1
Professor do Departamento de História da UFOP. Coordenador do Grupo de
Estudos de História das Américas (GEHA-UFOP).
2
Doutorando em História Cultural pela UNICAMP com auxílio CAPES.
48 A historiografia sobre as crônicas...
3
“[...] O que se tem chamado genericamente de ‘poema’ não se reconhece,
numa preceptiva de tradição clássica, como ‘poema’ – termo cômodo pela totalização
de objetos de tradições letradas muito distintas e, muitas vezes, impossíveis de
justapor ou englobar –, mas, digamos, como soneto, como madrigal, como romance
pastoril, como epístola satírica, formas poéticas precisas, com teoria, história e
efeitos particulares” (PÉCORA: 2001, p. 12).
Luiz Fernandes e Luis Kalil 49
que passou a fazer severas críticas aos relatos coloniais. Para o autor, a
partir da década de 1740, escrever uma nova História da América tornou-se
o eixo central da renovação cultural promovida durante a dinastia Bourbon.
A criação da Real Academia Española de la Historia e a formação do Archivo
de las Indias (entre as décadas de 1750 e 1780) refletiriam um consenso
geral sobre a necessidade de eliminar as crônicas antiquadas e os relatos
vistos como pouco fidedignos. A grande intenção seria reestruturar a narrativa
sobre o passado americano, mostrando a formação de colônias e não de
reinos independentes. Acreditava-se também que era preciso livrar a Espanha
das caracterizações enganosas que a Europa protestante vinha fazendo sobre
a capacidade intelectual ibérica. Para isso, os autores espanhóis privilegiaram
como fontes primárias os dados produzidos pela burocracia da administração
das colônias, chamadas de “fontes públicas”. As fontes impressas ou
manuscritas passaram a ser consideradas enviesadas e promotoras de uma
agenda partidária (CAÑIZARES-ESGUERRA: 2007, p. 23 e pp. 30-31).
Ao mesmo tempo, uma nova forma de interpretar as fontes e produzir
História apareceu na Europa do Norte. Durante os dois primeiros séculos
de colonização, a crônica fora produzida baseada em premissas salvacionistas
e na autoridade da testemunha de um fato ou de um ouvinte de índole
incontestável. Logo, saber quem era o informante e qual seu status servia
de garantia de fiabilidade da informação a ser utilizada. O esforço
setecentista, contudo, direcionou-se para a criação de novas estratégias de
leitura, que não privilegiavam testemunhos oculares. Além disso, segundo
Cañizares-Esguerra, os autores sustentavam que os testemunhos deveriam
ser julgados por sua consistência interna e não pela posição social ou pelos
conhecimentos das testemunhas.
O descrédito no qual as antigas crônicas caíram foi rompido com o
trabalho de intelectuais como Alexander Von Humboldt, no final do XVIII
e início do XIX. O prussiano voltou a valorizar as crônicas espanholas ou
hispano-americanas como fonte de verossimilhança para seu texto: afinal,
mesmo com todas as “confusões” que os espanhóis pudessem ter feito na
América, eles teriam conseguido vislumbrar algo da realidade. Isso porque,
para ele, “a própria ignorância dos observadores garantia a credibilidade de
partes de seus testemunhos” (Apud CAÑIZARES-ESGUERRA: 2007,
50 A historiografia sobre as crônicas...
4
Essa busca e reavaliação do passado colonial em contextos nacionais bem
como a edição das crônicas esteve, muitas vezes, atrelada ao Estado. Na Argentina,
De Angelis trabalhou no governo de Juan Manuel de Rosas; o mexicano García
Icazbalceta nunca escondeu sua filiação política conservadora. No Brasil, a utilização
de relatos quinhentistas como subsídios para a construção de uma identidade nacional
também esteve presente na historiografia, influenciada fortemente pelo Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), patrocinado por Dom Pedro II.
Luiz Fernandes e Luis Kalil 51
similares, que ora serviam para reforçar sua utilidade como manancial de
dados e informações sobre os tempos coloniais, ora para destacar a falta de
confiabilidade daqueles textos como fontes para o historiador
contemporâneo. Segundo Karl Kohut (2003), o século XIX apontou
precisamente o caráter personalista, ideológico e literário das crônicas como
fato que as tornavam suspeitas ante os olhos de uma historiografia que
buscava objetividade e fidelidade nas fontes. Em especial, acusava-se esses
autores (ou a maior parte deles) de serem pessoas que mais procuravam
defender interesses próprios ou corporativos do que descrever ou narrar os
acontecimentos de forma “objetiva e exata”5.
A mudança nos critérios de legitimação das fontes históricas levou a
uma valorização de determinadas formas de narrativa, temas e autores em
detrimento de outros. Obras que narravam milagres, aparições ou maravilhas
perderam espaço para o que era considerado mais fiel aos fatos, como
descrições de batalhas, locais, personagens e características dos povos e da
natureza. O estabelecimento desses critérios acabou reforçando o processo
de hierarquização das crônicas: autores “confiáveis”, com riqueza e precisão
de informação e estilo claro e direto eram considerados pilares da História
nacional enquanto outros eram colocados em segundo plano ou, até mesmo,
descartados. Sobre o passado mexicano, Cortés e Bernal Díaz eram os
melhores relatos da Conquista; já Sahagún e Durán seriam o sustentáculo
de um bom texto sobre indígenas. Por outro lado, estas mesmas questões de
estilo ou originalidade podiam também condenar um cronista e sua obra.
O primeiro editor do franciscano Gerônimo de Mendieta, García Icazbalceta,
5
Vejamos o que Alfredo Chavero, historiador e arqueólogo mexicano, ponderou
sobre as obras e sobre os cronistas na primeira enciclopédia de História nacional
editada no México, em 1884: “Sin duda las primeras obras de los cronistas
adolecieron de la vaguedad natural que se siente ao exponer ideas nuevas y poco
antes desconocidas. No eran ni podían ser trabajos completos, porque cada uno
escribía lo que lograba saber. […] Pero cualesquiera que sean sus defectos, no
puede negarse que constituyen un material preciosísimo, en el cual, escogiendo
con discreción y lógica, se encuentran abundantes tesoros históricos. Demos, pues,
cuenta de las principales crónicas y de su importancia, examinado imparcialmente
la obra de nuestros historiadores“ (CHAVERO: 1884, p. xxvi).
52 A historiografia sobre as crônicas...
6
Esta postura, (que data, do ponto de vista heurístico, do século XIX) continuou
sendo utilizada no século XX por diferentes autores, como Francisco Esteve Barba
(1964, pp.11-17) e Héctor Bruit. Para o segundo, algumas crônicas seriam mais
“vivas e verrosímeis”, mais bem “acabadas e objetivas” sobre um tema ou outro.
Outras seriam “crônicas menores”, teriam menos importância para o trabalho do
historiador (BRUIT: 2004, p. 17 e p. 19).
Luiz Fernandes e Luis Kalil 53
7
“Si se compara el texto de Acosta con el del códice Ramírez, se observa desde
luego que lo que ha copiado al pie de la letra, con muy ligeras variantes […] la
obra que gozó fama universal, no tiene más que fama prestada; y el autor, que era
incluido por Feyjoo entre las glorias nacionales de España, no es más que un
plagiario de un escritor indio “ (CHAVERO: 1884, p. lii).
54 A historiografia sobre as crônicas...
8
Sobre este último tipo, o autor relativizou sua posição, dizendo que não se
pode cobrar deles um rigor de historiadores modernos, lembrando que as leituras
religiosas estavam relacionadas às construções edificantes e que deviam ser lidas
nos refeitórios ou na solidão do claustro. A função dessas crônicas era ajudar
à virtude heróica pelo espelho do milagre.
Luiz Fernandes e Luis Kalil 57
9
São exemplos dessa tradição as obras de Nicolau d’Olwer, espanhol que migrou
para o México e era ligado à Fundação do Colégio de México (Cronistas de las
culturas precolombinas. 1963); Relación varia de hechos, hombres y cosas de estas
Indias meridionales, dos argentinos Alberto M. Salas e Andrés Ramón Vázquez
(1963); “Algunos problemas heurísticos en las crónicas de los siglos XVI-XVII”,
de Carlos Aranibar (1963); Historiadores de Indias, de Germán Arcienegas (1963);
“The Chronicles of the early seventeenth century: how they were written”, de
Demetrio Ramos (1965); e os trabalhos de Ángel María Garibay, como “Los
historiadores del México antiguo en el virreinato de la Nueva España“ (1964).
58 A historiografia sobre as crônicas...
10
“Este cambio de perspectiva, debido a la hasta entonces inusitada valoración
económica de las ideas, se vio reforzado por la nueva orientación de los estudios
históricos que condujo a los eruditos a una deformadora sobrestimación de las
llamadas ‘fuentes de primera mano’ y a una no menos deformadora manera de
considerar los antiguos textos históricos como mera canteras o depósitos de datos
y noticias“ (O’GORMAN: 1985, p. xviii).
11
Recentemente, Ignacio Arellano e Fermín del Pino promoveram a edição das
atas do Quinto “Congreso Internacional de edición y anotación de textos”,
patrocinado pela Universidade de Navarra e pelo Consejo Superior de
Investigaciones Científicas. Intitulada “Lecturas y ediciones de crónicas de Indias.
Una propuesta interdisciplinar” (2004), os textos mostram justamente essa
perspectiva histórico-literária dos textos historiográficos coloniais.
Luiz Fernandes e Luis Kalil 59
15
“Desde una perspectiva lingüística está claro que no forman parte de la
literatura en castellano, pero desde un plano cultural sí: independientemente del
idioma utilizado, se trata de un corpus textual único, con conexiones temáticas y
formales múltiples. Es esa interrelación entre las crónicas la que les da un sentido
de unidad en el marco de la cultura hispánica […] ¿Cómo situar una crónica
escrita en inglés o alemán en sus respectivas culturas nacionales? Simplemente es
un texto extraño que no encuentra acomodo por carecer de relaciones con otros
textos de su cultura. Es desde esta perspectiva como se establece la necesidad de
incluir dichos textos en el ámbito de la cultura hispánica, a pesar de estar escritos
en lengua no española. Prescindir de ellos por una razón exclusivamente lingüística
sería un error que nos privaría de testimonios importantes“ (BOIXO: 1999,
pp. 232-233).
Luiz Fernandes e Luis Kalil 61
16
Robert Ricard, em seu célebre estudo sobre a evangelização da Nova Espanha,
dedica um capítulo a esta questão: “La preparación etnográfica y lingüística del
misionero”. Georges Baudot também se utiliza dessa nomenclatura; segue um
exemplo tirado a esmo: “La primera gramática, que fue compuesta de la lengua
náhuatl, fue de un franciscano, en 1547, que por añadidura es el primero de nuestros
cronistas etnógrafos: Fray Andrés de Olmos“ (BAUDOT: 1983, p. 102). Em
Fernando Aínsa, ao menos, o termo aparece entre aspas: “Los procesos contra los
‘frailes etnólogos’ y la instauración del Tribunal de la Inquisición en México en
1571 […]“ (AINSA: 1992, p. 158).
62 A historiografia sobre as crônicas...
17
“Após o exame crítico das fontes primárias e do fichamento sistemático dos
dados positivos por elas fornecidos, suscetíveis de aproveitamento científico, cheguei
à conclusão de que é possível analisar 93 problemas – exceção feita aos aspectos
ergológicos – como parte do ou em conexão com o sistema guerreiro da sociedade
tupinambá. Com relação a 6 problemas (antropofagia, canoas, relações com o
prisioneiro, religião, rituais de renovação e sacrifício ritual), é possível isolar ainda
39 tópicos distintos (...) constata-se que os dados fornecidos pelas fontes
quinhentistas e seiscentistas abrangem todos os aspectos do sistema guerreiro de
uma organização tribal. Evidentemente, não se pode esperar dessas fontes um
conjunto de dados de fato comparável ao que se poderia obter tecnicamente através
da observação direta. Contudo, a simples indicação de que é possível analisar, através
da documentação disponível, os principais aspectos do sistema guerreiro da
sociedade tupinambá revela a necessidade de um estudo mais acurado desta parte
da contribuição etnográfica dos autores quinhentistas e seiscentistas”
(FERNANDES: [1949] 1975, p. 207).
18
Para Bruit (2004, p. 17), a “descrição etnológica dos povos” era um dos três
pontos básicos existentes em todas as narrativas coloniais (juntamente com a
descrição geográfica do local e da narrativa dos fatos da descoberta, conquista e
colonização dos territórios).
Luiz Fernandes e Luis Kalil 63
19
“[...] os textos e pinturas indígenas, por uma parte, e os relatos espanhóis, por
outra, constituirão as duas faces distintas do espelho histórico em que se reflete a
conquista” (LEÓN-PORTILLA: 1998, p. 10).
64 A historiografia sobre as crônicas...
20
“As ambigüidades, que são próprias da história, freqüentemente,
desqualificavam o narrador. Identificava-se a ambigüidade com falta de
determinação, cuja conseqüência inevitável era criar confusão no leitor. Neste
sentido, balançar os mitos compostos em torno de dualidades nem sempre foi um
projeto fácil de ser consumido“ (THEODORO: 1992, p. 4).
Luiz Fernandes e Luis Kalil 65
Conclusão
BIBLIOGRAFIA
KALIL, Luis Guilherme Assis. A derrota dos incas e a resistência aos novos
senhores políticos. Disponível em: http://www.anphlac.org/html/gts/
ehmf_apresenta.php?b=2&t=13&tipo=Apresentacao
Acesso em: 16/05/2011.
Luiz Fernandes e Luis Kalil 69
LARA, Luis Hachim. “¿Por qué volver a los textos coloniales? Herencias y
coherencias del pensamiento americano en el discurso colonial”. In:
Literatura y Lingüística, n. 17. Universidad Católica Cardenal Raúl
Silva Henriquéz. Santiago, Chile, 2006. pp. 15-28.