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FALANDO

FRANCAMENTE
Vinícius Bittencourt
Vinícius Bittencourt FALANDO FRANCAM ENTE
Vinícius Bittencourt

FALANDO
FRANCAMENTE

E D IÇ Ã O DO A U T O R
C opyright © 1a Edição 1999 by V inícius B ittencourt

Capa: Am arildo
R evisão gráfica: R om eu C aridade Cotta
E ditoração e fotolitos: C op iset Ltda. (co p iset@ clu be .inte rlin k.com .b r)

D ire ito s d e s ta e d iç ã o re se rva d o s por:

V in íc iu s B itte n co u rt
Rua D io n ís io R o s e n d o , 155, S ala 301, Ed. R e nata
Tel.: 2 2 3 -7 2 6 6 - V itó ria (ES)
À I n g r a t i d ã o qu e lib e rta ; qu e e x tin g u e
preocupações com a sorte dos ingratos; que reduz
nosso sofrimento com as dores alheias,
Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, iuzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!

Augusto tios Anjos


PREFÁCIO

“Odeio este meu livro. Odeio-o de todo coração. Deu-


me essa pobre coisa que é a glória, mas deu-m e também
muitas misérias. Por sua causa conheci a prisão e o desterro,
a traição dos amigos, a má-fé dos adversários, o egoísmo e a
maldade dos homens. Dele nasceu a estúpida lenda que faz
de mim um ser cínico e cruel, uma espécie de Maquiavel na
pele do cardeal de Retz, quando sou apenas um escritor, um
artista, um homem livre que sofre mais com os males dos ou­
tros do que com os seus” . Assim iniciou Malaparte o prefácio
para a reedição de “ Técnica dei Colpo di Sta to", livro que o
incompatibilizou com o Fascismo.
Ao publicar, porém, numa época de ebulição política,
um livro que alertava sobre os métodos mais eficazes de usur-
pação do poder, é óbvio que o genial autor de “K a p u tf e "La
Pelle” não podia ignorar que sofreria retaliações. Mesmo em
tempos normais, a prudência recomenda a hipocrisia como
norma de conduta. Isto porque, como escreveu Kalil Gibran:
“Se falássemos a verdade durante cinco minutos, perdería­
mos nossos amigos; durante dez minutos, seriam os banidos;
durante quinze minutos, seriam os enforcados” . A franqueza é
um ultraje ao pudor, como a nudez humana em praça pública.
Ao falar francam ente sobre Deus, as religiões, os
governos, a justiça e a família, sei que me arrisco a ser difa­
mado pelos que lucram com alguma dessas entidades ou ins­
tituições e pelos que acreditam sinceram ente em sua existên­
cia ou pureza. Muito mais côm odo e vantajoso, ainda que avil­
tante, seria louvar as tradições e crendices, como fazem os
escritores convencionais e os que exploram a mitomania. Sei
que mil amigos é pouco e um inimigo é demais. Portanto, ao
emitir opinião sobre monstros sagrados, não tenho a intenção
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de acirrar contra mim a ira dos intolerantes, nem desviar de
sua rota espiritual os que preferem estagnar.
Sigo apenas uma das lições de Shakespeare, que,
no “H am le f, atribuiu a Polonius a seguinte advertência ao fi­
lho que partia: “ Isto acima de tudo, sê fiel a ti m esm o”. Res­
guarda-me também o fato de ser este um livro de ensaios que
só pode interessar às pessoas de cultura superior, acostum a­
das a avaliar sem preconceitos o mérito das idéias. Adem ais,
como provam a indicação dos autores e os trechos transcri­
tos, quase todos os tem as deste livro foram abordados, com
conclusões análogas, por filósofos e escritores de prestígio
universal. Os argum entos que não se arrimam em preceden­
tes famosos são de fácil intuição e acolhimento.
Somente um tolo pode pretender, com suas idéias,
reformar a sociedade. Segundo Ruy, a evolução social é “la­
boriosa e lenta como as estratificações geológicas”. Os costu­
mes e instituições vigentes resultaram de acom odações se­
culares que ninguém consegue revolucionar sem que fatores
naturais, sobretudo econôm icos, possibilitem transformações.
Os fatos precedem e determ inam as idéias. Enquanto os fatos
permanecerem inalterados, não há necessidade alguma de
patrulhar o pensamento. Sobretudo com relação ao culto de
divindades, porque este jam ais será erradicado. Até mesmo
quando a ciência descobrir a origem do Universo, ainda have­
rá quem acredite em deuses e duendes.
O que realmente me intriga é não saber, com ce
za, o motivo que me induz a escrever. A literatura, mormente a
erúdita, é uma arte falida. Os leitores são cada vez mais raros.
A receptividade das idéias impressas é insignificante em con­
fronto com o ópio colorido da televisão. Além disso, a esta
altura da vida, nem m esm o a “pobre coisa” a que Malaparte
aludiu, pode me interessar. Os elogios nada significam, por­
que, como Erasmo observou, Homero cantou as rãs; Virgílio,
o mosquito; Glauco, a injustiça; Favorino, as sezões; e Lucia-
no, o burro. Não me interessando a glória e não havendo pão
à espera deste livro, só posso atribuir a sua gestação à minha
incapacidade de digerir em bustes ou erronias.
Sabendo que já não existe opinião pública, mas ape­
nas o que a mídia impõe, e julgando, como Danton, que a pos­
teridade é uma tolice, estou certo de que “ Falando Francamen­
te" não foi redigido para agradar a primeira, nem para ensejar
elogios futuros. Minha conclusão, ainda que provisional, é a de
que obedeci instintivamente a uma injunção do meu am or pró­
prio, que me obrigou a dizer que a mitologia social não conse­
guiu me seduzir ou cooptar, Minha insurreição, porém, não é
excêntrica, caprichosa ou gratuita, porque está amparada em
argumentos incontestáveis, já esgrimidos por pensadores re~
nomados. Nada mais fiz, portanto, do que vulgarizar conceitos
que os eruditos não ignoram.
Meu niilismo não envolve, traduz ou reflete um desa­
gravo, porque, excetuada a angústia peias dores alheias, a
vida sempre me tratou com benevolência. No âm bito profissi­
onal, convivi com juizes honestos e colegas generosos. No
relacionamento social, conheci pessoas bondosas e sacerdo­
tes que acreditavam realmente nas fábulas que difundiam. De
modo gerai, as pessoas não me repeliram. Algum as até me
ajudaram. Nunca sofri de doença grave e não fui diretamente
alcançado por qualquer tragédia. Encarando o egoísmo como
uma injunção da Natureza e a maldade como uma doença,
não consigo odiar meus semelhantes. Posso, pois, sem res­
sentimentos, dizer o que penso da humanidade.
Além de “Falando Francamente”, o livro reproduz trinta
artigos de minha autoria, quase todos publicados pela imprensa.
Esses artigos abordam questões permanentes, de índole filosó­
fica, cujo debate aproveita a todos os leitores. Neles não se dis­
cute o sexo dos anjos, não há politiquice, questiúnculas em torno
de taxas, problemas de trânsito e melhorias urbanas, como se vê
diariamente nos jornais. Em seu conjunto, o livro é uma fonte de
indagação e um estímulo ao raciocínio. Sobre cada um dos te­
mas abordados, o leitor poderá pesquisar em jazidas mais pro­
missoras, construindo a sua própria doutrina e prevenindo-se
contra desvios ideológicos ou erros de julgamento.
As distonias ou contradições que forem percebidas
entre a argumentação de alguns artigos e a de “Falando Fran­
camente”, devem ser debitadas à própria índole das publica­
ções jornalísticas. Ao contrário do livro - que se destina a um
público raciocinante - o jornal, ao menos em sua parte literária,
inibe a franqueza e impõe concessões, a fim de que os mitôma-
nos não fiquem revoltados. Além disso, o tempo decorrido entre
as datas de publicação daqueles artigos e as da redação do
estudo em apreço, serviu para depurar minhas idéias e possibi­
litar a escolha de palavras que melhor traduzissem meu pensa­
mento. Por outro lado, há frases e conceitos repetidos no mate­
rial jornalístico e na análise. Isto, porém, demonstra minha ad­
miração pelos autores e mrrtha incapacidade de encontrar ou
produzir expressões mais certeiras e convincentes.
Para não incidir no vício dos escritores que costu­
mam partir do nada, percorrer o vácuo e chegar a lugar ne­
nhum, abordei apenas questões relevantes e sintetizei argu­
mentos, a fim de não confundir ou entediar o leitor. Em torno
dos assuntos aflorados já existe, na literatura mundial, uma
imensidão de livros que poderiam ainda ser infinitamente mul­
tiplicados. Bastariam os tem as da crendice, da política e da
justiça para consumir o papel de imprensa que atualmente se
produz. A prolixidade, todavia, é uma tendência que só os in­
gênuos e os ociosos podem tolerar. O excesso de palavras
indicia a mendacidade ou a insegurança do expositor. Mor­
mente quando o assunto é controverso ou de alta indagação,
impõe-se o máximo de clareza e objetividade. Esta foi a nor­
ma que adotei ao falar francam ente sobre temas cuja ilação
dominante envergonha a humanidade.
Embora a ignorância seja um estado de graça que
possibilita aceitar passivamente as injustiças sociais e atribuir
ao destino os infortúnios, o fato é que a dignidade exige a
ilustração, para que o homem não se confunda com os outros
animais. Com sua inteligência, infinitamente superior, o ho­
mem conseguiu efetuar, no âmbito da tecnologia, avanços
espantosos. Entre inúmeras realizações, conseguiu desinte­
grar o átomo, reproduzir animais em laboratório e conversar
com outra pessoa situada no espaço, fora do campo de gravi­
ta çã o de nosso planeta. Não se justifica, pois, que, no mundo
espiritual, ele permaneça nas trévas, submisso a preconcei­
tos e crendices que aviltam sua existência.

O A uto r

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FALANDO FRANCAM ENTE

As conclusões desta análise poderão provocar rea­


ções virulentas ou sim plesm ente atrair contra mim a antipatia
dos que não toleram contestação. Minhas convicções, toda­
via, impelem-me a arrostar com as conseqüências deste pro­
nunciamento, cuja utilidade será reconhecida pelos que bus­
cam esclarecimento e estão dispostos a reavaliar o mérito de
suas próprias opiniões. Nenhum desejo de causar sensacio-
nalismo ou de agredir instituições me anima a expor as idéias
que serão comentadas a seguir. O fato de não professar qual­
quer religião e não estar vinculado a corporação alguma, pos-
sibilita-me apreciar livremente os tem as que logo serão abor­
dados com sinceridade e franqueza. A inda que possam desa­
gradara muitos, ninguém negará que minhas conclusões cons­
tituem um estímulo e um desafio à meditação.
Sei que a Lua não é a mesma coisa para um astrôno­
mo, um camponês, um poeta_pu um menino. Se julgasse, pois,
que minha visão do mundo e minha interpretação da vida fo s­
sem iguais à visão e interpretação de meus semelhantes, é
óbvio que não me animaria a encetar este trabalho. Seria cho­
ver no molhado, matar o leão morto ou arrom bar uma porta
aberta. Poucos, todavia, são os que puderam estudar, e insig­
nificante é o número dos que indagam sobre sua própria ori­
gem, seu psiquismo, suas relações sociais e sobre o mundo
em que vivem. A imensa maioria subm ete-se às injunções da
crendice e à lavagem cerebral da mídia, absorvendo concep­
ções errôneas e abdicando de raciocinar. A verdade, porém,
deve ser dita para todos, ainda que poucos se interessem em
mudar de opinião ou corrigir suas próprias erronias.
Apesar de minha descrença na lucidez da humanida-
i

de, sempre ouvi com interesse a opinião de qualquer pessoa,


ti porque, como dizia Churchill, uma das coisas mais surpreen-
c dentes é que, às vezes, os tolos estão certos. Não me censu-
I, ro pelos erros que com eti ao longo de minha vida, porque
aprendi com Schopenhauer que tudo que acontece, acontece
necessariamente. Fossem, portanto, menos com pulsórias as
t circunstâncias que ensejaram meus equívocos, nada haveria
em meu passado que eu devesse lamentar. Por isso, basta a
F lembrança dos fatores que ocasionaram meus tropeços, para
ii que eu reconheça a impossibilidade de haver procedido de
modo diverso. Como Espinosa lecionou, o livre arbítrio resu-
me-se na ignorância das causas que o determinam.
£ No decurso desta análise e sobretudo em seu térmi-
c no, ficará bastante claro que embora a ignorância seja humi-
c lhante, a opção pela sabedoria não é recomendável. Como reza
s o Eclesiastes, quem aumenta sua sabedoria aumenta sua tris­
teza. Não há como fugir dos angusfos limites deste trágico dile­
ma. Estamos condenados a viver na cegueira ou atormentados
pelo excesso de luz, que, penetrando nas coisas, nas pessoas
e nas idéias, reflete um mundo sem adornos. Quem busca a
sabedoria está renunciando a tudo que encanta a vida dos ig­
norantes. Reputará como fúteis ou ridículas as festas e soleni-
dades. Sentirá repugnância por tudo que as multidões aplau­
dem. Considerará com extrema reserva as relações amorosas.
Não participará jam ais como figurante no teatro da vida, onde
será sempre um espectador descrente e taciturno. Encontrará
satisfação apenas nas verdades que confirma o t f descobre.

Nasci em Salvador, numa época em que o Brasil era


ainda um país feudal e aquela cidade vivia das glórias de ter
sido a capital da Colônia. No âmbito cultural, todavia, ela con­
servava seu anterior prestígio, embora em tudo mais estives­
se em fragorosa decadência. Em minha juventude, a socieda­
de que ali existia era uma das mais sórdidas do planeta. Sua
população era com posta de mulatos pernósticos, brancos ar­
ruinados, e de descendentes de escravos africanos. Sobre ela,
uma casta de ociosos que vivia de renda, sinecuras, peculato,
transações imobiliárias, agiotagem e especulações financei-

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ras, exercia um poder comparável ao da nobreza, nos idos do
Império. Ao povo, para sobreviver, só restava bajular aquela
casta de sibaritas. Ali vigorava o princípio: ‘TVIanda quem pode
e obedece quem tem juízo”.
Para aquela corja de velhacos e suas famílias tradicio­
nais, que nada produziam, é que estavam reservadas as boas
coisas da vida. Habitavam mansões, tinham apartam entos em
Paris e Copacabana, desfilavam em automóveis de luxo, na­
turalmente importados, porque no Brasil ainda não se fabrica­
vam veículos motorizados. Até mesmo querosene e lâmpa­
das elétricas vinham do exterior. Como o poder econômico
determina o poder político, aqueles plutocratas elegiam os go­
vernantes, distribuíam cargos e comandavam a opinião públi­
ca , nela implantando uma filosofia de subserviência e de de­
voção incondicional. Subm etido a um permanente aviltam en­
to, o povo não percebia a sua própria abjeção e endeusava
seus senhores. A imprensa, falada e escrita, aclamava aque­
les sicofantas e debochava dos inconformados.
Ninguém, com alguma cultura e espírito crítico, po­
deria contem plar com indiferença a torpe situação local, onde
imperava a mais escandalosa inversão de valores. Nas Facul­
dades, os filhos da classe dominante tinham aprovação ga­
rantida, enquanto os do povo dificilmente conseguiam ingres­
sar. As moças mais bonitas também pertenciam àqueles privi­
legiados. Na consciência do povo estava tão enraizada a con­
vicção de sua vassalagem, que ele nada reivindicava, acei­
tando com naturalidade todas as preterições e abusos. Não
foi sem razão, portanto, que Salvador produziu os mais ferre­
nhos comunistas que existiram no país. Cedo compreendi que
não poderia permanecer naquela pocilga. Ainda resisti, por
algum tempo. Finalmente, porém, saí para não mais voltar.
Em Salvador, como disse Vargas Vila da terra onde
nasceu, o am or era de má qualidade e difícil. Como na época
a função social da mulher limitava-se à procriação e aos afa­
zeres domésticos, as mães preparavam as filhas para casa­
mentos rendosos, visando lucrar com esse expediente, ou,
quando nada, libertar-se do ônus de mantê-las. Envolviam as
filhas em um manto de preconceitos que as isolava do mundo
exterior, impedindo ou dificultando seu relacionam ento com
os jovens de sua preferência. Por isso, além de raras, as mo
ças bonitas eram inacessíveis, fúteís e pretensiosas. Eram
• bonecas oferecidas em licitação aos rebentos ou velhotes da
classe dominante. Seu destino inevitável era o dos casam en­
tos de conveniência. As que nada conseguiam, tornavam-se
crentes ou devotas e dedicavam-se a falar ma! da vida alheia.
Não posso negar, todavia, que devo àquela cidade e
à época em que nasci a minha propensão para os livros. À
cidade, porque, em sua decadência, só lhe restava cultuar a
memória dos literatos que havia produzido. A lembrança de
Ruy Barbosa e Castro Alves era um estímulo permanente para
a juventude, sobretudo porque não havia como escapar à
mendicância senão através da elevação cultural. À época,
porque o romantismo, inerente às sociedades estagnadas,
nutria e confortava a mente dos jovens, fazendo-os viver em
doce enlevo, acreditando que a sublimação do espírito com­
pensava todas as frustrações. A poesia e os romances de capa.
e espada eram dois entorpecentes que eles consumiam com
avidez. Flutuando nas nuvens, os jovens sonhavam, ignoran­
do as mazelas do convívio social.
Esse amor aos livros compensou os acessos de vômi­
to provocados pelo ambiente latrinário em que fui compelido a
viver em minha juventude. Os livros enriqueceram-me por den­
tro, fazendo-me desprezar o mundo exterior. Embora a sabe­
doria seja fonte de decepções e angústia, Schopenhauer justi­
ficou sua opção pela cultura ao declarar que a Filosofia nada
lhe dera, mas o livrara de muita coisa. A ignorância, ao contrá­
rio, é a origem das grandes catástrofes da humanidade. Com a
sabedoria, o homem não necessita buscar nos outros o que já
tem em si mesmo, e liberta-se da convivência social, que é,
sem dúvida, a causa de muitos infortúnios. Em razão da sua
vacuidade interior, o ignorante não suporta a solidão. Necessi­
tando de companhia, expõe-se a relacionamentos deletérios.
É bem de ver que escrevo sobre Salvador apenas para
indicar os fatores ambientais que atuaram em meu espírito,
determinando, em parte, minha atual postura com relação a
meus semelhantes. Em um mundo que avança para a elimina­

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ção de fronteiras, onde os países tendem a desaparecer em
função do império global das em presas multinacionais, seria
ridículo depreciar esta ou aquela cidade. Para mim, Salvador
vale tanto como Paris ou qualquer cubata africana. Os países,
as cidades e as coisas em geral não me interessam. Só me
empolgam as idéias e os teoremas. As mais belas cidades do
mundo podem deslumbrar os arquitetos e os turistas, mas não
respondem a indagações filosóficas. O que me interessa é a
espécie humana. Obviamente, Jesus e outros benfeitores va­
lem mais do que os monumentos erguidos em seu louvor.
Ao contrário do poeta que cantou sua “infância queri­
da, que os anos não trazem mais”, lembro-me com tristeza da
primeira etapa de minha vida. Assim como Nietzsche admitiu
em seu “eterno retorno”, e Trotsky em sua autobiografia, eu
também não tenho saudades da juventude e penso que essa
aversão ao passado seja uma característica dos espíritos me­
ditativos. Neles há uma ânsia permanente de superação que
os obriga a desprestigiar a sua vivência anterior. Ademais, como
Schopenhauer advertiu, só a dor é positiva. Como esta prevale­
ce sobre o prazer, esquecemos a alegria e só lembramos o
sofrimento. A experiência, alertando o homem a não repetir os
erros do passado, é também um antídoto contra o influxo do
saudosismo. Como deduziu Kierkegaard, aprendemos com o
passado, mas devemos viver olhando para o futuro.
Procurando interpretar a hum anidade e não apenas
os indivíduos, acostumei-me a desprezar os fatos e pessoas.
Por isso, não mencionarei nomes nesta análise, nem aludirei
a eventos que não estejam estritamente vinculados às teorias
respectivas. Meu escopo é revelar minha apreciação geral
sobre a humanidade. Para tanto, não necessito relatar minhas
andanças, fatos referentes à minha atividade profissional, nem
o que pude observar no convívio com meus semelhantes. Tam­
bém não preciso narrar o que vi em meus contatos com a
miséria, com o serviço público, com os m eios de com unica­
ção, com as leis e com tudo que influencia ou determina a
conduta humana. As pessoas individualm ente e os fatos em
particular não cabem em um resumo de conclusões teóricas,
relativas a mitos e instituições.
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Nunca acreditei que pudesse viver até o fim deste
milênio. Quando olho para o passado e lem bro-m e das pes­
soas de minha geração, vejo um desfile de cadáveres. Perce­
bo, ademais, que o próprio mundo de minha juventude tam ­
bém morreu. Na época em que nasci não.havia cinema fala­
do, aviação comercial, penicilina, televisão, ciência nuclear,
computador, astronave, transplante de órgãos, pílula anticon­
cepcional, clonagem, ciência genética e tantos outros recur­
sos que alteraram profundamente a vida humana e o relacio­
namento social. Como disseram Marx e Engels, o moinho a
vento cria uma sociedade e o cavalo-vapor outra diversa. A
revolução sexual e a liberação da mulher elim inaram precon­
ceitos que, durante a minha juventude, m orbidizavam as rela­
ções am orosas e fom entavam o crime passional.
No âmbito cultural, a transform ação foi verdadeira­
mente fantástica. Com o advento da televisão e a amplitude
alcançada pela mídia eletrônica, os valores foram totalmente
invertidos. Hoje, não mais existem valores intrínsecos. Os
méritos pessoais dependem exclusivam ente da propaganda.
Sobretudo na música e na literatura, com prova-se o sucesso
de profissionais da mais baixa categoria. Indivíduos que nun­
ca estudaram música e não têm voz alguma, são impingidos
como cantores e seus discos vendem-se aos milhões. Escri­
tores vazios, que discorrem sobre temas banais, são os úni­
cos que não dão prejuízo às editoras. Com a imensidão da
ignorância atual, a televisão fabrica bonifrates que o público
aplaude inconscientemente. Para os artistas, seja qual for o
seu virtuosismo, não existe mais qualquer possibilidade de êxito
sem o ostensivo patrocínio ou a colaboração da mídia.
Aliás, quando ainda não existia rádio ou televisão,
assim escreveu Thomas Jefferson: “Quem nunca lê jornais
está melhor informado do que aquele que lê, porque quem
nada sabe está mais perto da verdade do que aquele que tem
a mente cheia de erros e invencionices” . A mídia eletrônica e a
propaganda são as maiores calamidades da época atual. Ca­
valgando a ignorância, o rádio e a televisão degradam os cos­
tumes, distorcem os fatos, criam ídolos de fancaria, deificam o
lodo e avacalham o mérito. A propaganda, por seu turno, ludi­

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bria o consum idor e extrai dos governos as verbas que deve­
riam ser aplicadas em benefícios sociais. Em tributo à propa­
ganda, o dinheiro que deveria fazer é gasto em anunciar que
já se fez ou pretende fazer. É notória também a coação que a
mídia exerce sobre as autoridades, cujas decisões passaram
a depender da expectativa de elogios ou difamação.

Tudo mudou, mas o-homem é sem pre o mesmo. No


mundo das ideologias é o Midas da putrefação. O que ele toca,
logo apodrece. Basta ver o que ocorreu com as idéias genero­
sas do Cristianismo, da Revolução Francesa e da Revolução
Soviética. Na política, na religião, na distribuição da justiça, na
administração pública ou em outra qualquer missão, o homem
tudo subverte. Sobre ele atuam poderosam ente os sete peca­
dos capitais, fazendo-o proceder em função exclusiva de seus
próprios interesses. Nada, absolutamente nada, resiste à sua
ação predatória. A corrupção é invencível. Todos os que con­
tra ela se insurgiram acabaram mortos, banidos, na cadeia,
ou simplesmente difamados. É clássica a conclusão de Lord
Acton, no sentido de que todo poder corrompe, e o poder ab­
soluto corrompe absolutamente.
A Revolução Francesa acenava com a liberdade, a
igualdade e a fraternidade. Mas descambou na corrupção do
Diretório e desaguou na tirania de Bonaparte. A Soviética pro­
metia acabar com o antagonismo de classes e a exploração do
homem pelo homem. Intensificou, porém, esse antagonismo e
essa exploração, criando uma nova classe de privilegiados, a
dos funcionários do Partido Comunista, que passou a escravi­
zar o resto da população. O Cristianismo pregava a humildade,
o ascetismo e a caridade. Os fariseus, todavia, apropriaram-se
da doutrina do profeta e continuaram a viver corrio antes, cultuan­
do a hipocrisia e explorando a humanidade. Por isso, Nietzsche
observou que: “O Evangelho morreu na cruz”. E como disse
Ruy: “O que ficou é uma simbólica sem alma e sem verdade,
pasto à credulidade das classes ignorantes e manto ao cepti-
cismo dissimulado e calculista da minoria ilustrada".
As exceções só servem para confirmar as regras ge­
rais. Como adverte a lei sociológica de Gustave Le Bon: “Nos
19
; :í:ii

grupos humanos a média da moral é constante”. Há sempre,


em todos eles, patifes e benfeitores. O número, porém, dos
últimos, é tão insignificante que não modifica o conceito do
c grupo. No homem, o egoísm o é inato e raramente pode ser
atenuado pela educação ou restringido pelas cominações le-
P gais. O homem é um animal e, como todos os outros, luta por
ti sua sobrevivência. Busca instintivamente uma vida de confor-
ií to e luxúria que só pode ser alcançada com o sacrifício de
P seus semelhantes. A simples existência dos organismos poli-
i! ciais e judiciários evidencia que a maldade humana precisa
ser submetida a permanente vigilância.
Nenhum animal é mais perigoso do que o homem,
c Nenhuma outra espécie tem o seu poder destrutivo. O animal
c selvagem contenta-se em matar para alimentar-se. O homem
mata por uma infinidade de motivos. E o faz em escala colos­
sal. Com sua inteligência, imensamente superior a de todos
os outros animais, o homem não exibe sua maldade apenas
durante as guerras ou nas chacinas que, em tempo de paz,
€ ocorrem nas metrópoles. Esgrimindo a perfídia e outros meios
I de trapacear, o homem busca ascender em todas as comu-
ç nas, para comer o pão com o suor do rosto alheio e desfrutar
de todos os prazeres. Ludibriando eleitores, explorando a cren­
dice religiosa ou simplesmente fraudando compromissos, o
1 homem esbulha os frutos do trabalho individual ou coletivo.
< Como disse Ghandi, a Terra tem bastante para a ne-
1 cessidade do homem, rrp s não para a sua cupidez. O que se
gasta em material bélico e em futilidades, daria para alimentar
bilhões de indivíduos e erradicar todas as doenças. Aplicada
na produção, a fortuna dilapidada em aviões de caça, bom­
bardeiros, mísseis, canhões, metralhadoras, torpedos, cruza­
dores e submarinos, daria de sobra para garantir alimentação
a toda a humanidade. O que se desperdiça em festejos ridícu­
los, automóveis de luxo e jóias inúteis, bastaria para financiar
pesquisas científicas que eliminariam as causas de todas as
enfermidades. A simples conduta individual, orientada no sen­
tido do bem comum, determinaria uma revisão total dos con­
ceitos de moralidade que denigrem a nossa espécie. Isso,
porém, é absolutamente incompatível com a vocação do ho-

20
mem, como os fatos com provam em demasia.
As mesmas atrocidades com etidas em épocas re­
motas, continuam sendo praticadas, em proporções maiores,
pelos povos mais civilizados. O massacre dos cristãos foi um
evento insignificante,- em com paração com o holocausto dos
judeus, consumado em época recente. Por toda a parte, os
conflitos religiosos ou políticos têm produzido milhões de víti­
mas. A própria existência, rotineira e pacífica das populações
urbanas, é diariamente conturbada pela sucessão de homicí­
dios, assaltos, estupros, latrocínios e seqüestros. A todo ins­
tante o homem exibe e com prova a sua índole predatória. Por
isso, segundo Bertrand Russeli, há mais sucesso em promo­
ver o ódio do que a concórdia. E para Maquiavel, é mais segu­
ro ser temido do que amado. O vam pirismo ou exploração do
homem pelo homem é uma contingência da vida comunitária,
porque o heiotismo é a simbiose normal da humanidade.
Erraríamos sempre se julgássem os a humanidade e
tudo o mais pelas exceções. Não se pode, por exemplo, julgar
a Igreja Católica pelos mártires do Cristianismo, nem os ho­
mens pelos benfeitores. Essas exceções servem apenas para
confirmar a regra de que o homem, como disse Hobbes, é o
lobo do homem. A História da Civilização, com o observou Gi-
bbon, é a história dos grandes crimes da humanidade. Milhões
de pessoas já sucumbiram em guerras inúteis. Outros milhões
morreram e continuam morrendo de fome, por falta de solida­
riedade dos que comem à tripa forra. A maldade é uma cons­
tante na conduta humana. Essa maldição jam ais será exorci­
zada. Nenhuma campanha educacional será capaz de erradi­
car o egoísmo, porque ele é inerente à natureza humana.
Aceita essa premissa, que reputo fundamental, será
fácil deduzir que a humanidade jamais sairá do pântano em
que chafurda. Basta ver que todas as idéias redentoras, capa­
zes de sublimar as relações humanas, são logo apropriadas
por demagogos e estelionatários que as subvertem e manipu­
lam em função de seus interesses. A industrialização da fé e de
tudo o mais que serve de isca para pescar adeptos, evidencia a
índole utilitária do homem e seu propósito inequívoco de domi­
nar e explorar seus semelhantes. Acenando com as delícias do
21
paraíso ou ameaçando com as torturas do inferno, o homem
t cavalga os outros e locupleta-se com os dízimos ou doações
c da crendice. Hasteando a bandeira das transformações sociais
t e prometendo indenizar os espoliados, o demagogo alcança o
p poder político, para nele enriquecer e praticar abusos.
t
Sempre fui extrem am ente sensível às dores do mun-
|! do e encarei com repugnância os atos de violência ou grosse-
f ria. Mão podendo, porém, socorrer os aflitos, nem impedir os
i arroubos da prepotência, preferi afastar-me das pessoas, para
que seu sofrimento ou brutalidade não contaminassem meu
psiquismo e enlutassem minha existência. Para não sofrer
c dores alheias e não conviver com a tragédia humana, optei
c pelo bloqueio de minha afetividade, só admitindo relaciona-
c mentos que não implicassem em aderência ou vinculação sen-
s timental. Como resultado dessa conduta, comecei a perceber,
r intuir ou acreditar que eu e a maioria dos indivíduos não éra-
( mos da mesma espécie biológica. Só na aparência é que nos
j confundíamos. O mundo para mim passou a ser um jardim
zoológico onde convivem, sem vigilância efetiva, animais do-
^ mésticos e predadores.
A o andar pelas ruas, não vejo pessoas. Vejo animais
j de todas as espécies, que só adquirem personalidade após
isolados dos grupos em trânsito. Enquanto permanecem reu­
nidos, são para mim rebanhos de bovinos, matilhas de cães,
' bandos de carneiros ou de porcos. Antes de dialogar com qual-
1 quer transeunte, não consigo distinguir a que espécie biológi-
( ca ele pertence. Só através da palavra é que posso saber se
I algum deles é da espécie humana. O que distingue o homem
( dos outros animais é a superioridade de sua inteligência. Se
, ele, por sua ignorância ou estupidez, permanece no mesmo
nível dos outros seres animados, não pode pretender uma clas­
sificação diversa. Os seres que transitam pelas ruas, seduzi-
( dos pelas atrações mundanas e robotizados pela televisão,
< devem ser encarados como os outros animais, porque não os
< superam em inteligência ou raciocínio.
Ainda com relação ao sentimentalismo, invoco a li­
ção do personagem de um romance de Pitigrilli que, quando

22
sentia pena e socorria alguém, ensejava ao beneficiado a opor­
tunidade de demonstrar-lhe ingratidão, para que pudesse, sem
remorso, livrar-se do sentim ento de piedade. De fato, nada
melhor para libertar-nos de dependências sentimentais do que
possibilitar ao necessitado, ao amigo ou à pessoa amada a
oportunidade de desnudar o seu caráter. Para o homem ido­
so, aliás, nem mesmo é necessário percorrer as etapas que
levam do benefício à ingratidão. Basta lembrar-se de aconte­
cimentos análogos para antecipar o que ocorreria se abrisse a
guarda. O bloqueio, portanto, é o único recurso disponível para
quem não deseja colecionar decepções. Quando, porém, as
súplicas do apelante vulnerarem esse bloqueio, o apelado verá
que, realmente, só a ingratidão liberta.
Embora houvesse dedicado grande parte de minha
vida ao estudo do delinqüente, das normas de cuítura e das
leis penais, sempre resisti ao apelo do crime. Em princípio,
porque dele nada poderia extrair, que atendesse às minhas
aspirações. O homícidio não me seduziu, porque, para os
inimigos, a maior punição é deixá-los conviver com sua peço-
nha. O crime contra a liberdade sexual expulsa o prazer, ine­
rente à participação espontânea da fêmea cobiçada. O crime
contra o patrimônio não me aliciou, porque as coisas materi­
ais não me fascinam e sempre foram mínimas as minhas ne­
cessidades. Entretanto, como Hamlet também admitiu, sem­
pre tive mais crimes em minha mente do que imaginação para
concebê-los, ou tempo para executá-los. Jamais tive, porém,
como ocorreu com ele, motivação para cometê-los. Nada devo,
pois, no particular, porque o pensam ento não paga imposto.
A elaboração de um tratado geral sobre a estupidez
humana é tarefa irrealizável. Para não imitar aqueles que já
abordaram esse tema e se perderam em sua vastidão oceâni­
ca, devo restringir-me a uma rápida incursão na mitologia so­
cial, emitindo apenas alguns conceitos sobre a crença em
deuses, nos governos e na justiça. Lateralmente, apreciarei
também a influência da mídia e dos preconceitos na mentali­
dade do povo, que, submetido a pertinaz incubação, acaba
por proceder contra os seus próprios interesses. Tais fatores é
que merecem acurado estudo, porque já se sabe que o ho­
. 23
mem não é confiável. Como dizem os curdos, o lobo é suspei­
to, mesmo quando dorm e com fome. O que importa, pois, é
estudar as causas que atuam em seu psiquismo, a fim de com ­
preender as razões que o tornam destrutivo. Através dessa
compreensão, poderemos talvez justificá-lo.

Se for considerado que ninguém sabe como o Univer­


so foi formado e que nele a Terra é uma partícula insignificante,
será óbvia a conclusão de que a idéia da existência de Deus foi
concebida para suprir essa ignorância. O argumento de que
nada existe sem um criador não convence de que um Deus
haja criado o Universo/porque implica na dedução de que algo
anterior houvesse criado o Deus que criou o Universo. Por ou
tro lado, se esse Deus imaginário fosse, como alegam os cris­
tãos, onipotente, onipresente, onisciente e de infinita bondade,
não se explicariam as imperfeições do mundo por ele criado,
nem a miséria em que vivem seus próprios filhos. Às tempesta­
des, os terremotos, os vulcões, os desertos, a fome, as doen­
ças os sinistros e mazelas, bem como a própria índole do ho­
mem, escorraçam as deduções da crendice,
Um Deus que produz seres venenosos como a cobra
e o escorpião e que condena os animais à imolação recípro­
ca, não pode, de modo algum, ser considerado um ente bon­
doso. Um Deus que permite o nascimento de crianças mon-
golóides, cegas ou xifópagas, e que enche o corpo humano
de vírus, micróbios e células cancerígenas, tem de ser, sem
dúvida, um ente cruel ou impiedoso. Basta pensar nas cozi­
nhas particulares ou dos restaurantes, na vivência dos ani­
mais nas selvas, nos rios ou nos mares, para com preender
que o mundo é um matadouro, onde os mais fracos são, a
todo instante, devorados pelos mais fortes. O homem, apesar
de sua imperfeição e maldade, concebeu a idéia de justiça e,
ao menos em tese, condena os morticínios. O Deus, porém,
que tantos adoram, instituiu a carnificina como condição fun­
damental para a sobrevivência.
Deus é produto da ignorância, da fraqueza e da co­
vardia. Da ignorância, porque o homem nada sabe sobre sua
origem ou sobre a razão de sua existência. Da fraqueza, por­

24
que, desde que nasce, o homem está sujeito a doenças, a
acidentes e a uma infinidade de perigos que o impelem a bus­
car a proteção de uma divindade. Da covardia, porque o te­
mor de um eventual castigo o força a bajular essa potência
invisível . Somente esses fatores podem explicar a razão de
uma crendice que não se arrima em qualquer princípio razoá­
vel. Os livros religiosos e as pregações respectivas estão ei­
vados de contradições, incoerências e fantasias que não re­
sistem à mais superficial análise. Somente uma necessidade
inelutável de deixar-se iludir, pode forçar alguém a acreditar
nas fábulas que os religiosos propalam.
Mesmo assim, todo mundo reza e se ajoelha em sub­
missão a um ente imaginário. Em toda parte erguem -se tem ­
plos faraônicos, para o culto de deuses de todas as espécies.
Os povos já adoraram o fogo, bezerros de ouro, serpentes e
até mesmo figuras monstruosas. Para aplacar a cólera divina,
muito sangue já foi derramado. Como as seitas religiosas são,
na realidade, partidos políticos, muitas guerras hegemônicas
já foram e continuam sendo deflagradas, com o sacrifício de
muitas vidas. Os crimes com etidos pelas facções religiosas
são os mais abomináveis da história da humanidade. O Teo-
cali, os rituais de magia negra e a incineração em praça públi­
ca são símbolos da crueldade religiosa. Também execrável,
ainda que incruenta, é a doutrinação com que os industriais
da crendice conseguem estupidificar as multidões.
■"''Tão poderosa é a com pulsão da crendice que, quan­
do um indivíduo consegue escapar de um acidente mortal,
logo abre a boca para dizer que Deus o salvou. Não lhe passa
pela cabeça que se Deus existisse e fosse onisciente, onipre­
sente, onipotente e de infinita bondade, teria evitado o aciden­
te. São comuns os desastres de veículos que transportam ro­
meiros, e templos já desabaram sobre devotos, no exato mo­
mento em que oravam ou pediam a proteção divina. Em todos
esses casos, os sobreviventes agradecem a Deus pelo salva­
mento. Demonstrando claram ente que não confia na proteção
de Deus, o Papa atual, que já foi vítima de atentado homicida,
prefere exibir-se no interior de um carro blindado. A qualquer
objeção, todavia, responderá o crente que não nos cabe inda­
25
gar sobre a conduta de Deus e seus insondáveis desígnios.
Enquanto isso, iludindo a todos, fazendo espuma e
vendendo fumaça, uma legião de parasitas e vampiros, tra-
vestidos de sacerdotes, pastores, adivinhos e curandeiros,
forjando milagres e am eaçando com as chamas do inferno,
vão sugando dízimos e im becilizando o povo em geral. Duran­
te os mil anos da Idade Média, as religiões conseguiram man­
ter a Europa na mais completa ignorância. Foi a época das
pestes, atribuídas à maiícia do demônio, e a das Cruzadas,
instituídas a pretexto de libertar o Santo Sepulcro, mas, na
realidade, convocadas para a matança de maometanos e a
pilhagem de suas riquezas. A cupidez, a crueldade e a hipocri­
sia são, conjunta ou isoladamente, as características m arcan­
tes de todas as seitas religiosas. O que a elas realmente inte­
ressa é o poder total sobre a mente e a fortuna dos beatos.
Uma das invenções clericais cuja difusão concorre para
desacreditar a fábula da existência de Deus é a da coexistência
do Diabo. Nenhum raciocínio lógico pode admitir a hipótese de
uma competição interminável entre um Deus que tudo pode e
um ser inferior que o afronta e consegue sobreviver eternamen­
te. Inconcebível também é a admissão de que um Deus, de
infinita bondade, possa tolerar que seus filhos sejam atormen­
tados por um ente maligno que ele, em sua onipotência, pode­
ria destruir. Não há dúvida de que a Teogonia, a Teologia e a
Demonologia, imposturas que até hoje confundem o espírito
humano, são, como Mencken disse da Metafísica, “tentativas
de provar o inacreditável, apelando para o incompreensível.”
Somente a ingenuidade pode justificar a crença nos fantasmas
com que as religiões poluem a mente dos devotos.
Alega-se que as religiões civilizam os povos, abran­
dando sua índole agressiva e fazendo-os proceder bondosa­
mente, pelo tem or do castigo divino. Não é isso, porém, o que
a História da Civilização tem demonstrado. As guerras religio­
sas já dizimaram populações inteiras. A doçura exibida pelos
crentes e devotos em suas relações públicas é contrastada
pela crueldade com que costumam tratar seus dependentes.
A intolerância, alimentada por preconceitos enraizados, blo­
queia o raciocínio desses súcubos da doutrinação religiosa,

26
tornando-os receptivos às incubações do misticismo e imper­
meáveis ou opacos para as noções de piedade, solidariedade
e amor ao próximo. Os crentes entendem que, cumpridas suas
obrigações rituais, podem praticar, contra seus semelhantes,
qualquer indignidade.
Uma simples com paração das vestes de Jesus com
a indumentária do Papa evidencia que, para reinar sobre a
estupidez humana, não é necessário, nem mesmo, velar pela
aparência. Para o povo é perfeitamente admissível que a pre­
gação da humildade seja feita por quem mora em palácios e
usa vestes suntuosas. É possível também inculcar como sa­
grado um livro sobre o qual assim escreveu Thomas Paine:
“Quando lemos as histórias obscenas, as libertinagens volu-
tuosas, as cruéis e traiçoeiras execuções, as vinganças impi­
edosas, que enchem mais da metade da Bíblia, pensamos
que seria mais consistente chamá-la a palavra do demônio do
que a palavra de Deus. É um relato de perversidades que con­
tribuem para corromper e em brutecer a humanidade” . O povo
quer ser iludido. Os padres e os pastores suprem essa carên­
cia, fornecendo imposturas.
A história das religiões demonstra claramente que,
como também disse aquele pensador: “Todas as Igrejas, se­
jam elas maometanas, judias ou cristãs, me parecem meras
invenções humanas, estabelecidas para am edrontrar e escra­
vizar a humanidade e açambarcar as riquezas e o poder” . Nada,
porém, absolutamente nada, conseguirá jam ais erradicar do
espírito humano os estigmas da crendice. Na Rússia, onde os
cultos religiosos foram, por mais de setenta anos, cerceados
ou proibidos, as igrejas renascem agora em seu máximo es­
plendor. A crendice, como o uso das drogas estupefacientes,
é uma dependência da qual poucos se libertam. Entretanto,
melhor seria se os crentes, abolindo Deus e dispensando os
profetas, criassem uma religião de princípios morais que os
obrigasse a proceder com dignidade em suas relações.
Em vez de esbanjar dinheiro em celebrações religio­
sas, como ocorre nos festejos de Natal, quando fortunas são
gastas em banquetes, fogos de artifício, iluminações feéricas,
presentes e mensagens hipócritas, seria mais compatível com
27
a doutrina cristã socorrer as crianças abandonadas, os famin­
tos e os que padecem ou morrem por faita de remédios e assis­
tência hospitalar. Nada, aliás, exibe melhor a índole bovina do
povo em geral do que o espetáculo de sua aglomeração nas
casas de comércio, nos dias que antecedem àqueles festejos.
É um verdadeiro estouro da boiada, determinado pela crendi­
ce, pelo egoísmo familiar, pelo senso de imitação e pela propa­
ganda. No dia de Natal é comum o beijo de Judas. Inimigos se
abraçam, mas a inimizade perdura. Tudo é falso, artificioso e
cerebrino, como o próprio Natal - dia do nascimento de Jesus -
que nem os historiadores sabem em que data ocorreu.
Para que as pessoas vivam como consta que Jesus
viveu, exprobrando a hipocrisia e praticando a caridade, a
crença em deuses é absolutam ente desnecessária. Basta que
reprimam seu egoísmo, suas am bições, sua maldade, e en­
carem seus sem elhantes com o um prolongam ento de si mes­
mas. Um policiam ento íntimo e severo de sua própria condu­
ta e a crítica dos falsos valores que a sociedade cultua, são
mais úteis à convivência social e à sublim ação do espírito do
que a verborréia m endaz dos padres e dos pastores. Como
o próprio Jesus teria dito, nenhum valor moral tem a esmola
oferecida com ostentação, nem, como se deduz desse prin­
cípio, a abstenção do mal para evitar o castigo divino ou a
prática do bem para a obtenção de crédito no paraíso. A reli­
gião única e verdadeira, a religião do hum anitarism o, dis­
pensa deuses, tem plos e oráculos.

Se, como disse Bernard Shaw, a democracia é um


sistema que não nos permite ter um governo melhor do que
merecemos, é claro que, nesse regime, não se deve reclamar
dos crimes e dos abusos dos governantes e sim do próprio
povo que os elege. Sendo a política, em toda parte, um este­
lionato multitudinário, o sucesso dos candidatos a cargos ele­
tivos depende sempre do nível moral e intelectual dos povos
que eles pretendem empulhar. No estelionato a colaboração
da vítima é sempre indispensável. Seja por ingenuidade, ig­
norância, ou cupidez, a vítima colabora com o estelionatário,
possibilitando o êxito de suas artimanhas. Tudo, portanto, de­

28
pende da receptividade dos eleitores aos apelos da dem ago­
gia. Os prejuízos decorrentes de uma péssima escolha, só
devem, pois, ser debitados à cobiça ou à estupidez do povo.
A prática desse estelionato tem, sobre as demais, a
garantia da impunidade e a devoção dos logrados. O estelio-
natário ingressa na política porque, ao defraudar os cofres
públicos, a única penalidade a que se arrisca é a de ser perse­
guido pelo ladrar dos que não conseguirem participar das fa l­
catruas. Como, todavia, nem só de pão vive o homem, há os
que, aíém do enriquecimento ilícito, buscam na política a sa­
tisfação dos mais variados interesses. O egoísmo, porém,
encoberto pela bandeira do hum anitarism o, é sem pre a moti­
vação suprema, Como ocorre com as corporações religiosas
que exploram a crença em deuses inexistentes, os partidos
políticos buscam dinheiro, prestígio e poder, explorando a ig­
norância. Pelo livre acesso ao patrim ônio público e pela certe­
za da impunidade, a política é a via ideal para o sucesso.
Hoje, quando a mídia eletrônica faz a lavagem cere­
bral dos povos e os manipula com o fantoches, não mais per­
guntaria Chamfort de quantos tolos se precisa para form ar a
opinião pública. Atualmente, ele procuraria saber quais são os
índices de audiência do rádio e da televisão. Poucas pessoas
raciocinam. As demais, preferem delegar essa prerrogativa aos
locutores de rádio e de televisão que, por sua vez, veiculam o
que seus patrões determinam. E estes procedem de acordo
com os interesses de seus acionistas, anunciantes ou financi­
adores. Às pessoas que não abdicaram do direito de racioci­
nar, só resta o isolamento. Só assim poderão encarar com
desprezo a humanidade e criar um mundo interior, invulnerá­
vel à poluição eletrônica e às cretinices de seus semelhantes.

Outro ídolo de pés de barro que ainda consegue im­


pressionar os ingênuos é a justiça. Apesar dè sua vulnerabilida­
de, de seus caprichos e prevaricações, a justiça ainda mantém
algum prestígio, induzindo os povos a acreditar que ela existe.
O homem, como ente real e paipáveí, não suporta o nada. Onde
percebe o vazio, ele o preenche com sua imaginação, a fim de
lidar com coisas concretas. Exatamente por ser o mais temível
29
dos predadores, o homem sente a necessidade de proteger-se
contra as investidas de seus irmãos em Cristo. Para tanto, de­
lega a outros homens o poder de julgar e reprimir aqueles que
ameacem ou violem seus direitos. É claro que não existe outra
solução para o problema, mas, em muitos casos, ela importa
em confiar ao lobo a proteção das ovelhas.
Isto porque outros homens, com os mesmos vícios e
virtudes dos jurisdicionados, é que são incumbidos de distri­
buir justiça. Novamente aqui, não há falar em exceções. A lei
sociológica de Le Bon não seria lei se não fosse aplicável a
todos os grupos humanos. É óbvio que há juizes admiráveis
como há sacerdotes piedosos. Alguns, todavia, não têm voca­
ção para a magistratura. São recalcados, presunçosos ou psi-
copatas que nela ingressam como ingressariam em qualquer
função pública, buscando privilégios. Interpretam a lei como
se ela fosse de borracha e existisse para servir ao carreiris-
mo, à sua vaidade, às suas antipatias ou aos interesses dos
amigos ou de sua parentela. Essa falta de vocação também
determina a aversão aos livros e, conseqüentemente, uma
tendência a suprir a ignorância com a arbitrariedade.
O problema fundam ental, pois, de toda a humanida­
de, é o próprio homem. Com relação à justiça, disse Ruy que:
“Não há tribunais que bastem para abrigar o direito, quando o
dever se ausenta da consciência dos m agistrados” . Mas não
é só o dever, em sentido estrito, a bússola que deveria orien­
tar as decisões judiciárias. Para que houvesse justiça, seria
necessário que todos os juizes fossem independentes, estu­
diosos, abnegados e sobretudo infalíveis, uma vez que se pode
errar com a consciência do dever cumprido. A tarefa de julgar
transcende à capacidade natural do homem e deve ser enca­
rada como uma missão perigosa e muitas vezes irrealizável.
O mais que se deve esperar é que os acertos compensem as
erronias. Ao homem prudente será sempre melhor evitar litígi­
os do que acreditar no mito da justiça.
Dizia um chefe de polícia em Paris que se o acusas­
sem de haver furtado a cúpula da Notre-Dame, procuraria
imediatamente colocar-se em segurança. Por seu turno, es­
creveu La Bruyére: “Posso garantir que nunca serei ladrão ou

30
assassino. Mas afirmar que nunca serei condenado como la­
drão ou assassino seria presunção”. Os crimes judiciários cos­
tumam ser justificados pela traição das provas, pelo livre con­
vencimento ou outra qualquer circunstância que assegure im­
punidade a seus autores. Esses crimes não são sequer de­
nunciados, porque a corporação judiciária, em toda parte, é
um dinossauro que a prudência aconselha a não desafiar.
Entretanto, disse Ruy que: “Os piores de todos os crimes, os
que mais atacam a moral pública e depõem contra a civiliza­
ção de um povo, são as violências contra a lei pelos a quem
ela incumbiu de sua guarda”.
No âmbito da justiça civil, dizem os árabes que quem
ganha fica sem cam isa e quem perde fica nu. Para os chine­
ses, vencer uma dem anda judicial é ganhar uma galinha e
perder uma vaca. Segundo Am broise Bierce, uma ação ju d i­
cial é uma máquina onde se entra como porco e sai como
lingüiça. Na justiça criminal impera o princípio de que todo
homem é culpado até que prove ser influente. Sem um padri­
nho e não som ente um patrono legal, o inocente corre o ris­
co de ser condenado. Como a Rainha da Inglaterra, a lei rei­
na, mas os ju ize s é que governam. Á sorte dos acusados
depende até mesmo da sim ples distribuição dos processos,
porque há juizes que tendem a condenar e outros a absol­
ver. Há tam bém os que detestam crimes banais e são tole­
rantes com crimes gravíssim os.
Na loteria forense, portanto, o destino dos acusados
depende da índole dos julgadores. E no processo criminal a
vitória é sempre negativa, porque consiste apenas em não
perdera liberdade. Perde-se, porém, os anéis, para salvar os
dedos. Em todo o mundo os anais judiciários registram deci­
sões que nenhum sistema lógico poderia justificar. Os livros
de jurisprudência transcrevem, às vezes na mesma página,
ementas de arestos antagônicos que, como dizem os france­
ses, uivam de susto por se encontrarem juntas. O tráfico de
influência comanda as decisões mais importantes dos órgãos
judiciários. Até mesmo as leis são atualmente ditadas pelos
meios de comunicação. À toda denúncia, veraz ou caluniosa,
veiculada com estardalhaço pela mídia eletrônica, segue-se
31
logo uma lei absurda. Quem comanda atualmente a ordem
jurídica é a televisão.
Os juizes, de modo geral, temem a publicidade nega­
tiva. Mas, quando o noticiário os favorece, não costumam resis­
tir ao apelo das gambiarras. A justiça, portanto, que eles distri­
buem, está condicionada aos caprichos da mídia. Isto, aliás, é
o que acontece em todos os setores da administração pública.
O livro, fonte principal do conhecimento e de confrontação das
teses, foi banido pelo ópio eletrônico que, com suas imagens
coloridas, fascina os olhos e bloqueia o raciocínio. Sabendo
que a televisão faz a lavagem cerebral das multidões e que o
povo não tem capacidade de distinguir coisa alguma, os funcio­
nários não se arriscam a enfrentar a opinião pública. Até mes­
mo por comodismo, preferem navegar na onda da publicidade,
procedendo como melhor convier à sua reputação.
Aliás, muito antes do advento da televisão, quando a
publicidade estava restrita a jornais de circulação diminuta, já
dizia Flaubert que o espetáculo de um homem julgando outro
homem faria rebentar de riso se não fosse tão trágico. Embo­
ra as leis tentem coibir o arbítrio judicial, há sempre como ilu­
dir os seus ditames. Por isso, dizem os italianos que feita a lei
começa a trapaça. O desvio de finalidade, pois, é inerente aos
órgãos judiciários, como também ocorre com todos aqueles
que têm o poder de decidir sobre o patrimônio, a liberdade e a
vida dos cidadãos. A hipótese de substituição dos juizes por
computadores não solucionaria o eterno problema dos capri­
chos, das prevaricações e das erronias, porque nem sempre
será um funcionário zeloso e imparcial o encarregado de ma­
nipular os dados que conduzam ao julgamento. Ademais, os
fatores subjetivos, de suma importância nos casos criminais,
não podem ser computados.

Considerada a célula mãe da sociedade, a família


burguesa é uma instituição que tem sido indevidamente reve­
renciada. Ao contrário, porém, de constituírem células do teci­
do social, as famílias burguesas são núcleos de egoísmo que
se antagonizam e concorrem ferozm ente na luta por vanta­
gens e privilégios. Sua característica fundamental é a cupidez

32
com que promovem o nepotism o e abocanham frutos do tra­
balho coletivo. Tais fam ílias só se interligam para aum entar os
tentáculos com que tencionam apreender novas riquezas ou
assegurar a posse dos privilégios já usurpados. São, portan­
to, núcleos de desagregação social que só podem sobreviver,
como Marx e Engels advertiram, sob a condição de que a fa­
mília proletária não possa existir. Como ocorre com as cance­
rígenas, o conceito de célula, atribuído à família burguesa, só
seria admissível no âmbito da Oncologia.
Consta que quando disseram a Jesus que sua mãe e
seus irmãos queriam vê-lo, ele apontou para seus discípulos
e exclamou: “Minha mãe, meus irmãos, são os que ouvem a
minha palavra e a praticam ” . Sua família, pois, não era com­
posta de seus parentes e sim de todos aqueles que seguis­
sem a sua doutrina. Produzindo, às vezes, antagonismos como
o de Caim e Abel, os vínculos de parentesco devem ser repu­
tados acidentais e conseqüentem ente inferiores aos que di-
manam da afinidade de sentim entos e da vinculação espontâ­
nea. Assim construída, a verdadeira fam ília deixará de ser um
núcleo de interesses mesquinhos e poderá expandir-se, vin­
culando pessoas de descendência heteróclita. As afeições
recíprocas e não o parentesco, devem ser consideradas como
os verdadeiros laços de família.

Para perpetuar as espécies, a Natureza impõe às fê­


meas o ônus de procriar. Entre os animais, ainda que selva­
gens, percebe-se o zelo com que elas alimentam e protegem
sua prole. Vendo nos filhos a continuidade de sua própria vida,
a fêmea obedece ao instinto de conservação, cumprindo rigo­
rosamente os encargos da maternidade. Na espécie humana
ocorre o mesmo fenômeno. Nesta, segundo Schopenhauer, até
a atração sexual é determinada em função do filho que pode
ser gerado. Instintivamente, os parceiros buscam compensar,
um com o outro, as suas imperfeições anatômicas, para não
transmiti-las ao ente a ser concebido. Por isso é que os opostos
se atraem. Como a espécie humana adora fantasias, chama­
mos de amor sensual o que, na realidade, é um ditame da Na­
tureza. Na mente humana, porém, como Nietzsche observou, o
fato é secundário. O que prevalece é a versão do fato.
33
Se não resultasse de uma injunção da Natureza, o
ato de conceber um filho deveria ser considerado como uma
leviandade, porque a transmissão da vida não é, de modo al­
gum, uma ação bondosa. Com ela, impõe-se ao herdeiro uma
infinidade de tormentos cuja incidência é possível prever ou
antecipar. As eventuais monstruosidades físicas ou psíquicas,
bem como os prováveis fracassos na luta pela vida, deveriam
alertar os genitores de que a procriação é um salto no escuro.
Além de subm eter a mulher a graves riscos e deformar-lhe
para sempre o corpo, a maternidade responde ainda pelo trá­
gico espetáculo da infância abandonada, doentia, fam inta e
analfabeta que, conform e nosso índice de moralidade, con­
templamos com tristeza, revolta ou indiferença. A decantada
função maternal, portanto, costuma transform ar o ventre da
m ulher em uma Caixa de Pandora.
Sendo certo que o instinto de conservação determina
o impulso maternal, é claro que não se pode censurar uma
vocação imposta pela Natureza. Entre as fêm eas da espécie
humana, todavia, a exacerbação artificial dessa tendência é
causa de desequilíbrio social e fator de criminalidade. A ânsia
de procriar produz uma legião de fam intos e rebeldes que
ameaçam a tranqüilidade das comunas. Embora a Natureza,
como disse Bacon, só possa ser dominada por quem a obe­
dece, o fato é que a ciência fornece vários meios de controle
da natalidade. Nenhum filósofo, porém, conseguirá jam ais
convencer as mães de que seus filhos não são as maravilhas
que elas supõem. E basta esta circunstância para demonstrar
que o impulso maternal concorre tam bém para inutilizar a pro­
le com que se empenha em superlotar o mundo.
Razão, pois, tinha Lyndon Jolinson quando declarou
que cinco dólares aplicados no controle da natalidade valem
mais do que cem dólares investidos no crescim ento econôm i­
co. Os padres, todavia, condenam os métodos anticoncepcio­
nais e fazem cruzadas contra o aborto. Com isso, agravam a
miséria das fam ílias proletárias e enchem as ruas de peque­
nos mendigos que, já na adolescência, optarão pela criminali­
dade. Evidenciando que sua verdadeira missão é a de sub­
m eter os povos ao seu domínio, os padres inventaram o peca­

34
do para que todas as pessoas, sentindo-se em culpa, neces­
sitem de penitências e absolvições. Sabendo que o apelo se­
xual é irresistível, exploram essa fatalidade. Na época das In­
dulgências, eles só perdoavam alguns relacionamentos ou atos
sexuai^ci troco de dinheiro.
Embora não possam mais, como na Idade Média,
impor seus preconceitos a ferro e fogo, o fato é que, apesar
de suas incoerências e contradições, os padres ainda influen­
ciam muita gente. Dizem eles, por exemplo, que defendem a
vida quando combatem o aborto e os anticoncepcionais. En­
tretanto, adotam o celibato e pregam a castidade para pode­
rem debitar aos leigos o pecado da luxúria. Aviltam, portanto,
uma função naturalíssima, para que o povo os admire e se
submeta à sua autoridade. Só os tolos, porém, e os hipócritas,
aplaudem essa moral ridícula, que, se fosse por todos obede­
cida, resultaria na extinção da espécie humana. Uma moral
que, segundo Nietzsche, vai contra a vida em todos os senti­
dos. Como concluiu Vargas Vila, a castidade é, como todas as
virtudes, um vício disfarçado. Para ele, ser casto é ser horren­
do, porque a castidade é um crime contra a Natureza.
Para Nietzsche, toda ação determinada pelo instinto
vital encontra no prazer a prova de sua legitimidade. Disso de­
duzia que a pregação da castidade, por ser contrária àquele
instinto, é uma agressão à Natureza. Acrescentava que des­
prezar o ato sexual, considerá-lo indecente, pecaminoso ou
impuro, é um atentado contra a essência da vida. Concluía que
o padre reina com a invenção do pecado, porque a invocação
da moral é o melhor artifício para levar a humanidade pelo na­
riz. Para Pitigrilli, à mulher que ninguém deseja, resta o consolo
de ser moralista. O mesmo ocorre com os eunucos mentais ou
fisiológicos. Os hipócritas aplaudem os preconceitos relativos à
sexualidade, porque deles se servem para infamar a reputa­
ção alheia. Só a velhacaria, porém, pode pretender que a hu­
manidade considere imoral a sua própria origem.
Realmente, instituir o comportamento sexual como ín­
dice de moralidade é uma patifaria. É um critério obsceno que
revela a protérvia dos censores e a ingenuidade dos que se
preocupam com a maledicência ou se submetem a essa torpe
35

i
avaliação. O simples fato de sermos, todos nós, produtos de
relações sexuais, deveria bastar para que ninguém admitisse a
infamação do ato que nos originou. A conjunção carnal entre
um homem e uma mulher que obedecem a uma atração recí­
proca é um ato natural, instintivo e necessário. Ainda que com­
prada ou fruída apenas por um dos parceiros, a cópula consen­
tida é absolutamente incensurável. As fábulas do pecado origi­
nal e da virgindade de Maria, concebidas para enaltecer a cas­
tidade e denegrir o ato sexual, são patranhas que devem ser
escarnecidas ou simplesmente ignoradas.
O preço que a humanidade pagou e continua pagan­
do pelos preconceitos relativos à sexualidade é verdadeira­
mente incalculável. São incontáveis as vidas arruinadas pela
condenação do amor livre. Em holocausto a essa estupidez,
inúmeras jovens foram, no passado, expulsas de suas própri­
as casas, entregaram-se à prostituição ou descambaram no
suicídio. Essa trágica situação ainda perdura em regiões onde
o povo, por sua passividade e ignorância, continua submetido
aos efeitos deletérios da castração psicológica. O ato sexual,
porém, não deveria jam ais ser censurado, porque nele não há
impureza alguma. Qualquer reprovação em torno da conduta
sexual é fruto da malícia, da hipocrisia e da torpeza dos cen­
sores. Estes é que - por poluírem a mente das pessoas e
infelicitarem gerações - deveriam ser execrados e punidos.

Um estigma cuja origem os próprios portadores rfísis-


tem em ignorar, é o da pederastia. Alegando que o homosse-
xualism o é opcional, o pederasta passivo assume uma culpa
que cabe exclusivamente à Natureza. O homem normal, toda­
via, não pode jam ais conceber que outro renuncie voluntaria­
mente à sua masculinidade. A pederastia é determinada por
compulsão fisiológica, de origem hormonal e genética. O pe­
derasta passivo pertence a uma espécie intermédia e não
necessita justificar sua conduta, porque ela é comandada pela
Natureza. Se os invertidos reconhecessem sua própria ano­
malia, não pretendessem criar um mundo à sua imagem, e
agissem como agem os deficientes físicos, sem complexos
de culpa ou superioridade, seriam certamente respeitados. O

36
que macula a sua reputação é a crença de que eles optaram
livremente pela inversão sexual.
Em vez disso, eles se entregam ao deboche e, na
companhia de pederastas ativos, estes sim, verdadeiros de­
generados, expõem-se ao ridículo. Antigamente, como Stefan
Zweig retratou, os hom ossexuais viviam esm agados pelos
preconceitos e adotavam uma postura perm anente de humi­
lhação. É claro que nenhuma dessas atitudes é admissível. A
primeira porque consiste em um exibicionism o torpe e extra­
vagante. A outra porque importa na admissão de cuipa inexis­
tente, uma vez que ninguém é censurável por uma conduta
involuntária. A hostilidade contra os pederastas passivos eqüi­
vale às manifestações racistas que, ainda hoje, envergonham
a humanidade. A intolerância só se justifica contra os inverti­
dos que se dedicam a corrom per menores ou a perturbar a
ordem pública, norma aliás aplicável a todos os indivíduos.

Para o homem normal, nada pode ser mais fascinante


do que a mulher. A própria sabedoria a ela se submete, porque
não é indispensável. É possível viver feliz em plena ignorância.
A agnosia, aliás, é a condição principal para que o homem al­
cance a felicidade. A mulher, porém, é a fonte da vida. Sem ela,
o mundo seria intolerável. Só os homossexuais ou os mental­
mente castrados, como os anacoretas, poderiam suportar uma
existência sem o fascínio que emana da mulher desejada. Ain­
da que não possa tê-la em seus braços, o homem normal vibra
e vitalíza-se com a simples esperança de um dia conquistá-la.
E se isso ocorre, nada no mundo é comparável a essa recom­
pensa pelas angústias de sua expectativa. Como escreveu Var­
gas Vila, a mulher nua é a mulher amada. Não importa, como
versejou Stecchetti, se é casta ou pecadora.
Por isso, sempre me revoltei contra o desapreço com
que se encara a função social das putas. Sei que essa postu­
ra resultou, como Schopenhauer esclareceu, do corporativis­
mo das mães e dos pais de família que precisavam descartar
suas filhas. Na época em que as mulheres estavam excluídas
das profissões rendosas, era necessária a união de todas para
que o homem só pudesse consegui-las através do casam en-
37
to. Quando, pois, alguma entregava-se sem exigir matrimô­
nio, a corporação sentia-se prejudicada em seu monopólio
sexual e hostilizava a infratora. Hoje, porém, quando os antibi­
óticos e a pílula anticoncepcional libertaram as mulheres, quan­
do elas competem com os homens em todas as atividades,
não mais se justifica a conduta dos que depreciam as mulhe­
res que optam pela prostituição ou a ela são compelidas.
Quando, numa zona boêmia, um jovem tentou es­
conder-se de Catão, disse-lhe o severo censor romano que
m elhor seria ele ali permanecer, pois de outro modo estaria
pondo em risco a integridade sexual das m oças de fam ília.
Essa função social que as putas exercem, ou seja, a de pre­
servar a tranqüilidade das fam ílias, não deveria ser esqueci­
da pelos seus beneficiários. Muitos estupros e casam entos
tem erários são evitados porque elas suprem uma necessi­
dade que a natureza impôs a todos os hom ens normais. As
leis que incrim inam o lenocínio ou restringem a atividade das
m eretrizes só servem para incentivar a extorsão policial, en­
carecer os serviços prostibulares e degradar uma classe que
todos deveriam proteger e respeitar, porque sem ela estari-
am condenados à frustração, a convolar casam entos incon­
venientes ou ao onanism o.
Sim, porque todos os homens devem às prostitutas o
que não teriam conseguido sem sua colaboração. Muitos se
iniciaram sexualmente nos bordéis. Outros livraram-se de psi­
coses recorrendo a essas clínicas de desafogo. Casamentos
ainda perduram porque os maridos podem, de vez em quan­
do, livrar-se da monotonia conjugal em leitos estranhos. A de­
mais, além de ser a mais barata, a mulher paga não tem ciú­
mes, não atormenta o homem, não o enche de filhos, não pede
pensão ou alimentos, nem comete adultérios porque a nin­
guém pertence. Só a ingratidão e a hipocrisia podem explicar
a hostilidade com que muitos se comportam com relação a
essa classe benemérita. Assim compreendendo, sempre tra­
tei com extrema cortesia essas mulheres e, quanto à sua re­
muneração, sempre entendi que dinheiro de puta é sagrado.
Em sua profissão, as putas são mais honestas do que
as m oças de família, porque exigem do homem apenas o pa­

38
gamento pelo serviço que lhe prestam. As vestais familiares,
porém, concentram no homem suas am bições e pretendem
que ele satisfaça todos os seus caprichos. Atuam como o ic-
nêumone, cujas larvas devoram os tecidos do seu hospedei­
ro. Mantêm permanente vigilância sobre a conduta do homem
e só aprovam as ações que a elas beneficiam. Condenam tudo
que não as favoreça ou concorra para libertar o prisioneiro.
Em suma, para concederem o que as putas vendem ao preço
de mercado, as moças de família simulam ingenuidade e pu­
reza, iludem o homem com promessas de am or eterno e o
exploram a mais não poder. Para Don Juan, porém, que as
conhecia, elas eram “santas na igreja e macacas na cam a”.

As sociedades primitivas não conheceram o casamen­


to. Enquanto o trabalho das mulheres foi mais importante do
que o dos homens, a elas coube a chefia do falanstério, onde
concebiam filhos de vários parteiros. Quando os homens, que
antes se dedicavam a atividades incertas, como a caça e a
rapina, começaram a produzir mais do que elas, essa relação
foi envesada. Eles passaram a ter tantas mulheres, quantas
pudessem sustentar. O casamento monogâmico foi estabele­
cido para vincular dinastias, acum ular patrimônio e preservar
o direito de herança. No passado, as mulheres sem dote não
conseguiam casamento. A vulgarização do matrimônio decor­
reu do senso de imitação, uma vez que os pobres, deslumbra­
dos pela vivência dos ricos, procuram copiar seus hábitos e
costumes. Não tèndo, porém, os mesmos recursos, logo per­
cebem que caíram numa arapuca e anseiam pela evasão.
Reza um aforismo que não se pode odiar o homem
que se conhece. Isto porque o conhecimento do caráter de
um indivíduo e dos fatores que nele atuam, explica e justifica
a sua conduta. No casamento, porém, essa regra é invertida.
Os cônjuges, quanto mais se conhecem, mais se odeiam. Essa
fatalidade decorre da perda gradual e constante das calorias
passionais que determinaram o casamento e das decepções
recíprocas. A frustração é o estado inevitável a que conduz o
matrimônio, porque o tempo expulsa a fantasia. Como disse
Vargas Vila, o casamento é o encontro de dois desgostosos e
39
o túmulo do amor. Nada mais estúpido, portanto, do que acre­
ditar que os anos de convivência reforçam os laços conjugais
e a estima entre os cônjuges. O casamento é uma instituição
anacrônica, destinada à extinção, como prova a infinidade de
rompimentos que ocorrem na época atual.
Nos idos fluentes, até mesmo para as mulheres o
casamento é um péssimo negócio. Influenciadas por psicopa-
tas, lésbicas e pederastas, elas adotam o fem inism o e assu­
mem a chefia conjugal, delegando aos maridos atribuições
incompatíveis com a masculinidade. Com essa postura, só
conseguem parceiros que as exploram a troco de uma sub­
serviência vergonhosa. A esposa sai para trabalhar e o marido
fica em casa, fazendo serviços domésticos e assistindo televi­
são. Esse relacionamento extravagante conduz forçosamente
à supressão dos vínculos afetivos e sua substituição por uma
dependência que nenhum homem aceitaria sem intenções
maldosas. Coerente com a sua condição de lacaio, o marido
procede como um rufião, concordando com tudo, inclusive com
adultérios, desde que sejam lucrativos. Em oblação ao casa­
mento, a mulher paga um tributo que não precisaria pagar se
continuasse solteira.

Como disse Chamfort, a felicidade é muito difícil de


ser achada em nós mesmos e impossível de ser encontrada
alhures. A solidão, portanto, é o único recurso de que dispomos
para alcançá-la. Se a felicidade consistisse na ausência da dor,
física ou moral, a morte seria a melhor solução. Pelo suicídio,
porém, o que se consegue é apenas escapar das mazelas da
vida e das torpezas da convivência social. Como nada existe
após a morte, a não ser a transformação da matéria, tornada
inerte e insensível, o suicídio conduz apenas à paz eterna. Essa
anestesia, total e irreversível, é melhor do que a dor, a angústia
e a repugnância. Mas, morto o cérebro, a matéria orgânica re­
gride ao nada espiritual, servindo apenas para transplante, au­
las de anatomia ou para adubar a terra.
Sendo o homem, porém, como disse Aristóteles, um
animal político, só encontrará a felicidade na solidão se dispu­
ser de uma riqueza interior capaz de suprir a exclusão do meio

40
circundante. Como isso raramente ocorre, pode-se afirmar que
a solidão é um estado negativo. Imuniza o indivíduo contra o
contágio social, mas suprime eventuais compensações. Para o
homem comum, a verdadeira fonte da felicidade é a ilusão. Sem
a valorização artificial das coisas, dos fatos e dos demais indiví­
duos, ele não encontrará em si mesmo razão alguma para fes­
tejar sua existência. Sem a ilusão ele será um animal como
qualquer outro, preocupado apenas em não morrer de fome.
Despidos de fantasias, os fatos, as coisas e os seus sem elhan­
tes serão sempre aquilo que são, em sua triste realidade.
Exatamente por isso, consta dos Evangelhos que Je­
sus teria dito: “ Bem-aventurados os pobres de espírito, por­
que deles é o reino dos céus” . A realidade é sem pre cruel,
insossa ou desanímante. Embora a morte seja a única pro­
messa que a vida cumpre, é necessário acreditar em tudo que
a vida promete. Corn as seguintes palavras, Anatole France
reconheceu a conveniência desse procedimento: “Am o a ver­
dade. Creio que a hum anidade precisa dela. Necessita, po­
rém, mais ainda, da mentira que a adula, consola, dá - lhe
esperanças ilimitadas. Sem a mentira a humanidade viveria
em desespero e pereceria de angústia”. Aespiritualidade, como
disse Augusto dos Anjos, é que “faz da cloaca uma urna de
perfume”. Sem embargo, pois, de tudo que foi acima argum en­
tado sobre os mitos e instituições que governam os povos, o
fato é que, sem eles, o homem ignorante estaria perdido.
Como a galinha, que entre um grão de milho e um
diamante preferirá aquele, o homem sem ilusões desprezará
os mitos e verá em seus sem elhantes apenas os concorren­
tes com os quais deve contender, em obediência à lei de sele­
ção natural. Como disse Vargas Vila, am ar a mulher é am ar o
sonho que dela faz o coração. O mesmo ocorre com tudo o
mais. Todas as paixões gravitam em torno de fantasias que o
espírito humano concebe e desenvolve, na ânsia de adornar
uma existência, que, desnuda, seria simplesmente anim ales­
ca. Quando o êxito não traz dinheiro, o ânimo de exceder em
; qualquer atividade, inclusive a intelectual, é também ilusório.
Nem mesmo a humildade, sincera ou encenada para provo­
car admiração, escapa a essa tendência. Disse Sócrates a
41
Antístenes: “Através dos buracos de tua roupa, vejo a tua jac-
tância. Há orgulho dem ais em tua hum ildade”.
O segredo da felicidade consiste em acreditar em
Deus, nos padres, nos pastores, no amor, nos políticos, na
justiça e em todos os mitos que envolvem e dominam as mul­
tidões. Em qualquer deles o espírito encontrará motivação para
regozijar-se. Para Nietzsche, acreditar no nada é mais confor­
tável do que em nada acreditar. Ainda que seja a causa de
todas as mazelas da humanidade, a ignorância é um estado
de graç.a que deve ser conservado para que o homem possa
iludir-se e sentir-se feliz.-As pesquisas científicas e as indaga­
ções filosóficas, tendentes a exorcizar os mitos que fascinam
a humanidade, só poderão conduzir o indivíduo a um estágio
de angústia e desespero. Em sua fragilidade e covardia o ho­
mem necessita acreditar em proteções divinas, estatais ou
judiciárias, bem como no am or sentimental, para que possa
suportar a carga da vida.
Quanto ao am or sensual, disse Samuel Johnson que
se não fosse a imaginação o homem estaria tão feliz nos bra­
ços de uma em pregada como nos braços de uma duquesa.
Na mente exaltada de Don Quixote, a labrega Dulcinéa fulgu-
rava como uma deidade. No deserto, a miragem anima os que
estão exaustos e sedentos. No mundo real, o valor das coisas
é igual ao custo de sua reprodução. No mundo ideal, porém,
as coisas valem o que im aginam os valer. O sentimento, pois,
de prosperidade, de êxito ou de realização, depende do vjjlor
que as pessoas atribuem às suas posses ou às suas conquis­
tas. Disse um poeta que è impossível alcançar a felicidade
porque nunca a pomos, onde nós estamos. Mas, se fosse ad­
missível uma im possibilidade relativa, esta seria evidente,
porque só os intelectuais colocam a felicidade além de seu
alcance. Os ignaros, com o as crianças, encontram a felicida­
de em sua própria singeleza. ■
Como disse Montaigne, basta viver para ver tudo e
seu oposto. O egoísmo, porém, é uma constante na conduta
humana. Ainda que eloqüentes, os raros exemplos de pieda­
de, caridade e altruísmo não absolvem a humanidade. Beijan­
do o leproso, Francisco não extingue o egoísmo universal e

42
não redime as atrocidades do fanatismo. Para tolerara huma­
nidade, o único recurso é ignorar suas mazelas. A meta a ser
alcançada é o paraíso dos tolos a que Milton aludiu. E a estrada
a percorrer é a valorização dos costumes, das futilidades e das
imposturas que fascinam os ignorantes. É preciso não indagar
jamais a causa ou a finalidade dos eventos mundanos, nem
pretender que o homem proceda com abnegação e honestida­
de. Na vida, como nos presídios, é perigoso e inútil afrontar o
regulamento. Ao prisioneiro resta apenas obedecer, resignar-
se com a condenação e esperar o término da pena.
É necessário também não cultivar o ódio, porque, como
escreveu Dale Carnegie: "Quando odiamos nossos inimigos,
estamos dando-lhes poder sobre nós, sobre nosso sono, nosso
apetite, nossa pressão sanguínea, nossa saúde e nossa felici­
dade. Eles dançariam de alegria se soubessem quanto nos es­
tão aborrecendo” . Devemos tratar os inimigos como tratamos o
cão que morde ou o cavalo que escoceia. Basta considerá-los
como irracionais, para que não possamos odiá-los. Aliás, de
modo geral, os homens não devem ser tratados como mere­
cem, porque, como inquiriu Shakespeare pela boca do Hamlet,
se assim procedêssemos: “Who should escape w hipping?”.
Embora visse “tudo e seu oposto” - mas não conhecendo o
leitor - Montaigne também concluiu que: “Não existe homem
algum que não mereça a forca, dez vezes na vida, se forem
submetidos à lei todos os seus pensamentos e ações” .

Embora meus órgãos vitais ainda estejam funcionan­


do satisfatoriamente, sinto que já se aproxima o fim de minha
existência. Nesses longos anos de convivência com os livros
e com meus semelhantes, não pude, infelizmente, convencer-
me da existência de Deus, nem da pureza das instituições
que muitos veneram. Minha obsessão pelo estudo e o hábito
de meditar, privaram-me das em oções e alegrias que encan­
tam a vida. Isso, porém, permite que eu dela me despeça sem
saudades ou frustrações. Ainda que fosse possível, através
da ciência genética, o prolongamento de minha existência, eu
não aceitaria esse venábulo, porque o mundo e meus pensa­
mentos permaneceriam inalterados. Aceitaria, porém, o pro­
cesso de esvaziamento cerebral sugerido por Krishnamurti, a
fim de que meu raciocínio fosse igualado ao daqueles que,
por sua ignorância, podem alcançar a felicidade.
Se os mitos pudessem ocupar em meu cérebro o es­
paço atualmente entulhado de prevenções, eu concordaria em
rejuvenescer. Mas, para ultim ar esse acordo, estabeleceria a
condição de ser imunizado contra o vício de perquirir e inter­
pretar. Somente protegido pela ignorância e sem risco de per­
der esse escudo eu poderia aceitar o prolongamento de mi­
nha vida. Se a vontade, como Schopenhauer lecionou, é uma
força cega e imutável, o mesmo não ocorre com a representa­
ção. Como um calidoscópio, a representação produz imagens
múltiplas e coloridas. Com o cérebro isento de idéias precon­
cebidas, eu poderia acreditar em todas as fábulas da mitolo­
gia universal, em Deus, na justiça, na abnegação, no amor,
em lobisomem, mula-sem-cabeça, disco voador e em chupa-
cabra. Essa nova etapa seria uma sucessão de eventos em ­
polgantes, capazes de com pensar as tristezas da atual.
Mas, se Deus existisse e fosse justo, como propalam
seus idólatras, o melhor seria a morte imediata, porque, sem
dúvida, eu seria hospedado em uma suíte do paraíso. De fato,
fazendo um inventário de minha vida, verifico que meu crédito
justifica um processo de beatificação. Em minha atividade pro­
fissional impedi que muitas famílias fossem arruinadas ou des­
truídas e consegui devolver inúmeros braços ao trabalho. Im­
pedi, em muitos casos, o triunfo da iniqüidade. Embora não fi­
zesse milagres, como, aliás, nenhum santo fez, espalhei bene­
fícios por toda parte. Quanto à justiça terrena, se algum tribu­
nal me julgasse culpado, eu teria o direito de proceder como
Sócrates que, intimado a optar pela pena de morte ou a de
multa, assim respondeu a seus julgadores: “Considerando mi­
nha idade, minha pobreza e os serviços que já prestei, quero
ser condenado a comer de graça no Pritaneu, pelo resto de
minha vida” .
O T K fe U ijA L H C i

As origens do Tribunal Popular perdem -se nas bru­


mas do passado. Ruy vislum brou sua procedência nos “ju d i-
ces” romanos, nos “dikastas" gregos ou ainda nos “centeni
comitês” dos primitivos germanos. Com a conquista norman-
da (1066), o Júri foi transplantado para a Inglaterra, havendo
a Magna Carta (1215) abroqueiado o princípio do julgam ento
criminal do cidadão pesos seus pares. Nos países de língua
inglesa, o Júri é uma instituição tradicional, arrimada na índoie
conservadora dos povos britânicos. A Constituição dos Estados
Unidos, em sua Sexta Emenda, dispõe que em to d o s os pro­
cessos criminais o cidadão tem direito a um julgam ento público
e rápido, por um Júri imparcial, no distrito onde o crime ocorreu.
A Constituição do Império do Brasil (1824) estabele­
ceu que o Poder Judiciário seria com posto de juizes e ju ra ­
dos, mas confiou à lei ordinária a delim itação de sua com pe­
tência. A C onstituição da R epública (1691) restringiu-se a
m anter a instituição do Júri. A de 1934 tam bém m a nteve o
Júri “com a organização e as atribuições que a lei lhe der” . A
de 1937 é omissa. Já a de 1946, além de determ inar que fos­
se ímpar o número dos jurados, garantir o sigilo das votações,
a plenitude da defesa e a soberania dos veredictos, estabele­
ceu que a competência do Júri seria obrigatória nos crimes
doíoáos contra a vida. A de 1967 manteve o Júri, sua sobera­
nia e competência. No mesmo sentido a Emenda n° 1, de 1969.
Finalmente, a atual repete a de 1946,
O Júri brasileiro diverge imensamente do americano.
Nos Estados Unidos , todos os crimes são de sua com petên­
cia. O processo é instruído perante os jurados. O interrogató­
rio do réu e a inquirição das testem unhas são procedidos dire-
45
tamente pelas partes. Os jurados não respondem a quesitos.
Decidem apenas se o réu é culpado ou inocente. Se o réu
quiser renunciar ao direito de ser julgado pelo Júri, basta ante­
cipar-se ao veredicto, confessando a sua culpa, em audiência
prévia. Somente nesse caso é que será julgado pelo juiz. Não
há incomunicabilidade entre os jurados e não se admite deci­
são por maioria. Na velha Inglaterra, o rei Alfredo mandou
enforcar o juiz Cadwine que impôs a pena capital a um réu
condenado por maioria de votos e não por unanimidade.
Em nosso País, o Júri só tem com petência para ju l­
gar os crimes dolosos contra a vida, que são, grosso modo, os
praticados voluntariam ente. Adem ais, só lhe compete julga r o
homicídio, o infanticídio, a indução, a instigação ou o auxílio
ao suicídio, e o aborto. Os outros crimes, ou seja , virtualm en­
te todos os previstos nas leis penais, são de com petência do
juiz singular. Aqui, os jurados não participam da instrução do
processo e não podem se comunicar. O réu não pode renunci­
ar ao julgam ento pelo Júri e não é interrogado pelas partes.
As testemunhas são inquiridas através do juiz. Os jurados res­
pondem a quesitos relativos às teses apresentadas pela acu­
sação e pela defesa. O Júri , entre nós, só assiste aos deba­
tes, embora possa inquirir as testem unhas que eventualm en­
te sejam convocadas.
Em defesa do Tribunal do Júri, sempre am eaçado de
extinção em épocas de tirania, Ruy assim alertou: “Sentido,
senhores. Quando o tribunal popular cair, é a parede mestra
da justiça que rulrá. Pela brecha hiante varará o tropel desa-
- tinàdo, e os mais altos tribunais vacilarão no trono de sua.
superioridade” . Só os países do terceiro mundo admitem o
juiz singular, com poderes de decidir sobre crimes graves. Nas
nações realmente democráticas, o juiz togado apenas instrui
processos e só julga contravenções e delitos menores. Os cri­
mes mais graves são de competência do Tribunal do Júri. Aqui,
o juiz singular pode, sem assistência alguma, irrogar penas
de até trinta anos de reclusão, ou prender o réu a pretexto de
conveniências da instrução, da ordem pública, ou da futura e
eventual aplicação da lei, mantendo-o “provisoriam ente” en­
carcerado, por tempo indefinido.

46
A Constituição dos Estados Unidos, em sua Quinta
Emenda, dispõe que ninguém será julgado mais de uma vez
peto mesmo crime. No Brasil, embora a Constituição garanta
a soberania dos veredictos, a lei ordinária admite que o réu
seja julgado duas vezes pelo mesmo fato. Sendo essa norma
evidentemente inconstitucional, é obvio que a soberania do
Júri vem sendo usurpada pelos tribunais togados. De tudo,
porém, que nos humilha em nosso sistema judiciário, o mais
lamentável é a sobrevivência do juiz singular, com o inadmis­
sível poder de julgar crimes gravíssimos e aplicar penas equi­
valentes ao confisco de vidas humanas.
Por isso, em meu livro “O Criminaíista” , diz o mestre
ao aluno: “Um povo que permite a um indivíduo julgar a outro
e condená-lo até mesmo a uma pena de trinta anos de prisão,
demonstra claramente seu desprezo pela personalidade hu­
mana. O juiz monocrático, singular, que decide sozinho, com
o poder de confiscar anos da vida de um cidadão, é muito
mais temível do que a pena de morte, a ser imposta pelo Júri,
com recurso a outros tribunais. Um homem armado com a lei
penal, se for desonesto ou prepotente, é mais perigoso do
que uma quadrilha de m alfeitores” .

47
A ORATÓRIA

As artes são plásticas ou visuais e fonéticas ou audi­


tivas. As plásticas são a pintura, a escultura e a arquitetura. As
fonéticas são a música e a literatura. A oratória é ramo da
literatura e bifurca-se em eloqüência e retórica. A eloqüência
é a arte de convencer. A retórica é a arte de construir e orna­
mentar o discurso. Quando os comícios eram o meio mais
eficaz de comunicação, a oratória era a rainha das artes. Na
velha Grécia e no Império. Romano, era um atributo indispen­
sável à ascensão social. Todos os cidadãos que se distingui-
ram naquela época eram oradores admiráveis. Por toda parte
havia escolas de oratória. E os fazedores de discursos, os
logógrafos, eram mais prestigiados do que os fantasm as que
redigem para os demagogos atuais.
Todos os indíviduos, exceto os mudos, são oradores
em potencial. Basta que tenham razoável cultura, persistên­
cia e determinação. Demóstenes era inculto, gago, e tinha voz
fraca, antes de iniciar a carreira que o tornaria o maior dos
oradores gregos. Para não sair de casa e ficar estudando, ras­
pava a cabeça e fazia a barba pela metade. Para corrigir a
gagueira e a insuficiência vocal, colocava pedrinhas na boca
e discursava nas praias, tentando suplantar com a voz o baru­
lho das ondas. Aprende-se a falar em público como se apren­
de a representar no teatro , na televisão e no cinema. O pró­
prio Demóstenes, vaiado em suas primeiras apresentações ,
foi depois instruído pelo ator Sátiro, que lhe ensinou a mímica
teatral e a usar devidamente as cordas vocais.
Ainda que a oratória, na Grécia e em Roma, fosse
uma arma temível nos confrontos políticos, como provam a
“Oração da Coroa”, de Demóstenes contra Felipe, e as “Cati-
49
1■

linárias”, de Cícero contra Catilina, a arte de falar em público ,


estava tão difundida que os contemporâneos a encaravam com
espirito esportivo. Ésquines, por exemplo, intentou querela
contra Demóstenes e acabou banido. Exilou-se em Rhodes,
onde fundou uma escola de oratória. Numa de suas aulas,
empolgou os alunos recitando o discurso que proferira contra
Demóstenes. Quando os discípulos alegaram que, com tal
acusação, ele não podia ter perdido a causa, o mestre argu­
mentou que eles assim falavam porque não ouviram o leão :
rugindo. Consta, aliás, que Demóstenes sempre lhe enviava
algum numerário para auxiliá-lo em sua manutenção.
Cícero, o mais famoso orador romano, era de família
abastada e estudou com os melhores professores. Em Rho­
des, foi aluno de Apolônio de Mólon que, quando de sua des­
pedida, confessou que chorava porque Cícero iria levar para
Roma a arte da eloqüência, última glória da Grécia. Para Cí- •
cero, o orador deveria ser, ao mesmo tempo, filósofo, ator e
poeta. Enfeitava tanto seus discursos que, quando dizia a ver­
dade, parecia mentir. Ele, como Demóstenes, redigia os pró­
prios discursos e os decorava integralmente. Outros, porém,
apelavam para os redatores. Isócrates, renomado logógrafo,
justificando o fato de não ser também, como seus clientes, um
bom orador, dizia de si mesmo que era como a pedra de am o­
lar, que não corta, mas serve para afiar muitas lâminas.
Certa feita, quando Demóstenes discursava, um dos
ouvintes o interrom peu dizendo que seus discursos cheira­
vam a azeite de lamparina, com isso insinuando que ele pas­
sava as noites decorando os textos. Demóstenes respondeu
que preparava seus discursos porque prezava o povo de Ate-
nas, e que se a lamparina do aparteante não testemunhava
seus esforços, deveria assistir a cenas escabrosas. A célebre
defesa de Milon, escrita por Cícero, não foi pronunciada. Co- s
agido pelo aparato m ilitar montado por Pompeu no dia do ju l­
gamento, Cícero acovardou-se, falou de improviso e Milon foi
banido. Posteriormente, em Marselha, respondendo a Cícero
que lhe enviara uma cópia do discurso, Milon lamentou-se,
dizendo-lhe que se aquela defesa houvesse sido proferida,
ele não teria sido condenado. ■ \
A memorização dos discursos é necessária, porque
ninguém pode improvisar com êxito na oratória. Para Henri
Robert, a nascente não brota sem que o orador haja previa­
mente acumulado uma riqueza de vocabulário,- idéias e ima­
gens, que saca da memória quando discursa. Para ele, a im­
provisação é o resultado de um longo trabalho de acumula­
ção. Por isso, dizia Mark Twain que, em média, gastava três
semanas para preparar um improviso. Grandes oradores como
Cremieux e Ferri, decoravam seus discursos passeando, o
primeiro pelas margens do Sena e o segundo pelas do Amo. A
arte e a ciência não têm caminhos para príncipes. Gênio é
trabalho ou, como disse Edison, um por cento de inspiração e
noventa e nove por cento de transpiração. Para Andrew Car-
negie, o preço da perfeição é a prática constante.
O fator, porém, que mais conspira contra os que pre­
tendem falar em púbtico é a timidez. Nos bares e nas discus­
sões domésticas as pessoas falam com muita eloqüência. Mas
diante de uma platéia, costumam tartamudear. O remédio para
a cura dessa deficiência é desprezar o auditório. Consta que
famoso ator, vítima dessa inibição, costumava chegar ao tea­
tro lamentando-se da triste sina de ter de representar perante
uma platéia composta de analfabetos, absolutamente incapa­
zes de valorizar a sua arte. Só entrava no palco quando já
estava totalmente convencido da ignorância dos espectado­
res. O melhor exemplo, todavia, dessa postura, é o de Fócion,
que, em Atenas, ao ser estrepitosamente aplaudido quando
discursava em um comício, perguntou a um de seus assesso­
res: “Terei dito uma tolice?”

51
AS CAUSAS DO CRIME

Como tudo que existe, o crime não tem geração es­


pontânea, É uma doença do corpo social , como as que agri­
dem o corpo humano. Mais do que ao críminalista, compete
ao psiquiatra o estudo das causas endógenas do crime. As
exógenas podem ser percebidas por qualquer do povo, por­
que são de ordem econôm ica, sociológica e cultural. Entre
nós, os seguintes fatores concorrem para fom entar a crim ina­
lidade: a corrupção política, a inversão de valores, o êxodo
rural , a televisão, o lixo cultural importado, a ostentação da
riqueza, o consumismo, a procriação irresponsável, a igno­
rância, o uso das drogas e o abuso do álcool, a ociosidade, a
desconfiança na justiça, a falta de policiamento, a impunidade
e a contaminação carcerária.
Embora cada um desse fatores possa ensejar muitas
monografias, é fácil explicar, em poucas palavras, a trágica
influência que eles exercem. Quanto à corrupção política, é
certo que todo povo tem o Governo que merece. Mas a con­
duta dos políticos influencia a do povo, que, quando a impro­
bidade é a regra, tende a seguir o exemplo dos governantes.
A inversão de valores, fonte de frustração e revolta, é causa,
até mesmo , de atos de terrorismo. A invasão das cidades
pelos egressos do campo vem criando bolsões de pobreza
onde proliferam, em razão do desemprego ou dos salários de
fome, os agentes do narcotráfico e os réus de latrocínio.
A televisão, com seu noticiário escandaloso, sua la­
vagem cerebral e suas infames novelas onde tudo se faz para
subverter os costumes, é talvez o fator crim inológico mais
degradante da época atual. Seu ópio colorido estim ula a ocio­
sidade, rouba o tempo ao trabalho, escorraça os livros, estu-
53
pidifica os pais de fam ília e aliena a juventude. O lixo cultural
importado, sobretudo a música e o cinema am ericanos, aque­
la histérica e alucinógena, e este vazio de espiritualidade, po­
rém referto de “exterminadores", “punks” , “ram bos” e “robo-
cops” , eqüivalem a um rolo com pressor que esmaga a auto-
censura e libera instintos criminosos.
A ostentação dos ricos, com a acintosa divulgação
de seus regabofes e vagabundagens planetárias, é um convi­
te aos seqüestradores, e uma afronta àqueles que não resis­
tem ao apelo brutal do consumismo. Como poucos podem,
como Sócrates , visitar as lojas para ver quantas coisas exis­
tem, das quais não precisam, é claro que muitos sofrem a
influência deletéria do consumismo, e que alguns buscam a
satisfação das necessidades artificiais através de crimes con­
tra o patrimônio. A procriação irresponsável é um manancial
de delinqüência, porque enche as ruas de menores abando­
nados que só podem sobreviver como animais de rapina.
A ignorância, a ociosidade, o abuso do álcool e o con­
sumo de drogas, dispensam, como causas do crime, qualquer
esclarecimento. A desconfiança na justiça induz o lesado ou
ofendido a optar pelos recursos mais práticos do Direito Natu­
ral. Quanto à falta de policiamento e à impunidade, é óbvio
que a inoperâncía policial e a ineficácia dos meios repressivos
estimulam a ação predatória dos malfeitores. A contaminação
carcerária é foco de criminalidade, porque, como os tribunais
já reconhecem e proclamam, nossas prisões são escolas pri­
márias, secundárias e superiores dó'" crime. A “Falange Ver­
m elha” confirma esse entendimento.
Colaboram, portanto, na etiologia do crime, além da
própria índole do delinqüente, inúmeros fatores cuja elim ina­
ção é impossível em qualquer sociedade, seja qual for o seu
estágio de civilização. O homem, por sua inteligência, é o mais
perigoso dos animais. E a vida comunitária, com seus apelos
e antagonism os, será sempre um laboratório do crime. Já di­
zia La Bruyére que: “Todo nosso mal advém de não podermos
ser sós; do jogo, do luxo, da dissipação, do vinho, da sexuali­
dade, da ignorância, da maledicência, da inveja, do esqueci­
mento de nós mesmos e de Deus.”

54
A PENA DE MORTE

A história da pena, em geral, é a de sua própria abo­


lição. Não obstante, a pena de morte sempre existiu e ainda
sobrevive em muitos países. Jesus vaticinou (Mateus, 26.52)
que morreria pela espada quem com a espada matasse. Para
Jerônimo, Agostinho e Tomás de Aquino, a aplicação da pena
capital eqüivalia à ação do médico que, para salvar o organis­
mo, amputasse o membro gangrenado.
Os partidários da pena de morte alegam que seria
um escárnio se o Estado garantisse ao homicida que, ao me­
nos por parte da justiça, o que ele fez à sua vítima jam ais lhe
acontecerá. Esgrimem também com a clássica advertência de
Aíphonse Karr aos assassinos, no sentido de que, se dese­
jam a abolição da pena capitai, devem deixar de aplicá-la em
suas vítimas. Entendem ainda que a audácia dos maus não
deve exceder à coragem dos bons. Ademais, impedindo que
os assassinos voltem a matar, a pena de morte seria, na rea­
lidade, um autêntico salva-vidas.
Os antagonistas pretendem que a pena de morte é
ineficaz, porque nos países onde foi abolida não teria havido
aumento da criminalidade. Dizem que a vida humana é obra
de Deus e que só a ele cabe extingui-la. Argumentam que o
espetáculo da aplicação da pena capital concorre para em-
brutecer a sociedade. Ponderam também que a execução do
condenado torna impossível a reparação de eventual erro ju ­
diciário. Os que não acreditam na justiça afirmam, com con­
vicção alarmante, que, se houvesse pena de morte no Brasil,
só os desvalidos seriam condenados.
Descartados, porém, esses argumentos, favoráveis
ou contrários à pena de morte, que podem ser refutados com
55
outros não menos convincentes, o fato é que ignoram o Direi­
to Penal aquetes que pretendem agravar as penas em função
exclusiva da natureza dos delitos. Desde o advento da Escola
Positiva, o delito e a pena cederam lugar ao criminoso, perso­
nagem que a Escola Clássica olvidara. O antigo conceito de
retribuição do mal pelo mal foi, de há muito, substituído pelo de
defesa contra a periculosidade do delinqüente. O crime é uma
prova dessa periculosidade e um indício de que o criminoso
repetirá sua ação maléfica. A pena, portanto, destina-se a inter­
romper a atividade criminosa e a reeducar o delinqüente.
O criminoso não é segregado pelo que fez, mas por­
que sua liberdade é um risco social. Se houvesse certeza de
que ele não voltaria a delinqüir, sua prisão seria inútil. A gravi­
dade do crime é apenas um sintoma de maior ou menor peri­
culosidade. A questão fundamental, pois, não reside na natu­
reza do crime cometido e sim em saber se o autor é ou não
recuperável e se sua liberdade representa um perigo social
que recomende a aplicação de medidas extremas. Em suma,
o que importa na avaliação da pena aplicável é a personalida­
de do delinqüente e não o crime cometido.
A pena de morte, se aqui fosse legalizada, deveria
destinar-se aos profissionais do homicídio. Aos pistoleiros,
aos sicários, àqueles que, mediante.paga, extinguem vidas
humanas. Não deveria, jamais, alcançar o delinqüente primá­
rio, mesmo quç haja cometido um daqueles crimes que a
cegueira jurídica de nossos legisladores classificou como he­
diondos. A espécie criminal é secundária, acessória, adiáfora.
Basta ver que o mais grave de todos os crimes, ou seja, o
matricídio, pode ser cometido até mesmo por piedade, como
ocorre na eutanásia. Não há crime hediondo. Existem, sim,
legisladores, leis e criminosos hediondos.
No Brasil, todavia, a discussão em torno da pena de
morte é um devaneio. Uma abstração da realidade ontológi-
ca. Uma incursão pueril no mundo encantado do faz-de-con-
ta. Isto porque, sem lei e sem entraves processuais, a pena
de morte vem sendo aplicada em todos os recantos do País,
por policiais, sicários e justiceiros. Na Baixada Fluminense,
por exemplo, mata-se mais do que se matou na Guerra do
56
Golfo. A função da lei penal é am parar a norma de cultura. Se
esta, porém, aprova que se faça justiça pelas próprias mãos e
se a sociedade consegue conviver com tal sistema, não há
necessidade alguma de legalização da pena de morte. Os
costumes arraigados, a tradição, a praxe, dispensam a lei.

57
O DEVER DO ADVOGADO

Respondendo à consulta de um criminalista que in­


dagava se devia aceitar o patrocínio da defesa de um adver­
sário político, acusado de homicídio, escreveu Ruy Barbosa
uma carta magistral, onde sustentou que: “Ante a deontologia
forense não há acusado, embora o fulm ine a mais terrível das
acusações, e as provas o acabrunhem, que incorra no anáte-
ma de in d ig n o de d e fe sa ” . Quanto ao defensor, dispõe o
Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu artigo
88, que: “ Nenhum receio de desagradar a juiz ou a qualquer
autoridade, nem de in co rrer em im popularidade, deterá o
advogado no cumprimento de suas tarefas e deveres “ . Ainda
hoje, entretanto, há quem não entenda por que os advogados
assumem, sem constrangimento, a defesa de acusados que a
opinião pública já condenou antecipadamente.
O criminalista, todavia, não pode preocupar-se com a
sociedade, porque só tem deveres para com seus patrocina­
dos. Do contrário, a defesa criminal só seria admissível quando
os interesses do réu não colidissem com os da comuna, e isto
só ocorre quando ele é inocente. Nada podendo esperar da
coletividade, porque com ela se acha, como representante dos
réus, em conflito permanente, não deve o criminalista afligir-se
com o que dele pensem, nem tem er a im popularidade. Se
agir de outro modo, estará servindo a dois senhores e sacrifica­
rá forçosamente um em favor do outro. Se o criminalista neces­
sitar de motivação filosófica, bastará lembrar-se de que, segun­
do Hegel, toda sociedade é a síntese de seus próprios antago­
nismos. Quem a afronta concorre para aperfeiçoá-la.
Como argüiu Lachaud em sua célebre defesa deTrop-
pmann, abom inável facínora que trucidara uma fam ília in-
59
teira (o casal, um adolescente de dezesseis anos, e quatro
meninos, o mais velho de treze e uma criancinha de dois), os
que não compreendem as obrigações da defesa “confundem,
em sua generosa indignação, a vingança e a cólera com a
ju stiça ” . Não percebem que “abrasados nessa paixão arden­
te e excitados de com iseração para com tantas vítimas, aca­
bam por querer que se deixe consum ar um crim e social , de
todos o mais perigoso, o sacrifício da lei”. O mesmo ocorre
na deontologia médica, onde também não há enferm o indig­
no de tratam ento. Ninguém ousaria censurar um médico que
socorresse, com sua ciência, o pior dos crim inosos. Não é
função do médico, nem do advogado, facilitar a elim inação
dos inim igos públicos.
Assim com o pode qualquer criminoso cham ar um
médico para livrá-lo da doença, sem que este tenha o direito
de eximir-se porque a vida do paciente seja nociva à socieda­
de, pode também o delinqüente chamar um criminaíista para
livrá-lo da pena, sem que a este seja lícito esquivar-se a pre­
texto de constituir um risco social a liberdade daquele que o
chamou. Para o criminaíista não há culpado nem inocente.
Apenas alguém que caiu ou está prestes a cair nas malhas da
justiça. O advogado que julga o réu, usurpa as atribuições do
juiz e do tribunal. Evidencia alarmante ignorância de sua mis­
são e estorva a dialética, evertendo o sistema racional de in­
dagação da verdade, onde a acusação é a tese, a defesa a
antítese e o juízo a síntese.
O criminaíista não tem direito de sentir aversão algu­
ma pelo acusado, seja qual for o crime por ele cometido. O
repúdio à causa em razão exclusiva da gravidade do delito é
prova de cegueira jurídica , pusilanimidade e hipocrisia. Porque
os sãos não precisam de médico e sim os doentes, Jesus não
veio cuidar de justos e sim de pecadores. Simples cireneu, o
criminaíista apenas ajuda o acusado a carregar a sua cruz. Se
o médico não pode, sequer na véspera da execução, recusar
tratamento ao condenado à pena de morte, não pode também
o advogado, a pretexto algum, descumprir sua missão. O de­
fensor é a voz do acusado. A ele cumpre fazer o que o próprio
réu faria, se estivesse habilitado a defender-se. E quanto mais
60
grave for o crime - disse Ruy - mais necessita o acusado de
assistência e defesa.
A recusa de patrocínio em razão da natureza do cri­
me ou da confissão recebida em confiança, constitui imperdoá­
vel omissão de socorro. Ao criminalista, aliás, não interessa a
confissão do acusado, porque seu dever é defendê-lo em qual­
quer circunstância. Para tanto, basta-lhe indagar quais os fa­
tos, documentos ou testem unhas que podem ser utilizados
em sua defesa. Para assegurar justiça ao povo, o Estado não
necessita do farisaísmo ou da om issão dos advogados. Muito
menos ainda, da traição daqueles a quem os acusados confi­
aram seu destino. Polvo gigantesco, o Estado possui tentácu­
los poderosos, capazes de sugar dos réus até mesmo o âni­
mo de defesa, cabendo ao advogado, com dedicação e com­
petência, auxiiiar a justiça a m anter o equilíbrio entre os pra­
tos de sua balança.
■ O úitimo dos criminosos, corno disse Ruy, tem o mais
absoluto direito de que com ele se observe a lei. Portanto,
ainda quando a condenação seja inevitável, há sempre o que
fazer em defesa do acusado. Além de velar pela observância
do devido processo legal, cabe ao advogado denunciar con­
trafações, impugnar o falso testem unho e as provas ilegal­
mente obtidas, bem como apurar e expor a eventual contribui­
ção da vítima para o delito, e recorrer, quando a pena exceda
os limites razoáveis. Consciente da in d is p e n s a b ilid ad e de
sua função, uma vez que sem d e fe n s o r não pode h aver pro­
cesso, o criminalista deve ignorar a opinião pública, m orm en­
te porque, hoje em dia, ela já não é pública e nem mesmo
opinião. É apenas o que a mídia impinge.

61
O ERRO JUDICIÁRIO

Na história da criminalidade, os erros mais famosos


foram os consumados no “Caso do Correio de Lyon“ e no “Caso
Dreyfus” , ocorridos na França, em 1796 e 1894, respectiva­
mente. No primeiro, o com erciante Lesurques foi reconheci­
do por oito testemunhas como o chefe dos ladrões que assal­
taram uma diligência, matando o cocheiro e o estafeta res­
ponsáveis pelo transporte de vultosa quantia em dinheiro, da
qual os bandidos se apossaram. Depois da execução de Le­
surques, descobriu-se que fora Dubosq o criminoso e que ele,
durante o assalto, usara uma peruca loura, igual à cabeleira
natural de Lesurques, com quem fora confundido. Após a re­
tratação das testemunhas, Dubosq também foi executado.
No outro, que provocou acirrados debates em vários
países, tendo sido Ruy Barbosa um dos primeiros a censurar
o julgado, o Capitão Dreyfus, do Exército Francês, foi conde­
nado à degradação militar e à prisão perpétua na Ilha do Dia­
bo, sob a acusação de haver fornecido documentos militares
a uma potência estrangeira. No caso, a prova era uma carta
que os peritos atestaram haver sido grafada pelo punho do
acusado. Posteriormente, comprovou-se que o documento fora
escrito pelo Capitão Esterhazy, que acabou ficando impune,
porque o tribunal militar jam ais reconheceu o erro. Este caso
motivou a célebre campanha de Zola, que concorreu para a
cassação da sentença por um tribunal civil.
Embora não mereça perdão a impenitência do tribu­
nal militar, que, no “Caso Dreyfus”, perseverou na injustiça, o
fato é que neste, como no “Caso do Correio de Lyon” , o erro
judiciário foi determinado pela prova e não pela incapacidade
dos juizes. No primeiro, a prova testemunhai era esmagadora
63
e no outro a perícia era conclusiva. Só decidindo contra a pro­
va é que se poderia, antes da retratação das testemunhas e
da invalidação da perícia, absolver os acusados. O erro judiciá­
rio é produto de muitos fatores, a com eçar pelo inquérito poli­
cial que, sendo um expediente clandestino, pode subverter a
prova e conduzir o processo em qualquer direção. Por isso,
na maioria dos casos, quem condena ou absolve é a polícia.
Mas, felizmente, o erro judiciário também exibe virtu­
des. Às vezes, somente errando é possível fazer justiça. Isto
ocorre, por exemplo, quando os autos foram forjados, com as
provas ajustadas para induzirem o juiz a uma decisão iníqua,
única e inevitável, e este, sem se render ao clam or das pro­
vas, pois soube resistir à tentação de ter o processo, conse­
gue proferir uma sentença justa. Ocorre também, algumas ve­
zes, ficar o criminoso impune em delitos que cometeu, mas não
foram descobertos, e ser condenado em outros que não prati­
cou. Ainda nesta hipótese, não se pode negar a função repara-
dora do erro judiciário. Aliás, errando quanto à distância entre a
Espanha e as índias, foi que Colombo descobriu a América.
Uma justiça infalível seria uma calamidade. Basta ler
o Código e outras leis penais para compreender que não existe
homem algum que não haja praticado ao menos um delito. So­
negando impostos, danificando coisa alheia, cortando árvores,
matando tatu, jacaré ou passarinho, lendo sem autorização cor­
respondência alheia ou escutando conversa telefônica, injuri­
ando alguém, testemunhando falsamente em favor de um ami­
go, usando atestado falso para afastar obrigação incômoda,
poluindo água potável, manifestando racismo, dando ou ofere­
cendo propina a funcionário público, ou praticando - até mes­
mo por imprudência, negligência ou imperícía - outras ações
lesivas, todos nós deveríamos responder a processo penal.
Como a lei foi feita para o homem e não o homem
para a lei, a falibilidade da justiça é uma válvula de segurança.
Sem ela, as pressões da lei romperiam as comportas do pacto
social e danificariam o sistema. Para os casos indefensáveis,
como é óbvio, o erro judiciário é a única saída. A sabedoria,
porém, que produz o erro intencional, costuma prevenir e difi­
cultar o erro involuntário. É indispensável, portanto, a coope­
64
ração da ignorância, quando som ente o erro autêntico pode
impedir ou reparar uma injustiça. Na ciência jurídica, como em
tudo o mais, não se deve desprezar colaboração alguma. Nem
mesmo a de um imbecil. Como dizia Churchill, uma das gran­
des lições da vida é que, às vezes, os tolos estão certos.
Nada ilustra m elhor as vantagens de uma justiça re­
lativa do que a anedota - creditada à imaginação de Rabelais
- do juiz que ao sentenciar substituía o processo, o código e a
jurisprudência por uma sacola onde guardava feijões pretos e
marrons, em igual quantidade. Conforme a cor do feijão que
retirava da sacola, absolvia ou condenava. E as sentenças
eram exatíssimas. Somente no fim da vida suas decisões tor­
naram-se absurdas e com eçaram a ser reformadas, isso por­
que, com a velhice e o enfraquecim ento da vista, ele já não
distinguia a cor dos feijões, e passara a expedir sentenças
contrárias à prova dos autos. Em verdade, porém, com suas
decisões iotéricas, aquele juiz era mais justo do que outros
que sem pre absolvem ou se m p re condenam.

65
O CRIME PASSIONAL

A paixão é uma emoção que perdura. É um estado


psíco-morboso, uma força anímica incoercível, uma energia
sentimental incontrolável, uma irreprimível monomania afeti­
va. Kant comparou a em oção à enxurrada que desmorona um
dique e a paixão à torrente que mina seus alicerces. Como
Proteu e Vixnu, os deuses de muitas carás, as paixões, quan­
to ao seu objeto, podem ser tantas quantos são os sentim en­
tos humanos: mística (Jesus), amorosa (Romeu), monetária
(Shylock), maternal (Niobe), filia! (Hamlet), patriótica (Chau-
vin), etc. Portanto, matar por fanatism o religioso, partidário ou
clubista, é também crime passional. Obviamente, as paixões
podem ser construtivas ou destrutivas. Quando se fala, po­
rém, em crime passional, pensa-se logo no homicídio por pai­
xão amorosa.
Segundo a fórmula de Abrahamsen, o crime é direta­
mente proporcional à soma da tendência com a situação e
inversamente proporcional à resistência do indivíduo. Quando
a tendência predomina, é a situação que o produz. No crime
passional, a tendência prepondera, porque a paixão, além de
reforçá-la, debilita a resistência e cria situações favoráveis à
eclosão de atos desvairados. Por outro lado, o motivo deter­
minante de um crime é o antecedente psíquico da ação, a
força interna que transforma a vontade em ato, ou, como o
define Schopenhauer, a causalidade vista do interior. No ho­
micídio passional, o motivo é a própria paixão que, hipertrofian­
do as forças impelentes e debilitando as frenadoras, desequi­
libra o psiquismo do indivíduo e o precipita no delito.
Como uma arma engatilhada, o passional dispara ao
mais leve atrito. Os fatores externos, todavia, não devem ser
confundidos com o motivo determinante, porque este é endó-
geno e reside na própria passionalidade do indivíduo. Nenhum
código penal, no mundo culto, considera irresponsável o pas­
sional. Mas, quem verdadeiramente mata por paixão am oro­
sa, seja homem ou mulher, não deveria sofrer pena alguma. O
passional só é perigoso para a pessoa amada. Corno a pena
se destina a impedir a reincidência e a reeducar o delinqüen­
te, não tem, no caso do homicídio por paixão amorosa, qual­
quer finalidade. O passional não volta a delinqüir, porque o
crime, como uma vacina psiquiátrica, o imuniza contra as pai­
xões. E sua reeducação dimana dos sentimentos de autocen-
sura, de culpa, de perda irreparável, em suma, do remorso
provocado pela morte da vítima.
Como tudo que influi no com portamento humano, as
causas econômicas, sociais e culturais concorrem para gerar,
abortar, desenvolver ou dem olir paixões. O moinho de vento,
corno observa Marx, cria um tipo de sociedade e o cavalo-
vapor outra diversa. Em épocas remotas, a economia pastoril,
a sociedade bucólica e a literatura sentimental, concorriam
poderosamente para sublim ar as vinculações amorosas. Hoje,
entretanto, na era da tecnologia, da televisão, dos amores
descartáveis, das relações sem compromisso, o crime passio­
nal está, cada vez mais, desaparecendo. Se o medo da Aids
não ressuscitar os poetas e o romantismo, o crime passional
só será encontrado, doravante, nos museus de criminologia.
Com a revolução dos costumes, a falência dos valo­
res tradicionais, a permissividade e a massificação, é claro
que o crime passional, cujos fundamentos são a auto-estima
e o culto da personalidade, tende a desaparecer. Em vez do
crime motivado por injunções espirituais, teremos somente o
crime utilitário. O ânimo de lucro é o princípio e o fim na soci­
edade consumista, que não pode perder tempo com questões
de honra, sentimentos e preconceitos. O amor atual não con­
duz à tragédia. Quando o marido moderno, avançado, pro­
gressista, encontra um rival em sua cama, não cerra os pu­
nhos, brande o punhal ou saca o revólver. Limita-se a inquirir,
como o Conde de Artois, em situação análoga: “Como, se­
nhor, sem a isso estar obrigado?!” Aliás, os franceses não têm
ciúmes de suas esposas. Só das amantes.
68
Hoje, quando o rom antism o já desapareceu até mes­
mo da literatura, quando a poesia perdeu a rima e a música a
harmonia, quando as relações entre homem e mulher são es­
piritualmente acromáticas, insípidas, abúlicas, o crime passio­
nal é um anacronismo. Entretanto, ele já foi a apoteose do
Tribunal do Júri. Melíusi (“Do am or ao delito”) e Ferri (“O Ho-
m icídlo-suicídio”), relembram muitas tragédias motivadas pelo
amor. Ingenieros e Ortega y Gasset, em obras sob o mesmo
trtuio (“ Estudos sobre o am or”), exploram a etiologia desse
sentimento afetivo. Atualmente, porém, com o fem inism o dos
homens e o machismo das mulheres, o crime passional, por
sua raridade, já não interessa ao criminaíista. Talvez aos ar­
queólogos.

69
O SUICÍDIO

O nosso Código Penal não incrimina o suicídio. Pune


apenas quem induz, instiga ou auxilia alguém a suicidar-se.
Entretanto, o suicídio já foi crime, punido com o confisco dos
bens do morto, a degradação e o sepultamento em estrada
pública. O cadáver do autocida era atravessado por um pau ou
suspenso pelos pés e arrastado pelas ruas com o rosto voltado
para o chão. Na velha Grécia, o suicida era declarado infame,
tinha a mão direita amputada e ficava sem sepultura regular.
Em Roma, Tarquínio ordenou que os cadáveres dos suicidas
fossem postos na cruz e abandonados às aves de rapina. Na
Idade Média, o Direito Canônico equiparou o suicídio ao homi­
cídio, passando então, os juizes, a processar cadáveres.
Exaltando o martírio a ponto de considerá-lo como
um passaporte para o reino dos céus, o Cristianismo, em seus
primórdios, não reprovava o suicídio. Somente no Século IV,
através de Agostinho, foi que a Igreja começou a pregar contra
o suicídio, incluindo-o no preceito: “não matarás” . Nos Concí-
lios de Aries (452), Orleans (533), Praga (563) e Toledo (693), a
Igreja costurou sua doutrina oposta ao suicídio, inclusive reedi­
tando as sanções abomináveis do direito primitivo. Estribando-
se na fábula do suicídio de Judas, que, segundo Renan (“Ori­
gens do Cristianismo”), os fatos não confirmam, a Igreja pas­
sou a estigmatizar o suicida como uma sentinela que abandona
o posto e, conseqüentemente, como um covarde e traidor.
Enquanto era frágil e perseguida, a Igreja estimulou
o martírio. Quando, porém, superou a fase de seita subversi­
va e assumiu o poder, adotou uma ideologia de classe domi­
nante, passando a combater, as reações de incredulidade ou
ateísmo, e concebendo o suicídio como uma demonstração
71
de total descrença na justiça divina. Essa ideologia contam i­
nou a literatura nos séculos seguintes, culminando no célebre
monólogo em que o angustiado Príncipe da Dinamarca inda­
ga quem suportaria a fadiga, os suores, as dores, a insolência
das autoridades, a morosidade da justiça e os torm entos do
am or desprezado, se Deus não proibisse o suicídio. Somente
a partir do Século XVIII, com Rousseau e outros, é que essa
tendência foi rechaçada.
Entre os alienistas, prevalece a opinião de que os
suicidas são psicopatas. Seria absurdo, entretanto, classificar
Demóstenes, Aníbal, Marco Antonio, Cleópatra, Sêneca, Pe-
trônio, Lord Clive, Jack London, Balmaceda, Hemingway, Ste-
fan Zweig e Getúlio Vargas, como dementes. O suicídio, aliás,
já foi norma em algumas profissões. O negociante falido suici­
dava-se. Na marinha, o suicídio era um dever para o capitão
cujo navio naufragasse. O Japão produziu os camicases (pilo­
tos suicidas) e a cerimônia brutal do haraquiri. No Sudeste
Asiático, os bonzos incineravam-se. Em toda parte, os suicí­
dios por motivação amorosa estão rareando, mas ainda ocor­
rem. Em compensação, há quem se suicide até por brincadei­
ra, como no caso da roleta russa.
Sócrates e Jesus foram suicidas indiretos. O primei­
ro, após condenado a sofrer, entre as penas cominadas, a
que ele mesmo escolhesse, afrontou os juizes ao declarar que
desejava, pelo resto da vida, ser alimentado no Pritaneu, res-
taupante do Estado, onde hóspedes oficiais e outros privilegi­
ados comiam de graça. Por isso, im puseram -lhe a cicuta.
Quanto a 'Jesus (João 10.17 e 18), é eloqüente sua assertiva
de que daria a vida para tornar a tomá-la e que ninguém a
tiraria, senão ele mesmo. Certo de que seria crucificado, che­
gou a pedir ao Pai (Mateus 26.39) que afastasse o cálice de
amargura. Como Filho de Deus, ele tudo antevia. Como Filho
do Homem, não podia ignorar que sua pregação revolucioná­
ria eqüivalia a um autocídio.
Os animais também se suicidam. Os lemingues, por
exemplo, que habitam as montanhas da Noruega, merecem
respeito, admiração e reverências. Eles são mamíferos roedo-
res, do tamanho de um rato, de cauda curta, quase sem ore­
72
lhas, unhas típicas dos escavadores, pêlo amarelo e cabeça
preta. Nutrem-se de musgo, ervas e liquens. Têm ótima previ­
são do tempo atmosférico e emigram conforme as estações,
Mas proeriam com total irresponsabilidade. Quando as colô­
nias se tornam excessivamente populosas e há escassez de
alimentos, os lemingues reúnem-se em legiões abnegadas que
descem para as praias e precipitam-se nos mares. Com essa
ação altruísta, conseguem manter o equilíbrio entre o alimento
restante e os consumidores que permanecem nas montanhas,
Na conjuntura atual, quando o brasileiro não pode
mais acreditar em coisa alguma, e muito menos ainda no al­
truísmo dos lemingues políticos, marajás e em preiteiros, por­
que estes, de barriga cheia, jam ais se atirarão nos mares para
que possamos sobreviver, o suicídio é uma questão de máxi­
ma importância. Não tendo o povo qualquer tradição revolucio­
nária, uma vez que só protesta pela via carnavalesca, como
nos recentes desfiles dos caras pintadas, resta apenas aos
brasileiros uma preparação psicológica para o suicídio coleti­
vo. Depois do Plano Funaro, do Plano Collor e desse último
com que se pretende debelar a inflação estim ulando as impor­
tações, promovendo o desemprego e aumentando o déficit
público, só através do suicídio será possível escapar do flage­
lo que nos aguarda.

73
A FOME E A LEI

O iate “La Mignonnete” , tripulado pelo capitão Dud-


ley, o piloto Stephens, o marinheiro Brooks e o grumete Par­
ker (de dezessete anos), navegava de Southampton à Austra-
lia, quando, no dia 15 de julho de 1884, naufragou a 1600
milhas do Cabo da Boa Esperança, refugiando-se os tripulan­
tes em um bote. Após dezoito dias à deriva, acossados pela
fome, o capitão e o piloto mataram o grumete e passaram a
alimentar-se de sua carne. Vinte e quatro dias após o naufrá­
gio, os sobreviventes foram socorridos e transportados para a
Inglaterra. O Tribunal de Londres condenou Dudley e Stephens
à morte e impôs pena mais branda ao marinheiro Brooks, que
também comera do cadáver, mas não participara do homicí­
dio. A Rainha, porém, comutou para seis meses de prisão a
pena de morte.
Em 1888, numa região da Sibéria, Procópio Kalenine
estabelecera um acampamento à margem de um riacho, jun­
tamente com seus irmãos Nikita, Davi e Maria, esta uma me­
nina de onze anos de idade. Durante algum témpo, consegui­
ram viver do produto da pesca, que, entretanto, com a chega­
da do inverno e o congelamento do riacho, veio a faltar com­
pletamente. Davi saiu a procura de um lugar mais favorável,
deixando os outros no acampamento. Sentindo-se morrer de
fome, Procópio matou a irmãzinha, comendo-lhe as carnes,
em companhia dé Nikita. Salvos mais tarde, Procópio confes­
sou o fato e foi condenado a treze anos e meio de trabalhos
forçados. Nikita foi absolvido porque não participara do fratri-
cídio, embora houvesse tam bém se alimentado com a carne
da irmã sacrificada.
Júlio César (“De Bello Gallico"), comenta que os gau-
75
leses preferiam 'recorrer ao canibalismo a ceder ao cerco dos
romanos, Giuseppe Flávlo (“G uerra D egli EbreF), relata que
durante o cerco de Jerusalém por Tito, uma judia matou e co­
meu um filho. Na Françaf a partir de 1030, houve uma carên­
cia geral de alimentos, que durou três anos, passando os ho­
mens, nesse período, a caçar seus semelhantes. Em 1200, a
fome alastrou-se pelo Egito e a antropofagia foi praticada em
todas as cidades. Caçava-se o homem e sobretudo os meni­
nos, cuja carne era considerada excelente. O canibalismo, que,
de início, parecera abominável, integrou-se aos costumes. Uma
mulher rica nutria-se habitualm ente de carne humana. Um
comerciante acumulou grande quantidade dessa iguaria que
salgou para vender.
Em sua “História de Lorena” , narra Colmet que em
1638 a fome era tão .grande que os homens comiam seus se­
melhantes e devoravam até mesmo carne putrefata. O filho
arrojava-se sobre o cadáver do pai, o pai sobre o do filho, a
mãe sobre o da filha, e ninguém dormia ao lado de outra pes­
soa, temendo ser assassinado e comido. Em lugares como
Mainz o povo saqueava os cemitérios, violava as tumbas, es­
calava patíbulos e levava os mortos para comê-los. Nos ar­
redores de Coburgo existiam bandos de assassinos que mo­
ravam em cavernas e casas abandonadas, de onde saíam
para matar e com er seus semelhantes. Em Landau, nessa
época (1634 a 1638), também se roubavam cadáveres das
fossas para comê-los. Uma mulher matou o próprio filho, o
salgou e o deglutiu com avidez.
Relata Ferri (“E l H om icida”) que os selvagens austra­
lianos, quando famintos, chegavam a desenterrar cadáveres
para comê-los. “Depois de três dias de sepultura - diziam a
um missionário - um cadáver é ainda um alimento possível”.
Quando faltavam cadáveres, matavam uma m ulher ou um
menino que esquartejavam e comiam. Cunningham encon­
trou um pescoço humanolem um saco de um dos australianos
que o seguiam. Em Taiti, chamava-se de “estação para comer
gente” o período de falta de alimentos. Nas Ilhas Fídji, um
chefe exibia os ossos de centenas de vítimas humanas que o
pai devorara no curso dé sua vida. Sturt conta que viu um
76
australiano esm agar com uma pedra a cabeça de um filho
enfermo e o devorar» depois de assado. Também ali as mulhe­
res comiam freqüentem ente os filhos mortos.
Quanto ao Direito, sabe-se que na índia as Leis de
Manu isentavam de pena o fam into que matasse um sem e­
lhante para nutrir-se com seu cadáver. Na Espanha, as "Parti­
das” justificavam o guardião do castelo que, para não se ren­
der pela fome ao cerco do inimigo, com esse o próprio filho.
Atualmente, em todos os povos cultos, entende-se que a ne­
cessidade dispensa a lei. O nosso Código Penal dispõe que
não há crime quando o agente pratica o fato para salvar de
perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia
de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício,
nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. Portanto, por
mais hediondos que pareçam, os casos acima aludidos resul­
tariam em absolvições, se aqui fossem julgados.
A fome impele o homem até mesmo ao canibalismo.
Mas, como a dor, que anuncia a doença, a fom e é a sentinela
que nos previne contra a inanição e a morte. Embora muitos
consigam com er o pão com o suor do rosto alheio, o fato é
que,sem a fome, a preguiça inutilizaria a humanidade. A fome
ou o medo da fome é que extrai do homem a sua indolência,
transformando-o em um trabalhador infatigável. A fom e é a
própria vida a exigir nutrição. Por isso, quando não é atendi­
da, expulsa os sentimentos de humanidade, deixando prepon-
derar os instintos ferozes que coagem o homem a com er seus
semelhantes, inclusive os próprios filhos. Este, porém, é o preço
que ela cobra pelo estímulo e pelas energias que fornece, para
livrá-lo da ociosidade.

77
O CASO COLLOR

A Constituição Federal, em seu artigo 85, parágrafo


único, dispõe que os crimes de responsabilidade do Presiden­
te da República: “serão definidos em lei especial, que estabe­
lecerá as normas de processo e julgam ento” . Transcorridos
mais de-quatro anos da data em que foi promulgada a Consti­
tuição (5/10/1988), o Congresso Nacional não se dignou de
elaborar essa lei que definiria os crimes de responsabilidade e
fixaria as normas de processo e julgamento. Desde aquela
data, portanto, atravessa o País uma fase de anom ia, ou seja,
de vácuo legislativo, de ausência de lei, substantiva ou pro­
cessual, no que tange aos crimes de responsabilidade do Pre­
sidente da República.
Durante esses quatro anos, nossos representantes
no Congresso Nacional visitaram muitos países, discursaram
bastante, participaram de incontáveis tertúlias e banquetes,
ficando, por falta de tempo, impossibilitados de proceder como
os Pais da República, que, obedecendo ao artigo 54, da Cons­
tituição de 1891, logo produziram a Lei n° 30, de 8/1/1892,
sobre os crimes de responsabilidade, hoje apenas aludidos
em norma programática, cuja eficácia depende de complemen-
tação legislativa. Portanto, não havendo lei posterior à Consti­
tuição de 1988, que defina os crimes de responsabilidade do
Presidente da República e estabeleça as normas do respecti­
vo processo, é claro que não se pode, juridicamente, vindicar
o impeachment.
A Lei 1079 de 10/4/1950, com a qual se pretende su­
prir a omissão do Congresso, foi evidentemente revogada pela
Constituição, porque já existia quando esta preceituou que os
crimes de responsabilidade do Presidente da República: “se-
79
rão definidos em lei especial, que estabelecerá, as normas
do processo e julgam ento” . Para a sobrevivência daquela lei,
seria necessária a inversão dos tempos verbais, de modo que,
doravante, o tempo fu tu ro eqüivalesse ao p re té rito , O caso
não é de com patibilidade da Lei com a Constituição e sim de
revogação inequívoca, O cerebrino “princípio de recepção”
jam ais poderia ressuscitar uma lei revogada, para o efeito de
coonestar um julgam ento que atropela escandalosam ente os
princípios nullum crimen sine lege e do devido processo legal.
À míngua de legislação para o im peachm ent, fabrica­
ram um estranho “roteiro” com dispositivos da Constituição,
da revogada Lei 1079, do Código de Processo Penal, dos
Regimentos Internos do Senado e da Câmara dos Deputa­
dos, e até mesmo do Código de Processo Civil, que tremem
de susto por se acharem juntos. Com essa salada mista, pre­
tendem julgar a toque de caixa, o Presidente afastado. Me­
lhor, porém, do que o “roteiro” de uma farsa, cuja encenação
atenta contra a cultura jurídica nacional, seria a expedição de
um ucasse que, sumariamente, resolvesse o assunto. Se o
caso é político, deve ser resolvido com as armas da política,
sem comprometer, com a aprovação de uma mixórdia, a repu­
tação da justiça.
Quanto à hipótese de crime comum, para a qual exis­
tem leis em vigor (Código Penal e Código de Processo Penal),
convém observar que o artigo 86, parágrafo 4o, da Constitui­
ção Federal, dispõe que: “ O Presidente da República, na vi­
gência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por
atos estranhos ao exercício de suas funções” . Como ninguém
conseguiu, até o momento, indicar ato algum do Presidente
da República, re la tivo às su a s fu n ç õ e s , capaz de ser enqua­
drado nas leis penais, é claro que também não será juridica­
mente possível processá-lo por crime comum. Os crimes de
pre va rica çã o e c o rru p ç ã o passiva, de que tanto se fala, não
dispensam, como qualquer outro, a indicação dos atos que os
constituem. O de s o n e g a çã o fisc a l, único até .agora eviden­
te, é estranho ao exercício da função pública.
O que se imputa ao Presidente afastado é uma gota
d’água no oceano de corrupção que afoga o País, Se a devas­
so
sa a que ele foi submetido se estendesse aos G overnadores e
Prefeitos, poucos escapariam à guilhotina, O Brasil é, sabida­
mente, o paraíso dos políticos e dos empreiteiros. A corrupção
está generalizada. Para indiciá-la, basta ver que o dinheiro
investido nas cam panhas eleitorais excede im ensam ente à
soma dos proventos legais de todos os cargos pleiteados, e
que os governantes, de modo geral, não se preocupam com o
reajuste de seus vencim entos, quase sempre inferiores aos
de funcionários subalternos. Há, como disse Ruy, nesses sei­
os submarinos, esqualos capazes de engolir, com uma golfa­
da só, um fornecim ento inteiro. Do contrário, aliás, não se en­
tenderia por que um país tão rico vive na miséria.
O débito imperdoável de Collor não é o que se apu­
rou e sim o confisco da poupança e a desm oralização do sis­
tema bancário, aprovados servilm ente pelo Congresso e refe­
rendados pelo Supremo Tribunal Federal. Antigam ente, para
não ser furtado pelos punguistas ou roubado pelos assaltan­
tes, o cidadão depositava seu dinheiro no banco. Hoje, foge
dos bancos para não ser roubado pelo Governo. Naquele ato
é que o Presidente deveria ter sido afastado, como ocorreu
com a Ministra inglesa que queria aumentar impostos. E não
se alegue que o dinheiro dos investidores, poupadores e cor-
rentistas foi devolvido. Além da inadmissível desvalorização
dos ativos, restou a perda da credibilidade do sistem a bancá­
rio, que jam ais será restaurada. Ademais, nos crim es contra o
patrimônio, a devolução dá coisa não extingue a punibilidade.

81
A M ANIA DE JULGAR

A pretensão de julga r é inerente ao espírito humano.


Nem mesmo Jesus, com sua advertência de que não deve­
mos julgar para não sermos julgados, conseguiu coibir essa
trágica mania. Sem que conheça a etiologia das ações e rea­
ções, sem que conheça sequer a si mesmo, o homem julga
diariamente seus semelhantes. Impelido por essa tendência,
já julgou até mesmo seres inanimados. Plutarco refere que na
velha Grécia havia um tribunal, o Epipritaneu, encarregado de
julgar os “crimes” das coisas. As leis de Dracon admitiam pro­
cesso, julgamento e condenação das coisas que produzissem
homicídio. Em 480 A .C., Xerxes I, rei dos persas, mandou chi-
batear as águas revoltas do Egeu, porque haviam destruído a
ponte de embarcações por ele montada para que suas tropas
atravessassem o Helesponto, hoje estreito de Dardanelos.
No Egito, a arma utilizada na prática de homicídio era
condenada a perecer com o assassino. Em 1591, o sino da
Igreja de. Uglitsh, na Rússia, foi condenado à proscrição por­
que dera o sinal de início de uma rebelião sufocada. Em um
vilarejo da Tcheco-Eslováquia, já neste século, uma cruz foi
condenada à fogueira, por ofensa aos sentimentos de uma
facção católica. Quanto aos animais, consta da Bíblia (Levíti-
co, 20.15 e 16), que: “Se um homem tiver comércio com um
animal, será punido de morte, e matareis também o animal.
Se uma mulher se aproxim ar de um animal para se prostituir
com ele, será morta juntam ente com o animal” . Também no
Êxodo, 20.28-32, está prevista a lapidação do boi que chifrar
homem, mulher, ou criança. Até mesmo se a vítima fosse um
escravo, o boi não escaparia àquela punição.
Em 1386, no burgo de Falaise, na Normandia, uma
83
porca foi executada pelo carrasco, num patíbulo armado em
praça pública, porque devorara o rosto e um braço de um re­
cém-nascido, Em época mais recente, um porco foi enforcado
em Châlon, na França, porque matara um menino. Em 1499,
perto de Beauvais, também na França, um touro foi julgado e
condenado à morte, porque matara um rapaz. Entre 1522 e
1530, ainda em França, transcorreu o célebre processo dos
ratos de Autun, que devastavam plantações. Assegurado aos
predadores o devido processo legal, com as garantias do con­
traditório e da ampla defesa, foram eles patrocinados pelo
advogado Bartoiomeu Chassanée, que argüiu a nulidade da
citação ejm pugnou decreto de revelia, alegando a impossibi­
lidade de comparecimento dos réus, porque faltavam pontes
de acesso ao local do juízo e abundavam g a to s -nas cerca­
nias. A ação penal foi anulada porque a denúncia não indivi­
dualizara a conduta dos acusados.
Aqui mesmo, em São Luís do Maranhão , foi instau­
rado em 1708 um processo contra formigas, cujos autos estão
arquivados em Portugal. Na Revolução Francesa (1789), foi
julgado e condenado um papagaio que gritava: “Viva o Rei” . A
ave acabou sendo vingada, porque seu juiz, Joseph Lébon,
foi guilhotinado em 1795. Na Itália, em 1865, foi processado
por injúria outro papagaio, ensinado pelo dono a insultar um
vizinho. Há também noticia de um outro papagaio, supliciado
na Áustria porque ameaçava o regime, repetindo uma frase
subversiva. Em 1864, em Leeds, na Inglaterra, foi processado
pelo Tribunal do Júri, sendo julgado “culpado” e a seguir exe­
cutado, um galo que ferira gravemente uma criança. Em 1894,
o Tribunal de Elmira, nos Estados Unidos, teria processado e
condenado um macaco. Em 1926, em Pickville, também nos
Estados Unidos, um cão que mordera um rapaz foi executado
na cadeira elétrica.
Dessa obsessão de julgar e punir, não escaparam os
“crimes” ocorridos entre animais. Na Pérsia, as leis de Zoro-
astro puniam com mutilações crescentes, em ordem à reinci­
dência, os animais que lesionassem seus semelhantes. Na
Prússia, Frederico II condenou à morte um de seus melhores
falcões de caça, que matara uma águia. Esses processos, ju l­
84
gamentos e condenações não são invencionices. São fatos
históricos, atestados por juristas da alta categoria de Florian,
Filangieri, Ferri, Alimena, Pessina, Carrara, Manzini, Tissot,
Maurach, e Von Hippel, que pesquisaram as origens do Direi”
to Penal e a evolução do pensam ento humano, no vastíssim o
campo da criminalidade. Eles tam bém chegaram à conclusão
de que entre alguns animais da mesma espécie existem os
sentimentos de reprovação da conduta nociva, da punibiiida-
de, e até do arrependimento.
Hoje, tudo isso parece uma fábula. No futuro, toda­
via, parecerá também inacreditável o nosso sistema atual de
julgar e punir. Como vaticinou o grande penalista Luis Jim é-
nez de Asúa, a Criminologia absorverá o Direito Penal. As
penitenciárias, que renornados juristas já consideram m onu­
mentos à estupidez humana, serão substituídas petos hospi­
tais psiquiátricos. Na opinião da Ferri, o homem que com ete
um delito não está, ao menos no instante da ação delituosa,
em condições normais. Do contrário, teria repugnância de sua
conduta ou não se arriscaria a sofrer as conseqüências dolo­
rosas da repressão penal. Certam ente porque não acreditava
na justiça e talvez já vislum brasse os tempos futuros, quando
os nosocômios substituirão os juízos criminais, foi que Flau-
bert ironizou: “ Um homem julgando outro, faria chorar de hor­
ror, se não fizesse rebentar de riso” .

85
A LEI DE GRESHAM

Quando as moedas tinham valor intrínseco, isto é,


valiam pela quantidade e qualidade do ouro ou da prata em
que eram cunhadas, algumas desgastavam - se na circula­
ção, outras eram limadas por seus possuidores e outras, nas
sucessivas cunhagens, passavam a conter ouro ou prata de
inferior qualidade, embora mantivessem o mesmo valor nomi­
nal. Então, quem possuía moedas não desgastadas e de me­
lhor teor, procurava guardá-las, só efetuando pagamentos com
as moedas inferiores. A moeda má, portanto, tirava de circula­
ção a moeda boa, cujó valor real passara a superar o valor de
troca. Nessa praxe, arrim a-se a Lei de Gresham, segundo a
qual: “Em todo país onde circulam duas moedas, a moeda má
expulsa a boa.”
Esse fenômeno, aparentemente paradoxal, não ocorre
apenas no campo das finanças. Verifica-se em quase todos
os ramos da atividade humana. Sobretudo no serviço público,
nas artes e, às vezes, até mesmo no.restrito e severo âmbito
da ciência. Nesses, porém, a"'expulsão da moeda boa não re­
sulta de sua retenção ou entesouramento. É conseqüência do
poder de expansão.da moeda má, que, como os gases, mo­
nopoliza o direito de preencher todos os espaços. Consoante
a lei de Boyle-Mariotte: “A densidade de um gás, a tem peratu­
ra constante, está na razão direta da pressão que suporta” .
Portanto, quando não é represado, não é contido, não sofre
pressão alguma, o gás expande-se por toda parte.
É o que acontece atualmente, quando a incultura já
demoliu as barreiras que continham a moeda má. No serviço
público, basta contem plar as tristes figuras que têm exercido
o cargo de Presidente da República. É claro que sempre hou-
87
ve e haverá moeda boa para ocupar todos os lugares. Mas,
com sua fúria expansionista, não sendo contida por barreira
ou pressão alguma, a moeda má vem preenchendo aquele
cargo, como aliás acontece em outros espaços da adm inistra­
ção pública. O vetusto princípio do homem certo no lugar cer­
to, raramente vinga no Brasil, onde a política é a indústria mais
desenvolvida, próspera e rendosa. Por isso, indivíduos que
jamais gerenciaram sequer uma loja ou um botequim são en­
carregados de adm inistrar o País.
Nas artes, é repulsivo o que acontece com a música
e a literatura, Da música vocal, os sopradores de microfone
expulsaram a voz. Da orquestrada, os roqueiros baniram a
harmonia, substituindo-a por uma convulsão histérica que alu­
cina a juventude ignara e estoura os tímpanos e -os nervos
dos 'que preferem a melodia, o sentimento, a espiritualidade.
Na poesia, depois de expulsarem a rima, introduziram unia
empulhação surrealista, na vã esperança de que os leitores,
como os súcubos da lenda, não percebam que o rei está nu.
Na prosa, uma tolice como “O Analista de Bagé” aproxima-se
da centésima edição. E os romances americanos, os mais
vazios do mundo, porque fogem dos teoremas como o diabo
da cruz, abarrotam as livrarias.
Na televisão, o lixo invade os melhores espaços. Os
horários mais cômodos destinam -se a novelas alienantes,
que subvertem as normas de cultura. Nelas, como verberou
o Cardeal Lucas Moreira Neves, errrádm irável artigo publi­
cado no “Jornal do Brasil” , cultua-se a violência, o deboche,
a pornografia, o adultério, o incesto, a esperteza, o estelio­
nato e tudo que degrada a espécie humana. Em quase to­
das, os filhos afrontam os pais, cuja autoridade falece com ­
pletamente. Numa delas, o pai expulsou de casa a filha que
se iniciava na prostituição, mas, quando ela prosperou nos
lupanares, passou a adorá-la e a viver de seus proventos.
Os film es culturais ou de m elhor qualidade só são exibidos
quando não há mais tem po para assisti-los.
Os verdadeiros músicos e cantores dificilmente apa­
recem na televisão. Em seu lugar, cercados de cocotas que
desmaiam ou fingem desm aiar (por dinheiro, sugestão ou re­
88
flexo condicionado), desfilam os fabricados pela mídia. Tudo
agora é mistificação e propaganda. Acabou-se a era dos valo­
res autênticos. Mais opressiva do que o Irmão George ou Big
Brother, que, na crítica de Orweil aos regimes totalitários, vigi­
aria o comportamento das pessoas, a televisão expulsa os
valores tradicionais e introduz na mente do povo a moeda fal­
sa de suas cretinices. Locutores - que falam sobre tudo, sem
entender de coisa alguma - impõem normas de conduta, in­
duzindo os videotas a insultar ou agredir os que discordam de
suas chariatanices.
Como se vê, de muitas áreas a Lei de Gresham es­
corraça Darwin e sua lei da seleção natural, bem como Nietzs-
che e sua teoria do super-hom em . Mormente no serviço públi­
co, não ecoa a advertência de Ruy: “ Cada competência que
se rejeita, cada merecimento que se desdenha, cada gênio,
cada talento, cada saber, que se recusa, que se desgosta,
que se persegue, negando-se-lhe honras, prêmios e cargos,
para se distribuírem, como librés, a validos e ociosos, a igno­
rantes e nulos, a com ensais e parasitos, é um valor de cultura,
um valor de produção, um valor de riqueza, que se subtrai ao
tesouro geral da humanidade. São atos de esperdício, dilapi­
dação e loucura, com cada um dos quais ninguém sabe quan­
to vai perder a nação e o gênero hum ano” .

89
A FELICIDADE POR DECRETO

Talvez porque Deus, apenas com palavras, criou o


mundo em sete dias, há entre nós uma tendência generaliza­
da para acreditar que se possa resolver com leis ou decretos
os problemas nacionais. Já se pretendeu, por exemplo, elimi­
nar a inflação com o congelam ento de preços e o confisco da
poupança, quando é sabido que nenhum país, em tempo al­
gum, conseguiu revogar a lei da oferta e da procura, ou sus­
pender, ainda que transitoriamente, seus implacáveis efeitos.
Os governos mais poderosos que já existiram em nações cul­
tas, os da Revolução Francesa e da Revolução Soviética, que
dispunham do concurso sum ário da guilhotina e do fuzilam en­
to, não conseguiram tabelar preços. Aos decretos respectivos
seguiram-se a ocultação de mercadorias, o desabastecimen-
to e o câmbio negro.
Na França e na União Soviética, durante aquelas re­
voluções, a fome foi a resposta dos camponeses, porque, seja
qual for a ameaça, o homem não produz para vender com
prejuízo. A inflação, seja decorrente da escassez de mercado­
rias ou do excesso de moeda em circulação, só se combate
com o aumento da produção e o saneamento das finanças
públicas. O aumento da produção e o combate ao déficit pú­
blico, porém, importariam numa opção amarga pelo trabalho
e pela austeridade. Talvez por isso, não se tem notícia, em
nosso País, de medida algum a tendente a aumentar a produ­
ção e reduzir as despesas públicas. Cuida-se apenas de criar
impostos para cobrir o rombo do erário e conseqüentemente
aumentar a inflação, porque, como é óbvio, os novos encar­
gos serão repassados aos usuários e consumidores.
Enquanto perdurarem os gastos excessivos do Go-
verno e a devoção do povo ao culto do lazer, não será redu­
zida a inflação. No serviço público, continuam im perando a
corrupção, o devorism o, as mordom ias, o nepotism o, o em-
preguismo, o desperdício, o parasitism o e a ineficiência. En­
tre o povo é m anifesta a aversão ao trabalho. Essa ojeriza
com prova-se através da ânsia pelos feriadões, pelo turismo,
pelas praias, em suma, pela ociosidade remunerada. Um olhar
- sobre o mapa do Brasil evidencia que os sítios que mais pro­
gridem são os propícios ao lazer, como Ipanema, Guarujá,
Cabo Frio, Búzios, Guarapari, Porto Seguro e outros. Para o
brasileiro a glória não consiste em produzir. Consiste em fin-
tar a maldição bíblica que o obrigaria a com er o pão com o
suor do próprio rosto.
A mesma histeria legislativa provocada pela inflação,
estende-se agora ao problema da criminalidade. Neste assun­
to, querem proceder também como o déspota chinês que de­
cretou o fim das tempestades em seu território e dormiu confian­
te, acreditando que seria obedecido pelas forças da Natureza.
Quando ocorre um crime, ainda que de índole passional, mas
que, em razão da notoriedade da vítima ou do acusado, a mí­
dia entende de explorar, surgem logo sugestões de reforma
das leis e até mesmo de institutos seculares e universais, cuja
abolição faria regredir o Direito Penal aos in-fólios da Idade
Média. Ignorando que o crime é apenas um sintoma de peri-
culosidade, os reformistas confundem o criminoso com o deli­
to, forcejando pelo agravamento das penas e pela supressão
dos direitos de defesa.
Desde o advento, porém, da Escola Positiva, que, há
um século, revolucionou a ciência penal, o crime é fator se­
cundário, acessório,adiáforo, em comparação com o seu mo­
tivo e a índole do criminoso. A razão, aliás, é claríssima. Matar
a própria mãe é o mais abominável dos delitos. Sólon recu­
sou-se a incluir o matricídio nas leis atenienses, porque não
acreditava que alguém o pudesse cometer. Entretanto, o filho
que mata a mãe para livrá-la de sofrimentos atrozes e irreme­
diáveis, pratica uma ação meritória. Também o tolo ou imaturo
que, influenciado por outrem, participa de um assalto, de um
seqüestro, de uma curra ou do tráfico de entorpecentes, não
92
pode m erecera mesma pena atribuível ao incubo de sua ação
delituosa. A lei tem de ser feita para o homem, porque o ho­
mem não foi feito para a lei.
Só remediando as causas é que se pode reduzir a
inflação, a criminalidade ou qualquer mazela. No Brasil, as
causas principais do crime são a corrupção política, a inver­
são de valores, o êxodo rural, a televisão, o lixo cultural impor­
tado, a ostentação da riqueza, o consumismo, a procriação
irresponsável, o abandono de menores, a ignorância, a ocio­
sidade, o abuso do álcool e outras drogas, o desemprego, o
subemprego, a desconfiança na justiça, a falta de policiamen­
to, a impunidade e a contam inação carcerária. Enquanto não
forem removidas essas causas, não haverá redução da crimi­
nalidade. A lei hedionda (8072, de 25/7/1990), editada para
atender à mídia, exasperou a pena do seqüestro. Mas não
impediu que em Belo Horizonte, logo após sua publicação,
urna menina fosse seqüestrada, assassinada e carbonizada.
A única medida de em ergência capaz de controlar,
em parte, a criminalidade, é o policiam ento ostensivo, diurno
e noturno, em todos os bairros. Mas a longo prazo e para efe­
tiva redução da criminalidade, é necessário atacar as causas
do crime, acima indicadas. O agravam ento das penas não
concorrerá, de modo algum, para solucionar o problema. Já
alertava Beccaria, há mais de dois séculos, que a pena deve
ser a mínima possível, porém de aplicação rápida e inevitável,
porque o criminoso não teme a gravidade da pena e sim a
presteza de sua aplicação e inexorabilidade. Assim como os
velhos alquimistas se perderam na busca da pedra filosofal,
também se perderão os novos utopístas que esperam resol­
ver, com leis ou decretos, os problemas gravíssim os da infla­
ção e da criminalidade.

93
A ADVO CAC IA CRIMINAL

Em todas as profissões, o começo é sempre difícil e


desanimante. Em nenhuma, porém, o noviciado é tão perigo­
so como na advocacia criminal. Os que tentam exercê-la tro­
peçam a todo instante nos abusos de autoridade, nas ciladas
policiais, na concorrência desleal, nas traições da clientela,
nas distorções da mídia, nas om issões judiciárias e, sobretu­
do, na ignorância dos que confundem o defensor com o seu
patrocinado: Muitos desistem porque, como disse Camões, “o
ânimo valente, perde a virtude contra tanta gente” . Ou ainda
porque, como Hill lamentou: “Nas calmas planícies da hesita­
ção repousam os ossos dos milhões sem conta que ao primeiro
alvorecer da vitória descansaram e descansando morreram”.
Entre todos os sapos que tem de engolir, o que mais
repugna ao estômago do noviço é a incompreensão do vulgo
sobre a missão do defensor. Para Ruy, todavia, o advogado
“foi o primeiro homem que, com a influência da razão e da
palavra, defendeu seu sem elhante contra a injustiça, a violên­
cia e a fraude” . Depois que Jesus disse que não veio cuidar
de justos e sim de pecadores, não mais seria admissível qual­
quer confusão entre o acusado e seu defensor. Não há como
se possa confundir o médico com o enfermo. Quem, por igno­
rância ou malícia, deprecia o advogado criminal, costuma
mudar de opinião quando ele mesmo, um filho, um parente ou
um amigo, culpado ou inocente, é encerrado em um cárcere
imundo e superlotado, onde impera a lei do cão.
A missão do advogado é fazer, em defesa de seu
constituinte, tudo aquilo que este faria se tivesse a mesma
experiência e o mesmo saber. O advogado que julga o réu,
recusando seu patrocínio em razão da índole do acusado ou
95
da gravidade do delito, usurpa as funções do juiz e do tribunal.
Revela inaptidão para a advocacia e subverte o sistema racio­
nal de indagação da verdade, onde a acusação é a tese, a
defesa a antítese e o juízo a síntese. Como ao médico com­
pete defender a saúde, ao advogado compete defender direi­
tos. Ninguém censuraria um médico por salvar a vida de um
facínora cuja sobrevivência é uma ameaça para a sociedade.
Ao Estado , e não ao médico ou advogado, é que cabe velar
pela incolumidade pública.
É claro que se não houvesse doença, o médico seria
inútil. O mesmo ocorreria com o criminalista, se os direitos
não fossem violados. Advocatus, Vocatus ad, “chamado a so­
correr” , assim definiu Carneíutti a função do criminalista. Mas,
quem ingressa na advocacia criminal só é chamado a socor­
rer os pobres, acusados de crimes que os ricos não precisam
cometer. Só depois de adquirir renome, quando seu conceito já
inspira confiança, é que o criminalista é chamado pelos delin­
qüentes de colarinho branco. Enquanto estuda e trabalha para
ascender na profissão, o iniciante exerce um admirável sacer­
dócio, sublimado ademais pelas animosidades e perfídias que
tem de enfrentar, inclusive no seio de sua própria classe.
Seja, porém, neófito ou renomado, não pode o crimi­
nalista recusar seu patrocínio a quem o solicita, porque, como
Ruy advertiu, “o último dos criminosos tem o mais absoluto
direito de que com ele se observe a lei”. Não deve também
preocupar-se com a opinião pública ou tem er a impopularida­
de. Do contrário, estará servindo a dois senhores e sacrificará
um em favor do outro. Para ele, não deve haver culpado ou
inocente. Apenas alguém que caiu ou está prestes a cair nas
malhas da justiça. Se necessitar de motivação filosófica para
optar pelo acusado, bastará lembrar-se de que, segundo He-
gel, toda sociedade é a síntese de seus próprios antagonis­
mos. Quem a afronta concorre para aperfeiçoá-la. Sem pre­
dadores não há equilíbrio ecológico.
Todo mundo sabe ou devia saber que não pode exis­
tir processo judicial sem a interferência de advogado. Por in~
junção dos princípios constitucionais do contraditório e da
ampla defesa, os atos instrutórios praticados em sua ausên­
96
cia não têm valor jurídico, porque a verdade só pode ser al­
cançada através do debate entre a acusação e a defesa. Mas
a acusação não prende nem condena, e a defesa não solta
nem absolve. Quem prende, softa, condena ou absolve é o
juiz. É sandice, pois, dizer que este ou aquele estagiário ou
advogado vem soltando marginais. Além disso, desde a “De­
claração dos Direitos do Homem e do C idadão” , promulgada
há mais de dois séculos, todo homem é presum idam ente ino­
cente enquanto não for condenado.
Por tudo isso, não se pode censurar quem postula
pela liberdade. O habeas corpus é inerente à cidadania. Sua
impetração é facultada a qualquer do povo e não uma prerro­
gativa dos advogados. Aliás, a Constituição Federal, em seu
Artigo 5o, inciso LXII, dispõe que a prisão de qualquer pessoa
será imediatamente com unicada ao juiz, que obviam ente a
relaxará se não for legal. Portanto, se a Polícia cum prisse esse
dispositivo, a impetração de habeas corpus seria desneces­
sária, porque a comunicação, pura e simples, de uma prisão
ilegal, importaria na imediata soltura do paciente. Em vez de
censurar os que defendem os excluídos, é dever de todos,
leigos ou advogados, aplaudir aqueles que , esgrim indo a lei,
lutam pelos Direitos Humanos.

97
O FRACASSO DO COMUNISMO

Os mais importantes acontecim entos da história da


humanidade foram o advento do Cristianismo, a Revolução
Francesa e a Revolução Soviética. O Cristianismo pregava a
humildade, a caridade, o altruísmo. A Revolução Francesa
acenava com liberdade, igualdade, fraternidade. A Soviética
pretendia acabar com a exploração do homem pelo homem. A
observância, portanto, dos princípios do Cristianismo, teria
tornado desnecessária a Revolução Francesa, que, por seu
turno, se houvesse estabelecido a igualdade, teria evitado a
Revolução Soviética. Aliás, a simples obediência ao Decálo-
go, que precedeu o Cristianismo, teria dispensado todas as
revoluções, porque, para a inexistência de conflitos, bastaria
que o homem amasse o próximo como a si mesmo.
A humildade, porém, preconizada pelo Cristianismo,
logo converteu-se em tem plos faraônicos, nas riquezas do
Vaticano,na postura majestática dos príncipes da batina e na
pompa lityrgica. A caridade exibiu-se nos antros de tortura da
Inquisição e nas fogueiras que incineraram os contestadores,
como Huss, Savonarola e Giordano Bruno, e as bruxas, como
Joana D’Arc. O altruísmo transformou-se em cupidez, como
atestam o dízimo, as indulgências e o confisco dos bens dos
hereges. A própria ideologia cristã, como disse Ruy (“O Papa
e o C oncilio”), foi reduzida pelas distorções clericais “a uma
simbólica sem alma e sem verdade, pasto à credulidade das
classes ignorantes e manto ao ceticismo dissimulado e calcu­
lista da minoria ilustrada” .
A Revolução Francesa, que, como Saturno, devorou
seus próprios filhos, passou pela breve ditadura do “Incorrup­
tível” , mas logo chafurdou na pornéia do Diretório e naufragou
99
na tirania bonapartista. Pretendia erradicar a nobreza e seus
privilégios, mas só conseguiu colocar um imperador no lugar
do rei, instituir o capitalismo e restaurar, depois de muito san­
gue derramado, a própria monarquia. De sua igualdade e fra­
ternidade nada restou. E a liberdade que garantiu foi a da ex­
ploração do homem pelo homem. Como observaram Marx e
Engels (“Manifesto C om unista”), ao esm agar o feudalismo, o
capitalismo “substituiu a exploração envolta em ilusões religi­
osas e políticas, pela exploração direta, cínica e brutal” .
A Revolução Soviética suprimiu a propriedade priva­
da e encampou os meios de produção, a fim de que, elim ina­
dos os patrões, ninguém pudesse se apropriar da mais valia,
ou seja, da parcela de trabalho não pago que representa o
lucro. Mas, para tudo gerir, criou uma burocracia imensa e
nela instalou uma nova classe, a dos.funcionários do Partido
Comunista que, embora não sendo proprietária de coisa algu­
ma, tinha a posse de tudo e gozava de privilégios jam ais so­
nhados pela burguesia, pelo clero ou pela própria nobreza.
Para essa classe dominante, como também ocorre com a clas­
se capitalista, é que estavam reservados os prazeres da vida.
“Dachas” suntuosas, belas secretárias e férias na Criméia.
Essa contrafação foi logo denunciada por Trotsky (“A
Revolução Traída”), e a seguir por Djilas (“A Nova Classe”) e
Orwell (“A Revolução dos Bichos”). Em qualquer regime, seja
ele qual for, uma classe parasitária, talvez a pior delas, é por­
tanto inextinguíveífa dos sinecuristas, nepotes e outros rufiões
do erário. Dizer, pois, que o Comunismo fracassou, eqüivale a
admitir que o mesmo ocorreu com o Cristianismo. É óbvio, en­
tretanto, que o mérito das ideologias não se confunde com a
sua eventual impraticabilidade. A observância da doutrina cris­
tã pressupõe sublimação espiritual, e a da ideologia comunista
um desprendimento que não se pode esperar do homem co­
mum. Ambas são incompatíveis com a natureza humana.
Seguir ou imitar o Cristo em sua humildade, em seu
altruísmo, em sua castidade, em seu am or aos pobres; em
sua bondade, não é vocação do homem. Até mesmo no seio
da Igreja, somente Francisco, renunciando ao conforto e bei­
jando o leproso, conseguiu reavivar a trilha do Nazareno. A
100
vaidade, a luxúria e o egoísm o são os lemas das sociedades
pretéritas, atuais e futuras. Quanto ao Comunismo, basta lem­
brar que, segundo a Bíblia, o trabalho foi imposto ao homem
como castigo inexorável. O único meio, portanto, de que o
homem dispõe para livrar-se dessa maldição é transferi-la aos
seus semelhantes, tarefa que executa em qualquer regime,
mormente no comunista, onde a classe dom inante tem poder,
de vida e morte sobre o povo em geral.
As religiões e os partidos políticos são criações hu­
manas. E o homem é o Midas da putrilagem. O que ele toca,
logo apodrece. Por mais belas e generosas que sejam as re­
formas sociais, propostas ou tentadas, nenhuma resistirá à
índole predatória do homem, cujo egoísm o jam ais será sacia­
do. Para livrar-se do trabalho e explorar, em função do seu
deleite, as carências alheias, o homem ergue qualquer ban­
deira. Por isso, quando vitorioso, ele tudo subverte para a sa­
tisfação de seus instintos primários, São tantos os exemplos
históricos que, abstraída a origem divina do Cristo e idealiza­
da a sua efetiva entronização como Rei dos Judeus, podería­
mos, a seguir, visualizá-lo com o um Papa, cercado de luxo e
riqueza, indiferente às mazelas da humanidade.

101
A-GUILHOTINA

Máquina idealizada e construída para decapitar se­


res humanos, a guilhotina tornou-se famosa na Revolução
Francesa, quando decepou as cabeças de um rei, de uma
rainha, de integrantes da nobreza e de inúmeros políticos.
Embora deva seu nome ao médico José Inácio Guillotin, que,
como deputado à A ssem bléia Constituinte, propôs em 1789 a
adoção de um método mais humanitário para a aplicação da
pena de morte, a guilhotina já existia na Idade Média. Consis­
te em duas traves verticais com entalhes para receber e guiar
uma lâmina afiada que, na execução, cai sobre a nuca do con­
denado. Após experiências em cadáveres humanos e animais
vivos, foi adotada a lâmina oblíqua, que superou em eficácia a
horizontal e a semi-circular.
Acostumado a espetáculos empolgantes, como o da
execução de Damiens, que, por tentativa de homicídio contra
Luís XV, teve a mão direita calcinada, carnes arrancadas e
após desmem brado foi incinerado em praça pública, o povo
não aplaudiu a guilhotina, cuja atuação era singela, rápida e
monótona. Houve tam bém especulação em torno do suposto
benefício que representaria para os condenados o novo mé­
todo de matar. Sustentou-se que a cabeça separada do corpo
continuava viva por algum tempo. Alguém disse que ao picar
a língua de um guilhotinado o rosto indicou uma sensação
dolorosa. Um médico declarou que ao efetuar a transfusão de
sangue numa cabeça guilhotinada, os lábios moveram-se como
se a cabeça quisesse falar.
Sem culpa da guilhotina e sim do próprio paciente,
não foi fácil decapitar Luís XVI. Protestando inocência, o mo­
narca travou luta feroz com os ajudantes do carrasco e, mes-
103
mo depois de subjugado, não colaborou com a máquina por­
que seu pescoço era muito grosso e não pôde ser fixado com
exatidão. A lâmina mutilou o queixo e a parte inferior da cabe­
ça que ficou pendente do corpo e teve de ser descolada. Ma-
dame du Barry, ex-amante de Luís XV, tentou protelar, até por
minutos, o momento da execução. Chorou, debateu-se, ofe­
receu à Nação todos os seus bens em troca da vida e apelou
para o povo, alegando sua origem humilde. A custo consegui­
ram prender seu pescoço, para que a lâmina implacável lhe
cortasse a cabeça.
Mas, como sentenciou Montaigne sobre a conduta
humana, basta viver para que se veja tudo e seu oposto. En­
tre as cenas de desespero ou covardia, não faltaram as de
serenidade ou bravura. Maria Antonieta, a rainha, desceu da
carroça sem ajuda e chegou ao cúmulo de pedir desculpa,
porque p h a to o pé do carrasco. Ao ser executada, portou-se
com tanta dignidade que enfureceu a turba aglomerada ao
redor do patíbulo. Eloqüente também foi o desafio de Danton
que, avançando para a guilhotina antes que a limpassem do
sangue da vítima que o precedera, perguntou ao carrasco:
“Que diferença faz um pouco de sangue em tua máquina?” . E
recomendou: “Não te esqueças de mostrar ao povo a minha
cabeça. Não é todos os dias que se vêem semelhantes” .
Os fatores que determinaram a Revolução Francesa
repetem-se atualmente no Brasil, país riquíssimo que os polí­
ticos, os em preiteiros e a elite funcional conseguiram reduzir à
condição de devedor insolvente, de pátria da desesperança,
da inflação, do desemprego, da corrupção e da delinqüência.
Em vez de cortar suas despesas e incentivar a produção, úni­
cas medidas capazes de estabilizar a moeda, o governo emite
montanhas de cédulas para financiar a corrupção, a incompe­
tência e a ociosidade. Enquanto isso, o flagelo secular da seca
no Nordeste continua inalterável. Os trabalhadores vivem na
miséria. Os menores permanecem abandonados. Os hospi­
tais estão falidos. Os cárceres superlotados. E a injustiça so­
cial impera por toda parte.
* Um país que já foi de imigração e que devia ser o
celeiro do mundo, hoje exporta mão de obra clandestina e
104
importa alimentos. Um país que necessita de trabalho, é o
paraíso dos feriadões, da aposentadoria precoce e da filoso­
fia do lazer. Nele, os expulsos do cam po engrossam as fave­
las e as hostes da criminalidade. Não era muito diferente a
situação pré-revolucionária na França, quando a guilhotina foi
entronizada. A terra pertencia ao clero e à nobreza, que a
mantinham improdutiva. Os cargos públicos eram hereditá­
rios, doados ou vendidos. Os im postos escorchantes. As clas­
ses ociosas banqueteavam-se, enquanto o povo passava fome.
Os escândalos financeiros ocorriam com freqüência. O povo
odiava seus governantes.
Tudo no Brasil clama por uma transform ação radical.
O plebiscito para a escolha entre a monarquia parlamentar, o
parlamentarismo e o presidencialism o, é uma questão bizanti­
na, concebida e proposta para enganar o povo. A trãgica situa­
ção do país não se resolve, nem melhorará jam ais, com qual­
quer desses sistemas de governo, enquanto deies participa­
rem os causadores de nossa ruína. O que se deve desejar é
que, graças à tolerância infinita do povo brasileiro, o agrava­
mento da miséria nacional não produza um estado de revolta
análogo ao do povo francês em 1789, de modo que, repudia­
das como ilusivas ou ineptas as fórm ulas do plebiscito, não se
venha a optar por uma solução de desespero, da qual Bona-
parte se aproveite.

105
A OPINIÃO PÚBLICA

Uma das faltas atribuídas a Danton, no Tribunal Revo­


lucionário, durante o simulacro de julgamento que precedeu sua
execução na guilhotina, foi a de haver dito que: “A opinião públi­
ca é uma meretriz e a posteridade uma tolice”. Com a palavra
cassada, enojado da política e do sangue que antes derrama­
ra, como Ministro da Justiça e criador do mesmo Tribunal que o
condenava, o tribuno não se defendeu da imputação. Mas, a
caminho do patíbulo, quando Desrnoulins, a seu lado, exortava
o povo a libertá-los, porque a eles a Revolução tudo devia, Dan­
ton confirmou sua insopitável repugnância pela opinião pública,
gritando para seu companheiro de infortúnio: “Cala-te! Espe­
ras, acaso, comover essa vil canalha?”
O desprezo pela opinião pública é uma constante
entre os homens cultos. A crônica da velha Grécia relata que
Fócion, notável orador, surpreendido por frenéticos aplausos
quando discursava em um comício, indagou de seus asses­
sores se havia dito uma besteira. Na França, já neste século,
o escritor e político Aicard, que traduzira do latim para o fran­
cês uma obra de Catulo, também falava em um comício quan­
do um dos presentes, que não gostara da tradução, assim o
invectivou: “Você assassinou Catulo!” . Imediatamente, sem
perceberem a metáfora, outros da platéia gritaram: “Assassi­
no!” , “Assassino!” , com tamanha indignação que o orador a
custo conseguiu sair do local onde o tumulto se generalizara.
Não foi Pilatos e sim o povo , insuflado pelos fari­
seus, quem exigiu a crucificação de Jesus. Com dois expedi­
entes, o da flagelação e o da proposta de troca por Barrabás,
o romano tentou salvar o Nazareno. Por isso, Le Bon, Sighele
e outros sustentam que a incubação pertinaz pode conduzir o
107
povo a reações teratológicas. Os anais forenses registram inú­
meros erros judiciários, decorrentes da pressão popular. En­
tre nós, o Caso Âraceli é paradigma. De um simples boato
parturiram um monstrengo que, não fossem a desm oraliza­
ção total da prova e a acuidade dos julgadores, teria resultado
na imolação de três inocentes.Com o advento da televisão, a
honra e a liberdade passaram a depender dos caprichos dos
locutores e comentaristas.
Agora mesmo, no Rio de Janeiro, um crime passio­
nal, imputado a réus primários e de bons antecedentes, vem
sendo alvo de tanto alarido que o Poder Judiciário não se ani­
ma a cumprir a lei, ordenando, como de direito, que os réus se
defendam em liberdade. Grupos de pressão, portando faixas
e cartazes, assediam o Fórum durante as audiências, coagin­
do juizes e incitando o povo contra os acusados e seus defen­
sores. Uma tem pestade de sandices abateu-se sobre o Caso
Daniela, ameaçando a independência e a incolumidade da
Justiça. Gente que nunca leu um dispositivo legal, insurge-se
contra o sistema jurídico em vigor, clamando pela adoção da
pena de morte e pela regressão do Direito Penal aos idos te­
nebrosos da Idade Média.
Coando o mosquito e engolindo o camelo, aqueles
manifestantes - atores e videotas - fingem ignorar que na
Baixada Fluminense mata-se mais do que se matou na Guer­
ra do Golfo e que o Rio de Janeiro é a cidade mais violenta do
mundo. Ali a criminalidade, a corrupção e o deboche atingiram
níveis que nenhuma outra comuna suportaria. Mesmo assim,
como cegos discutindo cores, ousam atribuir ao Código Penal
a sua própria culpa, afirmando que ele está obsoleto, anacrô­
nico, defasado, e exigindo o agravamento das penas. Preten­
dem também acabar com o livramento condicional, que é o
estímulo básico para a recuperação do condenado. Em suma,
querem transportar para o mundo real as novelas em que
atuam ou a que assistem.
Nos Estados Unidos, que adotam uma variante da
sentença indeterminada, ou seja, aquela cujos efeitos só ces­
sam quando o preso está recuperado, há limites de tempo em
que, até mesmo o condenado à prisão perpétua, pode obter o
108
livram ento condicionai. Aliás, sobre o assunto, vale tembrar
que Carios Luís, futuro Napoieão III, ao ser condenado à pri­
são perpétua em razão de um golpe m ilitar fracassado, per­
guntou quanto tempo durava a perpetuidade na França. Obvia­
mente, não só o tem po agrava a pena, mas, sobretudo, as
condições em que ela é cumprida. Na Dinamarca, por exem ­
plo, o preso freqüenta escolas, tem direito a alim entação sau­
dável, tratamento médico e dentário, pratica esportes e é de
fato reeducado para voltar ao convívio social.
No Brasil, o preso é arrem essado em cubículos su­
perlotados, onde impera a lei do cão. Quem entra analfabeto,
sai analfabeto ao quadrado. Quem entra com saúde sai morto
ou infectado. A alimentação repugna até mesmo à vista e ao
olfato. Os próprios tribunais já declararam que, em nosso País,
os presídios são escolas primárias, secundárias e superiores
do crime. Como disse W assermann, referindo-se a presídios
do século passado, a imaginação é insuficiente para avaliar
toda a torpeza dos cárceres coletivos. Só os que estão dentro
deles podem compreender. Quem pensa em agravam ento de
penas, devia antes , como estudioso, pesquisador ou analis­
ta, passar um dia e uma noite nesses porões do inferno.

109
O DIREITO DE M ORRER

Em 1924, chamada a Paris por seu amante, o escri­


tor Juars Zinowsky, que padecia de câncer e tuberculose, a
jovem e bela Stanislawa Uminska, atriz polaca, atendendo a
angustiosos apelos do enfermo, que não suportava mais o
martírio, valeu-se de um momento em que ele estava aneste­
siado e o matou com um tiro de revólver, sendo depois absol­
vida pelo Tribunal do Júri. O próprio promotor, prevendo a ab­
solvição, pediu aos presentes que não aplaudissem o resulta­
do do julgam ento, para não entronizarem a piedade como
norma de justiça. Esse caso, segundo Asúa (“Eutanasia y
Homicídio p o r Piedací'), foi divulgado pela imprensa mundial,
provocando outros análogos e intensificando o debate em tor­
no das implicações jurídicas da morte caridosa.
Naquele fecundo ensaio, relata tam bém o sumo mes­
tre espanhol o caso de uma menina de 13 anos de idade,
mordida por um cão raivoso e transportada à cidade de Cór-
doba (Argentina), onde, em 1934, foi examinada por médicos
que atestaram a impossibilidade de salvá-la. A enferma grita­
va, ameaçava, investia contra todos e implorava que a matas­
sem. Os fam iliares tam bém exoravam a com paixão dos médi­
cos, suplicando-lhes que aplicassem uma injeção letal na doen­
te, que parecia possuída pelo demônio. “E quando a pobre
enferma, num de seus acessos, caiu ao solo, como se fosse
uma fera enfurecida, alguém atirou sobre ela uma colcha, apro­
veitando-se, então, um médico, para aplicar-lhe uma injeção
generosa que a fez dorm ir para sem pre” .
A palavra eutan ásia, composta de duas gregas: eu
(bem) + thanatos (morte), foi criada por Bacon, no Século XVII,
para definir a supressão de uma vida atormentada por incurá­
vel e dolorosa agonia. A eutanásia, isto é, boa morte, homíci-
dio caritativo ou ocisão piedosa, consiste, portanto, em matar
m
um enfermo, a seu pedido ou por convicção sincera e fundada
de que só a morte poderá livrá-lo de padecim entos atrozes e
irremediáveis. A eutanásia é objeto de acirrada e interminável
polêmica, até mesmo entre os juristas que a estudam sem
preconceitos religiosos. O próprio Asúa, à mingua de previsão
legislativa, limitou-se a sugerir o perdão judicial para aquele
que, por piedade, “ abrevie os padecimentos de um cancero­
so ou de um atacado de raiva que pede a liberação dos terrí­
veis espasmos que o m artirizam ” .
O estudo da eutanásia confunde-se com o do suicí­
dio, porque aquela apenas acrescenta a este o auxílio mate­
rial do executor e, eventualmente, a falta de consentimento.
Embora para Nietzsche a idéia do suicídio seja um lenitivo,
porque sem ela, isto é, sem uma possibilidade de evasão, seria -
mais penoso ao homem suportar as dores do mundo, o fato é
que o uso dessa escapatória já foi considerado um crime abo­
minável. Narra Durkheim, em sua obra clássica “O Suicídio”,
corno se procedia antigam ente com os fugitivos da vida. Rela­
ta que na França, no reinado de Luiz XIV, o corpo do suicida
era arrastado pelas ruas e atirado em um monturo. Os bens
eram confiscados. Os nobres eram degradados e seus caste­
los demolidos. Somente com a Revolução de 1789, foi que se
descriminou o autocídio.
Atualmente, em países cultos, os defensores do di­
reito de morrer insistem pela legalização da eutanásia, advo­
gando sua aplicação, livre e indolor, em clínicas habilitadas.
Em 1935, foi criada em Londres a “E x if ou “The Voluntary
Euthanasia S o c i e t y na França, Claude Guillon propôs, em
1975, a criação do “Comitê.Morte Doce”, e Michei Landa fun­
dou, em 1980, a “Associação pelo Direito de Morrer com Dig­
nidade” (ADMD). Em Amsterdã foi instituída, em 1973, a “As­
sociação Holandesa em Favor da Eutanásia Voluntária” . Ali, o
médico Pieter Admiraal dá entrevistas aos órgãos publicitá­
rios do mundo inteiro, admitindo que pratica livremente a eu­
tanásia. Nos Estados Unidos, o médico Jack Kevorkian man­
dou construir e vem operando, nas barbas da justiça, a “Má­
quina do Suicídio”. Em suma, por toda parte, há quem não se
conforme com as leis que incriminam a eutanásia.
112
No Brasil, a defesa do executor da eutanásia não
pode esgrim ir a c o a çã o m o ra l irre s is tív e l, porque os tribu­
nais togados,’ com m anifesta erronia e sistem ática impeni-
tência, não admitem que a coação possa em anar da própria
vítima. Por isso, o que sem pre se fez foi sustentar a tese do
h o m ic íd io p riv ile g ia d o , em razão do m otivo de relevante
valor moral que impeliu o agente a praticar a ação incrim ina­
da. Com essa tese, porém, lograva-se tão-som ente a redu­
ção de um sexto a um terço da pena com inada ao hom icidio
simples. Hoje, todavia, a defesa dispõe da in e x íg íb ífíd a d e
de o u tra cond uta, causa supralegal de isenção de pena,
que o S uperiorTribunal de Justiça já declarou ser plenam en­
te cabível em casos de homicídio.
Excetuadas as convicções religiosas, .que, por sua pró­
pria índoíe, transcendem o raciocínio, o único argumento que
se pode antepor à legalização da eutanásia, é o da necessida­
de de impedir a fraude, urna vez que o agente pode matar por
motivo torpe ou egoístíco, simulando, para os efeitos legais,
uma situação de fato que, se existisse, tornaria inculpável o seu
procedimento. Este risco, todavia, como ocorre com o pretexto
de legítima defesa, o erro provocado e outros artifícios análo­
gos, é inerente a todas as descriminantes e causas de exclu­
são de pena. A maior ou menor dificuldade, porém, de compro­
vação do fato, é estranha à eficácia dos institutos jurídicos. É
questão independente, que se resolve com as perícias, o teste­
munho e os princípios gerais da lógica probatória. ^

113
O ETERNO RETORNO

Que acharias - pergunta Nietzsche - de um demônio


que te dissesse: “Terás de viver um número infinito de vezes a
vida que estás levando. É preciso que cada dor e cada ale­
gria, cada pensamento e cada suspiro renovem-se na mesma
seqüência. A ampulheta da vida será sempre virada, e tu com
ela, poeira das poeiras! Não cairias de joelho e, rangendo os
dentes, não amaldiçoarias o demônio que te falasse assim?
Entretanto se amasses a vida ao ponto de desejar esta pere­
ne repetição, dirias: “Tu és um Deus, e jam ais ouvi coisa tão
divina!” . Esta é a idéia do etern o retorno que para muitos
invocaria o suplício de Sísifo, embora em outros, naqueles em
que o instinto de conservação embota o raciocínio, pudesse
despertar uma sublime expectativa.
Mais cruel, todavia, do que esse demônio imaginado
pelo filósofo, é o demônio da AIDS que impõe aos indivíduos
desta geração a mesma vida que levavam os da geração pas­
sada. Depois de, a duras penas, libertarem-se dos preconcei­
tos e do sentimentalismo, as pessoas desta geração sentem-
se subitamente compelidas a regredir aos idos puritanos da
era romântica. Não mais promiscuidade, permissividade ou
irresponsabilidade. Adeus aos amores descartáveis, à sensu­
alidade desenfreada, à libertinagem, aos alucinógenos e à his­
teria acústica que se convencionou chamar de música moder­
na. O mal do século ameaça com a pena de morte a quem
não aceitar aquele retorno. E não dá aos ameaçados espe­
rança alguma de revogar essa terrível cominação.
A era romântica foi, em parte, influenciada e mantida
por dois demônios: o das doenças venéreas e o da concep­
ção indesejada. O primeiro foi exorcizado pela penicilina e o
115
outro pela pílula anticoncepcional. Mas, durante séculos, difi­
cultaram o relacionamento sexual, impondo a monogamia, o
onanismo e a castidade. Nos primeiros decênios do século
atual, as doenças venéreas aterrorizavam os am antes e pro­
vocavam suicídios entre os infectados. Quanto às tragédias
da concepção indesejada, basta ver que o tema principal da
literatura latina era o da gravidez das moças que, abandona­
das por seus sedutores, apelavam para o suicídio ou se trans­
formavam em “flores do lodo”, como escreveu Vargas Vila, o
admirável artífice da prosa lírica.
Os sobreviventes da época romântica lembram-se de
que, em seu tempo, a fornicação com a prometida era sacrilé­
gio. Os enamorados viviam em ebriez idílica, sonhando acor­
dados, naquele "engano da vida doce e ledo” que afastava
das mentes a idéia da conjunção carnal. O homem cultuava a
virgindade feminina e a mulher a defendia como se fosse um
valioso patrimônio. A própria lei civil, em dispositivo hoje em
desuso, autorizava a anulação'do casamento contraído com
mulher já deflorada, se o marido ignorasse tal circunstância.
As relações amorosas entre homem e mulher eram regidas
por preconceitos imbatíveis, com promissos irrevogáveis, e até
por injunções religiosas que associavam ao ato genésico a
noção expiatória do pecado original.
Como é o fato, e não qualquer discurso, que antece­
de e origina a idéia, foram a penicilina e a pílula que desenca­
dearam a revolução sexual, cuja extinção o demônio da AIDS
vem de determinar. Livre das doenças venéreas e da concep­
ção indesejada, a humanidade abandonou o am or sentim en­
tal e entregou-se ao hedonismo, evertendo os costumes e rom­
pendo seus vínculos com o passado. Dessa repulsa às tradi­
ções, surgiram os rebeldes sem causa, a contracultura, a toxi-
comania, a procriação irresponsável, a “música” alucinógena,
a “poesia” sem rima, a literatura vazia, a contestação sistem á­
tica, o feminismo dos homens, o machismo das mulheres, a
proliferação do homossexualismo, e tudo o mais que caracte­
riza este “admirável mundo novo” .
Com a vólta do romantismo, a mulher esculturada
pelas academias de ginástica será fatalmente suplantada pela
116
“camélia pálida" de Castro Alves ou pela “moça das pernas
finas” que o toureiro de Blasco Ibánez amou por toda a vida.
A música voltará a ser a arte e a ciência da harmonia. A litera­
tura abandonará a vacuidade e será fonte de idéias, raciocínio
e ilustração. A poesia seguirá a música, deixando de ser, como
é hoje, uma contrafação cabotina, dissonante e pretensiosa.
O homem não usará bolsa ou brincos, nem terá vergonha de
sua masculinidade. A mulher reassum irá a sua fem inilidade e,
preservando-se, obrigará o homem a valorizá-la.
O condom, cam isa-de-vênus ou sim plesm ente “ca­
misinha” , não impedirá a propagação da AIDS, porque tam ­
bém não impediu a difusão das doenças venéreas. Esse es­
cudo sempre existiu. Antes da utilização do látex, aliás cente­
nária, era feito com tecidos impermeáveis, extraídos de ani­
mais. O apelo erótico, todavia, é mais poderoso que os senti­
mentos de prevenção ou cautela. Como o zangão, que morre
logo após o vôo nupcial, o homem, sobretudo quando jovem ,
não renunciará ao ato sexual por não dispor do preservativo.
Se não for descoberta uma vacina ou a cura da síndrom e, o
HIV poderá até mesmo suprim ir a maldição do eterno retorno,
transform ando o mundo em uma Aidslândia, habitada por ca-
micases, onanistas e abstêmios.

117
A IGNORÂNCIA

O flagelo da humanidade não é a peste, a guerra, a


fome, a idolatria, o fanatismo, a corrupção ou o crime. O flage­
lo da humanidade é a ignorância. Sem ela, essas calam ida­
des não existiriam ou seriam drasticamente reduzidas. Ape­
sar disso, o homem foge dos livros como o diabo da cruz.
Reencarnando os párias, os impuros ou intocáveis da velhá
índia, nossos professores vivem na miséria. Os rebentos das
classes abastadas desperdiçam o tempo com televisão e jo ­
gos eletrônicos. Os das classes pobres não têm livros, esco­
las, professores, nem motivação para estudar. Por toda parte
alastra-se a ignorância. E nela se cevam os políticos, os cu­
randeiros, os pastores de almas, os publicitários, a mídia ele­
trônica, a corrupção e o crime.
A peste não existe onde há saneam ento básico, as­
sepsia, higiene. Na Idade Média, entretanto, a peste era atri­
buída a sortilégios e combatida com exorcismos. Em vez de
matar os micróbios, cuja existência desconheciam , nossos
antepassados matavam as feiticeiras. A guerra seria evitável
se os povos'não fossem ignorantes. Como disse Frederico, O
Grande, se os soldados raciocinassem, abandonariam o co­
mandante na primeira esquina. A fome não ocorre onde não
há latifúndios improdutivos ou explosão demográfica. O fana­
tismo desaparece quando a sabedoria arranca a máscara dos
ídolos ou sacode seus pés de barro. A corrupção elimina-se
com a vigilância, a efetiva aplicação das leis e a transparência
dos atos administrativos.
Excetuadas as causas psiquiátricas, o crim e violen­
to é, quase sempre, produto da ignorância. Basta ver onde
ele mais ocorre e quem são seus autores. O crim e intelec-
119
tual tam bém , porque sem a sim plicidade da vítim a o estelio­
nato não prospera. Além de ser uma das causas principais
do crime, a ignorância ainda pretende curar a dor de cabeça
com a decapitação, exigindo o agravam ento das penas para
poder com batê-lo. A história d a s penas, todavia, é mais cruel
que a dos delitos. Se o castigo resolvesse o problem a da
crim inalidade, os séculos passados, com suas penas horripi­
lantes, teriam sido de paz absoluta. Aliás, é duas vezes mile-
nária a advertência de Jesus (Mat. 12:26) de que o demônio
não serve para expulsar o dem ônio.
A mídia eletrônica é a principal aliada, difusora e be­
neficiária da ignorância. Acabou-se a era dos valores autênti­
cos. As preferências e rejeições dependem agora do que im­
puser a propaganda. Se a televisão desencadear uma cam­
panha tendente a demonstrar que o fino da elegância consis­
te em usar rabo e andar de quatro pés, muitos adotarão esta'
airosa postura e ostentarão aquele ornamento. Os rabos dos
ricos ..serão, obviamente, feitos de material importado e leva­
rão as marcas dos figurinistas mais famosos. Desde que haja
lucro na supressão de valores antigos e na criação de outros,
a publicidade efetuará sua substituição. Por isso, é lugar co­
mum a assertiva de Paolo Ligeri de que a propaganda é a arte
de explorar a estupidez humana.
Eloqüente demonstração de ignorância coletiva ocor­
reu durante o Plano Funaro e repete-se atualm ente através
da impenitência côm ‘que se pretende tabelar os preços dás
mercadorias. Todos, entretanto, deveriam saber que nenhum
Governo, nem mesmo o mais sanguinário, como o. da Revo­
lução Francesa ou o da Revolução Soviética, conseguiu ta­
belar preços. A guilhotina e o fuzilam ento não im pediratn a
sonegação, o desabastecim ento e a proliferação do câmbio
negro. Na Rússia, os cam poneses que esconderam o trigo
foram desapossados e fuzilados. Ninguém mais se animou a
plantar. A fom e espraiou-se e a política agrária foi m odifica­
da. É elem entar que não se com bate a inflação com decre­
tos, am eaças e punições.
A supervalorização do real determinará o encareci-
mento dos produtos nacionais e o barateamento dos estran-
120
geiros. Haverá queda das exportações e incremento das im­
portações, Com as inevitáveis em issões para acudir ao sorve­
douro das estatais, subvencionar os preços da gasolina e das
tarifas públicas, bem como pagar aum entos ao funcionalismo,
o real irá definhando como as rosas de Malherbe. Cuida-se de
tudo, exceto da redução das despesas, única providência ca­
paz de estabilizar a moeda. O real reprisa entre nós o filme
que os argentinos assistiram q u a n d o o peso valia mais do que
o dólar. As mercadorias im portadas substituíram as nacionais,
as fábricas faliram, o desem prego aumentou e o custo de vida
tornou-se insuportável.
Nada se cura ou concerta sem a elim inação das cau­
sas da doença ou do erro. A causa da inflação brasileira não
é o nome nem a cara da moeda. É o déficit público, originário
da corrupção, do desperdício, da evasão fiscal, dos m ega-
salários, das aposentadorias m ilionárias e dos feriados; em
suma, do devorismo .e da im produtividade. No Congresso
Nacional, um ascensorista ganha mais do que um piloto m ili­
tar de avião supersônico. No Brasil há funcionários inativos
que ganham mais do que o Presidente dos Estados Unidos.
Nenhum plano de estabilização econôm ica terá êxito sem a
prévia oclusão do tonel das Danaides das despesas públi­
cas. Sem o equilíbrio das finanças, o real seguirá o curso do
cruzeiro, porque não se debela inflação com a sim ples mu­
dança do nome e da cor da moeda.

121
AS LEÍS HEDIONDAS

Para os antigos criminalistas, o Direito Penal era a


ciência que associava o crime como fato à pena como sua
legítima conseqüência. Ignorava-se, então, o criminoso, e con­
siderava-se a pena como um castigo proporcional ao delito.
Com o advento, porém, da Escola Positiva, que concebeu o
crime como um fenômeno naturai e social, a pena passou a
ser meio de defesa contra a periculosidade do delinqüente.
Como o crime evidencia essa periculosidade, indicando que o
criminoso voltará a deiinqüir, impõe-se a segregação para que
o delinqüente seja submetido a tratamento que elimine sua
agressividade. A pena, portanto, destina-se a interromper a
atividade predatória do criminoso e a subm etê-lo a um regime
que promova sua recuperação.
O crime, como ente jurídico, é com posto de sete ele­
mentos. Desses, um apenas o define ou classifica. Essa defi­
nição ou tip icidade, não tem caráter valorativo e pouco signi­
fica para justificar o agravamento das penas. Os fatores que
importam na avaliação do crime, como fenôm eno social, são
o seu m otivo e a p ericulosidade do delinqüente. O dispositi­
vo legal que define o crime é secundário. Qualquer avaliação
que nele se estribe será fonte de injustiças e erronias, porque
não é o crime que se pune e sim o criminoso. Concluir, portan­
to, que este ou aquele crime é hediondo, abstraídos o seu
motivo e a índole do delinqüente, é ignorar os ensinamentos
da ciência penal e fazer regredir a nossa cultura jurídica aos
in-fólios da Idade Média.
Basta ver que não pode existir crim e mais inconce­
bível do que o m atricíd io . Entretanto se alguém mata a pró­
pria mãe para livrá-la de sofrim entos atrozes que de outro
123
modo não podia evitar, terá praticado uma ação caridosa e
não será juridicam ente condenado porque a eutanásia está
am parada pela “inexigibiiidade de outra conduta” , causa su~
pra-legal de exclusão de dolo ou culpa. O mesmo ocorre com
o p a rric íd io , que Sólon, com o Cícero lembrou em sua céle­
bre defesa de Am erino, recusou-se a incluir nas leis penais
gregas, porque não podia adm itir a hipótese de alguém ma­
tar o próprio pai. Por isso, o Direito Penal moderno gira em
torno do delinqüente e do motivo, considerando o crime como
mero sintoma de periculosidade.
As Leis 8.072, de 25/7/1990, e 8.930, de 6/9/1994,
agravando penas e impondo o cárcere durante o processo,
seja qual fo r o acusado, são duas aberrações que confir­
mam o baixo nível cultural do Congresso e sua alarmante sub­
serviência às injunções da mídia. O último desses aleijões —
parturido por uma noveleira e perfilhado pelos legisladores -
classifica como crime hediondo o homicídio qualificado, ou seja,
todo e qualquer homicídio, porque não há denúncia que se
contente em imputar homicídio simples. Como a denúncia
rege o processo enquanto dura a instrução, é claro que esse
monstrengo ressuscitou a prisão preventiva obrigatória e en­
tro nizou o Ministério Público como senhor de baraço e cutelo
da liberdade dos cidadãos.
Em todas as épocas, em todas as comunas, os ante­
cedentes ilibados sempre foram um troféu de honra para os
cidadãos. A vida imaculada e a utilidade social do indivíduo
sempre lhe garantiram consideração, respeito e solidarieda­
de. Para as leis hediondas, todavia, nenhuma diferença existe
entre o homem de honra e o bandido. Ambos passam a ser
tratados de igual modo. Se forem presos em flagrante e de­
nunciados por homicídio, com as infalíveis qualificadoras, se­
rão arremessados na mesma pocilga, onde aguardarão o ju l­
gamento. Por mais humano e culto que seja o juiz, não poderá
estabelecer distinção alguma entre o benemérito e o preda­
dor, porque onde a lei não distingue não pode o intérprete
distinguir, e porque, como diz Soler, a pior lei é mais imperati­
va do que a melhor doutrina.
Mas como tudo, até o lixo, tem utilidade, essas leis
124
hediondas servem para confirm ar que o Congresso Nacional
não tem capacidade para cum prir sua missão. Aliás, sempre
foi assim. Nenhum dos Códigos vigentes é produto da ativida­
de parlamentar. Quando o Congresso ousa com eter uma lei, o
resultado é sempre o mesmo da Constituição Federal de 1988,
que, devendo ser uma carta de princípios, como o Decáíogo,
perdeu-se numa infinidade de dispositivos, em sua maioria
inaplicáveis, ineptos ou cabíveis apenas na lei ordinária. A
Constituição Americana, vigente há mais de dois séculos, tem
apenas 32 artigos. A nossa, prom ulgada há um lustro, tem
245 e já devia, a teor de suas disposições transitórias, ter sido
submetida à revisão.
É dever indeclinável do Congresso Nacional resistir
às pressões do vulgo, m orm ente quando fom entadas pela
mídia eletrônica. Do contrário, m elhor seria substituí-lo pelos
locutores de televisão, noveleiras e vídeotas, que, ao menos
diretam ente, nada custariam ao contribuinte. Numa época
como a atual, quando a opinião pública já não é mais pública
nem opinião, e sim o que a mídia impinge , a expedição de leis
para atendera sugestões espúrias é mais que um crime. Em­
bora as negociatas, os banquetes, a logorréia, as mordomias
e o turismo remunerado usurpem o tem po dos parlamentares,
não seria demais exigir que eles se lembrassem de que, como
o sábado (Marcos 2:27), a lei deve ser feita para o homem,
porque o homem não foi feito para a lei.

125
A INTOLERÂNCIA

Quando lhe perguntavam o nome, uma menina am e­


ricana respondia: “Mary D o n T , isto é, “Mary Não”, ou com a
necessária amplitude: “Mary Não Faça Isto ou Aquilo” . Em sua
inocência, ela assim retratava a intolerância do meio em que
vivia e a tendência repressora dos que, esquecendo seus pró­
prios defeitos, pretendem criar um mundo à sua imagem. In­
conscientemente, Mary resumia no seu sobrenome a petulân­
cia dos indivíduos que atormentam a vida alheia, impondo re­
gras de conduta e difundindo, como se fossem fatos compro­
vados, as mais absurdas mendacidades. Ela sintetiza também
a passividade com que os am ericanos aceitam imposições
extravagantes. Aliás, não seriam eles os reis da propaganda
se seu mercado interno não fosse tão receptivo.
Em 1923 o mundo gargalhou com o “Júri do Maca­
co” , encenado por violação do “Anti-Evolution B ilf’, uma lei
promulgada pelo Estado do Tennessee, que incrim inava o
ensino da teoria de Darwin nas escolas públicas. Um profes­
sor foi condenado, mas a repercussão do julgam ento humi­
lhou o povo americano. Em 1932, após o seqüestro e morte
do filho do herói nacional Lindbergh, uma onda de passiona-
lismo e revolta percorreu os Estados Unidos, provocando a
edição de leis que cominavam a pena de morte pelo crime de
seqüestro. O resultado óbvio foi a eliminação sistemática dos
raptados, porque, já estando sujeitos à pena de morte pelo
simples seqüestro, os raptores não hesitavam em assassinar
os seqüestrados para não serem por estes reconhecidos.
Em 1919, através da Décima Oitava Emenda Consti­
tucional e do “Volstead A c t” expedido logo a seguir, o purita-
nismo conseguiu impor o regime da “lei seca”, em cuja vigên­
127
cia foram proibidos a fabricação, o transporte e a venda de
bebidas alcoólicas no território americano, Como resultado
dessa monumental sandice, os mafiosos assum iram o poder.
O crime espraiou-se, a corrupção invadiu as repartições públi­
cas e os tribunais. Os fornecedores de bebida (Al Capone,
Lucky Luciano, Legs Diamond e outros) enriqueceram-se e
depravaram o país. Somente em 1933, quando os Estados
Unidos já haviam pago - em vidas, reputação, moral e dinhei­
ro - um preço incalculável, foi que a Vigésima Primeira Emen­
da acabou com a proibição. O crime organizado, porém, filho
daquela intolerância, até hoje sobrevive.
Como não podia deixar de ocorrer, é tam bém dos
Estados Unidos que dimana a histeria atual contra o tabagis­
mo. Seu objetivo é extorquir das fábricas de cigarros indeniza­
ções absurdas. Seu coadjuvante é o aparelho de ar refrigera­
do, porque, impedindo a dispersão e catalisando a fumaça,
degrada o cheiro do fumo. Esse aparelho, todavia, incubador
de fungos e micróbios, é o maior responsável pela contam ina­
ção ambiental. Submetendo ainda os que chegam da rua, em
dias de calor, a uma queda repentina da temperatura, provoca
pneumonias. Embora seja a refrigeração artificial nociva à
saúde, prefere-se esconder este fato atrás da figura dolorosa
do “fumante passivo”, uma cretinice inventada para discrim i­
nar os fumantes, fom entar discórdia entre as pessoas e armar
a prepotência dos que tenham alguma parcela de autoridade.
Arvorando-se em protetora da hum anidade, a into­
lerância inventa estatísticas horripilantes, aventurando que
milhões de tabagistas estão morrendo ou são passíveis de
doenças tenebrosas. Ignora que Disraeli, aludindo a cálcu­
los reais e não sim plesm ente fabulados, dizia que existem
três classes de mentira: a mentira simples, a superm entira e
a estatística. É velha a praxe. Nos anos 40, as fábricas nacio­
nais de refrigerantes e meias de seda, alarm adas com a con­
corrência, financiaram propaganda que atribuía o câncer à
Coca Cola e aos tecidos de nylon. Os que se deixam apavo­
rar com tais invencionices imitam o jovem que furou um olho
para não ir para a guerra, mas acabou dispensado do servi­
ço m ilitar porque tinha pés chatos.
128
É claro que os fabricantes de cigarros poderiam re­
verter a situação atual. Poderiam, por exemplo, interessar os
médicos e os meios de com unicação a divulgar, aliás com
acerto, que o fumo, como redutor do apetite,é o remédio ideal
contra a obesidade. Sabendo-se que o colesterol responde
pela maioria dos problemas cardíacos e que a gordura preju­
dica a elegância, bastaria essa sim ples declaração para in­
verter a postura dos que, com morbosa implicância, agridem
os fumantes. Outras opiniões análogas, que os médicos sa­
bem fabricar, estabeleceriam confusão suficiente para ilidir a
campanha contra o tabagismo. De qualquer forma, convém
não esquecer que “verboten” (proibido) era a palavra mais pro­
nunciada na Alemanha nazista.
A flor cheira melhor do que o repolho, mas não dá
uma sopa igual. Essa advertência de Mencken deveria alertar
os que vivem adotando modismos am ericanos. Os Estados
Unidos são um país rico, mas não um país de cultura. Todo o
cuidado é pouco co m e lixo cultural que os am ericanos expor­
tam. Não se entende, ademais, a não ser por desmesurada
hipõcondria, que num país como o Brasil, onde se morre de'
fome ou por falta de assistência médica e de rem édios, haja
quem, com o monóxido de carbono poluindo ruas e invadindo
lares, se preocupe com o tabagismo. De modo geral, quem pre­
tende restringir direitos e impor os abusos de sua intolerância,
costuma agir como os que , segundo Jesus (Mat. 23:25), limpa­
vam o exterior do copo, mas deixavam dentro a imundície.

129
A HIPOCRISIA

Na admirável pregação de Jesus de Nazaré, os tópi­


cos mais contundentes são os relativos à hipocrisia, como os
que censuram os escribas e fariseus por devorarem as casas
das viúvas e se justificarem com longas orações; gostarem
das saudações nas praças, de usar vestes talares, dos pri­
meiros assentos nas sinagogas; e porque sobrecarregavam
os homens com fardos superiores às suas forças, que eles, os
hipócritas, nem com um dedo tocavam, Para o Nazareno, os
hipócritas eram como os sepulcros caiados que por fora pare­
cem belos, mas por dentro estão cheios de imundície. Em re-
torsão, os escribas e fariseus crucificaram o rebelde e apropria­
ram-se de sua doutrina. Mantiveram, porém, a conduta cen­
surada, continuando, até hoje, a difundir a hipocrisia.
Inúmeras são as manifestações de farisaísm o que
logram aprovação majoritária, deixando estarrecido quem exa­
mina suas premissas para não ser empulhado pelas conclu­
sões. Veja-se, por exemplo, o que acontece com os ecologis­
tas. Nunca plantaram uma á rvo re f mas fazem estardalhaço
se o lavrador desmata a terra para poder cultivá-la. Jamais
criaram um animal, mas pedem cadeia para quem mata um
tatu, ainda que o bicho esteja devastando plantações. Em
outras áreas, a conduta é a mesma. O Governo deixa o povo
morrer à míngua de remédios e assistência médica, mas cla­
ma, com extremo cinismo, que fum ar prejudica a saúde. A uto­
riza o tráfego suicida dos motoqueiros, mas impõe o cinto de
segurança nos veículos menos perigosos.
Na história dos povos, na crônica das religiões, bem
como no Teatro e na Literatura, a hipocrisia ocupa um espaço
considerável, dem onstrando que em todos os setores da vida
131
social pontificam aqueles que pregam Platão e praticam Epi-
curo. Na História da Civilização , Fouché é paradigma. No Te­
atro, o tipo padrão é o Tartufo, da comédia de Molière. Quanto
às religiões, é certo que os processos da Inquisição visavam,
na realidade, o confisco dos bens dos supostos hereges. Cons­
ta também que os padres optavam pela fogueira porque ti­
nham horror a sangue derramado, Na Literatura, há sempre
ou quase sempre uma personagem que encarna a hipocrisia.
Não se pode, portanto, ignorar o poderio de uma arma com
que muitos são induzidos a praticar iniqüidades.
Revoltante demonstração dessa capacidade de de­
turpar os fatos e provocar a indignação dos tolos, impelindo-
os a condenar até mesmo o que os favorece, reside na m ons­
truosa campanha contra a adoção de crianças brasileiras por
famílias alienígenas. Em sua impudência, a mídia eletrônica
chegou a propalar que tais adoções visam à extração de or-
gãos para transplante, Embora nada autorize tai suposição, o
fato é que; corno alertava Beaumarchais, algum resíduo sem ­
pre fica das calúnias mais absurdas. Mas é claro que para a
prática de mutilações não seria necessário um expediente tão
oneroso e complicado. Aqui mesmo, para não falar na África e
na Ásia, órgãos anatômicos podem ser extraídos a preços mais
baixos e sem burocracia.
Num país como o nosso, onde o êxodo rural e a pa­
ternidade irresponsável enchem as metrópoles de crianças
abandonadas, famintas e corrompidas, suje itada abusos de
todas as espécies, inclusive ao extermínio, somente a mais
abominável hipocrisia pode insurgir-se contra o auxílio que vem
de fora. Cumpridas as formalidades legais, que não são pou­
cas, não há como se possa condenar o fato de serem os m e­
nores resgatados da miséria e preservados do contágio crim i­
nal para viverem com fam ílias idôneas, em país desenvolvido.
Certamente porque são incapazes de ajudar seus sem elhan­
tes é que os hipócritas não admitem possa alguém, sem outra
compensação além da espiritual, assumir encargos que eles
só assumiriam com ânimo de lucro.
Infelizmente essas adoções, verdadeiros prêmios de
loteria para os adotados, são gotas d’água na fogueira da mi-
132
serabilidade infantil. Como disse o Barão de Itararé: “O pro­
blema dos menores é um dos m aiores” . Não há solução a
curto prazo. O futuro, porém, poderá ser menos som brio se
forem criadas condições para a cessação do êxodo rural e se
a vasectomia voluntária for estimulada. No cam po legislativo,
qualquer providência será inútil ou dem agógica, porque leis
ou decretos não alteram a natureza das coisas. Enquanto isso,
devem os hipócritas, antes de chorar a felicidade das crianças
adotadas, contribuir com dinheiro para que as mães fam élicas
não sejam forçadas, pela injustiça social, a abandonar, ceder
ou vender os filhos.
Embora afirme-se que as lágrim as do crocodilo não
são derramadas por com paixão de suas vítim as e sim porque,
no sáurio, a digestão é dolorosa, relata Plínio que os crocodi­
los das margens do Niío choravam e gem iam como pessoas
enlutadas, para despertar a atenção e a piedade dos passan­
tes que iam ver do que se tratava e eram devorados. Atitude
oposta era a dos mendigos na velha China que seguiam os
transeuntes, insultando-os a mais não poder, até que os acos­
sados atirassem moedas para livrarem-se da perseguição. É
óbvio que essas condutas são ambas deselegantes. Mas não
há dúvida de que, por não implicar em aleívosia, traição ou
perfídia, a dos mendigos é a menos reprovável. Nela, quando
nada, não há cinismo, falsidade ou hipocrisia.

133
O PODER DAS COISAS

Ao contrario de Sócrates, que só visitava as lojas de


comércio para ver quantas coisas existiam , das quais eie não
precisava, as pessoas, de modo geral, escravizam-se ao con-
sumismo. Como escreveram Marx e Engeis, no Manifesto
Comunista, as mercadorias são os canhões que derrubam as
muralhas da China. Não há , pois, no mundo atual, necessida­
de alguma de invasões ou ocupações militares, para que um
povo seja submetido por outro ou simplesmente explorado.
Basta invadir os mercados com seus produtos para que as
empresas multinacionais passem a governar o país importa­
dor. Os costumes e até o idioma deste país são rapidamente
adulterados, como ocorre no Brasil, onde, a todo passo, so­
mos assaltados por palavras ou expressões alienígenas.
Entretanto, para viver confortavelmente, o homem
precisa de muito pouco. Desde que tenha boa saúde, física e
mental, o homem pode dispensar quase tudo que se fabrica. A
própria culinária, que os peritos buscam sofisticar, é perfeita­
mente dispensável, porque, como adverte a sabedoria popu­
lar, a fome é a melhor das cozinheiras. A propaganda, a inve­
ja, a vaidade e o senso de imitação é que estabelecem a de­
pendência do homem com as coisas materiais. Mesmo no
âmbito da sensualidade, a idéia é que valoriza os parceiros.
Como escreveu Samuel Johnson: “Se não fosse a imagina­
ção, o homem estaria tão feliz nos braços de uma empregada
como nos braços de uma duquesa”. Na mente exaltada de
Don Quixote, a rústica Dulcinéa era uma beldade.
Invejamos a vida que levavam os príncipes do passa­
do. Entretanto, eles não tinham as coisas que hoje julgamos
indispensáveis. Não dispunham da eletricidade e, conseqüen­
temente, de qualquer dos aparelhos que dela dependem. Não
tinham também automóveis nem aviões. No que tange ao con­
forto, a indústria é que cria necessidades. A propaganda induz
o homem a adquirir mercadorias e a sentir-se infeliz quando
não consegue obtê-las. Mas se efe não fosse fútil, poderia de
tudo prescindir. A alguém que censurou Sócrates por estar mal­
trapilho em Roma, o sábio justificou-se dizendo que ali ninguém
o conhecia. Havendo, porém, seu interlocutor retrucado que em
Atenas, terra do filósofo, ele também andava daquele jeito,
Sócrates respondeu: “Sim, mas lá todos me conhecem” .
Tudo, portanto, gira em torno da futilidade humana.
Comélia, mãe dos Grachos, ao ser depreciada porque não os­
tentava adereço algum, colocou os filhos nos braços e disse:
“Aqui estão as minhas jóias”. E eram realmente jóias aqueles
meninos, porque, quando cresceram, Caio e Tibérío tornaram-
se figuras exponencíais na História de Roma. Como disse Sê-
neca, “aquele que nada possuí é menos pobre do que aquele
que muito ambiciona”. Também para Cervantes, “o homem mais
rico do mundo é aquele que nada deseja”, mesmo porque,
como dizia Epicuro, “a riqueza não consiste em grandes pos­
ses, mas em poucas necessidades”. Na mesma rota singrava o
raciocínio de Thoreau, para quem “um homem é rico na pro­
porção do número de coisas que pode dispensar”.
O poder das coisas, todavia, exerce-se sobre todo o
mundo e está presente na História da Civilização, através de
inúmeros episódios que confirmam a sua soberania. Os cães
do mar, como eram chamados os piratas ingleses, patrocina­
dos pela rainha Elizabeth I, conseguiam impunidade e títulos
de nobreza mediante jóias que levavam para a coroa. Um dos
escândalos que fomentaram a Revolução Francesa foi o do
“Colar da Rainha” , jóia de alto preço que um bajulador havia
encomendado em nome de Maria Antonieta, numa época em
que as finanças da realeza estavam em bancarrota. Hoje as
jóias estão saindo de circulação. Mas não é porque a futilida­
de esteja diminuindo. É porque os ladrões estão mais audacio­
sos e não há segurança em parte alguma.
Já disseram que a diferença entre o adulto e a crian­
ça é que os brinquedos daquele são mais caros. O menino
136
contenta-se com pouco. O adulto, porém, com ete crim es para
conseguir os seus brinquedos. Muitos excluídos pela pobreza
apodrecem nas cadeias porque precisavam de um autom ó­
vel, uma televisão ou qualquer outro brinquedo, mesmo ao
preço de sua liberdade. Os que assim não procedem vivem
amargurados e invejando os que tudo possuem. Sua vida des­
loca-se de seus limites ambientais para gravitar em torno das
coisas que não podem conseguir. E essa carência determina
também um sentimento de inferioridade que os deprime e hu­
milha em sua própria casa. Quando as coisas faltam, as rela­
ções de parentesco, inclusive as conjugais, rom pem -se ou de-
terídram-se.
O próprio Jesus, cuja filosofia os crentes desvalori­
zam com o mito da divindade, já verberava contra o consu-
mismo, aliás incipiente, na época de sua doutrinação. Para
Schopenhauer, a sabedoria consiste em enriquecer por den­
tro. Isto é, criar um mundo interior capaz de dispensar o rela­
cionamento social e resistir ao apelo das coisas materiais.
Adestrando sua inteligência através do estudo e da medita­
ção, o homem terá dentro de si mesmo tudo de que necessita,
excetuadas, obviamente, as coisas verdadeiramente indispen­
sáveis, como a alimentação, vestuário, remédios e um recan­
to para morar. O mais é prescindível, como foi nos séculos
que antecederam a era industrial. Como reza a fábula, o ho­
mem feliz não tinha camisa.

137
O APELO DE TÂNATOS

Por sua com plexidade, as causas do suicídio não


podem ser equacionadas ou expressas numa fórmula geral.
Fenômeno dependente da conjugação de fatores endógenos
e exógenos, o suicídio é um enigma que a mente humana não
consegue desvendar. A crença de que ele resulta da perda do
instinto de conservação é refutada por Schopenhauer, para
quem o suicida quer a vida, mas não suporta as condições
que a vida lhe oferece. Âté mesmo a simples tendência para o
suicídio não é perceptível, porque, segundo Altavilla, o escrú­
pulo ou ciúme da própria angústia impõe ao suicida o uso de
uma máscara sorridente que engana o observador. É o que
também diz o nosso Raimundo Correia, em seu “Mal Secre­
to”, ao versejar sobre as delusões da máscara da face.
Em sua obra clássica sobre o suicídio, afirma Durkheim
que a decisão fatal “eclode e produz seus efeitos com um ver­
dadeiro automatismo, sem que a preceda antecedente inte­
lectual algum” . Pessoas que obtiveram grande êxito na vida,
suicidaram-se sem motivo aparente. Em st Hemingway, por
exemplo, acordou cedo, após sono tranqüilo, colocou na boca
os dois canos de uma espingarda e acionou os gatilhos. Nada
dissera à sua mulher, que pernoitara com ele e ainda dormia.
Não deixou sequer um bilhete, embora fosse um escritor fa­
moso. A crônica das mortes violentas registra uma infinidade
de tragédias semelhantes, onde a ausência ou ignorância da
motivação sugere que o suicídio é um ato irracional e conse­
qüentemente imprevisível.
Também Jack London, sem motivo razoável, suici­
dou-se aos quarenta anos de idade, quando seus livros de
aventuras eram os mais vendidos no mundo. Há quem se sui­
139
cide até por desafio ou brincadeira, como no caso da roleta
russa. Entre as curiosidades, conta-se que um cadete inglês
suicidou-se por já estar cansado de abotoar e desabotoar a
farda. Até mesmo à falta de problemas, ao tédio, são debita­
dos alguns suicídios que ocorrem na Suécia, onde o am or li­
vre reduz o passionalismo e o seguro social elimina preocupa­
ções monetárias. Como advertiu W illiam James, o espírito
humano não conseguirá jam ais explicar a origem das implo-
sões anímicas, porque não se pode determ inar os coeficien­
tes causais das reações psicológicas.
Todos os homens e mulheres, em momentos de extre­
ma angústia, contemplam o suicídio. Para Nietzsche, a idéia do
suicídio é consoladora porque acena com um recurso disponí­
vel para a cessação de tormentos irremediáveis. Napoleão ten­
tou o suicídio por duas vezes. Sólon, o legislador grego, estava
tão convicto de que este mundo é um vale de lágrimas, que
recomendava: “Nunca digas que um homem é feliz enquanto
ele não estiver morto”. Tentando anular a vontade e suprimir as
paixões, os budistas levam uma existência que eqüivale a um
permanente suicídio. Até as crianças se matam. E os animais
também. Os lemingues, pequenos roedores que habitam as
escarpas da Noruega, livram-se da vida atirando-se nas ondas
do mar, quando há escassez de alimentos.
Em todo o mundo, o suicídio é um evento que só es­
tarrece os nubívagos. Nas grandes cidades, os jornais noti­
ciam, diariamente, a ocorrência de suicídios. Em Londres, re­
centemente, alguns escolares suicidaram-se porque não tole­
ravam a hostilidade de seus colegas. Aqui em Vitória, a im­
prensa informa que mais duas pessoas se atiraram da tercei­
ra ponte. E já se perdeu a conta das que se jogaram de apar­
tamentos. Por bravata, os japoneses pilotavam torpedos e,
por questões de honra, praticavam o haraquiri. No Sudeste
Asiático, os bonzos incineram -se em praça pública. Quem
abusa do álcool e das drogas, exerce profissão perigosa, par­
ticipa de competições de alto risco ou afronta tiranias imbatí-
veis, é, sem dúvida, um suicida em potencial.
A atração do abismo é mais poderosa do que pode­
mos imaginar. Não são somente os lemingues que praticam o
140
suicídio coletivo, nem a am eaça da fom e é a causa principal
desse fenômeno. A crendice tam bém faz suas vítimas. Na
Guiana Inglesa, suicidaram -se o pastor Jim Jones e seu reba­
nho de novecentos adeptos. As frustrações am orosas tam ­
bém respondem por uma epidem ia de suicídios. Shakespea-
re, Goethe, DAnnunzio, Vargas Vila e inúmeros outros explo­
raram esse tema em obras admiráveis. Para D’Annunzío, o
amor que não conduz à morte não é amor. Para Vargas Vila,
quando a vida é uma tortura, o suicídio é um direito, quando a
vida é uma infâmia, o suicídio é um dever. O amor e a honra
são o altar do sacrifício das alm as mais sensíveis.
A ânsia de libertar-se das dores do mundo constituí,
nos idos fluentes, uma necessidade que a tecnologia busca
suprir. Já não basta auxiliar a nascer. É preciso facilitar a eva­
são dos que já não suportam a carga da vida. Na Inglaterra,
na França e na Holanda existem instituições destinadas à prá­
tica da eutanásia. Nos Estados Unidos, um médico mandou
construir e vem operando a “Máquina do Suicídio” . Ninguém,
nem mesmo o sábio, está isento de optar pelo suicídio, por­
que, como reza o Eclesiastes, “quem aumenta sua sabedoria
aumenta sua tristeza”. Como na vida, segundo Schopenhauer,
o filósofo do pessimismo, “só a dor é positiva” , é perfeitam en­
te natural que muitas pessoas encarem a morte como uma
doce e definitiva anestesia.

141
A PQLUtÇÃQ PA MENTE

Virgil Gheorghiu, o festejado autor de “A Vigésima


Quinta Hora” , escreveu em “A Espiã”, outro de seus roman­
ces, que: “ Em nossa época, os povos civilizados estão absor­
vidos por coisas muito sérias: a poluição dos mares, dos oce­
anos, dos rios e da atmosfera. Estão de tal modo preocupa­
dos com a perigosa poluição do ambiente físico que não têm
tempo para se preocupar com uma asfixia mais grave e ainda
mais mortífera: a poluição dos cérebros, a poluição das al­
mas, a poluição dos corações, a poluição dos costumes, a
poluição do espírito. O cérebro está contaminado. Os senti­
mentos estão contam inados” . Nas páginas seguintes, o autor
argumenta, com fatos irrefutáveis, que os Estados Unidos são
os maiores poluidores espirituais da humanidade.
Não é difícil concordar com tese tão certeira. Basta
ler o que ele escreve sobre os “hippies” , os “funks”, o “rock
and roll”, as danças simiescas, a música alucinógena, a pro­
miscuidade, a toxicomania, em suma, sobre a “animal-way o f
life”, em que chafurda a "Juventude americana. Se acrescen­
tarmos a essa degradação o “Klu-Klux-Klan” , a Lei de Lynch,
a seita de Jim Jones, o culto da violência, os filmes de “kung
fu”, a contracultura, a apologia do homossexualismo, o êxito
espetacular de monstrengos como Michael Jackson, a hostili­
dade aos latino-americanos, a discriminação racial, as torpe-
zas da mídia e as cruzadas da hipocrisia, chegaremos à con­
clusão de que precisamos levantar uma barreira intransponí­
vel contra a invasão do lixo cultural americano.
Os Estados Unidos são um país de comerciantes,
mecânicos, inventores e financistas. Aos americanos, nativos
ou importados, o mundo deve o progresso material de que
143
hoje desfruta. Empolgados, porém, com suas realizações téc­
nicas, os americanos passaram, como disse James Burnham,
a confundir civilização com tecnologia. E não somente eles. Até
nós, legatários da cultura greco-romana, infinitivamente superi­
or à angfo-saxônica, passamos a macaquear um povo que ja ­
mais produziu coisa alguma no âmbito do pensamento. Um povo
capaz de mandar à Lua uma nave tripulada, mas que não con­
segue produzir um filósofo ou um escritor profundo. Chegamos
ao cúmulo de repudiar o nosso idioma, enxertando-o com ex­
pressões banais e absolutamente desnecessárias.
A linguagem do brasileiro está hoje poluída por uma
infinidade de vocábulos e expressões anglo-americanas que
servem apenas para evidenciar alienação ou pedantismo. “S ho­
p p in g C e n te f, em vez de Centro Comercial ou Central de
Compras. “S e lf Service" em vez de Auto - Serviço ou Pegue —
Pague. “ D ie i" em vez de dietético. “O u P D o o r em vez de Car­
taz. “A ir-ba g ” em vez de Bolsa de Ar. “ Gay" em vez de Homos­
sexual. “Know-How" em vez de Perícia. “Rush” em vez de Pres­
sa. “S tand ” em vez de Posto, “ t/p to date” em vez de simples­
mente: Atual. Mas, como Ruy censurou na época em que o
idioma português estava eivado de galicismos, o nosso ver­
náculo dispensa, por sua versatilidade e riqueza, a importa­
ção de vocábulos ou expressões alienígenas.
O povo americano é programado pela televisão que
o submete a uma lavagem cerebral implacável. É também o
maior consum idor de drogas do pla netó Se o tráfico de coca­
ína para os Estados Unidos fosse interrompido, a Colômbia
abriria falência. A campanha prioritária da televisão am erica­
na não é, todavia, contra o narcotismo, porque dos traficantes
não se pode exigir indenizações. É contra o tabagismo, por­
que o patrimônio das fábricas de cigarros está ao alcance dos
tribunais. Nessa empreitada, só não disseram ainda que os fu­
mantes respondem pela perfuração da camada de ozônio. Mas
já descobriram nada menos de quatro mil e setecentos vene­
nos em um simples cigarro e conseguiram criar, para atrair adep­
tos e fomentar discórdias, a figura rídicula do fumante passivo.
Combatem o tabagismo, mas não ousam proibir a
fabricação de cigarros, porque a Lei Seca, relativa ao alcoolis­
144
mo, foi de trágicas conseqüências. Impõem o uso do cinto de
segurança, mas não param de vender m otocicletas. São os
maiores exportadores mundiais de pornografia, mas já impu­
taram ao Presidente Clinton, a um Juiz da Suprema Corte e a
meninos de seis e sete anos de idade o cretiníssim o delito de
assédio sexual. Em suma, pregam Platão e praticam Epicuro.
Como ali tudo se resolve com indenizações, transform aram a
advocacia numa picaretagem. O advogado, nos Estados Uni­
dos, vive a debitar a este ou àquele produto, a esta ou àquela
conduta humana, uma carrada de males hipotéticos que pos­
sibilitem extorsões judiciárias.
O pior de tudo isso é que nós, herdeiros de uma cul­
tura superior, estamos importando barbarism os e imitando os
americanos em tudo que eles praticam e divulgam. Até mes­
mo em nosso Direito Penal já introduzim os a b a rg a n h a e o
p rê m io à delação - duas vilanias da praxe judicial americana
- que o desnaiuram e desm oralizam com pletamente. Nada
escapa à poluição mental com que os Estados Unidos sufo­
cam nossas tradições. É necessária uma reação contra os que,
abusando aqui da liberdade de imprensa, fazem propaganda
dos costumes americanos. Em tecnologia e riqueza material,
os Estados Unidos são o país mais poderoso do mundo. Mas
em cultura, costumes e vivência espiritual, não há como se possa
digerir seus preconceitos, sandices e mazelas.

145
'O ÔPIO ELETRÔNICO

Em excelente artigo intitulado “J ’accuse\”, publicado


no “Jornal do Brasil, edição de 13/1/1993, escreveu o Arcebis­
po Primaz, Dom Lucas Moreira Neves; “Acuso a TV brasileira
de ser demolidora dos mais autênticos valores morais, sejam
eles pessoais ou sociais, familiares, éticos, religiosos ou espi­
rituais. Demolidora, porque não somente zomba deles, mas
os dissolve na consciência do telespectador e propõe, em seu
lugar, os piores contravalores. Nesse sentido, é assustadora
a empresa de demolição da família e dos mais altos valores
familiares - amor, fidelidade, respeito mútuo, renúncia - reali­
zada quotidianamente, sobretudo nas telenovelas. Em lugar
disso, o deboche, a dissolução, o adultério, o incesto” .
Aduziu o sábio sacerdote, em sua santa indignação,
que as telenovelas incutem na juventude uma concepção inde-
corosa da vida e que, com seus “programas da mais baixa ca­
tegoria moral”, o objetivo da televisão brasileira é “imbecilizar” o
povo, criando “uma geração de debilóides”. Por sua admirável
concisão e pelas verdades que esgrimé, esse artigo deveria ter
sido publicado em todos os jornais do País e discutido em to­
das as escolas, porque, na época atual, a grande inimiga da
cultura, da sabedoria e dos costumes é a mídia eletrônica. Com
seu ópio colorido, a televisão instila a preguiça mental, afastan­
do dos livros os videotas e eliminando até mesmo a conversa­
ção e o relacionamento entre os membros de uma família.
Espalhando seus tentáculos por todos os rincões, a
televisão vai raptando a mente do homem comum, da juventu­
de e das donas de casa, em todos inoculando uma filosofia
deletéria, cuja difusão concorre para subverter os costumes e
desagregar as famílias. Depois de assistir às telenovelas, cuja
147
temática é sempre a promiscuidade, os jovens não mais obe­
decem à hierarquia fam iliar ou aceitam normas de conduta.
Por seu turno, a dona de casa e o chefe da família descobrem
que a união conjugal não tem os encantos das vinculações
libertinas e passam a encarar um ao outro com insopitável
desprezo. Deslum brados com a miragem da dolce vita, os
súcubos da televisão repudiam o trabalho e sonham com um
paraíso terrestre.
O simples fato de se estenderem por mais de cem
capítulos, evidencia que as telenovelas produzem dependên­
cia psíquica e. estimulam a ociosidade. Explorando o mundo
inefável do faz-de-conta, o “paraíso dos tolos” de que falava
Milton, a televisão inverte valores e entorpece multidões, tor­
nando insuportável a vida real de seus dependentes. Até mes­
mo o noticiário está sempre eivado de exageros, mendacida-
des ou distorções, tendentes a criar sensacionalismo ou induzir
o público a aceitar embustes. As notícias sobre os avanços da
Medicina chegam a ser hilariantes. O que hoje mata, amanhã
cura. No âmbito do Direito, provocam a expedição de leis extra­
vagantes, ridículas, inaplicáveis ou contrárias à ordem jurídica.
Houvesse em nosso País um órgão realmente dedica­
do a velar pela cultura e pela mentalidade do povo, a televisão
teria sido obrigada a conter-se nos limites da conveniência so­
cial. Não teria permitido que e la difundisse, entre nós, a histeria
acústica americana - rotulada de música moderna - nem o cul­
to da violência e do homossexualismo. Teria preservado nos­
sas tradições e impedido a exploração sensacionalista de atos
criminosos, cuja divulgação implica, como adverte a Psicologia
Judiciária, numa reação em cadeia. Exemplos recentes desse
fenômeno são as mutilações penianas que, em sua safra atual,
começaram em Vitória e já se repetem em outras cidades. O
mesmo ocorre com os seqüestros e outros delitos.
De todas as mazelas, porém, que a televisão inocula
em seus dependentes, a mais ruinosa é a preguiça mental.
Quem se habitua a olhar figuras em movimento e simplesmen­
te ouvir o som de palavras, não se animará jamais a concen-
trar-se na leitura de um livro. Será sempre, como uma esponja,
mero recipiente do que lhe encherem a cabeça, porque, abdi­
148
cando do raciocínio, não terá condições de ajuizar, distinguir ou
eleger. Será robotizado a ponto de suas opiniões estribarem-se
em telenovelas, em programas de auditório ou nos comentári­
os petulantes dos locutores de televisão.Com sua hipnose, a
televisão vai criando um mundo ilusório, subvertendo os costu­
mes, pilotando á volíção e estupidificando a granel.
Sendo a ignorância a fonte de todos os males e o
livro o portal da sabedoria, é óbvio que a substituição deste
pela vulgaridade da televisão importa em suicídio iníeiectuah
Os viciados naquele entorpecente - pior que os outros, por­
que seus efeitos são direcionados - destinam -se a servir de
massa de manobra paraquem efetua, através de telenovelas
e programas imbecilizantes, a sua lavagem cerebral. A conse­
qüência dessa indução perniciosa será a morte do livro. Hoje,
aliás, já não se lê. A leitura restringe-se a jornais e revistas.
Quando um livro desperta interesse é porque aborda o tema de
uma telenovela. Já estamos na era da estupidez e da creíinice.
E a Caixa de Pandora ainda não se abriu completamente.

149
O FILHO DO HOMEM

A biografia de Jesus está envolta nas brumas do mis­


ticismo, da fabulação e da mendacidade. De tudo que se dis­
se e escreveu sobre o venerável profeta, os únicos fatos indu-
bítáveis são o batismo, a atividade revolucionária, o julgam en­
to e a crucificação. Até mesmo a data e o local de seu nasci­
mento não merecem aceitação unânime. A dúvida contamina
também os Evangelhos, porque foram escritos meio século
após a crucificação. Sendo inverossímil a hipótese de fecun­
dação milagrosa, é óbvio que Jesus nasceu de parto natural.
Era filho de Maria e pai ignorado, uma vez que José, marido e
protetor de sua mãe, vivia em castidade, m antendo com ela
uma relação paternal.
Para os habitantes da Galiléia, região paupérrima
onde a família de Jesus era radicada, o único meio de ascen­
são social era a exploração da crendice. Não confiando em
soluções terrenas, capazes de suprimir a miséria ou erradicar
as doenças endêmicas, e obrigado ainda a pagar tributos ao
invasor romano, o povo acreditava apenas no socorro divino.
De suas tradições, aliás, constava que um Messias, um envia­
do de Deus, chegaria a qualquer momento para redimir o povo
judaico. Dos escribas e fariseus, serviçais do dominador ro­
mano, o povo nada podia esperar, a não ser o agravamento
de sua penúria. Somente de Deus viria a salvação.
Ao que tudo indica, Jesus foi, desde criança, prepa­
rado por seus fam iliares para exercer a missão de profeta.
Embora os Evangelhos não sejam confiáveis, deles consta
que, aos doze anos de idade, Jesus já assombrava os sacer­
dotes oficiais com seus conhecim entos das leis sagradas.
Durante um longo período que a mitologia cristã pretende ocul­
151
tar, Jesus esteve internado em Qumran, comunidade situada
numa das margens do Mar Morto, onde estudou com os es-
sênios e habituou-se a viver em rigoroso ascetismo. O mesmo
ocorreu com João Batista, também nascido por obra e graça do
Espírito Santo, que dali saiu para profetizar a viada do salvador.
As primas Maria, mãe de Jesus, e Isabel, mãe de
João Batista, eram casadas, respectivamente, com José e
Zacarias, velhos sacerdotes que, por sua idade avançada, já
não podiam procriar. A fábula da fecundação celestial era,
portanto, a única capaz de salvar a reputação de ambas. João
Batista foi o primeiro a internar-se em Qumran, de onde se
afastou para anunciar que um enviado de Deus estava pres­
tes a surgir. Seguindo a praxe dos essênios, ele vivia em celi­
bato, alimentando-se de mel e gafanhotos, e fazia veemente
pregação contra a dissolução dos costumes. Lavrou, pois, o
terreno onde Jesus viria plantar as sementes do Cristianismo.
João Batista apresentou Jesus a seus seguidores,
insinuando, na cerimônia do batismo, que ele era o Messias, o
esperado, tanto assim que teria o condão de batizar com o
Espirito Santo. Embora negando essa condição, para não ser
acusado de blasfêmia, Jesus sempre se conduziu como se
fosse um arauto de Deus na terra. Segundo os Evangelhos,
ele acenava com o socorro divino, pregava a humildade, a
renúncia, a caridade, a abnegação e tudo que correspondia
aos anseios dos pobres e dos doentes. Tal doutrina am eaça­
va os privilégios dos fariseus, que cultivavam a hipocrisia e
chafurdavam na corrupção. Por sua conduta revolucionária é
que Jesus foi crucificado.
Não foram os fariseus, todavia, que praticaram con­
tra Jesus a maior ofensa. Foram seus próprios seguidores, ao
lhe atribuírem a divindade. Como Filho do Homem, ele foi um
herói e mártir da eterna luta dos oprimidos contra os opresso­
res. A fidelidade aos seus princípios e a admirável resignação
com que suportou as injúrias e os suplícios, garantiriam para
ele uma situação incomparável na história da humanidade.
Como Filho de Deus, porém, a sua postura foi decepcionante,
como escarneceram os ímpios que o desafiaram a descer da
cruz. Sua ressurreição, após ínumado, é uma fábula propalada
152
por duas mulheres que foram ver o sepulcro e o acharam vazio.
Para os industriais da crendice, entretanto, era indis­
pensável que Jesus fosse o Filho de Deus. Do contrário, não
poderiam explorar sua imagem. Esses estelionatários repudi­
aram a humildade de Jesus, passando a usar vestes talares e
a viver em palácios suntuosos, como os antigos fariseus. Pro­
moveram cruzadas de rapina, incineraram opositores, confis­
caram fertunas a pretexto de heresias, inventaram o pecado
e, através do mito da imortalidade, ameaçam os crédulos com
as chamas do inferno. Difundiram a estupidez e conseguiram
manter o mundo ocidental, por vários séculos, na mais torpe
ignorância. E até hoje, com o chacais, alim entam -se do cadá­
ver do Justo. Por sua causa, como disse Nietzsche: “O Evan­
gelho morreu na cruz” .

153
OS DÍZIMOS DA CRENDICE

A grande maioria da população mundial, composta


de budistas, maometanos, judeus ortodoxos, ateus, agnósti­
cos, etc., não admite a origem divina de Jesus nem acredita
em seus milagres. Ele mesmo jam ais afirmou que era o Mes­
sias ou o Cristo (o Ungido), e a todos estendia (Mat. 23:9) a
paternidade celestial. Sobre sua origem declarou-se apenas o
Filho do Homem, e sempre desprezou os vínculos terrenos de
parentesco. A um discípulo que lhe pedira para esperar por­
que ia énterrar o pai, ordenou (Luc. 9:60) que deixasse os
mortos enterrarem os mortos. E quando lhe informaram que
sua mãe e seus irmãos estavam presentes e queriam vê-lo,
estendeu a mão para os discípulos e disse (Mat. 12:49): “Eis
aqui minha mãe e meus irmãos” .
Quanto aos milagres, argumentam os incrédulos que,
aqui e alhures, magos e curandeiros restituem a luz a cegos,
a mobilidade a paralíticos e até mesmo a vida a supostos de­
funtos. Creditam esse imaginário poder à sugestionabilidade
dos pacientes e, com relação aos ressuscitados, à súbita ces­
sação de períodos de coma ou catalepsia. Alegam também
que os quatro Evangelhos, fonte única ou principal, de infor­
mação sobre a vida de Jesus, estão refertos de fabulações e
não poderiam retratar com exatidão os eventos de sua ativi­
dade messiânica, porque foram escritos entre trinta e sessen­
ta anos após a crucificação. Declaram que, sobre essa vida
extraordinária, apenas três fatos são irrefutáveis: o batismo, o
julgam ento e a crucificação.
Quem descarta, porém, a Teologia, para ficar apenas
com a História, é forçado a concordar que se Jesus não foi o
Filho de Deus, foi, sem dúvida, um Super-homem. Nascido
155
em uma região agreste, no seio de um povo pobre e espolia­
do, não poderia Jesus - cujo nome, derivado da fórmula gre­
ga Jesua ou Josua, significava: “Deus é a salvação” - perma­
necer insensível à influência de um meio social onde impera­
vam a crendice e a convicção de que só Deus poderia reme­
diar o infortúnio geral, Mas, desse mesmo meio, antes e de­
pois do suplício de Jesus, surgiram profetas que, embora tam ­
bém crucificados, o povo logo esqueceu. Somente Jesus se
eternizou. Sua doutrina concorreu para a queda do Império
Romano e conquistou o mundo ocidental.
Com sua opção pelos pobres, enaltecendo a tolerân­
cia, a humildade, o desprendimento, a renúncia e o perdão,
além de insurgír-se contra a hipocrisia e o formalismo, Jesus
atraiu a devoção dos que estavam “cansados e sobrecarrega­
dos”, constituindo-se numa ameaça aos exploradores do povo.
Os escribas e fariseus, alarmados com o seu carisma e a se­
dução de sua doutrina, consumaram a eliminação do Filho do
Homem e apossaram-se dos Evangelhos, para prosseguirem
na exploração da humanidade. Com os dízimos da crendice
ergueram templos em nome de Jesus e continuaram vivendo,
através dos séculos, como viviam na época em que o crucifi­
caram. Fingindo adorá-lo, industrializaram sua herança.
Como disse Ruy, no monumental prefácio de “O Papa
e o Concilio” , fundaram seitas e igrejas: “Em cujo seio a reli­
gião do Cristo soçobrou, deixando apenas à superfície, e ain­
da assim sacrilegam ente adulteradas, as feições ostensivas,
o vocabulário e o rito. O que ficou é uma simbólica sem alma
e sem verdade, pasto à credulidade supersticiosa das classes
ignorantes e manto ao cepticismo dissimulado e calculista da
minoria ilustrada”. Explorando a debilidade espiritual do ho­
mem, sua ignorância, seu fascínio pelo sobrenatural e sua
necessidade patológica de ser iludido, os escribas e fariseus
apossaram-se do símbolo da cruz - santificado pelo martírio
do Justo - e continuaram exercendo o poder teocrático.
Na Idade Média, esse poder era absoluto. Destrona­
va reis e incinerava em praça pública os que contestavam o
m andato divino dos sacerdotes ou sim plesm ente comiam
carne na sexta-feira. As Cruzadas, instituídas para a liberta­
156
ção do Santo Sepulcro, foram na realidade expedições milita­
res destinadas ao saque, à matança de muçulmanos e a as­
segurar, sem pagamento de tributos, o tráfego das especia­
rias. A Inquisição, criada para com bater a heresia, logo trans­
formou-se, na Espanha e em Portugal, em instrum ento de
confisco dos bens dos árabes e judeus que ali residiam. O
latrocínio e não o desprendim ento das coisas materiais, foi
sempre, no regime da Inquisição, o verdadeiro propósito dos
que usurparam o prestigio de Jesus e se entronizaram como
seus sucessores.
Como sempre ocorre com as doutrinas generosas, o
Cristianismo foi abocanhado e convertido em fonte de lucro. O
desprendimento que o Nazareno exigia de seus discípulos foi
relegado ao oblívio para que as igrejas pudessem acumular a
riqueza material que ostentam. A cupidez, portanto, que, com
hipocrisia e estardalhaço, foi imputada à “Igreja Universal do
Reino de Deus” é inerente a todas as outras e não deveria, por
conveniência das demais, ser objeto de discussão, O próprio
Jesus (Mat. 24:11) advertiu: “Surgirão muitos profetas e enga­
narão a muitos” . Por tudo isso é que (Luc. 9:58): “o Filho do
Homem não tem onde reclinar a cabeça” , e a ironia popular usa
a palavra Cristo para adjetivar a vítima de um logro, de uma
perseguição, ou alguém punido por crime que outrem cometeu.

I!

157
O BORDÃO DOS EXTENUADOS

Quem contempla a miséria humana e a de todos os


seres que vivem na crosta terrestre é induzido a concluir, com
Walter Lippmam, que: “O maior problema da Teologia é recon­
ciliar a bondade infinita de Deus com sua onipotência” . Isto
porque, aduz aquele pensador: “Nada deixa o homem comum
mais perplexo do que o espetáculo de tantos sofrimentos com­
pletamente irracionais” . De fato, ao considerar que a guerra, a
doença, a fom e e outras mazelas já exterminaram milhões de
pessoas e que a sobrevivência dos animais carnívoros está
condicionada à imolação recíproca, o homem com um tende a
inquirir porque Deus, que tudo criou, tudo sabe, tudo vê e tudo
pode, não socorre, com sua infinita bondade, as vítimas de
tantos sacrifícios.
Considerando a omissão de Deus em socorrer os
desgraçados e o fato de que nenhuma desgraça ocorre sem
que ele permita, foi que Stendhal, em frase que Nietzsche la­
mentou não ser de sua própria autoria, concluiu que: “A única
desculpa de Deus é não existir” . E Jules Renard, aborçjando
essa mesma questão, ponderou: “Não sei se Deus existe, mas
seria melhor para sua reputação que não existisse” . Existindo
porém ou não existindo, Deus tem sido uma mina de ouro e
poder para uma infinidade de seitas e religiões. Sobre elas,
disse Thomas Paine: “Todas as igrejas, sejam elas judias, cris­
tãs ou maometanas, me parecem meras invenções humanas,
estabelecidas para am edrontar e escravizar a humanidade e
açam barcar as riquezas e o poder” .
Os teólogos tentam explicar com a fábula do Paraíso
o descaso de Deus pelo nosso infortúnio, argum entando que
o homem estaria imune aos sofrimentos se não houvesse co­
159
metido o pecado original. É óbvio, porém, que sem tal pecado
- meio natural de reprodução - a espécie humana se extingui-
ria. Esse argumento, ademais, não abrange as outras espé­
cies, que, não tendo cometido pecado algum, vivem se entre-
devorando e servindo de alimento ao homem. Alegam tam ­
bém os advogados da crendice que Deus não interfere nos
atos maldosos porque concedeu ao homem o iivre arbítrio.
Para Espinosa, todavia, o livre arbítrio reduz-se à ignorância
das causas que o determinam. Ademais, ainda que a auto­
determinação existisse, não se justificaria a leviandade de Deus
em concedê-la a pecadores.
Explorando a ignorância e a fragilidade espiritual do
homem, inúmeros profetas, místicos e demiurgos iludem a
humanidade e logram, em nome de Deus, acumular tesouros
e exercer autoridade implacável sobre a conduta alheia. Os
templos suntuosos exibem parte da riqueza material que as
religiões conseguem extrair da estupidez humana. Quanto ao
poder, basta lembrar que os sacerdotes sempre escravizaram
os povos e cometeram impunemente os crimes mais abomi­
náveis. As guerras religiosas, os sacrifícios do Teocali, as fo­
gueiras da Inquisição, as matanças das Cruzadas, retratam o
poder dos sacerdotes e sua espantosa criminalidade. Por isso,
lamentou o cristão Heywood: “Quanto mais perto da igreja,
mais longe de Deus” .
Como escreveu Montaigne: “O homem é um louco
varrido; não pode fazer um verme, entretanto faz deuses às
dúzias” . Esta, porém, é a conseqüência natural de sua igno­
rância e fraqueza. Perdido em um mundo cuja origem desco­
nhece, não sabendo de onde veio e para onde vai, tendo certa
apenas a morte inevitável, o homem precisa acreditar até mes­
mo no nada, porque deixaria de existir, como entidade espiri­
tual, se em nada acreditasse. Para ele, como disse Schope*
nhauer, o mundo é apenas vontade e representação. Incapaz
de suprimir a vontade, dominado peto instinto de conservação,
o homem aceita facilmente a idéia da imortalidade da alma e
entrega jubilosamente a bolsa, a consciência e a liberdade a
quem lhe prometer um passaporte para o paraíso celestial.
As lições atribuídas a Jesus pelos Evangelhos, escri­
160
tos e divulgados, segundo Renan, meio século após a morte
do profeta, contribuíram para domesticar o barbarismo, intro­
duzindo os sentimentos de piedade e caridade em um mundo
cruel e incomovívei. Esses sentimentos, todavia, incompatí­
veis com a índole predatória do homem, só repercutiram na­
queles que acreditaram na origem divina da mensagem cris­
tã. Temendo o inferno, os crédulos refrearam sua tendência
destrutiva, enquanto outros, fingindo acreditar, acobertaram
suas maldades com o manto dahipocrísia. Não obstante, po­
dendo corrigir a mentalidade humana, Deus quedou-se inerte,
deixando, com sua infinita bondade, que o homem continuas­
se sendo, como disse Hobbes: “o lobo do homem” .
Argumentam os teólogos que Deus existe, porque
sem um criador o Universo não poderia existir. Esquecem,
porém, de informar quem teria feito Deus, uma vez que, a teor
desse raciocínio, ele também não poderia existir sem um cria­
dor que o tivesse produzido. No estágio atual do conhecim en­
to humano, essa questão parece insolúvel. Os avanços cientí­
ficos é que poderão , em futuro imprevisível, explicar a origem
do Universo. É indubitável, porém, que se Deus existe e é
onipotente, não adianta cortejá-lo com atos benévolos, por­
que as dores do mundo atestam sua opção pela iniqüidade.
Para os agnósticos - que nada aceitam sem comprovação —a
crença em Deus só aproveita aos que nele buscam se arri-
mar, como se ele fosse, segundo Nietzsche: “o bordão dos
extenuados” .

1(
ÍNDICE

P r e f á c io .................................................................................................. 9
F a la n d o F r a n c a m e n te .................................................................... 13
O T rib u n a l d o J ú r i .............................................................................. 45
A O r a t ó r ia ............................................................................................. 49
A s C a u s a s d o C r im e ....................................................................... 53
A P e n a d e M o rte ............................................................................... 55
O D e v e r d o A d v o g a d o .................................................................... 59
O E rro J u d ic iá r io ............................................................................... 63
O C rim e P a s s io n a l........................................................................... 67
O S u ic íd io ............................................................................................ 71
A F o m e e a L e i ................................................................................... 75
O C a s o C o llo r .................................................................................... 79
A M a n ia d e J u l g a r ............................................................................ 83
A L ei d e G re s h a m ............................................................................ 87
A F e iic id a d e p o r D e c r e t o ............................................................... 91
A A d v o c a c ia C r i m i n a ..................................................................... 95
O F ra c a s s o do C o m u n is m o ........................................................ 99
A G u ilh o t in a .......................................................................................... 1 0 3
A O p in iã o P ú b lic a .......................................................................
O D ire ito d e M o r r e r .......................................................................... 111
O E te rn o R e t o r n o .............................................................................. 115
A I g n o r â n c ia ........................................................................................ 119
A s L e is H e d io n d a s ........................................................................... 123
A I n t o le r â n c ia ....................................................................................1 2 7
A H ip o c r is ia ......................................................................................... 131
O P o d e r d a s C o is a s ..... ........................... ...................................... 135
O A p e lo d e T â n a to s .......................... ............................................. 139
A P o lu iç ã o d a M e n t e ....................................................................... 143
O Ó p io E le tr ô n ic o ............................................................................. 147
O F ilh o d o H o m e m ........................................................................... 1-51
O s D íz im o s d a C r e o d ic é ............................................................... 3 5 5
O B o rd ã o d o s E x t e n u a d o s ........................................................... 1 5 9
1&;
FALANDO FRANCAMENTE
Como disse o autor, os escritores convencionais costumam
partir do nada, percorrer o vácuo e chegar a lugar nenhum. Em
seus livros, a form a proscreve a substância. Fogem das idéias
como o diabo da cruz e dão como certo o que deveriam com pro­
var. Cortejando os leitores, reverenciam os costumes, os precon­
ceitos e as normas de cultura.
Este livro, porém, é um repertório de idéias explanadas com
franqueza e precisão dialética. Girando em torno dos princípios
de causalidade e identidade, a Filosofia não se submete às con­
venções sociais, nem aos preconceitos. A ela interessa apenas o
ser e não a sua roupagem. Para ela, o que não está no ser não
está no mundo.
“Falando Francam ente” é um manancial de teses que m ere­
cem reflexão e debate. Todos lucrarão com sua leitura, mesmo
que discordem das idéias, porque conhecerão melhor o que de­
saprovam. Poderão, assim, corrigir ou reforçar suas convicções,
mediante a avaliação de teses antagônicas. A verdade emanará
dessa acareação ou litígio.
Embora contestáveis - com sofismas morais ou teológicos -
os argum entos são convincentes. Aos leitores, porém, compro­
metidos com idéias opostas, melhor seria evitar contestação, por­
que, como o autor admitiu, a ignorância é o portal da felicidade.
Sem ilusões, a vida seria insuportável. A sabedoria é fonte de
tristeza e desalento.
Conhecendo o autor, sei que ele não tem recalques. Além de
ser um advogado de renome, não se julga preterido em coisa
alguma. Sobre as ambições, aliás, advertiu em obra anterior
que “melhor do que ter é não querer”. Como livre pensador, ele
apenas sentiu a necessidade de dizer que os mitos e as conven­
ções sociais não o empulharam.

Marco Antônio Gomes

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