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INTRODUÇÃO

MARINETTI E O FUTURISMO

AURORA F. BERNARDINI

Em 1893, vindo de um colégio de jesuítas de Alexandria – Egito, o jovem e


abastado Filippo Tommaso Marinetti chega a Paris a fim de completar sua
educação. Imbuído de classicismo/catolicismo, oriundo de um ambiente onde
existe a dominação dos colonizadores e a submissão da população árabe
oprimida e desnutrida – se, por um lado, desenvolvem-se nele como reação os
germes de uma atitude ao mesmo tempo anticlerical (Le monoplan du pape, Paris
Sansot, 1912) e anticlássica (Manifesto de Fundação), pode-se entender também
por que as idéias de Sorel/ Nietzsche, por outro lado, tenham encontrado um
terreno tão fértil no futuro chefe do futurismo.
(Irônica e significativa, entretanto, a compartimentação à qual sujeitará, em
sua vida futura, todas essas tendências: anticlerical, mas as filhas estudam em
colégios de freiras; anticlássico, mas vestindo a farda da Academia; indisciplinado,
mas cumprindo rigorosamernte o serviço militar; liberal, mas aderindo ao
Fascismo. Como observa com sagacidade Benjamin Gorièly: “Acontecia-lhe ser
indisciplinado no dormitório, mas nunca em sala de aula”).
Conseguido em Paris o baccalauréat en lettres, e obtido o grau de Doutor
em Direito, com a tese La Corona nel Governo Parlamentare, defendida em
Gênova em 1899, satisfazia as vontades do pai e sentia-se, com isso, livre para
orientar suas energias para o campo literário, o único que realmente o apaixonava.
Aliás, já no Egito havia percebido os sintomas desta vocação. As
composições literárias eram seu forte e sua incansável atividade já havia surtido a
publicação de Papyrus, uma revista literária periódica.
Pode-se imaginar quão arrebatador e marcante tenha sido para o jovem
“beduíno” o ambiente que encontra na Paris do auge da “Belle Époque”. Oscar
Wilde acaba de publicar aí sua Salomé; Whitman circula, traduzido, nas bancas do
Sena. – É a grande estação da poesia francesa: Rimbaud, Verlaine, Laforgue,
Moréas, Adam, Verhaeren, Mallarmé figuram nas revistas mais lidas, com obras
que suscitam vivas polêmicas.
Ao conhecimento de uma eternidade imutável, em sua essência, surge
Bérgson opondo uma realidade criadora em movimento: Tout Se Tient. Os
anarquistas dão começo à fase mais violenta de sua contestação: bombas são
lançadas no Parlamento. Ravachol é guilhotinado. Sebastian Faure dá
conferências sobre “questões sociais” a um auditório repleto de poetas e
estudantes.
Instaura-se o verso livre. O instinto leva Marinetti a conhecer pessoalmente
Catulle Mendes e Gustave Kahn. A este dedica seu poema “La conquête des
étoilles” e será Mendes que contribuirá para que ele ganhe o concurso dos
Samedis Populares (1899) e tenha seu poema “Les vieux marins” recitado por
Sarah Bernhardt. Passa a publicar em diversas revistas e, mais assiduamente, na
Anthologie – Révue de France et d’Italie. Ganha amigos e notoriedade, Paris
adota-o.
O verso livre (“perene dinamismo do pensamento, desenrolar ininterrupto
de sons e imagens”), o maquinismo (“a psicologia do progresso”) e a anarquia
(Stirner mais do que Bakunin) – eis os três pilares sobre os quais se baseará
Marinetti, mais tarde, para a edificação do Futurismo.
Agora, devidamente formado, divide-se entre França e Itália, procurando
consolidar sua celebridade. Deste país, visita todas as principais cidades,
recitando, grandiloqüente, os poemas de Rimbaud, Hugo, Baudelaire, Verlaine e,
particularmente, Mallarmé. Durante as Tournés trava amizade com diversos
escritores peninsulares. Resulta a criação em Milão, onde passa a residir, de uma
revista internacional, Poesia (1905), para cuja colaboração são convidadas as
personalidades européias em destaque.
Pouco antes, Marinetti havia publicado “La conquête des étoilles” (1902),
poema antiteístico, ainda impregnado de simbolismo e, no mesmo ano da
fundação da revista, manifestando a atração que sobre ele sempre exerceu o
teatro, Le Roi Bombance, grotesca tragédia gastronômica antiparlamentarista nos
moldes de Gargantua e Pantagruel que provoca violentas polêmicas na imprensa
parisiense pelas tacadas caricaturais de que são alvo os socialistas mais à vista, e
já permite entrever o estilo do iminente Manifesto del Futurismo, publicado no
Figaro de 20 de fevereiro de 1909. Com reboantes maiúsculas, ritmos
cadenciados e preciosismos liberty, extremo obséquio à escola na qual se formou
(o Simbolismo), Marinetti envolve os vistosos elementos do futurismo incipiente, o
fetichismo da máquina, a glorificação das maciças descobertas tecnológico-
científicas que encobrem o advento de uma nova atitude espiritual, uma nova
maneira de encarar o mundo que McLuhan e os teóricos dos mass media
haveriam de explicitar, tantos anos mais tarde.
Indiscutivelmente, o futurismo italiano foi o primeiro grande movimento
intelectual que serviu de modelo para numerosas escolas artísticas e literárias na
Europa. “O acontecimento que marcou a fundação da arte moderna na Europa foi
a publicação do manifesto futurista de Marinetti”, escreveu o comedido e austero
Gottfried Benn (1). Modelo este válido não tanto pela originalidade de suas idéias
(algumas já estavam no ar e circulavam pelos meios literários da época (cf. o
Manifeste Naturiste (1897) de Saint-Georges de Bouhélier e Les Sentiments
Unanimes et la Poésie (1905) de Jules Romain), mas pela radical mudança de
tom, pela substituição do raciocínio lógico e conseqüente por uma rica e
movimentada fabulação, repleta de símbolos, alegorias e incitamento à ação.
Implicações políticas à parte, o Futurismo, de 1909 até 1920, deixou traços
inconfundíveis na estética do mundo moderno, que se configuraram mais tarde na
Europa e até na América. Pound reconhece que o movimento literário londrino por
ele inaugurado com Joyce, Eliot e outros, não teria existido sem o Futurismo; Flora
admite que a teoria das palavras em liberdade codifica toda a arte contemporânea,
diz Aldo Santini num recente estudo (2). O próprio futurismo político, que se
cristaliza em 1915 e cujo manifesto liberal com fortes matizes anarquistas aparece
só em 1918, poderá, quando analisado, ser taxado de tudo, menos de fascista e
menos ainda de reacionário.
(1).GOTTFRIED BENN, Saggi, Milão, Garzanti, 1963, p.217. Apud LUCIANO DE MARIA, “Marinetti,
poeta e ideólogo”, in: F.T. Marinetti- Teorie e invenzione futuriste, Verona, Mondadori, 1968.
(2). In: L’Europeo, 9/12/1977: “Futurismo non fá piú rima com fascismo”.
Mesmo o intervencionismo e o “militarismo” futurista (a guerra – única
higiene do mundo), que se delineia a partir de 1914, deve ser julgado no
contexto da época em que a Itália pobre e “mumificada” procurava saídas para
sua indústria nascente. Nisso, diz com acerto Benjamin Gorièly, poder-se-ão
encontrar semelhanças com as idéias de Bakunin (aliás, várias vezes citado
por Marinetti) contra o absolutismo germânico.
A adesão do Futurismo ao Fascismo e a apropriação por parte deste de
slogans futuristas é um fenômeno posterior, que, de acordo com certas
“revisões” atuais se prende á influência do que, dentro do movimento, passou a
receber a denominação depreciativa (e parcial) de “marinettismo”, ou seja, seu
aspecto mais regressivo, onde em grande parte a estética e a ideologia da
máquina se encontram com a estética e a ideologia da guerra. Na verdade, a
“ideologia” futurista não coincide inteiramente com a ideologia de Marinetti (do
qual, mesmo assim, deveriam ser consideradas as várias fases (3)), apesar de
ele ter sido seu principal promotor. No Bund futurista, as idéias circulavam
livremente: as concepções dos artistas plásticos influem sobre as poéticas dos
literatos; um Lucini, um Papini, um Palazzeschi aderem ao movimento do qual
hão de se afastar mais tarde, radicalmente, levados justamente por
discordâncias de princípios.

Marinetti entende que para lançar um movimento, isto é, para vender um produto, é
necessário dar-lhe um nome de efeito, necessariamente inventado, novo, e repeti-lo
continuamente até a obsessão, evitando entrar em detalhes. E a estratégia agressiva de
Marinetti presta-se ao fascismo. Mussolini saqueia a terminologia, a técnica do insulto, o estilo
lapidar, a ênfase marinettiana (4).

Marinetti, também é verdade, sempre agiu como diplomata astuto; mesmo


depois do I Congresso dei Fasci (9 e 10 de outubro de 1919) do qual participou
e mesmo após sua prisão juntamente com Mussolini em Milão, que ele haverá
de lembrar futuramente, não sem orgulho, ou seja, em última análise, mesmo
depois de sua reconhecida adesão ao Fascismo, ele continuará, separando a
literatura da política, a acolher em seu movimento e a manter relações com
escritores de vanguarda, especialmente estrangeiros, de outras concepções
ideológicas e políticas. Assim se explicam, por exemplo, seus contatos com
Maiakovski e sua amizade por Herwarth Wolden, na época diretor de Der
Sturm e notório filo-soviético
Os futuristas, diz Gramsci (5), “tornaram-se companheiros de estrada de
Mussolini... como moleques que fugiram da escola, fizeram um pouco de bagunça
no bosque e voltaram para casa”... Não há dúvida, porém, que, em 1924, muitos
deles, e Marinetti inclusive, se reaproximam do Fascismo, aburguesados,
desejosos de honrarias de penachos, perdendo definitivamente sua validade.

(3).A personalidade de Marinetti é, naturalmente, muito mais complexa do que pode transparecer
nos manifestos que ele assina, ou mesmo nos romances e poemas que compõe. Luciano De
Maria, no já citado ensaio, insiste em salientar seu momento prometéico, seu impulso no sentido
de “changer la vie”, que se tornará uma das principais preocupações do Surrealismo, e não se
deter, como fazem muitos, em seu “motorismo”, em sua adesão bruta e determinística à civilização
mecânica. (4). L’Europeo, idem, ibidem. (5).Provavelmente referindo-se ao episódio de 1919.
A tantos anos de distância, tendo-se arquivado este seu ocaso sem luz,
resta para o mundo inteiro o Futurismo como motor das vanguardas européias e
da renovação geral. E, mais do que os frutos imediatos, contam, num movimento,
os efeitos que ele consegue acender.
ATUALIDADE DO FUTURISMO

PAOLO ANGELERI

Num país como o Brasil em que a influência futurista (e marinettiana) não


deixou de ser sentida, assimilada e elaborada (como ocorreu com Mário de
Andrade, por exemplo, com a estética de Soffici em A Escrava que não é Isaura),
ou mesmo sagazmente discutida e satirizada (como em Oswald de Andrade, em
Serafim Ponte Grande), a escolha e a publicação dos manifestos daquele
movimento assume significado particular. Por outro lado, o discurso enquadra-se
num contexto internacional de retomada do interesse por este aspecto relevante
da cultura das primeiras décadas do século passado. Sem dúvida não se trata de
simples curiosidade ou de oportuna orientação do gosto, mas sim de uma procura
de temas e consonâncias que estão na origem de modalidades ainda hoje muito
vivas.
Se é verdade que parece chegado o momento, agora, de optar por uma
indagação que saiba “colher o fenômeno em toda sua complexidade ideológica,
implicações políticas inclusive” (1), é verdade também que além de qualquer
intenção denegritória ou apologética, torna-se necessário voltar aos documentos
na dimensão de sua permanência e revê-los em toda sua extensão e limitação,
ligada ao contexto sócio-cultural da época.
Inicialmente será conveniente propor limites cronológicos para o
movimento: em 20 de fevereiro de 1909, Marinetti publica no Figaro de Paris o
“Manifesto do Futurismo”, abrindo assim um discurso que irá encerrar-se por volta
de 1920, com uma espécie de cisão no interior do próprio movimento.
No âmbito desta periodização podem ser consideradas três fases: a
primeira (1909-15), que Falqui define como o “período heróico”; a segunda (1916-
18), com a inserção de outros participantes (Bruno Corra, Enrico Settimelli,
Umberto Sant’Elia) e com interesses de tipo teatral, cinematográfico e político; e
uma terceira (1918-20), de tendência nitidamente sócio-política. Nestas três fases
o que mais se evidencia é o caráter vanguardístico; em seguida, ele decresce até
tornar-se decididamente não de vanguarda, senão, curiosamente conservador.
A apropriação do “marinettismo” pela temática fascista: a impetuosidade de
linguagem, o tom provocatório (às vezes insultante), o topete, o desafio,
transforma as intenções primeiras em técnica oratória e – por que não? – também
de governo.
A carga dessacralizante do Futurismo deixa, aos poucos, lugar e passa a
servir de máscara a uma atitude de aceitação de modelos estruturais de um
“social” bastante conformista e quase totalmente integrado nos moldes do sistema
tradicional.

(1).MARINETTI, Teoria e invenzione futurista, Milão, 1968 (Introd. De Luciano de Maria, p.XIX).
Que o Futurismo tivesse de acabar no maneirismo e no academismo era
fato previsível, e que seus êxitos imediatos viessem a ser pouco relevantes e de
certo modo descontados, idem (2).
O que me interessa aqui não é analisar seu fim, mas seu “começo”: qual é o
discurso subliminar que está na base da procura futurista.
Uma das categorias introduzidas por esse movimento é, como se sabe, a
da novidade ou “novitação” que, em grande parte, está ligada ao conceito de
metanóia.

“Trata-se de um caso de entrega à concepção tecnicista da linguagem poética que tem


seduzido mais de um intelectual de nosso tempo. Querendo libertar o escritor, o futurismo
dava-lhe novas fórmulas que acabariam compondo a nova retórica do texto. A estrutura que
subjaz à poética da metalinguagem é o mito capitalista e burocrático da produção pela
produção, do papel que gera papel, da letra que gera letra, da rapidez (time is money), da
eficácia pela eficácia (o que interessa é o efeito imediato), da violência pela violência: guerra
sola igiene del mondo” (p.148).

Em seu conjunto, o anseio futurista parte de uma solicitação antiburguesa,


dessacralizadora – como se diz atualmente – que está situada no âmago da
própria burguesia: uma espécie de revolta freudiana do filho em relação à mãe.
E o contexto filosófico em que nasce é aquele criado pela instância
nietzschiana, desde o advento das idéias do super-homem, até a tensão
bastante difundida em direção ao novo, fomentada pela segunda revolução
industrial (a do motor elétrico e à explosão).
Não deve ser esquecido que os primeiros vinte anos de nosso século
marcam o advento do avião, do automóvel, do domínio aparentemente
absoluto do homem sobre a natureza, por meio da máquina.
A primeira revolução industrial – em fins do século XVIII – havia provocado
a confiança na sorte magnífica e progressiva do ser humano. Os prodígios da
inteligência do homem apareciam então como signo de uma potência ilimitada:
o século XX nasce sob a égide de um espírito semelhante, com todos os
resíduos do positivismo e do cientificismo que arrasta consigo.

(2). AlfredoBosi, em seu notável trabalho O ser e o tempo da poesia (SP, 1977), assim se expressa
a respeito: “Quem lê o ‘Manifesto técnico do futurismo’, escrito por Marinetti em 1912, topa com
verdadeiras ‘ordens de serviço’ técnico-gramaticais: empregar o verbo só no infinitivo, abolir o
adjetivo, abolir o advérbio, só admitir substantivos compostos (‘homem-torpedo’, ‘porta-torneira’...),
suprimir os termos de comparação (‘como’, ‘qual’, ‘semelhante a’), abolir a pontuação, empregar os
sinais da matemática (+ - . :: = > <) e as convenções da partitura...
Porém, em sua base, está também uma exigência metafísica de
transformação do humano. A burguesia sente-se satisfeita com seu poderio,
porém o preço dessa sua satisfação é uma crise interior de credibilidade de
seus próprios valores. Ao processo minatório de auto-análise, de auto-erosão,
no qual se vê envolvida, contrapõe um tom de segurança através da crença no
novo. Trata-se de uma atitude oscilante, contraditória, que, justamente, há de
se encontrar no cerne do Futurismo: por um lado, confiança no produto
burguês em sua formação irrompente; por outro, rebelião aos esquemas desta
mesma construção burguesa.
Já foi dito na Introdução quanto ao caráter contraditório de Marinetti:
anticlerical, mas religioso; anticlássico, mas acadêmico; indisciplinado, mas
militarista; liberal, mas aderindo ao Fascismo. Não se trata aqui de dialética
nem de se aprofundar o discurso e atribuir à “contraditoriedade” uma
solenidade que não tem. Nem de pensar numa instância do tipo
kierkegaardiano, nem, tanto menos, solapar defasagens nietzschianas. Trata-
se simplesmente da contraditoriedade superficial do italiano médio, capaz de
dizer e desdizer com a mesma naturalidade – e Marinetti e o Futurismo –
temos que convir com toda franqueza – não são profundos.
Aliás, seu maquinismo – ou psicologia do progresso – não constitui
descoberta desconcertante, do mesmo modo que seu “versolivrismo” e seu
anarquismo “stirneriano”. Nada de original, nada que não tenha o gosto do
déjà vu. E então?
Em que termos e dentro de quais limites o Futurismo conseguiu ter uma
incidência nacional e internacional, indiscutivelmente, de vulto?
Para começar, acredito que grande parte da popularidade do Futurismo
deva ser procurada em sua carga histriônica e aparentemente popularizante.
Não é o conteúdo o novo, e sim o “tom”, a “provocação”. Elemento, aliás,
retomado por muitos autores em busca de popularidade rápida: a atitude
agressiva é seguramente um dos ingredientes mais próprios para o sucesso.
“Tom” mais do que conteúdo. Mas também adesão àquilo que a
humanidade da época advertia como sendo o indiscreto encanto
(parafraseando Buñuel) de um mundo violento, em que a máquina já consistia
numa agressão à natureza, cujo desastre ecológico hodierno é conseqüência.
Pode-se, é verdade, encontrar justificativas históricas: costuma-se dizer que
a realidade social média de então – fraca, pouco eficiente, velhaca –
estimulava reações arrebatadoras, descargas provocatórias, violência quase
gratuita. Mas, no fundo, é preciso ter a coragem de dizer que, ao limite, eram
atitudes irracionais sugeridas pela incipiente decomposição da burguesia, já
decrépita e em crise há muito tempo.
A destruição da razão, de que fala Lukács no ensaio homônimo,
encontrava-se já em seu ponto culminante com a proposta da falta de respeito
pelo social autêntico, pelo humano. Este é o negativo da instância futurista.
Porém, como diz muito bem Bloch (3), o que interessa na história é o Roten
Faden, aquele misterioso fio que se desenrola por entre o caótico devir dos
acontecimentos, redimindo-os, recuperando-os.
O Futurismo, no momento de maior virulência do espírito de poder, é a
tramitação, para o homem e para a cultura, de conversões que tendem para aquilo
que referimos como metanóia.
O filisteu burguês – conformado e até mesmo velhaco – capaz apenas de
observar os outros que lutam e gozar em silêncio, eventualmente com as
violências e o sangue – é colocado dramaticamente diante de uma escolha. Não é
mais possível esconder-se e ficar observando nos bastidores – é necessário
empenhar-se. Não é mais viável alimentar-se de “Chiaro di luna” e de outros
pertinazes lugares-comuns, pretendendo com isso ser “in”. O Futurismo, em sua
fase inicial, é ácido corrosivo, é modo de colocar o homem diante do autêntico,
numa constante condenação do banal, do trivial, do descontado.
A seu modo, malgré lui, põe-se como um movimento existencial, que tende a
colocar o vivido entre parênteses, para um confronto autêntico com aquilo que é
outro. Seu limite está no discurso provisório, na complacência do parêntese pelo
parêntese, na falta de uma conseqüência ulterior.
Nem estes termos têm outra mensagem a dar que não seja esta enfática
recusa do mundo, visto em sua provisoriedade de corte histórico e a proposta
maximamente tecnológica e maquinística.
Finalmente, uma observação mais geral, que não posso deixar de fazer a
propósito do Futurismo, diz respeito à carga libertária que ele implicita. Fixar a
atenção sistematicamente em direção ao futuro significa dar ao homem a
dimensão do possível. Todos os instantes, encerrados no passado e no presente,
estão ligados á lógica do inevitável: “Factum infectum fieri nequit”.
Passado e presente se confundem na inexorabilidade de seu condenar-se
recíproco. O que é passa a se identificar com o que era, com o não ser irrevogável
do passado. Ao contrário, o que será tem a abertura ilimitada do possível e do
impossível: o futuro tem justamente esta carga pluridimensional, este caráter
poliédrico de situações que “ainda não são”.
Talvez não se tenha ainda refletido o suficiente sobre a mola psicológica de
uma posição do gênero: que é justamente o Roten Faden de uma promessa de
novos céus e nova terra.
Não está em discussão o gênero de futuro proposto pelo movimento do
Futurismo – o problema é outro: penso que além da análise erudita e da pesquisa
exaustiva e cuidadosa dos dados sobre o movimento em si, o que tem lugar e
sentido ainda hoje é exatamente este tipo de solicitação com mensagem – válida
em toda sua extensão “futurível”.

(3).BLOCH, E. Ateísmo nel Cristianesimo.


TEATRO SINTÉTICO FUTURISTA

HAROLDO DE CAMPOS

(Este artigo foi publicado, originalmente, no Correio


da Manhã, Rio de Janeiro, 2.7.1967. dedico-o
agora, nesta sua republicação, à memória de
Edoardo Bizarri, incansável promotor da cultura
italiana no Brasil).

A encenação de 14 peças do teatro sintético futurista, há pouco


apresentada em São Paulo, graças a uma oportuna iniciativa de Edoardo Bizzarri
e Olga Navarro (o primeiro fez o roteiro do espetáculo e atuou como narrador; a
segunda verteu os textos para o português e emprestou ao elenco sua experiência
e competência de atriz), deixou-me a impressão de que certos processos de
renovação no campo das artes, muito longe de estarem historicizados e
convertidos em objetos de museu, ainda se conservam abertos e carregados de
significado prospectivo. Isto não obstante a reação da crítica dita “especializada”,
que, inconscientemente talvez, procurou neutralizar-lhe o impacto, vendo-o como
uma espécie de “conferência ilustrada”, e assim, sob o conjuro de uma etiqueta,
fazendo de conta que a sua contundência estaria esvaziada de conteúdo e não
diria mais respeito à linguagem do teatro de hoje.
Realmente, a começar pelos manifestos futuristas, cujos textos foram
inteligentemente entremeados no decurso do espetáculo, o que se viu foi a
atualidade que ainda continuam a ter grande parte das críticas e propostas
teóricas de Marinetti e seus companheiros em relação ao teatro tradicional, tal
como, ritualmente, nunca deixou de ser inteiramente cultivado, apesar das
investidas vanguardeiras que se repetiram ao longo dos últimos cinqüenta anos.
Quando se considera como de vanguarda uma peça como Quem tem medo de
Virginia Woolf?, encharcada de psicologismo e, no fundo, nostálgica de um happy
end costumbrista, com acentos de frustrações maternais explicando pseudo-
revoltas que, no plano lingüístico, não vão além do palavrão linear (claro, sou pelo
palavrão criativo, à maneira de Oswald e dos trovadores do escárnio e maldizer),
quando se vê isto acontecer, não se pode senão lamentar que os manifestos
futuristas não tivessem sido suficientemente assimilados em suas arremetidas
programáticas contra o “teatro de arte”. A vontade que se tem é repetir com
Marinetti: “Nós condenamos todo o teatro contemporâneo, pois que todo ele é
prolixo, analítico, pretensiosamente psicológico, explicativo, diluído, meticuloso,
estático, cheio de proibições como um código, dividido em celas como um
mosteiro, coberto de bolor como uma velha casa desabitada”.
Na medida em que se admita que o teatro contemporâneo é hoje também,
e sobretudo, aquele balizado pelo parâmetro Maiakovski, Brecht, Ionesco e
Beckett, a crítica marinettiana tem que ser, naturalmente, revista, não porque
tenha perdido seu objeto, mas porque, com a obra desses autores, que direta ou
indiretamente assimilaram a lição futurista, atingiu em boa parte seus objetivos.
Mas por outro lado, na medida em que, por fora do espaço criativo demarcado
pelos autores citados, e como que incontaminado por ele, todo um velho teatro
“artístico”, analítico-discursivo, palavroso, introspectivo, abismal, acomodou-se
matronalmente e ainda consegue vegetar em gorda pompa, com pretensões de
vanguarda sob a cosmese mal rebocada, não se pode fugir à evidência de que as
estocadas marinettianas têm um rombudo alvo à disposição.
Pode-se dizer que a principal reivindicação futurista é a da síntese. Ao invés
de um laborioso teatro de atos, um veloz e agressivo teatro de átimos. Nesse
sentido, não há dúvida de que os futuristas souberam perceber o sinal dos
tempos, a crise do teatro como forma artesanal de comunicação frente ao
desenvolvimento do medium cinema, a necessidade de se cogitar de uma nova
modalidade de espetáculo, comensurado a um prospecto de civilização industrial e
tecnológica que apontava, á maneira de um vetor, para a compressão da
informação. Engano pensar que a síntese teatral futurista era uma forma de teatro
ligeiro, não diferente do sketch. Sua visada era muito mais funda, pois
eminentemente crítica do teatro como linguagem. Não se tratava de um abregé
para a comodidade do entretenimento, da miniaturização de um velho teatro para
a maior facilidade digestiva do espectador apressado e cujo lazer não comportava
grandes disponibilidades de atenção. Tratava-se de uma síntese de contusão, de
choque, cujo propósito era não embalar o espectador mas arrancá-lo, com uma
risada ou um safanão, de seu engodo, para pô-lo defronte da redução ao absurdo
da forma habitual de edificação ou de consolo veiculada pelo teatro. Compeli-lo a
um ato de participação crítica, tal como o iria desejar Brecht. “Sinfonizar a
sensibilidade do público, explorando-lhe e despertando-lhe, por todos os meios, as
ramificações mais embotadas; eliminar o preconceito da ribalta, lançando redes de
sensações entre o palco e o público; a ação cênica invadirá platéia e
espectadores”. “Criar entre nós e a massa, mediante um contínuo contato, uma
corrente de confiança sem reverência, transfundindo em nosso público a
vivacidade dinâmica de uma nova teatralidade futurista”. Exemplo disto é a síntese
teatral de B. Corra e E. Settimelli Cinza + Vermelho + Roxo +Laranja, cujo título
não é mais do que a projeção analógica de seu subtítulo, “rede de sensações”,
referindo-se antes a seu processo do que a seu conteúdo. Em cena, a mãe
extremosa do drama burguês cuidando do filho ameaçado de ficar aleijado; o
médico da família, grave e reticente, recomendando ao enfermo repouso e
imobilização totais; um episódio que poderia ter saído diretamente de Il Cuore, de
De Amicis para o palco. E subitamente, quando o público já começa a se deixar
envisgar pelo pegajoso pathos criado, o paciente salta da cadeira e interpela, aos
gritos, um imaginário espectador: “Ah!...É ele!...É ele!...É o assassino de meu
irmão!...Prendam-no! Não o deixem sair!...Ali...na primeira fila...poltrona número
oito!...”. Armada a confusão, com gente acorrendo dos bastidores e o diretor de
cena mandando baixar a cortina, o mesmo ator, serenado, dirige-se ao auditório:
“Não!...Não se incomodem, por favor...deixem-no!...Agora me lembro, o assassino
de meu irmão tinha um olho a menos...e esse senhor, sorte dele, tem os
dois...Peço que me desculpem...Vamos recomeçar a peça...(com um suspiro): Ah!
Foi realmente um engano lamentável...”. Com razão falou Edoardo Bizzarri em
happening a propósito de certas dessas peças: a ruptura violenta da ilusão teatral,
o efeito de surpresa, a ducha fria na platéia no momento justo em que estava para
escorregar para o transe emotivo, a provocação ao público e o convite a que este
participe do próprio desenrolar do espetáculo fazem parte essencial de várias
delas. Outro vigoroso exemplo: Da Janela, de Corradini e Settimelli. Nesta peça de
3 átimos os espectadores são, desde logo, intimados a se portarem como
“personagens-protagonistas”; uma “voz abstrata” pede-lhes que se auto-
sugestionem até se imaginarem na situação de um paralítico, incapaz de qualquer
movimento, mas cuja inteligência se conserva clara e lúcida. Diante desse
espectador-retina assim condicionado, desenha-se no cenário, também por
sugestão, o recorte de um muro altíssimo de castelo medieval, pelo qual passa um
sonâmbulo: cada espectador deve persuadir-se de que se trata de seu pai. Em
seguida, pela mesma passarela espectral, deambula uma outra visão: a irmã do
espectador, vestes longas soltas ao vento. Finalmente, no terceiro átimo, os dois
sonâmbulos, um vindo da direita, outro da esquerda, vão de encontro um ao outro
e rolam muro abaixo emitindo um ululo de pavor. Dos incestos da tragédia grega
aos fantasmas shakespearianos, até às evanescentes assombrações de certo
teatro simbolista e finissecular, tudo é posto em questão, sob o gume da sátira
muda, com essa peça-minuto, sem palavras (mas com um berro), em que há
apenas a notação dos movimentos cênicos e uma voz impessoal apelando para a
cumplicidade do espectador, para a sua auto-hipnose, da qual este será
brutalmente arrancado pelo urro final. Levando a dessacralização da personagem
(das “divas” e “divos” do teatro de arte) ao extremo, Marinetti, na peça As Bases,
simplesmente reduz os seus atores a pares de pernas que contracenam com um
mínimo de comentário dialogado; todo um repertório de teatro de costumes, desde
a sedução amorosa, passando pelo “affarismo” desenfreado (“tapear, sem ser
tapeado”), até o devaneio da datilógrafa que martela o teclado sonhando com o
namorado dominical, tudo passa pelo crivo desse mimograma de pernas, que
acaba com um pontapé no auditório, emblematizado nas pernas fujonas de um
provável “passadista”. Marinetti fez também “drama de objetos” ou síntese com
“objetos animados”, de que é interessante dar notícia, embora nenhum exemplo
desta modalidade tenha constado da encenação paulista. “Todas as pessoas
sensíveis e imaginativas” – escreve o papa do Futurismo – “observaram muitas
vezes as posições impressionantes e cheias de sugestões misteriosas que os
móveis em geral, e em particular as cadeiras e poltronas, assumem num recinto
onde não haja seres humanos. Parti desta observação para criar a minha síntese.
As oito cadeiras e a grande poltrona, nas diversas mudanças de suas posições,
sucessivamente preparadas para a recepção de pessoas esperadas, adquirem
pouco a pouco uma estranha vida fantástica. E por fim o espectador, auxiliado
pelo lento alongar-se das sombras em direção à porta, deve sentir que as cadeiras
vivem de verdade e se movem por si mesmas para a saída”.
O mais surpreendente, sem dúvida, sobretudo para aqueles que se
acostumaram a raciocinar por slogans em torno de fenômenos culturais
complexos, é encontrar-se em algumas dessas peças acentos de uma crítica
social progressista. O filósofo irracionalista, “tipo alemão”, é ironizado ferinamente
na síntese Diante do Infinito, de Corra e Settimelli. Em O Super-Homem, deste
último autor (que, segundo informa o Prof. Bizzarri, mais tarde se converteria num
ardoroso jornalista fascista), há, avant la lettre, uma crítica frontal ao líder
carismático, ao político de conformação nietzschiana e dannunziana, que depois,
na Itália, Il Duce iria encarnar de maneira tristemente real.
Aqui é oportuno focalizar, embora em traços rápidos, as relações
Futurismo/Fascismo. Se é verdade que Marinetti e vários de seus companheiros,
extrapolando para o plano político o culto da violência e o messianismo
nacionalista de suas pregações, iriam se converter em correligionários de
Mussolini, não é menos certo que o Futurismo, como inseminador de técnicas
novas e mola de renovação cultural, não se confinaria a esse quadro ideológico.
Mesmo no que toca ao futurismo italiano, a equação não seria totalmente válida,
segundo adverte o Dizionario Universale della Letteratura Contemporanea da
Editora Mondadori (1960), que ressalva, por exemplo, as posições de Soffici e
Palazzeschi. O crítico Nello Ponente, escrevendo sobre Il Futurismo e Il Teatro
(1958), frisa que o movimento de Marinetti, não faz muito considerado como algo
de gratuito e funambulesco, “hoje nos aparece em toda a sua validade histórica de
primeiro movimento renovador da cultura artística italiana no princípio do século” e
também como “contribuição cultural ao desenvolvimento de uma linguagem
artística que é da Europa inteira”. O manifesto do teatro sintético futurista,
assinado por Marinetti, Corra e Settimelli, é de 1915. mas antes disto, em 21 de
novembro de 1913, Marinetti já havia publicado um pré-manifesto, com o título Il
Teatro di Varietà, onde faz o elogio do teatro de café-concerto, nascido da
eletricidade, destituído felizmente de tradições, de mestres e de dogmas, e nutrido
de atualidade veloz. O Futurismo, embora vincado em suas fronteiras nacionais de
italianidade patriótica, se propunha objetivos supranacionais (não por acaso o seu
Manifesto-Fundação foi publicado em francês, em 1909, no Figaro de Paris,
capital cosmopolita da cultura e umbigo inconteste do mundo nas primeiras
décadas do século). Sua disseminação deu-se logo por todas as latitudes. O
Futurismo russo, por exemplo, embora independente como formulação, não deixa
de ter pontos de contato com o seu precedente italiano (até o título da publicação
em que apareceu, em dezembro de 1912, o manifesto de Maiakóvski e seus
companheiros – Bofetada no gosto do público – trai uma impregnação
marinettiana). E o futurismo russo, como se sabe, tem um endereço ideológico
diverso, pois seus principais protagonistas foram escritores de esquerda, que
receberam a Revolução de Outubro como a sua revolução. Se a efetiva influência
das palavras em liberdade e da imaginação sem fios do futurismo poético italiano
sobre o arsenal de renovações autonomamente desenvolvido pelos poetas cubo-
futuristas russos é passível de discussão, o mesmo não se dá quanto à estética do
teatro. A.M.Ripellino (Majakovski e Il teatro russo d’avanguardia) é categórico ao
assinalar que os manifestos teatrais marinettianos “gozaram de grandíssimo
crédito entre os diretores de vanguarda depois da Revolução”. Devemos lembrar,
por exemplo, que Meyerhold, em 1913, ainda encenava, em Paris, La Pisanella de
D’Annunzio e, em 1915, fazia um filme com tema de Oscar Wilde. Só em 1918,
com a apresentação do Mistério Bufo, de Maiakóvski, iria encontrar campo
propício para a aplicação de suas idéias renovadoras. A montagem de atrações,
de Eisenstein, que antes de se voltar para o cinema passou pelo teatro, é,
segundo Ripellino, de nítida inspiração marinettiana, pois o italiano falava em
agitar os espectadores “através de um labirinto de sensações marcadas pela mais
exasperada originalidade e combinadas de modos imprevisíveis”, enquanto o
russo, valendo-se do princípio ideográfico da escrita japonesa, procurava justapor
as “unidades moleculares do teatro” (os “átimos” das sínteses futuristas) numa
cadeia de momentos agressivos, visando a um determinado impacto temático. O
elogio do clown, da capacidade de improvisação do palhaço, do acrobatismo e do
dinamismo circenses, que já está no pré-manifesto de Marinetti, seria retomado
pelos jovens diretores e autores russos de vanguarda. Não é difícil rastrear essas
idéias da biomecânica de Meyerhold e na fascinação de Maiakóvski pelo circo (o
nosso Oswald de Andrade também a possuía, até por motivações da infância,
como se lê em suas Memórias). E não se pode esquecer que, desde 1915,
através de um artigo publicado na Balza Futurista, depois reelaborado e
desenvolvido, o pintor Prampolini lançava as bases de uma renovação cenográfica
em termos de luz, espaço, movimento e arquitetura abstrata de planos e volumes.
No Brasil, o teatro futurista deixou sua marca na obra pioneira de Oswald
de Andrade, caracterizada também, como no caso russo, pelo engajamento
político num sentido de esquerda. A fala do hierofante ao público, que abre a peça
A Morta (1937), pode ser vista como um exórdio de choque, tipicamente futurista.
Não é difícil reconhecer, na peça O Rei da Vela (1933), uma battuta in libertà (ou
seja, o caco, o improviso admitido como parte do processo) que responde ao
programa de Marinetti. Repare-se neste ato-átimo, que se imbrica, sem maiores
explicações no 2º ato da peça:

D.CESARINA – Com licença. Eu vou fazer servir os rabigalos.


ABELARDO I - Rabigalos?
D. CESARINA – É a tradução de cock-tail, feita pela Academia de Letras! (sai)

Uma palavra final sobre a atualidade do espetáculo futurista, que, a meu


ver, deveria ser reapresentado quanto antes na Guanabara, centro muito mais vivo
e aberto para o debate destes problemas, e onde ainda agora se agita a questão
da vanguarda nas artes plásticas, posta por exposições polêmicas como a recente
Nova Objetividade Brasileira. O edifício constituído do teatro contemporâneo já
tem, hoje em dia, um compartimento reservado para a chamada vanguarda, onde,
à medida que esta vai sendo reconhecida, acaba também instalada,
institucionalizada e, deste modo, convenientemente asseptizada e integrada no
establishment, para tranqüilidade, inclusive, dos críticos, custódios do métier. É
por isto que recrudesce novamente, nas bases e pelos flancos desse edifício, a
ação corrosiva de uma vanguarda mais radical, experimentalista, que o vai
perturbando e minando. Revistas como a alemã Die Sonde (nº3, 1963, vanguarda
e teatro) a americana Tulane Drama Review (nº2, 1965, happening e teatro) e,
mais recentemente, a italiana Grammatica (nº2, 1967, teatro experimental) dão
conta dessas atividades, nas quais se empenham escritores (os novíssimos
italianos, por exemplo), artistas plásticos e músicos, e que estão marcadas,
conscientemente ou não, pelo empenho central de síntese e dinamismo agressivo
dos manifestos teatrais futuristas. *

* Nota para esta edição: A revista Sipario, nº260 (número especial, dedicado ao Teatro Futurista
Italiano), Milão, Bompiani, dezembro 1967, republica um escrito de Antonio Gramsci (L’ordine
nuovo, 5.1.21), no qual se encontra a seguinte apreciação sobre a intervenção futurista: “Os
futuristas, no seu campo, no campo da cultura, são revolucionários; neste campo, como obra
criativa, é provável que a classe operária não conseguirá, por muito tempo, fazer mais do que têm
feito os futuristas: quando apoiavam os futuristas, os grupos de operários demonstravam não
assustar-se diante da destruição, certos de poder, esses mesmos operários, fazer poesia, pintura,
drama, como os futuristas; tais operários davam apoio à historicidade, à possibilidade de uma
cultura proletária, criada pelos próprios operários”.
MANIFESTOS

FUNDAÇÃO E MANIFESTO DO FUTURISMO

F.T.MARINETTI

20 de fevereiro de 1909

Havíamos velado a noite inteira – meus amigos e eu – sob lâmpadas de


mesquita com cúpulas de latão perfurado, estreladas como nossas almas, porque
como estas irradiadas pelo fulgor fechado de um coração elétrico. Tínhamos
conculcado opulentos tapetes orientais nossa acídia atávica, discutindo diante dos
limites extremos da lógica e enegrecendo muito papel com escritos frenéticos.
Um orgulho imenso intumescia nossos peitos, pois nós nos sentíamos os
únicos, naquela hora, despertos e eretos, como faróis soberbos ou como
sentinelas avançadas, diante do exército de estrelas inimigas, que olhavam
furtivas de seus acampamentos celestes. Sós com os foguistas que se agitam
diante dos fornos infernais dos grandes navios, sós com os negros fantasmas que
remexem nas barrigas incandescentes das locomotivas atiradas a uma louca
corrida, sós com os bêbados gesticulantes, com um certo bater de asas ao longo
dos muros da cidade.
Sobressaltamo-nos, de repente, ao ouvir o rumor formidável dos enormes
bondes de dois andares, que passam chacoalhando, resplandecentes de luzes
multicores, como as aldeias em festa que o Pó, transbordando, abala e arranca
inesperadamente, para arrastá-las até o mar, sobre cascatas e entre redemoinhos
de um dilúvio.
Depois o silêncio escureceu mais. Mas, enquanto escutávamos o
extenuado murmúrio de orações do velho canal e o estralar de ossos dos palácios
moribundos sobre as barbas de úmida verdura, nós escutamos, subitamente, rugir
sob as janelas os automóveis famélicos.
- Vamos, disse eu; vamos amigos! Partamos! Finalmente a mitologia e o
ideal místico estão superados. Nós estamos prestes a assistir ao nascimento do
Centauro e logo veremos voar os primeiros Anjos! Será preciso sacudir as portas
da vida para experimentar seus gonzos e ferrolhos!...Partamos! Eis, sobre a terra,
a primeiríssima aurora! Não há nada que iguale o resplendor da espada vermelha
do sol que esgrima pela primeira vez nas nossas trevas milenares!...
Aproximamo-nos das três feras bufantes, para apalpar amorosamente seus
tórridos peitos. Eu estendi-me em meu carro, como um cadáver no leito, mas logo
em seguida ressuscitei sob o volante, lâmina de guilhotina que ameaçava meu
estômago.
A furiosa vassoura da loucura nos arrancou de nós mesmos e nos enxotou
pelas ruas, íngremes e profundas como leitos de torrentes. Aqui e ali uma lâmpada
doente, atrás dos vidros de uma janela, nos ensinava a desprezar a falaz
matemática dos nossos olhos morredouros.
Eu gritei: - O faro, o faro só basta às feras!
E nós, como jovens leões, perseguíamos a Morte, com sua pele preta
maculada de pálidas cruzes, que corria pelo vasto céu violáceo, vivo e palpitante.
Mas nós não tínhamos uma Amante ideal que erguesse até as nuvens sua
sublime figura, nem uma Rainha cruel a quem oferecer nossos cadáveres,
contorcidos como anéis bizantinos! Nada, para querer morrer, a não ser o desejo
de livrar-nos finalmente de nossa coragem demasiado pesada!
E nós corríamos, esmagando nas soleiras das portas os cães de guarda
que se arrendondavam embaixo de nossos pneus ardentes, como os colarinhos
embaixo do ferro de passar roupa. A Morte, domesticada, ultrapassava-me em
cada curva, para oferecer-me a pata com graça, e de vez em quando se estirava
no chão, com um barulho de maxilares estridentes, enviando-me, de cada poça,
olhares aveludados e acariciantes.
- Saiamos da sabedoria como de uma casca horrível, e atiremo-nos, como
frutos apimentados de orgulho, dentro da boca imensa e retorcida do vento!...
Entreguemo-nos como pasto ao Desconhecido, não por desespero, mas somente
para encher os poços profundos do Absurdo!
Mal tinha pronunciado essas palavras, quando virei bruscamente sobre mim
mesmo, com a mesma embriaguez insensata dos cães que querem morder a
cauda, e eis que de repente vejo dois ciclistas que vêm ao meu encontro,
titubeando como dois raciocínios, ambos persuasivos, apesar de contraditórios.
Seu estúpido dilema discutia sobre o meu terreno...
Que chateação! Arre!... Cortei o assunto, e, de desgosto, atirei-me de rodas
para cima num fosso...
Oh! Fosso materno, quase cheio de água barrenta!
Lindo fosso de oficina! Eu saboreei avidamente tua lama fortificante, que
me lembrou a santa mama preta de minha ama sudanesa...
Quando me levantei – trapo sujo e malcheiroso – debaixo do carro virado,
senti o coração perpassado, deliciosamente, pelo ferro incandescente da alegria!
Uma multidão de pescadores armados de vara e de naturalistas podágricos
tumultuava em volta do prodígio. Com cuidado paciente e meticuloso, aquela
gente preparou altas armaduras e enormes redes de ferro para pescar meu carro,
parecido com um grande tubarão encalhado. O carro emergiu lentamente do
fosso, abandonando no fundo, como escamas, a sua pesada carroçaria de bom
senso e o seu fofo acolchoado de comodidade.
Pensavam que tivesse morrido o meu lindo tubarão, mas uma carícia minha
bastou para reanimá-lo, e ei-lo ressuscitado, ei-lo correndo novamente, sobre suas
poderosas nadadeiras!
Então, com o rosto coberto da boa lama das oficinas, mistura de escórias
metálicas, de suores inúteis, de fuligens celestes – nós, contundidos e de braços
enfaixados mas impávidos, ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens
vivos da terra:

Manifesto do Futurismo

1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da


temeridade.
2. A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa
poesia.
3. A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós
queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de
corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco.
4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma
beleza nova: a beleza da velocidade.
Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos,
semelhantes a serpentes de hálito explosivo...um automóvel rugidor, que
parece correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.
5. Nós queremos entoar hinos ao homem que segura o volante, cuja haste
ideal atravessa a Terra, lançada também numa corrida sobre o circuito da
sua órbita.
6. É preciso que o poeta prodigalize com ardor, fausto e munificência, para
aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.
7. Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um
caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida
como um violento assalto contra as forças desconhecidas, para obrigá-las a
prostrar-se diante do homem.
8. Nós estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveríamos
de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do
Impossível?
O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já estamos vivendo no
absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente.
9. Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o militarismo,
o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas idéias pelas quais
se morre e o desprezo pela mulher.
10. Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de toda
natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e
utilitária.
11. Nós cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer
ou pela sublevação; cantaremos as marés multicores e polifônicas das
revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno
dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas; as
estações esganadas, devoradoras de serpentes que fumam; as oficinas
penduradas às nuvens pelos fios contorcidos de suas fumaças; as pontes,
semelhantes a ginastas gigantes que cavalgam os rios, faiscantes ao sol
com um luzir de facas; os piróscafos aventurosos que farejam o horizonte,
as locomotivas de largo peito, que pateiam sobre os trilhos, como enormes
cavalos de aço enleados de carros; e o vôo rasante dos aviões, cuja hélice
freme ao vento, como uma bandeira, e parece aplaudir como uma multidão
entusiasta.

É da Itália, que nós lançamos pelo mundo este nosso manifesto de


violência arrebatadora e incendiária, com o qual fundamos hoje o
“Futurismo”, porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de
professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários.
Já é tempo de a Itália deixar de ser um mercado de belchiores. Nós
queremos libertá-la dos inúmeros museus que a cobrem toda de inúmeros
cemitérios.
Museus: cemitérios!...Idênticos, na verdade, pela sinistra
promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios
públicos em que se descansa para sempre junto a seres odiados ou
desconhecidos! Museus: absurdos matadouros de pintores e escultores, que
se vão trucidando ferozmente a golpes de cores e de linhas, ao longo das
paredes disputadas!
Que se vá lá em peregrinação, uma vez por ano, como se vai ao
Cemitério no dia de finados... Passe. Que uma vez por ano se deponha uma
homenagem de flores diante da Gioconda, concedo...
Mas não admito que se levem a passear, diariamente pelos museus,
nossas tristezas, nossa frágil coragem, nossa inquietude doentia, mórbida.
Para que se envenenar? Para que apodrecer?
E o que mais se pode ver, num velho quadro, senão a fatigante
contorção do artista que se esforçou para infringir as insuperáveis barreiras
opostas ao desejo de exprimir inteiramente seu sonho?... Admirar um quadro
antigo equivale a despertar nossa sensibilidade numa urna funerária, no lugar
de projetá-la longe, em violentos jatos de criação e de ação.
Vocês querem, pois, desperdiçar todas as suas melhores forças
nesta eterna e inútil admiração do passado, da qual vocês só podem sair
fatalmente exaustos, diminuídos e pisados?
Em verdade eu lhes declaro que a freqüência diária aos museus, às
bibliotecas e às academias (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos
crucificados, registro de arremessos truncados!...) é para artistas tão
prejudicial, quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens ébrios de
engenho e de vontade ambiciosa. Para os moribundos, para os enfermos, para
os prisioneiros, vá lá: - o admirável passado é, quiçá, um bálsamo para seus
males, visto que para eles o porvir está trancado... Mas nós não queremos
mais nada com o passado, nós jovens e fortes futuristas!
E venham, pois os alegres incendiários de dedos carbonizados! Ei-
los! Ei-los!... Vamos! Ateiem fogo às estantes das bibliotecas!... Desviem o
curso dos canais, para inundar os museus!... Oh! A alegria de ver boiar à
deriva, laceradas e desbotadas sobre aquelas águas, as velhas telas
gloriosas!... Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam
sem piedade as cidades veneradas!
Os mais velhos dentre nós têm trinta anos: resta-nos portanto pelo
menos uma década, para cumprir nossa obra. Quando tivermos quarenta anos,
outros homens mais jovens e mais válidos que nós, atirar-nos-ão ao cesto,
como manuscritos inúteis. - Nós os desejamos!
Virão contra nós nossos sucessores; virão de longe, de todo lado,
dançando sobre a cadência alada de seus primeiros cantos, estendendo dedos
aduncos de depredadores, e farejando caninamente, às portas das academias,
o bom cheiro de nossas mentes em putrefação, já prometidas às catacumbas
das bibliotecas.
Mas nós não estaremos lá... Eles nos encontrarão, finalmente –
numa noite de inverno – em pleno campo, embaixo de um triste galpão
tamborilado por uma chuva monótona, e ver-nos-ão acocorados junto a nossos
aviões trepidantes e no ato de aquecermos as mãos ao mísero foguinho que
farão nossos livros de hoje, ardendo sob o vôo de nossas imagens.
Eles tumultuarão em nossa volta, arfando de angústia e de despeito,
e todos, exasperados com a nossa soberba e incansável ousadia, atirar-se-ão
para nos matar, impelidos por um ódio tanto mais implacável, quanto mais
corações estiverem ébrios de amor e de admiração por nós.
A forte e saudável Injustiça estourará radiosa nos seus olhos.
- A arte, de fato, não pode ser mais que violência, crueldade e
injustiça.
Os mais idosos dentre nós têm trinta anos: no entanto, nós já
esbanjamos tesouros de força, de amor, de audácia, de astúcia e de rude
vontade; jogamo-los fora impacientemente, furiosamente, sem contar, sem
nunca hesitar, sem descansar nunca, até a exaustão... Olhem para nós! Ainda
não estamos extenuados! Nossos corações não sentem cansaço algum,
porque se alimentaram de fogo, ódio e velocidade!... Estão admirados? É
lógico, pois vocês nem sequer se lembram de terem vivido! De pé sobre o
cume do mundo, nós lançamos, mais uma vez, nosso desafio às estrelas!
Vocês nos fazem objeções?...Chega! Chega! Conhecemo-
las...Compreendemos...nossa bela e mendaz inteligência nos afirma que
somos o resumo e o prolongamento de nossos ancestrais. – Talvez!...Que
seja!... mas o que importa? Não queremos entender!... Ai de quem nos repetir
estas infames palavras!...
De pé sobre o cume do mundo, nós lançamos, mais uma vez, nosso
desafio às estrelas!...

Trad.: Aurora F. Bernardini


MANIFESTO DOS PINTORES FUTURISTAS

U. BOCCIONI, C.CARRÀ, L. RUSSOLO, G.BALLA, G. SEVERINI

11 de fevereiro de 1910

AOS ARTISTAS JOVENS DA ITÁLIA!

O grito de rebelião que nós lançamos, associando os nossos ideais


àqueles dos poetas futuristas, não parte certamente de uma igrejinha estética,
mas exprime o violento desejo que referve hoje nas veias de cada artista
criador.
Nós queremos combater encarniçadamente a religião fanática, inconsciente e
esnobista do passado, alimentada pela existência nefasta dos museus. Rebelamo-
nos à servil admiração das antigas telas, das velhas estátuas, dos objetos velhos
e do entusiasmo por tudo o que é carcomido, sujo, corroído pelo tempo, e
julgamos injusto, delituoso, o habitual desdenho por tudo o que é jovem, novo e
palpitante de vida.
Companheiros! Nós declaramos a vocês que o triunfante progresso das
ciências determinou na humanidade mutações tão profundas, tais de cavar um
abismo entre os dóceis escravos do passado, e nós, livres, nós seguros da
radiante magnificência do futuro.
Nós estamos nauseados pela preguiça vil que do “cinquecento” em diante faz
viver seus artistas de um incessante desfrutar das glórias antigas.
Para os outros povos, a Itália é ainda uma terra de mortos, uma imensa
Pompéia branquejante de sepulcros. A Itália, ao invés, renasce, e, ao seu
ressurgimento político segue o ressurgimento intelectual. No país dos analfabetos
vão-se multiplicando as escolas: no país do dolce far niente, já rugem oficinas
inumeráveis: no país da estética tradicional alçam hoje vôo inspirações fulgurantes
de novidade.
É vital somente aquela arte que encontra os próprios elementos no ambiente
que a circunda. Como os nossos antepassados extraíram matéria de arte da
atmosfera religiosa que pendia sobre as suas almas, assim nós devemos inspirar-
nos nos tangíveis milagres da vida contemporânea, na férrea rede de velocidade
que envolve a Terra, nos transatlânticos, nos encouraçados, nos vôos
maravilhosos que sulcam os céus, nas audácias tenebrosas dos navegadores
subaquáticos, na luta espasmódica pela conquista do ignoto. E podemos nós
permanecer insensíveis à frenética atividade das grandes capitais, à psicologia
novíssima do sonambulismo, às figuras febris do viveur, da cocote, do apache e
do alcoolizado?
Querendo nós também contribuir ao necessário renovamento de todas as
expressões de arte, declaramos guerra, resolutamente, a todos aqueles artistas e
a todas aquelas instituições que apesar de se camuflarem com uma veste de falsa
modernidade, permanecem anvisgados na tradição, no academicismo e sobretudo
numa repugnante preguiça cerebral.
Nós denunciamos ao desprezo dos jovens toda aquela canalha inconsciente
que em Roma aplaude a um enjoativo reflorescimento de classicismo amolecido;
que em Florença exalta neuróticos cultores de um arcaísmo hermafrodita; que em
Milão recompensa uma pedestre e cega manualidade dos anos de 48; que em
Turim incensa uma pintura para funcionários aposentados do governo e em
Veneza glorifica um confuso patinume de alquimistas fossilizados! Insurjamo-nos,
em suma, contra a superficialidade, a banalidade e a facilidade lojista e parladora
que tornam profundamente desprezíveis a maior parte dos artistas respeitados de
cada região da Itália.
Fora, portanto, restauradores vendidos de velhas crostas! Fora, arqueólogos
afetados por necrofilia crônica! Fora, críticos, complacentes, rufiões! Fora,
academias gotosas, professores beberrões e ignorantes! Fora!
Perguntem a estes sacerdotes do verdadeiro culto, a estes repositórios das leis
estéticas, onde estão hoje as obras de Giovanni Segantini: perguntem a eles por
que as Comissões Oficiais não percebem a existência de Gaetano Previati;
perguntem a eles onde é apreciada a escultura de Medardo Rosso!... E quem se
preocupa em pensar nos artistas que não têm ainda 20 anos de lutas e
sofrimentos, mas que todavia continuam preparando obras destinadas a honrar a
pátria?
Têm bem outros interesses a defender, os críticos pagos. As exposições, os
concursos, a crítica superficial e nunca desinteressada condenam a arte italiana à
ignomínia de uma verdadeira prostituição!
E o que diremos dos especialistas? Vamos! Acabemos com os Retratistas, com
os Internistas, com os Laguistas, com os Montanhistas!... Já os suportamos o
suficiente, a todos estes impotentes pintores de vilegiatura.
Acabemos com os desfiguradores de mármores que obstruem as praças e
profanam os cemitérios! Acabemos com a arquitetura negocista dos empreiteiros
de concreto! Acabemos com os decoradores de meia-tigela, com os falsificadores
de cerâmica, com os pintores de cartazes vendidos e com os ilustradores
insignificantes e parvos.
Eis as nossas conclusões incisivas: Com esta entusiástica adesão ao
Futurismo, nós queremos:

1. Destruir o culto ao passado, a obsessão do antigo, o pedantismo e o


formalismo acadêmicos.
2. Desprezar profundamente toda forma de imitação.
3. Exaltar toda forma de originalidade, mesmo se temerária, mesmo se
violentíssima.
4. Extrair a coragem e o orgulho da fácil pecha de loucura com a qual se
criticam e se amordaçam os inovadores.
5. Considerar os críticos de arte como inúteis ou danosos.
6. Rebelar-se contra a tirania das palavras: harmonia e bom gosto,
expressões demasiado elásticas, com as quais se poderia facilmente
demolir a obra de Rembrandt e a de Goya.
7. Varrer do campo ideal da arte todos os motivos, todos os temas já
aproveitados.
8. Exprimir e magnificar a vida hodierna, incessante e tumultuosamente
transformada pela ciência vitoriosa.
9. Sejam sepultados os mortos nas mais profundas vísceras da terra! Seja
limpa de múmias a soleira do futuro! Dêem lugar aos jovens, aos
violentos, aos temerários!

Trad.: Nancy Rozenchan


A PINTURA FUTURISTA
MANIFESTO TÉCNICO

U. BOCCIONI, C. CARRÀ, L. RUSSOLO, G. BALLA, G. SEVERINI

11 de abril de 1910

No primeiro manifesto por nós lançado em 8 de março de 1910, da ribalta


do Politeama Chiarella de Turim, exprimimos nossas profundas náuseas, nossos
violentos desprezos, nossas alegres rebeliões contra a vulgaridade, contra a
mediocridade, contra o culto fanático e esnobístico do antigo, que sufocam a Arte
em nosso país.
Nós nos ocupávamos então com as relações que existem entre nós e a
sociedade. Hoje, ao invés, com este segundo manifesto, nós nos afastamos
resolutamente de toda consideração relativa e assurgimos às mais altas
expressões do absoluto pictórico.
O nosso anseio de verdade não pode mais ser satisfeito pela Forma nem
pela Cor tradicionais!
O gesto, para nós, não será mais um momento detido do dinamismo
universal: será, decididamente, a sensação dinâmica eternizada como tal.
Tudo se move, tudo corre, tudo se desenrola rápido. Uma figura não é mais
estável diante de nós mas aparece e some incessantemente. Pela persistência da
imagem na retina, as coisas em movimento se multiplicam, se deformam,
subseguindo-se como vibrações, no espaço que percorrem. Assim um cavalo em
corrida não tem quatro patas: tem vinte e os seus movimentos são triangulares.
Tudo em arte é convenção, e as verdades de ontem são hoje, para nós,
também mentiras.
Afirmamos, ainda uma vez, que o retrato, para ser uma obra de arte, não
pode nem deve se assemelhar ao seu modelo, e que o pintor tem em si as
paisagens que quer produzir. Para pintar uma figura não é necessário fazê-la: o
que é necessário fazer é sua atmosfera.
O espaço não existe mais: uma estrada banhada pela chuva e iluminada
por globos elétricos submerge em direção ao centro da terra. O sol dista de nós
milhares de quilômetros, mas a casa diante da qual se está não nos aparece
talvez engastada pelo disco solar? Quem pode crer ainda na opacidade dos
corpos, enquanto a nossa acuidade e multiplicada sensibilidade nos faz intuir as
obscuras manifestações dos fenômenos mediúnicos? Por que se deve continuar a
criar sem ter em conta nossa potência visiva que pode dar resultados análogos
àqueles dos raios X?
Inumeráveis são os exemplos que dão uma sanção positiva às nossas
afirmações.
As dezesseis pessoas que vocês têm em sua volta num bonde que corre
são uma, dez, quatro, três; estão paradas e se movem; vão e vêm, saltam sobre a
estrada, devoradas por uma zona de sol, de lá depois tornam a sentar-se,
símbolos persistentes da vibração universal. E, às vezes, sobre a face da pessoa
com quem falamos na rua, vemos o cavalo que passa ao longe. Os nossos corpos
entram nos divãs sobre os quais nos sentamos, e os divãs entram em nós, assim
como o bonde que passa entra nas casas, as quais por sua vez se arremessam
sobre o bonde e com ele se amalgamam.
A construção dos quadros é tolamente tradicional. Os pintores nos têm
sempre mostrado coisas e pessoas colocadas diante de nós. Nós colocaremos o
espectador no centro do quadro.
Como em todos os campos do pensamento humano, às imóveis
obscuridades do dogma substituiu-se a iluminada procura individual, assim é
necessário que na nossa arte seja substituída à tradição acadêmica uma
vivificante corrente de liberdade individual.
Nós queremos reentrar na vida. A ciência de hoje negando o seu passado,
responde às necessidades materiais do nosso tempo; igualmente, a arte, negando
o seu passado, deve responder às necessidades intelectuais do nosso tempo.
A nossa nova consciência não nos faz mais considerar o homem como
centro da vida universal. A dor de um homem é tão interessante, para nós, quanto
aquela de uma lâmpada elétrica, que sofre, se agita, e grita com as mais
torturantes expressões de dor, e a musicalidade da linha e das pregas de um
vestido moderno têm para nós uma potência emotiva e simbólica igual àquela que
o nu tinha para os antigos.
Para conceber e compreender as belezas novas de um quadro moderno é
necessário que a alma se torne novamente pura; que o olho se liberte do véu com
o qual o cobriram o atavismo e a cultura e considere como único controle a
Natureza, e não decerto o Museu!
Então, todos se aperceberão que sob a nossa epiderme não serpenteia o
escuro, mas que nela resplandece o amarelo, que o vermelho flameja, e que o
verde, o azul e o violeta dançam, voluptuosos e acariciantes!
Como se pode ainda ver róseo um vulto humano, enquanto a nossa vida
desdobrou-se inegavelmente no sonambulismo? O vulto humano é amarelo, é
vermelho, verde, azul, violeta. A palidez de uma mulher que olha a vitrina de um
joalheiro é mais iridescente que todos os prismas das jóias que a fascinam.
As nossas sensações pictóricas não podem ser murmuradas. Nós as
fazemos cantar e urrar nas nossas telas que ressoam de fanfarras
ensurdecedoras e triunfais.
Os seus olhos habituados à penumbra se abrirão às mais radiosas visões
de luz. As sombras que pintaremos serão mais luminosas do que as luzes dos
nossos precursores, e os nossos quadros, em confronto com aqueles
armazenados nos museus, serão o dia mais fúlgido contraposto à noite mais
escura.
Isto naturalmente nos leva a concluir que não pode subsistir pintura sem
divisionismo. O divisionismo, todavia, não é no nosso conceito um meio técnico
que se possa metodicamente aprender e aplicar. O divisionismo, no pintor
moderno, deve ser um COMPLEMENTARISMO CONGÊNITO, por nós julgado
essencial e fatal.
E por fim, repelimos desde agora a fácil acusação de barroquismo com a
qual nos quererão golpear. As idéias que expusemos aqui derivam unicamente da
nossa sensibilidade aguçada. Enquanto barroquismo significa artifício, virtuosismo
maníaco e desmiolado, a Arte, que nós preconizamos, é toda de espontaneidade e
de potência.

NÓS PROCLAMAMOS:

1. QUE O COMPLEMENTARISMO CONGÊNITO É UMA NECESSIDADE


ABSOLUTA NA PINTURA, COMO O VERSO LIVRE NA POESIA E COMO
A POLIFONIA NA MÚSICA;
2. QUE O DINAMISMO UNIVERSAL DEVE SER EXPRESSO COMO
SENSAÇÃO DINÂMICA;
3. QUE NA INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA SÃO NECESÁRIAS
SINCERIDADE E VIRGINDADE;
4. QUE O MOVIMENTO E A LUZ DESTROEM A MATERIALIDADE DOS
CORPOS.

NÓS COMBATEMOS:

1. CONTRA O PATINUME E O VELAMENTO DE FALSOS ANTIGOS;


2. CONTRA O ARCAÍSMO SUPERFICIAL E ELEMENTAR COM BASE EM
TINTAS DESENXABIDAS QUE REDUZ A PINTURA A UMA IMPOTENTE
SÍNTESE INFANTIL E GROTESCA;
3. CONTRA O FALSO FUTURISMO DOS SECESSIONISTAS E DOS
INDEPENDENTES, NOVOS ACADÊMICOS DE TODO PAÍS;
4. CONTRA O NU EM PINTURA, TÃO FASTIDIOSO E OPRIMENTE
QUANTO O ADULTÉRIO NA LITERATURA.

Vocês nos crêem loucos. Nós somos, ao invés, os Primitivos de uma nova
sensibilidade completamente transformada.
Fora da atmosfera na qual vivemos, não há mais que trevas. Nós Futuristas
ascendemos em direção aos cumes mais excelsos e mais radiosos e nos
proclamamos Senhores da Luz, uma vez que já bebemos das vivas fontes do
sol.

Trad.: Nancy Rozenchan


MANIFESTO DOS MUSICISTAS FUTURISTAS – 1911

BALILLA PRATELLA

Eu me dirijo aos jovens. Só estes devem me escutar e poderão me


compreender. Há quem nasça velho, fantasma cheio de baba do passado,
criptograma intumescido de venenos: a estes, nem palavras, nem idéias,
apenas uma única imposição: fim.
Eu me dirijo aos jovens, necessariamente ávidos de coisas novas,
presentes e vivas. Que eles pois me sigam, confiantes, corajosos pelos
caminhos do futuro, onde já os meus, os nossos intrépidos irmãos, poetas e
pintores futuristas, gloriosamente nos precedem, belos de violência, audazes
de rebelião e luminosos de gênio animador.
Há uma ano, uma comissão composta pelos maestros Pietro Mascagni,
Giacomo Orefice, Guglielmo Mattioli, Rodolfo Ferrari e pelo crítico Gian Battista
Nappi, proclamava a minha obra musical futurista, intitulada “La Sina
d’Vargöun” – sobre um poema também meu e em versos livres – vencedora,
entre todas as outras concorrentes, do prêmio de 10 000 liras destinadas às
despesas de execução do trabalho reconhecido como superior e digno,
segundo o legado do bolonhês Cincinnato Baruzzi.
A execução ocorrida em dezembro de 1909 no Teatro Comunal de Bolonha,
trouxe-me um sucesso de grande entusiasmo, críticas abjetas e estúpidas,
generosas defesas de amigos e desconhecidos, honra e uma quantidade de
inimigos.
Tendo entrado, assim triunfalmente, no ambiente musical italiano, em
contato com o público, com os editores e com os críticos, pude julgar com a
máxima serenidade, a mediocridade intelectual, a baixeza mercantil e o
misoneísmo que reduzem a música italiana a uma forma única e quase
invariável de melodrama vulgar, do que resulta a nossa grande inferioridade
diante da evolução da música futurista nos outros países.
Com efeito, na Alemanha, depois da era gloriosa e revolucionária dominada
pelo gênio sublime de Wagner, R. Strauss eleva o barroquismo da
instrumentação quase que até a forma vital da arte e ainda que não possa
ocultar, com maneiras harmônicas e acústicas hábeis, complicadas e salientes,
a aridez, o mercantilismo e a banalidade da sua alma, ainda assim esforça-se
para combater e superar o passado com engenho inovador.
Na França, Claude Debussy, artista profundamente subjetivo, mais literato
que musicista, nada em um lago diáfano e tranqüilo de harmonias tênues,
delicadas e azuis, constantemente transparentes. Através do simbolismo
instrumental e de uma polifonia monótona de sensações harmônicas, sentidas
por meio de uma escala de tons inteiros – novo sistema, mas sempre sistema,
e, por isso, voluntária limitação – ele nem sempre consegue cobrir a escassez
de valor da sua temática e rítmica unilaterais e a falta quase total de
desenvolvimento ideológico. Este desenvolvimento consiste para ele na
primitiva e infantil repetição periódica de um tema breve e pobre ou de um
andamento rítmico monótono e vago. Tendo recorrido, em suas fórmulas
operísticas, aos ultrapassados conceitos da Câmara Florentina, que em 1600
fazia nascer o melodrama, não chegou ainda a reformar completamente a arte
melodramática do seu país. Além disso, mais do que qualquer outro, ele
combate galhardamente o passado e, em muitos outros pontos, supera-o.
Idealmente mais forte que ele, porém musicalmente inferior, é G. Charpentier.
Na Inglaterra, Edward Elgar, com o desejo de ampliar as formas sinfônicas
clássicas, tentando maneiras de desenvolvimento temático mais ricas e
variações multiformes de um mesmo tema e, procurando não na variedade
exuberante dos instrumentos mas na variedade das suas combinações efeitos
equilibrados e consoantes com a nossa complexa sensibilidade, contribui para
a destruição do passado.
Na Rússia, Modest Mussorgski, renovado através da alma de Nikolai
Rimski-Korsakov, ao enxertar o elemento nacional primitivo nas fórmulas
herdadas de outros e ao procurar a verdade dramática e liberdade harmônica,
abandona e faz com que se esqueça a tradição. Assim procede também A.
Glazúnov, mesmo permanecendo ainda primitivo e distante de uma pura e
equilibrada concepção de arte.
Na Finlândia e na Suécia, também através do elemento musical e poético
nacional alimentam-se as tendências inovadoras e as obras de Sibelius o
confirmam.
E na Itália?
Chamarizes dos jovens e da arte, vegetam liceus, conservatórios e
academias musicais. Nestes viveiros de impotência, maestros e professores,
ilustres deficiências perpetuam o tradicionalismo e combatem qualquer esforço
para ampliar o campo musical.
Disto, a repressão prudente e o constrangimento de qualquer tendência
livre e audaz; constante mortificação da inteligência impetuosa; apoio
incondicional à mediocridade que sabe copiar e incensar; prostituição das
grandes glórias musicais do passado, como armas insidiosas de ofensa contra
o gênio nascente, limitação do estudo a um vão acrobatismo que se debate na
perpétua agonia de uma cultura obsoleta e já morta.
Os jovens engenhos musicais que estagnam nos conservatórios têm os
olhos fixos na fascinante miragem da obra teatral sob a tutela de grandes
editores. A maior parte leva a cabo de mal a pior por falta de bases ideais e
técnicas; pouquíssimos chegam a vê-la representada, e a maioria gastando o
dinheiro, para conseguir sucessos pagos e efêmeros, ou uma tolerância cortês.
A sinfonia pura, último refúgio, acolhe os operistas malogrados, os quais
como sua desculpa, pregam o fim do melodrama qual forma absurda e
antimusical. Eles, por outro lado, confirmam a acusação tradicional de não
terem os italianos, nascido para a sinfonia, tendo-se demonstrado ineptos
também neste nobílimo e vital gênero de composição. A causa de seus dois
fracassos é a mesma e não deve ser procurada nas inocentíssimas e nunca
suficientemente caluniadas formas melodramáticas e sinfônicas, mas na sua
impotência.
Eles se valem, na sua ascensão, daquele solene engano que se chama
música bem feita, falsificação da outra verdadeira e grande, cópia sem valor
vendida a um público que se deixa enganar por vontade própria.
Mas os raros afortunados, que através de todas as renúncias conseguiram
obter a proteção dos grandes editores, aos quais estão ligados por contratos-
cabresto ilusórios e humilhantes, representam a classe dos servos, dos
impotentes, dos voluntariamente vendidos...
Os grandes editores-mercadores imperam – estabelecem limites comerciais
para as formas melodramáticas, proclamando quais modelos que não devem
superar-se, e, insuperáveis, as obras baixas, raquíticas e vulgares de Giacomo
Puccini e de Umberto Giordano.
Os editores pagam poetas para que gastem tempo e inteligência na
fabricação e na preparação – segundo as receitas daquele grotesco confeiteiro
que se chama Luigi Illica – daquela malcheirosa torta a que se dá o nome de
livreto de ópera.
Os editores desprezam qualquer ópera que por acaso ultrapasse a
mediocridade; com monopólio difundem e se aproveitam de sua mercadoria e
defendem o seu campo de ação contra qualquer temida tentativa de rebelião.
Os editores assumem a tutela e o privilégio dos gostos do público, e, com a
cumplicidade da crítica, recordam como exemplo ou admoestação, entre as
lágrimas e a comoção geral, o pretenso nosso monopólio da melodia e do bel
canto e o nunca suficientemente exaltado melodrama italiano, pesado e
sufocante bócio nacional.
Único, Pietro Mascagni, criatura de editor, teve coragem e poder de rebelar-
se contra as tradições de arte, contra editores, contra o público enganado e
viciado. Ele, com o exemplo pessoal, primeiro e único na Itália, desvendou as
vergonhas dos monopólios editoriais e a venalidade da crítica, e apressou a
hora da nossa libertação do czarismo mercantil e diletante na música. Com
muita genialidade Pietro Mascagni realizou verdadeiras tentativas de inovação,
com relação às partes harmônica e lírica no melodrama, mesmo não
conseguindo ainda libertar-se das formas tradicionais.
A vergonha e o lodo que eu denunciei, em síntese, representam fielmente o
passado da Itália nas suas relações com a arte e com os costumes de hoje:
indústria dos mortos, culto dos cemitérios, ressecamento das fontes vitais.
O Futurismo, rebelião da vida da intuição e do sentimento, primavera
fremente e impetuosa, declara guerra inexorável à doutrina, ao indivíduo e à
obra que repita, prolongue ou exalte o passado em prejuízo do futuro. Ele
proclama a conquista da liberdade amoral, de ação da consciente concepção;
proclama que a Arte é desinteresse, heroísmo, desprezo pelos fáceis
sucessos.
Eu desprego ao ar livre e ao sol a bandeira vermelha do Futurismo,
conclamando sob o seu símbolo flamejante todos os jovens compositores que
possuam um coração para amar e combater, mente para conceber, fronte
imune de vileza. E proclamo a alegria de sentir-me livre de qualquer vínculo
com a tradição, com a dúvida, com o oportunismo e com a vaidade.
Eu que repudio o título de maestro, como marca de igualdade na
mediocridade e na ignorância, confirmo aqui a minha entusiástica adesão ao
Futurismo, apresentando aos jovens, aos corajosos, aos temerosos, estas
minhas irrevogáveis CONCLUSÕES:
1. CONVENCER OS JOVENS COMPOSITORES A DESERTAR DOS
LICEUS, CONSERVATÓRIOS E ACADEMIAS MUSICAIS E A
CONSIDERAR O ESTUDO LIVRE COMO ÚNICO MEIO DE
REGENERAÇÃO.
2. COMBATER COM ASSÍDUO DESPREZO OS CRÍTICOS,
FATALMENTE VENAIS E IGNORANTES, LIBERTANDO O PÚBLICO
DA INFLUÊNCIA MALÉFICA DOS SEUS ESCRITOS.
FUNDAR COM ESSE OBJETIVO UMA REVISTA MUSICAL
INDEPENDENTE E RESOLUTAMENTE AVESSA AOS CRITÉRIOS
DOS PROFESSORES DE CONSERVATÓRIO E AQUELES
HUMILHADOS DO PÚBLICO.
3. ABSTER-SE DE PARTICIPAR DE QUALQUER CONCURSO COM AS
PROPINAS DE SEMPRE E AS RELATIVAS TAXAS DE ADMISSÃO,
DENUNCIANDO PUBLICAMENTE SUAS MISTIFICAÇÕES E
REVELANDO A INCOMPETÊNCIA DOS JÚRIS, GERALMENTE
COMPOSTOS POR CRETINOS E POR AMOLECIDOS.
4. PERMANECER LONGE DOS AMBIENTES COMERCIAIS OU
ACADÊMICOS, DESPREZANDO-OS, E PREFERINDO A VIDA
MODESTA AOS GRANDES GANHOS, EM TROCA DOS QUAIS A
ARTE TIVESSE QUE SE VENDER.
5. LIBERTANDO A PRÓPRIA SENSIBILIDADE MUSICAL DE
QUALQUER IMITAÇÃO OU INFLUÊNCIA DO PASSADO, SENTIR E
CANTAR COM A ALMA VOLTADA PARA O FUTURO (ATINGINDO
INSPIRAÇÃO E ESTÉTICA DA NATUREZA, ATRAVÉS DE TODOS
OS FENÔMENOS PRESENTES HUMANOS E EXTRA-HUMANOS);
EXALTAR O HOMEM-SÍMBOLO QUE SE RENOVA PERENEMENTE
NOS VÁRIOS ASPECTOS DA VIDA MODERNA E NAS SUAS
INFINITAS E ÍNTIMAS RELAÇÕES COM A NATUREZA.
6. DESTRUIR O PREJUÍZO DA MÚSICA “BEM FEITA” – RETÓRICA E
IMPOTÊNCIA – PROCLAMAR UM CONCEITO ÚNICO DE MÚSICA
FUTURISTA, ISTO É, TOTALMENTE DIFERENTE DAQUELA
PREDOMINANTE ATÉ AGORA, FORMAR ASSIM NA ITÁLIA GRUPO
MUSICAL FUTURISTA E DESTRUIR OS VALORES DOUTRINÁRIOS
ACADÊMICOS E MAÇANTES, DECLARANDO ODIOSA, ESTÚPIDA
E VIL A FRASE: “VOLTEMOS AO ANTIGO”.
7. PROCLAMAR QUE O REINO DO CANTOR DEVE ACABAR E QUE A
IMPORTÂNCIA DO CANTOR COM RELAÇÃO À OBRA DE ARTE
CORRESPONDE À IMPORTÂNCIA DE UM INSTRUMENTO DA
ORQUESTRA.
8. TRANSFORMAR O TÍTULO E O VALOR DE “LIVRETO DE ÓPERA”
EM TÍTULO E VALOR DE “POEMA DRAMÁTICO OU TRÁGICO
PARA O MÚSICO”, SUBSTITUINDO AS MÉTRICAS PELO VERSO
LIVRE. CADA OPERISTA, POR SUA VEZ, DEVE ABSOLUTA E
NECESSARIAMENTE SER AUTOR DO PRÓPRIO POEMA.
9. COMBATER CATEGORICAMENTE AS RECONSTRUÇÕES
HISTÓRICAS E A CENOGRAFIA TRADICIONAL E DECLARAR
ESTÚPIDO O DESPREZO QUE SE TEM PELO COSTUME
CONTEMPORÂNEO.
10. COMBATER AS ROMANÇAS DO GÊNERO DE “TOSTI”, E “COSTA”,
AS REPUGNANTES CANÇÕES NAPOLITANAS E A MÚSICA
SACRA, QUE NÃO TENDO MAIS NENHUMA RAZÃO DE SER, DADA
À FALÊNCIA DA FÉ, TORNOU-SE MONOPÓLIO EXCLUSIVO DE
IMPOTENTES DIRETORES DE CONSERVATÓRIOS E DE ALGUNS
PADRES INCOMPLETOS.
11. PROVOCAR NOS PÚBLICOS UMA HOSTILIDADE SEMPRE
CRESCENTE CONTRA A EXUMAÇÃO DE OBRAS VELHAS QUE
PROÍBEM A APARIÇÃO DE MAESTROS INOVADORES, E, AO
CONTRÁRIO, APOIAR E EXALTAR TUDO AQUILO QUE EM MÚSICA
PAREÇA ORIGINAL E REVOLUCIONÁRIO, JULGANDO UMA
HONRA A INJÚRIA E A IRONIA DOS MORIBUNDOS E DOS
OPORTUNISTAS.

E agora, que a reação dos passadistas se atire sobre mim com toda a
sua fúria.
Eu, serenamente, rio e nem me importo, eu ascendi para além do
passado e clamo, em voz alta, os jovens musicistas em volta da bandeira
do Futurismo que, lançado pelo poeta Marinetti no Figaro de Paris,
conquistou, num breve passar de tempo, os maiores centros intelectuais do
mundo.

11 de janeiro de 1911

Trad.: Maria Aparecida Abelaira Vizotto

MANIFESTO DOS DRAMATURGOS FUTURISTAS 1911

F.T. MARINETTI
Para que a Arte dramática não continue a ser aquilo que é hoje: um
mesquinho produto industrial submetido ao mercado dos divertimentos e dos
prazeres citadinos, é preciso jogar fora todos os imundos prejuízos que esmagam
os autores, os atores e o público.
1. Nós futuristas ensinamos antes de mais nada aos autores o desprezo pelo
público. Especialmente o desprezo pelo público das primeiras
representações, cuja psicologia podemos assim sintetizar: rivalidade de
chapéus e de toaletes femininas – vaidade pelo lugar que custou caro, que
se transforma em orgulho intelectual – palcos e platéia ocupados por
homens maduros e ricos, de cérebro naturalmente desdenhoso e com a
digestão dificílima, o que torna impossível qualquer esforço mental.
2. Nós ensinamos ainda o horror pelo sucesso imediato que costuma coroar
as obras medíocres e banais. Os trabalhos teatrais que prendem
diretamente, sem intermediários, sem explicações, todos os indivíduos d
um público, são obras mais ou menos bem construídas, mas absolutamente
privadas de novidade e por isso de genialidade criadora.
3. Os autores não devem ter outra preocupação senão aquela da absoluta
originalidade inovadora. Todos os trabalhos dramáticos partem de um lugar-
comum ou extraem de outras obras de arte a concepção, a trama ou uma
parte do desenvolvimento, são absolutamente desprezíveis.
4. Os leitmotiven do amor e do triângulo do adultério, tendo já sido por demais
usados em literatura, têm que ser reduzidos, em cena, ao valor secundário
de episódios ou de acessórios, isto é, ao mesmo valor a que o amor é
agora reduzido na vida, por efeito do grande esforço futurista.
5. Uma vez que a arte dramática não pode ter, como todas as artes, outro
sentido senão aquele de arrancar a alma do público da vulgar realidade
cotidiana e de exaltá-la em uma atmosfera ofuscante de embriaguez
intelectual, nós desprezamos todos os trabalhos que querem somente
comover ou fazer chorar, mediante o espetáculo inevitavelmente piedoso de
uma mãe a quem morreu o filho, ou aquele de uma jovem que não pode
casar com o seu namorado, ou outras baboseiras semelhantes...
6. Nós desprezamos na arte, e mais particularmente no teatro, todas as
espécies de reconstruções históricas, quer estas devam seu interesse à
figura de um herói ou de uma heroína ilustre (Nero, Júlio César, Napoleão
ou Francisca de Rimini), quer se baseiem na estúpida sugestão exercida
pelos costumes e pelos cenários do passado. O drama moderno deve
refletir alguma parte do sonho futurista que surge de nossa vida hodierna,
exasperada pelas velocidades terrestres, marítimas e aéreas, e dominada
pelo vapor e pela eletricidade.
É preciso introduzir no teatro a sensação do domínio da máquina, os
grandes estremecimentos que agitam as multidões, as novas correntes de
idéias e as grandes descobertas da ciência, que transformaram
completamente a nossa sensibilidade e a nossa mentalidade de homens do
século vinte.
7. A arte dramática não deve fazer fotografia psicológica, mas, ao contrário,
tender a uma síntese da vida nas suas linhas mais típicas e mais
significativas.
8. Não deve existir arte dramática sem poesia, isto é, sem entusiasmo e sem
síntese. As formas prosódicas regulares devem ser excluídas. O escritor
futurista usará portanto, para o teatro, o verso livre: móvel, orquestração de
imagens e de sons, que passando da prosa mais simples, quando se trate
por exemplo da entrada de um doméstico ou do fechamento de uma porta,
possa elevar-se gradativamente, segundo o ritmo das paixões, em estrofes
cadenciadas ou caóticas; conforme o caso, quando se trate, por exemplo,
de anunciar a vitória de um povo ou a morte gloriosa de um aviador.
9. É preciso destruir a obsessão da riqueza, entre os literatos, porque a avidez
pelo ganho empurrou para o teatro escritores exclusivamente dotados das
qualidades de romancista ou de jornalista.
10. Nós queremos submeter completamente os atores à autoridade dos
escritores, e arrancá-los da dominação do público, que os leva fatalmente a
procurar o efeito fácil, distanciando-os de qualquer procura de interpretação
profunda. Por isso é preciso abolir o hábito grotesco dos aplausos e vaias,
o que pode servir de barômetro à eloqüência parlamentar não certamente
ao valor de uma obra de arte.
11. Nós ensinamos enfim aos autores e atores a volúpia de serem vaiados.
Tudo o que vem vaiado não é necessariamente belo ou novo, mas tudo
aquilo que vem imediatamente aplaudido certamente não é superior à
média das inteligências, e é então coisa medíocre, banal, vomitada ou por
demais digerida.

Ao afirmar-lhes estas convicções futuristas, tenho a alegria de saber que o


meu gênio, muitas vezes vaiado pelo público da França e da Itália, jamais será
sepultado sob aplausos pesados como um Rostand qualquer!...

Milão, 11 de janeiro de 1911

F.T. Marinetti

OS POETAS FUTURISTAS
G.P. Lucini, Paolo Buzzi, Enrico Cavacchioli, Aldo Palazzeschi, Corrado
Govoni, Libero Altomare, Luciano Folgore, G. Carrieri, M. Bètuda, G. Manzella-
Frontini, E. Cardile, Armando Mazza, Auro D’Alba, etc...

OS PINTORES FUTURISTAS

Umberto Boccioni, C.D. Carrà, Luigi Russolo, Giacomo Balla, Gino Severini.

OS MUSICISTAS FUTURISTAS

Balila Pratella.

Milão, 11 de janeiro de 1911 – Redação de “Poesia”, Via Senato, 2.

Trad.: Maria Aparecida Abelaira Vizotto

A MÚSICA FUTURISTA – MANIFESTO TÉCNICO


(1911)
BALILLA PRATELLA

Todos os inovadores foram logicamente futuristas, no seu tempo. Palestrina


teria julgado Bach louco, assim como Bach teria julgado Beethoven que assim
teria julgado Wagner.
Rossini vangloriava-se de ter finalmente entendido a música de Wagner
lendo-a ao contrário; Verdi, após uma audição da ouverture de Tannhäuser, em
carta a um amigo seu chamava Wagner de louco.
Estamos então á janela de um manicômio glorioso, enquanto declaramos,
sem hesitar, que o contraponto e a fuga, ainda hoje considerados como o ramo
mais importante do ensinamento musical, não representam nada mais do que
escombros pertencentes à história da polifonia propriamente daquele período
que vai desde os flamengos até J.S. Bach.
Em substituição a eles, a polifonia harmônica, fusão racional do
“contraponto” com a harmonia, impedirá ao músico, de uma vez para sempre,
desdobrar-se entre duas culturas: uma ultrapassada já há alguns séculos e a
outra, contemporânea; inconciliáveis porque produzidas por duas bem
diferentes maneiras de sentir e de conceber. A segunda, por razões lógicas de
progresso e evolução, afastada e inatingível, conseqüência da primeira pelo
fato de tê-la resumido, transformado e, desde há muito tempo, superado.
A harmonia, antigamente subentendida na melodia – sons que se seguiam
segundo diversos modos de escala – nasceu quando cada som da melodia foi
considerado em relação à combinação com todos os outros sons do tipo de
escala a que pertencia.
De tal modo chegou-se a compreender que a melodia é a síntese
expressiva de uma sucessão harmônica. Hoje grita-se e lamenta-se que os
jovens músicos não sabem mais encontrar melodias, aludindo sem dúvida
àquelas de Rossini, Bellini, Verdi ou Ponchielli...
Conceba-se ao contrário a melodia de maneira harmônica; sinta-se a
harmonia através das mais diversas e complexas combinações e sucessões de
sons, e então encontrar-se-ão novas fontes de melodia.
Assim acabar-se-á de uma vez por todas com a existência de vis imitadores
de um passado que não tem mais razão de ser e dos estimuladores venais do
gosto vulgar do público.
Nós futuristas proclamamos que os diferentes modos antigos de escala,
que as várias sensações de maior, menor, excedente, diminuto e também os
mais recentes modos de escala por tons inteiros não são outra coisa senão
simples particularidades de um único modo harmônico e atonal de escala
cromática. Declaramos também inexistentes os valores de consonância e
dissonância.
Das inúmeras combinações e das várias relações que se derivaram
florescerá a melodia futurista. Esta melodia não será senão a síntese da
harmonia, semelhante à linha ideal formada pelo incessante florescer de mil
ondas marinhas de cristas desiguais.
Nós, futuristas, proclamamos como progresso e vitória do Futuro sobre o
modo cromático atonal, a busca e a realização do modo cromático atonal, a
busca e a realização do modo inarmônico. Enquanto o cromatismo nos faz
unicamente usufruir de todos os sons contidos em uma escala dividida por
semitons menores e maiores, a inarmonia, ao contemplar também as mínimas
subdivisões do tom, além de oferecer à nossa sensibilidade renovada o
número máximo dos sons determináveis e combináveis, nos permite também
novas e mais variadas relações de acordes e timbres.
Mas acima de tudo a inarmonia nos torna possíveis a entonação e a
modulação naturais e instintivas dos intervalos inarmônicos, presentemente
irrealizáveis devido à artificialidade da nossa escala em sistema temperado,
que nós queremos superar. Nós futuristas amamos, desde há muito, estes
intervalos inarmônicos que encontramos só nas desafinações de orquestra,
quando os instrumentos soam em implantes diversos, e nos acentos
espontâneos do povo, quando são entoados sem preocupação artística.
O ritmo de dança: monótono, limitado, decrépito e bárbaro, deverá ceder o
domínio da polifonia a um livre procedimento polirrítmico, limitando-se a
permanecer como uma particularidade característica.
Por isso os tempos pares, ímpares e mistos deverão ser considerados
relativos entre si, como já do mesmo modo são considerados os ritmos
binários, ternários, ternários-binários e binários-ternários. Uma ou mais batidas
em tempo ímpar no meio ou com o fechamento de um período de batida em
tempo par ou misto e vice-versa não deverão ser mais condenadas pelas leis
ridículas e falazes da assim dita quadratura, desprezível abrigo de todos os
impotentes que ensinam nos conservatórios.
O alternar-se e o suceder-se de todos os tempos e de todos os ritmos
possíveis encontrarão o seu justo equilíbrio somente no sentido genial e
estético do artista criador.
O conhecimento da instrumentação deverá ser conquistado
experimentalmente. A composição instrumental deverá ser concebida
instrumentalmente, imaginando e sentindo uma orquestra particular para cada
particular e diferente condição musical do espírito.
Tudo isto será possível, quando, esvaziados os conservatórios, os liceus e
as academias, e determinado o seu fechamento, querer-se-á finalmente
satisfazer as necessidades da experiência, dando aos estudos musicais um
caráter de liberdade absoluta. Os maestros de hoje, transformados nos peritos
de amanhã, serão guias e colaboradores objetivos dos estudiosos, cessando
de corromper inconscientemente os gênios que nascem, arrastando-os atrás
da sua própria personalidade e impondo-lhes seus próprios erros e seus
próprios critérios.
Para o homem, a verdade absoluta está naquilo que ele sente
humanamente. O artista, ao interpretar virginalmente a natureza, humaniza-a
tornando-a verdadeira.
Céu, águas, florestas, rios, montanhas, emaranhados de navios e cidades
fervilhantes, através da alma do musicista, transformam-se em vozes
maravilhosas e possantes, que cantam humanamente as paixões e a vontade
do homem pela sua alegria e pelas suas dores, e lhe revelam em virtude da
arte o vínculo comum e indissolúvel que o liga com todo o resto da natureza.
As formas musicais não são senão aparências e fragmentos de um único
todo. Toda forma está relacionada com a potencialidade da expressão e com o
desenvolvimento do motivo passional gerador e com a sensibilidade e intuição
do artista criador. A retórica e a grandiloqüência procedem de uma
desproporção entre o motivo passional e a sua forma explicativa, reproduzida
na maior parte dos casos pelas influências que cegam, de tradição, de cultura,
de ambiente, e muitas vezes pela limitação cerebral.
O único motivo passional impõe ao músico a própria explicação formal e
sintética, sendo a síntese propriedade cardinal da expressão e da estética
musical.
O contraste de outros motivos passionais e as relações entre as suas
características expressivas e entre a sua potencialidade de expansão e
desenvolvimento constituem a sinfonia.
A sinfonia futurista considera como suas máximas formas: o Poema
Sinfônico, orquestral e vocal, e a Ópera teatral.
O sinfonista puro extrai desenvolvimentos, contrastes, linhas e formas dos
seus motivos passionais, com ampla e livre fantasia, não devendo ater-se a
nenhum critério que não seja o seu senso artístico de equilíbrio e de
proporção, e encontrando o seu objetivo no complexo dos meios expressivos e
estéticos, próprios da pura arte musical. Este senso de equilíbrio futurista não é
outro senão a obtenção da máxima intensidade de expressão.
O músico atrai, em troca, na órbita da inspiração e da estética musical
todos os reflexos das outras artes – concorrência potente à multiplicação da
eficácia expressiva e comunicativa. O musicista deve conceber em
conseqüência da sua inspiração e estética musical estes outros elementos
secundários.
A voz humana mesmo sendo o maior meio de expressão, porque é nossa e
provém de nós, será espalhada ao redor pela orquestra, atmosfera sonora,
repleta de todas as vozes da natureza, representadas através da arte.
A visão do poema encenado surge da fantasia do artista criador por uma
particular necessidade sua, proveniente da vontade de explicar os motivos
passionais geradores e inspiradores.
O poema dramático ou trágico não poderá ser concebido pela música, se
não for em conseqüência de um estado de espírito musical e através da única
visão, da estética musical.
O operista, criando ritmos ao ligar as palavras, já cria musicalmente e é
autor único da própria ópera. Musicando, ao contrário, a poesia dos outros, ele
renuncia estupidamente à sua particular fonte de inspiração original, à sua
estética musical, e assume de outros a parte rítmica das suas melodias.
O verso livre é o único apto, não estando obrigado a limitações de ritmos e
de acentos que se repetem monotonamente em formas restritas e
insuficientes. A onda polifônica da poesia humana encontra no verso livre todos
os ritmos, todos os acentos e todos os modos para poder exprimir-se,
exuberantemente como numa fascinante sinfonia de palavras. Tal liberdade de
expressão rítmica é própria da música futurista.
O homem e a multidão dos homens em cena não devem mais imitar
facilmente o comum, o particular; devem porém cantar, como quando nós, sem
termos conhecimento do lugar e da hora, tomados por uma íntima vontade de
expansão e de domínio, irrompemos instintivamente na essencial e fascinante
linguagem humana. Canto natural, espontâneo, sem a medida dos ritmos ou
dos intervalos, artificiosa limitação de expressão, que nos faz lamentar a
eficácia da palavra.

CONCLUÍMOS:

1. É PRECISO CONCEBER A MELODIA COMO UMA SÍNTESE DA


HARMONIA CONSIDERANDO AS DEFINIÇÕES HARMÔNICAS DE
MAIOR, MENOR, EXCEDENTE E DIMINUTO, COMO SIMPLES
PARTICULARES DE UM ÚNICO MODO ROMÂNTICO ATONAL...
2. CONSIDERAR A INARMONIA COMO UMA MAGNÍFICA CONQUISTA DO
FUTURISMO.
3. QUEBRAR O DOMÍNIO DO RITMO DE DANÇA, CONSIDERANDO ESTE
RITMO COMO UMA PARTICULARIDADE DO RITMO LIVRE, DO MESMO
MODO QUE O RITMO DO ENDECASSÍLABO PODE SER UMA
PARTICULARIDADE DA ESTROFE EM VERSOS LIVRES.
4. COM A FUSÃO DA HARMONIA E DO CONTRAPONTO, CRIAR UMA
POLIFONIA EM UM SENTIDO ABSOLUTO, NUNCA USADO ATÉ HOJE.
5. APOSSAR-SE DE TODOS OS VALORES EXPRESIVOS TÉCNICOS E
DINÂMICOS DA ORQUESTRA E CONSIDERAR A INSTRUMENTAÇÃO
SOB O ASPECTO DE UNIVERSO SONORO INCESSANTEMENTE
MÓVEL E CONSTITUINDO UM ÚNICO TODO PARA A FUSÃO EFETIVA
DE TODAS AS SUAS PARTES.
6. CONSIDERAR AS FORMAS MUSICAIS PROCEDENTES E
DEPENDENTES DOS MOTIVOS PASSIONAIS GERADORES.
7. NÃO TOMAR POR FORMA SINFÔNICA OS MESMOS ESQUEMAS
TRADICIONAIS DE SEMPRE, SUPERADOS E SEPULTADOS PELA
SINFONIA.
8. CONCEBER A ÓPERA TEATRAL COMO UMA FORMA SINFÔNICA.
9. PROCLAMAR A NECESSIDADE ABSOLUTA DE O MUSICISTA SER O
AUTOR DO POEMA DRAMÁTICO OU TRÁGICO PARA A SUA MÚSICA, A
AÇÃO SIMBÓLICA DO POEMA DEVE SOLTAR A FANTASIA DO
MUSICISTA, ESTIMULADA PELA VONTADE DE EXPLICAR MOTIVOS
PASSIONAIS. OS VERSOS ESCRITOS POR OUTROS OBRIGARIAM O
MÚSICO A ACEITAR DOS OUTROS O RITMO PARA A PRÓPRIA MÚSICA.
10. RECONHECER NO VERSO LIVRE O ÚNICO MEIO PARA ATINGIR UM
CRITÉRIO DE LIBERDADE POLIRRÍTMICA.
11. TRANSPORTAR PARA A MÚSICA TODAS AS NOVAS ATITUDES DA
NATUREZA, SEMPRE DIFERENTEMENTE DOMADA PELO HOMEM, EM
VIRTUDE DAS INCESSANTES DESCOBERTAS CIENTÍFICAS.
TRANSMITIR A ALMA MUSICAL DAS MULTIDÕES, DAS GRANDES
OBRAS INDUSTRIAIS, DOS TRENS, DOS TRANSATLÂNTICOS, DOS
ENCOURAÇADOS, DOS AUTOMÓVEIS E DOS AEROPLANOS,
ACRESCENTAR AOS GRANDES MOTIVOS CENTRAIS DO POEMA
MUSICAL O DOMÍNIO DA MÁQUINA E O REINO VITORIOSO DA
ELETRICIDADE.

29 de março de 1911

Trad.: Maria Aparecida Abelaira Vizotto

FOTODINAMISMO FUTURISTA
(1911)
ANTON GIULIO BRAGAGLIA

...Antes de mais nada, a Fotodinâmica não pode ser entendida como uma
inovação em relação à fotografia, de modo semelhante àquela trazida pela
cronofotografia, mas sim como uma criação que visa atingir ideais opostos aos fins
de todos os meios representativos de hoje; além do mais, se pode ser considerada
ligada com a fotografia, a cinematografia e a cronofotografia, só pode sê-lo pelo
único fato de, como estas, ter como ponto de partida o amplo campo da ciência
fotográfica, uma vez que esta abastece a todas de meios técnicos, porque
baseados sobre as propriedades físicas gerais da câmara.
Está claro que nós não queremos, de fato, aquilo que é procurado ou que, é
domínio da cinematografia e da cronofotografia. Nós não estamos preocupados
com a precisa reconstrução de um movimento, já quebrado de antemão, mas
somente com aquela parte do movimento que produziu a sensação cuja
lembrança ainda palpita profundamente em nossa consciência.
Nós desprezamos a reprodução precisa, mecânica, glacial da realidade, e a
evitamos com todo o cuidado, pois ela é elemento nocivo e negativo para nosso
escopo enquanto, ao contrário, é a única essência do cinema e da cronofotografia,
os quais, por sua vez, não se preocupam com a trajetória, que para nós é valor
essencialíssimo.
A questão da cinematografia, no nosso caso, é absolutamente descabida e
só pode ser sugerida por um cérebro superficial e imbecil, numa crassíssima
ignorância do assunto.
O cinema não salienta o traço do movimento, mas o reparte, sem lei
alguma, num arbítrio mecânico, desintegrando-o e fragmentando-o, sem
preocupações estéticas de nenhuma espécie em relação ao ritmo: uma vez que
não está em sua potência friamente mecânica poder satisfazer a tais
preocupações.
Além disso, ele nunca analisa o movimento, pois o despedaça, a seu modo,
nos quadrinhos do filme, contrariamente ao que opera a Fotodinâmica, analisando
precisamente suas particularidades. E também nunca o sintetiza, pois só
reconstitui dele os fragmentos da realidade já antes recortados friamente, do
mesmo modo que o ponteiro de um cronômetro trata o tempo, o qual, ao contrário,
flui igual e contínuo.
A fotografia então é algo distinto – útil para a reprodução anatômica e
perfeita da realidade – necessária e preciosa, portanto, para fins absolutamente
opostos aos nossos, que são artísticos em si mesmos, ou que são científicos no
que se refere a seu aspecto de pesquisa, sempre, porém, dirigido para a arte.
Assim, tanto a fotografia quanto a Fotodinâmica possuem suas próprias e
particulares qualidades, bem divididas e de importância, utilidade e natureza de
escopos bastante diferentes.
A cronofotografia de Marey, depois, tratando-se de uma cinematografia
executada sobre uma chapa comum ou sobre um filme contínuo, mesmo que não
use os quadrinhos para dividir o movimento, já separado e cortado em diversas
instantâneas, quebra sempre o gesto e o destaca de si mesmo em várias imagens
instantâneas, bem distantes entre si e muito mais raras e autônomas do que as
cinematográficas. Conseqüentemente, esta também não é nenhuma análise.
De fato – por exemplo – o sistema Marey é usado, entre outros, para o
ensino da ginástica; e das cem imagens que traça um homem quando salta, ele
salienta apenas umas poucas, porque apenas com aquelas já é possível
descrever e ensinar aos jovens os estados principais do salto.
Mas se tal coisa serve para o velho sistema Marey, para a ginástica e para
outras aplicações, não é verdade que com aquelas cinco rígidas instantâneas nós
possamos obter, não digo a sensação, mas a simples reconstrução do movimento.
Por outro lado, sendo que a cronofotografia não tende decerto para a reconstrução
do movimento, nem tampouco para nos proporcionar sua sensação, qualquer
outra discussão tornar-se-ia inútil, não valesse a pena insistir sobre este ponto,
uma vez que alguém, com maior ou menor graciosa malignidade, pode querer
identificar a Fotodinâmica com a cronofotografia, como alguns já a quiseram
confundir com a cinematografia.
O sistema de Marey, como dizíamos, capta e paralisa o gesto nos principais
movimentos que mais lhe são úteis, descrevendo uma teoria de figuras que
também poderiam ser tiradas de uma série de fotografias instantâneas – que
também poderiam ser tomadas como pertencentes a sujeitos diferentes – porque,
tirante um pouco o passo, nenhuma ligação une e unifica as várias imagens,
justamente fotográficas, contemporâneas e podendo pertencer aparentemente a
mais do que um sujeito. Vulgarmente, poderíamos comparar a cronofotografia com
um relógio cujos ponteiros marcam apenas os quartos de hora: a cinematografia,
com outro que marca também os minutos e a Fotodinâmica com um terceiro que
indica não apenas os segundos mas os minutos intermomentais que existem entre
os segundos, nas passagens; sendo ela quase um cálculo infinitesimal do
movimento.
Com efeito, somente com as nossas pesquisas é que se pode ter visões
proporcionadas, na força das imagens, no que se refere ao próprio tempo de sua
existência e mais, à velocidade com a qual estas imagens viveram no espaço e
em nós mesmos.
Um gesto irá traçar, na Fotodinâmica, uma imagem tão menos ampla e viva
quanto mais notável for sua velocidade. Por conseguinte, quanto mais ele for
lento, tanto menos virá a ser desmaterializado e deformado, sendo que, quanto
mais ele for deforme tanto menos real ele será e mais ideal e mais lírico e mais
abstraído de sua própria personalidade, aproximando-se do tipo com o mesmo
efeito evolutivo de deformação que os gregos seguiram para encontrar seus tipos
de beleza.
É visível a diferença que existe entre a mecanicidade fotográfica da
cronofotografia – cinematografia embrional e grosseira – e a tendência que a
Fotodinâmica possui de afastar-se daquela mecanicidade, seguindo seu ideal,
completamente oposto aos fins das precedentes, apesar das pesquisas científicas
do movimento que nos propomos também levarem adiante.
A Fotodinâmica, então, analisa e sintetiza como quer o movimento e com
grande eficácia – porque não se deve recorrer ao despedaçamento para a
observação – mas possuí a força de recordar a continuidade do gesto no espaço,
de modo a traçar, não apenas a expressão da passagem dos estados de espírito
de um rosto, por exemplo, como nem a fotografia nem a cinematografia nunca
conseguiram, mas o imediato deslocamento de volumes por meio da
transformação imediata das expressões.
Um grito, uma pausa trágica, um gesto de terror, na cena toda, em todo o
desenvolvimento exterior do drama íntimo, pode ser expresso numa única obra. E
não apenas nos pontos de partida e nos pontos de chegada – ou quem sabe em
alguns pontos de centro, como faria a cronofotografia – mas continuamente, do
começo ao fim, pois ela, como dissemos, pode provocar também os estados
intermovimentais de um movimento.
De fato, também como pesquisa científica da evolução e dos traços do
movimento, a Fotodinâmica afirma-se como exaustiva e necessária, uma vez que
não existe um meio precisamente analítico do gesto, tendo nós já examinado em
parte a obra rudimentar da cronofotografia.
Assim – como o estudo da anatomia sempre foi até hoje necessário para
um artista – também o conhecimento daquilo que os corpos em movimento
perdem com a ação e adquirem com o moto será indispensável para um pintor
movimentista.
Para poder compor um quadro não basta para o artista o único efeito óptico
por ele experimentado, mas é preciso também o exato conhecimento analítico da
essência completa daquele efeito e de suas causas. Caberá ao próprio artista,
depois, sintetizar aquelas análises, porém, na síntese, deverão existir, como
esqueleto, os precisos e quase invisíveis elementos analíticos, ainda realísticos,
que apenas a Fotodinâmica em seu aspecto científico pode tornar manifestos.
Com efeito, cada vibração é o ritmo de infinitas vibrações menores, uma
vez que cada ritmo é constituído por uma quantidade infinita de vibrações. Se até
hoje o conhecimento humano concebia e considerava o movimento em seu ritmo
geral, estava fazendo, por assim dizer, uma álgebra do movimento: considerava a
este como simples, como finito (Vide Spencer: Os primeiros princípios – o ritmo do
moto) – enquanto a Fotodinâmica, ao contrário, revelou-o e representou-o como
complexo, chegando com isso à altura de um cálculo infinitesimal do movimento
(Vide nossas últimas obras e v.g. o Carpinteiro (il Falegname), a Reverência
(l’Inchino), Mudando de postura (Cambiando positura) etc.
Representando, por exemplo, como nós fizemos, o movimento de um
pêndulo, pondo em referência sua velocidade e seu tempo com dois eixos
ortogonais, obteremos uma curva sinusoidal contínua e infinita. Isto, porém, ocorre
com o pêndulo teórico, com o pêndulo imaterial uma vez que, considerando um
pêndulo material, obteremos uma representação que se afasta daquela teórica na
medida em que, praticamente, o pêndulo, depois de um certo tempo mais ou
menos breve, mas sempre finito, pára.
Fica naturalmente entendido que em ambos os casos as linhas que
representam tal movimento são contínuas e não representam de maneira alguma
a realidade do fenômeno. De fato, na realidade, aquelas linhas deveriam ser
compostas por um número infinito de vibrações menores introduzidas assim pela
resistência do ponto de abordagem, a qual não é contínua mas feita por pequenos
impulsos, como por outros infinitos coeficientes. Ora: uma vez que é mais eficaz
uma representação sintética – que tem, porém, em sua essência um valor
analítico divisionista – em lugar de sintético impressionista – (entendemos neste
caso divisionismo e impressionismo em sentido filosófico), assim a representação
do movimento realístico será muito mais eficaz numa síntese, - que tem em sua
essência um valor analítico divisionista (exemplo, Falegname, Inchino, etc) – do
que numa análise, e em modo particular, quando esta é somente superficial:
quando, isto é, não é minuciosamente interestática, mas se expressa apenas
como uma estática sucessiva (exemplo: a Datilógrafa).
Portanto, como na pintura foi sugerida a Seurat, pela obra científica de
Rood, a questão essencial do divisionismo cromático (Síntese no efeito e análise
no meio), assim à pintura movimentista é hoje indicada pela Fotodinâmica a
necessidade de um divisionismo movimentista, que seja síntese no efeito e análise
no meio. Entretanto – que fique bem claro – análise íntima, porém profunda,
sensível, mais do que facilmente perceptível.
Isso nós já o dissemos demonstrando que, se a anatomia é necessária à
representação estática, assim a anatomia do gesto – análise íntima – é
indispensável à representação movimentista, a qual, de tal modo, não dará trinta
figuras do mesmo objeto para representar um objeto em movimento, mas dará
este infinitamente multiplicado e esparso, enquanto na figura presente o dará
diminuído.
A Fotodinâmica, portanto, pode estabelecer dados positivos na construção
da realidade movimentada, tal como a fotografia o faz com seus próprios
resultados, que são positivos para a realidade estática.
O artista, pesquisador de formas e de combinações que caracterizam um
estado qualquer que o interesse do real, pode, na Fotodinâmica, encontrar uma
base de experiências que facilite suas buscas e suas intuições para uma
representação dinâmica do real; pois são indiscutíveis os nexos firmes e
essenciais que ligam o desenvolvimento de qualquer ação real com a concepção
artística, conquanto que isto ocorra afirmando-se independentemente de qualquer
comparação formal com a própria realidade.
Estabelecido este primeiro princípio de irmandade essencial, não apenas
com a concepção artística e a representação da realidade, mas também entre
aquela e a aplicação artística, percebe-se facilmente quais e quantas podem ser
as pistas que uma representação dinâmica pode dar ao artista, seu profundo
pesquisador.
Assim, a luz e o movimento em geral, a luz que age sobre os movimentos e
conseqüentemente os movimentos da luz têm na Fotodinâmica sua revelação. Isto
porque – dado o transcendentalismo do fenômeno do movimento – somente com
a Fotodinâmica o pintor poderá saber o que acontece nos estados
intermovimentais gerais e poderá conhecer os volumes de cada movimento,
poderá analisá-lo em cada mínimo detalhe e ficar conhecendo o aumento de valor
estético de um corpo arremessado, ou a diminuição do mesmo, relativamente à
luz e às conseqüências de desmaterialização do movimento. Apenas com a
Fotodinâmica é que o artista poderá possuir os elementos necessários para
construir uma obra de arte na síntese desejada.
O escultor Roberto Melli escrevia-me a propósito de como lhe parece que a
Fotodinâmica tenha que “tomar, para estas novas pesquisas movimentistas, as
quais tão vivamente começam a impressionar a consciência dos artistas, aquele
lugar que até hoje tem sido ocupado pelo desenho, fenômeno físico e mecânico,
bem diferente daquele do transcendentalismo físico da Fotodinâmica, que está
para o desenho assim como as novas correntes da estética estão para a arte
passada”.
Para James o movimento era “o fato de ocupar uma série de pontos
sucessivos do espaço, correspondente a uma série de momentos sucessivos do
tempo”.
Não observa porém, o modo pelo qual se chega de um ponto ao outro
durante estes momentos. E tais estados intermovimentais, cuja matéria é a pura
trajetória, são o expoente da passagem de um ponto a outro, como de um
momento a outro, uma vez que o tempo vem traduzido em espaço.
Com eles a imagem mais remotamente existida no espaço será muito mais
débil e desvanecente do que aquela presente, e esta será tanto mais realística
quanto menos veloz for o gesto.
Ter-se-á um tema icônico cada vez mais saliente, decidido, à medida que
nos aproximarmos do átimo de existência da última imagem em movimento e o
tempo será levado por nós decididamente como uma quarta dimensão do espaço,
vindo a possuir um elemento bastante notável para a sensação do gesto fazendo
obra muito mais cronográfica do que aquela do sistema Marey, que foi chamado
de cronográfico apenas porque capta alguns raros tempos, isto é, alguns estados
de um gesto.
Porém, vale a pena voltar brevemente a este sistema.
Se examinarmos a cronofotografia como meio científico dirigido a estudar o
movimento, deve ser notado que, para tal estudo, é necessária uma análise
minuciosa que a cronofotografia não dá, por saltar de um ponto do movimento a
outro bem distante, não apenas não conseguindo conhecer aquelas entidades
existentes e fugidias que a Fotodinâmica percebe e que são por nós indicadas
como os estados interestáticos, intermovimentais e intermomentais de um gesto,
mas sem conseguir sequer conhecer todos os estados estáticos essenciais que
compuseram o gesto em sua parte, digamos, mais material.
De tal modo, enquanto a Fotodinâmica nega a instantânea e os velhos
valores de linha e de cor, procurando novas sensações de ritmo, a cronofotografia
usa a instantânea como sua base absoluta e mantém os velhos valores de linha e
de cor. Enquanto a Fotodinâmica quer dar o resultado dinâmico do gesto, isto é, a
síntese de trajetória – mas também pode analisar minuciosamente cada
deslocamento dos corpos em movimento e assinalar a ação do tempo e captar
mesmo o que acontece nos intervalos, fornecendo ao mesmo tempo cada mais
diminuto valor de trajetória e retratando as figuras naquela desmaterialização que
nossos olhos sentem e que, portanto, nossos sentidos gozam – a cronofotografia
não analisa as imagens, é feita de longínquas instantâneas brutalmente
realísticas, não observa a não ser a vigésima parte da multiplicação dos corpos no
deslocamento, não vê a trajetória que é nosso fim artístico, por ser fonte da
sensação dinâmica, não fornece a desmaterialização das figuras, não retrata o
ritmo, tendo retirado dele apenas raros elementos e não pode dar, portanto,
nenhuma emoção dinâmica, nem nenhuma verdadeira reconstrução porque, em
suma, é preciso repetir que não se dirige nem a esta nem àquela.
Bérgson diz: “Na mobilidade vivente das coisas, o intelecto preocupa-se em
assinalar umas estações reais, virtuais; ou seja, marca algumas partidas e
algumas chegadas. É tudo aquilo que importa ao pensamento do homem
enquanto simplesmente humano. Captar aquilo que sucede no intervalo é mais do
que humano”.
Ora, enquanto com o cinema e com o equivalente sistema de Marey, nós,
num lance, somos levados de um estado a outro dos que compuseram o
movimento, sem nos preocupar com os estados intermovimentais do gesto;
enquanto com a fotografia temos um único estado, a Fotodinâmica, lembrando
também o que ocorreu entre um estado e outro, cumpre obra que transcende a
condição humana, de tal forma a tornar-se uma fotografia transcendental do
movimento, pela qual concebemos também uma nova máquina que saiba fazer
perceber, melhor do que hoje, os gestos dos outros traçados num mesmo ponto,
sempre porém restando estes em relação com a própria idade; e sempre
permanecendo idealizados na deformação e na destruição sofrida no movimento e
na luz traduzindo-se eles em trajetória.
Pois, quando nos dizem que as imagens contidas em nossas fotodinâmicas
são inseguras e dificilmente precisáveis, não fazem outra coisa a não ser reparar
numa mera característica da Fotodinâmica que se apraz justamente em lembrar
deformadas as imagens uma vez que estas, inevitavelmente, se transformam por
si mesmas em movimento, e porque é nosso objetivo o afastamento mais
esforçado da realidade, por já existirem a cinematografia, a fotografia e a
cronofotografia para a reprodução fria mecanicamente precisa.
Nós buscamos a essência interior das coisas: o movimento puro, e
preferimos tudo em movimento, pois, neste estado, as coisas, desmaterializando-
se, idealizam-se, apesar de conservarem em profundidade um forte esqueleto de
verdade.
É nisto que consiste nosso objetivo, é com isto que queremos elevar a
fotografia até aquelas alturas para as quais hoje ela tende impotente por estar
privada dos elementos necessários para sua elevação – dados os critérios
ordenadores que a conformam qual precisa reprodutora da realidade – e porque,
por um outro lado, jaz dominada por aquele ridículo e bestial elemento negativo
que é a instantânea, até agora surgida como grande potência científica, enquanto
não passa de risível absurdo.
Porém, também na análise científica do movimento, isto é, na multiplicação
da realidade para o estudo da deformação desta no movimento, nós, possuindo
não um, mas inúmeros valores do gesto, repetimos a idéia deste, insistimos,
impomos e voltamos sem vacilação, sem cansaço, sobre ela, até afirmá-la
definitivamente com a demonstração obsessiva daquela sua qualidade exterior e
interior que para nós é essencial.
Não há dúvida que de tal multiplicação de entidades nós venhamos a obter
uma multiplicação de valores, apta para enriquecer cada fato de uma
personalidade mais imponente.
Assim, se repetirmos, nos principais estados de seu gesto, a figura de uma
dançarina que agita uma perna no ar, piruetando, esta, mesmo não possuindo a
trajetória própria e mesmo não fornecendo uma sensação dinâmica, será tanto
mais dançarina e tanto mais dançante do que uma única figura, parada num único
daqueles estados que formaram o movimento.
O quadro, portanto, poderá ser invadido e perpassado pela essência do
sujeito, poderá ser obcecado pelo sujeito de tal modo a invadir e obcecar
energicamente o público com seus próprios valores. Ele não deverá existir como a
coisa passiva da qual o público se apodera sem preocupações para dela fruir, mas
sim a coisa ativa que impõe ao público a própria essência libérrima, a qual por isso
mesmo não pudera ser capturada com a insípida facilidade de todas as coisas por
demais fiéis à realidade rotineira.
Para este estudo da realidade multiplicada nos seus volumes, para a
multiplicação da sensação plástica lírica destes volumes, já concebemos um
método de pesquisa, bastante original em seu meio mecânico, que já expusemos
a alguns amigos.
Contudo, por enquanto, pesquisamos a trajetória, síntese do gesto,
fascinadora de nosso senso, vertiginosa expressão lírica da vida, viva reevocadora
da magnífica emoção dinâmica de que o universo vibra incessantemente.
Tentamos retratar, além da expressão estética dos motivos, também a
emoção interior sensorial cerebral e psíquica que experimentamos, enquanto um
gesto deixava atrás de si seu soberbo e irrompente rastro.
Isto para poder providenciar aos outros os elementos necessários para
tornar a experimentar a emoção desejada.
É na presente pesquisa do interior de um gesto que se baseiam todos os
valores artísticos emotivos que existem no Fotodinamismo.
Àqueles, finalmente, que pensam não haver necessidade de levar adiante
tais pesquisas com meios fotográficos, uma vez que existe a pintura, nós
retrucamos que, mesmo sem fazer concorrência alguma à pintura e operarmos em
campos totalmente diversos, os meios da ciência fotográfica são tão rápidos,
fecundos e poderosos que se configuram com muito mais futuro e muito mais
concordes com as exigências da vida que evolui do que todos os outros velhos
meios de representação.

Trad.: Aurora F. Bernardini

A ESCULTURA FUTURISTA

U. BOCCIONI
11 de abril de 1912

A escultura nos monumentos e nas exposições de todas as cidades da


Europa oferece um espetáculo tão compadecedor de barbárie, de desjeito e de
monótona imitação, que o meu olho futurista se retrai com profundo desgosto!
Na escultura de cada país domina a imitação cega e parva das fórmulas
herdadas do passado, imitação que vem encorajada pela dupla covardia da
facilidade. Nos países latinos temos a carga vergonhosa da Grécia e de
Michelangelo, que é suportada com alguma seriedade de talento na França e na
Bélgica, com grotesca imbecilidade na Itália. Nos países germânicos temos um
insosso goticume helenizante, industrializado em Berlim ou desmiolado com
atenção efeminada pelo professorume alemão em Munique. Nos países eslavos,
ao invés, um choque confuso entre o grego arcaico e os monstros nórdicos e
orientais. Amontoado informe de influências que vão desde o excesso de
particularidades abstrusas da Ásia, à infantil e grotesca engenhosidade dos
Lapões e dos Esquimós.
Em todas estas manifestações da escultura, e mesmo naquelas que têm
maior sopro de audácia inovadora, se perpetua o mesmo equívoco: o artista copia
o nu e estuda a estátua clássica com a ingênua convicção de poder achar um
estilo que corresponda à sensibilidade moderna sem sair da tradicional concepção
da forma escultural. Tal concepção, com seu famoso “ideal de beleza” de que
todos falam ajoelhados, não se diferencia nunca do período de Fídias e de sua
decadência.
E é quase inexplicável como os milhares de escultores, que continuam de
geração em geração a construir fantoches, ainda não se tenham perguntado por
que as salas de escultura são freqüentadas com fastio e horror, quando não estão
absolutamente desertas, e por que os monumentos se inauguram sobre praças de
todo o mundo entre a incompreensão ou a hilaridade geral. Isto não sucede à
pintura, por causa de sua renovação contínua, que, por lenta que seja, é a mais
clara condenação da obra plagiaria e estéril de todos os escultores da nossa
época!
É necessário que os escultores se convençam desta verdade absoluta:
construir ainda e querer criar com os elementos egípcios, gregos ou michelângicos
é como querer atingir água com um balde sem fundo em uma cisterna seca!

Não pode haver renovação alguma em uma arte se não vem renovada a
essência, isto é, a visão e a concepção da linha e das massas que formam o
arabesco. Não é só reproduzindo os aspectos exteriores da vida contemporânea
que a arte se torna expressão do próprio tempo, e, por isto, a escultura, como tem
sido entendida até hoje pelos artistas do século passado e do presente, é um
monstruoso anacronismo!
A escultura não tem progredido, por causa da restrição do campo que lhe
foi atribuído pelo conceito acadêmico do nu. Uma arte que tem necessidade de
desnudar inteiramente um homem ou uma mulher para começar a sua função
emotiva é uma arte morta! A pintura se revigorou, aprofundada e alargada
mediante a paisagem e o ambiente postos a agir simultaneamente sobre a figura
humana ou sobre os objetos, chegando à nossa futurista COMPENETRAÇÃO
DOS PLANOS (Manifesto Técnico da Pintura Futurista; 11 de abril de 1910).
Assim, a escultura encontrará novo manancial de emoção, portanto de estilo,
estendendo a sua plástica àquilo que a nossa rudeza bárbara nos tem feito
considerar até hoje como subdividido, impalpável, portanto, inexprimível
plasticamente.
Nós devemos partir do núcleo central do objeto que se quer criar, para
descobrir as novas leis, isto é, as novas formas que o ligam invisível mas
matematicamente ao INFINITO PLÁSTICO APARENTE e ao INFINITO PLÁSTICO
INTERIOR. A nova plástica será, portanto, a tradução no gesso, no bronze, no
vidro, na madeira, e em qualquer outro material, dos planos atmosféricos que
ligam e intersectam as coisas. Esta visão que eu chamei
TRANSCENDENTALISMO FÍSICO (Conferência sobre a Pintura Futurista no
Círculo Artístico de Roma, Maio 1911) poderá tornar plásticas as simpatias e as
afinidades misteriosas que criam as recíprocas influências formais dos planos dos
objetos.
A escultura deve, portanto, fazer viver os objetos tornando sensível,
sistemático e plástico o seu prolongamento no espaço, uma vez que ninguém
pode mais duvidar que um objeto acabe onde um outro comece, e não haja
nenhum que circunde o nosso corpo: garrafa, automóvel, casa, árvore, estrada,
que não o talhe e não o seccione com um arabesco de curvas retas.
Duas foram as tentativas de renovação moderna da escultura: uma
decorativa pelo estilo, a outra puramente plástica pela matéria. À primeira,
anônima e desordenada, faltava o gênio técnico coordenador, e, mais ligada às
necessidades econômicas da arte de edificar, não produziu mais que peças de
escultura tradicional mais ou menos decorativamente sintetizadas e enquadradas
em motivos ou perfis arquitetônicos ou decorativos. Todos os palácios e as casas
construídas com um critério de modernidade têm em si estas tentativas em
mármore, em cimento ou em placas metálicas.
À segunda, mais genial, desinteressada e poética, mas por demais isolada
e fragmentária, faltava um pensamento sintético que afirmasse uma lei. Pois que
na obra de renovação não basta crer com fervor, mas ocorre propugnar e
determinar alguma norma que assinale uma estrada. Aludo ao gênio de Medardo
Rosso, a um Italiano, ao único grande escultor moderno que tenha tentado abrir
para a escultura um campo mais vasto, dar com a plástica as influências de um
ambiente e os liames atmosféricos que o ligam ao sujeito.
Dos outros três grandes escultores contemporâneos, Constantin Meunier
nada trouxe de novo na sensibilidade escultural. As suas estátuas são quase
sempre fusões geniais do heróico grego com a atlética humildade do carregador,
do marinheiro, do mineiro. A sua concepção plástica e construtiva da estátua e do
baixo-relevo é ainda aquela do Parthenon e do herói clássico, mesmo tendo ele
pela primeira vez tentado criar e divinizar sujeitos antes nele desprezados ou
deixados à baixa reprodução do natural (verista).
La Bourdelle traz no bloco escultural uma severidade quase raivosa de
massas abstratamente arquitetônicas. Temperamento apaixonado, torvo, sincero
de indagador, não sabe desventuradamente liberar-se de uma certa influência
arcaica e daquela anônima de todos os talhadores de pedra das catedrais góticas.
Rodin é de uma agilidade espiritual mais vasta, que lhe permite caminhar
do impressionismo de Balzac à incerteza dos Burgueses de Calais e a todos os
outros pecados michelangescos. Ele traz na sua escultura uma inspiração inquieta
um ímpeto lírico grandioso que seriam verdadeiramente modernos se
Michelangelo e Donatello não os houvessem tido, com quase idênticas formas, há
quatrocentos anos, e se servissem, ao invés, para animar uma realidade
completamente recriada.
Temos, portanto, na obra destes três grandes engenhos, influências de
períodos diversos: grega, em Meunier; gótica, em La Bourdelle; da renascença
italiana, em Rodin.
A obra de Medardo Rosso é, ao contrário, revolucionária moderníssima,
mais profunda e necessariamente restrita. Nessa não se agitam heróis nem
símbolos, mas o plano de uma testa de mulher ou de criança, acena uma
libertação em direção ao espaço, que terá na história do espírito uma importância
bem maior que aquela que não lhe havia dado o nosso tempo.
Infelizmente, as necessidades impressionísticas da tentativa limitaram a
pesquisa de Medardo Rosso a uma espécie de alto ou baixo-relevo, o que
demonstra que a figura é ainda concebida como mundo em si, com base
tradicional e propósitos episódicos.
A revolução de Medardo Rosso, porquanto importantíssima, parte de um
conceito exteriormente pictórico, negligencia o problema de uma nova construção
dos planos e o toque sensual do polegar, que imita a ligeireza da pincelada
impressionista, dá um sentido de vivaz imediatismo, mas obriga á execução rápida
do verdadeiro e tolhe à obra de arte o seu caráter de criação universal. Tem,
portanto, os mesmos méritos e defeitos do impressionismo pictórico, de cuja
pesquisa parte a nossa revolução estética, a qual, continuando-a, se afasta em
direção ao extremo oposto.
Em escultura, como em pintura, não se pode renovar, senão procurando o
ESTILO DO MOVIMENTO, isto é, tornando sistemático e definitivo como síntese
aquilo que o impressionismo deu como fragmentário, acidental, portanto analítico.
E esta sistematização das vibrações das luzes e das compenetrações dos planos
produzirá a escultura futurista, cujo fundamento será arquitetônico, não somente
como construção de massas, mas de modo que o bloco escultural tenha em si os
elementos arquitetônicos do AMBIENTE ESCULTURAL no qual vive o sujeito.
Naturalmente, nós daremos uma escultura de AMBIENTE.
Uma composição escultural futurista terá em si os maravilhosos elementos
matemáticos e geométricos que compõem os objetos do nosso tempo. E estes
objetos não ficarão perto da estátua como atributos explicativos ou elementos
decorativos destacados, mas, seguindo as leis de uma nova concepção de
harmonia, serão introduzidos nas linhas musculares de um corpo. Assim, da axila
de um mecânico poderá sair a roda de uma máquina, assim a linha da mesa
poderá talhar a cabeça de quem lê, e o livro seccionar com seu leque de páginas
o estômago do leitor.
Tradicionalmente a estátua se entalha e se delineia sobre o fundo
atmosférico do ambiente no qual é exposta: A pintura futurista superou esta
concepção da continuidade rítmica das linhas em uma figura e, do isolamento dela
do fundo e do ESPAÇO ENVOLVENTE INVISÍVEL. “A poesia futurista – segundo o
poeta Marinetti – depois de haver destruído a métrica tradicional e criado o verso
livre, destrói agora a sintaxe e o período latino. A poesia futurista é uma corrente
espontânea ininterrupta de analogias, cada uma reassumida intuitivamente no
substantivo essencial. Portanto, imaginação sem fios e palavras em Liberdade”. A
música futurista de Balilla Pratella infringe a tirania cronométrica do ritmo.
Por que a escultura deveria permanecer para trás, ligada a leis que
ninguém tem o direito de lhe impor? Reviremos tudo, portanto, e proclamemos a
ABSOLUTA E COMPLETA ABOLIÇÃO DA LINHA ACABADA E DA ESTÁTUA
FECHADA. ESCANCAREMOS A FIGURA E FECHEMOS NELA O AMBIENTE.
Proclamemos que o ambiente deve fazer parte do bloco plástico como um mundo
por si e com leis próprias; que a calçada pode subir sobre a sua mesa e sua
cabeça pode atravessar a estrada, enquanto entre uma casa e a outra a sua
lâmpada prende a sua teia de aranha de raios de gesso.
Proclamemos que todo o mundo aparente deve precipitar-se sobre nós,
amalgamando-se, criando uma harmonia com a única medida da intuição criativa;
que uma perna um braço ou um objeto, não tendo importância senão como
elementos do ritmo plástico, podem ser abolidos, não para imitar um fragmento
grego ou romano, mas para obedecer à harmonia que o autor quer criar. Um
conjunto escultural, como um quadro, não pode se assemelhar senão a si próprio,
pois a figura e as coisas devem viver em arte além da lógica fisionômica.
Assim, uma figura pode estar vestida em um braço e nua no outro, e as
diversas linhas de um vaso de flores podem perseguir-se agilmente entre as linhas
do chapéu e as do pescoço.
Assim, os planos transparentes, os vidros, as lâminas de metal, os fios, as
luzes elétricas externas ou internas poderão indicar os planos, as tendências, os
tons, os semitons de uma nova realidade.
Assim, uma nova intuitiva coloração de branco, de cinza, de preto, pode
aumentar a força emotiva dos planos, enquanto a nota de um plano colorido
acentuará com violência o significado do fato plástico!
Isto que dissemos sobre as LINHAS-FORÇA em pintura (Prefácio-
manifesto ao catálogo da Primeira Exposição Futurista de Paris, outubro de 1911),
pode-se dizer também para a escultura, fazendo viver a linha muscular estática na
linha-força dinâmica. Nesta linha muscular predominará a linha reta, que é a única
correspondente à simplicidade interna das sínteses que nós contrapomos ao
barroquismo externo da análise.
Mas a linha reta não nos conduzirá à imitação dos egípcios, dos primitivos
ou dos selvagens, como algum escultor moderno tem desesperadamente tentado
para libertar-se do grego. A nossa linha reta será viva e palpitante; apresentar-se-á
a todas as necessidades das infinitas expressões da matéria, e a sua nua
severidade fundamental será o símbolo da severidade de aço das linhas do
maquinário moderno.
Podemos, enfim, afirmar que, na escultura, o artista não deve retroceder
diante de nenhum meio, conquanto que obtenha uma REALIDADE. Nenhum medo
é mais tolo que aquele que nos faz temer sair da arte que exercitamos. Não existe
nem pintura, nem escultura, nem música, nem poesia, há apenas criação!
Portanto, se uma composição sente a necessidade de um ritmo especial de
movimento que ajude ou contraste o ritmo fechado do CONJUNTO ESCULTURAL
(necessidade da obra de arte) poder-se-á aplicar aqui um maquinismo qualquer
que possa dar um movimento rítmico adequado a planos ou a linhas.
Não podemos esquecer que o tic-tac e as esferas em movimento de um
relógio, que a entrada ou a saída de um êmbolo em um cilindro, que o abrir-se e o
fechar-se de duas rodas dentadas com o aparecer e o desaparecer contínuo de
seus retangulozinhos de aço, que a fúria de um volante ou o turbilhão de uma
hélice, são todos elementos plásticos e pictóricos dos quais uma obra escultural
futurista deve valer-se. O abrir-se e o fechar-se de uma válvula cria um ritmo
igualmente belo, mas infinitamente mais novo que o de uma pálpebra animal!

CONCLUSÕES

1. Proclamar que a escultura se propõe à reconstrução abstrata dos planos e


dos volumes que determinam as formas, não seu valor figurativo.
2. ABOLIR EM ESCULTURA como em qualquer outra arte O SUBLIME
TRADICIONAL DOS TEMAS.
3. Negar à escultura qualquer propósito de construção episódica verista, mas
afirmar a necessidade absoluta de servir-se de todas as realidades para
voltar aos elementos essenciais da sensibilidade plástica. Portanto,
percebendo os corpos e suas partes como ZONAS PLÁSTICAS, teremos
em uma composição escultural futurista, planos de madeira ou de metal,
imóveis ou mecanicamente móveis, por um objeto, formas esféricas
peludas por cabelos, semicírculos de vidro por um vaso, fio de ferro e telas
de arame por um plano atmosférico, etc.
4. Destituir a nobreza toda literária e tradicional do mármore e do bronze.
Negar a exclusividade de uma matéria pela construção inteira de um
conjunto escultural. Afirmar que até mesmo 20 matérias diversas podem
concorrer numa única obra visando a emoção plástica. Enumeremos
algumas: vidro, madeira, papelão, ferro, cimento, crina, couro, tecido,
espelhos, luz elétrica, etc., etc.
5. Proclamar que na intersecção dos planos de um livro com os ângulos de
uma mesa, nas retas de um fósforo, no caixilho de uma janela, há mais
verdade que em todos os emaranhados de músculos, em todos os seios e
em todas as nádegas de herói ou de Vênus que inspiram a moderna idiotia
escultural.
6. Que apenas uma moderníssima escolha de temas poderá levar à
descoberta de novas IDÉIAS PLÁSTICAS.
7. Que a linha reta é o único meio que possa conduzir à virgindade primitiva
de uma nova construção arquitetônica das massas ou zonas esculturais.
8. Que não possa existir renovação senão através da ESCULTURA DE
AMBIENTE, porque com ela a plástica se desenvolverá e prolongando-se
poderá MODELAR A ATMOSFERA que circunda as coisas.
9. A coisa que se cria não é mais que a ponte entre o INFINITO PLÁSTICO
EXTERIOR e o INFINITO PLÁSTICO INTERIOR, portanto os objetos não
terminam nunca e se interseccionam com infinitas combinações de simpatia
e choques de aversão.
10. É necessário destruir o nu sistemático, o conceito tradicional da estátua e
do monumento!
11. Refutar corajosamente qualquer trabalho, a qualquer preço, que não tenha
em si uma pura construção de elementos plásticos completamente
renovados.

Trad.: Nancy Rozenchan

“MANIFESTO TÉCNICO” DA LITERATURA FUTURISTA


(11 de maio de 1912)

F.T.MARINETTI

No avião, sentado sobre o tanque da gasolina, com o ventre aquecido pela


cabeça do aviador, eu senti a inanidade ridícula da velha sintaxe herdada de
Homero. Necessidade furiosa de libertar as palavras, arrancando-as da prisão do
período latino! Este tem, como todo imbecil, uma cabeça previdente, um ventre,
duas pernas e dois pés chatos, mas nunca terá duas asas. Apenas o necessário
para andar, para correr um momento e parar arfando logo em seguida!
Eis o que me disse a hélice turbilhonante, enquanto corria duzentos metros
acima das possantes chaminés de Milão. A hélice falou:

1. É PRECISO DESTRUIR A SINTAXE COLOCANDO OS SUBSTANTIVOS A


OLHO, CONFORME ELES VÃO NASCENDO.
2. DEVE-SE USAR O VERBO NO INFINITO, para que ele se adapte
elasticamente ao substantivo e não o submeta ao eu do escritor que
observa ou imagina. O verbo no infinito pode, sozinho, dar o sentido da
continuidade da vida e a elasticidade da intuição que a percebe.
3. DEVE-SE ABOLIR O ADJETIVO, para que o substantivo nu conserve sua
cor essencial. O adjetivo, tendo em si um caráter de nuance, é inconcebível
para nossa visão dinâmica, pois supõe uma pausa, uma meditação.
4. DEVE-SE ABOLIR O ADVÉRBIO, velha fivela que mantém unidas umas às
outras, as palavras. O advérbio conserva à frase uma enfadonha unidade
de tom.
5. CADA SUBSTANTIVO DEVE TER SEU DUPLO, isto é, o substantivo deve
vir seguido, sem conjunção, pelo substantivo ao qual está ligado, por
analogia. Exemplo: homem-torpedeira, mulher-baía, multidão-ressaca,
praça-funil, porta-torneira.
Como a velocidade aérea multiplicou nosso conhecimento do mundo, a
percepção por analogia torna-se cada vez mais natural ao homem. É
preciso então suprimir o como, o qual, o assim, o tal como. Melhor ainda, é
preciso fundir diretamente o objeto com a imagem que ele evoca,
fornecendo a imagem de esguelha, mediante uma única palavra inicial.
6. ABOLIR TAMBÉM A PONTUAÇÃO. Estando suprimidos os adjetivos, os
advérbios e as conjunções, a pontuação é naturalmente anulada, na
continuidade variada de um estilo vivo que se cria por si só, sem as pausas
absurdas das vírgulas e dos pontos. Para acentuar certos movimentos e
indicar suas direções, empregar-se-ão signos da matemática: + - = ≤ ≥. E
os signos musicais.
7. Os escritores têm-se abandonado, até agora, à analogia imediata.
Comparavam, por exemplo, o animal ao homem ou a um outro animal, o
que equivale, ainda, mais ou menos, a uma espécie de fotografia.
(Comparavam, por exemplo, um fox-terrier a um minúsculo puro-sangue.
Outros, mais adiantados, poderiam comparar aquele mesmo fox-terrier
trepidante, a uma pequena máquina Morse. Eu, entretanto, o comparo a
uma água fervente. Há nisso uma gradação de analogias cada vez mais
vastas, há relações cada vez mais sólidas e profundas, mesmo que
remotas.)
A analogia nada mais é do que o amor profundo que liga as coisas
distantes, aparentemente diferentes e hostis. Somente por meio de
analogias vastíssimas pode um estilo orquestral, a um mesmo tempo
policromo, polifônico e polimorfo, abraçar a vida da matéria.
Quando em minha “Batalha de Trípolis” comparei uma trincheira cheia de
baionetas a uma orquestra, uma metralhadora a uma mulher fatal, eu
introduzi, intuitivamente, uma grande parte do universo num breve episódio
de batalha africana. As
imagens não são flores para escolher e colher com parcimônia, como dizia
Voltaire. Elas constituem o próprio sangue da poesia. A poesia deve ser
uma seqüência ininterrupta de imagens novas, sem as quais ela não é
outra coisa a não ser anemia e clorose.
Quanto mais as imagens contiverem relações vastas, tanto mais
longamente elas conservam sua força de estupefação. Nossos velhos
ouvidos, demasiado número de vezes entusiastas, por acaso já não
destruíram Beethoven e Wagner? É preciso, pois, abolir de nossa língua
tudo o que ela contém de imagens estereotipadas, de metáforas
descoloridas, ou seja, quase tudo..
8. NÃO HÁ CATEGORIAS DE IMAGENS, nobres, grosseiras ou vulgares,
excêntricas ou naturais. A intuição que as percebe não tem nem
preferências, nem partis-pris.
O estilo analógico é pois dono absoluto de toda a matéria e de sua intensa
vida.
9. Para dar os movimentos sucessivos de um objeto, é necessário dar a
cadeia de analogias que ele evoca, cada uma delas condensada, recolhida
numa palavra essencial.
Eis um exemplo expressivo de uma cadeia de analogias ainda mascaradas
e tornadas pesadas pela sintaxe tradicional:

Pois sim! Você é, pequena metralhadora, uma mulher fascinante, e sinistra, e


divina, ao volante de um invisível cem cavalos, que ruge com estalos de impaciência. Oh!
naturalmente daqui a pouco você pulará no circuito da morte, em direção à cambalhota
estrondosa ou à vitória!... Você quer que eu lhe faça madrigais cheios de graça ou de cor? À
sua escolha senhora... Você me parece um tributo pretendido, cuja língua eloqüente,
incansável, atinge no coração os ouvintes em círculo, comovidos...Você é, neste momento,
uma broca todo-poderosa, que perfura o crânio demasiado duro desta noite obstinada...Você
também é uma laminadora, um torno elétrico, e que mais? Um maçarico que queima, burila e
funde, pouco a pouco, as pontas metálicas das últimas estrelas!...
(“Batalha de Trípolis”)

Em alguns casos precisará juntar as imagens duas a duas, como as bolas


acorrentadas, que arrancam, em seu vôo, todo um grupo de árvores.
Para enredar e apanhar tudo o que há de mais fugidio e de mais deletério
na matéria, é preciso formar estreita rede de imagens ou analogias que serão
atirados ao mar misterioso dos fenômenos. A não ser pela forma em festões
tradicionais, este período de meu “Mafarka o Futurista” é um exemplo de uma
semelhante densa rede de imagens:

Toda a pungente doçura da juventude desaparecida lhe subia pela garganta, como dos
quintais das escolas sobem os gritos alegres das crianças e alcançam os mestres debruçados
ao parapeito dos terraços dos quais vêem-se fugir os navios...

E eis ainda três redes de imagens:


Em volta do poço da Brumeliana, embaixo das densas oliveiras, três camelos
comodamente acocorados na areia se gargarejavam de contentamento, como velhas calhas de
pedra, misturando o chaque-chaque de suas cuspidelas aos baques regulares da bomba a vapor
que dá de beber à cidade.
Estridências e dissonâncias futuristas, na orquestra profunda das trincheiras com aberturas
sinuosas e porões sonoros, por entre o vaivém das baionetas, arcos de violino que a batuta
vermelha do pôr-do-sol inflama de entusiasmos...
É o pôr-do-sol regente de orquestra, que, com um gesto amplo, junta as flautas esparsas
dos pássaros nas árvores e as harpas lamentosas dos insetos e o chiado dos ramos, e o estridor
das pedras. É ele que pára de repente os tímpanos das gamelas e dos fuzis abalroados, para que
possam cantar, a plena voz, sobre a orquestra dos instrumentos em surdina, todas as estrelas de
ouro, eretas, de braços abertos, na ribalta do céu. E eis uma grande dama, no espetáculo...
Vastamente decotado, o deserto, de fato, põe à mostra seu seio imenso de curvas liquefeitas,
todas envernizadas de cremes róseos sob as jóias despencantes da noite pródiga. (“Batalha de
Trípolis”).

10. Como toda espécie de ordem é fatalmente um produto da inteligência


cautelosa e prevenida é necessário orquestrar as imagens dispondo-as de
acordo com um MAXIMUM DE DESORDEM.
11. DESTRUIR O “EU” NA LITERATURA, ou seja, toda a psicologia. O homem
completamente avariado pela biblioteca e pelo museu, não oferece mais
nenhum interesse. Devemos, portanto, aboli-lo na literatura e substituí-lo
finalmente com a matéria, da qual se deve agarrar a essência a golpes de
intuição, coisa que nunca poderá ser feita nem por físicos, nem por
químicos.
Surpreender por meio dos objetos em liberdade e dos motores birrentos a
respiração, a sensibilidade e os instintos dos metais, das pedras, da madeira.
Substituir a psicologia do homem, já esgotada, com a OBSESSÃO LÍRICA DA
MATÉRIA.
Cuidado para não emprestar à matéria os sentimentos humanos, mas antes,
procurar adivinhar seus diferentes impulsos diretores, suas forças de compressão,
de dilatação, de coesão, e de desagregação, seus bandos de moléculas em
quantidade ou seus turbilhões de elétrons.
Não se trata de apresentar os dramas da matéria humanizada. É a solidez de
uma chapa de aço que nos interessa por ela mesma, isto é, a aliança
incompreensível e inumana de suas moléculas ou de seus elétrons, que se
opõem, por exemplo, à penetração de um obus. O calor de um pedaço de ferro ou
de madeira já é mais apaixonante, para nós, que o sorriso ou as lágrimas de uma
mulher. Nós queremos dar, em literatura, a vida do motor, novo animal instintivo,
cujo instinto geral conheceremos, quando conhecermos os instintos das diversas
forças que o compõem.
Nada é mais interessante, para um poeta futurista, do que o agitar-se do
teclado de um piano mecânico. O cinema nos oferece a dança de um objeto que
se divide e se recompõe sem intervenção humana. Oferece-nos também o
arremesso pelo avesso de um nadador, cujos pés saem do mar e saltam
violentamente sobre o trampolim. Oferece-nos, afinal, a corrida de um homem a
duzentos quilômetros por hora. São igualmente movimentos da matéria, fora das
leis da inteligência e, portanto, numa essência mais significativa.
Deve-se introduzir na literatura três elementos que até agora foram
descurados:
1. O RUÍDO (manifestação do dinamismo dos objetos);
2. O PESO (faculdade de vôo dos objetos);
3. O CHEIRO (faculdade de espalhamento dos objetos).

Esforçar-se para representar, por exemplo, a paisagem de cheiros


percebidos por um cachorro. Escutar os motores e reproduzir seus discursos.
A matéria foi sempre contemplada por um “eu” distraído, frio, por demais
ocupado consigo mesmo, cheio de preconceitos de sabedoria e de obsessões
humanas.
O homem tem tendência para sujar com sua alegria jovem e com sua dor
velha a matéria, que possui uma admirável continuidade de impulso, no sentido de
um ardor maior, um maior movimento, uma maior subdivisão de si própria. A
matéria não é alegre nem triste. Ela tem por essência a coragem, a vontade e a
força absolutas. Ela pertence, por inteiro, ao poeta adivinhador, que saberá
libertar-se da sintaxe tradicional, pesada, apertada, grudada ao chão, sem braços
e sem asas, porque é somente inteligente.
Somente o poeta assintático e de palavras desligadas poderá penetrar a
essência da matéria e destruir a surda hostilidade que a separa de nós.
O período latino, que nos serviu até agora, era um gesto pretensioso com o
qual a inteligência arrogante e míope esforçava-se por domar a vida multiforme e
misteriosa da matéria. O período latino tinha, portanto, nascido morto.
As instituições profundas da vida juntadas umas às outras, palavra por
palavra, segundo seu nascer ilógico, dar-nos-ão os traços gerais de uma
PSICOLOGIA INTUITIVA DA MATÉRIA. Ela revelou-se a meu espírito do alto de
um avião. Olhando para os objetos sob um novo ponto de vista, não mais de
frente ou de trás, mas verticalmente, ou seja, de esguelha, eu pude quebrar as
velhas pias lógicas e os fios de chumbo da compreensão antiga.
Todos vocês que me amaram e me seguiram até aqui, poetas futuristas,
foram como eu frenéticos construtores de imagens e corajosos exploradores de
analogias. Mas, suas estreitas redes de metáforas infelizmente estão demasiado
pesadas com o chumbo da lógica. Eu lhes aconselho de aliviá-las, para que seu
gesto imensificado possa lançá-las longe, soltas sobre um oceano mais vasto.
Nós inventaremos juntos o que eu chamo de A IMAGINAÇÃO SEM FIOS.
Chegaremos um dia a uma arte ainda mais essencial, quando ousaremos suprimir
todos os primeiros termos de nossas analogias, para não dar outra coisa a não ser
a seqüência ininterrupta dos segundos termos. Será preciso, para isso, renunciar
a sermos compreendidos. Ser compreendido, não é necessário. Nós já
dispensamos isso, aliás, quando exprimíamos fragmentos da sensibilidade
futurista mediante a sintaxe tradicional e intelectiva.
A sintaxe era uma espécie de cifrário abstrato, que serviu aos poetas, para
informar as multidões da cor da musicalidade, da plástica e da arquitetura do
universo. A sintaxe era uma espécie de intérprete ou de cicerone monótono. Deve-
se suprimir este intermediário, para que a literatura entre diretamente no universo
e constitua com ele, um corpo só.
Indiscutivelmente, minha obra distingue-se claramente de todas as outras,
por sua espantosa potência de analogia. Sua riqueza inesgotável de imagens
iguala quase sua desordem de pontuação lógica. Ela coloca à cabeça do primeiro
manifesto futurista, síntese de uma 100HP lançada às mais loucas velocidades
terrestres.
Por que servir-nos, ainda, de quatro rodas exasperadas que se aborrecem,
quando podemos soltar-nos do solo? Libertação das palavras, asas soltas de
imaginação, síntese analógica da terra abraçada por um único olhar e apanhada
inteirinha em palavras essenciais.
Gritam-nos: “Sua literatura não será bonita! Não mais teremos a sinfonia
verbal, com seus harmoniosos balanceios e com suas cadências tranqüilizadoras!”
Mas claro! Ainda bem! Nós, no lugar disso, utilizamos todos os sons brutais, todos
os gritos expressivos da vida violenta que nos circunda. FAZEMOS
CORAJOSAMENTE O “FEIO” EM LITERATURA E MATAMOS EM TODOS OS
LUGARES A SOLENIDADE. Vamos! não tomem esse ar de grandes sacerdotes,
enquanto me escutam! É preciso cuspir cada dia no Altar da Arte! Nós entramos
nos domínios sem fim da livre intuição. Após o verso livre, eis finalmente AS
PALAVRAS EM LIBERDADE!
Não há nisso, nada de absoluto nem de sistemático. O gênio tem rajadas
impetuosas e riachos lamacentos. Ele, às vezes, impõe lentidões analíticas e
explicativas. Ninguém pode renovar de repente a própria sensibilidade. As células
mortas estão misturadas às vistas. A arte é uma necessidade de destruir-se e de
espalhar-se, grande regador de heroísmo que inunda o mundo. Os micróbios –
não o esqueçam – são necessários à saúde do estômago e do intestino. Há
também uma espécie de micróbios necessária à vitalidade da ARTE, ESTE
PROLONGAMENTO DA FLORESTA DE NOSSAS VEIAS, que se expande, fora
do corpo, no infinito do espaço e do tempo.
Poetas futuristas! Eu ensinei vocês a odiar as bibliotecas e os museus, para
prepará-los a ODIAR A INTELIGÊNCIA, despertando em vocês a divina intuição,
dom característico das raças latinas. Mediante a intuição, venceremos a
hostilidade aparentemente irreduzível que separa nossa carne humana do metal
dos motores.
Depois do reino animal, eis iniciar-se o reino mecânico.
Com o conhecimento e a amizade da matéria, de quem os cientistas não
podem conhecer senão as reações físico-químicas, nós preparamos a criação do
HOMEM MECÂNICO DE PARTES TROCÁVEIS. Nós o libertaremos da idéia da
morte e, portanto, da própria morte, suprema definição da inteligência lógica.

Trad.: Aurora F. Bernardini

CINEMA ABSTRATO: MÚSICA CROMÁTICA


1912

BRUNO CORRA

Pode-se dizer que a única explicitação da arte das cores atualmente em


uso é o quadro. O quadro é um amontoado de cores postas em relações
recíprocas tais a representar uma idéia. (Note-se que defini a pintura: arte da cor;
não me ocupo da linha, elemento tirado de outra arte, para não delongar-me
demais.) Pode-se criar uma nova forma de arte pictórica mais rudimentar pondo-
se sobre uma superfície massas de cor dispostas harmoniosamente umas em
relação às outras de modo a agradar à vista sem que representem nenhuma
imagem. Corresponderia àquilo que em música se chama acorde e podemos,
portanto, chamá-lo de acorde cromático.. estas duas formas de arte: o acorde
cromático e o quadro são espaciais; a música nos diz que existe algo de
essencialmente diferente, o amontoado de tons cromáticos apresentados ao olho
sucessivamente, um motivo de cores, um tema cromático. Paro por aqui e não
falo, por não ser necessário por enquanto, de uma quarta modalidade de arte,
correspondendo ao drama musical, que daria justamente lugar ao drama
cromático.

....................................................................................................................................

Então, há dois anos, uma vez estabelecida minuciosamente a teoria toda,


decidimos tentar seriamente a música das cores: começou-se logo a pensar nos
instrumentos, que talvez não existissem e que teríamos que fabricar para
podermos atuar. Caminhávamos em trilhas ainda não tentadas, deixando-nos
guiar em máxima parte pela intuição, mas procedendo, entretanto, sempre
paripassu, por receio de trilhar um falso caminho, com o estudo da física da luz e
do som, nos trabalhos de Tyndall e de muitos outros.
Naturalmente aplicavam-se e aproveitavam-se as leis de paralelismo entre
as artes precedentemente determinadas. Durante dois meses estudamos cada um
por sua conta, sem comunicar os resultados um ao outro -, depois, comparamos,
discutimos e fundimos juntas nossas observações. Confirmamo-nos na idéia, por
sinal anterior aos nossos estudos de física, de nos atermos à música e de
transportar, justamente no campo da cor, a escala temperada musical. Sabíamos,
contudo, que a escala cromática consta de uma única oitava e que por outro lado
o olho não tem como o ouvido o poder resolutivo (percebo porém, pensando
melhor, que sobre isto muitas reservas há para serem feitas) e entretanto sentimos
a nítida necessidade de uma subdivisão quem sabe arbitrária (uma vez que o
efeito provém principalmente das relações entre as cores que impressionam a
retina) do espectro solar e fomos levados a escolher em cada cor quatro
gradações com distâncias iguais, obtiveram-se quatro vermelhos escolhidos a
iguais distâncias no espectro, quatro verdes, quatro violetas...etc; tínhamos assim
chegado a estender as sete cores em quatro oitavas, após o violeta da primeira
oitava vinha o vermelho da segunda, e assim por diante. Para traduzir na prática
tudo isto, servimo-nos, naturalmente, de uma série de 28 lâmpadas elétricas
coloridas que correspondiam a 28 teclas – cada lâmpada possuía um refletor
oblongo: nos primeiros experimentos tentou-se com luz indireta, para os últimos
pôs-se diante das lâmpadas uma chapa de vidro esmerilhado. O teclado
correspondia exatamente àquele comum do piano (era porém menor): tocando a
oitava, por exemplo, as duas cores se fundiam, como no piano os dois sons.
Este nosso piano cromático, na prova, deu resultados bastante satisfatórios
tanto que nos iludimos, no começo, de ter definitivamente resolvido o problema:
nos divertíamos em encontrar ajuntamentos cromáticos de toda espécie,
compusemos alguma sonatina de cores -, noturnos em roxo e matinatas em verde,
- traduzimos alguma modificação necessária, uma Barcarola Veneziana de
Mendelssohn, um Rondò de Chopin e uma sonata de Mozart...mas depois, no fim,
após três meses de experimentos, tivemos que confessar a nós mesmos que não
era possível com aqueles meios ir mais além – obtinham-se, é verdade, efeitos de
muita graça; nunca, porém, tais que nos empolgassem plenamente -, tínhamos à
nossa disposição apenas vinte e oito tons, cujas fusões não aconteciam
satisfatoriamente, as fontes luminosas não eram suficientemente fortes, caso
utilizássemos lâmpadas potentes o calor demasiado as fazia descorar em poucos
dias e então tínhamos que tornar a tingi-las exatamente como era, com perdas de
tempo consideráveis: sentíamos muito claramente que para obter os grandes
efeitos orquestrais, os únicos que pudessem convencer as multidões era preciso
dispor de uma intensidade incrível de luz -, somente assim ter-se-ia podido sair do
campo restrito do experimento científico para entrar diretamente na prática.
Pensamos no cinema e nos pareceu que este instrumento, levemente
modificado, poderia dar resultados excelentes: quanto à potência luminosa era o
que de melhor podia-se desejar -, estava igualmente resolvido o outro problema
que se referia à necessidade de poder-se dispor de centenas de cores, pois,
tirando partido do fenômeno da persistência das imagens na retina, teríamos
podido conseguir que muitas cores se fundissem, no nosso olho, numa única tinta
-, bastava para tanto fazer passar diante da objetiva todas as cores componentes
em menos de um décimo de segundo: de tal modo que com um simples aparelho
cinematográfico, com uma câmera de dimensões reduzidas teríamos obtido os
inúmeros e potentíssimos efeitos das grandes orquestras musicais, a verdadeira
sinfonia cromática. Isto em teoria: na prática, uma vez tendo adquirido uma
câmera e conseguidas várias centenas de metros de filme, após retirar e colorir a
gelatina, tentamos as primeiras provas. Aquilo que havíamos previsto, como quase
sempre acontece, deu certo em parte, e em parte falhou: para obter um
desenvolvimento de temas cromáticos harmonioso, gradativo e uniforme,
havíamos retirado o interruptor de rotação e tínhamos conseguido abolir também o
disparador, mas esta foi justamente a causa que arruinou a experiência e fez com
que em lugar da maravilhosa harmonia que esperávamos se desencadeasse no
vídeo um incompreensível cataclisma de cores -, o porquê só o compreendemos
mais tarde. Recolocamos em seu lugar tudo o que havíamos tirado e decidimos
dividir em compassos o filme para ser colorido, sendo cada divisão do
comprimento do espaço compreendido entre quatro furos, o que corresponde, ao
menos nos filmes de passo Pathé, a uma rotação completa do interruptor:
preparamos um outro trecho de filme e tornamos a experimentar: a fusão das
cores deu-se perfeitamente e era o que importava. Quanto ao efeito, não havia
grande coisa, mas nós já havíamos compreendido que neste sentido não se podia
razoavelmente pretender muito até que não se possuísse a faculdade, adquirível
somente por meio de vasta experiência, de ver mentalmente projetado sobre o
vídeo o desenvolvimento do motivo que está sendo estendido gradativamente com
o pincel sobre a celulóide, faculdade esta que comporta a aptidão de fundir
mentalmente várias cores numa só e de dissociar uma cor em suas componentes.
A este ponto, visto nossas experiências encaminharem-se positivamente
por um caminho consistente, pareceu-nos necessário parar um pouco para
introduzir nos aparelhos que estávamos utilizando todos os melhoramentos
possíveis: a filmadora não foi alterada, apenas colocamos no lugar da lâmpada a
arco usada até aquele dia, uma outra lâmpada, também a arco, de potência tripla:
experimentamos sucessivamente como vídeo uma tela branca simples – uma tela
branca impregnada de glicerina, uma superfície de papel de alumínio – uma tela
sobre a qual foi passada uma mistura de massas que dava, por reflexo, uma
espécie de fosforescência – um rolo, aproximativamente cúbico de gaze muito
leve no qual podia penetrar o raio de luz e que deveria dar, aproximadamente, os
efeitos de uma pequena nuvem de fumaça branca – enfim, voltou-se à tela que foi
afixada diretamente sobre uma parede, retiraram-se todos os móveis, cobriu-se o
quarto todo de branco, paredes, forro, assoalho e foram vestidos, durante as
provas, robes brancos (a propósito: quando a música cromática se tiver afirmado,
por obra nossa ou de outrem, passará a ser moda junto ao público elegante ir ao
teatro da cor trajado de branco. Os costureiros já podem começar a pensar no
caso) – até hoje, a este respeito, não foi possível obter nada de melhor e tem-se
trabalhado sempre em nossa sala branca, a qual, diga-se de passagem, tem
servido satisfatoriamente.

Antes de descrever – por que, por enquanto, nada mais pôde ser feito – as
últimas sinfonias de cor bem-sucedidas vou tentar dar a quem lê, uma idéia
mesmo remota do efeito de um ajuntamento de cores desenvolvido no tempo,
tentarei pôr-lhe sob os olhos alguns poucos esboços (que estão aqui do meu lado)
de um filme projetado já há algum tempo, o qual, irá preceder as representações
públicas, acompanhado por esclarecimentos oportunos (constará de uma
quinzena de motivos cromáticos de extrema simplicidade, de duração de cerca de
um minuto cada, separados uns dos outros, os quais irão servir para que o público
compreenda a legitimidade da música cromática, capte seu mecanismo e se
condicione de modo a conseguir fruir das sinfonias de cor que irão aparecer em
seguida, primeiramente simples, e em seguida cada vez mais complexas); os
temas cromáticos que estão debaixo de meus olhos, esboçados sobre fitas de
celulóide, são três: o primeiro é quanto de mais simples se pode imaginar, com
apenas duas cores complementares, vermelho e verde. No começo toda a tela é
verde, depois, aparece no centro uma estrelinha vermelha com seis pontas, a qual
gira sobre si própria vibrando as pontas como tentáculos e vai aumentando,
aumentando, até ocupar toda a tela, a tela toda fica vermelha e então, de repente,
sobre toda a superfície iluminada aparece um vislumbrar nervoso de pontos
verdes que vão crescendo até devorar inteiramente o vermelho, no fim a tela toda
é verde e isto dura um minuto; o segundo é de três cores, azul, branco e amarelo-,
num campo azul duas linhas, amarela uma e branca a outra, movem-se, fletem-se
uma em direção à outra, afastam-se, rolam sobre si mesmas até aproximarem-se
ondejando e abraçarem-se entre si entrelaçando-se -, este é um exemplo de tema
de linhas mais cor; o terceiro é das sete cores do espectro solar, em forma de sete
cubinhos os quais estão primeiramente dispostos sobre uma linha horizontal na
parte baixa da tela, sobre fundo preto, movem-se com pequenos impulsos,
reúnem-se em grupos entre si, arremessam-se uns contra os outros,
despedaçando-se para recomporem-se logo, diminuem e aumentam de tamanho,
enfileiram-se e dispõem-se em coluna, entram uns nos outros, deformam-se...etc.
E agora só me resta informar ao leitor quanto às provas mais recentes.
Trata-se de dois filmes de cerca de duzentos metros de comprimento; o primeiro é
intitulado O Arco-Íris, as cores do arco-íris constituem o tema dominante que
comparece cada vez mais de modo diferente, e sempre mais intensamente até
estourar no fim com uma violência ofuscante, no começo a tela é cinza, depois,
pouco a pouco neste fundo cinza manifesta-se como que um abalo levíssimo de
palpitações irisadas, as quais parecem subir das profundezas do cinza, como
bolhas de uma fonte e, chegando à superfície, estouram e desvanecem – a inteira
sinfonia baseia-se sobre este efeito de contraste entre o cinza-nuvem do fundo e o
arco-íris, que lutam entre si, - a luta acentua-se, o íris afogando-se por baixo de
turbilhões cada vez mais negros que rolam do fundo para frente, debate-se,
consegue desvencilhar-se, espraia-se, para desaparecer de novo e retornar mais
violentamente atacando na periferia, até que num repentino desmoronamento, o
cinza todo esfarela-se e o íris triunfa num turbilhoar de girândolas que, por sua
vez, finalmente, desaparecem, sepultadas sob uma avalancha de cores; e o
segundo é intitulado A dança, as cores predominantes são o carmesim, o roxo e o
amarelo que são continuamente reunidos entre si, desjuntados e arremessados
um contra o outro em ágeis piruetas de pião.
Terminei. Não adianta continuar escrevendo, porque nunca conseguiria
chegar a dar mais do que uma idéia muito afastada dos efeitos da cor. É preciso
que cada um pense por si.
Tudo o que se pode fazer é abrir o caminho: e isto me parece tê-lo feito, um
pouco. Gostaria de acrescentar algo a respeito do drama cromático com o qual já
fizemos alguns experimentos interessantes, mas seria longo demais. Talvez fale
nisso outra vez, num outro ensaio sobre a música das cores, que, juntamente com
este, espero, preparará o público para julgar serenamente as sonatas que verá em
breve no teatro.
Existe na Itália alguém que queira interessar-se seriamente por isto? Se
assim for, que me escreva e terei grande prazer em comunicar-lhe tudo isto (que é
muito) que não pude escrever aqui e que poderia facilitar-lhe o caminho.

Trad.: Aurora F. Bernardini

MANIFESTO FUTURISTA DA LUXÚRIA


11 de janeiro de 1913

VALENTINE DE SAINT-POINT

RESPOSTA aos jornalistas desonestos que mutilam as frases para tornar


ridícula a idéia;
às mulheres que pensam aquilo que eu ousei dizer;
àqueles para os quais a luxúria não passa de um pecado;
a todos aqueles que na Luxúria alcançam somente o Vício, como no orgulho
alcançam somente a Vaidade.
A Luxúria, concebida fora de todo conceito moral e como elemento
essencial do dinamismo da vida, é uma força.
Para a raça forte, a luxúria não é, mais do que não o seja o orgulho, um
pecado capital. Tal como o orgulho, a luxúria é uma virtude que incita, uma
fogueira à qual se alimentam as energias.
A luxúria é expressão de um ser projetado além de si mesmo: e a alegria
dorida de uma carne atingida, a dor gaudiosa de um desabrochar; é união carnal,
quaisquer que sejam os segredos que unem os seres; é a síntese sensorial e
sensual de um ser, para a maior libertação do próprio espírito; é a comunhão de
uma partícula da humanidade com toda a sensualidade da terra; é o
estremecimento pânico de uma partícula da terra.
A LUXÚRIA É A PROCURA CARNAL DO DESCONHECIDO, como a
Cerebralidade é sua procura espiritual. A Luxúria é gesto de criar, e é a Criação.
A carne cria assim como o espírito cria. Sua criação diante do Universo é
igual. Uma não é superior à outra, e a criação espiritual depende da criação
carnal.
Nós não temos um corpo e um espírito. Refrear um para multiplicar o outro
é prova de fraqueza e é erro. Um ser forte deve realizar todas suas possibilidades
carnais e espirituais. A Luxúria é para os conquistadores um tributo que lhes é
devido. Após uma batalha na qual morreram homens. É NORMAL QUE OS
VENCEDORES, SELECIONADOS PELA GUERRA, CHEGUEM ATÉ O
ESTUPRO, NO PAÍS CONQUISTADO, PARA RECRIAR A VIDA.
Após as batalhas, os soldados amam a volúpia na qual se soltam, para
renovarem-se, suas energias incessantemente assaltantes. O herói moderno,
herói em qualquer domínio, tem o mesmo desejo e o mesmo prazer. O artista, este
grande medium universal sente a mesma necessidade. Também a exaltação dos
iluminados de religiões relativamente inusitadas para que o que possuem de
ignoto seja tentador, nada mais é do que uma sensualidade desviada
espiritualmente para uma imagem sagrada feminina.
A ARTE E A GUERRA SÃO AS GRANDES MANIFESTAÇÕES DA
SENSUALIDADE; A LUXÚRIA É SUA FLOR. Um povo exclusivamente
espiritualista ou um povo exclusivamente luxurioso estariam condenados à mesma
decadência: a esterilidade.
A LUXÚRIA INCITA AS ENERGIAS E DESENCADEIA AS FORÇAS. Era ela
que impelia desapiedadamente os homens primitivos para a vitória, pelo orgulho
de entregar à mulher os troféus dos vencidos. É ela que impele hoje em dia os
grandes homens de negócios, que dirigem bancos, imprensa, empresas
internacionais, a multiplicar o ouro, criando centros, utilizando energias, exaltando
multidões, para adornar, para magnificar o objeto de sua luxúria.
Estes homens, fatigados mas fortes, encontram tempo para a luxúria, motor
principal de suas ações e das reações destas, que repercutem sobre multidões e
mundos.
Também nos povos novos, onde a sensualidade ainda não foi solta ou
confessada e que não são os brutos primitivos nem os refinados das velhas
civilizações, a mulher é igualmente o grande princípio galvanizador à qual tudo se
oferece. O culto reservado que o homem tem por ela nada mais é do que o
impulso inconsciente de uma luxúria ainda adormecida.
Nestes povos, como nos povos nórdicos, por razões diferentes a luxúria é
quase exclusivamente procriação. Entretanto a luxúria, quaisquer que sejam os
aspectos sob os quais se manifesta, ditos normais ou anormais, é sempre a
suprema estimuladora.
A vida brutal, a vida enérgica, a vida espiritual, em certos momentos exige
uma trégua. E o esforço pelo esforço chama fatalmente o esforço pelo prazer.
Sem serem nocivos um para o outro, estes esforços completam-se e realizam
plenamente o ser total.
A luxúria é para os heróis, para os criadores espirituais, para todos os
dominadores a exaltação magnífica de sua força; para cada ser é um motivo de
superação com o simples intuito de fazer-se notado, selecionado, escolhido, eleito.
Sozinha, a moral cristã que sucedeu à moral pagã, foi levada fatalmente a
considerar a luxúria como uma fraqueza. Daquela alegria saudável que é
expansão de uma carne possante, ela fez uma vergonha para ser escondida, um
vício para ser renegado. Cobriu-a de hipocrisia e isto fez dela um pecado.
PAREMOS DE ACHINCALHAR O DESEJO, esta atração a um mesmo
tempo sutil e brutal de duas carnes, qualquer que seja seu sexo, de duas carnes
que se querem, tendendo para a unidade. Paremos de achincalhar o Desejo,
camuflando-o com as vestes piedosas das velhas e estéreis sentimentalidades.
Não é a luxúria que desagrega, dissolve a aniquila; são antes as
complicações hipnotizadoras da sentimentalidade, os ciúmes artificiais, as
palavras que embevecem e enganam, o patético das separações e das fidelidades
eternas, as nostalgias literárias: o histrionismo todo do amor.
DESTRUAMOS OS SINISTROS TRAPOS ROMÂNTICOS, margaridas
desfolhadas, duetos ao luar, ternuras pesadas, falsos pudores hipócritas. Que os
seres, aproximados por uma atração física, em lugar de falar exclusivamente da
fragilidade de seus corações, ousem exprimir seus desejos, as preferências de
seus corpos, e pressentir a possibilidade da alegria ou da desilusão de sua futura
união carnal.
O pudor físico, essencialmente variável de acordo com tempos e países,
não tem mais do que o valor efêmero de uma virtude social.
É PRECISO SER CONSCIENTE DIANTE DA LUXÚRIA. É preciso fazer
aquilo que um ser refinado e inteligente faz de si mesmo e de sua própria vida; É
PRECISO FAZER DA LUXÚRIA UMA OBRA DE ARTE. Fingir a inconsciência, o
arrebatamento, para explicar um gesto de amor é hipocrisia, fraqueza, estultice.
É preciso querer conscientemente uma carne, como qualquer outra coisa.
Em lugar de dar-se e de tomar (par coup de foudre, por delírio ou
inconsciência) seres forçosamente multiplicados pelas inevitáveis ilusões de
imprevisíveis amanhãs, é preciso escolher sabiamente. É preciso – guiados pela
intuição e pela vontade – avaliar as sensibilidades e as sensualidades e não
acoplar e não cumprir senão aquelas que podem completar-se e exaltar-se.
Com a mesma consciência e a mesma vontade diretora, deve-se conduzir
ao paroxismo os gozos deste acoplamento, desenvolver todas as possibilidades,
fazer desabrochar todas as flores dos germes das carnes unidas. Deve-se fazer
da luxúria uma obra de arte, feita, como toda obra de arte, de instinto e de
consciência.
É PRECISO DESPOJAR A LUXÚRIA DE TODOS OS VÉUS
SENTIMENTAIS QUE A DEFORMAM. Apenas por vileza é que foram atirados
sobre ela todos estes véus, pois o sentimentalismo estático costuma satisfazer. No
sentimentalismo descansa-se, logo diminui-se.
Num ser sadio e jovem, cada vez que a luxúria encontra-se em oposição
com a sentimentalidade, a luxúria ganha. A sentimentalidade segue as modas, a
luxúria é eterna. A luxúria triunfa porque é a exaltação gozosa que impele o ser
para além de si mesmo, o gozo da posse e do domínio, a perpétua vitória da qual
renasce a perpétua luta, a embriaguez da conquista mais embriagadora e mais
segura.
E esta conquista segura é temporânea, logo deve ser recomeçada
incessantemente.
A luxúria é uma força, pois afina o espírito fazendo chamejar a conturbação
da carne. De uma carne sadia, forte, purificada pelo amplexo, o espírito espouca
lúcido e claro. Apenas os fracos e os doentes se afundam e se diminuem. A luxúria
é uma força, pois acaba com os fracos e exalta os fortes, cooperando para a
seleção.
A luxúria é uma força, enfim, porque nunca conduz a sensaboria do
definitivo e da segurança que são dispensados pela sentimentalidade
apaziguante. A luxúria é a perpétua luta, nunca vencida. Depois do triunfo
passageiro, no próprio efêmero triunfo, é a insatisfação que renasce a que impele
o ser, numa vontade orgiástica, a expandir-se e a superar-se.
A luxúria é para o corpo o que o escopo ideal é para o espírito: a magnífica
Quimera, sempre alcançada, nunca atingida e que os seres jovens e ávidos, por
ela inebriados, perseguem sem pausa.
A LUXÚRIA É UMA FORÇA.

Trad.: Aurora F. Bernardini

A PINTURA DOS SONS, RUMORES E ODORES

C. CARRÀ

11 de agosto de 1913

Antes do século XIX, a pintura foi a arte do silêncio. Os pintores da


Antigüidade, do renascimento, dos séculos XVI e XVII, não intuíram nunca a
possibilidade de exprimir pictoricamente os sons, os rumores e os odores, nem
mesmo quando escolheram por tema de suas composições flores, mares em
borrasca e céus em tempestade.
Os impressionistas, na sua audaz revolução, fizeram alguma confusa e
tímida tentativa de sons e rumores pictóricos. Antes deles, nada, absolutamente
nada.
Mas declaramos agora que do formigueiro impressionista à nossa pintura
futurista dos sons, rumores e odores, há uma enorme diferença, como entre uma
brumosa manhã hibernal e um tórrido e ribombante meio-dia de verão, ou, melhor
ainda, como entre os primeiros acenos da gravidez e o homem no pleno
desenvolvimento de suas forças. Nas suas telas, os sons e os rumores são
expressos em modo tão tênue e apagado como se fossem percebidos pelo
tímpano de um surdo. Não é o caso de fazer aqui um exame particularizado dos
princípios e das pesquisas dos impressionistas. Não é o caso de indagar
minuciosamente todas as razões pelas quais os pintores impressionistas não
alcançaram a pintura dos sons, dos rumores e dos odores. Diremos apenas que
eles, para obter este resultado teriam devido destruir:

1. O vulgaríssimo tromp-d’oeil de perspectiva, joguinho digno tanto mais de


um acadêmico, tipo Leonardo, ou de um parvo cenógrafo para melodramas
veristas.
2. O conceito da harmonia colorística, conceito e defeito característicos dos
Franceses, que os coagem fatalmente ao gracioso, ao gênero Watteau, e
por isto no abuso do celeste, do verde-claro, do violeta e do róseo. Já
dissemos muitas vezes o quanto desprezamos esta tendência ao feminino,
ao suave, ao tenro.
3. O idealismo contemplativo, que eu defini mimetismo sentimental da
natureza aparente. Este idealismo contemplativo contamina as construções
pictóricas dos impressionistas, como contaminava já aquelas de seus
predecessores Corot e Delacroix.
4. A anedota e o particularismo que (também sendo, como reação, um
antídoto à falsa construção acadêmica) os arrasta quase sempre para a
fotografia.

Quanto aos pós e neo-impressionistas, como Matisse, Signac e Seurat, nós


constatamos que, bem longe do intuir o problema e do afrontar as dificuldades do
som e do rumor e do odor em pintura, eles preferiram recuar na estática, a fim de
obter uma maior síntese de forma e de cor (Matisse) e uma sistemática aplicação
da luz (Seurat e Signac).
Nós futuristas afirmamos, portanto, que trazendo à pintura o elemento som, o
elemento rumor e o elemento odor estamos traçando novas estradas.
Criamos já nos artistas o amor pela vida moderna essencialmente dinâmica,
sonora rumorosa e odorante, destruindo a tola mania do solene, do togado, do
sereno, do hierático, do mumificado, do intelectual, em suma.
A IMAGINAÇÃO SEM FIOS, AS PALAVRAS EM LIBERDADE, O USO
SISTEMÁTICO DAS ONOMATOPÉIAS. A MÚSICA ANTIGRACIOSA SEM
QUADRATURA RÍTMICA E A ARTE DOS RUMORES jorraram da mesma
sensibilidade que gerou a pintura dos sons, dos rumores e dos odores.
É indiscutível que: 1. – o silêncio é estático e que os sons, ruídos e odores são
dinâmicos; 2. – sons, rumores e odores não são outra coisa que diversas formas e
intensidades de vibração; 3. – qualquer suceder de sons, rumores, odores
estampa na mente um arabesco de formas e de cores. É necessário, portanto,
medir estas intensidades e intuir este arabesco.
A PINTURA DOS SONS, DOS RUMORES E DOS ODORES NEGA:

1. Todas as cores em surdina, mesmo aquelas obtidas diretamente, sem o


subsídio de disfarces das pátinas e das velaturas.
2. O sentido todo banal do veludo, da seda das carnes muito humanas,
muito delicadas, muito macias e das flores muito pálidas e murchas.
3. Os cinzas, os escuros e todas as cores barrentas.
4. O uso da horizontal pura, da vertical pura e de todas as linhas mortas.
5. O ângulo reto que chamamos apassional.
6. O cubo, a pirâmide e todas as formas estáticas.
7. A unidade de tempo e de lugar.

A PINTURA DOS SONS, DOS RUMORES E DOS ODORES QUER:

1. Os vermelhos, verrrrrmeeeeeeelhos, verrrrrrmelhíiiissimos que


griiiiiiitam.
2. Os verdes e não apenas o bastante verdes, veeeerdíiiiiissimos
estrideeeeeentes; os amarelos, nunca antes o bastante
explosivos; os amarelos-polenta; os amarelos-açafrão; os
amarelos-latão.
3. Todas as cores da velocidade, da alegria, da festança, do
carnaval mais fantástica, dos fogos de artifício, dos cafè-
chantants e dos music-halls, e todas as cores em movimento
sentidas no tempo e não no espaço.
4. O arabesco dinâmico como a única realidade criada pelo artista
no fundo da sua sensibilidade.
5. O choque de todos os ângulos agudos, que já chamamos os
ângulos da vontade.
6. As linhas oblíquas que caem sobre o ânimo do observador como
tantos raios do céu, e as linhas de profundidade.
7. A esfera, a elipse que turbilhona, o cone invertido, a espiral e
todas as formas dinâmicas que a potência infinita do gênio do
artista saberá descobrir.
8. A perspectiva obtida não como objetivismo de distância mas
como compenetração subjetiva de formas veladas ou sólidas,
macias ou cortantes.
9. Como tema universal e única razão de ser do quadro, a
significação da sua construção dinâmica (conjunto arquitetural
polifônico). Quando se fala de arquitetura, pensa-se em qualquer
coisa de estático. Isto é falso. Nós pensamos, ao invés, em uma
arquitetura semelhante à arquitetura dinâmica musical dada pelo
musicista futurista Pratella. Arquitetura em movimento das
nuvens, das fumaças no vento, e das construções metálicas
quando são sentidas em um estado de ânimo violento e caótico.
10. O cone invertido (forma natural da explosão), o cilindro oblíquo e
o cone oblíquo.
11. O choque de dois cones nos ápices (forma natural da tromba
d’água) cones dobráveis ou formados por linhas curvas (saltos de
palhaços, dançarinas).
12. A linha em ziguezague e a linha ondulada.
13. As curvas elipsóides consideradas como retas em movimento.
14. As linhas, os volumes e as luzes consideradas como
transcendentalismo plástico, isto é, segundo o seu característico
grau de curvatura ou de obliqüidade, determinado pelo estado de
ânimo do pintor.
15. Os ecos de linhas e volumes em movimento.
16. O complementarismo plástico (na forma e na cor) baseado na lei
dos contrastes equivalentes e no choque das cores, mais opostas
do arco-íris. Este complementarismo é constituído por um
equilíbrio de formas )por isto obrigadas a mover-se).
Conseqüente destruição dos pendants de volumes. É necessário
negar estes pendants de volume, pois semelhantes a duas
muletas não permitem a não ser um único movimento para diante
e para trás e não aquele total, chamado por nós expansão
esférica no espaço.
17. A continuidade e a simultaneidade das transcendências plásticas
do reino mineral, do reino vegetal, do reino animal, e do reino
mecânico.
18. Os conjuntos plásticos abstratos, isto é, correspondentes não às
visões mas às sensações nascidas dos sons, dos ruídos, dos
odores, e de todas as forças desconhecidas que nos envolvem.

Estes conjuntos plásticos, polifônicos e polirrítmicos abstratos responderão


à necessidade de desarmonias internas que nós, pintores futuristas, cremos
indispensáveis à sensibilidade pictórica. Estes conjuntos de plásticos são, pelo
seu fascínio misterioso, mais sugestivos que aqueles criados pelo sentido visual e
pelo sentido tátil, porque mais próximos ao nosso espírito plástico puro.
Nós, pintores futuristas, afirmamos que os sons, os ruídos e os odores se
incorporam na expressão das linhas, dos volumes e das cores, como as linhas, os
volumes e as cores se incorporam na arquitetura, de uma obra musical. As nossas
telas exprimirão portanto também as equivalências plásticas dos sons, dos ruídos,
e dos odores do Teatro, do Music-Hall, do cinema, do prostíbulo, das estações
ferroviárias, dos portos, das garagens, das clínicas, das oficinas, etc., etc...
Do ponto de vista da forma: há sons, ruídos e odores côncavos e convexos,
triangulares, elipsoidais, oblongos, cônicos, esféricos, espiralados, etc.
Do ponto de vista da cor: há sons, ruídos e odores amarelos, vermelhos,
verdes, turquesa, azuis e violeta.
Nas estações ferroviárias, nas oficinas, em todo o mundo mecânico e
esportivo, os sons, os rumores e os odores são predominantemente vermelhos;
nos restaurantes e nos cafés, prateados, amarelos e roxos. Enquanto os sons, os
ruídos e os odores dos animais são amarelos e azuis, os da mulher são verdes,
azuis e roxos.
Não exageramos afirmando que os odores bastam sozinhos para
determinar em nosso espírito arabescos de formas e de cores tais de construir o
motivo e justificar a necessidade de um quadro. Tanto é verdade que se nós nos
fechamos em um quarto escuro (de modo que o sentido da visão não funcione)
com flores, gasolina ou com outros materiais odoríficos, o nosso espírito plástico
elimina pouco a pouco as sensações de recordação e constrói conjuntos plásticos
especialíssimos e em perfeita correspondência de qualidade, de peso e de
movimento com os odores contidos no quarto. Estes odores, mediante um
processo obscuro, tornaram-se força-ambiente determinando aquele estado de
ânimo que para nós, pintores futuristas, constitui um puro conjunto plástico.
Este refervimento e turbilhão de formas e de luzes sonoras, rumorosas e
odorantes foi expresso, em parte, por mim no Funeral Anárquico e em
Sobressaltos de fiacre por Boccioni, nos Estados de Ânimo e nas Forças de Uma
Estrada, por Russolo no Levante e por Severini no Pan-Pan, quadros
violentamente discutidos na nossa primeira exposição de Paris (fevereiro 1912).
Este refervimento implica uma grande emoção e quase num delírio do artista, o
qual, para dar um turbilhão, deve ser um turbilhão de sensação, uma força
pictórica e não um frio intelecto lógico.
Saibam, portanto! Para obter esta pintura total, que exige a cooperação
ativa de todos os sentidos, pintura – estado de ânimo plástico do universal, é
necessário pintar, como os bêbados cantam e vomitam, sons, rumores e odores!

Trad.: Nancy Rozenchan

A CROMOFONIA – A COR DOS SONS


1913

ENRICO PRAMPOLINI

...Este estudo tem a finalidade de fazer conhecer um novo estado de


percepção da sensibilidade óptica do homem.
Concebendo a pintura como um agregado de vibrações cromáticas é de se
acreditar que os princípios sobre os quais deverá basear-se o futuro pintor são
aqueles sobre a pura visibilidade atmosférica que levem a própria sensibilidade
óptica a sutilezas, a suscetibilidades atmosféricas, a influências rítmicas do átomo
que possam exprimir cromaticamente as ondas sonoras e as vibrações de
qualquer deslocamento atmosférico.
Os animais tal como os povos primitivos, inclusive alguns viventes,
moradores da Austrália, só conseguem distinguir o claro do escuro, e, com alguma
rara exceção chegam até a 3ª percepção que, contudo, não conseguem
classificar; ao contrário, têm desenvolvido muito mais que o homem comum o
centro óptico como percepção à distância dos corpos, portanto um presbitismo
excessivo e uma profunda acuidade de visão que permite distinguir as coisas
também através de corpos opacos (as linhas).
Nós, pelo contrário, na medida em que é fraco nosso órgão óptico no
aspecto da percepção à distância das coisas e sempre um presbitismo relativo e
maior freqüência de forte miopia – talvez por razões fisiológicas de poliédrico
desgaste de nossa vida -, temos mais desenvolvido o centro óptico no sentido
cromático e colorístico, capaz de perceber todas as gamas cromáticas dos corpos
iluminados.
O homem, superior ao animal intelectualmente, tem que progredir
continuamente e, uma vez que o aperfeiçoamento de certos sentidos não é mais
do que questão de hábito, de educação, tal como o animal está em condições de
perceber além dos corpos não transparentes, nós temos que ser capacitados de
filtrar com nossos olhos a atmosfera em todas suas expressões vibratórias.
Como admitimos antes e continuamos admitindo agora ao senso óptico
humano o conhecimento das vibrações cromáticas de fonte luminosa, deve ser
assim aceitável o princípio científico que demonstra como existam na atmosfera e
sejam susceptíveis ao nosso senso óptico as vibrações cromáticas originadas de
fonte sonora, forças ambas de um valor capaz de influenciar a atmosfera e
portanto os sentidos humanos. Aceitando a máxima de que um determinado
estado atmosférico muda a cor dos corpos, deve-se aceitar também que tenha
uma cor e que seja capaz de fazer-se distinguir a essência (atmosférica) que
participa de nossa percepção óptica. Distinguindo acusticamente a diferença das
duas notas dó e fá porque repercutem na atmosfera vibrações de entidade
diferente, não será difícil nem inverossímil distinguir cromaticamente o valor desta
ou daquela nota, em função das influências coloridas que os corpos ao redor
refrangem sobre estas vibrações.
Aceitando indiscutivelmente como princípio aquele de Newton de que a
atmosfera está sempre saturada das sete cores do espectro solar, demonstrarei
com um exemplo o resultado desta minha pesquisa.
É evidente que a buzina de um carro (corneta), funcionando, deslocará
certa atmosfera que, ritmicamente, irá se propagar em evoluções especiais, e
repercutir-se-á em qualquer obstáculo que encontrar e, portanto, ricocheteará
decompondo-se cada vez mais em miríades de gamas cromáticas; e que em
todas estas simultaneidades rítmicas do átomo as vibrações atmosféricas irão
receber luzes e cores tantos quantos sejam não apenas as cores dos objetos ou
dos corpos que estas vibrações atravessam, mas também o reflexo dos objetos
dos corpos circunstantes.
Insisto em declarar que estas colorações não são, como alguém poderá
erroneamente acreditar, expressões abstratas ou arbitrárias concebidas assim
empiricamente pelo artista ou também por sua fantasia selvagem, o que seria
academia ou coisa pior.
Tomemos um outro exemplo (o alimento dos imbecis): se uma pessoa A
estiver num quarto e uma pessoa Z estiver num outro tocando, cantando,
gesticulando, fazendo ruídos, etc., a pessoa A não poderá perceber nenhuma cor
de todos os sons, ruídos e deslocamentos atmosféricos ocorridos no outro quarto,
pois, não estando presente a pessoa A, as vibrações atmosféricas produzidas
pelas várias ações efetuadas pela pessoa Z lhe chegarão num grau tão
infinitamente decomposto (desordenado) e portanto, cada vez mais fraco, de
cromatismos, que não terá força suficiente para influenciar a auréola atmosférica
que envolve a pessoa A, ou seja, a distância até onde chegar a simples e própria
percepção visual.
Insisto de novo em declarar que a percepção da cor dos sons e de qualquer
outro deslocamento atmosférico, é uma manifestação “de pura visibilidade óptica”
estranha a qualquer subsídio cultural.
Espero ter conseguido explicar que, tendo falado sempre de vibrações e
tratando-se de dinamismo atmosférico, as vibrações deslocadas por uma força
não poderão ter por equivalente uma cor, mas sim uma multidão de cores,
sabendo também que a atmosfera é composta por sete cores e que as vibrações
são uma decomposição desta.
Concluindo, portanto, não é absolutamente verdadeiro nem possível que
um som, um ruído, um gesto, uma palavra, um cheiro, tenham como uma cor só,
mas sim muitas cores, como igualmente não é verdade que quanto mais as
vibrações atmosféricas são violentas tanto mais intenso e portanto mais visível
seja sua cor, porque a origem-força, o gênero de vibrações e o lugar onde se
propagam que mudam o valor e o aspecto.
É necessário também conhecer a virtualidade da atmosfera, desta
atmosfera em que vivemos; temos que ter noção das fontes cromáticas recônditas
de que está saturada a atmosfera; entretanto, para consegui-lo é necessário que
sejamos personalidades pictóricas de valor, que tenhamos cognição das
intimidades atmosféricas, a respiração e a agonia da cor.
Cadáveres viventes, almas frias, seres dados à compactude, à diligência,
pessoas que escolhem o caminho do meio, os indiferentes, não poderão perceber
nem compreender o resultado de certas pesquisas; e como a arte é entusiasmo,
exaltação, assim os espíritos entusiastas e exaltados terão a faculdade de possuir
virtudes psíquicas ou sensoriais que outros não têm.
Por que terei escolhido o som para determinar as bases desta Cromofonia?
Porque é uma expressão mais apta para classificar esta nova manifestação
do homem. É claro, porém, que com o nome de Cromofonia eu entendo qualquer
deslocamento atmosférico, mesmo de fonte não sonora; assim em seguida poder-
se-á discernir perfeitamente, pelas vibrações cromáticas expressas num quadro,
se estas terão sido deslocadas pela voz de uma pessoa de um sexo antes que de
outro.
Fisiologicamente este fenômeno do sentido óptico manifesta-se assim: “Um
ruído, um som, uma palavra, enquanto despertam na atmosfera vibrações de puro
valor dinâmico, despertam imaginação volitiva do artista o estímulo intuitivo
cromático”.
Todas estas manifestações atuais da vida, para poderem subsistir, para
poderem ser discutidas e aprovadas contra todas as adversidades dos réprobos,
dos mesquinhos, deverão ter um caráter positivo. Pois bem, se quisermos este
positivismo em pintura, teremos que manifestar todas as nossas expressões
puramente com a cor.
Distinguir a atmosfera, saturar nossos olhos com a natureza inconcebível,
lançar no abstrato o concreto, de tal modo que da repercussão recíproca
espouque uma violenta irradiação de vibrações evolutivas.
Destruir, destruir para reconstruir a consciência e a opinião, a cultura e o
gênesis da arte.
Estas poucas palavras sobre a Cromofonia para aqueles que têm cegueira
de intelecto e os olhos mudos.

Trad.: Aurora F. Bernardini

AS ANALOGIAS PLÁSTICAS DO DINAMISMO


MANIFESTO FUTURISTA

G. SEVERINI

SETEMBRO : OUTUBRO 1913

Nós queremos encerrar o universo na obra de arte. Os objetos não existem


mais.
É necessário esquecer a realidade exterior e o conhecimento que temos
para criar as novas dimensões de que a nossa sensibilidade achará a ordem e a
extensão em relação ao universo plástico.
Nós expressaremos, assim, as emoções plásticas não apenas relativas a
um ambiente emotivo, mas unidas a todo o universo, pois a matéria, considerada
na sua ação, o encerra num vastíssimo círculo de analogias, que começam das
afinidades ou semelhanças e vão até aos contrários ou diferenças específicas.
Por isso a sensação produzida em nós por uma realidade da qual
conhecemos a forma quadrada e a cor azul pode ser expressa plasticamente com
os seus complementares de forma e cores, e isto é com formas redondas e cores
amarelas.
Já que enfim a realidade exterior e o conhecimento que temos dela, não
têm mais nenhuma influência sobre a nossa expressão plástica, e quanto à ação
da recordação sobre a nossa sensibilidade, somente a recordação da emoção
persiste, e não aquela da causa que a produziu.
A lembrança agirá portanto na obra de arte como elemento de
intensificação plástica e também como verdadeira causa emotiva independente de
toda unidade de tempo e de lugar e única razão de ser de uma criação plástica.
(Já em 1911 no meu quadro: “Recordação de viagem” – primeira exposição
futurista de Paris – fevereiro 1912 – eu havia intuído a possibilidade de alargar até
ao infinito o horizonte da emoção plástica, destruindo totalmente a unidade de
tempo e de lugar com uma pintura da recordação que reunia num único conjunto
plástico realidades percebidas na Toscana, nos Alpes, em Paris, etc.)
Em nossa época de dinamismo e de simultaneidade não se pode mais
separar uma realidade qualquer das recordações, afinidades ou aversões
plásticas que a sua ação expansiva evoca simultaneamente em nós e que são
outras tantas realidades abstratas, points de repére, para atingir a ação total da
realidade em questão.
Além disso, as formas em espiral e os belos contrastes de amarelo e de
azul descobertos pela nossa intuição, uma noite, vivendo a ação de uma
dançarina, podem ser reencontrados mais tarde, por afinidade ou por aversão
plástica, ou por umas e outras juntas, nos vôos concêntricos de um aeroplano ou
a corrida de um expresso.
Por conseqüência, certas formas e cores experimentos as sensações de
rumores, sons, odor, luz, calor, velocidade, etc., relativos, por exemplo, à realidade
transatlântico, podem exprimir por analogia plástica as mesmas sensações
provocadas em nós pela realidade distantíssima: Galleries Lafayette.
A realidade transatlântico é portanto reunida à realidade Galleries Lafayette
(e toda realidade à sua diferença específica) pelas suas continuidades qualitativas
que percorrem o Universo sobre as ondas elétricas da nossa sensibilidade.
Eis um realismo complexo que destrói totalmente a integridade da matéria
já considerada por nós agora somente ao máximo de sua vitalidade e que se pode
exprimir assim:

Galleries Lafayette = transatlântico.


As formas e as cores abstratas que nós traçamos pertencem ao Universo
foram do tempo e do espaço.
Antes de nós, somente na literatura eram usados em um modo mais ou
menos vasto as analogias, e o poeta Marinetti, o primeiro a servir-se delas
sistematicamente e a alcançar um realismo intenso e específico, define assim as
analogias no seu maravilhoso Manifesto Técnico da Literatura Futurista:

“A analogia não é mais que o amor imenso que reúne as coisas distantes,
aparentemente diferentes e hostis.
Por meio de analogias vastíssimas, este estilo orquestral, ao mesmo tempo
policromo, polifônico e polimorfo, pode abraçar a vida da matéria”.

....................................................................................................................................

“Para dar os movimentos sucessivos de um objeto é necessário dar a


cadeia de analogias que ele evoca, condensada, recolhida em uma palavra
essencial”.

....................................................................................................................................

“Para desenvolver e colher tudo isto que há de mais fugidio e inagarrável na


matéria, é necessário formar redes cerradas de imagens ou analogias que
lançaremos no mar misterioso dos fenômenos”.

Portanto, por meio das analogias, nós penetramos tudo o que há de mais
expressivo na realidade e damos simultaneamente a matéria e a vontade ao
máximo da sua atividade intensiva e expansiva.
Com a compenetração dos planos e com a simultaneidade do ambiente nós
demos a influência recíproca dos objetos e a vitalidade-ambiente da matéria
(intensidade e expansão de objeto + ambiente) com as analogias plásticas nós
alargamos até o infinito o campo destas influências, continuidades, vontades e
contrastes cuja forma única criada pela nossa sensibilidade plástica é a expressão
da vitalidade absoluta da matéria ou dinamismo universal (intensidade e expansão
do objeto + ambiente, através de todo o universo, até a diferença específica).
Nós reconduzimos, além disso, a emoção plástica à sua origem física e
espontânea: a natureza da qual todo elemento filosófico ou cerebral tenderia a
afastá-la. Por isto, apesar de as nossas obras de criação representarem uma vida
interior, em tudo diferente da vida real, a nossa pintura e escultura das analogias
plásticas pode se chamar pintura e escultura d’après nature.
Existem duas espécies de analogias: as analogias reais e as analogias
aparentes. Por exemplo:

Analogias reais: o mar com a sua dança no local, movimentos de


ziguezague e contrastes cintilantes de prata e esmeralda evoca na minha
sensibilidade plástica a visão distantíssima de uma dançarina coberta de paetês
brilhantes, no seu ambiente de luz, ruídos e sons.
por isto mar = dançarina.

Analogias aparentes: a expressão plástica do mesmo mar, que por analogia


real evoca em mim uma dançarina, me dá, à primeira vista, por analogia aparente,
a visão de um grande buquê de flores.
Estas analogias aparentes, superficiais, concorrem para intensificar o valor
expressivo da obra plástica. Alcança-se assim, esta realidade:

mar = dançarina + buquê de flores.

É impossível estabelecer leis técnicas que sejam sobretudo relativas à


individualidade de cada artista. Todavia, eis as bases dos nossos meios de
expressão, em parte já empregadas por nós, mas já agora intensificadas e
sistematicamente desenvolvidas de acordo com a nossa sensibilidade plástica
tornada universal.

PELA FORMA

1º. Contraste simultâneo de linhas, planos e volumes, e de grupos de


formas análogas dispostos em expansão esférica – Compenetração construtiva.
2º Construção em forma de arabesco, rítmica, voluntariamente ordenada
em vista de uma nova arquitetura qualitativa, composta exclusivamente de
quantidades qualitativas.
(A matéria, considerada na sua ação, perde a sua integralidade, e, por isto, as
suas quantidades integrais, para desenvolver até o infinito suas continuidades
qualitativas. Por isto, a nossa expressão plástica futurista será somente
qualitativa).
3º Composição dinâmica aberta em todos os sentidos em direção ao
espaço, verticalmente retangular, ou quadrada e esférica.
4º Supressão da linha reta que é estática e amorfa como uma cor sem
gradação de tom, e das linhas paralelas.

PELA COR

1º Emprego exclusivo das cores puras do prisma por zonas em contraste


simultâneo ou por grupos de cores análogas ou divididas. (O complementarismo
em geral e o divisionismo das cores análogas constituem a técnica das analogias
das cores.
A analogia plástica é uma diferença real dos objetos destruída por uma
analogia real: por meio das analogias das cores se obtém o máximo de
intensidade luminosa, calor, musicalidade, dinamismo construtivo e óptico.)
2º Emprego do negro puro, do branco puro, ou do fundo da tela para zonas
neutras ou para obter das cores o máximo de intensidade.
3º Emprego, com propósitos de intensificação realista, de sinais
onomatopaicos, de palavras em liberdade, e de toda espécie possível de matéria.
4º A nossa necessidade de realismo absoluto nos induz a modelar formas
em relevo sobre nossos quadros e a colorir os nossos conjuntos plásticos de
todas as cores do prisma dispostas em expansão esférica.
Todas as sensações tomando forma plasticamente se concretizam na
sensação Luz, e, por isto, não podem ser expressas senão por todas as cores do
prisma.
Pintar e modelar formas diversamente que com todas as cores espectrais
significaria deter um dos movimentos mais importantes da matéria e, isto é, o de
irradiação.
A expressão colorida da sensação Luz, em acordo com a nossa expansão
esférica no espaço não pode ser senão centrífuga ou centrípeta (sic) em relação à
construção orgânica da obra. Assim, por exemplo, o conjunto plástico: dançarina =
mar terá preferivelmente irradiações luminosas (formas e cores-luz) partindo do
centro e andando em direção ao espaço (centrífugas). Isto é, além disso, relativo à
sensibilidade plástica de todo artista, mas é essencialmente importante destruir o
princípio da luz, tom local e sombras de que se serviram os pintores antes de nós
para dar a ação da luz sobre corpos e que pertencem à relatividade dos
fenômenos luminosos momentâneos, acidentais.
Nós chamaremos esta nova expressão plástica da luz: expansão esférica
da luz no espaço.
Teremos assim uma expansão esférica da cor em perfeito acordo com a
expansão esférica das formas.
Por exemplo: se o centro de um grupo de formas é amarelo, as cores
seguir-se-ão em direção ao espaço, de analogia em analogia de cor até ao azul,
seu complementar, e, se for necessário, até o negro, ausência de luz, e vice-versa.
Evidentemente em um mesmo quadro ou conjunto plástico podem haver
mais núcleos centrífugos e centrípetos (sic) em simultânea concorrência dinâmica.
Uma das nossas atitudes futuristas mais sistemáticas e que se generaliza
também junto a artistas pertencentes a raças diferentes é aquela de exprimir
sensações de movimento.
De fato, uma das razões científicas que transformou a nossa sensibilidade e
que a conduziu em direção à maior parte das nossas verdades futuristas é,
justamente, a velocidade.
A velocidade nos deu uma nova noção do espaço e do tempo e, por
conseqüência da própria vida, nada de mais lógico que as nossas obras futuristas
caracterizem toda a arte de nossa época com a estilização do movimento, que é
uma das manifestações mais imediatas da vida.
Devemos, portanto, suprimir, como fizemos pelo nu, no nosso primeiro
manifesto de pintura futurista, o corpo humano, as naturezas mortas e as
paisagens agrestes consideradas como centros emotivos.
Estas realidades, tomadas separadamente, e, isto é, separadas das
continuidades qualitativas que exprimem sua ação total no universo, mesmo se
consideradas em relação a um ambiente emotivo, não podem interessar senão
mediocremente ao nosso gênio plástico e fazê-lo enferrujar em pesquisas
inferiores à sua força criadora.
Enquanto, ao invés, uma complexidade de elementos dinâmicos como um
aeroplano em vôo + homem + paisagem; um bonde ou um carro em velocidade +
avenida + viajantes; ou então, os vagões do metrô + estações anúncios luz +
multidão, etc., etc. e todas as analogias plásticas que a sua ação evoca em nós,
nos oferecem fontes de emoção e de lirismo plástico muito mais vastas e
complexas.
Além disso, devemos definitivamente suprimir estas distinções seculares e
acadêmicas: formas pictóricas, formas esculturais.
O dinamismo plástico, vitalidade absoluta da matéria não pode ser expresso
a não ser por formascores ao máximo do relevo, da profundidade, da intensidade
e da irradiação luminosa e, isto é, da pintura e escultura reunidas em uma só
criação plástica.
Eu prevejo, portanto, o fim do quadro e da estátua. Estas formas de arte,
malgrado o nosso espírito inovador, limitam a nossa liberdade criativa e têm em si
próprias os seus destinos: Museus, salões de colecionadores, um mais passadista
que o outro.
Ao invés, as nossas criações plásticas devem viver ao ar livre e completar-
se em conjuntos arquitetônicos, com os quais dividirão a cooperação ativa do
mundo exterior do qual elas representam o essencial específico.

Trad.: Nancy Rozenchan

O TEATRO DE VARIEDADE
(1913)

F.T.MARINETTI

Estamos profundamente enjoados do teatro contemporâneo (verso, prosa e


musical) porque vacila estupidamente entre a reconstrução histórica (pastiche ou
plágio) e a reprodução fotográfica de nossa vida quotidiana; é um teatro
minucioso, lento, analítico e diluído, digno, no todo, de uma idade de lampiões a
querosene.

O FUTURISMO EXALTA O TEATRO DE VARIEDADE porque:


1. O Teatro de Variedade, nascido como nós da Eletricidade, não tem
felizmente tradição alguma, nem mestres, nem dogmas, e se nutre da veloz
atualidade.
2. O Teatro de Variedade é absolutamente prático, porque se propõe a
distrair e divertir o público com efeitos de comicidade, de excitação erótica e de
estupor imaginativo.
3. Os autores, atores e maquinistas do Teatro de Variedade só têm uma
razão para existir e triunfar: a de inventar incessantemente novos elementos de
estupor. Daí a absoluta impossibilidade de deter-se ou repetir-se, daí uma
encarniçada emulação de cérebros e músculos, a fim de superar os vários
recordes de agilidade, velocidade, força, complexidade e elegância.
4. O Teatro de Variedade é o único hoje em dia que utiliza o cinematógrafo,
que o enriquece com um número incalculável de visões e espetáculos de outro
modo irrealizáveis (batalhas, tumultos, corridas, circuitos de automóvel e
aeroplanos, viagens, profundezas de cidades, campos, oceanos e céus).
5. O Teatro de Variedade, sendo uma vitrina remuneradora de inúmeros
esforços inventivos, gera naturalmente o que eu chamo o maravilhoso futurista,
produto do mecanismo moderno. Eis alguns dos elementos desse maravilhoso: 1)
caricaturas possantes; 2) abismos do ridículo; 3) ironias impalpáveis e deliciosas;
4) símbolos envolventes e definitivos; 5) cascatas de hilaridade irrefreável; 6)
analogias profundas entre a humanidade, o mundo animal, o mundo vegetal e o
mundo mecânico; 7) escorços de cinismo revelador; 8) enredos de frases
espirituosas, de trocadilhos e de adivinhações que servem para arejar
agradavelmente a inteligência; 9) toda a gama de riso e de sorriso, para distender
os nervos; 10) toda a gama de estupidezes, imbecilidades, parvoíces e absurdos
que impelem insensivelmente a inteligência até a beira da loucura; 11) todas as
novas significações da luz, do som, do ruído e da palavra, com seus
prolongamentos inexplicáveis na parte mais inexplorada de nossa sensibilidade;
12) um acúmulo de acontecimentos tramitados às pressas e de personagens
empurradas da direita para a esquerda em dois minutos (“e agora vamos dar uma
espiada nos Bálcãs”: o Rei Nicolau, Enver Bei, Daneff, Venizelos, golpes na
barriga e sopapos entre sérvios e búlgaros, um couplet e tudo desaparece); 13)
pantomimas satíricas instrutivas; 14) caricaturas da dor e de nossa nostalgia,
fortemente impressas na sensibilidade por meio de gestos exasperadores por sua
lentidão espasmódica, hesitante e cansada; palavras graves ridicularizadas por
gestos cômicos, disfarces bizarros, termos estropiados, micagens, palhaçadas.
6. O Teatro de Variedades é hoje o cadinho em que fervem os elementos de
uma nova sensibilidade que se prepara. Aqui se encontra a decomposição irônica
de todos os protótipos deteriorados do Belo, do Grandioso, do Solene, do
Religioso, do Feroz, do Sedutor e do Espantoso, bem como a elaboração abstrata
dos novos protótipos que irão sucedê-los.
O Teatro de Variedade é, portanto, a síntese de tudo o que a humanidade
refinou até agora em seus nervos para distrair-se rindo da dor material e moral; é
ademais a fusão borbulhante de todas as risadas, de todos os sorrisos, de todos
os arreganhos zombeteiros, de todas as contorções, de todos os trejeitos da
humanidade futura. Aqui se degusta a alegria que sacudirá os homens dentro de
cem anos, sua poesia, sua pintura, sua filosofia e os saltos de sua arquitetura.
7. O Teatro de Variedade oferece o mais higiênico de todos os espetáculos
em seu dinamismo de forma e cor (movimentos simultâneos de prestidigitadores,
bailarinas, ginastas, multicores mestres de equitação, ciclones espirais de
dançarinos girando na ponta dos pés). Com seu ritmo de dança célere e
arrebatadora, o Teatro de variedade arranca à força as almas mais lentas de seu
torpor e obriga-as a correr e saltar.
8. O Teatro de Variedade é o único que utiliza a colaboração do público.
Este não permanece estático como um estúpido voyeur, mas participa com muitos
imprevistos e diálogos bizarros com os atores. Estes, por sua vez, polemizam
burlescamente com os músicos.
O Teatro de Variedade utiliza a fumaça de charutos e cigarros para fundir a
atmosfera do público com a do palco. E porque o público coopera assim com a
fantasia dos atores, a ação desenvolve-se a um só tempo no palco, nos camarotes
e na platéia. Ela continua depois, ao fim do espetáculo, entre batalhões de
admiradores, os dândis acaramelados que se apinham à saída dos artistas para
disputar a estrela; dupla vitória final: ceia chique e cama.
9. O Teatro de Variedade é uma escola de sinceridade instrutiva para o
macho porque exalta seus instintos rapaces e porque arranca da mulher todos os
véus, todas as frases, todos os suspiros, todos os soluços românticos que
deformam e mascaram. Isto faz ressaltar, ao invés, todas as maravilhosas
qualidades animais da mulher, sua garra, sua força de sedução, de perfídia e de
resistência.
10. O Teatro de Variedade é uma escola de heroísmo pelos diferentes
recordes de dificuldades de vencer e de esforços de superar, que criam em cena a
forte e sadia atmosfera do perigo. (Ex. salto mortal, Looping the loop em bicicleta,
em automóvel, a cavalo.)
11. O Teatro de Variedade é uma escola de sutileza, de complexidade e de
síntese mental, por seus clowns, pretidigitadores, adivinhos de pensamento,
calculadores prodigiosos, machiettisti (1), imitadores e parodistas, malabaristas
musicais e contorcionistas americanos, cuja gravidez fantástica gera objetos e
mecanismos inverossímeis.

(1) Cômicos que faziam imitações caricaturais de pessoas presentes entre o público.

12. O Teatro de Variedade é a única escola que se pode aconselhar a


adolescentes e a jovens de talento, porque explica de modo incisivo e rápido os
problemas mais sentimentais, mais abstrusos e os acontecimentos políticos mais
complicados. Exemplo: há um ano, nas Folies-Bergères, dois dançarinos
representavam as sinuosas discussões entre Cambon e Kinderlen-Watcher sobre
questões do Marrocos e do Congo, com uma daança simbólica e significativa que
equivalia a pelo menos três anos de política externa. Os dois dançarinos voltados
para o público, com os braços entrelaçados, apertados um contra o flanco do
outro, caminhavam fazendo concessões recíprocas de territórios, pulando para
frente e para trás, para a direita e para a esquerda, sem jamais separar-se, tendo
cada um os olhos fixos no alvo, que era o de embrulhar-se mutuamente. Davam
uma impressão de extrema cortesia, de hábil sinuosidade, de ferocidade, de
difidência, de obstinação, de meticulosidade, insuperavelmente diplomática.
Além do mais o Teatro de Variedade explica luminosamente as leis
dominantes da vida moderna:
a) necessidade de complicação e de ritmos diversos;
b) fatalidade útil da mentira e da contradição (ex.: dançarinas inglesas
de dupla face: pastorinha e soldado terrível);
c) onipotência de uma vontade metódica que modifica e centuplica a
força humana;
d) simultaneidade de velocidade + transformação (ex.: Fregoli).

13. O Teatro de Variedade deprecia sistematicamente o amor ideal e sua


obsessão romântica, repetindo à saciedade, com a monotonia e o automatismo de
um mister cotidiano, os langores nostálgicos da paixão. Isso mecaniza
bizarramente o sentimento, deprecia e espezinha higienicamente a obsessão da
posse carnal, rebaixa a luxúria à função natural do coito, priva-a de todo mistério,
de toda angústia deprimente, de todo idealismo anti-higiênico.
O Teatro de Variedade dá, ao invés, o senso e o gosto dos amores fáceis,
ligeiros, irônicos. Os espetáculos de café-concerto ao ar livre nos terraços dos
Cassinos oferecem uma divertidíssima batalha entre a luz do luar espasmódico,
atormentado por infinitos desesperos, e a luz elétrica que ricocheteia
violentamente sobre as jóias falsas, as carnes maquiladas, os saiotes multicores,
os veludos, as lustrinas e o sangue falso dos lábios. Naturalmente, a enérgica luz
elétrica triunfa, e a mole e decadente luz do luar é derrotada.
14. O Teatro de Variedade é naturalmente antiacadêmico, primitivo e
ingênuo, por isso mais significativo pelo imprevisto de suas buscas e a
simplicidade de seus meios (ex.: o giro sistemático que as chanteuses fazem, ao
fim de cada couplet, como feras na jaula).
15. O Teatro de Variedade destrói o Solene, o Sacro, o Sério, o Sublime da
Arte com A maiúsculo. Isso colabora com a destruição futurista das obras-primas
imortais, plagiando-as, parodiando-as, apresentando-as com simplicidade, sem
aparato e sem compunção, como um número qualquer de atrações. Assim, nós
aprovamos incondicionalmente a execução do Parsifal em 40 minutos, que está
sendo preparada num grande Musical-hall de Londres.
16. O Teatro de Variedade destrói todas as nossas concepções de
perspectiva, de proporção, de tempo e de espaço (ex.: portãozinho e cancelo de
30 centímetros de altura, e pelo qual certos contorcionistas americanos passam e
repassam, abrindo-os e fechando-os com seriedade, como se não pudessem
proceder de outro modo).
17. O Teatro de Variedade nos oferece todos recordes até agora
alcançados: máxima velocidade e máximo equilibrismo e acrobatismo dos
japoneses, máximo frenesi muscular dos negros, máximo desenvolvimento da
inteligência dos animais (cavalos, elefantes, focas, cães, pássaros amestrados);
máxima inspiração melódica do Golfo de Nápoles e da estepe russa, máximo
espírito parisiense, máxima força comparada das diversas raças (luta romana e
boxe), máxima monstruosidade anatômica, máxima beleza das mulheres.
18. Enquanto o Teatro atual exalta a vida interior, a meditação professoral, a
biblioteca, o museu, as lutas monótonas da consciência, a análise estúpida dos
sentimentos, em suma (coisa e palavra imunda) a psicologia, o Teatro de
Variedade exalta a ação, o heroísmo, a vida ao ar livre, a destreza, a autoridade
do instinto e da intuição. À psicologia, opõe aquilo que eu chamo Fisicofolia.
19. O Teatro de Variedade oferece enfim a todo país que não tem uma
grande capital única (como a Itália) um brilhante resumo de Paris considerada
como foco único e obsedante do luxo e do prazer ultra-refinado. O FUTURISMO
QUER TRANSFORMAR O TEATRO DE VARIEDADE EM TEATRO DO
ESTUPOR, DO RECORDE E DA FISICOFOLIA.
1. É preciso absolutamente destruir toda lógica nos espetáculos do Teatro
de Variedade, exagerar singularmente o luxo, multiplicar os contrastes e fazer
reinar soberanamente no palco o inverossímil e o absurdo (exemplo: Obrigar as
chanteuses a tingir seu décolleté, os braços e especialmente os cabelos, em
todas as cores até agora descuradas como meios de sedução. Cabelos verdes,
braços violetas, décolleté azul, chignon laranja, etc. Interromper uma cançoneta
dando-lhe continuação com um discurso revolucionário. Cuspir uma romanza de
insultos e palavrões, etc.)
2.Impedir que uma série de tradições se estabeleçam no Teatro de
Variedade. Combater, portanto, e abolir as Revues parisienses, tão estúpidas e
tediosas quanto a tragédia grega, com suas Compère e Commère, que exercem a
função do coro antigo, e seu desfile de personagens e acontecimentos políticos,
sublinhados com frases de espírito, com uma lógica e uma concatenação
fastidiosíssimas. O Teatro de Variedade não deve ser, de fato, aquilo que
desventuradamente ainda é hoje quase sempre: um jornal mais ou menos
humorístico.
3. Introduzir a surpresa e a necessidade de agir entre os espectadores da
platéia, dos camarotes e da galeria. Algumas propostas ao acaso: espalhar cola
forte sobre algumas poltronas, para que o espectador, homem ou mulher, que ficar
colado, suscite a hilaridade geral. (O fraque ou a toilette danificada será
naturalmente paga à saída.) – Vender o mesmo lugar a dez pessoas; resultado:
obstrução, bate-bocas, brigas. – Oferecer lugares gratuitos a senhores e senhoras
notoriamente amalucados, irritáveis ou excêntricos, que são capazes de provocar
tumultos com gestos obscenos, beliscando as mulheres ou outras esquisitices. –
Aspergir sobre as poltronas pós que provocam pruridos, espirros, etc.
4.Prostituir sistematicamente toda a arte clássica sobre o palco,
representando por exemplo em uma única noite toda a tragédia grega, francesa,
italiana, condensada ou comicamente mesclada. – Vivificar as obras de
Beethoven, Wagner, Bach, Bellini, Chopin, introduzindo cançonetas napolitanas. –
Pôr lado a lado Zacconi, a Duse e Mayol, Sarah Bernhardt e Fregoli. – Exigir uma
sinfonia de Beethoven ao revés, começando da última nota. – Reduzir
Shakespeare todo a um só ato. – Fazer outro tanto com todos os autores mais
venerados. – Fazer recitar Hernani por atores metidos em sacos até o pescoço.
Ensaboar as pranchas do palco, para provocar tombos divertidos no momento
mais trágico.
5. Encorajar de todo o mundo o gênero dos clowns e dos contorcionistas
americanos, o seu efeito de grotesco exaltante, de dinamismo espantoso, os seus
grossos achados, a sua enorme brutalidade, os seus coletes de surpresa e as
suas calças profundas como estivas de navios, de onde sairá com mil outras
coisas a grande hilaridade futurista que deve rejuvenescer a face do mundo.
Posto que não se esqueçam disso, nós futuristas, somos jovens artilheiros
em farra, como proclamamos em nosso manifesto “Matemos a luz do luar” fogo +
fogo + luz contra a luz do luar e contra velhos firmamentos guerra toda noite
grandes cidades brandem reclames luminosos imensa faixa de negro (30 m de
altura + 150 m de altura da casa = 180m) abrir fechar abrir fechar olho de ouro
(altura 3m) FUMEZ FUMEZ MANOLI FUMEZ MANOLI CIGARETTES mulher
numa blusa (50m + 120 de altura da casa = 170m) retesar afrouxar busto violeta
róseo lilás azul espuma de lâmpada elétrica em uma taça de champanha (30m)
chiar evaporar em uma boca de sombra reclames luminosos velar-se morrer sob
uma mão negra tenaz renascer continuar prolongar na noite o esforço de uma
jornada atividade humana coragem + loucura morrer jamais fechar-se jamais
adormecer reclames luminosos= formação e desagregação dos minerais
vegetais centro da terra circulação sanguínea nas voltas férreas da casa
futurista animar-se empurpurar-se (júbilo cólera sobre sua ainda logo mais forte
ainda) apenas as trevas pessimistas negativas sentimentais nostálgicas assediam
a cidade revivescência fulgurante da rua que canalizam durante o dia o
enxame enfumaçado do trabalho dois cavalos (altura 30m) fazem rolar uma
pata bola de ouro GIOCONDA ÁGUA PURGATIVA entrecruzar-se de trrr trrr
Elevated trrr trrrr sobre a testa trombeeebeeebeettaa siiiiiilvos sirene de
ambulância + carros de bombeiros transformação das ruas em esplêndidos
corredores conduzir empurrar lógica necessidade a multidão para trepidação +
hilaridade + reboliço do Music-hall
FOLIES-BERGÈRE EMPIRE CREME ÉCLIPSE tubos de mercúrio vermelhos
vermelhos vermelhos turquesas violetas enormes letras-enguias de ouro foco
púrpura diamante desafio futurista à noite choramingona derrota das estrelas
calor entusiasmo fé convicção vontade penetração de um reclame luminoso na
casa defronte bofetadas amarelas naquele gotoso bibliófilo em chinelos que
cochila 3 espelhos o guardam o reclame se afunda nos 3 abismos rubrouro
abrir fechar abrir fechar 3 bilhões de quilômetros de profundidade de horrores
sair sair depressa chapéu bengala taxímetro empurrões keee-keee-keee cá
estamos maravilha do promenoir solenidade das panteras-cocottes entre os
trópicos da música ligeira cheiro redondo e quente da alegria Music-hall =
ventilador incansável do cérebro futurista do mundo.

29 de setembro de 1913
Trad.: J. Guinsburg

MANIFESTO FUTURISTA DO TRAJE MASCULINO


1913

GIACOMO BALLA

Nós futuristas nos breves intervalos do grande trabalho de renovação,


discutindo como é o nosso costume de todas as coisas, nos convencemos que os
ternos de hoje, apesar de já simplificados por certas tendências modernas, ainda
são atrozmente passadistas.
É PRECISO DESTRUIR O TERNO PASSADISTA epidérmico descorado
fúnebre decadente tedioso anti-higiênico. Abolir nos tecidos: as cores apagadas
graciosas fantasias neutras semi-escuras e desenhos de listas xadrezinho de
bolinhas. Corte e confecção: Abolição simétrica de linhas estáticas uniformidades
de ridículos debruns quinquilharias, etc. Acabar de uma vez com os
desenterramentos que são os hipócritas ternos de luto. As ruas cheias de gente
reuniões teatros cafés são de uma tonalidade desoladora funerária porque os
ternos refletem o mau humor entristecido dos passadistas de hoje.
É PRECISO INVENTAR O TRAJE FUTURISTA alegríssssssssismo
insolente aceso por cores iridistas, dinâmico nas linhas, simples e principalmente
descartável com a finalidade de aumentar suas atividades industriais e fornecer ao
nosso corpo um contínuo gozo da novidade. USAR nos tecidos as cores
MUSCULARES violentíssimas, vermelhíssimas, celestíssimas, verdíssimas,
amarelões, laranjas, carmesins, os tons OSSATURA, branco, cinza, preto, criar
desenhos dinâmicos, expressos com equivalentes abstratos: triângulos, cones,
espirais, elipses, círculos, etc. servir-se do corte de linhas dinâmicas assimétricas,
a extremidade de uma manga e a frente de um paletó são à esquerda redondos, á
direita quadrados com colete, calças e paletós, etc. esta alegria esfuziante dos
trajes em movimento pelas ruas ruidosas transformadas pela nova arquitetura
futurista cintilará como o esplendor prismático de uma gigantesca vitrine de
joalheiro e teremos continuamente blocos acrobáticos de cores dispostas como as
seguintes palavras:

Cafésquinascasas Rosverbasocap traportautom perrotailoj azulbrancasas


aerocigarresto ceutetelevermelhamar aficinemafot barbabajanelaranj.

A humanidade até hoje sempre vestiu (com maior ou menor intensidade) o


preto para o luto.
Nós lutamos:
a) contra a simetria timidez de cores e cores apagadas de pontinhos e de
listazinhas estúpidas;
b) contra todas as formas de traje estático que cansam, deprimem,
entristecem o homem, amarram os músculos e dão também tristeza
incolor;
c) contra o assim chamado bom gosto e harmonia que amolece a alma e
ralenta o passo.
Queremos trajes futuristas confortáveis e práticos
Dinâmicos
Agressivos
Chocantes
Volitivos
Violentos
Volantes (isto é, que dão idéia do vôo, da elevação, da corrida)
Agilizantes
Alegres
Iluminantes (para ter luz na chuva)
Fosforescentes
Orantes de lâmpadas elétricas.
Desenhos de modificadores para serem colocados na hora com botões de
pressão; cada um pode assim modificar sua roupa conforme as necessidades de
seu espírito:
o modificador será
Amoroso
Prepotente
Persuasivo
Diplomático
Unitonal
Multitonal
Matizado
Policromo
Perfumado

Resultará uma necessária variedade de trajes, mesmo se numa cidade a


população carecer de imaginação.
A alegria de nosso traje futurista ajudará para conquistar a propagação do
bom humor proclamado por meu grande amigo Palazzeschi em seu manifesto A
Contrador (Il Controdolore).
Para Marinetti

29 de dezembro de 1913

Em breve o manifesto futurista do vestido

Trad.: Aurora F. Bernardini

O TEMA NA PINTURA FUTURISTA


1914

ARDENGO SOFFICI

Se considerarmos o fato sob um ponto de vista conceptual, somos


conduzidos evidentemente a conclusões deste gênero: “Qualquer coisa que a arte
represente, o seu objeto é sempre o homem. Uma paisagem, uma natureza morta
não são outra coisa senão hieróglifos nos quais se insere uma personalidade, por
meio dos quais o artista dá a conhecer o seu ser espiritual”. Mas, se forem
deixados de lado semelhantes truísmos estéticos, bem como também todas as
sutilezas que se possam fazer em torno do subjetivismo e do objetivismo e da sua
necessária conexão na obra de arte, para ater-se exclusivamente à prática da arte
pictórica como se apresenta de fato a quem a cultiva ou quer estudar-lhe o
desenvolvimento nas suas formas concretas, o problema do tema adquire
subitamente uma importância muito grande.
Disse e repeti até a saciedade o que é que se deve entender hoje por arte
pictórica: ouso, portanto, esperar que não se quererá acreditar que eu considere o
tema e lhe estabeleça o valor segundo os velhos critérios de nobreza, de
grandiosidade, ou por suas qualidades de ordem literária, dramática, sentimental,
etc. A sua importância reside inteiramente, para mim, no fato que cada novo tema
ordena ao pintor um novo sentido plástico e por isso um novo estilo. Quero dizer
que um conjunto inusitado de formas, de linhas, de cores, pede para ser expresso
através de um tratamento diferente da matéria, como maneira diferente de
conceber o ordenamento e a composição das partes em vista do que é a
qualidade essencial de toda obra: a unidade.
É um fato que a pintura antiga, baseada principalmente no estudo das
formas humanas e animais e um pouco naquelas da paisagem, impôs aos
conceitos de estilo e de plástica um significado que não pode ser aquele da nossa
modernidade.
O aparecimento quase improviso de formas novas, modificando a nossa
sensibilidade, deve necessariamente modificar também nossos modos de
expressão. Quem não compreende por exemplo que um avião, um trem, uma
máquina qualquer, um café-concerto, uma cena de circo, devem dar uma idéia
totalmente diferente da fusão das linhas, do acordo das cores e das luzes – para
quem quiser servir-se deles como elementos de sua obra – daquela que lhe daria
uma companhia de personagens sentados à mesa, um grupo de banhistas nus,
um par de bois no arado, ou um monte de frutas e de porcelanas sobre uma mesa.
Existe algo de mais vibrante, mais impetuoso, mais chocante, caótico, mais
nervoso naqueles primeiros temas, que as linhas calmas, os planos tranqüilos, as
cores harmônicas, o claro-escuro equilibrado sugeridos pelos segundos não
poderão jamais dar.
Diferença íntima, profunda, fundamental de estimulante lírico e por isso
diferença necessária de tecido expressivo plástico.
Neste sentido unicamente, como alguém que imponha ritmos plásticos que
lhe são adequados, o pintor futurista atribui uma grande importância ao tema. É
porque a modernidade é a condição imprescindível de todas as artes – para o
tema moderno.

Trad.: Maria Aparecida Abelaira Vizotto


PESOS, MEDIDAS E PREÇOS DO GÊNIO ARTÍSTICO
MANIFESTO FUTURISTA

B. CORRADINI, E. SETTIMELLI

11 de março de 1914

A crítica nunca existiu e não existe. A pseudocrítica passadista que nos tem
nauseado até ontem não tem sido outra senão um vício solitário de impotentes,
desabafo bilioso de artistas frustrados, palavrório inútil, dogmatismo vaidoso em
nome de autoridades inexistentes. Nós, futuristas, sempre negamos todo direito de
julgamento a esta atividade anfíbia, uterina e imbecil. A primeira crítica nasce hoje
na Itália por obra do Futurismo. Mas, desde que as palavras crítico e crítica estão
já desonradas pelo uso imundo que se lhes fez, nós, futuristas, as abolimos
definitivamente para adotar em seu lugar os termos MENSURAÇÃO e
MENSURADOR.

OBSERVAÇÃO 1ª - Toda atividade humana é uma projeção de energia


nervosa. Esta energia, que é única em constituições e ações, sofre diversas
transformações e assume diversos aspectos, segundo a matéria escolhida para
manifestá-la. Um organismo humano assume tanto maior importância quanto
maior é a quantidade de energia de que dispõe, quão mais potente é a sua
faculdade de modificar o ambiente em que age.

OBSERVAÇÃO 2ª - Não há nenhuma diferença essencial entre um cérebro


humano e uma máquina. Maior complicação de mecanismos, nada mais.
Exemplo: uma máquina de escrever é um organismo primitivo governado por uma
lógica que lhe é imposta pela sua construção. Seus raciocínios: se se calca uma
tecla é preciso escrever o sinal inferior; se se calca o maiúsculo e uma outra tecla,
é evidente que se deve escrever o sinal superior; quando é calcado o espaço,
avançar; quando o retrocesso é calcado, refazer o que estava antes. Para ela
sentir calcar um e e escrever um x, não é verdadeiro. A ruptura de qualquer tecla é
um ataque de demência furiosa.
Um cérebro de homem é um aparelho muito mais complicado. As relações
lógicas que o governam são numerosas. Estas lhe têm sido impostas pelo
ambiente no qual ele se formou. O raciocínio é um hábito de concatenar as idéias
em um certo modo: útil, porque coincide com o modo com o qual se desenvolvem
os fenômenos na nossa realidade. Mas coincide precisamente porque o extraímos
desta realidade que o circunda. Se o nosso mundo fosse diferente, nós
raciocinaríamos diversamente: se cadeiras derrubadas produzissem
habitualmente, ao cair, em todos os capitães de cavalaria a surdez do ouvido
esquerdo, esta relação seria verdadeira para nós. Assim, a maior parte das
noções são postas em cada cérebro em uma determinada ordem. Exemplos:
neve-branco-frio-inverno, fogo-vermelho-calor-dança-ritmo-alegria... Qualquer
pessoa é capaz de associar azul e céu. Enquanto, ao invés, existem pedaços de
conhecimento entre os quais é difícil estabelecer uma relação porque nunca foram
associados, porque não existem semelhanças evidentes entre eles.

OBSERVAÇÃO 3ª - A energia nervosa, no ato de aplicar-se a um trabalho


cerebral, acha diante de si um conjunto de elementos dispostos em uma certa
ordem. Alguns unidos, vizinhos, semelhantes, afins, outros distantes, disjuntos,
estranhos, diferentes. A energia, agindo sobre estas partículas de conhecimento,
não pode fazer outra coisa senão descobrir as relações e instituir as associações
entre estas, isto é, juntar, desconexar, criar combinações.

Disto surge a MENSURAÇÃO FUTURISTA, que se baseia nos seguintes


princípios incontestáveis:

1. O belo não tem nada a ver com a arte. DISCUTIR SOBRE UM


QUADRO OU SOBRE UM POEMA, FUNDAMENTANDO-SE NA
EMOÇÃO QUE SE RECEBE, É COMO ESTUDAR ASTRONOMIA,
ESCOLHENDO COMO PONTO DE PARTIDA A FORMA DO PRÓPRIO
UMBIGO. A emoção é um caráter acessório da obra de arte, pode existir
e pode não existir, varia de indivíduo a indivíduo e de momento a
momento: não pode servir para determinar um valor objetivo. Belo e feio,
“me agrada” e “não me agrada”, afirmações subjetivas, gratuitas,
interessantes, incontroláveis.
2. ÚNICO CONCEITO IGUAL PARA TODOS: O VALOR DETERMINADO
PELA RARIDADE NECESSÁRIA. Exemplo: não é verdadeiro para todos
que o mar seja belo, mas todos devem reconhecer que um diamante
tem um grande valor. O seu valor é determinado pela sua raridade, a
qual não é uma opinião.
3. No campo intelectual A RARIDADE NECESSÁRIA (não causal) DE UMA
CRIAÇÃO ESTÁ EM PROPORÇÃO DIRETA COM A QUANTIDADE DE
ENERGIA NECESSITADA PARA PRODUZI-LA.
4. A combinação de elementos (tirados da experiência) mais ou menos
diferentes é a matéria-prima, necessária e suficiente, de toda criação
intelectual. A quantidade de energia que conseguiu descobrir relações,
estabelecer conexões entre um certo número de elementos combinados,
estavam distantes, estranhos uns aos outros e quanto mais complexas e
numerosas são as relações descobertas. Isto é: A QUANTIDADE DE
ENERGIA CEREBRAL NECESSÁRIA PARA PRODUZIR UMA OBRA É
DIRETAMENTE PROPORCIONAL À RESISTÊNCIA QUE SEPARA OS
ELEMENTOS ANTES DE SUA AÇÃO E À COESÃO QUE OS UNE
DEPOIS.
5. MENSURAÇÃO FUTURISTA DE UMA OBRA DE ARTE QUER DIZER
DETERMINAÇÃO EXATA, CIENTÍFICA, EXPRESSA EM FÓRMULAS,
DA QUANTIDADE DE ENERGIA CEREBRAL REPRESENTADA PELA
PRÓPRIA OBRA. INDEPENDENTEMENTE DAS IMPRESSÕES BOAS,
MÁS OU NULAS QUE A GENTE POSSA RECEBER DA OBRA.
Tudo isto dá origem a uma concepção da arte absolutamente futurista, vale
dizer, essencialmente moderna, sem escrúpulos e violenta. Esta cirurgia resoluta
acabará por demolir o conceito passadista de Arte com A maiúsculo. Eis,
entretanto, algumas conseqüências imediatas:

1. DESAPARECIMENTO IMEDIATO DE TODO O


SENTIMENTALISMO INTELECTUAL (correspondente ao
sentimentalismo amoroso no campo da sensualidade) QUE SE
RECOLHE EM TORNO DA PALAVRA INSPIRAÇÃO. Sendo
demonstrada a puerilidade da idéia que uma obra de arte deva
comover-nos, é superjustificado o trabalho lúcido com mente fria,
talvez indolente, rindo, sobre um tema dado: por exemplo, dados
43 substantivos, 12 adjetivos de modo, 9 verbos no infinito, 3
preposições, 13 artigos e 25 sinais matemáticos ou musicais,
criar uma obra-prima em palavras em liberdade, servindo-se
apenas deles.
2. Lógica abolição de todas as formas de ilusão sobre o próprio
valor, de soberbia vã e de modéstia, que não terão mais nenhuma
razão de existir, dada a possibilidade de uma avaliação exata e
inapelável. Direito de proclamar e afirmar sempre a própria
superioridade, o próprio gênio. O mensurador futurista poderá
conferir as carteiras de imbecilidade, de mediocridade e de
genialidade para juntar aos documentos de reconhecimento
pessoal.
3. COMO O QUE VALE É UNICAMENTE A QUANTIDADE DE
ENERGIA EXTERIORIZADA, SERÃO PERMITIDAS AO ARTISTA
TODAS AS ESQUISITICES, TODAS AS LOUCURAS, TODAS AS
ILOGICIDADES.
4. Pela mesma razão o conceito de arte deverá ser enormemente
alargado também em um outro sentido. De fato, não se
compreende por que cada atividade deva por força encaixar-se
em uma ou em outra daquelas ridículas limitações que se
chamam música, literatura, pintura...e não, por exemplo, dedicar-
se a combinar organismos com pedaços de madeira, telas e
papel, plumas e pregos, os quais, deixados cair de uma torre com
altura de 37 metros e 3 centímetros, descrevam, caindo ao chão,
uma certa linha mais ou menos complexa, mais ou menos difícil
de obter, mais ou menos rara. Por isto CADA ARTISTA PODERÁ
INVENTAR UMA ARTE NOVA que seja expressão livre das
idiossincrasias particulares da sua constituição cerebral
modernamente louca e complicada, e na qual se encontram
mesclados com uma nova medida e modalidade, os meios de
expressão mais diversos: palavras, cores, notas, indicações de
forma, de perfume, de fatos, de ruídos, de movimentos, de
sensações físicas...ISTO É MISCELÂNEA CAÓTICA,
INESTÉTICA E DESABUSADA DE TODAS AS ARTES JÁ
EXISTENTES E DE TODAS AQUELAS QUE SÃO E SERÃO
CRIADAS PELA INEUXARÍVEL VONTADE DE RENOVAÇÃO
QUE O FUTURISMO SABERÁ INFUNDIR NA HUMANIDADE.
Além disso, a mensuração futurista varrerá da nossa civilização cheia do
novo “esplendor geométrico e mecânico” o monturo de cabeleiras fétidas, de
gravatas românticas, de altivez asceticultural e de miséria idiota, que deliciou as
gerações precedentes. A ação do mensurador futurista terá como efeito imediato a
colocação definitiva do artista na sociedade. O artista genial tem sido e é, ainda
hoje, socialmente um deslocado. Agora o gênio tem um valor social, econômico,
financeiro. O engenho é um gênero ativamente requisitado em todas as praças do
mundo. O seu valor é determinado como o de toda outra mercadoria, pela sua
raridade necessária. Mas, enquanto uma certa quantidade de um daqueles
gêneros considerados há longo tempo comerciáveis adquire em um certo
mercado, um valor fixo, bem raramente acontece que a uma certa quantidade de
energia artística se consiga atribuir um valor fixo, determinado por um estado de
coisas objetivo e controlável por quem quer que seja. Um pedaço de ouro ou uma
pedra preciosa têm no mundo, em um certo momento, um valor de raridade bem
definida baseado no qual é imposto o preço ao comprador. O MENSURADOR
FUTURISTA DEVERÁ, PORTANTO, DECOMPOR A OBRA ARTÍSTICA NAS
DESCOBERTAS SINGULARES DE RELAÇÕES QUE A CONSTITUEM,
DETERMINAR POR MEIO DE CÁLCULOS A RARIDADE DE CADA UMA DELAS,
ISTO É, A QUANTIDADE DE ENERGIA NECESSÁRIA PARA PRODUZI-LA, COM
BASE NESTA RARIDADE FIXAR PARA CADA UMA DESSAS UM PREÇO FIXO,
SOMAR OS VALORES PARTICULARES, DAR O PREÇO CONJUNTO DA OBRA.
Naturalmente, o preço deverá sempre ser justificado por uma fórmula de
mensuração que indique a quantidade de energia artística representada pela obra
e a maior ou menor cotação da energia artística sobre o mercado do momento.
Assim, destruído o esnobismo passadista da arte ideal, da arte-
sublimidade-sacra-inacessível, da arte-tormento-pureza-voto-solidão-desprezo da
realidade, anemia melancólica de desmiolados que se apartam da vida real
porque não sabem enfrentá-la, o artista encontrará finalmente o seu lugar dentro
da vida; entre o salsicheiro e o fabricante de pneumáticos, entre o coveiro e o
especulador, entre o engenheiro e o agricultor. É esta a primeira base de um novo
organismo financeiro mundial pelo qual um conjunto de atividades formidáveis de
desenvolvimento, inteireza e importância, os quais, até hoje, permaneceram no
domínio da barbárie, serão encastrados na civilização moderna. Nós, futuristas,
afirmamos que o fazer passar assim o resfolegar da locomotiva e a pulsação febril
da multidão da vida moderna através do corpo exangue da arte terá como efeito
imediato uma produção e uma seleção de obras mil vezes melhores de quantas
não tinham tido até hoje. É, mais que tudo, uma violenta cura depurativa e
reconstituinte da qual a arte tem necessidade, para eliminar as últimas infecções
passadistas que circulam em seu organismo.
A medição futurista, em seguida, enquanto de um lado dará ao artista
direitos inexpugnáveis, de outro deverá impor-lhe deveres e responsabilidades
precisas. Por exemplo: o pintor que anexou ao seu quadro as fórmulas valorativas
indicando, suponhamos, que aí estão contidas 10 descobertas de primeira
qualidade (30 liras cada uma), 20 de segunda (18 liras cada uma), 8 de terceira
(10 liras cada uma), e que fixa o preço assim em 740 liras, toda vez que a um
eventual controle resulte que qualquer uma das descobertas tem um valor menor
que aquele indicado ou que falta de vez, deverá ser processado por fraude e
punido com multa ou xadrez. ASSIM, NÓS PEDIMOS, SEM MAIS, À
AUTORIDADE PÚBLICA A CRIAÇÃO DE UM CORPO DE LEIS DESTINADO A
TUTELAR E A REGULAR O COMÉRCIO DA GENIALIDADE. É assombroso
observar como no campo da atividade intelectual a fraude seja hoje perfeitamente
lícita. É propriamente uma zona de barbárie que permanece passadisticamente
em meio à nossa modernidade progressiva. Nesta região, o esmurramento
futurista é lógico e necessário: isto cumpre as funções que em um domínio civil
são cumpridas pela lei. Absolutamente certos que as leis que exigimos nos serão
dadas em um tempo próximo, nós pedimos a partir de agora que SEJAM
PRIMEIRAMENTE PROCESSADOS SOB A ACUSAÇÃO DE FRAUDE
CONTÍNUA POR DANO DO PÚBLICO D’ANNUNZIO, PUCCINI E
LEONCAVALLO: de fato estes senhores vendem por milhares de liras obras cujo
valor varia de um mínimo de 35 centésimos a um máximo de 40 francos.
Enquanto estas leis não existem, nós teremos que considerar-nos
habitantes de um país selvagem. Que seja. Mas em barbárie, o soco e o tiro são
argumentos. Nos deixam, portanto, raciocinar assim.
Como se vê, o avaliador futurista exercerá uma ação totalmente diversa
daquela exercida até hoje pelo crítico passadista. Ele será um verdadeiro e
legítimo profissional, médico e psicólogo, cumprindo uma tarefa tornada válida e
prática pela lei. Assim para o artista. NÓS DEVEREMOS AFIXAR AMANHÃ
SOBRE AS NOSSAS PORTAS DE CASA AS TABULETAS: MEDIDOR,
FANTASTICADOR, FILÓSOFO, ESPECIALISTA EM POEMETOS
ASTRONÔMICOS, GÊNIO, LOUCO... Louco também, porque é tempo em que
mesmo da loucura (abalo das relações lógicas) se faça uma arte consciente e
evoluída. Um indivíduo que logra construir no próprio cérebro uma loucura
complicada assume um valor. UM BOM LOUCO PODE VALER MILHARES DE
FRANCOS. Outra atividade que será depurada e regulamentada pela avaliação
futurista é a prostituição. Uma vez que mesmo aqui se é freqüentemente vítima
forçada de fraudes deploráveis.
E agora, afirmando: 1. – QUE A INTUIÇÃO NÃO É OUTRA COISA SENÃO
UM RACIOCÍNIO FRAGMENTÁRIO E MAIS RÁPIDO; que entre raciocínio e
intuição não há diferença essencial: e que por isso, cada produto de uma é
controlável com o outro; 2. – que raciocínio e intuição são funções cerebrais
explicáveis e passíveis de seguimento até nas suas mais sutis particularidades,
mediante uma análise futurista do conteúdo do conhecimento até nas suas
profundidades mediúnicas; 3. – que a avaliação futurista será feita com base na
lógica (conjunto das relações que regem a realidade material refletida no cérebro
humano), às leis físicas da energia, e a um estado de coisas ambiente,
independente de toda consideração subjetiva (nós avaliamos em 12.000 liras um
quadro do pintor Boccioni que nos dá uma dor de estômago insuportável; e fomos
obrigados a admitir o enorme valor de uma onomatopéia do poeta Marinetti,
assustadoramente feia, antiestética e repugnante); formulamos as seguintes
absolutas.

CONCLUSÕES FUTURISTAS:

1.A ARTE É UMA SECREÇÃO CEREBRAL EXATAMENTE MENSURÁVEL;


2. É NECESSÁRIO PESAR O PENSAMENTO E VENDÊ-LO COMO UMA
MERCADORIA QUALQUER;
3. A OBRA DE ARTE NÃO É MAIS QUE UM ACUMULADOR DE ENERGIA
CEREBRAL; FAZER UMA SINFONIA OU UM POEMA QUER DIZER: TOMAR UM
CERTO NÚMERO DE SONS OU DE PALAVRAS E COLÁ-LOS
CONJUNTAMENTE UNTANDO-OS DE FORÇA INTELECTUAL;
4. O GÊNERO DA OBRA NÃO TEM POR SI PRÓPRIO NENHUM VALOR; PODE
ADQUIRIR UM VALOR PELAS CONDIÇÕES DE AMBIENTE NO QUAL É
PRODUZIDO: VALOR POLÊMICO, DE ABSTRAÇÃO...;
5. O PRODUTOR DE FORÇA CRIADORA ARTÍSTICA DEVE PASSAR A FAZER
PARTE DO ORGANISMO COMERCIAL QUE É O MÚSCULO DE TODA A VIDA
MODERNA. O DINHEIRO É UM DOS PONTOS MAIS FORMIDAVELMENTE E
BRUTALMENTE SÓLIDOS DA REALIDADE NO MEIO DA QUAL VIVEMOS:
BASTARÁ REFERIR-SE A ELE PARA ELIMINAR TODA POSSIBILIDADE DE
ERRO OU DE INJUSTIÇA IMPUNE. ALÉM DISSO, UMA BOA INJEÇÃO DE
SORO NEGOCISTA INTRODUZIRÁ DIRETAMENTE NO SANGUE DO CRIADOR
INTELECTUAL UMA CONSCIÊNCIA EXATA DOS SEUS DIREITOS E DAS SUAS
RESPONSABILIDADES;
6. É NECESSÁRIO ABOLIR, ALÉM DAS PALAVRAS “CRÍTICA” E “CRÍTICO”, OS
TERMOS: ALMA, ESPÍRITO, ARTISTA E TODO OUTRO VOCÁBULO QUE
ESTEJA COMO ESTES IRREMEDIAVELMENTE INFECTO DE ESNOBISMO
PASSADISTA, SUBSTITUINDO-OS POR DENOMINAÇÕES EXATAS COMO:
CÉREBRO, DESCOBERTA, ENERGIA, CEREBRADOR, FANTASTICADOR...;
7. JOGAR RESOLUTAMENTE AO MAR TODA A ARTE PASSADA, ARTE QUE
NÃO NOS INTERESSA E QUE, POR OUTRO LADO, NÃO PODEMOS MEDIR,
DADA A NOSSA ABSOLUTA FORÇADA IGNORÂNCIA DE TODOS OS
PARTICULARES DE AMBIENTE QUE CONSTITUÍAM O ENQUADRAMENTO DA
VIDA NO QUAL SURGIU.
8. EXALTAR O MARAVILHOSO ALCANCE DE NOSSAS AFIRMAÇÕES
CONCERNENTES À VONTADE DE GÊNIO E DE RENOVAÇÃO FUTURISTA.

Alegramo-nos vivamente ao constatar que o Futurismo, nascido em Milão,


capital industrial e comercial da Itália, e lançado há 5 anos em todo o mundo pelo
poeta Marinetti nas colunas do Figaro de Paris, após haver vencido no campo da
arte com as PALAVRAS EM LIBERDADE, O DINAMISMO PLÁSTICO, A MÚSICA
ANTIGRACIOSA PLURITONAL SEM QUADRATURA, e a ARTE DOS RUÍDOS,
está por irromper mesmo nos laboratórios e nas escolas da ciência passadista,
museus e cemitérios de silogismos mumificados, câmaras de tortura da livre
loucura criadora.

Trad.: Nancy Rozenchan

MOVIMENTO ABSOLUTO + MOVIMENTO RELATIVO = DINAMISMO


1914

UMBERTO BOCCIONI

O movimento absoluto é uma lei dinâmica centrada no objeto. A construção


plástica do objeto, considera neste caso o movimento que o objeto tem em si
mesmo, esteja ele em repouso ou em movimento. Faço esta distinção entre
repouso ou em movimento para poder explicar-me, mas na realidade não existe
um repouso, existe apenas um movimento, não sendo o repouso senão uma
aparência ou uma relatividade. Esta construção plástica obedece a uma lei de
movimento que caracteriza o corpo. E a potencialidade plástica que o objeto traz
consigo estritamente ligada à própria substância orgânica segundo os seus
caracteres gerais: porosidade, impermeabilidade, rigidez, elasticidade, etc., de
acordo com os caracteres particulares: cor, temperatura, consistência, forma
(plana, côncava, convexa, angular, cúbica, cônica, em espiral, elíptica, esférica,
etc.).
Esta potencialidade plástica do objeto é sua força, isto é, a sua psicologia
primordial. Esta força, esta psicologia primordial nos permite criar no quadro um
novo tema, que não tem por objetivo a reprodução narrativa de um episódio, mas
é, ao contrário, uma coordenação de valores plásticos da realidade, coordenação
puramente arquitetônica e livre de influências literárias ou sentimentais.
Neste primeiro estado de movimento, que eu emprego como uma coisa à
parte, enquanto a realidade não o é, o objeto não é visto no seu movimento
relativo, mas é concebido nas suas linhas-vivas que revelam como ele se
decompõe segundo as tendências das suas forças.
Assim nós chegamos a uma decomposição do objeto que não é mais o
esquema intelectivo cubista, mas sim, a aparição do objeto, a sua interpretação
através de uma sensação infinitamente refinada e superior à antiga.
Isto é para nós o movimento absoluto, que poderia ser chamado de
respiração ou de palpitação do objeto. Desta respiração se encontra algum tímido
e inconsciente aceno na arte italiana de todos os tempos. Isso constitui a própria
plástica.
Quando tardiamente alguns cubistas se preocuparam com isso,
demonstraram aquilo que eu já havia dito sobre seu goticismo, e mais uma vez
prestaram homenagem ao primato plástico dos italianos.
Logo, está claro que dois objetos de forma diferente se influenciam e se
caracterizam pelas diferentes potencialidades do seu movimento absoluto. O mais
fraco, seja ele de temperamento estático ou dinâmico, sofrerá sempre a força do
mais forte, seja estático ou dinâmico.
Coloquem perto, por exemplo, uma esfera e um cone e terão na primeira
uma sensação de ímpeto dinâmico e no segundo uma sensação de indiferença
estática. Na esfera, observarão uma tendência para partir, no cone, uma tendência
para radicar-se.
A zona atmosférica que limita com o lado do cone, oposto àquele junto do
qual se encontra a esfera, será uma zona vazia e criará no cone um perfil nítido.
A zona oposta influenciada pelos movimentos da esfera será mais densa de
atmosfera e dará àquele lado do cone, uma esfumadura de atração, uma rebarba
do perfil em direção aos círculos e às elipses da expansão da esfera.
Por outro lado, enquanto a esfera cria dilatações horizontais e sugere
possibilidades expansivas, o cone cria penetrações descendentes e limitações
angulares no ápice.
Observando os planos inclinados de uma pirâmide, parece que eles atraem
um cilindro em posição vertical que lhe esteja próximo. E enquanto o cilindro
mostra as dilatações em espiral sobre si mesmo, a pirâmide tem uma tendência a
radiações angulares em planos inclinados. Na pirâmide a convergência dos planos
vence o dinamismo esférico, ascendente do cilindro. Este possui uma ação sobre
si mesmo, a outra uma ação de atração, de contacto.
No caso de um cubo observado ao lado de uma esfera, a estática horizontal
e perpendicular do cubo luta com a rotação ideal glóbica (linhas-força) da esfera
uma vez que o cubo e a esfera se equivalem como potência.
Limito-me aqui à observação dos corpos simples, geometricamente
definidos e de uma construção plástica primordial. Imagine o leitor este método de
estudo transportado para a vida, nas infinitas combinações de luzes e de formas
para os reinos mineral, vegetal, animal, mecânico e compreenderá qual
embriaguez, quais visões de poesia plástica até hoje desconhecidas estão
reservadas para o pintor futurista e para as gerações futuras.

* * *

O movimento relativo é uma lei dinâmica centrada sobre o movimento do


objeto.
É acidental na medida em que se refere de preferência aos objetos móveis
com objetos imóveis. Na realidade, porém, não existe nada de imóvel em nossa
moderna intuição da vida.
O que se disse, baseia-se nesta verdade: Um cavalo em movimento não é
um cavalo parado que se move, mas é um cavalo em movimento, isto é, uma
outra coisa e que deve ser concebida e expressada como uma coisa
simplesmente diferente.
Trata-se de conceber os objetos em movimento, além do que no movimento
que eles trazem consigo. Isto é, trata-se de encontrar uma forma que seja
expressão deste novo absoluto: a velocidade, que um temperamento
verdadeiramente moderno não pode considerar. Trata-se de estudar os aspectos
que a vida assumiu através da velocidade e da conseqüente simultaneidade.
Os homens até hoje observaram as mudanças que o vento produz nas
plantas, na paisagem, nos drapeados, etc. Não observaram, ainda, que os trens,
os automóveis, as bicicletas, os aviões revolveram a concepção contemplativa da
paisagem. Pode-se dizer que na normalidade da velocidade com que vemos os
aspectos naturais, o deter-se da observação prospectiva e anatômica da
paisagem ou de qualquer outro elemento natural, agora já é contra a natureza.
Para fazer uma roda em movimento, ninguém pensa mais em observá-la
parada, contar seus raios, fixar seu círculo e depois desenhá-la em movimento.
Isto seria impossível. Mas este procedimento que já nos parece absurdo para uma
roda, quer-se usar ao contrário para a figura humana que vive do movimento dos
braços e das pernas e de toda ela mesma.
Isto acontece porque por tradição antiqüíssima, as plantas, os objetos nos
interessam menos, psicologicamente, que os animais e o homem.
Todos estão prontos para admitir na paisagem qualquer construção ou
qualquer técnica, menos porém num cavalo e menos ainda num homem e chego a
dizer muito menos na figura de uma mulher, de tal forma o nobre, o sublime, o
poético literário tomaram a supremacia na avaliação plástica.
Hoje, a modernidade aplicou nos anúncios, nos desenhos de jornais, nas
caricaturas, uma espécie de norma dinâmica rudimentar, porém mais
correspondente com a realidade.
Mesmo nestas formas humildes e bárbaras teve-se menos coragem em
relação aos seres vivos do que para com os objetos ditos inanimados: automóveis,
trens em rápido movimento, bondes, etc. É mais fácil ver em um jornal humorístico
o dinamismo aplicado às formas de um moleque que foge com a galinha do que
um quadro de batalha de um pintor considerado como uma glória nacional.
A razão está em que não existe em todos os museus do mundo um quadro
ou um desenho de um grande antigo que tinha um exemplo de um homem que
foge ou que corre, como deveria.
Os nossos grandes pintores nacionais e mesmo estrangeiros se não se
sentem de acordo com o passado, suam frio. Nos primeiros tempos do
impressionismo o violeta era aceito para os prados, os céus, os bosques... Ai se
fosse visto sobre o rosto, os braços, o busto de uma bela mulher.
Igualmente o pontilhismo... um rosto pontilhado, listrado fazia enfurecer o
público, que, ao contrário, suportava um céu tracejado, e também talvez um
cavalo, ou talvez um camponês...
Mas um retrato de cavalheiro ou de uma dama, que horror!
O conceito de movimento no estudo e na representação da vida
permaneceu sempre fora da arte, fora deste templo-odioso que nós teríamos
intenção de queimar se fosse tangível.
É verdade que as rédeas de uma carruagem, a hélice de um avião, têm um
movimento rapidíssimo em confronto com as pernas de um homem ou de um
cavalo, mas trata-se sempre de uma simples variação de formas e de ritmo. É
uma questão de graus no movimento e sobretudo uma questão de tempo.
Quando um crítico em voga e bem cotado nos dará, em um grande jornal
diário, pelo seu instinto de conservação, a grande honra de nos chamar de gênios
e de dizer que alguma obra-prima nós também a fizemos, junto com Michelângelo,
Rembrandt, etc. O Dinamismo impor-se-á, marchará, será aplicado. Farejando-se
que com isso também pode-se ganhar e dormir em paz, muitos pintores nos
seguirão.

Trad.: Maria Aparecida Abelaira Vizotto

O ESPLENDOR GEOMÉTRICO E MECÂNICO E A SENSIBILIDADE NUMÉRICA


MANIFESTO FUTURISTA

F.T. MARINETTI

15 de março de 1914

Nós já apressamos o funeral grotesco da Beleza passadista (romântica,


simbolista e decadente) que tinha por elementos essenciais a recordação, a
nostalgia, a névoa de lenda produzida pelas distâncias de tempo, o fascínio
exótico produzido pelas distâncias de espaço, o pitoresco, o impreciso, o agreste,
a solidão selvagem, a desordem multicor, a penumbra crepuscular, a corrosão, o
desgaste, os vestígios sujos dos anos, o desmoronar das ruínas, o mofo, o sabor
da putrefação, o pessimismo, a tísica, o suicídio, as coqueterias da agonia, a
estética do insucesso, a adoração da morte.
Do caos das novas sensibilidades contraditórias, nasce hoje uma nova
beleza que nós, Futuristas, substituiremos à primeira, e que eu chamo
ESPLENDOR GEOMÉTRICO E MECÂNICO.
Isto tem por elementos essenciais: o higiênico olvido, a esperança, o
desejo, a força refreada, a velocidade, a luz, a vontade, a ordem, a disciplina, o
método; o senso da grande cidade; o otimismo agressivo que resulta do culto dos
músculos e do esporte; a imaginação sem fios, a ubiqüidade, o laconismo e a
simultaneidade que derivam do turismo, do negocismo e do jornalismo; a paixão
pelo sucesso, o novíssimo instinto da proeza, a entusiástica imitação da
eletricidade e da máquina; a concisão essencial e a síntese; a precisão feliz das
engrenagens e dos pensamentos bem azeitados; a concorrência de energias
convergentes em uma só trajetória vitoriosa.
Os meus sentidos futuristas perceberam pela primeira vez este esplendor
geométrico sobre a ponte de um encouraçado. A velocidade da nave, a distância
dos tiros fixados do alto do castelo da popa na ventilação fresca das
probabilidades guerreiras, a vitalidade estranha das ordens transmitidas pelo
almirante e subitamente tornadas autônomas, não mais humanas, através dos
caprichos, das impaciências e das doenças do aço e do cobre; tudo isto irradiava
esplendor geométrico e mecânico. Senti a iniciativa lírica da eletricidade correr
através da blindagem das torres quádruplas, descer por tubos blindados até o
compartimento dos projéteis, trazendo os obuses até às culatras, até os canos
emergentes. Mira em altura, em direção, gradua o alcance do tiro, flama, recuo
automático, arremesso personalíssimo do projétil, choque, abalo, odor de ovos
podres, gases fétidos, ferrugem, amoníaco, etc. Este novo drama cheio de
imprevisto futurista e de esplendor geométrico, é para nós cem mil vezes mais
interessante do que a psicologia do homem, com as suas combinações
limitadíssimas.
As grandes coletividades humanas, marés de rostos e braços urrantes,
podem dar-nos às vezes uma ligeira emoção. A ela, nós preferimos a grande
solidariedade dos motores preocupados, zelosos e ordenados. Nada é mais bonito
que uma grande central elétrica zumbindo, que contem a pressão hidráulica de
uma cadeia de montanhas e a força elétrica de um vasto horizonte, sintetizadas
nos quadros de mármore de distribuição, hirtos de registros, de teclados e de
comutadores luminosos. Estes quadros são os nossos únicos modelos em poesia.
Temos como precursores os ginastas e os equilibristas, que realizam nos
desenvolvimentos, nos repousos e nas cadências de suas musculaturas aquela
perfeição cintilante de engrenagens precisas, e aquele esplendor geométrico que
nós queremos atingir em poesia com as palavras em liberdade.
1.Nós destruímos sistematicamente o Eu literário para que se espalhe na vibração
universal, e chegamos a exprimir o infinitamente pequeno e as agitações
moleculares. Ex.: Rapidíssimo agitar-se de moléculas no orifício produzido por um
obus (última parte de FORTE CHEITTAM-TÉPÉ, no meu ZANG TUMB TUMB). A
poesia das forças cósmicas suplanta assim a poesia do humano.
FICAM ABOLIDAS AS ANTIGAS PROPORÇÕES (românticas, sentimentais
e cristãs) DO CONTO, segundo as quais um ferido em batalha tinha uma
importância exageradíssima em confronto com os instrumentos de destruição, das
posições estratégicas e das condições atmosféricas.
No meu poema ZANG-TUMB-TUMB eu descrevo o fuzilamento de um
traidor búlgaro com poucas palavras em liberdade, enquanto prolongo uma
discussão de 2 generais turcos sobre distâncias de tiros e sobre canhões
adversários...
2. Demonstrei várias vezes como o substantivo, estragado pelos múltiplos
contatos ou pelo peso dos adjetivos parnasianos e decadentes, readquire seu
absoluto valor e sua força expressiva quando aparece desnudado e isolado. Entre
os substantivos nus, eu saliento o substantivo elementar e o substantivo síntese-
movimento (ou nó de substantivos). Esta distinção, não absoluta, resulta a partir
de intuições quase que incaptáveis. Segundo uma analogia elástica e
compreensiva, vejo cada substantivo como um vagão ou como uma correia
acionada pelo verbo no infinito.
3. Salvo necessidades de contrastes ou de mudança de ritmos, os diferentes
modos e tempos do verbo têm de ser abolidos, pois fazem do verbo uma roda
desengonçada de diligência que se adapta às escabrosidades das estradas do
campo, mas não pode girar velozmente num caminho liso. O verbo no infinito, ao
contrário, é o próprio movimento do novo lirismo, com a escorrência de uma roda
de trem, ou de uma hélice de avião.
Os diversos modos e tempos do verbo expressam um pessimismo prudente
e sossegante, um egotismo restrito, episódico, acidental, um alto e baixo de força
e de exaustão, de desejo e de ilusão, pausas, em suma, no ímpeto da esperança
e da vontade. O verbo no infinito exprime o otimismo mesmo, a generosidade
absoluta e a loucura do Devir. Quando eu digo: correr, qual é o sujeito deste
verbo? Todos e tudo: isto é irradiação universal da vida que corre e da qual somos
uma partícula consciente. Ex.: O final de Salão de Hotel, do palavrista em
liberdade Folgore. O verbo no infinito é a paixão do eu que se abandona ao devir
do todo, a continuidade heróica, desinteressada do esforço e da alegria de agir.
Verbo no infinito = divindade da ação.
4.Mediante um ou mais adjetivos isolados entre parênteses ou postos ao lado das
palavras em liberdade atrás de um eixo perpendicular (em colchete), pode-se dar
as diferentes atmosferas do conto e os tons que o regem. Estes adjetivos-
atmosfera ou adjetivos-tons não podem ser substituídos pelos substantivos. São
convicções intuitivas dificilmente demonstráveis. Acredito, porém, que isolando,
por exemplo, o substantivo ferocidade (ou colocando-o dentro de um colchete,
numa descrição de massacre) obter-se-á um estado de ânimo de ferocidade fixo e
fechado num perfil puro. Enquanto que, se ponho entre parênteses ou entre
chaves o adjetivo feroz, formo um adjetivo-atmosfera ou adjetivo-tom, que
enredará toda a descrição do massacre sem deter a corrente das palavras em
liberdade.
5. Malgrado as mais hábeis deformações, o período sintático continha sempre
uma perspectiva científica e fotográfica absolutamente contrária aos direitos da
emoção. COM AS PALAVRAS EM LIBERDADE TAL PERSPECTIVA
FOTOGRÁFICA É DESTRUÍDA e atinge-se naturalmente a perspectiva emocional
multiforme. (Ex.: homem + montanha + vale do palavrista-livre Boccioni.)
6. Com as palavras em liberdade, formamos por vezes quadros sinóticos de
valores líricos, que nos permitem continuar lendo contemporaneamente diversas
correntes de sensações entrecruzadas ou paralelas. Tais quadros sinóticos não
devem ser a meta, mas um meio de aumentar a força expressiva do lirismo. É
preciso, portanto, evitar toda preocupação pictórica, não se comprazendo em
jogos de linhas, nem em desproporções tipográficas curiosas.
Tudo o que nas palavras em liberdade não contribui para exprimir com o
novíssimo esplendor geométrico-mecânico a fugidia e misteriosa sensibilidade
futurista, deve ser resolutamente banido. O palavrista-livre Cangiullo em
Fumantes IIª ficou muito feliz em dar com esta analogia desenhada:

FUMA R

os longos e monótonos devaneios e o expandir-se do tédio-fumo de uma longa


viagem de trem.
As palavras em liberdade, neste esforço contínuo de exprimir com a
máxima força e a máxima profundidade, transformam naturalmente em auto-
ilustrações, mediante uma ortografia e tipografia livres expressivas, os quadros
sinóticos de valores líricos e as analogias desenhadas. (Ex.: A bola desenhada
tipograficamente em meu zang tumb tumb.) Logo que se alcança tal expressão
maior, as palavras em liberdade retornam ao seu fluir normal. Os quadros
sinóticos de valores são, além disso, a base crítica em palavras em liberdade.
(Ex.: Balanço 1910-1914 do palavrista-livre Carrà).
7.A ORTOGRAFIA E A TIPOGRAFIA LIVRES EXPRESSIVAS SERVEM ALÉM DO
MAIS PARA EXPRIMIR A MÍMICA FACIAL E A GESTICULAÇÃO DO NARRADOR.
Assim as palavras em liberdade conseguem utilizar (exprimindo-a
completamente) aquela parte da exuberância comunicativa e de genialidade
epidérmica que é uma das características das raças meridionais. Tal energia de
acento, de voz e de mímica que até agora se revelava em tenores comoventes e
em conversas brilhantes, encontra a sua expressão natural nas desproporções
dos caracteres tipográficos que reproduzem os trejeitos do rosto e a força
escultória e cinzelante dos gestos. As palavras em liberdade tornam-se desse
modo o prolongamento lírico e transfigurado de nosso magnetismo animal.
8.Nosso crescente amor pela matéria, a vontade de penetrá-la e de conhecer suas
vibrações, a simpatia física que nos liga aos motores, impele-nos ao uso de
onomatopéias.
O rumor, sendo resultado do atrito ou do choque de sólidos, líquidos ou gás
em velocidade, a onomatopéia, que reproduz o rumor, é necessariamente um dos
elementos mais dinâmicos da poesia. Como tal, a onomatopéia pode substituir o
verbo no infinito, especialmente se está em oposição a uma ou várias
onomatopéias. (Ex.: a onomatopéia tatatata das metralhadoras, oposta ao
urrraaaah dos turcos no fim do capítulo “Ponte”, de meu Zang Tumb Tumb.)
A brevidade das onomatopéias permite neste caso o fornecimento dos
agilíssimos entrechos de ritmos diversos. Esses perderiam parte de sua
velocidade se fossem expressos mais abstratamente, com maior desenvolvimento,
isto é, sem o trâmite de onomatopéias:
a)ONOMATOPÉIA DIRETA IMITATIVA ELEMENTAR REALISTA, que serve
para enriquecer de realidade brutal o lirismo impedindo-o de tornar-se abstrato
demais ou artístico demais. (Ex.: pic pac pum, fuzilaria). Em meu Contrabando de
guerra, em Zang tumb tumb, a onomatopéia estridente ssiiiiii dá o assobio de um
rebocador no Mosa e é seguida pela onomatopéia velada ffiiii ffiiiiii, eco da outra
margem. As duas onomatopéias evitaram que eu descrevesse a largueza do rio,
que é assim definida pelo contraste das duas consoantes s e f.
b)ONOMATOPÉIA INDIRETA COMPLEXA E ANALÓGICA. Ex.: em meu
poema Dunas a onomatopéia dum-dum-dum-dum exprime o rumor rotativo do sol
africano e o peso alaranjado do céu criando uma relação entre sensações de
peso, calor, cor, odor e rumor. Outro exemplo: a onomatopéia stridionla stridionla
stridionlaire que se repete no primeiro canto de meu poema épico La conquête
des étoiles forma uma analogia entre o estridor de grandes espadas e o agitar-se
raivoso das ondas, antes de uma grande batalha de águas em tempestade.
c)ONOMATOPÉIA ABSTRATA, expressão rumorosa e inconsciente dos
movimentos mais complexos e misteriosos de nossa sensibilidade. (Ex.: em meu
poema Dunas, a onomatopéia abstrata ran ran ran não corresponde a nenhum
rumor da natureza ou do maquinismo, mas exprime um estado de ânimo).
d) ACORDO ONOMATOPAICO PSÍQUICO, isto é, a fusão de 2 ou 3
onomatopéias abstratas.
O amor pela precisão e pela liberdade essencial deu-me naturalmente o
gosto pelos números, que vivem e respiram sobre o papel como seres vivos em
nossa nova sensibilidade numérica. Ex.: ao invés de dizer, como qualquer escritor
tradicional: “um vasto e profundo repicar de sino” (anotação imprecisa e por isso
ineficaz), ou então, como um camponês inteligente: “pode-se dizer que este sino é
do vilarejo tal ou outro qualquer” (anotação mais precisa e eficaz), eu capto com
precisão intuitiva a potência do ribombo e determino-lhe a amplitude, dizendo:
“sino repicar amplitude 20 km²”. Dou assim todo um horizonte vibrante e
quantidades de seres distantes que estendem a orelha ao mesmo som de sino.
Saio do impreciso, do banal, e me aposso da realidade com um ato volitivo que
subjuga e deforma originalmente a vibração própria do metal.
Os sinais matemáticos + - × = servem para obter maravilhosas sínteses e
concorrem, com sua simplicidade abstrata de engrenagens anônimas, para dar o
esplendor geométrico e mecânico. Por exemplo, teria sido necessária ao menos
uma inteira página de descrição para dar este vastíssimo e complicado horizonte
de batalha, que, ao invés, encontrou esta equação lírica definitiva: “horizonte =
broca agudíssima do sol + 5 sombras triangulares (1 km de lado) + 3 losangos de
luz rósea + 5 fragmentos de colinas + 30 colunas de fumaça + 23 labaredas”.
Eu utilizo x para indicar as pausas interrogativas do pensamento. Elimino
assim o ponto de interrogação, que localizava por demais arbitrariamente sobre
um único ponto da consciência sua atmosfera de dúvida. Com o x matemático, a
suspensão dubitativa expande-se de repente sobre a inteira aglomeração de
palavras em liberdade.
Sempre intuitivamente, eu introduzo por entre as palavras em liberdade
números que não têm significado nem valor direto, mas que, (dirigindo-se fônica e
opticamente para a sensibilidade numérica) exprimem as várias intensidades
transcendentais da matéria e as respondências inabaláveis da sensibilidade.
Eu crio verdadeiros teoremas ou equações líricas, introduzindo números
escolhidos intuitivamente e dispostos no próprio centro de uma palavra, com uma
certa quantidade de + - x =, eu dou as espessuras, o relevo, os volumes das
coisas que a palavra deve exprimir. A disposição +-+-++x serve a dar, por
exemplo, as mudanças e a aceleração da velocidade de um automóvel. A
disposição +++++ serve para dar a amontoação de sensações iguais. (Ex: “odor
fecal da disenteria + fedor melado dos suores da peste + mau cheiro amoniacal,
etc., no “Trem de soldados doentes” do meu Zang tumb tumb).
Assim ao “ciel antérieur où fleurit la beauté” de Mallarmé, nós substituímos
o esplendor geométrico e mecânico e a sensibilidade numérica nas palavras em
liberdade.

Trad.: Nancy Rozenchan

A ARQUITETURA FUTURISTA
1914

ANTONIO SANT’ELIA

Depois de 700 não existiu mais nenhuma arquitetura. Uma descabida


miscelânea dos mais variados elementos de estilo, usada para mascarar o
esqueleto da casa moderna, é chamada de arquitetura moderna. A nova beleza do
cimento e do ferro vem profanada pela superposição de carnavalescas
incrustações decorativas que não são justificadas, nem por necessidades
construtivas, nem pelo nosso gosto, e são originárias da antiguidade egípcia,
indiana ou bizantina e daquele surpreendente florescer de idiotice e de impotência
que tomou o nome de NEOCLASSICISMO.
Na Itália se acolhem estas alcovitices arquitetônicas, e se rotula a cobiçosa
incapacidade estrangeira por invenção genial, por arquitetura novíssima. Os
jovens arquitetos italianos (aqueles que atingem a originalidade a partir da
clandestina compulsação de publicações artísticas) exibem os seus talentos nos
bairros novos de nossas cidades, onde uma alegre salada de colunazinhas
ogivais, de folhonas seiscentistas, agudos arcos góticos, pilastras egípcias,
volutas rococó, meninos quatrocentistas, cariátides infladas, ocupa seriamente o
lugar do estilo, e quer se assemelhar presunçosamente ao monumental. O
caleidoscópico aparecer e reaparecer de formas, o multiplicar-se das máquinas, o
crescer quotidiano das necessidades impostas pela rapidez das comunicações,
pela aglomeração dos homens, pela higiene e por centenas de outros fenômenos
da vida moderna, não trazem nenhuma perplexidade a estas pretensas
renovações da arquitetura. Eles perseveram cabeçudos com as regras de Vitruvio,
de Vignola e de Sansovino e com algumas publicaçõezinhas de arquitetura alemã
na mão, a estampar a imagem da imbecilidade sobre as nossas cidades, que
deveriam ser a projeção imediata e fiel de nós mesmos.
Assim esta arte expressiva e sintética, tornou-se nas suas mãos, uma vazia
exercitação estilística, uma matutagem de fórmulas muito mal juntadas
camuflando, como o edifício moderno, a velha lata passadista de tijolo e de pedra.
Como se nós, acumuladores e geradores de movimentos, com os nossos
prolongamentos mecânicos, com o rumor e com a velocidade da nossa vida,
pudéssemos viver nas mesmas ruas construídas para a sua necessidade pelos
homens de há quatro, cinco, seis séculos atrás.
É esta a suprema imbecilidade da arquitetura moderna que se repete pela
cumplicidade mercantil das academias, domicílios coagidos da inteligência, onde
se obrigam os jovens à onanística cópia dos modelos clássicos, ao invés de abrir
as suas mentes para a procura dos limites e para a solução do novo e imperioso
problema: A CASA E A CIDADE FUTURISTAS. A casa e a cidade espiritualmente
e materialmente nossas, nas quais o nosso tumulto possa desenvolver-se sem
parecer um grotesco anacronismo.
O problema da arquitetura futurista não é um problema de remanejamento
linear. Não se trata de encontrar novas formas, novas esquadrias de janelas e
portas, de substituir colunas, pilastras, prateleiras com cariátides, marimbondos,
rãs, não se trata de deixar a fachada com tijolo aparente ou revesti-la de massa,
de pedra, nem de determinar diferenças formais entre o edifício novo e o velho,
mas de criar de vez a casa futurista, de construí-la com todos os recursos da
técnica e da ciência, satisfazendo fartamente cada exigência do nosso costume e
do nosso espírito, pisando o que é grotesco e antitético para nós (tradição, estilo,
estética, proporção), determinando novas formas, novas linhas, uma nova
harmonia de perfis e de volumes, uma arquitetura que tenha a sua razão de ser
apenas nas condições especiais da vida moderna, e a sua correspondência como
valor estético das nossas sensibilidades. Esta arquitetura não pode estar sujeita a
nenhuma lei de continuidade histórica. Deve ser nova como novo é o nosso
estado de espírito.
A arte de construir pôde evoluir no tempo e passar de um estilo a outro,
mantendo inalterados os caracteres gerais da arquitetura, porque na história, são
freqüentes as mudanças de moda e aquelas determinadas pelo revesar-se das
convicções religiosas e das plataformas políticas; mas são raríssimas aquelas
causas de profunda mutação nas condições do ambiente que desengonçam e
renovam, como a descoberta de leis naturais, o aperfeiçoamento dos meios
mecânicos, o uso racional e científico do material. Na vida moderna o processo de
conseqüente desenvolvimento estilístico na arquitetura detém-se. A
ARQUITETURA SE SEPARA DA TRADIÇÃO. RECOMEÇA-SE FORÇOSAMENTE
PELO PRINCÍPIO.
O cálculo sobre a resistência do material, o uso do cimento armado e do
ferro excluem a “arquitetura” entendida no sentido clássico e tradicional. Os
materiais modernos de construção e as nossas noções científicas, não se prestam
absolutamente para a disciplina dos estilos históricos, e constituem a causa
principal do aspecto grotesco das construções de moda nas quais pretender-se-ia
obter da leveza, da esbeltez soberba da poutrelle e da fragilidade do concreto, a
curva pesada do arco e o aspecto maciço do mármore.
A formidável antítese entre o mundo moderno e o antigo é determinada por
tudo aquilo que não havia antes. Na nossa vida entraram elementos de que os
antigos nem sequer suspeitaram da sua possibilidade; foram determinadas
contingências materiais e relevadas atitudes de espírito que repercutiram em mil
efeitos; o primeiro entre todos foi a conformação de um novo ideal de beleza ainda
obscuro e em estágio embrionário, mas de que a própria multidão já sente o
fascínio. Perdemos o sentido do monumental, do pesado, do estático,
enriquecemos a nossa sensibilidade com o gosto pelo leve, pelo prático, pelo
efêmero, e pelo veloz. Sentimos que não somos mais os homens das catedrais,
dos palácios e dos púlpitos; mas dos grandes hotéis, das estações ferroviárias,
das imensas estradas, das portas colossais, dos mercados cobertos, das galerias
luminosas, das auto-estradas, das demolições saudáveis.
Nós devemos inventar e refabricar a cidade futurista como se fosse um
imenso estaleiro tumultuante, ágil, móvel, dinâmico em todas as suas partes, e a
casa futurista semelhante a uma máquina gigantesca. Os elevadores não devem
se encolher como vermes solitários nos vãos das escadas; mas as escadas
tornadas inúteis, devem ser abolidas e os elevadores devem erguer-se como
serpentes, de ferro, de vidro, ao longo das fachadas. A casa de cimento, de vidro,
de ferro, sem pintura e sem escultura, rica apenas pela beleza congenial das suas
linhas e dos seus relevos, extraordinariamente feia na sua simplicidade mecânica,
alta e larga o quanto for necessário, e não o quanto está prescrito nas leis
municipais, deve surgir sobre a margem de um tumultuante abismo: a estrada, que
não se estenderá mais como um tapete ao nível das portarias, mas aprofundar-se-
á na terra em muitos planos que acolherão o tráfego metropolitano e serão unidas,
para os necessários trânsitos, por meio de passarelas metálicas e por
velocíssimos tapetes rolantes.
É PRECISO ABOLIR O DECORATIVO. É preciso resolver o problema da
arquitetura futurista não mais furtando fotografias da China, da Pérsia ou do
Japão, não mais se tornando imbecis sobre as regras de Vitruvio, mas por
intuições geniais e armados de uma experiência científica e técnica. Tudo deve ser
revolucionado. É preciso aproveitar telhados, utilizar os subterrâneos, diminuir a
importância das fachadas, transplantar os problemas do bom gosto do campo, da
maquetezinha, do capitelzinho, do portãozinho, para aquele mais amplo, dos
GRANDES AGRUPAMENTOS DE MASSAS, da VASTA DISPOSIÇÃO DAS
PLANTAS. Acabemos com a arquitetura monumental, fúnebre e comemorativa.
Joguemos para o ar, monumentos, calçadas, arcadas, escadarias, aprofundemos
as estradas e as praças, ergamos o nível das cidades.
EU COMBATO E DESPREZO:
1.Toda a pseudo-arquitetura de vanguarda, austríaca, húngara, alemã e
americana;
2. Toda a arquitetura clássica, solene, hierática, cenográfica, decorativa,
monumental, graciosa, agradável;
3. O embalsamamento, a reconstrução, a reprodução dos monumentos e palácios
antigos;
4. As linhas perpendiculares e horizontais, as formas cúbicas e piramidais porque
são estáticas, graves, oprimentes e totalmente estranhas à nossa novíssima
sensibilidade;
5. O uso de materiais maciços, volumosos, duradouros, antiquados, custosos.

E PROCLAMO:
1.Que a arquitetura futurista é a arquitetura do cálculo, da audácia temerária e da
simplicidade; a arquitetura do cimento armado; do ferro, do vidro, do papelão, da
fibra têxtil e de todos os sucedâneos da madeira, da pedra e do tijolo que
permitem a obtenção da máxima elasticidade e leveza;
2. Que a arquitetura futurista não é por isso uma árida combinação de praticidade
e de utilidade, mas permanece arte, isto é, síntese, expressão;
3.Que as linhas oblíquas e elípticas são dinâmicas, por sua própria natureza
possuem uma potência emotiva mil vezes superior à das perpendiculares e
horizontais, e que não pode existir uma arquitetura dinamicamente integrada fora
delas;
4.Que a decoração, como alguma coisa de sobreposto à arquitetura, é um
absurdo, e que SOMENTE DO USO E DA DISPOSIÇÃO ORIGINAL DO
MATERIAL TOSCO OU NU OU VIOLENTAMENTE COLORIDO PROVOCAM O
VALOR DECORATIVO DA ARQUITETURA FUTURISTA;
5.Que, como os antigos buscaram a inspiração artística nos elementos da
natureza, nós – material e espiritualmente artificiais – devemos encontrar aquela
inspiração nos elementos do novíssimo mundo mecânico que criamos, do qual a
arquitetura deve ser a mais bela expressão, a síntese mais completa, a integração
mais eficaz;
6.A arquitetura como arte de dispor as formas dos edifícios segundo critérios
preestabelecidos terminou;
7.Por arquitetura deve-se entender o esforço de harmonizar com liberdade e
grande audácia o ambiente e o homem, isto é, tornar o mundo das coisas uma
projeção direta do mundo do espírito;
8.De uma arquitetura assim concebida não pode nascer nenhum hábito plástico e
linear, porque as características fundamentais da arquitetura futurista serão a
caducidade e a transitoriedade. AS COISAS DURARÃO MENOS QUE NÓS.
CADA GERAÇÃO TERÁ DE FABRICAR A SUA PRÓPRIA CIDADE. Esta
constante renovação do ambiente arquitetônico contribuirá para a vitória do
FUTURISMO, que já se afirma com AS PALAVRAS EM LIBERDADE, O
DINAMISMO PLÁSTICO, A MÚSICA SEM COMPASSO E A ARTE DOS
RUMORES e pelo qual lutamos sem trégua contra a velhacaria passadista.

Milão, 11 de julho de 1914

Trad.: Maria Aparecida Abelaira Vizotto

O QUE NOS SEPARA DO CUBISMO

UMBERTO BOCCIONI

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Antes de referir-me ao Cubismo devo falar de Pablo Picasso sem deter-me


a analisar e considerar a prioridade das pesquisas cubistas e as divergências mais
ou menos explicáveis entre ele e os cubistas.
Picasso representa a ponta extrema da renovação impressionista. E como
acontece em todas as evoluções extremas, ele oferece já sua negação, mas trata-
se de uma negação, não chega a organizar-se. Observamos que neste artista, o
ajuste dos valores plásticos iniciados por Cézanne atinge o seu ponto máximo.
Nas obras do último período, o estudo da forma dirige-se cada vez mais para um
conceito fundamental baseado no conhecimento objetivo da realidade. Porém,
superada a primeira surpresa, percebemos que este conceito formal é o resultado
de uma imperturbável avaliação científica que destrói todo o calor dinâmico, toda a
violentação e toda a variedade marginal nas formas. Apesar disso, este calor
dinâmico, esta violentação e variedade marginal fazem com que as formas
existam fora da inteligência e sejam projetadas no infinito. Isto é resultado da
emoção plástica, da sensação delirante, da intuição.
A avaliação científica de que falo opera-se através de um ponto de vista
circular que faz do artista um analisador da fixidez, um impressionista intelectual
da forma pura. De fato, Picasso copia o objeto na sua complexidade formal,
decompondo-o e enumerando-lhe os aspectos. Assim cria para si, a incapacidade
de vivê-lo em sua ação. E não poderia fazê-lo, porque o seu procedimento, isto é,
a enumeração de que falo, detém a vida do objeto (movimento), destaca os seus
elementos constitutivos e os distribui no quadro, segundo uma harmonia acidental
e inerente ao objeto. Porém, a análise do objeto se faz sempre às suas próprias
expensas, isto é, destruindo-o. Como conseqüência, extraem-se elementos mortos
com os quais não se conseguirá nunca compor uma coisa viva. Por muito que se
fale de arabesco vivo e da individualidade abstrata de uma composição qualquer
como puro conjunto emotivo de planos, de volumes e de linhas, nós futuristas
proclamamos que a pintura caminha para uma compreensão mais sintética e
significativa do objeto.
Portanto, Picasso ao deter a vida do objeto, mata a emoção. O mesmo
faziam os impressionistas com a luz. Destroem-na, decompondo-a nos seus
elementos espectrais. São fenômenos de análise científica, necessária como
renovação, mas que deve ser superada.
Um quadro de Picasso não tem lei, não tem lirismo, não tem vontade.
Apresenta, desenvolve, revoluciona, lapida, multiplica os particulares do objeto
indefinidamente. A fenda provocada no objeto e a fantástica variedade de
aspectos que podem assumir no seu quadro um violino, uma guitarra, um copo,
etc., criam uma maravilha análoga àquela que nos dá a enumeração científica dos
componentes de um objeto, que até hoje tínhamos considerado, por ignorância ou
por tradição, no seu conjunto de unidade. Era uma descoberta fatal, necessária na
arte. Constitui o legado valioso de uma elaboração, mas não é ainda a emoção,
ou, pelo menos, é apenas um lado da emoção. É a análise científica que estuda a
vida no cadáver, que disseca os músculos, as artérias, as veias, para observar as
suas funções e descobrir as leis da criação. Mas a arte é já criação por si mesma
e não pretende acumular conhecimentos. A emoção em arte quer drama. A
emoção na pintura e na escultura modernas canta a gravitação, o deslocamento, a
atração recíproca das formas, das massas e das cores, isto é, o movimento, ou
seja, a interpretação das forças.
Predeterminar-se a análise integral do volume e dos corpos como única
finalidade é um parar. O continuar a fazê-lo é pretender criar contra a natureza. É
conceber de novo o objeto em absoluto imutável, já destruído e desaparecido da
nossa concepção de vida. Repito o que disse no capítulo precedente, porque esta
é a chave do Dinamismo, que criamos nós, futuristas italianos. Hoje a nossa
evolução mental não nos permite mais ver um indivíduo ou um objeto isolados do
seu ambiente. Em pintura e escultura o objeto não vive a sua realidade essencial
senão como resultante plástica entre objeto e ambiente. Picasso quis observar e
reproduzir mais faces no objeto e dispô-los no quadro, de modo que as formas do
objeto-ambiente não participassem dele, senão como elementos acidentais
circunstantes. Para obter isto, inventou esquemas, nos quais as noções que não
formam sua ossatura básica, ficam envolvidas em mistérios, o que é pena
extrema, pois que, elas tocam as fronteiras da arte. Porém, permanecem ainda
noções e por isso estão fora da arte, e, portanto, da emoção.
Evitar como ele fez, o estudo das relações das forças entre objeto e objeto,
equivale a perder a síntese e o movimento limitando a inspiração.

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O aumento de fixidez gerado pela análise faz com que Picasso perca o
sentido de volume que era uma das principais vontades de Cézanne. A análise
extremada do volume conduziu-o de trabalho em trabalho a uma abreviação da
representação dos corpos. Ele acabou por dar o indício, a indicação da forma. Ao
invés do volume, ele dá a fórmula equivalente. Por isso dada a transparência e a
maleabilidade destas formas ou esquemas de formas, a possibilidade de
multiplicá-la torna-se infinita. Daí o intrincadíssimo arabesco picassiano.

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É por isso que nós, futuristas, propugnamos o quadro, a composição e a lei,


a ordem e a escala nos valores plásticos. Mas para nós o quadro não é aquilo que
examinarei nos cubistas: não é a enumeração analítica de Picasso ou de Braque,
é a própria vida intuída nas suas transformações, dentro e não fora do objeto.

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Além disso, o quadro cubista está impregnado de uma atmosfera de museu


que lhe vem – não me cansarei de dizê-lo – de Cézanne, e de um sentimento
errado de precipitada conciliação entre revolução e tradição. O estudo e a
conseqüente influência dos antigos arcaicos, dos negros, das esculturas em
madeira, dos bizantinos, etc., determinou nos quadros dos nossos jovens amigos
franceses, uma saturação de arcaísmo, que é uma outra praga passadista, um
outro fenômeno de cultura como as influências greco-romanas. Estas influências
de artes rudimentares se fazem aceitar pela novidade, e, se serviram para libertar-
nos do clássico, são porém prejudiciais ao desenvolvimento de uma pura
consciência plástica moderna. É neste sentido que nós nos declaramos primitivos.
Nenhum de nós, futuristas, pintores ou escultores, está afetado por aquele
arcaísmo que traz consigo uma imobilidade hierática de solene antigo que nos
repugna. Repito ainda: existe algo de barbárico na vida moderna que nos inspira.
Pois bem, não queremos refazer o movimento das multidões e os episódios
daquilo que nos passa embaixo do nariz. Pretendemos buscar nas inconscientes
necessidades da vida, no modo como elas se manifestam, as leis para uma nova
– completamente nova! – consciência plástica. A nós, futuristas, não nos interessa
saber se os cubistas se transformam, se hoje um deles trabalha com dinamismo e
o outro com o orfismo, se alguns deles falam de vida moderna, de
complementarismo, ou de simultaneidade com uma insistência infantil e
desesperada... Nós conhecemos o cubismo tal qual nos foi contraposto na França,
nos artigos e nos livros quando começamos com o Manifesto técnico da pintura
futurista (11 de abril de 1910) e com a nossa 1ª exposição: Galeria Bernheim (6 de
fevereiro de 1912). No manifesto e no catálogo desta exposição, falávamos, pela
primeira vez, em dinamismo, em vida moderna, em complementarismo formal e
cromático. Naquela ocasião riu-se e criticou-se ferozmente. Muitas daquelas
coisas são agora aplicadas em Paris, Alemanha, Rússia e Japão. Jornais, cartas,
revistas, livros no-lo provam. São incontáveis os jovens que, do exterior, nos
enviam fotografias de seus quadros. Isto basta ao nosso orgulho de italianos e
demonstra que tínhamos razão.
Quando falávamos de tema no quadro, prenunciando e realizando a
corrente que agora todos aceitam, quis-se interpretar o nosso conceito como o
desejo de voltar ao anedótico. Como podíamos imaginá-lo, nós que sabíamos –
talvez melhor e antes de todos – avaliar o motivo impressionista como o princípio
da destruição da cena em imagens? Queríamos proclamar e fazer entender em
meio às tendências ferozmente objetivas que predominavam já há alguns anos na
França, que não há possibilidade de se atingir um definitivo nas formas e nas
cores fora da emoção. É a emoção que dá a medida, freia a análise, torna legítimo
o arbítrio e cria o dinamismo. Emoção e tema são sinônimos.
Era o movimento do objeto que nos preocupava! Na sua interpretação lírica
(emoção) está o justo meio, o fulcro sobre o qual a representação da realidade
deve se deter sem sufocar a vida, ou cair no didático ou no caos de uma análise
superior.
Por isso resumindo, nós, futuristas, negamos que o cubismo tenha criado
um código abstrato, uma espécie de conceitualismo plástico que, na sua
determinação típica, possa substituir praticamente a intuição do artista. Em arte,
conceitualizar como querem os cubistas, no momento em que falta em nós, a
identidade entre a realidade externa e a interna, é muito perigoso e a fria produção
de imagens de alguns cubistas, demonstra-o.
O que não se deve esquecer é isto: o ponto de vista mudou completamente
com o dinamismo futurista. Por mais interior que seja, a pintura moderna foi, até
hoje, um espetáculo de imagens sucessivas que se desenvolvem diante de nós.
Por mais que nos cubistas, o objeto seja concebido no seu valor integral e o
quadro seja constituído da harmônica combinação de uma ou mais
complexidades, objeto em uma complexidade ambiente, o espetáculo não muda.
Pretendemos dar o objeto visto no seu porvir dinâmico, isto é, dar a síntese
das transformações que o objeto sofre nos seus dois movimentos: relativo e
absoluto.
Queremos dar o estilo do movimento. Não queremos observar, dissecar e
transportar em imagens: identificamo-nos na coisa, o que é completamente
diferente. Por isso para nós, o objeto não tem uma forma a priori, só é definível a
linha que marca a relação entre o seu peso (quantidade) e a sua expansão
(qualidade).
Isto nos sugere as linhas-força que caracterizam a potencialidade do objeto
e nos leva a uma nova unidade que é a interpretação essencial do objeto, quer
dizer, a intuição da vida. A nossa é a procura do definitivo na sucessão dos
estados de intuição.
Nós que temos sido acusados de visão exterior, de cinematografia, somos
os únicos a nos dirigir para um definitivo que é uma intuitiva criação evolutiva.
Pode-se, portanto, dizer que nos encontramos nas antípodas do cubismo.
Os cubistas assurgem a generalização, reduzindo o objeto a uma idéia
geométrica: cubo, cone, esfera, cilindro (Cézanne), que encontra fundamento na
razão. Nós chegamos à generalização dando o estilo da impressão, isto é, criando
uma única forma dinâmica, que seja a síntese do dinamismo universal percebido
através do movimento do objeto. Esta concepção que cria a forma da continuidade
no espaço, fundamenta-se na sensação.
O cubismo destruiu a fluidez impressionista, mas voltou a uma concepção
estática permanente da realidade.
Dizemos que o contorno e a linha não existem caso se considerem fixos
pela delimitação dos planos que incluem. Esta é uma verdadeira volta ao antigo.
As linhas e os contornos existem como forças que jorram da ação dinâmica dos
corpos. São, por conseguinte, direções de forças plásticas (linhas-força) que
flutuam entre a ossatura concreta do real: (inteligência) e a sua ação variável,
infinita e móvel: (intuição).
A teoria cubista constrange o objeto em uma ideografia a priori, nós o
vivemos na fórmula da evolução do objeto. O cubismo repete o processo de estilo
dos Assírios, dos Egípcios, dos Gregos, de Leonardo da Vinci; nós entramos
corajosamente na concepção de um estilo evolutivo inteiramente novo.
Aproximamo-nos do definitivo, dando estilo ao naturalismo secular que o Norte
elaborou, eles precipitam, em todas as concepções de estilo que criaram durante
milênios a Academia.
Eles interrompem e voltam às costas à evolução da sensibilidade pictórica
moderna que nos deu o grande impressionismo. Nós o continuamos. Abrimos um
novo caminho, enquanto eles fecham um outro.
Por isso não extraímos, como Picasso, conceitos plásticos acidentais da
coisa. Não temos, como os cubistas, conceitos fixos acima da coisa. Nós,
futuristas, estamos na coisa e vivemos o seu conceito evolutivo.
Refutar uma realidade a priori, segundo as velhas leis tradicionais da
estética; eis o abismo que nos separa do cubismo e que faz de nós, futuristas, a
ponta extrema da pintura mundial.

Trad.: Maria Aparecida Abelaira Vizotto


PORQUE NÃO SOMOS IMPRESSIONISTAS

UMBERTO BOCCIONI

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Ao invés disso, para os impressionistas da França (aliás, não existe outro


impressionismo senão o francês) será uma verdadeira glória o fato de ter indicado
o caminho para uma real e moderna identidade entre o interno e o externo. Neles
não se encontra nenhum tema que não seja extraído daquela realidade à qual
pediam formas e cores. A reviravolta que fizeram com as velhas leis escolásticas
obrigou-os a uma análise e a um controle tenaz. Observaram, experimentaram em
suas telas, todo e qualquer efeito para transmitir, com sinceridade, a impressão
dos inumeráveis aspectos novos que a realidade revelava aos seus olhos atentos.
Era inevitável que estas experiências, ainda que tivessem um caráter lírico,
permanecessem sempre fragmentos presos ao natural (real) como concepção e,
por isso, objetivos e limitados como interpretação. Além disso, a negação da
Fantasia e da composição e o método completamente experimental produziam
neles a indiferença para com o tema, tirando de seu quadro, a força universal da
continuidade. O estudo da natureza não era (e não podia ser) um meio que
servisse para a escolha de elementos plásticos para se compor uma concepção
plástica interna, uma ponte para criar... Mas era a própria finalidade! O quadro já
era um estudo fragmentário qualquer, de um objeto qualquer ou episódio de vida.
No quadro impressionista afluíam mil tesouros de amorosa e febril observação, ele
deixava, porém, sempre a pesa impressão de algo relativo que se assemelha com
alguma coisa que podia continuar ao infinito.
Inicia-se, todavia, no quadro impressionista, o esforço para a nova unidade
plástica da qual falei, que devia assinalar o princípio de um progresso que ainda
dura e que conduzirá a um novo sublime definitivo, mais abstrato do que o grego e
o cristão.
Com os impressionistas, as pedras, as plantas, os animais começam a
mudar de forma e sobretudo de cor. E o que é mais importante, começam a perder
o seu valor sentimental de imagem. Cria-se, desta maneira, o motivo
impressionista. Ainda que timidamente, as coisas já se tornam o núcleo de um
ambiente circunstante, e este ambiente é uma vibração atmosférica que começa a
se tornar plasmável. É verdade que com isso, elas perdem uma dimensão: a
profundidade; mas conquistam e criam um novo corpo: a atmosfera. Pela primeira
vez, um objeto vive e se completa com o ambiente, dando e recebendo dele as
influências. Pela primeira vez, observa-se sobre a face até agora rosada, a
acidentalidade verde do campo sobre o qual nos encontramos, e sobre nosso
vestido, o vermelho do sofá no qual estamos sentados. Passarão trinta anos
antes, até que esta compenetração e simultaneidade, nos impressionistas limitada
à cor, progrida também para a compenetração e simultaneidade das formas, e
esta evolução tão lógica e tão clara suscitará o desprezo e a hostilidade
agressivos que o bom público prodigaliza aos pintores futuristas.
A violenta negação da fantasia do mistério, os esboços febris com os quais
os impressionistas procuravam agarrar as coisas e os fugacíssimos momentos
luminosos que atravessavam, o frenesi pela luz que exasperava a cor e destruía o
claro-escuro, tudo isto, com o passar do tempo, produziu obras que foram gritos
de admiração desanimada pelo espetáculo do mundo. A aparência tomou o lugar
da realidade. Ao invés de ver a luz e as coisas como idéias plásticas absolutas,
submeteram-nas à relatividade de tempo e de lugar *

A natureza foi para os impressionistas como que algo fora deles e o que
julgavam inatingível era o controle que faziam dos inúmeros aspectos de uma
realidade que acreditavam estar fora deles, e que estava, ao contrário, dentro
deles como experiência de cultura resultante de todas as épocas pictóricas
anteriores.
O que nós pintores e escultores queremos, ao invés disso, é um oposto que
se fundamente em suas bases. Isto é, a retomada e a continuação lógica das
pesquisas impressionistas antes de sua involução e decadência.
Esta continuidade da evolução estética que em arte procede fatalmente,
acima das contingências humanas de sucesso e de moda, aparecerá mais clara
no seguinte quadro sinótico, principalmente para quem está a par da pintura
francesa nos últimos trinta anos...
(*) Lembro-me dos títulos de dois quadros que faziam parte de uma recente exposição de Henri-
Edmond Cross na Galeria Bernheim, em Paris: “deux octobre, trois heures (vent) nord-est” e um
outro “arc-en-ciel (est) 19 octobre, 4h. 30” ... não se poderia ser mais frigidamente conseqüentes
numa teoria.

Impressionismo

Manet

Monet Cézanne
Cor } Sisley Degas { Forma
(sensação) Picasso Gauguin (intelecto)
Renoir Van-Gogh
Derain

Estudo da realidade Estudo da realidade


com a divisão dos Seurat com a divisão dos
elementos colorísticos } Signac Picasso { elementos formais
(predomínio científico) Cross Braque (predomínio científico)

Síntese de cor estática Cubismo Síntese de forma estática


(exasperação da cor que} Matisse (Gleizes, { (exasperação da forma
e
não encontra Van Dongen Netzingerda, do claro-escuro que
a forma) Léger) não encontram a cor)

Abstração Plástica Futurista
O interno e o externo aparecem em simultânea compenetração.
Síntese de cor e de forma.
Dinamismo – Tema – Estado de Ânimo – Plástico
BOCCIONI CARRÀ
RUSSOLO SEVERINI
BALLA SOFFICI

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Antes de mais nada, enquanto a característica dos impressionistas foi a


preocupação com a luz e a cor, apresentando as formas como esboços dinâmicos,
a nossa característica consiste na preocupação em dar estilo à luz e à cor
impressionista e em criar por isso, uma forma conatural à cor. Seria pouco
entretanto, se nós ficássemos numa simples análise das formas como os
impressionistas e os neo-impressionistas se detêm numa análise da cor. Fazemos
uma síntese, não nos conduz de novo às imagens estáticas e sucessivas (isto é
fundamental para nós) como acontece aos nossos amigos da França, cubistas ou
qualquer outra coisa; leva-nos, porém, a reproduzir a realidade em sua
manifestação essencial, isto é, antes que esta realidade se individualize em uma
distinção tradicional dos elementos naturais (distinção que suscita sempre em nós,
um mundo de imagens sentimentais danosas à plástica pura), queremos dar a
vida da matéria traduzindo-a nos seus movimentos. Isto ainda é uma ponte em
direção à nossa pintura futurista (estados de ânimo, plásticos, sons, ruídos e
odores), direi nos capítulos seguintes.
É fácil, portanto, compreender como nós, que devemos as nossas origens
ao impressionismo, encontramo-nos, ao contrário, nas antípodas dele. De fato,
nós queremos universalizar o acidental, criando leis disto que aprendemos há
cinqüenta anos, o instante impressionista. Portanto, em lugar do acidente fixado,
produzimos a acidentalidade definida numa forma que é a sua lei de sucessão.
Enquanto os impressionistas fazem um quadro para dar um momento
particular e subordinam a vida do quadro, à sua semelhança com aquele
momento, nós sintetizamos todos os momentos (de tempo, lugar, forma, cor, tom)
e com isso construímos o quadro. Este quadro, como organismo independente,
tem sua própria lei, e os elementos que o compõem, obedecem a esta lei, criando
assim a semelhança do quadro consigo mesmo.
Voltamos então a conceitos-plásticos gerais, conservando entretanto, todo o
nosso horror e nosso ódio pelos conceitos plásticos que dirigiram a pintura antiga.
É por isso que reagimos violentamente contra o impressionismo e proclamamos o
advento de uma nova ordem plástica, de uma nova gradação de valores
construtivos.

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Para ir em direção do estilo clássico da nossa época, é preciso ao contrário,
viver a sensação que nos vem da renovação impressionista, esquecer a rigidez da
contemplação tradicional do natural, conceber e determinar em uma forma, a
relação plástica que existe entre conhecimento do objeto e sua aparição. Quem
não compreende e não aplica isto em pintura e em escultura, está fora da
verdade.
A impressão viverá, portanto, na duração através da forma única do seu
desenvolver-se. Logo, a impressão não é, para nós, a execução do objeto que
parou em sua reprodução aproximativa e da qual os impressionistas se serviram
para aludir ao movimento, mas é o objeto dado na sua complexidade de sensação
(aparição) e de construção (conhecimento).
O conhecimento possibilita a construção que se refere às massas
componentes do objeto em direção centrípeta. A aparição propõe a construção
referente às partes que unem o objeto à atmosfera e aos outros objetos, em
direção centrífuga.
A primeira equivale, como força do objeto, à quantidade e a segunda à
qualidade.
A afirmação destes valores essenciais confere à pintura e à escultura
futuristas e possibilidade de criar a solidificação da impressão, e reage contra a
dissolução da decadência impressionista sem voltar a uma construção estática
dos corpos. Nós, portanto, reconduzimos a plástica ao volume, à corporeidade,
aos valores horizontais, às espessuras completamente perdidas após o
impressionismo, por causa do culto tradicional e excessivo pelas aparências. A
aparência luminosa tornara-se, nos impressionistas, uma nociva degeneração do
estudo do natural, que os conduzia a uma evaporação esbranquiçada dos corpos
e destruía toda construção elementar. Mas voltando aos elementos fundamentais
da estrutura dos corpos, nós não negamos, como faz a teoria cubista, aquelas que
foram as conquistas dos impressionistas: a atmosfera, o movimento e o lirismo.
Pelo contrário, temos enriquecido o objeto, porque enquanto os impressionistas
para criar esta atmosfera subtrairiam 50 de solidez formal a uma unidade-objeto
do valor de 100, para acrescentar outro tanto de atmosfera, nós criamos, ao invés
disso, uma nova unidade-objeto no valor de 150. Por isso teremos: objeto (100)
mais atmosfera (50), igual a objeto-ambiente (150). Esta concepção
profundamente realística da estrutura dos corpos criou em pintura e em escultura
o Dinamismo, isto é, a solidificação da impressão, sem amputar o objeto ou isolá-
lo do único elemento que o nutre: a vida, isto é, o movimento. Com isto evitaremos
cair naquilo que a pintura foi até hoje: uma enumeração de objetos esculpidos
sobre um fundo.
Hoje a nossa evolução mental não nos permite mais ver um indivíduo ou
um objeto isolados do seu ambiente. Em pintura, o objeto não vive da sua
realidade essencial senão como resultante plástica entre objeto e ambiente.
Concebemos então o objeto como um núcleo (construção centrípeta) da
qual partem as forças (linhas-formas-força) que o definem no ambiente
(construção centrífuga), e determinam seu caráter essencial. Nós criamos com
isso uma nova concepção do objeto: o objeto-ambiente, concebido como uma
nova unidade indivisível. Portanto, se para os impressionistas o objeto é um
núcleo de vibrações que aparecem como cor, para nós, futuristas, o objeto é, além
disso, um núcleo de direções que aparecem como forma. Na potencialidade
característica destas direções encontramos o estado de ânimo plástico. Com esta
novíssima concepção dos movimentos da matéria, expressos não como valores
acidentais da interpretação sentimental e narrativa do natural, mas como
equivalentes plásticos da vida em si, é que nós chegamos à definição dinâmica da
impressão, que é a intuição da vida.
Esta é uma das bases da pintura futurista.

Trad.: Maria Aparecida Abelaira Vizotto.

A SIMULTANEIDADE
1914

UMBERTO BOCCIONI

A simultaneidade é para nós a exaltação lírica, a manifestação plástica de


um novo absoluto: a velocidade; de um novo e maravilhoso espetáculo: a vida
moderna; de uma nova febre: a descoberta científica...
Simultaneidade é a condição em que aparecem os diversos elementos que
constituem o dinamismo. É, portanto, o efeito daquela grande causa que é o
dinamismo universal. É o expoente lírico da concepção moderna da vida, baseada
na rapidez e contemporaneidade de conhecimento e de comunicações...
Como queremos que a emoção seja a lei suprema dos componentes
arquitetônicos do quadro (objetos) assim também queremos que a interpretação
do objeto seja um equilíbrio justo entre sensação (aparecimento) e construção
(conhecimento).
Trad.: Maria Aparecida Abelaira Vizotto

TRANSCENDENTALISMO FÍSICO E ESTADOS DE ALMA PLÁSTICOS


1914

UMBERTO BOCCIONI

...Em pintura, a matéria pictórica alemã procura sempre apoiar-se em um


conteúdo fora das plásticas: filosófico, sentimental, demonstrativo...
As liberdades que nós conseguimos com a revolução plástica francesa
transformam-se, na Alemanha, num infantil frenesi para exagerar
expressionisticamente, o valor esquemático da forma...
Na pintura russa, as tentativas de Kandinsky mostram uma tendência
musical interessante. Mas aqui, também, o sentido plástico adianta pouco. A
música plástica elabora-se com Kandinsky sob a influência obcecante do poema
sinfônico das sinfonias, das sonatas, etc., que está por assim dizer no museu de
som. Resulta disso um quadro que é uma superfície colorida de ondas cromáticas,
violentíssimas, agradáveis, mas que não se tornam matéria plástica. As cores
permanecem cores, as formas têm uma só dimensão, o arabesco é muitas vezes,
tomado emprestado dos japoneses e o quadro continua tecido...tapete...ou
decoração. Também em Kandinsky a preocupação pelo conteúdo supera a
preocupação pelo refinamento da sensibilidade que chegue a criar uma nova
intuição plástica da vida.
As artes plásticas nas suas infinitas possibilidades não podem fugir disso.
Em seu livro Kandinsky escreve: “A voz da alma diz ao artista qual a forma
de que necessita...” e também “Cada forma, cada cor tem um valor místico...” e
fala de “contraponto do desenho”.
Todas essas preocupações de ordem espiritual e musical são prejudiciais
quando, como em Kandinsky, se baseiam em transposições de cultura musical,
literária e filosófica...
É preciso, pelo contrário, esquecer aquilo que até agora se pediu ao
mecanismo exterior do quadro e da estátua. É preciso considerar a obra de arte,
de pintura e de escultura como construção de uma nova realidade interna que é
construída pela concorrência dos elementos da realidade externa através de uma
lei de analogia plástica quase completamente desconhecida, antes de nós.
E é por esta analogia que nós alcançamos os estados de espírito plásticos.

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Estamos convencidos, pois, que as recíprocas influências entre ambiente e


objeto, as sugestões da potencialidade plástica dos objetos, da sua força, que eu
chamei de psicologia primordial, produzem a organização coordenadora do estado
de alma plástico e isto, sem que a força plástica da pintura e da escultura possa
vir a ser diminuída.

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O estado de alma é organização, isto é, criação. Organização foi sempre


uma característica fundamental do gênio italiano...
Nós trabalhamos para a criação de uma fórmula sintética transmissível, que
guiando a intuição, dê a possibilidade para se construir livremente longe do peso
agravante da pesquisa analítica. Queremos acabar com o laboratório de arte, para
começar realmente uma era de criação, segundo a fórmula evolutiva do
dinamismo.

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Observar um objeto, mesmo no espelho da recordação interna, e pintá-lo e


esculpi-lo, não quer dizer ainda criação. Este procedimento mesmo que seja
ousado na deformação, permanece sempre como um impressionismo subjetivo.
Eis por que nós, futuristas, queremos superarmo-nos. É preciso então
libertar o objeto da sua relatividade, da semelhança. É este o caminho que conduz
à síntese que faz com que todos os elementos de uma obra artística se somem e
concorram para a formação do tipo.

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Aquilo que eu intuí nos estados de alma é esta a síntese, isto é, o esforço
de fazer viver elementos plásticos renovados na corrente de uma emoção plástica
renovada.
Nós queremos através da nossa sensibilidade transformada, desenvolvida e
refinada no novo estremecimento da vida moderna, levar à pintura e à escultura,
elementos da realidade que até hoje o modo de ofender o tradicional e a nossa
rudeza nos fizeram considerar como plasticamente inexistentes e invisíveis.

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Logo: criação da atmosfera como novo corpo existente entre objeto e objeto
(solidificação do impressionismo); criação de uma nova forma extraída da força
dinâmica do objeto (linhas-força); criação de um novo objeto-ambiente
(compenetração dos planos); criação de uma nova construção emotiva além de
toda unidade de tempo e de lugar (recordação, sensação, simultaneidade).
Nós não daremos, pois, uma fórmula abstrata e fora de nós, mas sim, uma
fórmula que estará em nós e conosco, através da sensação.
Esta fórmula, que seria a integração completa disto que eu chamei
TRANSCENDENTALISMO FÍSICO, nasce da intuição da realidade concebida
como movimento. Logo, se a potencialidade plástica dos corpos suscita emoções
que interpretamos através de seus movimentos, são justamente esses
movimentos puros que nós fixaremos.

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Existem elementos emotivos esparsos que podem ser reunidos em uma


composição plástica emotiva. Estes elementos sentimentais estão estritamente
ligados à forma dos objetos ou melhor, são os mesmos elementos plásticos da
realidade.
Existem, nos movimentos da matéria, elementos de passionalidade que
fazem convergir as linhas de um drama plástico em direção de uma determinada
catástrofe. A composição, portanto, pertencente a um estado de alma plástico, não
se baseia sobre as disposições dos gestos de figuras ou na expressão dos olhos,
de rostos, de atitudes (tudo isso é velha bagagem literária que desprezamos) e
sim na rítmica distribuição das forças, dos objetos, dominadas e guiadas pela
mesma energia do estado de alma que compõe a emoção.
Na minha teoria dos estados de espírito plásticos que como eu disse, ter
exposto pela primeira vez, em uma conferência no Círculo Internacional Artístico
de Roma (1911), onde afirmei que “as cores e as formas devem exprimir por si
mesmas sem recorrer à representação objetiva e devem criar, no pintor, estados
de forma e estados de cor”.

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O estado de espírito plástico deveria ser o resumo definitivo de todas as


pesquisas plásticas e expressionísticas de todos os tempos. Deveria ser a fusão
perfeita entre a impossível potência plástica (que emana do anônimo arabesco
formal na pintura pura) e a expressão do problema lírico da consciência
completamente renovada e interpretada como expoente absoluto da
MODERNOLATRIA.
Esteticamente, o estado de alma é o caminho de saída para a cética
negação analítica, é a inspiração exaltante para uma futura distinção e hierarquia
entre a igualdade desencorajadora dos valores plásticos e emotivos que
embaraçam a nossa mente por demais racionalista. É a criação de uma nova
ordem e de uma nova clareza opostas ao conceito clássico que tinha Puvis de
Chavannes, e originados pelo ódio futurista às leis antigas e às últimas
escravidões democrático-veristas.

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A fé que temos no futuro, faz com que desprezemos nosso porvir imediato.
Será que chegamos a saber qual a aspiração da velocidade dos 300 quilômetros
por hora? Sabemos porque o homem é impelido a matar-se para subir a 5.000,
10.000, 20.000... até o infinito? Única necessidade, única vontade: SUBIR.

Trad.: Maria Aparecida Abelaira Vizotto

MANIFESTO DO TEATRO FUTURISTA SINTÉTICO


1915

F.T.MARINETTI, EMILIO SETTIMELLI, BRUNO CORRA

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Para que a Itália aprenda a decidir-se instantaneamente, a erguer-se, a


sustentar cada esforço e cada possível desventura, não carecem livros nem
revistas. Estes interessam e ocupam uma minoria: são mais ou menos tediosos,
embaraçosos, cortar o impulso e envenenar (de dúvidas) um povo que luta. A
guerra, futurismo intensificado nos impele a marchar e a não apodrecer nas
bibliotecas e nas salas de leitura. NÓS ACREDITAMOS, ENTÃO, QUE NÃO SE
POSSA HOJE INFLUENCIAR GUERREIRISTICAMENTE A ALMA ITALIANA A
NÃO SER ATRAVÉS DO TEATRO. De fato, 90% dos italianos vão ao teatro
enquanto apenas os 10% restantes lêem os livros e as revistas. Há necessidade,
porém, de um TEATRO FUTURISTA, isto é, totalmente oposto ao teatro
passadista, que prolonga os seus cortejos monótonos e deprimentes sobre as
cenas sonolentas da Itália.

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Nós criamos um teatro futurista.


SINTÉTICO
isto é, brevíssimo. Apertar em poucos minutos, em poucas palavras e em poucos
gestos e inumeráveis situações, sensibilidades, idéias, sensações, fatos e
símbolos.

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Estamos convencidos de que devido à brevidade, mecanicamente se possa


atingir um teatro totalmente novo, em perfeita harmonia com a nossa sensibilidade
futurista, velocíssima e lacônica. Os nossos atos poderão ser também átimos, isto
é, durar poucos segundos. Com esta brevidade essencial e sintética, o teatro
poderá sustentar e também vencer a concorrência do cinema.

ATÉCNICO

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Com o nosso primeiro movimento sintetista no teatro, nós queremos


destruir a Técnica, que desde os Gregos até hoje, ao invés de simplificar-se,
tornou-se cada vez mais dogmática, estupidamente lógica, meticulosa, pedante,
estranguladora. LOGO:
1.É ESTÚPIDO ESCREVER CEM PÁGINAS ONDE BASTARIA APENAS UMA, só
porque o público, por hábito e por um instintivo infantil, quer ver o caráter de um
personagem resultar de uma série de fatos e tem necessidade de iludir-se que ao
próprio personagem exista realmente para admirar nele, o valor da arte, enquanto
não quer admitir este valor se o autor se limita a indicá-lo em apenas alguns
traços.
2. É ESTÚPIDO não rebelar-se contra o prejuízo da teatralidade quando a própria
vida (que é constituída por ações infinitamente mais desajustadas, mais regradas
e mais previsíveis do que aquelas que se desenvolvem no campo da arte) é na
maioria das vezes antiteatral, oferecendo, também, nesta sua parte, inumeráveis
possibilidades cênicas. TUDO É TEATRO QUANDO TEM VALOR.
3. É ESTÚPIDO satisfazer o primitivismo das multidões, que no final querem que
exaltem o personagem simpático e malhem o antipático.
4. É ESTÚPIDO preocupar-se com a verossimilhança (absurdo, isto porque valor
e genialidade nada têm a ver com ela).
5. É ESTÚPIDO querer explicar através de uma lógica minuciosa tudo aquilo que
se representa, porque também na vida, não nos acontece nunca captar um
acontecimento na sua totalidade, com todas as suas conseqüências, pois a
realidade vibra à nossa volta, investindo-nos com rajadas de fragmentos de fatos
combinados entre si, encaixados uns nos outros, confusos, embrulhados, colados.
Por exemplo: é estúpido representar na cena uma discussão entre duas pessoas
sempre com ordem, com lógica e com clareza, enquanto na nossa experiência de
vida encontramos quase que só pedaços de disputa à qual a nossa atividade de
homens modernos nos fez assistir, por um momento no bonde, num café, numa
estação, e que ficaram cinematografadas no nosso espírito, como dinâmicas
sinfonias fragmentárias de gestos, palavras, rumores e luzes.
6. É ESTÚPIDO submeter-se às imposições do crescendo, da preparação e do
efeito máximo no final.
7. É ESTÚPIDO DEIXAR IMPOR à própria genialidade, o peso de uma técnica
que todos (mesmo os imbecis) podem adquirir à força de estudo, de prática e de
paciência.
8. É ESTÚPIDO RENUNCIAR AO DINÂMICO SALTO NO VAZIO DA CRIAÇÃO
TOTAL DIFERENTE DE TODOS OS CAMPOS JÁ EXPLORADOS.

DINÂMICO, SIMULTÂNEO

Isto é, nascido da improvisação, da fulmínea intuição da atualidade


sugestionante e reveladora. Nós acreditamos que uma coisa vale na medida em
que ela foi improvisada (horas, minutos, segundos), e não preparada longamente
(meses, anos, séculos).
Nós temos uma repugnância invencível pelo trabalho feito à mesinha, “a
priori”, sem levar em consideração o ambiente onde deverá ser representado. A
MAIOR PARTE DOS NOSSOS TRABALHOS FORAM ESCRITOS NO TEATRO. O
ambiente teatral é, para nós, reservatório inesgotável de inspirações: a circular
sensação magnética filtrante do teatro vazio e dourado em uma manhã de ensaio
e cérebro cansado, a entoação de um ator que nos sugere a possibilidade de
construir sobre um paradoxal aglomerado de pensamento, um movimento de
cenários que nos dá a pista, para uma sinfonia de luzes, a carnosidade de uma
atriz que gera na nossa sensibilidade concepções cheias de geniais visões
pictóricas.

AUTÔNOMO, ALÓGICO, IRREAL

A síntese teatral futurista não será submetida à lógica, não conterá nada de
fotográfico, será autônoma, não se assemelhará senão a si mesma, extraindo da
realidade elementos que se combinam a gosto. Antes de mais nada, como para o
pintor e para o musicista existe uma vida mais restrita, porém mais intensa,
espalhada no mundo exterior, constituída de cores, formas, sons e ruídos, assim
para O HOMEM DOTADO DE SENSIBILIDADE TEATRAL EXISTE UMA
REALIDADE ESPECIALIZADA QUE ASSALTA OS NERVOS COM VIOLÊNCIA:
ela é constituída por aquilo que se chama O MUNDO TEATRAL.
O TEATRO FUTURISTA NASCE DE DUAS VITALÍSSIMAS CORRENTES
da sensibilidade futurista, esclarecidas nos dois manifestos: O TEATRO DE
VARIEDADE E PESOS, MEDIDAS E PREÇOS DO GÊNIO ARTÍSTICO, que são:
1) A NOSSA FRENÉTICA PAIXÃO PELA VIDA ATUAL, VELOZ, FRAGMENTÁRIA,
ELEGANTE, COMPLICADA, CÍNICA, MUSCULOSA, FUGAZ, FUTURISTA; 2) A
NOSSA MODERNÍSSIMA CONCEPÇÃO CEREBRAL DA ARTE SEGUNDO A
QUAL NENHUMA LÓGICA, NENHUMA TRADIÇÃO, NENHUMA ESTÉTICA,
NENHUMA TÉCNICA, NENHUMA OPORTUNIDADE É IMPOSSÍVEL À
GENIALIDADE DO ARTISTA QUE DEVE SOMENTE PREOCUPAR-SE EM
CRIAR EXPRESÕES SINTÉTICAS DE ENERGIA CEREBRAL QUE POSSUAM
VALOR ABSOLUTO DE NOVIDADE.
O TEATRO FUTURISTA saberá exaltar os seus espectadores, isto é, fazê-
los esquecer a monotonia da vida quotidiana, jogando-os através de um
LABIRINTO DE SENSAÇÕES MARCADOS PELA MAIS EXASPERADA,
ORIGINALIDADE E COMBINADAS DE MODO IMPREVISÍVEL.
O TEATRO FUTURISTA será toda noite uma ginástica que exercitará o
espírito da nossa raça para as velozes e perigosas ousadias que este ano futurista
torna necessárias.

CONCLUSÕES:

1.ABOLIR TOTALMENTE A TÉCNICA SOB A QUAL MORRE O TEATRO


PASSADISTA.
2. COLOCAR EM CENA TODAS AS DESCOBERTAS (MESMO AS
INVEROSSÍMEIS, BIZARRAS E ANTITEATRAIS) QUE A NOSSA GENIALIDADE
VAI FAZENDO NO SUBCONSCIENTE, NAS FORÇAS MAL DEFINIDAS, NA
ABSTRAÇÃO PURA, NO PURO CEREBRALISMO, NA FANTASIA PURA, NO
RECORDE E NA FISICOFOLIA (ex.: “Vêm”, primeiro drama de objetos de
F.T.Marinetti, novo filão de sensibilidade teatral descoberto pelo Futurismo).
3. SINFONIZAR A SENSIBILIDADE DO PÚBLICO EXPLORANDO, ACORDANDO
DE QUALQUER MANEIRA, SEUS RAMOS MAIS PREGUIÇOSOS; ELIMINAR O
PRECONCEITO DA RIBALTA LANÇANDO REDES DE SENSAÇÕES ENTRE O
PALCO E O PÚBLICO; A AÇÃO CÊNICA INVADIRÁ PLATÉIA E
ESPECTADORES.
4. CONFRATERNIZAR CALOROSAMENTE COM OS CÔMICOS, OS QUAIS
ESTÃO, ENTRE OS POUCOS PENSADORES, QUE NÃO ACEITAM QUALQUER
ESFORÇO CULTURAL DEFORMANTE.
5. ABOLIR A FARSA, O VAUDEVILLE, A POCHADE, A COMÉDIA, O DRAMA E A
TRAGÉDIA, PARA CRIAR NO SEU LUGAR, AS NUMEROSAS FORMAS DO
TEATRO FUTURISTA, COMO: AS SAÍDAS EM LIBERDADE, A
SIMULTANEIDADE, A COMPENETRAÇÃO, O POEMETO ANIMADO, A
SENSAÇÃO ENCENADA, A HILARIDADE DIALOGADA, O ATO NEGATIVO, A
SAÍDA EM ECO, A DISCUSSÃO EXTRALÓGICA, A DEFORMAÇÃO SINTÉTICA,
A ABERTURA CIENTÍFICA, A COINCIDÊNCIA, A VITRINA...
6. CRIAR ENTRE NÓS E A MULTIDÃO, ATRAVÉS DE UM CONTATO
CONTINUADO, UMA CORRENTE DE CONFIANÇA SEM RESPEITO, A FIM DE
TRANSFUNDIR NOS NOSSOS PÚBLICOS A VIVACIDADE DINÂMICA DE UMA
NOVA TEATRALIDADE FUTURISTA.
Eis as primeiras palavras nossas sobre o teatro. As primeiras 11 sínteses
teatrais (de Marinetti, Settimelli, Bruno Corra, R. Chiti, Balilla, Pratella, Paolo
Buzzi) foram impostas vitoriosamente por Ettore Berti e pela sua companhia aos
públicos que lotaram Ancona, Bolonha, Pádua, Veneza, Verona, Bérgamo, Gênova
(com réplica), Savona, San Remo. Logo teremos em Milão o grande edifício
metálico revestido por todas as complicações eletromecânicas, que poderá
permitir-nos realizar cenicamente as nossas mais livres concessões.
Milão, 11 de janeiro 1915
Milão, 18 de fevereiro 1915

Trad.: Maria Aparecida Abelaira Vizotto

RECONSTRUÇÃO FUTURISTA DO UNIVERSO

G. BALLA, F. DEPERO

11 de março de 1915

Com o Manifesto Técnico da Pintura Futurista e com o prefácio ao Catálogo


da Exposição Futurista de Paris (assinado por Boccioni, Carrà, Russolo, Balla,
Severini), com o Manifesto da Escultura Futurista (assinado por Boccioni), com o
Manifesto da Pintura dos Sons, Ruídos e Odores (assinado por Carrà), com o
volume Pintura e Escultura Futuristas, de Boccioni, e com o volume Guerrapintura,
de Carrà, o futurismo pictórico se desenvolveu, em 6 anos, como superação e
solidificação do impressionismo, dinamismo plástico e plasmar da atmosfera,
compenetração dos planos e estados de espírito. A avaliação lírica do universo,
mediante as Palavras em liberdade, de Marinetti, e a Arte dos Ruídos, de Russolo,
se funde com dinamismo plástico para dar a expressão dinâmica, simultânea,
plástica, rumorística da vibração universal.
Nós, futuristas, Balla e Depero, queremos realizar esta fusão total para
reconstruir o universo alegrando-o, isto é, recriando-o integralmente. Daremos
esqueleto e carne ao invisível, ao impalpável, ao imponderável, ao imperceptível.
Encontraremos equivalentes abstratos de todas as formas e de todos os
elementos do universo, depois os combinaremos, ajuntaremos segundo os
caprichos da nossa inspiração, para formar complexos plásticos que colocaremos
em movimento.
Balla começou com o estudar a velocidade dos automóveis, daí descobriu
suas leis e as linhas-forças essenciais. Depois de mais de 20 quadros sobre a
mesma procura, compreendeu que o plano único da tela não permitia dar em
profundidade o volume dinâmico da velocidade. Balla sentiu a necessidade de
construir com fios de ferro, planos de papelão, tecidos e papéis-de-seda, etc., o
primeiro complexo plástico dinâmico.

1.ABSTRATO. – 2. DINÂMICO. Movimento relativo (cinematógrafo) +


movimento absoluto. – 3. TRANSPARENTÍSSIMO. Pela velocidade e pela
volatilidade do complexo plástico, que deve aparecer e desaparecer, levíssimo e
impalpável. – 4. COLORIDÍSSIMO e LUMINOSÍSSIMO (mediante lâmpadas
internas). – 5. AUTÔNOMO, isto é, semelhante somente a si próprio. – 6.
TRANSFORMÁVEL. – 7. DRAMÁTICO. – 8. VOLÁTIL. – 9. ODOROSO. – 10.
RUMOREJANTE. Rumorismo plástico simultâneo com a expressão plástica. – 11.
EXPLOSIVA, aparição e desaparecimento simultâneos com detonações.

O palavrista-livre Marinetti, ao qual nós mostramos os nossos primeiros


complexos plásticos, disse-nos com entusiasmo: “A arte antes de nós, foi
recordação, reevocação angustiosa de um Objeto perdido (felicidade, amor,
paisagem), por isto nostalgia, estática, dor, distância. Com o Futurismo, ao invés,
a arte se torna arte-ação, isto é, vontade, agressão, posse, penetração, alegria,
realidade violenta na arte (ex.: onomatopéias. Ex.: entoa-ruídos = motores),
esplendor geométrico das forças, projeção para adiante. Portanto a arte se torna
Presença, novo Objeto, nova realidade criada com os elementos abstratos do
universo. As mãos do artista passadista sofriam pelo Objeto perdido; as nossas
mãos agitavam-se por um novo Objeto a criar. Eis por que o novo objeto
(complexo plástico) aparece miraculosamente entre as suas”.

A CONSTRUÇÃO MATERIAL DO COMPLEXO PLÁSTICO

MEIOS NECESSÁRIOS: fios metálicos, de algodão, lã, seda, de todas as


espessuras, coloridos. Vidros coloridos, papéis-de-seda, celulóides, redes
metálicas transparentes de todo gênero, coloridíssimos. Tecidos, espelhos,
lâminas metálicas, papéis de alumínio coloridos e todas as substâncias
vistosíssimas. Dispositivos mecânicos, eletrotécnicos; musicais e rumoristas;
líquidos quimicamente luminosos de coloração variável; molas; alavancas; tubos,
etc. Com estes meios nós construiremos:

1. Complexos plásticos que giram sobre um eixo


(horizontal, vertical, oblíquo)
2.Complexos plásticos que giram sobre muitos eixos:
ROTAÇÕES { a) em sentidos iguais, com velocidade variada
b) em sentidos contrários
c) em sentidos iguais e contrários.
3.Complexos plásticos que se decompõem
a) em volumes;
b)em camadas;
c) em transformações sucessivas
(em formas de cones, pirâmides, esferas, etc.);
DECOMPOSIÇÕES {
4. Complexos plásticos que se decompõem,
falam, rumorejam, soam simultaneamente.
DECOMPOSIÇÃO }
FORMA +
TRANSFORMAÇÃO }

+ EXPANSÃO { ONOMATOPÉIAS
SONS
RUÍDOS

5. Complexos plásticos que aparecem e desaparecem:


a)lentamente;
MILAGRE { b)por impulsos repetidamente (em gradação);
MAGIA c)em explosões repentinas.

Pirotécnica – Águas – Fogo – Rios

A DESCOBERTA-INVENÇÃO SISTEMÁTICA INFINITA

Mediante o abstraimento complexo construtivo rumorista, isto é, o estilo


futurista. Cada ação que se desenvolve no espaço, cada emoção vivida, será para
nós intuição de uma descoberta.
EXEMPLOS: No ver subir velozmente um aeroplano, enquanto uma banda
tocava na praça, intuímos o CONCERTO PLÁSTICO-MOTORUMORISTA NO
ESPAÇO e o LANÇAMENTO DE CONCERTOS AÉREOS por sobre a cidade. – A
necessidade de variar o ambiente, muito freqüentemente, e o esporte nos fazem
intuir o VESTIDO TRASNFORMÁVEL (aplicações mecânicas, surpresas, truques,
desaparecimentos de indivíduos). A simultaneidade de velocidade e rumores nos
faz intuir a FONTE GIROPLÁSTICA RUMORISTA. – O haver lacerado e atirado no
pátio um livro, nos faz intuir o RECLAME FONO-MOTO-PLÁSTICO e as
COMPETIÇÕES PIROTÉCNICO-PLÁSTICO-ABSTRATAS. Um jardim primaveril
sob o vento nos faz intuir a FLOR MÁGICA TRASNFORMÁVEL
MOTORUMORISTA. – As nuvens voadoras na tempestade nos fazem intuir o
EDIFÍCIO DE ESTILO RUMORISTA TRASNFORMÁVEL.

O BRINQUEDO FUTURISTA

Nos jogos e nos brinquedos, como em todas as manifestações passadistas,


não há mais que grotesca imitação, timidez (trenzinhos, carrinhos, bonecas
imóveis, caricaturas estúpidas de objetos domésticos), antiginásticos ou
monótonos, somente atos a atoleimar e a aviltar a criança.
Por meio dos complexos plásticos nós construiremos brinquedos que
habituarão a criança:
1)A RIR ABERTÍSSIMAMENTE (por efeitos de truques exageradamente cômicos);
2) A ELASTICIDADE MÁXIMA (sem recorrer a lances de projéteis, chicotadas,
picadas repentinas, etc.);
3) AO IMPULSO IMAGINATIVO (mediante brinquedos fantásticos para serem
vistos com lentes; caixinhas de abrir-se á noite, das quais estourarão maravilhas
pirotécnicas; aparelhos em transformação, etc.);
4) A TORNAR INFINITAMENTE TENSA E A AGILIZAR A SENSIBILIDADE (no
domínio ilimitado dos rumores, odores, cores, mais agudos, mais excitantes);
5) À CORAGEM FÍSICA, À LUTA E À GUERRA (mediante brinquedos enormes
que agirão ao ar livre, perigosos, agressivos).
O brinquedo futurista será utilíssimo mesmo para o adulto, já que o manterá
jovem, ágil, alegre, desenvolto, pronto para tudo, incansável, instintivo e intuitivo.

A PAISAGEM ARTIFICIAL

Desenvolvendo a primeira síntese da velocidade do automóvel, Balla


chegou ao primeiro complexo plástico (nº 1). Isto nos revelou uma paisagem
abstrata de cones, pirâmides, poliedros, espirais de montanhas, rios, luzes,
sombras. Portanto uma análise profunda existe entre as linhas-forças essenciais
da velocidade e as linhas-forças essenciais de uma paisagem. Descemos na
ausência profunda do universo, e dominamos os elementos. Chegaremos assim a
construir.

O ANIMAL METÁLICO

Fusão de arte + ciência. Química, física, pirotécnica contínua repentina do


ser novo automaticamente falante, gritante, dançante. Nós, futuristas, Balla e
Depero, construiremos milhões de animais metálicos, para a maior guerra
(conflagração de todas as forças criadoras da Europa, da Ásia, da África e da
América, que seguirá indubitavelmente a atual maravilhosa pequena conflagração
humana).
As invenções contidas neste manifesto são criações absolutas,
integralmente geradas pelo Futurismo italiano. Nenhum artista da França, da
Rússia, da Inglaterra ou da Alemanha intuiu antes de nós qualquer coisa similar ou
análoga. Somente o gênio italiano, isto é, o gênio mais construtor e mais arquiteto,
poderia intuir o complexo plástico abstrato. Com isto, o Futurismo determinou o
seu Estilo, que dominará inevitavelmente por muitos séculos de sensibilidade.

Milão, 11 de março de 1915


Trad.: Nancy Rozenchan

CENOGRAFIA FUTURISTA

E. PRAMPOLINI

Abril – Maio de 1915

Reformemos a cena

Admitir, crer que uma cena existe até hoje é afirmar que o Homem, do
ponto de vista artístico, é absolutamente cego.
A cena não equivale a um aumento fotográfico de um retângulo de
realidade ou a uma síntese relativa, mas à adoção de um sistema teórico e
material de cenografia subjetiva completamente oposta à chamada cenografia
objetiva de hoje.
Trata-se não apenas de reformar a concepção da estrutura da encenação;
é preciso criar uma entidade abstrata que se identifique com a ação cênica da
peça.
É falso conceber a cena à parte, como um fato pictural:
a) porque não fazemos mais cenografia, mas simples pintura;
b) porque voltamos ao passado (isto é, ao passado...presente) onde a cena
exprime um tema, a peça desenvolve um outro. Estas duas forças que divergiam
(o autor teatral e o cenógrafo) devem convergir, a fim de que resulte a síntese total
da peça.
A cena deve viver a ação teatral em sua síntese dinâmica, deve exprimir,
como o autor exprime e vive em si imediatamente, a alma do personagem
concebido pelo autor.
Para reformar a cena, é preciso pois:

1.Negar a construção exata do que o autor teatral concebeu, abandonar,


então, resolutamente, toda ligação real, toda comparação entre objeto e sujeito e
vice-versa; todas essas ligações diminuem a emoção direta através de sensações
indiretas.
2. Substituir à ação cênica uma ordem emotiva que desperte todas as
sensações necessárias ao desenvolvimento da peça; a atmosfera que resultar daí
dará o meio interior.
3. A síntese absoluta na expressão material da cena, quer dizer não a
síntese pictural de todos os elementos, mas a síntese com a exclusão de
elementos da arquitetura cênica que são incapazes de reproduzir sensações
novas.
4. A arquitetura cênica deverá ser antes um produto para a intuição do
público mais do que uma colaboração imagética e elaborada.
5. As cores e a cena deverão suscitar no espectador esses valores
emotivos que não podem ser dados nem pela palavra do poeta, nem pelo gesto do
ator.
Hoje, não há reformadores da cena: as tentativas de Dresa e de Rouché, na
França, com expressões ingênuas e infantis; de Meierhold e Stanislavski, na
Rússia, com reminiscências de classicismo enfadonho (deixamos de lado o
plagiador Bakst assírio – persa – egípcio – nórdico); Adolfo Appia, Fritz Eiler,
Littman Fuchs e Max Reinhardt (organizador), na Alemanha, tentaram reformas
mais do lado da elaboração faustosa, rica de aparências glaciais do que da idéia
essencial de reforma interpretativa; Graville Barker e Gondon Craig, na Inglaterra,
fizeram inovações limitadas, sínteses objetivas.
Ostentações e simplificações materiais, não-rebelião contra o passado. É
esta revolução necessária que temos intenção de provocar, porque ninguém teve
a austeridade artística de renovar a concepção interpretativa do elemento a
exprimir.
Entre nós, a cenografia é uma coisa monstruosa. Os cenógrafos de hoje,
rebocadores estéreis, vagam ainda em torno dos cantos empoeirados e fétidos da
arquitetura clássica.
Devemos nos rebelar e nos impor, dizer aos amigos poetas e músicos: esta
ação exige esta e não aquela cena.
Sejamos nós também artistas, e não mais executores apenas.
Criemos a cena, demos vida à peça com todo o poder evocador de nossa arte.
Não é preciso lembrar a necessidade de peças condizentes com
nossa sensibilidade, que impliquem, no desenvolvimento cênico dos motivos, uma
concepção mais intensa e sintética.

Renovemos a cena
O caráter absolutamente novo que nossa inovação dará à cena é a
abolição da cena pintada. A cena não será mais um fundo colorido, mas uma
arquitetura eletromecânica sem colorido, poderosamente vivificada por
emanações cromáticas de uma fonte luminosa, produzidas por refletores elétricos,
com vidros multicores, dispostos, coordenados analogicamente à psique de cada
ação cênica. A irradiação luminosa dessas girândolas, desses planos de luzes
coloridas, as combinações dinâmicas darão resultados maravilhosos de
compenetração, de intersecção de luzes e sombras. Nascerão daí vazios
abandonos, corporificações luminosas de exultação. Esses adicionamentos, esses
choques irreais, essa exuberância de sensações e com tudo isto as arquiteturas
dinâmicas da cena, que se moverão desencadeando braços metálicos,
derramando planos plásticos, no meio de um barulho essencialmente novo,
moderno, aumentarão a intensidade vital da ação cênica.
Sobre uma cena iluminada por tais meios os atores ganharão efeitos
dinâmicos imprevistos que são negligenciados ou muito pouco empregados nos
teatros de hoje, sobretudo por causa do antigo preconceito que é preciso imitar,
representar a realidade.
Para que?
Acreditam os cenógrafos ser absolutamente necessário representar esta
realidade? Idiotas! Não compreendem que seus esforços, suas inúteis
preocupações realísticas não têm outro efeito senão diminuir a intensidade, o
conteúdo emotivo que se pode atingir precisamente através dos equivalentes
interpretativos destas realidades, isto é, das abstrações.

Criemos a cena
Nas linhas acima, sustentamos a idéia de uma cena dinâmica oposta à
cena estática de outrora; nos princípios fundamentais que vamos expor, temos
não apenas a intenção de levar a cena à sua expressão mais avançada, mas
atribuir-lhe os valores essenciais que lhe são próprios e que ninguém até agora
pensou em lhe dar.
Invertamos os papéis
No lugar da cena iluminada, criemos a cena iluminadora: expressão
luminosa que irradiará com todo seu poder emotivo as cores exigidas pela ação
teatral.
O meio material para exprimir esta cena iluminadora consiste no emprego
das cores eletroquímicas de fluorescentes que têm a propriedade química de
serem susceptíveis à corrente elétrica e de emanar colorações luminosas de todas
as tonalidades, segundo as combinações do flúor com outros fluorescentes e com
gás. Obter-se-ão os efeitos desejados de luminosidade, excitando por meio de
tubos elétricos de néon (ultravioleta), estes fluorescentes dispostos
sistematicamente conforme o projeto estabelecido para esta imensa arquitetura
ceno-dinâmica. Mas a evolução cenográfica e coreográfica futurista não pode
parar aí. Em síntese, os atores humanos não poderão mais ser suportados, como
títeres ou como as supermarionetes de hoje que os reformadores preconizam;
nem estas nem aqueles podem exprimir suficientemente os aspectos múltiplos
concebidos pelo autor teatral.
Na época totalmente realizável do Futurismo veremos as luminosas
arquiteturas dinâmicas da cena emanar incandescências cromáticas que trepando
tragicamente ou se exibindo voluptuosamente suscitarão inevitavelmente no
espectador novas sensações e valores emotivos.
Vibrações, formas luminosas (produzidas por corrente elétrica e gás
colorido) agitar-se-ão, retorcer-se-ão dinamicamente, e esses verdadeiros atores-
gás de um teatro desconhecido deverão substituir os atores vivos. Através de
assobios agudos, barulhos estranhos, esses atores-gás poderão muito bem dar
significações insólitas das interpretações teatrais, exprimir essas totalidades
emotivas multiformes com muito mais eficácia do que um autor célebre qualquer
por suas ostentações. Esses gases hilariantes, estrondosos, etc., encherão de
alegria ou de pavor o público que se tornará, talvez ele, também ator.
Mas estas nossas palavras não são as últimas. Temos ainda muito a dizer.
Deixem-nos antes pôr em execução o que expusemos acima.

Trad.: Elisa Guimarães

MANIFESTO DO PARTIDO POLÍTICO FUTURISTA

de F.T. MARINETTI (1915-18)

I. O partido político futurista que fundamos hoje deseja uma Itália livre e
forte, e não mais submissa ao seu grande Passado, ao estrangeiro por demais
amado e aos padres demasiado tolerados, uma Itália sem tutela, absolutamente
senhora de todas as suas energias, e voltada para o seu grande porvir;
II. A Itália, único soberano. Nacionalismo revolucionário: pela liberdade, pelo
bem-estar e aperfeiçoamento físico e intelectual, a força, o progresso, a grandeza
e o orgulho de todo o povo italiano;
III. Educação patriótica do proletariado. Luta contra o analfabetismo.
Viabilidade, Construção de novas estradas e ferrovias, Escolas primárias leigas
obrigatórias, com sanções penais. Educação esportiva e militar ao ar livre. Escolas
de coragem e italianidade;
IV. Transformação do Parlamento através de uma participação eqüânime de
industriais e agricultores, de engenheiros e comerciantes no governo do país. O
limite mínimo de idade para deputação será reduzido a 22 anos. Um mínimo de
deputados advogados (sempre oportunistas) e um mínimo de deputados
professores (sempre retrógrados). Um Parlamento limpo de canalhas e imbecis.
Abolição do Senado.
Se este Parlamento racional e prático não der bons resultados, aboli-lo-
emos para chegar a um Governo técnico, sem Parlamento, um Governo composto
por 20 técnicos eleitos mediante o sufrágio universal.
Substituiremos o Senado por uma assembléia de controle, composta por 20
jovens com idade inferior a 30 anos, eleitos mediante o sufrágio universal. Ao
invés de um Parlamento de oradores incompetentes e de eruditos inválidos,
moderado por um Senado de moribundos, teremos um governo de 20 técnicos,
excitado por uma assembléia de jovens com idade inferior a 30 anos;
V. Abolição da autorização marital, divórcio fácil. Depreciação gradual do
matrimônio pelo evento gradual do amor livre e dos filhos do Estado;
VI. Participação igual de todos os cidadãos italianos no governo. Sufrágio
universal igual e direto para todos os cidadãos, homens e mulheres. Escrutínio de
lista em base ampla. Representação proporcional;
VII. Preparação da futura socialização dos grandes latifúndios, através das
Obras Pias, das Entidades Públicas, e da expropriação de todas as terras incultas
e mal cultivadas. Taxação enérgica dos bens hereditários, e limitação dos graus de
sucessão;
VIII. Sistema tributário fundamentado sobre impostos diretos e
progressivos, sob controle integral. Liberdade de greve, de reunião, de
organização, de imprensa, e depuração da polícia. Abolição da polícia política e da
intervenção do exército para restabelecimento da ordem. Justiça gratuita e juízes
eleitos. Salários-mínimos elevados de acordo com a necessidade da subsistência.
Oito horas de trabalho máximo legal. Equiparação salarial entre homens e
mulheres. Leis eqüânimes para o contrato de trabalho individual e coletivo.
Transformação da beneficência em assistência social e previdência.
Aposentadoria para os operários. Seqüestro de metade de todos os bens obtidos
com provisões de guerra;
VII. (sic) Manter o exército e a marinha eficientes até o desmembramento
do Império Austro-Húngaro. Diminuir, depois, os efetivos ao mínimo, preparando
por seu turno inúmeros quadros de oficiais com instruções rápidas. Exemplo:
Duzentos mil homens com sessenta mil oficiais, cuja instrução pode ser
subdividida em quatro trimestres em cada ano. Educação militar e esportiva nas
escolas. Preparação de uma completa mobilização industrial (armas e munições)
a realizar-se no caso de guerra, simultaneamente à mobilização militar. Todos
preparados, com o mínimo dispêndio, para uma eventual guerra ou eventual
revolução;
IX. Substituir o atual anticlericalismo retórico e quietista por um
anticlericalismo de ação, violento e decidido, a fim de desentulhar a Itália e Roma
de seu medievo teocrático, que poderá escolher uma terra conveniente onde
morrer, lentamente.
Nosso anticlericalismo, intransigentíssimo e integral, constitui a base de
nosso programa político, e não admite meios-termos ou transações, mas sim
exige diretamente a expulsão.
Nosso anticlericalismo deseja libertar a Itália das igrejas, dos padres, dos
frades, das freiras, das Madonas, das velas e dos sinos. Nosso anticlericalismo
combate a religião infame da renúncia e das lágrimas, que tem por símbolo
deprimente um homem crucificado.
A única religião: a Itália do futuro. Por ela nós lutaremos e até talvez
morramos, sem que nos livremos das formas de governo destinadas
necessariamente a seguir o medievo teocrático e religioso em sua queda fatal;
X. Reforma radical da Burocracia, tornada hoje fim em si própria, e um
Estado dentro do Estado. Desenvolver, por isso, as autonomias regionais e
comunitárias; descentralização regional das atribuições administrativas e relativos
controles. Para tornar cada administração um instrumento ágil e prático, diminuir
os empregados em dois terços, duplicando os subsídios dos chefes de setores e
tornando difíceis e não teóricos os concursos.
Atribuir aos chefes de setor responsabilidade direta e o conseqüente dever
de aliviar e simplificar tudo. Abolir a imunda Antigüidade em todas as
administrações, na carreira diplomática e em todos os setores da vida nacional.
Premiação direta do engenho prático e simplificador nos empregados.
Depreciação dos diplomas acadêmicos e estímulos, com prêmios, às iniciativas
comercial e industrial. Instituição do princípio eletivo nos empregos públicos, mais
elevados. Organização simplificada, do tipo industrial, nos setores executivos;
XI. Contra o patriotismo comemorativo, contra a monumentomania, e contra
toda ingerência passadista do Estado na arte.
XII. Industrialização e modernização das cidades mortas, que ainda vivem
de seu passado. Menoscabar a perigosa e aleatória indústria do turismo.
XIII. Desenvolvimento da marinha mercante e da navegação fluvial.
Canalização das águas e beneficiamento das terras maláricas. Investir todas as
forças e riquezas do país. Refrear a emigração. Nacionalização e utilização de
todas as águas e minas, concedendo o seu usufruto a entidades públicas locais.
Concessão de incentivos para a indústria e agricultura cooperativas. Defesa dos
consumidores.
XIV. É preciso levar nossa guerra à vitória total, isto é, até o
desmembramento do Império Austro-Húngaro e até assegurar nossas fronteiras
naturais, em terra e mar, sem o que não poderemos ter mãos livres para
desobstruir, aprimorar, renovar e agigantar a Itália.
O Partido Político Futurista, que hoje fundamos e que organizaremos
depois da guerra, será nitidamente distinto do Movimento Artístico Futurista. Este
haverá de prosseguir em sua obra de rejuvenescimento e reforço do gênio criativo
italiano. O movimento artístico futurista, vanguarda da sensibilidade artística
italiana, necessariamente sempre antecipa a sensibilidade do povo. Permanece,
por isso, uma vanguarda freqüentemente incompreendida e freqüentemente
hostilizada pela maioria, que não pode compreender as suas estupefacientes
descobertas, a brutalidade de suas expressões polêmicas e os ímpetos temerários
de suas intuições.
O Partido Político Futurista, ao contrário, intui as necessidades presentes e
interpreta, de modo exato, a consciência de toda a raça, no seu ímpeto
revolucionário higiênico. Poderão aderir ao Partido Político Futurista todos os
italianos, homens e mulheres, de qualquer classe e idade, inclusive os que tenham
repulsa de quaisquer conceitos artístico e literário.
Este programa político assinala o nascimento do Partido Político Futurista,
invocado por todos os italianos que lutam hoje por uma Itália mais jovem, liberta
do peso do passado e do estrangeiro.
Sustentaremos este programa político com a violência e a coragem
futuristas, que têm caracterizado até aqui nosso movimento, nos teatros e nas
praças. Todos conhecem, na Itália e no exterior, o que nós compreendemos por
violência e coragem.

F.T.Marinetti

Trad.: V. Aleksander Jovanovic

AS ARTES PLÁSTICAS DE VANGUARDA E A CIÊNCIA MODERNA

G. SEVERINI

1 de fevereiro de 1916

Todos sabem que as ciências biológicas e físicas situaram o Homem no


universo no mesmo nível que todos os seres vivos.
Aqueles que atribuem ao homem um dom sobrenatural devido à sua
inteligência estão atrasados 50 anos pelo menos. Estão igualmente em atraso,
aqueles que fazem do homem o centro de toda expressão de beleza e que
regulam por sua arquitetura exterior a arquitetura de sua estética. Tal estética, que
tem sua origem na Arte Grega e que permanece Grega até os Impressionistas, é
uma ficção baseada na cultura ou na religião, e não a emanação direta de uma
maneira de ver o mundo. Ela é aos olhos de um homem moderno tão ridícula
quanto a vestimenta de um senhor que passeia pela rua revestido de uma couraça
e coberto com uma cartola.
As Invenções da Ciência reconduzem a sensibilidade humana ao nível do
período pré-histórico; nossa arte, como a do homem do pleistoceno, deve ser uma
representação direta da vida.
A contemplação, o misticismo, a alegoria heróica e literária, as religiões, eis
de quantas velharias a Ciência nos libertou.
Reconduzamos a emoção estética à sua origem física, que é a vida, e
damos aos fenômenos intelectuais seus nomes verdadeiros, indiscutíveis.
O que é a alma senão a faculdade de pensar, e o pensamento não é um
produto da inteligência?
A Ciência e a Filosofia demonstraram-nos que a inteligência é um
mecanismo físico tributário do alto funcionamento celular.
Pelos fios telegráficos de nosso sistema nervoso, pelos transmissores de
nossos órgãos sensoriais, e pelo receptor que é nosso cérebro, escutamos,
compreendemos, percebemos o Universo.
A emoção e o pensamento estão, pois, subordinados ao funcionamento
geral do nosso organismo. É indiscutível o fato de que uma imperfeição física
momentânea ou constante e mesmo uma alteração qualquer no funcionamento
dos órgãos vitais determinem o tom e o caráter da emoção e do pensamento.
Assim, uma indigestão, um resfriado e com mais razão uma doença mais
grave repercutem na percepção do mundo exterior; na criação, como na
contemplação da obra de arte.
Façam uma experiência: escutem versos ou música, ou olhem um quadro
no momento em que estiverem com uma violenta dor de cabeça.
Deve-se, aliás, a essa origem física da emoção o fato de vivermos
embaraçados por um infindável número de obras melancólicas e sentimentais de
autoria de artistas neurastênicos, epiléticos e opiomaníacos que se lamentam a
vida toda, enquanto outros se sentem eternamente excitados.
Já passou o tempo dessa idéia abstrata da beleza que faz considerar o ser
humano acima dos outros elementos do Universo. Um linotipo é tão belo quanto
uma mulher bonita, um motor belo é tão belo quanto uma mulher bonita, um motor
belo é tão belo quanto Apolo, e suas vidas estão ligadas à vida humana.
Eu quase chego a compreender a reação de Picasso, que pinta
continuamente guitarras e cachimbos.
O homem considerado fora do movimento Universal não pode nos
interessar. Porque ele vive a mesma vida fisiológica dos corpos que o rodeiam, e a
sensação não é senão uma superposição, uma continuidade de nossa vida na
vida dos seres e das coisas.
Se a fisiologia humana e seu produto – a inteligência – são imutáveis, a
psicologia, sendo relativa ao conteúdo variável da inteligência e às transformações
da vida exterior, não é imutável.
Os grandes acontecimentos intelectuais modificam gradualmente nossa
noção do Universo, e todos os elementos de nossa civilização.
Desde a invenção do vapor e a descoberta do magnetismo, esta força
inicial da vida, a vida intelectual e social entram numa nova época.
Todo cérebro dotado de um pouco de atividade percebe bem isto.
O que é mais difícil admitir, principalmente para as pessoas “instruídas”, é
que a esta nova vida intelectual e social possa corresponder uma ética e uma
estética novas.
Entretanto, a idéia do belo e a expressão dessa idéia não podem ser senão
relativas à nossa vida intelectual e social e, por conseguinte, à nossa psicologia.
A filosofia em geral e sobretudo a filosofia científica, a ciência em geral, e
principalmente essa última época d Ciência que começa pela lei da constância
original, de Quinton, abriram novos horizontes à percepção dos artistas modernos.
A filosofia científica e o método das descobertas científicas de Quinton
ensinam-nos a considerar os fenômenos em sua finalidade, que é a vida, e
explica-nos esta vida segundo as leis cósmicas físicas e químicas que regem o
Universo. O fenômeno está, pois, ligado ao Universo.
Nossos olhos não são mais capazes de parar sobre um objeto isolado, mas
vemos ao mesmo tempo os objetos e os corpos que os rodeiam. Como os átomos
se influenciam e se compenetram (Boskovitch, Copérnico, Newton), os corpos se
influenciam e se compenetram.
A idéia que o objeto faz jorrar em nosso pensamento, intensificada
simultaneamente pela lembrança e pela imaginação, tende por suas subdivisões
prismáticas para o infinito, e multiplicam-se.
A sensação identifica-se na idéia, pois à vista de um objeto ou ao tocar de
um objeto, corresponde simultaneamente uma idéia-imagem deste objeto.
Por conseguinte, não damos o objeto, mas a idéia-sensação-imagem que o
objeto provoca em nós; não damos a causa, mas o efeito, a finalidade, e ligamos
esta finalidade à vida universal.
O artista, acrescentando-se à natureza, como dizia Bacon, aumenta sua
ação intensiva e expansiva. Em outros termos: ele reconstrói o Universo segundo
uma nova arquitetura de acordo com nossa psicologia.
Todas as civilizações, todas as estéticas, todas as filosofias não fizeram
outra coisa senão isto, dizia acertadamente Remy de Gourmont; com efeito, a
cada civilização corresponde sempre uma estética.

A VIDA MODERNA – MEIO DE PERCEPÇÃO

O sentimento estético manifestou-se na Idade da Pedra gravando sobre a


madeira ou sobre os ossos a figura dos animais familiares.
Pouco a pouco, foram-se dando a esses animais valores religiosos,
místicos, simbólicos; assim a arte distanciou-se gradativamente de seu fim
espontâneo que era reconstruir a natureza segundo uma idéia de belo. A
abstração influiu sobre a percepção e perdeu-se o sentido direto da vida.
Parece-me lógico que esses valores místicos, simbólicos ou alegóricos não
convenham mais à nossa nova idéia de beleza; parece-me natural a volta à
origem do sentimento estético, ou seja, à “representação” direta dos objetos ou
corpos familiares. O que não quer dizer voltar ao passado. Apenas mudaram
esses objetos ou corpos que nos cercam; o homem, ele próprio mudou, no seu
aspecto exterior bem como no interior ou psicológico. Os objetos familiares são
hoje bondes, máquinas, etc... os monstros do pleistoceno, cuja reconstrução nos é
mostrada pela biologia, são agora monstros de aço e de cobre, freqüentemente
pintados de maravilhosas cores, sempre palpitantes de uma vida formidável,
criada pelo homem por meio de forças magnéticas descobertas no Universo e
disciplinadas há pouco tempo.
A época do fogo sucedeu a da eletricidade. A ciência mecânica triplicou,
quintuplicou todas as forças da natureza que assume desta maneira aspectos
totalmente diferentes.
As paisagens perderam suas linhas sentimentais que os pintores de outrora
nos ensinaram a amar; no lugar de fortalezas de torres ameadas e de castelos
magníficos, sobre pontos freqüentemente muito pitorescos, levantam-se usinas,
fábricas e estaleiros; as estradas de ferro, os postos telegráficos, os anúncios
brutais prolongam nos campos mais recuados a vida intensiva das cidades
tentaculares.
A incompreensão desse novo estado da natureza chegou a tal ponto que se
organizaram sociedades para a conservação da paisagem e outras análogas.
É de um cômico fantástico. Querer lutar contra a transformação fatal de
toda manifestação da vida, querer dominar ou impedir essa transformação para a
comodidade dos velhos estetas retardatários é tão ridículo quanto querer fazer
parar um trem para apanhar o chapéu.
Esta incompreensão não é a especialidade das multidões. Pessoas de
valor, mesmo gênios, são por vezes também refratárias em seguir esteticamente
as transformações das épocas. Conhece-se o desprezo de Theophile Gautier, o
ódio de Victor Hugo pelas incômodas, execráveis locomotivas e pelas estradas de
ferro que destroem as paisagens. Mas não são as únicas idéias barrocas que
esses grandes românticos nos deixaram. Para eles qualquer objeto era mais belo
do que uma locomotiva; entretanto, com o tempo veio a mudança; e há hoje
inteligências, como a de Remy de Gourmount, que colocam a locomotiva entre as
criações mais emocionantes e mesmo mais estéticas do gênio moderno.
Acontecerá o mesmo para o automóvel, o avião, o linotipo; e para todas as
máquinas que criam um novo estado, um novo reino da natureza. O reino de uma
supervida mecânica, ultra-rápida, simultânea e prismática, que é daqui por diante
nossa unidade de beleza, nossa nova ética.

SIMBOLISMO PLÁSTICO E SIMBOLISMO LITERÁRIO

A literatura precedeu as artes plásticas, exprimindo uma estética


correspondente à nossa psicologia moderna.
Encontramos em Mallarmé e em nossos poetas simbolistas a expressão
dessa estética, no seu princípio identificada com este idealismo, que tem suas
raízes profundas na vida da matéria. Eis porque encontramos nos poetas
modernos simpatia, compreensão e a melhor crítica. Porque somente hoje temos
a obra plástica correspondente à obra poética de Mallarmé.
A educação do olho, contrariamente ao que pensa Remy de Gourmont, não
se tendo efetuado paralelamente à da inteligência, as pessoas que compreendem
os poetas simbolistas não compreendem sempre nossa arte equivalente.
O próprio espírito crítico de Remy de Gourmont, embora avisado ao
máximo, incorreu em erro fazendo um paralelo entre a concepção estética de
Mallarmé e a técnica instintiva de Claude Monet. O paralelo entre Mallarmé e
Monet é impossível porque entre eles não há senão uma analogia puramente
técnica. Mallarmé via e pensava, Monet via apenas; Mallarmé tendia para a
criação, Monet permanecia nos limites de uma arte morfológica.
As palavras, escolhidas por Mallarmé segundo sua qualidade
complementar, e empregadas em grupo ou separadas, constituem uma técnica
para exprimir uma subdivisão prismática da Idéia, uma compenetração simultânea
de imagens.
Há toda uma estética que não é somente, como diz Remy de Gourmont, o
resultado de um excesso de delicadeza, de um excesso de arte, mas que é na
verdade relativa a uma sensibilidade, a uma psicologia inteiramente novas,
embora não inteiramente afirmadas.
Os impressionistas balbuciavam apenas uma linguagem nova, cuja
arquitetura só Mallarmé começava a conceber.
Nos pintores impressionistas, só o divisionismo instintivo das cores
corresponde ao divisionismo das imagens de Mallarmé, expresso tecnicamente
pelo divisionismo das palavras. Com efeito, Claude Monet e os impressionistas
nunca chegaram a realizar na forma a evolução que realizaram na cor. Contudo,
eles se salientam como os primeiros pintores que adotaram uma idéia ao
Movimento Universal despida de toda religião, de todo sentimento alegórico ou
místico. Eles são inovadores. Mas a continuação, ou solidificação do
impressionismo, devia cumprir-se mais tarde, depois do período de transição dos
neo-impressionistas e dos pós-impressionistas. É preciso considerar igualmente
como um período de transição esta época de reação ao impressionismo, durante a
qual Derain, Picasso e Braque, desenvolvendo uma das tendências de Cézanne,
iniciaram uma compreensão sólida e geométrica do mundo exterior.
Esta busca de formas é, entretanto, uma das origens da nova estética que
atingirá mais tarde, o nível de Mallarmé, Picasso e Braque, que por esta análise
da forma chegaram ao “divisionismo da forma”.
Guillaume Apollinaire, no seu livro sobre o Cubismo, chama o cubismo de
Picasso e de Braque “cubismo científico”. E com efeito Picasso, decompondo um
objeto para reconstruí-lo segundo uma idéia pessoal da realidade, procede
esteticamente como Berthelot procedia quimicamente na sua decomposição de
um corpo orgânico e reconstrução deste mesmo corpo.
Mas julgo esta classificação definitiva um pouco casual. Tanto mais que um
ou vários pontos de contato com métodos científicos não fazem necessariamente
científica a obra de arte.
Quando nas minhas pesquisas pessoais, quando eu fazia penetrar uma
mesa numa pessoa, um objeto num outro, descobria uma lei estética, continuação
lógica do Impressionismo, paralela à de Boskovitch e Copérnico sobre a influência
recíproca dos átomos, e sobre a formação da matéria.
O divisionismo das formas, ao qual eu desembocava necessariamente por
outro caminho que não o de Picasso e de Braque, não tinha menos seu
equivalente na Ciência, apesar de Apollinaire ter-se comprazido em me classificar
entre os cubistas instintivos.
Que meu amigo Apollinaire me permita exprimir o que penso sobre todas
essas classificações em ismo, que complicam singularmente as coisas. Julgo-as
prejudiciais, tanto no que se refere ao público quanto ao próprio artista.
Há uma tendência geral em ver o mundo exterior segundo um novo
idealismo baseado na vida da matéria; e em exprimir este idealismo por uma
técnica livre e individual que é chamada divisionismo das formas e interpenetração
dos planos. É tudo.
Nesta expressão, como nos poetas simbolistas, há artistas que vão mais
longe na criação, e outros que não sabem se libertar completamente da realidade
de visão.
Há talentos em que o raciocínio ocupa a maior parte, outros em que a
sensibilidade desempenha o papel principal; isso, como em tudo, varia de acordo
com o valor do artista.
É impossível estabelecer regras gerais sobre esses pontos instáveis. O
divisionismo das formas e a interpenetração dos planos permitem ao pintor
moderno dar os elementos essenciais do movimento Universal: a força de
gravitação, a força de atração e a força de repulsão. Nossa sensibilidade e nossa
inteligência percebem e dirigem estas forças que constituem a vida do objeto.
A tendência que caracteriza os pintores futuristas é a de exprimir uma
síntese destas forças combinadas, isto é, a vida ou movimento do objeto no seu
máximo de intensidade e expansão. Eles veicularam através da percepção
plástica o sentido da simultaneidade.
O novo realismo expresso por esta estética não se baseia em abstrações,
como certas pesquisas individuais tenderiam por vezes a fazer acreditar.
Este realismo que se poderia chamar: realismo ideísta, adotando este
adjetivo tão exato de Rémy de Gourmont, identifica-se no Movimento Universal
que não pode ser abstrato. Sendo esta idéia de Movimento Universal a base da
arte plástica de hoje, creio útil o esclarecimento desta idéia. Penso que querer
abstrair o movimento significaria atribuir-lhe uma origem independente, talvez um
pouco literária e não puramente física. Parece-me ser impossível separar o
movimento do objeto ou corpo que dele nos dá a percepção. O movimento não é
uma Qualidade, mas uma síntese de todas as qualidades. Poder-se-ia chamar
continuidade a esta soma de todas as qualidades do objeto.
O movimento, como o tempo no qual se identifica, é uma continuidade.
Analisar esta continuidade significaria matar a vida do objeto, parar seu
movimento, dividi-lo em um número de instantes sucessivos.
A hipótese de uma abstração do movimento, isto é, a possibilidade de
separar o movimento do corpo onde ele reside, é, segundo penso, non-sense e
antiplástico, como a hipótese de um movimento relativo. Ou então, é preciso sair
do campo da arte plástica e entrar no campo da Ciência Mecânica. Neste caso, o
movimento pode ser absoluto, ou relativo. Mas, este movimento científico não é o
dinamismo Universal ou vida. Confundiram-se muitas vezes estes dois
movimentos: o movimento ou dinamismo universal e o movimento científico ou
deslocamento. Este erro foi gerado em parte pelos motivos de alguns quadros
futuristas e cubistas em que corpos deslocados eram representados. Este
deslocamento foi chamado por alguns pintores futuristas: movimento relativo, o
que não fez senão sustentar o erro, e produzir mal-entendidos de toda sorte.
Traçou-se até mesmo um paralelo entre nossas pesquisas e o cinematográfico!...
Este movimento científico ou deslocamento não pode ser considerado por
nós senão como uma qualidade do objeto, e como tal não pode ser abstrata.
Tomemos, por exemplo, a velocidade de um automóvel. A idéia-imagem
desta velocidade, que é específica e não geral, representa uma qualidade do
objeto automóvel. Abstrair esta qualidade quer dizer separá-la das outras
qualidades do objeto cuja soma constitui, como eu dizia acima, seu movimento
universal ou vida.
Esta operação do espírito é uma análise qualitativa, mas sempre análise; e
a lógica de nossa estética quer que concebamos o movimento no seu todo, que é
a própria extensão.
Aliás esta análise qualitativa está talvez na competência da “especulação” e
não da “representação” estética. A velocidade, como todas as qualidades de um
objeto, não existe em si mesma para o pintor, pois não podemos representar
plasticamente a velocidade do automóvel, mas o automóvel em velocidade.
Nosso realismo, por conseguinte, embora sendo o resultado do elemento
idéia e do elemento experiência sensorial, e não obstante seja expresso
freqüentemente por formas geométricas, não passa de uma abstração.
Com relação a esta escolha de corpos que se deslocam, é necessário que
não se veja nisto um sistema nem uma necessidade absoluta.
Esta preferência por trens ou automóveis em marcha, dançarinas, ou por
praticantes de boxe, futebol, etc... advém freqüentemente de uma facilidade de
pesquisa e, para os futuristas, particularmente, ela é o resultado dessa
necessidade de sentar a realidade no seu aspecto mais típico, mais essencial, e
no máximo de sua ação.
Esta necessidade, que nos levou a voltar ao assunto, é segundo nossa
psicologia uma conseqüência da vida moderna, e uma convicção ética. Mas isto
não implica a necessidade de abstenção da pintura dos corpos que não se
deslocam e que, contudo, estão em movimento. Porque o movimento Universal
reside tanto numa cadeira quanto no cavalo que trota.
A obra plástica dos cubistas em geral parece, em contraposição, exprimir
sobretudo a força de gravitação de movimento Universal. Isto fez com que teóricos
simplistas, que atribuem a pesquisas passageiras o caráter de uma tendência,
acreditassem que os cubistas quisessem perceber a realidade segundo suas
quantidades integrais, conseqüentemente, estática. É um grave erro.
Primeiramente, não existe uma realidade estética, nem uma arte estática.
(Desconfiemos das palavras que fazem bem.) Não existe uma realidade estática,
pois que mesmo um cadáver, sobre o qual pousam nossos olhos, assume
imediatamente a vitalidade que nosso pensamento lhe imprime. Ainda, não existe
arte estática, uma vez que a pintura digna deste nome é sempre um organismo
vivo, no qual uma concorrência contínua de formas e de cores estabelecesse um
movimento, ou vida subjetiva. Evidentemente, se houvesse equilíbrio nessa
concorrência, a pintura seria estática, quer dizer sem vida, e, portanto, inexistente.
Não é o caso de Picasso ou de Braque, nem de seus continuadores que, cada um
segundo seu valor, tendem para uma reconstrução realista do mundo exterior.
Sem dúvida, entre os continuadores de Picasso e Braque, como entre os
futuristas, há deploráveis tendências a serem sistematizadas. Impelir em linhas
enganosas até aos extremos limites do absoluto uma intuição ou uma verdade é
expor-se às mais absurdas conseqüências. O “sistema” é, aliás, um círculo
fechado no qual toda verdade desfalece e morre. Assim, exagerando esta
tendência impressionista de encerrar no quadro simples valores plásticos
destituídos de toda significação que não seja puramente pictural, os cubistas
caíram freqüentemente numa exaltação da forma pela forma. Isto implica uma
compreensão pagã da vida, paralela à contemplação da forma pura de Schiller.
Com os impressionistas, o motivo assumia uma importância relativa; com
os cubistas o motivo não tem mais nenhuma importância.
Certa tarde, um pintor cubista de grande valor queria persuadir-me de que
mesmo o Coliseu Romano podia ser um motivo para quadro. Isto não impede que
seus motivos se inspirem sempre em torno de objetos familiares, mas de objetos
de hoje.
Os Futuristas, continuando a estética do impressionismo até ao estilo,
proclamam a necessidade do motivo, e do motivo moderno.
As mais recentes exposições dos Independentes provam que todos os
pintores de vanguarda começam a adotar este ponto de vista.
Com efeito, a sensibilidade de um artista moderno será apenas despertada
pela admiração de uma grande obra do passado (admiração que não é emoção
estética), ao passo que se porá em estado de emoção-criação por uma obra
moderna palpitante da mesma vida que nós vivemos.
O artista de hoje não é mais o espectador, o que contempla, o sonhador,
pagão ou cristão; ele deve antes de tudo viver, e é sua vida física, a vida de todo o
Universo, que ele encerra na sua obra.
Nossa arte moderna, por sua tendência para a Universalidade, tem
afinidades com a arte dos primitivos católicos.
Como estes, exprimimo-nos por formas sintéticas, inspiradas mais por
nossa vida espiritual ou intelectual do que pela realidade que vemos.
Diferenciamo-nos deles neste ponto capital: a Universalidade dos pintores
católicos era uma conseqüência do misticismo religioso e de um teísmo quase
totalmente desaparecido. Nossa Universalidade deriva do sentido direto da vida
que possuímos pela ciência e pela filosofia científica.
Uma de minhas primeiras telas futuristas, “A dança do Panpan em Monico”,
na qual eu fazia as formas das coisas participarem do movimento das formas
humanas, foi chamada, pelo pintor Dufy, “pintura unanimista”.
Naquele momento, eu ignorava a significação exata do unanimismo, sendo
quase inconsciente minha busca de movimento.
Mais tarde, eu encontrei neste novo ponto de contato entre a literatura e a
pintura uma confirmação e uma certeza. Este movimento que atribuímos aos
objetos e que é nosso próprio movimento pode percorrer todo o Universo sobre as
ondas Hertzianas de nossa sensibilidade-inteligência.
Podemos pela vontade, pela lembrança e pela imaginação lançar nossas
sensações-idéias não somente através dos seres e das coisas de um mesmo
meio ambiente (1ª época futurista Objeto mais Ambiente), mas através de todos os
corpos do Universo (2ª época futurista Objeto mais Universo).
Olhando as ondas do mar que persistiam em me dar a idéia-imagem de
uma dançarina, eu compreendi que uma idéia-sensação podia ser continuada por
suas afinidades ou analogias, até seu contrário ou diferença específica.
Explico-me por um exemplo: os contrastes de formas e de cores,
pertencendo à percepção da realidade dançarina, podem ser reencontrados, por
afinidade ou por contraste, no vôo espiral de um aeroplano ou no reflexo do mar.
Eis os dois termos de comparação: dançarina = mar, encerrando o máximo
de vida universal.
A analogia não é uma generalização baseada na abstração mas um
elemento de intensificação realista e específica. É empregada sistematicamente
no lirismo sintético de Marinetti e dos poetas futuristas italianos.
Mallarmé, por um máximo de seleção e de síntese, que é, como diz Remy
de Gourmont, “a própria lógica de sua estética simbolista”, separa estes dois
termos da comparação; exprime apenas o segundo, aquele que serviu “para
esclarecer e poetizar o primeiro”, e que é uma continuidade qualitativa do primeiro.
Podemos realizar tecnicamente uma estética correspondente nas Artes
plásticas, e exprimir por uma forma quadrada e uma cor azul uma idéia-sensação
produzida em nós por uma realidade que nos aparece através de uma forma
redonda e uma cor amarela. Mas as possibilidades de nossa realização plástica
exigem os dois termos da comparação: ponto de partida e ponto de chegada da
idéia-sensação.
Posto que a unidade de tempo e de espaço esteja definitivamente destruída
no quadro, este poderá encerrar realidades que não pertençam nem ao mesmo
meio-ambiente nem ao mesmo instante de percepção, nem a nenhuma lógica
visual; estas realidades longínquas ou opostas serão reunidas somente por nosso
pensamento e por nossa sensibilidade.

* * *

Creio, além disso, mas se trata apenas senão de uma direção de nossa
psicologia, que a obra plástica moderna pode exprimir não somente a idéia do
objeto e sua continuidade, mas também uma espécie de ideografia plástica ou
síntese de idéias gerais. Porque há realidades cuja representação pode ter uma
significação humana muito vasta e complexa. Estas realidades são símbolos de
idéias gerais. Por exemplo, tentei exprimir a idéia: GUERRA, por um conjunto
plástico composto destas realidades: canhão, usina, bandeira, ordem de
mobilização, aeroplano, âncora.
Segundo nossa concepção de realismo ideísta, nenhuma descrição mais ou
menos naturalista de campos de batalha ou de carnificina poderia dar-nos a
síntese da idéia: GUERRA melhor do que estes objetos que são o símbolo vivo da
guerra.
Não apresento como uma necessidade o que não é, talvez, senão uma
direção.
Entretanto, de nossa vida intensiva e extensiva, exigindo cada vez mais a
síntese e a rapidez, poderá resultar o fato de nosso primitivismo exprimir-se mais
tarde por uma nova ideografia, plástica e literária, encerrando em sinais
convencionais e autônomos grandes extensões do Universo.
Temos já na vida exterior palavras reduzidas à metade ou fundidas com
outras palavras, e compostas de vários elementos realistas. Temos igualmente
sinais de rodovias ou de vias férreas, etc... exprimindo sinteticamente toda uma
ação.
No momento, o realismo ideísta do qual falei no decorrer de nossa
conversa, nós o exprimimos plasticamente por um simbolismo (estilo do
naturalismo plástico) que é paralelo ao simbolismo literário (estilo do naturalismo
literário) que nós ultrapassamos.
Embora a guerra pareça querer nos gratificar pelo retorno do neo-
romantismo e do neo-misticismo religioso, esta visão clara, realista do Mundo, que
devemos à Ciência, permanece um fato consumado que não poderá mais ser
destruído.

Gino Severini

Trad.: Elisa Guimarães

A NOVA RELIGIÃO-MORAL DA VELOCIDADE

F.T. MARINETTI

11 de maio de 1916

No meu primeiro manifesto (20 de fevereiro de 1909) eu declarei: a


magnificência do mundo se enriqueceu com uma beleza nova, a beleza da
velocidade. Após a arte dinâmica a nova religião-moral da velocidade nasce neste
ano futurista da nossa grande guerra liberadora. A moral cristã serviu para
desenvolver a vida interna do homem. Não tem mais razão de ser hoje, desde que
se esvaziou de todo o Divino.
A moral cristã defende a estrutura fisiológica do homem dos excessos da
sensualidade. Moderou os seus instintos e os equilibrou. A moral futurista
defenderá o homem da decomposição determinada pela lentidão, pela
recordação, pela análise, pelo repouso e pelo hábito. A energia humana
centuplicada pela velocidade dominará o Tempo e o Espaço.
O homem começou com desprezar o ritmo isócrono e cadenciado dos
grandes rios, idêntico ao ritmo do próprio passo. O homem invejou o ritmo das
torrentes semelhante àquele do galope de um cavalo. O homem domou os
cavalos, os elefantes e os camelos para manifestar a sua autoridade divina
mediante um aumento de velocidade. Fez aliança com os animais mais dóceis,
capturou os animais rebeldes e se alimentou dos animais comestíveis. O homem
roubou a eletricidade do espaço e os carburantes, para criar novos aliados nos
motores. O homem obrigou os metais vencidos e tornados flexíveis mediante o
fogo a aliar-se com os carburantes e a eletricidade. Formou assim um exército de
escravos, hostis e perigosos,mas suficientemente domesticados, que o
transportam velozmente sobre as curvas da terra.
Sendas tortuosas, estradas que seguem a indolência dos rios e volteando
ao longo das costas e dos ventres desiguais das montanhas, estas são as leis da
terra. Jamais linha reta; sempre arabescos e ziguezague. A velocidade dá
finalmente à vida humana uma das características da divindade: a linha reta.
O Danúbio opaco sob a sua túnica de lodo, o semblante abaixado sobre
sua vida interna cheia de gordurosos peixes libidinosos e fecundos, passa
resmungando entre os altos despenhadeiros implacáveis das suas montanhas,
como no imenso corredor central da terra, claustro descoberto pelas rodas velozes
das constelações. Até quando este rio pedante permitirá que um automóvel o
supere a toda velocidade, com seu ladrar de fox-terrier louco? Eu espero ver logo
o Danúbio correr em linha reta a 300 km por hora.
É necessário perseguir, frustrar, torturar todos aqueles que pecam contra a
velocidade.
Grave culpabilidade das cidades passadistas onde o sol se estabelece, se
acomoda e não se move mais. Quem pode crer que o sol se retirará esta tarde?
Ora! Impossível! Se domiciliou aqui. Praças, lagos de fogo estagnado. Estradas,
rios de fogo preguiçoso. Não se passa, por ora. Não se sai! Inundação de sol.
Precisaríamos de um barco frigorífico ou um escafandro de gelo para atravessar
aquele fogo. Entocar-se. Despotismo, repressão policial da luz, que encarcera os
revoltosos, cor de frescor e de velocidade. Estado de sítio solar. Ai do corpo que
sai de uma casa. Uma pancada sobre a cabeça. Morto. Guilhotinas solares sobre
todas as portas. Ai do pensamento que sai do crânio. 2,3,4 notas de chumbo que
lhe caem às costas, do campanário-destroço. Em casa, no mormaço, raiva de
moscas nostálgicas. Distensões de coxas e de recordações suadas.
Lentidão pecaminosa das loucuras dominicais e das lagunas venezianas.
A velocidade, tendo por essência a síntese intuitiva de todas as forças em
movimento, é naturalmente pura. A lentidão, tendo por essência a análise racional
de todas as canseiras em repouso, é naturalmente imunda. Após a destruição do
antigo bem e do antigo mal, nós criamos um novo bem: a velocidade, e um novo
mal: a lentidão.

Velocidade = síntese de todas as coragens em ação. Agressiva e guerreira.

Lentidão = análise de todas as prudências estagnadas. Passiva e pacifista.


Velocidade = desprezo aos obstáculos, desejo do novo e do inexplorado.
Modernidade, higiene.

Lentidão = trégua, êxtase, adoração imóvel dos obstáculos, nostalgia do já


visto, idealização do cansaço e do repouso, pessimismo acerca do inexplorado.
Romantismo rançoso do poeta viandante e selvagem e do filósofo cabeludo, de
óculos, imundo.

Se rezar significa comunicar-se com a divindade, correr à grande


velocidade é uma oração. Santidade da roda e dos trilhos. É necessário ajoelhar-
se sobre trilhos para rezar à divina velocidade. É necessário ajoelhar-se diante da
velocidade em rotação de uma bússola giroscópica: 20.000 giros por minuto,
máxima velocidade mecânica atingida pelo homem. É necessário arrebatar aos
astros o segredo de sua velocidade estupefaciente, incompreensível. Participemos
portanto das grandes batalhas celestes; afrontemos os Astros-bola lançados por
canhões invisíveis; compitamos com a estrela 1830 Groombridge, que voa a 241
km por segundo, com Arturo que voa a 413 km por segundo. Invisíveis artilheiros
matemáticos. Guerras nas quais os astros, sendo a um tempo projéteis e
artilheiros, lutam em velocidade para fugir a um astro maior ou alcançar um menor.
Nossos santos são os inúmeros corpúsculos que penetram na nossa atmosfera a
uma velocidade média de 42.000 metros por segundo. Nossas santas são a luz e
as ondas eletromagnéticas 3 X 10¹º metros por segundo.
A embriaguez das grandes velocidades em automóvel não é mais que a
alegria de sentir-se fundido com a única divindade. Os esportistas são os
primeiros neófitos desta religião. Próxima destruição das casas e das cidades,
para formar grandes agrupamentos de automóveis e de aeroplanos.
LOCAIS HABITADOS PELO DIVINO: os trens, os vagões-restaurante
(comer em velocidade). As estações ferroviárias; especialmente aquelas do Oeste
Americano, onde os trens arremessados a 140 km por hora passam bebendo
(sem se deterem) a água necessária e as sacolas do correio. As pontes e os
túneis. A praça da Ópera de Paris. O Strand de Londres. Os circuitos de
automóveis. Os filmes cinematográficos. As estações radiotelegráficas. Os
grandes tubos que precipitam colunas de água alpestres para arrancar à
atmosfera a eletricidade motora. Os grandes costureiros parisienses, que
mediante a invenção veloz da moda, criam a paixão do novo e o ódio pelo já visto.
As cidades moderníssimas e ativas como Milão, que segundo os americanos têm
o punch (soco limpo e preciso com o qual o boxeador põe seu adversário a
nocaute). Os campos de batalha. As metralhadoras, os fuzis, os canhões, os
projéteis são divinos. As minas e as contraminas velozes: fazer saltar o inimigo
Antes que este nos fala saltar. Os motores a explosão e os pneumáticos de um
automóvel são divinos. As bicicletas e as motocicletas são divinas. A gasolina é
divina. Êxtase religioso que inspiram os cem cavalos. Alegria de passar da 3ª para
a 4ª marcha. Alegria de apertar o acelerador, pedal ressoante da velocidade
musical. Asco que inspiram as pessoas enredadas no sono. Repugnância que eu
provo ao deitar-me à noite. Eu rezo cada noite à minha Lâmpada elétrica; já que
uma velocidade aqui se agita furiosamente.
O heroísmo é uma velocidade que alcançou a si própria, percorrendo o
mais vasto dos circuitos.
O patriotismo é a velocidade direta de uma nação; a guerra é o ensaio
necessário de um exército, motor central de uma nação.
Uma grande velocidade de automóvel ou de um aeroplano consente em
abraçar e confrontar rapidamente diversos pontos distantes da terra, isto é, de
fazer mecanicamente o trabalho da analogia. Quem viaja muito adquire
mecanicamente do engenho, aproxima as coisas distantes observando-as
sinteticamente e comparando-as uma à outra e descobrindo as simpatias
profundas. Uma grande velocidade é uma reprodução artificial da intuição
analógica do artista. Onipresença da imaginação sem fios = velocidade. Gênio
criador = velocidade.

Velocidade ativa e velocidade passiva; Velocidade que maneja (motorista) e


velocidade manejada (automóvel); Velocidade modeladora (que escreve, que
esculpe) e velocidade modelada (escrita, esculpida); velocidade dada por diversas
velocidades (trem impelido e puxado por duas locomotivas, à frente e no fim) e
velocidade portadora de diversas velocidades (transatlântico que tem diversos
motores de velocidade variada + diversos homens em movimento: marinheiros,
maquinistas, passageiros, camareiros, cozinheiros, nadadores na água agitada
das piscinas + a água agitada pelos nadadores + muitos cães correndo ou
ladrando + muitas pulgas saltitantes + a velocidade potencial de muitos cavalos de
corrida).

Outro exemplo de velocidade portadora de diversas velocidades: o


automóvel levando o motorista + velocidade do seu pensamento que faz a
segunda etapa ou tudo que resta a fazer, enquanto o automóvel faz materialmente
a primeira etapa. O motorista prova de fato à chegada o fastio do já visto.

A nossa vida deve sempre ser uma velocidade portadora: velocidade do


pensamento + velocidade do corpo + velocidade do pavimento que leva o corpo +
velocidade do elemento (água ou ar) que leva o pavimento (navio ou aeroplano).
Afastar o pensamento da estrada mental para pousá-lo na estrada material. Como
um lápis, deixar sobre o mapa da estrada odores (espargimento corpóreo),
pensamentos (espargimento espiritual) = acréscimo de velocidade. A velocidade
destrói a lei da gravidade, torna subjetivos, e portanto escravos, os valores de
tempo e de espaço. Os quilômetros e as horas não são iguais mas variam, para o
homem veloz, em extensão e em duração.

Imitemos o trem e o automóvel que impõem a tudo isto que existe ao longo
da estrada correr com velocidade idêntica em sentido inverso, e despertam em
tudo isto que existe ao longo da estrada o espírito de contradição, isto é, a vida. A
velocidade do trem obriga a paisagem atravessada a dividir-se em duas paisagens
que puxam em sentido inverso à sua direção. Cada trem leva consigo a parte
nostálgica da alma de quem o vê passar. As coisas um pouco distantes, árvores,
bosques, colinas, montanhas, observam com pasmo este arremessar-se das
coisas lançadas em sentido inverso ao trem, depois se decidem a segui-las, mas
como com má vontade e mais lentamente. Cada corpo em velocidade balança da
direita para a esquerda e tende a se tornar um pêndulo.

Correr, correr, correr, voar, voar. Perigo perigo perigo perigo perigo à direita
à esquerda sob sobre dentro fora cheirar respirar beber à morte. Revolução
militarizada de engrenagens. Lirismo preciso conciso. Esplendor geométrico. Para
gozar mais frescor e mais vida que nos rios e no mar deveis voar na
contracorrente fresquíssima do vento a toda velocidade. Quando voei pela
primeira vez com o aviador Bielovucic, eu senti o peito abrir-se como um grande
buraco onde todo o azul do céu deliciosamente se engolfava liso fresco e
torrencial. À sensualidade lenta diluída dos passeios no sol e nas flores, deveis
preferir a massagem feroz e colorante do vento enlouquecido. Ligeireza crescente.
Infinito senso de voluptuosidade. Desçam da máquina com um salto ligeiríssimo e
elástico. Vocês tiraram um peso de cima. Venceram o visgo da estrada. Ganharam
da lei que impõe ao homem rastejar.

É necessário continuamente variar a velocidade para que a nossa


consciência participe dela. A velocidade tem no duplo revolvimento a sua beleza
absoluta, posto que luta: 1º contra a resistência do solo; 2º contras as várias
pressões da atmosfera; 3º contra a atração do vácuo formado pelo revolvimento. A
velocidade em linha reta é maciça, grosseira, inconsciente. A velocidade no
revolvimento e após o revolvimento é a velocidade agilizada, consciente.
Maravilhoso drama do deslizamento nos circuitos de automóveis. O
automóvel tende a dividir-se em dois. O aumento do peso na parte posterior que
se torna bala de canhão e procura os declives, os fossos, o centro da terra por
medo de novos perigos. Antes perecer logo que continuar a arriscar. Não! Não!
Não! Glória ao avantrem futurista que com um empurrão ou golpe de volante traz
fora do fosso a parte posterior do veículo e a repõe em linha reta. Vizinho a nós,
entre nós, sem trilhos, automóveis se arremessam, giram sobre si próprios, pulam
daqui à curva do horizonte, frágeis, ameaçados por todos os obstáculos que lhes
são preparados pelas curvas. A curva dupla superada em velocidade é a mais alta
manifestação da vida: Vitória do nosso eu sobre pérfidas conspirações do nosso
Peso, que quer assassinar à traição a nossa velocidade, arrastando-a para um
buraco de imobilidade. Velocidade = espargimento + condensação do Eu. Todo o
espaço percorrido por um corpo se condensa neste mesmo corpo.

VELOCIDADE { amor da terra-mulher espargimento sobre o mundo (luxúria


TERRESTRE horizontal)= automobilismo acariciante amorosamente
As estradas curvas brancas e femininas;

VELOCIDADE { ódio da terra (misticismo perpendicular) ascensão espiralada


AÉREA do Eu em direção ao Nada-Deus = Aviação, agilidade
Purgativa do óleo de rícino.
Engrenagem veloz das rodas do trem com os dentes nascentes dos ruídos.
As rodas extraem da terra todos os ruídos que dormem na matéria. Sob a pressão
do trem, as rodas saltam, deslizam nas retas vibrantes, elástica do instante
comovido. As estradas percorridas pelos automóveis são rastros de ruídos
globulares e de odores espiralados. Esta 100HP continua as cavernas do Etna.

As estradas percorridas pelos automóveis e os trilhos têm um impulso


ondulatório, elástico, para enrolarem-se velozmente em torno do poste ideal que
surge sobre um ponto do horizonte.
Voluptuosidade de sentir-se só no fundo escuro de uma limusine que corre
entre os luminosos gelos saltitantes de uma capital noturna: voluptuosidade
especialíssima de sentir-se um corpo veloz. Eu sou um homem que
freqüentemente come na estação entre dois trens diretos; meu olhar-lançadeira
vai do relógio mural ao prato fumegante; a rápida-angústia-recordação penetra
girando no coração. É necessário logo nutri-lo de velocidade. É necessário crer
somente na solidez-resistência criada pela velocidade. A força e a complicação do
pensamento, o refinamento dos desejos e dos apetites, a insuficiência do solo, a
fome de mel, de especiarias, de carnes e de frutas distantes, tudo impõe a moral-
religião futurista da velocidade.
A velocidade destaca o glóbulo-homem do glóbulo-mulher. A velocidade
destrói o amor, vício do coração sedentário, triste coagulamento, arteriosclerose
da humanidade-sangue. A velocidade agiliza, precipita a circulação sanguínea
ferroviária automobilística aeroplânica do mundo.
Somente a velocidade poderá matar o maligno luar, nostálgico, sentimental,
pacifista neutro. Italianos, sejam velozes e serão fortes, otimistas, invencíveis,
imortais!

Trad.: Nancy Rozenchan


A CINEMATOGRAFIA FUTURISTA
(1916)

F.T.MARINETTI – B. COVIA
E. SETTIMELLI – A. GINNA

O livro, meio totalmente passadista de conservar e comunicar o


pensamento, já estava destinado há muito tempo a desaparecer como as
catedrais, as torres, os muros ameados, os museus, o ideal pacifista.
O livro, estático companheiro dos sedentários, dos inválidos, dos
nostálgicos e dos neutralistas, não pode divertir nem exaltar as novas gerações
futuristas ébrias de dinamismo revolucionário e belicoso. O estouro de uma guerra
torna cada vez mais ágil a sensibilidade européia. A nossa grande guerra
higiênica, que deverá satisfazer todas as nossas aspirações nacionais, multiplica
cem vezes a força inovadora da raça italiana. O cinema futurista que nós
preparamos, alegre deformação do universo, síntese alógica e fugaz da vida
mundial tornar-se-á a melhor escola para os jovens: escola de alegria, de
velocidade, de força, de temeridade e de heroísmo. O cinema futurista tornará
mais aguda a sensibilidade, imprimirá velocidade à imaginação criadora, dará à
inteligência um prodigioso sentido de simultaneidade e de onipresença. O cinema
futurista colaborará assim para a renovação geral, vindo em substituição da revista
(sempre pedante), do drama (sempre previsto), e matando o livro (sempre tedioso
e oprimente). A necessidade da propaganda nos obrigará a publicar um livro de
tempo em tempo. Preferimos, porém, nos exprimir através do cinema, das grandes
tábuas de palavras em liberdade e dos moventes anúncios luminosos.
Com o nosso manifesto “O teatro sintético futurista”, com as vitoriosas
jornadas das campanhas dramáticas, Gualtiero Tumiati, Ettore Berti, Annibale
Ninchi, Luigi Zoncada, com os dois volumes do Teatro Sintético Futurista contendo
80 sínteses teatrais, nós iniciamos na Itália a revolução do teatro em prosa.
Anteriormente um outro manifesto futurista tinha reabilitado glorificado e
aperfeiçoado o Teatro de variedade. É lógico portanto que hoje, nós transportemos
o nosso esforço vivificador para uma outra área do teatro: o cinema.
À primeira vista, o cinema, nascido há poucos anos, pode parecer já
futurista, isto é, sem passado e livre de tradições: na realidade, surgindo como
teatro sem palavras, ele herdou todas as mais tradicionais varreduras do teatro
literário. Nós podemos então, com toda a certeza, dizer do cinema tudo aquilo que
dissemos e fizemos pelo teatro em prosa. A nossa ação é legítima e necessária
porque o cinema esteve até hoje e tende a permanecer profundamente
passadista, embora antevejamos nele a possibilidade de uma arte eminentemente
futurista e o meio de expressão que mais se presta à plurissensibilidade de um
artista futurista.
Com exceção dos filmes interessantes de viagens, caças, guerras, etc., não
souberam nos dar senão dramas, dramalhões e pequenos dramas ultrapassados.
O mesmo cenário, que devido à sua brevidade e variedade pode parecer ter
progredido, não é senão, na maioria das vezes, uma piedosa e obsoleta análise.
Todas as imensas possibilidades artísticas do cinema estão, portanto, totalmente
intactas.
O cinema é uma arte em si mesmo,portanto, não deve nunca copiar o
palco. O cinema, sendo essencialmente visual, deve efetuar, antes de mais nada,
a evolução da pintura: destacar-se da realidade, da fotografia, do gracioso e do
solene. Tornar-se antigracioso, deformador, impressionista, sintético, dinâmico,
palavras em liberdade.
É PRECISO LIBERTAR O CINEMA COMO MEIO DE EXPRESSÃO para
fazer dele o instrumento ideal DE UMA NOVA ARTE muito mais vasta e mais ágil
que todas aquelas existentes. Estamos convencidos de que só por meio disto é
que se poderá alcançar aquela poliexpressividade para a qual tendem todas as
mais modernas pesquisas artísticas. O cinema futurista cria precisamente hoje a
sinfonia poliexpressiva que, já há um ano, nós anunciávamos no nosso manifesto.
Pesos, medidas e preços do gênio artístico. No filme futurista, entrarão como
meios de expressão, os mais variados elementos: desde o trecho de vida real até
a mancha de cor; da linha às palavras em liberdade; da música cromática e
plástica à música de objetos. Ele será, em síntese, pintura arquitetura, escultura,
palavras em liberdade, música de cor, linhas e formas, amontoado de objetos e
realidades tornadas caóticas. Ofereceremos novas inspirações para as pesquisas
dos pintores que tendem a forçar os limites do quadro. Colocaremos em
movimento as palavras em liberdade que rompem com os limites da literatura
marchando para a pintura, para a arte dos rumores e lançando uma maravilhosa
ponte entre a palavra e o objeto real.
Os nossos filmes serão:
1.ANALOGIAS CINEMATOGRÁFICAS usando a realidade diretamente
como um dos dois elementos da analogia. Por exemplo: se quisermos exprimir o
estado angustioso de um protagonista nosso, ao invés de descrevê-lo nas várias
fases de dor, daremos uma impressão equivalente ao espetáculo de uma
montanha acidentada e cavernosa.
Os montes e mares, os bosques, as cidades, as multidões, os exércitos, as
esquadras, os aviões serão freqüentemente as nossas palavras formidavelmente
expressivas: o Universo será o nosso vocabulário.
Por exemplo: Queremos dar uma sensação de uma alegria extravagante:
representamos um pelotão de cadeiras que voam brincando em volta de um
enorme cabide até que se decidam atacar, a pendurar-se nele.. Queremos dar
uma sensação de ira: estilhaçamos o iracundo num turbilhão de balas amarelas.
Queremos mostrar a angústia de um Herói que perdeu a fé no já morto ceticismo
neutral: representamos o Herói inspirado no ato de falar a uma multidão: soltamos,
de repente, Giovanni Giolitti que lhe enfia na boca traiçoeiramente uma apetitosa
garfada de macarrão que afoga a sua palavra alada no molho de tomate. Vamos
colorir o diálogo apresentando de maneira veloz e simultânea toda a imagem que
atravesse os cérebros dos personagens. Por exemplo, para representar um
homem que dirá à sua mulher: você é bela como uma gazela, daremos a gazela.
Por exemplo, se um personagem diz: Contemplo o teu sorriso aberto e luminoso
como um viajante contempla depois de longas fadigas o mar, do alto de uma
montanha, daremos ao viajante: mar e montanha.
Dessa maneira, os nossos personagens serão perfeitamente
compreensíveis como se falassem.
2. POEMAS, DISCURSOS E POESIAS CINEMATOGRAFADOS.
Passaremos todas as imagens que os compõem no vídeo. Por exemplo: “Canto
do amor” de Giosuè Carducci:

“Da le rocche tedesche appollaiate


si come falchi a meditar la caccia…”

Daremos os fortins, os falcões de atalaia:

“Da le chiese che al ciel lunghe levando


marmoree braccia pregano il Signor”

....................................................................................................................................

“Da i conventi tra i borghi e le cittadi


cupi sedenti al suon de le campane
come cucùli tra gli alberi radi
cantanti noie e allegrezze strane” (1)

Daremos as igrejas que aos poucos se transformam em mulheres que


imploram o Deus que do alto se deleita, daremos os conventos, os cucos, etc...
Por exemplo: “Sogno d’estate” de Giosuè Carducci:
“Tra le battaglie, Omero, nel carme tuo sempre sonanti
la calda ora mi vinse: Chinommisi il capo fra’l sonno
in Riva di Scamandro, ma il cor mi fuggi su’l Tirreno” (2)

(1). “Dos fortins alemães empoleirados


como falcões a meditar a caça...”

“Das igrejas que ao céu longos elevando


marmóreos braços rogam ao Senhor”

...............................................................................................................................

“Dos conventos entre burgos e cidades


sombrios sentados ao som dos campanários
como cucos por entre árvores ralas
cantando tédios e alegrias estranhas”.

(2). Entre as batalhas, Homero, no carme teu sempre soantes


a quente hora venceu-me: Curvou-se-me a testa no sono à beira
do Scamandro, mas o coração fugiu-me no Tirreno”. (Recriação da T.)

Daremos Carducci circulando entre o tumulto dos Aqueus que evita habilmente os
cavalos em corrida, homenageia Homero, vai beber com Ájax na hospedaria de
Scamandro Rosso e ao terceiro copo de vinho, o coração, de que se deveria as
palpitações, pula-lhe fora do casaco e voa como uma enorme bola vermelha sobre
o golfo de Rapallo. Deste modo, nós cinematografamos os mais secretos
movimentos do gênio.
Ridicularizemos assim as palavras dos poetas passadistas, transformando,
para maior vantagem do público, as poesias mais nostalgicamente monótonas e
chorosas em espetáculos violentos, excitantes e bem hilariantes.
3. SIMULTANEIDADE E COMPENETRAÇÃO de tempos e de lugares
diferentes, CINEMATOGRAFADAS. Daremos, no mesmo instante-quadro, duas ou
três visões diferentes, uma ao lado da outra.
4. PESQUISAS MUSICAIS CINEMATOGRAFADAS (dissonâncias, acordes,
sinfonias de gestos, fatos, cores, linhas, etc.).
5. ESTADOS DE ESPÍRITO ENCENADOS E CINEMATOGRAFADOS.
6. EXERCÍCIOS QUOTIDIANOS PARA LIBERTAR-SE DA LÓGICA
CINEMATOGRAFADA.
7. DRAMAS DE OBJETOS CINEMATOGRAFADOS (objetos animados,
humanizados, maquiados, vestidos, passionalizados, civilizados, dançantes.
Objetos retirados do seu ambiente habitual e colocados em uma condição anormal
que, por contraste, põe em relevo a sua surpreendente construção e vida não
humana).
8. VITRINAS DE IDÉIAS DE ACONTECIMENTOS, DE TIPOS, DE
OBJETOS, ETC. CINEMATOGRAFADOS.
9. CONGRESSOS, FLERTES, RIXAS E MATRIMÔNIOS DE CARETAS, DE
MÍMICAS, ETC. CINEMATOGRAFADOS. Por exemplo: Um narigão que impõe o
silêncio a mil dedos congressistas acompanhando uma orelha enquanto dois
bigodes guardas prendem um dente.
10. RECONSTRUÇÕES IRREAIS DO CORPO HUMANO
CINEMATOGRAFADO.
11. DRAMAS DE DESPROPORÇÕES CINEMATOGRAFADAS (um homem
que tendo sede tira um minúsculo canudo que se alonga, qual umbigo, até um
lago e o esvazia de repente).
12. DRAMAS POTENCIAIS E PLANOS ESTRATÉGICOS DE
SENTIMENTOS CINEMATOGRAFADOS.
13. EQUIVALÊNCIAS PLÁSTICAS LINEARES, CROMÁTICAS, ETC., de
homens, mulheres, acontecimentos, pensamentos, músicas, sentimentos, pesos,
odores, rumores CINEMATOGRAFADOS (daremos, com linhas brancas sobre o
negro, o ritmo interno e o ritmo físico de um marido que descobre sua mulher
adúltera e persegue o amante, ritmo da alma e ritmo das pernas).
14. PALAVRAS EM LIBERDADE, EM MOVIMENTO,
CINEMATOGRAFADAS (quadros – sinóticos de valores líricos – dramas de letras
humanizadas ou animalizadas – dramas ortográficos – dramas tipográficos –
dramas geométricos – sensibilidade numérica, etc.).
Pintura + escultura + dinamismo plástico + palavras em liberdade +
entoarruídos + arquitetura + teatro sintético = cinematografia futurista.
DECOMPONHAMOS E RECOMPONHAMOS ASSIM O UNIVERSO
SEGUNDO OS NOSSOS SEGUNDO OS NOSSOS MARAVILHOSOS
CAPRICHOS, para centuplicar a potência do gênio criador italiano e o seu
predomínio absoluto no mundo.

Trad.: Maria Aparecida Abelaira Vizotto


A PINTURA DE VANGUARDA
1º de junho de 1917

G. SEVERINI

O MAQUINISMO E A ARTE (RECONSTRUÇÃO DO UNIVERSO)

É certo que a cada civilização corresponde uma forma de arte, e que para
criar esta forma de arte, o artista deve compreender e amar os objetos e os corpos
que vivem em sua época.
Proclamei e defendi a beleza das locomotivas, dos aeroplanos, dos
linotipos, etc... entretanto, isto não implica de modo algum – como bom número de
artistas parece acreditar – que para fazer uma obra moderna seja necessário
representar exclusivamente estes corpos e objetos novos.
Disse num artigo anterior (“Mercure de France”, 1º de fevereiro de 1916)
que “se a fisiologia humana e seu produto, a inteligência, são imutáveis, a
psicologia, sendo relativa ao conteúdo variável da inteligência e às transformações
da vida exterior, não é imutável.
Os grandes acontecimentos intelectuais modificam gradativamente nossa
noção do Universo e todos os elementos de nossa civilização”.
Creio que todo o mundo está de acordo, admitindo que estes
acontecimentos intelectuais e estes objetos novos influenciem nossa expressão de
arte, na qual eles existem virtualmente, em estado mesmo de “força”, se a obra de
arte não os representa realmente. Esse fato é resumido com justeza neste
aforismo de Jean Cocteau: “O artista deve engolir uma locomotiva e vomitar um
cachimbo”.
Não faço nenhuma restrição à escolha do motivo; quisera somente que se
compreendesse que os objetos familiares que nos rodeiam, e de que nos servimos
habitualmente, constituem “motivos modernos” e que não há necessidade de se
quebrar a cabeça, indo procurar fora e não dentro de casa os “motivos” que
seriam, forçosamente, inspirados, por convicções intelectuais de ordem mais ou
menos filosófica; e não por um sentido puramente plástico, por um desejo de fazer
unicamente pintura.
A precisão, o ritmo, a brutalidade das máquinas e seus movimentos
conduziram-nos sem dúvida para um novo realismo que podemos exprimir sem
pintar locomotivas.
Todos os esforços dos pintores de vanguarda tendem para a expressão
deste novo realismo que, sendo tributário da sensação e da idéia, tinha sido
definido por mim no meu artigo anterior: realismo ideísta, adotando a expressão
de Remy de Gourmont que me parece muito exata (1).

(1).Poder-se-ia chamá-lo “idealista”, mas Remy de Gourmont observa com justeza que há dois
“idealismos” bastante diferentes. Um que vem de ideal e que é “a expressão de um estado de
espírito moral ou religioso, sinônimo de espiritualismo”, e o outro que vem de idéia, e que é uma
“concepção filosófica do mundo” (Platão, Schopenhauer, Bacon, etc.). É esse último idealismo que
toma por base a matéria e a forma que se identifica com a arte, por isso resolvi adotá-lo nesta
expressão: realismo ideísta, que o define sem possibilidade de dúvida.

A obsessão de penetrar, de conquistar com todos os meios o sentido do


real, de nos identificarmos com a vida em todas as fibras de nosso corpo, está na
base de nossas buscas e das estéticas de todos os tempos.
É preciso ver nessas causas de ordem geral as origens de nossas
construções geométricas e exatas, de nossas aplicações, de materiais diferentes
na tela, como tecidos, lantejoulas, vidros, papéis, e de todas as tentativas que,
infelizmente, foram mais ou menos mal compreendidas ou sistematizadas.

Em pesquisas pessoais, levei minhas experiências até combinar planos


móveis de papelão e de papel aos quais se podia imprimir um movimento de
rotação e translação. Daí a aplicar motores ou outras forças mecânicas não há
mais nenhum esforço de pensamento a fazer. Mas nós todos abandonamos os
meios de atingir o realismo e o movimento no quadro, a relação entre
“quantidades”, cores e as direções das linhas, meios exclusivamente picturais que
devem dar apenas o sentido do real que procuramos.
Porque se a tarefa do artista era dar uma aparência, um simulacro de vida
real, sua finalidade seria antecipadamente vã. Toda realidade sendo perfeita,
como dizia Espinosa, eu não vejo o que o artista poderia fazer de melhor, se seu
esforço tendia para essa perfeição, senão renunciar à arte. Sem contar que neste
caminho ele seria desde muito tempo ultrapassado pelo construtor de máquinas.
O inventor é também um criador, e o artista é antes de tudo um inventor, mas até o
presente, penso que as duas criações, embora análogas, não podem se
identificar.
Há, contudo, analogia entre uma máquina e uma obra de arte. Todos os
elementos de matéria que compõem um motor, por exemplo, são ordenados
segundo uma vontade única, a do inventor-construtor, que acrescenta à vitalidade
integral dessas diferentes matérias uma outra vida ou ação, ou movimento. O
processo de construção de uma máquina é análogo ao processo de construção de
uma obra de arte.
Se se considera também a máquina do ponto de vista do efeito que ela
produz sobre os espectadores, descobrimos também uma analogia com a obra de
arte.
Com efeito, a menos que se seja escravo de um preconceito qualquer, não
se pode deixar de experimentar uma sensação de prazer, de admiração, diante de
uma bela máquina.
A admiração é em si mesma um prazer estético, e uma vez que o prazer
estético produzido em nós por uma máquina pode ser considerado como
Universal, podemos concluir que o efeito produzido sobre o espectador pela
máquina e o produzido pela obra de arte são análogos.
Continuando esses raciocínios até os limites extremos, seria fácil criar uma
estética que, para ser lógica, deveria suprimir a palavra arte (não significando mais
nada) e substituí-la pelas palavras: criação científica, ou indústria.
Esta estética daria, naturalmente, a um aeroplano e a um quadro a mesma
significação; duas realidades que eu persisto em considerar como diferentes uma
da outra, apesar de sua analogia e de minha admiração sem limites pelas
máquinas.
O espírito de invenção que preside à criação da obra de arte não é o
mesmo que aquele que preside à construção de uma máquina.
O primeiro reconstrói o Universo para um fim desinteressado, o outro
empresta ao Universo elementos para atingir um fim determinado que é a sua
razão de ser. A vida ou ação que o construtor dá à matéria não será jamais uma
síntese de vida independente e a máquina não viverá jamais a vida autônoma da
obra de arte. As duas invenções não podem tampouco completar-se ou fundir-se.
O gênero de empirismo que, nascido de nossas primeiras investigações
realistas, tende, parece, a esta união dos dois espíritos de invenção, tem uma
origem puramente intelectual, abstrata e, por conseguinte, não pode conduzir
senão fora da arte plástica, a criações arbitrárias que quereriam ser autônomas e
que só serão amorfas, anônimas.
A obra de arte plástica só será autônoma e universal se se conservar ligada
à realidade; ela será uma realidade em si mesma, mais viva, mais intensa e mais
verdadeira que os objetos reais que ela representa, que ela reconstrói, contanto
que os elementos que a compõem não pertençam nem ao arbitrário ou ao
capricho, nem à imaginação, nem ao bom gosto decorativo.
Eu entendo por “bom gosto decorativo” esta lógica que sugere por vezes
aos artistas colocarem, por exemplo, uma linha curva perto de uma linha reta,
porque esta linha reta tem necessidade disto, tomando assim o meio pelo fim. Tal
lógica está mais perto da modista do que do pintor.
Quando uma forma ou uma cor não têm outra razão de ser senão a forma e
a cor que lhes são vizinhas, esta forma e esta cor não são nem verdadeiras, nem
essenciais, nem plásticas. Elas são simplesmente arbitrárias e decorativas; elas
não pertencem aos objetos e não podem, por conseguinte, reconstruí-los.
Esta reconstrução do Universo é um fenômeno bem simples, pertencendo
ao mecanismo da percepção em geral, porque é certo que nós recriamos os
objetos cada vez que neles olhamos para conhecê-los. Ela é, pois, relativa à
psicologia do artista, cujo verdadeiro objetivo, afirma Guyau, é criar a vida, a
realidade; mas por uma “espécie de aborto”, não se pode chegar até lá. Eis
porque não podendo ser Deus, “ele se faz Deus à sua maneira”, isto é, ele
reconstrói o Universo, criando vida própria, vida representativa que é o lado
essencial qualitativo e eterno da vida real.

INTELIGÊNCIA E SENSIBILIDADE

As formas que constituem a reconstrução que fazemos do objeto alcançam


vida, não na imaginação ou na cultura,mas no próprio objeto.
As linhas e os planos que o compõem têm direções, vontade, simpatia e
aversão; em outros termos, têm um movimento próprio que é a vida ou ritmo do
objeto (2).

(2) Delacroix dizia que um pintor devia saber desenhar um homem caindo do 6º andar.

Trata-se de sentir este movimento e de enriquecer esta sensação pelo


conhecimento completo que possuímos do objeto; porque a idéia intensifica,
alarga a sensação e dá ao objeto-imagem que está diante de nossos olhos as
dimensões equivalentes idênticas que ele tem no espaço. Isto se produz
espontaneamente em nós, a sensação e a idéia sendo dois exercícios virtuais de
nossa mecânica natural. Em suma, a sensação e a percepção são relativas à
natureza do objeto e do sujeito ao mesmo tempo e participam dessas duas vidas-
forças.
Aqui ocorre novamente a questão do objetivismo e do subjetivismo que os
filósofos não esclarecem suficientemente do nosso ponto de vista.
Contudo, em minha opinião, o papel do artista é crer em verdades
subjetivas, e, por conseguinte, variáveis, dinâmicas, infinitas. “O mundo é nossa
representação”. Porque sabemos que tudo existe através do nosso pensamento, e
que mesmo nossas próprias sensações não existiriam sem nosso pensamento.
Quando a sensação produzida em nós por um objeto, depois de ter
produzido excitação em nossos nervos centrípetos ou sensitivos, transmite-se
pelo contato dos prolongamentos nos nervos centrífugos ou motores, o objeto-
causa deste trabalho mecânico já perdeu seu valor objetivo e não existe mais
senão por nosso organismo físico e psíquico ao qual ele pode ter imprimido um
movimento ou direção.
Até que ponto os objetos e os corpos podem repercutir sobre nosso próprio
movimento?
A psicometria, a psicofísica e mesmo a metafísica (dinamista ou
associacionista) não podem ainda esclarecer completamente este campo da
psicologia que compreende os fenômenos da percepção.
Mas é certo que cada indivíduo é um centro de irradiação universal, ao
mesmo tempo que um ponto de intersecção das forças centrípetas. Cada um de
nós é a encruzilhada onde se cruzam e se interpenetram todas as vidas do
universo, ao mesmo tempo que de nós próprios emana uma vida-força que se
difunde em expansão centrífuga.
E quanto mais esta vida, centrífuga, ou força expansiva, for poderosa e
dominadora das forças centrípetas, tanto mais o indivíduo marcará com seu cunho
os seres e as coisas que o cercam, e que viverão deste fato, de seu próprio,
autêntico movimento.
Esta faculdade de dominar, por nossa própria atividade, a atividade das
forças universais, o homem em geral e o artista em particular trazem-na dentro de
si.
Em conclusão, a finalidade da arte pertence à subjetividade, enquanto os
“meios” devem ser ordenados segundo leis objetivas. Eis porque a obra de arte
não pode ser unicamente o reflexo imediato de uma sensação recebida do mundo
exterior, mas algo de mais complexo e de mais organizado.
Porque na arte plástica de hoje, não obstante um lado inconsciente, nada
se deve deixar ao acaso da improvisação; de um lado ao outro o quadro deve ser
“composto”, “desejado” e tecnicamente perfeito. Julgo virtualmente justa esta
expressão de Courbet que me foi repetida por Matisse: “Deve-se poder recomeçar
uma obra-prima ao menos uma vez, para se estar bem certo de não ter sido o
joguete de nervos e do acaso”.
Esta questão da composição e da arquitetura do quadro é uma coisa muito
complexa, porque nós não procedemos unicamente por “deformação”, mas por
deformação e “reconstrução” (3). O exemplo que segue explica, espero, a razão de
ser artística desse procedimento e a indispensável intervenção da vontade na
criação: Matisse mostrava-me um dia uma maquete que ele havia feito “a partir do
natural” numa rua de Tânger. Em primeiro plano, uma parede pintada de azul.
Este azul influenciava todo o resto, e Matisse lhe deu o máximo de importância
que lhe era possível dar, conservando a construção objetiva da paisagem. Ele foi
obrigado a confessar que não reproduziu a centésima parte da “intensidade” deste
azul, isto é, da “intensidade sensorial” produzida nele por este azul. Ele atinge em
uma outra tela (Os Marroquinos) este grau de intensidade, mas aqui a arquitetura
real da paisagem desapareceu para dar lugar a uma arquitetura voluntária e
mesmo assim sensorial.
Ele me dizia que se tivesse que se libertar desta sensação de azul que
dominava todas as outras, ele teria que ter pintado de azul toda a tela, à maneira
de um mau pintor; mas por esta ação reflexa, só tendo importância no momento
da sensação, não teria atingido a obra de arte. Se fosse tão simples produzir uma
obra de arte, numa civilização como a nossa, uma vez que todos têm uma certa
sensibilidade, haveria um grande número de artistas, enquanto que há
simplesmente muitos diletantes. Isto confirma a idéia de que nossa sensibilidade,
mesmo grande e requintada, não basta para a criação sem a ajuda de nossa
vontade e de nossa razão, assim como nossa inteligência permaneceria
superficial, sem o “sentir” e o “querer”.
É, evidentemente, difícil determinar, numa obra de arte até onde a
sensibilidade e a razão dirigiram e influenciaram o pintor.
Mas é certo que existe uma relação mais estreita entre o lado físico e o
lado psíquico do indivíduo, entre o lado material e o lado moral, entre o organismo
e o que se chama alma. Toda filosofia que tende a separar o corpo do espírito é
anticientífica e me parece absurda.
O esforço que devemos fazer hoje, enquanto artistas, é estabelecer um
equilíbrio entre a inteligência e a sensibilidade, porque, a meu ver, a inteligência
tendia a assumir um papel por demais exclusivo, o que julgo grandemente nocivo
do ponto de vista artístico e mesmo social.
Certamente, este equilíbrio é muito raro, e só pode mesmo verificar no
artista dotado, verdadeiro “arquiteto da sensibilidade”, segundo a expressão de
Cocteau. Estamos, entretanto, caminhando no sentido de realizá-lo o mais
possível, de fundir o que Max Jacob chama espirituosamente “o lado coração e o
lado jardim”, isto é, o instinto e a razão.
A sensibilidade e a inteligência não são, no fundo, dois elementos tão
incompatíveis e encontram-se em medidas diferentes na obra de cada artista.
Com relação ao instinto, um dia Matisse me dizia: “É preciso contrariá-lo;
ele é como uma árvore cujos ramos são cortados para que a árvore cresça
melhor”.

(3)A deformação é em si mesma uma reconstrução, mas eu entendo como “reconstrução” a


dissociação e oi emprego de qualidades e quantidades diferentes do objeto segundo leis subjetivas
e relativas ao conjunto do quadro.

Por outro lado, Guyau escreve que todo instinto que tende a se tornar
consciente destrói-se, mas ele acrescenta: “O instinto só desaparece diante de
uma forma de atividade mental que o substitui, fazendo melhor que ele”.
Se esta forma de “atividade mental” é uma síntese do lado consciente e do
lado inconsciente do indivíduo, isto é, de todas as suas faculdades físicas e
psíquicas, dominemos o instinto, porque ela me parece realizar este equilíbrio do
qual o artista necessita para atingir a perfeição na obra de arte.
Sobre estas bases gerais, é permitido chamar a obra de arte subjetiva e
qualitativa e, por essas razões, fazer um quadro é ao mesmo tempo uma coisa
muito simples, com diz Picasso, e uma coisa difícil.
Não temos a pretensão de estabelecer idéias fixas, regendo a construção
de nossos quadros, porque isto também é uma questão de qualidade; entretanto,
existem em nossas obras, acordes, afinidades, e é sobre essas afinidades que
basearei a demonstração geral de nossos meios construtivos.

MENSURAÇÃO DO ESPAÇO E 4ª DIMENSÃO

Visto o espaço ser amorfo, não podemos defini-lo senão pela geometria,
convenção criada por nosso espírito a fim de que se possa representar o
equivalente dos corpos sólidos.
Para situar um corpo no espaço, a geometria é o único “meio” empregado,
aliás de uma maneira mais ou menos aparente, pelos pintores de todas as
épocas.
O tempo é também amorfo, quer dizer relativo aos instrumentos que podem
medi-lo.
O espaço e o tempo são pois relativos, e é tarefa do artista torná-los
absolutos.
O geômetra tem necessidade de instrumentos cada vez mais perfeitos para
medir o espaço e o tempo; estes instrumentos não têm nenhuma utilidade para um
pintor: o organismo deste possui no mais alto grau o sentido do espaço. Ele o
exprime de uma maneira mais completa que o geômetra, criando formas,
imprimindo cores que o definam e o materializem.
O espaço ordinário do geômetra baseia-se em geral na convenção
inamovível das três dimensões; os pintores, cujas aspirações são ilimitadas,
julgaram sempre por demais estreita essa convenção. Isso quer dizer que às três
dimensões ordinárias, eles procuram, acrescentar uma quarta que as resume e
que é diferentemente expressa, mas que constitui, por assim dizer, a finalidade da
arte de todas as épocas. Já se disse muita asneira a propósito desta 4ª dimensão
plástica.
Procurarei dar a respeito dela uma idéia o mais possível exata.
Diz-se que Matisse foi o primeiro a se servir desta expressão diante das
primeiras investigações cubistas de Picasso.
É uma lenda que se atribui freqüentemente a Matisse.
O que é certo é que se tentou, freqüentes vezes, prejudicar o cubismo
através da atribuição do epíteto de “matemático” a pintores como Braque, Picasso,
Gris e Metzinger cujas primeiras análises plásticas apesar de tudo, constituem
uma séria contribuição para a arte pictural. O fato destas pesquisas encontrarem
uma correspondência em certas verdades geométricas e matemáticas não
constitui, aos olhos de qualquer pessoa imparcial, senão uma razão de interesse e
de confiança.
Boccioni, acerca de nossas antigas pesquisas de movimento, definindo o
que ele chama o “dinamismo”, alude a uma espécie de quarta dimensão, que seria
“a forma única dando a continuidade no espaço”. Esta forma deveria dar a
relatividade entre o peso e a expansão, entre o movimento de rotação e o
movimento de revolução, entre o objeto e a ação, o visível e o invisível...
Daqui por diante, estamos todos de acordo sobre esta questão, porém,
trata-se de encontrar uma definição o mais possível simples e verdadeira, do
ponto de vista artístico. Eis por que, e para satisfazer minha curiosidade, busquei
na geometria qualitativa (Analysis Situs) a mais evidente demonstração desta
quarta dimensão, sabendo antecipadamente, entretanto, que a ciência geométrica
só poderia sustentar convicções já estabelecidas pela intuição artística que nós
todos possuímos. E acrescento que, se gosto sempre de buscar um apoio nas
verdades da ciência, é porque aí vejo um excelente meio de controle, e aliás
nenhum de nós saberia negar as noções colocadas a nosso alcance pela ciência
para intensificar nosso senso do real.
Esta simpatia pela ciência existia também na época de Paolo Ucello, de
Andrea del Castagno, de Domenico Veneziano, Luca Signorelli, Leonardo, etc.,
que eram pintores realistas no sentido mais lato da palavra, como nós o somos.
Para medir o espaço, é preciso primeiro “estabelecer um continuum”, o que
faz um pintor cada vez que cria uma forma.
Trata-se aqui, bem entendido, de um “continuum intuitivo”, aquele que tem
mais ligação com nossas realizações, e não de um “continuum matemático”. Aliás,
mesmo segundo H. Poincaré, a noção do continuum deve ser intuitiva e não
“matematicizada”.
Pode-se evidentemente, construir um objeto com materiais matemáticos,
mas por esse meio, é possível fazer deste mesmo objeto muitas outras
construções. Enquanto que uma construção baseada na noção intuitiva do
continuum não pode ser outra coisa, os materiais são dispostos de uma maneira e
não podem ser de outra.
Este continuum que nos é revelado por nossos sentidos é chamado por H.
Poincaré de continuum “físico”.
Chama-se um continuum “físico” quando se pode considerar dois quaisquer
de seus elementos ou sensações como as extremidades de uma cadeia de
elementos-sensações que pertencem todos a uma mesma ordem.
Poincaré, enquanto geômetra, chama continua a uma superfície quando se
podem juntar dois quaisquer de seus pontos por uma linha contínua que não sai
da superfície.
Estes pontos, esta linha, e esta superfície são os elementos que nos dão a
imagem do espaço: o geômetra denomina-os “cortes” porque eles dividem o
continuum “físico” em um número finito de elementos.
Numa linguagem mais simplista, os cortes são as linhas que encerram as
formas geométricas que nós conhecemos: quer dizer que dois pontos no espaço
são os limites de uma linha; que as linhas são os limites das superfícies, e que as
superfícies são os limites dos volumes (4).
Assim, a mensuração do espaço pode reduzir-se a esse mecanismo de
“cortes”, isto é, às superfícies geométricas, e por conseguinte a contínuos de uma
dimensão.
Para estabelecer um continuum “físico” de diversas dimensões é preciso
poder considerar como idênticas as duas extremidades da cadeia de elementos-
sensações.
Isto só será possível se por um esforço do espírito “convencionarmos
considerar como idênticos dois estados de consciência fazendo abstração da
diferença entre eles”. (Eis, portanto, a intervenção da inteligência na
sensibilidade.)
Para obter esta “identidade” condição essencial, Poincaré sugere “a
hipótese” de fazer abstração de certos sentidos, isto é, procura considerar um
objeto seja exclusivamente por seu peso, ou por sua cor, ou por sua forma, etc (5).
Mas esta abstração é uma hipótese impossível de se realizar, porque
mesmo admitindo que se possa isolar um sentido do outro, cada um de nossos
sentidos nos dá uma quantidade de sensações que nada têm a ver com o espaço.
Segundo Poincaré, o sentido que melhor pode dar um continuum “físico”, e
por aí o espaço, é o sentido da vista no qual ele é “tentado a localizar todas as
outras sensações”.

(4)Oponto, em se deslocando, engendra a linha (comprimento a) deslocando-se numa direção


perpendicular à sua, engendra a superfície (largura a²); a superfície, deslocando-se numa direção
perpendicular às duas primeiras, engendra o volume (altura a³). E, segundo a indução lógica de A.
de Noircarme, o volume, deslocando-se numa direção perpendicular às três primeiras ou quarta
direção, engendra um sólido em quatro dimensões, isto é, a expressão matemática a4. Ele
denomina este sólido biquadrado. Certamente não podemos nos representar no espírito o
biquadrado, do mesmo modo que nós representamos a linha, a superfície e o volume; nem menos,
por um sistema evidente de analogia, Noircarme chega a determiná-lo como sendo limitado por 8
cubos, 24 faces, 32 arestas e 16 vértices. Mas, talvez, aqui termine o contato entre o matemático e
o artista, pois nós saímos do mundo físico e voltamos ao domínio do pensamento puro, isto é, à
unidade mental e psíquica.

(5)As primeiras pesquisas cubistas e futuristas revelam, relativamente, bem entendido, e por
intuição, essa hipótese. Pois os cubistas, da vida ou movimento do objeto, tendiam a exprimir de
preferência a força de gravitação, ou peso; enquanto que os futuristas, querendo dar uma vida
total, não exprimem senão a força de expansão ou ritmo. Os primeiros, que reagiam contra o
impressionismo, podiam com razão queixar-se de Ingres; os segundos, que queriam, ao contrário,
continuá-lo, de Delacroix. A arte essencialmente dinâmica de Léger, e tendendo para a unidade das
quantidades plásticas, tem esta mesma origem impressionista . Hoje, assim como Guillaume
Apollinaire teve oportunidade de ressaltar nessa mesma Revista, “muita água correu por baixo da
ponte e muitos pintores sabem muito mais do que sabiam antes...”. O que é, aliás, completamente
lógico. Dizemos, para precisar, que nem o platonismo de Ingres, nem o lirismo, o sensualismo e o
romantismo de Delacroix podem constituir separadamente uma base estética, e que a síntese
desses dois pontos de partida, que começa a se fazer, aliás, em Cézanne, é hoje a base única da
arte pictórica.

Chamo a atenção para esta conclusão de Poincaré que me parece


interessar particularmente aos pintores. Acrescento que as sensações relativas ao
órgão da vista são mais lentas em penetrar no cérebro, permanecem mais nos
“centros de associação” e são por conseguinte as mais conscientes, as mais
claras.
Além disso, querendo-se combinar o espaço visual, tomado à parte, com o
espaço táctil tomado à parte ter-se-iam cinco dimensões; se se quisesse
acrescentar aí um espaço relativo a um outro sentido, ter-se-iam ainda duas
dimensões, e assim para cada sentido.
Sendo esta cooperação de todas as forças ativas de nosso corpo uma das
condições essenciais à criação e à nossa criação em particular, compreende-se
facilmente que o espaço de três dimensões seja demasiadamente limitado para o
pintor de hoje que considera seu quadro, segundo a expressão de Metzinger,
como uma extensão divisível em vários espaços, ligados, cada um, a uma classe
de sensação.
Mas eis que, em princípio, o geômetra e o matemático podem obter um
espaço de três dimensões, ou dele terem a intuição.
Estas considerações têm como ponto de partida um ponto de vista
puramente qualitativo, subjetivo, psicológico, uma vez que se encarou o espaço,
de uma parte, nossos sentidos e nossa inteligência, de outra.
Colocando-se, contudo, do ponto de vista da física, é possível criar um
mundo novo no qual os fenômenos naturais seriam localizados num espaço de
quatro ou N dimensões.Poder-se-ia assim estabelecer um “paralelismo” entre os
fenômenos do mundo 1 e os do mundo 2.
Os inventores (telegrafia sem fios, etc.) procedem assim, e isto é
igualmente possível para o artista, porque como justamente observava o pintor
Rivera, conforme Poincaré “um ser que vivesse num meio de refringências
diferentes e não refringências homogêneas seria obrigado a conceber uma quarta
dimensão”.
Este meio de refringências diferentes realiza-se sobre um quadro se uma
multiplicidade de pirâmides substitui o cone único da perspectiva italiana. O que é
o caso de certas pesquisas pessoais de Rivera, que vê na hipótese de Poincaré
uma confirmação das intuições de Rembrandt, Greco e Cézanne.
E pode-se daqui por diante abandonar o campo da ciência geométrica, que
nos provou a possibilidade de realizar uma quarta dimensão e de voltar ao nosso
próprio campo da criação, pois que, falando de perspectiva, tocamos na base
mesma de nossa arte.
Com efeito, a pintura é uma arte de construção, e a perspectiva é a
gramática desta construção.
Até agora a perspectiva italiana foi nossa base, mas já ficamos sabendo
que ela não permite ao pintor exprimir integralmente o espaço visual.
Este espaço é composto, principalmente, de elementos verticais e de
elementos horizontais. Ora, a perspectiva italiana, mais imitativa que plástica, não
dá importância aos primeiros. Ela estuda as deformações das linhas horizontais,
mas sequer releva a das linhas verticais. Ela é feita para um olho absolutamente
imóvel diante de um povo dado. Ora, nosso inebriante objetivo de penetrar e
transmitir a realidade ensinou-nos a deslocar este ponto de vista único, porque
estamos no centro e não diante do real, olhando com nossos dois olhos móveis, e
considerando paralelamente as deformações horizontais e verticais. Estes meios
permitem-nos exprimir um hiper-espaço, isto é, um espaço tão completo quanto
possível.
Assim como eu dizia há pouco, não pretendo encontrar na ciência outra
coisa senão uma confirmação, um apoio; mas observa com razão Metzinger, que
não é muito significativo que pintores em nada matemáticos, preocupados tão
somente em exprimir suas sensações, conduzidos unicamente pelo instinto,
tenham podido encontrar as bases de uma das mais elevadas hipóteses da
ciência moderna?
Posto à parte qualquer raciocínio, não é de se duvidar que estas três
dimensões do espaço ordinário jamais satisfizeram o desejo do pintor no sentido
de tomar posse do real, e que ele teve sempre a intuição de uma quarta dimensão
indeterminada, expressa seja pela cor, seja pelas deformações, e que faz passar
no domínio da “representação” a sensação imediata recebida do mundo exterior.
Assim, esta quarta dimensão não é, em suma, senão a identificação do
objeto e do sujeito, do tempo e do espaço, da matéria e da energia (6).
O paralelismo do continuum “físico” que, para o geômetra, não é senão uma
hipótese, realiza-se pelo milagre da arte.
Esta conclusão de caráter filosófico e estético encontra-se confirmada em
Platão, Bacon, Gracián, e pode ser ainda sustentada do ponto de vista
matemático. Com efeito, também segundo H. Poincaré, pela síntese do espaço
ordinário e do tempo, realiza-se um hiperespaço de quatro dimensões. Mas, para
que esta síntese possa justificar-se matematicamente, “seria preciso atribuir
valores puramente imaginários (emotivos para o artista) a esta quarta coordenada
do espaço; as quatro coordenadas de um ponto de nosso novo espaço não seriam
x, y, z e t, mas x, y, z e √1.
Encarando-se assim o tempo e o espaço como “duas partes inseparáveis
de um mesmo todo”, a matemática atinge o domínio da arte...
Creio que de todas as idéias expressas resulta claramente o espírito
profundamente realista de nossa estética. Realista no sentido de querermos
apreender a unidade e a continuidade do real. É aliás tarefa do artista a
comunicação verdadeira com a natureza, para dela transmitir aos outros uma
imagem clara, despida de qualquer símbolo.
Eis porque aqueles que nos acusam de representar a realidade de uma
maneira descontínua enganam-se grosseiramente.
Tal hipótese é absurda do ponto de vista artístico, porque ela implicaria uma
parada de nosso próprio movimento.

(6).MauriceBoucher, em seu “Ensaio sobre o hiperespaço”, chega a essa mesma conclusão: “As
três dimensões do espaço fazem parte de nossa intuição externa: a dimensão única do tempo
pertence à intuição interna ou subjetiva; reunindo-as às três outras que são vistas objetivamente,
chegamos à intuição de Espaço-tempo de 4 dimensões, certo, ao menos quanto à passagem de
nosso espaço pelo ser consciente”. Esta idéia da 4ª dimensão define o Universo o mais
completamente possível.

Ora, um artista, no momento da criação, não cessa nem de olhar nem de


pensar; sua atividade ao contrário é impulsionada ao máximo. Sem contar que,
devido justamente à sua unidade, todo ser vivo é um contínuo.
É verdade que, segundo Rémy de Gourmont, o movimento mesmo sendo
contínuo, só pode ser percebido como descontínuo; quer dizer que não podemos
concebê-lo indecomponível, escapando à possibilidade de uma medida. Nós o
percebemos, pois, nos seus estados sucessivos que são os fenômenos.
Se a tarefa do artista fosse representar a imagem acidental destes
fenômenos, nós teríamos uma obra descontínua, não universal e relativa.
Mas o papel de nossa arte moderna é procurar fixar a direção, a finalidade,
a extensão do fenômeno, vinculando-o a todo o universo, isto é, a todos os
fenômenos dos quais não está separado realmente, e que pertencem ao domínio
de nosso conhecimento fora de toda noção de tempo e de espaço. O que nos
aproxima da idéia platônica.
O movimento volta a ser assim o que ele é na realidade, uma continuidade,
uma síntese de matéria e de energia.
Porque nossa arte não visa representar uma ficção da realidade, mas quer
exprimir esta realidade tal qual é.
Esta realidade estética é indefinível e infinita, ela não pertence
integralmente nem à realidade de visão nem à do conhecimento, mas participa
das duas; ela é, por assim dizer, a própria vida ou matéria pensada na sua ação, e
cada artista é o centro desta ação.
A descontinuidade aparente de nossos quadros é, pois, sobretudo, o
resultado da ineducação óptica daquele que o olha e do mau hábito que ele tem
de querer encontrar aí um único ponto de vista prospectivo.
Entretanto, uma razão de ordem construtiva e estética obriga-nos a separar
efetivamente elementos de um mesmo objeto; o que, mesmo aparentando
descontinuidade, não significa que represente o descontínuo. Porque procuramos
atingir o mais possível a pureza qualitativa; e se colocamos por vezes a cor, por
exemplo, fora de sua “forma local”, é unicamente para dela guardar a sensação
com toda sua força. Se colocássemos essa mesma cor na sua forma local, que
pode, como no exemplo do “azul” de Matisse, ser demasiadamente pequena,
cairíamos numa expressão falsa por falta ou exagero (7).
Esta separação é, como tudo na nossa estética, de uma extrema lógica,
porque, como já disse acima, não queremos representar o acidental, o
momentâneo, mas o essencial, o eterno, e, por essa razão, quando um objeto se
apresenta ao nosso espírito, são suas qualidades essenciais que vemos, antes de
tudo, ou seja, as diferentes perspectivas que constituem sua forma total, ou sua
cor;. Com relação a esta, o fato de vê-la á parte, de projetá-la, por assim dizer,
fora de sua forma, não marca sua importância; ao contrário, ela se torna assim
uma dimensão.

A sensação de amarelo que nós temos, por exemplo, de um objeto amarelo, é produzida em
(7).
nós pelo objeto inteiro, ou, para ser mais preciso, pela quantidade total de amarelo que pertence ao
objeto como um todo, e não, como se estivéssemos imóveis diante do objeto, por esta única parte
colorida que está diante de nossos olhos.

É freqüentemente o caso de Matisse e das pesquisas pessoais de Zarraga,


cuja construção vai da cor à forma, e não da forma à cor. O que está de acordo
com o que dizia Cézanne. “É preciso primeiro pintar e desenhar em seguida” (8). E
quanto às outras “qualidades quantitativas”, peso, transparência, etc., se fôssemos
expressá-las numa forma local do objeto, perderiam toda a sua vitalidade e seu
valor universal e assumiriam o valor descritivo de simples amostras de matéria.
Encontrei a confirmação científica desta verdade intuitiva no “Rapporteur
Esthétique” de M. Charles Henry: “A sensação visual decompõe-se em três
funções: sensação luminosa, sensação de cor, sensação de forma”. Estas três
funções constituem três direções diferentes de nossa faculdade de percepção.
M.Charles Henry que sintetiza todo movimento de um ser vivo através de “ciclos”,
representa a sensação: Luz sobre o 1º terço do ciclo, à esquerda no alto; a
sensação de Cor, à esquerda e à direita embaixo (luminosos à esquerda,
pigmentário à direita), a sensação de Forma à direita no alto.
E eis o resultado desta experiência: “A percepção da luz e a percepção das
formas são consideravelmente modificadas pelo exercício ou pelo repouso do
aparelho visual, enquanto a percepção da cor é independente”. O que daria razão
à construção pela cor, elemento fixo.
Creio que faz parte da tradição de toda a pintura aperceber-se da qualidade
molecular, material, da realidade e servir-se dela como elemento de contraste. Isto
não prejudica a unidade da obra de arte e aumenta o seu movimento. Porque,
concluindo, toda a arte plástica, desde o primeiro pintor até nós, não é senão a
relação entre uma superfície e outra, entre duas ou mais grandezas, entre uma e
outra quantidade de matéria, e a centelha de vida que os pintores sempre
buscaram só se torna realizável por uma Unidade arquitetônica formada de
contrastes.
As idéias que expus no decurso deste artigo são o resultado de nossas
conversas e de nossas experiências; elas são aprovadas e compartilhadas por
todos os pintores a quem se chama de “vanguarda” e cuja finalidade é produzir a
pintura e nada mais.
Porque a época das reações em “ismo” TERMINOU, e uma espécie de
estética coletiva se desprende gradativamente das obras, resultado dos esforços
combinados de vários artistas.
Isto não implica necessariamente a renúncia à personalidade, pois
conforme o exemplo da tradição da arte plástica que nós continuamos, a
originalidade pôde ter bases estéticas coletivas. Mas hoje confunde-se
freqüentemente a originalidade com a singularidade; e tem-se a ilusão de que uma
originalidade mais ou menos aparente possa constituir sozinha o valor de uma
obra de arte.
Eu entendo estar fazendo uma breve alusão a esta tendência ultra-
individualista que, singularmente retardatária, surge hoje sobre ruínas de nossas
reações violentas de 7 a 8 anos atrás.

(8).As pesquisas de Hayden têm este mesmo ponto de partida da cor.

Esta tendência parece tomar como ponto de partida o que constitui


justamente o lado mau dessas reações; esquecendo que os limites da arte estão
guardados pelo absurdo, e que a desordem e o arbitrário nunca resultaram na
construção de uma obra de arte.
A esta tendência ultra-individualista opõe-se, parece, uma outra tendência
inteiramente pessoal, digo, impessoal, criada por um diletante notório da pintura.
Este quereria suprimir totalmente a individualidade no artista, ou encerrá-la num
círculo formado de sistemas inamovíveis. Os ultra-individualistas, como os
impessoais, alcançam igualmente o diletantismo e não a arte.
Por estar a verdade inatingível, em geral, entre os dois extremos, penso
que a estética coletiva e antiindividualista à qual acabo de aludir prepara um
período de arte que realiza, enfim, a universalidade e o estilo.
Naturalmente, estamos longe de estabelecer conclusões definitivas como
Maurice Denis, pois como diz acertadamente Jean Gris, somos todos bastante
jovens para exprimir em nossas obras a mesma evolução de nosso espírito.
Entretanto, uma longa interpretação desta estética, que é, como tentei
demonstrá-lo, a estética de toda a pintura, constitui o único caminho que pode
conduzir o artista moderno longe da ilusão óptica, do arcaísmo, do imagismo ou
do diletantismo.
Trad.: Elisa Guimarães

MANIFESTO DA COR (1918)

G. BALLA

1.Dada a existência da fotografia e da cinematografia, a reprodução


pictórica do verdadeiro não interessa nem pode interessar a mais ninguém.
2. Na confusão das tendências vanguardistas, há o predomínio da cor,
sejam elas semifuturistas ou futuristas. A cor deve predominar porque é privilégio
típico do gênio italiano.
3. A importância da cor e o peso cultural de todas as pinturas nórdicas
enterram eternamente a arte no pântano, no cinzento, no funerário, no estático, no
monacal, no lenhoso, no pessimista, no neutro ou no efeminadamente gracioso e
indeciso.
4. A pintura futurista italiana, sendo e devendo ser sempre mais uma
explosão de cor, não pode ser senão gozadíssima, audaz, aérea, eletricamente
lavada, dinâmica, violenta, interventista.
5. Todas as pinturas passadistas ou pseudofuturistas dão uma sensação do
previsto, do velho, do cansado e do já digerido.
6. A pintura futurista é uma pintura de estrondo, uma pintura de surpresa.
7. Pintura dinâmica: simultaneidade das forças.

Outubro de 1918.

Trad.: Nancy Rozenchan

PARA ALÉM DO COMUNISMO

F. T. MARINETTI

1920

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Temos um forte otimismo.


O sangue italiano derramado em Trípoli era melhor que o derramado em
Abba Garima. Aquele vertido sobre o Carso, melhor, aquele outro vertido sobre o
Piave e em Vittorio Veneto, melhor. Através das escolas de bravura física que nós
propugnamos, desejamos incrementar este vigor do sangue italiano, predispondo-
o a todas as audácias e a uma capacidade artística cada vez maior de criar,
inventiva e de fruir espiritualidade.
É preciso banir todas as vilezas e todos os langores e desenvolver a
elegância espiritual da raça, visto que o melhor que se pode encontrar numa
multidão tumultuante é a soma de suas elegâncias espirituais heróicas e
generosas.
É preciso aumentar a capacidade humana de viver a vida ideal das linhas,
das formas, das cores, dos ritmos, dos sons e dos rumores combinados pelo
gênio.
Se fosse possível até saciar todos os estômagos, sempre haveria aqueles
que saberiam conquistar para si refinadíssimas refeições privilegiadas.
É preciso excitar a fome espiritual e saciá-la com uma grande arte
estupenda e aprazível.
A arte é a revolução, improvisação, ímpeto, entusiasmo, recorde,
elasticidade, elegância, generosidade, transbordamento de bondade,
desgarramento no Absoluto, luta contra todo acorrentamento, dança aérea sobre
os cumes chamuscantes da paixão, passagens a abrir, fome e sede de céu...
alegres aeroplanos cobiçosos de infinito.
Existem massas tenebrosas, flácidas, cegas, sem luz e sem esperança, e
sem vontade. Nós a rebocaremos.
Existem almas que combatem sem generosidade, a fim de conquistarem o
pedestal, a auréola ou a posição. Converteremos estas almas mesquinhas numa
alta elegância espiritual.
É preciso dar a todos a vontade de pensar, criar, despertar, renovar e
destruir em todos o desejo de suportar, conservar, plagiar. Enquanto as últimas
religiões agonizam, a Arte deve ser o nutrimento ideal, que reanimará e consolará
as raças inquietíssimas, insatisfeitas e desiludidas pelo sucessivo desabamento
de tantos banquetes ideais insuficientes.
Somente o inebriante álcool da arte poderá substituir, finalmente, e abolir o
tedioso, vulgar e sanguinário álcool dominical das tavernas do proletariado.
Assim, em minha tragédia hilariante Re Baldoria, o dinamismo artístico
inovador do Poeta-Idiota, escarnecido pela multidão, funde-se com o dinamismo
insurrecional do libertário Famone, para propor à humanidade, como solução
única do problema universal, a Arte e os Artistas revolucionários no poder.
Sim! Os artistas no poder! O vasto proletariado dos geniais há de governar.
O mais sacrificado, o mais digno dos proletariados. Todos estão cansados e
desiludidos. Ele não cede. Seu gênio fará explodir em breve sobre a Itália e sobre
o mundo rosas imensas de força artística regozijadora, purificadora e pacificadora.
O proletariado dos geniais no governo concretizará o teatro gratuito para
todos, e o grande Teatro aéreo futurista. A música reinará sobre o mundo. Toda
praça terá sua grande orquestra instrumental e vocal. Haverá assim, então, fontes
de harmonia que esguicharão noite e dia do gênio musical e florescerão, no céu,
para colorir, revigorar, refrescar e tornar mais agradável o ritmo duro, escuro,
desgastado e convulsivo da vida quotidiana. Em vez do trabalho noturno, teremos
a arte noturna. Alterar-se-ão os grupos de músicos para centuplicar o esplendor
dos dias e a suavidade das noites.
O proletariado dos geniais, sozinho, será capaz de empreender a venda
sábia, gradual e mundial de nosso patrimônio artístico, de acordo com o projeto de
lei que idealizamos há nove anos. Este trigo e este carvão espirituais infundirão
nos povos mais grosseiros admiração por nós.
Nossos museus vendidos no mundo tornar-se-ão um reclame dinâmico e
transoceânico do gênio.
O proletariado dos geniais, colaborando com o desenvolvimento das
máquinas industriais, atingirá aquele máximo salarial e mínimo de trabalho manual
que, sem diminuir a produção, poderá oferecer a todas as inteligências a liberdade
de pensar, criar e gozar artisticamente.
A revolução futurista, que conduzirá os artistas ao poder, não promete
paraísos terrestres. Não poderá suprimir, certamente, o tormento humano que é a
força ascensional da raça. Os artistas, incansáveis alentadores deste trabalho
febril, conseguirão atenuar a dor. Eles solucionarão o problema do bem-estar da
única forma em que pode ser resolvido, ou seja, espiritualmente.
A Arte deve ser não um bálsamo, um álcool. Não um álcool que provoque o
esquecimento, mas um álcool de otimismo exaltador, que endeuse a juventude,
centuplique a maturidade e reverdeça a velhice.
Esta arte-álcool intelectual deve ser difundida entre todos. Assim,
multiplicaremos os artistas criadores. Teremos uma raça típica, formada quase
integralmente de artistas. Teremos na Itália um milhão de intuitos divinatórios,
voltados pertinazmente a solucionar o problema da felicidade humana coletiva.
Um assalto tão formidável não pode deixar de ser vitorioso. Teremos a solução
artística do problema social.
Nós nos propomos a agigantar, contudo, a faculdade sonhadora do povo e
de educá-la num sentido absolutamente prático.
A satisfação de uma necessidade implica prazer. Todo prazer possui limites.
No limite do prazer começa o sonho. Trata-se apenas de regular o sonho, e
impedir que se torne nostalgia de infinito ou ódio pelo finito. É preciso que o sonho
envolva e banhe, aperfeiçoe e idealize o prazer.
Cada cérebro deve ter a sua palheta e o seu instrumento musical, para
colorir e acompanhar liricamente todo menor ato de vida, até o mais humilde.
A vida comum é por demais pesada, austera, monótona, materialista, mal
arejada, e, se não estrangulada, pelo menos embaraçada.
Esperando a grandiosa realização de nosso Teatro aéreo futurista,
propomos um projeto vasto de concertos quotidianos e gratuitos em cada bairro da
cidade, e teatros, cinemas, salas de leitura, livros e jornais absolutamente
gratuitos. Desenvolveremos a vida espiritual do povo e centuplicaremos sua
faculdade sonhadora.
Graças a nós, virá um tempo em que a vida não será apenas e
simplesmente uma vida de pão e fadiga, nem uma vida de ócio, mas em que a
vida será vida-obra de arte.
Cada homem viverá o seu melhor romance possível. Os espíritos mais
geniais viverão o seu melhor poema possível. Não haverá disputas de rapinagens
ou de prestígio.
Os homens competirão em inspiração, lírica, originalidade, elegância
musical, surpresa, alegria, elasticidade espiritual.
Não teremos o paraíso terrestre, mas o inferno econômico será animado e
pacificado por inúmeras festas de Arte.
Trad.: V. Aleksander Jovanovic

O TATILISMO
MANIFESTO FUTURISTA

F.T. MARINETTI

11 de janeiro de 1921

O Futurismo, por nós fundado em Milão em 1909, deu ao mundo o ódio


pelo Museu, pelas Academias e pelo Sentimentalismo, a Arte-ação, a defesa da
juventude contra todos os senilismos, a glorificação do gênio inovador, ilógico e
louco, a sensibilidade artística pelo mecanismo, pela velocidade, pelo Teatro de
Variedades e pela compenetração simultânea da vida moderna, as palavras em
liberdade, o dinamismo plástico, os entoa-ruídos, o teatro sintético. O Futurismo
redobra hoje o seu esforço criador.
No verão passado, em Antigano, lá onde a rua Américo Vespúcio,
descobridor das Américas, se curva, costeando o mar, inventei o Tatilismo. Sobre
oficinas ocupadas pelos operários fremiam bandeiras vermelhas.
Eu estava nu na água de seda, rasgada pelos arrecifes, tesouras facas
navalhas espumantes, entre os colchões de algas impregnadas de iodo. Eu estava
nu no mar de aço flexível, que tinha uma respiração viril e fecunda. Bebia a taça
do mar cheia de gênio até a borda. O sol com suas longas flamas torrificantes
vulcanizava o meu corpo e parafusava a quilha da minha fronte rica de velas.
Uma moça do povo, que tinha um olor de sal e de pedra quente, olhou
sorrindo a minha primeira tabela tátil:
- Diverte-se fazendo barquinhos!
Eu lhe respondi:
- Sim, eu construo uma embarcação que levará o espírito humano em
direção a paragens desconhecidas.
Eis as minhas reflexões de nadador:
A maioria mais bruta e mais elementar dos homens saiu da grande guerra
com a única preocupação de conquistar um maior bem-estar material.
A minoria, composta de artistas e pensadores, sensíveis e refinados,
manifesta, ao invés, os sintomas de um mal profundo e misterioso que é
provavelmente uma conseqüência do grande esforço trágico que a guerra impôs à
humanidade.
Este mal tem por sintomas uma indolência triste, uma neurastenia
demasiado feminina, um pessimismo sem esperança, uma indecisão febril de
instintos perdidos e uma falta de vontade.
A maioria mais bruta e mais elementar dos homens se aventura
tumultuosamente à conquista revolucionária do paraíso comunista e dá o assalto
final ao problema da felicidade, com a convicção de resolvê-lo satisfazendo todas
as necessidades e todos os apetites materiais.
A minoria intelectual despreza ironicamente esta tentativa afanosa e, não
apreciando mais as alegrias antigas da Religião da Arte e do Amor, que
constituíam os seus privilégios e os seus refúgios, intenta um cruel processo à
Vida, a qual não sabe mais gozar, e se abandona aos pessimismos raros, às
inversões sexuais e aos paraísos artificiais da cocaína, do ópio, do éter, etc.
Aquela maioria e esta minoria denunciam o Processo, a Civilização, as
Forças mecânicas da Velocidade da Comodidade, da Higiene, o Futurismo, em
suma, como responsáveis pelas suas desventuras passadas, presentes e futuras.
Quase todos propõem uma volta à vida selvagem, contemplativa, lenta,
solitária, longe das cidades odiadas.
Quanto a nós, Futuristas, que afrontamos corajosamente o drama doloroso
do após-guerra, somos favoráveis a todos os assaltos revolucionários que a
maioria tentará. Mas à minoria dos artistas e dos pensadores, gritamos a grande
voz:
- A Vida tem sempre razão! Os paraísos artificiais com os quais vocês
pretendem assassiná-la são vãos. Cessem de sonhar um retorno absurdo à vida
selvagem. Cuidem-se de condenar as forças superiores da Sociedade e as
maravilhas da velocidade. Curem antes a doença do após-guerra, dando à
humanidade novas alegrias nutritivas. Ao invés de destruir as aglomerações
humanas, é necessário aperfeiçoá-las. Intensifiquem as comunicações e as fusões
dos seres humanos. Destruam as distâncias e as barreiras que os separam no
amor e na amizade. Dêem a inteireza e a beleza total a estas duas manifestações
essenciais da vida: o Amor e a Amizade.
Nas minhas observações atentas e antitradicionais de todos os fenômenos
eróticos e sentimentais que unem os dois sexos, e os fenômenos não menos
complexos da amizade, compreendi que os seres humanos se falam com a boca e
com os olhos, mas não chegam a uma verdadeira sinceridade, dada a
insensibilidade da pele, que é ainda uma medíocre condutora do pensamento.
Enquanto os olhos e as vozes se comunicam as suas essências, os tatos
de dois indivíduos não comunicam quase nada nos seus choques,
entrelaçamentos ou esfregamentos.
Disto, a necessidade de transformar o estreitar de mãos, o beijo e o
acoplamento em transmissões contínuas de pensamento.
Comecei com o sujeitar o meu tato a uma cura intensiva, localizando os
fenômenos confusos da vontade e do pensamento sobre diversos pontos do meu
corpo e particularmente sobre a palma das mãos. Esta educação é lenta, mas fácil
e todos os corpos sadios podem dar, mediante esta educação, resultados
surpreendentes e precisos.
Ao contrário, as sensibilidades doentes, que retiram a sua excitabilidade e a
sua perfeição aparente da debilidade mesma do corpo, chegarão à grande virtude
tátil menos facilmente, sem continuidade e sem segurança.
Criei uma primeira escala educativa do tato, que é ao mesmo tempo uma
escala de valores táteis para o Tatilismo, ou Arte do tato.

PRIMEIRA ESCALA, PLANA, COM 4 CATEGORIAS DE TATOS DIVERSOS

Primeira categoria: Tato seguríssimo, abstrato, frio


Lixa de papel
Papel aluminizado

Segunda categoria: tato sem calor, persuasivo, raciocinante.


Seda lisa
Crepe de seda

Terceira categoria: excitante, tépido, nostálgico.


Veludo,
Lã dos Pirineus
Lã,
Crepe de seda-lã.

Quarta categoria: quase irritante, quente, volitivo.


Seda granulada,
Seda entrelaçada,
Tecido esponjoso.

SEGUNDA ESCALA DE VOLUMES

Quinta categoria: fofo, quente, humano.


Pele acamurçada,
Pêlo de cavalo ou de cão,
Cabelos e pêlos humanos,
Marabu.

Sexta categoria: quente, sensual, espirituoso, afetuoso.


Esta categoria tem dois ramos:
Ferro rude Peluche
Escova leve Pelugem de carne
Esponja ou do pêssego
Escova de ferro Penugem de pássaro.

Mediante esta distinção de valores táteis, eu criei:

1-AS TABELAS TÁTEIS SIMPLES


que eu apresentarei ao público nas nossas contatilisações ou conferências sobre
Arte do tato.
Dispus em sábias combinações harmônicas ou antitéticas os diversos
valores táteis catalogados precedentemente.

2-TABELAS TÁTEIS ABSTRATAS OU SUGESTIVAS


(viagens de mãos)
Estas tabelas táteis têm disposições de valores táteis que permitem às
mãos vagar sobre elas seguindo traços coloridos e realizando assim uma
seqüência de sensações sugestivas, cujo ritmo ora lânguido, ora cadenciado ou
tumultuoso, é regulado por indicações precisas.
Uma destas tabelas táteis abstratas realizadas por mim e que tem por título:
Sudão – Paris, contém na parte Sudão valores táteis grosseiros, untuosos, rudes,
pungentes, ardentes (tecidos esponjosos, esponja, lixa de papel, lã, escova,
escova de ferro); na parte Mar, valores táteis escorregadios, metálicos, frescos
(papel prateado); na parte Paris, valores táteis fofos, delicadíssimos, acariciantes,
quentes e frios ao mesmo tempo (seda, veludo, plumas, penachos).

3- TABELAS TÁTEIS PARA SEXOS DIVERSOS


Nestas tabelas táteis, a disposição dos valores táteis permite às mãos de
um homem e de uma mulher, combinados entre si, seguir e avaliar em conjunto
sua viagem tátil.
Estas tabelas táteis são variadíssimas, e o prazer que dão se enriquece, de
imprevisto, na emulação de duas sensibilidades rivais que se esforçarão por sentir
melhor e para esclarecer melhor as suas sensações concorrentes.
Estas tabelas táteis são destinadas a substituir o enfreante jogo de xadrez.

4- COZINHAS TÁTEIS.

5- DIVÃS TÁTEIS.

6- LEITOS TÁTEIS.

7- CAMISAS E VESTIDOS TÁTEIS.

8- QUARTOS TÁTEIS
Nestes quartos táteis teremos soalhos e muros formados por grandes
tabelas táteis. Valores táteis de espelhos, águas correntes, pedras, metais, fios
ligeiramente eletrificados, mármores, veludos, tapetes que darão aos pés nus dos
dançarinos e das dançarinas um prazer variado.

9- CAMINHOS TÁTEIS.
10- TEATROS TÁTEIS
Teremos teatros predispostos para o Tatilismo. Os espectadores sentados
apoiarão as mãos sobre longas fitas táteis que fluirão, produzindo sensações
táteis com ritmos diferentes. Estas fitas táteis poderão também ser dispostas
sobre pequenas rodas girantes, com acompanhamentos de música e de luzes.

11- TABELAS TÁTEIS PARA IMPROVISAÇÕES “PAROLIBERAS”


O tatilista em alta voz exprimirá as diversas sensações táteis que lhe serão
dadas pela viagem das suas mãos. A sua improvisação será “parolibera”, ou seja,
liberada de todo ritmo, prosódia e sintaxe, improvisação essencial e sintética e o
quanto menos humana possível.
O tatilista improvisador poderá ter vendados os olhos, mas é preferível
envolvê-lo no feixe de raios de um projetor. Vendar-se-ão os olhos aos novos
iniciados que ainda não educaram a sua sensibilidade tátil.
Quanto aos verdadeiros tatilistas, a plena luz de um projetor é preferível, já
que a obscuridade produz o inconveniente de concentrar demais a sensibilidade
em uma abstração excessiva.

EDUCAÇÃO DO TATO
1.Será preciso manter enluvadas as mãos por muitos dias, durante os quais
o cérebro se esforçara por condensar nelas os desejos de sensações táteis
diversas.
2. nadar sob a água, no mar, procurando distinguir tatilisticamente as
correntes trançadas e as diversas temperaturas.
3. Enumerar e reconhecer cada noite, em escuridão absoluta, todos os
objetos que estão no dormitório. Precisamente por dedicar-me a este exercício no
subterrâneo escuro de uma trincheira em Goriza, em 1917, eu fiz os meus
primeiros experimentos táteis.

* * *

Não tive nunca a pretensão de inventar a sensibilidade tátil, que já se


manifestou em formas geniais na Jongleuse e nos Hors-nature de Rachilde.
Outros escritores e artistas tiveram o pressentimento do tatilismo. Existe, além
disso, há muito tempo, uma arte do tato plástico. O meu grande amigo Boccioni,
pintor e escultor futurista, sentia tatilisticamente, quando criava em 1911 o seu
conjunto plástico Fusão de uma cabeça e de uma Janela (1), com materiais
absolutamente opostos como peso e valor táteis: ferro, porcelana e cabelos de
mulher.
O Tatilismo criado por mim é uma arte claramente separada das artes
plásticas. Não tem nada para fazer, nada para ganhar e tudo a perder com a
pintura ou a escultura.
É necessário evitar o quanto seja possível, nas tabelas táteis, a variedade
das cores que se prestam para impressões plásticas. Os pintores e os escultores,
que tendem naturalmente a subordinar os valores táteis aos valores visuais,
poderão dificilmente criar tabelas táteis significativas. O Tatilismo me parece
particularmente reservado aos jovens poetas, aos pianistas, aos datilógrafos e a
todos os temperamentos eróticos refinados e potentes.
O Tatilismo, contudo, deve evitar não só a colaboração das artes plásticas,
mas até a erotomania mórbida. Deve ter por escopo as harmonias táteis,
simplesmente, e colaborar indiretamente a aperfeiçoar as comunicações
espirituais entre os seres humanos, através da epiderme. A distinção dos cinco
sentidos é arbitrária e um dia poder-se-ão certamente descobrir e catalogar
numerosos outros sentidos. O Tatilismo favorecerá esta descoberta.

(1) Desta obra não nos chegou outra notícia. É aproximável ao “Cavallo”, Coleção Marinetti, Roma.

Milão, 11 de janeiro de 1921 F.T. Marinetti

Trad.: Nancy Rozenchan

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