Déieto, 8. Pau, 27-65-82, 1988,
A EXPANSAO DOS TUPI E
DA CERAMICA DA TRADICAO
POLICROMICA AMAZONICA
José Proenza Brochado*
BROCHADO, J. P. A expansio dos Tupi da eerimica da tadigéo poicrbmica
ameziniea. Dédal,S. Paulo, 2765-82, 1989,
RESUMO: Este artigo apresenta a reconstrugio das cha-
madas migragbes tupi-guarani com base em evidéncias etnograficas,
Tinguisticas e arqueoldgicas, sendo que estas ditimas sao represen-
tadas pela tradig&o policrémica Amaz6nica. A proposi¢ao conta
também com 0 auxilio da antropologia, através da mitologia e da
cecologia da area estudada.
UNITERMOS: Arqueologia ¢ etnohistéria brasileiras. Tupi-
guaran
A reconstrugio das chamadas migracdes dos Tupi-Guarani — na
realidade a invasao e ocupayao de grandes reas da América do Sul tro-
pical pelos ancestrais dos falantes Tupi — esta baseada nas evidéncias
etnograficas, linguisticas e arqueoldgicas de quatro tipos diferentes:
1. a distribuicto geogritica hist6rica dos falantes Tupi, incluindo
2, a recente reclassficago e estudos de relacionamento das linguas
do Troneo Tupi;
(#) Universidade Federal do Rio Grande do Sol (UFRGS),bolsists do Conselho Nacional de Pes
aquisas(CNPQ)
65
BROCHADO, J. P. A expansto dos Tupi eda cerimica da tradio polcriica amzbaica. Dé
alo, 8 Paulo, 2735-82, 198,
3. a distribuigao geogrifica das cerdmicas arqueolégicas da Tra-
digo Policrémica Amaz6nica, incluindo,
4. a distribuiedo geografica e temporal das datagdes radiocarbéni-
cas das cerimicas arqueologicas desta tradigao.
Esta reconstrugio é explicada por conceitos ¢ evidéncias da antro-
pologia, incluindo a mitologia, ¢ dados a respeito do relevo, climas, ve-
getacioe ecologia da area,
1, Quando os europeus comegaram a explorar e ocupar o leste da
América do Sul observaram que linguas estreitamente relacionadas eram
faladas sobre enormes dreas, As linguas hoje classificadas no que se de-
nomina o Tronco Tupi (Rodrigues, 1964; 1984/5) eram faladas quase
que ininterruptamente ao longo de todo 0 litoral Atlantico, desde a de-
sembocadura do Amazonas e do rio Pard, até o estudtio do rio da
Prata, cobrindo uma distincia de mais de seis mil quilémetros. Aglo-
meragies menores se encontravam também mais para o interior, no
baixo Tocantins, no médio Sao Francisco, no alto Ataguaia, no Para-
naiba e no Tiet8, Os falantes Tupi ocupavam trechos ao longo do curso
do Amazonas, interrompidos por outros trechos ocupados por falantes
de Iinguas relacionadas as familias Aruak, Karib, Tukano e outras me-
nores. As comunidades de falantes Tupi se estendiam, desta forma inter-
rompida, desde a desembocadura do Amazonas, até seus formadores: 0
Marafion, o baixo Huallaga, 0 médio Ucaylalli e 0 alto Napo; isto 6,
desde o Atlantico até o sopé dos Andes, cobrindo uma distancia leste-
este de quase trés mil e quinhentos quildmetros em linha reta. Ao norte
do Amazonas havia Tupi também no Amapé, se estendendo até 0 ocea-
no pelo vale do Maroni. Ao sul do Amazonas linguas relacionadas eram
faladas no baixo Tocantins € ao longo do curso do Xingu, Tapajés e
Madeira, até suas cabeceiras. Falantes Tupi ocupavam também enor-
‘mes reas na drenagem do sistema fluvial composto pelo Parana, Pa-
raguai e Uruguai; habitando 0s vales dos rios maiores desde 0 Parana-
Panema, ao norte, até 0 Jacui, ao sul, e desde 0 baixo Paraguai e 0 alto
Paranda, a oeste, até o baixo Parand e Uruguai, a leste. Grupos menores
se encontravam também entre o alto Pilcomayo eo alto Guaporé, no alto
Parand, ao norte do Paranapanema e entre os rios Piratini e Negro, nas
bacias costeiras ao sul do Jacui. si
Se observa claramente que os Tupi amazénicos, os Tupi costeiros
66BROCHADO, JP, expansio dos Tupi e da eerimice a traigio plietmica amazinica. Dé
‘alo, S. Paul, 2765-2, 1989.
ou Tupinamba, os Guarani da area drenada pelo Parané-Paraguai-
Uruguai ¢ os Chiriguano do Chaco, juntos ocupavam um circuito de
terras baixas, rodeando os planaltos brasileiros habitados por falantes
de linguas do Tronco Macro-Jé.
‘Uma tio grande dispersio sugeriu imediatamente que deveria re-
presentar 0 resultado de extensas migragdes de falantes de linguas do,
~ mesmo tronco. Ainda mais que alguns destes grupos ainda estavam em
| movimento no século XVI — os Tupinambé, no leste e nordeste — €
outros continuam ainda repetindo as migragdes pré-histéricas — os
Guarani Mbid, no sul. Hip6teses tentando explicar 0 padrio de distri-
bbuigdo geogrifica destas culturas, propuseram que o centro de origem e
dispesto dos Tupi estaria: a) em algum lugar na drenagem do Parand-
Paraguai (Martius, 1867: 1, 177-179; Ehrenreich, 1891: 44, 46-49; 1892)
‘ou b) nos tributarios meridionais do médio Amazonas (Von den Steinen,
1886: 308-324; Metraux, 1928: 310-312; Loukotka, 1935: 397 mapa;
1950).
'A segunda hipotese foi favorecida pelo reconhecimento de que das,
ez familias linguisticas nas quais foi dividido 0 Tronco Tupi (Rodri-
“gues, 1964; 1984/5), nove se encontram reunidas numa firea relativa-
mente reduzida, ao sul do Amazonas e ao norte do paralelo 14S, entre 0
“Madeira e o Xingu, enquanto todos os outros falantes Tupi, espalhados
pelo Brasil, nordeste da Argentina, sul do Paraguai, Uruguai, leste da
Bolivia, leste do Peru, Coldmbia, Venezuela e Guiana Francesa, usam
linguas muito mais semelhantes entre si, as quais foram classificadas
‘numa mesma familia, denominada Tupi-Guarani(Rodrignes, 1945: 333;
1958: 231-234; 1964: 103-104; 1984/5). D. W. Lathrap (com. pes.) pen-
sa que na realidade o centro de dispersio tenha sido a Amazonia Cen-
tral, e que os representantes das seis famflias Tinguisticas acantonados
no alto Madeira, entre Guaporé e o Ji-Paran4, representam relictos de
sucessivas vagas de migragies, iniciando no médio Amazonas, que fo-
ram detidos pela esearpa do chapadao do planalto central brasileiro.
‘Acreditava-se também que as migracdes teriam se iniciado apenas
‘um ou dois séculos antes da chegada dos europeus, motivo pelo qual as
linguas dos migrantes seriam mutuamente inteligiveis classificaveis
dentro de uma mesma familia — 0 que indicaria que teriam se separado
‘hd relativametne pouco tempo.
2. A reconstrugio da Arvore filogenética das linguas do Tronco
Tupi pelo estudo das mudangas fonéticas e fonolégicas (Lemle, 1971;
or
BROCHADO, J.P, A expansto dos Tupi eda carfmia da tradi pollertmica amazénica, DE
dalo, 8. Paul, 2756582, 1989
Rodrigues, 1984/5), medindo o seu grau relativo de relacionamento ¢
situando os modos de suas sucessivas separagdes; indica que linguagens
‘que antes cram tidas como estreitamente relacionadas, como 0 Tupi-
nambé e o Guarani, teriam, na realidade, se derivado de proto-lingua-
gens diferentes e portanto sua separacao seria mais antiga do que se
pensava, Estas evidéncias podem ser intepretadas como indicando que
05 Tupinambé e os Guarani nfo vieram na mesma onda migratéria, mas
Por catinhos muito diferentes. Por outro lado, o Tupinambé se rela
ciona mais estreitamente com 0 Kokama, 0 Kokamiya e 0 Omégua, do
alto Amazonas, do que com 0 Guarani, falado no trecho meridional do
litoral atlantico e no sistema fluvial Parand-Paraguai-Uruguai adja.
cente, 0 qual se relaciona mais com 0 Guarayti e 0 Siriono, falados no
Guaporé e Madeira, Os Tupi do alto Amazonas teriam portanto resul-
tado de migragdes rio acima de um povo que falasse uma lingua muito
proxima do Tupinamb4. Os Tupinambé proprios teriam descido ao lon-
go da costa atlantica, a partir da desembocadura do Amazonas, en-
quanto os Guarani teriam ocupado o sistema fluvial Parand-Paraguai
Uruguai deseendo do médio Amazonas ao longo do Madeira e do Gua-
poré. 3
Maior profundidade temporal também foi dada separagio das
linguas da familia Tupi-Guarani. O método léxico-estatistico glotocro-
nologico sugeriu que a diferenciacdo do Tronco Tupi teria ocorrido mais
de cinco mil anos atras, isto é, antes de ca. 3000 a.C.; enquanto que
4 separagao da propria familia Tupi-Guarani teria comegado hé 2.500
anos atras, isto é, ca. 500 a.C., e nfo recentemente como se pensava
(Rodrigues, 1958: 231-234; 1964: 103-104).
3. Desde 0 inicio da arqueologia no Brasil chamou a atengao
imensa dispersio de achados de ceramicas policrbmicas, coincidindo em
geral com areas ocupadas pelos Tupi. O relacionamento e possivel ort
gem comum de todas estas cerimicas, assim como a sua proveniéncia
amaz6nica, jé tinham sido sugeridos no final do século passado por La-
dislau Netto (1885), mas o conjunto foi pela primeira vez precisamente
definido como unidade taxonémica (Polychrome Division of Amazonia)
por Howard (1947: 42, 82), e estabelecido como a Tradigao Policromica
AmazOnica por J. P. Brochado e D. W. Lathrap (1980; Brochado, 1984:
303).
Foram identificados mais de mil sitios desta Tradigfo, assim distri-
buidos:
68BROCHADO, J.P. A expanso dos Tupi eda cerEmica da tradigto poicrimica amasinica. Dé
dado, S. Paulo, 27-65-82, 1985,
Ao longo do curso do Amazonas ¢ seus formadores
(Brochado & Lathrap, 1980)... ee 170
Na drenagem do Parand-Paraguai-Uruguai e litoral atléntico adja-
cente.
(Brochado, 1984: 249-260, 409-420: La Salvia, Brochado &
Naue, 1988) a)
No litoral atlantico do nordeste e leste do Brasil e bacias dos rios
costeiros
(Brochado, 19
83-289, 421-426) .............. + 170
+ 1.240
As diferengas quantitativas observadas acima nao tém importancia
cultural, pois as pesquisas tém sido muito mais intensas no sul e no leste
do Brasil do que na Amaz6nia
Na tentativa de explicar a pré-historia da América do Sul Tropical,
B. J. Meggers e C. Evans (1977, 1978, 1983) desenvolveram um modelo
no qual a ocupagio da AmazOnia seria muito tardia e todos os desen-
volvimentos ali observados teriam sido introduzidos de fora desta reas
principalmente a partir da regio andina; por vagas sucessivas de imi-
grantes, cujo nivel cultural decaia, devido as influéncias restritivas do
ambiente, As culturas mais complexas, em pouco tempo de estadia, de-
clinavam e se estabilizavam num nivel mais baixo, denominado de flo-
resta tropical, que seria comparavel aquele no qual se encontram os indi-
genas amazGnicos atuais, ap6s quatro séculos de opressao.
O modelo de D. W. Lathrap (1970, 1972, 1977) ¢J. P. Brochado e
Lathrap (1980, Brochado, 1984) é exatamente o inverso, pois pressupde
um desenvolvimento interno na propria Amaznia Central, enfatizando
a sucessiva criagdo, separacdo, evolugio e ramificacio de estilos ¢ tra-
digdes cerdmicas, os quais sobreviveram por muito tempo, algumas ve-
zes voltando a se fundir novamente. Isto quer dizer que a Amazdnia
Central constitufa um poderoso centro de originagao e a maior parte das
inovagées encontradas nao s6 dentro da Amazénia como fora dela, resul-
taram de desenvolvimentos no seu interior. Em contraste, no alto Ama-
zonas, nas cabeceiras dos maiores tributérios do Amazonas; assim como
na imensa Area periférica constituida pelo litoral atlantico, as bacias dos
rios costeiros e o sistema fluvial Parana-Paraguai-Uruguai, incluindo 0
planalto central brasileiro; em vez de mudangas graduais se observa a
rentes, trazidas por vagas
0
“sobreposicdo de culturas cerfmicas muito
BROCHADO, J. P. A expansio dos Tupi e a cerdmica da tad polorémica amazénica, Dé
ddalo; S. Paul, 2736582, 1989
migratbrias sucessivas ou epis6dios de "‘colonizacio”, vindas da Ama-
zonia Central.
Para explicar o desenvolvimento das cerdmicas amazénicas, que
eventualmente se espalhariam por toda a América do Sul, teorizamos
dois estratos sucessivos, subdivididos em seis estégios. A primeira das
vagas provenientes da Amaz6nia constituiria o Estrato I, com ceramicas
relativamente simples e sem decoragdo, as quais se espalharam por ado-
so, sendo copiadas de um grupo étnico para outro e modificadas se-
gundo as necessidades de cada um. Estes grupos, que jé habitavam a
rea periférica hé muito tempo, falavam linguas do Tronco Macro-Jé ou
da Familia Guaikuré, A difusdo das cerdmicas do Estrato I esté repre-
sentada arqueologicamente por intrusbes de unidades de tragos (Lathrap
et al., 1956) ¢ suas manifestagdes formaram dois ramos divergentes. A
‘Tradigao Pedra do Caboclo teria se distribuido a0 longo das terrasallas
dos planaltos central e meridional e no litoral atlntico adjacente. A
Tradig&o Palo Blanco, cujos sitios conhecidos se acham concentrados a0
longo do baixo Parana, estuario do rio da Prata e litoral atlantico adja-
cente (Brochado, 1984: 90-428), teria se difundido desde a AmazOnia ao
longo do sistema Parand-Paraguai,
Datas iniciais radiocarbénicas para as cerdmicas da Tradigao Pedra
do Caboclo, situadas ca. 3.700-3.500 a.C., na desembocadura do rio
Para, e ca, 700-1.000 a.C. no nordeste; e para a Tradig%io Palo Branco
em ca. 3.000 a.C., no estuario do Rio da Prata, indicam que sua antigui-
dade deve ser muito maior na AmazOnia Central, de onde ultimamente
provieram.
As eerdmicas nao decoradas do Estrato I teriam evoluido, ina pré
pria Amaz6nia, no sentido das cerfimicas complexas, com decorac’
policrémica, do Estrato 2, seguindo um complicado desenvolvimento,
que ainda apenas podemos vislumbrar. Num Estégio 3, que pode ser
estimado ca. 4.000 a.C., foi alcancada uma decoragao incisa avancada,
que se espalhou desde o alto Ucayali (Nazaretequi) até 0 baixo Orinoco
(Saladero). Num Estigio 4, estimado ca, 3.000 a.C., formas como as da
série Sald6ide, foram levadas para leste até o baixo Orinoco e a costa da
Venezuela e, mais além, para as Antilhas. Num Estégio 5, datado ca.
2.500 a.C., formas como as de Tutisheainyo — tigelas fortemente care-
nadas com flanges e decoracao incisa hachurada, incrustada de pig-
mento — foram levada para oeste, até o médio Ucayali (Tutisheainyo
Shakimu) ¢ 0 alto Napo (Yasuni e Pastaza) e além, para a regiio andina
70BROCHADO, J, P. A expansio dos Tupi cds cerfmicn a tadigfo policrbmies amarBaiea. Dé-
‘alo, S. Paso, 27.6582, 1989
(Kotosh-Wairajirca, Kotosh-Kotosh, Cueva de las Lechuzas ¢ Mécas),
chegando até o Pacifico, na costa do Equador (Machalilla) ca. 1.000
a.C. Estas cerdmicas teriam sido levadas, pelo menos inicialmente, por
falantes do Proto-Aruak. No baixo Amazonas estas formas passam a ser
decoradas com a tipica pintura poliersmica Amaz6nica.
‘Num Estégio 6, os flanges labiais, tipicos da Tradigao Tutishcainyo,
evoluiram na direcdo daqueles tipicos dos estilos Barrancas, que deram
origem a/Tradigio Guarita.|A decoragio modelada e incisa foi enfati
zada, e estas cerfimicas foram espalhadas para oeste e sul, até as cabe-
ceiras do Japura (Mangueiras), do Marafién (Upano), doNapo(Yasuni),
do Ucayali (Hupa-iya), do Mamoré (Velarde), do Beni (Chimay) e do
Xingu (Diavarum). Estas ceramicas barrancbides amaz6nicas teriam
sido levadas pelos Aruak, falantes do Proto-Maipuré.
Numa outra evolugao divergente, parcialmente contempordnea, as
cerimicas da Tradigo Policrdmica Amaz6nica foram espalhadas pelos
‘movimentos populacionais dos Tupi, cujas invasdes estdo representadas
arqueologicamente por intrusbes de unidades de sitios (Lathrap et al.,
1956). Argumentamos, portanto, que a maior parte da expansio_ge0-
‘grffica das cerimicas policrémicas, exeeto na regiao andina e nos Lhan-
nos da Venezuela e para além, deve ser correlacionada com esta expan
sto dos Tupi a partir da Amaz6nia Central, Em tempos
todas as instancias conhecidas destas ceramicas polierémicas eram pro-