seu plano sem que Lauer o percebesse, teve
uma idéia. A maior parte dos fios era formada por condutores de corrente contínua de
tensão superior a dois mil volts. Se conseguisse fazer com que Lauer encostasse o dedo a
um ponto não isolado...
A escada terminava sete metros abaixo da escotilha. Daqui em diante, o poço
transformou-se numa galeria que corria em sentido horizontal, em relação ao envoltório
da nave. Chellich parou por um instante sob a escada. Viu a pequena caixa negra onde se
encontrava o distribuidor e procurou localizar o lugar em que se achava a espula
queimada. Viu o cilindro fino e reluzente do neutralizador de vibrações, que, na verdade,
constituía o objeto do seu interesse. O neutralizador ficava a apenas meio metro da caixa
do distribuidor.
— Vá andando! — ordenou Lauer em tom nervoso.
Chellich obedeceu. Passou pelo distribuidor e colocou a bolsa de plástico com as
ferramentas e peças sobressalentes entre este e o cilindro do neutralizador.
— Tenho de trabalhar aqui, ali e lá — disse em tom solícito a Lauer, apontando para
o distribuidor, para certo ponto situado nas proximidades do neutralizador e para o lugar
em que supunha estar a espula. — Acomode-se; procure um lugar que lhe permita ficar
de olho em mim.
Ronson Lauer fitou-o com uma expressão de surpresa, mas quando descobriu que
Chellich estava escarnecendo dele, seu rosto ficou rubro de raiva. Via-se que precisava
esforçar-se para não perder o autocontrole.
Chellich começou a tirar as ferramentas. Sem que Lauer o percebesse, prestou
atenção ao lugar em que se acomodava. Empurrara o oscilógrafo a um metro de distância
e mantinha-se sentado no chão com as pernas bem afastadas. Segurava a pistola.
A primeira coisa feita por Chellich foi deixar descoberto um dos fios isolados
assinalados em vermelho. Trabalhava com um alicate de segurança e procedia com
tamanha despreocupação que Lauer nem poderia desconfiar de que estivesse mexendo
num fio de alta-tensão. O resultado deixou-o satisfeito. Removeu dez centímetros do
isolamento de um cabo da grossura de um dedo. No momento apropriado bastaria cortar
o fio com um alicate e encostar a extremidade, não isolada, a um lugar do qual a corrente
pudesse propagar-se até Lauer.
Retirou o estojo do distribuidor. Percebeu imediatamente o que havia acontecido.
Em nenhum ponto do sistema de distribuição, o oscilógrafo indicava qualquer impulso ou
sinal de tensão elétrica. No momento em que a espula se volatilizou, o distribuidor fechou
a corrente, servindo de chave de segurança. Três soldas haviam sido arrancadas e, ao que
parecia, uma das minúsculas válvulas não funcionava mais. Chellich pôs-se a trabalhar.
Voltou a firmar as soldas, retirou a válvula e substituiu-a por uma pequena resistência.
Realizou mais um ensaio e verificou que o distribuidor ainda não estava funcionando.
Gunter Chellich não teve outra alternativa senão examinar ponto por ponto todos os
circuitos do distribuidor.
O tempo foi passando.
Chellich virava a cabeça para olhar Lauer, que parecia não se sentir muito à vontade.
Por várias vezes viu-o olhar para trás, mas sempre se assustava e voltava a virar o rosto
em direção de Chellich, como se, só então, se lembrasse de que não deveria tirar os olhos
do mesmo por um segundo sequer.
Mas não fez aquilo que Chellich estava esperando; nunca encostou a pele a qualquer
peça de metal.
Chellich viu que, próximo de Lauer, um tubo solitário do sistema de refrigeração
atravessava o poço na vertical. Era feito de metal plastificado não revestido, motivo por
que podia ser considerado um excelente condutor de eletricidade. Quem dera que Lauer
pegasse esse tubo uma única vez que fosse... Havia uma travessa metálica que ligava o
tubo à parede e se estendia até perto do distribuidor no qual Chellich estava trabalhando.
Chellich começou a impacientar-se. Quarenta e cinco minutos já se haviam passado.
Resolveu pensar em outro plano, a não ser que, nos trinta minutos seguintes, Lauer
pusesse a mão no duto de refrigeração.
Prosseguiu nos trabalhos de reparo do distribuidor. O pensamento de que esta seria
sua última chance não lhe saía da cabeça. Estaria perdido se não se aproveitasse da
mesma. E, pior que isso, se o computador-regente de Árcon descobrisse a posição da
Terra, ninguém conseguiria impedir a guerra galáctica.
Começou a suar e, no seu íntimo, começou a praguejar contra Ronson Lauer. Passou
a olhar para este com uma freqüência cada vez maior, até que Lauer o notasse e o
advertisse:
— Fique com a cabeça virada para a frente. Estamos com pressa. Se olhar mais uma
vez para trás, atirarei.
— Não diga — retrucou Chellich com uma risada contrariada. — Quer que o tiro
derreta alguns fios lá atrás, não é? Se isso acontecer, o senhor terá de procurar um meio
de arranjar-se.
A desconfiança de Ronson Lauer, sempre presente, manifestou-se imediatamente.
— Então quer se prevalecer disso? — gritou em tom furioso. — Acha que não
atirarei, com medo de danificar alguma coisa? Espere, que eu lhe mostrarei o que sei
fazer.
Subitamente a chance veio!
Ronson Lauer levantou-se. Mantinha a pistola térmica apontada para baixo.
Procurava um lugar do qual pudesse atirar contra Chellich, sem danificar qualquer fio.
Não foi muito fácil levantar-se. Lauer segurou o tubo, levantou-se e, mesmo quando
já se encontrava de pé, não o soltou.
Chellich gritou.
— Não! Não atire!
Na verdade sua voz vibrava de triunfo. Enquanto Lauer fazia pontaria com o
máximo cuidado, Chellich arrastou-se para o lado e, com um único movimento do alicate
Isolado, cortou o fio do qual removera um tanto do isolamento. Segurou a parte isolada
do fio e saltou para trás do distribuidor. Lauer perturbou-se. O cano da pistola
acompanhou o alvo. Mas, de repente, o distribuidor se interpunha na trajetória de tiro. Por
maior que fosse a raiva de Lauer, não se esquecia de que estaria perdido se destruísse um
dos aparelhos vitais da nave.
Hesitou, e esta foi a chance de Gunter Chellich.
Num movimento rápido, mas cauteloso, fez avançar a mão que agarrava o fio e
encostou a extremidade desguarnecida contra a travessa lateral que segurava o tubo.
No mesmo instante, Lauer soltou um grito selvagem e apavorado. Continuou a gritar
até que Chellich tirasse o fio da peça metálica.
Depois Ronson Lauer caiu ao chão, desmaiado.
Chellich só esperou meio segundo. Num movimento seguro voltou a colocar o fio
no lugar do qual o mesmo fora tirado. A seguir, passou a trabalhar no neutralizador de
freqüência.
Soltou os fios de entrada e de saída, ligou-os aos contatos por outro pedaço de fio,
cortou este ao meio e colocou uma resistência que devia ter o tamanho aproximado da
resistência interna do neutralizador.
Depois passou o novo fio por cima do neutralizador e escondeu-o na parede.
Esse trabalho levou menos de um minuto. Assim que terminou, voltou a sentar-se e
procurou aguçar o ouvido.
Esperara que o grito de Ronson Lauer fosse ouvido na sala de comando, e que
Suttney não demorasse a aparecer na escotilha. Mas, por enquanto, nada disso havia
acontecido.
Chellich forçou o ouvido ao máximo, porém não conseguiu escutar nada.
Com movimentos rápidos, mas cuidadosos, Chellich ligou as duas pontas do fio de
alta-tensão por meio de uma peça flexível de metal plastificado. Depois voltou a colocar
o isolamento, que apenas havia sido empurrado para cima. Quando terminou o trabalho,
certificou-se de que ninguém perceberia nada, a não ser se soubessem haver algo a ser
procurado nesse fio.
Ronson Lauer continuava inconsciente.
Chellich passou por cima do corpo imobilizado e subiu pela escada. Gritava
ininterruptamente:
— Ei, Suttney, Roane! Lauer desmaiou.
Ninguém ouviu seus gritos. Saiu pela escotilha e dirigiu-se ao corredor principal.
Correu em direção à sala de comando, sempre gritando. A escotilha estava fechada, mas
abriu-se assim que Chellich se aproximou. Viu Suttney ocupado em renovar as ataduras
do rosto de Roane.
— Santo Deus, será que todos ficaram surdos? — gritou Chellich esbaforido. —
Lauer desmaiou. Deve ter encostado em algum fio de alta-tensão. Ajudem-me!
Walter Suttney lançou-lhe um olhar desconfiado.
— O senhor tem certeza de não ter mexido na alta-tensão, para que Lauer levasse
um choque? — perguntou.
Com muita habilidade, Chellich se fez de perplexo.
— Nunca poderia fazer uma coisa dessas — afirmou, ainda fungando. — O senhor
acha que eu disse a Lauer: prezado Ronson, encoste o dedo aqui?
***
***
Tudo correu bem. Ronson Lauer foi encontrado no momento em que estava
recuperando os sentidos. Felizmente não guardava a menor lembrança do que acontecera
no momento do desmaio. Naturalmente esforçou-se para pôr toda a culpa em Chellich.
Mas este permaneceu fiel à verdade. Disse que Lauer quis atirar contra ele, motivo por
que resolveu abrigar-se. Suttney parecia dar mais crédito a seu relato que às acusações
furiosas de Lauer. É bem verdade que não o deixou perceber. Em virtude do nervosismo,
Ronson Lauer começou a sentir-se mal. Suttney e Chellich levaram-no para cima e foram
a um camarote, onde o puseram na cama.
Depois Chellich voltou ao trabalho; desta vez foi vigiado por Suttney. Concluiu-o
dentro de quinze minutos. Suttney ficou muito satisfeito. Examinara tudo para ver se
descobria qualquer coisa que representasse uma prova da culpa de Chellich pelo acidente
sofrido por Lauer. Mas o fio de alta-tensão fora tão bem restaurado que nada foi
encontrado. E Suttney não fez perguntas.
Ao repetir o teste geral, todas as luzes acenderam-se. A gazela estava em condições
de voar. Chellich acionou os respectivos controles e preparou a segunda transição.
Esta foi mais demorada que a outra. Além disso, tornou-se bastante desagradável.
Quando o processo de desmaterialização chegou ao fim e a dor foi amainando, Chellich
estava quase inconsciente. Olhou em torno e viu que Suttney e Roane estavam ainda
piores que ele. Suttney foi recuperando os sentidos aos poucos, enquanto Roane
provavelmente continuaria inconsciente por um bom tempo.
Na tela brilhava, inconfundível, a mancha amarela que representava o sol que
Ronson escolhera no catálogo. A gazela encontrava-se a uma distância de vinte e cinco
unidades astronômicas desse sol e aproximava-se do mesmo com uma velocidade
residual de pouco menos de duzentos quilômetros por segundo.
Chellich transmitiu esses dados a Suttney e recebeu ordem para aumentar a
velocidade. Do tipo espectral do sol concluía-se com uma elevada dose de probabilidade
que este possuía planetas. Suttney pretendia pousar num desses mundos a fim de ver se
era lugar seguro e prosseguir na execução de seu plano.
No momento em que Chellich aumentou a velocidade da gazela para 2.000 km/seg,
seguindo as instruções de Suttney, Oliver Roane despertou do estado de inconsciência.
Suttney só parecia ter esperado por isso. Não deixou que Roane se entregasse às
recordações. Segurou-o pelo ombro, sacudiu-o e gritou:
— Acorde, seu idiota! Levante-se, pegue a pistola e vigie Chellich!
Chellich ficou surpreso. Até então não percebera que Suttney estivesse nervoso. Mas
agora havia um tom de histerismo em sua voz. Ao que parecia, tinha medo de que poderia
perder alguma coisa, caso não conseguisse imediatamente colocar Roane de pé. Dava a
impressão de estar extremamente nervoso. No momento em que soltou Roane, Chellich
viu que suas mãos tremiam. Alguma coisa “entrara” nele tão de repente que Chellich não
saberia dizer o que era.
Oliver Roane levantou-se lentamente. Parecia incapaz de reconhecer os arredores.
Percebia-se que Roane ainda não se recuperara de todo. Teve de esforçar-se, a fim de
permanecer de pé. Lançou um olhar desconfiado para a pistola que Suttney colocara em
sua mão.
Suttney endireitou seu corpo, fazendo com que olhasse na direção em que se
encontrava Chellich.
— Olhe! É Chellich! Cuide dele!
Roane resmungou alguma coisa que tanto poderia exprimir concordância como
aborrecimento. Mas mantinha-se firmemente de pé e apontava a arma para Chellich. Este
não se sentiu muito à vontade. Enquanto Roane não recuperasse inteiramente o controle
dos sentidos, poderia acontecer que apertasse o gatilho sem querer.
Por alguns segundos, Suttney ficou parado ao lado de Roane. Assim que este parecia
ter compreendido o que queriam dele, atravessou a sala de comando e dirigiu-se ao painel
do hipertransmissor.
De repente Chellich compreendeu as intenções de Suttney. Pretendia informar a
frota arcônida estacionada nas proximidades de Latin-Oor de que desejava que o viessem
buscar, pois possuíam uma informação importante.
Chellich estremeceu, embora há muito tempo soubesse que Suttney pretendia trair a
Terra.
E a traição estava por pouco...
Tudo que viria depois seria de importância secundária. Nesse instante, Suttney
avisaria os arcônidas de que viera para dizer-lhes aquilo que mais ansiavam por ouvir.
Suttney ligou o transmissor. Ele o fez com movimentos rápidos e precisos, como se
já os tivesse treinado muitas vezes. Assim que o aparelho emitiu um zumbido, parou e
olhou para Chellich.
Este sentiu-se tomado por uma raiva indomável.
— Seu traidor imundo! — gritou. — O que espera ganhar com isso?
Suttney não respondeu. Virou-se apressadamente, como se estivesse envergonhado
de fitar Chellich. Em compensação Roane aproximou-se em atitude ameaçadora. Chellich
manteve-se calado e voltou a fitar seus instrumentos.
— Venham! — implorou. — Venham e destruam-nos antes que Suttney...
Encostou os cotovelos ao painel e apoiou a cabeça nas mãos. Fechou os olhos.
Ouviu um estalido; Suttney estava preparando o microfone atrás de suas costas. Ouviu o
ruído de um pedaço de papel. Suttney havia redigido sua mensagem por escrito.
Subitamente Suttney pigarreou. Chellich ouviu-o respirar profundamente. Depois de
algum tempo principiou:
— Atenção, todas as naves arcônidas! Aqui fala Walter Suttney, um fugitivo do
planeta Terra.
Seu arcônida era horrível, mas os súditos de Árcon não deixariam de entendê-lo.
— Tenho uma informação para os senhores. Uma informação importante, relativa à
posição galáctica da Terra. Apressem-se, se estiverem interessados nesta informação. Esta
transmissão também está sendo captada por naves terranas e as mesmas procurarão deter-
me antes que possa transmitir-lhes as informações a que acabo de aludir. Atenção, todas
as naves arcônidas! Aqui fala Walter Suttney...
A mensagem foi repetida cinco vezes. Depois Suttney manteve-se calado, mas
respirava pesadamente, como se aquilo lhe tivesse custado um esforço tremendo.
Gunter Chellich sabia sobre o que Suttney refletia naquele instante. Sabia que havia
naves arcônidas numa distância de apenas dezesseis anos-luz. Uma hipermensagem
percorre essa distância num tempo zero. E, a essa distância, torna-se possível determinar
a posição do transmissor com a precisão de um quilômetro. As naves arcônidas eram
unidades robotizadas. Reagiriam com a rapidez peculiar aos robôs. Em outras palavras,
partiriam imediatamente.
Estava tudo em ordem, desde que as naves terranas não se encontrassem ainda mais
próximas. Walter Suttney esperava que fosse assim, mas não tinha certeza. Pelos seus
cálculos, a unidade mais próxima da frota terrana devia encontrar-se a cem anos-luz. A
uma distância dessas, a localização goniométrica de um transmissor pequeno como o da
gazela seria extremamente difícil. Portanto, caso uma nave terrana captasse a
hipermensagem a uma distância de cem anos-luz não teria certeza sobre se o transmissor
deveria ser procurado no próprio sistema, ou em algum outro vizinho.
Walter Suttney assim pensava. As naves terranas não poderiam chegar em tempo,
pois do contrário estaria perdido.
Depois de refletir prolongadamente, aproximou-se de Roane. Assustou-se, quando
Chellich lhe perguntou com a voz embargada:
— Por que fez isso, Suttney? O que espera ganhar?
Suttney parou. Via-se que a pergunta de Chellich o surpreendera.
— O que espero ganhar? — perguntou em tom de perplexidade. — Não pretendo
ganhar coisa alguma. Não estou agindo assim para obter alguma vantagem. O senhor já
conhece minha opinião sobre o governo do Império Solar. O regime deve ser derrubado, e
se não conseguimos derrubá-lo com nossas próprias forças, deveremos recorrer a um
auxílio vindo de fora.
— E o senhor nem se interessa em saber quantas pessoas são da mesma opinião que
o senhor, não é? Pouco lhe importa que talvez seja o único a acreditar nessa tolice.
Um sorriso condescendente surgiu no rosto de Suttney.
— É claro que não. A verdade de uma afirmativa não depende do número de pessoas
que acreditam nela. Procure lembrar-se de Galileu.
— Não me venha com Galileu! — disse Chellich em tom exaltado. — Aqui o caso
é... completamente diferente. O senhor não pode trair a Terra e entregá-la aos arcônidas,
apenas porque não concorda com os métodos de governo aplicados por Rhodan.
— Posso, sim — respondeu Suttney. Ao que parecia a discussão lhe restituíra a
autoconfiança. — Não vê que já comecei?
— E o senhor sabe o que acontecerá depois? Os arcônidas atacarão a Terra. E a
Terra se defenderá. Haverá uma guerra como a Galáxia nunca viu igual. Pouco importa
quem seja o vencedor, pois o resultado será a miséria dos povos.
— Mas a liberdade voltará a reinar na Terra! — retrucou Suttney em tom fanático.
Chellich suspirou.
— Ora, seu imbecil! O senhor está é doente. Suponhamos que os arcônidas
subjuguem a Terra. O senhor prefere ser governado pelo computador-regente?
— O computador não priva seus súditos da liberdade individual — respondeu
Suttney com a voz tranqüila.
Chellich fez um gesto de enfado e voltou a dedicar-se ao trabalho. Sabia que não
adiantaria empenhar-se em discussões sobre coisas nas quais Suttney acreditava há mais
de cinco anos.
Leu as indicações fornecidas pelo rastreador de matéria e constatou que este
registrara a presença de três planetas. Os mesmos percorriam órbitas situadas a 0,6, 2,8 e
10,3 unidades astronômicas do respectivo sol. A idéia de que nenhum deles poderia
oferecer condições semelhantes às da Terra deixou Chellich satisfeito.
O volume de radiações do sol, que tinham diante de si, era praticamente idêntico ao
do sol terrano. O mundo interior seria uma bola de fogo, mais quente que Vênus,
enquanto os dois planetas externos seriam mais frios que Marte.
Nesse sistema não havia nenhum lugar que convidasse a um pouso. E, quanto mais a
gazela demorasse no espaço, maior seria a chance de que as naves terranas conseguissem
capturá-la, antes que Suttney pudesse concretizar a traição que tinha em mente.
***
***
***
***
Walter Suttney enviou seus sinais goniométricos durante meia hora. Gunter Chellich
tremia de excitação. Esperava que a qualquer momento uma nave terrana descesse dos
céus e parasse junto à entrada do vale.
Mas fez seus cálculos e chegou à conclusão de que a reação não poderia ser tão
rápida. Se o campo de vibrações energéticas tivesse sido registrado por alguma nave
terrana esta, se não estivesse a cinco mil anos-luz de distância, conseguiria determinar
com toda segurança o sistema solar ao qual a gazela resolvera dirigir-se. Porém não seria
capaz de saber em que ponto do sistema se encontrava o veículo espacial.
Quem calculasse em termos de centenas ou mesmo milhares de anos-luz muitas
vezes se esquecia de que uma superfície de “apenas” quatro quatrilhões de quilômetros
quadrados, que era a de um sistema das classes menores, formava um território quase
infinito, no qual a gazela poderia esconder-se pelo tempo que quisesse. Depois de
penetrarem no sistema de Calígula, as naves terranas teriam de realizar uma operação de
busca de grandes proporções se quisessem localizar a nave desaparecida. E mesmo que
tivessem captado o sinal goniométrico de Suttney levariam algum tempo para realizar as
manobras de aproximação e pousar no planeta Tântalo.
Não; ainda era cedo para que a salvação pudesse chegar. As naves terranas, mesmo
que estivessem presentes, teriam seus movimentos embaraçados pela frota arcônida, que
sem dúvida faria tudo para não perder a chance única de obter informações sobre a
posição galáctica da Terra.
Gunter Chellich teve outra idéia. E se o grupo de naves terranas de socorro chegasse
à conclusão de que não estava em condições de enfrentar as unidades arcônidas? O que
fariam as mesmas para evitar que nas condições de inferioridade em que se encontravam
o segredo caísse nas mãos dos arcônidas?
A resposta era tão fácil e convincente que qualquer pessoa se lembraria dela,
inclusive o comandante espacial mais diretamente interessado no assunto. Uma das naves
terranas tentaria chegar antes dos arcônidas. Desceria em direção a Tântalo, procuraria
localizar a gazela e a destruiria.
Seria apenas isso. Uma bomba, ou uma salva de desintegradores, e tudo estaria no
fim.
Chellich combateu o mal-estar que começou a sentir. Olhou instintivamente para o
teto da sala de comando, como se através do respectivo material pudesse reconhecer a
nave terrana, que, naquele instante, se preparava para lançar a bomba ou abrir o anteparo
diante de um gigantesco canhão de desintegração.
Não. Felizmente, mesmo para isso, ainda era cedo. Ainda lhe restava algum tempo:
uma ou duas horas. Depois, caso permanecesse no interior da gazela, estaria praticamente
morto.
Enquanto Chellich refletia sobre isso, Walter Suttney desenvolvia uma atividade
notável. Esteve lá fora. Chellich ouviu o zumbido da escotilha. Ao voltar carregava sob o
braço uma cassete de plástico pertencente ao banco de dados. Chellich logo percebeu o
que havia nela. Eram microfilmes que permitiriam a apuração da posição galáctica da
Terra. Além disso, Suttney colocara um traje espacial. Estava prestes a abandonar a nave.
Foi seguido por Ronson Lauer, que também envergava um traje espacial.
— Vá buscar um traje, Roane — ordenou Suttney.
Roane levantou-se e saiu. Chellich esforçou-se para que seu rosto exprimisse
espanto.
— Pretendem abandonar a nave?
Suttney limitou-se a acenar com a cabeça.
— Por quê?
Lauer soltou uma risada.
— Essa pergunta não é muito inteligente, Chellich. Sabe lá o que fará uma nave
terrana que se encontre nas proximidades, assim que nos encontrar?
Chellich bancou o desentendido.
— Ela nos mandará pelos ares — prosseguiu Lauer. — Dessa forma não poderemos
revelar nada. Preferimos ver como estão as coisas lá fora.
— Sente-se nervoso, não é? — perguntou Chellich em tom irônico.
O rosto de Ronson Lauer contorceu-se numa careta de deboche.
— Sempre estive, Chellich — confessou. — E são muito bons.
Com um movimento rápido, tirou a arma. Chellich saltou para o lado, mas logo
percebeu que o ataque não se dirigia a ele. Lauer girou sobre os calcanhares, numa pose
de atirador de cinema, e dirigiu o raio expelido pela arma para o grande painel que se
encontrava do outro lado da sala de comando. A energia concentrada cortou ao meio a
placa de metal. O metal evaporou-se com um chiado, afastou-se lentamente e condensou-
se nas paredes. As lâminas de plástico vitrificado estouravam e uma série de curtos-
circuitos rugiu nos condutores embutidos no painel. O pequeno recinto encheu-se de
calor e mau cheiro. Um minuto depois, o painel ficou danificado a tal ponto que ninguém
poderia repará-lo.
Ronson Lauer virou-se. Sorriu. Ao que parecia, o trabalho que acabara de fazer
deixava-o muito satisfeito. Continuava a segurar a pistola.
— Isto é para o senhor não acreditar que vamos permitir que saia voando por aí —
disse em tom de escárnio.
Chellich compreendeu o que queria dizer. Olhou para Suttney, mas este esquivou-se
ao olhar.
— Seu covarde! — disse Chellich em tom de desprezo e voltou a dirigir-se a Lauer.
— Sua carreira chegou ao fim — disse Lauer em tom dramático e muito satisfeito
com a apresentação que estava proporcionando. — Até aqui, o senhor nos tem causado
muitos problemas. Agora terminou. Não pense que quero matá-lo. Prefiro deixar que seus
amigos da frota matem-no. Acho que eles saberão cuidar muito bem do caso. Pois não
sabem que o senhor ainda está na nave, não é mesmo? Naturalmente! Não poderei
permitir que fique nos espionando. O senhor compreende?
Chellich quase não prestara atenção às palavras de Lauer. Sabia o que estava para
vir. Seu cérebro trabalhava febrilmente em busca de uma saída. Não havia por perto
nenhuma arma ou qualquer coisa de que pudesse servir-se. Suttney encontrava-se junto à
escotilha, e Ronson Lauer foi bastante inteligente para manter-se a uns cinco metros de
distância. Lentamente, como que antegozando o prazer, ergueu a pistola e apontou-a para
Chellich.
O tenente conteve a respiração e retesou os músculos. Viu que Lauer apontava a
arma para seu ombro. Quando teve a impressão de que iria puxar o gatilho, deu um
grande salto para o lado. O disparo passou por ele e atingiu a parede. Por um instante
Lauer ficou perplexo. E, nesse instante, Chellich modificou a direção do salto e investiu
sobre Ronson. Provavelmente essa ação arrojada poderia surpreender um homem menos
experimentado que Lauer. Mas este apenas recuou um pouco e voltou a disparar antes
que Chellich tivesse tempo de estender o braço.
Gunter Chellich viu um raio...
Nem chegou a sentir dor. Alguma coisa o levantou suavemente e carregou seu corpo
pela infinita amplidão luminosa!
5
***
Quando Gunter Chellich voltou a si, admirou-se de ainda estar vivo. A explosão
ofuscante e silenciosa, a levitação num espaço luminoso e sem fim...
Mas, de repente, já não havia nenhuma luz, nem levitação. Estava escuro, seu corpo
jazia sobre alguma coisa e uma dor cruciante revolvia o lado direito do tronco.
De início, sentiu-se intrigado pela escuridão. Depois lembrou-se de que Ronson
Lauer destruíra o grande painel.
No momento em que a arma foi disparada contra Chellich, ainda era dia lá fora, e as
telas, que não estavam ligadas ao painel, traziam a luz para dentro da nave, como se
fossem enormes janelas. Mas agora era noite. Do lugar em que se encontrava, na tela
panorâmica só se via um brilho cinzento, quase imperceptível.
Gunter Chellich sabia o que lhe tinha acontecido.
Ainda se lembrava de que Suttney, Lauer e Roane pretendiam abandonar a nave.
Mas levou alguns minutos para descobrir por que pretendiam agir assim.
Perigo! Um perigo o ameaçava! A primeira espaçonave terrana que avistasse a
gazela a destruiria sem a menor hesitação.
Essa idéia o despertou de todo. Procurou esquecer a dor martirizante que sentia nos
quadris e encostou o relógio de pulso aos olhos. Sabia que, quando Lauer disparou contra
ele, eram oito horas e quarenta minutos, tempo terrano. Agora eram nove e quinze. Ficara
inconsciente por mais de meia hora. Teria de sair da nave o mais depressa possível.
A escotilha estava aberta. Depois da destruição do painel principal, já não havia
energia que pudesse fechá-la. Chellich lembrou-se de que as duas escotilhas da comporta
também deviam estar abertas. Concluiu que estava respirando o ar de Tântalo e não
notara qualquer diferença, e não parecia fazer muito calor.
“Não é de admirar”, pensou no mesmo instante. “Tântalo deve possuir um clima
acentuadamente continental. De noite o frio é miserável, enquanto de dia faz um
tremendo calor.”
Tropeçou pelo corredor e parou à frente do armário no qual eram guardados os trajes
espaciais. Estava vazio. Os trajes estavam espalhados pelo chão. Chellich apalpou-os e
constatou que todos haviam sido inutilizados. Em cada um deles havia um buraco. Não
lhe tinham deixado a menor chance.
Cego de cólera, continuou a cambalear em direção à comporta.
A escotilha externa estava a apenas um metro acima do solo. Chellich saltou e...
A perna direita não conseguiu absorver o impacto. Caiu com o rosto na areia. Deitou
sobre o lado esquerdo e, ao levantar, apoiou o peso do corpo sobre a perna esquerda.
Conseguiu erguer-se.
A areia estava morna. Ainda não pudera irradiar o calor do sol. Por algumas horas
armazenaria o calor. Mas não havia a menor dúvida de que ao amanhecer o frio seria
intenso.
Chellich olhou em torno. O céu espalhava um brilho leitoso, que lhe permitia
orientar-se pela vista.
Examinou seu corpo. O quadril direito estava reduzido a uma massa dura e
quebradiça, feita de plástico; a fazenda chamuscada e a carne queimada. Ao que parecia,
o tiro disparado por Ronson Lauer só o atingira de raspão. Mesmo assim, as dores eram
terríveis. Chellich cerrou os dentes.
Examinou o solo e encontrou a pista de Suttney e seus cúmplices. Ao notar que se
haviam dirigido para dentro do vale e pretendiam esconder-se num lugar em que havia
sombra, sentiu-se alegre.
Chellich seguiu a pista. Procurou forçar o menos possível a perna direita, e passou a
apoiar-se mais na esquerda. Alguns minutos depois, percebeu que esta também já não
estava agüentando o peso do corpo. Começou a doer. Dessa forma, não conseguiria andar
muito depressa. De qualquer maneira, avançaria mais devagar que Suttney, Lauer e
Roane.
Acontece que, nesse meio tempo, sua raiva atingira um estágio em que os
argumentos racionais não tinham lugar.
“Tenho de alcançá-los”, pensou.
***
***
Ronson Lauer deixou que o amplo feixe de luz de sua lanterna brincasse sobre a
rocha. De repente descobriu a fenda estreita que se abria metro e meio acima do solo e
penetrava na parede de rocha. Aproximou-se e percebeu que o caminho subia
suavemente. Ao que parecia, levava para o platô.
Lançou um olhar indagador para Suttney. Este fez um gesto para Roane. Roane foi o
primeiro a penetrar na fenda. Assim que entrou, ajudou Suttney, que levava a carga
pesada da cassete. Ronson Lauer foi o último. Apesar do microtransmissor que trazia
pendurado ao pescoço, movia-se com bastante agilidade. Uma vez na fenda, voltou a
colocar-se na ponta do grupo e iluminou o caminho.
Subitamente Ronson Lauer notou que o sistema de condicionamento de seu traje
espacial trabalhava em outra “tonalidade”. Olhou para o termômetro de pulso e viu que a
temperatura externa era de quarenta e um graus centígrados.
Enquanto caminhava pé ante pé prestando atenção à presença eventual de animais
perigosos, embora já não acreditasse que nesse mundo existisse vida, ficou refletindo
sobre se haviam agido acertadamente ao abandonar a gazela. Concordava com Suttney,
segundo o qual toda e qualquer nave terrana que destruísse o barco espacial, mataria o
tenente.
Restava saber se existia qualquer veículo espacial terrano nas proximidades.
Ninguém poderia saber que estavam ali. Lauer achou tão improvável que no momento em
que Suttney irradiava a mensagem destinada aos arcônidas houvesse uma nave terrana
num raio de cem anos-luz que nem sequer cogitou seriamente dessa possibilidade. Era
claro que a transmissão de Suttney também fora captada pelas naves terranas. Mas as
mesmas deviam estar tão longe que levariam alguns dias para encontrar o sistema em que
se encontrava a gazela.
Concluiu que, ao fugirem da gazela, agiram precipitadamente.
Teria sido mais confortável permanecer numa poltrona e aguardar a chegada de um
arcônida.
No momento em que se virava para sugerir a Suttney que regressassem à nave,
alguma coisa aconteceu acima dele. De início, apenas viu um raio ofuscante cuja luz
penetrou na fenda. Lauer olhou fixamente para o céu e viu uma chuva de pontinhos
reluzentes que saía de algum lugar do zênite e, depois de espalhar-se para todos os lados,
caiu em direção à superfície.
Esqueceu-se do que pretendia dizer e saiu correndo. Fungando, foi subindo pela
fenda sem dar a menor atenção a Suttney e Roane. Com alguma dificuldade, chegou ao
platô.
Neste meio tempo, os pontinhos reluzentes já haviam chegado mais perto.
Subitamente algo desceu, assobiando, e com um forte estrondo caiu um pouco afastado
do lugar em que se encontravam, enterrando-se no chão arenoso. À luz crepuscular da
noite, Lauer viu uma nuvem de pó erguer-se e descer lentamente. Sentiu um forte
solavanco na rocha sobre a qual estava parado.
Voltou a erguer os olhos e notou que os pontos reluzentes haviam desaparecido.
Deviam ter caído ao solo em outro lugar. Ronson Lauer ouviu alguém respirar
pesadamente às suas costas. Nem olhou para trás a fim de ver se era Roane ou Suttney.
Saiu correndo em direção ao lugar em que a coisa estranha havia penetrado no solo.
O platô era totalmente plano, e a cratera, que o objeto caído do céu abrira no chão,
tornava-se bem visível. Lauer viu que era circular e tinha um diâmetro de cerca de quatro
metros. Sua profundidade era a mesma.
Não conseguiu ver o objeto que havia aberto a mesma!
Lauer desceu na cratera. A areia movimentou-se e Lauer começou a escorregar. Ao
chegar ao fundo da cratera, Lauer estava envolto numa nuvem de pó. Tirou o
microtransmissor de cima do ombro e atirou-o ao chão. Começou a cavar a areia com as
mãos enluvadas.
Era um trabalho penoso, ainda mais que a areia estava quente. Depois de meia hora,
quando, apesar das luvas, tinha as mãos cobertas de bolhas provocadas por queimaduras,
Lauer atingiu um lugar em que a areia derretida se aglomerara num torrão. Tirou o torrão
e jogou-o para o lado. Embaixo dele, surgiu uma peça entrecortada e retorcida de metal
plastificado, que estendia uma ponta espinhosa para Ronson.
Cautelosamente Lauer foi pegando a ponta. Procurou segurá-la para tirar a peça de
metal de baixo da areia. Mas mal tocou o material soltou um grito de dor. A temperatura
do metal plastificado era de pelo menos quinhentos graus.
Lauer recuou um pouco e ligou a lanterna. Deixou o raio deslizar centímetro por
centímetro pela ponta metálica. Aquilo evocava alguma coisa em sua mente. Tinha
certeza de que logo se lembraria do que era caso o visse no seu estado original, isto é,
antes de ser deformado pelo calor.
Subitamente ouviu a voz de Suttney no receptor de capacete. Parecia deprimida e
desesperada:
— É a coluna de direção de uma nave auxiliar arcônida...
Lauer compreendeu imediatamente que Suttney tinha razão. Era isso mesmo: uma
coluna de direção. Lembrou-se do aspecto da mesma, que lhe fora transmitido por meio
de treinamento hipnótico. Era um tubo de plástico com várias saliências que continham
os diversos controles do barco arcônida. As saliências já não existiam mais; derreteram-
se. E o resto se deformara. Mas a observação de Suttney era correta.
Ronson Lauer subiu, totalmente perplexo. Pendurou o microtransmissor no ombro.
Não sabia explicar como a coluna de direção de um barco arcônida viera parar na
superfície desértica desse planeta.
Walter Suttney encontrava-se na borda da cratera. Oliver Roane ainda não havia
chegado. Lauer viu-o caminhando pelo platô.
— Quer dizer que acabaram chegando mesmo — disse Suttney em voz tão baixa
como se estivesse falando num solilóquio.
— Quem? — perguntou Lauer. — Os arcônidas?
— Estes também vieram. Mas eu me refiro aos terranos.
Lauer respirava nervosamente.
— Quer dizer que você acha que eles derrubaram um barco arcônida?
— É claro que sim. O que poderia ser?
Lauer continuava a olhar a cratera com uma expressão de incredulidade. Depois
lançou os olhos para o céu escuro, como se pudesse avistar as naves terranas e arcônidas.
— Prepare o microtransmissor! — exclamou Suttney de repente.
Lauer virou-se abruptamente.
— Por quê? — perguntou. — Não venha me dizer que você pretende...
— Vamos logo! — insistiu Suttney. — Não podemos perder tempo. Daqui a
algumas horas, nossa gente nos encontrará.
Lauer ficou furioso.
— Que diabo você quer que eu faça com o microtransmissor? — gritou.
— Vamos dizer aos arcônidas tudo que sabemos a respeito da posição da Terra;
antes que seja tarde.
Por um instante, Lauer ficou perplexo. Roane também parecia ter perdido a fala.
— Será que você ficou maluco, Walter? — questionava Lauer depois de algum
tempo. — Se o transmissor der um pio, eles nos localizarão e dentro de três minutos
estaremos mortos.
— Três minutos são suficientes para que os arcônidas saibam onde encontrar a Terra
— respondeu Suttney em tom sério.
— E nós? O que teremos a ganhar se os arcônidas sabem disso?
Subitamente a voz de Suttney assumiu uma tonalidade irônica.
— Ronson, você não é um revolucionario? Você jurou que iria destruir Perry
Rhodan, custasse o que custasse. Pois bem. Rhodan estará destruído no momento em que
os arcônidas conseguirem encontrar a Terra. Por que perder tempo? Será que sua vida lhe
vale mais que o bem-estar da humanidade?
Ronson Lauer ficou sem fôlego.
— Não conte comigo — disse.
Suttney segurou as cassetes de microfilme sob o braço esquerdo. Respondeu sem
fazer o menor movimento:
— Você prometeu obedecer às minhas ordens, Ronson. E é exatamente o que você
vai fazer. Prepare o microtransmissor e passe-o às minhas mãos.
— Não! — gritou Lauer.
— Faça o que estou dizendo, senão...
— Senão o quê?
Walter Suttney não soube avaliar corretamente a situação. Acreditava que teria
tempo para colocar a cassete cuidadosamente no chão e puxar a arma. Com isso Ronson
Lauer pôde agir com uma facilidade verdadeiramente ridícula. Quando Suttney ainda se
erguia, já estava com a pistola destravada na mão. Levantou-a e disse em tom de
desprezo:
— Seu imbecil!
E disparou duas vezes.
***
***
***
— Desça por aqui! — fungou Lauer. — Que diabo! Ande mais depressa!
A lerdeza de Roane começava a enervá-lo. Deu-lhe um pontapé nas costas, fazendo
com que seu corpo descesse pela rocha mais depressa do que pretendia. Uma vez lá
embaixo, Roane ficou deitado, gemendo.
Lauer seguiu-o agilmente. Além do microcomunicador carregava a cassete com os
microfilmes. Apesar disso, caminhava com uma extraordinária destreza.
Haviam visto a luz da explosão que destruíra a gazela. Encontravam-se num
esconderijo seguro, na extremidade leste do platô, quando viram a nave de Perry Rhodan
passar pouco acima da superfície. Dali a alguns minutos, viram uma esquadrilha de
gazelas que desceu do céu noturno e desapareceu além dos cumes montanhosos.
Ronson Lauer avaliou corretamente a situação. Estavam numa armadilha. Na
extremidade leste do platô, a encosta rochosa e íngreme descia para um vale largo e
arenoso. Na encosta havia numerosos esconderijos. Ronson Lauer sabia perfeitamente
que seria inútil prosseguir na marcha.
Sentados naquele lugar, viram o céu clarear aos poucos. Os homens de Rhodan não
demorariam a iniciar as buscas. E procurariam no lugar em que a rocha oferecia bons
esconderijos. Não levariam mais de três dias para encontrá-los.
Então era isso. Seu caminho terminara num planeta seco e poeirento, que nem
sequer tinha um nome.
Ronson Lauer sentiu-se furioso.
Que malditos idiotas eram os arcônidas! Por que não vieram mais depressa? Nesse
caso a esta hora ele e Roane estariam sentados num camarote confortável, onde lhes seria
dispensado um tratamento respeitoso, enquanto apresentavam a algum comandante
arcônida o segredo roubado a Rhodan.
No entanto, estavam sentados em meio a uma série de rochas marrom-amarelas,
esperando que o sol nascesse e que os homens de Rhodan os encontrassem.
Salvo se...
Subitamente Lauer teve uma idéia. Viu à sua frente a cassete com os microfilmes.
Não teria oportunidade de entregá-la aos arcônidas. Mas poderia fazer aquilo que Suttney
pretendia. Poderia informá-los pelo microcomunicador de que o sistema solar terrano
ficava a esta ou aquela distância do lugar em que se encontravam, e que deviam procurá-
lo nesta ou naquela direção. Não seria uma informação completa, mas bastaria para que
os arcônidas encontrassem a Terra dentro de dois anos no máximo.
Não tinha a intenção de, na situação em que se encontrava, ainda transmitir esta
informação aos arcônidas.
Mas poderia ameaçar Perry Rhodan de agir dessa forma!
***
Durante uma hora, não houve resposta. Perry Rhodan começou a espantar-se. Tinha
certeza absoluta de que Suttney e seus comparsas haviam saído da gazela, antes que esta
explodisse sob a ação de um raio de desintegrador. Mas o silêncio reinante no éter parecia
contrariar essa suposição. Se estivesse vivo, Walter Suttney não seria tolo a ponto de
acreditar que ainda lhe restava uma chance.
Rhodan não sabia que Ronson Lauer ainda não terminara de redigir sua resposta.
Foi só uma hora após o nascer do sol, mais precisamente, às vinte horas, tempo de
bordo, que uma voz apressada e nervosa se fez ouvir no receptor de Perry Rhodan:
— Aqui fala Ronson Lauer, Rhodan. Suttney está morto. Assumi seu posto e quero
propor-lhe um acordo razoável...
***
Quando o sol nasceu, Gunter Chellich havia percorrido metade do platô. Nas
últimas duas horas, sentira um frio terrível. Mas antes que o sol subisse um palmo acima
da linha do horizonte sentiu tanto calor que ansiava pelo frescor da noite.
Os cumes rochosos situados na extremidade leste da superfície plana aproximavam-
se com uma lentidão insuportável. Chellich parava constantemente para respirar. Teve a
impressão de que não saía do lugar.
A pista de Lauer e Roane atravessava a areia amarela em linha reta. Chellich pôde
ver o lugar em que chegava ao fim dessa área. Mas, antes de chegar lá, teria de percorrer
alguns quilômetros. Eram quilômetros de calor e poeira — espaço demais para alguém
que não se agüentava um segundo sobre a perna direita e há uma eternidade não bebia um
gole.
Não se via mais nada das gazelas. Ao que parecia ninguém acreditara que a
superfície arenosa fosse um local de pouso muito favorável.
Chellich continuou a arrastar-se. Começou a duvidar de que conseguisse chegar à
periferia do platô. Sentiu-se dominado pelo pavor. Teve de recorrer a toda a força do
raciocínio, para não se jogar na areia e ficar deitado.
***
— Rhodan, o senhor tem dois meios de transmitir instruções aos seus homens —
disse a voz apressada de Lauer. — Poderá usar o telecomunicador ou o rádio comum.
Estou em condições de ouvir um e outro. Garanto-lhe que, no momento em que o senhor
usar seus transmissores, para qualquer coisa que não seja a troca de mensagens comigo,
começarei a transmitir aos arcônidas as informações de que disponho. Lembre-se disso e
pense na minha proposta.
Perry Rhodan sabia que Lauer estava falando sério. Começaria a transmitir aos
arcônidas as informações relativas à posição galáctica da Terra, assim que alguém
tentasse avisar a posição do transmissor às naves, para que estas soubessem onde lançar
suas bombas.
Tanto Rhodan como Lauer encontravam-se numa situação em que só havia um
caminho a trilhar. Qualquer outro levaria à desgraça.
Ronson Lauer acabara de dizer que não revelaria a ninguém o que sabia, se lhe
fornecessem uma gazela e lhe permitissem decolar com a mesma depois da saída da frota
terrana.
Naturalmente essa proposta era inaceitável. Uma vez de posse da gazela, Lauer
voaria para Árcon, a fim de completar sua traição.
Lauer fixara um prazo de três horas. Se até lá sua proposta não fosse aceita,
começaria a transmitir. Perry Rhodan estava com as mãos atadas. Não poderia fazer nada
sem arriscar a revelação do segredo mais importante do Império Solar.
O sol amarelo foi subindo no céu branco-azulado. E a bordo da gazela oferecia-se
um reino em troca de uma boa idéia.
***
“...esquerda... puxar a perna direita...! não olhe para o sol! Não pense em água! Vá
à frente! Siga a pista!”, eram estes os pensamentos do tenente.
Aos olhos de Gunter Chellich, a areia era de um branco ofuscante e as pisadas que
via à sua frente pareciam buracos negros. Parecia um mundo feito de preto e branco e
calor.
Não sabia quanto ainda teria de caminhar até atingir a sombra das rochas. Não tinha
coragem de levantar a cabeça, pois nesse caso veria o grande sol. E não queria vê-lo.
E nem quando alguma coisa começou a uivar atrás dele levantou a cabeça. Não
estava interessado em saber o que uivava. Ouviu o ruído tornar-se mais forte e aproximar-
se de trás. Mas não parou nem virou a cabeça, pois receava que, se parasse, não
conseguiria prosseguir.
Subitamente viu que os contornos da pista se desmanchavam à sua frente.
Desfizeram-se e de repente haviam desaparecido. Piscou os olhos chamejantes, para
espantar a alucinação. Porém aquilo não era nenhuma alucinação. A pista havia
desaparecido. À sua frente, só havia areia, que alguma força inexplicável tangia...
Quando começou a ficar escuro em torno dele, acabou parando e olhou para trás.
Mas não havia mais nada que pudesse ver. Estava envolto numa densa nuvem marrom, a
areia penetrou-lhe pelos olhos, nariz e boca, e o uivo transformou-se no rugido de uma
tempestade de areia.
Cobriu o rosto com os braços e prosseguiu em sua marcha. Tinha a impressão de
saber em que direção corria a pista antes que se apagasse. Um pensamento automático lhe
disse que, se não tivesse cuidado, descreveria uma curva para a esquerda, já que em
virtude do ferimento a perna direita avançaria menos. Por isso dirigiu-se para a direita e
deixou que a tempestade o tangesse.
Não enxergava dois metros à frente dos olhos. Sempre que mordia os dentes, ouvia
um forte rangido. Mas pouco lhe importava que sentisse um ardor ou ouvisse um rangido.
Uma coisa era tão ruim quanto a outra.
Seguiu cambaleando. Perdeu a noção do tempo. O cérebro foi transmitindo
automaticamente os comandos às pernas.
“Esquerda... puxar a direita.”
Gunter Chellich se parecia com uma máquina que só continuava a caminhar, porque
alguém se esquecera de desligá-la.
De repente, tropeçou em alguma coisa. “Talvez minhas pernas fraquejaram!”,
pensou. “Não... senão eu teria caído na areia macia e... continuaria deitado.”
E ele não caiu no macio.
Seu crânio bateu contra alguma coisa dura, e isso o despertou. Teve a impressão de
ver uma rocha de dois metros à sua frente. De início não acreditava no que seus olhos
viam. Mas, depois de algum tempo, passou a mão pela rocha. As arestas arrancaram-lhe
sangue, e o sangue convenceu-o. Conseguira. Chegara ao fim do platô. Quando a
tempestade amainasse e o sol voltasse a brilhar, a rocha lhe proporcionaria uma sombra
protetora.
Contornou a rocha e comprimiu o corpo contra a face oposta ao vento. Viu que dois
metros atrás dele o chão descia fortemente.
“Provavelmente lá embaixo existe um vale”, pensou cansado.
Comprimiu a mão contra a boca e respirou entre os dedos. Precisava de ar, mesmo
que fosse quente e poeirento como o que estava respirando.
Sentiu que a tempestade sacudia a rocha.
***
Ronson Lauer viu a nuvem de areia marrom passar por cima da rocha e ouviu o uivo
da tempestade. Sentiu-se dominado pelo pânico. Com a tempestade, Rhodan teria uma
excelente oportunidade de aproximar-se sem que ele o percebesse e surpreendê-lo em seu
esconderijo.
Deveria mudar de lugar.
— Vamos embora, Roane! — gritou, esforçando-se para sobrepujar o ruído do
vento. — Vamos para lá!
Roane não sabia por que deveria sair dali, mas obedeceu. Comprimindo-se pelas
rochas, foram seguindo ao longo da encosta. Lauer ficou com o microcomunicador
ligado. Mas Perry Rhodan não chamou.
Já se haviam passado duas horas e meia.
***
***
***
Walter Suttney e Ronson Lauer estavam mortos. Oliver Roane fora poupado pelo
destino. Quando o encontraram, estava apenas inconsciente. A rocha lhe esmagara a
perna direita, que teve de ser amputada. Mas Roane viveria para responder ao processo
que lhe seria movido na Terra.
Gunter Chellich não estava morto, mas quase. Os médicos da Drusus declararam
nunca terem visto um caso tão grave de esgotamento. Gunter Chellich levou três dias
para recuperar os sentidos. Quando isso aconteceu, a Drusus já havia voltado a Fera
Cinzenta.
Ao despertar, Chellich virou a cabeça de lado e viu, na cama ao lado, um rosto que
lhe parecia muito conhecido-.
— Oh, Mullon! Como foi que você veio parar aqui? — perguntou com a voz débil.
— Também esteve em Tântalo?
Mullon riu.
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