IMAGEM,
PENSAMENTO
E CULTURA:
PERSPECTIVAS
CONTEMPORÂNEAS
Caroline Kraus Luvizotto
Eli Vagner Francisco Rodrigues
(Organizadores)
IMAGEM,
PENSAMENTO
E CULTURA:
PERSPECTIVAS
CONTEMPORÂNEAS
1ª edição – 2017
São Paulo
Conselho Editorial
Formato: PDF
ISBN 978-85-7983-901-6
Inclui bibliografia
Copyright © Caroline Kraus Luvizotto & Eli Vagner Francisco Rodrigues, 2017
APRESENTAÇÃO....................................................................................................................6
Cassiano Terra Rodrigues
6
e dos números, também as imagens e, cada vez mais, computadores e outros
aparelhos tecnológicos, para fins de compreensão, comunicação e aquisição
de conhecimento. Em suma, é alfabetizada qualquer pessoa que saiba usar os
sistemas simbólicos da cultura em que se insere.
Muitas questões abrem-se a partir disso. É possível observar, por exemplo,
uma preeminência do vivido sobre o narrado na cultura imagética contempo-
rânea. Se a experiência da imersão já era definidora da observação cinemato-
gráfica, hoje essa experiência é potencializada e assume novos contornos. Se
bem não deixa de existir o espectador cinematográfico, anonimizado na sala
coletiva de projeção, essa experiência torna-se residual e dá lugar cada vez mais
ao espectador individualizado e interativo dos games e mini-telas eletrônicas.
Os próprios modos de enunciação consequentemente transformam-se de
modo radical. Com o aumento da possibilidade de intervenção – do controle
remoto à própria mudança do percurso – aumenta também a fragmentação e
as descontinuidades na experiência, a qual se constrói agora com as imagens e
pelas imagens, nas redes sociais e seus compartilhamentos. Mas terá essa mu-
dança produzido consumidores de imagens mais (auto)críticos e conscientes
ou ampliado a imbecilização e a heteronomia coletivas? Talvez não encontre-
mos uma resposta satisfatória a essa pergunta, mas certamente encontraremos
muitas maneiras de pensar essa verdadeira aporia contemporânea nos textos
deste volume.
Organizado em três blocos, o volume traz uma importante contribuição
para todos os interessados em compreender, sob os mais diversos aspectos,
a nossa atual cultura das imagens. O primeiro bloco de textos é dedicado às
artes: “Imagens da literatura, da música e do cinema [audiovisual] ”. Os quatro
textos desse bloco analisam a relação das imagens com a escrita e com o som,
de modo a proporcionar ao leitor muitas provocações ricas em possibilidades
de pensamento – da semiótica de Greimas à poesia de João Cabral de Melo
Neto, passando pela TV Globo, pelo neo-realismo italiano e pelas canções de
Renato Russo. O que ressalta, neste bloco, é justamente o entrecruzamento de
linguagens na construção do simbólico. Da palavra unida à linguagem musi-
cal, fonte primária e essencialmente sintática de sentido, passamos à imagem
pedagógica e produtora de ideologias, além de juízos de valor simplificadores.
O segundo bloco, pode-se afirmar, constitui o cerne teórico do volume,
reunindo a maior quantidade de textos e também os mais difíceis. Aqui, en-
contramos a especulação filosófica mais abstrata aliada à crítica social, da qual
não está ausente a ilustração com estudos de caso. Trata-se, na verdade, de unir
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o rigor lógico do pensamento teórico ao teste empírico, de modo a mostrar
que conceitos difíceis de compreender refletem muitos movimentos reais, efe-
tivamente vividos por todos nós, cotidianamente, em nossas atividades mais
comuns – e vice-versa, quer dizer, passamos a dispor de instrumentos concei-
tuais para lidar com questões práticas, não raro negligenciadas por falta de en-
tendimento adequado. A relação entre teoria e prática ressalta, aqui, como uma
relação orgânica, e não como retrato de polos distanciados, num tratamento
de problemas e questões sociais do mundo contemporâneo que desnaturaliza
o que é comum tomar como dado e inquestionável, como, por exemplo, as
questões de gênero e nossa própria posição de sujeitos do conhecimento.
O terceiro e último bloco encerra o volume com textos que problemati-
zam a nova cultura formada com as novas imagens com as quais convivemos.
São textos que, seja apenas pela raridade e a novidade dos temas, já valeriam
ser lidos por qualquer pessoa. As novas redes sociais virtuais figuram de ma-
neira proeminente, mas também o esporte aparece como tema de análise.
Configura- se, assim, um bloco voltado a duas das mais importantes e uni-
versais experiências contemporâneas. A contribuição para uma ampliação do
próprio conceito de comunicação é evidente.
Com este volume, qualquer pessoa poderá estender seus conhecimentos
sobre as imagens e seu papel indiscutivelmente singular na cultura contempo-
rânea. Poderá, dessa forma, deixar de ser um consumidor meramente passivo
de imagens pré-concebidas e exercitar seu pensamento e autocrítica, de forma
a estabelecer uma relação menos imediata e mais refletida com as mais diver-
sas manifestações sócio-culturais de nosso tempo.
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I - Imagens da literatura,
da música e do cinema
EDUCAR PELO CINEMA: ROBERTO
ROSSELLINI E O ANO ZERO ALEMÃO
Claudio Bertolli Filho
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memória de um tempo e de uma nação. O comunista Edgar Morin, então com
24 anos, chegou à Alemanha logo após a queda do nazismo, servindo como
chefe de propaganda do serviço de informação do governo militar francês;
como muitos outros ocupantes, ele aproveitou essa experiência para compor
o seu livro de estreia no qual definiu o sentido do “ano zero” dos derrotados:
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inimigos e, em seguida, produzirem peças ficcionais que enfatizavam a persis-
tência de traços do espírito nazista após o encerramento do estado de belige-
rância. Destacam-se entre as produções iniciais do tempo de paz A Mundana
(A foreign affair), dirigida por Billy Wilder e Perdidos na tormenta (The se-
arch), de Fred Zinnemann, ambas lançadas em 1948 e que instantaneamente
ganharam fama internacional ao ponto de serem indicadas para diferentes ca-
tegorias de premiação do Oscar. Em tais peças, ficava patente a noção de haver
uma responsabilidade coletiva dos germânicos pela ocorrência da guerra e das
atrocidades perpetradas, princípio basilar para o tratamento rude dispensado
aos derrotados tanto nas telas quanto no cotidiano dos vencidos.
Os filmes mencionados tornaram-se modelares para as iniciativas cine-
matográficas que os sucederam e contam com um ponto em comum: eles se
apresentam como discursos imperativos, que pontificam sobre uma espécie
de malignidade essencial germânico-nazista que precisava ser punida quase
que com a mesma selvageria que pouco antes era praticada pelas tropas de
Hitler. Com isso, as produções estadunidenses do imediato pós-guerra não
abriam possibilidades para que o espectador ponderasse sobre outras formas
de explicação do nazismo e da sua aceitação por uma parcela considerável da
sociedade alemã, assim como sobre tratamentos alternativos que poderiam ser
oferecidos aos derrotados.
A linha de abordagem estadunidense foi reiterada, com pequenas varia-
ções, pela produção cinematográfica das demais nações Aliadas, especialmen-
te Inglaterra, França e União Soviética. Esta situação, de inegável perversida-
de, ganhou elementos atenuantes a partir da criação da RDA e da RFA e não
foi objeto de reações nas telas por parte dos vencidos até anos mais recentes.
Isto porque os norte-americanos, até o início da década de 1950, como inter-
ventores militares na Alemanha Ocidental, impediram que os estúdios locais
operassem com liberdade, sob o pretexto de impedir que ex-nazistas atuassem
em um setor estratégico de formação da opinião pública, maximizando com
isso os lucros dos estúdios de Hollywood e, ao mesmo tempo, reiterando junto
aos germânicos a missão yankee de preservar o equilíbrio político mundial
(Cánepa, 2006, p. 312).
Apesar da predominância dessa tendência, ainda em 1945 foi inaugurada
na Itália uma estética fílmica inovadora que foi quase imediatamente rotulada
“neorrealismo”, a qual abriu oportunidade para novos olhares sobre a Europa
e os europeus do imediato pós-guerra. Dentre suas produções encontra-se
“Alemanha, ano zero” (Germania, anno zero), peça cinematográfica lançada
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em 1948, e que consagrou seu diretor, Roberto Rossellini, como o expoente
máximo do movimento neorrealista.
Estabelecido o cenário, o objetivo desse texto é analisar as condições de
produção e o sentido imposto ao “ano zero” alemão na obra mencionada de
Rossellini. Tal opção deve-se ao fato da singularidade do enfoque arquitetado
pelo diretor italiano colocar em destaque a fluência de uma linhagem cine-
matográfica centrada na (re) educação dos espectadores frente ao “dilema ale-
mão”. A análise de Alemanha, ano zero impõe alguns esclarecimentos prelimi-
nares, sendo estes a trajetória de Roberto Rossellini como diretor de cinema e
sua posição central no movimento neorrealista.
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Em 1943, pouco após o lançamento de L’uomo dalla croce, a Itália depôs
Mussolini, rendeu-se formalmente aos Aliados e teve seu território ocupado
pelas tropas alemãs. Rossellini, como muitos outros intelectuais que haviam
trabalhado para o Estado fascista, corrigiu sua rota, passando a integrar as
forças italianas clandestinas de resistência e aderindo ao comunismo. Quando
o exército nazista foi expulso da Itália, em poucas semanas Rossellini dirigiu
Roma, cidade aberta (Roma città aperta, 1945), primeira peça de sua trilo-
gia da guerra, completada por Paisà (idem, 1946) e Alemanha ano zero. Se
Roma, cidade aberta tem sido considerado o filme inaugural do neorrealismo,
os dois outros componentes da trilogia são avaliados como a confirmação de
Rossellini como diretor neorrealista, marcando não só o ápice de sua carreira
como também sua desqualificação enquanto intelectual de esquerda.
Tanto Rossellini quanto a maior parte dos diretores tocados pelo neorrea-
lismo, dentre eles Vittorio de Sica, Luchino Visconti, Michelangelo Antonioni
e Federico Fellini negaram filiação a qualquer escola cinematográfica, alegan-
do que seus filmes subsequentes ao fim da guerra constituíam-se em exem-
plares de “cinema de autor”. Em depoimento datado dos anos 60, incorporado
ao documentário Roberto Rossellini (Roberto Rossellini: frammenti e battute,
2000), dirigido por Carlo Lizzani, esclarecimentos foram oferecidos pelo pró-
prio homenageado sobre o significado de “cinema de autor”, conceituando-o
vagamente como “o compromisso de um homem, que demonstra talento para
se comunicar, de colocar-se à serviço da comunidade”, omitindo-se em de-
clarar que por tal termo implica na noção de uma abordagem diferenciada e
pessoal de fazer cinema (Bordwell; Thompson, 2013, p.76).
Somente em meados da década de 50, quando a experiência neorrealista
já havia se esgotado, o movimento foi enfatizado por André Bazin que não só
foi prolífico em escrever sobre Rossellini como abriu as páginas do seu Cahiers
du Cinéma para, entre 1954 e 1956, publicar cinco entrevistas com o diretor.
Coube aos Cahiers e aos discípulos de Bazin, que dentro em pouco iriam dar
vida à Nouvelle Vague, redigir os textos canônicos sobre o neorrealismo, os
quais até hoje são invocados como leituras fundamentais para o entendimento
do cinema italiano do pós-guerra (Noguera, 2013, p. 24).
Os fundamentos das inovações rossellinianas estão ancorados no anti-
americanismo do diretor e na sua aversão ao fazer cinematográfico hollywoo-
diano, cuja fórmula condenada foi sintetizada nas palavras do fictício dire-
tor John L. Sullivan, encenado pelo ator Joel McCrea, no momento final de
Contrastes Humanos (Sullivan’s travels, 1941), dirigido por Preston Sturges.
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Após lutar durante anos contra chefes de estúdios para realizar um filme de
crítica social e mesmo experimentar na pele as condições de vida dos margi-
nalizados, no momento em que obteve permissão para realizar a produção
que ambicionava, Sullivan surpreendeu a todos ao rejeitar a tarefa, alegando
então que queria dirigir apenas comédias, explicando que “fazer as pessoas
rirem tem muitos méritos. Sabia que é tudo o que alguns têm? É pouco, mas é
melhor do que nada neste mundo de loucos”, deixando claro seu engajamento
no cinema de entretenimento. Anos depois, declarações semelhantes a esta
foram invocadas por Cesare Zavattini, outro cineasta neorrealista, para advo-
gar que o “grande cinema” constituía-se na estratégia da indústria cultural de
“embaralhar as cartas para esconder a derrota humana” (apud Furhammar;
Isaksson, 2001, p. 79).
Para Rossellini, a função da comunicação em geral e especialmente do
cinema é, a partir de uma ética humanitária e de cunho fenomenológico, ter
como objetivo a sensibilização do público mediante a educação, não se dei-
xando dominar pela ambição do sucesso de público e pelo lucro. Nesse en-
caminhamento, a função do trabalho de direção cinematográfica é adentrar
nesse “mundo de loucos” e causar o estranhamento sobre aquilo que é tido
como suficientemente conhecido, mostrar um fato em si e não demonstrar um
evento a partir de hipóteses pré-estabelecidas, como faziam os norte-america-
nos. Tal postura, ainda segundo o diretor italiano, permitia que o espectador
construísse sua própria verdade e percebesse com clareza as circunstâncias em
que vivia e, sobretudo, sobre como os “outros” viviam (Rossellini, 1992, p. 5).
A partir da noção de que a realidade constitui-se, como advogam os feno-
menologistas, no resultado da negociação entre a verdade exterior e a verdade
do espírito individual, Rossellini entendeu seu cinema como instrumento de
uma educação que instigava a mobilização e a interferência do homem comum
nas grandes estruturas da sociedade. Seria a partir dessa experiência cinemato-
gráfica singular que os indivíduos e os agrupamentos sociais poderiam ganhar
consciência, isto é, desalienarem-se, rejeitarem explicações fantasiosas e partici-
parem ativamente e com solidariedade no mundo (Quintana, 1995, p. 18).
A busca pela exposição da essência do espírito humano sob condições
adversas, tema recorrente no cinema de Rossellini, conferiu à poética neor-
realista contornos próprios, não se equiparando a outras propostas cinemato-
gráficas que se apresentavam como projeções da realidade. O realismo italiano
não se confunde com o realismo do cinema soviético porque este se mostrava
inegavelmente subordinado a Stalin e à uma ideologia que fazia a realidade
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ganhar um sentido apriorístico; também se distinguia do naturalismo do cine-
ma francês que pelos efeitos do intenso trabalho de montagem, mantinha laços
tênues com a realidade, fragilizando seu potencial de permitir que o especta-
dor buscasse (re)pensar as questões coletivas (Bazin, 2014, p.110).
A partir dessa ética instrutora de uma definição de cinema é que foi eri-
gida a estética neorrealista. Para “mordiscar todos os dias um pedaço da ver-
dade” (Rossellini, 1992, p. 11), o diretor comprometeu-se em retratar a Europa
do pós- guerra, e as experiências nacionais ou regionais, indicando já no tí-
tulo de vários de seus filmes a região nas quais transcorreriam as encenações
(Roma, Stromboli, Alemanha, Europa). Rossellini serviu-se de um conjunto de
recursos que dispersos nos escritos de Bazin (2014) constituem-se basicamente
no recrutamento de atores não profissionais, cobrando destes mais do que a
interpretação segundo as linhagens interpretativas, a expressão de suas rea-
ções pessoais frente aos horrores que povoam o cotidiano, circunstâncias que
interferiam pesadamente no desenvolvimento do roteiro. Junto a isso, tomadas
exteriores, planos mais chocantes que esteticamente belos e amplas panorâmi-
cas tomadas em locações reais e sob iluminação natural eram utilizados para
contar micro-histórias de homens comuns, mas, mesmo assim, trajetórias de
protagonistas que não se limitavam às suas tramas privadas de vida, mas às
condições de existência das multidões que cada personagem emblematizava.
Os filmes de Rossellini assumem dimensões documentais, avizinhan-
do-se do teor das reportagens. Nas peças cinematográficas, situações banais
desempenham um sentido indicativo das circunstâncias do viver no mun-
do pós- guerra, gerando até hoje inquietação e angústia em quem as assis-
te. No entanto, “a arte se propõe a ir além da realidade, não a reproduzi-la”
(Bazin, 2014, p. 328). Nesse sentido, é significativo destacar que nos filmes de
Rossellini os eventos e situações são (re)construídos em seus elementos essen-
ciais, ao mesmo tempo de forma sintética e elíptica. Cada tomada mostra-se
longa, com o mínimo possível de ornamentação cênica e com raros efeitos de
montagem, sendo que mesmo as falas dos personagens são avaras em palavras.
É na expressão de corpos continuamente em movimento e emoldurados por
cenários com marcas da destruição e da miséria, em olhares furtivos, solitários
e amedrontados que se revelam os dramas vivenciados pelos vencidos.
Tais elementos foram considerados revolucionários no contexto da arte do
fazer cinematográfico. Roma, cidade aberta ganhou fama imediata, inclusive nos
Estados Unidos, obtendo sucesso de bilheteria e chamando a atenção dos críti-
cos. Em 1949, Lauro Venturi, italiano formado em cinema na América, frisou
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o antigo vínculo entre Rossellini e o cinema fascista e ressaltou que, se Roma,
cidade aberta foi bem acolhido nos Estados Unidos, isto se deu não pela temática
explorada, mas sim pelo conjunto de imprecisões que o filme comportava, onde
se incluem roteiro mal definido, fotografia rudimentar, iluminação precária e
a ausência de sincronia na dublagem de laboratório, já que os sons não eram
gravados ao mesmo tempo que as imagens. Para o crítico, não era a ótica huma-
nista adotada pelo cinema italiano, mas sim as condições técnicas imperfeitas
que faziam os filmes de Rossellini contrastar com o que era feito nos estúdios de
Hollywood. O texto ressaltou também que o escopo realista e documental não
eram uma novidade no cinema italiano, estando presente, mesmo que não com
a mesma intensidade, em outras produções, inclusive em Obsessão, (Ossessione,
1942), dirigido por Luchino Visconti (Venturi, 1949).
No documentário já mencionado de Carlo Lizzani, a atriz sueca Ingrid
Bergman, que atuou em cinco filmes de Rossellini, destacou o comportamento
autoritário do diretor, assim como confessou ter se chocado, depois de anos
atuando no cinema estadunidense, com a sucessão de evidências de amado-
rismo, improvisos e a precariedade técnica que pontuavam os filmes do ex-
marido. No mesmo documentário, outros depoentes tentaram justificar o
modo rosselliniano de produção cinematográfica. Martin Scorsese, declarou
que o diretor italiano nutria intenso desapego ao apuro técnico para conseguir
de seus atores a expressão da “verdade sobre as emoções humanas”; François
Truffaut foi mais específico ao lembrar que
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filmes. Mais ainda, o escândalo público propiciado pelo seu casamento com
Ingrid Bergman (ambos eram casados e abandonaram seus cônjuges para fi-
carem juntos) e a condenação pela Igreja Católica dos pretensamente heréti-
cos O amor (L’amore, 1948) e Francisco, arauto de Deus (Francesco, giullare di
Dio, 1950) fizeram do diretor um personagem reprovado inclusive nos Estados
Unidos. Como confidenciou o próprio Rossellini, “a imprensa do mundo in-
teiro arrastava-me na lama” (Rossellini, 1992, p. 77).
18
companheiro sobre o contexto germânico (IMDB, 2017; Quintana, 1995, p.
89).
A definição de um olhar diferenciado sobre os alemães coagiu o diretor a
tomar cuidados maiores na sua produção. Em um momento que ainda ecoava
entre os Aliados brados como “maldita seja a Alemanha”, “que Deus devaste
a Alemanha como castigo” e “alemão bom é alemão morto” (Gilbert, 2014,
p. 781), Rossellini, sentiu-se forçado a declarar suas intenções a partir de um
longo texto que ele próprio leu na abertura do filme, não só para proteger-se
de mais uma avalanche de críticas como também para reiterar o propósito de
sua atividade cinematográfica:
Este filme (...) espera retratar de forma objetiva e fiel esta imen-
sa cidade destruída onde 3,5 milhões de pessoas vivem uma vida
terrível. Uma vida de desespero, quase sem se darem conta. Elas
vivem como se a tragédia fosse um elemento natural, não por se-
rem fortes ou por terem fé, mas por estarem cansadas. Não se trata
de uma acusação contra o povo alemão e nem uma defesa. É uma
simples constatação dos fatos.
19
e, mesmo assim, pouco contribuindo para o sustento do grupo doméstico, e
um irmão adulto, que se esconde de todos para não ser punido pelo seu passa-
do como integrante das tropas nazistas. Moradores em um prédio arruinado,
onde tudo precisa ser racionado, da luz e água à alimentação, Edmund busca
meios de sobrevivência numa cidade destruída e ocupada por uma população
de seres tocados pela tragédia e pelo desconsolo.
A incomunicabilidade entre os personagens é intensa, fazendo que os
primeiros ¾ do filme sejam ocupados com longas panorâmicas sobre Berlim
semidestruída e sobre o estado ético e moral dos vencidos. Edmund peram-
bula nos cenários devastados, buscando algo que pudesse contribuir para a
sobrevivência do que restou de sua família. Nesse curso, tenta já no início da
encenação, trabalhar como coveiro, mas é acusado por outras pessoas que dis-
putavam o mesmo ganha pão de ser jovem demais para exercer a tarefa. O que
lhe resta é atuar junto ao mercado negro, levando de sua casa tudo que pudesse
ser vendido por um preço exíguo ou trocado por algum alimento. Ao executar
esta missão, defronta-se com cenas de desespero como a de populares famintos
lançando-se sobre um cavalo em agonia para arrancar-lhe partes do corpo ou
a disputa pela coleta de um pouco de carvão que um caminhão acidentalmente
derramou na via pública. Apesar de conviver diariamente com situações como
estas, o menino tenta manter alguns traços de juventude, brincando solitaria-
mente ou tentando se socializar com outros meninos para jogar bola. Apesar
disso, em tudo são ressaltadas a solidão e o desespero do infante desamparado.
Nesse ínterim, Edmund depara-se casualmente com um ex-professor que
tivera na escola. Nazista, o velho docente tem realçado pelas câmeras sua con-
dição de pedófilo, articulação que Rossellini já havia explorado em outras fitas
entre o que então era definido como perversão sexual e o apego às ideologias
totalitárias. Esse professor aproveita-se do menino, não só o acariciando des-
pudoradamente, mas também agenciando-o para a venda de seus produtos no
mercado negro. Um desses itens constitui-se em um disco gravado com um
discurso proferido por Hitler. Cena altamente simbólica da fita, esse disco é
tocado para um potencial comprador no espaço público. A voz esbaforida do
ditador ecoa pelo cenário de ruínas, imobilizando alguns transeuntes, como se
o fantasma do Führer insistisse em continuar pairando sobre a cidade que ele
vislumbrou como futura capital do mundo.
Mesmo que não se alinhasse com a mácula de que todo alemão era nazista,
Rossellini não se mostrou indiferente à noção de culpabilidade coletiva dos
germânicos, por mais que buscasse estabelecer um novo olhar sobre a pátria
20
dos derrotados. Acamado e sem direito de usufruir de tratamento hospitalar
por mais do que alguns dias, o velho Köhler mune-se de coragem para con-
fidenciar o que sentia para seus filhos, especialmente para Karl-Heinz, que
integrara o exército nazista. No mais longo trecho do filme onde há a fala de
um personagem, o enfermo pronuncia-se, em tom desesperado:
21
edificação e, ainda sem demonstrar qualquer tipo de emoção, mas possivel-
mente tomado de súbita consciência pelo que fizera e de como vivia, lança-se
no vazio ao encontro da morte.
A profusão de simbolismos no filme mantém-se até a cena derradeira.
Uma testemunha do acontecimento apressa-se em verificar se Edmund ain-
da está vivo e, de imediato, percebe que há apenas um cadáver. As lentes da
câmara deslocam-se então para um bonde vazio que trafega pela rua e, dele,
para um cenário mais amplo e corriqueiro no filme: a cidade destruída. Viver
ou morrer parecia não ter mais importância para os vencidos; e é isso que o
menino simbolizou.
O diretor foi até a Alemanha para retratar a identidade alemã e, a partir
disso sensibilizar as plateias que assistiriam seu filme. Torna-se importante
também destacar que Rossellini definia suas produções fílmicas como sen-
do obras que se aproximavam de ensaios sociológicos. Lembrando ainda que
os neorrealistas inquiriam a “realidade humana” como “fato social” (Bazin,
2014, p. 377), reportando-se a um dos conceitos fundamentais da sociologia
durkheimiana. Nesse sentido, vale a pena avaliar que Edmund Köhler, ao
buscar a morte autoprovocada, representava uma legião de alemães que, no
transcorrer do “ano zero”, colocaram fim à vida por não conseguirem convi-
ver com a necessidade e urgência da redefinição da identidade nacional, o que
implicava também na correção da identificação individual (Elias, 1997, p. 316).
Fala-se, pois, no suicídio cinematográfico de Edmund como a elaboração,
nos termos de Rossellini, de uma “realidade sintética” cujo suporte conceitual
encontra-se na definição de anomia, quando o desajuste entre um contexto
social de crise e uma consciência cultural instruída com valores anteriores à
própria crise nutre a percepção da inviabilidade de esperanças e projetos em
relação ao futuro (Durkheim, 1971, p. 203). Nestes termos, o suicídio coletivo
abre-se como opção mais do que possível, desejada.
Considerações finais
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ser instrumento de educação, mas sim um dispositivo privilegiado da indústria
de entretenimento, isto é, de fuga do real. Com isso, Hollywood reafirmava seu
poder hegemônico inclusive em relação ao cinema produzido na Europa.
Apesar disso, Rossellini abriu novas possibilidades para o questionamento
da identidade alemã. A herança intelectual do diretor mantém-se viva, instruin-
do outras peças fílmicas inclusive na Alemanha reunificada em 1990 (Cooke,
2011, p. 327). A necessidade de novas inquirições sobre quem são os germâni-
cos frutificou em produções cinematográficas como O Milagre de Berna (Das
wunder von Bern, 2003) e Ele está de volta (Er ist wieder da, 2015). Com isso,
fica evidente o fato de a comunicação massiva continuar se apresentando como
uma vigorosa possibilidade de constituição de uma educação entrelaçada com o
autoconhecimento nacional e a solidariedade de todos os povos.
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Claussen Wöbke Putz Filmproduktion; Constantin Film, 2015, VD, (116 min,), Color,
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Francisco, arauto de Deus (Francesco, giullare di Dio). Dir. Roberto Rossellini. Itália:
Cineriz; Rizzoli Film, 1950, DVD. (85 min.), Legendado, Port.
L’uomo dalla croce. Dir. Roberto Rossellini. Itália: ContinentalCine, 1943, VD. (72
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La nave bianca. Dir. Roberto Rossellini. Itália: Centro Cinematografico del Ministero
dela Marina; Scala Film, 1941, VD. (77 min.), P&B, Legendado, Ingl.
O amor (L’amore). Dir. Roberto Rossellini. Itália: Finecine; Tevere Film, 1948, DVD. (69
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O milagre de Berna (Das wunder von Bern). Dir. Sönke Wortmann. Alemanha: Little
Shark Entertainment; Senator Filmproduktion; Seven Pictures, 2003, DVD. (118 min.),
Color, legendado, Port.
Paisà (Idem). Dir. Roberto Rossellini. Itália. Organizzacione Film Internazionali; Foreign
Film Productions, 1946, DVD. (126 min), P&B, legendado, Port.
Perdidos na tormenta (The search). Dir. Fred Zinnemann. Estados Unidos; Suiça:
Praesens-Film, 1948, DVD. (104 min.), P&B, legendado, Port.
Roberto Rossellini (Roberto Rossellini: frammenti e battute). Dir. Carlo Lizzani. Itália:
Felix Film; RAI Cinema, 2000, DVD. (63 min.), P&B e Color, legendado, Port.
Roma, cidade aberta (Roma, città aperta). Dir. Roberto Rossellini. Itália: Excelsa Film,
1945, DVD. (103 min.), P&B, legendado, Port.
25
ENTRE CRUEZA E CLICHÊ:
MORTE E VIDA SEVERINA NA TV GLOBO
Marcelo Bulhões
26
estéticos de décadas anteriores que se converteriam no eixo de uma tensão
fundamental: a dicotomia crueza/clichê. Se esse caminho for válido, o “caso”
Morte Vida pode servir à visada de um horizonte mais amplo.
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folhetinesco-melodramático do “padrão Magadan” em alguns casos se assen-
tava em linhagem “de capa espada”, ora com o “requinte” de cenários europeus
do século XIX, ora com o “exotismo” do mundo árabe, ambos com a embala-
gem de estilização kitsh afim à venda de creme dental e água de colônia para
o público feminino. Quando não, uma ópera, como Madame Buterfly, serviu
de molde a uma narrativa em tudo calcada em escapismo romântico do XIX.
Na busca pelo arrebate das sensibilidades dos telespectadores a moldura de
teledramaturgia portava a inequívoco contorno do repertório da radionovela.
Mas a aragem de renovação chegaria à Globo sob o influxo de Beto
Rockfeller, de 1968 da TV Tupi, escrita por Bráulio Pedroso, marco da ruptura
do padrão melodramático-cubano-mexicano pelo despojamento coloquial e
humor farsesco na história de um pícaro moderno que busca se passar por
grã-fino. A Globo buscaria tais ares, embora de modo mais comedido do que a
desenvoltura malandra de Beto, em Véu de Noiva, escrita por Janete Clair, tri-
lha seguida na década de 1970 por Pigmalião 70, adaptação de obra de Bernard
Shaw, Irmãos Coragem e O Cafona. O desvio do padrão fixado com O Direito
de Nascer – melodrama radiofônico cubano de 1946 que se tornou protótipo
em toda América Latina durante décadas – paulatinamente despojava das te-
lenovelas a tintura piegas em situações rocambolescas em larga medida dis-
tantes do cotidiano “reles” da vida nacional, solapando as esdrúxulas areias do
deserto do Saara do Sheik de Agadir – na verdade as areias das dunas de Cabo
Frio, litoral fluminense. Embora sob a designação de “enredos modernos” pos-
sa se reconhecer uma demão de fraco verniz que procurava disfarçar o novelo
melodramático das tramas, buscava-se constituir o emblema da contempora-
neidade em histórias ancoradas no chão da atualidade prosaica, com o solo
nacional remetido na telinha. E o “chão cotidiano” da vida brasileira parecia
ser pisado de modo mais firme ainda em 1970 com Verão Vermelho de Dias
Gomes, o mesmo autor cuja produção dramatúrgica, exitosa uma década atrás
em O Pagador de Promessas, demonstrava afinidades com autores brasileiros
de “verve social” da estirpe de José Américo de Almeida, Dyonélio Machado,
Graciliano Ramos, Jorge Amado e Raquel de Queiroz. Tal vetor de afinidade
com o nosso “neo-realismo de 30”, divisado no modo como o mundo provin-
ciano, a uma só vez metáfora e microcosmo do Brasil, parecia se atualizar nas
cores que naquele momento chegavam à TV Globo: tanto em O Bem Amado
(1973), de Dias Gomes, como em Gabriela (1975), adaptação textual de Walter
George Durst e direção do próprio Avancini de um dos romances mais popu-
lares de Jorge Amado, o tratamento humorístico-farsesco pregnante e mesmo
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ácido para o reconhecimento da fisionomia provinciana do país que vivia o
“milagre econômico” associava-se à mordaz verificação do coronelismo polí-
tico como face penosa da mesma moeda. Grabriela comportava a tensão entre
a verve de denúncia da ordenação social e da opressão política brasileiras e
a idealização pelo resplandecer de uma sensualidade simpática, sexualidade
tropical desrecalcada que acabaria amolecendo o próprio teor crítico, convi-
dando a um olhar compassivo com aquele mundo que parecia denunciar. De
qualquer modo, naquela altura o êxito de público dessas telenovelas punha a
TV Globo nos trilhos da incorporação de leituras de escritores brasileiros mo-
dernos e em visada “regional”, não sendo de estranhar que o percurso seguisse
com “casos especiais” em adaptações de obras de Jorge Amado e Graciliano,
como Quincas Berro D’água (1978) e São Bernardo (1983).
O que nos leva a Morte e Vida Severina. Sob a perspectiva dessa brevíssima
passagem que vai do padrão folhetinesco-melodramático de O Sheik de Agadir
à incorporação de repertório da literatura moderna brasileira com obras de
Graciliano, Jorge Amado e João Cabral de Melo Neto, entre outros, o caminho
que se cruza com a peregrinação do retirante de Morte e Vida Severina serve para
flagrar sensíveis mutações que se deram do contexto da ficção televisiva produ-
zida pela Globo. Mas um olhar, também breve, deve ser remetido ao cinema.
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do sertanejo nordestino em fisionomia inconfundível e sua paisagem áspera
em trânsito, do agreste dominado pelo latifúndio para a degradação da ci-
dade grande. O périplo de Severino na TV, o protagonista do Auto de Natal
Pernambucano de Cabral, parecia recolher uma representação imagística do
ser e da geografia brasileiras configurada pelo Cinema Novo. Como Manuel
de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, Fabiano de Vidas
Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e muitos dos tipos de Os Fuzis
(1964), de Ruy Guerra, para ficarmos em três exemplos bem conhecidos do
ápice do Cinema Novo (1963), o Severino de Avancini é efígie do sertanejo
em pugna desalentada e anti-heroica com o meio e suas condições sociais
insustentáveis.
No início de uma década em que o cinema e a TV inflacionariam uma
imagística hedonismo do Brasil – nos corpos de biquíni e sunga das praias do
Rio, emblemas que invadem telenovelas e telejornais, passando pela publicida-
de –, o selo da crueza cinemanovista de matriz neorrealista parecia, a contr-
pelo, migrar e caminhar na figura mirrada do ator José Dumont encarnando
Severino, atravessando a tela daquela emissora considerada braço direito da
ditadura militar.
Se a contextura do Cinema Novo estava desfocada, deslocada do momento
cinematográfico brasileiro dos anos 80 a ponto de um filme como A Noite do
Espantalho (1974), por exemplo, dar bem à vista o desgaste daquela fisionomia
antes vicejante, vertendo-se no filme de Sérgio Ricardo em espécie de embuste,
figura epigônica ou decalque pálido de Manuel de Deus e o Diabo ou Fabiano
de Vidas Secas, representação “fora do tempo”, a presença de um regime ima-
gético que chamava o legado cinemanovista no ambiente televisivo da Globo
não conduzia, no entanto, a um estranhamento justamente pelos apontamentos
que fiz há pouco, o da passagem do padrão folhetinesco-melodramático para a
ancoragem à “modernidade” teledramatúrgica. E – nota à margem – o consór-
cio da Globo com o regime militar era “dialético”, bastando lembrar a acolhida
em sua grade profissional de artistas que genericamente pareciam postados “à
esquerda”. Esses apontamentos dão o que pensar pelos nós cegos que formam,
entretecimento de vetores em torno da adaptação audiovisual de uma obra lite-
rária da envergadura do poema de Cabral no trânsito das décadas. Nisso tudo, o
panorama complexo deve ser adensado pela constatação de cruzamentos, contá-
gios e tensões entre veículos e sistemas semióticos distintos.
Em fase intensa de difusão da matriz nacional popular combativa, arco dos
anos 50 aos 60, o apelo de clamor social do poema de Cabral foi potencializado
30
com a associação a um dos artistas emblemáticos na fase aguda de tensão ao
regime militar, Chico Buarque, com parte dos versos de Morte e Vida tornados
temas musicais pelo compositor para o espetáculo no teatro Tuca em setembro
de 1965. A faixa “Funeral de um Lavrador”, um dos temas musicais que Chico
compôs para o poema de Cabral, faria parte do álbum do compositor no auge
do acirramento político brasileiro, 1968. Se pouco tempo separa a leitura-a-
daptação cinematográfica que Nelson Pereira fez de Vidas Secas, 1963, e Morte
e Vida, 1963, no palco do Tuca, flagrante é a releitura geracional nos termos de
um alinhamento para embates em seus contextos particulares: jovens artistas
“militantes” dos 60, Nelson Pereira dos Santos e Chico Buarque, faziam leitu-
ras- recriações de dois escritores brasileiros modernos cujas obras teriam sido
“combativas” em suas épocas. O canto de Chico, cujo despojamento como re-
cusa de impostação vocal foi apreendido de João Gilberto – canto “a palo seco”,
se se quiser usar um verso do próprio João Cabral – é modo de alinhamento à
poética de Morte e Vida em sua propositura concisa, anti-afetação. De modo
similar, a poética “seca” da câmera de Nelson Pereira, depurada pelos preceitos
do Neorrealismo italiano, é correlativa à conhecida estética da concisão esti-
lística de Graciliano Ramos. A leitura-recriação que Nelson Pereira e Chico
Buarque fazem de Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto opera, pois,
como reprogramação de duas obras cujo teor combativo é coligado profun-
damente a uma estilística da concisão. Irmanadas, as estéticas de Graciliano
e Cabral são reprogramadas para o calor da hora da geração de jovens que
protestavam contra o Regime Militar e que tinham no Cinema Novo (Nelson
Pereira) e na “canção de protesto” (Chico Buarque) expressões emblemáticas
de combate. Reprogramação de duas estéticas literárias cujas afinidades são
declaradas, em escrita metapoética, nos versos do poema “Graciliano Ramos”,
de João Cabral:
31
(...)
(Melo Neto, 1994)
32
Glauber, Nelson Pereira e Ruy Guerra operaram com chave reversa à efígie
dessa figura emoldurada, fixada à distância para nossa contemplação como
o “outro”, o selvagem exilado do movimento da história, sobre a qual repousa
um olhar cinematográfico de curiosa nostalgia, pintado como o bárbaro que
não participa do tempo do cineasta, em costura de espetáculo segundo o mol-
de hollywoodiano. Numa visada em perspectiva, não deixa de ser curioso lem-
brar que o lastro de O Cangaceiro permaneceria durante e posteriormente à
vigência do Cinema Novo. Paisagem praticamente desconsiderada pela crítica
e estudos acadêmicos, é curiosa a descendência do nordestern – designação de
filmes de temática do cangaço – em um conjunto numericamente significativo
de títulos nos anos em que o padrão estético que a Vera Cruz imprimira em O
Cangaceiro parecia ter sido solapado pelas rupturas promovidas pelo Cinema
Novo e as tendências experimentais do fim dos anos 60 – que canhestramente
receberam o epíteto de “Cinema Marginal”. Mas de fato há uma série de pro-
duções dos desdobramentos do nordestern. Filmes como Corisco – o Diabo
Loiro (1969), dirigido por Carlos Coimbra, O Cangaceiro Sanguinário (1969),
de Osvaldo Oliveira, ou Jesuíno Brilhante, o Cangaceiro (1972), dirigido por
William Cobbett, e tantos outros, faziam circular a fisionomia do bandido
rural de extração romântica em uma estilística colada às convenções merca-
dológicas do “filme de ação” com indumentária sertaneja.
Supostamente na contramão dessa tendência, é preciso, no entanto, confe-
rir como se daria no especial global Morte e Vida Severina a incorporação da
postura cinemanovista. De fato ela se confirma? Longe de uma relação meca-
nicista contexto/texto, a visada em aspectos extratextuais deve migrar para o
flagrante de sua projeção na textura audiovisual do especial televisivo.
Em menos de duas décadas, de 1965 a 1983, a pujança comercial ascenden-
te da TV Globo é dado que nos leva a identificar certo embate entre a adesão
ao ditame mercadológico diante do qual a crueza cinemanovista é discordan-
te. Nessa perspectiva, a “especialidade” Morte e Vida de Avancini é coesa à
alocação em grade de horário fora das faixas de maior audiência, sinalizando
a viabilidade de uma feitura teledramatúrgica não subordinada às ingerências
mercadológicas mais urgentes. Como “biscoito fino” destacado da grade geral
da teledramaturgia da emissora, não espanta a feitura de um especial como
versão audiovisual de uma obra literária cuja montagem teatral nos anos 60
foi exemplo de “resistência artística” à Ditatura Militar, rasgo que convida ao
flagrante de traços na feição teledramatúrgica de proposituras cinemanovistas
na programação de uma televisão comercial – a mais poderosa e influente do
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país – no início dos anos de 1980. Todavia, se naquela altura a Globo gozava
com folga o estatuto de líder de audiência, tendo ultrapassado os traços mais
grosseiros da estética folhetinesco-melodramática e ter afeito ao sabor atra-
ente para o entretenimento do grande público tanto a “modernidade” da vida
urbana e contemporânea nas tramas das telenovelas quanto a contemplação
– embora edulcorada e em vetor pitoresco, caso de Gabriela – da vida rural
e provinciana do Brasil, postas principalmente em chave de farsa, o “caso”
Morte e Vida é portador de um embate, discernível na fisionomia do seu dis-
curso audiovisual. Uma vez que influxos extra-audiovisuais são inseparáveis
da forma audiovisual, a aposta aqui é presença de uma expressão ambivalente:
o especial dirigido por Avancini postaria, a um só tempo, associação e recusa,
aproximação e afastamento do legado cinemanovista. Em proposição sintéti-
ca: crueza e clichê. De um lado, a crueza de matriz cinemanovista; de outro, o
clichê, a fossilização do palatável audiovisual.
Herança de crueza?
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Imagem 1
Fonte: Morte e Vida Severina (filme)
Tal moldura abaliza o olhar “de dentro”, no interior do casebre em que es-
tão as cantadoras de incelenças, velhas que entoam benditos de defuntos diante
da cabeceira do cadáver. Ao “recolher” a caminhada de Severino pelo olhar
postado na janela, que o emoldura, a câmera obriga o olhar do espectador ao
achego daquelas mulheres de rostos severos, encarquilhados; carrancas carco-
midas que entoam o canto fúnebre diante do morto. A câmera faz uma bre-
ve panorâmica por esses rostos de feição pungente, sem alarde todavia, para
captar uma placidez da dor como estado habitual. Tal cena, em tese, poderia
ser equiparada a algumas de Vidas Secas, de Nelson Pereira, em que a câmera
habita o casebre em que estão Fabiano, Sinhá Vitória, os filhos e a cachorra
Baleia, postada em convivência estreita com esses seres. Depois, a câmera as-
sume postura em vetor contrário, enquadra Severino do lado de fora da casa,
ao lado da janela que havia servido de portal do olhar que o havia enquadrado
e levado o espectador ao contato direto com o velório sertanejo.
35
De modo semelhante, em momento imediatamente posterior, quando o
retirante chega a um vilarejo e se dirige a uma romeira, “rezadeira” e “enco-
mendadora” de almas, personagem interpretada por Elba Ramalho, em toda
a faixa de diálogo entre o retirante, que sempre fala, e a mulher, que sempre
canta, a câmera se põe a acompanhá-los, no encalço de Severino seguindo a
mulher nos afazeres da reza e do ato de benzer doentes e crianças. Tal atitude
representa a tônica de Morte e Vida Severina, embora se possa assinalar aí
certa intensificação pela ação da câmera de perscrutar com aperto o mun-
do degradado dos seres do sertão. A câmera está em incidência direta com
o corpo da “rezadeira” que se movimenta muito – com ecos de linhagem de
documentário. A operação discursiva da ação da câmera é de consórcio direto,
o efeito de um corpo a corpo com “o povo do sertão” e sua relação ritualística
e íntima com a morte.
Tais apontamentos parecem indicar que o poema de João Cabral servira
a uma composição discursiva de assimilação à ficção televisiva de uma pro-
positura cinemanovista basilar, a do aparato audiovisual retratar a realidade
social brasileira sem filtro, negando a visão etnocêntrica que vê o mundo do
sertão e seus agentes como o estranho, o exótico ou o nostálgico. Morte e Vida
de Avancini teria, aproximadamente duas décadas depois do Cinema Novo,
impresso na textura da teledramaturgia o contrapelo à retratação do homem
rústico de O Cangaceiro (1953), a cuja figura exótica se presta homenagem nos-
tálgica, pois ele está deportado do mundo do espectador e do cineasta. No
encalço de Severino encarnado pelo tipo nordestino mirrado de José Dumont
a câmera televisiva teria assimilado o princípio contundente do Cinema Novo
da desmistificação da vida sertaneja, como em duas décadas atrás os serta-
nejos de Deus e o Diabo ou Vidas Secas caminhavam a pé em um sertão cuja
aspereza e violência a câmera de cinema incorporara em sua própria precarie-
dade técnica.
O palmilhar da câmera em Morte e Vida parece se associar ao projeto
cinemanovista de assimilar o discurso de enfrentamento da vida social e na-
cional degradada no cerne de uma estética que plasma o efeito de um olhar
rente ao mundo popular, na utopia da superação do próprio abismo de classe.
Naturalmente, muito do projeto cinemanovista foi indiciado como ingênuo,
paternalista e, em última instância, autoritário, pois o olhar constituído por
seus filmes sempre seria – Glauber seria exceção – o do intelectual-cineas-
ta a fornecer representações esquemáticas do mundo popular e da mecânica
de sua “alienação”, segundo princípios de um Marxismo vulgarizado para o
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élan revolucionário daqueles dias. Evitando ambiguidades e contradições, o
1
cineasta vem falar em nome do povo . De qualquer modo, importa
flagrar nesses momentos de Morte e Vida Severina um olhar que parece es-
tabelecer certo corpo a corpo com o mundo degradado do sertão, algo atingido
por algumas realizações cinemanovista, caso de Vidas Secas, em que a câmera
construiria menos um discurso sobre o povo, mas ao lado dele, imiscuindo-se
naquele mundo desalentado. Tal propositura de matriz cinemanovista trata
a adaptação do poema de João Cabral como fala incorporada por uma mise-
-en-scène em que o dispositivo audiovisual está rente ao corpo dos atores, dos
figurantes, dos animais e da vegetação gretada, em relação franca, deixando
as lentes como que se impregnarem ou se tingirem da carnadura do sertão em
sua seiva de brasa, desoladora. Neste sentido, a presença do sol como fonte
de luminosa em voraz consórcio com a câmera tem força na textura discur-
siva. Com efeito, a luz solar é um dos fortes componentes de afirmação dessa
composição “por dentro” do “mundo severino”. Ao fazer isso, a força poética
encontraria uma pulsação direta, a plenos pulmões, da acidez e da carnadura
desossada do meio e do cenário, espaço vivo do sertão que atingiria o aparato
audiovisual, a câmera e os microfones da feitura audiovisual a que assistimos.
Participa dessa mesma atitude a fala dos personagens, que evitam qualquer
locução ou impostação recitativa do poema, assumindo o falar espontâneo,
como uma anti-interpretação vocal, o que é marca sobretudo da alocução do
protagonista, também narrador, o Severino encarnado por José Dumont.
1 Vale conferir o que Jean Claude Bernardet apontava em livro lançado no contexto ainda cine-
manovista: Brasil em Tempo de Cinema: Ensaios sobre o Cinema Brasileiro de 1958 a 1966. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
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tonalidade amarelo-laranja. Com a paisagem áspera da vegetação ressequida
formam uma espécie de silhueta que faz par com a solaridade (imagem 2).
Imagem 2
Fonte: Morte e Vida Severina (filme)
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Imagem 3
Fonte: Morte e Vida Severina (filme)
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Globo. A vertente documental – caso de Globo Repórter e algumas de suas
reconhecidas e prestigiadas “experimentações” pelo trabalho de diretores
como Eduardo Coutinho – havia produzido uma narratividade jornalística
válida em termos estéticos por buscar dar conta da realidade nacional com
um discurso de contundência cuja matriz recuada seria o cinema verité fran-
cês. Todavia, a trajetória da feitura de tais produtos telejornalísticos calcados
em um labor estético “de qualidade cinematográfica”, inviável nos telejornais
diários, levaria à rotinização de estilemas visuais “poéticos”; expedientes cuja
banalização e saturação ocupam a mesma faixa do clichê e do kitsh. Tal marca
do clichê atinge em cheio Morte e Vida. A solaridade do sertão converte-se em
clichê visual, sobretudo pela opção das tomadas de câmera de baixo para cima
dos corpos dos personagens, como no caminhar de Severino antes de encon-
trar os “irmãos das almas”, em que o efeito de prisma funciona como chavão
para a imediata associação ao mundo sertanejo (imagem 4).
Imagem 4
Fonte: Morte e Vida Severina (filme)
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A solaridade amarelo-laranja é enfatizada a ponto de se tornar composi-
ção visual cuja reiteração e estilização cromática a convertem em fórmula “do
belo”; imagem fossilizada como fórmula visual palatável para a imediata iden-
tificação do “infeliz sertão brasileiro”. Curiosamente, em choque frontal com a
crueza da herança cinemanovista, tal clichê é eco plástico de uma tradição que
se supunha superada: faz reverberar o painel edulcorado da caminhada das
silhuetas de O Cangaceiro (imagem 5), que por sua vez é decalque das silhuetas
heróicas dos caubóis dos westerns americanos recortadas pelo contraste com a
luminosidade de fundo.
Imagem 5
Fonte: Morte e Vida Severina (filme)
41
Quando o retirante está em plena passagem do serão árido para o agreste,
e sua fala, rosto e olhar sorridentes miram para “a terra que se torna mais femi-
nina”, verdejante, uma cena marcará a divisória do tom de crueza desalenta-
dora que até então o espectador acompanhava para uma paisagem alentadora.
Sintomaticamente, a cena não corresponde a nenhuma passagem do poema de
João Cabral. Severino, que antes apenas apanhava água para beber, banha-se
em um açude em companhia de cavalos. A cena terá como tônica estilizadora
da entrada em um mundo aprazível o uso da câmera lenta, associada à faixa
musical em tratamento melódico e harmônico sugestivo de coloração idílica.
Embora a câmera lenta compareça em outros momentos, nesse possui ênfase.
Demoradamente, a câmera lenta afirma um momento apaziguador, em franca
oposição ao sofrimento da peregrinação na bruteza da terra. Sua função tam-
bém se alia à irrupção cromática de franca oposição à aspereza solar. Outras
serão as cores a envolver a tela, como o verde e o azul, que atuam como cores
semanticamente dirigidas ao momento de apaziguadora renovação da vida.
Trata- se de um ponto de parada, descanso para o protagonista e, muito mais,
intervalo de felicidade paradisíaca. Se até então acompanhávamos o retirante a
pé, e o caminhar dava muito do seu “caráter” social de oprimido, a cena com-
porá, utilizando planos mais fechados, o banhar-se de Severino em águas aco-
lhedoras, generosas; o componente líquido evolve-lhe o corpo, substituindo e
opondo-se ao amarelo agressivo, em fundo verdejante. A câmera lenta enqua-
dra o sorriso de felicidade desse banho regenerador do caminhante estafado
mergulhando em uma espécie de éden ou miragem. Enfatiza-se o envolvimen-
to vivificador da água com o corpo em uma quase coreografia do encontro
amoroso, sensual, na fusão entre epiderme e músculos de Severino e a liquidez
macia e brilhante da água, resplandecendo ao sol com plasticidade paradisía-
ca. Em plano mais fechado, Severino sorri e abraça um cavalo dentro da água
com terna carícia em que se exala o sentido de feliz integração do homem com
os elementos naturais (imagem 6).
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Imagem 6
Fonte: Morte e Vida Severina (filme)
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contradições, tensões. “Biscoito fino” da TV Globo, especial premiado em di-
mensão internacional e considerado marco de nossa teledramaturgia, Morte e
Vida Severina de Walter Avancini parece carregar em sua forma audiovisual
um correlativo à dicotomia presente no título do poema de Cabral. Este breve
percurso de aferição da textura audiovisual buscou flagrar a convivência am-
bivalente do que se estabeleceu, em princípio, no que apontei com os termos de
uma oposição dicotômica: crueza/clichê.
Minha abordagem precisou fazer escolhas, deixar de lado outros cami-
nhos certamente pertinentes. Não avaliei, por exemplo, o liame entre o filme
Morte e Vida Severina, de Zelito Viana, e o especial dirigido por Avancini.
Tal caminho, observando-se os peculiares contextos e inflexões, certamente
conduziria a outras análises e interpretações dirigidas a escambos e contágios
entre sistemas semióticos distintos no âmbito da adaptação de uma obra lite-
rária. Exemplo de um fenômeno intermidiático por excelência em nossos dias
– há tempos a adaptação deixou de ser uma questão de “passagem” do literário
para o audiovisual –, o “caso” Morte e Vida Severina talvez sirva para motivar
outras perquirições. Ou peregrinações.
Referências bibliográficas
GOULART, Ana Paula [et al.]. História da televisão no Brasil: do inícioaosdias de hoje.
São Paulo: Contexto, 2010.
MELO NETO, João Cabral. Obra completa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.
Filmografia
Morte e Vida Severina. Produção de Luiz Carlos Laborda. Direção de Walter Avancini.
1981.
44
AMOR E SOLIDÃO EM LETRAS DE
RENATO RUSSO – DO ETHOS DO ARTISTA
À UNIVERSALIDADE
Érika de Moraes
Introdução
45
simultaneamente, como tais traços-vivências se projetam na sociedade por
meio da identificação, fazendo com que o artista tenha sido ídolo entre os jo-
vens de seu tempo e, talvez, o seja ainda mais nos dias de hoje. Prova disso
foram as entusiastas celebrações de seus 50 anos de vida não completados, no
ano de 2010, e dos 20 anos de sua morte, em 2016: sua trajetória é constante-
mente reprisada, rememorada, enobrecida por meio de especiais televisivos e
shows, tendo adquirido o status de memória viva, pulsante e sempre iminente.
É memória que se fixa e se faz presente em gerações posteriores à sua.
A análise leva em conta o funcionamento de conceitos discursivos no que
diz respeito à autoralidade de obras artístico-literárias, entendidas aqui em
sentido muito amplo, a ponto de incluir a poesia inerente às letras de mú-
sicas populares. Defendemos que as categorias discursivas propostas por
Maingueneau (2000, 2005, 2006) para a análise do texto literário e dos traços
de autoria vão além da distinção, bem conhecida em teoria literária, entre nar-
rador e autor, ou entre escritor e eu-lírico. Por meio do enunciador, amalga-
mam-se o sujeito-autor e o indivíduo no mundo, contribuem um com o outro e
deixam sua marca na memória discursiva, cuja unidade é simulada pelo ethos.
Por se tratar de artista popular, de repertório denso e biografia impactan-
te, as letras de Renato Russo são produtivas para a análise, possibilitando a dis-
cussão de aspectos conceituais relacionados à autoria e à fixação de memória
nos interdiscursos sociais.
Fundamentação teórico-metodológica
46
social, ideologia. Em linhas muito gerais, pode ser entendido como uma “ima-
gem” (discursiva) que se molda pelo que/como se diz.
A análise do ethos discursivo – no caso, aquele que emerge das letras des-
tacadas – é feita com base na materialidade discursiva, investigando-se os as-
pectos linguísticos e discursivos que explicitam os modos de dizer (o tom, a
corporalidade) característicos dos textos analisados. Tem-se em vista a con-
cepção de ethos desenvolvida por Maingueneau no quadro da Análise do
Discurso de linha francesa (AD). Não se propõe aqui uma análise do perfil
psicológico de Renato Russo (o que a AD tacharia de psicologismo), apesar dos
riscos inerentes ao corpus.
Em vez de considerar que os sujeitos tenham consciência transparente so-
bre seus discursos e identidade estável, a AD prefere falar em “lugares” enun-
ciativos, enfatizando a preeminência e preexistência da topografia social sobre
os falantes que aí vêm se inscrever (Maingueneau, 1997, p. 32). Para a AD, o
enunciador não é simplesmente um sujeito que se apropria de um discurso,
pois não se considera possível definir nenhuma exterioridade entre os sujeitos
e seus discursos. Maingueneau explica: não se dirá que o grupo gera um dis-
curso do exterior, mas que a instituição discursiva possui, de alguma forma,
duas faces, uma que diz respeito ao social e a outra, à linguagem (1997, p. 55).
A “encenação” discursiva se confunde com a própria existência do grupo ou da
instituição, sendo mesmo uma das formas do “real” que é investido e afetado
pelo discurso.
Conforme sintetiza H. Parret: “a teoria do discurso não é uma teoria do
sujeito antes que este enuncie, mas uma teoria da instância da enunciação que
é, ao mesmo tempo e intrinsecamente, um efeito de enunciado” (Parret, 1983,
p. 83 apud Maingueneau, 1997, p. 33). Ao enunciar, o compositor faz-se autor,
não em termos de fundador de discursividade (cf. Foucault, 2000, p. 58 em
diante), mas de ser ativo na instância de enunciação que, simultaneamente, o
constitui como autor.
Consideram-se as três dimensões da autoria, noções propostas por
Maingueneau (2010, p. 30).
A primeira é a do “autor-responsável”, que é a dimensão mais evidente,
“instância de estatuto historicamente variável que responde por um texto”.
Nessa instância, o autor “não é nem o enunciador, correlato do texto, nem o
produtor de carne e osso, dotado de um estado civil”. Essa dimensão não tem
caráter literário já que, nesse sentido, “‘ser o autor de um texto’ vale para qual-
quer gênero de discurso” (ibid.).
47
A segunda é a do “autor-ator”, que, “organizando sua existência em torno
da atividade de produção de textos, deve gerir uma trajetória, uma carreira”
(ibid.). Mesmo assim, não se trata necessariamente de uma profissão: alguém
pode ser engenheiro ou médico e, paralelamente, publicar livros de crônicas
ou de poesias. O estatuto dessa dimensão de autoria varia conforme as conjun-
turas históricas, inclusive, ainda segundo Maingueneau, interferindo nas pa-
lavras que concorrem com o termo “autor”: escritor, homem de letras, literato,
artista, intelectual etc.
A terceira é a do “auctor”, que implicaria um estatuto de “autoria plena”,
estágio dependente de um reconhecimento por terceiros, por meio do qual os
textos de um determinado autor-auctor seriam compreendidos como unidade,
não mais como trechos dispersos: “Se todo texto implica por natureza um ‘res-
ponsável’, apenas um número muito restrito de indivíduos atinge o estatuto de
‘auctor’. Basta para isso que se possa associá-los a uma ‘obra’, digamos a um
Opus” (Maingueneau, 2010, p.30).
Por essas definições, demonstra-se que não basta ser o “autor responsável”
por um enunciado, tampouco dedicar-se à produção de textos, para que se
constitua a identidade de autor pleno, que Maingueneau denomina de “auc-
tor”. Não basta, portanto, escrever para que se obtenha a qualidade de “auctor”.
Um jornalista pode ser responsável pela apuração e escrita de uma matéria,
mas não necessariamente será autor se não puder deixar emergir certo estilo (o
que, em geral, não é incentivado na atividade jornalística, pautada no suposto
ideal de objetividade).
48
bem como a organização de sua trajetória em torno de uma carreira artística,
pautada em letras e músicas.
Conforme os princípios teórico-metodológicos da Análise do Discurso
francesa, especialmente em preceitos de Maingueneau sobre a análise do texto
literário, consideramos as letras de música como obras de ficção, mas nem por
isso imunes à influência da biografia do autor. Não há um termômetro capaz
de determinar qual das influências sobressai, se a do artista-autor-ator ou a do
“indivíduo no mundo” interpelado como sujeito; fato é que as duas se correla-
cionam e dão existência à arte em qualquer sentido, seja a literatura, a música,
a dança, a pintura, escultura etc. No presente trabalho, é da música de Renato
Russo que se trata, considerando-a tanto como objeto completo em si (como
um livro, um quadro, uma pintura ou escultura) quanto, ao mesmo tempo,
dependente de seu contexto, do qual faz parte a trajetória vivida pelo autor.
Em outras palavras, nem uma coisa nem outra, mas o amálgama entre as duas.
Na impossibilidade de analisar toda a obra de Renato Russo, o trabalho
propõe uma delimitação. Esse recorte poderia ser bastante variado, porém, op-
tamos por respeitar uma leitura “do exterior” (inclusive, para evitar a escolha
pessoal da pesquisadora) e atender à solicitação dos produtores do programa
“Laboratório”, da TV USC de Bauru, que nos demandou a análise de três letras
(correspondentes a três períodos do artista). São essas análises, inicialmente
apresentadas de maneira mais informal, em entrevista a um programa tele-
visivo (em 2010), que ora registramos nesta abordagem, pautada no respaldo
teórico- metodológico da Análise do Discurso de linha francesa.
As letras a serem analisadas são: Índios (1986, álbum Dois); Eu era um lo-
bisomem juvenil (1989, álbum As quatro estações); Teatro dos Vampiros (1991,
álbum V). Não se desconsidera, no entanto, que tais letras estejam em relação
de intertextualidade (e constitutiva interdiscursividade) com o conjunto maior
de sua produção musical.
Por trás de todo “eu-lírico”, existe uma exposição de sentidos, mas não
necessariamente de verdades2. É por isso que discursos podem vir à tona sem
2 Embora, se o propósito aqui fosse entrar nesse mérito, tais exposições de sentidos pudessem ser
entendidas como “verdades simbólicas”, a um só tempo subjetivas e universais. Em psicologia
49
o poeta (o autor) ter a consciência disso, sendo comum que autores venham
eventualmente a afirmar que “não tinham pensado em tudo aquilo que o ana-
lista viu em sua letra”. A Análise do Discurso, por princípio teórico, evita uma
análise psicologista e propõe a integração entre o discursivo, o histórico, o
inconsciente.
Sob esse prisma, consideramos os sentimentos universais intrínsecos à
obra de Renato Russo (o amor, a solidão, entre outros) no amálgama entre a
história pessoal e a coletiva, que universalizam suas canções na construção de
seu ethos como projeção, repercussão e representação de um ethos social gera-
dor de identificação por seus diversos fãs, que se percebem representados nas
letras, da mesma forma em que elas espelham o seu ídolo.
Nas análises, é possível notar o amadurecimento dos sentimentos confor-
me a cronologia da obra, sem que um estado necessariamente se sobreponha a
outro. O poeta-cantor-compositor fala do mundo ao falar de si mesmo.
50
do material, literalmente (o dinheiro), aos mais simbólicos sentimentos (amor,
carinho, amizade); lamenta a ingenuidade (a entrega se dá por ter se convenci-
do pela falsa amizade). O lamento é generalizado, pois inerente tanto a quem
perde (entrega o ouro) quanto a quem supostamente ganha (e acredita que
“não tem o bastante”). O lamento leva à valorização da simplicidade e à busca
de Deus.
Quem me dera
Ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro
Que entreguei a quem
Conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora
Até o que eu não tinha
(...)
Quem me dera
Ao menos uma vez
Explicar o que ninguém
Consegue entender
Que o que aconteceu
Ainda está por vir
E o futuro não é mais
Como era antigamente.
Quem me dera
Ao menos uma vez
Provar que quem tem mais
Do que precisa ter
Quase sempre se convence
Que não tem o bastante
Fala demais
Por não ter nada a dizer.
51
Quem me dera
Ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto
Como o mais importante
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente.
Quem me dera
Ao menos uma vez
Entender como um só Deus
Ao mesmo tempo é três
Esse mesmo Deus
Foi morto por vocês
Sua maldade, então
Deixaram Deus tão triste.
(continua...)
Eu quis o perigo
E até sangrei sozinho
Entenda!
Assim pude trazer
Você de volta pra mim
Quando descobri
Que é sempre só você
Que me entende
Do início ao fim.
52
amor eu não seria nada”), que musicaliza a conhecida passagem bíblica sobre
o amor- caridade (I Coríntios 1: 13), mas também, a um só tempo, do amor
passional de Camões, que é “fogo que arde sem se ver”, que é “solitário andar
por entre a gente”.
O sentimento de solidão é fortemente presente. Seja a solidão pela falta
de um amor efetivo (um namorado) ou a solidão poética de um ser que vive a
intensidade da poesia em um nível tão profundo que necessita da reflexão, da
introspecção. Além da letra, a solidão também está na melodia da canção. Em
vídeo de um show, Renato Russo classificou esse som como “um fado grego”,
evocando algo triste e saudoso como um fado, fatídico como uma tragédia
grega.
Na aproximação com os sentimentos de solidão, existe um “mistério” na
canção em relação ao ser interpelado como você. Um namorado, um amor
saudoso? Ou uma entidade mais profunda e abstrata, como Deus? Podem ser
as duas coisas, mas a experiência de quase-morte, por meio da tentativa de
suicídio, sustenta a interpretação de contemplação de um plano espiritual, no
qual existe um Deus pouco percebido na vida contemporânea, ao qual pouco
se agradece.
Quem me dera
Ao menos uma vez
Fazer com que o mundo
Saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz
Ao menos, obrigado.
53
uma forma de extravasá-los e ressignificá-los. Se ficamos doentes ao nos da-
rem espelhos, a doença do homem não é apenas culpa de terceiros, mas do
reflexo de cada um.
54
Teve torcida gritando
Quando a luz voltou
Não falo como você fala
Mas vejo bem
O que você me diz...
Se o mundo é mesmo
Parecido com o que vejo
Prefiro acreditar
No mundo do meu jeito
E você estava
Esperando voar
Mas como chegar
Até as nuvens
Com os pés no chão...
55
O arco-íris tem sete cores
E fui juiz supremo
Vai, vem embora, volta
Todos têm, todos têm
Suas próprias razões...
(...)
(...)
Mesmo se eu cantasse
Todas as canções
Todas as canções
Todas as canções
Todas as canções do mundo
Sou bicho do mato...
56
Análise 3: Teatro dos Vampiros (1991, álbum V)
Sempre precisei
De um pouco de atenção
Acho que não sei quem sou
Só sei do que não gosto...
57
Os assassinos estão livres
Nós não estamos...
Vamos sair!
Mas não temos mais dinheiro
Os meus amigos todos
Estão, procurando emprego...
Voltamos a viver
Como há dez anos atrás
E a cada hora que passa
Envelhecemos dez semanas...
Mais uma vez, algo (algum ser) é interpelado como “você” na canção.
Quem? O dom da reflexão, o entendimento? Deus?
Quando me vi
Tendo de viver
Comigo apenas
E com o mundo
Você me veio
Como um sonho bom
E me assustei
Não sou perfeito...
58
Já entregamos o alvo
E a artilharia
Comparamos nossas vidas
E mesmo assim
Não tenho pena de ninguém...
Num contexto em que música reflete sentimentos sociais, “não tenho pena
de ninguém” produz o efeito de sentido de “ninguém é digno de pena”.
3 Até os dias de hoje, a busca por uma vacina contra a Aids desafia a ciência. Porém, os
tratamentos médicos avançaram a ponto de permitir aos pacientes uma sobrevida com re-
lativa qualidade, tratando-a como uma “doença crônica”. Não significa, no entanto, que a
prevenção não seja o melhor caminho, já que os coquetéis de tratamento implicam efeitos
colaterais diversos.
59
Embora se diga que Renato Russo não tenha assumido, em entrevistas, a
aproximação com Deus, muitos interpretam que essa aproximação, tangencia-
da na letra “Índios”, ocorreu como síntese de sua vida marcada por diversos
dessabores, como o preconceito por ser homossexual, o alcoolismo e, por fim,
a doença. Suas posições pessoais, essas sim, foram assumidas em vida, bem
como o que entendia por dignidade, como se pode depreender de posiciona-
mentos dos quais se tem registro:
60
Assim, Renato Russo demonstra certa consciência de que o autor não pro-
duz simplesmente por criatividade inerente ao sofrimento pessoal, mas por
trabalho (faz pesquisa), não dependendo da vivência de cada emoção expressa
na música. Mesmo quando “se inspira” na experiência pessoal, afirma que não
o faz de modo literal, já que “a partir do instante em que você passa para o
papel, você inventa”. Elementos de sua história pessoal, contudo, fazem-se pre-
sentes como componentes nas letras, reconstituídos, ressignificados.
A (relativa) consciência de que construções de sentidos são simultanea-
mente individuais e coletivas aparece ainda em outras letras da Legião Urbana,
como em “Quase sem querer” (álbum Dois, 1986): “Sei que às vezes uso pala-
vras repetidas, mas quais são as palavras que nunca são ditas?”, quase uma
tradução intuitiva de uma concepção inerente à teoria discursiva, a de que os
sujeitos não são a fonte de seu dizer.
Registros sobre Renato Russo anotam que, no período em que lutava con-
tra a Aids, apesar das dificuldades sofridas pelos efeitos da doença, o composi-
tor manteve intensa produtividade artística, compreendendo um dos aspectos
da atividade artística, muito provavelmente, como sobrevida. Produzir arte,
seja qual for, é uma forma de falar com o outro e, ao fazer isso, organizar a
própria existência. Foucault (2000) apresenta o exemplo da correspondência
entre Séneca e seu discípulo Lucílio, em que se exercita, no modo de procedi-
mento e não apenas no conteúdo, o princípio norteador em que se guia Séneca,
“quem ensina instrui-se”. No entendimento de Foucault, ao escrever cartas em
que se propõe expor a sua vida diária, Séneca põe em prática a máxima moral
segundo a qual “devemos pautar a nossa vida como se toda a gente a olhasse”.
Para Foucault, “a reciprocidade que a correspondência estabelece não se res-
tringe ao simples conselho ou ajuda; é ela a do olhar e do exame” (2000, p. 151).
Apontando características da correspondência, Foucault considera que “a carta
é também uma maneira de se apresentar ao correspondente no decorrer da vida
cotidiana, em que se atesta não a relevância de uma atividade, mas a qualidade
de um modo de ser” (2000, p. 155). O modo de ser é explicitado tanto pelo como
se diz quanto pelo que se diz, contribuindo para a caracterização do ethos.
A música, de certa forma, é correspondência endereçada a todo o público
e, ainda que não se possa prever sua temporalidade, conscientemente ou não, é
tentativa de ultrapassar gerações, de permanecer “conversando” com o público
e, mais do que isso, alcançando novos públicos, como ocorre com a literatura
e a arte em geral. É fazer-se memória.
61
Em termos discursivos, a memória não deve ser concebida como “uma
esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo
seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório”. Ao
contrário, a memória é espaço de mobilidade, de “divisões, de disjunções, de
deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização”, comporta “des-
dobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos” (Pêcheux, 1999 [1983c],
p. 56). Nas palavras de Courtine (2006, p. 88), “a memória irrompe no acon-
tecimento”. Assim, a cada vez que se rememora – ao ouvir um disco, celebrar
aniversário de vida ou de morte – novos aspectos de memória se (re)consti-
tuem, (re)configurando intermitentemente o ethos do artista.
Considerações finais
62
Referências
FOUCAULT, Michel. (2000) O que é um autor? 4 ed. Lisboa, Editora Veja. (Textos de
1969/1977/1983)
MIRANDA, J.A.B. e CASCAIS, A.F. (2000) A lição de Foucault. Prefácio in: FOUCAULT,
Michel. (2000) O que é um autor? 4 ed. Lisboa, Editora Veja.
MORAES, Érika de. Paixão Pagu – o ethos em uma autobiografia. In: MOTTA, A.R. e
SALGADO, L. Ethos discursivo. São Paulo, Editora Contexto, 2008. P107-117.
Sitografia
http://www.renatorusso.com.br/bio/
63
A ARTE DA CORTESIA E A PERFÍDIA DA
HIPOCRISIA NAS CORTES DE FRANÇA: UM
PARALELO ENTRE O REINADO DE LEONOR
DE AQUITÂNIA E A DISSIMULAÇÃO EM
‘LIGAÇÕES PERIGOSAS’
Maria Angélica Seabra Rodrigues Martins
Introdução
64
Em um contexto em que até então as virtudes do homem eram medidas
pelas capacidades militares, as guerras passam a escassear e os senhores feu-
dais a permanecerem mais tempo em seus castelos, promovendo festas; o luxo
e a ostentação tornam-se a tônica. Os instintos destrutivos são canalizados
para uma causa mais justa, as Cruzadas, enquanto aproximam o Ocidente
bárbaro de um Oriente que já possui um refinamento maior, uma vez que os
árabes, em contato com os gregos, assumiram muitos de seus hábitos.
As cortes dos senhores feudais tornam-se centros da vida social, o que pro-
piciou a criação de regras de boas maneiras e civilidade, capazes de distinguir os
nobres dos vulgares plebeus: a cortesia. “É então que o rude cavaleiro se transfi-
gura em cavalheiro. À coragem ele une a galanteria” (Tringalli, 1994, p.27), sendo
que mesmo a relação amorosa passa a ser regida por tais leis. Já a mulher, que
até então assumia o único papel de geradora de filhos, de futuros guerreiros
para o marido, torna-se a grande castelã. Essa transformação deve-se à Igreja,
que reconhece, então, que ela também tem alma, o que lhe atribui poderes an-
teriormente impensáveis. Nesse contexto, torna-se endeusada, sendo a relação
amorosa marcada pela reciprocidade e pela livre correspondência da amada, um
instrumento de realização espiritual do homem, embora amor e casamento não
estivessem relacionados, uma vez que as uniões ocorriam por interesses políticos
ou econômicos e a fidelidade ocorresse apenas entre os amantes.
Neste texto serão analisados os conceitos de cortesia, civilidade e hipo-
crisia, a partir da corte de Leonor de Aquitânia (século XII), quando sur-
gem as boas maneiras e o “amor cortês”, até o século XVIII, a partir da obra
de Chordelo de Laclos, Relações Perigosas, e do filme Ligações perigosas,
de 1988, em que a cortesia dissimula a hipocrisia. Além de elementos da
Sociologia e da Filosofia, serão também empregadas as Teorias do Discurso,
com o objetivo de se analisar as relações ideológicas e os contextos histórico-
sociais, além dos processos de manipulação e a discursivização que revestem
as personagens das obras adotadas como corpus.
65
De forte personalidade e incomparável beleza, Leonor dominou o cenário
da época. Dada em casamento aos catorze anos a um apaixonado, porém tí-
mido delfim da França, Luís (VII), modificou os hábitos na corte do marido,
introduzindo regras de etiqueta, o gosto pelo luxo e o culto do prazer, além de
interferir também na linguagem rude, procurando uma aproximação com o
ambiente requintado de Poitiers. Segundo Markale (1983), Leonor desenvol-
veu a noção de “moda”, fazendo surgir os decotes generosos, as corsages que
realçavam as formas femininas ao invés de as ocultar, desnudando os ombros
e a parte superior dos seios. Introduziu tecidos importados do Oriente, como
sedas e brocados, em cores consideradas ousadas, como o amarelo-sol, os tons
de pêssego ou o verde mar. Entre os homens, as modificações também se fize-
ram sentir: passaram a fazer a barba, apresentando rostos bem escanhoados.
Leonor organizava jogos e torneios, sendo vista nas festas populares, em ruas
apinhadas e turbulentas.
À mesa, também introduziu novidades no preparo de pratos requintados,
com frutos secos, caça e pesca, tempero de gengibre e de especiarias vindas da
Ásia e do Islã. Os hábitos corteses, dessa forma, estavam relacionados tanto às
relações afetivas entre homem e mulher, quanto às boas maneiras, aos hábitos
à mesa, às gentilezas, a noções de “civilidade”, modificações que não foram
consideradas “viris” pelos conselheiros mais conservadores, que duramen-
te as criticaram. Como resposta, Leonor organizou e participou da Segunda
Cruzada, destinada a marchar sobre Jerusalém, o que destruiu seu casamento,
uma vez que, nas estratégias de batalha, sua impetuosidade contrastava viva-
mente com a inércia do marido.
No retorno, encontra o amor nos braços do impetuoso rei da Inglaterra,
Henrique Plantageneta, com quem termina por se casar, após obter a anulação
de Roma para o primeiro matrimônio. Na corte do novo reino introduz os
mesmos hábitos sofisticados que trouxera para a França, com a revolução de
sentimentos que iria marcar todo o Ocidente, a partir das regras do “amor cor-
tês”, com seu requinte e ardor. Os conceitos de civilidade introduzidos por ela
entre os cortesãos, com regras de comportamento que estabeleceram divisões
entre os grupos sociais, demarcaram “o comportamento da corte, explicitan-
do as barreiras sociais entre esse grupo e o restante da sociedade”, esclarece
Landini (apud Rodrigues e Marroni, 2012, p.6).
Em Portugal, observa-se a influência da corte de Leonor, com a introdu-
ção da poesia cortês da França meridional a partir do reinado de Sancho I (sé-
culo XII), que contribuiu para aprimorar os rudimentares cantares d’amigo,
66
de natureza folclórica, acompanhado de coral, “com versos parelhados na for-
ma e no conteúdo, seguidos de refrão” (Spina, 1991, p.14). Segundo o autor,
os “cantares d’amor”, de procedência provençal, refletem um estilo de vida
diferente: “constituem um retrato da vida feudal da corte, portanto expres-
são de um meio culto, refinado, comprometido pelo convencionalismo da vida
palaciana e com evidentes influxos da cultura clássica” (Idem, p.16). É o amor
não correspondido, que o trovador dedica a sua amada, a dama impiedosa,
inacessível a suas solicitações.
O conceito de “civilidade”
67
a “Vênus substituiu a virgem” (Idem, p.23), surgindo nas pinturas em formas
fluidas, espiritualizadas, com atitudes nobres e interiorizadas. A mulher pas-
sou a simbolizar a graça, a alegria das cortes e das festas, a companheira das
conversas, desvencilhando-se do papel de submissão e apagamento a que esti-
vera relegada, após o período de destaque que obteve nas cortes de Leonor de
Aquitânia (França e Inglaterra) e nas de suas filhas, no século XII.
A partir desse contexto histórico-sociológico, uma dualidade se impõe: a
força para o homem, a beleza para a mulher. Segundo Romei (Ibidem, p. 25) “o
homem deve ser dominador, terrível e belo, para que, combatendo com furor
seja terrível para seus inimigos”. Sob essa perspectiva, ele deveria impressio-
nar, mais que seduzir, engendrar o terror, mais que o amor; ser gracioso como
o cortesão, mas também austero e duro. O ideal masculino, portanto, manifes-
ta-se relacionado a um tipo diferenciado de cortesia, em que o refinamento e
a rudeza se mesclam. Para o padrão feminino, ressaltam-se os cuidados com a
pele, com o corpo, para alegrar e deleitar, no recinto do lar, o homem fatigado
das lides no campo e na cidade. A beleza é corrigida artificialmente com o uso
de espartilhos, que alongam e afinam a silhueta; maquiagem, perucas; modo
de caminhar; gestualidade estudada etc.
Os gestos permitem uma interpretação e um reconhecimento moral, psi-
cológico e social do indivíduo. Sua postura e suas vestimentas determinam seu
ser: “é o corpo que diz sobre o interior do homem, suas manifestações podem
também ser formadas, reformadas e regulamentadas corretamente. A intimi-
dade é considerada apenas para manipulá-la e adequá-la a um modelo que é o
do meio termo, o da recusa a todos os excessos” (Revel, 1991, p. 172). Segundo
Elias (1998), a observação do comportamento denota as diferenças, tornando-
se a partir desse momento “a essência da cortesia, o requisito básico da civilité,
pelo menos na França” (Elias, 1993, p. 86).
Dentro desses padrões, a “civilidade” será adotada por indivíduos das
classes superiores como característica que os distinguirá dos demais, estabe-
lecendo “um código específico de comportamento” que, oriundo “das gran-
des cortes feudais, atingirá mais tarde todos os estratos sociais.”(Pila, 2003, pp
105-106). Elias (1993) afirma que o “processo psíquico civilizador”, a partir dos
significados de “civilização” surge relacionado à consciência que o Ocidente
tem de si mesmo, no tocante às maneiras, aos conhecimentos científicos, às
idéias religiosas e aos costumes (a forma de coabitação entre homens e mu-
lheres, a preparação dos alimentos), e às punições estabelecidas pelo sistema
judiciário (Elias, 1993 apud Pila, 2003).
68
Em outras palavras, a ideologia determina as regras de civilidade, respon-
sável pela aceitação do indivíduo em determinado núcleo social. O homem
é coparticipante de um conjunto de regras pré-estabelecidas, que reconhece
como normas, inclusive as de cortesia, e as quais também espera daqueles com
quem convive. Segundo Mainguenau (1997): “a ideologia não deve ser conce-
bida como ‘visão do mundo’, mas como modo de organização, legível sobre as
duas vertentes da prática discursiva” (p.60), ou seja, o discurso e a ideologia.
69
Ao introduzir nas rudes cortes da França e da Inglaterra as boas manei-
ras, as “normas de cortesia”, com hábitos mais refinados e respeitosos no trato
social e para com a mulher, Leonor de Aquitânia estabeleceu um padrão de
superioridade dessas cortes em relação às demais da Europa da época, embo-
ra, segundo Elias (1990), o conceito de civilização não seja o mesmo em todo
o Ocidente, uma vez que para os franceses e ingleses, civilização resumiria
“em uma única palavra seu orgulho pela importância de suas nações para o
progresso ocidental e da humanidade”(Idem, p.24) podendo se referir a fatos
políticos ou econômicos, religiosos ou técnicos, morais ou sociais, ou ainda
a realizações, atitudes, comportamentos de pessoas em geral. “Relaciona-se
[portanto] a algo que se movimenta ‘para frente’ [e] “inclui a função de dar
expressão a uma tendência continuamente expansionista” (Pila, 2003, p. 106)
No século XVIII, a questão do comportamento abrangendo o uso do es-
partilho, a cabeça elevada, o cabelo em um penteado alto e a maquiagem evi-
denciam uma mensagem subliminar de um discurso não dito, capaz de deno-
tar uma identificação social e econômica, dependendo da riqueza dos detalhes,
das joias e da profusão de tecidos e de babados nas roupas. Entre os homens, a
expressão “sans cullotte” especifica um indivíduo da plebe, cujas calças eram
retas, sem os “culotes” (ou seja, largas acima dos joelhos) apropriados para se
montar belos cavalos de raça, animais que, no século XVIII, de modo geral,
apenas os ricos possuíam.
Retomando Elias, Pila (2003) esclarece que o verbo “civilizar” irá aparecer
apenas na década de 1760, na obra de Mirabeau, quando o autor o relacionará
ao sentido atribuído por Huguet: “Levar à civilidade, tornar civis e brandos os
costumes e as maneiras dos indivíduos”. (Idem, p.107), de acordo com os hábi-
tos dos membros da corte que se autodenominavam civilizados1. Esse padrão
seria encarado por eles como um refinamento que os indivíduos de classes
sociais inferiores não possuíam. Dessa forma, como ocorrera em outras épocas
com polidez e civilidade, no século XVIII, “o conceito civilização passa a ter
a função de ‘expressar a auto-imagem da classe alta européia em comparação
com os outros (...)” (Elias, 1990, p.54).
70
O jogo de aparências e a libertinagem
71
Nesse universo de falsidades, Chordelo de Laclos situa seus personagens
no romance epistolar Les Liaisons Dangereuses (1782), que no Brasil recebeu
o título de Relações Perigosas (1980); nele, os protagonistas Marquesa de
Merteuil e Visconde de Valmont, ex-amantes, manipulam a reputação daque-
les que constituem seus alvos, seja para destruí-los, ou para envaidecê-los, em
um jogo em que ninguém é poupado, nenhuma criatura é respeitada, com
o objetivo de atingirem seus interesses luxuriosos, vingativos ou meramen-
te prazerosos. Assim, Madame de Tourvel, mulher recatada, religiosa e fiel
ao marido, torna-se alvo da sedução de Valmont, cujo sucesso na conquista é
colocado em dúvida pela Marquesa de Merteuil, que cobra do luxurioso vis-
conde cartas regulares que comprovem o processo de sedução. Ela também
lhe solicita que seduza, antes do casamento, sua prima, Cécile de Volanges,
recém-saída de um convento para se casar com um aristocrata, o Conde de
Gercourt, o qual preterira o leito de Merteuil, em favor da noiva adolescente e
virgem. Cécile, entretanto, apaixona-se por seu professor de música, o cavalei-
ro Danceny, um jovem idealista e bom, embora os sentimentos puros de ambos
não se encaixem nos papéis sociais desempenhados pela sociedade hipócrita
da época. O resultado final é doloroso para todos.
Adaptado para o cinema, o romance tem uma de suas melhores ver-
sões em 1988, dirigido por Stephen Frears, na interpretação de Glenn Close
(Merteuil), John Malkovitch (Valmont), Michelle Pfeiffer (Mme. de Tourvel),
Uma Turman (Cécile) e Keanu Reeves (Danceny). O filme traz uma cena ini-
cial emblemática para a construção dos padrões de aparência requeridos pela
corte parisiense do século XVIII: a Marquesa Isabelle de Marteuil, vivida pela
atriz Glenn Close, logo após acordar, visualiza sua imagem no espelho, o qual
reflete um rosto de mulher sem maquiagem, mas cujos olhos evidenciam a
satisfação interior: é o sujeito em sua essência.
A cena seguinte apresenta serviçais envolvidos em um protocolo, para a
composição da persona que transformará Isabelle na bela (embora má), cortês e
poderosa Marquesa de Merteuil, a qual desempenha relevante papel na vida da
aristocracia, beneficiando alguns, destruindo outros, segundo seus próprios
interesses. A figurativização de mulher poderosa é construída a partir da ma-
quiagem branca, mas não excessiva, cobrindo-lhe colo, rosto e pescoço; a se-
guir, as serviçais afivelam sobre seu quadril a armação de metal (“anquinhas”),
que compõe o quadro de rigidez com o espartilho; a escolha do perfume e das
joias evidenciam a projeção social, bem como o fato de ter a costureira “ao
72
pé de si”, acertando os últimos retoques do traje. Surge a mulher, penteada e
pronta para seu papel social.
Intercaladas a essas cenas, o Visconde de Valmont (John Malkovich), de
acordo com o esperado para os nobres da época, possui um séquito de serviçais
que o acordam, preparam seu banho e trazem-lhe uma xícara de chá. Um traço
característico da personagem está inserido no gesto seguinte, constituindo um
signo da enunciação, sem que haja a necessidade de qualquer palavra: a mão
que surge em meio aos lençóis, vestida com um punho de rendas e apanha uma
toalhinha oferecida pelo serviçal, em seguida desaparecendo sob as cobertas,
faz uma clara referência à primeira higiene do luxurioso. A sequência de ações
que envolvem o ser barbeado e a escolha do traje, do perfume, do sapato e da
cabeleira, bem como a finalização com o empoamento, ancora o personagem
em um contexto de época e em uma classe social definida, constituindo marcas
ideológicas do discurso não dito. Nos dois casos, evidencia-se a geometria das
formas que Moreau de La Sarthe (apud Vigorellio, 2006, p.80) especificou: em
losango, para as mulheres (destinadas à gestação); trapezoidal para os homens,
sendo que o busto e os quadris estariam em uma razão inversa nos dois sexos.
Em um contexto onde o sujeito é construído a partir dos papéis deter-
minados para a manutenção do status quo, ante a sociedade de seu tempo,
segundo a ideologia vigente entre os aristocratas, o Visconde de Valmont deve
manter sua prestigiosa reputação de conquistador inveterado, nesse universo
hedonista, em que a busca de valores morais não é bem vista. Já a Marquesa de
Merteuil mantém uma posição que construiu, segundo suas próprias palavras,
ao longo de anos de observação; comportando-se como amiga poderosa e pers-
picaz, com a capacidade de oferecer soluções para os problemas mais intrin-
cados, desde que resultem em benefícios para seus próprios planos, dissimula
seus reais sentimentos, e sempre cumpre seus objetivos, ainda que pessoas de
boa índole sejam destruídas nesse processo. Segundo conselhos de Diderot a
um artista da época (apud Vigarello, 2006, p.77): “Liberte-se do modelo...seja
observador nas ruas, nos jardins, nos mercados, nas casas, e assim assimilará
ideias justas sobre o verdadeiro movimento nas ações da vida”.
Isabelle de Merteuil enuncia a visão de Choderlo de Laclos sobre a ideo-
logia da época, ao se posicionar, enquanto enunciador, declarando que em um
mundo de falsidades como aquele em que vivem não haveria lugar para a feli-
cidade, apenas para triunfos sobre desafios momentâneos, visando a superar o
tédio dos inúmeros dias. Nesse contexto em que a mulher, apesar da possibi-
lidade de desfrutar de certos papéis anteriormente apenas masculinos, como
73
as discussões inteligentes sobre determinado tema (nas situações sociais) e o
acesso mais amplo à sexualidade (ainda que relativamente dissimulado), deve-
ria continuar se impondo pela beleza e pela sagacidade, o objetivo final ainda
seria o de obter um casamento vantajoso. A atitude cortês teria como objetivo
esse fim, além da obtenção de possíveis amantes.
Dessa forma, a marquesa traduz a ideologia vigente sobre a situação de
todas as mulheres da corte, da época, ao declarar que não há lugar para o amor
verdadeiro (o belo-divino), no contexto em que vive apenas a lógica da obten-
ção de resultados previamente delineados.
Entre os diferentes papéis representados pela marquesa está o de conse-
lheira e amiga da ingênua Cecile de Volanges, a quem manipula segundo um
saber-fazer, atribuindo à jovem valores positivos, ao adotá-la como digna de
ser sua protegida. Merteuil figurativiza a amiga cortês, sincera, embora utilize
a sedução e seja dissimulada ao convencer a garota a entregar-se a Valmont
para aprender as artes da luxúria, alegando que seria agradável ao futuro es-
poso descobri-la instruída nos assuntos do sexo, na noite de núpcias. A ques-
tão do olhar, que segundo os pintores dos séculos anteriores deveria refletir
bondade, nessa cena é abordada contrariando esses artistas, uma vez que se
de frente para Cecile, enquanto profere frases doces e persuasivas, o olhar de
Isabelle de Mertteuil é doce e compassivo, ao abraçá-la, saindo de seu campo
de visão, evidencia uma informação diferente, de total vitória, pois completa-
ria sua vingança de levar o ex-amante ao ridículo, ao encontrar no leito nup-
cial, não a jovem ingênua, recém-saída do colégio de freiras, mas uma cortesã
perfeitamente instruída nas artes do amor carnal. A cortesia aparente, na ver-
dade, traduz-se em hipocrisia.
Manipuladora, Merteuil age como destinador também ao envolver
Valmont- destinatário em sua teia, utilizando a tentação e a provocação, diante
da promessa da conquista de seu próprio corpo, um prêmio incalculável para
ele, visto ser a mulher mais difícil de se obter para o amor carnal, além de es-
picaçá-lo, acusando- o de não ser capaz de se vangloriar da vitória sobre a doce
Tourvel. Para ambos, entretanto, importava o desafio da conquista e a capaci-
dade de manipular e de seduzir, mediante práticas cada vez mais complexas,
criaturas virtuosas e praticamente impossíveis de serem arrastadas para o ca-
minho da luxúria, como Madame de Tourvel, fiel ao marido e católica devota.
Neste caso, cortesia e perfídia se contrapõem, em um jogo paradoxal, em que o
realmente virtuoso, o crente no amor cortês é encarado pela aristocracia como
ingênuo e tolo.
74
Para Merteuil e Valmont, representantes de uma sociedade hedonista e lu-
xuriosa, quanto mais difícil a conquista, maior o sabor da vitória. Produtos de
um meio que valoriza a aparência, em detrimento da essência, não cultuam a
virtude, o que pode ser comprovado pela não aceitação e valorização de Cecile
(virgem) e de Madame Tourvel (pura e fiel).
Em uma sociedade em que imperam as aparências, a construção inicial
cede lugar à “desconstrução” dos personagens no final, quando Valmont re-
vela sua fraqueza – o amor por Madame de Tourvel –, ainda que morra como
forma de retratação. Já à Marquesa de Merteuil cabe a punição em vida pelos
excessos, ao serem reveladas à sociedade as cartas que trocaram. As cenas fi-
nais, em que é vaiada no teatro e a retirada da maquiagem, em gestos exaspe-
rados, diante do espelho onde começara o filme, evidenciam que a sociedade
da época relegava ao ostracismo (punição exemplar para os que desfrutavam
da vida na corte) os que ousassem tornar públicas suas fraquezas.
Finalmente, a varíola (na obra de Laclos) que desfaz definitivamente sua
capacidade de utilizar a beleza e a dissimulação nas expressões faciais deter-
mina seu fim:
Considerações finais
Como se pôde observar ao longo deste texto, por um breve tempo o amor
cortês obteve seu lugar entre os mais poderosos, determinando comportamen-
tos mais civilizados e o respeito para com a mulher, a partir da atuação de
Leonor de Aquitânia. Graças a ela, a mulher teve seu papel de destaque na cor-
te, podendo opinar e determinar suas vontades. Após sua morte, entretanto,
75
os hábitos que introduzira nas cortes foram gradativamente negligenciados,
devido às guerras subsequentes e aos invasores bárbaros.
Somente após a Renascença algumas das normas de cortesia começaram
a ser reabilitadas, embora vinculadas à classe dominante, que determinava as
noções de correto ou incorreto. À figura feminina, coube primeiramente, a
partir do século XVI, o papel de embelezar os salões, sua atuação estando a
cargo de dissimulações e manipulações sobre o mandatário masculino. Assim,
se a ela era atribuída a relação com o belo, ao masculino cabia o poder de deci-
são, outorgado pela força física e pela virilidade.
Se nas cortes em que Leonor e de suas filhas dominaram, levando a inte-
ligência e a sagacidade feminina a serem valorizadas e apreciadas; no século
XVIII a valorização dos atributos femininos deslocou-se da essência para a
aparência, embora a mulher jamais tenha deixado de usar sua inteligência em
todas as ocasiões possíveis.
Referências
BARROS, Diana Luz Pessoa. Teorias do discurso. São Paulo: Atual, 1988. BRANDÃO,
Helena Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Unicamp, 2007.
ECO, Humberto. Arte e beleza na estética medieval. Barcarena: Ed. Presença, 2000.
FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. S.Paulo: Ática, 1988. LACLOS, Chordelo.
Relações perigosas. São Paulo: Abril, 1980.
76
MAINGUENAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. 3a. ed.
Campinas: Pontes/ Unicamp, 1997.
REVEL, Jacques. Os usos da civilidade. In: CHARTIER, Roger (Org.). História da vida
privada: da renascença ao século das luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
PILA, Maria Cecília Barreto Amorim. Manual de civilidade, modelos de civilização. Em:
História em Revista (UFPel), Pelotas, v.9, 2003. p.105-134, http://www.ufpel.edu.br/ich/
ndh/downloads/historia_em_revista_09_maria_pilla.pdf. Acesso em 10/07/2012.
TRINGALLI, Dante. Escolas literárias. São Paulo: Musa Editora, 1994. VIGARELLO,
Georges. História da beleza. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
77
II – Representações do mundo
contemporâneo
VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A CULTURA
DO ESTUPRO NO ESPAÇO ACADÊMICO:
VULNERABILIDADES E HISTÓRIA
Lidia M. V. Possas
79
inúmeros enfrentamentos e os conflitos que se fazem presentes no vivido dos
campi universitários.
É evidente que uma gama de problemáticas sócio culturais, econômicas e
políticas da sociedade brasileira e do país foram transportadas para o seu co-
tidiano acadêmico criando novas exigências conceituais, explicativas inclusive
curriculares.
A violência de gênero4 e “a cultura do estupro”5 (Cunha, 2016) estão inse-
ridas no contexto de novas demandas, caracterizando as tensões e conflitos
gerados no cotidiano.
Passei a observar a necessidade de debruçar-me sobre essa realidade – o
espaço acadêmico - como um campo de estudo, o que me exige rever as fer-
ramentas existentes realizando a crítica necessária diante da produção do co-
nhecimento cientifica que, dado as realidades complexas e distintas vem deba-
tendo uma maior autonomia intelectual, localizada, hibrida que possibilitam
introduzir novas perspectivas analíticas e categorias dissonantes libertando-as
dos modelos e paradigmas explicativos dominantes. A exemplo das teóricas fe-
ministas contemporâneas em sua revisão conceitual, a partir de um “sul”, que
é mais que o geográfico, tem-se realizado a desconstrução do olhar do ociden-
te hegemônico e das tendências monolíticas emanadas pelo “norte” (Fraser,
2007) o que me aproximou da construção de tradições acadêmicas feministas
contra hegemônicas de percepção do mundo, da atuação das mulheres e das
relações de gênero em contraponto com as propostas (monolíticas) ocidentais
(Mohanty, 1984).
Com isso passei a ficar atenta a uma abordagem que se faz presente na
academia , desde os anos 70, sendo denominado de estudos pós coloniais na
medida em que revê as especificidades das sociedades, das relações de poder
partir do lugar dos sujeitos, sem intermediações frente ao processo de globali-
zação e da construção do capitalismo pelo Ocidente (Balestrini, 2013).
Portanto a minha proposta tem como ponto de partida uma revisão do
olhar epistemológico presente na história, de modo a garantir que uma revisão
80
das imagens e representações que temos de nossa realidade latina america-
na, inclusive acadêmica, me possibilite sair da direcionalidade de relações de
poder convencionais produzidas pelas teorias existentes. Um dos exemplos
dessa postura intelectual está no conceito “do relativo subdesenvolvimento
do Terceiro Mundo” (que é nada menos do que injustificadamente o hibri-
do processo de desenvolvimento com um caminho em separado tomado pelo
Ocidente em seu desenvolvimento do capitalismo). Esse pensamento vem sen-
do refletido inclusive sobre as mulheres terceiro mundistas, como um grupo
ou categoria definida a priori, que reforça estereótipos e as exclui:
81
Situado o lugar do discurso em que me coloco, pretendo analisar as com-
plexidades e as contradições com um estudo abordando as práticas sociais e
a violência de gênero vivenciadas no ambiente universitário – UNESP – de
modo a entender a presença de comportamentos sexistas, misóginos e natura-
lizados da “cultura do estupro”.
As feministas norte americanas pós-coloniais vem defendendo vários mo-
vimentos na perspectiva do dismantle rape culture (Gilmore, 2011). É possível
identificar em várias universidades americanas projetos, programas, confe-
rências para enfrentar esse tipo de violência7.
Em 2014, o documentário The Hutting Ground8 chamou a minha aten-
ção ao colocar em evidencia os casos de estupro nas principais universida-
des americanas. As relações de gênero e de poder praticadas pela conhecidas
“fraternidades” (clubes esportivos e preferencialmente masculino) tinham um
caráter violento e machista. E o mais relevante foi o descaso frente as tenta-
tivas de denuncia das vítimas (geralmente moças) pelas autoridades locais e
instituições de ensino. Recentemente para enfrentar essa situação as “sobrevi-
ventes” estudantes organizaram vários coletivos e passaram a dar visibilidade
aos relatos e as experiências traumáticas vividas e que tiveram repercussão na
imprensa norte americana e em vários campi, com a adesão e ampliação de
uma rede e contatos.
Na minha experiência docente (1995-2016) tive a oportunidade de ouvir
muitas falas de estudantes e as razões do(s) silêncio(s) que de certa maneira
“imobilizavam” as vítimas de violência, sendo o medo, a exposição pública
levaram algumas delas a opção de abandonar a vida universitária.
Penso em penetrar mais a fundo nas distintas narrativas e depoimentos
das vítimas/sobreviventes decorrente desse tipo de violência incluindo os
comportamentos e valores observados nas práticas estudantis como os trotes
(proibidos na UNESP, porém mantidos com outras significações e práticas),
as festas e os relacionamentos “relâmpagos” (o ato de ficar com...). Por que
82
persiste essa espécie de violência seja física ou psicológica e quais as razões em
um ambiente acadêmico e com uma população de formação superior? Que al-
ternativas são possíveis de observar? Como enfrentam a vulnerabilidade frente
a frequente retaliação e a permanência de assédio e até de agressões? Como
a UNESP tem convivido e enfrentado as tensões e os conflitos de relação de
gênero, nesses 40 anos de uma trajetória?
Para obter a concretude do que estou problematizando fiz um levanta-
mento inicial de notícias em distintos sites e revistas online que divulgavam
casos: Como as universidades brasileiras abafam os casos de assédio sexual9;
Alunas da Rural relatam casos de estupro na universidade10; O que está por
trás da violência dentro das universidades?11. Fórum Fale sem Medo: Violência
contra mulheres no ambiente universitário12
É evidente que reconheço as especificidades da realidade e a estrutura das
universidades situadas ao Norte, distintas de nossas universidades no hemis-
fério Sul/Brasil. No entanto observei que, nos últimos anos as denúncias de
estudantes brasileiras, em vários estados da federação, ganharam força e signi-
ficado com a organização de resistências, “coletivos” e o apoio de procuradoras
e advogadas das vítimas.
Um levantamento “inédito” do Instituto Avon ao Data Popular foi reali-
zado em cinco regiões do Brasil, sendo ouvidos 1,8 mil estudantes e chegou-
se a seguinte afirmação: “Quase 70% das mulheres já sofreram violência em
universidades”. A reportagem que veiculou o resultado da pesquisa dizia ainda
83
mais: “violência contra as mulheres ainda não exorcizou o fantasma da desi-
gualdade de gênero”13.
Foi justamente os depoimentos de varias estudantes brasileiras, em mo-
mentos diferentes que senti o que o historiador chama para a si o “fato históri-
co”. Para mim há o fato quando sugere a presença de muitas memórias, muitos
testemunhos. Portanto, há provas/documentais que alguma coisa aconteceu
e que possui uma memória vivida, com testemunhos oculares. Porém ficará
hibernando nos registros escritos, iconográficos ou orais se historiadoras sen-
síveis aos ruídos e, ao próprio oficio não enfrentarem a tarefa de criar o fato,
investigando (Ricoeur, 2007, p. 189).
O fato não está na simples narração. É sempre construído, a partir de um
lugar, por procedimento documental, epistemológico e proposicional visando
a qualificação veritativa da prova documental e não será encontrado nos níveis
da explicação, segundo Ricoeur (2007).
Há uma distinção daquilo que percebo por “acontecimento”. Novamente
me referencio em Ricoeur (2007) quando nos lembra que a recuperação do
acontecimento é sempre bem vinda, pois é justamente sobre “a coisa que se
fala”, e principalmente “a propósito de que” (Possas, 2014). Assumo com a equi-
pe do Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero/LIEG, na UNESP,
campus de Marília essa tarefa de construção histórica, de um tema recorrente
e o mas importante, ele tem uma história.
Na UNESP, em outubro de 2010 a comunidade unespiana foi surpreen-
dida pelo “rodeio de gordas” que provocou significativo desconforto à ima-
gem da Universidade, no evento cultural e esportivo que reúne estudantes dos
campi da UNESP, o InterUNESP (ou apenas Inter). Anunciado à época como o
maior da modalidade no país, o Inter teria reunido, na cidade de Araraquara,
cerca de 15 mil universitárias/os de 23 campi da universidade. Ao ser entrevis-
tado, um dos organizadores do “rodeio” e criador de uma comunidade sobre
o tema, no Orkut14, disse que o desafio teria sido “só uma brincadeira”. Quer
representações estariam em jogo nessa “ brincadeira” ?
13 zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/12/quase-70-das-mulheres-ja-sofreram-violencia-
-em- universidades-mostra-pesquisa-4921846.html. Acesso em janeiro/2016.
O III Fórum Fale Sem Medo realizado em São Paulo, pelo Instituto Avon - dezembro/2015 evi-
denciou um panorama critico e de violências com as narrativas das jovens presentes. Contou
com a participação de varias autoridades, promotoras, feministas e movimentos de direitos
humanos. Ver https://www.youtube.com/user/falesemmedo
14 Várias matérias podem ser encontradas a respeito. A pesquisa prévia remeteu a uma mesma
84
Em depoimento ao jornal Folha de São Paulo (2010) a advogada de uma
das jovens agredidas afirmou que sua cliente estaria profundamente abalada
psicologicamente e sem condições de retornar às aulas. “Teme ficar conhecida
como ‘a gorda do rodeio’”, teria dito à época. Os organizadores do “rodeio”
eram “colegas” do mesmo campus. Não teria sido a jovem a única vítima, mas
muitas, diretamente (cerca de 50 a 60) e outras indiretamente atingidas. A me-
nina diante da dor pelo ocorrido naquele momento, levou-a a abandonar os
espaços comuns da universidade, as rotinas de aulas e os trabalhos, receosa de
que não houvesse algum tipo de receptividade e garantia de defesa por direito.
Uma sindicância foi aberta pela direção do campus de Assis, acompanhada
dos olhares da imprensa e de alunas/os que protestaram contra o ocorrido.
Após consulta aos instrumentos legais de que dispunha a instituição deliberou
sobre a punição: suspensão de dois alunos por apenas cinco dias das atividades
escolares.
Apesar de ter sido relatado como um caso isolado, ocorrido fora das de-
pendências da universidade, outras agressões movidas por preconceito contra
mulheres consideradas acima do peso são relatadas por universitárixs. Mayara
Curcio (2010), aluna do campus de Assis, externou sua indignação em um blog
ao se posicionar sobre a agressão envolver pelo menos dois alunos do mesmo
campus, no caso futuros psicólogo e professor.
Uma matéria divulgada sobre o ocorrido entre discentes da Faculdade
de Medicina de Botucatu/UNESP é sintomática de que existe uma situação
social e educacional que se apresenta fora do controle da própria instituição,
das autoridades competentes e da sociedade: “Apontada como uma das mais
violentas de SP, Unesp de Botucatu ainda registra trote da Klu Klux Klan e atos
misóginos.”15
fonte, o jornal Folha de São Paulo. Em algumas delas existe a afirmação de que a página no
Orkut foi criada 4 dias depois de terminado o InterUNESP e que lá estariam as regras para
os próximos desafios, inclusive com premiações para os que se destacassem. http://www.bra-
sil247.com/pt/247/brasil/13848/Preconceito-contra-gordas-agora-%C3%A9-crime.htm
Em outra fonte (Carriel, 2010) há a menção de que a comunidade existia desde 2006 e que à época
em que foi excluída possuía 23 membros. Por sua riqueza informativa e de modo a compor os
dados necessários para a realização da pesquisa, fontes jornalísticas e de redes sociais virtuais,
como as citadas ao longo do projeto, serão utilizadas também como corpus documental.
15 http://www.brasilpost.com.br/2015/03/30/unesp-botucatu-klu-klux-klan_n_6968590.html
Acesso em 20/08/2015.
85
Apologia ao estupro segue firme, denuncia coletivo
Situações como essas tem se tornando cada vez mais visíveis, principal-
mente devido a divulgação das mídias e das redes (blogs) e com isso observo
que para contrapor o discurso naturalizado, emerge o ativismo de “coletivos”.
Sherer e Dolce, do Coletivo Jornalismo sem Machismo ressaltam que “a em-
patia que rola dentro dos coletivos faz com que cada participante se sinta
amparada e empoderada17 para enfrentar esse e outros tipos de exclusão e
estereótipos de desigualdade.
Nesse sentido sinto que há também a urgência de rever o colonialismo jurí-
dico presente em nossas instituições e que recentemente vem sido denunciado
pelas tendências do feminismo acadêmico e contemporâneo frente aos estudos
pós-coloniais (Adelman, 2009; Piscitelli, 2016), principalmente as narrativas
femininas de subalternização (Bidasseca, 2011)18. Pretendo ficar atenta aos su-
jeitos racializados, sexualizados e colonizados e os espaços desses sujeitos em
diferentes discursos e representações.
16 A CPI de que trata o trecho citado refere-se à “CPI das Universidades” instalada pela Assem-
bleia Legislativa de São Paulo (Alesp) em dezembro de 2014 e concluída em março de 2015.
Produziu um relatório de 194 páginas “nas quais foi relatado uma série de barbaridades vividas
no mundo acadêmico paulista. Alguns dados espantam.” Disponível em: http://www.brasil-
post.com.br/2015/03/13/cpi-universidades-sp_n_6863322.html O referido relatório também
está sendo utilizado como fonte documental para a pesquisa.
17 São grupos de jovens universitários ingressantes nas universidades para chamar a atenção para
problemas ainda não reconhecidos nas agendas prioritárias, como o de dar visibilidade à luta
das mulheres, dos homossexuais.
18 Nesse artigo autora investe na teoria das vozes. Ressalta um aspecto que há continuos intentos
de algunas voces feministas de silenciar a las mujeres de color/no blancas o bien, de hablar por
ellas.
86
E evidente que há uma historicidade a ser buscada e analisada. Essas si-
tuações de agressões, estupro não nasceram de uma tábula rasa, mas eviden-
ciam uma longa permanência de práticas de abuso, de violência de gênero,
como do descaso e, principalmente a impunidade dos agressores, mesmo com
a Lei Maria da Penha (2006) que tornou crime todo ato de violência contra as
mulheres.
As práticas e as relações estudantis, de docentes e funcionários vivencia-
das na Universidade, sem que ela enfrente de maneira mais assertiva, tem um
caráter de manutenção das oposições binárias e hierárquica do masculino e fe-
minino, de confronto das identidades múltiplas que no cotidiano acabam por
aprofundar as desigualdades provenientes de vários marcadores sociais como
de gênero, classe, de raça, de sexualidade, de confissão religiosa e partidária.
Aprofundar as análises de como as raízes de gênero de nossa cultura
ocidental baseada na hegemonia branca, masculina, heterossexual e cristã
transformaram os demais em diferentes, com o sentido de desiguais, fora da
“norma”, sem legitimidade de uma fala ou de serem ouvidos está presente no
espaço acadêmico. Não se trata de denunciar, mas explicitar as formas vela-
das e de impedimento das diferentes corporificações que sem chance de uma
existência válida na denominada normalidade, são apenas os subalternos, o
colonizado e irremediavelmente heterogêneo (Spivak, 2010, p. 55-56).
Referências
87
GILMORE, S. On The Issues Magazine, Wednesday, 09 February 2011. http://truth-
out.org/archive/component/k2/item/94414:disappearing-the-word-rape. Acesso em
2/07/2016
88
PÓS-VERDADE E MANIPULAÇÃO
IMAGÉTICA DA INFORMAÇÃO
Maximiliano Martín Vicente
Gabriela Sanches de Lima
89
aceitação não implica num culto à mentira e sim uma indiferença com o que
tradicionalmente se considerava como válido, ou seja, comprovado e testado
antes de ser aceito ou mesmo publicado.
Embora esse termo tenha adquirido amplas dimensões não podemos
esquecer que, em 1938, a notícia divulgada nos Estados Unidos pela rádio
Columbia Broadcasting System (CBS) de que os marcianos invadiram a terra
disseminou preocupação e pânico entre seus ouvintes por considerar esse fato
como verdadeiro embora ninguém visse os tais marcianos. Dando um salto no
tempo, mais recentemente, na guerra do Iraque se propagou nos mais diver-
sos meios de comunicação a ideia de que Saddam Hussein possuía aramas de
destruição de massa o que nunca foi comprovado, mesmo depois dos Estados
Unidos trem invadido o Iraque, inclusive usando tal argumento para justificar
sua atitude bélica. No Brasil não ficamos imunes a acontecimentos semelhan-
tes. O filho do ex-presidente Lula já foi apontado como sócio do frigorífico JBS,
o maior do País, dono de um jatinho com valor estimado em US$ 50 milhões,
o que faria do aparelho o mais caro do Brasil, e proprietário de uma grande
fazenda na região Centro-Oeste, descrita, também, como uma das maiores
joias do agronegócio nacional. Além de não serem provadas as acusações não
resulta difícil imaginar quem é o alvo final: o próprio ex-presidente Lula.
Motivos bastante semelhantes acabaram sendo usados nos países de lín-
gua inglesa para se eleger a pós-verdade como palavra do ano. No caso da
Inglaterra a votação do Brexit - a saída da Inglaterra da União Europeia - teria
sido apressada e manipulada por não se ter levado em consideração todos os
fatores envolvidos nessa questão. Dessa maneira sabemos que houve a manipu-
lação dos dados de tal forma que a população não recebeu a informação com-
pleta. Além disso se espalharam notícias completamente falsas tipo, se não sair
da Europa a Inglaterra será invadida pelos refugiados turcos, algo altamente
improvável por não dizer impossível. Já o caso dos Estados Unidos envolveu a
escolha de Donald Trump como presidente, escolha essa baseada numa rede
de mentiras tão absurdas que chocaram ao mundo como um todo. Ente outras:
Barack Obama não era americano e teria criado o Estado Islâmico.
Não se pode negar que no contexto atual perpassado pela facilidade do
acesso à informação e, consequentemente, a divulgação maciça de dados, re-
sulta fácil que determinados acontecimentos ganhem um destaque despro-
porcional por terem facilitada sua circulação pelas redes sociais. Nesse con-
texto, quanto mais chocante possa ser o fato noticiado mais exposição tem
e se aceita como verdadeiro. É como se uma vez publicado ganhasse a áurea
90
da credibilidade e da não contestação. Essa saturação de informações no am-
biente digital torna cada vez mais complexa a compreensão do que possa ser a
realidade antes descrita e aceita após ter sido confirmada. Isso não implica em
sustentar que não pudesse ser falsificada ou manipulada, mas em tese havia
um compromisso ético com a verdade e um procedimento que implicava a
verificação dos acontecimentos.
De certa forma o que a pós-verdade nos coloca é que as questões emocio-
nais têm grande poder de influenciar na hora de se tomar as decisões pesso-
ais. É como se as pessoas percebessem ou intuíssem uma verdade, mas não se
apoiassem ou mesmo usassem as possibilidades oferecidas pelas tecnologias
de informação para constatar se, de fato, aconteceu o episódio que está rece-
bendo. Estamos num momento no qual parece que a verificação da verdade
factual deixa de ser essencial para os cidadãos na hora de formar sua opinião.
Vale lembrar que no caso especifico da comunicação se criou um cenário
propício para facilitar essa configuração na qual o que se entende por verda-
de tem ficado num segundo plano. A concentração midiática impondo uma
versão única, além de selecionar o que deve ser trazido a público, determina
o que deve ser omitido. Como lembra Ramonet (2002) o tempo presente está
determinado pela imagem. Efetivamente, na hora de selecionar os fatos para
serem publicados na imprensa escrita, por exemplo, imperam os que possuem
imagens, e, consequentemente, o resto das notícias fica num segundo lugar,
quando não são ignoradas. As notícias que não aparecem com imagem per-
dem sua importância, mesmo que algumas sejam mais relevantes que aquelas
vistas e aceitas pelo público como verdadeiras. Dessa forma, a imagem deter-
mina a informação na atualidade. Tanto é verdade que, no jornalismo, a entra-
da de fotos coloridas e a transformação visual da primeira página, valorizando
as manchetes e as notícias breves, representam uma tentativa de adequação a
essa predominância do público das imagens.
Ainda, segundo Ramonet, na atualidade, um fato é considerado verda-
deiro não por terem sido aplicados critérios objetivos, rigorosos ou porque as
fontes tenham sido devidamente verificadas. A veracidade se impõe pela re-
petição constante e permanente de dados nem sempre confirmados. Como
estamos num momento de alta competitividade, a mesma notícia veiculada
pela televisão, pelo rádio, pela Web e pelo jornal torna-se verdadeira. Se a isso
acrescentamos o fato de que a imagem pode ser alterada a possibilidade de se
ter uma compreensão manipulada da imagem é um elemento a mais que cola-
bora com a desinformação.
91
Num depoimento bastante esclarecedor, reproduzido Eduardo Graça da
revista Valor Econômico, David Levi Strauss, diretor do Programa de Crítica
de Arte & Literatura da prestigiada Escola de Artes Visuais (SVA) de Nova
York, e um dos principais especialistas na academia americana no estudo de
como imagens e objetos modificam o cotidiano sociopolítico das sociedades
contemporâneas mostra-se taxativo quando afirma que
92
realidade representada por uma imagem é única e verdadeira? “Sempre deve-
mos considerar a fotografia como fonte histórica de abrangência multidiscipli-
nar” (Kossoy, 2002 p. 21). Este lado multidisciplinar da fotografia é o responsá-
vel por dar significações a fatos sociais importantes de maneira sutil.
Outro autor que tem um discurso extenso sobre o papel da fotografia en-
quanto construção e representação da realidade é Philippe Dubois (1993). “Da
verossimilhança ao índice”, é o nome do primeiro capítulo do livro de Dubois,
o qual já possui duas palavras essenciais para compreendermos a fotografia,
respectivamente. Em primeiro, temos a verossimilhança, aquilo que tem apa-
rência da verdade, e em segundo, o autor coloca a fotografia como índice, con-
ceito da semiótica que indica alguma coisa por proximidade e não por seme-
lhança. Ou seja, a fotografia indica uma aparente realidade. Uma foto de um
acidente, por exemplo, pode indicar que aquele acidente existiu, mas talvez não
daquela forma representada, não de acordo com aquela realidade.
Partindo desse ponto, há várias maneiras de se representar o real. A fo-
tografia transforma e cria uma terceira realidade (primeira realidade: a que,
de fato, aconteceu, segunda: a que foi retratada e a terceira é a mistura destas
impressa em uma folha de jornal) e é exatamente isso que muitos leitores des-
cuidados não percebem quando depreendem o significado de uma fotografia.
Isto acontece em virtude da capacidade mimética de uma imagem de se parecer
com a realidade que vivemos. Entre “parecer” a realidade e sê-la, de fato, há
um abismo grande e esse espaço é amplamente aproveitado por aqueles que se
interessam pela implementação da pós-verdade.
Neste capítulo nos propomos analisar fotografias referentes às manifesta-
ções que aconteceram nos dias antes do impeachment da presidente na épo-
ca, Dilma Rousseff, em que o país se bipolarizou em cores: verde-amarelo e
vermelho, fazendo referência às cores dos partidos políticos em pauta naquele
momento (PT e PSDB) publicadas pelos veículos de comunicação O Estado de
São Paulo e Carta Capital, dois jornais com linhas editorais sensivelmente di-
ferentes. Salientamos que a pretensão é justamente colocar em xeque a ideia da
pós-verdade, ou seja, nos propomos a verificar como ainda é possível utilizar a
fotografia como elemento importante para dar sentido aos acontecimentos do
cotidiano. Para analisar as quatro fotografias, vamos recorrer à semiótica de
Umberto Eco (2007), que propõe a decomposição da imagem em cinco níveis:
93
• Nível iconográfico: É referente ao plano da conotação, dos elementos
cujos sentidos só são dados pelo cruzamento com os significados con-
vencionais decorrentes de um aprendizado cultural.
• Nível tropológico: É composto pelas figuras de retórica tradicionais
aplicadas à representação visual.
• Nível tópico: É marca dos lugares argumentativos e das premissas que
se articulam na imagem.
• Nível entimemático: É referente a somatória desencadeada pela argu-
mentação posta no nível anterior.
94
Brasil nunca foi tão politizado. Não é errado afirmar que o Brasil viveu uma épo-
ca histórica em que as ruas receberam os mais variados tipos de manifestantes e
manifestações. Desde os “panelaços” feitos pela classe média alta que, a cada dis-
curso da presidente em rede nacional, ecoavam nas janelas dos prédios até mani-
festações dos chamados “black blocs”, que quebravam símbolos do capitalismo.
Nesse resurgir da rua como espaço de manifestação o Brasil se dividiu,
em uma espécie de maniqueísmo político. Um episódio acelerou significativa-
mente a movimentação popular: a tentativa da nomeação do expresidente Lula
para ministro da Casa Civil, fato entendido como a criação de foro privilegia-
do caso Lula fosse acusado e, possivelmente preso por corrupção.
O clima de revolta por uma grande parcela do país tomou conta das ruas,
especialmente no dia 13/03/2016. Vestidos de verde e amarelo, protestando
mais contra o Partido dos Trabalhadores (PT) do que contra a corrupção, esta
manifestação foi uma das mais veiculadas pela grande mídia. A imagem que
vamos analisar é a capa do jornal O Estado de S. Paulo no dia 14/03/2016, dis-
ponível para baixar gratuitamente no site.
95
Seguindo a decomposição semiótica de Umberto Eco (2007), podemos
identificar alguns elementos denotativos da fotografia que, nos níveis pos-
teriores, vão auxiliar na construção de sentido que o veículo de comunica-
ção intentou passar. Nesta imagem vemos uma rua grande, contornada de
prédios, cheia de pessoas; percebemos um enquadramento diferente, em que
a foto foi tirada de cima. Também notam-se outros elementos importantes:
uma faixa verde e amarela, escrito em preto “Impeachment já” e um objeto
grande amarelo. Na parte de cima se encontra um helicóptero sobrevoando a
área e a cor preponderante nesta imagem é a amarela (podemos perceber isso
com as cores das roupas das pessoas).
Estes elementos trazem um sentido conotativo muito denso, levando ao
segundo nível de decodificação. O local em que esta foto foi tirada parece ser
muito importante em virtude da extensão da rua e dos prédios que a cercam.
Aqueles que têm um pouco mais de conhecimento sobre a imagem, sabem
que aquele prédio central com detalhes em vermelho é o MASP (Museu de
Arte de São Paulo), ponto cultural e político importantíssimo para a cidade
de São Paulo. O enquadramento também favorece uma leitura: tirar a foto de
cima intenta mostrar quão grande foi esta manifestação e, mais do que isso,
sugere até uma provocação ao leitor que não concorda com o cunho ideoló-
gico dela: Como ser contra um movimento tão grande que defende o Brasil?
A defesa do Brasil está explicitada nas cores e também na ênfase que a
imagem quis dar com a bandeira em verde e amarelo escrito “Impeachment
Já”. O fotógrafo poderia ter tirado esta foto em outro local, mas ele quis dar
ênfase na bandeira, para ser um punctum fotográfico a fim de construir uma
mise-en-scène favorável à opinião do jornal sobre o fato.
Já no nível tropológico, analisamos quais são as figuras retóricas e de
linguagem mais pungentes e preponderantes nesta imagem. Esta é uma ima-
gem com um forte teor informativo: ela mostra o tamanho da manifestação,
o porquê de ela ser importante e, sobretudo, qual a posição política e ideoló-
gica do jornal. Poderíamos dizer que a disposição da fotografia na primeira
página junto com o enquadramento e a escolha da própria foto fizeram uma
hipérbole sobre esta manifestação. Se grande, o jornal a tornou maior ainda.
A mídia tem esta característica: maximizar ou minimizar um fato de acordo
com a agenda setting ou com os próprios interesses.
O próximo nível de decomposição da imagem é interessante pois ele se
desdobra dos valores comumente aceitos pela sociedade. Como a sociedade
está em constante mudança, estes valores também. Neste caso, o nível tópico
96
figurado nesta imagem é o pressuposto de que presidente do país precisa sair
do poder. Em um tom quase que ufanista, esta foto nos leva a entender que
o Brasil está lutando por um país livre da corrupção e que o povo tem força
para fazer sua vontade valer. A extensão da foto somado a quantidade de pes-
soas faz que o maior valor e premissa da fotografia seja que o povo brasileiro,
como um todo, está extremamente insatisfeito com os que estão no poder e
que eles precisam, imediatamente, sair de lá.
Para concluir com o nível entimemático, é importante ressaltarmos tam-
bém a disposição que a fotografia foi colocada. Na capa do jornal se nota que
não há mais manchetes ou destaques para fatos contemporâneos igualmente
importantes. O jornal estampou a foto e apenas colocou a data da manifesta-
ção. Esta disposição sugeriu mostrar que as manifestações pararam o Brasil
e que esta foto, bem como o momento em que ela foi tirada, entrou para a
história: o povo brasileiro pedindo a saída de sua governante. Não ocorreu
nada mais importante neste dia do que as manifestações contra a corrupção
e contra o PT.
Uma semana após a manifestação das pessoas que pediam o impe-
achment da presidente, o outro lado da linha ideológica também mostrou
suas caras nas principais avenidas das capitais brasileiras. Com a hashtag
#NãoVaiTerGolpe, pessoas “pró-governo” foram às ruas dia 18/03/2016 para,
segundo os próprios manifestantes, lutar pela democracia. Esta capa foi pu-
blicada no dia 14/03/2016 e agora vamos observar abaixo a capa do O Estado
de S. Paulo, no dia posterior às manifestações da oposição:
97
Figura 2: Capa Estadão referente à manifestação do dia 18/03/2016.
Fonte: Acervo digital do Estado
98
concentradas na frente de um grande prédio, passa a impressão que elas estão
esperando alguém muito importante. A sombra do homem de braços abertos
também dá a sensação de que eles estão sendo bem recebidos naquele lugar.
O sentido de manifestação pode até quase se perder, se pensarmos que estas
pessoas estão esperando alguém que elas admiram e não para, de fato, lutar
por mudanças sociais.
A figura de linguagem que acreditamos estar latente nesta capa é a ironia.
Analisando o contexto da capa, sabemos que esta manifestação se trata das pes-
soas que não concordam com o impeachment da presidente Dilma e que, muitas
delas, são favoráveis ao Partido dos Trabalhadores, em que o Lula também é
uma figura chave para a situação. No momento em que colocam a fotografia da
manifestação junto com a imagem de Lula e com a manchete dizendo que “STF
suspende posse de Lula e mantém investigação com Moro” é, no mínimo, irô-
nico a significância que este veículo de comunicação dá para esta manifestação.
Em outras palavras, as diagramações, junto com o enquadramento e técnicas
de fotografia da imagem em destaque, constroem um sentido que tomam um
partido político travestido de “imparcialidade”, porém com uma carga de linha
editorial impressa em cada signo. É como se o jornal estivesse questionando o
leitor e já dando a própria resposta: “Esta manifestação é realmente a favor da
democracia? Olhe para a fotografia e repare quem é o líder dela e, em seguida,
leia a manchete”. Quando o leitor tiver feito esta conexão e esta análise, vai de-
preender que este movimento não está a favor de um país melhor, por exemplo.
O penúltimo nível faz referência às premissas da imagem. Como já expli-
citamos anteriormente, a premissa desta imagem foi a fotografia das manifes-
tações do dia 13/03/2016. Depois de fazer uma hipérbole com um dos lados dos
manifestantes, já se esperava que a notícia dos movimentos populares do outro
lado da linha ideológica fosse divulgada de uma forma irônica e duvidosa. A
própria linha editorial e histórica do jornal também já tem um consenso sobre
o PT, o que, na verdade, apenas se confirmou com o levante dos movimentos
populares.
Em síntese, esta fotografia mostrou qual a importância e o significado que
o jornal O Estado de S. Paulo deu para as manifestações chamadas de “pró-go-
verno”. Em comparação com a capa da semana anterior, esta mostrou um lado
de ironia e quase que provocativamente não a chamou de manifestação e sim
de movimento em apoio a Dilma e Lula.
Em seguida vamos analisar uma fotografia publicada pelo veículo de co-
municação Carta Capital referente a mesma manifestação do dia 18/03/2016.
99
Com esta imagem podemos perceber como imageticamente os jornais conse-
guem expressar sua posição ideológica e política e, assim, dar significado aos
fatos sociais, mesmo que não sejam comprovados, aí está a pós-verdade.
100
também existe na foto e, acreditamos, que ela está nessa foto por algum moti-
vo: não e só por um partido que essas pessoas estão lutando e sim pelo país. A
fotografia é tirada bem de frente ao movimento para dar a impressão de força
e que eles continuam marchando por um ideal e que, possivelmente, não vão
parar até que suas petições sejam atendidas. Se, por um lado, a primeira foto-
grafia analisada dava foco na quantidade de pessoas que estavam protestando,
esta tem por objetivo revelar a força da manifestação.
Esta “força” que a imagem passa mostra que ela tem um poder metafórico
muito grande. Ao contrário da primeira imagem que analisamos em que a
hipérbole era a figura de linguagem preponderante, para mostrar que quase
o país todo estava protestando a favor de uma nação sem corrupção, esta, por
sua vez, faz uma metáfora procurando destacar a resistência. A intenção do
fotógrafo nesta imagem não é mostrar a quantidade de pessoas que tinham na
manifestação, mas sim a força que elas e este movimento têm.
Esta fotografia foi publicada em um veículo de comunicação com uma
linha editorial totalmente distinta do jornal O Estado de São Paulo. Enquanto
um tem como premissa ser um jornal histórico e com um viés conservador, a
Carta Capital tem um perfil mais liberal e de esquerda e que, em várias repor-
tagens, sai em defesa do Partido dos Trabalhadores. A premissa comum norte-
adora desta publicação é que se trata de um veículo conivente com até então o
governo que estava em vigor e defensor de muitas pautas políticas e ideológicas
que eles têm em comum.
Em último nível de decomposição da imagem, o nível entimemático, po-
demos concluir que esta fotografia se adequa perfeitamente a linha editorial
do veículo de comunicação Carta Capital. Em um momento em que a figura
do PT se encontra fragilizada a imagem vem mostrar a força e a resistência
que os manifestantes tem para dar apoio e assistência à imagem simbólica do
partido no país.
A última fotografia também foi publicada pela Carta Capital e diz respeito
às manifestações das pessoas que são a favor do impeachment. Embora esta
foto tenha sido publicada no final de 2015, a partir do qual a onda de mani-
festantes contra e a favor do impeachment começou a se fortalecer. Segue a
fotografia:
101
Figura 4: Movimento em favor do impeachment.
Fonte: Carta Capital
102
linguagem, também podemos pensar que houve uma ironia, já que os mani-
festantes pouco articulados estão em Brasília, em frente ao local símbolo da
política brasileira, protestando. É como se esta imagem quisesse passar: Qual
tipo de manifestante você quer ser? Não seja como este.
A Carta Capital é um veículo de comunicação com um posicionamento
político de esquerda muito forte e declarado. Portanto, a premissa e a máxima
que vão seguir é de que o Impeachment não é a melhor solução para o país.
Por meio de mecanismos midiáticos, eles conseguem fazer que o processo de
midiatização seja favorável ao governo, desmerecendo o outro lado, estratégia
esta também adotada pelo jornal O Estado de São Paulo.
Por fim, notamos que esta imagem e a anterior conseguem expressar mui-
to bem a linha ideológica do veículo de comunicação. Esta fotografia mostra o
outro lado dos que protestam pelo Impeachment, procura ressaltar que estão
pouco articulados e cada vez com menos pessoas apoiando o movimento. Para
aqueles que estão indecisos, ao ver uma fotografia como essa, vão pensar mais
uma vez antes de assumir o lado do pró-impeachment.
Considerações finais
103
uma banalização das imagens, mas outras possuem claro teor ideológico e se
apresentam com claras intenções políticas.
Todo este jogo de mecanismos da mídia para expressar uma opinião de
forma mais implícita do que explícita nos mostra que o leitor vive em uma
sociedade midiatizada e que todos os acontecimentos passam por um proces-
so de midiatização que vão (re)significar os fatos e dar uma nova razão a eles.
Como exemplo temos o período de instabilidade política em que o assunto do
Impeachment da presidente Dilma está em pauta. De acordo com o O Estado
de São Paulo este é um fato histórico para o Brasil em que é necessário haver
uma troca de governante. Já para a Carta Capital, o pedido de Impeachment é
um golpe que aflige não um governo, mas sim toda uma história democrática
alcançada pelo Brasil.
As fotografias analisadas provam como este processo de midiatização é
real e intenso e como elas corroboram com a hipótese de que a fotografia tem
um poder que as palavras dificilmente conseguem chegar: o de permanecer
na memória. Algumas destas fotografias estarão nos livros de história daqui
alguns anos para mostrar, “com exatidão”, o que houve no Brasil nos anos de
2015 e de 2016 no contexto político. Não serão as reportagens do O Estado de S.
Paulo ou da Carta Capital, mas uma fotografia poderá expressar não só o fato
ocorrido, mas o sentimento da nação brasileira (de acordo com um respectivo
veículo de comunicação). Assim, a denominada pós-verdade pode ser colocada
em xeque e se existe é para manipular e nortear cenários não condizentes com
a verdade. Desde um ponto de vista mais amplo, pode –se dizer que a pós-ver-
dade acabaria tendo papel relevante para somar forças na tentativa de manipu-
lar a informação e corroborar com a apatia e superficialidade da informação.
Referências
104
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. Editora Contexto. São Paulo: 2005.
DUBOIS, Phillippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1993. ECO,
Umberto. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 2007.
GRAÇA, Eduardo. Na “era da pós-fotografia”. Valor Econômico, São Paulo, 14, nov, 2014.
Disponível em http://www2.valor.com.br/cultura/3778472/na-era-da- pos-fotografia.
Acesso em 23 de fev. 2017.
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 2002.
105
ANÁLISE DA DIVERSIDADE SOCIAL E
CULTURAL BRASILEIRA NA
OBRA CINEMATOGRÁFICA
“EDIFÍCIO MASTER – UM FILME SOBRE
PESSOAS COMO VOCÊ E EU”
Ana Carolina Trindade
Caroline Kraus Luvizotto
106
brasileira abordada na análise da obra. A mídia, na sequência, é abordada
como um dos elementos estruturantes dessa ligação e fundamental para a aná-
lise fílmica que se apresenta sobre o “Edifício Máster”.
Cultura e identidade
107
O autor complementa seu pensamento ao falar do determinismo geográfico
que “considera que as diferenças do ambiente físico condicionam a diversidade
cultural [...] e que é possível e comum existir uma grande diversidade cultural
localizada em um mesmo tipo de ambiente físico” (Laraia, 2008, p. 21). Isto é,
as diferenças entre os indivíduos não podem ser limitadas às questões biológi-
cas ou ambientais, mas, inclusive, pela cultura que cada indivíduo carrega em
sua essência e no meio que é socializado.
Dentre os outros significados, Geertz (1989, p. 15), diferencia-se do con-
ceito de Tylor e afirma que o conceito de cultura é basicamente semiótico e “o
homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”.
Neste caso, a cultura seria o entrelaçar das teias que tem por finalidade condu-
zir o comportamento do indivíduo e reunir princípios e valores dos mesmos.
Para Geertz (1989), a cultura influencia as ações e pensamentos do indi-
víduo em sociedade, cria e recria comportamentos repletos de significados.
Desse modo, a cultura deve ser entendida como um universo de criações e
compreensões de mundo e necessita ser analisada no contexto no qual o indi-
víduo está inserido. Nesse sentido, a cultura é determinada pelas circunstân-
cias do longo processo de experiências do indivíduo e não pode ser vista como
uma conquista, mas como um contexto onde os comportamentos e processos
são reunidos e explicados.
As características culturais identificadas nos indivíduos podem ser clas-
sificadas desde as diferenças linguísticas até o modo de se vestir, agir, pensar,
sorrir ou caminhar. Considerando a grande diversidade de características, no
que diz respeito à participação do indivíduo em sua cultura local, Laraia sina-
liza para a impossibilidade do indivíduo ter conhecimento sobre todos os ele-
mentos culturais existentes, isto é, “a participação do indivíduo em sua cultura
é sempre limitada” (Laraia, 2008, p. 80).
Os sistemas culturais existentes na sociedade não são estáticos e estão
sempre em constante mudança. Laraia (2008, p. 96) apresenta “dois tipos de
mudança cultural: uma que é interna, resultante da dinâmica do próprio sis-
tema cultural, e uma segunda que é o resultado do contato de um sistema
cultural com o outro”. O autor explica que no primeiro tipo a mudança é lenta
e quase sempre imperceptível e, no segundo, as transformações podem ser rá-
pidas e inesperadas.
O segundo caso, de acordo com Laraia (2008), é o mais convencional na
sociedade, pois é improvável existir um sistema cultural afetado apenas pela
mudança interna, como se refere o primeiro caso. A única possibilidade de
108
acontecer uma mudança cultural interna é a existência de um grupo de pes-
soas completamente isoladas das demais. Atualmente, devido à globalização e
as novas formas de comunicação, é difícil imaginar uma situação dessas. Isto
posto, Laraia (2008) assegura que todos os sistemas culturais estão em cons-
tante mudança e é fundamental minimizar o choque cultural entre as gerações
para que as diferenças presentes neles não provoquem atitudes ou comporta-
mentos preconceituosos que prejudiquem a convivência.
Pensar em cultura nos leva a pensar em identidade. Neste texto, a identi-
dade tem papel importante como veremos na análise fílmica que se apresenta
mais adiante.
A identidade é construída a partir do meio que o indivíduo vive e a mes-
ma é construída, principalmente, por meio da cultura. A identidade possui
associações com a cultura, mas a noção de identidade não deve ser confundida
com a de cultura. Segundo Cuche (1999, p. 177), “a identidade social de um
indivíduo se caracteriza pelo conjunto de suas vinculações em um sistema so-
cial: vinculação a uma classe sexual, a uma classe de idade, a uma classe social,
a uma nação, etc”.
Destaca-se a concepção da identidade cultural como uma particularidade
dependente do grupo, porque é transmitida por ele sem possuir relação com
outros grupos existentes. Nomeada como concepção objetivista, ela é definida
a partir de critérios como língua, cultura e conhecimento territorial. Em con-
trapartida, comenta-se sobre a concepção subjetivista de identidade que defen-
de a ideia de que a identidade não é transmitida, mas seria “um sentimento de
vinculação ou uma identificação a uma coletividade imaginária em maior ou
menos grau” (Cuche, 1999, p.181).
Barthes (apud Cuche, 1999) propõe um ponto de vista que supera a ideia
do objetivismo e do subjetivismo propostos. Para o autor, a identidade de um
grupo é o modo de categorizar as relações entre eles, da maneira que se iden-
tifica os traços culturais utilizados pelo grupo que possam os distinguir de
outros já existentes. O autor atribui a ideia de que os próprios membros do
grupo organizam a própria identidade e considera que a mesma “se constrói
e se reconstrói constantemente no interior das trocas sociais” (Barthes apud
Cuche, 1999, p. 183).
Kellner (2001, p. 295) aprofunda os estudos e comenta sobre a identida-
de na modernidade e na pós-modernidade. Segundo o autor, a identidade na
modernidade é vista como “móvel, múltipla, pessoal, reflexiva e sujeita a mu-
danças e inovações. Apesar disso, também é social e está relacionada com o
109
outro”. Nesse processo, a identidade também é relacionada à individualidade
pelo autor. Em relação a pós-modernidade, a identidade se torna volúvel devi-
do aos efeitos das ações midiáticas.
Ademais, a identidade para Canclini (2010), também é estabelecida a par-
tir das mudanças relacionadas ao consumo e a globalização. Os cidadãos man-
têm contatos com uma grande quantidade de informação e isso contribui para
a construção da identidade dos mesmos. Para o autor, “o rádio e o cinema
contribuíram na primeira metade desde século para organizar os relatos de
identidade e o sentido de cidadania nas sociedades nacionais” (Canclini, 2010,
p. 129). Dessa forma, essas mídias reuniram hábitos, modos de se falar e se ves-
tir em um único momento que resultou na disseminação dessas informações,
possibilitando assim a transformação da identidade.
Após discorrer brevemente sobre os conceitos de cultura e identidade, po-
demos apresentar considerações sobre a diversidade cultural e social. Essas
perspectivas teórico-conceituais são fundamentais para compreender como a
mídia se apropria das histórias de vida dos sujeitos que fazem parte do docu-
mentário “Edifício Máster”.
110
A cultura, como já mencionado, influencia o comportamento do indiví-
duo e transforma a sociedade. A diversidade é capaz de se articular com ou-
tras dimensões básicas capazes de complementar a cultura que, de acordo com
Barros (2008), refere-se a dimensão humanizadora e educativa, a dimensão co-
letiva e política, e a dimensão produtiva e econômica. Portanto, Barros (2008)
indica que a diversidade cultural é vista como uma reunião de informações
distintas em um único ambiente, constituindo assim, uma situação desarmô-
nica onde existe a junção de diversas ideias.
A inserção de modelos democráticos de medidas que proporcionam o di-
reito de ser diferente são necessários para diminuir as desigualdades.
Atualmente, é indispensável que exista “uma educação para a diversidade,
entendida menos como uma atitude de respeito passivo e mais como uma for-
ma de estar no mundo, em que a articulação das diferenças se configura como
pré- requisito ao desenvolvimento humano” (Barros, 2008, p. 22).
O Brasil possui um órgão especializado em Identidade e Diversidade
Cultural, servindo de exemplo para as comunidades internacionais. Criada
em 2003, a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SID) realiza
ações em respeito às diferenças culturais existentes no país. Segundo Dupin
(2008, p. 41), a secretaria tem como principal objetivo a “formulação de po-
líticas públicas na área cultural relacionadas à diversidade e ao intercâmbio
cultural”. Desta maneira, a secretaria democratiza o acesso às políticas cultu-
rais desenvolvendo ações que ofereça proteção e promoção das diversidades.
Projetos, secretarias e outras ações em função da diversidade cultural e social
ajudam a construir um mundo melhor com mais respeito e paz. “Porque, para
que haja paz, é essencial que haja respeito à cultura do outro” (Dupin, 2008, p.
44). Com as inúmeras particularidades culturais e sociais, nenhum indivíduo
é semelhante ao outro, por isso, as diferenças devem sempre ser respeitadas.
A Constituição no Brasil garante que os indivíduos tenham a sua própria
voz perante assuntos que lhe dizem respeito. A cidadania faz parte disso, pois
é a prática acerca da luta pelo bem-estar e reivindicações sobre os direitos civis,
políticos e sociais. Por isso, a democracia impulsiona o desenvolvimento da
cidadania e é fundamental a presença da cultura e da educação para geração
de mais resultados. A sociedade civil ainda tem um longo percurso pela frente
“seja para que direitos coletivos de população gerem riqueza para sua susten-
tabilidade, seja para ampliar o acesso dos brasileiros a bens culturais indispen-
sáveis a sua formação” (Macedo, 2008, p. 96).
111
E qual o papel da mídia nesse contexto? A mídia e os veículos de comu-
nicação são abrangentes a ponto de respeitar e retratar a diversidade cultural
e social brasileira? Como podemos compreender o papel da mídia na repre-
sentação da diversidade cultural e social brasileira a partir da obra “Edifício
Máster”? Essas são questões que norteiam as reflexões que se seguem.
A mídia e o cinema
112
espalharam por São Paulo e outras cidades importantes. No início, os curtas
de cinema eram todos estrangeiros, trazidos de Paris ou Nova York, e somente
em 1898 surge o cinema brasileiro.
No Brasil, os primeiros dez anos de cinema se desenvolveram lentamente.
A falta de eletricidade era o principal problema e “nos poucos locais da capital
da República que dispunham dessa comodidade, o menor temporal ou venta-
nia interrompia o fornecimento” (Gomes, 1996, p. 9). O documentário surge
depois desse período, como um gênero cinematográfico que procura investi-
gar a realidade.
Nichols (2005), crítico do cinema americano, apresenta uma visão sobre o
que seria um documentário. O autor afirma que todo filme é um documentá-
rio pelo fato de representar culturas, estas retratadas de quem o produziu e de
quem faz parte dele. Por isso, ele não é uma representação da realidade, mas
uma apresentação do ambiente a partir de um ponto de vista dos indivíduos ou
instituições. Para ele, existem duas vertentes: os documentários que possuem
a representação social como objeto principal são considerados não-ficção e
os ficcionais contemplam a satisfação de desejos e exploram um mundo com
inúmeras possibilidades.
O autor comenta a existência de seis subgêneros do gênero documentário:
poético, expositivo, participativo, observativo, reflexivo e performático. Esta
ordem possui uma razão, pois corresponde a ordem cronológica de evolução
dos mesmos no cinema documentário.
Em síntese, Nichols (2005) avalia que o documentário poético tem como
característica a representação de impressões subjetividade e desperta mais in-
teresse na emoção do que na razão. O expositivo se interessa nos argumentos
dos atores sociais e, por isso, emprega o uso da fala e de imagens. O terceiro
subgênero, participativo, é determinado pela participação ativa do diretor e
da equipe no documentário. O observativo procura retratar a realidade e a
naturalidade, utilizando uma pequena movimentação da câmera e aproveitan-
do as próprias cenas para que elas falem por si mesmas. Em relação ao modo
reflexivo, este procura demonstrar para o telespectador todos métodos de fil-
magem para que seja possível demonstrar a real reação dos atores sociais. E,
por fim, o modo performático se refere aquele que possui características das
técnicas cinematográficas livres. Dessa forma, o cineasta procura sensibilizar
o telespectador.
Este estudo entende o documentário como representação social, cujo ob-
jetivo é refletir sobre a verdade que o cineasta quer despertar na sociedade,
113
afinal, “os documentários dão-nos a capacidade de ver questões oportunas
que necessitam de atenção”. (Nichols, 2005, p. 27). Nichols traz a ideia de que
nesse tipo de documentário os indivíduos agem de maneira indiferente frente
a câmera e o cineasta. Esses indivíduos são nomeados como atores sociais, os
quais irão disponibilizar momentos reunidos da própria vida, como emoções,
lembranças e desejos.
Situados o papel da mídia e do cinema nas representações e apresenta-
ções da diversidade cultural e social, procedemos à análise fílmica de “Edifício
Máster”.
114
isso, foi necessário entender o contexto onde o documentário está inserido
pelo fato de ele traçar a intenção que o diretor pretendeu alcançar.
Retomando os subgêneros do documentário apontado por Nichols (2005),
o “Edifício Master” corresponde ao modo participativo pelo fato do diretor e
da equipe terem uma participação ativa no documentário. Eduardo Coutinho
faz exatamente o que afirma o autor em seu livro, “o pesquisador vai para o
campo, participa da vida de outras pessoas, habitua-se, corporal ou visceral-
mente, à forma de viver de um determinado contexto e, então, reflete sobre
essa experiência” (Nichols, 2005, p.152).
Dessa maneira, destacam-se a seguir as principais características observa-
das no documentário “Edifício Master”.
115
vivem. “Edifício Master” demonstra o papel que as relações culturais e sociais
possuem na vida dos indivíduos entrevistados. Não se trata de fazer uma abor-
dagem individual de cada um dos moradores, mas de destacar as diversas rela-
ções presentes dentro desse único ambiente. A equipe cinematográfica aposta
na capacidade que o documentário possui de construir histórias, retratar ca-
racterísticas heterogêneas dos indivíduos, bem como, reunir experiências em
comum entre eles. Assim como apontado por Cuche (1999), a cultura propor-
ciona a resposta sobre as questões relacionadas às diferenças.
O documentário traz o som da voz como um meio de representar pontos
de vista descritos pelos atores sociais e cineastas. Para Nichols (2005), a voz do
documentário não é restrita a fala, ela também é elaborada pelo criador através
da seleção de imagens e sons. Para isso, ocorre um estudo para seleção de cor-
tes das cenas, gravação da voz dos atores sociais, inserção de efeitos sonoros e
criação de uma cronologia para o documentário.
As primeiras entrevistas relatam a violência na região do Edifício Master,
o qual fora frequentado no passado por cafetinas, prostitutas e seus clientes.
Assim como foi abordado por Laraia (2008), é notório que em um ambiente
físico é possível encontrar diversas manifestações culturais e sociais, e no edi-
fício não é diferente. Relatos de suicídios, assassinatos e mortes constituíam o
cenário do edifício. Embora essas situações fossem relatadas no documentário,
o diretor adequou a seleção de imagens e sons para que não acontecesse juízo
de valor de quem falava durante as cenas.
As imagens e a entrevista com o síndico na sala da administração do
prédio relatam as dificuldades comportamentais em função das diversidades
existentes neste edifício. O objetivo da administração do síndico é apresentado
e visa alcançar um prédio bonito, digno e descente. Para isso, é citado méto-
dos de comportamento utilizados com os moradores como, por exemplo, o de
Piaget e o de Pinochet. O primeiro modelo, representado pelo psicólogo suíço,
reforça bons comportamentos com possibilidade de “recompensas”. Enquanto
o segundo, aludido ao ditador chileno, é lembrado como um método que pos-
sui punição quando as regras não são cumpridas. Esses métodos são um cho-
que de realidade para os moradores e usados como metáfora para demonstrar
a dificuldade em lidar com um grande número de pessoas reunidas em um
único ambiente com diversas diferenças culturais e sociais. Isso é aparente,
pois, como citado anteriormente, Cuche (1999) afirma que a cultura é o con-
junto de transformações do homem e a partir dela que é possível a transfor-
mação da natureza.
116
Assim como citado por Lipovetsky e Serroy (2011), a sociedade passa por
um momento de desorientação, insegurança e instabilidade. O documentário
traz esse indício, os moradores consideram o bairro de Copacabana como in-
seguro e revelam ao longo de diversas entrevistas que isto gera a solidão.
O documentário segue com a narração de relacionamentos a distância,
que acontecem através de ligações e e-mails. Em outro momento, encontros
pessoais ocorrem a partir de anúncios em jornais e ações totalmente infor-
mais. Há descrição dos momentos marcantes, bem como, a percepção da apa-
rência do outro. A partir da superficialidade dos discursos, observa-se a cul-
tura e a identidade do indivíduo. A beleza, o modo de se vestir e de agir de um
indivíduo é uma qualidade a ser avaliada e, com isso, a reflexividade proposta
por Giddens é considerada. “O consumo interpela as qualidades alienadas da
vida social moderna e se apresenta como a solução: promete as coisas mesmas
que o narcisista deseja - charme, beleza e popularidade - através do consumo
dos tipos “certos” de bens e serviços.” (Giddens, 2002, p.160). Atualmente, vi-
ve-se à procura de pessoas que acreditam ser socialmente respeitadas.
Em diversos discursos, identifica-se a falta de vontade de estar perto de
outras pessoas, talvez por acreditar que isso as protegerá das mazelas do mun-
do. Lipovetsky e Serroy (2011) comentam que o momento atual da sociedade
favorece o individualismo e, com isso, o indivíduo se vê sozinho dentro da sua
realidade. Em relação a isso, surge em um dos discursos e relatos a neurose e a
sociofobia; a aglomeração do bairro de Copacabana se torna estressante e gera
esgotamento. A dúvida da entrevistada é colocada em xeque e permanece sem
resposta sobre ter “pessoas demais ou calçadas muito estreitas. Ou se é uma
fusão desagradável dos dois elementos”.
Para essas pessoas, às vezes, o verdadeiro sentido de felicidade é estar só,
do mesmo modo que o bem-estar diário seria subir e descer do elevador do
prédio sem tem que ver e não ser visto por ninguém. Este e outros sinais são
reflexo da modernidade e o fato de um vínculo com as pessoas ser mais estrei-
to, faz com que a situação passe a incomodar. “Os sinais do perigo se multipli-
caram, retransmitidos e amplificados por uma informação que difunde tudo
ao vivo e em toda parte: um espirro em algum lugar no mundo e é o planeta
inteiro que tosse” (Lipovetsky; Serroy, 2011, p.23).
O documentário traz a realidade de juventudes interrompidas por causa
de gravidez precoce, historias de jovens com um passado sem diálogos com a
família. Com um sentimento de incapacidade, uma das saídas é a prostituição.
Diante dessa realidade, surgem dificuldades, humilhação e dependências. A
117
difusão dessa realidade gera conflitos, pois “nem todos os grupos têm o mes-
mo ‘poder de identificação’, pois esse poder depende da posição que se ocupa
no sistema de relações que liga os grupos” (Cuche, 1999, p.185-186). Com isso,
acredita-se que na sociedade atual e para a grande maioria da população o
“poder de identificação” estaria na normalidade do cenário da corrupção e da
marginalização, e seria anormal o fato de se prostituir, mesmo sendo uma ati-
vidade que não viola nenhuma lei. Giddens (2002) afirma que a modernidade
ocasiona à indiferença, a exclusão e a marginalização.
Durante as cenas é possível perceber que, embora os indivíduos tragam
histórias como a de humilhação e impotência, destaca-se a afirmação de que
estas situações trazem felicidade, como se fossem obrigados a dizer para a câ-
mera que não existe nada de errado com a vida deles, mesmo em meio a tantas
dificuldades. Exemplifica-se uma cultura na qual as pessoas vivem apenas o
seu próprio mundo assemelhando-se a um imediatismo.
Cada indivíduo acredita em um tipo de vida dita como “normal”, pois
trabalha, ganha seu dinheiro e se sustenta. Mas para os outros, a corrupção e
os ladrões é que são normais. São duas vertentes distintas que dependem do
ponto de vista. “Afastando a possibilidade da emancipação, as instituições mo-
dernas ao mesmo tempo criam mecanismos de supressão, e não de realização,
do eu” (Giddens, 2002, p.13).
A solidão é retratada em diversos discursos. Os moradores comentam so-
bre ter números vizinhos e não conhecer sequer um deles. Aparentemente, o
sentimento é de ser trancado no apartamento e só ter conhecimento de notí-
cias sobre os vizinhos quando acontece algo notório.
O Edifício Master fica na zona sul do Rio de Janeiro, mais precisamente
em Copacabana e, por isso, os moradores relatam que são considerados ricos
por conhecidos e familiares. As histórias apresentam pessoas simples e que
não correspondem a realidade de possuírem uma boa condição financeira. “A
identificação pode funcionar como afirmação ou como imposição de identida-
de. A identidade é sempre uma concessão, uma negociação entre uma “autoi-
dentidade” definida por si mesmo e uma “heteroidentidade” ou uma “exoíden-
tidade” definida pelos outros” (Simon apud Chuche, 1999, p.183-184).
O autor define os termos autoidentidade e heteroidentidade e “em uma
situação de dominação caracterizada, a heteroidentidade se traduz pela estig-
matização dos grupos minoritários” (Cuche, 1999, p.184). Essa última classi-
ficação é compreendida como uma identidade negativa e deve ser vista como
uma rejeição, pois se diferencia dos grupos predominantes. No documentário,
118
o fato de morar em Copacabana passa a ser um estigma, ou seja, algo que está
marcado para sempre na vida desses moradores.
Considerações finais
119
de vista sobre o assunto tratado. Segundo Nichols (2005, p.27), “do documen-
tário, não tiramos apenas prazer, mas uma direção também”. O documentário
passa a ser um elemento essencial nessas questões.
Embora o documentário seja uma narrativa de histórias da vida dos mora-
dores que se rendem a falta de perspectivas futuras, o “Edifício Máster” é um
interessante objeto de estudo para descrever os costumes e ações de um grupo
de pessoas diferentes, que moram em um mesmo lugar e que estão sujeitas às
diferentes culturas e surpresas da vida urbana.
O cinema é uma ferramenta importante para registrar a diversidade cul-
tural e social a partir dos sujeitos sociais em ambientes que não são acessíveis
a todos. O Edifício Master retrata a importância dessa mídia, onde é possível
encontrar a representação do ambiente analisado a partir do ponto de vista do
diretor e da equipe com direito a participação ativa dos mesmos no documentá-
rio. Essa experiência é válida tanto para os envolvidos no documentário quanto
para os espectadores que usufruem de uma realidade, muitas vezes, distante.
Referências
CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2012. COMOLLI,
Jean Louis. Ver e Poder: A Inocência perdida: Cinema, Televisão, Ficção, Documentário.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 1999.
DUPIN, Giselle. O governo brasileiro e a diversidade cultural. In: BARROS, José Márcio
(Org.). Diversidade Cultural: da proteção à promoção. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2008.
120
KELLNER, Douglas. A cultura da mídia - estudos culturais: identidade e política entre o
moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001.
Edifício Master – Um filme sobre pessoas como você e eu. Dir. Eduardo Coutinho.
Brasil: Videofilmes, 2002. (110min). Colorido, sem legenda, Português.
121
O MUNDO COMO IMAGEM E
REPRESENTAÇÃO: HEIDEGGER E A
CULTURA CONTEMPORÂNEA
Eli Vagner Francisco Rodrigues
Introdução
122
que seja, conferiria sempre um estofo conceitual-representacional à imagem,
dando sentido e, ao mesmo tempo, comprometendo a interpretação do fun-
cionamento das relações causais. Em termos mais simples, toda a imagem car-
regaria em si, em tempos distintos, uma forma privilegiada de interpretá-la
relacionada com uma episteme “epocal”. Nesse sentido, uma imagem teria di-
versos significados de acordo com o contexto no qual ela está inserida. O pro-
blema da falsa consciência se avizinha do tema. A falsa consciência seria, antes
de tudo, uma visão distorcida do real, uma ilusão provocada pela concepção
metafísica ou mesmo pela natureza volitiva do sujeito cognoscente, ou ainda
uma espécie de oclusão provocada por motivações inconscientes. Todas essas
definições possuem como pressuposto, em certo sentido, o aspecto de impene-
trabilidade do real pela consciência, um dos temas centrais da Crítica de Kant.
Não é o caso, aqui, de desenvolver o problema em termos kantianos, mas
de analisar a perspectiva heideggeriana do problema e desdobrar o problema
em questões sobre a estética e a cultura. No entanto, a pergunta, formulada em
termos das duas conhecidas categorias utilizadas por Kant na Crítica da Razão
Pura, (fenômeno e coisa-em-si) pode nos dar uma ideia do abismo epistemoló-
gico que pode haver entre uma imagem formulada na mente humana, forjada
a partir de princípios metafísicos diversos, distintos e “epocais”, e a verdadei-
ra constituição das coisas e de suas relações fora da mente que representa. O
problema que se avista é o da impossibilidade da formulação de juízos que não
sejam representacionais-condicionados para o conhecimento humano, so-
bretudo aqueles juízos forjados sobre fenômenos complexos como ambientes
culturais e relações sociais ou políticas. A própria epistemologia das ciências
humanas teve que considerar esse tema e, efetivamente, não sabemos se o pro-
blema foi solucionado. Uma das dificuldades epistemológicas que determinam
o problema foi apontada por Hegel quando criticou o status da razão como ju-
íza de si mesma referindo-se à crítica kantiana, o que, talvez, seja um impasse
epistemológico insolúvel. A investigação de Heidegger caminha por esta via.
Seria possível determinar quais as categorias metafísicas que fundamentaram
a visão de mundo característica de cada fase do conhecimento humano; an-
tigo, medieval, moderno, contemporâneo? Em outras palavras, seria possível
definir o que Foucault denominou como uma “episteme” particular de cada
época? A partir de uma resposta positiva, a reflexão deve indicar quais seriam
as implicações dessas concepções metafísicas fundamentais para o problema
da interpretação. Nesse sentido, temos uma hermenêutica das interpretações
características das diversas “imagens de mundo”. Para Heidegger, sobretudo
123
em “A questão da técnica”, o problema epistemológico é muito menor que o
problema gerado pela efetivação técnica e tecnológica desta “apropriação” do
real gerado por esta visão de mundo, que, por sua vez, é proporcionada e pro-
vocada pela “imagem de mundo”, característico da ciência moderna, que vê a
natureza como algo a ser dominado pelo homem através da razão.
A perspectiva estética
124
Segundo Platão, a imagem, quando é instrumento e objeto da arte, é capaz
não somente de atingir-nos fisicamente, mas também de mover-nos. Sob seu
encanto somos incapazes de discernir ciência e ignorância, realidade e ficção,
verdade e aparência. Na medida em que somos demasiado sensíveis às formas
e às cores, às fábulas e às modulações da luz, as imagens têm o poder de redu-
zir-nos a uma posição de total passividade. Ora, sabemos que é na passividade
do espectador que reside o perigo do jogo da arte enquanto ilusão, engano,
encantamento e alienação.
A metafísica da subjetividade
125
Quando hoje usamos a palavra ciência, ela quer dizer algo que se
diferencia essencialmente da doutrina e da scientia da Idade Mé-
dia, mas também da episteme grega. A ciência grega nunca foi exa-
ta, e isso porque, segundo a sua essência, não podia ser exata e não
precisava de ser exata. Daí que não tenha qualquer sentido opinar
que a ciência moderna é mais exata que a da antiguidade. Assim,
também não se pode dizer que a doutrina de Galileu da queda livre
dos corpos é verdadeira, e que a de Aristóteles, que ensina que os
corpos leves tendem para cima, é falsa; pois a concepção grega da
essência do corpo, do sítio e da relação de ambos assenta numa
outra interpretação do ente e condiciona, por isso, um modo corre-
lativamente diferente de ver e de questionar os processos naturais.
Ninguém afirmaria que a poesia de Shakespeare é mais evoluída
que a de Ésquilo. (Heidegger, 2002, P. 99).
126
impõe ao próprio ente como praticamente única forma de conceber as coisas
do mundo. O modo privilegiado de ver o mundo, proporcionado pela ciência
moderna é, também, um modo de dominação do ente pelo homem e a técnica
tem papel central na efetivação desta apropriação. Passamos de uma repre-
sentação para uma apropriação, de um movimento de concepção para um ato
de apropriação instrumentalizado. A virtude matemática da ciência moderna
permite a exatidão da apropriação. Certeza e precisão infinitesimais perfazem
a operação cirúrgica da ciência sobre a forma natural do ente. Neste sentido a
matemática passa a ser um elemento do pensamento cotidiano sobre o mundo
natural, esse pode ser apenas um exemplo do modo como a metafísica da ciên-
cia se apropriou de nossas consciências. Assim, Heidegger destaca a função da
matemática em relação à concepção científica moderna.
127
o filósofo, com esse processo, se transforma em objeto de uma vivência. A arte
passa a equivaler a uma expressão da vida humana. Uma quarta manifestação
moderna se anuncia no modo como a ação humana passa a ser concebida e
consumida como cultura. Assim, a cultura seria a realização dos valores supe-
riores através do cultivo dos dons supremos do homem. “Trata-se, na essência
da cultura tomada como tal cultivo, de cultivar a si mesma expressamente e de
se tornar, assim, uma política da cultura’’ (Heidegger, 2002, p. 98).
O homem passa a ser o responsável pela verdade, pela verdadeira repre-
sentação do mundo e pelo mundo da cultura e de seu cultivo. Sob este ideá-
rio de responsabilidades intelectuais se forma o homem de letras, o homem
de ciência e o homem político nos séculos XIX e XX. Afinal, a política seria,
também, responsável pelo cultivo da cultura enquanto tradição. Nota-se, as-
sim, o elo entre mundo da cultura, mundo da ciência e mundo da técnica no
horizonte da idade moderna. O mundo como representação e a relação entre
sujeito e objeto estão na base da concepção do mundo da cultura, da ciência e
da técnica. O sujeito do conhecimento nessa concepção é o ente de atividade
exploratória, transformadora, da técnica dominadora. O homem domina a na-
tureza, a humanidade domina e manipula o ser.
128
conceito de “desencantamento do mundo” (Weber), foi possível a dominação
técnico- científica sem que um imperativo normativo de proibição absoluta
se impusesse no caminho entre o homem e a mobilização total (Die Totale
Mobilmachung). Ernst Junger indica em seu ensaio a relação entre o domínio
da técnica no mundo do trabalho e de sua direta relação com o mundo das
guerras modernas.
129
tão?’, dizia um. ‘Ter-se-ia extraviado, como uma criança?’, dizia
outro. ‘Ou se mantém oculto? Tem ele medo de nós? Embarcou
no navio? Emigrou?’ — desse modo gritavam e riam entre si. O
homem louco saltou em meio a eles e trespassou-os com o olhar.
‘Para onde foi Deus?’, clamou ele, ‘eu vos quero dízê-lo! Nós o ma-
tamos, vós e eu! Nós todos somos seus assassinos? Como, porém,
fizemos isso? Como pudemos tragar o oceano? Quem nos deu a
esponja para remover o horizonte inteiro? Que fizemos nós quan-
do desprendemos esta Terra de seu sol? Para onde se move ela, en-
tão? Para onde nos movemos nós? Longe de todos os sóis? Não nos
precipitamos sem cessar? E para trás, para o lado, para frente, de
todos os lados? Há ainda um alto e um baixo? Não erramos como
através de um nada infinito? Não nos bafeja o espaço vazio? Não
ficou mais frio? (Nietzsche, 2001, p. 147-148).
130
investigação. Para Heidegger, a essência daquilo a que hoje se chama ciência
é a investigação. Em que consiste a essência da investigação? Antes de tudo
em se preparar para o novo dado, para a mutabilidade do ser. Daí, observa
Heidegger, que o avançar tenha de ter livre o olhar para a mutabilidade da-
quilo que se encontra. Só no campo de visão do sempre-outro da mudança se
mostra a plenitude do particular, dos factos. Esta particularidade da investi-
gação científica não pode pensar mais o mundo como uma essência imutável,
constante e eterna. A desconfiguração de tal “imagem de mundo” se dá ne-
cessariamente pelo próprio método e por sua nova concepção metafísica. Mas
quais seriam os perigos dessa nova concepção e a quais condições as quais
ela nos levou, uma vez que já decorrem pelo menos dois séculos dessa apro-
priação de conhecimento e de dominação técnica sobre a natureza e a vida
em geral. Uma delas tem especial interesse no que diz respeito ao chamado
mundo da cultura.
Na cultura, esse processo de estabelecimento da hegemonia da modalida-
de científica do conhecimento produziu um “domínio ideológico”, no senti-
do mais restrito desta expressão marcada pela polissemia. Teria ocorrido um
domínio da explanação científica sobre outras manifestações interpretativas
da vida humana e do mundo. O resultado dessa hegemonia levou a uma pre-
ponderância do tipo de saber exclusivamente metodológico-sistemático sobre
qualquer outro tipo de saber. Por força dessa prioridade em relação aos pro-
blemas epistemológicos a própria filosofia passa a dar mais ênfase às questões
relativas ao modo, forma e possibilidade do conhecimento do homem moder-
no. O mundo da vida (Lebenswelt), no entanto, se caracterizaria por uma forte
guinada tecnológica mudando a própria forma de produção da arte e da cul-
tura. O problema que se impõe neste contexto é que essa forma de apropriação
dos entes se justifica por si própria, pois é a forma com que os sistemas polí-
ticos, científico-tecnológicos e até culturais se colocam à serviço do homem
moderno. Sua imposição é sua própria legitimação. A tecnologia por si mesma
se impõe como uma necessidade para as várias áreas da cultura, para a arte,
por exemplo. E os exemplos podem ser vários e de muitos tipos: o modo de
produção dos bens é técnico, inclusive dos bens culturais, e a forma de organi-
zação social é burocrática, portanto matemática e científica. A própria noção
de ascensão é dada pela possibilidade de acúmulo de objetos e de recursos
tecnologicamente valorizados em relações de troca. O que é objeto de troca
é, antes, fruto da técnica. A noção de valor se apega à técnica como nenhuma
outra característica dos entes. Neste sentido o que é tecnológico, por si só, tem
131
mais valor no mundo das trocas. Paralelamente, o próprio mundo acadêmico
se vê atingido por essa tendência científico-técnica no sentido de uma empresa
que objetiva uma finalidade de pesquisa. O investigador substitui o erudito e
a ideologia da produtividade científica se difunde. O que nos parece uma dis-
cussão mais ligada aos rumos da universidade e da atividade docente no século
XXI é analisada por Heidegger já em seu texto de 1950.
132
parte de uma imagem do mundo e se molda, não esqueçamos, a um querer (sub-
jetividade) sobre o mundo. Assim, uma ideologia seria como um processo de
produção de ideias, crenças e valores baseados em uma intencionalidade não
explícita. Essas ideias e crenças sempre são objeto de síntese nas imagens que
compõem a cultura. Torna-se corrente e amplamente conhecida a ideia de que
uma imagem aparentemente banal, como uma imagem publicitária, carrega em
si os elementos de uma visão de mundo específica. Nesse sentido, se a história da
cultura se pauta pela elaboração consciente e inconsciente de imagens-síntese de
visões de mundo, analogamente, a história dos ideais humanos seria uma histó-
ria de seus efeitos sobre a subjetividade. Neste sentido, a falsa-consciência, isto
é, a visão equivocada do que o mundo efetivamente é, ocorre, cotidianamente,
muito mais no universo imagético do que no horizonte discursivo. A metafísica
do mundo como uma imagem, portanto, tem várias facetas, nem todas recon-
fortantes para os destinos do conhecimento.
O que Heidegger pretende com o projeto fenomenológico, entre outras
coisas, é tentar escapar destas maneiras de conhecer o mundo que são pré-
determinadas pela forma de apropriação que o homem moderno se impôs.
Adotando uma ideia original de Edmund Husserl, Heidegger aponta para uma
crise na cultura europeia causada pela visão ortodoxa da ciência como discur-
so privilegiado de apropriação do ser do mundo.
133
Heidegger aponta para a perda de uma relação autêntica com o ser pro-
vocada pelos rumos que tomaram a própria filosofia, o caminho epistemo-
lógico, a ciência em sua guinada tecnicista e finalmente a cultura em sua ver-
tente humanista. A acusação de Heidegger é contra as bases mesmas do que
denominamos civilização ocidental e não apenas contra o que aparece como
fenômeno desta cultura e visão de mundo. Mais especificamente, Heidegger
aponta para o aspecto que a sustenta enquanto fundo metafísico. Assim como
Husserl separou o mundo da vida (Lebenswelt), “o mundo da experiência pré-
dado imediatamente antes de toda operação lógica” (Husserl, 1970) do mundo
da ciência propondo novas possibilidades de interpretação do real, Heidegger
aponta para a via única (cientificista, técnica) que tomou a cultura do ocidente
como uma via de riscos ao próprio homem.
Toda esta crítica pode resultar na, também perigosa, tecnofobia e, de fato,
certas correntes refratárias ao desenvolvimento tecnológico se inspiram, em
certa medida, em concepções negativistas com relação ao desenvolvimento
da técnica e dos rumos éticos da manipulação da natureza. Esta discussão dá
origem a uma das mais novas e promissoras áreas da filosofia, a saber a filo-
sofia da tecnologia, que conta em suas fileiras com autores da importância
de Heidegger, Marcuse e Feenberg. Os desdobramentos dessa discussão, no
entanto, fogem ao escopo deste trabalho.
No que diz respeito à cultura como instância de produção de significados
para o mundo e de sua relação com a técnica no século XX o problema já foi
tratado na obra de Walter Benjamin “A obra de Arte na época de sua repro-
dutibilidade técnica”. Benjamin não somente aponta para os dilemas estéticos
da segunda metade do século XX, e consequentemente dos séculos vindou-
ros, como é bastante feliz na síntese de seu título aliando os dois problemas
centrais da cultura atual “Técnica” e “Arte”. A arte no nosso século é, antes
de tudo, técnica para a imagem. Nesse sentido, o reconhecimento se dá pela
representação. Em outras palavras, ocorre com a cultura atual um fenômeno
de reconhecimento de referências imagéticas que tomam o lugar do reconhe-
cimento conceitual, ou discursivo, característico da cultura dos séculos ante-
riores. A cultura pop é o exemplo máximo dessa nova modalidade de “saber”.
Boa parte do que se considera a fruição estética na cultura contemporânea está
baseada no reconhecimento de imagens da própria cultura pop. Assim a cul-
tura contemporânea cria um círculo de reconhecimento e satisfação que pro-
voca reconhecimento, desta vez intelectual e social e, consequentemente, uma
impressão de prazer “estético”. Acrescente-se neste movimento de consumo
134
um volume “excessivo” (massivo) de produções e uma nova valorização (reva-
lorização) do tempo para o consumo da arte. Boa parte da cultura da imagem
pós-moderna é desenvolvida pela fruição imagética acelerada. A sobreposição
à era moderna se dá pela imposição da imagem ao mundo das letras.
Para termos uma visão mais acurada desse “estado estético contemporâ-
neo” o próprio termo pós-moderno não é mais suficiente. Gilles Lipovetsky,
na tentativa de superar a insuficiência deste termo cunhou o termo
“Hipermodernidade”. Na tentativa de reinterpretar fenômenos culturais de
nosso tempo Lipovetsky aponta para um aspecto essencial. Para o filósofo “a
Hipermodernidade seria caracterizada por uma cultura do excesso. As coisas
se tornam urgentes e sua reposição é necessária e inevitável, sejam elas produ-
tos materiais ou culturais. O tempo de fruição da arte se acelera e perde conte-
údo. ( Lipovetsky, 2004). A informação supera a formação. Esse movimento de
aceleração da cultura não considera a vagareza da subjetividade em interpretar
e assimilar os conceitos. Nesse sentido, ocorre uma esquizofrenia cultural. O
efêmero faz parte da formação mais do que o duradouro, o entretenimento
vale mais do que o clássico. Há, de fato, uma integração, mas essa integração
da cultura se dá necessariamente através de regras do mercado. Vemos o sur-
gimento do capitalismo cultural e da mercantilização da cultura.
135
arte. A arte conceitual, características de movimentos como o dadaísmo, por
exemplo, nega a funcionalidade estritamente ligada ao ideal de beleza. Roger
Scruton, na obra “Beauty” critica essa tendência. Segundo Scruton, “o repúdio
à beleza é alimentado por uma visão particular de arte moderna e de sua his-
tória. A obra de arte justifica-se a si mesma ao anunciar-se como um visitante
do futuro. O valor da arte é o valor do choque” (Scruton, 2015, p. 179). Ora,
essa fuga do ideal de beleza, além de questionar mesmo que legitimamente um
establishment cultural, abre as portas para o vale tudo no universo da arte e
essa suposta falta de critérios é muito mais passível de aceitação na cultura da
imagem do que propriamente na cultura letrada, isto é, na argumentação dis-
cursiva. A banalização da imagem enquanto obra de arte fica mais exposta aos
fatores de massificação e consumo, pois a figura do artista, antes exclusivista e
rara se alastra e se intensifica em sua decadência. Segundo Scruton, as aberra-
ções no campo da arte contemporânea chegam a abalar o próprio conceito de
arte na medida em que um objeto passa a ser considerado arte simplesmente
porque o autor a nomeia como arte.
Experimento fenomenológico
136
que esse ato, essa experiência fenomenológica, pode nos mostrar, em primeiro
lugar, é que o que fala por nós ao descrevermos essa paisagem é a linguagem e
não nossa experiência mesma, pois já estamos condicionados a interpretar as
coisas como nossa linguagem determina. Ora, com a cultura e, sobretudo com
a cultura das imagens, isto se dá como o modo corrente, por não dizer “corre-
to”, de interpretar essas imagens. Ocorre, então, o modelo condicionante. Uma
imagem que é veiculada com forte sentido interpretativo em redes sociais, na
televisão e no cinema, por exemplo, se torna a maneira correta de interpretar
tal imagem. Ocorre, assim, uma descaracterização e anulação da experiên-
cia originária da apreciação dessa imagem. Sob esse monopólio interpretativo
(político) se dá a cultura de nosso tempo. Voltemos à Heidegger.
Se utilizarmos o método fenomenológico proposto por Husserl e Heidegger
podemos, em certo sentido, ter a experiência modelo de suspenção da inter-
pretação vigente (linguística, cultural, condicionante). No caso mais simples
da contemplação das coisas, por exemplo, temos o que a ciência nos diz a res-
peito da visão, isto é, que ela é um fenômeno que depende da luz. A luz incide
sobre as coisas e, por sua natureza ondulatória, chega à nossa retina, só assim
vemos as coisas. Se penso que ver é um fenômeno baseado na propagação de
ondas estou interpretando o fenômeno pela linguagem científica. Portanto,
estou interpretando a partir de uma concepção relacional sujeito-objeto a mi-
nha experiência. Se eu consigo entender o fenômeno da linguagem atuando
por detrás desse processo cognitivo eu compreendo que essa experiência não é
uma experiência originária. A rigor, essa experiência está baseada na concep-
ção sujeito-objeto-representação, característica de uma visão de mundo e de
uma imagem de mundo determinada pela metafísica moderna.
Considerações finais
137
interpretativa aceita pelos meios cultos, sobretudo entre os consumidores di-
tos letrados. Toda a cultura média é acolhida em um ambiente politicamente
pré- determinado por ideais de igualdade, reciprocidade, reconhecimento e
valores, capazes de conferir aos consumidores seu status de semi-formação
(Halbbildung). A partir desse contexto, conclui-se, tanto por influência do mé-
todo fenomenológico, apontado em linhas gerais aqui, como pelas difundidas
interpretações da “teoria crítica” que a imagem, enquanto objeto da cultura se
ressente cada vez mais de autonomia. A experiência de interpretar uma ima-
gem se vê, a cada dia, mais distante de uma autenticidade originária. O que
vemos no nosso cotidiano de consumo cultural já possui a marca da inter-
pretação heterônoma e não mais se caracteriza como a imagem originária. Se
adotarmos uma fórmula muito cara a Theodor Adorno para a interpretação
da cultura atual, o ato de ver uma imagem, em muitos casos significa, hoje,
aceitar uma tutela interpretativa. Nesse sentido, a distinção que é apontada
por Heidegger em Holzwege (A época de imagem de mundo) segundo a qual
a concepção de mundo característica dos chamados “Tempos Modernos” se
configura como algo bastante distinto das concepções ditas antigas pelo modo
como o próprio mundo é representado pela mente humana em diversas etapas
de desenvolvimento da própria metafísica, pode ser retomada a partir da con-
sideração de uma nova “metafísica” interpretativa na idade contemporânea.
Os pontos de vista característicos do rebanho (F. Nietzsche), do espetáculo
(G. Debord), do entretenimento (T. Adorno) e da moda (G. Lipovetsky), deter-
minam o prazer e a decadência (R. Scruton) do culto e da cultura da imagem
atual. Isenta de prerrogativa da beleza a imagem se dilui em um mercado de
referências e repetições.
A acusação de Adorno aponta não somente para o perigo da massifica-
ção heterônoma direta através dos meios de comunicação, mas também para
o ideal de formação passiva e consensual e para o “filisteísmo cultural” dos
formadores de opinião. Este tipo cultural foi caricatamente apresentado por
Nietzsche na figura do “último homem”. Esse animal de rebanho que se au-
to-interpreta como o fim último da história, como o telos (finalidade) mani-
festado da história do mundo. Sua segurança seria assegurada pelo reinado
universal da razão seja em uma sociedade sem classes seja em uma sociedade
de mercado, de onde se poderia, por fim, fazer desaparecer toda desigualdade,
injustiça e sofrimento.
Nietzsche nos lembra que há uma tendência muito forte no sentido de que,
fisiologicamente, esse homem seja um decadente. Esse “último homem” é, na
138
verdade, uma construção de um ser impotente para suportar o sofrimento,
pois sua imagem e ideal foram erigidas sob o signo do prazer e da distração.
A banalidade dos prazeres e o ideal de consenso e conforto constituem seu
supremo ideal de felicidade. Nesse contexto a imagem midiática tem um pa-
pel primordial. É a imagem que impõe e reproduz esse ideal de humanidade,
seus instrumentos são a educação, a publicidade e o consenso democrático
mediado pela opinião pública e as imagens de bem-estar e sucesso caracte-
rísticos dos produtos culturais. O homem não se torna mais somente igual,
mas passa para o nível do idêntico. Gilles Deleuze em Diferença e Repetição
aponta como problema central do pensamento moderno esse homem de cons-
ciência idêntica. Ele teria nascido da falência da representação, assim como
da perda das identidades e das descobertas de todas as forças que agem sob a
representação do idêntico. O mundo moderno seria o mundo dos simulacros.
(Deleuze, 1988). Baudrillard também denuncia a simulação característica da
imagem como simulacro.
139
Nós inventamos a felicidade” – dizem os últimos homens, e piscam o olho.
Eles deixaram as regiões onde era duro viver: pois necessita-se de calor. Cada
qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega: pois necessita-se de calor. Adoecer e
desconfiar é visto como pecado por eles: anda-se com toda a atenção. Um tolo,
quem ainda tropeça em pedras ou homens! Um pouco de veneno de quando
em quando: isso gera sonhos agradáveis. E muito veneno, por fim, para um
agradável morrer. Ainda se trabalha, pois trabalho é distração. Mas cuida-se
para que a distração não canse. Ninguém mais se torna rico ou pobre: ambas
as coisas são árduas. Quem deseja ainda governar? Quem deseja ainda obede-
cer? Ambas as coisas são árduas. Nenhum pastor e um só rebanho! Cada um
quer o mesmo, cada um é igual: quem sente de outro modo vai voluntaria-
mente para o hospício. “Outrora o mundo inteiro era doido” – dizem os mais
refinados, e piscam o olho. São inteligentes e sabem tudo o que ocorreu: então
sua zombaria não tem fim. Ainda brigam, mas logo se reconciliam – de outro
modo, estraga-se o estômago. Têm seu pequeno prazer do dia e seu pequeno
prazer da noite: mas respeitam a saúde. “Nós inventamos a felicidade” – dizem
os últimos homens, e piscam o olho. (Nietzsche, 2011, p. 18)
Referências
_______. The question concerning technology. New York: Harper, 1977. HUSSERL, E.
Expérience et jugement. Trad. de D. Souche. Paris, PUF, 1970.
140
Transcendental, São Paulo Ed. Forense Universitária, 2012.
JUNGER, Ernst. A mobilização total. Nat. hum., São Paulo, v. 4, n. 1, jun. 2002.
_______. Assim Falou Zaratustra, São Paulo Cia das Letras, 2011. PELLEJERO, E. A
postulação da realidade. Revista Saberes, Natal, v.1, n4, junho 2010.
141
GÊNERO E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NOS
CONTEÚDOS DE SOCIOLOGIA PARA O
ENSINO MÉDIO: REFLEXÕES SOBRE AS
QUESTÕES DE GÊNERO NO CADERNO DE
SOCIOLOGIA DA SEE/SP
Natália Cristina Sganzella de Araujo
O presente capítulo tem por objetivo refletir sobre o modo como as ques-
tões de gênero, violência de gênero e feminismos são abordadas no Caderno de
Sociologia do Aluno e do Professor, oferecido pela Rede Estadual de Educação
de São Paulo. Essa temática surgiu da necessidade de repensar sobre as mar-
cas da diferença no cotidiano escolar entre adolescentes quanto as relações de
gênero e sexualidade e a importância da presença desses conteúdos didáticos
com caráter educativo e necessário para a construção da cidadania e enfrenta-
mento das formas de violência e desigualdade social.
O espaço escolar aparece como um lugar de produção e reprodução de
práticas sociais, logo é um meio para construção da cidadania, mas também se
mostra como reprodutor de práticas de violência e exclusão social. Se por um
lado é possível construir um caminho de diálogo que busque o respeito as dife-
renças, a proposição e combate às desigualdades e violências contra mulheres e
outras ‘minorias’, percebemos que a estrutura como se organiza o currículo, a
formação docente, as práticas pedagógicas e outras experiências silenciam cer-
tos grupos e criam redutos para a discussão do tema que deveria ser tratado de
forma interdisciplinar para alcançar os resultados esperados para o confronto
das formas de exclusão no espaço escolar.
Para analisar o currículo escolar, tomo de empréstimo a proposta de Joan
Scott (1995), que apresenta a realidade social a partir do conjunto de relações
sociais em que o masculino e o feminino são delimitados no âmbito da cul-
tura e da história. As marcas dessas posições sociais são sempre diferentes de
142
uma cultura para outra; essas marcas se transformam, são provisórias, como
afirma Scott,
143
educacional, como um serviço essencial no Brasil, mostra-nos que a escola
pode ser lida como um lugar de reprodução das normas sociais, mas também
como lugar de produção de resistência. A inserção dos temas das relações de
gênero e da sexualidade veio se ampliando ao longo dos anos no campo das
políticas públicas na área de educação, em grande medida pela intervenção dos
movimentos sociais que pressionaram o Estado para que seus direitos sociais
fossem respeitados e garantidos, como exemplo, medidas de contenção de vio-
lência contra mulheres, negros, homossexuais, entre outros.
Segundo Vianna (2012), o Brasil foi um dos governos signatários da
“Declaração de Juntem”, elaborada na referida conferência e ratificada na
Cúpula Mundial Educação para Todos, em Dakar (Senegal) que sinalizava
como meta a ser alcançada a igualdade de gênero e ao empoderamento das
mulheres, bem como as medidas indispensáveis para a melhoria das condições
de vida propostas Organização das Nações Unidas (ONU). Dentre outros vá-
rios documentos que comprometiam o governo brasileiro a reduzir os índices
de violência e discriminação contra a mulher.
Sob forte influência dos acordos internacionais, o governo Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002),
144
Direitos Humanos (SEDH), a Secretaria Especial de Política para Mulheres
(SPM), a Secretaria Especial da Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a
Secretaria Nacional da Juventude (SNJ). A mudança nas políticas públicas so-
bre enfrentamento a violências contra as mulheres e a homofobia caminharam
durante esse governo.
Ainda durante a gestão desse governo houve a introdução das discipli-
nas de Sociologia e Filosofia como componentes curriculares obrigatórios pela
Lei nº 11.684/08, no qual a Secretaria de Educação de São Paulo lançou uma
proposta curricular de Sociologia, segundo Schrijnemaekers e Pimenta (2011)
o processo de elaboração da Proposta Curricular de Sociologia para a Rede
Estadual de Educação de São Paulo, o projeto foi lançado com o título “São
Paulo faz escola”. As autoras destacam que a Sociologia teve sua importância
evidenciada com a Lei nº 9394/96, Lei da Educação, que associava a existência
das disciplinas de Filosofia e Sociologia como conteúdos necessários a forma-
ção do jovem como membro participativo de sua comunidade.
A adoção da disciplina de Sociologia não estava expressa enquanto obriga-
tória, foi apenas com a Lei n.º 11.684/08, que a disciplina passou a se integrar a
grade curricular. Ainda de acordo com as autoras, os conteúdos dos cadernos
tiveram de ser elaborados para o ano seguinte, quando da inserção na Rede
Estadual Paulista da disciplina de Sociologia.
Os cadernos seguiram a proposta oferecida pela Sociedade Brasileira de
Sociologia (SBS). Nesses cadernos ficou decidido que o fundamental a se de-
senvolver seria
145
a diversidade dos jovens, que são encontrados na Rede Pública Estadual e os
cenários aos quais estão expostos. Havia ainda o desafio da ausência de produ-
ção de pesquisas e materiais para a escola secundária, sem contar a preocupa-
ção com aqueles profissionais que ocupavam as vagas de ensino de Sociologia e
não possuem formação aprofundada para lidar com os temas abordados.
Esses cadernos contemplavam vários eixos sobre a situação da população
brasileira, entre elas estava questões de gênero. A proposta curricular pre-
sente nos cadernos de Sociologia estruturou-se nos Parâmetros Curriculares
Nacionais – Temas Transversais sobre Orientação Sexual que definem a sexu-
alidade e as relações de gênero como elementos de significados culturais e que
caberiam dessa forma em uma visão sociológica. Os cadernos estão estrutura-
dos em quatros eixos para discorrer sobre as questões de gênero e sexualidade:
Na primeira série do Ensino Médio, volume a discussão sobre gênero apa-
rece contextualizada na temática “O que nos desiguala como humanos? ”, em
meio a discussão sobre classe, etnia e gênero como elementos que constroem
a desigualdade social. Nessa etapa, o gênero fica definido como construção
social que se desdobra a partir do sexo
146
designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual
os próprios sexos são estabelecidos.
147
que negligencia outras formas de agressão ligadas ao imaginário do feminino,
como a violência contra homossexuais e aos transgêneros que não aparecem
contemplada em momento algum ao longo das propostas de aprendizagem.
Podemos notar que a masculinidade é pensada como um elemento em si, iden-
titário do qual derivou o feminino como inferiorizado e complementar a ideia
dominante.
Há que se notar também que os temas diferença de gênero, violência de
doméstica, violência sexual encontram-se como assuntos finais do conteúdo a
serem trabalhados com os alunos, o que inúmeras vezes ocasiona o abandono
desses conteúdos em virtude da diminuição substantiva dos alunos pela pro-
ximidade do recesso escolar.
No 3º ano de Ensino Médio, a situação de aprendizagem ganha contornos
políticos, pois versa sobre a participação política no interior dos movimentos
sociais e a correção a situações desiguais dentro do processo democrático. No
volume 1, há a discussão sobre os movimentos feminista e LGBT. A proposta
dessa situação de aprendizagem aparece como uma das mais completas ex-
pressões sobre gênero ao longo dos Cadernos de Sociologia, contudo esbarra
na questão do tempo como um elemento restritivo, visto que não permite que
se amplie a temática, retirando-a do campo da superficialidade e possibilitan-
do as pontes com os temas anteriores. O movimento LGBT é enunciado como
um movimento contemporâneo, sem ao menos ser nomeado nas competências
a serem desenvolvidas pelo aluno de Ensino Médio, de modo contínuo a ques-
tão da sexualidade também é elemento oculto durante todo o conteúdo pro-
gramático de Sociologia. A ausência de problematização da sexualidade como
um elemento de diferenciação e desigualdade ou mesmo como um gatilho de
violência contra sexualidades dissidentes mostra-nos que o engendramento da
matriz heterossexual como algo “naturalizado” e que não se apresenta como
conteúdo de reflexão no ensino médio.
A análise dos conceitos de gênero no material didático em Sociologia ofe-
recido pela Rede Estadual de São Paulo cria-nos um sentimento ambíguo, pois
traz uma sensação positiva por ofertar uma discussão sistemática de gênero
como um elemento de sensibilização do adolescente para as questões contem-
porâneas de seu tempo, contudo mostra-se ainda limitada ao fundamentar a
construção de gênero como um elemento de estabilização da lógica hetero-
normativa que implica em silenciar e apagar outras formas de identidade de
gênero e ocultar completamente a questão da sexualidade como se estivesse
implícito que a orientação do desejo fosse algo marcadamente “natural”.
148
O movimento LGBT é enunciado como um movimento contemporâneo,
sem ao menos ser nomeado nas competências a serem desenvolvidas pelo alu-
no de Ensino Médio, de modo contínuo a questão da sexualidade também é
elemento oculto durante todo o conteúdo programático de Sociologia. A au-
sência de problematização da sexualidade como um elemento de diferenciação
e desigualdade ou mesmo como um gatilho de violência contra sexualidades
dissidentes mostra-nos que o engendramento da matriz heterossexual como
algo “naturalizado” e que não se apresenta como conteúdo de reflexão no en-
sino médio.
A análise dos conceitos de gênero no material didático em Sociologia ofe-
recido pela Rede Estadual de São Paulo cria-nos um sentimento ambíguo, pois
traz uma sensação positiva por ofertar uma discussão sistemática de gênero
como um elemento de sensibilização do adolescente para as questões contem-
porâneas de seu tempo, contudo mostra-se ainda limitada ao fundamentar a
construção de gênero como um elemento de estabilização da lógica hetero-
normativa que implica em silenciar e apagar outras formas de identidade de
gênero e ocultar completamente a questão da sexualidade como se estivesse
implícito que a orientação do desejo fosse algo marcadamente “natural”.
Além de problematizar a forma como o material cria lacunas e silêncios
frente a temas como a complexidade da diversidade de gênero, então podemos
pensar as fragilidades e receios que também perpassam a prática docente. Ao
se reduzir o conceito de gênero a oposição ao sexo, engessa-se a possibilidade
de compreensão alargada.
Há que se notar também que os temas diferença de gênero, violência de
doméstica, violência sexual encontram-se como assuntos finais do conteúdo a
serem trabalhados com os alunos, o que inúmeras vezes ocasiona o abandono
desses conteúdos em virtude da diminuição substantiva dos alunos pela pro-
ximidade do recesso escolar.
O fracionamento dos temas ao longo dos três anos também desfavorece
um aprofundamento da temática, pois não há tempo hábil para se retomar
conceitualmente, problematizar e trabalhar as questões políticas em um espa-
ço curto de duas aulas semanais na disciplina de Sociologia.
Dessa forma, podemos pensar que o currículo escolar comunica as in-
tenções de quem o ratifica, desse modo pensar sobre a forma nebulosa como
gênero e sexualidade são apresentados nos aproxima de que há uma forma
hegemônica de conduzir as relações no interior da escola, que ocorre quan-
do uma dessas significações se impõe, apresentando-se como única legítima,
149
induzindo os indivíduos a assimilarem-na como condição necessária para sa-
tisfazer as exigências da sociedade. A inculcação e a consequente introjeção
dessas significações são colocadas como requisitos necessários para a ocupa-
ção dos postos de comando da sociedade. Àqueles que não introjetam tais sig-
nificações, resta aceitar as condições que lhes são dadas.
Assim problematiza Miskolci (2014, p. 36):
150
impensáveis. Ao expor as marcas de diferença nas trajetórias escolares viabi-
lizamos a construção de outras subjetividades que são desqualificadas como
possíveis no interior da escola.
Somando-se a isso, torna-se necessário pensar a formação docente que
dialogará com os educandos sobre gênero, identidades de gênero e expressão.
No interior das Universidades, os estudantes de ensino superior encontram a
disciplina de gênero, geralmente, como um componente optativo dentro de
sua grade curricular, quando ofertado por determinado professor engajado
na temática. Suponhamos que o discente não tenha aflorado a sua percep-
ção sobre as relações sociais de gênero. Os projetos de formação continuada
ofertados pelo MEC como o GDE Gênero e Diversidade na Escola esbarram
muitas vezes na ausência de uma formação inicial, impedindo a continuação
em forma de aprofundamento do tema, visto que necessitam introduzir esses
elementos, onde há uma lacuna. Há que se perguntar também o alcance desses
cursos de capacitação e complementação. Não seriam professores já engajados
no tema, em sua maioria que buscam essa formação? Nesse sentido, o docente
discute o conceito de gênero, em parte, pelo estudo do tema conforme dispõe
o material e em partes a partir da sua experiência subjetiva, vivencias e formas
de sentir sobre o tema.
A proposta de Louro (2015) sobre queerizar o currículo escolar é bastante
provocativa, mas também grandiosa, pois a estrutura curricular está assenta-
da sobre padrões prescritivos normatizadores, embora os conteúdos escritos
promovam uma falsa estabilidade democrática, as entrelinhas dos significados
reforçam práticas de silenciamentos. Lutar por uma escola desconstrutiva tor-
na-se um projeto ousado, mas muito frutífero se implantado com sucesso, pois
permitiria uma multiplicidade de existências, que não se sentiriam um “erro”
por compartilharem aquele espaço e se tornaria de fato político e resistente.
Referências
151
DELEUZE, G.; GUATARRI, F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 2. Trad. Ana
Lúcia Oliveira. São Paulo: Editora 34, 1995.
SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade,
Porto Alegre, v.20, n.2, p.1-30, jul./dez. 1995
152
III – Comunicação:
novas imagens e nova cultura
COMUNICAÇÃO PÚBLICA, CIDADANIA
E DEFICIÊNCIA: IMAGENS E
REPRESENTAÇÕES EM REDES SOCIAIS
Danilo Rothberg
Vitória Alves de Sá
Paola Ramos Afonso
Introdução
154
Este capítulo descreve os resultados de dois estudos inter-relacionados
que caracterizaram as representações simbólicas presentes em peças publici-
tárias produzidas e disseminadas por governos que têm, como objeto, direitos
das pessoas com deficiência. O corpus de análise englobou dois conjuntos:
no primeiro, estão 102 peças publicitárias geradas nas três esferas de gover-
no (municipal, estadual e federal) e nos âmbitos dos três Poderes (Executivo,
Legislativo e Judiciário) e disseminadas por meio do Facebook. No segundo,
estão dez vídeos disponíveis no YouTube, cinco dos quais foram produzidos
pela Secretaria Especial dos Direitos da Pessoa com Deficiência do governo
federal para a divulgação do Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com
Deficiência – Plano Viver sem Limite, e os demais cinco pela TV Câmara, da
Câmara dos Deputados.
De forma geral, a amostra analisada pode ter favorecido a percepção da
deficiência como responsabilidade da sociedade, mas é necessário o aprofun-
damento de informações sobre políticas e acesso a direitos.
O percurso do texto se divide em quatro etapas. Em primeiro lugar, teo-
rizações fundamentais são revisadas. Em segundo lugar, a metodologia é de-
lineada. Em terceiro lugar, os resultados são apresentados e comentados. Por
último, considerações sintetizam a contribuição do capítulo à compreensão da
dinâmica da comunicação pública na área.
Teorizações fundamentais
155
ambiente para proporcionar funcionalidade e assim, reduzir ao máximo pos-
sível as limitações impostas por obstáculos das mais diversas ordens, que se
tornavam propriamente o objeto das políticas da área. Colocavam-se com
mais nitidez não só as barreiras físicas concebidas por práticas sociais então
absolutamente indiferentes ao reconhecimento de direitos, mas também os
comportamentos que as sustentavam, sem que a sociedade e o poder público
as assumissem.
As definições apresentadas pela classificação lançada em 2001 introduzi-
ram uma forma diferenciada de pensar e trabalhar com deficiência e incapa-
cidade, que deixam de ser vistas apenas como consequências das condições de
saúde, e passam a ser consideradas como determinadas pelo contexto físico,
social, do ambiente, por diferenças culturais e atitudes em relação à deficiên-
cia. Desse modo, a classificação abandona em parte a função de servir como
instrumento para medir o estado funcional das pessoas, para adquirir o cará-
ter de critério de avaliação das condições de vida, a fim de fornecer subsídios
às políticas de inclusão (Farias; Buchalla, 2005). Além disso, a nova classifica-
ção contribui para o avanço em direção a uma perspectiva contemporânea so-
bre a questão, segundo a qual a deficiência não pode ser considerada como um
problema de um indivíduo. As limitações vividas por uma pessoa são efeito de
uma sociedade não adaptada às suas particularidades. Lidar com tais limita-
ções passa a ser responsabilidade do poder público e torna-se uma questão po-
lítica aberta à resolução por políticas públicas formuladas democraticamente
(Diniz; Barbosa; Santos, 2009).
No Brasil, a Constituição de 1988 e a lei federal 7.853/1989 efetivaram a
obrigação do poder público de tomar medidas para que as pessoas com defici-
ência tenham direitos de educação, saúde, trabalho e previdência social aten-
didos, envolvendo bem estar pessoal, social e econômico. O decreto 7.612/2011
criou o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que inclui,
entre suas diretrizes, assegurar que os equipamentos públicos de educação se-
jam acessíveis e ampliar a participação no mercado de trabalho, as políticas de
assistência social e a qualificação dos serviços de habilitação e reabilitação na
rede pública. A lei 13.146/2015 instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência,
que com 127 artigos passa a abranger esferas como direitos civis e acesso à
informação.
Como a comunicação pública praticada pelos governos brasileiros nas três
instâncias de gestão poderia erguer-se sobre este contexto legal e histórico de
constituição de direitos?
156
A comunicação pública é caracterizada como um processo comunicacio-
nal instaurado em esfera pública que deve englobar Estado, governo e socie-
dade, além de prover um espaço para debate, negociação e tomada de decisões
relativas à vida pública do país. Essa forma de comunicação, enquanto susten-
tada por recursos públicos, não corresponde à defesa de articulações políticas
em disputas pelo poder e nos debates partidários e eleitorais (Matos, 2009a;
2009b; 2011; Haswani, 2011). Também não deve ser confundida com comuni-
cação governamental. Esta é regida por “normas, princípios e rotinas da comu-
nicação social do governo, explicitadas ou não em suportes legais que visem
regulamentar as comunicações internas e externas do serviço público”; já a co-
municação pública envolve “o processo de interlocução que dá origem a uma
esfera pública de diálogo e debate entre Estado, governo e sociedade, na qual
temas de interesses plurais são discutidos e negociados” (Matos, 2009a, p.104).
A comunicação pública assume como responsabilidade do poder público
a organização do fluxo informativo e comunicativo para sustentar a cidadania
informada, e não se confunde com marketing político; ao invés, integra es-
tratégias de construção da agenda pública, impulsionando a sociedade para o
engajamento nas ações promovidas nos campos político, social e econômico,
de forma a provocar o debate público (Brandão, 2009; Monteiro, 2009).
O centro da comunicação pública é a informação de interesse geral para a
construção de cidadania, e não a divulgação institucional. Desse modo, a co-
municação desenvolvida pelos governos em suas três esferas de gestão, para ser
considerada pública, deve ter como finalidade a ativação do sentimento cívico
por meio da disseminação de informações sobre políticas públicas que faci-
litem a criação e a circulação de capital social, qualidade que gera e é gerada
por relações sociais de cooperação e articulação para a defesa do bem coletivo
(Baquero; Baquero, 2011).
Comunicação pública é um recurso de gestão a ser empregado pelos go-
vernos em busca do reconhecimento dos diversos atores sociais, por meio de
estratégias para a obtenção de visibilidade pública e prestação de contas de
projetos políticos em formatos de divulgação informativos e publicitários: “a
configuração contemporânea da comunicação pública de Estado (...) possui
o potencial para a propaganda ir além do institucional e sim ser associada à
informação” (Weber, 2011, p. 105).
Torna-se necessário a uma gestão transparente qualificar meios, canais e
recursos que viabilizem a comunicação de interesse público. Uma comunica-
ção pública de qualidade implica diversificar e coordenar ferramentas, adaptar
157
mensagens aos interesses dos diversos públicos, estimular a interlocução e va-
lorizar os aspectos didáticos (Duarte, 2011), incluindo estratégias de visibili-
dade, busca de credibilidade e propaganda (Weber, 2011). A visibilidade opera
por vias que incluem a criação de um acervo de informações para facilitar a
geração de memória sobre programas e projetos políticos; a credibilidade é
buscada por esclarecimentos que sustentem a legitimação de políticas públi-
cas; a propaganda deve ser usada como recurso permanente com a “ininter-
rupta difusão de dados, informações, programas, ações, discursos e eventos”
(Weber, 2011, p. 114).
Proporcionar transparência é dever dos Estados democráticos, o que exige
uma rotina de publicização de políticas públicas, seus antecedentes, resulta-
dos, critérios de eficiência, eficácia e efetividade etc. A publicidade é um com-
promisso ético que todo governo deve ter (Silva, 2009). Um governo empenha-
do na dinamização de sua comunicação pública é um governo que reconhece
o direito à informação.
A Constituição brasileira assegura o direito à informação. Segundo o ar-
tigo 5°, inciso XXII: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos infor-
mações de seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral que serão
prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade (...)”.
A lei federal 12.527/2011 regulamenta o direito de receber informações de
órgãos públicos. O decreto 7.724/2012 define os meios a serem utilizados para
garantir esse direito e classifica as informações em passíveis ou não de serem
divulgadas em relação a aspectos de segredo e sigilo, além de regular o campo
da transparência ativa, que assegura a disponibilização de informações públi-
cas independentemente da solicitação. Torna-se obrigatória a disponibilização
das informações referentes a programas, projetos, ações, obras e atividades,
metas, indicadores de resultado e impacto.
Como a responsabilidade democrática de publicização de políticas públi-
cas que se encontra inscrita entre os princípios normativos da comunicação
pública tem gerado efeitos práticos quando seu objeto são os direitos da pessoa
com deficiência? Uma forma de buscar respostas a esta questão recorre ao es-
tudo dos signos, ciência que tem como objeto todos os tipos de linguagens, não
somente aquelas circunscritas ao verbal, e os modos pelos quais se constitui
qualquer fenômeno de produção de sentido (Santaella, 2005).
Os estudos do signo são importantes quando o objetivo é conhecer os
aspectos da imagem na publicidade e as maneiras pelas quais ela é capaz de
criar, ativar, recircular e modificar significados e interpretações, sempre em
158
operações de negociação de sentido com o repertório e universo cultural dos
diferentes públicos (Joly, 2003). Um signo só é signo se “exprimir ideias e se
provocar na mente daqueles que o percebem uma atitude interpretativa” (Joly,
2003, p. 29).
Nas ciências humanas, é comum estudar imagens de alguns grupos em
específico. Um exemplo são as campanhas eleitorais, que buscam provocar
associações mentais sistemáticas para caracterizar candidatos e campanhas,
atribuindo a eles qualidades determinadas (Joly, 2003). As complexas associa-
ções daí construídas são estudadas como representações, elemento importante
do processo de compartilhamento de significados, que envolve o uso de lin-
guagens e imagens. Construir, projetar e mobilizar representações consiste em
empregar linguagens em busca de comunicar algo sobre o mundo de forma
que se pretenda significativa para outros (Hall, 1997). Comunicar-se requer
o compartilhamento de um mesmo sistema de representação. Cada indivíduo
não interpreta o mundo de maneira unicamente individual, mas sim precisa
de um sistema compartilhado em alguma medida para poder conferir senti-
do à experiência cotidiana de forma similar àqueles com quem convive (Hall,
1997).
No estudo dos signos, o termo denotação é constantemente equiparado
com o sentido literal de um signo, que tende a ser reconhecido facilmente. Já o
termo conotação é empregado para referir aos sentidos menos fixos, mais con-
vencionais e mutáveis (Hall, 2011). Assim, analisar uma imagem exige decifrar
as significações que pareçam ser naturais. “Naturalidade que, paradoxalmen-
te, é alvo espontâneo da suspeita daqueles que a acham evidente, quando te-
mem ser manipulados pelas imagens” (Joly, 2003, p. 43).
A efetividade da publicidade depende do emprego bem-sucedido de estra-
tégias como o incentivo à transformação pessoal em direção à adoção de com-
portamentos então sugeridos como ideais. As imagens procuram associar seu
objeto, seja ele uma atitude de consumo, crença ou pensamento, com atributos
socialmente desejáveis, recobertos por vantagens simbólicas que figuram dis-
poníveis somente aos convertidos (Kellner, 2001).
Metodologia
159
1) Um total de 102 peças publicitárias geradas nas três esferas de gover-
no (municipal, estadual e federal) e nos âmbitos dos três Poderes (Executivo,
Legislativo e Judiciário), coletadas de agosto de 2015 a agosto de 2016 nas pági-
nas de 21 gestores e órgãos públicos na rede social Facebook:
• Prefeitura de Fortaleza;
• Secretaria Especial dos Direitos da Pessoa com Deficiência;
• Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do
Idoso de Caraguatatuba;
• Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência do
Amazonas;
• Secretaria Municipal de Assistência Social de Castanhal;
• Secretaria Municipal de Assistência Social de Florianópolis;
• Secretaria do Trabalho e do Desenvolvimento Social do Rio Grande
do Sul;
• Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania do Rio Grande
do Sul;
• Secretaria de Direitos Humanos de Pernambuco;
• Superintendência Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência;
• Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência Mobilidade Reduzida
de São Carlos;
• Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e
Cidadania de Santa Fé do Sul;
• Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Mobilidade
Reduzida de Campinas;
• Prefeitura de Uberlândia;
• Senado Federal;
• Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro;
• Ministério do Trabalho e Emprego;
• Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com
Deficiência;
• Ministério do Esporte;
• Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência do
Estado de São Paulo;
• Tribunal Superior Eleitoral de São Paulo.
160
formas, composição, textura, suporte, dimensões, enquadramento, composi-
ção e iluminação), icônicos (processos de conotação dependentes do repertó-
rio dos diferentes públicos) e linguísticos (escolha de palavras e expressões,
sintaxes etc).
A identificação de significados nas peças do primeiro conjunto do corpus
foi obtida por meio da análise dos componentes plásticos, icônicos e linguísti-
cos das peças, procedimento que foi conduzido de maneira a permitir inferên-
cias sobre as representações simbólicas veiculadas.
2) Dez vídeos disponíveis no YouTube, cinco dos quais foram produzi-
dos pela Secretaria Especial dos Direitos da Pessoa com Deficiência do gover-
no federal para a divulgação do Plano Nacional do Direito das Pessoas com
Deficiência – Plano Viver sem Limite, com duração entre 19’’ e 6’37’’, e os
demais cinco pela TV Câmara, da Câmara dos Deputados, com duração entre
51’’ e 1’10’’, em uma série denominada “Convivendo com as diferenças”.
As categorias de análise dos vídeos foram construídas com base em
Barthes (1990), a saber: a) Enigma: identifica a narrativa desenvolvida, assun-
to principal e aspectos abordados, associando-os aos objetivos aparentes da
mensagem e ao contexto legal relacionado; b) Ação: reconstitui todo o vídeo
com descrição detalhada de seu percurso a fim de permitir a visualização de
uma rede de conexões e sentidos; c) Sêmico: busca analisar cada elemento do
vídeo e trazer à tona seus níveis de significação mais profundos, estudando as
conotações atribuídas a cada signo; d) Simbólico: enfoca a combinação dos sig-
nificados depreendidos e busca a compreensão geral do vídeo e a ideia abstrata
que dali emerge; e) Cultural: busca compreender como o contexto histórico
e cultural da recepção pode influenciar o processo de decifrar o significado
geral do vídeo.
Os órgãos e setores públicos estudados foram incluídos no corpus de aná-
lise porque foram identificados, por meio de busca de palavras-chave nas redes
sociais, como fontes de publicização de temas pertinentes aos objetivos da pes-
quisa. Trata-se, assim, de uma amostra não probabilística, composta por meio
de julgamento intencional do pesquisador.
No Apêndice, estão listados os endereços online das 21 páginas do
Facebook de onde foram extraídas as peças do primeiro conjunto do corpus de
análise e dos dez vídeos analisados no segundo conjunto do corpus.
161
Resultados e discussão
162
as políticas públicas que garantem esses benefícios e sobre a historicidade das
datas.
5. A categoria ‘Esportes’ apresenta as ações desenvolvidas pelos governos
em busca de assegurar condições para a prática esportiva pela pessoa com de-
ficiência. Nas peças, a principal forma de representação pictórica foi constru-
ída por meio de fotografias que indicam que, apesar das barreiras físicas, a
pessoa com deficiência tem a possibilidade de praticar esportes. E o setor de
governo anunciante, por reconhecer isso, promove programas para que esse
direito seja assegurado. No entanto, nas peças nota-se a escassez de informa-
ção sobre as políticas públicas que possibilitam o acesso ao esporte pela pessoa
com deficiência.
6. A categoria ‘Acesso aos Direitos Básicos’ possui peças relacionadas com
programas e ações de acesso a direitos em dimensões como educação (cursos
profissionalizantes e adaptação de escolas); vida em sociedade (conselhos de-
liberativos, comunicação em libras, acessibilidade em locais públicos) e mo-
bilidade (rampas, elevadores e gratuidade em tarifas no transporte público).
De forma majoritária, as peças se caracterizam pela escassez de informações,
o que pode prejudicar o acesso a direitos básicos pela pessoa com deficiência.
Diante das definições de comunicação pública na literatura especializada,
pode-se afirmar que, de acordo com os resultados obtidos nas análises das
peças publicitárias veiculadas por governos no Facebook, identifica-se a apli-
cação do conceito de comunicação pública quando o poder público informa
sobre a realização de uma conferência de políticas, o direito da pessoa com
deficiência em trabalhar, estudar, de ter um sistema de saúde adequado a suas
necessidades etc. No entanto, nas peças analisadas, é predominante a escassez
de informações relativas à prestação de contas para a sociedade e o incentivo
para que os indivíduos participem da gestão das políticas da área.
De acordo com as análises, é possível sugerir que a contribuição das re-
presentações simbólicas presentes nas peças analisadas pode ser ampliada
em busca da consolidação das políticas da área. Os componentes plásticos,
icônicos e linguísticos presentes nas peças sustentam a representação de um
indivíduo que, apesar de barreiras físicas, pode ser incluído na sociedade gra-
ças às alegadas ações de setores de governo anunciantes. Mas há espaço para
aprofundamento das informações sobre as políticas públicas que possibilitam
o acesso a direitos.
O aperfeiçoamento das peças publicitárias poderia ser obtido por meio de
processos que incluiriam campanhas que apresentem os direitos do Estatuto
163
da Pessoa com Deficiência (lei federal 13.146/2015); que incentivem o cidadão
a participar das discussões políticas realizadas por meio de conferências; que
apresentem o histórico de luta do indivíduo com deficiência por meio da di-
vulgação de datas comemorativas e apresentem os benefícios da prática espor-
tiva na vida da pessoa com deficiência.
Já os resultados provenientes da análise dos dez vídeos disponíveis no
YouTube produzidos por Secretaria Especial dos Direitos da Pessoa com
Deficiência do governo federal e TV Câmara indicam a presença de dados que
fazem jus ao caráter de comunicação pública das produções, buscando desve-
lar tanto os direitos que envolvem aspectos legais em relação às pessoas com
deficiência, quanto ações simples do dia a dia, por muitas vezes desconhecidas,
e que podem trazer conforto, interação social e qualidade de vida.
Os vídeos são direcionados às pessoas com deficiência ao divulgarem
mensagens que informam sobre seus direitos e incentivam a sua convivência
plena em sociedade através da luta por acessibilidade e maior inclusão, procu-
rando conceder mais autonomia e poder através do empoderamento obtido
pela informação.
Para o público em geral, os vídeos fornecem variadas informações acerca
de como deve ser o tratamento concedido às pessoas com deficiência e buscam
desconstruir preconceitos.
De forma geral, os vídeos analisados parecem buscar a conscientização
para a construção de uma sociedade mais justa, em que as oportunidades
possam ser concedidas a todos de maneira mais democrática. As informações
sobre direitos, de forma geral, também são direcionadas às pessoas sem defi-
ciência, que devem entender e estar cientes dos aspectos legais a fim de ajudar
quem necessite, respeitar e cumprir as leis. Outro ponto importante que pode
ser encontrado nos vídeos de forma geral é a naturalização da deficiência. As
produções parecem buscar, cada qual de uma maneira específica, tornar a de-
ficiência algo natural dentro do ambiente social, buscando inclusão e fim do
preconceito.
Em geral, nota-se o incentivo ao fim do preconceito em relação às pessoas
com deficiência, representando alteridades como maneiras de se existir em um
corpo. Todos os vídeos analisados indicam que as pessoas com deficiência tem
o direito de conviver harmonicamente no meio social, devendo ser percebidas
como qualquer outro indivíduo capaz de desempenhar todo tipo de atividade,
sem experimentar julgamentos prévios que os classifiquem como incapazes
em decorrência de suas deficiências.
164
No entanto, segundo uma possível interpretação de três dos vídeos anali-
sados, o poder público figura como provedor de direitos e benfeitor social. As
imagens ali exibidas, de pessoas com deficiência usufruindo dos programas
de forma feliz, como se ganhassem um benefício, e a ênfase dada ao gover-
no federal como responsável por aqueles programas, associa-se com a visão
predominantemente disseminada pela mídia que, segundo Silva (2006), situa
os deficientes em uma posição de incapacidade, merecedores de compaixão e
caridade por sua condição.
Além disso, uma característica da série ‘Convivendo com as diferenças’
merece atenção por não atender integralmente aos quesitos de uma comuni-
cação pública democrática: os vídeos, ao apresentarem aspectos legislativos
referentes a deficiências determinadas, não oferecem informações adicionais
que tragam dados sobre a legislação pertinente, os efeitos de sua aplicação ou
como a sociedade pode contribuir para seu cumprimento.
Neste sentido, os resultados indicam que os vídeos se caracterizam, em sua
maioria, por atender aos requisitos de uma comunicação pública democrática,
que traz representações adequadas sobre a deficiência, mas também pela es-
cassez de informação. O direito à informação é questão chave na comunicação
pública, e os vídeos, embora disseminem dados essenciais, não aprofundam
o enfoque sobre os meios de acesso aos direitos das pessoas com deficiência.
A revisão de Diniz, Barbosa e Santos (2009) aponta a perspectiva con-
temporânea de considerar a deficiência não como um problema do indivíduo,
de forma que as limitações de uma pessoa são fruto de uma sociedade não
adaptada às suas particularidades. A deficiência, neste modelo, passa da esfera
particular para a esfera pública, tornando-se responsabilidade do Estado e,
portanto, uma questão política a ser resolvida. Sob esta visão, a deficiência
deixa de ser entendida e tratada como doença, que precise ser corrigida para
que as pessoas com deficiência se adaptem às estruturas sociais construídas
para pessoas sem deficiência.
Com esta visão, mudanças importantes foram operadas (Diniz, Barbosa
e Silva, 2009). Uma delas foi a interdição da crença de que o bem-estar deste
grupo dependeria de intervenções médicas. Além disso, amplia-se o espaço de
discussão sobre o assunto, que passa a fazer parte da vida pública com a sua
nova conceituação. As próprias pessoas com deficiência e a sociedade em geral
têm a possibilidade de entender que não se trata de um prejuízo individual,
mas tem a ver com a conquista de uma sociedade mais justa e acessível para
todos.
165
Neste sentido, entende-se que os vídeos, em sua totalidade, baseando-se
no entendimento da perspectiva contemporânea sobre a questão, suas novas
significações para a deficiência e a ampliação das possibilidades do ambiente
em contribuir para a conquista de espaços mais democráticos, buscaram, por
meio da comunicação pública, conscientizar os diversos públicos. As produ-
ções buscaram superar as limitações inscritas em uma visão que acabava por
incentivar preconceito e discriminação.
Considerações finais
Agradecimentos
166
www.acessibilidadeinclusao.com.br/), em que se inserem as pesquisas descri-
tas neste capítulo.
Referências
BARTHES, R. A retórica da imagem. In: (org.) O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1990. p. 27-43.
DINIZ, D.; BARBOSA, L.; SANTOS, W. R. Deficiência, direitos humanos e justiça. Sur.
Revista Internacional de Direitos Humanos, v.6, n.11, p. 65-77, 2009.
167
HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
KELLNER, D.A cultura da mídia: estudos culturais, identidade e política entre o moderno
e o pós-moderno. Bauru, SP: Edusc, 2001.
MATOS, H. Comunicação pública, esfera pública e capital social. In: DUARTE, J (org)
Comunicação pública, estado, mercado, sociedade e interesse público. São Paulo: Atlas,
2009a, p. 47-58.
168
SILVA, L. M. O estranhamento causado pela deficiência: preconceito e experiência.
Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v. 11, n. 33, p. 424-434, 2006.
Referências Eletrônicas
Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência Mobilidade Reduzida de São Carlos: ht-
tps://goo.gl/Wj6MKb
169
Ministério do Trabalho e Emprego: https://goo.gl/4bYZE7
Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo: ht-
tps://goo.gl/12fhbp
170
A ABERTURA DOS JOGOS PARALÍMPICOS
RIO-2016 E A REPRESENTAÇÃO
FOTOGRÁFICA DA ATLETA COM
DEFICIÊNCIA: ALGUMAS REFLEXÕES
Neide Maria Carlos
José Carlos Marques1
Introdução
1 Parte deste artigo deriva de pesquisa desenvolvida pelo autor e intitulada “Entre a vitimização
e a superação: os Jogos Paralímpicos Rio 2016 e a representação de atletas brasileiros na mídia
impressa nacional”, financiada por meio de processo nº 2016/08207-1 pela Fundação de Am-
paro à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
2 Entidades esportivas brasileiras, a partir de orientação do Comitê Paralímpico Internacional,
passaram a adotar o termo “Paralímpico” desde novembro de 2011. Outros órgãos governa-
mentais optaram por manter o uso do termo “Paraolímpico”. Neste artigo, apesar de consi-
derarmos o termo “Paraolímpico” mais afeito à língua portuguesa, daremos preferência ao
emprego de “Paralímpico”, uma vez que se trata do nome oficial do evento e seu uso tem sido
difundido de forma majoritária pelos meios de comunicação nacionais.
171
como questões relacionadas a esses clichês são reafirmados ou descontruídos
através das imagens dessas atletas que em sua maioria não se enquadram em
tais padrões.
Os Jogos Paralímpicos, destinados à competição de pessoas com algum
tipo de deficiência, trazem a participação de atletas que por diferentes contin-
gências têm sua configuração corpórea modificada. Corpos que se adaptaram
a diferentes exigências de realidades que lhes são impostas e às quais se ajus-
tam para diferentes exigências de práticas esportivas. No caso dos jogos do
Rio, foram 22 modalidades disputadas entre os dias 7 e 17 de setembro de 2016.
O Guia para a mídia: Como cobrir os Jogos Paralímpicos Rio 2016 (PAPPOUS
& SOUZA, 2016, p. 2) alerta em sua introdução para o risco de “uma cobertura
estereotipada e irrealista dos Jogos e atletas Paralímpicos”. Assim, propomos
neste artigo analisar como a linguagem imagética pode contribuir ou influen-
ciar a construção desses discursos e, mais objetivamente, como é construída a
imagem da mulher na prática do esporte paralímpico.
Nossa análise irá deter-se sobre a imagem da performance de Amy Purdy,
retratada na primeira página do jornal O Globo de 8 de setembro de 2016
(Figura 1), destacando-se a imagem da atleta fazendo par com o braço robótico.
172
A partir de conceitos sobre fotojornalismo e questões de gênero, pretende-
mos discutir a imagem construída pela imprensa em torno das atletas femini-
nas com deficiência, considerando-se essa exploração da aparência do corpo
da mulher atleta. Ainda que o Comitê Paralímpico Internacional, responsável
pela organização dos Jogos Paralímpicos, procure sensibilizar a imprensa da
importância do evento, sua cobertura é sensivelmente menor nos meios de
comunicação em relação ao espaço disponibilizado aos Jogos Olímpicos.
Em Discurso das Mídias (2006), Patrick Charaudeau busca discutir va-
riadas nuances existentes entre acontecimento e notícia, e aí sua relevância
para discutirmos a influência dos discursos nas questões de gênero e as estra-
tégias de encenação nos discursos da informação. Para o linguista francês, a
espetacularização sobre o mundo que as mídias nos propõem pode levar a um
discurso que pouco contribui no processo de informar, no qual o público pode
ser corresponsável nesse processo. Charaudeau versa também sobre a respon-
sabilidade das mídias na produção de sentido sobre os acontecimentos sociais,
uma vez que se trata “da linguagem enquanto ato de discurso, que aponta para
a maneira pela qual se organiza a circulação da fala numa comunidade social
ao produzir sentido” (2006, p.33).
A Revista Estudos Femininos em sua edição de janeiro de 2002, traz a
tradução de uma entrevista com a filósofa feminista Judith Butler dada ao
Departamento de Estudos da Mulher, do Instituto de Artes da Universidade
de Utrecht, Países Baixos, em maio de1996. Butler afirma que, em sua opinião,
discursos habitam corpos. Para ela, os discursos “se acomodam em corpos;
os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue”,
conforme Prins e Meijer (2002, p. 163). Estar no mundo implicaria, portanto,
estar carregado de discurso.
Os estudos de gênero se inserem em um cenário em que papeis são impos-
tos a homens e mulheres produzidos cultural e historicamente e sobre o reco-
nhecimento de que esse não é um processo natural, mas de construção onde
se realizam as experiências sociais. A historiadora Maria Izilda Matos (2007)
destaca que a construção de perfis de comportamento masculino e feminino
define-se social, cultural e historicamente inseridos em tempo, espaço e cultu-
ra determinados. Para ela, devem-se evitar as oposições binárias naturalizadas
para demonstrar que, dentre alguns de seus aspectos, “as referências culturais
são sexualmente produzidas, através de símbolos, jogos de significação, cruza-
mentos de conceitos e relações de poder” (2007, p. 283). Além disso, a
173
... expansão e o enriquecimento dos temas de investigação propos-
tos pelos estudos de gênero foram acompanhados por renovações
dos marcos temáticos e metodológicos, enfoques e modos de aná-
lise inovadores que, além de questionar os paradigmas históricos
tradicionais, vêm colocando novas questões, descobrindo novas
fontes, enfim, contribuindo para redefinir e ampliar noções tradi-
cionais do significado histórico. (MATOS, 2007, p. 284)
Corpo e comunicação
Nosso debate nasce da indagação sobre nossas relações com o corpo que
foge a padrões estéticos esperados socialmente e do debate sempre presente das
exigências feitas ao corpo feminino. Mulheres são cotidianamente confronta-
das com padrões de beleza e de regras sociais aos quais “deveriam” se adequar.
Também sobre o corpo que por alguma contingência teve sua configuração al-
terada aquém de um processo previsível – aquilo que se tomaria culturalmente
constituído como uma limitação imposta por um acaso. Dito isso, buscamos
identificar em que os canais midiáticos e as imagens por eles geradas serviriam
para reforçar os conflitos entre corpo e sociedade, especialmente no caso da
mulher atleta com deficiência colocada diante de padrões culturais.
Parecem estar naturalizadas as formas de representação na mídia do cor-
po feminino relacionadas a padrões de beleza com ênfase em características
físicas e na aparência. Para Pierre Bourdieu (2002), esse trabalho de cons-
trução simbólica se realizada não apenas por uma definição, mas por uma
transformação duradoura e profunda nos corpos e no pensamento que se
realiza também na prática, determinante das formas de utilização do corpo.
Segundo o sociólogo francês (2002, p. 32), a constituição de um padrão impos-
to a homens e mulheres “tende a excluir do universo do pensável e do factível
tudo que caracteriza pertencer ao outro gênero”. Bourdieu completa que esse
174
pertencimento a determinado gênero tende a “produzir este artefato social que
é um homem viril ou uma mulher feminina” (id. ib.).
No esporte, o corpo atlético feminino é comumente destacado fora de seu
local de interesse que é o talento para o jogo, principalmente em esportes que
estimulam uma configuração corpórea que reforça estereótipos considerados
padrões de feminilidade. Como o corpo curvilíneo, com formação muscu-
lar mais discreta, com menos ênfase na força muscular. Ou, como expressa
Bourdieu (2002, p. 34) em A dominação masculina, um “corpo socialmente
diferenciado” do gênero masculino. O que reforçaria uma relação de domina-
ção de fundo tão somente biológico, mas que se naturaliza por uma construção
que é de ordem social.
O já citado Guia para a mídia: Como cobrir os Jogos Paralímpicos Rio 2016
não diferencia a questão da atleta feminina, mas destaca que o esporte deve ser
visto como o espírito em movimento – e é dessa forma que o atleta deve ser
retratado. Assim, há uma preocupação expressa no Guia em relação ao risco
de distorções através do foco na deficiência, ainda que ela não deva ser escon-
dida. Para a organização dos jogos, os atletas, homens e mulheres, devem ser
retratados como pessoas dinâmicas que buscam um triunfo no esporte. Nesse
ponto, revela um reconhecimento de que canais midiáticos podem promover
um trabalho de construção simbólica em torno dos atletas paralímpicos.
Dentro do universo do esporte, a exploração da imagem dramática do
esforço físico do corpo atlético é uma das formas narrativas recorrentes no
discurso midiático. A professora e pesquisadora Lucia Santaella (2004) analisa
as representações do corpo difundidas através dos meios de comunicação e
como elas se tornam modelos a serem seguidos. “A imprensa escrita vem se
consolidando como espaço privilegiado não só para a divulgação de informa-
ções relativas ao corpo, mas também para a inculcação de padrões de beleza
e de comportamento”, destaca Santaella, (2000, p.127). Passaríamos por uma
“supervalorização da aparência” e uma busca por padrões ideias de beleza e
formas do corpo. No caso do corpo atlético feminino, essas representações po-
dem, também, serem exploradas nas imagens das atletas olímpicas em épocas
de cobertura dos Jogos Olímpicos.
Georges Didi-Huberman (2010, p. 30), historiador e filósofo da arte, des-
taca a presença sensível do corpo. “É que a visão se choca sempre com o ine-
lutável volume dos corpos humanos”, destaca o autor (2010, p. 30). Ao citar a
complexa obra Ulisses de James Joyce, o autor também reafirma o corpo como
175
primeiro objeto de conhecimento resultado do ver e do desejo de tocar. O cor-
po como objeto próprio de um mundo visível.
Atletas com deficiência que buscam o triunfo através do esporte trazem
seus corpos à luz dos holofotes midiáticos. Já não deveriam se tratar de cor-
pos invisíveis, mas corpos que se mostram a olhares pouco familiarizados aos
diversos tipos de deficiência. Se corpos carregam discursos, como destacado
aqui da fala de Judith Butler, demoramos a nos conformar ao corpo que é dife-
rente e a entender a forma discursiva que ele carrega. Isso pode gerar interpre-
tações equivocadas e imagens que busquem chocar e não conformar o olhar.
Retemos aqui, de diversos autores, a ideia de que corpo é comunicação.
Já o sociólogo e antropólogo francês David Le Breton (2009, p. 8) afir-
ma que “antes de qualquer coisa, a existência é corporal”. Trata-se de uma
existência que constrói redes simbólicas que são partilhadas socialmente. As
análises voltadas ao corpo e suas representações falam além dos documentos
para auxiliar numa compreensão do que está em jogo nas relações e na cons-
tituição dos papéis sociais. Le Breton discute ainda a constituição das relações
corporais a partir de exemplos de crianças que foram afastadas do convívio
social humano e adotadas por animais – e como elas retornam modificadas
da experiência de adaptação do corpo a condições distintas do convívio nas
relações humanas:
176
percepções, técnicas corporais e a linguagem própria do corpo seriam esta-
belecidos por padrões de convivência e sobrevivência também nas dimensões
culturais. O autor destaca que os exemplos extremos das crianças ditas “selva-
gens” levam a uma percepção de que as predisposições corporais se concreti-
zam em uma percepção do outro e dentro de determinadas possibilidades de
desenvolvimento físico, mas que nunca alcançam um pleno desenvolvimento
do potencial do corpo humano.
177
Indissociavelmente objetivo e subjetivo, o corpo não constitui
uma entidade acabada, definida ou predefinida, mas em constan-
te construção. Cabe, assim, ao sujeito da constituição corpórea a
aventura de inventar-se e reinventar-se ao longo de sua narrativa
existencial. (Oliveira et al, 2009, p. 13)
178
Em relação à imagem da paratleta, também nos questionarmos se é pos-
sível haver uma menor erotização do corpo feminino com deficiência em re-
lação ao que normalmente é imposto e explorado em relação ao estereótipo
construído pelos canais midiáticos de uma presença feminina erotizada com
foco e close nas formas de seu corpo.
179
guarde uma falsa impressão de que reproduz o real, a ilusão do similar, ela é
uma construção técnica que percorre um caminho através do olhar mediado
pelo aparelho fotográfico para construir sentidos e simbologias que levam a
situações ideológicas.
180
manchete “Paralimpíada emociona Maracanã”. Ainda que não fosse disputar
os jogos paralímpicos de verão por ser atleta dos jogos de inverno, a atleta de
snowboard foi destacada por vários portais de notícias e de celebridades. Já
no período de organização dos Jogos Paralímpicos do Rio ela foi apresentada
como uma das personagens centrais da cerimônia de abertura.
181
Objeto central desse nosso debate inicial sobre a imagem da mulher pa-
ratleta, a capa do jornal O Globo traz um enunciado que destaca a interação
entre uma mulher e uma máquina. Imagem colocada acima da manchete
“Paralimpíada emociona Maracanã” e da linha fina “Espetáculo destaca os
desafios individuais e encanta até sob chuva”. Se considerarmos a composição
fotográfica, o papel de destaque é dado à máquina que está sob o holofote,
enquanto a bailarina aparece com parte do corpo sombreado. A imagem apre-
senta certa ironia na linguagem corporal da atleta, que pode parecer estar em
“fuga” do braço mecânico ou simplesmente realizando um jogo de sedução
com a máquina. A fotografia, sob esse ângulo, chama-nos a atenção para a for-
ma fálica do braço robótico. Sabemos que no universo de milhares de imagens
a escolha por uma única fotografia para estampar a capa do jornal é sempre
muito consciente. Há sempre uma intenção implícita nessa decisão editorial.
Poderia assim ser uma imagem de submissão feminina pela conotação da pose
– como o descrito por Roland Barthes em O óbvio e o obtuso (1990) – que Amy
realiza nesse determinado instante e com o ângulo escolhido.
É interessante observar que a segunda imagem apresentada no centro da
página do O Globo traz uma foto de autoridades que estiveram presentes no
Maracanã. Entre eles, a presença de Michel Temer, que assumiu a presidência
do Brasil em maio de 2016 após o processo de impeachment da presidente
Dilma Rousseff. Temer foi vaiado durante a abertura. Ao seu lado aparece
Marcela Temer, sua esposa bem mais jovem e que também se enquadra nos
padrões de beleza ocidentais já elencados. A presença de Temer na página tam-
bém poderia ser lida como uma imagem simbólica de dominação masculina.
A performance de Amy Purdy repercutiu em vários canais midiáticos,
muitos dos quais procuraram aproximar a apresentação da paratleta com a
da modelo brasileira Gisele Bündchen, que se havia destacado na abertura
dos Jogos Olímpicos de 2016, também no Estádio do Maracanã, praticamente
um mês antes (a cerimônia teve lugar no dia 5 de agosto). Naquela ocasião, a
“gaúcha” Bündchen cruzou o campo de uma ponta à outra, ao som da icônica
canção “Garota de Ipanema” de Tom Jobim, executada por Daniel Jobim, neto
do compositor. À época, o “desfile” da übermodel também foi destaque em di-
ferentes meios de comunicação, os quais não se furtaram a destacar sua beleza,
ecoando os próprios versos da música (“olha, que coisa mais linda, mais cheia
de graça”). Exemplo disso é o Portal E!, que destaca, em matéria de 05/09/2016,
o protagonismo de Bündchen no evento (Figura 3):
182
Figura 3: Gisele Bündchen na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016, segundo o
no Portal E! (Disponível em http://br.eonline.com/enews/gisele-bundchen-rouba-a-cena-na-
cerimonia-de-abertura-dos-jogos-olimpicos-2016/. Acesso em 20 mar. 2017).
183
escolha do discurso verbal, como atesta o título “Amy Purdy rouba a cena em
abertura da Paralimpíada Rio 2016” (Figura 4), referente a matéria publicada
em 08/09/2016. O texto destaca fotos e comentários de leitores sobre a presença
de Amy na abertura dos Jogos, e muitos desses comentários tecem elogios à
beleza da atleta:
Figura 4: Portal Ego, noticiando a abertura dos Jogos Paralímpicos 2016. (Disponível em
http://ego.globo.com/famosos/noticia/2016/09/amy-purdy-rouba- cena-em-abertura-da-para-
limpiada-rio-2016.html. Acesso em 22 abr. 2017).
184
dos Jogos Paralímpicos Rio 2016, segundo dados do site oficial do Comitê
Olímpico Internacional (disponíveis em https://www.paralympic.org/rio-2016
e consultados em 09/10/2016), Amy Purdy foi escolhida pelos canais midiáti-
cos como personagem de destaque na apresentação dos jogos a uma grande
audiência. Uma atleta não brasileira e que, na verdade, participa de jogos de
inverno e que foi selecionada para realizar a performance de uma dança tipi-
camente brasileira, o samba.
Purdy tem a trajetória da superação, em virtude de a doença ter-lhe leva-
do partes das pernas e também modificado sua vida. No entanto, apesar de
Amy ter- se tornado uma campeã diante da adversidade, é indiscutível que a
representação midiática projeta uma imagem atraente da atleta, em que seu
padrão de beleza física coexiste com uma imagem que promove a simbiose
com a máquina. Após a sua performance de cerca de dois minutos na aber-
tura dos Jogos Paralímpicos, as imagens que se seguiram em alguns canais
retrataram uma mulher bonita dentro dos padrões ocidentais (branca, cabelos
loiros, corpo atlético) e com próteses modernas contracenando com um braço
robótico. Uma alusão intencional de que o ser humano com deficiência pode
ser também uma criatura tecnológica.
Por enquadrar-se nos padrões ocidentais de beleza, Amy Purdy talvez seja
a representação embelezada da mulher com deficiência que encanta com sua
presença e torna mais aceitável a questão da diferença. Como diz o etnólogo
francês Boris Cyrulnik (1995), podemos ser capturados, encantados e enfeiti-
çados pelos apelos sensoriais do outro. Por meio da partilha de sistemas sim-
bólicos, vivenciamos experiências de pertencimento, buscamos ser aceitos – ao
mesmo tempo em que tentamos aceitar o outro.
Considerações finais
185
posições de submissão ao masculino. A naturalização da imposição de regras
sobre o corpo e a postura e a aparência feminina são reafirmadas no ambien-
te do esporte e aqui no ambiente do esporte paralímpico. Essa naturalização
também é corroborada pelo enunciado da capa do jornal.
A fotografia é uma das vias de reafirmação da dominação sobre o femi-
nino. Imagens podem ser uma evidência e também servir de reforço para um
posicionamento moral. É preciso parecer, estar contido dentro de padrões, e a
fotografia traz justamente a aparência das coisas. O fotojornalismo legitima e
socializa padrões sociais.
O impacto das imagens do corpo com deficiência pode ser amenizado
através de um embelezamento da imagem da paratleta. O desafio individu-
al toma uma dimensão distinta com a insinuação a uma aproximação com a
máquina, o corpo já não é mais limitado, com a ajuda da tecnologia ele cria-
ria novas possibilidades. Mas continua excluída a atleta com deficiência mais
acentuada e que não consegue essa adaptação facilitada pela prótese.
Assim, não só a mulher atleta é comumente associada a padrões de beleza
do corpo, o que provoca uma limitação nos padrões de imagens produzidos
pela mídia. Como vimos, também a mulher paratleta, representada na abertu-
ra dos Jogos Paralímpicos 2016 pela norte-americana Amy Purdy, foi retratada
por meio da apresentação de sua deficiência mas, ao mesmo tempo, com o des-
taque para seu potencial esportivo, numa simbiose com a modernidade tecno-
lógica e a graciosidade do corpo feminino. Não foi à toa, portanto, que as duas
figuras que “roubaram a cena” (tanto na abertura dos Jogos Olímpicos como
na dos Paralímpicos do Rio de Janeiro) tragam tantas semelhança entre si, a
ponto de se enquadrarem, ambas, nos protótipos de “garotas de Ipanema” –
ainda que nascidas a vários quilômetros de distância da “Cidade Maravilhosa”.
Referências
BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BOURDIEU,
P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
186
CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2006. CYRULNIK, B. Os
alimentos do afeto. São Paulo: Ática, 1995.
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
MANGUEL, A. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. MARTINS, J. S.
Sociologia da fotografia. São Paulo: Contexto, 2008.
PAPPOUS, Athanasios Sakis; DE SOUZA, Doralice Lange. Guia para a mídia: Como
cobrir os Jogos Paralímpicos. University of Kent; Universidade Federal do Paraná (UFPR).
2016.
PRINS, B.; MEIJER, I. C. “Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith
Butler”. Em Revista Estudos Feministas. V. 10, n. 1. Florianópolis, 2002. PROSS, H. A
Sociedade do Protesto. São Paulo: Annablume, 1997.
187
ESTRATÉGIAS PUBLICITÁRIAS NO
INSTAGRAM DE GABRIELA PUGLIESI
Brunara Pereira Ascencio
Lucilene dos Santos Gonzales
O culto ao corpo humano não é uma prática que surgiu nas sociedades
contemporâneas; a busca pela forma física dita “perfeita” já era um costume
desde a antiga Grécia, onde os gregos, orientados pelo lema “mens sana in cor-
pore sano” (mente saudável em corpo são), já buscavam a capacidade não só
física, como intelectual.
No Brasil, os anos 80 foram marcados pela intensificação da prática de
atividades físicas, uma verdadeira tendência da sociedade em buscar uma vida
mais saudável, levando à proliferação de academias de ginástica por todos os
centros urbanos. Essa “geração saúde” modificou a indústria cultural e o com-
portamento social.
A mídia, por sua vez, passou a produzir exclusivamente para essa geração
de cultura do corpo. Em 1984, foi lançada a Revista Boa Forma e, em 1987, a
Revista Corpo a Corpo, destinadas ao público feminino, com publicações que
traziam em suas capas mulheres consideradas exemplos no que se referia ao
dito “corpo ideal”. Conforme Mike Featherstone (1999), para os meios de co-
municação de massa, a mensagem do culto ao corpo e da beleza passou a ser
algo que produz lucro, por isso o assunto é propagado exaustivamente.
Seguindo a tendência da década anterior, como aponta Gisele Flor (2010),
os anos 90 foram marcados pela valorização cada vez maior de mulheres que
sobreviviam do próprio corpo, como modelos, atrizes e apresentadores de TV,
que passavam a ter cada vez mais sucesso e prestígio na sociedade brasileira.
Com o surgimento da internet e, posteriormente, das redes sociais, esse
discurso de culto ao corpo tomou proporções ainda maiores. A rede social
188
Instragram, especificamente por se tratar de publicação de fotos e vídeos, é
uma das que mais atrai usuários adeptos ao mundo das pessoas que cultuam
o corpo e ditam padrões a serem seguidos. Esses perfis fitness1 têm transfor-
mado anônimos em celebridades, a maioria mulheres conhecidas por “musas
fitness” ou “blogueiras fitness2”, que vendem um estilo próprio de vida e tam-
bém muita publicidade.
Nesse cenário, a publicidade também se transformou e procura inserir
suas marcas nas fotos e vídeos postados no aplicativo Instagram, associando-
-as a celebridades com corpo “perfeito”. Este é o objeto de estudo desta pesqui-
sa: verificar nas postagens da musa Gabriela Pugliesi as estratégias da publici-
dade na rede social Instagram.
O corpo e a mulher
1 Termo usado pela mídia para definir a promoção de um estilo de vida saudável.
2 Termo usado pela mídia para definir mulheres que promovem um discurso de estilo de vida
saudável em redes sociais, veiculando informações sobre alimentação, exercícios, etc. Veja
exemplos em: <http://vejasp.abril.com.br/cidades/rotina-musas-fitness-juju-salimeni-karina-
-bacchi-gabriela-pugliesi/>
189
significados que pode transmitir uma identidade social que não cabe em mo-
delagens de tamanho único.
Para Bourdieu (1999), os homens tendem a se mostrar insatisfeitos com as
partes de seus corpos que consideram pequenas demais, enquanto as mulheres
criticam as regiões de seus corpos que percebem como grandes demais. Desta
forma, na busca por ser magra, as mulheres vivenciam a distância entre o cor-
po real e o corpo ideal, o qual procuram obstinadamente alcançar.
190
Com isso, a tendência é deixar de lado as informações sobre a pre-
venção de enfermidades relacionadas ao sobrepeso e conceber a
representação da perda de peso, apenas como um valor estético. Os
padrões de beleza, de certo modo, são colocados como uma condi-
ção mítica em que a mulher se sustenta para perseguir um modelo
para seu corpo, para sua vida. (Freitas, 2002, p. 26)
191
Convergência cultural e Instagram
192
A convergência também ocorre quando as pessoas assumem o controle das
mídias e, então, nossa vida, nossos relacionamentos, memórias, fantasias e
desejos também fluem pelos canais de mídia. É o que ocorre, por exemplo,
com o uso da rede social Instagram: basta um smartphone em mãos e uma
conta no aplicativo, gratuito, para que qualquer pessoa possa produzir con-
teúdo e compartilhar em rede, para centenas de milhares de outros usuários.
193
Instagram e as estratégias de publicidade
194
saudável, exercícios físicos e os resultados dessa dedicação ao corpo. Esses per-
fis têm alcançado tanto sucesso nos últimos anos, que transformaram pessoas
anônimas em celebridades, na sua maioria mulheres, conhecidas popularmen-
te por “musas fitness” ou “blogueiras fitness”, que usam seus corpos para ven-
der um estilo de vida dito “saudável” e com ele fazem publicidade de roupas,
calçados, joias, academias, hotéis, alimentos. Entre essas celebridades surgidas
no Instagram, está Gabriela Pugliesi, objeto de nosso estudo.
3 www.tips4life.com.br
4 gabrielapugliesi.com
195
Gabriela possui conta no Instagram desde março de 2012, com a publicação
de sua primeira foto no dia 29 de março, no entanto, ainda pouco conhecida
nesta época, suas postagens alcançavam em média 300 curtidas. Após 2013, com
o sucesso do site “Tips4Life”, a blogueira passou a ganhar milhares de seguidores
no Instagram e, atualmente, conta com mais de três milhões de seguidores e
mais de 10 mil publicações, que alcançam em média 80 mil curtidas.
5 http://vejasp.abril.com.br/cidades/rotina-musas-fitness-juju-salimeni-karina-bacchi-gabriela-
pugliesi/
196
com suas publicações no Instagram e é considerada no mercado publicitário a
principal formadora de opinião no ramo fitness.
As marcas sugeridas nas postagens de Gabriela Pugliesi inserem-se na linha
criativa de testemunhal que aproxima essa celebridade das pessoas comuns por
meio do Instagram, mídia social, apresentando os produtos, evidenciando seus
benefícios repetidamente que fazem parte do seu cotidiano, intensificando as-
sim o desejo de consumo dos seus seguidores pelas roupas que veste, acessórios e
cosméticos que usa, hotéis que se hospeda, academias que frequenta, etc.
O endosso de uma celebridade a certos produtos sugere um raciocínio ób-
vio que é o da imitação da experiência do ídolo. O encontro entre a celebridade
e seu público, em um momento propício, anunciando que aquele padrão de
beleza é possível de ser alcançado, automaticamente sugere ao espectador uma
ideia de que consumir tal produto transmitirá a mesma capacidade de beleza e
sucesso da celebridade. Mesmo que o produto seja só para o cabelo, por exem-
plo, a compreensão da capacidade de eficácia do produto transcende, na mente
consumidora, ao simples embelezamento dos cabelos.
Análise de publicações
Análise
Lifestyle Viagens Moda Alimentação Treinos Cosméticos
publicações
Com
18 17 15 4 4 2
publicidade
Sem
29 11 0 0 0 0
publicidade
Total 47 27 15 4 4 2
197
A categoria lifestyle, a que mais apresenta publicações, representa o estilo
de vida de Gabriela. Das 47 publicações, 29 não apresentavam publicidade de
marcas, produtos ou serviços. Estes posts se referem, por exemplo, a fotos de
Gabriela trajando vestuário de banho e reafirmando seu estilo de vida fitness;
com o noivo, também adepto ao mundo fitness, sempre felizes e sorridentes;
com a irmã; frases de efeito sobre amor, felicidade e paz, mostrando a harmo-
nia de sua vida; imagens da natureza, entre outros.
As outras 18 publicações da categoria lifestyle apresentam algum tipo de
publicidade, na mensagem ou na própria foto ou vídeo. Por exemplo, vídeos
que fazem propaganda de acampamento de férias para jovens e do seu próprio
canal do YouTube “Vendi Meu Sofá com Gabriela Pugliesi”, onde ela entrevista
celebridades, dá dicas de produtos de beleza, treinos e exercícios físicos para
seus seguidores, entre outros. Na imagem a seguir um exemplo de publicação
que leva à publicidade de seu próprio canal no Youtube:
Figura 3: Publicação de Gabriela Pugliesi no Instagram falando sobre seu canal no YouTube
Vendi Meu Sofá. Disponível em <https://www.instagram.com/gabrielapugliesi/>
Acesso em Janeiro de 2017.
198
As outras 17 publicações da categoria viagens fazem algum tipo de publi-
cidade, com marcações na imagem ou na mensagem, do produto ou empresa
em questão. A maioria delas são postagens que, aparentemente mostram um
local, cidade ou país que está visitando, mas sempre marcando o hotel, spa ou
restaurante que se encontra. Nestes posts, Gabriela faz ainda publicidade para
empresas de turismo, venda de passagens, entre outras. Na imagem a seguir
um exemplo de publicação que leva à publicidade do hotel em que Gabriela se
hospedou em uma de suas viagens:
Figura 4: Publicação de Gabriela Pugliesi no Instagram em uma viagem para Bali, uma ilha
da Indonésia, em um hotel luxuoso que se hospedou. Disponível em <https://www.instagram.
com/gabrielapugliesi/> Acesso em Janeiro de 2017.
199
Figura 5: Publicação de Gabriela Pugliesi no Instagram em uma academia pronta para malhar
e usando vestuário de uma marca de roupas de ginástica. Disponível em <https://www.insta-
gram.com/gabrielapugliesi/> Acesso em Janeiro de 2017.
200
Figura 6: Publicação de Gabriela Pugliesi no Instagram falando sobre um produto que conso-
me diariamente em sua dieta e também usa para o cabelo. Disponível em
<https://www.instagram.com/gabrielapugliesi/> Acesso em Janeiro de 2017.
201
Figura 7: Publicação de Gabriela Pugliesi no Instagram fazendo referência à academia em que
treina diariamente e à marca de roupas que usa. Disponível em <https://www.instagram.com/
gabrielapugliesi/> Acesso em Janeiro de 2017.
202
Figura 8: Publicação de Gabriela Pugliesi no Instagram fazendo referência a um produto que
usa para intensificar sua cor no verão. Disponível em <https://www.instagram.com/gabrie-
lapugliesi/> Acesso em Janeiro de 2017.
O Instagram, desde que possibilitou seu uso para propagandas, possui po-
líticas de publicidade para anúncios, no qual constam algumas regras a serem
seguidas pelas empresas interessadas em fazer anúncios no aplicativo. Entre
elas, quando uma postagem se refere a uma publicidade, o conteúdo deve ser
marcado com o rótulo “Patrocinado” acima da imagem, para que o usuário
fique sempre ciente do que é anúncio e do que não é.
Com relação aos anúncios de páginas verificadas, ou seja, as que possuem
o selo azul como a de Gabriela Pugliesi, devem marcar o patrocinador, marca
ou produto apresentado usando a ferramenta de conteúdo de marca. De acor-
do com a central de ajuda para anunciantes do aplicativo6, conteúdo de marca
é qualquer conteúdo de proprietários de páginas que apresentem patrocina-
dores, marcas ou produtos de terceiros; essas páginas são empresas de mídia,
celebridades ou outros formadores de opinião.
Na maioria das publicações analisadas, como se pode observar, Gabriela
faz publicidade de alguma marca, produto ou serviço. Ela utiliza bastante as
hashtags - palavra-chave precedida pelo símbolo #, recurso que torna o conte-
údo dos posts acessível a todas as pessoas com interesses semelhantes, mesmo
6 https://www.facebook.com/business/help/1569634613356213?helpref=faq_content
203
que elas não sejam suas seguidoras. Assim, o usuário, ao pesquisar por deter-
minada hashtag, o Instagram irá mostrar os posts de todos os usuários que
a utilizaram em suas postagens, ampliando o alcance das publicações para
milhares de outros de potenciais seguidores, fãs ou clientes.
No entanto, o uso indevido do aplicativo para fazer propaganda já gerou
problemas para Gabriela. De acordo com notícia7 publicada no site da Revista
Exame, em abril de 2016, o Conar – órgão que regulamenta a propaganda no
Brasil – teria concluído que uma publicação de Gabriela no Instagram, na qual
ela aparece segurando uma garrafa de uma marca de cerveja, se tratava de pro-
paganda velada, quando se passava por um post normal. Conforme o texto, a
musa fitness teria sido denunciada por consumidores e, após análise do post
pelo Conar, o órgão teria exigido mudanças no texto, para que ficasse claro
que o conteúdo se tratava de publicidade.
Em 2014, dois anos antes de este fato ocorrer, Gabriela já havia tido proble-
mas com suas publicações. Na época, de acordo com matéria8 publicada pela
UOL, usuários criaram a hashtag #explicapugli para questionar se os posts
sobre produtos recomendados por ela eram ou não são pagos. Na ocasião, em
entrevista concedida ao site, ela admitiu publicar conteúdo patrocinado em
seu perfil no Instagram, mas afirmou que comenta apenas produtos que “re-
almente gosta, usa e consome, mesmo quando é publicidade”. A musa fitness
também disse que quando um conteúdo é patrocinado, ela indica que se trata
de publicidade e usa a hashtag #publipost.
A linguagem utilizada por Gabriela nas mensagens de suas publicações
incentiva a busca da boa forma por meio da intensa prática de esportes, de uma
alimentação que considera “saudável”, além do consumo de diversos produtos,
serviços e marcas. Trata-se de um discurso predominantemente referencial,
com informações sobre alimentação, exercícios, locais que frequenta, produtos
que usa. No entanto, fica evidente também o uso da função conativa, já que as
“recomendações” de Gabriela são tomadas como “verdade” e um “manual de
boa forma” para seus seguidores em busca da magreza e de seu estilo de vida,
objetos de valor a serem conquistados.
A função referencial ou denotativa (Jakobson, 2008) privilegia o referente
da mensagem, transmite uma informação objetiva, expõe dados da realidade
7 http://exame.abril.com.br/marketing/pugliesi-e-julgada-pelo-conar-por-publicidade-velada/
8 https://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/02/14/gabriela-pugliesi-diz-que-reforca-
ra-a- sinalizacao-de-publiposts-em-sites.htm
204
de modo objetivo. Ela pode ser notada nas publicações de Gabriela, por exem-
plo, quando essas remetem ao site ou endereço eletrônico da marca do produto
que divulga, ou ainda quando passa informações objetivas sobre determinado
produto. No entanto, também é notório o uso intenso da função conativa ou
apelativa, na busca por persuadir e seduzir o receptor da mensagem, levando-o
a adotar este ou aquele comportamento. Nas publicações sobre alimentos que
consome, por exemplo, Gabriela não passa informações nutricionais sobre o
produto ou o seu valor comercial, mas seduz seu seguidor a adquiri-lo, pois irá
ajudá-lo a conquistar um corpo magro, como o dela.
Em diversas entrevistas, Gabriela afirmou que quando mais jovem se con-
siderava “gorda” e que a mudança do seu estilo de vida de sedentária e com
uma alimentação desregrada, para praticante de exercícios físicos e com ali-
mentação balanceada, conquistou seu corpo atual. Conhecendo sua história
de vida, seus seguidores no Instagram compram a ideia de que, seguindo todas
as dicas da musa fitness, também serão capazes de modificarem seus corpos e
seus estilos de vida.
Considerações finais
205
As fotos e vídeos publicados por si só estimulam os seguidores de Gabriela
ao consumo das marcas e produtos sugeridos; são muito bem editados, com
muitas cores, fatores que influenciam aguçando os sentidos dos consumido-
res. As mensagens que acompanham as publicações contribuem ainda mais
para reforçar o estímulo ao consumo, nas quais a musa apresenta dicas e con-
selhos, afirmando para seu seguidor que aquele produto faz parte de seu dia-
dia e é eficaz na busca por seus desejos.
Os usuários das redes sociais consomem mensagens publicitárias por
meio de relacionamentos, buscando informação, comunicando-se com os pro-
dutores de conteúdo e os seus seguidores numa plataforma social prazerosa,
divertida. Na era digital, com a convergência das mídias e possibilidade total
de interação e fluxo de comunicação, as marcas mudaram por completo a for-
ma de fazer publicidade. Antes, elas produziam exclusivamente para alcança-
rem seus consumidores e atraírem a sua atenção, agora, são os consumidores
que procuram as marcas e/ou interagem de diversas formas com elas, como é o
caso, por exemplo. Essa interação do seguidor-consumidor com a celebridade
Gabriela Plugliesi resulta no relacionamento com diversas marcas sem muitas
vezes perceber a exposição às marcas e sua influência na compra dos produtos
por ela informados.
A interação é uma das maiores aliadas da publicidade nas mídias digitais,
no caso das publicações dessa celebridade fitness, em que os seguidores com
seus comentários nos posts citam a marca publicizando e evidenciando espon-
taneamente e gratuitamente os produtos e anunciantes. Por exemplo, ao publi-
car uma imagem na qual indica o uso de um produto alimentício, que além de
utilizado no preparo de refeições, pode ser usado para o cabelo, uma seguidora
comenta: “Também uso o óleo de coco no cabelo e é mara!”, na sequência ela
responde para uma outra seguidora que pediu informações sobre como usar
o produto no cabelo: “Você passa no cabelo seco, fica quanto tempo desejar e
então lava, o efeito é imediato”. Para a marca que vende o produto, não existe
propaganda melhor do que a indicação de seus próprios consumidores.
Desta forma, constatou-se que o perfil de Gabriela Pugliesi no Instagram
vende seu estilo de vida o que a tornou uma das maiores formadoras de opi-
nião do ramo fitness, sucesso on-line em que as marcas estão com diversas
estratégias publicitárias. No entanto, deve-se observar que as redes sociais de-
vem ser usadas de forma consciente na veiculação de publicidade, principal-
mente quando as mensagens mercadológicas não deixam claro ao seguidor
que se trata de conteúdo publicitário.
206
O Código de Defesa do Consumidor, em seu Artigo 36, prevê que “A pu-
blicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediata-
mente, a identifique como tal” e Código de Ética do Conar, Artigo 28, dispõe
que “O anúncio deve ser claramente distinguido como tal, seja qual for a sua
forma ou meio de veiculação”. Desta forma, apenas marcar o patrocinador e
usar hashtag #publipost, pode ser insuficiente para atender ao que prevê a le-
gislação, porque, em geral, as hashtags são visualizadas apenas no fim do post.
O ideal é que os posts patrocinados venham sinalizados logo no início, ou seja,
com a indicação de publicidade no alto da própria imagem, para que ao pri-
meiro olhar sobre a publicação, o seguidor saiba de imediato que se trata de
uma publicidade.
Neste contexto, conclui-se que a publicidade na era digital adota diversas
estratégias que não eram possíveis na era analógica. O investimento em conte-
údos patrocinados no Instagram de celebridades é uma dessas estratégias, no
entanto, devem ser claramente identificadas, caso não sejam, são vistos como
propagandas veladas, como já ocorreu com Gabiela Publiesi no caso da marca
de cerveja, prática proibida por lei.
Referências
207
GONZALES, L. S. Linguagem publicitária: análise e produção. São Paulo: Arte & Ciência,
2003.
Instagram. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2013.
TORRES, C. A Bíblia do Marketing Digital: tudo o que você queria saber sobre marketing e
publicidade na internet e não tinha a quem perguntar. São Paulo: Novatec, 2009.
208
SOBRE OS AUTORES
209
Claudio Bertolli Filho
Cientista social e historiador, docente do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação e do
Programa de Educação para a Ciência da Faculdade de Ciências, Unesp –
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Email: cbertolli@
faac.unesp.br
Danilo Rothberg
Livre-docente em Sociologia da Comunicação. Bacharel em Comunicação,
Mestre em Comunicação e Doutor em Sociologia pela Unesp. Professor do
Departamento de Ciências Humanas da Unesp – Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faac – Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação. Email: danilo@faac.unesp.br
Érika de Moraes
Docente vinculada ao departamento de Ciências Humanas da Faac -
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Unesp – Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Doutora em Linguística pelo IEL-
Unicamp, com ênfase em Análise do Discurso de linha francesa. Membro do
Centro de Pesquisa FEsTA. Email: erika.moraes@faac.unesp.br
210
José Carlos Marques
Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac) da Universidade Estadual Paulista
(Unesp). Email: zeca.marques@faac.unesp.br.
211
Maximiliano Martín Vicente
Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unesp –
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faac – Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação. Livre Docente em História do Brasil e
Doutor em História Social pela USP. Email: maxvicente@uol.com.br
Vitória Alves de Sá
Bacharelanda em Comunicação: Relações Públicas pela Unesp – Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faac – Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação. Email: vi_alvesdesa@hotmail.com
212
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01001-900 – São Paulo - SP
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Sobre o livro
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Tipologia Minion Pro (texto)
Helvetica Neue LT Std (títulos)
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Diagramação
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213
ISBN 978-85-7983-901-6
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