Deuses e Doenças
Reimaginando o Transtorno de Pânico 1*
J Hillman
O coração batendo mais forte, a respiração ofegante, o suor correndo pelas laterais do corpo
molhando a camisa enquanto a voz aumenta seu volume e começa a apresentação. Isto acontecia no
momento em que inicio a fala deste tema no encontro: Psicopatologia Revisitada - Deuses e
Doenças - Conferências em Homenagem aos 80 anos de James Hillman. Havia decidido começar
minha fala apresentando duas traições que estava prestes a cometer. A primeira seria com o texto
que havia preparado para apresentar e a segunda com o texto psiquiátrico.
Sabia que os textos psiquiátricos se apresentam com uma intenção especifica que é deixado
muito claro na introdução dos códigos como o DSM IV ou O CID X. 1 . Sabia que iria falar de uma
releitura destes textos aproximando-se destes não como resultado da concordância de vários
especialistas sobre os limites entre categorias em saúde mental mas, como resultado de uma fantasia
coletiva. Iria me aproximar do texto psiquiátrico como texto mitológico. Como falando dos mitos
que nos atravessam em nossa época.
Se os deuses podem ser vistos como tudo o que nos move, nos faz rir ou chorar, como nos
diz Roberto Calasso 3, então é nos manuais psiquiátricos que podemos encontrar a apresentação dos
deuses em sua roupagem atual. “Os Deuses viraram Doenças”. Afinal a conceitualização de
transtorno mental nestes códigos é :
Transtorno mental é então o que faz o “individuo” sofrer, que o incapacita, que restringe sua
ação ou sua suposta liberdade. Os poderes que estão além do controle do ego ou da perspectiva
egóica.
Já na psicologia arquetípica começamos com o “pathos”, o que nos faz sentir, o que nos
move. E, como nos diz Hillman, se é preciso que nos tornemos parte do quadro. Isto já estava
acontecendo. O Pânico já se apresentava instalado. Retomemos este ponto depois...
Uma vez que os “problemas” na perspectiva imaginal são metáforas que se literalizaram.
No grupo de estudos de psicopatologia reimaginada*2 fomos nos debruçando sobre o tema:
Transtorno mental/problema literalizado - Transtorno de Pânico. Qual problema esta literalizado
nesta fantasia psicopatológica? E, uma vez que é preciso legitimar a multiplicidade de “Quems” que
habitam a alma. Começou-se a leitura dos textos psiquiátricos buscando produzir um efeito ritual de
que o que se estava lendo ali era mais do que o que estava sendo lido. Usamos um texto clássico
psiquiátrico: Compendio de Psiquiatria Harold Kaplan e Col. 4. Além das referencias ao CID X,
DSM IV. Uma leitura que se tornava outra sendo a mesma uma vez que era um leitor outro e outros
ouvintes. Buscava-se o que aqueles textos falavam a imaginação, a alma. Fazer alma ao ler o texto.
O estranhamento suscitava as perguntas: Quem estava apresentando o transtorno, “o problema”,
quem descreve o conjunto de sintomas e sinais?
O texto continua...
“0 transtorno de pânico se caracteriza pela ocorrência espontânea e
inesperada de ataques de pânico.
0 primeiro ataque de pânico, muitas vezes, é completamente espontâneo,
embora os ataques de pânico, em geral, ocorram após excitação, esforço
físico, atividade sexual ou trauma emocional moderado.” 4
Odisseu que para vários autores é visto como o modelo do que vai se constituir como o sujeito
moderno. Ele é aquele que se prende ao mastro para ouvir as sereias mas não se deixar levar por
elas.
“Quem é Odisseu? O mais astuto dos homens – o que, aliás, até de certa
forma o desmerecia, retirando-o da plena visibilidade devida a heróis como
Aquiles, para depositá-lo no lugar retraído, acanhado, aquele que em vez de
se expor à luz do dia se esconde no escuro ventre de um cavalo de pau. O que
distingue Odisseu: a inteligência. Por sinal, de todos os chefes aqueus que
cercam Tróia, Ulisses é o que menos se destaca pela honra – como se esta não
bastasse para a vitória; como se a inteligência fosse inimiga da honra; como
se na inteligência houvesse algo de utilitário, de instrumental.” 6
Parece que quem estaria assustado poderia ser uma figura que teria suas raízes arquetípicas
nas figuras de Dríope/Penélope/Odisseu que funcionando como um estilo de consciência que
quer ter controle sobre suas sensações e emoções. Julga conseguir separar o que “de fato estaria
acontecendo” do que não acontece de fato (como é descrito nas características do transtorno).
Sabemos que é a parte com a qual a pessoa se identifica ao menos majoritariamente e que vem
nos procurar para o tratamento do transtorno de pânico. É este que quer a todo custo eliminar o
intruso que vem invadir seu território. Este mais do que uma figura individual parece
corresponder ao sujeito histórico moderno que tem suas características pautadas por um projeto
de liberdade individual e de emancipação (dominação da natureza). Uma figura que foi sendo
constituída na internalidade do homem e que busca a autonomia da razão. Figura que suporta os
processos de racionalização, unidade sintética das representações; principio de ligação que
permite constituir a representação de objeto; operar sínteses de experiências e ligar
representações; consciência do eu unificado na diversidade do tempo. É este sujeito (ego
heróico/Odisseu) que nos habita e que através da razão moderna se vincula a degradação do
pensar por imagens e a critica da força cognitiva da semelhança e da analogia (do pensar por
metáforas). Esta forma de subjetivação vem acompanhada de sentimentos de desamparo uma
vez que foram sendo abandonados os grandes sistemas (religião, tradição, etc.) que provinham
autocertificação, sentido totalizante e explicações.
Seria então esta figura agora ameaçada pelo desamparo que, funcionado como ego heróico,
vê, transforma, ou faz de uma multidão de metáforas uma unidade, uma síntese que se
transforma num problema para ser resolvido?
É necessário que inúmeras sensações, angustias, etc. ganhem representação, percam sua
potencia metafórica, se construam como grau de consistência literal para que este ego heróico
possa se afirmar. Como quem resolve...quem decifra...quem leva avante suas rotinas habituais...
Diante da contradição, do desconhecido ameaçador, esta figura que literaliza os problemas e
não consegue usar os recursos nem a potencia da metáfora. Separa o que não cabe e constrói a
psicopatologia.
Mas esta figura, esta unidade identitária de funções heróicas, não pode abandonar as idéias
de autonomia caso contrario esta em risco de morrer... ou de enlouquecer (não saber mais como
se orientar). Exatamente o que esta sendo apresentado na psicopatologia como ameaça literal.
Ao mesmo tempo em que esta forma de viver não cessa de produzir sufocamento, controles e
prontidões para ataque e para fuga. O texto psiquiátrico vai se tornando mais claramente texto
mítico. Texto psiquiátrico e texto mítico vão deixando de ser duas categorias diferentes. Ao
invés disto vão sendo amalgamados.
Aquilo que parecia ser um invasor vai se tornando a resposta mesma da posição deste ego
heróico diante da vida Pan que se apresenta subitamente. Seria talvez este um dos motivos pelo
qual este transtorno tem se mostrado tão freqüente.
relatado prevalências durante o período de vida de 1,5 a 3%
para o transtorno de pânico e de 3 a 4% para os ataques de
pânico.
1.600 adultos aleatoriamente selecionados no Texas descobriu
uma taxa de prevalência durante a vida de 3,8% para transtorno
de pânico, 5,6% para ataques de pânico.
Seria este um dos motivos pelo qual a evolução do transtorno tem se mostrado tão resistente.
“Sabe-se que, apesar da boa resposta ao tratamento
(farmacológico) agudo, 50 a 78% dos pacientes seguem
utilizando a medicamentos por tempo prolongado. Assim como
30 a 75% dos pacientes continuam a experienciar ataques de
pânico e sintomas residuais apesar da farmacoterapia”
O que se passava em mim? Liberação de Adrenalina? Uma crise de pânico? Algo em mim suava,
respirava mais intensamente, fazia com que o coração batesse mais forte. O que faria com aquilo
fosse vivido como uma crise de pânico ou não? Ou melhor quem é que veria aquilo como uma
crise de pânico e quem é que não?
O TP pode ter suas raízes no conceito de síndrome do coração irritável, observada em soldados na
Guerra Civil norte-americana
Em 1895, Sigmund Freud introduziu o conceito de neurose de ansiedade, consistindo de sintomas
psíquicos e somáticos agudos e crônicos. A neurose de ansiedade aguda de Freud era similar ao
transtorno de pânico do DSM-IV.
Em 1980, o DSM-IIl abandonou formalmente o diagnóstico de neurose de ansiedade e introduziu o
diagnóstico de transtorno de pânico.
A validade da classificação tem sido bem justificada desde 1980. Pelo desenvolvimento de
tratamentos específicos para o transtorno de pânico.
ETIOLOGIA
A etiologia vai nos fazer entrar um tanto nas fantasias das causas...
Fatores sociais
0 identificado como contribuindo para o desenvolvimento do transtorno de pânico é uma história
recente de divórcio ou separação.
Têm uma incidência mais alta de acontecimentos vitais estressantes, particularmente, perdas,
comparados com controles, nos meses antes do início do transtorno de pânico.
Tipicamente experimentam maior sofrimento acerca dos acontecimentos vitais que os sujeitos
controle.
A separação da mãe no início da vida resultava mais claramente, com maior probabilidade, em
transtorno de pânico do que a separação do pai, na coorte de 1.018 pares de gêmeas.
Fatores Biológicos
resultar de uma faixa de anormalidades biológicas na podem estrutura e função cerebral.
tônus simpático aumentado, adapta-se mais lentamente a estímulos repetidos e responde
excessivamente a estímulos moderados.
As chamadas substâncias respiratórias indutoras de pânico causam a estimulação: respiratória e uma
alteração do equilíbrio ácido-base. Elas incluem dióxido de carbono (misturas de 5 a 35%).
Estão associados com uma vasoconstrição cerebral que pode acarretar sintomas do sistema nervoso
como tonturas, e sintomas do sistema nervoso periférico que podem ser induzidos por
hiperventilação e hipocapnia (Diminuição da concentração do gás carbônico do sangue).
“Uma confirmação adicional para os mecanismos psicológicos no transtorno de pânico pode ser
inferida a partir de um estudo de pacientes tratados com sucesso com a terapia cognitiva. Antes da
terapia, os pacientes respondiam a uma indução de um ataque de pânico com lactato. Após a terapia
cognitiva bem-sucedida, a infusão de lactato não mais resultava em um ataque de pânico”
Se olhamos o sujeito moderno ele tem Muitas destas características É pautado por um projeto de
liberdade individual e de emancipação e dominação da natureza.
Uma figura que foi sendo constituída na internalidade do homem e que busca a autonomia da razão
Esta razão moderna que se vincula a degradação do pensar por imagens e a critica da força
cognitiva da semelhança e da analogia.
É este sujeito que nos habita e que através do pensamento racional deve negar toda a força cognitiva
da mimese.
É necessário que inúmeras sensações, angustias, etc. ganhem representação, que se construam como
grau de consistência literal para que este ego heróico possa se afirmar... como quem resolve...quem
decifra... quem leva avante suas rotinas habituais... E até onde vai caminhar esta figura na sua
autonomia?
Seria então esta figura que funcionado como ego heróico vê ou faz de uma multidão de metáforas
uma unidade, uma síntese que se transforma num problema para ser resolvido?
Diante da contradição, do desconhecido ameaçador, esta figura que literaliza os problemas e não
consegue usar os recursos da mimese nem a potencia da metáfora, separa o que não cabe e constrói
a psicopatologia.
Como afirmar a limitação, a finitude (característica fundamental que diferencia os mortais dos
Deuses) num sistema que se sustenta em ideais de autodeterminação, independência (domínio da
natureza) e liberdade individual ?
Mas esta figura, esta unidade identitaria de funções heróicas, não pode abandonar as idéias de
autonomia caso contrario esta em risco de morrer... ou de enlouquecer (não saber mais como se
orientar).
“Ao vê-lo, a nutriz abandona-o e foge. Espantam-na aquele olhar terrível e aquela barba tão
espessa.
Mas o benévolo Mercúrio, recebendo-o imediatamente, pô-lo ao colo, rejubilante. Chega
assim à morada dos imortais ocultando cuidadosamente o filho na pele aveludada de uma lebre.
Depois, apresenta-lhes o menino. Todos os imortais se alegram, sobretudo Baco, e dão-lhe o
nome de Pã, visto que para todos constituiu objeto de diversão” (Núpcias de Cadmo e Harmonia R.
Calasso)
Roberto Calasso ainda, no mesmo texto,nos apresenta duas versões para a história do
nascimento de Pan
O relato do nascimento de Pan como filho de Penélope (esposa de Odisseu e irmã de
Helena) me parece dos mais interessantes... porque aponta as relações metafóricas entre Odisseu e
Pan.
“Pan, o deus mais selvagem e bestial, o masturbador, o aterrorizante, escolheu como mãe a
mulher que durante séculos seria indicada como exemplo de castidade e fidelidade: Penélope.
“Segundo alguns, quando Odisseu regressou a Ítaca, encontrou "a casa devastada desde os alicerces
por emboscados ladrões de mulheres". No meio deles estava Penélope, "a bacante, a raposa puta,
que mantém um bordel com majestade e esvazia os quartos, gastando nos banquetes a riqueza do
desgraçado".
O desgraçado era ele, Odisseu. Então o herói a expulsou. Devia voltar à casa do pai, que um dia
deixara feliz, abraçada ao marido.
Assim Penélope reviu a planura de Esparta e as montanhas que a circundavam. Nas partes altas de
Mantinéia uniu-se com Hermes. Após ter gerado Pan, morreu. Desde então Pan corre e faz música
sobre os penhascos da Arcadia
Segundo outros, quando Odisseu voltou a Ítaca, Penélope já deixara passar sobre o corpo cento e
oito pretendentes. Com eles fora gerado Pan. Os passos de Odisseu ecoavam nos desolados
corredores do palácio, enquanto os pretendentes jaziam ensopados de sangue e Penélope ainda
dormia. Odisseu abriu a porta de um quarto do qual não se lembrava. Estava completamente vazio.
Na obscuridade era olhado por um menino de expressão inteligente, com dois minúsculos chifres
que despontavam entre os cachos de cabelo e com patas de cabrito. Dois cascos lustrosos saíam da
pele de lebre que envolvia o pequeno Pan. Odisseu fechou imediatamente a porta. Sem dizer uma
palavra, desceu ao porto de Ítaca e desatou de novo as velas. Não sabia o rumo e desta vez ia
sozinho.”
(Núpcias de Cadmo e Harmonia R. Calasso)
Quem é Odisseu?
As imagens nos apontam que o quadro delineado na psicopatologia nos apresenta o conflito
arquetípico entre a constelação
Dríope/Penélope/Odisseu
e Pan
Claro que este conflito arquetípico vai tendo sua história.
Pode ser identificada na historia do sujeito moderno pelas aproximações filosóficas.
Pode ser visto na relação com que a medicina se relaciona com os eventos.
Pode ser visto na história da pessoa que se apresenta em sua historia familiar e pessoal
Parece que o nascimento de Pan provocou certa emoção em sua mãe, assustadíssima com tão
esquisita conformação. Ou mesmo sua morte.
O mesmo que vai se constelando no Transtorno de Pânico. Há uma Dríope/Penélope/Odisseu
ameaçada. Que se sente enlouquecendo ou mesmo ameaçado de morte.
Pan é muito bem acolhido por Mercúrio e alegra todos os deuses. Sobretudo Dioniso
É este olhar mercurial que pode ver em Pan algo que pode ser acolhido. E o que é este olhar se não
o olhar daquele que não diz a verdade inteira. Que ata e desata faixas. Que faz a ligação entre os
diversos mundos.
Um olhar metafórico onde as coisas são e não são ao mesmo tempo. Porque são metaforicamente.
Quanto mais se tenta controlar mais ameaçado se fica e mais se intensificam os sintomas. Quanto
mais herói astuto mais ameaças.
Por mais paradoxal que possa parecer é necessário poder perder o controle. Se entregar. Mas como
se entregar a Pan? Talvez entregando-se a metáfora. Reconstituindo aquilo que estava unido nos
pré-socráticos. O logos e a poesis.
Mais do que entrarmos na forma é preciso entrar na imagem que vem: Estou morrendo Tudo esta
desabando. Estou enlouquecendo.
Quando conseguimos ficar com qualquer destas imagens mais do que dessensibilizar a pessoa com
relação a um conteúdo com quer a aproximação comportamental, podemos dar a chance de
desaglutinar o que esta ali literalizado.
Pode-se então desdobrar-se a imagem em sua metáfora sempre ficando com ela.
Sempre afundando mais nela. Vendo através dela
"patologizar"
"a autonomia da psique de criar doença, morbidez, desordem, anormalidade e sofrimento em
qualquer aspecto do seu comportamento e de experienciar e imaginar a vida através desta
perspectiva deformada e aflita". J Hillman
1* Este trabalho é fruto de uma elaboração realizada pela Clinica Oficina Kairós no grupo de
estudos psicopatologia reimaginada. Composto na época por: André Mendes; Maisa de Melo;
Sheila Monteiro; Wladia Beatriz P. Correia; Santina Rodrigues e Rodrigo R. Rodrigues.
2* idem anterior
2. DSM IV TM - Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais - Porto Alegre: Ed. Artes
Médicas, 1995
3. DSM IV TM - Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos
Mentais - Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1995
4. CID-10 - Classificação de Transtornos Mentais e de
comportamento da CID-10 - Porto Alegre: Ed. Artes Médicas,
1993
3 Roberto Calasso
6 Renato Janine
http://www.renatojanine.pro.br/Cultura/cultura.html