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verve

verve
Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

5
2004
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº5 (maio 2004 - ). - São Paulo: o Programa, 2004-
Semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais.

ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do


Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Co-
ordenadoras: Teresinha Bernardo e Silvana Tótora.

Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol
Acácio Augusto S. Jr., Andre R. Degenszajn, Edson Lopes Jr., Edson Passetti
(coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Francisco E. de Freitas, Guilher-
me C. Corrêa, Heleusa F. Câmara, José Eduardo Azevedo, Lúcia Soares da
Silva, Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Rogério H. Z. Nascimen-
to, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago Souza Santos.

Conselho Editorial
Adelaide Gonçalves (UFC), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick
(UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Guilherme Castelo Branco (UFRJ),
Margareth Rago (Unicamp), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora
(PUC-SP).

Conselho Consultivo
Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Peres – CELIP/RJ),
Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti
(PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara
(UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Maria
Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam,
Paulo-Edgard de Almeida Resende (PUC-SP), Plínio A. Coelho (Editora Ima-
ginário), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera Malaguti Batista (Instituto
Carioca de Criminologia).

ISSN 1676-9090
verve
revista de atitudes. transita por limiares e ins-
tantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou progra-
mador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberda-
de. verve é uma labareda que lambe corpos,
gestos, movimentos e fluxos, como ardentia.
ela agita liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
SU M Á R I O

Crime e punição
William Godwin 11

Figuras exemplares do anarquismo


e/ou “escritos” pouco convencionais
Edgar Rodrigues 88

Economia libertária e suas perspectivas


José Maria Ferreira de Carvalho 111

Um relativismo de base cética


na dialética de Proudhon
João Borba 142

Átomos soltos: a construção da personalidade


entre os anarquistas no começo do século XX
Christian Ferrer 157

Crueldade do devir e corpo-drogado


Daniel Lins 186

O individualismo anarquista
Émile Armand 208

O “testamento anarquista” de John Cage


Pietro Ferrua 219

Leo Tolstoi
John Cage 228

Stirner, o único, em língua portuguesa


Edson Passetti 231

Uma entrevista com Michel Foucault 240

Michel Foucault, uma entrevista:


sexo, poder e política da identidade 260
RESENHAS

Eu é um outro
Vera Schoreder 279

Prisões e escritas de caber e não caber em si


Salete Oliveira 286

Temor e controle social numa negra cidade


Thiago Rodrigues 291

Episódios da vida de um rebelde


Rogério Nascimento 296

Ode à petulância
Thiago Souza Santos 301

Miríades de associações: arcos abertos


e conectados a flechas certeiras
Silvana Tótora 305
verve, em seu quinto número, segue pelos percursos do
inefável e do intranqüilo, anarquizando-se.
autogestionária, firme, e longe da sisudez, verve investe
no inaudito, naquilo que se quis esquecer, no que
emerge desconcertante.
verve 5 se dedica à apresentação de inéditos que
interessam às práticas de liberdade do agora. traz william
godwin, nunca antes em português, em uma afronta
contumaz aos carrascos, tormentos e cadeias que vivem
ativas nas mínimas ranhuras e nos grandes rasgos. texto
que tece veios libertários de contato com o abolicionismo
penal sempre presente em suas páginas.
apresenta, também, duas entrevistas inéditas com
michel foucault. falas do filósofo ausentes de suas
coletâneas póstumas, discursos quase perdidos de um
foucault impregnado de transgressão, sexo e
desmesuras.
dos libertários de ontem aos abalos de hoje, verve dá
passagem a vozes várias que culminam no único da
experiência anarco-individualista de émile armand e
de max stirner, forte e contundente em sua primeira
vinda na íntegra ao português.
nos interstícios, a língua excitada de roberto freire,
guerreiro da saúde, do gozo, do riso, da pele.
verve explicita o intolerável da punição; lembra para o
presente, sem reedições, sem profecias; ecoa o
dissonante, o avesso; traz para si o que lancina o estático,
o decantado, o inerte.
verve é uma revista semestral editada pelo nu-sol.
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Roberto Freire

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Crime e punição

de crimes e punições

william godwin*

Capítulo I
Limitações da doutrina da punição que resultam dos
princípios da moral
A questão da punição talvez seja a mais fundamental
da ciência política. Os homens se associaram em nome
da proteção e do benefício mútuo. Já demonstrei que os
aspectos internos dessas associações têm uma
importância indescritivelmente maior do que os
externos.1 Já demonstrei que a ação da sociedade, ao con-
ferir recompensas e administrar a opinião, tem um efei-
to pernicioso.2 Portanto, segue-se que o governo, ou a ação
da sociedade em sua capacidade corporativa, não pode
ter quase nenhuma utilidade exceto quando é necessá-

* Willian Godwin (1756-1836) concluiu em 1793, An enquiry concerning political


justice and its influence on general virtue and happiness. Dois anos depois, o reeditou
com pequenas modificações como An inquiry concerning political justice and its
influence on moral and happiness, do qual extraímos o Livro VII para publicar
neste número. Considerado como um anunciador do anarquismo é também um
crítico atuante do pensamento de Edmund Burke, ao lado de Thomas Paine,
Willian Blake, Thomas Holcroft e de sua mulher, Mary Woolstonecraft,
precursora do femininsmo. Encontra-se neste capítulo mais do que uma inventiva
e corrosiva análise sobre o castigo, um percurso abolicionista penal.
verve, 5: 11-86, 2004

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rio para a supressão da força pela força; para a prevenção


do ataque hostil por um membro da sociedade à pessoa
ou à propriedade de outra, prevenção a qual é geralmente
chamada pelo nome de justiça penal, ou punição.
Antes que possamos julgar a necessidade ou urgên-
cia dessa ação governamental, é importante considerar
o significado preciso da palavra punição. Posso empregar
a força para reagir contra a hostilidade que está sendo
cometida contra mim. Posso empregar a força para obri-
gar qualquer membro da sociedade a ocupar o posto que
eu considerar mais propício ao bem geral, seja recrutan-
do soldados ou marinheiros, ou obrigando um oficial
militar ou um ministro de Estado a aceitar ou reter seu
cargo. Posso matar um homem valioso para o bem co-
mum, seja porque ele está infectado com uma doença
contagiosa ou porque algum oráculo declarou que isso
seria essencial para a segurança pública. Nenhum des-
ses exemplos, apesar de consistirem em exercício da força
para um fim moral, pertence ao significado da palavra
punição. A palavra punição também é usada frequente-
mente para denotar a inflicção voluntária do mal a um
ser vil, não apenas porque o bem público o exige, mas
porque é entendido que há uma certa adequação e
propriedade na natureza das coisas que torna o sofrimen-
to, tomado abstratamente do benefício a ser produzido, o
sucessor adequado da vileza.
A justiça da punição, contudo, nessa acepção da pala-
vra, só pode ser uma dedução da hipótese do livre-arbí-
trio, se de fato essa hipótese a apoiar suficientemente; e
só pode ser falsa, se ações humanas forem necessárias.
A mente, como ficou bastante aparente quando tratamos
desse assunto3, é um agente em nenhum outro sentido
a não ser o mesmo pelo qual a matéria é um agente. Ela
opera e é operada, e a natureza, a força e a direção da
primeira é exatamente proporcional à natureza, à força

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Crime e punição

e à direção da segunda. A moral, em uma mente racional


e criativa, não é essencialmente diferente da moral em
uma substância inanimada. Um homem de certos hábitos
intelectuais é apto a ser um assassino; um sabre de um
certo formato é apto a ser seu instrumento. Um ou o outro
provocam um grau de reprovação proporcional a quanto
sua aptidão para fins maléficos pareça ser mais inerente
e direta. Vejo um sabre, por causa disso, com mais
desaprovação do que uma faca, que talvez seja igualmente
apta aos propósitos do assassino; pois o sabre tem pouca
ou nenhuma utilidade benéfica para contrabalançar a
maléfica e porque ele tende, por associação, a provocar
maus pensamentos. Vejo o assassino com mais
desaprovação do que o sabre porque ele deve ser mais
temido, e é mais difícil mudar sua estrutura vil ou privá-
lo de sua capacidade de ferir. O homem é propelido a agir
por causas necessárias e motivos irresistíveis, os quais,
tendo ocorrido uma vez, provavelmente ocorrerão de novo.
O sabre não tem nenhuma qualidade que o torne apto a
contrair hábitos e, apesar de ter cometido mil
assassinatos, isso não faz com que seja mais provável (a
menos que esses assassinatos, sendo conhecidos, possam
operar como um motivo associado a seu portador) que
cometa um novo assassinato. Exceto nas questões
especificadas, os dois casos são exatamente paralelos. O
assassino não pode evitar o assassinato que comete mais
do que o sabre o pode.
Esses argumentos têm o mero propósito de colocar sob
uma luz mais clara um princípio admitido por muitos que
nunca examinaram a doutrina da necessidade; o de que
a única medida da justiça é a utilidade e que o que quer
que seja que não tenha um fim benéfico não é justo. Isso
é tão evidente que poucas mentes razoáveis e reflexivas
sentir-se-ão inclinadas a negá-lo. Por que inflijo o
sofrimento a outro? Se não for para seu próprio benefício

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nem para o benefício de outros, posso estar correto? O


ressentimento, a mera indignação e o horror que senti
em relação à vileza justificam-me em submeter um ser
à tortura inútil? “Mas suponha que eu apenas dê fim à
sua existência.” Mas sem perspectiva de benefício a ele
ou a outros? A razão que se concilia mais facilmente com
essa suposição é a de que concebemos a existência menos
como uma benção do que como uma praga no caso de um
ser incorrigivelmente vil. Mas, nesse caso, não se encaixa
a suposição nos termos da questão: estou realmente
conferindo um benefício? Já foi indagado, “se
concebermos dois seres, ambos solitários, mas o primeiro
virtuoso e o segundo vil, o primeiro inclinado aos maiores
atos de benevolência se entrasse em sociedade e o
segundo inclinado à malignidade, à tirania e à injustiça,
não sentiríamos que o primeiro tem mais direito à
felicidade que o segundo?” Se há alguma diferença na
questão, ela é inteiramente causada pela extravagância
da suposição. Nenhum ser poder ser virtuoso ou vil sem
ter a oportunidade de influenciar a felicidade de outros.
Podemos, de fato, apesar de hoje solitários, lembrar-nos
ou imaginarmos um estado social; mas este sentimento
e as tendências que ele gera não podem ser exatamente
vigorosos, a menos que tenhamos esperança de sermos,
no futuro, devolvidos àquele estado. O verdadeiro solitáro
não pode ser considerado um ser moral a menos que a
moral que contemplamos seja a que tem relação com sua
própria vantagem permanente. Mas, se isso é o que
queremos dizer com punição, a menos que o fim seja a
reforma, é particularmente absurdo. Sua conduta é vil,
pois tende a fazê-lo sofrer: devemos infligir calamidade a
ele, apenas por essa razão, porque ele já infligiu calami-
dade a si próprio? É difícil imaginarmos um ser intelec-
tual solitário, o qual nenhum acidente futuro irá jamais
torná-lo social. É difícil separarmos, mesmo no reino das
idéias, a virtude e o vício da felicidade e do sofrimento, e,

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Crime e punição

consequentemente, não imaginarmos que, quando


conferimos uma recompensa à virtude, conferimo-na
quando é produtiva e, quando conferimos uma
recompensa ao vício, conferimo-na quando é improduti-
vo. Por essas razões, a questão do merecimento, porque
é relativa a um ser solitário, terá sempre uma tendência
a causar ilusão e perplexidade.
Alega-se às vezes que o curso da natureza anexou o
sofrimento ao vício e, dessa forma, levou-nos à idéia de
punição aqui mencionada. Argumentos desse tipo de-
vem ser considerados com muita cautela. Foi por racio-
cínios de natureza semelhante que nossos ancestrais
justificaram a prática da perseguição religiosa: “Here-
ges e infiéis são objeto da indignação de Deus; deve por-
tanto haver mérito em maltratarmos aqueles que Deus
amaldiçoou”. Sabemos muito pouco sobre o sistema do
universo, somos muito propensos ao erro ao respeitá-lo
e vemos uma parte muito pequena, para darmo-nos o
direito de formarmos nossos princípios morais imitan-
do o que concebemos como sendo o curso da natureza.
Parece, portanto, que, seja adentrando filosoficamen-
te o princípio das ações humanas ou meramente anali-
sando as idéias de retidão e justiça que despertam o
consenso universal da humanidade, no sentido refina-
do e absoluto no qual esse termo tem sido frequente-
mente empregado não existe o merecimento; em ou-
tras palavras, não pode ser justo infligir o sofrimento a
nenhum homem, exceto se levar ao bem. Segue-se, por-
tanto, que a punição, no último dos sentidos enumera-
dos no início desse capítulo, não está de acordo de forma
nenhuma com qualquer princípio são de raciocínio. É
correto que eu inflija o sofrimento em todos os casos em
que possa ser claramente demonstrado que produzirá
um saldo positivo de bem. Mas essa inflicção não tem
nenhuma relação com a mera inocência ou culpa da

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pessoa contra a qual é exercida. Um homem inocente


é seu sujeito apropriado, se isso levar ao bem. Um
homem culpado é seu sujeito apropriado sob o mesmo
e nenhum outro ponto de vista. Puni-lo, sob qualquer
hipótese, pelo que já passou e é irrecuperável, e pela
consideração disso apenas, deve ser elencado como
uma das exibições mais perniciosas de barbarismo
irrefreado. Todo homem contra o qual a disciplina é
empregada deve ser considerado, no que diz respeito
ao fim dessa disciplina, como inocente. O único
significado da palavra punição que pode ser suposto
como compatível com os princípios do presente texto é
o da dor inflingida a uma pessoa culpada de ações
maléficas passadas para o fim da prevenção de males
futuros.
É da maior importância mantermos essas idéias
em mente constantemente durante nosso exame da
teoria da punição. Essa teoria teria sido, nas
transações passadas da humanidade, totalmente
diferente se os homens tivessem se despido das
emoções da raiva e do ressentimento; se eles tivessem
considerado um homem que tortura outro pelo que fez
da mesma maneira que consideram uma criança que
bate na mesa; se eles tivessem usado sua imagina-
ção e avaliado de forma apropriada o valor do homem
que trancafia na prisão e tortura periodicamente al-
gum criminoso atroz, considerando meramente a
congruidade abstrata do crime e da punição, sem um
possível benefício para outros ou para si; se eles ti-
vessem visto a punição como aquilo que deve ser re-
gulado apenas por um cálculo desapaixonado do futu-
ro, sem deixar que o passado entre, ainda que por
apenas um momento, nos procedimentos.

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Crime e punição

Capítulo II
Desvantagens gerais da punição
Tendo então nos empenhado em demonstrar quais
tipos de punição a justiça e uma idéia sã da natureza do
homem invariavelmente proibiriam, cabe a nós, ao ex-
plorar o assunto mais longamente, considerar apenas
aquele tipo de coerção que foi considerada correta em-
pregar: aquela contra pessoas condenadas por ações
maléficas, com o propósito de evitar futuros males. E aqui
iremos, em primeiro lugar, recordarmo-nos de qual é a
quantidade de mal que deriva desse tipo de coerção; e,
em segundo lugar, examinar a lógica das várias razões
pelas quais ela é recomendada. Não será possível evitar
a repetição de algumas das razões que emergiram na
discussão preliminar sobre o exercício do juízo privado.4
Mas esses raciocínios serão agora estendidos, e talvez
obtenham vantagens adicionais de um exame mais
profundo.
É comumente dito que “nenhum homem deve ser
obrigado, em questões relativas à religião, a agir de for-
ma contrária aos ditames de sua consciência”. A reli-
gião é um princípio cuja duradoura prática causou im-
pressões profundas na mente humana. Aquele que cum-
pre o que suas apreensões o aconselham é aprovado nos
tribunais de sua própria mente, e, consciente da retidão
em seu relacionamento com o autor da natureza, não
pode deixar de obter as maiores vantagens, qualquer que
seja a sua quantidade, que a religião pode conceder. É
em vão que eu tento, por meio de estatutos persecutórios,
a obrigá-lo a renunciar a uma falsa religião por uma
verdadeira. Argumentos podem convencer, mas a
perseguição não pode. A nova religião, que eu o obrigo a
professar contrariamente à sua própria convicção, não
importa o quão pura e sagrada ela possa ser em sua própria

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natureza, não traz benefícios a ele. A mais sublime


idolatria se transforma em uma fonte de depravação
quando não é consagrada pelo testemunho de uma
consciência limpa. A verdade é o segundo objeto neste
caso; a integridade de sentimentos é a primeira: ou
melhor, uma proposição que, em sua natureza abstrata,
é a própria verdade, converte-se em falsidade baixa e
veneno mortal se professada apenas com os lábios e
abjurada pelo entendimento. Ela é então o disfarce
repugnante da hipocrisia. Em vez de elevar a mente
acima de tentações sórdidas, ela perpetuamente lembra
o devoto da sujeição degradante a qual ele cedeu. Em vez
de preenchê-lo de confiança sagrada, ela o torna pleno de
confusão e remorso.
Aquilo que foi inferido a partir destes raciocínios é que
“a lei penal é eminentemente aplicada de forma incorreta
em questões religiosas e o seu campo real é aquele das
contravenções civis”. Mas esta distinção não é de forma
nenhuma tão satisfatória e bem fundamentada quanto
pode parecer à primeira vista5. Não é estranho que o
homem tenha afirmado a religião como a província
sagrada da consciência, enquanto o dever moral deve ser
deixado sem definição, sujeito à decisão do magistrado?
Não faz diferença se eu sou o benfeitor da minha espécie
ou seu mais amargo inimigo? Se eu sou um informante,
um ladrão ou um assassino? Se eu sou empregado, como
soldado, para extirpar meus colegas humanos ou, como
cidadão, contribuo com minha propriedade para a sua
aniquilação? Se eu declaro a verdade, com aquela firmeza
e abertura que uma filantropia ardente não deixará de
inspirar, ou suprimo a ciência, para evitar ser condenado
por blasfêmia, e os fatos, para evitar ser condenado por
rebeldia? Se contribuo com meus esforços para o avanço
de melhorias políticas ou silenciosamente aceito o exílio
de um princípe cujas idéias eu defendo, ou a supressão

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Crime e punição

da liberdade, a mais valiosa das posses humanas? Nada


pode ser mais claro do que o fato de que o valor da religião,
ou de qualquer outro tipo de opinião, está em sua
tendência moral. Se eu não responsabilizar o poder civil,
em nome daquilo do qual é um meio, como vou fazê-lo
quando ele contradiz o fim?
De todas as preocupações humanas, a moral é a mais
interessante. Ela é a parceira constante de todas as
nossas transações: não há nenhuma situação em que
possamos ser colocados, nenhuma alternativa que possa
ser apresentada à nossa escolha, a respeito da qual o
dever silencia. “Qual é a medida da moral e do dever?” A
justiça. Não os decretos arbitrários que estão em vigor
em um clima particular, mas aquelas leis da razão que
são igualmente obrigatórias onde quer que o homem se
encontre. Há uma diferença óbvia entre os particulares
em cada instância que constituem a natureza perma-
nente do caso diante de nós e as interposições de uma
autoridade peremptória à qual pode ser prudente nos
submetermos, mas que não pode alterar nossas idéias
sobre a conduta à qual homens independentes devem
aderir. Quais são, então, as consequências que resulta-
rão da obediência à obrigação e não ao entendimento?
Nenhum princípio da ciência moral pode ser mais óbvio
e fundamental do que o de que o motivo pelo qual somos
induzidos a uma ação constitui uma parte essencial de
seu caráter. Essa idéia talvez tenha sido levada longe
demais. Um bom motivo tem pouco valor quando não
acompanhado de um exercício salutar. Mas, sem um bom
motivo, a ação mais útil já realizada pode contribuir pouco
para o aperfeiçoamento da honra de quem a realiza. Não
lhe devemos nenhum respeito se ele foi induzido a realizá-
la por idéias de vantagem pessoal ou pela influência de
um suborno. É, de certa forma, ainda pior se o motivo que
o governou foi o sentimento do medo. Se temos em alguma

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estima os atributos do homem, se desejamos o aper-


feiçoamento de nossa espécie, devemos desejar
particularmente que ele seja liderado no caminho da
utilidade por considerações generosas e liberais, que sua
obediência seja a obediência do coração, e não aquela de
um escravo.
Nada pode ser mais importante para o aperfeiçoamento
da mente humana do que, qualquer que seja a conduta
que sejamos compelidos a seguir, tenhamos noções
distintas e precisas sobre os méritos de cada questão
moral na qual possamos estar envolvidos. Em todas as
questões duvidosas, há dois critérios possíveis: as deci-
sões oriundas da sabedoria de outros homens e as deci-
sões às quais chegamos por nosso próprio entendimento.
Qual deles se conforma à natureza do homem? Podemos
nos render a nosso próprio entendimento? Não importa o
quanto lutemos contra a fé implícita, não irá a
consciência, a despeito de nós mesmos, sussurar: “O
decreto é justo, e isso está fundado em erros?” Não per-
manecerá nas mentes dos devotos da superstição uma
permanente insatisfação, um desejo de acreditar no que
lhes é ditado, acompanhado de uma falta daquilo no qual
consiste a crença, evidência e convicção? Se pudés-
semos nos livrar de nosso entendimento, que tipo de se-
res nos tornaríamos?
A tendência direta da coerção é pôr nosso entendi-
mento e nossos temores, nosso dever e nossa fraqueza,
em discordância uns com os outros. A coerção primeiro
aniquila o entendimento sobre o assunto a respeito do
qual é exercida, e depois sobre aquele que a emprega.
Travestido das prerrogativas letárgicas de um mestre,
ele é liberado de cultivar as faculdades de um homem. O
que não poderia ser o homem, já há muito tempo, se o
mais orgulhoso entre nós não tivesse esperanças a não
ser nos argumentos, se ele não conhecesse nenhum

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verve
Crime e punição

recurso além desse, se fosse obrigado a aguçar suas fa-


culdades e ganhar controle de seus poderes, como único
meio de realizar seus propósitos?
Reflitamos um pouco sobre o tipo de influência que a
coerção emprega. Ela prova à sua vítima que deve neces-
sariamente estar errada, porque sou mais vigoroso ou
mais arguto do que ela. Estarão sempre a argúcia e o
vigor do lado da verdade? A coerção apela à força e repre-
senta uma força superior à medida da justiça. Cada
exerção implica, em sua natureza, uma espécie de dis-
puta. A disputa é frequentemente decidida antes de ser
levada a julgamento, pelo desespero de um dos lados. O
ardor e paroxismo da paixão tendo sucumbido, o ofensor
se entrega às mãos de seus superiores e calmamente
espera a declaração de seu prazer. Mas não é sempre
assim. O vândalo que por meio da força subjuga a força
de seus perseguidores ou por meio de estratagemas e
engenhosidade escapa de suas punições, se esse argu-
mento for válido, prova a justiça de sua causa. Quem
consegue conter sua indignação ao ver a justiça tão
miseravelmente prostituída? Quem não sente, no mo-
mento em que a disputa começa, a extensão total do
absurdo que o apelo inclui? A magistratura, a represen-
tante do sistema social, que declara guerra contra um de
seus membros em nome da justiça ou em nome da
opressão parece quase igualmente, em ambos os casos,
ser merecedora de nossa censura. No primeiro caso,
vemos a verdade jogando de lado suas armas nativas e
sua vantagem intrínseca e colocando-se no mesmo nível
da falsidade. No segundo caso, vemos a falsidade confi-
ante na vantagem casual que possui, artimanho-
samente extinguindo a luz nascente que a faria
envergonhar-se de sua autoridade usurpada. A imagem,
em ambos os casos, é a de um bebê esmagado pelo punho
sem misericórdia de um gigante.

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Nenhum sofisma pode ser mais grosseiro do que aquele


que finge levar ambas as partes a uma audiência
imparcial. Observem a inconsistência desse raciocínio!
Primeiro defendemos a coerção política, porque o crimi-
noso cometeu uma ofensa contra a comunidade como
um todo, e depois fingimos, ao levá-lo ao tribunal da co-
munidade, que é a parte ofendida, que o estamos postan-
do diante de um árbitro imparcial. Assim, na Inglaterra,
o rei por meio de seu procurador é o promotor, e o rei por
meio de seu representante é o juiz. Por quanto tempo
devem essas inconsistências prosseguir se impondo à
humanidade? A perseguição iniciada contra o suposto
criminoso é o posse comitatus, a força armada do todo,
convocada nas porções julgadas necessárias; e, quando
sete milhões de homens têm um pobre indivíduo
inassistido em seu poder, estão então à vontade para
torturá-lo ou matá-lo e para fazer de suas agonias um
espetáculo para satisfazer a sua ferocidade.
O argumento contra a coerção política é igualmente
forte contra a inflicção de punições privadas, entre mes-
tre e escravo e entre pai e filho. Havia, na realidade, não
apenas mais cavalheirismo, mas mais razão, no sistema
gótico de julgamento por duelo do que há nelas. O
julgamento por força acaba, como já dissemos, antes de a
exerção da força começar. Tudo o que resta é a inflicção
da tortura a meu bel-prazer, estando meu poder de
inflingi-la em minhas juntas e meus tendões. Todo esse
argumento parece levar a um dilema irresis-
tível. O direito do pai sobre sua prole reside em sua força
superior ou em sua razão superior. Se reside em sua
força, temos apenas que aplicar esse direito universal-
mente para acabar com toda a moralidade do mundo. Se
reside em sua razão, deixe-no confiá-lo a essa razão. É
um argumento pobre em prol da minha razão o de que

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verve
Crime e punição

sou incapaz de fazer a justiça ser entendida e sentida,


nos casos mais necessários, sem o uso de golpes.
Consideremos o efeito que a coerção produz sobre a
mente daquele contra quem é empregada. Ela não pode
convencer; não é um argumento. Ela começa produzindo
a sensação de dor e o sentimento de repugnância. Ela
começa alienando a mente violentamente da verdade que
gostaríamos de imprimir nela. Ela inclui uma confissão
tácita de imbecilidade. Se aquele que emprega a coerção
contra mim pudesse me moldar a seus propósitos por meio
de argumentos, sem dúvida o faria. Ele finge me punir
porque seu argumento é forte; mas me pune na realidade
porque seu argumento é fraco.

Capítulo III
Sobre os fins da punição

Prossigamos à consideração dos três principais fins a


que a punição se propõe atingir: a contenção, a reforma
e o exemplo. Sob cada um desses títulos, os argumentos
do lado afirmativo precisam ao menos ser lógicos, não
necessariamente irresistíveis. Sob cada um deles
considerações serão feitas que nos obrigarão a duvidar
universalmente da propriedade da punição.
A primeira e mais inocente desses tipos de coerção é
aquela que é empregada para repelir a força. Ela tem
pouco a ver com qualquer espécie de instituição política,
mas pode merecer ser considerada. Nesse caso, empenho-
me (suponha, por exemplo, que uma espada é apontada
contra meu peito ou o de alguma outra pessoa, ameaçando
destruição imediata) em evitar um mal que parece estar
para acontecer inevitavelmente. Nesse caso, parece não
haver tempo para experimentos. Ainda assim, mesmo

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aqui, uma investigação rigorosa nos sugerirá dúvidas


importantes. Os poderes da razão e da verdade ainda são
insondáveis. Uma verdade que um homem não consegue
comunicar em menos de um ano outro consegue
comunicar em duas semanas. A duração mais breve pode
provocar um entendimento proporcional. Quando Mário
disse, com uma expressão grave e um tom imponente,
ao soldado que fora enviado a sua masmorra para
assassiná-lo “Miserável, tem você a temeridade de matar
Mário I”, com essas poucas palavras fê-lo fugir; a
grandiosidade da idéia abriu seu caminho, com força
irresistível, à mente de seu executor. Ele não tinha
nenhuma arma para resistir; não tinha possibilidade de
vingança com a qual fazer ameaças; estava enfraquecido
e havia sido desertado; foi apenas por meio da força do
sentimento que ele desarmou seu destrutor. Se, neste
caso, havia falsidade e preconceito misturados à idéia
comunicada, podemos crer que a verdade não é ainda
mais poderosa? Seria bom para a espécie humana se
todos fossem, nesse sentido, como Mário, habituados a
depositar uma confiança intrépida na energia do intelecto.
Quem diria que há coisas impossíveis para homens tão
ousados e motivados apenas pelos mais puros
sentimentos? Quem saberia o quanto a espécie inteira
avançaria se os homens cessassem de respeitar a força
de outros e recusassem-se a empre-gá-la em seu próprio
favor?
A diferença, contudo, entre esta espécie de coerção e
a espécie que geralmente recebe o nome de punição é
óbvia. A punição é empregada contra um indivíduo cuja
violência cessou. Ele não está, presentemente, envolvi-
do em nenhuma hostilidade contra a comunidade ou
contra qualquer um de seus membros. Ele está silencio-
samente se dedicando a ocupações que são benéficas

24
verve
Crime e punição

para si próprio e prejudiciais a ninguém. Sob qual pre-


texto deve este homem ser submetido à violência?
Sobre o pretexto da contenção. Contenção do quê? “De
algum mal futuro que se teme que ele venha a cometer.”
Este é precisamente o argumento empregado para
justificar as mais execráveis tiranias. Por quais raciocí-
nios foram a Inquisição, o emprego de espiões e os vários
tipos de censura da opinião defendidos? Pelo de que há
uma conexão íntima entre as opiniões dos homens e sua
conduta; os sentimentos imorais levam, por uma cadeia
de consequências muito provável, a ações imorais. Não
há mais razão, ao menos em muitos casos, para acreditar
que o homem que roubou roubará novamente do que
para crer que roubarão o homem que dissipou sua fortuna
na mesa de jogos ou aquele que costuma professar que,
em caso de emergência, não teria escrúpulos em recorrer
a este expediente. Nada pode ser mais óbvio do que o fato
de que, quaisquer que sejam as precauções permissíveis
em relação ao futuro, a justiça irá relutantemente
classificar entre essas precauções uma violência a ser
cometida contra meu próximo. Isso também não é mais
frequentemente injusto do que é inútil. Por que não me
armar de vigilância e energia em vez de trancafiar todo
homem que minha imaginação pode me levar a temer,
para poder passar meus dias sem ser incomodado? Se as
comunidades, em vez de aspirar, como têm feito até hoje,
a ocupar vastos territórios e a satisfazer sua vaidade com
idéias de império, contentassem-se com um distrito pe-
queno, com uma cláusula de confederação em caso de
necessidade, todo indivíduo viveria sob o olhar público; e
a desaprovação de seus vizinhos, uma espécie de coer-
ção não derivada dos caprichos do homem, mas do siste-
ma do universo, inevitavelmente o obrigaria a reformar-
se ou a emigrar. A somatória dos argumentos sob este
título é a de que toda punição em nome da contenção é

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uma punição baseada na suspeita, a mais abominável


para a razão e a mais arbitrária em sua aplicação entre
as espécies de punição que podem ser inventadas.
O segundo objetivo que se pode imaginar que a puni-
ção tenha é o da reforma. Já elencamos várias objeções
a este ponto de vista. A coerção não pode convencer, não
pode conciliar, mas, ao contrário, aliena a mente daquele
contra quem é empregada. A coerção não tem nada em
comum com a razão e portanto não pode ter nenhuma
propensão a cultivar a virtude. É verdade que a razão não
é nada mais que uma colagem e comparação de várias
emoções e sentimentos; mas eles devem ser os
sentimentos originalmente apropriados à questão, não
aqueles que uma vontade arbitrária, estimulada pela
posse do poder, pode anexar a ela. A razão é onipotente:
se minha conduta é incorreta, uma afirmação muito
simples, derivada de uma visão clara e abran-
gente, fará com que ela pareça sê-lo; também é
improvável que algum tipo de perversidade leve à persis-
tência no vício diante de todas as recomendações das
quais a virtude pode estar investida e toda a beleza com
a qual pode ser apresentada.
Mas a isso pode ser respondido que “esta visão do
assunto pode realmente ser abstratamente verdadeira,
mas que não é verdadeira em relação à presente imper-
feição das faculdades humanas. O grande pré-requisito
para a reforma e aperfeiçoamento da espécie humana
parece consistir no despertar da mente. É por esta razão
que a escola da adversidade é frequentemente
considerada a escola da virtude. 6 Em um curso
inatribulado de circunstâncias fáceis e prósperas, as
faculdades adormecem. Mas, quando uma ocasião gran-
diosa e urgente se apresenta, a mente deve se elevar ao
nível da ocasião. Dificuldades despertam o vigor e
engendram a força; e, frequentemente acontecerá que,

26
verve
Crime e punição

quanto mais você me restringe e oprime, mais minhas


faculdades se elevarão, até que elas superem todos os
obstáculos da opressão.”
A opinião sobre a excelência da adversidade é
construída sobre um equívoco muito óbvio. Se nos
desinvestimos de paradoxo e singularidade, percebere-
mos que a adversidade é má, mas que há algo pior. A
mente não pode existir ou ser aperfeiçoada sem a recep-
ção de idéias. Ela se aperfeiçoará mais em um estado
calamitoso do que em um estado letárgico. Um homem
que foi tratado com severidade será, às vezes, considera-
do mais sábio no fim de sua carreira do que um homem
tratado com negligência. Mas, porque a severidade é uma
forma de gerar pensamentos, não se segue que seja a
melhor.
Já foi demonstrado que a coerção, considerada abso-
lutamente, é injustiça. Pode a injustiça ser o melhor modo
de disseminar princípios de igualdade e razão? A opressão,
exercida até um certo ponto, é a mais destrutiva das
coisas. O que é a opressão além daquilo que habituou a
espécie humana a tanta ignorância e tanto vício por
tantos milhares de anos? É provável que algo que tenha
causado consequências tão terríveis possa, sob quaisquer
circunstâncias, ser transformado em uma fonte de bem
eminente? Toda coerção azeda a mente. Aquele que sofre
é, na prática, convencido da falta de uma filantropia
suficientemente expansiva naqueles com os quais
mantém relações. Ele sente que a justiça prevalece
apenas com grandes limitações e que ele não pode contar
em ser tratado com justiça. A lição que a coerção lhe
ensina é: “Submeta-se à força e abjure a razão. Não seja
guiado pelas convicções de seu entendimento, mas pela
parte mais primitiva de sua natureza, o temor da dor
pessoal e um fascínio compulsório pela injustiça dos
outros.” Foi assim que Elizabeth da Inglaterra e Frederic

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da Prússia foram educados na escola da adversidade. A


forma pela qual eles tiraram vantagem desta disciplina
foi encontrando recursos em suas próprias mentes que
lhes permitiram considerar, com um espírito livre, a
violência empregada contra eles. Pode este ser o melhor
modo de formar homens para a virtude? Se for, talvez
seja necessário também que a coerção que usamos seja
flagrantemente injusta, já que o aperfeiçoamento parece
residir não na submissão mas na resistência.
É certo, porém, que a verdade é adequada para esti-
mular a mente, sem a ajuda da adversidade. Por verda-
de, entende-se aqui uma visão justa de todas as atrações
da indústria, do conhecimento e da benevolência. Se eu
entendo o valor de qualquer atividade, não a irei realizar?
Se o entendo claramente, não a realizarei com zelo? Se
você quer despertar minha mente da forma mais eficaz,
fale aos sentimentos genuínos e honoráveis da minha
natureza. Para esse fim, entenda completamente aquilo
que você quer recomendar a mim, impregne sua mente
com as evidências disso e fale a partir da clareza de sua
visão e com total convicção. Se fôssemos acostumados a
uma educação na qual a verdade nunca fosse tratada com
indolência ou contada de forma que traísse sua
excelência, na qual o preceptor se submetesse à perpétua
disciplina de encontrar uma forma de comunicá-la com
brevidade e força, mas sem preconceito e aspereza, só
seria possível crer que essa educação seria mais eficaz
para o aperfeiçoamento da mente do que todos os modos
de coerção raivosos ou benevolentes já concebidos.
O último objetivo ao que a punição se propõe é o do
exemplo. Se os legisladores tivessem confinado suas
opiniões à reforma e à contenção, seus exercícios de poder,
apesar de equivocados, ainda teriam estampado em si o
selo da humanidade. Mas, no momento em que a
vingança se apresenta como estímulo de um lado e como

28
verve
Crime e punição

exibição de um exemplo terrível de outro, nenhuma


barbaridade pode ser considerada grande demais.
Crueldade engenhosa foi empregada para achar novas
formas de torturar a vítima ou tornar o espetáculo mais
impressionante e horrendo.
Muito tempo já se passou desde que foi observado que
o sistema político constantemente fracassa em seus
objetivos. Refinamentos ainda maiores de barbarismo
produzem certa impressão enquanto são novidade, mas
essa impressão logo desaparece e toda uma variedade de
invenções sombrias são exauridas em vão.7 A razão para
este fenômeno é a de que, qualquer que seja a força com
a qual a novidade golpeia a imaginação, a natureza
inerente da situação rapidamente retorna e afirma seu
império indestrutível. Sentimos as emergências às quais
somos expostos e sentimos, ou achamos que sentimos,
os ditames da razão nos incitando a seu alívio. Quaisquer
idéias que possamos formar em oposição aos mandados
da lei, tiramo-nas, com sinceridade, apesar de que
podemos misturá-las com alguns equívocos, das condições
essenciais de nossa existência. Comparamo-nas com o
despotismo que a sociedade exerce em sua capacidade
corporativa; e, quanto mais frequente a nossa compa-
ração, mais altos se tornam os nossos murmúrios e nossa
indignação contra a injustiça a qual somos expostos. Mas
a indignação não é um sentimento que concilia; a
barbaridade não possui nenhum dos atributos da
persuasão. Ela pode aterrorizar, mas não pode produzir
em nós candura e docilidade. Ulcerados dessa forma pela
injustiça, nossas atribulações, nossas tentações e toda a
eloquência do sentimento apresentam-se repetidamente.
É de se admirar que se provem vitoriosos?
A punição para dar exemplo é passível de receber to-
das as objeções que são exortadas contra a punição para
a contenção ou para a reforma e a certas outras objeções

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peculiares a si própria. Ela é empregada contra uma


pessoa que não está mais cometendo uma ofensa e a
qual podemos apenas suspeitar que cometerá mais ofen-
sas. Ela subjuga argumentos, razão e convicção e exige
que consideremos tal espécie de conduta nosso dever,
porque essa é a vontade de nossos superiores e porque,
como somos ensinados a partir do exemplo em questão,
eles nos farão nos arrependermos de nossa teimosia se
pensarmos de outra forma. Somado a isso, somos lem-
brados de que, quando sou submetido ao sofrimento como
exemplo para outros, sou eu mesmo tratado com negli-
gência arrogante, como se fosse totalmente incapaz de
sentimentos e moralidade. Se você me inflinge dor, você
é justo ou injusto. Se você for justo, parece necessário
que haja algo em mim que me torne o sujeito adequado
da dor, seja merecimento absoluto, o que é absurdo, ou
males que devo ser esperado a cometer, ou, em último
lugar, uma propensão do que você faz a produzir minha
reforma. Se qualquer uma dessas for a razão que torna
justo o sofrimento a que sou submetido, o exemplo está
fora de questão: pode ser uma consequência acidental do
procedimento, mas não faz parte de seu princípio. É
certamente um esquema muito simplório e injusto de
orientação dos sentimentos da humanidade submeter um
indivíduo à tortura ou morte, a respeito do qual este
tratamento não tem nenhuma adequação direta, mera-
mente para que possamos obrigar outros a olhar e deri-
var instrução de seu sofrimento. Este argumento deriva-
rá ainda mais força dos raciocínios do próximo capítulo.

Capítulo IV
Sobre a aplicação da punição
Uma consideração adicional para demonstrar não
apenas o absurdo da punição para dar exemplo, mas tam-

30
verve
Crime e punição

bém a injustiça da punição em geral, é a de que a delin-


quência e a punição são sempre incomensuráveis.
Nenhuma medida de deliquência foi jamais descoberta,
e nunca o será. Nenhum crime já foi igual a outro; e
portanto sua redução, implícita ou explicitamente, a clas-
ses gerais, que a idéia de exemplo implica, é absurda.
Também não é menos absurdo tentar criar uma propor-
ção entre o grau de sofrimento e o grau de delin-
quência, quando o último não pode ser jamais descober-
to. Dediquemo-nos a esclarecer a verdade dessas
proposições.
O homem, como toda máquina cujas operações podem
ser objeto de nossos sentidos, pode, em um certo sentido,
ser considerado como consistindo de duas partes, a
externa e a interna. A forma que suas ações assumem é
uma coisa; o princípio a partir do qual elas fluem é outra.
É possível conhecermos a primeira; em relação ao último
não há nenhuma espécie de evidência que possa nos
informar adequadamente. Devemos tornar o grau de
sofrimento proporcional à primeira ou ao último, ao mal
causado à comunidade ou à quantidade de más-intenções
concebidas pelo criminoso? Um filósofo, sensível à
inescrutabilidade da intenção, declarou-se favorável a
não considerar nada além do mal causado. O humano e
benevolente Beccaria tratou isso como uma verdade da
maior importância, “infelizmente negligenciada pela
maioria dos membros das instituições políticas, e
preservada apenas na especulação desapaixonada de
filósofos”.8
É verdade que podemos, em muitos casos, estar tole-
ravelmente informados a respeito de ações externas e
que parecerá, à primeira vista, não haver grande dificul-
dade em reduzi-las a regras gerais. O assassinato, de
acordo com esse sistema, será qualquer tipo de ação
afetando meu próximo cujas consequências resultem em

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morte. As dificuldades do magistrado são muito reduzi-


das por esse princípio, apesar de de forma nenhuma
serem aniquiladas. É conhecido quantos discursos —
sutis, ridículos ou trágicos de acordo com o temperamen-
to com o qual os vemos — foram pronunciados para
determinar, em cada caso particular, se a ação foi ou
não foi a real causa da morte. Isso não pode ser nunca
afirmado demonstrativamente.
Mas, desprezando essa dificuldade, quão complicada é
a desigualdade que advém de tratar da mesma forma todos
os casos em que um homem causou a morte de outro?
Deveríamos abolir as distinções imperfeitas, que até as
mais odiosas tiranias consideraram-se compelidas a
admitir, entre acidente, homicídio doloso e homicídio
culposo? Deveríamos inflingir ao homem que, tentando
salvar a vida de um companheiro que se afoga, emborca
um barco e causa a morte de um segundo, o mesmo
sofrimento que àquele que, por causa de hábitos sombri-
os e maléficos, é incitado a matar seu benfeitor? Na
realidade, o sofrimento infligido pela comunidade não é
de forma nenhuma o mesmo nesses dois casos; o sofri-
mento infligido pela comunidade deve ser medido pelas
disposições anti-sociais do criminoso, e, se essa fosse a
visão correta a respeito do assunto, pelo encorajamento
dado a inclinações semelhantes que a sua impunidade
causaria. Mas isso nos leva imediatamente da ação ex-
terna à consideração ilimitada da intenção do autor. A
injustiça das leis escritas da sociedade é precisamente
da mesma natureza, apesar de num grau não tão atroz,
no agrupamento que introduz de diversas intenções, como
se este agrupamento fosse ilimitado. Um homem
cometerá assassinato para eliminar uma testemunha
de sua depravação que, de outra forma, reagiria e o expo-
ria ao mundo. Um segundo, porque não pode suportar a
sinceridade com o qual é informado de seus vícios. Um

32
verve
Crime e punição

terceiro, por causa de sua inveja insuportável de méritos


superiores. Um quarto, porque sabe que seu adversário
planeja um ato pleno de males e não imagina outro modo
de evitar sua realização. Um quinto, em defesa da vida
de seu pai ou da castidade de sua filha. Cada um desses
homens, com exceção talvez do último, pode agir por um
impulso momentâneo ou por algum dos infinitos tons e
graus de deliberação. Concederia você uma única
punição a todas essas variedades de ação? Pode um
sistema que reduz todas essas desigualdades a um mesmo
nível e confunde essas diferenças ser produtivo ou bom?
Para tornarmos os homens benevolentes em relação uns
aos outros devemos nós subverter a natureza do bem e
do mal? Ou não será esse sistema, a partir de quaisquer
que sejam as intenções comunicadas, calculado da forma
mais poderosa para produzir danos generalizados? Pode
haver dano maior do que inscrever, como de fato o
fazemos, em nossos tribunais “Esta é a Sala da Justiça,
na qual os princípios do bem e do mal são diária e
sistematicamente desprezados e ofensas de mil
magnitudes diversas agrupadas pela insolente letargia
do legislador e pelo egoísmo insensível daqueles que
confiscam o produto do trabalho geral para seu gozo
particular!”
Mas suponha, em segundo lugar, que tomássemos a
intenção do criminoso e os danos futuros a serem daí
deduzidos, como medida de aperfeiçoamento. Este seria
sem dúvida um avanço considerável. Esta seria a ver-
dadeira forma de reconciliar a punição e a justiça, se,
por razões já elencadas, elas não fossem, em sua própria
natureza, incompatíveis. Deve ser ardorosamente
desejado que este modo de administrar a retribuição seja
seriamente experimentado. Espera-se que os homens
tentem, um dia, estabelecer um critério preciso, e não
continuem para sempre, como fizeram até hoje, com um

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desprezo soberano pela igualdade e pela razão. Esta


tentativa levaria, por meio de um processo muito óbvio,
à abolição da punição.
Ela levaria imediatamente à abolição da lei penal. Um
juiz esclarecido e razoável recorreria, para decidir sobre
a causa diante de si, a código nenhum além do da razão.
Ele sentiria o absurdo de outros homens o ensinando o
que deveria pensar e fingir entender o caso antes de ele
ter acontecido melhor do que aqueles que tiveram todas
as circunstâncias sob sua inspeção. Ele sentiria o absurdo
de comparar toda ofensa com um certo número de
medidas previamente inventadas e obrigá-la a se
encaixar em uma delas. Mas teremos, em breve, ocasião
para retornar a esse assunto.9
A grande vantagem que resultaria de homens deter-
minarem-se a serem governados, no que diz respeito ao
sofrimento a ser infligido, pelos motivos do criminoso e
os possíveis danos futuros, consistiria em eles serem
ensinados o quão vã e presunçosa é sua tentativa de
empregar o bastão da retribuição. Quem, em sã consci-
ência, pretenderá determinar os motivos que me influ-
enciaram em qualquer artigo de minha conduta e base-
ar neles uma pena séria, talvez capital, contra mim? A
tentativa seria desigual e absurda, mesmo que o indiví-
duo que me julgasse tivesse a maior intimidade com a
minha série de ações. Quão frequentemente um homem
não ilude a si próprio a respeito dos motivos de sua con-
duta e atribui a um princípio aquilo que, na realidade,
adveio de outro? Podemos esperar que um mero especta-
dor forme um julgamento suficientemente correto quando
aquele que tem todas as fontes de informação em suas
mãos está ainda assim equivocado? Não seria esse o
momento para uma disputa entre filósofos sobre se sou
capaz de fazer o bem a meu próximo para seu próprio bem?
“Para afirmar as intenções de um homem, é necessário

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verve
Crime e punição

estar precisamente informado da real impressão dos


objetos sobre seus sentidos e da disposição prévia de sua
mente, ambas as quais variam em pessoas diferentes, e
mesmo na mesma pessoa em momentos diferentes, com
uma rapidez proporcional à sucessão de idéias, paixões e
circunstâncias.”10 Enquanto isso, os indivíduos cuja tarefa
é julgar esse mistério inescrutável não possuem nenhum
conhecimento anterior, totais estranhos que são à pessoa
acusada e coletando seus únicos materiais da informação
de duas ou três testemunhas ignorantes e tendenciosas.
Qual cadeia vasta de motivos reais e possíveis entra
na história de um homem que foi levado a destruir a vida
de outro? Consegue você determinar o quanto havia de
uma percepção de justiça e quanto de simples egoísmo?
Quanto de uma paixão repentina e quanto de uma
depravidão enraizada? Quanto de provocação intolerável
e quanto de mal espontâneo? Quanto daquela repentina
insanidade que apressa a mente a agir de certa forma
por um tipo de incontinência natural, quase sem motivo
identificável, e quanto de hábito incurável? Considere a
incerteza da história. Não discutimos até hoje se Cícero
era um homem mais vaidoso ou mais virtuoso, se os
heróis da antiga Roma eram impelidos pela vaidade da
glória ou pela benevolência desinteressada, se Voltaire
era a vergonha de sua espécie ou seu mais intrépido e
generoso benfeitor? A respeito desses assuntos homens
moderados repetidamente citam a impenetrabilidade do
coração humano. Irão homens moderados fingir que não
temos uma centena mais de evidências nas quais basear
nosso julgamento nestes casos do que no do homem que
foi julgado na semana passada no Old Bailey? Essa parte
do assunto será colocada sob uma luz espantosa se
lembrarmos das narrativas que foram publicadas por
criminosos condenados. Quão diferente é a luz sob a qual
colocam as transações que se provaram fatais para eles

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a partir das construção que lhes foi imposta por seus


juízes? E ainda assim essas narrativas foram escritas
sob as circunstâncias mais terríveis, muitas delas sem
a menor esperança de mitigar seu destino e com marcas
da mais profunda sinceridade.
Quem dirá que o juiz, com seu magro lote de informa-
ção, era mais competente para decidir a respeito dos
motivos do que o prisioneiro após o mais severo escrutí-
nio de sua própria mente? Quão escassos são os julga-
mentos terminando em um veredicto de culpado que um
homem humanitário e justo consegue ler sem sentir uma
repugnância incontrolável pelo veredicto? Se há uma
visão mais humilhante do que todas as outras, ela é a de
uma vítima miserável reconhecendo a justiça de uma
sentença contra a qual todo espectador esclarecido
exclama com horror.
Mas isso não é tudo. O motivo, quando afirmado, é uma
parte menor da questão. O ponto sobre o qual apenas a
sociedade poderia julgar de forma justa, se tivesse
qualquer jurisdição no caso, é um ponto, se é que isso é
possível, ainda mais inescrutável do que aquele de que
estávamos tratando. Uma inquisição legal sobre o que se
passa nas mentes dos homens, considerada à parte, todos
os debatedores racionais concordariam em condenar. O
que queremos determinar não é a intenção do ofensor,
mas a chance de ele ofender novamente. Para esse fim,
investigamos em primeiro lugar sua intenção. Mas,
quando a descobrimos, nossa tarefa apenas começou. Esse
é um dos materiais que nos permite calcular a
probabilidade de ele repetir a ofensa ou de ser imitado
por outros. Era este um estado habitual de sua mente ou
uma crise em sua história que provavelmente
permanecerá sendo única? Qual efeito produziu sobre ele
a experiência; ou qual é a probabilidade de que o
desconforto e sofrimento que se seguem à realização de

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verve
Crime e punição

um mal tenham produzido uma mudança salutar em sua


mente? Será ele no futuro colocado em circunstâncias
que o impelirão à mesma enormidade? A precaução é,
por sua própria natureza, um passo altamente precário.
A precaução que consiste em inflingir danos a outro será,
às vezes, odiosa para uma mente equilibrada. Enquanto
isso, que seja observado que tudo aquilo que foi dito sobre
a incerteza do crime tende a agravar a injustiça da punição
para dar exemplo. Já que o crime que condeno em um
homem não pode ser jamais o mesmo que o crime de
outro, é como se eu sentenciasse a uma pena terrível
pessoas com um olho só para evitar que qualquer homem
no futuro destrua seus olhos propositadamente.
Mais um argumento, calculado para provar o absurdo
de tentar tornar a delinqüência e o sofrimento proporcio-
nais um ao outro pode ser derivado da imperfeição da
evidência. A veracidade das testemunhas, para um es-
pectador imparcial, é objeto de dúvida constante. Sua
competência, no que diz respeito à observação justa e à
precisão do entendimento, será ainda mais duvidosa.
Imparcialidade absoluta seria absurdo esperar delas.
Quanto cada palavra e cada ação será distorcida pelo meio
pelo qual é transmitida? A culpa de um homem, para usar
a fraseologia da lei, pode ser provada por provas diretas
ou por provas circunstanciais. Sou encontrado próximo
de um corpo de um homem recém-assassinado. Saio de
seu apartamento com uma faca cheia de sangue nas mãos
ou com sangue em minhas roupas. Se, sob essas
circunstâncias, e inesperadamente acusado de
assassinato, hesito em meu discurso ou demonstro
perturbação em minha postura, essa é uma prova
adicional. Quem não sabe que não há nenhum homem
na Inglaterra, não importa o quão livre de culpa a vida
que leva, seguro de que não acabará na forca? Essa é
uma das bênçãos mais óbvias e universais que o governo

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civil pode conceder. No que é chamado de evidência direta,


é necessário identificar a pessoa do ofensor. Quantos
exemplos registrados não há de pessoas condenadas com
base em provas e as quais, depois de suas mortes, foram
provadas inteiramente inocentes. Walter Raleigh, quando
prisioneiro na Torre, ouviu vozes altas acompanhadas
de golpes sob sua janela. Ele questionou várias
testemunhas oculares, que entraram em seu
apartamento em sucessão, sobre a natureza da transação.
Mas a história que elas contaram variou tanto no que diz
respeito às circunstâncias materiais que ele não
conseguiu formar nenhuma idéia justa sobre o que havia
ocorrido. Ele aplicou isso para provar a incerteza da
história. O paralelo teria sido mais impressionante se
ele o tivesse aplicado a processos criminais.
Mas supondo que a ação externa seja a primeira parte
da questão a ser determinada, temos em seguida que
descobrir pelo mesmo meio obscuro e confuso a inten-
ção. Quantos homens devo escolher para confiar a tarefa
de construir uma narrativa de alguma transação inte-
ressante e delicada de minha vida? Quantos, apesar de
em termos físicos terem sido testemunhas do que foi feito,
descreveriam de forma justa meus motivos e reportari-
am e interpretariam minha palavras de forma apro-
priada? Ainda assim, em uma questão que envolve minha
vida, minha reputação e minha futura utilidade, sou
obrigado a confiar em qualquer observador vulgar e casual.
Um homem apropriadamente confiante na força da
verdade consideraria um julgamento público a respeito
de seu caráter um infortúnio trivial. Mas um julgamento
criminal em um tribunal de justiça é inexpres-
savelmente diferente. Poucos homens, em tais circuns-
tâncias, conseguem manter a necessária calma mental
e falta de embaraço. Mas, se conseguem, é com ouvidos
frios e relutantes que sua história é ouvida. Se o crime

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verve
Crime e punição

do qual é acusado é atroz, já estão metade condenados


pelas paixões da humanidade antes de sua causa ser
levada a julgamento. Tudo o que lhe interessa é decidido
em meio à primeira explosão de indignação; e já é bom
demais se sua história for imparcialmente considerada
dez anos depois de seu corpo ter apodrecido no túmulo.
Por que é que, se um tempo considerável tiver passado
entre o julgamento e a execução, vemos a severidade do
público transformada em compaixão? Pela mesma razão
que um mestre, se não espancar seu escravo no momento
de ressentimento, frequentemente sente uma repug-
nância ao espancamento em si. Não tanto, como é
comumente suposto, por causa do esquecimento da
ofensa, mas porque os sentimentos da razão têm tempo
de reincidir e ele sente, de forma confusa e indefinida, a
injustiça da punição. Assim, toda consideração tende a
demonstrar que um homem julgado por um crime é um
pobre indivíduo abandonado, com toda a força da
comunidade conspirando para sua ruína. O acusado que
escapa, não importa o quão consciente de sua inocência,
levanta seus braços em espanto e mal pode crer em seus
sentidos, tendo tantas circunstâncias poderosas contra
si. É fácil para um homem que deseja se livrar de uma
acusação falar a respeito de ser levado a julgamento; mas
nenhum homem que sabe o que é um julgamento jamais
desejou este tormento.

Capítulo V
Sobre a punição considerada como expediente tempo-
rário
Até aqui, falamos sobre os méritos gerais da punição,
considerada como um instrumento a ser aplicado no
governo dos homens. É hora de investigarmos o pretexto
que pode ser oferecido em sua defesa como um expediente

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temporário. Nenhuma introdução parece mais apropriada


a esta investigação do que uma análise do assunto em
escala abrangente, para que o leitor possa se inspirar
com uma repugnância adequada a um sistema tão
pernicioso e esteja firmemente preparado para resistir à
sua admissão, em todos os casos em que sua necessidade
não possa ser claramente demonstrada.
Os argumentos favoráveis à punição como um expe-
diente temporário são óbvios. Pode-se alegar que “não
importa o quão adequada uma imunidade total a esse
respeito possa ser à natureza da mente considerada
absolutamente, é impraticável em relação a homens
como os encontramos hoje. A espécie humana está pre-
sentemente infectada por mil vícios, a prole da injustiça
estabelecida. Os homens são plenos de apetites artifici-
ais e hábitos perversos; obstinados no mal, invete-
rados no egoísmo, sem simpatia e consideração pelo bem
dos outros. Com o tempo eles podem se acomodar às lições
da razão, mas presentemente estão surdos a seus
ditames e ansiosos para cometer toda espécie de
injustiça.”
Uma das observações que se sugerem mais irresisti-
velmente a essa afirmação é a de que a punição não tem
propensão a preparar os homens para um estado no qual
a punição cessará de existir. Seria inútil esperar que a
força começasse a fazer aquilo que é tarefa da verdade
terminar, para que homens entrassem, por meio da
severidade e da violência, com auspícios mais favoráveis
nas escolas da razão.
Mas, omitindo essa grosseira representação em defe-
sa da suposta utilidade da punição, é importante, em
primeiro lugar, observar que há um remédio completo e
indiscutível contra esses males, a cura dos quais foi até
agora buscada na punição, que está ao alcance de toda

40
verve
Crime e punição

comunidade, quando quer que seja persuadida a adotá-


lo. Há um estado de sociedade, cujas linhas gerais já foram
delineadas 11, que, pela mera simplicidade de sua
estrutura, levaria ao extermínio da ofensa: um estado no
qual a tentação seria quase desconhecida, a verdade
elevada ao nível de todas as suposições e o vício suficien-
temente controlado pela reprovação geral e a sóbria
condenação de todo espectador. Essas são as consequên-
cias que se pode esperar de uma abolição da arte e do
mistério de governar; enquanto, por outro lado, os
inúmeros assassinatos que são diariamente cometidos
sob a sanção das formas legais serão apenas associados
á noção perniciosa de um território extenso, aos sonhos
de glória, império e grandeza nacional que até hoje
provaram ser a ruína da espécie humana, sem ter
produzido benefícios e felicidade totais a nenhum indiví-
duo que seja.
Outra observação que essa consideração sugere ime-
diatamente é a de que não é, como supõe a objeção, abso-
lutamente necessário que a humanidade passe por um
estado de purificação e seja libertada das tendências
maléficas que governos mal constituídos implantaram
antes de poder ser poupada da coerção à qual é atual-
mente sujeitada. Seu estado seria de fato sem esperan-
ças se fosse necessário que a cura ocorresse antes de
podermos descartar as práticas às quais as doenças devem
seus mais alarmantes sintomas. Mas é característico de
uma sociedade bem formada não apenas manter em seus
membros as virtudes das quais já são imbuídos mas
extirpar seus erros e torná-los benevolentes e justos uns
em relação aos outros. Isso nos liberta da influência dos
fantasmas que antes nos iludiram, demonstra-nos como
nosso próprio bem consiste na independência e na
integridade e nos obriga, por meio do consentimento geral
de nossos concidadãos, aos ditames da razão mais

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fortemente do que às rédeas do ferro. Não é aos sãos de


saúde intelectual que o remédio tão urgentemente se
dirige, mas aos infectados com as doenças da mente. As
propensões maléficas da humanidade não apenas tendem
a adiar a abolição da coerção, mas também a impedem
de perceber as vantagens da simplicidade política. O
momento no qual ela for persuadida a adotar qualquer
plano racional para esta abolição é o momento no qual a
abolição deve ser realizada.
Uma consequência adicional que pode ser deduzida
dos princípios que foram apresentados é a de que uma
coerção a ser empregada sobre seus próprios membros
não pode ser nunca o dever de uma comunidade. A co-
munidade é sempre competente para mudar suas insti-
tuições e assim extirpar a ofensa de forma infinitamen-
te mais racional do que aquela usada pela punição. Se,
neste sentido, a punição foi considerada necessária como
expediente temporário, a opinião admite uma refutação
satisfatória. A punição não pode em momento algum, seja
permanente ou provisoriamente, fazer parte de qualquer
sistema político baseado nos princípios da razão.
Mas, apesar de, nesse sentido, a punição não poder
ser admitida nem mesmo como um expediente necessá-
rio, há um outro sentido na qual ela o pode. A coerção,
exercida em nome de Estados sobre seus respectivos
membros, não pode ser o dever da comunidade; mas a
coerção pode ser o dever de indivíduos dentro da comuni-
dade. O dever dos indivíduos, em sua capacidade política,
é, em primeiro lugar, o de dedicarem-se a melhorar o
estado da sociedade na qual existem e o de serem
infatigáveis em detectarem suas imperfeições. Mas, em
segundo lugar, é aconselhável lembrarem-se de que não
podem esperar que seus esforços tenham sucesso ime-
diato, de que o progresso do conhecimento foi sempre
gradual e de que a sua obrigação de promover o bem-estar

42
verve
Crime e punição

da sociedade durante um período intermediário é


certamente não menos real do que a sua obrigação de
promover sua vantagem futura e permanente. Mesmo a
vantagem futura não pode ser efetivamente perseguida
se for inatenta à segurança presente. Mas, enquanto as
nações forem equivocadas o suficiente para tolerar um
governo complexo e um território extenso, a coerção será
indispensavelmente necessária à segurança geral. É,
portanto, dever dos indivíduos ter participação ativa
ocasionalmente em tanta coerção e em tantas partes do
sistema existente quantas sejam suficientes para
impedir a disseminação universal da violência e do
tumulto. É desmerecedor de um investigador racional
dizer “Essas coisas são necessárias, mas não sou obrigado
a participar delas”. Se elas forem necessárias, são
necessárias para o bem-estar geral; consequen-
temente, são virtuosas, e nenhum homem justo recusar-
se-á a realizá-las.
O dever dos indivíduos é, nesse respeito, semelhante
ao dever de comunidades independentes no que diz
respeito à guerra. Sabe-se qual tem sido a política preva-
lecente de príncipes sob este título. Príncipes, especial-
mente os mais ativos e empreendedores deles, são
tomados por uma fúria inextinguível para aumentar seus
domínios. A conduta mais inocente e inofensiva da parte
de seus vizinhos não será sempre uma segurança
suficiente contra sua ambição. Eles de fato tentam
disfarçar sua violência sob pretextos plausíveis; mas se
sabe que, onde esses pretextos não ocorrem, eles não se
tornam, por causa disso, dispostos a desistir de suas
intenções. Imaginemos então uma terra de homens li-
vres invadida por um desses déspotas. Que conduta lhes
convém adotar? Ainda não somos sábios o suficiente para
fazer a espada cair das mãos de nossos opressores pela
mera força da razão. Se fôssemos determinados, como os

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quakers, nem a nos opor nem a, quando isso fosse


possível, nos submeter a eles, muito derramamento de
sangue poderia talvez ser evitado: mas um mal mais
duradouro resultaria disso. Eles erguiriam fortalezas em
nosso país e nos atormentariam com injustiça perpétua.
Supondo que admitíssemos até que, se a nação invadida
se portasse com constância inalterável, os invasores
cansariam-se de sua usurpação estéril, isso provaria
pouca coisa. Presentemente temos de nos conten-
tar não com nações de filósofos mas com nações de
homens cujas virtudes são amalgamadas com a fraque-
za, a flutuação e a inconstância. Presentemente, é nosso
dever refletir sobre o procedimento que, nessas nações,
produziria o resultado mais favorável. É portanto
apropriado que escolhamos o modo menos calamitoso de
obrigar o inimigo a retirar-se rapidamente de nossos
territórios.
O caso da defesa individual é da mesma natureza. Não
parece que nenhuma vantagem possa resultar da minha
resignação, adequada às desvantagens do sofrimento de
minha própria vida, ou da de outro, um membro
particularmente valioso da comunidade, como pode
acontecer, em tornar-me presa do primeiro brutamontes
que se inclinar a destruí-la. A resignação, neste caso,
será a conduta de um indivíduo singular, e seu efeito
pode muito provavelmente ser inútil. Parece, portanto,
que eu devo impedir o vilão de executar seus planos,
apesar de à custa de um certo grau de coerção.
O caso de um ofensor que parece estar endurecido de
culpa, e viola a segurança social, é claramente paralelo
a estes. Devo pegar em armas contra o déspota por quem
meu país é invadido, porque minha capacidade não me
permite convencê-lo a desistir por meio de argumentos
e porque meus conterrâneos não preservarão sua
independência intelectual em meio à opressão. Pela

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verve
Crime e punição

mesma razão, devo pegar em armas contra o saqueador


doméstico, porque sou incapaz de persuadi-lo a desistir
ou à comunidade de adotar uma instituição política justa
por meio da qual a segurança poderia ser mantida de forma
consistente com a abolição da punição.
Para entender a total extensão desse dever, é impres-
cindível observar que a anarquia como é habitualmente
entendida e uma forma bem concebida de sociedade sem
governo são extremamente diversas. Se o governo da Grã-
Bretanha fosse dissolvido amanhã, a menos que essa
dissolução fosse resultado de visões consistentes e
digeridas sobre a verdade política, anteriormente
disseminadas entre os habitantes, estaria longe de le-
var à abolição da violência. Indivíduos, libertados dos
terrores por meio dos quais estavam acostumados a ser
contidos e não ainda colocados sob a contenção mais feliz
e racional da inspeção pública ou convencidos da sabedoria
de tolerância recíproca, explodiriam em atos de injustiça,
enquanto outros indivíduos, que desejavam apenas que
essa irregularidade cessasse, achariam-se obrigados a
se associar para suprimir a força. Teríamos todos os
males e a contenção obrigatória de um governo regular e
ao mesmo tempo seríamos privados daquela tranquilidade
e lazer que são suas únicas vantagens.
A anarquia, por sua própria natureza, é um mal de
curta duração. Quanto mais horríveis forem os males que
ela inflige, mais tem de se apressar em direção a um
fim. Mas, ainda assim, é necessário que consideremos
tanto qual é a quantidade de mal que ela produz em um
certo período e qual é o cenário na qual ela promete
terminar. A primeira vítima que é sacrificada em seu
altar é a segurança pessoal. Todo homem que tem um
inimigo secreto deve temer o sabre desse inimigo. Não
há dúvida de que, na pior anarquia, multidões de homens
dormirão em feliz obscuridade. Mas ai daquele que, por

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qualquer motivo, provocar o ciúme ou a suspeita de seu


vizinho! A ferocidade sem limites o marca instantanea-
mente como sua presa. Este é de fato o principal mal de
tal estado, o de que os mais sábios, os mais brilhantes, os
mais generosos e corajosos serão frequentemente
expostos a um destino imaturo. Em tal estado, precisamos
dizer adeus às pacientes elocubrações do filósofo e ao
trabalho das noites em claro. Tudo é aqui, como a
sociedade na qual existe, impaciente e teimoso. A mente
frequentemente avançará, mas sua aparência será a do
brilho efêmero do meteoro, não a da amena e constante
iluminação do sol. Homens que avançam com energia
repentina parecer-se-ão em temperamento com o estado
que os levou a essa grandeza inesperada. Eles serão
rigorosos, insensíveis e ferozes; e suas paixões
desgovernadas frequentemente não terminarão na
igualdade, mas os incitarão a agarrarem-se ao poder.
Apesar de todos esses males, não podemos apressada-
mente concluir que os males da anarquia são piores do
que aqueles os quais o governo é qualificado a produzir.
No que diz respeito à segurança pessoal, a anarquia talvez
seja uma condição mais deplorável que o despotismo; mas
devemos considerar que o despostismo é tão perene
quanto a anarquia é transitória. O despotismo, tal como
o que existia sob os imperadores romanos, marcava a
riqueza como sua vítima e a culpa de ser rico nunca
fracassava em condenar o acusado de qualquer outro
crime. Esse despotismo continuou por séculos. O
despotismo tal como existia na Europa moderna sempre
foi pleno de ciúmes e intriga, uma ferramenta para a ira
de cortesãos e o ressentimento das mulheres. Aquele que
ousava pronunciar uma palavra contra o tirano ou tentar
instruir seus conterrâneos a defender seus interesses
nunca estava seguro de que o próximo momento não o
conduziria à forca. Aqui o despotismo exerceu sua

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verve
Crime e punição

vingança à vontade; e quarenta anos de miséria e soli-


dão foram algumas vezes insuficientes para saciar sua
fúria. E isso não foi tudo. Uma usurpação que desafiava
todas as regras da justiça era obrigada a comprar sua
própria segurança assistindo a tirania em todas as suas
fileiras subordinadas. Por isso os direitos da nobreza, da
vassalagem feudal, da primogenitura, das multas e da
herança. Quando a filosofia da lei for corretamente en-
tendida, a verdadeira chave para seu espírito e sua his-
tória será provavelmente encontrada, não, como alguns
homens imaginam, em um desejo de assegurar a felici-
dade da humanidade, mas no contrato venal pelo qual
tiranos superiores adquiriram a obediência e aliança de
seus inferiores.
Não há nenhum ponto restante no qual a anarquia e o
despotismo são fortemente contrastados um ao outro. A
anarquia desperta o pensamento e difunde energia e
empreendimento pela comunidade, apesar de não reali-
zar isso da melhor forma, já que seus frutos, forçados a
amadurecer, não podem ser esperados a ter a energia
vigorosa da verdadeira excelência. Mas, no despotismo,
a mente é armadilhada em uma igualdade do tipo mais
odioso. Tudo o que promete grandeza torna-se destinado
a perecer sob a mão exterminadora da suspeita e da
inveja. No despotismo, não há encorajamento à excelên-
cia. A mente se delicia na verborragia, em um campo no
qual toda sorte de distinção está a seu alcance. Um
esquema político sob o qual todos os homens são fixados
em classes ou reduzidos ao nível da poeira não dá nenhum
encorajamento a que eles persigam sua carreira. Os
habitantes de países nos quais o despotismo é completo
são frequentemente nada mais do que uma espécie mais
maléfica de brutalhões. A opressão os estimula ao mal e
à pirataria e a força superior da mente frequentemente

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se revela apenas em traições mais profundas ou


injustiças mais ousadas.
Uma das questões mais interessantes, em relação à
anarquia, diz respeito ao resultado no qual ela pode ser
esperada a terminar. As possibilidades em relação a esse
término são tão amplas quanto os vários esquemas de
sociedade que a imaginação humana pode conceber. A
anarquia pode terminar e já terminou em despotismo: e,
nesse caso, a introdução da anarquia só servirá para nos
afligir com uma variedade de males. Ela pode levar a uma
modificação do despotismo, um governo mais ameno e
igualitário do que aquele que existia antes. Ela não pode
levar imediatamente à melhor forma de sociedade, já que
necessariamente deixa a humanidade em um estado de
fermentação, o qual exige uma mão forte para controlar
e um processo longo e enfadonho para tranquilizar.
O cenário no qual a anarquia terminará depende prin-
cipalmente do estado mental pelo qual foi precedida. Toda
a humanidade estava em um estado de anarquia, ou seja,
sem governo, antes de estar em um estado político. Não
seria difícil encontrar, na história de quase qualquer país,
um período de anarquia. O povo da Inglaterra estava em
um estado de anarquia imediatamente antes da
Restauração. O povo romano estava em um estado de
anarquia no momento de sua secessão à Montanha
sagrada. Segue-se, portanto, que a anarquia não é nem
tão boa nem tão má no que diz respeito às suas
consequências quanto já foi argumentado algumas ve-
zes.
Pouco bem pode ser esperado de qualquer espécie de
anarquia que possa subsistir, por exemplo, entre selva-
gens americanos. Para que a anarquia se torne uma
lavoura de justiça futura, reflexão e investigação preci-
sam ter ocorrido antes, as regiões da filosofia precisam

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verve
Crime e punição

ter sido penetradas e a verdade política ter aberto a sua


escola à humanidade. É por essa razão que as revoluções
da era atual (já que a revolução é uma espécie de
anarquia) prometem um resultado final mais auspicioso
do que as revoluções de qualquer outro período. Pela
mesma razão, quanto mais tempo a anarquia puder ser
adiada, melhor ela será para a humanidade. A falsidade
pode lucrar com a precipitação da crise; mas uma
filantropia genuína e esclarecida esperará, com paciên-
cia inalterada, pela colheita da instrução. A chegada dessa
colheita pode ser lenta, mas talvez seja infalível. Se a
vigilância e a sabedoria tiverem sucesso em sua oposição
atual à anarquia, todo tipo de benefícios podem ser
esperados no final, imaculados pela violência e pelo
sangue.
Essas observações são calculadas para nos levar a uma
estimativa correta dos males da anarquia e, conse-
quentemente, para demonstrar a importância que
devemos dar à sua exclusão. O governo é frequentemen-
te uma fonte de males peculiares; mas uma visão mais
ampla nos ensinará como suportar esses males que a
experiência parece demonstrar serem inseparáveis do
benefício final da humanidade. Do estado selvagem ao
maior grau de civilização, o caminho é longo e árduo; e,
se aspiramos ao resultado final, devemos nos submeter
àquela porção de miséria e vício que necessariamente
preenche o espaço intermediário. Se nos libertássemos
dessas inconveniências, a menos que nossa tentativa
fosse tanto habilidosa quanto cautelosa, arriscaríamos,
por causa de nossa impaciência, produzir males piores
do que aqueles dos quais escaparíamos. Mas o primeiro
princípio da moral e da justiça é o de que, quando um de
dois males é inevitável, devemos escolher o menor.
Consequentemente, o homem justo e sábio, sendo inca-
paz, ainda, de introduzir a forma de sociedade que seu

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entendimento aprova, contribuirá para a defesa de tanta


coerção quanto for necessária para excluir o que é pior, a
anarquia.
Se a repressão como antagonista da repressão deve
em certos casos, e sob circunstâncias temporárias, ser
admitida, é uma investigação interessante determinar
qual dos três fins da punição já enumerados deve ser
selecionado pelos indivíduos pelos quais a punição é
empregada. E, aqui, será suficiente lembrar muito bre-
vemente os raciocínios que foram apresentados sob cada
um desses títulos. Não pode ser o da reforma. A reforma
é o aperfeiçoamento; e nada pode ocorrer em um homem
que mereça o nome de aperfeiçoamento que não seja por
um apelo ao julgamento imparcial de sua mente e aos
sentimentos essenciais de sua natureza. Se eu fosse
aperfeiçoar o caráter de um homem, quem não sabe que
o único modo eficaz de fazê-lo seria remover todas as
influências e incitamentos, induzi-lo a observar,
raciocinar e investigar, levá-lo a formar uma série de
sentimentos que são na realidade os seus próprios e não
servilmente moldados nos sentimentos de outro?
Conceber a compulsão e a punição como os meios
apropriados para a reforma é o sentimento de um bárba-
ro; a civilização e a ciência são calculadas para destruir
uma idéia tão feroz. Isso já foi universalmente admitido
e aprovado; agora está necessariamente em declínio.
A punição deve ter sucesso em impor os sentimentos
os quais é empregada para inculcar na mente do sofredor;
ou deve por força aliená-lo contra eles.
Esta última possibilidade não pode ser jamais a in-
tenção de seu empregador ou ter a tendência de justifi-
car seu emprego. Se assim o fosse, a punição deveria se
basear em desvios do vício, não em desvios da virtude.
Mas alienar a mente do sofredor do indivíduo que pune e

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verve
Crime e punição

dos sentimentos que ele tem seja talvez o efeito mais


comum da punição.
Suponhamos, contudo, que seu efeito seja de nature-
za oposta; que produza obediência e até mesmo mudança
de opinião. Em que tipo de ser se transforma o homem
assim reformado? Suas opiniões não mudam diante de
evidências. Sua conversão é o resultado do medo. A
servidão operou nele aquilo que a investigação e a
instrução liberais não conseguiram fazer.
A punição pode, sem dúvida, mudar o comportamento
de um homem. Pode transformar sua conduta externa de
maléfica em benéfica, apesar de não ser um expediente
muito promissor para esse propósito. Mas ela não pode
aperfeiçoar seus sentimentos ou levá-lo a procedimen-
tos corretos a não ser pelos motivos mais baixos e
deploráveis. Ela o transforma em um escravo, devotado a
um interesse próprio exclusivo e movido pelo medo, a
mais mesquinha das paixões egoístas.
Mas pode-se dizer que “não importa o quão fortes fo-
rem as razões que eu sou capaz de comunicar a um
homem para reformá-lo, ele pode estar agitado e impaci-
ente para ouvir postulações e consequentemente tornar
necessário que eu o rentenha à força até conseguir
instilar essas razões em sua mente”. É preciso lembrar
que a idéia aqui não é a de precaução, para evitar os
males que ele pode causar, já que isso pertence a outro
dos três fins da punição, o da contenção. Mas, separado
desta idéia, o argumento é particularmente fraco. Se as
razões que eu tiver para comunicar forem de natureza
energética e impressionante, se permanecem perspica-
zes e distintas em minha própria mente, será estranho
se não despertarem desde o início a curiosidade e a
atenção daquele a quem são dirigidas. É meu dever esco-
lher um motivo apropriado para comunicá-las e não trair

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a causa da justiça com uma impaciência fora de hora.


Esta prudência eu exerceria infalivelmente se meu
objetivo fosse obter algo interessante para mim; por que
deveria eu ser menos astuto ao propor o benefício de outro?
É uma forma miserável de preparar um homem para a
condenação obrigá-lo a ouvir argumentos que ele ansia
evitar. Estes argumentos provam não que devemos perder
a reforma de vista se a punição por qualquer outra razão
parecer necessária; mas que a reforma não pode ser de
forma racional transformada no objetivo da punição.
A punição em nome do exemplo é uma teoria que não
pode ser defendida justamente. O sofrimento que se propõe
infligir, considerado absolutamente, é ou certo ou errado.
Se for certo, deveria ser infligido por suas recomendações
intrínsecas. Se for errado, que tipo de exemplo revela?
Fazer algo em nome do exemplo é, em outras palavras,
fazer algo hoje para provar que farei algo semelhante
amanhã. Isso deve sempre ser uma consideração menor.
Nenhum argumento foi tão grosseiramente abusado como
este do exemplo. Encontramo-no, no que diz respeito à
guerra12, empregado para provar a retidão de minha ação
ao fazer algo considerado sob outras circunstâncias errado
para convencer a parte oposta que eu deveria, quando a
ocasião se oferecesse, fazer algo que é bom. Aquele que dá
o melhor exemplo é aquele que estuda cuidadosamente
os princípios da justiça e os pratica assiduamente. Um
efeito melhor será produzido sobre a sociedade humana
por minha aderência conscenciosa a eles do que por minha
ansiedade em criar uma expectativa específica a respeito
de minha conduta futura. Este argumento será ainda mais
reforçado se lembrarmo-nos do que já foi dito a respeito
das diferenças inexauríveis entre casos diferentes e da
impossibilidade de reduzi-lo a regras gerais.13
O terceiro objetivo da punição de acordo com a enume-
ração já feita é a contenção. Se a punição for, em qualquer

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verve
Crime e punição

caso, admitida, este é o único objetivo que pode se propor


de forma racional. As sérias objeções às quais, mesmo sob
esse ponto de vista, está sujeito, foram afirmadas em outra
parte da investigação14: a quantidade da necessidade
tendendo a sobrepujar essas objeções também já foi
considerada. O assunto deste capítulo é de grande
importância, em proporção a quantidade de tempo que pode
possivelmente passar antes que uma parte considerável
da humanidade seja persuadida a trocar a atual
complexidade de instituição política por uma forma que
promete sobrepujar a necessidade de punição. É altamente
desmerecedor da causa da verdade supor que, durante este
intervalo, não tenho deveres ativos a cumprir, que não
sou obrigado a cooperar para o atual bem-estar da
comunidade, assim como para sua regeneração futura. A
obrigação temporária que advém desta circunstância
corresponde exatamente àquela que foi introduzida no que
diz respeito à questão do dever. O dever é a melhor
aplicação possível de um determinado poder para a
promoção do bem geral.15 Mas meu poder depende da
disposição dos homens por quem estou cercado. Se eu
tivesse me alistado em um exército de covardes, poderia
ser meu dever recuar, apesar de que, considerado
absolutamente, deveria ser o dever do exército enfrentar
os golpes. Sob qualquer circunstância possível, é meu dever
promover o bem geral, pelos melhores meios os quais as
circunstâncias sob as quais fui colocado admitirem.

Capítulo VI
A escala da punição
É hora de prosseguir a certas conclusões que podem
ser deduzidas a partir da teoria da punição que foi
introduzida; nada pode ser mais importante para a virtu-

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de, a felicidade e o aperfeiçoamento da humanidade do


que essas conclusões.
Em primeiro lugar, é evidente que a punição é um ato
de necessidade dolorosa, inconsistente com o verdadeiro
caráter e temperamento da mente, a prática da qual é
temporariamente imposta sobre nós pela corrupção e a
ignorância que reinam entre a humanidade. Nada pode
ser mais absurdo do que vê-la como uma fonte de
aperfeiçoamento. Ela contribui para a geração de
excelência tanto quanto o vigia da pista para a velocida-
de da corrida. Nada pode ser mais injusto do que recorrer
a ela sem que ocorra a mais inquestionável emergência.
Em vez de multiplicar as ocasiões para a coerção e aplicá-
la como remédio para todo mal moral, o verdadeiro político
a confinará aos mais estreitos limites e tentará
constantemente diminuir as ocasiões para seu emprego.
Há apenas uma razão que pode ser admitida como sua
desculpa, e ela é a de que a permissão ao ofensor para
permanecer livre será notoriamente prejudicial à
segurança pública.
Em segundo lugar, a consideração da contenção como
a única base justificável para a punição nos proverá com
um critério simples e satisfatório pelo qual medir a justi-
ça do sofrimento inflingido.
A inflicção de uma morte longa e tormentosa não pode
ser defendida sob essa hipótese; já que tal inflicção só
pode ser ditada por sentimentos de ressentimento por
um lado ou pelo desejo de exibir um exemplo terrível por
outro.
Privar um criminoso de sua vida parecerá, de qual-
quer forma, sempre injusto, já que é sempre suficiente-
mente factível evitar, sem ter de recorrer a isso, que ele
cometa mais crimes. A privação da vida, apesar de de
forma nenhuma ser o maior mal que pode ser infligido,

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Crime e punição

deve sempre ser considerada um mal muito grave, já que


dá um fim perpétuo a todas as perspectivas do sofredor
quanto aos prazeres, as virtudes e a excelência de um
ser humano.
Na história daqueles que as leis sem misericórdia da
Europa destinam à destruição, às vezes nos encontra-
mos com pessoas que, após seu crime, receberam uma
herança generosa ou que por alguma outra razão parecem
ter visto as melhores perspectivas de tranqui-
lidade e felicidade se abrirem diante de si. Sua história,
com algumas modificações, pode ser considerada a
história de todos os criminosos. Se há um homem o qual
pode parecer necessário, para a segurança geral, colocar
em confinamento, esta circunstância é um apelo
poderoso à humanidade e justiça daqueles que conduzem
as questões da comunidade, em sua defesa. Este é o
homem que mais necessidade tem de sua assistência.
Se eles o tratassem com bondade, em vez de com
negligência arrogante e insensível, se eles o fizessem
entender com quanta relutância foram induzidos a
empregar a força da sociedade contra ele, se represen-
tassem o verdadeiro estado do caso com calma, perspicá-
cia e benevolência, se empregassem as precauções que
uma disposição humanitária não deixaria de sugerir, para
preservá-lo dos motivos da corrupção e da obstinação, sua
reforma seria quase infalível. Essas são as perspectivas
das quais a mão do carrasco o isola para sempre.
É um equívoco presumir que esse tratamento de cri-
minosos tende a multiplicar crimes. Ao contrário, pou-
cos homens seguiriam o caminho da violência com a
certeza de serem obrigados, por um processo lento e
paciente, a amputar seus erros. É a incerteza da punição
sob as formas atuais que multiplica os crimes. Remova
essa incerteza, e será igualmente razoável esperar que
um homem quebre sua perna propositadamente para

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poder ser curado por um médico habilidoso. Não importa


quanta gentileza o médico intelectual pode demonstrar,
não é possível crer que homens possam se livrar de
hábitos enraizados de injustiça e vício sem uma
quantidade considerável de dor.
As verdadeiras razões pelas quais esses membros
destituídos e abandonados da comunidade são levados a
uma morte ignóbil são, em primeiro lugar, a peculiar
desigualdade das instituições civis daquela comunida-
de, e, em segundo lugar, a letargia e apatia de seus su-
periores. Em formas republicanas e simples de governo,
punições são raras, e a pena de morte, quase desconhe-
cida. Por outro lado, quanto mais desigualdade e opres-
são há em uma comunidade, mais as punições são
multiplicadas. Quanto mais as instituições da sociedade
contradizem os sentimentos genuínos da mente huma-
na, mais severamente é necessário vingar-se de sua
violação. Ao mesmo tempo, os membros ricos e cheios de
títulos da comunidade, orgulhosos de sua eminência
invejada, observam, com total indiferença, a destruição
dos destituídos e dos miseráveis, desdenhando a lembran-
ça de que, se há uma diferença intrínseca entre eles,
ela é produto de suas circunstâncias diferentes, e que o
homem que eles tanto desprezam agora poderia ter sido
tão realizado e sensível quanto eles se sua situação fosse
invertida. Quando observamos um grupo de pobres
miseráveis levados à execução, a reflexão apresenta à
nossa imaginação aterrorizada todas as esperanças e
possibilidades que são, assim, brutalmente aniquiladas:
o gênio, a inventividade ousada, a firmeza valente, a
caridade terna e a benevolência ardente, que são,
ocasionalmente, sob este sistema, sacrificadas no altar
da luxúria torpe e da avareza incansável.
A espécie de sofrimento comumente conhecida pelo
nome de punição corporal também é proibida pelo siste-

56
verve
Crime e punição

ma apresentado acima. A punição corporal, a menos que


sua intenção seja dar exemplo, parece, sob um certo ponto
de vista, uma idéia ridícula. É uma forma rápida de
procedimento que foi inventada para limitar o efeito de
longos raciocínios e confinamento que de outra forma
teriam sido necessários, a um escopo muito curto. É difícil
expressar o horror que deveria criar. A propensão genuína
do homem é a de venerar a mente de seus companheiros.
Com quanta delícia contemplamos o progresso do intelecto,
seus esforços para descobrir a verdade, a colheita da
virtude que brota da influência agradável da instrução, a
sabedoria que é gerada pela comunicação irrestrita? Quão
completamente a violência e o sofrimento corporal
invertem o cenário? A partir deste momento, todas as
avenidas da mente são fechadas, e, de cada lado, vemo-
nas guardadas por uma série de paixões desgraçadas: o
ódio, a vingança, o despotismo, a crueldade, a hipocrisia,
a conspiração e a covardia. O homem se torna o inimigo
do homem; os mais fortes são tomados pela luxúria da
dominação irrefreada, e os mais fracos se encolhem, com
desgosto, à aproximação de um companheiro. Com quais
sentimentos pode um observador esclarecido contemplar
a marca de um chicote impressa sobre o corpo de um
homem? Qual coração bate em revolta, em uníssono com
a sublima lei da antiguidade, “Não deverás inflingir listras
sobre o corpo de um romano?” Há apenas uma alternativa
neste caso, da parte do sofredor. Ou sua mente deve ser
dominada pelos ditames arbitrários do superior (já que,
para ele, tudo é arbitrário que não seja aprovado pelo
julgamento de seu próprio entendimento), e ele será
governado por algo que não é a razão e sentirá vergonha
de algo que não é a desgraça; ou cada golpe que ele
sofrer provocará a indignação de seu coração e a clara
desaprovação de seu intelecto, produzirá desprezo e
alienação contra aquele que o pune.

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5
2004

A justiça da punição é construída sobre este princí-


pio simples: Todo homem é obrigado a empregar os mei-
os que se sugerirem para evitar males que subvertam
a segurança geral, tendo sido determinado, seja pela
experiência ou pelo raciocínio, que todos os métodos
mais amenos são inadequados à gravidade do caso. A
conclusão a partir deste princípio é a de que somos
obrigados, sob certas circunstâncias urgentes, a privar
o criminoso da liberdade da qual abusou. Mais do que
isso, talvez nenhuma circunstância nos autorize a
fazer. Aquele cuja pessoa é confinada (se essa é a forma
correta de reclusão) não pode interromper a paz de seus
companheiros; e a inflicção de males adicionais,
quando seu poder de ferir foi removido, é o ditame
selvagem e não autorizado da vingança e da fúria, o
esporte cruel da superioridade inquestionada.
Quando de fato a pessoa do criminoso foi capturada,
há um dever adicional que se impõe àquele que o pune,
o dever de tentar reformá-lo. Mas isso não faz parte da
consideração direta. “O dever de cada homem de con-
tribuir para a saúde intelectual de seu próximo é de
aplicabilidade geral.” Além do que, é apropriado lem-
brar-nos do que já foi provado, de que a coerção não
tem lugar entre os meios legítimos de reforma. Confine
o criminoso por quanto tempo seja necessário para a
segurança da comunidade, porque isso é justo. Não o
confine por um instante que seja com o objetivo único
de aperfeiçoá-lo, porque isso contraria a razão e a
moral.
Ao mesmo tempo, há uma circunstância por meio da
qual a contenção e a reforma são intimamente ligadas.
A pessoa do criminoso deve ser confinada por tanto tem-
po quanto a segurança pública for ameaçada por sua li-
bertação. Mas a segurança pública deixará de ser
ameaçada tão logo suas propensões e disposições tiverem

58
verve
Crime e punição

passado por uma modificação. A conexão que dessa forma


resulta da natureza das coisas torna necessário que, ao
decidir a respeito da espécie de confinamento a ser im-
posta, essas circunstâncias sejam consideradas em con-
junto: como a liberdade pessoal do criminoso pode ser
menos limitada e como sua reforma pode ser melhor
promovida.
O método mais comum para privar o criminoso da
liberdade da qual ele abusou é erguer uma cadeia públi-
ca, na qual criminosos de todos os tipos são jogados jun-
tos e abandonados para formar entre si os tipos de socie-
dade que conseguirem. Diversas circunstâncias contri-
buem para imbuí-los de hábitos de indolência e vício e
para desencorajar a indústria, e nenhum esforço é feito
para remover ou amenizar estas circunstâncias. Não é
necessário alongar-se sobre a atrocidade desse sistema,
cadeias são, de acordo com o provérbio, seminários do
vício; e é necessário ser incomumente proficiente na
paixão e na prática da injustiça ou um homem de virtude
sublime para não sair delas como um homem muito pior
do que aquele que entrou.
Um observador ativo da humanidade16, com as mais
puras intenções, e que prestou atenção singular a este
assunto, ficou espantado com a tendência maléfica do
sistema reinante e chamou a atenção do público para
um esquema de confinamento solitário. Mas isso, ape-
sar de livre dos defeitos da forma estabelecida, é pas-sível
de objeções muito fortes.
Essa forma necessariamente espanta toda mente
reflexiva como incomumente tirânica e severa. Não
pode, portanto, ser admitida em um sistema de coerção
amena que é o objeto de nossa investigação. O homem
é um animal social. O quanto o é se revela se conside-
ramos a somatória de vantagens resultantes do social,

59
5
2004

e das quais ele seria privado em um estado de solidão.


Mas, independentemente de sua estrutura original, ele
é social por seus hábitos. Privará você o homem que
aprisiona de papel e livros, de ferramentas e diversões?
Um dos argumentos a favor do confinamento solitário é
o de que é necessário que o criminoso seja corrigido em
seus hábitos incorretos de raciocínio e obrigado a se
concentrar em si mesmo. Os defensores do confinamento
solitário provavelmente acreditam que isso ocorrerá
tanto melhor quanto mais escassas as ocupações do
confinado. Mas suponhamos que ele seja permitido a
essas atividades e apenas privado da sociedade. Quantos
homens existem que podem se divertir com livros? So-
mos, nesse respeito, criaturas do hábito, e não se pode
esperar que homens comuns se moldem a qualquer tipo
de atividade à qual eram estranhos em sua juventude.
Mas até mesmo o maior apreciador dos estudos tem
momentos nos quais o estudo não lhe traz mais prazer.
A alma ansia, com intensidades inexplicáveis, pela so-
ciedade de seus iguais. Porque a segurança pública re-
lutantemente obriga ao confinamento um criminoso
precisa ele por essa razão jamais iluminar sua compos-
tura com um sorriso? Quem pode julgar quais são os
sofrimentos daquele que é condenado à solidão cons-
tante? Quem pode dizer que este não é, para a maioria
da humanidade, o tormento mais amargo que a
engenhosidade humana pode inflingir? Uma mente su-
ficientemente sublime possa talvez superar esta incon-
veniência, mas os poderes de uma mente dessas não
cabem na presente discussão.
A partir do exame do confinamento solitário, conside-
rado em si, somos naturalmente levados a questionar
sua real propensão a reformar. Para sermos virtuosos, é
imprescindível que consideremos os homens e suas
relações uns com os outros. Para esse estudo, é

60
verve
Crime e punição

necessário que o isolemos da sociedade dos homens?


Seremos formados para a justiça, a benevolência e a
prudência em nossas relações uns com os outros de for-
ma mais eficaz em um estado de solidão? Não irão nos-
sas disposições egoístas e anti-sociais ser constantemen-
te aumentadas? Que tentação a pensar sobre a benevo-
lência e a justiça tem aquele que não tem oportu-
nidades de exercê-las? O verdadeiro solo no qual crimes
atrozes germinam é uma disposição sombria e morosa.
Irá o coração se tornar mais gentil e expansivo daquele
que respira a atmosfera das masmorras? Certamente
seria melhor nesse respeito imitar o sistema do universo,
e, se decidíssemos ensinar justiça e humanidade,
transplantar aqueles que ensinaríamos a um estado
simples e razoável de sociedade. A solidão, considerada
em absoluto, pode nos instigar a servimos a nós mesmos,
mas não a servimos a nossos próximos. A solidão, imposta
sob limitações demasiado escassas, pode ser uma
enfermaria para loucos e idiotas, mas não para membros
úteis da sociedade. Outra idéia que foi sugerida com
relação à remoção de criminosos da comunidade a qual
prejudicaram é a de reduzi-los a um estado de escravi-
dão ou trabalhos forçados. A verdadeira refutação desse
sistema pode ser antecipada no que já foi dito. Para a
segurança da comunidade, ele é desnecessário. Como
meio de reformar o criminoso, é inexpres-
sivelmente mal-concebido. O homem é um ser
intelectual. Não há forma de torná-lo virtuoso sem ape-
lar para seus poderes intelectuais. Não há forma de torná-
lo virtuoso a não ser tornando-o independente. Ele preci-
sa estudar as leis da natureza e a consequência neces-
sária de suas ações, e não o capricho arbitrário de seu
superior. Desejas que eu trabalhe? Não me obrigue a fazê-
lo com o chicote; já que, se antes eu já achava melhor
ser preguiçoso, isso irá aumentar minha alienação.
Convinça meu entendimento e faça com que se torne o

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2004

objeto de minha escolha. Só pode ser pela mais deplorável


perversão da razão que podemos ser induzidos a crer que
qualquer espécie de escravidão, da escravidão do menino
em idade escolar àquela do mais desafortunado negro em
nossas plantações nas Índias Ocidentais, seja favorável
à virtude.17
Um esquema muito preferível a qualquer um desses,
e que foi tentado sob várias formas, é o do transporte ou
do banimento. Este esquema, ainda que sob modificações
as mais judiciosas, é passível de objeção. Seria estranho
que qualquer esquema de coerção ou violência não o
fossem. Ele foi feito parecer ainda mais excepcional do
que em sua natureza intrínseca pelas circunstâncias
rudes e incoerentes nas quais foi geralmente executado.
O banimento em sua forma simples, isto é, uma mera
proibição à residência, tem, ao menos em certos casos,
uma forte aparência de injustiça. O cidadão cuja presen-
ça não toleraremos em nosso próprio país temos um
direito muito questionável de impor a qualquer outro.
O banimento foi algumas vezes ligado á escravidão.
Essa era a prática da Grã-Bretanha antes de sua retira-
da de suas colônias americanas. Isso não necessita uma
refutação separada.
Uma espécie muito comum de banimento é a remo-
ção a um país ainda não estabelecido. Algo pode ser ale-
gado em favor dessa forma de proceder. O trabalho pelo
qual a mente indisciplinada é melhor corrigida dos hábi-
tos maléficos de uma sociedade corrupta é não o trabalho
prescrito pelo mandado de um superior, mas aquele
imposto pela necessidade de subsistência. A primeira
colonização de Roma, por Rômulo e seus vagabundos, é
uma imagem feliz disso, seja se a considerarmos como
uma história real seja se como uma ficção engenhosa de
um escritor íntimo dos princípios da mente. Homens que

62
verve
Crime e punição

são libertados das instituições prejudiciais do governo


europeu e obrigados a iniciar o mundo sozinhos estão no
caminho direto para se tornarem virtuosos.
Duas circunstâncias até hoje contribuíram para tor-
nar esse projeto abortivo. A primeira, a de que a pátria
persegue esse tipo de colônia com o ódio. A principal
preocupação é, na realidade, transformar a residência
nela odiosa e desconfortável, com a vã idéia de conter
criminosos. A principal preocupação deveria ser a de
amenizar suas dificuldades e contribuir para sua felici-
dade. Devemos lembrar que os colonizadores são homens,
pelos quais não devemos ter nenhum sentimento a não
ser os de bondade e compaixão. Se fôssemos razoáveis,
deveríamos lamentar a exigência cruel que nos obriga a
tratá-los de forma inadequada à natureza da mente; e,
tendo obedecido à necessidade dessa exigência,
deveríamos estar ansiosos por conferir a eles todos os
benefícios em nosso poder. Mas não somos razoáveis.
Abrigamos mil sentimentos selvagens de ressentimen-
to e vingança. Atiramo-nos no canto mais remoto do
mundo. Sujeitamos multidões a perecer por pobreza e
fome. Talvez, se nosso tratamento de homens tão
desafortunados fosse suficientemente humano, o
banimento às ilhas Hebrides se provaria tão eficaz quan-
to o banimento às Antípodas.
Em segundo lugar, é absolutamente necessário, sob
os princípios explicados aqui, que esses colonizadores,
depois de terem sido suficientemente auxiliados no iní-
cio, sejam deixados em paz. Não podemos fazer pior do
que persegui-los em seu retiro obscuro com a influência
inauspiciosa de nossas instituições européias. Por que
nos dar ao trabalho de enviar magistrados e oficiais para
governá-los e dirigi-los? Supomos que, se deixados
sozinhos, eles iriam destruir uns aos outros? Ao contrá-
rio, situações novas criam mentes novas. Os piores

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2004

criminosos, quando deixados à deriva em um corpo e


reduzidos a sentir o canino afiado da necessidade, con-
duzem-se por princípios razoáveis, e alguns procedem com
sagacidade e espírito público que fariam corar a mais
orgulhosa monarquia.
Ao mesmo tempo, não esqueçamos dos males ineren-
tes à punição, que se apresentam a partir de qualquer
ponto de vista que o assunto é visto. A colonização pode
ser o mais adequado expediente entre os que foram
apresentados, mas é realizada com dificuldades
consideráveis. A comunidade julga que um certo indíviduo
não pode ter sua residência tolerada em consistência com
a segurança geral. Ao negar a ele a escolha entre outras
comunidades, não se excede em sua autoridade? Qual
tratamento deve ser dado a ele se retornar do banimento
ao qual foi condenado? Estas dificuldades (e muitas outras
podem ser adicionadas a elas) são apresentadas para levar
a mente de volta à injustiça absoluta da punição e nos
tornar absolutamente ansiosos pelo período na qual será
abolida.
Para concluir, as observações deste capítulo são rela-
tivas a uma teoria que afirmava que poderia ser o dever
de indivíduos, mas nunca o de comunidades, exercer uma
certa espécie de coerção política; e que fundava este dever
sobre uma consideração dos benefícios da segurança
pública. Sob estas circunstãncias, então, cada indivíduo
é obrigado a julgar sozinho e a conceder sua aprovação a
nenhuma outra coerção a não ser aquela absolutamente
necessária. Ele irá, sem dúvida, tentar melhorar aquelas
instituições que não consegue convencer seus
conterrâneos de abolir. Ele se recusará ao envolvimento
na execução daquelas que abusam o apelo da segurança
pública para fins atrozes. Leis podem ser encontradas em
quase todos os códigos que, tendo reconhecida a injustiça
de suas cláusulas, são destinadas a cair em desuso pelo

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verve
Crime e punição

consentimento geral. Todo amante da justiça irá, desta


forma, contribuir para repelir leis que cruelmente
usurpam a independência da humanidade, seja pela
multiplicidade de suas restrições ou pela severidade de
suas sanções.

Capítulo VII
Sobre as provas
Tendo tentado determinar a decisão na qual questões
de ofensa contra a segurança geral deveriam resultar,
só resta considerar os princípios de acordo com os quais
o julgamento deveria ser conduzido. Estes princípios
podem, em sua maioria, ser referidos a dois pontos, a
prova que deve ser exigida e o método a ser usado por nós
na classificação de ofensas.
As dificuldades às quais o assunto da prova está sujei-
to foram introduzidas nos capítulos anteriores desta
obra.18 Pode valer a pena, neste momento, lembrarmo-
nos das dificuldades de uma classe particular de prova,
sendo improvável que a imagi-
nação de cada leitor não lhe seja suficiente para aplicar
este texto e perceber o quão facilmente o mesmo tipo de
enumeração pode ser estendida a qualquer outra classe.
Já foi indagado “Por que não são intenções sujeitas ao
julgamento da justiça penal da mesma forma que atos
diretos de ofensa?”
Os argumentos favoráveis a tal sujeição são óbvios.
“O objeto adequado da superintendência política não é o
passado, mas o futuro. A sociedade não pode empregar a
punição de forma justa contra nenhum indivíduo, não
importa o quão atrozes possam ter sido suas contraven-
ções, a partir de nenhuma consideração a não ser
especulativa, ou seja, uma consideração do perigo que

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seus hábitos podem oferecer à sociedade em geral. A


conduta passada não pode adequadamente ser julgada
pelo governo, exceto enquanto indicação do futuro. Mas a
conduta passada parece, à primeira vista, permitir uma
presunção mais magra quanto ao que o delinqüente fará
a partir de agora do que intenções declaradas. O homem
que professa sua determinação em cometer assassinato
parece ser um membro da sociedade não menos perigoso
do que aquele que, tendo já cometido assassinato, não
tem nenhuma intenção aparente de repetir sua
ofensa.”Ainda assim, todos os governos concordaram em
desconsiderar a ameaça silenciosa ou a submeter o
ofensor a um grau muito menor de punição do que
empregam contra aquele por quem o crime foi cometido.
Talvez seja correto dar-lhes alguma atenção quando
concordam tanto em sua tolerância, apesar de
provavelmente pouco dever-se a sua concordância em
sua falta de humanidade.
Essa distinção, à medida que é fundada na razão, tem
relação principalmente com a incerteza da prova. Antes
de a intenção de qualquer homem poder ser determina-
da, em um tribunal de justiça a partir da consideração
das palavras que ele empregou, uma variedade de cir-
cunstâncias tem de ser considerada. A testemunha ouviu
as palavras que foram empregadas: ela as repete com
precisão ou sua falta de memória não faz com que
substitua algumas delas por suas próprias palavras?
Antes de ser possível decidir, com base na expectativa
confiante que eu tenho que estas palavras serão acom-
panhadas de ações correspondentes, é necessário que
eu conheça o tom exato com que elas foram proferidas e
os gestos pelas quais foram acompanhadas. É necessário
que eu tenha familiaridade com o contexto e a ocasião
que as produziu. Sua construção dependerá da quantida-
de de calor momentâneo ou malícia enraizada com as

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verve
Crime e punição

quais foram proferidas; e palavras que parecem no início


de tremenda importância às vezes poderão, após uma
investigação precisa, ter tido um significado puramente
irônico na mente de quem as proferiu. Estas considera-
ções, em conjunto com a natureza odiosa da punição em
geral, e os males extremos que podem advir de nossa
restrição da faculdade da fala, em adição à restrição que
nos concebemos obrigados a impor sobre as ações dos
homens, provavelmente serão razão suficiente para que
palavras sejam raramente ou jamais assunto de
julgamento político.

Capítulo VIII
Sobre a lei
Outra questão de grande importância no julgamento
de ofensas é a do método a ser utilizado em sua classifi-
cação e a conseqüente atribuição do grau de condenação
aos casos que podem surgir. Esta questão nos leva à direta
consideração da lei, que é, sem dúvida, um dos assuntos
mais importantes sobre o qual o intelecto humano pode
ser empregado. É a lei que até agora foi vista, em países
que se chamam civilizados, como a medida pela qual
mede-se todas as ofensas e irregularidades que caem sob
o julgamento público. Investiguemos os méritos desta
escolha.
A comparação que se apresentou, àqueles por quem o
tópico foi investigado, foi entre a lei de um lado e a vontade
arbitrária de um déspota de outro. Mas se fôssemos
estimar verdadeiramente os méritos da lei, deveríamos
em primeiro lugar considerá-la como é em si, e depois,
se necessário, buscar o melhor princípio que a pode
substituir.

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A lei é recomendada por “dar informação aos diferen-


tes membros da comunidade, respeitando os princípios
que serão adotados ao decidir sobre suas ações”. É retra-
tado como o maior grau de desigualdade “julgar homens
com base em uma lei ex post facto, ou de fato de qualquer
outra forma que por não uma lei elaborada formalmente
e suficientemente promulgada”.
O quanto pode ser seguro aniquilar completamente
este princípio, teremos presentemente a ocasião de in-
vestigar. É óbvio, à primeira vista, observar que isso é da
maior importância em um país onde o sistema de
jurisprudência é enormemente caprichoso e absurdo. Se
for considerado criminoso em qualquer sociedade vestir
roupas de uma determinada textura, ou botões de um
material em particular, é inevitável exclamar que já não
é sem tempo que a jurisprudência daquela sociedade
informe seus membros sobre quais são as fantásticas
regras que tentam seguir. Mas, se uma sociedade está
contente com as regras da justiça e não se dá o direito de
distorcer ou acrescentar a essas regras, a lei é
evidentemente uma instituição menos necessária. As
regras da justiça seriam ensinadas de forma mais clara
e eficaz por um real intercurso com a sociedade humana,
irrestrito pelas correntes do preconceito, do que podem
ser por catecismos e códigos.19
Um resultado da instituição da lei é o de que a insti-
tuição, uma vez iniciada, não pode ser mais abandona-
da. Édito é empilhado sobre édito, e volume sobre volu-
me. Esse será ainda mais o caso quanto mais o governo
for popular, e seus procedimentos trazem mais dentro de
si a natureza da deliberação. Certamente isso não é um
indício de que o princípio é incorreto, e que, conseqüen-
temente, quanto mais prosseguirmos no caminho que
ele define para nós, mais desorientados ficaremos.
Nenhum discurso pode ser menos esperançoso do que

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verve
Crime e punição

aquele de criar uma coalizão entre um princípio correto


e um errado. Aquele que tenta séria e sinceramente fazê-
lo talvez se exponha a um ridículo mais palpável do que
aquele que, em vez de professar dois sistemas opostos,
adere ao pior.
Não há máxima mais clara do que esta: “Cada caso é
uma regra para si próprio”. Nenhuma ação de nenhum
homem jamais foi a mesma, assim como nenhuma ou-
tra ação jamais teve o mesmo grau de utilidade ou dano.
Deveria caber à justiça distinguir entre as qualidades do
homem, e não, como tem sido a prática comum, confun-
di-las. Mas qual foi o resultado de tentar fazer isso em
relação à lei? Conforme novos casos ocorrem, a lei é
perpetuamente deficiente. Como poderia ser de outra
forma? Legisladores não têm a faculdade de clarividên-
cia ilimitada e não podem definir aquilo que não tem
limites. A alternativa que resta é distorcer a lei para
incluir um caso que nunca foi contemplado por seus
autores ou criar uma nova lei que se adapte a esse caso
em particular. Muito já foi feito no primeiro desses mo-
dos. As frivolidades de advogados e as artimanhas pelas
quais refinam e distorcem o sentido da lei são proverbi-
ais. Mas, apesar de muito ser feito, nem tudo pode ser
feito desta forma. O abuso será às vezes palpável em
demasia. Isso para não mencionar que a mesma educa-
ção que permite que o advogado, quando é empregado pelo
promotor, descubra ofensas que o legislador nunca cogitou,
permite também que ele, quando empregado pelo réu,
descubra subterfúgios que reduzem a lei a pó. É, portanto,
constantemente necessário criar novas leis. Estas leis,
para evitar a evasão, são frequentemente tedi-
osas, minuciosas e repetitivas. O volume no qual a justiça
registra suas prescrições está sempre crescendo e o
mundo não conseguiria conter os livros que poderiam ser
escritos.

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2004

A consequência da infinitude da lei é sua incerteza.


Isso mina o princípio sobre o qual a lei é fundada. Leis
foram feitas para dar fim à ambiguidade e para que todo
homem pudesse saber o que esperar. Quanto elas satis-
fizeram esse fim? Investiguemos a questão da proprie-
dade. Dois homens recorrem ao tribunal por causa de
uma determinada propriedade. Eles não recorreriam à
lei se não tivessem ambos confiança em seu próprio
sucesso. Mas podemos supor que tenham uma visão
parcial. Eles não continuariam com o processo se seus
advogados não tivesssem lhes prometido sucesso. A lei
foi feita para que um homem simples soubesse o que
esperar, e ainda assim os profissionais mais habilidosos
diferem sobre o resultado de meu processo. Acontece, às
vezes, que o mais bem sucedido advogado do reino ou o
primeiro conselheiro a serviço da rainha assegurem-me
de sucesso infalível, cinco minutos antes de outro oficial
da lei, transformado em guardião da consciência do rei,
por alguma manobra inesperada julgue contra mim. Teria
a questão sido igualmente incerta se não tivesse nada
em que confiar a não ser no simples bom senso de meus
próximos, fundado nas idéias que eles julgam ser justas?
Advogados defendem absurdamente que o alto preço da
lei é necessário para evitar a multiplicação ilimitada de
processos; mas a verdadeira fonte desta multiplicação é
a incerteza. Homens não brigam sobre aquilo que é
evidente, mas sobre aquilo que é obscuro.
Aquele que deseja estudar as leis de um país acostu-
mado à segurança da lei deve começar pelos volumes de
estatutos. Deve acrescentar a isso uma investigação
estrita das leis comuns ou não-escritas; e deve se dedicar
à lei civil, eclesiática e canônica. Para entender a
intenção dos autores de uma lei, ele precisa se
familiarizar com seus caráteres e opiniões, e com as
várias circunstâncias às quais ela deveu sua origem e

70
verve
Crime e punição

por quais foi modificada após deliberações. Para enten-


der o peso e a interpretação que serão permitidos em um
tribunal de justiça, ele precisa ter estudado toda a coleção
de registros, sentenças e precedentes. A lei foi original-
mente concebida para que homens comuns soubessem
o que esperar; e não há hoje nenhum advogado na Grã-
Bretanha vanglorioso o suficiente para alegar dominar o
código. Também não pode ser esquecido que o tempo e a
indústria, mesmo que fossem infinitos, não seriam
suficientes. É um labirinto sem fim; é uma mas-
sa de contradições que não pode ser desemaranhada. O
estudo permitirá que o advogado encontre na lei
argumentos plausíveis, talvez irrefutáveis, para qualquer
um dos lados de quase toda questão; mas seria preciso a
mais completa idiotice para supor que o estudo da lei possa
levar ao conhecimento e à certeza.
Uma consideração adicional que demonstrará o ab-
surdo da lei em sua acepção mais geral é a de que ela
tem caráter profético. Sua tarefa é descrever quais se-
rão as ações da humanidade e ditar decisões a seu res-
peito. Seus méritos, nesse respeito, já foram decididos
sob o título de promessas.20 A linguagem de tal procedi-
mento é: “Somos tão sábios que não podemos adquirir
nenhum conhecimento adicional das circunstâncias
conforme elas ocorrem; e prometemos que, se for de outra
forma, o conhecimento adicional que adquirirmos não
terá nenhum efeito sobre a nossa conduta”. É apropriado
observar que esse aspecto da lei pode ser considerado,
em alguns respeitos, mais apropriado ao tópico do livro
anterior. A lei tende, não menos que os credos,
catecismos e exames, a fixar a mente humana em uma
condição estagnada e a substituir aquele progresso in-
cessante que é o único elemento salubre da mente por
um princípio de permanência. Todos os argumentos,

71
5
2004

portanto, que foram empregados naquela ocasião podem


ser aplicados ao assunto agora sob consideração.
A fábula de Procrustes nos apresenta uma sombra
desbotada do esforço perpétuo da lei. Desafiando o grande
princípio da filosofia natural, o de que não há nem mesmo
dois átomos de matéria da mesma forma em todo o
universo, ela pretende reduzir as ações do homem, que
são compostas por mil elementos efêmeros, a um único
padrão. Já examinamos a propensão dessa pretensão no
que diz respeito ao assassinato.21 Foi contemplando este
sistema de jurisprudência que foi inventada a estranha
máxima de que a “a justiça rigorosa frequentemente
provará ser a mais alta injustiça”.22 Não há mais justiça
real em tentar reduzir as ações dos homens a classes do
que havia no esquema ao qual acabamos de aludir, o de
reduzir todos os homens à mesma estatura. Se, ao
contrário, a justiça for um resultado da contemplação de
todas as circunstâncias de cada caso individual, se apenas
o critério da justiça tiver utilidade geral, a consequência
inevitável é a de que, quanto mais justiça tivermos, mais
verdade, virtude e felicidade teremos.
A partir de todas estas considerações, é difícil hesitar
em concluir universalmente que a lei é uma instituição
com tendências as mais perniciosas.
O assunto será elucidado ainda mais se considerar-
mos a perniciosidade da lei em sua relação imediata com
aqueles que a praticam. Se não existisse a lei, a profissão
de advogado sem dúvida mereceria nossa desaprovação.
É difícil para um advogado não ser um homem desonesto.
Essa é uma questão menos para censura do que para
lamento. Os homens são, em grande grau, criaturas das
circunstâncias sob as quais são colocados. Aquele que é
habitualmente cutucado pelos incentivos do vício não
deixará de ser vil. Aquele que está perpetuamente

72
verve
Crime e punição

envolvido em frivolidades, cores falsas e sofismas não pode


em igual grau cultivar as emoções generosas da alma e
o bondoso discernimento da retidão. Se um único
indivíduo puder ser encontrado que seja apenas
superficialmente maculado pelo contágio, quantos
homens em quem parecia haver uma promessa das mais
sublimes virtudes foram por essa ocupação transformados
em indiferentes à consistência ou acessíveis ao suborno?
Que seja observado que essas observações aplicam-se
principalmente a homens eminentes ou bem sucedidos
em sua profissão. Aquele que entra em uma carreira sem
cuidado e para se divertir está muito menos sob a sua
influência (apesar de que nem mesmo ele irá escapar)
do que aquele que a adentra com ardor e devoção.
Suponhamos, contudo, uma circunstância que talvez
seja totalmente impossível, a de que um homem é um
advogado perfeitamente honesto. Ele está determinado a
servir a nenhuma causa a não ser àquelas que crê serem
justas, e a não empregar nenhum argumento que não
julgue ser sólido. Ele tenta, tanto quanto sua esfera se
estende, despir a lei de suas ambiguidades e falar a
linguagem máscula da razão. Este homem é, sem dúvida,
altamente respeitável, no que diz respeito a si próprio;
mas pode ser questionado se ele não é um membro mais
pernicioso da sociedade do que o advogado desonesto. As
esperanças da humanidade em relação a seu futuro
progresso dependem de sua observação dos efeitos
genuínos de instituições equivocadas. Mas este homem
dedica-se a amenizar e mascarar estes efeitos. Sua
conduta tem uma propensão direta a adiar o reinado das
políticas sãs e a fazer a humanidade tranquila em meio
à imperfeição e à ignorância.
O que aqui é afirmado em favor do advogado desones-
to, contudo, como aquilo que foi afirmado em favor de um
monarca imbecil23, deveria ser considerado avançado

73
5
2004

apenas no que diz respeito a conjecturas. Assim como


alguma dor é necessária como meio de equilibrar o prazer,
pode haver, em algumas circustâncias extraordinárias,
alguns vícios (entendendo-se por vício intenções más ou
depravação enraizada) que produzem os efeitos da virtude.
Em questões deste tipo, contudo, é necessário sermos
mais escrupulosos e reservados do que o habitual. As
consequências mais perniciosas para nós advirão de
confundir as distinções entre virtude e vício. É difícil
considerar como tarefa de um filantropo festejar a
depravidão de outros. É mais seguro para nós, em quase
qualquer instância imaginável, ver “todo abandono de
vícios enormes como ganho equivalente para a causa da
felicidade geral”.24
O único princípio que pode substituir a lei é o da razão
que exerce uma jurisdição incontrolada sobre as
circunstâncias do caso. A esse princípio, nenhuma obje-
ção pode ser feita em nome da sabedoria. Não se deve
supor que não haja homens vivendo hoje cujas habilida-
des intelectuais cheguem ao nível da lei. Às vezes
chamamos de lei a sabedoria de nossos ancestrais. Mas
esta é uma imposição estranha. Ela corresponde aos
ditames de sua paixão, da timidez, do ciúme, de um espí-
rito monopolizador e de uma luxúria pelo poder que não
conhecia limites. Não somos obrigados a constantemen-
te revisar e remodelar essa erroneamente chamada
sabedoria de nossos ancestrais? A corrigi-la detectando
sua ignorância e censurando sua intolerância? Mas se
homens puderem ser encontrados entre nós cuja
sabedoria é igual à sabedoria da lei, é difícil argumentar
que as verdades que eles têm para comunicar serão piores
por não terem autoridade a não ser a derivada das razões
que usam para defendê-la.
Pode, contudo, ser alegado que “se há pouca dificulda-
de em assegurar uma porção de sabedoria, pode haver

74
verve
Crime e punição

contudo algo a ser temido das paixões do homem. A lei


pode ter sido construída na tranquilidade serena da alma,
um monitor adequado para controlar a mente inflamada,
cuja memória recente de males pode nos induzir a
inflingir punições”. Este é o argumento mais considerável
que pode ser evocado em favor do sistema prevalente e,
portanto, merece um exame maduro.
A verdadeira resposta à esta objeção é a de que nada
por ser aperfeiçoado a não ser em conformidade com a
sua natureza. Se refletimos sobre o bem-estar do homem,
precisamos ter em mente a estrutura do homem. Preci-
samos admitir que somos imperfeitos, ignorantes,
escravos da aparência. Estes defeitos não podem ser
removidos por nenhum método indireto, mas apenas pela
introdução do conhecimento. Temos um espécime do
método indireto na doutrina da infabilidade espiritual.
Foi observado que homens estão sujeitos ao erro, à dis-
puta infinita sem chegar a uma decisão e a equívocos
mesmo no que diz respeito a seus interesses mais im-
portantes. O que faltava era um critério e um árbitro para
controvérsias. O que foi tentado foi imbuir a verdade com
uma forma visível e depois recorrer ao oráculo que
havíamos erguido.
O caso da lei é paralelo a esse. Os homens tinham
consciência do poder de iludir das aparências e procura-
ram um talismã para protegê-los de imposições. Supo-
nha que eu determinasse, no início de cada dia, um certo
código de princípios aos quais eu conformaria minha
conduta naquele dia; e, no início de cada ano, minha
conduta naquele ano. Suponha que eu determinasse que
nenhuma circunstância permitisse, pela nova luz que
ela lançasse, a modificação de minha conduta, para evitar
me tornar servo das aparências e escravo da paixão. Esta
é uma imagem justa e precisa de todo sistema de
permanência. Esses sistemas são formados sobre a idéia

75
5
2004

de parar o movimento perpétuo da máquina, para evitar


que ela às vezes caia em desordem.
Esta consideração deve persuadir suficientemente
uma mente imparcial de que, quaisquer que sejam as
inconveniências que possam brotar das paixões dos ho-
mens, a introdução de leis fixas não pode ser um remé-
dio genuíno. Consideremos qual seria a operação e o
estado progressivo destas paixões se fosse confiada aos
homens a direção de sua própria discreção. Esta é a dis-
ciplina que um estado razoável de sociedade emprega com
respeito ao homem em sua capacidade individual25: por
que não deveria ser igualmente válida no que diz respeito
a homens agindo em sua capacidade coletiva? A
inexperiência e o zelo levariam-me a conter meu próximo
cada vez que ele estivesse agindo incorretamente, e, por
meio de penas e inconveniências estabelecidas para esse
propósito, a curá-lo de seus erros. Mas a razão evidencia
a tolice deste procedimento e ensina-me que, se ele não
se acostumar a depender das energias do intelecto, nunca
se elevará à dignidade de um ser racional. Enquanto um
homem é mantido nas rédeas da obediência e habituado
a procurar orientação externa para determinar sua
conduta, seu entendimento e o vigor de sua mente
permanecerão adormecidos. Desejo elevá-lo à energia da
qual ele é capaz? Preciso ensiná-lo a sentir-se a si
mesmo, a não se curvar diante de nenhuma autoridade,
a examinar os princípios que ele entretém e confiar à
sua mente a razão de sua conduta.
Os hábitos que são, portanto, salutares para o indiví-
duo, serão igualmente salutares nas transações de co-
munidades. Os homens são fracos hoje porque sempre
foi dito que eram fracos e não poderiam confiar em si
próprios. Liberte-os de suas correntes, ofereça-lhes in-
vestigação, razão e julgamento e logo os encontrará como
seres muito diferentes. Diga-lhes que eles têm paixões,

76
verve
Crime e punição

são às vezes apressados, destemperados e danosos, mas


que devem confiar em si próprios. Diga-lhes que as
montanhas de papel nas quais estiveram até hoje
entrincheirados são adequadas apenas para impor sécu-
los de superstição e ignorância; que, de hoje em diante,
não dependeremos de nada a não ser de sua justiça
espontânea; que, se suas paixões forem gigantescas,
precisam elevar-se com energia gigantesca para acalmá-
las; que, se seus decretos forem injustos, a injustiça será
tudo o que possuirão. O efeito desta disposição das coisas
será logo visível; a mente se elevará ao nível de sua
situação; jurados e juízes serão penetrados pela
magnitude da confiança depositada neles.
Pode ser um espetáculo instrutivo pesquisar o esta-
belecimento progressivo da justiça no estado de coisas
que recomendamos aqui. Em primeiro lugar, pode ser que
algumas decisões sejam incomumente absurdas ou
atrozes. Mas os autores destas decisões serão confundi-
dos com a impopularidade e desgraça na qual se envolve-
ram. Na realidade, qualquer que seja a fonte original da
lei, ela logo se tornou um disfarce para a opressão. Sua
obscuridade foi útil para enganar o olhar inquisidor do
sofredor. Sua antiquidade serviu para desviar uma parte
considerável do ódio do perpetrador da injustiça ao autor
da lei; e, ainda mais, para desarmar esse ódio pela
influência do respeito supersticioso. Era sabido que a
opressão nua e sem adornos não deixaria de ser vítima
de suas próprias operações.
A essa afirmação pode ser feita a objeção de que “cor-
pos de homens frequentemente são insensíveis à cen-
sura, e que a desgraça, sendo compartilhada amigavel-
mente, não é intolerável para ninguém”. Há considerá-
vel força nesta observação, mas ela é inaplicável ao
presente argumento. A essa espécie de abuso uma de
duas coisas é indispensavelmente necessária, ou núme-

77
5
2004

ros ou o sigilo. Contra esse abuso, portanto, será um


remédio suficiente que cada jurisdição seja considerada
limitada e que todas as transações sejam conduzidas
aberta e explicitamente. Continuemos.
As decisões jurídicas feitas imediatamente após a
abolição da lei difeririam pouco daquelas durante seu
império. Elas seriam decisões baseadas no preconceito e
no hábito. Mas o hábito, tendo perdido o centro em torno
do qual revolvia, diminuiria com a regularidade de suas
operações. Àqueles a quem o arbítrio de qualquer questão
fosse confiado frequentemente se lembrariam de que o
caso inteiro dependeria de sua deliberação; e não
deixariam de examinarem-se ocasionalmente,
respeitando a razão daqueles princípios que até então
passavam incontroversos. Seu entendimento se alarga-
ria, em proporção a seu sentimento da importância da
confiança depositada neles e à liberdade ilimitada de sua
investigação. Aqui, então, iniciaria-se uma ordem das
coisas auspiciosa, o resultado da qual nenhuma mente
de nenhum homem hoje existente pode prever: o
destronamento da fé implícita e a inauguração da razão
e da justiça.
Algumas das conclusões das quais esse estado de
coisas seria o presságio já foram vistas, no julgamento
que seria feito de ofensas contra a comunidade.26 Ofen-
sas demonstrando uma variedade ilimitada da deprava-
ção da qual brotaram não mais seriam confundidas sob
um nome geral. Júris tornariam-se tão perspicazes na
distinção quanto são hoje na confusão do mérito das ações
e dos caráteres.
Os efeitos da abolição da lei, no que diz respeito à
propriedade, não seriam auspiciosos. Nada pode ser mais
merecedor de lamentações do que a maneira pela qual a
propriedade é hoje administrada, no que concerne aos

78
verve
Crime e punição

tribunais de justiça. A dubiedade de títulos, as diferen-


tes medidas de legislação relativas a classes diferentes
de propriedade, o enfado dos processos e o movimento de
causas de tribunal a tribunal por causa de apelações são
um círculo perpétuo de artifício e subterfúgio para uma
parte da comunidade e de angústia e sofrimento para
outra. Quem pode descrever as esperanças frustradas,
os anos de expectativas vãs, que dessa forma consumem
a força e as vidas de numerosos indivíduos? Vã é a
intenção do testador, enquanto as disputas entre os
herdeiros legais e os mencionados no testamento, ou uma
mera rixa sobre a fraseologia do morto, fornecerão
alimento para controvérsias sem fim. Em vão serão todas
as garantias que eu conseguir reunir para o
estabelecimento de meu direito, já que a obscuridade dos
registros e a complexidade da lei permitirão, em quase
todos os casos, que um homem engenhoso, que é ao
mesmo tempo rico, desafie a minha posse. A imbecilidade
da lei é impressionantemente ilustrada pela máxima
vulgar sobre a importância da posse. A posse não poderia
ser tão vantajosa não fosse pela oportunidade que a lei
dá à procrastinação e à evasão. A propriedade não poderia
ser objeto de tanta disputa se as pessoas chamadas a
decidir sobre ela se deixassem orientar por seu próprio
entendimento. A disputa de alegações opostas advém mais
do jargão no qual essas alegações são registradas do que
da complexidade do assunto a qual se relacionam. A
intenção de um testador é resolvida de forma muito mais
simples do que as rixas à qual a expressão dessa intenção
pode estar sujeita. Aqueles que fossem nomeados para a
decisão de processos não ganhariam tanto, sob o sistema
aqui delineado, quanto hoje; mas qualquer outra espécie
de pessoas interessadas na questão da propriedade
encontrariam, sem dúvida, vantagens.

79
5
2004

Uma observação que não pode ter escapado ao leitor


deste capítulo é a de que a lei é meramente relativa ao
exercício da força política e deve perecer quando a ne-
cessidade dessa força cessa de existir, se a influência da
verdade não a extirpar antes que as práticas da humani-
dade o faça.

Capítulo IX
Sobre os perdões
Há um outro assunto que pertence ao tema deste li-
vro, mas que pode ser eliminado em muito poucas pala-
vras, porque, apesar de infelizmente ter sido quase sem-
pre negligenciado na prática, é uma questão que parece
admitir evidências incomumente simples e irresis-
tíveis: refiro-me ao tópico dos perdões.
A palavra é, em si, para uma mente reflexiva, absur-
da. “Qual é a regra que deveria reger minha conduta em
todos os casos?” Certamente a justiça; entendendo por
justiça a maior utilidade à massa inteira de seres que
podem ser influenciados pela minha conduta. “O que então
é a clemência?” Não pode ser nada além do egoísmo
desprezível daquele que imagina poder fazer algo melhor
do que a justiça. “É certo que eu seja confinado por uma
determinada ofensa?” A razoabilidade do meu sofrimento
deve ser fundada em sua consonância com o bem-estar
geral. Aquele que me perdoa injustamente, portanto,
prefere o suposto interesse de um indivíduo e negligencia
imensamente o que deve ao todo. Ele concede aquilo que
eu não deveria receber e que ele não tem o direito de
dar. “É certo, ao contrário, que eu não deveria passar pelo
sofrimento em questão? Irá ele, ao resgatar-me do
sofrimento, conceder-me um benefício, sem inflingir mal
a outros?” Ele então será um deliqüente notório, se
permitir que eu sofra. Há de fato um defeito considerável

80
verve
Crime e punição

nesta última suposição. Se, ao beneficiar-me, ele não


inflige nenhum mal a outros, está infalivelmente
prestando um serviço público. Se eu sofri da forma
arbitrária que a suposição denota, o público sofreria um
mal inquestionável pela injustiça perpetrada. Ainda
assim, o homem que previne esta injustiça odiosa
acostumou-se a arrogar-se o atributo de clemente e o
aparentemente sublime, mas na realidade tirânico,
nome do perdão. Porque, se fizer mais do que foi descrito
aqui, deveria sentir, em vez de glória, vergonha, como
inimigo da humanidade. Se toda ação, e especialmente
toda ação da qual a felicidade de um ser racional
depende, for suscetível a uma certa regra, então o
capricho deve ser em todos os casos excluído: não pode
haver nenhuma ação a qual, se eu negligenciar, terei
descumprido o meu dever e, se realizar, serei digno de
aplauso.
O efeito pernicioso do sistema de perdões é peculiar-
mente gritante. Foi inventado como suplemento mise-
rável a um código sanguinário, a atrocidade do qual era
tão óbvia que seus ministros temiam a resistência do
povo, se fosse executado indiscriminadamente, ou seu
próprio encolhimento com repugnância insuportável
pela devastação a que obrigava. O sistema de perdões
obviamente associa-se ao sistema da lei; porque, ape-
sar de podermos chamar todo caso, por exemplo, em que
um homem causa a morte de outro, pelo nome de as-
sassinato, ainda assim a injustiça seria demasiada se
aplicássemos o mesmo tratamento a todos os casos. Po-
demos definir assassinato da forma mais precisa que
quisermos, a mesma consequência, a mesma dispari-
dade de casos, se interporá. É necessário, portanto, ter
um tribunal da razão ao qual as decisões de um tribunal
de justiça deverão ser revistas.

81
5
2004

Mas por que é esse tribunal inexpressivelmente


mais importante do que o outro, a ser constituído? Aqui
está a essência da questão; o resto é aparência. Um
júri é formado para lhe dizer o nome genético da
questão; um juiz preside, para ler o volume da lei que a
prescrição anexou a esse nome; por último vem o
tribunal de investigação, que deve decidir se a
prescrição é adequada às circunstâncias deste caso em
particular. Desta autoridade estamos acostumados a
investir em primeira instância o juiz e, em último
recurso, o rei. Agora, pondo de lado a propriedade ou
impropriedade desta seleção em particular, há um
abuso lamentável que deveria ser evidente ao mais
superficial dos observadores. Estas pessoas nas quais
repousa a principal confiança consideram suas funções
nesse respeito como uma questão puramente acidental,
exercem-nas com letargia e, em muitos casos, utilizam
os materiais mais insuficientes para orientar seu
julgamento. Isso cresce em grau considerável a partir
do próprio nome de perdão, pelo qual estamos
acostumados a entender uma obra de benevolência
excessiva.
A partir da forma pela qual perdões são dispensados
flui inevitavelmente a incerteza da punição. É dema-
siado evidente que a punição não é infligida por deter-
minadas regras e portanto não cria uniformidade de
expectativas. A uniformidade de tratamento e a cons-
tância de expectativas formam a única base de uma
moral genuína. Em uma forma justa de sociedade, isto
nunca passaria da expressão sóbria daqueles
sentimentos de aprovação ou desaprovação com os
quais diferentes modos de conduta inevitalmente nos
impressionam. Mas, se ultrapassamos este limite no
presente, é certamente um refinamento execrável da
injustiça que exibe a ameaça perpétua do sofrimento,

82
verve
Crime e punição

desacompanhado de qualquer regra prevendo sua


aplicação. Não mais que um terço dos ofensores a quem
a lei condena à morte nesta metrópole passam pelo
sofrimento ao qual foram condenados. Será possível que
cada ofensor não espere estar entre os que escapam?
Um sistema desses, para dizer a verdade, é uma loteria
da morte, na qual cada homem tira seu bilhete
determinando clemência ou sofrimento, conforme
acidentes indefiníveis decidirão.
Pode ser indagado se a “abolição da lei não produzirá
igual incerteza?” De forma nenhuma. Os princípios dos
reis e dos juízes, nestes casos, são muito pouco compre-
endidos, seja por eles próprios ou por outros. Os princí-
pios de um júri de cidadãos, convocados a se pronunciar
sobre a totalidade do caso, o criminoso adivinha facil-
mente. Ele só tem de apelar para seus próprios senti-
mentos e experiência. A razão é mil vezes mais explíci-
ta e inteligível do que a lei; e quando estamos acostu-
mados a consultá-la, a certeza das decisões seria uma
que homens, com prática em nossos atuais tribunais,
são totalmente incapazes de conceber.
Outra consequência importante advém do sistema
de perdões. Um sistema de perdões é um sistema de
escravidão imitigada. Sou ensinado a esperar um certo
evento desejável, a partir do quê? Da clemência: a des-
controlada, imerecida bondade de outro mortal. Pode uma
lição ser mais degradante? O servilismo pusilânime do
homem que se devota com obsequiedade eterna a ou-
tro, porque esse outro, tendo começado a ser injusto,
estagna-se em sua carreira, o ardor com o qual confes-
sa a justiça de sua sentença e a enormidade de seus
merecimentos constituirão uma fábula que épocas fu-
turas acharão difícil de entender.

83
5
2004

Quais são os sentimentos nesse respeito que são dig-


nos apenas de um ser racional? Dê-me aquilo, e aquilo
apenas, que sem injustiça você não pode recusar. Mais
do que justiça, seria desgraçado para mim pedir, e para
você conceder. Permaneço sobre a fundação do direito.
Este é um título que a força bruta pode recusar-se a reco-
nhecer, mas que toda a força do mundo não pode aniqui-
lar. Resistindo a esse apelo, você pode se provar injusto;
mas, ao ceder a ele, você não me concede nada além do
que me é devido. Se, considerado tudo, eu for o sujeito
adequado de um benefício, o benefício é merecido: o
mérito, em qualquer outro sentido, é contraditório e
absurdo. Se você me concede vantagens imerecidas, é
infiel ao bem geral. Posso ser primitivo o bastante, muito
obrigado; mas, se fosse virtuoso, o condenaria.
Apenas estes sentimentos são consistentes com a
verdadeira independência da mente. Aquele que está
acostumado a ver a virtude como uma questão de favor e
graça não pode ser eminentemente virtuoso. Se ele
ocasionalmente realiza uma ação de bondade aparente,
aplaudirá a generosidade de seus sentimentos; e, se se
abstiver, se inocentará com a questão “Posso ou não fa-
zer o que quiser?” Da mesma forma, quando ele é tratado
de forma benevolente por outro, em primeiro lugar, não
se disporá a examinar estritamente a razoabilidade deste
tratamento, porque a benevolência, como ele imagina,
não está sujeita a nenhuma inflexibilidade de regra; e,
em segundo lugar, ele não verá seu benfeitor com aquele
postura ereta e desembaraçada, com aquele senso
másculo de igualdade que é a única base inequívoca de
virtude e felicidade.

Tradução do inglês por Maria Abramo Caldeira Brant.

84
verve
Crime e punição

Notas
1
Livro V, Cap. XX.
2
Livro V, Cap. XII, Livro VI.
3
Livro IV, Cap. VIII.
4
Livro II, Cap. VI.
5
Livro II, Cap. VI.
6
Livro V, Cap. II, p. 411.
7
Beccaria, Dei Delitti e delle Penne.
8
‘Questa è una di quelle palpabili verità, che per una maravigliosa combinazione
di circonstanze non sono con decisa sicurezza conosciute, che da alcuni pochi
pensatori uomini d’ogni nazione, e d’ogni secolo.’ [Esta é uma daquelas verdades
palpáveis que, por uma surpreendente combinação de circunstâncias, não são
claramente conhecidas salvo por alguns poucos pensadores, homens de todas as
nações, e de todos os séculos]. (Tradução do italiano de Martha Gambini). Dei
delitti e delle pene. [Sobre delitos e penas].
9
Cap. VIII.
10
‘Questa [l’intenzione] dipende dalla impressione attuale degli iggetti, e dalla
precedente disposizione della mente: esse variano in tutti gli uomini e in ciascun
uomo colla velocissima successione delle idee, delle passioni, e delle circostanze.’
Ele acrescenta, ‘Sarebbe dunque necessario formare non solo un codice particolare
per ciascun cittadino, ma una nuova legge ad ogni delitto.’ [Esta [intenção] depende
da impressão atual das coisas e da precedente disposição da mente; estas variam
em todos os homens e em cada homem com a velocíssima sucessão das idéias, das
paixões e das circunstâncias’. Ele acrescenta; ‘Seria então necessário formar não
só um código particular para cada cidadão, mas uma nova lei para cada delito’.
(Tradução do italiano de Martha Gambini). Dei Delitti e delle Penne. [Sobre delitos
e penas].
11
Livro V, Cap. XXII, p. 544.
12
Livro V, Cap. XVI, p. 511.
13
Cap. IV.
14
Cap. III.
15
Livro II, Cap. IV.
16
Sr. Howard. 37.
17
A instituição da escravidão fez, em poucos anos, progresso considerável na
Grã-Bretanha. O primeiro passo foi enviar criminosos, culpados de delitos infe-
riores, para carregar pedras do leito do Tâmisa. O segundo passo, mais sério em
sua natureza, parece ter resultado da bem-intencionada, porém mal administra-

85
5
2004

da, filantropia do sr. Howard. Consistiu em erguer prisões de confinamento


solitário em várias partes do país. Os prisioneiros nestas cadeias passam uma
grande parte de seu tempo trancafiados em celas silenciosas e sombrias, como
loucos. O resto de seu tempo é empregado no que se chama de trabalhos forçados,
sob a inspeção de certos capatazes ignorantes e insolentes. Diz-se que, em uma
dessas prisões (Clerkenwell New Prison), os desafortunados habitantes passam
cinco horas por dia puxando carroças em círculos. A crueldade desta pena é
inexpressivelmente intensificada por sua imprudente ilegalidade. Diante deste
caso, podemos perceber que a inventividade da tirania não pereceu com a raça
dos dionisíacos. É nosso dever, como cidadãos, apontar casos como estes, para
eliminar a chance de eles existirem sem o conhecimento daqueles a quem pertence
sua superintendência.
18
Cf. particularmente Cap. IV.
19
Livro VI, Cap. VIII.
20
Livro III, Cap. III.
21
Cap. IV.
22
Summum jus summa injuria.
23
Livro V, Cap. VII.
24
Livro IV, Cap. XI.
25
Livro V, Cap. XX, p. 533.
26
Cap. IV, p. 65.

Encaminhado para tradução em 15 de agosto de 2003.

86
verve

Usando o mesmo sistema de domesticação


animal, a pedagogia autoritária instala nas
crianças a âncora de um duplo medo,
submetendo-as à autoridade: o medo da dor
na punição (física, mental e afetiva) e o medo
da ausência do prazer (físico, mental e
afetivo) pela não recompensa. Esses dois
medos reforçam-se mutuamente, levando à
inação, ao não-risco, à não liberdade, à
submissão.

Roberto Freire

87
5
2004

figuras exemplares do anarquismo e/ou


“escritos” pouco convencionais

edgar rodrigues*

1
Pensando resgatar a militância de anarquistas, cujas
vidas se entrelaçaram pelo convívio familiar, pelas con-
vicções ideológicas, pela solidariedade e colaboração
recíproca, enfeixo neste texto, episódios, penso, perten-
centes à história do anarquismo.
Entendo os anarquistas pelo que fazem, pelas suas
condutas, pela coerência e ética, pelos exemplos de gran-
deza, de humildade contínua, retidão de caráter, lealda-
de e sentimentos humanistas, já que para mim um ser
humano vale um ser humano, independente de títulos,
sexo, etnia ou país de nascimento.
Dentro deste entendimento, ao “esbarrar” com o PLÁ-
GIO do Hino A Internacional, tradução de Neno Vasco no

* Vivendo no Rio de Janeiro desde 1951, Edgar Rodrigues é um dos mais


importantes arquivistas dos movimentos anarquistas no Brasil e em Portugal.
Suas análises, entrevistas e compilações de documentos distribuem-se em mais
de quarenta livros e cerca de um milhar de artigos.

verve, 5: 88-111, 2004


88
verve
Figuras exemplares do anarquismo...

começo do século XX, pelo Promotor de Justiça da


Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Carlos
Henrique Maciel, que para se fazer notar usa 228 pági-
nas de revista da PUC, que lhe paga salário para ensi-
nar, doeu-me tanto quanto o silêncio da quase totalida-
de dos anarquistas (entenda-se neste caso!) indepen-
dente de países (o anarquismo não tem pátria ou tem e
eu não sei!).
Na Revista Jurídica (vol. 15, nº 2 – 1999, da Faculdade
de Direito da PUC de Campinas), o Promotor Maciel esga-
ravatou delírios surpreendentes para justificar um PLÁ-
GIO do tamanho do seu cinismo!1 E ainda teve a coni-
vência da funcionária da PUC, responsável pela revista
da Universidade que deveria primar pelo respeito à Ver-
dade Histórica e à honestidade (antigamente mentir, para
os católicos era pecado mortal, sabiam?) em vez de en-
ganar, inventar, trapacear leitores que teriam lido a
revista da Pontifícia Universidade Católica de Campinas,
pensando, em tese, estar adquirindo cultura geral,
internacional2.
O plágio contra o qual escrevi três artigos3 levou-me
a refazer a minha juventude, a partir dos anos 1930.
Convidado nessa época pelo companheiro e meu pri-
mo Armindo, fui com ele visitar o militante libertário
Altino Maia, em São Romão de Coronado. Era início de
uma linda tarde do verão português e, por isso a visita
durou horas.
Vivíamos o auge da repressão fascista em Portugal,
sob o domínio da dupla: Carmona e Salazar.
As visitas às casas dos anarquistas (nunca em gru-
pos) revestiam-se de alguns cuidados, embora se falas-
se sempre dos motivos, neste caso, que nos levaram a
S. Romão de Coronado.4

89
5
2004

A última parte da conversa dos três militantes ácratas


girou em torno da figura de Neno Vasco e do seu faleci-
mento em 1920, perto da casa onde nos encontramos.
Na oportunidade soube ainda que São Romão de
Coronado tinha um clima bastante favorável às “curas”
de doenças pulmonares.
Neno veio de Lisboa para esta localidade por insis-
tência de companheiros de idéias que se cotizaram, in-
clusive em São Paulo, numa solidariedade anarquista
por sobre as fronteiras para tentar salvá-lo da tubercu-
lose, uma doença incurável, que dilacerava os pulmões,
até a descoberta, muitos anos mais tarde, das drogas
que vieram erradicar o bacilo de Kock.
Sua companheira Mercedes Moscoso, já havia fale-
cido da mesma doença, em janeiro de 1920, em Lisboa.
Os anarquistas militantes da capital portuguesa não
se conformavam com perder Neno... e tentavam salvá-lo.
Com a minha, então, pouca experiência de jovem que
tinha contra si a falta de liberdade desde os 5 anos de
idade, (1926) e as raras e pequenas publicações clan-
destinas, fiz muitas perguntas sobre o ser humano Neno
Vasco e sua militância: anotei num caderninho que já
naqueles anos distantes era meu companheiro, tudo que
me foi dito e as promessas que me fizeram de empres-
tar algum jornal e o almanaque de A Aurora5, para 1913,
com valioso artigo de Neno Vasco.
Imediatamente copiei uma breve “Expressão Anti-
clerical” em três itens:
“a) Luta contra os padres para mostrar as contradi-
ções de suas vidas com as doutrinas que professam; o
sacerdócio como profissão, tendo o interesse material
como base;

90
verve
Figuras exemplares do anarquismo...

b) Luta contra a influência política da Igreja pela


ação direta e pela propaganda extraparlamentar;
c) Denúncia do poder econômico da Igreja; da Igre-
ja como empresa, como auxiliar da exploração capitalis-
ta, como divisora do proletariado, fautora do crumirismo.
Esse é o anticlericalismo dos anarquistas”
Neno Vasco

Vibrei com esta síntese, para mim leitor de Guerra


Junqueiro, Gomes Leal e de Tomás da Fonseca, poetas
e escritores anticlericais da minha juventude.
Emocionei-me também ao ler: “Morreu Neno Vasco!
Com ele desaparece uma figura inigualável de apóstolo
e de lutador, que à causa da Anarquia, dera o melhor e
mais nobre quinhão do seu esforço de homem superior,
pelo caráter e pelo espírito, em cuja alma ardia a bonda-
de dos justos e exuberante ternura dos sacrificados do
Amor e da Justiça”6.
Na oportunidade pude ler ainda: “Ao contrário, pois
do que telegraficamente se leu no O Estado de S. Paulo,
Neno Vasco não era nem fôra apologista do sistema re-
publicano7, mas sim genuíno e sinceramente anarquis-
ta, cujas convicções e propósitos se patentearam sem-
pre com galhardia e inteligência no decorrer de sua plá-
cida e trabalhosa vida; quer como propagandista dos
mesmos princípios; quer como pai, esposo e filho, de que
foi sempre, na família, uns dos mais belos modelos de
ternura e de Amor; quer finalmente, como indivíduo,
cuja moral e inteligência, a par de uma sólida cultura
científica, realçavam-lhe a feição gentil e extremamente
delicada e cativante de suas maneiras, tornando-o não
só admirado (em São Paulo) por todos os seus amigos e
companheiros de luta, mas até mesmo por seus próprios

91
5
2004

adversários, que nele viam a encarnação do ideal anar-


quista e revolucionário, nobremente representado e dig-
nificado pelo talento e pela cultura de quem, sabendo
esgrimir as armas da inteligência e da razão em defesa
dos mais elevados princípios, fazia brilhar a verdade em
seus argumentos e confundia-os, patenteando-lhes a
nobreza e a sublimidade dos sentimentos de justiça e a
elevação de seu amor pela causa da Humanidade”.8

2
No Rio de Janeiro, sem a “camisa de força” (Agosto de
1951) que me impunha a ditadura portuguesa e a
impetuosidade de quem nada de substancial havia feito
pelas idéias em que acreditava, fui procurar na rua dos
Inválidos, Manuel Peres, encontrando vários antigos e
novos militantes, inclusive o velho José Romero.9
Com este, nossa conversa foi sobre sua convivência
no diário A Batalha de Lisboa, e logo me falou de Neno
Vasco e seu convívio com ele no Jornal A Terra Livre de
São Paulo.
Eu queria saber tudo que fosse possível sobre Neno
Vasco. Com esse propósito encontramo-nos várias ve-
zes, inclusive em sua casa.
Enchi cadernos com anotações. Uma das informações
que mais me interessou foi sobre a capacidade e a sim-
plicidade de Neno. Segundo Romero, “Neno nunca se va-
lia da sua superioridade acadêmica, do seu saber para
fazer valer sua opinião”.
Nas reuniões ou quando examinava escritos que ti-
nha de corrigir, não trocava uma vírgula. Uma letra, uma
frase. Suas correções eram feitas na presença dos au-
tores e, sempre em forma de aulas práticas, sem nunca

92
verve
Figuras exemplares do anarquismo...

dizer “faça assim”. Lembrava apenas que “se fosse as-


sim” ficaria mais clara a frase, o parágrafo, o artigo.
Neno Vasco — disse-me Romero com bastante emo-
ção — “era um verdadeiro mestre”! Sabia ensinar com
a devoção de um apóstolo.10
Jamais o vi/ouvi submeter alguém a uma posição
inferior a sua. O mais rude dos operários era seu com-
panheiro no trato. Foi o mais puro dos militantes acratas
que conheci nos meus 85 anos de vida e mais de 70 de
militância.
Para exemplificar a personalidade e o respeito de
Neno pelos outros companheiros, contou-me; “Adelino
Pinho comia muitas vezes na casa de Neno, apesar de
sua vida apertada.
Certa vez Neno foi comprar frutas para o almoço com
uma cesta.
Pouco depois chegou o Pinho e como a comida demo-
rou a sair, vendo as frutas comeu-as.
Quando acabou o almoço Neno foi apanhar a cesta
das frutas, encontrando-a vazia. Saiu novamente e com-
prou outras frutas sem dizer uma palavra: não pergun-
tou quem comeu as frutas e/ou se notou qualquer gesto
de “reprovação” (o Pinho, percebendo o que havia feito é
quem se “acusou”).
Nunca tentava “fazer” as pessoas a sua imagem e
semelhança, aceitava-as como eram sem reprova-las
e, se podia, ajudava-as a superar limitações, ensinava
indistintamente com a maior paciência.
Estava sempre disponível para os companheiros”.
Neno Vasco (Gregório Nanianzeno Moreira de Queiroz
Vasconcelos) nasceu em Penafiel, no dia 5 de maio de
1878.

93
5
2004

Antes de completar 9 anos de idade veio na compa-


nhia de seu pai para São Paulo, Brasil.
Tempos depois retornou a Portugal e foi viver em
Amarante, com seus avós. Ali estudou até completar o
Liceu e, em seguida, matriculou-se na Faculdade de
direito da Universidade de Coimbra: Queria ser literato
como alguns dos estudantes do seu tempo: Faria de Vas-
concelos, Teixeira de Pascoais e outros.
Fazia um bom tempo, na Universidade de Coimbra,
as idéias libertárias de Proudhon eram muito discuti-
das.
O professor Joaquim Maria Rodrigues de Brito havia
adotado a Mutualidade de Serviços, de Proudhon, na
Cadeira da filosofia do Direito da Universidade de
Coimbra11 gerando polêmicas homéricas.
Antes de formado no ano de 1901 Neno já tinha tam-
bém conhecido Campos Lima (João Evangelista), Sobral
de Campos e outros estudantes que haviam abraçado
as idéias anarquistas na Universidade.
Com seu diploma de bacharel em direito, Neno rumou
para a Cidade do Porto. Procurou os anarquistas mais
conhecidos na época: o artista plástico Cristiano de
Carvalho12, o talentoso operário sapateiro, Serafim Car-
doso Lucena, orador e jornalista “de primeira linha”, o
espanhol José Amoedo, o Dr. Matos Ferreira e vários
outros “nortenhos”...
Nos 9 anos vividos em São Paulo (descontados alguns
meses que viveu no Rio de Janeiro) Neno Vasco devo-
tou-se a esclarecer dúvidas ideológicas, a conciliar gru-
pos, militantes anarquistas em divergências, cada um
defendendo a sua verdade...
Ensinava e instruía como mestre, todos aqueles que
pensavam e tentavam escrever artigos e/ou notícias,

94
verve
Figuras exemplares do anarquismo...

incentivando com sugestões, inclusive por cartas, sem-


pre na forma de dizer corretamente o que cada um pre-
tendia, sem qualquer resquício de superioridade acadê-
mica que era/é comum, também, nos meios anarquis-
tas, até nossos dias.
Escreveu contos, poesias, crônicas, reportagens, pe-
ças de teatro, traduziu inclusive A Internacional e, tra-
balhos antológicos do anarquismo universal.
Para Neno a Ação Direta era própria da classe operá-
ria autônoma que não convinha aos políticos, aos parti-
dos que pretendiam tomar, comandar os trabalhadores,
exercendo sobre os seus organismos de classe, uma tu-
tela enquanto direcionavam suas energias em proveito
dos partidos, do governo, do fortalecimento do Estado.
Sabedor de que os intelectuais se “entrincheiravam”
em suas capelinhas como se ciência e cultura fossem
exclusividades de uma dúzias de figurões acadêmicos,
e não pertencesse à Humanidade que acumulava co-
nhecimentos ao longo dos séculos, contribuição de mi-
lhares de pessoas, Neno insurgia-se contra filósofos e
poliglotas em defesa do povo que os sustentava.
Nas páginas de O Amigo do Povo e depois de A Terra
Livre em textos de clara preocupação com o idioma, me-
lhor dizendo, a simplificação da língua portuguesa a fim
de torná-la mais assimilável pelas camadas que traba-
lhavam enquanto os lingüistas cursavam as universi-
dades, fazia restrições aos membros da Academia Bra-
sileira de Letras, Salvador de Mendonça, José Veríssimo,
João Ribeiro e seus pares, demonstrando-lhes incoerên-
cia nas “dezesseis proposições” apresentadas para uma
renovação ortográfica.13
Não é exagero e é saudável, dizer-se que a humilda-
de14 de Neno Vasco não impediu que fosse vítima de
uma enfermidade política nativista, latente também nos

95
5
2004

meios anarquistas despeitados, que não conseguiam


acompanhá-lo em seu saber, “convencendo-o” a voltar
a Lisboa, desgostoso (1911).
Quem pensa que Neno Vasco, com suas atividades
somente intelectuais e sua serenidade humana, seu
convívio afável, escapou ao cerco e pressões policiais
brasileiras, engana-se!
“Discretamente” vigiado, as autoridades assustavam
os senhorios a quem encarregavam de pedir a devolu-
ção da moradia e/ou de aumentar os aluguéis em ní-
veis impossíveis de Neno e sua família pagar, forçando-
os a mudar de casa na seguinte ordem:
“Neno ao casar-se com Mercedes Moscoso foi morar
na rua do Oriente. Depois teve de mudar-se para a rua
WandenKolk. Nesta moradia faleceu seu sogro e Neno
foi com a família para a rua Santa Cruz da Figueira, nº
1.15 Aqui, Neno redigia o jornal A Terra Livre, e nasceu o
seu 1º filho, a quem deu o nome de Ciro.
Mais uma vez “precisou” sair desta casa e foi morar
na rua Bonita, 55, próxima à rua Conselheiro Furtado.
Alí nasceu sua filha Fantina (nome dado em home-
nagem a mais destacada personagem-vítima, do roman-
ce de Victor Hugo, Os Miseráveis).
Não se demorou nesta residência e precisou mudar-
se para a rua Maria Domitila, 88, próximo à Av. Rangel
Pestana, no Brás.
Mas também lá não teve tempo de “sentir o sabor do
local” e foi para a rua Correia de Andrade, nº 6, também
conhecida como Monsenhor Andrade.
Nesta casa nasceu sua filha Ondina16, pouco antes
de retornar a Lisboa: era 1911.

96
verve
Figuras exemplares do anarquismo...

Nesta troca de moradias chegou a viver no Rio de


Janeiro, na rua Jorge Rudge, 15, casa 12, Vila Isabel.
(Carta-informe de Aurora Moscoso Botelho, cunhada
de Neno, paulista de nascimento, escrita de Lisboa a E.
R. em 10 de julho de 1984).

3
No ano de 1909, o jovem Adriano Botelho17 chegou à
capital portuguesa e conheceu o anarquismo.
Segundo sua carta em meu poder, o primeiro livro
que Adriano leu foi As doutrinas anarquistas de Paul
Elzbaker.
A monarquia portuguesa vivia o estertor da morte18 e
as idéias revolucionárias fervilhavam em Lisboa.
A obra do Dr. Elzbaker tinha algo de controverso, e
Botelho leu também obras de Pedro Kropotkine, Eliseu
Reclus, Jean Grave19, e de outros pensadores que aten-
diam mais ao seu temperamento moderado.
Em 1911, Adriano Botelho matriculou-se na Univer-
sidade de Coimbra, mesmo ano em que Neno Vasco
chegou a Lisboa com sua família, inclusive a Jovem
paulista Aurora Moscoso, que viria a casar-se com
Adriano.
Neste ano de 1911, também se matricularam na Uni-
versidade de Coimbra, o futuro Cardeal Patriarca de
Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira e o futuro (1932-
33) ditador português, Antônio Oliveira Salazar.20
Em fins de 1969 (em plena ditadura militar no Bra-
sil) enviei ao Companheiro Francisco Quintal, então
revisor do diário A República, de Lisboa, um exemplar de

97
5
2004

Socialismo e Sindicalismo no Brasil – 1675-1913, que aca-


bava de sair.
Além de um substancioso comentário no jornal A
República, ao meu livro, Quintal tomou a iniciativa de me
remeter cerca de seis pacotes com anotações, prospectos
e outros documentos que vinha juntando para escrever a
História do Movimento Libertário em Portugal. Ainda
segundo Quintal, (em carta), a sua avançada idade e a
ditadura de Salazar sugeriam-lhe que E. R. é quem devia
tomar a seu cargo, no Brasil, essa empreitada.21
Um dos antigos companheiros que havia “abasteci-
do” Quintal de anotações, Adriano Botelho, ao ser infor-
mado, logo concordou com a transferência da tarefa para
o Rio de Janeiro. E mais: comprometeu-se a ajudar-me.
E, desde essa data, até a conclusão dos volumes: O
despertar operário em Portugal, 1834-1911; Os anarquistas
e os sindicatos em Portugal, 1911-1922; A resistência
anarco-sindicalista à ditadura, 1922-1939; e Oposição
libertária à ditadura Portuguesa, 1939-1974, num total
de 1.355 páginas publicadas em Lisboa pela Editora A
Sementeira, Adriano Botelho nunca parou de enviar
semanalmente jornais antigos, valiosos documentos,
opiniões e sugestões.22
Concluindo meu trabalho entre 1980-1982, e com a
liberdade restabelecida em Portugal, optei por fazer
retornar ao país de origem tudo que recebi durante mi-
nha pesquisa.
Adriano Botelho, doador de 80% dos documentos ha-
via falecido no dia 1º de maio de 1983, aos 91 anos de
idade, e não cheguei a ouvir sua opinião sobre devolu-
ções: coube-me decidir a quem entregar capaz de lhe
dar alguma utilidade.
João Freire, um dos responsáveis pela Editora Se-
menteira e a revista A Idéia, em cartas, falava-me em

98
verve
Figuras exemplares do anarquismo...

organizar um arquivo23 de imprensa social, e foi a quem


comecei a entregar em mãos o acervo que me havia
sido confiado.
Uma vez, eu mesmo entreguei ao Jorge Colaço (1986),
e como as idas a Portugal não eram tão freqüentes, os
companheiros Manuel Vieira e José Maria Carvalho
Ferreira, de passagem pelo Rio de Janeiro, também
levaram pacotes, que me havia confiado Adriano
Botelho.24
Durou um bom tempo minha troca de conversa sobre
arquivos com João Freire e, numa dessas confabulações,
Freire disse-me que pretendia, com outros companhei-
ros, formar um arquivo em separado, só de “coisas” de
Neno Vasco.
Eu possuía muitos escritos de Neno, e, sobre Neno,
inclusive uma boa quantidade de linguados25 de papel
bastante maltratados, uma valiosa correspondência de
Neno, enviada para o Brasil, e outras localidades e paí-
ses.
Em se tratando de uma iniciativa que eu aplaudia
me propus a doar quase tudo que tinha de Neno e de
acordo com João Freire, em minhas visitas à casa da
família Botelho, pedi às senhoras Aurora Moscoso e
Ondina Vasconcelos26, para doar o que ainda tinham para
o referido arquivo.27
Mais tarde, numa visita à sede de A Sementeira, na
Av. Guerra Junqueira, o companheiro Manuel Ramos
(do Rio de Janeiro), para combinar com Jorge Colaço a
possibilidade da venda da revista A Idéia, no Rio, viu o
acervo de Neno Vasco, doado por E. R., “num espaço sem
os devidos cuidados que merecia”. (Foi o que me disse e
concluiu).

99
5
2004

Entretanto o grupo editor A Sementeira e da revista


A Idéia encerraram suas atividades, e o acervo de livros
da editora foram entregues ao grupo do jornal A Batalha.
E nasceu o Arquivo de História Social28 em depen-
dência da Biblioteca Nacional (Lisboa – 1991). Num ca-
tálogo em meu poder às páginas 22, com 11 itens apare-
ce o nome de Neno Vasco, relacionando-se 4 maços de
correspondência.
Penso que são os linguados de papel escritos por Neno
que juntei por uns bons anos.
É capaz até de já ter servido a gente que em cima
desse esforço recebe/recebeu um título de doutor, sem
se preocupar com o quanto custou o esforço e idealismo
para quem escreveu essas cartas em tempos difíceis, e
a quem os juntou e preservou até chegar ao Arquivo de
História Social de Lisboa, pelas mãos de João Freire.

4
A correspondência, para mim, reflete comportamen-
to, caráter, personalidade, pedaços da história que não
aparece nos compêndios escolares, e no caso dos anar-
quistas, também convicções ideológicas, “desabafos
emocionais”, sentimentais, solidariedade para com o ser
humano.
Como é “despido” de convencionalismos literários e/
ou rasgos de erudição, os libertários “não sendo nati-
vistas”, onde quer que alguém sofra, nessa direção irá
sua solidariedade e/ou seus protestos.
A correspondência fala ainda de realidades que a
imprensa anarquista não pode divulgar: “Revoluções” e
bravatas que andam muitas vezes no imaginário dos
seus militantes.

100
verve
Figuras exemplares do anarquismo...

Correspondência trocada entre homens de idéias


avançadas, refletem interpretações livres, pontos, às
vezes, polêmicos, planos impraticáveis até, e com muita
freqüência apelos à solidariedade.
Pensando nesta realidade pouco divulgada, de suma
importância social, ideológica e de ajuda mútua entre
companheiros, termino reproduzindo o que pude saber
de Neno Vasco, depois que ficou doente e pediu à Adriano
Botelho, seu cunhado, para ajudá-lo no trabalho de
tradutor, e posteriormente substituí-lo. Em carta
Adriano lembra um pouco desse drama:
“Prezado amigo Edgar Rodrigues, saúde!
Respondo agora com mais vagar a algumas passa-
gens da sua carta de 4/8/1972.
De fato, ainda vive uma das filhas do Neno, apesar de
ter tido uma adolescência e juventude atormentada.
A mãe, Mercedes Moscoso, morreu tuberculosa, em
janeiro de 1920, e o pai, em setembro do mesmo ano,
também tuberculoso.
Deixaram três órfãos: Ciro, de 14 anos; Fantina, de
12 e Ondina, de 9, que a seu pedido ficaram na nossa
companhia.
O Ciro e a Fantina morreram também tuberculosos,
aos 20 anos de idade.
A Ondina escapou à hecatombe, tirou o curso de pro-
fessora primária, e em Alpiaça, onde exerceu primeiro
sua profissão, conheceu um excelente rapaz, com quem
se casou aos 26 anos. Mas logo aos 29, já estava viúva.
Ele também morreu tuberculoso.
Foi ela, como já lhe disse, quem me deu a fotografia
do pai para lhe enviar29, e já leu a obra que enaltece
tanto a figura de seu pai.”30

101
5
2004

A carta de Adriano Botelho tem várias páginas, por isso


termino minha inserção com seu desfecho:
“Pedia-lhe o favor de mandar um livro do Brasil, assim
como o Retrato da Ditadura Portuguesa de sua autoria e
jornais que são altamente elucidativos, para a seguinte
direção:
L. Seribante, c/o Antonio Ruju31, Corso Racconigi, nº
171, Torino – 10141 – Itália
É um velho amigo italiano, que viveu muitos anos em
Moçambique, onde conheceu o Aurélio32, e portanto lê o
português.
Muito interessado, estou certo que lhe agradarão
imensamente esses trabalhos, que retratam fielmente um
dramático período histórico.
Lisboa, outubro de 1972.33

Sobre a violência que já nos anos setenta se fazia sentir,


Adriano Botelho entendia: “A violência intensificou-se no
último meio século, de uma forma pavorosa e, nós em certa
medida, também ajudamos, embora com intuitos generosos
de protesto contra os abusos dos poderosos...”
“... E deixamos para segundo plano a nossa propaganda
de educação para a liberdade, e acho, que devemos mais
que nunca fixarmo-nos nela.
Divulgar o anarquismo começando com obras como O
apoio mútuo de Kropotkine (entre outras) e, contribuir para
o desenvolvimento dos sentimentos entre os homens,
prepará-los para uma convivência mais fraternal, pacífica,
de ajuda mútua.
Sem jamais pactuar com as forças da opressão, procu-
rar-mos ser, tolerantes, compreensivos e generosos porque

102
verve
Figuras exemplares do anarquismo...

violência, intolerância, imponência nada cria de saudável


para a sociedade futura que queremos.
Lisboa, novembro, 1972”

“Caminhando” um pouco mais pela correspondência


anarquista, chego à de Neno Vasco, dirigida a Antonio Alves
Pereira, diretor do semanário A Aurora, do Porto.
“Recebi a tua carta, penalizando-me muito os teus
dissabores e as injustiças de que és vítima.
Eu sei o que isso é, por uma longa experiência própria:
é o pago freqüente do militante e sobretudo do que dirige
um jornal. É preciso contar com os eternos descontentes.
Por isso mesmo não te aflijas e continua no teu posto e
pelo teu caminho, com o apoio daqueles a quem sou-
bestes inspirar simpatia e confiança.
A Aurora diz o que queres, isto é, o que entende dever
dizer, e isso basta. Eu, que tenho escrito a maioria dos
artigos de fundo (muitos sem assinatura, digo eu!), de há
tempos para cá, nem sequer conheço as condições de
ambiente anarquista aí, os desejos e orientação deste ou
daquele anarquista ou ex-militante. Escrevo conforme me
dita a consciência, sem sugestões pessoais de camaradas
ou ex-camaradas do Porto.
Somente detesto a linguagem despeitada, própria dos
jacobinos, dos demagogos, dos politicantes sem idéias, dos
que pretendem inflamar momentaneamente em vez de
convencer profundamente e para sempre. A nossa idéia é
demasiadamente rica de razões para que precise de retó-
rica e de foguetes de artifício.
Nós não somos tribunos de comícios eleitoreiros, nem
candidatos a deputados. Não devemos contribuir para o

103
5
2004

falso entendimento feito de nós: violentos, atrabiliários,


bombistas, sem idéias nem argumentos.
Também acho que um grande mal é o pseudo-individu-
alismo, o amoralismo, o justo como método e princípio —
todo esse câncer tão perigoso como o parlamentarismo (e
com a mesma lógica), e mais nocivo do que a repressão
governamental e policiesca. É preciso com-
batê-lo a todo custo.
Se vires que as suas idéias, de Gonçalves Correia,
entenda-se com certo jeito, talvez valesse a pena aceitar-
lhes um ou outro artigo para ser refutado.
Se não continuaremos, em artigos originais ou tradu-
zidos, a dar combate à nefasta tendência, absolutamente
contrária ao anarquismo.
E nada de desanimar. São ossos do ofício. Caminhe-
mos e deixemos falar.
Um abraço do Neno.
Lisboa, 12/8/1912.”

A correspondência de Neno Vasco é bastante


elucidativa, inclusive a que fala de Antonio Gonçalves
Correia e as Comunas que tentou implantar.34
“Agora torno a encontrar na carta de Gonçalves Cor-
reia a mesma linguagem, reveladora do mesmo estado de
espírito. O teu embaraço35 é justificado e seria o meu no
teu caso.
Recomendar ou mesmo anunciar como “Comuna
Libertária” esses míseros ensaios de cooperação restrita
é inconsciência ou ingenuidade, quando não é fraqueza,
porque é contribuir para manter ou divulgar um falsíssimo
conceito — mítico e pueril do anarquismo e dos seus meios,

104
verve
Figuras exemplares do anarquismo...

é contrariar a propaganda do anarquismo e contribuir para


o seu descrédito.”
“... O que neste momento me ocorre como mais razoá-
vel e prático é escrever ao G. Correia, com a maior afa
bilidade, procurando mostrar-lhe que, no próprio interes-
se do seu ensaio e no interesse das idéias, convém praticar
a experiência entre amigos, sem espalhafato, sem
publicidade, até se poder apresentar ao público, se não uma
realização prática do anarquismo, impossível de realizar
em pequenas doses no meio desta sociedade, ao menos
um exemplo de cooperação fraterna e boa harmonia entre
camaradas, num esforço para suprimir desde já algumas
pequenas misérias e algumas pequenas sujeições
imediatas (o que já é concerder-lhes muito).
Lisboa, 28/10/1913.”

A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (vol. 34,


pp. 305/6), em tímido verbete, troca o nome de Amarante,
onde viveu Neno com seus avós, por ABRAN-
TES, redimindo-se depois em 45 linhas: “VASCONCELOS:
(Gregório Nanianzeno Moreira de Queiroz) jamais se
utilizou do diploma de licenciado para melhorar de vida, e
apesar de pessoas de sua amizade, após regressar do Brasil,
se haverem prontificado a proporcionar-lhe o ingresso na
magistratura ou no funcionalismo público, preferiu,
embora vivesse com dificuldades econômicas muito sérias,
empregar-se como correspondente para o inglês numa
empresa comercial do Poço do Bispo”.
Bem este era o Dr. Gregório Nanianzeno Moreira de
Queiroz Vasconcelos, e quem é Carlos Henrique Maciel,
Prof. Da PUC de Campinas, plagiador de A Internacional?
A imprensa anarquista que conheço, comenta e divul-
ga, com muita freqüência, vidas e obras dos mais famosos

105
5
2004

pensadores e, pouco ou nada de militantes que construíram


as bases, os alicerces, pedra por pedra, cimentando esta
ideologia: e foram tantos, (a maioria) operários que o tempo
está apagando.
É hora — penso — de resgatar os esquecidos, e são
muitos!

Notas
1
Em três textos de contestação publicados em Nova Gazeta; CENIT e Barcelos
Popular, agora incluídos no livro Rebeldias-II demonstra-se o quanto faltou à verda-
de Carlos Henrique Maciel, para “explicar”, sua versão “brasileira” de A Internacional
(não vou repetir o que disse).
2
Este texto não é convencional, não segue uma linha reta da história-social,
pretendo apenas defender e resgatar as figuras de Neno Vasco, (Dr. Gregório
Nanianzeno Moreira de Queiroz Vasconcelos), o poliglota Adriano Inácio Botelho
e duas famílias anarquistas cujas vidas se entrelaçaram no Brasil e Portugal. Usarei
também correspondências trocadas pela importância e testemunho de épocas e
acontecimentos que não podem ser apagados!
3
Quem primeiro soube do plágio do Promotor Carlos Henrique Maciel, foi Eduardo
Ramos Dezena e sua companheira Ana, manifestando-se na própria Revista da
Justiça da PUC, passando-me cópias. Para dar maior impacto, procurei apoio dos
amigos Pietro Ferrua, professor na Universidade de Portland, EUA, e de José Maria
Carvalho Ferreira, da Universidade de Economia de Lisboa. Os dois contestaram o
plagiador diretamente! Tentei outras pessoas na Europa e na América, mas ninguém
mais se manifestou nos meios anarquistas, que eu saiba.
4
Esta não foi a única visita à moradia do anarquista Altino Maia, “Santeiro” de
profissão. Hábil desenhista de figuras sacras, foi notado por um artista plástico,
incentivado, matriculou-se na Escola de Belas Artes, freqüentando-a à noite.
Estudou, desenvolveu a técnica do desenho e mais tarde foi trabalhar no diário
Primeiro de Janeiro, do Porto, tornando-se professor de arte.
5
O almanaque A Aurora, como não havia copiadoras, foi mesmo copiado a mão e
o guardo até hoje recordando uma época difícil.
6
Extrato de um longo texto do semanário A Comuna, com redação na rua do Sol,
131 — Porto — Portugal.
7
Creio que a insinuação deturpadora de políticos/jornalistas se deveu ao fato de
Neno Vasco ter regressado a Lisboa em 1911, pouco depois da implantação da
república portuguesa no dia 5 de outubro de 1910.

106
verve
Figuras exemplares do anarquismo...

8
Fecho de um texto de João Penteado, fundador e professor da Escola Moderna em
São Paulo, 1912, em A Plebe, 25/9/1920.
9
José Romero era espanhol de nascimento. Veio criança para o Brasil com seus pais
nos anos distantes de 1890. Durante uma epidemia que assolou algumas regiões do
Brasil, seus pais e irmãos morreram, só escapou ele. Para sobreviver, foi criança
trabalhar em fábricas de tecidos, armazéns, de pintor e gráfico. No Rio fez parte do
grupo que publicou Novos Rumos e depois foi para São Paulo, ajudando Neno Vasco
na feitura do jornal A Terra Livre, juntamente com Adelino T. de Pinho e o jovem
Edgard Leuenrolh; chegou a ajudar a fazer A Lanterna, na segunda fase (1906-
1916). Em 1919 (outubro) José Romero foi expulso do Brasil com mais 22 com-
panheiros. Na Espanha “era estrangeiro”, e aproveitou para se refugiar em Portugal
sendo acolhido na redação do diário A Batalha, onde trabalhou até a implantação da
ditadura portuguesa em 1926.
10
Edgard Leuenroth tornou-se excelente jornalista e diretor de jornais, graças aos
ensinamentos e aos exemplos de Neno. Neno Vasco foi o mais importante “professor”
na formação do Edgard, afirmou-me Romero.
11
Adoção da Mutualidade de Serviços de Proudhon, durou de 1866 a 1873, mas as
polêmicas e as obras escritas e publicadas de oposição e de defesa duraram até ao
século XX, com vasta divulgação.
12
Cristiano de Carvalho, natural de Matosinhos, norte de Portugal, tinha estudado
em Paris. Na capital francesa conheceu vários refugiados russos, inclusive Leon
Trotsky, que vivia com a KGB de Stalin em seus calcanhares. Anos mais tarde,
Trotsky bateu na porta de sua casa em Matosinhos, pedindo abrigo ao Cristiano,
anarquista. Escondeu-o dos seus perseguidores e ainda conseguiu-lhe uma passagem
de navio, embarcando-o clandestinamente no porto de Leixões rumo ao México.
Mas nem neste país distante, Trotsky escapou da picareta do agente da KGB,
Ramon Mercador Dell Rio: morreu em 1940. O bonito gesto de solidariedade do
Cristiano anarquista jamais aconteceria se fosse ele a pedir ajuda ao bolchevista
Trotsky.
13
Para além das propostas de mudanças dos acadêmicos semelhantes às já adotadas
por Neno Vasco em O Amigo do Povo e A Terra Livre, pouco depois de ter chegado
a capital portuguesa (1912), em sua correspondência com Edgard Leuenroth, ainda
enfatizava a necessidade de rever a língua portuguesa, sugerindo a substituição do
Ph por F., a retirada do H das palavras Ombro, Ontem, etc. etc.
14
A humildade de Neno era tão marcante que seus patrões e seus companheiros da
companhia de exportação, onde era tradutor de línguas estrangeiras, só vieram a
saber, após a sua morte, que tinham tido como empregado e colega um acadêmico
e escritor.
15
Na década de sessenta procurei e fotografei em São Paulo, todos os prédios
existentes na época, que haviam sido sedes de grupos e jornais. Fui também com

107
5
2004

Pedro Catalo à rua Santa Cruz da Figueira, nº 1, na ocasião já com o nome de


capitão Faustino, 29.
Por uma gentileza do morador, atendendo a minha curiosidade, (depois de algumas
explicações) mostrou-nos a casa por dentro que servira de moradia a Neno, onde
nascera seu filho Ciro e fôra redação de “A Terra Livre”, durante algum tempo.
16
Admiração de José Romeno por Neno era tão grande que logo que nasceu sua
filha (que cheguei a conhecer) deu-lhe o nome de Ondina.
Adriano Inácio Botelho (1892-1983) nasceu em Angra do Hiroismo, Ilha Terceira,
17

Açores.
18
A República Portuguesa foi implantada por uma revolução mista (popular e
militar) em 5 de outubro de 1910.
19
Jean Grave (1854-1939), operário sapateiro, nasceu e faleceu na França: foi um
dos mais aplicados “alunos”, de Pedro Kropotkine. Nas últimas duas décadas do
século XIX, escreveu algumas das melhores obras sobre Anarquismo, inclusive
Anarquia – fins e meios (1899), e contos para crianças: As aventuras de nono, adotada
pela Escola Moderna de Ferrer, 1901-1905.
20
À coincidência de Salazar ser companheiro de Adriano Botelho na Universidade
de Coimbra, é atribuído, por alguns portugueses, o fato de Adriano Botelho não ter
sido preso durante o quase meio século de autoritarismo salazarento, não obstante
participou sempre do movimento libertário na clandestinidade: Adriano Botelho
fez parte (muitos anos) do Comitê Confederal da CGT. Na década de setenta, em
mais de uma carta, Botelho falou-me que sua participação no movimento anarquis-
ta fôra intelectual, sem bravatas e/ou ações de protesto. Que apesar de seus cuidados
ao sair das reuniões clandestinas, algumas vezes percebeu que era seguido por
“estranhas figuras”, inclusive numa de suas idas à Província representando o Comitê
Confederal, mas não foi detido. Sua casa nunca foi invadida pela polícia, ignorando
os motivos, que atribuía aos seus cuidados. Nota: o relacionamento amistoso entre
o anarquista Botelho e o futuro ditador Salazar aconteceu 21/18 anos antes de seu
ex-companheiro de universidade chegar ao poder.
21
Pouco mais de dois anos após ter recebido os “seis pacotes”, os portugueses
livraram-se dos 48 anos de autoritarismo, da censura, da repressão: quis devolver os
documentos e Francisco Quintal não ouviu! Tratava de publicar o mensário A voz
anarquista com sede em Almada.
22
Jorge Quaresma, Sebastião de Almeida, Mário Ferreira, entre outros, também
enviaram dados históricos e responderam a questionários que me ajudaram muito.
E nenhum dos mais de uma dezena de companheiros me pediu a devolução: tudo
era para meus arquivos.
23
Os arquivos de imprensa libertária são iniciativas louváveis: preservam documen-
tos que dispersos desaparecem e ainda facilitam refazer a história social de um povo.
O negativo desta iniciativa ocorre quase sempre após algum tempo de harmonia e
bom funcionamento. Divergências, às vezes até provocadas, o envelhecimento e o

108
verve
Figuras exemplares do anarquismo...

falecimento de alguns fundadores, que deram tudo pelo acervo existente, e os


arquivos quando não se tornam depósitos de papéis velhos, sem utilidades, mem-
bros tornam-se autoritários, começam a agir como donos.
24
Alguns destes envios demoraram a ser entregues, mas penso que o foram.
25
Os linguados eram manuscritos em letra bem miudinha para dizer muito em
pouco espaço.
26
Mais tarde, quando estiveram em minha casa, no Rio de Janeiro e fomos ver
juntos o “Edifício Neno Vasco”, em Nova Iguaçu, da minha responsabilidade
técnica, ainda voltei a falar com Aurora Moscoso e Ondina Vasconcelos, na presença
da filha e do genro da primeira, sobre a doação do acervo de Neno.
27
Ainda sobre arquivos, entendo que é um acervo valioso, dependendo de quem o
dirija, e de quem o usa. Para mim, todas as decisões de seus componentes, devem ser
“dentro” dos estatutos, aprovadas por unanimidade, e constar de atas, distribuídas
por todos os componentes e pelo menos uma ou duas depositada em outros arquivos,
de preferência ao exterior. Assim ninguém que depositou documentos corre o risco
de sabê-los usados por pessoas alheias ao anarquismo... E seus fundadores não
poderão ser afastados (sem respeito aos estatutos) por decisão de uma ou duas
pessoas que vieram depois e vão se apropriando de um “patrimônio”, que não era,
nunca foi seu!!!
28
O caso: Arquivo de História Social na Biblioteca de Lisboa, evidentemente que
os doadores não correm o risco de saber que suas doações (cópias) foram trocadas
por favores com outros arquivos, nem de virar monte de papel velho sem uso e/ou
de algum espertalhão se transformar em dono em detrimento dos fundadores. O
muito que pode acontecer é algum pesquisador tirar vantagens materiais do esforço
dos operários anarquistas e depois rir deles...
29
Adriano refere-se ao livro Socialismo e sindicalismo no Brasil – 1969. O livro em que
faço um trabalho biográfico de Neno mais desenvolvido foi publicado em 1993,
com o título Os libertários, portanto 11 anos depois da morte de Botelho.
30
No ano de 1983, Ondina Vasconcelos, sua tia Aurora Moscoso Botelho, sua
prima Magda e seu marido (Adriano Botelho já havia falecido), vieram ao Brasil
visitar seus familiares em São Paulo (onde nasceram as primeiras), e ficaram um dia
no Rio de Janeiro, para visitar Edgar Rodrigues e ir com ele ver o “Edifício Dr.
Neno Vasco”, na rua Juiz Alberto Nader, 30, Nova Iguaçu, projetado e edificado
pelo autor.
Em razão desta carta mantive uma correspondência muito salutar com Antonio
31

Ruju e ainda me enviava o excelente jornal Seme Anarchico.


32
Adriano Botelho refere-se ao prof. Aurélio Quintanilha (1882-1987), mili-
tante desde os tempos de estudante na Universidade de Coimbra. Nesta época
de estudante, Aurélio representou os anarco-sindicalistas portugueses no
Congresso contra a Guerra do Ferrol, Espanha, 1916, foi preso e expulso deste país.
Esteve preso outras vezes por suas idéias libertárias e chegou a exilar-se em Paris,

109
5
2004

onde colaborou em Le Plus Loin. Durante a ditadura de Salazar teve a cátedra


caçada na Universidade de Coimbra, e mais adiante foi para Moçambique,
destacando-se na Universidade, então, Lourenço Marques (hoje Maputo) como
um dos maiores botânicos do seu tempo.
Adriano Botelho, nascido em Portugal, foi um anarquista sem adjetivos, um dos
33

militantes mais íntegros e produtivos que conheci.


34
Tem-se comentado bastante o que Gonçalves Correia fez de experiências para
implantar Comunas (2002/2003), apagando-se Carlos Nobre e sua companheira,
os faz tudo na prática Comunalista!
35
A carta de Neno Vasco em apoio ao diretor do semanário anarquista A aurora, do
Porto, que não aceitou publicar propaganda de uma “Comuna”, que segundo Neno,
não existia: Gonçalves Correia teria reagido à negativa com alguma agressividade
verbal.

RESUMO

A partir de suas lembranças do contato com a produção de Neno


Vasco e do relato da troca de experiências e correspondência com
Adriano Botelho, cunhado de Vasco e também militante, o autor
reconstrói parte da história do anarquismo português e sua estrei-
ta relação com o movimento no Brasil.

Palavras-chave: anarquismo português, Neno Vasco, arquivos anar-


quistas.

ABSTRACT

Based on his memories of the contact with Neno Vasco’s writings


and from the exchange of experiences and correspondence with
Adriano Botelho, Vasco’s brother-in-law and also an activist, the
author rebuilds part of the history of Portuguese anarchism and
its close relation with the movement in Brazil.

Keywords: Portuguese anarchism, Neno Vasco, anarchist files.

Recebido para publicação em 17 de fevereiro de 2004.

110
verve
Economia libertária e suas perspectivas

economia libertária e suas perspectivas

josé maria carvalho ferreira*

Na grande maioria dos casos, entre todos aqueles ou


aquelas que se consideram anarquistas, sempre existiu
silêncio ou omissão sobre as problemáticas teóricas e
práticas que se identificam com a construção de uma
economia libertária hipotética nas sociedades contem-
porâneas.
Na minha opinião, há vários fatores que estão na
origem desses fatos.
Em primeiro lugar, muitos anarquistas, por razões
de índole ideológica e atitudes compulsivas e dogmáticas
em relação a autores clássicos (como são os exemplos
das leituras de Proudhon, Bakunin e Kropotkin),
limitam-se a decorar e aplicar mecanicamente con-
ceitos que acham ser os únicos válidos e verdadeiros
para estimular a “revolução social” e a emancipação
social. Embora se considerando diferentes, pensam e
agem como qualquer cristão em relação à Bíblia. Este
dogmatismo e religiosidade é tanto ou mais perverso,

* Professor no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade


Técnica de Lisboa e editor da Revista Utopia

verve, 5: 111-141, 2004


111
5
2004

posto que as contingências negativas da própria


sociedade não lhes permite ler a obra completa do autor
que habitualmente idolatram e, por outro lado, pura e
simplesmente, desconhecem ou ignoram os autores que
não se enquadram no seu modelo ideológico ou
revolucionário.
Em segundo lugar, quando se trata de equacionar os
conteúdos e as formas de uma economia libertária
integrada numa sociedade anarquista hipotética, estes
recorrem às experiências autogestionárias e coletivistas
realizadas na Espanha, no período de 1936 a 1939. Não
que esse exemplo histórico não seja extremamente
positivo na sua singularidade emancipacionista. No
entanto, continuar a preencher o vazio e a impotência
do presente com fatos históricos que não foram pensados
nem praticados por nós, é transformar bandeiras, heróis
e experiências revolucionárias num ritual simbólico
compulsivo movido pela força da inércia e da frustração.
Mais grave ainda: mostra que não compreenderam as
causas que levaram ao fracasso essa tentativa eman-
cipacionista, continuam, para efeito, a raciocinar e agir
como se o Estado e a sociedade capitalista não tivessem
sido objeto de mudanças nos domínios econômico, social,
político e cultural.
Em terceiro lugar, se considerarmos que a ordem
econômica de qualquer sociedade integra quatro
elementos básicos — produção, distribuição, troca e
consumo de bens e serviços —, não se compreende que,
hoje, para todos aqueles ou aquelas que fazem apologia
à construção de uma sociedade anarquista ou da
realização de uma revolução social, não persista a
necessidade imperativa de apresentar um “modelo” de
economia libertária que dê sentido e conteúdo a uma
ação e um imaginário coletivo para extinguir as lógicas
de regulação do Estado e do mercado sobre a economia

112
verve
Economia libertária e suas perspectivas

atual. Como não têm nenhuma proposta inteligível e,


manifestamente, não demonstram capacidade para
construir uma economia libertária hipotética, recorrem
à cartilha dos clássicos ou, então, limitam-se a deixar a
resolução desse problema para as calendas gregas: ou
seja, o próprio ato da revolução social e seu dom
teleológico implicam não somente na abolição do Estado,
da propriedade privada, do trabalho assalariado e do
capital, mas inclusive, por dedução lógica, esse ato de
destruição ao se transformar num movimento social
inevitável, por natureza criativo, informal e espontâneo,
resolveria de uma só vez todos os problemas da economia
libertária.
Esta posição é, aliás, predominante no atual
movimento libertário internacional. Tudo o que se refere
a esta temática é visualizado numa perspectiva
negativista do Estado, do capital, do salariado e da
propriedade privada. Todos os esforços e motivações dos
seus militantes são enquadrados na crítica radical da
sociedade capitalista e do Estado, sem, no entanto, propor
qualquer modelo alternativo de economia libertária,
quando pretendem intervir junto das massas traba-
lhadoras, dos oprimidos e dos explorados. Estando de
acordo ou não com esse postulado, hoje, para quem quer
construir uma sociedade anarquista, torna-se imperativo
que os militantes dessa causa dêem visibilidade social
a uma economia libertária qualquer. Interrogando-me,
agora, sobre a natureza analítica da economia libertária
através do pensamento de alguns autores clássicos,
pergunto-me: Que economia libertária? O individu-
alismo de Stirner? O mutualismo de Proudhon? O
anarco-comunismo de Kropotkin? O comunismo
libertário de Diego Abad Santillán deduzido de Bakunin
e Malatesta?

113
5
2004

Enfim, sei que não é uma tarefa fácil comparar


autores cujas obras foram vividas e observadas em
contextos sócio-históricos contrastantes e cujas análises
nem sempre privilegiaram a linearidade conceitual. Não
obstante estas dificuldades, num primeiro momento,
analisarei as principais contribuições dos autores que
citei. Num segundo momento, tendo presente as
perversões criadas pelo capitalismo e o Estado em nível
mundial, tentarei esboçar quais as tendências embrio-
nárias de um tipo de economia alternativa, cujas
incidências libertárias poderão ajudar a construir um
caminho no sentido da anarquia.

Visões contrastantes da economia libertária


Do mesmo modo que fizeram uma crítica radical ao
Estado e ao capitalismo, alguns autores clássicos
anarquistas, embora diferentemente, esboçaram
modelos ou hipóteses plausíveis de uma economia
libertária. Esses modelos ou hipóteses plausíveis
primam, em grande parte dos casos, na sua essência,
por modalidades organizacionais e processos de
socialização na produção de bens e serviços pautados
pela auto-organização, pela democracia direta, por
relações sociais de tipo informal e espontâneo. A
articulação e a interdependência entre o espaço-tempo
da produção com o espaço-tempo da distribuição, troca e
consumo desses mesmos bens e serviços numa
perspectiva sistêmica, leva-nos, inevitavelmente, a
pensar a economia libertária traduzida em outros tipos
de interdependências mais complexas e mais abstratas,
em nível local, regional, nacional e mundial. As
características da auto-organização, da democracia
direta, das relações sociais de tipo informal e espontâneo
manifestam-se, também, nos espaços-tempo da

114
verve
Economia libertária e suas perspectivas

economia global em redes sociais de reciprocidade, de


cooperação e de solidariedade. Não existindo poder nem
autoridade hierárquica de tipo formal, as incidências
dos fenômenos de coordenação e de decisão das redes
sociais são veiculadas por relações sociais centradas
na liberdade dos indivíduos, no apoio mútuo, na
socialização da riqueza, no mutualismo e no federalismo.
O imperativo da identidade coletiva entre produtores e
consumidores inscreve-se em princípios e práticas
predispostos à abolição de quaisquer resquícios de
opressão ou exploração no mundo do trabalho.
Em termos genéricos talvez tenha feito uma síntese
aproximada sobre o que escreveram os autores clássicos
em suas análises. Entretanto, a leitura específica dos
quatro autores nos leva a observar uma série de
divergências e oposições no que concerne à definição
conceitual de um modelo hipotético de economia
libertária no contexto da sociedade anarquista.
Comecemos por Max Stirner, um autor “maldito”
entre o pensamento dominante e, também, entre os
anarquismos que têm sido predominantes na história
do movimento libertário internacional.
Em sua principal obra — O único e a sua propriedade
— por razões demasiadamente conhecidas na época,
como a influência de Hegel e Marx no pensamento
filosófico e político de meados do século XIX na Europa
Ocidental, Max Stirner, pelas opções filosóficas e políticas
que desenvolveu, permite-nos afirmar que o seu dilema
analítico era distante e oposto da visão materialista e
histórica de Marx. Para este, como todos sabem, os
fenômenos econômicos determinavam, em última
instância, toda a ordem social, política e cultural.
Uma leitura fácil e dogmática de Max Stirner1 leva
muitos anarquistas a considerá-lo como expoente de um

115
5
2004

anarquismo individualista, em muitos domínios


semelhante aos valores, interesses e motivações
identificados à ideologia liberal burguesa. Por outro lado,
os anarquismos com maior visibilidade social, com
especial incidência para o anarco-comunismo, o anarco-
sindicalismo e o comunismo libertário, sempre viram,
nas proposições filosóficas, políticas e sociais do
individualismo de Stirner, algo desnecessário que roia
todas as bases de organização social e de motivação das
massas trabalhadoras que aspiravam realizar a
revolução social.
É evidente que o indivíduo egoísta stirneano não
obedece a qualquer deus ou amo, nem a qualquer
entidade abstrata exterior à realidade intrínseca da sua
individualidade e liberdade. É um indivíduo natural e
espontâneo que recusa qualquer poder ou autoridade que
interfira ou colida com a sua essência e a sua
subjetividade. O egoísmo do indivíduo é o meio e o fim
da sua essência concreta. Se não assumir a sua
essencialidade egoísta torna-se um escravo e um alie-
nado face aos anacronismos da exploração do capital, da
autoridade do Estado, do poder dos deuses e de todas as
abstrações despóticas e totalitárias, como são os casos
dos conceitos de sociedade, da universalidade, da
humanidade e do próprio homem.
Não pense que o indivíduo egoísta de Max Stirner se
traduz na oposição ao caráter abstrato e alienante da
sociedade e da humanidade. Para ele, o indivíduo
enquanto unidade particular inserida em todas as
relações interpessoais e intergrupais funciona sempre
como Único nas suas pulsões egoístas, na medida estrita
em que só elas permitem que ele seja, efetivamente,
livre e Único em todas as manifestações possíveis de
vida. Portanto, não é a família, o grupo de referência, a
comunidade, a cidade, o país ou a sociedade que explica

116
verve
Economia libertária e suas perspectivas

a essência dos indivíduos egoístas que as integram, mas


é precisamente o contrário.
No sentido amplo do termo, a “associação” plausível
de indivíduos egoístas aparece como o cimento
aglutinador e integrador de individualidades, liberdades
e propriedades pessoais decorrentes de uma diversidade
de Únicos. Os indivíduos, quanto mais egoístas forem,
maior probabilidade terão, efetivamente, de serem livres
e, por outro lado, se defenderão de uma forma
espontânea e natural contra qualquer constrangimento
grupal, comunitário, coletivo ou de outras formas de
autoridade e de poder institucionalizado em qualquer
sociedade hipotética: sociedades tradicionais, comu-
nista, socialista ou capitalista.
Diria-se que as teses de Stirner são muito próximas
da visão dos economistas neo-clássicos ou dos anarco-
capitalistas que vêem no indivíduo um homo economicus
detentor de uma subjetividade baseada no interesse e
escolhas racionais, cujas preferências no quadro das
funções de produção e de consumo explicariam, através
da agregação desses interesses e preferências, o
equilíbrio entre a oferta e a procura de bens e serviços
no mercado e, em última instância, os preços de
mercado, os salários e o lucro. Nada mais absurdo. O
indivíduo egoísta de Stirner nunca pode se sujeitar a
uma relação social consubstanciada em qualquer poder
arbitrário de um homo economicus alienado e atomisado
pelas leis da economia, cuja sustentabilidade e repro-
dução se baseiam em poderes e autoridades exteriores
aos indivíduos: dinheiro, mercado, Estado, capitalismo,
sociedade, humanidade, universo, etc.
Portanto, das poucas deduções que se podem fazer
sobre a obra de Max Stirner em termos de uma
economia libertária hipotética, é que nunca poderá

117
5
2004

surgir de qualquer tipo de sociedade ou modelo de ordem


econômica, inclusive, de uma sociedade anarquista
finita. É verdade que Stirner, ao descuidar o indivíduo
da sua essência de ser social e biológico e, por outro
lado, o fato de não ter deduzido que todos os tipos de
organização implicam interdependências e
complementaridades, ou seja, reciprocidade, cooperação
e solidariedade, esqueceu-se ou omitiu uma parte
substancial do espaço-tempo da construção da identidade
e da liberdade dos indivíduos egoístas. A hipótese remota
de associação só emerge quando se produz, distribui,
troca e se consomem bens e serviços de forma natural
e espontânea. Nestas condições, será que a essência
egoísta de cada indivíduo, da sua irredutível liberdade e
da sua subjetividade intrínseca traduzida na sua
propriedade inalienável é atravessada pelo dom da
ubiqüidade do Único? Todavia, na opinião do autor, este
Único articulado com interesses e subjetividades de
índole econômica nunca poderá ser cristalizado numa
ordem ou modelo econômico institucionalizado e
formalizado, porque, assim, estaríamos perante poderes
e constrangimentos totalitários, coletivos, abstratos,
sempre exteriores aos indivíduos e sempre cerceadores
da sua liberdade e individualidade espontânea e natural.
A partir de leituras e comparações entre a obra de
Proudhon e Stirner se constata facilmente que existem
contradições e perspectivas opostas em relação ao que
seria uma economia libertária hipotética. Embora a
antinomia seja crucial para percebermos a função da
dialética serial de Proudhon2 como base científica da
interpretação, explicação e conhecimento da ordem
econômica de qualquer tipo de sociedade, os dilemas
essenciais de qualquer indivíduo integrado numa
economia libertária hipotética, serão sempre atraves-
sados por fenômenos de cooperação “versus” competição,

118
verve
Economia libertária e suas perspectivas

altruísmo “versus” egoísmo, vida “versus” morte. Nesta


perspectiva, indivíduo e sociedade são parte e totalidade
de uma essência indestrutível, identitária, contraditória
e conflitante que nunca terá uma solução final, mas
pode ser sujeito e objeto de aperfeiçoamento sistemático,
se caminhar no sentido da construção de uma sociedade
anarquista e, necessariamente, de uma nova ordem
econômica.
É evidente que é preciso ter atenção em dois fatores
na obra de Proudhon. Em primeiro lugar, muitas
reflexões deste autor resultaram de conjunturas
históricas criadas pelas perversões do Estado opressor e
dominador e do capitalismo explorador e expropriador.
Em segundo lugar, a unidade e a essencialidade dos
indivíduos e dos grupos que constituem qualquer tipo de
sociedade, implica em analisá-los como partes de um
todo, integrando quatro ordens específicas: ordem social
e cultural, ordem econômica, ordem política e ordem
biológica. Embora possamos compreender a
especificidade de cada uma delas, elas são inevitavel-
mente interdependentes e complementares. Se não
fosse assim, nunca se compreenderia como o fator
trabalho, enquanto fundamento criador/produtor de toda
a riqueza social é expropriado e alienado em relação à
propriedade inalienável do trabalho individual e do
trabalho coletivo reportado às suas funções e tarefas.
A primeira grande obra de Proudhon — A propriedade
é um roubo 3 — não é uma mera crítica à ciência
econômica burguesa que, na ocasião, via na natureza
do trabalho e nas virtualidades mágicas e abstratas do
mercado, a razão de ser do lucro, do trabalho assalariado,
das desigualdades sociais, mas também e, sobretudo,
as virtudes e essência do homo economicus como paladino
da razão, do progresso, da liberdade e da democracia.
Para Proudhon, a ordem política inscrita nas decisões e

119
5
2004

funções do Estado e dos partidos que aspiravam governá-


lo, em relações demarcadas pelo poder e autoridade
hierárquica formal, não se circunscrevia exclusiva-
mente a exercer a dominação sobre os trabalhadores,
mas, sobretudo, porque qualquer função capitalista
resultava num roubo e nem gerava riqueza social. Como
conseqüência, o Estado composto por burocracias
profissionais e burocracias políticas, transformou-se
num verdadeiro parasita daqueles que o criavam: os
trabalhadores que produziam a riqueza social. Mas, para
Proudhon, quem diz ordem econômica no sentido
libertário do termo, diz correlativamente que é
necessário arranjar modalidades de produção, de
distribuição, de troca e de consumo da riqueza criada
pelo trabalho. Nestas condições, é necessário pensar nas
características das relações sociais, nos processos de
socialização, nas redes sociais, no conhecimento, na
energia, na informação, na matéria que o mundo do
trabalho deverá desenvolver para criar e reproduzir
harmoniosamente uma nova ordem econômica
libertária, que denominou de Federação Agrícola-
Industrial.4
Não admira que, para Proudhon, a liberdade, a
autogestão, o mutualismo e o federalismo sejam
conceitos diferentes, cujas especificidades e substan-
cialidades se reportavam a um sistema global de
economia libertária coerente. As relações sociais, a
integração e a coordenação social subjacentes à ação
individual e coletiva dos indivíduos, grupos, coletividades
locais, regiões, continentes e sociedade global, funda-
mentariam-se através da mesma ordem econômica:
produção, distribuição, troca e consumo de bens e
serviços incrustados em relações sociais baseadas na
democracia direta, liberdade, cooperação e reciprocidade.
Ou seja, a identidade entre produtor e consumidor, entre

120
verve
Economia libertária e suas perspectivas

trabalhador individual e trabalhador coletivo, entre a


riqueza produzida e a sua posse, através da associação
e auto-organização de trabalhadores livres e soberanos.
O mutualismo é, indiscutivelmente, o espaço-tempo
crucial da entrada do indivíduo no coletivo ou no grupo,
onde a auto-organização da produção, da distribuição,
da troca e consumo de bens e serviços pode e deve
realizar-se prioritariamente. Mas, se falarmos nas
interdependências e complementaridades desses indiví-
duos integrados em múltiplas mutualidades no contexto
de uma ordem econômica de incidência espaço-
temporal local, como espaços e temporalidades mais
extensas compostos por zonas geográficas e territoriais
de âmbito regional, continental e mundial, então só
através da federação e da confederação das múltiplas
mutualidades poderemos ver emergir a democracia
direta, a liberdade, a cooperação e a reciprocidade num
sentido sistêmico e profundo. Só nessa base podemos
escrever ou falar sobre uma economia libertária
hipotética, onde não haveria lugar para a existência de
patrões e de Estados, e, tampouco, para qualquer tipo de
sociedade comunista.
Para Proudhon, a liberdade era o principal incentivo
das relações sociais espontâneas e informais no mundo
do trabalho que permitiam a emergência da democracia
direta, da auto-organização, da cooperação e da
reciprocidade no seio do mutualismo e do federalismo.5
Pode parecer paradoxal, mas, neste domínio, entre Max
Stirner e Proudhon não existem diferenças profundas
quanto aos seus modelos de análise em relação às
proposições de uma economia libertária hipotética numa
sociedade anarquista. Tanto Stirner, quanto Proudhon
eram profundamente anti-comunistas, na medida em
que a uniformidade e a igualdade impostas por qualquer
Estado, mercado, modelo de sociedade, por essência e

121
5
2004

natureza histórica, eram sempre exteriores, constran-


gedores e abstratos, em relação à identidade concreta,
única e inalienável de cada indivíduo e de cada
liberdade. Em qualquer contexto societário, uma
sociedade comunista hipotética se traduziria, inequivo-
camente, em modalidades coletivas de opressão e
exploração sobre os indivíduos e os trabalhadores que
aspiravam a ser livres e soberanos.
Da mesma forma que Proudhon via a ordem
econômica de características libertárias como expressão
genuína do desenvolvimento científico de uma nova
ciência denominada Economia Social6, a reflexão e a
luta de Kropotkin polarizada à volta do anarco-
comunismo basearam-se, fundamentalmente, num tipo
de epistemologia e metodologia de incidência científica.7
As abordagens de caráter econômico, por essa razão,
primavam pela crítica radical do Estado e do capitalismo,
demonstrando como as suas modalidades de regulação
e de socialização eram ineficientes em termos de
produção e consumo de riqueza social e, sobretudo,
revelavam-se manifestamente contrárias através das
suas perversões organizacionais, culturais, naturais,
humanas e tecnológicas, porque não estavam
positivamente integradas nos parâmetros dos princípios
e das práticas científicas de uma ordem econômica
libertária.8 Neste sentido, toda a problemática do anarco-
comunismo enquadrada numa perspectiva de economia
libertária, em termos de modalidades de produção,
distribuição, troca e consumo de bens e serviços,
resumia-se aos pressupostos da razão e do progresso de
quaisquer sociedade no quadro da sua diversidade
científica: física, economia, sociologia, biologia,
geografia, antropologia, história, etc. Como já sublinhei,
embora existam outros fatores explicativos da
necessidade da implantação de uma economia libertária

122
verve
Economia libertária e suas perspectivas

identificada com os pressupostos do anarco-comunismo,


em última instância, na primeira obra referenciada de
Kropotkin9, o imperativo científico é determinante.
Uma das obras que nos ajuda a compreender o
pensamento de Kropotkin é sem dúvida O Apoio Mútuo10
escrito nos finais do século XIX. Pode-se deduzir que esta
obra de referência não está voltada para um tipo de
análise científica que é, essencialmente, de índole
filosófica, biológica e sociológica, partindo-se, assim, do
princípio que o autor negligenciaria a dimensão analítica
de uma economia libertária hipotética. Não é essa a
minha opinião.
Kropotkin, por um lado, critica radicalmente as
versões científicas dos autores mais emblemáticos desse
período histórico, que procuram demonstrar científica e
positivamente a existência da sociedade capitalista e
do Estado através de comparações e deduções
“inquestionáveis” das ciência biológica, antropológica e
social. Assim, não é de se admirar que Darwin e Malthus,
entre outros, tenham sido idolatrados e criticados. A
analogia e a comparabilidade do homem e da sociedade
com outras espécies animais e vegetais transformou-
se no grande paradigma científico da época. Entretanto,
a extrapolação abusiva dessas leis biológicas e naturais
para as ciências sociais e humanas resultava na
naturalização histórica do capitalismo e do próprio Estado.
Por outro lado, o fato dos seres humanos e da própria
sociedade resultarem de processos biológicos e sociais
de natureza espontânea e informal, levava a reflexões
comparativas incongruentes entre as espécies humana,
animal e vegetal. Daí terem extrapolado que a
supremacia da liberdade e da individualidade de cada
um, a relação destes com qualquer grupo, sociedade ou
comunidade, se faria, inevitavelmente, através da
competição, da concorrência, da violência: ou seja, da

123
5
2004

lei do mais forte. “Inquestionavelmente”, só existia uma


síntese e uma leitura possível: a opressão e exploração
provocadas pelo capitalismo e pelo Estado eram naturais,
positivas e irreversíveis na evolução de qualquer tipo
de sociedade.
É contra estes pressupostos anti-científicos e
negativos para o projeto emancipalista do anarco-
comunismo que Kropotkin escreve a referida obra.11
Como metodologia, a comparabilidade e analogia com
outras espécies animais e vegetais permite-lhe
extrapolar e extrair conhecimentos científicos para
analisar a espécie humana, o homem e as sociedades.
A grande inferência científica que extrai resume-se ao
fato da competição, da concorrência, da violência e do
egoísmo dos indivíduos serem contrários à identidade
coletiva dos seres humanos, assim como da sua
liberdade, naturalidade e espontaneidade e, logicamente,
da negação de relações sociais condescendentes na
democracia direta, da auto-organização que Kropotkin
considera como bases essenciais dos processos de
socialização e de sociabilidade que veiculam a
cooperação, a solidariedade e o apoio mútuo. Digamos
que a espécie humana é naturalizada pelo poder da
natureza e o homem torna-se finalmente um ser bom e
livre. Todos esses fatores conjugados de uma forma
irrefutável culminariam na instauração generalizada
de comunidades libertárias, cuja síntese global e
universal se traduziria na construção de um modelo de
sociedade anarco-comunista. Esta, por sua vez,
funcionava historicamente como o maior e o melhor
antídoto para erradicar e expropriar o capitalismo e o
Estado de forma definitiva.
Entrando mais especificamente no domínio da
economia libertária, na perspectiva de Kropotkin, quer
a partir da primeira, quer da segunda obra que já foram

124
verve
Economia libertária e suas perspectivas

referenciadas, nos damos conta que os setores


industrial, agrícola e de serviços seriam sempre a
essência de qualquer tipo de economia. A abolição da
propriedade privada, da divisão do trabalho, do lucro, do
capital, do valor de troca, do dinheiro e do Estado
impunha-se excessivamente, na medida em que, só
assim, se poderia construir um modelo de economia
libertária estável na auto-organização, na cooperação e
no apoio mútuo das comunidades libertárias e do anarco-
comunismo societário. As contradições e eventuais
conflitos entre a liberdade e a individualidade de cada
indivíduo integrante das comunidades libertárias ou da
sociedade anarco-comunista são pura e simplesmente
omitidos. O poder simbólico e abstrato da comunidade
libertária e da sociedade anarco-comunista dá sentido
uniforme e orientação coletiva à percepção e
comportamentos dos indivíduos, a ponto de qualquer
incidência de desvio, interesse competitivo, ato agressivo
ou egoísta, ser espontânea e naturalmente controlado e
regulado pelos seus princípios e práticas. O simbólico
abstrato tem um poder de socialização e de sociabilidade
onipotente e onisciente, transformando todos os
indivíduos em agentes cooperantes e solidários dos
mesmos interesses, das mesmas motivações e das
mesmas pulsões de vida inscritas na ordem econômica
libertária. Segundo Kropotkin, a harmonia é
generalizada nas relações de identidade entre o homem
e a natureza, entre indivíduos e grupos, entre estes e
comunidades libertárias e entre estas e a sociedade
anarco-comunista.
A análise elaborada por Kropotkin12 numa das obras
de maior divulgação no meio libertário internacional —
A Conquista do Pão — propicia-nos uma abordagem mais
centrada numa perspectiva de economia libertária. O
imperativo hierárquico do consumo em relação à

125
5
2004

produção esboça-se em função do denominador comum


estabelecido pelo anarco-comunismo: de cada um,
segundo as suas capacidades e para cada um segundo
as suas necessidades. Para Kropotkin torna-se
fundamental comunizar e socializar as necessidades
de todos os indivíduos através do consumo da riqueza
social de uma forma igualitária. Por isso, quando a
materialização da revolução social no sentido da
construção da sociedade anarco-comunista, impõe-se
à necessidade imperiosa de expropriar todo o capital
existente: campos, fábricas, vias de comunicação,
educação, casas, hospitais, etc. A propriedade privada
é extinta de forma radical e imediata.
Como primeira aproximação da leitura desta obra,
verifica-se que o primado comunista das necessidades
coletivas determina e controla de forma totalitária as
necessidades e as motivações individuais da economia
libertária. Agora já não é o mercado, nem o capitalismo,
nem o Estado, que regulam as pulsões de vida e,
logicamente, as motivações e os interesses dos
indivíduos produtores e consumidores, livres e
soberanos por natureza, mas uma entidade coletiva
abstrata que através dos seus valores, ética, princípios,
define que a economia “deixa de ser uma simples
descrição de fatos para tornar-se uma ciência, como é,
por exemplo, a fisiologia, podendo definir-se, como o
estudo das necessidades e dos meios de satisfazê-las com
a menor perda possível de forças humanas”.13 A ciência,
por essência abstrata, substitui os indivíduos e os
grupos como elementos de racionalização da economia.
Este raciocínio da supremacia das necessidades
econômicas é acompanhado por uma certa omissão e
secundarização das tipologias organizacionais
reportadas á produção de riqueza social.

126
verve
Economia libertária e suas perspectivas

Assim sendo, se não se pode medir o esforço, a


motivação e a participação de cada indivíduo em relação
à produção de riqueza social, porque os indivíduos são
diferentes, quer genética, quer culturalmente, qual o
fator ou os fatores do modelo de economia libertária
preconizado por Kropotkin que permitirão restabelecer
a identidade individual nas suas múltiplas articulações
com a identidade coletiva, sobretudo nos aspectos
concernentes à sua liberdade e espontaneidade
reportados à socialização de riqueza social? No amplo
sentido do termo, a igualdade que personifica a
identidade coletiva implica também diferença e
diversidade, pois só estes fatores permitem a
emergência da identidade individual de indivíduos livres
e soberanos que hipoteticamente integrarão qualquer
grupo, comunidade ou sociedade. Só nestes termos
poderemos prever relações sociais baseadas na
espontaneidade e na informalidade. Só nestes termos
poderemos observar a incidência histórica da
cooperação, da democracia direta, da reciprocidade, do
apoio mútuo e da auto-organização, na medida estrita
em que é possível a participação e decisão efetiva de
indivíduos livres e soberanos. A contradição e o caráter
conflitante entre a anarquia e o comunismo é, nestes
domínios, crucial. Para a anarquia, a liberdade individual
coexiste e é paralela com a liberdade coletiva, na medida
em que ambas cooperam e são recíprocas nos seus
objetivos, interesses, necessidades econômicas e
convergentes no sentido de uma ação individual e
coletiva progenitora da emancipação social. Ou seja, em
termos concretos, anarquia, liberdade individual e
liberdade coletiva são simultaneamente meios e fins.
No âmbito do comunismo conceitualizado por Kropotkin,
o indivíduo, enquanto entidade livre e soberana, só existe
no contexto da liberdade e da soberania coletiva. O
igualitarismo e a uniformidade comportamental e

127
5
2004

cognitiva impostos totalitariamente aos indivíduos,


embora não sejam veiculados pelo Estado e pelo capital,
são realizados por uma entidade abstrata que não tem
rosto, por um ideal despótico e abstrato possuidor de um
poder semelhante ao poder divino e ao poder natural: a
ciência, a ideologia e a natureza.
Por isso, não basta que Kropotkin desenvolva este tipo
de raciocínio contraditório: “O nosso comunismo, porém,
não é nem o dos falansterianos nem o dos teóricos
autoritários alemães. É o comunismo anarquista, o
comunismo sem governo — o dos homens livres. É a
síntese dos dois objetivos procurados pelo homem
através das idades: a liberdade econômica e a liberdade
política”.14 A situação de exterioridade e de abstração de
quem pensa e decide por qualquer indivíduo continua.
Perpetuam-se as situações de expropriação e de
exploração sobre os potenciais criadores de riqueza
social, agora já não pelo Estado e pelo capitalismo, mas
pelos funcionários que têm autoridade e legitimidade
para liderar e decidir as modalidades de produção, de
distribuição, de troca e consumo de bens e serviços. A
propriedade privada é abolida, mas em sua substituição
é criada e reproduzida a propriedade coletiva através de
um poder simbólico, abstrato, exterior e opressor da
liberdade e da individualidade de cada indivíduo: o
anarco-comunismo.
Como exemplo pragmático e não meramente
simbólico de uma perspectiva de economia libertária,
poderemos focar a obra de Diego Abad de Santillán —
Organismo econômico da Revolução — a autogestão na
revolução espanhola.15 Embora tivesse sido escrita no
período histórico de 1931 a 1936, atravessado pela
efervescência revolucionária na Espanha de então e
pelas diferentes concepções de revolução social e de
construção de uma sociedade anarquista, a originalidade

128
verve
Economia libertária e suas perspectivas

do pensamento do autor como modelo de economia


libertária é importante. Várias razões me levam a esta
afirmação.
Em primeiro lugar, a Espanha, nesse período histórico,
era um imenso laboratório de experimentação de
tentativas revolucionárias dinamizadas pela CNT e,
ainda, de forma rudimentar pela FAI. Em segundo lugar,
os aspectos totalitários e negativos do socialismo
soviético já eram demasiadamente conhecidos para se
clarificar as antinomias e as contradições subsistentes
entre sociedades “socialistas” e sociedades “comunistas”
e, sobretudo, entre estas e a probabilidade de construção
de uma sociedade anarquista. Por outro lado, a revolução
social iniciada em 19 de Julho de 1936 na Espanha
estava muito próxima da sua redação e, em certa
medida, resultava das teorias e práticas que foram
desenvolvidas no Congresso Confederal da CNT de
Zaragoza em 1936.
De qualquer forma, e tendo presente a história da
sua elaboração, essa obra de Diego Abad de Santillán
personifica o conteúdo do pulsar da revolução social na
Espanha de então e, por outro lado, na sua perspectiva
econômica orienta-se no sentido do comunismo
libertário que tinha sido preconizado por Bakunin e
Malatesta.
Diga-se de passagem que Diego Abad de Santillán, a
esta altura, era um militante preponderante no seio da
FAI e tinha influência no seio da própria CNT. Defensor
obstinado da extinção do Estado e do capitalismo, nessa
obra não se limitou a criticar as incongruências e as
perversões causadas pelos mesmos. No seu
entendimento, para dinamizar, de fato, a emancipação
dos trabalhadores espanhóis não bastava criticar o
capital e o Estado, era, ainda, fundamental iniciar o

129
5
2004

processo histórico de experimentação concreta da


construção da sociedade anarquista. Para tal efeito,
haveria que prever um tipo de economia libertária que
levasse em consideração todos os aspectos teóricos e
práticos relacionados com a organização da economia
num contexto de mudança revolucionária. A
complexidade e a dimensão dos fatores que integram
essa perspectiva implica, segundo o autor, pensar nas
modalidades de organização, de coordenação e de decisão
em tudo que se reporta ao trabalho, às necessidades de
produção e de consumo e à conseqüente troca e
distribuição.
O primeiro dilema para Diego Abad de Santillán
reportava-se às modalidades de socialização da riqueza
social que permitiriam extinguir o capital e o Estado.
Seguindo a lógica dos comunistas libertários, esse papel
fulcral cabe à ação coletiva das massas trabalhadoras
que são objeto de opressão e exploração. Portanto, a
classe social que não tinha nada a perder e tudo a ganhar
com a revolução social, de uma forma espontânea e
natural, se transformaria na vanguarda que lideraria o
processo de emancipação dos trabalhadores, sem para
tal efeito precisar de vanguardas partidárias ou
religiosas. Para superar eventuais contradições no
decorrer da ação coletiva e revolucionária, os
trabalhadores espanhóis precisavam de organizações
específicas, daí a lógica e o fundamento da criação da
AIT em 1864, da CNT em 1910 e da FAI em 1927.
Assim, para o autor, a construção de uma economia
libertária tornava-se possível: “Basta-nos um fato:
queremos conquistar a riqueza social, não para destruí-
la, mas sim para administrá-la melhor que o capitalismo
e mais eficazmente que o Estado. Isto nos obriga a: a)
conhecer esta riqueza em cuja posse haveremos de
entrar; b) saber desde agora quais os recursos que

130
verve
Economia libertária e suas perspectivas

teremos de utilizar para que a expropriação dos


expropriadores resulte numa vantagem positiva e
imediata para a sociedade”.16
Desse modo, a plausibilidade da instauração de uma
economia libertária hipotética, mesmo na fase de
expropriação da riqueza social, obrigaria à utilização de
métodos e técnicas contabilísticas, por essência
racionais, de forma a inviabilizar perversões e omissões
comportamentais desviantes e, desse modo, administrá-
la e fortalecê-la no contexto da revolução social. A sua
essência coletiva passa pela organização sistemática
das múltiplas necessidades de produção, de distribuição,
de troca e consumo de bens e serviços considerados
essenciais para a sustentabilidade e continuidade da
instauração do comunismo libertário.
Não se admira, assim, que para o êxito definitivo e
hipotético de uma economia libertária no contexto da
sociedade espanhola fosse visualizada com base na
criação de Conselhos de Ramo nos domínios da
alimentação, da habitação, do tecido e do vestuário,
produção agrária, comunicações, transporte, indústria
química, metalurgia, mineração e beneficiamento,
saúde e higiene, luz, força motriz e água, imprensa e
livro, cultura, pesca, produção pecuária e produção
florestal. Por outro lado, eram criados o Conselho do
Crédito e do Intercâmbio, assim como o Conselho Local da
Economia, os Conselhos Regionais da Economia, a
Federação Nacional dos Conselhos de Ramo e o Conselho
Federal da Economia.
Toda a organização da economia libertária, na
perspectiva de Diego Abad de Santillán, deveria ser
estruturada no sentido da identidade entre o produtor e
o consumidor. A distribuição da riqueza social assim
como a troca de bens e serviços se faria através da

131
5
2004

liberdade, da auto-organização e da democracia direta.


Admitamos que todos os capitalistas e burocratas das
diferentes profissões e corporações fossem
transformados em trabalhadores emancipados por meio
de compressões e controle da economia libertária. Neste
caso, também em relação a este autor, pode-se
equacionar a mesma problemática que foi feita à obra
de Kropotkin. Como é que a liberdade individual e a
liberdade coletiva coexistem e se identificam? Quem
determina e regula as necessidades de cada indivíduo e
da sociedade no contexto da economia libertária? Na
minha opinião, embora com menos compressões e
controle, já analisados em relação ao anarco-comunismo
de Kropotkin, na perspectiva de Diego Abad de Santillán
emerge uma entidade abstrata e totalitária que decide,
lidera e tem o poder da razão para administrar a
economia e o poder simbólico dos valores, crenças e
ideologia inscritos no modelo do comunismo libertário.
Entretanto, após as experiências vividas no âmbito
da revolução social na Espanha, no período de 1936 a
1939, Diego Abad de Santillán muda muitas de suas
certezas revolucionárias em relação ao que tinha
previsto no Congresso de Zaragoza de 1936.
Na verdade, as frustrações, as perversões pessoais e
ideológicas levaram-no a assumir a anarquia mais como
um ideal e uma utopia do que como um modelo econômico
definitivo. A hipótese de uma economia libertária era,
por tais motivos, sempre um projeto societário inacabado
e só se realizaria paulatinamente através de
experiências concretas. A auto-organização e a
autogestão continuavam a ser os dilemas principais da
luta dos trabalhadores assalariados contra o capital e o
Estado. Na sua opinião, não havia a necessidade de
definir, previamente e rigidamente, as práticas e os
princípios de um modelo econômico libertário qualquer.

132
verve
Economia libertária e suas perspectivas

Desse modo, em qualquer circunstância, uma economia


libertária hipotética se desenvolveria de uma forma
espontânea e natural no decorrer do processo histórico
revolucionário.
No fim da sua vida, Diego Abad de Santillán define
bem o que entende por economia libertária: “Hay que
repetirlo, el anarquismo no es un sistema político ni un
sistema económico, es un anhelo humanista que no
culmina en una orientación o en una estructura ideales,
perfectas, sin rozamientos de intereses ni ambiciones
de poder (...) El anarquismo no está vinculado,
encadenado a ningún sistema económico, los conocidos
y los desconocidos”.17

Hipóteses históricas de emergência de uma economia


tendencialmente libertária
Após ter feito uma leitura sintética das obras mais
importantes de autores clássicos, interessa agora
perceber as mudanças efetuadas no âmbito do Estado e
do capitalismo e, logicamente, a sua natureza negativa
e as características da atual crise gerada pelo fenômeno
da globalização. Por outro lado, é de grande importância
compreender e explicar porque é que as diferentes
perspectivas de economia libertária enquadradas num
imaginário coletivo de incidência anarquista — anarco-
comunismo, anarco-sindicalismo, comunismo libertário
— não prosseguiram como experiências societárias,
apesar de já termos assistido à falência do modelo
socialista de tipo soviético e de se terem agravado as
bases de legitimidade e de institucionalização das
relações de exploração e de dominação decorrentes das
funções perniciosas do Estado e do capitalismo.
Com o advento da revolução e mudanças induzidas
pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC),

133
5
2004

sobretudo, ao nível da micro-eletrônica, informática,


biotecnologia, robótica, telemática, indústria espacial,
etc., assistimos a grandes transformações nas
modalidades comportamentais, cognitivas e
organizacionais da totalidade dos trabalhadores
assalariados que estão inseridos nas atividades
econômicas reportados aos setores primário, secundário
e terciário.
As principais mudanças estruturais e estruturantes
relevam o fato de que o processo de automatização
iniciado pelas TIC a partir da década de 70 do século XX,
não só tem se generalizado progressivamente nas
estruturas e funções dos três setores da atividade
econômica, como ainda tem evoluído no sentido da sua
expansão gigantesca no setor de serviços, relegando o
setor industrial para uma posição subalterna e o setor
agrícola para uma situação residual. A explicação
plausível desta evolução decorre, em grande parte, do
deslocamento e integração da maior parte da energia,
informação e conhecimento que antes estava polarizada
no “saber-fazer” dos trabalhadores assalariados da
segunda revolução industrial para os mecanismos
automáticos das TIC. Por essa razão, bilhões de
trabalhadores assalariados são despejados dos locais de
trabalho, outros tantos são objeto de reciclagem e
formação profissional, enquanto que aqueles que
pretendem trabalhar são constrangidos a obter novas
qualificações e competências face às exigências de
flexibilidade, polivalência e empregabilidade ditadas
pelos mecanismos de concorrência e de competição no
mercado de trabalho à escala local, regional, nacional e
mundial.
Os custos de produção e, logicamente, todas as
atividades econômicas que integram a produção de bens
e serviços são cada vez mais baseados em informação e

134
verve
Economia libertária e suas perspectivas

comunicação e a sua natureza substantiva é,


predominantemente, imaterial. Em termos espaço-
temporais, os atos de produção coincidem cada vez mais
com os atos de distribuição, troca e consumo. O tempo
real do tempo virtual. A generalização de redes sociais
de tipo informal e espontâneo subvertem, de forma
inaudita, o espaço-tempo e os custos de produção de bens
e serviços inscritos na lógica de regulação normativa
do mercado e do Estado, a ponto de assistirmos à
expansão gigantesca da economia informal sustentada
e reproduzida pela pobreza, fome, exclusão social, crime,
violência, droga e guerra. A economia informal revela-
se simultaneamente como sintoma de uma crise
inaudita do Estado e do capitalismo a nível mundial e,
por outro lado, como sintoma da sua própria perpetuação.
Se quisermos encontrar um denominador comum
nesta evolução, verificamos um que é inquestionável:
a racionalidade instrumental do capitalismo. A crescente
integração da ciência e da técnica nos múltiplos setores
da atividade econômica possibilita que as relações de
dominação e de exploração do capital sobre a natureza e
sobre o mundo do trabalho sejam potencializados. O
mundo do trabalho é um meio e um objeto privilegiado
da grande finalidade do capital: a maximização do lucro.
A apropriação do lucro e a sua socialização é, cada vez
mais, abstrata e diversificada. Embora saibamos quase
tudo sobre o poder das grandes empresas multinacionais
e grupos econômicos transnacionais nestes domínios,
pouco ou nada sabemos das redes financeiras
internacionais que dominam o mercado bolsista e
financeiro mundial, nem tampouco o controle que
exercem na sustentabilidade e reprodução dos vários
tipos da economia informal.
Em um sentido amplo do termo, estamos perante uma
racionalidade instrumental do capitalismo que é cada

135
5
2004

vez mais abstrata e cada vez mais exterior à vontade


dos seus próprios progenitores. Se não fosse essa a
tendência atual, não se compreenderia porque é que a
vontade coletiva de todos os capitalistas do mundo não
se desenvolve no sentido de tornar todos os potenciais
escravos modernos em produtores e consumidores de
mercadorias, e por essa via, tornarem-se também
escravos modernos da distribuição e da troca de todas
as mercadorias que produzem e reproduzem o sistema
capitalista. Se conseguissem resolver tal pretensão,
todos os potenciais capitalistas do mundo se sentiriam
realizados nas suas necessidades históricas de
dominação e de exploração: maximizariam o lucro e
integrariam o mundo do trabalho na sua lógica de
estabilidade normativa.
O Estado-Nação, por outro lado, evoluiu no sentido de
uma crise profunda, cuja perda de legitimidade e
funcionalidade junto da sociedade civil está pondo em
risco a sua sobrevivência histórica. Essa crise não é
visível somente ao nível da ineficiência do governo
exercida pelos poderes jurídico, legislativo e executivo,
mas também, e sobretudo, no caráter cada vez menos
representativo da utilidade e funcionalidade das suas
políticas sociais nos domínios da segurança social, da
previdência, dos subsídios de desemprego, da saúde, da
educação e da segurança. A crescente visibilidade social
da corrupção e do clientelismo protagonizados pela
burocracia profissional e pela burocracia política acusam
uma crescente lacuna entre as necessidades da
sociedade civil e as prerrogativas funcionais dos agentes
do Estado. A legitimidade para regular e controlar o
contrato social institucionalizado entre a sociedade civil
e o Estado é, por tais motivos, cada vez mais frágil.
Por outro lado, o peso estruturante da nova ordem
econômica mundial imposto pelo poder das

136
verve
Economia libertária e suas perspectivas

transnacionais e das multinacionais subverte e elimina


grande parte da legitimidade e funções ligadas ao
controle e administração dos territórios e da economia
confinados às fronteiras e limites do Estado-Nação. Para
contrariar esta perda de influência sobre a economia, o
Estado-Nação, tal como o conhecemos hoje, tende a
desmoronar e a transformar-se num Estado mundial.
Perante este quadro de crise generalizada do Estado
e do capitalismo, as alternativas societárias que
pretendiam realizar o socialismo ou o comunismo
revelaram-se frustradas e adversas, na medida estrita
em que não só não extinguiram as bases econômicas,
sociais, políticas e culturais que inviabilizam as
aspirações de emancipação social, como, por outro lado,
demonstraram-se incapazes de realizar essa tarefa
histórica. Os múltiplos anarquismos que fazem da
anarquia uma opção de luta para a realização da
revolução social — com especial incidência para o
anarco-sindicalismo, o comunismo libertário e o anarco-
comunismo — estão em crise porque não conseguem
estruturar uma ação coletiva suficientemente
revolucionária, cuja finalidade é abolir o capitalismo e
o Estado.
Com base na atual crise do Estado e do capitalismo,
estas correntes bem se esforçam por aplicar os seus
princípios e as suas práticas, todavia, embora em alguns
países se assista à emergência de alguma visibilidade
social, sobretudo a partir de grupos de jovens, mulheres,
minorias étnicas e culturais, estudantes, na maioria
dos casos, têm pouca expressão no seio dos trabalhadores
assalariados, dos oprimidos e dos explorados que
mergulharam no mundo da economia informal, do
desemprego, do crime, da precariedade da vinculação
contratual, na miséria e na exclusão social. Na minha
opinião, esta crise decorre essencialmente da manifesta

137
5
2004

incapacidade destas correntes em compreenderem as


atuais características do Estado, do capitalismo e,
necessariamente, dos próprios trabalhadores
assalariados, dos oprimidos e explorados que dizem
defender. Como conseqüência dessa incapacidade,
impotentes e frustrados nas suas intenções de fazer
a revolução social, transformam-se em “guetos ou
seitas religiosas”, vivendo de uma forma dogmática e
“revolucionária” a memória histórica de heróis, mitos
e bandeiras em que não tiveram participação ativa.
No entanto, e por mais paradoxal que possa trans-
parecer, como a anarquia não é um ismo e, portanto,
não pode transformar-se numa religião, num dogma
ou numa sociedade hipoteticamente finita, a luta pela
liberdade e pela emancipação social nunca poderá ser
extinta enquanto a natureza subsistir e os indivíduos
do planeta Terra continuarem a ser uma unidade
indestrutível de essência biológica e social.
Neste amplo sentido, a anarquia é, foi e será
sempre a negação do Estado e do capital, mas o seu
êxito prático só poderá ser realizado hipotética e
progressivamente pelos indivíduos que aspiram à
liberdade, à cooperação, à solidariedade e à
reciprocidade, sem necessidade de deuses e de amos.
Para este efeito, não são necessários os mitos da luta
de classes, da revolução social, do mito de que o poder
e o Estado só são realidades institucionais exteriores
à natureza dos indivíduos e dos grupos sociais que
compõem as sociedades.
Podemos já hoje visualizar algumas tendências,
embora rudimentares, da experimentação social de
práticas predispostas à construção de certos tipos de
economia que vão no sentido da perspectiva libertária.
Refiro-me, concretamente, às experiências que

138
verve
Economia libertária e suas perspectivas

decorrem de algumas cooperativas e associações


privadas sem fins lucrativos.
É certo que a grande maioria dessas experiências
decorrem, fundamentalmente, da crise de regulação da
economia por parte do Estado e do mercado, como são,
principalmente, os casos de saúde, educação, formação
e serviços de animação cultural que integram as
atividades econômicas no âmbito das comunidades
locais. Mas também é verdade que alguns grupos se
constituem autonomamente fora dessas vicissitudes de
adaptação à crise de regulação do Estado e do mercado,
e de forma autogestionária produzem, distribuem,
trocam e consomem determinados produtos e serviços
que escapam ou procuram fugir das vicissitudes da
concorrência e do lucro capitalista e, ao invés disso,
procuram organizar-se com base nos parâmetros da
liberdade, da cooperação, da solidariedade e da
reciprocidade. Por outro lado, a sua esfera de ação tende
a se alargar para o exterior das comunidades locais onde
estão inseridos, criando, paulatinamente, redes sociais
informais e espontâneas, aproximando e identificando
produtores e consumidores e, ao mesmo tempo, vão
abolindo, progressivamente, as relações sociais
baseadas no oportunismo e exploração, no momento da
distribuição e troca de bens e serviços.
Para que esta alternativa hipotética de economia
libertária se desenvolva no sentido da anarquia é
imprescindível que esta não seja um mero fenômeno
de reação e de adaptação à crise de regulação econômica
inscrita nas funções do Estado e do mercado. Neste
momento histórico é imprescindível que a anarquia seja
difundida como projeto societário emancipacionista, mas
tendo presente que é sempre um projeto inacabado,
porque a liberdade e as pulsões de vida, na perspectiva
da anarquia, são para serem vividas todos os segundos,

139
5
2004

todos os minutos, todas as horas, dias, meses, anos e,


como tal, nunca poderão ser objeto de cristalização ou
de modelação histórica.

Notas
1
Max Stirner. L’Unique et sa propriété. Paris, Éditions de la Table Ronde, 2000.
2
P-J Proudhon. Systèmes des contradictions économiques ou philosophie de la misère.
Paris.A. Lacroix, Verboeckhoven & Ce., Éditeurs, 1872, vol II.
3
P-J Proudhon. O que é a propriedade?. Lisboa, Editorial Estampa, 1997.
4
P-J Proudhon. Do princípio federativo e da necessidade de reconstituir o partido da
revolução. Lisboa, Edições Colibri, 1996.
5
Idem.
6
Jean Bancal. Proudhon, pluralismo e autogestão. Brasília, Novos Tempos Editora,
1984.
7
Piotr Kropotkin. A conquista do pão. Lisboa, Guimarães & Cª Editores, 1975.
8
Piotr Kropotkin. Champs, usines et ateliers. Ivry-sur-Seine, Phénix Éditions,
2001.
9
Piotr Kropotkin, op. cit., 1975.
10
Piotr Kropotkin. El apoyo mutuo. Móstoles, Ediciones Madre Tierra, 1989
11
Idem.
12
Piotr Kropotkin, op. cit., 1975.
13
Idem, p. 218.
14
Ibidem, p. 51.
15
Diego Abad de Santillán. Organismo econômico da revolução — a autogestão na
revolução espanhola. São Paulo, Livraria Brasiliense Editora, 1980.
16
Idem, p. 65.
17
Diego Abad de Santillán. Estrategia y Táctica. Madrid/Gijón, Ediciones Júcar,
1976, pp. 148-149.

140
verve
Economia libertária e suas perspectivas

RESUMO

Em meio às crises da economia capitalista na era da globalização,


alguns anarquistas, na falta de perspectivas, agarram-se às
experiências do passado, em busca de doutrinas salvadoras. A
partir do que foi pensado por alguns autores clássicos como Max
Stirner, Proudhon, Kropotkin e o revolucionário Diego A. de Santillán
sobre o tema da economia libertária, o autor faz um paralelo com
uma análise do momento histórico atual apontando para
possibilidades e invenções anarquistas destacadas de uma visão
dogmática.

Palavras-chave: autogestão, economia libertária, revolução social.

ABSTRACT

Amongst the crisis of the capitalist economies in the globalization


era, some anarchists, due to a lack of perspective, have tied
themselves to past experiences, searching for redemptory doctrines.
Based on the thought of Max Stirner, Proudhon, Kropotkin and
the revolutionary Diego A. de Santillán about libertarian economy,
the author analyzes the present historical moment, pointing out
possibilities and anarchist inventions apart from a dogmatic
perspective.

Keywords: self governance, libertarian economy, social revolution.

Recebido para publicação em 24 de janeiro de 2004.

141
5
2004

um relativismo de base cética na


dialética de proudhon

joão borba*

O propósito deste artigo é tornar público um projeto de


pesquisa em filosofia social e política, sobre um ponto
importante na concepção de dialética de Pierre-Joseph
Proudhon, exposta em seu livro Da criação da ordem na
humanidade ou princípios de organização política, em 18431.
Para isso será preciso atravessar também outras áreas
da filosofia, que se entrecruzam na formulação prou-
dhoniana. A intenção é oferecer um convite ao diálogo,
abrindo caminho para outros que queiram acompanhar
esse processo de pesquisa, no sentido de torná-lo público
e coletivo a cada passo, conforme vá se desenvolvendo, e
evitar que se encerre na pequena esfera de uma produção
acadêmica individual. Tornar pública a pesquisa ainda
em projeto, neste sentido, é o primeiro passo.

* Mestre em Filosofia pela PUC-SP e professor de Filosofia e Princípios de


Ética nas Faculdades Europan.

verve, 5: 142-156, 2004

142
verve
Um relativismo de base cética na dialética de Proudhon

Contextualizando a questão no pensamento de


Proudhon
Proudhon se destacou em sua época pelo anticleri-
calismo e pelas idéias econômicas e políticas radicais
que derivam de suas concepções filosóficas, especialmen-
te nas áreas de Ética, Filosofia da linguagem e Teoria do
conhecimento, mas essas concepções, por sua vez, são
cuidadosa e conscientemente derivadas por ele de sua
vivência em um preciso contexto histórico, social, político,
econômico e cultural.
Sua Ética (ou Filosofia moral) tende a apoiar-se na
busca da igualdade interpretada como equilíbrio de valo-
res2, e conseqüentemente de forças de influência, entre
elementos que devem ser considerados, conforme vere-
mos em sua dialética, irredutivelmente diferentes uns
dos outros; e no conseqüente rechaço ao desequilíbrio
intrínseco ao princípio de autoridade, e à idéia de massa
— encarada por ele como uma espécie de “superindivíduo”
irracional que, embora sendo apenas mais um elemento
irredutível àqueles que o compõem, tende a ser super-
valorizado e, com isso, a dominá-los e arrastá-los com o
peso de uma força hierarquicamente superior. Esse
processo é similar àquele pelo qual o princípio de autori-
dade, encarnado na idéia unitária de um Estado, passa a
ser dirigido por uma estrutura governamental que re-
presenta essa idéia, e coloca-se acima dos demais ele-
mentos individuais e coletivos que constituem a nação.3
Essa noção de “equilíbrio de valores” (e de forças) ten-
de ao longo do tempo a concentrar-se, para Proudhon, em
sua noção de justiça — formulada mais nitidamente na
obra mais extensa de sua última fase, Da justiça na Revo-
lução e na Igreja. No entanto ela está longe de limitar-se ao
campo jurídico, sendo formulada como um conceito filosó-
fico conectado simultaneamente à Ética, à noção mate-

143
5
2004

mática de “identidade”, e à noção (de espírito coopera-


tivista) de um equilíbrio entre débito e crédito na
contabilidade. Desde 1848 Proudhon já vinha se aproxi-
mando indiretamente dessa formulação, como um ponto
de vista para a abordagem de fenômenos econômicos,
culturais, sociológicos e psicológicos.
Sua Filosofia da linguagem, à qual não dedicou nenhu-
ma obra específica mas que percorre esparsamente sua
produção intelectual com largas repercussões em todas
as outras matérias tratadas por ele, parece apoiar-se na
noção de que as palavras, assim como a própria estabili-
dade das nossas percepções sensíveis e das impressões
que temos a respeito de como as coisas “são” em geral,
derivam inconscientemente de nosso esforço vão para
dominar o multifacetado fluxo heracliteano das coisas,
fixando-lhes nomes e aparências, que são sempre a ge-
neralização abstrata, operada mentalmente por nós, de
uma multiplicidade fluida de características que não con-
seguimos dominar4 — o que inclui essa suposta unidade
que procuramos chamar de “eu”, e cuja consistência efe-
tiva Proudhon questiona, mas não chega a negar decisi-
vamente.
Esse posicionamento em Filosofia da linguagem se fun-
de com seu posicionamento em Teoria do conhecimento.
Inserir-nos no fluxo parece estar para além das nossas
possibilidades como seres humanos, tragicamente pre-
sos a esse campo de ilusões fixistas a que Proudhon oca-
sionalmente dá o nome de “ideomanias” — de tal modo
que pelo simples fato de sermos humanos somos todos,
queiramos ou não, filosoficamente idealistas, inclusive o
mais arraigado dos materialistas. O divisor de águas, para
Proudhon, não é aquilo em que se acredita, mas aquilo
que se valoriza ou aquilo que se desvaloriza na prática,
por meio de nossas atitudes, e é a questão dos valores,
portanto, o que irá determinar o empenho — caracteris-

144
verve
Um relativismo de base cética na dialética de Proudhon

ticamente revolucionário — por um conhecimento real,


capaz de orientar eficazmente a ação, ou — caracteristi-
camente absolutista — pelo conformismo conservador (ou
mesmo reacionário) que nos mantém no “véu de Maya”
da ilusão idealista, procurando inutilmente manter e
definir o estado de coisas presente.
Isso significa que podemos tomar partido em favor do
perigoso recrudescimento dessa nossa condição de alie-
nação em relação ao fluxo das coisas, que provavelmente
acabará nos surpreendendo em algum momento da nos-
sa história, derrubando de um só golpe as nossas ilusões;
ou lutar contra isso e tomar partido em favor de sua
superação rumo à imersão no fluxo, conduzindo por nós
mesmos o processo de revolução permanente, ou seja,
de permanente derrubada das nossas ilusões idealistas.
No primeiro caso, temos o que Proudhon chama de abso-
lutismo, isto é, a tendência à absolutização das idéias,
entregando-nos a elas e dando-lhes autoridade e condi-
ções de nos dominar e de nos afastar do fluxo real das
coisas — como fazem tantos filósofos da corrente “idea-
lista” combatidos por Marx, e como faz a Igreja, valorizan-
do como modelo supremo de absoluto a idéia de deus. No
segundo caso, temos o posicionamento revolucionário, que
se permite compreender, aceitar e promover o “giro”
histórico das palavras e aparências, mesmo — e especial-
mente — das mais enraizadas em nossa mentalidade, a
fim de que acompanhe tanto quanto possível o fluxo das
coisas, oferecendo-nos uma compreensão sempre parcial
e cambiante, mas suficiente para nos embasar a ação de
maneira mais eficaz — esta é a posição de Proudhon.
Vê-se, diante disso, que as acusações marxistas (e
mesmo as de Bakunin) de que Proudhon seria ainda no
fundo um “idealista” não fazem sentido, pois o próprio
Proudhon poderia dirigi-las aos “materialistas” em geral,
históricos ou não: ele se posiciona como um cético mode-

145
5
2004

rado pela expectativa de um relativo — e que permanece


sempre apenas relativo — acesso histórico ao fluxo das
coisas. Essas ilusões — as idéias — que assumem para
nós a forma de palavras e aparências, ao mesmo tempo
em que nos alienam, são justamente a nossa única fon-
te possível de conhecimento, na medida em que consi-
gam minimizar sua opacidade e deixar transparecer, in-
diretamente, algo do fluxo.

A questão
O objetivo da pesquisa, cujo projeto se apresenta aqui
apenas de maneira resumida, é demonstrar a presença
de um relativismo de base cética nos fundamentos da-
quilo que Proudhon caracteriza como sua Dialética Serial.
O “relativismo” ao qual me refiro é de um tipo bastan-
te preciso: aquele que ficou conhecido como perspecti-
vismo 5 , e que tem servido especialmente para a
caracterização de dois filósofos que, embora bastante di-
ferentes, são ambos radicalmente pluralistas — o ultra-
racionalista e idealista Leibniz (1646-1716), e Nietzsche
(1844-1900), cuja sombra tem assustado os racionalistas
contemporâneos, que tendem a rotulá-lo como
“irracionalista”. Consiste basicamente na noção de que
um mesmo objeto de conhecimento pode ser acessado
por diferentes perspectivas ou pontos de vista, que podem
ser mutuamente complementares, contrastantes, incom-
patíveis ou até mesmo contraditórios, mas em vista do
objeto acessado são igualmente válidos e não se exclu-
em. Para Proudhon isso se dá mediante a idéia heracli-
teana de que tudo é fluxo e multiplicidade — mas nele
essa idéia, que poderia desembocar em um relativismo
histórico dogmático, recusando a possibilidade de
alternativas opostas, acaba por ser ela mesma rela-
tivizada criticamente.

146
verve
Um relativismo de base cética na dialética de Proudhon

A dialética de Proudhon tem sito até hoje muitas ve-


zes estudada em comparação com a de Hegel — e apon-
tada como uma má compreensão da dialética deste em
função de um erro de tradução do alemão para o francês,
o que ressalta uma lacuna na formação de Proudhon, que
não falava alemão. Esse gênero de críticas tem origem
em Marx e, em geral, em autores de filiação direta ou
indiretamente hegeliana, e incorre em sérias desa-
tenções quanto à formulação proudhoniana. A dialética
serial é uma concepção radicalmente pluralista da
dialética, em que as oposições ou antíteses são a expres-
são humanamente possível de uma categoria — o
movimento em sentido heracliteano, captado sob a forma
de progressão de oposições — que é considerada por
Proudhon como logicamente anterior às categorias de
espaço e tempo. A anterioridade lógica da Série em rela-
ção ao espaço e ao tempo significa que as oposições
antitéticas, que formam a série, não se resolvem em uma
síntese de caráter temporal, como pretendem os descen-
dentes de Hegel.
Essa progressão de oposições pré-temporal e pré-espa-
cial é o que Proudhon procura exprimir com a noção de
“série”, a partir da qual toda síntese que se pretenda mais
do que um equilíbrio entre os pólos em oposição, passa a
ser encarada como uma construção hipotética, formal e
subjetiva, de caráter meramente especulativo, metodolo-
gicamente útil em muitas circunstâncias, mas sem
qualquer fundamento ontológico que possa ser efetiva-
mente verificado ou demonstrado.
Sob esse ponto de vista, as oposições, ou seja, as dife-
renças — ou “alteridades”, para usarmos a linguagem atu-
al — tornam-se o fato real para nós, o fenômeno com o
qual podemos trabalhar como um dado de realidade. Toda
possível unidade para além delas não passa de fantasia.
Mas fantasia útil — porque dotada, apesar disto, de certo

147
5
2004

poder de ação sobre aqueles que a operam em suas men-


tes, e através das ações deles, também sobre os fatos,
para o bem ou para o mal. A dialética hegeliana torna-se,
assim, uma forma de se exprimir o movimento entre ou-
tras possíveis, e cuja especificidade está em considerá-
lo como uma série de três elementos, na medida em que a
“síntese” tem algum grau de autonomia, a ponto de lhe
atribuirmos um nome — e com ele uma unidade —
diferenciado dos nomes “tese” e “antítese”.
Segundo Proudhon, tese e antítese são tudo o que pode-
mos observar, pois não podemos captar em si mesmo o
movimento, mas apenas pressupô-lo. Porém, na medida
em que a síntese que as capta em conjunto possa ser
considerada como um terceiro elemento relativamente
autônomo, ainda que não pretenda absorver ou anular os
outros dois, torna-se uma parte puramente abstrata na
dialética hegeliana, uma construção formal e subjetiva,
que pode ter sua utilidade na aplicação dessa série
trinitária ao exame de certos fenômenos, aqueles que su-
gerem a presença desse terceiro termo, mas não se ajus-
ta a outros, e por isso não pode ser generalizada, como faz
Hegel.
Poderíamos contra-argumentar que adotar nome “sé-
rie” também supõe algo com unidade própria a ser assim
nomeado, e algo ainda mais abstrato, na medida em que
imaginado como logicamente anterior ao espaço e ao
tempo.6 Mas, segundo o próprio Proudhon, a noção de
“série” é declaradamente uma abstração: ela procura
exprimir em seus limites justamente a nossa humana
incapacidade para captar em linguagem o movimento em
sentido heracliteano — apenas se apresenta mais
maleável que a noção de síntese tal como a utilizada pelos
hegelianos, designando não só a com-posição (sin-tese, no
sentido etimológico) de duas posições (teses) contrapos-
tas, mas qualquer composição envolvendo qualquer

148
verve
Um relativismo de base cética na dialética de Proudhon

número de “teses” mutuamente contrapostas. A série


dialética — com dois pólos em oposição — seria apenas
um caso particular de série. Proudhon, então, chega
a comparar a dialética hegeliana a uma formulação
de André Marie Ampère, estudioso dos fenômenos de
eletromagnetismo, que teria pensado em uma série
quaternária, de quatro pólos, igualmente presa à adoção
de elementos formais e subjetivos nessa série.
Para evitar a generalização indevida de tais abstra-
ções, Proudhon prefere apegar-se à série binária ou
dialética, formada por apenas dois elementos,
presentes como tais — ou seja, como par de elementos
mutuamente diferenciados — na composição de
qualquer outra Série que se queira imaginar, como o
número mínimo de elementos pelo qual conseguimos
efetivamente exprimir o movimento, em sua intrínseca
heterogeneidade ou diferença, que nos sugere a
presença de dois pólos relacionados. A dialética serial
seria o método em que se opta por trabalhar apenas
com essas menores séries possíveis, as séries
dialéticas, em que algo se opõe a seu outro — ou, para
usarmos uma linguagem bastante atual, opta por tra-
balhar com as “alteridades” ou “diferenças” em suas
manifestações mais elementares possíveis à
percepção humana.
Independentemente do erro ou acerto de Proudhon
em sua avaliação da dialética hegeliana, ele não pre-
tende constituir sua dialética serial com base nessa ava-
liação, pois rigorosamente não dá tanto valor a Hegel
como se pretende, a não ser retoricamente, na medida
em que busca o diálogo com a nova geração —
hegeliana — dos socialistas alemães. Considerá-lo a
partir de Hegel, portanto, a rigor, constitui um erro no
que diz respeito à compreensão do que ele pretende.

149
5
2004

A mais clara distinção entre a dialética serial e a de


Hegel se encontra, precisamente, no pluralismo que ela
atinge graças ao perspectivismo. A melhor e mais decisi-
va testemunha desse perspectivismo proudhoniano é o
próprio Proudhon. Citemos, como exemplo, o Aforismo 189,
em Da criação da ordem na humanidade, cap. III:
“189. Conhece-se a demonstração deste teorema de
Aritmética: Em qualquer ordem que se multipliquem dois
fatores, o produto não se altera. Ela consiste em mostrar,
por uma figura bastante simples,

| | | |
| | | |
| | | |

que um grupo formado, por exemplo, de quatro séries


perpendiculares, compostas cada uma de três unidades,
é idêntica a um grupo formado por três séries horizon-
tais, compostas cada uma de quatro unidades.
Esta figura é a imagem do mundo: de qualquer lado
que se considere a natureza, ela se encontrará diferen-
ciada, seriada: sob todas as faces, há sistema, e sistema
sempre novo: mas a variedade das séries não altera sua
certeza: elas se atravessam, se misturam, mas não se
contradizem; permanecem absolutamente e integral-
mente verdadeiras. O sistema inteiro é imutável.
Tiremos daí uma primeira conseqüência: nossa ci-
ência não tem necessidade, para ser absoluta, de tornar-
se universal.
Com efeito, depois de tudo o que expusemos prece-
dentemente, o conhecimento é tanto mais profundo quan-

150
verve
Um relativismo de base cética na dialética de Proudhon

to se eleve a um mais alto grau nas propriedades de uma


série e nas determinações de um ponto de vista; e é tan-
to mais vasto ou compreensivo, quanto abrace um maior
número de aspectos. Mas o que constitui o absoluto de
um conhecimento, é a propriedade e a regularidade da
série.”
Essa condição absoluta do conhecimento que Proudhon
parece sugerir acessível quando examinamos este
aforismo isoladamente, entretanto, afasta-se para um
horizonte cada vez mais distante na medida em que o
relacionamos com outros aforismos e com passagens
pertinentes de outras obras suas, diluindo-se cada vez
mais no fundo de um campo de incertezas a ser atraves-
sado com o auxílio de escassas orientações, devido a con-
dições peculiares a todo agrupamento social e a dificul-
dades humanamente insuperáveis.
Isso se dá de tal modo, nos textos proudhonianos, que
a afirmação de uma certeza possivelmente absoluta a
ser perseguida — sempre reafirmada — passa no entan-
to, a exercer a função retórica de um constante ponto de
contraste, ressaltando ainda mais a necessária incomple-
tude do conhecimento humano, ao qual Proudhon, ora
com otimismo ora com ironia, prefere chamar de condi-
ção de perfectibilidade humana, em oposição a uma con-
dição de estática e acabada perfeição. Em sua última fase,
em Da justiça na revolução e na Igreja (1858), o argumento
da perfectibilidade lhe servirá inclusive para posicionar-
se contra a divinização do ser humano ao estilo de
Feuerbach.7
Dizer que o perspectivismo presente na dialética serial
é de base cética, constitui, ainda assim, o ponto de defesa
mais delicado e, sem dúvida, o mais saboroso deste pro-
jeto de pesquisa, pois o próprio Proudhon parece não con-
siderar-se um cético, chegando em diversos momentos, a

151
5
2004

declarar a intenção de superar o ceticismo, à maneira


de Kant — o que por outro lado significa que não o
considera decisivamente superado por Kant. Até que
ponto Proudhon se deixa arrastar pelas sombras do
ceticismo?
Devemos notar, neste ponto, a insistente menção
ao fluxo das coisas neste artigo, em tom heracliteano,
como uma possível tese ontológica de Proudhon, como
uma possível verdade acerca das coisas, à qual
Proudhon estaria aderindo dogmaticamente. Mas em
Filosofia do progresso, obra escrita por ele em 1851 e
publicada em 1853, encontramos, em uma passagem
rápida mas de grande impacto, a declaração de que
sua própria concepção — nitidamente heracliteana —
de uma multiplicidade em fluxo como constitutiva de
tudo, deve ser considerada como apenas uma hipótese
instrumental, um “preconceito favorável”, para usar
seus próprios termos; elaborado segundo certos valores
e fins.
E quais são esses fins e valores? Basicamente, a
busca de uma interpretação dos fatos que exponha
suas maleabilidades à ação humana, ampliando nosso
poder de ação sobre eles — se é que temos algum
(Proudhon não fecha o seu julgamento a respeito) —;
e a determinação de um critério “em todo tipo de
experiência”, de acordo com o qual consideramos como
falsas, fictícias, impossíveis ou impraticáveis,
examinadas caso a caso, todas as abstrações sem
maleabilidade, “enrijecidas” pelo isolamento em
relação ao contexto, ou seja, tudo aquilo que se
manifesta como “fixo, inteiro, completo, inalterável”,
“não suscetível a modificação, refratário a todo tipo de
combinações”... — Proudhon desfila, aqui, como tem o
hábito de fazer, uma longa seqüência de adjetivos para

152
verve
Um relativismo de base cética na dialética de Proudhon

que o leitor possa extrair-lhes, por analogias e associ-


ações, o sentido geral.
Assim, o conhecimento, para Proudhon, assume um fei-
tio pragmático, relativista e filtrado pelos valores do conhe-
cedor — e podemos acrescentar, por seus valores como
pessoa (individual ou coletiva), o que nos conduz também
a um conhecimento de perfil personalista. Por outro lado,
não existe da parte de Proudhon um acomodamento passi-
vo a essas condições, mas um posicionamento crítico,
buscando superar os limites rumo ao conhecimento da
Verdade, no sentido mais forte do termo, sob a tentação
heracliteana de vê-la como o grande e multifacetado flu-
xo histórico das coisas; posicionamento ao mesmo tem-
po trágico, pois acaba ressaltando sempre a condição ina-
cessível em que essa Verdade fluida — se existe e se é
efetivamente fluida — parece colocar-se.
Torna-se patente, então, que a própria base do
perspectivismo em Proudhon, o objeto de conhecimento
— seja qual for, apresenta-se como fluxo multifacetado
de características, passível de ser abordado de diferentes
ângulos, a partir de diferentes perspectivas ou pontos de
vista — não tem para ele o peso de um fato consumado,
não pode ser verdadeiramente afirmado, senão como uma
hipótese de caráter meramente instrumental e estratégico
colocada segundo valores individuais ou coletivos. Forte
marca de ceticismo, portanto, na própria base de seu
perspectivismo.
Se quisermos enxergar nessas influências relativistas
e céticas certos parentescos filosóficos de Proudhon, dirí-
amos que ele, falecido aos 56 anos de idade quando
Nietzsche tinha 20, apesar de apresentar uma forte pro-
pensão racionalista encontra-se nitidamente mais pró-
ximo do autor de Zatatustra do que de Leibniz, que viveu
na passagem do séc. XVII para o XVIII. Examinando mais

153
5
2004

atentamente seu pensamento, verifica-se que essa pro-


ximidade se dá também filosoficamente, pois a inspiração
no perspectivismo de Leibniz é contrabalanceada por uma
influência muito mais forte de Pascal (1623-1662), filó-
sofo também atravessado por uma boa dose de perspecti-
vismo e que, por sua vez, parece ter influenciado o suposto
“irracionalista” Nietzsche.
O pensamento de Pascal é marcado também por influ-
ências do ceticismo, e foi certamente, ao lado dos fran-
ceses Montaigne (1533-1592) e Pierre Bayle (1647-1706)
e do inglês Hume (1711-1776), um dos “veículos” pelos
quais a filosofia cética atingiu Proudhon para fundir-se,
nele, com o perspectivismo. Ainda podemos afirmar que
ele chegou a conhecer também o pensamento de Sexto
Empírico, filósofo grego que viveu do final do séc. I d.C. ao
início do séc. II d.C., e que foi o primeiro grande
sistematizador da filosofia cética em sua versão mais
radical, conhecida como pirronismo.
Sabemos que atualmente duas correntes de enorme
importância para o pensamento político — uma de he-
rança dialético-marxista e outra de herança nietzsche-
ana — ora se digladiam, ora se fundem ou se combinam
em diferentes filósofos, com ênfase em uma ou em outra
dessas heranças. Proudhon tem sido freqüentemente
estudado como precursor filosófico de Marx, e como decor-
rência, da corrente marxista, mas nitidamente não se
acomoda bem à classificação, pois o próprio Marx se
posicionou, em relação a ele, sabidamente como
adversário. De fato, só é possível situá-lo na ascendência
de Marx na medida em que o situemos também como
precursor de Nietzsche.
Proudhon figura como uma espécie de tronco comum
do qual Marx parcialmente decorreu, mas que ao mesmo
tempo antecipou com bastante clareza, em seu pluralismo

154
verve
Um relativismo de base cética na dialética de Proudhon

perspectivista, os posicionamentos da futura corrente


nietzscheana — e justamente na formulação de uma
dialética, terreno hoje dominado pela corrente de heran-
ça mais enfaticamente marxista. Por fim, a forte
influência do ceticismo parece afastá-lo tanto de Nietzsche
quanto de Marx, e especialmente deste último, cuja com-
patibilização com o ceticismo seria extremamente difícil.

Notas
1 Cf. P.-J. Proudhon “Cap. III - La Métaphysique” in De la création de l’ordre dans
l’humanité ou principes d’organisation politique. Paris, Marcel Riviére, 1927, p. 127 e
seguintes.
2 Cf. P.-J. Proudhon. “2º Étude - Les personnes” in De la justice dans la révolution
et dans l’Église. Paris, Fayard, 1988, p. 299. Cap. VII, “Définition de la Justice”.
3 A recusa da noção de massa não é colocada por Proudhon nesses termos, mas
parece-me implicitamente trabalhada em sua noção de uma força coletiva irracional
que precisa ser contrabalanceada pela razão coletiva, e no exame de caráter psico-
sociológico que Proudhon aplica à sua crítica da noção de soberania do povo, em que
se compreende o “povo” como um todo ou “multidão” caracterizado por uma
força coletiva à qual se atribui perigosamente o mesmo princípio de autoridade que
se atribui a Deus ou ao governo. Cf. diversas passagens de Jean Bancal. Proudhon,
pluralismo e autogestão – os fundamentos. Brasília, Novos Tempos, 1984. Ver cap. 2 da
1ª parte, “§3. O realismo social”, pp. 69-80; na 2ª parte, a “Introdução” e, do cap.
III, “§2. Negação do Estado-monopólio”, pp. 155-174.
4 Cf. P.-J. Proudhon. “7º Étude - les idées” in op. cit., 1988. E também em P.-J.
Proudhon. Ecrits linguistiques et philologiques – textes manuscrites inédits édités et
commentés par Jacques Bourquin. Paris, Presses Universitaires Franc-Comtoises,
1999. Seria impraticável compilar neste espaço o volume das passagens de
Proudhon sobre o assunto, em diversas obras; passagens breves, mas firmemente
consistentes umas com as outras ao longo de sua vida..
5 A noção de perspectivismo surgiu em 1882 no livro Die wirkliche und die scheinbare
Welt, de Gustav Teichmüller, depois foi desenvolvida por Ortega y Gasset para
qualificar posicionamentos filosóficos de Leibniz e outros, ganhando seu maior
impulso quando detectada em Nietzsche, em quem encontramos esse posicio-
namento assumido e formulado explicitamente. No Brasil o perspectivismo tem
sido pesquisado por Scarlett Z. Marton, do Departamento de Filosofia da FFLCH
– USP.
6 Segundo Kant, do qual derivam os idealismos de Fichte, Schelling e indireta-
mente o do próprio Hegel, tempo e espaço não são realidades externas ao pensa-

155
5
2004

mento, mas, grosso modo, noções com as quais nascemos e às quais ajustamos a
matéria das nossas percepções. Proudhon reinsere essas noções no campo da
experiência vivida, considerando-as como produto do movimento universal das
coisas tal como se dá em nós, ou seja, das nossas ações individuais e coletivas,
voluntárias e involuntárias. Mas vê a própria percepção que podemos ter desse
movimento universal, que ele mesmo supõe, como uma abstração, questionando até
que ponto essa suposição, na qual ele aposta teoricamente, pode ser afirmada
como uma realidade.
7 Cf. P.-J. Proudhon. “2º Étude - Les personnes” in op. cit., 1988. Cap. VII,
“Définition de la Justice”, pp. 303-304.

RESUMO

Este artigo apresenta um projeto de pesquisa sobre a influência


do ceticismo e do relativismo perspectivista na concepção de
dialética de Proudhon, esboçando como contexto da questão os
traços fundamentais de sua Ética, de sua Filosofia da linguagem
e de sua Teoria do conhecimento, e situando-o como um “tronco
comum” entre a corrente filosófica marxista e a nietzscheana.

Palavras-chave: ceticismo, dialética em Proudhon, relativismo.

ABSTRACT

This article presents a research project about the influence of


skepticism and perspectivistic relativism on Proudhon’s concept
of dialetics, sketching, as context of the subject, the fundamental
lines of his Ethics, Philosophy of language and Theory of
knowledge, and standing him virtually as a “common source”
between the philosophical ways of Marxism and descendents of
Nietzsche.

Keywords: skepticism, dialetics on Proudhon, relativism.

Indicado para publicação em 10 de março de 2003.

156
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

átomos soltos — a construção da personalidade


entre os anarquistas no início do século XX1

christian ferrer*

O que restará da palavra “anarquistas” num dicioná-


rio do futuro? Uma nota de rodapé, a definição conceitual
de uma seita de conspiradores, o cardiograma que re-
gistrou as oscilações históricas de uma idéia extrema,
a silhueta de um animal extinto? É inevitável que, in-
clusive no melhor dos casos, sejam ressaltados os tra-
ços aberrantes e se termine por afetar o arquétipo que
por muito tempo identificou o anarquista na imagina-
ção política do liberalismo moderno: o monstro. Esta som-
bra espectral acaba sendo curiosamente tranqüilizadora,
pois a polícia, e também — para não silenciar palavra
alguma — não poucos filósofos políticos e historiadores,
costumam enfatizar os dados do prontuário com a fina-
lidade de deixar as motivações das ações fora da discus-
são. São estes os atributos clássicos: a bomba, o convite
à sedição, o gesto blasfemo, a arte da barricada, o
regicídio, o ar viciado da catacumba, a atitude indisci-
plinada, a vida clandestina. E o exagero. Mas este

* Professor e pesquisador da Universidade de Buenos Aires, editor da Revista


Artefacto e autor de diversas publicações sobre anarquismo.

verve, 5: 157-184, 2004

157
5
2004

“identikit” é apenas nítido. Ainda que todos os dados apa-


rentem levar à ante-sala do inferno social, a pura ver-
dade é que as biografias dos anarquistas podem ser per-
feitamente relatadas como vidas de santos. É verídica a
violência, e exato o relato de suas explosões, como tam-
bém não é descartável o traço “demoníaco” nos aconte-
cimentos que os tiveram como protagonistas. Mas só
circunstancialmente os anarquistas foram aves das tor-
mentas; na maioria das vezes, o móvel de suas ações
foi construtivo, e suas existências guardavam maior se-
melhança com as dos evangelizadores e dos dissidentes
do que com as dos “poetas malditos” ou dos niilistas ator-
mentados.
Existiram? Tudo indica que sim, que foram a assom-
bração de sua época e, por um tempo, a obsessão da po-
lícia secreta dos Estados modernos. Mas a sua surpre-
endente aparição histórica foi tão improvável que tenta
o historiador a se fazer a pergunta contra-fática: o que
haveria acontecido se não tivesse existido anarquistas?
Haveria aparecido outro grupo equivalente em seu lu-
gar? A questão da hierarquia e do poder autocrático fi-
caria sem ser teorizada e sem impugnação? Ou teriam
sido problemas apresentados de maneiras mais suaves,
em boca de pensadores liberais e de fugitivos da doutri-
na marxista? A história da dissidência seria diferente
de como a relembramos? Toda a tensão política da
modernidade teria sido condensada no embate de for-
ças entre o liberalismo e o socialismo? À elaboração dos
ensaios libertários de Tolstoi, Orwel, Camus ou
Chomsky, teria sido suprimido um antecedente impor-
tante ou um interlocutor imaginário? O projeto teórico
de Michel Foucault seria facetado tal como o conhece-
mos? Seria discutida a questão do poder em Foucault da
maneira incômoda e veemente como se tem feito nas
últimas três décadas? Mais ainda, certas liberdades, ou

158
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

melhor, certo grau de apetência por liberdades radicais,


alcançadas ou por alcançar, teria sido posto em
movimento? É porque os anarquistas efetivamente
existiram que estas perguntas podem ser formuladas, e
inclusive enunciadas, com certa calma, sem o senti-
mento de pavor político retrospectivo que assalta a quem
percebe que a vida política dos séculos XIX e XX poderia
ter sido mais dura e sombria. Farpas, percevejos, cabe-
ças de tormenta, praga de formigas à solta e errante no
favo psíquico da ordem burguesa. Sem dúvida. Mas tam-
bém, e não apenas ocasionalmente, os anarquistas es-
tabeleceram as bases de uma contra-hegemonia
libertária, isto é, postularam e praticaram formas dese-
jáveis de existência política. No início do século XXI, o
Ocidente ainda se nutre dos restos vivos, ou metamor-
foseados, das inovações espalhadas pela imaginação
política do século XIX, uma das mais prolíficas da história
humana.
Nutrimo-nos de nacionalismo, conservadorismo, li-
beralismo, sindicalismo, feminismo, vanguardismo,
marxismo, socialismo, federalismo, e de outras miga-
lhas políticas menores. E ainda está pouco rastreada a
influência radical que o anarquismo teve sobre intelec-
tuais e sobre certos grupos sociais, entre outros, sobre
individualistas de todo tipo, liberais, anticlericais, so-
bre as bordas de marxismo, o elitismo estetizante, a
boemia, sobre os manifestos estéticos de seitas
vanguardistas, sobre o florescimento radicalizado da
esquerda dos anos 60, no rock e no punk, sobre as ten-
dências libertárias no movimento de direitos humanos
e no da dissidência nos países soviéticos, o pacifismo
antimilitarista, a reivindicação do uso prazeroso do pró-
prio corpo, o movimento de libertação dos animais e o
ecologismo radical da atualidade. Diria-se que o
anarquismo constitui uma parcela significativa do

159
5
2004

plâncton que até o dia de hoje consome os cetáceos do


movimento social, inclusive alguns que ainda devem
amadurecer por completo.
A história cultural do anarquismo é uma jazida que
ainda pode ser explorada de maneira frutífera. Qual suas
invenções éticas? Quais as relações entre suas práti-
cas modeladoras da existência e a imaginação política
de sua época? A estas perguntas devem anteceder cer-
tos pressupostos demográficos. Em primeiro lugar, a
escassez, seu número exíguo. Nunca existiram muitos
anarquistas (com exceção do caso da anomalia espanho-
la entre 1890 e 1939), e o fato de que se trata de um
movimento de idéias evangelizador nunca alterou esta
condição de penúria. Por volta de 1910, a polícia calcu-
lava entre 5000 e 6000 filiados às idéias anarquistas
na Argentina. Essa quantidade de anarquistas organi-
zados era altíssima. Em grande parte do mundo, apenas
um punhado de partidários e simpatizantes — imigran-
tes ou viajantes, a maioria — ativava intermitentemen-
te, mantinha alguma correspondência com centros
emissores de idéias, envolvia-se em greves ou editava
alguma publicação. Os anarquistas, minoria demo-
gráfica, sempre viveram à beira da extinção. Porém, uma
segunda condição intensificou a escassez, assim como
determinou a ampla extensão das idéias libertárias em
seu tempo: a história dos anarquistas é a história de
uma experiência migratória bem-sucedida. Pratica-
mente em qualquer lugar do mundo, inclusive na menor
cidade, há ao menos um anarquista. Implante
pontilhista: pereba negra nos 360º do Atlas. As razões
que explicam a dispersão triunfante de “a idéia” —
chamavam assim sua doutrina — podem ser reenviadas
a uma suposta necessidade histórica elucidativa de sua
presença, mas também pode supô-la um tipo de milagre
político, que foi sempre acompanhado do enorme esforço

160
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

individual devotado por cada anarquista à sobrevivência


de sua causa. Eram maquinistas de um trem fantasma.
De qualquer forma, o número, a “massa crítica”, não
supôs um obstáculo para a difusão de um ideário político
tão exigente. Se alguma coisa favoreceu esta difusão,
foi a inexistência de um “comutador central” ideológico
que informasse e disciplinasse os militantes dispersos
a respeito da orientação de sua ação e o conteúdo de
suas propostas. Ao contrário, o que sobressai na história
anarquista é a plasticidade de teoria e práxis e,
conseqüentemente, uma variedade notável de sua flora
e fauna. A dose de liberdade de que desfrutam em relação
aos modos de subjetivação que lhes corresponderam se
desprende desta condição.
Esta limitação demográfica explica por que cada vida
de anarquista se tornaria preciosa, e porque a vida mes-
ma, entendida como ‘exemplo moral’, resultava tão vali-
osa quanto as idéias, os livros e os manifestos que edi-
taram. Em cada vida se realizava, mediante práticas
éticas específicas, a liberdade prometida. Cada existên-
cia de anarquista, então, transformava-se na prova, o
testemunho vivo, de uma liberdade do porvir. Percebi-
am-se a si mesmos como farpas atuais de um mundo
cujo futuro era uma e outra vez obturado por forças mais
poderosas. Daí as biografias de anarquistas nos serem
apresentadas como as vidas dos santos, como existên-
cias exigidas e abnegadas, que tudo sacrificavam em
benefício de um ideal: amizades, família, ascensão
social, tranqüilidade, previsão da velhice. Ainda hoje
existem velhos anarquistas que se negaram a requerer
a aposentadoria estatal. Estas privações eram aceitas,
se não jubilosas, ao menos convictamente, pois o
anarquismo lhes fora prometido como experiência
exigente, mesmo que não impossível. Para eles, a
liberdade era uma experiência vivida, resultado da

161
5
2004

coerência necessária entre meios e fins, e não um


efeito de declamação, uma promessa para um “depois
do estado”. De maneira que, para efeitos práticos, o
anarquismo não constitui uma forma de pensar a
sociedade da dominação, mas uma forma de existência
contra a dominação. Na idéia de liberdade do anarquismo
não havia unicamente um ideal, mas também um
objetivo que reclamava por diferentes práticas éticas,
ou seja, de correias de transmissão entre a atualidade
da pessoa e a radicalização do porvir anunciado.
Justamente porque o anarquismo não concebia a pessoa
segundo o modelo liberal do “sujeito de direito” era
imperativo modelar a cada anarquista segundo uma ética
específica e não em relação a uma jurisprudência
abstrata, inclusiva e generalizante.
As práticas do anarquismo pretendiam deslocar o
antigo regime psicológico, político e cultural da domina-
ção, não só porque essa forma de governar os homens
resultava coercitiva, exploradora e desigual, mas por-
que forçava os seres humanos a se tornarem cotos de si
mesmos, pessoas incapazes de se autodignificar. A an-
tropologia subjacente nas obras da patrística ácrata pro-
punha o homem como “promessa”, como energia auto-
criadora ilimitada, mais ainda numa época que definiam
“em estado de espírito revolucionário”, e cujos cidadãos
não eram mais os súditos de um monarca, na mesma
medida em que também já não eram as criaturas de
um pai celestial. Autodidatismo racionalista, impulso
fértil da vontade, apego pela camaradagem humana,
combate ao medo e à submissão por serem bases
fisiológicas e psicológicas da dominação, imaginação
anticlerical e tomada de partido pelo oprimido, tais eram
as peças que os anarquistas pretendiam montar em cada
indivíduo singular. O anarquismo sempre foi um “ideal
de salvação” da alma humana, e por isso era necessário

162
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

subverter a topografia histórica onde ela firmava sua


existência. No extremo, almejava-se a santidade soci-
al: não era possível uma sociedade anarquista até que o
último dos habitantes da terra não tivesse se tornado
um anarquista. Isto não supõe procurar a perfeição das
almas e sim expiar a idéia de revolução da tentação do
“golpe de mão” e distanciá-la dos perigos que os pais fun-
dadores previram na deriva das idéias autoritárias pro-
pagadas pelo marxismo, o “socialismo autoritário”, tal
como o definiam. Por isso insistiam em que a revolução
fosse “social” antes que “política”, o que obriga a um pré-
vio maceramento cultural de costumes libertários. E
antes até que uma revolução social, insistia-se que era
uma revolução pessoal, isto é, a construção do próprio
caráter ou “vontade” em relação antagônica com pode-
res hierárquicos. O desligamento da sociedade da hie-
rarquia começava pela tomada de consciência da misé-
ria existente e dos atropelos dos governos autocráticos,
mas também por estratégias de purificação da persona-
lidade. Ingressar a grupos anarquistas sempre supôs
uma conversão, um autodescobrimento do “eu rebelde”.
O objetivo de uma tal conversão, e o conseguinte despoja-
mento dos vícios sociais da dominação, buscava a
autodignificação. Na imprensa anarquista do começo do
século XX são reiterados conselhos para a forja da
personalidade, entre eles, tomar consciência do estado
do mundo, não se deixar atropelar pelos poderosos e seus
“esbirros”, atuar com reciprocidade com o companhei-
ro, servir de exemplo para o povo maltratado, abandonar
os vícios burgueses, em particular o álcool, o bordel, o
jogo por dinheiro e a participação em desfiles de carna-
val. Mas a dignificação de si não só exige evitar estes
males sociais como também poder exercer um auto-
controle, isto é, uma apropriação de si para dar lugar a
um querer livre e liberto da formação cultural burgue-
sa. Entretanto, esta autoformação libertária não podia

163
5
2004

ser realizada no interior de experiências sectárias nem


nas bordas da experiência histórica, como fôra inventa-
do pelos fourieristas em seus falanstérios e pelos
utopistas em suas comunidades fechadas. O anarquis-
ta via a si mesmo como um “filho do povo”; título de uma
de suas canções mais conhecidas. Era um átomo solto
em meio ao encadeamento elementar que a todos obri-
gava, e cujo vínculo orbital com a cultura popular era
paradoxal. Os anarquistas estavam muito próximos das
práticas populares e ao mesmo tempo se localizavam
na fronteira ideológica destas. Sempre populares, ainda
que não populistas; isto é, nunca foram complacentes
com os costumes operários nem muito menos “clas-
sistas”, mas foram o arranjo selvagem de práticas popu-
lares em formação, ou ainda a continuidade urbana de
tradições tribais ou rurais de resistência. Essa condição
paradoxal determinará a relação entre crenças
libertárias e práticas de subjetivação.
Para os anarquistas, a preocupação com a sua condi-
ção política e a preocupação com a relação entre crença
e ação (meios e fins) se tornava tanto mais urgente por-
que em muitas ocasiões estavam isolados em território
inimigo, alienado ou desconhecido. É importante consi-
derar o “fator número” antes mencionado. De tal forma
que lembrar “quem se era” através de rituais e práticas
específicas se tornava fundamental. Por exemplo, a cor-
respondência (todos os anarquistas respondiam cedo ou
tarde ao correio) ajudava a se interconectar, e a leitura
de livros “de idéias” a se fortalecer entre a adversidade
e a solidão ideológica, ainda mais durante a primeira
época de disseminação das idéias anarquistas, isto é,
entre 1870 e 1900, quando transcorreram três fases de
amadurecimento às quais podemos dar o nome de
“carbonária ou conspiratória”, “messiânica ou evangé-
lica” e “individualista ou organizadora”. Nesta etapa o

164
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Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

anarquismo se fez conhecer como ideologia revolucio-


nária, no sentido, ao mesmo tempo, amplo e específico
que o velho jacobinismo tinha esparramado pela Europa
entre 1789 e 1871, datas emblemáticas da Revolução
Francesa e da Comuna de Paris. Mas ao mesmo tempo,
o anarquismo foi difundido como um ideal de “homem
livre”, como modelo ético a seguir. Cabe rastrear as
raízes deste modelo nos ideais pedagógicos da ilustra-
ção, nos estilos de formação intelectual do livre-pensa-
dor moderno, nas práticas associativas dos conspirado-
res carbonários, na total dedicação vital dos revolucio-
nários vocacionais ao estilo de Auguste Blanqui, na
sensibilidade da geração “romântica” dos anos 1830 a
1848, e no ativismo dos emigrados célebres que luta-
vam pela liberação de povos irredentos, cujo exemplo
mais famoso foi a causa pela liberdade da Polônia. To-
dos estes antecedentes imediatos confluíram na forma-
ção da personalidade dos anarco-individualistas e dos
anarquistas auto-definidos como “revolucionários”, as
duas subespécies do gênero ácrata no final do século
XIX. O aprestamento da subjetividade anarquista, do
núcleo ético da vontade, tinha como objetivo sustentar
uma “moral revolucionária”, que servia para se endu-
recer diante da perseguição e para não se deixar desfa-
lecer diante dos parcos resultados da propaganda das
idéias. Isto, para que inclusive um só anarquista se sen-
tisse capaz de fundar publicações ou erigir sindicatos,
bibliotecas e ateneus. Foi este também o sentimento e
proceder dos doze apóstolos de Cristo. Ser um revolucio-
nário supunha “ter moral”, e não somente para devir
um “caso exemplar”, respeitado até mesmo por seus ini-
migos políticos, mas para tonificar o espírito e manter a
fé, tal qual os cristãos diante das tentações ou o martí-
rio. Mais ainda, “ter moral” para poder se transformar
em “contrapesos” de conjunturas históricas determina-
das, tal qual aconteceu com acusados diante dos tribu-

165
5
2004

nais que “arrumavam” os argumentos das promotorias


ou, no outro extremo, com os exploradores europeus que
por si mesmos eram capazes de conquistar regiões in-
teiras para sua nação. Eles também tinham uma “mo-
ral de ferro”. Mas ninguém pode firmar em sua alma
bases de aço se não tem fé no advento de um mundo
novo. Os anarquistas acreditavam. Isso é um dom que
não se concede a qualquer um. Mas não eram religio-
sos, no sentido habitual: o mistério da fé política era
balanceado por uma sólida formação nacionalista (in-
clusive, por momentos, cientificista) e por um gosto pela
sensibilidade incrédula de tipo “volteriana”. Eram
centauros: metade razão, metade impulso messiânico.
Mas se são momentaneamente abandonados o ódio
imediato ao opressor e as imagens felizes de um mundo
sem correntes (isto é, sem Estado, sem prisões, sem
forças armadas, sem polícias, sem Papas, sem patrões,
sem mais-valia, sem tribunais, sem privilégios de no-
breza, sem açougues, etc.), são então postos em evidên-
cia as conquistas culturais de suas práticas éticas de
autoformação, que tinham como função, antes de mais
nada, ajudar a forjar o caráter revolucionário e, depois,
testar constantemente as relações entre a própria vida
e os ideais. Uma primeira série de “obrigações de cons-
ciência” os diferenciava de outras “tomadas de partido”
políticos e operavam como catálogo orientador frente às
pressões coercitivas das instituições burguesas. O anar-
quista não devia aceitar o serviço militar obrigatório,
desertava. Não aceitava unir-se em matrimônio sob a
regulação da Igreja ou do Estado, unia-se livremente ao
seu par numa prática conhecida com o nome de “amor
livre”, mácula escandalizadora para sua época. Na me-
dida do possível, não mandava seus filhos para escolas
religiosas ou públicas, mas para escolas livres ou “naci-
onalistas”. Não batizava seus filhos segundo o santoral,

166
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

costumava recorrer a nomes significativos. Não devia


aceitar galgar posições nas hierarquias laborais ou sa-
lariais; trabalhava-se a par do companheiro e na mes-
ma escala de salários. Devia procurar ser, também, um
bom trabalhador, para dar exemplo tanto à burguesia
dona da renda e ociosa, como aos outros trabalhadores
que alguma vez levantariam um mundo diferente sobre
as ruínas do atual. O anarquista não devia votar em co-
mícios eleitorais, mas tentar chegar a consensos nas
decisões que deviam ser tomadas por seus grupos ou
sindicatos.
Devia se negar a testemunhar em julgamento se isso
significava um prejuízo para quem fôra acusado por ra-
zões de Estado (uma resolução da FORA, a central sindi-
cal anarquista Argentina, recomendava a seus filiados
informar os patrões que o único feriado laboral que res-
peitariam seria o 1o de maio, dia dos trabalhadores ine-
xistente no calendário de festas da época, e que nos
casos de feriados de índole estatal ou religiosa reclama-
riam trabalhar). O anarquista devia oferecer hospitali-
dade a companheiros perseguidos. Em alguns casos ex-
tremos, muitos se negavam a jogar cartas ou apostar
dinheiro para não promover a luta de “todos contra to-
dos”. Se possível, seus jornais deviam ser vendidos a
preço de custo (em algumas publicações argentinas do
começo do século XX lia-se na capa: “Preço: de cada um
segundo suas forças”). Eventualmente devia praticar a
desobediência civil. Por fim, devia estar provido e pre-
parado cultural e politicamente para acompanhar na
primeira fila os povos que se rebelavam.
Este decálogo ético promovia um modelo de conduta
que necessariamente exigia firmeza interior. Contri-
buíam para a afirmação de si uma série de práticas
introspectivas, que compreendiam desde a leitura de li-
vros de idéias, romances sociais e histórias de heróis e

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2004

revoltas populares até as primeiras provas de fogo da


luta social com as quais intimava o novo aderente às
idéias, fossem greves, piquetes, contrabando de armas
ou jornais, seguidos pelas inevitáveis temporadas pas-
sadas na prisão, líquido amniótico bastante conhecido
pelos militantes, e ao mesmo tempo viveiro de
anarquistas. Todas as práticas de “cuidado de si” dos
anarquistas estavam direcionadas a facetar uma sub-
jetividade potente (uma “vontade”) frente ao poder do
Estado. Encontramo-nos com o problema inverso àquele
dos estóicos: não se trataria de promover a auto-
contenção para poder governar a outros, mas de conter
em si mesmo uma série de princípios bem afirmados
para não se deixar governar. Quem se governa a si
mesmo e se nega a ser governado era apresentado como
um “homem rebelde”, refratário, mas ao mesmo tempo
ilustrado e racional: um argumentador irredutível.
A educação da vontade se desenvolvia principalmen-
te num nicho político, psíquico e emocional que resul-
tou ser a invenção organizativa mais chamativa de to-
das as promovidas pelo anarquismo: o grupo de afinida-
de, que, até a súbita explosão dos sindicatos organizados
em torno de princípios libertários, por volta de 1900, cons-
tituiu a forma de encontro e de relação habitual entre
anarquistas; e assim permanecem até os dias de hoje.
Cabe encontrar a origem destes grupos em seus ante-
cedentes, o clube revolucionário da época da Revolução
Francesa e as seitas conspirativas em tempos de gover-
nos autocráticos e repressores, mas de forma soterrada
o grupo de afinidade responde especularmente à cres-
cente importância que a amizade como prática social
entre iguais começava a adquirir nas metrópoles
modernas. Como se a amizade se tivesse conformado
num território libertado, um “afora do Estado” onde o tri-
ângulo político revolucionário, livre, igualitário e frater-

168
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

no, tivesse sido vertido em modelo de reciprocidade


intersubjetiva, mesmo no interior de práticas próprias
da sensibilidade burguesa. A característica do grupo de
afinidade anarquista não estava somente em sua hori-
zontalidade recíproca e no comum pertencimento
ideológico de seus integrantes, mas na confiança mú-
tua como cimento de contato de seus membros, e em
sua plasticidade empática, porque os membros se rela-
cionavam, antes de tudo, social e afetivamente. Opera-
va como contrapeso e alternativa à família burguesa e à
ordem laboral, e também se constituía como espaço de
aprendizagem, de saberes ou de ofícios. Às vezes, quem
ingressava num grupo de afinidade mudava seu nome,
escolhia um apelido singular, que não resultava ser tan-
to um cognome ou um “nome de guerra” quanto a prova
nominal da transformação interior conseguida.
As práticas de conversão começavam depois da apro-
ximação, e da primeira maceração, do aspirante a anar-
quista ao grupo de afinidade, e seu grau de aprofun-
damento dependia do contexto, da etapa de desenvolvi-
mento histórico do movimento anarquista e da radica-
lidade ideológica do grupo de pertencimento, mas
também da “livre vontade” do novo integrante. Era co-
mum renunciar à herança pecuniária familiar, aos tí-
tulos de nobreza (tradição que tem início durante a Re-
volução Francesa) e aos costumes “burgueses”. Porém,
estas declinações não têm correspondência com o mo-
delo da “proletarização” da juventude que se tornaria
habitual e obrigatória nos anos sessenta e setenta do
século XX. Tratava-se, muito mais, de purgar-se de uma
“vida falsa”, ou dotada de privilégios e falso brilho que se
tornavam, na nova etapa vital e autoconsciente da pes-
soa, sem sentido. Ocasionalmente, a pessoa abandona-
va seu antigo nome e optava por “rebatizar-se” com um
pseudônimo. Assim, um conhecido anarquista colombi-

169
5
2004

ano passou a se chamar Beófilo Panclasta (amante da


vida, destruidor de tudo), e nomes como Perseguido,
Germinal ou Libertário se tornavam cada vez mais co-
muns. Muitos, também, optavam por um cognome quan-
do publicavam na imprensa anarquista, como forma de
enfatizar que as opiniões, mas também as obras literá-
rias de autores famosos, não pertenciam ao tesouro in-
dividual e sim a toda a humanidade. Em outras pala-
vras, impugnava-se o direito à prosperidade intelectu-
al; direito, ademais, que os anarquistas costumam
ignorar olimpicamente.
A prática do novo batismo conflui com a história da
Revolução Francesa, em cuja primeira etapa os anos
começaram a se contar do zero e os meses adotaram os
nomes dos ciclos naturais. O desejo pelo começo de um
mundo novo era assim antedatado, ou adiantado. Auguste
Blanqui numerava os exemplares de um de seus tantos
jornais, Ni Dieu ni Maitre, seguindo o calendário jacobino,
e na Argentina o jornal La Montaña, fundado por Leopoldo
Lugones, José Ingenieros e Macedônio Fernández, era
datado a partir dos anos transcorridos desde a Comuna
de Paris. Nestes casos, enfatizava-se que o tempo, mesmo
sendo irreversível, era estancável e desviável a favor. Do
mesmo modo, os sindicalistas costumavam repartir entre
seus filiados almanaques e calendários revolucionários
nos quais o santoral e as efemérides estatais eram
substituídos pelos fatos da história do movimento operário
e pelas datas de nascimento de revolucionários ou de
benfeitores da humanidade.
No começo do século XX os anarquistas adquiriram o
hábito, particularmente na Espanha, mas também no
Rio de la Plata, de batizar seus filhos com nomes signi-
ficativos, nomes que os apontariam como brotos prema-
turos de uma nova ordem. Muitas eram as homenagens
históricas (Espártaco, Volterina, Giordano Bruno,

170
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

Prometeu), as afirmações doutrinárias (Acrácio, Liber-


dade, Libertário, Aurora de Revolução, Ideal, Progresso,
Liberata, Liberto), as marcas desonrosas de nascimen-
to (Oprimido, Siberiano), as homenagens internas ao
movimento anarquista (Bakunin, Reclús), as referên-
cias naturais (Amanhecer, Universo, Aurora, Sol Libertá-
rio), e também Eleutério (homem livre em grego), Poema,
Amor, Esperança, Floreal e tantos outros que nutriram
uma onomástica própria. Esta denunciava a condição
atual e impugnava o santoral, ou ainda homenageava
os caídos e anunciava o porvir. Os nomes de muitos
jornais anarquistas argentinos dessa época expunham
uma série de jogos que especulavam com a própria
identidade e com os medos da sociedade burguesa.
Alguns assumiam nomes associados imediatamente à
potência e à afirmação, tais como El Oprimido, El Rebelde,
La Protesta, La Antorcha, Agitadores, El Combate,
Demoliamo, Il Pugnale, Cyclone, La Voz Del Esclavo. Outros
títulos, que também lavravam uma positividade,
adquiriam ressonâncias aurorais ou autodefinições de
índole iluminista, entre eles, El Alba Del Siglo XX, L´Avre-
nire, Ciencia Social, Derecho a la Vida, Expansión
Individual, La Fuerza de la Razón, Libre Examen, La Librera
Parda, La Libre Iniciativa, La Luz, Luz al Soldado, Los
Tiempos Nuevos.
A introdução às idéias anarquistas ficava muitas
vezes por conta de “mestres”, que eram transmissores
da memória social, da história do movimento anarquis-
ta, e das idéias. A maestria não estava necessariamente
vinculada à leitura de livros, mesmo tendo especial va-
lor na tradição anarquista, mas ao conhecimento per-
sonalizado de alguém com experiência na doutrina
Libertária. Entretanto, não se exigia daquele que ofici-
ava como “mestre” ser um “sábio”, mas uma mistura de
pessoa “iniciada” e de evangelizador. Era habitual que

171
5
2004

os experientes dirigissem “leituras comentadas” em


sindicatos e ateneus para círculos de pessoas sem edu-
cação formal alguma ou recém chegados ao anarquismo.
Mas apesar da cinematografia, pelo menos a argentina,
e certo lugar comum sensível do progressismo, ter di-
fundido a figura do “velho anarquista” benevolente e éti-
co, na verdade essa tarefa da maestria podia ser exercida
por pessoas muito jovens, que apenas superavam por
um lustro ou uma década ao novo militante. Era, sem
dúvida, uma relação de adulto a jovem, mas não no sen-
tido que as idades têm hoje. Este tipo de iniciação exis-
tiu até os anos sessenta do século XX, quando as revol-
tas juvenis e o “juvenilismo” como ideologia romperam
esse modelo de correia de transmissão. Desde então, o
ingresso ao anarquismo acontece por contágio, por
ativismo de “trupe”. Depois, o novo militante passava
por provas iniciáticas de toda ordem, tais como a parti-
cipação em greves, boicotes, sabotagens e viagens de
publicitação de idéias em lugares virgens de idéias
libertárias ou onde pouquíssimos anarquistas viviam.
Às vezes, essas peregrinações eram feitas para apoiar
uma greve ou uma luta determinada, e os melhores ora-
dores e organizadores costumavam ser os mais requisi-
tados. Essas jornadas em terras de ninguém os expu-
nham ao acosso policial, mas também à incompreensão
de suas famílias, que encontravam nesse ativismo vis-
cos para a economia e a harmonia do lar. Os exercícios
de oratória, que primeiro aconteciam em encontros de
ateneus ou sindicatos, e depois em atos públicos, funci-
onavam como treinamento para o viajante. Ao contrá-
rio, nada preparava o homem “de idéias” para as habi-
tuais estadias na prisão. Mas todos podiam confiar na
solidariedade que emanaria do outro lado dos muros.
Além disso, aqueles que maltratavam os presos, tortu-
ravam os detidos ou reprimiam as concentrações ope-
rárias, sabiam que podiam ser o alvo da vingança tribal.

172
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

De qualquer forma, em quase todos os casos os “justi-


ceiros” anarquistas atuaram na maior solidão.
Participava-se cotidianamente de experiências, cujo
ciclo costumava ser semanal, que ao mesmo tempo os
uniam socialmente à comunidade de anarquistas e os
aprontavam intelectual e espiritualmente. Uma série
de rituais de fraternização e enaltecimento praticados tam-
bém por outras instituições socialistas, ligava o anar-
quista à sua organização e aos outros companheiros. A
participação ativa em conferências e encontros, fre-
qüentar declamações e quadros filodramáticos (prová-
vel raiz do teatro independente na Argentina), ir a pi-
queniques e lanches de camaradagem, colaborar com
piquetes de greve ou com campanhas de solidariedade
em favor dos presos, participar de marchas e atos
públicos. Em todos estes casos era comum entoar
canções e hinos revolucionários. Cabe destacar,
também, a participação, como platéia, em “reuniões de
controvérsia”. Estas eram torneios de oratória nos quais
dois adversários, um anarquista e o outro filiado a uma
filosofia diferente, disputavam em torno de um tema
acordado, por exemplo, a existência ou inexistência de
Deus, ou a importância das teorias de Darwin. Os
ateneus, bibliotecas populares e publicações não só
permitiam reunir a comunidade anarquista ou expandir
a palavra libertária entre os operários, como também
faziam sentir uma influência entre setores da pequena
burguesia intelectual, conseguindo de vez em quando
capturar peixes gordos para a causa (González Prada no
Peru, o uruguaio Florêncio Sánchez na Argentina).
Neste último caso, faz-se notória a forte crença dos
anarquistas, própria da época, no poder transformador
da palavra pública. O objetivo destes rituais e partici-
pações era inspirar e lapidar sentimentos nobres, e
desenraizar os “males da subjetividade” que dividem os

173
5
2004

seres humanos. As bibliotecas pessoais fechavam o


círculo. Todos os anarquistas se muniam pacientemente
de uma biblioteca “de idéias”, inclusive os analfabetos.
Estava nos livros a salvação pelo conhecimento, e a
importância do autodidatismo entre os anarquistas é
ainda um tema inexplorado. Às vezes, a única bagagem
que os anarquistas carregavam em suas migrações era
sua biblioteca básica. Deve ter existido poucos movi-
mentos políticos menos anti-intelectuais que o libertá-
rio, que apenas tomou cuidado de enfatizar a impor-
tância de vincular o trabalho manual e o intelectual num
único novelo impossível de desenrolar. A imprensa era
a sua “multiplicação dos pães” e sua “máquina infernal”.
Os livros ao mesmo tempo intersomados incluíam a his-
tória das revoluções modernas, os clássicos anarquistas,
as biografias de militantes mortos, as memórias de anar-
quistas conhecidos, os testemunhos de prisão e perse-
guição, os compêndios de ciência “moderna” e as
iniludíveis novelas sociais. De todos estes, as autobio-
grafias de militantes, cujos equivalentes são muitas
vezes o santoral e a apologia ao martírio, constituem
uma fonte de informação fundamental para analisar a
vida ética anarquista. Também, evidentemente, os acor-
dos de reuniões sindicais, o que era publicado em sua
imprensa, em especial se é analisado o detalhe e a
marginália, e as obras doutrinárias em geral. Mas não
deve ser descartada a análise das obras dos heresiólogos
da época e dos contestadores do anarquismo. Alguns deles
foram excelentes exegetas, pela via negativa, desta he-
resia moderna. Resta uma fonte que nem sempre tem
sido de fácil acesso para os historiadores interessados
pelo anarquismo: os arquivos policiais.
No início do século XX começaram a ser difundidos
entre os anarquistas os discursos dirigidos ao cuidado
da mente da criança e do corpo em geral: o discurso da

174
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

escola moderna e o da eugenesia. As escolas raciona-


listas ou “modernas” foram amplamente difundidas na
Espanha, e existiram também algumas experiências
argentinas, de efêmera duração. Propagaram-se como
instituições e doutrinas alternativas ao poder eclesiás-
tico sobre a formação pedagógica da infância e à
circulação de retóricas estatais nos planejamentos
curriculares escolares, e nelas se promovia o conheci-
mento da ciência, a liberdade como ideal, a formação
integral do aluno, e a convivência de saberes manuais
e intelectuais. Nessas escolas eliminavam-se os casti-
gos e admoestações, e também as hierarquias pré-
estabelecidas entre professores e alunos. A suposição
antropológica que as orientava apresentava a criança
como livre-pensador por natureza, e as idéia religiosas,
o patronato estatal e o patriotismo como desvirtuadores
da mente infantil. Educar crianças para um mundo di-
ferente, que se esperava para um futuro não muito dis-
tante, supunha também construir esse mundo por meio
de novas gerações salvaguardadas das garras da velha
sociedade. Um típico problema lógico que era proposto
aos alunos para que o resolvessem, apresentava-se da
seguinte maneira: “Se um trabalhador fabrica tal produto
em oito horas, e recebe por isso vinte pesos, mas ao
mesmo tempo é vendido pela fábrica por cinqüenta pesos,
quanto dinheiro roubou o patrão do operário?”.
Cabe destacar que, mesmo de forma incipiente, os
anarquistas também propuseram planos de cidades
ideais para a vida social, que não devem ser confundi-
dos com a tradição das utopias perfeitas, mas com o aper-
feiçoamento do existir operário. Por sua vez, o discurso
eugenésico, sem estar por completo alheio às preocu-
pações sanitaristas e higienistas da época, apresenta-
va-se como uma borda cultural apenas aceitável para a
mentalidade burguesa. No anarquismo, o discurso da

175
5
2004

eugenia contemplou diversas preocupações: a difusão


do vegetarianismo, do nudismo, do antitabagismo, da
crítica ao consumo de álcool (um livro difundido em por-
tuguês intitulava-se Alcoolismo ou Revolução), da procri-
ação responsável ou “consciente” (de raiz neomalthu-
siana) que predicava a necessidade de restringir a
natalidade para contornar a miséria operária, a
propaganda do uso da camisinha em bairros proletários,
a difusão de outros métodos anticoncepcionais na
imprensa anarco-eugenista, o cuidado da saúde operá-
ria em geral. Tudo isto se cruzava com os discursos sobre
o amor livre, a importância das afinidades eletivas, e a
vontade livre. Em maio de 1937, Federica Montseny
Ministra anarquista da Saúde durante a Revolução Es-
panhola, autorizou os hospitais públicos a atenderem
mulheres que quisessem interromper a gravidez. Foi
uma medida histórica que transcendia a preocupação
governamental pela prática do aborto clandestino, e que
se enquadra na tentativa anarquista mais geral de sub-
versão dos costumes, e que, ao mesmo tempo, permitia
tornar público um saber e um discurso radical sobre a
sexualidade. A eugenesia se cruza neste ponto com a
crítica ao casamento burguês “hipócrita” e com a
postulação ao direito do próprio corpo. O discurso anar-
quista sobre a sexualidade é complexo, porque nele são
intersectadas uma analítica sexual de índole científica,
uma preocupação social de raiz médico-higienista, e
ideais racionais nutridos pelo romantismo, que não ex-
cluem uma dose de voluptuosa erotização discursiva,
na qual despontaram os chamados “armandistas”, se-
guidores das doutrinas individualistas de Émile Armand.
Os armandistas ou os leitores da brasileira Maria
Lacerda de Moura fizeram a propaganda do direito ao
prazer como direito “natural” dos seres humanos. O
discurso eugenésico e a defesa da educação integral e
racionalista tinham um objetivo que superava a

176
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

preocupação pela vida saudável e o concernimento pela


mente infantil, pois o ideal que os guiava era a crítica à
“vida falsa”, à vida alienada própria da burguesia. De
modo que eugenesia e racionalismo buscavam inverter
a dose de alienação vital introjetada pela sociedade
“falsa”, assim como promover práticas existenciais mais
sinceras e saudáveis. Quantas dessas práticas real-
mente aconteciam? Algumas, com muita freqüência;
outras, raramente. Algumas eram reservas de caça de
experimentadores da existência, outras se amparavam
em experiências comunitárias, muitas afetavam
unicamente os anarco-individualistas ou setores da
boemia. A maior parte destes costumes e modelos de
conduta não eram obrigatórios nem de cumprimento
forçoso. O anarquismo nunca foi uma seita ortodoxa nem
contou com um “livro negro” no qual teria sido possível
consultar uma visão. A aceitação das práticas era livre,
e estas se difundiam como correntes de opinião, conta-
giando ou entusiasmando, e não como um credo. Ao longo
de uma vida, os filiados às idéias anarquistas podiam
passar por várias etapas e graus de aproximação ao
vegetarianismo e ao amor livre. À medida que o anar-
quismo ganhou mais e mais membros entre o proleta-
riado fabril, a possibilidade de experimentação nas
bordas da vida burguesa diminuiu, mas em caso algum
deixou de circular na imprensa anarquista e nas dis-
sertações de especialistas apresentadas em sindicatos,
ateneus e bibliotecas. Diria-se que a grandeza desta
panóplia existencial pode ser medida pelo grau de re-
pulsa da época, como também pela menor ênfase que
nestes assuntos colocavam outras doutrinas políticas.
Resta ainda um elemento das práticas históricas
anarquistas que pode devir da analogia da figura do
parresiastes antigo. Tanto em sua atuação pública, o fato
de transformar em conversações certos temas escabro-

177
5
2004

sos ou tabus, quanto na propaganda escrita de suas idéi-


as, os anarquistas nunca se refugiaram em retóricas
da conveniência ou em estratégias “maquiavelistas” ou
conjunturalistas, mesmo quando as conseqüências de
tais ações ou opiniões fossem custosas, ou até mesmo
letais para sua imediata sobrevivência política. Em
suma, nunca mentiram sobre quem eram ou o que que-
riam. As manipulações, hipocrisias, disfarces e “opera-
ções” às quais com tanto fervor recorriam liberais e co-
munistas durante a Guerra Fria, eram para eles com-
pletamente alheias. A sinceridade política era uma de
suas “obrigações identitárias”, condição derivada de sua
intransigência com relação às idéias (o que não os tor-
nava necessariamente principistas) e com o fato da
racionalidade de sua ação sustentar-se numa relação
firme entre conduta e crença enunciada. Isto explica
porque costumavam identificar-se a si próprios, sem a
menor dúvida, como “anarquistas” quando eram leva-
dos a tribunais. Também permite compreender o cen-
tro de gravidade de seu drama político: a absoluta res-
ponsabilidade com as próprias convicções reduzia sua
“eficácia” (se definida de um ponto de vista “técnico” e
de acordo com os valores dominantes nos séculos XIX e
XX) e audibilidade, ainda que lhes concedesse o raro
prestígio de dispor de um “excesso de razão”. Dizer a
verdade tem sempre um alto preço, mas no caso dos
anarquistas a verdade era entendida como imprescin-
dível: combater a arbitrariedade dos governos, denunci-
ar os maus-tratos de patrões e “milicos”, registrar e tes-
temunhar a perseguição a sindicatos e protestos popu-
lares. Estas “verdades excessivas” acertavam golpes
proporcionais. Os assassinatos políticos de organizadores
anarquistas de sindicatos foram freqüentes na Espanha
de 1920 e, em geral, em toda América Latina. Eram de-
portados da Argentina (Lei de Residência de 1902), ex-
pulsos do Brasil como “indesejáveis”, ou recebiam lon-

178
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

gas condenações cumpridas em penitenciárias


espectrais e inóspitas (na Terra do Fogo, na floresta
amazônica, perto das Guianas), confinamentos na
Sibéria ou em ilhotes italianos, ou nas dependências
coloniais espanholas e portuguesas na África, ou na
Papua-Nova Guiné francesa. Some-se a isso as cíclicas
proibições de atividades e a destruição de gráficas, ar-
quivos e instalações de jornais. Os cárceres convertiam-
se, por certo, em malas hermeticamente fechadas, mas
com duplo fundo: transformavam-se em espaços de
conscientização dos outros presos “sociais”. E as proibi-
ções não eram mais do que moléstias passageiras, os-
sos do ofício. Não só porque eles próprios se davam o
direito à publicação de seus “zamizdats”, mas porque no
terreno da clandestinidade os anarquistas eram
baqueanos. A sinceridade política estendia-se a outros
âmbitos da atividade, particularmente com o notável
cuidado relacionado a questões de dinheiro. Os registros
contábeis de sindicatos anarquistas eram perfeitos. Não
poucos historiadores da Guerra Civil Espanhola puderam
reconstruir movimentos de dinheiro a partir dos
registros da Confederação Nacional do Trabalho. A
condição de ilegalidade não poupava os militantes desta
“honestidade financeira”, incluso nos “casos limite”,
muito debatidos entre eles, dos “expropriadores” e dos
“falsificadores de dinheiro”. O “arrecadado” não podia ser
disponibilizado para uso pessoal, pertencia ao povo ou
eram fundos a ser doados para atividades culturais ou
organizativas. Eram essas as regras de sua jurispru-
dência, que se estendiam aos problemas ideológicos ou
relacionais entre companheiros, para os quais se
habilitavam, caso necessário, “tribunais de honra”.
Anarco-sindicalistas, expropriadores, guerrilheiros anti-
franquistas, anarco-individualistas, combatentes junto
aos que resistiam, no campo ou na cidade, regicidas,
“mulheres livres” na Espanha, agitadores, “wooblies”,

179
5
2004

foristas, “ceneteros”, organizadores de greves contra a


United Fruit Company, e dezenas de outras mutações,
todos eles tentaram, na medida do possível, viver e morrer
em sua lei.
Sua “lei”: em que medida os anarquistas não experi-
mentaram uma tensão espiritual entre malditismo e
santidade? Entre o esforço por “melhorar” a alma e a
insondável turbulência espiritual que se verte em cur-
va violenta? Provavelmente. Não eram santos. Suas
ações foram muitas vezes violentas e insensatas. Ou-
tras vezes sacrificadas e dignificantes. Foram seres
extremos. Assim como a história do capitalismo moder-
no, também o anarquismo é incompreensível sem seu
antípoda, a hierarquia e a capacidade de que esse mol-
de institucional dispõe pra causar dano político, econô-
mico e subjetivo. O anarquista e o monarca mediram-
se sempre entre si, como camadas geológicas que não
se confundem, ainda que se reconheçam e se estudem
mutuamente, como cervídeos que eventualmente se
enfrentam em campos de luta específicos. Mas essa
mesma tensão tanto nutre a tendência a isolar-se
centripetamente nas próprias idéias e práticas cultu-
rais, como, também, provoca complexas relações osmó-
ticas entre a “alma anarquista” e a “alma burguesa”,
vínculos que não só devem ser analisados a partir da
relação dos contendentes, mas, também, por meio dos
processos metamorfóticos que sua mútua pugna produz
na fronteira em disputa.
Durante o tempo em que o anarquismo foi um movi-
mento de homens e idéias poderoso, isto é, entanto e
enquanto desdobrou uma influência nítida sobre a ação
sindical, sobre as sensibilidades populares de zonas es-
pecíficas do Ocidente e sobre setores da opinião pública
“ilustrada”, operou como mobilizador político e antropo-
lógico de uma desordem fértil e como instigador das for-

180
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

ças da tradição e o estatismo. Colaborava, junto a ou-


tras idéias e setores políticos, na desorganização da
herança política e espiritual do “ancien regime”. Ao
mesmo tempo, o anarquismo difundiu um modelo de
personalidade livre, um ideal exigente cuja conquista
histórica foi exercer uma pressão, uma “curvatura”,
sobre as crenças e instituições modernas, mas também
e mais sorrateiramente sobre as apetências de maior
autonomia individual e de uma mais ampla liberdade
social que já germinava na imaginação social do século
XX. Em suma, sua insistência em que o Estado obstacu-
lizava tanto a livre associação como as capacidades
criativas dos seres humanos o transformou numa
espécie de símbolo antípoda perfeito para a imaginação
hierárquica. Mas sua afortunada circulação no mundo
das idéias e a sorte diferente que lhe coube as suas
tentativas sediciosas, não se explicam unicamente pelo
próprio e radical ângulo político que ocupou na moder-
nidade. O anarquismo tornou-se também o emergente
peculiar de um novo tipo de relação social que enormes
setores da população ocidental já ansiavam e prati-
cavam, o gosto pela afinidade eletiva; modo de encontro e
de intercâmbio do qual a construção da personalidade
anarquista foi uma de suas mais conscientes e
persistentes propostas de realização histórica. Assim,
por um lado, o mistério da aparição pública do movimento
anarquista no século XIX é diretamente proporcional ao
mistério da existência e persistência da hierarquia
depois das revoluções políticas modernas; continuidade
decepcionante que fez depositar nas idéias anarquistas
a chave de compreensão, ou de deciframento, do segre-
do do poder hierárquico, e em suas práticas políticas,
um ideal de dissolução desse mesmo poder. Mas por outro
lado, como minoria demográfica sustentada em práti-
cas éticas (irredutibilidade da consciência, inegociabi-
lidade das convicções, construção de instituições contra-

181
5
2004

potentes, desdobramento de grupos de afinidade, rituais


de autoformação específicos), as vidas anarquistas em
si mesmas, que sempre penderam entre a cor tenebrosa
e a aura lírica, entre o jacobinismo intransigente e o
desejo de pureza, constituíram um modelo moral que
atraiu intermitentemente as energias refratárias de
sucessivas levas de jovens. Compreender a força desta
atração não é simples, e é de pouca utilidade a explicação
psicologista, a saber, que os jovens precisam, durante
um tempo, de uma estadia no inferno, ou então manter
intacto seu senso da irrealidade até o momento de
“assentar cabeça”. Sem dúvida, o adjetivo “revolucio-
nário” cabe ao anarquismo como uma luva, mas entre
as facetas que admitia esta idéia desponta a de
“subversão existencial”. O anarquismo foi também uma
resposta subjetiva radical que mobilizou o mal-estar
social de sua época. Ao longo do século XIX, a fome e a
autocracia foram os “irritadores” das inquietudes sociais
que possibilitaram o desdobramento de movimentos
políticos e sindicais de oposição. A fome se correspondeu
com a demanda de dignidade laboral e humana, e o
socialismo, o sindicalismo e o populismo foram seus
porta-vozes. A autocracia se correspondeu com o reclamo
por maiores amplitudes civis, e o liberalismo, o
socialismo e o feminismo se desdobraram em respostas
políticas bem conhecidas. O anarquismo participou, como
peça solta, deste leque. Porém, a questão da “vida falsa”,
própria das tensões vitais da época burguesa, foi,
também, um irritador difuso do mal-estar social. A
preocupação pela falta de sinceridade relacional, o tédio,
a “alienação vital” e a autocontenção emocional são
temas que percorreram a modernidade, desde o
romantismo até as rebeliões existencialistas dos anos
sessenta do século XX. A insistência do anarquismo na
questão da vida falsa e suas próprias vidas facetadas
como exemplos morais, talvez expliquem por que a

182
verve
Átomos soltos: a construção da personalidade entre...

sensibilidade refratária acoplou-se mais ductilmente ao


anarquismo, ou às suas variantes laterais ou paralelas,
do que a outros movimentos de idéias; e também é a
causa de sua estranha sobrevivência atual, uma vez
que seus outrora poderosos sindicatos e suas partici-
pações revolucionárias passaram a ser pouco menos que
apartes históricos para o mundo acadêmico que ainda
se interessa por este tipo de heresias políticas. Essa
sobrevivência não equivale a um novo germinar do mato
no jardim bem ordenado, mas à pereba somática num
corpo que foi uma e outra vez persuadido a dobrar a
cervical ou a descarregar seus mal-estares em espaços
previamente delimitados para isso. Entanto e enquanto
perdure o mal-estar, o anarquismo poderá ressurgir
como retorno do que já fôra mal reprimido. E ainda que o
demônio vermelho e o judeu errante tenham sido
emblemas gravados a fogo na história anarquista,
também o foram a Ave Fênix e o Lázaro redivivo.

Nota
1
Tradução do espanhol por Natalia Montebello.

183
5
2004

RESUMO

A vida dos anarquistas é o ponto de vista que desenha a ética


libertária, permitindo uma análise que mostra a radicalidade do
anarquismo por fora de delimitações teóricas ou históricas
tradicionais. Mais ainda, esta radicalidade do pensamento
anarquista aparece justamente pela indissociabilidade de pensar
e existir que o percorre e que se apresenta cuidadosamente, neste
artigo, no anarquismo do começo do século XX.

Palavras-chave: vidas anarquistas, práticas, ética libertária.

ABSTRACT

The life of anarchists is the point of view that draws the libertarian
ethics, allowing analyses that show the radicalness of anarchism
beyond common theoretical or historical boundaries. Furthermore,
this radicalness of the anarchist thought lies on the impossibility
of dissociation of thinking and existing contained in article and in
the anarchism of the 20th Century.

Keywords: anarchist lives, practices, libertarian ethics.

Recebido para publicação em 20 de outubro de 2003.

184
verve

O amor não é tanto, é quanto.


Amar é enquanto, portanto.

Ponto.

Roberto Freire

185
5
2004

crueldade do devir e corpo-drogado

daniel lins *

A crueldade do devir é puro devir, inocência do devir —


inocência que é pontuada por uma força da calma e por
uma constelação de afetos viris — virilidade para além
do gênero, para além do bem e do mal, pois a distinção
entre o bem e o mal é a obra da fraqueza. O devir na sua
beleza extrema é Vontade de Potência positiva ancorada
num movimento para o infinito, para o excesso, excesso
que é crueldade, isto é, vida!
Deve-se, contudo, perceber a beleza e a inocência cruel
do devir conforme a economia do princípio do belo; belo
como convulsão, ruína e martírio, mais próximo de
Nietzsche ou de Rilke (“o belo nada mais é que o primei-
ro grau do terrível”) que da sublimidade moral edificante
de Kant. Eis porque o belo é sublime enquanto traço volátil
da morte nua, o que subtende uma certa retórica do
desmaio cara a Baudelaire e a Artaud. Na sua natureza,
o devir, para conjurar seu poder, remete sua
representação a um outro código mais próximo do uni-

* Filósofo, sociólogo e psicanalista. Professor adjunto do Programa de Ciências


Sociais e Filosofia da Universidade Federal do Ceará, Coordenador do Labora-
tório de Estudos e Pesquisas da Subjetividade (LEPS) da UFC.

verve, 5: 186-207, 2004

186
verve
Crueldade do devir e corpo-drogado

verso do molar (“eu, como mulher, reivindico o direito à


diferença”…), mais perceptível e menos radical. Entre-
tanto, o molar no campo do devir é apenas uma passa-
gem, mesmo porque, na sua natureza, o devir dissolve o
perceptível, dilui propriedades e haveres.
Eis porque o movimento do devir, descontínuo e radical,
brutal e violento, é um segredo e uma desordem corporal.
Seu giro desafia soberanamente todo código estruturado,
inclusive o do próprio devir quando, encapotado numa
representação, isto é, num simulacro do devir, torna-se
ilusão molar. O molar, como passagem ou intensidade
transitória, é uma das vias, por exemplo, escolhida pelo
corpo drogado. Ao se instalar no molar ele sucumbe à sua
própria “linha” envenenada. Daí porque no momento em
que o devir-drogado “supera” ou esvazia o molar, que é
sempre passagem, ele descobre uma espécie de “querer-
artista”, embora simbólico, mas que o conforta na sua
busca de criação, de liberdade contra um universo que o
sufoca.
Contudo, o véu de Maia, a grande ilusão, é acreditar
que o corpo-drogado vai poder maquiar o processo de
subjetivação que o faz oscilar entre o molar e o molecular.
No caso do corpo-drogado, o molar aparece como a depen-
dência “provisória”, alimentada para não morrer de dor
ou de ansiedade, no pior dos casos, e no melhor, para não
se deixar engolfar pela felicidade avassaladora do flash.
Tanto em um caso como em outro, trata-se de uma
economia da morte, da linha de morte: morte seca, prato
frio — more, more, more —, ou morte orgástica. Isto é, or-
gasmo-místico, gozo não-humano, úmido, meio quente,
meio frio, umidade-plascenta, às vezes incrementada pela
violência da calma, pelas lembranças desidratadas, pela
nostalgia de um corpo que já não é mais…

187
5
2004

A economia do corpo-drogado parece ser ainda a de


uma felicidade das marcas, do olfato: uma felicidade-
fralda, amoníaca. Uma felicidade, pois, ressentida, sem
devir, sem espaço para o experimento do que Nietzsche
chama de “a inocência do devir”. Ora, a inocência do devir,
ou Unschuld (que significa em alemão não dívida, não-
culpa), retira do conceito de devir toda “chance”
identitária, todo conforto de uma filosofia do ser e, por-
tanto, toda possibilidade de juízo moral.
Como pôr em causa um ser ou uma identidade, visto
que o devir não conhece nem ser nem identidade? Como
fazer o não-existente pagar uma dívida? Não, não existe
nem culpado nem falso culpado, o que equivale a afirmar
que não existe também justo… Ao recusar o não-pecador,
ao se colocar como adversário da moral metafísica,
Nietzsche afirma a inocência do devir.1
O corpo-drogado padeceria, então, de um equívoco?
Talvez. Ao se anunciar como devir-drogado, o sujeito
assim auto-nomeado, acredita-se “filiado” às constelações
produzidas pelos campos moleculares. Átomo com o átomo,
partículas com partículas, ele se pensa molecular:
múltiplo, artista, inventor de sua própria vida. Ao negar o
aspecto primordial de sua “viagem”, isto é, a toxiquemia
que modifica o funcionamento psíquico do sujeito, ele se
deixa habitar por um processo de denegação que beira a
psicose: se é exato que a droga envenena, e se é verdade
que eu sou um toxicômano, é que a verdade não é verdadeira!
Em conseqüência da violência, da agravação da
impulsividade, das modificações cinestésicas que a dro-
ga provoca, dos remanejamentos que ela imprime à rela-
ção com o objeto, e levando em consideração a euforia
maníaca — no sentido kleiniano — provocada pela hero-
ína ou pela cocaína, ou ainda a angústia de
despersonalização inserida no uso de anfetaminas, a

188
verve
Crueldade do devir e corpo-drogado

repetição que modela, a droga modifica o modo de funcio-


namento, mesmo se ela não altera a estrutura propria-
mente dita.
A ilusão ao molecular do corpo drogado esbarra nas
linhas de contradição de sua própria demanda: com a
cocaína ele busca uma vitalidade interior, com a heroína
ele almeja a elação, com o LSD a alucinação e com o
éter, ele procura desesperadamente o inconsciente.
Habitado, pois, por linhas de fuga e viagens translúcidas
incorporadas ao inconsciente e à imanência, o que era
“experimento” cristaliza-se numa repetição enfadonha,
numa mistura, confusão dos sentimentos e das
virtualidades que parecem acoplar-se à economia
molecular, mas se exilam no campo da paixão ordinária
organizada segundo uma linha de morte que anuncia nas
entrelinhas de seu corpo marcado o congelamento da
linha-artística, do querer-artista, axioma fundamental da
economia molecular: Vontade de Poder que diz “sim” à
vida.
Um olhar metasemiótico, embora sucinto, à
nomeclatura usada pelos toxicômanos em relação à se-
ringa, mostra como a droga não é o atributo nem o substi-
tuto de nada nem de ninguém. A droga é “a” droga. Ela se
define unicamente na sua própria ação. Todos os inú-
meros nomes que os habitués dão à droga, convenções,
gírias variadas com objetivos práticos para os iniciados.
Eles nunca a designam substancialmente, mas evocam
apenas o inefável de seu efeito, sob o signo dos magmas
imaginários e simbólicos com dimensões polissêmicas
não interpretáveis a olho nu.
O conteúdo anal dos raros fantasmas que os drogados
se permitem torna-se quase sempre evidente a partir de
suas próprias expressões para dizer o indizível. Europeus
e americanos usam a palavra “merda” (merde, shit) para

189
5
2004

dizer haxixe; cocaína é chamada de “a branca”, “a neve”.


No Brasil, a maconha é conhecida, na gíria, sob a
apelação de “preto” ou de “fumo”. Fumo, que tem uma
conotação fálica, segundo o uso antigo do vocábulo, é,
na gíria, sinônimo de pênis. Fumo tem outros signifi-
cados próximos da morte, segundo o Dicionário Aurélio.
“Fumo: Exalação de cheiro desagradável que sobe de
corpos em decomposição; faixa de crepe para luto. Ma-
conha. Fumaças; aquilo que se esvaece”. A cocaína é
chamada, entre outras gírias, de “pó” ou de “branco”.
Contudo, mesmo se a evidência da associação
pulsional permite fazer uso da noção de fantasmas
coprófagos, fantasma que é expresso e algumas vezes
age em certos esquizofrênicos como modo de expres-
são de um desejo tendendo a uma confirmação
narcísica, prefiro guardar a prudência. A interpreta-
ção, em relação aos toxicômanos, vive hoje um grande
impasse: como interpretar o drogado sem “matar” o pró-
prio sujeito da droga?
Por outro lado, é importante levar em consideração
a relação que alguns toxicômanos têm com a seringa,
visto que ela se inscreve como o negativo de diversas
pulsões: toda zona erógena é um buraco no narcisismo.
Os sujeitos que têm relações particulares com a se-
ringa usam mecanismos para evitar a angústia que os
levam a fugir de todo orifício pulsional na procura da
satisfação. Tudo indica que eles preferem fazer bura-
cos artificiais no tecido cutâneo para fugir do orifício
natural que é o lugar do desejo. A este respeito, a gíria
usada pelos iniciados para nomear o veículo de prazer,
o “mensageiro” mecânico do objeto droga, a seringa é,
entre outras: o pico. A expressão “Fulano toma pico” é
usada correntemente. Pico que significa ponta aguda,
bico, espinho, picada.

190
verve
Crueldade do devir e corpo-drogado

Os símbolos, negados ou destruídos, que contém, ou


que a droga adquire, sob um modo inutilizável para a vida
psíquica, e de certo modo liquefeita, aparece aos olhos do
observador atento, mediante os traços de comportamen-
tos particularmente obscuros para os drogados (e
dificilmente interpretáveis) que são repetição e ritual,
celebração inconsciente de um objeto defunto. O
observador exterior dificilmente se engana sobre a tris-
teza-verdade da droga: o melhor gozo é o gozo da falta.
A denominação de corpo-drogado faz referência a uma
constelação de fenômenos pulsionais, econômicos,
tópicos, centrados na substância droga, que atestam o
lugar considerável que ele se fabricou no aparelho psí-
quico. É como se o sintoma droga se erigisse em entidade,
e o significante — que até então ele era — só se justifi-
que a partir de si mesmo. O corpo-drogado, sob o signo da
“escrita do desastre”, parece pretender esmagar os afetos
e varrer os investimentos. Daí a dificuldade, não rara,
para o psicanalista de não mais perceber contra o quê o
corpo-drogado edificou a defesa da toxicomania. Não há
mais sintoma. Não há mais fobias nem obsessões, nem
depressão... pois eles só emergerão após o fim da
intoxicação, e às vezes com abundância e intensidade.
O corpo-drogado é um ser apaixonado que mantém com
seu objeto-droga uma relação intensa de amor radical: in
finem dilexit! Amou até o fim. Amar com um amor
passional o objeto-droga. Como a paixão, a “toxicomania”
é um ato, não uma linguagem; uma produção de signos e
não uma gramática descodificada. O corpo-drogado é um
corpo tatuado, produção constante de novas subjetividades:
marcas, linhas, listas, desenhos, tapeçarias e dobras. Ele
é tanto território habitado pelos signos como corpo-escrita:
escrita incompreensível, ilegível. Ele é signo e não
representação.

191
5
2004

Ora, ao transformar o objeto de prazer em objeto de


necessidade, o corpo-drogado multiplica as passagens ao
ato e essas não conseguem mais defender o Eu contra a
depressão. A dúvida se instalou: o verme está no fruto da
paixão. O toxicômano faz assim do molar o território
domesticado de repetição, de correspondência entre a
personalidade e a natureza química da droga escolhida.
O que era “experimento” logo se transforma em prisão
identitária, eu-drogado exilado na falta: falta da falta, lugar
de alucinação e angústia. A escolha dá, então, lugar à
elisão; o rito à anarquia, a elação à depressão. O molecular
ao molar: o traficante torna-se o ator primordial à
realização de sua “normalidade”, de uma “vida diferente”.
A relação mestre e escravo emerge então: a paixão do
objeto encontra no traficante seu porto seguro, sua
possibilidade de evacuar o êxtase, de paralisar o delírio e
a alucinação.
Como articular no presente contexto as linhas de fuga,
linhas de vida, com a dependência do ser drogado inseri-
do no campo da regressão e da metáfora do “narcisismo
do sono”: dorme o corpo, dorme a dor, dorme o sexo, dor-
me a vida. É o ópio que tudo anula para ressuscitar horas
depois o envelope-corpo carregado pelo peso dos órgãos
famintos de comida e de ação paralisadora, mas que é
atividade, apesar de tudo.
Ora, dizem Deleuze e Guattari, “(…) se é verdade, que
a droga remete a essa causalidade perceptiva molecular,
imanente, resta toda a questão de saber se ela consegue
efetivamente traçar o plano que condiciona seu exercício.
Ora, a linha causal da droga, sua linha de fuga, não para
de ser segmentarizada na forma, a mais dura possível,
da dependência, do dopar-se, da dose e do traficante”2.
O devir-drogado é ainda o sujeito da imitação que
emerge sob a forma de suspensão do tempo, de carne

192
verve
Crueldade do devir e corpo-drogado

flácida ou vibrátil no campo da representação: “Eu sou


um pássaro”, dizia Luc, perdido entre o azul do céu e as
ondas de Colva Beach, no sul da Índia! “Eu sou Jesus”,
gritava Mathieu à medida que, para espanto de todos,
avançando mar a dentro, deixava-se morrer nas águas
cálidas de Arjuna! Mas, tanto Luc como Mathieu sempre
se posicionaram como “iniciados”. Ópio e ácido, morfina
e ganja — a maconha indiana — eram sempre descritos
pelos dois companheiros de viagem como “um veículo de
experimentação iniciática”.
Em outras palavras, ambos procuravam um devir lá
onde teriam que produzir, como artesões, devires: devir-
pássaro! Devir-Maria Callas! Luc e sua belíssima voz:
ritornelo cantarolado quando a noite caía, domesticando
assim seu medo-criança, seu terror-pânico. Goa sem a
luz da lua é puro breu. Mathieu e suas tatuagens: um
“Buda cantor” inaudível, que só ele podia ouvir. Entre-
tanto, o que ele ouvia não era um “Buda cantor”, mas a
molécula sonora:
“Se a experimentação de droga marcou todo mundo,
até os não drogados, é por ter mudado as coordenadas
perceptivas do espaço-tempo, fazendo-nos entrar num
universo de micropercepções onde os devires moleculares
vêm substituir os devires animais (...). Todas as viagens
ditas iniciáticas comportam esses limiares e essas portas
onde há um devir do próprio devir, e onde muda-se de
devir, segundo as ‘horas’ do mundo, os círculos de um
inferno ou as etapas de uma viagem que fazem variar as
escalas, as formas e os gritos”3.
Com a droga, estamos no molar, longe do devir que
nunca é mimetismo, mas produção de vida num corpo
que não se deixa “morrer” à transfiguração vazia de uma
visão sem rosto, à percepção sem percepção, à vulgar
imitação de uma impressão ainda dominada pelo excesso

193
5
2004

de organismo: “Mesmo que em sua forma flexível ela


possa mobilizar gradientes e limiares de percepção de
modo a determinar devires-animais, devires-
moleculares, tudo se faz ainda numa relatividade de li-
miares que se contenta em imitar um plano de consis-
tência em vez de traçá-lo num limiar absoluto. Para que
serve perceber tão depressa quanto um pássaro rápido,
se a velocidade e o movimento continuam a fugir
alhures?”4.
O devir, ao contrário da imitação, produz um plano de
consistência, numa calma que convém ao próprio tempo
do devir. Não se trata de esperar para esperar menos,
mas de uma prudência não moral necessária às instala-
ções de linhas intercessoras, de partículas e galáxias,
loucas talvez, mas que não emergem na confusão da
pressa, no empurra-empurra de uma vontade que mata
a própria vontade.
Se é verdade que o devir-drogado é um devir molar
que aspira ao molecular, à passagem, à não-fixação, ao
experimento, ao não casamento químico ou gestual, não
é menos verdade que “as micropercepções moleculares
são recobertas de antemão, conforme a droga considera-
da, por alucinações, delírios, falsas percepções, fantas-
mas, surtos paranóicos, restaurando a cada instante
formas e sujeitos, como fantasmas ou duplos que não
parariam de obstruir a construção do plano: o plano de
consistência não só corre o risco de ser traído ou desvia-
do sob a influência de outras causalidades que intervêm
num tal agenciamento, mas o próprio plano engendra
seus próprios perigos de acordo com os quais ele se desfaz
ao longo da construção”5.
Eis, pois, o paradoxo do eu-drogado: à falta radical de
desejo para gerar seu devir, sob o signo de um processo
de desconstrução marcado pela vitalidade que poderá

194
verve
Crueldade do devir e corpo-drogado

curto-circuitar o gesto e a repetição, ele integra o uni-


verso “primário” do bebê, instalando-se, assim, na degus-
tação infinita: a droga tornando-se o grande peito, a teta,
o líquido sem o qual ele nem respira nem resignifica.
A menos que em alguns casos, quando a espera tor-
na-se eternidade, e toda sombra humana lembra o trafi-
cante que encarna a presença do objeto-droga, o toxicô-
mano não só rói as unhas até o sangramento da carne,
mas imita o soluço da criança, o espasmo do soluço
presente em algumas crianças em crise de toxicomania
sem tóxico... De fato, tanto na criança como no toxicôma-
no, o espasmo do soluço corresponde a uma verdadeira
manipulação química via blocagem da respiração
destinada a chegar a um estado de inconsciência. Assim
obtida, a inconsciência parece ser um substituto
orgástico, apesar do perigo vital que essa procura impli-
ca.6
Oscilando entre o tempo do corpo-drogado e o ritual
reparador, ele não é mais “o senhor das velocidades”. Ele
troca a invenção pela instalação. Ao invés da invenção
artística, cuja função primordial é a de criar problemas,
ele abraça a invenção-técnica marcada pela procura
obsessiva de soluções gestual, virtual, química: more,
more, more!
Preso no tempo ritualizado, sob o impacto de sua de-
pendência visceral, ele faz o elogio do organismo em
detrimento do corpo. Ora, não sentir os órgãos — como
acontece com indivíduos sob o efeito de algumas drogas
— não significa não ter organismo, mas ofuscá-lo,
anestesiá-lo, escapando, assim, ao trabalho do grande
artesão do corpo.7
É preciso compreender que à sua maneira, e embora
em um nível arcaico ou pré-verbal, o corpo-drogado fala.
Mas sua gramática é escrita na sua própria pele. Aqui,

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2004

evidentemente, o conceito de introjeção encontra sua


importância e aponta mecanismos de introjeção e de
incorporação utilizados por eles num território onde a
palavra simbólica é substituída pela gramática das le-
sões orgânicas, pelas tatuagens, nova pele, tecido e per-
gaminho, ou pelo tremor, no caso do alcoólico cuja palavra
é líquida.
Com efeito, o corpo do toxicômano transformando em
cartaz se apresenta ao psicanalista como um dos primei-
ros elementos semiológicos onde signos são exibidos,
inscritos. Pele-cartaz, proclamando os resultados de sua
decrepitude — traços, marcas de picadas, feridas,
desidratação —, pela sua vontade de ser posto para fora
da sociedade, excluído, preso, punido.
A primeira função da pele é a de ser um saco que retém
no interior o bom e o pleno: o leite da amamen-
tação, os cuidados, o banho de palavras são aí acumulados.
É o corpo do toxicômano que fala. Corpo-buracos, cavernas
tuberculosas, cáries dentárias, nariz perfurado, é no/em
torno desse buraco, nesta “patologia do buraco” que vai
se organizar a relação. Como não pensar em Groddeck?
“No momento do nascimento a criança aprende em todo
caso a conhecer... o que é um buraco”8.
Os começos da introjecção aconteceram graças às
experiências do vazio da boca, não fechada, duplicada por
uma presença materna. Esse buraco vazio, não fechado,
esta sensação de vazio é primeiramente experimentada
como gritos e choros, preenchimento diferido, vazio
perseguidor, não trazendo a sensação conhecida do bem-
estar habitual, devido à repleção. A seguir, e segundo o
modelo proposto por Anzieu9 esse vazio vai ser vivido como
uma ocasião de apelo, meio de fazer aparecer a
linguagem. A seguir ainda como auto-preenchimento
fonador, e enfim como substituição progressiva parcial

196
verve
Crueldade do devir e corpo-drogado

das satisfações da boca, plena do objeto materno, por


aquelas da boca vazia do mesmo objeto, mas preenchida
com palavras em direção ao sujeito.
A passagem da boca plena de sentido para a boca ple-
na de palavras acontece por meio de experiências da
boca vazia. Peyron, por sua vez, observa que essa passa-
gem só pode acontecer “com a assistência constante de
uma mãe falando a seu filho, de seu filho; essa cons-
tância é a garantia necessária às palavras. Desde que
essa garantia é adquirida as palavras podem substituir
a presença materna e dar lugar a novas introjecções
dinamizadoras”10.
Introjetar uma situação é fazer passar pela linguagem.
Isto é, aceitar o verdadeiro sentido da perda, o luto e
suas conseqüências; introduzir em si a parte de si-mes-
mo depositada no que está perdido é aceitar todo um
trabalhado de remanejamento.
Na incorporação existem três significações bem pre-
sentes:
1 - se dar prazer em fazer penetrar um objeto no
interior de si, no seu próprio corpo; 2 - destruir esse
objeto; 3 – se assimilar as qualidades desse objeto con-
servando-o no interior de si mesmo.
Este esquema, sucinto aponta a démarche do toxicô-
mano. O vazio da boca, apelando palavras introje-
táveis, para se encher, mas em vão, torna-se outra vez
a boca vazia de alimento de antes da palavra. O
toxicômano vai introduzir uma coisa imaginária, supri-
mindo — ilusoriamente — o próprio fantasma duma
lacuna a preencher com a ajuda das palavras. A despei-
to de poder se alimentar com palavras que se
intercambiam com outrem, a boca vai se introduzir toda
uma parte da pessoa.

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5
2004

Diga-se de passagem que essa boca mostra, ao reco-


nhecer, ao verbalizar os estados de “falta” — notada-
mente durante o processo de desintoxização — e ao
substituir à droga, incorporada, sua palavra, a ele,
psicanalista introjetável. A este respeito, comenta Peyron:
“Nós devemos falar ao toxicômano (descrever sua caverna,
seus desequilíbrios iônicos) fazendo assim de nossa
palavra de reconhecimento uma palavra introjetável e
dinamizadora para outras introjeções, permitindo-lhe
deste modo se encher de nossas palavras e portanto fechar
alguns buracos (...) para passar de uma boca vazia para
uma boca plena de seios, e a seguir plena de palavras”11.
Fica a interrogação: e se o seio nada mais fosse que a
própria boca da criança que chupa o dedo, ou a do toxicô-
mano que engole ou recusa a palavra preferindo, ele
também, chupar seu próprio polegar na impossibilidade
de beijar sua própria boca? Não é exato que Freud consi-
derava a prática de chupar o dedo como o resultado de
uma decepção primária — não a perda de seio, como dizem
Laplanche e Pontalis, mas a impossibilidade de beijar sua
própria boca?12
Mas, não é este ainda um discurso de “padre”? Uma
tirania de um modelo único, de uma “saída” única?
“Não é uma questão de modelo, todos os modelos são
molares: é preciso determinar as moléculas e as partí-
culas em relação às quais as ‘vizinhanças’
(indiscernibilidade, devires) engendram-se e se definem.
O agenciamento vital, o agenciamento vida, é teoricamente
ou logicamente possível com toda espécie de moléculas,
por exemplo, o silício. (…) Não se trata de conformar-se a
um modelo, mas de insistir numa linha”13.
Tudo é, pois, uma questão de escolha: escolher a vida,
escolher a morte: escolher, escolher, sempre escolher.
Escolher numa escolha que me acolhe, mas que me

198
verve
Crueldade do devir e corpo-drogado

escolhe. Escolher, ser escolhido. Trata-se duma escolha


que está para além do consciente, que não é produção
consciente, mas pura economia do acontecimento,
enxertado por uma vontade que diz sim à vida, isto é,
vontade ética, estética, artística; uma vontade da “boa
linha”. Ora, “Os drogados não escolheram a boa molécula
ou a boa linha. Toscos demais para captar o imperceptí-
vel, e para devir imperceptíveis, eles acreditam que a
droga lhes daria o plano, quando é o plano que deve destilar
suas próprias drogas, permanecer senhor das velocidades
e das vizinhanças”14.
O eu-drogado, o eu-identitário, é um romeiro que salda
suas dívidas com ex-votos, sua moeda para comprar o
sagrado, para solucionar problemas. Face ao desfile de ex-
votos, pedaços de organismos sacralizados pela dívida, face
às intensidades mortas dos pedaços mortos: pernas,
braços, cabeças, seios, pênis, ovários, ânus estrangula-
dos pelo câncer, o corpo-drogado se compraz com órgãos
sem corpo. Alimentado pelos buracos de sua própria
epiderme, nutrido pela profusão de imagens vazias:
órgãos sem corpo, pedaços de organismo pendurados,
amontoados, colados às paredes da “Casa dos Milagres”, o
eu-drogado, na contemplação da revolta do corpo contra
os órgãos que adoecem, morrem e matam o corpo, entra
em síncope.
Ao pagar a promessa, outras promessas restam ainda
a ser pagas. Ele pagará com seu próprio corpo. Ao invés
de se revoltar contra os órgãos, ele adere aos órgãos sem
corpo, contra o corpo. Corpo-peneira, corpo trespassado
pelas flechas, corpo-penetrado pela seringa, ele sofre e
goza como São Sebastião, mártir da volúpia e do sofri-
mento radical.
Na ausência de pensamento, o desejo alucinatário,
espécie de razão “pop”, instala-se e torna-se sofrimento:

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more, more, more! Com efeito, a experiência do corpo-


drogado parece encarnar a tentação do sagrado. A expe-
riência da vertigem, mediante a velocidade infinita, o
desejo urgente de tudo sentir, de tudo experimentar,
inaugura com a droga o tempo de uma urgência radical,
o prazer em tempo de peste!
Fica, porém, a pergunta: o que faz o corpo-drogado da
transgressão, veículo ímpar de invenção e de espanto
artístico, estético? O que faz ele da positividade criado-
ra da transgressão? Ora, a transgressão, quando torna-
da criação, é um devir-máquina produtor de problemas
e não de soluções descartáveis. Inventar é criar proble-
mas.
O que ele procura, final-mente este corpo escondido
nos seus sintomas, isto é, o corpo moral? Sua singulari-
dade define sua busca. Ele é um místico, um padre do
deserto: pratica o despojo total, passa fome, “renuncia”
ao prazer da carne, constrói seu eu-drogado e se dopa
com o divino. Ora, tanto o místico como o drogado alme-
jam ao perigo radical, mas dão, ao mesmo tempo, uma
chance à morte.
O que acontece com o corpo-drogado quando, passa-
dos os primeiros movimentos de força e virulência da
libido, provocados pela heroína, ou de modo menos radi-
cal, pela cocaína, notadamente nas primeiras semanas
de experimentos, ele “perde” não apenas sua sexualida-
de, seu tesão, mas, a maioria das vezes, seu próprio sexo?
Geralmente, ele flerta com o Absoluto, tenta o Divi-
no. Ao se picar, ele vive duas experiências, dois tempos
intensivos de prazer: o desafio de Divino e os calafrios e
gozos epidérmicos. Ao se picar, os poucos segundos de
prazer, provocado pelo flash, vão lhe transportar para o
espaço do Sagrado e levá-lo a viver num território real-
virtual de homens extraordinários.

200
verve
Crueldade do devir e corpo-drogado

O corpo-drogado tenta construir a vida a partir do de-


safio da morte. A overdose não acontece apenas aos ou-
tros. Essa Vontade de Potência negativa alimenta o de-
sejo de desafio do eu-drogado, levando-o a se identificar
com os deuses. Ora, se como disse Olivenstein, “não
existe drogado feliz”, não existe também drogado huma-
no… A busca do desafio, a Vontade de Potência passiva,
incrementada pela nostalgia do flash, espécie de orgas-
mo divino, privilégio dos deuses e heróis mitológicos, põe
o experimentador num tempo sem tempo: o tempo para,
não se tem mais nome, nem sexo, nem culpa…
É a fonte de regeneração, o banho quente no grande
ventre da terra, lá onde os homens, como os vegetais,
engendram sem copular (o devir-assexuado do corpo-dro-
gado, para além da questão de gênero) e nascem, como
nos grandes mitos, do beijo de uma amêndoa ou do con-
tato com uma flor.
Assim fala o corpo-drogado: “Eu posso perder tudo” —
overdose — “mas posso ganhar tudo” — flash —, o que
significa que o “silêncio” do drogado não quer dizer falta
de palavra, pois, mesmo costurada, uma boca fala. É aqui
que o conceito de “Escrita do desastre”, de Blanchot,
embora pensado em outro contexto, atinge uma quase
perfeição. A economia da tentação, da busca do impossí-
vel, do indizível, é uma espécie de gramática-guia do
corpo-drogado.
Morrer, deixar-se engolir pelas trevas, contemplar o
desastre eminente, tudo isso soa para o corpo-drogado
como uma retórica inserida em um outro que ele:
“Nada é suficiente ao desastre; o que significa que,
mesmo que a destruição na sua pureza de ruína não o
convém, do mesmo modo a idéia de totalidade não poderá
marcar seus limites: todas as coisas atingidas e
destruídas. Os deuses e os homens reconduzem a au-

201
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2004

sência, o nada no lugar do tudo, é demais e pouco de-


mais. O desastre não é maiúsculo, ele torna talvez a
morte vã; ele não se superpõe, embora o substitua, ao
espaçamento do morrer”15.
O corpo-drogado tem na presença imanente da mor-
te (overdose) seu grande intercessor, uma espécie de
aliado. Eis porque ele não se sente ameaçado pela mor-
te, ao contrário, ele pode desejar a morte como maneira
de escapar ao desastre. Eis o porquê hipotético de sua
passividade: ele é passivo em relação ao desastre, “o
desastre é talvez a passividade”.
Mas, “é na medida em que, poupado, deixado de
lado, o desastre me ameaça que ele ameaça em mim
o que está fora de mim, um outro que eu que se torna
passivamente outro. Não há perigo de desastre. Aque-
le que ele ameaça está ileso. Não podemos dizer se é
de perto ou de longe — o infinito da ameaça, rompeu
de certo modo todo [o] limite. Estamos à beira do de-
sastre sem que possamos situá-lo no futuro: ele ge-
ralmente já passou, e todavia estamos à beira do de-
sastre, ou sob a ameaça, todas formulações que im-
plicariam o futuro se o desastre não fosse aquilo que
não vem, aquilo que parou toda chegada. Pensar o de-
sastre (...) é não ter mais futuro para pensá-lo”16.
Z., desfalecida num banco do “Jardin des Plantes”,
em Paris, sob o efeito de uma overdose devastodora,
entre uma respiração boca a boca, feita pelo bombei-
ro, e os abraços trêmulos de seu namorado, arranja
fôlego para sussurrar, em lágrimas: “Laissez-moi
mourir”!
O pensamento da morte era a própria morte: “Pen-
sar, se apagar: o desastre da doçura”. Morte como um
abrigo que o desastre pode anular. De súbito, o desas-
tre emerge como um “traidor” e não mais um cúmpli-

202
verve
Crueldade do devir e corpo-drogado

ce. Ele “rouba” o que o corpo-drogado cultivou: o pensa-


mento da morte:
“O desastre nos retirando esse refúgio que é o pensa-
mento da morte, nos dissuadindo do catastrófico ou do
trágico, nos desinteressando de todo querer como de todo
movimento interior, não nos permite tampouco brincar
com esta questão: que fizestes para o conhecimento do
desastre? (...) O desastre é o dom, ele dá o desastre”17.
Perigo maior: interpretar o corpo-drogado unicamen-
te em termos de falta ou de excesso, “procura da felicida-
de” ou “reação à infelicidade”; à “dificuldade de comuni-
cação” ou ao “desencanto com a sociedade injusta”, à “falta
de amor”, etc. Este tipo de discurso, quando imbuído duma
“consciência infeliz” ou dum ressentimento cristão,
elimina o drogado, roubando-lhe, assim, sua própria
experiência.
O corpo-drogado vive, sobretudo, um experimento
marcado radicalmente pelo desejo: para o bem ou para o
mal; para além do bem e do mal. Corpo-drogado, corpo-do-
desejo? Talvez. É preciso atribuir ao desejo sua polissemia
infinita, suas linhas de fuga, e a prudência necessária
às experimentações desejantes. Tudo pode terminar num
ponto. Inclusive, a experiência do desejo pode, sob o
traçado não-linear das linhas de fuga, se estratificar
numa linha de morte: o desejo deseja também a sua morte.
As massas alemãs desejaram o nazismo, diz Deleuze.
Entretanto, o desejo que deseja mais do que ele dese-
ja é, ainda, desejo?18 Talvez: à condição de perceber que
um “tal desejo não é a forma sublimada da necessidade,
menos ainda o prelúdio do amor. A necessidade é uma
carência que espera ser suprida; a necessidade é
satisfeita”, o desejo-drogado não19.
Por outro lado, minha experiência com os chamados
toxicômanos20 leva-me a acreditar que o conceito de

203
5
2004

“Desejo metafísico”, de Blanchot, muito mais que a


propalada “demanda de amor dos sujeitos drogados”, ajus-
ta-se à economia do desejo na esfera do corpo-drogado:
“O amor quer a união. O desejo que se pode chamar
metafísico é desejo daquilo que não nos falta, desejo que
não pode ser satisfeito e não deseja unir-se com o dese-
jado: ele deseja aquilo que aquele que deseja não tem
necessidade, que não lhe faz falta e que ele não deseja
atingir, sendo o próprio desejo do que deve permanecer-
lhe inacessível e exterior — desejo do outro enquanto
outro, desejo austero, desinteressado, sem satisfação,
sem nostalgia, sem retorno”.
Esse desejo, porém, no presente contexto, não seria
ainda da ordem do impossível? Talvez. A Coisa do corpo-
drogado é o Desejo, é das Ding: “a coisa inomi-
nável que se revela no horror”21.
Diria, pois, à guisa de conclusão, que injetar um pro-
duto psicotrópico nas veias é algo que jamais poderá ser
substituído por um discurso sobre a injeção nem a
apetência virtual, sem a passagem ao ato do corpo-droga-
do. Sua busca não é suicida, mas estética: a estética da
morte não é, ainda, uma estética? Eis porque a literatu-
ra sobre a “toxicomonia” é geralmente inócua. Dopada
pela incompreensão dos signos, ela é a escrita sobre, o
discurso contra, e torna-se na maioria das vezes a
retórica da histeria, da delação e, não raro, da denegação:
“o corpo-drogado não existe”! Mas o que quer o corpo-
drogado? Encontrar na “viagem” a vertigem, uma
sinceridade que passa pelo sentir: injeção, penetração,
picada, inalação são formas simbólicas de dizer o indizí-
vel. Mas, como dizer o indizível?22
O corpo-drogado não pode ser limitado à “carência” ou
à “demanda de amor”: o amor por procuração, o amor fruto
da culpa ou da vergonha sufoca o eu-drogado, matando-o

204
verve
Crueldade do devir e corpo-drogado

por excesso de amor moral lá onde ele busca (busca?) o


amor conquistado. A marginalidade do corpo-drogado
consiste, pois, não em ficar à margem, mas em fazer da
margem sua própria morada. A margem, não-lugar da
representação, não-significação, é apropriação de sentido
numa ordem-desordem, mais próxima do “desejo como
caos” que da reta ou da linearidade que sufoca a criação
e a vontade de vida.
Eis o grande desafio: corpo-drogado — vir desideriorum?
Mas de que homem dos desejos se trata e, sobretudo, de
que desejo? De um desejo que não vive em maloca, de
um desejo não-clandestino, não-envergonhado: “Eu pro-
poria denominar desejo a todas as formas de vontade de
viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vonta-
de de inventar uma outra sociedade, outra percepção do
mundo (...)”23.
“Devir-vontade”: puro desejo, que faz viver e sofrer,
como dizia Nietzsche, na sua fase schopenhauriana.
Perceber, pois, que o devir é da ordem do desejo é afirmar
o desejo, inclusive no que ele tem de mais terrível e
doloroso, sem se deixar guiar pela fraqueza e sem negar
a vontade, o instinto, a vida — a realidade —, o que
Nietzsche chama de afirmação dionisíaca, aqui compre-
endida como jubilação e pura degustação da existência.

Notas
1
Friedrich Nietzsche. Crepúsculo dos deuses, in Oeuvres complètes, Paris, Gallimard,
s/d. § § 7 - 8.
2
Gilles Deleuze e Felix Guattari. Mil platôs - Capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. São
Paulo, Editora 34, 1997, p. 79.
3
Idem, pp. 32-33.
4
Ibidem.
5
Ibidem, pp. 33-34.

205
5
2004

6
cf. Daniel Lins. “O sexo do poder” in Daniel Lins (org.). Dominação masculina
revisitada. Campinas, Papirus, 1999.
7
cf. Daniel Lins. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos. Rio de .Janeiro,
Relume Dumará, 2a ed., 2000.
8
M. Peyron. “Le trou” in R. Kaës e D. Anzieu (orgs.) Le psychanalyste à l’écoute du
toxicomane. Paris, Dunod, 1981, p. 95.
9
“Le moi peau” in Nouvelle Revue de Psychanalyse, vol. 9, 1974, pp. 195-208.
10
M. Peyron. op. cit., 1981 p. 95.
11
Idem, p. 98.
cf. M. Fain. “Approche métapsychologique du toxicomane” in R. Kaës e D.
12

Anzieu, op. cit., 1981, pp. 33-34.


13
Gilles Deleuze e Felix Guattari, op. cit., 1997, p. 81.
14
Idem.
Maurice Blanchot. L’écriture du désastre. Paris, Gallimard, 1980, p. 9. cf. também
15

Daniel Lins. Ayrton Senna – a ímolação de um deus vivo. Fortaleza, EUCE, 1995.
16
Idem, p. 09.
17
Ibidem, pp. 10 e 12.
18
Trata-se de uma alusão e jogo com a frase de Blanchot: “ (...) o pensamento que
pensa mais do que ele pensa é Desejo”, in Maurice Blanchot. A conversa infinita -
A palavra plural. Tradução de Aurélio Guerra Neto. São Paulo, Escuta, 2001, p.
100.
19
cf. M. Blanchot, op. cit., 1980, pp. 10-12.
Faço aqui alusão a minha experiência clínica, junto a equipe transdisciplinar, no
20

Hospital Marmottan de Paris, sob a direção do dr. Olievenstain.


21
Jacques Lacan. Écrits. Paris, Seuil, 1966, pp. 401 e 436.
22
cf. Daniel Lins. “Como dizer o indizível”? in Cultura e subjetividade - saberes
nômades. Campinas, Papirus, 2a edição, 2000, pp. 69.-111.
23
Felix Guattari e Sueli Rolnik. Micropolítica - cartografias do desejo. Petrópolis,
Vozes, 1996.

206
verve
O individualismo anarquista

RESUMO

A partir de um referencial deleuziano, o autor interroga a vontade


de prazer expressa no uso de drogas, relacionando-a à satisfação
sexual. São ambas manifestações de um prazer que denota uma
posse sobre si por meio da experiência do êxtase.

Palavras-chave: prazer, drogas, vontade.

ABSTRACT

From a Deleuzian perspective, the author questions the will of


pleasure in its relation to the sexual satisfaction. Both, drug and
sex satisfactions, are manifestations of a sort of pleasure that
proves a possession of the self that comes throught the experience
of ecstasy.

Key words: pleasure, drugs, will.

Recebido para para publicação em 15 de outubro de 2003.

207
5
2004

o individualismo anarquista1

émile armand*

Pensamos ser necessário posicionar o “Único” con-


frontando as diversas interpretações do individualismo
anarquista.
Entendemos como fato acabado, irrefutável, a exis-
tência da associação, do meio, do mundo individualista
an-arquista. Hoje, e não no futuro, poderia se dar a esta
sociedade o nome de “Internacional individualista an-
arquista”. Ela é a-política e também, ainda que constate
certos fatos, não se preocupa com o problema econômi-
co, com a questão social. Está constituída sobre uma
ética da camaradagem, fundada na negação da inter-
venção ou interferência do Estado — ou das institui-
ções que dele dependem — nas relações que podem
manter entre si os individualistas e, afirmamos agora
para evitar repetições, “à maneira do Único”. Não são
revolucionários, no sentido clássico ou demolidor da
palavra e são contrários ao recurso da violência.

* Pseudônimo do individualista anarquista francês Ernest Lucien Juin. Nasceu


em 26 de março de 1872, editou diversos periódicos, entre os quais: L’ère
nouvelle (1901-1911), Hors du troupeau (1911), Par-delà la mêlée (1916), L’en
Dehors (1922) e L’unique (1945). Morreu em 19 de fevereiro de 1963 aos 90
anos de idade.

verve, 5: 208-218, 2004

208
verve
O individualismo anarquista

Suas aspirações, suas tendências (de maneira algu-


ma trata-se aqui de todas) são fielmente condensadas
no quadro que se publica em cada número de nosso jor-
nal2.
As relações das quais se fala podem ser estabelecidas:
por contratos, pactos ou acordos, tácitos ou definidos, ou
estudados prevendo as modificações, os anulamentos e
vencimentos segundo uma mobilidade bem determina-
da. Em geral, nosso individualismo, quando se realiza
entre vários (e isto não é um paradoxo) é contratual.
Estas relações podem não comportar contrato de gênero
algum, porque há entre nós, um certo número de com-
panheiros, isolados, rebeldes à idéia de associação, que
não admitem firmar nenhum compromisso.
Em todas as relações, que o individualista, o “Único”,
mantém com os de “seu mundo”, trata sempre de con-
servar, de realizar sua individualidade, de reconhecer
a si mesmo. Quando adere a uma associação ou a uma
“união” de companheiros ou de amigos, é com a finali-
dade de desenvolver-se e completar-se plenamente, para
encontrar contentamento, satisfação, prazer, alegria —
também quando lhe convém faz um sacrifício ou uma
renúncia. Se consente em não ofender aos individua-
listas “à maneira deles”, a não prejudicá-los, a não
ofendê-los, é sobre a base de reciprocidade e porque sua
dignidade pessoal está em jogo.
Pode-se querer, de todos os modos, permanecer “iso-
lado”. Está subentendido que renunciar a associar-se
por perseguir uma meta precisa, não quer dizer deixar
de ser um companheiro de idéias ou de resistência, com
o qual se pode contar; um amigo fiel, um companheiro
de andanças, apresentando-se a ocasião. Isto quer dizer
simplesmente, que não se sente inclinado a traçar pro-
jetos a prazos mais ou menos longos.

209
5
2004

De tudo que falei, infere-se que os individualistas


não se interessam pelo “curso dos acontecimentos” (a
não ser a título documental): seja político, econômico
ou moral. Estão comprometidos, apesar de realistas,
mas não se fazem nenhuma ilusão. Sabem que diante
da engrenagem que a cada manhã os engole, apenas
podem opor uma resistência pessoal ou associada, uma
resistência que nasce, cresce e se cumpre no fundo de
sua consciência, transformando-a em uma cidadela
inexpugnável, uma fortaleza inconquistável. Aqui está
porque aquilo que se desenvolve no exterior não inte-
ressa mais que na medida em que a integridade do ego
deles é ameaçada e posta em perigo. E isto explica por-
que estão, às vezes, obrigados a manter silêncio na
presença dos cúmplices ou dos enganados por uma So-
ciedade à qual, forçosamente, arbitrariamente, fazem
parte.
Os individualistas têm muito que pensar acerca de
sua própria conservação para se preocupar com o que
será da sociedade futura. A sociedade virá a ser o que
puder ser.
O essencial, aqui e agora, é escapar de todo perigo
que ameace nossa existência pessoal, salvaguardar os
nossos, aqueles de “nosso mundo”, da redução ao mes-
mo denominador comum: propósito e objetivo de todas
as civilizações de todos os tempos. Ora, o individualista,
a nosso modo, combate às vezes à luz do sol, às vezes por
outras vias, por sua conta e risco, para ser seu próprio
denominador, isto é, um “único”. Pouco importa a vitó-
ria ou a derrota. O essencial é que sua individualidade
não tenha sido restringida, que a torre interior na qual
se tenha fortificado, soberano, permaneça intacta.
Contratuais como somos, não temos nenhuma sim-
patia pela insegurança e a instabilidade, erigida em

210
verve
O individualismo anarquista

princípio. À insegurança e à instabilidade, temos, há


muito tempo, oposto a camaradagem: “assistência vo-
luntária que os individualistas firmam entre eles, para
poupar-se todo o sofrimento inútil ou evitável”.
Já faz muito tempo que definimos a camaradagem
como “criadora de boa vontade, de paz, de satisfação, de
prazer, de acordo, de harmonia, etc...” E isso, “sem re-
correr à proteção do Estado, nem à intervenção do go-
verno, nem à intervenção das leis”.
Antes de ocupar-se da instabilidade e da inseguran-
ça da humanidade do passado, do presente e do futuro,
não conviria, por acaso, preocupar-se de que modo e até
que ponto a camaradagem (assim como a concebemos)
tem sido cumprida entre nós, aqueles de nossa huma-
nidade? E, em caso de negativo, por quê?
Há individualistas que trabalham por conta do Esta-
do, e outros por conta da indústria privada. Uma coisa
não é melhor que a outra, evidentemente, mas nem
todos são capazes de atravessar os oceanos e de montar
sua barraca em meio à floresta virgem. Na sociedade
em que vegetamos miseravelmente, buscamos nos de-
senvolver o melhor possível, é inevitável. Por minha
parte, declaro, que não invejo ao companheiro que se
desenvolveu ou se desenvolve melhor que eu, e não te-
nho inveja de seu êxito. Tanto melhor para ele!
Dito isto, ninguém me dirá que estar ocupado na in-
dústria do livro — compor (trabalho que conheço), pagi-
nar, corrigir, imprimir diários ou livro que defendem,
sustentam, exaltam o Estado ou a Igreja, o nacionalis-
mo ou o ocultismo, pra não falar nas estúpidas novelas
— tenha mais valor que ser chofer, professor primário
ou ferroviário. Seria fácil multiplicar estes exemplos.
Qual é a diferença entre aquele que é assalariado de
um industrial ou de uma sociedade subvencionada pelo

211
5
2004

Estado e aquele que é diretamente remunerado pelo


Estado? Há assalariados do Estado-patrão que recebem
uma pensão (constituída por outra parte a suas custas)
e são felizes de que outros não sejam beneficiados.
Aqueles para os quais a pensão é insuficiente, devem
fazer o necessário para que a mesma permita viver a
qualquer um que tenha chegado a uma certa idade.
(Não há países nos quais cada habitante, chegado a
certa idade goza de uma pensão “decente”?).
Mas pretender que o salário do empregado estatal o
obrigue a aceitar o rol dominador daquele que lhe paga,
é um absurdo. O Estado, patrão, administrador, indus-
trial, comerciante, permanece o que sempre tem sido:
tirânico, opressor, que impõe sua vontade a todos aque-
les que governa, tanto aos funcionários como aos ou-
tros. O financista e o capitão de indústria, permane-
cem também o que têm sido: os privilegiados.
O individualista é lógico resistindo àquele que o do-
mina: o Estado, e se defendendo daqueles que o explo-
ram: os capitalistas. O salário que recebe (sem o qual
viveria miseravelmente desocupado e necessitado) ou
a pensão que o Estado-patrão lhe assegura, não muda
em nada sua situação.
O Estado continua governando e o capitalista explo-
rando. Um individualista à nossa maneira não se dei-
xa comprar, nem recrutar... e deve recordar-se bem que
se desenvolver não é vender-se.
Não falamos do artesão esmagado por múltiplos pe-
sos.
Quando vive pobremente uma vida mais ou menos
ascética, o individualista pensa que isso depende do
temperamento pessoal e não pode ser proposto como
uma solução acabada.

212
verve
O individualismo anarquista

Entretanto, por que o individualista à nossa manei-


ra, não aproveitaria aquilo que a sociedade capitalista
põe à sua disposição, se experimenta a necessidade e
seus recursos o permitem? A que isto o compromete?
Não pediu nada, “paga” tudo o que lhe é oferecido. Não
se sente obrigado a nenhum reconhecimento, a nenhu-
ma gratidão, a nenhuma aprovação do funcionamento
da coisa econômica. Nada me prova que todos os compo-
nentes de nosso mundo tenham a capacidade de as-
similar-se ao modo de viver dos guaranis. A experiên-
cia demonstra que são poucos aqueles capazes de viver
bem em uma “comunidade”, em um ambiente de vida
em comum. Quanto aos Incas, penso que o regime ao
qual estavam submetidos se assemelha muito a um
paternalismo totalitário. Certamente, nós nos tomamos
a liberdade de criticar a Sociedade, e não somos solidá-
rios de seus assuntos e de seus atos. Nós reclamamos a
atenção daqueles que nos lêem ou nos escutam sobre
as incoerências que existem entre os princípios apre-
sentados como base da existência da civilização e suas
aplicações práticas. A esta crítica amarga, satírica, irô-
nica, às vezes humorística, aqueles que se sentem gol-
peados nos respondem, em vez de amordaçar aqueles
que os cobrem de ridículo. O individualista crítico, pro-
testa, está em oposição, até que encontre razões de re-
afirmar seu espírito de livre-exame.
Entre os individualistas à nossa maneira, há os que
são favoráveis a uma vida cotidiana austera mais pró-
xima à natureza; há outros que preferem a existência
das grandes cidades e dos centros de cultura; há parti-
dários de uma alimentação na qual todas as carnes são
banidas e outros são onívoros. Há entre eles abstêmios
e moderados, mas há os que não querem aceitar a este
propósito, nenhuma escravidão: há entre eles nudistas,
Gimnósofos3 e acampantes, mas também outros — pró-

213
5
2004

ximos aos anteriores — para os quais o nudismo, a


gimnosofia, o acampamento ou a cultura física não des-
pertam neles nenhum desejo de serem praticados.
O mesmo acontece com a medicina oficial ou os “cu-
randeiros”: cada um, sem perturbar ou importunar a ou-
tros (amigos, companheiros) se comporta como melhor
lhe parece. Falei tudo isto recentemente, mas é bom
recordá-lo, porque é esquecido com freqüência com o
pretexto de ocupar-se do “bem” dos outros!
A mesma atitude para o problema sexual e tudo aquilo
que se relacione com a família, a educação, etc. A ten-
dência do “Único” se manifesta pela pluralidade de ami-
zades e de afetos , e pelas famílias de escolha, mas está
fora de questão entre os individualistas “à nossa ma-
neira”, se existem os unicistas em matéria de amizades
e de afetividade. Não se pergunta a nenhum deles se é
heterossexual, homossexual, ou bissexual. Acaso é pos-
sível encontrar também aqueles que consideram a cas-
tidade como um estado que lhes convém perfeitamen-
te. A cada um a própria verdade. À condição de que não
haja nenhuma intervenção no modo de cada um se com-
portar, nenhuma tendência à fraude, à deslealdade, ne-
nhuma tentativa de influenciar aos seres incapazes ou
que não estão em condições de poder julgar, de preci-
sar, por falta de educação ou formação; todo o resto é
assunto pessoal. Em nenhum caso o individualista é fa-
tor de inquietude entre “os seus”, sabe dominar-se, per-
manecer dono de si, controlar suas paixões, de outra
maneira não seria mais que um palhaço ou um charla-
tão quando proclama a “soberania do indivíduo”.
Em todos os problemas deste gênero, é necessário
deixar a solução aos interessados diretos. A “regra de
ouro” da ética individualista an-arquista é muito sim-
ples: “ocupa-te de teus assuntos e não te intrometas no

214
verve
O individualismo anarquista

dos demais”. Desde o momento em que há interferên-


cia nos assuntos dos outros começa o deslizamento para
o arquismo.
Em matéria de educação há muito que dizer. A tese
individualista é que a mãe seja a educadora natural da
criança: mas esta tese quer também salvaguardar a cri-
ança da tirania familiar. Antes de estar na idade para
fazer um contrato, pode estar mal com os pais,
incompreendido por eles: pode lhe ser oferecido, então,
a liberdade de ser adotado por uma família mais com-
preensiva, de um grupo mais apropriado para seu de-
senvolvimento. A escolha — reservada à criança — do
educador, das matérias de estudos, de sua orientação
profissional, são, pois, teses individualistas anarquis-
tas; as quais não posso, neste momento, fazer outra coi-
sa senão esboçá-las reservando-me voltar ao tema em
outra oportunidade.
Governar ou administrar? Não sei se chegará o dia
no qual a diferença entre estes dois modos de organiza-
ção social permitirá à unidade humana comportar-se
de outra forma que o faria se não fosse coagida; mas,
até hoje, governar não tem sido diferente de adminis-
trar. Quanto mais forte se mostrou um governo, tanto
mais tiveram que “curvar-se” aqueles que tinham rela-
ção com a administração que esse governo controlava.
De outra forma, a solução de dita diferenciação está
sujeita a um prazo tal, que meus leitores e eu mesmo
haveremos parado de raciocinar, de construir hipóteses,
sepultados como estaremos em um túmulo ou crema-
dos em qualquer columbarium. Então, isto não nos inte-
ressa.
Aproveito, uma vez mais, a ocasião para manifestar
claramente que os individualistas à maneira do “Úni-
co”, não trabalham nem sequer assumem uma atitude

215
5
2004

como se fossem ou estivessem encarregados de uma


missão, ou como portadores de mensagens, ou como pro-
fetas, ou utopistas e assim por diante. Têm interiorizado
o bastante o sentimento do ridículo, como para renunci-
ar a imaginar que um jornal lido por mais de um milhar
de leitores possa “converter” o mundo a suas reivindi-
cações ou a suas aspirações. Não buscamos nem discí-
pulos nem partidários: não somos os “encarregados da
propaganda”. Virão a nós aqueles aos que sejamos sim-
páticos, se afastarão os outros. Se existirem sucesso-
res continuarão como nós, trabalhando pelos que quise-
rem, para dar qualquer relevo a sua existência. Tanto
melhor para eles se realizam mais e melhor que nós.
Mas, quem pode dizer sob que aspecto se apresentará,
se formulará então o individualismo an-arquista? Eu
não, certamente.

Anexo - Principais tendências do “Único” e dos


“Individualistas à maneira própria”
Soberania do indivíduo, como princípio fundamental
de toda reivindicação de ordem social. — Negação da
intervenção do Estado ou da intromissão de qualquer
instituição governamental nas relações ou acordos en-
tre indivíduos dotados de razão. — Desenvolvimento do
espírito crítico e da iniciativa na educação individual.
— A vida como vontade e responsabilidade. — A violên-
cia (domínio, imposição, exploração, etc.), brutalidade,
uso da força física ou de armas, etc., como fonte dos males
que oprimem o indivíduo. — A reciprocidade, como ética
da sociabilidade. — Eliminação de todo sofrimento nas
relações condicionadas pela amizade e pela camarada-
gem. — Fidelidade à palavra e às clausulas dos pactos
livremente aceitos, em todos os campos. — Associas-
sionismo, cooperativismo, mutualismo, mutualismos vo-

216
verve
O individualismo anarquista

luntários e contratuais, em todas os ramos da atividade


humana, com garantia para o isolado que queira evoluir
à margem do grupo ou da organização. — Liberação dos
preconceitos concernentes à raça, à aparência exterior,
à desigualdade dos sexos, à condição social, à idade, etc.
— A vida pessoal, como obra de arte. — A não interferên-
cia do raio de atividades de outro, como limite da
expansão da personalidade. — Eugenismo e naturismo
refletidos. — Educação sexual integral, mas combate à
prostituição e à pornografia sobre todas as suas formas,
e rechaço da idéia da mulher considerada como “prisio-
neira”, simples “necessidade fisiológica” ou “carne para
o prazer”. — Domínio de si, mas não renunciar à alegria
de viver. — O presenteismo, como antídoto contra as
quimeras do Messianismo, da sociedade-futura, etc. —
Repúdio ao dogma revelado ou inspirado, religioso, ou
sociológico; assim como ao ocultismo, ao sobrenatural,
etc. — A benevolência, a sensibilidade, o espírito de com-
preensão e de conciliação, a luta contra o “tanto pior
para ti”, como fatores de vitalidade interior. — Prática
do princípio de “começar por varrer nossa porta”, antes
de ocupar-se dos assuntos dos outros. — Interesse pelos
ambientes livres, as vilas individualistas, as escolas
libertárias, etc. — Famílias de escolha, pluralismo dos
afetos e das amizades, em substituição das preferências
baseadas nos privilégios e nos tabus. — Compreensão
para os não-conformistas, os refratários, os irregulares,
os “excelentes”, etc. etc.

Tradução do espanhol por Thiago Souza Santos.

217
5
2004

Notas
1
Publicado no periódico El único nº10/11. Buenos Aires, 1994 — primeira
publicação no L’ unique, nº 37/38. Paris, 1954.
2
Publicado em anexo, ao final do artigo, sob o título de Principais Tendências do
“Único” e dos “Individualistas à maneira própria”.
3
Gimnósofos: nome com o qual os gregos e romanos designavam aos Brahmas
ou alguns de suas seitas (N. do A).

RESUMO

O autor faz uma análise das principais teses individualistas anar-


quistas esboçando relações indivíduo-Estado e indivíduo-Socie-
dade, procurando delinear as resistências pessoais ou associa-
das dos indivíduos.

Palavras-chave: anarquia, associação, individualistas.

ABSTRACT

The author analyzes the main theses of individualist anarchism,


drafting individual-state and individual-society relations in an
attempt to draw personal or associative resistance of individuals.

Keywords: Anarchy, association, individualists.

Indicado para publicação em 12 de novembro de 2003.

218
verve
O “testamento anarquista” de John Cage

o “testamento anarquista” de john cage

pietro ferrua*

No meu artigo anterior sobre o grande compositor


americano1 contei alguns encontros que tive com ele
no Brasil: em casa da insigne compositora brasileira
Jocy de Oliveira e do Maestro Eleazar de Carvalho no
Leblon (junto com Arnaldo e Nora Sant’ Anna de Moura),
no Teatro Carioca da rua Senador Vergueiro (onde ele
se entreteve com Ideal Peres, Jacques Kalbourian e
Rosa de Freire Aguiar, entre outros), no espetáculo de
dança do Merce Cunningham (onde eu fui com Gizela e
Lícia Valladares), etc...
Nessas circunstâncias encontramos outros artistas
e intelectuais (limito-me a citar um dos mais entusias-
tas admiradores dele, de quem eu me lembre, o amigo e
professor Antonio Maria de Miranda Netto) estarrecidos
em descobrir que o Cage tinha simpatias anarquistas.
Eu mesmo ficara agradavelmente surpreendido com as
numerosas e pormenorizadas perguntas que ele me fi-
zera sobre as minhas vicissitudes anarquistas, e, so-

* Professor emérito do Lewis Clark College, em Portland, fundador do CIRA


(Centre International de Recherche sur l’Anarchisme), viveu no Brasil de 1963
a 1969.

verve, 5: 219-227, 2004


219
5
2004

bretudo, em relação ao Centro Internacional de Pes-


quisas sobre o Anarquismo, que eu tinha fundado em
Genebra uns anos antes.
Quando chegou a hora da despedida, comuniquei-
lhe a grande alegria que tinha inspirado sua visita ao
Brasil e sua colaboração conosco e perguntei-lhe
porque ele não escrevia alguma coisa sobre
anarquismo que pudéssemos divulgar como
“propaganda”. Respondeu-me que se lêssemos
atentamente seus escritos encontraríamos muitas
referências às crenças anarquistas dele. Acrescentou
que se assim não tivesse sido ele não teria aceito
levianamente um convite para tratar do assunto em
público em plena ditadura militar. Insisti que uma
obra dedicada inteiramente ao assunto aumentaria
as chances de realizar o projeto social que comparti-
lhávamos. Sorriu, pensou um pouco e acabou dizendo
que talvez eu tivesse razão, que ia pensar nisso. E a
coisa ficou aí.
Quando faleceu e escrevi sobre ele não mencionei
a “meia promessa” feita. Mal sabia eu que ele manti-
vera o empenho deixando o manuscrito de Anarchy.
Permanece o mistério de descobrir porque esse texto
traz a data de 1988 e só apareceu em 2001.
Em vez de um tratado sobre sua concepção do
anarquismo, o compositor criou uma obra poética, ba-
seada na estrutura do “mesóstico” (por ele já praticada
anteriormente), mas contendo várias inovações, todas
tendentes a envolver a participação do leitor. Uma crí-
tica reproduzida na capa, confirma tudo quanto Cage
me declarou na despedida de 1968 no Rio de Janeiro;
“Apesar de trazer para sua poesia e outros escritos
sua profunda, duradoura preocupação com as
sociedades e com os modos de transformá-las para

220
verve
O “testamento anarquista” de John Cage

melhor, as formas com as quais o fez enquanto escrevia


Anarchy (...) são especialmente brilhantes e
esteticamente instigantes.”2
Para conceber esta pérola, Cage adotou uma lingua-
gem revolucionária baseada na “aleatoriedade” (un coup
de dés n’abolira jamais le hasard 3 , como dizia o
Mallarmé?). Ele renunciou, porém, ao lance dos dados e
das moedinhas em favor de um programa informático.
O texto (de uma palestra?) se compõe de vinte poe-
mas nos quais aparecem as idéias de Kropotkin (que
abre a série), Emma Goldman, Thoreau, J.J. Martin,
Bakunin, Malatesta4, ou de para-anarquistas (muito ci-
tados já na palestra do Teatro Carioca) como
Buckminster Fuller e Marshall McLuhan.
O primeiro poema (este e o seguinte não tem títulos,
mas apenas um número progressivo) é dedicado a Pietr
Kropotkin. Além da forma do mesóstico também adota o
princípio do velho pergaminho do qual algumas letras
desapareceram no decorrer dos anos e que o leitor deve
reconstituir, como num palimpsesto.
Enquanto o primeiro poema é contido em quinze ver-
sos, o segundo ocupa quase oito páginas. O autor traça
uma comparação entre problemas sociais e musicais.
A seu ver, a introdução da noção de silêncio na música
foi tão necessária para a evolução desta arte como o
conceito de anarquia o é para encontrar uma solução
aos problemas dos governos. A dinâmica do poema é ins-
pirada por uma palestra de Emma Goldman.
No terceiro, estuda-se a função do anarquista como
facilitador dos processos numa sociedade onde os servi-
ços públicos são a base do convívio social.
O quarto é um grito de liberdade contra qualquer co-
ação que impeça o ser humano de se desenvolver. Con-

221
5
2004

dena a política imperialista do governo americano pe-


dindo que saia da América Central e do Oriente Médio.
Mais engajado ainda é o poema 5, no qual Cage de-
nuncia o método “hipnótico” dos governos para perpetu-
arem a própria autoridade. O poeta acha que chegou a
hora para toda gente tomar consciência do fato que os
governos não só não são necessários, mas são institui-
ções imorais nas quais pessoas de respeito não deveri-
am tomar parte. O poema não faz senão bordar sobre
uma citação de Mikhail Bakunin da qual Cage compar-
tilha e assume as idéias.
O número 6 é uma consideração sintética sobre a
natureza e a mente humana. O poeta deseja que o pro-
jeto individual mude radicalmente e torne-se projeto
global para a sociedade de todos.
O número 7 indica o lugar do indivíduo na sociedade
e o papel que ele pode desenvolver num contexto no qual
o anarquismo pode funcionar. O número 8 é dedicado a
um anarquista pouco conhecido fora dos Estados Unidos
(bem como na França, onde nasceu), Hippolyte Havel,
que desenvolveu, porém, um papel importante no movi-
mento anarquista norte-americano no princípio do sé-
culo XX e ao redor de Emma Goldman. A bibliografia dele,
ou sobre ele, sendo muito reduzida, constitui uma pro-
va a mais de que a cultura anarquista de Cage não era
nem superficial, nem aproximativa. Cage não é a cari-
catura do intelectual descomprometido com a realidade
que o rodeia e fechado na torre de marfim, mas um ar-
tista e pensador engajado no movimento, com uma vi-
são diacrônica e sincrônica das problemáticas do
anarquismo.
O seguinte, lida com Tolstoi, uma referência rara nos
meios anarquistas, geralmente ateus, que quase sempre
se afastaram dele por causa de sua religiosidade. John

222
verve
O “testamento anarquista” de John Cage

Cage nem levanta o problema do cristianismo tolstoiano


e limita-se a render ao pensador russo uma breve
homenagem.
O posterior é um brado de luta (poema 10) contra as
multinacionais que se apoderaram das riquezas soci-
ais às custas das multidões e das quais temos que nos
desfazer se não quisermos que a humanidade acabe. O
no 11 amplia o discurso anti-capitalista. As políticas eco-
nômicas mundiais deveriam ser regidas pela inteligên-
cia cooperativa e não pela inteligência concorrencial.
Confirma sua própria fé na tecnologia.
O no 12 é uma reminiscência de seu próprio livro, A
Year from Monday5. Na sequência, um poema em home-
nagem a Buckminster Fuller, um pensador pouco dis-
cutido nos ambientes anarquistas, mas em quem Cage
tinha muita fé como construtor de modelos de vida social
viáveis, harmônicos, libertários. Conceitos que ele já
tinha expressado na palestra de 1968 no Teatro Cario-
ca.
No seguinte (poema 14), o autor nos surpreende com
uma apologia do insurrecionismo revolucionário no qual
o revoltado pode perder a vida a qualquer momento.
Talvez para apaziguar o leitor chocado pelo anterior, o
poema 15 volta à indagação intelectual nos mistérios
da realidade.
O poema 16, em complemento ao anterior, é uma
indicação de que a numeração progressiva não deve
absolutamente ser tomada em consideração no sentido
de uma evolução do pensamento do autor ou de um de-
senvolvimento sistemático de uma idéia. A estrutura
do livro é paralela à estrutura de cada poema: não é a
lógica que determina, mas o acaso, não é a ordem que
predomina, mas a aleatoriedade. O leitor, porém, que-
rendo, pode mudar a ordem da sucessão dos poemas e

223
5
2004

colocá-los numa perspectiva diferente, ditada pelas suas


escolhas éticas, estéticas ou simplesmente na base de
um método de sistematização próprio. A lição do poema
é que as sementes plantadas pelos anarquistas no co-
meço do século passado podem ainda frutificar intelec-
tualmente.
O no 17 é dedicado a Henry David Thoreau, o propo-
nente da desobediência civil (que tantos seguidores teve
na América dos últimos cinqüenta anos) do qual o poeta
foi sempre um grande admirador pelas suas andanças
nos bosques e suas crenças ecológicas.
O seguinte (18) é uma lembrança de Bakunin que
plantou a semente da nova sociedade. A tarefa do revo-
lucionário é explicitada no poema 19: transformar a si
mesmo, viver como homem livre e ganhar a luta para
estabelecer a nova sociedade.
O poema final é inspirado, mais uma vez, por
Buckminster Fuller, que sempre foi o modelo para Cage
conceber a organização de uma sociedade ecológica e
livre.
Essa primeira, rápida e simplificadora excursão nos
meandros de Anarchy de John Cage é provisoriamente
suficiente para poder declarar que se trata de um gran-
de livro que resume não só uma vida, mas também um
século de pensamento anarquista. Não confundamos os
ensaios influentes escritos por anarquistas do século
vinte (como Nacionalismo e Cultura de Rudolf Rocker, ad-
mirado até por Albert Einstein e Sir Bertrand Russell),
com as sínteses artísticas, como O Castelo e O Processo
de Franz Kafka (as atividades dele como militante nos
grupos anarquistas e anarco-sindicalistas de Praga fi-
caram esquecidas, mas a obra literária dele tornou-se
imortal). Cage nunca foi uma figura política dentro do
movimento anarquista americano, mas quem pode jul-

224
verve
O “testamento anarquista” de John Cage

gar se um economista é mais importante do que um


músico, ou um sociólogo mais importante do que um
pintor? A história nos indica que, às vezes, os artistas
são mais coerentes (por serem mais sensíveis?) do que
os militantes propagandistas.Temos o exemplo de Paul
Signac, militante anarquista e pintor neo-impres-
sionista, que não perdeu a cabeça durante a Primeira
Guerra Mundial e se considerou “traído” pelo bem mais
politizado militante Jean Grave que, junto à Kropotkin
e vários outros intelectuais anarquistas, aderiu ao con-
flito em oposição à Alemanha.
Falei de testamento em relação ao John Cage e acho
que com alguma razão, pois este livro resume o sentido
de uma vida. Trata-se de um depoimento artístico de
grande alcance e, espero eu, de importantes conseqüên-
cias, pois vai atrair ao anarquismo muitas simpatias
no campo musical e poético.
O pensamento anarquista de Cage não é necessari-
amente original. Mas poder-se-ia dizer o mesmo do pen-
samento de um dos grandes filósofos da Renascença fran-
cesa, Michel de Montaigne, que costumava dizer mais
ou menos “Je prends mon bien là où je le trouve”6. John
Cage faz a mesma coisa, ele toma emprestado concei-
tos e citações de pensadores anarquistas e os faz seus,
no sentido de englobá-los na própria obra e no próprio
pensamento. Quem lê os poemas sem ler o prefácio pode
pensar que as frases mais contundentes e provocatórias
são de autoria dele. De fato são “suas” no sentido de
Montaigne, pois foi Cage que as leu, as privilegiou, as
isolou das outras e do contexto e fez a (tão criticada!)
colcha de retalhos. Assim, pouco importa saber se uma
verdade que nos seduz é da autoria de, digamos,
Buckminster Fuller ou de John Cage. Pelo fato mesmo
de tê-la escolhida e citada, ele a consagrou como men-
sagem válida para ele.

225
5
2004

A cultura anarquista de Cage, aliás, não é superfici-


al. Por exemplo, ele não leu só, digamos, Emma Goldman,
mas também quem escreveu sobre ela, como, por exem-
plo, Drinnon e Havel, biógrafos e exegetas dessa mili-
tante lituano-americana. Basta ler o prefácio para apren-
der como ele seguiu pistas, pesquisou, escutou, leu.
A originalidade reside mais na elaboração, na cons-
trução, no jogo (o aspecto lúdico dele já estava presente
em todas suas obras anteriores, poéticas bem como
musicais). Este livro é complexo mais do que complica-
do, pois a chave ele mesmo dá quando se lê a introdu-
ção, que contém instruções pormenorizadas para a cor-
reta interpretação. Porém, esmiuçar os detalhes não
acrescenta muito à fruição dos poemas. Mallarmé já nos
ensinara que a banalização literal rouba metade do pra-
zer. O livro parece até um bocadinho requintado para os
concretistas brasileiros que saberão transcriá-lo, como
fizeram com Pound, Joyce e outros grandes.
Eu, por mim, estou satisfeito assim: obrigado, John
Cage, promessa e missão comprida.

Notas
1
“John Cage, anarquista fichado no Brasil” in Verve. São Paulo, Nu-Sol/PEPG-
Ciências Sociais PUC-SP, no 4, 2003, pp. 20-31.
2
“Although he often brought into his poetry and other writings his deep,
lifelong concern with the world’s societies and with ways to change them for
the better, the ways in which he did this while composing Anarchy ...are
especially brilliant and aesthetically compelling.” Quarta página da capa do
livro Anarchy de John Cage (Middleton, Connecticut, Wesleyan University
Press, 2001) assinada por Jackson Mac Low.
3
“um lance de dados jamais abolirá o acaso”, na tradução de Haroldo de
Campos (Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos. Mallarmé.
São Paulo, Editora Perspectiva, 1991) (N. do E.).
4
Curiosamente, o nome atribuído a Malatesta está errado: Mario em vez de
Errico.

226
verve
O “testamento anarquista” de John Cage

5
Há uma tradução disponível em português: De segunda a um ano. São Paulo,
Hucitec, 1988. Tradução de José Paulo Paes e revisão técnica de Augusto de
Campos (N. do E.).
6
“Eu tomo meu bem lá onde o encontro” (N. do E.).

RESUMO

No presente artigo, o autor analisa a prática libertária de John


Cage a partir de seu livro póstumo Anarchy. Ao apontar os auto-
res e referências utilizados por Cage, Ferrua apresenta uma leitu-
ra do percurso do músico-poeta por uma forma única de pensar e
viver a liberdade.

Palavras-chave: anarquismo, John Cage, poesia.

ABSTRACT

In this article, the author analizes the libertarian practice of John


Cage, based on his post-mortem book Anarchy. Ferrua presents,
by pointing out references and authors used by Cage, an overview
of the trajectory of the musician and poet through a unique way of
thinking and living freedom.

Keywords: anarchism, John Cage, poetry.

Recebido para publicação em 20 de janeiro de 2004.

227
5
2004

by soLidarity
thE
fOr
yesTerday’s
away

frOm the tree


sLow
impriSoned
liberTy

bOdies which

though the qualitY

John Cage

Extraído de Anarchy. Middleton, Connecticut, Wesleyan University Press, 2001.

228
verve

na soLidariedade
Ei-la
pelO
onTem
afora

dO tronco
Lenta
apreSada
liberTação

cOrpos que

ainda qualIdade

John Cage

Tradução de Thiago Rodrigues.

229
5
2004

Prefiro morrer de qualquer

excesso
a morrer de qualquer contenção.

Roberto Freire

230
verve
Stirner, o único, em língua portuguesa

stirner, o único, em língua portuguesa

edson passetti*

Chega ao público, em língua portuguesa, em março de


2004, o problematizador livro de Max Stirner O único e a
sua propriedade (Lisboa, Antígona, Tradução de João
Barrento, 339 páginas, contendo “Glossário” e ensaio de
José A. Bragança de Miranda, “Stirner, o passageiro clan-
destino da história”). Stirner, que escreveu pouco, mas
intensos artigos, é um autor atual e pouco discutido, que
Verve divulga no Brasil, em cada volume, incluindo, no
número 2, o trecho final deste livro, chamado “O único”.
Os anarquistas caracterizam Stirner como anarco-
individualista, desde a recuperação de seus escritos pelo
poeta John MacKay. Mas ele não cabe numa definição
estreita. Demolidor das heranças hegelianas, e por con-
seguinte do Estado e das iluminações da vida social ma-
ior derivada do contratualismo de Kant, Max Stirner afir-
ma o contra-posicionamento diante de transcendenta-
lidades, chamem-se religião, homem, sociedade, Estado.
Está em discussão a história do presente, impossível de

* Professor no Depto. de Política, no Programa de Estudos Pós-Graduados em


Ciências Sociais e Coordenador do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
da PUC-SP.

verve, 5: 231-238, 2004

231
5
2004

ser capturada pela Razão e redimensionada como utopia


para um lugar seguro no futuro.
Muita coisa ainda será dita e debatida sobre o único:
a associação de egoístas ou únicos, os detalhamentos
sobre a reflexão a respeito do egoísmo, a importância e
atualidade da problematização de Stirner sobre o
autoritarismo da razão moderna, as ressonâncias de
suas anotações sobre autores desestabilizadores, a exis-
tência da vida livre inventando costumes, abalando ins-
tituições, afirmando miríades de associações.
O único e a sua propriedade não é um livro que se
recomenda ler. Ele deve ser alcançado pelo leitor livre
de dogmas, num momento de sua existência única. Di-
ante de cada página, lida e virada sem pressa, experi-
mentar ser atravessado por suas palavras: saber convi-
ver com o ferimento na carne e a profusão de liberdades
que ele aciona. É um livro para o corpo, inscrito na pele,
sussurrado e gritado a plenos pulmões.
Falar de O único e a sua propriedade não é resumir
suas principais teses, mostrar as repercussões no seu
lançamento e ressaltar sua pertinência na atualidade.
Publicado em 1845, foi imediatamente recolhido pela
censura governamental. Hoje em dia, com a derrocada
do socialismo autoritário e o fracasso da difusão da
universalização da pacífica democracia promotora de
várias pequenas grandes guerras, Stirner permanece
um agitador para pessoas que combatem as uniformi-
dades. Está no fluxo intenso que atrai Nietzsche, Deleuze,
Foucault.
***
No início do século XXI diversificam-se os efeitos das
práticas anarquistas por jovens libertários que se for-
maram no interior dos anarquismos que emergiram dos
movimentos dos anos 1960, seja revitalizando práticas

232
verve
Stirner, o único, em língua portuguesa

passadas, seja inventando outras experimentações, li-


berações e libertações. O livro de Stirner também se
dirige aos libertários contemporâneos que não vivem
de reminiscências, nem de imitações do passado. O úni-
co e a sua propriedade é atual para quem revira posiciona-
mentos, abala identidades, vomita sobre os que se
arvoram em líderes ou diretores de consciências.
Stirner não pretende embalar o sonolento militante
para sonhar com a utopia, tampouco cabe no sovaco de
um líder pastoral. Debaixo do braço é até possível que o
livro provoque cócegas, risos, efeitos de uma sinistra
comédia em que o corpo se rebela contra a razão mórbi-
da, despertando-a para o fim da hierarquia do cérebro
sobre os sentidos e a ilusão do real para afirmar a vera-
cidade do simulacro. Ele convida ao presente, sem medo
de fazer seu leitor dar de cara com seu próprio cadáver.
O único é para pessoas libertárias, não forma militan-
tes, mas desenforma pessoinhas primorosas: não é para
as sentinelas do anarquismo.
Em O único e a sua propriedade não se encontram
respostas, mas desassossegos. É um livro que não se
presta à polêmica (o equívoco de Marx e Engels, em A
ideologia alemã, coisa datada e superada). Apenas
problematiza, afirma. Não se volta para a síntese, mas
para a reabertura no presente. É um livro para qualquer
pessoa, ainda que um arrogante acadêmico pretenda
dizer o contrário. Lendo Stirner, cada pessoa, jovem ou
adulta, reconhece que pensa sem tutela de proprietários
do pensamento. Stirner e seu livro provocam quereres.
* * *
Bragança de Miranda é um analista reconhecido dos
textos de Stirner, uma referência como Emile Armand,
Günther Freitag, Jean Barrué (vide, adiante, resenha
de Max Stirner e o anarquismo individualista), como Hakim

233
5
2004

Bey, em Taz, uma zona autônoma temporária e Albert


Camus, em O homem revoltado. Atravessa os percursos
de O único e a sua propriedade ressaltando os feitos de
MacKay, a importância da leitura de Stirner pelos ar-
tistas vanguardistas do início do século XX, a partir de
Picabia e Duchamp, passando por Pound, Beckett,
Joyce, o reconhecimento filosófico por Derrida e sua
incorporação por Deleuze. É pouco? Em
aproximadamente quarenta páginas, o ensaio de
Bragança de Miranda, “Stirner, o passageiro clandestino
da história”, dá conta de uma remexida no leitor para
que sua mão alcance novamente a prateleira e acione
outra leitura do livro.
Deixando de lado se Stirner é ou não um passageiro
da história, o que por si só remeteria a uma longa dis-
cussão sobre o hegelianismo, o ensaio de Bragança de
Miranda explicita este itinerário de maneira estimu-
lante comentando temas stirnerianos e indo de Marx
a Deleuze. Mais do que isso, chama a atenção para o
fato de Stirner ser menos citado do que lido e que ele
não pode ser reduzido a meia dúzia de fórmulas sem
sentido (pp. 328-329).
Bragança de Miranda escolhe falar sobre servidão,
espectros (abre o ensaio com uma citação de Novalis,
ali onde não há deuses, reinam os fantasmas), o crime,
a arte, e finaliza abordando o único. A cada movimento
concorda-se com o autor, volta-se aos escritos de
Stirner, procura-se outros analistas, reviram-se as
conclusões provisórias. O estilo do autor é coerente com
a proposta de Stirner deixando o leitor incomodado.
O corpo é o tema central em Stirner, antes mesmo
de Nietzsche. Disso somos lembrados, enfaticamente,
por Bragança de Miranda. Mas da mesma maneira
deve-se afirmar que encontra-se em Etiènne de la

234
verve
Stirner, o único, em língua portuguesa

Boétie (também muito lido e pouco citado) a emergência


da problematização da servidão na história.
Stirner não cessa, não há conclusão derradeira e o
ensaísta provoca novas agitações no leitor, incitando-o
a escrever, pois a escrita é vida, um ato de aprendiza-
gem que não tem fim. Entre a vida e a filosofia, Stirner
fica com a vida. Isto não quer dizer esquecimento da
filosofia. Lembra Bragança de Miranda, comentando o
escrito anterior a O único e a sua propriedade sobre arte
e religião (publicado em Verve 4), que depois da arte veio
a religião e que esta antecedeu a filosofia. É preciso,
isto sim, sair fora de uma filosofia espiritual, que pou-
pa o corpo para que este não a abale, e que pretende
mudar o mundo. O mundo não existe! A vida está no pre-
sente, hoje, agora, no momento desta leitura em que
acontece algo que não pode ser apreendido por um con-
ceito, numa pessoa única: você leitor neste exato mo-
mento que deixou de ser.
Stirner é estranheza, é carne, mas não pode ser re-
duzido ao elogio à animalidade. Sem delitos não há Esta-
do: isso era uma coisa sabida. Da mesma maneira, o
fato que funda um direito se encontra repleto de violên-
cia, como mais tarde Nietzsche veio confirmar. De ma-
neira que para Stirner, a prisão é o modelo da socieda-
de, como sublinha com força Bragança de Miranda. Da-
qui em diante, pode-se afirmar, também, que não sobram
em pé nem Rousseau que lhe antecedeu, nem
Kropotkin, que o sucedeu, nem Marx que pretendeu
apagá-lo, nada. Não há lei geral para um único, tam-
pouco interessa-lhe glorificar o fato do homem matar
deus para se colocar em seu lugar. É somente o preen-
chimento de um vazio. A ontologia do crime está abala-
da, antes mesmo que o abolicionismo penal, no último
quartel do século XX começasse existir; da mesma
maneira como a tal ontologia já fora desestabilizada

235
5
2004

anteriormente por William Godwin (ver capítulo inédito


de Political Justice, neste número).
O único age segundo as circunstâncias: ele não pres-
ta favores a princípios, à severidade ascética, aos supe-
riores e inferiores. Pensa e atua abolindo hierarquias
segundo a relação de forças. É também um anarquista:
menos pela crítica ao Estado ou à economia política, e
mais pela dimensão estética de sua obra, abolição das
hierarquias e por se desvencilhar dos resquícios ilumi-
nistas que imobilizam os anarquistas.
Bragança de Miranda situa a arte na prática do úni-
co dissolvendo a separação colocada pela modernidade
que fixara a estética num campo complementar, “onde
tudo o que não era racionalizável encontrava lugar” (p.
320). Neste momento, ele introduz um instigante deba-
te mostrando a ambigüidade da leitura de Stirner pelos
vanguardistas. De um lado, o “deslocamento da arte para
o artista” (p. 321), uma interpretação do único como gê-
nio. De outro, o artista associado à revolta e não à revo-
lução, fato sublinhado anteriormente por Albert Camus.
Neste ínterim sabe-se de um projeto de edição do livro
por Duchamp com capa de Max Ernst1. Os vanguardistas
nas artes, diferente da política, repararam na existên-
cia de Stirner. Suas obras ficaram enquanto os projetos
políticos vanguardistas soçobraram.
A análise de Bragança de Miranda, sobre a arte em
Stirner, nos remeteria a ampliar o opúsculo de Foucault,
“O que é o autor?”, em que este restringe sua análise
aos escritores e às conquistas modernas da discursi-
vidade em Freud, Nietzsche e Marx. Entretanto, Stirner,
que Foucault não desconhecia, invade o século XX da
profusão de imagens. Os desdobramentos entre os
vanguardistas e dadaístas, lidando com a autoria da obra
de arte, remetem também ao estudo da estética da

236
verve
Stirner, o único, em língua portuguesa

existência, momento de reflexão derradeira de Foucault,


um desvencilhar-se da concreta separação propiciada
pela modernidade. A arte não mais como imagem do real,
objeto ou possível transcendência, mas como vida na
associação de únicos.
A arte dimensionada para um querer criança, ali pre-
sente onde nada se separa. Não é o recomeço, nem um
começo progressivo realizando um ideal, mas vida na
pele, verdade dos simulacros, plasticidade no corpo, sem
altruístas e egoístas, singularidade como disse Deleuze,
estética da existência como inventou Foucault. Não é
preciso extirpar o desejo do criador de matar alguém; é
preciso viver libertaria-mente.
Stirner é também um anarquista no anarquismo2.
Ao apresentar seu livro diz: “em vez de continuar a ser-
vir com altruísmo aqueles grandes egoístas, sou eu pró-
prio o egoísta... eu que sou o meu tudo, eu que sou o
único. (...) Para mim, nada está acima de mim!” (pp. 10-
11). Certas pessoas precisam falar menos de cátedra
sobre Stirner, e ler, pelo menos, a primeira página de O
único e a sua propriedade.

Notas
1
A edição francesa de L’unique et sa proprieté, de Jean-Jaques Pauvert Éditeur,
publicada em 1960, apresenta capa de Max Ernst.
2
Edson Passetti. Éticas dos amigos, invenções libertárias da vida. São Paulo, Imagi-
nário, 2003.

237
5
2004

RESUMO

Recentemente publicado em português, O único e a sua proprie-


dade, obra singular de Max Stirner, chama a atenção entre nós
para a leitura deste incômodo autor. A perspectiva de Stirner abala
tanto o humanismo quanto o culto ao Estado numa radical afirma-
ção de si. Um anarquista no anarquismo, como coloca Passetti,
Stirner traz à tona uma afronta às hierarquias e à submissão.

Palavras-chave: individualismo, liberação, associação de egoístas.

ABSTRACT

Recently released in Portuguese, The ego and its own, ouvre


unique written by Max Stirner, highlights the reading of this
annoying author among us. Stirner’s perspective rocks both
humanism and the cult of state in a radical affirmation of the self.
An anarchist in the anarchism, as stated by Passetti, Stirner brings
up a libertarian affront to hierarchies and submission.

Keywords: individualism, liberation, association of egoists.

Recebido para publicação em 19 de abril de 2004.

238
verve

Semtesãonãohásolução

Roberto Freire

239
5
2004

uma entrevista com michel foucault1

— A apreciação do silêncio é uma das numerosas coi-


sas que um leitor, sem que se espere, pode apreender de
sua obra. Você tem escrito sobre a liberdade que o silêncio
permite, sobre suas múltiplas causas e significações. Em
seu último livro2, por exemplo, você diz que não existe ape-
nas um, mas numerosos silêncios. Seria fundado pensar
que há aí um potente elemento autobiográfico?
— Penso que qualquer criança que tenha sido
educada em um meio católico justamente antes ou du-
rante a Segunda Guerra Mundial pôde experimentar que
existem numerosas maneiras diferentes de falar e tam-
bém numerosas formas de silêncio. Certos silêncios
podem implicar em uma hostilidade virulenta; outros,
por outro lado, são indicativos de uma amizade profun-
da, de uma admiração emocionada, de um amor. Eu lem-
bro muito bem que quando eu encontrei o cineasta
Daniel Schmid, vindo me visitar, não sei mais com que
propósito, ele e eu descobrimos, ao fim de alguns minu-
tos, que nós não tínhamos verdadeiramente nada a nos
dizer. Desta forma, ficamos juntos desde as três horas
da tarde até meia noite. Bebemos, fumamos haxixe, jan-
tamos. Eu não creio que tenhamos falado mais do que
vinte minutos durante essas dez horas. Este foi o ponto
de partida de uma amizade bastante longa. Era, para

verve, 5: 240-259, 2004

240
verve
Uma entrevista com Michel Foucault

mim, a primeira vez que uma amizade nascia de uma


relação estritamente silenciosa.
É possível que um outro elemento desta apreciação
do silêncio tenha a ver com a obrigação de falar. Eu pas-
sei minha infância em um meio pequeno-burguês da
França provincial, e a obrigação de falar, de conversar
com os visitantes era, para mim, ao mesmo tempo algo
muito estranho e muito entediante. Eu me lembro de
perguntar por que as pessoas sentiam a obrigação de
falar. O silêncio pode ser uma forma de relação muito
mais interessante.

— Há, na cultura dos índios da América do Norte3, uma


apreciação do silêncio bem maior do que nas sociedades
anglofônicas ou, suponho, francofônica.
— Sim. Eu penso que o silêncio é uma das coisas às
quais, infelizmente, nossa sociedade renunciou. Não
temos uma cultura do silêncio, assim como não temos
uma cultura do suicídio. Os japoneses têm. Ensinava-
se aos jovens romanos e aos jovens gregos a adotarem
diversos modos de silêncio, em função das pessoas com
as quais eles se encontrassem. O silêncio, na época,
configurava um modo bem particular de relação com os
outros. O silêncio é, penso, algo que merece ser cultiva-
do. Sou favorável que se desenvolva esse ethos do silên-
cio.

— Você parece estar fascinado pelas outras culturas, e


não somente pelas culturas antigas; durante os dez primei-
ros anos de sua carreira, você viveu na Suécia, na Alema-
nha Ocidental e na Polônia. Este parece um itinerário um
pouco atípico para um acadêmico francês. Você poderia
explicar as razões que o motivaram a deixar a França e por

241
5
2004

que, quando você retorna em 1961, você teria, se me permi-


te dizer, preferido viver no Japão?
— Há hoje, na França, um esnobismo do anti-
chauvinismo. Espero que eu não seja, por meio do que
eu disse, associado como representante desta atitude.
Se eu fosse americano ou canadense, talvez eu sofresse
com certos aspectos da cultura norte-americana. De todo
modo, eu sofri e sofro ainda muitos aspectos da vida
social e cultural francesa. Esta é a razão pela qual eu
deixei a França em 1955. Por outro lado, eu vivi também
dois anos na Tunísia, de 1966 a 1968, mas por razões
puramente pessoais.

— Você poderia lembrar alguns dos aspectos da socie-


dade francesa que afetaram você?
— Quando eu deixei a França, a liberdade em maté-
ria de vida pessoal era terrivelmente restrita. Na épo-
ca, a Suécia parecia um país muito mais liberal. Mas
lá, eu descobri que ter um certo tipo de liberdade pode
ter, se não os mesmos efeitos, pelo menos tantos efei-
tos restritivos quanto em uma sociedade diretamente
restritiva. Esta foi, para mim, uma experiência muito
importante. Depois, tive a oportunidade de passar um
ano na Polônia onde, claro, as restrições e o poder de
opressão do Partido Comunista é algo verdadeiramente
diferente. Em um tempo relativamente pequeno, eu pude
experimentar ao mesmo tempo o que era uma velha
sociedade tradicional — como era a França dos fins dos
anos quarenta e o início dos anos cinqüenta — e a nova
sociedade livre que era a Suécia. Eu não diria que tive
a experiência da totalidade das possibilidades políticas,
mas tive uma amostra do que eram, naquela época, as
diferentes possibilidades das sociedades ocidentais. Essa
foi uma boa experiência.

242
verve
Uma entrevista com Michel Foucault

— Centenas de americanos vieram a Paris nos anos vin-


te e trinta, atraídos por aquilo que levou você deixar a Fran-
ça nos anos cinqüenta.
— Sim, mas se eles vêm hoje a Paris, não é mais,
penso, a fim de encontrar a liberdade. Eles vêm para
apreciar o sabor de uma velha cultura tradicional. Eles
vêm à França como os pintores iam à Itália no séc. XVII:
a fim de assistir ao declínio de uma civilização. De todo
modo, o sentimento que experimentamos da liberdade
é lembrado bem mais em países estrangeiros do que
em nosso próprio país. Enquanto estrangeiros, podemos
fazer pouco caso de todas essas obrigações implícitas
que não são inscritas na lei, mas no modo geral de com-
portamento. Por outro lado, o fato apenas de mudar as
obrigações é percebido ou experimentado como uma
espécie de liberdade.

— Retornemos um pouco, se isso não o entedia, a seus


primeiros anos em Paris. Creio que você trabalhou como
psicólogo no hospital Sainte-Anne.
— Sim. Eu trabalhei durante pouco mais de dois anos,
creio.

— E você disse em algum lugar que você se identificava


mais com os pacientes do que com o corpo médico. Isso é,
seguramente, uma experiência bem pouco habitual para
um psicólogo ou um psiquiatra. Daí vem o fato de que você
tenha — notadamente depois desta experiência — sentido
a necessidade de colocar radicalmente em questão a
psiquiatria, quando tantas outras pessoas se contentavam
em tentar refinar os conceitos estabelecidos?

243
5
2004

— De fato, eu não tinha um emprego oficial. Eu estu-


dava psicologia no hospital Sainte-Anne. Era o início dos
anos cinqüenta. Na época, o estatuto profissional dos
psicólogos nos hospitais psiquiátricos não era claramen-
te definido. Em minha qualidade de estudante de psico-
logia (de início estudei filosofia e depois psicologia), eu
tinha, em Sainte-Anne, um estatuto muito bizarro. O
chefe do serviço era muito gentil comigo e me deixava
em total liberdade de ação. Ninguém, entretanto, cui-
dava do que eu deveria fazer: eu podia fazer qualquer
coisa. Eu ocupei, de fato, uma posição intermediária
entre o quadro de pessoal e os pacientes; mas eu não
tinha, nisso, nenhum mérito, isso não era o resultado
de uma conduta particular de minha parte, era a conse-
qüência desta ambigüidade de meu estatuto, que fazia
que eu não estivesse verdadeiramente integrado ao
quadro de pessoal. Tenho clareza que o meu mérito não
tinha nada a ver com minha ocupação, porque na época
eu sentia tudo isso como uma forma de mal-estar. Ape-
nas alguns anos mais tarde, quando eu comecei a es-
crever um livro sobre a história da psiquiatria, que esse
mal-estar, esta experiência pessoal pôde tomar a forma
de uma crítica histórica ou de uma análise estrutural.

— O hospital Sainte-Anne tinha alguma coisa de parti-


cular? Poderia haver, em algum de seus empregados, uma
imagem particularmente negativa da psiquiatria?
— Não!!! Era um desses grandes hospitais como você
pode imaginar; e eu devo dizer que ele era antes me-
lhor que a maioria dos grandes hospitais de província
que eu visitei. Era um dos melhores hospitais de Paris.
Não, não havia nada de apavorante. E precisamente isto
era importante. Se eu tivesse feito o mesmo trabalho
em um pequeno hospital de província, talvez eu me

244
verve
Uma entrevista com Michel Foucault

sentisse tentado a imputar esses fracassos à sua


situação geográfica ou às suas insuficiências próprias.

— Você chega a evocar, com um tom de leve desprezo, o


lugar onde você nasceu; você tem, no entanto, boas lem-
branças de sua infância em Poitiers, nos anos trinta e qua-
renta?
— Claro. Minhas lembranças são antes... eu não usa-
ria exatamente a palavra “estranhas”, mas isso que me
bate hoje, quando eu tento reviver essas impressões, é
que a maior parte de minhas grandes emoções são liga-
das à situação política. Eu me lembro muito bem de ter
experimentado um de meus primeiros grandes terrores
quando o chanceler Dollfus foi assassinado pelos nazistas.
Era 1934, eu acho. Tudo isso já é muito distante. Raras
são as pessoas que se lembram do assassinato de Dollfus.
Mas eu me lembro de estar aterrorizado por isto. Eu penso
que eu senti aí o meu primeiro grande medo da morte.
Lembro também da chegada de refugiados espanhóis à
Poitiers; e de me confrontar em sala de aula com meus
colegas em função da guerra na Etiópia. Eu penso que os
meninos e meninas da minha geração tiveram sua
infância estruturada por esses grandes acontecimentos
históricos. A ameaça de guerra era nosso pano de fundo, a
moldura de nossa existência. Depois veio a guerra. Bem
mais que as cenas da vida familiar, esses são os
acontecimentos que dizem respeito ao mundo que é a
substância de nossa memória. Eu digo “nossa” memória,
porque estou quase certo que a maior parte de jovens
franceses e francesas da época viveram a mesma
experiência. Pesava uma verdadeira ameaça sobre nossa
vida privada. É talvez a razão pela qual eu sou fascinado
pela história e pela relação entre a experiência pessoal e

245
5
2004

os acontecimentos nos quais somos situados. Este é,


penso, o núcleo de meus desejos teóricos.

— Você continua fascinado por este período, mesmo que


não escreva sobre ele?
— Sim, com certeza.

— O que originou sua decisão de se tornar filósofo?


— Veja, eu não penso que jamais tenha planjeado
me tornar filósofo. Eu não tinha idéia do que iria fazer
de minha vida. Acho que isso também é bem caracte-
rístico de pessoas de minha geração. Não sabíamos,
quando tínhamos dez ou onze anos, se nos tornaríamos
alemães ou continuaríamos franceses. Não sabíamos
se iríamos morrer ou sobreviver aos bombardeios. Quan-
do eu tinha dezesseis ou dezessete anos, sabia apenas
de uma coisa: a vida na escola era um ambiente
protegido das ameaças exteriores, protegido da política.
E a idéia de viver protegido em um ambiente estudan-
til, em um meio intelectual sempre me fascinou. O sa-
ber, para mim, é isso que deve funcionar como o que
protege a existência individual e o que permite compre-
ender o mundo exterior. Eu creio que seja isso. O saber
como um meio de sobreviver, graças à compreensão.

— Você poderia dizer algumas palavras sobre seus es-


tudos em Paris? Algo que tenha uma influência particular
sobre o trabalho que faz hoje? Ou antes, algum professor
para o qual você tem reconhecimento, por razões pessoais?
— Não, eu fui aluno de Althusser e, na época, as prin-
cipais correntes filosóficas na França eram o marxis-
mo, o hegelianismo e a fenomenologia. Eu as tinha es-

246
verve
Uma entrevista com Michel Foucault

tudado, claro, mas a que me deu, pela primeira vez, o


desejo de completar um trabalho pessoal foi a leitura de
Nietzsche.

— Um público não francês é, sem dúvida, pouco apto


para compreender as repercussões dos acontecimentos de
maio de 1968; você às vezes diz que eles tornaram as pes-
soas mais sensíveis a seu trabalho. Você poderia explicar
por quê?
— Eu penso que antes de maio de 1968, na França ao
menos, um filósofo tinha que ser marxista, fenome-
nólogo, estruturalista, e eu não aderi a nenhum desses
dogmas. O segundo ponto é que na época, na França, o
estudo da psiquiatria ou da história da medicina não
tinha, politicamente, um estatuto real. Ninguém se
interessava. A primeira conseqüência de maio de 1968
foi o declínio do marxismo enquanto quadro dogmático e
a aparição de novos interesses políticos, culturais,
concernentes à vida pessoal. É a razão pela qual penso
que meu trabalho não encontrou nenhum eco, antes de
1968, salvo num círculo muito restrito.

— Algumas das obras que você faz referência no primei-


ro volume de sua História da Sexualidade — penso, por
exemplo, nesta narrativa da época vitoriana, My Secret Life
—, tem uma longa parte sobre fantasias sexuais. É às ve-
zes impossível distinguir a realidade da fantasia. Haveria
algum valor, em sua maneira de pensar, em ligar explicita-
mente ao estudo das fantasias sexuais e em elaborar uma
arqueologia dessas fantasias, mais que uma arqueologia
da sexualidade?
— Não. Eu não tento fazer uma arqueologia das fan-
tasias sexuais. Eu tento fazer uma arqueologia dos dis-

247
5
2004

cursos sobre a sexualidade, isto é, no fundo, da relação


entre o que fazemos, o que nos é imposto, permitido e
proibido fazer em matéria de sexualidade e o que nos é
permitido, imposto ou proibido de dizer a respeito de
nossas condutas sexuais. Este é o problema. Não é uma
questão de fantasias: é um problema de verbalização.

— Você poderia explicar como chegou à idéia de que a


repressão sexual que caracterizou os sécs. XVIII e XIX na
Europa e na América do Norte — uma repressão ao sujeito
que nos parece bem documentada historicamente — era de
fato ambígua, e que haveria atrás dela, forças que agiriam
em direção oposta?
— Não se trata, claro, de negar a existência desta
repressão. O problema é mostrar que a repressão se ins-
creve sempre em uma estratégia política muito mais
complexa, que visa a sexualidade. Isto não é simples-
mente haver repressão. Há, na sexualidade, um grande
número de prescrições imperfeitas, no interior das quais
os efeitos negativos da inibição são contrabalançados
pelos efeitos positivos da estimulação. A maneira pela
qual, no séc. XIX, a sexualidade foi certamente reprimi-
da, mas também trazida à luz, acentuada, analisada por
técnicas como a psicologia e a psiquiatria mostra clara-
mente que não se trata de uma simples questão de re-
pressão. Trata-se, antes, de uma mudança na econo-
mia das condutas sexuais de nossa sociedade.

— Quais são os exemplos mais marcantes que você pode


citar em apoio à sua hipótese?
— Um exemplo é a masturbação das crianças. Uma
outra, a histeria e toda a balbúrdia que foi feita em tor-
no da histeria feminina. Esses dois exemplos indicam,

248
verve
Uma entrevista com Michel Foucault

claro, a repressão, a proibição, a interdição. Mas o fato


de que a sexualidade das crianças tenha se tornado um
verdadeiro problema para os pais, uma fonte de
questionamento e inquietação, teve múltiplos efeitos
ao mesmo tempo sobre as crianças e seus pais. Ocupar-
se da sexualidade de suas crianças não era somente,
para os pais, uma tarefa moral, mas também uma tare-
fa prazerosa.

— Prazerosa? Em que sentido?


— No sentido de uma estimulação e de uma gratifi-
cação de natureza sexual.

— Para os pais?
— Sim. Chame isso uma violação, se você prefere.
Alguns textos são quase uma sistemática da violação —
da violação pelos pais, da atividade sexual das crianças.
Intervir nesta atividade íntima, secreta, que é a
masturbação, não é algo de neutro para os pais. É não
somente uma questão de poder, de autoridade, uma ta-
refa ética; é também um prazer. Concorda? Há, eviden-
temente um prazer da intervenção. A proibição severa
que pesa sobre a masturbação das crianças era, natu-
ralmente a causa dessa inquietação. Mas era também
isso que favoreceu a intensificação desta prática, a
masturbação recíproca e, sobre este tema, o prazer de
uma comunicação secreta entre as crianças. Tudo isso
deu uma forma particular à vida familiar, às relações
entre pais e filhos e às relações entre as crianças mes-
mas. Tudo isso teve como conseqüência não somente a
repressão, mas também uma intensificação da inquie-
tação e dos prazeres. Minha proposta não é de dizer que
os prazeres dos pais eram os mesmos que os dos filhos

249
5
2004

ou de mostrar que não há repressão. Eu tento encontrar


as raízes dessa proibição absurda.
Uma das razões pelas quais essa interdição estúpida
da masturbação tenha persistido durante muito tempo
é devido ao prazer e à inquietude, e a toda uma rede de
emoções que essa interdição suscita. Qualquer um sabe
bem que é impossível de impedir que uma criança se
masturbe. Não há nenhuma prova científica de que a
masturbação seja nociva. Pode-se estar seguro, ao me-
nos, que este é o único prazer que não é nocivo a nin-
guém. Então, por que se tem proibido a masturbação por
tanto tempo? Até onde eu conheço, não se encontra em
toda a literatura greco-romana mais que duas ou três
referências à masturbação. A masturbação não é
considerada um problema. Ela passaria, na civilização
grega e latina, por uma prática à qual se entregam os
escravos e os sátiros. Não havia sentido nenhum em
falar de masturbação para os cidadãos livres.

— Estamos em um ponto de nossa história onde o futuro


é bastante incerto. A cultura popular nos fornece em abun-
dância visões apocalípticas do futuro. Eu penso, por exem-
plo, no filme de Louis Malle My Dinner with André [1981].
Não é sintomático que, em um tal clima, a sexualidade e a
reprodução tornem-se problemáticas e não se pode ver, neste
projeto de uma história da sexualidade, um signo desse
tempo?
— Não, não penso que possa estar de acordo com isso.
De início a preocupação da ligação entre sexualidade e
reprodução foi maior, por exemplo, nas sociedades greco-
romanas e na sociedade burguesa dos sécs. XVIII e XIX.
O que me surpreende é o fato de que hoje a sexualidade
tenha, ao que parece, se tornado uma questão que não
tem mais ligação direta com a reprodução. É a sexuali-

250
verve
Uma entrevista com Michel Foucault

dade enquanto conduta pessoal que coloca o problema,


em nossos dias.
Tome a homossexualidade, por exemplo. Penso que
uma das razões pelas quais a homossexualidade não
constitui um problema importante no séc. XVIII tem a
ver com a idéia de que se um homem tem filhos, o que
ele possa fazer com outros não importa quase nada. No
curso do séc. XIX, começa-se a ver emergir a importân-
cia do comportamento sexual na definição da individua-
lidade. E isso é algo totalmente novo. É interessante
constatar que antes do séc. XIX, os comportamentos proi-
bidos, mesmo quando severamente julgados, eram sem-
pre considerados como um excesso, uma libertinagem,
uma forma de exagero. A conduta homossexual passava
sempre por uma forma de excesso do comportamento
natural, um instinto, um instinto que era difícil de con-
finar no interior dos limites particulares. A partir do séc.
XIX, constata-se que um comportamento tal qual a ho-
mossexualidade passa por um comportamento anormal.
Mas quando falo, a esse respeito, de libertinagem não
quero dizer, com isso, que ela era tolerada.
Penso que antes do séc. XIX não se encontra, ou se
encontra raramente, a idéia de que os indivíduos se
definissem por suas condutas ou seus desejos sexuais.
“Dize-me teus desejos e eu te direi quem tu és”: essa
afirmação é característica do séc. XIX.

— A sexualidade quase não parece, hoje, figurar como o


grande segredo da vida. Há algo que a substitua neste sen-
tido?
— É evidente que o sexo não é mais hoje o grande
segredo da vida, pois um indivíduo pode, em nossos dias,
deixar aparecer pelo menos certas formas gerais de suas
preferências sexuais sem se arriscar à maldição ou à

251
5
2004

condenação. Mas penso que as pessoas consideram ain-


da, e são convidadas a considerar, que o desejo sexual é
um índice de sua identidade profunda. A sexualidade
não é mais o grande segredo, mas ela é ainda um sinto-
ma, uma manifestação disso que há de mais secreto
em nossa individualidade.

— A questão que eu gostaria de colocar agora pode pa-


recer, à primeira vista, estranha, mas se for o caso, eu a
explicarei porque, em minha opinião, ela merece ser colo-
cada. A beleza tem uma significação especial para você?
— Penso que ela tem uma significação para todos!
Eu sou míope, certamente, mas não cego a ponto de que
ela não tenha significação para mim. Mas por que você
me coloca esta questão? Eu estou seguro de ter dado a
você provas de que não sou insensível à beleza.

— Uma das coisas que impressionam em você é esta


espécie de austeridade monástica em que você vive. Seu
apartamento em Paris é quase inteiramente branco. Mal se
pode encontrar nele os objetos de arte que decoram a maior
parte dos apartamentos franceses. Em Toronto, nessas úl-
timas semanas, você tem sido visto, em diversas ocasiões,
ostentar trajes tão simples como uma calça branca, uma
camiseta branca e uma jaqueta de couro negra. Você disse
que se ama tanto o branco é porque em Poitiers nos anos
trinta e quarenta as fachadas das casas nunca eram de
fato brancas. Você ocupa aqui uma casa de muros brancos
ornada com esculturas negras cortadas, e você disse que o
ponto que você ama é a nitidez e a força do negro e o branco
puros. Há também na História da sexualidade essa memo-
rável expressão: “a austera monarquia do sexo”. Você não
corresponde à imagem do francês refinado que pratica a

252
verve
Uma entrevista com Michel Foucault

arte do bem viver. Você é também o único francês que ama


dizer que prefere a cozinha americana.
— Sim, é verdade. Um bom sanduíche com coca-cola.
Não há nada igual. É verdade. Com sorvete, é claro.
De fato, eu tenho dificuldade em ter a experiência do
prazer. O prazer me parece ser de um controle muito
difícil. Isso não é tão simples como usufruir das coisas.
Devo confessar que é meu sonho. Eu gostaria e espero
morrer de overdose de prazer, qualquer que seja. Por-
que penso que é muito difícil, e tenho sempre a impres-
são de não experimentar o verdadeiro prazer, o prazer
completo e total; o prazer para mim está ligado à morte.

— Por que diz isso?


— Porque o gênero de prazer que eu considero como
o verdadeiro prazer seria tão profundo, tão intenso, me
submergiria tanto que eu não sobreviveria. Eu morre-
ria. Um exemplo que será ao mesmo tempo muito claro
e simples: uma vez eu fui atropelado por um carro na
rua. Eu caminhava. E por dois segundos talvez, eu tive a
impressão de que estava a caminho da morte e experi-
mentei um prazer muito, muito intenso. Fazia um tempo
maravilhoso. Eram umas sete horas, uma tarde de
verão. O sol começava a se pôr. O céu estava magnífico,
azul. Deste dia fica uma de minhas melhores lembran-
ças.
Há também o fato de que certas drogas são muito
importantes para mim, porque elas me permitem ter
acesso a esses prazeres terrivelmente intensos que eu
busco, e que eu não seria capaz de atingir sozinho. É
verdade que um copo de vinho, de bom e velho vinho,
pode ser agradável. Mas isso não é para mim. Um pra-

253
5
2004

zer deve ser alguma coisa de incrivelmente intenso. Mas


eu não penso ser o único nesse caso.
Não sei conceder a mim nem aos outros, esses
prazeres intermediários que criam a vida cotidiana.
Esses prazeres não significam nada para mim e não sou
capaz de organizar minha vida de maneira a deixar um
lugar para eles. É a razão pela qual eu não sou nem um
ser social, nem sem dúvida, no fundo, um ser cultural;
e isso é o que faz de mim algo de entediante na vida
cotidiana. Viver comigo, que chato!

— Costuma-se citar a observação de Romain Rolland,


segundo a qual os românticos franceses eram visuais, para
os quais a música era apenas um barulho. Mesmo que esta
observação seja evidentemente um exagero, alguns estu-
dos bem recentes apontam neste sentido. Encontra-se em
muitos de seus livros numerosas referências à pintura, mas
poucas à música. Você é um representante desse traço da
cultura francesa que tem sublinhado Rolland?
— Sim, isto é certo. Claro, a cultura francesa não
concede nenhum lugar à musica ou, se ela concede al-
gum, é um lugar negligenciável. Mas é fato que a músi-
ca desempenha um papel importante na minha vida
pessoal. O primeiro amigo que tive, quando eu tinha
vinte anos, era um músico. Mais tarde, eu tive um ou-
tro amigo, que era compositor que já é morto. Graças a
ele eu conheço toda a geração de Boulez. Esta foi uma
experiência muito importante para mim. Em primeiro
lugar porque ela me colocou em contato com um tipo de
arte que para mim é verdadeiramente enigmática. Não
tive e nem tenho nenhuma competência neste assun-
to. Mas eu era capaz de sentir a beleza em qualquer
coisa que me fosse muito enigmática. Há algumas obras
de Bach e de Webern que me regozijam, mas a verda-

254
verve
Uma entrevista com Michel Foucault

deira beleza é para mim uma frase musical, um trecho


de música que eu não compreendo, alguma coisa da qual
não se possa dizer nada. Tenho essa idéia — talvez ar-
rogante ou presunçosa — de que eu possa dizer algo so-
bre as grandes pinturas do mundo. E é a razão pela qual
elas não são absolutamente belas. Enfim, escrevi algo
sobre Boulez. Sobre a influência que teve sobre mim, o
fato de viver com um músico durante muitos meses.
Sobre a importância que isto teve sobre minha vida in-
telectual.

— Se eu entendi bem, os artistas e escritores têm, original-


mente, uma reação mais positiva em consideração a seu
trabalho que os filósofos, sociólogos e outros universitários.
— É verdade.

— Há afinidades particulares entre o seu tipo de filoso-


fia e as artes em geral?
— Eu não creio poder responder a esta questão. Veja,
mesmo que eu resista em dizer, é verdade que eu não
possa ser chamado de um bom acadêmico. Para mim o
trabalho intelectual está ligado a isso que você define
como uma forma de esteticismo — eu entendo isso como
a transformação de si. Creio que meu problema seja esta
estranha relação entre o saber, a erudição, a teoria e a
história real. Sei muito bem — e creio que saiba desde
minha infância — que o saber é impotente em transfor-
mar o mundo. Talvez eu esteja errado. E estou seguro
que estou errado de um ponto de vista teórico, pois eu sei
muito bem que o saber transformou o mundo.
Mas se me refiro à minha própria experiência, tenho
o sentimento que o saber não pode nada por nós e que o
poder político é capaz de nos destruir. Todo o saber do

255
5
2004

mundo não pode nada contra isso. Tudo o que eu disse


se liga não a isso que eu penso teoricamente (eu sei
que é falso), mas a isso que eu deduzo de minha experi-
ência própria. Eu sei que o saber tem poder de nos trans-
formar, que a verdade não é somente uma maneira de
decifrar o mundo (talvez mesmo que isso que chama-
mos de verdade não decifre nada), mas que, se eu co-
nheço a verdade, então eu serei transformado. E talvez
salvo. Ou então eu morra, mas creio de todo modo, que
seja a mesma coisa para mim.
É por isso, veja, que trabalho como um doente e que
trabalhei como um doente toda minha vida. Eu não cuido
de forma alguma do estatuto universitário disso que faço,
porque meu problema é minha própria transformação.
É a razão pela qual, quando as pessoas me dizem: “você
pensa isso, há alguns anos, e agora diz outra coisa”, eu
respondo: “vocês acreditam que eu trabalho tanto, há
tantos anos pra dizer a mesma coisa e não ser trans-
formado?” Essa transformação de si pelo seu próprio saber
é, creio, algo bem próximo da experiência estética. Para
que um pintor trabalha senão para ser transformado por
sua pintura?

— Além da dimensão histórica, a História da sexualida-


de contém uma preocupação ética? Não estaria você no ca-
minho de nos dizer como devemos agir?
— Não. Se você entende por “ética” um código que
nos diga de que maneira devemos agir, então, claro, a
História da sexualidade não é uma ética. Mas se por
“ética” você entende a relação que o indivíduo tem con-
sigo mesmo, quando age, então eu diria que ela tende a
ser uma ética, ou ao menos mostrar isso que poderia
ser uma ética do comportamento sexual. Essa seria uma
ética não dominada pelo problema da verdade profunda

256
verve
Uma entrevista com Michel Foucault

que rege a realidade de nossa vida sexual. Penso que a


relação que devemos ter conosco, quando fazemos amor,
é uma ética do prazer, da intensificação do prazer.

— Muitos são os que vêem em você um homem capaz de


lhes dizer a verdade profunda sobre o mundo e sobre eles
mesmos. Como você sente esta responsabilidade? Enquan-
to intelectual, você sente uma responsabilidade para com
essa função de profeta, de formador de mentalidades?
— Estou bem mais certo de não dar a estas pessoas
aquilo que elas esperam. Eu não me conduzo jamais
como um profeta. Meus livros não dizem às pessoas o
que elas devem fazer. Às vezes me repreendem por isso
(e talvez tenham razão), e ao mesmo tempo me recrimi-
nam por aparecer como profeta. Escrevi um livro sobre
a história da psiquiatria desde o séc. XVII até o início do
séc. XIX. Neste livro eu não disse quase nada sobre a
situação contemporânea da psiquiatria, e isso não im-
pediu que as pessoas o lessem como um manifesto da
antipsiquiatria. Um dia, fui convidado para um congresso
sobre psiquiatria que aconteceu em Montreal. Eu não
era um psiquiatra, mesmo tendo neste assunto, uma
pequena experiência, uma experiência muito breve,
como tenho dito a toda hora; de início recusei o convite.
Mas os organizadores do congresso me asseguraram que
me convidavam unicamente na qualidade de historiador
da psiquiatria, para pronunciar o discurso de abertura.
Como eu amo Quebec, fui. E lá, eu fui verdadeiramente
pego, porque o presidente me apresentou como o grande
representante francês da antipsiquiatria. Naturalmente,
havia lá pessoas muito gentis, que nunca tinham lido
uma linha sequer do que eu havia escrito e que estavam
convencidas que eu era um antipsiquiatra.

257
5
2004

Eu apenas tinha escrito a história da psiquiatria até


o início do séc. XIX. Por que diabos tanta gente, inclusi-
ve psiquiatras, vêem em mim um anti-psiquiatra? Pela
simples razão que eles não são capazes de aceitar a ver-
dadeira história de suas instituições, o que, evidente-
mente, é o signo de que a psiquiatria é uma pseudo-
ciência. Uma verdadeira ciência é capaz de aceitar até
mesmo as pequenas histórias infames de seus inícios.
Veja então até que ponto a chamada ao profeta é for-
te. É algo do qual, penso, temos que nos liberar. As pes-
soas devem elaborar sua própria ética, tomando como
ponto de partida a análise histórica, a análise sociológi-
ca e toda a análise que pudermos fornecer. Eu não pen-
so que as pessoas que tentam decifrar a verdade devam
fornecer, ao mesmo tempo, no mesmo livro e através da
mesma análise, princípios éticos ou conselhos práticos.
Toda essa rede prescritiva deve ser elaborada e trans-
formada pelas pessoas mesmas.

— Para um filósofo, ter sido objeto de uma reportagem


da Time, como você o foi em novembro de 1981, é o indicativo
de um certo tipo de popularidade4. O que você sente em
relação a isso?
— Quando os jornalistas me pedem informações so-
bre meu trabalho, acho que devo lhes dar. Veja, somos
pagos pela sociedade, pelos contribuintes para trabalhar.
E eu penso realmente que a maior parte de nós tenta
fazer o melhor trabalho possível. Acho que é normal, na
medida do possível, apresentar e tornar acessível esse
trabalho a todo mundo. Naturalmente, uma parte de
nosso trabalho não pode ser acessível a todos, porque é
difícil demais. A instituição à qual pertenço, na França
(eu não trabalho na Universidade, mas no Collège de
France), obriga seus membros a dar conferências públi-

258
verve
Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política...

cas, abertas a todos os que queiram assistir e nas quais


devemos explicar nosso trabalho. Somos ao mesmo
tempo pesquisadores e pessoas que devem expor
publicamente nossas pesquisas. Penso que há, nesta
velha instituição — ela data do séc XVII — algo de muito
interessante. O sentido profundo é, eu creio, muito im-
portante. Quando um jornalista vem me pedir informa-
ções sobre meu trabalho, tento fornecer-lhe da manei-
ra mais clara possível. Em todo caso, minha vida pesso-
al não apresenta nenhum interesse. Se alguém pensa
que meu trabalho não pode ser compreendido sem refe-
rência a tal ou qual aspecto de minha vida, eu aceito
considerar a questão. Estou pronto a responder se a vejo
justificada. Na medida em que minha vida pessoal é sem
interesse, não vale a pena fazer dela um segredo e pela
mesma razão não vale a pena torná-la pública.

Tradução do francês por Wanderson Flor do Nascimento.

Notas
1
“Michel Foucault. An interview with Stephen Riggins”, (“Une interview de
Michel Foucault par Stephen Riggins) realizada em inglês em Toronto, 22 de
junho de 1982. Traduzido a partir de Michel Foucault. Dits et écrits. Paris,
Gallimard, 1994, Vol. IV, pp. 525-538.
2
A vontade de saber, publicado em inglês em 1978.
3
Stephen Riggins é de origem indígena.
4
Referência a um artigo de Otto Friedrich: “France’s philosopher of power”,
contendo o resumo de uma entrevista com Michel Foucault. Time, 118º ano, nº
20, 16 de novembro de 1981, pp. 147-148.

Indicado para publicação em 10 de fevereiro de 2004.

259
5
2004

michel foucault, uma entrevista:


sexo, poder e a política da identidade1

— Você sugere em seus livros que a liberação sexual


não é tanto o colocar em jogo as verdades secretas sobre si
mesmo ou sobre seu desejo quanto um elemento do proces-
so de definição e construção do desejo. Quais são as impli-
cações práticas desta distinção?
— O que eu gostaria de dizer é que, em minha opi-
nião, o movimento homossexual tem mais necessidade
hoje de uma arte de viver do que de uma ciência ou um
conhecimento científico (ou pseudocientífico) do que é
a sexualidade. A sexualidade faz parte de nossa condu-
ta. Ela faz parte da liberdade em nosso usufruto deste
mundo. A liberdade é algo que nós mesmos criamos —
ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a des-
coberta de um aspecto secreto de nosso desejo. Nós de-
vemos compreender que, com nossos desejos, por meio
deles, instauram-se novas formas de relações, novas for-
mas de amor e novas formas de criação. O sexo não é
uma fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma
vida criativa.

verve, 5: 260-277, 2004

260
verve
Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política...

— No fundo, é a conclusão à qual você chega quando diz


que devemos experimentar tornar-nos gays e não nos con-
tentar em reafirmar nossa identidade de homossexual.
— Sim, é isto. Nós não devemos descobrir que somos
homossexuais.

— Nem descobrir o que isto queira dizer?


— Exatamente, nós devemos, antes, criar um modo
de vida gay. Um tornar-se gay.

— E é algo sem limites?


— Sim, claramente. Quando examinamos as diferen-
tes maneiras pelas quais as pessoas têm vivenciado sua
liberdade sexual — a maneira que elas têm criado suas
obras de arte, forçosamente constatamos que a sexuali-
dade tal qual a conhecemos hoje torna-se uma das fon-
tes mais produtivas de nossa sociedade e de nosso ser.
Eu penso que deveríamos compreender a sexualidade
num outro sentido: o mundo considera que a sexualida-
de constitui o segredo da vida cultural criadora; ela é
mais um processo que se inscreve na necessidade, para
nós hoje, de criar uma nova vida cultural, sob a condu-
ção de nossas escolhas sexuais.

— Na prática, uma das conseqüências dessa tentativa


de colocar em jogo o segredo é que o movimento homossexu-
al não foi mais longe do que a reivindicação de direitos
civis ou humanos relativos à sexualidade. Isso quer dizer
que a liberação sexual tem se limitado ao nível de uma
exigência de tolerância sexual.

261
5
2004

— Sim, mas é um aspecto que é preciso afirmar,


de início, para um indivíduo ter a possibilidade — e o
direito — de escolher a sua sexualidade. Os direitos
do indivíduo no que diz respeito à sexualidade são im-
portantes, e mais ainda os lugares onde não são res-
peitados. É preciso, neste momento, não considerar
como resolvidos estes problemas. Desde o início dos
anos sessenta, produziu-se um verdadeiro processo
de liberação. Este processo foi muito benéfico no que
diz respeito às mentalidades, ainda que a situação não
esteja definitivamente estabilizada. Nós devemos
ainda dar um passo adiante, penso eu. Eu acredito que
um dos fatores de estabilização será a criação de novas
formas de vida, de relações, de amizades nas
sociedades, a arte, a cultura de novas formas que se
instaurassem por meio de nossas escolhas sexuais,
éticas e políticas. Devemos não somente nos defender,
mas também nos afirmar, e nos afirmar não somente
enquanto identidades, mas enquanto força criativa.

— Muitas das coisas que você diz lembram, por exem-


plo, as tentativas do movimento feminista, que deseja criar
sua própria linguagem e sua própria cultura.
— Sim, mas eu não estou seguro de que nós deva-
mos criar nossa própria cultura. Nós devemos criar uma
cultura. Devemos realizar criações culturais. Mas aí,
devemos nos embater com o problema da identidade.
Desconheço o que faríamos para produzir essas cria-
ções e desconheço quais formas tomam essas
criações. Por exemplo, eu não estou de todo certo de
que a melhor forma de criação literária que possa
atingir aos homossexuais sejam os romances
homossexuais.

262
verve
Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política...

— De fato, nós mesmos não concordaríamos em dizer


isso. Seria partir de um essencialismo que nós devemos
precisamente evitar.
— É verdade. O que se entende, por exemplo, por “pin-
tura gay”? E, entretanto, eu estou certo que a partir de
nossas escolhas sexuais, a partir de nossas escolhas
éticas podemos criar algo que tenha uma certa relação
com a homossexualidade. Mas esta coisa não deve ser
uma tradução da homossexualidade no domínio da mú-
sica, da pintura — o que sei eu, novamente? — não penso
que isso seja possível.

— Como você vê a extraordinária proliferação, depois


dos dez ou quinze últimos anos, das práticas homossexu-
ais masculinas, a sensualização, se você prefere, de certas
partes até então negligenciadas do corpo e a expressão de
novos desejos? Eu penso, é claro, nas características mais
surpreendentes daquilo que chamamos filmes gueto-pornôs,
os clubes de S/M [sadomasoquismo] ou de fistfucking. É
isto uma simples extensão, em uma outra esfera, da proli-
feração geral dos discursos sexuais depois do séc. XIX, ou
antes, tratam-se de desenvolvimentos de outro tipo, própri-
os do contexto histórico atual?
— De fato, o que gostaríamos de falar aqui é precisa-
mente, penso eu, das inovações que implicam essas prá-
ticas. Consideremos, por exemplo, a “sub-cultura S/M”,
para retomar uma expressão cara à nossa amiga Gayle
Rubin2. Eu não penso que o movimento das práticas
sexuais tenha a ver com colocar em jogo a descoberta
de tendências sado-masoquistas profundamente escon-
didas em nosso inconsciente. Eu penso que o S/M é
mais que isso, é a criação real de novas possibilidades
de prazer, que não se tinha imaginado anteriormente.
A idéia de que o S/M é ligado com uma violência profun-

263
5
2004

da e que essa prática é um meio de liberar essa violência,


de dar vazão à agressão é uma idéia estúpida. Nós sabe-
mos muito bem que essas pessoas não são agressivas entre
elas; que elas inventam novas possibilidades de prazer
utilizando certas partes estranhas do corpo — erotizando o
corpo. Eu acredito que temos uma forma de criação, de
depósito de criatividade, dos quais a principal característica
é o que chamo de dessexualização do prazer. A idéia de
que o prazer físico provém sempre do prazer sexual e a
idéia de que o prazer sexual é a base de todos os prazeres
possíveis, tem, penso eu, verdadeiramente algo de falso. O
que essas práticas de S/M nos mostram é que nós podemos
produzir prazer a partir dos objetos mais estranhos, utili-
zando certas partes estanhas do corpo, nas situações mais
inabituais, etc.

— A assimilação do prazer ao sexo é, então, ultrapassada.


— É exatamente isso. A possibilidade de utilizar nossos
corpos como uma fonte possível de uma multiplicidade de
prazeres é muito importante. Se consideramos, por
exemplo, a construção tradicional do prazer, constata-se
que os prazeres físicos, ou os prazeres da carne, são sempre
a bebida, a comida e o sexo. É aí que se limita, penso eu,
nossa compreensão dos corpos, dos prazeres. Frustra-me,
por exemplo, que se examine sempre o problema das drogas
exclusivamente em termos de liberdade ou de proibição.
Eu penso que as drogas deveriam tornar-se elemento de
nossa cultura.

— Enquanto fonte de prazer?


— Enquanto fonte de prazer. Devemos estudar as dro-
gas. Devemos experimentar as drogas. Devemos fabri-
car boas drogas — suscetíveis de produzir um prazer mui-

264
verve
Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política...

to intenso. O puritanismo, que coloca o problema das


drogas — um puritanismo que implica que se deve es-
tar contra ou a favor — é uma atitude equivocada. As
drogas já fazem parte de nossa cultura. Da mesma for-
ma que há boa música e má música, há boas e más
drogas. E, então, da mesma forma que não podemos di-
zer somos “contra” a música, não podemos dizer que
somos “contra” as drogas.

— O objetivo é testar o prazer e suas possibilidades.


— Sim. O prazer também deve fazer parte de nossa
cultura. É muito interessante notar, por exemplo, que,
depois de séculos as pessoas em geral — mas também
os médicos, os psiquiatras e mesmo os movimentos de
liberação — têm sempre falado do desejo e nunca do pra-
zer. “Nós devemos liberar o nosso desejo”, dizem eles.
Não! Devemos criar prazeres novos. Então, pode ser que
surja o desejo.

— É significativo que certas identidades se constituam


em torno de novas práticas sexuais tais quais o S/M? Es-
sas identidades favorecem a exploração dessas práticas;
elas contribuem também para o direito do indivíduo de en-
tregar-se. Mas elas também não restringem as possibilida-
des do indivíduo?
— Veja bem, se a identidade é apenas um jogo, ape-
nas um procedimento para favorecer relações, relações
sociais e as relações de prazer sexual que criem novas
amizades, então ela é útil. Mas se a identidade se torna
o problema mais importante da existência sexual, se as
pessoas pensam que elas devem “desvendar” sua “iden-
tidade própria” e que esta identidade deva tornar-se a
lei, o princípio, o código de sua existência, se a questão

265
5
2004

que se coloca continuamente é: “Isso está de acordo com


minha identidade?”, então eu penso que fizeram um
retorno a uma forma de ética muito próxima à da
heterossexualidade tradicional. Se devemos nos
posicionar em relação à questão da identidade, temos
que partir do fato de que somos seres únicos. Mas as
relações que devemos estabelecer conosco mesmos não
são relações de identidade, elas devem ser antes rela-
ções de diferenciação, de criação, de inovação. É muito
chato ser sempre o mesmo. Nós não devemos excluir a
identidade se é pelo viés da identidade que as pessoas
encontram seu prazer, mas não devemos considerar essa
identidade como uma regra ética universal.

— Mas até agora a identidade sexual tem sido muito útil


politicamente.
— Sim, ela é muito útil, mas é uma identidade que
nos limita e, penso eu que temos (e devemos ter) o di-
reito de ser livres.

— Queremos que algumas de nossas práticas sexuais


sejam práticas de resistência no sentido político ou social.
Como isso é possível, sendo que a estimulação do prazer
pode servir para exercer um controle? Podemos estar segu-
ros de que não haverá exploração desses novos prazeres?
Estou pensando na maneira pela qual a publicidade utili-
za a estimulação do prazer como um instrumento de contro-
le social.
— Não se pode nunca estar seguro de que não have-
rá exploração. De fato podemos estar seguros de que ha-
verá uma, e que tudo o que se tem criado ou adquirido,
todo o terreno que se tem ganho será, em um momento
ou outro, utilizado desta maneira. Parece ser assim na

266
verve
Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política...

vida, na luta e na história dos homens. E eu não penso


que isso seja uma objeção a todos esses movimentos ou
a todas essas situações. Porém, você tem razão em as-
sinalar que devemos ser prudentes e conscientes do fato
de que devemos seguir adiante, ter também outras ne-
cessidades. O gueto S/M de São Francisco é um bom
exemplo de uma comunidade que tem a experiência do
prazer e que se constitui em torno deste prazer. Esta
segregação, esta identificação, este processo de exclu-
são produz efeitos de retorno. Eu não ousaria usar a pa-
lavra “dialética”, mas não está muito longe disso.

— Você escreve que o poder não é somente uma força


negativa, mas também produtiva; que o poder está sempre
presente; e que onde há poder, há resistência, e que a re-
sistência não é nunca uma posição de exterioridade em re-
lação ao poder. Mas como não chegarmos à conclusão de
que estamos presos no interior dessa relação e de que não
podemos, de uma certa maneira, escapar?
— Na realidade, eu não penso que a palavra “presos”
seja uma boa palavra. Trata-se de uma luta, mas o que
quero dizer quando falo de relações de poder é que
estamos, uns em relação aos outros, em uma situação
estratégica. Por sermos homossexuais, por exemplo,
estamos em luta com o governo e o governo em luta
conosco. Quando temos negócios com o governo a luta, é
claro, não é simétrica, a situação de poder não é a mes-
ma, mas participamos ao mesmo tempo dessa luta. Basta
que qualquer um de nós se eleve sobre o outro, e o pro-
longamento dessa situação pode determinar a conduta
a seguir, influenciar a conduta ou a não-conduta de outro.
Não somos presos, então. Acontece que estamos sem-
pre de acordo com a situação. O que quero dizer é que
temos a possibilidade de mudar a situação, que esta

267
5
2004

possibilidade existe sempre. Não podemos nos colocar fora


da situação, em nenhum lugar estamos livres de toda
relação de poder. Eu não quis dizer que somos sempre
presos, pelo contrário, que somos sempre livres. Enfim,
em poucas palavras, há sempre a possibilidade de mudar
as coisas.

— A resistência está, então, no interior dessa dinâmica


da qual se pode retirá-la?
— Sim. Veja que se não há resistência, não há rela-
ções de poder. Porque tudo seria simplesmente uma ques-
tão de obediência. A partir do momento que o indivíduo
está em uma situação de não fazer o que quer, ele deve
utilizar as relações de poder. A resistência vem em pri-
meiro lugar, e ela permanece superior a todas as forças
do processo, seu efeito obriga a mudarem as relações de
poder. Eu penso que o termo “resistência” é a palavra
mais importante, a palavra-chave dessa dinâmica.

— Politicamente falando, o elemento mais importante pode


ser, quando se examina o poder, o fato de que, segundo certas
concepções anteriores, “resistir” significa simplesmente dizer
não. É somente em termo de negação que se tem
conceitualizado a resistência. Tal como você a compreende,
entretanto, a resistência não é unicamente uma negação. Ela
é um processo de criação. Criar e recriar, transformar a
situação, participar ativamente do processo, isso é resistir.
— Sim, assim eu definiria as coisas. Dizer não cons-
titui a forma mínima de resistência. Mas, naturalmen-
te, em alguns momentos é muito importante. É preciso
dizer não e fazer deste não uma forma decisiva de resis-
tência.

268
verve
Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política...

— Isso suscita a questão de saber de qual maneira, e


em qual medida, um sujeito — ou uma subjetividade — do-
minado pode criar seu próprio discurso. Na análise tradici-
onal do poder, o elemento onipresente sobre o qual se fun-
da a análise é o discurso dominante, as reações a este
discurso ou, no interior desse discurso, apenas os elemen-
tos subsidiários. Entretanto, se por “resistência” no seio
das relações de poder entendemos mais que uma simples
negação, não se pode dizer que certas práticas — o S/M
lesbiano, por exemplo — são verdadeiramente a maneira
na qual sujeitos dominados formulam sua própria lingua-
gem.
— De fato. Eu penso que a resistência é um elemen-
to das relações estratégicas nas quais se constitui o po-
der. A resistência se apóia, na realidade, sobre a situa-
ção à qual combate. No movimento homossexual, por
exemplo, a definição médica de homossexualidade cons-
tituiu-se em um instrumento muito importante para
combater a opressão da qual era vítima a homossexua-
lidade no fim do século XIX e início do XX. Esta
medicalização, que foi um meio de opressão, tem sido
também um instrumento de resistência, já que as pes-
soas podem dizer: “se somos doentes, então por que nos
condenam, nos menosprezam?”, etc. É claro que este
discurso nos parece hoje bastante ingênuo, mas para a
época ele foi muito importante.
Eu diria também, no que diz respeito ao movimento
lésbico, em minha perspectiva, que o fato de que as
mulheres tenham sido por séculos e séculos isoladas
na sociedade, frustradas, desprezadas de várias manei-
ras lhes proporcionou uma possibilidade real de consti-
tuir uma sociedade, de criar um certo tipo de relação
social entre elas, fora de um mundo dominado pelos
homens. O livro de Lillian Faderman, Surpassing the love
of men3, é, a este respeito, muito interessante. Ele le-

269
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2004

vanta uma questão: Que tipo de experiência emocional,


quais tipos de relações podem ser estabelecidas num
mundo onde as mulheres não têm poder social, legal ou
político? E Faderman afirma que as mulheres utiliza-
ram esse isolamento e essa ausência de poder.

— Se a resistência é o processo que consiste em liberar


as práticas discursivas, parece que o S/M lesbiano seja
uma das práticas que, a uma primeira vista, pode-se decla-
rar mais legitimamente práticas de resistência. Em que
medida essa práticas e essas identidades podem ser per-
cebidas como uma contestação ao discurso dominante?
— O que me parece interessante, no que diz respeito
ao S/M lesbiano é que ele permite se liberar de um cer-
to número de estereótipos da feminilidade que são uti-
lizados no movimento lesbiano — essa estratégia se fun-
da sobre a opressão de que foram vítimas as lésbicas, e
o movimento a utilizou para lutar contra essa opressão.
Mas é possível que hoje essas ferramentas, essas ar-
mas estejam ultrapassadas. É claro que o S/M lesbiano
tenta se liberar de todos os velhos estereótipos da femi-
nilidade, das atitudes de rejeição dos homens, etc.

— Em sua opinião, o que se pode aprender a respeito do


poder — e além do mais também, do prazer — com a prática
do S/M que é no fundo uma erotização explicita do poder?
— Pode-se dizer que o S/M é a erotização do poder, a
erotização das relações estratégicas. O que me choca
no S/M é a maneira como difere do poder social. O poder
se caracteriza pelo fato de que ele constitui uma rela-
ção estratégica que se estabeleceu nas instituições. No
seio das relações de poder, a mobilidade é o que limita,
e certas fortalezas são muito difíceis de derrubar por

270
verve
Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política...

terem sido institucionalizadas, porque sua influência é


sensível no curso da justiça, nos códigos. Isso significa
que as relações estratégicas entre os indivíduos se ca-
racterizam pela rigidez.
Dessa maneira, o jogo do S/M é muito interessante
porque, enquanto relação estratégica, é sempre fluida.
Há papéis, é claro, mas qualquer um sabe bem que es-
ses papéis podem ser invertidos. Às vezes, quando o jogo
começa, um é o mestre e, no fim, este que é escravo
pode tornar-se mestre. Ou mesmo quando os papéis são
estáveis, os protagonistas sabem muito bem que isso
se trata de um jogo: ou as regras são transgredidas ou
há um acordo, explícito ou tácito, que definem certas
fronteiras. Este jogo é muito interessante enquanto fonte
de prazer físico. Mas eu não diria que ele reproduz, no
interior de uma relação erótica, a estrutura de uma
relação de poder. É uma encenação de estruturas do
poder em um jogo estratégico, capaz de procurar um
prazer sexual ou físico.

— Em que esse jogo estratégico é diferente na sexuali-


dade e nas relações de poder?
— A prática do S/M desencadeia sobre a criação do
prazer e existe uma identidade entre o que acontece e
essa criação. É a razão pela qual o S/M é verdadeira-
mente uma subcultura. É um processo de invenção. O
S/M é a utilização de uma relação estratégica como fon-
te de prazer (de prazer físico). Esta não é a primeira vez
que as pessoas utilizam as relações estratégicas como
fonte de prazer. Havia, na Idade Média, por exemplo, a
tradição do amor cortesão, com o trovador, a maneira
que se instauram as relações amorosas entre uma dama
e seu amante, etc. Tratava-se, também, de um jogo es-
tratégico. Este jogo é retomado, hoje, entre os garotos e

271
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2004

garotas que vão dançar sábado à noite. Eles colocam


em cena relações estratégicas. O que é interessante é
que, na vida heterossexual, essas relações estratégi-
cas precedem o sexo. Elas existem seguindo a finalida-
de de obter o sexo. No S/M, por outro lado, essas rela-
ções estratégicas fazem parte do sexo, como uma con-
venção de prazer no interior de uma relação particular.
Em um dos casos, as relações estratégicas são pura-
mente sociais e é o ser social que é objetivado; enquan-
to que no outro caso, o corpo é o implicado. E é essa
transferência de relações estratégicas que passam do
ritual da corte ao plano sexual, o que é particularmente
interessante.

— Em uma entrevista concedida há um ou dois anos à


revista Gay Pied, você dizia que o que mais perturbava às
pessoas nas relações homossexuais não é tanto o ato se-
xual em si, mas a perspectiva de ver as relações afetivas se
desenvolverem fora dos quadros normativos.4 Os lugares e
as amizades que se atam imprevisíveis. Você acha que é
esse potencial desconhecido que as relações homossexu-
ais portam, ou você diria que essas relações são percebi-
das como uma ameaça direta em oposição às instituições
sociais?
— Se há uma coisa que me interessa hoje é o proble-
ma da amizade. No decorrer dos séculos que se segui-
ram à Antiguidade, a amizade se constituiu em uma
relação social muito importante: uma relação social no
interior da qual os indivíduos dispõem de uma certa li-
berdade, de uma certa forma de escolha (limitada, cla-
ramente), que lhes permitia também viver relações
afetivas muito intensas. A amizade tinha também im-
plicações econômicas e sociais — o indivíduo devia au-
xiliar seus amigos, etc. Eu penso que, no séc. XVI e no

272
verve
Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política...

séc. XVII, foi desaparecendo esse tipo de amizade, no


meio da sociedade masculina. E a amizade começa a
tornar-se outra coisa. A partir do séc. XVI, encontram-
se textos que criticam explicitamente a amizade, que é
considerada como algo perigoso.
O exército, a burocracia, a administração, as uni-
versidades, as escolas, etc. — no sentido que assumem
essas palavras nos dias de hoje — não podiam funcio-
nar diante de amizades tão intensas. Podemos ver em
instituições um esforço considerável por diminuir ou
minimizar as relações afetivas. Neste caso, em parti-
cular, nas escolas. Quando se inauguraram as escolas
secundárias que acolheram alguns jovens rapazes, um
dos problemas foi o de saber como se podia não somente
impedir as relações sexuais, claramente, mas também
impedir as amizades. Sobre o tema da amizade, pode-se
estudar, por exemplo, as estratégias das instituições
jesuítas — eles estavam cientes da impossibilidade de
supressão da amizade, eles tentaram então utilizar o
papel que tinha o sexo, o amor, a amizade e de limitá-
los. Deveríamos agora, depois de estudar a história da
sexualidade, tentar compreender a história da amiza-
de. É uma história extremamente interessante.
E uma de minhas hipóteses — a qual não apresenta-
ria, se eu tentasse prová-la, nenhuma dificuldade — é
que a homossexualidade (pelo que eu entendo a exis-
tência de relações sexuais entre homens), torna-se um
problema a partir do séc. XIX. A vemos tornar-se um
problema com a polícia, com o sistema jurídico. Penso
que se ela tornou-se um problema, um problema social,
nessa época, é porque a amizade desapareceu. Enquan-
to a amizade representou algo de importante, enquanto
ela era socialmente aceita, não era importante que os
homens mantivessem entre eles relações sexuais. Não
se pode simplesmente dizer que eles não as tinham,

273
5
2004

mas que elas não tinham importância. Isso não tinha


nenhuma implicação social, as coisas eram culturalmen-
te aceitas. Que eles fizessem amor ou que eles se
abraçassem não tinha a menor importância. Absoluta-
mente nenhuma. Uma vez desaparecida a amizade en-
quanto relação culturalmente aceita, a questão é coloca-
da: “o que fazem, então, dois homens juntos?” Neste
momento o problema apareceu. Em nossos dias, quando
os homens fazem amor ou têm relações sexuais, isso é
percebido como um problema. A este respeito penso que
a desaparição da amizade enquanto relação social e o
fato da homossexualidade ser declarada como problema
social, político e médico fazem parte do mesmo processo.

— Se o que importa hoje é explorar as novas possibili-


dades da amizade, é preciso frisar que em um sentido
amplo, todas as instituições sociais são feitas para favore-
cer as amizades e as estruturas heterossexuais, com o
menosprezo às amizades e estruturas homossexuais. O
verdadeiro trabalho não é instaurar novas relações sociais,
novos modelos de valores, novas estruturas familiares etc.?
Todas as estruturas e as instituições que caminham juntas
com a monogamia e com a família tradicional são uma das
coisas que os homossexuais não tem facilmente acesso.
Que tipo de instituições devemos começar a instaurar com
a finalidade não somente de defender-nos, mas também
de criar novas formas sociais que constituirão uma solução
efetiva?
— Quais instituições? Não tenho uma idéia precisa.
Claramente, penso que seja totalmente contraditório
aplicar para esse fim e esse tipo de amizade o modelo da
vida familiar ou as instituições que caminham junto
com a família. Mas é verdade que, em função de algu-
mas relações que existem na sociedade serem formas

274
verve
Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política...

protegidas de vida familiar, constata-se que algumas va-


riantes não são protegidas, são ao mesmo tempo, mais
ricas, mais interessantes e mais criativas do que es-
sas relações. Mas, naturalmente, elas são também bem
mais frágeis e vulneráveis. A questão de saber quais
tipos de instituições devemos criar é uma questão capi-
tal, mas eu não posso trazer a resposta. Nosso trabalho,
penso eu, é tentar elaborar uma solução.

— Em que medida queremos ou temos necessidade de


que o projeto de liberação dos homossexuais seja um proje-
to que, longe de se contentar em propor um percurso, pre-
tenda abrir caminhos? Dito de outra forma, sua concepção
de política sexual recusa a necessidade de um programa a
ser seguido, em função de preconizar a experimentação de
novos tipos de relação?
— Penso que uma das grandes constatações que te-
mos feito desde a Primeira Guerra é essa do fracasso de
todos os programas sociais e políticos. Percebemos que
as coisas não se produzem nunca como os programas
políticos querem descrever; e que os programas são sem-
pre, ou quase sempre, conduzidos seja a abusos, seja a
uma dominação política por parte de um grupo, quer
sejam técnicos, burocratas ou outros. Mas uma das re-
alizações dos anos sessenta e setenta — que considero
como realizações benéficas — é que certos modelos
institucionais têm sido experimentados sem programas.
Sem programa não quer dizer cego — enquanto ceguei-
ra de pensamento. Na França, por exemplo, nos últimos
tempos, tem-se criticado bastante o fato de que os dife-
rentes movimentos políticos em favor da liberdade se-
xual, das prisões, da ecologia, etc., não têm um progra-
ma. Mas, penso, não ter programa pode ser ao mesmo
tempo, muito útil, muito original e muito criativo, se

275
5
2004

isso não quer dizer não ter reflexão real sobre o que acon-
tece ou não se preocupar com o que é impossível.
Depois do século XIX, as grandes instituições políti-
cas e os grandes partidos políticos confiscaram o pro-
cesso de criação política, quero dizer com isso que eles
têm tentado dar à criação política a forma de um progra-
ma político, com a finalidade de se apoderar do poder.
Penso que é necessário preservar o que se produziu nos
anos sessenta e no início dos anos setenta. Uma das
coisas que é preciso preservar, em meu ponto de vista,
é a existência, fora dos grandes partidos políticos, e fora
do programa normal e comum, uma certa forma de ino-
vação política. É um fato que a vida cotidiana das pes-
soas tem mudado entre o início dos anos sessenta e ago-
ra; minha própria vida é testemunho disso. Essas mu-
danças, evidentemente, não as devemos aos partidos
políticos, mas aos numerosos movimentos. Esses movi-
mentos têm verdadeiramente transformado nossas vi-
das, nossa mentalidade e nossas atitudes, assim como
as atitudes e a mentalidade de outras pessoas — as pes-
soas que não pertencem a esses movimentos. E isso é
algo de muito importante e muito positivo. Eu repito,
não são essas velhas organizações políticas tradicionais
e normais que permitem esse exame.

Traduzido do francês por Wanderson Flor do Nascimento.

276
verve

Notas

1
“Michel Foucault, une interview: sexe, pouvoir et la politique de la identité”.
(“Michel Foucault, an interview: sex, power and the politics of identity”;
entrevista com B. Gallagher e A. Wilson, Toronto, junho de 1982; trad. F.
Durant-Bogaert). The advocate, no 400, 7 de agosto de 1984, pp. 26-30 e 58.
Esta entrevista estava destinada à revista canadense Body politic.
2
Gayle Rubin. “The Leather Menace: Comments on Politics and S/M”, in
Samois (ed.), Coming to power. writings and graphics on lesbian S/M. Berkeley,
1981, p. 195.
3
L. Faderman. Surpassing the love of men. New York, William Morrow, 1981.
4
Ver “De l’amitié comme mode de vie” [Da amizade como modo de vida].
Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux,
publicada no jornal Gai Pied, nº 25, abril de 1981, pp. 38-39.

Indicado para publicação em 10 de fevereiro de 2004.

277
5
2004

Ame
e dê vexame.

Roberto Freire

278
verve
Eu é um outro

Resenhas

eu é um outro vera schroeder*

Roberto Freire. Eu é um outro: autobiografia de Roberto Freire.


Salvador, Maianga, 2003, 448 pp.

“Talvez isso explique as aventuras de minhas


precisas navegações
terem se tornado absurdamente apaixonadas e tormentosas,
uma luta para atender, simultaneamente,
aos apelos do Eu que era um outro,
mas só meu,
e os do Eu que era apenas eu,
mas, em verdade, de todos os outros.”1

* Vera Schroeder é somaterapeuta.

verve, 5: 279-285, 2004


279
5
2004

A vida de Roberto Freire parece ter sido desde cedo


costurada através de três fios: arte, ciência e política. A
impressão que se tem ao ler sua autobiografia é que
realmente só havendo outros eus para dar conta de tan-
tas criações, sonhos e, principalmente, concretizações.
Literatura, medicina, teatro, jornalismo, psicanálise,
cinema, somaterapia. Tudo isso sempre entremeado,
sendo realizado praticamente ao mesmo tempo e com
urgência. A sensação é de estar frente a uma rendeira
que entrelaça os fios de vários bilros, deixando os olhos
dos expectadores atordoados com sua rapidez e maestria.
Ele nasceu em 1927 no Bixiga, bairro de imigração
italiana de São Paulo. Moleque tímido e gago, jogava bola
na várzea que hoje é o Ibirapuera. José Luis Pati, o Zé
Luiz, foi seu primeiro e grande amigo. Companheiro nos
primeiros chopp’s, nas trocas de confidências sobre ex-
periências sexuais, namoradas e nas longas discussões
sobre literatura, poesia, militância política, marxismo
e anarquismo.
Formou-se em Medicina pela Escola Nacional de
Medicina, no Rio de Janeiro, desenvolvendo projetos no
Instituto de Biofísica, dirigido por Carlos Chagas e, mais
tarde, no Collège de France, em Paris. Lá recebe o con-
vite de Alfredo Mesquita para lecionar na Escola de Arte
Dramática — EAD. Fez formação em Psicanálise com o
austríaco Henrique Schloman. Em 1958 estreiou a sua
primeira peça, Quarto de Empregada. Aproximou-se do
grupo do Teatro de Arena, escreveu a peça Gente como a
Gente — com direção de Augusto Boal e cenários de Flá-
vio Império — e Sem Entrada e Sem Mais Nada - dirigida
por Antunes Filho.
Em 1962, Freire entrou para o grupo Ação Popular,
organização socialista subversiva, e participou da cria-
ção do jornal tablóide Brasil, Urgente. Foi presidente da

280
verve
Eu é um outro

Associação Paulista da Classe Teatral e presidente do


Teatro Brasileiro de Comédia. Como diretor do Serviço
Nacional de Teatro elaborou o Plano Nacional de
Popularização do Teatro, usando o teatro como um ins-
trumento de conscientização da realidade social e polí-
tica, além de possibilitar o acesso ao equipamento cul-
tural em várias cidades do interior do Brasil.
“Os homens estão vivos, mas o seu amor está morto.
Assassinado.
Um matou a possibilidade de amor do outro.
A lei é essa mesma: amor por amor, para que não
haja amor!”1
Com o golpe militar, foi preso inúmeras vezes. E na
prisão, em folhas de jornais velhos usados para dormir,
começou a escrever seu primeiro romance, Cleo e Daniel,
inspirado na novela grega Daphnis e Chloé, de Longus.
Escreveu alguns seriados para a TV, como o Gente
como a Gente, João Pão e mais tarde, em 1972, escreveu
o seriado A Grande Família para a TV Globo.
Trabalhou com Samuel Weiner, no jornal Última Hora
e em 1965 é convidado a participar de uma das mais
importantes experiências jornalísticas brasileiras: a
revista Realidade. Novamente exercendo seu amor pelo
jornalismo e principalmente pelas reportagens, recebe
o Prêmio Esso com a reportagem Meninos do Recife, na
qual se fez passar por vendedor ambulante de cafezinhos
para retratar a vida dos menores abandonados das ruas
de Recife.
Neste mesmo ano, 1965, é jurado do I Festival Nacio-
nal de Música Popular Brasileira, na TV Excelsior, no
qual Elis Regina vence com a música Arrastão, de Edu
Lobo e Vinicius de Moraes. Participa também do último
em 1972, o VII Festival Internacional da Canção Popular,

281
5
2004

da TV Globo, realizado no Maracanãzinho, Rio de


Janeiro. Este festival se encerrou num clima
extremamente violento. Os militares exigiram a expul-
são de Nara Leão, presidente do júri, o que gerou a re-
volta de todos os jurados. Após subir ao palco e começar
a ler um manifesto redigido coletivamente, é retirado
do palco por policiais, que lhe aplicam uma tremenda
surra e o deixam estendido no camarim.
Como diretor artístico, integra o grupo responsável
pela criação do Tuca, o Teatro da PUC de São Paulo. Com
direção de Silnei Siqueira e cenografia de José Arman-
do Ferrara, seis meses após a fundação do teatro,
estréiam o primeiro espetáculo: Morte e Vida Severina,
de João Cabral de Melo Neto e músicas de Chico
Buarque. Na sua autobiografia, Freire relembra esta bela
experiência autogestionária vivida pelo grupo de profis-
sionais e estudantes da PUC. Em um texto redigido pela
equipe durante o Festival Mundial de Teatro Universi-
tário de Nancy, França, fica evidente a importância po-
lítica nas suas criações:
“Um drama que se propõe universal, um espetáculo
de condição social, nunca poderia ser concebido pela
adição aritmética das visões pessoais do autor, do
encenador, do cenógrafo, do músico e dos atores. Por
conseguinte, optou-se por um trabalho de criação em
equipe. (...) Do povo para o povo e entre os indivíduos de
cada povo. (...) O que faz com que os temas não possam
ser privados de música, sobretudo de canto geral (...)”.
Sua segunda montagem no Tuca foi a peça O & A,
com suas apresentações suspensas logo após a estréia.
Era decretado o AI-5.
Em 1969 Roberto Freire realizou um outro grande
sonho: levar para as telas de cinema o romance Cleo e
Daniel. Alguns problemas na administração do projeto

282
verve
Eu é um outro

acabaram dificultando a finalização do filme, que con-


tou com a participação de Irene Stefania como Cleo,
Chico Aragão fazendo o papel de Daniel, além de Myriam
Muniz, Betariz Segall, Lélia Abramo, Sady Cabral, John
Herbert, entre outros.
Extremamente insatisfeito com o resultado final do
filme, Roberto Freire resolve ir novamente à Europa. Em
Paris assiste à peça Paradise Now, do grupo norte-ame-
ricano Living Theater, dirigido por Julian Beck e Judith
Malina. A técnica de interpretação utilizada pelo grupo
chamou muito a atenção de Roberto Freire, além do
impacto produzido pela peça. Ao final do espetáculo,
Roberto Freire foi ao encontro de Julian Beck, que lhe
contou sobre os exercícios corporais realizados a partir
da obra de Wilhelm Reich (1897-1957). É desta manei-
ra, um tanto inusitada para alguém que havia feito
Medicina e realizado formação em Psicanálise, que
Freire iniciou seus estudos sobre as teorias reichianas,
retornando à Psicologia. Hoje, Freire e José Ângelo
Gaiarsa são considerados os precursores da teoria
reichiana no Brasil, teoria esta ainda bastante sonegada
nas universidades.
De volta ao Brasil, Roberto Freire desenvolveu traba-
lhos no recém-criado Centro de Estudos Macunaíma,
casa que foi de Mário de Andrade, na rua Lopes Chaves.
A equipe era formada por Myriam Muniz, Sylvio Zilber e
Flávio Império (1935-1985), um dos mais importantes
cenógrafos brasileiros, que se definia desta maneira:
“Não sou pintor, nem cenógrafo, nem professor, nem
arquiteto; ando na contramão das profissões, sou só um
curioso”.
Mais tarde foi morar nesta casa, que era de Myriam
e de Sylvio, onde alugava um pequeno quarto no segun-
do andar. Como descreve Roberto na autobiografia, “(...)

283
5
2004

a Soma foi nascendo neste ambiente. Pesquisávamos


juntos os exercícios para o desbloqueio da criatividade
para o aprendizado do teatro e esses mesmos exercícios
eu aprofundava e desenvolvia para a produção do
desbloqueio neurótico. Discutíamos muito as teorias e
a aplicação das teses de Reich, especialmente as
referentes à energia vital e ao desbloqueio da couraça
neuromuscular (...)”.
E foi lá no Centro de Estudos Macunaíma, em 1972,
que Roberto Freire voltou a trabalhar como terapeuta,
realizando os primeiros grupos de Soma. Para ‘tecer’ a
Soma, Roberto Freire utilizou outros fios além do
reichiano, como, por exemplo, a teoria gestáltica de
Frederick Perls e o Anarquismo. Porém, um fio impor-
tantíssimo foi a obra Corpos em Revolta, de Thomas
Hanna, principalmente na compreensão dos aspectos
antropológicos e filosóficos do ser humano. As pesqui-
sas de Hanna apontavam para o mesmo caminho e ti-
nham o mesmo olhar científico e ao mesmo tempo poé-
tico que os estudos e a obra de Freire. Como se Hanna
fosse também um outro eu no Eu de Roberto Freire.
“(...) Soma não quer dizer ‘corpo’, significa Eu, o ser
corporal. O soma é vivo; ele está sempre contraindo-se
e distendendo-se, acomodando-se e assimilando, rece-
bendo energia e expelindo energia. Soma é pulsação,
fluência, síntese e relaxamento. Os somas humanos são
coisas únicas que estão ejaculando, peidando, soluçan-
do, trepando, piscando, pulsando, digerindo. Somas são
coisas únicas que estão sofrendo, esperando, empalide-
cendo, tremendo, duvidando, desesperando. Somas hu-
manos são coisas convulsivas: contorcem-se de riso, de
choro, de orgasmos. Os somas são os seres vivos e orgâ-
nicos que você é nesse momento, nesse lugar onde você
está. O soma é tudo o que você é, pulsando dentro dessa
membrana frágil que muda, cresce e morre, e que foi

284
verve
Eu é um outro

separada do cordão umbilical que unia você — até o mo-


mento da separação — a milhões de anos de história
genética e orgânica dentro desse cosmos (...)”2.
Através da Somaterapia, Roberto Freire trabalhou em
vários estados brasileiros, divulgando a ‘Soma — uma
terapia anarquista’ em inúmeras palestras, simpósios
e em oficinas. Em seus livros — mais de 20 títulos pu-
blicados — suas idéias em torno do amor, da amizade e
do pensamento libertário sempre estiveram presentes,
como, por exemplo, nos livros Utopia e paixão, Coiote, Sem
Tesão não há solução e Ame e dê vexame. Atualmente,
Roberto Freire está trabalhando em mais um romance,
desta vez policial. Além disso, ainda este ano lançará
um CD, no qual estará acompanhado dos músicos Tuco
e Paulo Freire — seus filhos — declamando poesias de
Arthur Rimbaud, Leo Ferré, e poemas de sua autoria. É
membro do Coletivo Anarquista Brancaleone, do qual
fazem parte os somaterapeutas João da Mata, Jorge Goia
e Vera Schroeder.
Como se vê, estes bilros não param de tecer novas
peças. E quem observou esta ‘rendeira’ com atenção,
viu que de tanto defender a liberdade e a ideologia do
prazer, Freire nos ensinou a fazer renda e também a
namorar.

Notas
1
Roberto Freire. Eu é um outro: autobiografia de Roberto Freire. Salvador, Maianga,
2002.
2
Frase do personagem Benjamim, no livro Cleo e daniel.
3
Thomas Hanna. Corpos em revolta: a evolução-revolução do homem do século XX em
direção à cultura somática do século XXI. Rio de Janeiro, Editora Mundo Musical,
1970. Tradução de Vicente Barreto.

285
5
2004

prisões e escritas
de caber e não caber em si salete oliveira*

Heleusa Figueira Câmara. Além dos muros e das grades (discur-


sos prisionais). São Paulo, EDUC, 2001, 278 pp.

Ler, por vezes, é gostoso, por vezes, é demasiado ár-


duo. Ler deslumbrantes dissertações e teses, aquelas
escritas do fundo do coração, é raro. Ler um livro exube-
rante, aquele que nos pega, é gostoso demais. Ler Heleusa
Câmara, ser pego por seu Além dos muros e das grades
(discursos prisionais), sua dissertação de mestrado
tornada livro, é um acontecimento daqueles que
decoramos — decorar é guardar com o coração — nas
zonas próprias às delícias e convulsões experimentadas.
Afinal, é disto que o livro trata: cada um saber “a dor e a
delícia de ser o que é”.
Partir deste ponto de vista é se descobrir, enquanto
leitor, diante de um escrito abolicionista. Gesto presen-
te, já, na apresentação do livro feita por Edson Passetti,
orientador da dissertação, ao explicitar os efeitos de um
trabalho atravessado pela escolha em lidar com a análi-
se genealógica de Michel Foucault “não somente por
nossa admiração por seus escritos, mas porque os auto-
res estudados recriavam pela escrita a própria prisão
ou pela invenção da escrita suprimiam a penalização. A
genealogia é cinza, dizia Nietzsche, repleta de
luminosidades, silêncios, procedências diversas que nos
libera de finalidades. O escrito de Heleusa é assim,
abolicionista penal ali onde ainda não se tem sensibili-

* Doutora e pesquisadora no Nu-Sol, professora na Faculdade Santa Marcelina


e professora-pesquisadora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência
Sociais da PUC-SP pelo PRODOC-CAPES.

verve, 5: 286-291, 2004


286
verve
Prisões e escritas de caber e não caber em si

dade auditiva para ouvir o seu começo. Durante dois


anos, não só estudamos muito como penso que Heleusa
tenha produzido, com sua jovialidade de senhora já avó,
um dos mais belos livros sobre a prisão no Brasil” (p.16).
Não à toa o trabalho de Heleusa Câmara foi escolhido
para publicação por ser considerado, pela Comissão de
Pós-Graduação da PUC-SP, a melhor Dissertação de
Mestrado do ano de 1999.
A diferença emocionante deste livro, e que o faz
abolicionista, habita no fato de que ele se distingue de
tantos outros que abordam o tema da prisão para fazer
dela um pretexto de prolongamento da teoria ou sociolo-
gia da delinqüência com seus pressupostos-metas de
continuidade previsíveis: prevenção geral, periculo-
sidade, eliminação do anormal, dentre outros. Quando
Heleusa se dirige aos escritos de prisioneiros não é para
retirar deles exemplos ou argumentos a fim de restituir
aos encarcerados sua condição de sujeito que tem direito
de falar sobre as violações das quais são vítimas como
melhor forma de fundamentar uma nova correção no
sistema prisional aprimorando a aplicação da justiça
penal.
A textura de sua escrita transpõe o toque impresso
no tema, material trabalhado e naquilo que quis fazer
disso e o que fez de si mesma neste percurso. O leitor é
atingido por estes efeitos. Na escrita prosa-poeta de
Heleusa as palavras ecoam o tom emitido de sua boca e
explodem em mil papilas que a língua degusta, prolife-
ram nos ouvidos de seu leitor, rebatendo, vibrando em
fonemas reverberados em sons, sílabas, letras. Letra
tornada frase. Palavras extensíssimas. Prosa que trans-
borda.
Prosa derramada que horizontaliza escritas, escritos
e escritores. Sua generosa sensibilidade fecunda os

287
5
2004

inúmeros gestos de toque ao longo do livro, dentre eles,


a sutil delicadeza que imprime aos presos-escritores
escolhidos para problematizar discursos prisionais,
além; aquém; no meio das grades: Rosieles Ramos
Sales, morto em setembro de 1994 ao ser recapturado
após sua fuga da prisão; Hélio Alves Teixeira, encontra-
se em liberdade condicional; José Raimundo dos Santos,
continua cumprindo pena na prisão. No corpo do texto
são tratados pelo primeiro nome, Hélio, José Raimundo,
Rosieles, efeito da proximidade pessoal e única de quem
conviveu com estes homens em um cotidiano apartado
do universo esclarecido que divide o mundo que cabe
ao sujeito que conhece e aquele reservado ao objeto a
ser conhecido, dissolução do equacionamento
apaziguador do conhecimento-sujeito-objeto. Os
sobrenomes Sales, Teixeira, Santos, nas referências
das citações, indicam a escolha deliberada por tomar
suas fontes sem hierarquizá-las sob o registro da
autoria que pressupõe os graus de importância do
grande autor vinculado a uma obra maior, atitude
deliberada anti-maioridade-obra-autoria. São apenas
pequenos detalhes, mas é deles e de tantos outros que
o leitor inquieto, disponível à corrosão de suas cerradas
ou precárias certezas acerca do confinamento, extrai
sabores diversos nos quais o tema da prisão é colocado
sob uma perspectiva que a problematiza de um modo
diferente.
“A crença em certezas imediatas, para Nietzsche, é
uma ingenuidade moral, tendendo para a luta por for-
mação de rebanhos nivelados, querendo a universal fe-
licidade do rebanho em pasto verde sem nenhuma
periculosidade. Um rebanho obediente decorre das ar-
tes de mandar. (...) Nietzsche lembra, também, que gra-
ças a um excedente de vontade livre, podemos estar
prontos para todo ofício que exija acuidade de sentidos

288
verve
Prisões e escritas de caber e não caber em si

para todo risco. Risco que se se observa no dia-a-dia de


cada um, ante a crueldade da própria vida.
‘Pensei em escrever e escrevi,
Os urubus merecem e o céu também.
Se estou louco? Não, ou melhor, quem não está?
Uns dizem que sou certo demais,
outros que sou louco, e é sempre assim,
até que eu posso ser louco. Tudo bem,
mas se sou louco, não sou lunático,
e se sou certo, não sou exemplo.
Sou apenas eu mesmo, falo o que me vem à boca.
Procuro não ofender ninguém.
Gosto de urubus, ou melhor, admiro a beleza de seus
vôos.
Existe algum crime nisto? (Sales, 1994)’” (pp. 77-79).
Prosa que transborda do leito, leitor, feito margem.
Da prosa na borda que alça vôo-poeta é tecida a simulta-
neidade de discursos lá onde emergem inscrições anti-
prisionais na exterioridade de corpos-livres, apesar do
confinamento; do dentro e do fora no interior de grades-
construção acatados por corpos-fronteiras aprisionados
intra ou extra-muros; enfim, escritos e escritas de ves-
tígios do como a prisão se escreve e como se inscreve a
prisão.
O amálgama desta escrita-escrito-livro é forjado sob
a têmpera do exercício das escritas de si, noção traba-
lhada por Foucault a partir de seus estudos sobre a cul-
tura greco-romana; mais especificamente durante os
dois primeiros séculos do Império. O ‘como se escreve a
si mesmo’ vem se misturar, neste livro, a uma antolo-
gia de vidas infames que se imiscuem em uma possível
história da prisão. “Vozes estancadas, histórias desbo-

289
5
2004

tadas ou tingidas de sangue, e, por circunstâncias des-


pertadas, podendo andar por outros caminhos. Foucault
refletiu sobre o que restou da vida de algumas pessoas
que passaram pela prisão ‘absolutamente destituídas de
glória’, vislumbradas pelo esbarrão com o poder da lei,
sem nada que as tornassem interessantes aos olhos dos
pesquisadores, e as arrancassem das sombras que as
envolviam. Prisioneiros e seus discursos-bala, ‘poemas
invectivas’ percebidos, apenas, em notas infamantes
registradas pelo escrivão no cumprimento de seu ofício”
(p. 24).
Do arriscado caminho escolhido por Heleusa explode
o efeito transverso na subversão do apaziguamento his-
tórico sob a figura da narrativa-narrador. Já não é a pró-
pria prisão que se narra a partir da glorificação de seus
documentos legais maiores, mas de palavras extensas,
extenssíssimas, estancadas.
“As palavras, por mais desordenadas que se encon-
trem colocadas, são mais importantes para quem so-
mos do que as nossas personalidades vagamente polici-
adas” (p. 190).
Prisioneiros; escritores; história-prisão escrita, re-
escrita, rasurada, tornada outra; submissas vontades
encarceradas; vontades livres insubordináveis. Livres.
Rosieles Sales sabe e escreve:
“‘A prisão! Que tem a prisão? Presos ou não?
Não, pois uma cela, jamais será uma prisão. Então
que são esses muros,
paredes, grades e portas de ferro? (...)
Existem homens que estão na prisão, mas estão em
todas as partes,
dentro ou fora da construção.
Estão na prisão do espírito, na prisão do coração.

290
verve
Temor e controle social numa negra cidade

Esta é uma verdadeira prisão,


sem muros nem grades
e mais forte que qualquer construção, (...)
Pois os muros, as grades, como já falei,
são apenas simples construção’ (Sales, 1994)” (p. 272).
O livro de Heleusa Câmara é um convite para ouvi-
dos interessados em constatar o óbvio, ‘para que prisão?’,
ali onde habita a diferença do detalhe entre caber e não
caber em si.

temor e controle
social numa negra cidade thiago rodrigues*

Vera Malaguti Batista. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois


tempos de uma história. Rio de Janeiro, Editora Revan, 2003, 270 pp.

Das ruelas, becos e servidões malcheirosas do Rio de


Janeiro do século XIX emanava também o medo. A capi-
tal do Império tropical tinha pouco de européia, de civi-
lizada, assemelhando-se mais a uma cidade africana
na qual uma minoria branca submetia com a mesma
energia com que temia sua população de negros. O de-
senho informe da cidade era, assim, como a tomada
espacial da imperfeição, da insalubridade e barbárie.
Esse é o cenário tecido por Vera Malaguti Batista para a
apresentação de uma tragédia muito distinta do teatro
romântico e de costumes que gracejava à época: uma

* Professor e coordenador do curso de Relações Internacionais da Faculdade


Santa Marcelina e pesquisador no Nu-Sol.
verve, 5: 291-295, 2004

291
5
2004

história do medo que os negros, escravos e forros, produ-


ziram na elite senhorial da Corte para construir o que
Loïc Wacquant, chama no prefácio que assina, de uma
“sociologia histórica da escravidão”. Uma história que olha
para o Rio do século XIX objetivando o presente, já que o
medo de ontem, segundo a autora, persiste hoje na mes-
ma geografia, no mesmo tom de pele. O livro, produto de
sua tese de doutorado, pretende-se, desse modo, uma his-
tória do presente, um perscrutar no que foi e no que ainda
é nas relações sociais dessa cidade que avançou sobre
pântanos e morros, dependendo e renegando suas cone-
xões com a massa de negros sob a escravidão.
Ao anunciar uma análise em dois tempos, Malaguti
objetiva traçar um elo entre o medo de outrora causado
pelo negro escravo — indivíduo tido como violento, impu-
dico e transmissor de doenças — e o de hoje nessa capi-
tal sempre vista como sitiada pelo tráfico e pela
criminalidade vindos dos morros e periferias habitados
pelos descendentes daqueles perigosos de outros tempos.
No entanto, a busca de “uma história do medo na corte
imperial e uma onda contemporânea de pânico na cida-
de” (p. 21) não se encerra em si, mas, ao contrário, abre
espaço para uma hipótese ainda mais incisiva: a infu-
são do medo permanece como estratégia que torna possí-
vel a implantação de políticas autoritárias de controle
social amplamente apoiadas pela população amedronta-
da no Rio de Janeiro do final do século XX e começos do
XXI. O negro, decalcado na figura do pobre e vicioso, é um
outro ameaçador e tanto mais perigoso porque vive próxi-
mo, ao lado, imiscuído na sociedade sã. Foram transplan-
tados para trabalhar sob as mais duras condições e trou-
xeram consigo o perigo das enfermidades e da morte vio-
lenta. Na cidade feia imperial, de ruas tortuosas e
escuras, eles eram uma ameaça intestina, cruel e apa-
vorante. Na cidade maravilhosa, permanecem à esprei-

292
verve
Temor e controle social numa negra cidade

ta, vindos de outras vielas e becos, todos eles escuros,


tortuosos, miseráveis.
Em meados da década de 1830, o “pavor negro” perma-
nentemente alimentado pelos fantasmas da amotinação
escrava, ganharam fôlego com o episódio da Revolta dos
Malês, em Salvador, no final de janeiro de 1835. Na ma-
drugada do dia 24 daquele mês, estourou uma revolta de
negros, em sua maioria malês islamizados, que tomou
as ruas da cidade. Ainda que controlada com rapidez, a
insurgência negra contra a escravidão e a repressão ao
culto maometano fez espalhar o pavor da sublevação to-
tal da maioria escravizada. Rondava a lembrança da re-
volução haitiana e sua degolação de senhores brancos
pelos escravos insurretos. Assustava, também, a capaci-
dade de organização demonstrada pelos malês, que in-
cluía cartas e notas escritas em árabe e que davam con-
ta do planejamento secreto e premeditado da violência
contra os brancos. Malaguti resgata um dos vestígios da
revolta malê por meio da tradução em anexo de um livro
de orações — o “Livrinho Malê”— encontrado no pescoço
de um dos escravos mortos naquela noite (pp. 231-250).
Discurso vivo encontrado em um corpo sem vida, o Livri-
nho Malê é uma marca de como o islamismo pôde, ainda
que despido dos rigores rituais da África de origem, ope-
rar como prática de resistência e de organização, dei-
xando chocados e amedrontados os muitos analfabetos
senhores de escravos.
A Revolta dos Malês tomou à distância a capital do
Império, acionando paranóias e discursos alarmistas. O
controle da população negra parecia, então, ser de máxi-
ma prioridade, a fim de que se evitasse um levante como
aquele. O medo era já uma realidade para brancos cons-
tantemente à espera de envenenamentos, assassina-
tos, fugas e revoltas coletivas. Todavia, o episódio baiano
agiu, para a autora, como um catalisador a arregimentar

293
5
2004

novas atitudes com relação à massa negra. Articula-


ram-se, então, desde discursos abolicionistas humanita-
ristas, que identificavam na escravidão um mal a
embrutecer os negros e o próprio projeto de nação
brasileira moderna, civilizada e branca, até as mais
imediatistas reivindicações por segurança pública. Em
trecho contundente, a pesquisadora aponta como na
mídia carioca do século XIX já emergiam as “idéias-for-
ça presentes até hoje nos discursos do medo” (p. 174): o
absurdo da morte de brancos por negros, a necessidade
de vistorias, blitze preventivas e revistas em negros
transeuntes, a indignação com a impunidade aos crimi-
nosos, o apelo às tropas diante da ineficácia da polícia.
Terrificante permanência dos discursos que é ponto fun-
damental da reflexão a que se propõe Vera Malaguti: o
medo oligarca subsiste em elites amedrontadas.
O delinear do perigo negro propicia intervenções iné-
ditas sobre a cidade, dando vazão ao nascimento nos tró-
picos de uma medicina social que se apresenta como
força civilizadora a esquadrinhar, planejar, localizar,
prover de infra-estrutura a capital brasileira, com o in-
tuito de afastá-la de Dacar, aproximando-a de Paris. Os
movimentos do livro dedicados à emergência da medi-
cina social no Brasil, sua ação sobre o espaço urbano e
sua parceria com o discurso jurídico-penal são impor-
tantes por apontar um afloramento em terras brasilei-
ras de estratégias de governo de novo tipo, afinadas e
em sincronia ao que Michel Foucault identificou na
Europa da passagem do século XVIII para o XIX (“Cons-
truindo o biopoder na periferia”, pp. 157-169). Dispositi-
vos de controle social, chancelados por práticas sociais,
que visaram, na sua versão tropical, negros escravos e
libertos pobres, agentes a um só tempo de vícios mo-
rais, moléstias e violência. A pobreza incriminada como
alvo. O combate ao crime como bastião da ordem, do pro-

294
verve
Temor e controle social numa negra cidade

gresso, da civilização. Para uma sociabilidade fundada


em tais pressupostos, a repressão nunca é suficiente:
“a polícia sempre é pouca”, afirma Malaguti, “nas socie-
dades violentamente hierarquizadas e verticais” (p. 182).
Nos morros cariocas do século XIX circulavam
quilombolas armados. Nos do século XX e XXI circulam
favelados armados. Durante o Império, as ruas insalu-
bres da capital abrigavam corpos de escravos mortos,
jogados à sarjeta pelos proprietários. Na cidade republi-
cana, negros continuaram expostos sem vida até sua
mais atual versão: traficantes e policiais pretos estira-
dos à espera do rabecão. No Rio de hoje, “os traficantes-
favelados apresentados ao deleite da mídia fazem parte
do cenário vivo do teatro da escravidão” (p. 167).
A permanência do discurso do medo e da resoluta
decisão em implorar por punição é uma constatação
desconcertante que nos traz Malaguti. Após a leitura de
O medo na cidade do Rio de Janeiro, fica à superfície que
os pedidos de mais polícia, de redução da maioridade
penal, de guerra às drogas, de pena de morte e tantos
outros que pululam têm procedências rastreáveis no
começo vil da escravidão e do racismo. Nesse movimento
há que se reparar que no Estado Penal de hoje não é só
o “medo da elite” que grita com fúria; no Brasil da tole-
rância zero, as camadas baixas da população também
fazem coro com as políticas repressivas, dando suporte
aos discursos e práticas autoritários e olhando para o
Estado, com semblante clemente, pedindo por mais pri-
são, menos impunidade, mais segurança. Se “o medo
não é só uma conseqüência deplorável da radicalização
da ordem econômica [mas] um projeto estético, que en-
tra pelos olhos, pelos ouvidos e pelo coração” (p. 75), o
destemor deve ser, quem sabe, um novo brado, um con-
tra-posicionamento, uma outra atitude. Observados pelo
medo estamos.

295
5
2004

Episódios da
vida de um rebelde rogério nascimento*

Edgar Rodrigues. Rebeldias. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.


Vol. 1. 262 pp.

Edgar Rodrigues, nome indispensável a quem estuda


os movimentos operário e anarquista em Portugal e
no Brasil, no período das primeiras décadas do século
vinte, acrescenta outra obra às dezenas que já
publicou, à disposição dos estudiosos destes
movimentos. Nas páginas, deste que constitui o
primeiro volume de uma trilogia, o autor relata temas
diversos que dizem respeito tanto aos movimentos
referidos como à situação sócio-econômica da
população trabalhadora no chamado “terceiro mundo”.
Ao reunir entrevistas e artigos escritos na
imprensa venezuelana, brasileira e portuguesa,
sobretudo nas duas últimas, Edgar Rodrigues evidencia
os diversos nuances e implicações da questão social
nos dois países. Encontram-se, neste livro, artigos
publicados desde o longínquo ano de 1973, até anos
mais recentes.
A estratégia utilizada pelo autor é a de apresentar
os temas em capítulos de cada uma das quinze partes
que compõem o livro, além de texto introdutório e
posfácio. Com um traço marcadamente biográfico, em
que o envolvimento pessoal não poderia ser evitado
nos eventos de repressão estatal, como também por

* Professor na Universidade Federal de Campina Grande, pesquisador no Nu-


Sol e autor do livro Florentino de Carvalho, Pensamento Social de um Anarquista. Rio
de Janeiro, Achiamé, 2000, 206 pp.

verve, 5: 296-300, 2004

296
verve
Episódios da vida de um rebelde

conta dos esforços de transgressão visando superar


tais situações, de modo a ampliar o grau de liberdade,
a disposição dos textos possibilita uma leitura livre.
Cada parte possui uma conexão com a posterior e
com a anterior, sem que isto seja um impedimento à
elaboração de outras estratégias de leitura. Desta
maneira, o leitor pode escolher por qual das quinze
partes iniciar, a seguinte, e assim por diante, sem
cumprir a seqüência do autor.
Na primeira parte (“A Vida Começa aos Pares”),
Rodrigues reúne artigos abordando questões relativas
à juventude, às crianças e às mulheres. Aos jovens
dirige palavras de estimulo a uma instauração de vida
libertária. Registra, em tons contundentes e
revoltados, a situação de forçada marginalização a que
as crianças dos segmentos mais populosos da
sociedade estão confinadas. Isto por conta da má
organização social. Destaca, ainda nesta primeira
parte, a importância e a atuação de mulheres
anarquistas no campo da vivência libertária, listando
o nome de algumas desconhecidas, sem registro na
história das lutas sociais.
A segunda parte (“Perguntaram? Respondi!”) é
composta por entrevistas e um depoimento. Estes textos
registram a atuação e acontecimentos envolvendo
companheiros e o próprio autor. Estes escritos
apresentam seu intenso envolvimento com os
problemas, dilemas e batalhas libertárias.
Na terceira parte (“Para o Povo: de País para País só
Mudam os Nomes...”), o autor faz uma projeção da
situação da população trabalhadora em diversos países.
Registra a condição de espoliação e tirania, através
da ação levada a efeito por grupos governantes e
capitalistas, a que os trabalhadores da Etiópia,

297
5
2004

Guatemala e Coréia se encontram. Os EUA também


são abordados.
Na quarta parte (“Os Estrangeiros – O Direito de
Trabalhar – Expulsões”), trata especificamente da
migração portuguesa para o Brasil no início do século
passado, do estabelecimento destes imigrantes,
principalmente em atividades ligadas à pesca, e, na
seqüência, da campanha de expulsão destes
trabalhadores a partir de uma política nacionalista de
banimento do chamado “agitador estrangeiro”.
Na quinta parte (“Economia, Violência e Fome”),
aborda a relação entre violência e fome como frutos
de uma apropriação da riqueza socialmente produzida.
Esta riqueza social é concentrada nas mãos de poucos.
Enquanto estes poucos vivem uma vida de desperdícios
e farturas, a população trabalhadora sobrevive em
condições sub-humanas.
Na sexta parte (“Fé ou Negócio?”), registra e
denuncia charlatanismos e golpes de aproveitadores
da população trabalhadora, como também a insistente
união entre Estado e Igreja na manutenção do status
quo.
Na sétima parte (“Onde os Extremos se Tocam”),
trata da similitude entre esquerda, centro e direita
no cenário sócio-político. A equivalência destes
posicionamentos é irrefutável ao olhar para a série
de violências, assassinatos e mesquinharias
promovidos pelos mais diversos tipos de governança
pelo mundo. Elucidativo é o exemplo da luta contra a
ditadura cubana de Fulgêncio Batista, levada a cabo
pelos revolucionários, e que engendrou a ditadura de
Fidel Castro não sem antes ter eliminado quem, como
Camilo Cienfuegos, lhe fizesse sombra.

298
verve
Episódios da vida de um rebelde

Na oitava parte (“À Sombra do Estado”), relaciona a


miséria e a questão das drogas com os problemas
sociais; frutos da ação exploradora de capitalistas
apoiados por estadistas e sob o beneplácito da igreja.
A população trabalhadora encontra precariedade
também quando se trata de saúde, pois a medicina
consiste em mais um campo de obtenção de lucros.
Os EUA, de seu lado, possuem uma política interna
discriminatória, dirigindo suas energias repressivas
para segmentos marginalizados, com destaque aos
negros. A população carcerária neste país é alarmante.
Na nona parte (“Sindicatos, Greves, Sindicalismo”),
focaliza a tomada de posição dos trabalhadores, a partir
da criação da Primeira Associação Internacional dos
Trabalhadores em 1864, em relação à questão social
num sentido afirmativo de novas formas de
sociabilidade e de recusa da dominação. Elabora
reflexões em torno do centenário da morte dos
mártires de Chicago e a luta pelas oito horas de
trabalho e outros temas.
Na décima parte (“Mulheres, Homens, Idéias”), faz
um percurso em torno das vidas, idéias e importância,
na configuração de um pensamento anarquista, que
contou com pessoas como Louise Michel, Proudhon,
Sacco e Vanzetti, Fabio Luz, entre outros.
Na décima primeira parte (“Anarquia: Ordem ou
Desordem?”), realiza uma explanação do anarquismo
em seus princípios e postulados gerais. Elabora uma
reflexão acerca do passado do anarquismo como,
também , de seu presente, além de episódios
relacionados a uma pedagogia libertária.
Na décima segunda parte (“A Historia que os
Historiadores “Oficiais” não Escrevem”), discorre sobre
os acontecimentos que fizeram a cidade de Santos ser

299
5
2004

conhecida como a “Barcelona Brasileira”. Trata ainda


da Revolução Espanhola e de como os bolchevistas
russos lutaram contra esta experiência anarquista.
Na décima terceira parte (“Comunidades”), aborda
o tema da ecologia ao lado da criação de comunidades
alternativas como significativos esforços de
instauração de um modo de vida avesso a agressões
ambientais.
Na décima quarta parte (“Flashes de Cultura”),
elabora reflexões em torno de teses, escritas por
pesquisadores, acerca do movimento anarquista e do
movimento operário, expondo suas análises de pontos
específicos destes escritos.
A décima quinta parte (“Recordações que o tempo
não Apagou”) acentua o traço biográfico, como o próprio
título indica. Nela, o leitor acompanha o autor através
da descrição de acontecimentos envolvendo elementos
emocionais, de resistência e de combate com
companheiros.
Ao final, o leitor desfruta de mais um livro do rebelde
e incansável Edgar Rodrigues. Ao mesmo tempo,
espera os novos títulos prometidos desta trilogia e
outras publicações anunciadas nesta obra.
Adiante os que lutam!

300
verve
Ode à petulância

ode à petulância thiago souza santos*

Günther Freitag, Jean Barrué, Emile Armand. Max Stirner e


o anarquismo individualista. Coleção Escritos Anarquistas. São
Paulo, Ed. Imaginário, Nu-sol e Iel, 2003, 91 pp. Tradução de
Plínio Augusto Coêlho.

Sou o inimigo mortal do Estado, colocando-o sempre


diante da seguinte alternativa: Ele ou Eu.

Max Stirner

“Eu fundo minhas coisas em nada”. Assim Max


Stirner inicia e termina sua única obra O único e a
sua propriedade. Max Stirner é o pseudônimo de
Johann Kaspar Schmidt, filósofo alemão, nascido no
ano de 1806, em Bayreuth. Manteve relações com o
círculo berlinense dos “homens livres”, que segundo
o próprio Stirner “querem precisamente ser livres,
livres de toda crença, de toda tradição e de toda
autoridade”. Casou-se em 1837 com Agnes. Um ano
depois ela morre durante o parto, assim como o recém-
nascido. Em 1843 Stirner casa-se novamente, desta
vez com Marie Dähnhardt, a quem dedica o livro O
único e a sua propriedade.
A vida intelectual de Stirner intriga. Entre os anos
1841 e 1844 ele mostra muita força e vitalidade es-
crevendo diversos artigos para os jornais Rheinische
Zeitung [Gazeta Renana] e o Leipziger Allgemeine Zeitung
[Gazeta Geral de Leipzig], culminando, em 1844, com o

* Estudante de Ciências Sociais na PUC-SP, bolsista CNPq de iniciação cientí-


fica e integrante do Nu-Sol.

verve, 5: 301-305, 2004

301
5
2004

livro O único e a sua propriedade. A produção literária de


Stirner dos anos seguintes foi basicamente em torno
de algumas traduções de obras de J. B. Say (1845), Adam
Smith (1846) e Proudhon (1847) — além de alguns textos
respondendo a seus críticos. Em 1848 colaborou ainda
com alguns artigos para o Journal de Oesterreichischen
Lloyd. Seus últimos anos de vida foram em total miséria.
Perseguido por credores, e diversas vezes preso por
dívidas, morre em 26 de Junho de 1856 devido à picada
de uma mosca salvadora.
É precisamente sobre esta singular personalidade a
abordagem do presente livro Max Stirner e o anarquismo
individualista. São cerca de 90 páginas de um ousado
convite a nos deliciarmos na petulante filosofia de O
único. Para tanto quatro autores nos mostram, com todo
o vigor necessário, um pouco da vida e da obra deste
autor único chamado Max Stirner.
Edson Passetti abre o livro apresentando o autor e
mostrando que Stirner não pode ser apanhado como
anarquista, seria mais preciso dizer que ele é um anar-
quista nos anarquismos; mostra também como “a ime-
diata oposição entre individualismo e coletivismo exala
de imediato uma enjoativa fragrância acadêmica” (p. 7).
Permanecer afirmando esta distinção entre individua-
lista e coletivista “é uma questão acadêmica, platônica”
(p. 9), que não está apenas nas academias, mas antes,
difundida pela sociedade.
Günther Freitag pretende, assim como o título de seu
artigo já nos indica, fazer algumas observações acerca
da vida e da obra de Max Stirner. Para tanto o autor faz
um minucioso percurso pela vida de Stirner,
atravessando seu fracasso na tentativa de obter o título
de Staatsexamen (Professorado), obtendo apenas a facultas
docendi limitada. Trata, também, da participação de
Stirner no círculo dos Homens Livres até iniciar al-

302
verve
Ode à petulância

gumas análises sobre sua obra. Para Freitag, “a obra


de Stirner não é senão uma afirmação, uma descrição
de seu Eu. Um Eu que se livrou de todas as cadeias de
que tentavam carregá-lo os possessos de idéias ‘fixas’.
Sua obra não era a exposição de uma nova teoria, mas
o manifesto de uma prática. Não é, portanto, uma nova
ideologia ou um sistema, mas, ao contrário, um
modelo de vida que Stirner dá a seus leitores como
um viático” (pp. 33-34).
A investida de Jean Barrué é em uma proposta de
leitura da obra O único e a sua propriedade. Nesta sua
leitura o autor nos presenteia com algumas impor-
tantes considerações. As questões apontadas por
Barrué são atuais e permitem a continuação de im-
portantes debates envolvendo temas como associação-
sociedade, a liberdade, o Estado, o partido, revolução-
insurreição. Barrué se mostra um atento leitor ao dar
a devida importância aos sentidos etimológicos.
Atenção presente quando Stirner trata da questão da
revolução-insurreição. Segundo Barrué, ele empresta
a palavra francesa révolution, de origem latina. À “pa-
lavra Revolução Stirner opõe Empörung cujo sentido
habitual é revolta, rebelião. (...) Por Empörung, o Úni-
co ergue-se e o Eu desenvolve-se. Sentido conforme a
presença do prefixo empor que marca o movimento para
cima” (p. 68). Desse modo, enquanto a revolução vem
colocar uma nova ordem nas coisas, seja por meio de
um novo Estado ou da manutenção da idéia de socie-
dade, a insurreição pretende que o indivíduo se ele-
ve, e não seja mais dominado por qualquer ordem.
Armand é incisivo em seu “Prefácio de o único”.
Ele mostra que Stirner nunca se encontrou em uma
posição segura, esteve sempre no limite, no risco, e
que “para recolocar o indivíduo em seu determinismo
natural, ele [Stirner] se dedica a abalar todos os pilares

303
5
2004

sobre os quais o homem de nosso tempo edificou sua


morada de membro da Sociedade: Deus, Estado, Igreja,
religião, causa, moral, moralidade, liberdade, justiça, bem
público, abnegação, devotamento, lei, direito divino,
direito do povo, piedade, honra, patriotismo, justiça, hie-
rarquia, verdade, em resumo, os ideais de toda espécie.
Esses ideais, os do passado bem como os do presente,
esses ideais são ‘fantasmas’ emboscados em ‘todos os
cantos’ de sua mentalidade, que se apoderaram de seu
cérebro, ali se instalaram e impedem o homem de seguir
seu determinismo egoísta” (pp. 84-85).
Stirner não abre qualquer concessão, e nos possi-
bilita uma importante problematização do anarquismo,
nos advertindo que não se devem tomar abstrações
como novos standards nos quais se sustentam novas
verdades verdadeiras. Somos nós, e apenas nós, que
criamos as leis, a idéia de liberdade, de justiça, de
respeito à propriedade, o motivo por trás das coisas.
Ao introduzirmos nas coisas estes valores como se
fossem próprios deles mesmos, como se fossem algo
natural, agimos como os fracos sempre fizeram, ou
seja, convictos, crentes. E assim tem sido com mui-
tos anarquismos que não ousaram enfrentar a moral
e frente a esta se curvaram; mantendo inabalado um
ideal, um absoluto chamado sociedade. Neste sentido
o pilar da nova sociedade será pautado em novas abs-
trações: justiça, liberdade, igualdade, sociedade; nada
mais que fantasmas. Um mundo fantasmagórico não
tão diferente do belo universo cristão.
Há aqui uma extrema petulância nas palavras, mas
talvez a própria vida e obra de Stirner seja uma ode à
petulância. Isso porque cada trecho, cada página, cada
palavra de sua obra é recheada de inquietude, pertur-
bação, risco. Não é para qualquer um, e nem mesmo
“para ser admirado, é uns de nós”. E talvez por isso

304
verve
Miríades de associações: arcos abertos...

mesmo Stirner seja tão insuportável para alguns. Ele


é um desassossego frente aos verdadeiros; uma
inquietude aos que buscam certezas; um demolidor
aos que procuram um local seguro para criar morada.
Lançar-se na leitura de Stirner é se lançar no risco
iminente. É preciso, antes de tudo, desvencilhar-se
de certezas, abandonar consolos e renunciar à
segurança.

miríades de associações: arcos abertos e


conectados a flechas certeiras
silvana tótora*

Edson Passetti. Éticas dos amigos, invenções libertárias da vida.


São Paulo, Editora Imaginário/Capes, 2003, 293 pp.

Pensar sem pensamento. Corte que possibilita uma


entrada em um texto que se movimenta no limite do
caos, sem temer o disparatado, o paradoxo, dester-
ritorializando a fixidez e o conforto das representações
universalistas. Uma escrita que resiste a ser domada
por sínteses totalizantes, que seleciona os leitores —
alguns e não todos — dispostos a se abrir às
multiplicidades mutáveis que disparam problemas e

* Professora no Depto. de Política e vice-coordenadora do PEPG-Ciências


Sociais da PUC-SP.
verve, 5: 305-311, 2004

305
5
2004

questões abertas, dificultando a captura por um siste-


ma de saber-poder. Experimentar a vida na sua tragi-
cidade e intensidade: eis o convite que Edson Passetti
nos faz em seu intempestivo livro, Éticas dos amigos,
invenções libertárias da vida. Texto para aqueles que não
buscam um caminho, pois, bem sabem os inventores, o
caminho não existe.
Fazer do ensaio um estilo de percurso possibilita apro-
ximar a escrita da vida, liberando o pensamento para a
experimentação e criação, forçando o nosso próprio pen-
samento a se desestabilizar e fazer nascer algo novo.
Pensar também é arriscar-se, diz Foucault. O ensaio é
uma linha de fuga de um saber que cria a identidade de
um sujeito ou objeto, frustrando as tentativas de enqua-
dramento do autor, um anarquista nos anarquismos.
Foucault, Nietzsche e Stirner compõem o círculo es-
tratégico para uma genealogia da amizade. Edson
Passetti caminha na companhia desses pensadores sem
ser um mero discípulo, pois, como afirma Nietzsche, “re-
tribui-se mal a um mestre quando se permanece sem-
pre discípulo”. Tampouco os utiliza como objeto de aná-
lise, mas sim os deforma, trai como um infiel, entenda-
se criador, fazendo-os ranger a marteladas. Em res-
sonância com Nietzsche e Foucault, Passetti admite o
caráter perspectivo do conhecimento que implica em
uma relação estratégica de forças. Problematiza a ami-
zade seguindo o percurso genealógico, estremecendo as
tentativas de domesticar a amizade em modelos
societários ou estatais.
A história, diz Foucault a partir de Nietzsche, é uma
multiplicidade de pequenos e singulares acontecimen-
tos descontínuos que escapam aos reducionismos
totalizadores, ávidos de sentidos e essências que arti-
culem o presente ao passado. Tal como vivemos uma

306
verve
Miríades de associações: arcos abertos...

história sem referências e coordenadas reguladoras,


como “miríades de acontecimentos”, pode-se experimen-
tar viver entre amigos como uma “miríades de associa-
ções”, coexistências anárquicas enquanto vida em ex-
pansão, eis a grande invenção que Passetti vai presen-
tear aos leitores dispostos a acolher o seu sinal.
Ao reclamo de Aristóteles, ah amigos, não há amigos,
projeto que idealiza a amizade como um bem superior
capaz de pacificar conflitos nas relações internas e ex-
ternas à pólis, contrapõe a frase de Nietzsche, ah inimi-
gos, não há inimigos. Distinguindo-se de uma seleta co-
munidade de homens de bem, ideal de Aristóteles, no
amigo não se procura a projeção de uma identidade como
em um espelho, mas o melhor inimigo, ou seja, guer-
reiros que não se destróem, mas se desestabilizam.
Passetti espera que seus leitores sejam também o seu
melhor inimigo.
Cartografar a amizade é se posicionar contra toda
metafísica da amizade, comunidades privadas ou públi-
cas constituídas por afinidades eletivas, ou qualquer
projeto de sociabilidade utópica. Sublevando-se contra
as formas de conhecimento que aprisionam a amizade
em representações abstratas, descoladas do mundo em
que se vive, Passetti introduz a ética dos amigos,
“associabilidade libertária”, prosseguindo no caminho
aberto por Foucault, e interrompido por sua morte pre-
matura, de uma estética da existência. Trata-se de “con-
tribuir para pensar os círculos de amizade, como
problematizações éticas, também como atividades no
‘exercício de seu poder e na prática de sua liberdade’” (p.
69). As associações libertárias, segundo Passetti, atra-
vés de seus intercâmbios federativos, perfazem uma
história de inseguranças e perigos escapando ao domí-
nio do poder pastoral, disciplinar e de controle.

307
5
2004

“A ética dos amigos não é a ética da amizade” (p. 109),


pois é desprovida de qualquer moral prévia de cunho
universal que oriente os procedimentos de convívio, seja
por afinidades ou seja por identidades, tampouco se ori-
enta por uma finalidade de atingir a vida boa, feliz por-
que virtuosa. A ética dos amigos se institui como práti-
cas diárias de uma vida como obra de arte, autogestão
em construção. Tendo a vida como referência e avalia-
ção, “são os amigos e menos a amizade que vivem” (p.
139). “Amizade ou os amigos?” (p. 125), pergunta Passetti.
“Preferir o amigo é viver sobre riscos no presente” (p.
125) e não no conforto das relações pacificadas, nostal-
gia de um passado ou projeção para um futuro idealiza-
dos. Colocar a amizade antes do amigo é desejar criar,
segundo Passetti a partir de Nietzsche, “conceitos mais
elevados, ‘o ser o incondicional, o Bem, o verdadeiro o
perfeito’” (p.127). Os amigos em associações libertárias
potencializam a liberdade de cada um, sem aspirar ne-
nhuma concórdia ou identidade. O amigo é o melhor
inimigo.
Pode-se apreender em Nietzsche uma abordagem da
amizade a partir de sua crítica à compaixão (p. 142) pelo
homem, paixão dos esgotados da vida e moralizados até
a raiz, mas nem por isso menos ávidos de poder, reve-
lando uma vontade de querer dominar a vida, impondo-
lhe preceitos normativos. A atitude de Nietzsche em
relação ao homem é que ele deve ser superado. O ami-
go, para Nietzsche, é uma flecha em direção ao super-
homem, isto é, um devir criança. Longe de qualquer
retorno a uma infância originária, ou perdida, é um
modo de vida que “desaloja o conceito do conforto
normativo” (p. 151). Sob a perspectiva da criança, que
“fala pelo corpo e pela alma” (Nietzsche, apud Passetti,
p. 152) é possível um novo começo, uma segunda ino-
cência, pautada no esquecimento e no sim à vida. O

308
verve
Miríades de associações: arcos abertos...

que se pode aprender com as crianças, segundo Deleuze,


é a construção de trajetos e devires de intensidades
móveis sem se remeter a uma origem modelar e ideal.
Amigos são como as crianças que se aproximam e se
distanciam em suas diferenças, fazem e refazem rela-
ções como círculos móveis e arcos distendidos. Não fa-
zem contratos, mas pactos de intensidades e afetos que
se recriam a cada vez de forma diferente, impedindo a
fixação em formas ou funções.
A amizade tem sido compreendida no âmbito restrito
da vida privada ou em modos de filantropias, que só pre-
servam as hierarquias existentes, seja de cunho privado
ou público-estatal, expressando as modalidades vigentes
de “amizade entre povos, Estados, empresas, sindicatos,
associações de diversas procedências com base no
contrato e na normalização da vida” (p. 183). Passetti não
desperdiça sua flecha certeira apenas no combate dessas
formas de amizade, mas afirma a possibilidade de ir além
das aproximações e experimentos circunstanciais entre
amigos-crianças, “federalizando o planeta com horizontais
relações” (p. 184). “Os amigos são parceiros na liberdade
e iguais na diferença federativa” (p. 186).
Passetti encontra em Nietzsche um parceiro do
libertarismo em sua repulsa ao Estado, seu desprezo
pelos ocupantes do poder, governantes, sacerdotes e sua
modalidade moderna, os cientistas, que se arvoram em
condutores da humanidade, defensores de um suposto
bem público, da Verdade, do Direito e da Razão, seden-
tos de reconhecimento de seus pares e da plebe. A estes
não se deve honrar como inimigos, pois não são guer-
reiros. Os guerreiros evitam a praça (ágora, televisão
ou informática), mas não deixam de “invadí-la para afir-
mar, como resistências, a amistosidade entre iguais
diferenciados (...) é entrar e sair da política para enviesá-
la, um ardil contra ela mesma” (pp. 177-178).

309
5
2004

Na convivência com Nietzsche-Zaratustra, Passetti


pode “pensar a amizade livre da idealização como um
bem” (p. 183). Nietzsche, assim como Stirner, “nos quer
criança”(p. 242), embora Passetti atribua a ele uma “fi-
losofia adolescente”. Torna-se criança não por retorno à
uma infância, mas por sucessivas metamorfoses, o Sim
da criança, afirmativo da vida, deve passar pelo Não do
leão, destruidor dos valores morais existentes que apri-
sionam a vida. Não se torna um criador/criança sem
antes destruir. Mas o alvo de Zaratustra é certeiro na
superação do homem que carrega o peso dos valores
morais, no rumo do super-homem, não mais sujeito não
mais homem, mas afetos em expansão e permanente
metamorfose. É isso que podemos apreender da afirma-
ção de Nietzsche em Assim falou Zaratustra “ainda pre-
cisas tornar-te criança e não sentires vergonha. Ainda
tens em ti a altivez da juventude, tarde te tornaste jo-
vem; mas quem quer tornar-se criança deve, também,
superar a sua juventude” (p. 158).
Como crianças pensamos sem pensamento, afirma
Stirner, até sermos domesticados. Uma filosofia crian-
ça libera o pensar repleto de dúvidas e desacordos, fora
do âmbito da verdade seja religiosa ou seja racional. Os
amigos como as crianças, para Stirner, são uma “asso-
ciação de egoístas”, pois não visam aperfeiçoar-se, tor-
nar-se melhor, virtuosos, mas escapar do circuito do
bem, da utilidade ou do prazer de uma vida pacificada,
justa e boa, vivida no conforto das relações privadas ou
no cerco das instituições de cunho civil ou público-es-
tatal.
Para a sociedade e o Estado que necessitam ser de-
fendidos, as miríades de associações não formalizadas
são um perigo e uma subversão (p. 217). Ao se associa-
rem os amigos dissolvem fronteiras de identidades, nor-
mas morais universalizadoras e obstaculizam as insti-

310
verve
Miríades de associações: arcos abertos...

tuições disciplinares, pedagógicas ou terapêuticas, in-


terceptando a punição e o castigo como formas de
educação. Ser egoísta não significa ser intransigente
ou um só querer. “Os egoístas associados produzem que-
reres como relação de horizontalidade, e, como tal, dis-
pensam-se dos mecanismos da persuasão: entram e
saem livremente da associação (p. 258).
Se, por um lado, a associação de amigos é um perigo
para a sociedade e o Estado porque dissolve seu sentido
de fixidez, disciplina e controle com base na lei, na nor-
ma e punição dos desobedientes, por outro lado, não está
imune a uma possível cristalização. Aliás, trata-se de
uma estratégia da sociedade e do Estado isolar em guetos
os resistentes para subtrair-lhes a força. Assim, conclui
Passetti, a associação de amigos “somente permanece
um complô contra o Homem, a Sociedade e o Estado se
não se formalizar” (p. 275).
Éticas dos amigos de Edson Passetti é uma obra que
provocará nos seus leitores, naqueles que não gostam
de viver sem riscos, o convite para a experimentação e
inventar uma estética da existência em consonância
com a vida, escapando das armadilhas do biopoder em
suas investidas no domínio da vida.

311
5
2004

Não há nada mais


incômodo,
desagradável e
perturbador para uma
sociedade autoritária, e
sob a ideologia do
sacrifício, do que um
homem alegre. A
alegria é uma agressão
porque provoca inveja e
rompe pactos de
mediocridade.
Roberto Freire

312
verve

NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

hypomnemata
Boletim eletrônico mensal, 1999-2004

vídeos
Libertárias, 1999
Foucault-Ficô, 2000
Um incômodo, 2003

CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um
incômodo)

Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2003

1. a anarquia Errico Malatesta

2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston

3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.

4. municipalismo libertário Murray Bookchin

5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux

6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky

7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua portu-

guesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva

8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin

9. deus e o estado Mikhail Bakunin

10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin

11. escritos revolucionários Errico Malatesta

12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares

13. do anarquismo Nicolas Walter

14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau,

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2004

Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero

15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton,

Schuster, Kyrou, Legrand

16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda,

Berkman

17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti

18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo

Colombo

19. o essencial proudhon Francisco Trindade

20. escritos contra marx Mikhail Bakunin

21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud

22. a instrução integral Mikhail Bakunin

23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino,

Enckell

24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag

25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón Safón

26. a revolução mexicana Flores Magón

27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Colombo

Livros

Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro,


Editora Revan/Nu-Sol, 2004.

Edson Passetti (org.). Kafka-Foucault, sem medos. São Paulo, Ateliê


Editorial, 2004.

Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone


Editora/Nu-Sol, 2003.

Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed.


Imaginário/Nu-sol, 2001.

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verve

Publicações Libertárias em Língua Portuguesa

verve
Revista Semestral do Nu-Sol
Nas livrarias e em www.nu-sol.org

letralivre
Revista de Cultura Libertária e Literatura
Assinaturas: letralivre@gbl.com.br
e Caixa Postal 50083
20062-970 Rio de Janeiro/RJ

libertários
Revista de expressão anarquista
Nas livrarias e bancas de jornais.
Assinaturas: ed.imaginario@uol.com.br

utopia
Revista Anarquista de Cultura e Intervenção
www.utopia.pt

Novos Tempos
Nas livrarias e bancas de jornais.
Assinaturas: ed.imaginario@uol.com.br

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Recomendações para colaborar com verve

Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Con-


selho Editorial para possível publicação. Os textos enviados à re-
vista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à
formatação:

Extensão, fonte e espaçamento:

a) Artigos: os artigos não devem exceder 26.000 caracteres


contando espaço (aproximadamente 15 laudas), em fonte Times
New Roman, corpo 12, espaço duplo.

b) Resenhas: As resenhas devem ter até 6.000 caracteres (com


espaço), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo.

Identificação:

O autor deve enviar mini-currículo, de no máximo 03 linhas,


para identificá-lo em nota de rodapé.

Resumo:

Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 10 li-


nhas, em português e inglês.

Notas explicativas:

As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota


de fim de texto.

Citações:

As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto


observando o padrão a seguir:

I) Para livros:

Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página.

Ex: Max Stirner. O falso princípio de nossa educação. São Paulo,


Imaginário, 2001, p. 74.

II) Para artigos ou capítulos de livros:

Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,


página.

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verve

Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in En-


saios, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores,
p.76.

III) Para citações posteriores:

a) primeira repetição: Idem, p. número da página.

b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.

c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor,


ano, op. cit., p. número da página.

IV) Para resenhas

As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o


título, da seguinte maneira:

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número


de páginas.

Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Pau-


lo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.

V) Para obras traduzidas

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número


de páginas. Tradução de [nome do tradutor].

Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins


Fontes, 2000. Tradução de Salma T. Muchail.

As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico


para o endereço verve@nu-sol.org salvos em extensão rtf. Na impos-
sibilidade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em disquete
seja encaminhada pelo correio para:

Revista Verve

Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos


Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro
Godói, 969, 4o andar, sala 4E-18, Perdizes, CEP 05015-001,
São Paulo/SP.

Informações e programação das atividades


do Nu-sol no endereço:

www.nu-sol.org

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Edição especial verve 6 em outubro de 2004

um incômodo
Simpósio organizado pelo Nu-Sol
nos dias 28 e 29 de abril de 2003 na PUC-SP

alexandrehenz, arnaldoantunes, contadorborges,


dorotheavoegelipassetti, edsonpassetti,
guilhermecastelobranco, liachaia,
manueldacostapinto, márciofonseca, margarethrago,
nildoavelino, oswaldogiacóiajúnior, paulasibilia,
saleteoliveira, silvanatótora,
sílvioferraz, thiagorodrigues

&

Entrevista e texto inéditos de


michel foucault

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