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Visões LiterAMs
DO Urbano
m
o Imaginário da Cidade é obra
que se insere na corrente
de análise da Nova História
Cultural, o que eqüivale dizer
que a autora se volta para
as representações como forma
de abordagem do real passado.
No caso, Sandra Jatahy Pesavento
se debruça sobre uma
das representações possíveis
de acessar esse passado,
que é a literatura, buscando ver
como foi construído, por essa via,
o imaginário da modernidade
urbana. Remete-se a espaços
e temporalidades disüntas,
que percorrem Paris,
Rio de Janeiro e Porto Alegre,
indo do final do século XVIII
às duas primeiras décadas
do século XX. Nesse percurso,
que analisa como o olhar
literário constrói o paradigma
da cidade moderna, o livro
aprecia como as idéias e imagens
podem viajar no tempo
e no espaço e ser ressignificadas,
dentro de cada historicidade
na qual se mesclam
as especificidades locais
com a ressemantização
dos elementos icônicos
da modernidade urbana.
I iam I UNIVERSIDADE
1=^) FEDERAL DO RIO
Vi# GRANDE DO SUL

Ri'ilor.t
Wr.inn M.iria Pani//i
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e F'ii)-Rüíl(jr (lt,> Itiisímo
José Carlos Ferraz Hcnncmann
Pró-Rfilor cif Lxlejis.íf)
Fernando Selembrino
Cruz Meircilos

EDITORA DA UNIVERSIDADE
Dirolijt
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Laércio Foi't^'" Wagner Scheleck •Livraria: Mary Cirne Lima(gerente)•Apoio:Idalina Louzada o
Imaginário
da Cidade
Visões Literárias do Urbano
Paris * Rio de Ianoro » Porto Alegre

Sandra Iatahy Pesavento

Segunda Edição
© Sandra Jatahy Pesavento
1' edição: 1999

Direitos resen'ados desta edição:


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa e projeto grafico: Carla M. Liizzatto


Revisão: Maria Liicia Barbará
Editoração eletrônica: Mònica Ballejo Canto

Sandra Jatahy Pesavento


Professora no Departamento de História da UFRGS. Mestra em História pela PUCRS. Doutora em História
pela USP. Publicações: RifúhUrn Velha Gaúcha: charqueatiax,frigorífico!: e criadores - RS 1889-1930; História do
Rio Grande do Sul; RS: a economia e o poder dos anos 30; RS: agropecuária colonial e industrialização; A Revolu
ção Federalista; A Revolução Farroupilha; História da indústria sul-rio-grandense; Pecuária e indústria. Formas de
realização do capitalismo na .sociedade gaúcha no .século XIX; Burguesia gaúcha; Dominação de capital e disciplina
de trabalho, RS:1889-1930; Emergência dos subalternos: trabalho livre e ordem burguesa; Cem anos de República;
Porto Alegre: e.spaços e vivências; Borges de Medeiro.s; Memória da indústria gaúcha: RS 1889-1930; De escravo a
liberto: um difícil caminho; República verso e reverso; O cotidiano da República: elite e povo na virada do século; O
Bra.sil contemporâneo; Os industriais da República; O espetáculo da rua; 500 anos de América: imaginário e utopia;
História da Assembléia Legislativa do Rio Grande do .Sul: a trajetória do parlamento gaúcho; Porto Alegre caricata:
a imagem conta a história; Os pobres da cidade: vida e trabalho - 1880-1920; Exposições universais: e.spetáculos
da modernidade no século XIX; Imagens urbanas; Discurso e narrativa literária.

P472Í Pesavento, Sandra Jatahy


O imaginário da cidade: t isões literáiias do urbano
- Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre/ Sandra Jatahy
Pesavento. — 2.ed. — Porto Alegre :Ed. Universidade/
UFRGS,2002.

1. Literatura urbana — História — Paris. 2. Literatu


ra urbana — História —Rio de Janeiro. 3. Literatura ur
bana — História — Porto Alegre. I. Título.

CDU 82-94(443/444)
82-94(815.31)
82-94(815.51)

Catalogação na publicação: Mònica Ballejo Canto. CRB 10/1023


ISBN 85-7025-025-6
Sumárío

Capítulo 1
PEDRA E O SONHO: OS CAMINHOS DO IMAGINÁRIO URBANO / 7
Capítulo 2
O IMAGINÁRIO DE PARIS(DO FINAL DO SÉCULO XVIII AO FINAL DO SÉCULO XIX)/29
Da muralha ao boulevará. o nascimento da metrópole pelo olhar do cronista /32
Paris, capital do mundo:discursos e imagens da cidade moderna pré-Haussmann /53
De Paris para o mundo:visões literárias da cidade haussmaniana /89
Capítulo3
RIO DEJANEIRO: UMA CIDADE NO ESPELHO (1890-1910)/ 157
O efeito do espelho: da cidade maravilhosa ao país das maravilhas / 157
Os herdeiros do barão e o sonho de uma Paris tropical/ 163
Picaretas na alma encantadora das ruas: crônicas cariocas da mudança urbana/ 181
As rachas do espelho: outras imagens de uma mesma cidade / 210
Capítulo 4
OS ECOS DO SUL:PORTO ALEGRE E O SEU DUPLO (1890-1924)/ 245
Porto Alegre e as ilusões do espelho: do mito das origens
à hegemonia simbólica do campo/ 245
A cidade como desafio: utopias, projetos e intervenções na capital do sul / 262
Os discursos da cidade: a vida literária de Porto Alegre / 281
Saudosismo e passeísmo: a cidade à sombra da aldeia / 303
Progressismo e modernidade: o desejo de ser metrópole / 317
Amargura provinciana:o resto é paisagem /335
De tudo um pouco: aS ambivalências da pequena grande cidade / 350
Capítulo5
UM FIM E UM COMEÇO,MAS SEMPRE A CIDADE / 391
A PEDRA
E O Sonho
Os Caminhos
do Imaginário Urbano

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.
Capítulol

No princípio era o barro, e não a pedra, mas lájá estava


o sonho, mesmo que fosse fruto de uma violação ao
sagrado. Assim, o Gênesis narra a edificação da primei
ra cidade pelo fratricida Caim, que desobedece às leis de Deus
e estabelece as suas sobre a terra, submetendo a natureza. E é
ainda pela obra do homem e pelo seu sonho de chegar ao céu
que do barro se edifica a torre da confusão das línguas, novo
castigo de Deus à raça maldita de Caim. Babel,a celebrada torre
de que fala o Gênesis, teve sua imagem difundida através dos
séculos e fixada de forma paradigmática na expressiva tela de
Bruegel o Velho.
O nascimento da cidade nos chega, pois, de forma míti
ca, com apoio no texto sagrado e na imagem que nele se inspi
ra. Um discurso e uma imagem que nos chegam como repre
sentação de uma criação do homem. Como mito, trata-se de
uma estrutura narrativa que não somente conta e explica, mas
revela e porta sentidos outros para além do que é dito. Assim,
a cidade-mito das origens poderia expressar tanto o domínio
do homem sobre a natureza — que se traduz em cultura —
quanto o conflito, a ambição e o desejo de um vir-a-ser sem fim
da espécie humana.
Num desdobramento dos significados que recuperam a
emergência simbólica da urbe na história da humanidade, te
mos, ainda, a conotação do social: o erguimento de Babel foi
obra coletiva, e é sobre esse coletivo que se descarrega o castigo
divino. Nesse espaço de concentração populacional,os homens
que vivem na cidade não se entenderão, estando, pois, contida
na narrativa original, uma condenação: a cidade está destinada a ser centro
de conflito. O pecado inscrito, que acarreta o castigo, é aquele que se faz pre
sente no próprio ato fundador. Se, como diz o texto sagrado. Deus fez o ho
mem à sua imagem e semelhança e o fez de barro, é com o mesmo material
que os homens constróem a cidade, igualando-se, com isso, a Deus, em sua
obra, e buscando — pela verticalidade da construção — chegar aos céus, ele-
var-se até seus domínios.
Entre as muitas possibilidades de acesso ao fenômeno urbano, optamos
por seguir os discursos e imagens que falam de uma cidade, caminho este que
lidaria com os imaginários sociais que os homens, ao longo de sua história,
puderam construir sobre a cidade.
Nosso ponto de partida se insere no que chamaríamos de"história cultu
ral do urbano e que se propõe a estudar a cidade através de suas representa
ções. Entendemos ser esta uma fascinante proposta para o nosso final de sécu
lo, quando a cidade se coloca, mais do que nunca como desafio,sendo o lugar
— por excelência — "onde as coisas acontecem".
Nesse contexto, se a cidade se impõe como problema e, portanto, como
tema de reflexão e objeto de estudo, ela se oferece como um campo de abor
dagem para os estudos recentes sobre o imaginário social. Nossa contempora-
neidade é atravessada pelo domínio das imagens, pela criação de uma realida
de virtual, pela expansão da mídia e pela constituição de "um mundo que se
parece". Em suma, o imaginário, como sistema de idéias e imagens de repre
sentação coletiva, teria a capacidade de criar o real. Ou,como diz Manzini:

Nós sabemos hoje ser nossa invenção tudo o que,a partir das estimulações senso-
riais, se transforma em modelos mentais e produz a idéia de realidade e aquilo
que se apresenta a nós como realidade é, tem sido sempre, uma "realidade simu--
lada". Quer dizer, uma realidade construída em nosso espírito a partir de uma in
teração entre as estimulações exteriores e uma sedimentação cultural anterior.'

Assumir essa postura implica admitir que a representação do mundo é, ela


também,parte constituinte da realidade, podendo assumir uma força maior para
a existência que o real concreto. A representação guia o mundo,através do efeito
mágico da palavra e da imagem,que dão significado à realidade e pautam válores
e condutas. Estaríamos, pois,imersos num "mundo que se parece", mais real, por
vezes, que a própria realidade e que se constitui numa abordagem extremamente
atual, particularmente se dirigida ao otyeto "cidade".

'Manzini, Ezio. Un monde qui semble. In: Traverses 45. Revue du Centre Georges Pompidou.
Paris, nov. 1989. p.l28
Ainda insistindo nos desafios que este nosso final de século tem trazido à
baila, teríamos a questão da pluralidade de saberes, expressos em discursos e
em produções de imagens, que se cruzam e não se excluem, dando ao conhe
cimento uma dimensão transdisciplinar. Assim, a cidade é objeto de múltiplos
discursos e olhares,que não se hierarquizam, mas que sejustapõem,compõem
ou se contradizem,sem, por isso, serem uns mais verdadeiros ou importantes
que os outros.
A decantada crise dos paradigmas e a complexidade da vida contemporâ
nea impôs aos "leitores do urbano" uma concepção multifacetada de análise. Esta
seria, a nosso ver, uma das maneiras de entender o que chamaríamos de "cidade
plural", fenômeno múltiplo e poliocular. Como refere Edgar Morin:

O que me interessa não é uma síntese, mas um pensamento transdisciplinar, um


pensamento que não se quebre nas fronteiras entre as disciplinas. O que me in
teressa é o fenômeno multidimensional, e não a disciplina que recorta uma di
mensão deste fenômeno.Tudo o que é humano é,ao mesmo tempo,psíquico,so
ciológico,econômico, histórico, demográfico.E importante que estes aspectos não
sejam separados, mas sim que concorram para uma visão poliocular. O que me es
timula é a preocupação de ocultar o menos possível a complexidade do real.^

Sendo a cidade, por excelência, o "lugar do homem", ela se presta à


multiplicidade de olhares entrecruzados que, de forma transdisciplinar, abor
dam o real na busca de cadeias de significados.
Essa postura, que coloca a história cultural urbana na ordem do dia, pres
supõe o que se chamaria de "metaforização do social".'' Ou seja, as representa
ções da cidade tendem a assumir uma forma metafórica de expressão, com
apelo a palavras e coisas que, associadas ao conceito de cidade, lhe atribuem
um outro sentido.
Como refere Alan Mons,"* há metáforas visíveis, que se expressam nas ima
gens urbanas visuais, na fotografia, na arquitetura, na pintura, nas esculturas,
nos monumentos e prédios como um todo, no traçado das ruas, nos grafjiti e
na publicidade. Mas há também práticas metafóricas, que são aquelas — pú
blicas ou privadas — que se realizam no território urbano. Como a metáfora
produz transfiguração de sentido, há uma parte da representação que é ex
plícita — a qual Mons chama de "transparência mediástica" —, mas há uma
outra metaforicidade que,implícita,só aparece de quando em vez e cujo acesso

'^Morin, Edgar. Idéias contemporâneas. Entrevistas do Le Monde. São Paulo: Ática, 1989. p.35.
•^Mons, Alan. La métaplioresocial. Paris: PUF, 1992.
'Ibidem, p.l4. '

& -
implica o domínio de um código. Sendo a cidade abordada por suas metáfo
ras, o modo de proceder metafórico consistiria em contornar ou partir das
imagens representadas para chegar nela de volta.'
Cidade-problema,cidade-representação,cidade-plural,cidade-metáfoia —
o urbano se impõe pam o historiador da cultura nos dias de hoje como um
domínio estimulante. A cidade não é simplesmente um fato, um dado coloca
do pela concretude da vida, mas,como objeto de análise e tema de reflexão, ela
é constmída como desafio e, como tal, objeto de questionamento.
Nossa intenção é trabalhar a cidade a partir das suas representações,'' mais
especialmente as representações literaiias constmídas sobre a cidade. Tal pro
cedimento implica pensar a literatura como uma leitura específica do urba
no,capaz de conferir sentidos e resgatar sensibilidades aos cenários citadinos,
às suas mas e foiTnas arquitetônicas, aos seus personagens e às sociabilidade
que nesse espaço têm lugai*. Há,pois, uma realidade material — da cidade cons
tmída pelos homens, que traz as marcas da ação social. É o que chamamos
cidade de pedra, erguida, criada e recriada atmvés dos tempos, denubada e
tmnsfoiTnada em sua fomia e tmçado.
Sobre tal cidade, ou em tal cidade, se exercita o olhar literário, que so
nha e reconstrói a materialidade da pedra sob a forma de um texto. O escri
tor,como espectador privilegiado do social, exerce a sua sensibilidade paia criar
uma cidade do pensamento, traduzida em palavras e figurações mentais ima-
géticas do espaço urbano e de seus atores.
E, por último, numa visão ex-jjost, ousaríamos lançar o olhar do historia
dor sobre a visão literáiia da cidade, numa tentativa de, por sua vez, recons-
tmir o sonho que trabalhou a pedra. A literatura, ao "dizer a cidade", con
densa a experiência do vivido na expressão de uma sensibilidade feita texto.
Essa é, pois, uma estratégia de abordagem teórico-metodológica que apon
ta para o cmzamento das imagens com os discursos da cidade e que, por sua
vez, conduz a um aprofundamento das relações entre a história e a liteiatura,
além de ter por base o contexto da cidade em transformação.
Por princípio, definimos que há uma constatação aprioristica: a história
e a literatura corresponderiam a maneiras diferentes de "dizer a cidade", ou a
esforços para representá-la. Estaríamos, pois, diante de um patamar epistemo-
lógico básico, que partiria do conceito de representação, assumindo que as

®Ibidem, p.23.
''O conceito de representação, atribuído de Mareei Mauss e Émile Durkheim {Répresenlations
collectives et diversité des civilitations. Paris: Minuit, 1969. Oeuvres, 3), é retomado por historiado
res da cultura, como Roger Chartier e outros.

10
nan-ativas litei-áiia e históiica implicam discursos que dão conta da realidade
urbana através de diferentes caminhos metodológicos e contingências especí
ficas do gênero.
Há, contudo, que estabelecer uma distinção também precípua: nessa
inter-relação estabelecida, é o historiador da cultura de hoje que vai se vol
tar, ex-posl, pam um tempojá transcorrido e do qual ele recolhe as represen
tações literárias e urbanísticas pam constmir a sua representação. Nesse caso,
a escrita da literatura não contemporânea ao tempo de narrativa do historia
dor opera — para ele — como fonte pam a criação da sua versão. Ou seja, o
historiador, que trabalha com um tempo que "corre" por fora da experiên
cia do vivido, vai representar ojá representado, re-imaginar ojá imaginado.
Nessa medida, imagens e textos são — pam ele — fontes sobre as quais vai
colocar suas questões.
Não se tmta de estabelecer — pam o historiador — uma posição de al
guém que,situado pai"a além do bem e do mal — ou acima do contexto histó
rico — pam ele se volta, guardando, com relação a autores de textos urbanis
tas ou literários, uma distância baseada em diferenças hierárquicas entre as ci
ências. Tanto o historiador se coloca no mesmo plano epistemológico de cons
tmir o seu discurso sobre o real, quanto ele mesmo se insere num contexto
deteiTninado, sendo, pois, portador de todas as contingências de seu meio,
época,foiTnação cultural, etc. Logo, não se tmta de reivindicar para a história
uma metaposição entre as ciências ou um seu distanciamento do contexto.
Apenas que, no caso da criação da narrativa histórica, trata-se de recuperar
aquele "país esti-anho" da passeidade, resgatando aquilo que um dia teria ocor
rido. Para acessar esse tempojá transconido, o historiador precisa se valer de
representações da época, que "documentam o real", sejam elas de esciitoies,
de poetas, de arquitetos ou mesmo de historiadoxes de então...
Tal taiefa é extensa e laboiiosa, pois se trata de i^ecolhei; ciTizai", compa-
xare e xelacioxiar todas as vaxiáveis e x egistx"os a fim de coxistxoxir uma xiaxrativa
que texxha o efeito de real, que dê ixma vexsão do "passado" o mais pxóxima
possível do qxxe texia "vexdadeix^amexite acoxxtecido"..., ou seja, mesmo admi-
tixido que a repx esexxtação xxão atixige ou revela uma vexdade xáxxica e absoluta
e que coxistxói algo de axxálogo e sexnelhaxite ao que efetivamexite ocoxreu um
dia, o histoxiador xxão se vê livxe do faxitasma da vexdade buscada xiem das
sujeições do método ciexitífxcó.
O histoxiador tem diaxite de si uma vasta oferta de textos, de livxos, de
xiaxTativas, mas para que ele os tx^axisfoxTne em documexato, há que atexitar paxa
o fato de qixe, em detexmixiada medida, ele deve respoxxder ãs questões pxo-
postas pelo historiadox-, visto que, é o histoxiador que ixidaga e que, a partir

11
disso, fará o texto-documento "falar". Não que o texto literário se substitua à
históiia-aiquivo e a documentos oficiais, mais associados com o historiador. O
texto literário, no caso, peimite um olhar que se some a toda uma bagagem
própria ao ofício do histoiiador, que é o seu "capital específico".
O que importa é adotar uma postura que veja, na litei-atura, uma forma
de pensar a história.
Todas essas considerações trazem mais dúvidas que certezas, mas cremos
ser mais interessante e promissora a controvérsia do que o dogma e achamos
que o historiador da cultura, em termos contemporâneos, se encontra nesse
primeiro caminho, nesta sua estratégia de entender a história como narrativa
e, portanto, como representação do real.
Mas por que o historiador se volta para a obra literaiia?
O diálogo entre história e literatura é bastante antigo, mas o que se con
figura como novo é o fato de o historiador assumir a concepção da história
como nairativa. Essa postura foi objeto de reflexões que se acumularam a par
tir da década de 70, desde Hayden White" e Michel de Certeau^ a Paul Ri-
coeur,®Jacques Rancière'® e François Hartog." Chartier'- afirma que a expres
são usada por Lawrence Stone'^ de retorno da nanativa é, em si, malposta,
pois a história sempre foi uma fonna nanativa, desde que tomemos em conta
a noção aristotélica da nanativa, como a da articulação de um enredo de ações
representadas.
O que está em pauta é o tipo específico de nan-ativa que coiresponde ao
discurso histórico, que é também uma espécie de ficção — quando levamos em
conta as dimensões do imaginário, os critérios de escolha e seleção da monta
gem e desmontagem do enredo ou a sua condição de ser uma representação do
passado. Contudo, guarda uma especificidade com relação à nairativa ficcional
dita literaria pela preseivação de um método específico que prevê o recui-so
necessário às fontes, matéria-prima que fundamenta a constmção dos significa
dos. Da mesma fonna,só a nairativa histórica tem a pretensão de se referir a um
"passado real", efetivamente acontecido, embora Ricoeur também argumente

^'hite, Haiden. Metnhittory: the historir.nl imngination in ninetemth rmtury in Europe. S.I.:John Ho-
pkins University Press, 1973.
®Certeau, Michel. IJérriture de Vhistoire. 3.ed. Paris: Gallimard, 1985.
®Ricoeur, Paul. Temps et rérit. Paris: Seuil, 1983-85. 3v.
'"Rancière.Jacques. Les mots de Vhistoire; essnis depoétique du savoir. Paris: Seuil, 1992.
"Hartog, François. L'nrt du rérit historique. Pnssés rerx)mposés. Paris,Jan. 1995.
'"Chartier, Roger. A história hoje: dtividas, desafios, propostas. Estudos Históricos, n.l3,jn.-
jun.1994.
"Stone, Lawrence. The revival of narra tive: reflections on a new old history. In: The pnst and the
present. Boston: Routledge & Kegan Paul, 1981.

12
que, na litei-atin-a, os fatos naiTados são "reais acontecidos" para a voz naiTatí-
va.'"* Por outro lado, o escritor de ficção literáiia também guarda com as "fon
tes" uma relação de proximidade, pois elas compõem o que se chamaiia o seu
"referencial de contingência", que confere plausibilidade ao texto. O historia
dor busca recriar o que teria se passado um dia, e o escritor de litemtum cria
um enredo que poderia também ter oconido. Nesse sentido, ambas as repre
sentações são plausíveis e tmtam de convencer o leitor e timispoitá-lo a um ou
tro tempo, mas só o historiador empenha-se em demonstim" que a sua vei-são
não apenas "poderia ter sido", mas "efetivamente foi".
Sendo ambas l epresentações do real, a história tem a tendência de utilizai;
por vezes, a obm liteim-ia como uma "fonte a mais". Nossa idéia é de que a lite
ratura não pode ser entendida como uma "fonte a mais", masjustamente como
a fonte que pode dar aquele "algo mais" que os documentos comumente usa
dos pela história não fornecem. Referimo-nos ao que se poderia chamai* as sen
sibilidades ou a "sintonia fina" de uma época, as cai^acteristicas essenciais que
estariam na i-aiz dos modos de pensar,sentir, agir e,sobretudo,de representai* o
mundo. Como refere Chaitiei,'^ o que cabe ao historiador enconti*ai* as repre
sentações passadas na sua iiredutível especificidade. Diriamos mais: deve enten
dê-la como "sintomas" de uma época, conespondendo ao sistema de idéias e
imagens dos homens de um outro tempo.
E por este caminho, que se integra ao que chamamos de uma história
cultural urbana, que visamos a resgatar as foi*mas literárias de representação
das cidades. Consideramos que a literatura tem, ao longo do tempo, produzi
do representações sobre o urbano, que traduzem não só as transfoi-mações do
espaço como as sensibilidades e sociabilidades dos seus agentes.
Como refere Odile Mareei,'® a literatura, como representação das formas
urbanas, tem o poder metafórico de conferir aos lugares um sentido e uma
função. E nessa medida que as obras literárias, em prosa ou verso, têm contri
buído para a recuperação, a identificação, a inteipretação e a crítica das for
mas urbanas. Acrescentaríamos que essa potencialidade metafórica de trans
figuração do real não apenas transmite as sensibilidades passadas do "viver em
cidades" como também nos revela os sonhos de uma comunidade, que proje
ta no espaço vivido as suas utopias.

'■•Ricoeur, op.cit., p.344.


'^Chartier, Roger. Histoire intelectuelle et histoire des mentalités. Trajectoires et questions. In:
Chartier, Roger etal. La sensibilitédans l'histoire. Brionne: Gérard Montfort, 1987. p.l7.
'®Marcel, Odile. Formes urbaines et littérature. Le Courrierdu CNRS. La vUle. Paris, n.81, été 1994.
p.l23.

13
Assim, os relatos literários nos colocam diante das cenas urbanas que re
constituem uma possibilidade de existência do social, expressando as forças
em luta, os projetos realizados e as propostas vencidas, aquilo que se concreti
zou e aquilo que poderia ter sido, mas não ultrapassou o nível do projeto, do
sonho e do "desidemto".
Ti-ata-se, sem dúvida, de espaços e pei-sonagens imagináiios que, contudo,
se constróem sobre experiências vividas na ti-ama das relações sociais. Odile Mai-
cel, em seu artigo, tece considei-ações sobre a nossa contempoianeidade, quan
do, pela força da imagem ti^azida pela mídia, a leitura do social não se faz mais
pela literatura, que perderia, assim, toda sua função de representação do real,
como, por exemplo, a nairativa ficcional de vanguarda.'^ Todavia, entendemos
que mesmo essa fbiTna literâiia expressaria a maneira contempoiúnea de expres
são atual da crise dos paradigmas, representados pela crítica à racionalidade, à
ol^etividade e ao predomínio do social sobre o individual. Mas,paiTi efeitos deste
estudo, não é a literatura contemporânea que interessa, mas sim a literatura do
final do século XVIII às primeii^as décadas do século XX. Nestas, as representa
ções do urbano qualificam o social, identificando uma reconstixição do mundo
sensível que se expressou em discursos e também em imagens — visuais e men
tais — evocadas pelo texto liteiáiio.
Concordamos com Claude Duchet, na conelação que estabeleceu entre
literatura e cidade, quando confere àquela seu valor de "sintoma", de muta
ção de hnhitus, de chamamento e aculturação às novas fonuas de viver citadi-
nas. A literatura, no caso, anuncia, denuncia ou nega as formas sociais da exis
tência urbana e as suas fonnas materiais de expressão. Nesse contexto, o escri
tor, autor do texto ficcional que "diz" a cidade a seu modo,é o que se chama
ria um espectador privilegiado do social, capaz de traduzir, em foiina literária
— romance, crônica ou poesia — um urbano que "poderia ter sido" e que as
sume um "efeito de real".
Ora, o discurso literário dá uma nova existência à coisa nairada. Se é o
olhar que qualifica o mundo,a narrativa literáiáa ordena o real e lhe confere
um valor, exercendo uma espécie de "pedagogia da imaginação". A retórica,
o estilo, os registros de linguagem que selecionam palavi^as e fazem uso de me
táforas são responsáveis pela foimação do museu imagináiio de cada um.
É nesse sentido que afirmamos que Paris é um mito urbano pelo efeito
da palavi"a do escritor que libertou o sonho que se inscrevera na pedra.
É por aí que se insinua a atividade da literatura e, por extensão, a do pró
prio historiador, que aborda o imaginário urbano lendo a escrita da cidade

''Mareei, op.cit., p.l24.

14
nos tmços deixados pela arquitetui-a e pelo traçado urbano. Ocone o que se
podería chamar de um deslocamento, na medida em que as imagens produ
zem seu espaço no pensamento e se traduzem em discuraos. Esses registros
materiais são portadores de um sentido e de uma função, como diz Lucrécia
D'Alessio FeiTara:

As ti~ansformações econômicosociais deixam na cidade marcas e sinais que con


tam uma história não verbal pontilhada de imagens,de máscai-as, que tem como
significado o conjunto de valores, usos e hábitos,desejos e crenças que mistui~am,
ati-avés do tempo,o cotidiano dos homens.'"

Por isso, a história da imagem urbana contém um relato das foimas de


sentir, ver e sonhar a cidade, onde,como refere Guy Petitdemange, a ai-quite-
turajoga o papel do subconsciente, expressando o "desejo coletivo inalcançá-
vel que se configura material e imediatamente".'®
Esse é o ponto pelo qual o historiador se aproxima do urbanista e através
do qual se estabelece a possibilidade de l esgatar, pela imagem urbana atual, as
representações das cidades que passaram ou que pretenderam ser um dia. Mas,
se o urbanista se preocupa com a forma e com os planos de intei"venção na
cidade,o histoiiador recolhe fotografias e pintui-as — elas também foiTnas ico-
nogi-áficas de registro do sensível. O que é interessante de veiificar, em tennos
de identidade e memória,é que, por vezes, essa figuração imagética da cidade
pode predominar, com os seus sentidos subjacentes, à cidade concreta habita
da pelos homens:

As imagens se fabricam em diferentes níveis, por diferentes técnicas: todas mobi


lizam a memória,o passado, mas o declinam à sua maneira. O diálogo com os ha
bitantes se ancora sempre na memória, único monumento populai; á disposição
de todos.-"

Retomamos, pois, a idéia de que a materialidade das foiTnas da arquite


tura ou a aparente fixidez do espaço — que dão o contorno morfológico e
visual à cidade — implicam uma relação complexa entre forma física e rela-

'"Ferrara, Lucrécia D'Alessio. -As máscaras da cidade. In: O olhar perifhico. São Paulo: EDUSP/
FAPESP, 1993. p.202.
'"Petitdemange, Guy.Avant le monumental,les passages: Walter Benjamin. In: Baudrillard,Jean
etal. Citoyennité et urbanité. Paris: Esprit, 1990.
""Querrian, Anne. Images et mémoires. Les Annales de Ia Recherche Urbaine. Images et mérmire. Pa
ris, n.42, mars/avril.1989. p.3. '

15
ções sociais de força, que, por sua vez, se expressam por representações imagi
nárias. Nessa medida, é que a arquitetura podem,como diz Giedion,-' nos in
troduzir no processo de tomada de consciência de uma época. Afinal, a prefe
rência por esta ou aquela forma, a definição de um estilo ou o recurso e o
emprego de detenninados materiais podem — ou não — dizer muito sobre o
avanço técnico de uma época dada, mas sempre tmduzem uma sensibilidade
coiTente. E ainda nesse sentido que concordamos com Christian de Portzam-
parc,-- quando diz que o espaço faz apelo a um registro da nossa percepção e
do nosso conhecimento do mundo, algo da ordem da moml, dos valores e da
ideologia e que tem uma relativa autonomia. Ou seja, a arquitetum e o traça
do de mas e pmças são,sem dúvida, o registro físico de uma cidade, mas tam
bém são um modo de pensar sem linguagem. Portanto,o espaço é sempre por
tador de um significado, cuja expressão passa por outras fonnas de comuni
cação. Oi^a, a força de urna imagem se mede pelo seu poder de provocar uma
reação, uma resposta.-® E, pois, na capacidade mobilizadom das imagens que
se ancora a dimensão simbólica da arquitetura. Um monumento, em si, tem
uma materialidade e uma historicidade de produção, sendo passível, portan
to, de datação e de classificação. Mas o que interessa a nós, quando pensamos
o monumento como um tmço de uma cidade, é a sua capacidade de evocar
sentidos, vivências e valores.
As imagens urbanas trazidas pela arquitetum — ou pelo tmçado da cida
de, ou pela publicidade, pela fotogi^afia, pelo cartaz, pelo selo, pela pintura,
pelo desenho e pela caiicatui^a — têm, pois, o potencial de remeter também,
tal como a litei*atui-a, a um outro tempo. E o caso de um monumento que se
edifica no passado, mas que é pensado e sentido a partir do presente. O espa
ço urbano, na sua materialidade imagética, toma-se, assim, um dos suportes
da memória social da cidade.
A modificação do espaço de uma cidade, dando a ela forma e feição, con
têm em si um projeto político de gerenciamento do urbano em sua totalida
de. E, por um lado, uma tarefa de profissionais especificamente habilitados
para tal — urbanistas, arquitetos, engenheiros —, mas também comporta o
que se poderia chamar de inter-venção do cotidiano. Ou seja, esse espaço so
nhado, desejado, batalhado e/ou imposto é, por sua vez, também reformula
do, viwdo e descaracterizado pelos habitantes da urbe, que, a seu turno, o re-
qualificam e lhe conferem novos sentidos. Estaríamos,segundo a classificação

-'Giedion, Siegfried.£5/>ace, temps, architecture. Paris: Denõel, 1990. p.46.


-^oruamparc, Christian de. L'architecture est d'essence mylhique. In: Divorne, Françoise
(org.). Ville,formesymbolique,pouvoir,projets. hiège: Mardaga, 1986. p.22.
-'Marin, Louis. Despouvoirs de 1'image. Paris: Seuil, 1993.

16
de Mareei Roncayolo, diante dos "produtores do espaço", no caso dos profis
sionais do urbano,e diante dos consumidores do espaço, quando se tratar dos
habitantes da cidade.-''
Parece-nos especialmente instigante a reflexão de Pieire Sansot sobre a
memória coletiva e as pennanências urbanas para este nosso caminho de bus
car as representações da cidade através das suas imagens. Aigumenta Sansot-^
com a eloqüência do caco, do registro ou do documento e a sua virtualidade
de despertar a evocação, numa linha de pensamento que tanto nos faz pensar
em Walter Benjamin como em Jorge Luiz Borges, quando diz que o espaço
tem por missão dar significado ao tempo e à história... Na seqüência desse ra
ciocínio, Pieire Sansot estabeleceu um índice de indeterminação e relativis-
mo para a recuperação da memória urbana ti-azida pelas imagens, pois esta
evocação contempla tanto a ação da consciência coletiva quanto a do incons
ciente coletivo, ambos processos não quantificáveis que escapam à deteimina-
ção do tempo. Se tais argumentos são, em si, dados de fluidez e proliferação
de combinações possíveis, Sansot introduz um elemento de peimanência: os
arquétipos fundamentais, ou elementos de constância da natureza humana,
presentes em todas as sociedades. Aqui nos parece residir um dos elementos
essenciais para a dimensão simbólica das imagens do urbano: a necessidade
de atribuir significados rituais e míticos às coisas e às práticas sociais. Dessa
foima, entende-se a necessidade do monumento ligado ao mito das origens
ou ao mito fundador, assim como os centros de referência no assentamento
do poder, ou, ainda, a demarcação das esferas püblicas e privadas. Finalizan
do, Sansot conclui sua linha de raciocínio ao considerar que, pai"a a constm-
ção da memória coletiva referida ao espaço urbano, os homens vão "inventar
seu passado" à imagem de seu presente.
Caberia, nesse caso, indagar, com ironia, se cabe, finalmente, distinguir
as imagens "reais" das "criadas". Se tudo o que se vê e se experimenta é, por
sua vez, reciiado enquanto sensação, revivido enquanto memória articulado-
ra de lembrança e decodificado em seus significados, a atribuição de sentido
às imagens podera depender do ponto de vista ou do lugar de quem vê e de
como sente aquilo que se apresenta. Sem dúvida, as imagens urbanas têm o
seu lado simbólico consensual, imposto e/ou atribuído, mas, paralelamente
às assimetrias sociais, a desigual apropriação do solo e os distintos posiciona
mentos políticos podem, por sua vez, colocar outi-as questões e levai* a outios
entendimentos.

-■•Roncayolo, Mareei. La ville etses territoires. Paris: Gallimard, 1990.


-®Sansot, Pierre. Mémoire collective et perdurances urbaines. In: LesAnnaUs, op.cit., p.õ.

17
As consideinções de Philippe Hamoir'' sobre a condição do olhar de quem
"vê a cidade"incidem sobre essas questões levantadas.E possível "ver"a cidade "real",
contempoimiea, ati^avés das desciições liteiãiias de estados passados da cidade, ao
que se podeiia acrescentai" que, por sua vez, no seu ti"açado e nas "minas" qne per
manecem,é possível "ler" a cidade que um dia foi e da qual pouco resta. Nesse pon
to nos aproximai"íamos mais uma vez de CaJvino, com as stias "cidades inxdsíveis",
metáfom da esti-atégia metodológica que objetiva tomai""visível" o "invisível".
É Hamon que lança a pergunta: liaveria uma "visão litemria" da cidade distin
ta da visão do arquiteto, do pintor, do higienista, do fotógi"afo, do político? Em
piincípio, seríamos tentados a responder que sim, pois cada um can ega consigo o
seu "capital" neste ato de "ver" e "naii"ai"" a cidade, constituído de suas liabilitações
específicas e caigas de sensibilidade próximas, mas são todos olhaies que se ciuzam
em tomo da mesma concretude da urbe. As representações da cidade, constmídas
por cada um desses leitores, é que estabelecemo distâncias e aproximações, pei"gun-
tas e respostas umas às outi"as, como numjogo de espelhos.
Não nos esqueçamos, contudo, de que o historíador da cultura trabalha
com sinais e mensagens emitidas no passado,sob a forma de imagens e discur
sos. O problema que se configura é de que as cidades modemas realizam, por
vezes, a "pasteurização" do urbano, destmindo a memória, substituindo o ve
lho pelo novo, impessoalizando a cidade. Há, no plano das imagens deixadas
no traçado urbano, muitas intei"venções que dificultam a "leitura" das cidades
contidas na cidade contemporânea. Da mesma foi"ma, os tais "filtros" do pas
sado podem tomar estranhos e mesmo indecifráveis palavras e discursos que
tiveram .sentido um dia, no seu contexto.
Tentando "decifrar" o urbano,Richard Sennet-' pondera quejustamente
a capacidade das grandes cidades de proporcionar a alteridade e o contraste
podem estimular o poder da inteipretação visual. A complexidade do meio
urbano que, sob um certo ponto de vista, poderia representar descaracteriza-
ção, diferença, anonimato e impessoalidade, segundo a posição de Sennet,
pode vir a tomar-se um elemento de reeducação do olhar, propiciando a cap
tação de uma nova coerência para o mundo.
A perspectiva de Sennet, que enfatiza a necessidade de mudança de pers
pectiva do olhar sobre o urbano,é uma proposta que se liga à de outros "leito
res" da cidade. A começar,como o próprio Sennet invoca, pela figura de Char
les Baudelaire,que via na cidade de Paris a possibilidade de uma transcendência
do olhar, tais as correspondências possíveis de serem apreendidas pelas múlti
plas figuras, espaços e práticas sociais oferecidas.

-®Hamon,Philippe. Voir Ia ville. In: Romantisme. Paris, CDU-SEDES, n.83, 1994. p.5-6.
-^Sennet, Richard. La ville à vue (Voeil. Paris: Plon, 1992.

18
A idéia do conti-aste, produzindo a revelação ou a descoberta,seiia desenvol-
\dda por Walter Benjamin, ele próprio leitor de Baudelaire e amante de Paris.
Cortando os Nanculos genéticos passado/presente, o que Benjamin postula é a
criação de contra-imagens que rompam o contínuo da história, opoitunizando o
que se chamaria "o salto do tigre", que daiia maigem à inteligibilidade, pelo con-
tmste.-'^ Expliquemo-nos: não é que Walter Benjamin não privilegie a teoria e a
constmção de conceitos para o entendimento das representações do social, pois,
pai-a tanto, lança mão das categorias da "dialética da pai-alisia" ou da fantasmago-
ria, versão benjaminiana do fetichismo da mercadoria maixista.-^
Entretanto, o que cabe resgatar neste momento é o método de que se \'ale
Benjamin pai-a, atmvés do ciaizamento de imagens contrárias, obter a revelação
da coerência de sentido de uma época. Analisando a obra de Benjamin, Willi
Bolle^"indica a técnica da montagem, tomada de empréstimo das vanguardas
artísticas, em especial do cinema, e a sua transposição pai-a a história. Segundo
Bolle,a historiogiaíla benjaminiana,como constmção,pressupõe um trabalho de
"destrtiição" e"desmontagem"daquilo que o passado oferece,visando a uma nova
construção, ditada pelo "agora". Para tanto, sugere a montagem em foima de
"choque" ou contraste, confrontando as imagens antítéticas e, por conseguinte,
dialéticas, para promover o "despertar" ou a "revelação". Ora, uma metrópole
propicia aos seus habitantes representações contraditórias do espaço e das sociali-
dades que aí têm lugar. Ela é, por um lado, luz, sedução, meca da cultura, civili
zação,sinônimo de progresso. Mas,por outro lado,ela pode ser representada como
ameaçadora, centro de perdição,império do crime e da barbáiie, mostrando uma
faceta de insegurança e medo para quem nela habita. São, sem diírida, visões
contraditórias, de atração e repúdio, de sedução e rechaço, que, paradoxalmen
te, podem conviver no mesmo portador. Essa seria até, como lembra Mai-shall
Beiman,'" uma das caracteiísticas da modernidade como experiência histórica
individual e coletiva: a postura de celebração e combate diante do novo, que em
parte exerce fascínio e em paite atemoriza.
Assim é que,seguindo a estratégia metodológica da montagem segundo o
choque conti-astivo, é possível pôr frente a frente as representações da cidade
que falam de progresso ou tradição, as que celebiam o urbano ou idealizam o
rtiral, o imaginário dos consumidores do espaço frente aos dos produtores da

■®Rüssen,John. La história, entre modernidady post-modernidad. In: Gallego,José Andrès (org.)


New History, Nouvelle Histoire; hnvia una Nueva História. Madrid: Actas,1992.
-^Benjamin, Walter. Paris, capitale du XIXe siècle. Le livre despassages. Paris: CERF, 1989.
'"Bolle, Willi. A jhiognomia da metrópole moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
"Berman, Marshall. Tudo que é.wlido desmancha no ar; a aventura da modernidade. Sãq Paulo: Com
panhia das Letras, 198fi.

19
urbe,a visão das elites citadinas com a dos populares e deserdados do sistema, a
dimensão da esfem pública, como representação, com o imaginário constituí
do sobre o privado, as imagens do espaço que contrapõem o centro ao baino
ou, ainda, a própria visão da ma,vista como local de passeio ou passagem, con
traposta àqueles que nela moram por não terem outi"a opção.
Ainda obedecendo ao princípio da desmontagem e remontagem dos frag
mentos do urbano, obtidos por idéias e imagens de representação coletiva que
são conti^astadas com o intuito de revelar uma nova constelação de significa
dos, Willi Bolle''- indica uma outra técnica de inteligibilidade: a montagem
por supeiposição. Refere que esta seria talvez "a mais propícia para radiogra
far o imaginário coletivo", pois nela a tomada de consciência se daria aos pou
cos e não por efeito da revelação por choque, mencionada anteriormente. Se
ria o processo metodológico através do qual o historiador iriajustapondo per
sonagens,imagens, discursos, eventos, performances "reais" ou "imaginárias" do
espaço urbano.
Seria, talvez, a técnica que mais se aproxima ao que comumente se cha
maria a contextualização, o refei-encial de circunstância ou, ainda, o quadro
de contingências que demarca a situação a ser analisada. Assim é que, na cida
de, compareceriam, como fragmentos da história ou atores a serem justapos
tos uns aos outros, a multidão e o jlAnewr, o povo e o destacado personagem,
negros, mulheres, marginais, políticos, becos e avenidas, festas, rituais, cotidi-
anidade e eventos excepcionais.
Frente a essa estratégia de um historiador que recolhe fragmentos expres
sos em discursos e imagens que falam de um passado, tentando aproximar-se
do imaginário coletivo de uma época — e, portanto, representando o já re
presentado —,é impossível deixar de pensar em Cario Ginzburg,^'com as suas
considerações sobre o historiador-detetive. Ginzburg defende que o conheci
mento do historiador é indiciário e fragmentai. Tal como Freud ou Sherlock
Holmes, ele opera de foima detetivesca, recolhendo os sintomas, indícios e
pistas que, combinados ou cnazados, permitam oferecer deduções e desvelar
significados. Por vezes, a constituição de um paradigma indiciário não se pren
de às evidências manifestas, mas sim aos poimenores,aos sinais episódicos, aos
elementos de menor importância, marginais e residuais, que, contudo, per
mitirão a decifração do enigma e o desfazer de um enredo. Por outro lado,
essa setia ainda a estratégia metodológica de Chartier, que complementa os

^-Bolle, op.cit., p.98.


•^^Ginzburg, Cario. Raízes de um paradigma indiciário. In: Ginzburg, Cario. Mito, eniblemns, si
nais. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

20
raciocínios expostos, ao postular o recorrente cnizamento das pi"áticas com as
representações.-^''
A rigor, as técnicas de montagem porjustaposição e conti-aste não são,
em si, excludentes, e, na prática, os historiadores tanto se valem de uma quan
to de outi-a, contextualizando e opondo imagens e discui-sos antitéticos, na
busca de significados e coirespondências.
No caso específico das visões litei-árias do urbano — ou da visualização,
como história, de um texto literário —,alguns procedimentos metodológicos
específicos se apresentam, mas que, como se verá, confluem pai-a a aborda
gem anterioi-mente enunciada, que aproxima Walter Beiyamin de Cario Gin-
zburg e de Roger Chartier.
Primeii-amente, há que ter em conta as condições de constmção ou pro
dução do texto/documento que, na sua escritui-a, respondeu a uma questão.
Não há, no caso, texto — a não ser como resposta a uma problematização. Essa
instância remete necessariamente ao contexto da produção do texto, que si
tua o autor — temporal e espacialmente — na sua individualidade, meio soci
al e cultural, implicando, com isso, elementos referenciais como uso de lin
guagem, palavras de referência, tendências e público de destino. Tais ques
tões implicam, necessariamente, que se leve em conta a recepção, que marca,
por sua vez, a constmção de sentidos outros, distintos daquele original pre
tendido pelo autor-produtor. Tal processo se complica na medida em que se
estabelece a defasagem ou filtro do tempo entre a leitura contemporânea,que
pode apagar aquilo que não faz sentido. A história é, no caso, afetada pela opa
cidade dos textos antigos, que não se revelam à leitura, mesmo "científica",
dos contemporâneos.
Há, pois, uma relação de proximidade e de distância que se estabelece
entre as duas temporalidades.
Voltamos ao ponto de que a tarefa não é fácil, mas fascinante: penetrai-
nos significados produzidos no passado; acessar o que era inteligível por de
terminados códigos que hoje se revelam incompreensíveis; procurar ver por
que certos textos do passado continuam a ter sentido no presente...
Não entendemos o problema do distanciamento como uma impossibili
dade de acesso ao passado, mas como um desafio que a nova história cultural
deve ter presente. Apoiados num novo paradigma centrado na cultura, utili
zando conceitos tais como os da representação e do imaginário ou o princípio
do cmzamento das praticas com os discursos de representação do real, esco
rados na estratégia metodológica detetivesca da montagem por conti-aste ejus
taposição, resta definir nosso marco espaço-temporal de estudo.

'■•Chartier, Rogei-. A novn hvitórin cultural: entrepráticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.

21
Nossa proposta de investigação e análise trabalha com recoites temporais e
espaciais diferenciados e significativos na sua espacialidade; da Paiis do final do
século XVIII às refomias de Haussmann, na segunda metade do século XIX, o
Rio de Janeiro, da helle époqiiee de Pereira Passos do início do século, e a Poito
Alegie do final do século às primeiras décadas do século XX, mais precisamente,
até a gestão José Montaiuy na prefeitura de Poito Alegie, finda em 1924.
O que se coloca em pauta, no estudo das cidades como representação, é
o processo de desterritorialização, no tempo e no espaço, que os discursos e
imagens urbanos podem sofrer. Afirmar isso não significa des-historicizar ne
cessariamente a produção das representações, pois cada sociedade cria para si
o sistema de idéias e imagens que a sancionam e legitimam.
Se os discursos e imagens constmídos sobre o urbano são um índice soci
al e um objeto do imaginário coletivo, são também capazes de migrar no tem
po e no espaço.
Nesse contexto, é possível que, em locais e momentos diferentes, sejam
adotadas soluções idênticas ou análogas, mas a explicação de uma imitação
pura e simples, fnato de um cosmopolitismo ingênuo, deve ser descartada. O
fato de ser possível estabelecer uma articulação entre praticas e representações
do urbano entre épocas e locais variados, nos mostra que problemas semelhan
tes ou mesmo idênticos se colocaram nesses tempos e espaços distintos.
Assim,é possível que as imagens e os discursos urbanos possam não só ser
lidos e entendidos como ser matrizes de práticas sociais em contextos distintos
daqueles que lhes deram nascimento. Por um lado, isso se deve a um compo
nente de universalidade de um mesmo processo — o da urbanização ou da
constituição da sociedade burguesa —,que tende a tornar reconhecível, em
situações concretas diferenciadas, problemas e desafios semelhantes que ge
ram respostas e fonnas discursivas muito próximas. Por outro lado, há que ter
em conta o processo de integração de áreas distantes a uma mesma cultura
ocidental, envolvendo os fenômenos referentes à circulação e recepção das
idéias. Por último, não há que duvidar da capacidade de infonnação de nos
sas elites, perfeitamente conhecedoi-as do que se chamariam "os progressos
científicos, culturais e artísticos" de seu século.
Estabelecer esse nível de reflexão não implica, repetimos, negar a especi
ficidade de cada contexto, que faz com que sejam assumidas as particularida
des loc.ais. Da mesma foima, ao migrarem no tempo e no espaço, as imagens
e os discursos sobre a cidade podem ser cada vez mais dotados de novos senti
dos em função de conjunturas e composições sociais diversas. A concretude
das condições locais limita a efetivação de práticas urbanas efetivas, mas não é
porque "não deram certo" — ou não se realizaram na sua integridade — que
as trocas entre o Brasil e a França não mereçam ser estudadas. Como utopias
e projetos, elas vim dia mobilizaram a vida e foram fmto de composições de
forças, de discussões e de aceitos.
Como diz Alan Mons, essas imagens constituem o campo de uma pratica
figurativa, com estilizações mediáticas que fazem passar a representação da ci
dade de um registro a outro (cidade ancestral/cidade moderna, por exem
plo), efetuando a transposição da imagem dos lugares.^®
Temos consciência que esse é um caminho que passa pela recepção,^® que
implica a releitura e re-produção de um texto ou imagem pelo leitor, que cons
trói, com isso, novos significados. Da mesma fomva, poderíamos problematizar
essa reconstinção/apropriação ou o processo pelo qual discui"sos e imagens se
transfonnam, passando de um grupo social ou de uma época e local para ou
tro. Ao se apropriarem de representações constroídas em outro contexto — e
que podem ser datadas e localizadas, con espondendo a situações paiticulai es
—,seus novos detentores estabelecem aproximações, limites e equivalências. A
apropriação é seletiva e constitui a resposta a uma fonna de consumo e de estra
tégia de viver. Em suma, recepção/reprodução de idéias e imagens conespon-
dem a necessidades, a enfrentamentos e a campos de luta. Como refere Bour-
dieii,"*" o real é um campo de disputa para definir o que é o real. Assim, a pro
dução de representações sobre o mundo que constitui o imaginário coletivo de
uma sociedade, con esponde a essejogo de forças.
Há uma temporalidade das praticas sociais e de suas representações, mas
as idéias "viajam" no tempo e no espaço e são "recicladas" em outro contexto,
que as "historiciza". Ocorrem,nesse processo,simplificações e acréscimos,acei
tações e rejeições, seleções e versões, implicando a atribuição de outros senti
dos distantes daqueles do original,e isto decon e de fatores tão concretos quanto
relações de foi ças ou níveis de acumulação, mas também por ação de elemen
tos não mensuráveis, as utopias e os desejos.
Nossa idéia é analisar como, nas "ressonâncias" e "ressemantizações" das
representações urbanas entre a França e o Brasil, do final do século XVIII às
primeiras décadas do nosso século, ocorre um processo ao mesmo tempo pa
radigmático de representação da "cidade moderna" quanto de metaforização
do social, com atribuições de novos significados.

^^Mons,Alan. Imagerie iirbaine: une synibolique differée.LesAnnales de. IaRecherdie Urbaine.Ima-


geset mévioire. Paris, n.42, mars/avril.1989. p.37.
obra mais conhecida e clássica dos processos de recepção é a de H. B.Jauss, Pour une esthé-
tique de Ia rêcef)tion. Paris: Gallimard, 1978.
"Bourdieu, Pierre. Ce queparler veut dire. Paris: Fayard, 1982.

23
Nesse sentido, Paris, além de ser a "capital do século XIX", como a defi
niu Walter Benjamin, constitui-se, também, no paradigma da "cidade moder
na", ou na sua metonímia.^''
Ou seja, Paiis passa, a partir do século passado, a constituir-se na cidade
emblema do conceito de metrópole, a tal ponto que a enunciação mágica do
seu nome faz com que se evoque todo o processo mais amplo que comporta e
configura a "grande cidade". Para usar uma expressão da linguagem, toma-se
uma parte (Paris) pai-a expressar o todo (a modemidade em teimos urbanos).
Como microcosmo da modemidade e macrocosmo do social, desperta
todo um imaginário, constmído por tipos especiais de "leitores da cidade" —
escritores, poetas, fotógrafos, pintores — e suscita ações de inteivenção no
urbano, exemplificadas pelo desempenho de Haussmann, o prefeito que re
volucionou a capital fiancesa.
Oi-a, o "caso parisiense" mostra ser a cidade o espaço e o tempo de reali
zação da modemidade, da mesma fomia que configura uma referência iden-
titáiia muito forte à capital francesa. A identidade,sendo também uma repre
sentação do real que cria uma comunidade simbólica de sentido, oportuniza
tanto a sensação de "pertencimento", quanto constrói a noção de alteridade.
E, nojogo das representações entre "nós" e os "outros", o "modelo parisiense"
vem a se constituir no "outro" desejado, ou, em outi-as palavi-as, no "vir-a-ser"
identitário sonhado pelas elites bi-asileii-as.
No primeiro dos exemplos escolhidos — a cidade do Rio de Janeiro —,a
sedução por Paris obedece à captação de uma coerência de sentido, no qual a
adoção do "modelo paiisiense" é "sintoma" da modemidade desejada e represen
ta a possibilidade de assumir um padião identitáiio que, metonimicamente, pas
sa da cidade pai^a o país. Ocoire o que se pode chamar de metaforização do soci
al, piocesso que implica a destenitorialização/histoiicização de ações e discuisos
que, ao se deslocaiem no tempo e no espaço, assumem novos significados.
Assim, os tais leitores "especiais" da cidade oportunizam urn deslizamen
to de sentido no ato de representar o urbano, conjugando e trocando signos
entre a "cidade real vivida" e a "cidade literária".
As repiesentações literárias do urbano sobre o Rio transfoimado tanto
expressam, de foiTua nairativa, as sensibilidades e as percepções das mudan
ças em curso, quanto são capazes de resgatar e intuir certos traços eminente
mente nacionais de vivenciar este processo.
A riqueza do enfoque literário se traduzjustamente na capacidade de
aproximar-se da dimensão universal da metropolização da vida — o que apro-

'®Cf.Douchet, Claude. La ville siècle. Romnntisme. Paris: CDU-SEDES, n.83, 1994.

24
ximaría as representações urbanas brasileiras das parisienses — e em recupe
rar foiTnas essencialmente originais de vivenciar a modernidade urbana.
E através dessefeeling\ix.c\~kno que a naii-ativa dos escritoi"es da época, ao
falar da cidade, con esponde a uma fonna de "dizer o Bi^asil".
E, chegando ao nosso segundo caso bi^asileiro de análise — a cidade de
Porto Alegre, no extremo sul do Biasil —,teríamos uma cadeia de inteimedi-
ações para as representações liteimias do urbano.
Externamente, tem-se o modelo paiisiense, univeraalmente consensual,
assim como o modelo nacional caiioca, também paiadigmático pai-a a moder
nidade bi-asileira. Internamente, confígura-se o peso simbólico do padrâo re
gional identitário, articulado em teraios de representações do*ixmndo mi^al e
dotado de alta positividade. Nessa dupla inserção e condicionamento, colo-
cam-se os impasses da modernidade urbana para a capital gaúcha, ti"ansmiti-
dos pelo olhar da literatura.
Pretendemos,com isso, estabelecer as aproximações entre as visões literâ-
rias da cidade e as representações identitárias dos "modos de sei'" nacional e
regional. O Bi-asil seria, ousai-íamos dizer, o reino da representação social, o
ten eno fértil para a constmção de metáfoi-as e pai-a a realização da metoní-
mia, onde o peso do simbólico se sobrepõe sobre a realidade e onde o "pai'e-
cer" tem o efeito de "ser"...
Não se quer enconti-ai- Paiis em Porto Alegre, mas sim ver como,em situa
ções diferenciadas, tal como no Rio de Janeiro, é possível acompanhai- esse pro
cesso de percepções e representações da cidade através do olhai'dos escritores.
Se as condições históricas não permitem a realização das práticas urba
nas projetadas,se a realidade social nega as socialidades desejadas, enfim,se a
concretude da existência impõe limites à realização da cidade ideal, no plano
das representações o trânsito é livi'e. O detalhe assume a dimensão do todo, o
enunciado mágico da palavi-a que nomeia adquire uma força de real e a ima
gem mental ou visual dá à aparência o atributo da essência.
Por último,caberia,ainda,dizer que as compaiíições,tal como defende Flan
eis Godaid,^® não unifoimizam, num mesmo patamai; as especificidades das con
dições históricas de cada espaço em questão. Como refere o autor, deve-se distin
guir e levai'em conta as tendências univei-sais — advindas da ti-ansformação capi
talista do mundo e da modernidade — e os processos próprios às cultui-as locais,
que dão o contorno da especificidade de cada ái'ea em questão.

'®Godard, Francis. Les comparaisons internatíonales. Le Courrier du CNRS. La ville. Paris, n.81,
1994.

25
V

y^-'iS'

A torre de Babel. Pieter Bruegel, 1563


Torre de Babel. M. C. Escher, 1928
o IMAGINÁRIO
DE PARIS
Do Final do Século XVIII
ao Final do Século XIX
Talvez não se tenha escrito tanto sobre uma cidade como
sobre Paris. Se, afinal, os estudos urbanos tiveram o seu
início na Inglaterra, por que a capital da França, e não a
gigantesca Londres, se tornou o lugar emblemático da metró
pole revelada no século XIX pela eclosão do capitalismo? Não
nos referimos apenas ao que se tem escrito sobre a cidade no
âmbito do conjunto das ciências humanas, ao qual agregamos
os üabalhos de urbanistasjunto aos dos historiadores e sociólo
gos. De tema de pesquisa e objeto de reflexão. Paris é, ainda, a
fonte de inspiração de poetas, escritores, pintores e fotógrafos.
Podemos considerar, neste final de século, que outras metrópo
les — o mais acertado seria dizer megalópoles —,como Nova
Iorque, São Paulo e Tóquio, se impõem com a sua densidade
populacional, suas construções, seu traçado urbano e seus pro
blemas, mas Paris continua persistindo como uma realidade ur
bana emblemática, dotada de um charme especial...
Paris tem sido a cidade mais representada, em texto e
imagem, o que estimula todo um imaginário social. Roger
Caillois' chega a referir-se ao "mito de Paris", quando analisa
a obra de Balzac. Caillois confere ao escritor a responsabilida
de de ser um dos primeiros a admitir a existência dos mitos
modernos e o seu poderi eles não são sentidos como imaginá
rios e aparecem como uma realidade de força indiscutível. Tais
mitos contemporâneos, constituídos pelo imaginário como
'Caillois, Roger. Préface. Balzac et le mythe de Paris. In: Balzac, Honoré de.
À Pam.'Bruxelles: Complexe,1993. p.9.
uma representação convincente e sedutora do real, têm a força da sugestão e
a credibilidade na aceitação. As pessoas são levadas a aceitá-los, mesmo sem
pensar, como uma representação que adquire força de real. Isso em parte se
dá não só pelas estratégias de convencimento ou os artifícios da ilusão postos
em pmtica pelo imaginário social, mas principalmente por corresponderem a
uma sensibilidade coletiva, historicamente vivenciada e transmitida que encon
tra repercussão diante da cotidianidade daqueles que habitam uma grande
cidade ou desejariam vivenciá-la.
Como representação do real, o mito, pam Caillois, colocar-se-ia no cen
tro da concepção contemporânea do imaginário social: corresponderia àque
le "outro lado" do real, por vezes mais real do que o "real concreto" e que não
apenas vai ao encontro e responde às sensibilidades e sociabilidades do vivido,
quanto é, por sua vez, matriz orientadora e nomnatizadom de práticas sociais
e dos valores e opiniões que pautam a conduta.
Numa certa medida, o mito de Paris, tal como é apresentado por Caillo
is, aproxima-se da representação fantasmagórica da cidade de que nos fala Wal-
ter Benjamin. No seu sentido benjaminiano, a fantasmagoria é, sobretudo, re
presentação social dada a partir do fetichismo da mercadoria, que oportuniza
uma timisflguração do real e que se desenvolve sob o signo da contradição.
Mas, nesse ponto, a reflexão benjaminiana sobre as representações sociais ad
quirem um sentido específico. A modernidade — expressão artística e inte
lectual de um projeto histórico chamado "modernização" e produzido pela
transfoiTnação capitalista do mundo- — dá nascimento à experiência, tamlDém
histórica, individual e coletiva, do "viver em metrópole". Produto da socieda
de burguesa e atravessada pelas suas contradições, o sistema de idéias e ima
gens de representação coletiva encontra sua expressão privilegiada nos gêne
ros literârios da época — romance, poesia, crônica dejomal — e nos projetos
urbanos de transfoimação da cidade.
Mas a fetichização do murido faz com que, no plano do imaginário social
(ou seja, no das sensações, traduções e recepção da representação social), as
idéias e imagens possam permanecer na esfera do sonho e da alienação, dan
do consistência ao que se chamaria de mitologia da modernidade, ou, então,
possam traduzir a linguagem cifrada do inconsciente num "despertar" de co
nhecimento,opoitunizando o que Benjamin chamaria de "utopia social eman-
cipatória". Assim, na acepção benjaminiana, os contrastes vivenciados pela ci
dade modema dão margem à possibilidade de as representações do social se
rem mito ou utopia, alienação e consciência.

-Consultar, a propósito da leitura benjaminiana da cidade, o excelente livro de Willi Bolle. A


Jltiognomia da cidade moderna. São Paulo; Ed. da USP, 1994.

30
A tarefa, arguta e minuciosa, de captar as imagens no desejo coletivo, de
"desfetichizar" o reaf' e de empreender o difícil caminho de reconstruir o ima
ginário de uma época, Benjamin a situa na personagem fantasmagórica do
Jlnnnir,^ leitor da cidade por excelência, que se associa, alegorícamente, aos
espectadores pritdlegiados do social de um tempo, como os escritores, ou ao
historiador-detetive, a quem cabe conhecer e revelar a metrópole novecentis-
ta, fazendo emergir o passado no presente. Ainda pam usar uma linguagem
benjaminiana, ao historiador, com o seu capital específico — teoria e método
dialético voltado para o imaginário social —,caberia a tarefa de propiciar a
decifração, a epifania oti a iluminação' sobre um periodo, constmindo uma
versão sobre a multiplicidade dos sinais emitidos pelo passado.
Oi"a, a Paris mítica e fantasmagórica é polissêmica e polifônica, tal como
a modernidade que lhe dá stistento. Ao longo do século XIX,Paris experimen
taria toda uma gama de transfonnações ligadas ao desigual desenvolvimento
do capitalismo francês: a cidade decuplicou a sua população, atingindo a
extraordinária cifi"a de 1.000.000 de habitantes em 1870, divei"sificou-se o par
que produtivo, redesenhou-se o espaço urbano, e o regime político altemou-
se mais de uma vez entre foimas monárquicas e republicanas. Nesse contexto
francês em transfonnação, em que formas arcaicas e novas se entrechocavam,
e valores do progressismo se entrecruzavam com os da tradição, Paxis era, por
excelência, o teatio desse processo da modernidade. Na capital da França se
revelam as antinomias urbanas, manifestas em l epresentações miíltiplas e con-
ti^aditórias, que dependem de satisfação oti fitistração das expectativas frente
ã cidade por pax te daqueles que as vivenciam.
Podeiíamos, contudo, conti-a-argumentar que Londres eiTi também metió-
pole, tal como Paxis no século XIX, oxi, aiixda, que tais contrastes e txmxsfoxTna-
ções do espaço e das socialidades ixxbaxxas estavam taxiibém ocoxrexxdo em outxTxs
cidades exiropéias de poite. Eixtexidemos, todavia, qixe se Paxis se coxistitui xio
paxTxdigma da cidade modexiia, xxxetoxiímia da modenxidade iix bana,isso se deve,
em gx-ande paxte, ã fox ça das x epresexxtações coxxstxaxídas sobx e a cidade,seja sob a
foxma de uma vasta piodução litexmia,seja pela pxojeção urbanística dos seus pxo-
jetos, pex-soxiificados xio qxie se chamaxia o "haussmanismo".
Não estamos, coxn isso, xevex texxdo o pxocesso mexxtal de exitexidimexxto
do real e descoixsidex axxdo as coixdições coxicxetas da existêxxcia, pois, as repx e-

^Cf. Pesavento, Sandra Jatahy. Walter Benjamin e o imaginário social. Revista de Cultura Vozes, São
Paulo, n.5, 1995.
■•Cf. Bolle, op.cit., p.77.
^Pctitdemange, Guy. Avant le monumental. Les passages: Walter Benjamin. In: Baudrillard,Jean
etal. Citoyennitéet urhanité. Paris: Esprit, 1990. p.87.

.SI
sentações são um dos lados do real, ao mesmo tempo suportadas e gerencia-
doi-as de práticas sociais. No caso de París, a sua força se mede pela sua recep
ção univei^sal, que é capaz de romper as ban eiras do tempo e do espaço e se
tomar compreendida e aceita em outros momentos e lugares. Como dizJean
Chrístophe Bailly, Paris é a cidade em prosa por excelência, onde ao romance
das mas, descritas pelos seus incontáveis passantes atmvés dos séculos, se soma
a materialidade objetai de seus prédios e monumentos, verdadeiros poemas
arquiteturais.®
À Paris, portanto — como escreveu Balzac —,tentando resgatar nas trans
formações dessa urbe e nas suas representações literárias alguns elementos que,
ressemantizados, vão comparecer nos discursos e imagens sobre o urbano pro
duzido no Bi-asil. A seleção dos textos não obedeceu exatamente a preocupa
ções estéticas, o que permitiu que obi^as com "desigual" valor literário pudes
sem ser utilizadas e cruzadas.Sua escolha não foi, contudo, aleatória, pois não
foi todo texto "de época" tomado como documento, integrando nosso corpus
de análise. Buscamosjustamente aqueles textos que tomaram a cidade como
elemento central da naiTativa e compuseram uma representação do urbano.
Da mesma forma,como foi dito anteriormente, tentamos resgatar aqueles tex
tos que foram capazes de encontrar ressonância no Brasil, constituindo-se em
pontos de referência para os escritores locais, responsáveis pela constmção de
uma visão literária da cidade.

DA MURALHA AO BOULEVARD.O NASCIMENTO DA METRÓPOLE


PELO OLHAR DO CRONISTA

Principiemos pela percepção espacial da cidade e a sua renovação no tem


po. Oi-a, as imagens e discursos que dão foiTna e conteiído ao espaço tirbano
traduzem um princípio de entendimento e organização do mundo que é, em
si, produzido histórica e socialmente.'Uma cidade é,sem dúvida,antes de tudo,
uma materialidade de espaços construídos e vazios, assim como é um tecido
de relações sociais, mas o que importa, na produção do seu imaginário social,
é a atribuição de sentido, que lhe é dado,de fonna individual e coletiva, pelos
indivíduos que nela habitam. E possível dizer que:

®Bailly, Jean Chrístophe. París; Ia mémoire en chantiers. In: Cohen,Jean Louis; Fortier, Bruno
{oYg.). Paris, Ia ville et sesprojets. Paris: Ed.Belylone/Pavillon de PArsenal, 1992. p.40.
^Roncayolo, Mareei. La ville et ses territoires. Paris: Gallimard, 1990. p.l60.

32
A cidade se aprende antes de tudo pelo olhai; Olgeto visual primeiramente, ela dá
lugai"a uma percepção peipetuamente renovada.Pai-a além dasforças técnicas e fun
cionais que a ti~abalham constantemente em "sous-oeuvi e",é pelo contato sensível
direto e constante que nós a vivemos cotidianamente, pelos seus odores,seus bam-
Ihos, antes de tudo pela diversidade de seus espaços. [...] A troca de sensações en-
ti e o espaço da cidade e os seres que a habitam é a matéria- prima da vida m bana;
às vezes dolorosa,jamais neutiu,ela molda dia após dia a existência dos citadinos.®

Na passagem do século XVIII para o XIX, surgiu uma nova concepção


de cidade, o que veio a expressar que ocoiriam mudanças nas idéias e ima
gens que os indivíduos tinham do seu espaço e do mundo em geral.
Conforme assinala Lepetit,® as definições da cidade, do século XVII ao
século XVIII, associavam alguns elementos espaciais à noção de enclausura-
mento. O dicionáiio de Richelet, de 1679, referia a cidade como "lugar cheio
de casas e fechado por teiTaços e fossos, ou por muralhas e fossos", enquanto
que o de Furetière, em 1690, enunciava um local de "habitação de um povo
bastante numeroso, que é ordinariamente fechado por muralhas; reunião de
muitas casas dispostas em mas e fechadas por uma cintura de muros e fossos".
A Encyclojyédie, no século XVIII, retoma a mesma definição de cidade como um
"conjunto fechado e ordenado de casas".
Estaríamos, portanto, diante de uma noção de cidade como espaço fe
chado, onde as muralhas ou o fosso é o elemento morfológico por excelência
para concretizar o entendimento da urbe. Por oposição ao campo, essa defi
nição expressa uma deteiminada forma de organização das relações sociais,
típicas do mundo antigo e medieval, e viria a se constituir no que se convenci
onou chamar de "cidade clássica".
A muralha, como se sabe, tinha um sentido nitidamente defensivo, mas
também demarcatório; a cidade fechada, nucleada em tomo de um poder po
lítico, capaz de abrigar a população dentro de suas fortificações no caso de
g^xen^a. Como refere Le Goff,'° nas cidades medievais as muralhas ei-am como
que uma fronteira a separar dois mundos, estabelecendo o limite entre o que
era considerado urbano — a comunidade protegida, sob o abrigo da lei — e
o restante dos tenitórios circundantes.
O estabelecimento dos contomos de Paiis remontam a sua própria ori-
gern na história, a principiar pelas fortificações erguidas pelos Paiisii em volta
da Ile de Ia Cité, no século III, seguidas pela muralha mais ampla construída no

®Bofill, Ricardo; Verón, Nicolas. L'architecture des viUes. Paris: Odilejacob, 1995. p.l27.
®Lepetit, Bernard. Les villes dans Ia FrnnceModeme(1740-1840). Paris: Albin Michel, 1988. p.53.
'"Le Goff,Jacques. La dvilisation de VOccident médiéval. Paris: Arthaud, 1972.

33
século XII por Filipe Augusto. Esta con esponclia uão apenas ao velho centro
galo-romano da Cité, mas compreendia o Louvre e a "montanha" de Sainte
Geniviève. A rígor, a muralha de Filipe Augusto, da qual ainda subsistem ves
tígios, foi a primeii-a defesa urbana contínua, poderosa e durável, que assegu
rou a defesa da cidade," conseguindo circundar a montanha da margem es
querda. Ao mesmo tempo, a muralha do século XII incoiporou, como tena
— a partir de então "urbana", a extensão de campos cultivados e vinhedos,
que se cobriiam de casas. Se, contudo, a margem esquerda do Sena se mante
ve praticamente estável em sua extensão até praticamente o sécido XVII, o
mesmo acontecendo com a Cité, pelos óbvios motivos de seus limites naturais,
a cidade crescia em direção à margem direita, onde se localizavam os merca
dores. Assim, a cidade foi, pouco a pouco, ultrapassando os seus limites oiigi-
nais. As muralhas medievais de Filipe Augusto, seguidas pelas de Carlos V, no
século XIV,estenderam os limites urbanos pai-a a margem direita, estabelecendo
uma relativa simetria entre as duas margens do rio. Da mesma forma,ampliou-
se a cidade no sentido leste-oeste, do Louvie à Bastilha, num primeiro momen
to, para depois, na parte oeste, atingir, na Renascença, o novo palácio das
Tulherias.'-
As mumlhas de Carlos V comporiam mais ou menos o trajeto onde se as
sentariam os grandes houlevards do futuro.'-'' Vale ressaltar que essa foi-ma da ci
dade ii-á se constituir num dos traços definidores de Paris. Desenvolvendo-se em
círculos concêntricos a partir de uma ilha primitiva,'^ mesmo depois de toniar-
se metrópole. Paris manteria, de um ceito modo, a sua foma original.
Naturalmente, a evolução da "arte da guerra", ao longo dos séculos XVI
e XVII, principalmente da artilharia, fez como que os fossos, torreões e mura
lhas, típicos das cidades antigas e medievais, deixassem de cumprir a sua fun
ção original. Mas as muralhas, ao lado da sua função tradicional e prática, têm
também um sentido simbólico e introduzem como que um elemento ambiva
lente no imaginário social daqueles que a habitam e que nela intei-vêm. A
muralha, mesmo depois de demolida ou desativada como aparato de fortifi
cação, delimita as noções de centralidade e periferia.
No imaginário coletivo, a "cidade", centro do poder e da vida social, conti
nua a ser aquela contida pela cintura das antigas fortiílcações. Um desafio às
inteiTenções urbanas é o de "descentralizar" ou reorientar as percepções espaci-

"Fleury, Michel. L'enceinte de Philippe Auguste. In: Cohen; Fortier, op.cit., p.74.
'"Delon, Michel. Préface générale. In: Mercier, Louis Sébastien; Bietonne, Restif de Ia. Paris le
jour, Paris Ia nuit. Paris: Laffont, 1990. p.I.
"Fleury, op.cit., p.78
'■•Bailly, op.cit., p.36.

34
ais do iniagináiio social. No caso de Paiis, pode-se contra-aigumentai'que a noção
de centiTilidade clássica se dilui ati-avés de uma série de pontos de condensação,
fazendo com que o centro esteja "por tudo", espalhado em toda a cidade. Toda-
ria, mesmo nesse caso,a noção de centralidade poderá ser retomada se tiveimos
em conta o processo de expurgo das populações menos favorecidas para os su
búrbios, para além dos limites desta "cidade-centi o".
Em termos de traçado urbano, a muralha deu nascimento ao boulevard.
Datam de Luís XII, no século XVI, as iniciativas de criar teiTaços sobre as ve
lhas muralhas,já atulhadas de depósitos de lixo e constmções que com elas
vizinhavam. Esses terraços, que deveriam ser espaço para as operações de aiti-
Iharia, evoluiriam para se tomar um caminho de passeio para a população. O
termo alemão de bohuerck tem justamente este sentido:"passeio sobre as mura
lhas" e expressa bem a medida do desuso do antigo sistema de fortificações
para ceder margem a novos usos. E, contudo, com Luís XIV, no século XVII,
que Paris sera libertada dessas antigas sujeições militares, realizando-se o que
poderia ser o início de uma abertura da cidade. A partir de 1670, são destioi-
ídos os velhos bastiões e fossos, oferecendo-se à população uma "cintura ver
de" ao passeio dos cidadãos, assim como novas áreas para a construção de
mansões pelas camadas mais favorecidas da sociedade, tal como o Marais.''
Da mesma fonna, a preocupação com maior espaço paia circulação se tia-
duziu no investimento em jaidins tomados púbicos, como Tulherias e Luxem
burgo. Mas foi na expansão da mai-gem direita — Maiais, Place des Vosges, Place
des \dctoires, Rue de Ia Paix e Boulevard des Capucines — que se deiam os mai
ores investimentos em constiTição.Avenidas pavimentadas e arboiizadas, mansões
aristocraticas — inspiradas nos modelos clássicos — e novos monumentos davam
um novo aspecto paia a capital fiancesa no chamado "giande século", sob a afir
mação política de Luís XIV. Com o adensamento populacional da capital fiance
sa (cerca de 500.000 habitantes na época), a monaiquia se fez cercai- de especia
listas paia as inteivenções no tiaçado urbano, como, por exemplo, vê-se com os
planos de Pieire Bullet e Fiançois Blondel, de 1675, paia a abertura dos boulevar-
ds. Tais tiabalhosjá poderiam ser chamados de urbanístícos, pois implicavam ten
tativas de redesenhar o espaço segundo necessidades prementes e lógicas simbóli
cas de afirmações do poder real. As obras tiveiam seguimento com Luís XV,com
a abertura da magnífica Place Royale (atual Place de Ia Concorde) e os estudos
feitos por arquitetos para a abertui-a axial dos Champs ELlysées em tenenos cedi
dos pelo rei à cidade.

'^Babelon,Jean Louis. Le boulevard classique. In: Cohen; Fortier, op.cit., p.113.

35
Sobre estas ti-ansfoiinações no que se poderia chamar a "cidade clássica",
Jean Pieire Babelon conclui:

Assim o"boulevard" clássico, nascido de uma sujeição militar devido à insegurança,


está na origem de uma reflexão nova sobre a cidade,sobre os laços que o usuário
citadino — e logo cidadão — tece com o seu ambiente. O espaço, a vista, o pas
seio aparecem apenas como necessidades do mesmo tipo que as fontes, os esgo
tos, os mercados. A fantasia do passante solitário encontra o prazer mundano de
ver sendo visto. A este novo tipo urbano estava prometido um imenso futuro."^

Portanto, ao longo do século XVIII, teríamosjá presente tanto o desejo


de modificar a cidade quanto a ocoiiência de algumas metamorfoses, que fi
zeram nascer das antigas muralhas os novos boulevards.
Mesmo crescendo e ultrapassando seus limites, a receber sem cessar a
população da campanha que aconia ao maior centro urbano. Paris continu
ava a manter uma estrutura circular, do tipo de uma noz.
Louis Sébastien Mercier, que escreveu de I78I a 1788, ao falar da fisio
nomia da capital francesa, diria: "Quereisjulgar Paris fisicamente? Subi sobre
as toiTes de Notre Dame. A cidade é redonda como uma abóbora"."
Ou seja, a cidade apresentava ainda uma estrutura circular clássica, mos
trando es.se tipo de fixidez no espaço que marca a visão antiga da cidade, com o
detalhe de ser cortada por um rio que a dividia em duas paites "quase" iguais...
Mais para o final do século XVIII, sob Luís XV, a monarquia tentou ain
da uma vez estabelecer uma nova cinta de muros pam demarcar a extensão da
cidade, delimitação esta que acompanhava o que eiam considerados então os
boulevards exteriores da cidade: Clichy, La Chapelle, Rochechouart. E foi as
sim que,aprovadas em 1785,tiveram início os tiabalhos de constmção de novas
mui-alhas — dirigidos por Claude Nicolas Ledoux — numa extensão de 23km
que pretendiam estabelecer um controle sobre saídas e entradas da cidade,
assegumndo uma coleta fiscal sobre as mercadorias. Contempoi"âneos à obra
registi-ariam o descontentamento da população. Como diria Victor Hugo,"le
mur murant Paris rend Paris murmuiant".'® Já Louis Sébastien Mercier, de
forma ora irônica, ora indignada, protestou contra a nova e inconcebível
muralha, de 15 pés de altura e de mais de 7 léguas de contoino, que estava
prestes a cercar Paris inteiramente, custo de doze milhões de francos. Com
pi^opriedade, Mercier registrou a i^evolta da população paiisiense com a Com-

^^Babelon, op.cit., p.ll8.


^^Mercier &: Bretonne, op.cit., p.34.
^®Hugo, Victor. Notre Dame de Paris. Paris: Librairie Générale Française, 1972. p.l47.

36
pagnie des Feniiiers Généi"aux, encanegada da coleta dos impostos.'^ Retoi-
nando ao texto de Mercier, Michel Delon resgata a mui^alha de Ledoux como
metáfom do poder público de controlar a população citadina, mistum de uma
concepção antiga de fixar limites e delimitar espaços com as novas realidades
trazidas pelo desenvolvimento econômico do capital.-" Da mesma maneira,
Bmno Fortier entende que esse muro foi, desde a sua críação, um extraordi
nário anacronismo, constituindo-se num

[...] dos últimos grandes freios ao direito de ir e vir num século XVIII teoricamen
te livi e-cambista e sem dúvida a última tentativa pai^a erguer em tomo de Paiis um
limite firme que ele não pudesse ti~anspor.-'

Sob intensa reclamação popular, os trabalhos foi"am suspensos em maio


de 1789,sendo após incendiados — por ocasião dos incidentes revolucionári
os — e, finalmente, demolidos no século XIX.
Em suma, na Paris do século XVIII — a Paiis descrita e vivida por Louis
Sébastien Mercier e Restif de La Bretonne — persistia ainda um centro medi
eval, compreendido pela área que teria sido aquela englobada pela mui-alha
de Filipe Augusto, centro este que sofrera cada vez mais acréscimos de cons-
tmções. Paralelamente, algumas intei-venções urbanas tinham ensaiado dar à
cidade alguma regularidade mais geométrica, como, por exemplo, o teatro e
o quaiteirâo de Odéon,que substituíram o antigo Hotel de Condé,-' além díis
Place Royale, típica do Ancien Régime e de alguns boidevards. Os revolucioná
rios de 1789, por seu turno, não tivei-am a intenção de mudar a cidade e Na-
poleão não teve tempo de fazê-lo.

A Revolução,o Império,a Restauração e mais ainda a Monaiquia deJulho decor


reram em cidades vetustas, regorgitantes, malsãs,com im-as praças, ruas esü eitas
e tortuosas, com muralhas a desmoronar e a obsti uir, que o Ancien Régime tinha
conhecido e que lhes havia legado.-"'

Portanto, a Paris pré-Haussmann, de Mercier, Bretonne e Balzac, exibia


já o crescimento anárquico de uma cidade marcada pelo seu traçado medie-

'®Mercier; Bretonne, op.cit., p.293.


-"Delon, op.cit., p.II.
-'Fortier, Bruno. Le miir des fermiers généraux. In: Cohen; Fortier, op.cit., p.l4.
--Pinon, Pierre. Un centre entre niédieval. In: Cars,Jean des; Pinon, Pierre (org.). Paris. Hauss-
mnnn. Paris: Picard, 1991. p.38.
-'Agulhon, Maurice. Introduction. In: Duby, Georges. Histoire de Ia Franr£ Urhaine. Paris: Seuil,
1983. v.4.p.7.

'37
vai e que ainda sofria os efeitos da revolução francesa. Sede do poder político,
núcleo de uma aglomeração populacional crescente, a exigir renovadas me
didas de implantação de equipamentos urbanos, a concepção de "cidade fe
chada" cedia espaço a uma nova visualização da "cidade", centralizada no mo
vimento.
Refere Jean Luc Pinol que:

Pai^a aquilo que é a definição da cidade, a desaparição das muralhas não é algo sem
conseqüências. A materialidade das fortificações enunciava a cidade, mesmo que,
desde o século XVIII,a definição pelo muio tenha cedido o passo às concepções mais
fiancionais,com os'faubom gs'se assimilando progi essivamente à área lu bma.-'

A "cidade aberta", enquanto concepção do fenômeno, traduzia as trans


formações sociais em curso:

"O crescimento [...] possui uma dupla conotação, espacial e temporal. Ele é pri
meiro uma modificação das formas de alocação do espaço: os fossos são aterrados
para se tornarem "boulevard", os terrenos agrícolas são loteados, os antigos "fau-
bourgs"são agregados aos bairros centiais, enquanto que as novas"banlieues" se
desenvolvem. Pensar o crescimento supõe que se conceba um espaço heterogê
neo e deformável. Espaço orientado também porque se falará de centi o e de pe
riferia, de núcleo antigo, de crescimento axial, de expansão,"em mancha de
óleo". E porque o crescimento se desenvolve no tempo,este se apresentará como
o encadeamento sucessivo de caracteres diferentes. Como o espaço, o tempo é afe
tado por valores distintos, e o presente é antes o tempo de um futuro em prepa
ração de um passado que eternamente recomeça.-^

Sem dúvida, a nova concepção de "cidade aberta", apoiada no movimen


to e na diversidade, é expressão tanto de um processo de transformação capi
talista do mundo quanto da renovação cultural trazida pelo Iluminismo, que
explicava a realidade sob novas luzes.
Pode-se dizer que o pensamento europeu propõe-se de forma ambivalente.
De um lado, a ilustração é responsável por uma visualização da cidade como
virtude, centro da alta cultura, núcleo produtivo por excelência, germe do
progresso econômico e social, símbolo da civilização e Zocm.? piivilegiado de re
alização do pensamento racional em todas as suas manifestações. De Voltaire a
Adam Smith, a cidade é representada com uma alta carga de positividade, e o

-■'Pinol, Jean Luc. Le monde d-es villfis nu XIXe siècle. Paris: Hachette, 1991. p.11-2.
-'Lepetit, op.cit., p.80.

38
que se chamaria o "ethos urbano" seria a expressão mais alta do refinamento
dos costumes, do gosto e da vida civilizada, proporcionando melhor qualida
de de vida e acesso á informação.-" Entretanto, a plena realização dessa carga
de valores positivos se colocava como um problema: "viver em cidades" impu
nha necessidades, exigia medidas, criava desafios. Ou seja, uma cidade mo
derna,aberta, era um problema posto pelas no\'as condições da existência. Mais
uma vez, as concepções do Século das Luzes orientavam a conduta, e as mu
danças nas representações da cidade guiariam a mudança nas práticas sociais.
Se o pensamento do século XVIII postulava as liberdades individuais, a liber
dade de contrato, a mobilidade e a extensão dos direitos, no plano filosófico e
político uma crítica ã realidade urbana vigente se insinuava,inspirada nos pro
gressos científicos da época."

Os higienistas, de um lado,os engenheiros(e notadamente os politécnicos e os en


genheiros da "Ponts et Chaussées") são os portadores destas idéias. As topografias
médicas, nascidas no século XVIII e chamadas a valorizar os efeitos do meio sobre
o estado físico e moral dos homens,eng^aram a obser\'açâo social e identificaram
as formas da estéüca clássica e as regras da saúde pública. Por uma referência mui
to simples à mecânica, tudo aquilo que está em movimento e em circulação é são;
tudo aquilo que está estagnado é malsão. Circulação do ar e das águas, penetração
da luz se opõe ao amontoamento,à concentração do ar viciado,à exalação de mias-
mas e de odores mefíticos. A linha reta reconcilia assim com o ponto de vista do
embelezamento,com o da higiene e enfim com o interesse do comércio.^^

Portanto, na emergência da cidade moderna e aberta — como prática e


conceito — temos radicada esta polarização avaliativa: por um lado,a cidade como
virtude, espaço de encontro e de realização da vida civilizada, que dota as repre
sentações de uma carga simbólica positiva. Paris é, no caso,a cidade-luz por exce
lência, ou mesmo a ville-siècle de que fala Duchet,-" resumindo tudo aquilo que a
civilização conseguira reunir no século passado. Por outro lado, porém. Paris é
um enorme problema e pode se constituir no símbolo da cidade maldita, espécie
de Babilônia moderna,cujo lado sombrio e ameaçador a faz ser comparada a um
monstro devorador. A cidade-vício é,sem dúvida, um problema posto,onde tudo
está para ser refeito e reorientado numa nova direção, condizente com os princí
pios da moral, da estética, da higjene ou das exigências da técnica moderna.

-''Schorske, Carl. La idca de ciudad en el pensamiento europeo: de Voltaire a Spengler. Punto


de Visla, Buenos Aiies, ano X, n.30,jul.-out. 1987. p.FV.
-'Roncayolo, Mareei. La production de Ia ville. In: Duby, op.cit., p.93-4.
-'*Duchet, Claude. La ville sièçle. Romantisme, Paris; CDU-SEDES,n.83,1994. p.l.

39
E nesse ponto que se colocam os discui-sos litei-ários que ti-aduzem o senti
mento da emergência da "metrópole" ou "cidade aberta": eles falam sobretudo
de mobilidade social, de fonnigamento, de troca e de mudança, de imlange de
diferentes estratos sociais num mesmo espaço.Em especial, recortemos às obi-as
já citadas, que,no final do século XVIII,inaugui-am uma sensibilidade nova com
relação ao urbano: Louis Sébastien Mercier, com o seu Tnhleau de Paris, e Restif
de Ia Bretonne,com sua obra Les nuits de Paris. Sem dúvida, podeiiamos estabe
lecer diferenças entre eles,dizendo que o parisiense Mercier estabelece um olhar
burguês sobre a cidade e a descreve principalmente no seu fervilhante cotidia
no diurno, enquanto que Bretonne, vindo da província, guardaria da capital
francesa uma observação do ponto de vista das camadas mais baixas e, como o
título de sua obra indica, reti-atava Paiis à noite. Entretanto, como bem assinala
Delon,^ ambos reclamam por uma cidade aberta, ao sol, às con eiites de ar e ao
livie olhai- de quem por ela pei-ambula...
Para Mercier, Paris é de uma grandeza desmesurada e difícil de gerenci
ar.^" A capital francesa, que constava com cerca de 700.000 habitantes à épo
ca,já atraía os olhares do mundo inteiro^' e se destacava pelo seu cosmopoli-
tismo:

Um homem em Paris, que saiba refletir, não tem necessidade de sair da cintura
de seus muros para conhecer os homens de outi os climas; ele pode chegar ao co
nhecimento inteiro do gênero humano,estudando os indivíduos que formigam
nesta imensa capital. Aí se enconüam os asiáticos [...] os lapôes [...] osjaponeses
[...] os esquimós [...] os negros [...] os"quakers". Aí se enconü am as maneiras, os
usos e o caráter dos povos mais longínquos.*^

Mercier, enumei-ando os tipos de procedência exótica que podiam ser


encontrados nas i-uas da cidade — árabes, hotentotes, indianos, persas ,
numa mistura de hábitos, línguas e credos, comparava Paris à "antiga e volup
tuosa Babilônia".**
A diversidade, contudo, não se devia apenas ao cosmopolitismo da urbe,
pois o cidadão que pusesse a cabeça para foi-a de suajanela veria uma enorme
variedade de tipos a desfilarem nas mas:

-®Delon, op.cit., p.XVI.


*®Mercier & Bretonne, op.cit., p.33.
*'Ibidein, p.373.
*-Ibitlcm, p.29.
*'Ibideni, p.30.

40
[...] o homem qiie faz sapato para ter pão,e o homem que feiz roupas para ter sa
patos, e o homem que tendo roupa e sapatos se atormenta ainda para ter com que
comprar lun quadro. Vê-se o açougueiro e o boticário, o parteiro e aquele que en
terra, o ferreiro e ojoalheiro,que ü-abalham para ir sucessivamente ao padeiro,ao
boticáno,ao parteiro e ao mercador de vinho.^

Ora, essa grande cidade, metrópole cosmopolita, poderia, pois, ser apre
ciada por sua niélangesoci^ e pelo encadeamento de ofícios e necessidades que
marcam e caracterizam a vida de um centro urbano. Em Paris, era possível
encontrar de tudo, do mais simples objeto à mais requintada mercadoiia,
dentro também da maior desigualdade social, com o homem tico vizinhando
com o pobre.
Sem diivida, estamos diante daquilo que,conceitualmente,chamaríamos
de uma metrópole: Mercier nos fala de ruas congestionadas, de gente, de ca
valos e de carroças, de tudo aquilo que,em conjunto, assinalaria a vida de um
grande centro urbano da época.

É um espetáculo curioso, o de ver tudo a sua vontade,do alto de um balcão, o má-


mero e a diversidade de veículos que se cruzam e se fazem parar mutuamente;os
pedesti es que,semelhantes a pássaros assustados sob o fuzil do caçador,se esguei-
ram ati-avés das rodas de todos estes caiTos prestes a esmagá-los.^®

Nosso "espectador privilegiado" de Paiis do final do século XVIII fala tam


bém de uma extrema aglomeração de prédios num espaço estreito, visão que
podia, mais uma vez, ser descortinada do alto das toires de Notre Dame.'® Seu
bamlho e tumulto faziam lembrar a Toire de Babel,®'com o que Mercier, mais
uma vez, recon e à imagem da antiga Babilônia para comparar com a capital
francesa. A proximidade entre pobres e ricos não se dava apenas em termos
de alojamento, mas também nas mas, onde se cmzavam os mais diversos tipos
de pessoas, seja do ponto de vista ocupacional, social ou mesmo moral. A rua
era o espaço piíblico por excelência deste entrechoque e onde "uma 'filie de
joie' não cedia o passo a um arcebispo".®®
Mais uma vez lembrando Marshall Berman, pode ser evocado o inciden
te naiTado por Gogol sobre a Perspectiva Nevsky, que evidencia a experiência

^■•Ibidem, p.32.
®®Ibidem, p.168-9.
'«Ibidem, p.328.
"Ibidem, p.68.
®°Ibidem, p.l69.

41
da modernidade mesmo na Rússia tzarista: convertida em espaço de "perten-
cimento" público, a ma toma-se também o lugar de enfrentamentos das desi
gualdades sociais, onde o desafio do subalterno pode se realizar na não-cedência
do passo ao indivíduo de posição mais elevada."*^
Da mesma forma, Restif de Ia Bretonne, na primeira de suas Nniís de
Paris, declara-se só na "capital imensa",'^^^ mas, como suas descrições se refe
rem a uma perambulação noturna pela cidade, não encontramos em sua nar
rativa o burburinho e a agitação do cotidiano parisiense relatado por Merci-
er. São desertas as mas da Paris noturna se comparadas ao bulício da capital
durante o dia. Todavia, o crescimento desmesurado da capital era também
criticado por Bretonne,ao relatar que Paris "devorava" suas redondezas,con
vertendo terras cultivadas em mas estéreis." Há,sem diivida, uma constata
ção melancólica da relação campo-cidade, na qual o gigantismo do urbano
que en.globa as regiões circunvizinhas traz em si uma dimensão valorativa e
idealizada do campo. Este é encarado como virtude e se opõe à cidade, iden
tificada com o vício. Mas, mesmo à noite, as mas são só aparentemente de
sertas, e o "espectador noturno", que é Restif de Ia Bretonne, não cessa de
encontrar os mais diferentes personagens nessa cidade que apenas parece
donnir... Tal como na cidade de Mercier à luz do dia, nas mas mal ilumina
das de Bretonne cmzam-se ricos e pobres, marquesas e gentis-homens, ope
rários e prostitucas.
O cosmopolitismo tem, contudo, para Bretonne, uma certa conotação
moml mais acentuada. O cosmopolita é um monstro, chega a afinnar,''- porque
é um ex-patriado. Da mesma foixna, Bretonne coloca na fala de um dos pei"so-
nagens noturnos — o patiiota — a afiimação de que "ser cidadão do mundo é
ser nulo, pois implica não ser de nenhuma parte do mundo". Misturado a re
flexões moi-ais sobie o nacionalismo e os deveres mútuos dos cidadãos uns para
com os outros, entendemos que as considerações do autor são uma fomia de
exprimir o gigantismo metropolitano que Paris passava a atingir na época. E,
sendo Paris a metonímia da cidade moderna e também da fVança, como na
ção, ao reprovar o cosmopolitismo francês, é a grande capital que o autor tem
em mira,folando pela boca de um de seus personagens;

'^Berman, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar; a nvenlura da modernidade. São Paulo: Com
panhia das Letras, 19801.
■•"Mercier & Bretonne, op.cit., p.620.
■"Ibidem, p.638.
■•-Ibidein, p.769.
■•^Ibidem, p.877.

42
Oiiü ora, havia nações! Hoje os homens não são mais que imi vil apanhado de mo
leques, malfeitores saídos de sua região e que reuniram em cada cidade todos
os \icios, e todas as doenças do universo! A varíola da Arábia, a lepra do Egito, o
tétano da África, [...] a tísica britânica a crueldade dos romanos,a barbárie
dos tártaros, a inconstância dos niimidas,a grosseria dos batavos,a malandragem
dos árabes vagabundos, a insaciabilidade dos canadenses, a estupidez da Cali
fórnia, a avareza dos turcos, a perfídia dos algerianos, a superstição dos flamen-
gos-brabantinos, eles reuniram tudo isto numa só cidade! Antigamente, quan
do dnhamos nações, cada país tinha o seu vício e suas qualidades,as qualidades
se extinguiram, os vício se fortificaram: em Paris, encontram-se neste instante os
vícios de todo o universo.''^

Mesmo não levando em conta as considerações morais e os "estereótipos


identitários" formulados a partir de um "ponto de vista francês", teremos na
narrativa a emergência de uma cidade-problema metropolizada, que, no caso
de Bretonne, tem a faceta negativa ressaltada pela condição notunia, pois é à
noite que as inconveniências da grande cidade aparecem.^^
Tal como Mercier, Restif de Ia Bretonne descreve a "bárbara e gótica" Cité
mais como um incrível labirinto do que como uma cidade, "onde duas pesso
as que se encontram não podem passar senão se abraçando"^® em mas estrei
tas, tortuosas e sujas, onde as pessoas ficam sufocadas em casas de quatro an
dares e onde o ar não circula...
Mais uma vez, verifica-se a constatação de que a grande cidade está a exi
gir a livre circulação de ar e das pessoas. Não é, pois, por acaso, que nos sonhos
— de Mercier e Bretonne"*^— para uma Paris do futuro,se coloque a imagem
da cidade aberta, com largas avenidas, mas bem traçadas, limpas e ilumina
das, o que seria depois, na segunda metade do século XIX,realizado pelos tra
balheis de remodelação de Paris por Haussmann.
A cidade-aberta, moderna concepção trazida pela emergência da gran
de urbe, vem acompanhada de um outro elemento, que induz à reflexão e
inspira os discursos literários: ele advém dos "contrastes" revelados pelas pri
meiras metrópoles.
Nos discuisos que se estabelecem sobre a cidade, Paiis é, por execelência, o
exemplo da figura de estilo que associa duas palavras de sentido conti-aditório: o

-"Ibidem, p.881-2.
■•^Ibidem, p.900.
''®Ibideni, p.913.
"•'No caso de Mercier, a obra Le nouvenu Paris e, no de Bretonne, em especial, as descrições do
ano de 1888, X parte, qiie constam na publicação conjunta dos livros dos dois autores.

43
oxímoro.''® Assim, não é pai-adoxal, mas reconente, qiie a cidade seja identifica
da ao mesmo tempo com o mais alto gcau de civilização e de cnltiim e seja tam
bém associada aos termos da barbáiie e selvageria. As metáforas da selva e da/«n-
nitidamente antiurbanas, convivem com a noção de urbanidade, que expii-
me uma conduta social adequada e a polidez nas relações humanas.
Antes de Mercier ou Bretonne,já Fougeret de Monbron, em 1759, ex
plorava ajá mencionada figura da retórica (do oxímoro) com relação a Paris,
assim como usava a imagem metafórica da cidade-pecado para a capital fran
cesa. No preâmbulo de seu livro Capitale des Caules ou Ia Nouvelíe Bal/ylone, Paris
é, ao mesmo tempo,"inferno e paraíso, luxo e miséria, bano e ouro":

Eu ouço dizer todos os dias que Paris é a primeira cidade do mundo pam o agi~ado
e as comodidades da vida, um paiaíso terresti e onde se encontia geralmente tudo
aquilo que se possa desejar. [...] Mas este paraíso terrestie torna-se um lugai" de su
plício, tanto mais cnael para os infortunados porque a abundância,os prazeres,a ale
gria e as festas das quais eles são testemunhas e das quais eles não participam, lhes
ti~açam mais vivamente a imagem ameaçadora de suas calamidades e suas misérias.''®

Da mesma forma, o paradoxo, o contraste e a contradição se fazem pre


sentes na Paris de Louis Sébastien Mercier e de Restif de Ia Bretonne, no final
do século XVIII.
Em maior ou menor grau, ambos os autores registram e, de uma certa
maneira, constatam a aceitação da diferença e da alteridade no grande
centro urbano. Mais do que isso, valem-se do paradoxo e dos encontros
fortuitos que a metrópole proporciona como elementos que, desconexos
ou não, definem a cidade moderna. Mercier não se cansa de exibir o que
chama de "quadros eloqüentes" que impressionam o olhar do obsei-vador
em todos os cantos e esquinas, destacando a "galeria de imagens, cheias
de contrastes chocantes para quem sabe ver e entender".^" Batismos e
enterros, um padre que vem dar o último conforto ao moribundo e aquele
que casa o jovem par, a mão que se estende para uma esmola e a outra
que, carregada de jóias e enluvada, arrebanha um vestido com rendas, as
leis que se fazem para não serem obedecidas, carroceiros e grandes senho
res, domésticas e marquesas, cocheiros giosseiros e arrogantes que amea
çam esmagar os transeuntes, loucos e sãos, mulheres honestas e prostitu-

''®Delon, Michel. Loiiis Sébastien Mercier. Le premier piéton de Paris. Magazine Liltéraire, Paris
des Ecrivains, n.332, maio 1995.
''®Apud Delon, op.cit., p.24.
^''Mercier; Bretonne, p.31.

44
tas, ladrões e operários são algumas dessas figuras que desfilam na gran
de cidade. Ordem e desordem, confusão e uma certa lógica de funciona
mento que faz com que a vida urbana se renove na sua cotidianeidade
levam Mercier a ter para com a capital francesa, sentimentos ambivalen
tes: "Como não ficar surpreendido com esta ordem incrível que reina
numa tão grande confusão de coisas?"^'
Nosso naiTador conclui, enfim, que a desordem é comum às gi-andes ci
dades,^- e, como tal, Pans não foge à regra, reunindo em toda a sua extensão
as coisas mais opostas.^ Mercier tanto se compi-az com a diversidade, a circula
ção das idéias ou mesmo a presença da multidão, quanto condena a convivên
cia da riqueza mais florescente com a miséria mais absoluta:

[...] Mas seria mais perigoso hoje suprimir a loba do que deixá-la subsistir; há ma
les que,uma vez em*aizados,são indesti utíveis. [...] ConseiTai então a enorme loba,
porque não podereis a extlipai^ sem pôr em perigo o corpo político.^

Claramente, a cidade dos contrastes faz nascer a "questão urbana" para o


Estado. A questão urbana é, pois, um problema a ser resolvido por decisões
políticas que têm o seu preço. Por outro lado, a questão urbana, como quer
expor Mercier, traz em si a in eversibilidade do processo que a suporta.A "loba"
é um problema que não pode ser ignorado nem suprimido de todo, mas sim
remediado, atacado, contornado.
Aliás, a metáfora da loba associa-se à idéia do mal, da cmeldade, do tu
mor que se agrega à grande cidade devoradora de homens. Ao mesmo tem
po, porém, Mercier resgata o romantismo das mansardas, refúgio dos poetas
e artistas, próximas do céu, estimuladores do sonho. Assim, a cidade é tam
bém propícia à imaginação criadora e à reflexão, estimulando o pensamento
do filósoifo e a pena ou o pincel do artista.'' Da mesma foiTna, o notívago Bre-
tonne vê em seus passeios cenas extí-aordinárias, que se revelam mais comoda
mente na obscuridade. Como diria Bretonne, Paris era "cômoda" para dar
margem ao engano e às velhacaiias,'® que comparecem na sua nairativa, ao
lado das ações mais nobres e os sentimentos mais puros, que, por sua vez,sub
sistem frente ao meio coirompido.

®'Ibidem.
^-Ibidem, p.233.
®'Ibidem, p.264.
^^bidem, p.33-4.
'^Ibidem, p.32 e 37.
°®Ibidem, p.467.

45
Da mesma maneira contraditória, os espaços da cidade se prestam de for
ma exemplar a este conti-aponto de imagens. De um lado, tem-se a "velha Pa
ris" com os seus pi oblemas, uma Paris que Mercier retrata como a cidade mais
suja do mundo."' Ar viciado, calçadas perigosas, riachos que cortam as mas
em dois, telhas que pingam, pó, barro, mas estreitas com casas imundas e fei
as e toda sorte de dejetos expostos à respiração dos tianseuntes são algumas
das descrições que dão um quadro sombrio da capital francesa."** Bretonne
coiTobora com outros tantos quadros terríveis de uma Paris noturna — mas
mal iluminada — dos terriveis dias de chuva e da sua incrivel sujeim,com toda
sorte de imundícies jogadas no rio ou nas mas, ou, então, pelas janelas das
casas, ameaçando os passantes incautos..."**
As descrições, que fazem lembrar os relatos sobre as cidades medievais,
conduzem à confiiTnação das teorias cientificas da época: lugares fechados e
insalubres davam margem à gemção de um ar viciado, propiciador de doen
ças. O "mefitismo", palavra nova na época, que queria dizer "vapor envenena
do", se aplicava com justeza à falta de circulação do ar existente em Paris.**"
Sem dúvida, tais cores sombrias se aplicavam às zonas da cidade onde ha
bitava, de preferência, o populacho. Para Mercier, esses lugares eram, sobre
tudo, o faubourg St. Mareei, então afastado do centro, que seria bem distinto
das margens do Sena, onde moravam os verdadeiros parisienses... Mas, mes
mo no coração da cidade, havia lugares imundos, como a ma Pied-de-Bouef,
"a mais fedorenta do mundo inteiro", na própria Íle de Ia Cité, atravancada
de constmções que se sobrepunham umas às outi^as, invadindo as pontes que
ati^avessavam o Sena."' Paia Bretonne, a zona "feia" da cidade se estendia para
quase toda a rive gaúche e para a Ile de St. Louis."- Em ambas as narrativas, o
baiiTO do Maiais se achava em decadência.
De qualquer foiTna, os discursos da Paris do final do século XVIII estabe
lecem um vivo contraste entre as duas margens do Sena, consagrando o Pays
ou o Quartier Latiu como a região abandonada e empobrecida,em conti-aste
com novos locais preferidos pela burguesia ascendente e que se situavam na
margem direita. Assim, uma Paris florescia, tendo por pontos chaves a ma St.
Honoré, o Palais Royal, o Pont Neuf, a Rue Vivienne, a Chaussée d'Antin. Na

^'Ibidem, p.47.
®®Ibidem, p.46-9.
^'íbidem, p.765,891 e 953.
^''Ibidein, p.54.
®'Ibidem, p.39, 184 e 72.
®-Ibidem.

46
margem esquerda, o quarteirâo em constmção era o JhuhourgSuint GeiTnain,
destinado a concentar a aristocracia na primeira metade do século XIX.
Mas, mesmo nesses belos e novos locais, que se notabilizavam pela elegân
cia dos moradores e a beleza das construções, os contrastes se impunham,fazen
do o luxo coabitar com a miséria. Em svima, a Paris que fedia e que era cheia de
ratos conviria lado a lado com a sedutora metiópole nascente, sob o influxo do
poder financeiro dos banqueiros,notáiios e constmtores que habitax-am nos novos
baiiTos, em prédios grandiosos. O mais chocante era constatai- que, mesmo no
JauhourgSt. Honoré,se sentia o odor pútrido da falta de esgotos.®'' No conti-aste
— do novo e do velho, do belo e do feio —,as considerações pertinentes a uma
cidade aberta se impõem: por que não retii-ai* as pequenas casas que cobriam as
pontes do Sena para dai* uma melhor risão sobre a cidade a partir do rio e pai-a
facilitar a circulação do ar?®-* O crescimento de Paris estava a exigir desobstm-
ções, e a abertura de novas ruas ou o estabelecimento de esgotos implicaiiam
um feliz encontro dos princípios da higiene com os da estética.
O contraste das edificações e da paisagem se somava ao conti-aste da mul
tidão que circulava por esses espaços e ambientes, revelando uma viélan^ talvez
mais perigosa, porque reveladora de desigualdades sociais e de conduta moi-al.
Nesse caso, o Palais Royal era o local exemplai* para evidenciai* este tipo de coe
xistência, nem sempre pacífica. Sob suas arcadas e passagens, circulavam damas
da sociedade e prostitutas, levando por vezes a consti*angedoresjuízos de avali
ação de um e outro gmpo... O Palais Royal exerceria gi*ande atração sobre Bre-
tonne, dando maigem a uma série de reflexões morais sobre este encontro de
famílias com as JlUes publiques nesses locais onde se davam concertos:

O que liaria de mais ciu*ioso e de mais agi*adável, para certas pessoas, não era o con
certo, era a assembléia: as mulheres honestas aí se enconti*avam conflmdidas com
as perdidas; uma mãe,com as suas filhas, aí se ria cercada de dançai-inas, de peque
nos artistas e seguidamente um daqueles escon egava àsjovens uma palavi*a, que não
era mal recebida. Os gatimos aí exerciam também seus talentos, quase sem perigos;
fossem eles smpreendidos,desapareceriam na multidão e na obscm idade.®'

Espécie de capital da capital, Mercier considerava que o Palais Royal era


um ponto único no Globo, que não seria encontrado em outras cidades como
Londres, Amsterdã, Madri ou Viena.

"'Ibidem, p.236.
"■•íbidcm, p.fiO, 167-8.
"'Ibidem, p.948-9.

' 47
No momento,pois,em que as condições concretas da existência se modi
ficavam sob o impacto do desenvolvimento capitalista e que certas gmades ci
dades assumiam as dimensões e a aparência aproximada que têm hoje, com
alterações profundas e significativas na cotidianidade da vida de seus habitan
tes, eclode uma nova postura diante do fenômeno urbano.
A cidade é, ao mesmo tempo, o teatro alegórico de realização da virtude
e do vício, agora inseparáveis, o que permite uma relativização dos valores e
um certo ceticismo diante da ambivalência de um processo que nela habitam.
A cidade é, na mesma medida, monstro devorador e mãe que dá guarida e
lefúgio a todos os seus filhos, suscitando aquela atitude de atração-repúdio
típica da modernidade de que nos fala Beiman.'^'^
Nesse contexto, os discui-sos sobre a cidade modenia fazem uso reconente
de "metáfoi-as", ou do emprego de imagens que, por analogia, realizam uma
alteração de sentido. Assim, a própria designação de selva à metrópole leva a
atribuir à gi-ande cidade o sentido de selvageria ou bmtalidade contido naquela
imagem. Ora,Paiás é a cidade que mais se prestou ao uso de alegorias por paite
de seus escritores. Sendo a alegoria um discurso que "diz outra coisa além da
quilo que diz",sendo, pois, um "dizer de outra foima" ou um "outro do dizer",*^'
as representações alegóricas sobre a cidade usam imagens referentes a outi-as
cidades do passado, reais ou fictícias, a figui-as arquetípicas da mitologia ou a
padrões de r eferência espacial, como o labirinto. Pode-se mesmo dizer que, por
longo tempo, o imaginário ocidental se nutriu do modelo fornecido por qua
tro cidades-ideais: aJernsalém celeste, padrão de referência para a bem-aventu-
rança e espécie de desiderato inatingível pelos homens; a Babilônia maldita,
centro do pecado e da devassidão,já denunciada pela Bíblia; a Roma dos Césa
res,fonte de autoridade e do direito; e a longínqua Bizâncio, glamourizada pela
aura da sacralidade de seus imperadores e de um certo mistério ou desconheci
mento de sua história.®® Ou talvez pudéssemos ainda rtimar- para os domínios
da tragédia grega, onde a disputa estabelecida por Sófocles entre Antígone e
Creonte simbolizaria, com a vitória deste último, a supremacia da urbanidade
emergente na Grécia antiga sobre o tribalismo arcaico.®®
De uma certa forma,estas representações da cidade podem vir a ser agrar-
padas em dois conjuntos, que responderiam, por sua vez, àquelas antinomias

''®Berman, op.cit.
®'Mainard, Pascal. Homo hulla. Pour une poétique de Tallégurie. In: Axice,Jean Paul; Pichois,
Claude {dir.). Baudelaire,Paris, 1'allégorie. Paris: Klincksieck, 1995. p.27.(L'année Baudelaire, 1)
®®Zuthor, Paul. La mésure dti rtwnde. Paris: Seuil, 1993.
®®Cf. Sansot, Pierre. Antigone et Créonte. In: Ansay, Pierre; Schoonbrodt, René. Penser Ia ville.
Bruxelas: AAM,1989.

48
do urbanojá expressas anteriormente. Assim é que, de uma parte, teríamos a
cidade pesadelo, referente à tipologia Babilônia, Sodoma e Gomona, e, de
outia, o sonho da constituição de uma cidade ideal, síntese das virtudes re
presentada ora por Jerusalém, Atenas ou Roma.
Como se viu, a París Babilônia ou Babel foi uma imagem reconente de
Fougeret de Monbron a Louis Sébastien Mercier, assim como Restif de Ia Bre-
tonne usa a imagem do labirinto para expressar o emaranhado de naelas e be
cos do seu "velho París" notunio, principalmente para refeiir-se à Cité.™
Essas são as metáforas mais comuns pax-a i*eferência às metiópoles e que
dizem respeito tanto ao cai-áter perverso e soberbo das gi-andes cidades quan
to à necessidade de deciframento e busca de meios de sobi evivência no meio
urbano. Mas nossos autores fazem uso de imagens metafóiicas mais sofistica
das, que se l evelam quando fazemos o cinzamento de alguns pei^sonagens ci-
tadinos, veidadeii os l ecuisos alegóiicos pai-a expi-essax' o uibano.
No caso de Mei ciei", l efeiimo-nos ao chiffonnier, ti-apeiio, apanhador de
papéis ou catador de lixo, que lecolhe tudo e nada ao mesmo tempo,jogan-
do-o no seu saco. O essencial, contudo, não é o tipo social em si, ou o ofício
modesto que desempenha nas laias de Paxás. Mercier o toma exatamerite como
metáfora da pesqtiisa, da seleção, do recolhimento dos traços, cacos, vestígios
da cotidianidade urbaxia,sem a qixal se ixiviabilizaxia toda a x-eflexão e a análise
dos cxiticos do social. Mercier compara o lixo catado pelo chiffonierà. matéxia-
pxima que o pesquisador, na sua atividade dejuxitar detalhes e elemexitos apa-
rexitexnente não-sigxiificaxites, coxivertexá xio "oxnamexito de xiossas bibliotecas
e o tesouro precioso do espírito humano. Este catador de papéis precede
Moxitesquieu, Buffoxi e Rousseau"."'
Coxxclui Mercier que,sem este chiffonnier, o seu trabalho como escxitor ou
a leituxii de sua obra xião sexia possível. O chiffonnier é, poxtaxito, metáfox-a da
quela idéia que sexia mais tarde trabalhada por Bexijamin e por outros, através
da qual o escxitor ou o histoxiador são idexitifxcados como alguém que reco
lhe, gaximpa, salva os cacos e vestígios do cotidiano para depois selecionai; ixi-
texpx etar e dar-lhes sexitido'-. O chiffonnier se toxna um dos tipos essenciais da
mitologia de Paiis, como vixia apoxitar Edmoxid Texier em 1867, xio seu Paris
- Guide par les principaux écrivains et aríists de Ia France.

^"Mercier; Bretonne, op.cit., p.913.


"Mercier; Bretonne, p.l06.
'-Cf. Benjamin, Walter. Paris, r.apitale du XIJC siècle. Le livre despassnges. Paris: CERF, 1989. Wohl-
farth, Ining. Et Cetera? De rhistorien comme chiffonnier. In: Wismann, Heinz (org.). Walter Ben
jamin et Paris. Paris: CERF, 1986.

49
Embora o ti"apeiro tenha sido tantas vezes desciito, me é impossível de passar por ele
em silêncio. Paris é a cidade por excelência do tiapo, quer dizer, de tndo e de nada!
quantas coisas perdidas dimante o dia,e que se reenconti'am à uoite, na ponta de lun
gancho! O ti~apeiro é essencialmente eclético; elejtinta tudo o que se oferece.'^
Também Bretoime encontra em suas peregrinações noturnas tuna velha
trapeira, cuja imagem, todavia, não lhe suscita as reflexões de Mercier.'* E,
contudo, na figura emblemática do r.hijjonnier de que fala Mercier qtie encon
tramos o que Michel Delon chama de "metonímia de Paris".'" Ele identifica
nesse personagem a atitude do espectador privilegiado do urbano — poeta,
histoiiador, cronista ou detetive, que resgata os elementos mais preciosos da
quilo que poderia ser lixo puro, mas que compõem uma imagem da cidade.
Há uma outra figura, refeiida tanto por Mercier como por Bretoime, que,
à primeira vista, se assemelharia à do chijfonnier. é aquela do Irouveur, oti do
"encontrador de coisas". Recolhendo das ruas tudo aquilo que os incautos per
derem, ele se antecipa aos sei-viços da guarda de Paris, mas, enquanto esta de
volve fielmente ao propiietário tudo o que encontra, o guarda para si,
como se lhe pertencesse... Mercier não ousa classificá-lo abertamente de escro
que ou de finório,e o personagem não lhe suscita as reflexões realizadas a pro
pósito do chiffonnier. Da mesma forma, Bretoime descreve esse bizarro perso
nagem que, Icvantando-se às 5 horas, percorre as mas de uma Paris ainda es
cura e relativamente deserta à procura de coisas perdidas, mas com a diferen
ça de que,lendo nojomal a seção de "perdidos",ele corre a devolvê-la ao dono,
recebendo com isso uma recompensa."'"' Ou seja, Bretoime inctilca no trouvew
um traço de caráter e uma lição moralizante, na qual o "encontrador de coi
sas" não abriria mão de seus princípios em troca de qualquer recompensa,
entregando o objeto perdido a qualquer um que o reclamasse."
Não é nas reflexões morais de Restif de Ia Bretoime, mas na nanativa de
Mercier, que a reflexão se instala e dá margem a uma nova representação meta
fórica. Mercier nos fala do "poder do olhar" e da percepção das coisas numa
grande cidade. O olho do trouveuré capaz de ver além da aparência das coisas,
e isso advém de um exercício, de um treinamento e de uma habilidade adqui
rida: "Cada ciência tem suas obseivações finas e particulares", conclui Mercier.""

"Delon, op.cit., p.502.


"Mercier; Bretonne, op.cit., p.658.
"Apud Delon, op.cit., p.XX.
"Mercier; Bretonne, p.282.
"Ibidem, p.872.
"Ibidem, p.282.

50
A questão do olhar, por sua vez, nos remete às figui-as alegóricas do voyeur,
do passante, do espectador privilegiado do social, doJlâneur que sera tão explo-
i"ado na litei-atin-a posterior, no séculos XIX e XX, de Baudelaire a Benjamin.
Restif de Ia Bretonne se declam o Hihou spectatem, o voyeur noturno que
tudo obseiva e que descreve não apenas cenas chocantes e exti"aordinái'ias, como
também reflexões filosóficas."'' O escritor é, pois, um leitor especial do social,
que espreita e consegue ver as coisas, que tece reflexões,se perde e se encontra
nas mas,fazendo falar o que se encontra aparentemente em silêncio, desvelan
do sentidos. Se as mas são um labirinto, ele estabelecera, qual Aiiadne,o cami
nho que leva à saída. Tal como o cego ao longo de seu passeio, que pelo tato e
olfato pode saber por onde anda ou pela intuição consegue "enxergar" que sua
filha havia caído na "perdição","" o cronista da urbe é aquele que vê coisas que
os outros não podem enxergar. De onde vem esse poder e essa aigúcia revelado-
ra de sentido, mesmo com o contexto urbano se configui^ando como uma desor
dem e um non sense inextrincável? A temporalidade das suas peregrinações paii-
sienses — durante a noite, numa Paris pouco iluminada — é, por sua vez, uma
foiTua metafórica de dizer que,ao olhar do cronista, as coisas se tomam clai-as,
iluminando-se o que, para o leitor comum,é só trevas e ausência de sentido.
Da mesma forma, para Merciei; os contrastes e as conexões que dão mar
gem à metáfora só se revelam através do percurso pela cidade e pela reflexão:
é andando pelas mas e olhando que a cidade se revela. A reflexão de Mercier,
mais elaborada, percon e os caminhos da recepção, entendendo que cada lei
tor poderá retificar e atiibuir novos sentidos à narrativa que lhe é apxesentada
pelo produtor do texto. Cada um pode ver o real urbano de forma diferente,
e o autor adverte que Paris foi tão modificada ao longo do tempo que não resta
quase nada de sua origem. Posicionando-se mais como um pintor de quadros
do que como um filósofo, Mercier lança o convite ao \ei\.OY:Promenons-nom!P^ a
fim de ver, nos traços, cacos, vestígios, monumentos,usos, costumes e persona
gens que povoam as mas de Paris,o seu passado. Em páginas admirâveis,"- Mer
cier realiza esse passeio, essaJlãnerieRo longo das mas e boulevards, evocando a
memória,sonhando o futuro e estabelecendo relações entre o que é aparente
mente desconexo.
Tal predisposição à abertura do olhar, que faz do cionista um espião ou
um detetive — imagens recorrentes numa cidade que crescia e que tinha o

'"Ibidem, p.619.
«"Ibidem, p.870.
®'Ibidcm, p.26.
8=Ibidem,p.98-104.

51
seu sistema policial e de vigilância reforçado —,é talvez o cerne das motiva
ções que levariam estes dois cultos espectadores do social a desvelar os segre
dos da metrópole.
Mas o Século das Luzes traz consigo também outras noções, que se fa
zem presentes com força em ambos os autores. Referimo-nos às teorias pseu-
do-científícas da fisiognomia, de Gall e Lavater, que conferiam não só ao
homem da ciência, mas também ao poeta, ao pintor e ao moralista e filóso
fo, uma missão detetivesca: observar, com olhar sagaz, a multidão das ruas e
os infindáveis tipos que nela circulavam. Os traços fisionômicos, o porte, o
andar e o olhar revelariam o caráter e é assim que tanto em Mercier como
em Bretonne encontramos admiráveis descrições, onde asjovens honestas
têm sempre um olhar límpido, a fisionomia calma, e as decaídas, uma fisio
nomia lasciva e olhar abusado...
Dizia Mercier:

As boas qualidades do coração imprimem sempre à fisionomia um caráter to


cante. Jamais um excelente homem apareceu como uma figura desagradável,
a humanidade apresenta nos üaços do rosto uma espécie de serenidade e de
doçura. [...] E quase impossível de dissimular a inveja, a malícia, a crueldade, a
avareza, a cólera, e as paixões generosas ou más têm nuances que se revelam ao
olhar atento."^

Declarando não ter lido Lavater, mas conhecendo e aprovando suas idéi
as, Mercier assegura que deveiia ter sido em Paris e no Falais Royal que Lava
ter deveiia ter feito as suas numerosas experiências e teria, com isso, tido opor
tunidade de ver o que ele não podia obsei-var senão de fonna imperfeita.''''
Assim, passear pelas mas, prestai* atenção ao detalhe, conversar com os
vaiiados tipos, l ecolher os cacos do passado e obsei-var a multiplicidade de ges
tos do cotidiano se conveitem na pressuposição de uma nova reflexão sobre o
urbano,revelada pela literatura, ante uma cidade que se transformava de gran
de urbe em metrópole.
As concepções de uma "cidade aberta", a evidência dos contrastes pro
porcionados pelo "viver em cidades", o recurso ao uso de metáforas e alegori
as e o endosse da figuia do Jlãneur, espião e detetive, do chiffonnier Ç: do trouver
para definir o papel dos "espectadores privilegiados" do social são todos ele
mentos de reflexão que nos remetem, mais uma vez, às análises de Walter Ben-
jamin sobre o trabalho do historiador.

8'Ibidem,p.91.
®''Ibidein, p.92.

52
Referimo-nos à estmtégia, teórícometodológica,do recuiso às técnicas da
montagem por contraste e porjustaposição, aplicando esse pi^ocedimento ao
processo de produção/apropríação das representações urbanas.
Julgamos que, nos autores vistos, a montagem por conti-aste e choque, pro
porcionada pelo confronto de imagens do público e do privado, do progi*esso e
da tmdição, do urbano e do mi-al, da elite e do povo,do centjro e do baiiTO, dos
produtores e dos consumidores da urbe se encontra presente de foima admiravel.
Igualmente,é possível dizer que esses espectadoies da urbe estabelecei-am
com maestria um processo de recolhimento e cmzamento de fragmentos do
cotidiano,formando o que se poderia chamai"o referencial de circunstância da
época.Justapondo oJlãnmir, o chijfonnier, o tmuveur, os opei"áiios, as marquesas e
a aristocracia em geral, o povo, asfilies publiques, os ladrões, os artesãos, nossos
cronistas da velha Paris conseguiram estabelecer uma visão de conjunto pai-a
aquela realidade urbana em transfonnaçào, na qual a tradição e a modernida
de passavam a estabelecer o seu enfrentamento.
Prossigamos, pois, neste caminho, de resgatar as representações urbanas
da Paris. O século XIX iria acelerar este processo de metamorfose e oportuni-
zar novos contornos ao imaginário que se constiaiía da cidade moderna.

PARIS, CAPITAL DO MUNDO:


DISCURSOS E IMAGENS DA CIDADE MODERNA PRÉ-HAUSSMANN

Entre as posturas de avaliação urbana, polaiizadas na "cidade-virtude",


desenvolvida, piincipalmente, a partir do século XVIII com a Ilustração, e a da
"cidade-vício",estimulada na ti-ansição do século pelos conti-astes urbanos e pe
los efeitos da questão social propiciadas pela industrialização, Carl Schoi-ske
aponta uma terceira via, que viria a se constituir numa concepção de cidade
"além do bem e do mal", espaço por excelência de constinção e realização da
existêiicia modema.®^^
E nesse ponto que entendemos se inserir a constrtição mais clara do "mito
de Paris", representação contemporânea da metrópole constituída por um
imaginário social que emerge com a experiência histórica coletiva e individu
al da modernidade. Nesse contexto, Caillois considera®® que o "mito de Paiás"
dá novos poderes ã literatura, na medida em que a ficção renuncia a seu mundo
autônomo para tentar aquilo que Baudelaire chama"a tradução legendáiia da

'^Schorske, op.cit., p.XIV.


^^Caillois, op.cit., p.29.

53
vida extenor .A literatura tonia-se uma força social que se dirige a todos, pois
tiaduz uma sensibilidade coletiva deste mundo em tiansformação.
Nao se quer dizer que as antinomias urbanas— nas visões maniqueístas da
cidade-vício e da cidade-virtude—deixam de ser veiculadas, mas o que se ressal
ta é esta visão— talvez um pouco cínica e niilista de trabalhar com ambos os
pólos ao mesmo tempo com o bem e o mal,com o permanente e o transitório,
com o novo e o "eternamente igual" fazendo da ambivalência a sua linha de
postui-a mais nítida.
A abordagem literária que traduz uma realidade urbana efêmera e mu
tante é a mais globalizante,

porque as representações que nos oferecem o poeta, o romancista e o drama-


turgo conderisam uma experiência vivida da cidade em um momento dado da
sua história."'

Pode-se dizei que a obia literáiia tem a intenção de uma tomada de cons-
ciencia do leitoi paia os pioblemas de sua época com todas as antinomias que
o vivei em cidades suscita. Ele pode até mesmo insinuar respostas paia açao,
tal como nas fábulas ou nos mitos antigos. Mas, a rigor, o sentido pragmático
do discurso literário não é tão direto ou evidente: ele não se constitui numa
lição moral imediata ou numa clara proposta de soluções. Trabalhando no
âmbito do imaginário, a literatura fala de um tempo outro, não vivido e fictí
cio,supostamente acontecido para a voz nan ativa e frente ao qual o leitor se
reconhece. O texto é sintoma de uma realidade próxima da sua existência,
mas não se apresenta como um guia prático de ação.
Quem se propõe a oferecer soluções é o discurso urbanista,que visa a trans
formar uma cidade concreta na cidade ideal projetada.
Mas, mesmo no caso do discurso urbanista, é preciso relativizar a pratici-
dade: esse "produtor do espaço" por excelência também opera no nível do ima
ginário,inscrevendo o seu sonho na projeção de uma cidade desejada. Por ou
tro lado, há também que considerar que os projetos não são feitos todos para
serem realizados... Não se trata de realizar o que se poderia chamar uma"histó
ria de fracassos",ou de projetos que não deram certo, mas é preciso entendê-los
como estratégias discursivas para maitriserK realidade. Neste sentido, o projeto
arquitetônicourbanístico é,sobretudo,um processo que se exprime em idéias e
imagens de uma cidade de desejo,que poderâ— ou não—resultar em medidas

"'Laffitte,J.P.; Laffitte,J.; Barbei, F.; Huarcl, C.; Tonchefeu,Y. Ln ville. Paris; Vuibert, 1995.p.21.

54
práticas e concretas, mas que expressou, num detenninado momento,uma pos
sibilidade, uma intenção,um vir-a-ser constituído dentro de um momento histó-
lico específico.
E quem melhor do que Balzac para retratar a Paris moderna, mas sem ain
da ter sofrido as inteivenções de Haussmann? A capital francesa que nos chega
pela nari-ativa balzaquiana é a de uma cidadejá enorme, regorgitante e quejá
vinha sofrendo intei-venções. Via de regra, há uma tendência a considerar que
o peiíodo antes de Hatissmann assumir a prefeitura do Sena (1853) cai-acteriza-
se só por operações privadas e iniciativas particulares de loteamento especulati
vo. Todavia, como diz Mareei Roncaylo, a haussmanização não foi apenas o re
sultado da vontade de tim príncipe ou o capricho de um regime:
E antes uma resposta: ela se enraiza nas pressões múltiplas que agitam a cidade
do início do século, pressão demográfica e pressão econômica que impulsio
nam o jogo dos valores urbanos, o preço do solo ou dos imóveis.®"

Como se viu, a Paris de Mercier e de Bretonnejá suscitava imagens meta


fóricas e era prenhe de contrastes que se impunham aos olhos dos"espectado
res privilegiados" da urbe.Já se colocava em pauta a noção de uma cidade aber
ta, reivindicada pelos médicos higienistas e outros reformadores do urbano.Em
face da deniincia e da argumentação da demíbada de quaiteirões insalubres, a
cidade modenia se afirmava com uma complexidade técnica e um desafio aos
"urbanistas" de então.
Pieire Pinon enfatiza que,no peiíodo pré-Haussmann,concepções teóricas,
projetos e realizações se achavam em realização. Os arquitetos Pieire Landiy e
Albeit Lenoir,por exemplo,distinguiam as cidades de desenvolvimento progiessi-
vo, que, a paitir de uma comunidade oiígináiia, sediada num local com condi
ções propícias, haviam evoluído ao longo do tempo,daquelas cidades novas e pla-
nificadas, que só podiam nascer da conquista colonial ou da industrialização em
curso.®* Paris,sem dúvida,se enquadrava no primeiro tipo, mas através do enten
dimento de que a cidade deveria ser reformada a paitir de si própria.
Por seu lado,Léonce Reynaud,professor de arquitetura da Ecole Polytech-
nique, analisava o que hoje se chamaria "cidade sedimentar", ou aquela que
preservaria em sua forma e traçado os vestígios de outi^as épocas:

Estas lembranças do passado não se lêem só nos monumentos; enconti^amos,


ou mais propriamente, os sentidos em todos os lados: nas disposições gerais.

"'Roncayolo, op.cit., p.73.


®®Pinon, Pierre. Les conceptions urbaines aii milieiix du XIXe siècle. In: Cars; Pinon, op.cit.

55
nas ruas, nas praças, nos passeios [...]. O plano, tão comj)licado que nele não se
descobre nenhuma lei, e que parece à primeira vista ter sido traçado ao azar,
tem causas inumeráveis tendo todas o seu valor, e tendo sido seriamente medi
tadas em seu tempo [...]. Há, portanto, uma ordem profunda nesta amargura
aparente.®"

O discurso urbanista se aproxima daquelejá divisado na literatuia e que


defende a abertura do olhar e, ao mesmo tentpo, anuncia a intervenção urba
na como uma medida que leva em conta a história, o patrimônio e a memória
de uma cidade.
No que toca a Paris, os princípios que orientavam a intervenção urbana
tomavam como base o notório congestionamento do centro e a expansão da
cidade no sentido oeste e norte, com a incoiporação de itovos bain os. A preo
cupação desses reformadores urbanos, portanto, centrou-se no que se poderia
chamar a "reconquista" do centro.
Da mesma forma, o deslocamento da vida urbana da margem esquerda
para a direita do rio era um fato constatado desde há muito: a verdadeira "ci
dade" era a que se desenvolvia no rive droite, centro da vida econômica e finan
ceira e do que se chamaria o mundo elegante da burguesia. Tal era a consta
tação feita pelos "pensadores do urbano" pré-Haussmann: E. Griolet,J. S. Lan-
quetin, Victor Considérant e Charles Meniiau.
Data de 1843 o Primeiro estudo sobre a cidade deParis, de Perreymond, basea
do na questão da circulação e no princípio da centralidade:

A prosperidade noraial de Paiis, nas diferentes épocas da história desta capital, de


pende sempre da maior ou menor coincidência do cenü o de configuração desta
cidade, com o mácleo de todos os movimentos que se dão no seu seio [...]. De onde,
o micleo principal de Paiis deve ser um, estável, cenüal e ativo por si mesmo.®'

É clara, pois, a noção de centralidade urbana no pensamento de Peney-


mond, ao qual estaria subordinada a idéia de circulação, ligando a Paris que
se deslocava para os baiiros com o que se chamaria a Nova Lutécia, con espon-
dendo às ilhas da Cité,S. Louis e Louviers. A essa preocupação se seguiram pla
nos, prcyetos e ponderações dos "produtores do espaço" de então sobre a ne
cessidade de grandes obrasao longo dos anos 40 do século passado. Isso,de uma
certa forma,antecipa, prepara e abre caminho à ação de Haussmann sob Napo-

®®Apud Cans; Pinon, op.cit., p.45.


"Apud Cars; Pinon, op.cit., p.48.

56
leão III. Se Meyiiadier falava na importância da linha reta e dos eixos monu
mentais,juntando a piaticidade à preocupação estética de ligar entre si e facili
tar a visão dos grandes monumentos, Rabusson insistia no congestionamento
das casas estreitas e insalubres do centro histórico. Generalizava-se a idéia de
que a abertura de novas mas valorizaria os teirenos e de que o conjunto de
medidas de intei-venção urbana demandaria recursos financeiros que só po
deriam ser obtidos através de empréstimos. O alinhamento das ruas, com o
seu corolário de demolição-reconstmção, era uma das sugestões de Lanque-
tin, assim como a necessidade de portentosos trabalhos de escavação que per
mitissem a abertura das gi-andes avenidas. Outros ai^quitetos, como Considé-
rant eJacoubet, Landiy e Lenoir,fariam estudos e propostas,®' mas o plano de
ataque em conjunto para Paris só viria a ser implementado,como um verdadei
ro sistema para a cidade,com Haussmann.
Paralelamente com todas essas constatações e estudos no sentido de refor
mas técnicas, higiênicas e estéticas, havia a tendência de "conter" o crescimento
da cidade.
No reinado de Luís Filipe de Órleans (1831-1848), houve uma den^adei-
ra tentativa nesse sentido, ati-avés de uma muralha dupla,à distância de um tiro
de canhão e delimitada por bastiões.®^ Adolphe Thiers foi o ministi-o encairega-
do desta constmção,trabalhando de 1841 a 1845.
Alguns dados numéricos,trazidos pelo recenseamento da cidade de 1856,
dão uma idéia da distribuição da população de Paiis inti-a-muros (aquela conti
da denti-o da primeira fortificação e que coirespondia a Paiis compreendida
pelos boulevards exteriores ou pela projetada muralha dos Feimiers Généraux)
e a que ocupava o tenitório entre os dois muros; 1.175.000 habitantes no pri
meiro caso,agmpados em 337 hectai-es, diante de 370.000 habitantes dispersos
em 4.400 hectares...®''
Os projetos de renovação de Paiis, na verdade,começai^am antes de Haus
smann. O conde de Rambuteau, prefeito da capital francesa sob Luís Filipe,
na Monai^quia de Julho, prometera ao povo da cidade "água, ai" e sombra". A
disponibilidade escassa de recui-sos frente as necessidades de uma população
que passara dos 700.000 a 1.000.000 de habitantes fez com que tais intenções
não pudessem ser concretizadas.®'Entretanto,cabe a Rambuteau a moderniza
ção dos hospitais, numa preocupação tipicamente higienista, a constmção de

^'Ibidem, p.47-50.
®^Kerbrat, Marie-Claire. Leçon litteraire sur Ia viüe. Paris: PUF, 1995. p.l7.
'■•Marrey, Bernard, Vies et mort de Tenceinte de Thiers. In: Cohen; Fortier, op.cit., p.230.
'^Giedion, Siegfried. Espace, temps, architecture. Paris: Donoèl, 1990. p.416.

57
calçadas, o plantio de áivores nos boulevnrds e no cais c o asfaltainento de algu
mas mas.Sob sua gestão, o arquiteto Hittorff urbanizou a Place de Ia Concorde
e a Place de PÉtoile, sendo inaugurado o Arco do Triunfo e também deu um
novo tratamento à região dos Champs Elysées, tomando o local apropriado ao
passeio e ao lazer. Deve-se a Rambuteau ter aberto uma ma reta, ligando o Ma-
rais ao mercado (Les Halles), que atravessava um bain o extremamente populo
so. Além dessa ma,que levou depois o seu nome (Rue Rambuteau),o prefeito
abriu mais uma artéria reta, ligando a Bourse ao Palais Royal: a Rue Vivienne.
Ainda a Rambuteau se deve o projeto de alargamento do velho mercado de
Paris, adotado em 1845 e que resultou na nova constmção dos Les Halles, em
1847.''® A abertura da Rue de Rivoli, em 1848, deu-se ainda sob sua gestão na
prefeitura."^
Todavia, é sob Luís Napoleão Bonapaite e com seu prefeito Berger que as
intei-venções tomam uma maior amplitude. De 1848 até 1853, quando se dá a
posse do barâo Haussmann na prefeitura de Paris, as seguintes iniciativasjá havi
am sido tomadas: o prolongamento da Rue de Rivoli, entre o Louvre e a Rue
Saint Antoine; a abeitura da Rue des Ecoles, entre a Rue de Ia Haipe e a Rue
Jean de Beauvais; a abeitura do Boulevai d de Sti"assbourg e da Rue de Rennes,
entre a Gare de Montpamasse e a Rue de Vaugirard."® Ainda segundo Pinon, o
discurso de Napoleão 111 no Hotel de Ville, em 1850, é bem uma declaração de
intenções que resume todos os conhecimentos e preocupações da época:embele
zar Paris com largas avenidas e mas e abrir a cidade à luz, ao ai" e à circulação.""
Paitamos, pois, do quadro da Paris pré-Haussmann, tal como é sentida por
Balzac, que sobre ela escreveu ou nela situou seus pei-sonagens, romances e con
tos, entre 1830 e 1850. Seria ela também a Paris do jovem Victor Hugo, que
escreveu sua obra emblemática, Notre Danie de Paris, em 1831, ou mesmo do seu
maior livro, Les viisérahles, começado a escrever em 1845 e publicado em 1862.
Estendemos também nosso olhar sobre Les niystères de Paris, de Eugène Sue,feu-
illeton aparecido em 1842 e que mobilizou os leitores, an ebatados pela trama
rocambolesca e urbana, para depois comentar Aurelia, de Gérard de Nei^val,
chegando até algumas crônicas de Théophile Gautier sobre a cidade.
A rigor,é difícil dizer que os textos de Balzac possam ser comparáveis, tal a
magnitude de sua obra. Eles são talvez intercambiáveis com outros autores, que

'"Ragon, Michel. Histoire de Vnrrhitecture et de l'urhnnisnie modemes. Paris: Castelman, 1986. v.1.
p.132-3.
"'Loyer, François. Le Paris d'Haussinan. In: Cohen; Fortier, op.cit., p.l98.
®®Pinon, Pierre. Le projet d'einbelissement de Paris. In: Cars; Pinon, op.cit., p.58.
""Ibidem, p.52.

58
tanto trabalham com o que se chamava a físiognomia da metrópole quanto
com as metáfoi-as que ela suscita. Como lefere Caillois, Balzac teve a força de
tmçar imagens que constituem, em seu conjunto, uma "representação fantas
magórica" de Paris, ou, mais globalmente, a gmnde cidade do século XIX.
Ou seja, o mito parisiense, criação de Balzac, surgejá como representação de
metrópole e passa a ter a força dos mitos modernos,forçando necessáiias com
parações e emulações.
A Paris de que Balzac falajá é uma cidade em ti-ansfoirnação, em i'ota de
toniar-se a "cidade aberta", segundo a concepção então em voga.
Assim é que, desde os primeiros escritos de Balzac, como na crônica Pam
em 1831, publicada em La Caricature, em 10 de março de 1831, a cidade se
configura como uma metrópole cosmopolita e quejá se apresenta como a meta
de todos, que aí acon em segundo os interesses mais diversos:

Todos aí enconti~am o que tinham vindo procurar, e é do choque de todos estes


diversos interesses, é do contiato de todos estas espécies de indústiias, destes
numerosos talentos ém mil ramos diversos, de todas estas imaginações aplicadas
ao ü abalho, às pesquisas, às descobertas, que nasce esta atividade, este movimen
to contínuo de fabricação, estes prodígios da arte e da ciência, estes melboi~amen-
tos cotidianos e engenhosos, enfim, estas admiráveis mai"avilbas que ati^aem, es
pantam,surpreendem e cativam e fazem gei-almente considei^ai" Píuis como sem
igual no Universo.""

Enfim,a grande cidade é aquela que iiradia a cultura, a civilização, a novi


dade e a infomiação, onde se cmzam e entrecmzam toda sorte de gente e ativi
dades e onde seu povo se caracteriza pelo que se chamaiia a "urbanidade" das
atitudes... E^a última cai^acteristica poderia ser, sem dúvida, contestada pai"a o
que se tem como estereótipo do comportamento metiopolitano ou da megaló-
pole, pois Balzac insiste no que se chama apofíím^... Mas talvez possamos enten
der o texto pelo que ele naii-a como a essência dos modos citadinos: esse "^ethos
urbano", que se define por oposição ao mral e pelo conjunto de hábitos e atitu
des que individualizam o tipo que vive na cidade e que o distinguem daquele
que é, desde a primeira vista, classificado como camponês ou interioi-ano...'®'
Afiimada essa distinção, estabelece-se uma comunidade de sentido paia os cita
dinos que configura uma aparente homogeneização:

'""Caillois, op.cit., p.9.


Apud Balzac, À Paris!, p.35-6.
'"-Este olhar urbano sobre o indivíduo "de fora" é maliciosa e ironicamente descrita por Balzac
na crônica Leprovincial, saída no La Caricature, em 1931 (apud Balzac, À Paris!).

59
Todos são confundidos igualmente na multidão: cada um se distingue logo por
suas funções, seu talento e sua fortuna. Mas no meio do rápido turbilhão da vida
social [...] não existe diferença humilhante para aquele que não tem título ou for
tuna. Todos os homens são iguais.'"'

Primeiramente, há que estabelecer a dimensão do anonimato ou do "en


gano do olhar" de quem obseiva a multidão das ruas, essa nova "entidade" tra
zida pelas grandes cidades e que se tomará, na pena de seus escritores, tanto
local de refúgio quanto símbolo da solidão do indivíduo na grande metrópo
le. Por outro lado, essa primeira representação de igualdade se dissolve ante o
olhar atento de quem distingue a diversidade de tipos em face da função, o
talento e a fortuna. Uma grande cidade é aquela que apresenta este espetácu
lo da rua sempre renovado. Simbolicamente, todos os habitantes da urbe são
cidadãos ou têm acesso ao que se chama o espaço público, trottoiráG podero
sos e humildes. Remontando a Mercier, é na ma que, lado a lado, se confron
tam as mais contrastantes personagens. A visão, contudo, não é nem românti
ca nem ingênua, pois logo Balzac refere o mais alto valor que se preza na gran
de cidade: o dinheiro, condição indispensável para ser feliz nesta que ele cha
ma ser "a capital do mundo".
Outra imagem recorrente na nanativa balzaquiana é a que advém dos
contrastes. Classificando a cidade como "o paraíso das mulheres, o purgató
rio dos homens e o inferno dos cavalos", com muita ironia e graça Balzac ano-
la essas discrepâncias:

Lugar de contrastes, centi c do barro,do excremento e das maravilhas,do mérito


e das mediocridades, da opulência e da miséria, do charlatanismo e das celebri
dades, do luxo e da indigência, das virtudes e dos vícios, da moralidade e da de-
pravação;
onde os cães, os macacos e os cavalos são melhor tratados que os humanos;
onde se vê os homens substituir as funções dos cavalos, dos macacos e dos cães;
onde certos cidadãos serão bons ministi os, e onde certos ministi os são maus ci
dadãos [...];
onde há mais estiangeiros e provinciais que parisienses [...];
onde há a melhor polícia do mundo e o maior número de roubos [...].
Paris é o objeto e desejo para aqueles quejamais a viram, de felicidade ou infeli
cidade (segundo a fortuna) para aqueles que a habitam, mas sempre de saudade
para aqueles que são forçados a deixá-la.""

""Balzac, À Paris!, p.36.


"'■'Ibidem, p.37.
'®'Ibidem, p.34.

60
Comecemos pelos conti-astes do espaço que delineiam na gmnde cidade
as diferenças entre as mas.

Há em Paris certas ruas tão desonradas quanto pode sê-lo um homem culpado de
infâmia, pois existem ruas nobres, ruas simplesmente honestas, ruasjovens sob
cuja moralidade o público não formou ainda opinião, ruas assassinas, mas mais
velhas que velhas ruas endinheiradas, mas estimáveis, mas sempre asseadas e ruas
sempre sujas, ruas operárias, ti-abalhadoras, mercantis. As ruas de Paiis, enfim,têm
qualidades humanas,e suas fisionomias nos sugerem certas idéias contra as quais
nos vemos indefesos."*'

Note-se a animização do espaço urbano, que é qualificado segundo o


perfil ou a característica de determinados tipos sociais. Como as pessoas, as
ruas podem ser belas ou feias, honestas ou criminosas e ser reconhecidas por
ofícios ou funções específicas. Peipassa essas designações a idéia de que há
uma assimetria social que atravessa a ocupação do espaço. Assim, há uma Paris
elegante, centrada no Faubourg Saint Germain, e há uma Paris decadente,
da velha Ile de Ia Cité, que mostra a degradação da vida dos habitantes nas
casas antigas.'"' Da mesma forma, a descrição da zona de Paris onde ficava a
pensão Vauquier, citada por Balzac em Le père Goriot (a Rue Tournefort,
antiga Rue Neuve Sainte Geniviève, no V arrondisse.me.nt) contrasta violenta
mente com o fascinante Faubourg Saint Germain, onde A duqicesa de Lange-
ais desfilava sua elegância pelos salões aristocratas. No primeiro caso, o qua
dro é descrito com tons liígubres e revela a existência acanhada de seus ha
bitantes, em laias silenciosas, ladeiras íngremes e com casas onde a hera cres
cia ao longo dos muros:

O homem mais impetuoso se torna aí ti iste como todos os passantes,o bairilho de


uma viatura se torna um acontecimento,as casas são mornas,os mm os se asseme
lham a uma prisão. Um parisiense perdido não veria aí senão pensões bm guesas
ou instituições, miséria ou aborrecimento, velhice que morre ou a alegi ejuven
tude compelida a ti~abalhar. Nenhum bairro de Paris não é mais horrível, nem,di-
■ gamos mais desconhecido.'"®

A mesquinhez do ambiente conti-asta"com a do Faubourg Saint Germain:

'""Balzac, Honoré de. Ferragiis. In: Balzac, Honoré de. A comédia humana. São Paulo, Globo,
1990. V.VIII. p.33.
'"'Balzac, Ferragus, p.34.
'""Balzac, Honoré de. Lephe Goriot. Paris:Jean-Claude Lattès, 1988. p.8-9.

61
o que em França se denomina o Faubourg Saint Germain nào é um bairro, não é
uma seita, nem uma instituição, nem nada que se possa claramente exprimir. A
Place Royale, o Faubourg Saint Honoi é, a Chaussée d'Antin possuem igualmen
te edifícios onde se respira o ar do Faubourg Saint Germain. Assim, pois, todo o
faubourg não está no faubourg. Pessoas nascidas muito longe de sua influencia
podem-no sentir e ingressar naquele mundo, enquanto que certas outias que lá
nasceram podem dele ser para sempre banidas. Os modos, a fala, numa palavra,
a ti"adição do Faubourg Saint Germain é, em Paris, há cerca de 40 anos, o que a
Corte era antigamente, o que era o palacete de Saint Paul no século XfV, o Lou-
vre no século XV,o Palais de Ia Justice, o palacete de Rambouillet, a Place Royale
no século XVI, depois Versailles nos séculos XVII e XVIII. Em todas as fases da
história, a Paris da alta classe e da nobreza teve o seu centi o, como a Paris vulgar
terá sempre o seu.''^

Portanto, na naiTativa balzaquiana, a cidade é o teatro de realização das


diferenças sociais, e o espaço urbano expnme, por sua vez, não apenas dife
renças de classe e ocupação, mas todo um eíhos, uma socialidade e uma carga
de valores que vêm associadas àquelas diferenças básicas e origináiias, compro
vando o quadro de contrastes da cidade.
E, talvez, em A menina dos olhos de ouro^^^ que melhor estão assinalados os
contrastes dos tipos e gmpos sociais da metrópole, contrastes estes que vão se
expressar nos diferentes espaços do urbano que concentram esta ou aquela ca
tegoria ou classe. Da Paris dos que nada têm à Paris dos que têm em excesso,
opemrios, pedintes, vagabundos, alta burguesia, pequenos proprietários, lojis
tas, caixeiros, mundanas e grisettes, a Paris dos salões, dos negócios e do crime, a
cidade que tmbalha e a cidade dos ociosos, dos políticos e dos artistas desfila na
narrativa balzaquiana com minúcias de detalhes, que tanto retmtam o seu as
pecto físico aproximado quanto o seu comportamento e caráter.
Aprofundando os contrastes, que do espaço da ma passou aos atores so
ciais, Balzac penetra nas habitações da população parisiense, reencontrando as
diferenças que a vida urbana suscita. Contrastando com os "grandes salões, are-
jados e dourados, os palacetes com jardins, a sociedade rica, ociosa, feliz, bem
dotada", "metade de Paris jaz entre exalações pútridas dos pátios, das mas e
dos esgotos".^ A situação se revela tanto mais grave quando se tem em consi
deração que Balzac aponta que a insalubridade das mas e casas não afligia ape
nas os desfavorecidos socialmente:

Balzac, Honoré de. A diiquesa de Langeais. In: Balzac, A comédia humana, v.VIII, p.l45.
Balzac, Honoré de. A menina dos olhos de ouro. In: Balzac, A comédia humana, v.VIII, p.245-55.
Ibidem, p.255.

62
o ar das casas em que Nive a maior parte dos burgueses é infecto e a atmosfera das
ruas cospe miasmas cruéis nas peças interiores das lojas onde o ar se rarefaz, mas,
além desta pestilência, os quarenta mil prédios desta grande cidade mergulham
seus alicerces em imundícies que o poder público não quis ainda seriamente cer
car de muralhas que impeçam a lama mais fétida de infilti~ai-se ati^avés do solo, de
envenenar os poços e de fazer perdurar subterraneamente em Lutécia seu nome
célebre."^

Naturalmente, não escapa a Balzac a necessidade de renovação urbana


colocada como questão urgente para a metrópole paiisiense, no que encon
tramos uma adequação do seu pensamento às teorias higienistas da época,que
estariam na base do conceito da "cidade aberta". Todavia, mesmo que essas
condições higiênicas fossem disseminadas, Balzac nos fala também daquela sin
tonia mais fina, da percepção aguda da diferença de ambientes sentida por
alguém que freqiientou, como Rastignac, espaços mais nobres e retoma para
um meio humilde. Essa "sintonia fina", essa sensibilidade do vivido é algo que
só nos pode dar o relato literário, mas que, cmzado com os dados da contex-
tualização da época, aparecem como um sintoma de uma historicidade passa
da.Assim é que Eugène de Rastignac experimenta a dolorosa sensação de quem
retorna ao mundo contrastante, em tudo pior ao que acabara de deixar, ao
voltar para a modesta pensão no Quartier Latin:

Chegado na rua Nova de Sainte Geniviève, ele subiu rapidamente, desceu para
dar dez francos ao cocheiro e veio para esta sala dejantar nauseabunda, onde ele
percebeu,como animais num estábulo, os dezoito conviras prestes a comer. O es
petáculo destas misérias e o aspecto desta sala lhe foram horríveis. A transição era
muito brusca,o conti-aste muito completo, para não desenvolver nele o sentimento
da ambição.De um lado,as frescas e encantadoras imagens da natm eza social mais
elegante,figurasjovens,vivas, enquadradas pelas maravilhas da arte e do luxo,ca
beças apaixonadas cheias de poesia, do outi o, sinistros quadros, cercados de
lodo, e faces onde as paixões não tinham deixado senão suas cordas e seu meca
nismo."'

Assim, Paris é a metrópole dos contrastes, tumultuosa ou desértica, esfe


ra de trabalho ou de silêncio.""'
Mas,como enxergar esses contrastes? Como resgatar a diversidade da vida,
não só crítica, mas ao mesmo tempo significativa e globalizante?

Ibidem. O nome Lutécia viria da palavra latina lutuni, que significa "lodo".
"'Balzac, Lepère, p.lOO.
Balzac, Honoré de. Lapenu de Chagrin. Paris: Librairie Générale Française, 1995. p.l66.

6,S
Ao constmir o mito sobre Paris, Balzac consegue, pela narrativa — recu
perando os conti-astes — dar unidade à diversidade da metrópole. Paris é imen
sa, é múltipla, paradoxal, mas é uma totalidade que admite e legitima os ti
pos, cenários e comportamentos que se entrecmzam.
O mito de Paris, capital do mundo, foniece imagens que têm curso de
verdade no imaginário social. Essas representações liteiárias do urbano de uma
ceita foiTna antecipam, pela nan*ativa ficcional, aquilo que seria obtido pelo
urbanismo na época de Haussmann. Expliquemo-nos: as inteiTenções urba
nas pós-1850 iiiam conferir a Paris uma unidade ou estilo, expressos por uma
série de traços que passam pela arquitetura e pelo urbanismo, como a morfo-
logia dos prédios,a rede das mas ou a dimensão simbólica dos monumentos.""
Essa unidade na diversidade, obtida pela prática urbanista e demandada pelo
discurso dos inteiYentores da cidade, seria, pois, a nossojuízo, como que ante
cipada pela obra literâria de Balzac.
Mas o olhar de Balzac, que suipreende os conti-astes e tece a unidade do
mito parisiense sobre a diversidade cosmopolita da urbe, não é neutro. Ho
mem do seu tempo, Balzac se propõe a retratar a fisionomia dessa cidade fan
tástica. Nesse intento, invoca os conhecimentos científicos da época, que pas
savam por Gall e Lavater, pai-a aplicá-los na literatura, construindo uma histó
ria de costumes, das causas e dos efeitos sociais. Tal fora o avant--propos de A
comédia humana,publicada emjulho de 1842."''Nesse sentido, ele foi realmente
um "retratista" que aplicou na literatura os conhecimentos das ciências do seu
tempo. Antecipando Lombroso, seus tipos traduzem no aspecto físico os se
gredos da alma e as mazelas do caráter.
Traçar a fisionomia de Paris não é tarefa para qualquer um,pois para isto
se exige uma educação do olhar. Assim, Balzac é oflAneurc{ne se delicia com o
andar sem mmo pelas ruas da fascinante Paris, não escapando o menor deta
lhe à sua obsei^vação. Ele é, assim, um passante, um pedestre, um obseivador
dos espaços e gentes, numa caminhada infatigável pela cidade, que o teria feito
exclamar:"Oh! 'Flâner' em Paris! 'Flâner' é uma ciência, é a gastronomia do
olho. Passear, é vegetar. 'Flâner', é viver"."'
E é com esse espírito que ele dirâ que só o obseivador atento — oJlâmur—
será capaz de apreciar e ir ao fundo de tudo o que a paisagem parisiense oferece:

"^Bailly, op.cit., p.36.


Gengembre, Géracrá. Bnlzac, le Napoléon des lettres. Paris; Gallimard, 1992. p.l32.
"'Citron, Pierre. Honoré de Balzac, scènes d'un visionnaire. Magazine Littéraire, p.33-5.

64
Mas,ó Paris! Quem iião haja admirado as tuas paisagens sombrias,as tuasfugas de
luz, teus becos profundos e silenciosos; quem não tenha ouvido teus murmúrios
enti e meia-noite e duas horas não conhece ainda tua verdadeira poesia nem teus
bizarros e grandes contrastes. Há,porém, um pequeno número de amadores, pes
soas que não andam de cabeça no ar, que saboreiam a sua Paris, cuja fisionomia
lhes é tão familiar que nele vêem até uma verruga, uma espinha, uma pinta rubra.
Para os outi os. Paris é sempre a monsti iiosa maravilha, espantosa reimião de mo-
rimentos, de máquinas e de idéias, a cidade dos cem mil romances, a cabeça do
mundo. Para aqueles, a Paris é ti iste ou alegi e, feia ou bela, viva ou morta; para
eles, Paris é uma criatura [...]. São os amantes de Paris."®

O Jlãneuré, sem dúvida, o amante de uma Paris animizada, que a conhe


ce nos seus mínimos detalhes e sabe reconhecer as particulaiidades sem per
der de vista o todo. Hãneure amante de Paris, Balzac aplica na recuperação da
fisiognomia da cidade aqueles conhecimentos anteriormente citados, que
conferem ao aspecto físico dos indivíduos a manifestação do íntimo de cada
um. Volta como exemplo dessa abordagem a introdução de A menina dos olhos
de ouro, intitulada "fisionomias parisienses":

Espetáculo que reiine todos os assombros é,sem dúvida, o aspecto geral da po


pulação parisiense, gente horrível de ver-se, lívida, amarela, escura Pois não é
Paris um vasto campo incessantemente revolvido pela tempestade dos interes
ses sob o qual turbilhona uma seara de homens que a morte ceifa mais freqüen
temente que alhures,e que renascem sempre do mesmo modo comprimidor,de
rostos conturbados,fisionomias retorcidas, a extravasarem por todos os poros o
espírito, os desejos, os venenos que lhe enchem os cérebros? Mas não, não são
rostos,são antes máscaras — máscaras de fi*aqueza, máscaras de força, máscaras
- de misérias, máscaras de alegria, máscaras de hipocrisia; todas extenuadas, mai-
cadas todas pelos sinais indeléveis de uma elegante avidez. Que quer esta gen
te? Dinheiro ou prazer?"'

A descrição é patética, e o recurso à "máscara" para substituir o rosto evi


dencia que, atrás do semblante, se abriga, guarda ou dissimula uma identida
de. O descolamento desse caráter é dado pela leitura atenta dos traços pelo
"espectador privilegiado do social", que possui a capacidade de "ler" o exteri
or, "vendo" o interior. Não é por acaso que Balzac compara o escritor a um
pintor, que faça menção ao que clíama a "fisiognomia literaria'"-" e cite Lava-

"'Balzac, Ferragus, p.35.


'"Balzac, A menina, p.245. >
Balzac, Lapenu, p.49.

65
ter, Gall e Bichat,'-' todos cientistas cios séculos XVIII e XIX, que estabelecem
a conespoudêiicia entre a alma dos indivíduos e sua aparência física.
Assim é que os personagens de Balzac, atores sociais da cena urbana pari
siense, ti-azem por vezes essa marca, que é dissecada pelo autor: a figura da
duquesa de Langeais ou de Vautnn são exemplares na demonstração desse
método. Em especial, Vautnn é particularmente revelador:

Sua figura, marcada por rugas prematuras, oferecia os sinais de dureza que des
mentiam suas maneiras leves e envolveutes.'--

Por outro lado, a figuia que ojovem aristocrata arniinado Rafael de Va-
lentin encontrara no salão dejogo,em Lapenu de. CÁngiin, é também revelado-
ra do estilo fisiognomista que percone a obra balzaquiana:

O velho que,com sua longa face branca,apresentava a pálida imagem das paixões
vividas desde muito cedo e que deixava ver nas rugas que o marcavam o Uaço de
antigas torturas.'^''

No olhar desse indivíduo, diz Balzac, "um filósofo teria visto as misérias
do hospital, as vagabundagens das pessoas arruinadas", etc., etc.
Há, na visão fisiognomista desse espectador do social sobre a cidade,suas
ruas e cenáiios, uma postura de atração e repúdio, acompanhada de uma ati
tude um pouco cínica e amoral,já apontada anteriormente.
Paris é desastre, mas também glória. É esplendor e miséria, beleza e feiú
ra, e ter em mente as duas visões é enxergá-la para "além do bem e do mal".
Mais do que isso, a grande cidade relaxa valores, altera costumes, cria novos
códigos, talvez para serem melhor desobedecidos. Como diria o cínico Vau-
trin para o ambicioso Rastignac, que queria conquistar seu espaço em Paris:
"Não há princípios, só há circunstâncias"...'-''
E esse amoralismo, ou, talvez seja melhor dizer, essa descoberta de novos
códigos numa vivência urbana, que conduzirá Eugène de Rastignac à tentati
va de ascender, a qualquer custo, na sociedade parisiense. Bela estampa e fi
gurajovem, se o caminho que se lhe abre é o da sedução, Rastignac o galga
sem escnipulo, aprendendo rapidamente as regras do jogo dessa cidade —
da qual Balzac não se cansa de repetir — que é movida pela busca do dinheiro

Ibidem, p.l73.
'--Balzac, Lephre, p.22.
'-^Balzac, Lapenu, p.61.
'-''Balzac, Lepère, p.l35.

66
e do prazei. A cena final de Le phe Goriot, com Rastignac só, do alto do cemi
tério Père Lachaise, a admii-ar Paris espraiada pelas margens do Sena, ao cair
da tarde, é a perfeita síntese da sua postura de sedutor e ai rivista prestes a con
quistar a sociedade da gi-ande metrópole. Seu desafio a Paris — "A nós dois,
agora!" — é, sem dúvida, uma partidajá ganha.'-'
A amoralidade que traduz as regras do jogo urbano está presente tam
bém na introdução da História dos treze, que naiTa episódios da vida de treze
indivíduos, unidos por um compromisso de honra de se auxiliarem mutua
mente, ao longo da existência, em qualquer situação valendo-se de quaisquer
meios, colocando-se acima de leis ou princípios:

Haviam-se associado tais como eram,sem levar em conta preconceitos sociais;se


riam,sem dúvida, criminosos, mas assinalavam-se por algumas das qualidades que
fazem os grandes homens e só se recrutavam enti e pessoas de escol.'-"

Estaria Balzac, com suas fisionomias parisienses, estabelecendo o tipo


ideal do homem citadino moderno? Conquistador e sedutor, inescrupuloso
e amoral, esse é o perfil do herói moderno das novas metrópoles. A urbani
zação desfaz costumes e subverte valores, estabelecendo novas regras de con
duta. Sem dúvida, a conquista da capital pelo provinciano (o sentimento de
vitória de Rastignac sobre Paris) ou o compromisso secreto dos treze compa
nheiros, sedutores e conquistadores, trazem em seu bojo a questão do po
der. Trata-se, no caso da cidade, de um poder que se orienta,como diz Balzac,
pelo dinheiro e pelo prazer, mas também por algo que está implícito,e do
qual o acesso à liqueza ou a toda sorte de divertimento e satisfação de desejo
são a manifestação externa. Referimo-nos ao poder simbólico do domínio
sobre a cidade, do sentir-se urbano, do ser visto e reconhecido como um
parisiense. Sentimento que,sem dúvida, corresponde a uma aspiração iden-
titária individual e talvez também coletiva, que cria a situação de pertenci-
mento a uma cidade, região ou nação. Ao falar desse "herói moderno",Balzac
estabeleceu uma aproximação,e talvez antecipação,com Baudelaire, que foi
seu contemporâneo.
Por outro lado, a narrativa literâria de Balzac, mais uma vez nesse seu ca
ráter antecipativo, coloca em pauta um problema que seria herdado por urba
nistas e literatos pós-Haussmann,e que se bipolariza nas concepções que pode
ríamos chamar de "progressistas" e "passeístas", ancoradas nos pólos antagôni
cos da modernidade e da tradição.

'-®Ibidem, p.335-6.
'-"Balzac, Honoré de. História dos treze. In: Balzac, A comédia humana, v.VIII, p.27.

67
Analisando o debate acerca dessas duas posições, Françoise Choay'-" apre
cia a primeira vertente, que se expressa por unia preocupação de transfonnar
o espaço urbano a partir de concepções higiênicas, técnicas, estéticas e sociais,
como sendo datado da segunda metade do século XVIll e balizada tanto pe
los avanços científicos da ilustração quanto da industrialização. Já a vertente
da tradição, marcada pelo respeito à cultura aos monumentos e outros vestí
gios do passado, colocaria em pauta a presen'ação do patrimônio nacional,
ameaçado com as mpturas causadas pelo progresso. Segundo seu ponto de
vista, os engenheiros seriam receptivos à modernidade e os arquitetos à tradi
ção, o que não é, contudo, traço indicador de nenhuma coexistência pacífica
duravel. Pensando em Balzac, em tennos de urbanismo, Choay classifica a sua
Paris como uma cidade de obstáculos e barreiras, como uma justaposição de
unidades urbanas distintas, possuindo suas sociedades,suas maneiras e formas
de falar próprias.'-" Todavia, no plano das representações, Balzac faz da Paris
fracionada, ou desse conjunto mal articulado de unidades, uma unidade sim
bólica. Dividida, desigual, multifacetada, com houlevards e impasses, passnges e
praças, a Paris de Balzac tem a solidez ou a força da imagem criada como re
presentação do social. Paris é um conceito, um sistema de idéias e imagens de
representações tornadas coletivas. Paris é o centro de um imaginário social
constmído pela modernidade. E a cidade cujo nome evoca paisagens, manei
ras, hábitos, desejos e personagens. E, nesse contexto, Balzac dividia aquelas
duas forças acima expressas: de um lado, a Paris que muda,que cresce, que se
renova e que seduz, como o houlevard, cuja importância é crescente. De outro,
a Paris que desaparece e da qual, como refere Balzac, dentro em pouco,só se
teria conhecimento através das obi-as dos romancistas...'-"
Falemos primeiro da V^vÃs-boulevard, que Balzac associa ao que chama fi-
siologia da cidade. Trata-se, como o nome indica, do impacto de uma nova
paisagem uibana,sob o influxo de um novo traçado que, por sua vez, conduz
a uma mobilidade da vida citadina em termos de sociabilidade. Com a abertu
ra de novos houlevards, o centro, ou o eoeur do footing elegante muda,se trans
fere e se desloca no espaço da cidade.
Refere Balzac:

Toda capital tem seu poema onde ela se exprime, onde ela se assume, onde ela é
mais particulánnente ela mesma.Os houlevards são hoje paia Paris o que foi o Gran
de Canal paia Veneza,o que é a Corsia dei Sei-vi pai-a Milão,o Corso para Roma,a Pei^s-

Choay, Françoise. Pensées sur Ia ville, arts de Ia ville. In: Duby, op.cit., p.159-62.
Ibidem, p.l69.
Balzac, Honoré de. Ce qui dispnrait de Paris. Paris: La Cadratin, 1994. (edição fac-similar)

68
pectiva para Petersbiu go (imitação dos boulevaids), Unter den Linden para Berlim,
o Bois pai-a Haia na Holanda, Regent Sti eet paia Londies,a Puerta dei Sol paia Ma-
diid. De todos estes corações de cidades, nada é compaiável aos boulevaids de Paiis.
[...] Oh! Paiis, aqui está a liberdade da inteligência, aqui está a vida! uma vida estia-
nlia e fecunda,luiia \ida comunitáiia,uma vida quente,uma vida lagai to e uma \ida
de sol, uma\ada de ai tista e luiia \ida divertida, uma vida de contirastes.

É centi^al o fato de que Balzac confere à imagem da identidade de Paiis


um elemento mutável,cambiante. Os houlíruards,embora sejam reconhecíveis por
seu tiaçado, não se parecem jamais um ao outro, nem o mesmo houlevard per
manece o mesmo ao longo do dia. É, pois, na mobilidade, na circulação e na
mudança, princípios chaves associados à modernização urbana e a à própria
modernidade, que Balzac vai buscar o elemento identitáiio pai^a a sua Paiis.
A princípio acanhados, os houlevnrds só alcançaram o seu esplendor em
torno de 1830, a partir da margem norte do rio. De início modestos, foram
sofrendo melhoramentos, e, segundo Balzac, que escreveu este texto em
1845,'^' ainda muitas benfeitorias estavam sendo esperadas para que eles se
tomassem dignos de Paris: mudanças radicais nas casas à beira do rio, possibi
lidade de passear tanto ao céu aberto quanto sob o abiigo da chuva...'^-
No seu passeio, liteiáiio e também da cotidianidade, pelos hoidevards de Pa
ris, que ele compaia a um ti"ajeto pelo Sena,como se fosse um lio seco (!),'^^ Balzac
registra a fisionomia da cidade mutante... Nesta, o embelezamento do quaiteirão
da Ópera havia matado o channe do Palais Royal,embora o novo hábito de passe
ar nos Champs Elysées pudesse, por sua vez, ameaçar o reinado dos boiü/ruards.
Unidade na divei^sidade, contraponto do progresso com a tradição, Balzac
afirma que a "história da França, as últimas páginas, principalmente, estão
escritas sobre os boulevards".'^^
Ora, a Paris que se metamorfoseia e muda a cada dia é uma faceta inexo
rável daquilo que se chamaria o "progresso do século" e que tinha, na metrópo
le, o seu espaço preferencial de realização. Fascinado pela cidade,Balzac apon
ta a transformação que a mesma sofre, em meio às demolições e à abertura de
mas. O período haussmaniano viria exacerbar este processo, mas nem por isso
as intei-venções feitas deixaram de marcar profundamente a fisionomia da ci
dade. Em Fetragus, Balzac relata um pouco desta confusão urbana:

""Balzac, Honoré de. Histoire et physiologie des houlevnrds de Paris. Paris: Le Cadratín, 1994. p.89-
90. (edição fac-similar)
O texto apareceu em 1844, em Le diahle à Paris.
"-Balzac, Histoire, p.93.
'•"Ibidem, p.94.
"■•íbidem, p. 104.

69
Naquele momento, todo mundo consti iiía ou demolia fosse o que fosse, não im
portando o quê. Muito poucas ruas havia em que se não vissem andaimes de lon
gas varas, guamecidos de pranchas postas sobre travessas fixadas de andar em an
dar em agulheiros, consü iições fmgeis,sacudidas pelos passos dos pedreiros, mas
fixadas por cordame,todas brancas de cal, raramente garantidas conü-a os choques
dos veículos por essa parede de tábuas que cerca obrigatoriamente os monumen
tos que nunca se consti oem.'^®

Essas intervenções — que tanto perturbaram e deixaram marcas no pe


ríodo anterior a Haussmann — foram retratadas nas caricaturas de Honoré
Daumier. Através do cômico, podemos apreciar as inusitadas situações vivi
das pelos parisienses e os problemas de alojamento criados com todo esse
processo. Locataires e propriétnire.s formam um conjunto de caricaturas que
foram publicadas no Le Chnrivnri, em 1847, 1848, 1854 e 1856, portanto,
antes e durante as intervenções urbanas de Haussmann. De Daumier, Balzac
diria: "Este gaiato tem Miguel Ângelo sob a pele,''"' manifestando sua admi
ração por aquele que, através do desenho, l etratava a cidade que ele narrava
em romance. Mesmo em sua crítica, cremos que Balzac partilha de uma ati
tude de reconhecimento, que é o turbilhão, o movimento e, com ele, a trans
formação permanente que caracteriza a metiópole. Mas esse seu lado, por
assim dizer, "progressista", não é antagônico à preocupação relativa aos tra
ços do passado que podem desaparecer. Assim, é o olho arguto do escritor
que força a memória do leitor, lembrando aquilo que desaparecia na cida
de. Balzac alerta, contudo, que não são só as "maravilhas do tempo passado"
que desapaiecem:

Para os flâneurs atentos [...] para estes que sabem estudar Paris, mas sobre
tudo para aquele que a habita com curiosa inteligência, aí se faz uma estra
nha metamorfose social depois de cerca de uns trinta anos. À medida que as
existências grandiosas se vão, há as pequenas que desaparecem [...]. O pito
resco das coisas primitivas e a grandiosidade principesca se estiolam sob o
mesmo pilão.'""

Tendo vivido sob uma intensa transformação política e social, assistiu


ainda ao desaparecimento da sociedade de ordens típica do Ancien Régi-
me,formalmente abolido pela revolução e que deu nascimento à sociedade

Balzac, Ferragiis, p.58.


""Daumier, Honoré. Locntnires elpropriétnires. Paris: Michèle Trinckel, 1992. p.5.
"'Balzac, Ce. qui dispnraít.

70
de classes: abriram-se espaços para "o cidadão, o burguês, o proletário, a
indústria e suas vítimas".'^"
Mas Honoré de Balzac não é um puro saudosista. E o seu lado Jlâneur, é
sua condição de passante, pedestre ou refestelado em seu tflburi que o fazem
lamentar a perda dos elementos representativos de uma tradição passada. E é
assim que faz desfilar, com graça e liqueza de detalhes, os tipos populares de
uma velha Paris com as suas antigas ocupações, que desaparecei"am com o de
senvolvimento dos seniços públicos urbanos, o aparecimento das grandes lo
jas ou a expansão das indústrías: o acendedor de lampiões, a remendeira de
meias, o matador de ratos e outros tantos tipos exóticos... Os preços Subiram,
e os papéis se inverteram, constituindo o que nosso autor chamaiia de "falsos
esplendores".
Nessa Paris sempre cambiante,desfilavam variados tipos sociais, verdadei
ros personagens alegóricos deste cenário urbano.
A metrópole balzaquiana, cidade de contrastes, onde se entrechocavam
o progresso e a tradição, era uma cidade que se prestava admiravelmente ao
tratamento metafórico e ao recurso de alegorias. Assim é que comparecem,
em sua vasta obra, as imagens recorrentes da Paris-mulher, da Paris-monsti'o
ou da Paris-mundo,'-''^ como metáforas da capital francesa.
Ora, a representação da mulher como alegoria de uma nação, de um
continente, de uma cidade, de uma idéia ou de um regime não é estranha
à cultura ocidental. Mas, nesse processo imagético, a mulher ocupa um
lugar simbólico distante do real. Ou seja, o recurso à imagem feminina em
nada se aproxima ou se assemelha à posição ocupada pelas mulheres no
espaço público. Da Marianne à estátua da Liberdade, cruzam-se imagens
da Europa e da América, assim como de cidades ou de países que, sob for
ma feminina, traduzem atributos de comportamento e espírito normalmen
te atribuídos aos homens: força, sabedoria, operosidade, cultura. Tome-se
o exemplo da cega Justiça, com olhos vendados e balança na mão,sempre
exercida pelos homens, mas representada como mulher, ou da altaneira,
forte e civilizada Europa, a contrastar com o exotismo ou a barbárie de
outros continentes...
No caso de Balzac, a conotação é diversa: a imagem literária da mulher
traz para a cidade atributos, maneiras e formas de pensamento nitidamente
femininos. Assim é que Paris pode ser, fundamentalmente, linda, maravilho-

Ibideni.
"®Citron, op.cit., p.33-5.

*71
sa, tão maravilhosamente bela quanto pode ser uma inulher.''"' Ou,talvez, Paiis
seja a grande cortesã,''*' ou, ainda,"a rainha que,sempie grá\nda, tem desejos
inesistivelmente furiosos"'"'-. Por outro lado, se Paris é o microcosmo da mo
dernidade e capital do mundo neste século XIX,ela é bem o emblema da Fran
ça. E a cidade que comparece como padrâo de referência identitário para a
nação como um todo. E, nesse caso, mais uma vez, é a imagem alegórica da
mulher aquela trazida por Balzac para definir a nação:"a França, como a mu-
Ihei-, ama mais os enos".'""'
O estereótipo feminino, com os seus tradicionais e consensuais atributos
e fraquezas — coqueteria, incapacidade de guardar segredos ou capacidade
de trair e de seduzir —,é, metaforicamente, associado à capital francesa.
Ao lado da Paris-mulher, cobiçada, desejada e sempre renovada, compa
rece a imagem da Paiis-monstro.
E, contudo, uma imagem ambígua, misto de atração e repúdio, compor
tamento mais uma vez tido como recorrente ao contexto da modernidade.
Neste sentido. Paris pode ser

[...] o mais delicioso dos monsti os [...] monstro completo,aliás. Suas águas furta
das são-lhe a cabeça cheia de ciência e de gênio; os primeiros andares,estômagos
felizes;suas lojas, verdadeiros pés, deles saem todos os tianseuntes e todos os ocu
pados.E que vida ativa tem o monsti o! Apenas o último rodar das últimas carrua
gens de baile lhe cessa no coração.Já os braços se agitam nas barreiras e ele se es-
preguiça lentamente. Todas as portas bocejam, giram sobre os gonzos, como as
membranas de uma imensa lagosta,invisivelmente manobradas por tiinta mil ho
mens ou mulheres,cada um dos quais vive no espaço de seis pés quadrados,onde
tem uma cozinha, um ateliê, um leito, filhos e um jardim, onde não se vê claro e
onde tudo deve ver. Inrisivelmente, as articulações estalam,o movimento se comu
nica,a iiia fala. Ao meio dia tudo está vivo, as chaminés fumegam,o monsti o come,
depois ruge e as suas mil patas se agitam. Belo espetáculo!

A descrição de Balzac da Paiis-monstro, terrifica e humanizada, lembra


as descrições das máquinas do século XIX, que também assumem comporta
mento e feição humana: bufam, silvam, resfolegam, agitam braços e pernas,
têm cérebro, coração e estômago. Da mesma forma, a cidade é animizada e.

Balzac, La peau.
Balzac, Ferragus, p.35.
Balzac, A menina, p.2õ6.
'■•'Balzac, A duquesa, p.l53.
'■••Balzac, Ferragus, p.34.

72
como um coipo, apresenta uma estmtura humana. Assim, será coixente na
literatura falar no coração da cidade, no seu ventre ou nos seus pulmões, os
dois últimos, via de regra, identificados com a zona do mercado e com as áre
as verdes, respectivamente. Se Paris é um monstro, como diz Balzac, é, toda
via, "o mais maníaco dos monstros. Prende-se a mil fantasias".'"'^
Assim, constrói e destrói ao mesmo tempo, numa fúria progressista que
aniquila parte do seu passado para erguer novos monumentos.
E monstro físico, desmesurada como cidade e portadora de todos os con
trastes, que se conjuga ao monstro moral, que cairega em si todas as seduções
e vícios.''"'
Outi-as metáfoiTis são reconentes na nairativa literátia de Balzac, tais como
a Paris-floresta,'''' a cidade-mistério,''"^ a imagem do labirinto'"'® ou do ocea
no,'^" onde é possível encontrar tanto pérolas quanto monstros, ou mesmo a
Paris-navio,'^' que tanto enfrenta vitórias e calmarias quanto tempestades,
numa retomada emblemática de uma das representações simbólicas da cida
de, bastante conhecida.
Note-se que, em todos esses recursos metafóricos, se encontra presente
aqviela ambigüidade que contrasta a cidade-vício à cidade-virtude.Já mais de
uma vez aludida. Mas, talvez uma das metáforas mais interessantes seja aquela
que associe Paris ao inferno e que é descrita por Balzac em A vienina dos olhos
de ouro. Não é por acaso que Balzac intitula sua obra de A comédia humana,numa
clara alusão à obra de Dante. Aliás, ao naii-ar a Paris-infenio, o autor comenta
que ela "terá um dia o seu Dante"...'^-
Povoada de personagens de "tez quase infernal", não é por acaso que, na
opinião de Balzac, "Paris foi chamada um inferno":

[...] Ali tudo queima, tudo é ftiinaça, tudo brilha, tudo feixe, tudo arde, tudo se
evapora, se extingue, se reacende,faísca, cintila e se consome.Jamais a vida em
qualquer ouü o lugar foi máis aidente ou abrasadora.'®^

Ibidem, p.58.
loiueni, p.DO.
t An. ^ A

Balzac, A menina, p.256-8.


Balzac, Lepère, p.l34.
Balzac, História dos treze, p.l9.
Balzac, Le père, p.95.
Ibidem, p.20.
Balzac, A menina, p.257.
Ibidem, p.252.
Ibidem, p.246.

'73
Mais uma vez, retoma essa idéia da oposição do vício à virtude, mas tem
perada ou suavizada pela força da sedução. Paris é ternvel, infernal, mas tem
o seu charme... E quem pode, de sã consciência, resistir a este encanto?... A
ambigüidade moral, por sua vez, remete àquela inversão de valores e quebra
de princípios que a modernidade urbana traz ã baila e qne nos parece central
nesta visão literária sobre Paris, constiiiída a partir da análise balzaquiana.
Comojá foi anterioiTnente dito, não é o caso de igualar o texto de Balzac
a outros esciitos de sua época, mas sim de cmzar sua leitura de Paris com a de
outros contemporâneos que a viveram no periodo pré-Haussmann, no qual as
intei-venções urbanas que ameaçavam já estavam a insinuar a profundidade
das alterações que iria sofrer a metrópole francesa.
Primeiramente, há que dizer que, em Notre Dnnie de Pati.s, romance de
Victor Hugo, o autor trabalha com dois tempos: o da nanativa, que se passa
em 1482, e o da escritura, que corresponde aos anos que antecederam a sna
publicação, em 1831. Entendemos que, no cinzamento dos tempos literári
os, Hugo fala do seu tempo presente, da sua velha Paris ameaçada de desa
parecer. Assim, a imponente catedral gótica é emblemática: ela é símbolo da
Paris antiga, é a imagem metafórica de uma cidade com um prestigioso
passado que ameaça iiiir, não somente pela ação do tempo, mas principal
mente pelas ações dos homens.
Descrevendo a fachada de Notre Dame, as miniicias do seu interior ou a
grandeza de suas toires, Hugo afirma que cada pedra é uma página da histó
ria de Paris, de sua ciência e de sua arte.'^'' Nesse sentido, lamenta sua pro
gressiva degiadação, que aniquila o trabalho de séculos:

Sem dúvida, é ainda hoje um majestoso e sublime edifício a igreja Noü e Dame de
Paris. Mas, por bela que ela se tenha consei"vado envelhecendo, é difícil não suspi-
i"ai', de não se indignar diante das degradações, as mutilações sem número que si
multaneamente o tempo e os homens submetem o venerável monumento,sem res
peito por Carlos Magno, que nela põs a primeira pedra, por Filipe Augnisto, que
nela pôs a última. Sobre a face desta velha rainha das nossas catedrais, ao lado de
uma iT-iga se acha sempre uma cicatiãz."Tempus edax,homo edacior". O que eu ti"a-
duziria preferencialmente assim: o tempo é cego, o homem é estiipido.'"

A VOZ narrativa, que se coloca no tempo presente para tecer suas refle
xões, retorna ao passado, momento em que se desenrola a história, para esta-

'®'*Hugo, Victor. Nolre Dnvw de Pnris. Paris: Librairie Générale de France, 1972. p.l40.
'^^Ibidem, p.l33.

74
belecer como que um balanço entre as duas épocas. No capítulo Paris à vol
d'oismu, Hugo descreve com impressionante detalhamento a visão da cidade
do alto das torres de Notre Dame. Esse panoi^ama nos traça a imagem de uma
cidade gótica, dividida na época da narrativa em três partes distintas, cada qual
com sua arquitetura e função (a Cité, a Ville, a Université), e distribuída num
labirinto de mas. A paisagem do vieux Paris nos dá conta de uma constatação
melancólica:

Era uma cidade homogênea,um produto arquitetimal e histórico da Idade Média,


uma crônica de pedra. [...] Depois,a gi^nde cidade foi se deformando dia a dia.'"''

A constatação de Victor Hugo sobre o "seu" tempo, que se contrapõe ao


da história nan^ada, é sobretudo amaiga:
A Paris atual não tem nenhuma fisionomia geral. É uma coleção de vestígios de
muitos séculos e os mais belos desapaieceram.A capital não cresce senão em cíisas,
e que casas! No passo em que Paiis vai, ela se renovaiá toda em cinqüenta anos! [...]
Nossos pais tinham uma Paris de pedra, nossos filhos terão tuna Paiis de gesso.'"'

Ou seja, a transformação da cidade estava a destmir a identidade urba


na de Paris e, no pior dos sentidos, apagando a memória, desconsiderando
o passado e reconstituindo para não durar. Recuperando a dimensão pro
gressista e aquela apoiada na tradição, anteriormente aludidas e analisadas
para o caso de Balzac, cremos encontrar em Victor Hugo uma postura mais
radical na atitude que valorizava a preservação do tecido urbano, com suas
casas e monumentos.

Naturalmente, Victor Hugo não defendia a volta a uma aldeia gaulesa,


pois assinala que.Já no século XV, ParisJá era uma grande cidade e que cres
cia sem cessar, e que não poderia deixar de se tornar a capital. Cidades como
Paris, dizia Hugo, operam como receptáculos,
[...] onde acabam chegando todas as vertentes geogiáficas, políticas, morais e inte
lectuais de um país, todas as tendências natiu-ais de lun povo;são poços de civiliza
ção, por assim dizer, e também dê esgotos, onde o comércio,a indústiia,a inteligên
cia, a população, tudo aquilo que é seiva, tudo aquilo que é vida, tudo aquilo que é
alma numa nação,filti-a e se espreme sem cessar, gota a gota,século a século.'"®

'®®Ibidem, p.lfi7.
'^'Ibidem, p.l(i9.
'^®Ibidem, p.l46.

75
Sem utilizar exatamente o tenno metrópole, Hugo constata o gigantismo
de Paiis, em que estão contidos os conti"astes da gmnde cidade, que podeiiam
ser tomados na sua dimensão simbólica,se opuséssemos Notre Dame com a Cour
des Miiacles. Esse local recôndito de París é desciito por Hugo com cores som
brias: esgoto pai-a onde acoiriam todos os vícios, a mendicidade e a vagabunda
gem,local de verdadeiros milagres,no qual os cegos enxergavam e os coxos cor
riam, numa espécie de comédia que se renovava toda noite. Mundo tenebro
so, oculto no meio dos becos e meias da velha Paris, fazia conti^aste com os mag
níficos monumentos góticos constinídos na cidade pela vontade dos reis. De
uma ceita foima, os contrastes dos pei-sonagens, indo do belo ao feio, represen
tados por Esmeralda e Quasímodo, são, ao modo de Victor Hugo, uma outra
faceta da diversidade e dos antagonismos da grande cidade. A descrição dos dois
pei-sonagens centrais, por sua vez, obedece também a uma contraposição fisio
nômica expi"essiva, mas, no caso, não maicada pelo tom flsiognomista em voga
na época. Os retratos são detalhados em minúcias,"^' mas se Elsmeralda é como
um anjo, ninfa ou deusa em sua beleza e também coireção no comportamento,
Quasímodo é monstro só na aparência. Ou seja, seu horrivel aspecto não é a
tradução exterior de um carater peiveiso, sendo ele uma vítima.
Talvez, com Notre Dame de Paris, Victor Hugo não seja o Jlâneur da cidade
que melhor pudesse descrevê-la, mas sua nan^tiva é bastante expressiva para que
nela possamos sentir o alerta de alguém que vivenciava um processo de transfor
mação urbana. Ele é, também,o que se poderia chamar um "espectador privile
giado" da cidade, e, como leitor do urbano, sua imagem da aiquitetura como
um livio nos faz pensai" nos significados não-discursivos das rtias, monumentos
e prédios, levando a considerar que a cidade pode ser lida como um texto.
A preocupação para com o passado e seus testemunhos o levaram a redi
gir um inflamado artigo, publicado naRevue desDeux Mondes,em 1852:"Guene
aux démolisseurs!" Neste artigo, Victor Hugo se opunha de forma violenta ao
prolongamento da Rue de Rivoli, o que implicava a desapropriação e demoli
ção de prédios..."''
Em 1845, Victor Hugo começou a escrever um romance que, provavel
mente inspirado em Les niystères de Paris, folhetim que Eugène Sue publicava,
desde 1842, no LeJournal des Débats, se chamaria Les rnisères de Paris. A obra,
publicada finalmente em 1862, levou o título final Les müérahles.^'^- A sua re
dação final e publicação teriam sido realizadas no período de exílio de Victor
Hugo da França, entre 1852 e 1870.

'Sfllbidem, p.l02.
'®"Ibidem, p.60, 65, 77 e 78, respectivamente.
'®'Apud Pinon, op.cit., p.51.

76
Sua obi-a se refere a uma Paris do tempo de antes de sua partida pai-a o
exílio. O que, contudo,im notabilizar a nan-ativa não sem exatamente a recu-
pemção fotogi-áfica da Paris da segunda metade do século, que se dilui, de
forma esparsa, nos cinco volumes da obm e que bem demonstimn que Victor
Hugo em, ele também, um pedestre, um Jlâneurá?i capital fi-ancesa. Em Les
misérables, o elemento centml,em teimos urbanos, é a revelação de uma outi^a
Paris, a Paris da pobreza, sofredoi-a, abandonada, miserável. Esta outm Paiis
— e aqui teríamos novamente os conti-astes — convivia com a cidade elegante
dos AoM/rí;rtrdlçe monumentos. Os esgotos de Paiis, por onde escapajean Valjean,
não seriam, no caso, a metáfora daquela Paris que se oculta, que se coloca
abaixo da Paris emblemática, da cultum e da civilização e da beleza urbana?
Verdadeiros "intestinos da cidade", os esgotos realizariam a transfiguração de
tudo o que em belo, agmdável e peifumado da sociedade em siijeim, baiTO,
podridão. Assumindo a sua faceta de homem do seu tempo, atualizado com
os avanços da ciência, Hugo se sepai"a do nan"ador da ficção e tece considem-
ções sobre o desperdício de lançai* aos rios e, após, ao mai; os dejetos que po
deriam retomar ao solo, fertilizando-o, e que em objeto do debate de enge
nheiros e higienistas da época.'®' Retomando ao Hugo-litei*áiio, nosso autor
nos diz que:

Paris tem sob si um outro Paris: um Paris de esgotos, o qual tem as suas ruas,
seus cruzamentos, suas praças, seus becos, suas artérias e sua circulação, que
é a do lodo."'"'

Metáfom da cidade-oculta, na visão de Victor Hugo, o esgoto opei-aiia


como sucedâneo ou sucursal da tenebrosa Cour des Mimcles; mas, num outro
sentido, acolhendo

[...] o crime,a inteligência, o protesto social, a liberdade,a consciência, o pensa


mento,o roubo,tudo aquilo que as leis humanas perseguem ou têm perseguido.
[...] O esgoto é a consciência da cidade. Tudo aí converge e aí se confronta. Nes
te lugar lívido, há ti evas, mas não há mais segi edos.'®'

Enquanto metáfora, o esgoto não é, pois, a fiel imagem da cidade-som-


bra e da pura contravenção, mas é tudo aquilo que, em dado momento, se

'®-Malignon,Jean. Dictionnnire. des écrivninsfrançais. Paris: Seuil, 1995. v.l. p.280.


'®-^Hugo, Victor. Les misérables. Paris: Librairie Générale Française, 1985. v.III. p.313.
'®''lbidem, p.316.
'®®Ibidem, p.318.

77
opõe à ordem e não pode ser mostrado. Sem dilvida que, no plano da con-
cretude, ele é foco de miasmas e maus odores e se converte num dos graves
problemas da higiene pública, mas nosso autor não trabalha só com as con
dições concretas da existência que contextualizam a ação narrada e que con
ferem ao texto o valor de sintoma de uma época. Metáfom da cidade, o es
goto é o outro lado do real, é aquilo que a cidade não aceita, condena e/ou
procura ocultar. E nesse ponto que consideramos ser o esgoto uma imagem
simbólica da "outra Paris", talvez mais propriamente Paris do que a outra
que se exibe à luz do dia.
A descoberta do social, ou a emergência da "questão urbana" como uma
"questão social", é bem uma "descoberta" do século XIX.Já anunciada no sé
culo XVIII, por Mercier e Bretonne, mencionada por Balzac (que, contudo,
sem muito mais o narrador da cidade burguesa que da miserável), é com Vic-
tor Hugo e com Eugène Sue que encontramos o problema social urbano como
questão central da nanativa literária.
Miseráveis serão Fandine,'®'' que, vinda do interior para Paris, se prosti
tui. Para sustentar sua filha Cosette, criada por terceiros, começa por vender
seus dentes pam acabar vendendo o coipo. Miserável é também a sofredom
Cosette, heroína da história, mas o verdadeiro personagem que emerge das
páginas da obra é o povo parisiense: "este velho Paris miserável que desapare
cia sob o esplendor do Paris feliz e opulento".'®"
Mas é com a figura emblemática do gnmin de Paris, personificado na
figura de Gavroche, que Victor Hugo exprime a sua visão da cidade. Para
Hugo,o gamin, menino pobre das ruas, é a encarnação do povo de Paris,'®®
exprimindo a "questão ^social" da grande cidade. A descrição de Gavroche
ou de Maiáus, outro personagem da história, assume um tom fisiognomis-
ta, típico da nairativa literária da época, mas esse não é o traço mais mar
cante do texto de Victor Hugo. Seu enfoque é centrado no povo e é por
este prisma que enxerga os personagens, como é o caso de Gavroche.
Pequeno Rabelais,'®® misto de gmça, sabedoria popular e astúcia, o ga
min é o anão face a um gigante."® É, no seu entender, a mais completa visão
de Paris, da Paris-social, com que Hugo tmbalha:

'®®Ibidem, v.I, p.l92.


""Ibidem, v.III, p.l68.
"^®Ibidem, v.II, p.l29.
Ibidem, v.II, p.l20.
""Ibidem, v.II, p.ll8.

78
Paris começa no curioso e termina no moleque,dois seres dos quais nenhuma ou-
ti a cidade é capaz de ter; a aceitação passiva que se satisfaz de olhar e a iniciativa
inesgotável [...] só Pai is tem isto na sua história natural.'"'

Maltrapilho e andarilho, essa "pálida criança dosfauhourgs"^'- tem na ma


o seu halnlal natural. A descrição dop'tit Gavroche,sem família e sem lar, exprime
bem este personagem: quando o menino chegava no cortiço, que lhe servia de
abrigo,junto a outros tantos miseráveis, as perguntas "de onde vens" ou "para
onde vais" tinham sempre a ma como resposta.'" Da mesma fomia, após com
prar numa padaiia o minguado alimento que dividiria com outros dois meni
nos, também miseráveis como ele, Gavroche lhes diz: "reentremos na rua!"''"'
Nessa passagem,Hugo toca numa questão importante no desenvolvimento
das cidades e na vivência dos seus espaços, que diz respeito à distinção do pú
blico e do privado. A sociedade burguesa afirma tal diferença, preservando o
privado como o reduto da intimidade, da vida em família, valorizando o acon
chego do lar para a exteriorização dos sentimentos. E^sa "classificação" de es
paços, ou a dividgação de tais representações das esfems da vida, coirespon-
de, no plano do imaginário social, a uma projeção da gerência dos tenitórios
urbanos pela burguesia. Mas as regras de identificação se alteram quando nos
colocamos diante da realidade popular. Os "meninos de ma" de Paiis têm no
espaço público o seu "lar", e é nele que reencontiam a sua identidade. "Ren-
trons dans Ia rtie", palavras de Gavroche, exprimem essa volta ao local conhe
cido, ao território no qual se identificam os códigos e que, para o gawm, re
presenta o seu espaço e a sua segurança. Assim, a apaiente despreocupação
com que Gavioche enfrenta as balas que o mataiiam,'" caminhando sobre as
barricadas, na insurreição descrita por Hugo, nos faz pensar que ele se encon
trava em seu habitai natural e que moneu verdadeiimnente "em casa", onde
sempre tinha vivido... Tipo ideal do gaviin, Gavioche moneria naquele espa
ço público onde sempre se sentira bem.
Da mesma forma,a "questão social" da cidade é abordada por Hugo des
de o ponto de vista da linguagem. Remontando a Balzac e a Sue, Victor Hugo
defende a língua do povo, o argot, argumentando que a sua gíria é, ela tam
bém, um fenômeno literário, além de ser um resultado social.'"

'"Ibidem, v.II, p.l20.


"-Ibidem,v.II, p.l20.
'"Ibidem, v.II, p.I37.
'"Ibidem, v.II, p.530.
'"Ibidem, v.III, p.271-2.
'"Ibidem, v.III, p.7.

79
Assim, o argot se toma a mais legítima expressão do povo, entendendo
que é a sua fonna de representar o mundo e que traduz toda uma cadeia de
significados e de inteligibilidade. Victor Hugo, de uma certa forma, defende
a necessidade do historíador chegar até os "excluídos", voltar-se para os seus
espaços, seus temas, sua sociabilidades, lembrando, inclusive, que a proprie
dade da língua de se exprimir por metáforas — num jogo de transposição de
idéias que tanto revelam quanto escondem — tem no argot ou modo popular
de expressão um campo magnífico de análise. Nenhuma maneira de falar é,
no caso, mais rica em imagens ou mais metafórica do que o argot}''
Metáfora do social seria também a barricada, descrita por Hugo,com co
res vivas e dramáticas, como a expressão mais pura da revolta popular, que faz
com as pedidas da ma e os restos de lixo a sua trincheira. Comparando a revol
ta a uma mudança atmosférica, que revoluciona a paisagem, a insuneição é,
no caso, uma manifestação da questão social subjacente. Como um vulcão, ela
rebenta,revelando o potencial adonnecido.Feita de tudo e de nada,agregando
os atores mais diversos, movidos por diferentes razões, a revolta é um fenôme
no urbano. Propaga-se com a rapidez da pólvora ou do pensamento, mas re
voluciona o cotidiano da cidade, trazendo a emergência do povo ou, mais do
que isso, da multidão, em todos os cantos da cidade.
Tomando Paris à vol d'hihou— e não mais à vol d^oiseau, como em Notre
Dame de Paris, em que a identidade da comja tem,sem dúvida, uma significa
ção simbólica... —,Victor Hugo suipreende um espetáculo novo. O viíyante
ou Jlâneur que realizasse este trajeto aéreo noturno, nas asas de um morcego,
teria esta visão da cidade:

Todo este velho quarteirão dos Halles, que é como uma cidade na cidade,que ati^a-
vessam as ruas Saint Denis e Saint Martin, onde se cruzam mil ruelas e nas quais
os insurgentes tenham feito seu reduto e sua praça de armas,lhe teria oferecido
como um enorme buraco sombrio perfurado no coração de Paris. [...] Em torno
deste labirinto deserto e inquietante, nos quarteirões onde a circulação parisien
se não estava arrasada e onde algumas rai as lâmpadas brilhavam,o obsei-vador aé
reo teria podido distinguir a cintilaçâo metálica dos sabres e das baionetas, o ba
rulho surdo da artilharia e o formigamento dos batalhões silenciosos crescendo
de minuto a minuto; criatura formidável que se apertava e se fechava lentamen
te, em tomo darevolta.^^^

^^^Ibidem, v.III, p.12-7.


^'«Ibidem, v.III, p.85-94, 102, 226.
^'^Ibidem, v.III, p.166-7.

80
A baiiicada,fonnada de restos do cotidiano e de pedras do pavimento da
ina,em a expressão máxima do desespero da multidão e da revolta, a expressão
concreta da miséiia social. Como diria Hugo,uma insuireição que explode,com
as suas banicadas, é uma idéia que é aprovada em examejunto ao povo.'^
Mas Hugo tem a noção que tais exteriorizações da questão social só ocor
rem nas grandes cidades,são as metrópoles que proporcionam esse espetácu
lo"" e só elas são capazes de ter um lado absolutamente convulsionado pela
revolta e um outro absolutamente calmo, estranho à insuneição... Hugo con
sidera que só as cidades colossais podem conviver, ao mesmo tempo, com a
guerra civil e com uma estranha tranqüilidade... Chegamos,assim, à noção da
metrópole, abordada com ênfase na obra de Victor Hugo referente à sua Pa
ris da primeira metade do século. As referências são muitas, e as imagens lite
rárias se sucedem. Fiel a sua preocupação social, que atravessa Les misérahles,
Hugo animiza Paris e usa o recurso da metonímia. Assim, o gamin é Paris,
exprime a cidade, e esta expressa o mundo:

Porque Paris é um total. Paris é o teto do gênero humano. Toda esta prodigiosa
cidade é uma síntese dos costumes mortos e novos. Quem vê Paiis crê ver [...] toda
a história. [...] Paris tem imi Capitólio,o Hotel de\^lle, um Pai"tenon, Noti e Dame,
um Monte Aventino, o faubourg Saint Antoine, um Asinarium, a Sorbonne, um
Pantcon, o Pantliéon, uma Via Sacra, o Boulevard des Italiens [...]. Tudo aquilo
que está lá fora está em Paris."^

E, com imagens tiradas do mundo clássico — o que também não se dá


por acaso, dada a sua carga simbólica —,Hugo afirma ser difícil encontrar
algo que ela não tenha, porque ela é um resumo de toda a cultura universal:
"Paris é sinônimo dos Cosmos. Paris é Atenas, Roma,Sybaiis,Jerusalém, [...].
Todas as civilizações aí estão resumidas, todas as bai-báries também".'®^
As imagens lembram a posiçãojá enunciada por Mercier,anos arrtes, quan
do dizia que não era preciso sair de Paris para ver o mundo...
Retomamos aqui a idéia de que essa metrópole,com a sua face univer-sal,
de espelho do mundo, é sobretudo contraste. Dessa forma, ela é centro da
moda e da irrovação, mas é também rotina. Mudança e permanência, maravi
lha e horror, a atitude de Hugo para com a stra cidade é de atração e repúdio,
postur a modenia por excelência.

'8''Ibidem.v.IIIp.293.
'®'Ibideni, v.III, p.l05.
'®-Ibidem, v.II, p.130.
'®'Ibidem, v.II, p.l32. >

81
Se, por um lado,"respii-ar em Paiis é consenar a alma", é sobretudo nos
fnuhourgs, na hnnlieup., no has-fond, que pululam os misei-áveis, que Hugo consi-
dei-a como a "verdadeira fisionomia" da cidade.
A atitude,como se disse, é ambivalente,e Victor Hugo cc\ébv7i?ipeijormnnre
da metrópole que ousa mudar, inovar, prosseguir sempre adiante. O progresso
cobi-a, pois, a atitude de reivindicar a audácia e a coiTigem de crescei desmesu-
radamente. A atitude de celebiação da capital não se apaga nem mesmo quan
do Hugo exige da cidade outi-a atitude ou o enfrentamento de uma questão
social, como no caso da insinreição e das banicadas, ou ainda de uma questão
de higiene pública, como nos esgotos. Mesmo anatematizada, Paiis é sempre
[...] a meti ópole do ideal, esta pátiia augusta da iniciativa, da impulsão e do en
saio, este cenü o e este lugar dos espíritos, esta cidade-nação, esta corrida para o
futuro, esta composição maravilhosa de Babilônia e de Corinto."^'

A postura de celebmção-combate desse "espectador privilegiado do soci


al é, assumidamente em Hugo,decorrente da sua condição de Jlàneur. Quan
do se refere ao gaviin de Paris, Hugo o camcteiiza como um Jlàneur, a errar e
a vagabundear pela cidade, olhando, obseivando,sonhando pelas mas da me
trópole. Nesse ponto, o narmdor se sepam do texto narmdo e assume a sua
condição pessoal de escritor, ele também Jlàneur cidade, percorrendo-a em
seus detalhes e minúcia, dela conhecendo todos os meandros...'"^
A obra de Eugène Sue, conforme foi mencionado, acrescenta-se a estes
discursos da cidadejá analisados pelo viés do Jeuilleton, essa história em miga
lhas fiiito do lomantismo, por um lado, e do desenvolvimento da giande im-
piensa, por outro.'®' Estaríamos diante de um fenômeno litemrio de venda-
geni, que nos lemete às articulações entre o autor/produtor do texto-merca
doria e do leitor/consumidor. Entendendo que o leitor é, por sua vez, tam
bém constiTitoi de um sonho ao consumir" o texto, entende-se que o escri-
toi, ao constiTiii a sua narrativa, vai ao encontro das sensibilidades coletivas. O
sucesso do folhetim, que,de foiTna melodramática e rocambolesca,fala da Paris-
mistério, vem coiiespondei, sem dúvida, a uma predileção do público pela
leitura de nau ativas de ciime, violentas ou escabrosas, que envolvessem intri
gas apaientemente insondáveis e cujo desfecho era aguardado cotidianamen-
te... Cabe lembrar que o século XIX, por seu turno, põe em voga a história
»®nbidem,v.III,p.315-6.
^®5lbidem,v.II, p.121-2.
Lanoiix, Armand. Intiodiiction. In: Sue, Eugene. Les misteres de Paris. Paris: Robert Laffont,
1989. p.2.

82
policial-detetivesca, na qual a noção de mistério, o caráter de ocultamento e a
necessidade de revelações de um desfecho inusitado suscitam a imaginação e
desafiam o leitor. Entendemos que essa abordagem ou estilo conesponde a
uma sintonia da sociedade que se tomava complexa e na qual aumentavam os
níveis de tensão social. As cidades modernas apresentam, como questão urba
na, a necessidade de pôr em exercício os seiAãços de vigilância e segurança pú
blica. A cidade é, como se viu, local da violência e do crime, e a figura do es
pião aparece associada ã emergência da polícia como órgão destinado a ga
rantir a ordem pública.
Não é, pois, por acaso, que essa "consciência" da vigilância sobre a rida
dos habitantes da urbe se revela nos textos literários desde cedo.Já Louis Sé-
bastien Mercier atentava para o fato de que Paiis era cheia de espiões e curio
sos, delatores e x)oypurs, que,com mil olhos,tudo obsei"vavam e tomavam a rida
intranqüila..."*' Se Balzac aborda diretamente a presença da espionagem em
Fenagus,^^^ também a Paris-mistério está presente em sua obra, com a socieda
de secreta de amigos que publicamente se ignoravam, mas que haviam estabe
lecido um pacto sigiloso de ajuda mútua, tal como apaiece na História dos tre
ze... Da mesma fonna, Victor Hugo,com a sociedade secreta dos amigos do
ABC, composta de estudantes politizados que se encontravam nos cafés de
Paris,'^" põe em cena as confrarias misteriosas então em moda. Pois bem,com
Sue temos o retomo dos mistérios ou a uma visão "policial" dos subten"âneos
da cidade. Disfunção da grande cidade, que faz emergir a massa dos desfavo
recidos, a sociedade burguesa se defronta com uma outi^a sociedade, na con
tramão da ordem, com suas próprias leis, linguagem e práticas. Literariamen-
te, isso pode ser apresentado sob a fonna folhetinesca do "mistério" da cida
de,como o faz Sue,com grande sucesso editorial. Eugène Sue começa sua nar
rativa falando dos "modernos báibaros" ou dos "selvagens urbanos" que nos
cercam na vida cotidiana da metrópole, perigosa convivência pai-a quem se
aventurar a freqüentar os espaços onde eles tramam os assassinatos, o roubo e
toda sorte de crimes;

Estes homens têm as maneiras deles, as mulheres deles, vima linguagem deles,
linguagem misteriosa, repleta de imagens funestas, de metáforas rescendendo a
sangue.'®'

Mercier & Bretonne, op.cit., p.fil.


Balzac, Ferragus, p.50.
'®® Balzac, História dos treze.
'®"Hugo, Le.% Dmérnhles, v.II, p.l96.
'®' Sue, op.cit., p.31.

83
"Raça infernal" que povoa as prisões, as galés c segue o caminho do cada-
falso, mesmo esse has-fondpodo: oferecer vim panorama de contrastes. E assim
que,obedecendo a uma postura físiognomista, os vilões da narrativa são mons-
tmosos e medonhos quanto ao aspecto. Falando dos freqüentadores do caba
ré Lapin Blanc, Sue descreve:

Homens e mulheres não ofereciam nada de remarcavel,suas fisionomias eram ferozes


ou embmtecidas,sua alegiia gi osseira ou licenciosa,seu silencio sombiio ou estvipido.
[...] O bronzeado,a miséria, os rudes üabalhos das galés esciu eceram sua tez desta cor
sombria,azeitonada, por assim dizer, pai ticulai aos forçados. Apesar do seu temVel as
pecto, os ti^ços deste homem [le Choiuiiimu] exprimem mais uma espécie de audacia
bmtal que ferocidade;em especial, a parte posteiior do seu crânio,singulai mente de
senvolvida,anuncia a predominância dos apetites assassinos e carnais.'^-

Mais tais caras particulares, de hábitos escusos, vizinhavam com certas flo
res do lodo, como a bela e inocente Fleurde Maiíe, a virgem pura da trama som-
biía, cujos traços são de uma beleza sem igual, o olhar é cândido, a voz é doce,
a pele é alva, os rosto apresenta traços delicados... Romantismos à parte, não
é o maniqueísmo da narrativa que opõe os "bons" aos "maus" que nos interes
sa, mas sim a revelação de que a metrópole apresenta contrastes mesmo nas
mais baixas camadas sociais. É, pois, a imagem da cidade mviltipla, do oxímo-
ro, que retoma e que se faz acompanhar também pela contraposição dos es
paços "malditos" com aqueles da Paris-civilizada.
Assim, se a região do Champs Elysées é o passeio da moda,^^^ a Ile de Ia
Cité,"dédalo" de ruas obscuras,é o antro por excelência dos malfeitores da urbe.
Ali, as casas, cor de bano, têm rai-asjanelas, escadas, imundas, salas infectas.
Mesmo em quaiteirões de melhor "nível", populosos e comerciais, como o que
abrigava a Rue du Temple, as velhas moradas de quatro andares eram subloca-
das pela população pobre naquela Paris que ainda não sofrera em cheio as radi
cais transfoiTnações de Haussmann. A descrição é extremamente elucidativa:

Uma entiada sombria, esti eita, conduzia a um pequeno pátio ou mais a uma es
pécie de poço quadrado de cinco ou seis pés de largura, completamente priva
do de ar, luz, receptáculo infecto de todas as imundícies da cada que por aí cho
viam dos andares superiores.

'^-Ibidem, p.39.
Ibidem, p.40.
^^^Ibidem, p.775.
Ibidem, p.33.
Ibidem, p.207.

84
Gérard de Nei-val deixou também alguns registros literáiios sobre a Paris
pré-Haussmann. O autor de Aurélio, escapa ao padmo de Balzac e de Hugo,
com seu texto que segue uma ti-ajetória de sonhos e alucinações, mistérios, lu
gares exóticos, mulheres desconhecidas, êxtases e sofrimentos. O que caberia
resgatar, nesse romântico exacerbado,contempoi-âneo de Balzac e Hugo e que
acabaria de foima tragica, enforcando-se num fria madmgada, é que ele foi,
também, a seu modo, um voyeurde Paiis. No seu texto, em meio a uma nai-ra-
tiva alucinatória, na qual sonho e realidade se confundem,a pei-sonagem cen
tral eiTa pela cidade meio em transe, indo do cemitério de Montmartre às bar
reiras da Porte de Clichy, últimos vestígios a relembrar a muralha de Tliiei-s,
para se dirigir ao centro de Paris.'®" O ti-jyeto do desordenado e tragico naira-
dor é, no caso, um passeio pela cidade naquilo que ela na época tinha de mais
significativo: a margem direita, por onde a personagem en"a, de Champs Ely-
sées à Place de Ia Concorde, da Rua Saint-Honoré às Tulherias, chegando ao
Louvre e ao Palais Royal.'®" A centralidade nào é, pois, a íle de Ia Cité com
Notre Dame, mas a área acima do Sena por onde se agitava vida burguesa. In
cansável na sua peregrinação por Paris, a pei-sonagem passeia pela colina de
Montmai tre, onde conversa longamente com camponeses e operáiios, naquela
zona ainda limítrofe entre o mral e o urbano'®® e que era refúgio dos pobres.
Sempre em delírio, esse promeneurvm da agitação do Les Halles, mercado cen
tral de Paris, ao Jardin de Plantes, local de passeio da população, retomando
às galeiias do Palais Royal com seus cafés e suas prostitutas.
Mesmo mantendo com a cidade uma relação de sonho e delírio, a naii-a-
tiva identifica a ti"ajetória do personagem por uma Paris com espaços delimi
tados e caracterizados quanto às suas funções e hierarquias sociais. Uma Paris
reconhecível como grande cidade sei-ve de cenário à ti-íyetória eiTante do per
sonagem de Neival, ele também um espectador do social e um flâneurda. me
trópole. Esse personagem reaparece pm outi-as obi-as do autor e que represen
tam a projeção literaria de sua perambulação pela cidade:

O amigo o qual eu encontiei é um destes basbaques em"aizados [...] — produtos


bastante comuns da nossa civilização e da capital. Vós os tereis apercebido vinte
vezes, vós sois seu amigo — e ele não nos reconhece. Ele caminha num sonho
como os deuses da Ilíada caminhavam,às vezes numa nuvem;somente,aqui se dá
o conti^ário: vós o vedes,e ele não vos vê.^"®

'®'Nen'al, Gérard de. Aurelin. Paris: Librio, 1994. p.58.


'®®Ibidein, p.59-60.
'"Ibidem, p.61.
-""Apud: Moncan,Patrice de. Guide littérnire des Passnges de Paris. Paris: Hermé, 1996. p.54.

85
Tliéophile Gauder, consagi"íido cronista da cidade, deixou também algu
mas páginas da Paris pré-Haussmann, particnlannente nojonial Ln Presse, pam
o qual ti-abalhou de 1836 a 1855. Por tiás da crônica ligeira, sobie os persona
gens,o cotidiano e os sítios da cidade mais freqüentados, Gatitier revelava-se um
Jlâneurd^K cidade, um verdadeiro piélon de Paris, deixando algumas reflexões so
bre as mudanças da metrópole. Na ci ônica Uneproimiuide nu hfusard, de 5 de agosto
de 1839, ele passeia pela avenida de Champs Elysées num dia de festa e, à noite,
acaba por subir ao teto de sua casa para ver os fogos de aitifício. Embom aflnne
que "não há nada de mais belo no mundo do que Paris iluminada e vista do
alto",-"' esse maiavilhamento é acompanhado de outras impressões, que o fa
zem comparar o panorama a um grande mar ou a uma gruta enonne, qual a
"goela de um monstro apocalíptico" ou a um quadro "babilõnico"... Acaba por
consideim" que a escuridão da noite dava a Paris uma beleza qtie a cidade não
tinha, pois as sombi^as obscureciam o que havia de miseiãvel e mesquinho...-""
A crônica dá margem a um entrecmzamento de sensações — atração e
repúdio, maiavilhamento e tenor — e de avaliações da urbe — o belo e o feio,
o fausto e a miséria —,além de fazer uso de reconentes metáforas que acom
panham a nanativa da cidade moderna: Babilônia, monstro, mar. Igualmen
te, Théophile Gautier coloca em cena um elemento Irornpeur de ocultai-
as misérias da urbe e suavizar os contrastes: a escuridão que tudo cobre e os
pontcis luminosos que produzem o panomma encontrado.
E uma representação atraente e sedutora da cidade aquela que não se
revela aos olhos do espectador noturno,o que põe em cena a questão das ima
gens ilusórias. Fetichizada pela noite e pela festa, a cidade se revela no seu
melhor aspecto, ocultando um outro lado menos favorável.
O aspecto da simulação, da aparência e da dissimulação da vida urbana
comparece ainda nas crônicas que falam do Bal Masque da Ópera de Paris. O
cronista se pergunta porque a multidão acorre aos bailes mascarados, se afir
ma que não se diverte. Conclui que os motivos são

[...] o desejo do desconhecido, a parte aventureira de nossa alma que o ordena


mento e a simetiia da vida moderna não puderam completamente desti uir e que
se atira com açodamento diante do acaso e do imprevisto.-'"

O comentário carrega consigo a crítica a uma certa monotonia da vida


moderna, trazida pelo disciplinamento do urbano e a uniformização dos pa-

Gautier, Théophile. Pans et le. parisiens. Paris: La Boite à Documents, 1996. p.32.
Ibidem.
-"'Ibidem, p.l98.

86
diões de conduta. Não se pode atribuir a Théophile Gautier ciiticas mais pro
fundas aos progressos do século, dos quais ele era admirador, mas, como cro
nista, registi-a os efeitos trazidos pela multidão, propiciando o anonimato, as
sim como o mascaramento da tida. O baile é, no caso, metáfora desse proces
so, ao mesmo tempo de fachada da sociedade contemporânea e da possibili
dade de romper com a unifonnização e o regramento da vida. O cronista la
menta esse aspecto de mascaramento, no qual a aparência não só oculta, mas
substitui o real. Resta, contudo, o vago mistério que ronda a vida dos habitan
tes da grande cidade, onde tudo pode acontecer e que estimula as pessoas a
romperem o continuuvi da existência.
Cabe registrar um último elemento nessa Paiis metrópole que se consti
tuía e que expunha seus contrastes aos escritores da cidade: trata-se das passa
gens, surgidas na transição do século XVIII para o século XIX. Walter Benja-
min constrói em torno delas toda a representação de um século.-*" Como mi
crocosmo da sociedade capitalista, elas são a fantasmagoria perfeita de uma
sociedade que exibe aquilo que cabe ser dado a ver (o mundo da circulação
das mercadorias, stia faceta de beleza e de sedução) e oculta o que deve per
manecer escondido (a esfera da produção e do trabalho operário). Imagens
transfíguradoras do real, encarnando em si a capacidade de fetichização do
mundo, as passagens se apresentam como fantasmagorias que, como repre
sentação, se colocam no lugar do real e a ele substituem com vantagem.
Um vez criadas, as passagens conquistam a cidade. Como espécie de ruas
internas, ao abrigo do vento e da chuva, elas oportunizam a Jlâneriee ofooting
pelas houtiques, com suas vitiines iluminadas. Representatíva dessa atração a mais
da grande cidade foi a criação, em 1827, de uma peça de vaudeville sobre a
rivalidade entre as ruas e as passagens. Apresentada no Théatre des Varietés
dá Passagem dos Panommas,as mas cobertas eram cantadas segundo as suas ine
gáveis vantagens e o seu caráter moderno:

[...] Do velho Paris desdenhando o pó


Vós protegeis os seus embelezamentos;
Ao luxo útil ela abre a barreira,
a arte aí faz ver todos os seus encantamentos.-"'

A iluminação a gás das passagens tomava-as mais belas à noite, dando uma
coloração especial aos rostos das mulheres e um brilho inusitado às mercado-

-"■'Benjamin, Walter. Paris, capitale du XIXe siècle. Le livre despnssages. Paris: CERF. 1989. ^
-"^Um Dumersan, Brazier et Gabriel. Les passages et les rues, ou Ia gtierre déclarée. Apud Mon-
can, op.cit., p.l4.

87
lias das vitiines, além de oportunizarem imagens entiecnizadas que se refleti
am nos seus miiltiplos espelhos. O aspecto fascinante dessa espécie de Paris-
miniatum fornecida pelas passagens, mas ao mesmo tempo enganador,era res
saltado pelo cronista Luchet, em 1835. Ironicamente, o esciitor alertava que,
à luz do sol, as mulheres que haviam seduzido o olhar na véspera deixavam de
ter os mesmos encantos...-'"'
Microcosmo da sociedade burguesa, as passagens tanto emm passarelas
da moda pai-a as elegantes, quanto exibiam os produtos demierai,além de abri
garem as inovações tecnológicas da passagem do século e que foram ancestrais
da fotografia e do cinema: o panorama e a sua seqüência de similares sucedâ
neos, como o georama ou o diorama. Todas as passagens abrigavam essas atra
ções, que implicavam uma ilusão de ótica. Fantasmagorias, no sentido benja-
miniano, eram mais uma representação com força de real que fazia o público
sentir-se como se estivesse dentro da paisagem que olhava. Da mesma forma,
as passagens abrigavam inovações práticas, demandadas pela grande cidade,
como banheiros e banhos públicos, livrarias e gabinetes de leitura, ou então
sediavam foirnas de lazer, como bailes, teatros, restaurantes e cafés ou mesmo
as prostitutas. Sobretudo nesse caso, asfilies puhliqttes realizavam sua tarefa de
atrair e seduzir os incautos provincianos, a gente do interior que se convertia
na fácil presa das atrações parisienses...-"'
A virada do século XVIII para o século XIX consolidara o perfil metro
politano da cidade. Contínuos processos de intervenção no urbano ocorriam
lado a lado com novas vivências e sensações. A Paris de Mercier e Bretonne
não era a mesma de Balzac, Hugo, Nerval e Théophile Gautier.
Assim, se as visões literárias da cidade traduzem as concepções da "cida
de abeita", exploram os seus contrastes, utilizam-se de metáforas e insistem no
poder do olhar do escritor para expressão da vida urbana, há algumas novas
imagens que se insinuam ao longo do século XIX.
Como foi apontado, as representações do urbano se enriquecem em face da
percepção de um novo ethos citadino; a emergência da "questão social", com os
seus desdobi-amentos nas imagens da multidão, do povo e da revolta, a ambigüi
dade da lelação progresso versm tradição, um esboço da distinção dos espaços
público e piivado e a "aura" de mistério que a vida na metrópole ti-az implícita.

-""Luchet, Auguste. Nouveaii Tableau de Paris au XIXe siècle. Paris, 1835. tome VI. Apud Mon-
can, op.cit.
-"'Marlès, Nicolas. Paris ancien et moderne. Paris: Le Rei Librairie, 1842. Apud Moncan,op.cit.,
p.80. Madame Troloppe. Paris et le parisiens. Paris: H.Fournier Librairie, 1835. Apud Moncan,
op.cit.

88
Sem perder de vista a nossa estratégia benjaminiana de montagem,por con-
ti-aste e justaposição, buscamos resgatar, no discurso literáiio da época, òs ele
mentos que, cmzados, conti-astados e compostos com as praticas e discui^sos ur
banistas da época, nos proporcionam uma "iluminação" nesta leitura de Paiis.

DE PARIS PARA O MUNDO:VISÕES LITERÁRIAS DA CIDADE HAUSSMANIANA

O nome de Haussmann, famoso bai-ão e prefeito de Paris que transfor


mou a cidade em modelo da metrópole moderna,é emblemático. Há mesmo
uma tendência a separar a história urbanística da capital fi-ancesa num perí
odo pré e pós-Haussmann, estabelecendo a sua gestão na prefeitura do Sena
como um divisor de águas. O processo, contudo, deve ser relativizado, tendo
em vista que, como se afiiTnou, algumas medidas haviam sido postas em prati
ca desde o século XVIII. Além disso, no plano das percepções individuais e
coletivas — o que remete à relação entre autor-produção e público consumi
dor —,Parisjá era sentida como metrópole em processo de transformação.
Mas,sem dvivida,foram as intervenções urbanas do barão Georges-Eugè-
ne Haussmann,em 17 anos de gestão na prefeitura de Paiis (1853-1870), que
transformaram a cidade —já centro mundial de cultura e civilização — no
modelo acabado da metrópole do século XIX. O alcance dessas intervenções
foi tão grande — para Paris e para o mundo — que o fenômeno se prestou a
múltiplas considerações.
A principiar pela discussão que se estabelece entre o predomínio do ator
social no processo em curso (ou seja, a relevância da figura empreendedora
de Haussmann) e a tendência inversa, que estabelece que as coisas só aconte
cem por exigências do meio social.-"® Dilema este que Leonardo Benévolo ten
tou superar, indicando a relativa autonomia da cultura urbanística ao longo
da história frente os embates políticos.
Na opinião de Roncayolo:

A haussmanização não é um acidente, ou a vontade de um príncipe, ou o capri


cho de um regime.E antes uma resposta: ela se enraíza nas pressões múltiplas que
agitam a cidade no início do século, pressão demográfica e pressão econômica

208
No primeiro caso, teríamos toda uma linha de pensamento de valorização da figura de Haus
smann, como Pierre Lavedan (Histoire de Vurbanisme; époque temporaire. Paris: H.Laurens, 1952),
e, no segundo, Maurice Halbwachs {Les expropriations etleprix des terrains h Paris, 1860-1900. Pa
ris, 1909) e Leonardo Benévolo (apud Lorde,André.Paris s'exporte. Paris: Patillon de TArsenal/
Picard Ed., 1995, p.9).

89
que impulsionam ojogo dos valores urbanos, o preço do solo ou dos imóveis.
A doença e o medo social, a cólera e a revolta não são senão a parte mais visível
de uma cidade que crepitava por todos os lados.

Nossa posição é de que a gestão de Haussiiiann na prefeitura de Paiis se deu


no que se podeiia chamar de conjuntura favoiável paia decisões de tal enverga-
duia política e que,por sua vez, veio ao encontro de um problema urbanojá posto.
Nesse contexto, não há como isolar a peisonalidade marcante e a habilidade de
Haussmann ou mesmo a sua coiagem em ousar mudar o aspecto de uma cidade
que, desde há séculos, eia consideiada o centro da vida civilizada..."'"
Embora o nome de Haussmann seja um símbolo da modernidade tirba;
na, ele respondeu às condições de sua época, que demandavam respostas. E
justo falar de uma "hatissmanização" ou de um "haussmanismo", que não se
esgotam com ele e que viajam no tempo e no espaço,sendo reapropriadas em
outros contextos. Nesse ponto, os especialistas divergem, gerando uma nova
controvérsia: afinal, o "modelo haussmaniano" é exportável? Pierre Pinon afir
ma que não, pois nenhuma cidade reunia as mesmas condições da Paris do
Segundo Império, tal como a aliança realizada entre o governo e as socieda
des imobiliárias e de crédito. Assim,falar de um "modelo hatissmaniano" é en
tender a sua especificidade histórica da impossibilidade de sua obra ser "ex
portável". O possível de adotar, em outros lugares e momentos, seriam algu
mas idéias gerais, como a realização de grandes trabalhos urbanos, capazes de
metamorfosear uma cidade, ou mesmo a possibilidade de integrar numa rede
um centro histórico e novas avenidas.""-
Michel Darin considera que sim, e que há, naturalmente, que considerar
o grau de adaptação realizado pelos receptores das idéias e práticas inade in
Franceem.outros contextos espaciais e temporais. Acrescenta André Lortie que
os projetos exportáveis são aqueles que se destinam a um lugar preciso."'" O
que eqüivaleria dizer, em outras palavras, que as "cidades ideais" só têm senti
do com referência a "cidades reais", que, com a sua concretude, reprocessam
e ressemantizam discursos e imagens, reciclando práticas de acordo com suas
necessidades. Nossa posição,já explicitada anteriormente,é que o "modelo pa
risiense", sob a forma acabada da "metrópole",foi capaz de viajar no tempo e
no espaço, participando das representações sociais construídas sobre a cidade
moderna na América Latina.

Roncayolo, La productíon, p.74.


Giedion, op.cit.
Pinon, Pierre. L'haussmanisation: realité et perception en Europe. In: Lortie, op.cit., p.44.
-^"Lortie, op.cit., p.9-11.

90
Desta prínieii-a contiovéi-sia decon e uma outfa: até que ponto cabe a Haus-
smann a atitoria do plano gemi de intervenção urbana em Paiis e até mesmo
coloca-se a dilvida de ter realmente havido um plano fonnal e sistematizado de
ti-ansformação da cidade.
Queiem detenninados atitores que a origem da Paiis de Haussmann se
baseie no modelo da Renascença e da cidade banoca,já experimentada em
Roma por Sixto V, em 1585, e que se expressou pela predominância da linha
reta, com a abertui-a de eixos que interligavam os gimides monumentos e cons
truíam uma perspectiva.-'-'' Essa procui-a de monumentalidade e de haimo-
nia, expressas pelo traçado das rtias retas, abertas ao olhar,já fora ensaiada por
Luís XVI, e, no final do século XVII,se fez presente no Plano dos Artistas. Con
cebido em 1796, ele resultou de um apelo feito pelo governo revolucionário
pam definir projetos de remodelação de Paris. O resultado foi a retomada do
modelo romano,adaptando-o à paisagem parisiense e aprofundando algumas
propostas da época pré-revolução, como a constmção do cais no Sena e a des-
tinição de casas sobre as pontes.-'"'
Um outro elemento de discussão, também incidindo sobre a questão da
originalidade ou autoria das idéias, diz respeito à dupla do imperador Napo-
leão III e do prefeito Haussmann. Napoleão III, em discurso pronunciado em
1850, no Hotel de Ville, teria, de uma certa forma, instaurado o conjunto de
intervenções que se dariam em seguida:

Paris é o coração da França; ponhamos todos os nossos esforços em embelezai"esta


grande cidade, em melhorar a sorte de seus habitantes. Abi"amos novas ruas, sa
neemos os bairros populosos que carecem de ai" e de luminosidade e que a luz
benfazeja do sol peneü e por tudo em nossos muros.-''

Já se viu que prefeitos anteriores de Paris — Rambuteau,sob Luís Filipe,


na Monarquia de Julho (1831-1848), e posteriormente Bergei", sob o governo
do príncipe-presidente Napoleão — haviam tomado medidas para a reformu
lação e o embelezamento da cidade. Mas foi fundamentalmente com o cha
mamento de Haussmann à prefeitura de Pai"is que as propostas de Napoleão
III,já imperador,se tornaram realidade. Nesse ponto é que se insere a questão
da ação conjugada de uma vontade política do governo imperial com a deter
minação obstinada do prefeito. Napoleão III, segundo relatou em suas memó-

Cf. Giedion, op.cit. Layer, François. Le Paris d'Haussmann. In: Cohen; Fortier, op.cit.
-'■•Layer, op.cit., p.l92.
-'^Pinon, Le projet, p.52.

91
rias, teria mostrado a Haussmann,em 1853, um projeto, expresso numa planta
de Paris, na qual o impemdor assinalara, com cores diferentes, as suas priorida
des. Essa planta teria desaparecido no incêndio que destmiu o Hotel de Ville
em 1871. Dela se tem notícias pelas memórias de Haussmann e por depoimen
tos de contemporâneos, como Charles Merceau ou o Duque de Persigny, que
afiiTnam terem visto o plano.
Uma cópia da planta desenhada pelo imperador teria sido apresentada
em 1867 a GuilheiTne 1 da Pmssia, por ocasião da exposição universal de 1867,
quando o sobeiano alemão esteve em Paris. Estabelecida a autenticidade do
documento, que, segundo Pinon,-"* teria sido feito entre 1856 e 1859, mas
que foi descoberto quase um século depois, em Berlim, e publicado em 1932
por André Morizet, letoma-se a questão de saber até que ponto Haussmann
foi o executor fiel das propostas de Napoleão III ou se teria imprimido seu
próprio cunho no plano de refoimas. A descoberta de mais um documento
nos Ai chives Nationales — um plano de Paris de 1864 —,da autoria de Haus
smann, atestaria "a capacidade de Haussmann de fazer coexistir aspectos di
versos e contmditórios da cidade contemporânea, a fim de definir uma estra
tégia urbana global".-" Haussmann, no caso, teria ido além da proposta do
impemdor e incoipomdo novas inteivenções.
Nessa espécie de "novela" posta em debate pelos especialistas contempo
râneos sobre a ação e a abrangência de Haussmann e do "haussmanismo", te
mos a idéia de que o barão teve a capacidade de ir além da proposta original
de Napoleão III. Recolhendo os resultados das intei-vençòes urbanas anterio
res, traduzindo em medidas práticas os conhecimentos científicos de sua épo
ca e aplicando-os na cidade de Paris, Haussmann foi também capaz de incor
porar novas questões surgidas no deconer das intei-venções e dar-lhes respos
tas. Nesste sentido, não sabemos se podemos falar realmente de um plano for
mal, pois ele tem lugar como um processo em marcha, dinâmico, sendo, ao
mesmo tempo, intencionalidade e resposta.
Já temos um quadro mais ou menos claro das idéias que teriam inspirado
a refoiTna haussmaniana de Paris, pois elas se situam no bojo de um processo
que, desde o Século das Luzes, bradava pela "cidade aberta", desembocando
no século XIX,quando os distintos saberes e práticas sobre a cidade se cmzam
e intei-agem. O corpus básico das idéiasjá se achava presente no pensamento ê
nas discussões dos médicos higienistas, engenheiros e enfermeiros, estes lilti-

-^^Pinon, op.cit.
-''Tamborino, Rosa. Le plan d'Haussmann en 1864. In: Cyenèses. Paris, Éd. Bellin, n.l5, mar. 1994.
p.130.

92
mos formados pela Polytechnique e pela École des Ponts et Chaussées. Como
se viu, esse corpus baseou-se no princípio de que tudo que era movimento e
circulação era são e tudo o que estagna é malsão. O livre acesso ao ar, á água e
à luz se opunha à concepção de que o ar viciado, as águas paradas e a escuri
dão proporcionavam odores mefiticos e miasmas geradores de doenças.
Os interesses da higiene, do comércio e da estética passaram a convergir
em torno da linha reta, legitimando a intervenção urbana haussmaniana, que
se caracterizou pelas grandes aberturas, rasgando a cidade e refazendo o dese
nho urbano arcaico.-'®
Ora, a legitimidade de tais intervenções não se dão apenas em tomo de
exigências cientificas, mas também de uma lógica econômica e financeira do
capitalismo triunfante. Demolir, construir, desenvolver as comunicações-e oti
mizar a prestação de serviços públicos configuram-se como oportunidades lu
crativas para o investimento dos capitais. Portanto, a idéia do lucro se conjuga
e reforça os imperativos da estética, da higiene e da técnica.
A tais concepções se acrescentam as influências do pensamento de Saint-
Simon ou Fourier, que trazem para o debate o problema social urbano. Paris,
com as suas revoltas e barricadas e com a sua população pobre crescendo, se
colocava como um foco de tensões. Ragon-'" enfatiza a importância do pen
samento saint-simoniano nas concepções de Napoleão III, que estaria imbuí
do na idéia da constmção da "cidade ideal" dos teóricos do "urbanismo soci
al". De fato, Napoleão III tanto financiou a constmção de uma "vila" operária
na Rue Rochechouard (a Cité Napoléon) quanto destinou uma verba especi
al para a constmção de casas populares nos bairros mais populosos de Paris.
Por ocasião da exposição universal de 1867,sediada na capital francesa, o Im
perador exibiu algumas destas moradias para as classes desfavorecidas.--" Mas,
no plano das medidas efetivas da renovação urbana comandadas por Hauss-
mann,essas foram absorvidas ou sobrepassadas pelos interesses do capital. Tais
reformas urbanas,como se sabe,não corresponderam às necessidades das classes
subalternas, embora pudessem ser feitas em seu nome, pela designação geral
dos "interesses do povo". O que se poderia afirmar, no caso, é que o pensa
mento social, enquanto denúncia dos problemas trazidos pela emergência das
camadas populares urbanas, iria, concretamente, propiciar medidas preven
tivas ou antecipatórias por parte do governo.

Roncayolo, op.cit., p.93-4.


-"'Ragon, op.cit., p.117-9.
-"-"Pinou, Fierre. De Ia parcelle à l'inieuble. In: Cars; Pinon,op.cit., p.143-4.

93
Tomem-se,no caso, as preocupações expressas pelo baião Haiissmann pelo
controle das revoltas populares, ati-avés da abertura de largas avenidas e boul/'-
vards que permitissem a circulação das tropas e que formassem uma espécie
de "sistema defensivo" contra o "inimigo intenio"...--'
São palaxTas do próprio barão;

Destacar os grandes edifícios [...] de maneira a lhes dar um aspecto mais agradá
vel à vista [...] e uma defesa mais fácil nos dias de revoltas Assegurar a ti~an-
qiiilidade pública pela criação de grandes boulevards, que deixaiiam circular não
somente o ar e a luz, mas as ü opas e, por uma engenhosa combinação, dariam
melhorias ao povo e com isso menos disposição para a revolta.

O pensamento do prefeito revela, pois, a fonna política de encaminhar


o problema social, eliminando os elementos de tensão, tais como eram conce
bidos, em nome de uma modernidade urbana.
De qualquerforma, há que levar em conta que, no plano das idéias e ima
gens, uma representação da cidade moderna e aberta à circulação precedeu a
mise en oeuvre das realizações de Haussmann. Ou seja, as representações, que
expressavam saberes, sensibilidades e práticasjá realizadas no espaço urbano
foram, por sua vez, matrizes de novas intervenções na realidade.
Em termos de ações, Haussmann tem o seu nome associado à percé e ao
évenlreimnt da velha Paris, ou seja, à abertura e alargamento de vias e às demo
lições e ao verdadeiro "estripamento" da zona central da cidade. Mesmo que
ele não tenha sido o primeiro a tomar qualquer dessas atitudes, a representa
ção construída sobre a sua intervenção é a de que ele revolucionou Paris, revi
rando a cidade. Essa é tanto a impressão dos seus contemporâneos como dele
próprio, em suas memórias, constituindo-se ainda numa imagem consensual
nojulgamento dos especialistas que hoje analisam sua obra.
A essa "transformação" de Paris se associa a idéia de "rede" e de "totalida
de". Mesmo que opinemos pela postura de que o barão não tinha um plano
global estmturado para Paris como um todo, pelo menos a abrangência de
suas medidas atingiu toda a cidade. Desde a proposta original de Napoléão 111
até as respostas aos problemas e desafios surgidos no decorrer do processo e
aos quais Haussmann fez frente, tudo contribuiu para fazer surgir uma nova
cidade. Nadaparece isolado, mostrando que Haussmann e sua equipe de téc
nicos buscavam abarcar o conjunto de Paris. Como diz Pinou:

Giedion, op.cit. Ragon, op.cit. Pinon, Pierre Le projet de Napoléon III et d'Haussmann. In:
Cars; Pinon, op.cit.
---Apud Ragon, op.cit., p.127-8.

94
Todos os fundamentos diretos do sistema hanssmaniano devem ser procurados
enti e as razões qne fazem abiir tima rna: circular, abrir perspectivas visuais, arejar
e sanear, remodelar os espaços rasgados, principalmente propiciai* ten enos à cons-
ü iição, com as implicações arquiteturais e financeiras que aquilo comporta.É des
de logo claro que nenhuma destas razões pode ser descartada, mas também que
nenhuma denü e elas pode ser excluída das demais."^

Segundo Siegfiied Giedion,--'^ as ações de Hatissmann se desenvolveriam


em três fases, ou em três "redes", conforme a sua definição, cada qual impli
cando um modo de financiamento.
Num primeiro momento,a ação do prefeito deu-se no sentido de prosse
guir o que já estava sendo feito e que contava com o suporte financeiro da
municipalidade e do estado: o prolongamento da Rue de Rivoli, de um lado,
até o Louvre e a Place de Ia Concorde e, de outro, até o Hotel de Ville e, pos-
terionnente, até a Bastille. A abertui-a e o alargamento dessa artéria, conjuga
dos ã construção dos Grandes Halles e ao surgimento da Place du Châtelet,
mudaram por completo o visual de um dos quarteirões mais populosos da
"velha Paris" e berço de inúmeras revoltas. A evacuação dos teirenos implicava
a expropriação e demolição de meias estreitas com antigas e apeitadas casas
medievais. Seguiu-se a mudança forçada da população pai^a a petifeiia, a cri
se de alojamento e o aumento do preço dos aluguéis, agravando as condições
habitacionais da população pobre, que, nos anabaldes, continuou mal aloja
da, em casas também estreitas, superlotadas, sem ar e sem luz...
A contrapartida desse processo foi a especulação de preços, no centro e
na hnnlieue, por parte de proprietários individuais de imóveis ou de compa
nhias imobiliárias qtie se constituíram em face das condições de lucratividade
proporcionadas pela valorização do solo urbano.
Essa primeim rede comportava, ainda, a organização de espaços de lazer
para a burguesia, como o Bois de Boulogne, atingido pela elegante Avenue
Foch e o hipódromo de Longchamp.
Na segunda etapa, ultimou-se o grande cmzamento de Paris, que tinha
como ponto centml o Châtelet: no sentido leste-oeste, era lepresentado pela
Rue de Rivoli e, no sentido norte-sul, pelo Boulevard de Strasbourg e pelo Bou-
levard de Sebastopol, ambos na margem direita do Sena, mas agora, prolon
gados para a margem esquerda, atravessando a íle de Ia Cité até o Quartier
Latiu, com a abertura do Boulevaid Saint Michel. Se a burguesia tinha, a oes-

-"Pinon, Le projet, op.cit., p.74.


--■•Gicdion, op.cit., p.418-21.

95
te, o seu Bois de Boulogne, Haussmann equipou, a leste da cidade, o Bois de
Vincennes para o lazer das classes populares.
Estabelecia-se o impéiio da linha reta, a predominância do piincípio axial
e da larga avenida.
Numa atitude que gerou reclamações, Haussmann estendeu as demoli
ções a uma zona de zonas pertencentes às classes mais favorecidas, pam que
fosse aberto o Boulevard de Malesherbes a partir da Madeleine.
Todavia, talvez uma das atitudes mais importantes tenha sido a ane-
xação e integração da hanlieue, o que foi propiciado em 1859. Essa medi
da determinou um aumento da superfície e da população de Paris. A ane-
xação dos territórios de Belleville, La Villete, Grenelle, Vaugirard, plena
mente absoi-vidos pela cidade, e da parte majoritária das zonas de Auteu-
il, Passy, Les Batignolles, Montmartre, La Chapelle, Charonne e Bercy, em
1860, rompeu a barreiia do Mur des Fermiers Généraux. As onze comu
nas que se encontravam naquela zona intermediária entre esse muro e as
fortificações de Thiers foram anexadas a Paris. O fotógrafo Mai-ville nos
legou belas imagens destas regiões populares habitadas por operários,
numa Paris que se industrializava rapidamente.--^ Tais comunas dos su
búrbios eram absolutamente deficientes em equipamentos urbanos e re
produziam, na periferia, o entrecruzar de ruas e becos estreitos do cen-
tre.-ville em plena demolição. Como dizia o barão Haussmann em suas me
mórias: "Não é o nome de Paris, mas o de Babel, que seria preciso dar a
um tal ajuntamento".--''
Com a anexação. Paris ultrapassou o milhão e meio de habitantes em 1860,
e foi-am traçados os 20 amrondissements, ou bainos, que até hoje perduram. Se
o muro dos Fazendeiros Gerais, que havia tomado Paris "muiTnurante", fora
finalmente abolido, por outro lado a cidade se encontrava ainda delimitada
pelas fortificações de Thiers...
Da mesma foiTna, a anexação implicou a extensão dos "deveres" da cida
dania a essas populações, como o pagamento de impostos, sem que suas con
dições de vida fossem melhorando.
Mas, de toda forma, cabe concordar com Pinon,--' quando diz que, se
houve um plano no qual a proposta de Haussmann não inovou foi no da ex
tensão: a cidade permanecia contida dentro das muralhas, mesmo que elas

"^Mar\'ille, Charles. Paris <Uspnni. Paris: Paris Musées, 1994.


~®Apud Pinon, Pierre. L'annexation des cominunes périphériques. In: Cars & Pinon, op.cit.,
p.l24.
--'Pinon, L'haussmanisation, p.45.

96
não tivessem mais função defensiva, tal como ficou comprovado em 1870,com
o ataque alemão, por ocasião da guen"a fi^anco-piaissiana...
Ainda na segunda etapa ou réseau dos ü^abalhos haussmanianos,foi con
cluída uma "cintum verde" em tomo de Paris, constituindo como que um ca
minho arborizado sobre as fortiflcações, o que, porém, não foi realizado.
Por essa altura dos empreendimentos, Haussmann já havia ultrapas
sado em muito as pressões orçamentárias para a transfoi-mação urbana da
capital. Os recursos para tal o prefeito os encontrava ou pela ação direta
da municipalidade — que assumia ela mesma as operações — ou por con
cessões a companhias particulares, revertendo parte do lucro aÕ governo.
Na época, o que vigorou foram concessões a particulares, subvencionadas
pelo poder público, para que os riscos pudessem ser assumidos. A forma
de Haussmann conseguir novos financiamentos foi criar uma Caixa de Tra
balhos da cidade de Paris, com um sistema de vendas de bônus, o que não
o livrou de fazer empréstimos. Os empresários e grandes capitalistas se toi-
naram os credores da cidade, e foram estas opei^ações financeiras que de
terminaram a saída de Haussmann da pi-efeitura de Paris, pouco antes da
queda do regime, em 1870.
Na sua terceim etapa de realização, o bamo trouxe a natureza para o ter
reno urbanizado. Recriando cascatas, montanhas, pontes, lagos e bosques em
plena cidade, uma natureza "artificial" em alocada na metrópole, que reto
mava assim, simbolicamente, os seus laços com o campo do qual se separara.
O Parque de Montsouris,ao sul, e o de Buttes Chaumont,ao noite,são o
resultado desse intento de reintegrar a natux"eza à urbe e de propiciai-recrea
ção "saudável" ao povo. As banlieues demandai^am, elas também,a abertura de
ruas, porém as mais notáveis e famosas realizações de Haussmann, na sua eta
pa final, são aquelas que se concentraram na construção das doze avenidas ir
radiadas a partir da Place de PÉtoile e a abertura da Avenue de POpera, que
só foi acabada em 1875, após a sua saída da prefeitura.
No conjunto de suas intervenções, Haussmann contou com um grupo
de técnicos de alto nível — engenheiros, arquitetos, especialistas no tratamen
to do solo e íjardinamento —,que deram continuidade à sua obra. Assim é
queJean Alphand foi o responsável pelas praças,íçiíareí,jardins, parques e bois
de Paris, enquanto que o engenheiro Belgrand incumbiu-se dos problemas
referentes ao saneamento. Constiriiu uma rede de esgotos e organizou a con
dução da água potável e não-potável, assim como foi responsável pelos canais.
Baltard, Baliu e Hittorf foram, por seu turno, encanegados das obras de ar
quitetura, tais como a reconstrução dos Halles, o íyardinamento dos Champs
Elysées e a organização da Place de Ia Concorde e da Etoile.

97
Eiifim, as inteivenções haussmanianas não parecem obedecera iim plano,
mas a uma tentativa de mcionalização do espaço — entendido como a superfí
cie global da cidade — segundo alguns princípios. Choay--'^ nos fala de um "ur
banismo de regulaiização", apoiado naquele conjunto de regras, como a circu
lação, o saneamento, a predominância da linha reta e o desenvolvimento dos
equipamentos públicos.
O resultado, contudo, foi a alteração da paisagem urbana: a cidade mu
dou o seu visual, e aqui esbarramos num dos pontos pelos quais o barão seria
críticado: sem se preocupar com a habitação, Haussmann deu destaque ã uni-
fonnidade das fachadas e ao espetáculo da ixia.
Embora Paiis continuasse ainda cercada pelas muralhas, não seriam es
tas as responsáveis pela unidade e percepção da cidade como um todo. A uni
dade, no caso, como diz Chiistophe Bailly,--^ seria dada pelo estilo ou pelos
traços identitários que passam pela arquitetura e que têm na ma e no traçado
geral urbano a sua faceta identitária.
Portanto, entendemos que Haussmann fixa uma imagem e consolida um
mito: Paris, metrópole do século XIX.Sua prática de inteivenção urbana foi, ao
mesmo tempo, continuidade e renovação, que deixou marcas visíveis no traça
do urbano, cristalizando uma imagem visual de metrópole. O que, porém, nos
interessa, éjustamente o resgate da maneira pela qual Haussmann a situa tanto
como resultado de uma representação simbólicajá constituída, quanto reforça
e dá maior amplitude aojá referido mito de Paris.
A identidade, como se sabe — enquanto padrão de referência, sensação
de pertencimento e fator de coesão social — é uma categoria socialmente cons
truída. A identidade urbana, no caso, representa um referencial simbólico de
identificação que remete às imagens concretas da urbe mas que a extrapolam,
integiando-se a todo um imaginário social constmído sobre a cidade. Proust
aflora esta questão em sua obra,-''" ao dizer que o'que se tem no pensamento
quando se pronuncia o nome de íima cidade não é exatamente a imagem con
creta de um lugar, mas imagens ineais, constmídas pelas sensações do vivido,
do percebido e do sonhado. Enfim,como diz Proust, ver as coisas pela sua apa
rência — ver de fora — é não ver nada. Proust nos remete à posição de Calvi-
no da cidade imaginária, acessível pela representação, ao mesmo tempo indi
vidual e coletiva, que nos é transmitida pela memória/evocação e pela experi
ência/sensibilidade do vivido.

--®Choay, op.cit., p.168-73.


--^Bailly, op.cit., p.3_6.
Protist, Mareei. A le recherche du temps perdu. Du r.oté de chez Swnnn. Paris: Librairie Générale
Française, 1992. p.440.

98
Entendemos que a Paris imaginária, que se constrói contra e a favor da
Paris real, é, mais uma vez, responsabilidade daqueles espectadores privilegia
dos do social, que resgatam a "sintonia fina" de uma época, tmduzindo-a em
discursos e imagens literárias.
Assim é que a Pai is de Haussmann será "lida" por Baudelaire e por Zola,
em especial. Parece fom de diivida que estabelecer aproximações ou analogi
as entre os dois gêneros literários diversos — no caso,a poesia e ao romance —
pode conduzir a alguns equívocos. Se mais não fosse, sabe-se que prosa e poe
sia comportam distintos níveis de aproximação com a realidade.
Mas, por outro lado, se entendemos que é na literatura que, sobretudo,
se manifesta o imaginário de uma época, com os seus sonhos e pesadelos, po
demos tomá-los, lado a lado, como formas de dizer o social e deles fazer a lei
tura que buscamos sobre a cidade.
E, nesse resgate, não há como evitar aquele que fez de Paris a sua fonte
de inspiração: Charles Baudelaire.
A Paris de Baudelaire é a metrópole em mudança, éjá a "cidade aberta"
demandada pelos leitores do urbano do final do século XVIII e que,sob Haus
smann, parecia ter entrado num processo contínuo de transformações. Bau
delaire vivenciou o início deste processo e foi capaz de resgatar as sensações
vistiais do seu tempo, traduzindo-as em linguagem poética.
Baudelaire, nos TahleaiixParisiens, nos fala das fábricas em atividade e das
chaminés e campanários, esses "mastros da cidade","'' a indicar sua vida e ope
rosidade. Também o poeta, por mais de uma vez, refere-se ao quadro da fei-vi-
Ihante cidade de Paris.-'- Mas, talvez, o melhor indício da Patis metrópole,
"cidade aberta" do séctilo XIX, seja a presença da multidão. Ora, a presença
da multidão é algo que só a grande cidade pode proporcionar, pelo seu cará
ter cosmopolita, pela sua atividade intensa e pelo fascínio que exerce sobre as
populações não-urbanas. E, para.o poeta, não era dado a qualquer um a expe
riência de tomar um "banho de multidão". Usufnaí-la era uma arte e só pode
ria fazê-lo quem fosse tocado pela gmça de uma fada benfazeja desde o berço:
ei-a preciso ter o gosto do disfaice e da máscara,a ojeriza do domicílio e a paixão
da viagem...-'^

Baudelaire, Charles. Paysages. Les Tableaux Parisiens. In: LesJleurs du mal. Paris: Gallimard,
1972. p.ll4.
-'-Baudelaire, Charles. Les sept vieillards. In: Baudelaire, LesJleurs, p.l20. Baudelaire, Charles.
Les petites vieilles. In: Baudelaire,Lísyfeuís, p.l23.
-"Baudelaire, Charles. Les foules. In: Petits poèmes enjrrose (Le. spleen de Paris). Paris: Gallimard,
1973. p.45. >

99
Naturalmente, aqui se coloca com força e clareza a subjetividade do autor,
dandy por voc^çho, que se considerava um "iluminado" e, com dificuldades fi-
nanceii-as, em obrigado a mudar constantemente de domicílio pam fugir aos
ciedores. Mas, muito mais do que o mergulho na individualidade do autor na
cidade, Baudelaire inaugum aquilo que Schorske chama de uma cultura de sul>
jetividade aplicada ao urbano,-^"' e que se constituiria numa dimensão universal
para o entendimento da metrópole moderna.
Nesse sentido, Baudelaire é o exemplo acabado daquela fomia que seria
assumida pela "cidade aberta; para além do bem e do mal", a grande cidade
marcaria a posição de ambivalência tão significativa para o entendimento da
modernidade. Virtude e vício, mas, sobretudo, teatro da vida humana, essa
cidade passa a interessar não mais como espaço, mas por ser o terreno essenci
al da existência modema,-^^ como o lugar onde "as coisas acontecem".
Poderíamos, talvez, dizer que a ambivalência, que resgata os contrastes
da cidade moderna,já teria sido trabalhada por autores desde antes de Bau
delaire. Entretanto, quando nos refeiimos a essa nova dimensão, ela traz em si
aquele cunho de relativismo ou niilismo modelado por Nietzsche: desapare
cem as conotações morais e o enraizamento. A experiência da multidão traz
consigo o sentimento da solidão. Os opostos parecem confluir ou conviver num
só personagem, o ator urbano. É no meio da multidão, da massa de indivídu
os, que o indivíduo se refugia, mas, por outro lado, não há outro lugar onde
ele possa se sentir tão só. Dizia Baudelaire:

Multidão,solidão: termos iguais e conversíveis pelo poeta ativo e fecundo. Quem


não sabe povoar a sua solidão, não sabe também ser só no meio de uma multidão
atarefeda.-^*^

Fizéssemos nós uma leitura comparada das representações da multidão


em Baudelaire e em Edgar Allan Poe, que escreveram na mesma época, en
contraríamos analogias e distanciamentos sobre a sua leitura da cidade.
Tradutor de Poe,Baudelaire dele se aproxima pela idéia da multidão como
fenômeno da existência nas grandes cidades. Mas, se para Poe, a multidão é
ameaça,e o seu "homem na multidão", que recusa estar só, é o tipo e o gênio do
crime profundo,-^^ descortinando a visão da metrópole como ameaça,em Bau-

-^'^Ibidem, p.III.
235ibidem, p.XIVe XV.
Baudelaire, Les foules, p.4õ.
-^'Poe,Edgar Allan. O homem na multidão. In: Histórias extraordináncis. EdgarAllnn Poe. Paulo:
Cultrix, 1964.

100
delaire ela se apresenta como um desafio que dá margem à heroicidade. O herói
moderno é aquele que condve com a transitoriedade permanente e que se vê
obiigado a "alijar-se de todos os consolos psicológicos da tradição,abandonai-todo
e qualquer sentimento de participação num todo social integi-ado"."^
Podeiiamos dizer que o resultado dessa postura, que dá uma dimensão de
tragédia para o herói modenio, obngado a viver momentos fugazes, encontra
sua expressão na figura do poeta. Identificado com todos os sofrimentos, pi-aze-
res e tipos sociais, ele é dotado de imaginação, esta capacidade de ver além da
superfície das coisas e de traduzir as sensibilidades numa ficção múltipla.-'® O
poeta é capaz tanto de vivenciar a supressão do indivíduo em face da multidão
da cidade grande quanto de extrair todo o potencial de sua experiência pessoal
da solidão, como uma espécie de símbolo da condição humana.
Como dizem Lallier e Pichois, é possível encontrar na obra de Baudelai-
re o Homem da Multidão de Poe:

Em "Le cygne","Les sept vieillards","Les petites vieilles" ou ainda"À une passan


te", vê-se com efeito um solitái io percorrendo as mas da gi-ande cidade, lançan
do sobre a multidão imi olhar convulsivo e preso,em certos momentos,diante de
uma visão cujo poderoso interesse é só por ele percebido, de uma histeria que
acompanha a inspiração mais profunda, no êxtase ou no horror; um solitário no
qual os dois personagens do perseguidor e do perseguido se enconti-am reuni
dos e identificados no próprio artista.-'"'

O desconhecido que é percebido na multidão retoma na pequena histó


ria Lejouer généreux, revestido de mistério. Ele é alguém que o narrador pãle-
cia conhecer, embora jamais o tivesse visto...-"" Ou, então, glamourizado por
uma aura de romance, o tema reaparece no poema A uma passante, sob a for
ma"de uma desconhecida que cmza com o poeta, no meio da multidão;
A rua em torno de mim era um frenético alai ido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou,com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Que luz... e a noite após! — Efêmera beldade


Cujos olhos me fazem nascer outi-avez,

-^Schorske, op.cit., p.XVI.


Lallier, François. L'éclair et Ia nuit. In; A\'ice & Pichois, op.cit., p.91.
Ibidem.
Baudelaire, Baiidelaire. Lejouer généreux. In: Petitspoèmes, p.98.

101
Não mais hei de te ver senão na etei nidade?
Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!
Pois de tijá me fui, de mim tujá fugiste.
Tu que eu teria amado,ó tu que bem o viste!-'-

Só uma metrópole era capaz de proporcionar o bulício da multidão, o


anonimato em meio da massa e a magia de um encontro fortuito, tão condi
zentes com o que poderia ser chamado o turbilhão de mudanças trazido pelo
progresso do século.
A obra de Baudelaire resgata ainda, nos seus TahleauxPmisiens ou no Stplem
de Paris, os inevitáveis contrastes da cidade grande. A rigor, a imagem dos du
plos percone a poesia e a prosa de Charles Baudelaire, numa ambigüidade
constante entre multidão e solidão, ricos e pobres, dandismo e compaixão
popular, sonho e despertar.
O mesmo poeta, que é capaz de afirmar c|ue a revolta popular urbana
não o fará levantar a cabeça da mesa onde trabalha e sonha,-"'^ é, por outro
lado, o autor da poesia A uma mendiga ruiva, na qual o autor opõe a figura pa
tética e bela dajovem mendiga à sanha e cupidez dos devassos que exploram
a sua fragilidade. A crítica social e a opressão dos humildes emergem da ima
gem contrastante expressa de forma poética.
A idéia do contraste, produzindo a revelação de um sentido ou de uma
descoberta, nos remete aojá citado método do contmste por choque de Walter
Benjamin. A obi"a de Baudelaiie, no caso, é exemplar pam a apreciação dessas
disfunções da cidade, que gemm sentimentos contmditónos e supeipõem to
das as situações possíveis. Na prosa Les yeux de.s pauvres, o poeta contrasta a cena
de um café parísiense, refulgindo de luz no houlevard, com gente elegante e ale
gre refletindo nos espelhos, ao passo que, pela vitrine, um homem pobre, com
duas crianças, olhava mudo e sério, entre o triste e o maravilhado. A cena pun
gente, que encheu de remorso o nan-ador, fez sua bela acompanhante desejar
que o garçom cen"asse a cortina para esconder a desagradável visão.-"'''
De uma certa forma, podemos dizer que os contrastes da grande cidade
se acentuam com a abertura dos grandes houleuards, o que se deu ao longo do
século. As grandes avenidas, como se sabe, valorizavam o solo urbano e, rede
senhando a cidade, tornaram impraticável a ocupação do centro reestiutura-
do pelas populações pobres. Mas, por outro lado, a avenida ampla, arboriza
da, calçada, feericamente iluminada, com seus sedutores cafés e imponentes

-^-Baudelaire, Charles. AsJlores do iiuil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p.345.
Baudelaire, LesJleurs, p.115-8.
Baudelaire, Charles. Les yeux des pauvres. In: PetiLs pohries, p.8(>8.

102
prédios,freqüentada e habitada pela gente elegante,era um espetáculo para os
olhos, inclusive dos mais pobres. Apesar da transformação urbana,a rua restava
ainda como um local pilblico, atiaindo as classes menos afortunadas no papel
de espectadores do desfile burguês. Como diz Berman,ao comentar que a aber
tura dos boiilpvnrds permitiu aos pobres "desfmtarem" da visão naquele outro
estilo de vida deslumbrante:

E, à medida que vêem, eles também são vistos, visão e epifania fluem nos dois
seiiüdos. No meio dos grandes espaços, sob a luz ofuscante, não há como desvi
ar os olhos.-^^

Analisando a obra de Benjamin,leitor de Baudelaire, Willi Bolle acentua


a seqüência de imagens conü"astivas utilizada pelo poeta, numa metrópole cada
vez mais convulsionada pelo progresso, mas que se apresentava em escombros,
que abiigava os extremos de luxo e os da pobreza, do belo e do feio. Como
dizia Baudelaire:

No enrugado perfil das velhas capitais


Onde até mesmo o horror se enfeita de esplendores,
Eu espreito, obediente a meus fluidos fatais.
Seres decrépitos, sutis e encantadores.-^"

Essa tensão contrastiva entre o belo e o feio não é, no caso, antitética, as


sinalando que,sob as formas de um,é possível enconti-ar o outro. Tal como as
pessoas, que sofrem o desgaste inexorável do tempo, a cidade pode também
ostentar o novo e o belo e ser, ao mesmo tempo, atenorizante e encantadora.
Ao descrever um crepúsculo em Paiis, nosso poeta tanto canta o trabalhador
cansa'do que busca o leito, quanto as prostitutas que ganham as ruas; ao re
pouso do sábio e do homem honesto, a cidade abriga os ladrões, paia os quais
não há trégua nem perdão.-"*'
Da mesma forma, Baudelaire se vê entie a fantasia onírica e a vigília, no
seu poema Sonho parisiense, no qual o despertar na modesta mansarda, horrí
vel e "triste", o arranca de um cenário de luxo e encantamento.-^®
A ambivalência e o recurso às imagens contrastivas são, por sua vez, a de-
conência de sua própria posição diante da cidade que tanto amava e que, ao

Berman, op.cit., p.l48.


-"•"Baudelaire, Charles. As velhinhas. In: Asflores, p.335.
-■"Baudelaire, Charles. Le crepuscule du soir. In: Lesfleurs, p.128-9..
-"•" Baudelaire, Charles. Le rêve parisien. In: Lesfleurs, p.136-8.

lO.S
mesmo tempo, era capaz de desprezar pela sua mlgaiidade. A capital francesa
ei"a, na opinião do poeta, o centro difusor da burrice universal...-^'-'
Prosseguindo naquela tiilha de traços apontados nas representações literaii-
as do urbano que nos chegam desde o final do século XVIII, chegamos ao recuiso
da metáfora, ou, mais do que isso, da alegoiia presente na obra de Baudelaire.
Segundo Pascal Mailiard, a alegoria, em Bandelaire, aparece revestida de
complexidade e nutrida da ambivalência e da contradição.-^" E são inúmei-as
as imagens que significam "algo fora do discurso" e que, no entanto, não são
compreensíveis senão a partir desse mesmo discurso. Para Patrick Labarthe,
Baudelaire emprega os dois sentidos tradicionais da alegoria:

[...] de uma parte,a expressão alegórica, que consiste em dizer uma coisa para fa
zer compreender uma outJt-a [...]; de ouü a parte,a interpretação alegórica ou "ale-
gorese", que consiste em descrever a figura enigmática para aí enconti-ar,sob o re
vestimento enganoso,a "verdadeira cabeça e a sincera face". Mascarar e desmas
carar são então dois atos complementares e dialéticos."''

O poema básico paia a imagem de Paris como teatro de alegorização da


cidade que muda é, sem sombra de dúvida, O cisne. Nele, Baudelaire traduz,
em linguagem poética, tantas vezes repetida, a transformação da metrópole:
"Foi-se a velha Paris (a forma de uma cidade muda mais depressa que o cora
ção de um mortal)
O cisne é a alegoiia do poeta,que se vê dividido por dois sentimentos con
traditórios. Por um lado, lamenta a cidade destmída, entre escombros trazi
dos pelas demolições, fragmentos de arquitetura, pó e cascalho de constm-
ção. Há,no caso, um sentimento nostálgico do passado que se perdeu c o qual
ele vê em espírito: o "passeísmo" se vincula a uma visão anterior, que permite
eirxergar no novo que se ergue o velho que se destiniu:

Pai is muda! Mas nada em minha nostalgia


mudou! novos palácios, andaimes,lajedos,
velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria.
E essas lembranças pesam mais do que rochedos.^''

Baudelaire, Charles. Projets de préface. In: i>.5Jletirs, p.228.


"^"Mailiard, op.cit., p.29-31.
Labarthe, Patrick. Paris comme décor allégorique. In; Avice &c Pichois, op.cit., p.50.
-®-Ibidem. Baudelaire, Charles. Le cygne. In: Lesjleurs, p.118.
Baudelaire, Asflores, p.327.

104
Resposta poética aos trabalhos de Haussmann na década de 50 do século
passado, O cisne traz consigo, por outro lado, a atração do poeta pelo novo, a
curiosidade e o impulso pelo momento fugaz e pzissageiro ou pelas novas for
mas do progresso. Verdadeiro canteiro de obras, a Paris de Baudelaire não é
lamentada pela mudança em si, mas pela incapacidade do poeta de mudar
com ela, o que lhe dá uma sensação de estrangeiramento em sua própria ter
ra. Fugitivo da gaiola que o aprisionava, o cisne da poesia não se toma livre,
pois se mantém cativo de um meio que lhe é hostíl.^^'*
Uma Paris submergida no pó, entre escombros, que mais lhe dariam o
aspecto de um cenário de guerra do que de uma cidade na rota do progres
so urbano, faz com que as imagens poéticas de O cisne possam ser cmzadas
com outras imagens deixadas por contemporâneos. E o caso,já citado, do
fotógrafo Marville, que documentou a Paris de antes, durante e após Haus
smann. O resultado é a visão bucólica de uma Paris demolida e perdida no
tempo, assemelhando-se, pelos prédios e traçado das ruas, a uma cidade do
interior. A ela se acrescentam imagens do caos das demolições, ao que as fo
tos de Marville se entrecruzam com gravuras de Férat e Lalanne, Potemon
ou Smeeton,ou,ainda, pelas caricaturas de Edmond Morin e Daumier. Nes
te último, é sobretudo a revolução causada entre a população obrigada a
mudar-se e, principalmente, as trágicas e cômicas situações imaginadas en
tre locatários e proprietários, que se exerce o poder de denúncia através do
riso. Pessoas atropeladamente a seguir carroças de mudanças, levando nas
mãos outros tantos pertences, a crise do alojamento tratada como pilhéria
— com pessoas abrigadas em cabines de gfuardas, tonéis, árvores ou mesmo
em casinhas de cachorros — é a irreverente forma de expressão de um coti
diano revolucionado. De Daumier, Baudelaire diria que, como grande cari-
caturista, fazia uma arte séria.
Da mesma forma,o fotógrafo Atget teve a preocupação de traçar o retra
to da velha Paris, recolhendo aquilo que havia resistido aos trabalhos do Barão
de Haussmann.-^'"'
Entendemos que é pela leitura cruzada de imagens e gêneros de expres
são artística diferenciada que é possível estabelecer uma iluminação sobre uma
época, realizando, ao mesmo tempo, a montagem por contraste e porjusta
posição de que nos fala Benjamin. Voltando a Baudelaire e seus poemas, ve
mos que a alegoria nos conduz aos contrastes e antinomias entre a mudança e

Gasarian, Gérard. Diptyque parisien. In: Avice & Pichois, op.cit., p.60-4.
''^'Apud: Daumier, Honoré. Locataires el prolmetaires. Paris: André Sauret, 1977.
23'i Atget, Eugène. Centre Nationale de Ia Photographie. Paris, 1984.

105
a pemianência,entre o exterior cambiante e a interioridade que não se adapta
à altei~ação. O poeta,em meio a uma Paris em minas, que assinalam a moderni
dade, é como "alguém que se perdeu e não se encontra mais".-^'
Yves Chamet comenta que essa intuição poética precede a concepção freu
diana do "sentimento de estrangeiramento", que con espondeiia a uma regres
são a um momento em que o "eu" não se encontrava nitidamente delimitado
em relação ao mundo exterior e ao outro.
Exilado em sua própria cidade, o poeta é alguém que se debate entre a
perda de referências e a sensação de pertencimento à cidade onde vive, mas,
por outro lado, tragicamente, enfrenta esse espetáculo da mudança. São jus
tamente os contrastes da capital em obras que estimulam a sua sensibilidade
para resgatar e expressar a "sintonia fina" de sua época.
Síntese do herói moderno, o poeta se traveste, ainda, na figiu-a alegórica
da piostituta, mercadoria entre as mercadorias e que transita por todos os es
paços, tipos e profissões. A identificação se dá também com o trapeiro, que
recolhe os cacos da existência, sintetiza as misérias da vida urbana e é capaz de
encontrar sentido nos detalhes desprezados, como o lixo que a grande cidade
fornece;

Num antigo arrabalde,informe labirinto,


Onde fei^vilha o povo anônimo e indistinto,
Vê-se um tiapeiro cambaleante,a fronte inquieta.
Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta.

A figura alegórica do chijfonnier é, como se viu, recorrente nas visões lite


rárias do urbano, desde o final do século XVIII, e sua atividade costumeira, de
recolher trapos e remexer no lixo, nos conduz também ã imagem do histori-
ador-detetive de que nos fala Ginzburg, a recompor e cnizar sinais e indícios,
ou ao método de montagem porjustaposição aludido por Walter Benjamin.
E que outra função simbólica não teria este trôpego trapeiro,cuwado ao "peso
atroz do asco infinito, vômito escuro de um Paris enorme e aflito",-''" senão de
recolher os cacos da cidade que muda?
Ele é alguém a quem — tal como os cegos de outra poesia — Baudelaire
indaga sobre o que vê realmente naquela Paris que canta e se agita.-''" O cego

Baudelaire, Charles. Les sept vieillards. Z>'5yZí'Mrí, p.l20.


-^®Charnet, Y\'es. Baudelaire. Paris. Une imjjossible intiniité. In: Avice; Pichois, op.cit., p.78.
Baudelaire, Charles. O ninho dos trapeiros. In: A.íJlorps, p.379.
Ibidem.
Baudelaire, Charles. Les aveugles. In: LesJleurs, p.l25-fi.

106
é, aqui, a alegoria daquela risão mais refinada, daquele olhar que é capaz de
enxergar além e que é, sem dúvida, próprio aos iniciados, como o poeta Bau-
delaire ou o historiador Benjamin. Baudelaire resgata o olhar capaz de ver o
que os outros não vêem, capaz de produzir uma revelação. Como diz o poeta,
aquele que é capaz de "olhai'através de umajanela aberta não vê tantas coisas
como alguém que olha uma Janela fechada
O poeta é, no caso, um voymr do urbano,um passante e um pedestre da ci
dade,que registra e traduz o que vê e sente. E a nia a sua gimide fonte de inspira
ção. E nos velhosJaiifyotirgs com seus pardieiros ou nosfulguiantes boidevards, é no
cotidiano da cidade, que o poeta vai exercer a sua "esti-anha esgrima":

[...] buscando em cada canto os acasos da rima,


ti opeçando em pala\Tas como nas calçadas,
topando imagens desde há muito sonhadas.-®'

Em síntese, como analisa Pierre Laforgue, nos Tableaux Parisims de Bau


delaire, paiticularmente em Le cygne, Les sept vieillards e Les petites vieilks, a ca
pital francesa é o lugar onde a poética enconti^ a sua aplicação, dando a Paris
o lugar de metáfora da metrópole cambiante,-®^ supeipondo a cidade real à
cidade que não existe mais ou que, talvez, nunca tivesse existido.
Estabelecendo uma ligação com os leitores da cidade que o precederam,
encontramos em Baudelaire um viés de aprofundamento das imagens.A situa
ção —Já colocada em Hugo — de que uma metrópole é capaz de ter um lado
calmo e outro em plena insuiTeição,é retomada por Charles Baudelaire, numa
perspectiva subjetivista, quando diz, como foi apontado anteriormente, que
mesmo uma revolta urbana não o fará levantar-se da sua mesa de trabalho, de
onde contempla, pela Janela, a beleza da urbe.
Da mesma forma,o clima de mistério, conduzindo a uma postura de "de-
cifração" da cidade.Já apontado em Balzac, Sue e Hugo,é retomado por Bau
delaire e Poe. É sabido que o romance de mistério e as histórias de detetive,
surgidas no século XIX,são, eminentemente, nan-ativas urbanas que impõem
a cidade como um enredo, portadora de uma trama e de segredos. A metró
pole tem um lado íioír que espreita, tal como Baudelaire no poema,'®" na bus
ca de uma decifração da cidade.

'®'Baudelaire, Charles. Les fenêtres. In: Petitpoèmes, p.ll8.


-®'Baudelaire, Charles. In: /!.?Jlores, p.319.
-"''Laforgue, Pierre. Notes sur les Tableaux Parisiens. In: Avice; Pichois, op.cit., p.84.
-®® Baudelaire, As velhinhas, p.335.

107
Podeiíamos,também,recupeiai"a invocação dos clássicos,-'^' usada por Baiide-
laire e também presente em Hugo,com um padião de referência foia do tempo,
imutável no seu cânon de beleza ou inteligibilidade frente ao"tempo de agoia",da
modernidade cambiante. Baudelaire aprofunda e retoma metáfoias e contiastes
da sua Paiis,fazendo da poesia uma piática de voyemismo da cidade.
As operações urbanas de Haussmann, revolucionando o cotidiano dos
habitantes de Paris, motivariam renovadas reclamações e relatos. Indignados
ou irônicos,apaixonados ou acusatóiios, os testemunhos dos escritores da época
enfatizaram o pandemônio urbano. Sem o lirismo da poesia baudelairiana,
Edouard Foumier, no seu Paris demolido: mosaico de ruínas, publicado em 1853,
lamentava os estragos feitos na cidade:

Todos os lugares estão hoje tomados; os menores cantos estão tão bem invadidos
que, para edificar, é preciso primeiro destj itir [...]. Tal é o destino: o passado é
devorado pelo presente.^"'

Todavia, na mesma obra de Édouard Fournier, o prefácio escrito por


Théophile Gautier traduz uma adesão completa ao haussmanismo:

A Paris moderna seria impossível na Paris de outrora [...]. A civilização se talha por
largas avenidas no negro dédalo de ruelas, de cruzamentos, de becos da cidade
antiga; ela abate as casas como o pioneiro da América abate árvores. [...] As mura
lhas apodrecidas [...] se desmoronam para deixar surgir de seus escombros habi
tações dignas do homem,nas quais a saúde baixa com o ar e o pensamento sere
no com a luz do sol. [...] Para poder viver, as cidades são forçadas muitas vezes a
varrer, como o lodo das ruas,a poeira de sua história.-"'*

No Moniteur Universcdde 21 de Janeiro de 1854, ao comentar a obra de


Foumier, Théophile Gautier retomava a defesa das demolições que, segundo
ele, oconiam em boa hora: as perfurações, demolições e alargamentos davam
nascimento a magníficas mas;como por encantamento,conjuntos de velhas casas
cediam espaço a belos prédios; perspectivas se abriam e aspectos inusitados se
descortinavam à vista, revelando a grandeza dos monumentos antes escondidos.
Théophile Gautier era capaz de achar beleza mesmo no meio dos escom
bros, nojogo de sombra e luz que proporcionavam efeitos pitorescos sobre a
cidade revolucionada, numa alusão às aquarelas de Piranèse...-''^

-®®Veja-se, por exemplo, a poesia Le cygne.


-®'Apud Pinon, Pierre. L'éventrement du "vieux Paris". In: Cars; Pinon, op.cit., p.l26.
-®®Apud Choay, op.cit., p.182-3.
Gautier, Théophile. Paris démoli. In: Gautier, op.cit., p.40.

108
Havia,sem dúvida,o perigo de ver desaparecer "cai-as memórias",em face
deste rean-anjo urbano de pioporções tão vastas, pois o presente caminhava
necessariamente sobre o passado. Mas, gmças a Deus, havia homens emditos
que acompanhavam os sei"viços de transfomiações da cidade e anotavam, cui
dadosamente, tudo que eia importante paia presei-vá-la da desti-uição. Mas,
mesmo assim, nosso escritor se exclamava:

Helàs! para poder river, as cidades são forçadas fi eqüentemente a vairer como a
lama das ruas a poeira da sua história. Os séculos que não serão enterrados têm
seus miasmas como os cadáveres.-™

Essa atitude entusiástica e de franca adesão,sem restiições, aos planos do


Barâo não é, contudo, comum entre os literatos. Se Théophile Gautier é um
caso limite de aprovação, os innãos Goncour, através do seu Joumal, seriam,
por seu turno, o repúdio completo à renovação de Paiis:

Eu sou esü~angeiro a isto que chega, a isto que aí está, como a estes 'boulevards'
novos sem cui-vas,sem aventm-as de perspectiva,implacáveis na sua linha reta,que
não ti-aduzem mais o mundo de Balzac,que fazem pensai"a alguma Babilônia ame
ricana do futmo.^"

Na indignação passeísta ante as picaretas do progresso, retoma a imagem


da Paris-Babel, met^ora da confusão e da desordem, a perturbar a cotidiani-
dade e a desrespeitar a estética consagrada.
Sem o mesmo teor implacável da critica sem condescendência de Gon-
court, a tônica geral dos registros e crônicas da época é a constatação de uma
mudança de paisagem da cidade, o que dava a seus habitantes uma perda de
pontos de referência. A sensação,já traduzida de foi"ma poética por Baudelai-
re, era de estranhamento: o indivíduo não reconhecia mais sua cidade e se
sentia estrangeiro nela. Mesmo os tipos da vizinhança e os velhos moradores
dos lugares haviam desaparecido ou se mudado para outros baiiTOS, deixan
do os que restavam no local como que perdidos na sua própria cidade.-'-
Entretanto, a obra que mais reuniu os testemunhos dos homens de
letras da época sobre as transformações de Paris provocadas por Hauss-
mann foi o Guia da Exposição Universal de 1867 Num lance de gênio, o

Ibidem, p.41.
Apiid Pinon, L'éventrement, p.l34.
■^"Anônimo. Pmis désert. Lavientations (VunJérémie. havssmanisé. Paris: s.ed., [1868].
Paris Giiide. 1867. Apud Choay, op.cit., p.184-6, e Pinon, Uéventrement, p.l26 etseq.

109
editor teve a idéia de leunir uma plêiade de escritores e personagens de
destaque da época, com plena liberdade de ação para exprimir cada um
o seu amor por Paris. A Victor Hugo, então no exílio, coube fazer a in
trodução do Guia de Paris, demonstrando a largueza de vistas da inicia
tiva. E o texto de Hugo é uma crítica ao que o escritor considerava a
monotonia da paisagem haussmaniana, mas que não deixara de introdu
zir um novo padrão estético:

Quão belo é de Pantin ver-se até a Grenelle! O velho Paris é mais do que uma rua
eterna que se avança, elegante e reta como o "i", dizendo: Rivoli, Rivoli, Rivoli!"'^

Da mesma fonna, o escritor, antecipando-se a Walter Benjamin, procla


ma Paris não só a capital do século XIX, mas a de uma Europa do próximo
século:

No século XX,haverá uma nação exti-aordináiia. Esta nação será giande,o que não
a impedirá de ser livi e. ela será ilusti e, rica, pensadora, pacífica, cordial com o resto
da humanidade [...]. Esta nação terá por capital Paris e não se chamará França, ela
se chamará Europa [...]. Antes de ter seu povo, a Europa tem sua cidade. Desde
povo que não existe ainda,a capitaljá existe.-'^

Se o fotógrafo Nadar falava de "inumeráveis perspectivas Nevski cortan


do sobre mil pontos incomensuráveis Broadways", o que estabelecia o paralelo
das avenidas paiisienses com as de outras metrópoles da época, Georges Sand
apreciava o efeito das linhas retas cortando a cidade:

Hoje as gi andes ti-avessias muito retas para o olho do artista, mas eminentemente
seguras, nos permitem andar longamente com as mãos nos bolsos, sem nos per
dermos.-^*'

A mesma Georges Sand, na sua admiração pela natureza, aplaudia o que


chamava de "mai-avilhosa decoração urbana" trazida pelosjardins decorativos,
que poderiam instmir o povo tal como um museu de ciências naturais a céu
aberto. Por seu lado, Alphonse Karr defenderia o square como local de uma
nova sociabilidade, através da vizinhança, assim como,imbuído de um tolo ro
mantismo, dizia que o aroma das flores dosjardins substituiria, para as moças

■^'^Pinon, Pierre. La construction d'un nouveau paisage parisien. In: Cars&rPinon, op.cit., p.l81.
-^^Apud: Charle, Christophe. ParisJin de siecle; culture etpolitique. Paris: Seuil, 1998. p.21.
-^'^Pinon, op.cit., p.l81.

110
do povo,os maus odores de repolho,baiTO e vinho bamto ao qual estavam acos
tumadas...-"
Uma questão, contudo, atravessava o pensamento daqueles homens de
letras diante da "revolução urbana" causada por Haussmann:o ponto de equi
líbrio entre as forças do progresso, representadas pela demolição, e a pre-
sei"\'ação da memória e das tradições, configurada nos monumentos da ci
dade. Havia, no caso, uma memória coletiva, nacional e universal, a ser man
tida, tal como enfatizava Louis Blanc, mas também o entendimento dessa pre-
sei-vação do passado passava pela perda ou consei-vação da memória indivi
dual. Já se viu que a mudança da forma e do traçado da cidade implicava
um processo também cambiante de alteração da sua identidade. Ora,sendo
a identidade uma representação social que dá a sensação de peitencimento,
aquela mudança ocasionava a dolorosa perda de referenciais, fazendo com
que o habitante da urbe não mais reconhecesse a sua cidade. O dramático
processo implicava o já aludido processo de estrangeiridade e de perda da
memória individual. Como dizia Baudelaire, paia reconhecer Paris era pre
ciso olhar para dentro, pois a paisagem externa mudara. Tal sentimento era
experimentado por muitos outros homens de letivas da época. Se Nadai- afir
mava que se sentia como um viajante recém chegado numa cidade estran
geira, Edmond About dizia que o éventrementáo vieux Parissimbolizava,a perda
da sua memória individual;

Eu me pergunto se as ruas insalubres, se os cortiços esti eitos, se as alamedas obs


curas e as escadarias retorcidas não tem o seu destino no mimdo.Esta sujeira dos
pobres quarteirões,que se van e desdenhosamente pai-a longe,não era outi ora um
adubo de civilização? Os mais belos fi-utos da indústi-ia parisiense não sairiam deste
estiume?-™

Essas considerações, contudo, não devem levar à identificação, por parte


dos homens de leti-as da época, de uma declarada nostalgia ou de uma postu-
la avessa ao progresso. Com exceção dos iimãos Goncourt, pode-se dizer que
as diferentes atitudes e pronunciamentos críticos expressam mais uma nova
sensibilidade diante do urbano do que uma condensação às transformações
da cidade. A mudança nas formas materiais conesponde uma mudança nas
representações criadas sobre a"cidade e que se expressariam pela literatura,
pela pintura, pela fotografia e pela cai-icatura.

-"Choay, op.cit., p.184-5.


"sibidem, p.185-6.

111
Talvez uma das mais lúcidas leitui-as dos efeitos da haussmanização tenha
sido dada pelo texto de Edmond About. Nele, a nova concepção do espaço
público, a mobilidade e a circulação como realidades inerentes a uma metró
pole se mistui-am ao reconhecimento da valorização do solo urbano e de uma
certa inevitabilidade do processo desencadeado:
Quando se tiver limpado estes escombros, nivelado este mondculo,destinado um
quarto do terreno a ruas amplas e retas, o resto se venderá mais caro do que se pa
gou pelo conjunto:as ü ês quartas partes do solo raso terão um preço mais alto do
que o todo edificado. Por quê? Porque as grandes cidades, no estado atual da ci
vilização, não são ouü a coisa que aglomerações de homens apressados; aí se vêm
píit pt oduzii, pai a ti ocar, pai*a gozar, pam parecer;se ê marcado pelo tempo,não
se suporta nem atraso nem obstáculo, a impaciência universal aí confere o mais
alto pi eço às moradas mais facilmente acessíveis, aquelas que são, como se diz,
perto de tudo... Uma rua reta,larga e bem comunicada aproxima e põe por assim
dizer em contato dois pontos que nos pareciam distantes de uma légua. Perten
cerá a quem se instalar ao bordo das gi andes vias parisienses: produtores e comer
ciantes acharão proveito em se estabelecer na corrente de circulação; os ociosos
de nossa época têm o costume e a necessidade de encaminhar-se sem dificulda
de e sem presa aonde lhes chame o prazer... Assim se explica a mais-valia, que uma
destruição brutal em aparência acrescenta aos quarteirões demolidos.
Reunindo, pois, o que havia de mais expressivo na França de então —
Victor Hugo, Georges Sand, Théophile Gautier, Saint Beuve, Alexandre Du
mas, Paul Féval, Alphonse Karr, Émile Augier, Hemi Monnier, Victorien Sau
dou, Daniel Stern, Michelet, Taine, Renan, Louis Blanc, Edgar Quinet, Lit-
tré, Berthelot, Émile de Girardin, Benyer, Eoumier, Nadar —,o Paris Guide
apresentava, em 1867, o maior produto do géniefrançais por ocasião da expo
sição universal de 1867: a própria cidade de Paris. Como diz Roncayolo, a ex
periência que sofrerá a capital da França extrapolava os limites nacionais e se
tornava um modelo universal,como bem apontava o GrandDic.lionnaire du XIX
Siècle, de Piene Larousse, para o mesmo ano de 1867:

Londres não é mais do que uma grande cidade, uma aglomeração enorme,o cen
tro de um povo poderoso. Paris, por seu lado, é o lugar comum da vida moderna
[...] é o centro do universo,o coração da humanidade.^**"

Apud: Roncayolo, Mareei. Logiques urbaines. In: Duby, op.cit., v.4, p.103-4.
-®°Apud: Roncayolo, Mareei. Changements de Tespace urbaine. In: Dethier,Jean & Guilieux,
Alain, dir. La ville, art et architecture en Europe. 1870-1993. Paris: Centre Georges Pompidou,
1994. p.57.

112
o manifesto chauvinismo só confíiTna a existência do "mito paiisiense" e da
posição da capital fiTuicesa com foija de metáfoias sobie a vida urbana de uma
metrópole, ela própria metonímia do processo de modernidade em cui:so...
A correspondência entre a mudança das fonnas materiais da cidade com
a nova sensibilidade urbana do "viver metropolitano", expresso pela literatu
ra, encontrava sua grande expressão, na segunda metade do século XIX, na
obra de Emile Zola.
O conjunto de obi^as que forma a saga de Os Rougon-Macquart, de Zola,
pode ser comparado,como por certo pretendeu o escritor, à Coimdia Humana
de Balzac. Poder-se-ia mesmo dizer que os dois grandes escritores paitilham,
com suas obi^as, o século XIX,cabendo a Zola a apresentação de Paris durante
e pós-Haussmann.
Na verdade. Paris é o grande tema, a pei-sonagem e também o enquadra
mento preferencial da obra de Zola,fazendo com que se possa dizer que o con
junto de seus livros é como uma manifestação do seu amor pela cidade onde
passou a maior parte da vida. Embora o ciclo de 20 romances de Os Rougon-
Macquart se proponha a contar a "história natural e social de uma família so
bre o Segundo Império", atravessando, com isso, todos os estratos da socieda
de, por meio de seus dois i"amos — o legíümo e o bastai"do, o rico e o pobre —
é por esses emaranhado de destinos e intrigas que Zola consolida o "mito de
Paris",já anunciado por Balzac.
A cidade imaginária, que se expressa na nanativa de Zola através do uso
reconente de metáforas,faz de sua obra um verdadeiro universo de símbolos
sobre a cidade. E^se discuiso tem, como se sabe, uma base de apoio na Paiis
pós-Haussmann, evocando as transfoimações da cidade durante os trabalhos
executados pelo barão-prefeito. Mas os discursos e imagens sobre a cidade não
podem ser tomados pela cidade em si, embora guardem com ela uma coiTes-
pondência. O naturalismo, cientifícismo ou realismo de Zola em descrever
locais e precisar espaços e ambientes é sobrepujado pelo recui^so metafórico
de abordagem do real. Como diz Stefan Max, é pela metáfora que ele atinge
uma "verdade" sobre a cidade,"verdade" esta que é da ordem da imagem e da
significação, e não a reprodução do real. Ou seja, o efeito buscado pela visão
literária de cidade é uma "revelação",e não uma fotogiafia do urbano...'®' Mais
do que isso, a obra de Zola, fazendo de Paiis o univei^so simbólico através do
qual ele exprime sua visão sobre o urbano,é o exemplo acabado da foima lite
rária de "dizer a cidade".

281
Max,Stefan. Les niétamoiphoses de In grande ville dam les Rougan-Macquart.Paris: Nizet, 1966. p.11-2.

113
Piincipiemos por aquele traço recorrente nos autores que o prerederani
que trata da "cidade aberta". Basicamente, as ações se desenrolam num espa
ço em transformação ou já revolucionado pelas inter\'enções de Haussmann.
Romancista de Paris por excelência, Zola descicve mas, prédios, interiores,
quarteirões e panoramas da cidade com precisão detalhista. Sabe-se, pelas in
formações que deixou sobre o seu métoflo de escrever e sobre o esboço de suas
obras, que ele estudava minuciosamente o espaço onde se desenrolaria o dra
ma, anotava detalhes, munia-se de documentos, visitava os locais, cnizava tra
ços e buscava compor uma intriga, delineando o perfil dos personagens ade
quados àquela zona da cidade. A estratégia metodológica de Zola se aproxi-
maría do método da montagem por composição anunciada por Benjamin para
o histoiiador. Nessa verdadeira "cartografia literária"-*^" dos lugares parisien
ses, Zola constrói o seu espaço imaginário sobre o espaço real, traduzindo uma
visão crítica do urbano.
As obras de Zola podem mesmo seivir como representação da cidade por
quarteirões ou bain os: Pare Monceau em La rurpe, I>es Plalles no Lp venlrp fie Pa
ris, a Rue de La Goutte d'Or em Uassoimnoir, Pass)' em Un page d'aniour, a Gare
Saint Lazare em La bêlp hmnainp, les bp.aux quarüprs em Nana, na área que vai do
Boulevard Haussmann ao Pare Monceau e ao Bois de Boulogne, o quarteiião
da Ópem em PoI-BouüIp. e Lp. bonhpur dps davips e o da Bolsa em LVirgpnt. Mas, ape
sar dessa "estratégia" regionalizada. Paris representa uma unidade enquanto
metrópole. A cidade, bem delimitada, estava presente, como um todo orgânico
e gigantesco, pam aqueles que nela chegavam, vindos do inteiior e que Já a ti
nham em conta de gi-ande urbe. E a obra de Zola está cheia de personagens
que, vindos do sul ou do norte, se extasiam diante da capital francesa.
O intenso progi-ama das reformas haussmanianas se encontra sempre pre
sente, atravessando a obra de Zola. Assim é que Saccard, personagem princi
pal de Lpi curpp, diz que Pans se transformou na capital do mundo,ao que seu
interlocutor concorda, respondendo que, embora velho parisiense, ele não
reconhecia mais a sua cidade, tão prodigiosa fora a mudança.-'^'' O discurso
entusiasmado parte de dois indivíduos profundamente imbricados no processo
de renovação da capital e que têm negócios ligados às atividades da prefeitura
parísiense. Assim, sua adesão é total à renovação de Paris, entendida como "a
glóiáa do reino", a"fertilização da cidade" e a abertura de oportunidades de
trabalho para o povo, dando condições de sobrevivência ao operário:

-®-Leduc-Adine,Jean-Pierre. A Ia recherche du niotif. Magazine Littéraire, p.45.


■®'Zola, Émile. La curée. Pari.s: Fa.squelle, 1984. p.39.

114
A administi-ação, disse ele, enconti ou tanto devotamento! Todo mundo quis con-
ti ibuir para a grande obra.Sem as ricas companhias que vieiam em seu auxílio, a
Municipalidade não teriajamais de fazer tão bem nem tão depressa.-^

Vindo da Provence, a chegada da personagem Aiistide Rougon a Paris


lembra a de Engène de Rastignac em Le phe Goriot, de Honoré de Balzac: dis
postos a conquistai" a capital, são capazes de tudo fazer pai"a galgar um lugar
cada vez mais alto... Com a diferença de que o tempo da nan"ativa em La curée
é aquele "tempo onde todas as fortunas são feitas",-''^ como diz Eugène Rou
gon a seu innão, numa clara alusão às negociatas realizadas na época do Ba-
râo. Não se ti^ata de averiguar se tais negócios escusos teriam oconido ou não,
mas de captar uma sensibilidade presente na sociedade.
O mundo se abre para Aiistide Rougon,que faz seu aprendizado de rida
e negócios no próprio Hotel de Ville, onde passa a trabalhar. O primeiro pas
so foi trocar seu nome pam "Saccard", com aprovação do irmão, que diz ser
este "um nome pam ir às galés ou pam ganhar milhões"."^®
Paiis oferecia amplas oportunidades para quem quisesse aproveitá-las sob
o Império recém-fundado:

Ai istide Saccard, desde os primeiros dias, sentia a chegada desta onda crescente
de especulações, da qual a espuma ia cobrir Paris inteira. Ele seguiu estes pro
gressos com uma atenção profunda. Ele se enconti-ava bem no meio desta chuva
quente de dinheiro tombando direto sobre os tetos da cidade. Nas suas andanças
contínuas pelo Hotel de Ville, ele tinha suipreendido o vasto projeto de transfor
mação de Paris, o plano destas demolições, destas novas vias e destes quarteirões
improvisados,deste ágio formidável sobre a venda dos terrenos e dos imóveis que
iluminava, nos quatio cantos da cidade,a batalha dos interesses e o fulgui-amen-
to do luxo desmedido.-®'-

E se Saccard, do alto da colina de Montmartre, diante da cidade a seus


pés, graceja com a mulher, dizendo que "choviam peças de vinte francos so-
bie Paris",-®® a imagem usada revela que ele aprendem a lição de como timr
proveito dos novos tempos:

-^■'Ibidem, p.40.
-®®Ibidem, p.64.
-®®Ibidem, p.65.
Ibidem, p.fiQ.
Ibidem, p.93.

115
Ele se havia colocado enü e os astutos, lendo o futuro nos gabinetes do Hotel de
Ville. Suas funções lhe tinham ensinado aquilo que se podia roubar na compra e
venda dos imóveis e dos terrenos. Ele estava a par de todas as 'escroquerias' clás
sicas: ele sabia como se revende por um milhão aquilo que custou uns mil fran
cos; como se paga o direito de penetrar nas caixas do Estado, que sorri e fecha os
olhos; como,fazendo passar um boulevard sobre o meio de um velho quarteirão,
se manobra com as casas de seis andares,com aplausos de todos os otários.-®*

E é buscando, especulando, imiscuindo-se nos negócios imobiliários e


urbanísticos, que Saccard antevê os trabalhos que revolucionarão a grande ci
dade: a grande croiséede Paris, expressa pela abertura da Rue de Rivoli, de les
te a oeste, seguida de novas aberturas, recortando, demolindo, dividindo, en-
trecruzando:

Paris cortado a golpes de sabre, as veias abertas, alimentando os cem mil operári
os e pedreiros, atravessada por admiráveis vias estratégicas que colocarão os fortes
no coração dos velhos quarteirões.-**

Assim esquartejada, estiipada, dilacerada, a cidade se abria a toda sorte


de negociatas, falsificações e expropriações, proporcionando uma alta lucra
tividade para os especuladores e suas operações fraudulentas, que Zola des
creve com detalhes, percon endo todos os recantos da Paris tomada de assalto
pela fúría renovadora de Haussmann e Napoleão III.-®'
A emergência do Barão de Haussmann se realiza em Le honhmr des danitim,
ati-avés da fígum do Barão Haitmann, que, no diálogo mantido com o persona
gem Mouret, proprietário da grande loja de departamentos, faz referência às
opemções imobiliárias em curso.-®- Louvando as atividades financeiras do barão
frente ao processo de transformação urbana, Mouret pensa contar com o seu
apoio pai-a a expansão dos próprios negócios.A situação descrita lembra as nego
ciatas aludidas em La cwréer. o barão, que na nan-ativa é proprietário do Crédit
Immobilier,tinha aceitado com a Prefeitura a abertura da Rua Dix Décembre,da
Ópera à Bolsa,com a condição de que lhe seriam entregues os teirenos da bordas
desta via, abrindo espaço para expropriação e especulações:
Como assinala Jean des Cars:

®'*Ibidem, p.91.
-**Ibidem, p.94.
Ibidem, p.96-9.
-®*Zola, Emile. Le honhmr dfs(lamvies. Paris; Librairie Générale Française, 1984. p.69.

116
Em algumas frases, pesadas de insinuações, de subentendidos que dão crédito
ao clima duvidoso de um dinheiro fácil, todo poderoso, Émile Zola dá sua ver
são — aquela mesma que tem curso no início da III República — do mecanismo
financeiro das grandes abertui-as parisienses. Lendo-o, compreende-se, toma-se
conhecimento que há, para escolher imi termo de hoje, um giiipo de 'iniciados',
de pessoas que estão sempre informadas antes dos outros e que disso tiram gimi-
des proveitos. Segimdo o romancista, as negociatas não eram somente mantidas
por aqueles que cercavam o Barão Hartmann. Ele mesmo era o insti umento e o
beneficiário de lucros escandalosos. Zola joga uma ten ível suspeita sobre a ho-
nesddade daquele que aparece como o 'deus ex machina' de toda demolição
ou construção.

E,sob o influxo desse clima que atrai todas as ganâncias e toipezas,iniciam-


se as demolições que fazem de Paiis um canteiro de obras. As imagens da cidade
dilacerada, devorada, posta em pedaços ganha força com as descrições dafiiria
demolidora. O passeio de Saccard cm La curée, por entre as minas de um quar
teirão destiTiído, próximo à Rue du Temple,é exemplar para uma apreciação
dos trabalhos em curso:sob a chuva da véspera,apresenta-se um ten eno de lodo
e cascalhos, casas destmídas, muros a despencar, escadas semi-erguidas, vidros
quebrados,cacos de telhas, restos de móveis e vestígios de papel em trechos de
paredes que teimavam em se conseivar de pé davam o espetáculo de vim campo
de batalha após a carga dos canhões...-^''
Se o resultado era desolação, a atividade febril que propiciava esse qua
dro era, por seu lado, impactante. A rapidez com que se demolia não respei
tava nem mesmo o período noturno, consagrado ao descanso de homens e
máquinas. Uma previdente iluminação elétiica dos canteiros de obras peraii-
tia que os trabalhos prosseguissem de forma inintemipta:

Mas, acima de tudo, o que ensurdecia as pessoas não éra a ti epidação das má
quinas; tudo marchava a vapor, os assobios agudos rasgavam o ar; enquanto que,
ao mesmo golpe de vento, uma nuvem de gesso se erguia e se abatia sobre os te
tos circunvizinhos, como se fosse neve a cair. [...] Em setembro o arquiteto, te
mendo não acabar, se decidiu a fazer tiabalhar à noite. Possantes lâmpadas elé-
ti icas foram instaladas, e o seiviço não mais cessou: as equipes se sucediam, os
martelos não paravam,as máquinas silvavam continuamente,o clamor sempre tão
alto parecia levantar e semear a poeira. [...- No meio dos muros,à metade cons
truídos, perfurados de espaços vazios, as lâmpadas eléti icas lançavam largos rai
os azuis, de uma intensidade ofuscante. Duas horas da manhã soavam,depois de

-"Des Cars,Jean. Émile Zola et le Paris d'Haussmann. In: Cars; Pinon, op.cit., p.l72.
■'■•Zala, La curée, p.316-7.

117
tiês horas, depois qiiaüo horas. E, no penoso sono do quarteirão, o canteiro
aumentado por esta claridade lunar, tornado colossal e fantástico, regorgita-
va de sombras negras, de operários tensos, dos quais os perfis gesticulavam,
sobre a brancura crua das muralhas novas.-^^

Em Uargenl, Zola retoma o inescmpuloso personagem de La curée, Sac-


card, que,rememorando, diz que muito se havia demolido e reconstruído em
Paris, minando o sistema creditício e causando até falências...-®''
Há uma condenação moral da especulação desenfreada e talvez uma vaga
melancolia ante a velha Paris em escombros, mas a atitude de Zola em face da
transformação da capital francesa não pode ser confundida com um
sentimento "passeísta". No máximo, podemos admitir uma ambivalência no
julgamento do Império de Napoleão III e das realizações de Haussmann. Por
um lado, como se viu, a demlncia das negociatas é acompanhada de um estra
nhamento por parte de seus habitantes, tais as mudanças sofridas pela cidade:
ora é o antigo morador da Riie Ménilmontant que não reconhecia mais o lu
gar onde morava,entre os escombros causados pelas demolições,-®'ora é a trá
gica heroína de Lassonmioir, Gervaise, que reflete sobre as transformações ur
banas daquele bain o:

Revolucionava-se o quarteirâo,aquele ano. Abria-se o boulevard Magenta e o bou-


levard Ornano,que conduziam à antiga barreira Poissonière e perfuravam o bou
levard exterior. Era de não mais se reconhecer. Todo um lado da rue des Poisson-
niers estava por terra. Agora, da Rua de Ia Goutte d'Or se via uma imensa cla
reira, um raio de sol e de ar livre; e, no lugar dos cortiços que impediam a vista
deste lado, se erguia, sobre o boulevard Ornano, um verdadeiro monumento,
uma casa de seis andares, esculpida como uma igreja, da qual asjanelas claras,
ornadas de cortinas bordadas, tianscendiam a riqueza.-®®

Mas o sentimento de esü-angeirídade diante da uibe não leva Zola a lamentar


verdadeiramente a transformação da cidade. Em Le ventre de Paris, Cadine e
Maijolin, nos seus passeios, preferiam os pedaços da velha Paris que ainda resta
vam de pé,com as suas casas em colomhage, suas houtiques de queijos, ovos e man
teiga, em mas tortuosas e escuras.-®® Todavia, é a nova Paris que se destaca na

Zola, he bonheur, p.196.


-^Zola, Émile. Lnrgent Paris; Éd.Jean Claude Lattès, 1990. p.l6.
-®^Zola, La curée, p.318.
-^®Zola, Émile. Uassommoir.Paris: Farqiielle, 1983. p.427.
-^^Zola, Emile. Le ventre de Paris, Paris: Booking International, 1995. p.250.

118
naiTativa de Zola, com suas novas fonuas arquitetui-ais, seu novo tmçado urba
no e seus também novos espaços de lazer. Nesse sentido, é o rive droite, na sua
parte oeste, o espaço por excelência das ti-ansfoirnações bui-guesas, a começai-
pelo Bois de Boulogne, por onde passeava "todo Paiis" numa taide de outono,
que também acolhia os devaneios de Renée e de seu enteado e amante Maxime,
em La curée.^^ E ainda no Bois de Boulogne que tem lugar o Grand Prix, assisti
do por Nana e sua Iroupp.imm^ quente tarde de vemo.^' O Paic Monceau é outio
reduto elegante de elite endinheiiada: é ao lado do mesmo que habitam Sac-
card e sua mulher Renée, numa mansão constniída num teneno roubado à
cidade,-'*"- e é nas suas imediações que Nana será instalada, após ter habitado no
Boulevard Haussmann, próximo à Gare Saint Lazare e mudai- pai-a um local
mais Todas elas são mansões de gi-ande elegância e requinte, tanto na sua
fachada extenia quando na decoração interior, a exibir o fausto e o gosto de
uma burguesia ennquecida ou daquelas fígui-as bissextas que nesse meio ti-ansi-
tavam,como as cocottes. Outros espaços da nova Paris perconem a obra de Zola:
a Avenue de flmpei-atrice, Boulevaid Malesherbes, Aic du Triomphe, Place de
rÉtoile {La c.uréè)\ Boulevaid Haussmann, Passage des Panoi^unes, Rue du Fau-
bourg Montmaitre,Rue Notre Dame de Lorette (Nana); ou,então,são os novos
quaiteirões da Ópera e da Bolsa,que ostentam o movimento incessante de caleches
e tílburis {Au bonheur des damvm e Uargent). A cidade aberta, metrópole do
mundo,se completava,ainda, pelos espaços da maior circulação possível: a Caie
Saint Lazare {La bête humaine) e Les Halles {Le ventre de Paris).
Pessoas, cairos, negócios, alimentos, tudo era movimento, circulação e for-
migamento na Paiis do II Império, pela qual Zola se mosti-a tão fascinado como
instigado a descer aos mais íntimos espaços. Chegamos, pois, a um outio ti-aço
recoirente das linhas do urbano: a metiópole é, sobretudo, conti-aste e ambiva
lência, a começai- pela posição do autor, que experimenta pela "capital do século
XIX" uma postura de celebração e combate diante da modernidade em cui-so.
Por outro lado, Zola é moralista e condena as fraudes e negociatas, ou a
fúria burguesa pelo luxo, ou mesmo a falta de princípios, não escapando à
condenação da mulher decaída, tão típica entre os escritores de sua época.
Renée,de La curée, ou Nana,do livro homônimo,têm dramáticos destinos,lem
brando a punição bovariana da mulher que peca. Mesmo para a trágica Ger-
vaise, de Uassommoir, uma vez empreendido o caminho da degradação, pelo
álcool e pelo recuiso último da prostituição, não há salvação possível.

'""Zola, Im curée, p.14-5.


Zola, Émile. Nntin. Paris: Presses Pockect, 1991. p.353 etseq.
Zola, La curée, p.l48.
'"'Zola, Nana, p.99 e 319.

119
Olhando o conjunto da obra de Zola, através da qual ele enxerga Paris, o
progresso parece assumir um caráter de fatalidade, frente a qual seria preciso
conigir os excessos pela denúncia moral.
Sem dúvida, a sua Paris ostenta contrastes, dos quais os mais evidentes
são aqueles exibidos entre o mundo galante e o meio da pobreza, denunciado
em Uassovirnoir, O ambiente é todo outro, e as fronteii^as simbólicas se estabe
lecem a todo instante, quando os habitantes das zonas pobres falam que "vão
a Paris". Ou seja, onde se encontram,se acham excluídos do que seria a "cida
de". De sua casa, situada no Boulevard de Ia Chapelle, à esquerda da barreira
Poissonnière, Gewaise enxergava,à direita, o Boulevard de Rochechouait,onde
[...] grupos de açougueiros, diante dos matadoiu os,se postavam com aventais en
sangüentados; e o vento fresco tiazia por vezes um fedor, um odor selvagem de
animais massacrados. Ela olhava à esquerda,seguindo uma longa linha de aveni
da, parando quase em frente dela, na massa branca do hospital de Lariboisière,
então em consti ução. Lentamente,de vim lado a outi o do horizonte, ela seguia o
muro da aduana, ati ás do qual, à noite, ela ouvia às vezes os gritos dos assassina
dos [...]. Quando ela levantava os olhos, para além desta muralha cinza e intermi
nável que cercava a cidade de uma zona de deserto, ela percebia uma grande lu
minosidade, uma poeira de sol, cheiajá no crescimento matinal de Paris.^^

Não só o panorama urbano é diferente, como os personagens que por


ele transitam são marcados pela miséria: os operários que descem de Mont-
martre e de La Chapelle e"entram em Paris" pelo Faubourg Poissonnière são
uma multidão triste, embmtecida, de faces teiTosas e roupas sujas.
A mesma tristeza e sujeira parecem estar presentes no Lassmiwioir, espécie
de bodega e antro do vício, no qual as misérias da vida eimn esquecidas pelo
álcool. A pobreza é retratada sem compaixão, embmtecida nas privações da
vida, predisposta a toda sorte de bmtalidades. A mesma visão acanhada e mes
quinha prende-se à descrição da Rue de Ia Goutte d'Or, sem calçada, em lom
ba, com suas lojas sombrias e sujas e seus comerciantes falidos;"^^^ a descrição do
ambiente da fábrica é outro espaço conti-astante com aqueles por onde circula
o mundo elegante: tudo é escuro,fede, é enfumaçado e tuivo; Geivaise tem di
ficuldade de divisar o que se passa no ambiente,sufocada com os vapores num
local sujo e inundado por água bairenta.^®^ A tragédia não apresenta saídas, e o

Zola, Üassommoir, p.10-1.


^"^Ibidem, p.12-3.
^''^Ibidem, p.41-.2
•'"^Ibidem, p.ll4.
^'^«Ibidem, p.l84.

120
destino de Gei-vaise é inexorável em nimo da denocada final. A casa do pobre
é tnste, assim como seu ocupante,tudo é escuro,sujo,enlameado,odores e gases
mefíticos empestam o ar, a umidade enegiece as paredes.^
Na saga dos Rougon-Macquart se entrecmzam personagens e ambientes
distintos nos dois ramos da família que seguem seus destinos. Ambivalente é a
posição do autor-nan-ador, que conti-asta o luxo e a ostentação com a miséria
mais negra, que condena o crime e o vício e a amoralidade de ricos e pobres,
mas que celebra a nova Paris com o seu ritmo de metrópole moderna: a inten
sidade dos negócios da Bolsa, a azáfama do grande mercado de Les Halles, o
advento das grandes lojas e das campanhas publicitárias e, basicamente, a re
novação do traçado urbano, fazendo emergir uma nova Paiis.
Paris, microcosmo da modernidade, macrocosmo do social e mesmo da
humanidade, opõe espaços contrapostos na cidade que se renova: a zona po
bre e a zona rica, que exibem, na distribuição do espaço, a desigualdade soci
al. O luxo é conti-astado com a miséria, o que faz de Paris, ao mesmo tempo,
um aparente paraíso e um inferno social.
Os espaços e as sociabilidades, contudo, não são impeimeáveis e às vezes
se entrecmzam, como a vizinhança da Rue de Ia Goutte d'Gr com o elegante
Boulevard de Italiens, descrita no Uassommoir, ou pela incursão breve e fatal
de Nana pelo mundo sofisticado da burguesia ascendente. Se, em ambos os
meios sociais, Zola recupera a dimensão trágica, a tragédia burguesa é associ
ada à ganância e à ociosidade,enquanto que a tragédia do povo é causada pela
miséria e pela ausência de alternativas. O vício e o pecado rondam ambas as
esfei-as, mas a contrapaitida do adultério burguês é a prostituição para as mu
lheres do povo, sem recursos. Da mesma forma, o envilecimento do caráter,
que no lado elegante do social se revela na fraude e na negociata, no mundo
dos pobres desemboca no álcool e no crime. E há,sobretudo, o clima de cada
espaço que abriga as socialidades contrastantes. Se os baiiTos pobres são lodo,
águas negras, umidade, escuridão e maus odores, muito diverao é o ambiente
encontrado por Saccard na Rue Vivienne:

Uma música ligeira, cristalina, que saía do sol,semelhante à voz das lendárias fe
das, o envolvia, e ele reconheceu a música de om o,o ruído contínuo deste quai-
teirão de negócios e da especulação, ouvidojá de manhã.'"'

Mas essa Paris-espaço, verdadeira radiografia literária da cidade aberta,


é, como já se disse, apresentada de uma forma não-mimética. Zola não con-

'"'Ibidem, p.320-I.
""Zola, Uargent, p.142-3.

121
funde a cidade real com a sua cidade imaginária, e o seu detalhismo e abun
dância de dados correm no sentido de dar um efeito de real à narrativa. A
visão literáiia do urbano trazida por Zola é, sobretudo, metafórica.
A começar pelos próprios títulos das obm. La curée (A carcaça) não é a
imagem metafórica de uma cidade muitas vezes atacada, retalhada, despedaça
da e l eorientada pela revolução haussmaniana? O nome evoca a voracidade das
feiras ou o destino inexoravel da presa após o ataque de uma matilha... A Paris
posta em pedaços, estripada e devorada pela fviria imobiliária, maica bem a foi
ça da imagem metafórica, numa obra que incide sobre um dos aspectos mais
vergonhosos da transfoiTnação da capital. E o lado da cidade-vício que Zola res
gata em La curée, expondo os efeitos deletérios do dinheiro fácil e da cobiça.
Já Le ventre de Paris, com a sua ação principal tendo por teatro os grandes
Halles,joga com a função do espaço de ação da obra — o mercado que abas
tece Paris — e que se constitui no verdadeiro centro motor da cidade.Por outro
lado, Zola, por sua vez, lida com as metáforas da arquitetura do século XIX,
com suas constmções de feno e vidro, que tem nas estufas (o local de encon
tro dos amantes,em La curée) e nas estações fen oviárias (Gare Saint Lazare, de
La Bete Humaine) os seus exemplos correlatos. Combinando a força do feno
com a leveza e transparência do vidxo, as novas constnjções que marcam o
avanço arquitetural da época vêm representar, para o século passado, aquilo
que as catedrais representavam para a Idade Média.
Em Le ventre de Paris, defrontando a Igreja de Saint Eustache com Les
Halles, Claude dizia a Florent que o grande mercado era a real originalidade
do século em teraios de arquitetura, onde tudo se manifestava: a aite moder
na,o realismo,o naturalismo...'" Como diz Stefan Max,Les Halles conespon-
dem bem,como símbolo, ao materialismo da metrópole burguesa. Ao contra
rio da catedral gótica, com o seu intento de elevação do espírito e alimento da
alma, o mercado tem a função essencial de alimentar o coipo e de abastecer
as necessidades sempre renovadas da população metropolitana, em contínua
expansão."'
Da mesma forma,"L'assonivioir"/"tasca." é metáfora da degradação moral
e física causada pela miséria. Ou,como ainda diz Stefan Max, conesponde à
visão apocalíptica de Zola sobre a injustiça social."'
Que dizer de Nana, a mulher impura, metáfora da Paris-mulher, apresen
tada como prostítuta? A cidade-vício se apóia na imagem feminina para dizer a

Zola, Le ventre, p.280.


Max, op.cit., p.67.
^^^Ibidem, p.94.

122
quanto é possível chegar aquela "flor do lodo", que conhece o luxo e os encan
tos da vida elegante para depois temninai- tragicamente. Outra dimensão apo
calíptica — e sem dúvida moralizante — da sociedade burguesa é expressa em
"^Pot-Bouille./cozido-de-cada-dia",sarcástica metáfora do cotidiano bui-guês. O pot-
houiüe é a mannita na qual cozinham todas as podridões da família burguesa e
os relaxamentos da moral. Assim, a esfera do privado é o microcosmo burguês
que atua como contrapaitida do macrocosmo da esfera social e pública.
Mas, paralelamente às metáforas presentes nos próprios títulos da obi^as
do ciclo dos Rougon-Macquart, há outras reconentes na nairativa de Zola. A
animização ou antropomorfismo da cidade é uma delas. A começar pelajá
citada passagem de La curée, em que Paris é despostada a golpes de sabre e,
com suas veias abertas, alimenta os que nela trabalham.^" Paris que devora ou
Paris devoradora, a cidade animiza-se. É esquartejada como um ser vivo, e seu
sangue é alimento para os habitantes. Estripada, a cidade expõe suas entra
nhas e apresenta feridas,""' qual um animal no matadouro. Ou,então, Paiis é
um grande organismo que, à semelhança dos humanos, tem membros e ór
gãos. Refere Stefan Max,a propósito de Le ventre de Paris, que Zola teria lido e
se inspirado na obra de Maxime du Camp, Paris, sa vie et ses organes,^^^ o que
lhe teria inspirado o uso das imagens metafóricas:

Paris mastigava aos bocados osseus dois milhões de habitantes. Era como um gi"ande
órgão centi'al batendo fiuiosamente,injetando osangue da vida em todas as veias. Ba-
iulhode maxilaies colossais, estiondo vindo do tumulto do abastecimento [...]."'

Assim, ora Paiis é um "monstro", apaziguado em suajaula pela besta do


grande mercado que vomita a cada dia alimentos,""® num enfrentamento de
fera para fera,ora Les Halles é o ventre monstnaoso que resfolega para alimentar
o apetite da gulosa cidade. A metonírnia se fecha ou se amplia, num processo
de animização para a urbe.
Por vezes,são as constmções, os prédios que se apresentam monstmosos,
gigantes, prontos a devorar as pessoas, como a pobre Gervaise de Uassommoir,
ao olhar atemorizada a grande casa da Rua de La Goutte d'Or, que parece ter
mandíbulas prontas a devorá-la.""® Da mesma foima, no livro Au honheur des

Zola, Lm, curée, p.94.


"%idem, p.I26.
"®Max, op.cit., p.63.
"'Zola, Li ventre, p.49.
"®Max, op.cit., p.82.
"®ZoIa, Uassommoir, p.53.

123
dames,a recém-chegada Denise, vinda do interíor,experimenta, diante do gran
de magasin, a mesma sensação de espanto de Florent quando entra pela pri
meira vez em Les Halles. A arquitetura gigantesca fascina e atemoriza ao mes
mo tempo:

Por vezes dava nela uma vontade de se salvar, mas imia necessidade de admiração
a retinlia. Ela se sentia perdida, muito pequena diante do monsti o denti o da má
quina ainda em repouso

Nas reflexões de Denise, o magasin era um consumidor incansável da car


ne e da vida das moças que ali trabalhavam e consumiam sua mocidade.''-'
Máquina e monstro a devorar as vendeuses, o grande prédio parecia ter cresci
do, tal qual um ogre dos contos de fadas, e, na impressão de Denise, era ele
que devorava Paris.^-' As imagens mais uma vez se invertem,fazendo de Paris
o animal que devora ou a presa devorada pelo monstro.
Na sua dimensão devoradora, a cidade se alimentava dos trabalhadores
que, vindos da banlieue, para ela aconiam, ao raiar de cada dia, na citada pas
sagem de Uassommoir. Ou, então, é a atividade febril do capital financeiro da
grande metrópole que é associada ao sucesso de Paris como cidade^-^ e que
parece tudo absoi-ver.
No caminho inverso das imagens simbólicas, são as pessoas que se anima-
lizam: assim. Nana é a "grande besta impura", os operârios são como um reba
nho na rota do trabalho^-'' e mesmo o tiagicòmico desfile no boulevard das de-
moiselles à marier é designado por Zola como um rebanho em Pot-Bouille?-'
A animização metafórica usa, ainda, de ouüas imagens paiadigmáticas da
gimide cidade, tal como em Lm. bete humaine. Nessa obra, a giunde locomotiva —
Lm Lison — é como que dotada de vida, a tiepidai" de força. A relação deJacques,
o maquinista, com L/i Lison é quase erótica, compai-ando-a com uma mulher:

E,era verdade, ele amava com amor a sua máquina,depois de quati o anos que ele
a conduzia. Ele tinha conduzido outias, as dóceis e relutantes, as corajosas e as
preguiçosas; ele não ignorava que cada uma tinha o seu caráter, que muitas não
valiam grande coisa, como se diz das mulheres de carne e osso; de sorte que, se
ele amava aquela lá, era porque na verdade ela tinha qualidades raras de brava

Zola, Au honheur, p.52.


^-•Ibidem, p.312-3.
'"Ibidem, p.344.
Zola, Uargent, p.326.
'-■•Zola, L'assommoir, p.l2.
'■^Zola, Émile. Pot-Bouille. Paris: Flamniarion, 1979. p.76.

124
mulher. Ela era doce, obediente,fácil de se desembaraçar, de uma marcha regu
lar e contínua,graças a uma boa vaporização [...]. Mas ele sabia que havia ali outi-a
coisa, porque as ouü~as máquinas, identicamente consüuídas, montadas com o
mesmo carinho, não mosti-avam nenhuma destas qualidades. Ali havia a alma, o
mistério da fabricação, esta qualquer coisa que o acaso da martelagem acrescenta
ao metal,que o torno de mão do operário montados dá às peças: a personalidade
da máquina,a vida.''-''

E, pois, com uma sensação de macho que o maquinista se aproxima da


máquina-mulher e mesmo os seus "defeitos" — como a grande quantidade de
graxa exigida pelos seus cilindros, eram por ele tolerados — entendidos como
uma "paixão glutona" que não desmerecia as suas qualidades. Tal como ã mu
lher amada, ele desculpava os defeitos e a acariciava...^-'
A correlação Paris-mulher-máquina-progresso, que se realiza de forma
metafórica, lida com imagens reconentes à época. Freqüentemente,a mulher
vem associada à máquina, que, por sua vez, é associada à idéia de progresso.
Ocupando um lugar simbólico distante do real, a mulher-máquina é a fera
que se submete ao homem, senhor da natureza e mestre da tecnologia. Co
mentando a obra Au honheur des dames, Beniardette e Auguste Dezelay estabe
lecem que, na obra de Zola, a máquina comparece como o equivalente imagi
nário da mulher. O grnnd viagasin, nomeado como monstro devorador das
mulheres que a ele acorrem, se faz mulher ele próprio, fazendo com o seu
proprietário Mouret um casal peifeito...^-® Por sua vez, Michel Sen es, tentan
do encontrar na obra de Zola os conhecimentos científicos de seu tempo, di
visa, em La bête hurnaine, a animização da locomotiva-mulher e a animalização
do maquinista, tornado ele também besta,formando o conjunto, por sua vez,
um enorme monstro:

Era como um gi ande corpo,um ser gigante deitado ati avés da teira,a cabeça em
Paris, as vértebras todas ao lado da linha, os membros se alargando com as ramifi
cações, os pés e as mãos no Havi e e nas outi-as linhas de chegada.'-®

O espetáculo da Lison após o desastre é nairado por Zola como a moite de


um ser humano: a máquina "expirava", "agonizava", e a catástrofe acontecera em
função da uma "doença".que ela confi-aíra com a neve e que a fizera menos alerta...:

'"Zola, Émile. La bête hurnaine. Paris: Booking International, 1995. p.l41.


'"Ibidem, p.141-2.
'"Dezelay, Bernardette; Dezelay, Auguste. Commentaires. In: Zola, Au honheur, p.386-387.
'"Serres, Michel. Feux et signaux de hrume. Zola. Paris: Grassei, 1984. p.l32.

125
Por um instante se podia ver, por suas entianhas rebentadas, funcionai" seus ór
gãos, os pistões a bater como dois corações gêmeos, o vapor circular nas gavetas
como o sangue de suas veias; mas, à semelhança de braços convulsivos, as bielas
não tinham mais do que sobressaltos, as últimas manifestações da vida; e a sua alma
se ia com a força que a mantinha viva, este hálito imenso do qual ela não chegava
a se esvaziar de todo. A gigante estripada se apaziguou então, adormeceu pouco
a pouco, num sono muito doce,acabando por se calar. Ela estava morta.'"'
Ainda insistindo nas metáforas animizadoras, que identificam a Paris-mu-
Iher, essa imagem aparece na obra de Zola talvez de uma forma não tão recor
rente como na obra de Balzac. Em Uoeuvre, a comparação da cidade com a
mulher comparece para dar uma imagem de complexidade e mistéiio para Clau-
de, que busca captar Paris pela cor, pelo detalhe, pelo momento vivido.^"
Nas suas primeiras obras — Contes à Ninou, Ln confession de Claude, Le voeu
d'une morte, Thérese Raquin e Madeleine Férnt — Zola havia explorado a temática
da mulher,expondo a sua visão trágica sobre o feminino e o casamento,"- mas
a metáfora da Paris-mulher, a grande cortesã, só se configura em Nana. As
mulheres estão presentes como personagens centrais na obra de Zola, mas
comparecem mais como atores do cenário social que ilustra e representa a
cidade do que como metáfora da cidade ela própria.
Naturalmente, sabe-se que a saga de uma família burguesa é, em si, a me
táfora da cidade-abeita, metrópole que se metamorfoseia e que se converte no
"albergue do mundo",^''^ sinal evidente do seu cosmopolitismo e da sua condi
ção de paradigma da modernidade. Na associação de Paiis com a cidade-vício,
talvez pudéssemos,isso sim, metamorfosear a capital francesa na grande coitesã
que a tudo con ompe e da qual Nana seria a expressão mais acabada.
Para referir-se à sociedade ou à família burguesa paiisiense, ela se vale de
outras imagens, como a precisão minuciosa de um connaisseurde arquitetura,
como quando descreve a fachada do imóvel onde habitam praticamente to
dos os personagens de Pot-Bouille. Por detrás do exterior elegante e rebuscado,
abrigam-se miséiias humanas, deformações de caráter, vícios de uma educa
ção equivocada, ambições inconfessáveis. A fachada da casa é bem o símbolo
da burguesia parisiense, zelosa das aparências e preocupada com os detalhes
de decoração do interior, que possam "fazer efeito".'"

Zola, íyí p.281-2.


Zola, Émile. Uoeuvre. Paris: Gallimard, 1983.
^•''-Mitterrand, Henri. Zola, Ia verité en marche. Paris: Gallimard, 1995. p.26-31.
Zola, Uargent, p.l72.
^^'^Zola, Pot-Büuüle, p.29-34.

126
Outi-a inetáfoi-a recoirente na obra do escritor é a de associação de Paris
com elementos da natureza. A cidade é nomeada como um mar, atravessada
por uma maré crescente de especulação,^"''como um oceano de casas com tetos
azulados, parecendo ondas,"''"' ou mesmo como um rio de ouro que,em vagas
sucessivas, inundava tudo,''"'' em Ln curée. Em Le ventre de Paris, o grande mer
cado é também um oceano, e a chegada cotidiana dos produtos para o ali
mento da população é uma maré inintermpta,"'-'"' assim como o espetáculo das
fmtas e verdui-as expostas à venda é comparado ao um mar.^^®
Por vezes, a multidão é comparada a uma vaga enonrie,seja ela de traba
lhadores a caminho de Paris {Uassommoh), seja do mundo elegante no Bois
de Boulogne {La curée), ou no fervilhante movimento da Bolsa {Largent), ou
ainda das hordas de mulheres que invadem o magasin em busca das ofertas
anunciadas pela campanha publicitária {Au honheur des dames).
Outra figura da natureza tomada como metáfora da cidade é a á^^jungle,
ou da floresta, que, contudo, não é usada de foiina clara por Zola, salvo no
caso da estufa tropical, com suas plantas míyestosas e seu clima abafado, que
abriga os amores de Maxime e Renée, em La curée. A imagem descrita, contu
do, lembra a enoiTne estufa do Jardin des Plantes, deslocada para a mansão
burguesa vizinha ao Pare Monceau.
A recorrência metafórica a elementos de organização do espaço, como o
labirinto, aparece no livio Uoeuvre, no qual o personagem Claude é alguém
que atravessa uma cidade que se transfoiTna numa fantasmagoria do espaço e
do tempo. Se, por um lado. Paris é um labirinto de rtias que não levam a ne
nhuma parte, tal como anuncia Proust em sua obra, o personagem anda em
busca de sensações passadas, buscando recompor experiências do vivido em
lugares que se transfonnaram. Como diz Stefan Max,a cidade de Claude exis
te mais como um fenômeno de consciência do que como uma realidade exte
rior.^'"' Assim, Claude vai constiiiindo a sua representação de Paiis com cores,
formas, imagens da cidade que existe, mas que ele recompõe e traduz através
da evocação e da experiência.
As aproximações de Paris com outras cidades do passado também com
parecem, desde a conhecida imagem metafórica de Babilônia até outras me
nos citadas.

Zola, Ls ciirée, p.fiQ.


"''Ibidem, p.92.
•'"Ibidem, p.130.
Zola, Le ventre, p.37.
'^"Ibideni, p.43.
'""Max, op.cit., p.lõS.

127
Em Au honheur des dnmes, o grnnd mngasin, que assinala o triunfo do capi
tal sobre as pequenas houtiques, é descrito como uma Babel de miiltiplos anda
res,'''" assim como Les Halles, em Le ventre, de Paris, é nomeado como Babilô
nia de metal. Entretanto, não há uma condenação moral explícita associa
da à cidade-vício da qual a Babilônia seria a imagem metafórica mais recor
rente, restando a representação do gigantismo e da imponência de ambos os
espaços da Paris-metrópole.Já em Largent, por ocasião da Exposição Universal
de 1867, que Zola coloca no centro de sua obra, o cosmopolitismo atinge de
tal foiTna a cidade — assim como as festas, os negócios, os amores fáceis —
que o narrador compara as noites de Paris às de Sodoma, Babilônia e Níni-
ve.^^ E, nessa Paris onde "se fornicava em todos os quartos", a cidade-vício
assume o primeiro plano. Ao mesmo tempo em que há uma exaltação do for-
migamento humano,da vibração da vida e da agilidade dos negócios, a puni
ção não tarda, com as bancanotas causadas pelos maus negócios. O quadro
final assume proporções cromáticas que se desenvolvem passo a passo com o
clima de tragédia:

Mme. Caroline levantou os olhos. Ela tinha chegado na praça, e ela viu, diante
dela, a Bolsa. O crepúsculo tombava, o céu de inverno, carregado de bruma,
colocava por tiás do monumento como que uma fumaça de incêndio, uma
bruma de um vermelho sombrio, que se poderia acreditar feito das chamas e
da poeira de uma cidade tomada de assalto. E a Bolsa, cinza e morna, se desta
cava na melancolia da catástrofe que, depois de um mês,a deixara deserta, aber
ta aos quatio ventos do céu

As associações realizadas na narrativa de Zola entre os estados da


alma, dos personagens com a cor, o clima e a paisagem da cidade são, elas
também, metáforas prenhes de significação. Assim, o dourado ora assu
me o conteúdo do contraste — a Rue de Ia Goutte d'Or, miserável, mas
que, ironicamente, traz ouro no nome —,ora marca a simbiose dos dois
mundos que se interpenetram, como a alusão a Nana, para quem é lida a
crônica do jornal, que fala numa mour.he d'or. Da mesma forma, em
Uassovimoir, as águas que escorrem das ruas sujas e fétidas são escuras,
assim como escuros são os ambientes de trabalho e habitação dos pobres,
com suas paredes enegrecidas.

Zola, Au honheur, p.222.


Zola, Le ventre, p.256.
'■•'Zola, Unrgent, p.34õ.
'""Ibidem, p.491.

128
Mas talvez o melhor exemplo desse recuiso esteja na obra Unepnged'nniour,
na qnal Zola pretendeu "escrever um romance no qual Paris, com o seu ocea
no de tetos, seria um personagem". Paralelamente ao romance das duas
personagens principais, os panoramas de Paris percorrem o livio: dessa vez, é
dos altos de Passy que Hélène percone Paris com o olhar, assim como a cidade
era vista por Saccard, do alto de Montmartre, em Ln curée, e do teto de Les
Halles, em Le ventre de Paris. Refere ainda Stefan Max que, ao traçar estes pa
noramas da cidade, que se sucedem ao fim de cada capítulo, os diferentes
lugares de Paris são impregnados da cor das pinturasjaponesas, tão admira
das por Zola e seus amigos Goncourt, Manet...^®
O livro se inicia, em sua primeira parte, com uma vista de Paris do alto
do Trocadero, ainda nas brumas matinais a ressonar,''''' para depois, intei
ramente desperto, se cobrir do amarelo do sol, na radiosa manhã, e, aos
poucos, ir ganhando outras cores: laranja, azul, vermelho, com manchas
cinza e negra. A cidade que Hélène abraça com o olhar está alegre como
ela. Paris é comparada a um oceano, o Sena a uma fita verde, as pontes a
rendas brancas.'''"'
Já na segunda parte do livro, acentua-se a intensidade da cor e da luz.
Paris parece Jlanihé, assim como Hélène, devorada pela paixão. A cidade se
torna piupura e dourada; ela arde, queima, seus monumentos são fogueii-as,
tudo parece emitir chamas e converter Paris num imenso braseiro.^^" O pró
prio rio se converte numa enorme pele de animal selvagem, que atravessa a
cidade de ponta a ponta, e, ao crepúsculo, as sombras se distorcem, as cores se
decompõem em visões fantasmagóricas. Na terceira parte, as angústias da he
roína fazem com que predominem as cores sombrias, e, dessa vez, o crepúscu
lo inspira melancolia, a noite cai e as águas do Sena se tomam negras em meio
a uma.Paris com suas luzes notumas.^^' Na quai ta parte, a natureza em revol
ta, o estrondo da borrasca, quase dilúvio, marca o ápice do drama da persona
gem. Nessa passagem, há um recurso de profunda animização. Zola faz com
que a cidade se comporte como um ser humano: empalidece, desmaia, tre
me, respira.''^- E, no quinto e último capítulo, apaziguada a paixão, recondu-

'^'Apud: Mitterrand, Henri. Préface. In: Zola, Éniile. Unepage d'nmour. Paris: Gallimard, 1989. p.7.
'■•^Max, op.cit., p.l22.
'""Zola, ünepnge, p.31.
'^®Ibidem, p.88.
"®Max, op.cit., p.l29.
^'"Zola, ünepnge, p.155-6.
"'Ibidem, p.224-32.
"-Max, op.cit., p.138-40.

129
zida a lieroína a uma vida sem sobressaltos, a cidade se reveste de tons pálidos,
serenos, e Paris parece uma paisagem em branco e negro.
Ao retmtar a saga de uma família no Segundo Império, Zola foi o que se
pode dizer, um piéton incansável de Paris. Voyeur da cidade por excelência, ele a
percoma,anotando detalhes, tiaçando esboços, tomando notas, que depois seri
am enriquecidas com tomada de cena da sua máquina fotogiáfica. Nele pode
mos encontmr, de foirna cabal, aquele exeicício do olhai", que postula Richard
Sennett para os leitores do urbano,fazendo de Paiis um espaço "legível e visível".''^^
Escrita em 1892,a obm La Déhãrle descreve, naJin-de-siècle, uma visão apo
calíptica da Paris incendiada em 1871:
[...] agom não eram somente os bairros do oeste e do sul que queimavam, as ca
sas da rue Royale, aquelas do cruzamento da Croix Rouge e da Rua Noü e Dame
des Champs. Tudo a leste da cidade parecia em chamas, o imenso braseiro do
Hotel de Ville fechava o horizonte com uma fogueira gigante

Lidando com duas temporalidades, Zola recupera os incidentes de 1871,


na seqüência da derrota frente a Alemanha e da comuna para resgatar o gran
final de século, com a cidade ameaçada pelos atentados anarquistas.
Ambivalente na sua posição frente à cidade que tanto amou como criti
cou, Zola foi capaz de atingir também aquela dimensão que concebe a cidade
"para além do bem e do mal", o que entendemos que veio a fazer na sua obra
Paris, escrita no fim da vida, no seu novo ciclo Le Irois villes, trilogia que com
portava outros livios sobre Londres e Roma.
Escrita em 1898,a obra se situa também nafin-de-siècle, numa França abala
da pelo caso Dreyfuss, na qual Zola teria uma participação ativa, num país sacu
dido pelosjá citados atentados terroristas e agitado pela cormpção dos negóci
os. Refletindo sobre a crise social que atravessava o mundo,o romance reflete,
por um lado, as contradições da época, mas,ao mesmo tempo,retrata "a huma
nidade triunfante do amanhã":

Ati avés das descrições da Cidade-Luz, ele afirma a sua fé no progi esso. Em "Pa
ris", Zola escreveu o momento histórico de uma cidade, o que o obriga a ti atar de
temas tão diferentes quanto a política, a religião, a economia,a sociologia. [...] Re
marquemos, sobretudo, que as descrições devem todas concorrer para levar à
conversão do personagem principal — Pierre Froment—à fé onisciente na ciên-

Zola, Unepnge, p.368-70.


'"Leduc-Adine, op.cit., p.47.
'®^ZoIa, Émile. Ln débãde. Paris: Gallimard/Pleiade, 1996. p.902.

130
cia tateante mas indesti iitível. É esta ciência que o fara esquecer Roma para acei
tar Paris como verdadeira capital do mundo.[...] A cidade se torna uma apologia
da ciência e as descrições que comandam o livi o formam uma longa meditação
poética sobre o sentido da história e da rida em geral [...]

Enconti^amos, pois, em Zela, a permanência daqueles traçosjá apontados


desde do final do século XVIII e que se constituiriam no corpm da visão literária
sobr e a cidade: a corrstatação da metrópole, "cidade aberta"; a identificação dos
contr-astes; o recur-so à lingitagem metafórica e alegórica; a compreensão do escri
tor* como voyeur,jnétone leitor privilegiado do urbano.Encontramos ainda,em Zola,
a r ecorrência à qirestão social trrbana,exemplificada pelas condições de vida e pelas
práticas usuais dos dois ramos da famrlia Rougon-Macquart, assim como pelos
diferentes espaços da cidade que expressam a desigualdade social, comojá foi vis
to. Da mesma fonna,ao descrever os interior es bur^reses e popular es, com rique
za de detalhes e expressão crornática denunciadora das diferenças, Zola nos in
troduz no âmago das diferenças entre pobres e ricos: a casa de Ger-vaise
{Unssomnioir) é acanhada e triste, tarrto quanto é refirrada a de Renée {La curée),
ou são abusivos a decoração e o lirxo cocotteáa. de Nana {Nand),ou,ainda,como a
casa da Rue Choiseul, de Poí-BouiUe, expressando a intenção de par ecer fina.
Os contrastes de espaços e socialidades que expõem a nu a qvrestão social
não se fazem acompanhar de descrições de revoltas populares. Exceção feita
às consider ações e artictrlações de Florent,em Le ventre de Paris, sobre as possi
bilidades insurrecionais em Paris,'''" ou aos atentados anarquistas envolvidos
numa Paris pululante dé intrigas e perpassada pela tr*agédia social,^'® as énieu-
íes não ocupam lugar centr*al na obr*a de Zola.
Já a imagem da multidão é usada com freqüência. Em La curée, há mes
mo a descrição de um formigamento humano nas rtras de uma noite quente
de verão: um vaivém contrnvro, homens e mulheres a retardar a hor*a de reco-
Iher-se, prolongando o passeio, de um boulevard a outro, ou permanecendo
nos restaurantes e cafés, a tomar cerreja e a conversar:

E o desfile repassava sem fim,com uma regitlaridade fetigante, mtmdo estr-anha-


mente misturado e sempre o mesmo, no meio de cores vivas, de bm*acos de som
brias [...]. O barulho ensurdecedor que subia tinha um clamor, um ressonar pro
longado, monótono,como uma nota de órgão acompanhando a eterna procissão
de peqitenas bonecas mecânicas.'^®

op.cit., p.213-5.
'^'Zola, Le ventre, p.342 e 347.
Miiterrand, Zola, p.l07.
•'"®Zola, La curée, p.164-5.

1,31
Só uma giande cidade podeiia propiciar o espetáculo noturno da multidão,
ou ainda contar com uma população cosmopolita afluindo em vagas à Exposição
Universal de 1867, tal como assinala LVzrgi?n/, descrevendo o bulício da cidade em
festa.-''®' A multidão ainda se faz sentir no centro dos negócios da Paris financeiia
nas horas de expediente,todos acoirendo, homens e canos, para a praça central,
entre a Rue Montmaitre e a Rue Richelieu. A descrição se vale, mais uma vez, da
imagem dos pedestres, que se assemelham a ondas sucessivas, assim como os fía-
cres e os victorias, dando a impressão de um formigamento incessante. O bantlho
dos pregões é comparado ao da maré,e a agitação da Bolsa dá aos passantes anô
nimos uma sensação de

desejo e medo daquilo que lá se fazia, este mistério das operações financeii-as onde
poucos cérebros franceses peneti am,estas ruínas, estas fortunas bruscas.""

Retomam,também,as imagens contrastantes, que fazem dessa Bolsa, ani-


mizada, na qual bate um coração enorme,^"- a própria metáfora da moderni
dade citadina, causando, ao mesmo tempo, atração e repiidio.
A multídão reaparece em outros espaços — também emblemáticos—da me
trópole, como o gi^ande mngasin Au honheur des danm. Nele, a multidão é femini
na,''®^ qtte assalta a loja ante a iiresistível atração das ofertas, num atropelo e esma-
gamento. As filas se foimam, na ma se toma impraticável a passagem, como nos
tempos de levolta... Retoma a imagem do río, que,com sua coirente de extrema
força, aspirava os clientes dos quatro cantos do país para esse templo de consu
mo.''®' Zola é extremamente atento para esse fenômeno do século XIX, as gran
des Icyas de departamentos inauguiadas em Paiis e que,sem dúvida,foi-am inspi-
ladoras da obia: Le Bon Marché, Le Louvre, La Samaritaine, Le Printemps...
Da mesma forma, a multidão reaparece em ovitros espaços representati
vos das transformações urbanas do século: Les Halles, de Le ventre de Paris, e a
Gare Saint Lazare, de La hêíe humaine.JA em Uassotmnoir, emboia a imagem re
corrente do rio ou do mar retome associada à multidão dos operários no ca
minho do trabalho, os homens são comparados a um rebanho de animais, que
Gervaise olha com tristeza, tendo, de um lado, o panorama do matadouro de
animais e, de outro, o hospital'"'^. Em romance dedicado ao lado miserável da

Unrgent, p.312.
Ibidem, p.24-5.
Ibidem, p.25.
^^^Zola, Au honheur, p.lO.
Ibidem, p.2I4-5.
^''^Zola, Lnssoimnoir, p.12-4.

1S2
sociedade, não é por acaso que Zola enquadiTi a melancólica visão das multidão
dos pobres,animalizados,entre esses dois maicos com tão forte caiga simbólica,
balizados pela morte, pelo sofrimento e pela doença.
Na globalidade da sua obra, Zola descreve e toma teatro de sua tmma
tanto os espaços públicos quanto os privados da cidade. A definição e separa
ção de tais espaços é obra da sociedade burguesa,que,a paitir do século XVIII,
estabelece um equilíbrio entre as duas esfei^as. O domínio do público, contu
do, embora se defina por regulamentações e fixação de normas de conduta
burguesas, implica o confronto ou convivência direta com os deserdados do
sistema. Assim, é na ma,espaço público por excelência, que os contatos e pro
ximidades se fazem. O boulevnrd tanto recebe a fina flor da sociedade parisien
se quanto abriga o triste troltoirde Gei"vaise, na sua incursão pela prostituição.
Sem dúvida, a ocupação dos espaços obedece à desigualdade social que se ve
rifica na urbe, mas, assim mesmo, é ainda no "teatro da ma" que se dá o ine
vitável encontro.Já os interioi es, burgueses e populares, obedecem ao padrâo
do mundo fechado e marcado socialmente, como Zola os retrata em passa
gensjá citadas.
E,finalmente, não há como fugir a uma questão que engloba toda a obra:
com seus vícios e toipezas, seduções e encantamentos, o ethos urbano tem um
valor em si, que se impõe e ultrapassa a dimensão polaiizada da cidade-vício e
da cidade-viitude."Além do bem e do mal", o elhos urbano confere uma iden
tidade à cidade, que se apresenta aos que nela chegam como mistério e mara-
vilhamento. Assim, Paris, albergue do mundo, recebe gente de todos os can
tos da terra e da França. A obra de Zola ressalta, de modo especial, a chegada
desses "estrangeiros do país": Florent, que retoma a Paris vindo da prisão em
Caienne;'""'''' Denise, com seu iraiãozinho, recentemente chegada da Nonnan-
die;""" Mouret, egresso da Provence.'®® A todos os recém-chegados. Paris é um
mistério, o qual, a duias penas, terâo de decifim" para aprender os códigos e
viver na grande cidade.
Ao conferir uma identidade urbana precisa de Paiis — capital do mundo,
cidade-luz, metrópole, etc. —,o escritor, tal como os pintores impressionistas
seus amigos, reinventa o campo. Na recuperação idílica do interior ixii-al, a re
presentação pouco tem a ver com o real concieto que canalizava a população
para a capital francesa. No plano do imaginário, a inovação do campo dá-se por
conti-aste à afinnação do lado pecador e cínico do urbano. Paris coiTompe ou.

Zola, Le ventre, p.15.


Zola, Au bonheur, p.II.
'®®Zola, Pot-Bouille, p.29.

133
pelo menos,dá margem à expansão daqueles que,saídos da placidez provincial,
vêm dispostos a conquistar a capital a qualquer custo. Da mesma fonna, quando
quer destacar uma impressão favorável, benfazeja e pum de Paris, Zola compam
a cidade a um campo de trigo, quando vista de longe.
Com menor leconência que Zola, Guy de Maupassant insere Paris em suas
obi"as. No conto Mademoitelle Perle, apaiecido no suplemento literário do Figaro
de 16 dejaneiro de 1886, Maupassant conti^asta o tmiiqüilo qtuiríieráo Obseiva-
toire, na margem esquerda do Sena, com a Paris remodelada por Haussmann,
modenia e agitada, da margem direita. A travessia da ponte, realizada pela fa
mília Chantal para realizar o aprovisionamento da casa, inmo ao mercado, não
é simplesmente um marco espacial a definir a separação do Rive Gaúche ao Rive
Droite, mas uma passagem simbólica para a "verdadeira" Paris:

Para os Chantal, toda a parte de Paris situada do outi o lado do Sena constitui os
bairros novos, bairros habitados por uma população singular, barulhenta, pouco
honrada,que passa os dias em desperdícios,as noites em festa e quejoga o dinhei
ro pelasjanelas.

Na cidade dos contrastes, eles eram incapazes de conhecer a Paris da re


presentação paradigmática, da qual sabiam a existência e tinham, a/triori,juí
zo formado, levando a vida num outro canto da cidade que lembrava o con
texto urbano do inteiior... Logo, é mais uma vez o contraste da cidade-aldeia,
identificada com o campo, ou a não-cidade, que comparece face à cidade-ver-
dadeira, cosmopolita e barulhenta,já aludida por Zola.
Da mesma forma, tal como Zola, Maupassant alude a uma cidade animi-
zada, que respira e é ouvida pelo solitáiio indivíduo do conto Promenade, ca
paz de viver absolutamente isolado no meio da cosmopolita Paiis:

Ele ouviu em torno dele, sobre ele, por tudo, um rumor confuso, imenso, contí
nuo,feito de barulhos inumeráveis e diferentes, um rumor surdo, próximo,lon
gínquo, uma vaga e enorme palpitação de vida: o hálito de Paris, respirando como
um ser colossal."'

Maupassant, leitor da cidade, recupera, ainda, a imagem doJlâneur, num


conto que se aproxima ao Aurelin, de Gérard de Nerval, se considerado na sua

Zola, üoeuvre.
Maupassant, Guy de. Madenioiselle Perle. In; Maupassant, Guy. Contes. 1. Scènes de In vie pari-
sienne. Paris: Bordas, 1985. p.Sfi,
Maupassant, Guy de. Promenade. In: Maupassant, op.cit., p.90.

134
dimensão do delíno. Em La nuit. Catichemar, um indivíduo vagueia à noite por
uma Paris fantasmagórica, porque sem vida e desabitada. Todos os bainos, lu
gares, monumentos e houlevnrds são perconidos, tal como as margens do rio.
Todos os lugares são reconhecíveis, mas se trata de uma cidade de onde a vida
e o mído fugiram.
Tal tipo de representação, que tanto exprime um processo de alienação
do citadino confrontado com uma evolução da cidade moderna, quanto exi
be a reflexão despertada desde a Renascença sobre a mortalidade das civiliza
ções,''"' encontra sua expressão, no século XIX, em visões pictõricas ou litera-
rias de uma cidade fantástica, situada no futuro ou num tempo incerto. E o
caso dos desenhos de Gustave Doré sobre Londres,de certas reflexões de Thé-
ophile Gautier ou Gérard de Nei^val sobre Paris.
Entre oxímoros e metáforas, a Paris moderna se impunha como cida
de modelo.Já em 1851, Théophile Gautier escrevera que a cidade se ocu
pava infinitamente de si própria: ela se considerava como o centro, o olho
e o umbigo do universo, admitindo apenas que existia "alguma coisa" fora
e além dela...'"^
A visão entusiasta, ao mesmo tempo irônica e bem-humorada de Gauti
er, cederia lugar, naJin-de-siècle, a uma postura bastante diversa. O decadentismo
iria olhar a cidade-capital-do-mundo com uma nova sensibilidade.'^'
Como traço da decadênciajin-de-siècle, há a reconente idéia de que a civili
zação declina, a sociedade se extingue enquanto valores e hábitos. A sensação
do d^à vu, da saturação, do excesso,se faz acompanhar do retomo implacável
da postura que assume a cidade como vício.
A difei ença dos escritores precedentes — para os quais a cidade era o pró
prio leifmotiv da narrativa e da inspiração literâria ou poética — a cidade apa
rece numa outra instância. Ou ela se faz presente mediante o delírio, o sonho
e a alucinação, ou ela é o local maldito, que concentra o vício, a barbárie, a
sujeira e a podridão de uma sociedade que afunda no lamaçal que produziu.
Nesse sentido, o escritor decadentista ora busca refúgio interior — no domí-

Maupassant, Guy de. La nuit. Cauchemar. In: Maupassant, op.cit., p.l54.


^'^Junod, Philippe. Babylone-sur-Tamise: Londres vu par Gustave Doré. In: Pontalis,J.B. (org.).
Ln ville inquiete. Paris: Galliinard, 1986. p.60-77.
•"^Gautier, Théophile. Paris futur. In: Gautier, bp.cit., p.I84.
Consultar, a propósito do decadenüsmo: Huysmans,Joris Karl. Préface. In: Colin, René Pi-
erre. Les hnbiíué.<; de cnje. Paris: Séquences, 1992.Jouve, Séverine. Obsessions et perversions dnns ln
littémture et les demeures n ln Jin du dix-neuvième .sièele. Paris: Herman, 1996. Magazine Littéraire.
Les énervés de ln Belle Époque. Paris, mai I99I. Magazine Littéraire. Ln Frnncejin desiède. Paris, fé-
vrier 1986. Palacio,Jean àe. Figures etfonnes de Indérndenee. Paris: Séguier, 1994.

135
iiio do pxivado, na tebaida, na casa de campo, na garçonnikre— ou-no exterior,
fazendo da hnnlieue ou dos quarteirões calmos, espécie de espaço não-urbano,
o centro de uma nanativa menos sufocante e opressoia.
E na transfiguração do espaço vivido em espaço sonhado e, nessa medi
da, espaço fictício,''''' que decoirem as ações da litemtui-a da decadência. Não
é na Paris das mas agitadas, do bulício da multidão, dos salões burgueses, de
multidão ou da questão social expressa pela revolta popular que comparece
na nan ativa. Há uma postura deliberada de fuga e mesmo de hostilidade face
o "inferno urbano" da metrópole.
A nanativa decadentista privilegia com freqüência o domínio do priva
do em detrimento do público, como no caso das obras máximas que caracte
rizam a tendência fin-de-sièr.ltr. referimo-nos a A rebours e En rade, de Joiys Karl
Huysmans, e a Monsieur de Phocas, dejean Lorrain. Sejean Lorrain, em 1900,
abandona a "cidade envenenada" para escrever em Nice o seu grande roman
ce, Huysmans coloca os protagonistas de suas duas obi^as a buscar refúgio no
interior, longe da vulgaridade da capital. Ou seja, à capital vício se opõe a es
tratégia da fuga e o refúgio em outros espaços.
O personagem Des Esseintes, de A rebours, é alguém que concentra e
potencializa em si o spleen baudelairiano e se refugia em uma tebaida no in
terior, para escapar à burrice, ao mau gosto e à realidade da capital cosmo
polita. Lá, cria um ambiente artificial, que inverte a ordem burguesa estabe
lecida. Des Esseintes é um esteta, é um neurótico e um viciado, que reorga
niza seu espaço interior segundo uma busca de prazer incessante (e inatin
gível na sua plenitude) e de concretização de um gosto refinado e excêntri
co. Projeta em seu refúgio um mundo imaginário contrastante com a coti-
dianidade da vida, resultado das suas preferências. E sua opção e sua esco
lha viver nesse ambiente irreal, dominado pela estética.''"' Assim é Des Esse
intes, de sua casa, retirada em Fontenay, retornava a Paris pelos pensamen
tos e, imaginariamente, retraçava um caminho já trilhado no Quartier La-
tin: do Museu de Cluny descia pela Rue du Sommerard até o Boulevard Saint
Michel, caminhando por este até a Rue Monsieur le Prince e a Rue de Vau-
girard...-^'" Trata-se, no caso, da recriação do espaço urbano pela imagina
ção,sem que o autor do piocesso mental se desloque do seu próprio espaço.
Des Esseintes personifica uma recusa a um mundo que se acaba pela cons-
tinção de um outro mundo interior e privado, que inverte os sentidos e sig
nificados do real.

op.cit., p.54.
Huysmans,Joris Karl. As avessas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
''®Ibidem, p.204.

136
Quando,em outros textos, Huysmans situa o enredo da obra na esfera do
público,é pam demonsti-ai- o quanto esses espaços são detestáveis,incômodos e
agressivos em sua cotidianeidade. Ao enfocar os cafés, o bujfet da estaçõesfen o-
viárias ou o sleejjnngcardos trens^'® — esferas intennediárias entie o público e o
privado na sociedade burguesa —,Huysmans descreve os ambientes e os seus
freqüentadores atmvés de um quadro opressivo. Excentricidades e manias se
mesclam ao sentimento de solidão, de incomunicabilidade. Os locais são sujos,
as pessoas se roçam,o ar é enfumaçado e, no caso dos cafés, o absinto impera,
além do alto consumo de outras bebidas alcoólicas. As pessoas são ti-agicômicas,
fedem e os ambientes são abafados,sufocantes.
O quadro se acentua quando a narrativa se desenvolve num ambiente
definitivamente boêmio, como o Folies Bergère:
Um gi ande alarido.se ergue da multidão que se amontoa. Um vapor quente en
volve a sala, misturado a exalações de toda espécie, saturada de uma poeira aze
da de tapete e de assentos que se espanam.O odor do cigan o e da mulher se acen
tua; os gazes queimam mais pesados, repercutidos por espelhos que os reenviam
de lun ponto do teatio a outi o [...].''®"

Quando se trata da Paris das mas,do espaço realmente público, é a han-


lie.m, os bain os tranqfúlos com suas pracinhas calmas e recantos sossegados que
o escritor vai preferir, fugindo da metrópole haussmaniana, com seus boule-
vards e a sua monumentalidade, as mas retas e monótonas...'®'
É interessante que, mesmo na cidade, o escritor empreende a fuga, no
tempo ou no espaço: ora celebra, à Ia Balzac, os tipos de Paiis, com ofícios que
resistem à modernização da metrópole, ora vai em busca do anabalde,falan
do da beleza melancólica dos lugares esquecidos ou escondidos da peiiferia
da cidade. O quarteirão insalubre da Briève, a despejar suas águas no Sena, na
margem esquerda da cidade, apesar de exalar um mau cheiro, é saudado pela
sua beleza melancólica...,'®® enquanto que o distante baiiro de Ménilmontant
é considerado como uma espécie de ten-a prometida, uma "Canaã de doçuras
tristes"...®®' O charme do aiTabalde é ainda celebrado pelo escritor, que se com
praz em admirar a paisagem do alto das muralhas^ ao norte de Paris, de onde
quase não se ouve o bamlho de Paris!'®"'
37
''Huysmans,Joris Karl. Les habitues de cafi. Paris: Séquences, 1992.
""Huysmans,Joris Karl. Croquisparisiens. Paris: Slatkine, 1996. p.53-4.
"'Delvaille, Bernard. Préface. In: Huysmans, Croquis, p.l4.
"'Huysmans,Croquis, p.l23.
""Huysmans, Croquis, p.l31.
Huysmans,Croquis, p.135-7.

137
Se o mundo interior é, de um lado, refiigio que recria tempo e espaço,
segundo uma estratégia de escolha e recusa, o subúrbio é a opção para o en
contro de uma Paris quejá se foi.
Essa síndrome do final do século foi expressa também nos textos deJean
Lonain. Seu personagem M. de Phocas, na obra do mesmo nome,^'*^ é um es
teta decadente, viciado e neurótico. Tal como o Des Esseintes de Huysmans,
M. de Phocas contesta a crença mítica do progresso e da evocação. A civiliza
ção está acabando, a modernidade urbana é contestada e a sociedade apodre
ce em Paiis ou em Londres, com sua atmosfera deletéria e nefasta.
Assim, M. de Phocas delira, alucina-se entre personagens satânicas, mu
lheres vampirescas, pei-versões, ópio, absinto, neuroses múltiplas, manifesta
ções de uma cidade- metrópole agonizante. Experimenta um verdadeiro hor
ror da ma e da multidão, afinnando preferir o olhar das estátuas ao olhar das
pessoas. Afirma M. de Phocas que os olhos não olham mais, porque o ho
mem moderno perdeu a crença.'®^ Logo, não há mais salvação nem expecta
tiva, só as idéias da luxúria, da morte e do vício, capazes de mobilizar as pesso
as. É esse "hoiTÍvel instinto da multidão" diante do espetáculo do século que
acaba engolido pelos seus vícios que provavelmente fez o autor comparar a
estética do século XX ao chaiTne do hospital e do cemitério-^®^" ou a uma bele
za de cadafalso.^®^®
Paris, em suma, é uma espécie de pesadelo, onde o aspecto de seus pré
dios e mas é a tradução exteina e material de seus vícios. M.de Phocas fala da
feiúra das mas parisienses, tão feias quanto as caras de seu povo, verdadeiros
focinhos retorcidos.®''" Esta "unânime feiúra das cidades modernas",®"' corro
ídas pelo vício, pelo álcool, pela miséria, pelos escândalos, pelo ópio, pelo ab
sinto, pelas tai-as, pela putrefação geral que acompanha a civilização agonizante,
faz com que o personagem prefira o delírio à realidade.
Os espaços por onde anda — mal iluminadas mas dos Halles, mas quen
tes e malcheirosas dos cantos escuros da cidade — contêm a atração irresistí
vel da decadência, mistuiada a uma repulsa: a cidade se oferece como um es
petáculo, onde tudo é máscara e encenação. Na alucinação que indetermina
a fronteira entre o pesadelo e a vigília, M. de Phocas sonha com uma Paris

'^®^Lorrain,Jean de. Monsieur de Phocas. Paris: La Table Ronde, 1992.


^^^Ibidem, p.2S.
Ibidem, p.39.
^«®Ibidem, p.28.
Ibidem, p.37.
Ibidem, p.56.
^^'Ibidem, p.l42.

138
deserta,onde cadáveres comparecem nas soleiras das portas ostentando másca
ras,''"- ou sobrevoa,à noite, uma cidade fantástíca e adormecida.-^"^ É ainda nes
se estado alucinatório que ele percorre, em pesadelo, a Paris noturna da ban-
lieue, num percurso que lembra os espaços aludidos melancolicamente nos con
tos de Huysmans: Monírouge, Malakoff, Bièvre, GennevilliersP^
As metáforas se sucedem para expressar a decadência das grandes cidades:
se Londres é o Minotauro devorador,a viciosa Paris é Salomé ou Astarté, perso
nificação da luxúria que consagra o mito dafemviefatale, caro àfin-de-siècle.
De Baudelaire a Zola, passando por Maupassant, para chegar a Huysmans e
Lorrain, construiu-se um olhar literário sobre a cidade que,ao longo de um sécu
lo, se constituíra no paradigma da modernidade urbana. Posturas estéticas, esco
las literárias e contextos históricos diferentes assinalam distintos enfoques.
Nesse conjunto de textos literários, que inserem Paris como elemento cen
tral da narrativa, buscamos resgatar tanto os traços recorrentes quanto os que
individualizam — numá espécie de Jogo entre a diversidade e a unidade —
para tentar compor o que chamamos a visão literária da cidade moderna.
Como diz Marie-Claire Bancquort, o que cabe resgatar nesta Paris-capi-
tal-do-mundo vista pelos escritores é que

[...] ela se torna um personagem, uma cidade-texto, que liga a seu espaço e a sua
história toda uma rede de referências poéticas, míticas, pessoais.E uma cidade do
desejo, que possui um imaginário intenso.®"®

Entretanto, se a autora diz que ela se torna uma realidade diferente da


cidade vista pelos urbanistas e pelos historiadores, nossa proposta éjustamen
te a de cruzar olhares e, do ponto de vista da história, colocar as perguntas.
Entendemos que, desde o final do século XVIII ao final do século XIX,
construiu-se e encontrou expressão literária o "mito de Paris", como paradig
ma do moderno urbano. Essa "cidade imaginária" teve ampla difusão e busca
remos analisar o processo de recepção/ressemantização dessas imagens e dis
cursos nó Brasil, nas primeiras décadas do século XX.

•'"'^Ibidem, p.53.
®"®Ibidem, p.l22
■'""Ibidem, p.l39.
""Bancquart, Marie-Claire. Paris; BelleEpoqueparses écrivains. Paris: Adam Biro, 1997. p.l5.

139
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Reslif de Ia Bretonne. Gravura da primeira edição
de "Les nuits de Paris ou le spectaleur nocturne", 1794
Paris, o Louvre, as Tulherias e o Palais Royal.
Plano de Turgot, 1739
los que figu:
irds de Paris,
1

Rue des Marmousets, desaparecida hoje.


Fotografia da velha Paris por Charles Mandlle, 1865
iiORsr
lua CIBIKTS

^íá5^wii5v*8i?ír^'^'■^*e«r"'' ■ —*rr'"**^-.??" 'í'Cfe"^ - • r

Rue Pirouette, da velha Paris, hoje desaparecida.


Foto de Charles Mandlle, 1865
r.''ti Jti.N
P
5^

"Oh, quanto à vista, o senhor não encontrará melhor


do que esta daqui!" Caricatura de Daumier,
Locataires et proprietaires. (1847-1856)
,i-l' > ;iVv '
- ■ ri;.' T'

Croqui tomado na av. Champs Elysées. Caricatura alusiva


à falta de moradia. Daumier, Locataires et pwpnetaires
li!'

cViTruil^-rrj! .■- ■ li|,p.


iy^

r''.;"!' ' S í^v


íííLi,M]!l

I^S

II

Mudanças por ocasião da abertura da Av. de TOpéra.


Gravaira de Scott e Lix, 1876
i.
"Sim, meu caro, eu durmo sobre uma cadeira; porquefizeram de tal
forma recuar minha casa que o meu quarto se tornou muito pequeno
para poder nele pôr uma cama."
Caricatura de Chagot
"O proprietário: - Considei~e, senhor, que minha casa se encontrando
hoje na Rua de Rivoli, eu sou obrigado a aumentar seu aluguel
em três milfrancos."Caricatura de Chagot
L- -ãí

'^'3|V^)'-^(9: ^^--1
fe,yíEl
««í 11

^1 i.'tjB t V1LlE
■|i?f -|?j.e.ki* J.0í«tiín!ij
fc»

ao Teatro de Vaudeville, Paris. Pintura de Jean Béraud


f lâ r

Paris, o Café de Ia Paix. Pintura de Jean Béraud


A ponte da Europa. Pintura de Gustave Caillebotte, 1876
Rio de Janeiro

Uma Cidade no Espelho


(1890-1910)
Capítulos

EFEITO DO ESPELHO: DA CIDADE MARAVILHOSA

o AO PAÍS DAS MARAVILHAS

Em princípio, o espelho reflete a imagem que sobre ele se


debruça, como uma espécie de duplo do real. Mas,sem querer
descer aos terrenos da psicanálise ou recorrer às metáforas das
histórias infantis, sabemos que a imagem refletida depende do
olhar de quem contempla,e,como tal, o espelho pode operar de
foraia inveitida e defonnante.Representação sensorial de algo que
existe, traduz lógicas de percepção que passam pelos caminhos
do imaginário. No caso, a identidade refletida pode,como repre
sentação,coincidir — ou não — com o modelo original,sem que
com isso deixe de ser aceita. Ojogo do espelho, que reflete/ciáa
imagens,faz paite desse sistema de percepção e representação do
mundo que vem mudando segundo as épocas e do qual o histo
riador da cultura se esforça por se aproximar.
A identidade, como se sabe, é uma construção simbólica,
que estabelece uma comunidade de sentido e um ponto de
referência no mundo. Se fôssemos enveredar pelos caminhos
da identidade pessoal, o espelho me revelaria a maneira como
eu me vejo, e que pode se distanciar da percepção que os ou
tros têm a meu respeito... Como diria Calvino,' o olho não vê
coisas, mas imagens de coisas que significam outi~as coisas...

'Calvino, ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
E, com esse enfoque, nos debmçamos sobre o Rio de Janeiro, colocando
a cidade frente ao espelho, na busca de sua identidade.
Om, a identidade urbana lida com aquelas dimensões, enunciadas por
Rama- e Aigan,^ da cidade real e da cidade ideal, contrabalançando e trocan
do sinais entre uma "cidade do desejo" e uma "cidade do possível"."'
Segundo Rama,tal postura implica entender a cidade como uma articula
ção de signos que compõem uma identidade social e culturalmente constmída.^
A cidade, pensada e foiTnulada no imaginário, é o "leflexo" não-mimético de
uma cidade física, com seu traçado urbano e sua complexidade social, que se
inteiTOga no espelho.
Mas uma formulação identitária da cidade é,fundamentalmente,resposta
a perguntas, inquietudes, indagações e desejos. Significa, sobretudo, que a
cidade é fonnulada como problema e é pensada e expressa como discui-so e
como imagem. A pergunta que se coloca, contudo, é de como, quando e por
que o problema da identidade urbana se apresenta. Ou, em outras palavi-as,
como se contextualiza, historicamente, a urbanidade.
A cultura da modernidade é eminentemente urbana e comporta a con
jugação de duas dimensões indissociáveis: por um lado, a cidade é o sítio da
ação social renovadora, da transformação capitalista do mundo e da consoli
dação de uma nova ordem e, por outro, a cidade se toma, ela própria, o tema
e o sujeito das manifestações culturais e artísticas. Assim, é na correlação mo-
demidade-cidade que encontramos a passagem da idéia da urbe como o "local
onde as coisas acontecem" para a concepção do sujeito-cidade como objeto
de reflexão. Na conhecida opinião de Georg Simmel, a cidade é o lugar da
constmção da modernidade, ou, melhor dizendo, a metrópole é a foima mais
específica de realização da vida moderna.®
O caso de Paris é emblemático. A emergência da metrópole, que se dá
no bojo de um processo de modernidade, dá margem à criação do mito e à
sua universalização. Paris, metáfora e metonímia desta modemidade, corres
ponderia à concretização da linha de analise que associa a cidade à emergên
cia de formas culturais modernas. Como diz Malcolm Bradbuiy:

-Rama. Angel. A ádnde das letras. São Paulo: Brasiliense, 1984.


'Argan, Giulio Cario. História da Arte como história da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
■•Pesavento, Sandra Jatahy. Entre práticas e representações: a cidade do possível e a cidade do
desejo. In: Ribeiro, Luís César de Queiroz; Pechnian, Robert (org.). Cidade, povo e nação. Rio de
Janeiro: Zahar, 1996.
'Rama, op.cit., p.lS.
' Simmel, Georg. Individualité et impessoalité. In: Ansay, Pierre; Schoonbrodt, René. Penser Ia
ville. Bruxelles: AAM, 1989. Considtar, também: Rémy, Jean (dir.). Georg Simmel: ville et modemité.
Paris: Harmattan, 1995.

158
Quando pensamos no modernismo, não podemos deixar de evocar essas atmos
feras urbanas, as idéias e campanhas,as novas filosofias e políticas que as ati-aves-
savam: Berlim,Viena, Moscou e São Petersburgo, na virada do século e até os pri
meiros anos de guerra;Londres, nos anos imediatamente anteriores à guerra;Zu
rique, Nova York e Chicago,dumute a guerra; e Paris, o tempo inteiro."

Paris é, pois, a forma acabada de realização da complexidade social e da


natureza dos contatos que só a modernidade foi capaz de propiciar, tornan
do-se a fonte inspiradora de um imaginário "exportável".
Voltemos, contudo,à imagem do espelho. Como diz Sábine Melchior-Bon-
net,"o espelho,'matriz do simbólico',acompanha a busca da identidade".®
Adotando a idéia do "mito de Paris" como referência emblemática para
a compreensão da modernidade, temos a imagem da cidade como elemento
de referência para a compreensão do todo. O traço paradigmático e metoní-
mico dessa representação do mundo leva ao centro do que definiríamos como o
"efeito do espelho" que se realiza no Brasil, particularmente após a reforma de
Pereira Passos, no Rio deJaneiro.
Se o traço isolado vale pelo todo, a identificação de alguns elementos da
modernidade estendem-se ao conjunto,coixflgui-ando uma identidade global que
aponta na direção desejada. Aumentando a escala de ti-ansferência, a cidade
moderna passa a Níaler pela nação e, com isso, atinge-se o padrâo identitáiio idea
lizado, que atrelaria o Bi"asil ao "trem da história", no caminho da "civilização".
Tal processo implica um predomínio do simbólico sobre o real,da representa
ção sobre o seu leferente. Qual a Alice de Le\vis Cairoll,a ti-avessia para o outio lado
do espelho revela o maiíivilhoso de um mundo imagináiio, com efeito de "real".
Assim, nos caminhos da representação, é possível passar da "cidade ma
ravilhosa" ao "país das maravilhas",sem que a hipeitransflguração do real deixe
de ser convincente; Se a travessia enfrenta riscos, a invenção de um univeiso,
"além das aparências, mais belo que o universo de todos os dias", soluciona
problemas pelo poder iluminado da imaginação:
[...] o sonho da travessia do espelho responde a esta necessidade de renascer
do outio lado, ele faz espelhar a fascinante esperança de reconciliar o denti o e
o fora e de viver definitivamente ao lado do fentasma,do imagináiio, num universo
desembaraçado das injunções do real e das pressões da culpabilidade.®

'Bradbuiy, Malcolm. As cidades do modernismo.In; Bi-adbuiy, Malcolm; McFarlane,James (org.)


Modernismo:guia geral São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.76.
®Melchior-Bonnet, Sabine. Histoire du miroir. Paris: Imago, 1994. p.l4. '
®lbidem, p.257.

159
"Renascer", num processo de recriação da identidade nacional, talvez pu
desse sanai" nossos"males de origem". Manoel Bonfim'"pai"a o fato de que apon-
tai"ia que o Bi"asil se ligava a uma situação de subordinação à Europa e o roman
tismo,na ausência de um passado clássico,compusem uma vei"são idealizada de
um mito fundador pam o país. Todavia,as veisões glamourizadas do"bom selva
gem ,que compensava simbolicamente nossa defasagem nojogo entre nature
za e cultura, há muito haviam ficado pam trás. A geração de 70 e toda a vaga de
realismo cientificista lançava em rosto dos nacionais uma espécie de "pecado
original" que se peipetuava na mestiçagem. Que fazer com um país caboclo,
mestiço, ati-asado? Se fosse possível, nascer de novo,do "lado certo" do univer
so,e alinhar-sejunto às nações de primeira linha que foi-mavam o que se consa
grava chamar a "civilização ocidental cristã", branca, tecnificada, culta...
Só mesmo o "efeito do espelho" — invertendo não apenas o real, mas os
códigos e significados — iria possibilitar o encontro de"um mundo que se asse
melhava", no qual se tomava a aparência pela essência.
Um detalhe da transfoi"mação urbana iria projetar no espelho a cidade
moderna desejada, e esta operaria com o emblema da nação. Da cidade mara
vilhosa, a força de representação tornaria real um país das maravilhas.
Entendemos que a matriz desse "potencial metafórico nacional" vamos
encontrar no processo histórico brasileiro. E, nesse caso, o exemplo carioca é
especial para que se apreciem certas peculiaridades que marcarâo as representa
ções do urbano produzidas hó país.
Ora, a especificidade e — podemos mesmo dizer — a perversidade das
condições de realização do capitalismo no Brasil dão margem a um contexto
em que a representação assume,de direito e de fato, preeminência sobre o real.
O peso do simbólico sobrepõe-se à realidade: o parecer tem o efeito de ser e,
como tal, éjulgado e avaliado. A credibilidade do imaginário se impõe, mesmo
que as condições concretas das existência neguem os discursos e as imagens que
sobre a realidade se produzem.A aparência e a fachada têm alta significação e
o detalhe é tomado pelo conjunto.
A predisposição para o predomínio do imaginário sobre o real, como se
disse, nós vamos buscar nas condições específicas da própria foi"mação histórica
bi"asileira. Como refere Schwarcz," se a realidade não obrigava a optar entre
pei"sistência de relações escravistas e foi"mas de acumulação capitalistas, por que,
no plano dos valores e da lepresê^itação do mundo,teria sido preciso estabele
cer coites e opções que resultaiiám em excludência? A República fora procla-

Bonfim, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.
"Schwarcz, Roberto. Ao vencedor, as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

160
mada em meio aos discui-sos do progresso e da civilização, mas an-astava ati-ás de
si dívidas para com o passado colonial. A não-solução do problema agraiio e a
dificuldade de incoipomção dos ex-escravos ao mercado de trabalho,a proble
mática realização da cidadania, a persistência da situação colonial de depen
dência externa na economia,o reduzido mercado interno, ã manutenção das
relações autoritárias, servis e senhoriais traduzem-se em condições históricas
perversas e específicas de realização da modernidade.
Entendemos que a literatura vai expressar essa especificidade histórica atra
vés do efeito de predomínio do simbólico sobre o real. O Brasil seria, no caso,o
ten eno fértil para a construção de metáforas e para a realização da metonímia,
o contexto por excelência onde a imagem mental ou visual dá ã aparência o
caráter de essência.
Tal situação coloca problema sérios de identidade, comojá foi aludido. A
pergunta de"quem somos nós?",a resposta do espelho pode não ser a desejável.
O que diz a realidade concreta, ou aquilo que se inteipõe na cotidianidade, é,
em si, problemático para a elite cultivada da nossaJin-de-sièclee peipassada pelos
valores do cientificismo: um país tropical, de herança colonial e escravista, com
uma imensa população pobre e mestiça.
Mas, no caso brasileiro, a representação provoca o efeito de "verdade", e
a cidade imaginária se sobrepõe à cidade real. Assim, se a reforma do Rio de
Janeiro, promovida pelo prefeito "Chico Passos", foi feita no intuito de cons-
tmir uma Paris-sur-mer na sua vertente tropical, o distanciamento entre a in
tenção e o resultado não invalida a força da constmção imaginária. Mesmo
que, em termos práticos, a aproximação com Paris se reduzisse a alguns ele
mentos isolados, como os boulevards ou a fachada eclética ou art-nouveau dos
prédios da majestosa avenida Central, a vida urbana, em sua globalidade, era
vivenciada como condizente com um ethos moderno.
E nesse ponto que a"sedução"de Paris assume o seu caráter de "fantasmago-
ria"ou representação de "corte beryaminiano",dada pelo fetichismo da mercado
ria e dotada do poder metonímico e metafórico de transfiguração do real.
O efeito da representação faz com que o elemento isolado, o caco, o tra
ço, o detalhe seja tomado como expressão do conjunto ou comparável a uma
situação desejada. Assim, não importava que a Rua do Ouvidor fosse quase um
beco ou que a avenida Central não tivesse a pompa e a dimensão da paiisiense
Champs Elysées, pois a sensação de viver numa metrópole dava sentido à exis
tência. Ora,sendo o imaginário social forma de representação do mundo,ele
se legitima pela crença e não pela autenticidade ou comprovação. No caso, os
elementos da arquitetura e do traçado urbano assumem a sua plena dimen
são simbólica. A representação tradicional da cidade é afetada pelas modifica-

161
ções concretas do espaço público,dando mai'gem a um processo ampliado de
metaforização social.
Tomando o detalhe pelo todo e o país ideal pelo país real,ocone uma resse-
mantização gei-al de espaço e tempo:enfim,a modernidade em o tempo do aqui
e do agom,e o Rio se ti"ansfonnai-a numa cidade moderna e cosmopolita.
Indo ao encontro das sensibilidades da época e,ao mesmo tempo,anteci
pando e induzindo foimas de ver e pensar a realidade, a litei-atum é tanto res
posta quanto inti"odução de um imagináiio social urbano.
As afinnações de Biito Broca de que"os éscritoi'es superestimaimn a moder
nização da cidade"'^ ou de que,pai'a a elite,"o chie em ignoim"o Bi^asil e delimr
por Paris,numa atitude afetada"" não levam em conta esta força da representa
ção, de criai- o efeito de real e o potencial altamente metafórico das condições
bmsileii-as.
Jeffrey Needell" nos fala de uma espécie de "identidade fom do lugar",
ao compamr os procedimentos das elites européias inglesa e fmncesa com a
da bi-asileim. Enquanto que, no Velho Mundo,a aristocmcia se embasava nos
valores e costumes do seu passado, pam assumir, pela ü-adição, o seu camter
de elite, no caso bi-asileiro o padmo referencial identitái-io em externo à na
ção. Needell entende o processo tanto como triunfo do colonialismo quanto
como fantasmagoria benjaminiana criada pela realidade bi-asileim.
Concordando com o camter fetichista do processo, entendemos, contu
do,que as repi-esentaçõés,'^^porque produzidas social e historicamente, não são
anacrônicas, deslocadas ou necessariamente falsas, pois tmduzem foi-mas de
sentir, pensar e ver a realidade. Não seria demais lembmr que o imaginário
pode assumir um caráter mais "real" e "verdadeiro" do que as condições con
cretas da existência. As idéias, no caso, estão "sempre no lugar", e essa afii-ma-
ção" só pode ser entendida à luz do simbólico, que possibilita o deslizamento
de sentido ou o descompasso entre o real e a sua representação."
Pode-se dizer que a imagem do espelho é sempre uma ilusão, mas essa não é
sempre mentirosa.Como i-epresentação,a identidade é sèmpre umavereão sobre
o real, que resultou de opções e escolhas. É uma tentativa de "dar ordem" aos
dados espai-sos do real,filtmdos pelos sentimentos,pelos desejos e pelojogo das

Brito Broca. A vida literária no Brasil,, 1900. Rio de Janeiro: MEC, 1^1958]. p.l6.
*^Ibidem, p.92. ^j
Needell,Jeffrey. Belle époque tropiccM^^o Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.l56 et seq.
^^Schwarcz, op.cit.
^^Concordamos, pois, com as considerações de Renato Ortiz sobre este processo, tal como ex
pressa em SU21S obras Cultura brasileira e identidade nacional(São Paulo: Brasiliense, 1985) e A
moderna tradição brasileira (São Paulo: Brasiliense, 1988).

162
forças sociais. A imagem do espelho "é o espaço em que o sujeito enti-a em rela
ção com seus fantasmas"'" e onde se atenuam e/ou acentuam as distinções ou
aproximações entre real e imaginário.
Da "cidade maravilhosa" ao "país das maravilhas", há uma graduação de
escala que, como se aflnuou, opera de fonna metonímica.
Ora, a identidade de uma urbe tende a apoiai-se em maicos de referência
precisos, visuais e sensíveis, que,se por um lado compõem a unicidade do padrão
identitáiio, pemiitindo o reconhecimento da cidade,por outro estabelecem a dife
rençaem face de outros centios urbanos.Via de regia,esstes elementos individua-
lizantes — monumentos,tiaçado urbano,tipo de constmção aiquitetônica, paisa
gem,costumes e procederes—são obseiváveis no centio da cidade,Zoctí.?da origem
da urbe e,quase sempre,núcleo histórico, religioso e político.
No caso do Rio,é com referência a esse centro que incidira a recusa iden-
titáiia da cidade colonial.Tal atitude vai impor aos produtores do espaço a taie-
fa de domar a natureza exuberante, mas ameaçadora,com a sua paisagem aci
dentada e o seu clima tropical. Tarefa que era também a de solidificar um pa-
drâo cultui-al preciso, condizente com a identidade almejada.
Pensar a identidade, definir os tais marcos de individualidade, implica
ter em vista a alteridade. Há que pensar, no caso, a diferença com Paris, mas
não descartar a possibilidade das analogias, que fornecem a poita de entrada
para o ingresso na modernidade urbana.
Entre o cá e o lá, o dentro e o fora, o eu e o nós, a apaiência e a essência,
o ser e o seu duplo,cabe ao escritor— espectador privilegiado da urbe — unir
as duas partes do espelho. Traduzir uma visão litei-áiia do urbano que dê conta
do mito parisiense e da sua ressemantização nacional é o caminho que incide
sobre uma das tensões permanentes da identidade brasileira: como ser, ao
mesmo tempo, original e também tributário da cultura univei-sal.

OS HERDEIROS DO BARÃO E O SONHO DE UMA PARIS TROPICAL

AssinalaJosé Luis Romero que frei Baitolomeu de Ias Casas,invocando Aiistó-


teles,lembim íi que a cidade era aforaia mais alta que poderia alcançai"a vida huma
na. Conclui o historiador ai^entino que,talvez por isso,acentuou-se na Latino Amé
rica a tendência urbana que se delineai"a desde a conquista e que conseguiu mesmo
se estender paia aquelas áieas que"haviam nascido debaixo de outio signo".'®

"Melchior-Bonnet, op.cit., p.l8.


"Romero,José Luis. Latinoaméiira: Ias áudad-esy Ias idens. Buenos Aires: Siglo XXI, 1986. p.IO.

163
o Bi"asil estaria enquadrado, nesse caso, à parte do contexto da América
Latina. É clai'o que a colônia portuguesa seguia os largos traços que caracteri
zavam a foimação histórica da Latino América: a escravidão, a concentração
da propriedade da tena, a dependência ao mercado internacional.
Mas, por outro lado, as cidades biasileiias são vistas como não obedecen
do à racionalidade geométrica da "grelha", tendo a sua origem deteiminada
pelos portos ou encmzilhada de caminhos, desenvolvendo-se em função da
atividade comercial, ou, então, em atendimento a necessidades de defesa, em
tomo de fortes,em enseadas e baías com posição estratégica privilegiada. Chega-
se, mesmo,a não considerai'que tanto as cidades portuguesas como as espanho
las na América obedeciam às "ordenações",que regulavam a sua estmturação.
Contudo,a tendência foi visualizar o mundo português na América como
uma concentração no litoral, qual "caranguejos" em tomo da praia e voltan
do as costas ao interior, para usar a consagrada expressão de Frei Vicente do
Salvador.Por outro lado,o alto predomínio do latifúndio escravista exporta
dor levou,sem dúvida, a uma mralização da sociedade e ao desenvolvimen
to mais acanhado e tardio do urbano. Nos anos 30, Sérgio Buarque de Ho
landa,^® na sua obra clássica Raízes do Brasil, iria consolidar essa imagem ao
opor ao perfil do espanhol "ladrilhador" — consti-utor de cidades — um
português "semeador", voltado para o mral e não para o urbano. Estamos
diante quase de um estereótipo fixado para o legado ui"bano colonial dos
lusitanos na Américal
E nesse contexto que se constitui e se difunde o que se pode classificar
como o perfil da"cidade colonial bi-asileira", com suas mas estreitas,seu casai^io
baixo enti'emeado de alguqs sobrados,com um traçado iiTegular de mas, meias
e becos,entremeados de paços,praças e chafarizes.
Portanto, as considerações de Angel Rama para a rota sui-generis do sur
gimento das cidades na América Latina não se adequariam de foima peifeita
à realidade br^ileira colonial. Para Rama, o fenômeno da civilização das ter-
i-as -americanas implica a transposição para além-már das instituições demar-
cadoi'as da cultura. A criação de cidades seria uma das manifestações da ordem
a ser implantada pelos conquistadores:
Uma cidade cujo começo é o sonho da imaginação que deseja, desejo funda
dor de uma ordem e de lím poder, e que vai crescendo palavra a palavra com
os avatares de uma soçí^áade que articula realidade e leti-a.^"

"Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro;José Olympio, 1969.
-"Rama, op.cit., p.l7.

164
Entendendo a cidade latino-americana como um "parto da inteligência".
Rama entende ser a América o único local onde este sonho de instalação de
uma ordem dada se poderia encarnar. Assim, há na América Latina, desde o
seu nascedouro, a proposta de uma cidade ideal, ordenada e planejada, que
expressava o "desiderato" de uma ordem hiei-árquica. Óu seja, antes de existir
como concretude, a cidadejá existe como representação simbólica, traduzin
do uma vontade. A inexistência de estmtura urbana em determinadas áreas
ou a anasadora ação dos conquistadores espanhóis diante das comunidadesjá
estabelecidas, sobrepondo-se à cultura dos vencidos,fazem,de uma certa for
ma,tábula rasa da tradição pré-hispânica. Mesmo que os fundamentos arqui
tetônicos ou o traçado urbano de uma Tenochtitlan ou de uma Cuzco sejam
presei-vados, a representação da cidade colonial desejada se sobrepõe à cida
de real preexistente.
Historicamente consolidada no século XVI,a cidade colonial sera denunci
ada no século XIX, quando as elites latino-americanas reqrientaiem os seus hori
zontes pai-a os padrões do que seria a meüópole moderna.E Romero quem destaca
essa preocupação refomista da elite crioüa,impulsionada por uma constelação de
valores cultui-ais inspirados nas gi-andes cidades européias.-'
Nos dois casos — na aííiTnação da cidade colonial, à semelhança da euro
péia, atiavés de instmções noiTnativos, e na sua negação — prevalece a pre
sença de uma representação simbólica constmída externamente à realidade
americana. A diferenciação é de que, no caso da América Hispânica, se reco
nhece uma cidade colonial,implantada segundo os ideais meti-opolitanos, que
a nomriatizam e, no caso português, tende-se a generalizar a presença de nú
cleos que surgem sem maior oiganização e intencionalidade. Mas, com o ad
vento do modelo de modernidade urbana, ambas as cidades colonais — his
pânica e lusitana — serâo condenadas.
Mas,voltemos ao caso do Bi-asil, com suas tímidas cidades,entendidas como
verdadeii-as extensões do mralismo agroexpoitador. Um fato veio dai" destaque
à nossa precária vida urbana no romper do século XIX:a timisferência da Corte
paiíi o Bi-asil, em 1808, acabando por instalai-se no Rio de Janeiro.
Como a maior "cidade colonial" do Império, sede da Corte, o Rio de Ja
neiro era também a porta de entrada às idéias novas, concebidas no bojo do
processo de renovação urbana que acompanhou a emergência da moderni
dade. Assim,foi a primeira das cidades a se defrontai- no espelho, em crise de
identidade.Sofrendo um impulso urbano — tardio,frente ao desenvolvimento
de outi-as cidades coloniais da América Latina,como Buenos Aires —,a popula-

Romero, op.cit., p.247 etseq.

165
ção cresceu, e a cidade colonial se viu diante da tarefa urgente de aparelhar-se
como a sede da monarquia portuguesa no Bi-asil.
Se o Rio não nascem de um "parto da inteligência" e se as preocupações
de uma "cidade ideal" não estava nas cogitações de Estácio de Sá e seus com-
panheiios fundadores no distante século XVI,com a tmnsmigração da Corte,
no inicio do século XIX,a situação mudou.De capital do Reino Unido ã capi
tal do Império Bi-asileiro, o Rio colonial só teve agravados os seus problemas,
como maior centro urbano do país, maior porto, maior núcleo de escoamento
da produção cafeeira, maior mercado de escravos no país.
Tal situação cêntrica fez do Rio,ao longo do século XIX,a porta de entra
da de toda uma ligação com a Europa,estabelecendo uma linha de continuida
de entre as idéias sobre a cidade do "Século das Luzes" até as concepções de
renovação urbana da época de Haussmann. A França, no caso, se apresentava
como o interlocutor privilegiado.
Não é possível deixar de lembrar a presença da missão artística francesa,
de 1816, vinda de Paris para criar a primeira École de Beaux Arts da América e
que contava, enti-e os seus membros,além do tão conhecidoJean Baptiste De-
bret,com afigura de Gi-andjean de Montigny,ao qual se devem diversos proje
tos de intei-venção na cidade do Rio.
Segundo Margareth da Silva Pereira, é a partir desta presença francesa no
Rio que se esti"utui'ai"ão as principais tensões em tomo da cidade que crescia e
que se expressava entie aforaiação profissional desses agentes e o que se poderia
chamai"a herança cultui-al americana.-- De um lado,teríamos o gosto pelo monu
mento, como criação arquitetônica do homem destinada a fixar, no espaço, a
memória do tempo,tendência que se acentua na Fi-ança,a partir do século XVIII;
de outro,teríamos a pujança a natureza,que, no caso,se imporia à cidade como
uma decoração monumental; a conjugação entre floresta tropical, montanha e
mai"em tomo do litoral recortado de baías e ilhas. E é tentando compor a inspira
ção arquitetural neoclássica com o enquadi-amento da natureza — uma cidade
colonial à beira-mai"— que ele elabora seus projetos:

De Paris, sobre o plano formal, ele retém a compreensão do papel da praça


como elemento de composição do monumental. O exemplo das praças retan
gulares,articulando a cidade antiga e as zonas de expansão,como outi ora a Place
de Ia Concorde e a Place des Vosges, é retomada em seu projeto do Campo de
Santana. As praças séjhicirculares que enquadram os equipamentos públicos.

-"Pereira, Margareth da Silva. Paris-Rio: le passé américain et le gôut du monument. In: Lorie,
André. Paris s'exporte: nrchitecture modèle ou modèles d'archite.ãures. Paris: Pavillon de PArsenal, Pi-
card Ed.,juin-sept. 1995. p.l42.

166
como aquela do Odéon, são reproduzidas diante do imóvel da Academia no
Rio. As vias retilíneas e ordenadas, no espírito da Rua de Rivoli, obra de seus
mesües Percier e Fontaine, o inspiram certamente para a composição da sua
Via Imperial... E se poderia destacar ainda a influência das obras pai isienses de
Soufflot, notadamente o seu Pantéon, ou do mercado Saint-Gei main,em alguns
de seus projetos no Rio.-^

E, todavia, na década de 70, que o Rio passa a se intenogar sobre a sua


condição urbana. O peso da velha cidade colonial, com o seu centro espremi
do entre o mar e as montanhas, começa a se revelar incômodo. De pacata ci
dade colonial, o Rio de Janeiro exibia, no terceiro quai tel do século XIX, os
efeitos de um crescimento progressivo e cuja transfoimação se dava por acrés
cimos. Crescendo em torno do cais, a chamada "Cidade Velha" apresentava-se
anárquica, apesar dos melhoramentos havidos ao longo dos anos — chafari
zes, ateiTos de fossos de esgoto abertos no Campo de Santana,iluminação pú
blica com óleo de peixe, drenagem do mangue da Lapa, constmção do aque-
duto, etc. —,o padrão colonial começava a ser contestado pela elite cultivada.
A "questão urbana" se colocava como um problema posto para os dirigentes
de uma cidade com mais de 200.000 habitantes. Limpeza pública, transporte,
segurança, moradia e iluminação eram exigências de uma capital que respon
dia às necessidades do café, principal produto de exportação, e a um crescen
te fluxo de imigrantes.
Como aponta Lilian Fritsch:

A convivência humana no Rio de Janeiro se revelava cada vez mais difícil de ad«!
ministi"ar, tomando patente a incapacidade dos organismos iu"banos existentes de
atender às demandas dos cidadãos.-^

Paralelamente à emergência da questão urbana como problema,de Paris


vinha o exemplo bem-sucedido das intervenções do Barão de Haussmann na
capital francesa.
Os tiabalhos executados pelo prefeito do Sena causai-am viva impressão no
jovem Pereira Passos,quando de sua estada em Patis,ajjaitir de 1857,completando
seu aperfeiçoamento como engenheiro na famosa Ecole des PonL<; et Chavssées.-^ A
influência francesa se faiia sentir na década de 70,quando o governo imperial pro-

"Ibidem, p.l42.
-^Fritsch, Lilian de Amorim. Palavras ao vento: a urbanização do Rio Imperial. In: Revista do Rio
deJnneim, Niterói, v.I, n.3, maio-ago 1986. p.76.
Needell,Jeffrey D. Belle Époque trofyiml. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.49.

167
moveu uma política que visava à modernização da capital biasileira. Pereira Passos
participou da Comissão de Melhoiumentos da cidade do Rio deJaneiro,foixnada
em 1874 pai-a organização de um plano global de reforma urbana da cidade.-® A
questão das epidemias colocava na ordem do dia o debate urbanístico sanitáiio.
Este associava as preocupações técnicas de reorganização do espaço — a famosa
exigência da ciiculação do ai; da água, de pessoas e can os — às necessidades da
higiene,ao que a Comissão acrescentou preocupações estéticas com o visual da ci
dade.Considerado custoso e sendo alvo de inúmeras críticas por paite do próprio
governo,o plano não conseguiu atiuir o capital privado necessáiio para a sua exe
cução — de fonna a compensai-a escassez de recuisos do dinheiro público. Os re
sultados prâticosfoi-am mais de natureza estética,com a ti-ansfoi-mação do Campo
de Santana num anemedo do BoLs deBoulogne,obra do paisagista fi-ancês Glaziou."'
Mesmofracassado,o plano dos anos 70 nos revela a sintonia e o conhecimen
to,por paite da elite cultivada biusileira,daqueles princípios que orientavam a ação
e o debate sobre o urbano na Fi-ança: circulação, higiene e estética. Mas, por ou-
tio lado,o resultado final efetivo — o embelezamento de um detalhe do contexto
urbano — vem ressaltai- o aspecto metonímico da refoi-ma urbana "à Ia biusilei-
ra",em que a paite assume a configuração do todo e o visualse impõe como padrão
de referência,ti-azendo a nu a relação enti-e "ser" e "par ecer".
O final do século veio acentuar a questão urbana e pôr em xeque a "cida
de real". O desenvolvimento cada vez maior do movimento do porto do Rio
deJaneiro e a crescente demanda de braços para o café,incrementando a imi
gração, davam reforço às relações externas do país. A participação do Bi-asil
nas exposições universais era uma foi-ma de entrada nos caminhos da moder
nidade. Mas para esses encontros, que tinham o carâter de espetáculo, o Bra
sil precisava mostrar um'rosto. Se os europeus ficavam fascinados pelos aspec
tos mais exóticos da Monarquia tropical dos Bragança — índios, fei-as, borbo
letas, café, pedi-as raras,etc. —,a elite cultivada se questionava sobre a sua iden
tidade. Assumir a assertiva de que o que nos sobrava em natureza nos faltava
em cultura, resignar-se à classificação de pays exotique implicava restar colonial
mesmo depois de nação independente... Osjomais europeus insistiam em res
saltar os aspectos mais originais e primitivos da mostra brasileira no exterior
— macacos, plumas e papagaios —,e certas crônicas chegavam a mencionar
a feiúra da capital do pais, cidade "cheia de negros e doenças..."-®

-®Fritsch, op.cit., p.76.


"Needell, op.cit, p.53.
-'Cf. Pesavento, Sandra Jatahy. Exposições universais: espetáculos da modernidade no século XIX. Sáo
Paulo: Hucitec, 1997.

168
A crise de identidade do Rio colonial traz as contradições de um proces
so de acumulação capitalista que,em condições latino-americanas, acentua o
seu lado pei-vei-so. Os efeitos da herança escravista se combinam à pei-sistência
de uma estmtura patriarcal e oligárquica de mando.Sendo o modelo político
liberal adotado excludente nas suas condições de realização, praticamente se
inviabilizava a realização plena da cidadania e tolhiam-se as chances de que
pudesse constmir um viés democratico de governo. Traduzindo esse processo
em termos de realidade uibana, pode-se dizer que, no final do século, com a
passagem da Monarquia para a República, a elite carioca não se reconhecia
na imagem refletida no espelho. A identidade urbana do Rio de Janeiro não
poderia ser constmída em cima de uma cidade feia, imunda, perigosa, caóti
ca. A cidade do desejo negava a cidade real, e o espelho deveria refletir a ima
gem de uma urbe higiênica, linda e ordenada.
As inversões entre a cidade real e a ideal se completam, num processo de
negação da identidade colonial. As oposições antitéticas entre novo e velho,
progresso e tradição se traduzem numa associação da cidade colonial ao popu
lar e as manifestações da cultura do povo e as sociabilidades presentesjunto às
camadas subalternas são identificadas como sinônimos de ati-aso. Suas práticas
sociais seião condenadas,enquanto hábitos e costumes,assim como seião igual
mente condenados os espaços que os pobresfreqüentam (botequins,quiosques)
ou os prédios onde moram (cortiços,casas de cômodos).Há uma curiosa opera
ção de "limpeza" da memória social, van endo-se tudo aquilo que possa evocai"o
"popular" e o "antigo", que é preciso supeim;
Na redimensão temporal que enfoca a relação passado-presente, é a mo-
numentalidade que aproxima ao passado europeu, como foirna e signo, que
importa afiiTnar e presei"var como "histórico", aniquilando da memória o que
puder ser associado como elemento de cultura populai". A idenddade desejada,
da qual a representação da cidade ideal é uma faceta, aponta em direção à Eu
ropa. Não é de estranhar, contudo,este horizonte de Primeiro Mundo que ori
enta o olhai- da elite cultivada. Se fizei-mos uma reüospectiva das gerações de
intelectuais que se sucederam pós-independência,-® vamos suipreender uma li
nha de continuidade no afinamento com as tendências internacionais. Desde a
primeira geração "nacional",empresái-ia do processo de mptura com Portugal e
educada segundo o espírito das Luzes, passando pela geração romântica, que

^Para as gerações de intelectuais que se sucederam, consultar: Lippi, Lúcia. Modernidade e


questão nacional. In: Lua Nova, São Paulo, n.20, maio 1990. Ortiz, Renato. Cultura brasileira e
identidade naríonaL São Paulo: Brasiliense, 1985. Ortiz, Renato. A moderna tradição brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 1988.

169
na falta de uma antigüidade clássica ou medieval se volta para a constmção de
um mito das origens apoiado na glamourização indigenista,até a chamada "ge
ração de 70",declai^adamente cosmopolita,realista e cientifícista, vamos encon
trar o Primeiro Mundo como um horizonte de referência. Mesmo que voltada
pai^ raízes mais propriamente nacionais,como no caso dos românticos,a estra
tégia de constmção identitáiia obedece ao paradigma europeu. Na busca de
formulação de uma identidade paia o país,o Primeiro Mundo é o "outro" dese
jado,muito distante do componente popular nacional,que se constmiu no"ou
tro indesejável" que a identidade nacional rejeita.
De todas asfoiTnas,o processo de constmção da identidade urbana do Rio,
afiraiada como uma dasfacetas de realização de uma identidade nacional,reve
la o carâter de classe que marca a consolidação das elites: a sua excludência,
assinalada pela negação do povo.
A lenovação urbana carioca obedece àquele ti-aço nacionaljá apontado:
espelha-se no mito parisiense, modelo paradigmático de cidade moderna e
sentido emblemático e metonímico,erigindo certos marcossim
bólicos que fonnulam a compreensão do todo.
No'^ojin-de-sièck,um elemento da cidade eiguia-se como a síntese de tudo
aquilo que evocava o ati-aso e que denegiia a imagem da capital dajovem Repú
blica: o f^igerado cortiço "Cabeça de Porco". Situado próximo à Estrada de
teno D. Pedro II, nele hri)itava um enomie contingente de pessoas em situa-
çao egr^ e piomiscuidade. Quati'o mil e seiscentas pessoas,segundo alguns,
cerca de duas mil, segundo ouüos, mas, de toda foima, viviam em um núcleo
habitacional que conü-ariava todas as noimasde higiene,numa anaiquia arquite-
tonira de quartos,viel^,sobrados,casebres e pátios,tudo subdividido,num incri-
vel labinnto que reunia homens e animais. Conia a notícia de que o seu proprie-
tano sena o Conde d'Eu,o que,contudo,não é certo.Segura,contudo,é afama
que adquinu por ter resistido"asinvestidassucessivas e infioitífei-as realizadas para
elimina-lo, duiante a Monarquia",nos conta Lilian Tes^er Vaz
Seria ele, talvez, a inspiração primeira de Aluísio Ázevedo em seu roman
ce O cortiço ,quando compara a habitação coletiva popular como
um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali
mesmo, naquele lamúiio, e multiplicar-se como larvas no esterco.»'

Vaz, Lilian Tessler. Notas sobre o cabeça de porco.Revista do Rio de Janeiro, Niterói, v.1 n 2 ian
abr. 1986. p.31. J ' > . -s.jaii.
"Azevedo, Aluísio. O cortiço. Porto Alegre: Movimento, 1991. p.34.

170
Finalmente, na gestão do prefeito Barata Ribeiro, em 1893, o Cabeça de
Porco sucumbiu sob o efeito de uma ação do poder público. Símbolo da cida
de que deveria ser destruída, emblema da identidade urbana renegada do Rio
colonial que deveria sumir diante dos ventos do progresso,a ação das picaretas
municipais iria merecer comentários variados. Entre eles, a famosa crônica de
Machado de Assis, que, em absoluto, pode ser rotulado como um admirador
dos progressos urbanos em geral. Pode-se mesmo dizer que Machado não se
sentia "á vontade" no Rio que mudava — e que ainda mudaria muito mais,sob
a gestão de Pereira Passos. Mantinha-se eqüidistante dos debates sobre a reno
vação urbana, mas a destruição do maior cortiço do Rio mereceu a sua aprova
ção,como nos conta em crônica de A Semana:

Gosto deste homem pequeno e magro chamadoJavé Barata Ribeiro, prefeito mu


nicipal, todo vontade,todo ação,que não perde o tempo a ver correr as águas do
Eufrates. ComoJosué,acaba de pôr abaixo as muralhas deJerico, vulgo "Cabeça
de Porco". Chamou as tropas segundo as ordens de Javé durante os seis dias da
escritura, deu volta à cidade e depois mandou tocar as trombetas. Tudo ruiu e,
para maisjusteza bíblica, até carneiros saíram de dentro da Cabeça de Porco, tal
qual da outra Jerico saíram bois ejumentos. [...] Tudo pereceu, portanto, e foi
bom que perecesse. Lá estavam para fazer cumprir a lei a autoridade policial, a
autoridade sanitária, a força pública, cidadãos de boa vontade, e cá fora é preci
so que esteja aquele apoio moral, que dá a opinião pública aos varões provada-
mente fortes.^^

Outras modificações do velho Rio imperial nos inícios da República seriam


assinadas pelo humor fino de Machado, nas suas crônicas de A Semana. Como
dizjohn Gledson, Machado seria "surpreendido por uma modernização que ele
reconhece ser necessária, mas que não quer que ocorra desta maneira".'^
Não se trata de uma nostalgia piegas, nem uma recusa obstinada ao pro
gresso, mas uma crítica à forma pela qual as alterações do velho Rio imperial
se conduzem nos novos tempos republicanos. Como bem aponta Gledson,
Machado revela um desconforto face da nova situação, que faz contrastar a ci
dade colonial com as primeiras tentativas de modernização do Rio,fixando a
atenção no que se poderia chamar a "natureza do caráter nacional" revelado
pelo contexto carioca."'"' Na crônica de 16/4/1893,usa a imagem da antiga Éfe-

Machado de Assis. Crônica. 29.01.1893. A Semana.In: Machado de Assis. Obra completa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3. p.566-7.
Gledson,John.Introdução. Machado de Assis. A Semana.São Paulo: Hucitec, 1996. p.25.
^^Ibidem, p.2õ.

171
so para comentar a descaracterização do Rio em face das tentativas de abolir os
quiosques.Entre a ordem e a desordem,o progresso e a tradição, Machado osci
la; a mudança é uma ameaça enquanto perda de referências, mas é também
necessária, sem o que certos "defeitos" ou "vícios" tenderiam a permanecer.'^''
Da mesmafomia,o Encilhamento mereceria dele críticas ferinas,como na crô
nica de 31/7/1892, quando, diante das negociatas de ações, tanto tenta con
vencei seu criado José Rodrigues a compilai'debêntures, quanto promete um
debênture de cera a São Lucas,se ganhai'algum dinheiro...^® Da mesma fonna,
iioniza a agitoção causada pela nova política econômico-flnanceira,agregando
uma multidão na rua,que ele tomara por uma briga ou meeting}^
O caráter de alteração da vida urbana trazida pelo Encilhamento seria tam
bém apontado por Taunay, no seu romance do mesmo nome,que levava como
subtítulo Cenas contemporâneas da Bolsa do Rio deJaneiro eni 1890, 1891 e 1892, No
prólogo da primeira edição da obra, em junho de 1893, Veridiano Cai-valho
ti-anscreveu trechos dojomal O Tempo, nos inícios de 1891, a comentai' o bur-
burinho que ocorria na encmzilhada das mas da Alfândega e da Candelái'ia:
Todosjogavam, o negociante, o médico, o jurisconsulto, o funcionário públi
co, o coiretor, o zangão;com pouco pecúlio próprio, com muito pecúlio alheio,
corn as diferenças do á^o e quase todos com a caução dos próprios insti umen-
tos dejogo. [...] Cada cidadão foi um incoi^porador e diretor de bancos e com-
panhi^; quem ontem nãolinha capacidade para dirigir uma bodega nas mais
limitadas proporções, viu-se de improviso ai-vorado em diretor de altas finan
ças, cada cidadão descurou do seu oficio parajogar e a praça do Rio de Janeiro
metamorfoseou-se num abrir e fechai' de olhos em um Cassino de Monte Cár-
lo, com a diferença, porém,'dfe haver em Mônaco um só príncipe e muito regi
me no Cassino, e aqui serem muitos os príncipes e abundarem as falcatruas.^®

tidão^que
comenchia,
palavrasbamlhenta
semelhantese que Taunay
agitada", as abre a sua
ruas da obra,falando
Alfândega na"mul
e da Candelá
ria, nos anedores do Banco do Bi'asil, em meio a um atropelo da "massa" e o
tráfego de bondes e caiToças. Os pregões dos coiTetores se cruzavam com "mil
sinais trocados no ar ,fechando negócios, num "terrível aperto", que agrega
va todas as classes da sociedade, gente conhecida e desconhecida do Rio e de
outias cidades e estados, ou mesmo do estrangeiro;

Machado de Assis. Crônica. 16.04.1893. In: Machado de Assis, op.cit., p.566.


^«Machado de Assis. Crônica. 31.07.1892. In: Machado de Assis, op.cit., p.542-4.
"Machado de Assis. Crônica. 18.12.1992. In: Machado de Assis, op.cit., p.561.
"Apud: Taunay, Visconde de. O Endlhammto, 3.ed. São Paulo: Melhoramentos, s.d. p.6.9.

172
Ei-a o Encilhamento, espécie de redemoinho fatal, de Maelsti on oceânico, abis
mo insondável, vórtice de indômita possança e invencível empuxo a que iam
convergir, em desapoderada carreira, presas, avassaladas, inconscientes no re
pentino arroubo, as forças vivas do Brasil, representadas por economias quase
seculares

Em que pese o notóiio ressentimento e perdas pessoais de Taunay com o


regime, como aliás aponta Gledson,'"' fica o registro da alteração na cidade por
um novo niodius vivendi. Inflação e coiixipçãojá eram conhecidos no Brasil, mas
talvez o que tenha chocado os contemporâneos foi a sua extensão e número de
envolvidos e, particularmente, a sua ligação com a mudança do regime, do qual
o Encilhamento foi o arauto em termos de política financeira.
A transformação do Rio deJaneiro em uma Paris-sur-nierse deve à conhe
cida ação de Pereira Passos, prefeito da cidade de 1902 a 1904, em articula
ção com o governo federal, na época, encabeçado por Rodtigues Alves. Não
se trata de considerar que uma Paris-sur-mer tenha emergido como resultado
das praticas urbanistas dos"herdeiro" nacionais do Barão de Haussmann,'" pois
as representações não "espelham" obrigatoriamente o seu referente. Elas, antes
de mais nada, dizem respeito a esta capacidade do imagináiio de "inventar o
mundo",toniando-o convincente,desejável,plausível.
Podemos entender as intervenções na capital federal como um projeto
político, que respondia às preocupações de um novo poder,o qual desejava afir
mar a sua presença através de uma requalificação da paisagem. Coiresponde-
ria, no caso, às aspirações de uma elite política desejosa de dar nova feição e
identidade ao país através da reforma de sua capital. Por sua vez, as modifica-

''Ibidem, p.l7.
""Gledson, op.cit., p.20.
■"A transformação do Rio de Janeiro tem sido objeto de numerosos estudos, dentre os quais
destacamos: Abreu, Maurício de. O Rio de Janeiro e sua evolução urbana. Rio de Janeiro: Zahar,
1986. Abreu, Maurício de. Da habitação ao habitat: a questão da habitação popular no Rio de
Janeiro e sua evolução. In: Revista do Rio deJaneiro, n. 2, abr. 1986. Benchimol,Jaime Larry. Perei
ra Passos: um Haussmann tropical Rio de Janeiro: UFRJ, 1982. (Dissertação de mestrado) Bods-
tein, Regina Celi. Práticas sanitárias e classes populares no Rio de Janeiro. Revista do Rio deJanei
ro, n.4, set.-dez. 1986. Cavalcante, Berenice. Beleza, limpeza, ordem e progresso: a questão da
higiene na cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX. Revista do Rio de Janeiro, n.l, set.-
dez. 1985. Needell, op.cit. Padilha, Síl\ia. Da Cidade Velha à periferia. Revista do Rio deJaneiro,
n.l, set.-dez. 1985. Pereira, op.cit. Rocha, O. P. A era das demolições. Rio de Janeiro: UFF, 1983.
(Dissertação de mestrado) Sevcenko, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1983.
Sevcenko, Nicolau. A revolta da vacina. São Paulo: Brasiliense, 1993. Solis, Sidney Sérgio & Ribei
ro, Marcus Venício. O Rio onde o sol não brilha: acumulação e pobreza na transição para o capi
talismo. Revista do Rio de Janeiro, n.l, set.-dez. 1985.

173
ções concretas do espaço público an-astariam consigo a nonnatização das prá
ticas sociais, compondo,finalmente, uma nova representação do urbano.
A realidade local da maior cidade do Bi-asil apresentava séiios desafios àjovem
República proclamadasob os ventos do progiesso e da civilização e que,acabadas as
contestações dos anos iniciais,se prepaiava paiaimprimirsua maica pessoal no país.
Como se viu, a capital da nação eia uma cidade ainda com tiaçado colonial,
que cresceia demais em função não só de ser sede política como também do co
mércio de seu porto,incrementado com as expoitações do café e com o afluxo con
tínuo de imigiantes. A rigor, os problemas se concentiavam na chamada "Cidade
Velha", com suas mas escui^as, sujas e toitas, com lombas e buiacos.Junto a ela se
enconü^ava o porto,que eia preciso ampliai-e modernizai*,de mode a adequá-lo ao
foi-midável movimento das expoi-tações.E,paii-ando sobre a cidade e seus habitan
tes, o temvel espectio das epidemias,ofantasma da sinistiafebre amaiela, que cei
fava vidas e que fazia com que navios, vindos da Europa, passassem ao laigo da
cidade,pai-a evitai- as doenças que se acentuavam com o temvel vei-ão caiioca.
Como ati-air capitais,impor-se diante das nações estrangeii-as, receber imi
grantes para a expansão do mercado de trabalho livi-e, com uma cidade de tal
tipo? O Rio deJaneiro precisava ser o cartão de visitas do país. A exubei-ância da
natureza do sítio, vista e apreciada de longe, perdia o seu encanto quando se
penetrava na cidade.
Foi, portanto, numa ação conjugada entre o presidente Rodrigues Alves,
Lauro Müller, seu ministro de Indústria, Viação e Obras Públicas, e Pereira
Passos, prefeito do Rio de Janeiro, que teve início o ambicioso projeto de re
modelação urbana da capital do país.
A ousada intervenção tinha como pressupostos o retomo à "tranqüilida
de" política nacional, obtida no governo Pmdente de Morais, o saneamento
das finanças realizado por Campos Salles e o novo acerto interno de forças do
presidencialismo, conhecido como "Política dos Govemadores" e também re
alizado pelo governo de Campos Salles.
Ao ministro Lauro Müller o governo cOiíifiou a refoi-ma do porto da cida
de, para o que foi chamado Francisco Bicalho, ficando confiada a Paulo de
Frontin a abertura da avenida Central, que atravessaria a Cidade Velha até o
cais. O prefeito Pereira Passos, por seu turno, teve carta branca para a refor
ma geral da cidade. Tal como na Europa, a presença dos engenheiros se faria
sentir com força nOs novos tempos da modernidade, que parecia finalmente
chegai- ao Brasil. Coiiio refere Needell,"em ambos os esforços — o da equipe
de Müller e o de Pereira Passos — a influência de Haussmann é patente".

® Needell, op.cit, p.56.

174
Começai-am as demolições na Cidade Velha,an-asando cordços e feios so
brados, desapareceram becos, meias e mas tortuosas para dar lugar a vias mais
amplas, clai-as e a arejadas. Aten os na parte norte do cais deram origem a ave
nidas costeii^as, e à imponente Avenida Central passou a conectar o porto com
o centro da cidade. Por sua vez. Pereira Passos i-asgava uma nova avenida à bei
ra-mar, que ligava o centro à zona sul. Coube ao prefeito uma seqüência de
medidas de impacto,revolucionando o Rio deJaneiro:

Pavimentou ruas, consüuiu calçadas e asfaltou esticadas, abriu o túnel do Leme


(o segundo a ligar o subúrbio distante de Copacabana aos subúrbios mais próxi
mos da Cidade Velha),iniciou a avenida Adântica, criou a avenida ligando os su
búrbios do Flamengo e Botafogo, melhorou uma série de outi-as ruas, demoliu o
decrépito mercado mimicipal, que desfigurava o bairro da Glória, e ergueu ou
tro perto das instalações portuárias e do movimento da Cidade Velha,embelezou
locais como as praças Quinze de Novembro, Onze de Junho, Tiradentes, Glória,
o largo do Machado e o Passeio Público e o Campo de Santana."**

Não vale a pena repisar nas medidas levadas a efeito pelos governos fede
ral e municipal no Rio de Janeiro, que foram bem analisadas pela historiogra
fia. Cabe ressaltar o aspecto de verdadeira revolução urbana do conjunto de
medidas, que foram desde a demolição do morro do Castelo até a perfuração
de outros para a abertura de túneis, passando pela criação de uma linha de
avenidas à beira-mar, enquadrando a cidade, até a edificação de monumentais
prédios, no apreciado estilo eclético em voga na Europa,que passai-am a oma-
mentar a Avenida Central.Sem dúvida,a alteração do traçado urbano e a reno
vação arquitetônica tinham uma função e um sentido. A funcionalidade da re-
foiTna era dada pelos princípios da circulação, da higiene e da estética, ao qual
a dimensão simbólica se acha intimamente ligada. Ora,a ai-quitetura é um modo
de pensar sem linguagem ou que se expressa pela forma, que é uma maneira
diferente de comunicação. Como diz Christian de Portzampai-c,"a arquitetura
não é redutível ao símbolo, mas é simbólica na origem".^^
É basicamente esse efeito de presença que ultrapassa a materialidade e a
funcionalidade da foiTna, que faz um apelo ao imaginário — ou à relação do
homem com o mundo — que cabe resgatai".
Simbolicamente, a intenção era tomar o Rio uma metrópole moderna,
aceitável, desejável, espécie de Paris à beira-mar,glamourizada pela"decoração""

""Ibidetn, p.56-7.
Portzamparc, Christian de. L'architecture est, d'essence, mythique. In: Divorne, Françoise
(org.). Ville:forme symholique, pouvoirs, projets. Liège: Mardaga, 1986. p.26. '

175
tropical do ambiente.Em enfim,um projeto à feição das aspirações mais caras
de uma elite educada à européia, inspirada em matrizes francesas, tendo por
meta uma"cidade-ideal"do tipo paiisiense.
O coiyunto das intei"venções urbanísticas não se resumiu ao traçado da
cidade, mas pretendeu penetrai* fundo nas socialidades e valores do povo. As
sim, a uma deliberada atitude de expulsão dos pobres do centro da cidade,
motivada pela demolição dos cortiços e desü^uição de antigas mas,segfuii*am-se
proibições de hábitos e costumes populares, numa verdadeira airemetida disci-
plinatória: cães vadios, vacas, mendigos, pessoas descalças ou sem paletó são
impedidos de circulai* livremente pela cidade,como até então faziam. Além dis
so,ordena-se a destruição dos quiosques,porserem redutos de socialidades con
denáveis.Regulamenta-se a construção de prédios,e,com as demolições,segfue-se
a valoi"ização do solo, a especulação com os ten*enos e a conseqüente crise de
moradia pai*a a população pobre.'*' Buscava-se eliminar da vista a pobreza, que,
por convicção da elite, era suja e perigosa. Se o centro era o cai*tão de visitas, as
Ccimadas populares, desalojadas, deveriam ir pai*a os subúrbios — para onde se
estendia a rede dos U*ansportes públicos — ou paia asfavelas,já existentesdesde
1897.*® Sílvia Padilha*' refere que as medidas que acompanhaiam as demolições
perturbai*am a vida daqueles que giavitavam em tomo de sei*viços de biscates e
outras atividades de ma e que precisavam moi*ar no centi*o.Apesai*do preço dos
terrenos nos subúrbios ser mais acessível, o custo do ti*ansporte diái-io era ainda
oneroso para os pobres desalojados.
Á normatização da vida e regulamentação dos usos do espaço público se
guiu-se a grave questão da higiene, com as medidas de vacinação conti-a a fe
bre amarela, levada a efeito pelo médico Oswaldo Cmz. A campanha, que
motivou a conhecida Revolta da Vacina,sobre a qual muito se tem escrito,*® é
mais um exemplo do confronto de concepções diferenciadas entre espaço
público e espaço privado, ordem e desordém. O carâter de verdadeira opera
ção militai*, por parte do governo.ao aplicar a vacina, e a revolta populai* con
tra a medida são um exemplo cabal de aquilo que, pai*a um gmpo, era
uma noima racionalizadora e necessária, para os demais era o caos total.
A modemização do Rio deJaneiro traduziu-se, pois,em medidas concre
tas,violentas,que revolucionaram a cidade. Havia um plano de inspiração fran
cesa, e ações urbanísticas
/
foi*am executadas, com o fim último de converter a
;/
^®Cf. Carone, Edgar. A República Velha; evolução política. São Paulo: Difel, 1971.
^Abreu, Da habitação, p.56.
'^^Padilha, op.cit., p.20.
^Consultar, a propósito: Sevcenko, A revolta.

176
cidade real — o velho Rio Colonial — numa metrópole moderna e apresentá-
vel, digna de ser vivida e visitada.
A cidade podia olhar-se no espelho, na expectativa da imagem desejada.
Podia mesmo?
O Rio de Janeiro foia, tal qual Paiis, uma cidade revolucionada, estripada,
aberta, ti-ansfonnada pela ação configurada dos "produtores do espaço", a ser
viço dos governos fedei-al e municipal. Diferenças de escala à paite, o resultado
da combinação de tempos e espaços — a cidade colonial de antes, o caos das
intervenções e a nova cidade surgida — formava um contexto de imagens gi-á-
ficas que dão suporte à estixituração de um imagináiio coletivo. A base paisagís
tica alterara-se e,com ela, praticas sociais, costumes e valores, que seriam repre
sentados, literariamente, por aqueles que vivenciaram a seqüência de mudan
ças. Como espectadores privilegiados da urbe,dotados de uma"sensibilidade fina"
pai-a captar as sensibilidades do momento,os aitífices da vida liteiáiia da época
traduziriam, em sua nairativa, as múltiplas facetas da refonna urbana.
E conhecida a distinção de Brito Broca''® entre vida literária e literatura,
quando se refere à nossa Belle. Époque. Enquanto a literatura diria respeito
à estilística, valores e gêneros,a vida literária se diluiria no comportamento so
cial, no estilo de vida. Em suma, mais importante que o próprio valor literário
das obras, era a sua capacidade de traduzir vivências, aspirações e crenças.
Comparando a literatura e a vida literáiia de Paris com as do Rio dejaneiro,
chegaremos a um panorama nacional marcado por imagens fragmentáiias do
urbano.Ao contráiio de Paris — cidade sobre a qual mais se escreveu e que con
ta, entre os seus narradores, com nomes da mais alta expressão literária — , a
ficcionalidade em torno da metrópole carioca não tem a mesma abrangência. O
próprio Brito Broca,em outra obra,afirma essa abordagem segmentada da litera-
tuia sobre o Rio,que maisfaz ambientarnele personagens e ações do que propri
amente tomar a cidade como objeto de reflexão e sujeito da obra.^°
Refletir sobre um discurso literário nos coloca questões preliminares,que
incidem sobre o lugar de produção do texto e o de sua recepção,ou,em outras
palavras, quem fala e para quem fala.
Quem eram,pois,os produtores de vida literáiia brasileira, artífices de um
imagináiio social sobre o urbano,leitores privilegiados da cidade? Fariam,sem
dúvida, parte do que se chamaria a elite cultui"al do país.
Há, contudo, que ter em conta a sua não necessáiia identificação com a
elite econômica, embora ambas, a rigor, pudessem freqüentar os mesmos es-

Brito Broca. A vida literária no Brasil. 1900. Rio dejaneiro: MEC,[1958].


'"Brito Broca. Documentário carioca. In: Horas de leitura. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992.

vn
paços. Casos isolados — as origens aristocráticas deJoaquim Nabuco ou do Vis
conde de Taunay — não invalidam a constatação de que a maior parte de nos
sos escritores provinha das camadas médias da população urbana.
Conespondiam ou eram antes o fmto das transfoiTnações econômico-so-
ciais que se encontravam no bojo do processo político que implantou a Repú
blica no Bi^asil. A intemalização do capitalismo, a fonnação de um mercado
de trabalho livi"e, o crescimento das cidades, o desenvolvimento e diversifica
ção dos setores secundário e terciário da economia propiciavam a emergência
e fortalecimento de uma burguesia urbana apoiada no capital comercial, in
dustrial e financeiro, assim como de uma pequena burguesia de funcionários
públicos e profissionais liberais. Se podemos afinnar que foi uma composição
do capital cafeicultor exportador com as formas de capital não-agrário que
conduziu a dinamicidade econômica da República Velha, a elaboração do dis-
cui-so legitimador e do padrão identitário do "novo Bi-asil" coneu por conta
de uma elite cultural, que conesponderia,grosso modo,à "intelectualidade or
gânica" de que falava Gi-amsci... Sem a necessária "nobreza de berço" ou for
tuna, eles identificam-se com os padrões de vida elegante da aristocracia local.
E, como intelectuais annados do poder da palavra escrita, tanto foram
ao encontro de tendências e sensibilidades presentes naquela sociedade,quan
to foram os aitífices das opiniões e os orientadores do gosto e da preferência
do público.
Mas o pefril dessa elite cultui-al precisa ser ainda melhor delineado. Qual a
sua fonnação, o que liam, onde trabalhavam, quais os espaços que freqüenta
vam,como se exprimiam?
Obras de Brito Broca ou Jeffrey Needell, assim como outi-asjá clássicas
para a referência da vida literária no Bi-asil,^' pennitem traçar um quadro para
a resposta dessas questões.
Fosse sua educação secundária ou superior, era forte a influência fi-ancesa e
significaüva a gama de conhecimentos ti-ansmitidos. Needell aponta como insti
tuições típicas da fonnação educacional da elite carioca o Colégio D. Pedro II,
complementado após pelas Faculdades de Direito de São Paulo ou do Recife, mas
fonnação aproximada poderiam apresentar aqueles que haviam estudado em
colégios religiosos. Brito Broca menciona o que vendiam as livraiias do Rio e quais
os autores que influenciavam a elite cultivada da BeUe Époque cunoca.?- As livraiias
Gamier,Laemmert,Ftevista Brasileira,Briguiet,Azevedo ou o"sebo"do velhoJoão
Maitins eram ponte ,âe encontio dos intelectuais da época, assim como a porta

Cândido, Antônio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.


Brito Broca, A vida.

178
de eiiU-ada de livros esü^angeiros e ti-aduções de obias célebres.Balzac, Maupassaiit,
Rinibaud,Verlaine,Baudelaire,Hugojean Loi-ain, Oscai Wilde, Nietzsche,Eçade
Queiroz,Huysmans e Tolstoi ei-am lidos pela elite cultui-al caiioca,que os impoita-
va do exteiior.João do Rio,porseu lado,traça um pitoresco quadro dosfreqüenta
dores da Biblioteca Nacional e do que liam.^^ Esses freqiientadores da Biblioteca
iam de intelectuais do poite de um Capisüano de Abreu a estudantes e curiosos,e o
repertório das obi-as consultadas era vaiiado: clássicos da literatura univei:sal e,so
bretudo,fi-anceses: Hugo,Dumas,Verlaine,etc.
Os espaços "cultui-ais" da vida elegante,nos quais se cmzavam as converaas da
vida mundana carioca com ditos e espírito e comentáiios sobre obi-as, autores e
"modos"e "modas"de pensar,eram,principalmente,as liviaiias, os cafés e as con
feitarias. E,sobretudo, havia ainda a Rua do Ouvidor, preexistente à reforma urba
na do Rio, tradicional ponto de encontio onde a elite se reunia para discutir, obser
var o movimento e,fundamentalmente, paia ser vista. A socialização mais ampla
seria dada pela freqüência à Ópera, aoJockey Club e aos clubes sociais e "salões",
cópia nacional dos salões liteiáiiosfianceses,assim como a assistência a conferênci
as, outia mania impoitada e que se toniai-a "coqueluche" o Rio da BelleÉpoque. A
maior paite dos membros dessa elite cultivada acabovi enü-ando paia a burocracia
ou ojonialismo, mas, num e no outio caso,compunham o que se poderia chamai"
o "reforço cultui-al" do sistema de poder. Tal postura não invalidava posições por
vezes criticas ao governo, mas,sem dúvida,elas cimentavam,em sua gi"ande maio
ria, o novo modelo burguês e a identidade nacional desejada. Traduzindo no dis-
cuiso liteiáiio os padrões estéticos e culturais,seus textos estão cheios de expressões
estrangeii"as,sobretudo francesas. A sedução por Paiisfazia com que,a todo çusto,
visitassem a capitalfiancesa,se não com regulaiidade,pelo menos uma vez na vida...
Assim o ílzei"am Olavo Bilac,João do Rio, Théo Filho, Luís Edmundo, Gilbeito
Amado,Felipe de Oliveira,Álvaro Moreyia,Graça Aranha,Patrocínio Filho,Paulo
de Gardênia e tantos outros.
Brito Broca conta os exageros dessa sedução com o exemplo de Bilac, que,
por ocasião de sua primeira viagem,em 1891,voltara tão deslumbrado que,em
carta a Max Fleuiss, chamara o Brasil de "teii"a ignóbil", que só com boa vonta
de poderia ser chamada de civilizada... Enquanto Paulo de Gardênia, ao lá de
sembarcar pela primeira vez,se considerava "recém-nascido", Guimarâes Passos,
moribundo,lá fora para moner...^'' Como se dizia então, caçoando da inclina
ção por Paris, era a "parisina", "moléstia" que acometia a elite da época, cora
efeitos devastadores!

®'João do Rio. CAnemntógtnfo (crônicas cariocas). Porto, Chardron, 1909.


Brito Broca, A vida, p.92-3.

17Í
Nessa altura,cabem as perguntas: para quem escreviam estes letrados?
Qual era o seu público? Ajulgar pela baixa tirarem das edições, este era re
duzido. Circulação mais ampla teriam os textos publicados em jornais e re
vistas, que prolifeiavam na Belle Époque com a modernização da imprensa.
Além da variedade do material impresso e dos periódicos, as grandes inova
ções se deram com a abundância das ilustrações (fotos, desenhos, vinhetas
ort-nouveav), com a difusão da propaganda e com o novo estilo de reporta
gem,com entrevistas e assuntos de natureza sensacionalista. Kosmos,Fon-Fon
e Renascença eram exemplo de periódicos que lembravam as magazinesfran-
çaises e que se incumbiriam de divulgar as obras de nossos letrados. Mas a
divulgação era, ainda assim, restrita, pois era para esta elite que escreviam,
num círculo que abrangia gente talvez não tão culta quanto os autores dos
artigos. Era um público de gosto afrancesado e seguidor da moda em voga,
que impunha o consumo literáiio de tais periódicos. O povo,segundo depo
imento de João do Rio, tinha outras preferências de leitura, mais próximas
de um gênero épico de feição muito antiga, o que fazia com que reprodu
ções baratas repetissem e eternizassem no consenso popular velhas histórias,
como "Carlos Magno", a "Princesa Magalona", a "História da Donzela Teo-
^"Despedida deJoão Brandão"...Para o cronista, tais histórias, publi
cadas em prosa e verso em edições baratas, vendiam mais do que Canaã, de
Graça Aranha...'' ^
Tais constatações, mesmo que dêem margem a lamentos,são condizen
tes com a excludência do processo social instalado desde há muito, no país,
e que consagrara a existência de um hiato entre a reduzida camada culta e a
gi^ande massa de semi-ànalfabetos. Nesse contexto,falar da vida literária da
Belle Époque caiioca é ter em conta as formulações imaginárias da elite e o
reduzido alcance do seu intento de socializar tais representações frente ao
que se poderia chamar o conjunto da população brasileira. Da mesma for
ma, não é novidade que, no que diz respeito às,formulações da identidade
nacional, elas têm sido sempre obra das diferentes gerações cultivadas que
se sucederam no país.
Tendo,pois,como contingente de i-eferências aquilo que chamamos como
a pei"veisidade dafonnação histórica bi"asileira, a especificidade da sua vivência
bui-guesa,o perfil da suí^ çlite e,grosso modo,suas predileções culturais, volte-
mo-nos pai"a as represeritjições literáiias do urbano carioca.

'®João do Rio. A alvui encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Ed. das Org. Simões, 1952. p.66-71.

180
PICARETAS NA ALMA ENCANTADORA DAS RUAS:
CRÔNICAS CARIOCAS DA MUDANÇA URBANA

Na Belle Epoque carioca, um gênero litei-ário iria se impor e se expandir


como modalidade por excelência de registro e expressão da cidade que se ti-ans-
foiTuava: a crônica.
Herdeira do folhetim, a crônica encontiou, no século XIX,seu veículo de
difusão nosjoniais, naquele momento em que a sociedade burguesa impunha ao
mundo o ritmo do progresso e da busca incessante do novo. O desenvolvimento
dos meios de comunicação e a velocidade da notícia imprimii-am à vida urbana
um padrâo de consumo rapido das infoiTnações. Como mercadoria,a crônica vei
culada pelojornal ou pela revista não é feita pai-a duim'. Redigida pai-a infoiTnai-,
chamai- a atenção do leitor pai-a detalhes da cotidianidade ou gi-andes eventos,a
crônica aspira a ser comentada, mas não tem a força de permanência de um ro
mance ou conto. Entretanto, pai-a osfins a que nos propomos,esse gênero "mais
ligeiro" tira de sua "leveza de ser"a própria força. Registi-ando o detalhe e captan
do os valores de uma época, a leitura da crônica é, paia o historiador, uma das
foi-mas pelas quais ele pode atingir, por outios meios que não os tiadicionais, a
representação do passado. E, por irônicos caminhos, dá "permanência" àquilo
que seria um produto "descai tável".
As crônicas cariocas da Belle Époque traduzem uma representação do ur
bano que tanto revelam a sedução de Paris quanto realizam uma leitura "nacio
nal", metaforizada, do processo em curso.
Principiemos pelo efeito "bomba" do "Bota-Abaixo", com a sua seqüência
de demolições e intei-venções radicais no coração da velha cidade. Elsse paito "à
fórceps" da modernidade urbana veio exacerbai-, no contexto nacional,aquela re
lação ambígua entie progiesso e ti-adição.Em Paiis,os textos litei-áiios eiam poita-
dores dessa relação, que não apresentava o cai-áter de uma contradição antagôni
ca. Natui-almente, as concepções ejuízos que se associam à idéia do progiesso são
aquelas mais cai-as à modernidade e que ti-aduzem uma avaliação da necessidade e
da inevitabilidade da mudança.O progiesso— e com ele a ti-ansfoi-mação urbana
— é entendido como inexoravel,ao passo que o conceito de ti-adição se relaciona
com um aleita à consciência nacional pai-a a preservação dos monumentos do pas
sado,da memória e do pati-imônio cultui-al da cidade. Todavia,essas postui-as não
se apresentavam como excludentes, massim,defoi-ma combinada,no binômio con-
sei-vação-mudança.A visão de Balzac — que tende a celebi-ai- a ti-ansfoi-mação bur
guesa da cidade — não é descuidada quanto à preseivação das ti-adições e traços do
passado; nem Victor Hugo — cuja voz é associada à defesa do patiimônio nacional
— representa uma postura antiprogiessista.

181
No caso bi"asileiro, teremos a voz de Olavo Bilac, que faz a apologia do
novo Rio, conti-aiTestada pelo lamento e denúncia de lima Baireto.
Mas, como tendência gemi, as crônicas de jornais e revistas apresentam
uma exacerbação da tendência progi"essista, que se configuia como centi"al pai"a
a definição do novo padrão identitáiio da nação.
As comparações com Paris se sucedem,fixam-se a novos marcos espaciais
da modernidade,e o Rio-metrópole toma o seu lugar no ti'em da história, movi
do pelo progi'esso e inscrevendo o futuro no pi'esente. A disputa enti'e o Novo e
o Velho é, no caso, uma partidajá ganha pelò primeiro.
Comojáfoi apontado,a superestimação da refonna urbana pode ser assi
nalada como um traço do "caráter nacional", que cria o imaginário da modei-
nidade,produz a sensação de "viver em metrópole"e se toma "real" pai^a os que
nela habitam.
De passagem pelo Rio em 1905,o escritor poituguês Manoel de Souza Pinto
presenciou a transformação da cidade e dela deixou impressões interessantes:
O Prefeito Passos é, presentemente, o nome mais sabido, mais repetido, mais cri
ticado e mais elogiado do Rio de Janeiro. É para alguns um deus,e a nova cidade
deve-lhe um profundo culto. Para outros, é o extermínio, o carrasco inexoravel,
um espectro pavoroso. Parece-me, contudo, que todos concordam em que, com
todos os seus indispensáveis defeitos e as suas superiores qualidades, é um gi^an-
de homem. E, pelo mer.os, o homem do dia, há muitas semanas.®®

Apesar do seu olhar"desde-fora" para a realidade nacional,o escritor por


tuguês capta com realismo a cotidianidade convulsionada pelos trabalhos de
destrtiição do velho casaiio,verdadeiro"campo de trabalho"onde,da noite para
o dia, ruas, prédios,praças desapareciam numa assustadora nuvem de poeira e
montes de caliça. Tudo na cidade era "absolutamente provisório", e o cidadão
que buscasse retomar a um lugar não o encontraiia mais,tal afúria demolidora
que alterava o espaço,deixando de ter sentido aplanta da cidade... Entretanto,
nosso viajante lusitano não deixa de se entusiasmíu*com às incansáveis picaretas
que,sepultando "deplorâveisfachadas",os sórdidos esconderijos,os estrangula-
dores labirintos", deixariam passar a "onda leve, puiificadora, do livre ar", fa
zendo vislumbrar que,dentro de poucos anos,o Rio deJaneiro seria"uma das
maravilhas do mundo...""
Mesmo nesse olharsupostamente neuti-o,encontiamos a presença daqueles
traços identificadores da"cidade abeita",com mas lai-gas e prédios direitos,dei-

Apud Brito Broca, A vida, p.265.


"Ibidem, p.266.

182
xando livie a circulação de pessoas, veículos, ai" e água. O paito difícil — mas
passageiro — daiia nascimento a uma metrópole bela,segura, higiênica.
Mais entusiasmadas ainda seriam as páginas de Bilac, nas crônicas da re
vista Ko.wios,^^ saudando o início dos trabalhos de demolição;

Há poucos dias, as picaretas, entoando um hinojubiloso, iniciaram os ti^abalhos


de consü ução da Avenida Centi-al, pondo abaixo as primeiras casas condena
das. [...] No abrir das paredes, no ruir das pedras, no esfarelar do barro, havia
um longo gemido. Era o gemido soturno e lamentoso do Passado, do Ati~aso e
do Opróbrio. A cidade colonial, imunda, reüógrada, emperrada nas suas ve
lhas ti~adições, estava soluçando no soluçar daqueles apodrecidos materiais que
desabavam. Mas o hino claro das picaretas abafava esse protesto impotente. Com
que alegria cantavam elas — as picaretas regeneradoras! E como as almas dos
que ali estavam compreendiam bem o que elas diziam, no seu clamor inces
sante e rítmico, celebrando a vitória da higiene, do bom gosto e da arte!°®

A crônica prima pela animização: a cidade velha chora, e os instiaimentos


de trabalho cantam. Recursos utilizados pelo poeta que, mesmo em prosa, do
mina a linguagem e põe a estética a serviço da idéia mestra que percoiTe as suas
crônicas publicadas na revista ATatítiO-ç: o Progresso.
Seu afinamento com a política de Pereira Passos era total, que o poeta, que
chegou a ocupar umafunção na administração municipal,®" usava a sua arma—a
palavra escrita — como um libelo na defesa da reestnaturação da cidade.
Se as picaretas são regeneradoras, é porque têm o poder de destmir e
sepultar os vestígios de um passado ignóbil, da cidade colonial com a qual a
elite não queria ser identificada, e de, ao mesmo tempo, criarem um novo
traçado urbano que se apoiava na estética, na higiene e na técnica. A trans
formação da cidade é considerada, por Bilac, como radical e definitiva,®' fa
zendo com que a Avenida Central assuma o seu pleno significado: ela é o sím
bolo do Rio moderno e civilizado, e o Rio é o cartão de visitas do país que
busca reorientar o seu padrâo identitáiio. Como também diria o cronistajoão
de Bano, em maio de 1904, nas páginas do Renascença, ante a urgência de
apagar os traços da cidade velha:

O melhor estudo continua sendo o de Antônio Dimas {Tempos eufóricos - análise da revista Kos-
mos: 1904- 1909. São Paulo: Ática, 1983), que orientou a busca e a leitura dessas crônicas. As
referências a Bilac se darão a partir desta obra, assim como as de Gil, Pederneiras e João Luso.
'®Bilac, Olavo. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 1, n.3, mar. 1904.
®°Needell, op.cit., p.234.
"'Bilac, Olavo. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 1, n.l,jan. 1904.

183
[...] o Rio de Janeiro é o Bi^asil. O esti^angeiro que aqui desembai ca, de passa
gem num timisadântico, leva de sua rápida visita à nossa desprovida cidade uma
tiiste idéia de todo o nosso país.®^

A posição eufórica de Bilac acompanha os progressos da ação municipal


de Pereira Passos, entusiasmado com o concurso de fachadas que fora institu
ído para os projetos arquitetônicos destinados à Avenida Central.®'Por ocasião
das comemorações que tiveram lugar com a abertura da avenida,em 1905,seu
entusiasmo é total:

Inaugurou-se a Avenida. Paiece um sonho... Onde estás tu metido, Carrancismo


ignóbil, que por tanto tempo nos oprimiste e desonraste? Em que fuma lobre-
ga, que socavão escuro te foste esconder envergonhado? Em vão te procurei,
nestes últimos dias e nestas últimas noites de novembro, pela radiante extensão
da Avenida formosa [...]. Andíis, com certeza, homiziado nos becos sujos, em que
se mantém édnda a tradição do mau gosto e da imimdície: afúgentou-te a luz da
Avenida, horrorizou-te a alegria do povo, fulminou-te o despeito.*^

A visão literária de Bilac sobre a cidade é inequívoca: o Rio é uma cidade


aberta, simbolizada pelo rasgar da Avenida Central. Ao emaranhado de ruelas
e becos do velho centro, boulevards e prédios no melhor estilo eclético ou art-
nouveau permitiam a livre circulação do ar, da luz, das pessoas e dos veículos.
Uma metrópole, por que não? O Brasil demonstrava, concretamente, que a
modernidade era possível em ten-as nacionais:

Onde se vai perdida a nossa &.ma de povo preguiçoso, amolentado pelo clima
e pela educação, incapaz de longo esforço e de tenaz trabalho? Em que ouü o
país do mundo se realizou jamais um igual prodígio de decisão e de execução,
uma igual maravilha de coragem e de rapidez? Essa nossa inveterada e incurá
vel preguiça era uma lenda, uma invenção, uma torpe mentira.®'

Paladina do progresso,a visão bilaquiana parecia desfazer as incômodas re


velações da ciência do século XIX com relação à raça e ao caráter nacionais. O
cientificismo e evolucionismo denunciavam os perniciosos efeitos da mestiçagem
e mesmo do clima,adversos aos valores do trabalho,base do progresso e da civili
zação. Um povo identificado com o ^estereótipo da indolência encontrava a sua
h
®-Apud Dimas, op.cit., p.l5.
Bilac,£)lavo. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 1, n.4, abr. 1904.
"Bilac, Olavo. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 2, n.ll, abr. 1905.
® Ibidem.

184
redenção na emergência de uma nova cidade, que an-astaiia consigo todo um
novo ethos, traduzido em maneii-as, expressões,sociabilidades, hábitos.
Assim, Bilac apoiava todas aquelas medidas que, na seqüência da refor
ma urbana, visavam a dar um outro padrâo de vida à cidade,como,por exem
plo, a obrigatoriedade da vacina contra a febre amarela, em 1904, e contra a
varíola, em 1908.
Para Bilac, a revolta popular contra a proposta de vacinação vinha de
mostrar que o Brasil não tinha ainda um povo. Ou seja, quer parecer que Bi
lac considerava que uma nação só se realizatia como tal quando possuísse seu
povo a instrução adequada para aceitar as exigências da vida civilizada:

E não há povo onde os analfabetos estão em maioria. Quem não sabe ler, não
vê, não raciona, não vive. [...] A revolta de agora não foi apenas obra dos desor
deiros de profissão: foi também obra de ignorantes, explorados criminosEimente
pelos astutos. E não sei bem para que seiríra das avenidas, ái-vores,jardins, pa
lácios a esta cidade — se não derem aos homens imdes os meios de saber o que
é civilização, o que é higiene, o que é dignidade humana.®®

Em suma,o olhar do cronista captava os contrastes da cidade no mesmo


momento em que ela se erigia como metrópole, mas atribuía uma resseman-
tização a tais descompassos urbanos.
As práticas sociais de intervenção no Rio, associadas à representação
identitária desejada para a urbe, levavam a uma reconfiguração espacial e
temporal da cidade.
A Avenida Centi:al,com a sua predecessora Rua do Ouvidor,eiam os espaços
de referência para a vida mundana e cultural,como marcos arquitetônicos e urba
nos da cidade que se queria. Os referenciais da cidade velha iam,aos poucos,sendo
destinídos, e a percepção espacial reorientava aquela do tempo: o Rio apagava o
seu passado e inscrevia o seu futuro no presente.Fossem só materiais e concretas as
imagens do contiaste entre o velho/condenado e o novo/desejado,e a tarefa de
constinir uma cidade realmente maravilhosa seria fácil... Mas havia as socialidades
antigas,os velhos hábitos denunciadores de barbáiie,aliados à ignorância do povo.
De forma recoirente, Olavo Bilac atacava o carnaval como manifestação grosseira
de baixos instintos (para exaltar a sofisticação do carnaval paiisiense) da mes
maforma que lamentava que as camadasfavorecidas da cidade nãofreqüentassem
o teatro conforme o desejado.®®

®®Bilac, Olavo. Crônica. Kosníos, Rio de Janeiro, ano 1, n.ll, abr. 1904.
®'Bilac, Olavo. Crônica. Kostnos, Rio de Janeiro, ano 1, n.3, mar. 1904; ano 3, n.2, fev. 1906.
®® Bilac, Olavo. Crônica. Kosmos, Rio dejaneiro, ano 3, n.6,jun. 1906.

185
A visão dos conti-astes uit>anos apai-ece de foiiria exemplai* na descrição que
Bilac faz de um caiToção com romeh*os da Penlia ati*avessando a paisagem urbana:
[...] e naquele amplo boulevard esplêndido, sobre o asfalto polido, conti*a a fa
chada rica dos prédios altos, conti*a as carruagens e carros que desfilavam, o en-
conti*o do velho veículo, em que os devotos bêbados urravam, me deu a impres
são de um monstruoso anacronismo:era a ressurreição da barbaria—era uma ida
de selvagem que voltava, como uma alma de outi*p mundo,vindo perturbar e en
vergonhar a vida da idade civilizada [...l."®

A condenação das socialidades populai*es é,no caso,explícita,identificada


como ofensiva à estética e configurando-se como um retrocesso às imagens do
passado colonial que se queria esquecer.
Soluções pãi'a os desníveis culturais?
A regeneração viria da educação, da elevação do espírito e dos princípios
moi*ais. Bilac identifica uma questão social, marcada pela presença dos pobres,
mas a solução é antes moral, sem que seja posta em questão a causa. Não se
pode pensar que a visão eufórica do escritor não apontasse problemas no pi"o-
cesso de urbanização carioca, e eles estavam radicados, por exemplo, na escas
sez de habitação para o povo e na alta dos aluguéis,™ assim como nas precárias
condições de higiene da periferia urbana."
Se,em face da alta dos aluguéis, Bilac prega a formação de uma "Liga de
Inquilinos" e afirma que o problema da moradia é o mais teiTÍvel de todos,ter
mina suas ponderações com propostas irônicas, como se os pobres pudessem
morar ao ar livre, com o que supje;*lotariam as áreas nobres e chiques da cida
de — Avenida Central, Avenida Beira-Mar —,assim como as recém-incoipora-
das — Tijuca, Copacabana —,transfoimando-se num grande acampamento a
céu aberto... Entre uma última ii*onia — lamentando que os pobres não fossem
como o caracol,com a casa às costas — Bilac demanda soluções governamentais
para a crise habitacional...
Não caberia a conotação de alienada para uma visão desse tipo, pois ela se
justifica dentro da lógica em que se encen*a: de quem paite o discui*so, para
quem se dirige e quais as questõesfundamentais emjogo.E estas, no caso, não
passam por uma refoi*ma da estmtura social, mas sim pela sua confii"mação.
Embora entusiasta com o "etho^ urbano" e parisiense, seduzido pelo cMc
do mundanismo e da cultura franéésa, Bilac abordou também,em suas crôni-

®®Bilac, Olavo. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 3, n.lO, out. 1906.
'"Bilac, Olavo. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 4, n.lO, out. 1907.
"Bilac, Olavo. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 4, n.ll, abr. 1907.

186
cas, costumes propiiamente caiiocas,o que não quer dizer exatamente popula
res. Sob o pseudônimo de "Fantasio", Bilac exercita uma refinada ironia para
descrever não só a predileção pela dança, mas para debochai- dos oradores da
"hora da sobremesa" nosjantares.'- Interessante crítica à fascinação nacional
pela oratória,justamente da parte daquele que, como Coelho Netto, havia in
troduzido no Brasil a moda das conferências.'^ O pseudônimo, no caso, sei-via
de máscara a um "aflorar" de sua postura mais distante dos padrões da elite,
chegando mesmo a revelar um sarcasmo pelos seus hábitos e valores?
De foi-ma mais leve, Olavo Bilac comenta o namoro no Rio,'^ os "morde-
dores" ou achacadores,^'dispostos a pedir dinheiro emprestado a terceiros, ou
os "basbaques" ou desocupados,sempre dispostos a obsei-vai- o que se passava na
ma.Na sua identidade de Fantásio, Bilac abandonaria a crônica séria, cultivada
e se aproximai-ia da crônica de costumes, utilizada, de foi-ma irônica e inovado
ra, porJoão do Rio.
O tom gei-al, contudo, e que dá a conotação paiticulai- das crônicas bila-
quianas, é o entusiasmo com as refoi-mas urbanas e a exacerbação metafórica
do significado das imagens da cidade.
Outros escritores da época confii-mai-iam essa visão eufórica e confiante
na transfoi-mação do Rio em metrópole.
A própria revista Kosmos, que tinha Bilac como caiTO-chefe no domínio das
crônicas, possuiu outros colaboradores de menor expressão, como Gil. Entusi
asta do progresso, Gil saudava o início e o término das obi-as da Avenida Cen-
tial,selando o desapaiecimento da cidade colonial,^® e classificava o governo como
"ledentor",^^ num adesismo acentuado à situação política vigente.
O potencial menonímico se revela com toda a sua força: uma ma valia
pela cidade, uma cidade era o país:

A "grande artéria" dominava o Rio e o Rio sugestionava o Brasil. [...] Com ela
veio a ti-ansformação completa da urbe. [...] com ela veio mais a metamorfose
do gênio da cidade.^®

A visão ufana coloca em cena a multidão, complemento indispensável da


metrópole. No caso, a multidão que,em tumulto,cruza a alterosa avenida,con-

'"Bilac, Olavo. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 3, n.6,jun. 1907.


"Cf. Brito Broca, A vida, e Joáo do Rio, op.cit.
"Bilac, Olavo. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 3, n.7,jul. 1907.
"Bilac, Olavo. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 3, n.8, ago. 1907.
"Gil. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 1, n.9, set. 1904; ano 2, n.ll, nov. 1905.
"Gil. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 2, n.5, maio 1905.
"Gil. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 2, n.ll, nov. 1905.

187
ti"astando com o silêncio dos caiTos que por ela ti^afegam, é, por sua vez,a ima
gem metafórica e reduzida do povo bi"asiIeiro. A multidão que se agita e a má
quina que a sei"ve,silenciosa, operam como elemento micro que dá significân-
cia ao todo. O novo Bi^asil, moderno,se revela com sua gente operosa no do
mínio da técnica mais avançada.
Outro seria Mário Pederneii^as, a manifestar, em suas crônicas, a biusca
mudança da cidade,onde os elementos novos tomavam os velhos lugai"es iiTeco-
nhecíveis.'® Se o narrador/escritor pode deixar transparecer um resquício de
melancolia ante o desaparecimento dos traços antigos da cidade, nas demais
seu texto é todo entusiasmo, ao passar de automóvel pelo novo Rio®® ou ao te
cer considerações sobre o efeito que a transfonnação urbana causara — para
melhor — no compoilamento feminino.®' Uma nova mulher, mais elegante,
refinada,freqüentava os novos espaços, num ajuste com a cidade-metrópole.
Por vezes, o cronista cede a uma tendência hlasée, oscilando entre o ennui bau-
delairiano e o decadentismo de Huysmans: apesai- do agito e da renovação ur
bana, a noite caiioca era um tédio!®*
Em síntese, a revista Kosmoscriava e difundia uma vei"são glamourizada da
imagem desejada da elite cultural carioca, a qual se considerava no centro da
cena nacional, o que não deixava de ter coirespondência com a realidade cul
tural brasileira. Como elite, ela se revestia da autoridade de "dizer o país","di
zendo"a cidade ti-ansfoimada.- ^
Não sera demais insistir nessa característica, tantas vezes repetida,de con
siderar a paite pelo todo, transfigui-ando o real, num processo metonímico e
metafórico. E, talvez para aiTematai"com um viés tão genuinamente nacional,
caiba relembrar a crônica de João Luso,"A sublime poita". Recolhendo ima
gens atuais na época,que indicavam a situação pós-Gi"ande Guen"a nas suasfron
teiras com o Império Otomano,João Luso chamava a poita da Livimia Gamier
destaforma:

Atravessá-la, representa já um primeiro êxito, qualquer coisa como ü anspor,


desse passo resoluto e heróico, o marco da esti'ada simbólica, para aquém do
qual tudo é obscuridade, para além do qual tudo é consagração.®*

.. /V
^Pederneiras, Mário. Crônica. KosnwSf Rio de Janeiro, ano 3, n.lO, out. 1906.
Pederneiras, Mário. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 4, n.lO, out. 1907.
Pederneiras, Mário. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 4 n.ll, nov. 1907.
Pederneiras, Mário. Crônica. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 5, n.5, maio 1908.
Luso,João. A sublime porta. Kosmos, Rio de Janeiro, ano 5, n.ll, nov. 1908.

188
Sublime porta que abria pai^a a celebridade, tiTuispô-la erajá um desafio,
mas também um ritual, que consistia em adotar um ar entre decidido e blasé,
de quem é habitue e que veio se disti^air, sendo, ao mesmo tempo,em tudo su
perior aos que ficam na calçada... Na saída, com um livio debaixo do braço,

[...] já não se encontia a mesma multidão atônita e escandalizada, enconti*a-se


o povo extasiado, dominado, pronto a admirar incondicionalmente e para sem
pre glorificar.®^

Aqui,a multidão se opõe,como massa,ao eleito, cuja audácia fizera cmzai'


a poita da Ganiier! Freqüentador da casa, ou não,frente aos demais na calçada
passava a ser confundido com aquele ilustrado e seleto giaipo, representativo da
vida liteimia da época...
Sobre a decantada Rua do Ouvidor, Coelho Netto, em seu livio A capital
federal, naira a desilusão do interiorano Anselmo, ao ver a famosa ma pela pri
meira vez:

[...] perdoa-me, artéria da civilização patiícia, perdo-a-me, avenida da elegân


cia e do espírito fluminense, não passas de uma viela atai'racada e sórdida.®^

O imaginário sobre a Rua do Ouvidor,laigamente difundido, não condizia


absolutamente com a acanhada mazinha do centio do Rio que aii-asava com as
ilusões do moço do interior. Mas, entre a cidade real e a cidade sonhada, qual
deveria prevalecer no coração e no olhai' dos indivíduos? O velho tio Anselmo,
morador do Rio,fez-lhe ver que,na verdade,a Rua do Ouvidor,não era bela, não
fora traçada por um Haussmann e era um beco, mas tinha seus encantos.

[...] ela é o centi o da vida nacional. [...] Todos os giandes fatos da nossa política
e da nossa literatura derivam da Rua do Ouvidor — ela é o estuáiáo que recebe
todas as correntes, o centio para onde convergem todas as forças ativas da na
ção e de onde escoa a seiva intelectual.®^

Descortinado o caráter simbólico, a força do seu significado passa a reve


lar-se como dotada de uma capacidade para minimizai'os dados do real. Que
importava que fosse suja ou confusa? A Ouvidor era o próprio Brasil culto e
civilizado, dotado,como as crenças e religiões, do poder mágico de uma verda-

Ibidem.
Coelho Neto. A capitalfederai Porto: Chardron, 1915. p.80.
Ibidem, p.83-4.

189
de revelada. Ei*a preciso sentir, acreditar e entendê-la como um centro neiTOSO
da vida nacional,imagem esta que a Kosmos difundia com eficácia.
Bríto Broca nos tiaça um variado panorama das demais revistas que, ao
lado da Kosmos, ti^aziam as crônicas tão apreciadas na época e que, no registro
comentado do cotidiano,faziam o que se poderia chamar a tradução literâria
do novo ethos urbano. Eram elas A Rua do Ouvidor, que "refletia a ditadura do
famoso 'beco' na vida social do Rio",^^ A Avenida, com notória inspiração na
famosa Avenida Central,Fon-Fon, A Careta, A R^ista Americana, A Floreal, Renas
cença, O Pirralho, etc. Há, entre elas, maior ou menor concessão ao mundanis-
mo, mas todas publicavam os artigos daqueles que integravam a elite cultural
carioca. Ainda que, no dizer de Brito Broca, muito da sua produção pudesse
nada representar para*a literatura nacional, são, contudo, representativas do
que ele considera a "vida literâria" da nação num momento dado."^
Pai^a a maior parte desses 'jornalistas/escritores", a expressão consagrada
do cronista Figueiredo Pimentel — "O Rio civiliza-se" — tomara-se uma divisa.
Figueiredo Pimentel, na sua coluna"O Binóculo", da Gazeta de Notícias,foi,
pode-se dizer, o pioneiro da crônica social no país, e é de inegável importância
o seu registro da vida mundana carioca. Considerada gênero menor — por tratar
do registro do cotidiano — das coisas familiares,do dia-a-dia, a crônica de Figuei
redo Pimentelfez da cotidianidade de uma reduzida parcela da população o "es
pelho" da sociedade. Mais uina vez, retomamos a faceta metafórica da imagem
desejada. O carâter de falsidade ou de simulacro não deve desviituar as potencia
lidades do imaginário. A importância da "fachada" faz "crer" na imagem refleti
da,dando vida e "concretude" àfantasmagoria.
O cronista Luís Edmundo,^ ao registrar as suas memórias,opõe a cidade de
antes da reforaia — o Rio colonial, que Bilac chamava de "velha cafraria portu
guesa" — à nova capital surgida após a ação conjugada de Pereira Passos, Oswal-
do Cmz,Paulo de Frontin e Lauro Müller. A reforaia tivera o regenerador efei
to de "branquear" a população, até então predominantemente escura, pela re
cepção de novas comentes migratórias, atraídas pelo novo visual da cidade.
Só os que conheceram, como eu conheci, a capital que foi da monarquia, a
mesma que se estendia, depois, ati asada e mofina, até quase ao albor do século
que corre, é que pode avaliar, com segurança, as grandes tiansformações que
nela se operaram. Transform'4ções até de usos e costumes. Abandonamos hábi
tos portugueses, despedimo^hos de vários preconceitos e convenções vindas do
tempo em que éramos colonos, criando, desta forma, ambiente melhor e mais

87
Brito Broca, A vida, p.219.
Ibidem, p.44.

190
consentâneo com o meio americano em que sempre vivemos. Mudamos tudo,
chegando até ao ponto de mudar, por completo, a nossa mentalidade peada
por longos anos de casmurrice e rotina. Razão, portanto, havia quando, ao re-
gistiarem tão profícuas reformas, pelo governo Rodrigues Alves, as gazetas da
terra, uníssonas, gritavam — o Rio civiliza-se!
Cirilizava-se, com efeito! O Progresso, que havia muito nos rondava a porta,sem
licença de entrar, foi recebido alegremente.^^

O abandono dos hábitos portugueses cairegava consigo o repúdio ao pas


sado colonial que, no tecido rememorativo, é relembrado como pitoresco e
exótico. Exótico, sim, porque a vocação do Novo Mundo era, sem dúvida, a
modernidade e o progresso,que finalmente chegaram na cidade.Antes das obras
revolucionárias, só o oásis da Rua do Ouvidor representava um pedaço de Pa
ris no Rio, e Luís Edmundo recorda, deleitado, o prazer que sentiam os cari
ocas quando estrangeiros comparavam aquele sofisticado espaço da cidade com
a Rue de Ia Paix, a Rue Vivienne ou a Castiglione...^"
Esse tipo de impressão, que tece a representação da cidade,segundo ima
gens contiTistantes, Luís Edmundo a retoma em outra obra, também de cunho
memorialístico, O Rio deJaneiro do iiieu tempo. Com minúcia fotogiúfica, descreve
casa a casa os prédios que foiTnam o que chama "o coração da cidade", dando
os nomes chies e afmncesados dos estabelecimentos comerciais e, sobretudo,
contmstando esse espaço refinado e reduzido com o "resto" da cidade.^^
Se o Largo da Carioca é triste, feio e deselegante, porque associado ao
Rio antigo e, portanto, atrasado,sobram os chamados espaços nobres, como o
café Paris, rendez-vous dos elegantes depois de meia-noite,®- e a tão decantada
sedução da livraria Gamier,também chamada por ele de "sublime porta".®^
Luís Edmundo testemunha aquela característicajá apontada na nossa vida
literária nacional: a maior parte das obras vinha de fora, através dos livreiros
que importavam livros da França, Alemanha,Inglateira, Itália, Espanha e Por
tugal. Afirma Luís Edmundo:

O prestígio do livro francês, porém, continua imoderado e incondicional. Com


que avidez os lemos! Nos colégios, ainda se estuda o novo idioma pelas obras

®®Luís Edmundo. De um livro de memórias. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Oficial,


1958. v.l. p.162-3.
^Ibidem, p.l92.
Luís Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. v.l.
p.72-6.
^Ibidem, p.l25.
^'^Ibidem, v.II, p.701.

1\91
dos clássicos portugueses. Não há biblioteca sem o seu João de Barros encader
nado em cameii-a, as obras de Gil Vicente e de outi os marechais das leüas lu
sas, velhos e novos, o infalível busto de Camões em terracota, com uma coroa
da mesma massa na cabeça... Contudo, persistimos franceses, pelo espírito, e,
mais do que nunca, a diminuir pelo esnobismo tudo o que seja nosso. Tudo,
sem a menor exceção. O que temos, não presta: a natureza, o céu, o clima, o
amor, o café. Bom, só o que vem de fora. E ótimo,só o que vem da França.^
Exacerbando a avaliação impiedosa daquilo que apontava como um traço
formativo do caráter nacional,Luís Edmundo chegava a dizer que era mil vezes
preferível ser cocheiro de fiacre,em Paris, do que presidente da República, no
Brasil!
Nessa linha de raciocínio,explica a necessidade compulsiva da elite de pas
sar temporadas na Europa;

Viaja-se. Espairece-se. O diabo é a volta. Com que U isteza aqui se desembarca,


no Pbaroux, depois de uma amável vialegiatura por lugares como Londres,
Paris, Roma, Madrid ou Berlim!®

Todavia,as imagens da cidade reformada deveriam ter atenuado,em par


te, esse quadro de desilusão. Não que a elite deixasse de aspirar por Paris ou de
ler autores franceses, mas a sensação de viver numa metrópole moderna deve
ria dar efeito de realidade à fantasmagoria de Paris-sur-mer...
Mas,sem eno de análise, o maior cronista da Belle Époqiie carioca,foiJoão
do Rio, pseudônimo de Paulo Baireto.
A atualidade de sua obra advém,antes de mais nada,dos seus insightssobre
a realidade nacional.Tal argúcia não pode ser confundida com um radicalismo
político ou conscientização social profiinda.João do Rio é,ele próprio,expressão
de um modo de ser profundamente brasileiro:é influenciado pelo Primeiro Mun
do,é seduzido por Paris, mas é capaz de fazer uma leitura "nacional" da realida
de. Ao falar do Rio, nosso cronista encontra umaforma de nele ver Paris e tam
bém o Brasil, expondo as misérias e as gi-andezas nacionais.
Seria, talvez, a encamação mais precisa, em sua época, daquela postura
absolutamente moderna, baudelairiana e recuperada por Marshall Berman,
de experiência de atração e repúdio pelo mundo em transformação. Nem lou
vor inestrito, nem condenação total é o fio condutor de sua postura frente as

®Ibidem, p.702.
®^Ibidem, v.I, p.337.

192
ambigüidades do país, entre o progresso e a tradição, o mundo da elite e o po
pular, o mito de París e a realidade nacional.
Por outro lado, há que refeiir João do Rio como o exemplo mais acaba
do do novo tipo de crônica condizente com a evolução dojornalismo, inovan
do com a introdução das entrevistas e reportagens feitas in loco, freqüentando
espaços e abordando temas inusitados. Uma "outra cidade" se revelava em re
portagens sensacionalistas, que eram lidas com avidez, não faltando quem dis
sesse que "tudo aquilo era fantasia, simples invencionice de um cérebro imagi
noso".®''Se, em parte,João do Rio foi ao encontro das necessidades de consumo
jornalístico de uma cidade que crescia, captando o gosto do público, por outro
lado impôs um novo estilo de escrever e aproximar-se do cotidiano da cidade.
Na sua ousadia, o cronista subia os monos, descia às prisões, andava por
lugares escusos e entrevistava gente da ma, tipos populares, meretrizes, ma
landros, criminosos, trabalhadores humildes. Mas,se era capaz de "descer aos
infernos" do bns-fond carioca, "subia aos céus" para freqüentar os redutos da
socialidade elegante, como dandy refinado que era...
Se a silliueta não ajudava — era gordo e mulato —,João do Rio pelo menos
apresentava-se no rigor da moda paiisiense, com chapéu coco, polainas, monó-
culo e casacas coitadas segundo as últimas tendências da capital fitmcesa...
Culto,com familiaiidade com os autores europeus,freqüentava os lugaies
chies e registrava o mundanismo caiioca na sua coluna "Pall Mall Rio", na Revis
ta da Semana, imitando a sofisticada Pall Mall, do cronista Michel Georges Mi-
chel, de Deauville e Côte d'Azur. Tendo viajado várias vezes a Paits,João do Rio
recheava suas crônicas com expressões fiancesas e citações de autores consagra
dos. Um estilo talvez pernóstico e iiritante, por vezes empolado, mas que paie-
cia conesponder a um estilo de vida que, se não refletia exatamente ás condi
ções concretas da existência, pelo menos era o padrâo desejado pela elite.
A metrópole fitincesa é, para ele, um horizonte de referência obrigató
rio. Assim é que, por vezes, discon e sobre sua última viagem a Paris, revelando
detalhes do espaço que denotam a intimidade com a capital francesa. Deixa
va, sem dúvida, roídos de inveja os que não haviam tido condições de visitar a
bela Paris, quando considerava a "banalidade monstro dos houlevards"ou afir
mava que "é preciso ter estado na cidade luz"®^ paia poder apreciar, avaliar
ou entender o que ele dizia...
Tais atitudes, próximas a um í?nnMÍ baudelairiano ou a uma postura blasée,de
déjà vu, que lembram o decadentismo jin-de-siècle de Huysmans, não devem ser

'"Brito Broca, A vida, p.237.


"João do Rio. Psicologia urbana. Rio de Janeiro; Garnier, s.d. p.90.

193
tomadas como um adesismo cosmopolita sem restrições. Há, claramente, unia
extiema afetação na postura, mas, paralelamente a essas considerações, nota-se
uma visão profundamente sarcástica da política urbana que teria tentado impor
ao Rio o houlevardÍYítncès, o squaremglès e a pei-spetiva mssa à Ia Nevsky...
Ora,João do Rio presenciou a refoiTna Pereira Passos e a transformação
da capital caiioca, esteve no "olho do furacão" que se abatera sobre o Rio.
Por um lado, ele se declara um adepto dos novos tempos:

Eu nunca tive a nostíilgia hereditáiia que acha sempre o tempo passado bom tem
po. Para mim, hoje, é sempre melhor do que ontem e pior do que amanhã.'®
Mas esse endosso apar entemente sem restrições ao progresso não deixa de,
em outros momentos,vir acompanhado de considerações mais profundas com
relação à dialética da mudança e de peiTnanência, ou da problemática das tra
dições face o progresso:

A mudança! Nada mais inquietante do que a mudança — porque leva a gente


amarrada a essa espei-ança, essa tortura vaga que é a saudade. [...] Que nos resta
mais do velho Rio antigo, tão curioso e tão característico? Uma cidade moderna é
como todas as cidades modernas. O progresso, a higiene, o confortável revelam
almas, gostos, costumes, a civilização é a igualdade num certo posto, que de co
mum acordo sejulga admirável, e, assim como as damas ocidentais usam os mes
mos chapéus, os mesmos tecidos, o mesmo andar, assim como dois homens bem
vestidos hão de fatalmente ter o mesmo feitio de gola do casaco e do chapéu, to
das as cidades modenras têm avenidas largas,squares, mercados e palácios de fer
ro, vidro e cerâmica.'"**

Ambivalente nas opiniões,como ambivalente é o processo da moderniza


ção que a cidade atr-avessa,João do Rio entende o progresso como "inevitável"
e, sem dúvida, aprecia os seus espaços e práticas emblemáticas — automóvel,
footing,Jive o'clock ten —,mas deles faz troça. Estr-atégia de viarketing, par-a cho
car e vender a sua crônica-mercadoria para uma elite ávida de sensações ou
enfastiada á?ijoie de vivréí É possível que fosse esta a sua linha de conduta, mas
também por aí se insere a atualidade de seus escritos.
João do Rio traduz, nas suas crônicas, uma representação da cidade como
metrópole. O Rio de Jaiífeiro é agitação, bulício, multidão e variedade de

"Joáo do Rio. Cinematógrafo (crônicas cariocas). Porto: Chardron, 1909. p.225.


""Ibidem, p.l85.
'""Ibidem, p.213-4.

194
tipos, o que caracterizaria o seu cosmopolitismo. Assim, quando narra pas
seios pela cidade, o cronista atravessa inas"em tumulto", percone locais onde
se acotovela um "formigueiro" de gente e registra os elementos simbólicos
deste pi ogresso urbano: automóveis,luzes feéricas, vitrines iluminadas, buzi-
nas, risadas.
A crônica sobre a Missa do Galo, quando ele percoire a cidade em um
"automóvel possante", é bastante significativa em imagens deste tipo:
Tomei de novo o automóvel e disse ao chauflFeur:
— Para Copacabana.
Naquele delicioso percurso da avenida Beira Mar, toda ensopada de luz elé-
ti ica, outi os automóveis de toldo arriado, outi os carros, outi"as conduções cor
riam na mesma direção. [...] Quando, no fim da avenida, os automóveis se
guiam pelas antigas ruas, cada encontio de bonde era uma catástiofe. [...]
Entietanto, pelas mesmas ruas, a corrida aumentava e era uma disparada lou
ca enüe vociferações, sons de cometa, tren-ten-tens de bondes, estalar de
chicote. Quando passamos o túnel num fracasso de metialha e demos nos
campos de Copacabana, a velocidade foi vertiginosa, e era apenas vagamente
que se divisavam,fugindo à sanha dos fon-fons, do esti épito das rodas, a linha
de fiéis da redondeza marginando o capinzal, à esquerda, num diadema de
estrelas, a iluminação da Igreja.""

A caiTeira da "máquina" é "vertiginosa", e o percoiTer das igrejas, de um


ponto a outro da cidade, dão a dimensão da metrópole: só uma grande cida
de poderia oferecer aquele espetáculo de vida moderna.
Aliás, em Vida vertiginosa,João do Rio faz do automóvel o ícone do pro
gresso, a síntese mais perfeita e refinada de civilização moderna, que maica o
domínio do homem sobre a natureza. O automóvel é o "monstro transforma
dor", símbolo da cidade nova a brotar dos escombros da velha cidade desiTu-
ída. O automóvel, animizado, é a besta-fera triunfante dos novos tempos, ca
paz de seduzir por tudo aquilo que lhe é inerente — a velocidade e a estética
do modemo — mas de amendrontar e aniquilar a vida, na rota da catástrofe
urbana de um trânsito "vertiginoso".'""
Assim como os automóveis e outros signos da meti opolização,João do Rio
ressalta certos marcos de referência espacial da "cidade moderna",com sua po
tencialidade metafóiica ressaltada pela ironia:

""João do Rio. A filma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Ed. Org. Simões, 1952. p.ll9.
'"-João do Rio. Vida vertiginosa. Rio de Janeiro: Garnier, 1911.

195
Para o bi"asileiro ulü-a-modemo, o Brasil só existe depois da Avenida Cential e
da Beira Mar, que, como vocês sabem, é a primeira do mundo. O resto não nos
interessa, o resto é inteiramente inútil.""

Os sintomas da metrópole lá estavam, e João do Rio utiliza a versão com-


portamental do cosmopolitismo:o mundanismo,traduzido num snvoirjnire, na
intemalização de um determinado ethos urbano, que dotava o indivíduo do
manejo de códigos e significados. Um mundano saberia postar-se nas maiores
capitais do mundo e não hesitaria em decidir-se sobre como proceder diante
desta ou daquela situação.
O seu entendimento da moderna vida urbana talvez se ache sintetizado
no título da sua coluna da Gazeta de Notícias, cujas crônicas, reunidas, foram
publicadas no livro do mesmo nome: Cinematógrafo}°'^
Em belíssima imagem,João do Rio faz do cinematógrafo a alegoria da vida
numa gi-ande metrópole, marcada pela seqüência de cenas,fatos e gentes, pela
agregação de imagens que se sucedem,rápidas, num mundo que faz da velocida
de um critério de ação. Assim como o cinema é fmto de um encadeamento de
imagens e oferece aos espectadores uma representação da vida, o cronista reco
lhe flagrantes, momentos,pedaços da existência da cidade e os tiaz ao seu públi
co.Sua intenção é a de flagrar o instante,o fugaz,e não a de aspirar à permanên
cia. Como refere o cronista da vida moderna, o texto é leve, é insinuante, não
obriga a pensar e éjustamente aquilo que o público quer: receber as imagens,
fnrí-las, degustá-las e depois esquecer,fazendo delas um produto descartável.
Mesmo podendo discordar das suas apreciações sobre a sétima arte, há,con
tudo,uma extrema atualidade nas palavras e um apelo às considerações de Walter
Benjamin,que aproxima o historiador do cronista. Ao utilizar* a técnica da mon
tagem cinematogr*áfrcaparailustr-aro tr*abalho de crTJzamento,composição e con
traste dosfragmentos da realidade, Berrjamin nos revela a importância dos traços
secundários e dos vestígios aparentemente sem significância. Qual detetive,o his
toriador recompõe estes sinais,"à Ia Ginzburg", para constr-uir versões aproxima
das do que teria ocoriido um dia no passado.Espectador do processo que nana,o
crorrista é, ao mesmo tempo, ator deste processo, que se esforça para "dizer"o
urbano,recolhendo o que vê e sente e o que intui que os demais vêem e sentem.
Mas, recorremos ao que foi enuriciado antes:sua tar-efa de cronista,sem preten
sões de perenidade, é extr emamt^nte significativa para o olhar de quem, ex-post,
intenta recuperar*sensibilidades passadas.

'"'João do Rio, Cinematógrafo, p.278.


Ibidem, p.V-VII.

196
Numa demonstração de que intuía as transformações do seu tempo,João
do Rio deixou estas muito liicidas considerações sobre a crônica, o piíblico e a
evolução dojornalismo:

A crônica evoluiu para a cinematogiafia. Era reflexão e comentário, o reverso


deste sinisti o animal de gênero indefinido a que chamam: o artigo de fimdo.
Passou a desenho e a caricatura. Ultimamente era fotogi^afia retocada, mas sem
vida. Com o delírio apressado de todos nós, é agora cinematográfica — um ci-
nematógrafo de letias, o romance da vida do operador no labirinto dos fatos,
da vida alheia e da fantasia — mas romance em que o operador é personagem
secundário arrastado na torrente dos acontecimentos.'®

Velocidade e mudança eram sintomáticas desse urbano",que faziam


o Rio remodelado aproximar-se das metrópoles européias. O fato de que,como
grande cidade, o Rio pudesse ser comparável a Nova Iorque, Londres ou Paris
não eliminaria um sentido profundamente nacional do cosmopolitismo conta
minado pela "parisina".
Por mais de uma vez,João do Rio traz em suas crônicas flagrantes do que
chama "desnacionalização da classe elevada no Brasil",""' em que a naii-atíva de
passagens e encontrosfoituitos da cena urbana caiioca dão conta dessa tendência.
A educação no estrangeiro, as freqüentes viagens internacionais e o refina
mento dos hábitos levavam a exageros de "verdadeiro hon or pelo Brasil" e a um
absoluto desconhecimento ou desprezo pelas coisas nacionais. Na crônica"Quan
do o brasileiro descobrirá o Brasil?",João do Rio disseca, de forma impiedosa,o
estado exato do brasileiro, a considerar-se inferior ao esti-angeiro e, por conse
qüência, desvalorizar tudo que era nacional, numa atitude ridícula.'""
Ironicamente,João do Rio comentava:
[...] porque patiiotismo, longe de vestir os filhos de verde e amarelo, ler O
Guarani e comer vatapá, é estar ao nível da civilização e fazer com aplomb o
que fazem os grandes povos.'®

A ironia e a in everência não devem deixar passar a menção à identidade


desejada. Aliás, ninguém mais nacionalista que Bilac, com toda a sua fascina
ção primeiromundista...

'"Ubidem, p.X.
"""'Ibidem, p.93.
""Ibidetn, p.277.
""João do Rio, Psirolo^n, p.l65.

197.
Entusiasmado com a exposição nacional de 1908,João do Rio afinnaría:
Pati-iotismo não é manifestação de bandeira, nem gestos conti"a esti"angeiros,
quando eles afirmam a sua supeiioridade, patiãotismo não é a fanfarronice de
ficar eternamente na sujeira, dizendo que nós somos uns heróis, porque os vo
luntários da Pátiia fizeram prodígios na guerra do Paraguai. Paüãotismo é de
monstrar, no concerto das nações, o seu valor igual ou maior do que os ouü"os,
na indústria, na arte, no progresso.'"®
Na sua concepção,era preciso ígustar-se à modernidade em termos de ati
tude íntima e deixar para ti"ás o que debocha como "desnacionalização de bom
tom", própria de um esnobismo nacional ridículo, que achava feio ser br-asilei-
ro..."o
Numa versão baudelairiana,João do Rio achava imprescindível ser"abso
lutamente moderno" — ou seja, acertar o passo com a civilização — e tinha da
vida urbana uma concepção "par^a além do bem e do mal".A cidade-metrópole
er^a amornai, e suas regras de conduta, de linguagem e de vestir valorizavam a
aparência. A conotação de simulacro e valorização da "aparência" às custas da
"essência"foi muito bem intuída por aquele dandy cronista.
Ao afrr-mar- que "tudo no mundo é cada vez mais figurino","' ao discorrer
sobre a importância da moda e do tr-ajar*,João do Rio disseca a vida urbana cario
ca. O mundo modeitro é dominado pelo artificialismo, pela imitação, pela cópia,
tudo revela uma enorme preocupação com a aparência do novo,do modenro,do
acompanhamento da moda:"Estamos na ertr da exasper-ante ilusão, do artifici
alismo,do papel pintado,das casas pintadas,das almas pintadas".""
Metáfor-a da vida moderara, a moda é dissecada e ridicularizada pelo cro
nista, que, porém, er"a dela um escr-avo fiel. Conta Brito Broca que,junto com
os cronistas Luís Edmundo e Guerra Duval,João do Rio apresentara-se no
Municipal com casaca de cor, último lançamento da moda em Paris, e lá err-
frentar-a,"sem perturbação, uma estrepiíosa vaia",."^
Discursos e pr^áticas se configuram contr^aditórios, assim como o seu pro
tagonista.
Mas é por esse viés que entendemos a ambivalência da narrativa de João
do Rio, que tanto é seduzido pelo mito parisiense, quanto desnuda a realida-

'"®João do Rio, Cinematógrafo,'p.290.


""Ibidem, p.3l7 e 319.
'"João do Rio, Psicologia, p.67.
"-Ibidem, p.67-8.
Brito Broca, A vida, p.34.

198
de nacional ao vivenciar aquele "modelo". Trata-se de uma habilidade especial
para captar as sensibilidades de sua época, e não de um engajamento político
ou lucidez social militante.
Há,em João do Rio,ainda outros insights do "ethos urbano",que vão fundo
aos tais "traços nacionais" que se apresentam tão recoirentes no Brasil. Ao sati
rizar, numa crônica, que o Bi-asil era "um país de gênios","'' o cronista toca no
calcanhar de Aquiles contraditório do modo de ser bi-asileiro: se, por um lado,
sente-se inferiorizado frente o estrangeiro, por outro, valoriza o título, a apa
rência, a fachada e constrói imagens de refeiência positiva com as quais deseja
se identificar.
Talvez uma das passagens altas da sua nan ativa sobre o aspecto de fachada
da vida urbana moderna esteja nas suas considerações sobre o carnaval ou, mais
precisamente,sobre os mascarados.Se o carnaval,como festa, pode ser delicio
so ou infame, o mascarado é caso de patologia clínica... Metáfora do artificiali-
smo da vida na metrópole, o mascaramento revela, através da imagem, uma
outra identidade velada."'
Da mesma foiTna, é ainda a vida urbana que lhe dá a inspii-ação pai-a de
nunciar aquele elemento de tanta presença entre nós e que maira o peso do
simbólico sobre o real: a valorização da palavi-a, o significado de suas inflexões e
a capacidade do discurso de definir o real e de induzir apreciações.Juízos de
valor e comportamentos. No Bi-asil, dizJoão do Rio, tudo é hiper, gi-ande, notá
vel,''® suipreendendo aquele traçoJá apontado de metaforização e metonímia.
Da mesma fornia, assinala o cronista, no país são todos "doutores ou poe
tas,"^ o que nos leva a pensar nas considerações de Sérgio Buarque de Holanda
paia um certo traço nacional: numa teira onde todos são barões,é difícil a con
ciliação...
Na capital carioca,João do Rio exercitaria o seu "poder do olhar", dando
sentido ao detalhe e ao traço desapercebido do cotidiano da cidade ou, en
tão, estabelecendo para com os comportamentos e tipos sociais uma relação
ambígua de atração e repúdio.
Para tanto, o cronista exalta a posição do Jlãneuráo urbano, do voyeuráíL
cidade, aquele que é capaz de dar atenção ao que ninguém percebe e olhar
para além da aparência das coisas. Na senda de um Baudelaire e de um Balzac,
João do Rio afimiaria:

'"João do Rio, Cinematógrnfo, p.ll.


"^Ibidem, p.58-66.
"®lbidem, p.l 17.
'"Ibidem, p.97.

199
É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os newos com
um pei-pétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamam de 'flâ-
neur' e praticar o mais interessante dos espoites a m te de flanar. [...]
Hanar! Aí está um verbo universal sem enü-ada nos dicionários, que não perten
ce a nenhuma língua! Oue significa flanar? Ranar e ser vagabundo e refletir, é ser
basbaque e comentar ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir
por aí, de manhã,de dia,à noite, meter-se nas rodas da população.[...].
É vagabimdagem? Talvez. Flanar é distinção de perambular com inteligência. Nada
como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneui tei sempie na mente
dez mil coisas necessárias,imprescindíveis, que podem ser etemamente adiadas.
Do alto de umajanela como Paul Adam,admiia o caleidoscópio da vida no epíto
me delirante que é a rua; à porta do café, como Põe no Homem das multidões,
dedica-se ao exercício de adivinhar as profissões, as preocupações e até os crimes
dos ti^anseuntes. É uma espécie de secreta à maneira de Sherlock Holmes,sem
os inconvenientes dos secretas nacionais. [...] O flâneur é o bonhomme possui
dor de uma alma igualitária e risonha,falando aos notáveis e aos humildes com
doçura, porque de ambos conhece a face misteiiosa [...]."®
A cidade-ma exerce sobre ele seu fascínio, a cuja sedução se entrega o vo-
yeur do urbano. Na senda de Balzac,João do Rio exalta a posição do Jlãneuráci
cidade, do espiiito vagabundo que filosofa, que anda e comenta, que "peiam-
bula com inteligência,";,
Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões humanas. São assim as ruas
de todas as cidades, com vida e destinos iguais aos do homem."®

As imagens de Põe",com o seu Homem na mtãtidão, ou de um Sherlock Hol


mes, a desvendar os mistérios da cidade, são invocadas por João do Rio para
associá-las ao leitor privilegiado da cidade,que é o cronista.
Nessa trajetória, a ma é para ele fonte de inspiração e tenitóiio de traba
lho, assim como fora para Balzac, Hugo, Baudelaire ou Zola.
A ma é a metonímia da cidade, que o cronista declara amar e que animi-
za, colocando-lhe alma, atribuindo-lhe sentimentos, idéias, condutas:

Oh! sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistias, ruas
nobres,delicadas, ü ágiras, depravadas, puras,infames,ruas sem história, ruas tão
velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras,

"®João do Rio, A alma, p.11-13.


"®Ibidem, p.l3.

200
revoltosas, medrosas,spleenéticas,snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas
covardes, que ficam sem pinga de sangue.'-"

Como uma criança, as naas nascem, batizam-se, crescem, desabrocham,


plenas de vida. E, tal como as pessoas, são diferentes entre si. Celebrando a
rua,João do Rio denuncia espaços que freqüenta, como a Rua do Ouvidor, a
qual chama de "beco", verdadeiro inferno de pose, fanfaiTonada, vaidade...
Numa imagem que lembra Victor Hugo com o seu Gavroche,João do
Rio diz que a ma criou o garoto!'-'
A ma-cidade, cosmopolita, cria os mais diversos tipos, tão diversos quan
to aqueles capazes de serem vistos numa metrópole, caracterizada pela sua di
versidade social.
Animada de vida, a ma transfere a sua especificidade às pessoas que nela
habitam, que passam a ter uma referência identitária bem precisa:

Nas grandes cidades, a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar a moral dos seus
habitantes, a inoculai-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos,
opiniões públicas.'--

Humanizada,foijando tipos e identidades,a rua é relembrada pelo cronista


como fonte de inspiração paia nomes de expressão dentio da cultura univeiral,
[...] desde Victor Hugo, Balzac e Dickens, até as epopéias de Zela, desde o fu-
nambulismo de Banville até o humorismo de Mark Twain. Não há um escritor
moderno que não tenha cantado a rua.'-'

E as citações abundam,indo de Rimbaud a Sara Bemhardt,Gustav Kahn a


H.G.Wells, a demonstrar a cultura do cronista.
E através dela queJoão do Rio vai exibir os contrastes da cidade, mostrando
um outro Rio deJaneiro, não freqüentado e, por que não dizer, mesmo rejeita
do pela elite desejosa de identificar-se com o primeiromundismo.
Assim, por mais de uma vez, o cronista iria denunciar o desconhecimen
to da elite daquele "outro embaixo da cama", de que fala Schwarcz:'-'' o lado
popular do país, subalterno, pobre e mestiço, rejeitado pela vontade nacional
de identificação primeiromundista:

""Ibidem, p.l5.
Ibidem, p.l 1.
'"Ibidem, p.21.
Ibidem, p.29.
Schwarcz, op.cit.

201
o Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as peças de
Paris, a geogi-afia da Mandcbúria e o paü iotismojaponês. A apostar, porém,que
não conhece nem a sua própria jalanta, nem a vida de toda essa sociedade, de
todos esses meios estranhos e exóticos, de todas as profissões que constituem o
progi"esso, a dor, a miséria da vasta Babel que se ti'ansforma.'"'

Paiece que nosso cronista, sem maior preocupação de análise — pois, afi
nal, não era um crítico ou cientista do social, mas um cronista do cotidiano —,
intuía, com aigúcia, a questão subjacente à refonnulação urbana e à desejada
modernidade nacional:o povo.
Poeticamente, ele vai às mas pai-a encontrâ-lo e diz que a canção popular
é a musa que inspira a vida urbana.'-® E,com essa convicção,João do Rio leco-
Ihe quadrinhas deliciosas, que ü^aduzem as sensibilidades populaiesfrente à trans-
fonnação urbana da cidade. Assim, o conhecido Madmga, tatuador ambu
lante, era o autor desta tirada:

Venha quanto antes D. Elisa


Enquanto o Chico Passos não atiça
Fogo na cidade...'^"

Ou,então, este primor de vei-so do poeta de cadeia,José Domingos Cida-


de:

As pobres mães choravam


e giãtavam porJesus:
- O culpado disso tudo
é o Doutor Oswaldo Cruz!'^®

Além de registrar que o povo é,fundamentalmente, patriota,João do Rio


assinala que ele seria, em princípio, monarquista,'-® no que nosso cronista iria
ao encontro de modernas análises que identifitám essa tendência nas cama
das subalternas do país, nos piimeiros anos da República.'®®

'^João do Rio, A alma, p.41.


'-®Ibidem, p.227. /
'-'Ibidem, p.46
'-'Ibidem, p.208.
'-®Ibidem, p.48.
Cf. Carvalho,José Murilo de. Os hestializados. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Silva,
Eduardo. As queixas do povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

202
Sem a dicotomia moralizante do vício e da viitude,João do Rio paite para
o registro das "duas cidades" caiiocas.
Qual o Virgílio de Dante a descer aos infernos,o cronista adenti-ava,à noite
ou à luz do dia, naqueles espaços malditos da cidade,enconü-ando os tipos mais
bizaiTos e sinistros.
Muitas considerações se impõem ante este desnudai* do lado escuro da
urbe. Numa postura inusitada para o seu perfil de homem tomado pela "pa-
rísina", o cronista resgata aquele traço das representações litei-áiias do urba
no: chega até o povo, revelado pela emergência da questão social do século
XIX. O seu olhar, entretanto, caminha não no sentido de uma comiseração
romântica pelos humildes, à Ia Victor Hugo,atento aos efeitos sociais da tians-
foiTnação urbana de París. Embora, com freqüência, nosso autor clame aos
céus e, teriiflcado com o que vê, pergunte-se sobre o que fazer, entendemos
que seu olho arguto de da cidade está orientado mais pela bela notícia,
escandalosa, tenebrosa, inusitada, reveladora de imagens desconhecidas. A
modernização da imprensa, a exigir reportagens de efeito, sensacionais, a avi
dez do público pelos detalhes escabrosos ou as demonsti^ações de miséria huma
na foram tendênciasJin-de-sücle muito bem captadas porJoão do Rio.Por outio
lado, nosso cronista era tributário do decadentismo de Huysmans e da naiTativa
de Jean Lon*ain e Oscar Wilde. Chafurdar em vícios e neuroses, ter toda sorte
de experiências, freqüentar o hns-fond, usar um estilo ineverente e revelai" os
subterrâneos da cidade a leitores que lá não ousariam peneti-ai", eis uma típica
tendência da decadênciaJln-de-siècle, à qual a produção litei"ái"ia deJoão do Rio
não ficou incólume.
Assim, é o próprio João do Rio quem estabelece a filiação de foi"ma ime
diata, ao naiTar a aceitação do convite do delegado de Polícia pai"a descer aos
círculos infernais:

Não sei se o delegado quis dar-me apenas a nota mundana de visitar a miséria
ou se realmente, como Virgílio, o seu desejo era guiar-me através de uns tantos
círculos de pavor, que fossem outi"os tantos ensinamentos. Lembrei-me que
Oscar ^\^lde também visitava as hospedarias de má fama e que Jean Lorrain se
fazia passar aos olhos dos ingênuos como tendo acompanhado os grãos-duques
russos nas peregrinações perigosas que Goron guiava. Era tudo quanto há de
mais literário e de mais batido. Nas peças fi-ancesas há dez anosjá apaiece ojor-
nalista que conduz a gente chique aos lugares macabros; em Pai-is, os repórte
res do Joumnl andam acompanhados de um apache autêntico. Eu repetia ape
nas um gesto que era quase uma lei. Aceitei."'

'João do Rio. A nbna, p.l58.

203
Ou seja, adenti-ar no "covil honendo",tragico asilo de miséria, eia assumir
uma postura em voga,da melhor tradição européia.Por que não ser "absoluta
mente moderno"e acertar o passo com a civilização? Assim,os espaços percoiri-
dos são covis, as fachadas são negras,os sons são cavos,e seus personagens eram
"vagabundos","desordeiros","cafajestes", as faces são "aturdidas pelo álcool",as
fisionomias têm "perfis patibulares", as mulheres de má vida ostentam "risos de
bochados","cabeleii-as desgrenhadas" e por tudo há um fedor de gente suada,
acrescido pelo"fartum" dos negros.
As "zungas", hospedaiias bai-atas para passai- a noite, abrigam multidões em
quaitos coletivos promíscuos e sujos. Tais lugares são perconidos pelo cronista, que
oscila enüe a sedução e a repulsa ante aquele espetáculo de sedução e misérias.
Não seria demais lembi-ai- que a descida aos infernosjá fora aludida por
Balzac, em seu texto Lafilie auxyex d'or, no qual faz a analogia do contexto
urbano com suas estratificações aos círculos infernais de Dante.'-'*^
Nessa peregrinação pelo lado noír da cidade, ele vai até a Casa de Deten
ção, onde realiza entrevista com os presos, encontrando cenas patéticas, rela
tos pungentes e cinismos revoltantes.'^''
Dos crimes de amor, rocambolescos e trágicos, nan-ados pelos presos, o
cronista passa à galeria superior, com os seus cubículos abrigando os crimino
sos, onde habita o que chama o "crime multiforme":

Ah! essa geilerial.Tem qualquer coisa de sinistio e de canalha, um ar de hospedaria


da infâmia à beira da vida.[...] A promiscuidade enoja.[...] Quantos ci-imes se preme
ditam ali? Quantas peiversidades rebentam na luz dos cárceres preventivos?"'

Obedecendo a tipip visão contrastante, nem tudo é maldade e podridão,e


algumas"flores do lodo" podem ser encontradas;
E em meio do charco, fatalmente destinada a desaparecer, a inocência, atirada
ali pela incúria das autoridades.""
São imagens de figuras esquálidas de adolescentes, quase crianças, vítimas
de uma "injustiça social", não aprofundada pelo autor, e que lembra descrições
'^-Ibideni, p-160-5.
Racaut,Jean-Michel. De Ia v/Ile-organisme à Ia villc-machine: les modèles scientifiques de Ia
dynamiqiàe urbaine dans le prólogiie de "La filie aux yeux d'or". In; Veyssière, Gérard. Knleidos-
copolis ou Miramfingmentés de In ville. Paris: L Harmattan, 1996.
Ibidem, p.185-92.
Ibidem, p.l93.
"®Ibidem, p.l95.

204
antigas, de Restif de Ia Bretonne,quando faz apaiecer fígui-as cândidas em meio
da cidade-vício.A questão social aflom como uma fatalidade,uma questão moral,
uma deconência inevitável da gmnde cidade, um resultado sinistro da nia.
Na cadeia lhe chegam às mãos versos de presos, assim como também po
esias dos loticos do hospício. Do manicômio,João do Rio diz ser "o resumo da
cidade",'"^' retomando à idéia metonímica e metafóncajá aludida. A rigor, nos
so cronista põe na mesa as normas do relacionamento na grande cidade, seus
valores e praticas. Tratando do hospício, locm institucionalizado de exclusão
social, como um microcosmo do urbano,João do Rio faz pensar na relatividade
das regras ejulgamentos do conviver humano e da própria constmção dos lia-
mes da ordem e da cidadania. E,para concluir,fílosofícamente, massem querer
fazer "literatura séria", afirma que o comportamento estereotipado dos que lá
se encontram é possível de ser achado nas mas da cidade...
O lado noir da cidade, contudo, não se circunscreve aos sítios privados
ou oficiais de concentração dos excluídos, marginais ou contraventores. Há
toda uma ronda pelos espaços públicos,em especial naqueles situados na con
tramão da ordem, e que nosso infatigável cronista insiste em realizar.João do
Rio nos fala de uma "rede tenebrosa","encadeamento lúgubre da miséria e do
crime".São bairros onde "o assassinato é natural" e onde há "traços de história
Itignbre". Com vielas, becos e pequenos cais, trata-se de um trecho da velha ci
dade colonial, do Rio antigo que não foi destmído,com "botequins imundos",
"barbearias sujas","tascas reles". Nelas, pululavam tipos vulgares, debochados,a
murmurar uma "língua babélica", que faziam nosso cronista exclamar:"Qiie lu
gares eram aqueles? O outro mundo! A outra cidade!".'^®
As revelações desse lado da "cidade-vício",todavia, não são revestidas de uma
condenação foimal dafaceta pobre e populai"da urbe.As mesmas críticas e cono
tações "viciosas" podem ser achadas nas descrições dos espaços da high /^caiioca.
Assim, na crônica "Gente do Music HaH",João do Rio descreve um cassino no
qual campeiam a "peiveisidade"e a "luxüiia", povoado de gente vampiresca,exó
tica e,sobretudo,falsa. Princesas valáquias, príncipes magiares, condessas italia
nas,fidalgos do papado... enfim,figui-as que davam ao Rio de Janeiro um perfil
de cosmópolis,onde não importava averiguai-a legitimidade dos títulos, massim
contar com tal contingente na noite cai-ioca."® O mesmo clima e peisonagens
equívocossão descritos em "Moulin Rouge caiioca".'''"'

'■"João do Rio, CAnenintógrnfo, p.205.


'^«Ibidem, p.37.
'^^Ibidem, p.3.
rao TI • 1 r»

•'^^Ibidem, p.l45

205
Da mesma forma, à plena luz do dia, percorrendo espaços ditos no
bres a Câmara dos Deputados, os corredores palacianos, a Rua do Ouvi
dor, a Avenida Cential ou, ainda, o Lírico e o Teatro —,João do Rio regis
traria traços do comportamento dos setores mais afortunados: a lisonja,'""
a prática dos favores e do apadrinhamento,''*- o tradicional "pistolão".''*^
Ou seja, o Rio elegante não ficava a salvo, com ferinas críticas ao esnobis-
mo de sua elite'^'*ou à deliciosa crítica do cronista à nova "mania" nacio
nal: as conferências:

A cidade só tem uma preocupação — ouvir e fazer conferências! É preciso fa


zer conferências! O delírio, a nevrose, a ânsia da cidade — conferências! Sem
pre conferências! 86 conferências! Nós estamos no país das conferências!'■*'

Ridiculaiizando as temáticas e a pressa com que todos procuravam entrar


nesse circuito e pronunciá-las ou assisti-las, mesmo sem entendê-las,João do Rio
retoma aquela cai-acterística anterioiTnente apontada da vida urbana moderna:
a cultura da fachada, a cópia do esti^angeiro e a fúiia em seguir a moda.
Como diria um certo rapaz elegante a um "atribulado" conferencista:
— Cher Fortunato, conferências não são mais up to date nem smart. Moda, o
chie, sweet heart, é o corso, é vestir bem, é dar o five o'clock. Você não é o ho
mem derniers ressorts, é pouco petrolette.

Mas outi-as praticas da elite teriam melhor complacência da parte do cro


nista, como, por exemplo, a louvação do flirt, pratica moderna, coquette e alta
mente difundida.'"*''
Sem dúvida, o Rio de Janeiro foi, pelo nosso cronista, nan-ado nos seus
conti-astes, revelando a dupla ti-jyetória do autor pela cidade.
Um ti-aço que acompanha a naiTativa de João do Rio é a sua forma de re
ferir-se aos sub^temos, notadaniente de cor: há um i-anço lombrosiano, um
preciosismo de descrever a feiúra dos traços fisionômicos, que "fatalmente" tra
çariam o perfil dos degenerados. Como nos romances europeus, os criminosos,
as prostitutas e os ladrões ti-azem o vício estampado nas faces e nos gestos.

Ibidem, p.76.
Ibidem, p.43.
Ibidem, p.242.
'■"Ibidem, p.ál
■"Ibidem, p.311.
1.
'■"João do Rio, Psicóloga, p.5.
'•'®João do Rio, Cinematógrafo, p.IOO.
'^'João do Rio, Psicóloga, p.l05 et seq.

206
Essa posição pode,à primeii-a vista, paiecer paradoxal paitindo de um mu
lato, porque conteria os ingredientes da discriminação racial. Contudo,não se
ria um exemplo isolado no panorama nacional. Em mais de um caso da intelec
tualidade brasileira, com nomes de notória ascendência mestiça, a questão da
cor está ausente da obra, aparecendo, por vezes, de foiTna tênue e metafórica
ou,então,desaguando na negação do problema,com soluções fantasiosas refe
rentes ao futuro nacional da "raça" bi-asileira. E o caso, por exemplo,de Olivei
ra Viana, que prevê,a longo pi-azo, a "arianização" do povo,como decon ência
da evolução da mestiçagem.
João do Rio, por seu turno, utiliza as considerações da elite ilustrada da
época, atualizada com o debate científico europeu sobre as tendências da an
tropologia criminal. Quando se refere à pratica das tatuagens, tão difundida
entre o povo, invoca Lombroso parajustificai* o hábito:

Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade, o espírito de coi*po


ou de seita, as paixões nobres,as paixões eróticas e o atavismo são as causas man
tenedoras desta usança. Há uma outi-a — a sugestão do ambiente. Hoje, toda a
classe baixa da cidade é tatuada.'^®

Sem que mencione o autor da última postura,João do Rio endossa a posi


ção de Lacassagne,reproduzindo,na sua naiTativa, as duas postui-as científicas
que agitaram o debate da antropologia criminal na virada do século: Lombro
so, ao afiiTnar que o criminosojá nasce apto para tal e traz, no físico e nas ten
dências de peisonalidade,os ti*aços indicadores de tal estado,e Lacassagne,que
defende a postura de que o meio é que faz o criminoso.
Mas,sem sombra de dúvida,ao destacar essa postura ambígua de avaliação
do problema da raça — portar em si a mestiçagem e negá-la — João do Rio é,
mais uma vez, admirável em resgatar traços definidores do "caráter nacional"
através da leitura da cidade.
Entretanto,se o crime é concebido como um dos possíveis caminhos onde
a ma acaba — ou seja, o povo pode descambar pai*a o crime e é, em si, poten
cialmente perigoso —,João do Rio tem o mérito de resgatai* as socialidades
populares que o oficialismo condenava. Ao perconer as mas,o cronista regis
tra a variedade dos tipos, as pequenas profissões e os hábitos e foi*mas de lazer
vigentes entre as camadas baixas da população. Embora tenda ao pitoresco,
ao curioso e ao burlesco, as situações descritas fazem um conti*aste interessan
te com a "cidade maravilhosa" da elite.

'■"Ibidem, p.47.

207
Tatuadoies,caçadores de ratos,vendedores de orações—tipicamente biasilei-
ros e,sobretudo,caiiocas — mistuiam-se a outios tipos univeisais,como o tiapeiro,
num caleidoscópio de pequenas profissões que lembra Balzac.E,sobretudo,em meio
a ambientes que fazem pensai* na Cour de Miracles paiisiense, um tiaço se destaca; a
malandi-agem,como procedimento caiactenstico do povo caiioca.
Como todas as cidades, afirma o autor, o Rio apresenta a miséria, com o
seu desdobramento de pequenas profissões e daquele comportamento gera
do pela pior das misérias:a malandrice.^''^ Nesse ponto,poderiamos,talvez, numa
recuperação do Rio-dos-pobres,identificar esse traço do "cai*áter nacional", que
marcaria uma linha de continuidade de Manoel Antônio de Aimeida'""" aJoão
do Rio.A malandragem,contudo,não é praticada apenas pelos miseráveis, mas
também pelos"malandros de gravata", que exploram a boa-fé dos demais. Tra
ta-se do resgate de toda a astúcia e dos numerosos artifícios que caracterizam o
"malandro urbano" e que,inclusive, vão se repetir na literatura brasileira como
um dos tais aspectos constituintes do "carâter nacional".
Para Antonio Cândido, que analisa a obra de Manoel Antônio de Almei
da, no remarcável ensaio sugestivamente nomeado "Dialética da malandi*a-
gem",''' a origem da força do autor e de sua projeção no tempo é a sua capaci
dade de intuição da dinâmica social bi*asileira na primeira metade do século
XIX.Uma certa falta de carâter,a malandragem associada à simpatia e o pouco
de escinípulos ou de moral com o qual os personagens conduzem suas vidas pa
recem sair do texto,compondo o "ethos urhmio" daquela que era a maior cidade
bi*asileira da época.Da mesma foi*ma,estenderíamos esta apreciação aJoão do
Rio, cujo olhar de escritor sugere, intui e suipreende as regras implícitas que
l egiam as relações pessoais do Rio de Janeiro da sua época.
Não há, da parte do cronista, uma condenação explícita e radical da ma
landragem, que ele divisa como uma estratégia de sobrevivência frente a misé
ria que procurou retratar e,a seu modo,denunciar.
Nosso cronista nem condena absolutamente, nem aprova sem restrições o
comportamento de pobies e ricos: réiiitiviza e inclusive filosofa sobre um certo
amoralismo social. Sempre irônico, ora afii-ma que "a moi*al é uma questão de
ponto de vista",''" ora invoca Nietzsche, para dizer que "a moral é o medo do
vizinho

Ibidem, p.36-7. .
'^"Almeida, Manoel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Melhoramen
tos, s.d.
Cândido, Antônio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.
'5-João do Rio. A alma, p.42.
'^'João do Rio, Psicologia, p.158.

208
Na sua iluminada intuição dos traços nacionais que se expressam na mai
or cidade bi^asileira,João do Rio chega a esta pérola de reflexão, que sintetiza
ria como que uma espécie de lema nacional: a ordem e na desordem...''"'
Daí, talvez, a própria atração e channe da cidade maravilhosa, que ele
ama e condena. Anuncia o pecado, mas não quer ser salvo... Detesta o carna
val, mas sucumbe à folia popular na passagem do cordão.'''Fala na exploração
das crianças, na fome negra de trabalhadores que se matam de sol a sol e de
nuncia a safadeza de mulheres mendigas, mas freqüenta ojet-set da época...
Sem dúvida,João do Rio descobriu o povo pai-a ojornalismo: certas descri
çõessuas dos ti-aballiadoies na estiva''® lembium passagens de Zola,em L'assommoir.
A crônica que descreve as moças pobres diante das vitrines iluminadas da ma
chià^^ nos faz pensar em Baudelaire. Sua Jlã-nerie pela. ma lembra Baudelaire ou
Balzac,e é este último, ouJean Lon-ain, que o guia na sua descida ao inferno do
has-fond carioca.Já seu ti-ajar e suas tiradas mordazes lembram Oscar Wilde, de
quem foi o tradutor no Bi-asil. Seu pertonagem Dorian Gray, a flanai- pelas mas
do submundo de Londres,se encontra na busca de sua própria identidade,con
fundindo a cidade-maldita com o seu voyeur.
De uma certa foi-ma, é possível concordar com Orna Levin sobre o viés
decadentista dos escritores da época,que viam a possibilidade de superação das
adversidades através da modemidade estética.''®
Essas apioximações não são, no caso, mera cópia ou imitação, mas a de
monstração de que o país vivenciava processos análogos ao da transfoi-mação
urbana européia, dando margem à recorrência de imagens semelhantes de
representação do urbano. Da mesma foi-ma, ao lado de tais recon ências,João
do Rio intui os tais traços de referência identitária genuinamente urbanos e
nacionais. Trata-se de qualquer coisa não foimulada pelos documentos oficiais
nem enunciada pelo poder público, mas que se apresenta na nan-ativa literaria
como sintoma de uma época.
O que,contudo,gostai-íamos de ressaltai-é asua capacidade de expressai- uma
sensibilidade diante da ti-ansfoi-mação urbana. Traduzindo litei-ai-iamente a vida
moderna,a combinação cosmopolitismo/nacionalismo é postura que se renova na
ti-Eyetória bi-asileira. Se,por um lado,João do Rio é pessimista; por outio,entusias-
ma-sse com os sintomas da inovação que se revelam na cidade.

'"João do Rio, A alma, p.130.


'"Ibidem, p.l35.
■'"Ibideni, p.l44.
'^'Ibidem, p.l37.
"'Levin, Orna Messer. As figuras do dnndi; um estudo sobre a otrra de João do Rio. Campinas, Ed.
Unicamp, 1996. p.26.

209
AS RACHAS DO ESPELHO: OUTRAS IMAGENS DE UMA MESMA CIDADE

As representações literárias criadas sobre Paris marcaram não apenas


uma identidade específica sobre essa cidade, como se constituíram num mo
delo universal para o entendimento da cidade modei na. No Brasil, a versão
paradigmática do imaginário urbano se defrontou com a permanente ten
são que acompanhava as renovadas formulações da identidade nacional:
aquela oriunda do dilema entre a possibilidade de ser original — e,com isto,
traçar um caminho próprio — e a alternativa de espelhar-se no modelo eu
ropeu. Na verdade, a questão residia na possibilidade da reconciliação, ou
seja, assumir a especificidade nacional e sentir-se, ao mesmo tempo, tributá
rio de uma cultura universal.
No caso do Rio de Janeiro, capital do país, "dizer a cidade", como se viu,
converteu-se numa fonna de "dizer o Bi^asil".
Recorremos à imagem do espelho para traduzir a força do imaginário
em recriar o real, reatualizando sentidos e imprimindo novos significados. Pro
curamos nos deter nessa capacidade ti-ansfiguradora da imagens e dos discui"sos
sobre o real,tomando as representações mais "concretas" e "desejáveis" do que
a própria realidade.Vimos como essas representações da capital carioca foiTnam,
por seu lado,um padrâo de referência identitária nacional, num viés metoními-
co que pennite a sensação da modemidade introjetar-se no país, através da re
presentação metropolizada do Rio. Tentamos enfocar como as representações
são dotadas de uma certa carga de positividade, o que as faz tomarem-se desejá
veis e aceitas, processo este que comporta uma certa ilusão do espírito, uma ca
pacidade de glamourizar a cotidianidade,de selecionar os dados a serem conta
bilizados para a composição de uma imagem e a maneira de minimizar ou mes
mo ignorar outros tantos.
Mas os artifícios do imaginário não são totais, nem mesmo capazes de tol
dar por inteiro a capacidade de enxergar o real por outi-as formas e realizar
insights de traços nitidamente "locais".
Assim,se o espelho potencializa a "tendência" nacional de viver sob o sig
no do simbólico, permite também a "revelação" de traços "autenticamente"
nacionais, muito bem intuídos pela visão literaria.
Aprofundando essf^ linha que enfatiza a capacidade do olhar e da palavra
do escritor em atribuir úma identidade ao real, chegamos ao que vamos deno
minar as "rachas do espelho", nas quais se inserem outras imagens de uma mes
ma cidade e que desvendam um país nem tão maiavilhoso... Dito de outia for
ma,vamos ao encontro da polifonia de vozes que a cidade suscita, expressa em
múltiplas leituras do real.

210
Tratando-se do Rio deJaneiro á3.Belle.Époque., convulsionado pela renova
ção urbana, é a visão de Lima Ban eto que se impõe como o olhai- discordante
sobre a cidade.
Sua obrajá tem sido exaustivamente estudada,'^® mas precisamos ousai;
mais uma vez, debmçai-mo-nos sobre ela e sobre o que ela representou como
discui-so litei-áiio sobie a cidade.
Nessa medida,há,nas representações do urbano consüuídas por Lima Baireto,
uma série de ü-aços recoirentes que se incoipoimn ao nosso viés de análise, a come
çai" pela tensão Já mencionada, que afii-mamos perconer a foi-mação histórica
bi-asileira e que se expressa pelo dilema do local e do univei^sal.
Principiemos, pois, por esta tensão.Sua obra máxima. Tristefim dePoücarpo
Quaresma, ou a notável Os Imizundangas apresentam uma crítica profunda às
tendências européias em cui^so na sociedade,em contraponto com um naciona
lismo visionário. O hipemacionalista Quaresma deplorava a falta de memória e
de lembrança do passado pelo povo."Entre nós tudo é inconsistente, provisó
rio, não dura",'®® dizia o desanimado Quaresma, a lamentai- que a população
não guardava as antigas tradições:

Era um bom sinal de fiaqueza, um sinal de inferioridade diante daqueles po


vos tenazes que os guardam durante séculos.'®'

O drama do pobre Quaresma é o do nacionalismo ingênuo, do patriotis


mo desvairado ou do esforço de valorização descabida do nacional. Mas se o
patético "Major", com a sua distorcida visão do local, é objeto de uma exposi
ção ridícula, a sua figura guarda ainda a gi-andeza do tragico. O mesmo nãõ
ocone com a tendência oposta, do cosmopolitismo pedante, exposta ao mai
or ridículo. É sobre essa postura europeizante,falsamente emdita e adepta da
mentalidade progressista, que recai a ironia maior de Lima Baiieto. A situa
ção é levada ao extremo do ridículo na obra Os hruzundangas, onde utiliza o
expediente de Montesquieu nas Cartas persas pai-a falar de um país fictício, me
táfora do Bi-asil, em que expõe a nu as mazelas nacionais.'®'
Optando pela paródia, pela fai-sa e pela ironia. Lima Baneto denuncia a
exacerbação das duas posturas. Assim, relata o absurdo da preocupação de
Quaresma com a supei-valorização dos elementos de referência nacional,como

'®®Como, por exemplo: Barbosa, Francisco de Assis. A vida de Uma Barreto. Rio de Janeiro;José
Olympio, 1981. Sevcenko, Literatura.
'""Lima Barreto. Trütefim de Poliraifo Quaresma. São Paulo: Ática, 1993. p.32.
'®' Ibidem, p.34.
'®-Cf. Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995. p.366.

211
na incrível cena na qual o personagem recebe as visitas cheirando e arrancando
os cabelos, no melhor estilo tupi-guarani, para demonstrar a sua alegría.'®'
Por outro lado,satiriza ao máximo a europeização do gosto e dos hábi
tos da elite cultivada. A vida literária, que se confunde e se expressa num
estilo de vida social que pauta normas e valores, é o centro do seu ataque.
Lima Barreto afirma que, embora tenha conhecimento da língua falada na
Bmzundanga, não consegue entender a que falam os literatos importantes
e respeitados;

Quanto mais incompreensível é ela, mais admiiado é o escritor que a escreve


por todos que não lhe entenderam o esciito."'''

Sem mencionar especificamente obi-as e autores,lima Ban eto,na sua"viiada


do avesso" da sociedade de seu tempo,tem em mira aquele tipo de literatura que
ele denuncia como "falso". Romances ou novelassem maior valor estético,espécie
de literatura menor,pai-ece estai-implícito na crítica de lima Ban eto o ataque con-
ti-a os nefelibatas em geral — os simbolistasjá anatematizados poi-João do Rio — e
as obi-as tais como as de Elísio de Cai-valho, Theo Filho, Afiãnio Peixoto e aquele
fenômeno de produção litei-áiia da época que foi Coelho Netto.
Elísio de Cai-valho publicaria, pela Gai-nier do Rio,em 1909,Fiveo'clock,em
que naira com requintes de afetação e um tom decadentista,à lajean Lon-ain ou
Oscai- Wilde, quem eram os pei-sonagens da BeUe. Époque carioca, o que faziam,
quais os espaços que freqüentavam e quais seus interesses. Espécie de "boêmia
dourada", como chama Brito Broca, a rapaziada elegante reunia-se num certo
"rez de chausséeá?i Rua Barâo de Flamengo,entre o chá e uma paitida de bridge",
reproduzindo no Rio um estilo de vida calcado nafin-<ie-sièclee.\xvopéi?c.

São comparsas saídos dos romances de Jean Lorrain, descendentes de Monsieur


de Bougrelon e Monsieur de Phocas, à procura do novo, do raro, com neuro
ses estéticas, cansados de civilização. Neles não subsiste o sentido do cotidiano;
surgem como ciiaturas meio exóticas na cidade que se vai modernizando.""*

Ora,é evidente o deslocamento e a afetação dos personagens, pois o senti


mento hlasé de déjà vu não poderia ser internalizado por uma sociedade que
recém-sofria os efeitos da metropolização e do abuiguesamento da vida.

Lima Barreto, Triste,fim, .


'"-•Lima Barreto. Os hruzundangns. Sào Paulo: Atica, 1985. p.9.
Brito Broca, A vida, p.33.

212
Na sua postura decadentista, Elísio de CaiTalho enunciaiia qvie o mundo se
justificava como "puro fenômeno estético"'®® e orientava seus critérios de avalia
ção para o bom gosto, à ordem, à urbanidade. Ora, tal conjunto de valores e
praticas ele os ia enconti-ar ou no passado — na sociedade do Império — ou em
espaços bem deteiTninados — o Rio de Janeiro e, mais especificamente, a mun
dana, aristocratica e encantadora Petrópolis. Assim, sua visão se centi"a na elite
culta e refinada, que para ele ocupa o lugai" do povo, como seu equivalente.

Somos um povo que amamos a ordem e a clareza, por conseguinte, tudo que é
nobre e belo — a nobreza e a beleza nada méds sendo que o esplendor da ordem,
aditamos as leis clássicas da elegância do bom gosto europeu [...]'®'

Definindchse como um "estetae sibaiitaimpenitente",só Uie inteiessava,no Biasü,


o Rio deJaneiro e, neste,o que lhe preocupava era a Europa,isto é, o espírito euro
peu,era o cachp.l paiisiense que se revelava nas aites e nos costumes, nos hábitos, nos
pi"azeres, na atmosfera dosc/tí/we nasíoiráaçeleganteseaté nos vícios...'®® Daí porque
lamentava que asociedade caiioca perdera aquela aura aiistocratica e requintada do
Segundo Império,a qualsó era enconti-adaem Petiópolis.
Lá, as pessoas habitavam em cottages, villas ou em petits chãteaux e passa
vam a vida a causer e potiner em garden^nrties, clubs, paitidas de bridge, bah de
têle, Jêtes viasquées e, naturalmente, o five o'clock...
As mulheres eram devwiselles ou madames, os homens bon enfant ou gentle-
man, dotados de savoirfaire, atítudesfluppy rujles, todos com muito chartn, bien
habillés, em admirável tenue, a dedicai-se àcaiw^^dos últimos/íoíítm efa^es,numa
postura snob mas adequada! Enfim, como afiiTnava o autor com afetação, um
parcour de rêve agitava a senson da elite que se refugiava na Peüópolis cosmopo
lita, cheia de embaixadores de outros países...

Umjanota de Peü ópolis é um dandy em Pycadilli (sic) e uma beleza profissional pas
sa por uma verdadeiiu paiisiense à hora do 'peisil' no Bois. Aí,como em Paiis, como
em Londi"es,essa gente,com váiias estaçõesem Nice,em Newpoil,em San Sebastian e
intimeius viagens ao esüangeiro, tem deveres sociais que cumpre à risca. No nosso sé
culo, o mundo é muito pequeno,tem quase as proporções e aspectos de um salão.'®®

'®® Carvalho, Elísio de. Kq)lendor e decadência da sociedade hrnsileim. Rio de Janeiro: Garnier, 1911.
pjl.
'®'Ibidem, p.lO.
'®®Ibidem, p.220-1.
'®®Ibidem, p.225-6.

213
E por falar em mundo,Elísio de Cai^valho concordava com a afinnação de
Lord Beaconsfield,o conhecido político e escritor inglês Benjamin Dismeli. Este
"dizia só haver no mundo verdadeiramente interessantes Paris e Londres,e que
todo o resto era paisagem.'^"
A postura do autor nega a presença do "outro Rio" que se impusera a
partir da segunda metade do século XIX e que paiticulannente "incomoda
va" no início do novo século. Homogeneizando o social através do filtio dos
padrões de sua elite, Elísio de Cawalho eleva a um grau máximo o efeito "país
das maravilhas" com sua imagem sedutora e defoiTnada do social.
Sem citai" tal tipo de obra. Lima Baneto denuncia o tom europeizado de
nan"ativas deste tipo, especialmente em Os hrunzundnngas. De A esfinge, obra de
Afrânio Peixoto editada pela Francisco Alves em 1906 e que abordava o munda-
nismo carioca. Lima Baixeto dizia ser "detestável".''' Disconendo sobre usos,
falares e situações da vida citadina, a obra de Afrânio Peixoto reproduziria ce
nas nas quais a elite era levemente ridicularizada em seu requintado francesis-
mo. O livi-o, que naia-a os percalços do amor de Paulo pela "esfingética" Lúcia
através de cenários de Petrópolis e do Rio, coloca em cena governantas ingle
sas,janotas que perconem a Europa gastando fortunas em Monte Cai"lo, diva-
gações sobre o casamento moderno,sobre a cultura européia da elite afrancesa-
da,sempre repleta de expressões ft-ancesas e inglesas. No turbilhão da vida soci
al elegante, na qual o "tennis era pretexto", pois o esporte predileto era o
nem mesmo a condenação final do par amoroso,reduzido a uma existência mes
quinha e noi-mal, não impede que a obra transmita o fascínio do mundo ele
gante cai-ioca. Ante o sucesso da obra,que conquistou o público feminino,aponta
Biito Broca que o livi"o transmitiajustamente "a imagem do son"iso da socieda
de" que Afrânio Peixoto — ele próprio homem elegantíssimo e freqüentador
das rodas supérfluas — oferecia a essa sociedade que se queria requintada e
afetada no seu mundanismo.
Compreende-se,pois,o amargor de Lima Baireto ante o sucesso de A esfin
ge, no momento em que a critica e o público se desinteressavam de Recordações
do escrivão Isaías Caminha, no qual o mestiço pobre e revoltado procuravajusta-
mente vingar-se dessa sociedade."®
Sobre Coelho Netto, o festejado autor de uma vasta produção litei-ái"ia.
Lima Baneto teceria duras críticas pelas concessões que fazia à vida munda-

""Ibidem, p.219. Lord Beaconsfield era o título de nobreza de Benjamin Disraeli, o conhecido
político e escritor inglês.
"'Barbosa, op.cit., p.l83.
'"Peixoto, Afrânio. A esfinge. São Paulo: Clube do Livro, 1978.
'"Brito Broca, A vida, p.l47.

214
na, como por ocasião do discurso que fizera na inauguração da sede social de
um clube carioca, sem maior preocupação com o papel e o estatuto do escri
tor."'' Todavia, mesmo nas concessões feitas ao mundanismo. Coelho Netto in
seriu em suas obi-as um tom levemente crítico ao decadentismofin-de-siècle. Em
A capitalfederal,seu personagem Doutor Gomes expressa ao interioi-ano Afonso,
que chegara pela primeira vez ao Rio, o seu pessimismo pai-a com a civilização:
à literatura, às artes, ao pensamento,dizia ele,faltavam originalidade,élancvin-
dor."^ Recomendando ao recém-chegado a leitura de LA Bas, de Huysmans —
livio de nevrótico, obra de enfenno"® —,o Doutor Gomes o caiTega pai-a a
noite do Rio, espécie de descida aos infernos que,sintomaticamente,os an-asta
a uma casa de espetáculos, onde,num delírio satânico, compareciam os diabos
num inferno cenográfico de baixa qualidade... Neste has-fondnoturno, no qual
o jogo, tal como a morfina, era um prazer estético,"' o doutor asseverava a
necessidade da devassidão e o abandono aos instintos, mesmo aos mais toipes e
pei-versos,justificando-os como uma necessidade humana. Enfim, dizia o dou
tor,"nós somos os degenerados".""
Em suma,nas obi-as desses autores,que obtinham sucesso literârio no meio
urbano elegante da época, pereonagens e ambientes de uma realidade eui-o-
péia eram transportados para o espaço caiioca, o que se traduziria num certo
quê de falsidade. O leitor mais atento se indagaria se, realmente,a BeUeÉpoque
caiioca apresentava tantos condes, princesas e mulheres vampirescas assim,e se
os cenáiios,inspirados no decadentismo europeu,não ficariam mais bem colo
cados se tivessem lugar na Paris ou Londresjin-de-siècle...
O próprio João do Rio não se furta a essa tendência, como pode ser visto
no conto "Dentro da noite", no qual um personagem, passando por adonne-
cido durante uma viagem noturna de trem, escuta curiosa história de uma
"tara"sexual, que levava um noivo a revelai"sinistro pi-azer em espetai"os braços
da namorada com alfinetes...""
Ora, apesar do interessante da história, a ambientação revelada na ti"ama
— um trem em disparada — nada tem a ver com a realidade bi"asileira e mais
se adequaria a uma narrativa francesa ou londrina. Por outro lado, mesmo na
abordagem de temas e situações mais propriamente nacionais, ou mais plau-

Morais, Regis de. Liina Barreto. São Paulo: Brasiliense, 1983.


'''Neto, A capital.
"'Ibidem, p.138.
'"Ibidem, p.246-7.
'"Ibidem, p.246-73.
"'João do Rio. Dentro da noite. In: João do Rio. Histórias de gente alegre. Rio de Janeiro:José
Olympio, 1981. p.43 et seq.

215
síveis com a realidade religiosa e mágica do país, como no conto "A missa ne
gra",'®® é o decadentismo de Huysmans,com as neurosesJin-de-siècle e os vícios e
pei-versões do Primeiro Mundo que são invocados.
E é por este viés da tendência cosmopolita que Lima Ban eto prossegue na
sua crítica sociocultui"al,indicando tal como ele vê a capital da república na BeUe
ÉpoqueacáocTi. O ideal do país é,estranhamente,viver fora do país;'®' o resultado
pratico das viagens de estudos à Europa era a importação da moda,'®- copiada
com esmero por todo aquele aspiimite a um reconhecimento social e ao desem
penho de um caigo de lepresentação... Há passagens veidadeii"amente impagá
veis, como a indicação de que os letrados da Bmzundanga seguiram a escola Sa-
moieda,da distante Sibéria, próxima ao oceano Áitico,e,na sua concepção,obe
deciam a padrões estéticos semelhantes aos da Grécia antiga...'®® E o ridículo se
completa com o endosso indiscriminado e descabido do modelo externo,satiriza
do,num cúmulo de deboche na seguinte passagem:
A Bmzundanga,como sabem, fica nas zonas tropical e subti opical, mas a estéti
ca da escola pedia que eles se vestissem com peles de urso, de renas, de martas
e raposas árticas. E um vestuário barato para os samoiedas autênticos, mas ca
ríssimo para os seus parentes literários dos ti"ópicos. Estes, porém, crentes na
eficácia da vestimenta pai"a a criação artística, morrem de fome, mas vestem-se
à moda da Sibéria.'®*

Em suma,a tensão local versus universal, localizada no cerne da identida


de nacional, era captada por Lima Baneto na sua visão crítica sobre a elite cul
tural do país. Estabelecer um distanciamento frente às duas posturas,contudo,
implicava ter em conta as dificuldades, por um lado,em lidar com a dimensão
temporal do resgate das origens e da memória e, por outro,em manter-se atua
lizado com os debates universais do seu tempo. E a tensão era, no caso, nacio
nal e pessoal para Lima Baneto,revelada dramaticamente pela cidade na qual
vivia. Havia, no caso,um pecado original,um vício de origem,que mostrava um
país mestiço,com enonnes desigualdades sociais e relações de poder profunda
mente enraizadas na vida nacional. O Rio deJaneiro como que concentrava e
potencializava estes problemas,funcionando como uma síntese ou microcosmo
do Brasil.

'®°Joào do Rio. A missa negra. In:João do Rio, Histórias, p.4.


Lima Barreto, Os bruzundnngas, p.52.
^®-Ibidem, p.31.
'®®Ibidem, p.23.
'^'^Ibidem, p.26.

216
As Recordações do escrivão Isnícis OzíwmÃfl explicita bem o preconceito de cor
que se encontm nas raízes do dilema nacional e do próprio Lima Barreto:

Ali! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde,


amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo da minha cor...'^

Se a obra,calcada sobremaneira na experiência individual do autor,encer-


m uma critica à valorização dos elementos de alta consideração social no país
— o bacharelismo, o título, o anel de grau —,aponta também no caminho
possível da redenção,através da cultura superior e da laigueza de visão, posição
na qual, ao que tudo indica. Lima Baireto se enxergava. Sua critica ao cosmo-
politismo, pois, não é uma recusa à cultura univeisal, mas ao aspecto de fachada
por parte dos que realizavam citações e nomeavam autoressem saber o que dizi
am.E contra, pois,a "mediocridade ilustrada" — e bem-sucedida—de seu tem
po,e não contra a leitura dos estrangeiros.
Como aponta Francisco de Assis Barbosa em sua obra,'®® o inventário feito
por Lima Baneto em sua própria biblioteca revela um conjunto apreciável de
livios de autores nacionais e esUmigeiros,com gi-ande número de franceses. Com
uma cultura invejável, nosso escritor intuía com aigúcia os dilemas do país, a
debater-se entre a barbárie e a civilização, a natureza e a cultura, a mestiçagem
real e o ideal de branqueamento.
Nessa linha é que se aprofunda o desvelamento daquele "traço de cai-áter
nacional",já apontado pelo cronistaJoão do Rio: a cultura de fachada, o gos
to pelas aparências, a valorização dos signos exteriores do requinte e da rique
za. O próprio Isaías Caminha, que pretendia redimir, pela educação e cultu
ra, o seu "pecado original" de ter nascido mulato, tecia considerações sobre o
efeito miraculoso do título de doutor:

Ali! Doutor! Doutor! Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos,
vários, polimórficos... Era um pailium, era alguma coisa como clâmide sagra
da, tecida com um fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontio os ele
mentos, os maus olhares, os exorcismos se quebravam. [...] Oh! Ser formado,
de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, [...] andar assim pelas
ruas, pelas praças, pelas estiadas, pelas salas, recebendo cumprimentos. Dou
tor, como passou? Como está. Doutor? Era sobre-humano! [...].'®'

"'Lima Barreto. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Rio de Janeiro: Tecnoprint/Ediouro,s.d.


p.42.
Barbosa, op.cit., p.360-82.
Lima Barreto, Recordações, p.42.

21,7
Daí a fúria nacional pelo último figurino, pela moda demier batenu, pela
farda e pelo título, pela necessidade de parecer moderno, atualizado, inteli
gente. Não havia no país a preocupação de chegar ao âmago dos problemas
ou à decifi-ação das situações."Só querem a aparência das coisas",'®® dizia Lima
Ban-eto, ao referií-se aos habitantes da metafórica pátria Biuzundanga. As cax-
l eii-as e piofissões ei-am escolhidas pelo seu px estígio,unifoime e leconhecimento
social, e não pelo seu desempenho efetivo. Da mesma fornia, é o pei-sonagem
Gonzaga de Sá, metáfoi-a do Rio antigo, que desapaiece sob o influxo da i-eno-
vação uibana que denuncia a "estúpida mania dos hi-asileiios, a mais estulta e
loipa"; a da aiistocx-acia.'®® Ti-atava-se de uma teira onde todos queiiam ser no-
bies a todo custo, não passando de aiiivistas numa sociedade que se mascai^ava,
num eterno carnaval,fmgindo-se axistocxata.
Tal vocação paia o espetáculo, pai-a a teati alização da vida. Lima Ban eto
considerava que foi-a potencializada com a lepública:
Cada qual mais queiia, ninguém se queria submeter num espeiai, todos luta
vam desesperadamente como se estivessem num naufrágio. Nada de ceiimôni-
as, nada de piedade, era pax-a a frente, paxa as posições l endosas e pai-a os px ivi-
légios e concessões. [...] a x epública soltou de denti o das nossas almas toda uma
grande pressão de apetites de luxo, de fêmeas, de biilho social. O nosso impé
rio decorativo tinha virtudes de torneira...""'

É ainda, por esse aspecto de fachada e de montagem de um cenáxio teatral,


que Lima Baneto aprecia a transfonnação do Rio de Janeixo. Caxicatux-ando a
flgux"a do Bai^ão do Rio Bx-anco e sua ascendência sobx"e o px esidente do país — o
"mandachuva" —,Lima Baxieto escxevexia em Os bruzundangas:

Convenceu-se de que devia modificai" radicalmente o aspecto da capital. Ex"a pre


ciso, mas devia ser feito lentamente.Ele não quis assim,e eis a Biaxzimdanga,toman
do dinheiro emprestado,para pôr as velhas casas de sua capital abaixo.De uma hox"a
para outra, a antiga cidade desapai eceu e outi-a sui giu, como se fosse obtida por
uma mutação de teatro. Havia mesmo na coisa muito de cenogx"afia...""

Alguém que da capital se ausentasse por uns tempos manifestaria estxanhe-


za ao depaxai"-se com o coiyuntq das reformas, tal como o velho coronel que Isaías
Caminha encontrax"a na pensão e se considexava como um estx-angeixo na cidade:

Lima Barreto, Os bruzundangas, p.22.


'®®Lima Barreto. Vida e. morte de.J. M. Gonzaga de. Sá. Rio de Janeiro: Garnier, 1990. p.35.
""Lima Barreto, Recordações, p.l51.
Lima Barreto, Os bruzundangas, p.73.

218
Está tudo mudado: Abolição, República... Como isto mudou!Então,de uns tem
pos para cá, parece que esta gente está doida; botam abaixo, dermbam casas, le
vantam outi-as, tapam umas iiias, abrem outi-as, estão doidos!'®-

O próprío Lima Baireto, sem usar personagem algum, deixaria, em seu


Diáno íntimo, registrada a estranheza ao passear pela sua cidade, modificada ao
ponto de ele acreditar-se em outra urbe.'®''E oJlâneurdo urbano,que busca nas
fisionomias das casas, nos cantos das mas, os sinais e registr os de um Rio que
progressivamente desapar ecia.
As apreciações sobre a mudança que se operm^a no Rio,"da noite para o
dia", endividando o país, repetem-se na obra de Lima Barreto,'®^ e o resultado
era a cidade de espetáculo,falsa,com casas"arquitetonicamente"na moda,onde
o espírito de imitação o fazia remontar a Rabelais, com a comparação da elite
aos "carneiros de Pamrrgio"...'®'
A demrncia não se dá em função de um mero saudosismo, mas pelo que
consegue apar entar em termos de falsidade e pastiche. Nosso escritor encar-a as
reformas com prevenção:

[...] acredito que o Rio, o meu tolerante Rio, bom e relaxado, belo e sryo, es
quisito e harmônico, o meu Rio vai perder, se não lhe vier em troca um grande
surto industrial e comercial; com suas ruas largas e sem ele, será irm aldeia pre
tensiosa de galante e distinta, tal como é o tal de São Paulo.

São Paulo parece ser um alvo predileto da ironia de Lima Baneto, que se
refere a ela, em Os brvzundangas, como a ridícula província de Kafeth, com a
sua pretensão de aparentar ares europeus:

Há tantos tipos de cidades européias que tenho vontade de pergvmtar se ela é


do tipo Atenas, do tipo Veneza, do tipo Carcassone, do tipo Madrid, do tipo Flo-
rença,do tipo Estocolmo — de que tipo será afinal? Certamente do de Paris.Ain
da bem que ela não quer ser ela mesma.

A critica de Lima Baneto com relação às reformas do Rio se dirige, basi


camente,contr-a o que se poderia chamar a descar-acterização da urbe e que se

'®^Lima Barreto, Recordações, p.71.


'®'Lima Barreto. Diário intimo. Sáo Paulo: Brasiliense, 1961. p.92.
"■•Lima Barreto, Recordações, p.103.
'®^Ibidem, p.76.
Lima Barreto, Diário, p.92.
'®'Lima Barreto, Os bruzundangas, p.98.

219
traduziria, como se viu, pelo artiflcialismo da mudança. Essa tendência se reve-
laiia tanto mais perniciosa em seus efeitos quanto mais se tivesse em conta a
quebra da relação da cidade com a natureza. Tal processo se encontra admira-
velmente apresentado na obra Vida e morte deJ. M. Gonz/iga de Sá.
Gonzaga de Sá,Jlâneur da cidade com a qual se identifica — ele é o pró
prio Rio antigo que desaparece e o seu amaigurado espectador —,percone
as naas, os cantos os prédios, as esquinas, registrando os detalhes de tudo o
que mudou ou que desapareceu inemediavelmente. É cético quanto ao futu
ro da urbe: tendo crescido desordenadamente, em integração com a nature
za exuberante, a cidade nunca serâ uma capital. E Gonzaga de Sá pondera e
filosofa sobre a identidade urbana ameaçada com seu amigo Machado:
Pense que toda a cidade deve ter sua fisionomia própria. Isso de todas se pare
cerem é gosto dos Estados Unidos; e Deus me livi e que tal peste venha a pegar-
nos. O Rio, meu caro Machado, é lógico com ele mesmo, como a sua baía o é
com ela mesma, por ser um vale submerso. A baía é bela por isso; e o Rio o é
também, porque está de acordo com o local em que se assentou.'®"

O traçado da cidade,sua arquitetura,sua profunda integração à natureza


encen-avam uma história, davam à urbe uma feição própria, a qual o próprio
bonde desfigurou e perturbou a hannonia.Se os exageros de lima Baireto prin
cipiam com a travessia urbana dos bondes, seriam exacerbados sobremaneira
quando do ensaio dos primeiros airanha-céus:

[...] uma brutalidade americana, de seis andaies, dividido em quartos, para ser
hotel: Hotel NewYork(que nome!), um pombal,ou melhor, uma cabeça de por
co. Somos de uma estupidezformidável. O Rio não precisa de semelhantes edifí
cios. Eles são desproporcionados com as nossas necessidades e com a população
que temos. [...] É o que eles chamam de progresso. Fresco progresso!'®®

Antes de classificarmos ou enfocarmos a postura de Lima Baneto como


saudosista, apoiada na tradição e avessa ao progresso, preferimos afinar a aná
lise e acentuar a sua crítica na identificação de uma cultura das apar ências e do
rompimento de um equilíbrio entre cultura e natureza. Em páginas mais irôni
cas,o personagem Gonzaga de Sá daria as suas opiniões sobre as reformas. Ante
a pergunta se a avenida BeiraTMar, cartão postal de nossa Parí-s-xur-mer, era bela
ou não, Gonzaga de Sá responderia que não.Paia ele,era o cais da Lapa alarga-

'®®Lima Barreto, Vida e morte., p.41-2.


'®®Lima Barreto, Diário, p.188-9.

220
do e,com isso, talvez a capital carioca quisesse imprimir o seu critério de beleza
— a largui-a — tal como os americanos tinham o seu:a altura... Ante a pergunta
mais direta sobre os melhoi-amentos urbanos em gei-al, Gonzaga de Sá apresen
tava seus próprios projetos:

Nota-se que, em geral, as grandes cidades, especialmente as européias, não têm


um fundo de cordilheira como a nossa. Ora,se as giandes cidades não têm tal dis
posição natural e se o Rio quer ser das giandes à européia, deve an-asar as suas
montanhas. Não há prejuízo algum com isso. A desvantagem única seria a supres
são do Corcovado, montanha internacional e muito procm-ada pelos esti-angeh os.
Em substituição, pode-se erguer uma torre semelhante à EifiFel, em Paiis. Até será
muito melhor, pois ficará o Rio muito parecido com a capital da França. O aterro,
proveniente do desmonte dos morros,semrá para alteiai* a baía, um incômodo,
sepulcro de crimes e cuja beleza, nojm'zo dos políticos, é uma vazia banalidade
de retórica. [...] Nota-se também que as giandes meti"6poles ficam sobre rios mais
ou menos consideráveis (Paris, Berlim,London,NewYork,Viena, etc.) — logo,se
o Rio quer ser giande meti ópole, deve ficar à margem de um rio respeitável.^"®

O deboche é completo e o ridículo,exposto a nu. O Rio procurava viver e


acreditar-se a Cidade Maravilhosa do outro lado do espelho, num processo que
Lima Baireto qualifica de farsa.
Por outro lado, o escritor condena também as refonnas urbanas naquilo
que elas implicavam como descaracterização do popular, identificado pela
mentalidade progressista como ati-aso. Escrevendo, em 1911, para recordar o
gi"upo dos cafés que freqüentava no início do século. Lima BaiTeto dizia ser a
capital, nessa época, ainda

[...] uma velha e feia cidade, de ruas esti eitas e mal calçadas, mas, não sei porque,
mais interessante, mais sincera, do que esse Rio binocular que temos agora. Rio
ti ompe d'oeil, com avenidas e palácios de fachadas,só cascas de casa, espécie de
portentos cinematogiáficos.^"'

Como bem aponta Francisco de Assis Barbosa, o "Rio binoculai"era uma


clara alusão à coluna"O binóculo", de Figueiredo Pimentel — na Gazeta de No
ticias— que dava conta da vida social do grand monde carioca.
Convém, contudo, apontar uma ambivalência na atitude de Lima Bar
reto. Ele não é infenso ao charme de certos espaços privilegiados da urbe e

^''"Ibidem, p.119-20.
Apud Barbosa, op.cit., p.l26.

221
freqüentados por aquela elite que ele criticava. Assim, a Rua do Ouvidor,
preexistente às reformas de Pereira Passos, é como um "houlavard de Pa
ris". Na verdade. Lima Barreto experimentava um certo fascínio por es
ses espaços, tal como na desciição do footing das "mulhexes fáceis" nessa
famosa lua,-"^ ou a possibilidade de passear na avenida Central, com seus
artistas, boêmios, escritores, camelôs,jnendigos,yZâTCgur.ç e rôdp.uses...-^^ Da
mesma forma, seus contos nos falam de confeitarias regorgitantes de gen
te,-"^ com elegantes freqüentadores, ou de noites no Lírico,-"® com o seu
esplendor de belas mulheres e fraques. Mesmo que haja a tradicional iro
nia, a irreverência e a crítica, há como que uma atitude de atração e repú
dio, celebração e combate por parte do escritor, frente a este meio que
teria tudo para acolher o seu talento, mas tinha restrições a seu tipo mula
to e boêmio...
O Rio se ti-ansfonnava, embelezando-se segundo padrões estéticos impor
tados, para o gosto e o recreio de sua elite, mas a cidade oferecia contrastes
inequívocos. Os subúrbios, tão bem apontados por Lima Baneto, forneciam
como que o contraponto ao fausto renovador, revelando a tragédia, a violên
cia e a miséria, como um reverso da medalha. A exclusão da maioria da popu
lação daquela cidadania requintada do novo regime político fazia do subúr
bio o "refúgio dos infelizes":""'

Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se pos
sa fincar quati o estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o mate
rial para estas construções sei-ve: são latas de fósforos distendidas, telhas ve
lhas, folhas de zinco, e , para as nervuras das paredes de taipa, o bambu que
não é barato. ''
Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros, que as ái-
vores e os bambusais escondem aos olhos dos ti^anseuntes. Nelas, há quase sem
pre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda esta
população, pobríssima, vive sob a ameaça cotistante da varíola e, quando ela dá
para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.^"®

^Lima Barreto, Diário, p.96.


Lima Barreto, Vida e morte, p.75-6.
-"''Ibidcm, p.l04. J
^^Lima Barreto. A indústria da caridade. In: Lima Barreto. Histórias e sonhos. Rio de Janeiro:
Gráf. Ed. Brasileira. 1951. p.l95.
®'"'Lima Barreto. Uma noite no Lírico. In: Lima Barreto. Histórias e sonhos, p.80-1.
='"Lima Barreto. Clara dos Anjos. São Paulo: Atica, 1988. p.73.
-"®Ibidem, p.71.

222
Se a Rua do Ouvidor era uma passaiela da moda e um reduto da intelectuali
dade paia a qual ele demonstiava um sentimento ambivalente,em relação ao que
nã era suburbano,seu ambiente, mosüava desconforto.A cidade reproduzia espa-
cialmente as divisões sociais: oslugaies tinham códigos,cujo acesso osfreqüentado
res conheciam, mas que eiam estianhos aos demais que lá se aventuiassem.
As descrições do subúrbio são uma constante na obra de Lima Baiieto,são
o seu chão conhecido e cuja organização espacial é, no seu dizer "delirante",
entre mas que se dividem e se crtizam, transfonnando-se em travessas e condu
zindo a becos estreitos. Não há ordem nem unifoiTnidade, com seus tipos de
casas, quintais e anemedos dejardins e pomaies:"tudo isto se bai-alha,confun
de-se, mistura-se".-*®
Sua expressão arquitetônica mais típica é o chalé, e, ironicamente, diz
Lima Ban eto, se obsei-vássemos o subúrbio do alto — mas sem chegar perto,
sem dúvida —,julgariamos estai" na Suíça ou na Holanda...^'"
Mesmo que o bonde, na sua expansão, chegue ao subúrbio, eles são es
quecidos pelas autoridades municipais e não gozam de outi-as benfeitorias dos
sei"viços urbanos.-"
E nesse espaço melancólico e esquecido,conti^astante com a cidade que se
transfoiTna e se vê como metrópole, que Lima Ban eto situa os dramas das per
sonagens femininas: Clara dos Anjos, seduzida e abandonada; Lívia, a sonhar
na lida da casa, à espera de um marido.
É nas mulheres pobres, negi^as ou mestiças, que Lima Baneto descanega
a fatalidade de ser pobre e de cor num país que quer ser rico e branco. Tais
personagens femininos parecem predestinadas, sem salvação possível. Não
agem por conta própria,sofrem e são aiTastadas pelas circunstâncias do meio,
como o elo mais fraco de uma cadeia de injustiças e de situações mal resolvi
das historicamente, que a vida na cidade acentua.
Trata-se de uma violência surda, silenciosa, contra os habitantes do "ou
tro Rio", do Rio-vítima, que se oculta sob o Rio-espetáculo, cartão postal da
vitrine do Bi-asil.
As refonnas do Rio que redesenharam o espaço urbano da cidade tive
ram a sua seqüência, como se sabe, numa reação popular contra as medidas
do governo que intei-vinham na cotidianidade da vida e nos seus valores. Em
Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima BaiTeto retoma tais manifestações.

™®Lima Barreto, Vida e morte, p.85.


Ibidem.
Lima Barreto, Diário, p.223.
-'-Lima Barreto. Lívia. In: Histórias e sonhos, p.100-3.

223
centi-ando o motim na reação do povo conti-a a famigerada questão dos sapatos
obrigatórios. Essa espécie de ação municipal contra os pés descalços deu mar
gem a uma série de especulações cômicas e a reações indignadas dos populares,
tal como o boato de que o governo iria proceder a uma operação cinirgica na
queles que tivessem os pés grandes, para diminuí-los...-'® Através do ridículo.
Lima BaiTcto aborda um dos elementos que atravessam os movimentos de mas
sa, pertinentes ao meio urbano, e que, por vezes, influem no comportamento
das multidões:o boato,o "diz-que-diz-que". Emboi^a com aparência de mentira,
todo boato estabelece uma conexão direta com aquilo que "poderia ser verda
de" e, na cadeia entre dizer e ouvir, passa-se adiante uma "possibilidade" aceita
como plausível e,sobretudo,temida...
Enti e declarações de caiToceiros e estivadores, que afinuavam não se cal
çarem "nem à ponta de espada",-''' e opiniões contrárias de que era preciso
civilizar a cidade,o motim explodiu violento,com bairicadas nas mas,bondes
incendiados e tiroteios, a reunir uma população enfurecida contra o governo
e a polícia:

O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisado. Propaga-se, espa
lha-se, mas não se liga. O gmpo que opera aqui não tem ligação alguma com o
que tiroteia acolá. São independentes, não há um chefe geral nem um plano
estabelecido. Numa esquina, numa travessa, fonna-se um grupo, seis, dez, vinte
pessoas diferentes, de profissão, inteligência e moralidade. Começa-se a discu
tir, ataca-se o governo. Passa o bonde e alguém lembra: vamos queimá-lo. Os
ouüos não refletem, nada objetam e correm a incendiar o bonde.®'®

Lima BaiTeto endossa a postura que vê, no conjunto das medidas de tmns-
fonnação da cidade, um intento disciplinador, que consagrava os desejos de
ordem, saneamento e estética de uma elite europeizada e que "vaiTia" os po
bres do cenário urbano:

[...] esforçavam por obter as medidas legislativas favoráveis [...] ao enriquecimen


to dos paüimônios respectivos com indenizações fabulosas e especulações sobre
terrenos. Os Haussmanns pululavam.Prqjetavam-se avenidas;abriam-se nas plan
tas 'squares',delineavam-se palácios, e,como complemento,queriam também uma
população catita,limpinha,í^legante e branca;cocheiros irrepreensíveis, engraxa
tes de libré, criadas louras, de olhos azuis, com o uniforme,como se viam nosjor
nais de moda da Inglatena.^'*^

-^^Lima Barreto, Recordações, p.l79.


-''^Ibidem, p.l94.
sí^bidem, p.198-9.

224
Se a violência é uma constante, uma coisa seria o explodir da manifestação
popular, que Lima Ban eto vê como "espontânea"ou "envolvente", ou mesmo a
violência inerente e camuflada das medidas disciplinadoras da urbe. Outra se
ria a dimensão da violência institucionalizada, que se associa à pratica republi
cana do fíoríanismo e que tem a roupagem da barbáne,reatualizando na histó
ria o massacre dos miseráveis.
Em Tnstefim dePolirnrpo Quaresma^^'os conflitos que explodem na cidade,
a Revolta da Amiada e o apiisionamento dos populaies são tanto tfagédia quanto
farsa. As pessoas aguardam com ansiedade os tiros, colecionam as balas perdi
das,comentam as baixas, apostam nos atos de um e outro lado.Sociedade-espe-
táculo, misto de farsa e de cixieldade da existência, qual o limite entre o real e o
simulaci o? O próprio confronto da barbárie e da civilização se revela aos atores
dos acontecimentos em curso, revelando os dilemas inevitáveis da cidade mara-
rilhosa, microcosmo do país das maravilhas.
Da violência urbana à refonna da cidade — o passo é cuito — e o tempo
histórico se atualiza rapidamente,sem contradições maiores. Baibáiie e civiliza
ção se sucedem,sem maior problema.Todavia,a especificidade da vivência urba
na em ritmo de modernização não é a sucessão da baibárie à civilização, como
etapas de uma evolução, mas a sua convivência e peraianência lado a lado,a acen
tuai- a pei-vei-sidade do processo de modernização urbana.
Mas as críticas de Lima Barreto não param por aí.
Com essa padronização desejada da cidade, espelho de uma identidade
sonhada,vicejava uma vida cultural medíocre.
Embora imensamente crítico em relação à vida literária ú^BelleEpoquecsr
rioca. Lima Barreto por ela se sentia atraído. Sedução e repúdio,ambivalência
de sentimentos que o fazia investir conti-a o Rio-metrópole,sua elite, o regime
republicano em geral, ao mesmo tempo em que almejava enti-ai* para a Acade
mia Brasileira de Letras. Ao que parece — e comjustificada razão —,Lima Bar
reto tinha em alto conceito seu valor litei-ái-io e nível cultui-al, mas o estigma da
cor o perseguia. Ter um pé cá e outro lá, eis o dilema que, no caso de Lima
Barreto, explodiu numa "hipersensibilidade intuitiva",-"* para resgatar as misé
rias e grandezas de seu tempo.
O Rio que emerge de seu texto é o grande centro que se metropoliza e
que busca se parecer com Paris. Suprema ironia,a rachadura do espelho insistia
em devolver imagens rejeitadas...

="*Ibidem, p.162-3.
■"Lima Barreto, Tiistfi fim, p.l45 e p.I71.
-"Morais, op.cit., p.63.

225
o texto de Lima Baneto aponta também na direção de nm tipo ideal de
cidade presente na América Latina e que, tal como o Rio, se inspirava em Pa
ris: Buenos Aires. A capital argentina haveria de ser um exemplo bem-sucedido
de implantação da modernidade urbana do "lado de cá" do oceano.Particular
mente no Rio Gi"ande do Sul, a sua proximidade fazia o contraponto com a
metrópole bi"asileira do Rio. E o Rio deJaneiro, por seu lado,"invejava imbecil
mente a capital portenha", no dizer de Lima Baneto:

Buenos Aires era uma verdadeira capital européia. Como é que não tínhamos
largas avenidas, passeios de carruagens, hotéis de casaca, clubes de jogos?"'^

É o viés do irônico o caminho escolhido por Lima Baneto para "dizer a


cidade", "dizer o Brasil". Outros o precederam nessa abordagem, como Ma
nuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e o citado João do Rio. Nas leitu
ras alegóricas do urbano, as metáforas empregadas viram a vida do avesso: o
Brasil-Bruzundanga aparece desnudo, através do olhar que enxerga a cidade
de outra forma. Os heróis-mártires da tragédia urbana — Policaipo Quares
ma, Clara dos Anjos — mostram a perversidade da existência no Rio que toma
o passo da modernidade. Mas, mesmo a violência, a miséria e a cnaeldade que
os descaminhos da história brasileira revelam são apresentadas de forma tragi-
cômica. A farsa predomina sobre o drama. Traço de lucidez ou escapismo, o
apelo à ironia pela literatura podeiia talvez vir a representar a "solução" para
enunciar questões muito antigas, não resolvidas pela nação e que continuamen
te se reatualizam.
Há, contudo, um traço da leitui^a do urbano feita por Lima Baneto que
vem se justapor às nossas preocupações antes anunciadas sobre o "efeito do
espelho". Trata-se daquele traço de "bovarismo" assinalado pelo escritor como
presente na sociedade do Rio de Janeiro e que se configurava como que um
elemento do caráter nacional.
O conceito de bovarysvw. Lima Baneto foi buscá-lo na obra de Jules de
Gaultieri-"e se traduziria na capacidade dos indivíduos de constnuTem imagens
de si próprios diferentes daquilo que são na realidade. Ou,em outras palavras,
o bovarismo seria responsável pela décalageentre o real e o imaginário,levando
as pessoas a se enxergarem,a si próprias e ao mundo,de uma forma distorcida.
Estaríamos diante de uma capacidade de representar o mundo que não obede
ce ao mimetismo ou à imagem reflexa com relação ao real concreto. Lima Bar
reto intui muito bem essa possibilidade de que as imagens assim construídas pelo

-'®Lima Barreto, Recordnções, p.lfi2.


Lima Barreto, Diário, p.92-4.

226
imaginário venham a ter um "efeito de real". As pessoas vivem de acordo com o
que pensam ver e ser, o que viria a representar, em última análise, uma fornia
de adaptação do indivíduo ao mundo,que nele enxerga aquilo que quer. Cons
tituindo um "aparelho de ótica mental",o bovarismo seria o "poder partilhado
no homem de se conceber outro que não é".--' E, nesse sentido, o bovarismo
seria uma espécie de "doença nacional".---
O Rio deJaneiio foi o microcosmo de análise para a reflexão de Lima Bai-
reto sobre o Brasil e sobre esse poder mágico dos nacionais de se conceberem de
fonna diferente daquilo que eram. Daí o país se enxergai- da maneira como
desejava ser e viver essa transfiguração do real como verdadeira. Todos sejulga
vam lordes, mistificando um país de mestiços e miseráveis. A imagem do outio
lado do espelho ei-a, em tudo, melhor do que o mundo do lado de cá. Por que
resistir à tentação do imaginário? As pessoas acreditavam naquilo que queriam
ver, e o Rio apresentava aquela situação de fachada, de teati-alização da vida, dis
torcendo o real ou,então,ignorando o lado incômodo da existência.
A obra de Lima Baireto é, nesse caso, prenhe de figui-as e situações metafó
ricas,cujo significado último enconti-ai-íamos na capacidade do homem de se con
ceber diferente daquilo que é. Os hruzundangasé o texto no qual a paiódia atinge
a sua dimensão global: neste "país das mai-avilhas", os cidadãos da elite cultivada
sejulgam outros,distantes daquilo que são. Nobressão todos,os de origem douto
rai ou de palpite, e, à força de dizê-lo, acabam acreditando... Todos sejulgavam
lordes, mistificando um país de mestiços e miseráveis.
Na trilha do princípio de que o hábito faz o monge,vestem-se à européia
em pleno veráo tropical, para ficarem "parisienses"! Escrevem obi-as que nin
guém entende, mas assim como fingem acreditar no que dizem, os demais fin
gem entender.A população de cor pulula nas mas,mas a civilização se diz bi-an-
ca. Os títulos valem mais do que o seu conteúdo, tanto que havia doutores sem
teremjamais clinicado, e,embora o país não tivesse realmente forças ai-madas,
os generais e almirantes eram numerosos, etc., etc.--'
Frente à esta situação de "mundo às avessas". Lima Baneto desenvolve uma
atitude de "antibovarismo" e, pela via literária, critica o govenio republicano,
sua buiocracia e seus métodos violentos como o meio literário medíocre e, so
bretudo,o preconceito de cor que leva à discriminação social.
Irônico, debocha do país, que considera um "futuro Egito" e, na sua
versão extrema, apresenta um herói às avessas, o bem-intencionado Policar-

Ibidem, p.93.
--Barbosa, op.cit., p.285.
—'Lima Barreto, Os hmzundnngns, p.64.

227
po Quaresma, que tem um triste fim, o fuzilamento, por não conseguir en
xergar as coisas como os demais as vêem. O visionáxão Quaresma, por seu
turno, é um caso limite do bovarismo, ao não conseguir ver o mundo nem
como os demais gostariam que ele fosse, nem como ele realmente é. O ultra-
nacionalista Quaresma é um olhar e uma voz discordante às práticas oficiais
e ao imaginário sancionado. É,no caso, o elemento fadado a ser suprimido,
assim como Clara dos Anjos, mulher, pobre e de cor, está fadada a ser seduzi
da e abandonada.
O próprio Lima Baireto seria também um caso de bovarismo, se fonrios
contrastar o alto conceito que tinha de si próprio e a sua situação social, como
indivíduo pobre e mulato, a enfrentar sempre situações constrangedoras e
humilhantes.
Lima Barreto chega a falar num "índice bovárico", qtte mediria o afasta
mento entre o indivíduo real e o imaginário, entre o que é e o que ele acredi-
ta sei.—^
Sem a possibilidade da crítica, esse processo induziria o indivíduo a uma
completa alienação,fazendo com que o imaginário, distanciado da realidade,
assumisse uma dimensão de concretude. Remontando a Policaipo Quaresma,
afinna Sevcenko:

Ora, esse ufanismo bovarista, assim como o cosmopolitismo, era ouüa forma
de se alienar do país, só que parecendo que se estava fazendo o contiário. Era
um efeito de fachada, ou o cosmopolitismo às avessas.^-^

O viés captado por Lima Ban eto do "bovarismo nacional" é,sem sombra
de dúvida, um genial insight sobre a capacidade brasileira de enxergar-se se
gundo a identidade desejada e de dar consistência à representação, que passa
a pautar a vida e o comportamento dos indivíduos. Essa questão repõe, por
seu turno, os mecanismos eficazes do simbólico ao diluírem fronteiras entre
real e imaginário.
Ora, a questão que se coloca não é a evidente falsidade do cenário e dos
personagens, mas a reconência à identidade desejada, criando o bovarismo
literário de projetar localmente representações urbanas mais condizentes com
outm realidade. Estaríamos diante da intensidade do desejo de ser e parecer
uma outra cidade, criando ij^anativas da vida urbana que manifestam a identi
dade desejada.

"■•Lima Barreto, Diário, p.94.


--5 Sevcenko, op.cit., p.l78.

228
Queremos ainda resgatar, dentre as obras típicas da Belle Époque c7ínoc<í,
uma outm fonna de representação da cidade, até agora não abordada, e que
manifesta uma tensão ciiada a pai tir do suigimento da metrópole. Referimo-
nos à visão da cidade "desde fora". Como tradução literaría de um olhar exter
no à urbe,essas naiTativas partem de autores oriundos do meio mi-al ou de cida
des pequenas. Sem querer reduzir à obra a ti-jyetória de vida do autor, quere
mos,contudo,destacar,ao lado do deslumbiamento "fatal" pelo modelo paiisi-
ense e pela grande cidade, a rearticulação do binômio campo-cidade ou as no
vas conotações da relação entre natureza e cultura.
A natureza, este "outro" da cultura, configura-se como a alteridade do
símbolo da ação humana, que é a cidade. Com a emergência da metrópole e
de todos os elementos de positividade e negatividade a ela associados, ocorre
a também repontuação valorativa da natureza. Ao se acentuar a representa
ção da cidade-virtude, a urbe propicia deslumbramento e fascínio pai-a aque
les que são egressos do meio mral ou de centros menores. Da mesma forma,
ao se colocar a ênfase na visão da cidade-vício, a reconstituição idílica do cam
po comparece, com a glamourização dos costumes simples. O meio mral se
reconfiguia como um estado de pureza, e a natureza se transforma em paisa
gem.A natureza é,sobretudo,destacada na sua positividade, ela é o meio am
biente transfigurado pelo olhar estético. Há,no caso, uma mudança de ponto
de vista, que se dá pelo afastamento espacial que a cidade proporciona com
relação ao campo.
Deve-se, contudo, levar em conta que,em um e outro caso, é do exteri
or que se articula a nova visão, que se constrói pela distância do olhar. En
tretanto, em uma e outra situação — seja na fascinação diante das luzes da
cidade,seja na recuperação idílica do campo como paisagem —,o elemento
que desencadeia a representação é o advento da metrópole. A emergência
da grande cidade é o referente que condensa as questões, coloca os proble
mas, reorienta o olhar e constrói as representações que guiam o mundo,
dando-lhe sentido.
Em A capitalfederal, obra de Coelho Netto,de 1893,o autor trata da reve
lação da grande cidade ao indivíduo saído do campo e que se deslumbra,fasci
na, atemoriza e se desilude com a metrópole.Anselmo,ao chegar ao Rio,tem
a revelação de um outro mundo além das suas expectativas e que o leva a re
considerar o lugar de onde viera como mesquinho e acanhado:
[...] achei mesquinha a casa fraterna, taciturna e calada, entie áiTores murmu-
rantes, invadida pelas moscas e pelos gafanhotos, com os corredores sombrios
[...]. Pareceu-me üiste e acanhada a existência que eu levara nesse vale melan-

229
eólico sem agitação e sem conforto, ignorante de tudo, longe de imaginar que
o mundo podia proporcionar delícias de tal ordem.--'^

Deixando para trás a sua cidade interiorana,"pobre terra de bárbaros",—'


o deslumbrado Anselmo se deixa penetrar pelo fascínio da capital federal com
seus signos emblemáticos.Já na estação de trem,é suipreendido pela luz, pelo
movimento das pessoas e pelo grande número de canos que, por si só,funcio
nam como a antecâmara de um mundo maior, que a chegada ao centro do Rio
deJaneiro potencializa,a emitir seus sinais: multidão,velocidade,gente elegan
te, profusão de cores e sons.
Nesta, as primeiras impressões são de maravilhamento e, ao mesmo tem
po, temor, com o eirfrentamento da multidão:

A multidão... a multidão... a promiscuidade terrível... todas as variadas escamas


deste camaleão — o povo [...] tonteava-me.[...] Dei alguns passos atônito,desvai
rado,julgando-me perdido no oceano tumultuoso da população que me aten-
dia...^^»

A reconente metáfora do oceano,a figura da multidão de aspecto amea


çador e do povo dos mil rostos (a versatilidade da alma coletiva, como refere o
autor)são elementos de desorientação para alguém que,vindo de fora,enfren
ta a grande cidade pela primeira vez.
Registra-se a sensação de estranhamento, clássica na visão literária do es-
ti-angeiro ou do campònio que chega à cidade giande. Mas Coelho Netto insinua
uma outra dimensão desse estranhamento,estabelecido pela distância entre a ci
dade sonhada e a cidade real. Na confrontação com o mundo real e o mundo
imagináiio, explica o Doutor Gomes ao moço Anselmo, é este segundo que dá
sentido à vida e toma a existência possível...-^ E, nesse caso, mesmo Paris pode
ria decepcionar aquele que com ela sonhara por longo tempo!
Mas, mesmo tendo em conta a defasagèm entre a expectativa e a revela
ção da metrópole, o peso da representação era forte. O Rio de Janeiro, para
alguém que viesse do interior, era sobretudo conforto e facilidades da vida
moderna, elementos que davam beleza e encanto à vida, e até mesmo no seu
lado pernicioso tinha uma capacidade de envolver. Em suma, na virtude e no
vício, a cidade implicava um^ requalificação do campo. Do fascínio inicial, o

Coelho Neto, A capital, p.38.


--'Ibidem, p.ll.
--®Ibidem, p.91.
"9 Ibidem, p.l04

230
mundo mml sofrerá uma desqualifícação,a nan-atira ti-ansitou pam a redignifí-
cação da simplicidade do campo, pam onde retoma o personagem,a pergun
tar-se se tudo aquilo que vivera não seria um sonho.
As oscilações valorativas da cidade-vício e da cidade-virtude, que implicam,
por sua vez, uma requalificação do campo, não são, necessariamente, antitéti-
cas como posições. Como se viujá anterionnente,a cidade pode ser, ao mesmo
tempo,vício e virtude,luz e sombra,esplendor e perdição, para os mesmos que
as vivenciam ejulgam,como uma identidade ambivalente cuja apreciação pode
variar segundo o ponto de vista. Da mesmafonua,pode se revelar ambígua,ou
seja, apresentar uma indefinição de cai-áter, que,contudo,é portadora de uma
possibilidade de superação. Ou seja, a cidade é o espaço que se situa acima do
bem e do mal, amoral e relativa. E, não raro,são os mesmos portadores de am
bas as idéias,como é o caso de Coelho Netto. Em "O polvo","^" o autor apresen
ta a urbe como antro de degeneração moi^al e de perdição,especialmente para
as mulheres, após ter exaltado o fascínio metropolitano em A capitalfederal.
Mas,num e noutro caso — e, mais uma vez,é Coelho Netto o exemplo mais
caracteristico — a cidade é sempre desafio, pertonifícação da modernidade,que
atrai e seduz, mas,ao mesmo tempo,que atemoriza e faz recuai;E como desafio é
que se revela o esplendor da vida boêmia e literáiia da gi-ande cidade,tal como se
manifesta na obra de Coelho Netto, A conquvita, publicada em 1899.
Rajmond Williamsjá havia assinalado a redimensão temporal e espacial do
campo, balizada pela emergência do urbano,e que implicava uma visão edulco
rada do passado niral e da paisagem camponesa."^' Representações "desde fora"
como estas, que ora estabelecem o olhar exterior e distante sobre o campo,ora
recuperariam, desde a pei"spectiva moinai, a cisão do interiorano sobre a cidade,
podem ser analisadas como uma dasfacetas do desencantamento do mundo e do
reencantamento proporcionado pela modernidade urbana.
E, nesse sentido, o Rio Grande do Sul, ponto extremo do Brasil, seria um
caso exemplar de análise.

230
Coelho Neto. O t^o\\o.Jornal do Coviérrío, São Paulo, 1924.
Willianis, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.

231
Rio de Janeiro, 1858. Foto de Victor Frond

Rio de Janeiro, 1858. Foto de Victor Frond


Rio de Janeiro, antes de 1880. Foto de Marc Ferrez
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A destruição do Morro do Castelo por ocasião das obras do prefeito Pereira Passos
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Construção do Palácio Monroe


Inauguração da Avenida Central
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Hotel Copacabana Palace por ocasião da sua inauguração,


cerca de 1900
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Vista de Ipanema e Leblon, cerca de 1910

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Vista do centro do Rio de Janeiro, cerca de 1921.


Foto de Augusto Malta
Largo da Sé, 1909. Foto de Augusto Malta
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lif i ác:.*íu^'-.V'^ \-.**\

Cortiço no Rio. Foto de Augusto Malta


os ECOS DO SUL

Porto Alegre e seu Duplo


(1890-1924)
ORTO ALEGRE E AS ILUSÕES DO ESPELHO: DO MITO
p DAS ORIGENS À HEGEMONIA SIMBÓLICA DO CAMPO

Todo ato fundador tende à sacralizaçâo. Assim, nascem os


"mitos das origens", segundo a narrativa dos pósteros, articulan
do uma representação glamourizada dos acontecimentos que
deram início a um processo que chega até nós. Na representação
imaginária, ex-j)ost, de um passado ao qual ninguém esteve pre
sente, nasce o "mito" que com sua força criadora dá sentido, or
ganiza,hiei^arquiza,seleciona e atribui valores de positivddade para
construir uma resposta à questão universal que todos indagam:
de onde viemos? Da nação â cidade, o mito das origens articula
os cacos da passeidade numa representação convincente e dese
jável que, ao mesmo tempo em que vai ao encontro das necessi
dades do inconsciente coletivo, orienta e guia a percepção. Au
gusto Porto Alegre, autor da obm Afuncb^ de Porto Alegre,'^ esta
ria na base da consüTição do mito das origens da cidade:

O cultivo da literatura histórica de há muito tempo constitui pre


ocupação séria e apurada de nosso espírito,sempreprocurando
ver-se adstrito a tentamens de resultados práticos. E na verdade
espinhosa a tarefa de rebuscamentos históricos, sob qualquer
ponto de vista por que se encare a matéria, mormente, para

'Porto Alegre,Augusto.Afundação dePorto Alegre. Porto Alegre: Globo, 1906.


(O autor é filho de Achylles Porto Alegre.)
quem,como nós, pensa em ti-ansmitir à fatura do seu ttabalho uma feição própria,
apesar de bem conhecermos o nosso demérito.^

Chama a atenção a maneira pela qual o autor estabeleceu liames entre o que
chama"empresa escabrosa" que,com fanatismo, o atirou à poeii-a dos arquivos, e
o seu intento de imprimir uma "feição própria" à história. Apesar- de declarai--se
adepto da ciência de Comte e de, no seu trabalho em arquivos prrblicos, ter feito
correções em obr-asjá consagradas, como as do Visconde de São Leopoldo e Co
rrija, nosso escritor admite que seu trabalho de historiógr-afo quer "passar- uma
idéia", criai- um sentimento e um sentido. Segundo uma visão contempor-ânea,
estai-íamos diante de um escritor que,desenvolvendo a naiiativa histórica,está cons
ciente de que ela preser-va um espaço de criação para o autor; que seleciona, cr-uza
e organiza os dados. Moder-namente, diríamos que a "literatura histórica" de
Augusto Por-to Alegr e não estabelece diferenças de natureza e/ou essenciais no
jogo interdisciplinai- dos saberes.Sua obra histórica tem uma"posição" liter-ária, e
o seu discurso sobre o passado compõe uma coerência de sentido mítica. O hori
zonte de tempor-alidade desse mito é o passado, e a sua nanaüva busca reconsü-
tuir a sociedade antiga com vistas a consolidar- um sentimento identitário. O mito
fundador,como se sabe,é fundamental par-a a representação de um pertencimen-
to, que constr-uir-á uma comunidade simbólica de sentido.
Dessa foíiha, a cidade, em sua origem, identifica-se com a história da re
gião, e essa preocupação é inequívoca na obr-a de Augusto Porto Alegre. Par-a
isso, ele tanto cita Barrès no prefácio, para dizer que "a nacionalidade fr-ance-
sa [...] é feita das nacionalidades provinciais",® quanto retoma este autor no
final do livro, pàr-a concluir dizendo que

o cultivo da história pai-ticular de cada região é de uma importância verdadeii-amen-


te gi-ande pata as nações que,como a nossa, não têm ainda completa a sua história.''

É o sonho desse tempo, a visualização de um início mítico, que podem


ser recuperados pela história ou pela literatura, através de uma narrativa que
organiza os eventos, respondendo à telrírica questão das origens.
Porto Alegre, no extremo sul do Br-asil, nascida para a história tardiamente
em relação ao corijunto do país, teve também a sua versão da origem primei
ra, num tempo rpáis recuado.

- Ibidem, p.A.
®Ibidem.
Ibidem, p.l60.

246
Tratando-se de uma região fronteiriça, no começo era a gueira, a luta
com o castelhano, pela ten-a e pelo gado,com a chancela da Coroa Portugue
sa ao estancieiros-soldados, que recebiam sesmarías d'El-Rei pam consolidai-
os domínios lusitanos na zona fronteii-a ao Pi-ata.
Misto de saga e epopéia, o contexto militar fronteiriço iria fornecer o
referencial de contingência para a foi-mulação de uma identidade regional,
calcada nos valores da guen-a, da honra, da bravura e constmída em tomo do
seu personagem-símbolo, o gaúcho.
A capital rio-grandense se integraria, ela também,a essa dimensão telúri
ca e mítica, recolhendo da passeidade aqueles elementos que comporiam o
quadro da origem da cidade. E por essa via que chegamos aJerônimo de Or-
nellas Menezes e Vasconcellos, que recebeu d'El-Rei cai ta de sesmaria para es
tabelecer-se nos Campos de Viamão,onde,desde alguns anos,já se achava com
estância de criação de gado. Embora a legião da atual Porto Alegre fosse co
berta também por outras duas sesmarias, concedidas a Sebastião Francisco
Chaves e a Dionísio Rodrigues Mendes,foi na Estância de Sant'Ana, de Jerô
nimo de Ornellas, compreendendo os atuais bainos do Centro, Cidade Bai
xa, Bom Fim, Floresta, Navegantes, Independência e Moinhos de Vento, que
uma pequena povoação começou. Ela se constituiu na desembocadura do ar-
roio Dilúvio, local conhecido como Porto do Domelles,' a paitir da chegada
dos açorianos na metade do século XVTII.
A essas "raízes da cidade", que se entrelaçam no trinômio guen-a-estãn-
cia-fronteii-a do Prata e que proporcionam a dimensão aventureira e heróica
dos piimeiros desbravadores, viria se acrescentai" o lado de estabilidade e or
dem, propiciadas pelos quase lendários "60 casais açorianos". Eles, também
chegados ao sul por imperativos da guerra com os castelhanos — os "casais
d'El-Rei" vindos para povoar as Missões —,instalaram-se, de foi-ma provisória,
na ponta da península, em teri-as da estância de Sant'Ana, em 1752, no local
que passou a ser conhecido como Porto dos Casais, em substituição ao Porto
do Dornelles. A esse an-anchamento inegular e primitivo vieram acrescentar-
se novos contingentes açorianos,fugidos do Rio Gi-ande por ocasião das inva
sões castelhanas de 1763 e 1773. Apesar de constituírem o fio-ten-a que daria
nascimento ao burgo estável, embrião da futura cidade de Porto Alegre, os
açorianos tiveram a sua entrada na história da cidade balizada pelos conflitos

'Essas origens primeiras estão relatadas em: Macedo, Francisco Riopardense de. Porto Alegre:ori
gem e crescimento. Porto Alegre: Sulina, 1968. Oliveira, Clóvis Sih'eira de. A fundação de Porto Ale
gre: datlos oficiais. Porto Alegre: Norma, 1987. Porto Alegre, Achylles. História popular de Porto Ale
gre. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1940. Porto Alegre, Augusto, op.cij.

247
militares entre as monarquias ibéricas pela fronteira do Pirata. À modéstia das
origens do "arranchamento" dos colonos, as naiTativas acrescentam a saga dos
bravos pioneiros;

São estes os pródromos da fundação de Porto Alegre. Choupanas de taquaras, ri


pas, bm ro e colmo,erguendo-se aqui e ali, na pressa do colono em constituir o seu
abrigo. Era o duro trabalho do machado,fazendo derrubadas, e da enxada e do
fogo,cavando e aplíiinando o terreno para o começo de um mundo e o princípio
de muitas e grandes vidas. Era a luta do ser inteligente com a natureza viva mas
inconsciente. Era o esforço da esperança abrindo portas para o futuro.**

As origens de Porto Alegre são representadas, pois,sob uma dupla égide:


a do contraponto da guena e do espírito indômito com o da ordem e da te
nacidade dos casais, constituindo uma síntese vital que conduzia ao outro en-
frentamento: o da natureza com a cultura.
A natureza parece ter sido a inspiradora das apreciações positivas de seus
primeiros cronistas, assim como a dos viíyantes que sobre ela escreveram. Assim
é que Saint-Hilaire, que por ela passou em 1820-21, descreve a cidade como que
disposta em anfiteatro sobre um dos lados da colina que atravessa a península,
dando-lhe tim formoso aspecto e comparando os passeios encantadores que mar
geavam o (iitaíba a tudo quanto existia de mais agradável na Euiopa...'
Da mesma fonna,Ai^sène Isabelle deixaria da cidade pela qual passou em
1833, desciições que exaltam a beleza do sítio, sob um céu da Itália e uma pai
sagem e vegetação da Provence. Cidade "pitoresca" e "linda", a pequena capi
tal da gi-ande província dispunha-se em anfiteatro, sobre uma encosta de cer
ca de sessenta metros, com casas brancas ou amarelas de tetos fóseos, simples
e graciosas,® que compunham a paisagem admiravelmente situada...
No texto de Gonçalves Chaves de 1822, a "Alacriportus" era considerada
como "vantajosamente situadajunto à confluência de cinco fonmosíssimos rios,
todos navegáveis", e oferecia "um golpe de vista bastantemente agradável", o
que pennitia considerar:
Quanto mais se obseivam suas vantagens natui"ais e excelentes proporções, maisse ím-
tevê a estafonnosíssima povoação um futuro risonho e a todos os respeitos,excelente."

®Porto Alegre, Achylles, op.cit., p.ll.


'Saint-Hilaire, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Svl. 1820-21. São Paulo:EDUSP, 1974. p.32 e 40.
® Isabelle, Arsène. Viagem ao Rio Grande do Sul(1833-1834). Porto Alegre: Museu Júlio de Casti-
Ihos, 1946. p.53-4.
® Chaves, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-poíiticas .whre a adminütração pública no Bra-
.lil. Porto Alegre: Erus, 1978. p.106.

248
Sem o recurso à exuberância do meio tropical do Rio de Janeiro, com a
pujança de sua vegetação ou o exotismo da cidade plantada entre o mai* e a
montanha, o sítio era, mesmo assim, considerado agradável para olhaies ex
ternos e intemos. Mas o conti-aste se impunha entre natureza e cultura, dada
a mesquinhez do povoado nascente. Essa distância não escapaiia ao cronista
da Alacriportus, ao referir que as belezas do bui^o se deviam mais à natureza
do que à arte...'°
Seriam mais uma vez as conveniências da gueira e a posição geogi-áfíca
estratégica, na encmzilhada dos caminhos entre os núcleos de Viamão,ao nor
te, o porto do Rio Grande, ao sul, o litoral, a leste, e o interior, a oeste, que
fizeram a tranqüila aldeia açoriana à beira do estu.ário do Guaíba receber as
primeiiTis atenções do poder público, ainda no período colonial.
A década de 70 assistiu ao erguimento da vereão sulina da cidade coloni
al. Em 1772, o governadorJosé Marcelino de Figueiredo designou o capitão-
engenheiro Alexandre Montanha para demai'car as mas e lotes dos colonos,
para a abertura das primeiras esti"adas, ligando a Viamão,pai-a delimitai- o cen
tro cívico da cidade e para elaboi-ai" um mapa da localidade.
Nesse mesmo ano, o povoamento foi elevado à freguesia de São Fi-ancis-
co dos Casais, sepai-ando-se de Viamão e constituindo-se em jurisdição eclesi
ástica autônoma. No ano seguinte, em 1773, com a segunda invasão espanho
la, a capital da Província foi transferida de Viamão pai-a a nova freguesia que
se inaugurava: Nossa Senhora da Madre de Deus de Poito Alegie. A ameaça
da guen-a e a condição fronteiriça do Rio Grande de São Pedro impulsionara
o crescimento da cidade, espécie de burgo-refúgio mais ao norte, ao resguar
do dos castelhanos.
As primeii-as mas, delimitadas segundo o edital português de 1747, de
veriam alinhar-se regulai-mente, ter 40 palmos de lai-gura, demarcando-se os
lotes com extensão de 1/4 de légua para cada casal, prevendo-se o espaço para
quintais entre as casas. Apesar de detei-minaçôes e intenções de um ordena
mento, o resultado foi um tanto anárquico e desviado das intenções originais
pelos acidentes do teneno: uma colina que atravessava a península de leste a
oeste e os inúmeros riachos e cóiTegos que coitava as mas nascentes.
Organizando-se em tomo de três mas principais e mais ou menos pai-ale-
las, que iam da praia ao alto da colina que correspondiam, gi-osso modo,^
atuais Rua dos Andradas, Riachuelo e Duque de Caxias, Porto Alegreí«e via
atravessada por outras tantas mas que concentravam as casas na ponta da pe
nínsula, na então chamada pi-aia do Ai-senal. Tais mas eram cmzadas por becos.

'Ibidem, p.115.

249
com habitações muito modestas camctenzando um espaço anárquico,em ter
renos acidentados,com constmções precáiias e atravessadas, por vezes, por pon
tes e pinguelas, uma vez que eram cortadas por an oios. Nesse entrecmzamen-
to se combinavam espaços públicos, como os largos da Quitanda, dos Ferrei
ros, do Pelourinho e do Arsenal. Nesse último, em 1774,fora erguido o Arse
nal de Guen"a, o que dá o tom da preocupação estratégico-militar do poder
público. A vida comercial e poituáría se concenti-ava na baixada da pmia,fron
teira às ilhas, e na cidade alta, sobre a colina, articulou-se o centro cívico. A
cidade alta agregava a Praça da Matriz e a Igreja Matriz, ao que se acrescentou
o Palácio do Governo (1784) e a Casa da Junta (1790).
Na cidade alta habitavam os elementos de maior x-epresentação social do
buigo nascente: comerciantes, altos funcionáiios e militaies, que constiaiíi-am
pai-a si casas mais sólidas, evidenciando alguma preocupação de lequinte.
Em toiTio dessa fieguesia de Poito Alegre, eigueu-se um elemento pou
co usual nas cidades coloniais bi"asileii-as, mas que l efoiçava os laços locais com
a oxigem sulina do bux"go: as mux^alhas.
As cidades medievais tinham na muralha um dos seus elemexitos caracte
rísticos, como é lax gamente difuxidido.Sem que o Bx^asil tenha vivido uma Idade
Média, a distante Pox'to Alegxe, xxo extxemo sul do país, ostexitou também, xio
seu passado,"mux-alhas" que a circundavam. Asfortifxcações, ixiiciadas em 1778
e demolidas em l845, tivex-am o sexitido defexisivo de pxoteger a cidade dos
ataques dos espanhóis que, ao loxigo do século XVllI, por três vezes haviam
invadido o Rio Grande. Loxige de se assemelhaxem às mux-alhas de pedx^a das
cidades euxopéias da Idade Média, xiossas mux alhas ex am "apexias tx ixicheix as
de 'pau-a-pique', com um valo xia paxte extexTxa"," ou, melhor dizexido, mu-
x^alhas de madeix"a xefoxçadas com um fosso que impedia a escalada. Mesmo
depois de demolidas, elas pexmanecex-am no imagixxáxio popular como a fx oxi-
teix a simbólica que dividia a"cidade" da zoxia baixa, pobx e e subuxbaxia.'- Nesse
poxito, a muralha assume a sua condição de metáfoxa, com o significado de
delimitação, no tenitóxio uxbano, da exclusão dos pobxes e, sobretudo, ne
gros. Como diz Angel Rama, dentxo de cada cidade sempre houve outra cida
de, não menos "amuxalhada" e não menos agxessiva, constituída a pax tir das
x epresentaçóes elabox"adas pela elite uxbana sobx e o espaço e seus habitantes. 13

"Cf. Macedo, Francisco Riopardense de. Porto Alegre, história e vida da cidade. Porto Alegre: Ed.
da Universidade, 1973. p.71-2 e 79-80. Macedo, Francisco Riopardense de. História de Porto Ale
gre. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1993. p.32.
'-Pesavento, Sandra Jatahy. Porto Alegre, espaços e vivências. Porto Alegre: Ed. da Universidade/
Secretaria Municipal de Cultura, 1991. p.20.
'^Rama, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.42.

250
Foi-a da zona urbana, em meados do século passado, situava-se a Cidade
Baixa, área que continha em seu nome não só a questão topogi-áfica original
— ten-as baixas, que davam para a Pmia do Riacho —,mas também a repre
sentação valorativa daqueles que a habitavam: a gente de menor importância,
que não tinha maiores posses pai-a moi-ai* na "cidade alta".
Já Saint-Hilaire l eferia, para a década de 20:

Embora consti uída somente no lado noroeste da colina,a cidade possui várias ca
sas no lado oposto, esparsas e desalinhadas, enti emeadas de ten enos baldios, pe
quenas e mal consü uídas, quase todas habitadas pela população pobre.'^

A descrição e apreciação do cronista parece coincidir com as oiigens da


quela região que se estenderia colina abaixo até a margem do Riacho e que
seria conhecida como "Cidade Baixa".
Nessa área, em especial, implantou-se um tenitório negro, como que de
reftigio para os escravos evadidos da servidão. Cronista antigos*' referem que,
durante os tempos da escravidão,a zona era famosa e temida,tomando o nome
de Emboscadas.
Ora, o significado da denominação sinistra tem a sua vinculação com os
que chamamos "excluídos da cidade". Sítio formado por moitas e capões de
mato, macegas e acidentes de teneno, cortado por sangas e picadas, a topo
grafia e a vegetação do local se prestavam para açoitar negros fugidos e outros
criminosos, como revelam as crônicas. Quem lá adentrasse, por valente que
fosse, não se atrevia a passar a noite,suipreendido por sabe Deus que violênci
as. A violência se encontrava presente no labirinto de caminhos e passagens
que possibilitavam "tocaias" e ataques, mas violento era também o processo que
impelia os negros fugidos para o local. Refere o cronista Achylles Poito Alegre
sobre as Emboscadas, em tom romântico:

Nos seus ü-echos de mato que assombravam aquele retiro escondiam-se os escra
vos aos maus ti atos do cativeiro. Era a primeira estação da liberdade, o piimeiro
pouso destes infelizes perseguidos pela injustiça da sorte. Abandonavam com hor
ror, à noite, a casa em que viviam, e iam,às pressas, pousar ali, à noite, à sombra
das ái"vores que não lhes negavam o teto das suas folhas. Levavam apenas uma pe
quena ti'ouxa com uma ou outi"a peça de roupa e nada mais.'"

Saint-Hilaire, op.cit., p.42.


'"Coruja, Antônio Álvares Pereira. Antigunlhns: reminiscênrías de Porto Alegre. Porto Alegre: Com
panhia União de Seguros Gerais, 1993. Porto Alegre, Achylles, op.cit. Sanhudo, Ary Veiga. Por
to Alegre: crônica.'; de minha cidade. 2.ed. Porto Alegre: Movimento/SEC/IEL, 1975.
'"Porto Alegre, Achylles, op.cit., p.60.

251
No início do século XIX,a zona urbana de Porto Alegre finalizava na Praça
do Portão, local onde se encontrava a porta de entrada das fortificações,
[...] estendendo-se desde o Riacho, passando pela Várzea e subindo pelos terre
nos da Santa Casa, compreendendo a chácara do Brigadeiro,iam terminar no li
toral do Guaíba,no Caminho Novo.'^

Essa cidade intramuros tinha o seu traçado de mas dividido em oito qua
dras pai~a além do que se localizava o subúrbio. Entre a zona urbana e a pro
priamente rural, formada por chácaras, estendiam-se os Campos da Várzea,
onde acampavam os caneteiros e viíyantes. Zona alagadiça, baixa, com capões
de mato,o "potreiro da Vái^zea" era atravessado pelas estradas abertas pelo ca
pitão Montanha para ligar Porto Alegre a Viamão: a do Caminho do Meio ou
de Viamão e a de Mato Grosso ou do Dilúvio, conespondendo ambas às atuais
avenidas Protásio Alves e Bento Gonçalves, respectivamente.
O burgo que fora elevado a capital era, contudo, de propoições modes
tas; dados estimativos apontam para 1.512 habitantes em 1780,'" 3.927 em
1803, 6.035 em 1807 e 12.000 em 1820.'® Se considerarmos que, em 1810,
Poito Alegre foi elevada à vila e em 1822 à cidade, vemos a força dos fatores de
guen-a e o peso do sítio estratégico avançarem sobre as medidas de caráter ad
ministrativo: antes de ser vila ou cidade, o vilarejo já era capital.
Esse início acanhado iria revelar-se nas denominações das mas. A partir
de 1800, como relata Augusto Porto Alegre,"® a população começou a atri
buir nomes aos lugares. E as "palavras da cidade", as designações que identifi
cam os espaços e fazem.deles um "lugar" revelam o pitoresco das socialidades
da época. Numa localidade onde todos se conhecem, os indivíduos ou as prá
ticas se associam ao espaço, permitindo o reconhecimento e possibilitando a
orientação. Assim é que o Juca da Olaria deu nome à rua do mesmo nome,
assim como também uma tal crioula Marcela peipetuou-se dando nome ao
beco onde morava. Românticas ou pitorescas, cômicas ou enigmáticas, as pri
meiras designações dos espaços urbanos nos falam das vivências de uma pe
quena comunidade com os seus hábitos: certos lugares deveriam concentrar
atividades e profissões, dos quais nos resta a notícia sobre o Beco dos Marinhei
ros ou a Rua dos Feneiros. Um lado galante e que induz a pensar em licenci-

"Porto Alegre, Augiisto, op.cit., p.40.


'® Macedo, op.cit., p.31.
'®Singer, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urlmnn. São Paulo: Ed. Nacional, 1968. p.l54.
^Porto Alegre, Augusto, op.cit.

252
osidades nos chega através do "Alto da Bronze", que tirou seu nome de uma
morena famosa que lá habitava (e que teiia um "não sei quê" de bronze...),
assim como a Rua dos "Sete Pecados Mortais" sugere praticas não recomendá
veis às moradoi-as das sete feias casinhas que nelas se alinhavam... Se a Praça
do Paraíso nos permite antever as praticas usuais das "moças cantadeii-as" que
faziam os moços suspirarem, como nos fala Comja,-' qual intrincados proces
sos teriam dado nascimento ao beco "j^uda-me a viver"? Seria acessível aos con
sumidores da época fazer compi-as na Rua dos "Nabos à doze"? Etnias se vis
lumbravam na "Colônia africana" ou na Rua dos "Venezianos", e os acidentes
do teneno ou o aspecto do sítio se expressavam em denominações como na
Rua do Cotovelo ou na do AiTOredo...
Mas que aspecto teria essa acanhada cidade na metade do século passado?
São ainda os cronistas antigos que nos reportam a esses tempos.
Achylles Poito Alegie, nascido em Rio Gi-ande, em 1848, traça um quadro
da cidade que o viu criança; algumas mas eiam veidadeira "mataiia","intiansitá-
veis no mau tempo", escui^as à noite, fracamente iluminadas com lâmpadas de
azeite (quando não havia luai" que substituísse...) e absolutamente moitas após o
toque de recolher do sino da Matiiz (nove hoias no veião, dez hoias no inver
no...).-- Complementando esse quadro, as mas eiam fétidas e sujas, com calhas a
pingaiem e cóiregos de águas seividas a aüavessai"em-nas, enlameadas e poeiren
tas, com casas "acaçapadas", sem platibanda. O mial penetiava cidade a dentro,
com canetas de bois a percoirerem as mas e frades de pau (ou pediti) em frente
aos prédios paia os vityantes amanai"em seus cavalos... Sem mas calçadas ou lim
peza pública, a nascente cidade, ainda modesto buigo açoriano, assistiu à chegara
da de bizanos contingentes populacionais a paitir de 1824:os imigiantes alemães,
que vinham paia se tomaiem pequenos proprietáiios miais no Vale do Rio dos
Sinos. Por ela passando ou mesmo nela pennanecendo,sem se fixai* nos lotes
coloniais,a nova movimentação causada pelas sucessivas levas de imigi*antes gerou
a necessidade de se abrir mais um caminho,que ligasse Poito Alegre à zona colo
nial. Assim nasceu o Caminho Novo,atual Rua Voluntái-ios da Pátria, costeando o
Guaíba,e que tão belas paisagens proporcionava aos viíyantes... O crescimento eco
nômico da região colonial fez aumentai* as atividades do poito da capital, que se
tomou o escoamento dos produtos oriundos daquela zona.Por ocasião da Revo
lução Fan oupilha (1835-1845), foi*am os produtores da zona de imigi*ação ale
mã, no Vale do Rio dos Sinos, que abasteceram a capital sitiada. Mais uma vez, as
aites da gueira iriam impulsionai* o "viver urbano".

-' Coruja, op.dt.


--Porto Alegfre, Achylles, op.dt., p.I7.

253
Se, por um lado, a resistência ao cerco valeu à cidade o título de "mui
leal e valerosa" e exigiu que as muralhas fossem reforçadas, por outro, a con
centração populacional na ponta da península fez com que a vida em comum
se tomasse complexo e trouxesse à tona problemas propriamente urbanos, que
o governo deveria enfrentar. A cidade tornou-se "suja" e "anárquica" aos olhos
do seu novo staíusfrente à Província,impressão esta que a epidemia de cólera,
em 1855, só fez agravar.
Se o aspecto da cidade melhorou com novas edificações — Mercado Pú
blico (1842), teatro São Pedro (1855), Beneficência Portuguesa (1868), Pa
lácio da Justiça (1970), novo Mercado (1870) — e mesmo o calçamento re
gular tivesse sido iniciado na década de 40,a cidade era agora não só a capital,
sede do poder político e administrativo, mas o principal centro econômico da
província. Equipamentos urbanos e serviços públicos se faziam necessários. Em
suma, mais longe das injunções da gueira, o lado cultura precisava impor-se à
"formosa natureza" do sítio.
Mesmo porque o crescimento populacional e o desenvolvimento eco
nômico da urbe, que lhe faria atingir 16.900 habitantes em 1848, 18.465 em
1858, 43.998 em 1872 e 52.421 em 1890,-^ fez a cidade extravasar o recinto
das muralhas, que foram demolidas. AiTabaldes e airaiais se povoavam,como
Menino Deus, São Manoel, Areai da Baronesa, Partenon e Navegantes. Ao
longo do Caminho Novo, despontavam as chaminés das fábricas e, nos aiTa-
baldes, olarias, chácaras e matadouros, coabitavam com as casas dos habitan
tes. E o Centro, reduto simbólico da urbanidade intramuros, viu erguerem-
se palacetes na cidade alta. Mas seus moradores, para irem à Rua da Praia,
precisavam cnazar por becos e ruas cheias de tavernas, bordéis e cortiços. As
próprias ruas da parte baixa da cidade, zona comercial por excelência, os
tentava uma variedade de tipos e gente de todos os níveis sociais, que se cru
zavam nas ruas.
Já na época do Império,foram tomadas as primeiras medidas com rela
ção ao urbano, que estavam e princípio consubstanciadas nos Códigos de Pos-
tui"as Municipais, assim como as intervenções nos largos, que sofreram proces
sos de saneamento e ajardinamento, para o lazer dos cidadãos."'* Por vezes,
certas medidas provocavam reações como a questão da i^emoção das quitan-
deiiTts do seu espaço habitual, para finalmente serem alocadas no largo do Pa
raíso. O incidente se aiTastaria por longo tempo,como notícia recon ente nos

-^Separata do Anuário Estatístico do Brasil 1930-1940.


■^Ver, a propósito, as descrições desses processos em: Monteiro, Charles. Porto Alegre; urbaniza
ção e modernidade. A construção social do espaço urbano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. p.30 et seq.

254
joniais da época.-^ O que era entendido como medida noiinativa pelas auto
ridades, era considerado desordem paia os usuáiios e praticantes de sociali-
dadesjá anaigadas.
O crescimento da cidade demandava a instalação de um sistema de tians-
porte público, o que foi feito com a incrível "maxambomba", em 1864, veícu
lo pesado, puxado a bun os, a sacudir os passageiros que se airíscavam a ir da
cidade ao Menino Deus, passando pela Váraea. Objeto de toda sorte de recla
mações e pilhérias,-® o desengonçado veículo foi substituído em 1873 pelos
bondes de tração animal da Companhia Cairís Porto-alegrense, que estabele
ceu suas linhas ligando o Centro aos atraiais do Menino Deus, num primeiro
momento, e depois, progressivamente, até o final do século, ao Paitenon, In
dependência, Floresta, São João, São Pedro, Glória e Teresópolis.-' A partir
de 1893, entrou em funcionamento outra empresa do gênero, a Companhia
Canis urbanos,já no período republicano, passando a semr os baiiTOS operá
rios de SãoJoão e Navegantes. Por outro lado, desde a década de 60,a cidade
era abastecida pela Companhia Hidráulica Porto-alegrense, mas também so
bre esta choviam as críticas dosjornais, pondo em dúvida a qualidade da água
sei-vida à população.-® Em 1891, foi criada a segunda companhia pai-a forne
cer água à cidade — Companhia Hidráulica Guaibense —,sem que as recla
mações quanto à qualidade do serviço cessassem.
O gasômetro da Pi-aia do Riacho, constmído em 1874, era responsável
pela iluminação que substituíra os antigos lampiões. Por ocasião da proclama-
ção da República, a Companhia Rio-grandense de Iluminação a Gás abastecia
a zona central da cidade, enquanto que nos subúrbios predominavam os lam
piões a querosene instalados pelo município.
O lixo urbano, por sua vez, era objeto de muita discussão. O recolhimen
to era feito por companhias particulares mediante contrato de empreitadas.
O Código de Posturas Municipais determinava que o lixo fosse depositado em
vasilhames apropriados para serem recolhidos pelas carroças destinadas para
tal fim, sendo cobrada multa aos infratores, assim como aos que adrassem às

-'Ver, acerca de tal discussão, as notícias dojornal O Mercantil, ao longo dos anos 70 do século
passado.
^Sobre a maxambomba, consultar Achylles Porto Alegre (op.cit., p.33-5) e as caricaturas do
Jornal O Século. Apud: Pesavento: Sandra J. (org.). República, verso e reverso. Porto Alegre: Ed. da
Universidade, 1990. p.76.
-'Franco, Sérgio da Costa. Porto Alegre. Guia histórico. 2.ed. Porto Alegre: Ed. da Universidade,
1992. A obra de Franco é, sem dúvida, a melhor para consulta de toda esta implantação dos
serviços urbanos.
-'Para charges sobre a hidráulica, publicadas nojornal O Século, consultar Pesavento, Republica.

255
iiias águas sei^vidas e dgetos fecais. Todo esse material era recolhido pelas em
presas pai'ticulares encarregadas do asseio público e despejados em alguns
pontos do Guaíba. O aspecto sanitário da cidade, contudo, deixava a desejar
e, apesar da regulaiização da coleta de lixo ter sido fixada por lei municipal
em 1876, o povo não deixava de reclamar pelosjornais:
[...] inúmeras ruas há cujo ti'ánsito repugfua a população,devido aos miasmas que
exalam das saijetas, motivados pelos despejos feitos pelos canos e ainda pelo lixo
e água sei-vidas atiradas à laia.^

Apesar do saneamento da cidade ter tido início em 1878, as epidemias


de varíola e cólera alarmavam a população e faziam vítimas em surtos sucessi
vos, o que dava força ao quadro de uma cidade de feitio colonial, anái quica
no seu crescimento.
Todas essas questões, brotadas da cotidianidade de uma vida em meio
urbano,estimulavam reclamações e demandas por intei-venções uigentes,que
os governos municipais não atendiam a contento.
A maior cidade da Província era ainda acanhada, pequena e, sobretudo,
problemática. Mesmo o desenvolvimento comercial do seu porto e a diversi
dade éüiica de sua população,que ao substrato luso/açoriano inicial viria acres-
centar-se contingentes europeus mais recentes, de alemães e italianos, não fa
ziam do velho Porto dos Casais uma metrópole. Como diante dela se posicio
navam os intelectuais? Como ela seria avaliada, pequena cidade-capital, cheia
de problemas, num Rio Grande predominantemente mral?
A cidade forneceria a inspiração, o tema, o elemento onírico que daria
aos escritores as condições de elaborar uma representação do urbano?
Quer parecer que, no século XIX, os elementos de positividade e de for
ça simbólica apontavam antes para o campo. A honra, a valentia, a guerra, a
defesa da fronteira, a luta pela causa justa e a integiação homem/natureza,
traduzidas em teratios de liberdade e espírito indômito, eram temas suscita
dos pela vida na campanha que motivavam as representações literârias.
Seriam essas, preferentemente, as idéias-guias da geração de letrados lo
cais que, de 1868 a 1879, se reuniu na agremiação que se intitulou "Partenon
Literario",^ pomposo nome que sintetizava,simbolicamente, as pretensões da
elite culta.

-®0 Mercantil. Porto Alegre, 11 jan. 1884.


Consultar, a propósito: Zilberman, Regina, Vieira, Carmen Consuelo & Baumgarten, Carlos.
O Partenon Literário: poesia e prosa. Porto Alegre: Instituto Cultural Português, Escola Superior de
Teologia, 1980.

256
Há, no discurso de instalação do Partenon Literário, pronunciado por
Apolinário Porto Alegre, uma condenação às duas "esfinges execrandas, me
donhas", avessas das luzes do espírito e da inteligência — o "fanatismo indus
trial" e o "fanatismo político" —,ao quais se oporia a ação civilizatória da nova
agremiação.^' Os olhos do historiador tentam estabelecer conexões e sentidos
em face das imagens evocadas. O primado da cultura, apaientemente, desvin
cula-se da idéia do progresso associado ao controle da natureza pelo homem.
A imagem de Prometeu sofre, com isso, uma leitura nas qual os grilhões que
aprisionam o homem são os da ignorância^- e que, portanto, é no cultivo da
inteligência e das belas leti-as que se situa o verdadeiro progresso.
A ação civilizatória do Paitenon recupera de ceita foima virtudes inatas do
passado — as gloriosas tjradições de 35 e a causa da libeidade —,buiilando-as e
propagando-as. A proposta não é exatamente retiógi"ada, como pode fazer pen
sai- a alusão ao "fanatismo industrial", mas sim tende a incoipoi-ai- o passado pai-a
endossar as causas sociais e polítícas que progiessivamente se apresenta, como a
Abolição e a República. E, nesse contexto,a cidade é o reduto natui-al de agi-emi-
ação da inteligência, emoldurada pelo "decantado e belo Guaíba".'^ Porto Alegre
é, no caso, o dérore o núcleo das belas leti-as: recolhe do passado atielado ao cam
po a inspiração literái-ia e a difunde num ambiente onde a natureza contiibui pai-a
essa inspiração. Resgata no viés regional a ai-ticulação da cultura à natureza, esta
belecendo os pródromos de um discuiso sobre o Rio Gi"ande.
Sobre o Partenon Literário, refere Maiia Eunice Moreira:

[...] de um lado,reunindo os intelectuais provincianos, promoveu um ti*abalho de


org-anização da vida literária; de outro,estimulando a preocupação com os elemen
tos locais, orientou a produção e circulação da litei-atura sul-rio-grandense, den-
ti o dos cânones da estética adotada:o Romantismo.'^

No contexto brasileiro, como é sabido, o movimento romântico ein-


penhou-se no resgate da brasilidade, compondo uma representação literá
ria da identidade nacional e construindo um "mito das origens A falta

•" Ibidem, p.56.


'-Ibidem, p.50.
"Dias, Antônio Joaquim. O Partenon Literário. Arcádia. Rio Grande, 1868. Apud Zilberman,
Vieira; Baiimgarten, op.cit., p.53.
"Moreira, Maria Eunice. Apolinário Porto Alegre. Porto Alegre: Insütuto Estadual do Lí\to, 1989.
p.41.
"Esta questão é analisada por: Ortiz, Renato. O Guarani: um miro de fundação da brasilida
de. Ciência e Cultura, n.40, v.3, 1988.

257
de um passado clássico ou de uma Idade Média foi compensada por uma
representação glamourizada e xomantizada da conquista, que deu aos pri-
mórdios da nação contornos de uma espécie de saga heróica, diluídos no
love affairá?i5 duas raças. A obra de José de Alencar é, nesse sentido, exem
plo de uma representação literária fundadora da nacionalidade. Seja em
Iracema, em que a virgem índia dos lábios de mel sucumbe aos encantos do
louro e bravo conquistador português Martim, seja em O Guarani, no qual
os papéis de invertem e é a loura Ceei que se apaixona pelo índio Peri, cul
tura e natureza fazem o amálgama original que dá nascimento ao Brasil.
Retoma-se o arquétipo do casal primitivo, elimina-se a violência da conquis
ta, dulcificam-se as relações inter-raciais e supre-se, pelo exotismo da natu
reza e a pureza do bom selvagem, um lastro cultural preexistente. Do lado
do branco, realiza-se a aventura do desbravamento das terra e revela-se a
capacidade inata e superior de amalgamar-se à realidade dos trópicos.
Caberia lembrar que, no caso de O Guarani, até o dilúvio bíblico compare
ce, num rebentar terrível das forças da natureza que, contudo, poupa o
casal e o fruto de seu amor — Moacir — para povoarem a Terra da Promis-
são,salvos que foram por uma palmeira arrancada pelas águas que lhes serve
de jangada providencial...
No caso do Rio Grande, não se trata de articular ainda um padrão regio
nal identitário que se ajuste ou se contraponha ao padrão nacional, da mesma
foiTna que não se estmtura nessa época,de forma acabada,um mito das orígens
como foi anunciado no inicio do capítulo. Este será composto através de escrito
res que, ex-post, resgataram a história rio-grandense ou o nascimento de Porto
Alegie no início do século seguinte.
Masjulgamos que o Partenon Literário lançou as raízes,fundou as bases
para que os contornos regionais desse processo se ultimassem mais tarde, du
rante a chamada República Velha.
Particularmente, caberia destacar a produção de Apolinário Porto Ale
gre, escritor, educador e intelectual cuja caneira se confunde com a do Parte
non Literário, que ajudou a fundar. A partir da análise que Maria Eunice
Moreira^® faz da obra de Apolinário Porto Alegre, é possível resgatar alguns
traços básicos que ultrapassarão a produção literária do autor, incoiporando-
se às tendências literárias rio-^randenses que se seguiram. Assim, caberia des
tacar a superioridade da vida mral sobre a urbana, as especificidades dos cos
tumes, tradições e socialidades da vida campeira, a rememoração, em termos
de epopéia, dos "feitos gloriosos" da Revolução de 35, ainda tão próxima no

^Moreira, op.cit.

258
tempo, e o delineamento do personagem-símbolo do gaúcho, como síntese
dos valores da positividade da região.
Analisando a obra de Apolinário Porto Alegre, Maria Eunice Moreira nos
pennite perseguir as linhas que a atravessam, resgatando as imagens que, de
forma recorrente, opõem o campo à cidade, com a idealização do primeiro
ambiente.
No "Monarca das coxilhas", de 1870, a superioridade inata, a altivez do
homem do pampa e o gosto pela liberdade são celebrados:
Os rio-grandenses têm em nenhuma monta os ti onos e os ceti os. Para eles uma
boa equitação vale luna monai quia, um bom cavaleiro é um gi-ande monaica. [...]
Quem não conheceu os costumes de nossas vastíssimas campanhas, há de esü"a-
nhar que uma só família às vezes seja o ti onco de uma série de monarquias.E por
Deus! valem mais que os testas coroados os valentes campeiros do Rio Grande.Ao
menos sob cada poncho, palpita um coração onde a liberdade enti onizou-se;em
cada pulso lampeja uma espada ou uma lança que fiirâ ti emer a tirania.''^

A mesma integração perfeita homem-natureza, numa simbiose que faz da


vastidão do pampa o cenário perfeito para a condição da vida livre e sem peias
do gavlcho,é retratada nos veisos que foram publicados em "Bromélias"(1874):
Aqui sou rei. Se lanço a fi onte aos céus
Tenho por teto o azul da imensidade;
Se a desço logo, vejo a soledade,
O pampa a desdobrar os escarcéus.
Aqui domino. O rancho de sapé.
Livre alcáçar não ti^az grilhões ao escravo;
Mas eu que odeio toda a tirania
O afronto envolto em turbilhão de pó.
Aqui domino a erma solidão,
Tenho um ti ono,é o dorso da cauda
Este ao longe me escuta, des que falo
E vem lampeiro na asa do tufão.
Meu companheiro és tu, ó meu corcel!'®

Todas as imagens que se tomaram clássicas na composição do persona


gem símbolo do gaúcho aí estão presentes: a recoiTência à idéia do monarca.

''Apud Moreira, op.cit., p.34.


'Mbideni.

259
na qual se mesclam os atributos do mando, da força e da superioridade inata,
a noção da liberdade, as lides da guerra, como pano de fundo e condição de
existência e a figura do cavalo, como o verdadeiro companheiro desse gigante
das coxilhas, que, anos mais tarde, com ele se confundiria na famosa imagem
do "centauro dos pampas"!
O homem do pampa, romantizado é aquele celebrado em prosa e verso
e que concentra a positividade do registro. A mesma ambientação campeira,
desta vez com a trama situada no centro da Revolução Fan oupilha, compare
ce em "O vaqueiro" (1872), em que o personagem-título é alguém que não
apenas conhece como ninguém o meio e as lides da campanha, como é tam
bém destro nas artes da guen-a.'*''
E ainda Maria Eunice Moreira quem aponta para outro traço reconente
na análise das obi-as de Apolináiio Porto Alegre. No confronto entre o meio lairal
e o urbano, é o primeiro que vence, pois nele se encontram os valores profun
dos da teira e do povo. A força telúrica da vida campeira triunfa e restabelece o
encontro dos pei-sonagens consigo mesmo. Esse confronto, que, de antemão, é
uma partida já ganha do campo sobre a cidade, comparece em "Feitiço duns
beijus" (1873),"Lulucha"(1879) ou no volume de contos, publicado em 1875,
sob o título de "Paisagens". Nele,reaparece o "monarca das coxilhas", no qual o
autor opõe o habitante da cidade ao do campo,com a fatal superioridade des
te. Da mesma foiina, em "Pilungo", ambientado na cidade de Porto Alegie, ao
tempo da Revolução Fanoupilha, dois grtipos de meninos — Tinteiros e Baga-
dus — reproduzem a clivagem política dos gmpos em confronto. Se os Tintei
ros são os ricos, urbanos, letrados, que habitam a melhor zona da tirbe (acima
da Rua Clara), na cidade alta, os Bagadus vivem dessa ma para baixo, até a pon
te da confluência do Dilúvio como Guaíba.

Enquanto Pilungo [o chefe do grupo Bagadu] representa a natureza,a pureza ro


mântica, a outia facção identifica a classe mais abastada, refletindo a visão cultu
ral enme as duas classes.""'

Na opinião de Albeche,"'' é na obra "Os fairapos", de Oliveira Belo, publica


da em 1877, que o gaúcho aparecera — pela primeira vez na literatura — identi
ficado como o símbolo do Rio Grande do Sul e a Revolução Fan oupilha,como a
Idade de Ouro na qual a Província fora capaz de opor-se ã tiiania do Império.

"Ibidem, p.47.
^"Ibidem, p.õl.
"" Albeche, Daysi Lange.Imagens do gaúcho: história e mitijicaçno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

260
Ora, estamos diante da aiticulação de um núcleo simbólico de formula
ção identitária para o Rio Gmnde que passa antes pelo campo, opondo-se à
cidade. Nessa disputa ou enfrentamento entre natureza/campo e cidade/cul
tura, a partida já está ganha: é do pampa, da guen-a, das lutas de fronteira,
d^ atividades da estância que advêm os valores da positividade. Na aiticula-
ção de um modelo de referência identitária, honra, bravura e liberdade têm
mais a ver com vivência do pampa do que com a acanhada vida da cidade.
Mesmo durante o decênio heróico, não há que esquecer que o título de "leal
e valerosa" a Porto Alegre deu-se em face da sua resistência conti-a os fairoupi-
Ihas... Onde, pois, a glória, a ti-adição, o núcleo simbólico agregador que esti
mula a coesão social e os laços de pertencimento?
Na vitória da natureza sobre a cultura, a elite letrada volta-se pai-a a natu-
leza triunfante que, mesmo desde a cidade, se incoipora em seu discui"so e
metaforiza o social. Assim, os citadinos se vêem diante de uma compensação
simbólica em face da cidade canhestra: mesmo habitando um burgo humilde
e acanhado,são herdeiros das "gloriosas tradições de 35", o gaúcho é o pei^so-
nagem-símbolo no qual é possível enxergar-se e que,ao mesmo tempo,forne
ce o arquétipo idealizado pelo qual se estabeleceu o reconhecimento externo
sobre o Rio Grande.
As condições concretas da vida urbana se apresentam não só extremamen
te modestas como problemáticas, tanto na sua cotidianidade quanto na possi
bilidade de articularem um padrâo de referência simbólico. A identidade
desejada não é, pois, a da cidade colonial, mas a do pampa.
Não se coloca, pois, nos mesmos termos, no Rio Grande do Sul, o deba
te suscitado pela modernidade entre o campo e a cidade que ocone no sé
culo XIX.
O apelo do passado é muito forte, ele tem mais a oferecer ao presente do
que possíveis articulações valorativas que se pudessem estabelecerem tomo da
vida urbana.
Mesmo que a cidade colonial, na sua cotidianidade,se apresentasse como
um problema,as representações sobre o urbano não se colocam no sentido de
foiTiiular uma identidade desejada.
Seria preciso, no final do século, que uma nova geração, estmturada
cm torno dos ideais republicanos e inspirada nas elites de Augusto Comte,
estabelecesse um novo sistema de idéias e imagens de representação coletiva
que fizessem da "cidade moderna" o bem simbólico de referência. Mas mes
mo um projeto que passasse pela constmção de um mito de progiesso — e,
portanto, voltado para o futuro — teria de lidar também com o peso do
arquétipo mral.

261
A tarefa, portanto, não seiia fácil numa província que tinha o "passado
pela frente

A CIDADE COMO DESAFIO:


UTOPIAS,PROJETOS E INTERVENÇÕES NA CAPITAL DO SUL
Como diz Rama,"*^ uma cidade,antes de aparecer na realidade, existe como
representação simbólica. Há todo um conceito, uma concepção do que seja o
urbano e mesmo uma imagem idealizada de como a cidade deve ser. Assim,
Porto Alegre, nascida entre a guerra e a paz,já trazia no seu nascedouro uma
promessa de ordenamento, de regras e preceitos que dispunham sobre o es
paço e as socialidades. Mesmo que esta cidade fosse aquela compatível com a
matriz colonial do urbano, disposta segundo as ordenações portuguesas, ela
coiTespondia a uma identidade cultui-al constmída.''^
É esta identidade colonial que passa a ser objeto de reflexão no seu cresci
mento. Ela se toma problema, a exigir respostas em função de um cotidiano
que,de timiqüilo e ordenado,se configui-a como anárquico e/ou insatisfatóiio.
De um lado, poitanto, teríamos o que se poderia chamar de "crescimento natu-
i-al" do núcleo,cujas necessidades se tornam complexas e dão nascimento a pro
blemas que extravasam as condições até então aceitáveis para a vida em comum.
Mas, por outro lado, há a ressonância de outros tipos de cidade, que enfrenta
ram problemas semelhantes e que sofreram a ação de medidas inteiTencionis-
tas, redesenhando o espaço e pautando as socialidades por outios valores.
Da conjunção da cidade mral — com todos os seus problemas — com a
cidade ideal — onde supostamente todos os impasses seriam resolvidos — nasce
o projeto, reunindo estratégias da razão e sonhos da utopia.
Em Porto Alegre, o instnamento de pensar a cidade como uma "questão
urbana" a fazer frente e de projetar uma possibilidade de vivência citadina
alternativa se dava com o advento da República.
Contudo,em face da instabilidade dos anos iniciais da Reptiblica no sul,
onde se conjugaram a deposição de Castilhos, no "goveniicho" (1890-1891),
com a Revolução de 93 (1893-1895), as primeiras gestões municipais pouco
puderam realizar em teiTnos de uma proposta mais acabada para a cidade.

"•-Para usar a feliz expressão de Luís Augusto Fischer, ao analisar a poesia gaúcha, em seu livro
Um passado pelafrente(Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1992).
"•'Rama, op.cit., p.29.
•'"'Ibidem, p.l8.

2f>2
Pode-se dizer que a República gaúcha de inspiração positivista, de uma
certa forma, colocou a capital do estado como uma peça centi-al do seu pro
grama de govenio. A proposta dos republicanos — de realizai- um progi-ama
de desenvolvimento global para a economia gaúcha — contemplava as foi-mas
de realização do capital não-agrarío, que tinham a sua sede na cidade. A cida
de é, pois, cenáiio e lugai- de realização da divei:sifícação econômica almeja
da. Todavia, a proposta não se restringe apenas ao que se chamaria a dimen
são material da transformação capitalista no sul, ou seja, a sua modernização.
Há uma dimensão cultural e simbólica no projeto de modernidade que
implica a ti-ansfomiação da existência num mundo em mudança,e que encon
tra a sua foi-ma de realização no meio urbano. Não é possível esquecer que o
govemo positivista se dispunha a pôr em pratica um projeto de renovação cul-
tui-al do estado e que tinha na educação o seu principal ponto de apoio. Uma
Univei-sidade Técnica, centrada na Escola de Engenhai-ia, deveria foimai* uma
elite adestrada para, ao mesmo tempo, imprimir a racionalização da produção
e realizar as inteivenções na cidade. O ensino técnico profissional, consubstan
ciado no Liceu de Ai tes e Ofícios, complementava esse sentido pratico da edu
cação. As questões relativas à higiene ei-am discutidas na Faculdade de Medici
na, que acompanhava o debate científico europeu frente às novas e acaloradas
discussões sobre a antropologia criminal, as doenças e as técnicas de saneamen
to urbano, cmzando opiniões com os engenheiros.
Na proposta de progresso positivista, a cidade moderna configurava-se
como uma das imagens simbólicas da modernidade almejada.
Porto Alegre, a maior cidade do estado, apresentava-se corno uma "ques
tão urbana" a ser enfrentada e cujos problemasjá vinham sendo denunciados
desde o Império, num somatório de reclamações que se avolumavam e de im
passes não resolvidos.
Tendo passado de 52.421 habitantes em 1890 para 73.647 em 1900 e
179.263 em 1920,''^ a capital do Rio Grande do Sul experimentai-a um cresci
mento populacional significativo. O aumento da população de Porto Alegre
deveu-se, muito provavelmente, ao desenvolvimento do complexo colonial
imigrante que fizera da capital do estado o núcleo escoador de produtos que
ei-am exportados pai-a o centro do país. A ampliação dos negócios e das opor
tunidades de empr ego converteu a cidade num pólo de atr-ação da zona colo
nial, irnplicarrdo uma certa migr-ação campo-cidade. Apesar da imigr-ação es-
trangeir-a rrão se r ealizar na mesma proporção de São Paulo, vrma vez qire no
sul os imigrantes vinham estabelecer-se como pequerros proprietários de terr-a

'Cf. Santos, Milton. A tirhaniznção brnsilfiira. São Paulo: Hucitec, 1993.

263
e não como força de trabalho livre, não é possível desconsiderar a existência
desse processo. Da mesma forma, havia também aquele contingente de recém-
chegados que permaneciam na cidade,sem realizar o circuito da pequena pro
priedade mral. Além de tudo, a cidade se convertia no principal centro de
atração para os libertos, num momento de transição da esci^avidão para o assa-
lariamento. Por último, é preciso contabilizar, desde esta época, a migração
cidade-cidade, tendo em vista a atração que o maior centro urbano da provín
cia exercia sobre os inteiioranos.''®
Assim, Porto Alegre é problema e é desafio que se apresenta ao novo go
verno republicano. Antes mesmo de ser empossado o primeiro intendente da
capital,já a cidade era objeto de um plano, redigido em 1891, por dois indi
víduos aparentemente fortes e bem-sucedidos "capitalistas" da praça, que,em
troca de uma série de privilégios econômicos, se propunham a dotar a cidade
de "saneamento, embelezamento e progresso econômico e industrial".''^ O
projeto não foi aceito, talvez devido às exigências dos proponentes em tennos
de arrecadação de taxas ou isenção de pagamento de impostos. Entretanto,
cabe lemarcar que ele previa desapropriações, abertura de naas, constrtição
de cais, canalização do riacho, regulamentação dos lotes, traçado urbano e er-
guimento das moradias segundo preceitos de "higiene" e princípios moder
nos. O plano também tinha preocupações estéticas, preocupando-se com a
aiborização da úrbe e a padronização das constmçôes.
Ora, o visual da cidade, a sua conformação agradável — ou não — aos
seus habitantes é um elemento que pesa nas representações sobre o urbano e
que tem um apelo e um significado muito forte. Ruas amplas ou estreitas, cal
çadas ou não, praças e ajardinamento, monumentos e prédios "de estilo" são
marcos de referência que extravasam a dimensão espacial e dão força a pa
drões identitáiios para as cidades.Afinal,a bela paisagem de Porto Alegre sobre
o Guaíba com suas ilhas corria mais por conta da natureza do que da cultura.
O sítio podia ser fonnoso, mas a cidade que a ele se ajustava também o era? O
que Porto Alegre oferecia como elemento urbano individualizante? Em ter
mos de imagem e discurso, o reconhecimento externo e intenio do Rio Gran
de era, como se viu, dado pela identificação com o mral.
Com a República, o município foi dotado de uma estmtura político-ad-
ministrativa que, taicomo no âmbito estadual, revelava a inspiração comtista.
Enquanto que os oj^gãos colegiados,como a Assembléia de Representantes e o
Conselho Municipal, tinham tarefas restritas à aprovação do orçamento, os

^Cf. Pesavento, Sandra Jatahy. O cotidiano da Refmhlim. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1990.
Plano para embelezamento de Porto Alegre,(manuscrito) (Arquivo Histórico de Porto Alegre)

264
chefes do Poder Executivo, em uma e outra instância, possuíam amplos po-
deres. Apesar da Constituição de 14 dejulho de 1891 dispor que o Intenden
te sería eleito pelo voto direto da municipalidade de 4 em 4 anos, tal princí
pio não foi seguido. Tanto os dois primeiros intendentes — Alfredo Augusto
de Azevedo eJoão Luís Faria Santos — foram nomeados e não eleitos, como o
primeiro intendente eleito —José Montauiy de Aguiar Leitão — ficou no po
der de 1897 a 1924...
O primeiro intendente de Porto Alegie — Alfredo Augusto de Azevedo
— peiTnaneceu no governo de 12 de outubro de 1892 a 3 dejaneiro de 1896,
quando renunciou. Era engenheiro, capitalista e industrial. Ou seja, consti
tuiria o perfil daquilo que Comte definiria como um típico representante da
elite dirigente que, na pratica, desdobrava-se em dois: o empresáiio industri
al, homo oeconomicm, responsável pelo progresso no mundo da produção e pela
ordem social, e a elite de sábios,homopoliticus, que integrava o paitído e a quem
cabia governar. No caso, o intendente Azevedo reunia em si as duas facetas da
versão comteana da elite dirigente. Integrava a Companhia Hidraulica Guai-
bense, criada em 1891, da qual foi o primeiro gerente, e, após renunciar ao
cargo, retirou-se para a empresa que fundai-a com outros capitalistas da cida
de: a Companhia Fiat Lux. Tais dados são especialmente reveladores do tipo
de base presente na aliança castilhista que presidiu a instalação da República
no sul, da mesma fonna que evidencia o imbricamento dos interesses paiticu-
lai es — as atividades econômicas do intendente, que se voltavam pai^a a reali
zação dos tais "seiviços urbanos" — com o gerenciamento da coisa pública.
O relatório do intendente Azevedo, em 1894,""^ apresentou as necessida
des de"Porto Alegre na época, que demandavam ações no campo do sánea-
mento e da estética, no que se priorizava a áiea central da cidade.
O primeiro ato do intendente foi dotar a cidade da sua Lei Orgânica do
Município. Cabia à Intendência a organização do sistema viáiio, da assistência
pública, de regular e inspecionar a educação e o semços de higiene, etc.^® Foi
criada a Guarda Municipal e Poito Alegre ficou dividida em seis distritos, que
compunham a área urbana. Esta se situava na região compreendida pelas mas
Ramiro Barcelos, Venâncio Aires eJoão Alfredo, cercando a península que se
estendia à beira do Guaíba. Para além, estendia-se a zona suburbana, com os
anaiais de São Miguel, São Manoel, Menino Deus e Navegantes.
O Ato n° 12, de 31 de dezembro de 1892, estabelecia os limites urbanos,
determinando que o novo regime pretendia

■•^Relatório do Intendente Alfredo Augusto de Azevedo. 1894. (Arquivo Histórico de Porto Alegre)
■"Leis, decretos e resoluções. 1893. p.77. .

265,
estender a todos os núcleos da população espai"sos nas proximidades da capitíil
os benefícios da vida,adminisü~ação e policiamento da cidade.'"
A aglomeração dos subúrbiosjá era considerada grande e requeria ações
de ordem administrativa, mas, em termos de resultados efetivos, foi o centro
da cidade o beneficiado.
Em típica ação legitimadora do novo regime instituído, o Ato n° 21, de 2
de março de 1892,substituiu os pitorescos nomes das mas por nomes de figu
ras de expressão na República...
Simbolicamente, esse ato de designação repudiava a cidade colonial e a
memória das socialidades do passado. Porto Alegre encheu-se de ruas com
nomes de generais que buscaram, sem grande sucesso, substituir as antigas
designações, cuja população teimava em peipetuar no seu cotidiano. Assim,
ainda por longuíssimo tempo, a Rua da Margem, a Rua da Olaria e outras
tantas permaneceram como "palavras da cidade", com significação precisa,
a orientar os percursos dos moradores. Caberia lembrar que certos nomes
persistem até os dias de hoje, numa Porto Alegre que ainda chama a Rua
dos Andradas de "Rua da Praia" e o Parque Farroupilha, designado como
tal em 1935, de "Redenção"...
Mas,naqueles anos iniciais da República,o govenio recém-instalado pi'o-
curava imprimir a sua n^arca, que passava não apenas pelos domínios da lin
guagem,como também pela normatização da vida e a reordenação do espa
ço. Em 13 de março de 1893, pelo Ato n° 22,'' o Código de Posturas Muni
cipais dispunha sobre as constmções. Buscava-se padronizar e regulamentai"
as novas consti"uções, dando um aspecto mais "civilizado" à cidade. Casas ali
nhadas, com alturas mínimas dos pés-direitos intei'iores", quartos com obri
gatoriedade de arejamento e área mínima; fixação da espessura das pare
des; regras para constmir sacadas e balcões; proibição de rótulas de portas
de abrir para fora; obrigatoi"iedade de latrinas e distância média para o ali
nhamento eram medidas a serem adotadas por quem consti"uísse ou refor
masse as habitações que seriam fiscalizadas pela municipalidade. Ficavam
proibidas as edificações em madeira no alinhamento das mas ou contíguas
a outros prédios. As edificações que fossem repartidas para mais de uma ha
bitação não teriam em comum quintal, esgoto, latrinas e tanques. Em suma,
os prédios coletivos deverisun satisfazer às condições de higiene,segurança e
estética a juízo da Intendéncia.

Ibidem.
Código de Posturas Municipais. Construções. 1893.

266
É clara a alusão às habitações coletivas — os cortiços —,cuja presença
(141 edificações) o Anuãrio do Kiindo, de 1893, registrava. Os dados referiam-
se a 1890, com um levantamento de 5.996 prédios^-.
E sobre esse tipo de moradia coletiva, ao qual se acrescentavam os porões,
que a critica se exercia de foiTna radical. Desde antes da República, osjornais
já registravam a presença de habitações insalubres para as camadas pobres da
população. Mas foi com o novo regime que a imprensa em geial desencadeou
uma violenta campanha contra aqueles elementos de referência urbana que
se converteriam no símbolo rejeitado da cidade colonial: os coitiços.^^
Para tanto, a municipalidade ora aumentava o imposto predial, ora re
gulamentava as constmções, mas não deixava de difundir a imagem negativa
de tais habitações coletivas, que não apenas eram contiúnias às regi"as da higi
ene e aos princípios da estética, como eram atentatórias à moinai, tal a promis
cuidade que nelas reinava.
O cortiço, condenado, ficava fora dos novos padrões impostos, e novas
constnações desse tipo podiam ser denaibadas pelas autoridades. Pai-a físcali-
zá-las, a Intendência criou, em 11 de abril de 1894, pelo Ato n° 33, o cargo de
fiscal de higiene, que deveria atender àquela questão que mais afetava o inte
resse geral, o da saúde pública.
Em consonância com a proposta de vairer os pobres do centro da cida
de, o intendente Azevedo promoveu a abertura de concessões a particulares
que se dispusessem ao alargamento do beco do Poço, em pleno centro da ci
dade."'' Nessa mesma linha, o governo municipal procurou estimular novas
constmções no centro da cidade para promover a ocupação do solo urbano.
Em medidas tomadas em 1896, o intendente criou um imposto adicional so
bre os ten enos baldios que ainda existiam no centro de Porto Alegre.""
Portanto, neste início da República, a cidade que se queria bela, higiênica e
oídenada empreendia um surto de constmções"modernas",de acoido com os"novos
tempos" que se inspiravam na palavia-chave do progiesso, tão cai"a à República.
E, para o tocante à belas e higiênicas constmções que a capital do esta
do estava a exigir, o engenheiro e arquiteto Rudolf Ahrons abria, em 1895,
o seu escritório em Porto Alegre. Tendo estudado no Instituto Brasileiro, de
Apolinário Porto Alegre, Alirons cursara depois Engenharia, na Politécnica

'■Anuário do Estado do Rio Grande do Sul. 1893. .p.l95.


®^Ver, a propósito. Pesavento, Sandra Jatahy. Os pobres da cidade. Porto Alegre: Ed. da Universi
dade, 1994.
'■•Franco, op.cit., p.80.
"Anais do Conselho Municipal de Porto Alegre. 1896.

267
de Berlim, e, ao retomar à capital gaúcha, exercera por vários anos uma in
tensa atividade, que deixaria na cidade as marcas do "gosto alemão" em seus
inúmeros prédios.^®
A especulação imobiliária encontmva espaço de realização com a valori
zação do solo urbano. Se o centro recebia melhoramentos, os terrenos nos ar
rabaldes, pai-a onde se queria transferir os pobres, eram ainda baratos. Com
panhias loteadoi^as se criaram para incoiporar tenenos, urbanizá-los e vendê-
los a baixo preço, como, por exemplo, a Companhia Tenitorial Poito Alegre,
responsável pelo loteamento dos bainos operários de Navegantes e São João.
O centro foi a região da cidade que primeiro recebeu os benefícios dos
serviços urbanos, como a luz elétrica, que animava as casas comerciais, as resi
dências paiticulaies e os prédios púbicos. O intendente Azevedo tomou obri
gatórios os passeios e calçou as mas Voluntários da Pátria, do Parque e Sertó-
rio, iniciando também o calçamento das mas Pinto Bandeira, Aurora (Barros
Cassai), Conceição, Lima e Silva, Independência, Treze de Maio (Getvílio Var
gas) e outras.^' Não só o centro, mas também outros bainos passaiam e ter,
pelo menos,uma ma calçada. É ainda da primeira gestão municipal a abertu
ra dos bainos da Glória e Medianeira.
Mas tudo isso era ainda muito pouco. O tempo da gueiTa e da revolução
findara,a natureza pai"ecia ter sido domada pouco a pouco, mas a beleza arquite
tônica, a funcionalidade do tiánsito, a segui"ança, a saúde e a solução dos proble
mas técnicos ei~am ainda propostas, desejos, leclamações, palavi"as de ordem que
circulavam no meio da elite da época com lessonância nosjornais populaies.
Os produtores do espaço — engenheiros, arquitetos, médicos sanitaris-
tas —,com competência'técnica e proximidade com os núcleos decisórios de
poder, tinham em mãos um desafio e um problema.
Porto Alegre, a cidade colonial que se ensaiava burguesa e moderna,for
necia as condições pai-a que se constituísse um projeto e se peiseguisse um ideal.
Pouco poderia fazer, contudo, um.governo municipal em tempos de
instabilidade política tão violenta como os enfrentados pelo Rio Grande do
Sul por ocasião da Revolução Farroupilha e que cobriram o período do in
tendente Azevedo.
O sucessor do intendente Azevedo na gestão da cidade —José Luís de
Farias Santos, também engenheiro e igualmente nomeado por Júlio de Casti-
Ihos — teve rápida passagem pelo cargo, permanecendo nele de 2 de janeiro
a 15 de outubro de 1896.

Franco, op.cit., p.23-4.


"Spalding, Walter. Pequena história de Porto Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967.

268
Estudante da Politécnica do Rio deJaneiro e positivista de primeira, ocu
para cargos administrativos no governo republicano desde o início (subdire-
tor das Obi-as Públicas, chefe da Comissão de Obi-as da Ban-a do Rio Gi-ande,
diretor da Viação Terrestre e Fluvial). Colaborador de Castilhos, técnico de
formação, homem do partido, desempenhou a função política de intendente
entre a renúncia de Azevedo e a posse do primeiro chefe municipal eleito,José
Montauiy de Aguiar Leitão.'®
Apesar de sua rapida passagem pelo governo, Faiia Santos aprovou os re
gulamentos da policia, da higiene e da Diretoria de Obi-as do município, além
de dividir a cidade em distritos e comissariados, finalizando por organizar a
polícia administrativa. Fm especial, ao lado da preocupação continuada com
o saneamento e as constixições,já iniciada pelo intendente Azevedo,sua rapi
da gestão caracterizou-se pelo cuidado com a questão da segui^ança.
Esses atos nos fazem considerar que a emergência da questão urbana, tal
como ela se apresentava na última década do século XIX e primeiros anos da
República, se configurava como uma "questão social".'® Não apenas a velha ci
dade tinha núcleos habitacionais que deviam ser eliminados — os coitiços —,
como também peisonagens identificados como "turbulentos", que freqüenta
vam espaços "perigosos"e apresentavam conduta "condenável". Assim, pelo Ato
n® 11, de 27 de julho de 1896, o intendente dispunha sobre a detenção sob
custódia, no xadrez do quartel da Guarda Militar, os tais elementos "turbulen
tos", assim como nos postos policiais do Paitenon, Navegantes e Ilha da Pintada.
Se a repressão aos "desordeiros"e "vagabundos" obtinha a aprovação con
sensual das elites e da população em gei"al, as providências da Intendência com
relação às questões da higiene eram consideradas insatisfatórias. A situação
sanitáiia urbana se via agravada em 1897, com o surto de vaiiola trazido pelas
tropas que haviam regressado de Canudos.
Osjornais identificavam a Intendência Municipal pelo desleixo, sujeira e
abandono das mas e pela não-realização dos semços públicos urbanos por parte
das companhias contratadas para tal.®"

°'Este, como desempenhava um cargo na Comissão de Terras e Colonização, demorou uns


meses para tomar posse, de modo que, entre a saída de Faria Santos, em 15 de outubro de 1896,
e a posse efeth-a de Montaury, em 15 de março de 1897, o cargo de intendente de Porto Ale
gre foi ocupado pelo major da Guarda Nacional Querubim Febeliano da Costa. (Cf. Macedo,
Porto Alegre, p.161).
°®Para este ponto, consultar: Mauch, Clãudia. Ordem pública e moralidade: imprensa e policiamento
urbano em Porto Alegre, na década de 1890. Porto Alegre: UFRGS, 1992. (Dissertação de mestrado)
""Como se pode \'erificar nos reiterados artigos e reclamações que comparecem osjornais Ga-
retinha e Gazeta da Tarde, ao longo da década de 90.

269
Foi na longa gestão do intendenteJosé Montaiuy de Aguiar Leitão (1897-
1924) que os problemas municipais passamm a ter um atendimento mais sis
temático. Isso se deu tanto em função da paz que se seguiu ao fim da gueira
civil e que proporcionou a consolidação do governo republicano, quanto pela
continuidade administrativa de seu longo período na chefia da cidade.
Também engenheiro, fonnado na Politécnica do Rio de Janeiro, positi
vista e republicano,José Montauiy de Aguiar Leitão foi o candidato que o par
tido governante no estado — Partido Republicano Rio-gmndense (PRR) —
apresentou à população para o voto. Montauiy foi escolhido por Júlio de Cas-
tilhos, mas foi empossado por Borges de Medeiros, que sucedera o "Patriarca"
em 1897 no Governo do Estado. Perfeitamente identificado com as diretrizes
do PRR, Montauiy seria mantido no cargo por 27 anos, sempre reconduzido
pelo borgismo e apoiado no preceito constitucional que pennitia a reeleição
consecutiva do intendente, tal como do presidente do estado.
Ao ser indicado como o candidato do partido, Castilhos incumbira Mon-
tauiy de transfoiTnar Porto Alegre numa capital moderna, o que o novo in
tendente buscou realizar através de um progmma de "melhoramentos urba
nos". Refere Adair Barcelos que:

Melhoramentos urbanos em o que se entendia,à época, por modernização da ci


dade;na passagem do século,a noção de urbanismo,de planejamento urbano,ain
da não havia chegado a Porto Alegre.'^^

A República havia trazido a Porto Alegre, com suas idéias positivistas, a


meta da modernidade urbana e da organização disciplinada do espaço,de acor
do com os ideais do progresso econômico e da ordem burguesa. Sonhos de
mudança a serem aplicados numa cidade acanhada, "verdadeiramente atra
sada', como comparece nas palavras de Vivaldo Coaracy, que nela desembar
cou em 1905:

Das ruas, muitas delas íngremes ladeiras a galgar a encosta abrupta para atingir o
espigão esti'eito, poucas calçadas a paralelepípedos. Na maioria,o pavimento era
de pedms irregulares. Os passeios maiginais,líyes de um arenito friável que o tián-
sito desgastava. Mesmo a rua principal, oficialmente chamada dos Andradas, mas
sempre designada p<eja denominação antiga —"da Praia" [...] contavam-se nume-

Cf. Bakos, Margareth. A continuidade administrativa no governo municipal de Porto Alegre: 1897-
1937. São Paulo: USP, 1986. (Tese de doutorado)
Barcelos, Adair Coelho. O governo José Montaury e a modernização de Porto Alegre. Porto Alegre:
UFRGS, 1995. p.l02. (Dissertação de Mestrado)

270
rosos ainda os prédios térreos, telhados em beirai a despejar, nos dias de chuva,a
água em cortinas sobre as calçadas. [...] Só uma zona restiita da cidade era dota
da de água encanada A maioria dos habitantes comprava água em barris, dos
carros-pipas que a vendia percorrendo as iiias pela manhã.[...] Aparte central da
cidade dispunha de luz eíétiica, fornecida por uma companhia, a Fiat Lux. Mas
o sei-viço cessava às lOGhs da noite. Cinco minutos antes,as lâmpadas piscavam.Era
o sinal para que se corresse a acender velas ou lampiões de querosene quem não
quisesse ficar no escuro [...]. Nouti^as zonas da cidade havia iluminação a gás. Bon
des elétiicos, evidentemente, não havia. Os bondes que semam os vários bairros
eram de tiação animal. Automóveis eram também desconhecidos [...]. Não havia
esgotos. Águas seividas, de banheiros, cozinha,lavagem, coiriam através da casa,
por uma canaleta sob o soalho, paia despejar-se na sarjeta da rua, à mar gem'do
passeio. [...] Não existindo rede de esgotos, estes eram substituídos pelo primiti
vo sistema a que, no antigo Rio deJaneiro,o povo dava o nome de "tigre".®^

O desafio era, portanto, grande paia a elite cultural e política da capital


sulina: era pr eciso constiaiir a modernidade urbana numa província tradicio
nalmente rxiral e com forte identidade regional apoiada no campo; uma pro
víncia que não era o centro decisório do poder nacional, mas que dele se en
contrava próxima, através de acertos, alianças e apoios; uma província que ti
nha sido sempre periférica em tennos de participação na economia nacional.
Para atingir aquela meta, era preciso uma vontade política forte, uma elite
cultivada e engajada naquele projeto e fontes de financiamento.
No plano das representações,a cidade-ideal dos gatrchos precisava encon
trar formulações locais que estabelecessem um caminho em face da uma du
pla mediação: por um lado, havia o modelo parisiense, conhecido da sua elite
cultivada, reforçado pela matriz positivista e paradigma consagrado de mo
dernidade urbana. Mas, por outro lado, os projetos da cidade-ideal iriam en
contrar, nas primeiras décadas do século, dois exemplos americanos de que
tal aventur a era possível aqui, do outro lado do oceano: Rio de Janeiro e Bue
nos Aires. Cidades também inspiradas no modelo parisiense de modernidade,
eram casos concretos da Latino-América que mediatizavam a influência exter
na e se constituiriam em padrão de referência para Porto Alegre.
Por outr o lado, como foi assinalado, havia que ter em conta, internamen
te, a formulação de uma identidade regional muito forte e que apontava para o
mundo rnral. A positividade dizia respeito ã região fronteiriça, à guena, ã pre
sença do gado e se materializava na figura ar-quetípica do gaiicho. Nesta supre
macia do rnral, para efeitos da credibilidade da representação, pouca impor-

®'Coaracy, Vi\'aldo. Encontros com n vida. Rio de Janeiro:José Olympio, 1962. p.5-7.

271
tâiicia teria o décalage entxc a idealização do sul mml o Rio Gmnde do Sul "real",
com sua capital que crescia, acoplada ao complexo colonial imigmnte,cuja acu
mulação crescente de capital compensava a estagnação da campanha, na zona
da pecuáiia tradicional. No final do século XIX, o Paitenon Literariojá dera
início a uma vei-são do embelezamento do passado,com suas glórias e seus valo
res orientados para a sociedade niral, patriarcal e militarizada. Nessa represen
tação ficcionalizada do Rio Gi"ande, o espelho da história refletia o passado. O
futuro do Rio Grande era, de fato, a confiimação do seu passado.
Daí, pois, a áiriua taiefa dos governos positivistas, de reverter essa matriz
de orientação,aiticulando uma representação em teirnos de progresso, que não
só se direcionava para o futuro como fazia da cidade o seu ponto de referência.
Tratava-se de não só foiTnular um projeto, mas traduzi-lo em medidas pra
ticas que reorientassem a apreciação valorativa identitária. Realizar a moderni
dade urbana era, pois, um verdadeiro desafio para Poilo Alegre, tendo de um
lado, os exemplos externos, qualitativamente distantes, e, de outro, guardando
tão peito o mundo mi-al, que gi-atificava a sensação de peitencimento regional.
A taiefa, como se disse, não era fácil, embora o Rio Grande do Sul con
tasse, ao longo de toda a Velha República, com a presença de um Estado forte
e com a continuidade de um mesmo gitipo partidário no poder, de inspira
ção positivista. Tanto em nível estadual quanto municipal, houve o que se
poderia chamar uma linha de continuidade no poder estatal, sem que, con
tudo, as conjuntui^as específicas de cada governo deixassem de imprimir as
suas maicas e inflexões.
Não se pode também duvidar da capacidade de infoirnação da sua elite,
fonnada na Politécnica ou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro ou na
Faculdade de Direito de São Paulo, antes que começassem a graduai-se tam
bém nas faculdades locais. Suas leitui"as, suas citações,seu engajamento nas cor
rentes contempoi-âneas de debate nos mostram o seu conhecimento atualizado
no debate científico internacional. E, mais do que disso, tratava-se de uma elite
cultivada e partidária, que afinava integi-almente com as diretrizes do partido
dominante ou que dela discordava radicalmente, numa oposição sem tréguas
que não conseguia reverter a posição hegemônica do giupo no poder.
Nesse ponto é que se insere a figura deJosé Montauiy,"soldado do parti
do", republicano e positivista, fiel colaborador do castilhismo e do borgismo.
Já quanto aos recuraos...
Ao longo de sua prolongada gestão, Montauiy iria se referir inúmei-as vezes
à exigúidade das fontes que poderiam financiar as intei-venções urbanas e que
limitavam as suas obras na cidade.
Desde 1897, quando assumira, Montauiy se preocupava com a questão dos

272
recui-sos financeiros que poderia dispor paia fazer face às necessidades urbanas.
Oia aventava a possibilidade de empréstimos, ora de aumentai- a anecadação.
O exemplo de outias cidades, como Buenos Aires e Montevidéu, era invocado
para mostrar que nelas os habitantes pagavam mais impostos que em Poito Ale
gre.'"'^ Naturalmente, aumentai- os impostos ia conti-a os interesses da popula
ção,que continuamente reclamava do município pelossemços públicos não exe
cutados e por melhoramentos urbanos insuficientes. Em que pesem as declai:a-
ções do intendente,este tinha consciência do desagi-ado da opinião pública, mas
gozava da confiança do pai tido governante e da esti-utura autoritái-ia de mando
pai-a perseguir suas metas na condução da municipalidade...
Tal disposição fazia com que retomasse sempre, nos relatórios da Inten-
dência, os lamentos sobre o problema das receitas municipais. Na Europa e
nas vizinhas repúblicas do Prata, considerava Montaui-y, as receitas eram eleva
das e,se para alguma coisa o exemplo externo deveria sei-vir, seria pai-a sugerir
meios de obter recursos para poder acompanhai- o progresso...®^
Paris era,sem sombra de dúvida,o maior horizonte de referência. Se,por
vezes, Montaui-y criticava a tendência de, "eironeamente", comparar Porto
Alegre com cidades dotadas de maior população e recursos, por outro lado
retomava à capital francesa para dizer que, segundo o relatório do prefeito
André Lefèvre, mesmo lá os recui-sos financeiros ei-am escassos!®®
Enti-e os mesquinlios dados da conaetude regional — a acabi-unhante falta
de recuisos — e os paiadigmas extemos da modemização urbana, o intendente
apelava pai-a o reforço dogmático do positivismo aplicado à cidade:era preciso acom
panhai- o movimento do progiesso, mas dentio de um orçamento equilibrado.®^ E,
na expectativa de realizai- giandes obi<is, tal como nas cidades maiores,enquanto os
recuisos não possibilitassem tais investimentos, a saída era "consei-vai"o que havia,
"melhoimido" a cidade. A diferença de escala, em tei-mos uibanos,se revelava di:a-
mática para a capital gaúcha,se compaiada com outi-as cidades.
Se o exemplo pai-isiense era o paiadigma emblemático a ser referido sem
pre,convém não esquecer que as inteivenções de Pereiia Passos no Rio deJaneiro
são contempoi-âneas à gestão de Montauiy, o que,sem dúvida, aumentava as ex
pectativas locais de que alguma coisa deveria ser feita, de foi-ma ui^ente e eficaz.
A questão mais ui-gente, exigida pela cotidianidade da vida da capital ga-

®''Relatório do Intendente. 1897.


^'Relatório do Intendente. 1905.
Ibidem.
®'Para a análise da gestão Montaiu-y em Porto Alegre, particularmente no que tange a esta ques
tão das disponibilidades orçamentárias, consultar Barcelos, op.cit.

273
úcha, dizia respeito aos sei-viços urbanos.®'^ A principal obra a ser encai-ada era
a do saneamento, implicando os sei-viços relativos às águas e esgotos, ultrapas
sada a prosaica questão do recolhimento de lixo pela municipalidade em 1898,
assim como o seu despejo, que passou a ser na Ponta do Dionísio, longe dos
locais de coleta de água.
Essa em a questão cmcial, pois, nas palavras do conselheiro municipal Ra-
miro Barcelos,em 1893,Poito Alegre seria "a cidade mais insalubre do Bi-asil".'''^
Sucessivos projetos fomm feitos, calcados no exemplo fi-ancês do sistema Tout à
Végout. Comissões técnicas de engenheiros e médicos sanitaristas emm foimadas
pam avaliai" a exeqüibilidade e a pertinência dos processos, e empréstimos emm
feitos pela municipalidade. A discussão sobre tais pontos, que iam das socieda
des científicas aosjornais, revelava que a elite letmda bebia em Paris os exem
plos bem-sucedidos da ampliação e melhommento dos semços urbanos, mos-
ti"ando um conhecimento atualizado frente ao debate europeu e ãs questões
contemporâneas que se discutiam no tocante ao urbano.
Em 1907, o sistema adotado foi o chamado "americano" e não o "fran
cês", mas, mesmo nessa opção,eram as opiniões técnicas francesas aquelas nas
quais se basearam os intei-ventores do espaço locais."'
Ao encaminhar tais questões segundo os mais atualizados princípios hi
giênicos da época, a gestão de Montauiy seria louvada pelo renomado Satur
nino de Brito, com a sua grande experiência de intei"venções urbanas em vá
rias cidades do país. Saturnino de Brito elogiava a ação do intendente Mon-
tauiy, dizendo que, sem os recursos de São Paulo ou Rio, a municipalidade
local ia, aos poucos, solucionando as questões vitais para a cidade..."
Uma cidade limpa demandava a implantação da luz elétrica nos arrabal
des, em substituição ã iluminação a gás e a querosene, paia o que o diligente
Montauiy remeteu plantas da cidade para fiimas da Europa e da América do
Norte, obtendo respostas francesas e alemãs.'- Em acordo com a Companhia
Fiat Lux,em 1898, ficou acertado que essa empresa forneceria energia elétri-

Para uma análise da gestão Montaury e o descompasso entre as condições reais da cidade e
os projetos, consultar: Pesavento, Sandra Jatahy. Entre práticas e representações: a cidade do
possível e a cidade do desejo. In: Ribeiro, Luís César de Queiroz;Pechman,Robert. Cidade, povo
e nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
Anais do Conselho Municipal. 1893.
Para o acompanhamento da influência francesa nos senáços urbanos porto-alegrenses, con
sultar Pesavento (Entre práticas), os relatõrios da Intendência Municipal de Porto Alegre, as
conferências realizadas sobre o tema na Sociedade de Medicina e as traduções de obras técni
cas publicadas pela Intendência de Porto Alegre.
"Relatório do Intendente. 1908.
Cf. Pesavento, Entre práticas.

274
ca à zona central por 20 anos. Com a criação da Usina Municipal, em 1908,
estendeu-se a luz elétrica aos bainos no ano seguinte. Esses "pi-ogressos" fari
am o intendente comentar, no seu relatório de 1912, a importância da eletii-
cidade para a vida da cidade e louvar a iniciativa da municipalização dos ser
viços públicos. O exemplo da Europa era mais uma vez lembrado, com desta
que para Paiis e as inevitáveis compai-ações com Porto Alegre. Ou seja, resguar
dando as diferenças de escala e de qualidade entre as duas cidades, se apesar
disso a capital gaúcha conseguisse seguir o exemplo francês Já era um bom
caminho...'^ Assim, no seu relatório final da longa gestão à frente de Porto
Alegre,José Montauiy apontaria com orgulho a experiência da iluminação
através da municipalidade, tal como nas cidades européias, como um dos
pontos altos de sua administração!''' Da mesma foraia, em 1904, atendendo a
uma outra questão urbana,o intendente municipalizou a Hidráulica Guaiben-
se, para estender o fornecimento de água aos baiiTOS.
Os problemas de locomoção ei"am também urgentes no cotidiano de uma
cidade em crescimento. Se os bondes elétricos passai-am a funcionar em 1908,
em substituição aos pitorescos bondinhos puxados a buiTO, o estado de mas e
calçadas era outro ponto neviúlgico a ser atacado. A história das atenções mu
nicipais voltaram-se para esse problema: os relatórios enfatizavam o estado de
plorável das naas e calçadas. A Intendência contraía empréstimos pai-a fazer
frente à questão e, na discussão sobre o calçamento da cidade, mais uma vez
discutiam-se as opiniões de franceses, autoridades no assunto.'® Da mesma foi-
ma, a cidade sobre a qual se buscava atingir por uma ação nonnatizadora e
reguladora precisava de reforços no policiamento, no que, mais uma vez, ei^am
invocados os exemplos do Prata (Buenos Aires) ou europeus (Paiis)...^®
Além da questão dos seraços públicos — ponto nodal que coloca a cida
de como um problema e que se desdobra nas questões técnicas e sanitáiias —
, a elite ilustrada pensava a cidade também sob um ângulo estético. Cabe refe
rir que o embelezamento da capital, tal como era apresentado, ultrapassava,
contudo, o foco da estética e imbricava-se com princípios moims e higiênicos,
além de atingir o cerne da questão social.
Por um lado, a gestão Montauiy esteve empenhada em projetos de em
belezamento da cidade. Cabe a ele a timisfoimação do campo da Redenção,
ex-potreiro da Várzea, num parque, por ocasião da exposição de 1901, assim

"Relatório do Intendente. 1909 e 1912.


"Relatório do Intendente. 1924.
"Pesavento, Entre práticas.
"Relatórios do Intendente. 1903 e 1924.

275
como a pavimentação e/ou ajardinamento dos largos, convertendo-os em
praças pai-a o lazer da população. Antigos largos, como os do Paraíso ou da
Forca, se transformaram nas praças Quinze de Novembro Montevidéu ou
HaiTnonia. Embox-a com tais pi^eocupações estéticas, o cauteloso Montauiy as
sinalava que, no "momento opoituno", as gi-andes obi-as de embelezamento,
quejá haviam sido feitas em outx-as cidades, haveiiam de chegar também pai-a
a capital gaúcha, que,"enoneamente", ei-a compax-ada com elas...'" Ou seja,
Poxto alegre, coxifoxme o caso, ex-a "aproximada" ou "distaxiciada" dos exem
plos extexiios de cidades modexiias.
Mas mesmo a px-udência e a escassez de x ecursos pixblicos xião deixax-am
de exicax-ar a coxistx-ução de impoxiexites edifícios públicos; em 1901, o da Pre-
feitux-a Muxiicipal;em 1909,a retomada de constx-ução do Palácio Piratixii,sede
do governo estadual, iniciada em 1896 e ixiterxompida em 1901; de 1912 a
1916, a constx-ução da Biblioteca Pública; e, de 1913 a 1914, a Delegacia Fis
cal, além do pxédio dos Coxreios e Telégx-afos.""
Pax-alelamexite a tais px-édios públicos, a arquitetuxa civil também se
desexivolveu xio pex íodo, por obxa de axqxxitetos e exigexiheix os de origem
alemã, como o já citado Rudolf Ahroxis, Theo Wiederspahn, Guxidlach e
outros. Na opixiião de Guxither Weimex',"" as obras pvxblicas tenderam a
seguir o estilo fx-ancês, exiquaxito que a arquitetura civil xespondeu mais
ao gosto da buxguesia exidinheii-ada, de ascexidêxicia germâxiica. A dis
tinção, contudo, xião é x-ígida, e arquitetos "alemães" fox-am também res-
poxisáveis por pxédios públicos, como é o caso de Ahxoxis e Wiedex-spahn
com os Corxeios e Telégxafos e a Delegacia Fiscal. Seja como fox-, o surto
coxistx-utor coxitxibuiu paxa dar um xiovo aspecto ao cexitro de Porto Ale-
gx-e, apesar de, xio seu xeitex-ado comedimexito, o ixitexidente Moxitaux-y
afixmasse, em 1913, que a capital gaúcha evitava "acompanhar outxas
cidades da Uxiião xia suxituosidade dos seus edifícios públicos, devido a
seus x-ecuxsos escassos"
Pxovavelmente, a alusão sex-ia feita com o Rio de Janeixo, cidade da qual.

"Pesavento, Sandra Jatahy. A praça no tempo. Porto Alegre: UFRGS, 1994. (Texto para discus
são)
'"Relatório do Intendente. 1905. - j - j a
'«Um interessante trabalho que aborda o surto imobiliário e construtor do período e o de Ar-
noldo W.Doberstein, Porto Alegre. 1898-1920. Estatuáriafachadista e monumental, ideologia.'; e soae-
(Porto Alegre: PUCRS, 1988; Dissertação de Mestrado).
«"Weimer, Gunther. A arquitetura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1 JSá.
«'Relatório do Intendente. 1913.

276
numa atitude ambivalente,Porto Alegie se aproximava ou se distanciava, tal como
Paiis, de acordo com a conveniência do discui-so dos governantes...
Entretanto, tal surto de construções de "estilo", ao gosto eclético da épo
ca, tinham a sua contrapartida na eliminação dos pontos de referência típicos
do atraso da cidade colonial: becos, cortiços, tavemas, prostíbulos, habitações
em porões de velhos sobrados.
E,nesse ponto,radicalizavam-se as posturas:a cidade que se queria — bela,
saudável, ordenada — lutava para apagar os indícios do ati-aso, desembocan
do na questão social. Os pobres habitavam mal, em constiaições sujas, feias e
promíscuas, que proporcionavam mal-estar à vista e suscitavam vícios e toda
sorte de imoialidades.
Logo, combater tais espaços era uma questão estética, sanitáiia e moi-al.
Para removei" tais habitações, e com elas os seus habitantes, a Intendência ti
nha a opinião pública a seu favor. Para tanto, a Inspetoria de Higiene fazia
vistas e condenava a vida nos cortiços. A Intendência estabelecera que os po
bres que não pagassem as décimas urbanas deveriam ser redrados do centi"o.®'
A polícia vigiava os lugares suspeitos, e o governo se preocupava com a possi
bilidade de realizar desapropriações e concedia favores às empresas que se dis-
pusessem a constmir moradias baratas pai-a as classes populai-es urbanas.®'
A municipalidade estabelecia compaiações com as giundes cidades européias
em teimos de taxas de moitalidade e população.®^ Nesse balanço,a situação de Por
to Alegi-e não era das piores, mas, mesmo assim, ouüas compaiações desairosas se
impunham,como aquela suigida no Conselho Municipal, que associava a prolife
ração dos becos às aldeias cliinesas, tal a lotação dos prédios que aí vicejavam...®®
Em meio a esse quadro de intervenções que se sobrepunham em face
das demandas da cotidianeidade urbana, a Intendência Municipal ousou
dar um passo adiante: foi encomendado ao engenheiro-arquitetó João
Moreira Maciel, em 1910, a organização de um projeto de melhoramentos
para a cidade. Maciel, ao que consta, teria um perfil adequado para a tare
fa que lhe fora confiada: trabalhava em São Paulo,tendo sido elogiado pelo
prof. Augusto Choisy, lente da École des Pontes et Chaussées de Paris. Em
Montevidéu, concebera projetos junto aos arquitetos franceses Girault e
Chiffaut, autores do Petit Palais, pavilhão constmído por ocasião da expo
sição parisiense de 1900.®®

'-Anais do Conselho Municipal. 1914.


"Relatório do Intendente. 1914.
"Relatório do Intendente. 1910.
"Anais do Conselho Municipal. 1912.
"Relatório do Intendente. 1911.

277
Em 1914, Maciel apresentou o seu Plano de Melhommentos*'" que, à seme
lhança de outi'os do país, como Rio e São Paulo, devia implantar um coiyunto de
reformas na capital gaúcha, ti-ansformando-a, de vez, numa cidade moderna.
E, com o intuito de "satisfazer as condições impostas pela civilização
moderna", Maciel apresentou o seu plano,'"^ em artigo escrito na revista EGA-
TEA, da Escola de Engenharia de Porto Alegre.
Note-se que Maciel se refere à velha cidade colonial sobre a qual preten
de realizar as intei-venções como "pitoresca". Ou seja, o "antigo" passa a ser
considerado como equivalente a "diferente" ou "exótico", porque distante do
tempo e em descompasso com a "evolução natural das sociedades", tão cara
ao posiüvismo. Convém destacar o endosso de Maciel aos princípios gerais do
comtismo — e, portanto, de Borges de Medeiros e de Montauiy —,pois, na
abertura de seu relatório ao Intendente, diz que o critério adotado fora o de
"melhorar, conservando".
E sintomático,também,que,valendo-se de uma planta da cidade de 1839,
indique que a Porto Alegre de seu tempo apresentava "a mesma disposição
daquela época, dentro das trincheii-as e fortificaçóes de então".'''' A muralha
fora destniída, mas restara no imaginário coletivo como o limite simbólico do
urbano e do suburbano. O que Maciel assinala é que,apesar desta persistência
da representação colonial,

[...] as necessidades de uma população crescente, do comércio e da indústria e


os modernos meios de ti"ansporte reclamam dia a dia novos tiaçados nessa parte,
a mais antiga da cidade."®

Ou seja, apesar do reconhecimento de que a cidade não se limitava mais


ao simbólico "intiamuros", ainda era essa a zona sobre a qual a Intendência
deveria voltar a sua atenção, dada a urgência dos problemas e a exigüidade
dos recursos, deixando a área subuibana para quando houvesse as condições
financeiras desejadas.

"Relatório do Projeto de Melhoramentos e orçamentos apresentado ao Intendente Munici


pal Dr. José Montaury de Aguiar Leitão pelo engenheiro arquiteto João Moreira Maciel da Co
missão de Melhoramentos e Embelezamento da capital. 1914. Porto Alegre: Oficinas Gráficas
d'A Federação, 1927.
Maciel,João Moreira. Melhoramentos de Porto Alegre. EGATEIA, Porto Alegre, v.l, nov.-dez.
1914.p.l25.
"Maciel, op.cit., p.l24.
"Ibidem, p.124-5.

278
A abei tiu-a das largas avenidas na parte central da cidade teria de ser cau
telosa, tendo em vista os escassos recui-sos da municipalidade, incompatíveis
com grandes despesas. Mesmo assim, Maciel intioduziu no relatório o esboço
de uma cidade ideal, cuja inspiração haussmaniana é inequívoca:
Somos partidários das avenidas com o mínimo de 22 metros de largura,arboriza
das lateralmente; ou quando de mais largiua arborizadas ao centro e aos lados, ou
alternadamente ao centro ou quase ao centro e a um dos lados, estabelecendo-se
de quando em quando "rond-points", e procurando destas e doutias formas o pi
toresco, acenttiando-o pelos alinhamentos ciutos ou poligonais, e só deixando a
linha reta paia certos casos quanto tal seja permitido sem inconvenientes,e sobre
tudo para as grandes artérias do tiânsito.®'

A "cidade ideal" teria de ceder espaço à "cidade possível", e mesmo esta


sabemos que não se concretizou ao tempo da gestão de Montaury. Todavia,
entendemos que, no plano das representações, não é porque as propostas e
planos não tenham se realizado que elas não mereça ser estudadas. Enquanto
concepção e desejo, elas um dia existiram no imaginário social e mobilizaram
as expectativas.
Assim, mediatizando o sonho e a realidade, Maciel compôs seu plano ur
banístico qtte pensava poder ser executado para atender às exigências do trân
sito, da estética e da higiene na capital gaúcha. Mais do que isso, a idéia do
boulevnrd e das edificações obedecendo a padrões estéticos, esteve sempre pre
sente em Maciel, que esperava que as novas artérias projetadas se convertes
sem no "ponto chie do smartismo rio-gi"andense".®'
No tocante ao trânsito, vê-se que a citação de um sistema viáiio eficiente
foi a principal meta de Maciel. Assim, foram pensadas avenidas perimetrais
que facilitassem o acesso ao centro, descongestionando o tráfego. Em aiticu-
lação com os empreendimentos do Governo do Estado, que constiuía o novo
cais, Maciel sugeria a abertura de uma avenida mai^inal, costeando o rio. Se,
nessa aitéria, a projetada avenida se daria em cm"va, integimido a ação urba
nística à natureza — a cidade à beira do rio, que podia invocai" a cai"ioca Ave
nida Beira Mar —,nas demais mas abertas o traçado era retilíneo, com a ave-
nida Júlio de Castilhos ou a projetada avenida do Porto.
A estética se incluía no traçado viário, estando previstosjardins e paiques
entre a avenida marginal e a cidade, assim se previa o tratamento paisagístico
do riacho canalizado, a implantação do Parque da Vái"zea, a ampliação da praça

"Relatório do Projeto de Melhoramentos, p.3-4.


"Ibidem.

279
Martins de Lima e a criação de novas pmçasjunto aos monumentos existentes
ou projetos,junto ao Mercado Público, Teatro Municipal, Correios e Telégra
fos, Delegacia Fiscal.
Na verdade, todos os princípios — trânsito, higiene e estética — se acha
vam interligados. A canalização do riacho, por exemplo, tanto viria ao encon
tro das necessidades de saneamento das áreas adjacentes, quanto o ajardina-
mento da área criava um espaço de passeio e lazer. Por outro lado, a canaliza
ção em linha reta facilitaria o entrecmzamento das avenidas e mas, existentes
e a criar.'''*
Da mesma forma,o ateiTO de áreasjunto ao Guaíba possibilitou a expan
são da cidade e o prolongamento das mas em direção ao rio.
Tais empreendimentos, se efetuados em conjunto, criariam uma nova
paisagem urbana, pois Maciel alertava que, nas novas avenidas, as edificações
deveriam obedecer a critérios arquitetônicos, compondo um novo visual esté
tico para a cidade."'
Embora inspirado pelos ideais do progresso e da modernidade, Maciel
tinha os olhos no futuro da cidade, mas não descurava os signos emblemáticos
do passado. Propunha, para uma das avenidas a serem abertas, o nome de
"Avenida dos Fairapos","® assim como projetava, à frente da Intendência Mu
nicipal, um espaço para o monumento aos "Heróis de 35"."' Maciel recupera
va, na visão progressista da urbe, os padrões de referência identitários vindos
do século passado. A cidade moderna, ou a Porto Alegre desejada dos inter
ventores do espaço, voltava-se para o resgate da positividade simbólica do
mundo mral. A ressemantização que se estabelece parece-nos relativamente
clara: a cidade do futuro não dispensa o"mito das origens" e legitima seu poivir
pela reconência ao passado. A proposta não é nostálgica ou negadora da ci
dade, mas sacralizadora de uma saga evolutiva que vai desde a celebração do
passado heróico das batalhas à consagração do novo mito instaurador da
modernidade urbana...
Como havíamos dito, o plano Maciel não se efetivou na gestão Montauiy,
que estava destinada a ser lembradajustamente por aquilo que não foi...

Bello, Helton Estivallet. O ecletismo e. a imagem da cidade: o caso Porto Alegre. Porto Alegre; UFR-
GS, 1997. p.40. (Dissertaçãp de Mestrado)
"■"Para uma análise mais díetalhada do plano Maciel, consultar: Damásio, Cláudia Pilla. Porto Ale
gre na década de 30: uma cidade idealizada, uma cidade real. Porto Alegre: UFRGS, 1996. (Disserta
ção de Mestrado)
"^Relatório do Projeto de Melhoramentos, p.l4.
""Maciel, op.cit., p.l27.
"'Ibidem, p.l28.

280
Ou seja, todos os pequenos íyustès e opei"ações de emergência na capital
são gemlmente lembrados pelos pósteros®" como ensaios tímidos de um in
tendente igualmente resei^vado e cauteloso. Enti-etanto, cabeiia dizer que foi
durante o seu governo que se instalou o sonho da modernidade urbana para
a capital sulina,®'' através de um piojeto ousado que traduzia as expectativas
da elite cultivada da época, que encontrava respaldo nos sucessivos aitigos de
técnicos na revista EGATEA, da Escola de Engenhaiia.'®'
Note-se, ainda, que desse sonho instaurador da modernidade urbana se
consagrava uma proposta realmente inovadora: a destmição de becos na zona
central da cidade, a coneção dos desníveis de área, mais especificamente a
colina que atravessava a península no sentido leste-oeste, dificultando â liga
ção norte-sul, e o alargamento ou prolongamento das ti-ansvei"sais da Rua dos
Andradas, a tradicional Rua da Praia."" Tal conjunto de intei-venções, que na
pratica implicaria uma verdadeira cimrgia urbana, pois representava romper
a montanha, com a inauguração de uma laiga avenida e viaduto, seria inicia
do na gestão seguinte, de Otávio Rocha.'®- Mas — repetimos mais uma vez —
a ousadia de sua concepção, a inserção do sonho moderno nos quadros do
urbanismo coube a Maciel, na gestão Montauiy.

OS DISCURSOS DA CIDADE:A VIDA LITERÁRIA DE PORTO ALEGRE

Que a cidade de Porto Alegre crescera, divei-sificara-se, tomara-se com


plexa ao longo do tempo, não se discute. Os traços desse processo foram dei
xando marcas no espaço, redesenhando o traçado urbano e deixando vestígi
os materiais que retraçam uma história não-verbal da mudança. Pai-alelamen-
te, os textos que falam do urbano, sejam eles oficiais ou dos usuários da cida
de, expressam, por sua vez, expectativas, projetos e inquietações sobre a tiTins-
foiTnação da cidade.
Mas os discursos que cercam um objeto não são unívocos e, diante do
mundo transformado em texto, deparamo-nos com a polifonia de vozes ou
aquilo que Bakhtin chama o "babelismo da escrita".

^'Como, por exemplo, Spalding, op.cit.


"^Cf. Pesavento, Entre práticas, p.388.
'""Consultar, a propósito, os artigos da revista EGATEA de 1914 a 1930, abordando melhora
mentos urbanos.
Relatório do Projeto de Melhoramentos, p.48.
'"■Consultar o artigo de: Ferraz, Célia; Damásio, Cláudia Pilla. In: Rovatti, João; Panizzi, Wra-
na. Os primórdios do urbanismo moderno: Porto Alegre na administração Otávio Rocha.

281
A cidade é, por excelência, um objeto de múltiplos olhares, escrítas e lei-
tui-as, que traduzem, por sua vez, uma pluralidade de saberes e sensibilidades
sobre o fenômeno urbano. O caso de Porto Alegre é sui gmeris, pois o peso do
mml se impõe mais uma vez, como uma ban eira ou um pólo de atração à sen
sibilidade de parnasianos e simbolistas,fazendo com que os temas urbanos não
sejam a preocupação central dos escritores da época, nem que a cidade seja a
inspiração suprema,despertando a sensibilidade dos supostos privilegiados es
pectadores da urbe...
Esparsos romances, algumas poesias e um número mais significativo de
crônicas constituem o corpus desse olhar literário que se deteve, por vezes, so
bre a cidade que crescia e se transformava.
Om,toda nan-ativa se insere numa dupla tempomlidade: há o tempo da
escritura — o presente, no qual o autor vive e exercita a sua sensibilidade so
bre o mundo — e o tempo da naiTativa que, no caso, ou é o passado ou é o
presente, ou pode ser mesmo o futuro.
Caberia indicar que, seja qual for o tempo da escritum — a metade do
século XIX, o final do século ou as décadas de 20, 30, 40 ou mais —,o pre
sente vivido é sempre peipassado pela constatação da mudança. Tome-se o
caso dos relatos memorialísticos de Pereira CoiTija,^""^ escritas no final do
século e reportando-se às décadas de 20 e 30 do século XIX, contemporâne
as, portanto, das narrativas de Saint-Hilaire e Arsène Isabelle: há um tom
nostálgico que se refere a um tempo perdido no passado, regrado pela tra
dição, numa Porto Alegre ainda pequena, onde todos se conheciam e os
nomes dos espaços, dos hábitos e das pessoas tinham um significado para o
cotidiano da época, o que depois se alterou e desapareceu. Ou seja, a mu
dança do presente apagou a experiência das socialidades passadas do vilare
jo pacato de outrora:

Alguns lugares em outi o tempo muito conhecidos por certos e designados nomes,
são hoje quase desconhecidos ou talvez esquecidos por ter desaparecido o que
seria de motivo a tais designações.^^

O velho Comja fazia uso de suas recordações e buscava na memória os


registros de um passado que, de outra forma,se perderia para sempre. Alerta
va mesmo que tais evocações pontuavam um outro tempo, de coisas e com-

Coruja, Antônio Álvares Pereira. Antigualhns;reminiscêncins de Porto Alegre. Porto Alegie: ERUS,
1983.
^^'^Ibidem, p.30.

282
portamentos esti-anhos aos tempos contemporâneos (o final da década de 80
do século XIX),falando de sensibilidades "quejá hoje não teriam lugai".'°'
Já Achylles Porto Alegre, ao escrever na década de 20'°® sobre a cidade da
época em que CoiTija escrevera — o final do século — ti-ansmite a mesma sen
sação: Porto Alegie vivia tempos de progiesso, com novas edificações que po
diam tomá-la mais bonita:

Se,de memória, regiessamos a esses tempo,vemos quanto foi rápido e espantoso o


progi esso da cidade. Hoje,ela ostenta-se gai bosa,com asua edificação moderna,pom
posos palacetes,iTias calçadas e paialelepípedos(tiabalho em úucio),cabai ets, cine
mas e mais 'fitas coloridas'de modernismo e civilização. Onde antigamente eram vé-
Ihos e imimdos f)aidieiros, se erguem agora edifícios de requintada estética.'"^

Mas, mesmo assim, o cronista transmite o sentimento nostálgico de que a


cidade perdera o seu comportamento mais humanitáiio:"E verdade que essas
transformações destmíram muitas coisas do passado, ligadas à história local"."®
Por seu lado, Athos Damasceno Peneira, ao compor, na década de 40,
suas poesias sobre a cidade da época em que Porto Alegre estava escrevendo,
refere-se às décadas de 10 e 20 como a um passado repleto de socialidades
antigas, que haviam desaparecido:
Que é daqueles lampiões que espiavam de denti o do
tufo das áivores velhas,
o ingênuo colóquio dos noivos
nas salas das casas fronteiias à praça?""

Nesse encadeamento de épocas, Archymedes Foitini, ao naiTar,a Porto


Alegre do início do século, escrevendo nas décadas de 50/60, constata as mu
danças e progresso havido frente ao centro urbano acanhado do passado:
Como tudo está tão diferente,como tudo mudou,passados sessenta e cinco ano.
Os naviosjá não mais permanecem ao largo,impossibilitados de atracar;já não há
mais tiapiches, os pequenos e confortáveis botes desapareceram e os caiTos ti^ação
animal foram substituídos pelos velozes, ágeis e ambiciosos táxis dos nossos dias.
[...] Não tenho dúvidas: Porto Alegre progiediu muito."®
""Ibidem, p.26.
'"Torto Alegre, Achylles. Noutros tempos(crônicas). Porto Alegre: Globo, 1922.
'"'Porto Alegre, Achylles. Através do passado. Porto Alegre: Globo, 1940. p.30-1.
'""Ibideni, p.33.
'""Ferreira, Athos Damasceno. Poemas de minha cidade. 2.ed. Porto Alegre: Globo, 1944. p.9.
""Fortini, Archymedes. Histórias de nossa história. Porto Alegre: Grafipel, 1966. p.14-6.

28.3
Sem dúvida, cada geração reescreve a história e reccnfigiu-a temporal-
mente o passado a partir do momento em que vive. Contudo, o que se quer
remarcar éjustamente o fato de que, ao representar a cidade,são reconentes
as sensibilidades pam com o ati-aso e o progresso, assim como a identificação
de que todo momento vivido é mudança e,com isso, marco de referência para
a valorização positiva ou negativa do passado.
Ao analisai" o coi'yunto de textos que falam do urbano por um peiíodo tão
longo — cerca dos primeiros 30 anos do nosso século —,vemos que mais de uma
gemção de escritores se sucedeu no tempo.De um lado,teríamos o "velho" Achyl-
les Porto Alegie, que,junto com Damasceno Feneiia e Fontoura Xavier,foirnari-
am o estfato parnasiano, saído do Partenon literario. Por outro lado, tem-se a
jeunesse dorée, a "boêmia liteiãiia", do final e do início do século, integi"ada — ou
não — à coiTente simbolista, e que,em "vagas" ou subgerações,foram alimentan
do o que Vivaldo Coai"acy chamou de "literatura provinciana". A expressão, se
gundo Coai"acy, não foi usada no sentido pejorativo, mas pai"a indicai" o carater
local e a "repercussão limitada destas manifestações do espírito".'"
Nascida entre 1860 e 1880, essa geração viveu a Porto Alegre onde re
cém nascia uma questão urbana. "Geração Correio do Povo", foi nas páginas
deste jornal e no do Comércio, assim como também através da livraria Ameri
cana que ela encontrou, localmente, publicação para suas obras. A boêmia
literária de Otávio Dornelles, Souza Lobo, Marcelo Gama, Pedro Velho e
Zeferino Brasil compunha, com Mário Totta e Paulino de Azurenha, os
"moços de talento" da época. Parte deles, e saindo — ou não — da acanha
da Porto Alegre mmo ao Rio, tiveram sensibilidade suficiente para expres
sar as mutações da sua cidade.
Por ocasião da publicação póstuma das crônicas de Paulino de Azurenha,
o mais velho do gmpo, Zeferino Bi"asil, que prefaciava a obra, recuperou as
palavi"as de Azurenha para explicar como o cronista do urbano deveria focar
o assunto que a cidade lhe oferecia:

Feliz o cronista que pode colocar o seu espírito um pouco mais longe de si mes
mo,e do seu ti"abalho formar um pedestal um pouco mais alto, de onde lhe seja
dado descortinar, nítido, o quadro que os pequenos detalhes baralham e confun
dem. Feliz, porque rairamente eis contingências nos cercam e nos oprimem, per
mitem [...]. E então,dlhada destas alturas a rida pacata desta cidade apresentaria
um outio aspecto que não se pode apresentar isoladamente de cada uma das múl
tiplas modalidades do seu viver cotidiano."^

Coaracy, op.cit., p.52.


"-Brasil, Zeferino. Prefácio. In: Azurenha, Paulino de. SemanArio de Leo Pardo (crônicas). Porto
Alegre: Globo, 1926.

284
Parece que Aziirenha teria compreendido com acuidade a natureza da
crônica e do cronista do urbano: registiai'a vida ao rés-do-chão, mas ati-avés de
uma postui-a especial; o cronista, espectador privilegiado da cidade, é alguém
que exercita o seu poder de olhai* e é capaz de sentir a "sintonia fina" de uma
época pai*a expressá-la de fonna literáiia. Assim, mesmo a cidade mais pacata,é
capaz de produzir vida liteimia como registro das sensibilidades do vivido.
A este giiipo se seguiu uma novKjeunesse dorée, geração simbolista(ou não...),
nascida nas duas últímas décadas do século XIX, que freqüentava a Praça da Ca
ridade (atual Dom Feliciano) e também a livimia Americana e q Correio do Povo.
Fossem eles o "gmpo dos sete" — Felipe de Oliveira, Álvaio Moreyra,
Eduardo Guimarâes, Homero Prates, Carlos Azevedo,Antônio Baireto e Fi*an-
cisco Baireto"^ — ou se chamassem José Picorelli, Alceu Wamosy,Alcides Maya,
também parte deles tomou o caminho do Rio de Janeiro, freqüentando a ci
dade que era não só "mai-avilhosa" na fonna, para alguém saído do sul, como
era, sem dúvida, o centro cultui-al da helle époqiie bi*asileira.
Seguindo essa linha "geracional", o início do século veria explodir uma
outra onda dejovens que, de simbolista, seria tocada pela conente modernis
ta na década de 20. Augusto Meyer, Emani Fomaii, Raul Bopp,Athos Damas-
ceno Feneira e outros, freqüentadores, por seu turno, da Praça da Haimo-
nia, da Praça da Matriz ou da livraria do Globo,"'' também não ficai-am infen-
sos à atração do Rio de Janeiro.
Fôssemos nós analisá-los segundo suas"escolas liteiáiias" ou valor estético das
obras, teriamos de agiegá-los talvez como parnasianos, simbolistas, modernistas,
etc., ou,então, assinalai* que alguns denti*e eles chegai*am a tomai* assento na Aca^.
demia Bi*asileira de Leti*as, como Augusto Meyer,Alcides Maya e Alvai*o Moreyra.
Também registraríamos que, com os simbolistas, oconeria uma "notável
ausência de cor local" e de "alusões à realidade circundante","^ e que, com
referência a Porto Alegre, eles se inspirariam na paisagem"® e compareceriam
na evocação de seus belos "crepúsculos"...É ainda a cidade-paisagem que mai*ca
a sua presença,como em Felipe de Oliveira,ao celebi*ai*a "foi*ma esquiva e baça
das colinas/que ninam Porto Alegre em seu regaço"... Com isso, a cidade so
surgiria como tema da ficção com "os novos de 30", como Dionélio Machado,
Reinaldo Moura e Erico Veríssimo.'"

'"Costa, Lígia Militz da. Felipe d'Oliveira. Porto Alegre: lEL, 1982. p.l2.
"■'Carvalha], Tânia Ytdínco. Augusto Meyer. Porto Alegre: lEL, 1990. p.60.
' Zilberman, Regina. A lüemtura no Rio Grande do SuL Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. p.18.
"®Zilberman, Regina. Literatura gaúcha: temas efiguras de.ficção e depoesia no Rio Grande do SuL Porto
Alegre: L & PM, 1985. p.62.
"'Zilberman, Regina. Roteiro de uma literatura singular. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1992. p.l7.

V' 285
Perseguir os registros da cidade — cacos da história, indícios, traços
menores e secundários — que a "vida literária" gaúcha da época produzia, não
exatamente contm ou a favor de uma vertente simbólica e regionalista, mas
com ela coexistindo, ao longo de uma fase em que a cidade, progressivamen
te, se ti-ansfonnava e se impunha à sensibilidade do escritor. Também temos
consciência que nenhum dos escritores e poetas citados têm sua obra nitida
mente centrada no urbano. É preciso garimpar,juntar cacos, indícios, frag
mentos para recuperar a cidade nestes textos. Igualmente, deste elenco de
autores citados, que compõem as subgerações pós-30, nem todos apiesentam
o viés de sensibilidade aludido. Por que mencioná-los todos, então? Porque
eles, no seu conjunto,fonnam o clima, o contexto de uma época, o meio lite-
ráiio no qual algumas páginas expressam a cidade que se transfoiTnava.
O saldo seja talvez modesto: uns poucos romances, espai"sas poesias, memó
rias e muitas crônicas. Foimas de dizer a cidade num Rio Giande onde a majesta
de do mi-al se impõe e onde se afnma,do Paitenon Liteiáiio ao Instituto Históri
co e Geogi-áfico, constituindo uma identidade regional apoiada no campo.
Frente a esse referencial de contingência de peso inegável, imagens de
uma cidade ameaçada ou ledimida pela mudança — ou talvez de uma cidade
sem saída — encontrou na literatura uma fonna de evasão.
De uma fonna geral, poderíamos agmpar esses autores dentro de gran
des conjuntos ou teúdências, que se expressam em crônicas.
De um lado, a vertente "saudosista", que se caracteriza por uma evocação
positiva do passado, dotada de uma leve melancolia. Tal postura se notabiliza por
uma avaliação severa dos hábitos e, sobretudo, da moralidade trazida pela vida
moderna. No lado opdsto, a tendência dita "progressista", manifesta na atitude
de confiança no processo de renovação urbana em curto e na avaliação política
de alteração dos hábitos citadinos. Numa posição não propriamente inteimediá-
ria, mas distinta das anteriores,se encontraiia a tendência a qual chamaiiamos de
"amai^ura provinciana" e que con esponderia ao lamento da elite ilustrada local
frente ao meio acanhado e ao atraso da cidade,assim como a conotação melancó
lica da falta de assunto numa Porto Alegie onde nada acontecia de interessante.
Gomo o desdobramento ou expansão dessa postura, um número reduzido de
romances e contos traduz a ambivalência de uma pequena grande cidade, que
oscila entie a aldeia e a metiópole, vendo, numa,a outra.
Há,sem dúvida, uma distinção de gerações, mas ela não representa um
corte absoluto que classifique de modo fechado um gmpo dentro desta ou
daquela postura frente ao urbano. Ou seja,se é possível visualizar o velho Achyl-
les Porto Alegre como um "saudosista", a nostalgia do passado pode ser capta
da também nas obi^as da mocidade boêmia...

286
Naturalmente, estão excluídos dessa análise os textos dos produtores do
espaço, que apostam no futuro da cidade como metrópole. Médicos sanitaiis-
tas, engenheiros e urbanistas compõem discursos técnicos sobre o urbano, e
nosso olhar se dinge para as nan-ativas explicitamente litei-áiias. Os casos de
Máiio Totta ou Sebastião Leão, médicos de fomiação, são citados na sua face
ta fíccional, pois não é como técnicos especializados em saúde que eles se ex
pressam litei-ariamente.
A visão literária do urbano, no caso daquele terceiro viés apontado, ten
de a orientar-se pam uma postum muito crítica da cidade,o que recoloca, mais
uma vez, o peso da representação identitáiia que se consolidava à mesma épo
ca e que, numa articulação espaço-temporal vitoriosa e positivada, apontava
pam o campo e pam o passado.
Assim, o fantasma do rural e do mito das origens peiristia a seduzir — ou
a incomodar — os esciitores da cidade.
Temos consciência de que o uso do tema "escritores da cidade" para a
gemção da passagem do século aos anos 20 implica forçai- um pouco o tei-mo,
na insistência de encontrar a sensibilidade em face do urbano nas obi-as de
tais letrados.
Se existem vários discursos sobre Poito Alegie, a sua dimensão simbólica
ultrapassa em muito a concretude das práticas sociais em curso. Ou seja, um
texto que fala da inauguração de um bonde elétiico ou da abertura da avenida
Borges de Medeiros não é um "documento" do real, a indicai- que tais atos se
deram realmente num dia preciso. São, ao contrái-io, pequenas aberturas que
nos pei-mitem ver coisas que não são visíveis em outro nível de análise e que
podem expressar como as inovações urbanas são vivenciadas pelos habitantes.^
Tais discursos literários são, pois, um indício, um traço, que já carrega
consigo uma reflexão e uma sensibilidade sobre a cidade e que nos pei-mite
chegar, por um outro caminho, àquilo que não se encontra explícito no dis
curso oficial sobre a urbe.
O que liam, que espaços freqüentavam, o que faziam tais escritores?
Maria Eunice Moreira, ao comentar a vida da capital no final do século
para situar a ação de Apolinário Porto Alegre, diz:

Porto Alegi-e é uma cidade de conti-astes: a luz eléti-ica atinge apenas o centro,não
há abastecimento de água, nem rede de esgotos, porém, conta com 3 livi-anas, 2
teati os e 4faculdades — Direito, Engenharia, Medicina e Faimácia, numa popu
lação de setenta e quati o mil habitantes."®

'"Moreira, Maria Eunice. Apolinário Porto Alegre. Porto Alegre: lEL, 1989. p.l6.

287
o conti-aste enunciado é o de um núcleo urbano pequeno e carente de
sei-viços públicos, mas com um certo "ar cultuml".
Estariam à frente destas iniciativas do ensino e da difusão da literatui-a os
conhecidos innãos Poito Alegi^e, que tivemm presença marcante na cidade,
no final do século XIX.
Apolinário Porto Alegre foi^a, com Hilário Ribeiro, fundador, em 1876,
do Instituto Bi-asileiro, prestigiosa instituição de ensino com diretrizes repu
blicanas que funcionou até 1891. Com seu innão Achylles, foi fundador, em
1868, do Partenon Literário, sociedade cultuial que por 10 anos galvanizou a
vida cultural da província. Com o innão Apelles, fundou, em 1878, o primei
ro jornal republicano da província, A Imprensa. O mesmo Apelles, eminente
professor, fundou o Colégio Rio-grandense com o iixnão Achylles. Este últi
mo,além das iniciativas citadas, foi também fundador da Academia Rio-gran
dense de Letras, do Instituto Histórico e Geoginfico do Rio Grande do Sul,do
Colégio Fernando Gomes,do colégio Rio-grandense e da Escola de Engenha
ria. Tendo sido também professor da Escola Normal e do Ginásio Júlio de
Castilhos, Achylles Poito Alegi-e foi ainda proprietário de doisjornais: o Jornal
do Comércio e A Notícia.
A operosidade dos innãos Porto Alegre é importante não para demons
trar que o exemplo dessa podia estender-se a outras da cidade, mas para dar
um significado especial aos muitos espaços culturais que a capital da provín
cia apresentava no final do século XIX.
A essas escolasjá citadas deve ser acrescentado um estabelecimento de
grande prestígio: a Escola Brasileira. Tal instituto de ensino contava,entre seus
professores, com mestres de grande emdição,como Inácio Montanha,André
Leão Puente, Monso Gueneiro Lima e Leopoldo Tietbòhl.'-"
No Colégio Rio-grandense,estudou Fxiuardo Guimaines,assim comojosé
Picorelli e Felipe de Oliveira cursaram a Escola Brasileira, Augusto Meyer o
Colégio Bom Conselho,de religiosas, e Mário Totta o Colégio Minerta,funda
do por seus avós. Além desses estabelecimentos, situava-se a tradicional Escola
Militar de Porto Alegre, que, a par do ensino técnico,fornecia aos alunos um
sólido conhecimento no domínio das ciências humanas e letivas.
Esse ensino básico e médio foi o responsável pela foiTnação de parte con
siderável do que chamamos a elite letrada da época, pois poucos deles seriam
"doutores".

"'Deusino Varela. Apresentação do autor. In: Porto Alegre, Achylles, História popular (editada
pela Prefeitura em 1940, para as comemorações do bicentenário da cidade).
Gonzaga, Alcides. Homens e coisas dejornal. Porto Alegre: Globo, 1944. p.33.

288
Nos tempos do Império, para fazer um cui-so superior, era preciso ir a
outros centros do país, como o Rio, São Paulo ou Recife. Com a República,
como se viu, o governo positivista empenhou-se em dotai* o Rio Grande de uma
série de estabelecimentos para preparação de sua elite. Em 1895,já funciona
va uma Faculdade de Famiácia e a Escola Livre de Partos, mas foi em 1896
que surgiu a Escola de Engenharia, seguida pela Faculdade de Medicina, em
1898, e a de Direito, em 1900.
Alguns dos nossos "homens de letras"freqúentaiam as academias superi
ores, como Mário Totta e Felipe de Oliveira a Faculdade de Medicina, ou José
Carlos de Souza Lobo,José Picorelli, Álvaio Moreyia e Alcides Maya, a Facul
dade de Direito. A maior paite, contudo, trabalhava em jornais, nas reparti
ções públicas ou no ensino para poder sustentai-se.
Estamos diante de um quadro em que não há necessáiia conespondência
entre cui^so superior e dedicação às letias,à escritura da prosa ou do vei:so.Pode-
se dizer que a elite letrada não conespondia exatamente à elite econômica,apoi
ada na teiTa, no comércio, na indústria e nos bancos. O fato de alguns deles
terem destaque na sua caireira — como é o caso de Máiio Totta — ou de terem
melhores condições fínanceiias — como Felipe de Oliveira — não interfere de
modo especial na sua"postura liteiáiia". Nem por isso se confundem com afacção
da elite endinheirada da época,que,giaduando-se em Direito,seguia a caireira
política e, na Engenharia ou Medicina, conveitiam-se nos chamados "produto
res do espaço", a realizai* intei*venções e compor projetos paia a cidade.
Nossa elite letrada, produtora de livios, crônicas e veisos, era integrada,
grosso modo,por elementos que comporiam as ditas"camadas médias urbanas".
Eram, sobretudo, assalariados, na sua maior paite funcionários públicos que
acumulavam as tai efas propriamentejornalísticas ou litei*ái*ias. A sua maior ou
menor disponibilidade financeira familiai* — ou sua maior ambição de conhe
cer o "mundo", talvez — era o que os fazia chegai* até o Rio ou a Europa.
O que significava a chegada ao Rio, capital fedei*al, pai*a os letrados gaú
chos? Não só ver e sentir o "clima" da "capital litei*ái*ia" do Bi*asil, mas prova
velmente obter o reconhecimento extenio e colher as oportunidades que a
metrópole nacional oferecia aosjovens talentos...
Nocomeçodoséculo,esa*itores riogiandensessó conseguiam toi*nai"-«e nacionalmente
conhecidos,como os das outias províncias,quandose tiansportavam audazmente paia
q Rio.Foi o que sucedeu,paia citai* poucosexemplos,com Alcides Maia,Maicelo Quna,
Alvdi o Moreiia e Filipe de Oliveiia. O que não impedia que,em Porto Alegie, exi.stis-
se imi meio liteiáiio, um gi*upo numeroso com preocupações intelectuais.'

' Coaiacy, op.cit., p.56.

289
Uma prova de que isso eia possível enconti-a-se no fato de que, quando,
em 1911, Alcindo Guanabai-a enviou uma circular aos intelectuais para que
dessem sua opinião sobre a criação de uma "Academia de Novos", alternativa
à Academia Bi^asileira de Leti-as, recéni-fundada,enconti-avam-se, entre os con
sultados, os gaúchos Alcides Maya, Álvaro Moreyra e Felipe de Oliveira.
Quando, em 1916, reativou-se a idéia de criar uma academia literária desse
tipo no Rio,foi numa das salas da Sociedade Rio-grandense do Sul, na aveni
da Rio Branco,que se realizou a primeira reunião preparatória. Os gaúchos,
portanto, tinham sua sede no centro emblemático da metrópole bi-asileiia.
Freqüentar as i'odas literarias dos grandes, festejar os autores consagra
dos nacionalmente, percoiTer as livrarias e os cafés era um privilégio concedi
do a alguns dos gaúchos que se articulavam em tomo de Alcides Maya. Eleito
já em 1913 para a Academia Bi^asileira de Leti-as, era a mais alta expi'essão in
telectual do Rio Grande nas leti"as nacionais, como dizia Alcides Gonzaga'-"'.
Estes gaúchos privilegiados funcionavam como uma espécie de "embaixada"
da elite cultui^al gaúcha no Rio,e vários deles publicavam nas revistas cariocas,
como as prestigiadas Fon-Fon e O Malho, ou nosjornais A Imprensa, O País, Ga
zeta de Notícias, etc.
Em 1913, uma caravana, constituída por Felipe de Oliveira, Álvaro Mo
reyra, Rodrigo Otávio Filho e Ai-aújo Jorge, desembarcou em Paris, na Gare
de Saint Lazare,. Brito Broca nomeou Álvaro Moreyi^a como representante de
um "parisianismo agudo", pois:
[...] depois de hospedar-se num hotel,resolve transferir-se para Montmarti"e,'por
litei atura .Nf<ps tarde,numa entrevista, dirá que,se não fosse a guerra,tornar-se-
ia poeta fiancês, pois ficando em Paris, como pretendia,deixaria de escrever em
nosso idioma fato tanto mais provável quanto os simbolistas, por natureza,já se
inclinavam a versejar em fi-ancês.'®®

Outros gaúchos letrados também participaram de passagens pelo Rio de


Janeiro,como Eduardo Guimarães,José Picorelli, Roque Calage,Alcides Maya
e Augusto Meyer,sendo que este último,já bem mais tarde, visitaria a Europa
e os Estados Unidos.
Mas voltemos à Porto Alegre. Quem não podia ir ao Velho Mundo ou ao
Rio para respirar q ar cultural das praças "inais civilizadas", tinha de conten-

Brito Broca. A vida literária no Brasil, 1900. Rio de Janeiro: MEC,[1958] p 53-4
'2-nbidem, p.59.
Gonzaga, op.cit., p.89.
Brito Broca, op.cit., p.94.

290
tar-se com as visitas de Coelho Netto a Porto Alegre, em 1906, ou de Olavo
Bilac, em 1916,'-® ou com a Academia Rio-gi-aiidense de Leti-as, fundada em
1902, pela "nata" dos escritores locais.'"
Que espaços freqüentavam os escritores da urbe? Quer paiecer que, no
caso da capital gaúcha, há que destacai* três locais, ponto de debate, troca de
idéias e evasão. São,fundamentalmente, espaços mais propriamente masculi
nos, dadas as socialidades da época e os critérios moi*ais vigentes.Jornais, cafés
e livi*arias compunham o percurso de uma elite letrada, que produzia um dis-
cui*so literârio sobre a cidade.
Para a análise da vida literâria do início do século gaúcho,contamos com
uma obra do porte da de Brito Broca, mas também valemo-nos da de Alcides
Gonzaga,'-® que inclusive é citada por aquele como referência para o resgate
do "clima cultural" porto-alegrense. Cmzando essa obra com a de Vivaldo
Coaracy,'-" de cunho memorialístico, tal como a de Brito Broca, com outros
trabalhos mais recentes,"® constata-se a importância dosjornais, como espaço
de encontro e debate cultural, espécie de foco difusor das crônicas e poesias
dos letrados de então.
A começai* pelo número incrível de periódicos com que contava a cidade
no período que vai de 1890 até cerca de 1920, ou seja, no momento em que a
população mais que triplicava, de 52.421 habitantes para uma população de
179.263 pessoas. Com vida mais duradoura ou efêmera, ei*am eles:Jornal do Co
mércio, A Gazetinha, OIndependente, Correio do Povo,Jornal da Manhã,A Federação, O
Exemplo, A Manhã, Cazeta do Comerão, O Debate, Gazeta da Tarde, Folha Nova, A Re
pública, O Dia, O Sul, Diário Mercantil e outios. Trabalhos recentes'®' assinalam a
presença de 163jomais e revistas criados entie 1885 e 1916, o que,sem dúvida,
dá uma noção da vitalidade da época. Alguns tinham conotação clai*amente
humorística e de variedades, como o PetitJoumal, O Maneca, OPau Bate e. A Far
pa, chegando mesmo à licenciosidade, como O Badalo, ou se consütuíi*am em
verdadeiros pasquins, como A Comédia Sodal ou A Tribuna. Os depoimentos da
época nos falam da impoi*tância de tais periódicos, cujas sedes e salas de reda
ção operavam como ponto de encontro da intelectualidade, que encontrava,
nas páginas dosjornais, uma forma de publicai* suas crônicas. A oportunidade

'-®Saninartin, Olintho. Um rido de cultura social Porto Alegre: Sulina, 1969. p.25 e 33.
'"Ibidem, p.20.
Gonzaga, op.cit.
'■'Coaracy, op.cit.
Rüddeger, Francisco. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1993.
Silva, Jandira M.M. da; Clemente, Ir. Eivo; Barbosa, Eni. Breve histórico da imprensa sul-rio-gran-
dense. Porto Alegre: CORAG, 1986.

291
oferecida foi muito bem aproveitada pelos "jovens talentos" da época, que de
outi-a maneirâ não teriam como publicar e divulgar seus trabalhosjunto ao
público. Segundo Coaiacy, relembrando a cidade do início do século;

[...] o meio porto-alegi ense não favorecia a existência de publicações de exclusi


vo cai^áter cultm~al. [...] Em compensação,as folhas da época abriam colunas a bom
número de ü-abalhos de litei-atum, prosa e verso.

O primeiro dos periódicos que cumpria o papel de agregar talentos e apro


ximar os interessados pelas "belas leti-as" foi oJornal do Comércio, quando sob a
direção de Achylles Porto Alegre. Dessejornal,fala Mário de Sá,em entrevista
concedida a Alcides Gonzaga, que, no início da década de 90, contava, entre
seus colaboradores e redatores, o próprio Caldas Júnior — antes de sair para
criai- seu próprio periódico — Zeferino Bi-asil, Múcio Teixeira, Alberto Ran
gel, Aníbal Teófilo, Octávio Domelles, Augusto de Sá,João Moreira da Silva,
Damasceno Vieira, Paulino de Azurenha, Mário Totta,Souza Lobo. E,em face
de ser um ponto de encontro de tais talentos da cidade, atraía também, para
o convívio da redação, a presença dos estudantes do Colégio Militar, que eram
"afeiçoados às letras"...
Refere Achylles Porto Alegre que, em 1897, começou a aparecer, na pri
meira página doJornal do Comércio, uma seção literaria — "Lótus Azul" — com
contribuição da "prata da casa".

Aos sábados, pouco depois do meio dia, começavam a vir os originais para secçâo
domingueira que era ansiosamente esperada.
Àúoite,o escritório do velhojomal ficava animado com a alegi-e e ruidosa rapazi
ada da "Escola Militar", que dava aí um aspecto de corpo de guarda, pelo brilho
dos seus botões.'^

Ao que parece, o nome da coluna deveiia ter sido tirado da coleção fran
cesa Lotus bleu, importada pela livraria Americana e que apresentava "as me
lhores produções dos mais célebres e laureados romancistas franceses"."^
O núcleo agregador dos letrados, contudo, mudaiia para as salas do Cor-
reio do Povo, a partir de 1895. Com apoio de gente endinheirada da cidade,
Eugênio ,Du Pasquier e Antônio Mostardeiro Filho, Francisco Antônio Vieira

"-Coaracy, op.cit, p.56.


"'Apud Gonzaga, op.cit., p.228.
Porto Alegre, Achylles, Históriapojmlar, p.ll8.
"'Cf. Correio do Povo. Porto Alegre, out. 1896.

292
CaldasJr. constituiu umjornal adequado às aspirações locais após a turbulenta
guerra civil de 1893-95.Propunha-se a não se engajar partidariamente,deixando
de lado a disputa de "maragatos" e "pica-paus" além de aliar à sua independên
cia um certo dinamismo empreendedor.
CaldasJúnior,sergipano que viera para o Rio Grande do Sul, estudara no
Instituto Brasileiro, de Apolinário Porto Alegre. Trabalhava em A Reforma como
revisor e, após, como redator, vindo a, posteriormente, trabalhar no Jornal do
Comércio, a convite do então proprietário Achylles Porto Alegre. Quando saiu
para fundar o seu próprio jornal, o velho Achylles não deixaria de elogiá-lo,
ressaltando o ambiente que fora capaz de criar no novo perlpdico.
Em 4 de outubro de 1896, uma crônica de Gavami — pseudônimo de Feli
pe de Oliveira — evocava o nascimento do Correio doPovo há um ano atrás. A crô
nica tratava o evento como se fora o nascimento de uma criança, com médicos
aflitos — como Sebastião Leão — e a angústia de pai de CaldasJúnior... Em tor
no, atarefados, a correr de um lado para outro, angustiados com o trabalho de
parto, Mário Totta, Saint-Clair, Paulino de Azurenha e outros, numa paródia à
qual não faltou mesmo uma imagem de São Raimundo, padroeiro dos partos...
Apesar da aflição, o resultado foi feliz; na madrugada porto-alegrense, quando
já passavam as carrocinhas de padeiro,a tão esperada "criança" nascia:

[...] Leão entrava,atroando o ar com este brado alegre: É homem!É homem!É o


Correio do Povo! É o Correio do Povo! [..] Vendo assim dois números,e meio za-
ranza de emoção,acerquei-me do Leão e,segurando-o pelo braço, perguntei-lhe:
— São gêmeos?
— Qual! Seu Cuca,são cinco mil!'^®

O novo periódico logo suplantou oJornal do Comércio e passou a atrair os


jovens poetas e escritores, desejosos de publicar nas páginas cor-de-rosa do Cor
reio do Povo.
Para tanto, o Correio do Povo, inaugurara, em 1- de outubro de 1899, uma
seção chamada "Poetas do sul", na qual publicava as produções e os dados bio
gráficos dos "novos",justificando assim a sua iniciativa: 'Com efeito,o Rio Gran
de vive quase ignorado nos domínios da literatura nacional,quando,entretanto,
conta numeroso grupo de bons poetas". No início do século,já agregava os
maiores nomes da época:Paulino de Azurenha,Mário Totta,Sebastião Leão,Ze-
ferino Brasil, Pedro Velho, Marcelo Gama,Eduardo Guimarães e tantos outros.

Correio do Povo. Porto Alegre,4 out. 1896.


'"Apud Gonzaga,op.cit., p.44.

293.,
Realizando aperfeiçoamentos técnicos, com a aquisição renovada de no
vas impressoras, foi aumentando o número de páginas e a tiragem: em 1907,
produzia 4.000 a 5.000 exemplares por hora e, em 1910, 12.000 exemplares/
hora. Em suas reminiscências, Alcides Gonzaga considera que a tiragem do
Ccftreio do Povo o fazia o maiorjornal do sul, igualando ou mesmo superando
aos mais importantesjornais do Rio e São Paulo...
Da atmosfera que lá reinava, diria Emílio Kemp:

O ambiente das salas de redação do "róseo" era, então, o ponto de 'rendez-vous'


de um grupo seleto de homens proeminentes nos meios políticos, literários e so
ciais de Porto Alegre. Era um zunzum alacre, rumorejante, vivaz que,às vezes, es
talava em risos fortes...E aquele rumor ao revéz de perturbar o ti~abalho, dos reda
tores e repórteres,animava-o, dava-lhe mais vida, provocava apartes novos e frases
em que haveria malícia, mas nunca peiversidade malsã.''"

Refere Alcides Gonzaga que, nos salões dojomal, realizavam-se não ape
nas conferências dos homens de letras, como também apresentações musicais
e recitais de canto.'"'*'
Verdadeiro foyerá^ cultura,jomal mais lido do estado, qual seria exata
mente o seu público? E o mesmo Gonzaga quem nos fala das preferências do
público, ao referir-se ã missão dojomalista: havia o leitor comum, para quem
o jornalista devia informar e expor as notícias, e que teria avidez por sensa
ções, romance, tragédia e mistério; havia também o homem educado, que
apenas passaria os olhos pelas reportagens, mas que seria o leitor — por exce
lência — de notas sobré filosofia e artes;já o público feminino, de talhe "ã an
tiga", teria predileção pelas notas sociais e religiosas, assim como as participa
ções de noivado e casamento, enquanto as ditas "modernas" teriam curiosida
de por artigos que abordassem problemas sexuais... Havia os sedentos da polí
tica, da economia e finanças, etc., também contemplados pela imprensa.
Assim, para um indivíduo ou para cada grupo numeroso de leitores, tem uma fi
nalidade diferente a função dojornalista.'""

A idéia reforça a visão do jomalista como uma espécie de "antena" do


social, a captai- as expectativas dos gmpos, os inmores, as queixas e os sonhos

Gonzaga, op.cit., p.l67.


"'Apud Gonzaga, op.cit., p.l92.
'■•"Gonzaga, op.cit., p.51.
'■" Ibidem, p.l70.

294
de cada gmpo e ao vender tudo isso nas páginas do periódico, de modo a que
cada um nelas achasse o seu interesse. Essa idéia é reforçada pela rememora-
ção de Alcides Gonzaga, que traça o quadro de repórteres a freqüentai- os es
paços onde os boatos circulavam, onde os gmpos confabulavam e onde as pes
soas emitiam opiniões. Fala-nos de tais lugares, identificados numa cidade na
qual as socialidades urbanas do centro se restringem a espaços restritos: ora é
a alfaiataria de GeiTnano Petersen, na Rua da Praia, ora é a casa comercial de
J. Sant'Ana, na Rua General Câmai-a,ora é um banco da praça Senador Florên-
cio, ora é, ainda, o café América, também na citada Rua da Pi-aia...'"'-
Sendo ojornal mercadoria, a modernização da imprensa e a venda dos
exemplares ao público implicava o resgate das sensibilidades da época, indo
ao seu encontro através de artigos que tinham boa recepção. Fsse é um dos
lados da medalha, pois o outro vem da subjetividade do escritor ao elaborar
seu texto. Trata-se de um ato singular que se orienta pai-a o social, assim como
o referencial de contingência está, por sua vez, presente no escritor.
Ora, criação e recepção, literatura e leitura, o indivíduo e o social com
põem uma articulação complexa mediatizada pelo texto. F, nesse jogo de
planos, o texto representa a mediação que articula as instâncias. A elite le
trada, leitora dos clássicos da literatura européia e que escrevia contos, crô
nicas e poesias para os jornais, veiculava nos mesmos uma representação
particular do espaço e das vivências urbanas e, como tal, era também ciiado-
ra de um imaginário social.
AoJomnl do Comérdo e ao Carreio do Povo caberia acrescentar OIndependen
te, surgido no início do século e fundado por Otaviano de Oliveira. Vivaldo
Coaracy, que nele trabalhou, reafinma sua idéia de que ojornal supria, no sul,
a ausência de revistas de literatura, sendo, por isso, muito procurado pelos es
critores incipientes, que queriam ver seus ti-abalhos publicados.'''^
Apesar da carência de revistas literarias, não é possível esquecer alguns
veículos de difusão cultural presentes na "vida litei-ái-ia sulina". Referimo-nos,
especialmente, ao Almannck Liiterárío e Estatístico da Província do Rio Orande. do
Sul, editado na tipografia da Livraria Americana. O Alnianack publicava não
só artigos de autores da capital como do interior do Estado, do Brasil, Améri
ca Latina e Europa. Já nas décadas seguintes, em pleno novo século, o Almana
que da Globo, publicado pela Livraria do Globo, também apresentava autores
locais, nacionais e estrangeiros. No caso específico de romances de autores
locais, as opções seriam as edições propiciadas pelas duas livrai-ias aludidas —

'"Ibidem, p.125-7.
Coaracy, op.cit., p.33.

295
Americana e Globo — ou então buscar a publicação no centro do país, o que
ei"a difícil, mas não de todo impossível..."''''
Dosjornais, passemos aos cafés, o que estes eram não só um reduto da
socialidade masculina, como compunham, com as livnfarias, os espaços cultu-
mis da cidade.
Ao que parece, o fetiche do lugar estendia-se a outros freqüentadores de
fins-de-semana, estabelecendo-se como que uma "funcionalidade temporal'
para os usuários. Seria, particulaimente, o caso do já citado América;
O América,o ponto melhor da Rua dos Andradas e onde se reúnem advogados, mé
dicos,comerciantes, poetas literatos, noticiaiistas, boêmios inteligentes e extravagan
tes e do melhor que possui o nosso meio social, aos domingos é visitado pela simpá
tica rapaziada caixeiral,sempre coiTeta e unida,que,elegantemente vestida, provoca
olhai"es etéreos e cristalinos de criatui"as meigas e tentadoras,felizes e sedutoras..
O Café América era,em termos de boêmia literária, o mais bem freqüen
tado de Porto Alegre. Refere Coaracy,em suas memórias,que se situava na Rua
da Praia,junto à praça da Alfândega, lado a lado, em "concon ência contígua
com o FeiTocaiiil", outro café de categoria."''®
Archymedes Fortini, em texto memoiialístico, acrescenta a esses nomes,
o Guarani, situado igualmente na Rua da Praia."'"
Segundo Achylles Porto Alegre, a freqüência ao café nem sempre gozara
de bom conceito. Por volta de 1870, entrar numa casa destas, à luz do dia, im
plicava ficar "mal visto" e comprometer-se: 'iim café era casa suspeita, um foco
de perdição"."''® Além disso, havia na época uma só casa desse tipo em Porto
Alegre, cidade de hábitos caseiros e vigilante quanto à moral dos seus cidadãos,
que só à noite se airiscavam a ir ao "Gafé da Fama" da Rua Nova...
Os tempos,contudo,haviam mudado,e Achylles Porto Alegre, usualmen
te tão an-aigado aos velhos costumes, não deixava de consignar a importância
de tais redutos da socialidade urbana na vida modema:

O café moderno é o ponto de reunião dosintelectuais,dosjornalistas,dos aiüstas e dos


políticos. Aí,entie uma fumaça e um gole de café,se combinam os mais airojados pla-

■'•''Uma listagem dosjornaisie revistas surgidos no Rio Grande do Sul, no final do século encon
tra-se na obra de Silva, Clemente; Barbosa, op.cit.
O Independente. Porto Alegre, 6 out. 1895.
'''® Coaracy, op.cit., p.9.
-'""Fortini, op.cit., p.24.
Porto Alegre, Achylles. O café da fama. In: Porto Alegre, Achylles. Flores entre ruínas. Porto
Alegre: Wiedmann &: Cia., 1920. p.20.

296
nos literários, ai tísticos e administi-ativos. Aíse concebem num relance,diante da chá-
vena ou do cálice inspii-ador, o poema,o romance,o artigo de fiando,a ciônica,o qua
dro,a eleição do pi esidente da República ou a organização de um Ministério.Aíse pla
nejam revoluções e deposições de governo.Aíse guinda um indivíduo ao Capitólio ou
se o aiTemessa da Rocha Taipéia.Aío esaitor natuialista ou lealista vai estudar,suipre-
ender e apanliai"os tipos vivos dosseus contos,de suas novelas e l omances."''®

As livraiias eram outro espaço de reunião da elite culta poito-alegiense. Elas


eram, na virada do século, a Americana, a Univei:sal, a Livimia do Centro e, mais
tarde, a Globo.Jornais, revistas e almanaques da época nos fornecem as listas dos
livros recebidos pelas liviarias. Por seu turno, os textos dos escritores, assim como
as evocações dos memorialistas,indicam a leitura de autores europeus.As naiiati-
vas literáiias que falam do urbano tiazem expressões fiancesas e inglesas, e como
certas passagens nos peimitem identificar analogias com os textos de autores es-
ti-angeiros ou a influência da crônica e da repoitagem deJoão do Rio. Os pseudô
nimos adotados pelos cronistas são,por vezes,de notória inspiração francesa,como
"Rastignac" ou "Chevalier de Ia lune","Taitarin" ou "Molière".
O que liam, pois, nossos escritores do urbano?
Relembrando os anos 70 do século passado, Achylles Porto Alegre situa
va Alexandre Dumas, Eugene Sue e Ponson du Tenuil como leitura dos che
fes de família daquele tempo.
Os catálogos dos livros da livraiia Americana são bastante elucidativos. Na
edição de 1890, o Anuãrio Literário e Kitatístico da Província do Rio Grande do Sul
nos traz algumas informações sobre livros recomendados pela crítica e postos
à venda na livraria Americana: O imortal, de Alphonse Daudet, A dama das-ca-
mélias, de Alexandre Dumas Filho, O conde de Camors, de Octávio Feuillet.'^'
O estoque da renomada livraria Americana era também divulgado ati-a-
vés do Correio do Povo,^'- em extensas listas que, ao longo do final do século,
apresentavam obras de Gabriel D'Annunzio, Edmond e Jules de Goncourt,
Gustave Flaubert, Alphonse Daudet, Paul Bourget, Guy de Maupassant, Emi-
le Zola, Alexandre Dumas Filho, Escrich, Dostoievski, G. Ottnet,Jean LoiTain,
Mareei Prévost, Charles Nodier, Chateaubriand, Honoré de Balzac, Charles
Baudelaire, Victor Hugo, Feuillet, além de outros autores portugueses, como
Guena Junqueira, Antero de Quental e Eça de Queiroz.

'■"Ibidem, p.21.
Porto Alegre, Achylles. Paisagens mortas. Porto Alegre: Globo, 1922. p.70.
Almanack Liteiário e K^tatistico da Província do Rio Grande do SuL Porto Alegre/Pelotas: Carlos
Pinto & Cia. Sucessores, 1890.
Correio do Povo. Porto Alegre, 1896 a 1899.

297
As listas — ou catálogos — das livi-aria do Centro e livraria Universal eram
semelhantes e os almanaques seguiam a mesma tendência. Em 28 de outubro
de 1896, por exemplo,ao divulgar o anúncio de venda de folhinhas e almana
ques pai-a o ano de 1897, a livraria Universal dizia contar com os "Almanaks"
Les parisiennnes, Lunatique, Astrologique, Parisim, Des cor.otte.% Chnrivari, Amusnnl,
Pour rire, Comiqm, F^rophétiqtte, Guillamne, Voleur ülustré, etc....'^''
Mesmo os litros para uma fatia muito específica do público — a chama
da "Biblioteca Militar" — apresentavam uma grande quantidade de exempla-
l es em francês.'^'' Jornais especializados, como La viode nalionale ou La mode
elegante, também eram oferecidos ao público pelas livrarias da cidade.'"
Dentre os autores nacionais, Alencar, Machado,Bilac e Coelho Netto des
pontavam entre os mais divulgados.
O novo século se inauguraria na mesma linha,com a persistência dos fran
ceses, como Balzac, Hugo, Anatole France, Zola, Théophile Gautier, Rabelais
(!), Dumas, Bourget, Diderot, Prévost, Lamartine, Pierre Loti e outros.
A literatura portuguesa comparecia com Eça de Queiroz, Ramalho Orti-
gão, Gueirajunqueira, Camilo Castelo Branco, Almeida Ganet,e a mssa,com
Dostoievski, Gorki, Tourgueneff e Tolstoi. Oscar Wilde, D'Annunzio, Dickens,
Goethe, Nietzsche completavam esse variado repertório de celebridades lite
rárias internacionais,.''®
Esse deveria, portanto, ser o tipo de literatura que, anunciada nos perió
dicos, atraía os interessados às livi-arias da praça.
Com o novo século, livrarias como as de Gastou Hasslocher Mazeron e
RodolphoJosé Machado desapareceram, mas outras se criaram ou,já existen
tes, se confii-maram como pontos de reunião dos letrados ao longo da Rua da
Pi-aia: Globo, Echenique, Americana, do Comércio.'"
Mas,sem dúvida, até ceica do inicio da década de 20, a mais importante
de todas era a livi-aria Americana. Fundada em 1875, na esquina da Rua dos
Andradas com a Rua General Câmara,"era a mais antiga do estado e, na opi
nião de Achylles Porto Alegre,

ali era o ponto de palestia de tudo quanto mais ilusü e havia na política, na litera
tura, magisü-atm-a, na advocacia, no magistério e nas artes.'®"

Correio do Povo. Porto Alegre, 28 out. 1896.


'®'' Correio do Povo. Porto Alegre, 7 nov. 1896.
Correio do Povo. Porto Alegre, 26jan. 1898.
Catálogos da Livraria Americana ara 1913. Almanaque da Globo de 1917.
"'Porto Alegre, Achylles. Revivendo o passado. 2.ed. Porto Alegre: Sulina, 1953.p.36-7.
Porto Alegre, Achylles, Noutros tempos, p.93.

298
Mário Totta, antes de compor com CaldasJúnior e Azurenha a trinca for
madora do Coneio do Povo, lá ti-abalham, primeiro, como caixeiro de balcão
e, após, no escritório. Em suas memórias, situa a livi^aria Americana como "o
mais vasto estabelecimento da cidade.
Mesmo provocando "bamlhos" políticos na fase de implantação da re
pública^^" — A Bf/on/ia,jornal primeii-amente de cunho libei^al e após, fede-
ralista, ali se abrigava e era impresso... —,a livi-aria Americana impôs-se sobre
as acin^adas disputas políticas que dividiam o estado. Era lá que se podia en
contrar, exposto na vitrine, sempre o viltimo número do Alvianack Litterário e
Estatístico da Província do Rio Grande do Sul, organizado por Alfredo Pen eira Ro
drigues, que, na ausência de um periódico dedicado exclusivamente à litera
tura, acolhia as produções locais, de prosa e verso.
Em 1922,a revista Máscara assim descrevia o ambiente da livimia Americana:

Na parte anterior do prédio, é estabelecida a lindaria, em um gi"ande e elegante


salão, circundado de estantes e dividido por bonitos balcões, dotados de mosti u-
ários. Em alguns enconti^am-se coleções de gi*ande número de revistas e magazi
nes nacionais e esti*angeiros. Nas estantes latei*ais enconü"am-se numerosas cole
ções de livios, catalogados segundo suas especialidades

Mesmo sem ter, provavelmente, a imponência da Ganiier, transpor seus


umbrais deveria provocar a sensação, para os homens de letras poito-alegren-
ses, de cruzar a "Sublime Porta"...
Mas,fora osjoniais, os cafés e as livimias, ainda havia outios espaços:as praças.
E numa delas, na Praça da Caiidade, que se encontravam os simbolistas
de Porto Alegre: Zeferino Brasil, Eduardo Guimarães, Marcelo Gama, Felipe
de Oliveira, Homero Prates e Álvaro Moreyra. Sobre esse lugar e sua impor
tância para o grupo, Álvaro Moreyra diria em suas memórias:
Todasas noites,unslapazessejuntavam porfim na Praça da Caridade,em fiente daSanta
Casa,e ali se despediam,convei^sando,declamando,discutindo,pondo no ai'in everên-
cia e Êmatismos.Todas as noites e todas as estações. Naquele tempo,as estações maica-
vam principalmente sentimentos liteiáiios, apesai'do fiio dejullio e do calor dejanei
ro.Sete rapazes.[...] Cada um com oseujeito. Nenlium influía em nenhum.^^"^

'^®Totta, Mário. Ohrns. Porto Alegre: Selbach, 1952. v.2. p.828.


ifiOMazeron, Gaston Hasslocher. Reminiscmcins de Porto Alegrr. Porto Alegre: Selbach, 1943. p.92.
161 Porto Alegre, Achylles, História popular, p.180-1.
Máscara. Porto Alegre, Globo, número comemorativo do Centenário da Independência do
Brasil. 1822/1922. p.95.
>63 Moreyra, Álvaro. As amargas... não. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1989. p.41.

299
o gmpo dos sete era constituído por Álvaro Moreyra, Felipe de Oliveira,
Homero Prates, Eduardo Guimarães, Francisco Barreto, Antônio Baneto e
Cai-los Azevedo, expoentes da jeunesse dorée que encontravam guarida para a
sua boêmia literária na pequena praça da Caridade,em frente à Santa Casa de
Misericórdia, na atual praça Dom Feliciano.
Mas nem só os "Sete" a freqüentavam. Athos Damasceno Fen eira a evoca
numa poesia, relembrando as suas fontes de inspiração:

Rodenbach está comigo sob as ái-vores tranqüilas.


(Quem diria?!... Há tantos anos separados,afastados...)."^

Havia também a Praça da Harmonia, dos poetas, dos enamorados, dos


suicidas. Aquele lugar — onde antes estivera a forca — fora dado um nome
de paz e amor e, como na distante Paris, o local da lúgubre guilhotina cede
ra espaço à Place de Ia Concorde. A Praça da Harmonia teria sido local de
festas no final do século passado:"Era o parque dos velhos e dosjovens. Ti
nha rinha de gaios, rinque de patinação, baile e um belo chafariz bem no
meio da praça".'®'
Além disso, era também o local de encontros amorosos, com os casais
abrigando-se ã sombra de suas ái-vores e arbustos.... Nela se reuniam também
osjovens literatos, em discussões intennináveis ou a declamar seus versos. Da
masceno Feireira a ela se refere como um espaço de encontro privilegiado:
Jaidim dos poetas e dos munorados,dos seresteiros e dos solitários,à sombra de suas
ái-vores se cantai-am os mais lindos poemas da cidade;de amui-ada de pedi-a que dava
para o rio,muitas promessasforam feitas, enti e cochichos e beijos suspirosos; pelas
suas alamedas,altas horas da noite, passai-Eim os boêmios e os vagabundos.'®®

Da prosa ao verso, é ainda Damasceno Fen eira que a celebra mais uma
vez, evocando os poetas e escritores que a freqüentavam:

Ela foi ojardim dos poetas provincianos


— a velha Praça da Harmonia,
— rodeada de frades de pedra,alumiada
de lampiões a gás, debaixo das paineiras,
com estátuas de louça à beira das aléias

'®''Ferreira, op.cit., p.51.


'®®Sanhudo, op.cit., p.262.
166Pei reira, Athos Damasceno. Imagens sentimentais da cidade. Porto Alegre: Globo, 1940. p.31.

300
e b^cos,sob a fi onde amorosa das tílias...
O Álvaro, o Filipe,o Dionélio,o Eduardo,
o Wamosy,o De Souza...andaimn por ali...
E quando o luai" tecia, enti e a poeira do esguicho
e a quietude do sonho,a renda dos reflexos,
eles liam Samain,
Rodenbach,
Verlaine..."''

Para Donaldo Schüller,'®® os intelectuais como que haviam "invadido a


cidade": havia vários grupos e de várias subgerações que se entrecruzavam e
intercambiavam, como osjá citados da Praça da Misericórdia e Caiidade e da
Praça da Harmonia, assim como o da Livraria do Globo, do Correio do Povo, do
Jornal da Manhã, da Escola Militar, etc.
Alguns deles (ou talvez muitos...) foram boêmios, e são as recordações
de Alcides Gonzaga que nos traçam um perfil de tais literatos:
As pesadas libações não custavam muito. Um ou dois martelos de puríssima cani-
nha, os de 'lambe-sola' ingeridos no botequim de Damiani e Mai chetti, com en
trada pela praça da Alfândega e saída pela Rua da Ladeira, [...] bastavam para
perturbar muitos dos nossos notámbulos. Quem não ingerisse qualquer bebi
da alcoólica, ou não aspirasse um lenço ensopado em éter ou uma 'prise', não
seria o preferido das musas. Enti e os boêmios que encontrei na minha adoles
cência, lembro-me de quatio com quem convivi assiduamente: Zeferino Bra
sil, Pedro Velho, Otávio Domelles e Maicelo Gama.'®®

Resgatando a vida dajuventude literáiia do início do século, Damasceno


Feii eira resume que,vivendo em Poito Alegre ou dela se ausentando por tem
poradas para centros maiores, eles "agitaram bares e restaui~antes de memorá
veis noites boêmias".'™
Dessa geração, dizia Vivaldo Coaracy em suas memórias:

Moços todos, nem é preciso dizer. Muitos ainda cursando escolas superiores. Vida
mais ou menos boêmia. Embriaguez de intelectualismo.'^'

'^'Ferreira, Poemas, p.31.


'®®Schüller, Donaldo. Eduardo Guimaraens.Porto Alegre:Instítuto Estadual do Livro, 1990. p.27.
Gonzaga, op.cit., p.82.
""Ferreira, Imagens, p.l27.
'" Coaracy, op.cit., p.60.

301
É interessante notar a associação memorialística entre a bebida e a vida
literária. Aiinando Silveira, em suas memórias, relata que sua geração, no iní
cio do século, tinha "sede literâria" e que o consumo do álcool em excesso,
coivfigui-ando a bebedeii^a crônica, era uma espécie de estado de espírito que
assinalava a vida intelectual e mobilizava a inspiração: "o entusiasmo está no
fundo das taças".
Baudelaire, com a sua ode ao vinho, parecia estar no centro do que cha
mou "o espírito de uma geração".
Aimando Silveira chega a dizer que Álvaro Moreira, na falta de haxixe,
que,como seria de esperar, não era encontrado em Porto Alegre, acabou por
contentar-se com o celebénimo absinto, o que lhe valeu violenta indisposi
ção e vômitos..."^
Nem todos eram boêmios, por certo, assim como nem todos se torna
ram conhecidos e famosos, da mesma fonna que nem todos tomaram Porto
Alegre como inspiração, mas sua presença marca um certo clima cultural
para a cidade.
Nas mas ou nas tavemas, nas livrarias e nosjornais, nas praças ou nos sa
lões literârios do clube Jocotó, um conjunto de moços sucedia-se à geração do
velho Achylles,de cujo quintal os estudantes travessos roubavam galinhas,como
nos conta Annando Silveira, pregando peças à veneravel figura do cronista...'"''
Espectadores piiVilegiados da urbe,eles viveram e sentiram a Poito Alegre
de então.
Pensando no caso francês, Anne Cauquelin nos lembra que Paris não é o
que é hoje só pelos trabalhos de Haussmann, mas também pelos romances de
Zola, Balzac e Maupassant, constmtores urbanistas, a seu modo,de um imagi
nário urbano.'''^
Do sisudo e respeitado Achylles à rapaziada boêmia da noitadas poéticas,
guardadas as devidas diferenças de época, estilo e feeling, pode-se dizer que
Porto Alegre foi, também em parte, obra desses escritores, que traduziram, a
seu modo, a cidade.
Indo do ato singular da escritura à proposta social da leitura, num vai
vém entre produção e recepção,é pela mediação do discurso sobre a urbe que
encontramos outra fonna de chegar até a cidade.

"^Silveira, Armando. A velha Porto Alegre (memorial do bacharelJoão Braz). Porto Alegre: Globo,
1940. p.l6.
'"Ibidem, p.47.
"''Ibidem, p.106-7.
Caiiquelin, Anne.£,«««'dephilosophie urhaine. Paris: PUF, 1982. p.31-2.

302
SAUDOSISMO E PASSEISMO; A CIDADE A SOMBRA DA ALDEIA

Uma das foiTnas literárias de "dizer a cidade" seria dada por aqueles dis
cursos que identificam o urbano pela sua alteridade. Não se ti-ata de,com isso,
estabelecer uma polaridade radical na oposição campo verstis cidade, mas de
decompor as mediações que se estabelecem nessa representação.
Há, no caso, uma peicepção espacial precisa que se insinua, mesmo de
foiTna não-explícita, pois um texto que fala da cidade não precisa falar direta
mente do campo. O que se configura é que, mesmo ao falar do urbano, certos
textos estabelecem o mral como o paradigma do bem viver. Ora é a cidade
pequena, quase aldeia, que se aproxima do campo nas suas socialidades sim
ples, ora são as persistências dos "hábitos lá de fora" como contraponto de um
"ethos urbano" criticado. De uma ou de outi-a foima, a identidade se reconhe
ce na alteridade. Dizer o outro — no caso, a cidade — é afiimai- a identidade
positiva do mral. Ou,invertendo os teimos, a explicitação do reconhecimen
to da vida citadina e, conseqüentemente, do seu padráo identitáiio são dados
pela contemplação da alteridade. O campo é tudo o que a cidade não é e vice-
versa. E, na coirelação que se estabelece, o mral sai ganhando.
Ou ainda, em teimos mais simples e precisos, o campo se aproxima da
quela cidade pequena e tranqüila do passado,com o que a percepção espaço-
temporal se completa.
Chamamos a esse tipo de discurso de "saudosista" ou "passeísta", o que
encaminha a compreensão da nairativa pela reinscrição do espaço no tempo.
Há, na visualização do urbano, uma reorientação da relação passado/
presente, o que faz com que a carga de positividade aponte em direção àquilo
que ficou para trás. Assim, as apreciações que se estabelecem sobre o presente
apontam que o passado era melhor do que a situação vivida no mornento. Es
tabelece-se não apenas uma evocação positiva daquilo "quejá foi", como se la
menta que "as boas coisas desapaieceram". Mais do que isso, constrói-se um
tipo de visão sobre o urbano que coloca a "mudança" sob suspeita, tal como o
futuro, que não assegura certezas. E o passado que organiza a compreensão
do mundo, e é por esse viés que advêm o conforto, a certeza e os valores que
podem dar significação ao mundo.
Nessa medida, a cidade acanhada e pacata dos tempos de antanho con
figura-se como a "cidade ideal", e o lamento se articula em tomo do processo
de mudança. Os signos se alteram, e o que se consagra como o horizonte de
chegada na representação da cidade não é o mito da metrópole moderna,que
aponta para o futuro, mas algo que se volta para as origens. A possibilidade de
leconstituir a sociedade antiga é um sonho que se inscreve no tempo e que as

303
mudanças oconidas no presente tomam impraticável. A cidade transfomiou-
se, mudou de aspecto, e, neste sentido, não se reconhecem mais os lugares. Se
tudo mudou, toma-se difícil encontrar no espaço da cidade transformada a
cidade que existiu num dia e fmstram-se as expectativas de que a sensibilida
de do olhar possa captar os traços do antigo no espaço do novo. Se a sensibili
dade não mais consegue resgatar o registro da positividade perdida do urba
no, entra em cena o narrador, que faz um apelo à memória e consegue trazer
para o presente, pela nanativa, aquilo que está distante no tempo. No caso
dos discui^os urbanos,essa visão literâria sobre a cidade encontra a sua expressão
mais plena nas crônicas e textos de cunho memorialístico.
A figura de Achylles Porto Alegre (1848-1926), consagrado cronista da
cidade,se impõe desde logo, como elemento central no nosso rorpus de análise.
Poeta pamasiano de menor monta,^'' é na crônica que melhor se revela o seu
talento, através de uma extensa obra, que inclui poesias, crônicas, romances,
contos e biogi-afias,^"^® Achylles é,por vezes, também identificado como um "his
toriador",sem dúvida pelos seus textos de cunho memorialístico sobre a cidade
em que viveu ou, ainda, pelas biogi'afias de homens ilustres.^ Este homem cul
to,jornalista, professor e funcionário público, não precisou de um curso supe
rior. Segundo Costa Fituico, depois de estudos primáiios na sua cidade natal —
Rio Grande —,cursou o Colégio Gomes,em Poito Alegre, e a Escola Militar^®®.
Quando moneu,em 1926, o necrológio feito na imprensa rememorava
a profícua atividade de cronista do "venerado ancião", que deixava uma vasta
obra dedicada à "revivescência do passado",reconstituindo "os faustos de tempos
anteriores".
Entretanto, se o epíteto de "cronista" de Porto Alegre deveria agradar ao
velho Achylles, a conotação de saudosista parecia incomodá-lo um pouco.
E eu,apesar de amoroso por tudo o que pertence ao passado,sinto um gozo imen
so ao ver a mudança material, o aspecto novo, o gosto estético que a cidade apre
senta. Porque,ai de mim! O meu tiadicionalismo não foi compreendido, e mui-

aponta: Benjamin, Walter. O narrador. In: Benjamin, Walter. Obras escolhidas. Magia e téc
nica, arte epolítica. São Paulo: Brasiliense, 1986.
''"^Santos, Volnyr. Apontamentos de literatura gaúcha. Porto Alegre: Sagra/Edipucrgs, 1990. p.l5.
^'®Villas-Bôas, Pedro Leite. Dicionário bibliográfico gaúcho. Porto Alegre: EST, 1991. p.l91.
Martins, Ari. Escritores do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS/Instituto Estadual do Livro,
1978. p.453.
180 Franco, op.cit., p.332.
A Noite. Porto Alegre, 22 mar. 1926.

304
tos viram nalguma coisa que escrevi neste gênero, de colorido pintm esco, cadu-
quice de velho lamuriento,saturado de bflis rotineii-a. O meu amor à tradição as
senta em alguns usos e costumes de antanho, em certas festas de cunho populai'
que a civilização relegou, nos folguedos íntimos de um sabor tão fi esco e ingênuo
que desapareceram nos nossosjogos de salão e danças antigas que se sumimm.E
claro que, quando eu evoco isto, não desejo reviver esses costumes da sociedade
primitiva muito diversa em cultui^a e em hábitos e maneims sociais da de hoje. [...]
E se algumas vezes aproveitei o ensejo para exercer o meu direito de crítica soci
al, foi mais como um obseivador saudoso da simplicidade antiga que como um
duro censor dos costumes que afinal estão de haniionia com o espírito do tempo
e as imposições da moda.Enti etanto, pai ece, não foi assim entendido por alguns,
que mais realistas que os reis entendem andai'vendo ou descobrindo em tudo o
que os outi os escrevem intenções ocultas pondo,afinal, á mosti'a as suas própri
as, envenenadas intenções.

A leitura insinua a existência de acusações ao velho cronista, que se de


fende e postula o direito de ter saudades do tempo quejá vivera:

Quer queiram,quer não queixam,eu revivo, porque recordai'é viver, ti echos e lan
ces de vidajá vivida. Recordar é retomar ao que se foi, é voltar ao passado e ficai'
nele por instantes, vendo com os olhos da memória as coisas como eram então,
emborajá não existam ou estejam ti'ansformadas. [...] E verdade que o progiesso,
na sua faina tiansformadora, muda o aspecto aos seres e às coisas, mas eu, quan
do quero,vejo tudo como era ao tempo em que moços,com a alma e o coração chei
os de poesia, olhavam a vida através de uma opala risonha.^®^

A postura parece proustiana: através da evocação pela memória, des-


perta-se a sensação passada, reinscrevendo a temporalidade de uma experi
ência vivida. O cronista é capaz de olhar a cidade transformada e ver, por
detrás das fachadas novas, as velhas casas que um dia lá estiveram. Essa capa
cidade de reencontrar um "tempo perdido" e recuperâ-lo pela lembrança,
tem, sem dúvida, um sabor nostálgico, sem que, necessariamente, o naiTa-
dor deplore a mudança havida. No caso, Achylles se defende e diz amar a
sua cidade, que remoça e se engalana. Apesar de tais declaiTições, o saudosis
mo da Porto Alegre de outrora se insinua nas crônicas, que retomam a pos
tura natureza versm cultura.

*®-Porto Alegre, Achylles. Passeio matinal. In: Noites de luar(crônicas). Porto Alegre: Globo, 1923.
p.52-3.
183 Porto Alegre, Achylles. Serões de inverno. Porto Alegre: Selbach, 1923. p.7-8.

305
Na crônica"O Natal",de 1885,Achylles Porto Alegre lamenta que as festas
do Menino Deus perdessem, de ano a ano, os atrativos de outros tempos... A
linha de bondes (puxados a buno, na época) havia feito desapaiecer o mágico
encanto das romarias naquele aiTabalde, destniindo o isolamento do local, no
qual a alma popular ia expandir-se. O velho arrabalde transformara-se numa
aglomeração de gente com os mesmos hábitos e costumes "da cidade"."^
Ao falar dessa transfonnação, do texto aponta nitidamente para o passa
do e para um momento em que a paisagem e as socialidades eram ainda, nas
franjas do urbano, a própria imagem do rural: "a civilização baniu das festas o
tom encantador da simplicidade".
Há, sem dúvida, uma temporalidade da escrittira que nos faz retornar
àquela característica — antes mencionada — de que, para o cronista que ava
liza a mudaiiça, o tempo presente é quase sempre a alteração do espaço e dos
costumes. E progresso, enfim. Mesmo a Porto Alegre acanhada, que recém
tomava coipo como cidade e recebia os primeiros serviços urbanos — como o
malsinado bonde —,parecia avassaladora na sua destmição dos vestígios do
passado. Assim, o cronista reporta-se a um demi-monde c]yie ostenta fatisto e im-
pudícia, refere-se a uma "multidão" e a "ondas lustrosas de seda, que expõem
ao olhar ávido da curiosidade pública a brancura do máimore do colo", etc.,
etc. Na evocação de um passado bucólico, em tudo mais ptiro e atraente que
o "tempo do agora", a Porto Alegre que muda é lamentada pelo cronista:
O Menino Deusjá não é mais um arrabalde, está denüo da cidade, a feição cam-
pesü e e pitoresca desapareceu com os hábitos da simplicidade.'®^
f, «

O que os olhos vêem na cidade que se transforma é a que já passou, é


uma cidade que se identifica pela sua alteridade, num "elhos rural" que desa
pareceu.
Com o pseudônimo de Carnioli, que utilizava para escrever no Correio do
Povo, Achylles Porto Alegre queixava-se, com freqüência, dos costumes e tra
ços da cidade que não existiam mais. O costume de ir ao "prado" para ver os
cavalos correrem, hábito amplamente difundido no passado — Poito Alegre
tivera os prados Rio-grandense, Navegantes, Boa Vista e Independência, fre
qüentados durante a Revolução Federalista —,parecia ter findado com o sé
culo, o que o nosso cronistíi sentia como "uma amarga desilusão".'"''

'®''Porto Alegre, Achylles. O Natal./ornai do Comércio. Porto Alegre, Pjan. 1885.


Ibidem.
Ibidem.
Carnioli. Coisas e lousas. Correio do Povo. Porto Alegre, 19 dez. 1899.

306
Nas suas crônicas da década de 20, na coluna "Reminiscências", do Cor
reio do Povo, e que se reportavam às décadas de 70, 80 e 90 do século passado
— portanto, ao período de escritura das crônicas antes citadas —,Achylles
Porto Alegre retoma o mesmo tom nostálgico de evocação positiva do passa
do. O progresso é cmel e destrói as tradições, lamenta nosso cronista, a reme-
moi-ai- o teatro Apoio de suajuventude":

Volvendo, de vez em vez, os olhos da memória para esses tempos [...] vemos en
tão que o progresso, no fim de contas, não é senão uma esponja, apagando pági
nas e páginas da história, com a desti mção e o desaparecimento de sítios que,fo
tografando aspectos, deviam conseiAar-se intactos e inteiros no seu magnífico bri
lho tradicional.'""

Junto à percepção espacial e temporal — segundo a qual o passado era


melhor, as boas coisas desapareciam, tudo mudara, etc. —,insinua-se um tom
moial de condenação: ora o cinema, os seios nus, escapando pelo decote e as
pemas das bailarinas desnudas até acima dojoelho, cmzando a Rua da Praia,
com a sem-cerimônia de café cantante,'®® ora é a constatação de que a cidade
mudara e não tinha mais, como outrora, "uns ares de roça".'®"
Ao recuperar, pela evocação, os tempos passados, o cronista reportava-se
a uma época mais saudável e pura, quando não se conheciam

os cinemas, esses focos de peiversão de costumes, e nem os passeios à Rua dos


Andradas, até um pedaço da noite, para exibição gratuita de pemas e seios.'®'

Verdadeira fixação acusatória parece ter impregnado a naiTativa de Por


to Alegre, tanto nas "fitas licenciosas dos cinemas" quanto nas "danças licenci-
osas dos cabarés".'®- São claramente os elementos figurativos do pecado, das
imagens da "cidade-vício" e aquelas trazidas pela modernidade urbana,segun
do o olhar do cronista.
Em especial, parece terem sido as mulheres o alvo maior da critica: per
sonagens presentes da cena urbana, saindo do recato do lar para as mas,seri
am as vítimas prediletas da nova cidade. Saindo à noite, expunham-se à toda
sorte de perigos, algo inconcebível em outros tempos.'®® Da mesma forma.

Carnioli. O teatro Apoio. Cotreio do Povo. Porto Alegre, 26 maio 1920.


Porto Alegre, Achylles. A chácara dosTelles. Cormo do Povo. Porto alegre, 11 jun. 1922.
Porto Alegre, Achylles. O liceu D Afonso. Correio do Povo. Porto alegre, 28jun. 1922.
'®' Ibidem.
'®-Porto Alegre, Achylles. Os exames escolares. In: Porto Alegre, Achylles.Paisagens mortas, p.72.
'®'Porto Alegre, Achylles. Facilidades do progresso. In: Porto Alegre, Achylles. Noites de luar.

$07
Achylles Porto Alegre criticaria as "loucuras da moda", comentando a pouca
vergonha do vestuário feminino,"'^ da mesma foiTna que,ligando o gosto pelo
luxo com a etema preocupação do belo sexo com a apaiência,sentenciava que
"a beleza da mulher ei-a quase sempre fatal".
Uma análise "sexuada" do discurso de Achylles Poito Alegre nos levaria
pam caminhos bem interessantes de serem desenvolvidos. O que,contudo,im
porta resgatar é a figura da mulher como metáfora da cidade-vício, agente e
vítima de um contexto urbano modenio. A mulher, em si, exemplificaria as
potencialidades deletérias do progresso,como pei"sonagem central de um novo
cenário citadino.
A cidade-virtude, por seu turno, se enceirava numa bucólica "paisagem
moita" da velha Porto Alegre, rtisüca, pacata, quase aldeia no seu ati-aso e na sua
simplicidade, mas que vivera feliz no meio de sua pequenez.'^'* Seus peisonagens
típicos são as moças ingênuas,infantilizadas, as famílias respeitáveis, com homens
que relembravam os feitos da Gueira do Pai-aguai ou de 35,ao entardecer, e suas
mulheres devotas, que iam, cedo, de manülha negiti à missa.
O fato de ser, então, uma espécie de "povoação da roça",sem hidráulica,
iluminação, bondes, esgotos ou telégi-afo, parece não destmir a imagem bu
cólica da "cidade ideal", que o progresso destmíra.
Os conti-astes revelados pelo olhar literario sobre o urbano são, pois,aque
les ti-azidos pelo confronto das imagens do passado com as do presente. De
um lado, a vida em família, os hábitos morigerados, o recolhimento na intimi
dade do lai", os serões de leitura, trabalho e estudo, configurando uma popu
lação feliz, com predomínio da vida privada sobre a pública. O espaço priva
do é revalorizado — porque se constitui no imaginário saudosista — como o
reduto das socialidades simples de outrora e do recato das atitudes em oposi
ção ao espaço público, onde se evidenciam as mazelas da sociedade moderna:

Ávida da família era dentro das quatio paredes onde vivia, não como agora a vida
na rua,até um pedaço da noite,com todas as suas tentações.'"^

O interesse da visão é que os espaços valorizados sãojustamente aqueles


que se constituem na alteiidade do urbano: de um lado, o reduto privado e,
de outro, o exti"a-urbano, visualizado no campo. Voltamos à idéia de que, no
olhar saudosista, a cidade se define pela sua alteridade:

Porto Alegre, Achylles. As loucuras da moda. In: Porto Alegre, Achylles. Serões de inverno.
Porto Alegre, Achylles. Amor que mata. In: Porto Alegre, Achylles. Noites de luar.
Porto Alegre, Achylles. Os exames escolares, p.69.
'®'Porto Alegre, Achylles. Ontem e hoje. In: Porto Alegre, Achylles. Serões de inverno, p.202.

308
Antigamente, o nosso modo de vidà era outro, amava-se mais a quietude do lai" e
o campo com seus aspectos ridentes. O campo era uma válvula da cidade."®

É esta imagem do campo, voltada para a positividade do mral, que de-


teirnina a horizontalidade das vistas. O olhar se volta para o passado e para a
paisagem "lá de foia", mesmo dentro da cidade, num trabalho de recupeiar,
pelo imagináiio, um tempo e um espaço precisos. Por vezes, ao voltar de um
passeio pelos air edores da cidade e lamentando não poder viver lá foia, o cro
nista dizia ser possível recupeiar e reconstituir, pela imaginação, as sensações,
as lembianças e os pedaços da paisagem que haviam ficado na retina. Evocan
do esse processo mental, Achylles Porto Alegre nos diz: > •

Parece, às vezes, que se está diante de umajanela aberta, para o campo,vendo o


carreiro sinuoso que corta o seiTO, beijado pelo sol e vem mon er entr e as velhas
áraores à beira da estrada geral. Há aspectos ridentes da paisagem que não se apa
gam facilmente de nossa imaginação.'®®

No processo evocativo traduzido em texto, as imagens reconentes que se


associam à cidade desejada são aquelas que buscam o bucólico do loiral. O
cronista se volta para os an abaldes, que, no final do século, tinham ainda um
ar campestre. Em tais espaços, respirava-se o "ar puro da natureza sã, longe do
hálito mefítico da cidade", mas mesmo neles a "ingenuidade do passado" ce
dera lugar- ao "modernismo".
A visão é bipolar, desdobrando-se no espaço e no tempo através de uma
oposição moral e estética, em que tudo é pretexto pai-a recompor — com as
imagens evocadas pela memória—a cidade ti-anqúila do outr o século,da Porto
Alegre que "mais parecia uma aldeia que uma cidade [...] com sua simplici
dade pastoril",-"' onde todos se conheciam, dormiam cedo,iam ã missa,feste
javam os santos e brincavam ingenuamente.-"-
Por oposição, há a condenação implícita dos paradigmas da metrópole,
com o seu agito, a multidão, as ati-açóes da rua, o luxo, a ostentação, o pi-azer

'®®Ibidem, p.201.
'®®Ibidein, p.202.
Porto Alegre, Achylles. Os pic-nics. In: Porto Alegre, Achylles. Noutros tempos, p.3.
Porto Alegre, Achylles. O grande dia. In: Porto Alegre, Achylles. Paisagens mortas.
Como, por exemplo, aparece nas crônicas "Era uma vez", "Igreja Metodista", "O ator Mot-
ta","Corpus Christi" e "O grande dia", de Paisagens mortasi ou"O Marchetti","O Masque" e "Os
pic-nics", de Noutros tempos; ou "Da minha janela", "As caixeiras dos cafés","O jogos de rua" e
"Os chafarizes", de A somI>ra das árvores, ou "Ontem e hoje", de Serões de inverno.

309
fácil e as novidades inconseqüentes, que iam do gi-amofone ao cinema, plis
sando pelo footing e ao cabaré, tomando o povo apreensivo e neivoso.
O balanço entre as temporalidades apresentava críticas ao progresso,cuja
"vassoui-a" vania os vestígios de uma era de inocência, constituída em mito.
A emei-gência glamourizada do ontem no hoje é üazida pela lembiança do
cionista, que reinscreve uma nova tempoialidade. O que a lembiança do aonista
tiaz de volta, reinscievendo uma nova tempoialidade, é a emeigência glamouri»"
da do ontem no hoje. O próprio Achylles diz que ele não pretende que tudo aquilo
volte, entendendo que a passeidade está, para sempre, perdida na tempoialidade
in eveisível de algo que passou. Mas, pela força da escritura, a nanativa reinstala o
passado de uma cidade-viitude com as suas "festividades da roça", destniída pela
capital que progiide e se embeleza, mas que vai coiTompendo os costumes:
Às vezes eu penso que,à medida que Porto Alegre avança materialmente,vai pei*
dendo muito do seu passado artístico e intelectual.-"^

A Porto Alegie de onde escrevia Achylles, a cidade onde Montauiy se es


forçava para atender às demandas de sei-viços urbanos e onde já tinham sido
implantadas algumas modificações, esta capital em mudança era, pois, o tema
de urna construção idealizada, que norteava o discurso do cronista.
À primeira vista, Achylles Porto Alegre parece ser um crítico dos "mo-
deniismos" do novo ''éthos urbano", como se viu.
A questão social, contudo, não apaiece e, se é mencionada, como o caso
da pobreza que anda a mendigai- nas mas, é atribuída ao progresso em si ou à
degeneração dos costumes. A descrição dos afamados becos — do Oitavo, do
Céu-"^ — compaiece nas crônicas de Porto Alegre, como antros de indivíduos
perigosos e fonte de muitos crimes, mas tais "espaços malditos" da cidade não
são relacionados com qualquer problema social, e sim decoirentes do que se
poderia chamai- a própria natureza humana, que produz também os maus ins
tintos e os compoi-tamentos desviantes...
Por vezes, a crítica do cronista tem como alvo um dos elementos do urba
no, como a cadeia de Porto Alegre, chamdo por ele de "moderna Bastilha".
Lamenta que tenha sido levantadajustamente naquele sítio: à entrada da ci
dade,sendo, pois,a primeira coisa a ser vista pelos passageiros dos navios, dan
do-lhes de chegada uma ipá impressão...""»

-"'Porto Alegre, Achylles. O ator Motta. In: Porto Alegre, Achylles. Paisagens mortas, p.lO.
2"''Porto Alegre! Achylles. O rei de ouros. In: Porto Alegre, Achylles. Paisagens mortas, p.24-8.
'"'Porto Alegre! Achylles. Moderna Bastilha. (Àrtreio do Povo. Porto Alegre,5 maio 1922.

310
o que, porém, chama a atenção na leitura do urbano feita por Achylles
Porto Alegre é a sua postura deJlãneuráa.cidade, papel este que ele parece ter
muito bem compreendido-"''. A pé, todas as manhãs, percorria a cidade, amo
roso e atento,a exercitar o seu poder de olhar,a enxergar,no presente,o passado
que se fora. Assim, ele aponta os prédios que um dia existiram e que teriam
dado beleza e vida à urbe: o Café Colombo e a casa de bebidas Marchetti, lo
cais de encontro de intelectuais e políticos, o Hotel Siglo, "simpático e con
corrido", os velhos chafarizes, cuja retirada "mutilara a cidade".-"^
Na cidade transformada,o cronista, no seu passeio,"vê" o que não é mais
possível ser visto — através de um esforço de lembrança, pelos olhos do imagi
nário — e se sente incumbido da missão de recuperar a memória da cidade,
citando prédiosjá desaparecidos, ressuscitando seus velhos moradores, com
suas alcunhas;

Eu, por assim dizer, vivo da rua. Não porque não tenha amor ao meu ninho, mas
porque a rua exerce sobre os meus nervos uma curiosidade singular.'^®

Nesse perambular atento,junto com as lembranças saudosas e as críticas


às transformações, há afirmações que atenuam o "passadismo da postura": o
cronista considera que "a sociedade moderna tem os seus usos criados pela ci
vilização", que as ruas regurgitam de gente, que a sua cidade remoçava,se en-
galanava e brilhava com os "prodígios de transformação":

Casas bonitas e confortáveis onde havia cortíços e casebres. Palacetes onde se es


tendiam charcos. Ruas povoadas,de casaria branca,onde não há muito eram ma
taria e banhados.E eu,apesar de amoroso por tudo que pertence ao passado,sinto
um gozo imenso ao ver a mudança material, o aspecto novo,o gosto estéüco que
a cidade apresenta.®""

Estaria o cronista, comojá foi dito, minimizando o saudosismo por pos


síveis acusações de retrógrado que tenha sofrido pelas gerações mais novas?
Do que, contudo, não se pode duvidar é do seu amor pela cidade, que ele en
xerga pela renovada imagem alegórica da mulher que,de menina,fez-se moça,
cada vez mais cheia de atrações:

'■""'Ver, a propósito, as crônicas "Facilidades perigosas" e "Passeio matinal, de Noites de luar, e "Da
minha janela", de A sombra das árvores.
ao< Porto Alegre, Achylles. Os chafarizes. In: Porto Alegre, Achylles. À sombra das árvores, p.60.
•iosporto Alegre, Achylles. Facilidades perigosas. In: Porto Alegre, Achylles. Noites de luar, p.8I.
Porto Alegre, Achylles, Passeio matinal, p.52.

311
Poi to Alegre progi ide e fulgura. Vi-a quase mocinha,simples e ingênua. Vejo-a,
hoje, moça,com cultura literária e educação artística, e bela,singularmente bela.
Como não hei de bater as palavi as, enlevado e sorridente? Como não hei de sair
pai^a vê-la todos os dias, se além de ser por temperamento rueiro, amo-a e nunca
me canso de revê-la?-'"

Se antes a mulher encarnava, no olhar severo do cronista, a perdição da


cidade-modema, aqui, travestida de "boa moça", a Porto AJegre-mulher da vi
são retrospectiva confere à cidade uma evolução harmônica e bem comporta
da... Poito Alegre era, de certa maneira, sua "filha", que de menina fizera-se
adolescente e desabrochava como "mulher feita", sempre linda a seus olhos.
A postura de Achylles Porto Alegre teria feito "escola"? Porque há tanto
gerações como escolas estéticas que se sucedem nas letras rio-grandenses. A
vertente parnasiana teria também os nomes de Damasceno Vieira e Fontoura
Xavier,sem que, contudo, tais nomes tivessem se voltado para o urbano como
Achylles Porto Alegre. Mesmo a nova geração simbolista, nascida entre a déca
da de 80 e o início do século, não iria caracterizar-se por recorrer à temática
da cidade. E, entre esse gmpo de "boêmios" de uma nova geração, seu olhar
sobre o mundo não deveria ser o mesmo do velho Achylles....
Seguidores, ele os teve, sem dúvida alguma, admiradores do seu estilo e
da sua produção, da qual às vezes procuravam se aproximar, em crônicas evo-
cativas de uma Porto Alegre de outrora, na qual se contrastavam os encantos
passados com os novos hábitos que se impunham,oriundos de "outras civiliza
ções". Este seria o teor da crônica de um certo "Molière", que,sem fazerjus à
alcunha, tecia comentários sobre a decadência do presépio e da missa do galo,
de origem lusitana, ante a preferência crescente pela árvore de Natal do Nor
te europeu.E,nessas considerações sobre o "Natal de hoje",quejá não era como
o de antigamente,tecia comentários elogiosos ao "elegante velho Camioli"...-"
O foco do saudosismo de Molière exteiioriza-se no confronto Pinheirinho
de Natal 8c Papai Noel verstus MeninoJesus & Presépio & Missa do Galo, propici
ado pelos festejos natalinos na cidade e que induz o cronista a tecer considera
ções sobre o avanço das tradições culturais nórdicas, sem raízes na teiva, sobre
os costumes religiosos da herança lusitana. Mesmo admitindo a assimilação ine
vitável que se dá pela imigi-ação, há um tom saudosista, que lamenta a perda de
uma ceita religiosidade e msticidade dos costumes antigos, cujos encantos se
desfaziam diante da sedução das novidades que se impunham...

Ibidem, p.55.
Molière. Semanário. Correio do Povo. 29 dez. 1895.

312
Ou, por vezes, é a crônica de um Tai taiin que vem lamentar a falta de
acontecimentos na cidade em compai-ação com o passado:"Bem mais diverti
da e alegre em esta teim há vinte anos passados".-''
Tudo, porém, muito superficial e leve, sem evidenciar a proliferação de
crônicas do gênero. Havia na elite letiada da virada do século outros autores,
que tinham uma postura voltada pai^a a Porto Alegre que desaparecia diante
das tímidas — embora decisivas paia os quais as vivenciava — tiansfonnações.
Sebastião Leão, o médico-cronista, que sob a alcunha de Comja Filho, escrevia
no Correio do Povo as colunas "Efemérides rio-giandenses" e "Excavações históri-
cas",-'' não é, contudo, o melhor exemplo do que poderia ser classificado com,
um olhar liteiáiio sobre a cidade. E o cientista, o médico tiavestido em historia
dor, que recompõe os dados do passado e os aproxima o seu cotidiano de tiaba-
Iho, como médico da Cadeia de Porto Alegie, às recentes teorias da antiopolo-
gia criminal.-'^ Entretanto, é também, a seu modo, um leitor da cidade, que
procura vê-la onde ela não mais existe: ele a busca na história, na cidade que
passou, nos fatos esquecidos, nos documentos dos ai-quivos ou naquilo que ou
viu contar e que quer deixai* registi*ado.-''
Nota-se um saudosismo episódico pode comparecer em crônicas pon
tuais, mesmo em revistas "modernas", como a Kodak, surgidas na década de
10. As vezes são evocações e suspiros sobre recordações de uma"hora do chá",
perdida no passado mas reencontrada intacta no presente,"'® ora são consi
derações sobre o sentido mais simples e puro das festividades do passado —
como o Natal"''^ ou o Cai-naval"'® — tinham pureza e simplicidade presentes
também na saudosa música portuguesa."'® Chevalier de Ia Lune dá bem o
tom de evocação trazida pela crônica sobre as socialidades antigas que se
perdem: "E que a vida é uma recordação: a cada pensamento despeitado,
um outrojá se irrompe. O presente não se fixa, — resvala,só o passado exis-

-'-Tartarin. Semanário. Correio do Povo. Porto Alegre, 29 dez. 1895.


Cf. Franco, op.cit.. Porto Alegre, Achylles. Homens ilustres. Porto Alegre: Tipografia do Cen
tro, 1916. p.134-5. Villas-Bôas, op.cit., 1991.
-'"'Ver, a respeito; Pesavento, Sandra J. Imagens da violência: o discurso críminalista na Porto
Alegre do fim do século Revista Humanas,Porto Alegre, UFRGS,v.l6, n.2,jul.-dez. 1993. p.l09-
131.
-'^E sintomático que suas crônicas ou que seus estudos de história, reunidos estes por Walter
Spalding, na obra Datas rio-grandenses(Porto Alegre: Globo, 1962),se voltem sempre para o pas
sado.
A hora do chá. Kodak. Porto Alegre, 13 dez. 1912.
-"Chevalier de Ia Lune. O Natal. Kodak. Porto Alegre, n.l4, Pjan. 1913.
-'®Chevalier de Ia Lune. Desjours qui passent. Kodak. Porto Alegre, n.l9, 22 fev. 1913.
-"Ainda. Kodak. Porto Alegre, n.26, abr. 1913.

313

\'
para, em outra crônica, afirmar, afetado no seu francesismo: "É que a
vida — c'est desjours qui passent... qui s'en vont toujours, três loin..."-^
São, entretanto, escritos banais. Raramente há uma crônica mais elabo
rada, como, por exemplo, a de uma tal "Carmem", que, numa suposta con
versa entre os três santosjuninos (Antônio,João e Pedro), numa viagem de
bonde (!), falavam dos tempos presentes e passados:

— Onde estão as crianças de hoje, ó Pedro, por onde andarão elas nesta noite tão
fiia?
— De certo, Antônio, estão aprendendo francês.
— E as moças,João,onde andarão as moças que não vão dançar, que não vão para
osjogos inocentes de prendas, entre o convívio discreto das famílias?
— Andam,certamente, pelos "cabarets" a dançar,sim, mas uma outi a dança que
não aquela nossa, uma outi a dança cheia de meneios voltejantes e de movimen
tos canalhas,de atitudes lascivas, ejogam também,ó Manoel,jogam osjogos febri-
citantes do baccaiat e da roleta, lançam-se às aventums dojabim [sic].
— Deus meu,ó Antônio,como tudo vai mudado,como tudo vai diferente!..."--^

O humor vem acompanhado de uma crítica aos costumes urbanos mo


dernos, que destroem as socialidades simples, próximas da "roça" preseivados
pelo meio mml.Esta crônica, no caso,se aproximaria daquela vertente de opor
a cidade-vício do presente à cidade-ideal-virtude do passado, embora o faça
de foraia bem humorada e inventiva.
Certos padrões de comportamento, identificados como próprios às gran
des cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo ou Buenos Aires, e entendidos
como ofensivos à moral e aos bons costumes, provocam escândalo em Porto
Alegre, que se vê ainda salvaguardada de uma decadência de costumes.''^
E ainda uma cidade não corrompida que flui de crônicas moralistas que
retratam um sentimento de indignação com o "modernismo" de hábitos. E
exemplar a esse respeito a crônica de Pedro Guahyba, que comenta o novo
costume das senhoras e senhoritas de cmzarem as pernas descontraidamente
nos salões e em público:

Lembramo-nos dessas coisas, ontem, num bonde da Força e Luz, diante de uma
cena verdadeiramente cômica.

Chevalier de Ia Lune, O Natal.


Chevalier de Ia Lune. Desjours qui passent.
-"Carmem. Santos. Kodak Porto Alegre, 9 out. 1918.
A moral. Echo do Povo. Porto Alegre, 13 dez. 1909.

314
Uma senhorita "chai mante" tomou o bonde com todo q desembai-aço.Era uma ci-i-
atura completamente "demier cri", mais do que isso,"peü olette" da cabeça aos
pés. O rosto desapai ecia debaixo de uma "maquillage" estonteante,em que o cai-
mim e os ti^aços pretos,sombreando os olhos, bordavam uma fantasia caiicatural
na máscara quase infantil da senhorita. Fazendo questão de se sentai" na éxtremi-
dade do banco,a senhorita obrigou um senhor a se afastar,a se comprimir de en-
conti o a outi o cavalheiro.E foi com um movimento rápido,seco,"viaiment peti o-
lett", que a senhorita cmzou a perna direita sobre a esquerda, mosti"ando-a dojo
elho para baixo. O senhor de idade avançada fixou os olhos atônitos na perna da
senhorita, e num movimento,que era bem um arrepio do coipo todo, manifestou
o seu espanto,a sua indignação surda por aquele desembaiaço.
Ali! Caro senhor, o vosso gesto, todos os passageiros do bonde percebeiam,como
compreenderam também a vossa indignação simples e ingênua paia os dias de
agora. A senhorita que o escandalizou é o que há de mais legitimamente "chie"
nestes tempos que con em...^'''

Mesmo escapando ao penodo que nos propusemos analisar, cabe referir


uma crônica, de 1925, de Roque Callage.Jornalista, escritor e tiadicionalista,
Callage sempre esteve voltado paia a imprensa. Escreveu, em especial, no Cor
reio do Povo e no Diário de Notícias, que jyudou a fundai". Neste último, publi
cou, duiante anos, uma crônica diái"ia — "A cidade" — na qual se assinava
simplesmente C. Callage tem seu nome ligado a obras de regionalismo, mas,a
partir da gestão de Otávio Rocha,sucessor de Montaury na prefeitura de Por
to Alegre, registra cotidianamente a crônica de transformação urbana, em
crônicas que demonstram entusiasmo com as mudanças. No caso em pauta,
foi escolhida uma crônica que apresenta um tom de lamento em face da per
da de tradição, motivada pela plena renovação da cidade. Se por vezes deixa o
seu protesto contra o que chama "o desalmado machado do progresso" — que
destrói os velhos recantos de Porto Alegre — registi"a, com um misto de amar
gura e ironia, uma censura moral pela perda das ti"adições. E compreensível
que um tradicionalista reclame, ao ver destruídas socialidades e maicas mate
riais do passado, e é por essa caracteristica que o aproximaríamos de Achylles
Porto Alegre.
Contra a cidade-vício, no qual a condenação é sobretudo mortal, tanto na
dissolução dos costumes quanto na decadência das ti"adições, Callage introduz,
como contraponto, a figura de um "gaúcho lá de fora", "perdido na cidade" e
ansioso para voltar "aos pagos", que com ele dialoga nas ruas de Porto Alegre:

Correio do Povo. Porto Alegre, 1® oiit. 1918.

315
Já não aturo bamlho,baioilho comigo só de enti evero. Esses automóveis a gi itar e
esse povaréu de gente que passa que nem ü opa de gado manso, me deixa aüa-
paiado. Ainda estes dias fui me desviá dum danado que vinha a toda, no lançan-
te da rua... Ôta amigo, coisa braba: quando dei por mim tinha me enüeverado
num bolo de moças!... Cada uma que le digo: um mino,por Deus, mal comparan
do... Muiér aqui é tudo assim como está se vendo,com a cabelama curta que pa
rece home...e bicho home,então,é aquela desgrácia:vi luna üopilha deles,tudo
parecido com muiér, bem direitinho... Se aparecesse disso lá fora, a gente tinha
que se benze prá mode do perigo... Cruzes!^^®

As imagens se reportam mais uma vez a uma cidade-ideal, uma Porto Ale
gre aldeia, anticidade parada no tempo que parecia existir no campo. Cidade
que, na visão saudosista, se identifica pela sua alteridade rural: as crianças a
brincar na loia, o "sadio patriarcalismo", os adultos infantilizados, a vida cal
ma e ordenada. Visão pasteurizada e glamouiizada do campo, num retomo
às origens mrais da história sulina, que estabelece um confronto mordaz com
a cidade-civilizada de então.
E, nesta crônica, o nan-ador-escritor Callage comenta com o "gauchão"
perdido na urbe:

— Quinca amigo,a saudade está sofrendo agora guerra de morte pelos modernos
espíritos aqui da terra. Não pronuncie mais essa palavra. É uma heresia [...]. Pois
olhe:o maior escritor do Rio Grande do Sul está sendo atacado por mosti-ar, às ve
zes, nos seus livros, saudades de certos costumes quejá se foram, quejá desapa
receram da vida gaúcha lá de fora.^^''

Parece certo que a alusão seria ao velho Achylles Porto Alegre, que desa
pareceria no ano seguinte e que, em sua obra,já mencionara tais ataques e
explicara seu ponto de vista e seu direito a ter saudade...
Mas nem Callage é Achylles, nem a vertente saudosista pretendia, seiia-
mente,destruir tudo o que estava sendo feito. O olhar que tem o "passado pela
frente" toma o "antigo/rural" por modelo, mas não é combativo e destruidoi
de toda inovação.Já Achylles se pronunciara como sendo um amoroso da ci
dade,a que tinha gosto de ver cada vez mais bela. Infatigável pedestre urbano,
escreveu até moner, em março de 1926. Em seu necrológio, o jomal A Noite
dizia do cronista;

--5 Correio do Povo. Porto Alegre,6 set. 1925.


Ibidem.

316
Na cátedra, na mesa dojornal,como poeta,como prosador,se não foi uma figm-a
impositíva e criadora, pelo menos foi, a de um obreiro discreto, inteligente e es
forçado, merecedora do maior apreço.A sua obra é larga e gimide,consagrando-
se, na sua maioria, à revivescência do passado. [...] num estilo simples. [...] tudo
por modos a reconsü uir os faustos de tempos anteriores".®®^

Melhores seriam, todavia, as palavras que Zeferino Brasil sobre ele escre
veu no prefácio de sua ohr».Flores entre ruínas e que denota o seu estilo, entre a
crônica e a história:
\ •

A sua pena ti-ansformou-se numa máquina fotogi-áfica [...] e isto numa prosa fícil
e hamioniosa, onde não há arrojos de metáforas,fogos artificiais de fi-aseologia,
mas uma pureza de linguagem que,na sua simplicidade,apresenta a cadência de
um verso alexandrino, exato e perfeito.®®®

O saudosismo é um traço que acompanha as leituras da cidade em face


da modernização urbaná. As desigualdades e paradoxos do processo em cur
so se traduzem em formas discursivas que não precisam ser necessaiiamente
desta ou daquela tendência, mas que combinam diferentes sensibilidades. As
sim, um mesmo autor pode, por vezes, ser saudosista e inverter as temporali-
dades vendo, no presente, a cidade do passado e buscar a urbe ideal no cam
po ou na quase-aldeia, e, por outras, maravilhar-se com os resultados do pro
gresso. Nesse outro viés, a horizontalidade de sua visão aponta pai-a o futuro,
vendo, na cidade do presente, a cidade que um dia vira a ser. Otimista, tal pos
tura que se insinua como progressista consegue enxei^ar, no presente, o futu
ro como uma conquista assegurada, como o leitor poderá ver a seguir.

PROGRESSISMO E MODERNIDADE:O DESEJO DE SER METRÓPOLE

A rigor, o discurso do progresso teria seus arautos nos produtores oficiais


da cidade, detentores de cargos públicos e setores estratégicos i-esponsáveis
pelos problemas urbanos e pelas ações diretas sobre a cidade. Portanto, é nos
documentos oficiais ou nas revistas especializadas'"® que melhor se aiticula o
discurso progressista sobre Porto Alegre.

®®'A Noite. Porto Alegre, 22 mar. 1926.


®®® Brasil, Zeferino. Prefácio. In: Porto Alegre, Achylles, Rores entre ruínas, p.5.
®®® Destaque especial mereceria a revista da Escola de Engenharia de Porto Alegre - EGATEA ■
com seus inúmeros artigos sobre a cidade.

S17
Mas,das páginas dosjornais e revistas a crônica vem alinhai-se também pam
expiessar esse "desideiato" de ser e paiecer moderno,qne olha a cidade e vê nela
a metrópole. Estaiiamos diante da constmção de iim outro mito, ouü o conjunto
de imagens e discvu-sos que se aiticulam em tomo da noção de progresso.
A positividade do mito e a sua capacidade mobilizadora e polarizadora
de credibilidade se apoia, contudo, em deteirninados elementos da cotidiani-
dade que fornecem os indícios de uma transformação do tipo "moderna".
Apontando pam o futuro, a base de referência da visão progressista é o pró
prio presente. No caso, a cidade que se transforma.
Voltamos aqui àquele ponto anteriormente assinalado. Em certa medi
da, toda época pode ser tomada como mudança e transfoimação. Essa altera
ção, contudo, pode ser considerada como uma perda ou um ganho. No caso
da postura progressista, por vezes os mínimos detalhes de renovação urbana
podem ser entusiasticamente saudados como representativos da modemida-
de urbana desejada. Ou, por outro lado, o não-cumprimento da municipali
dade dos sei^viços essenciais à cidade pode ser denunciado como entrave per
turbador de um processo de mudança em curso.
Um primeiro ti-aço dessa postura se acharia na demanda por uma "cidade
abeita",segundo as exigências da técnica da saúde,da estética. Poito Alegre devia
acompanhar a renovação urbana, merecia tomar-se uma grande cidade.
Um dos primeiros "amantes" da cidade, que se deleitava com cada pe
quenino progresso e acompanhava diariamente tudo o que se passava em Porto
Alegre, foi Felicíssimo de Azevedo, alcunhado "fiscal honorário da cidade", e
que escrevia, no Correio do Povo, uma coluna intitulada "A nossa cidade".
Sobre ele, Paulino de Azurenha escreveu, em 1905, por ocasião de sua
morte, uma bela crônica, na qual estabelecia um paralelo entre a vida da cida
de e a de Felicíssimo de Azevedo. Paulino de Azurenha nos fala do amor de
um pela outra, a acompanhar o crescimento de Porto Alegre que, de aldeia e
menina, se fizera cidade e mulher:

Foi, pois, ante os seus olhos de criança, de adolescente, de moço, de adulto, de


velho e de decrépito, que esta linda cidade, crescendo, se fez gente. [...] Então
estava ele velhinho, arrastando os pés, mas era com os mesmos olhos namorados
que a via, os mesmos namorados olhos com que a olhara, muitos anos antes, mo
cinha, os seios esti uando,como querendo rebentar o frágil tecido que lhe cingia
o delgado büsto.^'"

-■'"'Azurenha, Paulino de. Crônica de 8jul. 1906. In: Azurenha, Semanário, p.5.

.S18
Note-se, no caso, a postura que se referia á relação entre o cronista e a cida
de como sexuada e "geracional". A cidade é mulher, e seu cronista é o amante
e/ou o pai que a obseira deslumbrado.Jáfoi antes assinalada a crônica de Achylles
Poito Alegre que tratava a cidade com a mesma vinculação metafórica.
Cremos, contudo, que os textos do "fiscal honoi-áiio", interessantíssimos
que sejam, não passam pelos critérios que o definiriam como pertencentes â
"vida literária" de então. Seria um cronista da cidade que aponta as mazelas e
assinala os progressos, e que se incoiporou, com a República,à administração
da cidade, como presidente da primeira Junta Municipal, caigo que ocupou
até 21 de novembro de 1891.-"
Sem a paixão desinteressada de Felicíssimo de Azevedo, a zelar pela sua
cidade, o republicano Othelo Rosa, que ocupou vários cargos na estnatura ad
ministrativa do estado, deixou crônicas em O Independente, com o pseudônimo
de "Petrônio". Nelas saudava o progresso com um tom levemente irônico. A
cidade do início do século era chamada por ele de civilizada e progressista,
tendo em vista o largo contingente de esti-angeiros que, aos poucos,foi-am se
estabelecendo e que acabaram por mudai* a feição da urbe:

Porto Alegre cosmopolita!


Do velho Porto dos Casais nada mais existe. [...]
Mudou tudo. Cresceu a cidade, dez vezes maior que há meio século pjissado, dez
vezes mais populosa [...]. Foiam-se os palanquins,as cadeirinhas, mjis possuímos
carros, bondes,automóveis,velocípedes, ti"amways, esti"adas de fen o. Amanhã te
remos nas ruas o asfalto, bondes elétiicos, balões Santos Dumont,jardins suspen
sos, espetáculos nas nuvens,telefones sem fio,fotogi*afia telegi-áfica, ressurreição
dos mortos.-''^

Fica clara a apreciação de uma dimensão irônica no texto, ao antever no


futuro uma profusão de maravilhas ficcionais para a época. A situação do au
tor não pennite pôr em dúvida a sua postura progressista como homem afina
do com o positivismo e o republicanismo gaúcho, autor de editoriais de A Fe
deração. A perspectiva da renovação urbana da capital e do progresso não esta
vam ausentes das suas preocupações, o que também se traduzia na sua faceta
de cronista.
O desejo de ser metrópole se acentuaria após a renovação do Rio de Ja
neiro por Pereira Passos. Os ecos chegavam a Porto Alegre, estimulando a to
mada de ações similares no sul.

Cf. Franco, op.cit., p.83-4.


■'"Petrônio. Nossa terra. O Indef>endente. Porto Alegre, l®inar. 1908.

319
Tal como no Rio deJaneiro — mas levando em conta a diferença de esca
la entre as duas cidades —,Porto Alegre iria também potencializar a capaci
dade metonímica de hipervalorização das marcas da renovação urbana.
O bonde elétrico, em 1908, o edifício Malakoff no final do século XIX
ou a abeitui-a da avenida Borges de Medeiros e a construção do viaduto, inici
adas no final da década de 20,foram,cada um em sua época,entendidos como
os sinais de que Porto Alegre "civilizava-se", tomando pé na história do pro
gresso. Ações de intervenção eram empreendidas, mas o que importa regis
trar é a sensação de ser metrópole, propiciada pela transfonnação de uma parte,
tomada pelo conjunto.
E,na percepção espacial que guia a representação,é a Rua da Pi-aia o grande
elemento catalisador do imaginário urbano, para o qual conveigem as metáfoiTis
dos escritores. Tal como no Rio de Janeiro, o centio de Porto Alegre é a sala de
visitas ou o caitão postal da cidade. E, nessa áiea, é a tradicional Rua da Praia o
espaço privilegiado de inspiração dos cronistas urbanos. É nesse espaço que se re
aliza a orientação da percepção do tempo que se volta para o futuro: o presente é
mudança e progresso, o que confere a esta postura uma ceita visão otímista. Daí,
talvez, as colocações irônicas de Petrônio, n'OIndependente,que podem ser apreci
adas por esta ótica: no futuro aonde o progresso nos conduzirá?
As crônicas de talhe "progressista", que expressam o desgo e a sensação de
viver numa metrópole e que tomam como base a elegante Rua da Pima,enconü-a-
vam, no início do década de 10, um veículo de expressão preferencial na revista
Kodak. Surgida para representar, no sul, a expressão de uma postura "moderna",
seu dii-etor e fundador,Lourival Cunha,tinha 31 anos por ocasião do sui^mento
da revista e seu diretor-artístíco, Emílio Guimarães, 30 anos. Uma revista de Jo
vens, que se dirigia também ao público feminino,continha crônicas, piadas, poe-
si^, contos, propaganda e artigos vaiiados. Amplamente ilusüada, tinha um ca
ráter essencialmente urbano,e seus articulistas, que usavam pseudônimos, escre
viam crônicas leves, irônicas, algumas esnobes e fúteis, oia abordando questões
mais sérias, oia,tiatando da vida social da urbe.
Neste último caso, fciziam insinuações, alusões a amores não conespon-
didos,romances secretos e/ou ilícitos, comentários sobre moda,festas ou com
portamentos. Uma revista, em síntese, voltada para uma população urbana,
não-popular,freqüentadora dos clubes, dos teatros, dos cinemas e da Rua da
Pi-aia. Uma sociedade que se modernizava, mas na qual ainda toda a elite se
conhecia e, por isso, o controle social exercido por um comentário do cronis
ta nas páginas das revista deveria ter grande peso!
Com a Kodak, palavras-chaves indicadoras da modernidade urbana se in-
troduzem na paisagem de Porto Alegre: ora é a"turba seipenteando" pela ma.

320
ora é a "multidão" e o "burburinho" da Poilo Alegre noturna. O efeito da ilu
minação elétrica na Rua da Praia seiia diretamente responsável pela sensação
de vida noturna intensa, característica das grandes cidades. Uma Poito Ale
gre do início da década de 10 que se deleitava com vitiines iluminadas, com o
footing que se estendia até a noite, com b movimento da entrada e saída dos
cinemas, com os bondes a passar com seu baiulho litmado ou com os auto
móveis em caireira "vertiginosa".
Cremos, não ser demais insistir nos efeitos da eletricidade sobre o imagi
nário. Como diz Roncayolo,-'' o olhar sobre a cidade muda, uma vez que a
vida urbana se liberta do ritmo do dia e da noite e cria novos hábitos e espaços,
propiciando a combinação de múltiplas representações.
A luz artificial — sobretudo a elétrica, que num passe de mágica trans
formava a noite em dia — proporcionava outi^as imagens e sensações e vinha
associada às representações de uma sociedade moderna e civilizada, tal como
a existente dos grandes centros.
Uma descrição do centio da cidade à noite, em 1911, dá bem a medida
do emprego de palavias-chaves da modernidade urbana e o apelo às repre
sentações da luz e do movimento:

Oito horas da noite. Pela Rua da Praia vai uma turba seipenteando,vagarosa,á cla
ridade forte da nova iluminação municipal. Um burbm-inho confuso paira sobre
a multídão de que emana. Nos passeios, moços elegantes abrem alas às passagens
das famílias. Vem daqui, dali, ti echos vagos de música. Fecham-se as "vitiánes" e
portas das casas comerciais,com um rumor súbito de desmoronamento de ferra
gens. De vez em quanto um elétrico, despejando luz, passa num "tem-tem"imper
tinente. RarosJá, uns que outr os indivíduos apressados, embrulhinhos penden
tes dos dedos, às abalroadelas, desistem do "trottoii"e tomam o meio da artéria,
na ânsia de endireitar para casa. E a multídão contínua a passar, ondulante,.mole,
pr eguiçosa,a multídão dos que saem de casa para ser vistos. [...] de tudo isso,for
ma-se aqirele burburinho car-acten'stíco das ruas "chies"em dias de moda.De vez
em quanto um gr upo estaca, súbito, e há um reflirxo, um redemoinho, mas logo
depois a onda insinua-se, adelga-se, contorna o escolho e passa.^*^

A visão do cronista de O Diário confere a Porto Alegre uma paisagem me-


tr-opolitana, de uma cidade cheia de luzes e movimento. Mesmo que isso se
revele num momento — a hora do fechamento do comércio e do início da

Roncayolo, Mareei. Transfigiirations noctiirnes de Ia \ille. L'empire des lumières artificiel-


les. In: Delhiei",Jean; Guilieux, Alain (dir.). La ville, art et architecture m Europe. 1870-1993. Paris:
Centre Georges Pompidou, 1994. p.48.
-'■•CQaracy, Vivaldo. Cinema versus teatro. O Diário. Porto Alegre, 19jul. 1911.

321

\ 1
sessão noturna do cinema —,o panorama é expressivo para evidenciar a pre
sença de um certo "tom" de metropolização.
Muito mais afetada sería a visão dos cronistas da Kodak. Seu esnobismo se
mostra nas expressões francesas e inglesas usadas, que também revelam a sua ba
gagem de leitura. As moças,aliás, dmioiselles, são chie, peiroleíle, vestem-se no demi-
er crie usam maquülage estonteante, de fazer épníer les bougeois quando fazem o
footing, numa cnusme descuidada, diante dos rapazes smarl, fina flor da jeunesse
dorée da cidade,com quem marcam rendez-vous para o cinema ou teatro... A Rua
da Pi-aia é "mostmário enpMn air" da sociedade poito-alegrense, lout três nioder-
ner, a vida noturna tem dansmses e chaníeuses em viniUols nos cnbarets, na qual os
noceurs da capital podem apreciar um sensual espetáculo que se déuoile...
Seu cronista mais típico é Chevalier de Ia Lune,-^' que, talvez inspirado na
comédia de Shakespeare,do mesmo nome,sonha sem dúvida com Paiis e suspira
pelo Rio e por Buenos Aires. Paiece que buscava imitai"cronistas mais conhecidos
de outios cenüos maiores, escrevendo sobre uma cidade idealizada e modenia,
que se concentiuva no centro de Porto Alegie... mais especificamente na Rua da
Pima. Pela sua "autoridade" de cronista, pela sua função de aitífice de comentá
rios sobre a vida urbana, pelo efeito mágico de palavras emblemáticas e pelo des
taque que dá a elementos visuais atiibuídos à vida moderna,ele é um dos respon
sáveis pela divulgação de uma visão ligeira e fútil, porém desejada como expressão
da modernidade urbana. Cabe lembrar que, no capítulo anteiior, o mesmo cro
nista redigira alguns textos de tom nostálgico e saudosista, confoi"me assinalado.
O coi'yunto da obra, contudo, maica pelo progiessismo e não pelo "passeísmo",
o que não impede que se possa apreciai; no mesmo articulista, a presença do em
bate entie ti"adição e progiesso que perconia as cidades em ti"ansfoiTnação.
E dele a reiterada expressão de "imagem caleidoscópica" da cidade, com
sua variedade de tipos sociais e novos hábitos. Define a crônica da Kodak,"na
versatilidade borboleante de seu destino vário",-^® como o instiximental ade
quado para captar o fugaz e passageiro, para registrar o gesto e olhar suipre-
endido na instantaneidade. A crônica incidiria no âmago daquela postura bau-
delairiana da definição do moderno como aquilo que muda,que renasce e se
renova. A vida modenia é,sobretudo, turbilhão, e ali estava a intrépida revista
Kodak — e as suas crônicas, por certo —,a refletir as imagens cambiantes de
uma moderna vida urbana que nascia em Porto Alegre! Chevalier de Ia Lune
registra que o surgimento do periódico estimulara as socialidades modernas e
refinadas nos seus leitores, assim como incentivava

Chevalier de Ia Lune. Noturnos. Kodak. Porto Alegre, dez. 1912.


-'"Chevalier de Ia Lune. Crônica. Kodak. Porto Alegre, 27 set. 1913.

322
uma plêiade de moços,cujas almas,voltadas para o ideal, viviam à míngua de um
veículo que ti~ansportasse o cortejo de seus sonhos à luz da publicidade.^'.

A cidade é divisada como um espetáculo, cujas ações, tramas e cenáiios o


cronista vai captar, sugerindo ao leitor uma representação que aproxima a "ci
dade ideal" da "cidade real". Com um certo ar na sua posiçáo de cronista
que se situa "acima do bem e do mal", ancorado no respeito da palavra im
pressa e da revista moderna que o acolhia, o articulista dava-se ao direito de
usar de ironia com personagens conhecidos da cidade ou de criticar aquele
que tinha talento ou formosura ou, pelo contrário, louvar os méritos e a bele
za de quem não os tinha:

Sou assim,o que querem os senhores que eu faça... Creio tudo quanto me dizem...
pelo conttário... Principalmente as mulheres.'^®

Instaurandofiissons e semeando a dúvida, ao mesmo tempo ambivalente e


ambíguo, o cronista debocha, critica, adula, inverte sinais e significados, mas
instaura o fútil como essencial e faz da aparência a essência. Faz do comentáiio
de um "nada" assunto e crônica e, de um detalhe, compõe um todo:

Porto Alegre, dia a dia, ensaia um novo passo para o estabelecimento de um con
forto que só as gi~andes cidades proporcionam. [...] O Restaurante Viena, pois,
veio concorrer para o esplendor da elite porto-alegrense. Que a cozinha seja boa,
não pareça dúvida. Mas,seja como for, ninguém vai ao restaurante só para comer...
comer por comer, todos comem em suas casas. Vai-se, no geral, paiajantar... que
não é a mesma coisa. Ojantar, num restaiuante "chie", mais ou menos omariiên-
tado e luxuoso, é um pretexto. [...] O que importa é que,assistindo a entrada de
uns,a saída de outi os, ora cumprimentando,ora palestiando, ora somndo,ora tro
cando olhares,a gente se socializa um pouco e,de envolta com as iguaiias de uma
cozinha "raffinée", recebe as impressões reconfortantes que sempre sugere o con
vívio de uma boa sociedade.^®*

O paradigma da cidade moderna se insinua, com a fetichização da vida:


as pessoas se tomaram elas próprias mercadorias,saem para olhar e serem vis
tas, a calçada é uma vitrine e "ir ao centro", um espetáculo. Os teirnos france
ses percorrem as crônicas, dando nota de que há,"noutro lugar", um modelo

Ibidem.
Ibidem.
'®®Chevalier de Ia Lune. Crônica. Kodnk. Porto Alegre, 17 maio 1913.

32.S
\ ,\
a seguir. Paris, Buenos Aires e Rio parecem aproximar-se da capital sulina, pela
força da evocação, das imagens e dos clichês. O exemplo do Rio de Janeiro,
"capital do Bi-asil e das alegrias políticas e mundanas", comparece com cada
novo evento ou sintoma da modernidade, como, por exemplo, um novo clu-
be social: o Elite Ckib:

Civilização — e todos nisto convém — não é aquela que se paralisa, imóvel, num
ressequimento de múmia;é aquela que se revolta contia os preconceitos e esti an-
gula os erros e os defeitos de uma sociedade estagnante.^^"

É manifestada a vontade de que "Poito Alegre se civilizasse", assim como


ocoirera com o Rio. Preocupados com a imagem externa do Rio Gmnde, os
demais cronistas da lamentavam o interesse local pela política e pelos cri
mes, tema único dos telegmmas enviados à capital fedeml — que não contribu
íam para a positividade da imagem sulina no exterior. O sul peraianecia, com
isso, inculto e bárbaro, a deleitar-se com as "xaropadas" da política ou com as
bandinhas alemãs...-"*^
A identidade local — que passava pela politização, pela violência, pelo
mral e pela imigração — era negada, porque se identificava à barbárie...
Esse lamento que não pode ser confundido com a ironia de outros: quan
do os cronistas se queixam, de foima cômica, dos grampos que as elegantes
usavam nos chapéus, com sério risco de vazar o olho de um incauto,-^^ ou da
tranqüilidade perdida face o gramofone da vizinha,-^^ ou das orquestras dos
cinemas, que podiam ser melhores e não aparentar-se com uma banda alemã
(mais uma vez o mstico entrando em cena),-^^ o que está em jogo é a moder
nização da cidade. Satiriza-se, debocha-se do novo ethos, mas de uma maneira
que não oculta a satisfação de que a cidadejá comporta estas novidades. Algo
de João do Rio paira no ar, não é possível disfarçar o gosto pelos sinais de refi
namento e de transfomiação na capital gaúcha:
Oh! Mas este hábito de parar no meio da calçada e aífazer ponto de "rendez-vous",
é simplesmente intolerável! Nós não queremos,é claro, que se ponha em prática
o civilizadíssimo "circulez, messieurs!" das meü ópoles. Mas, também,assim é de-

Chevalier de Ia Lime. Crônica. Kodnk Porto Alegie, 21 jiin. 1913.


Kodak. Porto Alegre, 21jun. 1913.
Kodnk. Porto Alegre, abr. 1913.
Kodnk. Porto Alegre, 9 ago. 1913.
Ibidem.

324
mais. Os que andam a negócio,que têm urgência de chegar a qualquer lugai-, não
podem estar a toda hora a desviar-se dos pequenos grupos e "meetings" pacíficos
que obstinem o tiânsito. Há cafés,há praças, há restaiuantes, há... enfim,uma quan
tidade enorme de lugares públicos em que as anedotas podem ser contadas livi e-
mente,sem incomodar o próximo...-''®

Na esteira das crônicas cariocas, traça-se uma espécie de crônica social


ligeira, que busca na sulina Porto Alegre captar a "alma encantadora" da sua
Rua da Praia. Ora são críticas afetadas a homens que transitam pelo centro
da cidade com suas amantes,-''® ora são os bacharéis que circulam por esses
espaços, a conjugar ofootingcom a observação lombrosiana dos tipos que por
lá passeiam...-"'^ A Rua da Praia é sempre o cenáiio do desfile de mademoise-
lle.s, com o encanto de suas fisionomias graciosas e da beleza de suas toilet-
é o local por excelência dos encontros fortuitos ou do rendezrvousyk com
binado de antemão...-''® Tudo observa e tudo comenta o olho do cronista,
que não deixa escapar os romances que se criam e que se destroem, as ti^ai-
ções e as vinganças.-®"
Crônicas que falam da vida nas mas são acompanhadas de outi-as que
noticiam de conversas entreouvidas em outia soite de espaços ptáblicos, como
no cinema, antes que a "fita" começasse:

Gentil como sempre,aquela noite,tivemos a dita de ouvi-la giaciosamente palian


do mil cousas leves, em sua vozitajovial. E ouvimos(quantas descrições se ouvem
nos cinemas) que Mademoiselle canta,em requintes de gi"aça,a valsa deliciosa da
"Casta Susana", dançando-a de tal modo adorável que eleva a delícia as suas ami-
guinhas... E mais, que os seus pequenos dedos ágeis sabem fazer acrobacias sono
ras em correrias musicais pelo teclado,saltando,lépidos, os obstáculos dos suste-
nidos e bemóis...-®'

Mas é, sem diivida, na noite que se encontra o mai"avilhamento que dá a


Porto Alegre o ai" de "cidade grande". Comentando a instalação do Bi"asil Club,
que reunia ajuventude dourada da cidade, a Kodak dizia:

Kodnk Porto Alegre, 8set. 1917.


-^®Chevalicr de Ia Lune. Crônica. Kodak. Porto Alegre, 21 jun. 1913.
-■"Stern. Tipos e medalhões. Kodak. Porto Alegre, 28jun. 1913.
Kodak. Porto Alegre, 28jun. 1913.
Kodak Porto Alegre, Ifi ago. 1913
-®''Chevalier de Ia Lime. Kodak Porto Alegre, 16 ago. 1913.
-®' Kodak Porto Alegre, 13 set. 1913.

325
[...] a nossa vida noturna,que comparada de alguns anos aü-ás,já faz sentir uma di
ferença considerável. Que evoluímos, que vamos para um gi au elevado de civiliza
ção,já ninguém mais duvida, mas o que nem todos sabem,o que quase todos igno
ram é o papel que nesta evolução tem desempenhado a nossa vida noturna elegan
te. [...] Não há monotonia — é uma constante fonte de novidades e novas sensações
e alegi-ias. É a vida noturna das grandes capitais üansplantada para Porto Alegi e.-^-
Na esteira da Kodak, a revista saudava,em 1922, o sucesso do que
chamava "um dos cabarets mais chies" do Brasil e que havia transformado o
aspecto da vida noturna da cidade, antes silenciosa e soturna: tratava-se do
Centro dos Caçadores, na Rua Andrade Neves, o conhecido estabelecimento
do também renomado "Lulu" dos Caçadores... A crônica salientava que o "pro
gresso intenso" da capital estava a exigir um estabelecimento deste porte:
Cidade gi-ande, onde o 'stmggle for life'já exige o dispêndio de enormes energi
as pai-a conquista dos objetivos visados,sempre disputados por numerosa concon ên-
cia, em qualquer ramo de atividade. Porto Alegi e ressentia-se por muito tempo da
falta de casas 'chies', onde sua melhor sociedade pudesse suavizar, em momento
bem humorado,a forte tensão nei^osa em que vive o homem moderno,atiibulado
pela fuiãa febricitante com que se pmticam os negócios em nossos dias.-^^

Celebrado como"uma das mais brilhantes conquistas da nossa civilização",


o Centro dos Caçadores era um dos atrativos que Porto Alegre exercia sobre
os forasteiros, "pela sua intensa e impressionante vida noturna".
Que efeito teriam essas palavras sobre os leitores? A intenção era evidente:
mostmr que a capital se renovava e que tinha uma vida mundana capaz de igua
lar-se à das grandes metrópoles. A Porto Alegre-Babilônia era tomada no me
lhor de seus sentidos, na celebração da modernidade que enfim chegara ao sul.
Costumes, moda,footing, iluminação, vida noturna, cinema... e automó
vel, símbolo por excelência da velocidade dos novos tempos. Mesmo que sua
presença perturbadora na cidade pudesse ser encarada como uma ameaça,
uma "corrida de morte", diante das "feras inconscientes da civilização", é com
indisfarçável gosto que o cronista lamenta a velocidade e imagina uma cidade
futura, sem gente nas ruas, dominada pelas máquinas velozes:

E imaginem o que será Portó Alegre quando todos tomarem a prudente precau
ção de não mais sair à rua! Vai ser um espetáculo muito ti iste e muito desolador!

Kodak Porto Alegre, 8 set. 1917.


-"Centro dos Caçadores. Máscara. Porto Alegre, Globo, 1922. p.213.

326
Só automóveis em alucinada con ida,só o fonfonar fuiioso e desvairado de buzi
nadas febris, só o ruído rápido e proflindo de 'carroseris' sacudidas, só o cheiro
desagradável de gasolina a incensar sinistramente a atmosfera! E de vez em quan
do, como uma ironia dada, uma mosca impmdente (e que h^a talvez enlouque
cido de tédio) a zumbir a sua música por sobre o silêncio da cidade! E não se po
derá dizer que não fomos civilizados. Tão civilizados que nos sacrificamos em ho
locausto às caireiras dos automóveis!-^

Modesta ficção científica de um futuro urbano dominado por máquinas, a


imagem da cidade futura fazia sonhar o cronista e aproximar o seu texto a outras
conhecidas projeções literáiias do progresso.Um mundo de tecnologia pura,uma
cidade fantástica sem população nas mas potencializara os sonhos do progresso
despeitados pelos signos da modernidade urbana que despontavam.
Todo o novo "ethos urbano" que flui da vaitedade de crônicas leves e pi"o-
fundamente citadinas tem, como pressuposto, uma cidade mutante. Como
diria o nosso Chevalier de Ia Lune:

[...] enti e nós, como que se celebra a apoteose da ação. Consti oem-se casas, a ci
dade dilata-se, organizam-se bancos,o comércio se estende,as cooperativas se mo
vimentam... Só os padeiros, depois de tantos anos, resolveram — todas as segun
das-feiras — deixar à míngua de pão a valorosa Porto Alegi e. E foi bem que assim
fosse porque, do conti~ário, esta pobre gente ti^abalhaita todo e sempre,sem ter,
ao menos, um dia de folga para a consagração solene do culto â mulher...^'

À leviandade do comentário — que associa o repouso semanal da catego-


ita a uma postura de elite oinve, a desfilar na Rua em busca do belò sexo —
acrescenta-se a pequenez do evento — padeiros que não forneceram pão às
segundas-feiras, por exemplo,em flagrante contraste com o ritmo de progi-esso
da capital.
O cúmulo da frivolidade e do deslumbiamento diante da cidade que se
renovava seria dado pela crônica escrita após a greve geral dejulho de 1917,
que paralisara Poi to Alegre:

A vida agitada das ruas sofreu, com a greve,a mais desoladora ü^ansfoimação. Os
pontos prefei idos para as reuniões das horas desocupadas, os cafés, as praças, os
cinemas, tudo que constituía o encanto delicioso dos dias normais, apresentava
nessa semana escura o aspecto sinistro de lugares por onde a calamidade houves
se passado. A fome,a miséria, o clamor da avalanche gi evista percorria toda a ci-

KodniL Porto Alegre, fi oiit. 1917.


Chevalier de Ia Lune. Crônica. Kodak. Porto Alegre,9 ago. 1913.

327
dade,enchendo as ruas de uma vida esü-anha,sôfrega, normal. Dir-se-ia que a úl
tima moda em opéia — a guerra — distendera os seus tentáculos monsü uosos até
as nossas plagas, mas uma carabina detonada,sem tun coipo tombado,sem mn giito
heróico na esctuidão misteriosa da noite... era tima guerra esüanha, monótona,
entediante.
Anatole France diz que,em verdade, nósjulgamos as ações humanas segundo
o prazer ou o desprazer que elas nos causam. A greve me causou um grande
desprazer e por isso eu não gostei da greve. Serão reações muito necessárias,
fatalidades sociológicas muito coerentes, mas me fazem mal, porque apagam
as luzes, interrompem o ü áfego dos veículos, afugentam a população, enü is-
tecem a cidade.
Se a greve não terminasse,eu não teria, para esta sessão, um só nome a regisü-ar.
Felizmente, restabelecida a ordem,pude notar:
Mlle. Maria Guimarães, grenat; Mlle. Fátima D'Ávilla, azul-marinho; Mlle. Alice
Furtado,costume azul-marinho'.-^®

Alienada seria talvez a palavra mais adequada a uma narrativa desse tipo,
mas não é o engajamento político do cronista que conta nesta crônica, mas o
distanciamento do real ou, talvez, a sua proposta: a visão da cidade moderna
e civilizada, a Porto Alegre metrópole do olhar progressista, distante dessa
agitação indesejada. Desejável é a agitação e o bulício das ruas, típicos da me
trópole, que celebram o progresso; importuno é o tipo de "anormalidade",
que desfaz o encanto da ordem no progresso...
Na mesma linha, o cronista Z, da Kodak, nos revela uma hipotética con
versa entre dois indivíduos, no centro da cidade. Um lamenta a "intolerável
monotonia" de Porto Alegre, onde reina a apatia e nada de inédito e exti-aor-
dinário acontece, ao contrário das grandes capitais; o outro conti-a-argumen-
ta dizendo que há uma vida intensa na cidade, na qual os acontecimentos so
ciais e esportivos se sucedem... O descontente concorda, mas retmca que ele
deploi-a a falta do movimento chie, habitual, da Rua da Piaia, naquelas tardes
de outrom, ao que o outio explica que talvez seja a exaustão de muitas festas
sucessivas. Para animá-lo, recorda-lhe:

[...] as luminosas silhuetas que têm feito o encanto do footing: recorde Mlle. Clo-
tilde Gertum, muito loura,de branco, Mlle. Antonieta Monteiro, naquela giacio-
sa toilette de liberty azul e aquele véu negi o que lhe dá um realce maravilhoso aos
olhos de azeviche.^"

Calçadas e cinemas. Kodak. Porto Alegre, 11 ago. 1917.


Calçadas e cinemas. Kodak. Porto Alegre, 4 maio. 1917.

328
Segue-se a enumei-ação das beldades e sua indumentária, até que ambos
chegam à frente do cinema Guarani, quando terminava a primeira sessão. O
descontente transfigura-se diante de tanto fulgor e magia e passa o mau hu
mor inicial, diante do desfile das moças...
A crônica tem um evidente destinatário:o público feminino,especialmen
te o citado no texto, com sua indumentária devidamente comentada. Mas o
que conta,sobretudo,é o espetáculo da vida noturna da cidade,da Rua da Pima
iluminada,com seus cinemas e suas freqüentadoi^as habituais, que compaiecem
como sintomas da cidade metrópole.
Nesta crônica, o articulista usa a expressão "fazer Rua da Pi-aia",forma lo
cal de designar ofooting(\ue, mais tarde, a pai tir do n° 61 da Kodak, nos anos
20, sera substituído por "fazer urbe".
Sintoma de uma renovação urbana mais profunda em cui-so? Talvez, mas
também a configuração da base metonímica do discuiso progressista que, da
Rua da Praia, visualiza a cidade. Entrada maior em cena, talvez, da expectativa
da concretização da cidade moderna para a capital gaúcha, com a populari
zação de um novo vocabulário. Aos poucos, o olhar literârio sobre a cidade vai
introduzindo um sentimento de expectativa com as mudanças em curso.
Mesmo sob uma forma frivola e freqüentemente desprovida de valor estético,
as crônicas sobre a cidade veiculam representações de uma urbe visada, em
atualização com outias do país e do mundo.
Estaria, por exemplo,Zeferino Brasil inspirando-se em João do Rio quan
do escreve a sua crônica sobre o Jlirt, em resposta a uma suposta leitora da
Kodak Citada como "revista da moda e do chie porto-aíegrense", a revista
teria posto a questão em debate, tal como ocoirera no Rio de Janeiro, como
um sintoma de comportamento na grande cidade...
Neste conjunto de crônicas assinaladas, o que as individualiza como "pro
gressistas", além do uso de metáfoi-as e analogias que aproximam a cidade real
dos grandes centros de referência, é o fato de que elas exprimem uma confi
ança na renovação urbana. A modificação de hábitos é positiva e tem força a
crença de que Porto Alegre se tornara a metrópole sonhada.
O cronista, esse Jlãneur deslumbrado que recolhe do cotidiano os sinais
da modernidade, é alguém que sabe ver, no presente, o futuro da cidade:

Porto Alegre vai ati^avessando uma época de verdadeiro progresso, de íissombro-


sa atividade... Os melhoramentos se notam todos os dias, em toda a parte,fazen
do,da nossa capital, uma cidade e onde há acm-ado gosto estético. A febre de cons-

-5'Brasil, Zeferino. Boêmia da pena (prosa velha). Porto Alegre: Globo, 1922.

\ 329
ü ução avassala todos... O gosto artístico vai se aperfeiçoando, vendo-se em todos
os novos prédios, ou nos reconstiuídos,acentuada beleza de ornamentos e de es
tilo... Verdade é que a administi ação cuida muito pouco das rua e dosjardins...
Tenho esperança, porém,que dentro em breve Porto Alegre seja uma cidade lim
pa e higiênica... Uma estatística recentemente organizada informa que estão sen
do construídos cerca de 500 prédios, todos eles com o "visto" da Intendência e
com mais ou menos beleza de arquitetura... Valha isto um consolo... A antiga cons-
U ução espanhola de telhado caído,sem "platihandas", tornava Porto Alegre uma
cidade feia, com aspecto lúguhre e colonial...
Hoje, porém,a capital rio-grandense é uma cidade digna de ser vista, ao menos
rio tocante à graça e à beleza de suas consti'uções...
E corrente no estado que a nossa capital é uma cidade velha,sem atrativos, e por
isto a maioria dos moi-adores do interior e principalmente de fronteira vai visitar,
de preferência,as capitais platinas, na ignorância do que seja Porto Alegre, hoje...
E verdade ainda que não temos o conforto e as belezas das grandes capitais, mas
não se pode desejar mais de uma cidade que, há dez anos, não tinha o menor en
canto [...]. É claro que lá existe mais riqueza, principalmente no Rio de Janeiro,
onde a natureza concorre,em giande parte, para a beleza da cidade.-^"

Moi Même acaba sua crônica dizendo que tem a esperança de que, em
breve, Porto Alegre seria uma das mais belas capitais da América Meridional,
mesmo que para isso se precisasse de um século, pois, como lembrava,"Roma
não se fizera num só dia"...
A expectativa se conjuga aos esforços empreendidos pelos produtores do
espaço, conforme foi visto. Não é demais lembrar qtie, em 1914, o Plano Ma
ciel vinha a lume, para mostrar que essas questões eram alvo de tim debate e
de uma proposta para a cidade.
O processo em curso é hipervalorizado, e as crônicas progressistas apon
tam que Porto Alegre antiga desaparece, dando nascimento a uma nova cida
de. Distante fica o olhar do saudosista, que vê, na cidade atual, aqtiela que exis
tiu um dia. Assim, o olhar que se volta para a cidade enxerga no presente a
imagem da cidade futura.
Ainda é a Kodnk que registra tais impressões:

Algumas fotogi afias de há alguns anos vieram despertar na minha memória aspec
tos mais centi'ais, os pOntos mais concorridos da nossa vida urbana de então. São as
pectos de ontem, entr etanto, eujá Os havia substituído pelos de hoje. Quem se re
corda, ainda, do que foi a nossa Rua dos Andradas? [...] A cidade toda passou por
uma tr-ansformação radical. As construções acanhadas,que lhe davam esse ar de pe-

-®®Moi Même. À guisa de crônica. Kodnk. Porto Alegre, 25 out. 1913.

330
qiiena cidade de província, deram lugar a magníficos e elegantes edififcios moder
nos. Hoje, quem percorresse as nossas itias da Independência, avenida Treze de
Maio, Rua dos Andi^adas, Marechal Floríano, Duque de Caxias, etc. havia deJulgai"
que essas lindas construções,que esses magníficos aspectos,só com um ü^abalho de
muitos anos foi conseguido. A evolução se fez com incrível rapidez. E hoje, a cida
de toda oferece, aos olhos do visitante, um aspecto novo, em tudo diferente, com
alterosos e de estilo que revelam o fino gosto de artista sabedor de sua arte.-*^

Há todo um esforço, todo vim intento em construir uma representação


outra de Poito Alegre, antítese da cidade colonial e açoriana, pacata e sono-
lenta. A preocupação com a imagem externa — como os "outros" veriam a
capital gaúcha — é uma constante. Tomar plausível, dotar a nova identidade
de um "efeito de real" era um reiterado intento, a construir-se semanalmente
pelas páginas da Kodak, de forma a introjetar a imagem desejada, deslocando
os estereótipos aiimgados.

Esse velho hábito de verbar Porto Alegre pela sua falta de vida mimdana é, leito
ra, permite que eu diga, mais um vício inverterado que nos legaram os aroengos
rotineiros e maldizentes do que uma lamentação verdadeira e razoável.-"'

Por outro lado, a questão do progressismo assume, às vezes, uma conota


ção política. Tendo em vista a renovada gestão do Paitido Republicano Rio-gi-an-
dense (PPR) no Rio Grande, em nível municipal e estadual, e a radicalização
da política gaiicha, a bandeira do progressismo pode ser tomada também pela
oposição. No caso, o desejo de transformação é intenso e o resultado é mínimo
pelo efeito da má gestão política. Endossa-se o repúdio à feição colonial da cida
de, mas no contexto de críticas ao governo municipal, que, como se viu, apre
sentava problemas de ordem financeira para levar adiante projetos,sem deixar,
com isso, de escapar das piadas sobre o seu eterno intendente, que levava a ges
tão a passos de tartaruga. Invimeros são os gracejos e as caricaturas dosjomais e
revistas da época que apontam no sentido da cidade que se queiia ter, mas não
era atingida em face da morosidade ou ineficácia da municipalidade.-"- Desde
antes da gestão Montaury, a Gnzp.íinha satirizava as pequenas tragédias do dia-a-
dia no espaço público uibano no final do século, mas é das páginas da Kodak
que se colocam as desventuras de uma cidade com 'Janotas" e "almofadinhas",
automóveis e iluminação, em situações urbanas tragicòmicas.

-""Porto Alegre de antanho! Kodnk. Porto Alegre,8 set. 1917.


Kodnk Porto Alegre, 15 set. 1917.
-"-Cf. Pesaveiito, Sandra J. (coord.). Porto Alegre caricata. Porto Alegre: Secretaria Municipal de
Cultura, 1994.

331
As crônicas do cotidiano introduzem recriminações ou elogios aos gover
nantes, como aquela, não assinada, tmzida pela Kodak em setembro de 1913,
sobre um suposto passeio com um forasteiro pelo centro de Porto Alegre, num
percurso da Praça Senador Florêncio, Rua da Ladeim e Andrade Neves até a
antiga Pmça Conde de Porto Alegre, onde se erguia a estátua de Júlio de Cas-
tilhos. Estranhando poique a praça não era ladrílhada, o que ressaltaria a be
leza do monumento, o foiTisteiro teria dito":

[...] é de lastimar, porque Porto Alegre é uma cidade fadada, pela sua situação to-
pogiáfica, a ser a terceira, senão a segunda do Brasil. [...] No Rio, dizia, quando
me falavam assim da capital rio-grandense, eu atiãbuía a uma má vontade ao pro-
giesso do sul, tão decantada nosjornais do governo; mas [...] e chegamos em fren
te ao novo palácio presidencial em consti ução — é, mas isto atesta alguma coisa
que me fez mudar,bruscamente,de opinião [...] no Rio Grande do Sul existe uma
administiação laboriosa,fecunda, com idéias adiantadas, e, por isso, capaz de re
formar em poucos anos, por completo,a bela Porto Alegre, tornando-a encanta
dora aos olhos dos visitantes.^*^^

Há menção a um projeto de mudança,a uma atitude progressista e a uma


imagem externa negativa, desfeita diante das obras em marcha. Impressão
entusiástica que seria, em parte,,desfeita pelo naiTador, ao dizer que tais inici
ativas "poderiam" se efetivar de fato se Carlos Barbosa, que o ocupara a presi
dência do estado, de 1908 a 1912, no intenegno da gestão Borges de Medei
ros, as levasse a efeito...
Em outras colunas, chamadas "Faipas", do jornal A Noite, um articulista,
que se assinava Murillo, estimava que "a beleza do novo palacete" dos Con eios
e Telégrafos se traduzisse em melhores serviços,-^"^ ou, então, perguntava, com
ironia, aos leitores:

Quem,ao passar pela Ladeira, não terá visto, na esquina da Rua da Ponte, uma
casa apertadinha e pintada de amarelo? É o edifício destinado à Biblioteca
Pública, última concepção do dr. Hebert, que, depois de ter sido repelida a
planta do palácio pela preferência que se deu aos arquitetos franceses, resol
veu não fazer mais coisa que prestasse.

Seguia-se uma crítica aos padrões estéticos do edifício que, para fins de
embelezamento, ornara-se com uma série de bustos extraídos do calendário

Kodak. Porto Alegre, 13set. 1913.


Murillo. Farpas. A Noite. Porto Alegre, 17 abr. 1914.
265 Murillo. Farpas. A Noite. Porto Alegre, 22 abr. 1914.

332
positivista e que fizera coincidir o dístico "política moderna" com a figura
de Frederico o Grande... O ataque é claro ao governo autoritáiio e ao proje
to positivista, que tanto impusera o "estilo" quanto entregava o projeto do
palácio a arquitetos franceses. A posição é de uma postura progressista-poli-
tizada, a qual se distancia, em estratégias e fins, daquela empreendida pelos
produtores do espaço. Conjurava-se a municipalidade a entender quejá havia
ficado para trás, "perdida na noite dos tempos, a Porto Alegre colonial", e
era hoje de fazer a Rua da Praia uma espécie de Rua do Ouvidor, Gonçalves
Dias ou Florida,-'''* para deixar bem claro os dois exemplos paradigmáticos
do Rio e Buenos Aires...
Esse tipo de critica progressista daria, por sua vez, expressão a uma defe
sa entusiasmada de todo e qualquer sintoma de renovação urbana na cidade:
ao intei-vir na Praça da HaiTnonia, cumpria-se mais uma etapa no mmo da
cultura e do progresso,-®' e as refoiTnas da praça da Matriz colocavam Poito
Alegre em "harmonia com a civilização"."®®
Como as representações não têm compromisso de refletir o real, curio
sas analogias eram capazes de serem feitas entre o processo oconido no Rio
e Porto Alegre:

Certo, o progi esso material de Porto Alegre podia ser vertiginosamente rápido,
se tivessem sido abraçadas,aqui,as práticas consagradas por exemplo no Rio e São
Paulo. No estado, enti etanto, [...] fixado o ideal de buscai" o progi esso denti o dos
recursos próprios, aumentados paulatinamente, realizando o equilíbrio normal
enti e a receita e a despesa, o município, como o estado, caminha lenta, mas se
gura e desafogadamente.
[...] O Rio deJaneiro, por exemplo,soba batuta eminente do velho Passos,sofreu
mudança radical de "toilette". De cidade colonial, que era, passou a uma grande
meti ópole moderna. Rasgaram-se avenidas colossais, iluminadas deslumbrada-
mente a "giorno". E o Rio, que não comportava tais empreendimentos,ficou sen
do uma grande cidade abandonada. Nouti os termos,fizeram a cidade,falta agora
a população. É o que se depreende de sua vida quase morta. A noite, a magnífica
sereia da Guanabara é um deserto e as suas avenidas dormem,sem vida,sem nin
guém,despertadas, apenas, pela ronda cronométiica do vigilante.
Em Porto Alegi e,a ti"ansformação fez-se vagai osamente, mas lógica, sem exigên
cias nem sacudimentos imprevistos.-®®

■"^Stern. Sete dias. Kodnk Porto Alegre, 25 maio 1918.


-"Kodak Porto Alegre, jun. 1917.
Kodnk Porto Alegre, 4 maio 1918.
-®® A transformação de Porto Alegre. Kodnk Porto Alegre, 23 fev. 1918.

333
É extraordinária a compaiação estabelecida, que opõe um Rio silencio
so, com noites vazias, a uma suposta vida noturna de Porto Alegre! A demora
e a pequenez das intei-venções são dotadas da positividade necessária, enquan
to que as práticas uibanas executadas na capital do país, pela sua radicalida-
de, são entendidas como falsas, porque inadequadas ao meio e ã sua popula
ção. Mas, enfim, no campo das representações, não são os critérios da veraci
dade que contam, mas os da credibilidade.
O tema "cidade" se tomava o centro de um debate cotidiano nos perió
dicos, tendo um ponto nevrálgico de ação: os velhos becos e vielas, testemu
nhos da cidade colonial que se queria destruir. E, nesse ponto, as opiniões se
dividem. No mesmo ano de 1918, a Kodak afirmava que Montauiy levava a um
bom termo a extinção dos becos e as desapropriações,-'" o cronista Pedro
Guahyba, do Correio do Povo, lamentava que a cidade continuasse com
[...] becos apertados, mal habitados e com água correndo permanentemente pe
las calhas,bem na parte centi"al, becos que cortam ou que desembocam na iiia prin
cipal, rua onde dm^ante todo o dia o movimento é maior e para a qual se dirigem
os forasteiros que chegam.-"

Em ambas as postui-as, está presente a visão da Porto Alegre metrópole,


construída pela ação da Intendência ou impedida de desabrochar no seu as
pecto moderno por causa da mesma Intendência municipal. Pró ou contra o
governo, o horizonte de vista é o moderno.
As crônicas de Pedro Guahyba no Correio do Povo são, no final da década
de 10, precursoras da coluna "A cidade", que Roque Callage manteria no Di
ário de Notícias, na década seguinfe. O primeiro escreve no final da gestão
Montaury; o segundo, durante a gestão Otávio Rocha. Em ambos, o mesmo
objeto de reflexão: a cidade a renovar-se, destruindo e constmindo. Se Calla
ge e Guahyba foram capazes de escrever algumas crônicas de tendência sau
dosista, a lamentar algo de Porto Alegre que ficara para trás, deixaram textos
sobre a cidade canegados de otimismo com a transformação.
A idéia de metrópole peipassa estas crônicas urbanas que ora se queixam
de que o progresso podia ser maior, ora se cui-vam diante das mutações havi
das, num deslumbramento pela modernidade da capital:
"Não são muitas as cidades bi-asileiras que se podem gabar de uma popu
lação amiga do progresso como a de Porto Alegre", dizia Guahyba."Amiga do
progresso e com uma tendência pronunciada para o que é bom e fino",-" mas
Ibidem.
Guahyba,Pedro. Futilidades. Correio do Povo. Porto Alegre, 23 out. 1918.
Guahyba,Pedro. Futilidades. Correio do Povo. Porto Alegre, 13 out. 1918.

334
a administração pública pouco fazia para propiciar momentos de lazer e cul
tura na cidade, tal como dotar as praças de bandas de músicas, ou promover
a extensão dos trilhos de bondes até a cidade alta, passando pelo teatio São
Pedro e Matriz.-"''
A Porto Alegre sonhada, cidade aberta, verdadeira metrópole, precisava
de circulação de idéias e nomes naquele final da década de 10.
Chama a atenção a alcunha do cronista — Pedro Guahyba —,que faz
lembrar o nome usado por Paulo Ban eto, o celebrado João do Rio... Estaiia
nosso cronista adaptado regionalmente o cognome, deslocando da beira-mar
para a beira-rio (no caso, o gauchíssimo Guaíba) o seu ponto de obsei-vação?
Mais do que isso, pretendia equiparar-se ao cronista carioca em termos de lei
tor privilegiado do urbano? Sabe-se lá os intrincados caminhos da vida litera-
ria bi-asileira, com os seus mitos e as suas ressemantizações locais...
Mas é, sem sombra de dúvida, a partir dos anos 20, que o olhar do escri
tor se sente sobremaneira afetado pela cidade em mutação.
A coluna "A cidade", de Callage, ocupai-á, de modo especial, esse espaço
de exercício para a crônica que risa registrar a cidade que se ti-ansfonna.
Entretanto, nossa intenção foi registiur as sensibilidades em face do urbano
diante de uma cidade não ainda convulsionada, mas balizada, em seus ensaios de
ti-ansfoiTnação, pela modernidade que ocoire "lá fora",seja na distante, cobiçada
e mágica Paiis, seja na sofisticada e não menos desejada capital fedei-al.
Para outros olhares sobre a mesma cidade, uma postura diferenciada se
insinuava, a qual chamamos de "amargura provinciana".

AMARGURA PROVINCIANA: O RESTO E PAISAGEM

Falar mal da cidade, queixar-se da pequenez do ambiente, denunciai- a


incompreensão do meio diante das manifestações culturais mais avançadas,
criticar o abismo existente entre Porto Alegre e o resto do mundo... Eis um
traço reconente de uma certa "tendência literâria" no Rio Grande do Sul, a
veicular outi-as imagens da mesma cidade.
Demonstram, em seu conjunto, um certo inconfoi-mismo diante da "ci
dade real; seu horizonte está lá fora, no paradigma idealizado de uma metró
pole que passa longe do horizonte porto-alegrense. E^se "fosso" cultui-al urba
no é potencializado pela formação literária de tais escritores. Eles leram, co
nhecem e têm como referência um paradigma da modernidade urbana cria-

'Guahyba, Pedro. Futilidades. Correio do Povo. Porto Alegre, 22 oiu. 1918.

335
do por outros esoitores e os quais não coincidem com a cidade onde vivem.
Em suma, a Porto Alegre "deles" tem um presente que compromete o seu
futuro como metrópole.
O que se pode esperar de uma cidade no sul, não só do Bmsil e da Amé
rica, mas do sul do mundo? A acanhada vida urbana leva a pensar que a defa-
sagem é inti-ansponível, daí o lamento, que não pode, contudo, ser encai-ado
com uma recusa à cidade onde vivem, pois ela é inspii-ação pam a postura do
olhai* que critica o provincianismo e alimenta o desalento ante os sonhos da
metropolização.
Acompanhamos essa postura através dos últimos anos do século XIX e os
primeiros deste século, antes que se completasse o processo de transfoi*mação
urbana de Porto Alegre, instalando os marcos referenciais da modernidade
desejada, mesmo que de forma metonímica; a abertura da Avenida Borges de
Medeiros, i-asgando a montanha, encimada por um viaduto e ladeada por ar
ranha-céus. Ou seja, a Porto Alegre que prometia, desejava e, progressivamen
te, tomava ai'es de "cidade grande".
Principiemos pelas crônicas dejornal,espaço preferencial de divulgação das
obi*as em prosa e vei-so dos escritores locais. Há um viés que se insinua e que, de
ceita foi-ma, é filho da crônica; a tendência a fazer, de um nada, de um fragmen
to de acontecimento, um assunto. Na nairativa do cotidiano, esse é talvez o desa
fio que se apresenta ao seu escritor. O cronista tem a missão de falar da vida de
cada dia e dela fazer o seu artigo. E claio que os acontecimentos notáveis também
podem animar a sua escrita e inspira-lo a redigir sua crônica, mas não é sempre
que tais eventos inompem no cotidiano.Por outio lado,ojornal vende mercado
rias, e o seu ai*tigo é a notícia. E ingênuo pensar que o jornal possa apresentar
como aitigo, atiavés da crônica, a vida como ela é,sem maquiagem alguma,sem
criação ou elaboração. O artigo dejornal é uma representação que se propõe no
lugar daquilo que se passou, apresentando uma imagem que, no mínimo, pren
da a atenção,fazendo desapaiecer a distância entie a representação e o represen
tado.Ela vende um "pedaço"do real manipulado e tendencialmente sedutor, por
que há um público a captar. Como diz Lepape, não seria possível imaginar
[...] umjornal que refletisse a verdadeira vida das pessoas,o cotidiano de uma ma
ou de um vilarejo, os gestos que se repetem,os dias e as noites parecidos uns com
os outi os: M.Leduij nosso padeiro,^ vendeu hoje 49"baguettes" de pão, tal como
ontem e anteontem.^''^

Lepape, Pierre. L'évreinent n'a pas en lieu. In; Trnverses 47. Paris: Reme du Centre Georges
Pompidou, 1989. p.173.

336
Todo texto dejornal busca romper com as pesadas rotinas da vida cotidi
ana, e se estas transparecem na sua repetição fastidiosa, há que procui-ai"o sig
nificado. O que implica a reconência ao sentimento de monotonia, provoca
do pela cidade urbana, onde nada acontece?
Por um lado, é possível atribuir a falta de assunto à falta de inspiração ou
talento do cronista, que vai lidando com a banalidade do cotidiano e com uma
pretensa graça, constiaiída no vazio da notícia, para dar conta de sua tarefa.
Há, nesse caso, primores no domínio da "escrita do nada":

Bm...que frio!
Amáveis leitores, cá estou novamente pronto para vos amolai* a paciência,com as
minhas'xaroposas' crônicas... Xaroposas,sim, mas vos posso afirmar que a culpa
não é minha,e sim do assim to... o maldito assunto, que não aparece pai-a que eu
possa comentar. Hão de dizer que isto é lorota minha, porque assunto não falta;
mas a questão é que eu não o encontio,[...].
Virgem Nossa Senhora das candeias apagadas,que frio!... Brrr...Já estou a ti emer
e o assim to até agora não aparece.^''

Outras, um pouco mais elaboradas e espirituosas, esforçam-se pai-a pre


encher o seu espaço nojornal,sem nada realmente dizer:
Mais uma semana... mais outia... E que elas voam assim como «is pombas do poeta,e
não voltam mais.De sorte que o cronista é como que um ponteü o no relógio do tem
po. Um ponteiro — mas rombo e irregular: rombo,porque defonna os Êitos ao cri
vo de uma impressão,in egulai", porque a alma é que feiza dm"ação do tempo.^'®

Aparentemente, a paciência dos leitores — pois não é possível deixar de


pensar na recepção de tais crônicas... — deveiia ser levada aos seus limites, pois
registram-se casos em que o escritor, verdadeiramente sem idéias, consegue
escrever toda uma página sem nada dizer. Sob a alegação de que é segunda-
feira e, como tal, "é difícil escrever alguma coisa que interesse e que tenha
graça", dado "à fadiga deixada pelo domingo" ou porque os "fatos escassei-
am",o cronista discorre sobre o seu esforço para encontrar algo a dizer, ainda
mais devido à fadiga enorme em que se encontra. E,de consideração em con
sideração, divagando sobre o nada e sobre o seu compromisso de escrever a
crônica, acaba por falar na sua dor de dentes, com o que considera que cum
priu a sua missão..."'

-''Tertúlios. Crônica. ErhodoPovo. Porto Alegre, lljun. 1911.


""Chevalier de Ia Lune. Crônica. Kodak Porto Alegre, abr. 1913.
'"G. As segundas. A Noite. Porto Alegre,4 maio 1914.

337
Neste sentido, poder-se-ia dizer que a falta de assunto e a tarefa de fazer
desta ausência uma prosa em letra de fôrma,seria um desafio constante para os
cronistas... Entretanto,o que se quer recuperar,como um dos sentidos possíveis
desta atitude,é a possibilidade de passá-la como uma tendência que percon e a
postura da "amargura provinciana",e que associa este "vazio de idéias", este té
dio penmanente ameaçando a pena do cronista como que inspirado pelo aca-
nhamento da vida urbana local.

Quando o sino velho da matiiz bem deu ontem a derradeira badalada da meia-
noite, eu senti uma grande tiástera, uma tiásteza infinita invadir-me a alma, pois
até esta hora,a trágica e soleníssima hora dos fantasmas e dos monsti*os d'além tú
mulo,estava eu à espera que algum caso grave e exti*aordinário acontecesse, para
esplendor e glória deste semanário.
...[nada ocorreu]
[...] Decididamente Porto Alegre era uma cidade morta, não valia dois caracóis!^^®
Nosso cronista deplora o sentimento de fastio por viver numa cidade onde
nada acontece, só movida pelo miudinho da vida. Falta emoção,faltam atores
e gestos dignos, de impacto. O cronista é alguém que perambula de um lugar
a outro, à espera de que algo aconteça, para quebrar a monotonia do sempre-
igual de cada dia:

As vezes atirava-me até a Piaça da Harmonia,chegava ao cais, e ficava horas e ho


ras à espera que o rio se enfurecesse e numa revolta satânica engolisse todos os
navios que se balançavam no lago.Imaginava então um naufrágio pavoroso, cheio
de vítimas, prenhe de peripécias. Mas o rio se conseivava ti~anqüilo, inalterâvel,
numa palidez morta de lago adormecido... Outia vez eu sonhava a casa da pólvo
ra e o gasômetro voando pelos ares, numa explosão formidável e retumbante,aba
lando a cidade;px)ndo abaixo a vidraçaria da casa vizinha. Tudo,enti'etanto, con
tinuava como sempre na mesma quietude chata...

E o escritor imagina-se na Turquia, na Itália, na InglateiTa ou mesmo no


vizinho Uruguai,onde até ali coisas interessantes aconteciam,a dar sabor à vida:

em toda parte, em todas as capitais havia assuntos á farta para uma crônica de fa
zer sucesso; menos em Porto Alegre,que é uma cidade morta.^®"

Diego. Semanário. Correio do Povo. Porto Alegre, 17jan. 1897.


Ibidem.
Ibidem.

338
Uma Jin-de-sièc\e sem emoção,"dias vazios, chochos, sem novidades, pas
sados em branco",-'^' parece fluir do texto de enfastiados cronistas, que deli-
beradamente, por vezes,exagei-am no repetitivo cotidiano, naii-ando movimen
tos e hábitos de um dia-a-dia sem maior valor. Mostrando ao leitor que sua re
alidade éjustamente isto: viver num lugar sem atração e mesquinho. Triste seria
a de ter nascido em Poito Alegre...
Se tal era a regra do cotidiano da urbe, mais deplorável seria, na opinião
dos amargos cronistas, o quadro da vida intelectual, em que "nada" se publi
cava de importante na cidade. Crônicas lamentavam que, apesar dos belos ta
lentos existentes na praça, o ano de 1898 não registrasse o aparecimento no
Rio Grande de uma só obra literária... Essa constatação lamentável era atribu
ída, por um lado,"ao meio estreito, indiferente e fútil", que não dava incenti
vo às letras, debochando delas com "boçalidade revoltante", mas, por outro,
indicava-se que alguns que poderiam escrever não o faziam,sabe-se lá por que
motivos, deixando espaço para poesias bissextas e sem sabor...

Há largos meses não nos é dado o prazer de um brilhar nas colunas dosjornais o
fino talento de Máiio Totta, Saint Clair, Alfi edo Lisboa,Andrade Neves, Ulysses de
Cai-valho, poetas de merecimento, exilados da poesia pela brutal necessidade de
viver, tratando da dmn vida. A não ser o festejado Zeferino Brasil, nomejá feito nas
letras, quem mais confiibula ainda com as musas,serenamente,e labora com zelo e
amor, bmilando esti ofes,com a paixão inteligente de um ai tista? Sera acaso obra li
terária isso que vemos nosjornais, prosa incolor e inodora, versos sem arte e sem
sentimento,uma espécie de Maiia-mole abundante e inútil? Certamente que não.^®^

Ou seja,justo por ser o meio acanhado, os "moços literatos" não podiam


viver do seu talento, de onde a escassez de produção de belas leti-as no sul...
Entretanto, a rotina sem sustos da cidade dava margem a que os próprios
talentos locais,como Paulino de Azurenha,o"Leo Pardo",reconhecido pelos seus
méritos,compusessem uma prosa centrada na imutabilidade urbana de uma Porto
Alegre sem novidades, onde mesmo um bando de gafanhotos era assunto:

Quebrando a suave monotonia de delicioso viver dos habitantes de uma cidade


assim, em que habitualmente reina uma placidez edênica, é claro não haver, se
não lá de espaço a espaço, fatos de alta monta. De costmne, é essa invejável pas-
maceira, a que até a passagem de uma nuvem...de gafenhotos abre ensejo para o
comentáiio e a distração pública.-®'

'"Gavorni. O Semanário. Correio do Povo. Porto Alegre, lljun. 1899.


'"Pimenta,João. Fogo de rista. Gazeta da Tarde. Porto Alegre, 4jan. 1899.
'"Azurenha, Paulino de. Crônica de 11 ago. 1906. In: Azurenha, Semanário, p.l27.

339
e a falta de ^sunto, pois, era pretexto para encher papel para os moços
sern ta também o era para dar margem à criação literária de um cronista
mais re in^o,que de uma banalidade era capaz de falar de sua cidade e das
s^sibilidades de sua época. Leo Pardo, no caso, utiliza a metáfora dos gafa-
^ vêm,
so re Porto Alegre, retomando
e mesmo à cidade, paradediscutir
as possibilidades o "olhar desde
reconhecimento fora"
ou estra-
n amento que estariam presentes na apreciação daquele que retornasse à ci-
a e apos um período de longo afastamento. Porto Alegre mudara ou per
manecia sempre a mesma?
A postura em pauta, do festejado Azurenha, comparece como sintoma
de uma sensibilidade diante da cidade. Os escritores nos sugerem um tipo de
atitude de expectativa e fmstração em face de um urbano sem emoções e ex
pressam esta atitude nas crônicas de Jornais e revistas, e nos romances. Desse
cotidiano de rotina, monótono, miúdo, repetitivo, garimpando pedaços da
vida, numa cidade onde mesmo o crime se torna banal, o cronista deve fazer
notícia, produzir um texto para ser vendido ao público de todo dia.
A tragédia ao lado da comédia,a dor a contracenar ao ridículo, a generosidade
Junto à mesquinharia. Sumário definitivo, sumário dos sumários: a vida. O reda
tor plantonista escreve, risca, emenda e anota. A pena não cessa de correr, escra
va da mão inquieta,sobre tiras e tiras. A pena executa o seu ritmo profissional,com
a a^lidade silenciosa das bailarinas clássicas. Vem de baixo, do ventre trepidante
dojornal,o pedido implacável:"Originais". Têm fome os linotipos, máquinas fi-
namente gastronômicas como os políticos do dia.^®^

A atividade do cronista, nesse cenário, é hercúlea: fazer notícia de um


cotidiano insípido... Essa realidade urbana é, contudo, sufocante, e, por ve
zes, a opção do cronista é mergulhar na "boa volúpia de não realizar, não cri
ar, não pensar, não agir",^®^ aproveitando um feriado que induz ao ócio (1® de
maio), mas no qual o malfadado cronista precisa, por dever, dizer alguma coisa
no vazio dos acontecimentos.
Afinal,a cidade progressivamente mudava de aspecto e medidas de remodela
ção eram postas em prática na urbe, mas,por parte dos escritores, tudo era insufici
ente para reverter o sentimento de uma profúnda "amargura provinciana".
Tome-se o caso de Rastignac, o cronista doJomal da Manhã, periódico de
duração efêmera d2ijeunesse dorée da capital gaúcha. O cognome escolhido por

^"■'A.C. Um plantão. Diário de Notícias. Porto Alegre, 7 nov. 1927.


?®"A.C. Jornal das 48 horas. Diário de Notícias. Porto Alegre, 1" maio 1928.

340
José Picorelli é emblemático, pois evoca,às margens do Guaíba,o pei-sonagem
de Balzac que, vindo do interíor, se dispõe a conquistar Paris.
Rastignac sabe que, como cronista, sua missão é a de escrever, para o de
leite dos demais, com inspiração e estilo. Empunha a pena — essa "borboleta
de aço" — para fazer brotar páginas de encanto, nessa "ladeira de ouro pai-a
onde se debníçam os deuses", que é a crônica... Mas qual! Ele gravita em Por
to Alegre, num quente verâo de dezembro:

E um areai de impressões,frio e grisento,sem um oásis para abafar a revolta dos


nei-vos e dar asas a pena esta semigasil [sic] aldeia nossa [...]. A contempléu-, sua-
rento,a linha de edifícios sem arquitetura, nem modelada em dórico, nem calça
da em coríntio, piso o quente asfalto do Caminho Novo,enquanto,como mna ca
tarata de fogo, o sol acaricia a terra [...].
A tarde,fechando numa hecatombe de ouro,inquiro a alma das coisas nesse far
rapo de um mundo novo em uma ruinaria desabitada,a Rua da Praia, que seria a
nossa Ouvidor si cá florescera a cidade do Rio, ou o Boulevard des Italiens,se isto
fora Paris...-'*"

A distância do belo mundo é enorme,e a cidade abrasada pelo calor não


ajuda. Os dados do cotidiano da urbe — um adultéiio, um assassinato, um afo-
gamento... — dariam páginas preciosas para um cronista parisiense. Talvez
Gautier ou os Goncourt disso fizessem um primor de texto para a delícia dos
leitores. Mas em Porto Alegre...
[...] H sucessão de banalidades,indo e vindo,imperiosa,dogmática [...] istoikuni-
nar-me-á como um assunto a crônica? Nunca! E a chateza, o prosaísmo,a inutili
dade necessária, o anti-estético.-®'

O consolo do cronista é, em Porto Alegre, ler osjornais do Rio-®®e delici-


ar-se com as notícias daquele centro urbano mais avançado...
Relembremos o caso átíKodnk, revista dedicada à vida mundana,com crô
nicas ligeiras que falavam da vida moderna. Nas suas páginas, foi possível en
contrar traços de um saudosismo que retomavam o estilo de Achylles Porto
Alegre, porém mais numerosas eram as crônicas "progressistas", que saudavam
a transformação da cidade e faziam da Rua da Praia o microcosmo de uma
modernidade urbana. Em suas páginas,todavia, podemos ainda distinguir essa
tendência que apontamos: a "amargura provinciana".

-®''Rastignac. Crônica.Jornal da Mnnhn. Porto Alegre, 15 dez. 1907.


Ibidem.
Rastignac. Crônica,yorytrt/ da Manhã. Porto Alegre, 22 dez. 1907.

341
Pernóstico, nosso conhecido Chevalier de Ia Lune declara que, decidi
damente , Porto Alegre é avessa aos instintos do cronista", que dela quei
fazer notícia, pois, como cidade, ela não fornece assunto. Propõe a solução
possível: abandonai'Porto Alegre, no aeroplano do espírito, dando asas ã ima
ginação e buscando "o espetáculo m^yestoso que se desdobra no cenário da
Europa"...
No mesmo estilo afetado,o cronista Sully constata que "a esbumcada Poito
Alegre" caíra numa "apatia lastimosa":
Afora os eternizados cinemas,onde,algumas vezes na semana,se reúne a elite so
cial, nada mais existe onde se possa passar uma ou duas horas disü aído, espaire-
cendo as amargums caseiras. Nunca se nos deparou,em capital ou povoado ou vi-
larejo ou aldeia, população mais inconstante nem mais frívola que a desta valoro
sa terra. Aqui nada ti iunfa. Mil diversões se têm inaugurado, centi os onde se po-
dei"ão passar homs inteiras esquecido da mágoa cotidiana, e mil vezes eles têm
morrido,fenecendo à indiferença pública.[...] Aliás, esta fuga aos centi"os *chies ,
este enclausuramento etemo enti'e as quati'o paredes de uma casinhola, é o ca
racterístico da vida aldeã e do caipirismo de uma população."^'

O cotidiano mata,o que em antes, em outras crônicas, índice de progres


so,como o cinema,é menosprezado em prol da constatação de que outras for
mas de diversão mundanas eram abandonadas — ou não vingavam. Em suma,
a Porto Alegre submersa pelo pó das refomas empreendidas por Montaury,
em uma cidade com mentalidade de aldeia, que neste pó devia submergir,
segundo o magoado cronista.
A critica é até mivosa, quando a percepção do cronista se orienta para as
sensibilidades olfativas que a cidade desperta. A comparação com as gmndes
cidades é inevitável e simbolicamente muito expressiva, porque os cheiros das
cidades grandes se associam a coisas, propriedades ou perfaniiances inerentes a
uma metrópole.Já a capital sulina:

Assim, Londres cheira a fumaça;Paris cheira a todas as coisas, porque possui tudo,
no mais extenso sentido deste conspícuo advérbio; Buenos Aires cheira a "maga-
sins", a perfumaria,a futilidades. Mas Porto Alegre, meus caros senhores,a nossa
capital, é como um sujeito mal educado que fala nas ventas da gente e cheira mal
da boca. E por isso mesmo,íí^orto Alegre é inconfundível pelo seu cheiro, incon
fundível pelo seu cheiro particular e mau.-^^

289 Chevalier de Ia Lune. Crônica. Kodak. Porto Alegre, 7jun. 1913.


299 Sully. Crônica. Kodak Porto Alegre, 21 mar. 1914.
291 Kodak. Porto Alegre, lõ set. 1917.

342
Tais crônicas vêm peipassadas por posicionamentos políticos, contra ou
a favor das intei-venções urbanas realizadas pela municipalidade, mas não é
esse o viés que buscamos apreciai".
A mesma Kodak, que celebrara a delirante Porto Alegre, verdadeiro calei
doscópio da vida moderna, apresenta artigos nos quais se constata que a vida
urbana vai monendo,dando à cidade um aspecto de mina:"Senhores, Porto
Alegre boqueabre-se de tédio".-^-
A imagem da mina se associa,sem dúvida, a demolições e cacos, à ausên
cia de vida e, no caso, à desolação, o que tena como pano de fundo de fundo
reformas empreendidas pela prefeitura. Não é sempre, contudo, que a mina
ou a solidão produz esse efeito de desalento. Pode, inclusive, potencializai" a
inspiração, dando charme ao local e valorizando a cidade, como é o caso da
crônica que fala, em 1912, da Praça da Hai"monia:

Dm-ante o dia,um liino magnífico à vida,um canto foi"te efecundoà alegiia, há,naquele
recanto,lá no fim da Rua da Piaia, um aspecto de vitalidade que se afitsta da melanco
lia linfática habitual da cidade.E à noite,depois do banlio de ouio do a epúsculo,que
a enclie de bi"illios rai oscomo um esaivão de pediai"ias,a Praça da Hai"monia se envol
ve,no manto proflmdo da sombia,e se recolhe,comoa recordai...APraça d'Hai"monia
tem para as sensibilidades finas, um encanto teiTÍvel... foi forca! Por isso é que,de noi
te, depois das dez,quem a visita,só encontiará alguns sonhadores ou algum gi"upo de
poetas,que vão,à maneiia antiga,dizer vei"sos à lua ou ouvii"esti elas.^'

O contraste do dia pela noite passa pela celebração do crepúsculo, ele


mento típico do tratamento simbolista para a cidade, que ressalta o seu lado
paisagem. Mas vai mais além:confere à praça da Hai"monia o ító/íí.çde um éden,.
a conferir, durante o dia, vida a uma cidade imersa no spleen baudelairiano,
para, à noite, ser o locus privilegiado para a sensibilidade dos poetas...
É na coluna intitulada "Ressonâncias mundanas", da Kodak, que vamos
encontrar uma crônica que formula a síntese de uma atitude diante da cida
de. Após comentar que mais uma semana se passara, monótona como o movi
mento pendular dos relógios e, por isso mesmo, uma semana "genuinamente
porto-alegrense", o cronista afirma:

Porque,afinal de contas,é preciso reconhecer como verdade aquelas palavi"as pro


féticas de Lord Beaconsfield:"O mundo é Pai is e Londres, o resto é paisagem".®®^

-®-Porto Alegre atravessa. Kodak. Porto Alegi"e,jun. 1917.


Kodak. Porto Alegre, 8set. 1917.
^^''Ressonâncias mundanas. Kodak. Porto Alegre,8set. 1917.

343
A célebre frase, repetida por Elysio de Cai-valho em obra já citada,-''' re
sume bem o di-ama porto-alegiense; estar ao lado da paisagem. Inemediavel-
mente, na opinião daqueles que suspiravam por cultura, civilização e belas le
tivas valorizadas.
O que fazer diante de tal fatalidade? Entenda-se, naturalmente, que se
trata de um "o que fazer" em teimos de vida literâria, que se expressa numa
percepção da cidade e do seu drama. A modernidade ocone alhures e dela se
tem conhecimento. Os letrados da teiTa lêem outros autores que falam de uma
outra cidade, mas vivem em Porto Alegre... Ou seja, nascera enfado, na parte
sem graça do mundo...
O lamento explode, diante do desiderato de viver num outro meio in
telectual:

Santo Deus,feizer vida intelectual em Porto Alegie [...]. Então o senhor pensa que
gênios literários se fazem, e que dizer literatura é recitai" o "Ouvir esü elas" e can
tai" os louvores à "Mulher bi"asileira" pelos poetas pati"ícios? Vade retio... [...]. Por
que é preciso que se diga a verdade: entie nós ainda a literatura é uma entidade
que não mereceu as honras de uma aceitação distinta, ela rasteja muito embai
xo, ainda estanece nos folhetinsjocosos dosjornais da terra e nada mais...-""
Bom mesmo era o Rio, cidade enoi"me, esplendorosa, onde tudo era belo e
denotador de progresso, desde os alterosos edifícios, admiráveis avenidas, movi
mento intenso nas ruas de "impecável asseio" (!!!),a estabelecer um conti"aste com
as demais cidades do país: "O que nas outi"as cidades do país só assistimos aos
domingos e dias fesüvos, na capital fedeial vê-se diaiiamente, a cada instante".""'
O próprio carnaval era diferente,assinala Eduardo Guimai"ães, numa crô
nica ri" O Diário: enquanto que na Europa, em Nice, por exemplo, tudo era
elegância, arte e prazer, e no celebénimo Rio deJaneiro era delírio,selvageria
e explosão da alma popular,em Porto Alegre ele eia tímido, organizado, bem
comportado..
A partir desse hot"izonte — a Porto Alegre — paisagem distante da Porto
Alegre — cultura —,recompõe-se a da visualização assinalada pelos saudosistas.
Estes, contudo,celebravam o ruralismo ou aspecto aldeão que ficara para trás,
como padrão de uma positividade que se fora.Já os lamentos da amargura pro-

Carvalho, Elísio de. Esplendor e decadência da soríednde brasileira. Rio de Janeiro: Garnier, 1911.
p.219.
-""Novaes, Carlos de. Indiscrições. Kodalc. Porto Alegre, 17Jan. 1914.
Napier. Capital federal. Echo do Povo. Porto Alegre, 31 jul. 1911.
"""Guimarães, Eduardo. Domingos de um fantasista. O Diário. Porto Alegre, 1® mar. 1914.

344
vinciana colocam no presente e não no passado da memória a Poito Alegre-
aldeia, Porto Alegre-paisagem. Se os progressistas visualizavam no presente os
tmços de promessa de futuro e o superestimavam, para a "amai-gura provincia
na" esse futuro se achava comprometido pela insipidez e modéstia do meio ur
bano oferecido no presente.
Projeções literârias dessa tendência apontam na direção da falta de assun
to que a cidade acanhada proporciona, numa Porto Alegre onde nada aconte
cia e onde as reduzidas iniciativas não vingavam.
Uma outra postura desdobrava-se na mais ou menos amai-ga constatação da
diferença, talvez mesmo no abismo que sepai-ava a capital gaúcha de outi-as cida
des. Nessa visualização, o Rio se toma asseado, e Poito Alegie suja e fedorenta.
Não só isso: mesmo as possibilidades de acesso a uma cultura superior ou os pa
drões de um entretenimento mais refinado aqui não tinham lugai; Como aspii-ai*
a assistir Fausto ou La Bohème,ouvir Debussy ou Sti-auss num teatio São Pedro,
onde havia até quem poncho, num patriotismo idiota, a exibir-se na platéia?-'^'^
Também na arquitetura a diferença era gi-ande: enquanto que nas capitais
européias e americanas, como Paris, Berlim, Washington e Rio de Janeiro se
viam constmções majestosas afomiosearam as loias, Poito Alegre estava conti
nuamente a "empobrecer-se" com os feios edifícios que lá se erguiam,como o
Quartel General que começava a se erguer na Rua da Pima,em 1908:
[...] curiosa constiução milenarista. Eu disse curiosa. E realmente, é engraça-
damente feia. Para que sei-vem, digam-me lá, naquela cúpula que parece um
dedal, os medalhões e legendas aí colocados? E estético, em um quartel, cons-
ti uções como esta: 'E chegado o momento de cada um cumprir o seu dever',
'A boa política é filha da sã moral e da razão'? Além, em seu conjunto exterior,
a perspectiva que se oferece é péssima... [...]. Enti etanto, há males que vêm para
bem. Aüavés dos 3 dias do carnaval, um crime que se confunde com a alegria,
o povo terá o gozo de uma outia novidade, enti^e muitas. O quaitel general em
consti ução, com seus ti emiliques espirituosos, como diria Dickens, pareceiá
um mascarado monstruoso, de dominó a cores escandalosas, debruado de
guizos, e virando e revirando aqueles medalhões de antepassados, gi-ossos olhos
castanhos..."*"

O deboche recai não só sobre o caipirismo da constmção —justo na céle


bre Rua da Praia —,como sobre o malsinado governo de inspiração positivista,
que induzia ao emprego de tais dísticos.

■''Mefistófeles. No lírico. Kodnk Porto Alegre, l®nov. 1913.


"""Rastignac. Prisma. Jomal da Manhã. Porto Alegre, 12 fev. 1908.

345
Mas, para tais cronistas, e sobretudo para o feiino Rastignac, doJornal da
Manhã, Porto Alegre, como cidade, não tomava jeito: era ainda uma aldeia,
"sem mído e sem gmça, onde a monotonia levantou a sua catedml de areia...
[...]. A nossa ma lembm um paquete de tédio". E^sa cidade morta se manifes
tava no comportamento das mulheres: não saíam, pi eferiam obsei"var o mtindo
atmvés de uma vidmça a andar à luz do sol... Distante fica este discurso daquele
da Kodak, na qual a beleza da cidade é saudada sobretudo pela elegância das
mulheres que desfilam na Rua da Praia. Se bem que cerca de dez anos separam
um e outro i'egistro, num e noutro caso, a avaliação da urbe se dá em tennos de
aproximação ou afastamento de um paradigma de modernidade urbana. Mes
mo que a avaliação peque pelo exagero — uma Porto Alegie-aldeia ou uma Porto
Alegre-metrópole —,o que importa é a sensibilidade expressa nas representa
ções veiculadas pelo olhar litei-ário.
No mesmo estilo cáustico, Rastignac comentava que Porto Alegre contrari
ava s próprias verdades físicas, tais como a de que o calor dilata os coipos: com
a temperatura senegalesa que fazia no verâo,o calor não dilatava os coipos,com
o que "a atividade desabrocharia em flor sobre todas as coisas",'"^" a cidade ficava
ainda mais deseita, sem movimento e, conseqüentemente, mais monótona...
Da mesma fonna, no que concerne aos elementos icônicos da moderni
dade, as relações se dão por avaliação de positividade ou condenação. Veja-se
o caso do cinema desbancando o teatro. Na versão saudosista da visualização
da urbe, o cinema é negativamente valorizado, mas, no caso dos progressistas,
é sintoma de modernidade,enquanto que, nessa postura da amargura provinci
ana, é constatada a supremacia de um sobre o outro no gosto do público, mas
um leve tom de ironia leva a pensar que o endosso da nova fonna de diversão
não representa uma elevação do nível cultural do povo.Diferentemente da Fran
ça, onde o teatro não fora desbancado, o Brasil seguira o exemplo de outros
países e preferia as "fitas" engraçadas. Como diria Rastignac,"fazer rir é o segre
do de domar o crocodilo popular".
A disputa "teatro x cinema" parece ter agitado a reflexão daqueles espec
tadores do urbano. Vivaldo Coaracy retoma o tema na sua crônica O Diário,
em 1911. O cinema é uma fatalidade da vida moderna e se transformara numa
necessidade pública:"é mais do que uma doença, uma neurose; é uma função
social, quase uma função fisiológica".^'"'

Rastignac. Prisma. da Manhã. Porto Alegre, 20 fev. 1908.


'"'-Rastignac. Prisma./omrtZda Manhã. Porto Alegre, 20 mar. 1908.
Rastignac. Pnsma..Jornal da Manhã. Porto Alegre, 21 fev. 1908.
Coaracy, Cinema versus teatro.

346
Inevitável era a moite do teatro e se, na opinião do interlocutor do cronis
ta, isso implicava um atentado à arte,o retnique era implacável: o país não pos
suía arte dramática,o meio não era evoluído o bastante para abrigá-lo e as pou
cas iniciativas culturais leradas a efeito não chegavam a Porto Alegre. A capital
gaiicha só estava afeita a ofertas ou outras peças de vaudervilU, "adubadas a sal
grosso". Para meios tacanhos, vidas a transcon erem miudinhas no cotidiano, o
cinema seivia, com as suas emoções fáceis...
Mas, afinal, a Porto Alegre destes cronistas não implicava, mesmo assim,
a existência de um centro urbano tocado pelo progresso? Sim,mas tais sintomas
eram apenas o aflorar de algo que, alhures, existia, desabrochava e se consoli
dava como metrópole. Talvez sobrasse o escapismo da ironia diante da foraia
trâgica de viver à distância dos centros mais desenvolvidos, de sentir-se intelec
tualmente à mesma altui-a, mas sabendo que havia um abismo intransponível
entre o viver lá e o viver cá. O deboche, a exposição do ridículo de situações
ditas "modernas" para a urbe que se queria desenvolvida era umaforaia de ver
e sentir a cidade que se oferecia como problema.
E exemplar a crônica de Rastignac, que assinala a primeira passagem do
bonde elétrico pelas mas da cidade, boquiaberta e maravilhada:
O dia de ontem foi um feriado alegie. Não o marcavam as festas nacionais, não
o beatificavam nomes de santos, e nem por isso deixou de ser baimlhante, festi
vo, todo de risos e alegiias. Porto Alegre, a sultana do Guaíba, como diziam os
antigos ti ovistas, é uma cidade linda, porém preguiçosa. E daí um soniso de
pasmo quando, da Alfândega, à beira do rio, a um an~abalde passou como um
demônio um bonde elétiico, em vinte e dois minutos cheios de sol...
O pasmo,em geral, é sinônimo de imobilidade. Mas o pasmo a que eu assisti on
tem,discordem embora os psicólogos, era um pasmo ruidoso,giitante, o que me
deu a impressão,em certas ruas, de eu andar em algiun bairro da Holanda,povo
ado de uma burguesia risonha e ativa...'"'

Chamando a atitude, por vezes assumida pelos poitoalegrenses, que simu


lavam desinteresse, de "simples orgulho provinciano", o cronista destaca que,
em teiTnos gerais, as pessoas se agiiipavam nas calçadas, à espera de ver passar
aquele "símbolo do progresso". Num misto de afetado desinteresse e maravilha-
mento,explícito nas mulheres e crianças, os conti-astes da cidade se revelam:

"Mas a melhor paisagem, aliás pouco observada, foi esta à Rua José de Alencar:
de um lado, na estiada livie, o bond elétiico, passeando a sua celebridade; de

'Rastignac. Prisma./o/TirtZ rfrt Mrtw/íã. Porto Alegre, 10 mar. 1908.

347
outro, num terreno sem cerca,junto a um ti'onco morto,alguns bois pastando, e
uma carreta de rodas lai gas. Seria um pedaço do presente diante dum pedaço do
passado,se a carreta seguisse rinchando. Mas o diabo é que os bois estavam soltos
e a carreta oculta por espessos maricás em flor.®**'

A Porto Alegre-paisagem, a cidade acanhada teimava em apagar o brilho


das inovações urbanas. Animais soltos, pastando, vegetação espessa, carretas
diante da velocidade mjyestosa da máquina moderna,que cortava as tuas...
Como o bonde elétrico,o automóvel,signo predileto da modernidade,era
satirizado nas crônicas. Chamado de "moderno elemento de despopulação",
debochava-se das conclusões de um médico inglês, que afirmava ser essa máqui
na um remédio eficaz contm a tuberculose,uma vez que a velocidade de 80km
horârios era suipreendente nos seus efeitos sobre os doentes...Se tal recomen
dação fosse adotada, o tínico espaço da cidade que ficaria a salvo das decisões
da Lei acopladas à Medicina seria o aéreo...®*"
Uma terceira inflexão presente na postura da "amargura provinciana",
tal como vem expressa nas crônicas e que, por sua vez, se desdobra das anteri-
onuente citadas, é a da descrença no progresso alardeado.
[...] seguidamente,quando qualquer coisa dizem com referência a Porto Alegre,
editarem [sic] umas tantas verdades que por aí correm em relação ao nosso pro
gresso,exagerando-o criminosamente.Enti'e outi"as sandices, calviníssimas afirma
ções. Eles categoricamente afirmam que Porto Alegre é um capital de primeira
ordem que nada tem a invejar aos grandes e populosos centi'os europeus.[...]
[...] O que é real, verdadeiro, e desafiamos contestação, é que Porto Alegre não
passa de uma aldeia grande, costumes primitivos, desenvolvimento intelectual e
material nenhum,a pavimentação de nossas ruas é indecentíssimo, seiriços de
água e esgoto não temos, os condutores de gás que iluminam as ruas centi'ais são
fraquíssimos e os arrabaldes são iluminados a querosene.®*'"

Os esforços da gestão Montauiy para ajustar a cidade aos padrões mo


dernos da metropolização eram minimizados e ridicularizados. Poeira, demo
lições? Não levariam a muita coisa se fizessem a capital gaúcha equiparar-se a
outros centros. Anônimas crônicas da Kodak falam a um transeunte,"pacato e
sereno", que olha "com um grande olhar de admiração e alegria a demolida
dos sujos e infectos pardieiros do beco do Fanha"... Este cidadão, vendo a de-

Ibidem.
automóvel. Kodak. Porto Alegre, dez. 1912.
Guimarães, Quintino. O nosso falso progresso em Porto Alegre. O Indej)endente. Porto Ale
gre,5 nov. 1905.

348
molição, sonha. Sonha que das minas e destroços se vai levantar uma alterosa
avenida:

Uma avenida com todo o seu tumultuar violento, retinindo, palpitando, a eco
ar, num prazer constante, que é o fluxo e o refluxo do mar, é luta de fera, é tem
poral aceso e que é enfim a vida em todo o seu titâneo esforço. E sonha, o tran
seunte "rêveur", com tuna foirna que se silhueta nos longes desta avenida, com
uma forma que aos poucos, serenamente, harmoniosamente para ti vem dedi
lhando a miisica das suas linhas e pensa no que seria doce para ti, pobre ti-anse-
unte dos lazeres e das penas, o teresjá amanhã, macadamizada e extensa a se
perder à tua vista essa avenida do projeto.*"®

Tal sonho tem inspiração precisa, ele se reporta ao paradigma da cidade


moderna,ao predomínio da linha reta,à cidade aberta,emergindo dos escom
bros do passado para dar passagem ao houlevard,símbolo universal da metropo-
lização. Teria o transeunte,rêveuruYhmxo, Buenos Aires, Rio deJaneiro ou Paris
no seu hotizonte? Seja qual fosse a cidade ideal que inspirasse o seu sonho, o
cronista se incumbia de acordá-lo, chamando-o à realidade e trazendo-o para
um cotidiano amargo e desesperançoso:

Oh! Melancólico tianseunte, esqueceste, por certo, que estavas em Porto Ale
gre, na leal e valorosa cidade do sul onde os melhoramentos são projetos ape
nas, são sonhos que em papel se ficam.*'"

Se a Porto Alegre dos buracos e da poeira um dia tivesse as avenidas do


sonho, por certo elas se situaiiam num outro tempo,distante no futuro, onde
talvez só os netos do sonhador transeunte poderia utilizar.
A distância era grande. Porto Alegre não tinha como equiparar-se a tais
sonhos — que seriam realidade, talvez, só nas próximas gerações. Esse futuro
comprometido se embasava num passado pouco recomendável,cujo resultado
o presente da cidade confíiTnava a situação pouco entusiasmante. Outra crôni
ca apontava nesse sentido, em que o articulista, que se intitulava Um Veterano,
relembrava o tempo em que,em 1860, aportava na capital da província, vindo
do interior, com expectativa de nela encontrar só encantos. Sua atenção, po
rém,foi despertada pela tortuosidade das luas e pelo seu traçado in egular. In
dagando sobre esse aspecto da cidade a um velho morador,este mostrou-lhe o
antigo caminho que, da praça do Portão, acompanhava o alto da colina para

^Kodak. Porto Alegre, 3 oui. 1917.


*'»Ibidem.

349
descer até o Porto dos Casais. Caminho de can eteii os, vindos de Viamão e ou-
ti-as plagas,foi ao longo do ti-açado sinuoso que acompanhava a ondulação do
teiTeno que as casas foi*am constmídas, num tempo em que não havia enge
nheiros nem an-uadores.Se a explicação para o traçado da Rua da Igreja, atual
Duque de Caxias,satisfizera nosso cronista, mesmo com o pitoresco da função
conferida aos bois,como pioneiros do arruamento urbano,restava o problema
do resto da cidade; por que,então, as demais ruas eram também tortas e envie
sadas? O ancião respondera,simplesmente,que os antepassados eram retrógra
dos, muito atrasados...®"
Passados os anos, passeando agora no presente pela cidade, nosso "vete
rano" se espantava de ver em Porto Alegre, nos seus arrabaldes, os mesmos
defeitos que constatava no século passado, ejulgava que, no futuro, os póste-
ros fariam o mesmo juízo que se fazia noutro tempo: atraso, incompetência,
mente tacanha, mesmo que agora existissem engenheiros....
Com pequenas "histórias", essas divagações ficcionais trazidas pelas crôni
cas dosjornais são sintomas de uma avaliação da municipalidade e, como tal,
são pei^passadas por um posicionamento político. O que interessa, contudo, é
visualizá-las como outro sintoma: o da existência de uma cidade que emerge
como tema,preocupação e inspiração do texto,seja para sonhá-la, condená-la
ou desdenhá-la.

DE TUDO UM POUCO: AS AMBIVALÊNCIAS DA PEQUENA GRANDE CIDADE

A cidade de Porto Alegre, pois suscitava crônicas. Saudosistas ou entusias


madas,amargas ou irônicas,singelas ou rebuscadas,elas traduziam uma sensi
bilidade despertada pelas transformações urbanas.Tudo, porém,numa certa
medida,sem grandes vôos,sem grandes expressões literárias, sem grande va
lor estético — com homosas exceções —,sem que tossem fmto de uma reali
dade metropolizada e de uma descaracterização radical. Além destas crônicas,
testemunhos isolados de romances e novelas comparecem como registros ou
sintomas de que a cidade passava a se oferecer como tema para os espectado
res privilegiados do social — que são os escritores. Nada de grande repercus
são literária, mas são as inquietações do historiador que dirigem as questões
para interrogar os textos da épòca.E estes nos podem dar um precioso acesso
à cidade de então, guiando o leitor pelo imaginário social urbano de uma ci
dade, não mais aldeia, porém ainda não metrópole. A ambivalência do olhar

Um Veterano. Pelo futuro da cidade. Echo do Povo. Porto Alegre, 12 out. 1911.

350
liteiárío não fornece uma outra forma de acesso à cidade da virada do século
em textos que avançam sobre a crônica. Eles como que condensam as contra
dições e os contrastes, num resgate das sensibilidades que expressam ora o dis
tanciamento, ora a aproximação de Porto Alegre aos padrões referenciais da
modernidade urbana.
Comecemos pelo vom?ii\ce Estricnina, escríto pelo trio Máiio Totta,Souza
Lobo e Paulino de Azurenha e publicado em 1897 pela Livraria Americana,de
Porto Alegre. A "Geração Correio do Povo",comojá foi dito,iniciava-se nas crôni
cas, mas, nesta obra, ousavam um texto de maior fôlego. Tendo como subtítulo
"Página romântica", esta obra tinha como ambiente a capital gaúcha, cenário
do tragico amor de Chiquita e Neco, finalizado pela ingestão de veneno — a
estiicnina, que dá título à obra —,diante da censura, da intolerância e do pre
conceito social da época, que não admitia o amor entie uma prostituta e um
i"apaz "de família". Se a tragédia da trama,o peifil dos pei"sonagens e os cenáii-
os nos interessam, é pelo que nos podem revelar das representações urbanas
que contêm.
Que cidade era esta, que comparece não só como palco do difama, mas
que se introduz como elemento central na temática do romance?
Uma cidade que se definia como tal a paitir de seu centi-o e da Cidade
Baixa, mas que se espalhava, bucólica, pelo airabalde do Menino Deus e a lom
ba do cemitério.
Seus pei-sonagens se movimentam num espaço bem preciso, marcado pela
centi-alidade e delimitados, por sua vez, pelos marcos da urbanidade de então.
O romance tem início no teatro São Pedro, onde Chiquita e Neco assis
tem "A dama das camélias", de Alexandre Dumas Filho; de braço dado, des
cem pela Rua da Ladeira até a Rua da Praia, num circuito que leva da cidade
alta à zona do comércio e do footing, os personagens vão até o armazém na
Rua Sete de Setembro, perambulam pela praça da Hainionia,tomam o bonde
na praça da Alfândega e dão um prolongado e pitoresco passeio até o an-aial
do Menino Deus.
Uma cidade pequena,sem dúvida,e os indícios desse ajuizamento são váii-
os. A pobreza e a elite coabitavam num mesmo espaço,lado a lado. A desigual
dade social ainda não desabrigara os pobres do centro e mesmo da"cidade alta",
no topo da colina, moradias humildes se abrigavam,como a de Neco e Chiqui
ta, na Riachuelo, "no rés-do-chão de um velho prédio de sobradinho ao cen-
tro",''" denunciando a sublocação de imóveis degradados.

Souza Lobo; Totta; Mário; Azurenha, Paulino de. Kttriminn: pá^nn romântica. Porto Alegre:
Livraria Americana, 1897. p.33.

351
A pequenez da urbe ainda se revela nos mecanismos de controle social e de
censura, numa cidade em que todos se conhecem,dadas suas pequenas dimen
sões. Cidade tão pequena que,ao subir no bonde, na praça da Alfândega, Neco
leconhece no condutor um apaixonado de Chiquita. Da mesmafoirna,ao longo
dc^asseio de bonde que o casalfaz,olhando a cidade pela última vez,costeando
o Guaíba, a caminho do airabalde do Menino Deus, os viajantes conhecem as
pessoas que,dajanela,obseivam o movimento e são por elas reconhecidos.Quando
o bonde passa pela Rua da Varzinha,a prostituta Mariquinhas,que da suajanela
seduzia os transeuntes, reconhece o casal:
A Mariquinhas também ficou admirada de ver o Borba ao lado da amante, num
bonde cheio, à tarde, quando há tanta gente pelasjanelas, e giitou para denü o
de asa:
O Thereza,vem ver uma cousa.'"

Da mesmaforma,Neco Borba chama a atenção de Chiquita pai^ uma outra


rapariga,"à Janela de uma meia água",^" contando detalhes de sua vida paiti-
culai- ou então lhe recorda uma conhecida avistada na praça da Harmonia.
Só uma cidade pequena comportaria esse nível de comentário e reconhe
cimento pessoal. E é ainda nos quadros de um centro urbano de pequeno porte
que as notícias se espalham de boca em boca,ou que todo e qualquer aconteci
mento que rompa a regularidade do cotidiano desperta atenção. O caminhar
apressado de Ramalho conduzindo Neco à farmácia, após a ingestão do vene
no,fez como que "os transeuntes e o vizindário curioso e intrigado acompa
nhasse os dois", a "saber o que era aquilo",fazendo a botica ficar "invadida por
uma turbamulta de curiosos",''^ despertando a curiosidade da população e no
tavelmente dosjomalistas.®'® É entre anônimos, basbaques, homens de polícia
e repórteres que Neco mon e, convertido em notícia sensação na pacata Porto
Alegre, onde todos falavam da notícia do suicídio antes de ele ser anunciado
pelosjomais do dia seguinte.A circulação da notícia, primeiro de boca em boca,
no mexerico, no "delineamento indeciso do boato", precedente à publicação
do ocoiTido, coloca cores de "novidade" ao acontecimento,sacudindo a cidade
pacata.As palavi-as dos vendedores dejornais são significativas, pois confiimam,
pelo texto escrito,"aquilo que se dizia" de dois amantes que, por sua vez, eram
também "pessoas conhecidas":

3'nbidem, p.l72.
«'ribidem, p.l73.
^^^Ibidem, p.206.
^>®Ibidem, p.207.

352
— Notícia importante! Suicídio de um moço e uma moça que andavam jimtos!
O Neco Borba e a Chiquita Gomes! Notícia importante! Mataram-se esta noite
mesmo! Vem tudo explicado! Notícia importante!
— Psiu! Psiu! Dá cá uma folha. Então foi a Chiquita? aquela...?
— Ela mesma..

O velório de Chiquita é também exemplar: nele, todos os presentes se co


nhecem, desde o condutor de bonde,apaixonado e não-amado por Chiquita,
até o elegante Ramalho, passando pela prostituta Mariquinhas.^'®
Mas a pequenez é o aü-aso de Porto Alegre fim de século frente aos centros
urbanos mais avançados também se revelam em pequenos indícios, que mar
cam a distância da capital gaúcha dos centros maiores. Pois a viagem de bon
de não era capaz de durar uma eternidade: 2 horas e 45 minutos, da praça da
Alfândega ao an-abalde do Partenon, no dizer de Neco?''"'
Além disso, estamos numa Porto Alegre onde se "passeia de bonde",como
fizera Neco com Ramalho nesta demorada excursão ao Partenon, ou então ao
aiTabalde do Menino Deus, com a sua Chiquita... Bondes a buiTO, decerto,
com as periódicas trocas de animais, que o humor da época chamava de "tro
ca de ministério",em viagens morosas, mas que,para os contemporâneos,eram
até capazes de realizar "caneiras vertiginosas", como na estrada que perconia
o anabalde até a igreja do Menino Deus.®""
Cidade pequena, sim, que é capaz de conter o mral à suas portas. É o
que se depreende do própiio aiTabalde do Menino Deus, com a sua igrejinha
no final da avenida e a sua festa de Natal com ares de roça, onde Neco e Chi
quita haviam se conhecido.®"' Tão pouco urbana que o desesperado condutor
de bonde,diante da morte de Chiquita,tomou um bonde e apeou num an-abal
de onde,no"descampado das coxilhas",deu expressão à sua mágoa contida...®"-
E ainda da lomba do cemitério que o infortunado condutor descortina o an-a
balde do Partenon e até as Águas Mortas,an oio limítrofe como an-aial da Gló
ria, gente a cavalo, cenas rupestres, como um homem a tocai- uma vaca e um
bezerro,como uma "vetusta paisagem bíblica".-®*®
Uma cidade aldeia? Não exatamente, pois há, nesta Porto Alegre,um lado
metrópole, no plano das sensações daqueles que a vivem. O reduto dessa expe-

•'"Ibidem, p.214-5.
®'®Ibidem, p.221
®'®Ibideni, p.l7õ.
'-"Ibidem, p.176-7.
Ibidem, p.61.
®--Ibidem, p.229.
'"Ibidem, p.232-3.

353
riência de modemidade urbana é o centro, com a sua praça da Alfândega, o
footingn^ Rua da Praia e,sobretudo, a "multidão", as luzes das vitrines, os cafés
e confeitarias, dando uma impressão de vida e de festa:
Como em noite de reti eta, uma banda de música tocava iia praça da Alfândega,
em cuja alameda mal iluminada grupos de moças e de rapazes passeavam,acoto-
velando-se, enti e monossflabos secos e risadinhas disfarçadas, olhares indiferen
tes e olhares hr<yeiros. Ao pontear a praça, Chiquita parou, nas proximidades da
Colomho,donde saíam tinidos finíssimos de copos, estampidos de rolhas, ruídos
de cadeiras arrastadas, de mistura com um vozear conúnuo e surdo. [...] Sempre
ahsorta, Chiquita seguiu pela Rua dos Andmdas, que aquela hora de movimen
tação e de ruído, soh a luz seca e áspera das lâmpadas elétiâcas, resplandecên-
cia gloriosa, no seu orgulho tinunfante de flor de capital, com doirados matizes
de civilização e de luxo.'-"'

O centip de Poito Alegre é descrito como implantado no coração de uma


metrópole. E uma cidade de conti^astes, oiKÍe crioulos a caminho da estiva, no
porto,cmzam com mulheres br ancas, belas e elegantes, trajadas pelo figurino
da última moda. As vitrines são "resplandecentes" e "mtrlticolores", par-a o que
contribuía a iluminação elétrica do centro, cujas lâmpadas,"como olhos es-
bugalhados de moribundos, iluminavam a rua a trechos, com a sua luz vivíssi
ma e parada".^-'São interessantes as designações para o espetáculo urbano no
turno: as lâmpadas são secas, ásperas, vivíssimas e paradas, configurando o
mistério de uma energia que não se vê e que empolgou aJin-de-siècle. Mesmo que
a "fada eletricidade", como a denominavam os franceses, fosse rrtilizada só rro
centro da cidade,seu efeito mágico,de atribuir cor e luz numa modalidade di
ferente,er*aum elemento de fascínio que, no setr emprego, mesmo que reduzi
do,aproximava Porto Alegre das metrópoles.
A cidade modenia — ou a Porto Alegre que se visualiza como se tal fosse
— é não apenas luz, brilho e cor, mas som. Uma cidade é barulhenta e cheia
de ruídos, que vão desde a música ao zumzum dos transeuntes, passando pe
los apitos dos cocheiros de bonde.'-'"'
Uma grunde cidade,com variados tipos, requer o emprego de metáfor^as e
nossos autores representam essa multiplicidade de imagens pela figur-a do calei
doscópio,a sugerir movimento é'diversidade.'-'

'-''Ibidem, p.113-4.
Ibidem, p.l 16.
Ibidem.
Ibidem.

354
É uma cidade quejá tem "os vícios" de um gmnde centro: uma "boêmia
doirada", de rapazes elegantes de fraque e cartola, que se dão shafie-hands, que
fazem farinas (ou "noites de troça") no restaumnte Provot, na verdade casa de
encontros no arrabalde do Menino Deus...
Assim, Porto Alegre é uma cidade que exerce uma atração para aqueles
que vêm de fora, como Neco e Chiquita.
Aqui se introduz uma contraposição centi"al na nairativa: a quejoga com
as referências do campo e da cidade. Nossos personagens vieram do interior
para a cidade grande e nela se perderam. Neco nascera "na paz deliciosa dos
campos", numa fazenda "para as bandas do Alegrete" e pela falência dos negó
cios familiares,se mudara pai^a a capital. Se,a princípio,"a vida midosa da cida
de dava-lhe grandes saudades da paz adorâvel de sua estância",''-® aos poucos,
esse mesmo bulício e agitação foi curando a sua melancolia:

Empregoii-se no escritório de uma companhia industiial, adquiriu relações e


entrou a freqüentar os cafés, os teatros e os bailes. No fim de algum tempo, a
sua alma, outrora de uma pm eza e simplicidade primitivas, estava perfeitamente
adaptada ao meio hipócrita e falso da capital.'-"

Talvez daí viesse a sua "face amarela de hepático",®®"resultado de uma vida


mundana e dissipada e um tantoJln-de-siècle...
Já a infeliz Chiquita é uma "flor do lodo", na esteira das personagens literá
rias francesas do século XIX. No melhor estilo literário da época, ela usa "boti-
nhas minúsculas",'" confirmando a obsessão por pés pequenos... Enganada,
"perdera-se" e abandonara a pobre casa dos pais, em Viamão; na cidade gran
de, prostituíra-se, mas conservava a pureza de coração. Daí a sua identificação
com a "A dama das camélias" e o choro desenfreado que a acometeu ao assistir
a peça de Dumas Filho no teatro São Pedro, na cena que dá início ao romance.

Q,u'er ela na vida sinão uma outra Margarida,com o mesmo passado tormentoso
e lamacento, com a carga de torturas e de sofrimentos? Como a outra, tinha des
cido, degrau por degrau,a lôbrega escada da depravação e da infância e,como a
outi-d, subia depois também a escada divina do arrependimento e do amor."-

'-«Ibidem, p.fi9.
•'"Ibidem, p.71.
""Ibidem, p.9.
'"Ibidem, p.l83.
"'Ibidem, p.23.

.S55
o blilho fácil da cidade perdeu-os e o preconceito social os an-astou para o
drama final.
Quando sonham,recompõem o campo pela imaginação,configurando no
mral a felicidade perdida. Neco Borba "fantasiava uma vida satisfeita e feliz,
gozada longe, muito longe do mundo, os dois a sós, entre o verde extenso da
pradaria infinita e o infinito azul do céu extenso"."'^'' Na dimensão onírica, a
positividade se conceitua no campo,numa idealização glamourizada que o fez
retornar à infância, marcada por um retomo à natureza. Não é por acaso que,
antes de cometerem o suicídio, Neco leva a amante para um passeio de bonde
que destaca mais a paisagem que a cidade. Ao longo da deiradeira viagem, que
vai da Rua da Praia ao Menino Deus, com largo trecho pela beira do GuaílDa,
embora Neco chame a atenção de Chiquita para os prédios que se avistam — o
Gasômetro, o asilo Santa Teresa, o Asilo de Mendicidade, a estação da estrada
de feno da Ponta do Dionísio, o palacete da Baronesa, a ponte dos Cadetes, a
ponte do Menino Deus —,é sobietudo o aspecto paisagem o que mais conta.
Assim,os destaques ficaiiam por conta do magnífico pôr-do-sol,com suas cores
deslumbimites, ou com o enquadramento dos prédios, tendo o recoite da costa, o
Guaíba, o crepúsculo e a vegetação a comporem esteticamente a paisagem:
E o morro lá em cima, muito alto, como uma sentinela destacada guardando a
casaria branca, que se esconde sob suas abas verdes. Como tudo isso é belo, Chi-
quitaP*''

A capela do Menino Dqus, bi-anca e florida, no fundo da avenida, é outra


pei^spectiva que se articula com o "moiTo verdejante" e sob a luz do crepúsculo.
A positividade se configura na cidade-paisagem, na bela Porto Alegre pró
xima da natureza e que,de uma certa foima,se aproxima,vista do bonde,com
o sonho da felicidade idealizado por Neco e Ghiquita de uma não-cidade.
Esse tipo de orientação pela natuieza também está presente na passagem
em que os dois amigos de Neco — Galvão e Ramalho — se encontramjunto aos
aiTnazéns da Sete de Setembro e se expõe o cenário de progresso do porto, en
tre máquinas,guindastes,trapiches, ascensores, mercadorias e barcos.^^® Mas tal
imagem da cidade-progresso é Jogo sobrepujada por uma outra visão,a da Porto
Alegre-paisagem,que se descQrtina desde o cais do porto e para o qual Ramalho
chama a atenção do amigo:

Ibidem, p.22.
"■•íbidem, p.l71.
Ibidem, p.l76.
""Ibidem, p.l36.

356
o sol, em cima, resplandecia; em baixo, as águas faiscavam,à gi-ande luz; no por
to, os navios, sob o docel ceníleo, quedavam-se sonolentos; ao fundo, as ilhas
fronteiras, coloridas de um verde esmeraldino, debuxavam as suas formas ca
prichosas no claro espelho das margens.**'

A cidade é bela porque a natureza é bela? A cidade se valoriza pelo seu


não-urbano? Numa certa medida,essas são questões repostas pelo texto que se
aproximam e distanciam Porto Alegre da cidade moderna.
E ainda esta a cidade que retoma no final da obra e que, na imagem evo
cada,compõe a ambivalência dos signos.
Do alto da lomba do cemitério, o condutor de bonde descortina a cida
de a seus pés, como "um vasto panorama":

A animação,a rida feirilhava em toda a sua extensão,como em um corpo puti efe-


to as laivas em plena atividade. Bondes e carros cruzavam velozmente pelos arra
baldes; as fábricas, apagando os fogos, vomitavam das chaminés largos penachos
de fumo;operários sui giam em grupos,daqui e de acolá,de volta ao ü~abaIho.**®

É novamente a cidade-metrópole que retoma, com a sua agitação, bulí-


cio, sons, pessoas, prédios e canos, mas nela se insinua a imagem de putrefa
ção, com os vemies a corroer, símbolo do ciclo da vida e também da morte.
A imagem da cidade-paisagem se segue a esta, com a exaltação da natu
reza e a apoteose das cores, mais uma vez ti"azidas pelo crepiísculo que tinge o
horizonte de todos os matizes, dando à vista o privilégio da contemplação do
rio, que abraça a cidade com suas águas azuis. Velas br-ancas pontilham aqui e
ali esse cerrário majestoso,an ematarrdo o quadro da cidade que traz também o
tom nostálgico de uma despedida.
Por último, caberia dizer que, eirquanto discur-so da cidade-aldeia ou de
cidade-natur eza, a obr-a identifica lugares emblemáticos que articulam a pai
sagem com a tr-ajetória de significados destes espaços no tempo.Tome-se o exem
plo da Pr-aça da Harmonia.
E nela que Neco Borba vai dar, a remoer o seu dr^ama pessoal de amar
"trma mulher com passado". Praça dos enforcados e dos poetas, é sob suas ár
vores seculares e em bancos de pedra,em face ao rio, que Neco se decide pelo
suicídio, resgatairdo o clima ti-ágico e romântico do local.**® E lá, também,que
volta mais trma vez, quairdo,sem destino, perambula pela cidade, a perrsar na

**'Ibiclem, p.l42.
**'Ibidem, p.232.
**®Ibidem, p.80.

.357
peispectiva de induzir Chiquita,grávida,a cometer o suicídio. É mais uma vez o
crepúsculo que se anuncia, com o "sol agonizante", pondo tons avemielhados
no rio onde passam os navios. Neco é compulsivamente "atiaído pela tristeza
comunicativa que vinha das ái^vores da pmça,do silêncio do sítio, da quietude
do rio".3^"
E interessante de ver a recoiTência da imagem da cidade numa naiTativa
pictórica e paisagística. O autor faz usojustamente dos momentos significati
vos do nascer e do pôr-do-sol, indicando cores, luzes e reflexos que articulam
o cenário da natureza com as casas e as pessoas. Verifica-se uma beleza quase
plástica da nan-ativa:

Carroças de pão rodavam pelas ruas aos solavancos. Os empregados da ilumi


nação pública principiavam a apagar os lampiões de gás. Começara a cair so
bre a terra a aragem fria da madrugada. Uma claridade enevoada vinha se es
tendendo pelo céu, empalidecido e brumoso, e as torres das igrejas, o alto dos
grandes edifícios, a casaria toda da cidade iam pouco a pouco surgindo fantas-
ticamente da sombra.^""

A descrição nos reporta não à cidade da luz elétrica do núcleo centi-al, mas à
placidez da Cidade Baixa ou dos aii-abaldes,onde tais serviços urbanos ainda não
chegavam e que guardava ainda os contornos de uma cidade colonial.
Qual teria sido a recepção desta obra na sociedade porto-alegrense? O
Catálogo da Livraria Americana o classifica de "romance de sensação" pelos três
conhecidos Jornalistas da cidade e que tivera "midoso sucesso, sendo muito
bem recebida pela imprensa".^''- Reportando-se ao lançamento da obra, refe-
lia o Catálogo que,em três dias apenas, tinham sido vendidos 600 exemplares
de Estricnina e que a obm era esperada com grande ansiedade pelo público e
pela crítica. A vendagem anunciada é realmente extraordinária, consideran
do a população da cidade e indicando uma tiragem também muito expressi
va para a época. A "ansiedade" da espera nos indica que a mesma teria sido
alardeada e anunciada de antemão pelos próprios autores. E o próprio Catálo
go que dá a pista para o entendimento:

A "Estiácnina" é a narração verdadeira e ti iste dos amores desventurados de dois


Jovens que em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, envenenam-se, in-

Ibidem, p.l22.
■■ Ibidem,
iDiaem, p.131
p.ioi.
Catálogo da Livraria Americana. In; Almnnnk Litnúrio e EsCníixtiro do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre; Livraria Americana, 1913. p.32.

358
gerindo grande quantidade do terrível tóxico que deu nome ao livio. Escrito
com grande vigor de estilo, cheio de peripécias românticas, apresentando epi
sódios reais da vida de dois amantes, o novo livi o é digno de leitura e recomen
da-se ao bom gosto do ilusü ado público.'^'

A aite imita a \ada? A ficção é, pois, baseada no real? Ou, atualizando o


debate,as fronteiras da história e da ficção são tênues mesmo? O que é tido como
romance é a história de algo acontecido e transformado em nan-ativa literáiia?
No ano anterior ao lançamento do romance pela Livraria Americana, ou
seja, em 1896, o Correio do Povo publicava, no mês de setembro, uma série de
reportagens sobre um "caso momentoso" que oconera na cidade: um duplo
suicídio por amor!
O trágico episódio, que abalou a cidade e fez esgotar as edições dojor
nal, ocorrera na noite de 3 de setembro. A narrativa detalhada não deixa dú
vidas quanto à associação com o tema-enredo do romance:o "caso"fora reve
lado por um jornalista, quando passava pela farmácia Fiimiano, na Rua dos
Andradas, notando que "alguma coisa de estranho ali se passava".^''^ Tal como
no romance, o citado "trágico drama de amor" começara por ser descoberto
através da curiosidade de um jornalista que "passava" pela Rua da Praia e se
viu atraído por "algo estranho". Estamos, pois, numa Porto Alegre onde os
homens de imprensa andam pela rua, à cata de notícias e onde tudo chama a
atenção pela quebra da normalidade. O Neco Borba do romance chamava-se,
na vida real, Antônio Borges Lima,o Nico Borges, e tinha 21 anos;a heroína,
com 19, Francisca da Gama, era Chiquinha. Os autores, como se vê, pratica
mente nada mudaiam da vida para a ficção,salvo pequenas adaptações. Chi-
quita-Chiquinha morava na mesma Riachuelo, ou Rua da Ponte, mas agora
com detalhes precisos: no n° 169,entre as ruas Claras e do Aitoío. O detalha
mento da notícia reproduz o diálogo dojornalista com o suicida, que lhe deu
conta como se sentia após a ingestão do veneno e porque haviam resolvido
matar-se:"Não posso viver com ela ostensivamente, porque a sociedade não o
consente".^"'' Detalhe que se configura como "liberdade poética" dos autores
diante da notícia dojornal, Neco-Nico, no romance, não comprara o veneno,
mas roubara-o da faiTuácia.
Pormenores interessantes aparecem na vistoria da casa da suicida, com
poucos móveis e revelando a pobreza de sua ocupante, mas onde são encontra-

Ibidem.
Última hora. Envenenamento e duas mortes. Coneio do Povo. Porto Alegre, 4 set. 1896.
Ibidem.

359
dos livios: Contos da Carochinha,A Miragem,de Coelho Netto,e as poesias de
Félix da Cunha. Tocante detalhe, que combina com a extrema juventude de
Chiquinha,leitora de contos infantis e de poesia romântica, mas que também
tinhajunto a si um dos autores mais lidos e festejados dajin-de-siècle. De Chiqui
nha ou de Neco? A Chiquinha que comete erros de oitogi^afia nas suas cartas de
despedida — não são eiros tipográficos, pois ojornal alerta que vai consei^vara
gi"afla original — leria tais livros? Quer parecer que sim, pois estavam sobre o
seu hidet, ao lado da cama. Que ela ei*a de poucas luzes,já o sabemos: no livro,
nao sabe o final de A Dama das Camélias e, pelojornal, ei"a filha de um horte-
lão italiano morador de Viamão, e, segundo ainda o relato dmmático de sua
mae no enteiTo, cedo se prostituíra.''""' Mesmo assim, Chiquinha parece ter pu
dores posl-mortem, pois deixa recomendado que pode ir enterrada com a roupa
branca que está no coipo... Ao mesmo tempo, vaidosa, pede que a vistam com
um bom vestido de casemira que está dependurado,casaco do mesmo,enfeita
do de encarnado, botinas".
Referida como bonita,de aspecto agradável,sua foto ficou exposta à porta
do escritório do Correio do Povo,de modo a satisfazer a curiosidade da população
que não havia podido comprar ojomal com a reportagem sobre o suicídio,logo
esgotado.®^®
Curiosa é a performance áe Neco, moço tido como morigerado e de bons
costumes: deixa, para a mãe, uma estátua de Santo Antônio e, para o pai, re
comenda que não faça uso da balancinha onde pesara a estricnina, anema-
tando a cai*ta: 'Muito cuidado com a balança. Cautela e caldo de galinha não
faz mal a ninguém".
O romance trabalha a carta deixada,colocando sentimento e cerimônia
no adeus, para desprender-se de um cotidiano carregado de lugares-comuns.
No mínimo,devem ser creditados ao suicida meticulosidade e bom-senso dig
nos de um conselheiro Acácio. Mas Neco (ou Nico) e Chiquita (Chiquinha)
teriam vivido, no real e na ficção, uma história de amor capaz de produzir o
lirismo da poesia:

Num corselete de Chiquinha, o sr. Louzada [delegado] enconüou, cozido pela


parte interna, um quarto de papel de almaço, em que se lia os seguintes escritos
a lápis por Borges Lima:
Chiquinha — Embora com sacrifício da minha vida,serei teu — Borges.

Duplo suicídio. Correio do Povo. Porto Alegre, 6 set. 189fi.


Correio do Povo. Porto Alegre, 5 set. 1896.
Ibidem.
Correio do Povo. Porto Alegre,6 set. 1896.

360
— As minhas cinzas chamarão: Chiquinha.
— O meu cadáver envolverá teu nome.
— A minh'alma encarnar-se—á na tua.
— Com meu sangue escreverei: amor eterno.
— Sem teus olhos verei o mimdo vazio de amores para mim.
— Com teu coração enfrentai ei o futuro.
Enti e essas frases de amor, ü~açadas por Borges Lima, havia também esta, do pu
nho de Chiquinha,e do mesmo modo,escrita a lápis:
— Eu até morrer hei de ser tua.''**

Embora um outro artigo, em 11 de outubro de 1896, declarasse que não


teria havido envenenamento no "caso do envenenamento", quer parecer que
não restam dúvidas de que esse foia o episódio-inspiração do rovmiice Estricni-
na, escrito a três mãos pelosjovensjomalistas da capital.
Não seria, contudo,o imico momento de ancoragem da naiiativa literária
em acontecimentos do cotidiano da cidade e que figuravam nosjomais da épo
ca, quando de escrituia da obra. Em detenninado momento do romance, Chi-
quita teme que a polícia a leve paia a cadeia por ter ofendido a moial pública,
tal como acontecera com a Fausta. A alusão deve-se à prisão e rumorosojulga
mento da "famigeiada" crioula Fausta, dona do mais célebre bordel de Porto
Alegre,situado no beco do Poço.''''
Mas não se trata de provar — ou constatai" — que Chiquita e Neco são
codinomes de dois amantes suicidas, ou de que o caso romanceado do envene
namento nada mais é que uma nan^ativajomalística com pretensões literárias.
Parece evidente que um é a inspiração do outio.
Se, mais uma vez, invocamos a posição do historiador como aquele que
coloca as questões, que dizem respeito ao clima, às sensibilidades, à "sintonia
fina" de uma época, configurando o texto literário como uma das foiTnas de
acesso ao real, através do imagináiio social urbano.
Estricnina nos repoita a uma postura niüdamentefin-de-siècle,que é a da obses
são pela moite e,paiticulaimente,pelo suicídio. Diante de suas angústias existenci
ais e do preconceito social que não ousa enfrentai-, Neco não vê saída pai-a o seu
amor senão o suicídio, ou melhor, pelo duplo suicídio. Ato, no seu entender, de
coragem, que os redimiria diante da sociedade que os condenava e que salvaiia o
filho que Chiquita ti-azia no ventie de um desúnojá ü:açado e amai-go:"o suicídio é
a mais bela demonstração da superioridade humana".^'"

""Ibidem.
'"Souza Lobo, Totta; Azurenha, op.cit., p.103.
'"Ibidem, p.l59.

361
Neco leproduz pam Chiquita,com detalhes, os efeitos do veneno e o tipo
de morte que os aguardava, associando-o a um pmzer intenso e profundo, só
comparável ao prazer sexual de um defloramento. Vai ao encontro de uma
obsessão litemria e a uma espécie de "legitimidade" do ato, que atravessa o fi
nal do século, expressando-se na postura decadentista de que "não há mais
nada a fazer ou a espemr do mundo".
A recepção da obra nos dá o elo de ligação com outro romanceJin-de-siècle,
que também fala de uma cidade neste mesmo tempo. Falamos deJura, o Letra
do, do jovem jornalista Zeferíno Brasil, que ambienta sua obra na pequena/
grande Porto Alegre dos anos tenninais do século. Zeferino Brasil publicava os
capítulos de seu romance nas páginas do Jornal do Comércio, pam depois reuni-
los num só volume,editado em 1900.
Sua publicação, contudo, gerou uma polêmica maior. Como refere Gui-
Ihermino César, no prefácio da segunda edição da obm, em 1975:

Juca [...] é [...] menos uma figura humana do que a suma sensível de uma épo
ca. O romancista percebeu exatamente as pontas do dilema ante o qual colo
cou sua criação romanesca. E o público de então, ao ler os capítulos iniciais de
"Juca, o Letrado", tanto o percebeu, da mesma forma, que pensava logo ti*atar-
se de um "roman à clé", de tal modo o "luminoso" Juca lhes pareceu, a esses
leitores, uma caricatui;^. Tão perfeita que começaram a examinar os intelectu
ais da terra, a ver com quem mais se parecia a criatura de ficção, tantos eram os
exemplares da mesma fauna...

Ou seja, na Porto Alegrejin-de-sièclev?iúos personagens do cenário urbano


emm identificados com Juca,o Letrado,e comentava-se quem seria o criticado.
A resposta que foi obrigado a dar o autor, diante da tumultuada recepção da
obra, que atingiu até o Rio de Janeiro, mostra que as suspeitas acabaram por
dirigir-se a uma determinada pessoa:

[...] a pai^voíce indígena quis ver neste personagem uma alusão clara a alguém que
eu apenas conheço, ligeira e superficialmente, por encontrá-lo, às vezes, de pas
sagem,no burburinho das ruas ou nas rápidas palesü as da salas das redações."^^^

A opinião pública identificava o personagem como alguém do mundo do


autor,que freqüentava a vidaliterária da época,nos tradicionais espaços dos cafés

César, Guilhermino. Prefácio. In: Brasil, Zeferino./um, o letrado (estudo de psicologia módnda).
2.ed. Porto Alegre: Fundação de Educação e Cultura do S.C. Internacional, 1975. p.8.
354 Brasil, op.cit., p.I.

362
e da Rua da Pi-aia e das salas de redação. Mas Zeferinò Bi-asil nega essa intenção e
acusa de intngantes os autores de tais associações e define a sua posição:
Juca, o Leti~ado, não é um indivíduo; é a encarnação de muitos indivíduos. O
romance, tal qual eu o concebi,sem grandes pretensões, visa um fim único — é a
crítica de uma espécie de críticos que costumam maldizer dos trabalhos alheios,
por sistema e por hábito, que acham mau tudo o que os outi os escrevem, e que
nada produzem, ou só produzem coisas que não prestam. E um tipo real, na ver
dade. Não há quem não o conheça.Todos nós temo-lo enconti^ado na vida. Ele fi e-
qíientajornais,lê muito,assina revistas, compm bons livi os, mas é frívolo de espí
rito e curto de idéias. E em geral conversador e contador de anedotas. Muito pró
digo em aplausos para as mediocridades,é sempre diu o censor para os verdadei
ros talentos. Só fala nos livi os franceses;faz timbre em mosti-ai- que conhece a li
teratura russa e escandinava. Enü etanto,quando se refere aos escritores nacionais,
mesmo os mais notáveis,só tem impertinências irônicas e crítica azeda.^®'

Reafirmando que "não fazia uma revista do ano", e sim um romance, Ze


ferinò Brasil lembra que os fatos nan-ados tanto poderiam ter "acontecido",
literalmente, na Rua dos Andradas, de Porto Alegre, quanto na Rua do Ouvi
dor, no Rio de Janeiro... Com isso, nosso autor descola a sua mensagem de um
contexto exclusivamente regional, pai-a integrá-lo a uma pei-spectiva mais am
pla, de uma fin-de.-sie.cle literária e, sobretudo, brasileira. E possível que, nessa
medida, faça eco ao sarcasmo e ironia de Lima Ban eto à beüe époque caiioca
com seus literatos de salão afrancesados, mas,sobretudo, há, na obra de Zeferi
nò Brasil, uma crítica amarga à má vida literária gatícha.
Esse é um aspecto que aproxima Porto Alegre da imagem de uma aldeia
que se quer metrópole. O meio é acanhado,triunfam os ineptos,sufocam-se os
talentos. EncarnariaJura^ oLe.trndoxxm personagem-símbolo de uma época? Ele
é alguém bem nascido, hon vivant, possuidor de uma enonne biblioteca e goza
de imenso prestígio: o"luminoso"Juca é recebido em todas as rodas,freqüenta
os lugares chies, é visto na porta da livraria Americana ou na Mazeron e visita as
redações dosjomais. Na Colombo,na Marchette ou no Nacional, na sua ronda
por confeitarias e cafés, ele desfila a sua elegância. Sua prosa é brilhante e dele
se diz quejá escreveu vários livros, embora não tenha publicado nenhum. Aí
todo o seu drama e toda a sua falsidade, que leva Guilhennino Césai"a defini-lo
como um tipo exemplar de "bovarismo".'''"'Juca tem uma alta concepção de si
próprio e vive segundo a representação que faz de si. Mas essa imagem é sociali-

'"Ibidem, p.II.
''®Ibidem, p.8.

363
zada, pois a vida literaría da cidade o festeja, mesmo que ele não apresente re
sultados práticos e materiais do seu valor intelectual. Entre o que faz realmente
e o que diz produzir, há uma enorme distância. O Juca-sensação caberia nas
páginas de Os Bruzundangas, de Lima Baneto, e tem lazão o autor da obra ao
dizer que ele não é um,mas a soma de muitos, que nele se reconhecem.
A começar pela imagem que suscita, tal a fama que goza. O narrador che
ga a experimentar uma certa desilusão ao conhecê-lo em frente à livraria Ame
ricana, na Rua dos Andradas. Pela idealização que fazia a partir do que dele
diziam,esperava uma espécie de Fradique Mendes,o célebre, elegante e máscu
lo personagem de Eça de Queiroz, mas oJuca real em magrinho,baixo, bilioso,
sem músculos, com barba mia e espinhas. Se não fosse o monóculo,o esmero
no ti-ajar e a vei-ve... Enfim, mesmo com tal figum,Juca anebatava o meio lite
rário, por aquilo que dizia fazer e não pelo que fazia. Era "tão conhecido no
mundo das letras"^'^ que seu nome já aparecia em estudos de crítica literária
sem nunca ter escrito. Sua fama advinha de algumas raras crônicas e de sua
conversa culta, afetada e com frases de efeito, a percon er cafés e escritórios de
jornal. Em insupei-ável na sua performance e, por isso, considerado o mais fino
conteur, causerdn geração boêmia e letrada da Porto Alegre Jin-de-sièr.le.
E como em essa pequena-grande cidade?
Retomam aqui as referências pontuais da elegância citadina:a tmdicional Rua
dos Andradas, a Livraria Americana, o Café América, a Confeitaiia Colombo, o
Café Marchetti, as salas de redação dosjomais. No centro da cidade, os mesmos
indícios de que uma cidade gimide impõe seu ritmo e tem hábitos:
E afestou-se, o monóculo a faiscai", confrmdindo-se na multidão que ia e vinha, rua
acima, rua abaixo, num brouliaha hilaiiante, na religiosa tiisteza do fim do dia.'®"

Mas Porto Alegre é uma cidade grande que ancom seus pontos de referên
cia de "metropolização", num marco muito restrito, circunscrito à centmlidade
urbana de então, marcados pelo eixo newoso da Rua da Praia, Praça da Alfân
dega e adjacências. O próprioJuca mom numa "Quinta",em região que é uma
extensão dessa cidade,espécie de refúgio para uns poucos privilegiados que vi
vem em casas fidalgas e em chácaras, cercadas por terreno amplo e arborizado.
A "Quinta",assim denominada porJuca, num requinte de expressão com sabor
"queirosiano", é o seu refúgio do bulício citadino, onde, no isolamento de sua
biblioteca, ele pode viver seus sonhos. Em meio a horta e pomar,tendo um lin-

'"Ibidem, p.9.
'®®Ibidem, p.l7.

364
dojardim à frente, ergue-se o r/iicsobi-ado do Moinhos de Vento,zona da cida
de alta que se estendia na continuidade e inflexão do eixo constituído no cimo
da colina pela Duque de Caxias. Os casarões da região abrigavam os bem nasci
dos,que momvam,ao mesmo tempo,perto da "cidade" e fora dela,na tranqüi
lidade proporcionada pelo contato próximo com a natureza. Area api-azível de
extensão do urbano,o campo bate às portas da cidade, na figura de passantes a
cavalo, diante do portão.^^**
A paisagem é bucólica, quase uma pintura é o quadro que nosso peiso-
nagem descortina dajanela de sua biblioteca:

O céu estava magnífico. O sol, alto, dardejava no espaço flechas ígneas, de ouro
candente. Das casas próximas, elevava-se em rolos, face as nuvens ti"anqüilas, o
fumo das chaminés. Um mascate passava embaixo,na laia larga,cantímdo'La don-
na è mobile'. Na chácara fronteira, um português das ilhas, baixo e cheio, revira-
va a terra, assobiando o fado,e de muito longe,da doca coalhada de navios, vinha
o apito agudo de um pequeno paquete."^

Zona de chácai-as e paisagística, é uma bela região de bem situados na


vida, que,se não se mescla com a agitação da centralidade urbana,se enconti-a
bastante próxima dela,de modo a peimitir que o nosso personagem vá a pé até
lá, passando pelo Largo da Conceição e a Santa Casa, pai"a daí descer a lomba
da Rua dos Aiidradas.^®'
O campo também se encontra próximo da cidade e com ela se inteipene-
tra em outras zonas menos chies, como na "tebaida" das Pedras Mortas,^®- onde
mora o naiTador do romance e que parece ter con espondência com os airabal-
des da Glória e Partenon, que se vizinhavam, cortados pelo aiToio das Águas
Mortas, região que se desenvolveu nas últimas décadas do século XIX também
abordada na obra.Eslricnina,}K comentada.
É também num "quase campo" que se abriga o chalé florido de Alberto,
o cronista verdadeiramente talentoso amigo de Juca.
Sobre esse campo,próximo,dentro ou fora da cidade,Juca tece um discur
so idealizado, no qual a proximidade da natureza maica a positividade e o con
traponto com a urbanidade:

Ali! o campo! o campo! a boa e santa vidinha do campo! Isso é que era um en
canto, um regalo, uma felicidade!

''®Ibidem, p.38.
'^"111100111, p.lOO.
'«'Ibidem, p.76-7.
Ibidem, p.9.

355
[•..] o campo! O campo! A vida simples do campo, niim biicolismo risonho e
doce! Isso, sim, era a felicidade perfeita.^^'"^
Note-se, no caso, que não é exatamente a cidade-campo,quase aldeia, bur
go pequeno,o núcleo do discui^so do letiado; o que postula,em versão glamou-
nzada,é o campo como oposto da cidade. A visão é inequivocamente baudelai-
liana, de tédio,ennui^ spleen^ na sua retomadaJin-dp-siècle, num tom de decaden-
tismo à Ia Huysmans:

Quê! Pois eu deixava Pedras Mortas, com as suas flores, os seus bosques, os
seus campos risonhos, as suas noites de calma e luar, para vir gozar a vida ele
gante, da Babilônia das grandes misérias e das grandes dores, onde ele vivia
morto de tédio, esmagado de spleen, com uma imensa nostalgia dos campos
verdes, da natureza rústica, da poesia simples dos humildes povoados?!^'"'*
O tom afetado chama o "mstico" de "belo" e idealiza o cotidiano simples
como sinônimo de "bondade". Por conti^aste, Poito Alegre — quem diria! — é
associada à Babilônia dos pecados,onde o vício tinha lugar certo: os becos imun
dos,que degradavam e fascinavam e os"lugares da noite", onde mulheres de vida
evocavam, na nairativa, os ambientes boêmios de Paris com as suas corottes.
O beco, lugar maldito da urbe, reunindo bordéis e tavemas, comparece
no texto sempre associado ao vício, à miséria e à ignorância. Assim é que Etel-
vina, a menina pobre recolhida das ruas pela tia rica de Juca, era por ele desig
nada, nos seus momentos de raiva, como "rebento pobre de qualquer beco
imundo". Imundo certamente, mas é na escuridão de um deles que o refi
nadoJuca some,num fim de noite, atrás de uma crioula.. E é ainda por esses
ambientes que circulava o casal que criava a menina Etelvina, na sua primeii*a
infância, a freqüentar cartomantes e um célebre preto feiticeiro que morava no
beco do Barbosa...^®''
Na outra ponta do vício, o restaurante Provot,já citado no romance
nina,a demonstmr que Porto Alegre contava com tais lugares, era freqüentados
pela boêmia literária da cidade. A rapaziada alegre bebe chartrevse e "água da
vida",foniia sofisticada nativa de designar a popular cachaça,chamada eu de vie
em francês:

^^^Ibidem, p.16-7.
^'^'^Ibidem, p.l5.
Ibidem, p.37.
^^'^Ibidem, p.78.
Ibidem, p.28.

366
o restaiirant estava repleto a essa hora doce da tarde. Mulheres de chapéus de
grandes plumas ouviam galanteios e bebiam gasosa. No jardim, mal cuidado,
grupos espalhados cei-vejavam. Alguns rapazes do comérciojogavam a "bagate
la", hilariantes e felizes. Sob uma extensa latada, de cachos verdes, um casaJ in
glês, silencioso e grave, comia sandwichs e, numa mesa afastada, um sujeito
baixo, moreno, de cabeça grande, lia o Correio do Povo e bebia "água da
vida".^««

O ambiente é alegre, vagamente mundano e, decididamente, não é fami


liar. Há resei-vados onde os rapazes combinavam uma"ceia com mulheres". Nesse
local mais retirado, que em EsIriminaé colocado no arrabalde do Menino Deus
sabemos que havia quartos à disposição dos casais:

O Juca acabava de aparecer na sala imediata; com Ivoni pelo braço. O poeta
[Alberto] pôde ainda ouvir este curto diálogo, ti ocado rapidamente entre Juca
e o proprietário do restaurante:
— Mesti ejorge, um quarto!...
— Para toda noite?
— Não,por algiunas horas,apenas.'"®

A referência é explícita a uma casa de encontros, que, como é notório,


não deveria ser freqüentada por toda a população. Daí inclusive o interesse
em oferecer a um público ávido por tais noticias a desciição do ambiente — o
que se comia,o que se bebia, quais os procedimentos usuais e seusfreqüentado
res.Jornalista, o autor se ligava à nova postura da crônica e do romanceJin-de-
sièclede revelar o lado contravenção da cidade, em reportagens ou fícções que
tivessem como cenátio tais espaços. Tudo um poucoJean Lonain ou Huysmans,
a percorrer ambientes de "vida alegre", de devassidão, de miséria e de vício. Se,
na capital do país,João do Rio,como foi visto, deixaia páginas admiráveis dessa
tendência,ao gosto dos seus leitores, a Porto Alegrefin-de-si£cle também envere
dava por tais caminhos.
Pois A Gnzetinha não trazia, em 12 de maio de 1898, a sensacional repor
tagem de uma visita a um bordel? Tratava-se, nada mais, nada menos, do mais
famoso bordel de Porto Alegre, o da já citada "crioula Fausta", que, presa e
após libertada, fora alvo de um mmoroso processo. A notícia, pela precisão
dos detalhes com que descrevia o beco e mesmo o estabelecimento, deve ter
causado enorme sensação na cidade:

'""Ibidem, p.50.
'"®Ibideni, p.53.

367
[...] fomos ter a uma rua estieita e suja, ou melhor, a um beco, pouco distante
da piincipal rua do Porto Alegre, isto é, bem no cenü o dessa piedosa capital
de religiosidade e política. Eram talvez 9 horas da noite. O tal beco parece
mesmo apropriado para ter, em meio de sua extensão, um lupanar; a impres
são que se recebe ao tiansitar no mesmo é péssima. Aqui e ali, de um lado e de
outi o, há mulheres de má vida à janela ou junto à porta de suas pequenas mo
radias e a palestrarem em altas vozes com soldados, marinheiros e crioulos
debochados — a palestra é ponteada com gargalhadas, ditos escandalosos, fra
ses obscenas; mais adiante há uma venda cheia de uma freguesia barulhenta,
no meio da qual estas mulheres tomavam cachaça.*'"

O ambiente é sórdido, distante do local à Ia Montmarire, onde se reunia a


boêmia ilustrada, mas não nos esqueçamos que também ela não desconhecia
tais ambientes... Atentem,contudo, que o restaurante Provot não era um local
de luxo,à altui-a dos sonhos de boêmios que suspiravam por redutos europeus e
sofisticados, onde passar noitadas:

Na saleta reservada, os copos chocavam-se os talheres tiniam na louça ordinária.


Entanto, o Taveira que era um bebedor forte e temvel, metia a ronca na ceia:sem
pre o inconcebível "petit pois" e a galinha, dura; vinhos Fritz-Mac; ostrns não há;
os frios não prestam; o queijo é intragável; uma choldra estes restaurantes!*''

Decididamente, Porto Alegre não era Paris e não adiantava sonhar com
ostras, nem marcar rtmdez-vous e chamar as mulheres de Nini...
Introduz-se um tom decadentista, de uma amarga insatisfação com o
mundo, ou melhor, co.m aquele mundo. Há um discurso de nosso persona
gem que o faz repetir a atitude de desencanto, ceticismo e de postura déjà vu
diante da civilização jin-de-siècle. É esse o discurso de Juca, quando idealiza o
campo com suas socialidades simples e lamenta a decadência da vida urbana,
que não tem para ele mais atrativos, e sim decepção:
Olhe, meu amigo, a vida elegante é isto que nós estamos vendo aqui: é este for
migueiro humano, que se move, que se agita, que se arrasta, uns com pedrarias
finas e sedas custosas; outios com pingos d*água e alpaca; todos, porém, cho
rando a mesma nevralgia; digerindo a mesma canja e caminhando para o mes
mo fim, misterioso e triste. Estavam ali agora, alegres, parecendo felizes, em
plena rua movimentada, com os lábios abertos em sorrisos mentirosos, e os lá
bios abertos em júbilos claros; mas, no fundo, viviam todos corroídos de um

""A Gazetinha. Porto Alegre, 12 maio 1898.


Brasil, op.cit., p.53.

368
ódio sangrento e mortal nns pelos outros — Tudo aparência, fingimento, hipo
crisia! — suspirou Juca, meditativo e sombrio."-

Esse fastio da existência vem ao encontro da postura decadentista,embora


com uma conotação muito especial. O desconforto com a vida, esta saturação
com tudo aquilo que a civilização oferece,a ausência de qualquer coisa que moti
ve ocon e, no caso, não na Paris da Belle Époque, mas na Porto Alegre grande-
pequena do final do século... O sentimento de decadência se traduz na"saudade"
ou no "desejo" daquilo que não se foi e que,ceticamente,se tem a ceiteza de que
não seremos. Uma nova rede de significações se instala no coração dessa postura
ambígua que não traz promessa de superação, mas sim a confinuação de que a
aldeia não será a metrópole sonhada. O decadentismo traz a expectativa de que
qualquer coisa deve ser feita para alterar o rumo das coisas, mas não se têm forças
ou vontade de fazê-lo, daí a apatia, o aboiTecimento, o fastio, ou o refúgio na
busca incansável de pi-azeres exóticos e escusos. No caso sulino, há a constatação
da impotência. É a decadência sem ter tido o apogeu;sem ter vivido a glória dos
"bons tempos". Assim, uma glorificação do campo pode ocoirer como umafalsa
possibilidade de buscar refúgio num lugar onde tais questionamentos não ocor
rem. O campo se basta, se for visualizado como paisagem e natureza, mas paia
quemjá viveu o urbano,rapidamente se desfaz.O "lústico",idealizado como"bom"
e"puro",logo se converte em "selvagem","biuto",quandojuca passa uma tempo
rada no campo,em Pedias Biancas (atual cidade de Guaíba).
A paisagem,de início,lhe agiadava muito,tal qual a vida simples dos campôni-
os e o "silêncio dos lugaies ermos",que maicava o contiaste com a vida movimentada
da cidade. Mas logo a monotonia tomou conta do "glorioso estilista", paia depois
ceder lugai- à laiva, quando notou que seu monóculo era motivo de troça:
Quando o Juca percebeu isso, a sua cólera foi tão giande, que ele jurou logo
vingar-se daqueles brutos, escrevendo para o Jornal do Comércio uma série de
folhetins irônicos, com o título sugestivo de "Entre selvagens".
A postura decadentista, que implica uma espécie de sentimento de vergo
nha diante de uma realidade fnastrante,aproxima-se daquela tendência da"amar
gura provinciana". É claro que o autor apresenta esse processo a partir de iim
personagem estereotipado, mas o que nos parece essencial é ter captado a "sin
tonia fina" da época,que assinala a presença de uma frustração diante do meio
urbano acanhado.

"-Ibidem, p.l5.
"Ubidem, p.90.

369
Assim,é o cotidiano de uma cidade sem atrações que lhe amargura a vida:
ver sempre as mesmas pessoas, os mesmos lugares, ler os mesmosjornais e ca
minhar nas mesmas mas é, no dizer do personagem, "afundar-se no tédio, é
moner de spleen".®'''
Comparando Porto Alegie a uma cloaca, onde tudo fede pelo "mau há
lito da multidão" que exala em cada canto, o desvairado Juca traça um qua
dro implacável do meio urbano mesquinho:
Porto Alegi e tem hoje, pelo menos, oitenta mil habitantes. Imagina tu rolando
diariamente por estas saijetas o catarro, a urina, a dejeção de oitenta mil almas;
imagina ter espalhados no ar que respiramos os gases do venU'e de oitenta mil
pessoas, e diz-me se não é de um homem morrer asfixiado com tanto fedor! de
resto, mais do que isto tudo, incomodam-me a ignorância e a imbecilidade dos
nossos paüícios. Não temos aqui um rapaz de audácia, de talento, de vistas lar
gas. Os nossos leUados são todos uns bolas.*"'

Se o sonho de Chiquita e Neco,em Estricnina, se orientava para o campo,


o de Juca se orienta para a cidade-cultura que ele não encontra em Porto Ale
gre. Uma cidade-metrópole que reconhesse o seu talento, e não a Porto Alegre-
aldeia marcada pela má vida literária.
O desejo de cosmopolitismo se expressa no discurso e no sonho,já que,
na realidade,são muito escassos os pontos de referência identitária da modei-
nidade urbana.
A palavra tem uma importância vital, maior que a das condições concretas
da existência. Tal como o próprioJuca,que tem seus livros na cabeça,enquanto
idéia, não esciitos nem publicados, à venda nas livrarias, há toda uma cidade
imaginária que cria vida pela linguagem da boêmia literária.
Paiece-nos queJuca,o Letrado é o pei-sonagem-síntese desse processo. Vive
num mundo só dele,criado pela sua imaginação,fantástico e ideal... Mas o mais
fantástico é que os outros também o vêem desta forma, ele, o escritor que não
escreve. Todos vivem a falar do seu talento e dos livios de que fala e disserta,
com estilo e paixão: "E o Alberto contou-me que fora às mesas dos cafés, no
escritório dosjornais, que o glorioso estilista alcançara a fama de um grande
talento".^'® Do bovarismo deJuca temos o bovarismo social: a representação de
Juca socializa-se como a versão aceita por todos. Osjornais falam dele, do seu
estilo vigoroso, da tonente de suas palavras. Como Jean Loirain e Huysmans,

Ibidem, p.80.
Ibidem.
"«Ibidem, p.11-2.

370
ele escrevia em delírio, com os neiTOS à flor da pele. Na verdade, pensava e
imaginava em estado de exaltação, mas não conseguia escrever. A opinião pú
blica, contudo,o consagrava, atribuindo-lhe um imenso talento. Como dizia o
amigo Alberto, seu admirador convicto:"— Tu és o Balzac da obsei-vação e o
Flaubert do estilo".'"'
Como resumo dos hábitos de uma geração, as leitui-as deJuca dão bem o
tom de sua época.Sua vasta e imponente biblioteca abriga Flaubert, Goncourt,
Gautier, Maupassant, Daudet, Bourget, Loti, Baudelaire, Zola, Verlaine, Me-
limée, tudo dentro da melhor literatura do século XIX. Tudo muito próxi
mo,como se viu, das obias constantes nos catálogos das litrarias que osjornais
da época publicavam.
Irônico,Juca debochava de escritores de menor porte e açucai^ados, com
Ohnet, Montépin, Escrich — literatura de moças...'"'
Tudo muitoJin-de-sièclee decadentista, a lembrar a bagagem cultui-al fran
cesa das leituras da geração do autor do livi-o, Zeferino Bi-asil. Este consegue
mesmo fazer suas personagens aproximai-se do Des Esseintes de Huysmans,
tal a sua capacidade de imaginar-se num mundo outi-o que não o seu e escapar
ao cotidiano da vida:

O dom da ubiqüidade ele possuía num grau tão alto, que quando queria ir a
alguma parte, fechava-se no seu quarto, cerrava os olhos, e... ei-lo imaginaria-
mente, por esses mundos fora, vendo tudo e sentindo tudo, como se na reali
dade tivesse saído de casa.'"®

É deJuca e também de Zeferino Brasil a crítica ao romantismo da poesia e


da prosa, e o autor põe na boca de seu personagem o anátema lançado em um
de seus livros. Vovó mma:

E quando, esmagados pela ironia do crítico, os vates de cabeleira longa e tosse


seca fugiam, murmurando, entie dentes, palavia de admiração e de assombro
pelo imenso talento do Juca, ele ben"ava-lhes ainda, em voz de trovão:
— Olhem,dêem lembi-anças ao vovô Lirismo!
Ou então, mais agressivo ainda:
— Cuidado,não percam a tabaqueira da vovó Musa Antiga!"'*

'"Ibidem, p.68.
"®Ibidetn, p.24.
"®Ibidem, p.69.
""Ibidem, p.11-2.

371
Não se quer,com isso, dizer queJuca, o Letrado é Zeferino Bi^isil, mas ver,
através de Juca, umajanela de acesso ao mundo do escritor e à vida litemría da
época. E é neste ponto que se encontm o destaque maior da obm e no que
reside a sua maior contribuição: uma visão critica da elite letmda e de suas obms.
Zeferino Brasil aborda essa questão não apenas ao traçar o perfil de seu pei'so-
nagem,mas ao tecer a análise de uma de suas "obras" não-escritas.Juca aparece
envolvido na produção de um "grandioso" trabalho, oconido na Grécia antiga,
que naiTa as aventuras e desventuras de Ulisses... Ante o espanto de um dos
piesentes, que o acusa de plágio, uma vez que se tratava do tema da Odisséia,
de Homero,Alberto, o defensor deJuca, traça a sua curiosa "teoria do plágio":
Poi que plagiário? Porque fez o que tem feito centenares de escritores notá-
veis? Porque evoca e revive, em estilo moderno e arte nova, velhas e poeirentas
cionicas do longínquo passado? [...] Então o divino Flaubert foi um reles plagi-
áiio, porque extiaiu Salammbô da História Céltica, de Amandorix! Victor Hugo
outxo reles plagiário, porque o seu "Han d'Islan" é uma cópia seiAdl do irlan
dês Maturin! Georges Sand idem, porque o seu Jacques é uma reprodução ver
gonhosa da Madame de Villedin! [...] Os Dumas, pai e filho, reles plagiários,
porque os Três Mosqueteiros foram copiados das Memória de D'Ai*tagnan de
Corntil de Sandraz e o Demi-Monde é um grosseiro reflexo das Cortesãs de
Pallissot e das Cartas do Marquês de Rosselle, de Mme Elie de Beaumont!^®^
Na verdade,a passagem faz pensar na continuidade da escrita, reescrita, monta-
gern e desmontagem de velhos temas e personagens, que reaparecem ao longo da
história liteiuiia. Coloca ern pauta também a impoitancia da imaginação criadora,
do impulso vital que deteimina o gênio liteiáiio capaz de produzir o novo.Tocafun
do,poitanto,no problema da originalidade no campo da nairativa,o que preocupou
os escritores,sobretudoJuca,na sua busca de inspiração constante para a escrita: pri
meiro Flaubeit,com sua Madame Bovaiy,inigualável no estilo e na precisão da análi
se,depois Huysmans,após Bouget,Feuillet,até chegar em Oidiota,de Dostoiewski.^^"
Esse modelo de escritor lhe possibilitaria pôr em pratica, pela via literária,
seus conhecimentos de análise psicológica e antropologia criminal, então em
voga na época. O que Sebastião Leão,médico legista, estava fazendo na vida real,
em Poito Alegre — analisando os presos da Casa de Con eção a partir do estudos
de antropologia criminal da época^®^ —,a personagem Juca faria na literatura,
obedecendo a uma estratégia ainda não introduzida no romance.

Ibidem, p.51.
^«Hbidem, p.73.
^®^Pesavento, Sandra J. Imagens da violência: o discurso criminalista na Porto Alegre do fím do
século. Humanas, Revista do IFCH-UFRGS, Porto Alegre, v.l6, n.2,jul.-dez. 1993.

372
Deve ser assinalado que Sebastião Leão, médico que também escrevia no
Correio do Povo, era do círculo de Zeferino Bi^asil e,justo em 1897, submetia a
população do presídio aos rigores da análise científica da época.É nesse clima
que o pei-sonagem dejucavai também a Lombroso,Lacassagne,Spencer,Hux-
ley, Maudsley, , Tarde, assim como lê os relatórios dos hospitais-escola de Bi-
cêtre, Salpetrière, Gentilly.^''
Não afiiTnamos que Sebastião Leão foi a inspiração litei-áiia de Zeferino
Bi-asil, mas as leitui-as se cmzam,a demonsti-ai" que, na cidade de Poito Alegi-e,
essas eram questões presentes, num clima cultui^al que ia do discui-so médico ao
literário. Assim como Sebastião Leão analisava rostos, olhos, orelhas dos presos,
compai-ando-os aos modelos da anti opologia criminal, Zeferino Bi"asil faz o pei-
sonagem levar suas suspeitas às mas. Q^uando lera O homem delinqüente, de Lom
broso,Juca visualizava em cada indivíduo das mas e dos cafés um criminoso ou o
portador de uma tara, a partir dos tipos de naiiz, queixo,etc.
A postura fisiognômica, comoJá se viu, é bastante antiga na literatura —
recuperamos o exemplo conhecido de Balzac para ilustrá-lo anterionnente. Na
seqüência das associações, o tragicômico se revela quando o letrado Juca lê A
degenernção, de Max Nordeau.Seu empenho em conhecer a obra e aplicá-la foi
de tal ordem no delineamento dos traços do tipo em questão que um dia se viu
retratado, traço por traço,reconhecendo-se como um perfeito degenerado 1'®=
A passagem lemtira vagamente O alienista, de Machado de Assis,em que o per
sonagem Dr. Simão Bacamarte acaba se autodefínindo como a peraonificação
do seu objeto de estudo — no caso, a loucura — e acaba por encen-ar-se num
hospício. As elucubrações teórico-científicas deJuca acabavam sempre no plano
de escrita de uma obra—"O imbecil","O degenerado" — que a imprensa logo
noticiava,"com adjetivos pomposos",o "breve apaiecimento da nova e extiaor-
dinária obra do glorioso estilista".^® O atonuentadoJuca iria enconüar conso
lo e consagração simbólica na leitura de O homem de gmio,de Lombroso. Encon
trava aí a chave da explicação para a sua bizania,suas alucinações,sua neui-as-
tenia congênita: como outros tantos gênios univei-sais — Flaubert, Balzac —,
ele era alguém genial. Com isso, reconciliava-se internamente e ia ao encontro
da fama que tinha, confliTnando as opiniões da imprensa:Juca, o Letrado era
um talento mesmo! Na sua identificação,enconü-amosjustificada a sua própria
incapacidade de escrever:

Brasil, p.64.
'®'Ibidem, p.67.
'^Tbidem, p.66.

373
Escrever, para morrer de fome como Camões ou louco como Maupassant! Es-
ci evei para ser perseguido pelos credores, como Balzac, e odiado pela burgue
sia total, como Zola!^®^


genialidade, eram comoJuca
que ei-am vertidas
o dedo de Deus pelos próximos
a indicar como sintomas
a presença da
de uma pre-
estinaçao. Como diria o jÊlel Alberto, elas eram sinal de gênio e teriam acome
ti o também Baudelaire, Flaubert, Gérard de Neival, Schopenhauer e Poe e
eiam distintas da bizania dos rapazes de talento.^'"*
O meio literârio que Zefeiino Bi"asil critica encontra seu pleno espaço de
atuação no ambiente dejornal,onde afinnam-se opiniões e posições,constroem-
se mitos, vende-se a palavra escrita— que tem força de verdade. Aliás, coníiiTna-
se no^lgamento do autor a autoridade mágica do discurso, que se impõe pelo
leconhecimento de umafala autorizada. Como representação,não se mede pela
veracidade,e sim pela credibilidade. O ambiente dejomal é leviano, não valoriza
os talentos e gloiifica os néscios,escreve este autor,que se acha escorado no meio
da imprensa,yí^grdos escritores da época.O próprioJuca é mesquinho e fala mal
dos amigos talentosos,bajulando os incapazes.
Zeferino Brasil nos dá um panorama do ambiente jomalístico por onde
circulam os escritores da época. A mediocridade impera,e é sem o menor pro
blema de consciência que os cronistas se consultam um aos outros sobre ques
tões de ortografia

— Ó Alberto, opala é um ou doisl£?


O Alberto, por seu turno, gritou para o Taveira:
^ Taveira, opala tem um ou dois££?
O Taveira foi consultai- o Aulete e,depois de uma pausa,respondeu eiaiditamente:
— Que em toda a parte do mundo, escrevia-se opala com um só l".»»»
É ainda o ambiente dejornal a porta de entrada de uma terceira obra que
faz da vida urbana de Porto Alegre o seu cenário e objeto de reflexão. Trata-se
de Castelo defantasmas, de De SousaJr., publicada em 1927, pela Globo,e repu
blicada posterioi-mente,em 1929,acrescida de alguns contos.
Na introdução,o autor explica porque publicava uma novela,e não ci-ôni-
cas: cético desalentado, entendia que a crônica estava desprestigiada e o único
cronista que angariara leitores havia sido o magnífico João do Rio. Daí a sua

'®'Ibidem, p.l20.
^®®Ibidem, p.95.
'^nbidern, p.l08.

374
opção por escrever crônica em foiTnato de novela, não obedecendo aos câno
nes do romance. Castelo de.fantasmas, que ele dedica a Dionélio Machado,trata
de um conjunto de episódios, de fragmentos de um cotidiano urbano que se
aiticulam na figura de Viiiato,"um pobre diabo",que o autor associa a Umpobre
homem, publicado por Dionélio no mesmo ano.-^®"
Ora, essa novela se inicia com as misérias cotidianas de um ambiente de
Jornal, onde "a mentira se faz notícia", e a "faj-sa" implantada em uma palavra
impressa dá à população porto-alegrense a sensação de viver uma história de
mistério. A linguagem que dá a impressão de vida,a representação que coiifere
sabor à existência e constrói o sentimento de que se habita em uma outra cida
de, em tudo mais excitante que a Poito Alegre de todos os dias, é a arma de
Viriato, que implanta na redação de seujornal e no coração de seus leitores "o
mistério inquietante da Lomba do Cemitério!"...
O cenário era ideal — a lomba do cemitério, o mato próximo mmo às
águas mortas, compondo a paisagem hígubre — e as "marcas do crime", dei
xadas pelojornalista para criar enredo: um sapato preto de mulher, um lenço
perfumado de cambraia com as iniciais R.R. e as manchas de sangue no chão.
Enfim,Porto Alegre sacudia-se do seu marasmo e todosjá teciam considerações
sobre a tragédia: a mulher era uma argentina, explorada por um mísero cafe-
tão, e ainda havia o nome de um rico comerciante da praça, cuja identidade
seria logo,logo revelada... Sexo,violência e morte mobilizavam a cidade numa
história digna de Conan Doyle ou Xavier de Montépin,fazendo a folha A Rea
ção vender a tiragem fabulosa de 12.000 exemplares!'®'
Definindo que, para a capital gaúcha "despertar", a maledicência era"um
ato de caridade", nosso autor situa a cidade de seu tempo:

Porto Alegi"e ati'avessava aquele período enti'e a aldeia e a cidade. Era como os ra
pazes de certa idade, que quebram ainda, a pedradas, as vidraças da vizinhança,
masjá ostentam orgulhosamente o cigaiTO clandestino e uma enfennidade secreta.
É a hora enti'e todas antipática das cidades. Não se exonei"ai"am ainda dos efeitos
que fazem inabitáveis as aldeias ejá conti-aíram os vícios repulsivos,chamados ele
gantes, que faziam inabitáveis as meti"ópoles. Porto Alegre exibia, com o desem
baraço das raparigas que fazem praça dos grandes diamantes Sloper, uma vida no
turna falsamente movimentada e falsamente brilhante.Porto Ale^'e trazia à lape-
la essa flor de estufa que é a corrupção e a velhâcaria. Dizia-se civilizada porque
o cancro da prostituição lhe montara nos quati"o cantos um vasto stock de ou-
ti'Os cancros e porque o ruído das fichas sobre o pano verde se confundia com

'^De Sousa Jr. Castelo defantasmas. 2.ed. Porto Alegre: Globo, 1944. p.7.
Ibidem, p.20-2.

375
o ruído das Smith & Wesson com que os ex-homens liquidavam suas promis
sórias sem lucros para os credores. Porto Alegre envergava casaca, mas o lenço
com que enxugava o suor ou as lágrimas era ainda aquele retângulo de chita
com que os homens do campo promoveram a portemonnaie.
Nessa medida,ao mesmo tempo em que se supunha irmã-gêmea de Paris, de Bu
enos Aires, de Viena, pois que se sentia suficientemente dissoluta e pei^vertida.
Porto Alegi e não podia disfarçar a sua perfeita identidade com qualquer vilarejo
do interior, pois que a mesquinha volúpia da intiiga e da maledicência era-lhe
igualmente grata e peculiar.'®-

Cabe registrar que a cidade da qual fala De Sousajr. não é mais a Poito Alegre
fin-de-siècle, a sim a capital dos anos 10 e 20, mas peimanece com ela o dilema "al-
deia-metrópole". Estamos diante de uma cidade-vilarejo, na qual ainda o controle
social se expressa pela maledicência, pela observação e comentáiio da vida alheia,
pelo diz-que-diz-que. Tudo isso em meio a uma cidade que precisava de boatos e
rumores para despeitar de seu marasmo. Mas, mais do que isso,suas contradições
eram de tal monta que ela se via de outra foiTna. Cabaré, prostituição, cinema,
café, confeitaria e bonde,uma ma por onde se desfilava, titgando à européia, da
vam à capital gaúcha um "clima de meti^ópole". O fato de imaginai-se como tal, de
experimentai- a sensação da modemidade urbana pelo verniz progiessista de uma
cidade onde intei"vençõe.s urbanasjá começavam,seria sintoma alai-mante de uma
recusa ao cotidiano monótono.Espécie de "vergonha de si", a identidade sonhada
teimava em ocupai-o espaço da fisionomia urbana concreta.E,o pior de tudo.Por
to Alegi-e,segundo o autor, buscava aproximar-se dos paradigmas consagi-ados da
modemidade urbana a paitirjustamente do mau lado da metiópole:a dissolução
dos costumes,a hipocrisia,etc.
Ironicamente, o autor aponta que a esquina da Colombo "só diferia da
botica de uma aldeia pela freqüência mais numerosa e porque suas calúnias
possuíam requintes de pei-versidade"...^^^ Ironia só comparável ao texto de
Zeferino Bi-asil, quando indaga de Juca, prestes a viíyar, desiludido com a cida
de mesquinha, para onde pretende ir: Paris, Constantinopla,Jemsalém ou tal
vez ainda ao distante Oriente, na China ou noJapão? Nada disso:Juca ia passar
duas semanas em Pedras Brancas,do outro lado do Guaíba...
Amargura provinciana, sim, que expõe a nu o ridículo do pequeno bur
go que sonha ser gi-ande, e dolorosa, porque nela uma elite de letrados têm
consciência das limitações locais e sabe que a modemidade urbana é um proces
so que ocon-e lá fora, a distância.

'®-Ibidem, p.35-6.
Ibidem, p.36.

376
Pior que tudo isso, porém, era a cegueira generalizada, a visão de que o
local era o umbigo do mundo,e a de que era possível viver como um faquir,em
eterna contemplação de si próprio:

— Precisamos de intercâmbio cultural, sim senhor! Ué! Isolados como vivemos


de outios centjos de cultiu-a do país, vamos chegar à exacerbação nei^vosa e à
esterilidade dos vícios solitários.
— Qual o quê! O Rio Grande basta-se.^®^

De SousaJr. toca aqui numa questão importante, que atravessa a literatu


ra bi-asileira, ou o que se poderia chamar a linha de pensamento que se cons
truiu sobre o Brasil. Grosso modo, os gaúchos pensam o sul e não produzem
reflexões mais amplas sobre o país. Sentimento regional an-aigado? Auto-iden-
tiflcação com uma outra centralidade, auto-suficiência? Talvez, mas o fascínio
do Rio,em teiTnos urbanos, tínha a sua força e poderia vir a se constituir numa
curiosa experiência de estranhamento. Viver numa outi-a realidade, re-enxer-
gar-se fora e também entender esse outro é uma postura válida para confirma
ção ou reformulação de opiniões. E, nesse sentido. De Sousajr.coloca seu per
sonagem Viriato mmo ao Rio deJaneiro, para deslumbrar-se diante da meti"ó-
pole brasileira, caminhar na celebrada avenida Central, tomar contato com a
vida elegante da capital carioca:

A metiópole tivera sempre, pai^a Viriato, uma sedução irresistível. Sem o que
rer confessar, a sua imaginação, como uma agulha magnética, estava invariavel
mente voltada para o Norte, para a capital da República, ciya vida de imprensa,
política e literária ele conhecia nas menores intimidades, graças a um contato
permanente com as folhas cariocas.'®^

Encamação de tudo o que seria possível chegar,em termos bittsileiixDs,em ter


mos de uma gimide cidade, o Rio deJaneiio tinha um ponto icônico de paragem
para os visitantes curiosos de "viver" a gimide cidade:aAvenida Centi^al.E esta, para
o gaúcho Viriato, era o supra-sumo da conaetização daquilo que osjornais poito-
alegrensesfalavam da Rua da Pi-aia, mas que só no Rio ele veio entender malmente o
significado: a "luz embriagadora",a"multídão",o "brouhaha" do movmento urba
no,o "fmchio dos pneumáticos sobre o asfalto" e algo puiamente caiioca:"a giíiça
aérea e picante das mullieres" e o ar"feriado"de tudo aquilo...^®

'®^Ibidem, p.58.
'®®Ibidem, p.77.
^®«Ibidem, p.78.

377
A sedução da urbe o fascina, e Viríato, gaúcho desgan-ado, entrega-se à
tentação;

Era preciso vir ao Rio para fazer uma noitada! [...] As meü ópoles! Se em Porto
Alegre era possível uma coisa destas!^^'

A visão idealizada da grande metrópole, refinada, moderna, bonita e so


bretudo liberada — onde cada um faz o que entende e não dá satisfação para
ninguém —,cede, brevemente, lugar a uma constatação filosófica de Viríato:
uma metrópole era, na verdade,uma reunião de vilarejos,^^®^ e todos os proble
mas e angústias do cotidiano estavam piesentes lá e cá... Assim, a Avenida Cen
tral equiparava-se à Rua da Praia e na cidade maravilhosa encontravam-se os
mesmos problemas do cotidiano da capital sulina, numa universalização dos sin
tomas do urbano.
Foi com este espíríto que Viríato deixou a sua aldeia na metrópole e voltou
para a "sua" metrópole-aldeia,em Poito Alegre.
Voltou pai-a a cidade onde a Rua da Praia era a artéría elegante,e onde os
chies da cidade freqüentavam as mesas da Colombo e do Nacional e paravam
para conversar na porta da Globo. Do café à livraria, as socialidades masculi
nas estabeleciam seus pontos de contato, passando pelos tradicionais redutos
da boêmia literáría, que eram os escrítórios dosjornais.
E com saudade que Viríato rememora sua mocidade na boêmia ingênua
de seus vinte anos — no início do século, talvez? —,a dizer versos na praça da
Hm-monia,quando era possível ser líríco, porque não se tinha preoctipações.''^^
E a mesma Praça da Hannonia que retorna no conto "Presente de Natal",
do mesmo livro, escríto em 1927,em que o autor rememora os tempos deJuven
tude de um gmpo de estudantes,a freqüentar a velha e romântica praça. Todos
os moços, no desabrochar dos vinte e poucos anos, liam Barbey, Baudelaire,
Lonain,Rollinat, D'Annunzio. O enredo éJin-de-sièclc, pois eles realizam "a lite
ratura malsã" da época e bebem absinto,liberdade poética para a Porto Alegre
da época,onde este produto não seiia facilmente encontrável... O personagem
central do conto, com o "olhar fulgurante" e absorto, usava barbas à Rodin e
calva à D'Annunzio,enquanto que afemviefatale— Suzanne,uma parísiense de
Varsóvia, com cabelos cor de cobre e olhos cor de âmbar, pequena e nei"vosa,
com fosforescências felinas — devia à cocaína o brilho de seus olhos demonía-

'®'Ibidem, p.83.
'"Ibidem, p.l85.
'®®Ibidem, p.94.

378
COS..."'™ Tudo,como se vê, nitidamente decadentista, a fíguim pei-sonagens saí
das da obi-a de Jean Lonain, não a marcar a Porto Alegre que existiu, mas ao
clima e ao desejo de ser uma cidadeJin-de-siècle, misteriosa e interessante.
O obi-a Castelo defantasmas, de De Sousa Jr., que agrega à novela-título e
uma série de contos, nos deixa uma série de pequenas nan-ativas que falam da
"outia" Porto Alegre, dos pobies, dos excluídos,dos decaídos.
Nessa cidade entre aldeia e metrópole,com os seus conti-astes, a bebida é
um elemento centml, espécie ao mesmo tempo de elo de ligação entre os seus
consumidores, independente da extmção social, e ponto de distinção, con
forme os espaços do seu consumo.
O hábito de beber difunde-se e comparece em todas as naiTativas, a mai-
car um elemento muito presente na vida urbana. Mas o cabai'é e o bar chicáis-
tinguem-se da tasca. No primeiro, há luzes e espelhos que faíscam e ouve-se o
tilintar dos copos, sugerindo cristais. Os elegantes bebem gín, champanhe, vi
nhos esti-angeiros, vermouths e tomam seus dnnks,'^°^ num espaço de moças ale
gres,com nomes fi-anceses. No segundo,a freqüência é de "mulatas mal-encaia-
das, beiço caído e mulheres maltiapilhas",em "sórdida orgia de cachaça e pala-
\a-ões obscenos".
Os contiastes da cidade se visualizam a partir dos redutos de consumo da
bebida. Numa outia dimensão, temos os espaços mai"cados pela desigualdade
social, claramente delimitada. Oia são os casos que surgem paia Viriato advo
gar, e que se referem a um despejo das "avenidas" do Menino Deus, a aludir
estes mistos de beco e cortiço que abrigavam as famílias pobres,^"' oia são as
descrições dessas tiavessas humildes,com seus chalés simples que este anabal-
de abrigava, nos tempos pacatos do início do século,""" tal como ocoire no con
to "A história sinistra do Velho Feitosa".
Tais indicações cr-uzam-se com a descrição do bairro do Menino Deusfei
ta em Estricnina: pitoresco anabalde,com meias-águas modestas, que se mistu
ravam aos sobrados altos, aos soberbos palacetes e aos formosos chalés de vera
neio.'"'' Se somarmos tais indícios à localização do restaurante-casa de encon
tros,já aludido, e ainda à graciosa capelinha no final da avenida, ao sopé do
morro,temos um espaço bastante diver-siílcado quanto à sua ocupação.

■«"•Ibidem, p.l22.
•""Ibidem, p.l45.
"•"-Ibidem, p.l41.
■•"'Ibidem, p.75.
■"''Ibidem, p.l34.
■""Souza Lobo, Totta; Azurenha, op.cit., p.l77.

379
Outros espaços,também humildes,são referidos nas obi^as em pauta,como
é o caso da morada de Viriato, na sua den ocada após a volta do Rio: uma ti-aves-
sa estreita, uma casa pobre,entre Floresta e Navegantes."""* O decaído persona
gem do conto "Juca,o ratão hidrófobo", habita, por sua vez, uma velha pensão
na Rua Avaí, na Cidade Baixa,""*'enquanto que o comportamento das mulheres
e filhas de um miserável pequeno funcionário público, no conto "O falecido
Maneca Maluco",lembra o das infelizes mulheres do antigo beco do Fanha."*"®
Tais relatos, variados e díspaies, recompõem,pelo romance,novela e con
to, detalhes, traços e indícios das vivências e sensibilidades de uma pequena-
grande cidade.
No final de quase todos, a maixa da tragédia: em Esiricnina, o romance se
abre com a morte de "A dama das camélias", nos palcos do teatro São Pedro e
finda com o suicídio dos dois amantes;JtLca, o Letrado ^cííha.com a morte deJuca
e o suicídio da apaixonada Etelvina, que ingere dose maciça da morfina desti
nada ao doente; em Castelo defantasmas, é a morte da filhinha de Viriato que
ocoire na noite de Natal; em "Como é as vezes a vida", é o indivíduo que agoni
za, após a tentativa de suicídio, num quarto miserável, mas cercado de livios.
No conto "Juca,o ratão hidrófobo", é suicídio que ocone com data maixa-
da — 29 de fevereiro de 1920 — de alguém que freqüentava a boêmia liteiáiia
do início do século, que se reunia todas as noites no café América..."""* Outra
vei-são ficcional de um suicídio real? De Sousa Jr. alude a este tempo em que a
ingestão do veneno se encontrava em alta:"quando começou o declínio dos sui
cídios pelo cianureto de potássio".^"* Mais um boêmio suicida que, para fugir à
vida da cidade onde vivera, bebeu um copo de água para matar-se. Mesmo que os
jornaisfalassem que os médicos haviam encontrado no seu ouvido direito um oii-
fício de bala,foi sem dúvida, na opinião do autor,o fatal copo de água o verdadei
ro responsável pela morte do boêmio hidrófobo!
Com ele, monia uma época.

^®De Sousa Jr., op.cit., p.l05.


"""Ibidem, p.l63.
^®Ibidem, p.ll5.
^®Ibidein, p.l64.
•""Ibidem, p.l66.

380
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■■Au.h:.
Bico de pena da velha Porto Alegre.
(Imagens sentimentais da cidade, p.i41)

Teatro São Pedro, 1860


■ '.-m'

itír

Panorama de Porto Alegre, 1906

Navio à vela e a vapor


hk

Rua dos Andradas (Rua da Praia), 1906


Rvia dos Andradas (Rua da Praia), 1911

Praça Marechal Deodoro


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Rua Marechal Floriano
Prédio da Universidade, início do século

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Capítulo5

QUE BUSCAMOS,AO LONGO DESTE ESTUDO?

o Uma forma de acesso à cidade, que tentou recuperá-la pelo


que chamamos de visões literárias da urbe. Chegar à cidade pelos
traços, pistas, pala\Tas, discursos que dela falam, expressando a
lenta construção de um "tornar-se urbano".
Tomando a literatura como um campo a ser explorado,
o historiador dela se aproxima, para colocar as suas questões,
sobre o seu tema, que é o da cidade. Refazer uma trajetóriajá
percorrida, rerisitar autores sobejamente explorados e outros
muito pouco conhecidos, com o objetivo de chegar á história
pela porta de entrada da literatura. Com isso, optamos por um
entendimento que não considera diferenças de natureza essen
ciais entre ambas. Admitimos que tanto a história quanto a li
teratura constróem a "verdade" da representação e dão a ver o
real, cada qual à sua maneira. O que não é visível num plano,
verifíca-se no outro, de maneira que cada domínio de saber for
nece uma chave de entrada ao objeto.
Ora, textos literários e de arquivo não são da mesma na
tureza, mas fazem parte, ambos, do que chamamos referenci
al de contíngência, que é socialmente construído e, como tal,
histórico. Mais do que isso, entendemos que o discurso urba
nístico, o texto literário, a narrativa do historiador, os artigos
dejornal, e outros tantos registros de linguagern são todos re
presentações que falam do real e, no caso, recriam a cidade.
Na nossa proposta, o que se quis foi mostrar, através do
olhar literário sobre a cidade,foi como idéias e imagens sao re-
apropriadas em tempos e espaços diferentes. Por um lado, há uma comuni
dade de sentido que migra e que se dá à leitura, em outro momento e lugar
daquele em que foi concebida, mas, por outro,há ressignificações e resseman-
tizações. Ou seja, as especificidades e as contingências do local se cruzam e ar
ticulam com os sistemas de idéias-chave que se difundem.
Partimos de uma recuperação de como, na Paris do fim do século XVIII
ao fim do século XIX,construiu-se o paradigma da modernidade urbana. Se
edificar a Paris-monumental, modelo de metrópole, não foi possível na sua
integridade — como tal, Paris é única —,o imaginário urbano da cidade mi
grou e difundiu-se pelo mundo.Tal processo se deu não só pela materialidade
da forma assumida pela capital francesa, na sua monumentalidade exemplar
construída pelosinteiventores do urbano,mastambém e sobretudo pela narra
tiva literária que sobre ela se fez.Para os nosso fins,importa mais o que dela se
disse, através dos escritores, do que nela se fez, pela ação do urbanista. Se, na
prática,o paradigma é fruto de intervenções na cidade,foi no plano das repre
sentações literárias que buscamosa ressonância, mundialmente partilhada,des
se processo de modernidade urbana.
Com ISSO, procedemos à releitura de textos de autores franceses, do final de
um século a outro,indo dos contemporâneos da Revolução de 1789 aos decaden
tes dzfin-de^iècle.Neles,o que se buscouforam os traços recorrentes que delinearam
uma representação da metrópole moderna,a Paris do imaginário literário que,em
prosa e verso,se tomou conhecida no mundo como o protótipo da grande cidade.
Tomando-se um mito literário, esta Paris teve o poder mágico de narrativa
que atravessa o tempo e explica o que vem a ser a modemidade urbana.A Paris
mística não é só a capital da França, mas a de um século,como definiu Walter
Bei^amin,além de se tomar a referência imagética,o porto de ancoragem e refe
rência para os sonhos da cidade modema.O mito de Paris toma a forma da fan-
tasmagoría betyaminiana que — pelaforça do imaginário — transfigura o real.
Assim^foi possível aproximar,peloimaginário urbano coristruído pela literatu
ra,a tradução local canoca e gaúcha—dossintomasdesse processo que intema-
liza um gí/iosurbano"e uma"prática citadina".Estávamosem busca de umacidade
sensível,que expressasse o vivido,que nos oferecesse sintomas de como,em outro
tempo,as pessoas viam a sua cidade.Essa sensibilidade diante do urbano em trans
formação nosfoi dada pelo es^ctador privilegiado do social,que é o escritor.En
tretanto,não nós moveu a qu^dade estética do texto,o que pode,sem dúvida,se
constituir num problema.Piriblema este,diga-se fiancamente,quesera acrescido,
no caso de Porto Alegre,com o fato de que a época estudada não é a da eclosão da
chamada literatura urbana, que ocorrerá somente a partir de 1930. Ora,o que
buscamosfoi,sobretudo,encontrarcorrespondênciasou distinções entre espaçose
tempos diferentes, que combinam cidades e autores desiguais, mas que fedam de

392
iim mesmo tema,que é este urbano tão complexo. Buscamos ver em que medida
desciições,enredos, pei-sonagens,apreciações valorativas e metáfoi-as empregadas
ti-aduziam a cidade que se ti-ansfonnava.
E as cidades — a tropical Rio deJaneiro e a sulina Poito Alegie — ei-am dife
rentes,tinham suas peculiaiidades,potencialidades e limites,resultado de desiguais
percursos históiicos. Mas elas também se transformaium e tinham acesso a uma
circulação cultuinl de idéias e imagens da cidade moderna.A literaturafiancesa era
conhecida dosjovens escritores,à beira do Guaíba ou da baía de Guanabara,fi^ente
ao Atlântico,e Paiis era pai-a eles uma referência emblemática.
A leituras, readaptações, traduções que recriaram literaiiamente a cidade,
nos dois casos, obedecem a especificidades próprias. A Beüe.Epoquecxnoca, baliza
da por um João do Rio e um Lima Ban eto,a ponteaiem,cada um a seu modo,as
venturas e desventuras do explodir urbano da Pnm-sur-mer, não teria conespon-
dência no sul.Se,no Rio Giande,tíamos enconti-ai'regisü os literáios de uma menor
qualidade, também lá se configurou a presença de textos que tiveram a cidade
como inspiração,fosse esta uma cidade desejada que se sobrepunha à cidade real,
ou fosse ela o motivo de e\'asão, escapismo e, propriamente,fuga do urbano.
No Rio, a remodelação da cidade atuou como um cartão de visitas, com
pondo, metonimicamente, para a época, a imagem do Brasil que coiTespon-
dia a uma identidade desejada, mesmo que Lima Barreto a arrasasse com o seu
espírito iireverente.
No sul, a Porto Alegre grande-pequena recém despertava para tal pioces-
so,tendo o campo por horizonte que lhe assegurava a positividade das referen
cias identitárias.
Entre as saudades da aldeia e a vontade louca de ser metiópole, insinuara-
se um lamento, genuinamente sulino, de uma geração boêmia, cética, que nao
acreditava na redenção da velha cidade. A beleza da paisagem e o consolo do
passado, reinventando temporalidades e espaços, era o horizonte desejado, ou
o que se propunha era a visualização de cada detalhe da modernização urbana,
como a confinnação da existência da metrópole? Como ser tão cidade como o
Rio e Buenos Aires, desejando secietamente que Paiis fosse aqui, e, ao mesmo
tempo,compor com a tradição e especificidade local? Dai'as costas a paisagem
e à natuieza, desprezando a majestade do panorama, com a cidade espraiada
em anfiteatro, como dissera o viajante, diante do Guaíba e do pôr-do-sol?
Dilemas identitáiios de uma cidade com a cabeça em Paiis, os ollios no Rio de
Janeiro e os pés à beira do Guaíba. Grande e/ou pequena,aldeia ou metiópole?
O que não impedia que,sob as foimas de uma,a outi"a se revelasse e que,no
final de contas, como diria filosoficamente Viriato, no fundo, aldeias e metiópo-
les se paiece sempre em alguma coisa, pois se ti^atam de cidades.

393
I I

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Av. Plínio Brasil Milano, 2145 - Porto Alegre, RS
Fone (51) 3341-0455
Sob uma outra ótica,
a autora propicia ao leitor
a possibilidade de uso do texto
literário para a construção
de uma temporalidade passada,
tomando-o como uma forma
de acesso às sensibilidades
de uma época, reveladora
de um imaginário social
que é, ele também, elemento
de construção do real, porque
mobilizador de práticas efetivas
e indutor de apreciações
valorativas sobre o mundo.

.'''7
íí'

\
yy- cy- y^ y yy y/'yy y' y/^ yy c/^ yf

K y' O imaginário da cidade tenta construir


uma forma de acesso ao urbano,
i'>••■ ■ através da visão literária que nos dá a ver
Ssi;. como idéias e imagens são reapropriadas
í;
em tempos e espaços diferentes.
De Paris a Porto Alegre,
/
'■r passando pelo Rio de Janeiro,
as especificidades do local

' \\ se articulam com a ressemantização
do mito da modernidade urbana.
Esse é o caminho escolhido
por Sandra Jatahy Pesavento,
com base na ótica
K.'
P- da Nova História Cultural.

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