Pensar Habermas para além de Habermas: A tese da relação interna entre Estado de direito
e democracia em uma sociedade dita agora “pós-secular” na obra recente de Habermas -
uma revisão?
“Suponho, todavia, que a inquietação atual tenha uma razão mais profunda: ela deriva do pressentimento de
que, numa época de política inteiramente secularizada, não se pode ter nem manter um Estado de direito sem
democracia radical.” (HABERMAS, Facticidade e Validade, 1998, p. 61)
“Nessa disputa, defendo a tese de Hegel segundo a qual as grandes religiões pertencem à própria história da
razão. O pensamento pós-metafísico não entende a si mesmo se ele fracassa ao não incluir as tradições
religiosas, ao lado da metafísica, na sua própria genealogia. Sobre essas premissas, seria irracional rejeitar
essas tradições ‘fortes’ como sendo resíduos ‘arcaicos’, ao invés de elucidar a conexão interna que as vincula
com as formas modernas de pensamento. Mesmo hoje, as tradições religiosas realizam a função de
articulação de uma tomada de consciência, de um despertar, para aquilo que falta ou está ausente. Elas
mantêm viva uma sensibilidade para o fracasso e para o sofrimento. Preservam do esquecimento essas
dimensões de nossas relações sociais e pessoais em que os avanços da modernização cultural e social
causaram profundas devastações. Quem é que poderia dizer que elas não contêm codificados certos
potenciais semânticos, que poderiam prover inspiração, se apenas sua mensagem fosse traduzida em
discursos racionais e se seus conteúdos de verdade profana fossem liberados?” (HABERMAS, Entre
naturalismo e religião, 2008, p. 6)
“Proporei, ao contrário, que construamos a secularização cultural e social como um duplo processo de
aprendizagem que compele tanto as tradições do Iluminismo quanto os ensinamentos religiosos a refletirem
sobre seus respectivos limites. Finalmente, considerando as sociedades pós-seculares, há a questão acerca de
quais são as atitudes cognitivas e as expectativas normativas que o Estado Liberal deve exigir dos cidadãos
religiosos e não religiosos nos seus tratos uns com os outros.” (HABERMAS, Entre naturalismo e religião,
2008, p. 102)
Assim, tendo até aqui caminhado com Habermas, cabe dizer que qualquer
observação crítica ou dúvida que pudesse ter quanto à sua obra recente tem o sentido de
uma reflexão que procura levar a sério desafios postos pela própria obra habermasiana: Hic
Rhodus, hic salta! Mas, para isso, quem sabe, já tenha chegado a hora de pensar Habermas
para além de Habermas...
2 – Pensar Habermas...
E se, mais uma vez, procuro refletir sobre esses pontos a partir de críticas a
interpretações do pensamento de Habermas, que anteriormente apresentei, não o faço
porque desconsidero a seriedade ou importância das indagações de quem critiquei, ao
contrário. O que penso, todavia, é que essas interpretações miram questões centrais, mas
erram o alvo.
Assim, essa retomada inicial tem apenas por finalidade, neste contexto, preparar o
terreno para, num segundo momento, mapear o enfrentamento dos seguintes pontos:
Assim, antes de oferecer uma análise critica quanto aos pontos 3, 4 e 5, quero
recuperar o que disse anteriormente sobre os pontos 1 e 2.
4
Detenho-me, exatamente nesse ponto, para chamar a atenção para uma leitura
errônea, embora corrente, dos pressupostos idealizantes do agir comunicativo, assim como
da chamada situação ideal de fala.
Não há que se proceder aqui sequer a analogias, mas sim de se reconhecer – todavia
de forma adequada – a possibilidade de um nexo genealógico entre as “ideias” kantianas da
razão pura e os pressupostos idealizantes do agir comunicativo:
5
“[...] as ideias kantianas da razão pura não podem traduzir-se diretamente da linguagem
da filosofia transcendental à linguagem da pragmática formal. E estabelecer ‘analogias’
não resolve a questão. No curso de sua transformação, as oposições de Kant
(constitutivo versus regulativo, transcendental versus empírico, imanente versus
transcendente, etc.) perdem sua nitidez, já que a destranscendentalização [da razão]
implica uma profunda intervenção na sua arquitetura básica” (HABERMAS, 2005,
p.87).
E, por que, para Habermas, estabelecer analogias não resolve a questão? Porque
“De acordo com a pragmática formal, a estrutura interna racional do agir orientado
para o entendimento está refletida nas pressuposições que os atores têm que fazer se
eles querem se engajar nessa prática. A necessidade desse ‘ter que’ possui antes um
sentido wittgensteiniano do que kantiano. Isso é, ela não possui o sentido
transcendental das condições numenais, necessárias e universais da experiência
possível, mas o sentido gramatical de uma ‘inevitabilidade’ advinda das conexões
conceituais internas de um sistema de comportamento guiado por regras, em que nos
socializamos, e que, em qualquer caso, ‘é para nós inescapável’.” (HABERMAS, 2005,
p. 86)
Habermas (2005, p. 86) esclarece que “todas as práticas para as quais não podemos
encontrar equivalentes funcionais em nossa forma de vida sócio-cultural é nesse sentido
fundamental”. E embora uma linguagem natural possa ser substituída por outra, “não há
nenhum substituto imaginável para a linguagem proposicionalmente diferenciada enquanto
tal” (HABERMAS, 2005, p. 86).
Diante disso, como compreender adequadamente a situação ideal de fala? Ela nada
mais é, segundo Habermas, do que um “experimento de pensamento” [ein
Gedankenexperiment] e representa, assim destituída de toda e qualquer conotação
essencialista, tão-somente uma projeção metodológica, empreendida por meio da
reconstrução dos pressupostos idealizantes da racionalidade comunicativa já operantes na
facticidade dos processos sociais e subjacentes, portanto, a toda interação linguística
voltada ao entendimento. Nas próprias palavras de Habermas:
Em texto recente, Jiménez Redondo defende a tese (in CHAMON JUNIOR, 2007,
pp. xxi-xxxviii), segundo a qual Habermas não apresentaria uma justificação normativa
para a forma jurídica moderna, mas apenas, para usar a expressão utilizada pelo professor
espanhol em seu “estudo prévio”, uma “justificação funcional”.
Para além do quão no mínimo estranha possa ser a própria expressão “justificação
funcional”, há, ao que parece, um problema de compreensão aqui, porque Habermas (1998,
p. 177), ao afirmar que precisará as “características formais do Direito” ou “as
características do Direito quanto à forma”, recorrendo à relação de complementaridade
entre Direito e moral, como parte de uma “explicação funcional”, posto que “a forma do
direito não é um princípio que se poderia ‘fundamentar’, já seja epistêmica, seja
normativamente”, está tão-somente buscando contrapor o seu pensamento ao de Kant na
Metafísica dos costumes (HABERMAS, 1998, p. 171; 1998, p. 177; 1998, p. 178; 1998, p.
186).
Se as interpretações que critico merecem todo o respeito, repito: cabe dizer que elas
miram importantes questões sem, contudo, acertar o alvo. Cabe agora mostrar, ainda que
em linhas gerais e de forma polêmica, onde para mim estariam os problemas em termos de
construção, exposição e desdobramentos recentes da proposta de Habermas.
9
Aqui, mais uma vez, a teoria francesa do poder constituinte é falha. Não é possível
levar Sieyes ao pé da letra, pois na França revolucionária o que estava em questão era não
apenas colocar em questão um Estado absolutista, mas também deslegitimar os corpos
intermediários e as formas tradicionais de representação, advindos inclusive da tradição
11
Ad b) Esta questão vem sendo trabalhada também por mim nos últimos anos. A
perspectiva crucial aqui envolve o que Marramao chama de “deslocamento lateral” (2005,
p. 89). Ou seja, a pergunta que se impõe não é tanto a do porquê o Estado Democrático de
Direito, mas a do como, como tais princípios se tornaram uma exigência normativa no
interior da própria história (CATTONI DE OLIVEIRA, 2011, pp. 208-209). Isso envolve a
necessidade da reconstrução das lutas por reconhecimento por direitos - o reconhecimento
dos sofrimentos, das vítimas - e da crítica ao esquecimento reificante e ao desprezo à
dignidade humana - traduzida aqui como titularidade de liberdades comunicativas,
conjunção de várias esferas de comunicação social fundadas intersubjetivamente, mediante
o reconhecimento recíproco; assim como a capacidade desenvolvida de reflexão critica e
de aprendizado das sociedades ao longo da sua história, aberta a posteriores
desdobramentos (HONNETH, 2003; 2007a; 2007b; 2009). Além disso, não basta falar de
um deslocamento temporal do problema do fundamento do Direito, do passado para o
futuro. Aqui é preciso considerar que o Direito somente terá um “fundamento” no futuro se
ele já tiver esse fundamento aqui e agora, ou seja, se o presente já puder ser reconhecido
como o futuro do passado redimido no presente pela ação política, constitucional.
manipular geneticamente as pessoas, pois tal prática colocaria em risco as “bases naturais”,
contingentes e não controladas, da própria autonomia (HABERMAS, 2004). A questão é
saber, não apenas se tal coisa se daria de modo tão radical, a ponto de uma programação
genética da pessoa que impossibilitaria falar-se em autonomia, como discute Dworkin
(2003), mas, especialmente, quais seriam as implicações para um “fechamento ético” do
moderno.
Esta discussão coloca inclusive um problema mais agudo, sobre o próprio conceito
de pessoa subjacente ou “requerido” por uma Teoria do Discurso. Seria, segundo Günther
(2006, pp. 223-239), o de uma pessoa deliberativa, capaz de argumentação na esfera
pública, ou seja, de justificar mediante razões seus pontos de vista, conceito que estaria na
base de uma concepção cognitivista e normativista da política e da democracia
(HABERMAS, 1998, p. 185). Mas e quem não é capaz de argumentar estaria excluído da
esfera pública política? E, mais ainda, não seria pessoa, no sentido da teoria do discurso?
(2003, p. 11-83), “de todas as culturas ao ocidente“: vivemos um presente paradoxal entre
o não-mais da velha ordem estatal hobbesiana e o ainda-não de uma constelação pós-
nacional que, como tal, somente pode ser construída multilateralmente. Todavia, para tal
construção, de muitas vozes e sujeitos plurais e múltiplos, não basta simplesmente
pretender incluir os outros, “o resto do mundo”, mas sim cabe criar um novo
universalismo, não uniformizante - “a casa do universal ainda está por ser construída“. Um
universalismo da diferença capaz, ao mesmo tempo, de ser sensível às diferenças que,
antes do que naturais, são frutos ou construções do imaginário cultural de identidades
plurais e não-monolíticas; não redutíveis, portanto, a velhos esquemas interpretativos de
matriz identitária, teológico-política ou mesmo próprias de uma filosofia da história e de
sua escatologia, enfim, da grande “onto-teo-odisséia do racionalismo ocidental”, tais como
humano/animal, civilização/barbárie, ocidente/oriente, norte/sul, indivíduo/comunidade,
interior/exterior, global/local. Como afirma Marramao (2003, pp. 11-83), são
características marcantes do mundo glo-calizado: exatamente “a produção global do
local”; um processo de secularização que contribuiu para uma nova função da religião
como medium simbólico de formação de identidades/identificações; e fenômenos de uma
acentuada desterritorialização do direito e dos direitos em seu caráter aberto ao futuro, em
que, se por um lado o Estado vive uma profunda crise na sua incapacidade de mediar o
universal e o particular, e de lidar com os novos conflitos de valor e as lutas por
reconhecimento, por outro um movimento de reterritorialização do direito é marcado pelo
surgimento de novos “poderes intermediários“ e de um pluralismo jurídico, assinalados
pela contaminação e diferenciação entre os modelos do common law e do civil law, que
colocam em questão a velha tradição da dogmática jurídica continental européia, com
todos os riscos que disso possa advir. Diferentemente, portanto, seja de uma suposta
“sociedade pós-secular” (HABERMAS, 2008a), já que a religião assume novos papéis
identitários, seja de uma “nova idade média” (MACINTYRE, 2001), já que não se pode
abrir mão da igualdade na diversidade e do direito à singularidade como conquistas
inafastáveis da modernidade jurídica e política, Marramao (2003, pp. 172-192) afirma que
liberdade, igualdade e fraternidade são propriedades reais, sobretudo após o novo 89.
Quando ruiu o chamado império do socialismo dito real – aliás, sempre denunciado pela
esquerda socialista e democrática, não-estalinista, como sendo autocracia, capitalismo de
Estado e burocratização das relações sociais e de vida -, a direita em todo o chamado
“ocidente“, procurou exportar, para o sul e para o oriente, o neoliberalismo, por um lado,
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como cartilha sócio-econômica, assim como a democracia liberal, por outro, como forma
política supostamente passível de ser imposta militarmente, assim desrespeitando as
experiências culturais e os potenciais universalizantes - ainda que diferentes dos da Europa
- já presentes nos mundos da vida dos supostos beneficiários de uma atuação militar
moralizante e pseudo-humanitária, patrocinada por parte de sucessivos governos do partido
republicano e do neoconservadorismo inglês e norte-americano, com apoio da direita em
países da União Européia e mesmo ao redor do globo. O risco das boas intenções norte-
americanas, como nos lembra Marramao, “todos sabemos”, após a invasão do Iraque e do
horror do 11 de setembro: o de lançar o mundo numa guerra civil, não apenas esfacelar
o(s) ocidente(s) dividindo-o(s), mais e mais, mas contribuindo para alimentar o
autoritarismo dos chamados “asian values“, assim como diversas formas de intolerância e
de fundamentalismo, entre outros tantos problemas. A crise do sistema financeiro e
imobiliário nos Estados Unidos, e o risco de um novo 1929, mostram, por um lado, que o
neoliberalismo é ideologia fracassada e, por outro, que é também preciso pensar o político
para além do Estado nacional. No contexto atual da modernidade-mundo, afirma
Marramao que o presente, este tempo entre o não-mais da velha ordem hobbesiana e o
ainda-não de uma era pós-nacional, não é caracterizado por uma esfera pública mundial
única, mas por esferas públicas diaspóricas, em que se deve reconhecer cidadania não
apenas a formas argumentativas de deliberação pública, mas também às narrativas “com
provas”, para parafrasear o historiador Carlo Ginzburg (2006; 2008; 2009), capazes de
expressar experiências de vida e não apenas “razões”. Mas para Marramao, no contexto da
atual “Cosmópolis” - ou melhor, da nossa “Babel global” - mostra-se também crucial a
idéia de uma esfera pública que seja capaz de “recompor o universal contra a [lógica da]
identidade”, não contentando-se apenas em relativizar ou enfraquecer as identidades,
simplesmente pluralizando-as. Trata-se, para Marramao, de se construir um universal que
seja multicêntrico e que não vise “a recompor como um mosaico as várias identidades
culturais, tomando-as como tais”, como se fossem dados auto-evidentes e auto-fundados, e
não como um problema. E por isso repensar “um ser-em-comum composto de histórias
diversas e de diferenças inassimiláveis”, numa democracia compreendida como
“comunidade dos sem comunidade” (MARRAMAO, 2003, pp. 185-192), numa “civitas
como comunidade paradoxal suscetível de acolher as existências (e experiências)
singulares, independentemente das pertinências identitárias que em cada caso se fazem
presentes como inevitável efeito dos mecanismos de identificação simbólica e das práticas
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“Mas – e aqui está a questão - qual diferença? [...] Como entender, portanto, a
diferença? Diferença, não como negatividade dialética, nem como mero revés da lógica
identitária. Mas diferença como código da não identificabilidade do ser. O ser não
tolera identificações, não tem carteira de identidade. Se é verdade que aquele estranho
complexo de acontecimentos que chamamos mundo, enquanto eventualidade, é feito de
diferenças, se deduz então que as diferenças não identificam nunca o ser, mas que
precisamente sempre o diferenciam. E somente porque o diferenciam, produzem o
fenômeno do devir, da vida. O devir da vida existe na medida em que não há
identificabilidade do ser. Identificação e classificação dos eventos podem naturalmente
dar-se: devemos todavia saber que as mesmas nunca têm que ver com a Ordem do
Mundo, mas antes respondem - como havia perfeitamente captado Nietzsche - a uma
necessidade prática. Somente por essa via, somente captando essa passagem, podemos
fazer explodir o dispositivo da metafísica, que logo forma uma unidade com o
dispositivo do poder: A idéia do Uno como unidade das diferenças. Devemos todavia
guardarmo-nos das demasiado fáceis – e ‘demasiado humanas’ – superações da
metafísica hoje tão difundidas no mercado cultural. A metafísica pensou a diferença.
Pensou-a tanto obsessivamente quanto a identidade. Mas – eis o ponto- pensou-a no
sentido de que seu pensamento do ser coincidiu, de Aristóteles a Hegel, com o
pensamento da unidade das diferenças. Aninha-se, aqui, nesta insidiosa divisória do
pensamento metafísico, o dispositivo que assinalei, dispositivo comum ao poder e à
lógica identitária. O pensamento do Uno como unidade (funcional, estrutural ou
inclusive dialética) das diferenças nasce – o advirto cada vez mais – de uma confusão
entre o stoicheion, o ‘constitutivo’, o constituinte e o ‘identitário’. Portanto, estou
convencido de que todo conceito de diferença, e todo o futuro de um pensamento pós-
filosófico, está nas mãos de nossa capacidade para operar uma inversão da lógica da
identidade, mantendo separados o pensamento do constituinte do pensamento do Uno.
O constitutivo é o contrário do idêntico. Se ao invés insistimos nos jogos de estratégia
da lógica fundacional, no sentido de reabsorver o pensamento do stoicheion no círculo
autorreferencial do Uno, não faríamos outra coisa que ‘voltar a fundar’ a questão do
comum, do que nos constitui, dentro das barreiras arquitetônicas da lógica identitária.”
(MARRAMAO, 2003, p. 215).
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Cabe lembrar, neste ponto, o modo com que Habermas enuncia a sua grande tese
no prefácio a Facticidade e validade:
“Suponho, todavia, que a inquietação atual tenha uma razão mais profunda: ela
deriva do pressentimento de que, numa época de política inteiramente secularizada, não se
pode ter nem manter um Estado de direito sem democracia radical. A presente pesquisa
pretende transformar esse pressentimento num saber explícito.” (1998, p. 61)
Se é que nós vivemos hoje, segundo Habermas, numa era pós-secular, como fica
esta tese, segundo a qual não se pode ter nem manter um Estado de Direito sem
democracia radical, já que não mais viveríamos uma era da política totalmente
secularizada? Isso implicaria reconhecer fundamentos pré-políticos do Estado Democrático
de Direito, no sentido de um aprendizado social recíproco, entre não-crentes e crentes, e o
caráter inesgotável de intuições normativas ou de fontes de sentido às “grandes religiões
mundiais“ (HABERMAS, 2008a). Ou seja, que o processo democrático tem sempre muito
que ouvir e aprender com as religiões, ao mesmo tempo em que a Filosofia, reduzida a
observador externo, nada teria a dizer (HABERMAS, 2008a, p. 4). O que se pode dizer do
modo com que Habermas agora pretende interpretar a modernização cultural, após-Hegel
(HABERMAS, 2005, pp. 175-211), considerando que genealogicamente as religiões, ao
lado da metafísica, fazem parte da história do pensamento pós-metafísico (HABERMAS,
2008a, p. 6)? E que este pensamento pós-metafísico não tem como se compreender sem
essa referência (HABERMAS, 2008a, p. 6)? Cabe considerar o modo com que Habermas
relê Böckenförde (2007; 2008, pp. 31-53), quanto à questão segundo a qual o Estado não
teria como garantir as suas fontes de legitimidade, a não ser reconhecendo ou protegendo,
no contexto de uma sociedade pós-secular, as religiões como fonte de solidariedade social
(Cf. RUSCONI, 2008, pp. 7-30)?
privilegiado de “gestoras das fontes de sentido”. E que não é uma espécie de “Teologia
política”, mas a própria Filosofia, quem deve ser chamada à tarefa de pensar o presente
(MARRAMAO, 2008, pp. 46-49). Afinal, Hegel (2010, p. 43), muito pelo contrário, não
retira da Filosofia esta tarefa que lhe é própria. Para mim, dar à religião tal centralidade
poderia subverter a tese da relação interna entre Estado de Direito e democracia que se
constrói ao longo do tempo histórico, por meio de lutas por reconhecimento de novos
sujeitos e de novos direitos, enquanto processo permanente de aprendizado social
(CATTONI DE OLIVEIRA, 2011; 2012), ao incluí-la entre o Estado de Direito e a
democracia, como fonte pré-política de sentido, um terceiro não excluído. O que está em
questão é o próprio direito constitucional à liberdade subjetiva de crença e de não-crença
como conquista da modernidade cultural. Habermas não estaria tirando consequências
problemáticas para sua própria Teoria democrático-constitucional da tese acerca de uma
“sociedade pós-secular“, ainda que se adiante contrário a uma leitura conservadora dessa
tese?
ao lado da metafísica, à história do racionalismo moderno, cabe perguntar: o que vale para
um pensamento metafísico não valeria em termos de destranscendentalização para a
religião? Trata-se, apenas, de uma questão de “adaptação” e não de “racionalização”
propriamente dita?
Será que Habermas irá conseguir resolver o problema que ele mesmo pode estar
criando para a Teoria Discursiva do Direito e da Democracia ao falar, ainda que com
reservas, em fundamentos pré-políticos do Estado Democrático de Direito?
Será muito difícil, em razão dos descaminhos nos quais parece enveredar-se. Sim,
pois Habermas pode permanecer num “oscilar entre carisma e disciplina”. E isso para
parafrasear, ao dizer de Habermas, o que se poderia dizer do último Weber, relido a partir
de toda a crítica que, por exemplo, Marramao, desde Poder e secularização (1995), tem
desenvolvido à narrativa do racionalismo ocidental empreendida na Sociologia da religião
(WEBER, 2008).
Espero que Habermas seja capaz de mais uma vez ir além de Weber, como o foi
após rever a primeira versão das teses de Facticidade e validade (1998) apresentadas nas
suas Tanner Lectures (1986). Mas discordo que faça algum sentido, para isso, ir de Kant a
Hegel e depois voltar a Kant, como pretende Habermas (2005).
Como disse acima, considero mais acertada a proposta mais recente de Honneth, no
contexto da tradição da teoria crítica da sociedade, acerca de uma teoria da justiça social e
política, ligada a um diagnóstico crítico das patologias sociais do tempo presente, a partir
da reatualização da Filosofia do Direito de Hegel, com base nos conceitos de
reconhecimento e de liberdades comunicativas (HONNETH, 2007; 2009).
das imagens de mundo, por outro? Afinal, o que houve com o conceito de razão
comunicativa no meio desse caminho?
Por fim, após os desenvolvimentos mais recentes, até que ponto as posições
defendidas pela teoria ainda poderiam ser chamadas de republicanismo kantiano ou
mesmo configurarem uma entre tantas versões do liberalismo político? O que não diria
Rawls agora a respeito daqueles que seriam os “limites da reconciliação por meio de um
uso público da razão”? E o que poderemos dizer atualmente a respeito da arquitetura da
teoria: o que dizer, enfim, da tese da relação interna entre Estado de Direito e
democracia, mas agora numa sociedade dita pós-secular? Uma revisão?
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