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Caroline Kraus Luvizotto

Eli Vagner Francisco Rodrigues


(Organizadores)

IMAGEM,
PENSAMENTO
E CULTURA:
PERSPECTIVAS
CONTEMPORÂNEAS
Caroline Kraus Luvizotto
Eli Vagner Francisco Rodrigues
(Organizadores)

IMAGEM,
PENSAMENTO
E CULTURA:
PERSPECTIVAS
CONTEMPORÂNEAS

1ª edição – 2017
São Paulo
Conselho Editorial

Daniel Omar Perez (UNICAMP)


Eder Soares Santos (UEL)
Eneus Trindade Barreto Filho (USP)
Erika Porceli Alaniz (UNOESTE)
Ricardo Bazilio Dalla Vecchia (UFG)

I314 Imagem, pensamento e cultura: perspectivas contemporâneas / Caroline


Kraus Luvizotto e Eli Vagner Francisco Rodrigues (organizadores).
– São Paulo : Cultura Acadêmica, 2017
212 p. : il.

Formato: PDF
ISBN 978-85-7983-901-6
Inclui bibliografia

1. Comunicação e cultura 2. Imagem I. Luvizotto, Caroline Kraus. II.


Rodrigues, Eli Vagner Francisco. III. Título
 CDD 302.2

Copyright © Caroline Kraus Luvizotto & Eli Vagner Francisco Rodrigues, 2017

Cultura Acadêmica / Editora Unesp


Praça da Sé, 108
01001-900 – São Paulo - SP
www.editoraunesp.com.br
feu@editora.unesp.br
Sumário

APRESENTAÇÃO....................................................................................................................6
Cassiano Terra Rodrigues

I - Imagens da literatura, da música e do cinema

EDUCAR PELO CINEMA: ROBERTO ROSSELLINI E O ANO ZERO ALEMÃO......10


Claudio Bertolli Filho

ENTRE CRUEZA E CLICHÊ: MORTE E VIDA SEVERINA NA TV GLOBO.............. 26


Marcelo Bulhões

AMOR E SOLIDÃO EM LETRAS DE RENATO RUSSO – DO ETHOS DO


ARTISTA À UNIVERSALIDADE...................................................................................... 45
Érika de Moraes

A ARTE DA CORTESIA E A PERFÍDIA DA HIPOCRISIA NAS CORTES


DE FRANÇA: UM PARALELO ENTRE O REINADO DE LEONOR DE
AQUITÂNIA E A DISSIMULAÇÃO EM ‘LIGAÇÕES PERIGOSAS’............................ 64
Maria Angélica Seabra Rodrigues Martins

II – Representações do mundo contemporâneo

VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A CULTURA DO ESTUPRO NO ESPAÇO


ACADÊMICO: VULNERABILIDADES E HISTÓRIA....................................................79
Lidia M. V. Possas

PÓS-VERDADE E MANIPULAÇÃO IMAGÉTICA DA INFORMAÇÃO.................... 89


Maximiliano Martín Vicente
Gabriela Sanches de Lima
ANÁLISE DA DIVERSIDADE SOCIAL E CULTURAL BRASILEIRA NA
OBRA CINEMATOGRÁFICA “EDIFÍCIO MASTER – UM FILME
SOBRE PESSOAS COMO VOCÊ E EU”........................................................................... 106
Ana Carolina Trindade
Caroline Kraus Luvizotto

O MUNDO COMO IMAGEM E REPRESENTAÇÃO:


HEIDEGGER E A CULTURA CONTEMPORÂNEA.................................................... 122
Eli Vagner Francisco Rodrigues

GÊNERO E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NOS CONTEÚDOS DE


SOCIOLOGIA PARA O ENSINO MÉDIO: REFLEXÕES SOBRE AS
QUESTÕES DE GÊNERO NO CADERNO DE SOCIOLOGIA DA SEE/SP................142
Natália Cristina Sganzella de Araujo

III – Comunicação: novas imagens e nova cultura

COMUNICAÇÃO PÚBLICA, CIDADANIA E DEFICIÊNCIA:


IMAGENS E REPRESENTAÇÕES EM REDES SOCIAIS............................................. 154
Danilo Rothberg
Vitória Alves de Sá
Paola Ramos Afonso

A ABERTURA DOS JOGOS PARALÍMPICOS RIO-2016 E A


REPRESENTAÇÃO FOTOGRÁFICA DA ATLETA COM DEFICIÊNCIA:
ALGUMAS REFLEXÕES....................................................................................................171
Neide Maria Carlos
José Carlos Marques

ESTRATÉGIAS PUBLICITÁRIAS NO INSTAGRAM DE GABRIELA PUGLIESI......188


Brunara Pereira Ascencio
Lucilene dos Santos Gonzales

SOBRE OS AUTORES........................................................................................................ 209


APRESENTAÇÃO

A XVIII Jornada Multidisciplinar, ocorrida em 2016 na UNESP-Bauru,


reuniu mais de uma centena de pesquisadores, de diversas instituições bra-
sileiras, em debates de alto nível acadêmico em torno do tema Imagem,
Pensamento e Cultura. Os 12 textos ora coligidos neste volume, ainda que em
número reduzido, representam bem a diversidade de abordagens e metodolo-
gias, bem como a alta qualidade das pesquisas que compuseram essa Jornada.
Nos últimos tempos, a importância da imagem na vida social voltou a au-
mentar, após alguns séculos de hegemonia das linguagens escritas. A profusão
de imagens na contemporaneidade já suscitou uma igualmente profusa va-
riedade de análises teóricas. Indústria cultural, sociedade do espetáculo, pós-
modernidade, crise da subjetividade, o meio é a mensagem, semióticas das
hipermídias, enfim, é inumerável a variedade de teorias e maneiras de pensar
a relação das imagens com a cultura dos nossos tempos. E, de fato, muito antes
das manifestações contemporâneas do audiovisual tecnicamente produzido, a
humanidade se aculturava por imagens. Não à toa, Vilém Flusser descreve a
própria escrita como um rasgo da imagem, um traço que escapa à simultanei-
dade da imagem visual e se instaura na ordem linear do tempo.
É bom lembrar que, até mais ou menos o início do século XIX, apenas
uns 20% da população mundial era alfabetizada. Hoje, esse número é conta-
do em aproximadamente 85%. A alfabetização universal é uma das bandeiras
do Iluminismo, contrária à educação pelas imagens medieval. Mas a situa-
ção atual não é exatamente nítida, uma vez que há graus de alfabetização e o
próprio conceito de alfabetização foi ampliado: é considerada alfabetizada a
pessoa capaz não apenas de ler, escrever e fazer as operações aritméticas bá-
sicas, mas todas as que são capazes de interpretar e usar, além da linguagem

6
e dos números, também as imagens e, cada vez mais, computadores e outros
aparelhos tecnológicos, para fins de compreensão, comunicação e aquisição
de conhecimento. Em suma, é alfabetizada qualquer pessoa que saiba usar os
sistemas simbólicos da cultura em que se insere.
Muitas questões abrem-se a partir disso. É possível observar, por exemplo,
uma preeminência do vivido sobre o narrado na cultura imagética contempo-
rânea. Se a experiência da imersão já era definidora da observação cinemato-
gráfica, hoje essa experiência é potencializada e assume novos contornos. Se
bem não deixa de existir o espectador cinematográfico, anonimizado na sala
coletiva de projeção, essa experiência torna-se residual e dá lugar cada vez mais
ao espectador individualizado e interativo dos games e mini-telas eletrônicas.
Os próprios modos de enunciação consequentemente transformam-se de
modo radical. Com o aumento da possibilidade de intervenção – do controle
remoto à própria mudança do percurso – aumenta também a fragmentação e
as descontinuidades na experiência, a qual se constrói agora com as imagens e
pelas imagens, nas redes sociais e seus compartilhamentos. Mas terá essa mu-
dança produzido consumidores de imagens mais (auto)críticos e conscientes
ou ampliado a imbecilização e a heteronomia coletivas? Talvez não encontre-
mos uma resposta satisfatória a essa pergunta, mas certamente encontraremos
muitas maneiras de pensar essa verdadeira aporia contemporânea nos textos
deste volume.
Organizado em três blocos, o volume traz uma importante contribuição
para todos os interessados em compreender, sob os mais diversos aspectos,
a nossa atual cultura das imagens. O primeiro bloco de textos é dedicado às
artes: “Imagens da literatura, da música e do cinema [audiovisual] ”. Os quatro
textos desse bloco analisam a relação das imagens com a escrita e com o som,
de modo a proporcionar ao leitor muitas provocações ricas em possibilidades
de pensamento – da semiótica de Greimas à poesia de João Cabral de Melo
Neto, passando pela TV Globo, pelo neo-realismo italiano e pelas canções de
Renato Russo. O que ressalta, neste bloco, é justamente o entrecruzamento de
linguagens na construção do simbólico. Da palavra unida à linguagem musi-
cal, fonte primária e essencialmente sintática de sentido, passamos à imagem
pedagógica e produtora de ideologias, além de juízos de valor simplificadores.
O segundo bloco, pode-se afirmar, constitui o cerne teórico do volume,
reunindo a maior quantidade de textos e também os mais difíceis. Aqui, en-
contramos a especulação filosófica mais abstrata aliada à crítica social, da qual
não está ausente a ilustração com estudos de caso. Trata-se, na verdade, de unir

7
o rigor lógico do pensamento teórico ao teste empírico, de modo a mostrar
que conceitos difíceis de compreender refletem muitos movimentos reais, efe-
tivamente vividos por todos nós, cotidianamente, em nossas atividades mais
comuns – e vice-versa, quer dizer, passamos a dispor de instrumentos concei-
tuais para lidar com questões práticas, não raro negligenciadas por falta de en-
tendimento adequado. A relação entre teoria e prática ressalta, aqui, como uma
relação orgânica, e não como retrato de polos distanciados, num tratamento
de problemas e questões sociais do mundo contemporâneo que desnaturaliza
o que é comum tomar como dado e inquestionável, como, por exemplo, as
questões de gênero e nossa própria posição de sujeitos do conhecimento.
O terceiro e último bloco encerra o volume com textos que problemati-
zam a nova cultura formada com as novas imagens com as quais convivemos.
São textos que, seja apenas pela raridade e a novidade dos temas, já valeriam
ser lidos por qualquer pessoa. As novas redes sociais virtuais figuram de ma-
neira proeminente, mas também o esporte aparece como tema de análise.
Configura- se, assim, um bloco voltado a duas das mais importantes e uni-
versais experiências contemporâneas. A contribuição para uma ampliação do
próprio conceito de comunicação é evidente.
Com este volume, qualquer pessoa poderá estender seus conhecimentos
sobre as imagens e seu papel indiscutivelmente singular na cultura contempo-
rânea. Poderá, dessa forma, deixar de ser um consumidor meramente passivo
de imagens pré-concebidas e exercitar seu pensamento e autocrítica, de forma
a estabelecer uma relação menos imediata e mais refletida com as mais diver-
sas manifestações sócio-culturais de nosso tempo.

Cassiano Terra Rodrigues


Prof. Dr. Departamento de Filosofia – PUC-SP

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I - Imagens da literatura,
da música e do cinema
EDUCAR PELO CINEMA: ROBERTO
ROSSELLINI E O ANO ZERO ALEMÃO
Claudio Bertolli Filho

As nações que combateram e, por fim, venceram os exércitos de Hitler têm


se mantido perseverantes em alimentar a memória mundial sobre a Segunda
Guerra Mundial (1939-1945) e, explicitamente ou não, fomentar a imagem dos
alemães como obstinados tributários do nazifascismo. A guerra e o imediato
pós- guerra tornaram-se temas recorrentes nas teias da cultura, sendo as pro-
duções fílmicas um dos canais preferenciais para a alimentação da memória
do passado segundo a perspectiva dos vencedores.
Atenção especial foi destinada ao período que ficou conhecido como “ano
zero” germânico, cujas balizas temporais têm como marco inicial a suspensão
do conflito e a instalação das forças Aliadas em Berlim, nos primeiros dias
de maio de 1945 e, como ponto final, o ano de 1949 quando nos primeiros
momentos da Guerra Fria, os territórios alemães que estavam sendo geridos
pelas quatro principais potências vitoriosas foram reorganizados em termos
político- administrativos. Resultantes deste processo, foram a instauração da
República Federal da Alemanha (RFA), dominada sobretudo pelos interesses
dos Estados Unidos, e a República Democrática da Alemanha (RDA), sob a
órbita soviética.
Neste intervalo de tempo, jornalistas, militares, pesquisadores acadêmi-
cos, cineastas, aventureiros e simples curiosos vistoriaram minúcias da vida
alemã e legaram uma multiplicidade de testemunhos que pairam entre des-
crições contaminadas por mentiras e idealizações e análises acuradas e que
hoje, em conjunto, constituem um rico e variado núcleo relatorial que instrui a

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memória de um tempo e de uma nação. O comunista Edgar Morin, então com
24 anos, chegou à Alemanha logo após a queda do nazismo, servindo como
chefe de propaganda do serviço de informação do governo militar francês;
como muitos outros ocupantes, ele aproveitou essa experiência para compor
o seu livro de estreia no qual definiu o sentido do “ano zero” dos derrotados:

(...) essa Alemanha em ponto morto, na qual, sob nossos olhos, o


fascismo, similar a combinações químicas instáveis, decompõe-se
em elementos distintos: reação, niilismo, mistificação, supersti-
ção e ignorância; essa Alemanha cujo futuro ainda não adquiriu
forma; (...) essa Alemanha, escancarada, desconhecida, à primeira
vista desconcertante (...) (Morin, 2009, p. 21).

O livro de Morin – ele mesmo reconheceu posteriormente – não apre-


senta traços de originalidade. Nas páginas do seu escrito estão registradas in-
terrogações presentes em muitos outros relatos: como um país que até pouco
antes se definia como a pátria de uma “raça de conquistadores” convivia com
seus mitos dourados? Como se comportavam os vencidos frente à ordenação
imposta pelos vencedores? A juventude alemã podia ser salva do contagio na-
zista? O nazismo teria continuidade como corrente ideológica? Qual seria o
destino dos refugiados? Tais questões eram postas pelos próprios alemães,
mas parecia pouco provável que os Aliados, pelo menos até o final da década,
demonstrassem interesse em ouvi-los, circunstância em que os germânicos
mostravam-se cientes e, na maior parte das vezes, conformados (Andreas-
Friedrich, 2012, p. 104).
Essas e muitas outras questões foram respondidas de formas múltiplas
pelos Aliados, constituindo-se numa das principais fontes de celeumas da
segunda metade da década de 1940. O fato de a guerra ter estabelecido um
“antes” e um “depois” na cultura mundial instigou inclusive o cinema a tecer
opções de continuidade para o que ficou conhecido como “dilema germânico”.
No plano cinematográfico, os estúdios de Hollywood se posicionaram como o
principal centro explorador da guerra, representando os alemães, eternizados
como sinônimo de nazistas, como brutais, pérfidos e desumanos nos mais de
mil e quinhentos filmes que patrocinaram desde o início da Segunda Guerra
Mundial (Dolan Jr., 1985, p. 65). Logo após a conquista de Berlim pelas tropas
soviéticas, os norte-americanos enviaram à Alemanha alguns dos seus prin-
cipais cineastas para realizarem documentários que celebravam a derrota dos

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inimigos e, em seguida, produzirem peças ficcionais que enfatizavam a persis-
tência de traços do espírito nazista após o encerramento do estado de belige-
rância. Destacam-se entre as produções iniciais do tempo de paz A Mundana
(A foreign affair), dirigida por Billy Wilder e Perdidos na tormenta (The se-
arch), de Fred Zinnemann, ambas lançadas em 1948 e que instantaneamente
ganharam fama internacional ao ponto de serem indicadas para diferentes ca-
tegorias de premiação do Oscar. Em tais peças, ficava patente a noção de haver
uma responsabilidade coletiva dos germânicos pela ocorrência da guerra e das
atrocidades perpetradas, princípio basilar para o tratamento rude dispensado
aos derrotados tanto nas telas quanto no cotidiano dos vencidos.
Os filmes mencionados tornaram-se modelares para as iniciativas cine-
matográficas que os sucederam e contam com um ponto em comum: eles se
apresentam como discursos imperativos, que pontificam sobre uma espécie
de malignidade essencial germânico-nazista que precisava ser punida quase
que com a mesma selvageria que pouco antes era praticada pelas tropas de
Hitler. Com isso, as produções estadunidenses do imediato pós-guerra não
abriam possibilidades para que o espectador ponderasse sobre outras formas
de explicação do nazismo e da sua aceitação por uma parcela considerável da
sociedade alemã, assim como sobre tratamentos alternativos que poderiam ser
oferecidos aos derrotados.
A linha de abordagem estadunidense foi reiterada, com pequenas varia-
ções, pela produção cinematográfica das demais nações Aliadas, especialmen-
te Inglaterra, França e União Soviética. Esta situação, de inegável perversida-
de, ganhou elementos atenuantes a partir da criação da RDA e da RFA e não
foi objeto de reações nas telas por parte dos vencidos até anos mais recentes.
Isto porque os norte-americanos, até o início da década de 1950, como inter-
ventores militares na Alemanha Ocidental, impediram que os estúdios locais
operassem com liberdade, sob o pretexto de impedir que ex-nazistas atuassem
em um setor estratégico de formação da opinião pública, maximizando com
isso os lucros dos estúdios de Hollywood e, ao mesmo tempo, reiterando junto
aos germânicos a missão yankee de preservar o equilíbrio político mundial
(Cánepa, 2006, p. 312).
Apesar da predominância dessa tendência, ainda em 1945 foi inaugurada
na Itália uma estética fílmica inovadora que foi quase imediatamente rotulada
“neorrealismo”, a qual abriu oportunidade para novos olhares sobre a Europa
e os europeus do imediato pós-guerra. Dentre suas produções encontra-se
“Alemanha, ano zero” (Germania, anno zero), peça cinematográfica lançada

12
em 1948, e que consagrou seu diretor, Roberto Rossellini, como o expoente
máximo do movimento neorrealista.
Estabelecido o cenário, o objetivo desse texto é analisar as condições de
produção e o sentido imposto ao “ano zero” alemão na obra mencionada de
Rossellini. Tal opção deve-se ao fato da singularidade do enfoque arquitetado
pelo diretor italiano colocar em destaque a fluência de uma linhagem cine-
matográfica centrada na (re) educação dos espectadores frente ao “dilema ale-
mão”. A análise de Alemanha, ano zero impõe alguns esclarecimentos prelimi-
nares, sendo estes a trajetória de Roberto Rossellini como diretor de cinema e
sua posição central no movimento neorrealista.

Roberto Rossellini e o neorrealismo cinematográfico

Membro de uma família da elite romana, Roberto Rossellini (1906-1977)


interrompeu os estudos universitários para se dedicar ao cinema, tendo como
principal patrono seu amigo Vittorio Mussolini, filho do Duce. Vittorio defen-
dia a função estratégica do cinema na disseminação da ideologia nazifascista,
tornando-se promotor governamental da criação do Cinecittà, um estúdio ci-
nematográfico sediado em Roma que, nas suas origens, buscava se igualar em
equipamentos, nível de especialização profissional e padrão de qualidade aos
disponíveis em Hollywood. Para tanto, emissários italianos, inclusive o pró-
prio Vittorio Mussolini, visitaram os estúdios norte-americanos e receberam
orientações sobre o uso do cinema para a produção de filmes e documentários
comprometidos com a propaganda política.
Após atuar como assistente de som e roteirista em várias produções da
Cinecittà, Rossellini ganhou oportunidade de atuar na direção, primeiro de
documentários e, em seguida, de filmes de ficção que, apesar dos seus insis-
tentes desmentidos posteriores, eram obras de propaganda fascista (Rossellini,
1992, p. 74). La nave bianca (1941), Un pilota ritorna (1942) e L’uomo dalla cro-
ce (1943) foram seus filmes de estreia, cada um deles enfatizando o papel dos
soldados de Mussolini na tentativa ilusória de reconstrução do novo Império
Romano e, ao mesmo tempo, viver suas tramas íntimas. Por seu tom inegavel-
mente atrelado ao regime, a realização desses filmes foi amplamente facilitada
pelo governo fascista e pelas forças armadas italianas, sendo alvo de intensa
propagandização na época de seus lançamentos, o que contribuiu para que
obtivessem aceitação e sucesso de público.

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Em 1943, pouco após o lançamento de L’uomo dalla croce, a Itália depôs
Mussolini, rendeu-se formalmente aos Aliados e teve seu território ocupado
pelas tropas alemãs. Rossellini, como muitos outros intelectuais que haviam
trabalhado para o Estado fascista, corrigiu sua rota, passando a integrar as
forças italianas clandestinas de resistência e aderindo ao comunismo. Quando
o exército nazista foi expulso da Itália, em poucas semanas Rossellini dirigiu
Roma, cidade aberta (Roma città aperta, 1945), primeira peça de sua trilo-
gia da guerra, completada por Paisà (idem, 1946) e Alemanha ano zero. Se
Roma, cidade aberta tem sido considerado o filme inaugural do neorrealismo,
os dois outros componentes da trilogia são avaliados como a confirmação de
Rossellini como diretor neorrealista, marcando não só o ápice de sua carreira
como também sua desqualificação enquanto intelectual de esquerda.
Tanto Rossellini quanto a maior parte dos diretores tocados pelo neorrea-
lismo, dentre eles Vittorio de Sica, Luchino Visconti, Michelangelo Antonioni
e Federico Fellini negaram filiação a qualquer escola cinematográfica, alegan-
do que seus filmes subsequentes ao fim da guerra constituíam-se em exem-
plares de “cinema de autor”. Em depoimento datado dos anos 60, incorporado
ao documentário Roberto Rossellini (Roberto Rossellini: frammenti e battute,
2000), dirigido por Carlo Lizzani, esclarecimentos foram oferecidos pelo pró-
prio homenageado sobre o significado de “cinema de autor”, conceituando-o
vagamente como “o compromisso de um homem, que demonstra talento para
se comunicar, de colocar-se à serviço da comunidade”, omitindo-se em de-
clarar que por tal termo implica na noção de uma abordagem diferenciada e
pessoal de fazer cinema (Bordwell; Thompson, 2013, p.76).
Somente em meados da década de 50, quando a experiência neorrealista
já havia se esgotado, o movimento foi enfatizado por André Bazin que não só
foi prolífico em escrever sobre Rossellini como abriu as páginas do seu Cahiers
du Cinéma para, entre 1954 e 1956, publicar cinco entrevistas com o diretor.
Coube aos Cahiers e aos discípulos de Bazin, que dentro em pouco iriam dar
vida à Nouvelle Vague, redigir os textos canônicos sobre o neorrealismo, os
quais até hoje são invocados como leituras fundamentais para o entendimento
do cinema italiano do pós-guerra (Noguera, 2013, p. 24).
Os fundamentos das inovações rossellinianas estão ancorados no anti-
americanismo do diretor e na sua aversão ao fazer cinematográfico hollywoo-
diano, cuja fórmula condenada foi sintetizada nas palavras do fictício dire-
tor John L. Sullivan, encenado pelo ator Joel McCrea, no momento final de
Contrastes Humanos (Sullivan’s travels, 1941), dirigido por Preston Sturges.

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Após lutar durante anos contra chefes de estúdios para realizar um filme de
crítica social e mesmo experimentar na pele as condições de vida dos margi-
nalizados, no momento em que obteve permissão para realizar a produção
que ambicionava, Sullivan surpreendeu a todos ao rejeitar a tarefa, alegando
então que queria dirigir apenas comédias, explicando que “fazer as pessoas
rirem tem muitos méritos. Sabia que é tudo o que alguns têm? É pouco, mas é
melhor do que nada neste mundo de loucos”, deixando claro seu engajamento
no cinema de entretenimento. Anos depois, declarações semelhantes a esta
foram invocadas por Cesare Zavattini, outro cineasta neorrealista, para advo-
gar que o “grande cinema” constituía-se na estratégia da indústria cultural de
“embaralhar as cartas para esconder a derrota humana” (apud Furhammar;
Isaksson, 2001, p. 79).
Para Rossellini, a função da comunicação em geral e especialmente do
cinema é, a partir de uma ética humanitária e de cunho fenomenológico, ter
como objetivo a sensibilização do público mediante a educação, não se dei-
xando dominar pela ambição do sucesso de público e pelo lucro. Nesse en-
caminhamento, a função do trabalho de direção cinematográfica é adentrar
nesse “mundo de loucos” e causar o estranhamento sobre aquilo que é tido
como suficientemente conhecido, mostrar um fato em si e não demonstrar um
evento a partir de hipóteses pré-estabelecidas, como faziam os norte-america-
nos. Tal postura, ainda segundo o diretor italiano, permitia que o espectador
construísse sua própria verdade e percebesse com clareza as circunstâncias em
que vivia e, sobretudo, sobre como os “outros” viviam (Rossellini, 1992, p. 5).
A partir da noção de que a realidade constitui-se, como advogam os feno-
menologistas, no resultado da negociação entre a verdade exterior e a verdade
do espírito individual, Rossellini entendeu seu cinema como instrumento de
uma educação que instigava a mobilização e a interferência do homem comum
nas grandes estruturas da sociedade. Seria a partir dessa experiência cinemato-
gráfica singular que os indivíduos e os agrupamentos sociais poderiam ganhar
consciência, isto é, desalienarem-se, rejeitarem explicações fantasiosas e partici-
parem ativamente e com solidariedade no mundo (Quintana, 1995, p. 18).
A busca pela exposição da essência do espírito humano sob condições
adversas, tema recorrente no cinema de Rossellini, conferiu à poética neor-
realista contornos próprios, não se equiparando a outras propostas cinemato-
gráficas que se apresentavam como projeções da realidade. O realismo italiano
não se confunde com o realismo do cinema soviético porque este se mostrava
inegavelmente subordinado a Stalin e à uma ideologia que fazia a realidade

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ganhar um sentido apriorístico; também se distinguia do naturalismo do cine-
ma francês que pelos efeitos do intenso trabalho de montagem, mantinha laços
tênues com a realidade, fragilizando seu potencial de permitir que o especta-
dor buscasse (re)pensar as questões coletivas (Bazin, 2014, p.110).
A partir dessa ética instrutora de uma definição de cinema é que foi eri-
gida a estética neorrealista. Para “mordiscar todos os dias um pedaço da ver-
dade” (Rossellini, 1992, p. 11), o diretor comprometeu-se em retratar a Europa
do pós- guerra, e as experiências nacionais ou regionais, indicando já no tí-
tulo de vários de seus filmes a região nas quais transcorreriam as encenações
(Roma, Stromboli, Alemanha, Europa). Rossellini serviu-se de um conjunto de
recursos que dispersos nos escritos de Bazin (2014) constituem-se basicamente
no recrutamento de atores não profissionais, cobrando destes mais do que a
interpretação segundo as linhagens interpretativas, a expressão de suas rea-
ções pessoais frente aos horrores que povoam o cotidiano, circunstâncias que
interferiam pesadamente no desenvolvimento do roteiro. Junto a isso, tomadas
exteriores, planos mais chocantes que esteticamente belos e amplas panorâmi-
cas tomadas em locações reais e sob iluminação natural eram utilizados para
contar micro-histórias de homens comuns, mas, mesmo assim, trajetórias de
protagonistas que não se limitavam às suas tramas privadas de vida, mas às
condições de existência das multidões que cada personagem emblematizava.
Os filmes de Rossellini assumem dimensões documentais, avizinhan-
do-se do teor das reportagens. Nas peças cinematográficas, situações banais
desempenham um sentido indicativo das circunstâncias do viver no mun-
do pós- guerra, gerando até hoje inquietação e angústia em quem as assis-
te. No entanto, “a arte se propõe a ir além da realidade, não a reproduzi-la”
(Bazin, 2014, p. 328). Nesse sentido, é significativo destacar que nos filmes de
Rossellini os eventos e situações são (re)construídos em seus elementos essen-
ciais, ao mesmo tempo de forma sintética e elíptica. Cada tomada mostra-se
longa, com o mínimo possível de ornamentação cênica e com raros efeitos de
montagem, sendo que mesmo as falas dos personagens são avaras em palavras.
É na expressão de corpos continuamente em movimento e emoldurados por
cenários com marcas da destruição e da miséria, em olhares furtivos, solitários
e amedrontados que se revelam os dramas vivenciados pelos vencidos.
Tais elementos foram considerados revolucionários no contexto da arte do
fazer cinematográfico. Roma, cidade aberta ganhou fama imediata, inclusive nos
Estados Unidos, obtendo sucesso de bilheteria e chamando a atenção dos críti-
cos. Em 1949, Lauro Venturi, italiano formado em cinema na América, frisou

16
o antigo vínculo entre Rossellini e o cinema fascista e ressaltou que, se Roma,
cidade aberta foi bem acolhido nos Estados Unidos, isto se deu não pela temática
explorada, mas sim pelo conjunto de imprecisões que o filme comportava, onde
se incluem roteiro mal definido, fotografia rudimentar, iluminação precária e
a ausência de sincronia na dublagem de laboratório, já que os sons não eram
gravados ao mesmo tempo que as imagens. Para o crítico, não era a ótica huma-
nista adotada pelo cinema italiano, mas sim as condições técnicas imperfeitas
que faziam os filmes de Rossellini contrastar com o que era feito nos estúdios de
Hollywood. O texto ressaltou também que o escopo realista e documental não
eram uma novidade no cinema italiano, estando presente, mesmo que não com
a mesma intensidade, em outras produções, inclusive em Obsessão, (Ossessione,
1942), dirigido por Luchino Visconti (Venturi, 1949).
No documentário já mencionado de Carlo Lizzani, a atriz sueca Ingrid
Bergman, que atuou em cinco filmes de Rossellini, destacou o comportamento
autoritário do diretor, assim como confessou ter se chocado, depois de anos
atuando no cinema estadunidense, com a sucessão de evidências de amado-
rismo, improvisos e a precariedade técnica que pontuavam os filmes do ex-
marido. No mesmo documentário, outros depoentes tentaram justificar o
modo rosselliniano de produção cinematográfica. Martin Scorsese, declarou
que o diretor italiano nutria intenso desapego ao apuro técnico para conseguir
de seus atores a expressão da “verdade sobre as emoções humanas”; François
Truffaut foi mais específico ao lembrar que

(...) [Éric] Rohmer disse, certa vez que a genialidade de Rossellini


era a sua falta de imaginação. Significava que ele não gostava de
invenções, de artifícios, não gostava de flash-back, não aceitava
truques, ele era contrário à ficção.

O reconhecimento internacional de Roma, cidade aberta, no entanto, foi


durante anos tido como o ápice e também como início do declínio do diretor
pelos críticos que não reconheceram a intenção educadora que instruía os fil-
mes neorrealistas. Paisà não foi tão bem recebido pelo público e pela crítica, as
quais se tornaram mais ferinas na avaliação de Alemanha, ano zero. Tolerados
no exterior, os filmes de Rossellini não obtiveram aceitação na Itália, sobretu-
do pelo passado comprometido com o fascismo de um cineasta que se apre-
sentava como comunista, sem, no entanto, seguir a orientação ideológica do
Partido Comunista Italiano na articulação das mensagens embutidas em seus

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filmes. Mais ainda, o escândalo público propiciado pelo seu casamento com
Ingrid Bergman (ambos eram casados e abandonaram seus cônjuges para fi-
carem juntos) e a condenação pela Igreja Católica dos pretensamente heréti-
cos O amor (L’amore, 1948) e Francisco, arauto de Deus (Francesco, giullare di
Dio, 1950) fizeram do diretor um personagem reprovado inclusive nos Estados
Unidos. Como confidenciou o próprio Rossellini, “a imprensa do mundo in-
teiro arrastava-me na lama” (Rossellini, 1992, p. 77).

Alemanha, ano zero

A pacificação decorrente da derrota nazista não implicou na imediata


tranquilidade social e na paz espiritual dos alemães, fato que foi pouco ex-
plorado pelos avaliadores acadêmicos do “ano zero”, da mesma forma que,
acomodados em registrar os cenários de destruição e escassez de quase tudo,
poucos perceberam a insistente demanda por esclarecimento sobre a nova
identidade continental do pós-guerra e sobre a redefinição dos fundamentos
gestores da “civilização europeia” O que restou após a hecatombe bélica, tanto
para os vencidos quanto para os vencedores, foi a terrível sensação de declínio
cultural e humanístico (Judt, 2008, p. 217).
Nesse contexto, após empenhar-se em oferecer respostas às indagações
identitárias italianas em Roma, cidade aberta e Paisà e se tornar alvo fácil de
críticas da esquerda, Rossellini transferiu-se para um hotel parisiense, onde
permaneceu por quase um ano para elaborar o rascunho do roteiro do seu
filme sobre a Alemanha e os alemães, postando-se como “vencido vencedor”
do conflito mundial (a Itália tinha declarado guerra ao Japão nos últimos dias
de julho de 1945). No hotel, encontrou-se com Marlene Dietrich, que lá vivia
com seu amante, o ator Jean Gabin. Foi com as informações prestadas por
Dietrich, que entrara em Berlim logo após o fim da guerra e se defrontara com
as condições de vida dos derrotados, que o diretor italiano elaborou o roteiro
do seu Ano Zero. Mais do que isso, Rossellini e Dietrich mantiveram um caso
amoroso, fato que só foi revelado em 1997, pelo diretor belga Henri Storck. O
cineasta italiano e a atriz alemã e antinazista selecionaram o menino Edmund
Moeschke, que trabalhava como acróbata em circo da capital francesa, para
desempenhar o papel de protagonista do novo filme e, quando Rossellini par-
tiu para Berlim no verão de 1947, Dietrich o acompanhou, servindo de secre-
tária, datilógrafa e tradutora, certamente influenciando na percepção do seu

18
companheiro sobre o contexto germânico (IMDB, 2017; Quintana, 1995, p.
89).
A definição de um olhar diferenciado sobre os alemães coagiu o diretor a
tomar cuidados maiores na sua produção. Em um momento que ainda ecoava
entre os Aliados brados como “maldita seja a Alemanha”, “que Deus devaste
a Alemanha como castigo” e “alemão bom é alemão morto” (Gilbert, 2014,
p. 781), Rossellini, sentiu-se forçado a declarar suas intenções a partir de um
longo texto que ele próprio leu na abertura do filme, não só para proteger-se
de mais uma avalanche de críticas como também para reiterar o propósito de
sua atividade cinematográfica:

Este filme (...) espera retratar de forma objetiva e fiel esta imen-
sa cidade destruída onde 3,5 milhões de pessoas vivem uma vida
terrível. Uma vida de desespero, quase sem se darem conta. Elas
vivem como se a tragédia fosse um elemento natural, não por se-
rem fortes ou por terem fé, mas por estarem cansadas. Não se trata
de uma acusação contra o povo alemão e nem uma defesa. É uma
simples constatação dos fatos.

Em seguida, ressaltou o caráter humanístico de sua produção

(...) se alguém após assistir à história de Edmund Köhler passar


a achar que algo deva ser feito e que as crianças alemãs precisam
reaprender a amar a vida, então os esforços daqueles que fizeram
este filme serão imensamente recompensandos.

O emprego de um pré-adolescente como protagonista não se consti-


tuiu em uma estratégia de dramatização como até então o cinema realiza-
va. Diferentemente das imagens excessivamente ingênuas de Judy Garland,
Mickey Rooney e tantos outros atores jovens, Edmund Moeschke representou
Edmund Moeschke, uma “criança envelhecida” de 12 anos que, educada pelos
valores nazistas, deixava transparecer apatia frente a uma realidade adversa,
como se houvesse naturalizado no seu espírito a inevitabilidade do primado
do caos.
Membro de uma família esfacelada pela guerra, Edmund vê-se obrigado
a abandonar os estudos para se tornar o único provedor de um grupo consti-
tuído pelo pai doente, uma irmã que se prostitui para as forças de ocupação

19
e, mesmo assim, pouco contribuindo para o sustento do grupo doméstico, e
um irmão adulto, que se esconde de todos para não ser punido pelo seu passa-
do como integrante das tropas nazistas. Moradores em um prédio arruinado,
onde tudo precisa ser racionado, da luz e água à alimentação, Edmund busca
meios de sobrevivência numa cidade destruída e ocupada por uma população
de seres tocados pela tragédia e pelo desconsolo.
A incomunicabilidade entre os personagens é intensa, fazendo que os
primeiros ¾ do filme sejam ocupados com longas panorâmicas sobre Berlim
semidestruída e sobre o estado ético e moral dos vencidos. Edmund peram-
bula nos cenários devastados, buscando algo que pudesse contribuir para a
sobrevivência do que restou de sua família. Nesse curso, tenta já no início da
encenação, trabalhar como coveiro, mas é acusado por outras pessoas que dis-
putavam o mesmo ganha pão de ser jovem demais para exercer a tarefa. O que
lhe resta é atuar junto ao mercado negro, levando de sua casa tudo que pudesse
ser vendido por um preço exíguo ou trocado por algum alimento. Ao executar
esta missão, defronta-se com cenas de desespero como a de populares famintos
lançando-se sobre um cavalo em agonia para arrancar-lhe partes do corpo ou
a disputa pela coleta de um pouco de carvão que um caminhão acidentalmente
derramou na via pública. Apesar de conviver diariamente com situações como
estas, o menino tenta manter alguns traços de juventude, brincando solitaria-
mente ou tentando se socializar com outros meninos para jogar bola. Apesar
disso, em tudo são ressaltadas a solidão e o desespero do infante desamparado.
Nesse ínterim, Edmund depara-se casualmente com um ex-professor que
tivera na escola. Nazista, o velho docente tem realçado pelas câmeras sua con-
dição de pedófilo, articulação que Rossellini já havia explorado em outras fitas
entre o que então era definido como perversão sexual e o apego às ideologias
totalitárias. Esse professor aproveita-se do menino, não só o acariciando des-
pudoradamente, mas também agenciando-o para a venda de seus produtos no
mercado negro. Um desses itens constitui-se em um disco gravado com um
discurso proferido por Hitler. Cena altamente simbólica da fita, esse disco é
tocado para um potencial comprador no espaço público. A voz esbaforida do
ditador ecoa pelo cenário de ruínas, imobilizando alguns transeuntes, como se
o fantasma do Führer insistisse em continuar pairando sobre a cidade que ele
vislumbrou como futura capital do mundo.
Mesmo que não se alinhasse com a mácula de que todo alemão era nazista,
Rossellini não se mostrou indiferente à noção de culpabilidade coletiva dos
germânicos, por mais que buscasse estabelecer um novo olhar sobre a pátria

20
dos derrotados. Acamado e sem direito de usufruir de tratamento hospitalar
por mais do que alguns dias, o velho Köhler mune-se de coragem para con-
fidenciar o que sentia para seus filhos, especialmente para Karl-Heinz, que
integrara o exército nazista. No mais longo trecho do filme onde há a fala de
um personagem, o enfermo pronuncia-se, em tom desesperado:

(...) eu esperava que você [Karl-Heinz] já tivesse assumido a res-


ponsabilidade. (...) Eu queria que sua mãe estivesse viva, mas eles a
tiraram de mim. Tudo me foi levado; meu dinheiro foi levado pela
inflação, meus filhos foram levados por Hitler. Eu devia ter lutado,
mas não fui forte o bastante como tantos da minha geração. Nós
vimos o desastre chegando e não fizemos nada a respeito. E hoje,
sofremos as consequências. Estamos pagando por nossos erros.
Vocês e eu temos que enxergar as nossas falhas, pois reclamar não
adianta.

Incomodado com o discurso paterno, o menino tenta interromper a fala


do pai, vagando pelo quarto e oferecendo ao ancião uma rala sopa. Em seu
espírito parecia fluir a mensagem do antigo professor na qual perseverava o
princípio nazista segundo o qual o mundo deveria ser possuído pelos fortes,
os quais não deveriam permitir a sobrevivência dos mais frágeis. E seu pai não
só estava acometido por uma enfermidade da qual jamais se recuperaria como
também revelava-se fraco ao condenar a ideologia hitlerista.
Na cena seguinte, Edmund é novamente surpreendido vagando entre as
ruínas berlinenses, remoendo em seu íntimo a ideologia que aprendera na es-
cola. Ao retornar à sua residência, o menino encontra-se sozinho com o velho
acamado e, sem demonstrar qualquer emoção, assassina o pai, como se esti-
vesse praticando uma ação sem qualquer consequência maior. Ato contínuo,
volta a perambular sem objetivo e destino pela Berlim semi-destruída.
No entanto, Rossellini não pensava em incorporar em seu filme um per-
sonagem destituído de uma ética que, no mínimo, acolhesse o sentimento de
culpa. Por mais que o menino não apresentasse traços emocionais ao executar
o pai, no momento final da encenação, ele encontra-se nos andares superiores
de um prédio que, como quase todos os outros, havia sofrido intensas ava-
rias devido aos bombardeios Aliados. Nesse ambiente, ele busca alguma for-
ma de distração ou algo que pudesse ser levado para venda no mercado, mas,
nada encontrando, acaba de forma displicente se aproximando da beirada da

21
edificação e, ainda sem demonstrar qualquer tipo de emoção, mas possivel-
mente tomado de súbita consciência pelo que fizera e de como vivia, lança-se
no vazio ao encontro da morte.
A profusão de simbolismos no filme mantém-se até a cena derradeira.
Uma testemunha do acontecimento apressa-se em verificar se Edmund ain-
da está vivo e, de imediato, percebe que há apenas um cadáver. As lentes da
câmara deslocam-se então para um bonde vazio que trafega pela rua e, dele,
para um cenário mais amplo e corriqueiro no filme: a cidade destruída. Viver
ou morrer parecia não ter mais importância para os vencidos; e é isso que o
menino simbolizou.
O diretor foi até a Alemanha para retratar a identidade alemã e, a partir
disso sensibilizar as plateias que assistiriam seu filme. Torna-se importante
também destacar que Rossellini definia suas produções fílmicas como sen-
do obras que se aproximavam de ensaios sociológicos. Lembrando ainda que
os neorrealistas inquiriam a “realidade humana” como “fato social” (Bazin,
2014, p. 377), reportando-se a um dos conceitos fundamentais da sociologia
durkheimiana. Nesse sentido, vale a pena avaliar que Edmund Köhler, ao
buscar a morte autoprovocada, representava uma legião de alemães que, no
transcorrer do “ano zero”, colocaram fim à vida por não conseguirem convi-
ver com a necessidade e urgência da redefinição da identidade nacional, o que
implicava também na correção da identificação individual (Elias, 1997, p. 316).
Fala-se, pois, no suicídio cinematográfico de Edmund como a elaboração,
nos termos de Rossellini, de uma “realidade sintética” cujo suporte conceitual
encontra-se na definição de anomia, quando o desajuste entre um contexto
social de crise e uma consciência cultural instruída com valores anteriores à
própria crise nutre a percepção da inviabilidade de esperanças e projetos em
relação ao futuro (Durkheim, 1971, p. 203). Nestes termos, o suicídio coletivo
abre-se como opção mais do que possível, desejada.

Considerações finais

Pontificou-se que o filme analisado constituiu-se na última incursão reali-


zada por Rossellini no campo do neorrealismo. Alemanha, ano zero foi desqua-
lificada como uma obra de pouca importância, sendo premiada apenas no então
apagado Festival de Cinema de Locarno. As críticas ao diretor e ao seu filme
tinham como elemento em comum a suposição de que o cinema não poderia

22
ser instrumento de educação, mas sim um dispositivo privilegiado da indústria
de entretenimento, isto é, de fuga do real. Com isso, Hollywood reafirmava seu
poder hegemônico inclusive em relação ao cinema produzido na Europa.
Apesar disso, Rossellini abriu novas possibilidades para o questionamento
da identidade alemã. A herança intelectual do diretor mantém-se viva, instruin-
do outras peças fílmicas inclusive na Alemanha reunificada em 1990 (Cooke,
2011, p. 327). A necessidade de novas inquirições sobre quem são os germâni-
cos frutificou em produções cinematográficas como O Milagre de Berna (Das
wunder von Bern, 2003) e Ele está de volta (Er ist wieder da, 2015). Com isso,
fica evidente o fato de a comunicação massiva continuar se apresentando como
uma vigorosa possibilidade de constituição de uma educação entrelaçada com o
autoconhecimento nacional e a solidariedade de todos os povos.

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BAZIN, A. Due soldi di speranza. In: IDEM. O que é o cinema? São Paulo: Cosac Naif,
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Campinas: EDUSP; Ed. UNICAMP, 2013.

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DOLAN JR., E.F. Hollywood goes to war. London: Hamlyn, 1985. DURKHEIM, E. El
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23
ELIAS, N. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio
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FURHAMMAR, L.; ISAKSSON, F. Cinema e política. 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/1209379>. Acesso em: 07 Abr. 2017.

Filmografia

A mundana (A foreign affair). Dir. Billy Wilder. Estados Unidos: Paramount Pictures,
1948. DVD. (116 min.), P&B, legendado, Port.

Alemanha, ano zero (Germania anno zero). Dir. Roberto Rossellini. Itália; França:
Tevere Film; SAFDI; Union Générale Cinématographique, 1948, DVD. (71 min.), P&B,
legendado, Port.

Contrastes humanos (Sullivan’s travels). Dir. Preston Sturges. Estados Unidos:


Paramount Pictures, 1941, DVD. (90 min.), P&B, Legendado, Port.

Ele está de volta (Er ist wieder da). Dir. David Wnendt. Alemanha: Mythos Film;
Claussen Wöbke Putz Filmproduktion; Constantin Film, 2015, VD, (116 min,), Color,
legendado, Port.

24
Francisco, arauto de Deus (Francesco, giullare di Dio). Dir. Roberto Rossellini. Itália:
Cineriz; Rizzoli Film, 1950, DVD. (85 min.), Legendado, Port.

L’uomo dalla croce. Dir. Roberto Rossellini. Itália: ContinentalCine, 1943, VD. (72
min.), P&B, Legendado, Ingl.

La nave bianca. Dir. Roberto Rossellini. Itália: Centro Cinematografico del Ministero
dela Marina; Scala Film, 1941, VD. (77 min.), P&B, Legendado, Ingl.

O amor (L’amore). Dir. Roberto Rossellini. Itália: Finecine; Tevere Film, 1948, DVD. (69
min.), P&B, Legendado, Port.

O milagre de Berna (Das wunder von Bern). Dir. Sönke Wortmann. Alemanha: Little
Shark Entertainment; Senator Filmproduktion; Seven Pictures, 2003, DVD. (118 min.),
Color, legendado, Port.

Paisà (Idem). Dir. Roberto Rossellini. Itália. Organizzacione Film Internazionali; Foreign
Film Productions, 1946, DVD. (126 min), P&B, legendado, Port.

Perdidos na tormenta (The search). Dir. Fred Zinnemann. Estados Unidos; Suiça:
Praesens-Film, 1948, DVD. (104 min.), P&B, legendado, Port.

Roberto Rossellini (Roberto Rossellini: frammenti e battute). Dir. Carlo Lizzani. Itália:
Felix Film; RAI Cinema, 2000, DVD. (63 min.), P&B e Color, legendado, Port.

Roma, cidade aberta (Roma, città aperta). Dir. Roberto Rossellini. Itália: Excelsa Film,
1945, DVD. (103 min.), P&B, legendado, Port.

Un pilota ritorna. Dir. Roberto Rossellini. Itália: Alleanza Cinematografica Italiana,


1942, VD. (87 min.), P&B, Legendado, Ingl.

25
ENTRE CRUEZA E CLICHÊ:
MORTE E VIDA SEVERINA NA TV GLOBO
Marcelo Bulhões

Morte e Vida Severina, especial exibido em 1982, é considerado uma das


grandes realizações da televisão brasileira. Adaptação do poema de João Cabral
de Melo Neto, produzido pela TV Globo e dirigido por Walter Avancini, seu
êxito se mediu principalmente pelos prêmios Ondas na Espanha e o Emmy
do International Council of the National Academy of Arts and Sciences nos
Estados Unidos, além da difusão em distintos países. Neste artigo, tomo o
“caso” Morte e Vida Severina para discutir alguns aspectos que julgo salientes
na adaptação televisual no cerne de nossa teledramaturgia.
Como procurarei demonstrar – mesmo que de modo breve –, a adaptação
televisiva de uma obra literária importante é tomada por influxos estético-
contextuais que se fixam em sua composição estética. Basicamente, minhas
considerações flagrarão certo recorte do influxo cinematográfico, com o apar-
te para o Cinema Novo, e algumas mutações vividas pela televisão brasileira
nas suas primeiras décadas para flagrar de que modo tais aspectos se arre-
messam a ponto de se converterem em feixes estilístico-formais alojados na
configuração audiovisual de Morte e Vida Severina. Os limites de um artigo
impõem escolhas, o que me levou a deixar de lado outras trilhas certamente
pertinentes, como a relação entre o especial de TV Morte Vida e a versão cine-
matográfica da mesma obra, de 1977, sob direção de Zelito Viana. As escolhas
que fiz buscam apontar para a maneira como a adaptação da TV Globo de um
“clássico moderno” de nossa literatura, produção tida por muitos como “mar-
co” da teledramaturgia brasileira, congregaria algumas matizes e conflitos

26
estéticos de décadas anteriores que se converteriam no eixo de uma tensão
fundamental: a dicotomia crueza/clichê. Se esse caminho for válido, o “caso”
Morte Vida pode servir à visada de um horizonte mais amplo.

Adaptando-se à TV: d’O Sheik de Agadir a Severino

Morte e Vida Severina não constituía novidade do setor teledramatúrgico


da TV Globo ao recorrer a uma obra literária brasileira de grande importância.
Desde seu início, nos anos 60, a Globo apostou em adaptações – o que aliás era
comum em outras emissoras brasileiras e na teledramaturgia internacional –
de obras de escritores brasileiros e da literatura universal. Aliás, a adaptação de
obras literárias e dramatúrgicas de vulto esteve na arrancada da televisão no
Brasil, nos anos 50, quando os teleteatros levavam à tela obras de Shakespeare,
Gogol, Lorca, Dostoiévski, Goethe, entre outros, encenados ao vivo.
Mas o início teledramatúrgico por meio da adaptação se fez na TV Globo
com apelo ao universo narrativo popular. Já em 1965, ano em que a Globo com-
prou a TV Paulista, uma das mais populares narrativas do nosso Romantismo,
A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, ganhava adaptação com direção
de Otávio da Graça Mello. E o que dizer de O Ébrio, no mesmo ano?O Ébrio é
exemplo de caudal frutífero, espécie de centopeia melodramática cujos segui-
mentos renderam uma série de produtos para o gosto popular. Sua “transpo-
sição” para a Globo em 1965 fez parte de uma cadeia que começara com uma
canção lacrimosa dos anos 30 do compositor e cantor altissonante Vicente
Celestino – nosso “Caruso tropical” da era do rádio –, transformara-se em fil-
me dirigido por Gilda de Abreu (esposa do cantor) de imenso sucesso em 1946
– superou em muitos recantos do país E o Vento Levou... –, tendo sido antes
adaptada para peça de teatro. Mesmo que saibamos das singulares que apar-
tam a faceirice adocicada de A Moreninha do dramalhão etílico de O Ébrio,
é inegável nessa arrancada de adaptações da emissora um eixo popular-ro-
mântico- folhetinesco-melodramático da ficção teledramatúrgica. E tal eixo
comporta boa dosagem da carga genética na linhagem das radionovelas de
clara associação ao padrão de dramalhão mexicano e cubano, como nos casos
de Eu Compro essa Mulher, de 1966, escrita por Glória Magadan – roteirista
cubana cujo nome ficaria definitivamente associada a tal estirpe – e dirigida
por Henrique Martins e Régis Cardoso, a adaptação de O Conde de Monte
Cristo, de Alexandre Dumas, e O Sheik de Agadir, 1967. O tom lacrimoso

27
folhetinesco-melodramático do “padrão Magadan” em alguns casos se assen-
tava em linhagem “de capa espada”, ora com o “requinte” de cenários europeus
do século XIX, ora com o “exotismo” do mundo árabe, ambos com a embala-
gem de estilização kitsh afim à venda de creme dental e água de colônia para
o público feminino. Quando não, uma ópera, como Madame Buterfly, serviu
de molde a uma narrativa em tudo calcada em escapismo romântico do XIX.
Na busca pelo arrebate das sensibilidades dos telespectadores a moldura de
teledramaturgia portava a inequívoco contorno do repertório da radionovela.
Mas a aragem de renovação chegaria à Globo sob o influxo de Beto
Rockfeller, de 1968 da TV Tupi, escrita por Bráulio Pedroso, marco da ruptura
do padrão melodramático-cubano-mexicano pelo despojamento coloquial e
humor farsesco na história de um pícaro moderno que busca se passar por
grã-fino. A Globo buscaria tais ares, embora de modo mais comedido do que a
desenvoltura malandra de Beto, em Véu de Noiva, escrita por Janete Clair, tri-
lha seguida na década de 1970 por Pigmalião 70, adaptação de obra de Bernard
Shaw, Irmãos Coragem e O Cafona. O desvio do padrão fixado com O Direito
de Nascer – melodrama radiofônico cubano de 1946 que se tornou protótipo
em toda América Latina durante décadas – paulatinamente despojava das te-
lenovelas a tintura piegas em situações rocambolescas em larga medida dis-
tantes do cotidiano “reles” da vida nacional, solapando as esdrúxulas areias do
deserto do Saara do Sheik de Agadir – na verdade as areias das dunas de Cabo
Frio, litoral fluminense. Embora sob a designação de “enredos modernos” pos-
sa se reconhecer uma demão de fraco verniz que procurava disfarçar o novelo
melodramático das tramas, buscava-se constituir o emblema da contempora-
neidade em histórias ancoradas no chão da atualidade prosaica, com o solo
nacional remetido na telinha. E o “chão cotidiano” da vida brasileira parecia
ser pisado de modo mais firme ainda em 1970 com Verão Vermelho de Dias
Gomes, o mesmo autor cuja produção dramatúrgica, exitosa uma década atrás
em O Pagador de Promessas, demonstrava afinidades com autores brasileiros
de “verve social” da estirpe de José Américo de Almeida, Dyonélio Machado,
Graciliano Ramos, Jorge Amado e Raquel de Queiroz. Tal vetor de afinidade
com o nosso “neo-realismo de 30”, divisado no modo como o mundo provin-
ciano, a uma só vez metáfora e microcosmo do Brasil, parecia se atualizar nas
cores que naquele momento chegavam à TV Globo: tanto em O Bem Amado
(1973), de Dias Gomes, como em Gabriela (1975), adaptação textual de Walter
George Durst e direção do próprio Avancini de um dos romances mais popu-
lares de Jorge Amado, o tratamento humorístico-farsesco pregnante e mesmo

28
ácido para o reconhecimento da fisionomia provinciana do país que vivia o
“milagre econômico” associava-se à mordaz verificação do coronelismo polí-
tico como face penosa da mesma moeda. Grabriela comportava a tensão entre
a verve de denúncia da ordenação social e da opressão política brasileiras e
a idealização pelo resplandecer de uma sensualidade simpática, sexualidade
tropical desrecalcada que acabaria amolecendo o próprio teor crítico, convi-
dando a um olhar compassivo com aquele mundo que parecia denunciar. De
qualquer modo, naquela altura o êxito de público dessas telenovelas punha a
TV Globo nos trilhos da incorporação de leituras de escritores brasileiros mo-
dernos e em visada “regional”, não sendo de estranhar que o percurso seguisse
com “casos especiais” em adaptações de obras de Jorge Amado e Graciliano,
como Quincas Berro D’água (1978) e São Bernardo (1983).
O que nos leva a Morte e Vida Severina. Sob a perspectiva dessa brevíssima
passagem que vai do padrão folhetinesco-melodramático de O Sheik de Agadir
à incorporação de repertório da literatura moderna brasileira com obras de
Graciliano, Jorge Amado e João Cabral de Melo Neto, entre outros, o caminho
que se cruza com a peregrinação do retirante de Morte e Vida Severina serve para
flagrar sensíveis mutações que se deram do contexto da ficção televisiva produ-
zida pela Globo. Mas um olhar, também breve, deve ser remetido ao cinema.

Flagrante do retirante: do poema ao palco; e à tela

Se esses apontamentos sinalizam balizas da ultrapassagem feita pela TV


Globo do padrão folhetinesco-melodramático televisivo com sua herança ra-
diofônica, a presença do cinema deve ser evocada para o que nos interessa na
adaptação de Walter Avancini de Morte e Vida Severina. Afinal, os passos da
teledramaturgia estiveram, sobretudo nas primeiras décadas da TV no Brasil,
em colóquio direto com as genealogias narrativo-ficcionais do rádio e do cine-
ma. Aliás, Morte e Vida Severina foi filme, sob a direção de Zelito Viana, em
1977. E o caudal televisão-cinema-literatura aqui interessa para se avaliar de
modo mais acurado o que se vê na adaptação da TV Globo de Morte e Vida
Severina em sua configuração audiovisual.
Na altura em que Morte e Vida Severina foi levado ao ar pela Globo, certa
iconografia do Brasil já estava bastante assentada, podendo ser prontamente
reconhecida em visada rápida, de esguelha até, na adaptação do poema nar-
rativo de João Cabral de Mello Neto. Afinal, na tela da TV estava a figura

29
do sertanejo nordestino em fisionomia inconfundível e sua paisagem áspera
em trânsito, do agreste dominado pelo latifúndio para a degradação da ci-
dade grande. O périplo de Severino na TV, o protagonista do Auto de Natal
Pernambucano de Cabral, parecia recolher uma representação imagística do
ser e da geografia brasileiras configurada pelo Cinema Novo. Como Manuel
de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, Fabiano de Vidas
Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e muitos dos tipos de Os Fuzis
(1964), de Ruy Guerra, para ficarmos em três exemplos bem conhecidos do
ápice do Cinema Novo (1963), o Severino de Avancini é efígie do sertanejo
em pugna desalentada e anti-heroica com o meio e suas condições sociais
insustentáveis.
No início de uma década em que o cinema e a TV inflacionariam uma
imagística hedonismo do Brasil – nos corpos de biquíni e sunga das praias do
Rio, emblemas que invadem telenovelas e telejornais, passando pela publicida-
de –, o selo da crueza cinemanovista de matriz neorrealista parecia, a contr-
pelo, migrar e caminhar na figura mirrada do ator José Dumont encarnando
Severino, atravessando a tela daquela emissora considerada braço direito da
ditadura militar.
Se a contextura do Cinema Novo estava desfocada, deslocada do momento
cinematográfico brasileiro dos anos 80 a ponto de um filme como A Noite do
Espantalho (1974), por exemplo, dar bem à vista o desgaste daquela fisionomia
antes vicejante, vertendo-se no filme de Sérgio Ricardo em espécie de embuste,
figura epigônica ou decalque pálido de Manuel de Deus e o Diabo ou Fabiano
de Vidas Secas, representação “fora do tempo”, a presença de um regime ima-
gético que chamava o legado cinemanovista no ambiente televisivo da Globo
não conduzia, no entanto, a um estranhamento justamente pelos apontamentos
que fiz há pouco, o da passagem do padrão folhetinesco-melodramático para a
ancoragem à “modernidade” teledramatúrgica. E – nota à margem – o consór-
cio da Globo com o regime militar era “dialético”, bastando lembrar a acolhida
em sua grade profissional de artistas que genericamente pareciam postados “à
esquerda”. Esses apontamentos dão o que pensar pelos nós cegos que formam,
entretecimento de vetores em torno da adaptação audiovisual de uma obra lite-
rária da envergadura do poema de Cabral no trânsito das décadas. Nisso tudo, o
panorama complexo deve ser adensado pela constatação de cruzamentos, contá-
gios e tensões entre veículos e sistemas semióticos distintos.
Em fase intensa de difusão da matriz nacional popular combativa, arco dos
anos 50 aos 60, o apelo de clamor social do poema de Cabral foi potencializado

30
com a associação a um dos artistas emblemáticos na fase aguda de tensão ao
regime militar, Chico Buarque, com parte dos versos de Morte e Vida tornados
temas musicais pelo compositor para o espetáculo no teatro Tuca em setembro
de 1965. A faixa “Funeral de um Lavrador”, um dos temas musicais que Chico
compôs para o poema de Cabral, faria parte do álbum do compositor no auge
do acirramento político brasileiro, 1968. Se pouco tempo separa a leitura-a-
daptação cinematográfica que Nelson Pereira fez de Vidas Secas, 1963, e Morte
e Vida, 1963, no palco do Tuca, flagrante é a releitura geracional nos termos de
um alinhamento para embates em seus contextos particulares: jovens artistas
“militantes” dos 60, Nelson Pereira dos Santos e Chico Buarque, faziam leitu-
ras- recriações de dois escritores brasileiros modernos cujas obras teriam sido
“combativas” em suas épocas. O canto de Chico, cujo despojamento como re-
cusa de impostação vocal foi apreendido de João Gilberto – canto “a palo seco”,
se se quiser usar um verso do próprio João Cabral – é modo de alinhamento à
poética de Morte e Vida em sua propositura concisa, anti-afetação. De modo
similar, a poética “seca” da câmera de Nelson Pereira, depurada pelos preceitos
do Neorrealismo italiano, é correlativa à conhecida estética da concisão esti-
lística de Graciliano Ramos. A leitura-recriação que Nelson Pereira e Chico
Buarque fazem de Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto opera, pois,
como reprogramação de duas obras cujo teor combativo é coligado profun-
damente a uma estilística da concisão. Irmanadas, as estéticas de Graciliano
e Cabral são reprogramadas para o calor da hora da geração de jovens que
protestavam contra o Regime Militar e que tinham no Cinema Novo (Nelson
Pereira) e na “canção de protesto” (Chico Buarque) expressões emblemáticas
de combate. Reprogramação de duas estéticas literárias cujas afinidades são
declaradas, em escrita metapoética, nos versos do poema “Graciliano Ramos”,
de João Cabral:

Falo somente com o que falo:


com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,


resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto de cicatriz clara.

31
(...)
(Melo Neto, 1994)

Publicado em 1956 no livro Duas Águas, Morte e Vida Severina possui


forte impregnação da tradição poética ibérica, ao mesmo tempo enformada no
lastro da poesia nordestina. A severidade do poeta conhecido como engenhei-
ro, matriz modernista “racionalista” que tanto interessará ao Concretismo,
tem na voz ibérica uma fonte de atualização pelo viés do verso rigoroso, numa
mescla entre os caldos da cultura popular pernambucana e o romance ibérico,
catalão, e a tradição arcaica portuguesa. Os versos de um poeta “substantivo”,
despojado e francamente avesso à tradição lírico-romântica, foram conver-
tidos, transcodificados em criação de mise-en-scène primeiro teatral depois
televisiva.
Difícil resistir à especulação: o quanto há do espetáculo teatral de 1965
no especial televisivo de Avancini? Se o eixo comum evidente é a presença dos
mesmos temas musicais de Chico Buarque para o espetáculo do Tuca no espe-
cial da Globo, outros aspectos deveriam ser avaliados, mas o problema se torna
agudo principalmente quando se leva em conta que teatro e cinema são siste-
mas semióticos com imensas afinidades, tornando nebuloso o discernimento
entre o que foi “transferido” do palco para a TV e o que é resultante da “afini-
dade eletiva” entre a teledramaturgia e o campo teatral. De qualquer modo, a
“sombra” do espetáculo teatral pode fazer com que assistamos à realização de
Avancini como um diálogo inevitável de um poema que encontrou no palco
sua primeira realização cênica, reconfigurada em linguagem audiovisual tele-
visiva. E assim como na versão teatral de 1965 no Tuca, na adaptação televisi-
va de Avancini o elemento musical nos temas compostos por Chico Buarque
abrandaria em parte a crueza do talhe ressequido, em que se uniam com vigor
forma literária e matéria temática, pela força da brevidade dos versos, alguns
em heptassílabo.
Volto ao ponto que deixei há pouco, para atingir problematizações. Se
a relação entre o espetáculo teatral e o especial da Globo sempre resulta em
equação obtusa e difusa – tampouco é meu propósito avaliá-la –, a realiza-
ção de Avancini parece ter recolhido do Cinema Novo o desbancar da ima-
gem edulcorada e pitoresca do homem do sertão como emblema idílico da
nacionalidade e pertencente a um mundo exilado da contemporaneidade do
espectador, emblema consagrado em O Cangaceiro, filme de 1953 dirigido por
Lima Barreto, momento de maior destaque da Vera Cruz. O Cinema Novo de

32
Glauber, Nelson Pereira e Ruy Guerra operaram com chave reversa à efígie
dessa figura emoldurada, fixada à distância para nossa contemplação como
o “outro”, o selvagem exilado do movimento da história, sobre a qual repousa
um olhar cinematográfico de curiosa nostalgia, pintado como o bárbaro que
não participa do tempo do cineasta, em costura de espetáculo segundo o mol-
de hollywoodiano. Numa visada em perspectiva, não deixa de ser curioso lem-
brar que o lastro de O Cangaceiro permaneceria durante e posteriormente à
vigência do Cinema Novo. Paisagem praticamente desconsiderada pela crítica
e estudos acadêmicos, é curiosa a descendência do nordestern – designação de
filmes de temática do cangaço – em um conjunto numericamente significativo
de títulos nos anos em que o padrão estético que a Vera Cruz imprimira em O
Cangaceiro parecia ter sido solapado pelas rupturas promovidas pelo Cinema
Novo e as tendências experimentais do fim dos anos 60 – que canhestramente
receberam o epíteto de “Cinema Marginal”. Mas de fato há uma série de pro-
duções dos desdobramentos do nordestern. Filmes como Corisco – o Diabo
Loiro (1969), dirigido por Carlos Coimbra, O Cangaceiro Sanguinário (1969),
de Osvaldo Oliveira, ou Jesuíno Brilhante, o Cangaceiro (1972), dirigido por
William Cobbett, e tantos outros, faziam circular a fisionomia do bandido
rural de extração romântica em uma estilística colada às convenções merca-
dológicas do “filme de ação” com indumentária sertaneja.
Supostamente na contramão dessa tendência, é preciso, no entanto, confe-
rir como se daria no especial global Morte e Vida Severina a incorporação da
postura cinemanovista. De fato ela se confirma? Longe de uma relação meca-
nicista contexto/texto, a visada em aspectos extratextuais deve migrar para o
flagrante de sua projeção na textura audiovisual do especial televisivo.
Em menos de duas décadas, de 1965 a 1983, a pujança comercial ascenden-
te da TV Globo é dado que nos leva a identificar certo embate entre a adesão
ao ditame mercadológico diante do qual a crueza cinemanovista é discordan-
te. Nessa perspectiva, a “especialidade” Morte e Vida de Avancini é coesa à
alocação em grade de horário fora das faixas de maior audiência, sinalizando
a viabilidade de uma feitura teledramatúrgica não subordinada às ingerências
mercadológicas mais urgentes. Como “biscoito fino” destacado da grade geral
da teledramaturgia da emissora, não espanta a feitura de um especial como
versão audiovisual de uma obra literária cuja montagem teatral nos anos 60
foi exemplo de “resistência artística” à Ditatura Militar, rasgo que convida ao
flagrante de traços na feição teledramatúrgica de proposituras cinemanovistas
na programação de uma televisão comercial – a mais poderosa e influente do

33
país – no início dos anos de 1980. Todavia, se naquela altura a Globo gozava
com folga o estatuto de líder de audiência, tendo ultrapassado os traços mais
grosseiros da estética folhetinesco-melodramática e ter afeito ao sabor atra-
ente para o entretenimento do grande público tanto a “modernidade” da vida
urbana e contemporânea nas tramas das telenovelas quanto a contemplação
– embora edulcorada e em vetor pitoresco, caso de Gabriela – da vida rural
e provinciana do Brasil, postas principalmente em chave de farsa, o “caso”
Morte e Vida é portador de um embate, discernível na fisionomia do seu dis-
curso audiovisual. Uma vez que influxos extra-audiovisuais são inseparáveis
da forma audiovisual, a aposta aqui é presença de uma expressão ambivalente:
o especial dirigido por Avancini postaria, a um só tempo, associação e recusa,
aproximação e afastamento do legado cinemanovista. Em proposição sintéti-
ca: crueza e clichê. De um lado, a crueza de matriz cinemanovista; de outro, o
clichê, a fossilização do palatável audiovisual.

Herança de crueza?

Que se flagre uma cena de Morte e Vida, o caminhar de Severino, depois


do primeiro contato com o cotejo fúnebre dos “irmãos das almas”. Ao ou-
vir uma cantoria, ele supõe haver uma festa. Se antes a câmera acompanhava
Severino de costas, olhando para o povoado, não demora para ser postada no
interior do casebre de taipa do vilarejo que antes ele olhava com interesse e
para o qual se dirige. A caminhada de Severino passa a ser captada pelo “olho”
da janela, enquadrada de dentro do casebre miserável (imagem 1).

34
Imagem 1
Fonte: Morte e Vida Severina (filme)

Tal moldura abaliza o olhar “de dentro”, no interior do casebre em que es-
tão as cantadoras de incelenças, velhas que entoam benditos de defuntos diante
da cabeceira do cadáver. Ao “recolher” a caminhada de Severino pelo olhar
postado na janela, que o emoldura, a câmera obriga o olhar do espectador ao
achego daquelas mulheres de rostos severos, encarquilhados; carrancas carco-
midas que entoam o canto fúnebre diante do morto. A câmera faz uma bre-
ve panorâmica por esses rostos de feição pungente, sem alarde todavia, para
captar uma placidez da dor como estado habitual. Tal cena, em tese, poderia
ser equiparada a algumas de Vidas Secas, de Nelson Pereira, em que a câmera
habita o casebre em que estão Fabiano, Sinhá Vitória, os filhos e a cachorra
Baleia, postada em convivência estreita com esses seres. Depois, a câmera as-
sume postura em vetor contrário, enquadra Severino do lado de fora da casa,
ao lado da janela que havia servido de portal do olhar que o havia enquadrado
e levado o espectador ao contato direto com o velório sertanejo.

35
De modo semelhante, em momento imediatamente posterior, quando o
retirante chega a um vilarejo e se dirige a uma romeira, “rezadeira” e “enco-
mendadora” de almas, personagem interpretada por Elba Ramalho, em toda
a faixa de diálogo entre o retirante, que sempre fala, e a mulher, que sempre
canta, a câmera se põe a acompanhá-los, no encalço de Severino seguindo a
mulher nos afazeres da reza e do ato de benzer doentes e crianças. Tal atitude
representa a tônica de Morte e Vida Severina, embora se possa assinalar aí
certa intensificação pela ação da câmera de perscrutar com aperto o mun-
do degradado dos seres do sertão. A câmera está em incidência direta com
o corpo da “rezadeira” que se movimenta muito – com ecos de linhagem de
documentário. A operação discursiva da ação da câmera é de consórcio direto,
o efeito de um corpo a corpo com “o povo do sertão” e sua relação ritualística
e íntima com a morte.
Tais apontamentos parecem indicar que o poema de João Cabral servira
a uma composição discursiva de assimilação à ficção televisiva de uma pro-
positura cinemanovista basilar, a do aparato audiovisual retratar a realidade
social brasileira sem filtro, negando a visão etnocêntrica que vê o mundo do
sertão e seus agentes como o estranho, o exótico ou o nostálgico. Morte e Vida
de Avancini teria, aproximadamente duas décadas depois do Cinema Novo,
impresso na textura da teledramaturgia o contrapelo à retratação do homem
rústico de O Cangaceiro (1953), a cuja figura exótica se presta homenagem nos-
tálgica, pois ele está deportado do mundo do espectador e do cineasta. No
encalço de Severino encarnado pelo tipo nordestino mirrado de José Dumont
a câmera televisiva teria assimilado o princípio contundente do Cinema Novo
da desmistificação da vida sertaneja, como em duas décadas atrás os serta-
nejos de Deus e o Diabo ou Vidas Secas caminhavam a pé em um sertão cuja
aspereza e violência a câmera de cinema incorporara em sua própria precarie-
dade técnica.
O palmilhar da câmera em Morte e Vida parece se associar ao projeto
cinemanovista de assimilar o discurso de enfrentamento da vida social e na-
cional degradada no cerne de uma estética que plasma o efeito de um olhar
rente ao mundo popular, na utopia da superação do próprio abismo de classe.
Naturalmente, muito do projeto cinemanovista foi indiciado como ingênuo,
paternalista e, em última instância, autoritário, pois o olhar constituído por
seus filmes sempre seria – Glauber seria exceção – o do intelectual-cineas-
ta a fornecer representações esquemáticas do mundo popular e da mecânica
de sua “alienação”, segundo princípios de um Marxismo vulgarizado para o

36
élan revolucionário daqueles dias. Evitando ambiguidades e contradições, o
1
cineasta vem falar em nome do povo . De qualquer modo, importa
flagrar nesses momentos de Morte e Vida Severina um olhar que parece es-
tabelecer certo corpo a corpo com o mundo degradado do sertão, algo atingido
por algumas realizações cinemanovista, caso de Vidas Secas, em que a câmera
construiria menos um discurso sobre o povo, mas ao lado dele, imiscuindo-se
naquele mundo desalentado. Tal propositura de matriz cinemanovista trata
a adaptação do poema de João Cabral como fala incorporada por uma mise-
-en-scène em que o dispositivo audiovisual está rente ao corpo dos atores, dos
figurantes, dos animais e da vegetação gretada, em relação franca, deixando
as lentes como que se impregnarem ou se tingirem da carnadura do sertão em
sua seiva de brasa, desoladora. Neste sentido, a presença do sol como fonte
de luminosa em voraz consórcio com a câmera tem força na textura discur-
siva. Com efeito, a luz solar é um dos fortes componentes de afirmação dessa
composição “por dentro” do “mundo severino”. Ao fazer isso, a força poética
encontraria uma pulsação direta, a plenos pulmões, da acidez e da carnadura
desossada do meio e do cenário, espaço vivo do sertão que atingiria o aparato
audiovisual, a câmera e os microfones da feitura audiovisual a que assistimos.
Participa dessa mesma atitude a fala dos personagens, que evitam qualquer
locução ou impostação recitativa do poema, assumindo o falar espontâneo,
como uma anti-interpretação vocal, o que é marca sobretudo da alocução do
protagonista, também narrador, o Severino encarnado por José Dumont.

Chão batido do retirante

Mas a estrutura audiovisual de Morte e Vida Severina de Avancini com-


porta matizes e ambivalências. O componente solar como forte presença em
Morte e Vida Severina na associação estreita entre tema e ocorrência audio-
visual é destacado na abertura do especial televisivo. As fontes das letras são
um exemplo de inequívoco clichê para remeter ao sertão; de matriz da litera-
tura de cordel, letras como se fossem talhadas em madeira contrastam com a

1 Vale conferir o que Jean Claude Bernardet apontava em livro lançado no contexto ainda cine-
manovista: Brasil em Tempo de Cinema: Ensaios sobre o Cinema Brasileiro de 1958 a 1966. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

37
tonalidade amarelo-laranja. Com a paisagem áspera da vegetação ressequida
formam uma espécie de silhueta que faz par com a solaridade (imagem 2).

Imagem 2
Fonte: Morte e Vida Severina (filme)

Tal configuração visual estabelece associação plástica com o início da nar-


rativa, o périplo de Severino em seu primeiro acompanhar da morte, o cotejo
fúnebre de interlocutores, os “irmãos das almas” que carregam em uma rede
um cadáver “morrido em morte matada”. O fundo é tomado pela solaridade de
fim de tarde, crepúsculo laranja, sobre o qual se destacam apenas as silhuetas
dos caminhantes, a ponto de identificarmos Severino basicamente por sua voz
e pela função na narrativa (imagem 3).

38
Imagem 3
Fonte: Morte e Vida Severina (filme)

A composição visual plasma a “visão da morte” pela aspereza do contraste


entre o sol e caracteres ásperos, sejam os mandacarus e xique-xiques, sejam
os rostos recortados, brutos e angulosos como a vegetação áspera. A pujança
do sol se esmaecerá com a passagem do périplo da morte para o encontro com
a vida, na sequência final quando Severino recebe a “resposta” da vida com
o nascimento de uma “criança Severina” nas palafitas do mangue de Recife.
Nesse arco, o caminho cromático fará a passagem dos tons amarelos, pastéis
e ocres para os azuis, sendo a morte negro-amarela, enquanto a vida, já pre-
nunciada na passagem do agreste para as paragens de água – primeiro o açude,
depois o mar e o mangue –, vai comparecendo com o azul, embora o negro-
grafite sinalize a “morte em vida” que rondará sempre a existência da criança
que acabou de nascer.
Como correlativo à conhecida concisão estilística de João Cabral de Melo
Neto, o especial de Avancini incorpora, na mesma tintura da solaridade, cer-
ta matriz intertextual televisiva colhida de documentários da própria TV

39
Globo. A vertente documental – caso de Globo Repórter e algumas de suas
reconhecidas e prestigiadas “experimentações” pelo trabalho de diretores
como Eduardo Coutinho – havia produzido uma narratividade jornalística
válida em termos estéticos por buscar dar conta da realidade nacional com
um discurso de contundência cuja matriz recuada seria o cinema verité fran-
cês. Todavia, a trajetória da feitura de tais produtos telejornalísticos calcados
em um labor estético “de qualidade cinematográfica”, inviável nos telejornais
diários, levaria à rotinização de estilemas visuais “poéticos”; expedientes cuja
banalização e saturação ocupam a mesma faixa do clichê e do kitsh. Tal marca
do clichê atinge em cheio Morte e Vida. A solaridade do sertão converte-se em
clichê visual, sobretudo pela opção das tomadas de câmera de baixo para cima
dos corpos dos personagens, como no caminhar de Severino antes de encon-
trar os “irmãos das almas”, em que o efeito de prisma funciona como chavão
para a imediata associação ao mundo sertanejo (imagem 4).

Imagem 4
Fonte: Morte e Vida Severina (filme)

40
A solaridade amarelo-laranja é enfatizada a ponto de se tornar composi-
ção visual cuja reiteração e estilização cromática a convertem em fórmula “do
belo”; imagem fossilizada como fórmula visual palatável para a imediata iden-
tificação do “infeliz sertão brasileiro”. Curiosamente, em choque frontal com a
crueza da herança cinemanovista, tal clichê é eco plástico de uma tradição que
se supunha superada: faz reverberar o painel edulcorado da caminhada das
silhuetas de O Cangaceiro (imagem 5), que por sua vez é decalque das silhuetas
heróicas dos caubóis dos westerns americanos recortadas pelo contraste com a
luminosidade de fundo.

Imagem 5
Fonte: Morte e Vida Severina (filme)

A composição insiste em produzir uma espécie de lirismo de imagens pela


ênfase no contraste figura-fundo e associação plástica da aspereza da vegeta-
ção dos mandacarus e xiquexiques aos traços angulosos dos seres, irmanados
e “emoldurados” pelo sol poente em tonalidade de glorificação da “braveza” ou
“resignação” sertanejas.

41
Quando o retirante está em plena passagem do serão árido para o agreste,
e sua fala, rosto e olhar sorridentes miram para “a terra que se torna mais femi-
nina”, verdejante, uma cena marcará a divisória do tom de crueza desalenta-
dora que até então o espectador acompanhava para uma paisagem alentadora.
Sintomaticamente, a cena não corresponde a nenhuma passagem do poema de
João Cabral. Severino, que antes apenas apanhava água para beber, banha-se
em um açude em companhia de cavalos. A cena terá como tônica estilizadora
da entrada em um mundo aprazível o uso da câmera lenta, associada à faixa
musical em tratamento melódico e harmônico sugestivo de coloração idílica.
Embora a câmera lenta compareça em outros momentos, nesse possui ênfase.
Demoradamente, a câmera lenta afirma um momento apaziguador, em franca
oposição ao sofrimento da peregrinação na bruteza da terra. Sua função tam-
bém se alia à irrupção cromática de franca oposição à aspereza solar. Outras
serão as cores a envolver a tela, como o verde e o azul, que atuam como cores
semanticamente dirigidas ao momento de apaziguadora renovação da vida.
Trata- se de um ponto de parada, descanso para o protagonista e, muito mais,
intervalo de felicidade paradisíaca. Se até então acompanhávamos o retirante a
pé, e o caminhar dava muito do seu “caráter” social de oprimido, a cena com-
porá, utilizando planos mais fechados, o banhar-se de Severino em águas aco-
lhedoras, generosas; o componente líquido evolve-lhe o corpo, substituindo e
opondo-se ao amarelo agressivo, em fundo verdejante. A câmera lenta enqua-
dra o sorriso de felicidade desse banho regenerador do caminhante estafado
mergulhando em uma espécie de éden ou miragem. Enfatiza-se o envolvimen-
to vivificador da água com o corpo em uma quase coreografia do encontro
amoroso, sensual, na fusão entre epiderme e músculos de Severino e a liquidez
macia e brilhante da água, resplandecendo ao sol com plasticidade paradisía-
ca. Em plano mais fechado, Severino sorri e abraça um cavalo dentro da água
com terna carícia em que se exala o sentido de feliz integração do homem com
os elementos naturais (imagem 6).

42
Imagem 6
Fonte: Morte e Vida Severina (filme)

Integração venturosa, batismo no paraíso. A composição desse momento


de ventura inscreve emblemas visuais como clichês de idealização, com res-
sonância do “bom selvagem” utopicamente integrado à natureza acolhedora.
Evoca-se a figura romântica do cavaleiro. Severino não é aí o retirante obtuso
e estafado, mas o cavaleiro forte em imagística idílica. O comentário musical
muito contribui para tal regime de idealização, em tudo destoante do caráter
drástico e substantivo, anti-eloquente, do poema de Cabral. O avesso da crue-
za se exprime como numa espécie de intermezzo ou suspensão do que até então
era morte e aridez. Compõe-se um quadro de elegia, em que o exótico compa-
rece com ressonâncias de representação do índio ou do selvagem brasileiro em
consonância venturosa com os elementos naturais.
Crueza e clichê? Crueza ou clichê? O discurso audiovisual de Morte e Vida
porta uma ambivalência ou uma dicotomia a que parece corresponder um con-
texto, do lado “de fora” da feitura audiovisual – percurso da teledramaturgia
da TV Globo em determinado período –, também marcado por ambivalências,

43
contradições, tensões. “Biscoito fino” da TV Globo, especial premiado em di-
mensão internacional e considerado marco de nossa teledramaturgia, Morte e
Vida Severina de Walter Avancini parece carregar em sua forma audiovisual
um correlativo à dicotomia presente no título do poema de Cabral. Este breve
percurso de aferição da textura audiovisual buscou flagrar a convivência am-
bivalente do que se estabeleceu, em princípio, no que apontei com os termos de
uma oposição dicotômica: crueza/clichê.
Minha abordagem precisou fazer escolhas, deixar de lado outros cami-
nhos certamente pertinentes. Não avaliei, por exemplo, o liame entre o filme
Morte e Vida Severina, de Zelito Viana, e o especial dirigido por Avancini.
Tal caminho, observando-se os peculiares contextos e inflexões, certamente
conduziria a outras análises e interpretações dirigidas a escambos e contágios
entre sistemas semióticos distintos no âmbito da adaptação de uma obra lite-
rária. Exemplo de um fenômeno intermidiático por excelência em nossos dias
– há tempos a adaptação deixou de ser uma questão de “passagem” do literário
para o audiovisual –, o “caso” Morte e Vida Severina talvez sirva para motivar
outras perquirições. Ou peregrinações.

Referências bibliográficas

BERDARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro


de 1958 a 1966. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

FERNANDES, Ismael. Memória da telenovela brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Guia ilustrado TV Globo: novelas e minisséries. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

GOULART, Ana Paula [et al.]. História da televisão no Brasil: do inícioaosdias de hoje.
São Paulo: Contexto, 2010.

MELO NETO, João Cabral. Obra completa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.

Filmografia

Morte e Vida Severina. Produção de Luiz Carlos Laborda. Direção de Walter Avancini.
1981.

44
AMOR E SOLIDÃO EM LETRAS DE
RENATO RUSSO – DO ETHOS DO ARTISTA
À UNIVERSALIDADE
Érika de Moraes

Introdução

Neste trabalho, proponho uma análise de letras de música de Renato


Russo (1960-1996) que, a um só tempo, delineiam um ethos do artista e de-
monstram traços cenográficos e identitários capazes de transportar sua obra
musical para além de seu tempo.
Descrita de forma resumida, a biografia do cantor-compositor inclui seu
papel central na famosa banda dos anos 1980-1990, a Legião Urbana, e a mor-
te precoce em consequência da Aids (Síndrome da Deficiência Imunológica
Adquirida), fato que contribui, no âmbito pragmático-discursivo, para a
sua mitificação. Suas letras representam bem o nó borromeano de que fala
Maingueneau (2010) ao definir o papel da autoralidade: o trabalho artístico
não se sobrepõe nem antecede a personalidade conectada ao sujeito-autor, são
aspectos inseparáveis e interdependentes. Discursivamente, o indivíduo (no
mundo) afeta o sujeito (discursivo) e vice-versa, sendo a distinção desses ele-
mentos uma espécie de camuflagem do entrelaçamento constitutivo. Ou seja,
não se assume a crença em uma autoria entendida como genialidade individu-
al desprovida de contexto e história, mas também não se propõe a anulação do
sujeito, eis o nó.
Assim, busca-se compreender traços da autoria de Renato Russo como
inexoravelmente amarrados à sua própria vivência como ser no mundo e,

45
simultaneamente, como tais traços-vivências se projetam na sociedade por
meio da identificação, fazendo com que o artista tenha sido ídolo entre os jo-
vens de seu tempo e, talvez, o seja ainda mais nos dias de hoje. Prova disso
foram as entusiastas celebrações de seus 50 anos de vida não completados, no
ano de 2010, e dos 20 anos de sua morte, em 2016: sua trajetória é constante-
mente reprisada, rememorada, enobrecida por meio de especiais televisivos e
shows, tendo adquirido o status de memória viva, pulsante e sempre iminente.
É memória que se fixa e se faz presente em gerações posteriores à sua.
A análise leva em conta o funcionamento de conceitos discursivos no que
diz respeito à autoralidade de obras artístico-literárias, entendidas aqui em
sentido muito amplo, a ponto de incluir a poesia inerente às letras de mú-
sicas populares. Defendemos que as categorias discursivas propostas por
Maingueneau (2000, 2005, 2006) para a análise do texto literário e dos traços
de autoria vão além da distinção, bem conhecida em teoria literária, entre nar-
rador e autor, ou entre escritor e eu-lírico. Por meio do enunciador, amalga-
mam-se o sujeito-autor e o indivíduo no mundo, contribuem um com o outro e
deixam sua marca na memória discursiva, cuja unidade é simulada pelo ethos.
Por se tratar de artista popular, de repertório denso e biografia impactan-
te, as letras de Renato Russo são produtivas para a análise, possibilitando a dis-
cussão de aspectos conceituais relacionados à autoria e à fixação de memória
nos interdiscursos sociais.

Fundamentação teórico-metodológica

Conforme Achard (1999 [1983], p. 11), é “a estruturação do discursivo


[que] vai constituir a materialidade de uma certa memória social”, o que impli-
ca que “a memória composta pelo discurso é sempre reconstruída na enuncia-
ção” (1999 [1983], p. 17). Para Pêcheux, a memória discursiva “deve ser enten-
dida (...) não no sentido diretamente psicologista da ‘memória individual’, mas
nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em
práticas, e da memória construída do historiador” (Pêcheux, 1999 [1983c] p.
50). É com base nessa noção de memória que se pretende estudar as caracte-
rísticas de autoria que emergem do ethos do cantor-compositor Renato Russo,
com base em algumas de suas letras. Por sua vez, o ethos é aqui compreendi-
do em sua ressignificação discursiva, com base, especialmente, nos trabalhos
de Maingueneau (2000, 2005 entre outros), contemplando história, memória

46
social, ideologia. Em linhas muito gerais, pode ser entendido como uma “ima-
gem” (discursiva) que se molda pelo que/como se diz.
A análise do ethos discursivo – no caso, aquele que emerge das letras des-
tacadas – é feita com base na materialidade discursiva, investigando-se os as-
pectos linguísticos e discursivos que explicitam os modos de dizer (o tom, a
corporalidade) característicos dos textos analisados. Tem-se em vista a con-
cepção de ethos desenvolvida por Maingueneau no quadro da Análise do
Discurso de linha francesa (AD). Não se propõe aqui uma análise do perfil
psicológico de Renato Russo (o que a AD tacharia de psicologismo), apesar dos
riscos inerentes ao corpus.
Em vez de considerar que os sujeitos tenham consciência transparente so-
bre seus discursos e identidade estável, a AD prefere falar em “lugares” enun-
ciativos, enfatizando a preeminência e preexistência da topografia social sobre
os falantes que aí vêm se inscrever (Maingueneau, 1997, p. 32). Para a AD, o
enunciador não é simplesmente um sujeito que se apropria de um discurso,
pois não se considera possível definir nenhuma exterioridade entre os sujeitos
e seus discursos. Maingueneau explica: não se dirá que o grupo gera um dis-
curso do exterior, mas que a instituição discursiva possui, de alguma forma,
duas faces, uma que diz respeito ao social e a outra, à linguagem (1997, p. 55).
A “encenação” discursiva se confunde com a própria existência do grupo ou da
instituição, sendo mesmo uma das formas do “real” que é investido e afetado
pelo discurso.
Conforme sintetiza H. Parret: “a teoria do discurso não é uma teoria do
sujeito antes que este enuncie, mas uma teoria da instância da enunciação que
é, ao mesmo tempo e intrinsecamente, um efeito de enunciado” (Parret, 1983,
p. 83 apud Maingueneau, 1997, p. 33). Ao enunciar, o compositor faz-se autor,
não em termos de fundador de discursividade (cf. Foucault, 2000, p. 58 em
diante), mas de ser ativo na instância de enunciação que, simultaneamente, o
constitui como autor.
Consideram-se as três dimensões da autoria, noções propostas por
Maingueneau (2010, p. 30).
A primeira é a do “autor-responsável”, que é a dimensão mais evidente,
“instância de estatuto historicamente variável que responde por um texto”.
Nessa instância, o autor “não é nem o enunciador, correlato do texto, nem o
produtor de carne e osso, dotado de um estado civil”. Essa dimensão não tem
caráter literário já que, nesse sentido, “‘ser o autor de um texto’ vale para qual-
quer gênero de discurso” (ibid.).

47
A segunda é a do “autor-ator”, que, “organizando sua existência em torno
da atividade de produção de textos, deve gerir uma trajetória, uma carreira”
(ibid.). Mesmo assim, não se trata necessariamente de uma profissão: alguém
pode ser engenheiro ou médico e, paralelamente, publicar livros de crônicas
ou de poesias. O estatuto dessa dimensão de autoria varia conforme as conjun-
turas históricas, inclusive, ainda segundo Maingueneau, interferindo nas pa-
lavras que concorrem com o termo “autor”: escritor, homem de letras, literato,
artista, intelectual etc.
A terceira é a do “auctor”, que implicaria um estatuto de “autoria plena”,
estágio dependente de um reconhecimento por terceiros, por meio do qual os
textos de um determinado autor-auctor seriam compreendidos como unidade,
não mais como trechos dispersos: “Se todo texto implica por natureza um ‘res-
ponsável’, apenas um número muito restrito de indivíduos atinge o estatuto de
‘auctor’. Basta para isso que se possa associá-los a uma ‘obra’, digamos a um
Opus” (Maingueneau, 2010, p.30).
Por essas definições, demonstra-se que não basta ser o “autor responsável”
por um enunciado, tampouco dedicar-se à produção de textos, para que se
constitua a identidade de autor pleno, que Maingueneau denomina de “auc-
tor”. Não basta, portanto, escrever para que se obtenha a qualidade de “auctor”.
Um jornalista pode ser responsável pela apuração e escrita de uma matéria,
mas não necessariamente será autor se não puder deixar emergir certo estilo (o
que, em geral, não é incentivado na atividade jornalística, pautada no suposto
ideal de objetividade).

A atividade propriamente literária se distingue de outras igual-


mente voltadas para a produção de textos, como o jornalismo ou a
política, pelo fato de que toda pessoa que publica um texto de pró-
pria lavra torna-se ipso facto ‘auctor’ em potencial. Mas será ‘auc-
tor’ efetivo, fonte de ‘autoridade’, apenas se terceiros falam dele,
contribuem para modelar uma ‘imagem de autor’ dele. (Maingue-
neau, 2010, p. 31)

Se a necessidade de terceiros falarem de um autor é decisiva na consti-


tuição da “auctoralidade”, é certeiro afirmar que um cantor tão rememorado
quanto Renato Russo atende a essa condição, além das duas primeiras des-
critas: ser o autor-responsável, aquele que dá fiança às suas próprias letras,

48
bem como a organização de sua trajetória em torno de uma carreira artística,
pautada em letras e músicas.
Conforme os princípios teórico-metodológicos da Análise do Discurso
francesa, especialmente em preceitos de Maingueneau sobre a análise do texto
literário, consideramos as letras de música como obras de ficção, mas nem por
isso imunes à influência da biografia do autor. Não há um termômetro capaz
de determinar qual das influências sobressai, se a do artista-autor-ator ou a do
“indivíduo no mundo” interpelado como sujeito; fato é que as duas se correla-
cionam e dão existência à arte em qualquer sentido, seja a literatura, a música,
a dança, a pintura, escultura etc. No presente trabalho, é da música de Renato
Russo que se trata, considerando-a tanto como objeto completo em si (como
um livro, um quadro, uma pintura ou escultura) quanto, ao mesmo tempo,
dependente de seu contexto, do qual faz parte a trajetória vivida pelo autor.
Em outras palavras, nem uma coisa nem outra, mas o amálgama entre as duas.
Na impossibilidade de analisar toda a obra de Renato Russo, o trabalho
propõe uma delimitação. Esse recorte poderia ser bastante variado, porém, op-
tamos por respeitar uma leitura “do exterior” (inclusive, para evitar a escolha
pessoal da pesquisadora) e atender à solicitação dos produtores do programa
“Laboratório”, da TV USC de Bauru, que nos demandou a análise de três letras
(correspondentes a três períodos do artista). São essas análises, inicialmente
apresentadas de maneira mais informal, em entrevista a um programa tele-
visivo (em 2010), que ora registramos nesta abordagem, pautada no respaldo
teórico- metodológico da Análise do Discurso de linha francesa.
As letras a serem analisadas são: Índios (1986, álbum Dois); Eu era um lo-
bisomem juvenil (1989, álbum As quatro estações); Teatro dos Vampiros (1991,
álbum V). Não se desconsidera, no entanto, que tais letras estejam em relação
de intertextualidade (e constitutiva interdiscursividade) com o conjunto maior
de sua produção musical.

A canção-poesia de Renato Russo

Por trás de todo “eu-lírico”, existe uma exposição de sentidos, mas não
necessariamente de verdades2. É por isso que discursos podem vir à tona sem

2 Embora, se o propósito aqui fosse entrar nesse mérito, tais exposições de sentidos pudessem ser
entendidas como “verdades simbólicas”, a um só tempo subjetivas e universais. Em psicologia

49
o poeta (o autor) ter a consciência disso, sendo comum que autores venham
eventualmente a afirmar que “não tinham pensado em tudo aquilo que o ana-
lista viu em sua letra”. A Análise do Discurso, por princípio teórico, evita uma
análise psicologista e propõe a integração entre o discursivo, o histórico, o
inconsciente.
Sob esse prisma, consideramos os sentimentos universais intrínsecos à
obra de Renato Russo (o amor, a solidão, entre outros) no amálgama entre a
história pessoal e a coletiva, que universalizam suas canções na construção de
seu ethos como projeção, repercussão e representação de um ethos social gera-
dor de identificação por seus diversos fãs, que se percebem representados nas
letras, da mesma forma em que elas espelham o seu ídolo.
Nas análises, é possível notar o amadurecimento dos sentimentos confor-
me a cronologia da obra, sem que um estado necessariamente se sobreponha a
outro. O poeta-cantor-compositor fala do mundo ao falar de si mesmo.

Análise 1: Índios (1986, álbum Dois)

Uma das interpretações possíveis para essa letra é a remissão à metáfo-


ra do índio – para quem o homem branco trouxe espelhos, retirando-o de
seu estado de simplicidade –, com a finalidade de tratar da importância da
simplicidade da vida. Tendo a vida contemporânea se afastado desse estado
de simplicidade, há um lamento profundo pelo estado atual da sociedade. O
lamento corresponde a uma era consumista, em que se quer cada vez mais e
“quase sempre se convence que não tem o bastante”, gerando um círculo de
insatisfação do ser humano, já que nem mesmo o dinheiro pode tudo comprar.
No imaginário coletivo, enquanto o índio representa o mundo simples, o ho-
mem civilizado é aquele que adoeceu o mundo, ou a própria doença do mundo
(“Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente”).
A repetição/reiteração da impossibilidade, marcada pela expressão lin-
guística “quem me dera” (vê soluções, mas impossíveis), é marca discursiva
desse lamento. Lamenta a perda do ouro, que pode significar várias coisas:

analítica, teriam relação com “a linguagem do psiquismo, especialmente das manifestações


inconscientes”, como lembra o psicólogo Junguiano, Gustavo Orlandeli Marques, mestre em
Psicologia Clínica, a quem agradecemos a leitura prévia deste artigo. Diálogo, aliás, bastante
desafiador, visto que, a rigor, Análise do Discurso e Psicologia “não conversariam” (mas, ainda
como marca desse diálogo interdisciplinar, destaquemos que psicologia não é psicologismo).

50
do material, literalmente (o dinheiro), aos mais simbólicos sentimentos (amor,
carinho, amizade); lamenta a ingenuidade (a entrega se dá por ter se convenci-
do pela falsa amizade). O lamento é generalizado, pois inerente tanto a quem
perde (entrega o ouro) quanto a quem supostamente ganha (e acredita que
“não tem o bastante”). O lamento leva à valorização da simplicidade e à busca
de Deus.

Índios (1986 - Dois) Composição: Renato Russo

Quem me dera
Ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro
Que entreguei a quem
Conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora
Até o que eu não tinha

(...)

Quem me dera
Ao menos uma vez
Explicar o que ninguém
Consegue entender
Que o que aconteceu
Ainda está por vir
E o futuro não é mais
Como era antigamente.

Quem me dera
Ao menos uma vez
Provar que quem tem mais
Do que precisa ter
Quase sempre se convence
Que não tem o bastante
Fala demais
Por não ter nada a dizer.

51
Quem me dera
Ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto
Como o mais importante
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente.

Quem me dera
Ao menos uma vez
Entender como um só Deus
Ao mesmo tempo é três
Esse mesmo Deus
Foi morto por vocês
Sua maldade, então
Deixaram Deus tão triste.
(continua...)

Um trecho significativo da letra faz referência a um suposto momento de-


pressivo, após uma tentativa de suicídio de Renato Russo, segundo registros.
Mas o autor não se rende à tentação de tratar de seu próprio conflito interno
pessoal. Não o elimina, não o disfarça, porém, além e independentemente
disso, traz à tona em sua letra sentimentos universais, expressando-os de for-
ma poética. A referência à tentativa de suicídio é explícita:

Eu quis o perigo
E até sangrei sozinho
Entenda!
Assim pude trazer
Você de volta pra mim
Quando descobri
Que é sempre só você
Que me entende
Do início ao fim.

O sentimento do amor (como religiosidade) é exaltado como sentimento


positivo, que traz valor à vida. Parece se tratar, por intertextualidade, do mes-
mo amor de Monte Castelo (“Ainda que eu falasse a língua dos homens... sem

52
amor eu não seria nada”), que musicaliza a conhecida passagem bíblica sobre
o amor- caridade (I Coríntios 1: 13), mas também, a um só tempo, do amor
passional de Camões, que é “fogo que arde sem se ver”, que é “solitário andar
por entre a gente”.
O sentimento de solidão é fortemente presente. Seja a solidão pela falta
de um amor efetivo (um namorado) ou a solidão poética de um ser que vive a
intensidade da poesia em um nível tão profundo que necessita da reflexão, da
introspecção. Além da letra, a solidão também está na melodia da canção. Em
vídeo de um show, Renato Russo classificou esse som como “um fado grego”,
evocando algo triste e saudoso como um fado, fatídico como uma tragédia
grega.
Na aproximação com os sentimentos de solidão, existe um “mistério” na
canção em relação ao ser interpelado como você. Um namorado, um amor
saudoso? Ou uma entidade mais profunda e abstrata, como Deus? Podem ser
as duas coisas, mas a experiência de quase-morte, por meio da tentativa de
suicídio, sustenta a interpretação de contemplação de um plano espiritual, no
qual existe um Deus pouco percebido na vida contemporânea, ao qual pouco
se agradece.

E é só você que tem


A cura do meu vício
De insistir nessa saudade
Que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi. (...)

Quem me dera
Ao menos uma vez
Fazer com que o mundo
Saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz
Ao menos, obrigado.

Qualquer letra é passível de interpretações diversas. Como fio condutor


na leitura de Índios, pode-se pensar que a substituição do mundo simples do
índio pelo mundo doentio do homem potencializou sentimentos de solidão
e angústia, sentimentos que sufocam, que amarram o choro, sendo a música

53
uma forma de extravasá-los e ressignificá-los. Se ficamos doentes ao nos da-
rem espelhos, a doença do homem não é apenas culpa de terceiros, mas do
reflexo de cada um.

Nos deram espelhos


E vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui.

Renato Russo traduz em música sentimentos universais que, ao mesmo


tempo, acometem sujeitos em particular, o sujeito que sofre e chora.

Análise 2: Eu era um lobisomem juvenil (1989, álbum As quatro


estações)

A segunda letra analisada também fala de amor, de lamento, de insatisfa-


ção. Mas trata-se, em “Eu era um lobisomem juvenil”, de um amor mais hu-
mano, sensual. É mais alegre, apesar de manter o estilo introspectivo. Mesmo
assim, e até por exercício de maturidade, não tem medo de assumir a solidão,
definida, por intertextualidade com “Angra dos Reis”, como “uma dor que dói
no peito; pode rir agora que estou sozinho” (álbum Que País é Este - 1978/1987).
A solidão é postulada como um sentimento do qual não se deve fugir, não se
deve ter medo. É sentimento assumido como intrínseco ao ser humano, ideia
oposta à de ir a festas para esquecer/oprimir a solidão.
O tom brincalhão de quem já tem maturidade para compreender e aceitar
a vida (é assim mesmo, tem solidão, faz parte) é revelado, desde o início, pelos
jogos de palavras presentes na letra:

Eu era um lobisomem juvenil (1989 - As quatro estações)


Composição: Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá

Luz e sentido e palavra


Palavra é!
Que o coração não pensa
Ontem faltou água
Anteontem faltou luz

54
Teve torcida gritando
Quando a luz voltou
Não falo como você fala
Mas vejo bem
O que você me diz...

O inexorável do mundo convive com a margem de manobra do ser hu-


mano, que ainda pode escolher “acreditar no que quer”, apesar da insatisfação
com a imperfeição do mundo, em contraposição ao desenho de um mundo
que o satisfaça (recheado por elementos da cultura pop: clipe com referência a
Beatles, etc.; imagens fortes, inclusive dos pulsos enfaixados).

Se o mundo é mesmo
Parecido com o que vejo
Prefiro acreditar
No mundo do meu jeito
E você estava
Esperando voar
Mas como chegar
Até as nuvens
Com os pés no chão...

Trata-se, sobretudo, de sentimentos de quem vê o mundo com o filtro da


poesia, de quem tem a necessidade de sonhar (“chegar até as nuvens”). Para
quem vê superficialmente, tudo faz sentido, é óbvio. Para o poeta, nada faz
sentido, mas não nega que cada um tem “suas próprias razões”.

O que sinto muitas vezes


Faz sentido e outras vezes
Não descubro um motivo
Que me explique porque é
Que não consigo ver sentido
No que sinto, que procuro
O que desejo e o que faz parte
Do meu mundo...

55
O arco-íris tem sete cores
E fui juiz supremo
Vai, vem embora, volta
Todos têm, todos têm
Suas próprias razões...
(...)

Como é inexorável o sofrimento de viver, decide-se fazer de cada dia “o


mais importante”, remetendo à consciência da alta significação da vida. Ainda
que todo o esforço seja vão (“Mesmo se eu cantasse todas as canções”), faz-se
uma aposta no amor.

O que está acontecendo


E daí, de hoje em diante
Todo dia vai ser
O dia mais importante...

(...)
Mesmo se eu cantasse
Todas as canções
Todas as canções
Todas as canções
Todas as canções do mundo
Sou bicho do mato...

Mas se você quiser alguém


Pra ser só seu
É só não se esquecer
Eu estarei aqui...{4x}

Ou então não terás jamais


A chave do meu coração...

56
Análise 3: Teatro dos Vampiros (1991, álbum V)

Na terceira letra analisada, há certa boemia romântica. De certa forma,


Renato Russo foi um poeta romântico, até pelo simbolismo inerente à morte
prematura. Talvez a Aids tenha sido, metaforicamente e de forma muito triste, a
doença romântica do século XX, como foi a tuberculose em séculos anteriores.
Para além da concepção romântica vinculada ao sofrimento como veia criati-
va, foi ainda romântico em termos de valorização do subjetivo, do sagrado, da
religação com a essência natural, conforme certa interpretação de romantismo.
Houve quem interpretasse essa letra com sentido político: vampiros são os po-
líticos que nos sugam com a sua teatralidade, prometendo lutar por um mundo
melhor e só pensando em si mesmos. Mas, será apenas isso? Será que há só um
sentido político, ou este seria uma possibilidade de sentido, entre outras?
Mais uma vez, fraquezas não são negadas. Ao contrário, assumi-las é a
marca da busca de forças (“Tive medo e não consegui dormir”).
No início da letra, há certa teatralidade, a necessidade de chamar a atenção:

Teatro dos Vampiros (1991 - V) Composição: Renato Russo

Sempre precisei
De um pouco de atenção
Acho que não sei quem sou
Só sei do que não gosto...

Observam-se, então, os traços de poeira (trabalhados, na letra, como os


traços característicos do vampirismo) do mundo:

Nesses dias tão estranhos


Fica a poeira
Se escondendo pelos cantos
Esse é o nosso mundo
O que é demais
Nunca é o bastante
E a primeira vez
Sempre a última chance
Ninguém vê onde chegamos

57
Os assassinos estão livres
Nós não estamos...

Apesar desse mundo cruel, e mesmo da dificuldade social, do desemprego


dos anos 1990, propõe-se não abrir mão da festa, da boemia. Afinal, a vida é
curta, envelhece-se.

Vamos sair!
Mas não temos mais dinheiro
Os meus amigos todos
Estão, procurando emprego...

Voltamos a viver
Como há dez anos atrás
E a cada hora que passa
Envelhecemos dez semanas...

Vamos lá, tudo bem!


Eu só quero me divertir
Esquecer dessa noite
Ter um lugar legal pra ir... (...)

Mais uma vez, algo (algum ser) é interpelado como “você” na canção.
Quem? O dom da reflexão, o entendimento? Deus?

Quando me vi
Tendo de viver
Comigo apenas
E com o mundo
Você me veio
Como um sonho bom
E me assustei
Não sou perfeito...

Se todos são vítimas e algozes nesse mundo de imperfeição, ninguém é


digno de piedade:

58
Já entregamos o alvo
E a artilharia
Comparamos nossas vidas
E mesmo assim
Não tenho pena de ninguém...

Num contexto em que música reflete sentimentos sociais, “não tenho pena
de ninguém” produz o efeito de sentido de “ninguém é digno de pena”.

Referências de vida e traços de autoria

Retomando a biografia do artista, Renato Manfredini Junior nasceu no


Rio de Janeiro em 27 de março de 1960, filho de um funcionário público do
Banco do Brasil, Renato Manfredini, com uma professora de inglês, Maria do
Carmo. Passou a infância na Ilha do Governador, mas, dos sete aos dez anos de
idade, viveu em Nova York (EUA), em consequência de uma transferência pro-
fissional de seu pai, o que certamente influenciou suas referências culturais.
A formação do grupo Aborto Elétrico, em 1979, foi considerada, no meio
musical, como o embrião da Legião Urbana, grupo que reuniu Renato Russo,
Marcelo Bonfá, Eduardo Paraná (mais tarde conhecido como Kadu Lambach) e
Paulo ‘Paulista’ Guimarães, ainda em 1982 e, posteriormente, Dado Villa-Lobos.
O apoio de Herbert Viana, do grupo musical Paralamas do Sucesso, tam-
bém é considerado fundamental para que a Legião Urbana tenha sido contra-
tada pela gravadora EMI-Odeon. O primeiro álbum foi produzido em 1984 e
lançado em 1985.
Renato Russo assumiu-se homossexual, porém, ainda assim, teve relacio-
namentos com mulheres e teve um filho. Em música, traduziu sua preferência
sexual da seguinte maneira: “Eu gosto de meninos e meninas”. Faleceu em 11
de outubro de 1996, aos 36 anos, vítima da Aids, o que se correlaciona a uma
conjuntura da época, quando a doença ainda era nova, sua prevenção inci-
piente e os tratamentos bastante precários3.

3 Até os dias de hoje, a busca por uma vacina contra a Aids desafia a ciência. Porém, os
tratamentos médicos avançaram a ponto de permitir aos pacientes uma sobrevida com re-
lativa qualidade, tratando-a como uma “doença crônica”. Não significa, no entanto, que a
prevenção não seja o melhor caminho, já que os coquetéis de tratamento implicam efeitos
colaterais diversos.

59
Embora se diga que Renato Russo não tenha assumido, em entrevistas, a
aproximação com Deus, muitos interpretam que essa aproximação, tangencia-
da na letra “Índios”, ocorreu como síntese de sua vida marcada por diversos
dessabores, como o preconceito por ser homossexual, o alcoolismo e, por fim,
a doença. Suas posições pessoais, essas sim, foram assumidas em vida, bem
como o que entendia por dignidade, como se pode depreender de posiciona-
mentos dos quais se tem registro:

Você viu como eu sou um tolo? Fumo que nem um desgraçado e,


depois, fico tossindo. (Renato Russo, em 1996) (Russo, 2000, p. 54)

Entendi que podia namorar a mulher mais bonita do mundo,


mas, quando passasse um bofe atraente, com o corpo cabeludo,
hummmm. Não deu, não dá. (Russo, 2000, p. 71)

Eu me considero muito macho, entendeu? (...) Para mim, ser ho-


mem não é sair dando porrada nas pessoas, como ser mulher não é
ser submissa, ficar em casa segurando o chinelinho para o marido.
É preciso parar com o sexismo, e ver que aquilo que existe é digni-
dade do ser humano. (em 1994) (Russo, 2000, p. 77)

Como a maioria dos artistas, Renato Russo também foi perguntado em


vida sobre o significado de ser escritor e artista e a relação de sua vida pessoal
com suas canções:

Não romantizo a necessidade de sofrer para escrever. Sou um es-


critor, faço pesquisa. Se quiser escrever sobre uma pessoa que mora
em São Gonçalo, não preciso ir lá. Se eu quiser escrever sobre o
que um suicida sente, eu não preciso me matar.” (em 1994) (Russo,
2000, p. 94)

Mesmo Acrilac on canvas, que é algo especificamente sobre uma


experiência minha, não é uma coisa literal, porque, a partir do ins-
tante em que você passa para o papel, você inventa. (1989) (Russo,
2000, p. 135)

60
Assim, Renato Russo demonstra certa consciência de que o autor não pro-
duz simplesmente por criatividade inerente ao sofrimento pessoal, mas por
trabalho (faz pesquisa), não dependendo da vivência de cada emoção expressa
na música. Mesmo quando “se inspira” na experiência pessoal, afirma que não
o faz de modo literal, já que “a partir do instante em que você passa para o
papel, você inventa”. Elementos de sua história pessoal, contudo, fazem-se pre-
sentes como componentes nas letras, reconstituídos, ressignificados.
A (relativa) consciência de que construções de sentidos são simultanea-
mente individuais e coletivas aparece ainda em outras letras da Legião Urbana,
como em “Quase sem querer” (álbum Dois, 1986): “Sei que às vezes uso pala-
vras repetidas, mas quais são as palavras que nunca são ditas?”, quase uma
tradução intuitiva de uma concepção inerente à teoria discursiva, a de que os
sujeitos não são a fonte de seu dizer.
Registros sobre Renato Russo anotam que, no período em que lutava con-
tra a Aids, apesar das dificuldades sofridas pelos efeitos da doença, o composi-
tor manteve intensa produtividade artística, compreendendo um dos aspectos
da atividade artística, muito provavelmente, como sobrevida. Produzir arte,
seja qual for, é uma forma de falar com o outro e, ao fazer isso, organizar a
própria existência. Foucault (2000) apresenta o exemplo da correspondência
entre Séneca e seu discípulo Lucílio, em que se exercita, no modo de procedi-
mento e não apenas no conteúdo, o princípio norteador em que se guia Séneca,
“quem ensina instrui-se”. No entendimento de Foucault, ao escrever cartas em
que se propõe expor a sua vida diária, Séneca põe em prática a máxima moral
segundo a qual “devemos pautar a nossa vida como se toda a gente a olhasse”.
Para Foucault, “a reciprocidade que a correspondência estabelece não se res-
tringe ao simples conselho ou ajuda; é ela a do olhar e do exame” (2000, p. 151).
Apontando características da correspondência, Foucault considera que “a carta
é também uma maneira de se apresentar ao correspondente no decorrer da vida
cotidiana, em que se atesta não a relevância de uma atividade, mas a qualidade
de um modo de ser” (2000, p. 155). O modo de ser é explicitado tanto pelo como
se diz quanto pelo que se diz, contribuindo para a caracterização do ethos.
A música, de certa forma, é correspondência endereçada a todo o público
e, ainda que não se possa prever sua temporalidade, conscientemente ou não, é
tentativa de ultrapassar gerações, de permanecer “conversando” com o público
e, mais do que isso, alcançando novos públicos, como ocorre com a literatura
e a arte em geral. É fazer-se memória.

61
Em termos discursivos, a memória não deve ser concebida como “uma
esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo
seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório”. Ao
contrário, a memória é espaço de mobilidade, de “divisões, de disjunções, de
deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização”, comporta “des-
dobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos” (Pêcheux, 1999 [1983c],
p. 56). Nas palavras de Courtine (2006, p. 88), “a memória irrompe no acon-
tecimento”. Assim, a cada vez que se rememora – ao ouvir um disco, celebrar
aniversário de vida ou de morte – novos aspectos de memória se (re)consti-
tuem, (re)configurando intermitentemente o ethos do artista.

Considerações finais

Muitas vezes, a análise poético-literária é resumida ao mito do gênio (que


estaria acima do contexto histórico em que vive) quando se associa criatividade à
história de vida; ou, por oposição, pela ideia do trabalho ou da pesquisa (que, leva-
da às últimas consequências, parece fazer prescindir qualquer “talento” do autor).
A noção de autoria, aqui mobilizada segundo uma teoria discursiva, faz
emergir a correlação entre pessoalidade e trabalho. Não se trata de uma noção
romântica de dom ou criatividade, mas de não excluir por completo o sujeito
que faz parte da História, ao mesmo tempo em que não se exclui a própria
história de vida.
Apesar de que a própria noção de autoria é perpassada pelo processo ilu-
sório de sua constituição, Renato Russo pode ser tratado como autor de sua
obra artística. Conforme o respaldo teórico mobilizado, não se trata de autoria
como fundação de uma “nova discursividade”, mas do trabalho que produz
sobre o gesto de composição que o transforma em um texto razoavelmente
singular, em conexão simultânea aos sentimentos universais.
Miranda e Cascais (2000, p. 8) lembram que, para Foucault, a própria es-
crita (grafia) é “um gesto da vida, e que, se a pode negar, destruir, banalizar,
também a pode ‘salvar’. Mas para isso o indivíduo como proprietário da ‘sua’
escrita, em suma, o sujeito como o mais próprio da experiência, tem de ser
abalados” (2000, p. 8-9) (ver, a respeito, a discussão sobre autobiografia em
Moraes, 2008). Escrever é desejo de não morrer, de existir enquanto memória
(uma das ilusões do sujeito?), permanecer na vida. Sobreviver no pensamento,
na cultura, ultrapassar gerações.

62
Referências

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Papel da Memória. Tradução de J. H. Nunes. Campinas (SP): Editora Pontes, 1999.
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Revisão de Maria do Rosário Gregolin. São Carlos (SP): Editora Claraluz, 2006.

FOUCAULT, Michel. (2000) O que é um autor? 4 ed. Lisboa, Editora Veja. (Textos de
1969/1977/1983)

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Campinas, SP: Pontes/Ed. Unicamp, 1997. 200p.

. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2000. 238p.

. Ethos, Cenografia, Incorporação. In: AMOSSY, R. (Org.) Imagens de si no


discurso. São Paulo: Contexto, 2005. p. 69-92

. Cenas da Enunciação. Tradução de Sírio Possenti e Maria Cecíla Pérez de


Souza-e-Silva. Curitiba: Criar, 2006. 182p.

. Doze conceitos em análise do discurso. Organização de S. Possenti e M. C. P. de


Souza-e-Silva, tradução de Adail Sobral et al. São Paulo: Parábola, 2010. 208p.

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PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, P. e outros. Papel da Memória.


Tradução de J. H. Nunes. Campinas (SP): Editora Pontes, 1999. [Edição original: 1983c]
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RUSSO, Renato. Renato Russo de A a Z: as ideias do líder da Legião Urbana. Coordenação


editorial de Simone Assad. Campo Grande: Editora Letra Livre, 2000. 305p.

Sitografia

http://www.renatorusso.com.br/bio/

63
A ARTE DA CORTESIA E A PERFÍDIA DA
HIPOCRISIA NAS CORTES DE FRANÇA: UM
PARALELO ENTRE O REINADO DE LEONOR
DE AQUITÂNIA E A DISSIMULAÇÃO EM
‘LIGAÇÕES PERIGOSAS’
Maria Angélica Seabra Rodrigues Martins

Introdução

O conceito de cortesia surge oficialmente no século XVIII, enquanto si-


nônimo primeiramente de “civilidade”, depois de “civilização”. Abrangendo
questões de etiqueta, moral, ética e relações interpessoais, “a história das boas
maneiras está diretamente relacionada às regras de comportamento social”,
segundo Pila (2003, p.105). Caso tais regras não fossem respeitadas, haveria
desde a desaprovação até a exclusão dos que não as observassem. A preocupa-
ção com esses preceitos manifestou-se na Europa em manuscritos em várias
línguas (latim, francês, inglês, italiano), pregando as boas maneiras em versos
de fácil memorização, antes do surgimento da imprensa: “ainda não se falava
de civilidade ou em decoro, mas em cortesia. Mas quando esses códigos surgi-
ram? Quais as características e preocupações que apresentavam? (Idem)
A história medieval evidencia que a polidez, o refinamento e a elegância
moral que se atribui às cortes aristocráticas europeias se manifestaram com
o surgimento do lirismo provençal e o com o apoio de Leonor de Aquitânia,
entre os séculos XI e XII, quando nasce na França o amor cortês. A atenção
volta-se para o cavaleiro, um soldado cristão que pertencia a um estabeleci-
mento militar, a cavalaria, colocando sua espada abençoada a serviço da fé, do
suserano, do oprimido, sob a inspiração de uma dama, uma castelã, a quem
dedica seus feitos, como o grande herói da ficção medieval.

64
Em um contexto em que até então as virtudes do homem eram medidas
pelas capacidades militares, as guerras passam a escassear e os senhores feu-
dais a permanecerem mais tempo em seus castelos, promovendo festas; o luxo
e a ostentação tornam-se a tônica. Os instintos destrutivos são canalizados
para uma causa mais justa, as Cruzadas, enquanto aproximam o Ocidente
bárbaro de um Oriente que já possui um refinamento maior, uma vez que os
árabes, em contato com os gregos, assumiram muitos de seus hábitos.
As cortes dos senhores feudais tornam-se centros da vida social, o que pro-
piciou a criação de regras de boas maneiras e civilidade, capazes de distinguir os
nobres dos vulgares plebeus: a cortesia. “É então que o rude cavaleiro se transfi-
gura em cavalheiro. À coragem ele une a galanteria” (Tringalli, 1994, p.27), sendo
que mesmo a relação amorosa passa a ser regida por tais leis. Já a mulher, que
até então assumia o único papel de geradora de filhos, de futuros guerreiros
para o marido, torna-se a grande castelã. Essa transformação deve-se à Igreja,
que reconhece, então, que ela também tem alma, o que lhe atribui poderes an-
teriormente impensáveis. Nesse contexto, torna-se endeusada, sendo a relação
amorosa marcada pela reciprocidade e pela livre correspondência da amada, um
instrumento de realização espiritual do homem, embora amor e casamento não
estivessem relacionados, uma vez que as uniões ocorriam por interesses políticos
ou econômicos e a fidelidade ocorresse apenas entre os amantes.
Neste texto serão analisados os conceitos de cortesia, civilidade e hipo-
crisia, a partir da corte de Leonor de Aquitânia (século XII), quando sur-
gem as boas maneiras e o “amor cortês”, até o século XVIII, a partir da obra
de Chordelo de Laclos, Relações Perigosas, e do filme Ligações perigosas,
de 1988, em que a cortesia dissimula a hipocrisia. Além de elementos da
Sociologia e da Filosofia, serão também empregadas as Teorias do Discurso,
com o objetivo de se analisar as relações ideológicas e os contextos histórico-
sociais, além dos processos de manipulação e a discursivização que revestem
as personagens das obras adotadas como corpus.

Leonor de Aquitânia e a cortesia na Idade Média

Em uma época em que a maioria dos governantes era analfabeta, Leonor,


neta de Guilherme IX (1071-1127), Duque da Aquitânia e Conde de Poitiers,
recebeu exímia educação, pois sucederia o pai nesses tronos, uma vez que seu
irmão Guilherme Aigret tinha falecido ainda criança.

65
De forte personalidade e incomparável beleza, Leonor dominou o cenário
da época. Dada em casamento aos catorze anos a um apaixonado, porém tí-
mido delfim da França, Luís (VII), modificou os hábitos na corte do marido,
introduzindo regras de etiqueta, o gosto pelo luxo e o culto do prazer, além de
interferir também na linguagem rude, procurando uma aproximação com o
ambiente requintado de Poitiers. Segundo Markale (1983), Leonor desenvol-
veu a noção de “moda”, fazendo surgir os decotes generosos, as corsages que
realçavam as formas femininas ao invés de as ocultar, desnudando os ombros
e a parte superior dos seios. Introduziu tecidos importados do Oriente, como
sedas e brocados, em cores consideradas ousadas, como o amarelo-sol, os tons
de pêssego ou o verde mar. Entre os homens, as modificações também se fize-
ram sentir: passaram a fazer a barba, apresentando rostos bem escanhoados.
Leonor organizava jogos e torneios, sendo vista nas festas populares, em ruas
apinhadas e turbulentas.
À mesa, também introduziu novidades no preparo de pratos requintados,
com frutos secos, caça e pesca, tempero de gengibre e de especiarias vindas da
Ásia e do Islã. Os hábitos corteses, dessa forma, estavam relacionados tanto às
relações afetivas entre homem e mulher, quanto às boas maneiras, aos hábitos
à mesa, às gentilezas, a noções de “civilidade”, modificações que não foram
consideradas “viris” pelos conselheiros mais conservadores, que duramen-
te as criticaram. Como resposta, Leonor organizou e participou da Segunda
Cruzada, destinada a marchar sobre Jerusalém, o que destruiu seu casamento,
uma vez que, nas estratégias de batalha, sua impetuosidade contrastava viva-
mente com a inércia do marido.
No retorno, encontra o amor nos braços do impetuoso rei da Inglaterra,
Henrique Plantageneta, com quem termina por se casar, após obter a anulação
de Roma para o primeiro matrimônio. Na corte do novo reino introduz os
mesmos hábitos sofisticados que trouxera para a França, com a revolução de
sentimentos que iria marcar todo o Ocidente, a partir das regras do “amor cor-
tês”, com seu requinte e ardor. Os conceitos de civilidade introduzidos por ela
entre os cortesãos, com regras de comportamento que estabeleceram divisões
entre os grupos sociais, demarcaram “o comportamento da corte, explicitan-
do as barreiras sociais entre esse grupo e o restante da sociedade”, esclarece
Landini (apud Rodrigues e Marroni, 2012, p.6).
Em Portugal, observa-se a influência da corte de Leonor, com a introdu-
ção da poesia cortês da França meridional a partir do reinado de Sancho I (sé-
culo XII), que contribuiu para aprimorar os rudimentares cantares d’amigo,

66
de natureza folclórica, acompanhado de coral, “com versos parelhados na for-
ma e no conteúdo, seguidos de refrão” (Spina, 1991, p.14). Segundo o autor,
os “cantares d’amor”, de procedência provençal, refletem um estilo de vida
diferente: “constituem um retrato da vida feudal da corte, portanto expres-
são de um meio culto, refinado, comprometido pelo convencionalismo da vida
palaciana e com evidentes influxos da cultura clássica” (Idem, p.16). É o amor
não correspondido, que o trovador dedica a sua amada, a dama impiedosa,
inacessível a suas solicitações.

O conceito de “civilidade”

Cada época histórica determinará a dinâmica e o comportamento do ho-


mem; assim, a cortesia desenvolvida no século XII sofrerá mudanças durante
o Renascimento, dentro do processo de civilité, sendo que nos séculos XVI e
XVII, com a gradativa extinção da nobreza guerreira baseada no cavaleiro e no
senhor feudal, e com a formação de uma nova aristocracia de monarcas abso-
lutos, o conceito de “civilidade” eleva-se à categoria de comportamento social
e aceitável (Elias, 1994, p. 111). Assim, a cortesia e a civilidade conviveram lado
a lado durante o período da sociedade de transição na França do século XVI,
misto de sociedade de cavaleiro feudal e de monarquia absoluta. Entretanto,
na mesma França, no século XVII, esse conceito de cortesia caiu gradualmente
em desuso. (Idem, p.111).
Erasmo de Roterdã é uma figura de destaque quanto aos princípios de
civilidade que se deveriam ensinar nesse período entre a queda do feudalismo
e a de ascensão do absolutismo na Europa, e a formação da aristocracia das
cortes, o que surge como uma oportunidade aos intelectuais que não se identi-
ficavam diretamente com um ou outro grupo social. Entretanto, a inspiração
para as obras que ensinavam como se comportar, partiam das cortes, como é
o caso de sua obra A civilidade pueril, de 1530, na qual pregava que se poderia
moldar a própria personalidade pela educação, disciplinando o corpo, os com-
portamentos, além de valorizar jogos e brincadeiras, durante a aprendizagem.
É um momento histórico e social em que ocorre um direcionamento para
se valorizar a perfeição, cuja expressão máxima do universo encontra-se no
feminino, o que refletirá uma mudança na cultura, ou seja, “o reforço do es-
tatuto da mulher na modernidade, mesmo se não puder superar a obscura e
repetitiva certeza de uma inferioridade” (Vigarello, 2006, p.23). Para Frascatel,

67
a “Vênus substituiu a virgem” (Idem, p.23), surgindo nas pinturas em formas
fluidas, espiritualizadas, com atitudes nobres e interiorizadas. A mulher pas-
sou a simbolizar a graça, a alegria das cortes e das festas, a companheira das
conversas, desvencilhando-se do papel de submissão e apagamento a que esti-
vera relegada, após o período de destaque que obteve nas cortes de Leonor de
Aquitânia (França e Inglaterra) e nas de suas filhas, no século XII.
A partir desse contexto histórico-sociológico, uma dualidade se impõe: a
força para o homem, a beleza para a mulher. Segundo Romei (Ibidem, p. 25) “o
homem deve ser dominador, terrível e belo, para que, combatendo com furor
seja terrível para seus inimigos”. Sob essa perspectiva, ele deveria impressio-
nar, mais que seduzir, engendrar o terror, mais que o amor; ser gracioso como
o cortesão, mas também austero e duro. O ideal masculino, portanto, manifes-
ta-se relacionado a um tipo diferenciado de cortesia, em que o refinamento e
a rudeza se mesclam. Para o padrão feminino, ressaltam-se os cuidados com a
pele, com o corpo, para alegrar e deleitar, no recinto do lar, o homem fatigado
das lides no campo e na cidade. A beleza é corrigida artificialmente com o uso
de espartilhos, que alongam e afinam a silhueta; maquiagem, perucas; modo
de caminhar; gestualidade estudada etc.
Os gestos permitem uma interpretação e um reconhecimento moral, psi-
cológico e social do indivíduo. Sua postura e suas vestimentas determinam seu
ser: “é o corpo que diz sobre o interior do homem, suas manifestações podem
também ser formadas, reformadas e regulamentadas corretamente. A intimi-
dade é considerada apenas para manipulá-la e adequá-la a um modelo que é o
do meio termo, o da recusa a todos os excessos” (Revel, 1991, p. 172). Segundo
Elias (1998), a observação do comportamento denota as diferenças, tornando-
se a partir desse momento “a essência da cortesia, o requisito básico da civilité,
pelo menos na França” (Elias, 1993, p. 86).
Dentro desses padrões, a “civilidade” será adotada por indivíduos das
classes superiores como característica que os distinguirá dos demais, estabe-
lecendo “um código específico de comportamento” que, oriundo “das gran-
des cortes feudais, atingirá mais tarde todos os estratos sociais.”(Pila, 2003, pp
105-106). Elias (1993) afirma que o “processo psíquico civilizador”, a partir dos
significados de “civilização” surge relacionado à consciência que o Ocidente
tem de si mesmo, no tocante às maneiras, aos conhecimentos científicos, às
idéias religiosas e aos costumes (a forma de coabitação entre homens e mu-
lheres, a preparação dos alimentos), e às punições estabelecidas pelo sistema
judiciário (Elias, 1993 apud Pila, 2003).

68
Em outras palavras, a ideologia determina as regras de civilidade, respon-
sável pela aceitação do indivíduo em determinado núcleo social. O homem
é coparticipante de um conjunto de regras pré-estabelecidas, que reconhece
como normas, inclusive as de cortesia, e as quais também espera daqueles com
quem convive. Segundo Mainguenau (1997): “a ideologia não deve ser conce-
bida como ‘visão do mundo’, mas como modo de organização, legível sobre as
duas vertentes da prática discursiva” (p.60), ou seja, o discurso e a ideologia.

O século XVIII: cortesia, civilité e libertinagem

Barros (1988) esclarece que em um texto, objeto de comunicação de uma


cultura, evidencia-se uma ideologia e um contexto histórico. Considerando-
se o discurso-texto como um fenômeno de comunicação cultural, observa-se
que é por meio dele que são captados os aspectos sociais em que o discurso se
insere. Para a autora, é extremamente importante analisar-se como os parti-
cipantes de um meio social interiorizam e incorporam o discurso dominante,
sua consequente reprodução na sociedade e seu impacto.
Segundo Orlandi (2005, p.40) ”as condições de produção implicam o que
é material (a língua sujeita a equívocos e à historicidade), o que é institucional
(a formação social, em sua ordem) e o mecanismo imaginário.” Dessa forma,
ocorre um mecanismo que produz tanto imagens dos sujeitos, como do obje-
to do discurso, inseridos em uma conjuntura sócio-histórica. “Temos assim
a imagem da posição sujeito interlocutor (quem é ele para me falar assim, ou
para que eu lhe fale assim?) mas também da posição do sujeito” (Idem, p.40)
Considerando-se tais pressupostos, observa-se que no Renascimento es-
perava-se que as mulheres fossem vistas como mães; dessa forma, prioriza-
vam-se corpos mais robustos, tidos como mais férteis. Essa imagem foi subs-
tituída pela da mulher com formas marcadas artificialmente pelo espartilho,
no século XVI, à medida que seu papel social também se modificou. No século
XVIII, a magreza e a elevação da cabeça tornam-se atributos essenciais na mu-
lher aristocrata, enquanto corpos mais rotundos passam a ser peculiaridade
das amas de leite e das criadas (a quem eram confiadas as crianças), as quais
deveriam ser fortes e robustas para suportarem o serviço doméstico. Não se
esperaria de uma dama da corte que possuísse seios grandes e fartos (signo da
nutriz), uma vez que não amamentariam seus filhos, característica não com-
patível com uma posição social de destaque.

69
Ao introduzir nas rudes cortes da França e da Inglaterra as boas manei-
ras, as “normas de cortesia”, com hábitos mais refinados e respeitosos no trato
social e para com a mulher, Leonor de Aquitânia estabeleceu um padrão de
superioridade dessas cortes em relação às demais da Europa da época, embo-
ra, segundo Elias (1990), o conceito de civilização não seja o mesmo em todo
o Ocidente, uma vez que para os franceses e ingleses, civilização resumiria
“em uma única palavra seu orgulho pela importância de suas nações para o
progresso ocidental e da humanidade”(Idem, p.24) podendo se referir a fatos
políticos ou econômicos, religiosos ou técnicos, morais ou sociais, ou ainda
a realizações, atitudes, comportamentos de pessoas em geral. “Relaciona-se
[portanto] a algo que se movimenta ‘para frente’ [e] “inclui a função de dar
expressão a uma tendência continuamente expansionista” (Pila, 2003, p. 106)
No século XVIII, a questão do comportamento abrangendo o uso do es-
partilho, a cabeça elevada, o cabelo em um penteado alto e a maquiagem evi-
denciam uma mensagem subliminar de um discurso não dito, capaz de deno-
tar uma identificação social e econômica, dependendo da riqueza dos detalhes,
das joias e da profusão de tecidos e de babados nas roupas. Entre os homens, a
expressão “sans cullotte” especifica um indivíduo da plebe, cujas calças eram
retas, sem os “culotes” (ou seja, largas acima dos joelhos) apropriados para se
montar belos cavalos de raça, animais que, no século XVIII, de modo geral,
apenas os ricos possuíam.
Retomando Elias, Pila (2003) esclarece que o verbo “civilizar” irá aparecer
apenas na década de 1760, na obra de Mirabeau, quando o autor o relacionará
ao sentido atribuído por Huguet: “Levar à civilidade, tornar civis e brandos os
costumes e as maneiras dos indivíduos”. (Idem, p.107), de acordo com os hábi-
tos dos membros da corte que se autodenominavam civilizados1. Esse padrão
seria encarado por eles como um refinamento que os indivíduos de classes
sociais inferiores não possuíam. Dessa forma, como ocorrera em outras épocas
com polidez e civilidade, no século XVIII, “o conceito civilização passa a ter
a função de ‘expressar a auto-imagem da classe alta européia em comparação
com os outros (...)” (Elias, 1990, p.54).

1 Dictionnaire de la langue française du XV e. siècle http://www.shef.ac.uk/library/cdfiles/


huguet

70
O jogo de aparências e a libertinagem

Para a maioria das pessoas, diz Mirabeau, a civilização é a “sua-


vização de maneiras, urbanidade, polidez, e a difusão do conhe-
cimento de tal modo que inclua o decoro no lugar de leis detalha-
das”. Por outro lado, ele não considera que isso seja civilização,
mas sim “apenas a máscara da virtude, e não a sua face” (Elias,
1993, p.54).

A aristocracia que se restabeleceu na França após os acontecimentos da


Revolução, no final do século XVIII, mais tarde denominada sociedade do
Antigo Regime, torna a “civilidade” um jogo de simulações e dissimulações,
capaz de ocultar os reais sentimentos dos indivíduos: a aparência se sobrepõe à
essência. A cortesia reflete-se na utilização de boas maneiras, com o propósito
de se obter favores ou objetivos pouco escrupulosos, o que não deixou de ser
registrado pelos autores da época, com extrema mordacidade.
Montesquieu, em seu romance Cartas Persas (1719), apresenta um relato
da viagem de personagens persas pela Europa, em que enfatizam a França,
criticando a estratificação social e de forma contundente a “civilidade” e a “so-
ciabilidade”, em um jogo de aparências “como um teatro no qual se buscava
a fama como um fim em si mesmo, recorrendo-se a todo tipo de imposturas,
convenções e etiquetas” (Villalta, 2005, apud Senett, 1988, p. 142 e 152-53),
servindo a um propósito com vistas à obtenção de favores ou de objetivos ines-
crupulosos, que da antiga cortesia passavam à total hipocrisia.
Dessa forma, a sociedade francesa da época, sobretudo o mundo da aristo-
cracia, ostentava personas, no sentido junguiano, que ocultavam de fato o que
eram. Nos círculos aristocráticos: “o grande teatro constituído pela sociedade
européia é focalizado sob vários aspectos: ora a valorização da comunicação
oral, ora a hipocrisia, ora a simulação (...) A representação era uma arte co-
tidianamente exercida, e a oralidade peça essencial!”, afirma Villalta (2005,
p.4). Montesquieu utiliza seus personagens Uzbequi e Rica para evidenciar a
manifestação da hipocrisia, quando em certo momento o segundo escreve ao
primeiro acerca do que observava em Veneza: “Aqui há muitos que disputam
indefinidamente acerca da religião, mas que parece que ao mesmo tempo por-
fiam sobre quem pior há de guardar os seus mandamentos” (Montesquieu,
1960, p. 95).

71
Nesse universo de falsidades, Chordelo de Laclos situa seus personagens
no romance epistolar Les Liaisons Dangereuses (1782), que no Brasil recebeu
o título de Relações Perigosas (1980); nele, os protagonistas Marquesa de
Merteuil e Visconde de Valmont, ex-amantes, manipulam a reputação daque-
les que constituem seus alvos, seja para destruí-los, ou para envaidecê-los, em
um jogo em que ninguém é poupado, nenhuma criatura é respeitada, com
o objetivo de atingirem seus interesses luxuriosos, vingativos ou meramen-
te prazerosos. Assim, Madame de Tourvel, mulher recatada, religiosa e fiel
ao marido, torna-se alvo da sedução de Valmont, cujo sucesso na conquista é
colocado em dúvida pela Marquesa de Merteuil, que cobra do luxurioso vis-
conde cartas regulares que comprovem o processo de sedução. Ela também
lhe solicita que seduza, antes do casamento, sua prima, Cécile de Volanges,
recém-saída de um convento para se casar com um aristocrata, o Conde de
Gercourt, o qual preterira o leito de Merteuil, em favor da noiva adolescente e
virgem. Cécile, entretanto, apaixona-se por seu professor de música, o cavalei-
ro Danceny, um jovem idealista e bom, embora os sentimentos puros de ambos
não se encaixem nos papéis sociais desempenhados pela sociedade hipócrita
da época. O resultado final é doloroso para todos.
Adaptado para o cinema, o romance tem uma de suas melhores ver-
sões em 1988, dirigido por Stephen Frears, na interpretação de Glenn Close
(Merteuil), John Malkovitch (Valmont), Michelle Pfeiffer (Mme. de Tourvel),
Uma Turman (Cécile) e Keanu Reeves (Danceny). O filme traz uma cena ini-
cial emblemática para a construção dos padrões de aparência requeridos pela
corte parisiense do século XVIII: a Marquesa Isabelle de Marteuil, vivida pela
atriz Glenn Close, logo após acordar, visualiza sua imagem no espelho, o qual
reflete um rosto de mulher sem maquiagem, mas cujos olhos evidenciam a
satisfação interior: é o sujeito em sua essência.
A cena seguinte apresenta serviçais envolvidos em um protocolo, para a
composição da persona que transformará Isabelle na bela (embora má), cortês e
poderosa Marquesa de Merteuil, a qual desempenha relevante papel na vida da
aristocracia, beneficiando alguns, destruindo outros, segundo seus próprios
interesses. A figurativização de mulher poderosa é construída a partir da ma-
quiagem branca, mas não excessiva, cobrindo-lhe colo, rosto e pescoço; a se-
guir, as serviçais afivelam sobre seu quadril a armação de metal (“anquinhas”),
que compõe o quadro de rigidez com o espartilho; a escolha do perfume e das
joias evidenciam a projeção social, bem como o fato de ter a costureira “ao

72
pé de si”, acertando os últimos retoques do traje. Surge a mulher, penteada e
pronta para seu papel social.
Intercaladas a essas cenas, o Visconde de Valmont (John Malkovich), de
acordo com o esperado para os nobres da época, possui um séquito de serviçais
que o acordam, preparam seu banho e trazem-lhe uma xícara de chá. Um traço
característico da personagem está inserido no gesto seguinte, constituindo um
signo da enunciação, sem que haja a necessidade de qualquer palavra: a mão
que surge em meio aos lençóis, vestida com um punho de rendas e apanha uma
toalhinha oferecida pelo serviçal, em seguida desaparecendo sob as cobertas,
faz uma clara referência à primeira higiene do luxurioso. A sequência de ações
que envolvem o ser barbeado e a escolha do traje, do perfume, do sapato e da
cabeleira, bem como a finalização com o empoamento, ancora o personagem
em um contexto de época e em uma classe social definida, constituindo marcas
ideológicas do discurso não dito. Nos dois casos, evidencia-se a geometria das
formas que Moreau de La Sarthe (apud Vigorellio, 2006, p.80) especificou: em
losango, para as mulheres (destinadas à gestação); trapezoidal para os homens,
sendo que o busto e os quadris estariam em uma razão inversa nos dois sexos.
Em um contexto onde o sujeito é construído a partir dos papéis deter-
minados para a manutenção do status quo, ante a sociedade de seu tempo,
segundo a ideologia vigente entre os aristocratas, o Visconde de Valmont deve
manter sua prestigiosa reputação de conquistador inveterado, nesse universo
hedonista, em que a busca de valores morais não é bem vista. Já a Marquesa de
Merteuil mantém uma posição que construiu, segundo suas próprias palavras,
ao longo de anos de observação; comportando-se como amiga poderosa e pers-
picaz, com a capacidade de oferecer soluções para os problemas mais intrin-
cados, desde que resultem em benefícios para seus próprios planos, dissimula
seus reais sentimentos, e sempre cumpre seus objetivos, ainda que pessoas de
boa índole sejam destruídas nesse processo. Segundo conselhos de Diderot a
um artista da época (apud Vigarello, 2006, p.77): “Liberte-se do modelo...seja
observador nas ruas, nos jardins, nos mercados, nas casas, e assim assimilará
ideias justas sobre o verdadeiro movimento nas ações da vida”.
Isabelle de Merteuil enuncia a visão de Choderlo de Laclos sobre a ideo-
logia da época, ao se posicionar, enquanto enunciador, declarando que em um
mundo de falsidades como aquele em que vivem não haveria lugar para a feli-
cidade, apenas para triunfos sobre desafios momentâneos, visando a superar o
tédio dos inúmeros dias. Nesse contexto em que a mulher, apesar da possibi-
lidade de desfrutar de certos papéis anteriormente apenas masculinos, como

73
as discussões inteligentes sobre determinado tema (nas situações sociais) e o
acesso mais amplo à sexualidade (ainda que relativamente dissimulado), deve-
ria continuar se impondo pela beleza e pela sagacidade, o objetivo final ainda
seria o de obter um casamento vantajoso. A atitude cortês teria como objetivo
esse fim, além da obtenção de possíveis amantes.
Dessa forma, a marquesa traduz a ideologia vigente sobre a situação de
todas as mulheres da corte, da época, ao declarar que não há lugar para o amor
verdadeiro (o belo-divino), no contexto em que vive apenas a lógica da obten-
ção de resultados previamente delineados.
Entre os diferentes papéis representados pela marquesa está o de conse-
lheira e amiga da ingênua Cecile de Volanges, a quem manipula segundo um
saber-fazer, atribuindo à jovem valores positivos, ao adotá-la como digna de
ser sua protegida. Merteuil figurativiza a amiga cortês, sincera, embora utilize
a sedução e seja dissimulada ao convencer a garota a entregar-se a Valmont
para aprender as artes da luxúria, alegando que seria agradável ao futuro es-
poso descobri-la instruída nos assuntos do sexo, na noite de núpcias. A ques-
tão do olhar, que segundo os pintores dos séculos anteriores deveria refletir
bondade, nessa cena é abordada contrariando esses artistas, uma vez que se
de frente para Cecile, enquanto profere frases doces e persuasivas, o olhar de
Isabelle de Mertteuil é doce e compassivo, ao abraçá-la, saindo de seu campo
de visão, evidencia uma informação diferente, de total vitória, pois completa-
ria sua vingança de levar o ex-amante ao ridículo, ao encontrar no leito nup-
cial, não a jovem ingênua, recém-saída do colégio de freiras, mas uma cortesã
perfeitamente instruída nas artes do amor carnal. A cortesia aparente, na ver-
dade, traduz-se em hipocrisia.
Manipuladora, Merteuil age como destinador também ao envolver
Valmont- destinatário em sua teia, utilizando a tentação e a provocação, diante
da promessa da conquista de seu próprio corpo, um prêmio incalculável para
ele, visto ser a mulher mais difícil de se obter para o amor carnal, além de es-
picaçá-lo, acusando- o de não ser capaz de se vangloriar da vitória sobre a doce
Tourvel. Para ambos, entretanto, importava o desafio da conquista e a capaci-
dade de manipular e de seduzir, mediante práticas cada vez mais complexas,
criaturas virtuosas e praticamente impossíveis de serem arrastadas para o ca-
minho da luxúria, como Madame de Tourvel, fiel ao marido e católica devota.
Neste caso, cortesia e perfídia se contrapõem, em um jogo paradoxal, em que o
realmente virtuoso, o crente no amor cortês é encarado pela aristocracia como
ingênuo e tolo.

74
Para Merteuil e Valmont, representantes de uma sociedade hedonista e lu-
xuriosa, quanto mais difícil a conquista, maior o sabor da vitória. Produtos de
um meio que valoriza a aparência, em detrimento da essência, não cultuam a
virtude, o que pode ser comprovado pela não aceitação e valorização de Cecile
(virgem) e de Madame Tourvel (pura e fiel).
Em uma sociedade em que imperam as aparências, a construção inicial
cede lugar à “desconstrução” dos personagens no final, quando Valmont re-
vela sua fraqueza – o amor por Madame de Tourvel –, ainda que morra como
forma de retratação. Já à Marquesa de Merteuil cabe a punição em vida pelos
excessos, ao serem reveladas à sociedade as cartas que trocaram. As cenas fi-
nais, em que é vaiada no teatro e a retirada da maquiagem, em gestos exaspe-
rados, diante do espelho onde começara o filme, evidenciam que a sociedade
da época relegava ao ostracismo (punição exemplar para os que desfrutavam
da vida na corte) os que ousassem tornar públicas suas fraquezas.
Finalmente, a varíola (na obra de Laclos) que desfaz definitivamente sua
capacidade de utilizar a beleza e a dissimulação nas expressões faciais deter-
mina seu fim:

(...).a senhora de Merteuil foi, na noite seguinte, tomada de forte


febre (...) que se declarou uma varíola, confluente e de muito mau
caráter (...) Muita razão tinha eu de dizer que seria uma felicidade
para ela morrer de varíola. Salvou-se, é verdade, mas horrivelmen-
te desfigurada; perdeu também um olho. Deveis imaginar que não
a revi, mas disseram-me que está realmente medonha (...) que a
doença a virara pelo avesso, e que agora tinha a alma no rosto”
(LACLOS, 2002, p. 314-316).

Considerações finais

Como se pôde observar ao longo deste texto, por um breve tempo o amor
cortês obteve seu lugar entre os mais poderosos, determinando comportamen-
tos mais civilizados e o respeito para com a mulher, a partir da atuação de
Leonor de Aquitânia. Graças a ela, a mulher teve seu papel de destaque na cor-
te, podendo opinar e determinar suas vontades. Após sua morte, entretanto,

75
os hábitos que introduzira nas cortes foram gradativamente negligenciados,
devido às guerras subsequentes e aos invasores bárbaros.
Somente após a Renascença algumas das normas de cortesia começaram
a ser reabilitadas, embora vinculadas à classe dominante, que determinava as
noções de correto ou incorreto. À figura feminina, coube primeiramente, a
partir do século XVI, o papel de embelezar os salões, sua atuação estando a
cargo de dissimulações e manipulações sobre o mandatário masculino. Assim,
se a ela era atribuída a relação com o belo, ao masculino cabia o poder de deci-
são, outorgado pela força física e pela virilidade.
Se nas cortes em que Leonor e de suas filhas dominaram, levando a inte-
ligência e a sagacidade feminina a serem valorizadas e apreciadas; no século
XVIII a valorização dos atributos femininos deslocou-se da essência para a
aparência, embora a mulher jamais tenha deixado de usar sua inteligência em
todas as ocasiões possíveis.

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77
II – Representações do mundo
contemporâneo
VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A CULTURA
DO ESTUPRO NO ESPAÇO ACADÊMICO:
VULNERABILIDADES E HISTÓRIA
Lidia M. V. Possas

A temática emerge no contexto das atividades de comemoração dos 40


anos/ UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(1976-2016)1 e das preocupações das(os) pesquisadores do Laboratório
Interdisciplinar de Estudos de Gênero/LIEG2 que aproveitam a data para não
só (re) tomar a sua trajetória histórica, mais as demandas que vem sendo colo-
cadas e avaliar as “agências”3 existentes paralelamente à sua participação aca-
dêmica no cenário nacional e internacional.
Uma das metas que está sendo debatida situa-se na urgência de garantir
efetivamente a inclusão social, de gênero e racial na vida acadêmica diante dos

1 A UNESP é distribuída do litoral ao interior do Estado de São Paulo. Possui a característica de


ser multicampus atuando em 24 cidades paulistas. Conta com 134 curso de Graduação (37.388
estudantes), 13.200 cursos de Pós-Graduação (13.2006 estudantes). Atua com 3.880 docentes
titulados e mais de 7 mil funcionários distribuídos em suas 34 unidades. Jornal Estado de São
Paulo de 30/01/2016.
2 O LIEG foi fundado em 2010, na UNESP, campus de Marília, com a implementação do Projeto
de Políticas Públicas do Edital n. 20/2010/CNPq), intitulado “O impacto da(s) Teoria(s) Femi-
nista(s) na criação e implementação de Políticas Públicas no enfrentamento à violência contra
as mulheres: A proposta de alternativas frente ao estudo comparativo das realidades distintas
dos municípios de Marília-SP e Maringá-PR” 2010-1014.
3 Grupos de luta organizada, não hierárquica que defendem novas demandas, nos quais incluem
além das mulheres, os negros, indígenas, imigrantes, homossexuais, trabalhadores do sexo,
idosos, moradores de vilas (ou favelas), portadores de deficiências, obesos, pessoas com certas
doenças, moradores de rua, ex-presidiários.

79
inúmeros enfrentamentos e os conflitos que se fazem presentes no vivido dos
campi universitários.
É evidente que uma gama de problemáticas sócio culturais, econômicas e
políticas da sociedade brasileira e do país foram transportadas para o seu co-
tidiano acadêmico criando novas exigências conceituais, explicativas inclusive
curriculares.
A violência de gênero4 e “a cultura do estupro”5 (Cunha, 2016) estão inse-
ridas no contexto de novas demandas, caracterizando as tensões e conflitos
gerados no cotidiano.
Passei a observar a necessidade de debruçar-me sobre essa realidade – o
espaço acadêmico - como um campo de estudo, o que me exige rever as fer-
ramentas existentes realizando a crítica necessária diante da produção do co-
nhecimento cientifica que, dado as realidades complexas e distintas vem deba-
tendo uma maior autonomia intelectual, localizada, hibrida que possibilitam
introduzir novas perspectivas analíticas e categorias dissonantes libertando-as
dos modelos e paradigmas explicativos dominantes. A exemplo das teóricas fe-
ministas contemporâneas em sua revisão conceitual, a partir de um “sul”, que
é mais que o geográfico, tem-se realizado a desconstrução do olhar do ociden-
te hegemônico e das tendências monolíticas emanadas pelo “norte” (Fraser,
2007) o que me aproximou da construção de tradições acadêmicas feministas
contra hegemônicas de percepção do mundo, da atuação das mulheres e das
relações de gênero em contraponto com as propostas (monolíticas) ocidentais
(Mohanty, 1984).
Com isso passei a ficar atenta a uma abordagem que se faz presente na
academia , desde os anos 70, sendo denominado de estudos pós coloniais na
medida em que revê as especificidades das sociedades, das relações de poder
partir do lugar dos sujeitos, sem intermediações frente ao processo de globali-
zação e da construção do capitalismo pelo Ocidente (Balestrini, 2013).
Portanto a minha proposta tem como ponto de partida uma revisão do
olhar epistemológico presente na história, de modo a garantir que uma revisão

4 Constitui-se em um campo teórico-metodológico sendo alvo das reivindicações do movimen-


to feminista brasileiro e internacional. Ela ocorre motivada pelas desigualdades baseadas na
condição de sexo, tendo no universo familiar as suas raízes devido que as relações de gênero se
constituem em relações hierárquicas.
5 Termo usado o para abordar as maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual
e normaliza o comportamento sexual violento dos homens, por meio da culpabilização da ví-
tima do estupro.

80
das imagens e representações que temos de nossa realidade latina america-
na, inclusive acadêmica, me possibilite sair da direcionalidade de relações de
poder convencionais produzidas pelas teorias existentes. Um dos exemplos
dessa postura intelectual está no conceito “do relativo subdesenvolvimento
do Terceiro Mundo” (que é nada menos do que injustificadamente o hibri-
do processo de desenvolvimento com um caminho em separado tomado pelo
Ocidente em seu desenvolvimento do capitalismo). Esse pensamento vem sen-
do refletido inclusive sobre as mulheres terceiro mundistas, como um grupo
ou categoria definida a priori, que reforça estereótipos e as exclui:

...as religiosas (leia-se ‘não progressista’), orientadas para a família


(leia-se ‘tradicional’), menores legais (leia-se ‘elas-são ainda-não-
conscientes-de-seus-direitos’), analfabetas (leia-se ‘ignorantes’),
domésticas (leia-se ‘atrasadas’) e, algumas vezes, revolucionárias
(ler ‘o seu país-está-em-um-estado-de-guerra- onde-há- que-lu-
tar!’). “Isso é como a ‘diferença de terceiro mundo’ é produzida.
(Mohanty, 1984, p. 352)

Coloco-me na contra mão dessa perspectiva para observar os conflitos


existentes e as relações de gênero que são muitas vezes sutis, de várias ordens
e nuances. No espaço universitário, vivenciamos nas relações cotidianas prati-
cas essencialmente misóginas, conservadoras, elitistas contraditórias que aca-
bam sendo excludentes e não condizem com os discursos e a retorica de uma
autonomia endógena, um espaço de pessoas “de formação e esclarecidas”. As
transformações do mundo contemporâneo possibilitaram avanços políticos e
sociais obtidos por aqueles que durante muito tempo foram considerados os
silenciados, e que agora, são sujeitos de direito e de representatividade. As mi-
norias6 alçaram conquistas inéditas, embora ainda enfrentem situações onde
são consideradas como diferentes e, portanto, sem a devida legitimidade pelos
saberes dominantes.

6 As minorias sociais são as coletividades que sofrem processos de estigmatização e discrimina-


ção, resultando em diversas formas de desigualdade ou exclusão sociais, apesar de constituí-
rem a maioria numérica da população. Nesse sentido incluem além das mulheres, os negros,
indígenas, imigrantes, homossexuais, trabalhadores do sexo, idosos, moradores de vilas (ou
favelas), portadores de deficiências, obesos, pessoas com certas doenças, moradores de rua,
ex-presidiários.

81
Situado o lugar do discurso em que me coloco, pretendo analisar as com-
plexidades e as contradições com um estudo abordando as práticas sociais e
a violência de gênero vivenciadas no ambiente universitário – UNESP – de
modo a entender a presença de comportamentos sexistas, misóginos e natura-
lizados da “cultura do estupro”.
As feministas norte americanas pós-coloniais vem defendendo vários mo-
vimentos na perspectiva do dismantle rape culture (Gilmore, 2011). É possível
identificar em várias universidades americanas projetos, programas, confe-
rências para enfrentar esse tipo de violência7.
Em 2014, o documentário The Hutting Ground8 chamou a minha aten-
ção ao colocar em evidencia os casos de estupro nas principais universida-
des americanas. As relações de gênero e de poder praticadas pela conhecidas
“fraternidades” (clubes esportivos e preferencialmente masculino) tinham um
caráter violento e machista. E o mais relevante foi o descaso frente as tenta-
tivas de denuncia das vítimas (geralmente moças) pelas autoridades locais e
instituições de ensino. Recentemente para enfrentar essa situação as “sobrevi-
ventes” estudantes organizaram vários coletivos e passaram a dar visibilidade
aos relatos e as experiências traumáticas vividas e que tiveram repercussão na
imprensa norte americana e em vários campi, com a adesão e ampliação de
uma rede e contatos.
Na minha experiência docente (1995-2016) tive a oportunidade de ouvir
muitas falas de estudantes e as razões do(s) silêncio(s) que de certa maneira
“imobilizavam” as vítimas de violência, sendo o medo, a exposição pública
levaram algumas delas a opção de abandonar a vida universitária.
Penso em penetrar mais a fundo nas distintas narrativas e depoimentos
das vítimas/sobreviventes decorrente desse tipo de violência incluindo os
comportamentos e valores observados nas práticas estudantis como os trotes
(proibidos na UNESP, porém mantidos com outras significações e práticas),
as festas e os relacionamentos “relâmpagos” (o ato de ficar com...). Por que

7 The Good Man Project. Ver https://goodmenproject.com/featured-content/dismantling-rape-


culture-lbkr/; Dismantling Campus Rape Culture, Department of Gender, Women, & Sexua-
lity Studies Presents University of Misessota- https://rapecultureumn.eventbrite.com. Acesso
em janeiro/2017
8 Esse documentário tornou-se referência de estudo e, principalmente de denúncia frente os
casos de abusos e violência sexual nos campos e fraternidades norte americanas. Ver critica
ao filme no Plano critico. http://www.planocritico.com/critica-the-hunting-ground/. Acesso
março de 2016.

82
persiste essa espécie de violência seja física ou psicológica e quais as razões em
um ambiente acadêmico e com uma população de formação superior? Que al-
ternativas são possíveis de observar? Como enfrentam a vulnerabilidade frente
a frequente retaliação e a permanência de assédio e até de agressões? Como
a UNESP tem convivido e enfrentado as tensões e os conflitos de relação de
gênero, nesses 40 anos de uma trajetória?
Para obter a concretude do que estou problematizando fiz um levanta-
mento inicial de notícias em distintos sites e revistas online que divulgavam
casos: Como as universidades brasileiras abafam os casos de assédio sexual9;
Alunas da Rural relatam casos de estupro na universidade10; O que está por
trás da violência dentro das universidades?11. Fórum Fale sem Medo: Violência
contra mulheres no ambiente universitário12
É evidente que reconheço as especificidades da realidade e a estrutura das
universidades situadas ao Norte, distintas de nossas universidades no hemis-
fério Sul/Brasil. No entanto observei que, nos últimos anos as denúncias de
estudantes brasileiras, em vários estados da federação, ganharam força e signi-
ficado com a organização de resistências, “coletivos” e o apoio de procuradoras
e advogadas das vítimas.
Um levantamento “inédito” do Instituto Avon ao Data Popular foi reali-
zado em cinco regiões do Brasil, sendo ouvidos 1,8 mil estudantes e chegou-
se a seguinte afirmação: “Quase 70% das mulheres já sofreram violência em
universidades”. A reportagem que veiculou o resultado da pesquisa dizia ainda

9 Revista Galileu - http://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2016/02/rompendo-o-si-


lencio-vitimas-de-violencia-nas-universidades-brasileiras-contam-suas-experiencias.html.
Acesso 3/2016
Ver http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-04-04/alunas-da-rural-relatam-casos-de-estu-
pro-na- universidade.html. Acesso 3/2016
10 Ver http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-04-04/alunas-da-rural-relatam-casos-de-estu-
pro-na- universidade.html. Acesso 3/2016
11 A revista Veja com divulgou uma matéria com vários depoimentos. Uma estudante perante
a Assembleia Legislativa/ SP denunciou que tinha “sido estuprada em 2011 e que, na ocasião,
procurou a direção do curso”. Em resposta, membros da diretoria teriam tentado convencê-la
a não denunciar o crime. http://veja.abril.com.br/educacao/o-que-esta-por-tras-da-violencia-
dentro-das-universidades/ Acesso em março/2015
12 O Instituto Avon, contando com a parceria do Instituto Patrícia Galvão, Ministério Público
de São Paulo, Defensoria Pública de São Paulo e Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e
Direitos Humanos, promoveu a terceira edição do FÓRUM FALE SEM MEDO. São Paulo, 3 de
dezembro de 2015. http://www.compromissoeatitude.org.br/instituto-avon-promove-forum-
fale-sem-medo-violencia- contra-a-mulher-no-ambiente-universitario-sao-paulo-03122015/ .
Acesso janeiro/2016.

83
mais: “violência contra as mulheres ainda não exorcizou o fantasma da desi-
gualdade de gênero”13.
Foi justamente os depoimentos de varias estudantes brasileiras, em mo-
mentos diferentes que senti o que o historiador chama para a si o “fato históri-
co”. Para mim há o fato quando sugere a presença de muitas memórias, muitos
testemunhos. Portanto, há provas/documentais que alguma coisa aconteceu
e que possui uma memória vivida, com testemunhos oculares. Porém ficará
hibernando nos registros escritos, iconográficos ou orais se historiadoras sen-
síveis aos ruídos e, ao próprio oficio não enfrentarem a tarefa de criar o fato,
investigando (Ricoeur, 2007, p. 189).
O fato não está na simples narração. É sempre construído, a partir de um
lugar, por procedimento documental, epistemológico e proposicional visando
a qualificação veritativa da prova documental e não será encontrado nos níveis
da explicação, segundo Ricoeur (2007).
Há uma distinção daquilo que percebo por “acontecimento”. Novamente
me referencio em Ricoeur (2007) quando nos lembra que a recuperação do
acontecimento é sempre bem vinda, pois é justamente sobre “a coisa que se
fala”, e principalmente “a propósito de que” (Possas, 2014). Assumo com a equi-
pe do Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero/LIEG, na UNESP,
campus de Marília essa tarefa de construção histórica, de um tema recorrente
e o mas importante, ele tem uma história.
Na UNESP, em outubro de 2010 a comunidade unespiana foi surpreen-
dida pelo “rodeio de gordas” que provocou significativo desconforto à ima-
gem da Universidade, no evento cultural e esportivo que reúne estudantes dos
campi da UNESP, o InterUNESP (ou apenas Inter). Anunciado à época como o
maior da modalidade no país, o Inter teria reunido, na cidade de Araraquara,
cerca de 15 mil universitárias/os de 23 campi da universidade. Ao ser entrevis-
tado, um dos organizadores do “rodeio” e criador de uma comunidade sobre
o tema, no Orkut14, disse que o desafio teria sido “só uma brincadeira”. Quer
representações estariam em jogo nessa “ brincadeira” ?

13 zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/12/quase-70-das-mulheres-ja-sofreram-violencia-
-em- universidades-mostra-pesquisa-4921846.html. Acesso em janeiro/2016.
O III Fórum Fale Sem Medo realizado em São Paulo, pelo Instituto Avon - dezembro/2015 evi-
denciou um panorama critico e de violências com as narrativas das jovens presentes. Contou
com a participação de varias autoridades, promotoras, feministas e movimentos de direitos
humanos. Ver https://www.youtube.com/user/falesemmedo
14 Várias matérias podem ser encontradas a respeito. A pesquisa prévia remeteu a uma mesma

84
Em depoimento ao jornal Folha de São Paulo (2010) a advogada de uma
das jovens agredidas afirmou que sua cliente estaria profundamente abalada
psicologicamente e sem condições de retornar às aulas. “Teme ficar conhecida
como ‘a gorda do rodeio’”, teria dito à época. Os organizadores do “rodeio”
eram “colegas” do mesmo campus. Não teria sido a jovem a única vítima, mas
muitas, diretamente (cerca de 50 a 60) e outras indiretamente atingidas. A me-
nina diante da dor pelo ocorrido naquele momento, levou-a a abandonar os
espaços comuns da universidade, as rotinas de aulas e os trabalhos, receosa de
que não houvesse algum tipo de receptividade e garantia de defesa por direito.
Uma sindicância foi aberta pela direção do campus de Assis, acompanhada
dos olhares da imprensa e de alunas/os que protestaram contra o ocorrido.
Após consulta aos instrumentos legais de que dispunha a instituição deliberou
sobre a punição: suspensão de dois alunos por apenas cinco dias das atividades
escolares.
Apesar de ter sido relatado como um caso isolado, ocorrido fora das de-
pendências da universidade, outras agressões movidas por preconceito contra
mulheres consideradas acima do peso são relatadas por universitárixs. Mayara
Curcio (2010), aluna do campus de Assis, externou sua indignação em um blog
ao se posicionar sobre a agressão envolver pelo menos dois alunos do mesmo
campus, no caso futuros psicólogo e professor.
Uma matéria divulgada sobre o ocorrido entre discentes da Faculdade
de Medicina de Botucatu/UNESP é sintomática de que existe uma situação
social e educacional que se apresenta fora do controle da própria instituição,
das autoridades competentes e da sociedade: “Apontada como uma das mais
violentas de SP, Unesp de Botucatu ainda registra trote da Klu Klux Klan e atos
misóginos.”15

fonte, o jornal Folha de São Paulo. Em algumas delas existe a afirmação de que a página no
Orkut foi criada 4 dias depois de terminado o InterUNESP e que lá estariam as regras para
os próximos desafios, inclusive com premiações para os que se destacassem. http://www.bra-
sil247.com/pt/247/brasil/13848/Preconceito-contra-gordas-agora-%C3%A9-crime.htm
Em outra fonte (Carriel, 2010) há a menção de que a comunidade existia desde 2006 e que à época
em que foi excluída possuía 23 membros. Por sua riqueza informativa e de modo a compor os
dados necessários para a realização da pesquisa, fontes jornalísticas e de redes sociais virtuais,
como as citadas ao longo do projeto, serão utilizadas também como corpus documental.
15 http://www.brasilpost.com.br/2015/03/30/unesp-botucatu-klu-klux-klan_n_6968590.html
Acesso em 20/08/2015.

85
Apologia ao estupro segue firme, denuncia coletivo

Em entrevista à Rede Brasil Atual, a estudante Marina Barbosa,


da Faculdade de Medicina da UNESP de Botucatu e integrante do
Coletivo Genis, afirmou que a apologia ao estupro e a misogi-
nia seguem sendo registradas na instituição, mesmo depois da
CPI que aconteceu na Alesp. “A maioria das letras (da bateria) é
bastante machista, pornográficas, obscenas ou homofóbicas (...).
Eles ofendem as meninas das outras faculdades, falam que vão
estuprar as meninas das outras faculdades”, comentou Marina.16
(grifos no original)

Situações como essas tem se tornando cada vez mais visíveis, principal-
mente devido a divulgação das mídias e das redes (blogs) e com isso observo
que para contrapor o discurso naturalizado, emerge o ativismo de “coletivos”.
Sherer e Dolce, do Coletivo Jornalismo sem Machismo ressaltam que “a em-
patia que rola dentro dos coletivos faz com que cada participante se sinta
amparada e empoderada17 para enfrentar esse e outros tipos de exclusão e
estereótipos de desigualdade.
Nesse sentido sinto que há também a urgência de rever o colonialismo jurí-
dico presente em nossas instituições e que recentemente vem sido denunciado
pelas tendências do feminismo acadêmico e contemporâneo frente aos estudos
pós-coloniais (Adelman, 2009; Piscitelli, 2016), principalmente as narrativas
femininas de subalternização (Bidasseca, 2011)18. Pretendo ficar atenta aos su-
jeitos racializados, sexualizados e colonizados e os espaços desses sujeitos em
diferentes discursos e representações.

16 A CPI de que trata o trecho citado refere-se à “CPI das Universidades” instalada pela Assem-
bleia Legislativa de São Paulo (Alesp) em dezembro de 2014 e concluída em março de 2015.
Produziu um relatório de 194 páginas “nas quais foi relatado uma série de barbaridades vividas
no mundo acadêmico paulista. Alguns dados espantam.” Disponível em: http://www.brasil-
post.com.br/2015/03/13/cpi-universidades-sp_n_6863322.html O referido relatório também
está sendo utilizado como fonte documental para a pesquisa.
17 São grupos de jovens universitários ingressantes nas universidades para chamar a atenção para
problemas ainda não reconhecidos nas agendas prioritárias, como o de dar visibilidade à luta
das mulheres, dos homossexuais.
18 Nesse artigo autora investe na teoria das vozes. Ressalta um aspecto que há continuos intentos
de algunas voces feministas de silenciar a las mujeres de color/no blancas o bien, de hablar por
ellas.

86
E evidente que há uma historicidade a ser buscada e analisada. Essas si-
tuações de agressões, estupro não nasceram de uma tábula rasa, mas eviden-
ciam uma longa permanência de práticas de abuso, de violência de gênero,
como do descaso e, principalmente a impunidade dos agressores, mesmo com
a Lei Maria da Penha (2006) que tornou crime todo ato de violência contra as
mulheres.
As práticas e as relações estudantis, de docentes e funcionários vivencia-
das na Universidade, sem que ela enfrente de maneira mais assertiva, tem um
caráter de manutenção das oposições binárias e hierárquica do masculino e fe-
minino, de confronto das identidades múltiplas que no cotidiano acabam por
aprofundar as desigualdades provenientes de vários marcadores sociais como
de gênero, classe, de raça, de sexualidade, de confissão religiosa e partidária.
Aprofundar as análises de como as raízes de gênero de nossa cultura
ocidental baseada na hegemonia branca, masculina, heterossexual e cristã
transformaram os demais em diferentes, com o sentido de desiguais, fora da
“norma”, sem legitimidade de uma fala ou de serem ouvidos está presente no
espaço acadêmico. Não se trata de denunciar, mas explicitar as formas vela-
das e de impedimento das diferentes corporificações que sem chance de uma
existência válida na denominada normalidade, são apenas os subalternos, o
colonizado e irremediavelmente heterogêneo (Spivak, 2010, p. 55-56).

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88
PÓS-VERDADE E MANIPULAÇÃO
IMAGÉTICA DA INFORMAÇÃO
Maximiliano Martín Vicente
Gabriela Sanches de Lima

O capítulo tem por finalidade refletir sobre a pós-verdade, termo bastante


divulgado durante o ano de 2016, tomando como referência a fotografia, mais
concretamente, as análises de fotos seguindo a proposta feita por Umberto
Eco (2007) com a decomposição do produto fotográfico em vários níveis. Para
tanto, se dividiu o texto em várias partes. Inicialmente se discute os pressupos-
tos teóricos da pós-verdade assim como se apresenta a fundamentação teórica
do que se entende por fotografia. Na segunda parte se faz a análise de quatro
fotografias selecionadas para, finalmente, tecer considerações sobre a relação
entre pós-verdade e fotografia.
No ano de 2016, o Dicionário Oxford, editado pela prestigiosa universi-
dade do mesmo nome, elegeu o termo pós-verdade como palavra do ano na
língua inglesa. Esse neologismo aparecia nas pesquisas realizadas no trans-
correr do ano como o que vinha sendo mais utilizado embora seu uso remonte
a época bem anterior. Para nós, o que interessa é decifrar o conteúdo inserido
nessa escolha e, mais ainda, refletir se, de fato, estaria apenas elegendo um
termo ou se consolidando ideias que circulavam e expressavam novas formas
de entender o mundo e a sociedade.
Assim, uma aproximação conceitual do que se entende por pós-verdade
torna-se necessária. Tal expressão se refere à propensão existente na sociedade
de aceitar interpretações e fatos como corretos mesmo que não sejam com-
provados e que, no final das contas, acabam sendo considerados como ver-
dadeiros e aceitos sem maiores questionamentos. Devemos salientar que essa

89
aceitação não implica num culto à mentira e sim uma indiferença com o que
tradicionalmente se considerava como válido, ou seja, comprovado e testado
antes de ser aceito ou mesmo publicado.
Embora esse termo tenha adquirido amplas dimensões não podemos
esquecer que, em 1938, a notícia divulgada nos Estados Unidos pela rádio
Columbia Broadcasting System (CBS) de que os marcianos invadiram a terra
disseminou preocupação e pânico entre seus ouvintes por considerar esse fato
como verdadeiro embora ninguém visse os tais marcianos. Dando um salto no
tempo, mais recentemente, na guerra do Iraque se propagou nos mais diver-
sos meios de comunicação a ideia de que Saddam Hussein possuía aramas de
destruição de massa o que nunca foi comprovado, mesmo depois dos Estados
Unidos trem invadido o Iraque, inclusive usando tal argumento para justificar
sua atitude bélica. No Brasil não ficamos imunes a acontecimentos semelhan-
tes. O filho do ex-presidente Lula já foi apontado como sócio do frigorífico JBS,
o maior do País, dono de um jatinho com valor estimado em US$ 50 milhões,
o que faria do aparelho o mais caro do Brasil, e proprietário de uma grande
fazenda na região Centro-Oeste, descrita, também, como uma das maiores
joias do agronegócio nacional. Além de não serem provadas as acusações não
resulta difícil imaginar quem é o alvo final: o próprio ex-presidente Lula.
Motivos bastante semelhantes acabaram sendo usados nos países de lín-
gua inglesa para se eleger a pós-verdade como palavra do ano. No caso da
Inglaterra a votação do Brexit - a saída da Inglaterra da União Europeia - teria
sido apressada e manipulada por não se ter levado em consideração todos os
fatores envolvidos nessa questão. Dessa maneira sabemos que houve a manipu-
lação dos dados de tal forma que a população não recebeu a informação com-
pleta. Além disso se espalharam notícias completamente falsas tipo, se não sair
da Europa a Inglaterra será invadida pelos refugiados turcos, algo altamente
improvável por não dizer impossível. Já o caso dos Estados Unidos envolveu a
escolha de Donald Trump como presidente, escolha essa baseada numa rede
de mentiras tão absurdas que chocaram ao mundo como um todo. Ente outras:
Barack Obama não era americano e teria criado o Estado Islâmico.
Não se pode negar que no contexto atual perpassado pela facilidade do
acesso à informação e, consequentemente, a divulgação maciça de dados, re-
sulta fácil que determinados acontecimentos ganhem um destaque despro-
porcional por terem facilitada sua circulação pelas redes sociais. Nesse con-
texto, quanto mais chocante possa ser o fato noticiado mais exposição tem
e se aceita como verdadeiro. É como se uma vez publicado ganhasse a áurea

90
da credibilidade e da não contestação. Essa saturação de informações no am-
biente digital torna cada vez mais complexa a compreensão do que possa ser a
realidade antes descrita e aceita após ter sido confirmada. Isso não implica em
sustentar que não pudesse ser falsificada ou manipulada, mas em tese havia
um compromisso ético com a verdade e um procedimento que implicava a
verificação dos acontecimentos.
De certa forma o que a pós-verdade nos coloca é que as questões emocio-
nais têm grande poder de influenciar na hora de se tomar as decisões pesso-
ais. É como se as pessoas percebessem ou intuíssem uma verdade, mas não se
apoiassem ou mesmo usassem as possibilidades oferecidas pelas tecnologias
de informação para constatar se, de fato, aconteceu o episódio que está rece-
bendo. Estamos num momento no qual parece que a verificação da verdade
factual deixa de ser essencial para os cidadãos na hora de formar sua opinião.
Vale lembrar que no caso especifico da comunicação se criou um cenário
propício para facilitar essa configuração na qual o que se entende por verda-
de tem ficado num segundo plano. A concentração midiática impondo uma
versão única, além de selecionar o que deve ser trazido a público, determina
o que deve ser omitido. Como lembra Ramonet (2002) o tempo presente está
determinado pela imagem. Efetivamente, na hora de selecionar os fatos para
serem publicados na imprensa escrita, por exemplo, imperam os que possuem
imagens, e, consequentemente, o resto das notícias fica num segundo lugar,
quando não são ignoradas. As notícias que não aparecem com imagem per-
dem sua importância, mesmo que algumas sejam mais relevantes que aquelas
vistas e aceitas pelo público como verdadeiras. Dessa forma, a imagem deter-
mina a informação na atualidade. Tanto é verdade que, no jornalismo, a entra-
da de fotos coloridas e a transformação visual da primeira página, valorizando
as manchetes e as notícias breves, representam uma tentativa de adequação a
essa predominância do público das imagens.
Ainda, segundo Ramonet, na atualidade, um fato é considerado verda-
deiro não por terem sido aplicados critérios objetivos, rigorosos ou porque as
fontes tenham sido devidamente verificadas. A veracidade se impõe pela re-
petição constante e permanente de dados nem sempre confirmados. Como
estamos num momento de alta competitividade, a mesma notícia veiculada
pela televisão, pelo rádio, pela Web e pelo jornal torna-se verdadeira. Se a isso
acrescentamos o fato de que a imagem pode ser alterada a possibilidade de se
ter uma compreensão manipulada da imagem é um elemento a mais que cola-
bora com a desinformação.

91
Num depoimento bastante esclarecedor, reproduzido Eduardo Graça da
revista Valor Econômico, David Levi Strauss, diretor do Programa de Crítica
de Arte & Literatura da prestigiada Escola de Artes Visuais (SVA) de Nova
York, e um dos principais especialistas na academia americana no estudo de
como imagens e objetos modificam o cotidiano sociopolítico das sociedades
contemporâneas mostra-se taxativo quando afirma que

mesmo em sua encarnação on-line, se algo nos é apresentado como


“fotojornalismo”, ainda acreditamos naquelas imagens como se es-
tivéssemos vivendo na era mecânica. No entanto, qualquer imagem
que você vê numa edição de revista ou jornal é necessariamente tra-
balhada digitalmente, ou seja, o que você vê na tela não tem mais
relação obrigatória com a realidade imediata... Para além da questão
ética é importante pensar na relação da força da imagem com a cren-
ça do olhar de quem a vê. Ou seja, o poder da imagem nunca teve, e
não tem hoje, certamente, a ver com objetividade e, sim, com o in-
consciente, em como processamos mentalmente o que registramos
através dos nervos óticos. Parece complicado e é. Qual é a fronteira
entre o que é mais ou menos relevante a partir das alterações feitas
na imagem técnica? Honestamente, não sei. O importante é que a
discussão está finalmente atraindo os fotógrafos (Graça, 2017).

Assim, podemos questionar se o fotojornalismo é um bom instrumento


para transmitir informações “fidedignas e indubitáveis” dos fatos ilustrados
nos meios de comunicação. Em função do escrito anteriormente saímos da
visão de que a fotografia é um espelho do real. Pretendemos mostrar que a
fotografia é uma construção da realidade que parte dos mais diversos filtros,
dentre eles, os interesses dos veículos de comunicação. Esta construção é per-
meada de mecanismos subjetivos, ideológicos e semióticos que acabam por
realizar um processo de midiatização nos fatos noticiosos. Isto é, acabam por
dar significação aos fatos sociais e influenciar/manipular o olhar dos leitores.
A seguir mostraremos algumas das ideias e autores que fundamentam nossa
análise da fotografia.
De acordo com Boris Kossoy em Realidades e Ficções na Trama Fotográfica
(2002), é um equívoco analisar as imagens apenas pelo lado iconográfico, pois
as representações fotográficas podem ter vários sentidos, várias formas de in-
terpretação e, portanto, várias realidades. Seria, então, coerente afirmar que a

92
realidade representada por uma imagem é única e verdadeira? “Sempre deve-
mos considerar a fotografia como fonte histórica de abrangência multidiscipli-
nar” (Kossoy, 2002 p. 21). Este lado multidisciplinar da fotografia é o responsá-
vel por dar significações a fatos sociais importantes de maneira sutil.
Outro autor que tem um discurso extenso sobre o papel da fotografia en-
quanto construção e representação da realidade é Philippe Dubois (1993). “Da
verossimilhança ao índice”, é o nome do primeiro capítulo do livro de Dubois,
o qual já possui duas palavras essenciais para compreendermos a fotografia,
respectivamente. Em primeiro, temos a verossimilhança, aquilo que tem apa-
rência da verdade, e em segundo, o autor coloca a fotografia como índice, con-
ceito da semiótica que indica alguma coisa por proximidade e não por seme-
lhança. Ou seja, a fotografia indica uma aparente realidade. Uma foto de um
acidente, por exemplo, pode indicar que aquele acidente existiu, mas talvez não
daquela forma representada, não de acordo com aquela realidade.
Partindo desse ponto, há várias maneiras de se representar o real. A fo-
tografia transforma e cria uma terceira realidade (primeira realidade: a que,
de fato, aconteceu, segunda: a que foi retratada e a terceira é a mistura destas
impressa em uma folha de jornal) e é exatamente isso que muitos leitores des-
cuidados não percebem quando depreendem o significado de uma fotografia.
Isto acontece em virtude da capacidade mimética de uma imagem de se parecer
com a realidade que vivemos. Entre “parecer” a realidade e sê-la, de fato, há
um abismo grande e esse espaço é amplamente aproveitado por aqueles que se
interessam pela implementação da pós-verdade.
Neste capítulo nos propomos analisar fotografias referentes às manifesta-
ções que aconteceram nos dias antes do impeachment da presidente na épo-
ca, Dilma Rousseff, em que o país se bipolarizou em cores: verde-amarelo e
vermelho, fazendo referência às cores dos partidos políticos em pauta naquele
momento (PT e PSDB) publicadas pelos veículos de comunicação O Estado de
São Paulo e Carta Capital, dois jornais com linhas editorais sensivelmente di-
ferentes. Salientamos que a pretensão é justamente colocar em xeque a ideia da
pós-verdade, ou seja, nos propomos a verificar como ainda é possível utilizar a
fotografia como elemento importante para dar sentido aos acontecimentos do
cotidiano. Para analisar as quatro fotografias, vamos recorrer à semiótica de
Umberto Eco (2007), que propõe a decomposição da imagem em cinco níveis:

• Nível icônico: Trata-se do plano da denotação, que inclui os dados


concretos da imagem e dos elementos gráficos do objeto de referência.

93
• Nível iconográfico: É referente ao plano da conotação, dos elementos
cujos sentidos só são dados pelo cruzamento com os significados con-
vencionais decorrentes de um aprendizado cultural.
• Nível tropológico: É composto pelas figuras de retórica tradicionais
aplicadas à representação visual.
• Nível tópico: É marca dos lugares argumentativos e das premissas que
se articulam na imagem.
• Nível entimemático: É referente a somatória desencadeada pela argu-
mentação posta no nível anterior.

No que diz respeito à imagem fotojornalística, essa metodologia é bastante


interessante, a medida em que nos permite separar níveis e técnicas composi-
cionais a partir dos quais os códigos padrões de narração pela imagem são ar-
ticulados. No nível icônico, é possível mapearmos não apenas os elementos que
compõem a imagem, como também as suas especificações técnicas como os en-
quadramentos, planos, tipos de lentes, filtros e efeitos, focalizações, profundida-
des de campo e demais técnicas de composição mais comumente utilizadas, bem
como os efeitos de sentido articulados a partir desses usos. Nos níveis iconográ-
fico e tropológico, é possível mapearmos as convencionalidades imagéticas e as
figuras de retórica (no nível do significante) mais comumente utilizadas pelos
fotojornalistas – o que nos permite uma análise acerca das convenções estéticas.
Por fim, os níveis tópico e entimemático permitem a análise da ideologia
da forma significante mais utilizada, tanto a partir dos elementos fornecidos
pela imagem, como também a partir das relações estabelecidas com os textos
que a acompanham (legendas, reportagens e demais elementos gráficos cons-
tituintes da composição jornalística).

Análise das imagens

Antes de partirmos para a análise semiótica das imagens, é necessário en-


tender qual a conjuntura política e social que o país vivia. A atual presidente
do Brasil, Dilma Rousseff, sofreu acusações de crimes de responsabilidade, os
quais, em suma, são aqueles que atentam contra a Constituição, portanto, su-
jeitos à perda de mandato. Nesse furor político, alguns jornalistas dizem que o

94
Brasil nunca foi tão politizado. Não é errado afirmar que o Brasil viveu uma épo-
ca histórica em que as ruas receberam os mais variados tipos de manifestantes e
manifestações. Desde os “panelaços” feitos pela classe média alta que, a cada dis-
curso da presidente em rede nacional, ecoavam nas janelas dos prédios até mani-
festações dos chamados “black blocs”, que quebravam símbolos do capitalismo.
Nesse resurgir da rua como espaço de manifestação o Brasil se dividiu,
em uma espécie de maniqueísmo político. Um episódio acelerou significativa-
mente a movimentação popular: a tentativa da nomeação do expresidente Lula
para ministro da Casa Civil, fato entendido como a criação de foro privilegia-
do caso Lula fosse acusado e, possivelmente preso por corrupção.
O clima de revolta por uma grande parcela do país tomou conta das ruas,
especialmente no dia 13/03/2016. Vestidos de verde e amarelo, protestando
mais contra o Partido dos Trabalhadores (PT) do que contra a corrupção, esta
manifestação foi uma das mais veiculadas pela grande mídia. A imagem que
vamos analisar é a capa do jornal O Estado de S. Paulo no dia 14/03/2016, dis-
ponível para baixar gratuitamente no site.

Figura 1: Capa Histórica do jornal Estadão.


Fonte: Estadão

95
Seguindo a decomposição semiótica de Umberto Eco (2007), podemos
identificar alguns elementos denotativos da fotografia que, nos níveis pos-
teriores, vão auxiliar na construção de sentido que o veículo de comunica-
ção intentou passar. Nesta imagem vemos uma rua grande, contornada de
prédios, cheia de pessoas; percebemos um enquadramento diferente, em que
a foto foi tirada de cima. Também notam-se outros elementos importantes:
uma faixa verde e amarela, escrito em preto “Impeachment já” e um objeto
grande amarelo. Na parte de cima se encontra um helicóptero sobrevoando a
área e a cor preponderante nesta imagem é a amarela (podemos perceber isso
com as cores das roupas das pessoas).
Estes elementos trazem um sentido conotativo muito denso, levando ao
segundo nível de decodificação. O local em que esta foto foi tirada parece ser
muito importante em virtude da extensão da rua e dos prédios que a cercam.
Aqueles que têm um pouco mais de conhecimento sobre a imagem, sabem
que aquele prédio central com detalhes em vermelho é o MASP (Museu de
Arte de São Paulo), ponto cultural e político importantíssimo para a cidade
de São Paulo. O enquadramento também favorece uma leitura: tirar a foto de
cima intenta mostrar quão grande foi esta manifestação e, mais do que isso,
sugere até uma provocação ao leitor que não concorda com o cunho ideoló-
gico dela: Como ser contra um movimento tão grande que defende o Brasil?
A defesa do Brasil está explicitada nas cores e também na ênfase que a
imagem quis dar com a bandeira em verde e amarelo escrito “Impeachment
Já”. O fotógrafo poderia ter tirado esta foto em outro local, mas ele quis dar
ênfase na bandeira, para ser um punctum fotográfico a fim de construir uma
mise-en-scène favorável à opinião do jornal sobre o fato.
Já no nível tropológico, analisamos quais são as figuras retóricas e de
linguagem mais pungentes e preponderantes nesta imagem. Esta é uma ima-
gem com um forte teor informativo: ela mostra o tamanho da manifestação,
o porquê de ela ser importante e, sobretudo, qual a posição política e ideoló-
gica do jornal. Poderíamos dizer que a disposição da fotografia na primeira
página junto com o enquadramento e a escolha da própria foto fizeram uma
hipérbole sobre esta manifestação. Se grande, o jornal a tornou maior ainda.
A mídia tem esta característica: maximizar ou minimizar um fato de acordo
com a agenda setting ou com os próprios interesses.
O próximo nível de decomposição da imagem é interessante pois ele se
desdobra dos valores comumente aceitos pela sociedade. Como a sociedade
está em constante mudança, estes valores também. Neste caso, o nível tópico

96
figurado nesta imagem é o pressuposto de que presidente do país precisa sair
do poder. Em um tom quase que ufanista, esta foto nos leva a entender que
o Brasil está lutando por um país livre da corrupção e que o povo tem força
para fazer sua vontade valer. A extensão da foto somado a quantidade de pes-
soas faz que o maior valor e premissa da fotografia seja que o povo brasileiro,
como um todo, está extremamente insatisfeito com os que estão no poder e
que eles precisam, imediatamente, sair de lá.
Para concluir com o nível entimemático, é importante ressaltarmos tam-
bém a disposição que a fotografia foi colocada. Na capa do jornal se nota que
não há mais manchetes ou destaques para fatos contemporâneos igualmente
importantes. O jornal estampou a foto e apenas colocou a data da manifesta-
ção. Esta disposição sugeriu mostrar que as manifestações pararam o Brasil
e que esta foto, bem como o momento em que ela foi tirada, entrou para a
história: o povo brasileiro pedindo a saída de sua governante. Não ocorreu
nada mais importante neste dia do que as manifestações contra a corrupção
e contra o PT.
Uma semana após a manifestação das pessoas que pediam o impe-
achment da presidente, o outro lado da linha ideológica também mostrou
suas caras nas principais avenidas das capitais brasileiras. Com a hashtag
#NãoVaiTerGolpe, pessoas “pró-governo” foram às ruas dia 18/03/2016 para,
segundo os próprios manifestantes, lutar pela democracia. Esta capa foi pu-
blicada no dia 14/03/2016 e agora vamos observar abaixo a capa do O Estado
de S. Paulo, no dia posterior às manifestações da oposição:

97
Figura 2: Capa Estadão referente à manifestação do dia 18/03/2016.
Fonte: Acervo digital do Estado

A fotografia das manifestações do dia 18/03/2016 existe, entretanto, ela é


sensivelmente diferente da imagem que analisamos anteriormente. Antes de
decompormos a fotografia em destaque podemos perceber que o jornal faz
uma diagramação distinta da anterior e coloca elementos iconográficos junto
com manchetes que levam o leitor a pensar que, em comparação com a mani-
festação do dia 13/03/2016, foi muito menor e sem a relevância nacional.
No plano do nível icônico percebemos que existem muitas pessoas que es-
tão concentradas na frente de um local. Há a preponderância da cor vermelha
e branca e no prédio em que estas pessoas estão na frente há a representação
da sombra de um homem de braços abertos. Podemos perceber também que
atrás do prédio há uma área vazia, praticamente sem nenhum manifestante.
Partindo para o segundo nível, temos uma construção de sentido na
decomposição denotativa bastante densa. Como as pessoas se localizam

98
concentradas na frente de um grande prédio, passa a impressão que elas estão
esperando alguém muito importante. A sombra do homem de braços abertos
também dá a sensação de que eles estão sendo bem recebidos naquele lugar.
O sentido de manifestação pode até quase se perder, se pensarmos que estas
pessoas estão esperando alguém que elas admiram e não para, de fato, lutar
por mudanças sociais.
A figura de linguagem que acreditamos estar latente nesta capa é a ironia.
Analisando o contexto da capa, sabemos que esta manifestação se trata das pes-
soas que não concordam com o impeachment da presidente Dilma e que, muitas
delas, são favoráveis ao Partido dos Trabalhadores, em que o Lula também é
uma figura chave para a situação. No momento em que colocam a fotografia da
manifestação junto com a imagem de Lula e com a manchete dizendo que “STF
suspende posse de Lula e mantém investigação com Moro” é, no mínimo, irô-
nico a significância que este veículo de comunicação dá para esta manifestação.
Em outras palavras, as diagramações, junto com o enquadramento e técnicas
de fotografia da imagem em destaque, constroem um sentido que tomam um
partido político travestido de “imparcialidade”, porém com uma carga de linha
editorial impressa em cada signo. É como se o jornal estivesse questionando o
leitor e já dando a própria resposta: “Esta manifestação é realmente a favor da
democracia? Olhe para a fotografia e repare quem é o líder dela e, em seguida,
leia a manchete”. Quando o leitor tiver feito esta conexão e esta análise, vai de-
preender que este movimento não está a favor de um país melhor, por exemplo.
O penúltimo nível faz referência às premissas da imagem. Como já expli-
citamos anteriormente, a premissa desta imagem foi a fotografia das manifes-
tações do dia 13/03/2016. Depois de fazer uma hipérbole com um dos lados dos
manifestantes, já se esperava que a notícia dos movimentos populares do outro
lado da linha ideológica fosse divulgada de uma forma irônica e duvidosa. A
própria linha editorial e histórica do jornal também já tem um consenso sobre
o PT, o que, na verdade, apenas se confirmou com o levante dos movimentos
populares.
Em síntese, esta fotografia mostrou qual a importância e o significado que
o jornal O Estado de S. Paulo deu para as manifestações chamadas de “pró-go-
verno”. Em comparação com a capa da semana anterior, esta mostrou um lado
de ironia e quase que provocativamente não a chamou de manifestação e sim
de movimento em apoio a Dilma e Lula.
Em seguida vamos analisar uma fotografia publicada pelo veículo de co-
municação Carta Capital referente a mesma manifestação do dia 18/03/2016.

99
Com esta imagem podemos perceber como imageticamente os jornais conse-
guem expressar sua posição ideológica e política e, assim, dar significado aos
fatos sociais, mesmo que não sejam comprovados, aí está a pós-verdade.

Figura 3: Não vai ter golpe.


Fonte: Carta Capital

Esta fotografia é sensivelmente diferente da anterior. Embora se trate da


mesma manifestação podemos perceber, por meio de elementos fotográficos,
que a imagem exalta e dá pertinência ao fato fotografado. Podemos perceber
que nesta foto existe a predominância da cor vermelha, assim como a anterior,
mas o enquadramento e o ângulo que esta foto foi tirada mostram as inúmeras
bandeiras, cartazes e pessoas que estão marchando em favor de algo. Em foco,
notamos um banner em que está escrito “Não vai ter golpe” e em primeiro
plano, um pouco desfocado, mas visível, vemos uma bandeiro em que está
escrito “partido”.
Já no nível de conotação, sabemos que a cor vermelha não foi escolhida
arbitrariamente. Ela é a cor de preenchimento do símbolo do Partido dos
Trabalhadores e que estampa todo o movimento contra o golpe (processo de
Impeachment é chamado assim por eles). Uma bandeira com as cores do Brasil

100
também existe na foto e, acreditamos, que ela está nessa foto por algum moti-
vo: não e só por um partido que essas pessoas estão lutando e sim pelo país. A
fotografia é tirada bem de frente ao movimento para dar a impressão de força
e que eles continuam marchando por um ideal e que, possivelmente, não vão
parar até que suas petições sejam atendidas. Se, por um lado, a primeira foto-
grafia analisada dava foco na quantidade de pessoas que estavam protestando,
esta tem por objetivo revelar a força da manifestação.
Esta “força” que a imagem passa mostra que ela tem um poder metafórico
muito grande. Ao contrário da primeira imagem que analisamos em que a
hipérbole era a figura de linguagem preponderante, para mostrar que quase
o país todo estava protestando a favor de uma nação sem corrupção, esta, por
sua vez, faz uma metáfora procurando destacar a resistência. A intenção do
fotógrafo nesta imagem não é mostrar a quantidade de pessoas que tinham na
manifestação, mas sim a força que elas e este movimento têm.
Esta fotografia foi publicada em um veículo de comunicação com uma
linha editorial totalmente distinta do jornal O Estado de São Paulo. Enquanto
um tem como premissa ser um jornal histórico e com um viés conservador, a
Carta Capital tem um perfil mais liberal e de esquerda e que, em várias repor-
tagens, sai em defesa do Partido dos Trabalhadores. A premissa comum norte-
adora desta publicação é que se trata de um veículo conivente com até então o
governo que estava em vigor e defensor de muitas pautas políticas e ideológicas
que eles têm em comum.
Em último nível de decomposição da imagem, o nível entimemático, po-
demos concluir que esta fotografia se adequa perfeitamente a linha editorial
do veículo de comunicação Carta Capital. Em um momento em que a figura
do PT se encontra fragilizada a imagem vem mostrar a força e a resistência
que os manifestantes tem para dar apoio e assistência à imagem simbólica do
partido no país.
A última fotografia também foi publicada pela Carta Capital e diz respeito
às manifestações das pessoas que são a favor do impeachment. Embora esta
foto tenha sido publicada no final de 2015, a partir do qual a onda de mani-
festantes contra e a favor do impeachment começou a se fortalecer. Segue a
fotografia:

101
Figura 4: Movimento em favor do impeachment.
Fonte: Carta Capital

Com o título da reportagem sendo: “Com adesão menor, movimentos pro-


testam em favor do impeachment”, a fotografia intenta mostrar uma manifes-
tação perdendo força e cada vez com menos adesão da população.
No primeiro nível de decodificação da imagem, vemos alguns manifes-
tantes na frente de um espaço simbólico para a política: o palácio do planal-
to em Brasília. Estas pessoas vestem verde-amarelo. Um olhar mais acurado
permite verificar que há poucos cartazes, banners ou bonecos. Ligando estas
informações aos sentidos conotativos da imagem, permite concluir que esta
manifestação está sendo fraca e pouco efetiva, já que não há ninguém de fato
protestando ou caminhando para um mesmo ponto, como na fotografia ante-
rior. Esta foto foi tirada com o intuito de mostrar que há poucas pessoas além
de não estarem articuladas o suficiente. O cenário de fundo vem para com-
plementar esta leitura. O leitor pode pensar que a desarticulação e carência
de força dos manifestantes protestando a favor do Impeachment, têm as mes-
mas características dos governantes representados pelos símbolos políticos, no
caso, o Palácio do Planalto.
Esta imagem, ao contrário da primeira que analisamos faz um eufemismo.
A fotografia tem por objetivo deslegitimar o movimento. Além desta figura de

102
linguagem, também podemos pensar que houve uma ironia, já que os mani-
festantes pouco articulados estão em Brasília, em frente ao local símbolo da
política brasileira, protestando. É como se esta imagem quisesse passar: Qual
tipo de manifestante você quer ser? Não seja como este.
A Carta Capital é um veículo de comunicação com um posicionamento
político de esquerda muito forte e declarado. Portanto, a premissa e a máxima
que vão seguir é de que o Impeachment não é a melhor solução para o país.
Por meio de mecanismos midiáticos, eles conseguem fazer que o processo de
midiatização seja favorável ao governo, desmerecendo o outro lado, estratégia
esta também adotada pelo jornal O Estado de São Paulo.
Por fim, notamos que esta imagem e a anterior conseguem expressar mui-
to bem a linha ideológica do veículo de comunicação. Esta fotografia mostra o
outro lado dos que protestam pelo Impeachment, procura ressaltar que estão
pouco articulados e cada vez com menos pessoas apoiando o movimento. Para
aqueles que estão indecisos, ao ver uma fotografia como essa, vão pensar mais
uma vez antes de assumir o lado do pró-impeachment.

Considerações finais

Após analisarmos estas quatro imagens, podemos entender o poder do


discurso por meio do meio imagético. De acordo com Patrick Charaudeau
(2005), a mídia tem um poder grande no que se refere a transformar acon-
tecimentos em fatos e, mais, tem o poder de determinar qual é a grandeza
deste acontecimento. “Ou seja, para que o acontecimento exista, é necessário
nomeá-lo. O acontecimento não significa em si. O acontecimento só significa
enquanto acontecimento em um discurso” (Charaudeau, 2005, p.31).
Este discurso citado pelo autor pode ser passado à audiência das mais
diversas formas, inclusive, da fotografia enquanto carregada de informação.
Estas imagens evidenciaram não só qual é a posição ideológica e política dos
jornais O Estado de São Paulo e da Carta Capital, mas também informaram,
influenciaram e manipularam o seu público fiel e aqueles que estão indecisos
em um momento de grande instabilidade política no Brasil.
Fica evidente que mesmo com a adoção da denominada pós-verdade,
ainda existe sim um campo amplo de análise e de produção de sentido nas
imagens veiculadas nos meios de comunicação. Não negamos que exista sim

103
uma banalização das imagens, mas outras possuem claro teor ideológico e se
apresentam com claras intenções políticas.
Todo este jogo de mecanismos da mídia para expressar uma opinião de
forma mais implícita do que explícita nos mostra que o leitor vive em uma
sociedade midiatizada e que todos os acontecimentos passam por um proces-
so de midiatização que vão (re)significar os fatos e dar uma nova razão a eles.
Como exemplo temos o período de instabilidade política em que o assunto do
Impeachment da presidente Dilma está em pauta. De acordo com o O Estado
de São Paulo este é um fato histórico para o Brasil em que é necessário haver
uma troca de governante. Já para a Carta Capital, o pedido de Impeachment é
um golpe que aflige não um governo, mas sim toda uma história democrática
alcançada pelo Brasil.
As fotografias analisadas provam como este processo de midiatização é
real e intenso e como elas corroboram com a hipótese de que a fotografia tem
um poder que as palavras dificilmente conseguem chegar: o de permanecer
na memória. Algumas destas fotografias estarão nos livros de história daqui
alguns anos para mostrar, “com exatidão”, o que houve no Brasil nos anos de
2015 e de 2016 no contexto político. Não serão as reportagens do O Estado de S.
Paulo ou da Carta Capital, mas uma fotografia poderá expressar não só o fato
ocorrido, mas o sentimento da nação brasileira (de acordo com um respectivo
veículo de comunicação). Assim, a denominada pós-verdade pode ser colocada
em xeque e se existe é para manipular e nortear cenários não condizentes com
a verdade. Desde um ponto de vista mais amplo, pode –se dizer que a pós-ver-
dade acabaria tendo papel relevante para somar forças na tentativa de manipu-
lar a informação e corroborar com a apatia e superficialidade da informação.

Referências

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acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20160319-44713-nac-1-pri-a1-not>. Acesso em: 19
abril. 2017.

Capa histórica do jornal Estadão. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/


noticias/geral,faca-o-download-de-capa-historica-do-estado,10000021145>. Acesso em:
19 abril. 2017.

104
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. Editora Contexto. São Paulo: 2005.
DUBOIS, Phillippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1993. ECO,
Umberto. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 2007.

GRAÇA, Eduardo. Na “era da pós-fotografia”. Valor Econômico, São Paulo, 14, nov, 2014.
Disponível em http://www2.valor.com.br/cultura/3778472/na-era-da- pos-fotografia.
Acesso em 23 de fev. 2017.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 2002.

Movimento em favor do impeachment. Disponível em:< https://www.cartacapital.


com.br/politica/milhares-protestam-em-favor-do- impeachment-de-dilma-rousseff >.
Acesso em: 19 abril 2017.

Não vai ter golpe. Disponível em:< https://www.cartacapital.com.br/politica/milhares-


vao-as-ruas-contra-o- impeachment-de-dilma >. Acesso em: 19 abril 2017.

RAMONET, Ignácio. Propagandas silenciosas: massas, televisão, cinema. Petrópolis:


Vozes, 2002.

105
ANÁLISE DA DIVERSIDADE SOCIAL E
CULTURAL BRASILEIRA NA
OBRA CINEMATOGRÁFICA
“EDIFÍCIO MASTER – UM FILME SOBRE
PESSOAS COMO VOCÊ E EU”
Ana Carolina Trindade
Caroline Kraus Luvizotto

A sociedade está em constante transformação e a mídia apresenta-se como


elemento importante na construção e disseminação de novos olhares e modos
de vida, ressignificando o universo a nossa volta. A mídia e os mais diversos
veículos de comunicação contribuem para a construção e sustentação de uma
consciência e de uma identidade, seja individual ou coletiva. É um elemento
estruturante de subjetividades e possui influência na constituição de uma es-
fera pública, atuando na produção de sentidos e na configuração de narrativas
que transmitem o capital simbólico.
Os veículos de comunicação de massa, representados pelos conglomera-
dos de mídia criam e disseminam conteúdos e representações muitas vezes
pautadas em interesses de indivíduos ou grupos privados, interesses indus-
triais e financeiros e de classes sociais, influenciando drasticamente os proces-
sos políticos e sociais em nosso país. Neste sentido, o cinema, especialmente
o gênero documentário, possui potencial de articular elementos importantes
da cultura, política e sociedade brasileira, com abordagens mais próximas das
realidades sociais. Por essa razão, a partir da uma obra cinematográfica, o do-
cumentário Edifício Master – Um filme sobre pessoas como você e eu, busca-
mos compreender como a diversidade cultural e social brasileira podem ser
representadas e qual o papel da mídia nesse contexto.
Indicamos, inicialmente, uma compreensão sobre o sentido de cultura
e identidade, conceitos que se articulam no decorrer do documentário e que
são essenciais para a perspectiva teórica sobre diversidade cultural e social

106
brasileira abordada na análise da obra. A mídia, na sequência, é abordada
como um dos elementos estruturantes dessa ligação e fundamental para a aná-
lise fílmica que se apresenta sobre o “Edifício Máster”.

Cultura e identidade

O conceito de cultura possibilita diversas discussões e, sem pretensão de


esgotar o tema, este estudo trata de uma abordagem conceitual sobre algumas
de suas definições. Considerando que a cultura está presente em todas as so-
ciedades e cada uma delas possui singularidades, entender o que é e como a
cultura é organizada não é uma tarefa fácil, pois existe uma ampla quantidade
de acepções para este conceito.
Edward Burnett Tylor (1832-1917), antropólogo britânico, foi o primeiro
autor a definir o conceito de cultura como um comportamento que se aprende
ou como um “todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, mo-
ral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo
homem como membro de uma sociedade” (Tylor apud Laraia, 2008, p. 25).
Para Tylor, a cultura não é transmitida biologicamente, mas é uma totalidade
das ações do homem dentro de seu ambiente coletivo, as quais são adquiridas
inconscientemente.
Segundo Cuche (1999, p. 9), a noção de cultura é “necessária, de certa ma-
neira, para pensar a unidade da humanidade na diversidade além dos termos
biológicos. Ela parece fornecer a resposta mais satisfatória à questão da dife-
rença entre os povos”. A partir disso, o autor nos indica que a cultura depende
de processos inconscientes e o homem possui a capacidade de se adaptar ao
meio em que vive, assim como é possível que o meio se adapte a ele, uma vez
que “a cultura torna possível a transformação da natureza” (Cuche, 1999, p.
10). Entende-se, então, que a cultura é um conjunto de ações e transformações
adquiridas pelo homem vivenciadas em seu meio ambiente.
Laraia (2008) aborda o conceito de endoculturação para explicar a dife-
rença comportamental entre os atores sociais e salienta a importância de con-
siderar a educação recebida pelo indivíduo ao analisar as diferenças culturais.
Por exemplo, uma criança sueca recém-nascida trazida ao Brasil e inserida
em uma família sertaneja com outros irmãos de criação não apresentará nada
de diferente mentalmente em relação a estas outras crianças; ela crescerá e
receberá a mesma educação que resultará em suas ações comportamentais.

107
O autor complementa seu pensamento ao falar do determinismo geográfico
que “considera que as diferenças do ambiente físico condicionam a diversidade
cultural [...] e que é possível e comum existir uma grande diversidade cultural
localizada em um mesmo tipo de ambiente físico” (Laraia, 2008, p. 21). Isto é,
as diferenças entre os indivíduos não podem ser limitadas às questões biológi-
cas ou ambientais, mas, inclusive, pela cultura que cada indivíduo carrega em
sua essência e no meio que é socializado.
Dentre os outros significados, Geertz (1989, p. 15), diferencia-se do con-
ceito de Tylor e afirma que o conceito de cultura é basicamente semiótico e “o
homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”.
Neste caso, a cultura seria o entrelaçar das teias que tem por finalidade condu-
zir o comportamento do indivíduo e reunir princípios e valores dos mesmos.
Para Geertz (1989), a cultura influencia as ações e pensamentos do indi-
víduo em sociedade, cria e recria comportamentos repletos de significados.
Desse modo, a cultura deve ser entendida como um universo de criações e
compreensões de mundo e necessita ser analisada no contexto no qual o indi-
víduo está inserido. Nesse sentido, a cultura é determinada pelas circunstân-
cias do longo processo de experiências do indivíduo e não pode ser vista como
uma conquista, mas como um contexto onde os comportamentos e processos
são reunidos e explicados.
As características culturais identificadas nos indivíduos podem ser clas-
sificadas desde as diferenças linguísticas até o modo de se vestir, agir, pensar,
sorrir ou caminhar. Considerando a grande diversidade de características, no
que diz respeito à participação do indivíduo em sua cultura local, Laraia sina-
liza para a impossibilidade do indivíduo ter conhecimento sobre todos os ele-
mentos culturais existentes, isto é, “a participação do indivíduo em sua cultura
é sempre limitada” (Laraia, 2008, p. 80).
Os sistemas culturais existentes na sociedade não são estáticos e estão
sempre em constante mudança. Laraia (2008, p. 96) apresenta “dois tipos de
mudança cultural: uma que é interna, resultante da dinâmica do próprio sis-
tema cultural, e uma segunda que é o resultado do contato de um sistema
cultural com o outro”. O autor explica que no primeiro tipo a mudança é lenta
e quase sempre imperceptível e, no segundo, as transformações podem ser rá-
pidas e inesperadas.
O segundo caso, de acordo com Laraia (2008), é o mais convencional na
sociedade, pois é improvável existir um sistema cultural afetado apenas pela
mudança interna, como se refere o primeiro caso. A única possibilidade de

108
acontecer uma mudança cultural interna é a existência de um grupo de pes-
soas completamente isoladas das demais. Atualmente, devido à globalização e
as novas formas de comunicação, é difícil imaginar uma situação dessas. Isto
posto, Laraia (2008) assegura que todos os sistemas culturais estão em cons-
tante mudança e é fundamental minimizar o choque cultural entre as gerações
para que as diferenças presentes neles não provoquem atitudes ou comporta-
mentos preconceituosos que prejudiquem a convivência.
Pensar em cultura nos leva a pensar em identidade. Neste texto, a identi-
dade tem papel importante como veremos na análise fílmica que se apresenta
mais adiante.
A identidade é construída a partir do meio que o indivíduo vive e a mes-
ma é construída, principalmente, por meio da cultura. A identidade possui
associações com a cultura, mas a noção de identidade não deve ser confundida
com a de cultura. Segundo Cuche (1999, p. 177), “a identidade social de um
indivíduo se caracteriza pelo conjunto de suas vinculações em um sistema so-
cial: vinculação a uma classe sexual, a uma classe de idade, a uma classe social,
a uma nação, etc”.
Destaca-se a concepção da identidade cultural como uma particularidade
dependente do grupo, porque é transmitida por ele sem possuir relação com
outros grupos existentes. Nomeada como concepção objetivista, ela é definida
a partir de critérios como língua, cultura e conhecimento territorial. Em con-
trapartida, comenta-se sobre a concepção subjetivista de identidade que defen-
de a ideia de que a identidade não é transmitida, mas seria “um sentimento de
vinculação ou uma identificação a uma coletividade imaginária em maior ou
menos grau” (Cuche, 1999, p.181).
Barthes (apud Cuche, 1999) propõe um ponto de vista que supera a ideia
do objetivismo e do subjetivismo propostos. Para o autor, a identidade de um
grupo é o modo de categorizar as relações entre eles, da maneira que se iden-
tifica os traços culturais utilizados pelo grupo que possam os distinguir de
outros já existentes. O autor atribui a ideia de que os próprios membros do
grupo organizam a própria identidade e considera que a mesma “se constrói
e se reconstrói constantemente no interior das trocas sociais” (Barthes apud
Cuche, 1999, p. 183).
Kellner (2001, p. 295) aprofunda os estudos e comenta sobre a identida-
de na modernidade e na pós-modernidade. Segundo o autor, a identidade na
modernidade é vista como “móvel, múltipla, pessoal, reflexiva e sujeita a mu-
danças e inovações. Apesar disso, também é social e está relacionada com o

109
outro”. Nesse processo, a identidade também é relacionada à individualidade
pelo autor. Em relação a pós-modernidade, a identidade se torna volúvel devi-
do aos efeitos das ações midiáticas.
Ademais, a identidade para Canclini (2010), também é estabelecida a par-
tir das mudanças relacionadas ao consumo e a globalização. Os cidadãos man-
têm contatos com uma grande quantidade de informação e isso contribui para
a construção da identidade dos mesmos. Para o autor, “o rádio e o cinema
contribuíram na primeira metade desde século para organizar os relatos de
identidade e o sentido de cidadania nas sociedades nacionais” (Canclini, 2010,
p. 129). Dessa forma, essas mídias reuniram hábitos, modos de se falar e se ves-
tir em um único momento que resultou na disseminação dessas informações,
possibilitando assim a transformação da identidade.
Após discorrer brevemente sobre os conceitos de cultura e identidade, po-
demos apresentar considerações sobre a diversidade cultural e social. Essas
perspectivas teórico-conceituais são fundamentais para compreender como a
mídia se apropria das histórias de vida dos sujeitos que fazem parte do docu-
mentário “Edifício Máster”.

Diversidade cultural e social

A diversidade é a reunião de indivíduos com diversos graus de instrução,


cultura, idade, religião, etnia, deficiência/limitações, orientação sexual e gênero.
A Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO)
realizou uma Declaração universal sobre a diversidade cultural no ano de 2002.
Neste documento, a organização apresentou informações a respeito da diversi-
dade cultural no mundo para provocar debates e estimular conteúdos diversi-
ficados sobre o tema. Estas discussões são de suma importância na atualidade.
Os princípios presentes na declaração se dividem em: identidade, diversidade e
pluralismo; diversidade cultural e direitos humanos; diversidade cultural e cria-
tividade; diversidade cultural e solidariedade internacional.
Segundo Barros (2008, p. 18), a diversidade cultural apresenta um conjun-
to de situações opostas e contraditórias e ela é “cultural e não natural, ou seja,
resulta das trocas entre sujeitos, grupos sociais e instituições a partir de suas
diferenças, mas também de suas desigualdades, tensões e conflitos”. O autor
observa a importância de entender a cultura e o desenvolvimento social, pois
estas dimensões irão se articular com a diversidade cultural.

110
A cultura, como já mencionado, influencia o comportamento do indiví-
duo e transforma a sociedade. A diversidade é capaz de se articular com ou-
tras dimensões básicas capazes de complementar a cultura que, de acordo com
Barros (2008), refere-se a dimensão humanizadora e educativa, a dimensão co-
letiva e política, e a dimensão produtiva e econômica. Portanto, Barros (2008)
indica que a diversidade cultural é vista como uma reunião de informações
distintas em um único ambiente, constituindo assim, uma situação desarmô-
nica onde existe a junção de diversas ideias.
A inserção de modelos democráticos de medidas que proporcionam o di-
reito de ser diferente são necessários para diminuir as desigualdades.
Atualmente, é indispensável que exista “uma educação para a diversidade,
entendida menos como uma atitude de respeito passivo e mais como uma for-
ma de estar no mundo, em que a articulação das diferenças se configura como
pré- requisito ao desenvolvimento humano” (Barros, 2008, p. 22).
O Brasil possui um órgão especializado em Identidade e Diversidade
Cultural, servindo de exemplo para as comunidades internacionais. Criada
em 2003, a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SID) realiza
ações em respeito às diferenças culturais existentes no país. Segundo Dupin
(2008, p. 41), a secretaria tem como principal objetivo a “formulação de po-
líticas públicas na área cultural relacionadas à diversidade e ao intercâmbio
cultural”. Desta maneira, a secretaria democratiza o acesso às políticas cultu-
rais desenvolvendo ações que ofereça proteção e promoção das diversidades.
Projetos, secretarias e outras ações em função da diversidade cultural e social
ajudam a construir um mundo melhor com mais respeito e paz. “Porque, para
que haja paz, é essencial que haja respeito à cultura do outro” (Dupin, 2008, p.
44). Com as inúmeras particularidades culturais e sociais, nenhum indivíduo
é semelhante ao outro, por isso, as diferenças devem sempre ser respeitadas.
A Constituição no Brasil garante que os indivíduos tenham a sua própria
voz perante assuntos que lhe dizem respeito. A cidadania faz parte disso, pois
é a prática acerca da luta pelo bem-estar e reivindicações sobre os direitos civis,
políticos e sociais. Por isso, a democracia impulsiona o desenvolvimento da
cidadania e é fundamental a presença da cultura e da educação para geração
de mais resultados. A sociedade civil ainda tem um longo percurso pela frente
“seja para que direitos coletivos de população gerem riqueza para sua susten-
tabilidade, seja para ampliar o acesso dos brasileiros a bens culturais indispen-
sáveis a sua formação” (Macedo, 2008, p. 96).

111
E qual o papel da mídia nesse contexto? A mídia e os veículos de comu-
nicação são abrangentes a ponto de respeitar e retratar a diversidade cultural
e social brasileira? Como podemos compreender o papel da mídia na repre-
sentação da diversidade cultural e social brasileira a partir da obra “Edifício
Máster”? Essas são questões que norteiam as reflexões que se seguem.

A mídia e o cinema

Os indivíduos podem ser fortemente influenciados pela mídia, pois ela


tem o potencial de transmitir interesses pessoais e coletivos em suas progra-
mações. Giddens (2002) comenta que a mídia é, muitas vezes, uma válvula de
escape da vida cotidiana que possibilita a vivência de desejos que não podem
ser obtidos na vida real. Dessa forma, além da mídia influenciar no compor-
tamento do indivíduo, ela também contribui para o distanciamento entre eles.
A comunicação midiática está relacionada às práticas de produção e de
recepção da mídia. É necessário levar em consideração o tipo de público a
ser atingido, pois, “sabe-se que o público é uma entidade compósita que não
pode ser tratado de maneira global” (Charaudeau, 2012, p. 78). Dessa forma, o
discurso presente na mídia deve considerar a acessibilidade da informação, a
qual se refere a clareza e a simplicidade produzida no discurso midiático para
que aconteça a compreensão da informação que fora transmitida. Entretanto,
Kellner (2001) acredita que a manipulação da mídia não ocorre incessante-
mente. Os indivíduos que recebem as informações transmitidas pelas mídias
podem criar a sua própria interpretação, resistir aos significados impostos por
elas e apropriar-se apenas do que o interessa.
Dentre as mídias existentes, este estudo realça o cinema e um dos princi-
pais gêneros pertencentes a ele: o documentário. A princípio, o primeiro con-
tato do Brasil com o cinema foi no ano de 1896. Comolli (2008, p. 107) observa
que o cinema é uma experiência para o indivíduo. O sistema das mídias, repre-
sentado pelas televisões e objetos audiovisuais, tornaram-se algo imprescindí-
vel na vida dos indivíduos e acabou caracterizando um problema no modo de
relacionamento. O autor considera que essa situação fez com que fosse “pre-
ferível a relação de todos com um do que aquela de cada um com cada outro”.
Segundo Gomes (1996), a primeira sessão de cinema aconteceu no Rio
de Janeiro através de uma máquina chamada de Omniographo. Com o passar
do tempo, outros aparelhos surgiram e receberam outros nomes, os quais se

112
espalharam por São Paulo e outras cidades importantes. No início, os curtas
de cinema eram todos estrangeiros, trazidos de Paris ou Nova York, e somente
em 1898 surge o cinema brasileiro.
No Brasil, os primeiros dez anos de cinema se desenvolveram lentamente.
A falta de eletricidade era o principal problema e “nos poucos locais da capital
da República que dispunham dessa comodidade, o menor temporal ou venta-
nia interrompia o fornecimento” (Gomes, 1996, p. 9). O documentário surge
depois desse período, como um gênero cinematográfico que procura investi-
gar a realidade.
Nichols (2005), crítico do cinema americano, apresenta uma visão sobre o
que seria um documentário. O autor afirma que todo filme é um documentá-
rio pelo fato de representar culturas, estas retratadas de quem o produziu e de
quem faz parte dele. Por isso, ele não é uma representação da realidade, mas
uma apresentação do ambiente a partir de um ponto de vista dos indivíduos ou
instituições. Para ele, existem duas vertentes: os documentários que possuem
a representação social como objeto principal são considerados não-ficção e
os ficcionais contemplam a satisfação de desejos e exploram um mundo com
inúmeras possibilidades.
O autor comenta a existência de seis subgêneros do gênero documentário:
poético, expositivo, participativo, observativo, reflexivo e performático. Esta
ordem possui uma razão, pois corresponde a ordem cronológica de evolução
dos mesmos no cinema documentário.
Em síntese, Nichols (2005) avalia que o documentário poético tem como
característica a representação de impressões subjetividade e desperta mais in-
teresse na emoção do que na razão. O expositivo se interessa nos argumentos
dos atores sociais e, por isso, emprega o uso da fala e de imagens. O terceiro
subgênero, participativo, é determinado pela participação ativa do diretor e
da equipe no documentário. O observativo procura retratar a realidade e a
naturalidade, utilizando uma pequena movimentação da câmera e aproveitan-
do as próprias cenas para que elas falem por si mesmas. Em relação ao modo
reflexivo, este procura demonstrar para o telespectador todos métodos de fil-
magem para que seja possível demonstrar a real reação dos atores sociais. E,
por fim, o modo performático se refere aquele que possui características das
técnicas cinematográficas livres. Dessa forma, o cineasta procura sensibilizar
o telespectador.
Este estudo entende o documentário como representação social, cujo ob-
jetivo é refletir sobre a verdade que o cineasta quer despertar na sociedade,

113
afinal, “os documentários dão-nos a capacidade de ver questões oportunas
que necessitam de atenção”. (Nichols, 2005, p. 27). Nichols traz a ideia de que
nesse tipo de documentário os indivíduos agem de maneira indiferente frente
a câmera e o cineasta. Esses indivíduos são nomeados como atores sociais, os
quais irão disponibilizar momentos reunidos da própria vida, como emoções,
lembranças e desejos.
Situados o papel da mídia e do cinema nas representações e apresenta-
ções da diversidade cultural e social, procedemos à análise fílmica de “Edifício
Máster”.

Análise fílmica do documentário “Edifício Master”

A partir dos conceitos de cultura, diversidade cultural e social, identida-


de e mídia tratados neste estudo, analisa-se o documentário “Edifício Master
– Um filme sobre pessoas como você e eu” dirigido por Eduardo Coutinho.
O objetivo da análise foi identificar a relação dos conceitos estudados com a
diversidade social e cultural retratadas no documentário.
Os procedimentos metodológicos deste estudo consideraram como análi-
se fílmica os depoimentos e os comportamentos dos indivíduos residentes no
Edifício Master frente às câmeras. Segundo Mombelli e Tomaim (2014, p.1-2),
a análise de materiais audiovisuais, como o documentário, possui sempre ou-
tras opções se analisadas às alternativas escolhidas, pois “[...] por se tratar de
um método interpretativo que não possui uma fórmula única a ser seguida, é
preciso criar o próprio caminho, desenvolver categorizações que darão emba-
samento para que a análise não seja uma interpretação vã”. Ou seja, este estudo
leva em consideração alguns pontos relevantes e não tem pretensão de abordar
integralmente o objeto de estudo.
Isto posto, Comolli (2008) acrescenta a seguinte definição de que o docu-
mentário se difere do jornalismo pelo fato dele ocorrer após o acontecimento,
sendo proibido reconstruir o que não foi filmado pelo diretor. Isto é, o docu-
mentário reescreve os acontecimentos. Entretanto, este artigo não é um estudo
cinematográfico, pretendendo apenas, salientar aspectos da diversidade cultu-
ral e social brasileira frente às câmeras.
Em relação ao cinema, a cultura também é retratada como uma represen-
tação da sociedade. É possível salientar os reflexos da cultura, da desigualdade
social, dos conflitos e dinâmicas sociais, no discurso dos entrevistados. Por

114
isso, foi necessário entender o contexto onde o documentário está inserido
pelo fato de ele traçar a intenção que o diretor pretendeu alcançar.
Retomando os subgêneros do documentário apontado por Nichols (2005),
o “Edifício Master” corresponde ao modo participativo pelo fato do diretor e
da equipe terem uma participação ativa no documentário. Eduardo Coutinho
faz exatamente o que afirma o autor em seu livro, “o pesquisador vai para o
campo, participa da vida de outras pessoas, habitua-se, corporal ou visceral-
mente, à forma de viver de um determinado contexto e, então, reflete sobre
essa experiência” (Nichols, 2005, p.152).
Dessa maneira, destacam-se a seguir as principais características observa-
das no documentário “Edifício Master”.

Diversidade social e cultural no documentário


“Edifício Master”

O documentário brasileiro “Edifício Master – Um filme sobre pessoas


como você e eu” foi dirigido por Eduardo Coutinho e lançado no ano de 2002
com 110 minutos de duração. O elenco é composto por moradores do próprio
edifício e pela equipe de cenografia que também aparece em poucas cenas do
documentário. O edifício possui aproximadamente quinhentos moradores,
distribuídos em doze andares, com 276 apartamentos conjugados no famoso
bairro de Copacabana, a uma quadra de distância da praia, na cidade do Rio
de Janeiro.
Durante três semanas, a equipe e o diretor alugaram um apartamento no
edifício para vivenciar o cotidiano dos moradores e, assim, realizar as grava-
ções e entrevistas para o documentário.
No início do documentário, o cineasta apresenta o prédio e descreve bre-
vemente como ocorrerá as filmagens. “Alugamos um apartamento no prédio
por um mês. [...] filmamos a vida do prédio durante uma semana”. A utiliza-
ção da inserção do “eu” na fala do diretor, segundo Nichols (2005), seria uma
forma de também se tornar um personagem na tentativa de se aproximar e
apresentar ao público uma opinião pessoal.
Segundo O’donnel (2013, p.29), desde o início do século, o bairro de
Copacabana exercia uma função de “repertório e do imaginário dos habitan-
tes da Capital” desde sua fundação. É como se Copacabana não fosse apenas
um simples bairro na zona sul, mas um estilo de vida para os moradores que lá

115
vivem. “Edifício Master” demonstra o papel que as relações culturais e sociais
possuem na vida dos indivíduos entrevistados. Não se trata de fazer uma abor-
dagem individual de cada um dos moradores, mas de destacar as diversas rela-
ções presentes dentro desse único ambiente. A equipe cinematográfica aposta
na capacidade que o documentário possui de construir histórias, retratar ca-
racterísticas heterogêneas dos indivíduos, bem como, reunir experiências em
comum entre eles. Assim como apontado por Cuche (1999), a cultura propor-
ciona a resposta sobre as questões relacionadas às diferenças.
O documentário traz o som da voz como um meio de representar pontos
de vista descritos pelos atores sociais e cineastas. Para Nichols (2005), a voz do
documentário não é restrita a fala, ela também é elaborada pelo criador através
da seleção de imagens e sons. Para isso, ocorre um estudo para seleção de cor-
tes das cenas, gravação da voz dos atores sociais, inserção de efeitos sonoros e
criação de uma cronologia para o documentário.
As primeiras entrevistas relatam a violência na região do Edifício Master,
o qual fora frequentado no passado por cafetinas, prostitutas e seus clientes.
Assim como foi abordado por Laraia (2008), é notório que em um ambiente
físico é possível encontrar diversas manifestações culturais e sociais, e no edi-
fício não é diferente. Relatos de suicídios, assassinatos e mortes constituíam o
cenário do edifício. Embora essas situações fossem relatadas no documentário,
o diretor adequou a seleção de imagens e sons para que não acontecesse juízo
de valor de quem falava durante as cenas.
As imagens e a entrevista com o síndico na sala da administração do
prédio relatam as dificuldades comportamentais em função das diversidades
existentes neste edifício. O objetivo da administração do síndico é apresentado
e visa alcançar um prédio bonito, digno e descente. Para isso, é citado méto-
dos de comportamento utilizados com os moradores como, por exemplo, o de
Piaget e o de Pinochet. O primeiro modelo, representado pelo psicólogo suíço,
reforça bons comportamentos com possibilidade de “recompensas”. Enquanto
o segundo, aludido ao ditador chileno, é lembrado como um método que pos-
sui punição quando as regras não são cumpridas. Esses métodos são um cho-
que de realidade para os moradores e usados como metáfora para demonstrar
a dificuldade em lidar com um grande número de pessoas reunidas em um
único ambiente com diversas diferenças culturais e sociais. Isso é aparente,
pois, como citado anteriormente, Cuche (1999) afirma que a cultura é o con-
junto de transformações do homem e a partir dela que é possível a transfor-
mação da natureza.

116
Assim como citado por Lipovetsky e Serroy (2011), a sociedade passa por
um momento de desorientação, insegurança e instabilidade. O documentário
traz esse indício, os moradores consideram o bairro de Copacabana como in-
seguro e revelam ao longo de diversas entrevistas que isto gera a solidão.
O documentário segue com a narração de relacionamentos a distância,
que acontecem através de ligações e e-mails. Em outro momento, encontros
pessoais ocorrem a partir de anúncios em jornais e ações totalmente infor-
mais. Há descrição dos momentos marcantes, bem como, a percepção da apa-
rência do outro. A partir da superficialidade dos discursos, observa-se a cul-
tura e a identidade do indivíduo. A beleza, o modo de se vestir e de agir de um
indivíduo é uma qualidade a ser avaliada e, com isso, a reflexividade proposta
por Giddens é considerada. “O consumo interpela as qualidades alienadas da
vida social moderna e se apresenta como a solução: promete as coisas mesmas
que o narcisista deseja - charme, beleza e popularidade - através do consumo
dos tipos “certos” de bens e serviços.” (Giddens, 2002, p.160). Atualmente, vi-
ve-se à procura de pessoas que acreditam ser socialmente respeitadas.
Em diversos discursos, identifica-se a falta de vontade de estar perto de
outras pessoas, talvez por acreditar que isso as protegerá das mazelas do mun-
do. Lipovetsky e Serroy (2011) comentam que o momento atual da sociedade
favorece o individualismo e, com isso, o indivíduo se vê sozinho dentro da sua
realidade. Em relação a isso, surge em um dos discursos e relatos a neurose e a
sociofobia; a aglomeração do bairro de Copacabana se torna estressante e gera
esgotamento. A dúvida da entrevistada é colocada em xeque e permanece sem
resposta sobre ter “pessoas demais ou calçadas muito estreitas. Ou se é uma
fusão desagradável dos dois elementos”.
Para essas pessoas, às vezes, o verdadeiro sentido de felicidade é estar só,
do mesmo modo que o bem-estar diário seria subir e descer do elevador do
prédio sem tem que ver e não ser visto por ninguém. Este e outros sinais são
reflexo da modernidade e o fato de um vínculo com as pessoas ser mais estrei-
to, faz com que a situação passe a incomodar. “Os sinais do perigo se multipli-
caram, retransmitidos e amplificados por uma informação que difunde tudo
ao vivo e em toda parte: um espirro em algum lugar no mundo e é o planeta
inteiro que tosse” (Lipovetsky; Serroy, 2011, p.23).
O documentário traz a realidade de juventudes interrompidas por causa
de gravidez precoce, historias de jovens com um passado sem diálogos com a
família. Com um sentimento de incapacidade, uma das saídas é a prostituição.
Diante dessa realidade, surgem dificuldades, humilhação e dependências. A

117
difusão dessa realidade gera conflitos, pois “nem todos os grupos têm o mes-
mo ‘poder de identificação’, pois esse poder depende da posição que se ocupa
no sistema de relações que liga os grupos” (Cuche, 1999, p.185-186). Com isso,
acredita-se que na sociedade atual e para a grande maioria da população o
“poder de identificação” estaria na normalidade do cenário da corrupção e da
marginalização, e seria anormal o fato de se prostituir, mesmo sendo uma ati-
vidade que não viola nenhuma lei. Giddens (2002) afirma que a modernidade
ocasiona à indiferença, a exclusão e a marginalização.
Durante as cenas é possível perceber que, embora os indivíduos tragam
histórias como a de humilhação e impotência, destaca-se a afirmação de que
estas situações trazem felicidade, como se fossem obrigados a dizer para a câ-
mera que não existe nada de errado com a vida deles, mesmo em meio a tantas
dificuldades. Exemplifica-se uma cultura na qual as pessoas vivem apenas o
seu próprio mundo assemelhando-se a um imediatismo.
Cada indivíduo acredita em um tipo de vida dita como “normal”, pois
trabalha, ganha seu dinheiro e se sustenta. Mas para os outros, a corrupção e
os ladrões é que são normais. São duas vertentes distintas que dependem do
ponto de vista. “Afastando a possibilidade da emancipação, as instituições mo-
dernas ao mesmo tempo criam mecanismos de supressão, e não de realização,
do eu” (Giddens, 2002, p.13).
A solidão é retratada em diversos discursos. Os moradores comentam so-
bre ter números vizinhos e não conhecer sequer um deles. Aparentemente, o
sentimento é de ser trancado no apartamento e só ter conhecimento de notí-
cias sobre os vizinhos quando acontece algo notório.
O Edifício Master fica na zona sul do Rio de Janeiro, mais precisamente
em Copacabana e, por isso, os moradores relatam que são considerados ricos
por conhecidos e familiares. As histórias apresentam pessoas simples e que
não correspondem a realidade de possuírem uma boa condição financeira. “A
identificação pode funcionar como afirmação ou como imposição de identida-
de. A identidade é sempre uma concessão, uma negociação entre uma “autoi-
dentidade” definida por si mesmo e uma “heteroidentidade” ou uma “exoíden-
tidade” definida pelos outros” (Simon apud Chuche, 1999, p.183-184).
O autor define os termos autoidentidade e heteroidentidade e “em uma
situação de dominação caracterizada, a heteroidentidade se traduz pela estig-
matização dos grupos minoritários” (Cuche, 1999, p.184). Essa última classi-
ficação é compreendida como uma identidade negativa e deve ser vista como
uma rejeição, pois se diferencia dos grupos predominantes. No documentário,

118
o fato de morar em Copacabana passa a ser um estigma, ou seja, algo que está
marcado para sempre na vida desses moradores.

Considerações finais

O documentário “Edifício Master – Um filme sobre pessoas como você


e eu” foi abordado de forma geral, onde foi possível salientar diversas rela-
ções humanas reunidas dentro de um único ambiente escolhido pelo diretor
Eduardo Coutinho. Assim como apontado por Mombelli e Tomaim (2014,
p.16), “a análise fílmica é uma metodologia baseada na interpretação, logo
não há um caminho único a ser seguido”. Por isso, para delimitar a pesquisa,
utilizou-se a análise de depoimentos e os comportamentos dos moradores do
prédio frente às câmeras.
O documentário demonstra o indivíduo e a sua relação com o local onde
mora. Como apontado por Nichols (2005), o gênero documentário tem a fi-
nalidade de retratar questões sociais e políticas. Nesse contexto, Eduardo
Coutinho obteve discursos nos quais foi possível explorar as consequências que
as relações humanas trazem para o indivíduo em uma sociedade heterogênea.
As questões sociais na modernidade foram analisadas no documentário
e teve como resultado marcante o choque cultural entre os indivíduos. A di-
ficuldade em se adaptar em uma cultura diferente teve como consequência
depoimentos sobre uma vida solitária e, muitas vezes, infeliz. Cada indivíduo
possui uma essência e dentro do meio ambiente em que é socializado preci-
sam se moldar perante a diversidade cultural; mas isso nem sempre acontece.
Houve também depoimentos falando sobre dificuldades financeiras, roman-
ces, ameaças de suicídio, decepções familiares, entre outros assuntos.
Como exposto anteriormente, a representação da identidade dos entrevis-
tados foi vista de forma clara no documentário ao demonstrar as diferenças
existentes entre eles como, por exemplo, a fala, cultura, hábitos e preconceitos.
Houve uma união de pessoas distintas no Edifício Master e, por isso, é
possível destacar o papel das relações sociais e os traços de sofrimento e supe-
ração encontrados na modernidade.
A mídia “documentário” possibilitou o encontro dessas mais diferentes
culturas e identidades ao superar o que não era possível ter acesso sem o uso
da mesma. A inserção de atores sociais para explorar questões que devem ser
colocadas em destaque é um avanço, pois é um modo de conceder um ponto

119
de vista sobre o assunto tratado. Segundo Nichols (2005, p.27), “do documen-
tário, não tiramos apenas prazer, mas uma direção também”. O documentário
passa a ser um elemento essencial nessas questões.
Embora o documentário seja uma narrativa de histórias da vida dos mora-
dores que se rendem a falta de perspectivas futuras, o “Edifício Máster” é um
interessante objeto de estudo para descrever os costumes e ações de um grupo
de pessoas diferentes, que moram em um mesmo lugar e que estão sujeitas às
diferentes culturas e surpresas da vida urbana.
O cinema é uma ferramenta importante para registrar a diversidade cul-
tural e social a partir dos sujeitos sociais em ambientes que não são acessíveis
a todos. O Edifício Master retrata a importância dessa mídia, onde é possível
encontrar a representação do ambiente analisado a partir do ponto de vista do
diretor e da equipe com direito a participação ativa dos mesmos no documentá-
rio. Essa experiência é válida tanto para os envolvidos no documentário quanto
para os espectadores que usufruem de uma realidade, muitas vezes, distante.

Referências

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In: BARROS, José Márcio (Org.). Diversidade Cultural: da proteção à promoção. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

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Jean Louis. Ver e Poder: A Inocência perdida: Cinema, Televisão, Ficção, Documentário.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 1999.

DUPIN, Giselle. O governo brasileiro e a diversidade cultural. In: BARROS, José Márcio
(Org.). Diversidade Cultural: da proteção à promoção. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
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Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra,
1996.

120
KELLNER, Douglas. A cultura da mídia - estudos culturais: identidade e política entre o
moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22ed. Rio de Janeiro:


Zahar, 2008.

LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo. São Paulo: Companhia das


Letras, 2011.

MACEDO, Cesária Alice. Programa cultural para o desenvolvimento do Brasil. In:


BARROS, José Márcio (Org.). Diversidade Cultural: da proteção à promoção. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

MOMBELLI, Neli Fabiane; TOMAIM, Cássio dos Santos. Análise fílmica de


documentário: apontamentos metodológicos. Lumina, v.8, n.2, dez, 2014.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Tradução de Mônica Saddy Martins.


Campinas, SP: Papirus, 2005.

O’DONNEL, Julia. A invenção de Copacabana: culturas urbanas e estilos de vida no Rio


de Janeiro (1890-1940). Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

Ficha técnica do audiovisual analisado

Edifício Master – Um filme sobre pessoas como você e eu. Dir. Eduardo Coutinho.
Brasil: Videofilmes, 2002. (110min). Colorido, sem legenda, Português.

121
O MUNDO COMO IMAGEM E
REPRESENTAÇÃO: HEIDEGGER E A
CULTURA CONTEMPORÂNEA
Eli Vagner Francisco Rodrigues

Introdução

As reflexões de Martin Heidegger em “A Época da Imagem de Mundo”


(Die Zeit des Weltbildes”), ensaio que compõe a obra “Holzwege” (Caminhos
de Floresta) de 1950, sobre as formas de representação do mundo moderno
e seus fundamentos metafísicos figuram como uma das mais profícuas in-
terpretações sobre o processo de formação de uma imagem representacional
para a compreensão da realidade. Perpassa toda a investigação de Heidegger a
ideia de que o ato de formar uma imagem mental que seja, de fato, representa-
tiva do real, essa crença da subjetividade, é determinado por entes e operações
cognitivas cuja complexidade estão muito além da mera conceituação e se tor-
na, efetivamente, uma forma de “apropriação” (Aneignung) da consciência em
relação à realidade. Anteriormente a filosofia já havia questionado a legitimi-
dade e o status de uma “imagem” (Bild) como “ente cognitivo” apontando-a,
sob várias formas, como distorção e distanciamento do real em si. O dilema
epistemológico se dá a partir da dúvida sobre o efeito cognitivo da imagem. Tal
dilema, apesar de determinar complexas questões relativas à teoria do conhe-
cimento pode ser sintetizada na questão: Que tipo de conhecimento as diver-
sas e distintas “imagens de mundo” (Weltbildes) proporcionam das coisas em
si mesmas e do funcionamento natural dos entes em suas relações causais? O
pressuposto da questão é o de que uma visão metafísica específica, qualquer

122
que seja, conferiria sempre um estofo conceitual-representacional à imagem,
dando sentido e, ao mesmo tempo, comprometendo a interpretação do fun-
cionamento das relações causais. Em termos mais simples, toda a imagem car-
regaria em si, em tempos distintos, uma forma privilegiada de interpretá-la
relacionada com uma episteme “epocal”. Nesse sentido, uma imagem teria di-
versos significados de acordo com o contexto no qual ela está inserida. O pro-
blema da falsa consciência se avizinha do tema. A falsa consciência seria, antes
de tudo, uma visão distorcida do real, uma ilusão provocada pela concepção
metafísica ou mesmo pela natureza volitiva do sujeito cognoscente, ou ainda
uma espécie de oclusão provocada por motivações inconscientes. Todas essas
definições possuem como pressuposto, em certo sentido, o aspecto de impene-
trabilidade do real pela consciência, um dos temas centrais da Crítica de Kant.
Não é o caso, aqui, de desenvolver o problema em termos kantianos, mas
de analisar a perspectiva heideggeriana do problema e desdobrar o problema
em questões sobre a estética e a cultura. No entanto, a pergunta, formulada em
termos das duas conhecidas categorias utilizadas por Kant na Crítica da Razão
Pura, (fenômeno e coisa-em-si) pode nos dar uma ideia do abismo epistemoló-
gico que pode haver entre uma imagem formulada na mente humana, forjada
a partir de princípios metafísicos diversos, distintos e “epocais”, e a verdadei-
ra constituição das coisas e de suas relações fora da mente que representa. O
problema que se avista é o da impossibilidade da formulação de juízos que não
sejam representacionais-condicionados para o conhecimento humano, so-
bretudo aqueles juízos forjados sobre fenômenos complexos como ambientes
culturais e relações sociais ou políticas. A própria epistemologia das ciências
humanas teve que considerar esse tema e, efetivamente, não sabemos se o pro-
blema foi solucionado. Uma das dificuldades epistemológicas que determinam
o problema foi apontada por Hegel quando criticou o status da razão como ju-
íza de si mesma referindo-se à crítica kantiana, o que, talvez, seja um impasse
epistemológico insolúvel. A investigação de Heidegger caminha por esta via.
Seria possível determinar quais as categorias metafísicas que fundamentaram
a visão de mundo característica de cada fase do conhecimento humano; an-
tigo, medieval, moderno, contemporâneo? Em outras palavras, seria possível
definir o que Foucault denominou como uma “episteme” particular de cada
época? A partir de uma resposta positiva, a reflexão deve indicar quais seriam
as implicações dessas concepções metafísicas fundamentais para o problema
da interpretação. Nesse sentido, temos uma hermenêutica das interpretações
características das diversas “imagens de mundo”. Para Heidegger, sobretudo

123
em “A questão da técnica”, o problema epistemológico é muito menor que o
problema gerado pela efetivação técnica e tecnológica desta “apropriação” do
real gerado por esta visão de mundo, que, por sua vez, é proporcionada e pro-
vocada pela “imagem de mundo”, característico da ciência moderna, que vê a
natureza como algo a ser dominado pelo homem através da razão.

A perspectiva estética

Na perspectiva estética a crítica da imagem como índice do real já foi am-


plamente criticada na filosofia. É oportuno lembrar a crítica platônica das ar-
tes miméticas nos livros III e X da República, “caracterizadas como ontologi-
camente precárias, afastadas três vezes do real, as imagens da pintura são para
Platão mera aparência, cópia de cópia, simulacro, fantasma” (Pellejero, 2013, p.
306). Os produtores de imagens, enquanto artistas, serão criticados por Platão.

Assimilados a crianças que brincam torpemente com um espelho,


refletindo indiferentemente a aparência do sol e do céu, da terra
e dos seres viventes, das coisas e dos homens, sem apreender na
realidade coisa nenhuma das suas naturezas. Os fazedores de ima-
gens têm a consciência das sombras, essa forma baixa e irracional
da consciência – eikasía – que caracteriza os habitantes da caver-
na; logo, são irresponsáveis, porque jogam com uma incapacidade
séria, e compartem nesse sentido a condenação que Platão lança
sobre os sofistas. As suas imagens são perigosas, porque remedam
o espiritual, encobrindo-o sutilmente, trivializando-o, ameaçando
converter-se num substituto mágico da filosofia, numa mediação
que daria conta da realidade por um caminho mais curto e peri-
gosamente consolador. Todavia, o preconceito platónico para com
as imagens da arte tem como correlato um preconceito em relação
àqueles que olham para elas, os espectadores, na medida em que as
imagens apelam nos homens à sua parte irracional (sem fins sãos
nem verdadeiros). A arte é especialmente perigosa aí onde o pen-
samento é menos poderoso, ao nível da sensibilidade e das paixões.
(Pellejero, 2013, p. 307).

124
Segundo Platão, a imagem, quando é instrumento e objeto da arte, é capaz
não somente de atingir-nos fisicamente, mas também de mover-nos. Sob seu
encanto somos incapazes de discernir ciência e ignorância, realidade e ficção,
verdade e aparência. Na medida em que somos demasiado sensíveis às formas
e às cores, às fábulas e às modulações da luz, as imagens têm o poder de redu-
zir-nos a uma posição de total passividade. Ora, sabemos que é na passividade
do espectador que reside o perigo do jogo da arte enquanto ilusão, engano,
encantamento e alienação.

Irrealidade, irracionalidade e passividade conjugam-se assim na


produção e na contemplação das imagens da pintura, fazendo do
olhar o oposto de conhecer e o oposto de agir, uma aceitação acríti-
ca das aparências, coisa de crianças (Pellejero, 2013, p.308).

Vê-se, claramente, nesse pequeno percurso inicial que a imagem se cons-


titui como um problema para a filosofia enquanto questão epistemológica,
estética, cultural e, por fim, como um problema político. Pretendo, portan-
to, percorrer vários aspectos do problema da relação imagem-subjetividade.
Parto do problema epistemológico da formação de uma imagem de mundo
para abordar o problema da dominação técnico-científica proporcionado pela
visão sujeito-objeto advinda dessa imagem, para, por fim, concluir com o pro-
blema da imagem como problema da cultura.

A metafísica da subjetividade

Segundo Heidegger, a concepção de mundo característica dos chamados


“Tempos Modernos” se configura como algo bastante distinto das concepções
ditas antigas. Isto se dá pelo modo como o próprio mundo é representado pela
mente humana em diversas etapas de desenvolvimento da própria metafísica.
Na idade moderna, afirma Heidegger, o mundo se torna representação. Pelo
ato de representar o mundo o homem o torna, por assim dizer, uma imagem
pré- concebida de si mesmo, pois quem o representa porta, inevitavelmente, a
“mente moderna”. Nesta nova representação do mundo opera uma concepção
metafísica distinta da metafísica platônica, mas ainda assim opera uma meta-
física. A metafísica platônica é substituída pela metafísica de Descartes.

125
Quando hoje usamos a palavra ciência, ela quer dizer algo que se
diferencia essencialmente da doutrina e da scientia da Idade Mé-
dia, mas também da episteme grega. A ciência grega nunca foi exa-
ta, e isso porque, segundo a sua essência, não podia ser exata e não
precisava de ser exata. Daí que não tenha qualquer sentido opinar
que a ciência moderna é mais exata que a da antiguidade. Assim,
também não se pode dizer que a doutrina de Galileu da queda livre
dos corpos é verdadeira, e que a de Aristóteles, que ensina que os
corpos leves tendem para cima, é falsa; pois a concepção grega da
essência do corpo, do sítio e da relação de ambos assenta numa
outra interpretação do ente e condiciona, por isso, um modo corre-
lativamente diferente de ver e de questionar os processos naturais.
Ninguém afirmaria que a poesia de Shakespeare é mais evoluída
que a de Ésquilo. (Heidegger, 2002, P. 99).

A metafísica da representação, ou “metafísica da subjetividade” traz em si


o pensamento dualista. O dualismo se estabelece como uma dicotomia entre
o ser e o ente. Assim como o real e o aparente contrastam na filosofia pla-
tônica constituindo um a verdade do ser o outro a ilusão do devir, e sujeito
e objeto perfazem as relações de conhecimento no pensamento moderno. O
homem passa a ser o sujeito de conhecimento, par excellence, e o mundo objeto
de conhecimento, submetido ao poder humano, racional, da classificação e
manipulação da natureza. Essa concepção, enquanto modelo epistemológico
aplicado ao mundo das ciências naturais, por exemplo, funciona como funda-
mento do surgimento da técnica moderna, esta sim motivo de preocupações
mais profundas por parte de Heidegger enquanto “crítico da cultura” e da ci-
vilização ocidental. A apropriação técnica do mundo se torna possível somente
através dessa concepção de poder em relação ao ente efetivada pela metafísica
da subjetividade, que impõe à natureza um fator regulador e legitimador de
conhecimento, a saber, o próprio homem. Em outras palavras, Heidegger está
apontando, com esta análise, para a dominação do mundo efetivada por uma
modalidade de pensamento técnico-científico que tem suas raízes numa me-
tafísica da representação. Segundo Heidegger, esta concepção está aliada ao
próprio Humanismo e este será um dos pressupostos de sua polêmica crítica à
visão de mundo humanista. Em outras palavras, Heidegger enfatiza que a va-
lorização da “prerrogativa humana” em relação a outras formas de conceber o
ente carrega em si a forma como o humanismo domina a própria natureza e se

126
impõe ao próprio ente como praticamente única forma de conceber as coisas
do mundo. O modo privilegiado de ver o mundo, proporcionado pela ciência
moderna é, também, um modo de dominação do ente pelo homem e a técnica
tem papel central na efetivação desta apropriação. Passamos de uma repre-
sentação para uma apropriação, de um movimento de concepção para um ato
de apropriação instrumentalizado. A virtude matemática da ciência moderna
permite a exatidão da apropriação. Certeza e precisão infinitesimais perfazem
a operação cirúrgica da ciência sobre a forma natural do ente. Neste sentido a
matemática passa a ser um elemento do pensamento cotidiano sobre o mundo
natural, esse pode ser apenas um exemplo do modo como a metafísica da ciên-
cia se apropriou de nossas consciências. Assim, Heidegger destaca a função da
matemática em relação à concepção científica moderna.

Aos fenômenos essenciais da modernidade pertence a sua ciência.


Um fenômeno de um nível igualmente importante é a técnica de
máquinas. No entanto, não se pode confundi-la com a simples
aplicação prática da moderna ciência natural matemática A téc-
nica de máquinas é ela mesma uma transformação autônoma da
prática, de tal modo que é esta que exige o emprego da ciência na-
tural matemática. A técnica de máquinas permanece o rebento até
agora mais visível da essência da técnica moderna, a qual é idêntica
à essência da metafísica moderna. (Heidegger, 2002, p. 97)

A partir do momento em que o homem pode representar o mundo de


maneira exata, pelo instrumental matemático e pelo método científico, forço-
samente se começa a pensar em um novo ideal de verdade baseado na noção
de exatidão. O que era adequatio (adequação do conceito ao real), ou o que era
objeto de reverência por autoridade (verdade-autoritas-verecundiam) passa a
ser chancelado como verdadeiro pelo ideal de exatidão, precisão e neutralidade
científica. Segundo Heidegger, como vimos, quando hoje usamos a palavra
ciência, ela quer dizer algo que se diferencia essencialmente da doctrina e da
scientia da Idade Média, mas também da episteme grega.
É curioso comprovar que já no início de seu texto sobre a imagem moder-
na do mundo Heidegger aponta as consequências dessa nova concepção para
o mundo da cultura. Para o filósofo “uma terceira manifestação da época mo-
derna, igualmente importante, reside no processo por meio do qual a arte entra
para o domínio da estética” (Heidegger, 2002, p. 97). A obra de arte, segundo

127
o filósofo, com esse processo, se transforma em objeto de uma vivência. A arte
passa a equivaler a uma expressão da vida humana. Uma quarta manifestação
moderna se anuncia no modo como a ação humana passa a ser concebida e
consumida como cultura. Assim, a cultura seria a realização dos valores supe-
riores através do cultivo dos dons supremos do homem. “Trata-se, na essência
da cultura tomada como tal cultivo, de cultivar a si mesma expressamente e de
se tornar, assim, uma política da cultura’’ (Heidegger, 2002, p. 98).
O homem passa a ser o responsável pela verdade, pela verdadeira repre-
sentação do mundo e pelo mundo da cultura e de seu cultivo. Sob este ideá-
rio de responsabilidades intelectuais se forma o homem de letras, o homem
de ciência e o homem político nos séculos XIX e XX. Afinal, a política seria,
também, responsável pelo cultivo da cultura enquanto tradição. Nota-se, as-
sim, o elo entre mundo da cultura, mundo da ciência e mundo da técnica no
horizonte da idade moderna. O mundo como representação e a relação entre
sujeito e objeto estão na base da concepção do mundo da cultura, da ciência e
da técnica. O sujeito do conhecimento nessa concepção é o ente de atividade
exploratória, transformadora, da técnica dominadora. O homem domina a na-
tureza, a humanidade domina e manipula o ser.

Imagem de mundo e cultura atual

O que torna o pensamento de Heidegger fundamental para os séculos se-


guintes é, não somente a análise acurada desse processo, mas, principalmente,
o apontamento de seus perigos. O próprio humanismo desembocaria em uma
situação perigosa para o próprio homem, agora capaz de manipular todos os
entes através da ciência e da técnica. Se tudo é objeto de manipulação do mo-
derno sujeito do conhecimento o próprio homem passa a ser objeto em seu
aspecto fisiológico, material e de gênese. Esta possibilidade, não prevista pela
cultura até a idade moderna, não é regulamentada pela própria cultura. O ju-
ízo sobre a manipulação do todo ainda deve ser formulado. O problema epis-
temológico é, também, um problema ético e cultural. Sob o ponto de vista da
ética o problema não foi colocado nestes termos pela própria impossibilidade
de manipulação técnico-genética do homem. Esta condição de manipulação
era vedada ao homem não somente ela incapacidade técnica, mas sobretudo,
pela proibição normativa. Somente com o “des-endeusamento” (Nietzsche) ou
“des- divinização” (Heidegger), neologismos criados pelo filósofo, similares ao

128
conceito de “desencantamento do mundo” (Weber), foi possível a dominação
técnico- científica sem que um imperativo normativo de proibição absoluta
se impusesse no caminho entre o homem e a mobilização total (Die Totale
Mobilmachung). Ernst Junger indica em seu ensaio a relação entre o domínio
da técnica no mundo do trabalho e de sua direta relação com o mundo das
guerras modernas.

Assim, também a imagem da guerra como um negócio armado,


cada vez mais, deságua na imagem amplificada de um gigantesco
processo de trabalho. Ao lado dos exércitos que se entrechocam
nos campos de batalha, surgem os novos tipos de exército: o do
trânsito, o da alimentação, o da indústria armamentista – o exérci-
to do trabalho em geral (Junger, 2002, p. 195)

O problema apontado não somente por Heidegger, é o de que a tendência


investigativa e manipuladora infinita da ciência força uma anulação de prerro-
gativas normativas. O ideal de conhecimento ilimitado dos entes (da natureza)
se opõe à proibição da manipulação indiscriminada dos entes (dos humanos).
Tal situação implica em um problema ético que, no limite, aponta para a pró-
pria essência do humanismo iluminista com sua “vontade de verdade” e toca,
em última instância, na questão da ordenação moral do mundo. O próprio
cientificismo força a revalorização dos entes. O horizonte de desvalorização
dos valores supremos até então vigentes é o horizonte do niilismo e, neste am-
biente, o homem se vê sem referências normativas. Vale dizer que este é um
dos sentidos da parábola nietzschiana da “morte de Deus” anunciada pelo “ho-
mem louco” na Gaia Ciência. Nietzsche submeteu a cultura europeia a uma
crítica impiedosa. As consequências do próprio esclarecimento, das possibili-
dades e dos limites do saber e do agir modernos são analisados por Nietzsche
e colocados em termos de uma parábola que não se refere necessariamente a
uma questão teológica. Com a parábola do Homem Louco, Nietzsche descreve
o drama de nossa condição cultural.

Não ouvistes falar daquele homem louco que, em plena manhã


clara, acendeu um candeeiro, correu para o mercado e gritava
incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus?’— E, como lá se
reunissem justamente muitos daqueles que não acreditavam em
Deus, provocou ele então grande gargalhada. ‘Perdeu-se ele, en-

129
tão?’, dizia um. ‘Ter-se-ia extraviado, como uma criança?’, dizia
outro. ‘Ou se mantém oculto? Tem ele medo de nós? Embarcou
no navio? Emigrou?’ — desse modo gritavam e riam entre si. O
homem louco saltou em meio a eles e trespassou-os com o olhar.
‘Para onde foi Deus?’, clamou ele, ‘eu vos quero dízê-lo! Nós o ma-
tamos, vós e eu! Nós todos somos seus assassinos? Como, porém,
fizemos isso? Como pudemos tragar o oceano? Quem nos deu a
esponja para remover o horizonte inteiro? Que fizemos nós quan-
do desprendemos esta Terra de seu sol? Para onde se move ela, en-
tão? Para onde nos movemos nós? Longe de todos os sóis? Não nos
precipitamos sem cessar? E para trás, para o lado, para frente, de
todos os lados? Há ainda um alto e um baixo? Não erramos como
através de um nada infinito? Não nos bafeja o espaço vazio? Não
ficou mais frio? (Nietzsche, 2001, p. 147-148).

Nietzsche descreve o sentimento de abandono e o vazio característico da


consciência do homem moderno. Os homens modernos com sua visão cien-
tífica, teriam vencido a disputa pela interpretação verdadeira do mundo, mas
não estariam conscientes da dimensão épica de seu próprio feito. Nietzsche
teria levado até as últimas consequências o impulso crítico que animava o pen-
samento filosófico da modernidade. Para o filósofo, não se pode levar essa
crítica até o seu limite se não retornarmos ao platonismo, isto é, à imagem de
mundo característica da metafísica antiga. Heidegger assimilará e dará conti-
nuidade à essa crítica.

Esta expressão não visa a simples eliminação dos deuses, o ateísmo


grosseiro. A desdivinização é o dúplice processo de, por um lado, a
imagem do mundo se cristianizar, na medida em que o fundamen-
to do mundo é estabelecido como o infinito, o incondicionado, o
absoluto, e, por outro lado, o cristianismo transformar a sua cris-
tianidade numa mundividência (a mundividência cristã) e, deste
modo, se modernizar. A desdivinização é o estado de ausência de
decisão sobre o deus e os deuses (Heidegger, 2002, p. 98).

O esvaziamento ou o desagaste do horizonte da metafísica religiosa dá


lugar a uma outra perspectiva para a metafísica moderna. A perspectiva da

130
investigação. Para Heidegger, a essência daquilo a que hoje se chama ciência
é a investigação. Em que consiste a essência da investigação? Antes de tudo
em se preparar para o novo dado, para a mutabilidade do ser. Daí, observa
Heidegger, que o avançar tenha de ter livre o olhar para a mutabilidade da-
quilo que se encontra. Só no campo de visão do sempre-outro da mudança se
mostra a plenitude do particular, dos factos. Esta particularidade da investi-
gação científica não pode pensar mais o mundo como uma essência imutável,
constante e eterna. A desconfiguração de tal “imagem de mundo” se dá ne-
cessariamente pelo próprio método e por sua nova concepção metafísica. Mas
quais seriam os perigos dessa nova concepção e a quais condições as quais
ela nos levou, uma vez que já decorrem pelo menos dois séculos dessa apro-
priação de conhecimento e de dominação técnica sobre a natureza e a vida
em geral. Uma delas tem especial interesse no que diz respeito ao chamado
mundo da cultura.
Na cultura, esse processo de estabelecimento da hegemonia da modalida-
de científica do conhecimento produziu um “domínio ideológico”, no senti-
do mais restrito desta expressão marcada pela polissemia. Teria ocorrido um
domínio da explanação científica sobre outras manifestações interpretativas
da vida humana e do mundo. O resultado dessa hegemonia levou a uma pre-
ponderância do tipo de saber exclusivamente metodológico-sistemático sobre
qualquer outro tipo de saber. Por força dessa prioridade em relação aos pro-
blemas epistemológicos a própria filosofia passa a dar mais ênfase às questões
relativas ao modo, forma e possibilidade do conhecimento do homem moder-
no. O mundo da vida (Lebenswelt), no entanto, se caracterizaria por uma forte
guinada tecnológica mudando a própria forma de produção da arte e da cul-
tura. O problema que se impõe neste contexto é que essa forma de apropriação
dos entes se justifica por si própria, pois é a forma com que os sistemas polí-
ticos, científico-tecnológicos e até culturais se colocam à serviço do homem
moderno. Sua imposição é sua própria legitimação. A tecnologia por si mesma
se impõe como uma necessidade para as várias áreas da cultura, para a arte,
por exemplo. E os exemplos podem ser vários e de muitos tipos: o modo de
produção dos bens é técnico, inclusive dos bens culturais, e a forma de organi-
zação social é burocrática, portanto matemática e científica. A própria noção
de ascensão é dada pela possibilidade de acúmulo de objetos e de recursos
tecnologicamente valorizados em relações de troca. O que é objeto de troca
é, antes, fruto da técnica. A noção de valor se apega à técnica como nenhuma
outra característica dos entes. Neste sentido o que é tecnológico, por si só, tem

131
mais valor no mundo das trocas. Paralelamente, o próprio mundo acadêmico
se vê atingido por essa tendência científico-técnica no sentido de uma empresa
que objetiva uma finalidade de pesquisa. O investigador substitui o erudito e
a ideologia da produtividade científica se difunde. O que nos parece uma dis-
cussão mais ligada aos rumos da universidade e da atividade docente no século
XXI é analisada por Heidegger já em seu texto de 1950.

O desenrolar-se decisivo do carácter de empresa moderno da ci-


ência cunha também, por isso, uma outra espécie de homem. O
erudito desaparece. É rendido pelo investigador que está nos seus
empreendimentos de investigação. Estes, e não o cuidado de uma
erudição, dão ao seu trabalho o ar fresco. O investigador já não
precisa de nenhuma biblioteca em casa. Ele está aliás constante-
mente em viagem. Discute em colóquios e informa-se em con-
gressos. Vincula-se a encargos de editores. Estes co- determinam
agora que livros têm de ser escritos (3). O investigador é impeli-
do necessariamente para o círculo da figura essencial de técnico,
num sentido essencial. Só assim é que continua a ser eficaz e, deste
modo, efetivo no sentido da sua era. O romantismo da erudição e
da universidade, que se torna cada vez mais raro e cada vez mais
vazio, pode ainda manter-se por mais algum tempo e algures, à
margem. No entanto, o carácter de unidade eficaz e, [79] assim,
a efetividade da universidade não reside num poder espiritual
de união originária das ciências, que dela emana por ser por ela
alimentado e nela guardado. A universidade é efetivamente real
como uma instituição que torna possível e visível, ainda numa for-
ma peculiar, porque administrativamente fechada, a dispersão das
ciências na particularização e na unidade particular das empresas
(Heidegger, 2002, p. 108).

Se, como vimos, a “imagem de mundo” (Weltbildes) característica da idade


moderna é a base para nossa visão “científica” ela se relaciona diretamente com
nossa moderna “visão de mundo” (Weltanschaung) “cientificista”. Esta perspec-
tiva, para Heidegger, deve ser interpretada como uma perspectiva ideológica.
No cenário da contemporaneidade, no entanto, se confrontam diferentes “visões
de mundo”. Os adeptos de uma ideologia específica não concebem o mundo
pela mesma “imagem” que outra ideologia o concebe. A interpretação do mundo

132
parte de uma imagem do mundo e se molda, não esqueçamos, a um querer (sub-
jetividade) sobre o mundo. Assim, uma ideologia seria como um processo de
produção de ideias, crenças e valores baseados em uma intencionalidade não
explícita. Essas ideias e crenças sempre são objeto de síntese nas imagens que
compõem a cultura. Torna-se corrente e amplamente conhecida a ideia de que
uma imagem aparentemente banal, como uma imagem publicitária, carrega em
si os elementos de uma visão de mundo específica. Nesse sentido, se a história da
cultura se pauta pela elaboração consciente e inconsciente de imagens-síntese de
visões de mundo, analogamente, a história dos ideais humanos seria uma histó-
ria de seus efeitos sobre a subjetividade. Neste sentido, a falsa-consciência, isto
é, a visão equivocada do que o mundo efetivamente é, ocorre, cotidianamente,
muito mais no universo imagético do que no horizonte discursivo. A metafísica
do mundo como uma imagem, portanto, tem várias facetas, nem todas recon-
fortantes para os destinos do conhecimento.
O que Heidegger pretende com o projeto fenomenológico, entre outras
coisas, é tentar escapar destas maneiras de conhecer o mundo que são pré-
determinadas pela forma de apropriação que o homem moderno se impôs.
Adotando uma ideia original de Edmund Husserl, Heidegger aponta para uma
crise na cultura europeia causada pela visão ortodoxa da ciência como discur-
so privilegiado de apropriação do ser do mundo.

A supervalorização do mundo científico (objetivo) leva ao que


Husserl (1997) chamou de Crise das Ciências Européias, tema de
sua última obra publicada em vida: Die Krisis der europäischen
Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie: Eine
Einleitung in die phänomenologische Philosophie (1936). Trata-se
não de uma crise das ciências enquanto tais (é bastante óbvio que
as ciências continuam progredindo e produzindo conhecimento),
mas trata-se basicamente de uma crise de sentido. A neutralidade
do mundo da ciência deixa de fora questões humanas fundamen-
tais (valores, cultura, ética), de modo que entre o mundo da ciência
e o mundo-da-vida vai se instaurando gradualmente um proces-
so de distanciamento. O ponto de Husserl é que a ciência, assim
constituída, tem muito pouco a nos oferecer no que se refere às
questões mais fundamentais para a humanidade: seus valores, sua
cultura e o sentido da existência individual e coletiva. (Struchiner,
2007, p. 242).

133
Heidegger aponta para a perda de uma relação autêntica com o ser pro-
vocada pelos rumos que tomaram a própria filosofia, o caminho epistemo-
lógico, a ciência em sua guinada tecnicista e finalmente a cultura em sua ver-
tente humanista. A acusação de Heidegger é contra as bases mesmas do que
denominamos civilização ocidental e não apenas contra o que aparece como
fenômeno desta cultura e visão de mundo. Mais especificamente, Heidegger
aponta para o aspecto que a sustenta enquanto fundo metafísico. Assim como
Husserl separou o mundo da vida (Lebenswelt), “o mundo da experiência pré-
dado imediatamente antes de toda operação lógica” (Husserl, 1970) do mundo
da ciência propondo novas possibilidades de interpretação do real, Heidegger
aponta para a via única (cientificista, técnica) que tomou a cultura do ocidente
como uma via de riscos ao próprio homem.
Toda esta crítica pode resultar na, também perigosa, tecnofobia e, de fato,
certas correntes refratárias ao desenvolvimento tecnológico se inspiram, em
certa medida, em concepções negativistas com relação ao desenvolvimento
da técnica e dos rumos éticos da manipulação da natureza. Esta discussão dá
origem a uma das mais novas e promissoras áreas da filosofia, a saber a filo-
sofia da tecnologia, que conta em suas fileiras com autores da importância
de Heidegger, Marcuse e Feenberg. Os desdobramentos dessa discussão, no
entanto, fogem ao escopo deste trabalho.
No que diz respeito à cultura como instância de produção de significados
para o mundo e de sua relação com a técnica no século XX o problema já foi
tratado na obra de Walter Benjamin “A obra de Arte na época de sua repro-
dutibilidade técnica”. Benjamin não somente aponta para os dilemas estéticos
da segunda metade do século XX, e consequentemente dos séculos vindou-
ros, como é bastante feliz na síntese de seu título aliando os dois problemas
centrais da cultura atual “Técnica” e “Arte”. A arte no nosso século é, antes
de tudo, técnica para a imagem. Nesse sentido, o reconhecimento se dá pela
representação. Em outras palavras, ocorre com a cultura atual um fenômeno
de reconhecimento de referências imagéticas que tomam o lugar do reconhe-
cimento conceitual, ou discursivo, característico da cultura dos séculos ante-
riores. A cultura pop é o exemplo máximo dessa nova modalidade de “saber”.
Boa parte do que se considera a fruição estética na cultura contemporânea está
baseada no reconhecimento de imagens da própria cultura pop. Assim a cul-
tura contemporânea cria um círculo de reconhecimento e satisfação que pro-
voca reconhecimento, desta vez intelectual e social e, consequentemente, uma
impressão de prazer “estético”. Acrescente-se neste movimento de consumo

134
um volume “excessivo” (massivo) de produções e uma nova valorização (reva-
lorização) do tempo para o consumo da arte. Boa parte da cultura da imagem
pós-moderna é desenvolvida pela fruição imagética acelerada. A sobreposição
à era moderna se dá pela imposição da imagem ao mundo das letras.
Para termos uma visão mais acurada desse “estado estético contemporâ-
neo” o próprio termo pós-moderno não é mais suficiente. Gilles Lipovetsky,
na tentativa de superar a insuficiência deste termo cunhou o termo
“Hipermodernidade”. Na tentativa de reinterpretar fenômenos culturais de
nosso tempo Lipovetsky aponta para um aspecto essencial. Para o filósofo “a
Hipermodernidade seria caracterizada por uma cultura do excesso. As coisas
se tornam urgentes e sua reposição é necessária e inevitável, sejam elas produ-
tos materiais ou culturais. O tempo de fruição da arte se acelera e perde conte-
údo. ( Lipovetsky, 2004). A informação supera a formação. Esse movimento de
aceleração da cultura não considera a vagareza da subjetividade em interpretar
e assimilar os conceitos. Nesse sentido, ocorre uma esquizofrenia cultural. O
efêmero faz parte da formação mais do que o duradouro, o entretenimento
vale mais do que o clássico. Há, de fato, uma integração, mas essa integração
da cultura se dá necessariamente através de regras do mercado. Vemos o sur-
gimento do capitalismo cultural e da mercantilização da cultura.

O funcionamento do mundo liberal, que gera mais lucro, mais


eficiência e mais racionalidade, parece justificar os receios de
Heidegger, o qual, a respeito da técnica, denunciava uma detur-
pação de seu sentido em favor de uma “vontade de vontade”, uma
dinâmica de poder que se alimenta de si mesmo, sem outra fina-
lidade além de seu próprio desenvolvimento. A vontade, que de
início era animada pelo louvável desejo de aliviar a humanidade
de seu sofrimento imemorial, transformou-se pouco a pouco em
vontade de poder, tendo como única finalidade seu próprio do-
mínio sobre os homens e as coisas, em última análise, produzindo
este mundo fanático da técnica e do desempenho que é o nosso.
(Lipovetsky, 2004, p. 34).

A racionalidade do excesso aponta ainda para um problema estético de


consequências incalculáveis para a o mundo da produção e do consumo da
arte. A própria preocupação estética relacionada com a beleza, enquanto ideal
artístico passa a ser substituído pela ideia de conceito na produção do objeto de

135
arte. A arte conceitual, características de movimentos como o dadaísmo, por
exemplo, nega a funcionalidade estritamente ligada ao ideal de beleza. Roger
Scruton, na obra “Beauty” critica essa tendência. Segundo Scruton, “o repúdio
à beleza é alimentado por uma visão particular de arte moderna e de sua his-
tória. A obra de arte justifica-se a si mesma ao anunciar-se como um visitante
do futuro. O valor da arte é o valor do choque” (Scruton, 2015, p. 179). Ora,
essa fuga do ideal de beleza, além de questionar mesmo que legitimamente um
establishment cultural, abre as portas para o vale tudo no universo da arte e
essa suposta falta de critérios é muito mais passível de aceitação na cultura da
imagem do que propriamente na cultura letrada, isto é, na argumentação dis-
cursiva. A banalização da imagem enquanto obra de arte fica mais exposta aos
fatores de massificação e consumo, pois a figura do artista, antes exclusivista e
rara se alastra e se intensifica em sua decadência. Segundo Scruton, as aberra-
ções no campo da arte contemporânea chegam a abalar o próprio conceito de
arte na medida em que um objeto passa a ser considerado arte simplesmente
porque o autor a nomeia como arte.

Experimento fenomenológico

Poderíamos nos perguntar qual relação que existiria entre as críticas de


Lipovetsky à cultura hipermoderna, as análises de citadas de Benjamin e de
Adorno sobre a cultura contemporânea e a denúncia de Heidegger sobre a
apropriação técnico-científica proporcionada pela visão de mundo moderna?
A resposta está diretamente ligada à linguagem e sua capacidade de criar for-
mas de consciência. Para compreender esta característica temos que entender
algo do processo fenomenológico. Isto é possível através de um pequeno expe-
rimento de pensamento.
Quando olhamos para uma paisagem podemos ver várias coisas: um rio,
um campo, pessoas e o sol, por exemplo. Percebemos, pela sugestão do método
fenomenológico, que cada coisa que foi enunciada já havia sido determinada
em seu significado por uma cadeia de significação culturalmente imposta à
minha subjetividade. Isto é, já havia uma semântica e uma sintaxe que dariam
o sentido do que vejo. Todavia, tudo que vejo pode deixar de ser percebido
como os nomes e palavras com sentido determinado. O que Heidegger aponta
é que a realidade pode aparecer como realmente é e não por força interpretati-
va de uma linguagem dada. Haveria nesse ato, uma “experiência originária”. O

136
que esse ato, essa experiência fenomenológica, pode nos mostrar, em primeiro
lugar, é que o que fala por nós ao descrevermos essa paisagem é a linguagem e
não nossa experiência mesma, pois já estamos condicionados a interpretar as
coisas como nossa linguagem determina. Ora, com a cultura e, sobretudo com
a cultura das imagens, isto se dá como o modo corrente, por não dizer “corre-
to”, de interpretar essas imagens. Ocorre, então, o modelo condicionante. Uma
imagem que é veiculada com forte sentido interpretativo em redes sociais, na
televisão e no cinema, por exemplo, se torna a maneira correta de interpretar
tal imagem. Ocorre, assim, uma descaracterização e anulação da experiên-
cia originária da apreciação dessa imagem. Sob esse monopólio interpretativo
(político) se dá a cultura de nosso tempo. Voltemos à Heidegger.
Se utilizarmos o método fenomenológico proposto por Husserl e Heidegger
podemos, em certo sentido, ter a experiência modelo de suspenção da inter-
pretação vigente (linguística, cultural, condicionante). No caso mais simples
da contemplação das coisas, por exemplo, temos o que a ciência nos diz a res-
peito da visão, isto é, que ela é um fenômeno que depende da luz. A luz incide
sobre as coisas e, por sua natureza ondulatória, chega à nossa retina, só assim
vemos as coisas. Se penso que ver é um fenômeno baseado na propagação de
ondas estou interpretando o fenômeno pela linguagem científica. Portanto,
estou interpretando a partir de uma concepção relacional sujeito-objeto a mi-
nha experiência. Se eu consigo entender o fenômeno da linguagem atuando
por detrás desse processo cognitivo eu compreendo que essa experiência não é
uma experiência originária. A rigor, essa experiência está baseada na concep-
ção sujeito-objeto-representação, característica de uma visão de mundo e de
uma imagem de mundo determinada pela metafísica moderna.

Considerações finais

Finalmente, no caso da cultura contemporânea e de sua proliferação mi-


diática interpretativa-impositiva das imagens, impera, mais do que uma visão
metafísica (dualismo-sujeito-objeto) do real, por força de seus aspectos técni-
co- científicos e, também, tecnicistas e cientificistas, inerentes à produção da
cultura como mercadoria, mas também a formação de padrões de interpreta-
tivos homogêneos, a partir da criação de valores culturais. Assim, a imagem
é interpretada antes de chegar ao intérprete-consumidor de arte e cultura.
Toda a arte contemporânea sofre, por assim dizer, a orientação de uma linha

137
interpretativa aceita pelos meios cultos, sobretudo entre os consumidores di-
tos letrados. Toda a cultura média é acolhida em um ambiente politicamente
pré- determinado por ideais de igualdade, reciprocidade, reconhecimento e
valores, capazes de conferir aos consumidores seu status de semi-formação
(Halbbildung). A partir desse contexto, conclui-se, tanto por influência do mé-
todo fenomenológico, apontado em linhas gerais aqui, como pelas difundidas
interpretações da “teoria crítica” que a imagem, enquanto objeto da cultura se
ressente cada vez mais de autonomia. A experiência de interpretar uma ima-
gem se vê, a cada dia, mais distante de uma autenticidade originária. O que
vemos no nosso cotidiano de consumo cultural já possui a marca da inter-
pretação heterônoma e não mais se caracteriza como a imagem originária. Se
adotarmos uma fórmula muito cara a Theodor Adorno para a interpretação
da cultura atual, o ato de ver uma imagem, em muitos casos significa, hoje,
aceitar uma tutela interpretativa. Nesse sentido, a distinção que é apontada
por Heidegger em Holzwege (A época de imagem de mundo) segundo a qual
a concepção de mundo característica dos chamados “Tempos Modernos” se
configura como algo bastante distinto das concepções ditas antigas pelo modo
como o próprio mundo é representado pela mente humana em diversas etapas
de desenvolvimento da própria metafísica, pode ser retomada a partir da con-
sideração de uma nova “metafísica” interpretativa na idade contemporânea.
Os pontos de vista característicos do rebanho (F. Nietzsche), do espetáculo
(G. Debord), do entretenimento (T. Adorno) e da moda (G. Lipovetsky), deter-
minam o prazer e a decadência (R. Scruton) do culto e da cultura da imagem
atual. Isenta de prerrogativa da beleza a imagem se dilui em um mercado de
referências e repetições.
A acusação de Adorno aponta não somente para o perigo da massifica-
ção heterônoma direta através dos meios de comunicação, mas também para
o ideal de formação passiva e consensual e para o “filisteísmo cultural” dos
formadores de opinião. Este tipo cultural foi caricatamente apresentado por
Nietzsche na figura do “último homem”. Esse animal de rebanho que se au-
to-interpreta como o fim último da história, como o telos (finalidade) mani-
festado da história do mundo. Sua segurança seria assegurada pelo reinado
universal da razão seja em uma sociedade sem classes seja em uma sociedade
de mercado, de onde se poderia, por fim, fazer desaparecer toda desigualdade,
injustiça e sofrimento.
Nietzsche nos lembra que há uma tendência muito forte no sentido de que,
fisiologicamente, esse homem seja um decadente. Esse “último homem” é, na

138
verdade, uma construção de um ser impotente para suportar o sofrimento,
pois sua imagem e ideal foram erigidas sob o signo do prazer e da distração.
A banalidade dos prazeres e o ideal de consenso e conforto constituem seu
supremo ideal de felicidade. Nesse contexto a imagem midiática tem um pa-
pel primordial. É a imagem que impõe e reproduz esse ideal de humanidade,
seus instrumentos são a educação, a publicidade e o consenso democrático
mediado pela opinião pública e as imagens de bem-estar e sucesso caracte-
rísticos dos produtos culturais. O homem não se torna mais somente igual,
mas passa para o nível do idêntico. Gilles Deleuze em Diferença e Repetição
aponta como problema central do pensamento moderno esse homem de cons-
ciência idêntica. Ele teria nascido da falência da representação, assim como
da perda das identidades e das descobertas de todas as forças que agem sob a
representação do idêntico. O mundo moderno seria o mundo dos simulacros.
(Deleuze, 1988). Baudrillard também denuncia a simulação característica da
imagem como simulacro.

Hoje a abstração já não é a do mapa, do duplo, do espelho e do


conceito. A simulação não é já a simulação de um território, de um
ser referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de
um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não
precede o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que precede o
território - precessão dos simulacros - é ele que engendra o terri-
tório cujos fragmentos apodrecem lentamente sobre a extensão do
mapa. É o real, e não o mapa, cujos vestígios sobrevivem aqui e ali,
nos desertos que já não são os do Império, mas o nosso. O deserto
do próprio real. (Baudrillard, 1991, p. 8)

No deserto do real se dá a invenção da felicidade através da mediação da


imagem e a imagem é o elemento central de consecução desse ideal de felicida-
de baseado no entretenimento e na voragem do imagético. Inegável inspiração
para a “Dialética do Esclarecimento” de Adorno e Horkheimer, a caracteriza-
ção do último homem no Zaratustra acentua o papel do trabalho como distra-
ção e do entretenimento (amussement) como um produto concebido em fun-
ção do tempo do trabalho. “O entretenimento é o prolongamento do trabalho”
(Adorno e Horkheimer, 1981). Nesse sentido, a gravidade e a essência da arte
se perdem na característica narcotizante da imagem.

139
Nós inventamos a felicidade” – dizem os últimos homens, e piscam o olho.
Eles deixaram as regiões onde era duro viver: pois necessita-se de calor. Cada
qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega: pois necessita-se de calor. Adoecer e
desconfiar é visto como pecado por eles: anda-se com toda a atenção. Um tolo,
quem ainda tropeça em pedras ou homens! Um pouco de veneno de quando
em quando: isso gera sonhos agradáveis. E muito veneno, por fim, para um
agradável morrer. Ainda se trabalha, pois trabalho é distração. Mas cuida-se
para que a distração não canse. Ninguém mais se torna rico ou pobre: ambas
as coisas são árduas. Quem deseja ainda governar? Quem deseja ainda obede-
cer? Ambas as coisas são árduas. Nenhum pastor e um só rebanho! Cada um
quer o mesmo, cada um é igual: quem sente de outro modo vai voluntaria-
mente para o hospício. “Outrora o mundo inteiro era doido” – dizem os mais
refinados, e piscam o olho. São inteligentes e sabem tudo o que ocorreu: então
sua zombaria não tem fim. Ainda brigam, mas logo se reconciliam – de outro
modo, estraga-se o estômago. Têm seu pequeno prazer do dia e seu pequeno
prazer da noite: mas respeitam a saúde. “Nós inventamos a felicidade” – dizem
os últimos homens, e piscam o olho. (Nietzsche, 2011, p. 18)

Referências

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Zahar, 1985.

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Editora ZOUK, 2012.

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140
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Gestalt, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 241-246. 2007.

141
GÊNERO E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NOS
CONTEÚDOS DE SOCIOLOGIA PARA O
ENSINO MÉDIO: REFLEXÕES SOBRE AS
QUESTÕES DE GÊNERO NO CADERNO DE
SOCIOLOGIA DA SEE/SP
Natália Cristina Sganzella de Araujo

O presente capítulo tem por objetivo refletir sobre o modo como as ques-
tões de gênero, violência de gênero e feminismos são abordadas no Caderno de
Sociologia do Aluno e do Professor, oferecido pela Rede Estadual de Educação
de São Paulo. Essa temática surgiu da necessidade de repensar sobre as mar-
cas da diferença no cotidiano escolar entre adolescentes quanto as relações de
gênero e sexualidade e a importância da presença desses conteúdos didáticos
com caráter educativo e necessário para a construção da cidadania e enfrenta-
mento das formas de violência e desigualdade social.
O espaço escolar aparece como um lugar de produção e reprodução de
práticas sociais, logo é um meio para construção da cidadania, mas também se
mostra como reprodutor de práticas de violência e exclusão social. Se por um
lado é possível construir um caminho de diálogo que busque o respeito as dife-
renças, a proposição e combate às desigualdades e violências contra mulheres e
outras ‘minorias’, percebemos que a estrutura como se organiza o currículo, a
formação docente, as práticas pedagógicas e outras experiências silenciam cer-
tos grupos e criam redutos para a discussão do tema que deveria ser tratado de
forma interdisciplinar para alcançar os resultados esperados para o confronto
das formas de exclusão no espaço escolar.
Para analisar o currículo escolar, tomo de empréstimo a proposta de Joan
Scott (1995), que apresenta a realidade social a partir do conjunto de relações
sociais em que o masculino e o feminino são delimitados no âmbito da cul-
tura e da história. As marcas dessas posições sociais são sempre diferentes de

142
uma cultura para outra; essas marcas se transformam, são provisórias, como
afirma Scott,

Fazer emergir uma história que oferecerá novas perspectivas a


velhas questões (como por exemplo, é imposto o poder político,
qual é o impacto da guerra sobre a sociedade), redefinirá as antigas
questões em termos novos (introduzindo, por exemplo, conside-
rações sobre a família e a sexualidade no estudo da economia e da
guerra), tornará as mulheres visíveis como participantes ativas e
estabelecerá uma distância analítica entre a linguagem aparente-
mente fixada do passado e nossa própria terminologia. Além do
mais, essa nova história abrirá possibilidades para a reflexão sobre
as estratégias políticas feministas atuais e o futuro (utópico), por-
que ela sugere que o gênero tem que ser redefinido e reestruturado
em conjunção com a visão de igualdade política e social que inclui
não só o sexo, mas também a classe e a raça. (Scott, 1995, p.30)

O currículo escolar mostra-se como um elemento que contextualiza as


relações sociais entre comunidade e escola, é um produto específico do reflexo
da realidade da escola, situada em um contexto mais amplo que a influência
e que pode ser, por ela, influenciado. O currículo é compreendido de maneira
ampla. Ele se concretiza em todas as políticas, nas intenções declaradas e nas
práticas promovidas pela escola e em função dela por meio de documentos, de
ações institucionalizadas ou não, normas de funcionamento, rotinas, formas
de organizar a gestão do seu espaço, ações dos seus sujeitos (inclusive alunos).
Há uma contínua produção de significados que não ficam isoladas na ação
dos sujeitos, mas são compartilhados socialmente e organizam as práticas de
agir, falar e pensar no interior das relações. O currículo escolar está permeado
de um conjunto de interações sociais, que não se restringem ao espaço escolar,
mas que circulam em outros campos culturais. De acordo com Silva (2006),
o currículo precisa ser compreendido como um campo cultural, em que di-
ferentes discursos circulam e concorrem para os processos de formação da
subjetividade.
De acordo com Vianna e Umbehaum (2006), durante o período de re-
democratização política no Brasil, a educação e a saúde foram os serviços
que tiveram maior exigência dos movimentos sociais quanto a melhorias de
acesso para todas as classes sociais. Essa característica por uma demanda

143
educacional, como um serviço essencial no Brasil, mostra-nos que a escola
pode ser lida como um lugar de reprodução das normas sociais, mas também
como lugar de produção de resistência. A inserção dos temas das relações de
gênero e da sexualidade veio se ampliando ao longo dos anos no campo das
políticas públicas na área de educação, em grande medida pela intervenção dos
movimentos sociais que pressionaram o Estado para que seus direitos sociais
fossem respeitados e garantidos, como exemplo, medidas de contenção de vio-
lência contra mulheres, negros, homossexuais, entre outros.
Segundo Vianna (2012), o Brasil foi um dos governos signatários da
“Declaração de Juntem”, elaborada na referida conferência e ratificada na
Cúpula Mundial Educação para Todos, em Dakar (Senegal) que sinalizava
como meta a ser alcançada a igualdade de gênero e ao empoderamento das
mulheres, bem como as medidas indispensáveis para a melhoria das condições
de vida propostas Organização das Nações Unidas (ONU). Dentre outros vá-
rios documentos que comprometiam o governo brasileiro a reduzir os índices
de violência e discriminação contra a mulher.
Sob forte influência dos acordos internacionais, o governo Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002),

o currículo passa a ser considerado central nas reformas, documen-


tos e ações implementadas pelas políticas educacionais voltadas
para a perspectiva de gênero/sexualidade. A ênfase na Orientação
Sexual também pode ser notada nas políticas de prevenção nas es-
colas e temas a ela relacionados. (Vianna, 2012, p. 128)

Altmann (2001) analisa que as questões de gênero e sexualidade explodem


na “ordem do dia” no cenário da escola pública, pois dizem respeito não só a
esfera da intimidade e da construção dos corpos, mas servem aos ‘negócios de
Estado’, pois a forma como a população conduz sua vida sexual reflete em po-
líticas públicas na área de saúde (natalidade, mortalidade, povoamento, abor-
tos, entre outros) e também em exerce forte influência em termos econômi-
cos a disciplina dos corpos. A criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais
– Temas Transversais sobre Orientação Sexual estruturou a forma como as
questões seriam abordadas nas escolas brasileiras.
Durante o governo Lula houve formulação de uma agenda para combate
a violência contra mulher e promoção da Igualdade de Gênero e para as ques-
tões raciais com a criação de Secretarias, tais como a Secretaria Especial de

144
Direitos Humanos (SEDH), a Secretaria Especial de Política para Mulheres
(SPM), a Secretaria Especial da Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a
Secretaria Nacional da Juventude (SNJ). A mudança nas políticas públicas so-
bre enfrentamento a violências contra as mulheres e a homofobia caminharam
durante esse governo.
Ainda durante a gestão desse governo houve a introdução das discipli-
nas de Sociologia e Filosofia como componentes curriculares obrigatórios pela
Lei nº 11.684/08, no qual a Secretaria de Educação de São Paulo lançou uma
proposta curricular de Sociologia, segundo Schrijnemaekers e Pimenta (2011)
o processo de elaboração da Proposta Curricular de Sociologia para a Rede
Estadual de Educação de São Paulo, o projeto foi lançado com o título “São
Paulo faz escola”. As autoras destacam que a Sociologia teve sua importância
evidenciada com a Lei nº 9394/96, Lei da Educação, que associava a existência
das disciplinas de Filosofia e Sociologia como conteúdos necessários a forma-
ção do jovem como membro participativo de sua comunidade.
A adoção da disciplina de Sociologia não estava expressa enquanto obriga-
tória, foi apenas com a Lei n.º 11.684/08, que a disciplina passou a se integrar a
grade curricular. Ainda de acordo com as autoras, os conteúdos dos cadernos
tiveram de ser elaborados para o ano seguinte, quando da inserção na Rede
Estadual Paulista da disciplina de Sociologia.
Os cadernos seguiram a proposta oferecida pela Sociedade Brasileira de
Sociologia (SBS). Nesses cadernos ficou decidido que o fundamental a se de-
senvolver seria

a formação e o desenvolvimento do aluno como ser humano. É,


portanto, sensibilidade e não raciocínio, pois o raciocínio socio-
lógico deve ser desenvolvido na faculdade, por aqueles que se tor-
narão sociólogos e estudarão a sociedade de forma científica. A
sensibilidade sociológica, entretanto, constitui parte da educação
básica e vem sendo defendida desde os anos de 1980 por educa-
dores e cientistas sociais. Resta, portanto, colocá-la em prática
(Schrijnemaekers e Pimenta, 2011, p.410).

O projeto São Paulo faz escola desenvolveu um material, em formato de


cadernos, para servir como um roteiro que auxiliasse os professores a fomen-
tar em seus alunos, a sensibilidade sociológica. Para as autoras apontam que
vários fatores foram levados em consideração na produção do material, como

145
a diversidade dos jovens, que são encontrados na Rede Pública Estadual e os
cenários aos quais estão expostos. Havia ainda o desafio da ausência de produ-
ção de pesquisas e materiais para a escola secundária, sem contar a preocupa-
ção com aqueles profissionais que ocupavam as vagas de ensino de Sociologia e
não possuem formação aprofundada para lidar com os temas abordados.
Esses cadernos contemplavam vários eixos sobre a situação da população
brasileira, entre elas estava questões de gênero. A proposta curricular pre-
sente nos cadernos de Sociologia estruturou-se nos Parâmetros Curriculares
Nacionais – Temas Transversais sobre Orientação Sexual que definem a sexu-
alidade e as relações de gênero como elementos de significados culturais e que
caberiam dessa forma em uma visão sociológica. Os cadernos estão estrutura-
dos em quatros eixos para discorrer sobre as questões de gênero e sexualidade:
Na primeira série do Ensino Médio, volume a discussão sobre gênero apa-
rece contextualizada na temática “O que nos desiguala como humanos? ”, em
meio a discussão sobre classe, etnia e gênero como elementos que constroem
a desigualdade social. Nessa etapa, o gênero fica definido como construção
social que se desdobra a partir do sexo

O sexo depende basicamente se a pessoa nasce com genitais mas-


culinos ou femininos ou com um programa genético que nos faz
produzir hormônios masculinos ou femininos que estimulam o
sistema reprodutor [...] Já o gênero é formado por sentimentos,
atitudes, comportamentos associados a homens e mulheres (São
Paulo, 2014, p. 62).

A contextualização para o aluno do conceito de gênero aparece como


complementar ao sexo, reforçando o binômio natureza/cultura. Judith Butler
(2003) questiona esse binarismo e mostra que ao se definir os gêneros, como
uma condição cultural que se estrutura sobre os sexos fixos e coerentes, se cria
uma falsa constância em que a lógica heterorreprodutiva fica assegurada de
forma compulsória, pois a orientação do desejo estará associada aos corpos
que foram condicionados a partir das condições biológicas que o definiram ao
nascer e que foram reforçadas no processo de identificação dos sujeitos.
De acordo com Butler (2003, p. 25),

o gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição


cultural de significado num sexo previamente dado […] tem de

146
designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual
os próprios sexos são estabelecidos.

Ao se reproduzir essa lógica em materiais didáticos de ampla circulação


na rede escolar paulista, vemos que o conceito de gênero aparece como uma
forma de classificar e nomear os corpos, oferecendo-lhes uma distinção social.
Embora se problematize a posição desigual dos sujeitos definidos como mas-
culino e feminino, exclui-se outras formas de diversidade de gênero. Assim, é
possível afirmar até esse momento a ênfase na redução da sexualidade à he-
terossexualidade, destacando-se a restrita menção da homossexualidade nos
PCNs e o silenciamento da discriminação sofrida pela população LGBT. O
que prevalece é a reiteração compulsória da heterossexualidade (Louro, 2015)
e a invisibilização da população LGBT no cotidiano e na organização escolar.
O conteúdo programático de Sociologia explora a articulação binária en-
tre o feminino e o masculino, mas não oferece aos jovens a possibilidade de
pensar os corpos que “escapam” as normas prescritas e que se encontram nas
fronteiras das identidades e de desejo, não problematizando as possibilidades
de circulação, que transpõe a conformidade entre sexo e gênero.
No caderno do segundo ano, a discussão sobre violência de gênero apre-
senta-se inserida dentro de uma abordagem ampla sobre violência, situando-
se ao lado da violência juvenil e escola como situações que permeiam o coti-
diano dos jovens de Escolas Públicas. A temática da violência procura abordar
que a violência não está associada à criminalidade e a ausência de meio de so-
brevivência, ela possui diversas manifestações como violência física, simbólica
e psicológica. Nessa situação de aprendizagem espera-se que o aluno aprenda
as habilidades de:

Compreender criticamente a problemática da violência no contex-


to brasileiro; reconhecer a existência de diferentes formas de vio-
lência: simbólica, física e psicológica; identificar e compreender de
forma crítica como a violência doméstica, a violência; sexual e a
violência na escola são exercidas em suas diversas formas (simbóli-
ca, física e psicológica). (São Paulo, 2014, p. 57)

Retomando o conteúdo nessa proposta de aprendizagem, o gênero aparece


como um conceito se associa a mulher, pois as violências doméstica e sexu-
al estão associadas somente na violência contra a mulher (biologicamente), o

147
que negligencia outras formas de agressão ligadas ao imaginário do feminino,
como a violência contra homossexuais e aos transgêneros que não aparecem
contemplada em momento algum ao longo das propostas de aprendizagem.
Podemos notar que a masculinidade é pensada como um elemento em si, iden-
titário do qual derivou o feminino como inferiorizado e complementar a ideia
dominante.
Há que se notar também que os temas diferença de gênero, violência de
doméstica, violência sexual encontram-se como assuntos finais do conteúdo a
serem trabalhados com os alunos, o que inúmeras vezes ocasiona o abandono
desses conteúdos em virtude da diminuição substantiva dos alunos pela pro-
ximidade do recesso escolar.
No 3º ano de Ensino Médio, a situação de aprendizagem ganha contornos
políticos, pois versa sobre a participação política no interior dos movimentos
sociais e a correção a situações desiguais dentro do processo democrático. No
volume 1, há a discussão sobre os movimentos feminista e LGBT. A proposta
dessa situação de aprendizagem aparece como uma das mais completas ex-
pressões sobre gênero ao longo dos Cadernos de Sociologia, contudo esbarra
na questão do tempo como um elemento restritivo, visto que não permite que
se amplie a temática, retirando-a do campo da superficialidade e possibilitan-
do as pontes com os temas anteriores. O movimento LGBT é enunciado como
um movimento contemporâneo, sem ao menos ser nomeado nas competências
a serem desenvolvidas pelo aluno de Ensino Médio, de modo contínuo a ques-
tão da sexualidade também é elemento oculto durante todo o conteúdo pro-
gramático de Sociologia. A ausência de problematização da sexualidade como
um elemento de diferenciação e desigualdade ou mesmo como um gatilho de
violência contra sexualidades dissidentes mostra-nos que o engendramento da
matriz heterossexual como algo “naturalizado” e que não se apresenta como
conteúdo de reflexão no ensino médio.
A análise dos conceitos de gênero no material didático em Sociologia ofe-
recido pela Rede Estadual de São Paulo cria-nos um sentimento ambíguo, pois
traz uma sensação positiva por ofertar uma discussão sistemática de gênero
como um elemento de sensibilização do adolescente para as questões contem-
porâneas de seu tempo, contudo mostra-se ainda limitada ao fundamentar a
construção de gênero como um elemento de estabilização da lógica hetero-
normativa que implica em silenciar e apagar outras formas de identidade de
gênero e ocultar completamente a questão da sexualidade como se estivesse
implícito que a orientação do desejo fosse algo marcadamente “natural”.

148
O movimento LGBT é enunciado como um movimento contemporâneo,
sem ao menos ser nomeado nas competências a serem desenvolvidas pelo alu-
no de Ensino Médio, de modo contínuo a questão da sexualidade também é
elemento oculto durante todo o conteúdo programático de Sociologia. A au-
sência de problematização da sexualidade como um elemento de diferenciação
e desigualdade ou mesmo como um gatilho de violência contra sexualidades
dissidentes mostra-nos que o engendramento da matriz heterossexual como
algo “naturalizado” e que não se apresenta como conteúdo de reflexão no en-
sino médio.
A análise dos conceitos de gênero no material didático em Sociologia ofe-
recido pela Rede Estadual de São Paulo cria-nos um sentimento ambíguo, pois
traz uma sensação positiva por ofertar uma discussão sistemática de gênero
como um elemento de sensibilização do adolescente para as questões contem-
porâneas de seu tempo, contudo mostra-se ainda limitada ao fundamentar a
construção de gênero como um elemento de estabilização da lógica hetero-
normativa que implica em silenciar e apagar outras formas de identidade de
gênero e ocultar completamente a questão da sexualidade como se estivesse
implícito que a orientação do desejo fosse algo marcadamente “natural”.
Além de problematizar a forma como o material cria lacunas e silêncios
frente a temas como a complexidade da diversidade de gênero, então podemos
pensar as fragilidades e receios que também perpassam a prática docente. Ao
se reduzir o conceito de gênero a oposição ao sexo, engessa-se a possibilidade
de compreensão alargada.
Há que se notar também que os temas diferença de gênero, violência de
doméstica, violência sexual encontram-se como assuntos finais do conteúdo a
serem trabalhados com os alunos, o que inúmeras vezes ocasiona o abandono
desses conteúdos em virtude da diminuição substantiva dos alunos pela pro-
ximidade do recesso escolar.
O fracionamento dos temas ao longo dos três anos também desfavorece
um aprofundamento da temática, pois não há tempo hábil para se retomar
conceitualmente, problematizar e trabalhar as questões políticas em um espa-
ço curto de duas aulas semanais na disciplina de Sociologia.
Dessa forma, podemos pensar que o currículo escolar comunica as in-
tenções de quem o ratifica, desse modo pensar sobre a forma nebulosa como
gênero e sexualidade são apresentados nos aproxima de que há uma forma
hegemônica de conduzir as relações no interior da escola, que ocorre quan-
do uma dessas significações se impõe, apresentando-se como única legítima,

149
induzindo os indivíduos a assimilarem-na como condição necessária para sa-
tisfazer as exigências da sociedade. A inculcação e a consequente introjeção
dessas significações são colocadas como requisitos necessários para a ocupa-
ção dos postos de comando da sociedade. Àqueles que não introjetam tais sig-
nificações, resta aceitar as condições que lhes são dadas.
Assim problematiza Miskolci (2014, p. 36):

A escola desconstrutiva precisa desfazer esses mecanismos, histo-


riando a construção e explicitando o poder que subjaz à tentativa
de controle dos sentidos. Como o poder é inerradicável e sempre
haverá novos fechamentos, dos quais precisamos para nos enten-
der, trata-se de uma tarefa que nunca terá fim.

Quando as disciplinas não dialogam entre si, o conhecimento tende a se


tornar um amontoado de informações que não se conectam e que aparen-
temente estão falando de assuntos completamente distintos uns dos outros,
como se entre eles não houvesse qualquer convergência possível. Perdem-se
assim as noções de complementaridade, perspectiva e de estabelecimento de
conexões entre problemas e fenômenos. Eles costumam não manter uma co-
nexão com o universo existencial dos estudantes. Dessa forma, a escola acaba
se afastando da vida presente dos alunos, de seus problemas vividos no mo-
mento, de suas necessidades atuais. Isso faz que os estudantes não tenham
motivação para estudar os conteúdos propostos pela escola.
Um dos principais temas abordado no ensino escolar é a domesticação da
diferença. De acordo com Miskolci (2014, p. 35),

[...] a diferença é uma característica própria da cultura, é aquilo


que de novo aparece na criação, que difere do já existente. Se não
a percebemos, é devido aos mecanismos de fixação de sentido que
tentam conformar o que é criado ao que já existia, domesticar a
diferença como diversidade.

O currículo escolar precisa ser um campo de negociação de sentidos, no


qual a diferença possa emergir e não ser tratada como algo estático e previsível.
Adotar uma postura desconstrutiva no ensino escolar implica desvelar as rela-
ções de poder que se estabelecem nos discursos oficiais, questionando práticas
que hierarquizam os sujeitos, legitimando certas posições e tornando outras

150
impensáveis. Ao expor as marcas de diferença nas trajetórias escolares viabi-
lizamos a construção de outras subjetividades que são desqualificadas como
possíveis no interior da escola.
Somando-se a isso, torna-se necessário pensar a formação docente que
dialogará com os educandos sobre gênero, identidades de gênero e expressão.
No interior das Universidades, os estudantes de ensino superior encontram a
disciplina de gênero, geralmente, como um componente optativo dentro de
sua grade curricular, quando ofertado por determinado professor engajado
na temática. Suponhamos que o discente não tenha aflorado a sua percep-
ção sobre as relações sociais de gênero. Os projetos de formação continuada
ofertados pelo MEC como o GDE Gênero e Diversidade na Escola esbarram
muitas vezes na ausência de uma formação inicial, impedindo a continuação
em forma de aprofundamento do tema, visto que necessitam introduzir esses
elementos, onde há uma lacuna. Há que se perguntar também o alcance desses
cursos de capacitação e complementação. Não seriam professores já engajados
no tema, em sua maioria que buscam essa formação? Nesse sentido, o docente
discute o conceito de gênero, em parte, pelo estudo do tema conforme dispõe
o material e em partes a partir da sua experiência subjetiva, vivencias e formas
de sentir sobre o tema.
A proposta de Louro (2015) sobre queerizar o currículo escolar é bastante
provocativa, mas também grandiosa, pois a estrutura curricular está assenta-
da sobre padrões prescritivos normatizadores, embora os conteúdos escritos
promovam uma falsa estabilidade democrática, as entrelinhas dos significados
reforçam práticas de silenciamentos. Lutar por uma escola desconstrutiva tor-
na-se um projeto ousado, mas muito frutífero se implantado com sucesso, pois
permitiria uma multiplicidade de existências, que não se sentiriam um “erro”
por compartilharem aquele espaço e se tornaria de fato político e resistente.

Referências

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Feministas. Florianópolis: CFH/CCE/UFSC, v. 9, n.2, p. 575-585, 2001.

BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


Ed. Civilização Brasileira, 2003.

151
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Lúcia Oliveira. São Paulo: Editora 34, 1995.

LOURO, G. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica,


2001.

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Horizonte: Autêntica, 2015. 2ed.

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VIANNA, C. Gênero, sexualidade e políticas públicas de educação: um diálogo com a


produção acadêmica. Pro-Posições [online]. 2012, vol.23, n.2 [cited 2017-03-26], pp.127-
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S0103-73072012000200009. Acessado em 10/03/2017.

VIANNA, C.; UNBEHAUM, S. Gênero na educação básica: quem se importa? Uma


análise de documentos de políticas públicas no Brasil. Educação e Sociedade, Campinas,
v. 28, n. 95, p. 407-428, maio/ago. 2006.

152
III – Comunicação:
novas imagens e nova cultura
COMUNICAÇÃO PÚBLICA, CIDADANIA
E DEFICIÊNCIA: IMAGENS E
REPRESENTAÇÕES EM REDES SOCIAIS
Danilo Rothberg
Vitória Alves de Sá
Paola Ramos Afonso

Introdução

Segundo dados de 2010, quase um quarto da população brasileira possui


algum tipo de deficiência, seja ela visual, auditiva, motora ou mental (IBGE,
2010). O número contribui para o crescimento das pressões da sociedade pela
expansão das políticas públicas dirigidas ao atendimento dos direitos do in-
divíduo com deficiência. No entanto, existem obstáculos para a consolidação
de tais políticas, como recursos subdimensionados e resistência política, pos-
sivelmente associados ao difícil reconhecimento, ainda em curso no Brasil,
da legitimidade de direitos. A comunicação pública realizada pelos governos,
incluindo peças publicitárias e vídeos disseminados em mídias sociais, é um
dos fatores que podem contribuir para a consecução dos objetivos daquelas
políticas ou prejudicar sua consolidação.
As representações simbólicas constituídas e veiculadas por meio da comu-
nicação pública apresentam elementos que precisam ser conhecidos e analisa-
dos de maneira sistêmica. Afinal, códigos e ideias que provêm da publicidade e
influenciam a experiência cotidiana não são neutros, e sim escolhas afirmadas
historicamente.
Dessa forma, com a escolha de palavras, imagens, símbolos e percursos
narrativos, o comunicador constrói apropriações de sentido que tornam de-
terminadas perspectivas mais salientes, em detrimento de outras, que podem
permanecer invisíveis.

154
Este capítulo descreve os resultados de dois estudos inter-relacionados
que caracterizaram as representações simbólicas presentes em peças publici-
tárias produzidas e disseminadas por governos que têm, como objeto, direitos
das pessoas com deficiência. O corpus de análise englobou dois conjuntos:
no primeiro, estão 102 peças publicitárias geradas nas três esferas de gover-
no (municipal, estadual e federal) e nos âmbitos dos três Poderes (Executivo,
Legislativo e Judiciário) e disseminadas por meio do Facebook. No segundo,
estão dez vídeos disponíveis no YouTube, cinco dos quais foram produzidos
pela Secretaria Especial dos Direitos da Pessoa com Deficiência do governo
federal para a divulgação do Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com
Deficiência – Plano Viver sem Limite, e os demais cinco pela TV Câmara, da
Câmara dos Deputados.
De forma geral, a amostra analisada pode ter favorecido a percepção da
deficiência como responsabilidade da sociedade, mas é necessário o aprofun-
damento de informações sobre políticas e acesso a direitos.
O percurso do texto se divide em quatro etapas. Em primeiro lugar, teo-
rizações fundamentais são revisadas. Em segundo lugar, a metodologia é de-
lineada. Em terceiro lugar, os resultados são apresentados e comentados. Por
último, considerações sintetizam a contribuição do capítulo à compreensão da
dinâmica da comunicação pública na área.

Teorizações fundamentais

A trajetória de reconhecimento social de direitos da pessoa com defici-


ência, com implicações práticas para a construção de políticas públicas nos
países pertencentes ao sistema da Organização das Nações Unidas, tem pou-
co mais de 40 anos. Em 1976, a Organização Mundial da Saúde publicou o
primeiro documento que buscava sistematicamente mapear o cenário a ser
enfrentado. Seu título, “Classificação internacional das deficiências, incapaci-
dades e desvantagens”, indicava como a deficiência era considerada em sua su-
posta centralidade como geradora de fatores inexoráveis, aos quais as pessoas
afetadas deveriam se adaptar (Farias; Buchalla, 2005).
Em 2001, a publicação de um novo documento da OMS substituiu aque-
le de 1976 e sinalizou significativa transformação conceitual. Com o título
“Classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde”, ele
alçou ao primeiro plano a responsabilidade da sociedade pela adaptação do

155
ambiente para proporcionar funcionalidade e assim, reduzir ao máximo pos-
sível as limitações impostas por obstáculos das mais diversas ordens, que se
tornavam propriamente o objeto das políticas da área. Colocavam-se com
mais nitidez não só as barreiras físicas concebidas por práticas sociais então
absolutamente indiferentes ao reconhecimento de direitos, mas também os
comportamentos que as sustentavam, sem que a sociedade e o poder público
as assumissem.
As definições apresentadas pela classificação lançada em 2001 introduzi-
ram uma forma diferenciada de pensar e trabalhar com deficiência e incapa-
cidade, que deixam de ser vistas apenas como consequências das condições de
saúde, e passam a ser consideradas como determinadas pelo contexto físico,
social, do ambiente, por diferenças culturais e atitudes em relação à deficiên-
cia. Desse modo, a classificação abandona em parte a função de servir como
instrumento para medir o estado funcional das pessoas, para adquirir o cará-
ter de critério de avaliação das condições de vida, a fim de fornecer subsídios
às políticas de inclusão (Farias; Buchalla, 2005). Além disso, a nova classifica-
ção contribui para o avanço em direção a uma perspectiva contemporânea so-
bre a questão, segundo a qual a deficiência não pode ser considerada como um
problema de um indivíduo. As limitações vividas por uma pessoa são efeito de
uma sociedade não adaptada às suas particularidades. Lidar com tais limita-
ções passa a ser responsabilidade do poder público e torna-se uma questão po-
lítica aberta à resolução por políticas públicas formuladas democraticamente
(Diniz; Barbosa; Santos, 2009).
No Brasil, a Constituição de 1988 e a lei federal 7.853/1989 efetivaram a
obrigação do poder público de tomar medidas para que as pessoas com defici-
ência tenham direitos de educação, saúde, trabalho e previdência social aten-
didos, envolvendo bem estar pessoal, social e econômico. O decreto 7.612/2011
criou o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que inclui,
entre suas diretrizes, assegurar que os equipamentos públicos de educação se-
jam acessíveis e ampliar a participação no mercado de trabalho, as políticas de
assistência social e a qualificação dos serviços de habilitação e reabilitação na
rede pública. A lei 13.146/2015 instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência,
que com 127 artigos passa a abranger esferas como direitos civis e acesso à
informação.
Como a comunicação pública praticada pelos governos brasileiros nas três
instâncias de gestão poderia erguer-se sobre este contexto legal e histórico de
constituição de direitos?

156
A comunicação pública é caracterizada como um processo comunicacio-
nal instaurado em esfera pública que deve englobar Estado, governo e socie-
dade, além de prover um espaço para debate, negociação e tomada de decisões
relativas à vida pública do país. Essa forma de comunicação, enquanto susten-
tada por recursos públicos, não corresponde à defesa de articulações políticas
em disputas pelo poder e nos debates partidários e eleitorais (Matos, 2009a;
2009b; 2011; Haswani, 2011). Também não deve ser confundida com comuni-
cação governamental. Esta é regida por “normas, princípios e rotinas da comu-
nicação social do governo, explicitadas ou não em suportes legais que visem
regulamentar as comunicações internas e externas do serviço público”; já a co-
municação pública envolve “o processo de interlocução que dá origem a uma
esfera pública de diálogo e debate entre Estado, governo e sociedade, na qual
temas de interesses plurais são discutidos e negociados” (Matos, 2009a, p.104).
A comunicação pública assume como responsabilidade do poder público
a organização do fluxo informativo e comunicativo para sustentar a cidadania
informada, e não se confunde com marketing político; ao invés, integra es-
tratégias de construção da agenda pública, impulsionando a sociedade para o
engajamento nas ações promovidas nos campos político, social e econômico,
de forma a provocar o debate público (Brandão, 2009; Monteiro, 2009).
O centro da comunicação pública é a informação de interesse geral para a
construção de cidadania, e não a divulgação institucional. Desse modo, a co-
municação desenvolvida pelos governos em suas três esferas de gestão, para ser
considerada pública, deve ter como finalidade a ativação do sentimento cívico
por meio da disseminação de informações sobre políticas públicas que faci-
litem a criação e a circulação de capital social, qualidade que gera e é gerada
por relações sociais de cooperação e articulação para a defesa do bem coletivo
(Baquero; Baquero, 2011).
Comunicação pública é um recurso de gestão a ser empregado pelos go-
vernos em busca do reconhecimento dos diversos atores sociais, por meio de
estratégias para a obtenção de visibilidade pública e prestação de contas de
projetos políticos em formatos de divulgação informativos e publicitários: “a
configuração contemporânea da comunicação pública de Estado (...) possui
o potencial para a propaganda ir além do institucional e sim ser associada à
informação” (Weber, 2011, p. 105).
Torna-se necessário a uma gestão transparente qualificar meios, canais e
recursos que viabilizem a comunicação de interesse público. Uma comunica-
ção pública de qualidade implica diversificar e coordenar ferramentas, adaptar

157
mensagens aos interesses dos diversos públicos, estimular a interlocução e va-
lorizar os aspectos didáticos (Duarte, 2011), incluindo estratégias de visibili-
dade, busca de credibilidade e propaganda (Weber, 2011). A visibilidade opera
por vias que incluem a criação de um acervo de informações para facilitar a
geração de memória sobre programas e projetos políticos; a credibilidade é
buscada por esclarecimentos que sustentem a legitimação de políticas públi-
cas; a propaganda deve ser usada como recurso permanente com a “ininter-
rupta difusão de dados, informações, programas, ações, discursos e eventos”
(Weber, 2011, p. 114).
Proporcionar transparência é dever dos Estados democráticos, o que exige
uma rotina de publicização de políticas públicas, seus antecedentes, resulta-
dos, critérios de eficiência, eficácia e efetividade etc. A publicidade é um com-
promisso ético que todo governo deve ter (Silva, 2009). Um governo empenha-
do na dinamização de sua comunicação pública é um governo que reconhece
o direito à informação.
A Constituição brasileira assegura o direito à informação. Segundo o ar-
tigo 5°, inciso XXII: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos infor-
mações de seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral que serão
prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade (...)”.
A lei federal 12.527/2011 regulamenta o direito de receber informações de
órgãos públicos. O decreto 7.724/2012 define os meios a serem utilizados para
garantir esse direito e classifica as informações em passíveis ou não de serem
divulgadas em relação a aspectos de segredo e sigilo, além de regular o campo
da transparência ativa, que assegura a disponibilização de informações públi-
cas independentemente da solicitação. Torna-se obrigatória a disponibilização
das informações referentes a programas, projetos, ações, obras e atividades,
metas, indicadores de resultado e impacto.
Como a responsabilidade democrática de publicização de políticas públi-
cas que se encontra inscrita entre os princípios normativos da comunicação
pública tem gerado efeitos práticos quando seu objeto são os direitos da pessoa
com deficiência? Uma forma de buscar respostas a esta questão recorre ao es-
tudo dos signos, ciência que tem como objeto todos os tipos de linguagens, não
somente aquelas circunscritas ao verbal, e os modos pelos quais se constitui
qualquer fenômeno de produção de sentido (Santaella, 2005).
Os estudos do signo são importantes quando o objetivo é conhecer os
aspectos da imagem na publicidade e as maneiras pelas quais ela é capaz de
criar, ativar, recircular e modificar significados e interpretações, sempre em

158
operações de negociação de sentido com o repertório e universo cultural dos
diferentes públicos (Joly, 2003). Um signo só é signo se “exprimir ideias e se
provocar na mente daqueles que o percebem uma atitude interpretativa” (Joly,
2003, p. 29).
Nas ciências humanas, é comum estudar imagens de alguns grupos em
específico. Um exemplo são as campanhas eleitorais, que buscam provocar
associações mentais sistemáticas para caracterizar candidatos e campanhas,
atribuindo a eles qualidades determinadas (Joly, 2003). As complexas associa-
ções daí construídas são estudadas como representações, elemento importante
do processo de compartilhamento de significados, que envolve o uso de lin-
guagens e imagens. Construir, projetar e mobilizar representações consiste em
empregar linguagens em busca de comunicar algo sobre o mundo de forma
que se pretenda significativa para outros (Hall, 1997). Comunicar-se requer
o compartilhamento de um mesmo sistema de representação. Cada indivíduo
não interpreta o mundo de maneira unicamente individual, mas sim precisa
de um sistema compartilhado em alguma medida para poder conferir senti-
do à experiência cotidiana de forma similar àqueles com quem convive (Hall,
1997).
No estudo dos signos, o termo denotação é constantemente equiparado
com o sentido literal de um signo, que tende a ser reconhecido facilmente. Já o
termo conotação é empregado para referir aos sentidos menos fixos, mais con-
vencionais e mutáveis (Hall, 2011). Assim, analisar uma imagem exige decifrar
as significações que pareçam ser naturais. “Naturalidade que, paradoxalmen-
te, é alvo espontâneo da suspeita daqueles que a acham evidente, quando te-
mem ser manipulados pelas imagens” (Joly, 2003, p. 43).
A efetividade da publicidade depende do emprego bem-sucedido de estra-
tégias como o incentivo à transformação pessoal em direção à adoção de com-
portamentos então sugeridos como ideais. As imagens procuram associar seu
objeto, seja ele uma atitude de consumo, crença ou pensamento, com atributos
socialmente desejáveis, recobertos por vantagens simbólicas que figuram dis-
poníveis somente aos convertidos (Kellner, 2001).

Metodologia

O corpus de análise englobou dois conjuntos, a saber:

159
1) Um total de 102 peças publicitárias geradas nas três esferas de gover-
no (municipal, estadual e federal) e nos âmbitos dos três Poderes (Executivo,
Legislativo e Judiciário), coletadas de agosto de 2015 a agosto de 2016 nas pági-
nas de 21 gestores e órgãos públicos na rede social Facebook:
• Prefeitura de Fortaleza;
• Secretaria Especial dos Direitos da Pessoa com Deficiência;
• Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do
Idoso de Caraguatatuba;
• Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência do
Amazonas;
• Secretaria Municipal de Assistência Social de Castanhal;
• Secretaria Municipal de Assistência Social de Florianópolis;
• Secretaria do Trabalho e do Desenvolvimento Social do Rio Grande
do Sul;
• Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania do Rio Grande
do Sul;
• Secretaria de Direitos Humanos de Pernambuco;
• Superintendência Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência;
• Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência Mobilidade Reduzida
de São Carlos;
• Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e
Cidadania de Santa Fé do Sul;
• Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Mobilidade
Reduzida de Campinas;
• Prefeitura de Uberlândia;
• Senado Federal;
• Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro;
• Ministério do Trabalho e Emprego;
• Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com
Deficiência;
• Ministério do Esporte;
• Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência do
Estado de São Paulo;
• Tribunal Superior Eleitoral de São Paulo.

Para propor formas de análise de peças publicitárias, Joly (2003) baseia-


se em Barthes (1990) e indica o estudo de seus componentes plásticos (cores,

160
formas, composição, textura, suporte, dimensões, enquadramento, composi-
ção e iluminação), icônicos (processos de conotação dependentes do repertó-
rio dos diferentes públicos) e linguísticos (escolha de palavras e expressões,
sintaxes etc).
A identificação de significados nas peças do primeiro conjunto do corpus
foi obtida por meio da análise dos componentes plásticos, icônicos e linguísti-
cos das peças, procedimento que foi conduzido de maneira a permitir inferên-
cias sobre as representações simbólicas veiculadas.
2) Dez vídeos disponíveis no YouTube, cinco dos quais foram produzi-
dos pela Secretaria Especial dos Direitos da Pessoa com Deficiência do gover-
no federal para a divulgação do Plano Nacional do Direito das Pessoas com
Deficiência – Plano Viver sem Limite, com duração entre 19’’ e 6’37’’, e os
demais cinco pela TV Câmara, da Câmara dos Deputados, com duração entre
51’’ e 1’10’’, em uma série denominada “Convivendo com as diferenças”.
As categorias de análise dos vídeos foram construídas com base em
Barthes (1990), a saber: a) Enigma: identifica a narrativa desenvolvida, assun-
to principal e aspectos abordados, associando-os aos objetivos aparentes da
mensagem e ao contexto legal relacionado; b) Ação: reconstitui todo o vídeo
com descrição detalhada de seu percurso a fim de permitir a visualização de
uma rede de conexões e sentidos; c) Sêmico: busca analisar cada elemento do
vídeo e trazer à tona seus níveis de significação mais profundos, estudando as
conotações atribuídas a cada signo; d) Simbólico: enfoca a combinação dos sig-
nificados depreendidos e busca a compreensão geral do vídeo e a ideia abstrata
que dali emerge; e) Cultural: busca compreender como o contexto histórico
e cultural da recepção pode influenciar o processo de decifrar o significado
geral do vídeo.
Os órgãos e setores públicos estudados foram incluídos no corpus de aná-
lise porque foram identificados, por meio de busca de palavras-chave nas redes
sociais, como fontes de publicização de temas pertinentes aos objetivos da pes-
quisa. Trata-se, assim, de uma amostra não probabilística, composta por meio
de julgamento intencional do pesquisador.
No Apêndice, estão listados os endereços online das 21 páginas do
Facebook de onde foram extraídas as peças do primeiro conjunto do corpus de
análise e dos dez vídeos analisados no segundo conjunto do corpus.

161
Resultados e discussão

Os resultados provenientes da análise de 102 peças publicitárias veicula-


das nas páginas oficiais de órgãos de governo no Facebook foram agrupados
em torno de seis temáticas predominantes nas peças estudadas, o que permitiu
a delimitação de seis categorias correspondentes, a saber:
1. A categoria ‘Divulgação de Fóruns, Conferências e Semanas Educativas’
refere-se à divulgação de eventos que têm o objetivo de reunir o público para
discutir políticas públicas que afetam o cotidiano dos indivíduos com defici-
ência. Em geral, as peças nesta categoria são caracterizadas por escassez de
informações, uso de termos que dificultam a transmissão de mensagens para
o receptor e uso de imagens simbólicas que remetem à ideia de que o indivíduo
com deficiência está sendo amparado por um governo benevolente.
2. A categoria ‘Comportamentos Inclusivos’ abrange comportamentos que
supostamente incluem a pessoa com deficiência na sociedade. Nessa categoria,
a representação do indivíduo com deficiência foi construída predominante-
mente por meio de fotografias e ilustrações que apresentaram a pessoa com
deficiência como diferente, mas que deve ser incluída na sociedade por meio
de atitudes que a façam se sentir respeitada. As mensagens que caracterizam
os anúncios são pequenas frases que indicam como em determinadas situa-
ções a pessoa com deficiência pode ser incluída. Com frequência, no entanto,
as informações mostraram-se genéricas e imprecisas.
3. A categoria ‘Mercado de Trabalho’ inclui peças sobre a possibilidade de
empregadores contratarem pessoas com deficiência. A principal representação
pictórica do profissional com deficiência foi construída por meio de fotogra-
fias e ilustrações que indicam que, mesmo com barreiras físicas, o indivíduo
com deficiência pode desempenhar funções semelhantes às das pessoas sem
deficiência. Mas foram raras as peças que apresentaram informações aprofun-
dadas sobre o mercado de trabalho para a pessoa com deficiência.
4. A categoria ‘Datas Comemorativas’ contém as peças que transmitem a
imagem de que os indivíduos com deficiência têm tido seus direitos assegura-
dos graças à atuação do órgão de governo anunciante. As peculiaridades dos
anúncios que se enquadram nessa categoria são as representações pictóricas
de indivíduos com deficiência felizes e satisfeitos, graças alegadamente à ação
do poder público. No entanto, falta aprofundamento das informações sobre

162
as políticas públicas que garantem esses benefícios e sobre a historicidade das
datas.
5. A categoria ‘Esportes’ apresenta as ações desenvolvidas pelos governos
em busca de assegurar condições para a prática esportiva pela pessoa com de-
ficiência. Nas peças, a principal forma de representação pictórica foi constru-
ída por meio de fotografias que indicam que, apesar das barreiras físicas, a
pessoa com deficiência tem a possibilidade de praticar esportes. E o setor de
governo anunciante, por reconhecer isso, promove programas para que esse
direito seja assegurado. No entanto, nas peças nota-se a escassez de informa-
ção sobre as políticas públicas que possibilitam o acesso ao esporte pela pessoa
com deficiência.
6. A categoria ‘Acesso aos Direitos Básicos’ possui peças relacionadas com
programas e ações de acesso a direitos em dimensões como educação (cursos
profissionalizantes e adaptação de escolas); vida em sociedade (conselhos de-
liberativos, comunicação em libras, acessibilidade em locais públicos) e mo-
bilidade (rampas, elevadores e gratuidade em tarifas no transporte público).
De forma majoritária, as peças se caracterizam pela escassez de informações,
o que pode prejudicar o acesso a direitos básicos pela pessoa com deficiência.
Diante das definições de comunicação pública na literatura especializada,
pode-se afirmar que, de acordo com os resultados obtidos nas análises das
peças publicitárias veiculadas por governos no Facebook, identifica-se a apli-
cação do conceito de comunicação pública quando o poder público informa
sobre a realização de uma conferência de políticas, o direito da pessoa com
deficiência em trabalhar, estudar, de ter um sistema de saúde adequado a suas
necessidades etc. No entanto, nas peças analisadas, é predominante a escassez
de informações relativas à prestação de contas para a sociedade e o incentivo
para que os indivíduos participem da gestão das políticas da área.
De acordo com as análises, é possível sugerir que a contribuição das re-
presentações simbólicas presentes nas peças analisadas pode ser ampliada
em busca da consolidação das políticas da área. Os componentes plásticos,
icônicos e linguísticos presentes nas peças sustentam a representação de um
indivíduo que, apesar de barreiras físicas, pode ser incluído na sociedade gra-
ças às alegadas ações de setores de governo anunciantes. Mas há espaço para
aprofundamento das informações sobre as políticas públicas que possibilitam
o acesso a direitos.
O aperfeiçoamento das peças publicitárias poderia ser obtido por meio de
processos que incluiriam campanhas que apresentem os direitos do Estatuto

163
da Pessoa com Deficiência (lei federal 13.146/2015); que incentivem o cidadão
a participar das discussões políticas realizadas por meio de conferências; que
apresentem o histórico de luta do indivíduo com deficiência por meio da di-
vulgação de datas comemorativas e apresentem os benefícios da prática espor-
tiva na vida da pessoa com deficiência.
Já os resultados provenientes da análise dos dez vídeos disponíveis no
YouTube produzidos por Secretaria Especial dos Direitos da Pessoa com
Deficiência do governo federal e TV Câmara indicam a presença de dados que
fazem jus ao caráter de comunicação pública das produções, buscando desve-
lar tanto os direitos que envolvem aspectos legais em relação às pessoas com
deficiência, quanto ações simples do dia a dia, por muitas vezes desconhecidas,
e que podem trazer conforto, interação social e qualidade de vida.
Os vídeos são direcionados às pessoas com deficiência ao divulgarem
mensagens que informam sobre seus direitos e incentivam a sua convivência
plena em sociedade através da luta por acessibilidade e maior inclusão, procu-
rando conceder mais autonomia e poder através do empoderamento obtido
pela informação.
Para o público em geral, os vídeos fornecem variadas informações acerca
de como deve ser o tratamento concedido às pessoas com deficiência e buscam
desconstruir preconceitos.
De forma geral, os vídeos analisados parecem buscar a conscientização
para a construção de uma sociedade mais justa, em que as oportunidades
possam ser concedidas a todos de maneira mais democrática. As informações
sobre direitos, de forma geral, também são direcionadas às pessoas sem defi-
ciência, que devem entender e estar cientes dos aspectos legais a fim de ajudar
quem necessite, respeitar e cumprir as leis. Outro ponto importante que pode
ser encontrado nos vídeos de forma geral é a naturalização da deficiência. As
produções parecem buscar, cada qual de uma maneira específica, tornar a de-
ficiência algo natural dentro do ambiente social, buscando inclusão e fim do
preconceito.
Em geral, nota-se o incentivo ao fim do preconceito em relação às pessoas
com deficiência, representando alteridades como maneiras de se existir em um
corpo. Todos os vídeos analisados indicam que as pessoas com deficiência tem
o direito de conviver harmonicamente no meio social, devendo ser percebidas
como qualquer outro indivíduo capaz de desempenhar todo tipo de atividade,
sem experimentar julgamentos prévios que os classifiquem como incapazes
em decorrência de suas deficiências.

164
No entanto, segundo uma possível interpretação de três dos vídeos anali-
sados, o poder público figura como provedor de direitos e benfeitor social. As
imagens ali exibidas, de pessoas com deficiência usufruindo dos programas
de forma feliz, como se ganhassem um benefício, e a ênfase dada ao gover-
no federal como responsável por aqueles programas, associa-se com a visão
predominantemente disseminada pela mídia que, segundo Silva (2006), situa
os deficientes em uma posição de incapacidade, merecedores de compaixão e
caridade por sua condição.
Além disso, uma característica da série ‘Convivendo com as diferenças’
merece atenção por não atender integralmente aos quesitos de uma comuni-
cação pública democrática: os vídeos, ao apresentarem aspectos legislativos
referentes a deficiências determinadas, não oferecem informações adicionais
que tragam dados sobre a legislação pertinente, os efeitos de sua aplicação ou
como a sociedade pode contribuir para seu cumprimento.
Neste sentido, os resultados indicam que os vídeos se caracterizam, em sua
maioria, por atender aos requisitos de uma comunicação pública democrática,
que traz representações adequadas sobre a deficiência, mas também pela es-
cassez de informação. O direito à informação é questão chave na comunicação
pública, e os vídeos, embora disseminem dados essenciais, não aprofundam
o enfoque sobre os meios de acesso aos direitos das pessoas com deficiência.
A revisão de Diniz, Barbosa e Santos (2009) aponta a perspectiva con-
temporânea de considerar a deficiência não como um problema do indivíduo,
de forma que as limitações de uma pessoa são fruto de uma sociedade não
adaptada às suas particularidades. A deficiência, neste modelo, passa da esfera
particular para a esfera pública, tornando-se responsabilidade do Estado e,
portanto, uma questão política a ser resolvida. Sob esta visão, a deficiência
deixa de ser entendida e tratada como doença, que precise ser corrigida para
que as pessoas com deficiência se adaptem às estruturas sociais construídas
para pessoas sem deficiência.
Com esta visão, mudanças importantes foram operadas (Diniz, Barbosa
e Silva, 2009). Uma delas foi a interdição da crença de que o bem-estar deste
grupo dependeria de intervenções médicas. Além disso, amplia-se o espaço de
discussão sobre o assunto, que passa a fazer parte da vida pública com a sua
nova conceituação. As próprias pessoas com deficiência e a sociedade em geral
têm a possibilidade de entender que não se trata de um prejuízo individual,
mas tem a ver com a conquista de uma sociedade mais justa e acessível para
todos.

165
Neste sentido, entende-se que os vídeos, em sua totalidade, baseando-se
no entendimento da perspectiva contemporânea sobre a questão, suas novas
significações para a deficiência e a ampliação das possibilidades do ambiente
em contribuir para a conquista de espaços mais democráticos, buscaram, por
meio da comunicação pública, conscientizar os diversos públicos. As produ-
ções buscaram superar as limitações inscritas em uma visão que acabava por
incentivar preconceito e discriminação.

Considerações finais

Os estudos descritos neste capítulo caracterizaram as representações sim-


bólicas veiculadas por peças publicitárias disseminadas por meio do Facebook
e vídeos disponíveis no YouTube produzidos por setores de governo que bus-
caram a conscientização sobre direitos das pessoas com deficiência, de modo
a favorecer a consolidação das políticas públicas de atendimento dos direitos
desse público.
A identificação dos significados veiculados nas peças sugere que a comu-
nicação pública desenvolvida por setores de governo no Brasil tem atendido
em parte o conceito de comunicação pública indicado como ideal pela litera-
tura revisada.
De forma geral, a amostra analisada contribuiu para a disseminação de
uma visão contemporânea que favorece a desconstrução de preconceitos e in-
centiva a percepção da deficiência como responsabilidade da sociedade e do
poder público. No entanto, há espaço para aperfeiçoamento, crucialmente por
meio do aprofundamento das informações sobre como as políticas da área efe-
tivamente têm possibilitado o acesso a direitos.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao Observatório da Educação, da Capes


(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério
da Educação), ao qual se vincula o projeto “Acessibilidade no ensino superior:
da análise das políticas públicas educacionais ao desenvolvimento de mídias
instrumentais sobre deficiência e inclusão” (Processo 23038.002628/2013-41,

166
www.acessibilidadeinclusao.com.br/), em que se inserem as pesquisas descri-
tas neste capítulo.

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youtube.com/watch?v=VcvsZkdHAWI; https://www.youtube.com/watch?v=2M38byJjkis;
https://www.youtube.com/watch?v=oO7yhUiMsPQ; https://www.youtube.com/watch?-
v=BDKW3JrkC9E.

Convivendo com as diferenças https://www.youtube.com/watch?v=f63tBCyDMyM; ht-


tps://www.youtube.com/watch?v=k80gx0QLPbw; https://www.youtube.com/watch?-
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tube.com/watch?v=yoYPJ1dUM4w.

170
A ABERTURA DOS JOGOS PARALÍMPICOS
RIO-2016 E A REPRESENTAÇÃO
FOTOGRÁFICA DA ATLETA COM
DEFICIÊNCIA: ALGUMAS REFLEXÕES
Neide Maria Carlos
José Carlos Marques1

Introdução

Durante a cerimônia de abertura dos Jogos Paralímpicos Rio 20162, ocor-


rida em 7 de setembro de 2016 no Estádio do Maracanã, a modelo, atriz e
paratleta americana Amy Purdy apresentou-se numa coreografia na qual inte-
ragia com um braço robótico. A esportista biamputada, praticante de snowbo-
ard, dançou com um robô numa clara alusão à simbiose entre ser humano
e máquina. Em uma cerimônia com duração de cerca de 90 minutos, Amy
realizou uma performance de pouco mais de dois minutos.
Considerando-se que o corpo da mulher atleta é comumente explorado na
sua aparência, procuraremos questionar como as imagens enfatizam o cará-
ter esportivo ou destacam estereótipos construídos sobre o corpo feminino a
partir de determinados padrões de beleza. Da mesma forma, perguntamo-nos

1 Parte deste artigo deriva de pesquisa desenvolvida pelo autor e intitulada “Entre a vitimização
e a superação: os Jogos Paralímpicos Rio 2016 e a representação de atletas brasileiros na mídia
impressa nacional”, financiada por meio de processo nº 2016/08207-1 pela Fundação de Am-
paro à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
2 Entidades esportivas brasileiras, a partir de orientação do Comitê Paralímpico Internacional,
passaram a adotar o termo “Paralímpico” desde novembro de 2011. Outros órgãos governa-
mentais optaram por manter o uso do termo “Paraolímpico”. Neste artigo, apesar de consi-
derarmos o termo “Paraolímpico” mais afeito à língua portuguesa, daremos preferência ao
emprego de “Paralímpico”, uma vez que se trata do nome oficial do evento e seu uso tem sido
difundido de forma majoritária pelos meios de comunicação nacionais.

171
como questões relacionadas a esses clichês são reafirmados ou descontruídos
através das imagens dessas atletas que em sua maioria não se enquadram em
tais padrões.
Os Jogos Paralímpicos, destinados à competição de pessoas com algum
tipo de deficiência, trazem a participação de atletas que por diferentes contin-
gências têm sua configuração corpórea modificada. Corpos que se adaptaram
a diferentes exigências de realidades que lhes são impostas e às quais se ajus-
tam para diferentes exigências de práticas esportivas. No caso dos jogos do
Rio, foram 22 modalidades disputadas entre os dias 7 e 17 de setembro de 2016.
O Guia para a mídia: Como cobrir os Jogos Paralímpicos Rio 2016 (PAPPOUS
& SOUZA, 2016, p. 2) alerta em sua introdução para o risco de “uma cobertura
estereotipada e irrealista dos Jogos e atletas Paralímpicos”. Assim, propomos
neste artigo analisar como a linguagem imagética pode contribuir ou influen-
ciar a construção desses discursos e, mais objetivamente, como é construída a
imagem da mulher na prática do esporte paralímpico.
Nossa análise irá deter-se sobre a imagem da performance de Amy Purdy,
retratada na primeira página do jornal O Globo de 8 de setembro de 2016
(Figura 1), destacando-se a imagem da atleta fazendo par com o braço robótico.

Figura 1: Detalhe de capa do jornal O Globo, edição de 8 de setembro de 2016.

172
A partir de conceitos sobre fotojornalismo e questões de gênero, pretende-
mos discutir a imagem construída pela imprensa em torno das atletas femini-
nas com deficiência, considerando-se essa exploração da aparência do corpo
da mulher atleta. Ainda que o Comitê Paralímpico Internacional, responsável
pela organização dos Jogos Paralímpicos, procure sensibilizar a imprensa da
importância do evento, sua cobertura é sensivelmente menor nos meios de
comunicação em relação ao espaço disponibilizado aos Jogos Olímpicos.
Em Discurso das Mídias (2006), Patrick Charaudeau busca discutir va-
riadas nuances existentes entre acontecimento e notícia, e aí sua relevância
para discutirmos a influência dos discursos nas questões de gênero e as estra-
tégias de encenação nos discursos da informação. Para o linguista francês, a
espetacularização sobre o mundo que as mídias nos propõem pode levar a um
discurso que pouco contribui no processo de informar, no qual o público pode
ser corresponsável nesse processo. Charaudeau versa também sobre a respon-
sabilidade das mídias na produção de sentido sobre os acontecimentos sociais,
uma vez que se trata “da linguagem enquanto ato de discurso, que aponta para
a maneira pela qual se organiza a circulação da fala numa comunidade social
ao produzir sentido” (2006, p.33).
A Revista Estudos Femininos em sua edição de janeiro de 2002, traz a
tradução de uma entrevista com a filósofa feminista Judith Butler dada ao
Departamento de Estudos da Mulher, do Instituto de Artes da Universidade
de Utrecht, Países Baixos, em maio de1996. Butler afirma que, em sua opinião,
discursos habitam corpos. Para ela, os discursos “se acomodam em corpos;
os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue”,
conforme Prins e Meijer (2002, p. 163). Estar no mundo implicaria, portanto,
estar carregado de discurso.
Os estudos de gênero se inserem em um cenário em que papeis são impos-
tos a homens e mulheres produzidos cultural e historicamente e sobre o reco-
nhecimento de que esse não é um processo natural, mas de construção onde
se realizam as experiências sociais. A historiadora Maria Izilda Matos (2007)
destaca que a construção de perfis de comportamento masculino e feminino
define-se social, cultural e historicamente inseridos em tempo, espaço e cultu-
ra determinados. Para ela, devem-se evitar as oposições binárias naturalizadas
para demonstrar que, dentre alguns de seus aspectos, “as referências culturais
são sexualmente produzidas, através de símbolos, jogos de significação, cruza-
mentos de conceitos e relações de poder” (2007, p. 283). Além disso, a

173
... expansão e o enriquecimento dos temas de investigação propos-
tos pelos estudos de gênero foram acompanhados por renovações
dos marcos temáticos e metodológicos, enfoques e modos de aná-
lise inovadores que, além de questionar os paradigmas históricos
tradicionais, vêm colocando novas questões, descobrindo novas
fontes, enfim, contribuindo para redefinir e ampliar noções tradi-
cionais do significado histórico. (MATOS, 2007, p. 284)

Dessa forma, as questões de gênero se constituem em uma relevante dimen-


são da reflexão científica sobre nossos papéis em sociedade. O esporte é uma
vertente cultural que fala muito sobre anseios e a necessidade de inclusão dos
indivíduos. Campo de busca pela superação de limitações impostas pelo mundo
físico, também onde se revelam tensões que ultrapassam o sentido do jogo.

Corpo e comunicação

Nosso debate nasce da indagação sobre nossas relações com o corpo que
foge a padrões estéticos esperados socialmente e do debate sempre presente das
exigências feitas ao corpo feminino. Mulheres são cotidianamente confronta-
das com padrões de beleza e de regras sociais aos quais “deveriam” se adequar.
Também sobre o corpo que por alguma contingência teve sua configuração al-
terada aquém de um processo previsível – aquilo que se tomaria culturalmente
constituído como uma limitação imposta por um acaso. Dito isso, buscamos
identificar em que os canais midiáticos e as imagens por eles geradas serviriam
para reforçar os conflitos entre corpo e sociedade, especialmente no caso da
mulher atleta com deficiência colocada diante de padrões culturais.
Parecem estar naturalizadas as formas de representação na mídia do cor-
po feminino relacionadas a padrões de beleza com ênfase em características
físicas e na aparência. Para Pierre Bourdieu (2002), esse trabalho de cons-
trução simbólica se realizada não apenas por uma definição, mas por uma
transformação duradoura e profunda nos corpos e no pensamento que se
realiza também na prática, determinante das formas de utilização do corpo.
Segundo o sociólogo francês (2002, p. 32), a constituição de um padrão impos-
to a homens e mulheres “tende a excluir do universo do pensável e do factível
tudo que caracteriza pertencer ao outro gênero”. Bourdieu completa que esse

174
pertencimento a determinado gênero tende a “produzir este artefato social que
é um homem viril ou uma mulher feminina” (id. ib.).
No esporte, o corpo atlético feminino é comumente destacado fora de seu
local de interesse que é o talento para o jogo, principalmente em esportes que
estimulam uma configuração corpórea que reforça estereótipos considerados
padrões de feminilidade. Como o corpo curvilíneo, com formação muscu-
lar mais discreta, com menos ênfase na força muscular. Ou, como expressa
Bourdieu (2002, p. 34) em A dominação masculina, um “corpo socialmente
diferenciado” do gênero masculino. O que reforçaria uma relação de domina-
ção de fundo tão somente biológico, mas que se naturaliza por uma construção
que é de ordem social.
O já citado Guia para a mídia: Como cobrir os Jogos Paralímpicos Rio 2016
não diferencia a questão da atleta feminina, mas destaca que o esporte deve ser
visto como o espírito em movimento – e é dessa forma que o atleta deve ser
retratado. Assim, há uma preocupação expressa no Guia em relação ao risco
de distorções através do foco na deficiência, ainda que ela não deva ser escon-
dida. Para a organização dos jogos, os atletas, homens e mulheres, devem ser
retratados como pessoas dinâmicas que buscam um triunfo no esporte. Nesse
ponto, revela um reconhecimento de que canais midiáticos podem promover
um trabalho de construção simbólica em torno dos atletas paralímpicos.
Dentro do universo do esporte, a exploração da imagem dramática do
esforço físico do corpo atlético é uma das formas narrativas recorrentes no
discurso midiático. A professora e pesquisadora Lucia Santaella (2004) analisa
as representações do corpo difundidas através dos meios de comunicação e
como elas se tornam modelos a serem seguidos. “A imprensa escrita vem se
consolidando como espaço privilegiado não só para a divulgação de informa-
ções relativas ao corpo, mas também para a inculcação de padrões de beleza
e de comportamento”, destaca Santaella, (2000, p.127). Passaríamos por uma
“supervalorização da aparência” e uma busca por padrões ideias de beleza e
formas do corpo. No caso do corpo atlético feminino, essas representações po-
dem, também, serem exploradas nas imagens das atletas olímpicas em épocas
de cobertura dos Jogos Olímpicos.
Georges Didi-Huberman (2010, p. 30), historiador e filósofo da arte, des-
taca a presença sensível do corpo. “É que a visão se choca sempre com o ine-
lutável volume dos corpos humanos”, destaca o autor (2010, p. 30). Ao citar a
complexa obra Ulisses de James Joyce, o autor também reafirma o corpo como

175
primeiro objeto de conhecimento resultado do ver e do desejo de tocar. O cor-
po como objeto próprio de um mundo visível.
Atletas com deficiência que buscam o triunfo através do esporte trazem
seus corpos à luz dos holofotes midiáticos. Já não deveriam se tratar de cor-
pos invisíveis, mas corpos que se mostram a olhares pouco familiarizados aos
diversos tipos de deficiência. Se corpos carregam discursos, como destacado
aqui da fala de Judith Butler, demoramos a nos conformar ao corpo que é dife-
rente e a entender a forma discursiva que ele carrega. Isso pode gerar interpre-
tações equivocadas e imagens que busquem chocar e não conformar o olhar.
Retemos aqui, de diversos autores, a ideia de que corpo é comunicação.
Já o sociólogo e antropólogo francês David Le Breton (2009, p. 8) afir-
ma que “antes de qualquer coisa, a existência é corporal”. Trata-se de uma
existência que constrói redes simbólicas que são partilhadas socialmente. As
análises voltadas ao corpo e suas representações falam além dos documentos
para auxiliar numa compreensão do que está em jogo nas relações e na cons-
tituição dos papéis sociais. Le Breton discute ainda a constituição das relações
corporais a partir de exemplos de crianças que foram afastadas do convívio
social humano e adotadas por animais – e como elas retornam modificadas
da experiência de adaptação do corpo a condições distintas do convívio nas
relações humanas:

A experiência constitui um meio de análise. Por extensão, ela con-


firma que até as nossas sensações mais íntimas, as mais intangíveis,
os limites de nossas percepções, nossos gestos mais elementares, e
até a forma do nosso corpo e tantas outras características, provém
de um meio social cultural particular. (Le Breton, 2009, p. 18)

Crianças em condições de convívio restrito aos animais estruturam suas


adaptações físicas de acordo com esse referencial de sobrevivência. A presen-
ça do outro, sua referência, vem de um animal que não do homem. Segundo
Breton (2009), essas crianças “selvagens” nos levariam a um questionamento
sobre “o sentido do vínculo social” e “sobre os limites do corpo”. Ele destaca
que o retorno ao convívio humano e a tentativa de readaptá-las a padrões acei-
táveis socialmente podem submetê-las a violentas formas de exigência de seus
corpos.
O debate de Le Breton (2009) gira em torno dessa constituição corpórea
através de um elo que é também social e cultural. O ponto em que gestos,

176
percepções, técnicas corporais e a linguagem própria do corpo seriam esta-
belecidos por padrões de convivência e sobrevivência também nas dimensões
culturais. O autor destaca que os exemplos extremos das crianças ditas “selva-
gens” levam a uma percepção de que as predisposições corporais se concreti-
zam em uma percepção do outro e dentro de determinadas possibilidades de
desenvolvimento físico, mas que nunca alcançam um pleno desenvolvimento
do potencial do corpo humano.

A educação dá forma ao corpo, modela os movimentos e o rosto,


ensina as maneiras físicas de enunciar um idioma, ela faz das atu-
ações do homem o equivalente de uma criação de sentido perante
os demais. (Le Breton, 2009, p. 40)

As formas de se comunicar do corpo inserem o indivíduo em padrões so-


ciais, os quais se podem também impor como forma de dominação do outro.
Mulheres sabem-no bem, já que padrões de comportamento são impostos ao
seu corpo desde que nascem. Além da palavra, gestos, expressões faciais, pos-
turas inserem-se em uma ordem simbólica capaz de impor regras de com-
portamento aceitas cultural e socialmente. Segundo Le Breton (2009, p. 41),
“o indivíduo habita seu corpo em consonância com as orientações sociais e
culturais que se impõem, mas ele as maneja de acordo com seu temperamento
e histórias pessoais”.
A imagem aparente se realiza em expressões e formas gestuais da comu-
nicação. Quando se capta uma imagem, analisa-se uma comunicação que é
visual sob as formas da linguagem do corpo em gestos e expressões que podem
ser percebidos dentro de uma ordem de significados. É desse potencial que a
fotografia se apropria para construir significados. A representação imagética
busca na composição das formas aquilo que está em jogo socialmente.
Pessoas que fogem a padrões impostos socialmente, de diferentes formas,
carregam esses discursos em seus corpos. No caso de Amy Purdy, por exemplo,
vemos um corpo sem os membros inferiores e com próteses modernas que, em
sua performance, apareceram com destaque nas imagens de diversos canais
midiáticos. Seus membros artificiais lembram-nos que houve uma adaptação,
mas as características do corpo da atleta reafirmam certos padrões de beleza
próprios da sociedade ocidental (branca e loira, magra, corpo definido etc.).
Amy é uma mulher bonita com uma adaptação moderna e uma deficiência
que pode facilmente passar despercebida se não estiver exposta.

177
Indissociavelmente objetivo e subjetivo, o corpo não constitui
uma entidade acabada, definida ou predefinida, mas em constan-
te construção. Cabe, assim, ao sujeito da constituição corpórea a
aventura de inventar-se e reinventar-se ao longo de sua narrativa
existencial. (Oliveira et al, 2009, p. 13)

A presença física é sempre perturbadora em maior ou menor grau.


Fazemos leituras do mundo através da expressão dos corpos. Mas aquilo que
é diferente é sempre mais inquietante e exige uma abertura a algo que foge aos
padrões conhecidos, algo que é novo. Exemplo disso é que durante a realização
dos Jogos Paralímpicos alguns meios de comunicação tentavam explicar algu-
mas modalidades esportivas adaptadas às necessidades dos atletas. Um esforço
de explicar o diferente para que ele fosse compreendido e aceito.
Os vínculos sociais são determinantes na dimensão das interações e é,
portanto, tema relevante também nos estudos da comunicação. É preciso con-
siderar que se o indivíduo representado na imagem se vê determinado pelo
meio onde desenvolve a sua convivência em sociedade, também os responsá-
veis pela criação dessas representações são determinados por padrões constru-
ídos socialmente.

La realidad que “persigue” el estudio se concibe como “construc-


ción social” de realidad, de base múltiple, de bases variadas, pero
hecha siempre por los hombres, referida a los componentes simbó-
licos de esta construcción, a su objetivación y al efecto retroactivo
sobre los productores, en cuanto productos de estas comunicacio-
nes. (Pross, 1987, p. 160)

Padrões de beleza, por exemplo, impõem-se como exigências de forma e


aparência, são regras que se sobrepõem a vontades individuais. Para Michel
Foucault (1979), o poder penetra no corpo e pode ser visto na própria aparên-
cia desse corpo. Práticas de poder, não apenas na esfera política, mas que se
manifestam e se reproduzem em diferentes esferas de relações sociais.

Eu acho que o grande fantasma é a ideia de um corpo social consti-


tuído pela universalidade das vontades. Ora, não é o consenso que
faz surgir o corpo social, mas a materialidade do poder se exercen-
do sobre o próprio corpo dos indivíduos. (Foucault, 1979, p. 82)

178
Em relação à imagem da paratleta, também nos questionarmos se é pos-
sível haver uma menor erotização do corpo feminino com deficiência em re-
lação ao que normalmente é imposto e explorado em relação ao estereótipo
construído pelos canais midiáticos de uma presença feminina erotizada com
foco e close nas formas de seu corpo.

Análise: fotografia e suas representações

Desde sua invenção, a fotografia conquistou um lugar como provedor de


imagens da nossa sociedade. Nas palavras de Alberto Manguel (2001), “a fo-
tografia democratizou a realidade”. Mas ela, a imagem fotográfica, cria, na
verdade, uma aparência da realidade. Ela registra o que pode ser visto a partir
das sobreposições de luz e de sombra, mas refere-se também àquilo que não
é visto. Segundo Manguel (2001), outras artes como a escrita, a escultura e a
pintura admitem-se como subjetivas e ficcionais e solicitam do seu público
uma voluntária suspensão da descrença. A natureza técnica da fotografia cria
a ilusão de uma aparência de realidade.
Escrevendo sobre Tina Modotti (16/08/1896 - 05/01/1942), fotógrafa e ati-
vista filiada ao partido comunista mexicano, Alberto Manguel (2001, p. 99)
destaca a observação que Susan Sontag faz a respeito do seu trabalho fotográfi-
co admitindo que “os fotógrafos não podem criar uma posição moral, mas po-
dem reforçar uma posição já existente”. Podem, na verdade, prover a sociedade
de imagens que corroborem determinados posicionamentos.
Considerando que através da fotografia podemos partilhar certa aparên-
cia do mundo, ponderamos que fotos podem ser pensadas como agentes de
discussão sobre nossas representações, uma vez que podem ser usadas para
legitimar o que se escreve, como aponta a pesquisadora Simonetta Persichetti
(1997). O fotógrafo fala de um lugar de poder, detém ferramentas de comuni-
cação à medida que produz conteúdo para os canais midiáticos. Ele participa
das etapas de produção, formulação e circulação dos discursos, consequente-
mente, de representações da nossa cultura. Ao mesmo tempo, é um agente a
serviço do pensamento simbólico da linha editorial a que ele serve.
O fotógrafo está inserido no contexto da cultura mais abrangente de seu
lugar de fala, seu lugar também de aprendizagem de significações sociais. Ele
é parte nessa cultura e parte atuante dentro dela e seu olhar se direciona pela
cultura ao mesmo tempo em que é um de seus agentes. Embora a fotografia

179
guarde uma falsa impressão de que reproduz o real, a ilusão do similar, ela é
uma construção técnica que percorre um caminho através do olhar mediado
pelo aparelho fotográfico para construir sentidos e simbologias que levam a
situações ideológicas.

Se na fotografia há tensões que empurram as imagens para fora


dos enquadramentos, propondo sobre-significados ocultos e não
intencionais, há também formalizações deformadoras, que se ex-
pressam em imagens que resultam de relações de poder e modos de
dominação social e política. (Martins, 2008, p. 152)

As produções simbólicas podem auxiliar como instrumentos de domina-


ção, como ressalta Bourdieu (1989). Podem conter um sentido do mundo e ser-
vir como “instrumentos de conhecimento e comunicação” capazes de repro-
duzir uma ordem social. Local onde as condições de produção e de circulação
se estabelecem e são determinantes. O autor aponta que para compreender o
que pode e o que não pode ser dito é preciso entender as regras de constituição
dos grupos dos locutores. Em dado momento, Bourdieu (1989, p. 55) afirma
que “o jornalista exerce uma forma de dominação (conjuntural não estrutural)
sobre um espaço de jogo que ele construiu, e no qual ele se acha colocado em
situação de árbitro”. No fazer jornalístico entrariam em jogo normas de obje-
tividade e de neutralidade.
No contexto das representações que colocamos em discussão sobre a ima-
gem da mulher atleta com deficiência, tentamos aqui situar as condições que
geram os objetos da comunicação que nos levaram aos primeiros questiona-
mentos. As relações de poder onde elas estão implicadas e aos padrões a que se
veem submetidas. Oferecer, assim, dados para uma discussão crítica acerca do
processo de mediação do produto fotojornalístico.
Amy é personagem central na narrativa do jornal O Globo na cobertura
que descreve a cerimônia que iniciou os jogos de 2016. Medalha de bronze
nos Jogos de Inverno de Sochi, Amy nasceu na cidade de Las Vegas (Estados
Unidos) em 1979. Aos 19 anos, contraiu uma bactéria que provocou a amputa-
ção dos seus membros inferiores abaixo dos joelhos. Em 2014 a atleta publicou
um livro autobiográfico, cujo título em português é Sobre meus pés: perder as
pernas para aprender a dança da vida.
Protagonistas, Amy e o robô aparecem em uma imagem que ocupa
aproximadamente um terço da página do jornal (Figura 2) colocada sobre a

180
manchete “Paralimpíada emociona Maracanã”. Ainda que não fosse disputar
os jogos paralímpicos de verão por ser atleta dos jogos de inverno, a atleta de
snowboard foi destacada por vários portais de notícias e de celebridades. Já
no período de organização dos Jogos Paralímpicos do Rio ela foi apresentada
como uma das personagens centrais da cerimônia de abertura.

Figura 2: Capa completa do jornal O Globo, edição de 8 de setembro de 2016.

181
Objeto central desse nosso debate inicial sobre a imagem da mulher pa-
ratleta, a capa do jornal O Globo traz um enunciado que destaca a interação
entre uma mulher e uma máquina. Imagem colocada acima da manchete
“Paralimpíada emociona Maracanã” e da linha fina “Espetáculo destaca os
desafios individuais e encanta até sob chuva”. Se considerarmos a composição
fotográfica, o papel de destaque é dado à máquina que está sob o holofote,
enquanto a bailarina aparece com parte do corpo sombreado. A imagem apre-
senta certa ironia na linguagem corporal da atleta, que pode parecer estar em
“fuga” do braço mecânico ou simplesmente realizando um jogo de sedução
com a máquina. A fotografia, sob esse ângulo, chama-nos a atenção para a for-
ma fálica do braço robótico. Sabemos que no universo de milhares de imagens
a escolha por uma única fotografia para estampar a capa do jornal é sempre
muito consciente. Há sempre uma intenção implícita nessa decisão editorial.
Poderia assim ser uma imagem de submissão feminina pela conotação da pose
– como o descrito por Roland Barthes em O óbvio e o obtuso (1990) – que Amy
realiza nesse determinado instante e com o ângulo escolhido.
É interessante observar que a segunda imagem apresentada no centro da
página do O Globo traz uma foto de autoridades que estiveram presentes no
Maracanã. Entre eles, a presença de Michel Temer, que assumiu a presidência
do Brasil em maio de 2016 após o processo de impeachment da presidente
Dilma Rousseff. Temer foi vaiado durante a abertura. Ao seu lado aparece
Marcela Temer, sua esposa bem mais jovem e que também se enquadra nos
padrões de beleza ocidentais já elencados. A presença de Temer na página tam-
bém poderia ser lida como uma imagem simbólica de dominação masculina.
A performance de Amy Purdy repercutiu em vários canais midiáticos,
muitos dos quais procuraram aproximar a apresentação da paratleta com a
da modelo brasileira Gisele Bündchen, que se havia destacado na abertura
dos Jogos Olímpicos de 2016, também no Estádio do Maracanã, praticamente
um mês antes (a cerimônia teve lugar no dia 5 de agosto). Naquela ocasião, a
“gaúcha” Bündchen cruzou o campo de uma ponta à outra, ao som da icônica
canção “Garota de Ipanema” de Tom Jobim, executada por Daniel Jobim, neto
do compositor. À época, o “desfile” da übermodel também foi destaque em di-
ferentes meios de comunicação, os quais não se furtaram a destacar sua beleza,
ecoando os próprios versos da música (“olha, que coisa mais linda, mais cheia
de graça”). Exemplo disso é o Portal E!, que destaca, em matéria de 05/09/2016,
o protagonismo de Bündchen no evento (Figura 3):

182
Figura 3: Gisele Bündchen na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016, segundo o
no Portal E! (Disponível em http://br.eonline.com/enews/gisele-bundchen-rouba-a-cena-na-
cerimonia-de-abertura-dos-jogos-olimpicos-2016/. Acesso em 20 mar. 2017).

Nos Jogos Paralímpicos, o protagonismo de Amy Purdy também foi posto


em evidência, como se pôde ver no portal de celebridades Ego. A comparação
com a performance da modelo brasileira um mês antes é inevitável, até na

183
escolha do discurso verbal, como atesta o título “Amy Purdy rouba a cena em
abertura da Paralimpíada Rio 2016” (Figura 4), referente a matéria publicada
em 08/09/2016. O texto destaca fotos e comentários de leitores sobre a presença
de Amy na abertura dos Jogos, e muitos desses comentários tecem elogios à
beleza da atleta:

Figura 4: Portal Ego, noticiando a abertura dos Jogos Paralímpicos 2016. (Disponível em
http://ego.globo.com/famosos/noticia/2016/09/amy-purdy-rouba- cena-em-abertura-da-para-
limpiada-rio-2016.html. Acesso em 22 abr. 2017).

Voltando à análise da imagem da paratleta, questionamo-nos por que


em um universo de 1.670 mulheres atletas com deficiência que participariam

184
dos Jogos Paralímpicos Rio 2016, segundo dados do site oficial do Comitê
Olímpico Internacional (disponíveis em https://www.paralympic.org/rio-2016
e consultados em 09/10/2016), Amy Purdy foi escolhida pelos canais midiáti-
cos como personagem de destaque na apresentação dos jogos a uma grande
audiência. Uma atleta não brasileira e que, na verdade, participa de jogos de
inverno e que foi selecionada para realizar a performance de uma dança tipi-
camente brasileira, o samba.
Purdy tem a trajetória da superação, em virtude de a doença ter-lhe leva-
do partes das pernas e também modificado sua vida. No entanto, apesar de
Amy ter- se tornado uma campeã diante da adversidade, é indiscutível que a
representação midiática projeta uma imagem atraente da atleta, em que seu
padrão de beleza física coexiste com uma imagem que promove a simbiose
com a máquina. Após a sua performance de cerca de dois minutos na aber-
tura dos Jogos Paralímpicos, as imagens que se seguiram em alguns canais
retrataram uma mulher bonita dentro dos padrões ocidentais (branca, cabelos
loiros, corpo atlético) e com próteses modernas contracenando com um braço
robótico. Uma alusão intencional de que o ser humano com deficiência pode
ser também uma criatura tecnológica.
Por enquadrar-se nos padrões ocidentais de beleza, Amy Purdy talvez seja
a representação embelezada da mulher com deficiência que encanta com sua
presença e torna mais aceitável a questão da diferença. Como diz o etnólogo
francês Boris Cyrulnik (1995), podemos ser capturados, encantados e enfeiti-
çados pelos apelos sensoriais do outro. Por meio da partilha de sistemas sim-
bólicos, vivenciamos experiências de pertencimento, buscamos ser aceitos – ao
mesmo tempo em que tentamos aceitar o outro.

Considerações finais

As diferentes áreas da comunicação podem reafirmar estereótipos de gê-


nero que se encontram em vigor no meio social. Nas diversas esferas de vivên-
cia em sociedade pode-se estabilizar uma leitura de mundo carregada por re-
lações de poder. No esporte, a imposição de papéis sociais também se encontra
em plena atividade. A diferença de papéis entre homens e mulheres pode ser
sentida e estudada através do produto midiático.
Na capa do jornal O Globo selecionada para nossas discussões percebe-se
a ironia com a imagem da mulher em relações imagéticas que corroboram

185
posições de submissão ao masculino. A naturalização da imposição de regras
sobre o corpo e a postura e a aparência feminina são reafirmadas no ambien-
te do esporte e aqui no ambiente do esporte paralímpico. Essa naturalização
também é corroborada pelo enunciado da capa do jornal.
A fotografia é uma das vias de reafirmação da dominação sobre o femi-
nino. Imagens podem ser uma evidência e também servir de reforço para um
posicionamento moral. É preciso parecer, estar contido dentro de padrões, e a
fotografia traz justamente a aparência das coisas. O fotojornalismo legitima e
socializa padrões sociais.
O impacto das imagens do corpo com deficiência pode ser amenizado
através de um embelezamento da imagem da paratleta. O desafio individu-
al toma uma dimensão distinta com a insinuação a uma aproximação com a
máquina, o corpo já não é mais limitado, com a ajuda da tecnologia ele cria-
ria novas possibilidades. Mas continua excluída a atleta com deficiência mais
acentuada e que não consegue essa adaptação facilitada pela prótese.
Assim, não só a mulher atleta é comumente associada a padrões de beleza
do corpo, o que provoca uma limitação nos padrões de imagens produzidos
pela mídia. Como vimos, também a mulher paratleta, representada na abertu-
ra dos Jogos Paralímpicos 2016 pela norte-americana Amy Purdy, foi retratada
por meio da apresentação de sua deficiência mas, ao mesmo tempo, com o des-
taque para seu potencial esportivo, numa simbiose com a modernidade tecno-
lógica e a graciosidade do corpo feminino. Não foi à toa, portanto, que as duas
figuras que “roubaram a cena” (tanto na abertura dos Jogos Olímpicos como
na dos Paralímpicos do Rio de Janeiro) tragam tantas semelhança entre si, a
ponto de se enquadrarem, ambas, nos protótipos de “garotas de Ipanema” –
ainda que nascidas a vários quilômetros de distância da “Cidade Maravilhosa”.

Referências

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187
ESTRATÉGIAS PUBLICITÁRIAS NO
INSTAGRAM DE GABRIELA PUGLIESI
Brunara Pereira Ascencio
Lucilene dos Santos Gonzales

O culto ao corpo humano não é uma prática que surgiu nas sociedades
contemporâneas; a busca pela forma física dita “perfeita” já era um costume
desde a antiga Grécia, onde os gregos, orientados pelo lema “mens sana in cor-
pore sano” (mente saudável em corpo são), já buscavam a capacidade não só
física, como intelectual.
No Brasil, os anos 80 foram marcados pela intensificação da prática de
atividades físicas, uma verdadeira tendência da sociedade em buscar uma vida
mais saudável, levando à proliferação de academias de ginástica por todos os
centros urbanos. Essa “geração saúde” modificou a indústria cultural e o com-
portamento social.
A mídia, por sua vez, passou a produzir exclusivamente para essa geração
de cultura do corpo. Em 1984, foi lançada a Revista Boa Forma e, em 1987, a
Revista Corpo a Corpo, destinadas ao público feminino, com publicações que
traziam em suas capas mulheres consideradas exemplos no que se referia ao
dito “corpo ideal”. Conforme Mike Featherstone (1999), para os meios de co-
municação de massa, a mensagem do culto ao corpo e da beleza passou a ser
algo que produz lucro, por isso o assunto é propagado exaustivamente.
Seguindo a tendência da década anterior, como aponta Gisele Flor (2010),
os anos 90 foram marcados pela valorização cada vez maior de mulheres que
sobreviviam do próprio corpo, como modelos, atrizes e apresentadores de TV,
que passavam a ter cada vez mais sucesso e prestígio na sociedade brasileira.
Com o surgimento da internet e, posteriormente, das redes sociais, esse
discurso de culto ao corpo tomou proporções ainda maiores. A rede social

188
Instragram, especificamente por se tratar de publicação de fotos e vídeos, é
uma das que mais atrai usuários adeptos ao mundo das pessoas que cultuam
o corpo e ditam padrões a serem seguidos. Esses perfis fitness1 têm transfor-
mado anônimos em celebridades, a maioria mulheres conhecidas por “musas
fitness” ou “blogueiras fitness2”, que vendem um estilo próprio de vida e tam-
bém muita publicidade.
Nesse cenário, a publicidade também se transformou e procura inserir
suas marcas nas fotos e vídeos postados no aplicativo Instagram, associando-
-as a celebridades com corpo “perfeito”. Este é o objeto de estudo desta pesqui-
sa: verificar nas postagens da musa Gabriela Pugliesi as estratégias da publici-
dade na rede social Instagram.

O corpo e a mulher

O corpo humano, segundo Goldenberg (2010), é construído culturalmen-


te, com a valorização de certos atributos e comportamentos em detrimento
de outros, fazendo com que haja um corpo típico para cada sociedade. Esse
corpo, afirma a antropóloga, varia de acordo com o contexto histórico e cultu-
al, no qual indivíduos imitam atos, comportamentos e corpos que obtiveram
êxito e que têm prestígio em sua cultura.
A imposição de padrões estéticos que ditam tamanhos de corpos ideais
leva grande parte dos indivíduos a experimentam sensações de insatisfação,
quando se olham no espelho e não se encaixam nesses padrões. Esse culto ao
corpo padronizado pode gerar, aos mais vulneráveis, angústias e obsessão na
busca pela transformação de seus corpos em corpos talvez nunca alcançados.
Malysse (2002) acredita que os aspectos de jovialidade, beleza, autotrans-
formação, perfeição e magreza são temas presentes nos diálogos daqueles
mais insatisfeitos com seus corpos. De modo geral, diz a autora, mulheres,
em relação aos homens, são mais vulneráveis às pressões sociais que definem
tamanhos ideais de corpos e, com isso, angustiam-se mais em relação aos

1 Termo usado pela mídia para definir a promoção de um estilo de vida saudável.
2 Termo usado pela mídia para definir mulheres que promovem um discurso de estilo de vida
saudável em redes sociais, veiculando informações sobre alimentação, exercícios, etc. Veja
exemplos em: <http://vejasp.abril.com.br/cidades/rotina-musas-fitness-juju-salimeni-karina-
-bacchi-gabriela-pugliesi/>

189
significados que pode transmitir uma identidade social que não cabe em mo-
delagens de tamanho único.
Para Bourdieu (1999), os homens tendem a se mostrar insatisfeitos com as
partes de seus corpos que consideram pequenas demais, enquanto as mulheres
criticam as regiões de seus corpos que percebem como grandes demais. Desta
forma, na busca por ser magra, as mulheres vivenciam a distância entre o cor-
po real e o corpo ideal, o qual procuram obstinadamente alcançar.

No Brasil, o desenvolvimento do individualismo e a intensifica-


ção das pressões sociais das normas do corpo caminham juntos.
De um lado o corpo da brasileira se emancipou amplamente de
suas antigas servidões - sexuais, procriadoras ou indumentárias;
de outro, encontra-se, atualmente, submetido a coerções estéticas
mais regulares, mais imperativas e mais geradoras de ansiedade do
que antigamente. Vivemos então, um equilíbrio de antagonismos:
um dos momentos de maior independência e liberdade femininas
é também aquele em que um alto grau de controle em relação ao
corpo se impõe a mulher brasileira. (Goldemberg, 2010, p. 50)

Determinado modelo de corpo, afirma Goldenberg (2010), é um valor, um


corpo distintivo, aprisionado e domesticado para atingir a “boa forma”, um
corpo que distingue como superior àquele que o possui, um corpo conquista-
do por meio de muito investimento financeiro, trabalho e sacrifício. Segundo
a antropóloga, no Brasil, o corpo é uma riqueza, talvez a mais desejada pelos
indivíduos das camadas médias e pobres, que percebem o corpo como um
veículo fundamental de ascensão social e, também, um importante capital no
mercado de trabalho, no mercado de casamento e no mercado sexual.
Grande parte das mulheres que se lançam nessa incessante busca pelo
corpo padronizado são norteadas pelo fator estético, a saúde poucas vezes é o
motivo pelo qual essas pessoas buscam perder peso.

Ainda que as informações no campo biomédico sobre o corpo


gordo apresentem os riscos de doenças diversas, principalmente
as relacionadas ao aparelho cardiovascular, o processo orgânico
da obesidade – que pode afetar tecidos, estrutura óssea e níveis
hormonais – tem, no campo sociocultural, sua maior expressão.

190
Com isso, a tendência é deixar de lado as informações sobre a pre-
venção de enfermidades relacionadas ao sobrepeso e conceber a
representação da perda de peso, apenas como um valor estético. Os
padrões de beleza, de certo modo, são colocados como uma condi-
ção mítica em que a mulher se sustenta para perseguir um modelo
para seu corpo, para sua vida. (Freitas, 2002, p. 26)

Conforme Freitas (2002)é principalmente sobre o corpo feminino que se dá


a interação entre o mercado e os valores culturais. Neste sentido, a mulher sofre
pressões sociais para ter seu corpo reconfigurado, a base de dietas restritas, me-
dicamentos e outros artifícios como cirurgias plásticas, ginásticas e cosméticos.
A natureza dessa “ritualidade”, segundo a autora, encontra estreitos vínculos
com o mercado de consumo, restringindo o corpo a um negócio da indústria
cultural, em que a dieta aparece como uma nova necessidade social.
No Brasil, o corpo já foi objeto de muitos estudos, como por exemplo, o
conduzido por Comério et al. (2009), no qual os autores entrevistaram um
grupo de acadêmicas de uma instituição pública de ensino de Minas Gerais
e observaram que as jovens, de 18 a 23 anos, vivenciavam um sentimento de
culpa, pois acreditavam que só dependia delas mesmas para alcançarem o cor-
po que desejavam, praticando exercícios e restringindo a dieta alimentar. Na
pesquisa, a maioria das jovens afirmou não ter uma vida saudável por não
praticar exercícios regulares e ter alimentação balanceada. A busca pelo cor-
po idealizado magro foi unânime e, para as estudantes, levaria ao sucesso e à
satisfação pessoal.
A representação social do corpo feminino também foi objeto de estudo de
Secchi (2006), que analisou grupos de jovens estudantes de psicologia, moda e
educação física de duas universidades de Santa Catarina. Conforme a pesqui-
sa, as jovens acreditavam que seus corpos eram maiores do que o tamanho que
consideravam ideal; o estudo também apontou que 61,54% das mulheres na
faixa etária acima de 31 anos sentiam-se satisfeitas com seus corpos, enquanto
que apenas 30,77% das mulheres com faixa etária menor estavam satisfeitas;
a maioria das participantes já havia feito algum tipo de dieta restritiva, inter-
venções cirúrgicas estéticas ou tinham o desejo de realizar alguma no futuro.
Desta forma, fica evidente que as jovens mulheres são o principal foco da
indústria cultural da beleza que, com estratégias de marketing e comunicação
midiática, afeta diretamente a vida de milhares de brasileiras que se lançam na
busca pelo corpo ideal padronizado a qualquer custo.

191
Convergência cultural e Instagram

As publicações dos meios de comunicação, que nos anos 80 e 90 inves-


tiram em revistas destinadas ao público feminino e ao culto ao corpo, ga-
nharam outras proporções na era da chamada “convergência cultural”, termo
desenvolvido por Henry Jenkins (2009) que relaciona três fenômenos: con-
vergência dos meios de comunicação, cultura participativa e inteligência co-
letiva. Convergência, segundo esse autor, é uma palavra que consegue definir
transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependen-
do de quem está falando e do que imaginam estar falando.
Na era analógica, conforme Gonzales (2003), o texto publicitário era
como uma comunicação em um só sentido, em que o dono do meio de comu-
nicação e o anunciante se dirigiam a um público que não poderia responder
à comunicação emitida, desta forma, não havia como o receptor do anúncio
manifestar sua opinião sobre a mensagem recebida.

O advento da internet, porém, quebrou esse paradigma de quase


total unilateralidade da comunicação publicitária e, contempora-
neamente, a comunicação com o público-alvo da mensagem tor-
nou-se uma comunicação de todos para todos, já que o fabricante/
anunciante, agência e público dialogam, na mídia digital, e este
último expõe sua opinião sobre a mensagem recebida, ou sobre
produtos e serviços nas diversas plataformas digitais. Dizemos,
então, que, na era digital, há interação em diversos níveis com a
finalidade também de persuadir, seduzir esse consumidor, incitá-
-lo ao consumo e fortalecer a marca da organização. (Gonzales e
Seridório, 2015, p. 141)

Atualmente, vivenciamos a possibilidade total de interação e fluxo de


comunicação dentro das mais variadas esferas comunicacionais. Para desen-
volver estratégias de marketing e publicidade digital, deve-se levar em consi-
deração o comportamento, a intenção, o desejo e as necessidades das pessoas
usuárias da internet que buscam essa mídia para interagir em quatro ativi-
dades básicas: relacionamento, informação, comunicação, diversão. Neste
contexto, as redes sociais como Facebook, Twitter, Instagram, Youtube, entre
outras, se tornaram terreno fértil para a publicidade on-line (Torres, 2009).

192
A convergência também ocorre quando as pessoas assumem o controle das
mídias e, então, nossa vida, nossos relacionamentos, memórias, fantasias e
desejos também fluem pelos canais de mídia. É o que ocorre, por exemplo,
com o uso da rede social Instagram: basta um smartphone em mãos e uma
conta no aplicativo, gratuito, para que qualquer pessoa possa produzir con-
teúdo e compartilhar em rede, para centenas de milhares de outros usuários.

(...) essa nova cultura vernácula incentiva à ampla participação,


à criatividade alternativa e uma cultura baseada na troca de pre-
sentes. Isto é o que acontece quando os consumidores assumem o
controle das mídias. Na cultura da convergência todos são parti-
cipantes - embora os participantes possam ter diferentes graus de
status e influência. (Jenkins, 2009, p. 108)

Nesse cenário, em que consumidores também passaram a produzir con-


teúdo e a ter milhares ou milhões de seguidores com um perfil bem segmen-
tado, principalmente nas mídias sociais. Elas são uma importante plataforma
de comunicação das marcas com seu público; no caso o Instagram revelou-se
uma inovadora forma de anunciar produtos e serviços nas imagens ou vídeos.
Trata-se de comunicar-se com o segmento almejado, o público jovem, sem a
intrusão dos tradicionais comerciais e anúncios, em um contexto de conver-
sa, proximidade com a celebridade, que recomenda a marca, usando-a nas
imagens de sua postagem.
Dessa forma, os seguidores da musa fitness Gabriela Pugliesi no
Instagram, por exemplo, acompanham suas postagens e consequentemente
estão expostos às marcas que ela divulga. A convergência consolida a fide-
lidade do consumidor numa época em que a fragmentação do mercado e o
aumento da troca de arquivos ameaçam os modos antigos de fazer negócios
(Jenkins, 2009).
Neste contexto de migração da publicidade das formas tradicionais para
a on-line, associada ao novo papel que os consumidores passaram a desem-
penhar diante da convergência midiática, as redes sociais, como o Instagram,
estão entre as prioridades de investimento de grandes marcas e empresas que
buscam fidelizar seus clientes de diversas formas.

193
Instagram e as estratégias de publicidade

Há anos, as redes sociais vêm sendo utilizadas como um instrumen-


to de publicidade on-line. O Instagram atrai o setor publicitário justamen-
te por publicar fotos e vídeos. Lançado em 2010 por Kevin Systrom e Mike
Krieger, o aplicativo conta atualmente com mais de 500 milhões de usuários.
Inicialmente, era disponível apenas com o sistema operacional iOS, da Apple,
como o iPhone. Quando passou a ser disponibilizado para aparelhos com
Android, Mark Zuckeberg, criador do Facebook, anunciou a compra da em-
presa desenvolvedora do aplicativo por cerca de um bilhão de dólares.
No Instagram, para o usuário gerar um perfil ele precisa apenas fornecer
alguns dados para efetuar o seu registro, gratuitamente. A partir de então, ele
pode tirar e publicar suas fotos e, além da captura, o usuário pode inserir fil-
tros especiais nessas imagens, fazendo com que ela tenha traços diferenciados,
como: Amaro (clareia a imagem), Mayfair (suaviza a iluminação e branqueia
um pouco as cores), Valencia (adequado para paisagens e fotos exteriores), etc.
O aplicativo também possibilita a inserção de vídeos, que contam ainda com
filtros específicos e um sistema de estabilização das imagens gravadas.
Semelhante ao que ocorre em outras redes sociais, no Instagram, o usuá-
rio também pode marcar suas fotos com hashtags, palavras-chave antecedidas
pelo caractere “#” e que se relacionam a alguma temática ou informação. O
aplicativo também apresenta um campo “pesquisar”, no qual os usuários po-
dem encontrar usuários do mundo todo, desde pessoas anônimas até grandes
celebridades, podem “seguir” este outro usuário, e a partir de então, imagens e
vídeos postados passam a aparecer em sua home.
Para Silva (2012), o Instagram está na moda expondo consigo o ponto de
vista da intimidade, das relações de consumo e das experiências do sujeito. Tal
exposição, para a autora, pressupõe uma espera ou convicção na promessa de
ser visto, não ser esquecido, algo muito parecido quando pensamos em uma
dimensão biográfica para as narrativas contemporâneas.
Classificado como uma rede social emergente, o Instagram é uma mídia
social que se constrói através da interação entres usuários, em comentários e dis-
cussões que se criam em torno das imagens e vídeos (Recuero, apud Pires, 2013).
Já Piza (2012) entende que esse aplicativo promove aproximação e confiança en-
tre os usuários, através das opções de “comentar” e “curtir” imagens e vídeos.
Neste contexto, o Instagram tornou-se um campo fértil para os adeptos
do estilo de vida fitness, que passaram a publicar imagens de sua alimentação

194
saudável, exercícios físicos e os resultados dessa dedicação ao corpo. Esses per-
fis têm alcançado tanto sucesso nos últimos anos, que transformaram pessoas
anônimas em celebridades, na sua maioria mulheres, conhecidas popularmen-
te por “musas fitness” ou “blogueiras fitness”, que usam seus corpos para ven-
der um estilo de vida dito “saudável” e com ele fazem publicidade de roupas,
calçados, joias, academias, hotéis, alimentos. Entre essas celebridades surgidas
no Instagram, está Gabriela Pugliesi, objeto de nosso estudo.

Gabriela Pugliesi: musa fitness

Gabriela Pugliesi é um exemplo de uma pessoa anônima que ganhou fama


através do uso das redes sociais para disseminar o mundo fitness, principal-
mente por meio do Instagram. Seu discurso é baseado na intensa prática de
esportes e de uma alimentação que considera “saudável”, sempre relacionando
produtos e serviços de grandes marcas ao seu estilo de vida.
A chamada musa fitness começou a ganhar os holofotes em 2013, com
o blog “Tips4Life3” que, atualmente, é redirecionado para o blog “Gabriela
Pugliesi”4, no qual relata sua rotina de alimentação, exercícios, viagens, além
de fazer propagandas de produtos e serviços vinculados ao seu estilo de vida.

Figura 1: Página de abertura do blog da Gabriela Pugliesi.


Disponível em: <https://gabrielapugliesi.com/> Acesso em Janeiro de 2017.

3 www.tips4life.com.br
4 gabrielapugliesi.com

195
Gabriela possui conta no Instagram desde março de 2012, com a publicação
de sua primeira foto no dia 29 de março, no entanto, ainda pouco conhecida
nesta época, suas postagens alcançavam em média 300 curtidas. Após 2013, com
o sucesso do site “Tips4Life”, a blogueira passou a ganhar milhares de seguidores
no Instagram e, atualmente, conta com mais de três milhões de seguidores e
mais de 10 mil publicações, que alcançam em média 80 mil curtidas.

Figura 2: Página de abertura do Instagam de Gabriela Pugliesi.


Disponível em <https://www.instagram.com/gabrielapugliesi/> Acesso em Janeiro de 2017.

Desde que se tornou uma celebridade do mundo fitness, Gabriela reúne


em seu currículo capas de grandes revistas, ensaios de moda, participações em
diversos programas veiculados em rede nacional, além de parcerias comerciais
com marcas de diversas áreas.
Com formação em designer e não em áreas relacionadas à saúde, como se
deveria presumir pelo conteúdo que publica, de acordo com matéria5 publi-
cada na Veja São Paulo, Gabriela fatura aproximadamente R$ 100 mil por mês

5 http://vejasp.abril.com.br/cidades/rotina-musas-fitness-juju-salimeni-karina-bacchi-gabriela-
pugliesi/

196
com suas publicações no Instagram e é considerada no mercado publicitário a
principal formadora de opinião no ramo fitness.
As marcas sugeridas nas postagens de Gabriela Pugliesi inserem-se na linha
criativa de testemunhal que aproxima essa celebridade das pessoas comuns por
meio do Instagram, mídia social, apresentando os produtos, evidenciando seus
benefícios repetidamente que fazem parte do seu cotidiano, intensificando as-
sim o desejo de consumo dos seus seguidores pelas roupas que veste, acessórios e
cosméticos que usa, hotéis que se hospeda, academias que frequenta, etc.
O endosso de uma celebridade a certos produtos sugere um raciocínio ób-
vio que é o da imitação da experiência do ídolo. O encontro entre a celebridade
e seu público, em um momento propício, anunciando que aquele padrão de
beleza é possível de ser alcançado, automaticamente sugere ao espectador uma
ideia de que consumir tal produto transmitirá a mesma capacidade de beleza e
sucesso da celebridade. Mesmo que o produto seja só para o cabelo, por exem-
plo, a compreensão da capacidade de eficácia do produto transcende, na mente
consumidora, ao simples embelezamento dos cabelos.

Análise de publicações

Em um universo de mais de 10 mil publicações, supomos que em grande


parte das fotos e vídeos a musa fitness divulga marcas em seu conteúdo. Para
comprovar tal hipótese, analisamos 100 publicações contínuas de fotos e ví-
deos de Gabriela no Instagram, compreendidas entre os dias 20 de dezembro
de 2016 e 16 de janeiro de 2017, e categorizamos seu conteúdo em: lifestyle,
viagens, moda, alimentação, treinos e cosméticos. Além disso, verificarmos
quais e quantas publicações anunciavam marcas de produtos ou serviços. O
resultado dessa análise foi condensado na seguinte tabela:

Análise
Lifestyle Viagens Moda Alimentação Treinos Cosméticos
publicações
Com
18 17 15 4 4 2
publicidade
Sem
29 11 0 0 0 0
publicidade
Total 47 27 15 4 4 2

Tabela 1: Análise de 100 publicações no Instagram de Gabriela Pugliesi. Disponível em <ht-


tps://www.instagram.com/gabrielapugliesi/> Acesso em Janeiro de 2017.

197
A categoria lifestyle, a que mais apresenta publicações, representa o estilo
de vida de Gabriela. Das 47 publicações, 29 não apresentavam publicidade de
marcas, produtos ou serviços. Estes posts se referem, por exemplo, a fotos de
Gabriela trajando vestuário de banho e reafirmando seu estilo de vida fitness;
com o noivo, também adepto ao mundo fitness, sempre felizes e sorridentes;
com a irmã; frases de efeito sobre amor, felicidade e paz, mostrando a harmo-
nia de sua vida; imagens da natureza, entre outros.
As outras 18 publicações da categoria lifestyle apresentam algum tipo de
publicidade, na mensagem ou na própria foto ou vídeo. Por exemplo, vídeos
que fazem propaganda de acampamento de férias para jovens e do seu próprio
canal do YouTube “Vendi Meu Sofá com Gabriela Pugliesi”, onde ela entrevista
celebridades, dá dicas de produtos de beleza, treinos e exercícios físicos para
seus seguidores, entre outros. Na imagem a seguir um exemplo de publicação
que leva à publicidade de seu próprio canal no Youtube:

Figura 3: Publicação de Gabriela Pugliesi no Instagram falando sobre seu canal no YouTube
Vendi Meu Sofá. Disponível em <https://www.instagram.com/gabrielapugliesi/>
Acesso em Janeiro de 2017.

Na categoria viagens, Gabriela posta imagens e vídeos dos vários lugares


que conhece não só no Brasil, mas no mundo. Das 27 publicações relacionadas
a viagens, apenas 11 não apresentaram nenhum tipo de publicidade, a maioria
marcando apenas a cidade ou país em que se encontrava, com fotos da paisa-
gem local; sozinha ou acompanhada do namorado ou amigos.

198
As outras 17 publicações da categoria viagens fazem algum tipo de publi-
cidade, com marcações na imagem ou na mensagem, do produto ou empresa
em questão. A maioria delas são postagens que, aparentemente mostram um
local, cidade ou país que está visitando, mas sempre marcando o hotel, spa ou
restaurante que se encontra. Nestes posts, Gabriela faz ainda publicidade para
empresas de turismo, venda de passagens, entre outras. Na imagem a seguir
um exemplo de publicação que leva à publicidade do hotel em que Gabriela se
hospedou em uma de suas viagens:

Figura 4: Publicação de Gabriela Pugliesi no Instagram em uma viagem para Bali, uma ilha
da Indonésia, em um hotel luxuoso que se hospedou. Disponível em <https://www.instagram.
com/gabrielapugliesi/> Acesso em Janeiro de 2017.

Na categoria moda, 15 posts, estão as publicações em que Gabriela divul-


ga marcas de roupas de ginástica, roupas de banho, vestuário jeans, calçados,
entre outras. Empresas que aliaram a imagem de suas marcas à da musa fitness
e seu estilo de vida. Na imagem a seguir um exemplo de publicação que leva à
publicidade da roupa de ginástica que ela usa:

199
Figura 5: Publicação de Gabriela Pugliesi no Instagram em uma academia pronta para malhar
e usando vestuário de uma marca de roupas de ginástica. Disponível em <https://www.insta-
gram.com/gabrielapugliesi/> Acesso em Janeiro de 2017.

Na categoria alimentação, as quatro publicações se referem a imagens de


sua alimentação diária, marcando sempre a empresa que a fornece, atualmen-
te, existem várias empresas que trabalham exclusivamente na produção de
alimentação fit; além de produtos que usa no dia-dia como suplementos ali-
mentares, sempre relacionando à empresa que o fabrica ou vende; entre outras.
Na imagem a seguir um exemplo de publicação que leva à publicidade do local
que vende e de um produto alimentício que Gabriela consome e também usa
no cabelo:

200
Figura 6: Publicação de Gabriela Pugliesi no Instagram falando sobre um produto que conso-
me diariamente em sua dieta e também usa para o cabelo. Disponível em
<https://www.instagram.com/gabrielapugliesi/> Acesso em Janeiro de 2017.

Na categoria treinos, as quatro publicações de Gabriela se referem a fotos


suas praticando exercícios em academias, ao ar livre, ou, ainda, vídeo dando
dicas de quais exercícios fazer e de que forma. Ao postar uma foto em uma
academia, por exemplo, a musa fitness marca não só a academia, mas também
as roupas que usa, fazendo publicidade em ambos os aspectos. Na imagem a
seguir um exemplo de publicação que leva à publicidade da academia em que
Grabriela treina, além da marca da roupas que usa:

201
Figura 7: Publicação de Gabriela Pugliesi no Instagram fazendo referência à academia em que
treina diariamente e à marca de roupas que usa. Disponível em <https://www.instagram.com/
gabrielapugliesi/> Acesso em Janeiro de 2017.

Na categoria cosméticos, as duas publicações encontradas se referem à pu-


blicidade para marcas de cosméticos como de protetores solares, bronzeado-
res, hidratantes, entre outros. Na imagem a seguir um exemplo de publicação
que leva à publicidade de uma marca de um produto para pele:

202
Figura 8: Publicação de Gabriela Pugliesi no Instagram fazendo referência a um produto que
usa para intensificar sua cor no verão. Disponível em <https://www.instagram.com/gabrie-
lapugliesi/> Acesso em Janeiro de 2017.

O Instagram, desde que possibilitou seu uso para propagandas, possui po-
líticas de publicidade para anúncios, no qual constam algumas regras a serem
seguidas pelas empresas interessadas em fazer anúncios no aplicativo. Entre
elas, quando uma postagem se refere a uma publicidade, o conteúdo deve ser
marcado com o rótulo “Patrocinado” acima da imagem, para que o usuário
fique sempre ciente do que é anúncio e do que não é.
Com relação aos anúncios de páginas verificadas, ou seja, as que possuem
o selo azul como a de Gabriela Pugliesi, devem marcar o patrocinador, marca
ou produto apresentado usando a ferramenta de conteúdo de marca. De acor-
do com a central de ajuda para anunciantes do aplicativo6, conteúdo de marca
é qualquer conteúdo de proprietários de páginas que apresentem patrocina-
dores, marcas ou produtos de terceiros; essas páginas são empresas de mídia,
celebridades ou outros formadores de opinião.
Na maioria das publicações analisadas, como se pode observar, Gabriela
faz publicidade de alguma marca, produto ou serviço. Ela utiliza bastante as
hashtags - palavra-chave precedida pelo símbolo #, recurso que torna o conte-
údo dos posts acessível a todas as pessoas com interesses semelhantes, mesmo

6 https://www.facebook.com/business/help/1569634613356213?helpref=faq_content

203
que elas não sejam suas seguidoras. Assim, o usuário, ao pesquisar por deter-
minada hashtag, o Instagram irá mostrar os posts de todos os usuários que
a utilizaram em suas postagens, ampliando o alcance das publicações para
milhares de outros de potenciais seguidores, fãs ou clientes.
No entanto, o uso indevido do aplicativo para fazer propaganda já gerou
problemas para Gabriela. De acordo com notícia7 publicada no site da Revista
Exame, em abril de 2016, o Conar – órgão que regulamenta a propaganda no
Brasil – teria concluído que uma publicação de Gabriela no Instagram, na qual
ela aparece segurando uma garrafa de uma marca de cerveja, se tratava de pro-
paganda velada, quando se passava por um post normal. Conforme o texto, a
musa fitness teria sido denunciada por consumidores e, após análise do post
pelo Conar, o órgão teria exigido mudanças no texto, para que ficasse claro
que o conteúdo se tratava de publicidade.
Em 2014, dois anos antes de este fato ocorrer, Gabriela já havia tido proble-
mas com suas publicações. Na época, de acordo com matéria8 publicada pela
UOL, usuários criaram a hashtag #explicapugli para questionar se os posts
sobre produtos recomendados por ela eram ou não são pagos. Na ocasião, em
entrevista concedida ao site, ela admitiu publicar conteúdo patrocinado em
seu perfil no Instagram, mas afirmou que comenta apenas produtos que “re-
almente gosta, usa e consome, mesmo quando é publicidade”. A musa fitness
também disse que quando um conteúdo é patrocinado, ela indica que se trata
de publicidade e usa a hashtag #publipost.
A linguagem utilizada por Gabriela nas mensagens de suas publicações
incentiva a busca da boa forma por meio da intensa prática de esportes, de uma
alimentação que considera “saudável”, além do consumo de diversos produtos,
serviços e marcas. Trata-se de um discurso predominantemente referencial,
com informações sobre alimentação, exercícios, locais que frequenta, produtos
que usa. No entanto, fica evidente também o uso da função conativa, já que as
“recomendações” de Gabriela são tomadas como “verdade” e um “manual de
boa forma” para seus seguidores em busca da magreza e de seu estilo de vida,
objetos de valor a serem conquistados.
A função referencial ou denotativa (Jakobson, 2008) privilegia o referente
da mensagem, transmite uma informação objetiva, expõe dados da realidade

7 http://exame.abril.com.br/marketing/pugliesi-e-julgada-pelo-conar-por-publicidade-velada/
8 https://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/02/14/gabriela-pugliesi-diz-que-reforca-
ra-a- sinalizacao-de-publiposts-em-sites.htm

204
de modo objetivo. Ela pode ser notada nas publicações de Gabriela, por exem-
plo, quando essas remetem ao site ou endereço eletrônico da marca do produto
que divulga, ou ainda quando passa informações objetivas sobre determinado
produto. No entanto, também é notório o uso intenso da função conativa ou
apelativa, na busca por persuadir e seduzir o receptor da mensagem, levando-o
a adotar este ou aquele comportamento. Nas publicações sobre alimentos que
consome, por exemplo, Gabriela não passa informações nutricionais sobre o
produto ou o seu valor comercial, mas seduz seu seguidor a adquiri-lo, pois irá
ajudá-lo a conquistar um corpo magro, como o dela.
Em diversas entrevistas, Gabriela afirmou que quando mais jovem se con-
siderava “gorda” e que a mudança do seu estilo de vida de sedentária e com
uma alimentação desregrada, para praticante de exercícios físicos e com ali-
mentação balanceada, conquistou seu corpo atual. Conhecendo sua história
de vida, seus seguidores no Instagram compram a ideia de que, seguindo todas
as dicas da musa fitness, também serão capazes de modificarem seus corpos e
seus estilos de vida.

Considerações finais

A proposta deste artigo foi verificar as estratégias publicitárias utilizadas


pela musa fitness no seu perfil na mídia social Instagram. Analisamos 100 pu-
blicações contínuas de Gabriela Pugliesi e, dessa amostra, 60% apresentava
algum tipo de estratégia para publicidade de produtos, marcas ou serviços,
enquanto apenas 40% eram publicações sem conteúdo publicitário.
O discurso publicitário está presente nas imagens publicadas nessa mídia
que promove um ideal de beleza e de boa forma, sugerido pelo consumo de mar-
cas de roupas de ginástica, cosméticos, alimentação e prática de exercícios tendo
como cenário uma vida familiar e amorosa perfeitas. No imaginário dos segui-
dores de Gabriela Pugliesi, o consumo das marcas e produtos indicados, além
de levarem à conquista do primeiro objeto de valor “corpo ideal”, representam
o desejo das seguidoras da Gabriela de uma vida familiar e amorosa perfeitas.
As publicidades no Instagram da musa fitness convergem com os conteú-
dos postados e nelas é possível a interação dos seguidores-consumidores com a
Gabriela Pugliesi, que dialoga tanto com Gabriela Pugliesi, como com a marca
ou produto que ela divulga, através da mídia digital. A publicidade ocorre no
ato de marcar a empresa na foto ou no vídeo, no uso das hashtags.

205
As fotos e vídeos publicados por si só estimulam os seguidores de Gabriela
ao consumo das marcas e produtos sugeridos; são muito bem editados, com
muitas cores, fatores que influenciam aguçando os sentidos dos consumido-
res. As mensagens que acompanham as publicações contribuem ainda mais
para reforçar o estímulo ao consumo, nas quais a musa apresenta dicas e con-
selhos, afirmando para seu seguidor que aquele produto faz parte de seu dia-
dia e é eficaz na busca por seus desejos.
Os usuários das redes sociais consomem mensagens publicitárias por
meio de relacionamentos, buscando informação, comunicando-se com os pro-
dutores de conteúdo e os seus seguidores numa plataforma social prazerosa,
divertida. Na era digital, com a convergência das mídias e possibilidade total
de interação e fluxo de comunicação, as marcas mudaram por completo a for-
ma de fazer publicidade. Antes, elas produziam exclusivamente para alcança-
rem seus consumidores e atraírem a sua atenção, agora, são os consumidores
que procuram as marcas e/ou interagem de diversas formas com elas, como é o
caso, por exemplo. Essa interação do seguidor-consumidor com a celebridade
Gabriela Plugliesi resulta no relacionamento com diversas marcas sem muitas
vezes perceber a exposição às marcas e sua influência na compra dos produtos
por ela informados.
A interação é uma das maiores aliadas da publicidade nas mídias digitais,
no caso das publicações dessa celebridade fitness, em que os seguidores com
seus comentários nos posts citam a marca publicizando e evidenciando espon-
taneamente e gratuitamente os produtos e anunciantes. Por exemplo, ao publi-
car uma imagem na qual indica o uso de um produto alimentício, que além de
utilizado no preparo de refeições, pode ser usado para o cabelo, uma seguidora
comenta: “Também uso o óleo de coco no cabelo e é mara!”, na sequência ela
responde para uma outra seguidora que pediu informações sobre como usar
o produto no cabelo: “Você passa no cabelo seco, fica quanto tempo desejar e
então lava, o efeito é imediato”. Para a marca que vende o produto, não existe
propaganda melhor do que a indicação de seus próprios consumidores.
Desta forma, constatou-se que o perfil de Gabriela Pugliesi no Instagram
vende seu estilo de vida o que a tornou uma das maiores formadoras de opi-
nião do ramo fitness, sucesso on-line em que as marcas estão com diversas
estratégias publicitárias. No entanto, deve-se observar que as redes sociais de-
vem ser usadas de forma consciente na veiculação de publicidade, principal-
mente quando as mensagens mercadológicas não deixam claro ao seguidor
que se trata de conteúdo publicitário.

206
O Código de Defesa do Consumidor, em seu Artigo 36, prevê que “A pu-
blicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediata-
mente, a identifique como tal” e Código de Ética do Conar, Artigo 28, dispõe
que “O anúncio deve ser claramente distinguido como tal, seja qual for a sua
forma ou meio de veiculação”. Desta forma, apenas marcar o patrocinador e
usar hashtag #publipost, pode ser insuficiente para atender ao que prevê a le-
gislação, porque, em geral, as hashtags são visualizadas apenas no fim do post.
O ideal é que os posts patrocinados venham sinalizados logo no início, ou seja,
com a indicação de publicidade no alto da própria imagem, para que ao pri-
meiro olhar sobre a publicação, o seguidor saiba de imediato que se trata de
uma publicidade.
Neste contexto, conclui-se que a publicidade na era digital adota diversas
estratégias que não eram possíveis na era analógica. O investimento em conte-
údos patrocinados no Instagram de celebridades é uma dessas estratégias, no
entanto, devem ser claramente identificadas, caso não sejam, são vistos como
propagandas veladas, como já ocorreu com Gabiela Publiesi no caso da marca
de cerveja, prática proibida por lei.

Referências

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208
SOBRE OS AUTORES

Ana Carolina Trindade


Bacharel em Relações Públicas pela Usc – Universidade do Sagrado Coração.
Membro do Grupo de Pesquisa Comunicação Midiática e Movimentos
Sociais – ComMov. Email: carolinatrin@gmail.com

Brunara Pereira Ascencio


Bacharel em Relações Públicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho, Faac – Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação.
Email: bru_ascencio@hotmail.com

Caroline Kraus Luvizotto


Doutora em Ciências Sociais. Professora do Departamento de Ciências
Humanas e do Programa de Pós-Graduação da Unesp – Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faac – Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação. Líder do Grupo de Pesquisa Comunicação Midiática e
Movimentos Sociais – ComMov. Email: caroline@faac.unesp.br

209
Claudio Bertolli Filho
Cientista social e historiador, docente do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação e do
Programa de Educação para a Ciência da Faculdade de Ciências, Unesp –
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Email: cbertolli@
faac.unesp.br

Danilo Rothberg
Livre-docente em Sociologia da Comunicação. Bacharel em Comunicação,
Mestre em Comunicação e Doutor em Sociologia pela Unesp. Professor do
Departamento de Ciências Humanas da Unesp – Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faac – Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação. Email: danilo@faac.unesp.br

Eli Vagner Francisco Rodrigues


Doutor em Filosofia pela Unicamp. Professor de Filosofia e Ética do
Departamento de Ciências Humanas da Faac - Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Docência para a
Educação Básica da Unesp – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho. Coordenador do grupo de pesquisa “Estética e crítica cultural”. Email:
elivagner@faac.unesp.br

Érika de Moraes
Docente vinculada ao departamento de Ciências Humanas da Faac -
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Unesp – Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Doutora em Linguística pelo IEL-
Unicamp, com ênfase em Análise do Discurso de linha francesa. Membro do
Centro de Pesquisa FEsTA. Email: erika.moraes@faac.unesp.br

Gabriela Sanches de Lima


Graduada em jornalismo pela Unesp – Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho. Mestranda em Comunicação pela mesma universidade.
Email: sanchesdelima@gmail.com

210
José Carlos Marques
Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac) da Universidade Estadual Paulista
(Unesp). Email: zeca.marques@faac.unesp.br.

Lidia Maria Viana Possas


Livre Docente em História, Relações de Gênero e Feminismos na América
Latina, Docente do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais e
Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero/LIEG –
da Unesp – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus
de Marília. Email: lidia.possas@uol.com.br

Lucilene dos Santos Gonzales


Doutora em Linguística. Professora do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Unesp – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho, Faac – Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. Email: lucile-
negonzales@uol.com.br

Marcelo Magalhães Bulhões


Livre-docente (Unesp) em Teoria Literária, Doutor em Literatura Brasileira
(Usp) e Mestre em Teoria Literária (Usp). É docente do Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Unesp – Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho e de cursos de Graduação da Faac – Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação, Unesp. Email: bulhoes@faac.unesp.br

Maria Angélica Seabra Rodrigues Martins


Doutora em Letras pela Unesp – Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho. Docente aposentada do Departamento de Ciências Humanas
da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Faac/Unesp. Email:
masrm@uol.com.br

211
Maximiliano Martín Vicente
Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unesp –
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faac – Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação. Livre Docente em História do Brasil e
Doutor em História Social pela USP. Email: maxvicente@uol.com.br

Natália Cristina Sganzella de Araujo


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp
– Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de
Marília. Mestre em Antropologia Social pela Ufscar. Membro do Laboratório
Interdisciplinar de Estudos de Gênero/LIEG – Unesp/Marília. Email: natalia.
sganzella@gmail.com

Neide Maria Carlos


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade
de Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac) da Universidade Estadual
Paulista (Unesp). Email: neidejornal@hotmail.com.

Vitória Alves de Sá
Bacharelanda em Comunicação: Relações Públicas pela Unesp – Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faac – Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação. Email: vi_alvesdesa@hotmail.com

Paola Ramos Afonso


Bacharel em Comunicação: Relações Públicas pela Unesp – Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faac – Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação. Email: paa.ramos@hotmail.com

212
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Sobre o livro
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213
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