Anda di halaman 1dari 97

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

KEILA SOUZA DE OLIVEIRA

A dimensão pedagógica do Cinema Negro: articulações sobre a lei


10.639/03 e a imagem de afirmação positiva do negro

Cuiabá/MT
2015
KEILA SOUZA DE OLIVEIRA

A dimensão pedagógica do Cinema Negro: articulações sobre a lei


10.639/03 e a imagem de afirmação positiva do negro

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de
Mato Grosso - UFMT como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre
em Educação na Área de Educação, Linha
de Pesquisa Movimentos Sociais, Política
e Educação Popular.
Orientador: Dr. Celso Luiz Prudente

Cuiabá/MT
2015
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367 - Boa Esperança - Cep:78060 - CUIABÁ/MT

Tel: 3615-8431/3615-8429 - Email: secppge@ufmt.br

FOLHA DE APROVAÇÃO

Título: “A dimensão pedagógica do Cinema Negro: articulações sobre a lei 10.639/03


e a imagem de afirmação positiva do negro”

AUTORA: Mestranda Keila Souza de Oliveira

Dissertação defendida e aprovada em 04 de dezembro de 2015.

Composição da Banca Examinadora

_______________________________________________________________________

Presidente Banca/ Orientador Doutor Celso Luiz Prudente

Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Examinador Interno Doutor Luiz Augusto Passos

Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Examinadora Externa Doutora Cláudia Maria Ribeiro

Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE LAVRAS/UFLA

Examinadora Suplente Doutora Márcia dos Santos Ferreira

Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

CUIABÁ, 04/12/2015
À Márcia e Nelson, pais que a vida me deu e que são os responsáveis pela pessoa
que sou hoje.

À Jonatha companheiro que esteve comigo em todos os momentos, mesmo quando


não concordava com minhas decisões.
AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus por colocar pessoas maravilhosas em meu caminho. Meu


eterno namorado Jonatha por tudo que fez e faz por mim.

As amigas Luciana Luzine e Míria Brandão de Araújo, companheiras que desde o


início desta jornada me apoiaram e incentivaram.

À Cândida Cespedes e Cleonice Perotoni, duas maravilhosas amigas que tive o


privilégio de estar ao lado durante esta jornada, obrigada por tudo, com certeza sempre
estarão em um lugar especial em meu coração.

Agradeço, também, a João Antônio, meu grande amigo, por me ouvir nos
momentos de desespero.
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para
odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.”

(Nelson Mandela).
RESUMO

O propósito da presente dissertação é levantar pontos que contribuam para o


debate, configurado na convergência percebida nas políticas públicas, de inclusão
educacional e a afirmação da construção da imagem positiva do negro. Entendendo que
os filmes podem contribuir significativamente para o ensino de história e cultura da África,
por sua acessibilidade, diversidade e tipos de informações, mais próximas, compreensíveis
e potencialmente mais significativas e interessantes para os alunos. Conhecer as origens é
fundamental para a ampliação da consciência social e histórica de uma nação. No início
do século XX o negro é representado na cinematografia na maioria das vezes como um
personagem caricato o que influência na formação da visão que a sociedade brasileira terá
sobre o afrodescendente. Este é sempre o explorado, o escravo, cativo, pobre e vulnerável.
A luta contra o estereótipo da imagem do negro e da sua cultura mostrou esforço especial
em favor de uma educação que concorre no sentido da superação do racismo e também de
busca de caminhos, onde a africanidade pudesse afirmar a importância da sua cultura.
Neste início de século XXI ocorreram diversos avanços no que diz respeito às políticas
públicas no Brasil, um exemplo é a criação da Lei 10.639/03. É fundamental a
compreensão de que a lei não se manifesta apenas no currículo, sua função é o diálogo
multicultural. Faz-se necessário desconstruir o que se encontra arraigado em nossa
sociedade, essa visão eurocêntrica, que distorce e diminui a participação dos negros na
formação de nossa sociedade. A Mostra Internacional do Cinema Negro vem cumprindo
a função de apresentar, debater e vincular através dos filmes, a construção da imagem
positiva do negro.

Palavras-chaves: Lei 10.639/03; Cinema Negro; Políticas Públicas


ABSTRACT

Abstract the purpose of this article is to raise points that indicate to the
understanding of the phenomenon, configured in the perceived convergence in public
policies, educational inclusion and affirmation of the positive image of blacks. We believe
that movies can make a significant contribution to the teaching of history and culture of
Africa, for its accessibility, diversity and types of information, closest, understandable and
potentially more significant and interesting to students. Meet the origins is crucial to
expanding the social and historical consciousness of a nation. In the early 20th century,
the black is represented in cinematography for the most part as a stereotypical character.
This image described in the caricatures of black’s chanchadas has great influence in
forming the view that Brazilian society will have on the black. This is always the tapped,
the slave, and captive, poor and vulnerable. The fight against the stereotype of the black
image and its culture showed special effort in favor of an education that contributes
towards the overcoming of racism and to search for paths, where the Africanism could
assert the importance of its culture. At the beginning of the 21st century, there have been
several advances with regard to public policies in Brazil. Maybe, when we speak of public
policies of inclusion in the field of education discusses the need to include the racial ethnic
group marginalized, but also recover your positive image deteriorated on the impact of
ideology of racial superiority of the hegemonic racial group. It is essential that you
understand that the law does not manifest itself only in the curriculum, its function is the
multicultural dialogue. It is necessary to deconstruct what is ingrained in our society, this
Eurocentric vision, which distorts and reduces the participation of blacks in the formation
of our society. The Black International Cinema Displays has been fulfilling the function
to present, discuss and link through the films, the construction of the positive black image.

Keywords: Law 10,639/03; Black Cinema; Public Policies


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 12

1. CAPITULO I – SURGE A CINEMATOGRAFIA: DIVERSAS


ABORDAGENS SOBRE O CINEMA ........................................................... 20

1.1. Irmãos Lumière e o cinema como arte pelo mundo ............................................. 20

1.2. Cinema imagem e movimento: aspectos filosóficos ............................................ 24

2. O CINEMA NO BRASIL: TESTEMUNHO DA VIDA E DA


ORGANIZAÇÃO POLÍTICA NACIONAL .................................................. 28

2.1. A construção da imagem do negro através das produções cinematográficas


brasileiras .................................................................................................................... 31

2.2. Estereótipos e caricaturas: a representação da imagem do negro no cinema


brasileiro ........................................................................................................................ 35

2.3. Cinema Novo: Lutas de imagens no cinema nacional ........................................ 38

3. CAPITULO III - CINEMA NEGRO: EXPRESSÃO IMAGÉTICA DE

AFIRMAÇÃO POSITIVA DO NEGRO .................................................................... 41

3.1. Movimentos Sociais: ações para a conquista de políticas públicas ..................... 42

3.2. Lei 10.639/2003 e as produções cinematográficas .............................................. 44

4. CAPITULO IV - MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA NEGRO:

REFLEXO DA LUTA PELA AFIRMAÇÃO POSITIVA DA IMAGEM DO

NEGRO NO BRASIL ................................................................................................... 49

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 63

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 65


7. ANEXOS ............................................................................................................ 68

7.1. Anexo I..................................................................................................................69


7.2. AnexoII.................................................................................................................71
7.3. Anexo III...............................................................................................................74
7.4. Anexo IV...............................................................................................................81
7.5. Anexo V................................................................................................................83
7.6. Anexo VI...............................................................................................................94
7.7. Anexo VII.............................................................................................................96
INTRODUÇÃO

O principal objetivo desta dissertação é refletir a lei 10.639/03 e a debater através


da cinematografia nacional a construção da imagem positiva do negro. Neste início de
século XXI ocorreram diversos avanços no que diz respeito às políticas públicas no Brasil.
Talvez, quando se fala das políticas públicas de inclusão no campo da educação aborda-
se a necessidade de incluir o grupo étnico racial marginalizado, mas também, recuperar
sua imagem positiva deteriorada no impacto da ideologia de superioridade do grupo racial
hegemônico.

Procuramos investigar as revisões teórico-metodológicas que indicam o cinema


como um importante testemunho da vida cotidiana, da organização política e social do
Brasil, bem como a evolução da cultura nacional. Observar quando os movimentos sociais
entenderam que a informação da mobilização exercia maior impacto político que a
manifestação em si. Transformando a construção da imagem de afirmação positiva do
afrodescendente em arma nas lutas dos movimentos de sociais e observar como o Cinema
Negro se torna instrumento para a construção da imagem de afirmação positiva do negro.
É possível, assim, entender as produções cinematográficas, como contribuintes
significativos para o ensino de história e cultura da África, devido a sua acessibilidade,
diversidade e tipos de informações, mais próximas, compreensíveis e potencialmente
interessantes para os alunos.

Para se construir opiniões críticas é fundamental conhecer as origens, para a


ampliação da consciência social e histórica de uma nação. O cinema é fonte extremamente
útil na formação de opinião, sendo assim, no início do século XX o negro é representado
na cinematografia, na maioria das vezes, como um personagem caricato. Essa imagem
descrita principalmente nas chanchadas de caricaturas dos negros possui grande
influência na formação da visão que a sociedade brasileira terá sobre o mesmo.

Africanos e afrodescendentes são sempre representados como explorados,


escravos, cativos, pobres e vulneráveis. A luta contra o estereótipo da imagem do negro e
da sua cultura mostrou esforço especial em favor de uma educação que concorre no
sentido da superação do racismo e também da busca de caminhos, onde a africanidade
pudesse afirmar a importância da sua cultura.

12
É fundamental que se compreenda que a Lei 10.639/03 não se manifesta apenas
no currículo, sua função é o diálogo multicultural. Faz-se necessário desconstruir o que
se encontra arraigado em nossa sociedade, essa visão eurocêntrica, que distorce e diminui
a participação dos negros na formação de nossa sociedade.

É sensato supor que essas representações contribuíram para a disseminação da


ideologia da inferioridade racial do negro diante da supremacia do branco. Esse ponto é
fundamentado nas ações realizadas pelo próprio governo que no final do século XIX e
início do século XX cria políticas para trazer ao Brasil imigrantes europeus, com a clara
intenção de “branquear” a população que precisa ser “melhorada”.

O Brasil após a abolição da escravatura tem como estratégia a imigração em


grande escala de europeus para remover, ou seja, extinguir, a “mancha negra” da
sociedade brasileira. Percebe-se que o negro era uma representação indesejada dos
brasileiros, principalmente fora do cenário nacional, havia uma grande preocupação em
mostrar aos estrangeiros que o povo do Brasil era branco e que se isso não era a realidade
plena da época, medidas estavam sendo tomadas para que com o tempo isso se tornasse
realidade.

Para alcançar os objetivos propostos, nosso trabalho será dividido em quatro


capítulos. No primeiro, intitulado “Surge a cinematografia: diversas abordagens sobre o
cinema”, apontaremos as discussões filosóficas sobre o cinema com base em alguns
autores como Deleuze e Benjamin, que rompem com a ideia de que as produções
cinematográficas se restringem apenas a arte, elevando-a ao em seu aspecto pedagógico.

Assinalamos a função pedagógica e intelectual do cinema, indo além do


entretenimento, abrimo-nos para todas as possibilidades fornecidas pela cinematografia
compreendendo que não se pode defini-la ou encaixá-la em um conceito apenas. Sendo
assim, vamos ao surgimento do cinema e percorremos todos os processos evolutivos
tecnológicos, econômicos e sociais.

Estas observações nos levaram ao segundo capítulo “O cinema no Brasil:


testemunho da vida e da organização política nacional”. Trata-se de uma reflexão sobre
a influência das produções nacionais no pensamento da população brasileira. O cinema
retrata a vida e influencia a maneira como as pessoas pensam e até mesmo agem diante
de determinadas situações. Nas primeiras décadas do cinema no Brasil o negro, a
princípio é excluído, depois passa a ser mostrado de maneira caricata e estereotipada.

13
No decorrer da década de 1960 surge o Cinema Novo, com Glauber Rocha,
principal precursor, que muda completamente a forma de se produzir filmes, dando aos
excluídos o protagonismo que até então lhes era negado. Em meio a essas mudanças nasce
o Cinema Negro, um dos focos de nossa pesquisa. Onde o negro não é apenas
protagonista, mas produtor/realizador dos filmes.

As discussões pretendidas no capítulo três, intitulado “Cinema Negro: expressão


imagética de afirmação positiva do negro”, são voltadas para as produções do Cinema
Negro e como estas possibilitam a ampla divulgação das lutas dos movimentos de massa,
principalmente, o Movimento Negro Unificado. Abordaremos, também, as lutas em favor
das políticas públicas.

No último capítulo que recebe o título de “Mostra Internacional de Cinema Negro:


reflexo da luta pela afirmação positiva da imagem do negro no Brasil”, procuramos
apontar as conquistas de políticas públicas representadas pela Lei 10.639/03 e a Mostra
Internacional do Cinema Negro, ações que nascem no início do século XXI e são
resultantes dos processos de lutas iniciados, principalmente, a partir de meados do século
XX.

Essa pesquisa nasce da necessidade que surge no âmbito da sala de aula, com o
advento da Lei 10.639/03 onde percebemos ser imprescindível encontrar meios para a
aplicação da mesma. Os desafios são imensos, pois não dispomos de material didático e
paradidático, tão pouco, temos formação continuada que dê suporte para nos tornarmos,
de fato, instrumentalizados e preparados para trabalhar com essa temática em sala de aula.
A solução então é voltar à universidade para tentar reunir ferramentas que servirão de
base para a implementação da referida lei.

A discussão das políticas públicas no Brasil resulta da ascensão internacional dos


movimentos de massa1, visto que as lutas revolucionárias de descolonização africana,
somadas às lutas pelos direitos civis nos EUA, sob a liderança de Martin Luther King
influenciaram, notadamente, os movimentos sociais negros.

Pretendemos observar em que medida os movimentos sociais conquistaram as


políticas públicas no campo da educação, com vistas a compreender a aplicabilidade da

1
Utilizamos este conceito baseados no pensamento de Celso Prudente, que entende que os diversos
movimentos que lutam pelos direitos das minorias é formado pela massa, ou seja, a grande maioria da
população que não tem seus direitos devidamente garantidos.

14
Lei 10.639/2003 na humanidade do negro, negada enquanto ser no cinema (Rodrigues,
2001). Faremos uma reflexão acerca da sua representatividade na cinematografia, e em
que medida isso afeta a sociedade brasileira.

Para tratar do Cinema Negro é necessário abordar o Movimento Negro


Unificado (MNU), no entanto, temos que compreender o que é o movimento negro no
Brasil, no que diz respeito ao movimento político de mobilização racial Joel Rufino dos
Santos (1994) define como movimento negro:

(...) todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de


qualquer tempo [aí compreendidas mesmo aquelas que visavam à
autodefesa física e cultural do negro], fundadas e promovidas por pretos
e negros (...). Entidades religiosas [como terreiros de candomblé, por
exemplo], assistenciais [como as confrarias coloniais], recreativas
[como “clubes de negros”], artísticas [como os inúmeros grupos de
dança, capoeira, teatro, poesia], culturais [como os diversos “centros de
pesquisa”] e políticas [como o Movimento Negro Unificado]; e ações
de mobilização política, de protesto antidiscriminatório, de
aquilombamento, de rebeldia armada, de movimentos artísticos,
literários e ‘folclóricos’ – toda essa complexa dinâmica, ostensiva ou
encoberta, extemporânea ou cotidiana, constitui movimento negro.
(SANTOS, 1994, p.157).

Os movimentos sociais dos anos 1970 entendiam que as imagens das mobilizações
exerciam mais força que o movimento político que decorria da própria manifestação.
Abordagem na qual o Movimento Negro Unificado (MNU) entendeu a necessidade de se
lutar contra o estereótipo da inferioridade racial, configurada na imagem do negro, que
era apresentado por uma inépcia de conhecimento que o inferiorizava; justificando a
localização social de subordinação, dado pelo estereotipo negativo dos veículos de
comunicação de massa.

O Movimento Negro Unificado (MNU) acabou sendo o grande elemento político


de referência nas lutas raciais no Brasil, vale destacar que jovens cineastas como, Ari
Cândido, Celso Prudente, Zózimo Bulbul, entre outros, passam por este movimento, que
conseguiu mostrar para o mundo que o Brasil não era o paraíso da democracia racial,
como se acreditava até então. O MNU mostrou para o mundo que o Brasil possuía um
racismo institucional. Com isso, o estado teve que se esforçar para desarticular e diminuir
o racismo entre nós.

15
Nesta linha de compreensão surgiram as políticas de ações afirmativas, visando
contribuir para superar o racismo com instrumentos pedagógicos. A instituição da Lei
10.639/03, que altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino
a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
providências:
“O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso
Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar


acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:

"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,


oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e
Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo


incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros
no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão


ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas
de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

§ 3o (VETADO)"

"Art. 79-A. (VETADO)"

"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como


‘Dia Nacional da Consciência Negra’."

Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da


República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA


Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque” (BRASIL. Lei 10.639, 2003,
arts. 26-A, 79-A e 79-B)

Essa pesquisa torna-se importante ao apontar o Cinema Negro uma ferramenta


acessível para a aplicação da Lei 10.639/03 e ir além, trazendo a imagem de afirmação
positiva do negro na cinematografia, algo que durante várias décadas lhe foi negado.

16
De modo geral, durante a realização de uma pesquisa algumas questões são
colocadas imediatamente, enquanto outras vão aparecendo ao longo do trabalho. A
necessidade de dar conta dessas questões para poder encerrar as etapas da pesquisa
frequentemente nos leva a um trabalho de reflexão em torno dos problemas enfrentados,
erros cometidos, escolhas feitas e dificuldades descobertas. Para Becker (1999) a
metodologia é assunto de todos os cientistas sociais, em vez de ser uma área especial de
conhecimento esotérico dominada somente por poucos especialistas.

... os sociólogos deveriam se sentir livres para inventar os métodos


capazes de resolver os problemas das pesquisas que estão fazendo. É
como mandar construir uma casa para si. Embora existam princípios
gerais de construção, não há dois lugares iguais, não há dois arquitetos
que trabalhem da mesma maneira e não há dois proprietários com as
mesmas necessidades... (BECKER, 1999, p. 12).

Isso significa que temos que adaptar os princípios gerais da metodologia à situação
especifica que temos em nossa pesquisa. É de acordo com esse pressuposto de Becker que
desenvolveremos nosso trabalho.

Esta proposta surgiu da necessidade de partilhar algumas informações e reflexões


acerca do recurso à pesquisa qualitativa que, apesar dos riscos e dificuldades que impõe,
revela-se sempre um empreendimento profundamente instigante, agradável e desafiador.
Para atingir os objetivos sugeridos, serão utilizadas técnicas de produção de dados fontes
escritas, estudo documental juntamente com a coleta de dados e o estudo de entrevistas
coletadas de documentários e programas de televisão com alguns estetas do cinema
nacional, Abdias do Nascimento, Jeferson De, Joel Zito Araújo, Jorge Mautner, Lázaro
Ramos e Zózimo Bulbul.

Analisaremos, inclusive, entrevistas que fazem parte do acervo do site do


CULTNE criado em 2009. Possui o maior acervo digital de cultura negra do país,
disponibiliza o seu conteúdo para ser utilizado livremente em edições jornalísticas,
projetos estudantis, ou em qualquer atividade sem fins lucrativos, desde que citada a fonte.

Selecionamos algumas entrevistas realizadas no programa Espelho, produzido,


dirigido e apresentado por Lázaro Ramos semanalmente, exibido pelo Canal Brasil.
Espelho é um programa de entrevistas sobre a cultura e a realidade negra brasileira. Nossa
escolhe se deve pelo fato de que a valorização da diversidade é o tema central do
programa.

17
Outro fator determinante para essa escolha deve-se ao comprometimento com as
questões sociais do ator, diretor, escritor, produtor e cineasta negro Lázaro Ramos que
sempre está envolvido em diversos projetos. Foi nomeado Embaixador do UNICEF no
Brasil no dia 8 de julho de 2009, devido a credibilidade que tem perante seu público e
pela vinculação que consegue fazer entre sua agenda profissional e uma agenda social
dedicada aos direitos de crianças e adolescentes brasileiros, principalmente aqueles em
maior situação de vulnerabilidade.

Ainda que o termo fenomenologia (“ciência dos fenómenos”) remonte a Lambert,


a Kant, a Hegel, a Hartmann, a fenomenologia enquanto movimento e método do pensar
inicia-se com o filósofo austro-húngaro Edmund Husserl e tem como lema o “retorno às
coisas mesmas”, ou seja, o regresso aos fenômenos. Como afirma o filósofo francês
Merleau-Ponty (1908-1961) “trata-se de descrever e não de explicar nem analisar”. Tudo
o que conhecemos do mundo, sabemos através da nossa própria vivência.

Minayo (2007), afirma que “pelo fato de captar formalmente a fala sobre
determinado tema, a entrevista, quando analisada, precisa incorporar o contexto da sua
produção e, sempre que possível, ser acompanhada e complementada por informações
provenientes de observação participante”.
A obra de André Bazin “Qu’est-ce que Le cinema?” (O que é o cinema?), servirá
de base para darmos início as nossas discussões acerca do cinema, já que para falarmos
de Cinema Negro faz-se necessário a compreensão do que é o cinema em seus mais
diversos aspectos. Até a atualidade não obtivemos uma definição única do que é o cinema,
diversos críticos e historiadores vêm tentando significa-lo, colocando-o dentro de sentidos
e formulas, no entanto, não há apenas um caminho, como afirma Merten (2010), “o
cinema encerra em si todos os caminhos”.

Não podemos entender o cinema como uma invenção única, é preciso ir além, vê-
lo como algo que sofreu diversas transformações e foi fonte de várias pesquisas científicas
para projetar imagens em movimento.

Na obra Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da


cultura, especificamente no texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”,
Walter Benjamin analisa as mudanças na arte e vê o cinema como uma marca do
crescimento do valor de exposição diante do valor de culto. Ao se emancipar dos seus
fundamentos no culto, a arte perdeu qualquer aparência de autonomia. Porém, a época
não se deu conta da funcionalização da arte. Mas as dificuldades com que a fotografia

18
confrontou a estética tradicional eram brincadeiras infantis em comparação com as
suscitadas pelo cinema, como afirma o autor.

Para dar uma possível explicação à discussão que propomos buscaremos em Gilles
Deleuze o sentido filosófico do cinema, compreendendo-o como imagem movimento e
também como imagem-tempo. Deleuze discute a atuação do cinema na busca humana
pela cristalização do tempo, no sentido de resistir à perenidade da vida através da captura
e preservação de instantes.

Utilizaremos a obra “O negro brasileiro e o cinema”, de João Carlos Rodrigues


em que o autor se mostra negativo a respeito das representações de negros apresentadas
na cinematografia nacional. Temos em um primeiro momento o negro em três recortes:
aparecendo em filmes históricos como escravo ou rebelde, depois representado na
marginalidade urbana (bandido, malandro ou sambista). Por fim, o negro apresentado em
sua cultura, seja folclore ou religiosidade. Foco no estereótipo, arquétipo e caricaturas:
pretos velhos, mãe preta, mártir, negro de alma branca, nobre selvagem, negro revoltado,
negão, malandro, favelado, crioulo doido, mulata boa, musa.

Outras obras que contribuirão para o desenvolvimento de nossa pesquisa são os livros
organizados por Edileuza Penha de Souza, uma coleção com três volumes intitulados
“Negritude, Cinema e Educação: caminhos para a implementação da Lei 10.639/2003”,
onde diversos autores analisam filmes nacionais e estrangeiros e indicam maneiras de
utilizá-los em sala de aula, de modo a contribuir com a aplicação da Lei 10.639/03.
A obra “Racismo e Educação: contribuições para a implementação da Lei 10.639/03”,
organizada por Guimes Rodrigues Filho e Cristina Mary Ribeiro Perón, contribui para a
reflexão sobre a superação do racismo no ambiente escolar.

A Mostra Internacional de Cinema Negro será analisada como reflexo das diversas
lutas dos movimentos de massa e importante disseminadora do cinema negro na
atualidade.

Saber quais condições propiciaram o surgimento do cinema de modo geral, é


fundamental para nossa discussão. Para tanto nosso primeiro capítulo trará um pouco do
percurso histórico do cinema no Brasil e no mundo, partindo da trajetória dos irmãos
Lumière final do século XIX até o movimento Dogma Feijoada no início do século XXI.

19
1. CAPITULO I – SURGE A CINEMATOGRAFIA: DIVERSAS
ABORDAGENS SOBRE O CINEMA

“Negras, mas não máscaras,


Faces que estão dentro
Mesmo dos rostos mais brancos”.
(Mario Dirienzo)

1.1. Irmãos Lumière e o cinema como arte pelo mundo

Para se fazer uma discussão sobre o movimento conhecido como Cinema Negro,
compreendemos que seja necessário recapitular o surgimento do Cinema. Entender os
fatores que favorecem sua expansão, como arte e expressão da cultura, pelo mundo.

O final do século XIX é um período marcado pelo surgimento de diversas


invenções, os aparelhos que projetavam filmes eram apresentados como curiosidades. O
cinema, de acordo com Costa (2006), foi apresentado formalmente pelos irmãos Lumière
em 28 de dezembro de 1895, no Salão Indien, localizado no subsolo do Grand Café de
Paris, no Boulevard dês Capucines misturado a outras formas culturais, tais como, os
espetáculos de lanterna mágica, o teatro popular, os cartuns, as revistas ilustradas e os
cartões-postais.

Ao mesmo tempo em que o cinema ganha popularidade pelo mundo, no final do


século XIX, a Europa passa por diversas transformações. Podemos destacar a Segunda
Revolução Industrial, que traz nas palavras de Campos e Claro (2013), “o emprego da
energia elétrica, as pesquisas químicas e o desenvolvimento de motores a explosão
permitiram o aperfeiçoamento das indústrias e máquinas”.

Para compreender melhor os efeitos da Segunda Revolução Industrial, é preciso


entender que tipo de desenvolvimento esse processo traz para a sociedade, o que nas
palavras de Bresser-Pereira (2002):

“O desenvolvimento é um processo de transformação econômica,


política e social, através do qual o crescimento do padrão de vida da
população tende a tornar-se automático e autônomo. Trata-se de um
processo social global, em que as estruturas econômicas, políticas e
sociais de um país sofrem contínuas e profundas transformações. Não
tem sentido falar-se em desenvolvimento apenas econômico, ou apenas
político, ou apenas social. Não existe desenvolvimento dessa natureza,

20
parcelado, setorializado, a não ser para fins de exposição didática. Se o
desenvolvimento econômico não trouxer consigo modificações de
caráter social e político; se o desenvolvimento social e político não for
a um tempo o resultado e a causa de transformações econômicas, será
porque de fato não tivemos desenvolvimento. As modificações
verificadas em um desses setores terão sido tão superficiais, tão
epidérmicas, que não deixarão traços”. (BRESSERPEREIRA, 2002, p.
31)

O surgimento do cinema, não pode ser compreendido, apenas como uma invenção
meramente tecnológica, mas como um invento que marca o desenvolvimento, político,
social e econômico do final do século XIX e início do século XX.

Além disso, outro fator marcante desse período é a partilha do continente africano
entre as principais potencias mundiais. Entre os séculos XV e XVIII a justificativa para
se escravizar os africanos era o cristianismo, que pregava que essa era a única maneira de
salvá-los da barbárie. A partir do século XIX o discurso é modificado, agora se faz
necessário estimular o desenvolvimento desse continente no modelo europeu. Como
explica Campos e Claro (2013):

“Não bastava mais retirar da África suas riquezas; os novos


navegantes/exploradores queriam dominar e colonizar do conhecido
litoral ao misterioso centro do continente, transformando-o em principal
palco da política internacional. O avanço tecnológico representado
pelas máquinas a vapor, de fiar, de tecer, de fundir exigia que a África
se “adaptasse” e ocupasse um novo lugar na engrenagem do
desenvolvimento europeu. Mais uma vez a África era convocada, à
força, a participar do enriquecimento alheio”. (CAMPOS e CLARO,
2013, p. 198)

Esse processo influenciará diversas lutas pela independência de países africanos ao longo
do século XX, o que também se torna tema de inúmeros filmes do Cinema Negro.

Não é possível compreender o cinema como uma invenção única, é preciso ir além,
vê-lo como algo que sofreu diversas transformações e foi fonte de várias pesquisas
científicas para projetar imagens em movimento. Como por exemplo, o aperfeiçoamento
das técnicas fotográficas, a invenção do primeiro suporte fotográfico flexível (a
celuloide), que permitia a passagem por projetores e câmeras e também o melhoramento
de técnicas de maior precisão para montar as projeções.

O cinema se deve muito a Thomas A. Edison que com o auxílio de uma equipe
em New Jersey, trabalhava para construir máquinas que projetassem fotografias em

21
movimento. Segundo Costa (2006), em 1894 na cidade de Nova Yorque foi lançado o
salão de quinestocópios, com cerca de dez máquinas, apresentava em cada uma delas um
filme diferente. Quinestocópio era uma máquina que possuía um visor individual, onde,
através da inserção de uma moeda poder-se-ia assistir a uma tira de filme, geralmente
números cômicos, animais amestrados ou bailarinas. De acordo com Costa (2006):

“Edison produziu os filmes para o quinestocópio num pequeno estúdio


construído nos fundos de seu laboratório. Era uma construção
totalmente pintada de preto, que tinha um teto retrátil, para deixar entrar
a luz do dia, e que girava sobre si mesma, para acompanhar o sol. Por
seu aspecto, o primeiro estúdio de cinema do mundo foi apelidado de
Black Maria - como se designavam os camburões da polícia na época.
Lá dentro, dançarinas, acrobatas de vaudeville, atletas, animais e até
mesmo as palhaçadas dos técnicos de Edison eram filmados contra um
fundo preto, iluminados pela luz do sol”. (COSTA, 2006, p. 19).

A questão que se segue é: se as apresentações de pequenos filmes já não era


novidade, porque os irmãos Lumière ficaram tão famosos? A resposta se revela ao
conhecermos a trajetória desses irmãos. Os Lumière eram negociantes experientes e por
isso conseguiram tornar seu invento famoso pelo mundo todo, através da venda de
câmeras e filmes. Outro fator deve-se ao fato de o cinematógrafo ser mais leve e funcional
do que as máquinas de projeção existentes na época, ou seja, era um aparelho que
apresentava características da modernidade.

Geralmente esse tipo de apresentação era feita em uma espécie de teatro de


variedade, cafés e nos Estados Unidos, os vaudevilles. As filmagens dos irmãos Lumière
faziam mais sucesso que as outras pelo fato de o cinematógrafo não utilizar energia
elétrica, ser de fácil transporte e consequentemente, não ficar preso ao que se fazia nos
estúdios. Tinha como diferencial várias paisagens que filmavam por onde passavam e as
disseminavam pelo mundo.

Os irmãos Lumière foram referência de produção cinematográfica por algum


tempo, mas logo surgiram novas empresas com maquinas de projeções mais
aperfeiçoadas e com maior qualidade nas imagens, que acabaram ganhando os mercados
europeus e norte-americanos.

Segundo Flávia Cesarino Costa o cinema possui vários períodos, o primeiro é o


das atrações em que os espectadores estão interessados nos filmes mais como espetáculo
visual do que como uma maneira de contar histórias. (Costa 2006, p. 26). Este é dividido

22
em duas fases. A primeira apresenta como uma de suas principais características o
predomínio de apresentações documentais e atualidades e vai de 1894 até 1903. Na
segunda são criadas narrativas simples e os filmes de ficção passam a ter múltiplos planos
e até superam as atualidades, essa fase tem início em 1904 e dura até 1907.

Outro período destacado pela autora é o de transição, marcado pela busca das
empresas em atrair a classe média e com isso, fazer o cinema ganhar mais respeito, no
entanto, o público de classe baixa, continua a assistir as apresentações cinematográficas
em cinemas mais baratos. Notamos um grande esforço em se organizar novas estruturas
narrativas, mas estas ainda se mostram confusas. Como afirma Costa (2006):

“A partir de 1907, os filmes começam a utilizar convenções narrativas


especificamente cinematográficas, na tentativa de construir enredos
autoexplicativos. Há menos ação física e busca-se uma maior definição
psicológica nos personagens. Consolida-se o modelo das ficções de um
rolo só (mil pés), com variações entre gêneros. As tentativas de
construir novos códigos narrativos, que pudessem transmitir ao
espectador as intenções e motivações de personagens, acontecem
paralelamente às tentativas de regulamentação e racionalização da
indústria”. (COSTA, 2006, p.27-28)

É nesse momento que há um grande esforço das indústrias produtoras de filmes


em transformar o cinema em entretenimento para “todas as classes” e não apenas “teatros
de operários”, assim poderiam atrair mais lucro, aumentando o preço de ingressos e
também os aluguéis de filmes. Até esse momento o cinema se expande como forma de
divertimento barato para as classes baixas. Mas, a partir do momento em que se tem a
necessidade de aumentar o mercado produtor cinematográfico podemos perceber, por
intermédio das propagandas, que as indústrias queriam transformar o cinema em
divertimento para as elites.

Motion Picture Patents Company (MPPC), uma companhia criada por


norteamericanos tentava retomar o controle da indústria regulamentando a distribuição e
a venda de filmes. As propagandas de seus filmes em 1909 apresentavam-nos como
"divertimentos morais, educativos e sãos" (Gunning 1984, p. 76 apud Costa, 2006, p.

28). A partir de 1913, segundo Costa:

“Os filmes de rolo único já não são populares: foram substituídos pelos
longas. Há novas companhias independentes. A exibição de filmes
agora é dominada pelos enormes e luxuosos palácios do cinema, muitos

23
deles propriedade das empresas produtoras de filmes. O melodrama,
com sua moralidade polarizada e defesa da ordem social, passa a ser o
gênero dominante”. (COSTA, 2006, p.28).

É nesse momento que o cinema se transforma na primeira mídia de massa da história, e


que futuramente abre espaço para muitas discussões e debates. Desse modo, podemos
perceber como a cinematografia se torna cada vez mais ampla e complexa.

1.2. Cinema imagem e movimento: aspectos filosóficos

O movimento ideal que se desenvolve para quem lê e ouve, requer um esforço pujante.
Como afirmam Guido e Estevinho-Guido (2012), a filosofia é generosa no incentivo a
imaginação daqueles que a contemplam, quem recebe a mensagem dos filósofos ganha,
também, o convite a habilidade criativa. Vejamos a alegoria da caverna, de Platão, o
destaque dado é para que a arte exceda o dia-a-dia, quando o prisioneiro sai das sombras
da caverna para ver o mundo lá fora, para que isso aconteça faz-se necessário romper com
a apatia do cotidiano.

Walter Benjamin faz um estudo sobre Brecht, acerca do teatro épico, destacando as
funções desta arte. Para Brecht o teatro não se funda na literatura, não reproduz condições,
no entanto, as descobre. As formas do teatro épico correspondem às novas formas técnicas
do século XIX, o cinema e o rádio. Por princípio, esse teatro não conhece espectadores
retardatários. Essa característica demonstra, que sua ruptura com a concepção do teatro
como espetáculo social é mais profunda que sua ruptura com a concepção do teatro como
diversão noturna. O teatro épico questiona o caráter de diversão atribuído ao teatro. Abala
sua validade social ao privá-lo de sua função na ordem capitalista e ameaça a crítica em
seus privilégios.

Antes do surgimento da fotografia a obra de arte mantinha desde seu surgimento uma
aura sagrada, Benjamin faz uma definição deste conceito: “uma figura singular, composta
de elementos espaciais e temporais” (BENJAMIN, 1985, p. 170); o que significa que sua
posse não é destinada a qualquer pessoa e que sua reprodução não é conveniente. Aura é
“a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN,
1985, p.171). Segundo o autor existem duas circunstâncias que explicam o declínio atual
da aura: fazer as coisas ficarem mais próximas e a tendência das massas de superar o

24
caráter único dos objetos através de sua reprodutibilidade, que se tornou possível com o
advento da fotografia.

O surgimento da fotografia foi visto por diversos estudiosos da história da arte como
profanação do divino, no entanto, Benjamin traz uma leitura diferente para esse
acontecimento:

“Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela


primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do
ritual. A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma
obra de arte criada para ser reproduzida”. (BENJAMIN, 1985, p. 171).

Tanto a fotografia quanto o cinema democratizam a arte, dando acesso para públicos
cada vez maiores e diferentes. Essas manifestações sofreram diversas críticas,
principalmente daqueles que acreditavam que a arte estava restrita a produção erudita. E
segundo Guido e Estevinho-Guido os efeitos das críticas pretendiam fixar uma diferença
entre cultura e arte, sendo a primeira entendida como entretenimento das massas e a
segunda com um domínio conceitual e submetido às regras de composição apropriadas
aos cânones da concepção artística.

Para Benjamin a obra pode ser considerada como objeto de culto (valor de culto) ou
como realidade exibível (valor de exibição). O valor de culto quase obriga as obras a
manterem-se secretas, restritas as exposições museológicas ou sob propriedade de pessoas
ditas eruditas. A preponderância do valor de exibição confere à obra de arte novas
funções, faz com que ela ganhe novos espaços e chegue a diferentes grupos de pessoas.

Assim como na pré-história a preponderância absoluta do valor de culto conferido à


obra levou-a a ser concebida, em primeiro lugar, como instrumento mágico e só mais
tarde como obra de arte, do mesmo modo, a preponderância absoluta conferida hoje a seu
valor de exposição atribui-lhe funções novas, entre as quais a artística. Com a fotografia,
o valor de culto começa a recuar diante do valor de exibição.

Contrariando o pensamento de Benjamin, Adorno afirmou que: “o cinema e o rádio


não precisam mais se apresentar como arte” e explicou:

A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como


ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem.
Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos

25
rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quando à
necessidade social de seus produtos. (ADORNO, 1985, p. 114)

Em seus comentários sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade, Walter


Benjamin afirmou que apenas nas ocasiões em que perdem a aura sagrada é que as obras
de arte podem ser admiradas pelo maior número de pessoas (BENJAMIN, 1985,
p. 173). Podemos compreender com essa afirmação a dimensão pedagógica da obra de
arte. Ao se emancipar dos seus fundamentos no culto, a arte perdeu qualquer aparência
de autonomia. Entretanto, afirma Benjamin, a época não se deu conta da
refuncionalização da arte.

Para tentar compreender, ainda mais o cinema, que é nosso principal enfoque,
fomos na filosofia de Gilles Deleuze, já que esse autor analisa as composições do cinema
e, a partir delas, faz filosofia. Em sua obra Imagem-Movimento, Deleuze traz em seu
primeiro capítulo “Teses sobre o movimento – Primeiro comentário a Bérgson”, que
segundo Oliveira (2009), a escolha da filosofia bergsoniana se dá por conta de seu
vocabulário, “os textos de Bérgson são dominados por expressões linguísticas que,
posteriormente, tornar-se-iam participantes de um vocabulário técnico do cinema.
Découper, instantané, écran e o cinématographe, são termos muito atuais no período
histórico em que insere a obra bergsoniana e antecipam um léxico que tomaria conta dos
processos técnico-cinematográficos ao longo do século XX. (DELEUZE, 1983, p.10).

Outro fator que também justifica a escolha do sistema bergsoniano é:

[...] o diagnóstico de uma crise da psicologia. Não se podia opor o


movimento como realidade física no mundo exterior à imagem como
realidade psíquica na consciência. A descoberta bergsoniana de uma
imagem-movimento e, mais profundamente, de uma imagem-tempo
guarda até hoje uma tal riqueza que não é certo que se tirou todas as
consequências (DELEUZE, 1983, p. 07).

Diferente do que imaginava Bérgson, Deleuze retira essas consequências e nos


mostra como o movimento e a imagem se fundem em um só conceito inteiramente conexo
ao cinema. Segundo Oliveira (2009), Deleuze opta por Bérgson pelas seguintes séries:
“1) A necessidade de se encontrar uma justificativa para o cinema enquanto capaz de
produzir um movimento verdadeiro. 2) A precursão bergsoniana do léxico
cinematográfico. 3) A obediência a uma concepção renovada da história da filosofia. 4)
A oposição à psicanálise e à fenomenologia”.

26
De acordo com Deleuze o cinema reconstitui o movimento através de instantes
quaisquer, como afirma Oliveira (2009), o cinema opera de modo que os instantes
quaisquer equidistantes deem impressão de continuidade, e não de poses que se
transformam em outras poses. Segundo Deleuze (1983):

“O instante qualquer é o instante equidistante de um outro. Definimos


assim o cinema como o sistema que reproduz o movimento reportando-
o ao instante qualquer. Mas é aí que a dificuldade avulta. Qual o
interesse de um tal sistema? Do ponto de vista da ciência, muito
superficial. Pois a revolução científica era de análise. E se era necessário
reportar o movimento ao instante qualquer para poder analisá-lo, não se
percebia o interesse de uma síntese ou de uma reconstituição fundada
no mesmo princípio, a não ser um vago interesse de confirmação”.
(DELEUZE, 1983, p. 14).

O cinema mostra uma modulação da figura, e não um molde da mesma. De modo


que Deleuze afirma, quando se aludindo ao porquê de o desenho animado ser considerado
pertencente ao cinema: “Ele não nos apresenta uma figura descrita em um momento único,
é a continuidade do movimento que descreve a figura”. (DELEUZE, 1983, p.14).

Retornando a discussão sobre o cinema ser ou não arte, Deleuze afirma que:
“Nós estamos no coração mesmo da situação ambígua do cinema como ‘arte industrial’:
ele não era nem uma arte nem uma ciência”. (DELEUZE, 1983, p.16). Sendo assim, é
possível compreender que o cinema se reporta ao instante qualquer, não se aprisiona em
um instante único, movimenta-se.

Seguiremos para o próximo capítulo onde iremos observar o cinema no Brasil e


como o negro era representado a princípio, no final do século XIX e como surge o
movimento Cinema Negro na década de 1970 nascido de um outro movimento
revolucionário chamado de Cinema Novo.

27
2. O CINEMA NO BRASIL: TESTEMUNHO DA VIDA E DA ORGANIZAÇÃO
POLÍTICA NACIONAL

“Tenho estado arrasado, embora não o pareça,


Pelo fato de não ser ouvido nas ideias que tenho”.
(Grande Otelo)

O Brasil é marcado no decorrer do século XIX por inúmeras transformações, tais


como a promulgação da Lei Eusébio de Queirós, em 1850, que proibia o tráfico negreiro,
ou seja, a partir desta data o Brasil não poderia mais receber negros escravizados trazidos
da África. Em 1864 ocorre a Guerra do Paraguai, uma disputa pela hegemonia da região
platina, entre argentinos aliados aos brasileiros contra os paraguaios, que necessitavam da
Bacia Platina para acessar o oceano Atlântico.

Em 1871 é promulgada nova lei de combate ao escravismo a Lei do Ventre Livre,


que declara livres as crianças nascidas a partir de então. No entanto, essa lei não é de
grande valia ao combate a escravidão, pois as crianças nascidas nesse período acabam
ficando em situação de escravidão por não terem para onde ir, ou condições de
sobreviverem sozinhas. A escravidão é vista como algo natural. Rodas e Prudente
ensinam que:

“(...) o escravismo era presente nos remotos pensamentos helênicos,


caracterizado na mitologia grega, visto no episódio cujo Apolo, símbolo
da beleza e da harmonia, teve a escravidão como represália, quando se
rebelou contra o grande Zeus. Entretanto, não perdeu o status de ícone
do belo e do harmônico. Na escravidão clássica, o escravo era
reintegrado na sociedade que o escravizou, portanto, o poder era
proibido de usar de prática como lenocínio e outras que poderiam
fragmentar sua dignidade”. (RODAS, PRUDENTE, 2009, p. 503).

Os negros escravizados pelos europeus até o século XVIII não eram vistos como
seres humanos, mas como meras ferramentas de trabalho, em uma relação unicamente
econômica, neste sentido, observamos que não há preocupação com as relações humanas.

A Lei dos Sexagenários é promulgada em 1885. Pouco tempo depois em 1888, a


princesa Isabel assina a Lei Áurea, que declara oficialmente o fim da escravidão no Brasil.
Não que esse ato tenha sido manifestação da bondade da princesa, mas podemos observá-

28
lo como resultante de muitas lutas e resistências dos escravizados, que sempre lutaram
por sua liberdade, como afirma Skidmore:
“Em 1887, a escravatura estava moral e politicamente minada em todas
as direções com evidentes sinais de falência social, cujo quadro não era
outro: escravos fugiam de seus senhores, o exército recusavase a caçá-
los e os juízes começavam a ignorar as reclamações dos proprietários”.
(SKIDMORE, 1976, p. 32).

Diante desses fatos, a única opção que se apresenta é a libertação dos negros que
ainda se encontravam em condição de escravidão, mas essa ação acaba se dando pelas
mãos dos fazendeiros, que haviam lutado pela permanência do sistema escravista, mas
que veem agora, os benefícios dessa mudança. Segundo Skidmore (1976) “... o fato de
comandar a etapa final da abolição deixaria a elite fazendeira no controle do governo...”.

Em 1889 ocorre a deposição de D. Pedro II e a Proclamação da República. Começa


uma nova fase na história brasileira. Nesse período temos a separação da Igreja Católica
do Estado, a promulgação de uma nova Constituição Federal, criação de novos símbolos
nacionais, entre outras transformações.

O Brasil em 500 anos de existência computou cerca de 350 anos de escravidão,


foi o último país do ocidente a abolir o regime escravista. Seguramente, esse fator
influenciou as relações econômicas, ainda mais, por não ter criado uma política de
reintegração do liberto na nova ordem de trabalho livre.

Na Primeira República a situação do chamado povo brasileiro, a massa formada,


principalmente por negros, que com o advento da libertação, estão, nesse momento,
marginalizados e excluídos. A República não significa melhoria para a toda a população
brasileira, como afirma Sodré (2008):

“Depois de consumada a República, as coisas já se tornaram mais


difíceis. A classe dominante minoritária desligou-se, realmente, do
conjunto em que se compunha comas outras classes, camadas e grupos
sociais, constituindo o povo, e isolou-se no poder, a fim de desfrutá-lo
sozinha. Mas encontrou grandes obstáculos para conseguir seu intento.
A pequena burguesia brasileira, antiga na formação e antiga nas
reivindicações políticas — e a República era uma dessas velhas
reivindicações, esposada desde os tempos coloniais — defendeu
bravamente as suas posições e houve necessidade de cruentos choques
para desalojá-la”. (SODRÉ, 2008, p. 25)

29
Enquanto a classe dominante, formada em sua maioria por latifundiários, e a
burguesia disputam o poder político no Brasil, temos uma população esquecida e
abandonada, agora das ações do Estado. No entanto, não podemos esquecer que sempre
houve resistência por parte da população negra e no Brasil haviam intelectuais que eram
contrários ao regime escravista.
Em meio a esses acontecimentos o cinema chega ao Brasil, no início do século
XX, através do imigrante italiano Affonso Segretto, também um dos primeiros cineastas
do país, mas as exibições terão dificuldades em ser realizadas devido às precárias
condições no fornecimento de energia elétrica. Mesmo assim, nesse período haverá
centenas de pequenos filmes gravados no Rio de Janeiro e exibidos para a população
crescente que está havida por diversão e lazer.

Segundo Jeferson De, entre 1898 a 1929 há um período silencioso, em que os


negros quase não aparecem nos filmes nacionais. Notamos que, timidamente, aparecem
em alguns documentários da época:

“Algo próximo do que hoje chamamos de documentários, ou


reportagens (vistas animadas, como eram chamados na época),
registravam eventos políticos públicos, bem como a vida mundana da
burguesia. Em muitos deles vemos negros entre os populares, quase
sempre nas bordas e no fundo dos enquadramentos. Essas imagens dão
a impressão de “escaparem” ao controle do cinegrafista”. (DE, 2005, p.
18).

Podemos observar que esse escapar, na verdade, é proposital e busca esconder a


verdadeira face da população brasileira. Há, intencionalmente, o desejo de branquear o
povo do Brasil e assim dar ao país uma feição europeia, e com isso um ar mais
“civilizado”, como se os negros não tivessem contribuído na construção dessa nação e
não apenas com sua mão de obra, mas com sua cultura, conhecimentos científicos e
tecnológicos.

Até os cientistas brasileiros do início do século XX acreditavam que a


miscigenação traria benefícios ao Brasil, pois a tornaria branca com o passar do tempo,
isso fica claro na afirmação de Skidmore:

30
“Chegou João Batista de Lacerda a afirmar que no Brasil ‘já se viram
filhos de métis2 apresentarem, na terceira geração, todos os caracteres
físicos da raça branca’. Alguns – admitiu -, ‘retêm uns poucos traços da
sua ascendência negra por influência do atavismo...’, mas ‘a influência
da seleção sexual... tende a neutralizar a do atavismo, remove dos
descendentes dos métis todos os traços da raça negra... Em virtude desse
processo de redução étnica, é lógico esperar que no curso de mais de
um século os métis tenham desaparecido do Brasil. Isso coincidirá com
a extinção paralela da raça negra em nosso meio”. (SKIDMORE, 1976,
p. 83)

Esse é o discurso que se tem da maioria de nossos intelectuais nessa época. Outro
fator que influenciava a questão do branqueamento era o incentivo recebido de visitantes
estrangeiros como nos traz Skidmore ao relatar o que o ex-presidente norte americano
Theodore Roosevelt escreve em um artigo após visita ao Brasil em 19131914 e que foi
traduzido e publicado no jornal Correio da Manhã:

“No Brasil ... o ideal principal é o do desaparecimento da questão negra


pelo desaparecimento do próprio negro, gradualmente absorvido pela
raça branca. Não quer isso dizer que os brasileiros sejam ou venham a
ser o povo de mestiços que certos escritores, não só franceses e ingleses,
mas americanos também, afirmam que são. Os brasileiros são um povo
branco, pertencente à raça do Mediterrâneo, diferenciando-se das gentes
do Norte, somente como delas diferem, com seu esplendido passado
histórico, as grandes e civilizadas velhas raças de espanhóis e italianos.
A evidente mistura de sangue índio adicionou-lhe um bom, e não mau
elemento. A enorme imigração europeia tende, década a década, a
tornar o sangue preto um elemento insignificante no sangue de toda a
nação. Os brasileiros do futuro serão, no sangue, mais europeus ainda
do que o foram no passado e diferençarão de cultura somente como os
americanos do Norte diferem”. (CORREIO DA MANHÃ apud
SKIDMORE, 1976, p. 85)

Esse tipo de discurso prova que não se tem nenhuma preocupação em dar aos negros,
mestiços e indígenas condições para seu pleno desenvolvimento, enquanto povo
brasileiro, já que o que se espera é a extinção desses grupos ao longo do tempo.

2.1 - A construção da imagem do negro através das produções cinematográficas


brasileiras

2
O termo métis foi utilizado pelo diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda em um relatório
intitulado Os Métis (que significa Mestiços) no I Congresso Universal de Raças, em Londres em 1911.

31
A partir de 1925 a produção cinematográfica brasileira aumenta juntamente com
a qualidade, consolida-se, nesse período, o cinema mudo. Nas décadas de 1930 e 1940 o
cinema falado ganha espaço em produções feitas, principalmente, no Rio de Janeiro,
basicamente teremos as chanchadas, como ficaram conhecidas as comédias musicais.

As informações sobre o cinema mudo brasileiro são relativas. Muitos


filmes se perderam entre os vários incêndios e a má conservação. A
maioria das pesquisas se baseia em jornais e revistas. Quanto à presença
do negro, as informações são quase nulas... (DE, 2005, p. 17).

Segundo Jeferson De (2005), nos anos 1920 e 1930, a decupagem, cortes feitos
nas imagens para que não aparecessem imagens indesejadas nos filmes, foi utilizada no
cinema para produzir certa eugenia racial à brasileira. A passagem abaixo foi publicada
na principal revista de cinema do período mudo, Cinearte, e expressa o que parte da crítica
pensava sobre a presença de negros nos filmes:

“Quando deixaremos desta mania de mostrar índios, caboclos, negros,


bichos e outras “avis raras”. Desta infeliz terra, aos olhos do espectador
cinematográfico? Vamos que porum acaso um destes filmes vá parar no
estrangeiro? Além de não ter arte, não haver technica nelle, deixará o
estrangeiro mais convencido do que ele pensa que nós somos: uma terra
igual a Angola, ao Congo ou cousa que o valha. Vejam se até tem graça
deixarem de filmar as ruas asfaltadas, os jardins, as praças, as obras de
arte, etc., para nos apresentarem aos olhos, aqui, um bando de
cangaceiros, ali, um mestiço vendendo garapa e um porunga, acolá, um
bando de negrões se banhando num rio, e cousas deste jaez.
(CINEARTE apud DE 2005, p. 19)

Essa passagem demonstra como os negros eram vistos no Brasil, imagem


indesejada, em uma mentalidade que acreditava que a Europa era o retrato da civilidade
e que os brancos o máximo da evolução humana.

Ao mesmo tempo em que temos o aumento das produções e transformações no


cinema, a sociedade brasileira também apresenta mudanças. A população cresce
juntamente com as reivindicações políticas, isso ocorre nos mais diversos setores de nossa
sociedade. Como afirma Sodré:

“O desenvolvimento capitalista, cuja demonstração mais evidente se


encontra na forma e na rapidez como reagiu a economia nacional aos
efeitos da crise de 1929, teve profundos reflexos na estrutura social do

32
país e em sua vida política. À proporção que as relações capitalistas se
ampliam, a burguesia brasileira cresce e se organiza, definindo as suas
reivindicações políticas; e, paralelamente, crescem o proletariado e o
semi proletariado, que se organizam, definindo aquele as suas
reivindicações políticas. Por força dos mesmos efeitos, reduz-se o poder
da classe dos latifundiários e no campo fermentam inquietações.
Aumenta a pequena burguesia, que se multiplica em atividades, em
disputa de melhores oportunidades. Está presente nos grandes episódios
políticos: as campanhas de Rui Barbosa, o tenentismo, a revolução de
1930. No vasto mundo rural, o campesinato começa a acordar do sono
secular: aparecem as revoluções camponesas, travestidas de fanatismo
religioso; primeiro Canudos, depois o Contestado, e prossegue na luta
dos posseiros e nas organizações atuais, as Ligas Camponesas, que tanto
surpreendem e assustam os que acreditavam piamente na eternidade do
conformismo”. (SODRÉ, 2008, p. 27)

Essas mudanças somadas às representações descritas, principalmente, nas


chanchadas, de caricaturas dos negros possui grande influência na formação da visão que
a sociedade brasileira terá sobre o mesmo. Este é sempre o explorado, o escravo, cativo,
pobre e vulnerável. Esta visão faz com que o próprio negro não se reconheça enquanto
agente histórico, fazendo-o querer sempre se “branquear”, pois, se é chamado de negro
afirma ser moreno descendente de índios, se é chamado de índio se diz descendente de
portugueses ou espanhóis, sempre buscando uma raiz branca para se firmar em sociedade.

Nas chanchadas temos atuações de atores negros que aparecem, na maioria das
vezes, como parte do cenário, seja como bailarinos ou figurantes. Há referências a cultura
negra como pano de fundo aos enredos montados. O negro aparece sempre como
secundário e, de certo modo, serve de degrau para os artistas brancos. De define bem a
representação dos negros no cinema:

“A representação do negro na chanchada foi estereotipada. Estereótipos


são valores, ideias, opiniões generalizadas sobre grupos sociais. Não
raramente, eles se dão numa relação de dominação em que o grupo
dominado recebe os estereótipos de interiorização” (DE, 2005, p.28).

De certa forma essas representações colaboram para a disseminação da ideologia


de que o negro está em um patamar muito inferior ao do branco. Essa questão surge no
final do século XIX com as políticas para trazer ao Brasil imigrantes europeus, com o
objetivo de “branquear” a população que precisa ser “melhorada”.

33
Diante disso, percebe-se a dificuldade em se trabalhar com naturalidade a história
da África, como afirma Prudente (2002) “Pensar a milenar história africana perante a
breve história secular brasileira, por exemplo, é um exercício antropológico de difícil
realização diante da conjugação de realidades culturais tão distintas”.

A África é o continente conhecido como berço da civilização humana, logo,


analisá-la é algo que exige muita reflexão e discussão, principalmente no contexto de
formação da sociedade brasileira, pois ganhou significado marginal, sendo vista e
retratada apenas como fonte de pobreza e miséria.

Com a imagem marginal que esse continente recebe, muitas pessoas acabam
esquecendo que o Egito, uma das maiores civilizações do mundo antigo fica na África, e
que seu povo desenvolveu técnicas sofisticadas de construção, irrigação, escrita, deixando
um legado imenso para o desenvolvimento da humanidade.
No Brasil, no decorrer da década de 1930, surgem em São Paulo entidades negras
que contestam e delatam o preconceito sofrido pela população afrodescendente. Para
conter essa luta contra o racismo, constrói-se, segundo Joel Rufino dos Santos, a ideologia
da “democracia racial”, que aponta como caminho para a ascensão social do negro a
música popular e o futebol.

Percebemos que um dos principais problemas na sociedade brasileira é o fato de


não aceitar, muitas vezes, a existência do preconceito contra o negro, de negar a existência
da desigualdade, ou seja, que negros e brancos não possuem as mesmas oportunidades.
Durante muito tempo se utilizou a teoria do branqueamento como discurso para melhorar
a população brasileira, como explica Skidmore:

“Uma das maneiras consagradas de explicar o ‘branqueamento’


brasileiro constituiu sempre em comparar o Brasil aos Estados
Unidos(...) mesmo um pensador racista relativamente ortodoxo – como
Nina Rodrigues – perturbava-se com o pensamento de que podia estar
assemelhando o Brasil aos Estados Unidos (...).
Essa descrição dos Estados Unidos de João Batista de Lacerda era,
naturalmente, uma tolice. Fossem quais fossem as supostas diferenças
de comportamento racial, os americanos sempre praticaram livremente
a miscigenação. (...). Nenhuma sociedade escravista na América deixou
de produzir uma vasta população mulata. Não é no fato da
miscigenação, mas no reconhecimento ou não-reconhecimento dos
mestiços como grupo separado que reside a diferença. Discutindo os
Estados Unidos, João Batista de Lacerda confundiu o sistema de
segregação legal e social com a suposta pureza racial – referindo-se,
mesmo, aos mestiços como ‘raça’. Na verdade, a sociedade branca

34
norte-americana tinha simplesmente empurrado seus mestiços para a
categoria inferior de ‘negro’.” (SKIMORE, 1976, p. 86-87)

Nota-se, mais uma vez, a construção de uma imagem marginalizada do negro. O


diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda equivocou-se ao falar em um
congresso sobre o mestiço, defendendo que essas relações favoreceriam o processo de
branqueamento brasileiro. No pensamento desse e de muitos outros intelectuais dessa
época, o Brasil só alcançaria um patamar mais elevado no cenário mundial com a melhoria
de sua população e isso só se daria com o advento do embranquecimento da mesma.

No entanto, não podemos deixar de lembrar que no início do século XX havia


grupos de intelectuais que acreditavam que a miscigenação era uma decadência do povo
português. Como relata Skidmore:

“Filtrava, também, das penas dos pensadores sociais de segunda linha e


propagandistas menores da década seguinte, como se pode ver no
discurso de Hermann Byron de Araújo Soares, orador da turma de 1913
da Faculdade de Direito do Recife. Pouco conhecido daí por diante,
Hermann Soares fez um discurso sem originalidade, mas que serve
como típica sinopse das qualificações brasileiras à teoria racista
ortodoxa no começo do século XX: ‘A raça latina não tem perseverança,
não tem energia, não tem caráter...’ – afirmou. Era a familiar teoria da
degenerescência, latina que se fizera corolário da escola histórica do
pensamento racista. ‘Os ingleses, os norteamericanos, descendentes de
outra raça, que não latina, são povos predestinados às grandes
conquistas no universo’ – reafirmava. O Brasil nunca poderia atingir ‘os
mais altos graus de desenvolvimento, como a América do Norte’, por
causa de suas origens. Essa triste história começou com a colonização
pelos portugueses, povo em decadência’ – concluía. (SKIDMORE,
1976, p. 79)

Essa marginalização do negro brasileiro é implicada pela questão racial, onde este é
deslocado das relações consideradas socialmente válidas, por causa da discriminação.
Essa questão da miscigenação, dificulta a união do grupo afro-brasileiro, pois o mestiço
não se encaixa no grupo dos negros, tampouco no grupo dos brancos.

2.2 - Estereótipos e caricaturas: a representação da imagem do negro no cinema brasileiro

Para tratar dos estereótipos e caricaturas dos negros apresentados na cinematografia


nacional, nos guiaremos pela obra “O negro brasileiro e o cinema”, de João Carlos
Rodrigues. Como dito anteriormente, no início, as produções fílmicas nacionais

35
procuravam retirar as imagens de negros. Com a evolução do cinema, ocorrem mudanças
quanto aos negros que de excluídos dos filmes passam a ser representados não como
personagens reais, no entanto, aparecem agora como arquétipos.

Os pretos velhos, de início, eram os responsáveis por manter conhecimento oral nas terras
africanas, também são entidades de religiões de matriz africana como a Umbanda e o
Candomblé que são detentores de grande sabedoria, porém, ao serem representados no
cinema mudam drasticamente suas principais características. Como afirma Rodrigues
(2011):

“Apesar de suas origens ilustres, os Pretos Velhos aparecem em nossa


ficção como essencialmente conformistas, numa espécie de contraponto
ao negro militante. Não surgem com muita frequência no cinema
brasileiro, no qual raramente ultrapassam o nível de coadjuvantes”.
(RODRIGUES, 2011, p. 24)

Esse tipo de personagem é bastante retratado na literatura, ganhando as telas com as


adaptações desses textos em filmes ou séries. A mãe preta é outro estereótipo que se
aproxima muito dos pretos velhos, por sua característica de conformidade com a
escravidão. Geralmente, a mãe preta é uma ama de leite que cuidou e amamentou os filhos
do senhor escravista. Outra marca desse tipo de personagem é o sacrifício de se afastar de
seus filhos brancos para que esses possam ser bem-sucedidos:

“O subtexto é evidente: para serem bem aceitos pela sociedade


dominante, esses filhos brancos devem renunciar às suas Mães Pretas,
que os prendem a um passado que deve ser esquecido. Quando não
fazem isso, são elas mesmas que abdicam ao seu direito para não
prejudicá-los. Pois, afinal, reconhecem seu último degrau da sociedade.
Personagem com altíssima dose de melodramaticidade, a Mãe Preta não
é muito comum no cinema brasileiro moderno”.
(RODRIGUES, 2011, p. 25)

O mártir é representado como um escravo que se coloca em situação de tortura para


“salvar” os demais de uma punição severa, como por exemplo, o Negrinho do Pastoreio
e a escrava Anastácia. Esses personagens acabam ganhando espaço nas lendas locais.
Outro arquétipo apresentado é o negro de alma branca, na maioria das vezes é
representado como um negro que foi bem instruído e com isso se integra ao grupo
dominante. Rodrigues nos exemplifica esse personagem, com a atuação do jogador de
futebol Pelé:

36
“Menino exemplar que se torna um grande atleta no biográfico O rei
Pelé (1962); negro liberto que dissuade os escravos de aderir à luta
armada pela sua libertação em A marcha (1972); policial bem
intencionado que protege meninos de rua de uma terrível quadrilha em
Os trombadinhas (1979) – seus personagens didaticamente “positivos”
estão sempre muito distantes da realidade cotidiana da absoluta maioria
dos negros brasileiros”. (RODRIGUES, 2011, p. 29)

Esse personagem acaba sendo excluído pelos grupos de negros militantes, pois tende a
ser visto como traidor, já em meio aos brancos é rejeitado por não pertencer a esse grupo.

Rodrigues traz outros estereótipos tais como o nobre selvagem sempre representado
como digno, cheio de força de vontade e um exemplo de respeito. Uma versão armada
desse arquétipo é o negro revoltado, sua principal representação é Zumbi, líder do
Quilombo de Palmares, local que representou por quase cem anos a resistência dos negros
contra a escravidão.

Um arquétipo que se disseminou muito por todo o país foi o negão, atribui aos
negros apetites sexuais, pervertidos ou insaciáveis, pode, ainda, ser o objeto do desejo
ardente das jovens das classes dominantes. Uma versão feminina desse arquétipo é a
mulata boazuda, personagem que exala sexualidade, são representadas, na maioria das
vezes, como as empregadas domésticas, que despertam o desejo dos patrões. Há o
malandro, estereótipo bem comum nos filmes, é o sujeito que engana e mente para obter
aquilo que deseja, pode ser representado como mais um sobrevivente da periferia ou
mesmo um bandido. Na maioria das vezes é representado acompanhado de uma mulata
boazuda.

O crioulo doido é um tipo que fez muito sucesso no cinema nacional, por ser cômico,
simpático, ingênuo e até mesmo, infantil, raramente é o personagem central. Todos esses
estereótipos fizeram e fazem parte das representações dos negros no cinema, podemos
observar que, na maioria das vezes, não ressaltam as qualidades ou contribuições que as
populações que foram escravizadas na África trouxeram para a construção de nosso país.
Impondo a maioria da população, de origem negra, uma negação de sua ancestralidade
por sempre remeter a submissão e aceitação da condição de escravizado.

37
2.3 - Cinema Novo: Lutas de imagens no cinema nacional

No Brasil, a partir da década de 1960 um grupo de jovens mais envolvidos com a


discussão da realidade brasileira por meio do cinema, passou a entender nas ações do CPC
(Centro Popular de Cultura) um posicionamento populista e dirigista, com isso acabam
rompendo com o mesmo; os jovens criaram a raiz do Cinema Novo realizando o manifesto
que nasceu da crítica aos grandes estúdios, representantes do imperialismo americano.
Realizaram filmes colocando o negro como expressão da imagem da pobreza brasileira,
dando-lhe o protagonismo transformador do cinema.

Segundo Prudente (2005), Glauber Rocha viu no negro empobrecido a principal


referência da imagética do proletariado:

“A imagem da pobreza e do pobre são representadas,


predominantemente, pela figura do negro no cinema novo, posição com
a qual a juventude negra se identifica, pois via sua realidade discutida
no cinema como, por exemplo, no filme Barravento. Aliás, é possível
dizer que o ideólogo do cinema novo via no negro a configuração Ada
imagem do povo. (PRUDENTE, 2005 apud REVISTA PALMARES,
2005, p. 69).

A luta contra o estereótipo da imagem do negro e da sua cultura mostrou esforço


especial em favor de uma educação que concorre no sentido da superação do racismo e
também de busca de caminhos, onde a africanidade pudesse afirmar a importância da sua
cultura. Para Prudente (1995) o Cinema Novo:

“... é um movimento sócio-cultural com origem no final dos anos 50,


em oposição ao cinema de indústria, configurado na política
cinematográfica dos grandes estúdios. Este movimento encontra na
genialidade de Glauber Rocha sua liderança. Como movimento cultural
em oposição ao cinema de indústria, o Cinema Novo se insere v 55numa
ascensão sócio-cultural de dimensão internacional, influenciado que foi
pela Nouvelle Vague (França), neo-realismo (Itália), underground
(Estados Unidos). A precariedade instrumental desses jovens cineastas
brasileiros foi fator determinante para a concepção estética do Cinema
Novo. A independência da realização possibilitou uma crítica da
realidade brasileira em favor de uma linguagem nacional contra o
colonialismo cultural da política do cinema dos grandes estúdios,
voltada para os interesses imperialistas”. (PRUDENTE, 1995, p. 13)

Essas ações dos cineastas cinemanovistas fortalece as lutas do movimento negro


brasileiro, pois dá aos marginalizados sociais protagonismo e voz, trazendo discussões

38
que até então eram consideradas tabu. O Cinema Novo, segundo Prudente (1995), traz
um novo conceito:

“O conceito de cinema do autor significa a proposta cinematográfica


poética, como pintura, que impunha a necessidade de liberdade. Essa
situação dificilmente se realizaria no cinema comercial, devido à
determinante do resultado financeiro que estava em primeiro lugar.
Desse modo, o cinema comercial suprimiria a condição essencial do
diretor, ou seja, o cineasta, isto é, o autor”. (PRUDENTE, 1995, p. 52).

Com essa afirmação de Prudente, podemos notar o caráter revolucionário do


Cinema Novo, que deixa de lado as preocupações com os lucros e prioriza os debates
sociais. O Cinema Novo, enquanto corrente cinematográfica antagônica a Chanchada,
descobrirá seu objeto na expressão do povo brasileiro, especialmente o negro, que foi
excluído ou estereotipado na imagética da Chanchada.

O negro foi referencial estético, no Cinema Novo, principalmente, nas produções


cinematográficas de Glauber Rocha. Essa tendência encontrava no negro a expressão
conotativa da representação do trabalhador. É possível crer que o Cinema Novo tenha
origem na crise da Chanchada, surgindo como afirmação de uma nova imagem dos
brasileiros na perspectiva de luta contra a imagem imposta pelo imperialismo americano,
que se constituía como poder, inferiorizando a imagem dos mestiços no Brasil, por meio
do estereótipo da ideologia de inferioridade do negro e do índio.

No Brasil o Cinema Negro nasce no Cinema Novo, desenvolvendo-se em favor


do resgate da imagem positiva do negro no cinema, onde o afrodescendente ocupa o lugar
de realizador, reescrevendo a história do negro através da imagem. O Cinema Negro,
converge em favor da imagem positiva da africanidade contrapondo-se ao estereótipo
recebido na cinematografia, que tenta diminuir e minimizar as contribuições dos negros.
Assim, o Cinema Negro, será, enquanto arte e produção de conhecimento, instrumento de
afirmação da africanidade.

É sensato supor que no Cinema Negro o realizador cria um cinema de luta, que
busca a reconstrução da imagem de afirmação positiva do negro. Como ensina Prudente:

39
“Cumpre lembrar que, “Leão de Sete Cabeças”, de Glauber Rocha,
talvez a mais importante obra para a fundação do Cinema Negro
brasileiro encerra inequivocamente notável sentimento de volta as
origens. ‘Ao meu quase cego ver’, é no esforço da reconstituição da mãe
África, dado por um processo de uma escatologia negra, que se percebe
a luta de afirmação ontológica da africanidade, enquanto traço estrutural
do Cinema Negro, na luta pela construção da imagem de afirmação
positiva do negro, enquanto um ensinamento para a cultura de paz”.
(PRUDENTE, 2015, p. 71)

A questão étnico-racial brasileira pode ser entendida como uma expressão


socioeconômica, ou seja, não se limita apenas as questões financeiras, mas na construção
social de nosso povo. O Cinema Negro é, de certa forma, uma luta de imagem, projetada
na dinâmica das lutas de classes. Quanto maior sua expressão na sociedade, maior será a
representatividade das minorias, notadamente, dos afrodescendentes.
No próximo capítulo vamos abordar questão da imagem de afirmação positiva do
negro, tratada no Cinema Negro como arma contra o racismo.

40
3. CAPITULO III - CINEMA NEGRO: EXPRESSÃO IMAGÉTICA DE
AFIRMAÇÃO POSITIVA DO NEGRO

“A liberdade jamais é dada pelo opressor, ela


tem que ser conquistada pelo oprimido.”
(Martin Luther King)

Um dos principais desafios das ciências sociais é estudar um fenômeno recente,


que ainda se encontra em curso. Nos parece que neste caso específico a dificuldade traduz-
se no fato de levantar questões, as vezes polêmicas, de pessoas e instituições, afetadas
pela gasta autopreservação. Comportamento que leva, geralmente, ao desconforto do
pesquisador, que é posto para responder questionamentos, mesmo que discutíveis de uma
determinada força da expressão do objeto do estudo.

Compreendendo o cinema como reflexo da sociedade passada, atual ou do futuro,


possivelmente se perceberá a influência que esta arte tem sobre a construção da nossa
identidade. Quando vemos as produções cinematográficas do Cinema Negro podemos
observar o protagonismo dos excluídos, principalmente do negro que até esse período,
década de 1960, é marginalizado totalmente nas produções nacionais, notamos que os
negros só se destacam em filmes de época, ou seja, que retratam o período escravocrata
do Brasil ou em comédias que caricaturam e estereotipam os afrodescendentes.

É sensato supor que o preconceito racial foi fundamental na produção da imagem


negativa do negro. Como podemos observar na reflexão de Maria Lúcia Rodrigues
Muller:

“A hierarquização ocupacional, antes de ser reflexo de condições


econômicas, era fruto do mesmo tipo de diferenciação cultural,
produzida com as questões do corpo. Assim como a aparência de
saúde ou doença, de beleza ou feiura, eram construções
simbólicas da ‘superioridade’ e ‘inferioridade’ raciais. Também
as representações sobre a ‘pouca’ inteligência de negros e
mestiços, sua ‘incapacidade’ (...) fazem parte de um conjunto de
representações sociais, originárias da difusão das teorias racistas
em voga no séc. XIX.” (MULLER, 2008, p. 43)

É sensato supor que a escravidão do negro está relacionada com inferioridade, na medida
em que o negro é utilizado como mão-de-obra apenas, possivelmente a partir disso se

41
passa a utilizar os traços culturais e físicos dos afrodescendentes como discurso para se
construir essa imagem negativa disseminada no cinema. A figura do negro não é positiva,
pois sempre remete a feiura, falta de inteligência, inabilidade.

3.1. Movimentos Sociais: ações para a conquista de políticas públicas

Podemos entender os movimentos negros como diversos movimentos realizados


por indivíduos que contestam a escravidão e o preconceito. Segundo o primeiro artigo da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, “Todas as pessoas nascem livres e iguais
em dignidade e direitos...”. No entanto, durante séculos da história do mundo, os negros
não usufruíram esse direito.

Torna-se necessário que não nos esqueçamos que os negros sempre resistiram, das
mais diversas maneiras contra o racismo, a escravidão e a opressão. Apesar de se tornar
uma soberania nacional com a Proclamação da República, em 1889 e a democracia ter
sido estabelecida, a situação dos negros no Brasil não mudou, continuaram à margem da
sociedade.

A partir das décadas de 1960 e 1970 ocorreram alterações nos quadros políticos,
culturais e de comportamento em diversas partes do mundo. Apareceram movimentos de
estudantes e também feministas na Europa. Nos Estados Unidos, os negros lutavam por
seus direitos nas guerras civis e na África aconteceram guerras de independência em
diversos países. Já no Brasil, prevalecia a Ditadura Militar.

Nesse período, devido a censura e a perseguição, organizações negras precisaram


passar por modificações, tornando-se entidades que geravam entretenimento, afim de
manterem-se atuantes. Nesse momento, ocorre a criação do Centro de Cultura e Arte
Negra, em São Paulo e em outros estados brasileiros surgem entidades semelhantes que
buscam a conscientização da população sobre as questões envolvendo os
afrodescendentes. Como nos ensina Santos (2007):

“Na história da sociedade brasileira, a questão racial sempre esteve


presente, embora eficazmente ignorada. Conhece-la é essencial para a
compreensão de como se formaram as relações de dominação em nosso
país. (...) O desafio colocado diante do movimento negro era o de

42
contestar a ideia de um só povo, uma só raça e da inexistência de
conflitos raciais. Era importante desconstruir o mito de que vivemos em
plena harmonia”. (SANTOS, 2007, p. 09-10)

Observamos que as comunidades negras da periferia, principalmente os jovens,


mesmo com a coação sofrida por parte do governo, receberam fortes influencias da cultura
dos negros americanos como, por exemplo, a Soul Music, representado, inclusive, pela
figura do cantor James Brow. O funk, criado por Brow em 1967, um estilo de música que
passou a ser utilizado nos bailes realizados nas quadras das escolas de samba, foi adotado
por vários compositores e cantores do Brasil como Tim Maia, Toni Tornado, dentre
outros.

Nota-se que os negros brasileiros foram influenciados pelos negros norte-


americanos na observação do estilo e modo de agir desse período, exemplo disso foi a
realização do movimento Black Rio (analogia ao movimento realizado nos EUA, na
década de 1960 que valorizava a beleza dos negros) e o uso do cabelo Black Power,
rastafáris, a valorização de músicas como o reggae, principalmente as canções de Bob
Marley.

É possível compreender que esses grupos estavam tentando valorizar a identidade


dos negros brasileiros. Observamos aí, que as manifestações culturais passam a ser
símbolo das lutas por igualdade no Brasil e também ferramenta pedagógica que buscava
ensinar a sociedade as contribuições dos negros na construção de nosso país.

A partir da década de 1970, são realizadas manifestações políticas relacionadas ao


negro em várias partes do mundo, tais como os movimentos Black Power e dos direitos
civis nos EUA, isso impacta os afro-brasileiros, as figuras de Martin Luther King, Angela
Davis e Malcolm X atingem com seus ideais intelectuais e ativistas os negros do nosso
país. Com isso ativistas negros começam a se organizar e fundamentar seus ideais,
surgindo aí, o Movimento Negro Unificado (MNU), movimento voltado para a defesa das
questões raciais.

“A inclusão do outrem no processo das relações de plena existência tem


sido uma operação que busca para que o marginalizado venha resgatar
a sua capacidade de iniciativa, com vistas nas relações de plenitude.
Considera-se que, no sistema de iniciativa privada, o marginalizado é
privado de iniciativa, enquanto que essência humana se estabelece por
um processo de demandas ontológicas, pois permite à pessoa a condição
do Ser, fenômeno que se expressa no respeito ao passado de relações

43
memoriais, como forma de entendimento do presente. É nesse plano,
que se abre brechas para a ancestralidade, como força vital,
possivelmente, é aí, que se plasma o conceito de afro-brasileiro,
portanto só existe integração quando se considera a axiologia do grupo
étnico tratado”. (PRUDENTE, 2007, p. 07)

Considerado o momento político em que o Brasil se encontra no final da década


de 1970, podemos observar que esses movimentos traduzem uma necessidade latente, a
união das minorias e, também, das força populares contra o regime autoritário. É possível
entender que os movimentos sociais tiveram grande influência nas conquistas das
minorias no decorrer do século XX.

Nesse contexto, é possível entender a valorização da cultura negra e nosso elo com
o continente africano como base de fortalecimento do povo afro-brasileiro. No entanto, o
MNU não se preocupava só com as questões voltadas a cultura negra, havia uma
preocupação com o campo da educação, entendia-se a necessidade de se reavaliar a
história do negro no Brasil e as crianças negras ganharam atenção especial,
principalmente no combate aos estereótipos.

O Movimento Negro Unificado entendia que que a luta contra a desigualdade não
era função apenas dos negros, mas de toda a sociedade. Sendo assim, passou a se
solidarizar com outros setores minoritários. Era a compreensão de que a marginalização
dos afrodescendentes passava por outros setores da sociedade.

Influenciados pelo MNU, os dois primeiro filmes produzidos dentro do


movimento do Cinema Negro na década de 1970, apontavam para uma tendência marxista
de duas revoluções africanas a angolana e a da Eritréia. Dessa forma torna-se inegável a
importância dos movimentos sociais na composição do Cinema Negro. É possível, então,
compreender que a arte enquanto expressão de conhecimento produz valores que
representam o negado em sua feição ideal.

3.2. Lei 10.639/2003 e as produções cinematográficas

A leitura de mundo, faz-se necessária quando observamos criticamente qualquer


que seja o objeto. Torna-se imperativo que façamos o enfrentamento do novo, a partir de

44
um olhar mais amplo, para que não, segundo Freire (2000), “diviniza-las ou diabolizá-
las.” Assim deve ser nossa postura diante das produções cinematográficas, pois estas, nos
possibilitariam longos debates nas escolas ou nas universidades acerca das principais
problemáticas que afetam nossa sociedade.

Neste sentido, é importante estudar o Cinema Negro e perceber as intenções


presentes nessas películas. Para Benjamin, uma das funções sociais mais importantes do
cinema é criar um equilíbrio entre o homem e o aparelho, pela forma como ele representa
o mundo. Graças a esse aparelho, o cinema faz-nos vislumbrar, por um lado, os mil
condicionamentos que determinam nossa existência e por outro assegura-nos um espaço
de liberdade.

A estrutura do Brasil que persiste até a atualidade é, provavelmente, construída


pelo racismo, que foi composto por ideais que a classe economicamente dominante
estabeleceu, com a intenção dar legitimidade a escravidão e a composição de relações
sociais nessa sociedade, após a abolição. Observamos dois movimentos ideológicos
impostos: o primeiro é o de “ideologia de dominação racial”, para justificar o porquê da
escravidão; e o segundo é o “mito da democracia racial”, a fim de esconder as
decorrências dessa escravidão para o negro brasileiro e desigualdades raciais no Brasil.

Em janeiro de 2003, o então presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva,


anunciou que a Lei 10.639/03 é o instrumento essencial para que se possa haver um
enfrentamento da questão problemática das relações sociais no Brasil. Foi estabelecido
que as instituições de ensino passassem a se envolver completamente aliando-se ao
governo, para que nos ambientes educacionais se trabalhasse a luta do antirracismo no
Brasil. Essas medidas foram aderidas diante das lutas do Movimento Negro que há muito
tempo reivindicavam que o Estado reconhecesse a existência do racismo e destituísse a
ideia de democracia racial, que perdurou durante muito tempo no imaginário da população
brasileira.

“(...) a todo e qualquer grupo social com histórico de exclusão e


qualquer tipo de discriminação diante de grupos sociais hegemônicos.
Populações negras e indígenas, mulheres, homossexuais, deficientes
físicos, idosos, jovens das periferias urbanas, trabalhadores do campo,
dentre outros grupos em situação de vulnerabilidade social, podem ser
alvos de tais políticas. A curto e médio prazos essas políticas visam
diminuir as desigualdades sociais entre esses grupos sociais e os grupos
dominantes: em longo prazo, o que se pretende é estabelecer uma

45
substantiva justiça e equidade social, ou seja, a construção de uma
sólida democracia.” (SILVA et. al, 2010, p. 79)

No entanto, sabemos que a existência de uma lei não significa, necessariamente,


que sua aplicação será cumprida pela sociedade, pois a construção histórica não se apaga
com a simples promulgação de uma lei. Existe a necessidade de se criar políticas públicas
e, principalmente, que haja adesão da população. No decorrer dos dez anos de vigência
da Lei 10.639/03, percebe-se que as diversas instâncias dos governos federal, estadual e
municipal buscaram, mesmo que timidamente, estabelecer estratégias para o seu
cumprimento.

Dessa maneira, cabe às instituições de ensino básicas e superiores o amplo debate


e, também, a busca de formas para a implementação da mesma. Sugerimos aqui, a
utilização da cinematografia como ferramenta pedagógica que pode auxiliar nesta
questão. Pois entendemos que há uma interpretação reducionista da trajetória dos negros
no Brasil.

Utilizar filmes como uma possível fonte de pesquisa é uma das probabilidades
para se trabalhar a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em sala de aula. O cinema
nos permite ampliar a reflexão, desde que sejam pesquisadas outras fontes que possam ir
além do currículo oficial. A educação baseada em um currículo que contemple a
diversidade cultural, permite uma reflexão da sociedade para auxiliar a realização de uma
observação crítica das imagens que representam o mundo contemporâneo.

Para Coutinho (2009) o cinema “é uma forma de arte que se afirma nessa estreita
relação entre o social e o privado, o público e a intimidade, revelando aspectos antes
inimagináveis e, de certa forma, esgarçando seus limites”. Podemos perceber que o
cinema nos concebe um novo mundo com infinitas linguagens e possibilidades de refletir
a sociedade brasileira, questão perceptível na as abordagens do Cinema Negro.

Marc Ferro analisa o cinema como constituído em documento, em fonte histórica,


no entanto, observa que o mesmo deve ser analisado levando-se em consideração não só
o que a tela reproduz; sua versão acabada e exibida com intenções comerciais. Devemos
enxergar além da reprodução das imagens, a conjuntura em que a obra foi realizada, o
período que pretende mostrar, e também o tempo no qual se originou.

“Cinema e história” tornou-se, nos últimos tempos, sinônimo de campo


de estudos inovador nas ciências sociais e humanas. Um campo de

46
estudos talvez mais comentado e aceito como relevante do que pensado
em sua complexidade e nos seus desafios enquanto espaço de reflexão
necessariamente interdisciplinar.” (KORNIS, 2008, p. 07)

Segundo a análise de Kornis a interdisciplinaridade é fundamental para a


utilização eficiente do cinema enquanto ferramenta pedagógica. Neste sentido além de
identificá-lo como documento histórico que retrata de diversas formas nossa população.
Tal análise tem por obrigação a verificação do realizador da obra, qual sua origem, qual
o contexto no qual o filme foi produzido e principalmente suas motivações.

Nesse sentido, é possível afirmar que o Cinema Negro apresenta a manifestação


das lutas em favor da construção de uma imagem de afirmação positiva do negro e de
todas as minorias no Brasil, preocupando-se com o processo de concepção e progresso da
consciência dos sujeitos. Sendo assim, possível que essas produções do cinema étnico
consiga colocar em prática formas diversificadas de trabalhar com o conhecimento
histórico, superando a chamada dicotomia entre produção e transmissão do conhecimento.

“(...) tendo como referência a construção, não de uma relação prática ou


morta com o passado, mas de uma relação histórica cada vez mais
complexa, em que a consciência histórica seja portadora da orientação
entre o presente, o passado e o futuro, no sentido de voltar-se para
dentro (o papel das identidades) e para fora (na perspectiva da
alteridade).” (SCHMIDT, 2009, p.19).

Compreender as formas com que os sujeitos, envolvidos no processo de produção


cinematográfica, entendem a historicidade presente nos filmes étnicos é um caminho
possível para fazer reflexões sobre a maneira com que as lutas sociais podem se apropriar
destes componentes culturais no desenvolvimento de suas teorias. A relação com o
passado pressupõe transformar em evidência a africanidade que está no presente. Os
filmes do Cinema Negro são manifestações claras desta presença, não como verdade
histórica, simplesmente, mas como processo de construção de identidade. Deste modo,
configuram-se como fontes para a fundamentação da racionalidade histórica.

As montagens, generalizações, seleções e mensagens que se expressam no Cinema


Negro, tornam essas produções fílmicas um veículo polissêmico, que podem abrigar
diversas leituras, mas também que podem direcionar e condensar olhares a respeito de
fatos e fenômenos históricos. Tal questão é trazida em primeiro plano por aqueles

47
pesquisadores que pensam em trabalhar o cinema em aulas de história como procedimento
de educação.

“Se a meta do trabalho educativo com filmes é formar pessoas que


reflitam de forma independente sobre todo produto de cinema a que
assistirem e sobre suas relações com o conhecimento histórico, a
realização dessa atividade nos quadros da cultura escolar requer sempre
a presença ativa do docente como planejador, acompanhante e analista
orientador, articulando a tarefa a outras práticas e problemas de estudo
que estejam em pauta com aquele grupo (SILVA; RAMOS, 2011, p 12).

A atividade docente é central no sentido de contribuir com possibilidades de


implementação da Lei 10.639/2003, no entanto, essa abordagem não se coloca como
trabalho principal explorar os potenciais de ensino e aprendizagem do uso desses filmes,
mas agir na conscientização dos alunos em relação ao seu posicionamento diante das
produções cinematográficas.

Ao desenvolver reflexões sobre formas e funções da cinematografia e a Lei


10639/03, evidenciamos um processo de construção de identidade através das lutas dos
movimentos sociais e suas conquistas. As reflexões teóricas sobre a história do negro no
Brasil passam a tomar como ponto de referência, principalmente no decorrer do século
XX, a expansão dos movimentos de luta em favor dos negros em todo o mundo. Passou-
se então a conceber-se que as lutas sociais necessitavam chegar a outros espaços, ou seja,
tornarem-se representadas nas mais variadas áreas.

Sendo assim, surge a Mostra Internacional do Cinema Negro que reflete a luta dos
movimentos sociais em prol de uma imagem positiva do negro. A Mostra será nosso
objeto de estudo do próximo capítulo.

48
4. CAPITULO IV - MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA NEGRO:
REFLEXO DA LUTA PELA AFIRMAÇÃO POSITIVA DA IMAGEM DO
NEGRO NO BRASIL

“Duas coisas são infinitas: o universo e a


estupidez humana. Mas, no que respeita
ao universo, ainda não adquiri a certeza
absoluta.” (Albert Einstein)

De modo geral, ao iniciar uma pesquisa diversas demandas são postas imediatamente,
outras, surgem no decorrer do trabalho. Torna-se, então, necessário dar conta de tais
questões para poder concluir as fases da pesquisa que a cada passo nos leva a um trabalho
de reflexão em torno das dificuldades enfrentadas, falhas cometidas, escolhas realizadas
e problemas descobertos. O método é tema de todos os cientistas sociais, em vez de ser
apenas uma área especial de conhecimento dominada exclusivamente por escassos
especialistas.

A morte foi significativa para a reflexão de uma possível construção da história da


arte. Estudá-la para o esteta no processo de sua força vital sugere, possivelmente, uma
possibilidade de não deter o máximo de informação em sua totalidade. Situação
provocativa da percepção das lacunas diante do elemento estudado. Como explica Didi-
Huberman (1953):

“Os livros, muitas vezes, são dedicados aos mortos. Inicialmente,


Winckelmann dedicou sua História da arte à arte antiga, pois, a seu ver,
fazia muito tempo que a arte antiga havia morrido. Do mesmo modo,
dedicou seu livro ao tempo, pois, a seu ver, o historiador era aquele que
caminhava no tempo das coisas passadas, isto é, das coisas falecidas.”
(DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 17).

Esta linha de pensamento acerca do discurso histórico possibilita compreender que


este não nasce, há sempre um recomeçar. Faz-se então a necessidade da investigação da
arte, quando a mesma se expressa como processo acabado, por uma razão de
temporalidade na qual a entropia3, ou seja, movimento natural que leva todas as coisas de

3
O termo entropia neste caso deve ser entendido nas ciências naturais como um processo de forças
implicado em uma dinâmica que não mais se estabelece como energia.

49
volta à massa da terra, impõe-se como possibilidade da dinâmica em questão. Alternativa
possível para a compreensão da provável dimensão pedagógica do Cinema Negro visto
na inquietude reflexiva de Celso Prudente:

“É sensato supor que no cinema étnico, sobretudo, no Cinema Negro o


realizador/autor desenvolve um cinema em que a luta é um instrumento
estrutural, na linha de reconstrução da imagem de afirmação positiva do
negro, que usa da câmera como arma fundamental para reescrever a
história com vista a um lirismo cinematográfico, que lhe permite o
esforço da incursão de uma imagética cuja africanidade acomoda-se na
perspectiva da ontologia com base no respeito à biodiversidade da
cosmovisão africana.”
(PRUDENTE, OLIVEIRA, 2015, p.70)

Provavelmente o Cinema Negro desenvolve-se em favor de um resgate do negro


enquanto agente histórico no cinema, superando o protagonismo, indo além, reescrevendo
a história dos negros e afrodescendentes através da imagem. Dessa maneira utiliza uma
espécie de pedagogia que pode ser percebida na capacidade de contribuir, ensinando ao
construir uma imagem de afirmação positiva do negro.

O Cinema Negro funciona, dessa forma, como mecanismo de luta em prol da


africanidade contra o estereótipo do eurocentrismo imagético, que busca desumanizar a
africanidade, quando exclui o negro do protagonismo que tem no contexto histórico
nacional. Constatamos aí a dimensão pedagógica do Cinema Negro, enquanto arte de
causa e instrumento de afirmação ontológica das minorias.

Em 2013 comemorou-se 50 anos do discurso de Martin Luther King a favor da


igualdade entre negros e brancos, temos ainda, o centenário do poeta Vinícius de Moraes
e a Mostra Internacional de Cinema Negro chega em sua 10ª edição homenageando o ator
e cineasta Haroldo Costa, primeiro ator negro a protagonizar no Teatro Municipal do Rio
de Janeiro, a peça Orfeu da Conceição, obra de Vinícius de Moraes em 1956.

A Mostra Internacional do Cinema Negro foi idealizada por Celso Luiz Prudente,
antropólogo, cineasta, professor da Universidade Federal do Mato Grosso e pesquisador
do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação (GPMSE), pertence também ao
Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty (GEMPO). Possui doutorado em Educação
pela Universidade de São Paulo (USP - 2003). Tem experiência na área de Antropologia,

50
com ênfase em Antropologia das Populações Afro-Brasileiras, atuando principalmente
nos seguintes temas: cinema, reconhecimento dos realizadores, o negro; cultura, casa
grande e senzala, Cinema Novo; Glauber Rocha; Cinema Negro.

A Mostra Internacional do Cinema Negro é reflexo da inquietude desse professor,


um militante em favor da africanidade, que por onde passa busca novas formas de levantar
a bandeira das minorias, seja enquanto docente de uma universidade ou mesmo
escrevendo uma coluna semanal, onde todas as semanas traz reflexões sobre a dimensão
pedagógica do cinema.

Na Mostra Internacional do Cinema Negro os longas e curtas exibidos


demonstram a contribuição do negro na sociedade, apontando o afrodescendente de forma
positiva, fugindo dos estereótipos e imagens depreciativas.

“(...) cumpre observar, que o termo cinema negro nasce com Glauber
Rocha, ideólogo do cinemanovismo. No filme “Leão de sete cabeças”,
o autor Glauber Rocha mostra uma hermenêutica, na qual a africanidade
se traduz em um terreno fértil, para a visão revolucionária do socialismo
internacional. Percebe-se nesse projeto cinematográfico glauberiano
um sentimento Afro-Latino-América.” (PRUDENTE, 2002, p.48).

Segundo Prudente, constata - se que o Cinema Negro é uma postura conceitual


para expressar o discernimento da nova posição sócio - cultural do afro - descendente, na
construção da imagem afirmativa do negro e de sua cultura. A mostra Internacional de
Cinema Negro objetiva contribuir para uma sociedade multicultural, onde haja espaço
para participação de todas as etnias.

A Mostra Internacional de Cinema Negro é um evento que exibe a produção


cultural negra e contribui para que fique clara a sua participação no desenvolvimento
cultural, econômico e social do Brasil. Ressalta também, que o negro é ator social
participante desse processo e não, apenas, mero expectador.

Sendo assim, podemos compreende-la como um fórum da discussão e também da


preservação da difusão do Cinema Negro. Constatamos, a necessidade de uma reflexão
crítica da Mostra Internacional do Cinema Negro como forma de resistência. De tal sorte
que se analisará em nosso estudo alguns elementos de autonomia, estabelecida na
dinâmica de resistência imagética na relação étnico-racial do negro, na suposta
democracia racial brasileira, tendo em vista que o nascimento do Cinema Negro se dá
com a fragmentação do mito da democracia racial pelo Movimento Negro Unificado.

51
Para a compreensão da militância da Mostra Internacional do Cinema Negro, faz-
se necessário saber que a cultura cinematográfica brasileira há tempos registra a história
do negro. Destacamos aqui a relevância de Glauber Rocha e do seu Cinema Novo que
teve forte contribuição na formação das gerações de cineastas que compuseram o Cinema
Negro. Como explica Prudente:

“O papel do Cinema Novo, na formação desses diretores,


provavelmente deve-se aos aspectos sociais de afirmação popular que
se contrapunham ao colonialismo cultural dos grandes estúdios (Vera
Cruz e Maristela), reprodutores da ideologia do cinema norteamericano.
Realçando o lado poético em lugar da técnica, o que caracteriza a
influência francesa da Nouvelle Vague e do neorrealismo italiano, a
estética cinema-novista é fundamental para se compreender a
emergência de um cinema negro no Brasil.” (PRUDENTE, 2005, p. 69).

Entendemos assim, que provavelmente o Cinema Novo tentou uma interpretação


da realidade social brasileira. Neste aspecto teve como alternativa a imagem popular, ou
seja, a representação das minorias, com isso a presença do negro tornou-se fundamental
e evidente. As produções cinematográfica realizadas por este movimento priorizam uma
possível reflexão social e cultural da política nacional, constituindo-se em momento
muito significativa dentro da história brasileira.

É sensato supor que o Cinema Novo foi um movimento cultural em oposição ao


cinema hollywoodiano, o que notamos ao observar que essas produções eram
independentes, sua concepção estética foi construída na precariedade dos instrumentos
utilizados pelos jovens cineastas. Possibilitando a crítica da realidade brasileira ao retratar
as periferias nacionais, os excluídos, contrapondo-se aos grandes estúdios norte-
americanos que priorizavam o lucro.

Percebemos aí, que a luta contra o estereótipo da imagem do negro e da sua cultura
mostrou esforço especial em favor de uma educação que concorre no sentido da superação
do racismo e também de busca de caminhos, onde a africanidade pudesse afirmar a
importância da sua cultura. Esta abordagem sugere que haja discernimento na questão da
presença positiva do negro, construído nas políticas públicas, em demanda de conquista
indicando uma reconstrução da imagem de afirmação positiva do negro e sua cultura.

52
Conhecer as origens é fundamental para a ampliação da consciência social e histórica de
uma nação.

Constatamos, com efeito, que o surgimento da Mostra Internacional do Cinema


Negro dá-se em um processo de mudança qualitativa da dimensão política da militância.
Constata-se ainda que os dez anos deste evento cine-racial acontece juntamente com a
conquista de uma década da Lei 10.639/03, que estabelece o estudo da cultura afro-
brasileira, juntamente com a história da África. Como reflete Prudente:

“Nota-se ainda que somente na contramão do conhecimento o ocidente


de feição imagética configurada no euro-hétero-machoautoritário nega
a sapiência esférica de epistemologia sagrada das cosmovisões antigas
das culturas africana, asiática (em especial da China antiga) e
ameríndia. Tendo em vista que essas cosmovisões antigas já praticavam
o respeito a biodiversidade, encontrando nas relações bioexistenciais
expressões atemporais de temporalidades sagradas, nas quais a vida em
suas diferentes formas eram a regência do sagrado e a expressão das
relações de sacralidade, sendo, portanto, profundamente respeitadas”.
(PRUDENTE, 2015, p. 3)

É possível entender que a Lei 10.639/03, ainda não conseguiu atingir suas
finalidades, torna-se necessário destacar que um período de dez anos deve ser estimado
pequeno, já que leis, geralmente, demoram períodos bem maiores para se implantarem.
Observamos que um dos motivos que obstrui a plena aplicação da lei em voga, é o mito
da democracia racial, que perpetua em nossa sociedade. Essa teoria leva a crer que existe
no Brasil um convívio tranquilo dos grupos étnicos, e que todos teriam oportunidades
análogas individuais de sucesso.

Os anos 1960 e 1970 foram marcados pela ascensão dos movimentos sociais.
Como se observa nas lutas nacionalistas e movimentos separatistas no Oriente Médio, na
Europa e na Ásia. Nos Estados Unidos a luta com culminância na marcha pelos direitos
civis encontram em Luther King o pacifista que buscava no sonho os alicerces da
construção da paz, sonhando com um mundo em que as pessoas se amassem e não fossem
reconhecidas pela cor da pele e sim por seu valor humano.

Enquanto que nos países africanos o cordão da colonização caia por terra, como
resultado de sangrentas lutas de descolonização revolucionária, marcadas por influências

53
do pensamento marxista. Cabe ressaltar que esse fenômeno ocorreu, principalmente, na
África de língua portuguesa.

O nosso trabalho se ocupará do discernimento da dimensão pedagógica do Cinema


Negro, na abordagem crítica de um processo memorial em que o realizador reconstrói a
sua história, por uma irreverencia imagética, contrariando o estabelecido. A dimensão
pedagógica do Cinema Negro, é portanto, percebida na condição de um cinema que atende
o anseio da minoria como um todo. Sendo inegável a urgência dos vulneráveis na
construção da sua respectiva imagem positiva por meio de uma espécie de escrita
iconográfica de um olhar condutor.

É possível nota-la em um quadro de transformação do saber, no qual a dinâmica


epistemológica protagoniza as relações, dimensionadas em conflitos. Discernimento
consubstancial de uma era em que as forças expressam-se enquanto tradução de
conhecimento, seguindo a lógica de que se assim não fosse, força também não o seria. A
imagem é, sobretudo, conhecimento mediante a designação informativa, mostrando-se
desta maneira como expressão de conhecimento.

Esta abordagem é revelada na dimensão pedagógica do Cinema Negro em nível


ontológico de luta, concorrendo pela afirmação de humanidade do negado. Fenômeno
digno de constatação no sentido da metodologia freiriana, dada na luta pela liberdade,
educando também o opressor do fardo da dependência do oprimido. Segundo Freire
(1987):

“(...) desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua
humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos
que a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível
na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos
que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada a mais
teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total
desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela
desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres
para si’, não teria significação. Esta somente é possível porque a
desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é porém,
destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência
dos opressores e esta, o ser menos.” (FREIRE, 1987, p.16)

Sendo assim, podemos compreender que o processo de liberdade deve ser visto e
sentido por ambos os lados. A libertação do estado de opressão é uma ação social, não

54
podendo, portanto, acontecer de maneira isolada. O homem é um ser social e por isso, a
consciência e transformação do meio deve acontecer em sociedade. A forma de
imposição que o opressor envolve o oprimido faz com estes sintam-se em condições onde
ele precise do seu usurpador, ou seja, não se reconhece enquanto protagonista.
Observamos isso nas representações estereotipadas do cinema nacional, abordadas
anteriormente.

A atuação política junto aos oprimidos deve ser, portanto, uma “ação cultural” que
caminhe para a liberdade. Segundo Freire (1987) o processo de desumanização coisifica
os homens, sendo assim, lutar pela sua humanização é fazer com que estes deixem de ser
“coisas”. Os oprimidos devem lutar como homens e não como “coisas”. Nesta relação de
opressão em que estão, é que se encontram devastados. Para restaurar sua humanidade é
importante que ultrapassem esse estado de quase “coisa”.

A imagem do Cinema Negro estabelece-se na humanidade dinâmica de miméticas


libertárias. Notamos que na revolução tecnológica, consubstanciada na informação, a
representação de um indivíduo, grupo ou instituição ganha mais significação que a pura
presença, considerando que a representação tem nuance hermenêutica, que confere a
imagética do Cinema Negro, enquanto que arte das maiorias minorizadas em um processo
de vulnerabilização 4 . Conforme sugerem Prudente, Passos e Castilho (2011), há um
processo imagético, próprio das relações sociais da era da informação:

“É preciso notar que a luta de classes tradicional do modo de produção


capitalista industrial mudou de figura com o advento da revolução
tecnológica, que situa a informação, não mais na máquina, como centro.
O modo de existência agora é outro, baseado na informação. Na era da
cibernética, que se encontram nos estágios mais avançados da
inteligência e da vida artificial, as lutas de classes se dão em uma
dinâmica imagética: de luta de imagem. No caso específico do Brasil,
esse elemento, se configura, indubitavelmente, no espectro que vai do
branco ao preto: demanda dégradé própria de uma sociedade
miscigênica, embora marcada pelo preconceito que tem aviltado a
imagem do diferente.” (PRUDENTE, PASSOS e CASTILHO, 2011, p.
89).

4
Entendemos que a população brasileira em sua maioria é composta por afro-descentes. E mesmo sendo
maioria em número essa população sofre com as desigualdades e com a marginalização, estando assim,
vulneráveis.

55
Deste modo, podemos entender a dimensão pedagógica do Cinema Negro, na
medida em que por meio da luta de imagens, reconstrói a imagem de afirmação positiva
do oprimido, em busca do resgaste de sua dignidade, fenômeno defendido pelos
movimentos de massa, que podem ser compreendidos como componentes estruturais
deste movimento cinematográfico.

As produções cinematográficas do Cinema Negro, que passam a ser produzidos a


partir da década de 1960, trazem certo impacto para a sociedade brasileira, pois trata o
negro como agente social, um fenômeno pouco comum na cinematografia nacional até
este momento.

Na atualidade temos a Mostra Internacional de Cinema Negro que contribui


significativamente para o processo de mudança, em relação aos negros e afrodescendentes
e sua luta em favor de uma imagem positiva. Todos os anos traz personalidades dos mais
variados meios para debater a questão dos negros no Brasil.

Algumas entrevistas que nos ajudaram a exemplificar a importância do debate e


também a atuação militante da Mostra Internacional do Cinema Negro em favor de uma
construção da imagem positiva do afros-descendente. Diante da imensa gama de
intelectuais, artistas e estetas militantes em favor das minorias optamos por destacar seis
personalidades brasileiras, Abdias do Nascimento, Jeferson De, Joel Zito Araújo, Jorge
Mautner, Lázaro Ramos e Zózimo Bulbul.

O diretor e ator Zózimo Bulbul é o primeiro nome que iremos destacar. Além de
ator de cinema e teatro, se fez importante no cenário de cineastas ao dirigir documentários
de curta metragem e longas. Seus filmes dialogam diretamente com as lutas do
movimento negro. São desempenhos documentais que assinalam para a história do negro,
suas lutas e as reclamações de autorrepresentação.

Zózimo sempre manteve uma possível sincronia com as demandas mais gerais
do movimento negro internacional, pois durante a Ditadura Militar no Brasil passou um
tempo em Lisboa, Nova York e Paris e viajou pelo continente da africano. Foi
influenciado pelo Cinema Novo, do qual fez parte no início de sua carreira artística,
atuou também no Centro Popular de Cultura (CPC).

56
Zózimo participou das três primeiras edições da Mostra Internacional do Cinema
Negro, sendo um dos grandes homenageados na terceira, inspirando-se para criar no Rio
de Janeiro o Centro Afro Carioca de Cinema:

“(...) faço cinema e meus filmes e filmes de outros diretores Pretos e


Pretas não passam no Brasil, nós somos conhecidos lá fora, mas aqui
não somos conhecidos. Então a aminha resistência foi essa. Eu vou abrir
uma sala de cinema pra mim e pros meus amigos pretos e pretas passar
os nossos filmes e todo ano eu faço o encontro de cinema negro Brasil-
África-América Latina.” (CULTNE, 2011).

Zózimo via no cinema não apenas um veículo de comunicação, mas um


instrumento capaz de proporcionar reflexões, que criam novos olhares sobre a população
negra e afrodescendente no Brasil. A crítica trazida por esse esteta é que ainda é tímido o
reconhecimento dos cineastas negros no Brasil, mesmo tendo eles expressividade em
outros países. Outro momento da militância de Zózimo é quando fala a Revista do Cinema
Brasileiro:

“(...) ao invés de ter uma tele de televisão na minha sala, eu tenho uma
sala de cinema com quarenta lugares. E eu convido meus amigos, todos
que vão fazer o cinema, eu convido pra projetar o filme lá, que tem a
dificuldade de colocar em outros cinemão.” (Revista do Cinema
Brasileiro 2011)

Tanto o Centro Afro Carioca de Cinema quanto a Mostra Internacional do Cinema


Negro, podem ser entendidos como expressão de luta contra o racismo no Brasil.
Oportunizando amplo debate das questões sobre a negritude.

A primeira análise será uma entrevista de Jorge Mautner, cantor, compositor,


escritor, violinista, poeta, bandolinista, cartunista, artista plástico e cineasta. Um dos
homenageados da Mostra Internacional do Cinema Negro e militante das questões
voltadas para a diversidade.

57
A questão inicial da conversa é se Mautner classificaria a arte de acordo com o
que classificou Fernando Pessoa. A arte estaria dividida em três categorias segundo
Fernando Pessoa, a primeira seria a Arte Inferir aquela que é feita para agradar, a segunda
seria a Arte Média aquela que é feita para elevar e a terceira seria a Arte Superior feita
para libertar. De acordo com Mautner:

“Eu não gosto de divisão de arte inferior, media e superior. Porque é


uma classificação. E como tudo é em eterna mutação caótica (...) Por
que o que diria a arte brasileira, que é feita nos terreiros, antes mesmo
pelos ancestrais indígenas. Qual é o critério que eu vou usar? O que é a
arte, e o que não é arte, hoje em dia é muito difícil, depois do Champy
também que diz que tudo é arte, que a própria vida da gente pode ser
transformada em arte. E essa classificação me lembra um pouco um
preconceito, de definição.

Mautner compreende que a arte é muito complexa para ser classificada, e que a
mesma está na sensibilidade das pessoas. Destaca que a arte que possui valor histórico
tem libertação e comunicação. Pois estas nos possibilitam a libertação de situações
desagradáveis e de opressões que traz uma felicidade comungada, neste momento
podemos perceber que o Cinema Negro é libertador, pois apresenta o negro como agente
histórico, libertando-o das opressões sociais. A libertação dessas opressões possivelmente
seja a luta dos movimentos negros no Brasil, para alcançar tais metas os militantes negros
utilizam todos os meios possíveis, inclusive as diversas manifestações de artes. Como nos
afirma Prudente (2002):

“É inevitável que o artista, sendo a antena da sociedade, capte o


sentimento dos novos rumos que ela haverá de seguir. Em alguns casos,
essa compreensão se configura dentro de um processo dramático, cuja
trama sugere um bricolage, tal como mosaico de muitas entradas, às
vezes, poucas saídas, um vaivém demasiado”. (PRUDENTE, 2002, p.
35).

Nesta perspectiva, Mautner é grande contribuinte deste movimento de revoluções


no Brasil em prol das minorias, devido a sua militância e engajamento. Acredita e defende

58
que o Brasil é a esperança do mundo, por sua cultura miscigenada. Pode-se perceber sua
luta em seu filme Demiurgo produzido em 1970, no Reino Unido, onde este diretor ficou
exilado no período da Ditadura Militar no Brasil.

Basicamente trata-se de uma obra experimental sobre exílio, poesia e o que mais
de interessante surgir na pauta, contando com a colaboração de Caetano Veloso e Gilberto
Gil. Segundo o diretor, Jorge Mautner, trata-se de "uma fábula-musicalchanchada-
filosófica que retrata muita coisa, em primeiro lugar, a saudade do Brasil". Essa produção
que faz parte do movimento cinemanovista, pelo fato de o diretor ser parceiro de Glauber
Rocha, também deve ser compreendida como realização do Cinema Negro.

Outra personalidade de grande participação na luta em favor do negro brasileiro é


Abdias do Nascimento. Foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor
universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras.
Considerado um dos maiores expoentes da cultura negra no Brasil e no mundo, fundou
entidades pioneiras como o Teatro Experimental do Negro (TEN), o Museu da Arte Negra
(MAN) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Foi um dos
idealizadores do Memorial Zumbi e também do Movimento Negro Unificado (MNU)
atuando em movimentos nacionais e internacionais como a Frente Negra Brasileira, a
Negritude e o Pan-Africanismo.

Essa ilustre figura também foi entrevistada por Lázaro Ramos em seu programa
Espelho. Onde expressa toda a sua militância e crença de que os negros merecem
naturalmente todos os direitos iguais a qualquer ser humano.

“Eu sou economista, ator. Nada disso me interessa profundamente.


Fazer o negro ter consciência de que ele é um ser humano, que ele
merece respeito e ele tem tudo que esse Brasil tem. Tudo. Não é só ser
lixeiro não. Não é só ser gari não. É isso que me move, me dá energia,
me dá inspiração, porque eu não quero saber de economia, de ganhar
dinheiro com arte. Isso tudo pra mim é coisa secundária.”
(PROGRAMA ESPELHO, 2009).

É sensato supor que a Mostra Internacional do Cinema Negro, na figura de seu


idealizador Celso Prudente recebe muita influência da luta de Abdias do Nascimento.
Como forma de agradecimento a todo o trabalho desse esteta é que a IV edição deste

59
evento homenageia-o, contando com a ilustre presença do então, Ministro da Cultura
Gilberto Gil, personalidade que sempre apoiou esta iniciativa.

É importante destacar que enquanto deputado, Abdias ajuda a levar as posições


do movimento negro aos presidentes Tancredo Neves e José Sarney. Atua na
desapropriação da Serra da Barriga e na questão das comunidades-quilombolas. Leva à
tribuna federal o questionamento do 13 de maio e a definição do dia 20 de novembro
como o Dia Nacional da Consciência Negra. Esta última se torna parte do que rege a Lei
10.639/03.

Como resultado das lutas de Abdias, os movimentos sociais continuam crescendo


e conquistando posições no Brasil. O movimento sindical começa a incorporar essa causa
e a representação parlamentar afro-brasileira amplia-se. Ganha força articulando-se com
outros movimentos no Brasil e no mundo. O governo Lula cria a Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial, SEPPIR. O tema do racismo, antes silenciado,
ganha outra dimensão de debate na sociedade brasileira.
Destacamos, também a figura do cineasta e pesquisador mineiro, Joel Zito Araújo,
da cidade de Nanuque, doutor em Ciências da comunicação pela Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP e fez pós-doutorado no departamento
de rádio, TV e cinema no departamento de antropologia da Universidade do Texas, em
Austin, nos Estados Unidos.
Uma de suas contribuições mais significativas é o documentário Raça, que expõe
a questão do mito da democracia racial no Brasil. Apontando para a dificuldade de se
constituir direitos, mesmo que tenhamos avançado na dívida histórica do Estado brasileiro
por tantos anos de violência e escravidão contra o negro. Ao mesmo tempo, essa obra nos
faz refletir sobre as conquistas, rebatendo o longo caminho a percorrer para, uma possível
reparação que Brasil deve a essa parcela da população.

“Uma estética e dramaturgia negras são partes do meu grande objeto.


Eu gostaria de evoluir para uma postura menos ideológica, menos
comprometida com as bandeiras dos “companheiros de viagem do
movimento negro”. Mas ainda sou muito atento às suas queixas e
demandas. E elas tendem a refletir ou encontrar acolhida especialmente
no meu cinema documental.” (Afro-Hispanic Review, 2010)

60
Dessa forma, é possível observar que Joel Zito é um militante das causas sociais,
sendo por isso homenageado pelo Mostra Internacional do Cinema Negro. O esteta afirma
que suas produções não possuem a intenção de torna-lo um representante dos
afrodescendentes, mas que por ser um militante das minorias isso acaba se refletindo em
suas obras.

“Eu nunca tive o desejo de ser representante dos afrodescendentes.


Sempre fui um companheiro de viagem. Abraço qualquer causa que me
pareça justa e, por razões midiáticas, só aparece o que falo sobre a
questão racial. Mas dou minha opinião como cidadão contra aquilo que
condeno e que julgo necessitar da atenção pública ou de uma opinião
pública favorável. Uso a simpatia e respeito que o público tem pelo meu
trabalho como uma forma de auxiliar os movimentos sociais em causas
que considero fundamentais. Eu sou e sempre fui uma pessoa engajada
no mundo em que vivo. Reajo a injustiças, estupidez e desinformação.”
(Afro-Hispanic Review, 2010)

Joel Zito Araújo, contribui significativamente com o processo de compreensão da


formação do povo brasileiro. A importância de se resgatar a imagem de afirmação positiva
do negro através de seus documentários. Suas obras apresentam temas que se completam,
especialmente em relação à política, no que diz respeito à legitimidade quilombola e o
respeito às tradições e culturas negras, e a invisibilidade do negro nos meios de
comunicação.

A partir da década de 1990, tivemos no Brasil jovens realizadores negros que se


posicionaram no campo da cinematografia através de seus filmes e propunham novas
maneiras de se debater a questão racial na mídia. Dessa forma, deram origem a um
movimento que ficou conhecido como Cinema Feijoada. Vamos observar o jovem
cineasta afrodescendente Jeferson De. Realizador de curtas-metragens, lançou em 2010
seu primeiro longa-metragem, Bróder, premiado em festivais brasileiros como Paulínia e
Gramado.

Jeferson De, ganha destaque por escrever o manifesto Dogma Feijoada, que
também é intitulado Gênese do Cinema Negro Brasileiro, onde o cineasta propõe sete
mandamentos para o cinema negro brasileiro. São eles: o filme tem que ser dirigido por
um realizador negro, o protagonista deve ser negro, a temática do filme tem de estar
relacionada com a cultura negra brasileira, o filme tem que ter um cronograma exequível,

61
personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos, o roteiro deverá privilegiar
o negro comum brasileiro e super-heróis ou bandidos deverão ser evitados.

É possível perceber neste ato a luta em favor de uma imagem de afirmação


positiva do negro. Tanto Jeferson De quanto os membros desse movimento encontram
apoio na Mostra Internacional do Cinema Negro que possibilita a difusão de suas obras e
amplo espaço para os debates propostos.

Jeferson De destaca as influencias que o ajudaram a se tornar cineasta, como por exemplo
um filme do Spike Lee, ou a trilha sonora do filme Quilombo, interpretada por Caetano
Veloso.

“A primeira vez que eu pensei em fazer cinema foi eu acho que em 1989
vendo “faça a coisa certa” de Spike Lee. (...) A primeira trilha que eu vi
no Brasil, e que me chamou muita atenção, por exemplo, foi o Gilberto
Gil, no filme “Quilombo”, que é um filme de 1988, e acho que ela é
muito cantada (...)” (FALA, 2011).

Vale a pena ressaltar que além de Jeferson De outros cineastas como Ari Candido,
Noel Carvalho, Rogério Moura, Lílian Santiago, Daniel Santiago e Billy Castilho
formaram o grupo Cinema Feijoada. A Mostra Internacional do Cinema Negro
contempla, possivelmente, espaço para as exibições de produções de todas as épocas e os
debates intrínsecos em cada uma delas.

Entre os filmes exibidos estão "Marighella" (Brasil), de Isa Grinspum Ferraz,


Martin Luther King - Kinetic Typography - O retumbar de um novo sentido (Ucrania),
de Alex Verlan, Kilburn Grange Park - O Parke de Kilburn (Reino Unido), de Anna
Bowman, Olho de Boi, de Diego Lisboa; entre outros.

62
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É provável que estas questões levantadas acerca das relações raciais, perdurem por
muito tempo, mas não é nossa intenção resolvê-las. O que pretendemos e levantar pontos
para o debate para que avancem. Esse processo é impulsionado pelos ventos históricos da
ascensão internacional dos movimentos sociais que foram fundamentais a luta de
conquista da inclusão da Lei 10.639/03.

A partir do final da década de 1960 é que o cinema torna-se objeto da


historiografia. A partir da difusão da Nova História Cultural, principalmente no final dos
anos 1980, a cinematografia deixa de ser reflexo e passa a ser vista como representação,
dessa forma, o cinema passa a ser um campo social e um conjunto de práticas que explica
o contexto social.

A cinematografia nacional, especificamente, os filmes do chamado Cinema Negro


contribuem como base para o processo de implantação da Lei 10.639/2003. É necessário
buscar seus fundamentos nas transformações da sociedade brasileira e também, no
processo produtivo do cinema nacional. Desta forma, apontamos para as profundas
transformações e rápidos avanços no sentido econômico, social, político e tecnológico,
que fazem parte do processo de transformação.

Cabe-nos realizar uma leitura crítica de produções cinematográficas, verificando


em que medida a imagem de afirmação positiva do negro contribui na luta pela igualdade
racial brasileira, distinguindo contextos, funções, estilos, argumentos, pontos de vista,
intencionalidades. Assim, além de nos oportunizar a obtenção de informações acerca das
representações do negro na sociedade e sua construção ao longo da história brasileira.

Desta maneira, o uso dos filmes apresentados na Mostra Internacional do Cinema


Negro, torna o processo ensino – aprendizagem, mais criativo e quebra com a ideia que o
trabalho com o cinema apresenta-se como mera ilustração ou entretenimento, mas
estabelece possibilidade de construção de semelhanças e diferenças abrindo um novo
horizonte sobre a África e suas contribuições para a formação da identidade brasileira. As
atividades desenvolvidas podem ajudar a construir inferências e a rever representações já
existentes, ver no cinema além da distração, encontrar nele o conhecimento.

É possível observar que no início deste século ocorreram diversos avanços no que
diz respeito às políticas públicas no Brasil. Provavelmente, ao falarmos de políticas

63
públicas abordamos também a necessidade de incluir o grupo étnico racial marginalizado,
recuperando sua imagem de afirmação positiva deteriorada no impacto da ideologia de
elevação grupo racial hegemônico.

64
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAZIN, André. O cinema. Tradução Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense,
1991.

BRASIL. Lei 10.639, 2003, arts. 26-A, 79-A e 79-B. Brasília – DF, janeiro de 2003.

BECKER, Howard S. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. 4. Ed – São Paulo:


Hucitec, 1999.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e


história da cultura; tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin.
7. Ed – São Paulo: Brasiliense, 1994 – (Obras escolhidas).

CAMPOS, Flávio de, CLARO, Regina. Oficina de história. 1ª ed. – São Paulo: Leya,
2013.

CASTILHO, Sueli Dulce, PASSOS, Luiz Augusto, PRUDENTE, Celso Luiz. Griot do
morro: reflexões para o discernimento da construção da imagem positiva do negro. (In)
PRUDENTE Celso Luiz (org.). Cinema Negro: Algumas contribuições reflexivas para
a compreensão da questão do afrodescendente na dinâmica sociocultural da
imagem. São Paulo. Coleção Celso Prudente Africanidade, v.4 Editora Fiuzza, 2011.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Porto:Ed. Cadernos para o diálogo,


1971.

CHAUÍ, Marilena de Souza. Escritos sobre a universidade. São Paulo. Editora UNESP,
2001.

COSTA, Flávia Cesarino. Primeiro Cinema. (In) Fernando Mascarello (org.). História do
cinema mundial. São Paulo: Papirus, 2006, p. 17-54.

DE, Jeferson. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo:


CulturaFundação Padre Anchieta, 005.p.: il. – (Coleção aplauso. Série cinema Brasil /
coordenador geral Rubens Ewald Filho).

DELEUZE, Gilles. Cinema: a imagem-movimento. Tradução Stella Senra. São Paulo.


Editora Brasiliense, 1983.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos


fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2013, p. 13-24.

65
DIRETRIZES Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília – DF,
outubro 2004.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

KORNIS, Mônica Almeida. Cinema, Televisão e História. Rio de janeiro. Jorge Zahar
ed. 2008, p. 07.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa social: teoria, método e criatividade.


Petrópolis: Vozes, 2007.

MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: entre a realidade e o artifício. Porto Alegre, RS: Artes
e Ofícios, 2010, p. 07-14.

MULLER, Maria Lúcia Rodrigues. A cor da escola: imagens da primeira república.


EdUFMT. 2008, p.43.

NEGRITUDE, cinema e educação: caminhos para a implementação da Lei


10.639/2003/ organizado por Edileuza Penha de Souza – 2.ed, - Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2011. Vol.1, 2 e 3.

OLIVEIRA, Cléver Cardoso T. de. Deleuze: uma ontologia do cinema. Revista


Anagrama, 2009
PIMENTA, Selma Garrido, ANASTASIOU, Léa das Graças Camargos. Docência no
ensino superior. São Paulo: Cortez, 2002.

PRUDENTE, Celso Luiz. Mãos negras: antropologia da arte negra. São Paulo. Editora
Panorama, 2002, p. 35-42.

_______________. Cinema negro: aspecto de uma arte para uma afirmação ontológica
do negro brasileiro, (In) Revista Palmares, Ano 1, n 1, Ministério da Cultura, Brasília
2005.

________________. Tambores negros: antropologia da estética da arte negra dos


tambores sagrados dos meninos do Morumbi: pedagogia afro. São Paulo: Editora
Fiuza, 2011.

______________. A dimensão pedagógica da alegoria carnavalesca no cinema negro


enquanto arte de afirmação ontológica da africanidade: pontos para um diálogo com
Merleau–Ponty. (In) Revista de Educação Pública – v. 23, n.50. EdUFMT, 2014.

66
RACISMO e educação: Contribuições para a implementação da Lei 10.639/03/
Guimes Rodrigues Filho, Cristina Mary Ribeiro Perón (organizadores). – Uberlândia
EDUFU, 2011.

RODAS, João Grandino e PRUDENTE, Celso Luiz. Reflexões para o discernimento do


estereótipo e a imagem do negro. (In) Revista da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo - USP, v. 104, 2009, (janeiro-dezembro), p. 499-506.

RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. - 4 ed. - Rio de Janeiro:


Pallas, 2011.

SANTOS, Ivair Augusto Alves dos. O Movimento Negro e o Estado: o caso do


Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Governo de
São Paulo. Universidade Estadual de Campinas. São Paulo 2007.

SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre o racismo. Tradutor J. Guinsburg. 2. ed. São


Paulo: Ed. Difusão Europeia do Livro, 1960. p.105.

SILVA, Marcos; RAMOS, Alcides Freire. Ver história: o ensino vai aos filmes. São
Paulo: Hucitec, 2011, p. 12.

SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento


brasileiro (1870-1930). Tradução Donaldson M. Garschagen; prefácio Lilia Moritz
Schwarcz. — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Literacia Histórica: um desafio para a educação


histórica no Século XXI. História e Ensino: Revista do Laboratório de Ensino de
História. CLCH, UEL, Vol. 15, 2009, p.9-21.

SODRÉ, Nelson Werneck. Quem é o Povo no Brasil? In: Cadernos do povo brasileiro.
Rio de Janeiro, 1962.

67
7. ANEXOS

68
7.1 ANEXO I

Cultne: acervo digital de cultura negra

Zózimo Bulbul: Essa casa aqui é uma forma de resistência que eu, Zózimo Bulbul,
inventei. Eu e minha mulher, que vai chegar daqui a pouco. Eu adoro cinema, só sei fazer
cinema. Teatro e cinema é a minha praia, eu não sei fazer mais nada. E essa casa estava
caindo aos pedaços, quando ela passou aqui e viu essa casa, e alugou a parte de cima. Ela
é figurinista de teatro e de cinema. Então a parte de cima é uma oficina de figurinos de
teatro e de cinema. E quando eu vi a parte de baixo, aqui em baixo era uma carpintaria,
tinha casal de cenógrafos. Cenografia é o cara que trabalha no teatro e no cinema que faz
as casas, pinta. Esse casal de cenógrafos tinhas umas maquinas aqui enormes de
carpintaria. Eu viajei e voltei. E De repente, eles me disseram “isso aqui ficou pequeno
pra mim”, porque eles ganharam uma concorrência em 2008, no maracanã pra fazer a
cenografia do maracanã nas olimpíadas. Ai eles disseram Zózimo, eu estou saindo daqui
e tem várias maquinas aqui, e alugaram uma garagem enorme aqui atrás. Quando eu vi
isso aqui vazio eu não pensei duas vezes, isso vai ser meu. Tanto que quando vocês
entraram, tem uma sala de cinema lá na frente. Repito, eu gosto e adoro cinema, faço
cinema e meus filmes e filmes de outros diretores Pretos e Pretas não passam no Brasil,
nós somos conhecidos lá fora, mas aqui não somos conhecidos. Então a aminha
resistência foi essa. Eu vou abrir uma sala de cinema pra mim e pros meus amigos pretos
e pretos passar os nossos filmes e todo ano eu faço o encontro de cinema negro Brasil-
África-américa latina. Nós precisamos nos conhecer, porque o cinema não é um livro não,
o cinema é muito rápido. Você vê que agora o festival de Canis acabou de fazer um
alvoroço ai no mundo inteiro. O Oscar americano é todo ano... Vocês não imaginam vocês
não podem imaginar, o que os Estados Unidos gastam pra fazer aquela festa da entrega
do Oscar. A entrega do Oscar é uma coisa caríssima, e dirigida psicologicamente pra
todos os povos do mundo. Eu vou dizer aqui uma coisa incrível. Eu sei, e vou passar isso
pra vocês. Quando eles fazem um filme de guerra e que ganha o Oscar, aquele canhão
que passa no filme é vendido no mundo inteiro cara, um canhão. Se o filme ganhar o
Oscar e tem um canhão, no filme de guerra, você o quanto a América vai vender aquele
canhão. Um relógio do mocinho, você vê o relógio do mocinho, todo mundo pra aquele
relógio e fala vou comprar igual, os óculos. O Oscar é essa coisa de vende, é alienação

69
mesmo, é uma fábrica internacional, economicamente muito caro, pra alienar o mundo
inteiro através do cinema.
O cinema tem uma força muito forte, vou repeti aqui pra vocês porque eu abri essa
casa e eu sei o que nós podemos fazer com essa casa. E pra adiantar um pouquinho, a
minha falação. Pra tirar o CNPJ, o alvará, pro centro afro-carioca de cinema. Eu paguei
um contador, toda firma tem que ter um contador, e esse contador disse vamos convocar
um advogado, porque eu estava tendo dificuldade pros papeis andar, burocraticamente.
Centro Afro-carioca de cinema. Me disseram Zózimo, porque que você não muda o
nome? Coloca outro nome. Muda o nome Zózimo, coloca teu nome. Não, centro Afro,
não é Afro Regee também não, carioca de cinema. Convocamos então um advogado,
preto. Levou mais dois anos, a papelada foi pra Brasília. O ministério da justiça. Desculpa
isso aqui não é medicina, não é advocacia, seria mais fácil eu abrir um centro espírita
aqui, é muito mais fácil que Centro Afro-carioca de cinema. Os caras estão com medo até
hoje disso. Isso aqui é um centro mesmo, um centro de resistência. Isso aqui é um estopim
da nossa cultura, isso aqui é hoje é uma continuação de Atos mental do negro, do Babi
Dias, Solano Trindade. Isso aqui pra mim é uma continuação dos negos de bagual*(7:00).
Isso aqui é um centro mesmo, é uma palavra de porrada cara, sabe?! Esse cinema tá se
expandido, tá se expandido mesmo. Todo ano, de proposito eu faço um encontro de
cinema negro. Zózimo, porque você não faz o encontro lá em Madureira, tem um cinema
parado lá. Vai pra Campo Grande. Não eu já aluguei pra novembro, o Odeon*(7:37). Sabe
o que que é o Odeon? O Odeon é o melhor cinema que tem aqui na Cinelândia, não sei
quem já entrou ou que não entrou. A cadeira deles é estofada, sabe o ar-condicionado
deles, o som. É um dos melhores cinemas que tem no Brasil. Eu entro na fila todo ano,
pra passar os meus filmes, os nossos filmes no Odeon.

Vou pegar pesado agora, cadê o preto? Cadê os pretos no Odeon? Ai é terrível,
cara a gente faz tudo isso. Cadê a nossa comunidade cara? Responde. Sabe eu estou
magoado, estou falando aqui estou despejando mesmo, eu vou lá na Mangueira agora
sabe, no Império Serrano para ver se desce uns crioulos ai. Mas como é que desce, pra
descer tem que colocar ônibus, no maracanã ele vai sozinho. Mas pro Odeon tem que
colocar ônibus, cara. É terrível cara.

70
7.2 ANEXO II

Revista do Cinema Brasileiro

Maria Luísa Mendonça: O Brasil atualmente é o segundo país do mundo em população


negra, superado apenas pela Nigéria. Por mais de 3000 anos cerca de cinco milhões de
negros foram trazidos da África para o Brasil. Em sua maioria vieram de Angola ou da
Costa da Guiné.

Durante o século XIX, alguns dos nossos principais artistas contribuíram com a
cultura brasileira com temas que envolviam o negro. Os escritores Tobias Barreto,
Machado de Assis e Lima Barreto. O poeta simbolista Cruz e Souza. O músico
Pixinguinha e muitos outros que se tornaram populares. A luta pela consciência da
importância do papel do negro no Brasil tem sido constante. A produção artística com
olhar e estética negra também cresce. Hoje temos um encontro com o passado e o presente
da cultura Afro-brasileira, na sua revista do cinema brasileira.

Ícone da cultura negra, mestre Borel, era o mais antigo alabe* (02h13min) do Rio
Grande do Sul. No candomblé são os alabeis* (02:17) responsável pelos instrumentos de
precursão das cerimonias. Os batuques tem por objetivos chamar as entidades africanas e
os orixás para participarem da festa. Reconhecido e reverenciado pelos seus
conhecimentos históricos das antigas religiões, e das mais importantes tradições
afrodescendentes, mestre Borel ou Walter Calisto Ferreira faleceu em 2011 e recebe agora
uma bonita homenagem.

Imagens de homenagem a Mestre do Borel.

Maria Luísa Mendonça: Zózimo Bulbul é um dos maiores expoentes da


cinematografia afro-brasileira dos anos 60 e 70. Sempre preferiu valoriza o negro na
sociedade, e assim rejeitou o estereotipo do marginal u do escravo preguiçoso. Como
diretor e roteirista, realizou filmes com foco na consciência da cultura negra no brasil.

Seu longa “Abolição” é um retrato que marcou o centenário da abolição da escravatura


no brasil. descrevendo várias situações enfrentadas pelos afrodescendentes brasileiro.
Hoje no estúdio vamos conhecer um pouco mais da obra e dos pensamentos de Zózimo
Bulbul.

71
Zózimo é uma honra ter você aqui no estúdio. A gente quer ouvir você. Eu vou
abrir falando do centro afro-carioca de cinema que fica na Lapa. Queria que você falasse
pra gente sobre o centro e como ele se movimenta como ele se articula, e quais são as
comunicações, como é esse intercambio que acontece ali dentro. Enfim.

Zózimo Bulbul: o centro carioca de cinema é um espaço que abri, e tem cinco
anos em2007 mais ou menos. Era um sonho e que de repente se tornou realidade. Sabe,
eu adoro, eu amo cinema desde garotinho. Sou aquele cinéfilo descarado, eu sei tudo de
cinema. 70 anos eu vi todas aquelas chachada brasileira, o cinema americano, a school
boys toda. E um dia eu disse: sabe que ou vou ter uma sala de cinema. Garoto, eu cismei
que eu ia ter uma sala de cinema. E hoje eu tenho uma sala de cinema. Pra passar os meus
filmes, porque eu também sou diretor e dos meus amigos. Ou você faz um cinemão ou
então fica na periferia, nos chamados alternativos.

Maria Luísa Mendonça: Mas que você tenha você tenha o direito da pesquisa,
que você tenha a liberdade de dizer o que eu quiser.

Zózimo Bulbul: e essa sala que eu abri, tem quarenta lugares. É minha. Eu bato
no peito,

Maria Luísa Mendonça: Claro, “desde pequenininho que eu penso nisso”.

Zózimo Bulbul: ao invés de ter uma tele de televisão na minha sala, eu tenho uma
sala de cinema com quarenta lugares. E eu convido meus amigos, todos que vão fazer o
cinema, eu convido pra projetar o filme lá, que tem a dificuldade de colocar em outros
cinemão.

Maria Luíza Mendonça: Quem sustenta esse lugar

Zózimo: olho, eu te falei, cinco anos essa sala tá existindo. Esse ano de 2011 eu
consegui uma coisa chamada, ponto de cultura, que é um negócio do município, que é
conhecimento, não é ONG, é um ponto de cultura e tem uma verba agora.

Maria Luiza Mendonça: tem uma verba agora que te dá um pouco de


Sustentação?

72
Zózimo: esse ano, esse ano, então é, sabe a luz o aluguel, o papel higiênico, agora
esse ponto de cultura tá ajudando. E na verdade quer dizer, eu tenho que fazer, e eu faço
de dois em dois meses, de três em três meses, eu faço um encontro de pessoas interessadas
em cinema. Eu passo edições de filmes africanos e afro-brasileiros nessa sala. Pra abrir
uma discussão mesmo, e o ponto de cultura é pra isso mesmo.
Maria Luiza Mendonça: pra esse intercambio. E também você manda seus filmes
pra lá. Tem uma mostra, tem algum outro centro lá que você se comunica?

Zózimo: Olha, ainda não tem um centro, mas eu tenho ido a festivais
internacionais de cultura africana ou afro-brasileira e eu mostro os filmes lá fora.

Imagens do filme Barravento

73
7.3 ANEXO III

PROGRAMA ESPELHO

Lazaro Ramos: Fernando Pessoa criou uma escala de valores para a arte. Ele disse que:
primeiro é a arte inferior, aquela que é feita para agradar. Segundo, a arte media, aquela
que é feita para elevar. E terceiro, a arte superior, aquela produzida para libertar. Você
concorda com ele? E qual o valor da sua arte?

Jorge Mautner: eu não gosto de divisão de arte inferior, media e superior. Porque é uma
classificação. E como tudo é em eterna mutação caótica, você não pode dizer, porque, por
exemplo, o Dostoiévski, vamos pegar um exemplo, durante muito tempo, ele passou por
escritor o folheto Inesco, que era lido por senhoras, que não tinha televisão nem rádio,
então as pessoas viam Balzac, Dostoiévski, e acharam que era entretenimento, ai precisou
vir o filosofo chamado Bardi Afeia mostra que Dostoiévski era um profundo filosofo,
com aquelas questões que eram viscerais, e ao mesmo tempo a arte que agrada e é
profunda. Você tem todo o tipo. Então eu não concordo não. Por que o que diria a arte
brasileira, que é feita nos terreiros, antes mesmo pelos ancestrais indígenas. Qual é o
critério que eu vou usar? O que é a arte, e o que não é arte, hoje em dia é muito difícil,
depois do Champy também que diz que tudo é arte, que a própria vida da gente pode ser
transformada em arte. E essa classificação me lembra um pouco um preconceito, de
definição. Por exemplo, você vai me dizer a Chanchada brasileira, é arte ou não é? É arte.
Você vai ver o filme, por exemplo. Você pode dizer é Brega, o tal do Zé do caixão, mas
é arte também, então esse critério, é o critério clássico dele ainda. E ai está na
sensibilidade das pessoas. Certas coisas ficam pra sempre como arte, por que elas tinham
alguma coisa que muda as gerações e ainda tem algo a dizer. Mas eu acho que o mais
relevante pra mim na classificação se eu fosse classificar, é a arte que tem valor histórico
de libertam e de comunicação, que é o que o ser humano mais quer sempre. Liberta-se de
situações desagradáveis, opressões, sejam quais forem. E encontrarem uma felicidade
comungada. E ai é Jesus de Nazaré, que é o sermão da montanha, que virou direitos
humanos. Você defende os direitos humanos e tem sentimento de amor, você está em
plenitude. E na vida, nas ações. Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé. Então essa
sabedoria ela é uma religiosidade. E a arte como religião mesmo.

74
Lazaro Ramos: ótimo começo. Então o espelho está no ar.

Vinheta de abertura de programa

Lazaro Ramos: que maravilhas, que maravilha. Agora, você é muito inquieto, me parece.
Inquieto ao de ponto de em sua biografia dizer: poeta, escritor, violinista, pianista,
bandolinista, compositor, cineasta, cartunista, artista plástico e cantor. Faltou algumas
coisas? De onde vem essa inquietação?

Jorge Mautner: essa inquietação vem, claramente, porque eu sou um filho do holocausto.
Eu nasci um mês depois que os meus pais chegaram refugiados do nazismo. Meu pai,
inclusive, era do comitê de resistência judaica no exterior. E eu nasci aqui. Então, meu
dizia que amava o Brasil, e a Europa, com toda a cultura dela, o que é que fez? Fez campos
de concentração. É realmente. Eu nasci já destinado e o meu pai desde pequeno me dizia:
olha os nazismos, isso depois dos sete anos; eu com oito anos de idade ele dizia assim, o
nazismo pode voltar a qualquer instante, a gente sempre tem que estar ali, preparada. Eu
recebi como uma missão dele mesmo, e lendo os livros do mundo todo e ele escolhendo,
pra enaltecer a cultura brasileira. Ele era um entusiasta total. Ele viajava como caixeiro
viajante e me trouxa umas flechas do Mato Grosso, e dizia que o futuro era o Brasil. Aliás
Stefan Suai* (5:39), quando veio para o Brasil escreveu “Brasil: o país do futuro” e
suicidou-se porque achou que o nazismo ia ganhar. Mas isso tudo, então desde cedo eu
tive essa missão mais ainda. Minha mãe ficou paralisada, não podendo ficar muito
comigo, e eu tinha uma baba e essa baba era mãe de santo ou filha de santo do candomblé,
lá na Gloria. E durante três dias da semana ela deixava de ser minha baba e eu ia com ela.
E ela trocava de roupa e vinha como uma rainha. Ela me colocava no colo, os tambores
começavam a tocar, e ela me dizia: seus pais vieram de um lugar de gente muito má,
muito cruel, mas aqui você terá seus amigos teus irmãos. E eu adormecia no meio dos
tambores, e acordava no meio do camarim, no outro dia de novo. Durante sete anos eu
tive essa benção. Então o resto é decorrência disso.

E aos sete anos, minha mãe se separou do meu pai e se casou com um violinista.
Ai eu fui pra São Paulo. Ai tiraram meu pai e a baba, se bem que meu pai frequentou
depois a nossa casa e a baba foi me visitar quando eu tinha uns 14 anos e ai depois ela
desapareceu. Ai depois aprendi violino com meu padrasto. E ai como ele era o primeiro
viola, ele fazia também bico nas rádios, pra acompanhar a Araci de Almeida, Jorge Veiga.

75
E eu ia lá também com ele pra assistir. Dos sete, oito anos até quinze. Depois eu fui calou
depois dos quinze, mas até então eu assistir com ele. O Nelson Gonsalves cantava na rádio
Record. Sentei no colo da Araci de Almeida. Memorias inacreditáveis. E teve uma vez só
que eu fiquei furioso e eu aprendia violino e ele foi fazer bi cola lá. Ai um dia ele voltou
do ensaio e mele disse: hoje estou triste. Ele era uma pessoa muito bondosa, mas aquele
dia ele estava raivosa e ai falou assim: é porque ficamos quatro horas e aquela burra não
acertou o acorde. Ai eu falei: quem é a burra? A Araci de Almeida. Ai eu escrevi no meu
livro “deus a chuva da morte Araci de Almeida igual a Beethoven, embora, ligeiramente
superior.

E ai vai em 56 eu fiz o “partido do caos” do qual Aguilar participou. E ai o tempo


toda minha vida foi fazer células, reuniões de amigos e a revolução. A revolução mundial,
a revolução Brasileira, a constante necessidade de modificação, envolvimento e
movimento o tempo todo e realçando a coisa principal, que é a cultura brasileira e que ela
é totalmente a mistura de tudo, além de José Bonifácio de Andrade Silva, e são os terreiros
os batuques, os mitos de toda a cultura negra, indígenas e brancas, assimiladas em
entrosamento como o Brasil fabricou, e por isso ele é a esperança do mundo no século
XX.

Essa foi eu recolhi do folclore da Paraíba, em 58, e foi a Cecilia Guarneça esposa
primeira do guarneça* (09:16) que passou “este sapo cururu, não anda de bicicleta, mas
anda por ai dizendo que a lua é careca. A se a lua fosse careca ela usava cabeleira, mas
como é bonita a bandeira brasileira, mas como é bonita a bandeira brasileira.” É a
imaginação do povo brasileiro é fantástico.

Lazaro Ramos: você acha que o Brasil realmente é a esperança do mundo?

Jorge Mautner: sem dúvidas.

Lazaro Ramos: mas você acha que o Brasil tem muita herança do colonialismo?

Jorge Mautner: tem também, claro. Hoje em dia essa geração de hoje, ela já sabe disso.
Por exemplo, antigamente o cara achava a cultura estrangeira é superior e tentava imitar
o conjunto inglês, cantando em inglês. Hoje em dia é ao contrário, pelos pontos de cultura
jovem ele vê a música. O maracatu, por exemplo, que eu fiz um disco que vai sair pelo
Maracatu Estrela de Ouro, e é um maracatu do mestre Duda, genial. Então nesse

76
Maracatu, nós gravamos ao ar livre. Eu mestre Duda cantando, e tem às vezes um motivo
do Nelson Jacobino disse: ei mais isso ai pare, na hora do maracatu, um trecho parecido
com Popeye, aquele jazz. Ai o falaram é isso mesmo, eu tirei ali e coloquei.
Então é diferente, a cultura brasileira está no frete e se quiser ele faz recheio, um
pouco ali, hora ali. É uma outra atitude então a garotada hoje tá consciente do poder
cultural do Brasil, pra mim os outros países não tem mais inspiração nenhuma. Então o
modo do brasileiro agir e ter essa tremenda cultura que vem dois tambores, e toda nossa
visão que vem do novo, e de fabricar, pela originalidade nossa, pelo próprio isolamento
proposital, pela língua portuguesa coma a capacidade de verbos em tempos poéticos, tudo
isso e principalmente pelo trabalho, dos escravos negros que construíram o Brasil de cima
pra baixo, então as ruas as estradas as casas. Tudo, tudo e tudo e a cultura também, então
isso agora é o que explode no mundo como esperança.

Lazaro ramos: e a política partidária. Você se filiou no PCB em 62.

Jorge Mautner: em 56 eu fiz o partido do caos, que já era uma ideia assim, em 62 eu fui
trabalhar com Mário Chemer no comitê central do partido comunista.

Lazaro Ramos: então fala um pouco do caos. Porque o caos?

Jorge Mautner: É porque o caos, a ordem apolínea era muito repressiva. Então o caos é
a novidade, o inesperado, inclusive era um ensinamento do meu pai. Esse caos na verdade
se baseia no momento em que a filosofia chegou e, os cientistas estavam fazendo os
primeiros experimentos transformando matéria em energia, então o cara deixou umas
pedras que ele tinha achado em cima de uns negativos e quando ele voltou tinha radiação.
Isso são ideias que vinham e contradiziam todas as ideias de sequência lógica. O que que
existe ai, começa a existir o cálculo da incerteza, eu quero calcular de repente ao contrário.
Então esse relativismo. Tudo é ondulação, como nós artistas sentimos. E mais ainda
pesquisas noivas sobre neurônios dizem que a informação só chega ao cérebro se ela for
banhada de emoção. Então são coisas totalmente novas que os poetas já suspeitavam os
pré-socráticos, várias pessoas já tinham dito. Mas der repente, essa prova cientifica e essa
novidade que nos cerca ela é toda fruto desse caos. Então doeu que é o caos, o caos
inclusive virou nome da matemática do cálculo da incerteza. Em que o número um, pode
ser o número um e o número dois e ao mesmo tempo cinco. Então o que é isso é loucura?
Não é caos. É como a natureza é. É um mistério. Então pra se desvelar isso, a matemática

77
tem a matemática fractal. Que é essa matemática caótica, em que o número 1 tem o
número 1 apaixonado, tem o número um raivoso, tem o número um entediado. Você
categorias emocionais nas abstrações. E esse já é o mundo atual das ciências, que bate
com todas as visões dos, Fernando Pessoa com a simultaneidade de vários cérebros. Pra
que Fernando Pessoa? O candomblé aqui como se reinterpretou ele inventou os
arquétipos, antes de youg. Por que na África só aquele lugar lá é de Oxum, aquele outro
é quetu onde Oxóssi lançou a flecha. Mas aqui no Brasil todas as matas e floretas são de
Oxóssi. Todos os rios de oxum, são os arquétipos. Mas ainda tem o jogo dos búzios e que
tem a emoção fractal de novo, e a emoção é inteligência, inteligência emocional é uma
palha do reflexo disso que eu estou falando. Nem toda inteligência tem que ser emocional.
Tem o jogo dos búzios, que entra o acaso, esse misterioso acaso que é o caos. E ai você,
mas mais ainda tem o jogo do Yfa que é jogo do Ychido chinês africano, na verdade ele
é o primeiro, o ser humano nasceu na África, mas vamos deixar assim, ele é Ychido o
africano, com as varetas, aquelas possibilidades do isco. E mais ainda o ser humano tem
pelo menos três cabeças, uma na frente e duas do lado e do outro. Então você imagina
isso. Já estamos à frente das ciências, a ciência não tá evoluindo é fantástico. E então a
dificuldade das crianças nesses 4.000 pontos mais variados, mas muitos lugares humildes
em que a garotada é muito inteligente há dificuldade em aprender a matemática linear,
porque eles já estão com essa simultaneidade na cabeça. Não é fantástico isso?

Lazaro Ramos: é fantástico

Jorge Mautner: Isso é Brasil.

Lazaro Ramos: e ai só falta responder, porque a política partidária também.

Jorge Mautner: bom, porque eu sinto a responsabilidade de fazer. Eu sempre fazia


células. A política é super. Importante e claro que a menta é sempre a política
democrática. Imagine, reforma agraria o Brasil precisa, dinheiro, muito dinheiro, pras
instrução pública, tinha que ter. Então a marcha continua. Então no partido Comunista,
que eu sempre fui filiado, e recebi a bandeira do partido das mãos do Joao amazonas.
Então eu sou engajado, e o partido comunista é democrático, e hoje em dia ele não tem.
É também a necessidade inclusive de mudar as coisas. Então é pra mudar. Então cada
livro meu, ou música é uma espécie de panfleto pra agitar, pra instigar e pra agir. Tanto
que fui enquadrado e tudo, tinhas pessoas que me prosseguiam mas nada de grave

78
aconteceu sempre continuei propagandeando isso e essa necessidade e quase natural.
Quando nós estamos conversando aqui, tem outro grupo conversa, então vai criando. É
intrínseco a minha biologia, sou formador de célula nato, mas são reuniões de pessoas de
todo o tipo e interessa essa conversa a todos os artistas.
Lazaro Ramos: você é considerado, se não o mais, um dos compositores mais gravados
em vida aqui no Brasil.

Jorge Mautner: não

Lázaro Ramos: isso está na pesquisa, isso está dizendo aqui

Jorge Mautner: Não mas eu acho que eu não, isso bom eu não sei, quem fez essa
pesquisa, bom eu não sei. Eu acho que eu posso ser bem gravado, mas o mais gravado
não sei.

Lázaro Ramos: aqui diz que é um dos mais gravados

Jorge Mautner: assim sim.

Lázaro Ramos: então já que estou te provocando, vou te provocar mais um pouquinho.
Você faz composição pra agradar o cantor?

Jorge Mautner: Olha eu não tenho problema de agradar o cantor. Acontece que, por
exemplo, a tal música de encomenda não tem problema alguma, qual o problema? Se for
falar, eu quero assim, assim, mas eu faço na minha medida, eu não vou me esforçar demais
pra dilacerar, no máximo que posso ao ponto de coincidir o que eu penso dessa pessoa,
ou e vai ficar bem ou às vezes até ao contrário, o eu ninguém pensar pra chamar a atenção.
Então é isso, mas eu não tenho uma priori, um pensamento de exclusão. Tem um poema
do Brecht, ele não é assim mas eu só vou dizer a ideia: “quem é o partido (estava falando
do partido) quem é o partido? Será que ele mora dentro dessa casa, nesses apartamentos?
Que é ele. Não, o partido sou eu, vou, somos nós. Por isso se você sabe o caminho e não
conta pra nós, do que adianta sua sabedoria sozinha. Você pode estar certo e nós errado,
mas se você não estiver conosco como a gente vai saber. Não se separe de nós, por favor”.
Então essa força de chamar e trabalhar em conjunto e fazer música, por exemplo, de
encomenda, se me pedirem um faça, mas não sei se ela vai se encaixar bem, nunca me
pediram muitas músicas de encomenda, mas quando pedem eu tento, geralmente. As
pessoas que pedem deixa na independência. Antigamente tinha muito isso, acho que hoje

79
em dia um pouco menos, rareou. Mais por que a coisa ficou tão caótica de novo que tudo
é o inesperado, na indústria que por exemplo, hoje é alternativa, passa a ser indústria e o
sucesso industrial vai pro lado. É muito rápida a mudança de tudo.
Lazaro Ramos: e você consegue escolher uma de suas composições que quando você
escuta novamente, você canta, bate um sentimento assim e te emociona muito. Eu sei que
é difícil escolher.

Jorge Mautner: Não, não é difícil escolher tem muitas que bate, por que eu gosto muito
do que eu faço, então gosto muito de todas as minhas músicas, não há música que eu não
goste. E cada tá ligada a lembranças de coisas reais e tudo eu diria que claro, Maracatu
Atômico, que saúda o Brasil d forma atômica.

Lazaro Ramos: o rep é literatura?

Jorge Mautner: é literatura, nossa senhora, é literatura que tem começo, meio e fim.
Conta história com toda a capacidade. É fantástico imagina é literatura viva, já dançada,
expressão é arte integrada. Nietzsche dizia que os gregos tinham chegado, que a grande
meta era o ser humano, ele mesmo ser uma obra de arte o tempo todo, e aqui no Brasil
muita gente é assim, uma obra de arte o tempo todo é natural isso, é a rua que fez
sobreviver as maiores tortura, as amarguras, imagina a força disso.

Lazaro Ramos: e qual e a melhor poesia ou música para encerra uma entrevista

Jorge Mautner: “o bico do beija-flor, beija-flor, beija-flor. E toda fauna flora grita de
amor, quem segura o porta estandarte, tem arte, tem arte, a que passa com raça eletrônico,
maracatu atômico”.

80
7.4 ANEXO IV

PROGRAMA ESPELHO

Exibição de imagens de entrevista com Abadias Nascimento no ano de 1991 em São


Paulo.

Abadias Nascimento: Eu sou economista, ator. Nada disso me interessa profundamente.


Fazer o negro ter consciência de que ele é um ser humano, que ele merece respeito e ele
tem tudo que esse Brasil tem. Tudo. Não é só ser lixeiro não. Não é só ser gari não. É isso
que me move, me dá energia, me dá inspiração, porque eu não quero saber de economia,
de ganhar dinheiro com arte. Isso tudo pra mim é coisa secundária.

Lazaro Ramos: E isso aqui que vai ficar bastante tempo também? Fala um pouco da
pintura. Como é que entrou a pintura na sua vida?

Em uma entrevista do ano de 1970 nos E.U.A. Abadias responde a pergunta.

Abadias nascimento: é curioso que o Brasil não me conhece como pintor, eu não sai do
Brasil pinto, eu já pintava no Brasil, mas apenas o amigos muito chegados tinha
conhecimento dessa minha atividade. Mas eu senti logo que cheguei nos Estados Unidos
que a contribuição da minha pintura, poderia ser um dado muito positivo nesse momento
em que o negro aqui toma essa consciência de seu papel histórico e atua por quanto. A
minha pintura se baseia exatamente na da cultura africana no Brasil, eu Pinto
principalmente os problemas da mitologia, das crenças negras no Brasil, procurando
revalorizar as formas que já estão sendo confundidas ou mesmo perdidas. E isso aqui nos
Estados Unidos é muito importante por condições histórias, esses valores, essas formas,
esses mitos, esses sinais, foram mais omitidos, foram proscritos e eles agora estão na
busca desse passado. Daí a importância que tem a contribuição do negro brasileiro nesse
momento nos Estados Unidos, porque nós pudemos guardar a pesar das condições
desfavoráveis, nós pudemos guardar em maior autenticidade esses valores da cultura
africana na América.

Volta aos dias de hoje com Abadias comentando sobre suas pinturas

81
Abadias Nascimento: Eu espero doar isso, quando vier uma entidade que possa cuidar
deles direitos. Eu para me separar deles eu tenho que ver aonde esses negócios vão ficar
e como vão ser cuidados.
Comentários sobre o livro “Sortilégio II (mistério Negro de Zumbi rede vivo)

Abadias Nascimento: Esse ai é a mastigação de decénios. Primeiro teve uma versão


muito mais amenizada do que essa. A mesma censura não gostou da primeira versão e
ficou proibido durante anos, até que eu poder levar no municipal. Fiz outro que eu
considero mais completa, mais eu, eu mesmo. Eu não tenho nada a reclamar da vida. Eu
acho os orixás me protegeram e me ampararam e eu pude ter uma vida, mais ou menos
como eu queria. Porque quando eu tinha ainda seis ou sete anos, que eu vi minha mãe
defendendo uma criança negra. Esta imagem, não me sai nunca dos olhos, não é da
memória, uma coisa remota não, é sempre muito viva e eu sem fazer nenhum juramento
a minha mãe, mas cumpri aquilo que ela me ensinou naquele momento, a solidariedade
com meus irmãos de origem e a minha revolta contra a injustiça e a violência, sobre tudo
contra as crianças e os mais fracos.

Imagens de uma gravação feita na Serra da Barriga, AL no ano de 1982.

82
7.5 ANEXO V

À conversa com Joel Zito Araújo - posicionamento, estéticas e cinematografias.

Joel Zito Araújo é cineasta mineiro, ou baianeiro (como prefere se denominar, por
ter nascido na fronteira entre os estados de Minas Gerais e Bahia). É realizador de obras
sobre a questão das africanidades no Brasil. Seus filmes receberam os prêmios de maior
relevância do cinema brasileiro: A Negação do Brasil (2001) recebeu prêmio de melhor
filme no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade/It’s all true e de
melhor roteiro no Festival de Recife em 2001; o ficcional As Filhas do Vento (2005)
recebeu 8 kikitos no Festival de Gramado; e o documentário Cinderelas, lobos e um
príncipe encantado (2009) recebeu, pela votação do público, prêmios de melhor filme e
melhor diretor na 9ª edição do Festival Iberoamericano de Cinema de Sergipe. Joel Zito
é também pesquisador, doutor em Ciências da comunicação pela Escola de Comunicações
e Arte da Universidade de São Paulo – ECA/USP, Brasil e pós-doutor pelo departamento
de rádio, TV e cinema e pelo departamento de antropologia da University of Texas, em
Austin, nos Estados Unidos, tendo publicado os livros A Negação do Brasil – o negro na
telenovela brasileira (2001), e O negro na TV pública (2010).

Por um lado, seus trabalhos possuem um forte cunho político, em favor de


desconstruir a imagem eurocêntrica que a mídia brasileira insiste em construir. Por outro,
a temática da afirmação de uma identidade diaspórica dos afrodescendentes é uma
constante em suas obras, que contribuem para alicerçar um fenômeno social em expansão:
a promoção de ações pelo reconhecimento da diversidade étnica nas culturas dos países
latino-americanos, bem como o respeito às suas manifestações. Atualmente ele
desenvolve projetos educativos e fílmicos com Angola e Cabo Verde. E produz uma série
televisiva chamada “Nas trilhas da afro-diáspora” em parceria com a antropóloga norte-
americana Sheila Walker, uma expert no assunto, reconhecida internacionalmente. Na
entrevista a seguir, comenta sua estética, seu posicionamento político e correlaciona o
universo acadêmico e o cinematográfico em suas experiências.

De que maneira, ou maneiras, a experiência da investigação acadêmica (você é


Doutor em Comunicação pela ECA/USP) se relaciona com as suas atividades de
cineasta e roteirista?

83
O desejo de fazer cinema chegou primeiro na minha vida. Os filmes de cineastas
como Frederico Fellini, Michelangelo Antonioni e François Traffaut (entre outros nessa
linha autoral) abriram essa janela no meu horizonte, no final da minha adolescência. Na
faculdade, começando na psicologia, mas desde aí me encantando pela Antropologia e
Ciências Sociais. Eu comecei a me interessar pela investigação. Mas, acabei entrando no
cinema pela porta mais investigativa, pelo documentário. Na realidade, a maior diferença
entre a investigação acadêmica e o documentário (do jeito que faço) é que um necessita
de uma câmera como instrumento principal de trabalho. Portanto, somente o cinema
ficcional é que demanda uma atitude diferente. Mas, mesmo assim, me sinto
permanentemente investigando para a ficção, quando nos lugares públicos e privados, eu
observo as pessoas e escuto conversas alheias, como potenciais personagens ou potenciais
diálogos e atitudes para futuros filmes.
Na sequência formada pelas obras A negação do Brasil (2000), As filhas do vento
(2005) e De Cinderelas, Lobos e um príncipe encantado (2009), vislumbramos, entre
outros aspectos, a abordagem de temas relacionados às interpretações que a
sociedade brasileira estabeleceu do sujeito negro e de suas práticas culturais. Esse
conjunto de obras nos permite falar da existência de um projeto estético e ideológico
articulado pelo criador Joel Zito Araújo?

Totalmente. Uma estética e dramaturgia negras são partes do meu grande objeto.
Eu gostaria de evoluir para uma postura menos ideológica, menos comprometida com as
bandeiras dos “companheiros de viagem do movimento negro”. Mas ainda sou muito
atento às suas queixas e demandas. E elas tendem a refletir ou encontrar acolhida
especialmente no meu cinema documental. Mas os meus próximos projetos ficcionais
estão mais soltos, longe de pautas ou temas do momento. Na realidade, nunca me inspirei
em pauta de ninguém, mas acabei as trazendo para os meus filmes sem nenhuma intenção
inicial, sem nenhum planejamento.

O que seriam pautas ou temas do momento?


As decisões tomadas em Congressos, em reuniões da liderança. Os temas que são
consensuais e tornam-se campanhas públicas. Exemplo, a luta com a esterilização de
mulheres negras. Mas tenho um projeto estético de criar cada vez mais histórias que
estejam, de alguma forma, ligadas à história e à cultura afrodescendente, e à estética e à
dramaturgia que se escondem na mitologia dos orixás. Acho que temos um universo rico,
pouco trabalhado no cinema brasileiro. Por outro lado, considero que a cultura brasileira

84
traz, dentro de si, especialmente no seu comportamento afetivo e sexual uma enorme
herança africana e indígena. Ou se vive da influência ou se vive da recusa, mas consciente
ou inconscientemente estamos sempre relacionados a essa herança. Trazer isso para os
filmes é uma tarefa que considero fascinante.

O governo brasileiro tem estimulado o estreitamento da relação entre Brasil e


África, especialmente com países africanos de língua portuguesa. Como um
representante da ABRACI (Associação Brasileira de Cinema) no Rio de Janeiro,
você acha que já é possível avaliar esses laços e seus desdobramentos na
cinematografia? Isto é, tem havido trocas de nível técnico, intelectual e é possível
vislumbrar coproduções?

As minhas avaliações sobre as relações Brasil e África na cinematografia estão


mais relacionadas com o meu interesse pela negritude, com a valorização de nossas raízes
africanas, que são parte de minha obra, do que com os meus cargos e participação na
ABRACI. De um modo geral, os nossos cineastas foram formados pela ideologia,
segundo a qual somos uma democracia racial, e pelos subtextos que ela traz,
especialmente a ideia que já “superamos” o passado “primitivo” africano, pois somos um
povo novo e miscigenado (em direção ao ocidente, ao branqueamento). Portanto, vejo
pouco interesse entre meus pares pela África. Com exceção do passado recente, nas lutas
pela independência, anticolonialistas, de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e de Cabo
Verde. Houve várias cineastas que foram para lá e filmaram momentos importantes dessa
luta. Mas, entendo que esse interesse veio de uma coincidência entre uma plataforma da
esquerda mundial com as lutas independentistas. Infelizmente, Karl Marx e Engels, em
grande parte de sua obra comum, foram preconceituosos com os povos dito primitivos,
atrasados. Eles chegaram a defender a escravidão nos Estados Unidos como uma etapa
necessária para o avanço da história em direção ao socialismo. Eles ignoraram as revoltas
negras no seu tempo, no Brasil e no Haiti. As consequências desse tipo de pensamento
foi provocar o desinteresse da maioria dos nossos historiadores, sociólogos e artistas, com
formação de esquerda, pela África, pela população indígena brasileira, pela Amazônia
(antes da onda ecológica). Portanto, depois da fase de ajuda aos grupos de esquerda que
lideraram a independência, as trocas recomeçaram recentemente, e eu sou um dos poucos
que apostam nisso, que se esforça por intercâmbios técnicos para reafirmar nossos laços
de herança. A exemplo do curso de especialização em cinema que estou montando com
o cineasta e artista plástico caboverdiano, Leão Lopes, para começar no segundo semestre
deste ano em Mindelo, capital da ilha de São Vicente. As coproduções também estão em

85
curso, e participo deste interesse em realizar filmes na África ou com africanos, em várias
frentes, desde 2005.
Pode-se dizer que as críticas à sociedade brasileira, implícitas na análise da exclusão
dos afrodescendentes da teledramaturgia (vide o documentário A negação do Brasil),
fundamentam o seu modo de selecionar e dirigir os seus filmes?

Elas influenciaram muito diretamente em As filhas do vento, mas não sei o quanto
elas estão influenciando os novos projetos. Mas, a questão básica que está no filme e livro
A negação do Brasilcom certeza sempre fundamentará os meus trabalhos. Ou seja, é um
paradigma para o presente e para o futuro, dar visibilidade para a nossa diversidade racial
e desconstruir a ideologia do branqueamento. E isso é feito na atitude simples de valorizar
o personagem negro como um brasileiro comum, e não como estereótipo de si mesmo.

O documentário A negação do Brasil contribuiu de maneira efetiva para análise de


alguns temas tabus da teledramaturgia brasileira, especialmente o tema da
subalternidade dos personagens afrodescendentes. Como você avalia o modo de
representação desses personagens, levando em conta as novelas brasileiras da última
década?

As novelas estão evoluindo para a incorporação do ator negro em personagens


fora das marcas da subalternidade. É uma postura conflituosa, uma vez que os autores e
diretores não querem admitir publicamente que estão dando o “braço a torcer”, e eles (ou
seus antecedentes) por quase quarenta anos trataram o negro como um ser subalterno,
nascido para servir, para representar a feiura, a inferioridade social e humana. A cada
passo positivo que eles dão como, por exemplo, ao criar uma Helena negra, fazem questão
de reiterar publicamente, em suas afirmativas para a imprensa que não consideraram a
raça da atriz, mas o seu talento, na hora de definir quem seria a escolhida para o papel.
Como se Ruth de Souza, Léa Garcia, Zezé Motta e Milton Gonçalves não fossem desde
jovens os atores supertalentosos que conhecemos. E, nem por isso, foram escalados para
serem protagonistas de qualquer novela ou minissérie.

Considerando a sua atuação nos debates sobre as relações étnico-sociais no Brasil e


a repercussão de sua obra junto a uma parcela expressiva de afrodescendentes, de
que modo você articula a sua autonomia autoral com a possibilidade de tornar-se o
representante de uma coletividade étnica e socialmente reconhecida, ou seja, os
afrodescendentes?

86
Eu nunca tive o desejo de ser representante dos afrodescendentes. Sempre fui um
companheiro de viagem. Abraço qualquer causa que me pareça justa e, por razões
midiáticas, só aparece o que falo sobre a questão racial. Mas dou minha opinião como
cidadão contra aquilo que condeno e que julgo necessitar da atenção pública ou de uma
opinião pública favorável. Uso a simpatia e respeito que o público tem pelo meu trabalho
como uma forma de auxiliar os movimentos sociais em causas que considero
fundamentais. Eu sou e sempre fui uma pessoa engajada no mundo em que vivo. Reajo a
injustiças, estupidez e desinformação. Mas, nunca desejei e nem desejo ser representante
político, institucional ou de qualquer outra forma da população afrodescendente. Não sou
candidato a nada. Os meus filmes também são cheios de críticas dirigidas para dentro da
comunidade negra. Por exemplo, as dificuldades do homem negro em respeitar a mulher
negra são temas constantemente tratados no meu trabalho. Portanto, a minha autonomia
autoral e intelectual vêm em primeiro lugar.

Em As filhas do vento, embora as luzes não estejam projetadas exclusivamente sobre


os temas da afrodescendência (questões de etnia) e da experiência social do feminino
(questões de gênero), o fato é que temos um enredo no qual as mulheres negras
atuam de maneira destacada. Você poderia nos dizer como conjugou estes elementos
durante a montagem do filme?

Esses elementos começaram a ser conjugados desde a concepção do filme. Na


realidade, eles nasceram de uma convivência muito rica e afetiva com as atrizes que
deram os seus depoimentos para A negação do Brasil. Especialmente Ruth de Souza, Léa
Garcia e Maria Ceiça. As histórias que ouvi articularam-se com a história da minha mãe
(que é um outro elemento de inspiração no filme). A minha mãe está em Ju, e um pouco
também na Selminha. Mas, creio que, na montagem, esse processo pesou pouco. Os
momentos fundamentais foram no desenvolvimento do argumento e do roteiro, e no
trabalho de preparação dos atores. Quando ouvi os diálogos na boca dos atores
compreendi melhor os nossos personagens e produzi várias mudanças no texto, e até
mesmo no final da história.

Então filhas teria outro desfecho. Qual teria sido?


No tratamento de roteiro que antecedeu a preparação dos atores não existia a cena
final dentro da igreja, a conversa entre as duas irmãs no mesmo ambiente de abertura do
filme. O desfecho dramático acontecia naquela noite chuvosa dentro da casa do pai. Elas
diziam todas as verdades e ressentimentos que guardavam por décadas e, depois de

87
cansadas de tanta briga, Ju tomava a iniciativa de reconciliar chamando a Cida para
brincar na água da chuva, da mesma forma que chamou para brincar na lagoa no início
do filme. Seria uma passagem mais mágica, mais romântica. Essa cena aparece depois de
começar a subir os créditos. No entanto, sentimos que a discussão era muito desgastante,
que não dava clima para recomposição. Sentimos que o filme perderia muito se
tentássemos introduzir a cena da água bruscamente depois de uma briga muito dura. Esse
tipo de briga entre irmãs é como briga de casal, depois da tempestade existe uma pausa,
e somente depois surge um momento de conversa tranquila. Ou seja, demanda-se um certo
tempo. E é aí que existe a possibilidade do casal ser sensato, e cada um assumir seus erros.
Daí foi que decidimos também que o acerto de contas não deveria ser entre todas as
mulheres, mas somente entre as duas, e na igreja. Ali, no mesmo ambiente do primeiro
reencontro, cena inicial do filme, elas teriam a chance de fazer uma tentativa final de
reconciliação, numa conversa sensata, justa. E elas não iriam mais uma vez perder a
oportunidade de redenção.

E por que naquela igreja? Algum outro motivo, além de ter sido o local do
reencontro?

A igreja é um lugar altamente simbólico para o contexto racial do filme. Em


“Filhas” falo especialmente de uma espécie distinta de grupo étnico negro do Brasil,
diferente de Salvador e Rio, os negros mineiros têm seu comportamento baseado no afro-
catolicismo. Essa devoção aos santos católicos, especialmente aos santos negros, e o
sufocamento sobre a origem e os mitos dos orixás marcaram Minas Gerais e os negros
mineiros. Portanto, a igreja é mais que um cenário, ou um retorno que o filme dá em seu
final para o seu ponto de partida, é um fechar a estória em um mesmo espaço cultural e
religioso que define grande parte dos seus conflitos.

Nota-se um jogo do que é ficção e fato em As filhas. Poderia comentar o significado


desse jogo?

O filme está cheio de fatos misturados ao ficcional. A ladainha inicial cantada na


igreja é uma tradição da comunidade para os seus mortos, que ao tomar conhecimento,
incorporei rapidamente no filme. Aliás, abre o filme. Existe uma placa de estrada, que
vemos na encruzilhada quando Cida está retornando à sua cidade natal, e dá direções para
lugares importantes de minha vida em Minas Gerais, especialmente para a vila que nasci,
Lagedão, distante cerca de mil quilômetros das duas outras cidades citadas. Ou seja, Cida

88
retorna para o seu torrão natal, e passa por um ponto que indica que o diretor também tem
uma possibilidade de voltar ao seu torrão. Há uma placa de sinalização criada pela direção
de arte, a meu pedido. Os poemas de Dorinha aparecem como se fossem parte do livro
“Cadernos Negros”, criado por um grupo de poetas e escritores de São Paulo, e grandes
amigos, que me convidaram para prefaciar uma de suas edições. Dorinha usa as poesias
da amiga Elisa Lucinda como se fossem suas. E, por fim, faço vários jogos com a vida
real de Ruth de Souza, usando as fotos de sua carreira nas paredes de sua casa, usando
trechos de novelas reais que participou, e que são mostradas como se fossem atuações de
sua personagem.

Ruth de Souza e Léa Garcia são nomes emblemáticos da dramaturgia brasileira e,


particularmente, daquela vertente relacionada às questões da afrodescendência. A
participação que ambas tiveram no TEN – Teatro Experimental do Negro, dirigido
por Abdias do Nascimento pertence, hoje, à história do teatro brasileiro e da luta
contra a discriminação racial e social. A escolha dessas atrizes como protagonistas
do filme, para além de sua competência profissional, tem algum outro significado?

A história da Ruth de Souza foi a mais forte fonte de inspiração do filme. No


desenvolvimento do argumento cheguei até mesmo a flertar com a possibilidade de fazer
um filme autobiográfico, mas acabei desistindo da ideia. Seria muito difícil trazer
histórias de pessoas que estão vivas e continuam se relacionando, e mantendo mágoas e
resquícios dos amores do passado. A influência da Léa surgiu depois, ao conhecer melhor
as duas e observar como se dava a irmandade e o conflito entre elas. Ruth e Léa são duas
mulheres fascinantes e quase totalmente diferentes. Elas trocam telefonemas toda semana.
Compartilham o mundo e discutem muito entre si, em decorrência de suas diferenças de
personalidade. São irmãs de alma e meio antíteses entre si. E, na intimidade que passei a
ter com elas, desde que ficaram encantadas com o meu filme e livro A Negação do Brasil,
eu pude observar a Cida e a Ju escondidas dentro delas. Digamos que o meu trabalho foi
revelar isso.

Se em Ruth de Souza e Léa Garcia temos o reconhecimento da consagração de uma


geração de atrizes negras pioneiras, o que se pode considerar a partir do
protagonismo de atrizes mais jovens como Taís Araújo, Thalma de Freitas e Daniele
Ornellas?

89
Essas três da nova geração participam de um mundo diferente daquele que Ruth e
Léa viveram em suas juventudes. Hoje o Brasil discute a questão racial, diferente da
juventude delas, quando o mito de que éramos uma democracia racial e que, portanto, não
existia o problema racial era muito mais forte e sufocava tudo. Era uma barreira que negou
muitas possibilidades para elas. Taís, Thalma e Daniele vivem em um mundo com
barreiras bem menores.

Em As filhas do vento, a passagem do tempo é simbolizada pela inserção de duas


novas personagens Dorinha (Danielle Ornella) e Selminha (Maria Ceiça), seguidas
das personagens Ju (Léa Garcia) e Cida (Ruth de Souza) em fase adulta. Você
poderia comentar a sua intenção nessa sequência, a ordem de aparecimento das
personagens, o uso dos filtros e a sua figuração/conotação sexual?

Nós não usamos filtros na cena dos gozos. Aquilo é resultado do cenário, do
figurino e da luz. Mas, a intenção quando elaborei essa sequência foi criar uma situação
de impacto que levasse o espectador diretamente para aquelas mulheres negras na
plenitude de suas vidas adultas. E o que podemos ter com mais plenitude nessa altura de
nossas vidas? A sexualidade. A cena dos gozos tentava tirar o espectador daquele universo
bucólico e reprimido de uma cidadezinha do interior de Minas e levar para um mundo
diferente em que aquelas mulheres tornaram-se donas dos seus gozos, de suas
sexualidades e tentavam ser donas de suas vidas afetivas. E desfrutavam disso cada uma
à sua maneira. E o jeito de gozar já tentava levar para o público os dramas ou o traço da
personalidade de cada uma delas: alegria, angústia, solidão e paz. A alegria de Dorinha,
a angústia da Selminha, a solidão de Cida e a paz e maturidade sexual do casal Ju e
Marquinhos. Foi, propositalmente, uma cena de impacto para jogar do bucólico para o
drama no tempo atual daquelas mulheres. Aqui cabe um parêntese, o roteiro foi um
trabalho de quatro mãos, com o Di Moretti, mas essa cena foi uma criação minha.

Seu documentário de 2009, Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado, revela o


imaginário coletivo a respeito do desempenho sexual das mulheres brasileiras,
especialmente das mulheres negras. De alguma forma, houve a intenção de
representar este imaginário também nesta sequência ficcional?

Sim, creio que até no passado recente tínhamos uma diferença marcante entre o
imaginário sexual das mulheres negras e das brancas brasileiras. Tomo como exemplo a
minha mãe negra e as minhas tias da linhagem paterna, branca. Quando minha mãe se

90
separou no final dos anos 50, ela teve várias relações amorosas e sexuais. E isto era
absolutamente natural para ela. Foi feito sem culpas. As minhas tias se separaram no final
dos anos sessenta e nunca mais voltaram a ter relações sexuais. Os únicos homens de suas
vidas foram os maridos. Elas bloquearam novas possibilidades, correspondendo às
expectativas de suas famílias e de seu grupo social/racial. Acho que este exemplo espelha
a moralidade “branca” e a diferença com o universo da mulher negra brasileira, que desde
o tempo da escravidão foi até mesmo proibida de ter o “seu homem”. O senhor de escravos
não apenas se dava ao direito de dispor do corpo das mulheres negras, como definia se
elas podiam ter vínculos familiares ou não, ou com quem deviam procriar. A tudo isso se
associa o panteão mitológico das religiões dos orixás que, assim como os tipos
psicológicos definidos por algumas correntes da psicologia, enxergam as possibilidades
de cada ser humano ter comportamentos muito diferenciados um dos outros. Não somos
apenas homem ou mulher. Ou homem, mulher e um “terceiro sexo”. Temos uma
possibilidade muito grande de constituir tipos psicológicos, sexuais e afetivos
extremamente distintos, a partir dos orixás que determinam a nossa cabeça, ou que
influenciam nosso destino. Se você é uma filha de Iansã tende a ser uma pessoa direta no
que quer, não esconde sentimentos de ninguém. Tende a ser muito mulher, mãezona e
sensual, e também a ter períodos ou ciclos de certa ambivalência sexual, de ser mulher
em certas horas e meio masculina em outras. Mas se você for ver as características de
Oxum encontrará um jeito humano de ser muito distinto de Iansã ou de Nanã. Enfim,
quem nasce ou cresce, mesmo que indiretamente, sobre o manto imaginário dos orixás
compreende a si mesmo e sua sexualidade de forma muito distinta do imaginário branco
cristão europeu. As cenas dos gozos, que faz a passagem do passado para o presente no
filme, é uma intenção de representar essas diferenças humanas e, ao mesmo tempo,
mostrar a importância da sexualidade para aquelas mulheres.

Nas cenas do velório do pai vemos, em determinado momento, a participação de um


Terno de Congada no cortejo fúnebre. Fale-nos sobre o processo de inserção dessa
experiência religiosa popular no contexto do filme. Você tinha, ou tem alguma
expectativa especial em relação à recepção desse processo?

Eu acredito que, à medida que assumimos nossas raízes, nossas heranças


familiares, comunitárias e históricas, tendemos a ser mais seguros e resolvidos. O
personagem do Zé das Bicicletas é de um negro correto, mas angustiado com o seu papel
de demonstrar o tempo todo que não vai ameaçar as relações raciais, que vai cumprir o

91
que é esperado para ele na sociedade mineira e brasileira. No entanto, suas filhas o fazem
pensar. Tem um hiato de tempo que não sabemos o que aconteceu com ele. Mas ele
envelhece e torna-se mais doce. E a sua participação na Congada é a experiência que
ajuda no processo de ter orgulho de sua negritude. A incorporação daquele ritual típico
da Congada no enterro de uma pessoa com uma posição destacada em sua hierarquia tenta
passar para o público essa mudança na história do pai. Eu me preocupei também em trazer
para a ficção o universo do afrocatolicismo que é a marca da experiência negra diaspórica
de Minas Gerais e da região oeste do país. O negro baiano do recôncavo é ligado aos
orixás. O negro carioca é ligado também aos orixás e ao panteão mais miscigenado da
Umbanda. O cinema ficcional brasileiro nunca prestou atenção ao universo do
afrocatolicismo. Com As filhas do vento, tive a chance de trazer um pouquinho dessa
percepção para os espectadores.

A inclusão de um texto poético no discurso da personagem, ao final de As filhas do


vento, aponta para algo mais que um diálogo entre o seu filme e a tendência
politicamente engajada da Literatura Afro-brasileira contemporânea? Por que você
selecionou estes poemas para ecoarem na voz da personagem?

Os poetas negros paulistanos, especialmente Arnaldo Xavier, foram importantes


na minha formação intelectual. E amo as poesias modernas da Elisa Lucinda, amiga de
quase duas décadas. Como já disse, sua poesia está na boca da personagem Dorinha, Elisa
me inspirou na criação dessa personagem. Eu até mesmo tentei trazê-la para o filme, mas
sua agenda com a Rede Globo não permitiu.

A cena em que Ju aparece salvando as crianças, é uma das partes mais dinâmicas do
filme, considerando a música e a movimentação de câmeras. Por não ser um filme
blockbuster dá a impressão de que foi algo um pouco difícil de fazer e de montar.
Além disso, pareceu extraordinário que uma mulher daquela idade salvasse tantas
crianças sozinha. Poderia comentar a construção desta sequência e a opção por
inseri-la?

Realmente, o meu filme é um melodrama. Não é um thriller, e não tinha


orçamento para ser rodado como um filme de ação que demanda mais câmeras, mais
filmagens, mais aparatos, mais dinheiro. Mas a minha inexperiência me fez tentar. O
resultado é pobre, é a parte que menos gosto do filme, do ponto de vista da realização. No
entanto, a inspiração da cena é uma história familiar muito marcante no meu segmento

92
paterno. A irmã do meu pai, a querida tia Dulce, enfartou e morreu depois de salvar os
seus netos do afogamento, assim como Ju faz no filme. Esse drama real surgiu, quando
eu tentava criar uma cena que mostrasse as diferenças de personalidade da personagem
Ju, no segundo momento do filme. Na primeira parte, o público conheceu uma garota
mimada, coquete, meio irresponsável. E eu queria levar o filme para o confronto de duas
irmãs, de duas mulheres na terceira idade, que aprenderam com a vida, que se tornaram
mulheres interessantes. Uma, mãezona e a outra, uma artista famosa, reconhecida
nacionalmente. O seu heroísmo, ao salvar os seus netos do afogamento, teve a intenção
de mostrar essa mulher mãezona responsável, comprometida com sua prole e com traços
de culpa em relação ao incidente que levou à “expulsão” de sua irmã querida. É por isso
que na mesma sequência ela tem aquele diálogo sobre a sua decisão de não casar-se com
Marquinhos. A história real caiu, portanto, como uma luva para buscar transformar os
sentimentos do espectador em relação àquela jovem coquete do passado.

Entrevista realizada por Sumaya Lima, no Rio de Janeiro, janeiro de 2010.

Publicada em Afro-Hispanic Review, vol 29, nº 2. 2010.

93
7.6 ANEXO VI

JEFERSON DE

Jeferson De: Primeira vez que eu pensei em fazer cinema foi eu acho que em 1989 vendo
“faça a coisa certa” de Spike Lee. Com uma trilha sonora incrível. Um filme super urbano,
que se passa em Nova York, que é uma cidade razoavelmente parecida com São Paulo. E
ai eu já estava na faculdade de filosofia e conhecia muita gente da faculdade de cinema,
e ai foi quando eu pensei, poxa que quero fazer cinema.

Trabalhos

Jeferson De: Primeiro trabalho que fiz foi com um ator que, coincidentemente hoje
também é muito conhecido. A gente rodou um vídeo inspirado numa obra. Fiquei
impressionado com uma obra de Nuno Ramos, chamado “111” que se referia ao massacre
no Carandiru. E eu fiz um vídeo chamado “one one one”, com um ator chamado Luiz
Miranda, e foi à primeira obra que fiz. E essa obra foi passar mostras* (01h00min) de
vídeo artes, já participou de festival e ai foi.

Depois, em seguida eu fiz um filme dentro da faculdade chamado “Gênesis 22”


que também traz uma influência da cultura judaico-cristã, que o filme é sobre o Gênesis,
capitulo 22 da bíblia, a história de Abrão e do Isaque.

Ai em seguida, eu ganhei um prêmio e consegui juntar isso com uma empresa


grande de entretenimento que é a Trama Estúdios, e ai tive pela primeira vez um Steffi,
totalmente profissional pra fazer meu primeiro curta fora da faculdade, que é a

“Distraída para a morte”, inspirado numa música do músico (problemas na reprodução do


vídeo).

No ano de 2010, foi um filme que eu pude contar com um elenco enorme, número
de músicos, colaborando com o filme, muito grande. O filme que teve uma pré-estreia
num dos principais festivais do mundo em Berlim. Então essa é a minha pequena grande
obra, nesses 10 anos de cinema.

94
TRILHAS

Todas as trilhas que tem o Bremen het., o hitnkok, o Jon Willians, do Spielberg,
do Terach Blanter, dos filmes do Spike Lee, acho que o Woold Alen faz isso com uma
maestria, alguém comentou uma vez que o Woold Alen quando acaba de montar um filme,
ele pega vários discos de jazz na casa dele e vai sonorizando, vai escolhendo a melhor
música pra colocar no momento. Então qual quer filme do woold além você vai ouvir,
assim, umas dez ou quinze, grandes canções do Jazz.

A primeira trilha que eu vi no Brasil, que eu ouvi e que me chamou muita atenção,
por exemplo, foi o Gilberto Gil, no filme “quilombo”, que é um filme de 1988, e acho que
ela é muito cantada às vezes, mas eu adoro a trilha do filme. Umas das trilhas que eu tenho
que eu ouço muito é a trilha do filme “Lavoura Arcaica” do Marco Antônio do grupo Acti
(03h07min) e que e uma trilha que eu ouço e ouço, e até independente do filme é uma
coisa que me leva por outros caminhos e eu acho que tom fílmico ali.

MUSICA NO CINEMA

É impossível fazer cinema sem música. Você tem o timbre do ator. A gente
quando vai escolher um ator, tem muita essa coisa do timbre, daquela rouquidão de alguns
atores, da ocilidade de algumas atrizes. Pra mim é música também. Depois você tem todo
um trabalho que é a edição do som, a mixagem do som. Bem, talvez seja fácil você fazer
algum filme sem alguma canção, aquela música cantada, com poesia, com a palavra
falada é possível. Mas mesmo nos filmes mudo, e se a gente for pensar que o filme mudo
era projetado com um pianista atrás da tela, ninguém conseguiu imaginar o cinema sem
som. Pode não ser um som doble estéril, uma sala 3D, mas o cinema nasceu com a música.
É impossível você pensar em qualquer filme hoje, onde a música não seja forte.

95
ANEXO VII

8ª Mostra Internacional: IMAGEM DOS POVOS (Belo Horizonte 15 a 30 de junho


de 2013).

Joel Zito Araújo: Diretor do filme “Raça” (Brasil): Pensando aqui, nos meus tempos
de Belo Horizonte. Eu fiz a minha graduação aqui, eu fiz grande parte do meu mestrado
aqui.

Esse aqui é um companheiro de velhas lutas daquele período e estava olhando pro
marquinhos aqui do lado e lembrando como que Belo Horizonte é uma cidade tão
contemporânea e com tanta dificuldade de assumir que ela é a capital de um estado tão
negro como Minas Gerais.

Eu vivi essa Minas Gerais, eu não sei se essa Minas Gerais mudou muito né?! Mas a Belo
Horizonte não refletia essa negritude de Minas Gerais. Não Refletia essa diversidade né?!
de povos que Minas Têm.

Imagens do filme “Raça” De Joel Zito Araújo (Brasil)

Joel Zito Araújo: O Festival da Imagem dos Povos, para Belo Horizonte, para Minas
Gerais, ele tem um lugar fundamental de fazer com que Belo Horizonte seja de fato
contemporânea. Tenha... conclua o seu ... O seu desejo de contemporaneidade. Porque
naquele período que eu vivia... Os vínculos estavam mais com Paris, os vínculos estavam
mais com os Estado Unidos né?! e eu acho que os vínculos têm de estar com a diversidade
do mundo né?! esse ano especialmente, eu acho que a Imagens dos Povos acentua essa
necessidade que o Brasil tem, que Minas Gerais tem mais ainda do que outros lugares do
Brasil, que é de ter vínculos com a diáspora africana e com África.

Imagens do filme “Raça” De Joel Zito Araújo (Brasil)

Joel Zito Araújo: Fui encontrar uma série de reflexões interessantes quando mudei para
São Paulo. Sobre a negritude, sobre os grandes poetas negros, sobre os grandes artistas
negros, os grandes pensadores, né?!, eu encontrei uma cena muito diferente, quando eu

96
sai de Belo Horizonte pra São Paulo em 84. Eu acho que essa cidade necessita e esse
estado, muito do fortalecimento da imagem dos povos.

97

Anda mungkin juga menyukai