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| MARIA LUIZA MARCILIO HISTORIA SOCIAL DA CRIANGA ABANDONADA pol Elion Huciee Ld. Rom Cl Eanes, 713, O41 M12 Sto Pal (o11)240.9318 ¢ 543-0553, Vedas: (011)330-4552. Facsimile: (0119830 ISHN 85-271.487-7 Hci Foi feito w Dep srg eetrica: Ouripedes Callone Ywonne San ‘Apoio do Govemo do Estado de Sao Paulo através da Secretaria da Crianga, Familia @ Bem - Estar Social - Secretaria Marta Teresinha Godinho SUMARIO APRESENTAGAO, Parte I EUROPA 1. O abandono de bebés na Antiguidade 2, Piedade e caridade: Alta Idade Média 3. Catidade puiblica em emergéncia, Séculos XT a XIV 4. A Europa Clissica: institucionalizagio da assisténcia caritativa a0s expostos A evolucio do sistema de assisténcia Amas-de-leite: pilar do sistema de assist@ncia aos expostos Morealidade infantil dos expostos das Rodas O século da crianga abandonada na Europa, A filantropia do Oitocentos A emergéncia da filantropi O abandono de criangas na historia de Portugy Origens medicvais da assisténcia 3 infiincia desvalida Expostos e abandonados no Antigo Regime portugues Uteis asi ea pétria”, O século do menor abandonado em Portugal 6 ICONOGRAFIA Parte I~ BRASIL Introdugio TA trajetsria da assiseéncia a siangas abandonadas 89. 93 106 8 SunAno 1) A fase caritativa da assisténeia a infineia abanclonada (até meados do século XTX) Expostos, filhos de criagio Os expostos assistidos pelas C:lmaras Municipais A Roda de Expostos: findagies e trajetérias A assisténcia as meninas sem-familia, até meados do século XIX A formagio dos meninos, filhas da Roda A fase da filantropia (até meados do século XX) ‘Mudangas na assisténcia aos expostos A roda dos enjeitados em debate Novas instituig6es de assisténeia filantrépica 3. A emergéncia do Estado do Bem-Fstar do Menor (apés 1960) Il —A Emnodemogratia dos expostos 1.0 volume da populagio de menores expostos. Bstimativas 2. Criangas sem futuro. O massacre dos inocentes, 3. A questio do leite, As amas-de- com a amamentagao artificial Parte III — A CRIANGA ABANDONADA, 1. Causas do abandono 2. O bebé abandonado 3. A vida cotidiana do exposto na fase de “educagio” 4. Iniciagio dos expostos no mundo do trabalho 5. Dotes ¢ casamentos para as filhas das Rodas e dos Recolhimentos 6. Tucela, perfilhagio, adogio CONSIDERAGOES FINAIS FONTES F BIBLIOGRAFIA BIBLIOGRAFIA 14 136 139 44 163 178 191 191 196 201 ABREVIATURAS AHU — Arquivo Histérieo Ulemmarino, Lisboa ANRJ — Arquivo Nacional. Rio de Janciro ANTT — Arquivo Nacional da Torce do Tombo. Lisboa APESP — Arquivo Piiblico do Estado de Sto Paulo ASCMS — Arquivo da Santa Casa de Miserie6rdia de Salvador, Bahia ASCMSP — Arquivo da Santa Casa de Miserivérdia de Sio Paulo BNI — Biblioteca Nacional de Lisboa BNRJ — Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro Cedhal — Centro de Estudos de Demogratia Hist Latina, USP DI — Documentos Interessuntes para a Histéria € os Costumes de Sto Paulo. Publicagio do Arquivo Publico do Estado de Sio Paulo ‘ebem — Fundagio Estadual do Bem-Estar do Menor. S30 Paulo IHGSP — Instituto Histérico e Geogrifico de Sie Paulo RIHGB — Revista do Instituto Histérico Geogrifico Brasileiro RPP — Relatérios anuais de Presidentes de Provincia (Império) ica da América Hie Bre rests mone s rola inf do fonémeno do abandono de eriangas, através da His ' téria, no Ocidente € no Brasil. A antig fo da pritiea de abandonar 0s filhos vém aqui associadas as formas de proteyio © de \\assineenca a ssas eriauras,eonstrufdas ao fongo dos séeulos, prime’ ramente no Velho Mundo, e, depois, transplantadas e estabelecidas no Brasil, desde os primérdios da colonizacio. A tarefa de reconstitui intese cht hist6ria da exposigio de bebés na Europa foi facilitada pela erescente literatura que vem sen: do publicada sobre o tema, especialmente nas duas ditimas décadas. Demografia Hist6rica a frente, acompanhada de diversas eiéneias do Homem, vem dando énfase ao estudo da infincia desvalida No caso do Brasil, como os estudas sio pontuais € raros, houve a necessidade de um enorme e longo esforgo, que comegou com a des: coberta ¢ o levantamento de fontes em arquivos brasileiras © portu- ueses, teve continuidade com o rastreamento de trabalhos que privi- dos resultados que fosse, a idade e a evalu legiam 0 tema, até chegar a uma exposi tum sé tempo, informativa e reflexiva A “Ilistéria € filha de seu tempo”, dizia, com sabedoria Mare Bloch De regitio de cifras impressionantes de abandono de eriangas (hd pou- 20 mais de um século, houve anos, em certas dreas da Europa Ociden- tal, em que de cada duas eriangas naseidas, uma era abendonada), a Europa passou a ser hoje, com sua pirimide eviria emagrecida nas bi- Ses, uma area acolhedora de bebés sem-familia, trazidos dos paises ais pobres para serem adotados por casais sem filhos. Mais do que isso, hoje a Europa reconhece a crianga, como saeito de \irite Para se chegar 8 atualsituagio house uina longa e dura constu- — 3 12 APRESENTyEAO Gio, tabalhada, particularmente, uo longo dos iiltimos duzentos anos, no periodo dla filantropia dita ciavrfica, até se alcancar a formulagao © a0 tabelecimento do Estado do bem-estar social de nossos dias, Bem antes desse periodo, us ctiangas abandonadas recebiam a protegio de instituigées, associagées, individuos — todos figis aos principios cris ios da ajuda mritua, das obras de miserioérdia, da missio, da eatidade, $6 depois da “Declaragdo Universal dos Dircitos di Crianga”, pro- ‘mulgada pelas Nagdes Unidas, em 1959, a inffincia obteve o reconhe- cimento de ser considerada sujeita de dirvito. Antes disso, o ato de aban donar 0s préprios filhos foi rolerado, aceito e, por vezes, até mesmo estimulado, Pensava-se nos supostos interesses dos adultos € da so- ciedade — nunea nos da erianga. Conhecer essa trajetéria toda, pelo menos em suas linhas essen. ciais, ajuda a compreender ¢ a tentar encaminhar solugdes mais abran= gentes — 0 impasse a que chegamos hoje, no Brasil, unte a lesiio de Criangas desvalidas vagando pelas ruas, aprisionsdas nas Pebem’s ou similares, exploradas por um pornoturismo infame ou, ainda, tendo seu desenvolvimento massacrado por trabalhos pesados, scm protegio, cercadas, em muitos casos, de toda sorte de violéncia, em casa, na so. ciedade, nas ruas ou praticada pelo proprio Estado, que deveria set seu ‘guardiao ou protetor. © ato de expor os filhos toi introduzido no Brasil pelos brancos eu- fopeus — 0 indio no abandonava os préprios filhos. Ai esti outro dos lados perversos da colonizagio. Como eonseqiiéncia, o port troduziu leis, instituigdes © comportamentos de assisténcia e de pro- tegio 2 inffincia abandonada, nos moldes do que havia adotado desde tempos medievais. Tanto as leis como us modelos de instituigdes de abrigo € de protegio a infincia sem-fuilia, foram forjados na longs duragio da Histéria da Europa. Di cil pesquisa sobr 'o por que comecei pela di as origens mesmas — européias, ¢ particularmente portuyuesas —, ao procurar recompor, sinteticamente, as raizes a tht jet6ria do fendmeno do abandono de criangas no Brasil A historiogratia brasilcira, até fins da década de 1980, pouco se ocu- ou da crianga © mesmo da familia. Foi a utilizagio dos recursos da Demografia Hist6rica, no Brasil, e da chamada “Histéria Nova”, ambas valorizando as pesquisas sobre os exeluidos sociais, que possibilitou a descoberta de realidades novas, inusitadas, na nossa paisagem social histética, Foi assim que resgatei, pela primeira vez em termos quanti- tativos, a presenga de altos indices de eriancas ilegitimas ¢ de crian. ‘¢as abandonadas em nosso passado. O estudo pioneiro nese setor, 0 APRESENTACAO 13 nosso livro La Ville de So Paulo. Peuplement et Population, 1750-1850 (1968, © em portugues, 1973), mostrou a presenga de 13% de expostos © de 25% de ileyitimos, dentre os naseidos livres, no entio pequeno burgo paulista, do infeio do século XIX. Porcentagens enormes, im- pressionantes, inesperadas. Flas exigiam explicagdes que, na época, tendo cm vista o estado da histosiografia social, nfo puderam ser mui- to aprofundadas. Quando pude criar, em 1984, na Universidade de $0 Paulo, o Cen= to de Estudos de Demogratia Historiea da América Latina (Cedhal, introduzi, incontinenti, um Projeto de pesquisas, interdisciplinar & coletivo, ligado a hist6ria da infincia brasileira: Familia ¢ a Crian- (2 na Histéria Social da Popular Brasilira, Nele procutei privile- iar a hist6ria da crianga mais desvalida: a eserava, a ilegitima, a ex- posts ou abandonads, inter-relacionada com sua familia ou, mesmo sem ela, © com as eventusis politieas piiblicas eriadas para sua pro- Este trabalho, um dos frutos daquele Projeto mais amplo, nasceu \da vontade de mostrar @ face marginal, discriminada ¢ estigmatizada, de nossa inffincia, constitufda pelas crianeas abandonadas ¢ sem-fami- lia, 08 6rfios de pais vivos. Achei que seria importante conhecer a mag, nitude do problema ao longo da Historia, os tragos caracteristicos des- ses desafortinnados, seus destinos e as atitudes © os comportamentos do Estado, da Tgreja e da sociedade ance os pequeninos desampara- dos. Quais teriam sido as formas que a soeiedade e o Estado encontra- ram para assisticlos? Na origem, o Projeto previa dar conta da histéria da infancia aban- donada brasileira. Mas como escrevé-la, sem mostrar, ainda que de maneira suméria, superficial, que os comportamentos, as atitudes, as instituigdes, as leis, as experiéncias, as politicas piblicas de assist cia © de protegio a infincia abandonada no foram invenghes nacio- nas? Tudo esteve sempre atrelado a modelos de fora, de Portugal ini cialmente, que, por sua vez, adotou modelos aperfeigoados de outras partes da Europa, sobretudo da Itilia e da Franga, patses provétipos de assisténcia a infincia sem-familia, no Antigo Regime curopeu ¢ no séeulo XIX, Para mostrar essa dependéncia dos modelos externos, jul guei necessério enveredar pela propria hist6ria da infincia abandon. da e dos sistemas e politics desenvolvidos para sua protegio no Ve- Iho Mundo, a0 longo dos séculos. Na época em que o projeto foi montado, estabeleci, como linha limite de minhas andlises, o ano de 1930, Essa marca justificava-se, nat 14 Avreseracio Epoca, por duas razdes principais: em primeiro lugar, porque os est dos historicos sobre a infincia erum extremamente raros € pontuais para os periodos anteriores a essa data, Queria privilegiar, pois, as fa ses menos estuchidas de nossa infincia desvalida, Em segundo lugar, no inicio das pesquisas, muito pouco se conhecia sobre a existéncia las fontes de dados e sua localizagao, para a Coldnia, 0 Império © 0 inicio da Repiiblica, Julguei nm trabalho descomunal, jf de si, proc rar, deseobrir, levantar, reunir dados dacumentais — espalhados por arquivos nacionais, regionais, locais, ptiblicos, privados, eclesiisticos, institucionais — sobre o longo periodo que antecede 0 século atual. Hoje, com toda a experiéneia que acumnlei com o estudo da infin- cia na Histéria © da trigica situagio da crianga de hoje, sinta que essas pesquisas precisariam cobrir a século XX todo, Por isso, decidi que, uma vez terminado este livro, comegaria os crabalhos de rastreamento e de colera de fontes para a nova obra que abordari a infincia desvali da brasileira no nosso século. Para facilitar 0 trabalho do leitor deste livro, decici padronizar todas a8 citagdes e ortografia para o portugues contemporineo do Brasil Do grande Projeto de Pesquisas que dirigi no Cedhal ao longo de de anos, participaram quase uma cenvena de pesquisadores € assessores, sairam dezenas de reses ¢ dissertagies, livros ¢ capituilos de livros, at gos, comunicagies a congressos nacionais intemacionais. O tema da Infancia entiou para a Historia social ¢ demogrifica do Brasil. esforgo entusiasta, multidisciplinar ¢ coletivo em tomo do estudo a infncia em nossa Historia, da equipe de pesquisudores que passou pelo Gedhal contou com o apoio, a comperéneia € 0 interesse de intime: ros organismos € especialistas do Brasil ¢ do exterior. Enumeri-los aqui seria temerdrio, dado 0 risco de omitir, involuntariamente, alguns no: mes, Mas a todos, sott constantemente grata Para manter essa valorosa equipe de alunos € de pesquisadores tra- hathando no projeto, recebi apoio financeiro essencial de axéncias di- versa € sob formas variadas: da Finep, da Fapesp, do CNPq, da Capes, da IUSSP. Sem essa ajuda, nunca teria tido condicdes de desenvolver essas complexas e dispendiosas pesquisas, a coleta de material em arquivos em bibliotecas do Pais e de Portugal e de promover teses € dissertagdes, forums, semindrios e simpsios, cursos de difusio, etc. além de muiltiplas publicagdes. A todas esas agéncias € associagdes ‘expresso, aquii, metis melhores agradecimentos. Este livro represen- 1a, pois, tm dos frutos —o tiltimo — desse Projeto que coordenei na USP até fins de 1994, ApausiN tango 15 Fsse trabalho teve uma fase iniciil, fundamental, de rastreumento de toda a bibliografia © a documentagio — em bibliotecas (publi particulares) © em arquivos (nacionais, estaduais, municipais, puibli- cos € eclesidsticos, além de outros muitos arquivos biblioreeas por tugueses) — que exigiu um trabalho de quateo anos da equipe que naseew com © Cedhal. O trabalho foi coletivo ¢ os pesquisadores que dele participaram foram a ama mater do Centro: Mary del Priore, Fernando Torres Londofio, Renato Pinto Venincio, Ana Silvia Volpi Seott, Dario Scott. A cles se agregaram: Maria de Fitima Rodrigues das Neves © Maria Laicia Mott, na primeima fase. Foi um perfodo gra- tificante, de intensos trabalhos, discussdes, amizade e formagio de pesquisadores de exeeléneia. Esse acervo todo foi informatizado por Dario Scott, por meio do software que cle eriow © que denominow Biblidec, disponivel no Cedhal. Comegou, depois, a fase de coleta dos dados selecionados, na qual trabalharam intimeros estudantes. ‘A lista dos bolsistas de “dentro” do Gedhal que trabalharam em arquivos € bibliotecas da cidade de Sto Paulo € que foram adquisindo treinamento na pesquisa histérica, € longa. Escolho a querida, pres- timosa, competence, entusiasta € saudosa Alice de Camargo Bom Meihy — in memoriam — para, em seu nome, agradecer 0 esforco, a alegria © o entusiasmo de todas os estudantes ¢ recém-formados que trabalharam comigo no Cedhal, 20s quais chamsvamos carinhosamen: te de “juniotes”. Os nomes deles estio no relatério final de meus dee anos de gestio do Centro, guardados em seus arquuivos, ¢ todos tém a minha gratidio, Tenho a certeza que todos guardaram, de seus anos no Cedhal, uma boa lembranga © uma semente fecunda em sua formagio como pesquisadores. Mas houve, também, os bolsistus de “fora”, O érduo trabalho de copista dos milhares de registros © de informagdes (manuseritos) de criangas deixadas na “Roda da Bahia”, conservados no Arquivo da Santa Casa de Miseriedrdia de Salvador, e, também, no Arquivo Municipal, no Arquivo da Ciiria € no Arquivo da Faculdade de Medicina baianos foi realizado, primorosamente, por Ruth da Silva Cruz € Ariadne Femandes da Fonseca, cujo convivio foi prazeroso, Esses dados da Roda de Salvador, talvex os mais ricos no género do Pais, servem de esteio a muitas das refle base ao doutorado € as publicagdes de Renato Pinto Venineio. Sou reconhecida a8 duas queridas historiadoras baianas. Nos arquivos de Mariana e de Ouro Preto trabalharam, com dediew eo, Solange Regina Cardinale e Rosana Rasera. No Rio de Janeiro, Ges e das anilises deste livro, e serviram de 16 AreiseNrscto quem carreyou as maiores pedras na Bibioteea Nacional, no Arquivo Nacional ¢ em outros acervos menores foi Monica Ferreira da Costa As “bolsistas de fora”, meu methor agradecimento; ¢ também ao CNPq, mais uma vez, por té-las mantido, com balsas de aperteigoamento. Na fase de levantamento dos riquissimos dados da Roda de Expos tos da Buhia, da Santa Casa de Miseriedrdia, guardados com cigneia e com amor, pela muita cara, dedig ctora, Neusa Esteves, recebi dela uma tengo particular, um interesse © um esti- mulo constantes, para que reenperasse logo a hist6ria dos expostos nnaquela instituigao, A medida que, durante quatro anos, com as bolsis tas Ruth ¢ Ariadne, fomos coletando os dadas no Arquivo da Miseri- c6rdia, recebi orientagio dle sua diretora, travamos ricas discussdes, fizemos descobertas de series ¢ livros sobre a crianga exposta na pri meira Roda instalada no Pais. \ Neusa Esteves mew agradecimento especial e carinhoso. Fator de force estimulo, para mim, foi o prémio internacional John Simon Guggenheim, que tive 0 privilégio de receber, em 1994, por este piojetd. Cumpre também registrar que, gragas, em grande parte, as minhas publicagdes e 2 atuagio no campo da Historia da infine desvalida brasileint € da defesa dayconstqugio dos dircitos da erianga em nosso puis, tive 0 privilégio de ver o meus nome inscrito no Who Who in the World, de 1997 e de 1998. Foi ainda ragas essa agio que cm fips de 1997, fui convidada a integrar a Comissio de Direitos Hu manos, do Estado de Sio Paulo € a presidir a recém-criada Comisst0 de Direitos Humanos, da Universidade de Sao Pauto. No final do Projeto, tive a honra de ser convidada para assessorar a Secretaria de Estado da Familia, Crianga ¢ Bem-Estar, do Governo Mirio Covas. Pela primeira vez, sai da Academia, para conviver atuar com a realidade concreta da inflincia desvalida e infratora © com os centros dgcisérios do Governo. Foi uma rica e oportunissima liga ver, por.dentro, a engrenagem, as formas de ago © os comportamen- tos politico-administratives dos responsaveis pelas politicas sociais pablicas dirigidas & infaincia. As reflexdes que pude ter, observanda, lendo as centenas de documentos produzides pelos érgios governs. mentais, visitando as unidades da Feber, na capital paulista, conver sundo com as criangas € 08 adolescentes, e assessorando esta Secret fia de Estado, ajudarum-me a dar novo dimensionamento 3s andlises sobre a crianga brasileiry na perspectiva histérica. No sentido inverso, a visio diserOnica da infincia desvalida propiciou-me uma atuagio mais profunda © conseqtiente, nessa pasta. Toda essa experigncia foi res- ae competente di Anresewrigio 17 ponsivel pela decisio de trzer mintias pesquisas até a atualidade. Por todas essus razdes, no posso deixar de registrar aqui meu testemu nho do melhor e do mais sincero agradecimento a titular da Secretaria de Estado da Crianga, Familia e Bem-Estar Social, D." Marta Terezi Godinho, por essa oportunidade fmpar Ao chegar ao fim deste livro, tenho grandes duividas se cons responder As expectativas que se foram criando em torno dele. No entanto, espero vivamente que essa drdua, apaixonante © trabalhosa missio que me propus realizar possa, pelo menos, avangar modests: mente no entendimento da grave questo da infineia abandonada do Brasil e, quem sabe, possa ajudar, de alguma forma, no eneaminh: s mais sistemiticas e continuadas em favor das criancas sem-farilia Meu desejo mais profundo foi o de escrever um livro, ealeado em sélidos dados empiricos e na melhor metodologia da pescjuisa hiseér cea, que fosse 9 um tempo informative (de um tema pouco estudado), nico (na intengdo de servir & causa da construgio dos direitos da 1 n0 Brasil) € reflexivo (sobre o processo de abandono e de am paro a erianga mais desvalida, dentre as desvalidas, que sempre foi a crianga abandonada. Se esta esperanga péde aqui ser eealizad mo com todos os defeitos, todas as limitagées © todas as impert deste livro, estarei plenamente Parte I EUROPA 1 O ABANDONO DE BEB NA ANTIGUIDADE Aviron bebés & um fentmeno de todas tempos, pelo menos no Ocidente. Variaram apenas, no tempo, a8 motivagties, as circunstincias, as causas, as intensidades, as atitudes em face do fato amplamente praticado e accito [Ii varindas evidéneias da extensio do fe todas as grandes civilizagées da Antiguidade. No Gédigo babil6nico de Hamurabi, no Il snilénio a.C. apare primeira tegulamentagio escrita sobre 0 abandono lum homem tomou uma erianga pars adotar com o seu pidprio nome © 4 educou, esse filho adotivo no pode ser reclamado’ Na tradigio juclaica, dois exemplos fortes ¢ centtais de abandono de bebés sio de todos conhecidos e aparecem nas escrituras do Antigo Testamento. O primero Ismact, filo de Abraio e de sua eserava Agar. Sars, quando se casou com Abrado, exigiu que ele expulsasse Agar ¢ seu filho para 0 desesto, Sem gua e sem ter 0 que comer no deserto, Agar abandona Ismael sob um arbusto, para no ve- Jo morcer, Mas Deus salva-o ¢ promete fazer da descendéneia de Ismael umn “grande povo” (Gén. 21, 8-23 O segunclo exemplo é 0 caso de Mois de vime a beira do Nilo, sendo amamentado ¢ eriado por sua prépria mi meno em pracicamente abandonado num cestinho Moisés acabou afilha do Faraé e recolhido pela filha Wy, Jack. Adoption in Cwus-Culturl Perspective, Comparative Studies in Se ‘an History, MUSYS8-7, ja. 1969 (p58) 22 Ovmispono bre miss Ws ANICLIDAD formou-se em her6i do povo hebrew (Genz 25, 12-6, Entre os hebreus do Antigo Testament, o ato de abandonar bel cra perfeitamente accito, ¢ praticado em situagées extremas*. Na Biblia, assim como no ‘Talmude, hi numerosas alusées ao abandono de bebés, 0 que mostra ter sido um costume freqtente, até mesmo regulamentado. O pai tinha o poder de vender seus filhos, em caso de reaver seu filho, a lei assim permiia, desde que indenizasse a quem N mitologin a filosofia celacionam, na Gréc fitho de Laio e de Jocssts, O pai foi advertide pelo onic qite seu fiho o mataia,‘Temeroso, mandow abandand-to na monte Citéron, ¢ levou-0 a0 rei de Corinto, Poibio quc, nto tendo Rhos, 0 adotou Eedipo tornou-se um hers, mais a profecia do oriculo se seaizo, como se sabe. Eudipo easou-se, sem saber, com a prdpria mie, ¢ teve morte trigica Jiipiter, deus da Luz, foi igualmente abandonado por seus pais ao nascer. Zeto © Anffon, os gémcos filhos de Zeus e Antope, fram expos- tos no monte Citéron erecolhidos por pastores.Posfdon,o grande deus das ts, fora abandonado e uma ama o eriou, para defendé-lo da voracidade de seu pai, Crono, A Tista de figunis mitoldgicasabandonadas, ao nascet, por seus pais ndo termina a: Esculipio (lho de Apolo), Hefest, Ate dleusi Cibele, além de Priamo, Hércules, Licasto e Parrisio. Na maioria dos easos da mitologia, o abundonado sobe na categoria social, torna-se her6i e tem destino brane. “Também os clissicos gregos, recorréncia do tema, Platio, em A Repablica sugeria qu tivessem filhos além dos que pudessem manter,e isso era considerado clissiea, intimeros s enjeitadas sto sofos om nifio, trataram com cera os pais no. ( caso da yenda de José por seus mio € oman famoso, Mas hi muitos outros. Ver 1 obra fundamental, erudita © marcante, de Boswell, John. De Kindness of trams he Mbaadanment of Children in Western Erope from Antiquity ro the Rewabsave Lomton, Penguin Dcoks1988, que € aqui referencia pars nosses dois primeiees capitlos, complementads por Lallemand, Lon, Histoire dex enfants sbundonnés et dlaiss€s. Paris: A, Picard, 1883, p. 27, ¢ deste mesmo autor Histoire de la charité Paris: A. Picard, 1912, 4 O sBaNDONO Ne HENES Na ANTIGEIDADE 23 como uma das obrizacdes civicas, Segundo ele, os pobres nao deveriam criar nenhum filo. Platio nio pretendia uma indugio ao infanticidio, mu sugeria que os filhos das muito pobres fossem criados fora de seu lar natal. Propunha uma certa transferéneia organizada de criangas de fart lias indigentes para fares em melhor situa. Aristételes, na sua Polfiaa, prescrevia a limitagio da prole ¢ 0 aborto, além de aprovar o abandono como uma forma de controle do tamanho da familia e da populagio, Para ele, a lei deveria deverminar uais as criangas seriam votadas morte, pelo abandono, Por outro lado, era consenso na Grécia antiga que os bebés nasci- dos disformes deveriam ser expostos, sendo mais freqiiente abando- nar meninas do que meninos. Na Grécia clissiea foi estabelecido 0 institut da adogio para os casais'que ago podiam ter filhos. A concepgio da adogio era ampli: tum homem poderia adorar um rapaz que encontiou para marido de si filha; poderia adotar seus netos; 0s sobrinhos agnisticas; e, por vezes, sobrinhas para sucedé-lo. A adogio poderia ser feita intervivos ou, postumamente, por testamento. © poder do pai sobre os filhos era absohito na Grécia Era-lhe permitido marar, vender ou expor os filhos recém-nascidos. A defor midade da erianca ou a pobreza da familia bastavam para que a justiga doméstica decretasse sua morte ou seu abandono. O aborto era lepitimo, € 0 infanticidio admivido. ‘Muitas veres, ao abandonar um filho, 0s pais deixavam-lhe sinais para futuras identificagdes, no caso de terem intenglo de teaver a crianga. Pedagos de madeiras ou metades de moeda, para tanto parti das, por exemplo, eram deixados junto com o bebé na hora de abando- né-lo, Mais tarde, podiam-se junear as duas partes, comprovando lentificaglo dos pais. Essa pritica seria preservada na Europa até fins do século XIX e transposta para o Brasil teadicional Em Roma, 0 Patria Potesias iqualmente nio tinha limites. “Os recém naseidos s6 eram recebidos na sociedade em vireude de uma decisio do chete de familia; « contracepeio, o aborto, o enjeitamento de eriangas de nascimenta livre € o infanticidio do filho de uma eserava eram priticas Usuais e perfeitamente legais. Sé foram malvistus ¢ se tornaram ileguis, depois que se difundin a nova moral que, para resumir, chamamos de “estoie Cr, Veyne, P.O Império Romano, lo: Arts, P. & Duby, G. (args) Misia ce cide ‘rivada, Do Império Romana 20 Ano Mi. 4 ed. Sao Paulo: Compantia das Leteas, 1990, fp. 23 24 O.amxpono pe HERES Ny ANTIGUINADE enjeitamento de criangas entre os romanos er comum © to antigo quanto sua mitologia ¢ sua historia, Os fundadores da cidade de undo a lenda, nao foram os g&meos Romulo © Remo, filhos do deus Marte, abandonados por seu tio 4 beira do Tibre, ¢ salvos & amamentados por uma loba, até que um pastor os encontrou e os levou para casa, onde foram criados como filhos? Em Roma havia até lugares especiais onde se costumavam abando- ayo Vilabre, perto do Aventino; © local Ficus nar bebés, como o Rumminalis, na Pr Jo Comércio} ou a coluna Lactiria, no mercado de verduras, no Férum. O costume de deisar sinais de identifieagio junto aos bebi dlonaidos era praticado t pais de reeuperar os filhos, quando as circunstincias © permitisse Embora por lei as eriangas livres no pudessem ron {apenas servas), muitas das abandonadas foram reduzidas a essu con- diigio. Outeas, foram submetidas a ubusos; algumas foram estropiad: (torciam-Ihes os bragos ou as pernas, quebravam-Ihes membres, ot furavamlhes os olhos), para servirem a mendigos que, assim, pensa vam poder aleangar methor a piedade piblica No mais das vezes, esses pequenos infelizes, meninos € meni cestavam destinados pelos que os etiavam 3 prostitigZo ou A escola de gladiadores. Outeos eram transformados em servos; alguns, em Importante assinalar que, na Antiguidade, grega © romana, o infan- tividio era praticado. A legislagio da Roma Imperial tentou condenar essa pritica, e Constantino, desde 315—reconhecendo a importancia do {tor econdmico na pritica do abandono por pais extremamente pobres — procurou fazer funcionar um sistema de assist2ncia aos pais, para evitar que vendessem ou expusessem seus filhas. Depais de 318, 0 infantieidio passou a ser punido com a morce* Um vasto e variado conjunto de leis sabre o abandono foi forman- do-se. Nele no se nota nenhuma preocupagio com o lado ético da questo ou com a sorte das eriangas. Bebés nascidos defeituosos, por exemplo, podiam perfeitamente ser mottos, atirados 20 mar ou quel mados. Acreditay deformidades traziam mati agouro para a aban. dos nbém em Roma. Ele mostraya a inteng comunidade e pa Coleman, E. R Infanticide dans le Haut Moyen Age. Annales, Beowomies, Sais, Ci cilsaions, 292):315-36, mar abe, 1974 (p. 327 © anaxnono Dk MEABS Na ANTIGUIDADE 23 Essa situagio foi sofeendo algumas mudangas na Roma Imperial Um dessas alteragées declarava que um abandonado, independence- mente de sua origem, tornava-se livre ao ser exposto. Algumas medidas foram tomadas em favor dos pequeninos expos. tos durante 0 Império Romano. No segundo século de nossa era, © Imperador Antonino (137-161) declarava que a venda de criangas livres por seus pais romanos era ilicita e vergonhosa. No século seguinte, Digeleciano (294) decretava que 0s pais no poderiam ven der ow dar 0s préprios filhos, nem as criangas poderiam ser forgadas & servidio, como forma de pagamento das dividas dos pais. No entanto, 0 Patria Potestas manteve © pai como soberano para decidir sobre a sorte de um filho: se decidisse abandoné-lo e depois se arrependesse, procurando reavé-lo, a lei de Quintiliano reiterava a permissio sem que houvesse nenhuma punigio, desde que fossem reparados os custos da eriagio, (O abandono de eriangas nio foi fendmeno raro no Império Roms: no. John Boswell estimou que os romanos urbanos abandonavam en tre 20% a 40% de seus filhos, nos trés primeiros séculos da nossa era! Ricos © pobres abandonavam filhos na Roma Antiga. As cauisas erum variadas: enjeitavam-se ou afogavam-se as eriangas malforma- das; 08 pobres, por nfo terem condigdes de criar os filhos, expunham- nos, esperando que um benfeitor recothesse 0 infeliz. bebg; 03 ricos, ou porque tinham diividas sobre a fidelidade de suas esposas ou porque 6 teriam tomado decisées sobre a distribuigio de scus bens entre os herdeiros jf existentes. Certos casos de abandono eram explicados por outras causas. Alguns pais abandonavam seus filhos em sinal de protesto politico contra a vontade dos deuses, por exemplo. Virios cidadios expuseram seus Ihos em protesto contra a morte de Agripina. A morte do querido principe Germanica provocou manifestagées coletivas de protesto aos deuses, quando se depredaram templos © alguns pais enjeitaram seus filhos’. Conseguir algum peeiilio, vendendo filhos como escravos, ena outra causa de abandono presente em Roma, € que ajuda a explicar a freqiiéncia da exposigio de criangas. Raramente essas criangas enjeita- das sobreviviam, segundo o contemporineo Pseudo-Quintiliano. A adogiio foi utilizada em Roma especialmente como solu Veyne, P. Lisvortment 3 Rome: I: L'Hitoi, 1979, p. 30-2 (p30, 26 O.anaNooNo bE neWis NA ANTIGLIDADE familias que, por nao terem filhos, estavam em vias de desapareci- rento, Havia a adosio em sentido téenico, ou seja, a transFeréneia de alguém alfena iis do poder de seu pai para outso, que seria uma forma de transferéncia do pitrio poder". A separagio era radical caso de adogo, uma erianga tornava-se um estranho para sua familia agndstica natal, ¢, em caso de ad-rogagto (adogio de pessoa maior de dade) renunciava-se ao culto dos deuses da familia natural, pelo ato do sacroran detestatio. O-adotado passava para os deuses € os cultos de sua nova fi sa situagio nilia€, por isso, se dizis de! eversivel Foi em Roma que Se regularizou, pela primeira vez, 0 direito de adogio. Uma vex que, nos costumes romanos, os lagos consangiiineos tinham pouca importancia (o que importaya era a linhagem), o adotado recebia 6 nome de familia do pai adative, mesmo que tivesse vindo de camadas mais humildes ou mesmo de escravos. Cicero defendia que somente um homem sem filhos poderia adotar uma crianga. Mulheres no podiam adotar, mas padiam ser adotadas, Mesmo com filhos vivos podia- se adotar, como fez, Herodes Arico. O mais famoso caso de adogio foi o de Otivio, que se tomou herdeiro € sucessor de seu tio Jiilio Cesar. No Império Romano, 2 adogio também servia para controlar a politica das heraneas. Um sogro que apreciasse seu genro, tratava de adoticlo. Na qualidade de filho adotivo, podia receber de seu pai adotivo um alto cargo ou dignidade, pois a adogio regulava a carreira publica. Adotava-se em ‘qualquer idade. Com Constantino, © primeiro imperador eristio, houve profunda alteragio dos prinefpios juridieos anteriores sobre a exposigio de criangas. Seu Edito de 331 mudou a situagio legal das criangas aban: donadas em todo Império, mudanga esta que prevaleceu por mais de tum milénio. Por esse decreto, nio se reconhece mais 0 direito do Patria Po- {estas para recuperar 0s filhos abandonados. Passou a vigorar 0 direito definitivo de quem criou o enjeitado, mesmo que se quisesse transfor- mi-lo em eseravo, Uma vez tendo abandonado seu filho, o pai biolégico perdi para sempre o direito sobre ele. As leis de Constantino consideravam 0s pais que abandonavam seus filhos reeém-nascidos — e que por essa rao acabavam morrendo star in sacra transit. Gon, J Op. ct, 9.58. O ABANDONO DE HERES NA ANTIGUIDADE 2) — eriminasos, e, portanto, sujeitos ay mesinas penas dos parricidas Peena parriciii puniatar, divia a\ci Em momento algum as leis de Constantino proibicam, negaram ou condenaram 0 diteito dos pais de abandonarem seus filhos, nem mes mo o de vendé-los, em caso dle misétia Enfim, em todo o Império Romano parece nfo ter havido nenhuma Jinssituigao para cuidar das eriangas enjetads am deixadas & prépria sorte ou a que thes dererminavam os que as criavam. As tradighes judaicas ¢ romanas a respeito do abandono de criangas € dos cuidados com criangas desamparadas foram passadas para 0s pri- imeiros eristios romanos. Os primeiros moralistas ¢ os patriaseas da Tgreja deram cantinuidade as priticas do Velho Testamento sobre a questo. A venda de filhas era vista como perfeitamente nacural, como ¢ relatado, por exemplo, em Exodo (21:8), em Genese (37) ¢ em Reis (4). ‘Atendgoras foi 0 primeiro patriarca da Tgreja a escrever longa- mente sobre 0 tema na segunda metade do século II. Ele proibiu ‘0s cristios de expor seus filhos, por que isso, para ele, equivalia a mati- los, Justino, o Martir, declarava que as filhas expostas corriam 0 Fisco de serem usadas como prostitutas. Clemente de Alexandria, no século III, em sua obra Paedagogas, condenava 0 abandono, mando que os pais que expunham seus filhos eram assassinos de menores. Além disso, poderiam induzir os que sobrevivessem a co meter 0 hediondo crime do incesto, com outro exposto que fosse parente seu (Os moralistas da época nao condenavam o ato dos pais de abandonar seus filhos, mas sim os possiveis resultados que disso poderiam decorrer incesto, infanticidio, estimulo a relagdes extramatrimoniais ou & prosti- tuigao. Nesse sentido, praticamente nada muidou com 2 difusio do cristianismo no Império Romano. No inicio do século IV, Lactineio — dltimo padre da Igreja a tratar do tema (segundo Boswell), € uma das raras vozes da Igreja @ conde- nar o abandono — considerava que os pais expunham seus filhos quan- do nao tinham coragem de mati-los, crime considerado to nefando quanto o homictdio (quam nefandum ext exponere quam necari}\.O destino Jo Chrysostom da Rafe a Breve dicuro sabre as rodas ds exposes Goimbra: Imprensa ds Universidade, 1853, p. 5; ¢ Renaud, Camile, Diblgrophic Exnfantctrowes alamdnnd er assis. Paris: Imprimerie G. A. Penard, 1864, p. 3 Idem, idem, p. 5 _— 28 O.xmaxpovo ne neni Nv ANTIGLIDADE dessas criangas era, para Lactii i, a morte precove, u escravidio, prostituigio ow o incesto, No entanto, ele acreditava que os pais pod iam ter razies fortes para expor scus fillios, como a extrema miséria, por exemple, Para Lactincio, a miséria arenuavat o crime de exposigdo dos filhos. Deve-se observar que, desde sua origem até a Idade Média, a Tgroja sempre tratou a pobreza extrema com grande condescendé cia, disso resultando mailtiplas concessies €, em muitos casos, politi cas de grande ambigiiidade. Alguns doutorey da Igreja primitiva preocuparam-se com a questio da crianga abandonada, Santo Ambrésio, bispo de Milo (374-397), resignava-se ante a prética do abandono, Um dos trés filhos de um rico © poderoxo pai, ele mesmo fora abandonado, Em sua opinito, os pais ricos eram parricidss quando abandonavam seus filhos para deserdar tum om favor dos outros, ou quando praticavam 0 aborto. Porém, esse bispo (que se tornaria papa) aceitava ess pritiea park os pais pobres, sem condeni-la. Aqui, também, o argumento da pobreza justificava politicas ambivalentes, Santo Agostinho, que era pai de uma crianga ilegitima, demonstrou cent resi ante 0 abandono de eriangas, Sua grande obsessio — © que tio grandes maley acarretou para a eristandade, especialmente para a mulher — foi a de impor fins exclusivamente proctiativos a0 ato sexual Outros patriarcas da Tgreja, como Sio Basilio de Cesaréia, Si0 Gregério Nisseno, Sao Joio Criséstomo © Sio Jerénimo também escreveram sobre 0 assunto, todos fazendo a apologia da caridade em relagio ao enjeitado, Nenhum deles, porém, condenaya o ato de exposigio de criangas pelos pais A Igreja estabelecida adotou uma atitude realista sobre a questio do abandono, Boswell, que estudon a fundo a legislag3o candnice no tocante aos abandonados, afirma que nenhum concilio ou autoridade eclesifstica dos primeiros séculos proibiu esse ato ou condenou os pais que expu- rnhain seus filhos, embora a legislagio conciliar da época condenasse a sexualidade fora do casamento. Cnones da Tgreja primiiva foram elabo- rads para assegurar que as criangas fossem bem recebidas e bem cuida- das pelos pais substitutos. Insistia-se sobre a necessidade do batismo para ay criangas encontradas Os Coneflios de Vaison (442), de Agda (506), de Arles (5 Micon (581) procuraram encorajar os fiéis a acolher os expost CO AMNDONO DE BEHES NA ANTIGUIDADE 29 reccio de complicagées futuras, chegando até mesmo a conteric direito de propriedade aos que criavam eriangas expostas’ Concilio de Vaison dizia textualmente sobre as eriangas abando das: “Ha uma queixa geral de que hoje em dia expie-se mais aos cies do que & caridade, porque mesmo aqueles dispostos pelos preceitos da caridade a tomé-las estio limitados pelo medo de agoes legais. Seria bom solicitar aos mais devoros e piedosos € aos augustos Imperadares que aiquele que tomar uma crianga abandonada deve notificara Igreja ¢ obter uma declaragio desta que diga que ele fez. isso. Em seguida, 0 pastor deve anunciar do altar, no domingo, que a Tgreja recebeu noticia de uma crianga abandonada e ouvira reclamagio de alguém que queira conhecer a ctianga, dentto de dez dias da exposigio. Aquele que a encontrou poderia, se quisesse, ser ressarcdta pelas despesas dos primeiros dez dias de euidados da crianga, por meio de presentes da comunidade ou por sracas recebidas de Deus” Observa-se que esse Concilio também nao proibiu os pais de enjei- tar seus filhos; nem mesmo sofreriam eles penalidades se os recla massem em dez dias, ou se nunca os reclamassem. O objetivo era ‘encorajar 0 povo a tomar as criangas encontradas em abandono, sem temer conseqligneias, desagravos ot: mesmo a sua perda, depois de ter investido tempo € dinheiro em sua criagio. A agio da Igreja tornou o abandono itrevorivel, em fins do século 'V: 08 pais nao tinham mais o direito de reclamar seus filhos enjeitados, depois de dez dias de abandono, sob severas penas, Aqueles que criavam as criangas tinham garantias de manté-las consigo para sem- pre, e podiam fazer delas 0 que bem entendessem, até mesmo trans- formé-las em escravas ou usi-las na mendicidade. No entanto, o espitito cristdo influiu na compaixio pelos pequeni- nos € pelo respeito as suas vidas. Os cristios viam os enjeitados como alumni de Deus, ¢ literatura crise contribuiu para novos comporta- mentos, em face da adogio e da transferéncia de eriangas de suas familias naturais para uma familia mais amorosa, que aceitasse rece- bé-las. A partir do século V, houve estimulo a alena misericordia (a miseric6rdia do outro) de modo explicito ou implicito © em escala sem precedentes, em toda a Europa Renaud, C. Op. ct, pi Hefele, Charles. Hiire des coiled apris ls documents originans (De. n° 2459-60) Concilia Gale (Doe. A. 318 8. 508, p. 100-1). Apna: Boswell, J. Op. et, p. 1723, Z PIEDADE E CARIDADE: ALTA IDADE MEDIA _A\Sssittczesio do mundo romano, ob 0 impact das ine sbes barbaras, levou ao declinio da vida urbana € 4 emer- géncia da [dade Média, O imenso desafio entio proposto era no sentido de se fundir a cultura dos invasores birbaros & heranga clissica do extinto Império Romano ¢ aos ensinamentos do Cristianismo. No inicio da Idade Média, criangas continuaram a ser abandonadas em grande ntimero € a pobreza dos pais era accita como a principal justificativa para se enjeitar os filhos. E importante lembrar, preliminarmente, os conceitos medievais de pobreea ¢ de misericrdia. Dentre us fontes de reflexio, 0 pensa- mento dos patriarcas da Igreja elaborado até o século IV é, cettumen- te, a mais importante. Os significados, dos dois termos, utilizados por ‘gregos e latinos, foram mantidos: de um lado, a distingZo entre pobre~ za ¢ indigéneiay/e de outto, a consideragio da pobreza como condigio de aproximag3o com Deus € com o proximoy Desde o final da Anciguidade e durante os primeiros tempos me- dievais a concepeao cristi da caridade — incluindo a da pobreza — foi proclamada ¢ praticada por bispos e monges, no Oriente ¢ no Ociden- te. Essa concepgio visava a aliviar a humilhagio material e social dos pobres' Oapelo constante ao dever de dar esmolas demonstra que a Tgreja fez ‘Ver Molla, Michel 5 paucres an Moron Age. tude sociale Paris: Machete, 1978, p.32 Picpane, & caripape: Aters Ibape Mépia 31 dda caridade uma condita paca a salvagio.No exerefcio da beneticéncia, ‘© papel principal passou das iniciativas e das atividades laicas para uma espécie de monopsilio monsstico. Os dois primeiros séculos da eristanda de medieval foram “a época dos bispos” passando depois para aaficma- glo mongstica sob a influéncia ea preponderincia da Ordem de Sio Bento, Na primeira fase, pertenciam aos bispos 0 exercicio pessoal da miserieérdia para com os infelizes c, também, o de estimular 0 cler0 € 6s leigos na pritica da caridade. Por volta do ano 500, nada menos que 41 coneilios ou sinodes preocuparam-se com os pobres, segundo o Tevantamento feito por Boswell. A casa do bispo tornou-se a casa dos pobres, onde estes iam buscar com ntas. Muitos dos primeitos hospitais tiveram sua origem na iniciativa de bispos; outros, na iniciativa de leigos. Eles eram fundados pre~ ferencialmente em cidades. Para a clientela rural (em estradas mais freqiientadas, no campo ou nas vizinhangas das cidades) ay hotelarias monésticas tiveram papel crescente, a partir do século IX, na assistén- cia a0s pobres. Mas jf se trata de outros tempos, de outros pobres ¢ de outras formas de beneficéncia, como assinala Mollat. O significado da beneficéncia parece conter, nos primeiros séculos da Idade Média, uma contradigio interna. Os bens ¢ as rendas da Igreja, bem como as obras de misericérdia dos figis, cram destinados a cortigir as desigualdades sociais, mas no a suprimi-las. A esmola tinha por finalidace preservar a estabilidade da ordem social, ou scja, paz. Mas, por outio lado, a caridade era a condigao do valor espicitual da esmola, Sabe-se a importincia que os mosteiros rurais deram & hospitalida de, segundo a utopia de serem eles uma “sociedade entre 0 C Terra”. Receber os pobses, os desamparados ¢ os héspedes nos hospi- tais (criados com essa finalidade) € nos mosteiros esteve presente nas, mentalidades laica ¢ religiosa. Por sua vez, Sio Bento deu lugar de destaque Wacolhida ¢ & hospi- talidade, das quais 0 pobre foi um beneficiério privilegiado, como representante de Cristo. Na Regra de Sio Bento, as obras de miseri cérdia estio presentes: era preciso reconfortar os pobres, de bom coragio (libente anima), com alegria e magnanimidade. Dentre os pobres, tum lugar especial foi reservado aos velhos € 2s eriangas (infantes, com menos de doze anos de idade). A caridade beneditina dirigiu-se a todos os que a solicitavam. A liturgia da hospitalidade comegava pela porta, Era na porta que se Neen eee eT Eee 32. Piebabe & CARIBADE: ALTA inane Meor faviam as distribu admitidos na hotelaria, A porta foi, no século IX, o servigo que centr lizava a acolhida e a beneficéncia, através de seu porteiro (porvarius), que devia ter qualidades especiais, como explica Mollat. Apés a queda do Império Romano, 0 abandono de criangas conti- rnuou sendo uma pratica comum, em todas as areas da Europa Ociden: tal de tradigao romana, nas culturas semitas do Oriente Préximo, nas culturas gregas do Mediterraneo nordeste e mas soviedades germinicas € célticas da Europa Ocidental. As regras © as condigies dos expostos eriados em fares substitutos (alumni), porém, foram menos claramente definidas nesse periodo do que na Antiguidade. Leis foram exaradas, mas, na pritica, a vida e 0 destino dos expostos © seu status Juridico dependiam mais das cie- cunstincias do que das instituigies © das leis. No caos geral que se seguiu a queda do Império Romano, a Igreia poderia ter assumido 0 controle de tal situagio. E, de faro, cla fez ¢ divulgou novas leis sobre a exposigio, a venda ¢ a criugio de bebés, faciliou, em sua organizagio paroquial, 0 local da exposigio tas vezes, procurou novos lares para os expos Entre 0s séculos V © X o fendmeno do abandono de criangas cextremamente dificil de ser resgatado por causa da falta de documenta 10, O esfacelamento da Europa em feudos e reinos com diferentes culturas, linguas e estruturas sociais, no permite nenhuma generaliza- 10, Mesmo quando se encontram leis similares nas visigdtieas do século VI ou no século IX, ou do Imps diferengas regionais so profundas e os significados sociais, politicos religiosos muito diferentes. Nessa época, prevalecem as economias de subsisténcia, com pe- queno comércio € pouica mobilidade da populagio. Como os tradicio: nais centros urbanos entraram em declinio, a maioria da populagio & de lavradores © de servos. A fome © a pobreza sio facores presentes preponderantes ¢ a pequena populagio se acha dispersa, Nem mesmo 4 Igreja possufa uniformidade, organizagio unidade © abandono de recém-nascidos era bastante freqiiente, ¢ na hagiogratia dos primérdios da Idade Média hi registros da sobrevi- véncia de alguns deles, como Sio Vicentino, adotado por um duque, e Santa Odila, abandonada por seu pai porque era cega. (Em todas as culturas da Alta Idade Média observa-se a recorréncia \do_fendmeno do abandon de bebés. Sob 0 dominio dos visigodos, a exposigio de bebés era justificada como forma de prevengio do ges 20s pobres, em através dela que estes exam Piepane & caeipane: Atty Ipane Mepis 33 infanticidio e do aborto, crimes que, pela Lei Silica, erm punidas com muiltas que variavam conforme a idade e a qualidade social das vitimas Na Italia do séeulo VI um cédigo da época, em uma de suas 134 leis, autorizava os ostrogodos a vender seus filhos, em easo de nece sidade, desde que essa venda nao alterasse a condigio de liberdade da crianga, Muito comum ¢ sem se limitar aos easos de extrema pobreza dios pais, esse tipo de venda servia para solucionar os mecanismos de heranga, em sreas onde 0 sistema vigente era 0 igualitétio. Os pro- prietirios vendiam os filhos em excesso, 0 que acabou dando origem a uma nova eategoria servil. Nos easos de abandono anénimo poderia corres, igualmente, a venda das eriangas encontradas Em meados do século VI as tibos germinieas instaladas no tert trio da atual Espanha eriaram seu préprio cédigo de leis, influencia- do pela legistagio romana e pelo Cédigo Teodesiano e com base em suas leis e tradigdes. Esse eédigo continha virias disposigies sobre 0 abandono de criangas. Ao contrisio de outros povos, 03 visigodos consideravam 0 abandono de bebés livres como um mal © previam sérias punigdes para os pais. Aqueles que enjeitavam seus filhos eram castigados com o desterro perpétuo. Para eles, era justo destertar os que desterravam das casas paternas seus préprios filhos’. Segundo Cidigo de Teodorico, se, mais tarde, os pais reconhecessem um filho que haviam abandonade ¢ quisessem resgati-lo, devera ‘nutritor as despesas que este tivera com a eriagio, Caso se negassem a pagar, um juiz poderia resgatar a eriangs, usando para isso as proprie: dades dos pais, que, em seguida, seriam exilados. Caso 0 valor das propriedades no fosse suficiente para cobrir o resgate, os pais deve riam, eles proprios, tomar-se servos. 0 Cédigo Visigético previa, ainda, 0 pagamento para quem ctiasse lum menor até dez anos. Isso pode ser um vestigio de um costume difundide entre os germanos: 0 da criagio de filhos fora do lar patemo, Nos outros eddigos germinicos e celtas, « figura do abandono quase nunca aparece, segurido Boswell Entre os sécutlos V e X, a Ixreja teve importante papel na recepeio € na distribuigqa de bebés abandonados. No entanto, em nenhuima norma Por ela elaborada nessa épocs observa-se qualquer preocupagio em condenar o enjeitamento de eriangas, de acordo com as antigas tradiybes Pagar a0 patristicas wseno, A Op. city ee SREP 34 Piebane ¥ Gawinanes AtYs tpxpe Mépiy A\ partir dos séculos VI e VIL, citeularam na Europa os Penitencia’s (ou manuiais de confessores), guias preciosos que registram 0 que, na épo- ‘a, eta considerado pecado — © suas gravidades —, além de determi nar as penas para cade um deles. Analisando-os, Boswell afirma que ha mengies sobre a exposicio de filhos: o pai, em situagio de necessi- dade, no cometia pecado se vendesse seu filo como escravo, Um. cinone irlandés chegou a estipular que uma crianga encontrada aban- donada em uma igreja tornava-se sua escrava, Com sua tradicional polt- tica de amenizar us punigdes para os casos de extrema pobre ja estabeleceu, para os infantividios, a eldusula de que as penas se riam reduzidas em mais da metade (de quinze anos para sete anos), Caso a mie infanticida fosse pobre A primeira importante colegio de decretos candnicos que influenciou a Tgreja do Ocidente foi compilada por Regino de Priim, por voles de 906. O infanticidio oabandono, trés dos quais copiam os prineipios legais romanos, estipt: lando que: 1)os que comam ums eriange abandonada podem crié-la como livie ou eserava, como melhor thes convier; 2) senhores € proprietirios no podem reclamat filhos que abandonaram sob seu conhecimento; 3) ‘um pai, ou um senor, pode reclamar uma crianga, se substituf-la por um servo de valor comparivel ou se pagar o valor da crianga a quem Ainds que contando com fontes precitias, especialistas puderam perceber qual o destino dessas eriangas: uma minoria era adotada, formalmente, por familias das classes altas, e, informalmente, pelss pobres. A maioria, porém, era vendida como servos ou até como eseravos. A prdpria Igreja os considerava como escravos, em diversos ugares. E essa condigio servil tanto podetia ser permanente como a lyse Mluitos homens © mulheres da época sbandonavam seus fihos por questdes morais € econdmicas. Os legisladores civis ¢ religiosos tenta: ram reprimir no apenas os métodos contraceptives, mas também 0 abort, oinfunticidio e o abandono de bebés!, Os mécodes contracept — herdados da Antiguidade — foram demunciados, pelos predicadores, clos penitenciais c pelos legisladores eandnicos como priticas mé- gicas. O infanticidio — considerado o mal mais grave — € denunciado Riché, Paul. Lienfant dans le Haut Moyen Age. Awanies de Déwogrphie Historique 1973, Paris: Meston, 1973, p. 95. Purpape: © cyrioxpe: Avra Lbabk Mepis 35 ‘em todos os textos. [5 0 abandono de bebés ent considerado um mal menor: procurava-se somente limiti-lo. Os mosteiros constitufram Um refiigio pura muitas dessas criangas, Neles, 08 pequeninos abandons ddos encontravam com que se vestir, se alimentar, se eduear © 0 mais importante, meios de salvagio — como se acreditava— para sie para suas familias Griangas de todas as idades eram encontradas nos mosteiros. Nos paises eélticos © anglo-saxdes, 05 pais confiavam a educagio de seus filhos aos monges, retomando antigo costume do fosterage. Os monges assumiam © papel de pais de criagio, ou pais espirituais. Para perturbar a vida dos mosteiros, os reformadores do séeulo IX decidi- ram separar as eriangas seculares dos futuros monges, eriando para isso uma escola externa Surgiu ainda a instituigo chamada oAleta: criangas bem pequenas, mesmo bebés, eram “ofertadss” por-seus pais uo mosteiro. Nos primérdios dessa instituiglo, pelo menos até o século VIII, ao atingie a maioridade, essas criangas podiam escolher se permaneceriam, ou 10, na vida religiosa. Na época carolin; abandonada e a vontade dos pais suplantou a escotha de seus filhos. Segundo Boswell, a ablata foi uma forma de abandono — instituida pela Igreja a partir do século V — que alterou profundamente os termos da servidio dos expostos. Pela oblario ou oblagzo, 0 simbolis mo de abandonar criungas nas igrejas passou a eer uma nova realidade. (Oblatio era a doagao (oferta) de uma erianga uo servigo de Deus ¢ de sua religito, por intermédio de um mosteiro, Esse estatuto serviu & vitios fins importantes, tanto espiricuais — uma forma de obser felici ia essa tendéncia liberal foi dade na ‘Terra e no Céu para a famflia que doava um filho « Deus como priticos, relacionados com a regulagio do tamanho da familia e da distribuigio du herunga. Impedia-se, com cle, a fragmentagdo excessiva da propriedade entre muitos filhos, Si vantagens de doar eriangas aos mosteizos, Ele 1 delas com a vida religiosa foxse consideraca permanente, a partir do momento em que aingissem a idade em que poderiam ent dade (cerca de dezesseis anos). Nas regras de Sio Bento (inicio do séeulo V1) incluta-se a oblata de filhos de nobres e de filhos de pobres. \ oblagio foi aceita & grandes colegies candnicas da Alta Idade Média. Em todos os moste ros havia um gra s oblatos, 0 que transtormou a cos ber o Basilio diseutiu longamente as fomendava que a relagio lera virgin- quase toda a Europa, tornando-se parte das niimero de bel comunicade monéstica em au No inicio do século VII a oblagiio estay yem estabelecida ¢ defini 36 Plubane & caRtpapE: ALTA tape: MEDIA da, Pais, de qualquer categoria social, podiam doar um filho, de qual quer sexo, de até dez anos. Pelus leis civis © eclesidisticas, essa crianga jamais poderia deixar 0 mosteito, ¢ seus pais juravam nunca dar a ela nenhum tipo de propriedade ou de heranga, embora pudessem fazer egados ao mosteiro. ‘A crianga, obviamente, era quem pagava o custo dos beneficios para a familia ea comunidade. Confinada por toda a vida, irrevoga- velmente, & vida religiosa, ela jamais poderia ter propriedades, nem deixar 0 mosteiro ou casar-se. Bla perdia sua liberdade individual, o que, de certa forma, a igualava a situacdo dos expostos eriaddos como escravos. Esses, a0 conttirio, podiam manter relagdes sexuais, ter esperanca de, em casos especiais, recuperar 0 status de livres ou, ainda, de receber a liberdade de senhores benevolentes. Por consenso social geral, o oblate estava destinado a uma vida de pobreza, obediéneia © custidade, para sempre. Deve-se considerar, porém, que, em muitos casos, a oblata era a mais humana forma de abandono existente. No mosteiro, a criang, estava mais bem alimentada, vestida e mais segura do que fora dele, Akém de teceber uma educacdo diferente da que era dada na época 3s dlemais criangas: “Em lugar de os meninos serem preparados para a agressividade, us meninas para a submiss20, 0s pedagogos monisticos recusam a palma {6ria © procuram conservaras virtudes da inf Claro que a Tgreja oferecia algumas vantagens aos oblatos. Muicos deles chegaram a posigdes-chave na vida mondstica, € alguns tiveram oportunidades impares — como a educagio superior, por exemplo, que jamais poderiam ter tido fora do mosteiro, Varios homens da Igreja da Alta Idade Média (tanto no Ocidente como no Oriente) foram doados a Igreja ainda criancas. Desses, alguns tomaram-se figuras exponenciais, como os tedlogos Paphnutis e Daniel Estlica io Estilita; Sabas, o Grande; Cirilo de Esquitépolis, Nicola de Sion; Beda; ¢ Sio Bonificio, entre tantos outros’ Mas houve, também, muitos casos de oblatos infelizes que quise- ram deixar a vida mondstica € no puderam. O Concilio de Worms, de 860, declarou que as eriangas dadas aos mosteiros nunca poderiam deixé-los ¢ deveriam ser mantidas a forga se necessitio. Essas resolu- ges seriam confirmadas no Concilio de ‘Tribur, de 895. Weyne, P. Op. cit, pA, Ibidem, p. 242 Puepape e castpape: Avra Tpape MEIN 37 Peivebe-se, claramente, que 0 objetivo subjacente era o de pre= venir a fragmen Ou melhor, pretendia-se a maxi mizagio da heranga para os fillhtos mais velhos. Isso foi decoberto por Boswell até mesmo em crdnicas de mosteitos que declaravam que essa eta @ principal motivaco dos pais dos oblatos, Consideragées di- sticas poderiam, igualmente, colocar um filho em um mosteiror come, por exemple, os filhos de um segundo ou de um terceiro cisa- mento que ameagavam os filhos do primeiro easamento, ¢ vice-versa Abandonar uma crianga nessas condigdes ou dod-la a um mosteiro era, portanco, considerudo uma saida honrosa ¢ mais humana do que 0 infanticidio, “io da propriedad Na sociedade crista ocidental, a psicologia da exposigao é, sem diivi da, mantida muito proxima da herdada da Antiguidade, ou seja, deixar a sorte dos inocentes nilo desejados nas mos de Deus — responsivel por seu nascimento — c, assim no sujar as prOprias mios com o sangue de seus filhos, Mas jd se comegava a especulur sobre a caridade do “outso” Esperava-se que a criunga fosse recothida e sobrevivesse, Aqueles que ‘encontravam uma erianga abandonada ficavam na obrigagio de se mos- tear catitativos; caso conttario, cometeriam pecado grave. Esse eileulo & essa esperanga ficam evidentes pela tendéncia nova de no mais expor os bebés ocultos pelo mato ou camino, mas em lugares habitados e bem 2 vista de todos’ Nessa époc: as palavray “pobre” © “pobreza” ainda conservavam um significado essencialmente espiriwal. Pode-se perceber um mu: danga a partir de fins do século XI quando, inelusive, a ago dos pobres assume, por vezes, aspectos inquictantes. A margem da sociedade rural estivel ¢ fora das cidades, que se mostravam acolhedorus no seu enascimento, grupos de excluidas ou revoltados viviam em ruptura com a paz social ou com a Fé. Epoca de assaltos da miséria, como chams Mollat, essa situagio favoreceu a exposigao de criangas, Um significativo crescimento da populagio européia comegou a se esbogat a partir dos anos 600, Entre os séculos VIT ¢ X essa popu- lagio praticamente dobra. Noy dois séculos seguintes, hi uma verda- deira “explosio”, para as condigdies da se « uma nova duplicagio demogritfica. O crescimento populicional, Flandrin, J. L. Lutctude 3 Péganl du pecie enfant ct les conduites sexuelles dans ls iuilisatina cecidentale, nals de Démographie Historique, 1973, Pats Mouton, 1973, p. H5:210 (p.16, 38 Prenat & exkinape: Avra inAbk MEDIA de ceres cle 300% nesse periodo, determinow mudangas erais, como — para citar apenas uma —a da intraducio de métodos agricolas mais intensivos ¢ mais pradutives. Houve uma prosperidade geral que, em ver de ermadicar a pobreza, ampliou-a enormemente, De fato, constara-se que no séeulo XIT eresceram os inforttinios, com o aumento da populigio e da miséria, Coma resultante da mi nnutrigio ampliaram-se os mulles fisicas: mal de Saint-Leu (epilepsia) mal de Saint-Blaise (doengas da garganta); mal de Saint-Lurent (eczema) ‘obreruddo, 0 “mal-do-togo” (a lepra). Doengas de caréncia, que favore- ciam a difusto de epidemias — facilitadas pelas peregrinagées, pelas cruzadas e pelo renascer das eidades. Na iconografia, enfermidade e po. breza se confundem: osurtistas procuravam, por mei de suas obras, incitar as pessoas As obras de misericdrdia, preocupadas que estavam com os aspectos morais e religiosos. A esses males vém se juntar as muerras da nea, a comegar peas de Reconquista dos territérios invadides pelos mugulmanos na Europa Ocidental Como analisa Mollat, no nove contexto, as atitudes com relagio 0s pobres passaram a ser ambivalentes. De um lado, os pobres sio aconselhados 2 aceitar seu mal com paciéneia € resignago, pois isso & um designio de Deus. Por outro lado, embors a caridade seja reconhe- cida como uma virtude esti impregnado de altiver.¢ até mesmo de um desprezo humilhante Uma renovagio das obras de misericérdia se impds nesse século NIL, ante a urgneia de caridade que 0 contexto curopeu exigia, Os mosteitos beneditines ja ndo conservavam a caructerist beneficéncia dos séculos anteriores: @ demanda se tornara superior 2 sua capacidade de atendimento, © despertar da curidade evan beneficéncia como um dever, seu exercicio ica — maiy dur el que a chama eremitier — renovou, em todos os meios, as obras de misericdrdia, Esse esforgo exigia novos homens e novas formas de atuagio, e, além disso, pressupunha novas concepgées sobre a pobreza e a & A ideia da necessidade de assistencia social, em casos de doengas jono de criangas, desenvolveu-se muito durante a Idade dade, ou de ab Média. No Ocidente cristo, os hospitais se originaram na Tereja, junto as ordens. monasticas. Os hospitais mondsticos ndo passavam de peque has instituighes onde se ofereciam diferentes tipos de assisténcia, de fermagem € de abrigo aos pet abandonadas, rings, aos andarilhos © 3s criangas Com a renascimento das cidades, as_guildas, as corporagdes de Prepape & cxwinape: Avra Lobe Men, 39 aficios ¢ as confrarias participaram atiyamenre da eriagio de hospitais € de outras insticuigées de XIIL, o hespital medieval comeg jurisdi¢30 secular. Os municipios assumem a responsabilidade pelos doentes, pobres e desvalidos. E claro que niio houve uma total substitui- lo do clero nesse setor". As dus formas de assist muito tempo ainda, ssistneia médica e social. A partir do século 1 sair das mios dos religiasns e passa a sie pica, So Vase: Unesp Hitec, 1994, p. 68. 3 CARIDADE PUBLICA EM EMERGENCIA. SECULOS XI A XIV ‘6 séenlo XI |, elaborou-se a primeira enunciagio das obras de misericérdia: “Guarde sempre a caridade em seu coragio. Lembre daqueles que lutam pela paz fraternal, Alivie os pobres, Visite os doentes. Enterre os mortos”! Esses cinco preceitos passaram a ser mais tarde sete, sem, no entanco, mudar sua esséncia, ‘Tratava-se de um programa, fundado na catidade para com Deus ¢ para com 0 préximo, de acordo com a perspectiva da salvago,,proposto tanto ao elero como aos leigos desde fins do século XT. um programa de misericérdia, compaixio e caridade, em uma sociedade renovada na qual a cidade comegava sua erescente ascensio sobre 0 campo. Niio criar 0s filhos alheios enconteadi 1s em abandono passou a ser uma grande impied ide. No séeulo XVIL, 0 padre jesuita portugués Alexandre de Gusmao descrevia, com propriedade, 0 comportamento, nessa fase da Idade Média, dos que acolhiam uma erianga encontrada exposta, como “ato de suma piedade para 0 miseravel enjeitado, ¢ de wento para com Deus”. E continuava: “é maior a miseriesr para com o mis dine a pieda ‘el desamparado, quanto a miséria, e 0 desamparo é maior... que é sumo ato de caridade, e piedade cristi crif-to, ‘ou: mando cviar, para que niio perega’ Magnaw-Nortce EL socit la quect ive dans la procince olsiartigne de Narbonne dea fn Vle sick a afin du Xie, Voutouse, 1974, Apud: Mollt, M, Op. city. 115. iA. Op its ps 110 CARIDADE PEMLICS EAT EMERGENCIA 41 Miche! Mollat nos ensina que, na dade Média, o ideal de uma fidelPI maior d mensagem evangélica e aos modos de vida da Igreja primitiva incitou alguns padres seculares a promover um apostolado, associando tuma atividade caritativa concreta 20 rigor da vida comum de inspiragio monistica. A corrente, nascida no século XI € reforgada pelas experigneias cremitieas, teve éxito particularmente nas regides mediter- rineas A segunda metade do século XIT foi para as obras de misericérdia uuma época de mutagdes € de iniciativas. Alguns antigos capstulos ceanénicos deixaram de considerar a assisténcia como uma manifesta- gio essencial da espiritualidade. Ao mesmo tempo, algumas iniciati- vvas Iaieas fundaram contrarias cariativas urbanas, sendo «que algumas delas se constitufram em congregagdes, como foi 0 caso da célebre iniciativa de Guy de Montpellier (1160) — que analisaremos mais adiante — voltada para a assisténcia aos pobres, aos doentes, e as criangas abandonadas. A multiplicagio de pequenos hospitals para os desumparados e os pobres teve lugar nas cidades ou em seus arredores, Nas regides mais, densamente urbanizadas da Europa mediterrinea ¢ dos chamados Paises Baixos foram criados pequenos estabelecimentos hospitalares de assisténcia aos pobres. Por outro lado, nfo se pode deixar de assinalar © papel das mulhe- res na caridade Iaica, Rainhas, nobres ¢ burguesas fundaram domus hospivalitatic em visias partes da eristandade. Merecem destaque também as caridades coletivas. As confrarias de misericérdia surgem no século XII, como sociedades de socorros miituos, tanto materiais como espirituais, funcionando em circuito fechado, uma vez que a ussistencia por elas prestada se Timitava aos membros da associacao ou da corpora’. ‘Ao cardter coletivo das obras de miscriedrdia juntou-se a interven- «lo das autoridades comunais. Ji se prenuncia, no século XII, o con ole dessas autoridades sobre o estabelecimento ea gestio das instituigbes de assisténcia. Mulkiplicam-se 03 leprosérios, as albergarias, 05 hospicios, as mer- cearias, os asilos, etc. Mas renovar e desenvolver as obras de miseri- e61dia no bastava. Os pobres tinham se tornado mais vi cidades © comegavam a fazer ouvir suas vozes, recebendo apoio ¢ estimnlos da sociedade. * dem, idem, p.126 42° Cagip soe POm.tcA EA EMERGENCIS “O mimero crescente de pobres, de pessoas incapazes de assegurar por sii mesinas sua existéneia material, pos em dura prova a doutrina tradicional de beneticéncia ¢ de assisténcia aos pobres. As formas stentes, ou scja, as instituigdes eclesiisticas, mostrunim-se roral- mente despreparadas, enquanto a protegio dos deserdades continuow sendo uma das principais misses temporais da Iyreja. AS iniciativas caritativas se multiplicam, a partir de entio, fora da Tgreja, encoraja- das pelos predicadores: « caridade toma-se uma das virtudes mais louviveis.”! No plano espiritual, a pobreza possufa um valor potencial de todo © sofrimento. Assim, cla recupera seu lugar nas categorias mentais, diz- fos ainda Mollat, e & justificada, Ela pode ser titil tanto uo rico, como, meio de salvagio, quanto 0 pobre, como meio de santificagio, A pobreza adquire assim uma dimensio social até enedo reservada aos ticos, Rsté af, firma Molar, a chave das ceflextes e das atitudes: do século XII em face da pobreza e dos pobres, Esse fato é fundamental para se entender as novas atitudes ¢ priticas de assiseéncia 3 infincia abandonada que comegavam a surgir. Os séculos XI € XII foram uma época de inten: © organizacional da Tgreja. Houve entlo uma nitida ruptura com a situagio anterior em relagdo As priticay assistenciais & erianga aban- donada, A Igreja sofreu uma grande transformagio em sua estructura ¢ em sua organizagio: centralizou-se; assumiu a forma de uni monarquia fortemente hierarquizads, uniformizou e universalizow suas normas. catolicismo europen regulamentou, minuciosamente, cada as- pecto da moralidade familigr e da sexuslidade, Poram sancionados os graus de relacionamento permitides aos que iam casar-se e as cireuns- tancias sob as quais as eriangas podiam receber @ batismo. De resto, houve um obsessive cuidado com o sacramento do batismo, € esse sacramento, como rito de introducio do ser humano no seio da Igreja, assoura scr a precondigio tinica de salvagio da alma ea chave de entrada no Paraiso. O infanticidio foi sistemitiea ¢ rigorosamente proibido, assim. como 0 aborto, ividade legislativa rapido aumento da populagdo provocou nao s6 0 aumento da pobreza, mas trouxe também problemas para a familia. Para a época, crescia assustadoramente 0 ntimero de criangas ilegitimas e também, Goremek, Bronislaw: Las marginans parison ann XINect Nee ies. Paris: Flammarion, 1976, p. 189, Gatipabe rCnuica ext estERGENCA 43: de abundonadas, Sendo a mortalidade geral, € particularmente a in: fantil, muito elevada, havia o riseo de as eriangas — sobretudo as nascidas. dos concubinatos — morrerem sem 0 batismo. Novas questées foram propostas ao legislador candnico, como a seguinte: criangas ilegitimas, eseravas ou abandonadis poderiam re ceber o sacramento do batismo? Se, de um lado, 0 sacramento do matrimdnio foi definido como o sinico meio cundnico de reprodugio da espécie, por outro, como a Igreja deveria comportar-se em face do batismo dos filhos do pecado (os filhos de padres ou de prostitutas, os filhos adulterinos, etc.), nascides, portanto, fora do casamento sacra mental? (Os coneilios normatizaram esta questio: 0 inocente no deveria pagar pelos pecados dos pais. ‘Tada crianga teria o diseitoa salvagdo.e, portanto, ao batismeo. Uma outra questio no menos grave era: boa parte das eriangas particularmente as abandonadas & beira de caminhos, nas portas de casas ou igrejas, expostas ao frio, 3 neve, A chuva, ao calor intenso, a sanha de animais — mortia antes de reccber 0 batismo. Se 0 batismo cera a tinica via de salvagio, para onde iriam essas eriangas — que mal haviam enteado no mundo — depois da morte? Nesse caso, 86 havia duas opgdes: 0 céu ou o inferno. E verdade que, no século XIL, a Tgreja havia criado uma terceira opgio, para aqueles cujos pecados nao eram tio graves: 0 purgat6rio, um higar intermedisrio, de refrigerivm. O- locus purgatorius torna-se 0 lugar destinado & purgagio necesséria para ganhar © prémio posterior: 0 paraiso © purgatério, entretanto, nilo resolvia a questo do inocente que mortia sem batismo, mas sem cer ainda pecado. Novo espago toi ctiado, ontio, para tais situagSes, 0 limbs. Meio nebuloso — nem céu yoventes e pagios sem batismo —, havia tudo, menos a visio beatifiea de Deus € de seu séquito de anjos € de santos. Curios definigio do limbo é dada pelo padre jesuita Joro Filippe Betendorf, em seu Gompindi da Dowirina Crist, de 1681 “Que € 0 Limbo dos meninos? R. —E uma caverna abscura por ci do purgatério em que esto os meninos que faleceram sem baismo" nem inferno apenas povoado por * Vero belo ly de Le Goll}. a aiuamer de Pargatire. Paris: Gallimand, 1981 Betendert, Pade Joie Filipps. Compindio da dowrina hve wa lingua parts Praia. Lisbow: OMtcina de Simio ‘Vhaddeo Ferreira, 1800, 131 p.(p. 49-30, 2 parte). 44 Canunanr rOn.ies EM EMERGENCH A idéia hierirquica do local esta presente: fica acima do pr abaixo do paraiso. Esses meninas, sem culpa condenados a viver etemamente em uma caverna escura, pelo simples fato de nio hes terem ministrado o batismo antes de sua morte. Daf a importincia que 0 batismo acabou tendo no imagin pritica do povo. “Que coisa é 0 bi Ber do diabo somos feitos filhos de Deus, e herdeiros do Céu, © que destidi rio © também na smo?”, perguntava ainda 0 padre » sacramento pelo qual de escravos ndorf. E. ele mesmo respond: © pecado original com todos os mais que temos cometido antes do bhatismo’ Para 0 reeém-nascido no batizado ou qualquer crianga ainda no batizada que estivesse em risco de vida, sem tempo para receber solenemente o batismo na Igreja foi institufde, na época, 0 batismo in-extremis, que poderia ser ministeado por qualquer pessoa, desde que se usasse adequadamente a matéria (a batizo em nome do Pai, do Filho e do Mas, para os teformadores da questdes graves ndo paravam por ai Desde a época de Constantino, ¢ mesmo antes, a Igreja impds 0 celibato aos padres. No entanto, na Alta Idade Média, 0 clero nem sempre respeitou essa norma. A insuficigncia de bispos, « mediverida- de moral dos integrantes do cleto responsiveis por igrejas e capelas (designados muitas vezes pelos poderosos) € sua limitada formagio intelectual foram suficientes para que se esquecesse o voro de casti- dade. Nivelado aos camponeses ou elevado 20 nivel dos aristocratas, © clero tendew a seguir a vida dos laicos, cujo meio freqientava. Nos séculos X e XI, muitos de seus membros tornaram-se indignos das Fungdes que exerciam. Queriam ter familia, patrimdnio ¢, também, legar seus poderes a um de seus descendentes, nascendo, assim, as dinastias que se apropriaram dos bens eclesiisticos Tal situagio era insuportivel para a Lgceja, que via stias riquezas se evaporarem nas mios de um elero dissolute, Os reformadores queriam acabar com tal situagao, Até a reforma gregoriuna, os bastardos viveram em par, Exam bastardos todos os individuos naseidos fora dos lagos do casamento religioso. Toda unidio nfo admitida pela Igreja, ndo cra um casamento, mas sim um eoncubinato, mesmo que o casa vivesse de acordo com as fegras de uma familia estivel Havia, porém, muitas eategorias de bastards: os filhos ex-conjugatio, ‘om seja, os adulterinos, os menos bem-vistos, pois suia presenga punha ua € 0 sal) ea forma: “Eu te spirito Santo reja dos séculos XII ¢ XIII, as Carinane ptaLICA EM EMIERGENCA 45; em perigo a Familia; 0s filhos de padres (os ex preshytero); € 0s filhos dos i9s0). Estas das Gitimas eategorias erm numerosas ¢, em geral, bem-aceitas pela sociedad. Um cura casado ndo chocava em. monges (osex-rel nada os camponeses. Os bispos eriavam dinastias locais e preocupavam- se em manter a propria linhagem A partir do século XI, os bastardos — até entio perfeitamente incegrados 8 familia do padre — comegam a softer algumas formas de Ho. A refooma gregoriana retomou, com vigor jamais visto, um movimento moralista iniciada bery ances dela. As interd prime 10s dos padres. Os concilios que se suceder pretendiam por ordem na casa Depois, veio a regulamentacio dos interditos. Em 1065, 0 papa Alexandre I, condenou as unides entre parentes até o terceiro grav, Os filhos dessas Unies, consideradas incestuosas, nilo poderiam mais herdar nem obter honras civis ¢ eclesidsticas. Pouco a pouco foi interditado aos filhos ilegitimos 0 2 nga dos pais Ao atacar os filhos de padres, @ reforma gregoriana atingiu a todos os bastardos. Para triunfar, as novas idéhas precisaram de muitas déca das ainda, Os virios coneilios reunidos em Roma durante 0 século XT atacaram com zelo excessivo os filhos de padres, interditando o aces so dessas eriangas as ordens sacras Ocorreram reagdes violentas contsa esses novas orientagdes, como 1 dos bispos de Paris em 1074, que se recusavam a obedecer as ordens do papa. Mas a Igreja acabou por impor sua vontade. No século XIII, finalms fou 0 Sacramento da Ordem. O celibato dos padres foi declarado definitivo, universal e de marca indelével. Com isso, criou-se uma nova categoria de ilegiti- mos: “os filhos de padres”*. A estes, como a todos os outros ilegit: mos, estavam barrados 0 direito da heranga ¢ a entrada nas ordens religiosas. A injustiga de punir os filhos pelos pecados dos pais passou aqui despercebida aos teélogos da época e tornou-se causa de softimen- We, a Igieja regulamer tos seculares, Durante o pontificado de Inocéncio III todo bastardo passou a estar associado ao servo — injtiria grave para os filhos de nobre. Moralmente, Carron, Roland. Enfant porté dens la France médisnle. NeXMe sits, Pais: Dio, 1989, p. 18, Sobee a cvolugio da posigto ds laseja, durante 0 ineio da Made Media até séeulo XIII, « expeite da ilegitimidade, do coneubinato do celibito dos padres, é funda ‘mental letra de Goody, Jacques. Léeolatin dela fomille at dt marriage Europe Pari: Armand Colin, 1985 46 CARIDADE PERL IEA BM EMERGENCLS 6 ilegitimo cormou-se um ser desprezivel, sua situagio foi degradd essa crianga tornou-se estigmatizada, Ainda no século XII foram definidas as condigdes essenciais para izagdo do Sacramento do Matrimdnio: 1) Indissolubilidade (0 di vércio tornou-se quase impossivel); 2) Monogamia; 3) Livre conse timento do casal; € 4) Locus unico para « multiplicagio da espécie. Com gorius de ilegitimos, de excluidos. O LV Coneilio de Latrio defini ay regras definitivas da consan- slinidadle (os graus de parentesco permitidos para o casamento); conse lidow as estruturas parentais no biolégicas, por meio do eompadrio; & judou a aumentar 0 nrimero de interditos a0 casamento, cancostendo, assim, para aumentar 0 niimero de ilegitimos, candidatos, muitos deles, 10 abandono. Disso se originotr um sistema de parentesco de modelo nava, dito “curopeu”, para se contrapor ao "modelo meditertinco antigo”. A Tyre: ja proscreveu integralmente as formas de casamento entre pareates prdximos. A pritica da adogio — um costume ligado a questao da heranga muito difundido na Antiguidade ¢ no inicio da Idade Média — foi rotalmente extirpada pela Igreja do Ocidente, fazendo desaparecer a possibilidade de uma familia substituta para os sem-familig, te séculos, © conceito de adogio iria deslocar-se, ¢ passar pura 0 plano espit tual, pela agio da Tgreja. Com freqiéneia, referir ao batismo, que fazia de todos nés filhos adotivos de Deus. Tipico dessa mutagao geral do uso do termo ¢ o fato de que, entre os eullos VIII © EX, a palavea latina adoprio (ou adoptatio) designava a rclagio entre Cristo € 0s reis soberanos deste mundo" De certa forma, como pondera Goody, a adogio foi substituida pelo apadrinka- mento em Deus. O parentesco espiritual foi preferido a0 parentes 0 ficticio. No texto de Graciano, autor candnico do século X11, essa relugio vem cliramente exposta: "Um afilhado tem lago tio estrei- to com seu padrinho quanto o filho adorado com seu pai adotivo, O ato do padrinho se compara a um ato de adogio diante de Deus”, Enfim, 6 desaparecimento da adogo do sistema social curopeu deve ser expli cado com base no sistema da heranga montado no Ocidente medieval A rendéncia foi a de legar os bens, sem herdeiros naturais, para fins de caridade, de obras pias. A exclusio de herdeiros “fieticios” —no caso, esse terme passou a se em, ibidens, p82. Gratien, sée, Le Ve. XXX, cota 3, coud Goodly. J. Op. et, p85 CGytipane PenLICs Ext ALERORNCIN. 47 65 filhos adotives —atenderia aos inferesses materiais da Tgreja, na tese de J. Goody Arey to, estabelecidos no século XI ¢ Feitos para fortalecé-lo,, to da ilegitimidade. Aparentemente, e de uma forma provisér regulamentagio fez diminuir a freqiiéneia das exposigées de bebés. Durante 0s séculos XII e XII, 0s pobres colocavam seus filhos como. guulamentagio ¢ o controle excessivos da Tgreja sobre o easamen aprendizes dle um oficio ou davam-nos a eriar, mais que os abando Certamente, 0 medo de represilias, da Inquisigio, de incorrerem em pecado, on do fogo do inferno deve ter obrigade os pobres a nilo expor seus filhos, Mas, embora a freqiiéneia tenha baixado, 0 abandono nio desapareceu da cristandade ocidental. Em meio 8 grande reforma dos sistemas candnicos, 4 Tyreja nunea exarou um tinico cédigo que cond bs filhos, Sociedade © Igseja aceitaram perfeitamente — © muitas asse ou proibisse 0 ato de expor justificaram © regulamentaram a pritica de exposi¢io das criangas. Mesmo a venda de filhos como escravas ou servos nunca fot condenada pela Igreja. Era comum a venda de criangas na épo pais também expunham filhos scriamente doentes e deficientes fisi- cos, sem nenhuma forma de constrangimento. Em alguns locais, leis eclesiisticas impunham que os filhos de padres seriam tomados de seus pais ¢ se tornariam eseravas da Tgreja, Na verdade, até o século XIII, a tradigio candnica colerou o abando- no, Evitar 0 infanticidio ou o aborto cram algumas das justificativas encontradas para aceitar a rejeigo dos filhos. Afinal, a crianga abando- nada teria a oportunidade de nfo morrer sem o batismo ¢, ainds, de livrar-se do enfadonho limbo por toda a etemidade. Os pais 7 assim, devolvendo a Deus — por intermédio do abandono —o filho que Yo queriam, Afinal, er Ele o grande responsivel por sua existéncia Além disso, ao abandonar seus filhos, esses pais poderiam estar contri- buindo pata estimular e desenvolver as atitudes eristis de caridade entre aqueles que os encontrassem © os recolhessem para ¢ris-los. Essas virtudes, de amor ao préximo ¢ de miserieérdia para com 0 outso —a maior de todas as virtudes — foram muito valorizadas na epoca. Pobreza, ilegitimidade, defi eausas mais comumente ale; XIIT, Uma grande quantidade de criangas pobres entrava para 0 tri co de eseravos, sobretudo no final da Idade Média, nas dea nais da Europa e nos seus centios comerciais. As meni com freqiigneia tornavam-se_prostitutas. 108 € md satide con das para o abandono, depois do sécul nas abandonadas 48° Caninape ptnica Ext EMERGENCLS Com o enriquecimenty dos grandes senhon ressuirgiti um novo espago social: a cidade, Nes erescentes niiclens urbanos a miséria endémiea tomou-se mais visivel que nos feuds. Nesse novo contexto, a nogio € 2 organizagio tradicional da cari- dade no plano individual ndo respondiam mais aS novas ¢ crescentes necessidades da sociedade. Os responséveis pelas comunidades urha ‘has que surgiam apressaram-se em pr controle dos servigos sociais para 1 da nascente burguesia cher os vazios, assumindo 0 elhor organizar assisténeia comunal. Essa foi a primeira etapa do longo proceso de evolugio para uma assisténeia secular € piblica A assisténcia caritativa urbana foi sendo assumida pelos leigos locais e esses nio distinguiam as necessidades sociais das espirituais ‘Transformando o simples amor a Deus em assiscéncia aos pobres, a earidade tomou-se um dever, tanto da vida religiosa pessoal como da moral coletiva. Era um atributo nfo somente do poder dos principes, ‘mas também das comunas urbanas. No final do século XU, a respon- sabilidade da assisténcia foi assumida pelos governos locais. mudangas profundas se efetiva n que o cariter religioso da caridade desaparecesse, Na primeira fase da Idade Média, os restritos meios de esmola ¢ de assisténcia individual eram suficientes para aliviar a pobreza ¢ a enfermidade c, desse modo, limitaram as possiveis formas de associa cio. Nesse periodo, a tradigio, ininterrupta desde os tempos dos apéstolos, via no pobre tum preferida de Cristo, sua imagem. O pauper era o intercessor privilegiada em favor do pecador. Na mentalidade comum, ele era um assessor do Soberano Juiz, “O interesse do Cristio preocupado com sua salvacao aproximava-o, assim, do dever de assis- téneia imposta pela justica”, pondera Mollat. As transformagées dos séculos XI XII, ¢ em particular a Reforma Gregoriana, de um lado, 0 renascimento das cidades ¢ 0 desenvalvi- ‘mento da economia de toca, de outro, inauguram uma fase nova do assistencialismo, Pobreza © assisténcia passaram a ter nova conotago, a partir de centio, Mollat afirma ainda que “s pobreza, assim como a enfermida- de, aparecem como a privagio de um bem, como uma situagio de fraqueza, de dependéncia ¢ de humildade, temporiria ov permanen- fe", Nessa época, « assisténcia — presenga ativa que significa ajuda, Motta, M Op. cit, p12 Canipane venice EM EMERGENCE 49 sustento, reeonforto — era animada po um sentimento de compaixdio ou de catidade Assim, estio em cena dois personag dos —, ligadas por sentiments afetivos, reefprocos au nila, © por gestas ccuja freqiiéncia acaba por engendrar formas consuctudinérias ¢ instituci- onais, De um lado esto os desvalidas que esperam, imploram om até exigem ajuda; le outro, os que, espontaneamente ou nfo, os assistem ou. ens — as benfeitares ¢ os assisti- thes viram as eostas Hi inovagées no campo da assisténcia aos bebés expostos, No séeulo XT surge a figura do ermitéo, que sai em busca de behés expostos, recolhendo-os por toda parte. Nas cidades ¢ vilas animam- se as beneficéncias dos leigos. a época da fundagio — nas se: urbanas da Itilia e do norte da Franga —, pelas conffarias, de peque- nos hospitais, com poucos leitas (para alojar doentes, velhos, eriangas desvalidas, mulheres s6s, peregrinos), x0 lado de grandes hospitais fun dados pelas comunidades urbanas e pelos principes. O fevantamento das ‘obras de caridade” acesta que sua pritica se tomou corrente, com tendéncia a se instivucionalizar, especialmente pelas novas confrarias de caridade Aatinude adorada pela Igreja — de conceder indulgéncias as confrari- as € 8 instituigdes que se dedicavam aos cuidados dos mais necessitados, —contribuiu para essa expansio. © costume dos legados pios, base material indispensivel para a manutengio das confrarias e de suas obras pias, surge igualmente no século XII. A partir do ano de 1170, os legados expressamente deixa~ dos aos organismos de socorro (como hospitais de pobres, de doentes, 0s leprosiirios e outros) aparecem nos testamentos, E importance frisar que essas iniciativas individuais estiveram ligadas & eriagdo dos primeiros organismos de socorro a infincia aban donada nas aldeias e nas cidades, Tanto na criagio de obras de earida- de como na de instituigdes de piedade paroquial é notivel a abstengiio de todo papel direto do alto clero. Mesmo 0 baixo clero local parece ter transferido aos leigos a responsabilidade material na constituiga desses arganismas" Assistance etcharité, Caer de Ranjoous Collection et histire religiewse di Languedce auXlle etau debut la XIVe sigees. Toulouse: Edad Privat Edie, 1978, p. © Plandtin, JL. Op. ct, 1978, p. 200. 50° CaRIDADE HOMIE EAI EMERGENCIA Dessas associagdes, ou confrarias de caridade surgiram as prime ras instituigdes de proteco 2 infincia érfi ou abandonada, Comecava -eulo NTH, a fase da caridade puiblica de protegio a infincia desvalida, Alguns hospitais medievais passaram a aceitar os pequenos expostos. A origem dessa pritica parece ter vindo do Oriente eristio, onde 0s asilos para criangas abandonaday — os chamados dreforrifias — passaram a set freqiientes, assim como os orfanotrtios Deve-se a Sio Zético, padre romano enviado a Constantinopla por Constantino, a fundagao, em 349, do primeiro hospital da cidade também 0 mais antigo da cristandade, denominado “lobot6fio". Ele foi criado para socorrer os doentes pobres e invélidos. Em 363, ja havia muitos hospitais espathacos pelo Oriente cristio. Por toda a cristandade oriental difundi-se a criagio de hospicios, em domicilios particulares on em edificios proprios, para o exercicio das Obras de Miseriebrdia. As esmolas que os figis confiavam as igrejas ‘eram distribufdas para atenuar 0s efeitos da miséria, das epidemias, das cenchentes, da falta de trabalho, das doengas, da velhice, da invalidez, do abandono de bebés. A afluéncia dos necessitados exigiu a eriagio de obras especializadas. s asilos para as eriangas abandonadas, para os velhos, para os 6rfvos ‘ou para os pobres, os albergues para os andarithos; 08 hospitais para doentes; os recolhimentos para as vitivas ¢ as mulheres s6s; © os isolamentos para os leprosos foram surgindo por toda parte. Essas instituigdes tomavam o nome de cada especializagio — nosocémio para os doerites; brefotrsfio para as criangas pobres ¢ abandonadas; e orfanotréfio para 0s érfos — e, no Oriente cristio, sua diregio ficou entregue inicialmente aos bispos. Sio Basilio ¢ Sto Pacmio, ao fazerem as regras dos mosteitos do Oriente, insereveram nelas, dentre muitos conselhos, 0 de criar as criangas desvalidas desde pequeninas, ensinando-lhes uma profissio conforme as aptiddes de cada uma. Teve inicio, assim, a prética de ccapacitagio da ctianga pobre para 0 mundo do trabalho. No Ocidente medieval, a especializacio dos primeiros hospicios e hospitais no foi tio nitida assim. Suas origens nio tm sido recupera- das de modo clato pela historiografia. Segundo Boswell, antes do século XI, 36 hé mengio a um dnico asilo, criado pelo arcipreste Dateu, de Millio, em 787, destinado exclusivamente & infancia aban- donada daquels cidade. Ao que parece, esse asilo foi criado pri palmente para impedir que os pais macassem os fillos indescjados. Esses CxRIDADE PUBLICA EALEMIERGENCIA 51 expostos erum confiados as amas-de-leite, mais carde, eram treinados em um oficio e, uma vez adultos, ussumiam seus préprios destinos O intento de Dateu era claro, ¢ foi o mesmo que animou muitos outros a se ocupar da inffincia abandonada: salvar 0 corpo e a alma dos nase dos de relagées ilicitas. Nio se sabe ao certo se este projeto de Milio foi de fato implementado € se teve seqtiéncia, As fontes sio ambiguas € fragmentiias, Copiando as instituigdes especializadas eriadas no Oriente cristo, foram surgindo nas cidades da eristandade ocidental, a partir do s culo XI1, os breforréfios, os nosocdmios, as albergatias, os hospicios os hoxpitais € os asilos, Sem serem, necessariamente, tio especiali- zados, suas caracteristicas basicas, até os dois séculos seguintes, eram: estarem vinculados a uma forma de associagio (corporagdes de off- cio, confiarias, ligas); serem uma forms de socorro miitue para’ os seus membros, nos casos de doengas, enterro, fome, guerra; partirem de iniciativas privadas, embora autorizadas e controladas pelo poder real € pela Igreja; serem regulados por estatutos, ou compromissos eseri- tos, pelo cumprimento dos quais deveriam zelar, Dessas associa ‘Ges surgiram as primeiras instituigdes caritativas de prot cia 6rfa e 2s criangas sem-familia, A Inmandade do Santo Espirito, fundada por frei Guy, em Mont pellier, no sul di Franga, (1160-1170) contribuiu com seu primeiro hospital (1204) — nticleo da famosa Escola de Medicina de Montpellier — para a assisténcia aos expostos, 20s pobres, 20s peregrinos © aos doentes, ‘O papa Inocéncio III (1198-1216) teve especial atuagio na assisténcia institucionalizada a crianga abandonada. Um fato parece ter desencadea- do sua acto nessa dren: em 1203, os pescadores retiraram do rio Tilbre, em suas redes, uma grande quantidade de bebés afogados. Tnacéncio IIT ficou tao chgcado que destinou o hospital de Santo Espirito in Saxia (ao lado do Vaticano) para receber os expostos ¢ abandonados. Para dirigir 0 hospital do Santo Espirito, em Roma, 0 Papa chamou frei Guy de Montpellier. Fora do hospital, em seu longo muro lateral, foi instalada uma “Roda”, com um pequeno colchio, para receber os bebés, mesmo em pleno dia, estando rigorosamente vedada a busca de informagtes sobre quem 0s havia trazido!, Esta foi, seguramente, a primeira Roda de Expostos Alfaro, De: Gregorio Ariz La pediasia en sus relaciones con la medicinaylahigiene 32. Carepane etinuica er EMERGENCE, da cristandade, que serviu de modelo para as que surgiram posterior mente A capacidade desse hospital era enorme, podendo receber até seis as. A instituigdo, que também atendia a mulheres grividas e a prostitutas, oferecia sos, Tuido em uma situagio de grande promiscuidade. As eriangas expostas nia Roda de Roma eram confiadas a amas-de- leite. Algumas dessas amas levavam as eriangas para serem eriadas ‘em suas casas; outras moravam nas proximidades, Para fornecer leite 40s EXpoStOs, & instituiczo dispunha, também, de cabras. Depois de desmamadas, entre quinze meses ¢ dezoito meses, as criangas passavam a viver no hospital até os oito anos ou dez anos, salvo nos casos — freqilentes — em que as amas pediam par continusr, sfatuitamente, a crié-las. Entre oito anos ¢ dez anos elas eram confiadas a1 mestres-artesios, que Thes cnsinavam ofieios conforme as aptidées, a forga € 0 sexo, As mogas eram dados dotes, para facilitar o casamento. Os rupaves, em prinefpio, eram amparados até poderem manterse por si Esse sistema montado em Roma tornou-se paradigmiticn para toda a Europa nos sete séculos seguintes, bem como em seas de outros conti- nentes colonizadas pelo Ocidente eatélico. Passados quarenta anos da fundacio de Montpellier, a Ordem do Santo Espirito tinha casas espalhadas por toda a Europa — Ikilia, Frang Alemanha, Polonia, Fungria, Dinamarca, Inglaterra, Portugal ¢ Espanha — tendo chegado a possuir, no periodo medieval, 870 casas, 400 das ‘quais na Franga ¢ 270 na Itilia, todas diretamente ligadss @ Roma. A Ordem teve religiosos de ambos os sexos. As religiosas dedieavam-se 40 tratamento dos doentes, mas principalmente a criagio dos expos tos. Suas obras assistenciais eram mantidas por meio de legados ¢ de peditorios Nesses hospicios medievais, em geral, os bebés abandanados coa- bitavam com os doentes adultos, freqiientemente no mesmo quarto, pritica essa que perdurou até 0 século XIX, silo a religiosos e nobres, bem como wos lepro: sociales. Balin del Intitato Internacional Americano de Protect a ta tafencia Toro XV(3}365-403, enero 1942, Revel, M. Le rayonnement 4 Rome et en lise de POndte de Suint- Espri de Montpelice Assizane er ctarité, Op. cit, p. 343 € 8. Ver também Puchs, Rachel Foundlings aud Child Welfare 1906 Cntary Franc, Albany: State Universicy of New York Press, 1988, p, 1 es © Goucia, Feenando da Sve (1968), Op. cit, p. 201-2, CARIDADE PURLICN EN EMERGENEIN 53 As confrarias caritativas atuaram’ em varias outras cidades, No norte da Itélia, em Mirandola, havia a chamada Confruria da Miseri- eérdia, que desde 0 século NUIT recolhis os expostas. A Contraria da Misericdrdia de Florenga assumiu a protegio dos expostos a partic de meados do século XII O Hospicio de Expostos de Santa Maria da San Gallo foi ctiado especialmente pars atender enjeitados. Com incessunte aumento de criangas abandonadas, o hospicio no con seauia dar conta da criagdo de todas. Um segundo hospital cangénere, o Santa Maria della Scala, foi fundado em 1316, recebendo doentes € expostos, que conviviam no mesmo ambiente, Havia um Ioeal es- pecial para se depositar os expostos: um bergo de mirmore. Até fins desse século, 0s dois hospitais juntos recebiam cerca de duzen tas eriangas por ano. Em 1445, foi aberto um novo hospital, exclu sivamente para expostos, 0 Santa Maria degli Innocenti, a fim de aliviar a sobrecarga dos dois anteriores”. Apds cinqlenta anos de sua fuandagdo, esse hospital atendia, sozinho, noveentas eriangas aban donadas, por ano. Em Paris, no século XII, 0 Capitulo de Notre-Dame mantinha assisténcia ds eriangas drfis e abandonadas, que erum deixadas no por tico da Catedral e na Igreja de St.-Jean Le Rond, bem como no umbral do Hotel Dieu. Uma casa, chamada “La Couche" ou “La Creche”, foi estabelecida por senhoras caridosas, na praga da catedral, Essa pe quena casa em apenas a residé bilidade de receber as criangas ¢ de manté-las até encontrar uma 1 quem confid-las. As amas-de-leite e a instituigio eram em parte, pela ordem religiosa de Notre-Dame, em pate pelos seigneurs haut justciers Em varias partes da Europa, as municipalidades tomaram a si o encargo da eriagio e da educagio de érf%os ¢ abandonados, Nas provineias do norte da Franga (Flandres, Metz, Amiens, Lille) ¢, sobretudo, na Alemanha houve numerosos exemplos de assisten cia a0s expostos feita pelas autoridades municipais, « partir do século XII. As municipalidades se encarregavam dos expostos em seus terri Lorios ¢ buscavam reencontrar a origem das criangas, para se exonera rem de despesas com sua criagio. Por praclamas ¢ pre carregando junto 0 exposto, exortava-se a popuicio a dda pessoa que assumia a responsi pelas ruas, couperar, ofe- Klapish, CL, L'enfance en Toseane au dbus du XVe siele. Armas de Dénographic Historique 1973. Paris: Mouton, 1973, p. 109 34 Cyripane et nuicy est eateRGe cts recendo recompensas aos que denuneiassem os pais dos abandona dos" As municipalidades pagavam amas-de-leite para os expostos, que cuidavam deles em suas casas. Desde 0 séeulo XI, o uso de amas-de leite mercenirias difundiv-se pela Europa Oeidental, Inaugurada no século XII, a “Revolugdo da Caridade” teve seu século XIII. As obras de caridade multiplicaram, apoge ; rum-se organizadas. Ao lado das caridades individuais, a freq} das iniciativas eoletivas @ administrativas mostram que a q) social dos indigentes acabou por exigir solugdes. Passara-se 0 tempo em que a caridade era quase um monopélio dos monges e mosteirus. A ieuida inicialmente pelas Ordens mais beneficéneia mondstica foi sul recentes: a dos ‘Templirios, 2 dos Hospitalirios € as Ordens Mey cantes. Os bispos, ¢ depois © papa, inseriram, 0 servigo aos pobres em No final da Idade Média, a Europa institucionaliza a infincia abandonada, criando, pelas cidades, seus hospicios de ex postos, com 0 apoio dus municipalidades, de legados ¢ das confrarius Lallemand, L. (1888), Op. cit, p. 119 4 \ EUROPA CLASSICA: INSTITUCIONALIZAGAO DA ASSISTENCIA CARI'TATIVA AOS EXPOSTOS A evolugio do sistema de assisténcia Ganda Mott a tnsfomagio do problema da ssistén- cia, deve ser estudada tanto no dominio das i dos fatos. Para enfrentar tanta miséria © atender a tantos in origem desconhecida nas cidades (c legados ¢ os dons individuais, freqiientemente muito pequenos), de outro, no mais bastavam, De diminuiu — ou porque a fortuna dos doadores se reduzitt com as crises ou porque o ardor earitativo havia esfriado. Em todo caso, as casas hospitalares passavam por sérias dificuldades eco Tanto, Suspeitos), as esmolas, 0s tum lado, os hospitais (numerosos, mas E bem verdade que o espitito de caridade nunca cessara de inspicar @ generosidade © a compaixto. Autoridades municipais tiveram uma participagio crescente na administracto dos hospitais, designando seus reitores © controlando tanto sua gestio financeira como suit clientela. No entanto, 0 crescimento da populacao das cidades, as guerras (com seu cortejo de doentes, aleijados, incapacitados fisica- mente ¢ érfios desamparados), a Peste Negra ¢ o aumento do niimero de abandonos de bebés mostravam a incapucidade do sistema, com suas mintisculas © pulverizadas casas de assisténcia corporativistas. Nos séculos XIV ¢ XV, 0 niimero de srnvateli foi creseendo con- 56 A Eurona cr.issica tinuadamente. Vislumbraram-se a centralizagio dos servigos sociais e a criagio de grandes estabelecimentos hospitalares e mesmo dos espe- cializados no atendimento & erianga abandonada proceso de mudangas comegou na Irilia. O coneeito inspirador dla concentragio dos pequuenos hospitais para expastos ao longo de dois séculos (XV € XVI) foi 0 da reformatio hospitatium, que consistia na incorporagio da maior parte dos pequenos estabelecimentos exis: tentes numa Ca'grande (Casa Grande) ou num Ospedale Maggiore (Hos: pital Central) Em 1447 foram reunidos no Convento dos Umiliate, em Lateca, diversos hospicios ¢ hospitais da cidade € do territério de Brescia em um grande hospital, 0 “Ospedale de S. Spirito ¢ di S. Lucea della Misericordia” ou, simplesmente, “Ospedale Maggiore”, para teco- Iher es expostos! Em Milio a agregagao dos pequenos estabelecimentos medievais foi autorizada por uma bula do papa Pio II (9/12/1458), cuja ata ducal expressavarse assim: “fundare Hospivalia, et pia loca, in quibus paupere infirmi, expositique infante, ac aliae miverabiles personae, sustentari recreati, et nutriri valeane”, Foi ctiado entio 0 Ospedale Maggiore de Milde, Ante dificuldades ccondmicas insoliiveis a que chegou a insti tuicio, uma bula do papa Sisto IV, de 1473, concedia indulgéncia plend: fia a todo aquele que ajudasse a sustentar as eriangas do hospital. Regras similares as implantadas no Hospital de M nem vigor, em 1594, no outro hospital da cidade, o de Sio Celso. Essas nor ‘mas inelufam a abertura da Roda, por onde comegou a entrar um nimero considerivel de criangas. Na Florenga medieval, os bebés expostos, assim como os filhos ilegitimos ¢ os filhos de eseravos podiam ser recolhidos, desde o século XY, em duas insticuigdes de caridade: Santa Maria della Seala e 0 Hospicio degli Innocenti’ 0 “Ospedale degli Innocenti” foi construido pela Comuna de Flo- Fenga, auxiliada pela Guilda da Seda, e aberto em 1445, para atender a Onges, Sergio, Llabbandono degli infin ilegttimi © legitimi nel Brefotrotio di Breseia (1800-1870), Storia i Lombardia, 1984 (Mili, 25966 (p39), Munecke, V. 1 vote di Mila, Rambin spas efamigi expat dal XVI al SIX ‘eral. Rolonbas Ul Muna, 1989, p. 7 Idem, ibidem, . 78 + Klapisch, C. L. L'enfance en Teseane au début du XVe sigee, dina de Démagraphie Hiswriqe, 1973, Paris: Mouton, 1973, p. 109 A Eurors cLissicy $7 crescente populagio de expostos da eidade. Outros hospicios de ex- jpostos foram aparecendo por toda a Itilia nesse século, como o Hospital de fmola, Ospedale della Misericordia e Dolce di Prato, 0 de Santa Maria della Scala de Siena (que juntamente com o Degli Innocenti, de Florenga, se tornaria um dos mais famosos da Toscana), e outros mais Em quase todos eles foi instalada a Roda O nome Rada — dado por extensio a casa dos expostos— provém do dispositivo de madeira onde se depositava 0 beb2. De forma cilin rica e com uma diviséria no meio, esse dispositivo era fixado no muro ‘ou na janela da instituigio. No tabuleiro inferior da parte externa, 6 expositor colocava a criancinha que enjeitava, girava a Roda e puxa- va um cordio com uma sineta para avisar & vigilante — ou Rodeira — que um bebé acabara de ser abandonado, retirando-se furtivamente do local, sem ser reconhecido, A origem desses cilindros rotatérivs vinha dos trios ou ve de mosteiros ¢ de conventos medie alos usados pana outros fins, como 0 de evitar o contato dos religiosos com 0 mundo exterior. Na Franga, a Roda era chamada de Tour; na Espanha, de Torno; na Italia, de Ruota ont Torna; © na Inglaterra, Wheel Uma vez deixada uma erianga na Roda dos hospi preocupagao de seus responsiveis era batizi-la. Na auséncia de qual quer indicaglo sobre o batismo do bebé, mo imediato. Em caso de davida, batizava-se condicionalmente. Depois, acrianga era entregue a uma ama-de-leite, pata ser amamentada e eriada —as vezes no proprio hospital, mas mais comumente na casa da nutri, seguindo-se antigo costume Depois do perfodo de amamentagao na casa das nutrizes, o bebé voltava para o hospital de expostos. Em geral, os meninos cram, iniciados desde cedo em um oficio, enquanto as meninas eram enca- minhadas, bem jovens, ao casamento dando-se a cada uma delas, is, «primeira providenciava-se 0 seu batis- quando possivel, um modesto dote, Ocasionalmente, as eriangas ex- postas eram “adotadas” por familias. q uma complementagio para a miio-de-obra fan A mortalidade sempre fe nados. No fins 1 elevada nessas instituigdes de abando: IV, 20% dos expostos mortiam a0 chegar a0 hospital de San Gallo de Florenga; outros 30%, no final do primeiro ano de vida, Somente 32% sobreviviam até os cinco anos’. No Hospi Pinto, G.I personal, le balice i silaati del Ospedale ei San Gallo di Firenze ne 58 A Evron cLissic tal Seala, no século XV, 25% das eriangus mortiam no primeico més; € outros 40%, em um ano. Apenas 13% atingiam 0 sexto ano de vida’ Desde 0 século XVI, com as normas fixadas pelo Coneflio de Igreja empreendeu uma agio sistemit parecer a concubinagem. A Inquisicio foi implacivel com os trans- seressores ca moral catolica. Vérias medidas pontuais foram tomadas para ‘excomungar 0s coneubinos ¢ essa campanha foi bem-sucedida, Por todo lado, es concubinos comegarim a ser denunciados aos tribunais ec sidsticos, e excomungados. No século XVII, eles praticamente desapa receram no Ocidente cristo’. Nessa época, apenas as reis e muitos nobres criavam, publicamente, seus hastardos. Estudos de Demogeitia Historica confirmam essas mudangas de costumes. Em Nantes e arredores, no século XV1, 50% dos naseimen- tos ilegitimos ainda eran fruto de coneubinatos; a outra metde era resultance de wnides pré-nupeiais, Essa taxa baixou para 6,5% entre 1735 € 1750, € u 2%, entre 1751 © 17875, O nimero de concubinatos ¢ de Filhos ilegitimos caiu consideravelmente entre o século XVT e meados, do século XVII O padio mais ow menos generatizado na Franga do Antigo Regime tornou-se aquele estudaclo no clissico trabalho de Louis, Henry sobre a pardquia rural de Crulai, na Normandia, onde apenas 0,6% dos nascidos cram ilegitimos (de 1604 a 1799)". Taxas dle 4% de ilegicim dade ja eram consideradas elevadas nas cidades francesa. Durante 0 século XVI € no inicio do século XVIII, época de acer tuado vigor moralista a ilegitimidade e o abandono de bebés na Europa ccairam a taxas insignificantes, particulamente no campo. Nas cidade: cessas taxas foram um pouco maiores. A partir, sobretudo, da segunda metade do século XVI, a ilegiti midade voltou a erescer na Europa, 0 que foi um alerta para as att toridades € 0s moralistas. Paralelamente a esse crescimento subs a para fazer desa: i anni 1395.14U6, Rivrce oriole. Revista semeseile del Centto Piombinese di Studi Stoic, (2113-68, 1874, Sandi, Lucia. L'Ospedate de S, Maria dle Scala di 8. Gimignano nel quatre, Canribto alla stri detVinfencia abbandancie, Florenge: Bib Storca dell Valdes, 1982 p. 16h Flandtin, JL. Famille, Parente maton, sexual aes Fancenne wc. Pass: Hache, 1976, p. 176 pss (Cis, Alain, None a fe ps sami Xe sce, tae dogrephigue Pais: Sevpen, 1974, 9.96 Henry, Louis. La population de Cindi, parce normande, Pars: Ined-PUF, 158 joteea della Miscellanea A Rurora cLissicy $9 tancial da ilegitimidade, a exposigi de bebés comecou a registrar uma curva ascendente principalmente nas regides catdlicas da Buro- pa, Com base nos dados estatisticos levantados por Charlot ¢ Dupi quier, por exemplo, pudemos ealcular as taxas de abandono. Enquan- to, entre 1670. 1679, a porcentagem de bebés abandonados no chegava 2 0,5% do total dos batizados, esses nfveis sobem significativamente a partir do século XVIII, em uma proporciio de 10,6% na década de 1710: de 24%, na de 1740; e de 259%, no inicio do séeulo XIX (1810-1819)" tendo continuado a subir no séeulo seguinte, “ambém nas aldcias as mudangas foram semelhantes, 0 que € bem. ilnstrado pelo caso de St-Malo, Entre 1650 € 1699, apenas 0,6% dos naseimentos foram de ilegitimos; ¢ 1,9% foram de abandonados, Ja no periodo entte 1750 © 1799, essas taxas sobem pars 5,9% © 6,0%, res pecrivamente" Juntamente com o aumento da ilegitimidade, a freqiéncia de aban- donos cresce vertiginosamente por toda parte. No Hdpital des Enfants Trowoés, de Paris, as admissdes passim de 312 criangas em 1670, para 7.676, em 1772, ou seja, cerca de 25 vezes mais. Houve, pois, um aumento substancial dos encargos suportados pelo hospital, gerando graves dificul- dades para a administragio da instiruigZo! E estes niimeros no cortespondem exatamente 3 toralidade des expostos de Paris, pois maioria ainda era abandonada pelas ruas e nas portas de igrejas ou de casas Mas esse tipo de abandono foi-se tornando cada vex mais raro, em face das novas formas de expor criangas nos hospitais especializados Desde o iltimo quartel do século XVUL, 0 aum alizado de repensat as for nto da exposigio de ceiangas determinou um movimento mas de assisténcia a inflncia sem-familia, O esforgo de racionalizagio da assist@ncia, nocadamente no dominio hospitalar, no correspondeu exclusivamente a um desejo de ordem, de efieiéneia ¢ de enfrentamento 12 nova realidade. Na verdade, isso resultou de uma mudanga de es. Diz-nos Mollat: “Em todas as mentalidade em relagiio aos pobi Tinguas da Europa surgiu um vocabulério truculento designando e quali ficando pejorutivamente os pobres. A palavia ‘mendicante’ carrega-se Jadeiro pobre rnuangas maldosas, inquictantes, reprovadoras. O ver Charlos, E. & Dupiauict, J. Mouvement annucl de k 31. Antes de Demographic Histor, 1968 Ver 08 dads d population deta ville de aris de 167081 Pats: Sites. 1968, 9. 3 Ibidem, p. 250 Delaselle, Claude, Op. ct, p. 187-218 60 A Bvrors ex.assies ppassouw a estar comprometido com a turba de vagabundos, preguigasos, portadores de epidemias, eriminosos em potencial... 4 politica munici= pal, bem como a do Estado, em relagio ao pobre, tomou-se repressiva (vigilincia rigorosa, envio a galeras, prisio, constrangimento a traba- thos forgados). A tendéncia foi transforma © hospital em uma instite do de defesa social, tanto quanto de beneficénecia. Surgia, assim, a “policia dos pobres” dos tempos moderne” 7 “Maldita a hora em que se nasee pobre”, exprimia, com excesso de cinismo, a opinido humanista sobre » pobreza. A pobreza é condenada pelos humanistas, como indigna do ser humano. Para eles, ela é uma decadéneia resultante do pecado, e mendicidade uma infragio a lei do trabatho, Ambas chocam-se com as regras da utilidade social. Convém, pois, esconder a primeita e reprimir a segunda, Menos dura, a reflexio tradicional também passou a deplorar a po- brea, O empréstimo a juros, por exemplo, foi valorizado em dettimento da esmola, com a justificativa de que otimizava o trabalho, sem humilhar © beneficiado. Por esse v ese aos humildes 0 acesso a birth € 20 sucesso, sinais da bengo divis Durante a época moderna, mais particularmente no século XVI generalizou-se na Europa catélica o sistema da “Roda de Expostos para dar assisténcia as criangas desamparadas. © ardor moralista que se alastrava por toda parte via na Roda uma forma de defesa dos bons costuines € da familia, Assegurando o anonimato do expositor, a Roda era a garantia de preservagio da moral familiar. As Rodas giraram particularmente nos paises catélicos, tornando- se uma caracteristica das grandes cidades. O cent irradiador do uso dese mecanismo foi a Ttilia, © oy modelos italianos tcanspuseram os Alpes. ‘Na Franga, essa in tuigio no chegou a ser tio difundida como na Ieilia, pelo menos até o século XVIIL. Segundo Léon Lallemand, a primeira Roda desse pais apareceur em 1714, Em Ruio, a Roda dos Expostos foi implantada em 1758, ¢ em Tourtaine e Le Mans, entre 0 © 1766, Embora existissem hospitais de expostos em Patis, Lio, Rudo ¢ Montpellier, desde a Alta [dade Média, parece que esses nfo tiveram a Rods, até 0 inicio do século XIX. Quando S20 Vicente de Paula foi mandado para atuar em Paris, ki encontrou muitas desordens, dentre as quais a mais pemniciosa era Molla M. Op. cit p26 A EUROPA CLISSICN 61 a de abandonar recém-nascidos. Muitos desses bebés morriam ser hatismo © poueas pessoas se ocupavam de sua protegiio. A obra de Sao Vicente de Paula representa uma ruptura com o pasado de assisténcia aos menores abandonados. Poi cle o primeiro adizer, de uma forma clara, que nio se poderia deixar os expostos mozret sem cuidados, e foi ele quem ctiow uma organizagio para por em pritica suas idéias, Essas criangas foram reabilitadas do opidbrio que representava entio ser um exposto, pela obra vicentina da Companhia das Filhas de Caridade (1633) ¢ da Conferéncia das Damas de Caridade (1688), que passaram a se ocupar sistematicamente delas Entre 1638 e 16 © estimou em 1.200 0 nimero de criangas expostas que cram assistidas pels isms vieentinas. A. prote fo dessas criangus foi euidadosimente organizada nos planos material, sanitirio e ad ministrative. A educagio era essencialmente moral ¢ rcligio- sat exercicios de piedade, catecismo, partiipagio em offcios rligiosos, ete. O que importava era assegurar a salvagio de suas almas. ‘Todas a criangas aprendiam a fer. Os meninos ¢ as meninas recebiam treinamen- to urtesanal. Os meninos deixavam o Hospital de Expostos aos doze anos ¢ eram encaminhados para casas de artestos, para se iniciarem em uum oficio, As meninas permaneciam mais tempo na instituigio', O sistema vicentino foto prototipo da assisténcia cartativa, O sistema hospitalar de assisténcia 3s criangus desamparadas di fundiu-se pela peninsula Thérica desde a época medieval, Na Espanha a chamada /ncisa’*, de Madri, na Puerta del Sol, no centro da cidade, foi um projeto da confraria de leigos e de frades da Ordem de Sao Francisco, fundada na Tdade Média. Em 1567, a Conffaria Nuestra Seftora de la Soledad y de las Angustias fundou, no interior do Con- vento de la Victoria, em Madr, um hospital encatregado de acother pais nevessitados ¢ pobres. Em 1572, a confrariaestendeu suas ativida- Sie Viecr Capal, Mautice. Adandow ef marginal. Les enfants place coms CAmien Rime, Pais Privar, 1989, . LUZ (0 nome “Inclusa", segundo a tadigte, teria derivado do nome da aldeia lames Enkaesem, En fins du século XVI, on soldido espanol de volta dessealdeia wove ide ii um quato da Virgem ear seu Menino eo doo 40 Hospital dos Abundonacos de Maal. Nio apenas a Viegem passow a ser conheeid como Nessa Senhora da Inelusa (conmupreta de Enkuissen) mas, poe extensdo, toda @ Hospital, Com o tempo, toa instewigio da Espanha e da Amética espunhola, dedicida 2 assiténcia 4 infincia abundonada, recebeu o nome de “Ineusa”. CE Sherwood, Joan. Pow in ightent Gentary Spain. The Ween and Children ofthe Inclana. Voronto; University of Toromts Press, 1988 po 62 A Evrors c1.Assic des as etiangas abandonadas, tendo entio adquirido uma casa especial para abrigi-las, na Rua Prectados. Nesse mesmo ano, tod assisténcia aos expostos foi centralizada em um grande hospital, incorporando-se edifiicios vizinhos € novas construgdes. A Coroa, sob os Habshurgos, ajudou financeiramente a obra. Ainds nesse século, € com apoio real, foram criadas Inclusas em Pamplons (1310), no Reino de Navarra; no Hospital de Santa Cruz de Voledo (1504); em Sevilha (1518); em Santiago de Compostela (1524; em Seg6via (1536); em Valhadoli (1540); em Salamanca (1586); e em ‘Cuenea (1597)"*, No Alto Guadalquivir, em Andujar, havia uma Roda na Casa Cuna (Casa de expostos) ances de 1684 Desde 0 século XVI existiam, em toda a Espanha, instituigdes mais las para receber os expostos. No séeulo XVIII 0. ado, segundo a inspiracZo filancs6pica iluminista, comegou um pro: iv processo de controle € normatizaczo geral do sistema de prote- Gio 3 crianga abandonada, estimulando a eriago de novas Inclusas, 0 E funcionamento, fou menos prep: E ado apenas subvencionava algumas instituigdes © requlamer Ao que tudo indica, o movimento de recuo da exposigio de bebés no séeulo XVII e a curva ascendente no século } TIL repetisam-se na Espanha. Em Badajoz, por exemplo, entre 1640 © 1649, 5.6% dos batizados eram de expostos; no final do século (1680-1689), essa por- centagem subi para 8.8%! A primeira Casa de Expostos da Bélgica surgiu em Lovania. Construida em 1441 era uma instituigio pia, subordinads 3 comuna, Seguiram-se a Casa de Expostos de Antuérpia (1532); de Mons (1682); ea de Bruxelas (1685). A filantropia passou a ser um dos el yuias eselarecidas — que passaram a enten que o Estado de As monarquias ditas “esclarecidas” tornaram-se impulsionadoras Moreda, Vicente Péser, Lace de mortelided ev la Espa tnteron, Sighs NVIXIN Macki, 1980, p. 171 ¢ 172. Nenhuma delat possua a Roda, As criamgas crum deisadas cm Iugar especial, que asseyurava 0 mesmo grat ds que vinham abandonar seis fh Martine, K. G. Los marpimidas en el Ako Guadalguivi: Expdsits en Andijar Jaén) 77-17. Ine Bawdet, J.P (et). Op. cit, p63 Cores, Fernando. Mestad expsits en el adj del siscontos. In Bardet, J.P A Eurors chissien 63 da assisténcia a infancia abandonada e desvalida, criando grandes instituigies de intemamento para stia educagio e protegio, D, José 1, da Austria, por exemplo, crio o Regulamento de 1784, que determinava novas formas de se expor uma crianga no hospital de cexpostos. O segcedo da maternidade era um principio fundamental do assisténcia aos expostos, concebido para ser tum refiigio para as mies solteiras nibeis € um local de protec: ‘6s pequenos inocentes, legitimos ov ilegitimos. Na Teilia, desde o século XVI, a Roda do Santo Spirito in Saxia Roma ¢ de 26 dioceses ¢ abiadias cireun- sistema “josefino rocebia os pueri exposti d vizinhas. Nao sendo a Roda de Roma suficiente para ret foi autorizada a abertura de uma segunda Ruota, na petifer Viterbo, em 1737. ‘Toda crianga que entrava pela Roda de Milio recebia a tatuagem de uma dupla eruz, simbalo do Ospedale, que « estigmatizava para sempre. Por outro lado, « Roda estava calibrada de modo a nao rece: ber seniio bebés de, no maximo, poucos meses. m Florenga, as eriangas cram deixadas em uma espécie de pia, semelhante 3 batismal, colocada em uma pequena janela, na entrada do Ospedale Degli Innocenti. Em 1660, essa pia foi substituids por uma Roda instalada na parede lateral da entrada principal. Para impe- dir o depésito de criangas maiores, em 1699 foi acrescida uma grade de ferro, por onde apenas bebés de poucos meyes poderiam passa. Essa Roda operou durante dois séeulos, tendo sido fechada definitiva- mente em 1875, No final do século XVIII, praticamente todas as cidades italianss possuiam asilos de expostos com Roda: Brescia, Pavia, Napoles, enva, Palermo, Veneza, Siena, Bolonha, Pidua, Catania, Udine, além © Leste da Europa também conheceu o sistema de assist&ncta, por meio de hospitais de expostos com suas Rodas. Na Ruissia, antes de Pedro, o Grande (século XVIII) a assisténcia publica onganizada 3 crianga abandonada era quase inexistente. Nao havie instituigio para 2 protegio aos pobres, aos doentes, aos loucos, aos drfTos © aos 2. Os mosteiros eram praticamente 0 tinico expostos, fora da Igr reliigio para os necescitados, © czar Mikhail Fedorovieh (1613-1645) estabeleceu a Chancelaria da Igreja Ontodoxa euidar dos necessi pponsabilidades, pela primeira vez, a de tados, incluindo nessas 10s patriarcas, lideres cuidar das criangas abandonadas. A partir dat, vi 64 A Evora ciassicn religiosos © parocos construfram intimeros orfanates, hospitais € al bergarias, sob a auroridade do Patriarca e de sua Chancelaria de Caridad, antes do século XVIIL Pedro, 0 Grande, procusou responsabilizar a Igreja © as Munici- palidades pelos encargos com « assisténcia publica. Em 1714, 0 czar ordenou a abertura de hospitais para “as filhas da vergonha” ¢ pata evit que as mies matassem essas criangasilegitimas, No ano seguinte, ord c 0s hoxpitais que recebiam eriangas expostas fossem muniddos de * especiais (equivalentes is Rods) por onde os bebés deveriany ser depositados em segredo”. Todas essas medidas forum adotadas dda Réssia proposto por Pedro, «Gran terfsticas da assisténcia © das Rodas dos paises da Europa Ocidental 1) © anonimato obrigatério; 2) a abertura de casas organizadas, com amas-de-leite mereendrias © servas experientes; 3) « prea de ensinar offcios e artes mecinicas aos meninos; ¢ 4) a tomada do controle dessas casas pelo Estado, mesmo que est mosteiros ¢ 3s municipalidudes. Os estudlos mais recentes sobre a infancia abandanada da Europa tém demonstrado que niio apenas os filhos ile processo de ociden: vendo as carac as delegasse aos mos eram deixados nas Rodas de Expostos: uma parcela, por vezes signifieativa, dos expostos provinha de familias legftimas. No Hospital de Saint-Yves, em Rennes (Franca), entre 1730 e 1750, apenas 14% dos expostos entrou anos mente; dos restantes, 23% eram legitimos e 76%, ilegitimos. Em Saint Malo, Bretanha, na mesma épocs, apenas 1% dos expostos entrow! anonimamente, Dos demais, 31 cam legitimos ¢ 59%, ilegitimos. Em Paris, Lallemand estimou, para 1760, em 15% dos no hospital de expostas, No inicio do século XVIII, 13% di Madri cram legitimas; em meados desse séc 14 49%, tendo cafdo para 32%, em 1800 sses dados moscram o quanto € errinea a idéia adotada por tantos histotiadores de que toda crianga abandonada era ilegitima, Os dois termos nunca foram, necessariamente, sindnimos Corsini, em coro com outros autores, advoga a tese de que Jo, essa proporcio Berclowieh, Wladimir, Les hospices des Barder, J. (org) (991) Op. el, p16 Sherwood, Joan, Op. cit, p. 1 ants crowns en Russie (1763-1914), In A EuROR cLASsICN 65 abandono, particularmente de filhos legitimos, era um meio efieaz de controle do tumanho da familia, “Quando a pobreza nio permitia o cuidado de muitos filhos, era preferivel por a vida de alguns nas mos de um destino ignorudo, a deixé-los todos morrer de fome”?! As virias estatisticas registeadas por Roger Mols para cidades ale- mis, italianas ¢ belgas provam que @ ilegitimidade, insignificante no século XVII, aumenta de forma generalizada no decarrer do século XVIIL. Além disso, em todas as grandes cidades, e mesmo nas secunds- ras, as. proporg desse sécullo, Em Londres s de expostos aumentam espantosamente @ partir § expostos aumentaram ainda mais rapida mente. A fim de remediar essa trigica situagio, o filantropo ‘Thomas Coram, obreve, em 1739, autorizagio para abrir, sua custa, um asilo com capacidade para abrigar quatrocentas eriangas abandonadas. Trinta anos depois, este estabelecimento abrigava seis mil bebés. O aumento do fendmeno da exposi¢io de bebas na Europa, em fins do século XVIT1, determinou a participacgio mais efetiva do Estado [em sua protegio, bem como a busca de outras solugdes para enfrentar a nova realidade. Até que essas solugies fossem encontradas, os hospitais de expostos enfrentaram problema crucial da amamentagao dos bebés sen niimero insuficiente para atende: familia pelas amas-de-leite mercendtias, sempre em i demanda erescente, Amas-de: de assis (e: pilar do sistema iA. 208 EXPOStOS No sistema hospitalar de assisténcia as criangas abandonadas uma personagem fundamental era a da ama de eriago mercendria. Sem essa figura, nenhuma assisténcia a primeira infincia poderia ter sido organizada antes do século XX, a era de Pastcur ¢ da difusio da amamentagio artifical Todos os sistemas hospitalares curopeus de protegio & infin abandonada utilizaram as amas, que eram de duas categorias: as int nas — geralmente em pequeno niimero — que amamentavam as criangas € cuidavam delas desde que chegavam até o momento em que eram distribuidas para as amas-de-leite de fora on, entio, cuid, das ct gas internas que voltavam das casas das amas-de-leie, * Corsini, Calo A. Era piovuto dal ciclo © la tera, lo avevn raceotn il destino del Tre Bard, J.P (ed) Op. ei, p85 66 A Boron c.sssien depois de desmamadas: ¢ as amas de fora — bastante numerosas — que De modo geral, o salirio das amas-de-leite sempre foi absol te itris6rio, As de amas-de-leite tinham um sakirio um pouco maior que fo das amas-seeas. Em quase toda parte, as amas deixavam de receber qualquer estipéndio a partir do momento em que a erianga atingia certa idade, yeralmente sete anos, Presumia-se que, ap6s essa idade, a erianga jd ilo dependeria totalmente da familia da-ama, uma ver que poderia iniciar-se em um trabalho, na qualidade de aprendiz (recebendo casa € comida do mestre do oficio, mas sem direito a remuneragio), Em geral, as amas eram provenientes das categorias mais baixas, mais carentes © mais ignorantes da sociedade. Nao possuiam princi ios de hi sobre alimentagio infantil ou cuidados com © bebé. A maioria erx composta de camponesas casadas © que viviam, muitas vezes, longe dat sede da Roda dos Expostos. Elas mesmas se apres ber um bebé ou, entio, este Ihes ent enviado em cass, por condutores inhavam por etianga transportada, Nesse caso, os be! m chegar em condigdes muiso precirias, ¢ muitos deles nem sequer chegavam vives. Maurice Garden nos relata as horriveis condigdes em que os bebés da regi parteira incumbiu-se de transportar seis criangas numa pequena carroga ,20 cochilar durante a vi cesmagudo pelas rodas; um meneur, encartegado de transportar sete cém-nascidos, perdeu um deles pelo eaminho, sem perceber 0 que ‘ocorrera; uma velha senhors, encarregada de és recém-nascidos, decla rava niio saber a quem deveria entregé-los... Os casos narrados so assombrasos e denotam a pouca considleragio que os expostos mereciam de todos ye nem orientagas entavam nos haspitais de expostos pana rece~ fio de Lito eram transportados por esses condutores: uma certa ern, nfo viu que um dos bebés caira e morrera Os bebés que sobreviviam & prova da viagem (morriam entre 5% € 15%, conforme a esta da: sob 0s cuidados das amas, a mortalidade era catastrdfica se que 90% morriam entre a viagem ¢ os primeiros 1 que se seguiam & siia admissio nos hospitais" Médicos © moralistas do século XVII acusivam condutores ‘0 do ano) nio tinham sua trigica sina termin: Estima- 's meses de vida Garden, M. 30 es domnaie ar NUTHe sie, Pati: Sexes 19 Leshan, F. Lacie oningle so PAncion Régis Pais A Colin, 1973, p. 1589. A Boron classics 67 amas de todos os pecados: gandneia, -preguiga, ignor’ | u preconcei- tos, vicios, doengas, falta de h As amay-de-leite amamentavam, ao mesmo tempo, © proprio filho © © exposto, com prejuiizo para ambos, Muitas haviam perdido seu bebé, morto ao nascer ou com poucos meses, €, por isso, apresent- para poder ganhar alguns poucos erocados. Na ‘eram raros os casos de mies ou abandonavam seu filho na Roda para, jervenariamente. Tsso, na- ‘em seguida, ir buscé-lo, amamentando-o turalmente, com a conivéncia dos responsiveis ou de empregados na propria Roda, As amas deviam trazer, periodicamente, 0s bebés p instituigde, Em muitos casos, a telaglo das amas com a Casa se restringia quase exclusivamente a momento dessas visitas que, nor ara controle da malmente, coineidia com a data de receberem seu estipéndio. Fugas de criangas das familias das amas, maus-tratos, mé nutri’ da administrag 4o de trabalhos muito pesados chegavam ao conhecimento 10 das casas dos expostos por meio de dentineias, dando uma idéia da situacIo de extrema degradagio em que os expostas ram obrigados a viver* Elisabeth Badinter, em seu belo € pol a indife- renga — sendo a frieza — ¢ 0 desinteresse pelos bebés recém-nasci- dos em todas as classes socinis. O que dizer, entio, das arinides prevalecentes sobre os hebés quie haviam sido expostos" | Houve sempre poueca preoeupacio na selecio das amaste-tet para os expostes. Tal cuidado s6 comegou a su 6 iluminismo, partir de meados do século XVIIL Diunte da constatagio das altfssimas taxas de mortalidade das criancas expostas nas casas das amas, alguns médieos chegaram a propor que os beb sem dos hospitais de expostos, onde deveriam reecber alimentagio artificial. Diferentes tentativas de feigoamento, ¢ uté de mudanga do sistema de amas-de-leite merceni rias, foram feitas em virios hospitais de expostos, « partir de meados do século XVII No entanto, o sistema permaneceu o mesino até fins Angeli, Aweora. alice esposts posers it, Imola nc secli NVI e XIN. ln: Da Matin, G. Op. ety p18 Bainter, FE. llamar en plas. Histie de Femour matern. XVteXXe sie, Pacis 68 A Evora cLissica Mortalidade infantil dos expostos das rodas A Demografia Historica vem demostrando as dimensdes trigicas da mortalidade dos expostos que forum entregues aos cuidados das Rodas ¢ dos hospitais de expostos da Europa, durante o Antigo Regime. (Os hospitais de expostos de toda a Europa tornaram-se verdadeiros matadouros de eriangus, Deixar um bel ma dessas instituigdes — eeiudas para proteger a crianga — cquivalia a uma sentenga de morte. As circunstineias do abandono dessas eriangas, seu transporte até 0 hospital e deste até a casa das amas, as condigées de vida day mas-de-leite e a instituigio propriamente dita contribuiram para esse verdadeito genocidio da infancia desvalida No inicio do século XVIIT, de cada 1.000 bebés expostos nos hospitais de Rndo, 580 morriam antes de completar um ano; no de Caen, 342; € no de Paris, 600. No f ulo, essas propargoes elevaram-se para 946, 724 e 841, respectivamente” Embora a mortalidade dos expostos franceses fosse elevada nos primeiros dias apds a exposicio, em virtude das trigicas vondigdes em que eram transportados em tio cenra idade, a morte durante a fase de aleitamento, em casas das nutrizes, foi igualmente catastrfica, Bi Rui, Barder, em suas refinadas pesquisas, calcula que apenas 17% dos bebés distribuidos em casas de amas normandas sobreviveram em sext quarto aniversiri. No Hospital de Lito a momtalidade de bebi aumentou muito no decorrer do século XVI, & medid de expostos também crescia, De 1771 a 1773, entre 6 criangas enviadas para as amas morreram antes de completar 0 peri do de aleitamento. Na regiio de Ligge, na Belgica, um inquérito instaurado em 1770 alarmon as autoridades: das 21.000 eriangas entre gucs a amas, 15.419 morzeram antes de completar quatro anos (73%) No iiltimo tetgo do século XVILL, 84% dos expostos do hospital de Pacis, 50% do de Marselha morseram antes de um ano de vida, segundo os dados reunidos por Badinter®, No hospicio de expostos de Paris, até pal do s centregues Bardet, J.P. Lar mort des enfents tes unde on dens ates. Moniseil, USSD, 1992. La Norte es Rafts dans fe Passe". p. 3. mimic. Comunieagto Meyer, Jean, Op. ct Bainter, E. Op. A BUROPS cLASSICA 69 1784, 4 mortalidade foi estimada em 857 por 1.000. Na segunda metade do século XVIII a mortalidade dos expostos de eatorae par quias de Londres foi estimada em 880 por 1.000, A mortalidade na Inclusa de San José de Valladolid, em meados do sécutlo XVILL, foi de 875 eriangas (de zero a sete anos) pot 1.000, Nes 113 anos da Casa Cuna de Ubeda (Granada), estudades por Tari Jade das expostos que nels entraram foi de 86,1%", amortali- A mortalidade infantil era ainda maior no periodo de permanéncia ddas criangas em casa das amas-de-leite mercensrias, Os bebés trans- formavam-se em vitimas da sua ganineis e, também, da ignoriineia © da sua negligé neia, De modo x —em que pese casos de amas cuidado suse afetivas para com os pequenos filhos-d ém — as amas via 0s bebés morrer com indiferenga, pois logo eles paderiam ser substitu ddos por outros, Como te: fio as elevadas taxas de mortalidade das criangas, parti culurmente daquelas sob a protegio a assisténcia day instituigGes para expostos, surge em toda a Europa, uma série de tratados médi cos, sobre os cuidados com as criangas, as doencas infantis, 0 aleita mento ndo materno © a educucio fisica, dentre outros temas. que passaram a preocupar a filantropia higiénica e ilustrada, Comegou, assim, uma eruzada contra a mortalidade infantil. Os alvos privilegiados da critica que se inicio eram: os sistemas dos hospicios de menores abandonados; a eriag3o de hebés por ama leite mercenstias; € 0 aleitamento “artificial” das eriangas ricas”, © combate 2 mortalidade infantil representa primeiro campo de intervengio da filantropia em favor da infaneia desvalida, Nessa pri- meita fase (fins do sécufo XVIIT ¢, particularmente, no séeulo XIX) a filantropia — muitas vezes isyociada a caridade — pretende assumir uma ago social. Ela tem por finalidade maior engajar agdes culturais, Pedagégicas ¢ motalizadoras, além de experimentar ¢ difundir inova goes ¢, ainda, financiar campanhas de opinigo, Em una palavea filantropia se apresentava como “cientifica’ Essa luta se esboga no chamado “Século das Luzes”, Aos poucos, a sociedade renuncia 3 visio essencialmente moral ¢ religiosa da ctian- ga. Salvar a alma foi — © continuava sendo — o dever principal dos ba, Adela. Marginacém, pubic» mental scaler of Anie cepisitas de Cleda (1605-1778). Graal: Universidad de Gran, 1994, p. 249. © Domzelot ep i dae famiias. 2 08, Rio de Jane: Gra, 1986, ps 13 70 A Evrors csi pais © das autoridades civis ¢ religiosas. No entant idgias populacionistas ¢ humanistas, a partir do: salvar os corpos tomava-se uma preocupagio mais cliramente express. Essa preocupagio se trad em toda a Europa nos diversos “p: como a reorganizagao dos servigas dos expostos, a preparagtio das partei ras ¢ até experimentagbes audazes (como o aleitamento artificial © a inoculagio da variola), Mas & no séeulo XIX que se inicia uma politica de “uta contra a mortalidade infantil”, cuja batalha nasee como uma solu 0 para a questo social 2CULO DA CRIAN ABANDONADA NA EUROPA, A FILANTROPIA DO OITO! TOS Ex: a fase das fundagées piedosas e caritativas da “4 Idade Classica e a atual fase do Estado Previdéncia, ou do Estado do Bem-Estar Social, a fase da filantropia, de que trataremos neste capitulo, situa-se nos séculos XVIII, XIX e parte do XX. Nessa fase, emergem as primeiras politicas piiblicas sociais. Buscava-se ade- quar essas politicas ao idedrio do progresso, da cigncia, da medicina do liberalismo triunfante. higiénica, do interesse da ni A emergéneia da filantropia século day idéiay secularizantes € eriticas a dade produtiva ¢ utilitarista, Como cesul- conti acm substituir a tre os séculos XVI e XIX, 0 processo histérico da as social evoluiu dos modelos de caridade privada para o da politica secula- 72 | © skcv'L.0 PA CRIANES AMANDONADA NA BuRors rizadora, que confiava essa fungio uos poderes priblicos, eonforme bem. sintetiza Tarif, Paralelamente, a partir de 1760, surgiram teorias que enfatizavam as vantagens do aprendizado profissional para as eriangas abandona- das. O fisiocratismo propugnava que elas deviam ser preparadas para se tomarem bons agricultores. Na Franga, essas teorias chegaram a sensibilizar as autoridades. Em 1769, o Conselho de Estado oferecia uma pensiio — de 122 40 libras — a todo chefe de familia rural que criasse wandonada As reorias ilustradas julgavars ainda que os expostes deveriam tomnar-se bons soldacos (substiutos ideais para os filhos de Familia sorteados para 0 servigo cla milicia), A patria os nutrtia, pois os expostos pertencem a ela, io 05 filhos do Estado; em compensagso, esses filhos da patria deveriam prestar servigos a el, serem “iteisa sie 3 na © utiltarismo do século XVIII vé com horror a alta mortalidade dos expostos: slo cidadios iteis que a patria nto deveria perder. Eles poderiam setvir nos exércitos ott trabalhar em servigos pesados: ou poderiam ser embareados part as colonias que a Europa conquistara na América, na Africa, na Asia (especialmente para as regides de vida mais dificil © indspiea). Os expostos poderiam também ajudar a po- ‘oar muitas desSas CotOnias, com 6timos resultados para a nagio domi- nante. Aos olhos dos contemporineos os expostos eram devedores da sociedade, marcados pela origem de scu nascimento, Por outro lado, 0 abandono de inocentes cm instituigdes criadus para avolhé-los acabou por fazer parte dos costumes da Europa, Jean- Jacques Rousseau declarou, enfaticamente, que escolheu, delib damente € sem 0 menor esertipulo, “gaillarment, sans le moindre scrupule”, a solugio de abandonar seus cinco fillhos, tides com sua concubina Thérése. Foi ele quiem a convenceu da utilidade da institui- ‘930 de caridade para crié-los, como ele proprio afirmou em suas Conf 40%, E Rousseau concluiu: “Pensando bem, escothi para meus filhos 0 melhor, ou 0 que sereditava ser o melhor. Eu gostatia de ter sido criado e alimentado como eles foram”, Rousseau nunca soube 0 destino de seus filhos! A nova teoria que passou a dominar as priticas de assistencialismo € servigos sociais no século XVIT foi a do utilirarismo © do higienis mmo, Em geral, a assisténcia esteve diretamente conectada com im: "Rousseau, J: Confsions. Paris: Garnier, 980, 9. 403 © 8 CO SeCULO Px CRIANEA ABANDONADA NAL ROPA portantes resolugées dos tiltimos dis do Antigo Regime. De um lado. estavam os que se identificavam com as priticas tradicionais do. pas- sudo; de outro, os que olhavam para 0 futuro e se associavam as id do Tuminismo. Essas duas vertentes comungavam o sentido forte de dever e de dedicagio aos principios da caridade, mas as atitudes adoradas em relagio aos expastas mostravam claramente as dife sas entre elas. Para os tradicionais, havia uma Gbvia conexdo entre familia patria cal c Estado paternalista. A fungi dos hospitais de expostos seria a de garantir a honra da mie e a salvagio da alma da erianga. © hospfeio no era um hospital, mas sim um lugar de passagem, para onde um filho indesejado poderia ser levado e, depois de batizado, enviado para casa de uma ama-de-leite. Se a crianga mortesse, pelo menos mor- ria hatizada € nio deixaria attis de sia culpa por um infancicidio, Mas os que pensavam de uma nova forma situavam-se em uma fase em que o assistencialismo seria utilitarista e, 0 mesmo tempo, “cienti Nessu nova fase, € sob essa nova étiea, © exposto de instrumento de progresso, um agente a servigo do bem do Estado. Isso significava colocar a assisténcia ao exposto primeiramente como tum problema material, © nio espiritual, o que levou a novos preceitos sobre 0 que 0 exposto deveria fazer pelo Estado — e niio © contririo, ia ser incorporado ao amplo quadro do. progresso O exposto de social e eeondmico do Estado, Para muitos homens do Hluminismo, o exposto deveria ser 0 abjeto por exceléneia para ilustrar a superioridade das novas teorias!. Daf a utilizar essus criangas como cobaias de novos experimentos médicos, por exemplo, foi um passo (como ocorreu com o experimento da inocul dda variola. Nessa perspectiva, 0 patemalismo tradicional foi substituido por um nove paternalismo, de cunho econdmico. Sob o manto da razio do humanismo, o assistencialismo procurou contribuir para uma a social, mas que se mostrou restrita, fragmentada e insuficiente. O termo “filantropia” & ambiguo. Como designagio genériea, qua lifiea © conjunta das obras sociais, caritativas © humanitirias de ini- ciativa privada, quer sejam confessionais, ou nto, No sentido especi- fico, so chamadas filantrépicas — em oposiglo as fundagdes reli Sherwood, J. Op. cit, p. 1001 | qiténcia da grag 74 Q SECULO DA CRIANCS aRANDONADA NA EUROPS Fnalidade miso A primeira obra de beneficéncia livre, sem li; cen esprcony ol fundada ers Paria ia UWB: a0 emia prcsamente Soci Philaheopique de Paris. Como "benefcenca O temo “filanopi eta um neogismo francés no inti do seul XVIII tendo silo Fenelon vprimett a empresa em 1712, em seus Did toe Montes A Floss das Lexy" st difereneaya, nitalivent, cried bef feo. segunda “Cenupa dan sect” concn estabelecer diferengas (A cafidadd no era mis corsiderada una conse Givin, mas una nlnapdo da pps neniera haa tna viade orginal: Os morals da sefunda meede dosceae SVT fli, cmoage 6 ln univer dos tates de mor co a Toglnera ene do passed 8 religiosas nem t0 politico, social e econdmi- ilo XVI, com Locke © Newton, espe- meados do século XVII, a supremacia intelectual havia 1a Franga. A aceitagao do supremo valor social da inteli- géncia — e, por conseguinte, a crenga na grande utilidade da razio para 0 progresso social — foi essencial para o pensamento ea agio do Huminismo. Na visio de grandes nomes do lluminismo, o uso da rio redunda ria em maior beneticio part 4 humanidade. “Inspirados na confianga no aperfeicoamento do homem por meio da Edueagio das institul- ges livres, 08 fildsofos franceses Diderot, D'Alembert, Veltaite © Rousseau concentraram sua tengo na reforma das institwigBes © das condigées sociais™. Em fins do século XVIII, difundis-se um vivo interesse pelos direitos e pela situacio do ser humano, Formulava-se a concepeio da necessidade de uma maior intervengio do Estado em questies de vide pablica © de asistencia social aos pobres € aos necessitados. A classe média lutava por uma nova ética, que se caracterizava por Duprst, Catherine (ed) Philasitopis o poitigaes sociales on Knrope (AVIMeNINe sides. Vacs: Antheopas, 198, p. VV Rosen, G. Op. cit, p11 SECLLO PY ERIANEA ABANDONADS Na EvROPA 75 dus facetas dominantes: a busca obstinada da ordem, da eficie da disciplina social; © a preocupagio com a condi¢lo humana. FE contexto que se insereve o movimento do bem-estar da eriam Desse movimento emergiu uma teoria de acto social relativa aos problemas da satide ¢ do bem-estar dos pobres no apenas por sent mento de euridade, mas com a intengio de controlar essas pessoas de um modo racional e inteligente’ Entre os utilitaristas, a felicidade que « alma encontraria 20 euidar dos infelizes — e, por isso, susciter de volta a estima, a atengio € & reconhecimento — estaria muito proxima da especulaeJo interessei- ra, Exerce-se a beneficéncia para exercer um ato de poder © assim, gozar da gratidaa do outro, a No século XIX,(filancropid ¢ caridade compartilham © mesmo obje~ civo: figuras relag8és pessoas com as familias populares, tendo como fim explicite © ennuole social. Mas na realidade, pouca coisa fieram os filancropistas Ue primeira hora. A filantropia — que se pretendia dora, “cientifca’,conselheira — foi pouco prt ca, Até meados do séeulo XIX, o caricer singular da filanropia foi a | investigagdo ideol6gica, que buseava formas de expressto simbdlic Desse modo, a filantepia é filha do Tluminismo, do Higienismo ¢ dds Revolugio Industral {liberal e urbana). Fla quetia impedir 0 afon- 4 damento da ordem social, do Estado, da civilizagio. E, iniclalment Sous objetivos foram a supressio da pobreza © a melhoria da siwuagio doa operdfiae ¢ de sous filhos, a partic da adogio de uma estrinégis especulativa, pesquis pedagégica © educativa Um fator importante que contribuiu para essas mudangas foi o noxivel e ripido aumento da populagio européia, a partir de meados, do século XVIII. Esse creseimento resultou, principalmente, de uma taxa alta de nascimentos associada a uma taxa de mortalidade decres- cente, Tal dindmica demogeifica implicou o aumento do nimero de criangas. O sécuilo XIX foi, por isso, 0 século da erianga na Europa. Da ceianga legitima, da ilegitima e da abandonada (© ponto fraco dessa dindmica era a mortalidade infantil espantoss. mente elevada, sobretudo nas categorias mais pobres da sociedude, Quando se wmou consciéneia do grande despesdicio de vidas hums nas que estavit ocorrendo, iniciaram-se os esforgos de um vasto movi- caressa sangria, Em alguns bairros pobres de Londres ‘mento para 5 dem, idem, p. 116 76 O-S8CUL0 D8 CRIANGA ABANDONADA NA EURO mortalidade de eriangas eh 90% dos nascimencos, Voma-se consi wou a representar, em 1750, cerca de SOS a cia da importincia da populagio para a Nagio. O ser humano torna-se win produto precioso para o Estado, Por conse ajiéncia, toda perda humana passa a ser consiterada uma perda para Estado. Chamousset, em sua Mémoire politique sur les enfws (1750), mostrava que seria indeil buscar provis pura demonstar 0 quanto a preservagio das eriangas ert importante para o Estado. O filantropo punte ver que as despesis consideriveis que os hospitis sto obrigados a Estado... A muioria perece antes de cheg: ; ard idade em que podem ser de alguma utilidade... Nem um décimo chega a idade dos vinte anos... E um pequeno nimero aprende uum oficio; o restante ser mendligo ¢ vagabundo,.." do hospital para Semelhante despertar da conseiéneia piibliea ocorren em virus out tas partes di Buropa. Exigiam-se medidas hi Gientificas para 0 cuidado, a preservagio e o bem-estar dus eriangas, O impulso diditico do Muminismo se coneretizou por meio do esforgo para esclarecer o povo em matéria de higiene e de satide piblica, tudo fundado na erenga na razio € no progresso infinito do ser humano. Muitos livtos, jornais, guiay © folhetos foram escritos paca eduear 0 povo nas exigéncias du higicne e da satide. A reedueagio, por sua vez, foi um dos dominios e programas por exceléneia da filantro- pia. As colonias agricolas para eriangas abandonadas, do tipo Mettray francés, foram modelos tipicos da filantropia moderna em toda a uuropa, chegando até ao Brasil Regenerar jovens delingiientes ¢ eriangas ubandonadas, por meio do trabalho © da reclusio, foi a forma escolhida pelas filantropias laicas, protestantes catGlicas, que se associaram estrategicamente em fins do século passado. A pratica filantrépica funci das leis de prote¢io 3 infancia votudas em tod: do século passado, A partir do momento em que 0 abandono de criangas tomou-se um fendmeno de massa na Europa, os niimeros de enjeitados nas Rodas & hospitais de expostos passaram a ser assombrosos, Em Paris, por exemplo, entre 1700 © 1741, cerca de 1.700 eriangas eram abandona- nou como motor da génese ropa, a partir do inicio Apuul adineer E. Op, it, p. 1489, 0 cL D4 cRIANES ABANDONADA NA EvROPN 7 das a cada ano. De 1760 até a Revoltgio Francesa, essa média anual subi para mais de 5 mil ou 6 mil bebés. Em Limoges, de 1740 a 1780. © niimero médio annal de exposiglo de recém-nascidos pussou de 14635 para 463.6: na cidade de Caen, no mesmo periodo, esse miimero multiplicou-se por seis: aumentou de 42,3 para 254,97. Pars a Franga inteira, um niimero seis vezes maior de abandonos foi rexistrado entre 1740 © 1829. Na maioria das cidades italianas — bem como em pafses como Ritssia, Austria, Espanha, Portugal, Polonia © Bélgica — 0 ntimero de expostos aumentott nessa mesma ordem de grandeza’ Desde 1842, 0 ntimero de expostos dos hospitais de Milo nunca foi inferior a 3 mil, chegando a 5 mil entre 1861 ¢ 1867. Esse exemplo pode ser estendido a toda Itélia, Na eidade de Brescia, a média anual foi de 434 exposigdes, entre 1600-1649, tendo eaido para 341 na segunda metade do século XVIL. A partir de 1750, 08 nvimeros nio pararam de subir, atingindo 346, em fins desse século, para explodir slo seguinte. Eatre 1800-1830, a média anual de abandonados nnaquela cidade italiana elevou-se para 4.665. No periodo de 1830 1859, o nximero subiu para 5.840, Na década de 1860-69, 0 numero de exposigdes em Milo foi assombroso: 8403!” Os ntimeros fam por mesmos. Em 1830, no Ospedale degli Innocenti, de Florenga, entre ram 43% de todas as criangas batizadas na cidade", Em meados do século KIX, 0 nimero de expostos nos hospitais italianos ultrapassava 35 mil por ano, Nessa época a Itilia tinha mais de 1.200 instituigdes Ue protegio toral aos expostos" Na Franga, verea de 32 mil eriangas foram expostas, por ano, na década de 1830. Na Espanha e em Portugal, nessa mesma época, esse rngimero gieou em tomo de 15 mil, por ano. Em 1887, mais de 27 mil bebés foram deixados nos hospitais russos de Sio Petersburgo © de Moscou (© aumento do abandono de bebés na Europa no século XIX se deveu, em parte, ao aumento da ilegitimidade. Fm 1830, por exem: Huneeke, Volker. Les enfants ourés: contexte européen et eas milanais (XVI XIXe sides). Recwed Histoire Madore Contemparaine. SXXIL onan, 1985, p. 13 2nd) Onger,§. Op. ct, pL. Hhinecke, ¥: Op. ct, 6 Kester, David. Savified Jor Honor. tala Infant Abundl Repraducice Control. Boston: Beacon Press, 183, p. 81-2 sment aod the Polis of Iden, idem, p. 6, 78 O SECULO DA CRIANGS amANDONADA NA EUROPS plo, 45% de todos os ilegitimos nascidos em Paris € no Departamento do Seine foram abandonados no Hopital des Enfants-Trouvés, No entanto, 0 abandono ¢ a ilegitimidade comegam a receber 0 peso da censura da sociedade, que passa a condenar moralmente a ie solteira e o fruto de seus pecados — 0s filhos ilegitimos —, fonte maior da existéneia de criangas abandonadas. Na opinito de André Burguigre © de Frangois Lebrun, o grande aumento de nimero de expos vagdes do abandono. Ao lado da miséria, que explica muitos dos abandonos, uma nova ¢ mais complexa motivagio comegava a aparecer: pais de meios mo: destos — mas também os de categorias mais elevadas, como burgue- ‘ios —, temporariamente em dificuldades, nio podlendo cuidar como querian de um filho vindo apés muitos outros, simplesmente 0 abandonavam em um hospital de expostos, com a intengao de ir buscé-lo posteriormente. Esses pais imaginavam que os pensionistas dos hospitais de expostos eram bem tratados, recebiam, gratuitamente cuidados e educa 10 poderiam proporcionar. O curioso é que tal erenga, que nao correspondia 3 realidade, foi contem- porinea, na Franga, das novas atitudes em relaydo a erianga e também 3 difusto da concraceps Mas nio € somente em razio das quantidades, mas igualmente do modo de abandono que ocorre uma ruptura no sGoulo XVIIL Come mostra Tunecke, em Paris, até fins do século XVI e inicio do XVIL, a maioria dos abandonados era exposta (enjams-trowees) nas ras, nas igrejas, nos conventos € nus portas de casas € de hospitais de expos. tos. Essa mancira de se desembaragar dos filhos desaparecen, de modo geral, durante 0 século XVIII. Um novo uso se impos: consistia em mandar — por uma pessoa interposta, geralmente a parteira — os filhos diretamente 20 hospicio dos expostos. E nesse sécuilo, por mais particularmente no século XIX, eal niimero aumentou considera- velmente, em razio da multiplicagio das Rodas de E garantiam o anonimato do expasitor. Brefotrofios com Rodas foram abertos em toda parte, contando-se cerea de 356, em 1750, com mais de 460 mil criangas em toda a Europs, segundo ealeulos de Hunevke. O ntimeto de Rodas de Expos- ss de recém-nascidos corresponde a uma evolugio das moti- Jin queeles postos, que "© unui, A. 8 Lebrun, F. Le pete, le prince et la famille, fr Bungie, Pet ll (cas). ise dete fami, Pats: 8, Calin, 19N6, KL, p. 93-184 (p, 148). O sécti.0 Na ERLANG AMANDONADA NA EvKOMA 79) tos ma Europa, em meados do século passado, certamente deveria ter multiplicado por mais de uma dezena 0 niimero das Rodas existentes em 1750. No inicio do séeulo XIX, bebés exam abandonados em grande ntimera na Franga, na Bélgica ¢ em Portugal e, mais ainda, na Espanha, na Irlanda, na Poldnia, na Russia e nas provincias austriacas, todos paises catélicos. Nos paises protestantes, ao contririo, rar wdonadas. Pela arimte desenvolvida desde responsivel por seus atos, © a paterni- mente as eriangas eram abs a Reforma, cada individuo e dade deveria ser assmida pelas pais, em quaisquer eicunstancias Foi no periodo napolednivo que x obrigatoriedade de instalaga0 © funcionamento de Rodas de Expostos foi deererada, nao apenas na Franga, mas em todo 0 Império, O decreta de 1811, em seu artigo 3. cestipitlava, com efeito, que “em cada hospicio destinado a receber as criangas ahandonadas deve haver um Roda onde possam ser deixados fs enjeitados”. E regulamentava sua forma: “A Roda deve yer uma ccaixa de madeira cilindrica © cOneava, de aproximadamente 58 em de ditmetro, colocada numa janela do muro do hospital, € servird como berco roratirio. Uma metade do bergo sets exposta part o exterior” Com o decrewo de Nepoleio, de 1811, foram criadas vito Rodas na Bélgica, Em 1842 existiam ainda cinco dessas Rodas (em Bruxelas, em Lovaina, em Mons, em Antuérpia e em Gand). As Rodas de Namur, Naliies & “Toutnal haviaen sidp fochadas. Whrorveu-se que neshum inconveniente sobreveio com o fechamento delas: nem mesmo 0 at mento do nimero de infanticidios, como se temia. O argument mais forte dos que combatiam o sistema das Rodas bascava-se, efetivamente, naaltssima mortalidade das criangas nessas insttuigdes. Em Paris, a Roda do Hospital des Enfants-Tzouvés s6 foi instalada cem 1827, para ser fechada em 1862 Na Riissia de Catarina TI, houve mudangas radieais na assisténcia inffincia abandonada, ‘Tudo partiv da iniciativa do alto funcionsrio Iva Ivanovich Belchoi que apresenton dimperatriz um Plano Geral para Casa Imperial de Edueagio de Moseou, destinada & assisténeia aos peq abandonados. Nesse plano, Belehoi recomendava a construgio de um grande hospicio de expostos em Moscou, que foi de fato eonstruido por ‘ordem da czarina, ¢ aberto solenemente em 21/4/1764" © Puchs, R. Adowdane Child Founding and Child Welter tw 1908 Conary Frawe: Alban: State Universiey of New York Press, 84, p. 21 € 23 ™ erclowiech, Wladimir. Op cit, p. 161 80 O séc1L0 Dy cRIANCA ABANDONANA NA EtiROM A Casa de Expostos de Moscou servia para mostrar uma imagem da imperatiiz benfeitors, de uma soberana esclarecida, que seguia 2 tisea © conselhos de Diderot, no deminio da edueagzo. O Hospicio de Moseou foi plancjado para receler quinkentas eriangas menores de dez meses Mas, desde sua abertura, o niimero de entradis exeedeu —e de longe — sua capacidade: em 1767 entraram 1.089 criangas: em 1796 esse elevour-se para 1.921, ¢ os ntimeros nunca mais puraram de erescer. Ni dificil imaginar a extrema precariedade de arendimento que essa mulicio de bebés deveria reeeber dentro dessa macroinstituigio, onde a mortalida de infantil sempre foi assombross Novo edificio, similar ao dle Moseon, foi eonstruido em Sao Peters- burgo, em 1770, tendo reeebido 829 criangus abandonadas em 1796. No século XIX massificou-se 9 abandono de bebés nas duas casas mussas, Em So Petersburgo, na déeada de 1860, entraram em média 7 mil eriangas por ano; em 1840 esse atiniero aumentou bastante, che- gando a 9.593; e, em 1908, foram revebidos 10.463 bebes! Da mesma forma, na Casa de Moscou a exposicio de bebés chegou a ntimeros estarrecedores: 16.466, em 1890, caindo no ano seguinte para 13.771, € pars 9,600, em 1895, No final do séeulo XIX havia cerca de 30 mil criangas colocadas em casas de 25 mil familias de amas-de-leite. Em Sio Perersburgo, cerca de 20 mil familias de amas cuidavam dos pequenos abancanados" © aumento vertiginoso do fendmeno do aandono de eriangas na Europa gerou sérios problemas para as administragdes dos hospitais ¢ para as Rodas de abrigo de expostos. Sem falar dos impasses financei- fos para a manutengio das insttuigies das eriangas, um dos maiores problemas com que se deffontaram os responsiveis pelos expostos abrigados foi a questto do leite on da amamentagio de tantos bebés Os estabelecimentos de expostos passaram a necessitar desesperada mente de amas-de-leite, Para contornar esse problema buscaram-se altemativas convenientes como a amamentagio artificial, com leite de animus, que foi estudada e discutida nos meios médicos, chegando a ser ensaiada ‘Ao mesmo tempo, ws autoridudes responsiveis pelos expostos dis- cctiam politieas para diminuir 0 abandono de criangas na Europa. Uma das mais conseqiientes e inovadoras foi a das alocagdes familiares — ou de subsidios as mies pobres — como formula para impedir que dem, idem, p. 6. O SecbLO Da ERLANG aRANDONADA NA EUROPA 81 estas abandonassem seus filhos, Na Fringa, desde 1837, havi regula: de eriangas e eriando progra- ‘mentos restringindo a pritica do abandon mas de assisténcia as mes soleeiras. O objetivo desses programas era ir substituindo o recolhimento hospitalar dos enjeitados, com seus incon- venientes, por um sistema de assisténcia domiciliar para as mies. Isso significava também substituiro sistema da Rock, As normas do higicnisma propugnavam que as eriangas institucio. nalizadas deveriam estar bem nutridas e bem vestidas. A filantropia preocupava-se com a corpo. Os responsiveis pelo hospital de expos- tos de Londres, criado por Coram, ¢ aberto em 1763, orgulhavam-se cem afirmar que seus hebés no passavam frio e tinham suas roupas ¢ fraldas sempre trocadas, para manté-los limpos e secos": A partir de 1850, na Europa, multiplicaram-se as sociedades prote- toras da infincia, que tratavam de levar as fimilias das camadas mais populares modernos métodos de criacdo e de educagio das eriancas. Houve também um esforco generalizado em toda a Europa, desde meados do século XVIII, no sentido de criar programas de capacita- lo. profissional para os expostos. As instituigdes introduziram 0 ensino profissionalizante para meninos (oficinas de ferteiro, marce- neito, sapateiro, etc.) © para meninas (ensino de corte € costura, de bordados, de artesanato de flores, de papel, de rendas), juntamente Além dessas inovagées, 0 higienismo deseavolven programas para diminuir a mortalidade infantil dos expostos: foram feitas novas exi icias para a admissio de amas-de-leite nos hospitais de abandona- dos; as condigdes do parto sofreram intervenciio; as mies passaram a ser preparadas na pritica de alimentagio dos bebés; e arganizarum-se campanhas em favor do aleitamento materno, da higiene materno- infantil, da vacinagio dos bebés contra a variola, da assisténcia méd 2 a08 expostos, de cuidados contra a sifilis e a tuberculose, ete Entre 1860 ¢ 1840, as pesquisas elinicas de fisiologia e de quimica contribuiram para um formidével avango, propiciando descobertas b como us de Luis Pasteur (1822-1895), sobre a fermenta- 10 € no terreno virgem da microbiologia. No final do séeulo, algumas ies pertinentes as doengas contagiosas tinham sido respon- cia de organismos eausais das qu didas, a partir da demonstragio da exis McClure, Ruth, Covom's Gilden. The London Founding enpta inthe 18th Century New Haven: Yale University Press, 1981, p. 190, 194, 195, O SEI. Py ERINNES ABANDON ADA NA uROMA, especificos e dos modas die prevenir essas doeagas. Foi entio possivel cviar métodos revolucionstios sobre nuteigao infantil Profilasia, prevengio, assepsia e esterilizagio sto palavraschave de um periodo de mudngas ripidas, eanto no plano do eonhecimento da origem das moléstias infecciosas como no do desenvolvimento de méto- dos que possibilitavam evitar essas doengas {A década de 1880 representa para virios paises europeus uma virada no-dominio da nutricio infandl, A fervedura do leite ainda era 0 em 188 io tornou-se regra, em 1892, do silenciosa demonstrou que, antes de ministrar 0 leite de animais 8 crianga, era preciso matar as sens germes patogénicos Gragas ao leite esterilizado, 0 aleitamento atificial passou rapida- mente para 0 dominio das pes«juisas médieas, sendo ineluido, a partir de 1890, em intimerns trataclos de Medicina e provocando um processo de aperfeigoamento das mamadeiras e de sux industtializagto. Inicialmen- te fabricadas em pequenos potes de ferro brane, passiram a ser de estanho (com alta porcentagem de chumbo, © com riseo, portanto, de envenenamento dos bebés, por saturnismo). A partir da segunda meta- de do século XIX, a fabrieagio de mamadeiras tomou earster industrial e clas passaram a’ser feitus de vidro. Com a vuleanizagio da borracha, seus bicos passarum a ser confeccionados como chupetas de borracha, A discussio entre os médicos sobee a teoria dos yermes patogeni- cos (1880) ¢ as pesquisas quimicas ¢ da microbiologia levaram a higiene das mamadeiras. Descoberta a presenga de bactérias, de vik brides, de germes de toda espécie nas mamadeiras € nos bicos, os médicos passaram a preconizar a sua livagem e, mais carde, x sua este rilizagio, A esterilizagio do leite ganhava dimensdes industiais (inicialmen- te na Alemanha, seguida pela Suiga e, depois, por quase toda a Europa, ainda antes da Primeira Guerra), assim como 0 processo de pasteuri ago. Com todos esses avangos téenicos pade-se desenvolver a ama- mentagio artificial ¢ melhorar a nutsigao das criangas, particularmen- te daquelas das classes operitias e pobres, bem como as abandonadas, em Casas de Expostas, Surgiam politicas de distribuigto gratuita de “leire bom", esteril ado, de vaca, a8 familias dos trabathadores. Em 1901, a distribuigio de leite aos recém-naseidos estava organizada cm 33 eidades da ©.0p. cits» O See01.0 Da eRIANCA aRANDONADA NA Et ROS Pranga; em vias de ser instalada em cutras 47; ¢ em estudo em mais dezessete". O nome de Léon Dufour esti associado a criagio do sistema chamado “Goras de Leite” (1894). Esse médico fran que as doengas intestinais, provocadas pela contaminagio do leite, causavam tuma verdadeint devastagio entre os bebés da classe operi- ria de Fecamp, seus pacientes Para reduzir o indice de mortalidade infantil, Dufour idealizou o sistema, que compreendia um dispensirio erial necessirio para a esterilizagio do leite, O servigo de dis tribuigio de leite esterilizado para essas criangas pobres eta comple- mentado pelo controle de peso, de tempos em tempos, € por consultas periédicas com 0 médico. Fi 10 se difundiu por toda a Europa e fora dela O lleite condensado e o leite em pé tm histéria um poco mais ant lo que a da esterilizagio, datando da déeada de 1830 as primeiras experiéneias ps producio. Os uperfeigoamentos técnicos na stia fabricacdo em escala industrial foram reafizados na Suiga, na Alemanha, na Holanda € nos Estados Unidos. Em meudos do século XIX ja se produziam as primeiras fatas de feite eondensado, Na mesma epoca, 0 ericano Grimwald industralizava 0 leite em p6 (1855). Em. 1865, Henry Nestlé, um comerciante de Frankfurt que havia emigrado para a Suiga, inventava uma farinha lictea, As invengdes foram sendo aperfei- goadas"”, mas o prego desses produtos era ainda muito clevado, 0 que fepresentava um obsticulo a sua difusio e ao seu uso pelas clisses menos favorecidas. Resolvidos os processos de industrializagio do leite condensado, do Icite em pé e da vuleanizagio da borrucha, ¢ descobertos os meios de esterilizagao do leite de vaca, « amamentacio actificial se tormot possivel, sem riscos de contuminagio e com as facilidades de sua conservagio © distribu Com esses progressos, 0 sistema de amas-de-leite mercendtias tor- nou-se obsoleto, ¢ elas foram dispensadas. Esse foi um dos farores que levow a extingdo das Rodas de Expostos, que aeabaram por desaparecer definitivamente da paisagem européia em fins do século XIX. Essas mudangas significativas foram acompanhadas de outra no ‘menos importante: a mudanga do papel do hospital. A Medicina, de clinica e caritativa, tomou-se cada vex mais cientifica e preventiva. De méquina de internar pobres, © hospital transformou-se em um Adem, idem, p. 185, idem, . 186. 84 O SECULO DA CRIES AMANDONADA Na EUROS, ratamentos. Nessas nova centro de prevengio, de diagndsticos & de ccondigées, a clientels dos hospitais também foi mudando progressiva mente. Aos poucos os hospitais foram deixando de ser um depdsito de doentes pohres, passando a receber a classe média €, logo depois, a propria elite, que comecou a frequenti-los para se tratar. Com isso, iam sendo fechados os Hospitais de Expostes, com seu cariter de abrigo para 0s pequenos enjcitados, Novas formas de protegio & infancia desvalida foram sendo desenvolvidas, estudadas € plancjadas pela filantiopia higiénica, sob a forma de asilos, coldnias, orfanatos, colégios, creches, etc A luta dos higienistas pela conservagio da vida das criangas levou a0 desenvolvimento da Puericuleuea (1863) ¢ da Pediatrix (1872). Os labo- rat6rios de pesquisas nesses campos se multiplicaram, A consciéncia da perda, por morte prematura, de meta o1 mais dos expostos comovent a opinilo priblies, Além disso, tomou-se conciéncia de que somas enormes eram gastas todo ano para assistircriangas, que, teriam Vida to breve, Impunham-se solugoes eficientes para 0 mak: 0 objetivo agora era mais de cariter demogeifico © econdmico do que moral € social. O Estado europeu tinha necessidade de agriculto- tes, de soldados, cle colonos para seu vasto império. Diante do quadro da clevada mortalidade infantil, particularmente nos grandes hospitais de expostos, organizaram-se internacionalmente amplos debates sobre prineipios € métodos para maior protegio & infincia @ esbogou-se a formulagio dos Dircitos Universais da Criangs. Do terreno da vigorosa tuta contra a mortalidace infantil passo se progressivamente ao da solidariedade social ¢ ajuda as familias nume- rosas. As alocagoes familiares foram, entio, resultado do encontro de dois temas: 0 da defesa da familia, de um lado: € 0 do justo salirio, de outro. Na década de 1840, Firmin Marbeau, adjunto do prefeito de Paris, inventou a creche. Em. 1868 jé havia 85 creches na Franga. Com clas, aas mies pobres € operirias passaram a ter um local adequado onde deixar seus filhos pequenos, enquanto trabalhavam. Ji no precisa- yam recorrer ao abandono de recém-naseidos, para poder sobreviver. A ereche representou uma revolugio nos costumes, um meio dos mais, eficientes para diminuir as taxas de abandono, pois tinha um projeto social e edueativo bem definido, dentro da visio burguesa, humanista e catélica da vida famil Se de mudangas de atitudes, de leis € de instituigées em favor da crianga ubandonada, também a literatura entrou nessa tuta, lantropos, médicos & moralistas formaram uma frente na busca 0 SREULO BA CRANE AMANDONADA Na EUROPA, romance social, substituindo o soniiance histético, foi um género que surgiu na Franga, entre 1830 © 1840. Acredita-se ter sido Enigéne Sue 0 seit criador, Em seus romances, ele tratava das graves proble mas sociais da época. Sua obra Ler Mystires ae Paris, publicada entie 1842-43, romou-se o paradigma do romance de protesto social, de de- fesa do humilde e do oprimido, tema da infincis abandonada tomou-se recorrente no romance popular francés de entio. O pidprio Sue esereveu Martin, (Enfant. Troweé, que abordava no apenas a situago dos expostos, mas denuncia vaosistema social eas eondlighes de marginalizagio da mulher, Era tipo de narrativa que exprimia uma ideologia progressista c anticlerical, de cenfrentamento dos problemas sociais A obra de Sue foi traduzida para virias Ifnguas, frutificou ¢ foi imi- tada em muitos paises. Oliver Twist, de Charles Dickens, surgiu de pois € teve igual repercussio, além de tradugdes sucessivas em toda a Europa” Com 0 sucessive fechamento das Rodas, sistema que garantia 0 anonimato do expositor, € com o higicnismo que tentava salvar os pequenos abandonados do massacre da morte precoce, inffincia abandonada em coda a Europa sofren mudangis, no final do skeulo XIX, As campanhas para o restabelecimento do casumento nas classes populares procediam dessa mesma preocupagio de lutar contra a infl vel dos encargos da assisténcia, Desde 0 final do século XIX, intimeras associagGes filantrépicas © religiosas atribui- ram-se o objetivo de ajudar as classes pobres, de moralizar seu com= portamento, de facilirar sua educagio, converginda seus estorgos para uma restauragao da vida familiar, forma primeira e férmula mais cecondmica da assistencia miiua®! Normas sanitérias © educativas foram promulgadas, no final do século passado, Onde nfo foram respeitadas ¢ onde etam acompanha- das da pobreza (imoralidade suposta), a suspensio do pattio poder permitia 0 estabelecimento de um processo de sumla, que aliava os objetivos sanitérios © educativos aos métodos de vigikincia econdmi- cae moral, Esse foi um processo de redugo da auronomia familiar, fucilitado, no inicio deste século, pelo surgimento de uma série de ® Schilardi, Wanda de Nunzio, L'infanvia abbandonata nel romanzo sociale {el Oxtaenc. In: Da Molin, G. (ed) Op. eit, p. S28 €88 "Daze, J. Op. eit. pe 3. 86 O SfCULO Ds CRINEX AMANDONADA NA EUROPA conendes entre a assisténcia pribliea, a Justiga de menores, a Medicina ea Psiquiaeia A adogia de eriangas sem familia — que fora abolida da histéria européia, desde a Idade Média, pela agio da Tgreja — sofrew um processo mais longo de aceitagio ou de reinsroducio ma legislago. As primeizas leis que reinanguram a pritica da adogio foram extrema- mente restritivas. Fld que se ter em mente que s¢ vivia 0 apogeu do liberalismo e da defesa da propriedude que a adocio punha em risco as leis de sucessio biolégica € 0 patriménio Familiar As primeints leis de adogio (a de 1904, na Franga, por exemplo} no modificavam 0 Cédigo Civil, O adotante deveria ser maior de cin: ‘qlienta anos € nif ter filhos. Esse modelo foi copiado em virios paises. Somente apés a Primeiti Guerra Mundial, ¢ ante a grave questi da legit de criangis érfis de guerra, houve algumas mudangas nesse setor A idade do adotante baixow para quarenta anos, estendenclosse a adogio aos menores de idade, embora sem ainda se tocar no delicado problen da heranga. © Cédigo da Fama, de 1939, da Franca, tomou possivel a . e dezesseis anos, com ruptura completa dos lagos que ligavam o adotado a familia de origem. Foi lenca a conquista dos direitos da crianga sem-familia, na ordem social. As leis de adogio plena, estendidas desde 0 nascimento da crianga, s6 surgiriam depois da Segunda Guerra Mundial ¢ da Declara Glo Universal dos Direitos da Grianga (1959). No século XX, 0 modelo filantrépico nd morreu, na Europa. Paibli- co ¢ privado ainda convivem. Houve uma profissionalizagao das assis téncias pablicas ¢ das politicas sociais. Dusante uns cingiients anos, 0 foco das atengSes foi progressivamente deslocando-se da tomada de conscigncia de ums infincia infeliz © sem familia, que era preciso acolher num quadro juridico definido, no sentido da busca de uma solugio de conjunto para o problema erucial da alimentagio da erian- Gi, até se chegar 3 romada de consciéneia da erianga enquanto ser, da sua necessidade de relacionamento com a familia, principalmente icular, na Europa, Passos importantes foram dados com 0 objetivo de se fazer a nova Declaragiv dos Diseitos da Crianga — adotada pelas Nagdes Unidas, em 1959 — e, depois, a Convengio da ONU pelos Direitos da Crian Wider, p. 88 O Séer1.0 Ps eRIANGA ABANDONADY NA Etkory 87 de 1989. “Nas diversas exapas dessa coistrugio, os Estados, com suas cculturas priprias, contribuiram de mai conseiéneia de que at crianga :1 original para se chegar sujeito de Direito: A fase da filantropia dita cientifiea estava encerrando-se. Depois da Segunda Guerra Mundial, os governos se conscientizaram de que a filosofia fikuntropica no atendia mais as necessidades da assist © da protegio 3 infiincia desvalida, politicas sociais pribli que passava a ser o arwal Estava nascendo uma ado do Bem-Estat Social Como enfatiza o historiador britinico Hobsbawm, somente em con: seqiiéncis da Grande Depressio de 1929-30 & que houve a instalugi de modernos sistemas previdencifrios. Antes da S dial cram excepcionais os Estados do Bem: termo Estado do Bem. década de 1940". nda Guersa M Estar. Alls, nem mesmo o star (Welfare State)havia entrado em uso antes da Roles, C. Op. cit, p. 167 * Hobsbawns, Erie, Bre abs tema, 0 re das Lets, 199, p. 190 fev XX. 1914-1991, 22 ch, Sio Pau: Cia

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