Anda di halaman 1dari 36

Problemáticas teóricas e históricas dos estudos de referência do anarquismo

Felipe Corrêa*

Essa aparente incoerência é resultado das análises


(LEVY, 1999; PRAGER, 1981; DAHL-
problemáticas do anarquismo e não da pobreza
do próprio anarquismo. MANN, 1989).
Michael Schmidt e Lucien van der Walt Conforme discutido em outro momen-
to (CORRÊA, 2012), as relações sociais
Introdução estão no centro das teorias anarquistas; sua
crítica tem buscado explicar a sociedade
Como demonstram estudos recentes capitalista como um sistema de dominação
(Schmidt e van der Walt, 2009, no prelo; fundamentado em uma estrutura de classes.
Schmidt, 2012), em seus 150 anos de histó- Tal sistema, conformado pelas relações de
ria, o anarquismo se desenvolveu nos cinco poder que são resultado das distintas forças
continentes, ainda que entre fluxos e refluxos, sociais em permanente conflito, estrutura-se
promovendo uma práxis que parece conter por meio das relações de dominação nas três
elementos teóricos de relevância sociológica. esferas sociais (econômica, política/jurídica/
Não é coincidência que os maiores no- militar e ideológica/cultural); por esse mo-
mes da Sociologia tenham conhecido, lido tivo, um dos eixos fundamentais da teoria
e discutido obras anarquistas. Marx produ- anarquista é a crítica à exploração capitalis-
ziu parte significativa de sua teoria em meio ta e pré-capitalista remanescente, ao Estado
às disputas com os anarquistas e referiu-se Moderno, à religião, à educação e, mais re-
a eles, ainda que criticamente, em muitos centemente, à mídia, demonstrando como
momentos (MARX; ENGELS; LÊNIN, esses elementos se entrelaçam, dando corpo
1976); há autores que, contudo, têm bus- a um todo de caráter sistêmico e estrutural.
cado aproximar a obra de Marx das teorias Nessa crítica, as classes sociais são ele-
anarquistas (GUÉRIN, 1979; RUBEL; mentos centrais; em geral, conforme de-
JANOVER, 2010)1. Durkheim e Weber monstram autores como Walt (2011, p. 30),
foram leitores dos anarquistas e discutiram para os anarquistas, as classes sociais são de-
com alguma profundidade o anarquismo, finidas tanto pelas desigualdades de proprie-
conforme discutido por alguns autores dade dos meios de produção, quanto pelas

* Editor pós-graduado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, mestre pela Universidade de São Paulo
(USP), doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação, área de concentração Ciências Sociais na Educa-
ção, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
1 Bakunin, um dos maiores adversários anarquistas de Marx, traduziu o Manifesto comunista para o russo (MARX;
ENGELS, 2003, p. 8) e se comprometeu com a tradução de O capital, ainda que não a tenha concluído (LEIER,
2006, p. 210).

BIB, São Paulo, n. 76, 2º semestre de 2013 (publicada em julho de 2015), pp. 95-129. 95
desigualdades de propriedade dos meios de eles. Por esse motivo, em suas distintas estra-
coerção e administração – não se trata, as- tégias, os anarquistas têm buscado promover
sim, de uma categoria exclusivamente eco- a democracia de base e princípios como a
nômica e nem completamente vinculada ao autonomia, a participação, o federalismo li-
campo do trabalho. bertário e a autogestão – visam, no processo
Os anarquistas também possuem con- da luta de classes, à criação de novos sujeitos
tribuições relevantes no campo das teorias e ao começo imediato da construção da nova
da mudança social. Errandonea (1989) de- realidade que desejam atingir.
monstra como suas contribuições na estraté- Esses e outros elementos parecem apon-
gia de conformar uma crescente força social tar para a relevância sociológica deste objeto.
de base classista, revolucionária e autogestio- Vivemos atualmente contextos em que as
nária, cujo objetivo é modificar as relações questões apresentadas constituem importan-
de poder chegando à autogestão generalizada tes temas da Sociologia: o capitalismo con-
nas três esferas, negam as abordagens funcio- temporâneo e suas relações com o Estado e
nalistas e trazem elementos relevantes para a cultura, a oposição (considerada falsa pelos
a compreensão dos processos de mudança e anarquistas) entre mercado capitalista e Es-
transformação social. Estas ocorrem, segun- tado, a cultura contemporânea com o papel
do sustenta o autor, como resultado das re- relevante dos meios de comunicação con-
lações de poder que se dão nas três esferas e temporâneos e as igrejas neopentecostais, as
que podem alterar parcial ou completamente classes sociais com as mudanças ocorridas no
o sistema e sua estrutura. Ao refletir sobre a campo do trabalho, os movimentos sociais e
maneira que esses processos de mudança e seu papel nos processos de mudança social, o
transformação ocorrem, os anarquistas ado- problema da participação popular nos pro-
tam, em geral, um modelo voluntarista, que cessos decisórios, as diferentes estratégias e
prioriza a agência humana, sem, no entanto, forças políticas em jogo, entre outros.
deixar de tomar em conta a influência e os Entretanto, conforme afirma Walt ([s/d],
limites colocados pelas estruturas sociais. p. 6), “o anarquismo ‘não tem sido bem trata-
A questão da estratégia possui, neste do na academia’; marginalizado no currículo
aspecto, relevância central. Concebida, de universitário, suas visões continuam a não
acordo com Rocha (2009, p. 246), como a ser ‘completamente respeitáveis, em termos
ciência do conflito, que busca utilizá-lo para acadêmicos’”. Contata-se, por meio de uma
se atingir determinados fins políticos, os recente pesquisa bibliográfica (CORRÊA,
anarquistas reforçam posições de teóricos da 2012), que a afirmação de Walt está correta.
guerra como Clausewitz (2010, p. 71), que Tomando em conta esses dois fatores
afirma que, em qualquer estratégia coerente, – a hipótese da relevância do tema para a
os objetivos devem condicionar as ações – os Sociologia e a falta de estudos no campo aca-
objetivos estratégicos exigem uma estratégia dêmico – este artigo pretende recomeçar a
coerente, desdobradas em táticas, que devem discussão deste objeto, a partir de um balan-
apontar para a realização da estratégia e esta ço bibliográfico crítico dos estudos de refe-
para a realização do objetivo estratégico. Para rência do anarquismo, buscando evidenciar
os anarquistas, trata-se de conciliar seus ob- as principais problemáticas teóricas e histó-
jetivos socialistas e libertários com uma prá- ricas, e explicar o estado da arte do debate
xis cotidiana que se desenvolva neste mesmo existente que tem influenciado produções,
sentido e que aponte estrategicamente para ainda que esparsas, dentro e fora das uni-

96
versidades. Para isso, definem-se quais são uma análise bibliométrica simples, realizada
esses estudos e, partindo do problema me- com a ferramenta Google Acadêmico2.
todológico que envolve a relação entre teoria A obra mais antiga, Der anarchismus, es-
social e história, analisam-se suas definições crita pelo jurista Paul Eltzbacher, foi escrita e
de anarquismo, os caminhos percorridos por publicada em 1900, traduzida para o inglês
seus autores para elaborá-las e suas conclu- e publicada em 1908 [Anarchism], consti-
sões fundamentais. Por meio de um balanço, tuindo no primeiro estudo acadêmico sobre
apontam-se as principais problemáticas que o anarquismo. Recebendo atenção e admira-
permeiam esses estudos. ção, esta obra vem sendo significativamente
difundida, e é comercializada até o presente
Estudos teóricos e em língua inglesa; entre as produções em in-
históricos de referência glês, possui, ainda hoje, alguma relevância.
Outra obra, escrita originalmente em
Consideram-se sete os “estudos teóri- nove volumes e publicada em partes por
cos e históricos de referência”, que têm sido Max Nettlau desde os anos 1920, foi resumi-
utilizados significativamente nas investiga- da e publicada em 1935 com o título de La
ções do anarquismo, acadêmicas ou não. anarquía a través de los tiempos, em espanhol,
São, neste momento, apresentados, junto sendo depois traduzida para o inglês [A short
com seus autores, e, em seguida analisados, history of anarchism], o francês [L’histoire
visando apresentar brevemente o estado da de l’anarchie] e outros idiomas, tornando-se
arte da discussão teórica e histórica em tor- referência. Além da produção de Nettlau ter
no deste objeto. sido fundamental para produções teóricas e
A relevância desses estudos é atribuída a históricas posteriores, ela continua a ser re-
dois fatores fundamentais: primeiro, ao fato de ferência nos países em que está traduzida há
aparecerem, com frequência, em uma pesquisa mais tempo. Por razão de o autor ser simpá-
bibliográfica ampla (Corrêa, 2012); segundo, tico ao anarquismo, pelo fato de ele ter co-
ao fato de demonstrarem certa relevância em nhecido pessoalmente alguns dos anarquis-

2 As referências bibliométricas citadas a seguir foram consultadas em junho de 2012, na base de dados do Google
Acadêmico. Praticamente, não havia referências em outros indexadores de periódicos acadêmicos. Para essa análise,
especifica-se a seguir o procedimento metodológico utilizado. A partir da identificação da presença dessas obras
(estudos de referência) na bibliografia utilizada em Corrêa (2012), pesquisou-se a existência de citações delas nos
estudos indexados em quatro idiomas (português, inglês, francês e espanhol). Na análise, levaram-se em conta
fatores relevantes: as obras indexadas pela ferramenta, a tradução das obras para os idiomas, a publicação por
editoras pequenas ou grandes e a aceitação no meio acadêmico. Os indicadores apresentados constituem, portanto,
somente uma ferramenta para analisar a relevância das obras, tanto no conjunto da produção nos quatro idiomas
mencionados, como para analisar sua relevância nas produções em cada um dos idiomas especificados. Os dados
pesquisados, que devem ser levados em conta de maneira relativa, apresentam-se a seguir. Em primeiro lugar,
coloca-se o número de obras publicadas no idioma, que possuem a palavra “anarquismo” no título, levando em
conta as devidas variações de tradução; em seguida, coloca-se o nome dos autores dos sete estudos de referência
escolhidos, seguido do número de citações desse autor no idioma de referência. Em português: total de artigos 219;
Eltzbacher 0, Nettlau 0, Woodcock 50, Joll 18, Guérin 9, Marshall 0, McKay 0. Em inglês: total de artigos 1.190;
Eltzbacher 36, Nettlau 23, Woodcock 270, Joll 190, Guérin 210, Marshall 235, McKay 9. Em francês: total de
artigos 406; Eltzbacher 0, Nettlau 11, Woodcock 0, Joll 0, Guérin 10, Marshall 0, McKay 0. Em espanhol: total
de artigos 936; Eltzbacher 2, Nettlau 32, Woodcock 30, Joll 30, Guérin 24, Marshall 0, McKay 0. Totalização de
artigos: 2.751; Eltzbacher 38, Nettlau 66, Woodcock 350, Joll 238, Guérin 253, Marshall 235, McKay 9.

97
tas clássicos, e dedicado sua vida à reunião tenha sido traduzida para outros idiomas, a
e à divulgação de escritos anarquistas, sua obra tem um impacto significativo nos países
produção tem ênfase no caráter militante, de de língua inglesa. An anarchist FAQ, de Iain
preservação da memória anarquista. McKay, foi uma obra que surgiu do resultado
Durante os anos 1960, foi publicado de um esforço militante iniciado na internet,
um conjunto de obras que vem tendo influ- em 1995, e que, em 2007, foi publicada par-
ência, dentro e fora das universidades, nos cialmente em livro, em inglês. Mesmo que o
estudos do anarquismo. Publicada em 1962, livro não tenha ingressado, até o momento,
História das ideias e movimentos anarquistas, de maneira significativa, no meio acadêmi-
de George Woodcock, logo foi traduzida em co, o trabalho na internet foi traduzido para
diversos idiomas, sendo publicada no Brasil muitos idiomas e difundido por grande parte
em 1983. Tornou-se uma referência comer- do mundo: está disponível em inglês, portu-
cial e consta na bibliografia da maioria dos guês, japonês, curdo, francês e hebraico. Pos-
estudos teóricos e históricos do anarquismo, sui, por isso, um impacto significativo.
especialmente nos países de língua inglesa,
portuguesa e espanhola; dentre os estudos A problemática metodológica
em questão, é a que possui maior impacto. apresentada por Eltzbacher
Woodcock foi um simpatizante das ideias
anarquistas e escreveu diversos livros sobre Eltzbacher (2004) dedicou a introdução
o tema. Em 1964, outra obra relevante foi e o primeiro capítulo de sua obra à discussão
publicada Anarquistas e anarquismo, de Ja- das principais dificuldades metodológicas
mes Joll, historiador acadêmico britânico, encontradas para a realização de um estudo
que também vem tendo impacto significa- científico do anarquismo.
tivo nos idiomas para os quais foi traduzida. Conforme mencionado, constatando a
Em 1965, Daniel Guérin, militante francês, falta de conhecimento deste objeto entre as
publicou Anarquismo: da doutrina à ação, massas, os acadêmicos e os estadistas, Eltzba-
originalmente em francês [L’anarchisme: de cher citou diversas definições de anarquismo,
la doctrine à la action], que logo foi traduzi- algumas contraditórias entre si, sustentadas
da para o inglês [Anarchism: from theory to por um conjunto relativamente amplo de
practice] – recebendo um prefácio de Noam autores. Seu estudo, à época, buscava justa-
Chomsky, que contribuiu para potenciali- mente solucionar esse problema conceitual.
zar sua difusão –, e também para o alemão Além das dificuldades de acesso à bi-
[Anarchismus: begriff und praxis] e outros bliografia e da necessidade de realizar uma
idiomas. Foi traduzida e publicada no Brasil abordagem interdisciplinar – que levasse em
em 1968 por uma pequena editora, o que conta noções do Direito, da Economia e da
limitou significativamente o impacto na Filosofia – o autor identifica as principais di-
produção de língua portuguesa; nos países ficuldades metodológicas encontradas. Den-
de língua francesa e espanhola, o livro pos- tre elas, destaca o problema de como iniciar
sui alguma relevância e destaca-se muito nas um estudo desse tipo.
produções de língua inglesa. Alguns reivindicam que aquilo que es-
Demanding the impossible: a history of creve e faz é anarquista, outros não. Seria
anarchism, de Peter Marshall, um acadêmico a autoidentificação um critério para deter-
simpático às ideias anarquistas, foi publica- minar o que é o anarquismo e quem são os
do em 1992. Ainda que seja recente e não anarquistas? Alguns consideram que deter-

98
minadas ideias e práticas são anarquistas, Identificam-se, a seguir, a estruturação
outros não. Eltzbacher (2004, p. 6) questio- e as definições de anarquismo dos estudos
na: “Como alguém pode considerar algum de referência, retomando, em seguida, essa
desses [preceitos] anarquistas um ponto de problemática metodológica colocada por
partida sem aplicar o conceito exato de anar- Eltzbacher.
quismo que tem ainda de ser determinado?”
Identifica-se, na questão apresentada por As definições de anarquismo e a
Eltzbacher, o problema metodológico com o estruturação dos estudos de referência
qual todos os estudos do anarquismo, teóricos
e históricos, de alguma maneira, têm de lidar. Eltzbacher (2004) estrutura sua obra
A realização de uma análise histórica para se teórica da seguinte maneira: além das dis-
definir o que é o anarquismo implica, necessa- cussões metodológicas iniciais, dedica um
riamente, a própria seleção bibliográfica – de capítulo à definição das categorias mencio-
quais serão os autores ou episódios analisados nadas e um capítulo à discussão da produção
–, uma definição prévia de anarquismo, que teórica de cada um dos autores selecionados,
certamente determinará os resultados da pes- a partir das categorias escolhidas. Nos dois
quisa. A realização de um estudo teórico que últimos capítulos, Eltzbacher (p. 292) reali-
defina o anarquismo implica, necessariamen- za um estudo comparativo entre os autores
te, elementos conceituais que determinam, de e conclui que “os ensinamentos anarquistas
antemão, os autores e episódios históricos que têm em comum apenas uma coisa: eles ne-
darão respaldo a essa teoria3. gam o Estado no futuro”. O anarquismo é,
Para solucionar esse problema do qual portanto, assim, definido como a oposição do
estava completamente ciente Eltzbacher esco- Estado no futuro.
lheu os autores considerados os teóricos anar- Nettlau (2008) não apresenta uma de-
quistas mais relevantes, a partir da indicação finição clara de anarquismo em sua obra, a
de pesquisadores que, segundo ele, estavam não ser pela seleção de autores e episódios
comprometidos cientificamente com as in- realizada, que permite compreender, ainda
vestigações do anarquismo. Chegou, a partir que não muito claramente, sua abordagem
dessa indicação, a “sete sábios” do anarquis- conceitual. Sua obra, de caráter histórico,
mo: William Godwin, Pierre-Joseph Prou- tem o foco central na Europa, aborda com
dhon, Max Stirner, Mikhail Bakunin, Piotr alguma profundidade os Estados Unidos e
Kropotkin, Benjamin Tucker e Liev Tolstói. passa rapidamente por algumas outras regi-
Partindo da definição de três categorias fun- ões, abarcando um período histórico extre-
damentais – Direito, Estado e propriedade mamente amplo.
–, o autor avaliou a produção teórica destes O primeiro capítulo inicia com as con-
sete sábios e, por meio de um estudo compa- tribuições de Zenão (333-264 a.C.) e termi-
rativo, buscou as semelhanças entre eles. O na na Revolução Francesa; o último vai até a
ponto em comum entre os sete “anarquistas” prática anarquista na Internacional Sindica-
permitiria, segundo acreditava, elaborar uma lista, de 1922, estendendo-se até 1934. Nos
definição adequada de anarquismo. capítulos que compõem a obra, Nettlau pas-

3 O questionamento feito em 1900 por Eltzbacher, que envolve as relações entre a história e a teoria social, continua
a ser discutido e trata-se de um tema relevante, conforme demonstra Burke (2011).

99
sa pelas manifestações libertárias anteriores a Para Nettlau (2008, p. 27), “uma histó-
1789, pelas obras de Godwin, Robert Owen, ria da ideia anarquista é inseparável da his-
Willian Thompson, Fourier e os fourieris- tória de todas as evoluções progressivas e das
tas, e por um estudo das experiências indi- aspirações à liberdade”. Seria necessário, por-
vidualistas autóctones dos Estados Unidos, tanto, “procurar estudar o momento históri-
além das obras de Josiah Warren e Tucker. co favorável em que surge essa consciência
Passa por Proudhon e pelos proudhonianos, de uma existência livre pregada pelos anar-
e sua atuação na França, na Espanha e na quistas”. Esse é o motivo de seu corte histó-
Alemanha, país que se dedica a explorar, por rico ser tão amplo. Pelos autores e episódios
meio de estudos sobre a obra de Stirner, Eu- selecionados para a realização de sua obra,
gen Dühring e Gustav Landauer. Aborda o nota-se que o conceito que norteia essa se-
grupo de L’humanitaire e as obras de Élisée leção é de uma compreensão do anarquismo
Reclus, Joseph Déjacque e Ernest Coeurde- como “aspiração à liberdade” ou “consciên-
roy, e depois avança nas práticas libertárias cia de uma existência livre”. Concepção esta,
até os anos 1870, dedicando-se às origens do que se mostra em acordo com outra, apresen-
anarquismo na Espanha, na Itália, na Rússia tada em um estudo distinto, quando Nettlau
e alguns outros países, passando pelas produ- (2011, p. 1) enfatizou ser o maior objetivo
ções de Pi y Margall e Bakunin. Dedica-se ao do anarquismo “a máxima realização possível
estudo da Associação Internacional dos Tra- de liberdade e bem-estar para todos”. Dessa
balhadores (AIT) – chamada posteriormente maneira, o anarquismo é definido como a
de Primeira Internacional (1864-1877) – e consciência e a aspiração de uma existência de
das organizações políticas impulsionadas por liberdade e bem-estar para todos.
Bakunin em 1864 e 1868, abordando as dis- Woodcock (2002) divide sua obra em
putas com o setor “centralista” liderado por duas partes: uma relativa às ideias anarquis-
Karl Marx, a concepção sindical surgida na- tas, e a outra, ao “movimento anarquista”.
quele contexto e a Comuna de Paris. Passa A primeira inicia-se com um capítulo de
pela Internacional Antiautoritária, que du- definições teóricas que incluem, além dos
rou até 1877, e aborda as origens do anarco- teóricos utilizados por Eltzbacher, Sébastien
-comunismo entre 1876 e 1880. Os últimos Faure, Buenaventura Durruti, Henry David
capítulos dedicam-se aos estudos dos teóricos Thoreau, Thomas More, Willian Morris,
e de práticas anarquistas na França – incluin- Mahatma Gandhi, Aldous Huxley e Percy
do a produção de Kropotkin, na Itália, com Bysshe Shelley. Referindo-se à explicação
Errico Malatesta e Saverio Merlino –, e na etimológica do termo “anarquia” e seus de-
Espanha. Um capítulo dedica-se, brevemen- rivados, o autor aborda seu surgimento na
te, ao estudo do anarquismo na Inglaterra, Revolução Francesa e como Proudhon lhe
nos Estados Unidos, na Alemanha, na Suíça deu, em 1840, um sentido positivo.
e na Bélgica, a partir de 1880. Outros dois Para Woodcock (2002, v. I, p. 7, 16), al-
passam brevemente pela Holanda, os países guns elementos fundamentam sua definição
escandinavos, a Rússia, o Leste Europeu, a de anarquismo: “Todos os anarquistas con-
África, a Austrália e a América Latina. Pos- testam a autoridade e muitos lutam contra
teriormente, há um estudo do sindicalismo ela”, ainda que a autoridade não seja por ele
revolucionário francês e das contribuições de definida; afirma, apenas, que ela é “o princí-
Fernand Pelloutier e Émile Pouget até o iní- pio dominante nos modelos sociais contem-
cio da Primeira Guerra Mundial. porâneos”. E mais:

100
Do ponto de vista histórico, o anarquismo é a que trata da internacionalização do anar-
doutrina que propõe uma crítica à sociedade vi- quismo, e um conjunto de quatro capítulos
gente; uma visão de sociedade ideal do futuro e
os meios para passar de uma para outra. [...] O que analisa a presença do anarquismo na
anarquismo preocupa-se, basicamente, com o ho- França, na Espanha, na Itália e na Rússia,
mem e sua relação com a sociedade. Seu objetivo e um último, que analisa o anarquismo na
final é sempre a transformação da sociedade; sua América Latina, no norte da Europa, na In-
atitude no presente é sempre de condenação a essa
sociedade, mesmo que essa condenação tenha ori- glaterra e nos Estados Unidos.
gem numa visão individualista sobre a natureza do Joll (1970) também divide sua obra em
homem; seu método é sempre de revolta social, teoria e prática, pensamento e ação; a pri-
seja ela violenta ou não (Ibid., p. 7). meira delas abordada em duas partes: uma,
na qual realiza um histórico das lutas pela
Haveria, ainda, segundo sustenta, um liberdade e o surgimento do socialismo,
“elemento comum a todas as formas de na qual inclui os anabatistas, Jean-Jaques
anarquismo”: “a substituição do Estado au- Rousseau, Godwin, a Revolução Francesa e
toritário por alguma forma de cooperação a prática dos sans-culottes e os enragés, Ba-
não governamental entre indivíduos livres” beuf e a Conspiração dos Iguais, Fourier e
(Ibid., p. 12). Saint-Simon e Wilhelm Weitling; outra, na
O anarquismo caracteriza-se, assim, por qual se dedica a um estudo mais pormenori-
uma crítica da sociedade presente – fundamen- zado de Bakunin e Proudhon. Uma terceira
tada na autoridade, e, mais especificamente, no parte aborda a prática anarquista, por meio
Estado –, uma proposta de sociedade futura e de uma análise da “propaganda pelo fato”,
uma estratégia de transformação social que po- levada a cabo pelos atentados terroristas da
deria ou não ser violenta. Europa dos anos 1880 e 1890, as produções
O segundo capítulo de seu livro apre- de Kropotkin e outros anarquistas de refe-
senta uma árvore genealógica do anarquis- rência, a Revolução Russa, a Revolução Es-
mo, a partir dos estudos históricos de Kro- panhola e a discussão dos anarquistas sobre a
potkin, Nettlau e Rudolf Rocker, remetendo questão sindical.
o anarquismo aos tempos mais longínquos e Em sua definição de anarquismo, afir-
identificando elementos deste nas obras de ma que:
filósofos como “Lao Tsé e Zenão, Étienne
de la Boetie, Fénelon e Diderot”; encon- Os anarquistas combinam uma crença na possibi-
trando elementos anarquistas na Abadia de lidade de uma ação violenta e súbita da sociedade
Thélème e em Rabelais, “com seu lema li- com uma confiança na racionalidade dos homens
e na possibilidade de aperfeiçoamento destes.
bertário: ‘Faça o que quiser!’”, e também em Num certo sentido, são os herdeiros de todos os
movimentos religiosos como “anabatistas, movimentos religiosos utópicos e milenares que
hussitas, os doukhobors e os essenes”, além acreditaram que o fim do mundo estava para breve
do próprio Jesus Cristo que, para ele, é um e confiantemente esperavam o momento em que
“a trombeta soará e ficaremos totalmente modifi-
anarquista (Ibid., p. 40). cados, num momento, num piscar de olhos”. Por
A obra continua com uma sequência outro, são também filhos da Idade da Razão. [...]
de seis capítulos, em que analisa a produ- Eles, mais do que ninguém, levaram sua crença
ção teórica de Godwin, Stirner, Proudhon, na Razão e no Progresso e na persuasão pacífica
para lá dos seus limites lógicos. O anarquismo é,
Kropotkin e Tolstói – assimilando-se à es- simultaneamente, uma fé religiosa e uma filosofia
trutura da obra de Eltzbacher. A segunda racional; e muitas das suas anomalias resultam do
parte inicia com um capítulo introdutório, conflito entre estas duas tendências e das tensões

101
entre as diferentes espécies de temperamento que pios: a luta contra o capitalismo, o Estado e a
os representam (JOLL, 1970, p. 13-14). democracia burguesa; a crítica ao socialismo
“autoritário”; as energias individuais e das
Esses dois elementos, fé religiosa e filoso- massas; seus aspectos construtivos, que incluem
fia racional, constituem o cerne do anarquis- a organização, a autogestão e o federalismo na
mo. Por um lado, o caráter praticamente reli- economia e na política, a mobilização pelo
gioso, de uma crença que uma revolução seria local de trabalho e moradia; o internaciona-
inevitável e solucionaria todos os problemas lismo e o anti-imperialismo. Seu referencial
sociais; por outro, o caráter racional, que bibliográfico teórico é, em grande medida,
acreditava ser possível persuadir as pessoas da Proudhon e Bakunin, mas também utiliza,
validade de seu ideal. O anarquismo, imer- com bastante frequência, Stirner, funda-
so nessa contradição entre razão e emoção, mentalmente ao tratar da crítica ao Estado e
é definido a partir da busca da transformação da defesa da liberdade individual.
social e da crença na racionalidade humana e Marshall (2010) divide sua obra em sete
na possibilidade do aperfeiçoamento humano. partes. A primeira contesta o senso comum
Guérin (1968) apresenta sua obra de em torno dos termos “anarquia” e seus deri-
maneira similar, dividindo-a em três partes. vados e elabora, brevemente, os traços gerais
A primeira, na qual discute as ideias-força do anarquismo. A segunda aborda os precur-
do anarquismo, definindo os princípios sores do anarquismo e discute o taoísmo, o
anarquistas; a segunda, em que discute a budismo, os gregos, o cristianismo, a Idade
proposta anarquista de sociedade futura, e a Média, a Revolução Inglesa, o Renascimento
terceira, na qual analisa a prática revolucio- e o Iluminismo na França e o Iluminismo na
nária anarquista, a partir da discussão sobre Inglaterra. A terceira estuda os grandes liber-
o contexto europeu de 1880 a 1914, e de tários da França, da Alemanha, da Inglaterra
três episódios revolucionários que contaram e dos Estados Unidos. A quarta discute as
com a participação anarquista: a Revolução obras de doze clássicos anarquistas: Godwin,
Russa, os conselhos de fábrica italianos e a Stirner, Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Re-
Revolução Espanhola. O anarquismo é as- clus, Malatesta, Tolstói, os individualistas e
sim definido por Guérin (1968, p. 20): os comunistas americanos, Emma Goldman,
Anarquismo é, com efeito, antes de tudo, sinôni- os comunistas alemães e Gandhi. A quinta
mo de socialismo. O anarquista é, em primeiro analisa alguns episódios do anarquismo em
lugar, um socialista que visa abolir a exploração ação: na França, na Itália, na Espanha, na
do homem pelo homem. O anarquismo é um dos Rússia e na Ucrânia, no norte da Europa,
ramos do pensamento socialista, onde (sic) predo-
minam, fundamentalmente, o culto da liberdade e nos Estados Unidos, na América Latina e na
a vontade de abolir o Estado. Ásia. A sexta estuda o anarquismo moder-
no, a partir da Nova Esquerda e dos movi-
O anarquismo, para esse autor, é uma mentos de contracultura, a nova direita e os
corrente do socialismo que defende, similar- anarco-capitalistas, os libertários modernos,
mente aos outros socialistas, a luta contra a os anarquistas modernos, dentre os quais dá
exploração, e, diferentemente deles, a posição destaque a Murray Bookchin e seu debate
de que o Estado não é um meio para se atin- sobre Ecologia. A sétima, conclusiva, anali-
gir à liberdade, à qual só se pode chegar por sa a concepção anarquista da relação entre
meio de práticas libertárias. Guérin define meios e fins e argumenta em relação à rele-
o anarquismo a partir dos seguintes princí- vância do anarquismo.

102
“Seria enganoso dar uma definição clara prio. A primeira conceitua o anarquismo, a
de anarquismo”, sustenta Marshall (2010, p. segunda apresenta a crítica anarquista da so-
3), já que o anarquismo é, “por sua própria ciedade presente, complementada pelas três
natureza, antidogmático”. Esse autor afirma partes seguintes, que apresentam a crítica
que “o anarquismo não possui um corpo fixo anarquista do capitalismo, do Estado, e ana-
doutrinário, fundamentado em uma visão lisam seus impactos econômicos, políticos e
de mundo particular”, mas se define por ser ecológicos. A sexta parte discute se o anarco-
“uma filosofia complexa e sutil, que abarca -capitalismo é um tipo de anarquismo, ne-
muitas correntes de pensamento e estraté- gando sua relação com a tradição anarquista.
gias distintas”. Ainda assim, elabora uma Um apêndice sobre a simbologia utilizada
definição ampla, sendo o anarquismo, para pelos anarquistas complementa a obra. Há,
ele, “uma atitude, um modo de vida, assim entretanto, outros volumes que devem ser
como uma filosofia social. Apresenta uma publicados no futuro, com conteúdo que
análise das instituições e práticas existentes consta apenas na internet. Analisa-se, aqui,
e, ao mesmo tempo, oferece a perspectiva de somente o primeiro volume.
uma sociedade transformada radicalmente. Seu referencial utilizado é significativa-
Acima de tudo, sustenta o fascinante ideal mente amplo, e vai desde os clássicos como
da liberdade pessoal e social” (Ibid., p. 15). Proudhon, Bakunin, Kropotkin e Malatesta,
Apesar das várias diferenças entre os até autores contemporâneos. Às fontes primá-
anarquistas, pode-se, segundo afirma, iden- rias dos clássicos, o autor adiciona outros anar-
tificar alguns elementos em comum. quistas conhecidos como Goldman, Alexandre
Berkman, Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzet-
Uma visão particular da natureza humana, uma
crítica da ordem existente, um projeto de uma
ti, além de historiadores do anarquismo.
sociedade livre e um meio para atingi-la. Todos Por meio da demonstração de que o anar-
os anarquistas rejeitam a legitimidade do governo quismo não implica somente crítica à socie-
exterior e do Estado e condenam a autoridade po- dade presente, mas também propostas cons-
lítica, a hierarquia e a dominação impostas. Bus-
cam estabelecer as condições de anarquia, ou seja,
trutivas, McKay (2008, p. 18) assim o define:
uma sociedade descentralizada e autorregulada
O anarquismo é uma teoria política e socioeco-
fundamentada em uma federação de associações
nômica, mas não uma ideologia. Essa diferença é
voluntárias de indivíduos livres e iguais. O obje-
muito importante. Basicamente, a teoria significa
tivo último do anarquismo é criar uma sociedade
que você possui ideias; a ideologia significa que as
livre que permita todos os seres humanos realizar
ideias possuem você. O anarquismo é um corpo
completamente seu potencial (Ibid.,, p. 3).
de ideias flexíveis, em constante estado de evolu-
ção e alteração, e aberto às mudanças que surgem
O anarquismo é, assim definido, como a partir de novos dados. Assim como a sociedade,
uma filosofia antidogmática, que se funda- o anarquismo modifica-se e desenvolve-se. Uma
menta na crítica da dominação – envolvendo ideologia, diferentemente, é um corpo de ideias
“fixas”, no qual as pessoas acreditam de maneira
a autoridade, a hierarquia, o Estado, o gover- dogmática, com frequência ignorando a realidade
no – e na defesa na defesa de uma sociedade ou “modificando-a”, de maneira a encaixá-la na
libertária e igualitária, que implica descentra- ideologia que é (por definição) correta.
lização, autorregulação e a federação de asso-
ciações voluntárias. Ao colocar o anarquismo no campo da
McKay (2008) divide sua obra em sete teoria, McKay (2008, p. 18) tem por objeti-
seções e apresenta seu conteúdo por meio de vo diferenciá-lo de ideologias como “o leni-
perguntas e respostas elaboradas por ele pró- nismo, o objetivismo, ‘o libertarianismo’ [li-

103
beralismo radical]”, e outras, que implicam autores que, depois de analisados, confirma-
“destruição dos indivíduos reais em uma de riam esse conceito dado a priori.
uma doutrina”, que “serve normalmente aos Tal resultado deveria ter sido levado em
interesses de alguma elite dominante”. A te- conta pelos pesquisadores que deram conti-
oria anarquista, segundo ele, implica oposição nuidade às investigações sobre o anarquis-
radical à hierarquia e, portanto, ao capitalismo mo. Se a análise dos aspectos comuns de um
e ao Estado, e busca criar uma sociedade socia- determinado conjunto de autores, que de-
lista, sem governo, fundamentada nos interesses veria chegar a um conceito de anarquismo,
coletivos, na liberdade e na solidariedade. concluiu que a única similaridade encontra-
da é uma oposição futura ao Estado; e se se
A problemática metodológica e considera que a oposição futura ao Estado
conceitual dos estudos de referência não é suficiente para definir o anarquismo
– já que outras correntes, distintas do anar-
A problemática identificada por Eltz- quismo, também se opõem ao Estado no fu-
bacher transpassa todos os estudos de refe- turo –, então parece óbvio que a amostragem
rência. O vínculo indissociável entre teoria de dados – nesse caso, o conjunto de autores
social e história, entre a elaboração concei- levados em consideração – tem problemas.
tual e os dados levados em consideração No entanto, conforme se observa nos estu-
– que constitui uma relação de interdepen- dos de referência, os autores utilizados por
dência – continua a complicar os estudos Eltzbacher continuam, em sua maioria, a ser
sobre anarquismo4. considerados anarquistas e a pautar os estu-
O próprio Eltzbacher terminou vítima dos de maneira bastante determinante.
da problemática metodológica que ele mes- A interdependência entre teoria social
mo enunciou. Sua questão poderia ser colo- e história, conforme sustentado por Burke
cada a ele próprio. Não teriam os pesquisa- (2011, p. 16), que considera “mais útil tratá-
dores “comprometidos cientificamente com -las [a Sociologia e a História] como comple-
as investigações do anarquismo” um conceito mentares” – e, portanto, entre a elaboração
de anarquismo pré-definido que determina- conceitual e os autores e episódios históricos
ria, de antemão, os resultados de sua pesqui- levados em consideração –, pode ser analisa-
sa? Ao levar em conta os sete autores consi- da por meio de diversos elementos presentes
derados anarquistas por esses pesquisadores, nos estudos de referência do anarquismo.
esse autor chegou, por meio de uma análise Trata-se, agora, de identificar, por meio dessa
rigorosa, à conclusão que, provavelmente, relação entre teoria social e história, as prin-
norteou, consciente ou inconscientemente, cipais problemáticas colocadas pelos estudos
os pesquisadores que lhes indicaram os re- em questão.
feridos autores: anarquismo é a negação do
Estado no futuro – tal era a única caracterís- O anarquismo como
tica que unia os sete sábios. Os pesquisadores fenômeno ahistórico
que os indicaram deviam ter em mente, de
antemão, ainda que não tivessem clareza dis- Nettlau, Woodcock e Marshall realizam
so, esse conceito de anarquismo, indicando uma seleção histórica tão ampla, que pode

4 E, como afirma Burke (2011, p. 15-41), não somente do anarquismo, mas de diversos outros temas históricos.

104
ser considerada ahistórica, apresentando o Posições semelhantes foram defendidas
anarquismo como um fenômeno que sem- por outros anarquistas, como Rocker (1978,
pre existiu independente da época analisada. p. 16), que afirma: “as ideias anarquistas apa-
Marshall (2010, p. 3-4), ao refletir sobre a recem em todos os períodos conhecidos da
origem do anarquismo, afirma: história, por mais que, nesse sentido, haja
ainda muito para ser explorado”. Para ele,
O anarquismo surgiu de um protes- uma história do anarquismo deveria se de-
to moral contra a opressão e a injustiça. As bruçar sobre toda a história universal.
primeiras sociedades humanas presenciaram Tais abordagens ahistóricas apontam
uma luta constante entre aqueles que queriam para definições de anarquismo significativa-
mandar e aqueles que se negavam a obedecer mente amplas, conceituando-o como uma
ou mesmo a mandar. O primeiro anarquista luta contra a dominação de maneira geral –
foi a primeira pessoa que sentiu a opressão de ou, como se chamou historicamente, a luta
outra e rebelou-se contra ela. [...] Por ser uma contra a “autoridade” – ou como uma luta
tendência reconhecível na história humana, a contra o Estado.
linha do tempo do anarquismo, em termos de Não é coincidência que as definições
pensamento e fatos, deve buscar um passo de de anarquismo elaboradas por Nettlau,
milhares de anos atrás. Woodcock e Marshall caminhem nesse sen-
tido. As aspirações de uma existência de li-
Segundo esse ponto de vista, todas as lu- berdade e bem-estar para todos – definição
tas contra a opressão, independente do mo- de anarquismo de Nettlau –, a crítica da
mento histórico em que tenham ocorrido, se- dominação de maneira geral, com ênfase no
riam demonstrações práticas do anarquismo. Estado, e a defesa da liberdade e da igualda-
Na realidade, como o próprio Marshall de como perspectiva futura – definições de
(2010, p. 19) afirma, ele utilizou como base anarquismo de Woodcock e Marshall – cer-
de seu estudo o verbete sobre anarquismo tamente envolvem elementos existentes em
elaborado por Kropotkin, em 1910, para a toda a história.
Encyclopaedia britannica. Nesse texto, Kro- A grande quantidade dos dados levados
potkin (1987, p. 22-27) afirma que estariam em consideração – toda a história humana –
incluídos, no “desenvolvimento histórico do só pode apontar para uma definição ampla
anarquismo”, Lao Tsé, Aristipo (430 a.C.), que, em realidade, define pouco. Além disso,
Zenão (342-267 ou 270 a.C.) – considerado essas abordagens tendem a considerar o con-
por este autor “o melhor expoente da filo- texto, e, portanto, a própria história, uma
sofia anarquista na Grécia Antiga” –, Marco peça acessória, tanto no surgimento quan-
Girolamo Vida, os cristãos primitivos – a to no desenvolvimento do anarquismo; nos
partir do século IX na Armênia, as prega- mais distintos contextos históricos – com ou
ções dos hussitas, Chojecki e os primeiros sem capitalismo, Estado Moderno e proleta-
anabatistas –, Rabelais e Fénelon no século riado –, o anarquismo sempre teria existido.
XVIII, partes do pensamento de Rousseau
e Diderot, teóricos da Revolução Francesa, As análises etimológicas dos termos
Godwin, Stirner e Thompson. A partir desse “anarquia” e seus derivados
histórico prévio, Kropotkin aborda as con-
tribuições de Proudhon, Bakunin e outros Guérin (1968, p. 19-20), Woodcock
anarquistas da Internacional. (2002, v. I, p. 8), Marshall (2010, p. 3) e

105
McKay (2008, p. 19-21) utilizam análises dade, no caso da citação de Kropotkin, ou
etimológicas dos termos “anarquia” e seus uma negação do Estado no caso da citação
derivados como um critério para definir o de Woodcock.
anarquismo – um recurso que poderia, apa- O primeiro caso envolve uma discussão
rentemente, ser utilizado para iniciar um es- conceitual complexa, que está presente tan-
tudo sobre o tema. to nos estudos do anarquismo, quanto nos
Woodcock (1998, p. 11), utilizando-o, estudos do poder. “Autoridade” é um termo
explica: polissêmico, que pode ser compreendido de
diversas maneiras; é utilizado pelos anar-
A origem da palavra anarquismo envolve uma du- quistas clássicos, ainda que cada um lhe dê
pla raiz grega: archon, que significa governante, e
o prefixo an, que indica sem. Portanto, anarquia
um sentido distinto, e também aparece nos
significa estar ou viver sem governo. Por consequ- estudos de referência que, normalmente, o
ência, anarquismo é a doutrina que prega que o utilizam como sinônimo de dominação.
Estado é a fonte da maior parte de nossos pro- O segundo caso envolve uma discussão
blemas sociais, e que existem formas alternativas
viáveis de organização voluntária. E por definição,
conceitual relevante do anarquismo, que
anarquista é o indivíduo que se propõe a criar uma possui implicações significativas. Conceituar
sociedade sem Estado. o anarquismo como uma luta contra o Esta-
do e, os anarquistas como aqueles que levam
Esse recurso metodológico, de partir das a cabo esta luta, implica definir o anarquis-
análises etimológicas, foi também utilizado mo como sinônimo de antiestatismo.
pelos próprios anarquistas, como no caso
de Kropotkin (1987, p. 19), que identifi- O anarquismo como
cou na raiz grega do termo, “an – e arke”, sinônimo de antiestatismo
o significado de “contrário à autoridade”.
As definições apresentadas por Woodcock e Ainda que seja possível compreender as
Kropotkin vão ao encontro do sentido abor- definições de Nettlau (2008, no prelo) e de
dado anteriormente, de conceitos significa- Woodcock (2002), nesse sentido Eltzbacher
tivamente amplos, que trabalham, em geral, (2004) constitui, dentre os estudos de refe-
com a definição do anarquismo como oposi- rência, o caso mais exemplar. Ao escolher os
ção à dominação. Ainda que utilize essa aná- sete autores considerados anarquistas pelos
lise etimológica, Guérin realiza uma aborda- pesquisadores “comprometidos cientifica-
gem histórica e uma definição mais restrita mente com as investigações do anarquis-
de anarquismo. Woodcock e Marshall, por mo”, ele analisou suas obras e chegou à se-
sua vez, utilizam abordagens ahistóricas e de- guinte conclusão:
finições amplas de anarquismo.
Tais análises etimológicas permitem Os ensinamentos anarquistas têm em comum
apenas uma coisa: eles negam o Estado no futu-
compreender o anarquismo apenas como ro. Nos casos de Godwin e Proudhon, Stirner e
uma negação. Entretanto, Woodcock e Kro- Tucker, a negação significa que eles rejeitam o Es-
potkin nunca conceberam o anarquismo tado incondicionalmente, tanto no futuro quanto
desta maneira, que, para eles, sempre contou em qualquer outro momento; no caso de Tolstói,
significa que ele rejeita o Estado, ainda que não
com aspectos construtivos de relevância. As incondicionalmente, mas no futuro; nos casos de
análises etimológicas tomadas isoladamen- Bakunin e Kropotkin, significa que eles prevêem
te poderiam levar a crer que o anarquismo que, no futuro, o progresso da evolução irá abolir
constitui apenas uma negação da autori- o Estado (ELTZBACHER, 2004, p. 292-293).

106
Independente da interpretação sobre a gum detalhe os “principais teóricos do
negação do Estado nos distintos autores, que anarquismo”, também enfatiza o início do
possui algumas imprecisões, e levando em anarquismo em Godwin, apesar da seleção
conta a problemática metodológica discutida, histórica não chegar a tal conclusão, o que
a questão mais relevante, nesse texto, é levar também poderia levar a crer nessa interpre-
em conta a definição de anarquismo de Eltzba- tação do anarquismo como um fenômeno
cher: anarquismo é a negação do Estado no fu- do século XVIII.
turo, anarquismo é sinônimo de antiestatismo. Outros autores, como Horowitz (1982,
Tal definição continuou a ser utilizada p. 32), trabalham com esse referencial do sé-
posteriormente. Roderick Kedward (1971, culo XVIII, partindo da Revolução Francesa:
p. 5-6) afirma que “o laço que une todos “a primeira forma consciente do anarquismo
os anarquistas” é “o antagonismo a qual- representava um composto de nostalgia e
quer situação regulada pela imposição, pela utopia, consequência bastante natural de
obrigação ou pela opressão”, um aspecto doutrina desenvolvida por um setor ilustrado
que constituiria, para ele, o fundamento do da aristocracia e empregada mais tarde pelos
antiestatismo anarquista. Corinne Jacker sans-culottes”. Esse “anarquismo” do século
(1968, p. 2) sustenta que “outro termo para XVIII, chamado por Horowitz de “anarquis-
anarquismo é antiestatismo”. mo utilitário”, teria sido “uma expressão dos
Essa definição permitiu que fossem con- ricos deslocados em favor de uma sociedade
siderados anarquistas diversos autores e episó- subprivilegiada”, já que “os pobres não ti-
dios, cuja única semelhança é a oposição ao nham aprendido [...] a falar por si mesmos”.
Estado em geral, ou ao governo em particular. Autores como Claude-Adrien Helvétius, Di-
derot, Godwin, Saint-Simon seriam, para tal
O anarquismo como autor, anarquistas daquela época.
fenômeno do século XVIII Outras abordagens que podem levar a
crer nessa hipótese são aquelas que se apoiam
Além da posição ahistórica, há algumas em estudos acerca do uso dos termos “anar-
abordagens que consideram ser o anarquis- quia” e seus derivados. Fundamentando-se
mo um fenômeno do século XVIII. Ainda parcialmente nessa abordagem, Woodcock
que essa posição não seja defendida aberta- (2002, v. I, p. 7-10) e Joll (1970, p. 48) in-
mente por nenhum dos estudos de referên- vestigam como o uso desses termos contri-
cia, as análises indicam que há possibilidade buiu com a definição do anarquismo.
do anarquismo ser assim compreendido. O surgimento desses termos, em sentido
Eltzbacher (2004) considera um con- político, data fundamentalmente do século
junto de autores que teve sua produção rea- XVIII, assunto que será discutido a seguir.
lizada entre o fim do século XVIII e o início
do século XX. Godwin é o escritor mais an- O uso dos termos “anarquia”
tigo levado em consideração, e seu estudo de e seus derivados
referência, Enquiry concerning political justi-
ce, foi publicado em 1793. Poder-se-ia crer, Investigar o uso dos termos “anarquia”
por isso, que o anarquismo é um fenômeno e seus derivados implica um retorno ao con-
do século XVIII. texto da Revolução Francesa, pois foi, prin-
No cerne da discussão teórica de cipalmente, a partir dela que esses termos co-
Woodcock (2002), que discute com al- meçam a ser utilizados em sentido político.

107
Alexandre Samis (2002, p. 47) iden- Esse senso comum que é apresentado no
tifica que o uso desses termos, pelo menos século XVIII independente do surgimento
no que diz respeito ao campo político, sur- do anarquismo como uma corrente político-
ge naquele contexto imbuído de um sen- -ideológica continuou a ser difundido nos
tido particular: “A palavra anarquia, vista séculos posteriores e, em alguma medida,
até aqui como sinônimo de subversão ou existe até os dias de hoje. Os séculos XIX
elemento desestabilizador da ordem, tem e XX contaram com uma difusão massiva
suas raízes também na Europa – é utiliza- desse sentido, forjado pelo senso comum e
da já na França revolucionária, do fim do que equiparava os termos “anarquia” e seus
século XVIII”. “Anarquista” era um termo derivados com a destruição, o caos, a desor-
utilizado para se referir àquele que possuía ganização, e com as posturas antissociais,
um papel desagregador e nocivo para a so- desagregadoras e críticas, relacionando-os,
ciedade, como sustenta Joll (1970, p. 48): frequentemente, com o crime e a loucura.
“Os epítetos são significativos; ‘anarquista’ Cesare Lombroso (1977, p. 15, 25),
era o termo adotado por Robespierre para médico e criminologista italiano, escreveu
atacar os da esquerda, de que se servira para em 1894 que o anarquismo significava “um
os seus próprios fins, mas de quem resolve- enorme retrocesso”; com raras exceções, para
ra se libertar”. Os sans-cullotes de Beaucaire ele, “os autores mais ativos da ideia anárquica”
afirmavam em 1793: “Somos uns pobres e eram “loucos ou criminosos, e muitas vezes
virtuosos sans-cullotes; formamos uma asso- ambos”. Gustave Le Bon (1921, p. 268-270,
ciação de artesãos e camponeses”. E conti- 370), psicólogo social e sociólogo francês,
nuavam: “Sabemos quem são os nossos ami- afirmou em 1910: “o anarquismo não consti-
gos: aqueles que nos livraram do clero e da tui uma doutrina política, porém um estado
nobreza, do sistema feudal, das décimas, da mental, especial a variedades bem definidas
monarquia e de todos os males que ela acar- de degenerados, que os patologistas há muito
reta consigo; aqueles a quem os aristocratas tempo catalogaram”; seria, enfim, uma “mo-
chamam anarquistas, facciosos, maratistas”. léstia essencialmente contagiosa”. Para ele,
Ainda que se possa dizer que, durante os anarquistas eram “alucinados pelos seus
o curso da Revolução Francesa, os enragés, impulsos mórbidos” e possuíam “o intuito
dentre os quais se encontravam Jaques-Roux de destruir a sociedade”; eram inimigos “de
e Jean Varlet, tivessem posições libertárias, qualquer forma de organização social”.
até aquele momento, conforme as posições Ainda que no século XXI as abordagens
de Samis e Joll, os termos que posterior- como as de Lombroso e Le Bon pareçam
mente se referirão ao anarquismo tinham exageradas, elas refletem como, por muito
um sentido essencialmente negativo. Eram tempo, veio sendo forjando um sentido aos
utilizados por setores políticos que queriam termos “anarquia” e seus derivados e ao pró-
depreciar alguém ou desqualificar seus ad- prio anarquismo.
versários ou inimigos. Certamente o senso
comum teve influência nesse uso dos termos. O anarquismo como
Se anarquia era a destruição, o caos, a desor- fenômeno do século XIX
ganização etc., qualificar um adversário ou
inimigo político de anarquista era imputar a Joll (1970, p. 12-13) – ainda que seu
ele todos esses sentidos, forjados pelo senso estudo remeta-se aos anabatistas, às revoltas
comum e carregados junto com os termos. camponesas do século XVI, a Godwin e aos

108
socialistas utópicos; e ainda que ele traga ele- Paradoxalmente, Kropotkin, que defen-
mentos que permitam uma identificação do deu a posição ahistórica em seu verbete de
surgimento do anarquismo no século XVIII 1910, afirmara, antes, em 1887:
– afirma que “o movimento anarquista é um
O anarquismo, o sistema não governamental do
produto do século XIX. É, em parte pelo socialismo, tem uma dupla origem. Constitui um
menos, o resultado do impacto da maqui- amadurecimento dos dois grandes movimentos
naria e da indústria na sociedade camponesa de pensamento nos campos político e econômico
e artesã”. Haveria, segundo considera, um que caracterizam o século XIX, especialmente sua
segunda metade. Em comum com todos os socia-
contexto histórico que teria permitido o sur- listas, os anarquistas sustentam que a propriedade
gimento do anarquismo5. privada da terra, do capital e das máquinas ma-
McKay (2008, p. 26), em relação ao sur- quinaria já teve seu tempo, e que está condenada a
gimento do anarquismo, afirma que: desaparecer; sustentam também que tudo o que for
necessário para a produção deve tornar-se proprie-
O anarquismo é uma expressão da luta contra a dade comum da sociedade, e assim o serão; a pro-
opressão e a exploração, uma generalização das ex- priedade comum deve ser gerida em comum por
periências e análises do povo trabalhador daquilo aqueles que produzem a riqueza. Em comum com
que estava errado no sistema vigente e uma expres- os mais avançados representantes do radicalismo
são de esperanças e sonhos de um futuro melhor. político, eles sustentam que o a organização política
Essa luta existia antes de se chamar anarquismo, ideal da sociedade exige que se reduzam as funções
mas o movimento anarquista histórico [...] é es- governamentais ao mínimo e que o indivíduo reto-
sencialmente um produto das lutas da classe tra- me sua liberdade completa de iniciativa e de ação
balhadora contra o capitalismo e o Estado, contra para satisfazer – por meio dos grupos e federações
a opressão e a exploração, e por uma sociedade de livres – todas as necessidades infinitamente variadas
indivíduos livres e iguais. dos seres humanos (KROPOTKIN, 2005, p. 46).

Segundo essas afirmações, pode-se Para esse autor, no referido trecho, o


compreender que, ainda que haja um pas- anarquismo é definido como uma corrente
sado de lutas contra a dominação, as quais socialista, constituída a partir da conjunção
teriam existido durante toda a história, o do desenvolvimento do próprio socialismo
século XIX teria proporcionado algumas e daquilo que chama de “radicalismo políti-
condições particulares para o surgimento do co” – um federalismo de base democrática e
anarquismo, dentre as quais se encontram o libertária. A união dessas duas correntes, du-
desenvolvimento do capitalismo, do Estado rante a segunda metade do século XIX, teria
Moderno e as mudanças sociais envolvendo permitido o surgimento do anarquismo.
o campo e a cidade. Definir o anarquismo como uma cor-
Quando Guérin (1968, p. 20-21) afir- rente do socialismo surgida no século XIX é
ma que o anarquismo é um tipo de socialis- hoje a posição hegemônica entre os estudio-
mo – sendo este definido como uma corren- sos do tema. Além dos já mencionados Joll,
te ideológico-doutrinária formulada no seio McKay e Guérin, diversos outros estudiosos
dos movimentos da classe trabalhadora que trabalham com esse referencial.
lutavam contra o capitalismo –, ele também Avrich (2005, p. 3) sustenta que “o anar-
o concebe como um produto do século XIX. quismo, como um movimento organizado

5 Incoerências e inconsistências desse tipo são constantes nos estudos de referência, envolvendo a relação entre te-
oria social e história. Como nesse caso apesar do autor afirmar que o anarquismo é um fenômeno do século XIX,
também aborda autores e episódios de períodos anteriores em seu estudo.

109
de protesto social, é um fenômeno recente”, mento operário do século XIX: “foi dentro
que surgiu “na Europa, durante o século do ambiente socialista que as ideias identi-
XIX e o início do século XX”, como uma ficadas com Bakunin, Kropotkin e o movi-
“resposta aos passos rápidos da centraliza- mento anarquista surgiram”. Essa visão – de
ção política e econômica impulsionada pela que o anarquismo passou a existir quando
Revolução Industrial”. Cappelletti (2006, p. Bakunin e outros socialistas, constituindo a
9) afirma que o anarquismo, “como filosofia Aliança da Democracia Socialista (ADS), in-
social e como ideologia, nasce na primeira gressaram na Internacional, passando a im-
metade do século XIX”; ainda assim, “sua pulsionar a difusão das estratégias anarquis-
formação explícita e sistemática não pode ser tas pela Europa – é também compartilhada
considerada anterior a Proudhon”. Para ele, o por Nicolas Walter (2000).
anarquismo surge a partir de uma conjunção Para Colombo (2011, p. 127), o anar-
de fatores possibilitada pela Revolução Fran- quismo se constitui plenamente durante o
cesa, pela formação da classe trabalhadora e Congresso de Saint-Imier, em 1872; naquele
pelo surgimento do capitalismo industrial. contexto, “o anarquismo tornar-se-á um cor-
Berthier (2008, p. 2) sustenta que o po teórico que organiza, sistematiza, repre-
anarquismo, como “doutrina política mo- senta e justifica a luta, e os métodos de luta,
derna”, desenvolve-se a partir de três elemen- para chegar a uma transformação profunda
tos fundamentais: “a crítica do comunismo da sociedade”. Esse autor também enfatiza
doutrinário e utópico francês, realizada por que o anarquismo não surge “da cabeça de
Proudhon”, “a crítica da filosofia alemã efe- um rebelde genial”, mas é o “produto das
tuada por Bakunin”, mas, “sobretudo, por condições reais da exploração e da dominação
meio da experiência prática da luta social e de classe, da forma estatista do poder políti-
da solidariedade de classe no seio da Associa- co e das lutas sociais conexas”. Tal posição é
ção Internacional dos Trabalhadores”; a cor- compartilhada por Marianne Enckell (1991).
rente coletivista ou socialista revolucionária, Dentre esse conjunto de autores que
chamada mais tarde de anarquista, tornar- consideram o surgimento do anarquismo no
-se-ia, naquele contexto, um “movimento de século XIX, encontram-se duas similarida-
massas organizado”. Skirda (2002), em sua des: o vínculo entre o surgimento do anar-
análise organizativa do anarquismo, toma quismo e um contexto particular, em termos
como um marco de referência o pensamento econômicos, políticos e sociais, e também o
proudhoniano, assim como Ansart (1970), fato do anarquismo ser compreendido como
que em sua obra El nacimiento del anarquis- um movimento emergente da classe traba-
mo, trata exclusivamente da produção teóri- lhadora e do próprio socialismo.
ca de Proudhon e de seu vínculo com o mo- Entretanto, há basicamente três posi-
vimento dos trabalhadores da seda de Lyon. ções, que se fundamentam em marcos dis-
Schmidt e Walt (2009, p. 45) afirmam tintos para estabelecer o momento, durante
que o anarquismo surge durante a AIT, mais o século XIX, em que surge o anarquismo.
especificamente em 1868: “é razoável con- O primeiro marco é a produção de Prou-
siderar os anos 1860 e a Primeira Interna- dhon, que se inicia em 1840 e se desenvol-
cional como o contexto de surgimento do ve até sua morte em 1865; o segundo é a
movimento anarquista”. O anarquismo, constituição da ADS e a entrada dela e de
para eles, surgiu das teorias e práticas, pen- Bakunin na AIT, que ocorrem em 1868; o
samentos e ações desenvolvidos pelo movi- terceiro é a cisão da AIT e a constituição da

110
Internacional Antiautoritária ocorrido em tes, geralmente partidários da liberdade, era então
1872. A partir de 1872 é praticamente um vista de forma bem diversa da conceituação que
lhe deu Pierre-Joseph Proudhon, no seu tratado
consenso entre todos os autores de que o apresentado à Academia de Ciências de Besançon,
anarquismo já está constituído. O que é a Propriedade?, em 1840.
Essa ligação do anarquismo com o sécu-
lo XIX é realizada, em grande parte dos ca- Proudhon (1988, p. 233-237), em meio
sos, por um determinado contexto histórico à sua crítica contundente da propriedade
que teria proporcionado as condições para privada, afirmou ser um anarquista, enten-
o surgimento do anarquismo. Entretanto, dendo por isso uma oposição aberta ao go-
essa ligação também pode ser realizada por verno dos homens pelos homens e a “ausên-
dois outros fatos: o uso positivo do termo cia de senhor, de soberano”. Ainda que tenha
“anarquia” e seus derivados e a autoidentifi- continuado a utilizar o termo “anarquia” no
cação dos anarquistas, ambos os fenômenos sentido de desordem, Proudhon foi, no li-
daquele século – recursos que também são vro de 1840, o primeiro autor conhecido a
utilizados por estudiosos do anarquismo. atribuir-lhe sentido positivo6.
Ainda assim, parece evidente que um
O sentido positivo dos termos autor como Proudhon – mesmo se levada
“anarquia” e seus derivados e a em conta a influência massiva de seus es-
autoidentificação dos anarquistas critos – não reverteria facilmente o sentido
que impregnava o termo pelo menos des-
Apesar do sentido negativo dos termos de o século anterior. Essa problemática foi
“anarquia” e seus derivados, discutidos ante- notada por militantes anarquistas que, na
riormente, há um marco histórico que ficou AIT, preocupavam-se com o uso dos termos
conhecido como a primeira tentativa de modi- “anarquia” e seus derivados, justamente pelo
ficar esse sentido. Woodcock (2002, v. I, p. 40, significado que eles vinham carregando ao
17) – apesar de afirmar que “dois historiadores longo do tempo.
do anarquismo, Alain Sargent e Claude Har- James Guillaume (2009, p. 204) notava,
mel, descobriram que o primeiro anarquista com preocupação, que a própria militância
foi Jean Meslier, o cura de Étrepigny, que viveu utilizava esses termos de maneira negativa:
no século XVIII” – sustenta que o anarquismo “acontecia-nos, ainda, [...], de empregar as
“existe na Europa desde 1840 ininterrupta- palavras ‘anarquia’ e ‘anárquico’ no sentido
mente”. Esse marco de 1840 certamente está vulgar”. Por esse motivo, naquele contexto,
ligado ao uso que Proudhon fez, pela primeira preferia-se o uso de outros termos: “não se
vez, do termo “anarquia” em sentido positivo falava de ‘anarquismo’ à época. Bakunin di-
e de sua reivindicação de ser um anarquista, zia-se socialista revolucionário ou coletivista”
conforme indica Samis (2002, p. 52): (Berthier, 2010, p. 127). Na AIT, conforme
coloca Enckell (1991, p. 199), esses termos
A anarquia, palavra recorrente nos discursos que
tinham como objetivo desclassificar os oponen- eram ainda pouco utilizados:

6 Deve-se destacar, entretanto, que o venezuelano Antonio Muñoz Tébar afirmou, em 1811, em relação à forma
que deveria assumir a República da Venezuela: “A anarquia! Essa é a liberdade. [...] Senhores, que a anarquia, com
a tocha das fúrias em mãos, nos guie ao congresso, para que sua fumaça embriague os facciosos da ordem e os siga
pelas ruas e praças gritando: Liberdade!” (apud GONZÁLEZ, 2009).

111
Bakunin, quatro anos antes [de 1872], saiu do ras e estendem-se a outros setores da esquer-
Congresso da Paz dizendo aos amedrontados bur- da socialista e revolucionária.
gueses: Sou anarquista, retomando a afirmação pro-
vocativa de Proudhon. Em seu relato do Congresso Isso implica a discussão de outra proble-
da Basileia da AIT, em 1869, James Guillaume fala mática que envolve a autoidentificação dos
de coletivismo anarquista, mas ele nunca utilizará a anarquistas. Mesmo não se apoiando nesse
palavra anarquista isoladamente, por razão de sua critério de maneira absoluta, alguns estudos
aparência negativa. Nos programas da Aliança [da
Democracia Socialista], das seções ou mesmo dos de referência, de certa maneira, trabalham
círculos mais revolucionários, esse termo jamais com a autoidentificação dos anarquistas como
aparece durante os primeiros anos da AIT. um critério para demarcar e definir o próprio
anarquismo. McKay (2008) leva em conta,
O uso progressivo dos termos em ques- em distintos momentos, individualistas como
tão contribuiu para modificar, ainda que re- Susan Brown, Tucker, o periódico Anarchy:
lativamente, o sentido negativo atribuído a a journal of desire armed, primitivistas como
eles. A partir de Proudhon, esses termos pas- John Zerzan, e o periódico Green anarchy que,
saram a ser reivindicados de maneira posi- para além do fato de se considerarem anar-
tiva, sendo utilizados esporadicamente pelos quistas, não possuem muito em comum com
coletivistas da Internacional – Bakunin nos os princípios históricos do anarquismo.
escritos do fim da vida e Guillaume muito Deve-se questionar, assim, se a autoi-
raramente – e adotados, majoritariamente, dentificação constitui um critério adequado
somente a partir de 1872, com a fundação para determinar quem é ou não anarquista e,
da Internacional Antiautoritária. por meio de sua produção teórica e prática,
Mesmo com a tentativa de Proudhon de determinar o que é ou não o anarquismo.
dar um sentido positivo dos termos “anar-
quia” e seus derivados, nota-se que essa O anarquismo como
utilização terminológica teve resistências antítese do marxismo
mesmo entre aqueles que, no século XIX,
foram representantes de primeira ordem do Essa problemática está ligada diretamen-
anarquismo. A reivindicação positiva, mais te a outras anteriormente discutidas. Algumas
generalizada desses termos a partir de 1872, abordagens, como as que consideram o anar-
aos poucos, pelo menos para um determi- quismo um fenômeno ahistórico, definido
nado setor socialista, proporcionou as con- pela luta contra a dominação, mas, funda-
dições para a substituição de termos como mentalmente, as abordagens que definem o
“socialismo revolucionário” e “coletivismo”, anarquismo como sinônimo de antiestatismo
constituindo uma alternativa a eles. constituem as bases das análises que enfati-
Ainda assim, não houve uma homoge- zam ser o anarquismo a antítese do marxismo.
neização nesse sentido; outros termos vêm Essas abordagens se fundamentam,
funcionando historicamente como sinôni- em alguma medida, no referido verbete so-
mos de anarquismo: “socialismo libertário”, bre anarquismo, elaborado por Kropotkin
“comunismo libertário”, “socialismo antiau- (1987) para a Encyclopaedia britannica. O
toritário”, “comunismo antiautoritário” en- argumento que sustenta suas posições, par-
tre outros. Entretanto, não se pode assumir cialmente retomado em alguns dos estudos
que todos eles sejam sinônimos; se foram fre- de referência, é que o desenvolvimento da
quentemente reivindicados por anarquistas, humanidade conta com duas tendências
em determinados casos extrapolam frontei- imemoriais em seu seio; uma delas, antiau-

112
toritária, que se caracterizaria pelas lutas oposição ao Estado no futuro, não faz men-
e resistências contra a dominação, e outra, ções à possível fusão das duas ideologias.
autoritária, que se caracterizaria pelas tenta- As posições de que o anarquismo surgiu
tivas de dominação e pelo estabelecimento no século XIX, a partir da cisão da Interna-
de hierarquias na sociedade. Esse argumento cional em 1872, também possui argumentos
subsidia, em alguns casos, posições de que o que podem levar a conclusões semelhantes.
anarquismo seria uma expressão da primeira As diferenças entre marxistas e anarquistas
tendência, e o marxismo, da segunda. têm sido significativamente destacadas nos
Horowitz (1982, p. 23) considera que estudos da Internacional – em especial, os
o anarquismo se desenvolveu, em grande conflitos entre Marx e Bakunin – adquirin-
medida, como uma alternativa ao marxismo. do, em muitos casos, proporções maiores do
Em uma comparação entre o socialismo e o que a própria AIT. Esses conflitos, que se
anarquismo, afirma que: evidenciaram a partir de 1869 e chegaram
ao ápice em 1872, marcaram a cisão do so-
A diferença entre o socialismo e o anarquismo é cialismo em duas correntes fundamentais,
fundamentalmente uma diferença entre aqueles
que pretendem abolir as formas de relações so-
chamadas a posteriori de anarquista e marxis-
ciais tais como existem atualmente e aqueles que ta. Entretanto, mesmo com a cisão, ambas as
tentam abolir o conteúdo de toda a sociedade correntes estiveram juntas em distintas opor-
de classes existentes até o presente. O socialista tunidades, como no caso do primeiro perío-
vê a sociedade futura a partir da perspectiva de
redistribuição do poder, da propriedade etc. O
do da Segunda Internacional (1889-1914).
anarquismo vê em um compromisso desse tipo As posições de ambas as correntes, exa-
uma realização abortada e predestinada a perpe- cerbadas e significativamente difundidas a
tuar, sob uma forma nova, as mesmas divisões que partir de então, vêm contribuindo, principal-
vêm cindindo historicamente a sociedade. Para o
anarquista, a raiz do problema é a sociedade; para
mente a partir da segunda metade do século
o socialista, a raiz do problema se encontra nas XX, com essa compreensão do anarquismo
classes sociais. como antítese do marxismo, ao afirmar mais
suas diferenças do que suas similaridades.
Pode-se, assim, compreender o anar-
quismo como uma luta contra a sociedade A incoerência do anarquismo
de dominação, sem base classista, posicio- e seu fim em 1939
nando-se contrariamente à redistribuição
do poder e da propriedade privada. O clas- Para Kedward (1971, p. 6), “nunca
sismo, a crítica da propriedade privada e da surgiu um programa coerente do anarquis-
centralização do poder não seriam elementos mo”, sendo que “disputa e discórdia fize-
constitutivos do anarquismo. Algumas abor- ram parte de sua mais genuína natureza”.
dagens discutidas – do anarquismo ahistóri- Distintos estudos de referência enfatizam,
co, definido pela luta contra a dominação, e em termos negativos ou positivos, essa in-
do anarquismo como sinônimo de antiesta- coerência do anarquismo.
tismo – vêm subsidiando compreensões do Eltzbacher (2004, p. 270) concluiu, ao
anarquismo nesse sentido. Mesmo nas abor- fim de seu estudo, que os sete sábios do anar-
dagens amplas dos estudos de referência, em quismo, em geral, “nada têm em comum”. A
geral, não se considera o marxismo parte do partir de uma tipologia interessante, consta-
anarquismo. Isso inclui a obra de Eltzbacher tou que alguns dos sábios eram idealistas e
que, ainda que defina o anarquismo como outros eudemonistas, uns eram altruístas e

113
outros egoístas, uns espontaneístas e outros (2003, p. 2), que falam na existência de
federalistas, uns individualistas, outros cole- “anarquismos”, definidos por distintas e in-
tivistas ou comunistas. Woodcock (2002, v. conciliáveis maneiras de se conceber o pró-
I, p. 14) enfatiza que “os anarquistas podem prio anarquismo.
estar totalmente de acordo quanto a seus ob- Além da incoerência, alguns estudos de
jetivos básicos, mas demonstram ter profun- referência apontam claramente para a con-
das divergências quanto às táticas necessárias clusão de que o anarquismo teria termina-
para atingir esses objetivos, especialmente no do em 1939, ano em que se consolidou a
que se refere à violência”. Para Joll (1970, p. derrota da Revolução Espanhola. As obras
29), “foi o conflito entre estes dois tipos de produzidas nos anos 1960 abordarão isso.
temperamento, o religioso e o racionalista, Woodcock chegou a afirmar que o fracasso
o apocalíptico e o humanista, que tornou a da Espanha revolucionária havia marcado o
doutrina anarquista tão contraditória”. fim do anarquismo:
Essa incoerência, para alguns autores,
não se trata de um problema, mas de uma vir- Situei o término desta história do anarquismo
tude. Marshall (2010, p. 3) e McKay (2008, no ano de 1939. Esta data, escolhida proposita-
damente, assinala a verdadeira morte [...] do mo-
p. 18) consideram que é o antidogmatismo vimento anarquista fundado por Bakunin duas
do anarquismo – considerado uma filosofia gerações atrás. [...] Não existem sequer quaisquer
pelo primeiro e uma teoria para o segundo – possibilidades admissíveis de um renascimento do
permite abarcar todas essas concepções, con- anarquismo. [...] [A perda da Revolução Espanho-
la] foi a última e a maior derrota do movimen-
seguindo, de algum modo, conciliá-las. Mar- to anarquista histórico. Nesse dia, virtualmente
shall afirma que “o anarquismo é como um deixou de existir como uma causa viva. Resta-
rio com muitas correntes e contracorrentes”, ram tão-somente anarquistas e a ideia anarquista
as quais se modificam constantemente, “sen- (WOODCOCK, 2002, v. II, p. 288, 295).
do renovado pelo vai e vem das ondas, mas
sempre rumando ao oceano de liberdade”. Mesmo tendo voltado atrás alguns anos
Posições que não se distanciam significativa- depois, reconhecendo a relevância do anar-
mente da de Guérin (1968, p. 12): “Malgra- quismo durante os anos 1960, Woodcock
do a variedade e a riqueza do pensamento (2002, v. II, p. 299) afirmou em 1973 que
anarquista, malgrado as suas contradições, “entre 1939 e 1961 o anarquismo não de-
malgrado suas disputas doutrinais, centrada, sempenhou qualquer papel notável nos as-
não raramente, à volta de falsos problemas, suntos de qualquer país”. Guérin (1968, p.
estamos perante um conjunto de concepções 155) enfatizou, de maneira semelhante, que
muito homogêneas”. “a derrota da Revolução Espanhola privou o
Essas posições consideram que não há anarquismo do seu único bastião no mun-
grandes contradições entre Stirner e Baku- do. Desta experiência, o movimento anar-
nin, ou entre Tucker e Kropotkin. As di- quista saiu esmagado, disperso e, em certo
ferenças, como as notadas por Eltzbacher, sentido, desacreditado”.
seriam positivas e demonstrariam que o Unindo os argumentos da incoerência e
anarquismo não é dogmático. do fim do anarquismo em 1939, Joll (1970,
Tais argumentos, que envolvem as ba- p. 325) afirma: “quando olhamos para os
ses diversas e incoerentes do anarquismo, repetidos fracassos do anarquismo em ação,
subsidiam posições de autores, como Caio fracassos que culminaram na tragédia da
T. Costa (1990, p. 7, 12) e Ricardo Rugai Guerra Civil Espanhola”, enfatiza, poder-se-

114
-ia afirmar que “as contradições e as incon- Inadequado para a sociedade de seu
sistências da teoria anarquista, a dificuldade, tempo, o anarquismo possui, de acordo com
se não a impossibilidade de pô-la em práti- Woodcock (2002, v. I, p. 15), bases idealistas
ca, parecem ilustradas pelas experiências dos que “em muitos países teve muito pouco a
passados cento e cinquenta anos”. ver com a realidade”.
De uma maneira ou de outra, os estudos De acordo com Joll (1970, p. 327-328),
de referência raramente fogem dessas duas o anarquismo está sustentado em uma “visão
afirmações: o anarquismo é incoerente e per- romântica, saudosista, de uma sociedade do
deu sua expressão em 1939, com a derrota passado” composta por “artesãos e campo-
da Revolução Espanhola. neses”, a qual lhe caracterizaria como algo
antigo, do passado, e pouco adaptado para
O pequeno impacto popular a sociedade industrial, oferecendo poucas al-
do anarquismo e outros ternativas, segundo afirma Woodcock (2002,
aspectos de relevância v. II, p. 293, 290): “as pessoas comuns das
classes média e operária [...] rejeitaram a vi-
Os estudos sobre anarquismo apresen- são anarquista por que esta [...] carecia de
tam ainda argumentos que contribuem com concretismo e precisão tranquilizadores que
outras conclusões sobre o tema, presentes em elas desejavam”. Essa inadequação ao presen-
distintos trabalhos analisados. te também se demonstraria pela vontade dos
Ao passo que Horowitz (1982, p. 9) apon- anarquistas de voltar ao passado e pelo de-
ta o “desaparecimento virtual do anarquismo senvolvimento do anarquismo, de maneira
como um movimento social ‘organizado’”, mais evidente, nas sociedades atrasadas: “os
Kedward (1971, p. 120) vai mais longe: países e as regiões onde o anarquismo fez-se
mais forte foram aqueles em que a indústria
Os historiadores devem concordar que o ideal da era menos desenvolvida e em que o pobre era
anarquia nunca foi popular, que ele encontrou a
oposição de todas as classes e de todas as idades.
mais pobre”. O flerte com certo “primitivis-
Ele nem mesmo se tornou o credo de uma ju- mo” seria, dessa maneira, uma característica
ventude adolescente, o grupo que, por razão da inata do anarquismo e um dos fatores que
idade, está mais naturalmente envolvido com o o teria impedido de se desenvolver de ma-
problema da autoridade.
neira mais ampla, fundamentalmente entre
o operariado urbano e industrial; a rejeição
Este argumento sustenta que o anar- do anarquismo às lutas por reformas, confor-
quismo não somente teria desaparecido nos me afirmam Woodcock (2002, v. II, p. 293)
anos 1930 ou 1960 como um movimento e Joll (1970, p. 30, 327), e sua política do
social organizado, mas que ele nunca teria tudo ou nada teria reforçado esse distancia-
ultrapassado um ideal utópico, sem impacto mento entre trabalhadores e anarquistas.
popular relevante. Outro aspecto significativo do anar-
A possível afinidade entre o anarquismo quismo seria, conforme afirmou Woodcock
e a juventude, enfatizada por Kedward, é re- (2002, v. I, p. 23, 28), uma “visão naturalis-
tomada por Joll (1970, p. 330), que afirma ta da sociedade”, venerando “tudo que fos-
que “o ardente e irreprimível otimismo das se natural, espontâneo e individual”, o que
doutrinas anarquistas terá sempre uma acei- permitiria, segundo Joll (1970, p. 32-33) e
tação entre a juventude em revolta contra as Horowitz (1982, p. 16), relacioná-lo às ideias
concepções morais e sociais dos mais velhos”. de Rousseau e sua concepção da natureza hu-

115
mana. Esse individualismo, de acordo com os que as obras históricas utilizam, majoritaria-
estudos de referência, seria também uma ca- mente, um modelo de história hegemônico
racterística básica do anarquismo. Sobre isso, no século XX, quando foram escritas, priori-
Woodcock (2002, v. I, p. 36) enfatiza que: zando os “grandes homens”, a partir de uma
“história vista de cima”. Em relação ao se-
a preocupação extremada com a soberania da
escolha individual domina não apenas as ideias
gundo, evidencia-se um foco basicamente na
anarquistas sobre táticas revolucionárias e a futura Europa Ocidental, ainda que se possa notar
estrutura da sociedade; ela também explica por que algum destaque à Rússia, constituindo uma
razão o anarquista rejeita tanto a democracia quan- abordagem, em boa medida, eurocêntrica;
to a autocracia. [...] A democracia prega a sobera-
nia do povo. O anarquismo, a soberania da pessoa.
entretanto, o Leste Europeu praticamente
não aparece, ao passo que há algum destaque
“Rebeldes diletantes altamente individu- para a América do Norte, fato que permitiria
alistas” (WOODCOCK, 2002, v. II, p. 292), considerar um direcionamento voltado ao
os anarquistas, segundo Costa (1990, p. 11), eixo Atlântico Norte.
“se é que se pode encontrar algo de comum Eltzbacher (2004) trata do anarquismo
entre eles, têm sempre em mira apenas o in- a partir de uma abordagem teórica que se
divíduo, sem delegações, produtor, natural- fundamenta na obra dos sete sábios que são
mente em sociedade”. Tal preocupação com na maioria europeus; não aborda episódios e
o indivíduo não colocaria os anarquistas em movimentos em que o anarquismo esteve en-
uma posição de se contrapor completamen- volvido. Nettlau (2008, no prelo), em termos
te à organização, mas, segundo Woodcock do método historiográfico, foge um pouco
(2002, v. I, p. 18), de defenderem “grupos à regra, pois, além dos grandes pensadores,
desagregados e transitórios” e confederações expõe um conjunto significativamente amplo
que deveriam servir de exemplo ao povo, sen- de episódios e movimentos em suas reflexões
do sua espontaneidade fundamental. históricas. Em relação ao escopo geográfico,
Em suma, há aspectos de relevância aborda fundamentalmente a Europa Ociden-
apontados pelos estudos de referência: o tal e a Rússia, além de discutir brevemente
anarquismo, que nunca teve significativo os Estados Unidos, dedicando ao Leste Euro-
impacto popular, fundamenta-se no indivi- peu, América Latina, Ásia e Oceania menos
dualismo, no espontaneísmo, no idealismo, de 10% de seus dois volumes.
no naturalismo, sendo mais afeito às ideias Woodcock (2002) dedica praticamente
dos jovens e mais bem adaptado ao passado todo seu volume teórico à análise da produ-
do que ao presente – elementos que teriam ção de seis grandes teóricos do anarquismo,
justificado, em certa medida, seu pequeno todos europeus. O volume que analisa a prá-
impacto popular. tica do anarquismo concentra em torno de
60% de seu conteúdo às análises de França,
As questões do método historiográfico Espanha, Itália e Rússia; destinando somente
e do escopo geográfico algumas páginas à América Latina e aos Esta-
dos Unidos. Joll (1970), na parte teórica de
Uma análise dos estudos de referência, sua obra, dedica-se ao estudo de ideias, lutas
tanto em relação ao método historiográfi- por liberdade e surgimento do socialismo,
co, quanto em relação ao escopo geográfico, com o foco na Europa; dedica-se, também,
permite que sejam elaboradas algumas afir- ao estudo aprofundado da obra de Proudhon
mações. Em relação ao primeiro, constata-se e Bakunin. A parte prática – tanto os deba-

116
tes estratégicos que envolvem a propaganda tempo e do lugar em que foram realizadas.
pelo fato, quanto o sindicalismo, além das Por isso, seus méritos, que sem dúvida não
experiências revolucionárias – tem foco são poucos, devem ser reconhecidos.
principalmente na Europa. Guérin (1968) Eltzbacher (2004) introduziu o anar-
fundamenta sua elaboração teórica, basica- quismo na academia, com uma seriedade e
mente, em três autores: Proudhon, Bakunin um espírito científico que não eram comuns
e Stirner. A partir da prática de fenômenos à época, quando se tratava de anarquismo
revolucionários na Europa Ocidental e na – as produções possuíam caráter ideológico
Rússia, trabalha com uma bibliografia basi- marcante, tanto nas abordagens daqueles
camente europeia, sem também dedicar es- que o defendiam, quanto daqueles que o
paço a outros continentes. criticavam. Mesmo com os problemas que
Marshall (2010) elabora quase toda sua serão apontados, seu estudo fundamenta-se
reflexão teórica de mais de 200 páginas com em elementos teórico-metodológicos bastan-
a análise de dez autores – Godwin, Stirner, te avançados para seu tempo. Nettlau (2008,
Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Reclus, no prelo) se destaca por ser um dos primei-
Malatesta, Tolstói, Goldman e Gandhi –, ros estudiosos a tentar reunir as ideias e prá-
grande parte, europeus. Em seu volume de ticas libertárias em uma obra, fornecendo
mais de 800 páginas dedica menos de 10% aos futuros pesquisadores dados e nomes que
aos estudos da Ásia e da América Latina; seriam fundamentais para aprofundamentos
África e Oceania não são abordadas. McKay ulteriores. O papel de Nettlau, na reunião de
(2008) trabalha com um conjunto bem mais originais dos clássicos anarquistas – muitos
amplo de autores do que a maioria dos estu- dos quais constituíram a base do acervo do
dos de referência. Ainda assim, destacam-se Instituto de História Social de Amsterdã –,
significativamente os clássicos europeus e os também não pode ser minimizado.
autores norte-americanos. Woodcock (2002) e Joll (1970) avança-
Constata-se que nos estudos de referên- ram na discussão de temas teóricos e práticos
cia, se em alguns casos há cortes históricos do anarquismo e sua difusão massiva contri-
muito amplos, a leitura do “anarquismo” é buiu significativamente com as produções
sempre feita de cima para baixo, a partir de subsequentes. O fato dos autores serem sim-
seus grandes homens. Por outro lado, nota- páticos ao anarquismo deu às suas abordagens
-se uma restrição significativa de escopo geo- um traço distinto de produções acadêmicas
gráfico, que tem como foco a Europa, abor- e/ou políticas que se fundamentavam mais
dando com alguma profundidade os Estados no senso comum e na propaganda ideológica
Unidos. Em geral, quase não se trata devi- do que nos fatos. Dentre as obras produzidas
damente do anarquismo na América, do Sul nesse período, o estudo de Guérin (1968) é o
e Central, e os casos da Ásia, da África e da que mais se destaca. Mesmo com suas limita-
Oceania praticamente inexistem. ções, é, sem dúvidas, o melhor dos estudos de
referência, constituindo, ainda hoje, uma boa
Balanço dos estudos de referência introdução ao anarquismo.
Marshall (2010) apresenta uma obra de
Sem dúvida, todos os estudos de refe- referência do pensamento e da prática dos
rência tiveram, e ainda têm, um papel rele- libertários em sentido amplo, ou seja, das
vante para as investigações sobre o anarquis- lutas históricas contra a dominação. Sua ex-
mo. São, evidentemente, produções fruto do tensa obra vem contribuindo com o avanço

117
na investigação acerca da relação entre os mite chegar a uma definição única de anar-
anarquistas e os libertários em geral. McKay quismo. Se, por um lado, algumas definições
(2008) apresenta, de maneira bastante di- forjadas no senso comum foram descartadas
dática, vários temas do anarquismo, com – nenhum dos autores em questão conceitua
posições bem fundamentadas e com signi- o anarquismo como defesa da destruição, do
ficativa relação com os fatos históricos. Sua caos, da desorganização –, por outro lado,
difusão, indubitavelmente, vem afastando não há uma definição comum que permita
diversos mitos que rondam historicamente identificar o que, de fato, é o anarquismo.
o anarquismo e proporcionando elementos Todas as definições, de certa maneira,
para uma compreensão bem mais adequada possuem um mínimo denominador comum,
do tema, em comparação com muitos dos em torno da oposição à dominação e da as-
estudos precedentes. piração à liberdade. Essa oposição à domi-
Apesar desses méritos, é imprescindível nação, chamada por alguns anarquistas de
realizar uma crítica das limitações desses es- “luta contra a autoridade”, constituiu a base
tudos, ainda que seja uma crítica generosa, de outras definições do anarquismo, como
que reconhece sua importância, em seu tem- no caso de Sébastien Faure (1998, p. 58),
po e lugar; são eles, em grande medida, que que afirmou: “quem nega a autoridade e luta
têm fornecido as bases para aprofundamen- contra ela é um anarquista”. Além da ampli-
tos e refinamentos das investigações. Não tude destas definições, que abarcam um uni-
se trata, por isso, de arrogância intelectual, verso muito amplo de autores e episódios, o
mas de identificar problemas precedentes de termo “autoridade”, central nas discussões
maneira a avançar nas pesquisas. Também sobre o poder8, não é claro nesta e em outras
não se pode deixar de considerar questões definições. Historicamente, no anarquismo,
contextuais significativas, mencionadas an- têm sido dados distintos sentidos ao termo
teriormente, como os problemas políticos “autoridade”, dentre eles o de poder e o de
(na relação entre o anarquismo e o status quo, dominação, também significativamente dife-
o anarquismo e outros setores da esquerda rentes. Os anarquistas seriam contra o Esta-
e do socialismo), a correlação de forças nas do, contra a dominação ou contra o próprio
universidades e os problemas técnicos (difi- poder? Essa questão de fundo complica ain-
culdade no acesso às fontes)7. da mais a elaboração de uma definição ade-
Comparando as definições de anarquis- quada do anarquismo.
mo dos estudos de referência, podem-se rea- Entretanto, o maior problema des-
lizar alguns comentários. sas definições amplas, adotadas em alguma
Uma simples somatória das definições medida por Nettlau e Marshall, é que o
apresentadas pelas obras analisadas não per- anarquismo torna-se, assim, um fenômeno

7 O próprio Eltzbacher (2004, p. 5) reconheceu essa dificuldade no acesso às fontes: “Os escritos anarquistas são
escassos em nossas bibliotecas. Eles são tão raros que é extremamente difícil para um indivíduo adquirir até mesmo
as obras mais proeminentes.”
8 Para uma abordagem do poder, Corrêa (2011) afirma: “Por meio do mesmo termo, podem estar sendo discutidas
distintas questões e por outros termos – como, nesse caso específico, autoridade e dominação – podem estar sendo
discutidas as mesmas questões. Trata-se, assim, de compreender amplamente o objeto em questão e suas distintas
abordagens, tomando em conta as referidas precauções metodológicas.”

118
ahistórico e desprovido de contexto. Pode-se ahistóricas, eles reconhecem que lutas sociais
dizer que essa abordagem, que teve início em libertárias e antiautoritárias foram levadas a
Kropotkin, mais do que definir o anarquis- cabo durante toda a história e constituem
mo e estudar sua história, foi realizada em heranças essenciais da humanidade, confir-
meio a uma resistência significativa à aceita- mando que não contrariam a natureza hu-
ção das ideias anarquistas, fundamentada no mana. Entretanto, essas lutas não podem,
argumento de que aquilo que os anarquistas em sua totalidade, ser consideradas expres-
sustentavam era contra a própria natureza sões do anarquismo.
humana e que nunca, em toda história, ha- Neste sentido, Berthier (2008, p. 1) afir-
via sido defendido ou colocado em prática. ma que o anarquismo possui em suas origens
Autores como Kropotkin buscavam, em relações com “a tendência imemorial da hu-
certa medida, demonstrar que as lutas con- manidade de luta contra a opressão política e
tra a dominação motivadas pela defesa da a exploração econômica”, mas essas relações
liberdade sempre existiram; não seriam, por- não são suficientes para se reduzir uma coisa
tanto, contrárias à natureza humana. Tais ar- à outra. Ao tratar desta relação, Albert Melt-
gumentos, ainda que politicamente impor- zer (1996, p. 5) enfatizou:
tantes para contrapor os outros argumentos
O movimento anarquista moderno não pode,
em questão, não podem ser tomados como mais do que outras teorias modernas da classe
base de um estudo teórico-histórico de rigor; trabalhadora, considerar seus estes precursores da
mais do que uma produção teórica, essa lei- revolta. Para investigar o movimento anarquista
tura, segundo Schmidt e Walt, constitui uma moderno devemos observar fatos mais próximos
de nosso tempo. Ainda que tenha havido grupos
meta-história, um mito legitimador. libertários, não estatistas e federalistas – os quais,
posterior e retrospectivamente, foram chamados
Como outros movimentos, os anarquistas come- de anarquistas, antes de meados do século XIX –,
çaram a criar o que só pode ser considerado um foi somente naquele contexto que eles tornaram-
mito legitimador para o movimento: retratar o -se o que agora chamamos de anarquistas.
anarquismo como um fenômeno comum a todos
os lugares, povos e localidades; essa meta-história
ajudou a enfraquecer as acusações de que o anar-
Para esses autores, trata-se de distinguir
quismo seria estranho, bizarro ou contrário à na- o que se poderiam chamar fenômenos liber-
tureza humana. O elenco, nesse palco universal, tários e fenômenos anarquistas. Os primeiros
incluiu filósofos antigos como Lao Tsé, heréticos estão ligados às lutas antiautoritárias e libertá-
religiosos como os anabatistas e pensadores como
Godwin e Stirner, seguidos por movimentos a par-
rias, que têm por base a oposição à domina-
tir da Primeira Internacional, incluindo o sindica- ção e a aspiração à liberdade, e que vêm ocor-
lismo9 (SCHMIDT; WALT, 2009, p. 34). rendo durante toda a história, pautadas em
princípios mais amplos. Os segundos estão
Ainda que os autores neguem que o vinculados ao anarquismo, fenômeno essen-
anarquismo possa ser definido tão-somente cialmente histórico, que se insere em um con-
como oposição à dominação e aspiração à texto determinado, podendo ser localizado no
liberdade, como no caso das abordagens tempo e no espaço, e define-se por princípios

9 Schmidt e Walt utilizam o termo “sindicalismo” (syndicalism em inglês), diferenciando-o de “trade-unionismo”,


o sindicalismo anterior a este de intenção revolucionária (unionism em inglês), que permaneceu como ferramenta
reformista de articulação dos trabalhadores. Trata-se, para a compreensão do argumento dos autores, de considerar
este “sindicalismo” de intenção revolucionária, que inclui o sindicalismo revolucionário e o anarco-sindicalismo.

119
mais restritos. Os fenômenos anarquistas são, de anarquismo como sinônimo de antiesta-
assim compreendidos, parte dos fenômenos tismo; Maximilien Rubel e Louis Janover,
libertários; o que é anarquista está contido no em um livro intitulado Marx anarquista
que é libertário, sendo, portanto, o segundo (2010, p. 17), tentam demonstrar – por
conjunto maior que o primeiro. meio das afirmações que Marx previa, em
As definições amplas – como as de Kro- um momento pós-revolucionário, a abolição
potkin, na Encyclopaedia britannica, Nettlau e do Estado – que Marx era um teórico anar-
Marshall – devem, portanto, ser descartadas, quista. Sobre A ideologia alemã, os autores
visto que definem, no máximo, o que é liber- afirmam: “De ponta a ponta, nesse volumo-
tário, mas não o que é anarquista. Tais defini- so escrito, sua crítica da política e do Estado
ções têm de ser incorporadas em uma defini- toma uma coloração claramente anarquista:
ção mais pormenorizada do anarquismo, que ainda que evitassem a utilização desse ter-
permita conceituar suas particularidades em mo, seu ‘comunismo’ não deixava de con-
relação a outros fenômenos libertários. duzir ao imperativo de ‘derrubar o Estado’”.
Outras definições amplas, como as de Certamente Rubel e Janover exageram; mas
Eltzbacher, Joll e Woodcock, também tangen- sua conclusão é equivocada justamente pelo
ciam elementos do anarquismo, mas não são reducionismo da definição de anarquismo
capazes de conceituá-lo de maneira adequada. com a qual trabalham.
Esse é o caso da definição do anarquis- Entretanto, os estudos de referência do
mo como sinônimo de antiestatismo, ou anarquismo que utilizam as definições am-
como oposição do Estado no futuro. Tal de- plas, incluindo a compreensão do anarquis-
finição é reducionista e permite que se inclu- mo como sinônimo de antiestatismo, não
am no anarquismo autores e tradições que consideram anarquistas, na maioria absoluta
não são anarquistas. dos casos, Marx e os marxistas. Conforme
Conceber o anarquismo desta manei- apontam Schmidt e Walt (2009, p. 42):
ra implica considerar que Marx e os mar-
xistas são anarquistas. Afinal, Marx (1850) Aceitar a definição de anarquismo de Eltzbacher
e aplicá-la consistentemente significa que Mao e
sustentou um conceito de comunismo que, Stálin [além de Marx e Engels] têm todo o direito
por razão do fim da contradição entre as de figurar entre os sábios; a lógica é inevitável, já
classes, existiria sem o Estado: “A abolição que ambos “negam o Estado no futuro”. No en-
do Estado só tem sentido entre os comunis- tanto, nenhum dos trabalhos mais comuns sobre o
anarquismo inclui a dupla; ao contrário, o marxis-
tas, como uma consequência necessária da mo clássico é sempre apresentado como a antítese
abolição das classes, com a qual desaparece absoluta do anarquismo. Esse é um ponto bastante
automaticamente a necessidade de um po- revelador. A razão óbvia para a exclusão do marxis-
der organizado de uma classe para manter as mo clássico – e para que ele seja apresentado como
a antítese do anarquismo – é sua estratégia da di-
outras sob seu jugo”. Outros teóricos mar- tadura do proletariado. [...] A estratégia não é con-
xistas, que acreditam na superação da “di- siderada um aspecto de definição do anarquismo
tadura do proletariado” do socialismo para nos trabalhos mais comuns e é apresentada como
uma fase superior do comunismo, preveem o campo em que os anarquistas mais divergem.
também o fim do Estado.
Por que então não incluir Marx e os Demonstra-se, com isso, a debilidade
marxistas no anarquismo? Alguns marxistas conceitual de obras que não conseguem ex-
heterodoxos insistiram nessa posição, justa- plicar por que incluem entre os anarquistas
mente por trabalharem com uma definição teóricos como Godwin e Stirner, mas não

120
Marx e Engels, Mao e Stalin. No caso ci- res, já possuíam entre si a única semelhan-
tado, se o anarquismo fosse definido uni- ça de oposição do Estado no futuro –, que
camente por uma oposição ao Estado no comprometeu sua pesquisa. Em segundo
futuro, os quatro deveriam ser incluídos. lugar, por ela permitir, logicamente, a inclu-
Se, entretanto, além de uma perspectiva de são no anarquismo de autores e tradições,
futuro, a oposição ao Estado implica estra- como Marx, os marxistas, Godwin, Stirner
tégias, meios de atuação com vistas a fins, e “anarco-capitalistas”; conforme se busca-
então elementos estratégicos têm de estar rá demonstrar, esses autores e tradições não
contemplados em uma definição de anar- são anarquistas.
quismo. Distinguir anarquismo e marxismo Podem-se, ainda, apontar os limites das
implica, necessariamente, realizar uma dis- definições de Joll – que vincula o anarquismo
cussão sobre estratégias. à luta pela transformação social, à crença na
A definição de anarquismo como an- racionalidade humana e à possibilidade de
tiestatismo tem permitido extrapolações que aperfeiçoamento humano – e de Woodco-
beiram o absurdo, como no caso daqueles ck – que une o anarquismo aos elementos
que consideram ser possível a existência de conceituais da estratégia: crítica da sociedade
uma corrente “anarco-capitalista”, que de- presente, proposta de sociedade futura e a es-
fende um liberalismo extremado, de comple- tratégia de transformação social.
ta redução do Estado em benefício do capi- Os mesmos argumentos levantados em
talismo de mercado. Essa posição, ainda que relação à problemática de se definir o anar-
seja aceita por Marshall (2010, p. 559-565) quismo como sinônimo de antiestatismo po-
– o qual inclui entre os anarquistas Marga- dem ser colocados em relação à definição de
reth Thatcher, Buda, Marques de Sade, Che Joll. Não poderiam Marx, Engels e Lênin ser
Guevara e outros –, é veementemente nega- incluídos nessa sua ampla definição? O pro-
da por McKay (2008, p. 477-547), com base blema da definição de Woodcock é que, ain-
no argumento de que o anticapitalismo é um da que mencione esses elementos conceituais
princípio anarquista. da estratégia, não os especifica. De que críti-
Silva (2011, p. 23) está correto ao afir- ca se trata? De que sociedade futura se trata?
mar que “reduzir o anarquismo ao simples De que estratégia de transformação se trata?
e vago epíteto de ‘rejeição ao Estado’ não é Sem levar os argumentos ao limite, podem-
suficiente para caracterizar a ideologia anar- -se manter os exemplos do marxismo. Marx,
quista”. A oposição ao Estado é característica Engels e Lênin não tinham uma crítica da so-
comum entre os anarquistas, mas também ciedade presente, uma proposta de sociedade
entre autores e tradições que possuem pouco futura e uma estratégia de transformação so-
ou quase nada em comum com o anarquis- cial? Isso os faz anarquistas? Joll e Woodcock,
mo; o antiestatismo é, certamente, um ele- mesmo trabalhando com definições amplas,
mento libertário que está presente na defini- não consideram os marxistas parte da tradi-
ção de anarquismo, mas, novamente, não se ção anarquista. Certamente o anarquismo
pode resumir uma coisa à outra. possui relação com as questões relativas ao
A definição de Eltzbacher deve também conhecimento que surgem com a Moderni-
ser descartada. Em primeiro lugar, pelo pro- dade, mas as outras ideologias modernas tam-
blema metodológico discutido – o fato de bém o possuem – vinculá-lo à racionalidade,
trabalhar com um conjunto de autores que, por exemplo, não é suficiente. Certamente o
ao serem indicados por outros pesquisado- anarquismo também possui grandes linhas

121
estratégicas, assim como outras ideologias; damentais. A constituição histórica do anar-
torna-se imprescindível, por isso, apresentar quismo não teve uma escolha meticulosa da
quais são os elementos estratégicos que cons- terminologia utilizada em todos os países do
tituem princípios do anarquismo. Devem ser mundo em que se manifestou. Conforme
descartadas, também, por esses motivos, as apontado, outros termos foram utilizados
definições de Joll e Woodcock. para se referir a esse mesmo fenômeno his-
As definições de Guérin e McKay são tórico. Como afirmou Rugai (2003, p. 4), “é
mais específicas e permitem que se avance necessário precisar os termos e não ficarmos
em um estudo mais criterioso sobre o anar- somente presos à palavra anarquismo, que
quismo. Ambos conceituam o anarquismo por ser muito aberta não define muita coisa”.
como um tipo de socialismo, que se opõe ao Não se trata, portanto, de uma análise de um
capitalismo e ao Estado Moderno. Guérin dos termos, mesmo que seja o mais utilizado,
enfatiza, ainda, como princípios, a necessi- mas de uma prática histórica real, que envolve
dade de estratégias libertárias de transforma- aspectos objetivos e subjetivos, racionais e irra-
ção, que excluem a tomada do Estado, por cionais, ideias e fatos, e que vem se dando para
meio de revoluções ou reformas, e também além das palavras utilizadas para identificá-la.
aspectos construtivos fundamentais, como o Esse argumento também foi defendido
federalismo e a autogestão, além do antiim- por Malatesta (2001, p. 11), quando, ao dis-
perialismo. Essas definições, mais restritas, cutir o assunto, afirmou: “não entremos em
permitem avançar rumo a uma teoria e uma digressões filológicas, pois a questão não é
história mais adequadas do anarquismo. em nada filológica, mas histórica”. Trata-se,
As definições de Guérin e McKay só assim, de incluir a análise dos termos dentro
permitem considerar o anarquismo um fe- de uma análise histórica mais ampla do fe-
nômeno do século XIX, quando um deter- nômeno social e não deduzir o fenômeno a
minado contexto, de desenvolvimento do partir das análises etimológicas. É necessário
capitalismo e consolidação do Estado Mo- contrapor o significado etimológico com a
derno, se estabelece, e o movimento popular totalidade histórica, visando comprovar se
desenvolve em seu seio críticas e proposições esse significado reflete, de fato, o anarquismo.
que marcarão a ideologia anarquista poste- Além disso, essas análises partem de um
riormente. Ambas as definições constituem termo essencialmente de negar – o governo,
um ponto de partida para iniciar uma defi- o Estado, a autoridade –, e o anarquismo
nição adequada de anarquismo. nunca foi uma ideologia que implicasse so-
Outra problemática a ser discutida é a mente uma crítica social. Seus aspectos po-
relação que, frequentemente, os estudos de sitivos e construtivos foram sempre tão for-
referência realizam entre forma e conteúdo, tes quando os negativos e destrutivos. Se o
demonstrada nas reflexões realizadas sobre as anarquismo teve sempre uma crítica social,
análises etimológicas, as análises dos termos nunca deixou de ter um objetivo a ser atingi-
“anarquia” e seus derivados e a autoidentifica- do e estratégias para tanto. As análises exclu-
ção dos anarquistas. Essa problemática envol- sivamente etimológicas só conseguem extrair
ve a equiparação de alguns termos que foram do termo “anarquia” e de seus derivados uma
utilizados historicamente para se referir ao posição de negação, mas nunca seus aspec-
anarquismo e à própria tradição ideológica. tos positivos e construtivos, que só podem
As análises etimológicas podem ser con- ser identificados por meio de uma análise da
testadas a partir de alguns argumentos fun- ideologia anarquista e de sua história.

122
Finalmente, as análises etimológicas correto. Em termos históricos, há uma tra-
tendem a apontar para as definições am- dição anarquista, a qual, por meio de uma
plas de anarquismo (oposição à dominação investigação criteriosa e tomando em con-
ou antiestatismo) que, conforme discutido, ta continuidades e permanências, pode ser
possuem limitações significativas. conceituada e discutida. Sobre a autoiden-
As análises dos termos “anarquia” e seus tificação dos anarquistas, sabe-se ainda que,
derivados também são insuficientes para defi- historicamente, houve anarquistas que prefe-
nir o anarquismo. No caso de seu uso duran- riram utilizar outros termos para se referir a si
te o século XVIII – fundamentado no senso mesmos; outros, ainda que se reivindicassem
comum e visando somente depreciar alguém anarquistas, por meio de uma análise consis-
ou desqualificar adversários ou inimigos po- tente, não poderiam ser assim considerados.
líticos –, essas análises podem, no máximo, O fato de alguém se considerar anar-
proporcionar uma compreensão acerca do quista não constitui um critério suficiente
significado atribuído a esses termos pelas para se definir quem são os anarquistas e o
pessoas e a formação do senso comum. Não que é o anarquismo. Conforme afirmado, a
permitem estabelecer um marco para identi- reivindicação dos termos “anarquia” e seus
ficar o surgimento do anarquismo como uma derivados possui relação com a ideologia
ideologia, uma corrente político-doutrinária. anarquista, mas não se pode, também nes-
Isso exige que se rechace a hipótese do sur- te caso, reduzir uma coisa à outra. Se uma
gimento do anarquismo no século XVIII, a organização afirma ser anarquista, mas os
qual se apoia no vínculo completo entre sur- aspectos fundamentais de seu pensamento e
gimento do termo e início da tradição ideo- sua ação se encontram no campo do mar-
lógica; um estudo criterioso do anarquismo xismo, ela deve ser considerada anarquista?
não pode ter por base o senso comum. Parece evidente que não. Portanto, ainda
Isso também vale para a mudança do que a autoidentificação possa ser um critério
sentido dos termos iniciada por Proudhon. observado, ela não pode ser um critério de-
O fato de ter reivindicado os termos “anar- terminante e único. Trata-se de tomar o con-
quia” e seus derivados em sentido positivo junto histórico interdependente – que inclui
não é suficiente para determinar o nascimen- elementos discursivos, mas não se resume a
to de uma ideologia. É necessário verificar o eles – para avaliar corretamente quem são os
que Proudhon queria dizer quando reivindi- anarquistas e o que é o anarquismo.
cou esses termos e relacionar sua obra com a Em suma, não é possível equiparar com-
tradição anarquista histórica e o movimento pletamente forma e conteúdo; é necessário
popular que lhe deu corpo. considerar as análises etimológicas, as análi-
Essa questão conduz à problemática de ses dos termos “anarquia” e seus derivados e
se considerar a autoidentificação um critério a autoidentificação dos anarquistas como in-
fundamental para a definição do anarquismo. dicativos a serem analisados dentro de uma
Discorda-se, neste aspecto, de Rugai (2003, perspectiva histórica mais abrangente. Estes
p. 3), que afirma, ao abordar as diferenças não são fatores determinantes que, sozinhos,
entre aqueles que são considerados anarquis- podem definir quem são os anarquistas e
tas: “cada qual foi anarquista dentro do que o que é o anarquismo. Por isso, podem ser
concebia e propôs”. O critério de conceituar considerados anarquistas tanto aqueles que
o anarquismo a partir das definições de todos se identificaram como tais, em parte ou du-
os que se consideram anarquistas não parece rante toda sua vida – e este também é um

123
critério importante, pois uma pessoa pode a baixo e colocá-la à prova sistematicamente
ser anarquista em parte de sua vida e em ou- em todos os aspectos”, muito do que se fez,
tra não –, mas também outros, que nunca se no campo da esquerda em geral, e do mar-
reivindicaram como tais. xismo em particular, desde Marx e Engels,
Os estudos de referência apresentam, ain- foi realizar uma leitura completamente ideo-
da, limites significativos em relação ao méto- lógica e sem qualquer base teórico-científica
do historiográfico utilizado; mesmo as obras relevante. Não foi possível, nesse sentido,
que trabalham com uma perspectiva histó- “examinar a doutrina de alto a baixo” e nem
rica, como Guérin e McKay, apoiam-se, em afirmar sua “inconsistência”.
grande medida, nos grandes homens. Apre- Kolpinsky, no epílogo que realiza a com-
sentam limites também em relação ao escopo pilação de textos de Marx, Engels e Lênin
geográfico, pois têm seu foco em autores e sobre o anarquismo (MARX; ENGELS; LÊ-
episódios restritos, em sua maioria, europeus. NIN, 1976) – uma obra financiada por Mos-
Parece natural que as teorias elaboradas cou no contexto soviético para promover as
a partir de uma amostragem restrita de da- ideias do marxismo-leninismo – é um exem-
dos – em termos quantitativos, de autores plo claro. O autor afirma em seu texto que
e episódios, mas também em relação à sua o anarquismo é uma doutrina pequeno-bur-
extensão no mundo – não deem conta do guesa, alheia ao proletariado, sem fundamen-
fenômeno em sua totalidade. Uma aborda- tos, voluntarista, idealista e individualista:
gem adequada do anarquismo tem a necessi-
dade de colocar em xeque tanto esse método Esta doutrina, alheia ao proletariado por seu con-
teúdo de classe, substitui o pensamento revolu-
quanto esse escopo. Mesmo que reconhe- cionário pela fraseologia dogmática; a autêntica
cendo os méritos dos estudos de referência, organização proletária pelo sectarismo; a tática
e, principalmente, dos anarquistas clássicos, bem pensada, baseada em uma análise serena dos
não se pode, como realiza Marshall (2010), fatores objetivos, pelo aventureirismo, nascido de
concepções voluntaristas; a análise científica das
utilizar os métodos e o escopo utilizados leis do desenvolvimento social por sonhos utópi-
por Kropotkin, quase um século antes, sem cos sobre a liberdade absoluta do indivíduo (KOL-
observá-los de maneira crítica. Conforme PINSKY, 1976, p. 333).
afirmado, trabalhos contemporâneos sobre o
anarquismo têm o dever de se debruçarem Tais afirmações, repetidas ao longo da
criticamente sobre as produções precedentes. história intermináveis vezes, além das leituras
Deve-se ressaltar, ainda, que os estudos do anarquismo realizadas por meio das posi-
de referência foram, em grande medida, re- ções de seus adversários, ou mesmo de seus
alizados por autores que possuíam alguma inimigos, terminaram por ser incorporadas
simpatia com o anarquismo. Todos os pro- tanto ao universo acadêmico quanto políti-
blemas apontados, assim, não constituem o co. Rugai (2003, p. 6) reforça este argumen-
foco de disputas político-ideológicas mais to ao afirmar o papel de “fontes oficiais, o
significativas. Quando a discussão do anar- Estado, inimigos e adversários políticos” do
quismo adentra o campo dessas disputas, o anarquismo no processo de estabelecimento
assunto se torna ainda mais complexo. dos significados de anarquismo, “inclusive
Apesar de Lênin (2003) ter afirmado os do campo socialista”. Distintas interpre-
que “a inconsistência do anarquismo deve tações contemporâneas do anarquismo estão
[...] ser demonstrada” e que “é necessário permeadas destes sentidos atribuídos, histo-
examinar a ‘doutrina’ dos anarquistas de alto ricamente, por adversários e inimigos.

124
Em suma, grande parte dos estudos Por mais admiráveis que possam ser
de referência, as produções ideológicas dos Chomsky, no campo da Política, e Ibáñez,
adversários – potencializadas pela inserção no campo da Psicologia Social, apresentam
de parte deles na academia –, dos inimigos uma característica comum, relativamente
e algum resquício das noções forjadas pelo constante nos críticos do anarquismo, mes-
senso comum vêm prejudicando uma com- mo quando são simpáticos a ele: o univer-
preensão adequada do anarquismo. Estudos so completamente restrito de dados sobre o
teóricos e históricos contemporâneos do qual realizam suas pesquisas. Uma análise
anarquismo têm de lidar, necessariamente, pormenorizada da obra de Chomsky acerca
com essa problemática. do anarquismo10 demonstra que suas bases
Foi justamente por não terem lidado são fundamentadas em uma leitura com al-
com ela que distintos estudos afirmaram a guma profundidade de Bakunin e Rocker,
incoerência do anarquismo, ou mesmo sua menções a anarquistas como Diego Abad de
fragilidade teórica, argumentos que foram Santillán e Pelloutier, além de algumas obras
fortalecidos no século XX, tanto no campo teóricas e históricas de Guérin, Joll, e estu-
político quanto acadêmico. Para muitos, o dos sobre a Confederación Nacional del Tra-
anarquismo estaria marcado por contradi- bajo (CNT) e a Revolução Espanhola; so-
ções históricas entre seu pensamento e sua mado a isso, uma tentativa de aproximar ao
ação, não possuiria métodos de análise, teo- anarquismo de clássicos liberais e marxistas
rias e estratégias coerentes. heterodoxos. Em relação à Ibáñez (2007, p.
Esse discurso tem sido incorporado, 148), ele mesmo afirma: “nunca li de manei-
inclusive, por teóricos anarquistas ou sim- ra detida, ou seja, seriamente, os principais
páticos ao anarquismo. Chomsky (2011, p. autores anarquistas, nem tampouco tenho
38, 17), um dos maiores nomes da esquerda um bom conhecimento da historiografia do
contemporânea, que se considera um “com- movimento libertário”.
panheiro de viagem” do anarquismo, afir- O argumento da incoerência e da fra-
ma que “o anarquismo tem costas largas e, gilidade teórica do anarquismo está profun-
como o papel, aceita qualquer coisa” e acre- damente ligado às problemáticas dos estudos
dita que “seria desanimador tentar abran- de referência e ao contexto das investigações
ger todas essas conflituosas tendências [do sobre o anarquismo – ambos os aspectos
anarquismo] em alguma teoria ou ideologia possuem impacto, inclusive, em acadêmicos
geral”. Ibáñez (2007, p. 148, 152, 155) en- simpáticos ao anarquismo, como Chomsky e
fatiza: “sou anarquista, anarquista crítico e Ibáñez. Esse é o motivo de diversos estudio-
heterodoxo, certamente, mas anarquista ao sos do anarquismo, tais como Joll, Woodco-
fim e ao cabo” e, ao mesmo tempo, consi- ck, Marshall, Kedward e outros, se apoiarem
dera que o anarquismo possui uma “falta de neste argumento.
sistematização e de sofisticação teórica” que, Afirmações sobre a incoerência e a fra-
entre outras consequências, fez estar “petri- gilidade teórica do anarquismo têm como
ficado”, “morto”, fazendo “parte dos monu- fundamento principal a falta de estudos sis-
mentos históricos, por mais íntimos e muito temáticos, incluindo seus autores e episódios
veneráveis que eles possam ser”. históricos relevantes.

10 Ver Chomsky (2004, 2011).

125
REFERÊNCIAS

ANSART, P. El nacimiento del anarquismo. Buenos Aires: Amorrortu, 1970.

AVRICH, P. The russian anarchists. Oakland: AK Press, 2005.

BERTHIER, R. Philosophie politique de l’pnarchisme. Essai sur les fondements théoriques de l’anarchisme. v. I. Paris:
Monde Nouveau, 2008.

______. Poder, classe operária e “ditadura do proletariado”. São Paulo: Imaginário/Faísca, 2010.

BURKE, P. História e teoria social. 2a ed. São Paulo: UNESP, 2011.

CAPPELLETTI, A. La ideología anarquista. Buenos Aires: Araucária, 2006.

CHOMSKY, N. Notas sobre o anarquismo. São Paulo: Imaginário/Sedição, 2004.

______. Notas sobre o anarquismo. São Paulo: Hedra, 2011.

CLAUSEWITZ, C. Da guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

COLOMBO, E. Democracia e poder: a escamoteação da vontade. São Paulo: Imaginário, 2011.

CORRÊA, F. Para uma teoria libertária do poder I: Ibáñez e o poder político libertário, 2011. Disponível em:
<http://www.estrategiaeanalise.com.br/ler02.php?idsecao=e8f5052b88f4fae04d7907bf58ac7778&&idtitulo=3
4713c489a780ef80d43d43e9a9051c5>. Acesso em: 13 fev. 2013.

______. Rediscutindo o anarquismo: uma abordagem teórica. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo,
2012.

COSTA, C. T. O que é anarquismo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

DAHLMANN, D. Max Weber’s relation to anarchism and anarchists: the case of Ernst Toller. In: MOMMSEN, W.;
OSTERHAMMEL, J. (Orgs.). Max Weber and his contemporaries. Londres: Allen and Unwin, 1989.

ELTZBACHER, P. The great anarchists: ideas and teachings of seven major thinkers. Nova York, Dover, 2004.

ENCKELL, M. La fédération jurassienne: les origines de l’anarchisme en Suisse. Saint-Imier, Canevas, 1991.

ERRANDONEA, A. Sociología de la dominación. Montevidéu, Nordan; Buenos Aires, Tupac, 1989.

FAURE, S. Anarquismo. In: WOODCOCK, G. Grandes etos anarquistas. Porto Alegre: L&PM, 1998.

GONZÁLEZ, A. S. Para una historia del anarquismo en Venezuela. 2009. Disponível em: <http://
contradesinformacion.acervo.org/?p=69>. Acesso em: 5 jan. 2013.

GUÉRIN, D. O anarquismo: da doutrina à ação. Rio de Janeiro: Germinal, 1968.

______. Por un marxismo libertario. Madri: Jucar, 1979.

GUILLAUME, J. A internacional: documentos e recordações. v. I. São Paulo: Imaginário/Faísca, 2009.

HOROWITZ, I. Los anarquistas. v. I. La teoría. Madri: Alianza, 1982.

IBÁÑEZ, T. Es actual el anarquismo? In: Actualidad del anarquismo. Buenos Aires: Anarres, 2007.

JACKER, C. The black flag of anarchy: antistatism in the United States. Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1968.

126
JOLL, J. Anarquistas e anarquismo. Lisboa: Dom Quixote, 1970.

KEDWARD, R. The anarchists: the men who shocked an era. Londres: Library of the Twentieth Century, 1971.

KOLPINSKY, N. Y. Epílogo. In: MARX, K.; ENGELS, V. Lênin: acerca del anarquismo y el anarcosindicalismo.
Moscou: Progresso, 1976.

KROPOTKIN, P. Anarquismo. In: TRAGTENBERG, M. (Org.). Kropotkin: textos escolhidos. Porto Alegre:
L&PM, 1987.

______. Anarchist communism: its basis and principles. In: ______. Kropotkin’s revolutionary pamphlets. Whitefish:
Kessinger, 2005.

LE BON, G. A psychologia política. Rio de Janeiro: Garnier, 1921.

LEIER, M. Bakunin: the creative passion. Nova York: St. Martin’s Press, 2006.

LÊNIN, V. O materialismo dialético e o anarquismo. 2003. Disponível em: <http://primeiralinha.org/


home/?p=155>. Acesso em: 3 jan. 2013.

LEVY, C. Max Weber, anarchism and libertarian culture. In: WHIMSTER, S. (Org.). Max Weber and the culture of
anarchy. Basinstoke: Macmillan, 1999.

LOMBROSO, C. Los anarquistas. Barcelona: Jucar, 1977.

MALATESTA, E. A anarquia. São Paulo: Imaginário, 2001.

MARSHALL, P. Demanding the impossible: a history of anarchism. Oakland: PM Press, 2010.

MARX, K. Review: le socialisme et l’impot, par Emile de Girardin. Neue Rheinische Zeitung, n. 4. 1850. Disponível
em: <http://www.marxists.org/archive/marx/works/1850/04/girardin.htm>. Acesso em: 17 fev. 2013.

MARX, K.; ENGELS, F. Prefácio à edição russa de 1882. In: ______. Manifesto comunista. São Paulo: Instituto José
Luis e Rosa Sundermann, 2003.

MARX, K.; ENGELS, F.; LÊNIN, V. Acerca del anarquismo y el anarcosindicalismo. Moscou: Progresso, 1976.

McKAY, I. An anarchist FAQ. v. I. Oakland: AK Press, 2008.

MELTZER, A. Anarchism: arguments for and against. Oakland: AK Press, 1996.

NETTLAU, M. História da anarquia. São Paulo: Hedra, 2008, no prelo.

______. Anarchism: communist or individualist? Both. 2011. Disponível em: <http://theanarchistlibrary.org/pdfs/


a4/Max_Nettlau__Anarchism__Communist_or_Individualist__Both_a4.pdf>. Acesso em: 25 jan. 2013.

PRAGER, J. Moral integration and political inclusion: a comparison of Durkheim’s and Weber’s theories of
democracy. Social Forces, n. 59, 1981.

PROUDHON, P.-J. O que é a propriedade? São Paulo: Martins Fontes, 1988.

ROCHA, B. L. A interdependência estrutural das três esferas: uma análise libertária da organização política para o
processo de radicalização democrática. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2009.

ROCKER, R. Anarcosindicalismo: teoría y práctica. Barcelona: Picazo, 1978.

127
RUBEL, M.; JANOVER, L. Marx anarquista. Buenos Aires: Madreselva, 2010.

RUGAI, R. R. (2003). O anarquismo organizado: as concepções práticas da Federação Anarquista Uruguaia (1952-
1976). Dissertação (Mestrado em História), Campinas, Universidade Estadual de Campinas.

SAMIS, A. Os matizes do sentido. In: _______. Verve. v. 2. São Paulo: NU-SOL, 2002.

SCHMIDT, M. Cartographie de l’anarchisme révolutionnaire. Quebec : Lux, 2012.

SCHMIDT, M.; WALT, L. Black flame: the revolutionary class politics of anarchism and syndicalism. Oakland: AK
Press, 2009.

______. Global fire: 150 fighting years of international anarchism and syndicalism. Oakland: AK Press, no prelo.

SILVA, R. V. Indeléveis refratários: as estratégias políticas anarquistas e o sindicalismo revolucionário no Rio de


Janeiro em tempos de redemocratização (1946-1954). Monografia (Graduação em História). Rio de Janeiro:
UFRJ, 2011.

SKIRDA, A. Facing the enemy: a history of anarchist organization from Proudhon to may 1968. Oakland: AK Press,
2002.

WALT, L. Debating power and revolution in anarchism, Black flame and historical marxism. Johanesburgo, 2011.
Disponível em: <http://lucienvanderwalt.blogspot.com/2011/02/anar-chism-black-flame-marxism-and-ist.
html>. Acesso em: 3 mar. 2013.

______. Back to the future: the relevance of an anarchist / syndicalist approach to the 21st century left (and today’s
South Africa). Manuscrito inédito fornecido pelo autor, s. d.

WALTER, N. Do anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2000.

WOODCOCK, G. Anarquismo: introdução histórica. In: ______. Grandes escritos anarquistas. Porto Alegre:
L&PM, 1988.

______. História das ideias e movimentos anarquistas. Porto Alegre: L&PM, 2002.

Resumo

Problemáticas teóricas e históricas dos estudos de referência do anarquismo

O presente artigo parte de dois fatores – a hipótese da relevância das teorias anarquistas para a Sociologia e a falta de
estudos deste objeto no campo acadêmico – e recomeça a discussão do anarquismo, a partir de um balanço bibliográfi-
co crítico de seus estudos de referência, buscando evidenciar as principais problemáticas teóricas e históricas e explicar
o estado da arte do debate existente que tem influenciado produções, ainda que esparsas, dentro e fora das universi-
dades. Definem-se sete estudos de referência e, partindo do problema metodológico que envolve a relação entre teoria
social e história, analisam-se suas definições de anarquismo, os caminhos percorridos por seus autores para elaborá-las
e suas conclusões fundamentais. Por meio de um balanço, apontam-se as principais problemáticas que permeiam esses
estudos, dentre as quais se destacam: conjunto restrito de autores e episódios levados em conta nas investigações, assim
como generalizações a partir de uma restrita base de dados; foco quase exclusivo na Europa Ocidental / eixo do Atlân-
tico Norte; abordagens ahistóricas (que declaram que o anarquismo sempre existiu), que o vinculam ao uso termino-
lógico e/ou à autoidentificação dos anarquistas (que afirmam seu surgimento no século XVIII, na primeira metade
do século XIX etc.); foco nos grandes homens, com a utilização da história vista de cima; definições inadequadas de
anarquismo (que o conceituam como antiestatismo, oposição à dominação, antítese do marxismo), que não permitem
compreendê-lo adequadamente e nem diferenciá-lo de outras ideologias políticas.

Palavras-chave: Anarquismo, Teoria anarquista, Ideologia política.

128
Abstract

This article starts from two factors – the hypothesis of the relevance of anarchist theories to Sociology and the lack of
studies of this object in the academic field – and restart the discussion of anarchism, from a critical bibliographic bal-
ance of its reference studies, seeking to highlight the main theoretical and historical issues and explain the state of the
art of the existing debate that has influenced productions, although scattered, inside and outside the universities. Seven
reference studies are defined and, beginning with the methodological issue that involves the relationship between
social theory and history, it analyzes their anarchism definitions, the paths taken by their authors to elaborate them
and their key findings. Through a balance, it points the main problems that underlie these studies, among which are:
narrow set of authors and episodes taken into account in the investigations as well as generalizations from a restricted
database; almost exclusive focus on Western Europe / North Atlantic axis; approaches that are ahistorical (which state
that anarchism has always existed), that bind it to terminological usage and/or anarchists self-definition (who claim
its emergence in the eighteenth century, in the first half of the nineteenth century etc.); focus on great men, with the
use of history from above; inadequate definitions of anarchism (which conceptualize it as anti-statism, opposition to
domination, antithesis of Marxism), that does not allow understanding it properly and differentiating it from other
political ideologies.

Keywords: Anarchism, Anarchist theory, Political Ideology.

Résumé

Problèmes théoriques et historiques des études de référence sur l’anarchisme

Cet article a pour point de départ deux facteurs : l’hypothèse de la pertinence des théories anarchistes par la Socio-
logie et le manque d’études à ce sujet dans le domaine académique. Il reprend la discussion de l’anarchisme à partir
d’un bilan bibliographique critique de ses études de référence. Il tente de mettre en évidence les principales questions
théoriques et historiques et d’expliquer l’état de l’art du débat existant qui a influencé les productions, même rares, à
l’intérieur et à l’extérieur des universités. Sept études de référence sont définies et, sur la base du problème méthodo-
logique qui implique la relation entre la théorie sociale et l’histoire, l’article analyse leurs définitions de l’anarchisme,
les chemins empruntés par leurs auteurs pour les élaborer ainsi que leurs principales conclusions. Nous indiquons, à
l’aide d’un bilan, les questions principales qui font partie de ces études. Parmi ces questions, nous pouvons signaler :
l’ensemble restreint d’auteurs et d’épisodes pris en compte dans les recherches, ainsi que des généralisations à partir
d’une base de données restreinte ; une mise au point presqu’exclusive sur l’Europe de l’Ouest / l’axe Atlantique Nord
; des approches ahistoriques (qui déclarent que l’anarchisme a toujours existé), qui le lient à l’usage terminologique
et/ou à l’auto-identification des anarchistes (qui affirment leur émergence au XVIIIe siècle, dans la première moitié
du XIXe siècle, etc.) ; mise au point sur les grands hommes, avec l’histoire racontée selon un point de vue supérieur ;
des définitions inadéquates de l’anarchisme (qui le conceptualisent comme antiétatisme, opposition à la domination,
antithèse du marxisme) et qui ne permettent ni de le comprendre correctement , ni de le différencier des autres idéo-
logies politiques.

Mots-clés : Anarchisme, Théorie Anarchiste, Idéologie Politique

129

Anda mungkin juga menyukai