FRANCAMENTE
Vinícius Bittencourt
Vinícius Bittencourt FALANDO FRANCAM ENTE
Vinícius Bittencourt
FALANDO
FRANCAMENTE
E D IÇ Ã O DO A U T O R
C opyright © 1a Edição 1999 by V inícius B ittencourt
Capa: Am arildo
R evisão gráfica: R om eu C aridade Cotta
E ditoração e fotolitos: C op iset Ltda. (co p iset@ clu be .inte rlin k.com .b r)
V in íc iu s B itte n co u rt
Rua D io n ís io R o s e n d o , 155, S ala 301, Ed. R e nata
Tel.: 2 2 3 -7 2 6 6 - V itó ria (ES)
À I n g r a t i d ã o qu e lib e rta ; qu e e x tin g u e
preocupações com a sorte dos ingratos; que reduz
nosso sofrimento com as dores alheias,
Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, iuzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!
O A uto r
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FALANDO FRANCAM ENTE
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ras, exercia um poder comparável ao da nobreza, nos idos do
Império. Ao povo, para sobreviver, só restava bajular aquela
casta de sibaritas. Ali vigorava o princípio: ‘TVIanda quem pode
e obedece quem tem juízo”.
Para aquela corja de velhacos e suas famílias tradicio
nais, que nada produziam, é que estavam reservadas as boas
coisas da vida. Habitavam mansões, tinham apartam entos em
Paris e Copacabana, desfilavam em automóveis de luxo, na
turalmente importados, porque no Brasil ainda não se fabrica
vam veículos motorizados. Até mesmo querosene e lâmpa
das elétricas vinham do exterior. Como o poder econômico
determina o poder político, aqueles plutocratas elegiam os go
vernantes, distribuíam cargos e comandavam a opinião públi
ca , nela implantando uma filosofia de subserviência e de de
voção incondicional. Subm etido a um permanente aviltam en
to, o povo não percebia a sua própria abjeção e endeusava
seus senhores. A imprensa, falada e escrita, aclamava aque
les sicofantas e debochava dos inconformados.
Ninguém, com alguma cultura e espírito crítico, po
deria contem plar com indiferença a torpe situação local, onde
imperava a mais escandalosa inversão de valores. Nas Facul
dades, os filhos da classe dominante tinham aprovação ga
rantida, enquanto os do povo dificilmente conseguiam ingres
sar. As moças mais bonitas também pertenciam àqueles privi
legiados. Na consciência do povo estava tão enraizada a con
vicção de sua vassalagem, que ele nada reivindicava, acei
tando com naturalidade todas as preterições e abusos. Não
foi sem razão, portanto, que Salvador produziu os mais ferre
nhos comunistas que existiram no país. Cedo compreendi que
não poderia permanecer naquela pocilga. Ainda resisti, por
algum tempo. Finalmente, porém, saí para não mais voltar.
Em Salvador, como disse Vargas Vila da terra onde
nasceu, o am or era de má qualidade e difícil. Como na época
a função social da mulher limitava-se à procriação e aos afa
zeres domésticos, as mães preparavam as filhas para casa
mentos rendosos, visando lucrar com esse expediente, ou,
quando nada, libertar-se do ônus de mantê-las. Envolviam as
filhas em um manto de preconceitos que as isolava do mundo
exterior, impedindo ou dificultando seu relacionam ento com
os jovens de sua preferência. Por isso, além de raras, as mo
ças bonitas eram inacessíveis, fúteís e pretensiosas. Eram
• bonecas oferecidas em licitação aos rebentos ou velhotes da
classe dominante. Seu destino inevitável era o dos casam en
tos de conveniência. As que nada conseguiam, tornavam-se
crentes ou devotas e dedicavam-se a falar ma! da vida alheia.
Não posso negar, todavia, que devo àquela cidade e
à época em que nasci a minha propensão para os livros. À
cidade, porque, em sua decadência, só lhe restava cultuar a
memória dos literatos que havia produzido. A lembrança de
Ruy Barbosa e Castro Alves era um estímulo permanente para
a juventude, sobretudo porque não havia como escapar à
mendicância senão através da elevação cultural. À época,
porque o romantismo, inerente às sociedades estagnadas,
nutria e confortava a mente dos jovens, fazendo-os viver em
doce enlevo, acreditando que a sublimação do espírito com
pensava todas as frustrações. A poesia e os romances de capa.
e espada eram dois entorpecentes que eles consumiam com
avidez. Flutuando nas nuvens, os jovens sonhavam, ignoran
do as mazelas do convívio social.
Esse amor aos livros compensou os acessos de vômi
to provocados pelo ambiente latrinário em que fui compelido a
viver em minha juventude. Os livros enriqueceram-me por den
tro, fazendo-me desprezar o mundo exterior. Embora a sabe
doria seja fonte de decepções e angústia, Schopenhauer justi
ficou sua opção pela cultura ao declarar que a Filosofia nada
lhe dera, mas o livrara de muita coisa. A ignorância, ao contrá
rio, é a origem das grandes catástrofes da humanidade. Com a
sabedoria, o homem não necessita buscar nos outros o que já
tem em si mesmo, e liberta-se da convivência social, que é,
sem dúvida, a causa de muitos infortúnios. Em razão da sua
vacuidade interior, o ignorante não suporta a solidão. Necessi
tando de companhia, expõe-se a relacionamentos deletérios.
É bem de ver que escrevo sobre Salvador apenas para
indicar os fatores ambientais que atuaram em meu espírito,
determinando, em parte, minha atual postura com relação a
meus semelhantes. Em um mundo que avança para a elimina
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ção de fronteiras, onde os países tendem a desaparecer em
função do império global das em presas multinacionais, seria
ridículo depreciar esta ou aquela cidade. Para mim, Salvador
vale tanto como Paris ou qualquer cubata africana. Os países,
as cidades e as coisas em geral não me interessam. Só me
empolgam as idéias e os teoremas. As mais belas cidades do
mundo podem deslumbrar os arquitetos e os turistas, mas não
respondem a indagações filosóficas. O que me interessa é a
espécie humana. Obviamente, Jesus e outros benfeitores va
lem mais do que os monumentos erguidos em seu louvor.
Ao contrário do poeta que cantou sua “infância queri
da, que os anos não trazem mais”, lembro-me com tristeza da
primeira etapa de minha vida. Assim como Nietzsche admitiu
em seu “eterno retorno”, e Trotsky em sua autobiografia, eu
também não tenho saudades da juventude e penso que essa
aversão ao passado seja uma característica dos espíritos me
ditativos. Neles há uma ânsia permanente de superação que
os obriga a desprestigiar a sua vivência anterior. Ademais, como
Schopenhauer advertiu, só a dor é positiva. Como esta prevale
ce sobre o prazer, esquecemos a alegria e só lembramos o
sofrimento. A experiência, alertando o homem a não repetir os
erros do passado, é também um antídoto contra o influxo do
saudosismo. Como deduziu Kierkegaard, aprendemos com o
passado, mas devemos viver olhando para o futuro.
Procurando interpretar a hum anidade e não apenas
os indivíduos, acostumei-me a desprezar os fatos e pessoas.
Por isso, não mencionarei nomes nesta análise, nem aludirei
a eventos que não estejam estritamente vinculados às teorias
respectivas. Meu escopo é revelar minha apreciação geral
sobre a humanidade. Para tanto, não necessito relatar minhas
andanças, fatos referentes à minha atividade profissional, nem
o que pude observar no convívio com meus semelhantes. Tam
bém não preciso narrar o que vi em meus contatos com a
miséria, com o serviço público, com os m eios de com unica
ção, com as leis e com tudo que influencia ou determina a
conduta humana. As pessoas individualm ente e os fatos em
particular não cabem em um resumo de conclusões teóricas,
relativas a mitos e instituições.
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Nunca acreditei que pudesse viver até o fim deste
milênio. Quando olho para o passado e lem bro-m e das pes
soas de minha geração, vejo um desfile de cadáveres. Perce
bo, ademais, que o próprio mundo de minha juventude tam
bém morreu. Na época em que nasci não.havia cinema fala
do, aviação comercial, penicilina, televisão, ciência nuclear,
computador, astronave, transplante de órgãos, pílula anticon
cepcional, clonagem, ciência genética e tantos outros recur
sos que alteraram profundamente a vida humana e o relacio
namento social. Como disseram Marx e Engels, o moinho a
vento cria uma sociedade e o cavalo-vapor outra diversa. A
revolução sexual e a liberação da mulher elim inaram precon
ceitos que, durante a minha juventude, m orbidizavam as rela
ções am orosas e fom entavam o crime passional.
No âmbito cultural, a transform ação foi verdadeira
mente fantástica. Com o advento da televisão e a amplitude
alcançada pela mídia eletrônica, os valores foram totalmente
invertidos. Hoje, não mais existem valores intrínsecos. Os
méritos pessoais dependem exclusivam ente da propaganda.
Sobretudo na música e na literatura, com prova-se o sucesso
de profissionais da mais baixa categoria. Indivíduos que nun
ca estudaram música e não têm voz alguma, são impingidos
como cantores e seus discos vendem-se aos milhões. Escri
tores vazios, que discorrem sobre temas banais, são os úni
cos que não dão prejuízo às editoras. Com a imensidão da
ignorância atual, a televisão fabrica bonifrates que o público
aplaude inconscientemente. Para os artistas, seja qual for o
seu virtuosismo, não existe mais qualquer possibilidade de êxito
sem o ostensivo patrocínio ou a colaboração da mídia.
Aliás, quando ainda não existia rádio ou televisão,
assim escreveu Thomas Jefferson: “Quem nunca lê jornais
está melhor informado do que aquele que lê, porque quem
nada sabe está mais perto da verdade do que aquele que tem
a mente cheia de erros e invencionices” . A mídia eletrônica e a
propaganda são as maiores calamidades da época atual. Ca
valgando a ignorância, o rádio e a televisão degradam os cos
tumes, distorcem os fatos, criam ídolos de fancaria, deificam o
lodo e avacalham o mérito. A propaganda, por seu turno, ludi
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bria o consum idor e extrai dos governos as verbas que deve
riam ser aplicadas em benefícios sociais. Em tributo à propa
ganda, o dinheiro que deveria fazer é gasto em anunciar que
já se fez ou pretende fazer. É notória também a coação que a
mídia exerce sobre as autoridades, cujas decisões passaram
a depender da expectativa de elogios ou difamação.
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mem, como os fatos com provam em demasia.
As mesmas atrocidades com etidas em épocas re
motas, continuam sendo praticadas, em proporções maiores,
pelos povos mais civilizados. O massacre dos cristãos foi um
evento insignificante,- em com paração com o holocausto dos
judeus, consumado em época recente. Por toda a parte, os
conflitos religiosos ou políticos têm produzido milhões de víti
mas. A própria existência, rotineira e pacífica das populações
urbanas, é diariamente conturbada pela sucessão de homicí
dios, assaltos, estupros, latrocínios e seqüestros. A todo ins
tante o homem exibe e com prova a sua índole predatória. Por
isso, segundo Bertrand Russeli, há mais sucesso em promo
ver o ódio do que a concórdia. E para Maquiavel, é mais segu
ro ser temido do que amado. O vam pirismo ou exploração do
homem pelo homem é uma contingência da vida comunitária,
porque o heiotismo é a simbiose normal da humanidade.
Erraríamos sempre se julgássem os a humanidade e
tudo o mais pelas exceções. Não se pode, por exemplo, julgar
a Igreja Católica pelos mártires do Cristianismo, nem os ho
mens pelos benfeitores. Essas exceções servem apenas para
confirmar a regra de que o homem, como disse Hobbes, é o
lobo do homem. A História da Civilização, com o observou Gi-
bbon, é a história dos grandes crimes da humanidade. Milhões
de pessoas já sucumbiram em guerras inúteis. Outros milhões
morreram e continuam morrendo de fome, por falta de solida
riedade dos que comem à tripa forra. A maldade é uma cons
tante na conduta humana. Essa maldição jam ais será exorci
zada. Nenhuma campanha educacional será capaz de erradi
car o egoísmo, porque ele é inerente à natureza humana.
Aceita essa premissa, que reputo fundamental, será
fácil deduzir que a humanidade jamais sairá do pântano em
que chafurda. Basta ver que todas as idéias redentoras, capa
zes de sublimar as relações humanas, são logo apropriadas
por demagogos e estelionatários que as subvertem e manipu
lam em função de seus interesses. A industrialização da fé e de
tudo o mais que serve de isca para pescar adeptos, evidencia a
índole utilitária do homem e seu propósito inequívoco de domi
nar e explorar seus semelhantes. Acenando com as delícias do
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paraíso ou ameaçando com as torturas do inferno, o homem
t cavalga os outros e locupleta-se com os dízimos ou doações
c da crendice. Hasteando a bandeira das transformações sociais
t e prometendo indenizar os espoliados, o demagogo alcança o
p poder político, para nele enriquecer e praticar abusos.
t
Sempre fui extrem am ente sensível às dores do mun-
|! do e encarei com repugnância os atos de violência ou grosse-
f ria. Mão podendo, porém, socorrer os aflitos, nem impedir os
i arroubos da prepotência, preferi afastar-me das pessoas, para
que seu sofrimento ou brutalidade não contaminassem meu
psiquismo e enlutassem minha existência. Para não sofrer
c dores alheias e não conviver com a tragédia humana, optei
c pelo bloqueio de minha afetividade, só admitindo relaciona-
c mentos que não implicassem em aderência ou vinculação sen-
s timental. Como resultado dessa conduta, comecei a perceber,
r intuir ou acreditar que eu e a maioria dos indivíduos não éra-
( mos da mesma espécie biológica. Só na aparência é que nos
j confundíamos. O mundo para mim passou a ser um jardim
zoológico onde convivem, sem vigilância efetiva, animais do-
^ mésticos e predadores.
A o andar pelas ruas, não vejo pessoas. Vejo animais
j de todas as espécies, que só adquirem personalidade após
isolados dos grupos em trânsito. Enquanto permanecem reu
nidos, são para mim rebanhos de bovinos, matilhas de cães,
' bandos de carneiros ou de porcos. Antes de dialogar com qual-
1 quer transeunte, não consigo distinguir a que espécie biológi-
( ca ele pertence. Só através da palavra é que posso saber se
I algum deles é da espécie humana. O que distingue o homem
( dos outros animais é a superioridade de sua inteligência. Se
, ele, por sua ignorância ou estupidez, permanece no mesmo
nível dos outros seres animados, não pode pretender uma clas
sificação diversa. Os seres que transitam pelas ruas, seduzi-
( dos pelas atrações mundanas e robotizados pela televisão,
< devem ser encarados como os outros animais, porque não os
< superam em inteligência ou raciocínio.
Ainda com relação ao sentimentalismo, invoco a li
ção do personagem de um romance de Pitigrilli que, quando
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sentia pena e socorria alguém, ensejava ao beneficiado a opor
tunidade de demonstrar-lhe ingratidão, para que pudesse, sem
remorso, livrar-se do sentim ento de piedade. De fato, nada
melhor para libertar-nos de dependências sentimentais do que
possibilitar ao necessitado, ao amigo ou à pessoa amada a
oportunidade de desnudar o seu caráter. Para o homem ido
so, aliás, nem mesmo é necessário percorrer as etapas que
levam do benefício à ingratidão. Basta lembrar-se de aconte
cimentos análogos para antecipar o que ocorreria se abrisse a
guarda. O bloqueio, portanto, é o único recurso disponível para
quem não deseja colecionar decepções. Quando, porém, as
súplicas do apelante vulnerarem esse bloqueio, o apelado verá
que, realmente, só a ingratidão liberta.
Embora houvesse dedicado grande parte de minha
vida ao estudo do delinqüente, das normas de cuítura e das
leis penais, sempre resisti ao apelo do crime. Em princípio,
porque dele nada poderia extrair, que atendesse às minhas
aspirações. O homícidio não me seduziu, porque, para os
inimigos, a maior punição é deixá-los conviver com sua peço-
nha. O crime contra a liberdade sexual expulsa o prazer, ine
rente à participação espontânea da fêmea cobiçada. O crime
contra o patrimônio não me aliciou, porque as coisas materi
ais não me fascinam e sempre foram mínimas as minhas ne
cessidades. Entretanto, como Hamlet também admitiu, sem
pre tive mais crimes em minha mente do que imaginação para
concebê-los, ou tempo para executá-los. Jamais tive, porém,
como ocorreu com ele, motivação para cometê-los. Nada devo,
pois, no particular, porque o pensam ento não paga imposto.
A elaboração de um tratado geral sobre a estupidez
humana é tarefa irrealizável. Para não imitar aqueles que já
abordaram esse tema e se perderam em sua vastidão oceâni
ca, devo restringir-me a uma rápida incursão na mitologia so
cial, emitindo apenas alguns conceitos sobre a crença em
deuses, nos governos e na justiça. Lateralmente, apreciarei
também a influência da mídia e dos preconceitos na mentali
dade do povo, que, submetido a pertinaz incubação, acaba
por proceder contra os seus próprios interesses. Tais fatores é
que merecem acurado estudo, porque já se sabe que o ho
. 23
mem não é confiável. Como dizem os curdos, o lobo é suspei
to, mesmo quando dorm e com fome. O que importa, pois, é
estudar as causas que atuam em seu psiquismo, a fim de com
preender as razões que o tornam destrutivo. Através dessa
compreensão, poderemos talvez justificá-lo.
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que, desde que nasce, o homem está sujeito a doenças, a
acidentes e a uma infinidade de perigos que o impelem a bus
car a proteção de uma divindade. Da covardia, porque o te
mor de um eventual castigo o força a bajular essa potência
invisível . Somente esses fatores podem explicar a razão de
uma crendice que não se arrima em qualquer princípio razoá
vel. Os livros religiosos e as pregações respectivas estão ei
vados de contradições, incoerências e fantasias que não re
sistem à mais superficial análise. Somente uma necessidade
inelutável de deixar-se iludir, pode forçar alguém a acreditar
nas fábulas que os religiosos propalam.
Mesmo assim, todo mundo reza e se ajoelha em sub
missão a um ente imaginário. Em toda parte erguem -se tem
plos faraônicos, para o culto de deuses de todas as espécies.
Os povos já adoraram o fogo, bezerros de ouro, serpentes e
até mesmo figuras monstruosas. Para aplacar a cólera divina,
muito sangue já foi derramado. Como as seitas religiosas são,
na realidade, partidos políticos, muitas guerras hegemônicas
já foram e continuam sendo deflagradas, com o sacrifício de
muitas vidas. Os crimes com etidos pelas facções religiosas
são os mais abomináveis da história da humanidade. O Teo-
cali, os rituais de magia negra e a incineração em praça públi
ca são símbolos da crueldade religiosa. Também execrável,
ainda que incruenta, é a doutrinação com que os industriais
da crendice conseguem estupidificar as multidões.
■"''Tão poderosa é a com pulsão da crendice que, quan
do um indivíduo consegue escapar de um acidente mortal,
logo abre a boca para dizer que Deus o salvou. Não lhe passa
pela cabeça que se Deus existisse e fosse onisciente, onipre
sente, onipotente e de infinita bondade, teria evitado o aciden
te. São comuns os desastres de veículos que transportam ro
meiros, e templos já desabaram sobre devotos, no exato mo
mento em que oravam ou pediam a proteção divina. Em todos
esses casos, os sobreviventes agradecem a Deus pelo salva
mento. Demonstrando claram ente que não confia na proteção
de Deus, o Papa atual, que já foi vítima de atentado homicida,
prefere exibir-se no interior de um carro blindado. A qualquer
objeção, todavia, responderá o crente que não nos cabe inda
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gar sobre a conduta de Deus e seus insondáveis desígnios.
Enquanto isso, iludindo a todos, fazendo espuma e
vendendo fumaça, uma legião de parasitas e vampiros, tra-
vestidos de sacerdotes, pastores, adivinhos e curandeiros,
forjando milagres e am eaçando com as chamas do inferno,
vão sugando dízimos e im becilizando o povo em geral. Duran
te os mil anos da Idade Média, as religiões conseguiram man
ter a Europa na mais completa ignorância. Foi a época das
pestes, atribuídas à maiícia do demônio, e a das Cruzadas,
instituídas a pretexto de libertar o Santo Sepulcro, mas, na
realidade, convocadas para a matança de maometanos e a
pilhagem de suas riquezas. A cupidez, a crueldade e a hipocri
sia são, conjunta ou isoladamente, as características m arcan
tes de todas as seitas religiosas. O que a elas realmente inte
ressa é o poder total sobre a mente e a fortuna dos beatos.
Uma das invenções clericais cuja difusão concorre para
desacreditar a fábula da existência de Deus é a da coexistência
do Diabo. Nenhum raciocínio lógico pode admitir a hipótese de
uma competição interminável entre um Deus que tudo pode e
um ser inferior que o afronta e consegue sobreviver eternamen
te. Inconcebível também é a admissão de que um Deus, de
infinita bondade, possa tolerar que seus filhos sejam atormen
tados por um ente maligno que ele, em sua onipotência, pode
ria destruir. Não há dúvida de que a Teogonia, a Teologia e a
Demonologia, imposturas que até hoje confundem o espírito
humano, são, como Mencken disse da Metafísica, “tentativas
de provar o inacreditável, apelando para o incompreensível.”
Somente a ingenuidade pode justificar a crença nos fantasmas
com que as religiões poluem a mente dos devotos.
Alega-se que as religiões civilizam os povos, abran
dando sua índole agressiva e fazendo-os proceder bondosa
mente, pelo tem or do castigo divino. Não é isso, porém, o que
a História da Civilização tem demonstrado. As guerras religio
sas já dizimaram populações inteiras. A doçura exibida pelos
crentes e devotos em suas relações públicas é contrastada
pela crueldade com que costumam tratar seus dependentes.
A intolerância, alimentada por preconceitos enraizados, blo
queia o raciocínio desses súcubos da doutrinação religiosa,
26
tornando-os receptivos às incubações do misticismo e imper
meáveis ou opacos para as noções de piedade, solidariedade
e amor ao próximo. Os crentes entendem que, cumpridas suas
obrigações rituais, podem praticar, contra seus semelhantes,
qualquer indignidade.
Uma simples com paração das vestes de Jesus com
a indumentária do Papa evidencia que, para reinar sobre a
estupidez humana, não é necessário, nem mesmo, velar pela
aparência. Para o povo é perfeitamente admissível que a pre
gação da humildade seja feita por quem mora em palácios e
usa vestes suntuosas. É possível também inculcar como sa
grado um livro sobre o qual assim escreveu Thomas Paine:
“Quando lemos as histórias obscenas, as libertinagens volu-
tuosas, as cruéis e traiçoeiras execuções, as vinganças impi
edosas, que enchem mais da metade da Bíblia, pensamos
que seria mais consistente chamá-la a palavra do demônio do
que a palavra de Deus. É um relato de perversidades que con
tribuem para corromper e em brutecer a humanidade” . O povo
quer ser iludido. Os padres e os pastores suprem essa carên
cia, fornecendo imposturas.
A história das religiões demonstra claramente que,
como também disse aquele pensador: “Todas as Igrejas, se
jam elas maometanas, judias ou cristãs, me parecem meras
invenções humanas, estabelecidas para am edrontrar e escra
vizar a humanidade e açambarcar as riquezas e o poder” . Nada,
porém, absolutamente nada, conseguirá jam ais erradicar do
espírito humano os estigmas da crendice. Na Rússia, onde os
cultos religiosos foram, por mais de setenta anos, cerceados
ou proibidos, as igrejas renascem agora em seu máximo es
plendor. A crendice, como o uso das drogas estupefacientes,
é uma dependência da qual poucos se libertam. Entretanto,
melhor seria se os crentes, abolindo Deus e dispensando os
profetas, criassem uma religião de princípios morais que os
obrigasse a proceder com dignidade em suas relações.
Em vez de esbanjar dinheiro em celebrações religio
sas, como ocorre nos festejos de Natal, quando fortunas são
gastas em banquetes, fogos de artifício, iluminações feéricas,
presentes e mensagens hipócritas, seria mais compatível com
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a doutrina cristã socorrer as crianças abandonadas, os famin
tos e os que padecem ou morrem por faita de remédios e assis
tência hospitalar. Nada, aliás, exibe melhor a índole bovina do
povo em geral do que o espetáculo de sua aglomeração nas
casas de comércio, nos dias que antecedem àqueles festejos.
É um verdadeiro estouro da boiada, determinado pela crendi
ce, pelo egoísmo familiar, pelo senso de imitação e pela propa
ganda. No dia de Natal é comum o beijo de Judas. Inimigos se
abraçam, mas a inimizade perdura. Tudo é falso, artificioso e
cerebrino, como o próprio Natal - dia do nascimento de Jesus -
que nem os historiadores sabem em que data ocorreu.
Para que as pessoas vivam como consta que Jesus
viveu, exprobrando a hipocrisia e praticando a caridade, a
crença em deuses é absolutam ente desnecessária. Basta que
reprimam seu egoísmo, suas am bições, sua maldade, e en
carem seus sem elhantes com o um prolongam ento de si mes
mas. Um policiam ento íntimo e severo de sua própria condu
ta e a crítica dos falsos valores que a sociedade cultua, são
mais úteis à convivência social e à sublim ação do espírito do
que a verborréia m endaz dos padres e dos pastores. Como
o próprio Jesus teria dito, nenhum valor moral tem a esmola
oferecida com ostentação, nem, como se deduz desse prin
cípio, a abstenção do mal para evitar o castigo divino ou a
prática do bem para a obtenção de crédito no paraíso. A reli
gião única e verdadeira, a religião do hum anitarism o, dis
pensa deuses, tem plos e oráculos.
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pende da receptividade dos eleitores aos apelos da dem ago
gia. Os prejuízos decorrentes de uma péssima escolha, só
devem, pois, ser debitados à cobiça ou à estupidez do povo.
A prática desse estelionato tem, sobre as demais, a
garantia da impunidade e a devoção dos logrados. O estelio-
natário ingressa na política porque, ao defraudar os cofres
públicos, a única penalidade a que se arrisca é a de ser perse
guido pelo ladrar dos que não conseguirem participar das fa l
catruas. Como, todavia, nem só de pão vive o homem, há os
que, aíém do enriquecimento ilícito, buscam na política a sa
tisfação dos mais variados interesses. O egoísmo, porém,
encoberto pela bandeira do hum anitarism o, é sem pre a moti
vação suprema, Como ocorre com as corporações religiosas
que exploram a crença em deuses inexistentes, os partidos
políticos buscam dinheiro, prestígio e poder, explorando a ig
norância. Pelo livre acesso ao patrim ônio público e pela certe
za da impunidade, a política é a via ideal para o sucesso.
Hoje, quando a mídia eletrônica faz a lavagem cere
bral dos povos e os manipula com o fantoches, não mais per
guntaria Chamfort de quantos tolos se precisa para form ar a
opinião pública. Atualmente, ele procuraria saber quais são os
índices de audiência do rádio e da televisão. Poucas pessoas
raciocinam. As demais, preferem delegar essa prerrogativa aos
locutores de rádio e de televisão que, por sua vez, veiculam o
que seus patrões determinam. E estes procedem de acordo
com os interesses de seus acionistas, anunciantes ou financi
adores. Às pessoas que não abdicaram do direito de racioci
nar, só resta o isolamento. Só assim poderão encarar com
desprezo a humanidade e criar um mundo interior, invulnerá
vel à poluição eletrônica e às cretinices de seus semelhantes.
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assassino. Mas afirmar que nunca serei condenado como la
drão ou assassino seria presunção”. Os crimes judiciários cos
tumam ser justificados pela traição das provas, pelo livre con
vencimento ou outra qualquer circunstância que assegure im
punidade a seus autores. Esses crimes não são sequer de
nunciados, porque a corporação judiciária, em toda parte, é
um dinossauro que a prudência aconselha a não desafiar.
Entretanto, disse Ruy que: “Os piores de todos os crimes, os
que mais atacam a moral pública e depõem contra a civiliza
ção de um povo, são as violências contra a lei pelos a quem
ela incumbiu de sua guarda”.
No âmbito da justiça civil, dizem os árabes que quem
ganha fica sem cam isa e quem perde fica nu. Para os chine
ses, vencer uma dem anda judicial é ganhar uma galinha e
perder uma vaca. Segundo Am broise Bierce, uma ação ju d i
cial é uma máquina onde se entra como porco e sai como
lingüiça. Na justiça criminal impera o princípio de que todo
homem é culpado até que prove ser influente. Sem um padri
nho e não som ente um patrono legal, o inocente corre o ris
co de ser condenado. Como a Rainha da Inglaterra, a lei rei
na, mas os ju ize s é que governam. Á sorte dos acusados
depende até mesmo da sim ples distribuição dos processos,
porque há juizes que tendem a condenar e outros a absol
ver. Há tam bém os que detestam crimes banais e são tole
rantes com crimes gravíssim os.
Na loteria forense, portanto, o destino dos acusados
depende da índole dos julgadores. E no processo criminal a
vitória é sempre negativa, porque consiste apenas em não
perdera liberdade. Perde-se, porém, os anéis, para salvar os
dedos. Em todo o mundo os anais judiciários registram deci
sões que nenhum sistema lógico poderia justificar. Os livros
de jurisprudência transcrevem, às vezes na mesma página,
ementas de arestos antagônicos que, como dizem os france
ses, uivam de susto por se encontrarem juntas. O tráfico de
influência comanda as decisões mais importantes dos órgãos
judiciários. Até mesmo as leis são atualmente ditadas pelos
meios de comunicação. À toda denúncia, veraz ou caluniosa,
veiculada com estardalhaço pela mídia eletrônica, segue-se
31
logo uma lei absurda. Quem comanda atualmente a ordem
jurídica é a televisão.
Os juizes, de modo geral, temem a publicidade nega
tiva. Mas, quando o noticiário os favorece, não costumam resis
tir ao apelo das gambiarras. A justiça, portanto, que eles distri
buem, está condicionada aos caprichos da mídia. Isto, aliás, é
o que acontece em todos os setores da administração pública.
O livro, fonte principal do conhecimento e de confrontação das
teses, foi banido pelo ópio eletrônico que, com suas imagens
coloridas, fascina os olhos e bloqueia o raciocínio. Sabendo
que a televisão faz a lavagem cerebral das multidões e que o
povo não tem capacidade de distinguir coisa alguma, os funcio
nários não se arriscam a enfrentar a opinião pública. Até mes
mo por comodismo, preferem navegar na onda da publicidade,
procedendo como melhor convier à sua reputação.
Aliás, muito antes do advento da televisão, quando a
publicidade estava restrita a jornais de circulação diminuta, já
dizia Flaubert que o espetáculo de um homem julgando outro
homem faria rebentar de riso se não fosse tão trágico. Embo
ra as leis tentem coibir o arbítrio judicial, há sempre como ilu
dir os seus ditames. Por isso, dizem os italianos que feita a lei
começa a trapaça. O desvio de finalidade, pois, é inerente aos
órgãos judiciários, como também ocorre com todos aqueles
que têm o poder de decidir sobre o patrimônio, a liberdade e a
vida dos cidadãos. A hipótese de substituição dos juizes por
computadores não solucionaria o eterno problema dos capri
chos, das prevaricações e das erronias, porque nem sempre
será um funcionário zeloso e imparcial o encarregado de ma
nipular os dados que conduzam ao julgamento. Ademais, os
fatores subjetivos, de suma importância nos casos criminais,
não podem ser computados.
32
com que promovem o nepotism o e abocanham frutos do tra
balho coletivo. Tais fam ílias só se interligam para aum entar os
tentáculos com que tencionam apreender novas riquezas ou
assegurar a posse dos privilégios já usurpados. São, portan
to, núcleos de desagregação social que só podem sobreviver,
como Marx e Engels advertiram, sob a condição de que a fa
mília proletária não possa existir. Como ocorre com as cance
rígenas, o conceito de célula, atribuído à família burguesa, só
seria admissível no âmbito da Oncologia.
Consta que quando disseram a Jesus que sua mãe e
seus irmãos queriam vê-lo, ele apontou para seus discípulos
e exclamou: “Minha mãe, meus irmãos, são os que ouvem a
minha palavra e a praticam ” . Sua família, pois, não era com
posta de seus parentes e sim de todos aqueles que seguis
sem a sua doutrina. Produzindo, às vezes, antagonismos como
o de Caim e Abel, os vínculos de parentesco devem ser repu
tados acidentais e conseqüentem ente inferiores aos que di-
manam da afinidade de sentim entos e da vinculação espontâ
nea. Assim construída, a verdadeira fam ília deixará de ser um
núcleo de interesses mesquinhos e poderá expandir-se, vin
culando pessoas de descendência heteróclita. As afeições
recíprocas e não o parentesco, devem ser consideradas como
os verdadeiros laços de família.
34
do para que todas as pessoas, sentindo-se em culpa, neces
sitem de penitências e absolvições. Sabendo que o apelo se
xual é irresistível, exploram essa fatalidade. Na época das In
dulgências, eles só perdoavam alguns relacionamentos ou atos
sexuai^ci troco de dinheiro.
Embora não possam mais, como na Idade Média,
impor seus preconceitos a ferro e fogo, o fato é que, apesar
de suas incoerências e contradições, os padres ainda influen
ciam muita gente. Dizem eles, por exemplo, que defendem a
vida quando combatem o aborto e os anticoncepcionais. En
tretanto, adotam o celibato e pregam a castidade para pode
rem debitar aos leigos o pecado da luxúria. Aviltam, portanto,
uma função naturalíssima, para que o povo os admire e se
submeta à sua autoridade. Só os tolos, porém, e os hipócritas,
aplaudem essa moral ridícula, que, se fosse por todos obede
cida, resultaria na extinção da espécie humana. Uma moral
que, segundo Nietzsche, vai contra a vida em todos os senti
dos. Como concluiu Vargas Vila, a castidade é, como todas as
virtudes, um vício disfarçado. Para ele, ser casto é ser horren
do, porque a castidade é um crime contra a Natureza.
Para Nietzsche, toda ação determinada pelo instinto
vital encontra no prazer a prova de sua legitimidade. Disso de
duzia que a pregação da castidade, por ser contrária àquele
instinto, é uma agressão à Natureza. Acrescentava que des
prezar o ato sexual, considerá-lo indecente, pecaminoso ou
impuro, é um atentado contra a essência da vida. Concluía que
o padre reina com a invenção do pecado, porque a invocação
da moral é o melhor artifício para levar a humanidade pelo na
riz. Para Pitigrilli, à mulher que ninguém deseja, resta o consolo
de ser moralista. O mesmo ocorre com os eunucos mentais ou
fisiológicos. Os hipócritas aplaudem os preconceitos relativos à
sexualidade, porque deles se servem para infamar a reputa
ção alheia. Só a velhacaria, porém, pode pretender que a hu
manidade considere imoral a sua própria origem.
Realmente, instituir o comportamento sexual como ín
dice de moralidade é uma patifaria. É um critério obsceno que
revela a protérvia dos censores e a ingenuidade dos que se
preocupam com a maledicência ou se submetem a essa torpe
35
i
avaliação. O simples fato de sermos, todos nós, produtos de
relações sexuais, deveria bastar para que ninguém admitisse a
infamação do ato que nos originou. A conjunção carnal entre
um homem e uma mulher que obedecem a uma atração recí
proca é um ato natural, instintivo e necessário. Ainda que com
prada ou fruída apenas por um dos parceiros, a cópula consen
tida é absolutamente incensurável. As fábulas do pecado origi
nal e da virgindade de Maria, concebidas para enaltecer a cas
tidade e denegrir o ato sexual, são patranhas que devem ser
escarnecidas ou simplesmente ignoradas.
O preço que a humanidade pagou e continua pagan
do pelos preconceitos relativos à sexualidade é verdadeira
mente incalculável. São incontáveis as vidas arruinadas pela
condenação do amor livre. Em holocausto a essa estupidez,
inúmeras jovens foram, no passado, expulsas de suas própri
as casas, entregaram-se à prostituição ou descambaram no
suicídio. Essa trágica situação ainda perdura em regiões onde
o povo, por sua passividade e ignorância, continua submetido
aos efeitos deletérios da castração psicológica. O ato sexual,
porém, não deveria jam ais ser censurado, porque nele não há
impureza alguma. Qualquer reprovação em torno da conduta
sexual é fruto da malícia, da hipocrisia e da torpeza dos cen
sores. Estes é que - por poluírem a mente das pessoas e
infelicitarem gerações - deveriam ser execrados e punidos.
36
que macula a sua reputação é a crença de que eles optaram
livremente pela inversão sexual.
Em vez disso, eles se entregam ao deboche e, na
companhia de pederastas ativos, estes sim, verdadeiros de
generados, expõem-se ao ridículo. Antigamente, como Stefan
Zweig retratou, os hom ossexuais viviam esm agados pelos
preconceitos e adotavam uma postura perm anente de humi
lhação. É claro que nenhuma dessas atitudes é admissível. A
primeira porque consiste em um exibicionism o torpe e extra
vagante. A outra porque importa na admissão de cuipa inexis
tente, uma vez que ninguém é censurável por uma conduta
involuntária. A hostilidade contra os pederastas passivos eqüi
vale às manifestações racistas que, ainda hoje, envergonham
a humanidade. A intolerância só se justifica contra os inverti
dos que se dedicam a corrom per menores ou a perturbar a
ordem pública, norma aliás aplicável a todos os indivíduos.
38
gamento pelo serviço que lhe prestam. As vestais familiares,
porém, concentram no homem suas am bições e pretendem
que ele satisfaça todos os seus caprichos. Atuam como o ic-
nêumone, cujas larvas devoram os tecidos do seu hospedei
ro. Mantêm permanente vigilância sobre a conduta do homem
e só aprovam as ações que a elas beneficiam. Condenam tudo
que não as favoreça ou concorra para libertar o prisioneiro.
Em suma, para concederem o que as putas vendem ao preço
de mercado, as moças de família simulam ingenuidade e pu
reza, iludem o homem com promessas de am or eterno e o
exploram a mais não poder. Para Don Juan, porém, que as
conhecia, elas eram “santas na igreja e macacas na cam a”.
40
circundante. Como isso raramente ocorre, pode-se afirmar que
a solidão é um estado negativo. Imuniza o indivíduo contra o
contágio social, mas suprime eventuais compensações. Para o
homem comum, a verdadeira fonte da felicidade é a ilusão. Sem
a valorização artificial das coisas, dos fatos e dos demais indiví
duos, ele não encontrará em si mesmo razão alguma para fes
tejar sua existência. Sem a ilusão ele será um animal como
qualquer outro, preocupado apenas em não morrer de fome.
Despidos de fantasias, os fatos, as coisas e os seus sem elhan
tes serão sempre aquilo que são, em sua triste realidade.
Exatamente por isso, consta dos Evangelhos que Je
sus teria dito: “ Bem-aventurados os pobres de espírito, por
que deles é o reino dos céus” . A realidade é sem pre cruel,
insossa ou desanímante. Embora a morte seja a única pro
messa que a vida cumpre, é necessário acreditar em tudo que
a vida promete. Corn as seguintes palavras, Anatole France
reconheceu a conveniência desse procedimento: “Am o a ver
dade. Creio que a hum anidade precisa dela. Necessita, po
rém, mais ainda, da mentira que a adula, consola, dá - lhe
esperanças ilimitadas. Sem a mentira a humanidade viveria
em desespero e pereceria de angústia”. Aespiritualidade, como
disse Augusto dos Anjos, é que “faz da cloaca uma urna de
perfume”. Sem embargo, pois, de tudo que foi acima argum en
tado sobre os mitos e instituições que governam os povos, o
fato é que, sem eles, o homem ignorante estaria perdido.
Como a galinha, que entre um grão de milho e um
diamante preferirá aquele, o homem sem ilusões desprezará
os mitos e verá em seus sem elhantes apenas os concorren
tes com os quais deve contender, em obediência à lei de sele
ção natural. Como disse Vargas Vila, am ar a mulher é am ar o
sonho que dela faz o coração. O mesmo ocorre com tudo o
mais. Todas as paixões gravitam em torno de fantasias que o
espírito humano concebe e desenvolve, na ânsia de adornar
uma existência, que, desnuda, seria simplesmente anim ales
ca. Quando o êxito não traz dinheiro, o ânimo de exceder em
; qualquer atividade, inclusive a intelectual, é também ilusório.
Nem mesmo a humildade, sincera ou encenada para provo
car admiração, escapa a essa tendência. Disse Sócrates a
41
Antístenes: “Através dos buracos de tua roupa, vejo a tua jac-
tância. Há orgulho dem ais em tua hum ildade”.
O segredo da felicidade consiste em acreditar em
Deus, nos padres, nos pastores, no amor, nos políticos, na
justiça e em todos os mitos que envolvem e dominam as mul
tidões. Em qualquer deles o espírito encontrará motivação para
regozijar-se. Para Nietzsche, acreditar no nada é mais confor
tável do que em nada acreditar. Ainda que seja a causa de
todas as mazelas da humanidade, a ignorância é um estado
de graç.a que deve ser conservado para que o homem possa
iludir-se e sentir-se feliz.-As pesquisas científicas e as indaga
ções filosóficas, tendentes a exorcizar os mitos que fascinam
a humanidade, só poderão conduzir o indivíduo a um estágio
de angústia e desespero. Em sua fragilidade e covardia o ho
mem necessita acreditar em proteções divinas, estatais ou
judiciárias, bem como no am or sentimental, para que possa
suportar a carga da vida.
Quanto ao am or sensual, disse Samuel Johnson que
se não fosse a imaginação o homem estaria tão feliz nos bra
ços de uma em pregada como nos braços de uma duquesa.
Na mente exaltada de Don Quixote, a labrega Dulcinéa fulgu-
rava como uma deidade. No deserto, a miragem anima os que
estão exaustos e sedentos. No mundo real, o valor das coisas
é igual ao custo de sua reprodução. No mundo ideal, porém,
as coisas valem o que im aginam os valer. O sentimento, pois,
de prosperidade, de êxito ou de realização, depende do vjjlor
que as pessoas atribuem às suas posses ou às suas conquis
tas. Disse um poeta que è impossível alcançar a felicidade
porque nunca a pomos, onde nós estamos. Mas, se fosse ad
missível uma im possibilidade relativa, esta seria evidente,
porque só os intelectuais colocam a felicidade além de seu
alcance. Os ignaros, com o as crianças, encontram a felicida
de em sua própria singeleza. ■
Como disse Montaigne, basta viver para ver tudo e
seu oposto. O egoísmo, porém, é uma constante na conduta
humana. Ainda que eloqüentes, os raros exemplos de pieda
de, caridade e altruísmo não absolvem a humanidade. Beijan
do o leproso, Francisco não extingue o egoísmo universal e
42
não redime as atrocidades do fanatismo. Para tolerara huma
nidade, o único recurso é ignorar suas mazelas. A meta a ser
alcançada é o paraíso dos tolos a que Milton aludiu. E a estrada
a percorrer é a valorização dos costumes, das futilidades e das
imposturas que fascinam os ignorantes. É preciso não indagar
jamais a causa ou a finalidade dos eventos mundanos, nem
pretender que o homem proceda com abnegação e honestida
de. Na vida, como nos presídios, é perigoso e inútil afrontar o
regulamento. Ao prisioneiro resta apenas obedecer, resignar-
se com a condenação e esperar o término da pena.
É necessário também não cultivar o ódio, porque, como
escreveu Dale Carnegie: "Quando odiamos nossos inimigos,
estamos dando-lhes poder sobre nós, sobre nosso sono, nosso
apetite, nossa pressão sanguínea, nossa saúde e nossa felici
dade. Eles dançariam de alegria se soubessem quanto nos es
tão aborrecendo” . Devemos tratar os inimigos como tratamos o
cão que morde ou o cavalo que escoceia. Basta considerá-los
como irracionais, para que não possamos odiá-los. Aliás, de
modo geral, os homens não devem ser tratados como mere
cem, porque, como inquiriu Shakespeare pela boca do Hamlet,
se assim procedêssemos: “Who should escape w hipping?”.
Embora visse “tudo e seu oposto” - mas não conhecendo o
leitor - Montaigne também concluiu que: “Não existe homem
algum que não mereça a forca, dez vezes na vida, se forem
submetidos à lei todos os seus pensamentos e ações” .
46
A Constituição dos Estados Unidos, em sua Quinta
Emenda, dispõe que ninguém será julgado mais de uma vez
peto mesmo crime. No Brasil, embora a Constituição garanta
a soberania dos veredictos, a lei ordinária admite que o réu
seja julgado duas vezes pelo mesmo fato. Sendo essa norma
evidentemente inconstitucional, é obvio que a soberania do
Júri vem sendo usurpada pelos tribunais togados. De tudo,
porém, que nos humilha em nosso sistema judiciário, o mais
lamentável é a sobrevivência do juiz singular, com o inadmis
sível poder de julgar crimes gravíssimos e aplicar penas equi
valentes ao confisco de vidas humanas.
Por isso, em meu livro “O Criminaíista” , diz o mestre
ao aluno: “Um povo que permite a um indivíduo julgar a outro
e condená-lo até mesmo a uma pena de trinta anos de prisão,
demonstra claramente seu desprezo pela personalidade hu
mana. O juiz monocrático, singular, que decide sozinho, com
o poder de confiscar anos da vida de um cidadão, é muito
mais temível do que a pena de morte, a ser imposta pelo Júri,
com recurso a outros tribunais. Um homem armado com a lei
penal, se for desonesto ou prepotente, é mais perigoso do
que uma quadrilha de m alfeitores” .
47
A ORATÓRIA
51
AS CAUSAS DO CRIME
54
A PENA DE MORTE
57
O DEVER DO ADVOGADO
61
O ERRO JUDICIÁRIO
65
O CRIME PASSIONAL
69
O SUICÍDIO
73
A FOME E A LEI
77
O CASO COLLOR
81
A M ANIA DE JULGAR
85
A LEI DE GRESHAM
89
A FELICIDADE POR DECRETO
93
A ADVO CAC IA CRIMINAL
97
O FRACASSO DO COMUNISMO
101
A-GUILHOTINA
105
A OPINIÃO PÚBLICA
109
O DIREITO DE M ORRER
113
O ETERNO RETORNO
117
A IGNORÂNCIA
121
AS LEÍS HEDIONDAS
125
A INTOLERÂNCIA
129
A HIPOCRISIA
133
O PODER DAS COISAS
137
O APELO DE TÂNATOS
141
A PQLUtÇÃQ PA MENTE
145
'O ÔPIO ELETRÔNICO
149
O FILHO DO HOMEM
153
OS DÍZIMOS DA CRENDICE
I!
157
O BORDÃO DOS EXTENUADOS
1(
ÍNDICE
P r e f á c io .................................................................................................. 9
F a la n d o F r a n c a m e n te .................................................................... 13
O T rib u n a l d o J ú r i .............................................................................. 45
A O r a t ó r ia ............................................................................................. 49
A s C a u s a s d o C r im e ....................................................................... 53
A P e n a d e M o rte ............................................................................... 55
O D e v e r d o A d v o g a d o .................................................................... 59
O E rro J u d ic iá r io ............................................................................... 63
O C rim e P a s s io n a l........................................................................... 67
O S u ic íd io ............................................................................................ 71
A F o m e e a L e i ................................................................................... 75
O C a s o C o llo r .................................................................................... 79
A M a n ia d e J u l g a r ............................................................................ 83
A L ei d e G re s h a m ............................................................................ 87
A F e iic id a d e p o r D e c r e t o ............................................................... 91
A A d v o c a c ia C r i m i n a ..................................................................... 95
O F ra c a s s o do C o m u n is m o ........................................................ 99
A G u ilh o t in a .......................................................................................... 1 0 3
A O p in iã o P ú b lic a .......................................................................
O D ire ito d e M o r r e r .......................................................................... 111
O E te rn o R e t o r n o .............................................................................. 115
A I g n o r â n c ia ........................................................................................ 119
A s L e is H e d io n d a s ........................................................................... 123
A I n t o le r â n c ia ....................................................................................1 2 7
A H ip o c r is ia ......................................................................................... 131
O P o d e r d a s C o is a s ..... ........................... ...................................... 135
O A p e lo d e T â n a to s .......................... ............................................. 139
A P o lu iç ã o d a M e n t e ....................................................................... 143
O Ó p io E le tr ô n ic o ............................................................................. 147
O F ilh o d o H o m e m ........................................................................... 1-51
O s D íz im o s d a C r e o d ic é ............................................................... 3 5 5
O B o rd ã o d o s E x t e n u a d o s ........................................................... 1 5 9
1&;
FALANDO FRANCAMENTE
Como disse o autor, os escritores convencionais costumam
partir do nada, percorrer o vácuo e chegar a lugar nenhum. Em
seus livros, a form a proscreve a substância. Fogem das idéias
como o diabo da cruz e dão como certo o que deveriam com pro
var. Cortejando os leitores, reverenciam os costumes, os precon
ceitos e as normas de cultura.
Este livro, porém, é um repertório de idéias explanadas com
franqueza e precisão dialética. Girando em torno dos princípios
de causalidade e identidade, a Filosofia não se submete às con
venções sociais, nem aos preconceitos. A ela interessa apenas o
ser e não a sua roupagem. Para ela, o que não está no ser não
está no mundo.
“Falando Francam ente” é um manancial de teses que m ere
cem reflexão e debate. Todos lucrarão com sua leitura, mesmo
que discordem das idéias, porque conhecerão melhor o que de
saprovam. Poderão, assim, corrigir ou reforçar suas convicções,
mediante a avaliação de teses antagônicas. A verdade emanará
dessa acareação ou litígio.
Embora contestáveis - com sofismas morais ou teológicos -
os argum entos são convincentes. Aos leitores, porém, compro
metidos com idéias opostas, melhor seria evitar contestação, por
que, como o autor admitiu, a ignorância é o portal da felicidade.
Sem ilusões, a vida seria insuportável. A sabedoria é fonte de
tristeza e desalento.
Conhecendo o autor, sei que ele não tem recalques. Além de
ser um advogado de renome, não se julga preterido em coisa
alguma. Sobre as ambições, aliás, advertiu em obra anterior
que “melhor do que ter é não querer”. Como livre pensador, ele
apenas sentiu a necessidade de dizer que os mitos e as conven
ções sociais não o empulharam.