“1”
“Acredito que mais algumas visitas e talvez você não precise mais de
mim, Wendy” disse Dr. John enquanto terminava de fazer anotações
em sua caderneta.
Wendy relaxou deitada no sofá de couro, já aquecido com seu corpo
acostumado a passar horas deitado ali conversando.
“Você sabe que eu adoraria continuar vindo para conversar com
você, John... mas o preço por hora me faz não querer conversar com
você nunca mais” Brincou Wendy com seu psicólogo e, já considerado,
amigo, devido ao tempo com que vem fazendo suas sessões com ele.
Por quase dois anos, Wendy esteve naquele consultório duas vezes
por semana. No começo ia obrigada por sua mãe, que sempre se
preocupou com seu medo excessivo e resolveu que não poderia mais
ignorar o problema depois da noite em que um telefonema a fez
levantar da cama às 3h da manhã e viajar de carro por 1h para ver o que
tinha acontecido com a filha na cidade vizinha, mas depois de algumas
consultas, reconheceu que aquilo realmente a estava ajudando. Aos
poucos ia conseguindo enfrentar o medo, e apagar algumas luzes da
casa.
“O que posso fazer? Eu faço muito bem o meu trabalho!” John riu,
“Você lembra como estava quando veio aqui à primeira vez? Eu cheguei
a pensar que se você não melhorasse bem rápido, iria ter que chamar os
caras da clínica e levar você daqui amarrada na camisa de força!
Agradeça aos meus anos de especialização por você estar aqui comigo,
ao invés de numa sala com colegas que pensam terem sido abduzidos,
ou que têm a certeza de ser algum animal.”
Os dois riram por um tempo. Wendy não podia discordar de John;
ela estava realmente mal quando chegou. Nas primeiras três visitas,
apenas chorava sem parar. John não conseguiu tirar nada dela além da
confirmação de que tinha Escotofobia, o medo excessivo do escuro.
Havia recebido alta do hospital um dia antes de estar sentada
naquela cadeira pela primeira vez chorando e implorando para quem
estivesse por perto para não deixá-la no escuro de novo, repetindo
incansavelmente a frase: “Não quero que ele me encontre!”. Quando
perguntavam quem era “ele”, Wendy apenas chorava mais alto. Nas
primeiras consultas, John apenas pode pedir para a família ficar por
perto até ela voltar a um estado controlável indo conversar com ele
algumas vezes.
Na segunda semana finalmente apareceram as primeiras palavras
que pareciam começar uma conversa de verdade “Não me lembro do
rosto dele”.
“E quem é ele?” perguntou John com o tom especial de psicólogos na
voz que aprendeu em seus anos de faculdade para não acabar
assustando a paciente e fazê-la mudar de assunto.
“Não sei quem ele é. Já não consigo me lembrar direito o que
aconteceu naquela noite. Tento me lembrar do rosto, e a imagem me
escapa sempre!” disse Wendy se esforçando para conter o choro e o
desespero em sua voz.
“Do que exatamente você se lembra? Conte-me com detalhes.”
Perguntou John enquanto pegava sua caderneta para anotar tudo o que
parecesse importante, e já pensando que não seria fácil.
“2”
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Agora, Wendy já estava bem melhor. John havia dito que sua fobia
estava sobre controle.
Já conseguia dormir melhor, apagar algumas luzes da casa e, o que
era mais importante, não teve mais surtos no meio da noite (o que
deixou sua mãe aliviada, que agora só ligava de vez em quando para
saber “como andam as coisas?”).
Wendy ainda estava no consultório quando percebeu que já era
quase 19h e o sol estava terminando de se por, se despediu de John,
sentindo que realmente aquela parte de sua vida estava chegando ao
fim. Daqui a três semanas, haveria um buraco em sua agenda no lugar
que costumava ficar o horário das consultas com o psicólogo, e seria
preenchido por mais horas de trabalho, provavelmente. Wendy até
estava pensando em chamar John para jantar algum dia, já que não
seria mais sua paciente e os dois não estariam quebrando nenhuma
relação psicólogo-paciente.
Wendy se despediu de John com um abraço e saiu pela porta da
frente indo para o seu carro. Olhou para a porta e John estava lá
acenando para ela. Deu um sorriso, acenou de volta e entrou no carro.
Com certeza tinha sido uma ótima idéia procurar ajuda para o seu
problema. Ligou o carro e saiu apressada. Odiava dirigir à noite.
“4”
“É, mãe... você estava certa. Eu realmente precisava lidar com isso.”
Pensou Wendy enquanto ia dirigindo para casa.
O sol já não estava mais no céu. Wendy reparava ter poucas pessoas
andando nas calçadas. Passou ao lado de um beco escuro e apesar do
impulso vertiginoso de confirmar o medo de ter alguém ali dentro das
sombras, olhando para ela, não desviou o olhar da estrada. Era isso o
que quase sempre fazia. Desviava do medo ao invés de se controlar e
enfrentá-lo. Wendy sabia que não deveria fazer isso, mas muitas vezes
não conseguia aguentar, o medo era muito maior.
Viu outro beco mais adiante e resolveu que dessa vez olharia,
provavelmente não teria nada e ela precisava fazer as coisas direito.
Conforme a sombra do beco se aproximava, Wendy ia tentando
manter a calma para cumprir a tarefa dada por ela mesma. Chegou um
pouco mais perto, e encarou a escuridão...
O beco não estava vazio; algo se mexia lá dentro e ia da penumbra
em direção à luz. A sombra se mexia com dificuldade, mas determinada
a sair da escuridão.
Wendy viu uma mão surgir do beco, se segurar no chão da calçada e
se esforçar para arrastar o resto do braço também para fora... Gritou e
olhou para frente, a tempo de ver as luzes vermelhas que avisavam a
hora de pisar no freio. Acabou encostando no carro a sua frente.
Enquanto o homem saía do carro para tirar satisfação com a “barbeira,
presta atenção na estrada sua louca!” e ver o estrago feito em seu carro
novinho, Wendy virou o rosto procurando o resto do corpo que
provavelmente tinha sido puxado para fora junto com aquele braço.
Nada. Nem mão, nem braço, muito menos um corpo inteiro podia
ser visto onde, pela lógica, deveria estar. Apenas um cachorro andava
na calçada junto ao beco sombrio.
O homem percebeu que a “barbeira” não estava prestando atenção e
nem se ofendendo pelo seu tão completo vocabulário-de-trânsito para
situações como essa e falou mais alto.
“Ei! Você é louca? Você podia ter destruído o meu carro!”
O grito chamou a atenção do cachorro na calçada, que latiu para os
dois carros parados em frente ao farol verde. Com isso Wendy voltou a
si e olhou para o homem parado na frente da sua janela.
“Me desculpe, senhor. Eu me distraí, é culpa minha, eu posso pagar
pelo estrago.” Disse Wendy com vergonha mas ainda num estado de
choque.
“É claro que foi culpa sua! Presta atenção na rua, sua louca!” Disse o
homem nervoso. Viu que agora suas palavras tinham atingido o alvo,
voltou para o carro satisfeito e saiu mesmo com o sinal estando
vermelho.
Wendy não falou nada, apenas pensou “Não! Não sou. Cheguei perto
de ser, mas não sou louca. Só estou cansada e preciso aprender a me
controlar mais para não transformar um cão em alguma criatura das
sombras de novo.” Balançou a cabeça e passou o sinal verde olhando
pelo retrovisor o cachorro entrar no beco deixado para trás.