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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB

Reitor: Lourisvaldo Valentim da Silva; Vice-Reitora: Amélia Tereza Santa Rosa Maraux
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I
Diretora: Ângela Maria Camargo Rodrigues; Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC
– Coordenadora: Nadia Hage Fialho
COMISSÃO DE EDITORAÇÃO
Editora Geral: Yara Dulce Bandeira de Ataide
Editor Executivo: Jacques Jules Sonneville
Editora Administrativa: Jumara Novaes Sotto Maior
GRUPO GESTOR: Ângela Maria Camargo Rodrigues, Jaci Maria Ferraz de Menezes, Jacques Jules Sonneville,
Jumara Novaes Sotto Maior, Luciene Maria da Silva, Marcos Luciano Messeder, Nadia Hage Fialho, Renata
Monteiro, Verbena Maria Rocha Cordeiro, Yara Dulce Bandeira de Ataíde.

CONSELHO EDITORIAL
Conselheiros nacionais Naddija Nunes
Adélia Luiza Portela Universidade do Estado da Bahia
Universidade Federal da Bahia Nadia Hage Fialho
Cipriano Carlos Luckesi Universidade do Estado da Bahia
Universidade Federal da Bahia Paulo Batista Machado
Edivaldo Machado Boaventura Universidade do Estado da Bahia
Universidade Federal da Bahia Raquel Salek Fiad
Ivete Alves do Sacramento Universidade de Campinas
Universidade do Estado da Bahia Robert Evan Verhine
Jaci Maria Ferraz de Menezes Universidade Federal da Bahia
Universidade do Estado da Bahia Walter Esteves Garcia
Jacques Jules Sonneville Associação Brasileira de Tecnologia Educacional / Insti-
Universidade do Estado da Bahia tuto Paulo Freire
João Wanderley Geraldi Yara Dulce Bandeira de Ataíde
Universidade de Campinas Universidade do Estado da Bahia
Jonas de Araújo Romualdo Conselheiros internacionais
Universidade de Campinas Antônio Gomes Ferreira
José Crisóstomo de Souza Universidade de Coimbra, Portugal
Universidade Federal da Bahia Edmundo Anibal Heredia
Kátia Siqueira de Freitas Universidade Nacional de Córdoba, Argentina
Universidade Federal da Bahia Ellen Bigler
Marcos Silva Palácios Rhode Island College, USA
Universidade Federal da Bahia Luís Reis Torgal
Maria José Palmeira Universidade de Coimbra, Portugal
Universidade do Estado da Bahia e Universidade Marcel Lavallée
Católica de Salvador Université du Québec à Montréal, Canada
Maria Luiza Marcílio
Mercedes Vilanova
Universidade de São Paulo
Universidade de Barcelona, España

Equipe coordenadora e pareceristas ad hoc (n.24): Denise Laranjeira (UEFS), Elizabete Santana (UNEB), Jaci
Maria Ferraz de Menezes (UNEB), Jumara Novaes (UNEB), Maria Alba Guedes M. Mello (UNEB), Silvia M. Leite
de Almeida (UNEB).
Revisão: Vera Brito; Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes; Tradução/revisão: Josane D. Freitas Pinto, Eric Maheu
e Kátia Mota; Capa/editoração: Linivaldo Cardoso Greenhalgh; Secretaria: Maria Fernanda Vieira Rosa

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - EDUNEB


Diretora: Naddija Nunes
Museu de Ciência e Tecnologia - Pró-Reitoria de Extensão - PROEX
Avenida Jorge Amado, s/nº - Boca do Rio - 41.710-050 Salvador-BA
www.uneb.br / editora@listas.uneb.br - telefax (71) 3371.00148 – ramal 204
ISSN 0104-7043

Revista da FAEEBA

Educação
e Contemporaneidade

Departamento de Educação - Campus I

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, jul./dez., 2005

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB


Revista da FAEEBA – EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE
Revista do Departamento de Educação – Campus I
(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)
Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultural. Os pontos
de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.
ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta, assinaturas, etc.
deve ser dirigida à:
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
Departamento de Educação I - NUPE
Rua Silveira Martins, 2555 - Cabula
41150-000 SALVADOR - BAHIA
Tel. (071)3117.2316

Instruções para os colaboradores: vide últimas páginas.


E-mail da Revista da FAEEBA: refaeeba.dedc1@uneb.br
E-mail para o envio dos artigos: jacqson@uol.com.br
Site da Revista da FAEEBA: http://www.revistadafaeeba.uneb.br
Indexada em / Indexed in:
– REDUC/FCC – Fundação Carlos Chagas – www.fcc.gov.br - Biblioteca Ana Maria Poppovic
– BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília/INEP)
– Centro de Informação Documental em Educação – CIBEC/INEP - Biblioteca de Educação
– EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online – Faculdade de Educação – Biblioteca UNICAMP
– Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação – Universidade
de São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação.
www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html
– CLASE – Base de Dados Bibliográficos en Ciencias Sociales y Humanidades da Hemeroteca Latinoamericana –
Universidade Nacional Autônoma do México:
E-mails: hela@dgb.unam.mx e rluna@selene.cichcu.unam.mx / Site: http://www.dgbiblio.unam.mx
– INIST - Institut de l’Information Scientifique et Technique / CNRS - Centre Nacional de la Recherche
Scientifique de Nancy/France - Francis 27.562. Site: http://www.inist.fr
Pede-se permuta / We ask for exchange.

Revista da FAEEBA: Educação e contemporaneidade / Universidade do


Estado da Bahia, Departamento de Educação I – v. 1, n. 1 (jan./jun.,
1992) - Salvador: UNEB, 1992-
Periodicidade semestral
ISSN 0104-7043
1. Educação. I. Universidade do Estado da Bahia. II. Título.
CDD: 370.5
CDU: 37(05)

Tiragem: 1.000 exemplares


SUMÁRIO

9 Editorial
10 Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA – Educação e
Contemporaneidade
13 Educação, história e memória: apresentação
Jaci Menezes

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

21 Memória, documento e arquivo: apontamentos para uma história das instituições educativas
Silvia Maria Leite de Almeida
31 As leituras da própria vida e a escrita de experiências de formação
Denice Barbara Catani
41 Movimentos e temas dominantes nos processos de autoformação de A. S. Neill
Elizabete Santana
57 O magistério secundário como profissão: o associativismo docente e a expansão do sistema
educacional brasileiro entre os anos 1940 e 1960
Paula Perin Vicentini; Rosario S. Genta Lugli
75 A escola da Ordem e do Progresso (Brasil: 1889-1930)
Maria Inês Sucupira Stamatto
87 De Escola Normal de Natal a Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908–1965):
uma referência na formação docente no Rio Grande do Norte - um lugar generificado
Luciene Chaves de Aquino
103 Maria Luiza Marcílio: História da escola em São Paulo e no Brasil - um clássico na literatura
sobre educação
Jacques Jules Sonneville
113 A educação e a ascensão da burguesia na Bahia
Alfredo Eurico Rodríguez Matta
125 Isaías Alves de Almeida e a educação na Bahia
Maria Alba Guedes Machado Mello
141 Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia
Célia Rosângela Dantas Dórea
155 Origem e formação do sistema estadual de educação superior da Bahia – 1968-1991
Edivaldo M. Boaventura
175 Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior
(1940-1970)
Tânia Mara Pereira Vasconcelos

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 1-278, jul./dez., 2005
193 A história do negro na educação: entre fatos, ações e desafios
Ana Rita Santiago da Silva; Rosângela Souza da Silva
205 Considerações sobre a história da educação especial no Brasil: movimentos e documentos
Thaís Cristina Rodrigues Tezani
217 A mediação didática na história das pedagogias brasileiras
Cristina d’Ávila

ESTUDOS

241 Da diferença e da igualdade


Carlos Roberto Jamil Cury
257 A pesquisa em educação no Brasil: oscilações no tempo
Bernardete A. Gatti

RESENHAS

267 ALVES, Lynn Rosalina G. Game Over: jogos eletrônicos e violência. São Paulo: Futura,
2005. 255 p.
Camila Santana; Janaína Rosado
270 GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro,
RJ: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. 432 p.
Isabele Pires Santos
272 COLE, Michael & COLE, Sheyla. O desenvolvimento da criança e do adolescente.
4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004. 800 p.
Ricardo Ottoni Vaz Japiassu
275 OROFINO, Maria Isabel. Mídia e educação: contribuição dos estudos da mídia e
comunicação para uma pedagogia dos meios na escola. In: FLEURI, Reinaldo Matias
(org.). Educação intercultural: mediações necessárias. Rio de Janeiro, RJ: DP&A, 2003.
p.109-124.
Leonardo de Oliveira Palmeira

277 Instruções aos colaboradores

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 1-278, jul./dez., 2005
CONTENTS
11 Editorial
12 Themes and Time Limit to Submit Manuscript for the Next Volumes of Revista da FAEEBA
– Education and Contemporaneity
13 Introduction
Jaci Menezes

HISTORY OF EDUCATION

21 Memories, Documents and Archives: notes for a history of educational institutions


Silvia Maria Leite de Almeida
31 The self-readings of life and the writing of formation experiences
Denice Barbara Catani
41 Movements and dominant themes in A.S. Neill’s self-development processes
Elizabete Santana
57 Secondary Teaching as a profession: teachers’ associations and the growing of the
Brazilian School System between 1940 and 1960
Paula Perin Vicentini; Rosario S. Genta Lugli
75 The school of Order and Progress (Brazil, 1889-1930)
Maria Inês Sucupira Stamatto
67 From Normal School of Natal to President Kennedy Education Institute (1908-1965):
a reference in professors professional education in the State of Rio Grande do Norte
(Brazil) - a gendered place
Luciene Chaves de Aquino
103 Maria Luiza Marcílio: School History in Sao Paolo and in Brazil - a classic in education
literature
Jacques Jules Sonneville
113 Education and the rising of the bourgeoisie in Bahia
Alfredo Eurico Rodríguez Matta
125 Isaías Alves de Almeida and the Education in Bahia
Maria Alba Guedes Machado Mello
141 Playground School in Rio de Janeiro, DF (1931-1935): genesis of Bahia Park School
Célia Rosângela Dantas Dórea
155 Origin and Formation of the Bahia State Higher Education System - 1968-1991
Edivaldo M. Boaventura
175 From Punishment to Reward: conceptions of childhood and education in an Inland
Brazilian Community (1940-1970)
Tânia Mara Pereira Vasconcelos

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 1-278, jul./dez., 2005
193 Black People’s History in Education: among facts, actions, and challenge
Ana Rita Santiago da Silva; Rosângela Souza da Silva
205 Considerations on the history of Special Education in Brazil: actions and documents
Thaís Cristina Rodrigues Tezani
217 Didactic Mediation in the History of Brazilian Pedagogies
Cristina d’Ávila

STUDIES

241 On Difference, on Equality


Carlos Roberto Jamil Cury
257 Educational Research in Brazil: flow along the time
Bernardete A. Gatti

BOOK REVIEWS

267 ALVES, Lynn Rosalina G. Game Over: Electronic Games and Violence. São Paulo:
Futura, 2005. 255 p.
Camila Santana; Janaína Rosado
270 GILROY, Paul. The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness. Rio de Janeiro,
RJ: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. 432 p.
Isabele Pires Santos
272 COLE, Michael & COLE, Sheyla. The Development of Children and Adolescents.
4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004. 800 p.
Ricardo Ottoni Vaz Japiassu
275 OROFINO, Maria Isabel. Mass Media and Education: the Contribution of Mass Media and
Communication Studies for Pedagogy of Mass Media at School. In: FLEURI, Reinaldo
Matias (org.). Intercultural Education: Necessaries Mediations. Rio de Janeiro, RJ: DP&A,
2003. p.109-124.
Leonardo de Oliveira Palmeira

277 Instructions for collaborators

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 1-278, jul./dez., 2005
Jaci Menezes

EDITORIAL

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO é o tema do número 24 da Revista da FAE-


EBA – Educação e Contemporaneidade, sob a coordenação da equipe de ME-
MÓRIA DA EDUCAÇÃO, da linha de pesquisa 1 do Mestrado PEC/UNEB,
consolidando a integração entre a graduação e o mestrado do Departamento de
Educação – Campus I, iniciada com o n. 18 em 2002 e, desde então, continuada
e intensificada, permitindo a ambos tornarem-se mais fortes, a fim de reafirma-
rem – institucional e cientificamente – a busca constante do conhecimento.
A integração entre graduação e pós-graduação é evidenciada pelos grupos
de estudo formados por alunos de ambos os setores, sob a coordenação de
diversos professores do mestrado, formando um elo fecundo de produção de
conhecimentos no Departamento de Educação I, significativo para sua valori-
zação e seu reconhecimento. Este número é, pois, mais uma realização mar-
cante desta rica e permanente interação entre Revista, Departamento e
Mestrado em Educação e Contemporaneidade.
Para o presente tema, recebemos um número muito grande de contribui-
ções, obrigando a equipe coordenadora deste número da Revista da FAEEBA
a fazer uma seleção de alguns textos mais significativos para a História da
Educação, tanto no plano nacional quanto para o Estado da Bahia, deixando os
outros artigos, igualmente ricos em conhecimentos sobre o tema, para uma
Coletânea a ser produzida e publicada pelo próprio mestrado.
Assim, a Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, cada vez
mais reconhecida e valorizada, tornou-se um dos periódicos de maior alcance
na socialização da produção de conhecimentos do mestrado e de todo o De-
partamento de Educação I, envolvendo seus professores e alunos, junto com
os pesquisadores de outras instituições do estado e do país.

Os Editores: Jacques Jules Sonneville


Jumara Novaes Sotto Maior
Yara Dulce Bandeira de Ataide

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 2005 9
Educação, história e memória: apresentação

Temas e prazos dos próximos números


da Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Nº Tema Prazo de entrega Lançamento


dos artigos previsto
25 Educação, Arte e Ludicidade 28.02.06 junho de 2006
26 Educação e Trabalho 30.05.06 setembro de 2006
27 Educação Especial 30.09.06 março de 2007

10 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 2005
Jaci Menezes

EDITORIAL

HISTORY OF EDUCATION is the theme of the number 24 of Revista da


FAEEBA – Education and Contemporaneity, under the coordination of the
group MEMORY OF EDUCATION, first line of research of the Master’s
PEC/UNEB, consolidating that integration between the graduation and master’s
of Department of Education – Campus I, that began with n. 18 in 2002 and
since then, it was continued and intensified, allowing both to be stronger, in
order to reaffirm, institutionally and scientifically, the continued search for kno-
wledge.
The integration between graduation and post-graduation is emphasized by
groups of students of both sectors, under the coordination of several profes-
sors of Master’s, forming a fertile link of knowledge production in Department
of Education I, meaningful to its valuation and recognition. This number is an
important accomplishment of this rich and permanent integration among Peri-
odical, Department and Master’s in Education and Contemporaneity.
For this current theme, we received a high number of contributions and the
coordination of this number of Periodical of FAEEBA was obliged to make a
selection of the most meaningful texts to the History of Education, considering
the sate of Bahia and Brazil, leaving the other articles, also rich in knowledge
about the theme to the collection that will be produced and published by the
Master’s.
The periodical of FAEEBA - Education and Contemporaneity is more and
more recognized and became one of the periodicals of large power in the
socialization of knowledge production of Master’s and all Department of Edu-
cation I, involving all professors, students, together with researchers of other
institutions in Bahia and Brazil.

Editors: Jacques Jules Sonneville


Jumara Novaes Sotto Maior
Yara Dulce Bandeira de Ataide

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 2005 11
Educação, história e memória: apresentação

Themes and time limit to submit manuscript


for the next volumes of Revista da FAEEBA
Education and Contemporaneity

Nº Theme Time limit Launch


25 Education, Art and Playing 28.02.06 June of 2006
26 Education and Work 05.30.06 September of 2006
27 Special Education 09.30.06 March of 2007

12 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 2005
Jaci Menezes

EDUCAÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA:


APRESENTAÇÃO

Jaci Menezes*

É com prazer que apresentamos ao Público da Revista da FAEEBA –


Educação e Contemporaneidade o número 24, sobre História da Educação.
Estávamos – eu e os companheiros do Projeto Memória da Educação na Bahia
– debruçados sobre a organização de um livro que apresentará os resultados
dos nossos trabalhos de pesquisa quando recebemos o convite do prof. Dr.
Jacques Jules Sonneville, da equipe da Revista, para participar da organização
desta edição. Aceitamos o convite como mais um desafio que se somava ao
esforço que já estava em desenvolvimento. Assim, ampliado o convite a todo
o grupo do Projeto Memória – bem como ao público da Revista – chegamos a
este resultado que ora entregamos para sua leitura.1
Há aproximadamente vinte e cinco anos, estamos dedicados, no Projeto
Memória da Educação na Bahia, ao entendimento dos processos educativos
que se desenvolveram na Bahia, ao longo de sua História (em especial, na
República, seja através das instituições escolares, seja através de outras for-
mas educativas). Em fins de 1979, um pequeno grupo de educadores deu
início ao Grupo de Pesquisa sobre Educação na Fundação Centro de Planeja-
mento e Estudos – CPE, do Governo do Estado da Bahia. Elaborado um diag-
nóstico prévio, foram montados projetos de pesquisa a serem desenvolvidos
diretamente pelo grupo, e outros financiados ou executados em parceria com
outras instituições.2 Um dos projetos era o Memória da Educação na Bahia.
Em 1983, o grupo foi extinto; muitos passaram à Secretaria de Educação,
onde nos juntamos todos no curto período do “Governo da Mudança” (1987 a
1990), naquele momento já com o apoio do Instituto Anísio Teixeira. Em 1997,
na Universidade do Estado da Bahia, retornamos às atividades de pesquisa
sobre Educação na Bahia, assumindo o Projeto Memória da Educação a for-
ma de um projeto integrado de pesquisa, com outros colegas de várias regiões
do Estado.
Ao longo dos anos, foi possível identificar pelo menos dois movimentos: a
tensão tradição x inovação – em que a primeira levava a melhor, fazendo

* Doutora em Ciências da Educação pela Universidade Católica de Córdoba, Argentina. Professora de Politica e
História da Educação da UNEB. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus
I, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA. E-
mail: jacimnz@hotmail.com
1
Atuaram na organização deste número: Denise Helena P. Laranjeira (UEFS), Elizabete Santana (UNEB), Jaci Maria Ferraz de
Menezes (UNEB), Jumara Novaes (UNEB), Maria Alba Guedes Machado Mello (UNEB) e Silvia Maria Leite de Almeida (UNEB).
2
Éramos Jaci Menezes, Maria Alba Mello, Ivana Rizvi, Maria José Pereira, Maria Ângela Senna Gomes Teixeira, Lícia Ma.
da Rocha Barreto e Regina Martins da Matta, e a nós se agregou a professora Elizabete Conceição Santana, recém retornada
da SEPLAN do MEC. O grupo teve como consultora a profa. Dilza Atta, e o suporte da área de documentação e informação,
coordenado por Nelcy Mendonça, Gerente de Biblioteca e Documentação da SEPLANTEC. No IAT, o apoio de Maria José
Palmeira.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 2005 13
Educação, história e memória: apresentação

retornar ao tradicional e, mais especificamente, a modelos antidemocráticos


de vida e escola, sempre que uma ruptura institucional retirava de cena os
“progressistas”; e a tensão centralização x descentralização, alternando-se
processos de administração e de tomada de decisão centrados na máquina
administrativa ou na escola; no pólo técnico ou no pólo colegiado; na adminis-
tração estadual ou no município – este, até 1997, sem recursos para dar conta
de tarefas perversamente transferidas.
Aparecem os interesses em luta do público e do privado; não apenas
como antagonistas, mas, muitas vezes, como apropriação da coisa pública e
sua colocação a serviço de poucos. Fica clara a contradição entre o esmaeci-
mento de um sistema público estadual de educação, e, ao mesmo tempo, uma
cada vez maior afirmação dos requerimentos educacionais para papéis na so-
ciedade brasileira – não apenas ligados à estrutura de trabalho, mas à própria
formação de dirigentes vindos das classes populares, subalternizadas. Assume
o sistema educativo baiano a clara função de reprodução dos quadros dos
partidos no poder, seja pela ocupação de cargos de direção, através de vincu-
lação político-partidária, seja pela limitação do acesso aos diversos níveis de
ensino para os moradores dos bairros da periferia urbana, das pequenas cida-
des, da zona rural, para os pobres e os negros.
Identificamos, no período entre 1920 a 1980, a presença marcante de duas
propostas político-institucionais para a educação na Bahia: Anísio Teixeira, de
1925 a 1928 e entre 1947 e 1950; e Isaías Alves de Almeida, no Estado Novo.
No período final dos anos 60, a proposta de Luiz Navarro de Britto, antes do
AI 5, mas sob a influência de experiências de inovação e sob a pressão do
crescente movimento estudantil e do movimento dos professores. Os anos
1970-80 estão marcados não mais pela ação dos líderes e dos movimentos
políticos, então punidos e sufocados; mas pela ação da máquina técnico-admi-
nistrativa e por uma ação cada vez mais forte no sentido da municipalização –
o que vai se completar, recentemente, com a quase completa pulverização do
sistema educacional baiano.
O estudo das experiências educativas vindas dos movimentos populares, na
busca e pressão por mais e melhor escola em todos os níveis – desde a escola
infantil até a universidade – certamente nos vai permitir conhecer melhor o
que acontece na Bahia em termos de Educação. Todo um programa de pes-
quisa precisa ser redesenhado para ampliar este nosso pequeno conhecimento,
em especial voltado para o cotidiano da escola, para entender as relações que
lá se estabelecem e as conseqüências em termos de inclusão/exclusão dos
baianos à cidadania e ao papel de protagonistas. Estamos tentando, no Progra-
ma Pesquisa e Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade como um
todo, dar conta desta necessidade de saber mais sobre este assunto.
Os textos selecionados para este número 24 nos vão dar elementos para
conhecer e entender melhor este desenrolar contraditório da educação na Bahia,
e comparar e estabelecer as relações entre o que aqui aconteceu e o que
aconteceu em outros estados do Brasil. Contamos com Estudos que devem
nos ajudar a balizar a discussão sobre Igualdade e Diferença, eqüidade, cida-
dania, como o texto de Carlos Roberto Jamil Cury; e textos que nos permitirão
conhecer um pouco a trajetória da própria Pesquisa em Educação, como o
texto de Bernadete Gatti. Outros vêm ao encontro da discussão da relação

14 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 2005
Jaci Menezes

entre Memória e História Documental, o uso da Memória no processo de des-


coberta e da auto-descoberta ou na formação de professores como auto-for-
mação, iniciando a seção dos textos que se debruçam especificamente sobre a
História da Educação na Bahia e no Brasil.
O artigo sobre Memória, documento e arquivo: apontamentos para
uma história das instituições educativas, de Silvia Maria Leite de Almeida,
versa sobre duas formas de memória coletiva: o documento e o arquivo. Refor-
ça o entendimento da noção de documento e arquivo como expressões de uma
memória, sobretudo de uma memória coletiva e a sua relação com a História,
situando alguns conceitos chave para o pesquisador que se debruça na análise
documental. Procura contribuir para o entendimento de uma forma de memó-
ria, a memória escrita, e da memória enquanto registro iconográfico, priorizan-
do os documentos e os arquivos como “guardiães” dos mesmos. Propõe uma
relação entre esse tipo de memória – o documento, o arquivo, a memória cole-
tiva - e a constituição da história das instituições educativas.
Já os textos da professora Denice Catani e Elizabete Santana trabalham
a memória como repensar, reescrever a própria história de vida – e como
instrumento auxiliar no estudo das trajetórias de formação de professores. Em
As leituras da própria vida e a escrita de experiências de formação, De-
nice Barbara Catani investiga formas de apropriação das experiências de for-
mação, que são descritas em obras autobiográficas publicadas no Brasil, entre
o final do século XIX e a década de 1970. Parte do reconhecimento de que a
escrita das obras autobiográficas, ao testemunhar as relações pessoais com a
escola, pode ser útil como fonte para a elaboração da história da educação.
Elizabete Conceição Santana nos brinda com um texto sobre o processo de
autoformação de um educador inglês, A.S. Neil, autor de experiência peda-
gógica de grande impacto, a escola Summerhill, signo de uma ação voltada
para a reafirmação de valores muito caros à década de 60 – a liberdade para
aprender, o respeito para com aquele que aprende, a responsabilidade e o com-
promisso coletivo e a possibilidade de criar, de inovar. Nessa década se conso-
lidam experiências que vinham se anunciando/ realizando desde há muito tempo
pelo combate ao tradicionalismo, aos currículos excessivamente rígidos, ao au-
toritarismo. Aqui, se faz a reafirmação da liberdade. Não foi à toa que a déca-
da culminou com o Maio de 1968.
Embora trabalhando com a profissão docente, em O magistério secundá-
rio como profissão, Paula Vicentini e Rosário Lugli caminham em outra dire-
ção e com outros métodos. O texto analisa as representações sobre a profissão
constituídas pelos professores secundários de São Paulo, privilegiando a histó-
ria da APESNOESP, desde 1945 até 1960, quando este segmento da categoria
definia um perfil de formação e de atuação, procurando afirmar-se no interior
do movimento docente. Analisam as lutas que definiram a identidade profissio-
nal no interior do campo educacional e buscaram dar visibilidade às especifici-
dades do exercício da docência no nível de ensino médio, para melhorar o seu
estatuto profissional no âmbito do serviço público.
Outro grupo de textos apresenta a expansão da escola na República e seu
ideário civilizatório. Em A escola da Ordem e do Progresso, Maria Inês Sucu-
pira Stamatto apresenta características da escola primária no primeiro período
republicano no Brasil, através da análise iconográfica de Grupo Escolar funda-

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 23, p. 15-25, jan./jun., 2005 15
Educação, história e memória: apresentação

do em 1927, em Vila das Flores, no Rio Grande do Norte. Relaciona o prédio


escolar ao ideário de modernização das elites locais que controlavam a admi-
nistração pública nesse momento. Reflete sobre o mito da escola republicana e
sobre a exclusão da maioria da população da escolarização, contrariando o
discurso acerca da necessidade da educação como formadora do cidadão re-
publicano.
Analisando a Escola Normal de Natal e sua transformação no Institu-
to de Educação Presidente Kennedy (1908-1965), Luciene Chaves de Aqui-
no aponta os avanços, conquistas e mudanças nas relações de gênero implicadas
numa instituição constituída de e para moças. São acentuados momentos signi-
ficativos da educação norte-rio-grandense, no que se refere à formação do
professor. Reflete sobre os efeitos das relações entre os homens e as mulhe-
res nas relações sociais que constituíam a Escola Normal de Natal.
No texto Maria Luiza Marcílio: História da escola em São Paulo e
no Brasil - um clássico na literatura sobre educação, Jacques Jules Sonne-
ville apresenta um resumo do livro de Maria Luiza Marcílio onde são destaca-
dos os achados mais importantes para o entendimento da evolução escolar
paulistana, com sua repercussão para a realidade nacional. O livro é dividido
em três partes: 1) Origens: 1554-1870; 2) O “século” da escola: 1870-1990; 3)
Educação para todos: 1990-2000. Considera o livro um roteiro para entender a
luta por uma educação de qualidade para todos os brasileiros.
Outro grupo de textos estuda a Bahia. Alfredo Eurico Rodríguez Matta,
em A educação e a ascensão da burguesia na Bahia analisa o processo de
emergência da educação formal na sociedade baiana e sua estreita relação
com o desenvolvimento do mercado nos últimos séculos, mostrando como a
contradição social e suas superações históricas participam e influenciam, in-
fluenciadas pelas transformações na educação e pela dinâmica das classes
sociais.
Maria Alba Machado Mello, em Isaías Alves de Almeida e a Educa-
ção na Bahia, apresenta o pensamento e a proposta pedagógica de Isaías
Alves de Almeida, Secretário da Educação na Bahia -1938/1942. Realizou
reformas na estrutura do ensino que perduraram até a década de 1960. No
Estado Novo, contribuiu para a consolidação da Educação como mecanismo
de legitimação do Estado, articulando o ideário cristão à nova ordem ditatorial.
Em Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gê-
nese da Escola Parque da Bahia, Célia Rosângela Dantas Dórea estuda o
modelo Escola Playground, construído no Rio de Janeiro-DF, nos anos 1930,
como embrião do modelo Escola Parque, construído em Salvador por Anísio
Teixeira, secretário de Educação e Saúde da Bahia. Apesar de surgir como
proposta circunstancial, que visava a conciliar dificuldades técnicas e econô-
micas, esse tipo de escola se firmaria como a solução ideal para o problema da
educação integral e serviria de base para a concepção de novos modelos de
escola a partir de então.
O prof. Edivaldo Boaventura, no texto Origem e formação do Sistema
Estadual de Educação Superior da Bahia – 1968-1991, estuda o processo
de implantação e crescimento das universidades estaduais na Bahia, como
elemento dinâmico de expansão do ensino superior público no estado. Objeti-
vando a interiorização da educação superior, o estado da Bahia instituiu quatro

16 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 2005
Jaci Menezes

universidades que possibilitaram a autonomia da educação superior baiana, na


sua função de formadoras de profissionais para o ensino e qualificação de
recursos humanos para outros setores produtivos, cooperando para o desen-
volvimento sócio-econômico e cultural das regiões interioranas onde estão in-
seridas.
Em Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa
comunidade do interior, Tânia Mara Pereira Vasconcelos se propõe a discu-
tir concepções de infância e educação em uma comunidade do interior da
Bahia (1940-1960). Faz um histórico da relação entre as visões da criança e a
educação e analisa discursos e práticas que refletem estas visões a partir da
análise histórica da educação formal em Serrolândia. As escolas têm em co-
mum o objetivo de moldar a criança; variam, no entanto, as formas utilizadas
para este fim: a repressão, através do uso dos castigos físicos, a religião ou a
disciplina moderna.
O texto de Ana Rita Santiago da Silva e Rosângela Souza da Silva, A
história do negro na educação: entre fatos, ações e desafios, resulta de
pesquisas no Mestrado em Educação e Contemporaneidade, da UNEB, e dis-
cute as desigualdades educacionais, vividas pelos afro-descendentes, como
conseqüência do projeto de educação gerado no processo de abolição da es-
cravatura bem como iniciativas educativas organizadas pelo povo negro brasi-
leiro e as implicações das questões étnico-raciais e sociais no desenvolvimento
de ações para se contrapor às desigualdades educacionais existentes atual-
mente.
Considerações sobre a história da educação especial no Brasil:
movimentos e documentos, de Thaís Cristina Rodrigues Tezani, apresenta a
história e os paradigmas do atendimento às pessoas com necessidades especi-
ais. É feita uma revisão dos movimentos e documentos internacionais e nacio-
nais que influenciaram o movimento inclusivo no Brasil e os diversos paradigmas
a que esteve subordinada a educação especial, destacando o Paradigma da
Inclusão, que pressupõe o atendimento educacional especializado na rede re-
gular de ensino para alunos com necessidades educacionais especiais, com as
devidas adaptações necessárias.
Por fim, em A mediação didática na história das pedagogias brasi-
leiras, Cristina d’Ávila discute a mediação didática no seio das pedagogias
que compuseram o cenário educacional brasileiro desde a chegada da Compa-
nhia de Jesus no séc. XVI até hoje. Analisa as características da pedagogia
jesuítica, da pedagogia nova, tecnicista, freireana, histórico-crítica e construti-
vista, enfatizando em cada tendência pedagógica o tipo de mediação mais
marcante, seja através do mestre (como na pedagogia jesuítica), dos meios
(como na tecnopedagogia), ou outros. A compreensão dessas tendências se
dá par e passo à análise do quadro didático-pedagógico que se descortina
atualmente no contexto escolar. Conclui pela possibilidade de construção de
uma síntese superadora, numa prática pedagógica mais criativa, prazerosa e
construtiva, garantindo o conteúdo sistematizado e a autoria docente.
Estes, os textos. Esperamos que a leitura deles resulte em prazer e
aprendizado para todos.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 2005 17
HISTÓRIA
DA EDUCAÇÃO
Silvia Maria Leite de Almeida

MEMÓRIA, DOCUMENTO E ARQUIVO:


apontamentos para uma história
das instituições educativas

Silvia Maria Leite de Almeida*

RESUMO

Este trabalho versa sobre duas formas de memória coletiva: o documento e o


arquivo. A escolha deveu-se pela necessidade da elaboração de pesquisa de
caráter documental. Faz-se necessário o entendimento da noção de documento
e arquivo como expressões de uma memória, sobretudo de uma memória coletiva
e a sua relação com a História. O trabalho não tem a pretensão de esgotar o
tema proposto, considerando que o mesmo possui uma densidade e
complexidade que não foi explorada. Busca situar alguns conceitos chave para
o pesquisador que se debruça na análise documental. Procura contribuir para o
entendimento de uma forma de memória, a memória escrita, a memória enquanto
registro iconográfico. E, neste caso, serão priorizados os documentos e os
arquivos como “guardiões” dos mesmos. Ainda é feita uma tentativa de relação
com a possibilidade metodológica da constituição da história das instituições
educativas, enquanto forma que utiliza e se apóia com esse tipo de memória –
o documento, o arquivo, a memória coletiva. À guisa de conclusão, foram
abordados os desafios trazidos com os novos meios de arquivamento e
conservação dos documentos a partir da década de 60.
Palavras-chave: Memória e Educação – História das Instituições Educativas
– História da Educação

ABSTRACT

MEMORIES, DOCUMENTS AND ARCHIVES: notes for a history of


educational institutions
This study encompasses two types of collective memory: document and archive.
Such a procedure was adopted upon the need of developing document-based
research. For this purpose, it is of great importance to have a clear understanding
of the notion of document and archive as expressions of a collective memory,
especially in relation to History. Considering that the work brings a density and
complexity which have not yet been explored, the study does not aim to exhaust
the proposed theme. It intends to make key concepts clear to the researcher
who works with documental analysis. It aims at contributing to the understanding

* Doutora em Educação pela UFRGS. Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia / Departamento de
Educação do Campus XIII – Itaberaba/BA. Endereço para correspondência: Departamento de Educação, Campus
XIII. Rua Orman Ribeiro, s/n., Barro Vermelho – 46880-000 Itaberaba/BA. E-mail: sileite@terra.com.br

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 21-30, jul./dez., 2005 21
Memória, documento e arquivo: apontamentos para uma história das instituições educativas

of a specific type of memory, the written memory, the memory as an iconographic


register. In this case, priority will be given to the documents and the archives
as “guardians” of themselves. The work has also made an attempt to establish
a relationship with the methodological possibility of the historical constitution of
educational institutions as a form which uses and supports itself in such a kind
of memory – the document, the archive, the collective memory. In the conclusion
the study discussed the challenges
Keywords: Memory and Education – History of educational institutions –
History of Education

Este trabalho versa sobre duas formas de Meneses, em artigo publicado em 1992, pro-
memória coletiva: o documento e o arquivo. cura fazer um mapeamento do tema memória,
Essa escolha, proposital, deve-se primordi- no sentido de “superar os limites da conceitua-
almente pela necessidade da elaboração de ção corrente de memória e suas funções”
pesquisa de caráter documental. Para tanto, faz- (p.10). Lembra o autor que, muitas vezes, a
se necessário o entendimento da noção de do- memória é automaticamente relacionada aos
cumento e de arquivo como expressões de uma mecanismos de registro e retenção, como de-
memória, sobretudo de uma memória coletiva pósito de informações, conhecimento e experi-
e a sua relação com a História, pois, no enten- ências. No entanto, acresce a esta conceitua-
dimento de Le Goff (1996) os documentos e ção, normal para muitos, outros elementos que
também os monumentos1 são aplicações ma- ampliam a noção simplória de memória. Mene-
teriais da memória coletiva e da sua forma ci- ses ressalta que a elaboração da memória é
entífica – a história. dada no presente para atender às demandas
Esse ensaio não tem a pretensão de esgotar deste presente e que esta presentificação pode
o tema proposto, considerando que o mesmo alterar radicalmente o valor de um dado passa-
possui uma densidade e complexidade, que não do. Afirma, ainda, que a memória é um “siste-
foi explorada. Busco situar alguns conceitos cha- ma de esquecimento programado” (p.16), na
ve para o pesquisador que se debruça na análise medida em que possui mecanismos de seleção
documental. Procuro, de maneira simples, con- e descarte. Em outras palavras, a memória tam-
tribuir para o entendimento de uma forma de bém é esquecimento.
memória, a memória escrita, a memória enquan- Complementando essa idéia, Santos (1993)
to registro iconográfico. E, neste caso, prioriza- afirma que, muitas vezes, a memória é tida como
rei os documentos e os arquivos como “guardi- a capacidade de lembrar o passado e que uma
ões” dos mesmos, por acreditar que tais temas simples definição pode ter diversos significados
são importantes para esta abordagem. e estes podem ser denominados por diversos ter-
Ainda, tento fazer uma relação com a pos- mos. Assim, a memória pode ser entendida como
sibilidade metodológica da constituição da his- diversas capacidades, desde o decorar algo ou
tória das instituições educativas enquanto forma fazer algo, como também a recordar fatos vi-
que utiliza e se apóia com esse tipo de memória venciados no passado e/ou aprender através de-
– o documento, o arquivo, a memória coletiva. les. Segundo ela, estes são denominados aspectos
sócio-culturais da memória.

1. Memória e Documento
1
Defino o conceito de monumento, conforme Le Goff
Nesta seção abordarei o conceito de me- (1996, p. 535), como sendo “... tudo aquilo que pode evo-
car o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos
mória, memória coletiva e documento, bem escritos ...” ainda pode ser uma obra comemorativa de ar-
como as relações entre esses. quitetura ou arte, ou ainda, um monumento funerário.

22 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 21-30, jul./dez., 2005
Silvia Maria Leite de Almeida

À medida que aspectos sociais são considera- justamente este conceito que trago neste mo-
dos, os conceitos de memória se diversificam: mento. Para abordar o conceito de memória
“memória social”, “atos coletivos de lembrar e coletiva, no entanto, me aproprio do entendi-
esquecer”, “tradição”, “traços da memória”. Es- mento de Meneses (1992). Para ele, a memó-
ses conceitos representam não só diferentes ria coletiva:
abordagens de um mesmo fenômeno, como tam-
bém explicam diferentes fenômenos indistinta- ... é um sistema organizado de lembranças cujo
mente classificados como memória. (SANTOS, suporte são grupos sociais espacial e temporal-
1993, p. 72). mente situados. Melhor que grupos é preferível
falar de redes de inter-relações estruturadas, im-
Santos ainda vai chamar a atenção para o bricadas em circuitos de comunicação. Essa me-
fato de que, nas décadas de 1970 e 1980, surgi- mória assegura a coesão e a solidariedade do
ram vários estudos sobre a memória. Esses grupo e ganha relevância nos momentos de cri-
estudos representaram uma abordagem inter- se e pressão. Não é espontânea: para manter-se,
disciplinar e a tentativa de integrar, com suas precisa permanentemente se reavivada. É, por
ênfases, as dimensões de “tempo”, “indivíduo” isso, que é da ordem da vivência, do mito e não
e “sociedade”. busca coerência, unificação. Várias memórias
coletivas podem coexistir, relacionando-se de
Esses novos estudos sobre memória vão enfati- múltiplas formas. (MENESES, 1992, p. 15)
zar que não existem memórias individuais ou
sociais, mas atos de lembrar e esquecer, que de- Um outro conceito utilizado nesta seção é o
vem ser considerados práticas ou ações huma- conceito de documento. Documento é entendi-
nas constituídas socialmente. Além disso, eles do aqui como texto no seu sentido mais amplo,
vão rejeitar a idéia de que a memória é capaz de seja ele escrito, ilustrado, transmitido pelo som,
recuperar um passado real, como também o fize- pela imagem, ou de qualquer outra maneira. No
ram anteriormente outros autores... (SANTOS, entanto, especificamente para este ensaio, vou
1993, p. 73) me ater a um tipo de documento: o documento
A autora sublinha que os conceitos de me- escrito. Lembro, ainda, que o documento é, além
mória vão continuar se contrapondo e não al- de um suporte, uma expressão da memória co-
cançado o almejado consenso nas ciências letiva.
sociais, uma vez que as noções e as relações Segundo Le Goff (1996), o aparecimento da
entre “indivíduo”, “sociedade” e “tempo” são escrita transformou radicalmente a memória
compreendidas de diferentes formas. coletiva. A escrita permitiu a essa memória um
Por memória podemos compreender reminiscên- progresso em dois sentidos: a comemoração,
cias através das quais nos encontramos com o na qual a celebração é realizada através de um
passado, repetição de atitudes e sentimentos dos monumento comemorativo de um acontecimen-
quais raramente nos damos conta, construção e to a ser lembrado e o documento escrito. Vale
reconstrução de nossas identidades ao longo ressaltar que, para Le Goff, “todo documento
de nossas vidas, e até mesmo o inexplicável sa- tem em si um caráter de monumento e não existe
ber. Esses são, no entanto, aspectos da memória memória coletiva bruta” (p. 433). Salienta ain-
que só podem coexistir e ser criticamente anali- da que, no documento, há duas funções da es-
sados numa orientação que considere que eles crita: a de armazenar informações possíveis de
não só se transformam ao longo do tempo, como serem transmitidas através do tempo e do es-
também transformam o presente à medida que
paço e o de garantir a transposição da esfera
reinterpretam o passado. (SANTOS, 1993, p. 83)
auditiva à visual.
Nesse contexto, lembranças, reminiscênci- No entanto, vale ressaltar que essa transi-
as, esquecimentos, enfim, a memória, vai te- ção da memória pela escrita não foi intempesti-
cendo um cenário complexo, do passado no va; ela se estabeleceu lentamente e de forma
presente, do presente visto pelo passado e vai diferenciada em alguns espaços e tempos. As-
também construir uma identidade de uma co- sim, no início da escrita não houve um rompi-
munidade a partir de uma memória coletiva. É mento do movimento tradicional da memória

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Memória, documento e arquivo: apontamentos para uma história das instituições educativas

coletiva. Esse suporte – a escrita – foi utilizado crito. No entanto, em 1862, Fustel de Coulan-
basicamente nos elementos urbanos nos quais ges, sentindo o limite dessa definição, realiza
não era possível a fixação através da memória, uma primeira ampliação do termo, ou melhor,
ou seja, na gerência da circulação de produtos, do conteúdo. Declarou Coulanges, na Univer-
na gerência celeste, humana e na gerência dos sidade de Estrasburgo: “Onde faltam os monu-
dirigentes (atos financeiros e religiosos, dedi- mentos escritos, deve a história demandar às
catórias, genealogias, confecção de calendário línguas mortas os seus segredos... Deve escru-
etc). tar as fábulas, os mitos, os sonhos da imagina-
A memória, vinculada à escrita, possui di- ção... Onde o homem passou, onde deixou
versos estatutos, atrela-se ao poder, às técni- qualquer marca da sua vida e da sua inteligên-
cas, à educação, à cultura, ao trabalho, entre cia, aí está a história”. (apud LE GOFF, 1996,
outras categorias, desde os tempos das antigas p. 539).
civilizações até a Contemporaneidade.2 Já o advento da História Nova, a partir de
A história na sua concepção tradicional, do 1929, através da criação dos Annales d’Histoire
período entre 1870/1880 até 1920/1930, foi in- économique et sociale, vai trazer uma outra
tensamente marcada pela influência positivista, concepção do valor do documento, tanto para a
na qual o documento era o suporte essencial, história como para a memória.
pois ele – o documento – estava repleto de in- Le Goff (1996), referindo-se a Nora, afirma
formações que permitiam a reconstrução do fato que a História Nova vai se esforçar no sentido
histórico. No entanto, ainda vai ser sinônimo de de criar uma história científica a partir da me-
texto. mória coletiva, que poderia ser interpretada
Flamarion e Brignoli afirmam que nesse pe- como uma revolução da memória, pois confere
ríodo: uma “rotação” em torno de alguns suportes fun-
... a missão do historiador consistiria em estabele- damentais. Problemáticas contemporâneas, mas
cer – a partir dos documentos – os ‘fatos históri- com iniciativas retrospectivas, o abdicar de uma
cos’, coordená-los e, finalmente, expô-los linearidade temporal com vistas a aproveitar os
coerentemente. Os ‘fatos históricos’ seriam aque- múltiplos tempos vividos. A história que se faz
les fatos singulares, individuais, que não se repe- a partir de lugares topográficos, monumentais,
tem: o historiador deveria recolhê-los todos, simbólicos, funcionais.
objetivamente, sem optar entre eles. Seriam enca-
rados como a matéria da História que já existiria Mas não podemos esquecer os verdadeiros lu-
latente nos documentos antes do historiador ocu- gares da história, aqueles onde se deve procu-
par-se destes. Sua coordenação em uma cadeia rar, não a sua elaboração, não a produção, mas
linear de causas e conseqüências constituiria a os criadores e os denominadores da memória
síntese, a apresentação dos fatos estudados: fa- coletiva: ‘Estados, meios sociais e políticos, co-
tos quase sempre políticos, diplomáticos, milita- munidades de experiências históricas ou de ge-
res ou religiosos, muito raramente econômicos ou rações, levadas a constituir os seus arquivos em
sociais. (apud NUNES, 1989, p. 5). função dos usos diferentes que fazem da memó-
ria’. (LE GOFF, 1996, p. 473).
Le Goff (1996) alerta ainda que, naquela
época, autores como Saraman ou Lefebvre afir- Com a Nova História houve uma ampliação
mavam categoricamente que, sem documentos, da noção de documento. Febvre, também cita-
a História não existia. “Pas de document, pas do por Le Goff, afirma:
d’Histoire”. ... a História faz-se com documentos escritos,
Apesar da concepção de documento não se sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode
alterar, o seu conteúdo vai se modificar e am-
pliar. 2
Para saber sobre o desenvolvimento da memória através
Como já foi dito, na História Tradicional, o dos tempos, consultar o capítulo sobre Memória, na obra de
Le Goff: História e Memória, Campinas, SP: Editora da
termo documento era utilizado no seu sentido Unicamp, 1996, ou o capítulo sob o mesmo título na Enci-
estrito, ou seja, documento era igual a texto es- clopédia Einaudi, do mesmo autor.

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Silvia Maria Leite de Almeida

fazer-se, deve fazer-se sem documentos escri- certa maneira de uma sociedade dar estatuto e
tos, quando não existem. Com tudo o que a habi- elaboração a uma massa documental de que se
lidade do historiador lhe permite utilizar para não separa” (sic). (Apud LE GOFF, 1996, p.
fabricar o seu mel, na falta das flores habituais.
545-6).
Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas.
Com as formas do campo e das ervas daninhas. E quanto à mudança da relação história,
Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cava- memória e documento afirma:
los de tiro. Com os exames de pedras feitos pe- A história, na sua forma tradicional, dedicava-se
los geólogos e com as análises de metais feitas a ‘memorizar’ os monumentos do passado, a
pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, transformá-los em documentos e em fazer falar
pertencendo ao homem, depende do homem, os traços que, por si próprios, muitas vezes não
serve o homem, exprime o homem, demonstra a são absolutamente verbais, ou dizem em silên-
presença, a atividade, os gostos e as maneiras cio outra coisa diferente do que dizem; nos nos-
de ser do homem. (LE GOFF, 1996, p. 540). sos dias, a história é o que transforma os
Henri Marrou chama atenção não somen- documentos em monumentos e o que, onde dan-
te para a ampliação da noção de documento, tes se decifravam traços deixados pelos homens,
onde dantes se tentava reconhecer em negativo
mas também para as questões que os docu- o que eles tinham sido, apresenta agora uma
mentos suscitam. Ou seja, o que se torna im- massa de elementos que é preciso depois isolar,
portante a partir daí são as perguntas feitas reagrupar, tornar pertinentes, colocar em relação,
pelo historiador: constituir em conjunto” (FOUCAULT, apud LE
GOFF, 1996, p. 546).
... é um documento toda a fonte de informação
de que o espírito do historiador sabe tirar qual- A partir de 1960, ocorre a chamada revolu-
quer coisa para o conhecimento do passado ção documental. Assim, como a imprensa po-
humano, encarado sob o ângulo da pergunta que pularizou as obras escritas e os documentos, o
lhe foi feita. É evidente que se torna impossível
surgimento dos bancos de dados, da fita mag-
dizer onde começa e onde acaba o documento: a
pouco e pouco, a noção dilata-se e acaba por nética, dos disquetes, CD rom, bites e megabi-
abarcar textos, monumentos, observações de tes estão realizando uma verdadeira revolução
toda a ordem”. (apud NUNES, 1989, p. 18). documental e também acabam instaurando uma
crise que traz desafios à atualidade. Na última
Marrou acredita que um estoque de determi-
seção desse trabalho tematizarei essa crise e
nados documentos representa uma inesgotável
alguns dos seus desafios conseqüentes.
fonte de conhecimento e de pesquisa, pois pode
se constituir como fonte de inúmeras perguntas
diferentes as quais podem ser respondidas por
2. O arquivo – “guardião” da me-
tais documentos se forem bem interrogados. Ou
mória coletiva
seja, o que importa é o problema que o docu-
mento suscita. Nesse caso, “A originalidade do Geralmente, os documentos são guardados,
historiador consistirá amiúde em descobrir a acondicionados, classificados em lugares como
maneira como tal grupo de elementos, que já se os arquivos.
consideravam bem explorados, pode passar a Existem vários tipos de arquivos3 ; no entan-
responder a uma pergunta nova”. (MARROU, to, utilizarei o termo no seu sentido amplo. Ar-
apud NUNES, 1989, p. 19). quivo, entendido como locus, lugar de guarda
Le Goff (1996) ainda se refere a Foucault, dos documentos, uma espécie de solidificação
afirmando que, para esse autor, os problemas da memória coletiva, que constrói uma identi-
da história estão em questionar o documento, dade – nesse caso a identidade institucional.
ou seja, pas de problème, pas d’Histoire. Para Normalmente, a divisão dos tipos de arquivos é
Foucault, “O documento não é o feliz instru-
mento de uma história que seja, em si própria e 3
Os arquivos são divididos em correntes, intermediários e
com pleno direito, memória: a história é uma permanentes.

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Memória, documento e arquivo: apontamentos para uma história das instituições educativas

devido ao valor atribuído ao documento. Enun- Se o arquivo é o guardião de uma memória


ciarei alguns valores que, no meu entendimen- coletiva, ele também vai guardar lacunas, silên-
to, considero importantes para o trabalho do cios e não ditos que essa memória encerra.
pesquisador em educação. Posteriormente, Pollak (1989, p. 9) faz referência ao enquadra-
abordarei sobre a importância do arquivo, en- mento da memória, enquanto processo alimen-
quanto detentor de uma memória coletiva que tado por materiais fornecidos pela história. Esse
servirá de suporte para a constituição da histó- enquadramento, “reinterpreta incessantemente
ria das instituições educativas. o passado em função dos combates do presen-
O documento possui diversos valores, al- te e do futuro”. Afirma ainda o autor que toda
guns considerados como valores gerais, outros a organização política difunde o seu passado de
considerados como específicos. Todos os do- acordo com a imagem que fabrica de si mes-
cumentos conservados nos mais diferentes ma. Essa memória enquadrada – que pode ser
arquivos possuem valores gerais. Estes valo- refletida em arquivos, monumentos, museus,
res gerais ainda se dividem em outros valores, bibliotecas – guarda discursos, objetos, símbo-
a saber: intrínseco, arquivístico e histórico. Se- los, entre outros, que ao ser tombada reflete
gundo Nunes (1989), valor intrínseco é o valor escolhas de testemunhas autorizadas e ao ser
próprio, inerente a um documento, que depen- (re) visitada, muitas vezes, é constrangida a não
de de fatores como seu conteúdo, circunstân- desviar daquela memória consolidada. “Se o
cia de sua produção, presença ou ausência de controle da memória se estende aqui à escolha
assinatura, existência ou não de selos afixa- de testemunhas autorizadas, ele é efetuado nas
dos, etc. É, na perspectiva filosófica, equiva- organizações mais formais pelo acesso dos pes-
lente ao seu valor total depois de subtrair a quisadores ao arquivos e pelo emprego de ‘his-
soma de seus valores instrumental e contribu- toriadores da casa’”. (POLLAK, 1989, p. 10).
tivo. Já o valor arquivístico é de caráter admi- É importante, no entanto, ter em conta não
nistrativo – técnica e operacional – fiscal, legal, só a dimensão técnica instrumental de um ar-
probatória e informacional que justifica a con- quivo, como também a sua dimensão filosófica.
servação de documentos em um arquivo, seja Segundo Magalhães4 , o arquivo enquanto me-
este corrente, intermediário ou permanente. mória é anárquico, ou seja, não sofreu filtra-
Finalmente, o valor histórico do documento é gens dos documentos guardados. Já, o arquivo
devido à importância que possui de testemu- enquanto identidade foi objeto sistemático de
nhar fatos sucedidos que permitam ao pesqui- vigilância. Em outras palavras, o que está pre-
sador dar-se conta do vivido no passado, servado foi objeto de seleção e descarte de
identificar as relações estabelecidas e trans- acordo com a imagem institucional que se pre-
formações ocorridas e compreender a gênese tende (u) conservar e/ou publicizar. Há uma
e percurso dos processos presentes. tensão entre essa relação do arquivo enquanto
Nunes (1989) lista ainda uma série de valo- memória e identidade que, certamente, vai re-
presentar, ilustrar e justificar a instituição, as-
res específicos englobados em outros dois va-
pectos para os quais o pesquisador deve estar
lores, os valores primários e secundários.
atento.
Dentre estes últimos, destaco o valor informa-
Alguns pesquisadores em educação, nota-
tivo que, segundo a autora:
damente aqueles que se debruçam na pesquisa
... é o interesse dos documentos quanto à infor- histórica, muitas vezes têm a memória enqua-
mação que contêm para referência ou pesquisa,
independentemente do seu valor de testemunho
sobre o histórico da instituição produtora. É o 4
As referências que trago de Magalhães sem a indicação de
valor que têm os documentos de dar informa- data, referem-se a contribuição do Prof. Justino Magalhães,
da Universidade do Minho, Portugal, quando ministrou o
ções sobre pessoas, fatos ou fenômenos cuja Seminário História das Instituições e das Práticas Educativas,
memória, em termos históricos, seja considerada na Universidade do Vale dos Sinos – UNISINOS, no período
relevante ... (NUNES, 1989, p. 3). entre 04 a 06 de dezembro de 2001.

26 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 21-30, jul./dez., 2005
Silvia Maria Leite de Almeida

drada como sua fonte principal de investigação. mensões em análise. Uma via metodológica que
Essa memória pode ser expressa em documen- permita estruturar e construir um discurso que
tos escritos, fotografados, orais etc. Esse arse- traduza com significativa aproximação toda a vi-
talidade de uma instituição educativa. (MAGA-
nal de documentos palpáveis, muitas vezes, está
LHÃES, 1999, p. 68-69).
acondicionado em arquivos, bibliotecas, museus
ou até mesmo num recinto abandonado. A abordagem metodológica que leva em conta
Magalhães comenta que a instituição edu- a história das instituições educativas é, segundo
cacional, antes da constituição da história das Magalhães (1999, p. 63), “uma abordagem que
instituições educativas, foi objeto de algumas permita a construção de um processo histórico
análises institucionais, no sentido de conferir a que confira uma identidade às instituições edu-
arquitetura da sua história. Uma análise, atra- cativas”. Neste processo investigativo há um
vés da qual se encarou durante muito tempo a cruzamento de informações de várias naturezas
instituição, foi a análise sistêmica, ou seja, a ins- – orais, arquivísticas, museológicas, arquitetôni-
tituição vista como um sistema, dividida em par- cas, fontes originais e fontes secundárias – que,
tes, com múltiplas entradas e múltiplas saídas ao serem exploradas e utilizadas, requerem um
em que o produto final tende a diluir-se. Uma criterioso cuidado hermenêutico. Como esse pró-
outra abordagem tem sido feita a partir da aná- prio autor diria, “um vaivém esclarecido entre a
lise organizacional, que interpreta a instituição memória e o arquivo”.
enquanto organização em função de um produ- Magalhães ainda vai alertar que:
to; nessa perspectiva há uma tendência a privi- As instituições educativas, como as pessoas,
legiar a explicação e deixar de lado a compre- são portadoras de uma memória. Uma memória
ensão. A análise, a partir da constituição da factual, assente na transmissão oral, uma memó-
história das instituições educativas, tem como ria fixista e por vezes justificativa e marcada de
prioridade realizar uma meso-abordagem que exageros de vária ordem [sic]. Uma memória ge-
articule a complexidade da dinâmica institucio- rada por contraposição com outras memórias,
nal, que leve em conta a diversidade de infor- que corre ao ritmo do tempo – o tempo da ou das
pessoas, o tempo das gerações. Uma memória
mações, desde a integração das paisagens físi-
que encalha no acontecimento. Uma memória em
ca e humana, à estrutura arquitetônica, às torno do fabuloso e do heróico. Uma memória
relações de poder, à memória individual e cole- ritualista e comemorativa. Uma memória consti-
tiva e à relação educativa. Não se pode perce- tuída por relatos e representações, simbólicas
ber a instituição como um plano parado; a evo- ou materiais, sedimentadas ou mediatizadas por
lução dialética opera-se na conflitualidade do historiais e crônicas de reduzido valor científico.
que se constitui naquele momento. Uma memória, por outro lado, integrada nas prá-
ticas do quotidiano. Com efeito, as instituições
A evolução arquitetônica, a gestão/adaptação educativas, se transmitem uma cultura – a cultu-
dos espaços e das estruturas, os ciclos de pro- ra escolar, não deixam de produzir culturas, que
cura de instrução, os ciclos de renovação dos lhes conferem uma identidade institucional. (1999,
recursos humanos e materiais, as políticas de p. 69)
habilitação e recrutamento do pessoal docente,
as políticas de admissão e de sucesso do pesso- O autor ainda ressalta que para usar o ar-
al discente, são fatos, acontecimentos e combi- quivo na sua verossimilhança é necessário sa-
natórias que de igual modo, não apenas não ber se aproximar dele – ao classificar os
podem ser deixados de fora na preparação do documentos está se destruindo o arquivo! Ar-
discurso, integrador e problematizante da sínte- rumar o caos é destruir o arquivo e, neste sen-
se histórica, como são fundamentais enquanto tido, o pesquisador deve assumir outros papéis,
fatores de informação e vias de estruturação da
principalmente de arquivista, para não se per-
investigação. A complexidade desta abordagem
levanta questões de representatividade pelo que der a riqueza do encontrado. Muitas vezes o
exige a definição de uma problemática relacio- caos, a desordem, os maços de documentos es-
nal, não linear, fundamentadora, metaprodutiva palhados revelam aspectos que só um olhar cui-
e organizacional, no que se refere às várias di- dadoso do pesquisador iniciado pode vislumbrar.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 21-30, jul./dez., 2005 27
Memória, documento e arquivo: apontamentos para uma história das instituições educativas

Então, para levantar a história das institui- tido para o seu trabalho. Um sentido para a his-
ções educativas é necessário ter em mente uma tória das instituições educativas. (MAGA-
tarefa árdua, que não se restringe ao arquivo. LHÃES, 1999, p. 70-71).
A construção do sentido, a iluminação da leitu- Nesse esforço, o pesquisador busca confe-
ra é uma descoberta, é um exercício investiga- rir um sentido histórico para a instituição edu-
tivo, que se realiza não apenas através da cativa, através dos atores e as motivações das
documentação escrita, produzida nos quadros suas ações, numa investigação que leve em
nacional, regional e local, mas também da do- conta os pontos de vista políticos e simbólicos.
cumentação bibliográfica e museológica. “Ar- Um desafio hermenêutico no qual o arquivo é
quivo, biblioteca e museu são os três núcleos amparado pela memória. No qual à história oral
de informação fundamental. Mas não apenas a vai caber uma palavra fundamental.
documentação escrita e preservada com maior Enfim, como o próprio autor define em ou-
ou menor zelo pelas instituições, como também tro texto:
toda a documentação lateral e a memória oral”. A história das instituições educativas constitui
(MAGALHÃES, 1999, p. 74). A partir daí, após um domínio do conhecimento em que se tem ope-
os cruzamentos, os topos surgem dessa inter- rado uma profunda alteração metodológica, uma
locução. vez que a uma narrativa de natureza cronística e
Ainda alerta que, muitas vezes, as informa- memorialista, que enforma as representações e
ções arquivísticas são deficitárias. Vai sublinhar os relatos orais dos atores, se procura contrapor
que, para o passado recente, a memória oral, uma base de informação arquivística, sob uma
heurística e uma hermenêutica complexas, pro-
construída sob um apurado rigor metodológico,
blematizantes e centradas na instituição educa-
constitui numa fonte de informação singular, “... tiva como totalidade em organização e desen-
quer para se aceder às múltiplas interpretações volvimento. Uma história construída da(s)
a que estiveram sujeitos os normativos gerais, memória(s) para o arquivo e do arquivo para a
quer para se conhecerem as características memória, intentando uma síntese multidimensi-
básicas dos diversos intervenientes e se defini- onal que traduza um itinerário pedagógico, uma
rem os fatores que pesaram nas opções estra- identidade histórica, uma realidade em evolução,
um projeto pedagógico. (MAGALHÃES, 1998,
tégicas e nas práticas do quotidiano”. (MAGA-
p. 61).
LHÃES, 1999, p. 70).
Lembra ainda que:
... a memória (pessoal ou coletiva) é uma via me- 3. Os desafios da atualidade
todológica da história. A memória estimula e de-
safia a busca historiográfica, seja no plano da Le Goff (1996) coloca que o alargamento
hermenêutica, seja no plano da compreensão e do conteúdo do termo documento, levou, na
da representação da realidade. Mas à memória
década de 1960, a uma verdadeira revolução
tem de ser criteriosamente contraposto o discur-
so científico. A memória não se colhe apenas na documental. Esta revolução, segundo ele, é tan-
informação oral. A memória desafia o historia- to quantitativa, como qualitativa.
dor para uma explicação da ordem, da organiza- Em termos quantitativos, essa revolução se
ção dos espaços, dos tempos e das coisas. A dá a partir do surgimento de novas formas de
memória desafia o historiador para a explicação arquivamento, de conservação e de preserva-
das relações hierárquicas e valorativas, quer ção dos documentos e dos dados, que se inau-
entre as coisas, quer entre as pessoas. Nada na gura com a fita magnética e que, atualmente,
vida de uma instituição escolar acontece, ou se amplia para outros meios como os disquetes,
aconteceu por acaso, assim o que se perdeu ou
transformou, como o que permanece. A memória
CD’s rom, arquivos virtuais, bites e megabites,
de uma instituição é, não raro, um somatório de a memória eletrônica etc. Isso traz mudanças
memórias e de olhares individuais ou grupais. É qualitativas na medida em que essa nova forma
neste vai-vém entre a memória e o arquivo que o de armazenamento cria um novo documento,
historiador constrói uma hermenêutica e um sen- que, segundo Le Goff (1996, p. 542)., requer

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Silvia Maria Leite de Almeida

uma nova erudição “que balbucia ainda e que carregado que isto vai impor, pois demandará
deve responder simultaneamente às exigências do pesquisador um árduo trabalho de codifica-
do computador e à crítica da sua sempre cres- ção desse “simulacro de presente petrificado
cente influência sobre a memória coletiva”. em memória”. É justamente a possível falta de
A facilidade de manuseio que os meios aci- critério, de orientação, da construção de uma
ma possuem, somadas com a crescente ânsia narrativa consistente e o descompromisso com
de tudo guardar e de produzir arquivos, trazem problemáticas prévias ao tratar esse material
ao nosso tempo e, certamente, ao futuro próxi- que podem criar esse duplo fragmentado e par-
mo ou longínquo um grande problema. Como celado.
afirma Pierre Nora: O problema está posto. Desafios são lança-
A materialização da memória está assim, em dos, propostas de possíveis soluções enuncia-
poucos anos, prodigiosamente dilatada, demul- das; no entanto, somente o bom senso do
tiplicada, descentralizada, democratizada... Não pesquisador ao tratar da memória, do documento
somente guardar tudo, mas conservar todos os e do arquivo pode trazer à tona uma narrativa
signos indicativos da memória, mesmo se não que lhe satisfaça e contemple a sua proposta.
soubermos exatamente de que memória eles são Tendo em vista essa realidade trago uma pas-
indicadores. Mas produzir arquivos é o impera-
sagem de Le Goff e Toubert que, creio, encer-
tivo de nossa época... Ele não é mais o relicário,
mais ou menos intencional de uma memória vi- ra, ou abre, a questão:
vida, mas a secreção voluntária e organizada O medievalista (e, poder-se-ia acrescentar, o his-
de uma memória perdida. Ele duplica o vivido, toriador) que procura uma história total deve re-
que se desenrola diante dele mesmo em função pensar a própria noção de documento. A
de seu próprio registro – as atualidades são intervenção do historiador que escolhe o docu-
feitas de outra coisa? – de uma memória segun- mento, extraindo-o do conjunto dos dados do
da, de uma memória prótese. A produção do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhes
arquivo é o efeito agudo de uma consciência um valor de testemunho que, pelo menos em
nova, a expressão mais clara do terrorismo da parte, depende da sua própria posição na socie-
memória historicizada... (Apud DE DECCA, 1992, dade da sua época e da sua organização mental,
p. 132). insere-se numa situação inicial que é ainda me-
Essa produção exacerbada, intencional, exa- nos “neutra” do que a sua intervenção. O docu-
mento não é inócuo. É, antes de mais nada, o
gerada de novos lugares da memória traz per- resultado de uma montagem, consciente ou in-
das tanto para a memória quanto para a história. consciente, da história, da época, da sociedade
Vai constituir a chamada “memória histórica”, que o produziram, mas também das épocas su-
que não é nem memória, pois está a margem cessivas durante as quais continuou a viver, tal-
da experiência do vivido, nem é história pois vez esquecido, durante as quais continuou a ser
está esvaziada da crítica ao passado. (DE DEC- manipulado, ainda que pelo silêncio. O docu-
mento é uma coisa que fica, que dura, e o teste-
CA, 1992)
munho, o ensinamento (para evocar a
Meneses (1999) vai chamar a atenção para etimologia) que ele traz devem ser em primeiro
os problemas documentais que a sociedade da lugar analisador desmitificando-lhe o seu sig-
informação anuncia e sua relação com a me- nificado aparente. O documento é monumento.
mória. Ainda alerta para o perigo da possibili- Resulta do esforço das sociedades históricas
dade dos arquivos reproduzirem um duplo para impor ao futuro – voluntária ou involunta-
fragmentado e parcelar do presente empírico, riamente – determinada imagem de si próprias.
o que Melot denomina de “pulsão documental No limite, não existe um documento-verdade.
Todo o documento é mentira. Cabe ao historia-
alucinatória”.
dor não fazer o papel de ingênuo. Os medieva-
Em artigo anterior, Meneses (1992) deixa listas, que tanto trabalharam para construir uma
claro que o problema desta pulsão não está na crítica –sempre útil, decerto – do falso, devem
generosidade das iniciativas de conservação dos superar esta problemática porque qualquer do-
documentos, mas num aproveitamento sobre- cumento é, ao mesmo tempo, verdadeiro – in-

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 21-30, jul./dez., 2005 29
Memória, documento e arquivo: apontamentos para uma história das instituições educativas

cluindo, e talvez sobretudo, os falsos – e falso, demolir esta montagem, desestruturar esta
porque um monumento é em primeiro lugar uma construção e analisar as condições de produ-
roupagem, uma aparência enganadora, uma ção dos documentos-monumentos. (Apud LE
montagem. É preciso começar por desmontar, GOFF, 1996, p. 547-548).

REFERÊNCIAS

DE DECCA, Edgar Salvadori. Memória e cidadania. In: SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Cultura.
Departamento do Patrimônio Histórico. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo:
DPH, 1992. p. 129-136.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed.Unicamp, 1996.
MAGALHÃES, Justino. Um apontamento metodológico sobre a história das instituições educativas. In:
SOUSA, Cynthia Pereira de; CATANI, Denice Barbara (orgs). Práticas educativas, culturas escolares,
profissão docente. São Paulo: Escrituras, 1998. p. 51-64.
_____. Contributo para a história das instituições educativas : entre a memória e o arquivo. In: FERNANDES,
Rogério; MAGALHÃES, Justino (org.). Para a história do ensino liceal em Portugal. COLÓQUIOS DO I
CENTENÁRIO DA REFORMA DE JAIME MONIZ (1894-1895). Actas... Braga: Universidade do Minho,
1999. p.63-77.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no
campo das ciências sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiro. São Paulo, n. 34, p. 9-24, 1992.
_____. A crise da memória, história e documento: reflexões para um tempo de transformações. In: SILVA,
Zélia Lopes da (org). Arquivos, patrimônio e memória. São Paulo: UNESP/FAPESP, 1999. p. 11-29.
NUNES, Antonietta de Aguiar. Valor histórico do documento. Salvador, 1989. (mimeo).
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3,
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RICOEUR, Paul. La lectura del tiempo pasado: memoria y olvido. Madrid: Arrecife, 1998.
SANTOS, Myrian. O pesadelo da amnésia coletiva :um estudo sobre os conceitos de memória, tradição e
traços do passado. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 8, n. 23, p. 70-84, 1993.

Recebido em 21.02.05
Aprovado em 08.08.05

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Denice Barbara Catani

AS LEITURAS DA PRÓPRIA VIDA


E A ESCRITA DE EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO

Denice Barbara Catani*

RESUMO

O texto apresentado investiga formas de apropriação das experiências de


formação, principalmente escolar, que são descritas em obras autobiográficas
publicadas no Brasil, entre o final do século XIX e a década de 1970. Parte-se
do reconhecimento de que a escrita das obras autobiográficas que testemunham
as relações pessoais com a escola pode ser útil como fonte para a elaboração
da história da educação, uma vez que tais produções, diferentemente de outros
documentos, aportam uma dimensão diversa de significações, traduzindo as
configurações individuais de processos sociais. Trata-se dos sentidos atribuídos
pelo sujeito que experimenta a vida escolar e/ou reconstrói suas trajetórias de
formação. Questões teóricas como as das relações entre memória ou história
ou entre escrita de si e reinterpretação de si ou entre motivações sociais e
escrita autobiográfica merecem consideração ao se examinar tais obras, na
perspectiva de integrá-las à produção da história da educação.
Palavras-chave: Escrita de experiências de formação – Escrita autobiográfica
– História da educação e literatura

ABSTRACT

THE SELF-READINGS OF LIFE AND THE WRITING OF


FORMATION EXPERIENCES
This paper investigates paths to the appropriation of formation experiences,
mainly related to schooling, which are described in autobiographical works
published in Brazil, between the end of the XIX Century and the 1970’s decade.
We consider that the autobiographical writings express personal relations with
the school and in this sense could be useful as sources to history of education,
because they shelter a different dimension of signification, as individual
interpretations of the social process. In other words, it refers to the meanings
that are built by the person who experiences the school life and/or reconstructs
his/her formation path. Theoretical questions as the relations between memory
and history or self-writing and self reinterpretation, and also between social
motivations and autobiographical writing must be considered when we take
such texts to integrate the production of the history of education.
Keywords: Autobiographical writing – History of education and literature

* Professora titular e livre-docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP. Endereço para
correspondência: Avenida da Universidade, 308 – 05508-040 São Paulo, SP. E-mail:

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As leituras da própria vida e a escrita de experiências de formação

O texto apresentado1 investiga formas de ríodo, mas, sim, que constituem uma instância
apropriação das experiências de formação, prin- privilegiada para a apreensão dos sentidos cons-
cipalmente escolar que são descritas em obras truídos e das formas de apropriação da vida
autobiográficas publicadas no Brasil, entre o fi- escolar.
nal do século XIX e a década de 70 do século No território específico da história da edu-
XX. 2 Parte-se do reconhecimento de que a cação, a inclusão dessas fontes participa de um
escrita das obras autobiográficas que testemu- movimento de renovação de opções teórico-
nham as relações pessoais com a escola pode metodológicas e temáticas, característica das
ser útil como fonte para a elaboração da histó- duas últimas décadas, no caso da produção em
ria da educação, uma vez que tais produções, Língua Portuguesa. Pode-se facilmente obser-
diferentemente de outros documentos, aportam var a presença forte do recurso a fontes me-
uma dimensão diversa de significações, tradu- morialísticas, literárias ou autobiográficas como
zindo as configurações individuais de proces- elementos significativos para o conhecimento
sos sociais. Trata-se dos sentidos atribuídos pelo da educação em períodos diversos.3 Tal recur-
sujeito que experimenta a vida escolar e/ou re- so propõe-se a entender tais fontes pelo que
constrói suas trajetórias de formação. Questões possuem de “caráter indiciário”, sem deixar de
teóricas, como as das relações entre memória problematizar seu uso no que tange às dificul-
ou história ou, entre escrita de si e reinterpreta- dades quanto às generalizações e/ou quanto ao
ção de si ou entre motivações sociais e escrita seu estatuto informativo. Exemplo dessa preo-
autobiográfica, merecem consideração ao se cupação foi expresso por Lucien Bély, em seu
examinar tais obras, na perspectiva de integrá- “L’élève et le monde – Essai sur l’éducation
las à própria produção da história da educação. des lumières d’aprés les memoires autobiogra-
Se, por um lado, a consideração de tais fon- phiques du temps” (1981), no qual discorreu
tes de informação colabora para que se cons- sobre a riqueza e os desafios impostos por esse
trua uma “história das relações com a escola”, interesse ao indagar-se sobre se e como as
dando a ver processos de interpretação pesso- memórias autobiográficas poderiam contribuir
al das experiências, também sugere questões para o nosso conhecimento da educação (no
relevantes para os que se interessam pela es- caso do seu trabalho, especialmente a educa-
crita em primeira pessoa e pelo próprio caráter ção do século XVIII, na França). O caráter
formador dessa escrita. Para professores, como polêmico dessa contribuição é também subli-
para alunos, a vida no interior da escola, tanto nhado por ele:
quanto a vida externa que a ela se associa pelo As lembranças são armadilhas. De uma parte
peso das exigências impostas pela mesma ins- esses casos individuais, ainda que numerosos,
tituição, constituem experiências bastante es- não permitem nenhuma generalização, a indu-
pecíficas, cujos sentidos são construídos e ção permanece sempre em perigo. De outra par-
apropriados de várias formas. Conhecer me- te, a história dessas consciências é toda feita de
lhor esses sentidos pode auxiliar no estabeleci- subjetividade, isso é o que leva o leitor a reviver
esses relatos, mais do que a criticá-los. Mas, ao
mento de uma compreensão de saberes e
práticas ou de uma cultura escolar (JULIA,
1995), pontuando a dimensão de informações 1
Trabalho apresentado no VIII Congreso Internacional de
advindas da legislação, dos conhecimentos es- Historia de la Cultura Escrita, realizado na Universidad de
Alcalá em julho de 2005.
pecializados, dos periódicos, manuais e docu- 2
Integra-se essa análise ao projeto de pesquisa intitulado
mentos em geral pelo confronto desses com Por uma história das relações com a escola: um estudo
sobre as apropriações das práticas da vida escolar no Bra-
uma fonte que, na origem, buscou expressar a sil (1980-1971) (CNPq – Conselho Nacional de Desenvol-
apreensão individual da experiência. Evidente- vimento Científico e Tecnológico).
mente, não se considera o fato de tais fontes 3
Relativamente a essas fontes cabe lembrar que, dentre as
primeiras análises sistemáticas de escritos memorialísticos
terem, por si, força para permitir a elaboração de professores no Brasil, destaca-se a contribuição de Dislane
de quadros históricos sobre a educação no pe- Zerbinatti Moraes (1996).

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Denice Barbara Catani

mesmo tempo, é o que faz toda riqueza desses ao mesmo tempo, elementos que permitem en-
documentos, eles liberam indícios para uma his- tender os efeitos dos processos de vinculação
tória, senão das mentalidades, pelo menos dos de valores, dos procedimentos e práticas de
sentimentos, aí residem sua atração e seu inte-
escolarização e das formas pessoais de incor-
resse (BÉLY, 1981, p.4).
poração do mundo social a um universo indivi-
Decerto, um conjunto de outras e ásperas dual. Por mais não fosse, já se teria o suficiente
questões se impõem e esse mesmo autor é ar- para dotar de significação o recurso às tais obras
guto ao não se esquecer de sublinhar as espe- para a melhor compreensão dos investimentos
cificidades do lugar do narrador do texto educativos. Testemunhos inequívocos da ten-
autobiográfico – problema abundantemente es- tativa do entendimento de si, os escritos que
tudado pela teoria e crítica no campo da litera- instauram “as leituras da própria vida” estrutu-
tura – e o fato do texto memorialístico ram-se desde Santo Agostinho e Rousseau
reconstruir, a partir de um lugar do presente, as como textos que ambicionam e conseguem for-
impressões do passado (LEJEUNE, 1975 e necer elementos generalizáveis nos quais os
1986, e ALBERT, 1995). leitores atentam também para si próprios. Um
Dentre os textos reunidos por Martine Chau- exemplo bem claro do encontro desses elemen-
dron e François de Singly (1995), destaca-se o tos numa obra autobiográfica pode ser localiza-
de Jean-Pierre Albert: “Etre soi: écritures ordi- do no primeiro volume da autobiografia de Eli-
naires de l’identité” (p.45-58) que chama a aten- as Canetti (1993) – A língua absolvida – que,
ção para a maneira pela qual a escrita é posta a reconhecendo o caráter estruturante das expe-
serviço da constituição de uma identidade pes- riências primeiras da infância, encontra o fio
soal, corporativa ou local. Porém, mais do que condutor de sua narrativa (e vida) nesse tempo
isso, o autor assinala que “a escrita supõe um primeiro da experiência na Bulgária. “Dificil-
processo de expressãoar e de objetivação do mente conseguirei dar uma idéia do colorido
pensamento que explica sua aptidão para re- daqueles primeiros anos em Ruschuk, de suas
forçar ou constituir a consciência de si do es- paixões e de seus terrores. Tudo o que me
critor...” (p.46). Albert lembra J. Goody, para aconteceu mais tarde já havia acontecido algu-
quem “a escrita permite ao pensamento atingir ma vez em Ruschuk.” (p.13) É possível situar
um grau de elaboração lógica e de reflexivida- no interior da obra de Canetti os ritmos dessa
de inacessíveis somente pela expressão oral...” estruturação de si, produzida literariamente
(p.46). De fato, e para muitos autores, como o como rememoração ou como trabalho de com-
quer Albert, “A escrita aparece como um meio preensão. E é acerca da vida escolar que che-
privilegiado de tomada de consciência e libera gam do texto reflexões, sem dúvida, esclarece-
nosso pensamento em sua forma mais elabora- doras dos sentidos das relações pedagógicas e
da”. Quando nos tomamos como objeto dessa das formas de apreensão dessas pelos alunos.
experiência reflexiva, revelamo-nos em muitos Sobre os professores, Canetti escreve trechos
sentidos a nós mesmos e fazemo-nos existir sob que valem ser relidos: Observe-se que, como
um aspecto particular. Decerto e magistralmen- configuração, por excelência, da unicidade de
te, os textos de Philippe Lejeune dão conta das sentido e esforço extremado da tentativa de
peculiaridades e implicações da escrita autobi- imposição da forma inequívoca, ordenada e dis-
ográfica. ciplinada, grande parte de seus representan-
Sem dúvida, a questão de saber por que as tes talvez não visse com prazer o fato de que
pessoas escrevem a própria vida já foi objeto a figura do professor que mais fala ao autor
de interesse de muitos estudos. O colorido es- seja a de Witz, o professor de História. Um
pecial que a questão ganha no domínio dos es- homem que:
tudos educacionais deve-se, talvez, ao fato de ... sempre procurava e jamais encontrava (...) não
que as experiências de formação relatadas em sabia o que fazer, como viver (...) nem sequer
obras literárias e/ou memorialísticas sugerem, sabia para onde ia, voltava-se ora para este, ora

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As leituras da própria vida e a escrita de experiências de formação

para aquele; só tinha uma certeza, ele queria ser efeitos de tais providências ordenadoras não se
instável, e, por mais que isto me atraísse, pois ocultam, ao contrário, exibem-se cruelmente na
era dito com suas próprias palavras, por sua boca, situação de alunos universitários que só pedem
me deixava maravilhosamente confuso – mas para clareza e objetividade, sistematização e uma
onde eu o seguiria? (CANETTI, 1993, p.277-278).
“visão geral” e que indagam quase solenemen-
Sem dúvida alguma, é o gênio conhecido de te: “qual é a solução proposta pelo autor?”, di-
Canetti que lhe permite amar também uma al- ante de qualquer texto que não lhes diga o “que
ternativa que ele considera diametralmente fazer”, de vez que os textos pedagógicos pare-
oposta – a de Karl Beck, o professor de Mate- cem dever ser feitos para isso, ou de vez que a
mática – com sua maneira “tenaz e disciplina- experiência escolar já lhes mostrou o modo
da de ensinar”. “certo” de compreender. Pequena vingança
contra a pedagogia, a novela de Miguel de Una-
Partindo-se de uma área talvez muito pequena,
sobre a qual não se tem dúvidas, segue-se com muno (1967), Amor y pedagogia, ironicamen-
determinação numa única e mesma direção, sem te destrói o sonho da “ciência educativa”,
perguntar aonde se quer chegar, renunciando a contando onde vão dar tais ilusões. Os pedago-
olhar para a direita ou para a esquerda, avançando gos não o lêem.
para um alvo sem conhecê-lo, e enquanto não se Na leitura do primeiro volume da autobio-
dá um passo em falso e se conserva a correlação grafia de Canetti encontram-se elementos que,
entre os passos, nada nos acontece, e chegamos certamente, permitem pensar a pluralidade de
ao desconhecido – pois é a única maneira de sentidos das experiências de formação, refletir
conquistar gradualmente o desconhecido sobre a instituição escolar enquanto lugar de
(CANETTI, 1993, p.273).
homogeneização dos comportamentos e sobre
Com Witz: o espaço aberto para as diferenças nas rela-
ções entre os indivíduos. Reconstituir isso, fa-
... não se caminhava para a frente, mas estava-se
ora aqui, ora acolá; não se tinha um alvo em mira, zendo a rememoração de sua história pessoal,
nem sequer uma meta desconhecida; é certo que leva o autor a tentar o maior número possível
se recebia muitas informações, mas mais do que de inclusões: de experiências agradáveis ou
ser informado, adquiria-se uma sensibilidade para desprazerosas, de figuras respeitadas ou não
aquilo que fora descartado ou para o que ainda dos professores; e o que fazem cruzar seguida-
permanecia oculto. Ele fortalecia sobretudo o mente a história relembrada com a interpreta-
gosto pela transformação, quanta coisa existia ção dos sentidos que atribui a essa história.
de que não se tinha idéia, e bastava que a gente Sobre a multiplicidade de figuras dos professo-
ouvisse falar naquilo para que se tornasse aquilo res, que lhe traz a recordação de sua vida es-
(CANETTI, 1993, p.273).
colar, diz:
Convém lembrar, não sem certa impaciên- ... é a primeira diversidade de que se é consciente
cia, algumas recomendações pedagógicas, em na vida (...) a alternância dos personagens, um
voga há muito tempo: racionalize-se o trabalho após outro, no mesmo papel, no mesmo lugar e
do professor, estabeleçam-se objetivos claros, com a mesma intenção, portanto eminentemente
é preciso que se saiba onde se quer chegar, é comparáveis – tudo isso, em seu efeito conjunto
preciso levar os alunos a compreenderem bem é outra escola, bem diferente da escola formal,
e responderem claramente às questões, e tan- uma escola que ensina a diversidade dos seres
tas outras providências semelhantes. Não é à humanos; se a tomarmos um pouco a sério,
toa que a pedagogia, ou melhor, os pedagogos resulta a primeira escola em que conscientemente
se comprazem em dizer isto de muitas formas, estudamos o homem” (CANETTI, 1993, p.174).
em muitas linguagens e com várias justificati- Não se pode deixar de atentar para o fato
vas: o simples senso comum não “convence” e de que ler Canetti, na situação d’A língua ab-
embora “convencione” não delimita um campo solvida, permite multiplicar as sugestões sobre
privado de investimentos e produções. Os bons o tema da educação, mas, além disso, permite

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Denice Barbara Catani

justamente acompanhá-lo cruzando a história os esforços autobiográficos de professores,


do menino – vítima do “método pedagógico” da categoria peculiar em que se mesclam reme-
mãe que lhe ensina alemão ou daquele que de- morações da própria vida e formação a consi-
seja exibir seus conhecimentos na escola e, por derações sobre o sentido da profissão docente
isso, é repreendido – com a do adulto que pro- e eventualmente acrescem-se justificativas da
cura o lugar que cada um desses acontecimen- escrita e da obra como contribuição à forma-
tos ganhou na constituição de si próprio. ção das novas gerações.
Walter Benjamin (1985) faz alusões férteis Extremamente variada, a produção dos pro-
sobre o trabalho de recuperar a própria histó- fessores nesse domínio tem constituído objeto
ria, ao falar de Proust: “Nem tudo nessa vida é de interesse crescente para os que se dedi-
modelar, mas tudo é exemplar”. E prossegue: cam à história da educação. Mas não apenas.
... o importante para o autor que rememora não é Observe-se igualmente que o interesse por tais
o que ele viveu, mas o tecido de sua rememora- escritos acompanha-se hoje, de modo simultâ-
ção, o trabalho de Penélope da reminiscência. neo, por um interesse pelo “testemunho de si”,
Ou seria preferível falar do trabalho de Penélope de modo geral, e pela atenção para com as
do esquecimento? (...) Não seria esse trabalho dimensões pessoais e biográficas de forma-
de rememoração espontânea em que a rememo- ção como processo escolar. A esse mesmo pro-
ração é a trama e o esquecimento a urdidura, o
pósito a idéia de estudar os modos de relação
oposto do trabalho de Penélope, mais que sua
cópia? Pois aqui é o dia que desfaz o trabalho da com a escola e as conseqüentes incorporações
noite. (BENJAMIN, 1985, p.37) dessas experiências pode evidenciar elemen-
tos esclarecedores acerca do ensino e das ins-
Para o seu trabalho de rememoração e es- tituições por ele responsáveis. De fato, ao
quecimento, Canetti escolhe a via direta da au- buscar depoimentos na literatura, nas autobio-
tobiografia e para ele também podem valer as grafias e nos relatos de formação intelectual,
observações de Benjamin: nem tudo é modelar, de alunos e de professores, pode-se tentar
mas certamente exemplar. Pois não é ele que compreender a diversidade das relações ins-
obriga seu texto a falar simultaneamente a tra- tauradas com a escola e os conhecimentos em
ma e a urdidura de sua história? Seu relato afir- diferentes momentos da vida dos sujeitos.
ma e reitera escolhas sem deixar de aludir aos Pode-se mesmo, a partir daí, tentar entender
sentidos do que foi recusado, mostrando assim a natureza das articulações entre as experiên-
como se faz sua atenção para o mundo. E é cias escolares iniciais e as formas de exerci-
talvez, no modo como se constrói essa atenção tar o trabalho. Observe-se ainda, antes de nos
e se a expressa na rememoração da sua ex- determos nas peculiaridades das produções
periência escolar, que se pode melhor encon- brasileiras, as observações seguintes.
trar os elementos sugestivos para o tema da No livro em que narra suas memórias, inti-
educação. tulado O amor dos começos, Jean-Baptiste
Tal como a obra de Canetti, passíveis de Pontalis (1988) descreve, no primeiro capítulo,
serem incluídas na categoria dos “romances de como se dá sua iniciação na escola e as contur-
formação” ou integrarem as obras autobiográ- badas relações que experimenta com a lingua-
ficas e memorialísticas, numerosos são os tex- gem, os professores e o conhecimento. Fala de
tos da literatura brasileira cuja marca de escrita um turbilhão que arrasta a criança de cinco
principal é permitir a reflexão do autor sobre anos, pela primeira vez levada à escola. As pri-
seus próprios itinerários. Para a via de compre- meiras frases de seu livro expressam o signifi-
ensão aqui sugerida, são a última década do cado dessa experiência: “Tenho que começar
século XIX e as primeiras décadas do século pelo curso H. É que vejo nele a origem dos meus
XX,no Brasil, e a instauração do projeto repu- tormentos, pelo menos do que será aqui meu
blicano que assistem à proliferação dessa pro- objeto: o amor e o ódio pela linguagem” (p.13).
dução literária. Incluem-se entre tais escritos Mais adiante, na mesma página: “Assim vou

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As leituras da própria vida e a escrita de experiências de formação

começar pelo curso H. Até então tinha sosse- tes, quando afirma no Discurso do método:
go. Foi lá meu martírio”. O autor evoca a sua “gostaria de mostrar, neste Discurso, que ca-
vontade de não falar, do prazer infantil que ex- minhos segui; e de nele representar a minha
perimentava em guardar silêncio e do sonho vida como num quadro, para que cada qual a
daquele tempo, que era escolher uma profissão possa julgar e para que, sabedor das opiniões
na qual não fosse preciso quase falar. O psica- que sobre ele foram expendidas, um novo meio
nalista, autor de Vocabulário de psicanálise, de me instruir se venha juntar àqueles de que
reflete então: costumo servir-me” (p.53). Para o autor, que
E hoje, no entanto, toda a minha atividade
retoma Descartes, a dimensão autobiográfica
profissional, que eu quis diversificada, diz comparece, hoje, na ciência associada a novos
respeito unicamente à linguagem: exerço a modos de sobrevivência. Ele sinaliza que esta
psicanálise, edito livros e uma revista, leio se associa “a uma outra forma de conhecimen-
manuscritos, escrevo de vez em quando, às vezes to, um conhecimento compreensivo e íntimo que
traduzo. Eis-me assim, mais que a maioria, um não nos separe e antes nos una ao que estuda-
homem ocupado, em terrenos diferentes, por um mos” (p.53). Em algum sentido para ele “todo
mesmo objeto: as palavras” (PONTALIS, 1988, conhecimento científico é auto-conhecimento”
p.13-14). e, por conseqüência, todo desconhecimento é
O primeiro capítulo do livro chama-se “O auto-desconhecimento. A consideração de tais
amor pelo colégio”. Nele, seu autor menciona- idéias aqui deve servir para que uma vez mais
rá também outro início que não o curso H: “As se lembre os motivos da escrita autobiográfica.
coisas mudaram radicalmente com a entrada Ao participar da intenção de explicitar-se a si
no Lycée Pasteur” (p.20). E, mais adiante, re- próprio numa obra de caráter memorialístico ou
fletindo sobre a infância, diz: literário, freqüentemente aspira-se a produzir um
conhecimento da realidade social e das ações
Há trechos inteiros que não suscitam em mim
humanas, de algum modo generalizável.
nem saudade nem emoção. Ou se nostalgia
existe, ela é de uma natureza bem particular: é,
No quadro das produções literárias brasilei-
tratando-se do colégio, a de um mundo fechado, ras desde o século XIX, principalmente, encon-
ao mesmo tempo minuciosamente ordenado e, tram-se obras que, nesse período, afirmam as
no interior deste fechamento, desta ordem, desta características da “literatura confessional”, fiel
economia regulamentada, permeado por uma às novas expressões modernas nas quais os
vida extraordinariamente aberta, móvel e sujeitos filiam a compreensão de si às narrati-
múltipla... A diversidade, eu a encontrava tanto vas que proporcionam uma espécie de ancora-
em nossos professores quanto em meus douro para o entendimento e a justificação de
colegas... (PONTALIS, 1988, p.21). seus atos. Há obras cuja presença é bastante
E, por fim, ao comparar o curso H e o colé- recorrente quando se pretende procurar rela-
gio, ele lembra que “no colégio em vez de sub- ções entre “a escrita de si” e as questões liga-
meter-me às arbitrárias regras do jogo, eu via das à formação.
nessas regras um jogo” (p.26). Na história de Tal é, por exemplo, o caso do livro de Raul
Pontalis, a iniciação só se torna feliz quando ele Pompéia, O Ateneu, editado pela primeira vez
encontra sentido no jogo dos comportamentos, em 1888 e que apresenta as experiências de
da língua e do conhecimento, enfim, do mundo vida escolar de Sérgio, um menino que vivia
escolar, e atinge o apogeu quando ele se vê no Rio de Janeiro. Muito já foi dito sobre a
capaz de compreender a lógica da disciplina e obra e o retrato que esta mesma oferece da
das disciplinas na escola. dinâmica no internato de um colégio, na apre-
Talvez valha a pena lembrar, como o faz ensão de um menino de dez anos. Nomeado
Boaventura Souza Santos (1987), o caráter au- por seu autor como “uma amarga crônica de
tobiográfico dos escritos científicos, que pode saudades”, o livro permite testemunhar signi-
ser capturado mesmo nas palavras de Descar- ficativos momentos de uma história de forma-

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Denice Barbara Catani

ção desde antes da escola, nas experiências retomam experiências de formação e foram
que nomeia como as do “aconchego placentá- produzidas por escritores que escreveram ou-
rio da dieta caseira” até os episódios nos quais tros livros e as autobiografias de intelectuais,
são dados a conhecer o melhor e o pior da escritores, artistas e professores nos quais o
vida no internato. Raros são os temas da for- tema aparece. O interesse trazido por esses
mação e da escolarização que não se encon- escritos está justamente na possibilidade de
tram mencionadas na obra. Evidentemente, o compreender como são vividas e traduzidas a
que se pode apreender da obra refere-se tan- experiências ligadas ao aprendizado formal e
to a informações sobre o funcionamento das informal, na escola como em outras instâncias.
instituições escolares no período imperial bra- Mas, o interesse é principalmente pela tradu-
sileiro quanto os indícios dos sentidos que os ção dos significados e formas de viver a esco-
sujeitos conferem a processos e experiências larização, daí a idéia de uma “história das
formadores. Nesse aspecto o que está em relações com a escola”.
jogo, é certo, não é uma questão da veracida- Tanto quanto O Ateneu, de Raul Pompéia,
de dos relatos ou de seu caráter ficcional. em obras como Infância, de Graciliano Ramos,
A este propósito, o estudo de Antonio Viñao literato bastante reconhecido no país, pode-se
Frago, “Las autobiografias, memorias e diarios encontrar a reconstrução das memórias do
como fuente histórico-educativa: tipologia y menino, que narra desde as suas experiências
usos” examinou extensivamente as possibilida- inaugurais com o aprendizado das letras, sob a
des de recurso a tais fontes, as suas caracterís- direção enérgica e quase violenta do pai, pas-
ticas internas e as relações entre tais textos e a sando pelas intervenções mais amenas da mãe
construção dos argumentos histórico-educaci- e de uma das irmãs até chegar o momento de
onais. No estudo de Viñao apresenta-se ainda ser acolhido na escola. Também aí, segundo seu
uma alternativa de diferenciação dos diversos relato, pleno de referências às ressonâncias
tipos de literatura ligada à memória. De acordo emocionais, o aprendizado era sofrido.
com ele e para os fins de sua análise, embora A atenção para com a literatura autobiográ-
sejam de grande interesse para os historiado- fica produzida, especialmente por professores,
res “as novelas, obras de teatro ou relatos que aporta uma contribuição da mesma natureza,
versam ou têm por tema central algumas insti- mas acresce-se pela dimensão ligada ao traba-
tuições determinadas ou atividades educativas lho. Não só estão em cena, nessas produções,
(...) os anos de infância, adolescência e juven- os sentidos atribuídos às experiências de apren-
tude”, ele concentra sua atenção nas autobio- dizado, formação e escolarização, mas também
grafias, memórias e diários em sentido estrito. aquelas relacionadas à escolha e experiências
Adverte, no entanto, que o “limite entre a nove- do exercício de uma profissão. Desentranha-
la autobiográfica e a autobiografia ‘novelada’ se da escrita dessas obras modos de seleção
é, muitas vezes, impreciso, a não ser que se com o trabalho, representações, valores e deci-
remeta às intenções ou vontades do autor” sões que impregnam a orientação da vida es-
(2000, p.83). As observações são importantes colar, além de elementos úteis para que se
quando se atenta para a multiplicidade de obras compreenda a história da profissão dos profes-
que aportam referências às dimensões autobi- sores. 4
ográficas, propõem-se incursões memorialísti- Da leitura da produção memorialística des-
cas ou visam a registrar experiências vinculadas ses profissionais configuram-se linhas narrati-
à formação.
No caso brasileiro, embora não se possa ain- 4
Relativamente à análise e comparação de escritos autobi-
da formular uma tipologia dessas obras, vez que ográficos de professores, cabe referir a análise de Paula
sua localização e identificação ainda está em Perin Vicentini e Carla Marisa Rodrigues (2004), no qual se
buscou examinar distâncias e proximidades entre os modos
curso, pode-se reconhecer a abundância de in- de referência à profissão presentes em algumas obras produ-
formações advindas das obras literárias que zidas na primeira metade do século XX.

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As leituras da própria vida e a escrita de experiências de formação

vas que se integraram progressivamente aos É evidente que, desses investimentos de for-
modos de propor a formação e trabalho no cam- mação participam tanto as iniciativas de elabo-
po educacional. Por que os professores escre- rar uma história da educação atenta às suas
vem suas memórias? Pois bem, para além da relações com as narrativas memorialísticas e
motivação mais intensa e partilhada pelos vári- reflexivas sobre a sua própria condição de re-
os tipos de escrita autobiográfica, aquela que lato, quanto participam as iniciativas que pro-
diz respeito à auto-compreensão ou à esperan- pugnam pela retomada das experiências de vida
ça de uma reinterpretação de si mesmo ou até ou histórias dos sujeitos nos processos pedagó-
mesmo às dimensões formadoras dessa escri- gicos. Dessa última alternativa fazem parte os
ta, talvez essa literatura se ofereça como a pos- esforços de produção das histórias de vida es-
sibilidade de expressão artística que se põe ao colar, narrativas ou relatos de formação, exer-
alcance desses profissionais. Por outro lado, não cícios de reflexão sobre itinerários vinculados
deixa de ser significativa a aproximação entre aos processos educacionais que, no âmbito do
esses esforços de compreensão de si e o pró- preparo para a docência têm sido férteis ao
prio trabalho educativo, em vários sentidos o potencializar o desenvolvimento de uma aten-
trabalho de formação é também um trabalho ção arguta para com as várias dimensões das
de / com memórias e narrativas. E essa aproxi- relações pedagógicas, da vida escolar, do de-
mação não pode passar despercebida ao se fa- senvolvimento da autonomia intelectual e da
lar da escrita dos professores. Mas, de qual constituição de projetos individuais e coletivos.
memória articulada à formação se pode falar A idéia central que sustenta as apostas no
nessas condições? Talvez, de uma relação com recurso às narrativas memorialísticas como dis-
o passado que, como sustenta François Dosse positivos de formação parece ancorada no re-
(2001), a propósito das exigências de trabalho conhecimento, bem expresso, por alguns
semelhantes demandadas ao psicanalista e ao autores, a propósito do papel nuclear do relato
historiador, nos levam a considerar, na tarefa na constituição do sujeito:
pedagógica, o lugar sui-generis da intervenção. Uma parte relevante da filosofia atual – sob di-
A propósito das atividades da análise e da his- versos ângulos – tem fundamentado conceitual
tória, diz ele: e epistemologicamente a narratividade, ao en-
tender a vida como um relato, sujeito à contínua
O historiador, assim como o analista, está dian-
revisão. A metáfora básica empregada por esses
te da mesma aporia. Nenhum dos dois pode res-
enfoques narrativos derivada da literatura e da
suscitar o passado a não ser por meio da medi- hermenêutica é que as pessoas são “tanto escri-
ação de seus vestígios. É tão impossível ao tores como leitores do seu próprio viver” (BOLÍ-
analista ter acesso ao real quanto é impossível VAR, 2001, p.88).
ao historiador ressuscitar a realidade do passa-
do. Ambos precisam segurar as duas extremi- Para tais posições, uma das teses centrais
dades da cadeia: a realidade externa e seu im- “é entender a vida como um texto (mental, es-
pacto interno, para tentar abordar seu objeto” crito ou falado) que nos relatamos a nós mes-
(p.293). mos ou aos outros” (BOLÍVAR, 2001, p.89) e
submetemos sucessivamente à exegese, inter-
Entendida a formação, assemelhando-se,
pretação e reformulação. Sem que se partilhe
aliás, à maioria das intervenções na área das
ciências humanas, na ordem das possibilidades extensivamente o pensamento de Paul Ricoeur,
do sujeito construir narrativas que assegurem a sabe-se que subjacente a tais teses sobre a nar-
autonomia das suas relações entre “a realidade ratividade, permanecem seus argumentos ex-
externa e seu impacto interno”, a tarefa peda- planados de modo exemplar entre outras obras
gógica percorrerá esse estreito espaço da cons- em Soi-même comme um autre (1990) pela sua
tituição das memórias coletivas e individuais e Autobiografia intelectual (1997).
da renovação dos relatos capazes de assegura- Na perspectiva descrita e tendo presente o
rem a vida social. caráter das relações entre memória, narrativa

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Denice Barbara Catani

e escrita autobiográfica, no que tange às pro- são, talvez decorrente dos postos que seus au-
duções dos professores, no ensaio “‘Minha vida tores alcançaram no magistério, contrastando
daria um romance’”: lembranças e esquecimen- com as narrativas femininas que, embora te-
tos, trabalho e profissão nas autobiografias de nham reiterado a importância da profissão em
professores” busca-se dar conta de evidenciar suas vidas, evidenciaram uma tentativa de in-
as contribuições desses materiais para a análi- terferir na realidade de formas distintas.
se aqui proposta (CATANI; VICENTINI, Enquanto Botyra Camorim, na obra mais
2003). Observe-se que, do exame de dois li- antiga analisada aqui (1962), ao privilegiar a
vros escritos por professores que terminaram a descrição dos sacrifícios que marcaram a en-
sua carreira como inspetores do ensino – Me- trada na profissão, deixava entrever a sua in-
mórias de um mestre-escola, de Felício Mar- tenção de alterar a atitude dos “maus inspetores
mo (1974), e Reminiscências de um professor de ensino” e de denunciar as péssimas condi-
aposentado, de Afonso Sette (1973) – e dois ções de trabalho existentes nas escolas isola-
de professoras que passaram a maior parte da das, Felicidade Nucci, cuja autobiografia foi
vida profissional na sala de aula: Memórias de publicada em 1985, ao constituir uma narrativa
uma mestre-escola, de Felicidade Arroyo Nucci rica do ponto de vista da descrição de seu coti-
(1985) e Uma vida no magistério, de Botyra diano em sala de aula, buscava conformar as
Camorim (1962). Coincidentemente, os profes- práticas das jovens professoras por meio de seu
sores aposentaram-se antes da década de 1940, exemplo e da tentativa de produzir um diálogo
ao passo que as duas professoras atuaram no entre passado e presente e de, assim, conciliar
sistema educacional paulista durante o mesmo o tempo da escrita com o do exercício da pro-
período – entre os anos 30 e 60 do século XX – fissão, comentando, por exemplo, a existência
, presenciando, dessa forma, as mudanças con- de um programa de educação sexual na televi-
cernentes às práticas reivindicatórias da são e recordando-se de sua atitude diante de
categoria que, a partir do final dos anos 1950, um comportamento abusado de um aluno de
passou a protestar contra os baixos salários e outrora.
as péssimas condições de trabalho mediante a A integração das referências a tais obras,
realização de passeatas e atos públicos que pro- nesse momento, busca permitir que se chame a
curavam afirmar a imagem do docente como atenção para os modos pelos quais os profes-
um profissional (não mais um sacerdote) que sores-escritores ordenam suas memórias e pro-
deveria ser bem remunerado. duzem assim a compreensão de suas vidas.
Os escritores-professores privilegiam nes- Produzem-se peças de escrita em que eles,
sas obras o início na profissão e constroem qua- como representantes autorizados da transmis-
dros significativos de suas relações com os são das habilidades de escrever, mas confina-
alunos e as comunidades onde trabalharam. Sem dos num espaço social que os define como
retomar aqui o conjunto das especificidades de “servidores remotos do saber”, no dizer de al-
cada uma das obras, vale assinalar que os rela- guns, operam entre os esforços de dotar de sen-
tos masculinos, publicados quase no mesmo tido pessoal e coletivo o seu trabalho, de
período (1973 e 1974), caracterizaram-se pela testemunhar a relevância da ação educativa e
descrição de métodos pioneiros e por um certo de instaurar para si uma auto-representação
silêncio com relação às dificuldades da profis- legítima e reconhecida (a do escritor).

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Recebido em 30.05.05
Aprovado em 08.08.05

40 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 31-40, jul./dez., 2005
Elizabete Santana

MOVIMENTOS E TEMAS DOMINANTES


NOS PROCESSOS DE AUTOFORMAÇÃO DE A. S. NEILL

Elizabete Santana*

RESUMO

O artigo reproduz parte do quarto capítulo da tese Autoformação: caminho,


compromisso e luta dos profissionais da educação - uma pesquisa qualitativa
que utiliza o método de estudo de caso e adota como fonte de informações a
história de vida construída a partir de relatos autobiográficos. Relata as
estratégias e recursos utilizados por Alexander S. Neill, fundador da escola de
Summerhill, em seus processos de autoformação. Aponta os movimentos e
temas dominantes na história do “pedagogo” e oferece elementos para uma
comparação com a história de formação de outros professores e pedagogos.
A análise é parte de um procedimento de triangulação de fontes para identificar
a existência de pontos de convergência, de similaridades e permanências nos
processos de formação vivenciados por profissionais da educação, em diferentes
situações e em variados contextos culturais.
Palavras chaves: Autoformação – Formação de professores – História da
educação

ABSTRACT

MOVEMENTS AND DOMINANT THEMES IN A.S. NEILL’S SELF-


DEVELOPMENT PROCESSES
The article reproduces part of the fourth chapter of the thesis Self-development:
pathway, commitment and struggle of educational professionals – a
qualitative research that uses the method of case study and adopts as source
of information, the history of life built up from autobiographic testimonials. It
reports the strategies and resources used by Alexander S. Neill, the founder of
Summerhill School, through his process of self-development. It points out
movements and dominant themes in the history of the “pedagogue”, and offers
elements for a comparison with the history of development of other teachers
and educators. The analysis is part of a triangular procedure of sources which
aims to identify the existence of points of convergence, similarities, and
permanence in the development processes experienced by educational
professionals in different situations and varied cultural contexts.

Key words: Self-development – Teacher development – History of education

* Mestre em Educação pela UFBA e Doutoranda da Universidade de Barcelona. Professora Adjunta do Departamento
de Educação do Campus I – UNEB. Membro do Grupo de Pesquisa Memória da Educação na Bahia. Endereço para
correspondência: Departamento de Educação I - UNEB, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 Salvador/
BA. E-mail: ecsantana@atarde.com.br

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 41-53, jul./dez., 2005 41
Movimentos e temas dominantes nos processos de autoformação de A. S. Neill

1. Introdução A existência de pontos de convergência, de


similaridades e permanências nos processos de
Apesar dos avanços observados nas três formação vivenciados por diferentes pessoas,
últimas décadas (BROCKETT e HIEMSTRA, em diferentes situações e em variados contex-
1991; CARRÉ, 1995; CARRÉ e MOISAN tos culturais, foi uma preocupação desde o de-
2002) ), ainda há um grande caminho a percor- lineamento do projeto, o que implicou na adoção
rer para conhecer e explicar a autoformação. de uma perspectiva de triangulação de fontes,
No limiar do século XXI, Brockett (2000) rea- de modo a confrontar as histórias dos profes-
firma a necessidade de continuar os esforços sores exemplares com outras histórias.
para integrar os conhecimentos já construídos Considerando o ponto de vista sobre trian-
sobre aprendizagem autodirigida, desenvolver gulação e validação de pesquisas qualitativas
novos caminhos para mensurar autodiretivida- de autores como Stake (1999, p.94-101), foram
de e realizar estudos em uma perspectiva natu- investigados três grupos de casos – o das pro-
ralística utilizando uma abordagem qualitativa. fessoras exemplares, envolvendo quatro profes-
É nesse esforço de ampliação de conheci- soras, o das professoras de uma escola
mentos que a pesquisa Autoformação: cami- municipal da cidade de Salvador e o dos peda-
nho, compromisso e luta dos profissionais da gogos ilustres que consistiu na análise das his-
educação se insere. Considerando estudos como tórias dos pedagogos Célestin Freinet, Alexander
o de Font-Harmant (1995) e Demol (1995) to- A.S. Neill e Carl Rogers.
mou como ponto de partida a suposição de que O caso dos pedagogos ilustres foi incluído
as razões declaradas, as estratégias e recursos no estudo com a pretensão de verificar se con-
utilizados e as circunstâncias que cercam o con- textos culturais e períodos históricos diferentes
texto de vida são elementos para reconstituir as implicam em diferenças substanciais nos pro-
lógicas adotadas pelos professores ao empreen- cessos de autoformação dos professores. Para
derem processos de autoformação. esse caso, os dados foram levantados em tex-
A preocupação com a autoformação em uma tos autobiográficos ou biográficos.
perspectiva sociológica, sem excluir as suas di- Assim, a pesquisa adquiriu a característica
mensões pedagógica e psicológica, recomenda- de um estudo de casos múltiplos.
va o estudo de mais de um professor. A intenção
foi investigar histórias de vida individuais para
descobrir as pautas que, de modo geral, estão 2. Fontes para a identifica-
presentes na autoformação dos professores con- ção dos temas e movimentos do-
siderados como um grupo profissional. minantes nos processos de
Em tal propósito estava implícita a idéia de autoformação de A. S. Neill
que “uma autobiografia contém, pois, elemen-
tos biográficos e coletivos. Ainda que sejam A história de Alexander Sutherland Neill, que
externos têm uma repercussão sobre a pessoa. serviu de base para identificar os movimentos
São documentos de uma época, de uma situa- e temas dominantes do seu processo de auto-
ção social, de um grupo ou classe social e de formação, foi construída a partir da sua autobi-
um gênero determinado. É a vida de muitas vi- ografia, que foi publicada originalmente em 1972,
das. (MIGUEL, 1996, p.26). sob o título Neill, Neill, Orange Peel, que
Como método, foi adotado o estudo de caso mereceu uma explicação do pedagogo.
do tipo instrumental de acordo com a definição Em uma nota introdutória redigida em 1972,
de Stake (1999, p. 16), uma vez que o objetivo data da publicação da edição inglesa, Neil conta.
principal não era a compreensão dos professo- Faz alguns anos, Hetney, um menino de Sum-
res em si, mas ampliar o conhecimento existen- merhill, caminhava murmurando: “Neill, Neill,
te sobre os processos de autoformação desse Orange Peel” [Neill, Neill, casca de laranja]. A
grupo profissional. frase teve êxito e perdurou mais de vinte e cinco

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Elizabete Santana

anos. Atualmente os meninos me seguem can- a) Movimento de fragmentação da for-


tando essas palavras, e minha reação habitual é mação escolar e insucesso na infância e na
responder-lhes: “Equivocaram-se de novo, não adolescência. Durante a infância, Neill teve
é orange peel e sim banana peel”.
dificuldades em avançar na escola, causando
Parece-me que essa rima resume bem a minha
vida com as crianças. (NEILL, 1976, p.9, grifo do decepção aos pais que eram professores e va-
autor).1 lorizavam o sucesso escolar.
Aos quatorze anos, em razão dos seus fra-
Neill republica sua autobiografia, aos 89 anos, cassos e das finanças da família, que sofriam
cerca de 70 anos depois de ter iniciado, as conseqüências da manutenção do irmão mais
precocemente, a sua vida profissional como velho na Universidade de San Andrés, é afas-
aprendiz de professor, e 51 anos depois de ter tado da escola para assumir um emprego longe
criado, na Alemanha, a escola que dá origem a da casa dos pais, em Edimburgo, cidade distan-
Summerhill. te de Kingsmuir, onde vivia.
Além da autobiografia propriamente dita, Aí trabalha em uma fábrica de medidores
escrita desde 1939 e não divulgada, foram le- de gás e mora com o irmão de dezesseis anos,
vantadas informações complementares no pri- que também trabalha na cidade. Sofre pelo afas-
meiro livro escrito por Neill, O Diário de um tamento de casa e de seu grupo de amigos.
mestre, publicado em 1915, e em cartas publi- Muitos anos depois, declara: “Pela primeira
cadas no Times. Os referidos materiais foram vez em minha vida conheci a nostalgia. Dedi-
incorporados à obra autobiográfica, mas cons- quei-me a escrever cartas cheias de queixas a
tituem capítulos independentes. minha família, até que finalmente minha mãe
Trata-se de uma autobiografia marcada por chegou e permaneceu dois dias”. (NEILL, 1976,
muitas recordações de infância, através das quais p. 58).
Neill revela seus medos e inseguranças na idade Após sete meses, a família permite a sua
infantil e na adolescência, principalmente em re- volta para casa, onde junto com o irmão come-
lação a seu pai, que também foi seu professor ça a estudar com a orientação do pai para pres-
até a idade de quatorze anos, quando deixa de tar exames e ingressar na administração pública.
ser aluno para se tornar aprendiz de professor Neill considera que “Comparado com o inferno
na própria escola onde estudou. de Edimburgo, estudar todo o dia em Kings-
Para complementar o levantamento de in- muir me parecia o paraíso (...). Porém a histó-
formações foi utilizada ainda a obra O Novo ria se repetiu: Não podemos nos concentrar”.
Summerhill, uma compilação realizada por Al- (NEILL, 1976, p.58).
bert Lamb, um ex-aluno de Neill.2 Depois de novo fracasso, é obrigado a as-
sumir um segundo emprego no pequeno comér-
cio de Forfar, próximo a Kingsmuir.
3. Os movimentos e temas
Eu odiava o negócio da venda de tecidos.
Todos esses materiais permitiram usar a pró- Permanecia de pé desde as sete e meia da manhã
pria voz do pedagogo para compor a sua histó- até as oito da noite, depois devia percorrer três
ria do nascimento, em 1883, até o ano de 1924, quilômetros de volta para a casa. Como usava
botas pesadas, a articulação dos dedos (...) do
quando se instala em Summerhill. A partir des-
pé inflamaram e gradualmente enrijeceram
sa história, foram identificados três amplos
(estado em que se encontram atualmente). Meus
movimentos que caracterizam o processo de dedos pioraram tanto que tive de abandonar o
autoformação de Neill.
O primeiro grande movimento é mar- 1
É nossa a tradução das citações retiradas das obras para as
cado pelo cultivo de um sentimento de in- quais foram utilizadas edições em língua estrangeira.
2
sucesso escolar e nele se destacam os seguintes A escola de Summerhill ainda se encontra em funcionamen-
to e atualmente é dirigida por Zoe Neill, filha de Neill. Para
movimentos menores: mais informações ver http://www.summerhillschool.co.uk/

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 41-53, jul./dez., 2005 43
Movimentos e temas dominantes nos processos de autoformação de A. S. Neill

emprego. Fiz isto com alegria e garanti a meu pai com a profissão docente - Aos quinze anos,
que tinha tomado juízo e me escravizaria para Neill começa a sua aprendizagem de profes-
preparar os exames para a administração pública. sor em uma escola multisseriada, que descre-
.... ve assim:
O antigo problema surgiu de novo. Minha
concentração não havia melhorado nada e, pela … a escola de Kingsmuir era um edifício de dois
terceira vez, meu pai se desesperou. (NEILL, 1976, cômodos que se dividia em duas salas de aulas,
p. 59-60). uma grande e outra pequena. Na sala grande meu
pai ensinava aos alunos, desde os do quarto
Como uma forma de compensar os seus fra- grau até os que haviam passado ao sexto ano. A
cassos e a sua falta de inclinação para os estu- ‘senhorita’ ensinava aos menores na sala menor.
dos, a família providenciou a sua aceitação como (NEILL, 1976, p. 23).
aprendiz de professor na escola que seu pai di-
Como aprendiz do pai, vai trabalhar, portan-
rigia, a mesma onde estudou.
to, na sala dos alunos maiores.3 E, pelo que
Essa decisão significou o afastamento de
descreve nesse período, teve sobretudo a vi-
Neill da escolarização formal e resultou em uma
vência do manejo de uma classe multigradua-
mágoa que ele expressa várias vezes em tre-
da, da condução de atividades diferenciadas para
chos como esse:
cada um dos graus e da colaboração dos alu-
Com toda franqueza ainda não sei por que envi- nos mais adiantados na gestão dos trabalhos na
aram todos os meus irmãos à Academia. Clunie sala de aula (p.13).
era sagaz [esperta, perspicaz], porém não rece-
Neill mantém-se em contato com a prática
bia prêmios na escola, e minhas outras irmãs não
fizeram nada academicamente importante. pedagógica do pai, como aluno, na infância e
pré-adolescência e, entre os 15 e os 19 anos,
Só eu comecei e terminei a escola em Kingsmuir.
como aprendiz de professor.
Isto foi uma desgraça, porque permaneci por
demasiado tempo vinculado a meus antigos ami- Assim, essa foi a única prática que conhe-
gos e me impediu de confrontar [de considerar ceu durante uma boa parte da sua vida. Para
como igual] os rapazes mais refinados de Forfar; Neill, nesse período, aprender é reproduzir a
(NEILL, 1976, p. 22). forma de ser professor a partir da prática de
Os constantes fracassos de aprendizagem, seu pai. Não há referências a contatos indivi-
o reconhecimento do desagrado que a sua falta duais ou grupais com colegas e com outros pro-
de inclinação para os estudos causava aos pais, fessores durante a fase de aprendiz de professor.
as discriminações que sofria em relação aos ir- As lembranças da época de aprendiz se perde-
mãos e os castigos físicos produzem sentimen- ram (Figura 1). O pedagogo escreve:
tos de insegurança, de medo e de falta de afeto Não recordo bem minha época de aprendiz de
em relação ao pai. professor, porém, nas fotografias dos grupos
Neill cultiva durante a infância, a adolescên- escolares, apareço de pé, muito rígido e com um
cia e juventude um sentimento de incapacidade colarinho duro muito alto. Minha posição era
de aprender.
Internalizou um sentimento de permanente 3
De acordo com Neill, segundo as normas vigentes, o apren-
insucesso escolar, que se torna evidente quan- diz de professor podia submeter-se a um primeiro exame,
junto ao inspetor escolar, depois de dois anos de trabalho.
do encerra a reflexão sobre a sua falta de aces- Ao final de quatro anos, o aprendiz podia fazer um exame
so à academia, dizendo: “porém a academia não para ingressar na Escola Normal. Se era aprovado, com uma
qualificação de primeira classe, passava automaticamente a
teria contribuído muito para a minha educação, ser um normalista e estudava dois anos em Glasgow ou em
pois, seguramente, eu ocuparia os últimos luga- Edimburgo. Quando havia vagas suficientes, o aprendiz que
obtinha uma qualificação de segunda classe também podia
res em todas as classes”. (NEILL, 1976, p. 22). freqüentar a Escola Normal. Uma qualificação de terceira
b) Movimento voltado para o exercício classe impedia totalmente de ter acesso à Escola Normal e
impossibilitava a ascensão na carreira. Ao final de quatro
de atividades de ensino, como aprendiz de anos como aprendiz, Neill obteve uma qualificação de ter-
professor, sem um sentimento de implicação ceira classe, causando uma nova decepção ao pai.

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difícil porque devia estar ao lado da autoridade de brincar. Meu papel era de um jovem rapaz que
quando ainda não tinha superado meu desejo simulava ser homem. (NEILL, 1976, p.61).

Figura 1. Neill em sua fase de aprendiz de professor.


Fonte: Disponível em: http://www.summerhillschool.co.uk/pages/photo_gallery.html
Acessado em: 22 jan. 2005

Como um fator que interfere na recorda- positivos da prática pedagógica do pai, tam-
ção, deve-se considerar o medo do pai, que sen- bém vão sendo construídos, pela reprodução,
tia na vida familiar e escolar, e que também sentimentos e procedimentos que ele só con-
esteve presente em toda a sua trajetória de segue abandonar ou minimizar muitos anos
aprendiz, como revela o trecho abaixo. depois. Entre esses, estão a prática do casti-
go físico e o medo do inspetor constantemente
Para mim, é difícil lembrar esta época da escola,
porém devia dar aulas para ajudar a papai,
relembrados.
porque recordo que ensinava a pequenos Em geral, pode-se dizer que era uma escola feliz.
grupos de meninos e meninas a ler mediante o Às vezes meu pai usava o cinturão, em especial
método de ‘mirar e dizer o nome’ [sem olhar quando se irritava com os tontos [com dificulda-
novamente]. Descobri que a melhor maneira de des de aprendizagem], porque seu salário depen-
aprender é ensinar, (...). Creio que aprendi bem dia do número de estudantes de quinto ano que
minha profissão porque imitei a meu pai e ele conseguiam passar de curso (...). À medida que
era um bom professor: sabia fazer o aluno pensar se aproximava o dia da chegada do inspetor, meu
e não só enchê-lo de conhecimento. Eu ainda pai se sentia cada vez mais descontente, os gol-
não conseguia agradar a meu pai, que se sentia pes [físicos] se tornavam mais freqüentes e mais
inclinado a tratar-me mais como um aluno do fortes. Por medo de ser acusado de favoritismo,
que como aprendiz de professor. Embora não castigava a seus filhos tão severamente quanto
me castigasse fisicamente diante dos meus aos outros meninos, e eu recebia mais castigos
alunos, eu ainda tinha medo. (NEILL, 1976, (...). Por chamar-me Neill, devia manter-me longe
p.60). dos meninos maus. (NEILL, 1976, p. 23).
Além da construção de uma forma de ser Mais de cinqüenta anos depois, em uma car-
professor pela imitação dos aspectos mais ta ao TIMES, datada de 6 de janeiro de 1967,

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Movimentos e temas dominantes nos processos de autoformação de A. S. Neill

Neill afirma: “Meu pai tinha quatro grupos [alu- escola em Leith e ficaram noivos. (NEILL, 1976,
nos de diferentes graus] em uma sala. Aprendi p. 13).
meu ofício observando como ensinava. Apren- Tendo usado o estudo como estratégia para
di o sistema com todos os seus defeitos e virtu- mudar a sua condição, desejavam para Neill e
des. Freqüentemente me pergunto se com um seus outros filhos mais do que eles mesmos ti-
título teria sido um professor melhor”. (NEILL, nham alcançado.
1976, p.358).
A Academia de Forfar era o degrau para chegar
Um segundo movimento corresponde à ao ensino superior. Para meu pai, progredir na
adoção de uma postura de autoformação ain- vida significava avançar nos estudos.
da distanciada de uma intenção diretamen- Devíamos ser profissionais e Willie [o irmão mais
te relacionada com o aperfeiçoamento das velho] nos indicava o caminho. Na Academia foi
atividades de professor. Percebe-se, então: o primeiro em sua classe na maioria das matérias
a) Um movimento de construção de uma e recebeu uma medalha de ouro (...). Quando
forma de ser, envolvendo a aprendizagem chegou a minha vez de ir para a Academia, se
abstiveram de enviar-me. De toda a família só eu
informal de conhecimento intelectual e cul-
não freqüentei a Academia. A triste verdade é
tural e de habilidades de convívio social. que teria sido inútil enviar-me para lá porque
Trata-se de um movimento amplo que tem iní- naquela época eu não poderia aprender nada.
cio no período de aprendiz de professor – entre (NEILL, 1976, p. 21).
os quinze e os dezenove anos, ou seja, de 1898
a 1902, e continua posteriormente. Diante desta e de outras exclusões, Neill vai
Deste movimento fazem parte outros inicia- cultivando um sentimento de inferioridade e de
dos ainda durante a infância e que se mantive- falta de crença em suas possibilidades de apren-
ram ao longo de sua vida ou em uma boa parte der. Também ia articulando essa incapacidade
dela. aos maus tratos que recebia, especialmente, do
b) Internalização de um sentimento de seu pai.
incapacidade de aprender e mágoa por ser Sua baixa estima por si mesmo e sua ex-
excluído da escolarização formal. pectativa de reconhecimento dos pais ficam
Vários trechos da autobiografia demonstram expressas em frases como esta: “Minha inca-
o reconhecimento do próprio fracasso escolar pacidade de aprender latim enojava a meu pai;
e minha impossibilidade de memorizar duas li-
e um sentimento de exclusão em relação aos
nhas de um salmo causava a minha mãe mais
outros irmãos em vários aspectos da sua vida.
tristeza do que desgosto”. (NEILL, 1976, p. 24).
A importância que ele mesmo atribuía a esse
c) Movimento de desvalorização da pro-
fracasso aumentava diante do valor que seus
fissão docente exercida no meio rural e cul-
pais atribuíam à escola como fator de promo-
tivo de um esnobismo, que segundo ele
ção social. Segundo Neill, seus pais usaram a mesmo, foi herdado da mãe.
escolha da profissão de professor como estra- Ser professor em uma pequena cidade ou
tégia para fugir da condição social que afetava povoado não era uma profissão valorizada na
suas famílias. família de Neill. Isso é evidente nas reações
dos pais, quando reconhecem a sua impossibili-
Todos meus tios trabalharam nas minas de
dade de se preparar para o exame de acesso a
carvão, mas meu pai era feito de um barro mais
fino. Gostava de estudar e lhe enviaram para que
um emprego na administração pública:
se tornasse aprendiz de professor (...) - Esse menino não tem remédio – afirmou
Minha avó (...) trabalhou como empregada meu pai com tristeza.
doméstica (...). Não sei como minha mãe, sua - Poderia ser professor – se aventurou a di-
única filha, se meteu a professora. Isso deve ter zer minha mãe.
significado tremendos sacrifícios para a avó. - Só serve para isso – afirmou meu pai tris-
Meu pai e minha mãe ensinavam na mesma temente e sem sorrir. (NEILL, 1976, p. 60).

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Em conseqüência, os quatro anos de apren- irmãos tinham sido enviados para estudar mú-
dizagem representam um castigo a mais. Não sica (...). Por que só eu não recebi ensino mu-
funcionam como iniciação profissional. E pare- sical? Não sei”.(NEILL, 1976, p 63).
cem ser considerados como uma experiência Aprende matemática com:
que deveria ser deixada para trás. Sobre esse Ben Thomson, professor de matemática da Aca-
momento da sua vida, Neill escreve: “Por en- demia [de Forfar] e, depois, seu reitor. Quando
quanto, minhas ambições pareciam estar laten- me deu lições particulares, me infundiu um ge-
tes. O futuro não existia, possivelmente porque nuíno amor à matéria, o que explica porque per-
não me atrevia a contemplar o futuro de um tenço a essa estranha raça que pode resolver
mestre sem êxito nem esperanças de melhorar. problemas algébricos e geométricos enquanto
Esqueci o que sonhava por esta época”. (NEI- viaja de trem. Ben era um amigo fiel. Me deu
LL, 1976, p.65). gratuitamente a maioria das lições e mais tarde
No capítulo da sua autobiografia - Em bus- me ajudava pelo Correio quando eu tinha difi-
culdades com a matéria. (...). Em sua época, a
ca da sociedade e da cultura -, ele descreve
Academia de Forfar produziu muitos matemáti-
as estratégias que utilizou para completar a sua
cos brilhantes. (NEILL, 1976, p.64).
formação cultural e para desenvolver as habili-
dades requeridas no convívio social. Eram es- Portanto, ao lado das aprendizagens sociais
tratégias destinadas a permitir sua inserção em há também a ampliação do conhecimento em
um outro grupo social. áreas específicas, como é o caso da matemáti-
ca. Isso indica um movimento de preparação
Como filhos de professores, nossa posição so-
cial era baixa e as boas famílias de Forfar não nos para os exames a que os aprendizes deveriam
‘conheciam’. Além do mais, não tínhamos dinhei- submeter-se para progredir na carreira de pro-
ro, nem podíamos dar festas ou assistir a atos fessor.
sociais. Compreendíamos que nos consideravam d) Continuidade e expansão das apren-
estranhos. Isso não importava a Willie e a Neilie dizagens informais, avanço na carreira de
[irmãos], porque não eram esnobes (...). Eu era professor e aspiração por uma formação
mais ambicioso. (NEILL, 1976, p.62). universitária, apesar da indefinição profis-
Junto com seu irmão Neilie, entra para um sional.
clube de Artes Gráficas: Após os quatro anos como aprendiz de pro-
… o que era conveniente para Neilie, porque re- fessor, Neill realiza sucessivos exames e ob-
almente era um artista, e a mim, porque poderia tém o título de professor certificado. Sai da
ser útil como possível porta de acesso à socie- escola de Kingsmuir, vai ensinar em Kinskettle,
dade (...). Uma dama do clube se interessou por próximo a Edimburgo onde permanece três
mim. Ela e suas irmãs se portaram com muita anos, depois para Newport, um subúrbio de
amabilidade. Convidaram-me a sua casa (NEILL, Dundee, onde ensina até o ano de 1908.
1976, p.62).
Durante esse período, continua as aprendi-
Assim, aprende as boas maneiras e come- zagens informais sobre o sistema de ensino nas
ça a escutar a música clássica: “Chopin e Schu- escolas onde ensina, especialmente sobre a ti-
mann, primeiro porque era sinal de bom gosto, rania dos diretores. Encontra novos mestres
porém, logo depois, porque a música me produ- para a aprendizagem de habilidades sociais e
zia prazer. Não me lembro de ter aprendido para as aprendizagens de disciplinas específi-
muito de outros temas culturais. Quando se cas Em Kinskettle aprende grego com o pas-
mencionavam livros na conversação ficava em tor local, pensando em preparar-se para
silêncio para não mostrar minha ignorância”. ingressar no clero.
(NEILL, 1976, p. 63). Da experiência em Newport diz:
Tenta aprender piano sozinho para corrigir Newport me oferecia a oportunidade de realizar
mais uma exclusão a que fora submetido pela meus sonhos mais esnobes. Em Forfar e em to-
família. Quanto a isto, comenta: “Todos os meus das as partes, meu nível social havia sido fixo;

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Movimentos e temas dominantes nos processos de autoformação de A. S. Neill

porém em Newport percebi que Willsher [Diretor Um ano depois de ter iniciado o curso de
da escola] e os outros professores eram bem re- Agronomia, decidiu cursar Língua Inglesa e aí
cebidos pelos cidadãos ricos, e até um ex-apren- permaneceu. Com dificuldades para se man-
diz de professor sem título universitário, como
ter, apesar da bolsa que conseguiu, Neill con-
eu, podia entrar na boa sociedade. Nessa época,
eu já tinha me submetido ao exame final e tinha cluiu o curso universitário, em 1911, aos 28
um certificado de professor. Isto explica porque anos.
ganhava 100 libras por ano (...). Em Newport, Não ensina durante todo esse tempo. En-
como disse, me relacionei com a alta sociedade. volve-se no jornalismo, passando a ser editor
Aprendi a comportar-me como um cavalheiro e do jornal universitário - The Student. Essa fun-
também a dominar todos os truques inúteis que ção facilita a sua participação em eventos cul-
estão inclusos na expressão boas maneiras. (NEI-
turais e sociais, sem custo para ele, que
LL, 1976, p.72, grifo nosso).
comenta: “Editar a revista, de certo modo, foi
Amplia seus horizontes e se beneficia das uma educação liberal. Tive que aprender de es-
atividades culturais existentes nesses locais mais paços entre linhas, ler provas e conhecer ou-
bem dotados do que o povoado de Kingsmuir, tros aspectos técnicos da impressão. Minha
onde vivera até os dezenove anos. posição me deu certo prestígio entre os estu-
Aprende a dançar, vai ao teatro, à opera, as- dantes, e pude conhecer homens interessantes”.
siste a concertos. Sobre esse período, afirma: (NEILL, 1976, p.85).
... e pouco a pouco consegui uma vida social Também escreve seus primeiros ensaios li-
satisfatória, graças à família Leng. (...) Por fim, terários para o periódico The Glasgow Herald.
havia alcançado minha desejada ambição: mo- Não foi um aluno brilhante: “Durante o
ver-me no círculo da alta sociedade (...). Sentia- meu último ano usei todo o meu tempo e inte-
me bastante contente com a minha vida social, resse para editar The Student (...) Obtive
porém também progredia culturalmente. Henry uma qualificação de segunda, e fiquei muito
Willsher, o diretor da escola, se converteu em
agradecido”.(p.86).
meu guia musical. Além de ser inteligente, escre-
via crítica de música para um periódico de Dun-
Ao fim do curso, permanece a indecisão
dee. (NEILL, 1976, p. 74). quanto à escolha das atividades profissionais e
Neill confessa: “Só sabia que não desejava
Esse foi um período de expansão de experi- ensinar: pensar que toda minha vida seria pro-
ência, de novos contatos e da decisão de tentar fessor de inglês em uma academia ou escola
uma carreira universitária. secundária provinciana me fazia tremer. Se
Estava decidido a ingressar de alguma maneira tudo o demais falhasse o ensino seria meu
na Universidade. Durante minha estadia em último recurso”. (NEILL, 1976, p.87, grifo
Kettle [Kinskettle], havia estudado muito, e uma nosso).
manhã fui de bicicleta até San Andrés para fazer Deseja continuar trabalhando na área de jor-
a primeira parte dos exames que consistiam em nalismo. Então, em 1911, trabalha na edição de
duas matérias: inglês e matemática. (...) Depois uma enciclopédia, em Edimburgo. No ano se-
estudei latim e física para submeter-me ao
guinte, é transferido para Londres: “Eu tinha
segundo exame. (NEILL, 1976, p.72).
vinte e nove anos e não havia cruzado a fron-
Em 1908, foi admitido na Universidade. Está teira da Escócia. Viver em Londres me pare-
com 25 anos. Desliga-se do ensino para estu- ceu maravilhoso e inevitável”.(p. 88). Lá
dar e pretende manter-se, por um tempo, com continua envolvido com a redação de livros de
as economias feitas especificamente para esse consulta e revista.
fim. Entretanto, não tem idéia da carreira que A guerra de 1914 interrompe essas ativida-
deve escolher. Por sugestão do pai, decide cur- des, e Neill volta a Kingsmuir, sua terra natal,
sar Agronomia. dizendo-se muito perturbado. Naquela época,
e) Distanciamento das atividades de ensi- tinha uma flebite que lhe causava problemas de
no e experiência profissional em outras áreas. locomoção.

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A guerra oportuniza a vivência de um ter- do o maior respondeu com certa insolência, dei-
ceiro movimento caracterizado como de lhe golpes com o meu cinturão. Ainda acredita-
construção consciente de uma forma de ser va no antigo refrão da profissão: a letra com
sangue entra. (NEILL, 1976, p. 94).
educador e, portanto, de adoção de uma pos-
tura de autoformação voltada para o aper- Esse incidente provoca a necessidade de ver
feiçoamento da sua atividade docente. a sua prática com um olhar diferente do que
Trata-se de um período aproximado de 10 tinha utilizado até então. E em toda a sua traje-
anos que começa quando Neill, ainda em 1914, tória anterior, nada demonstra que tenha reali-
se torna diretor substituto de uma escola, “na zado esse movimento com tal sistematicidade.
tranqüila aldeia de Gretna Green”.Ali ele inicia Por isso, reconhece: “Sem dúvida, comecei a
um movimento deliberado de reflexão sobre o pensar na educação pela primeira vez em Gre-
ensino e a educação, que culmina com a insta- tna”. (NEILL, 1976, p. 94).
lação da Escola de Summerhill, em 1924, na A terceira condição está relacionada com a
Inglaterra.4 redução do controle sobre o seu trabalho de
Fazem parte desse amplo movimento os se- professor pelas autoridades educacionais do
guintes movimentos menores: lugarejo. Neill ressalta que:
a) Um movimento de observação e refle- À Junta Escolar não importava muito o que eu
xão sobre a prática de sala de aula estimu- fazia. Alguns dos seus membros se tornaram
lado por desafios à sua própria prática e meus amigos pessoais; o pastor Stafford, Dick
por condições que cercam o seu local de tra- Mac Dougall, o encarregado da Junta e suas
balho. esposas se portaram muito bem comigo. Segundo
Na aldeia de Gretna Green, ele encontra pelo a opinião geral dos habitantes do povoado, eu
menos quatro condições que o estimulam a re- era um tipo agradável, porém meio louco. (NEILL,
alizar uma observação sistemática da sua prá- 1976, p. 95).
tica e das reações dos seus alunos. A primeira Além disso, ainda que temporariamente, é o
condição tem a ver com a mudança de residên- diretor da escola e dentro dela está livre para
cia. Relembrando a experiência, diz: “Hospe- trabalhar.
dei-me em uma pequena casa rústica. Quando A quarta condição é, de certo modo, uma
minha proprietária me levava a vela de parafi- hipótese extraída da leitura de sua autobiogra-
na à noite e fechava as persianas da pequena fia e do próprio texto onde descreve as refle-
janela, eu me sentia isolado de todo o mundo xões relativas à experiência de Gretna Green.
(...) Creio que comecei a escrever livros para E diz respeito ao fato de que, durante o decor-
não ficar louco”. (NEILL, 1976, p. 94). rer dessa experiência, Neill talvez ainda consi-
Portanto, ao trocar Londres, onde tem uma derasse o magistério como sua última opção.
vida social intensa, por uma escola de aldeia Daí porque, não se sentindo definitivamente
depara-se com momentos de solidão e quie- comprometido, encontra-se livre para agir como
tude. pensava. De fato, no decorrer dos dois textos,
A segunda condição correspondeu à vivên- a autobiografia e o diário, não há referência a
cia de uma situação de confronto com as práti- fatos significativos que pudessem indicar uma
cas de trabalho em sala de aula, que tinha opção definitiva pelo magistério.
reproduzido até aquele momento. Em seu diá- 4
Em alguns textos o ano de 1921 é indicado como data de
rio, revela: criação de Summerhill. Entretanto, Neill registra os fins de
1924 como data de instalação da escola em uma casa cha-
Meu predecessor tinha sido partidário da disci- mada Summerhill. Evidentemente que a escola criada em
plina, e, quando cheguei, a escola se mostrava 1921, em Hellerau, um subúrbio de Dresden, na Alemanha,
silenciosa e obediente; porém sabia que os me- tendo como sócios, nas palavras do próprio Neill, “doctor
ninos maiores me vigiavam cuidadosamente para Otto Neustatter, e sua esposa, Frau Doktor”, é precursora
de Summerhill, mas ainda não corresponde exatamente à
ver até onde podiam chegar. Eu os mirei o mais proposta que Neill defende e coloca em prática, depois (Ver
severamente que pude; e, ao segundo dia, quan- NEILL, 1976, p. 115- 122.).

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 41-53, jul./dez., 2005 49
Movimentos e temas dominantes nos processos de autoformação de A. S. Neill

É preciso não esquecer que a própria reto- 1920; na edição da revista New Era, junto a
mada da atividade de ensino se apresentava Beatrice Esnor, em 1920; em seus contatos com
certamente, naquele momento, como algo pas- Homer Lane e na experiência que vive na Ale-
sageiro, imposto pela emergência da guerra. manha, quando cria com outros sócios uma
Não se tratava de uma opção definitiva. Escola Internacional, entre 1921 e 1923.
Existe, portanto, na experiência de Gretna c) Movimento de aspiração por encon-
Green, um movimento de articulação das diver- trar emprego em experiências educacionais
sas experiências e saberes aprendidos ao longo consideradas por ele como compatíveis com
de toda sua trajetória para construir e experi- as suas concepções
mentar soluções alternativas. No livro que regis- A reflexão realizada em Gretna Green e a re-
tra suas reflexões, Neill descreve as soluções percussão do seu primeiro livro acompanham o
que vai adotando para trabalhar os conteúdos de pedagogo e parecem ter despertado ou alimenta-
aprendizagem e para se relacionar com o aluno. do o desejo de permanecer no ensino. Aprovei-
É evidente que elas nascem de suas vivências tando contatos realizados em razão do livro
dentro e fora da escola, como aluno e como pro- Diário de um Mestre, ainda quando se encontra-
fessor, e também das diversas atividades reali- va no exército, convocado para a guerra de 1914,
zadas como jornalista, paralelamente a sua vida Neill procura uma possibilidade de emprego pri-
universitária e, posteriormente, na edição de en- meiro junto a Homer Lane que foi Superintenden-
ciclopédias, livros de consulta e revistas. te da Little Commonwealth, uma comunidade
b) Movimento de registro sistemático da onde desenvolvia um trabalho educacional com
experiência com ênfase na reação dos alu- crianças delinqüentes, adotando a psicologia e idéi-
nos e nos sentimentos do professor na esco- as de Freud sobre o inconsciente.
la de Gretna Green. Após o desligamento da vida militar, por pro-
Desse registro resulta a obra Diário de um blemas de saúde, Neill deseja aproximar-se das
Mestre, publicada em 1915, cuja repercussão experiências que são compatíveis com as suas
deve ter significado para Neill um estímulo para concepções e relata: “Meu primeiro ato, quan-
prosseguir no caminho iniciado em Gretna Gre- do me senti recuperado, foi escrever a Lane
en, até chegar à criação da experiência de Sum- perguntando-lhe se podia ir visitá-lo. Respon-
merhill (Ver Figura 2). deram-me que a Commowealth estava fecha-
Nessa obra já se encontram os elementos da e que Lane estava enfermo em Londres”.
básicos relativos à concepção de professor, re- (NEILL, 1976, 106).
lação entre aluno e mestres, disciplina escolar, Neill procura, então, Russell, Diretor da Es-
conteúdos de aprendizagem, etc. que iriam ser cola King Alfred, sobre a qual escreve:5
levados em conta na organização do trabalho Desde o princípio gostei da Stimmung da esco-
escolar em Summerhil. la; me impressionou sua disciplina livre e fácil,
A experiência de Gretna Green representou não me agradava a sala dos professores e, (...)
uma ruptura com experiências que contribuíam Vagamente, comecei a compreender que estava
para uma reprodução das práticas tradicionais em uma escola cuja atitude para a vida era fun-
e para uma não implicação com o ensino. É a 5
A escola King Alfred foi criada em 1898, como protesto
partir daí que Neill procura conhecer e partici- contra a educação da época. John Russell foi seu segundo
par de experiências educacionais que se con- diretor. A escola foi organizada com base na ideologia
racionalista e nos ensinamentos de teóricos como Pestalozzi,
trapõem à sua vivência anterior. Herbart, Herbert Spencer, e Louis Compton Miall. Sua pro-
Tudo indica que outros elementos e influên- posta contemplava, dentre outros, os seguintes princípios:
Co-educação; escola laica; cooperação entre pais e profes-
cias relacionados com os aspectos pedagógi- sores; não atribuição de prêmios, recompensas e notas na
cos e com a forma de organização da escola de compreensão de que o aprendiz deve ser encorajado por
seus próprios interesses
Summerhill vão sendo recolhidos, posteriormen-
( h t t p : / / w w w. a i m 2 5 . a c . u k / c g i - b i n / f r a m e s /
te, nas experiências vivenciadas junto a Russe- browse2?inst_id=72&coll_id=7212&expand - Acessado em
ll, na escola King Alfred, entre 1919 e parte de 30 de maio 2005).

50 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 41-53, jul./dez., 2005
Elizabete Santana

6
Figura. 2. Trechos do livro Diário de um Mestre

1. Não gosto da disciplina estrita, porque creio que a criança deva ter o máximo de liberdade
possível. Desejo que as crianças sejam humanas, e eu também trato de sê-lo. [...] Se o
Departamento Escocês de Educação desaparecesse, eu me tornaria pior disciplinador do
que o que sou agora. [...] Creio na disciplina, porém só na disciplina que o indivíduo se impõe
a si mesmo. Não aprendi nada que me forçaram a estudar (p.266).

***
2. Sem dúvida, creio firmemente que o ensino da religião não é meu dever. Se os sacerdotes
ganham bom salário por cuidar de seu rebanho, porque devo cuidar das almas? Não seria
capaz de fazê-lo. Só pretendo ensinar as crianças como viver; é possível que esta seja a
verdadeira religião (p. 281).

***
3. Se mencionasse o sexo em minha escola, me demitiriam imediatamente; porém se filantropo
me oferecesse uma escola particular para dirigi-la a meu gosto, poderia incluir o tema sexo
em meu plano de estudo (...) Aos nove anos de idade meus alunos se entrevistariam com um
médico. Aprenderiam que o pudor é principalmente um resultado acidental da invenção da
roupa. Pouco a pouco começariam a compreender que o sexo é um fato normal da vida. Em
resumo, o reconheceriam como algo saudável ( p.286).

***
4. Não usei o chicote durante várias semanas. Espero não voltar a empregá-lo. Descobri um
menino fumando. Faz quatro anos eu o teria levado à escola e o teria açoitado. Em troca,
hoje lhe falei assim: ‘José, eu também fumo, e em tua idade fumava ocasionalmente um
cigarro Woodbine; entretanto isto não é conveniente para um menino. Espero que não adquiras
o hábito de comprar cigarros’.
Sorriu e me confessou que realmente não gostava de fumar; havia feito só por diversão. Jogou
o cigarro por cima de uma parede (p.298).

***
5. Muitos pais ficaram incomodados porque renunciei a aplicar castigos (...). Descobri que
me encontro do lado dos meninos. Sou contra a lei e a disciplina e estou a favor da liberdade
da ação (p.299).

Fonte: Neill, Alexander S. Diário de un Maestro. In: _____. Autobiografía. Neill! Neill! Oran-
ge Peel!. 1. ed. em espanhol. Tradução: Carlos Valdés Vazquez. México/ Madrid: Fondo de
Cultura Económica, 1976. P.263-337.

6
Livro escrito por Neill, publicado em 1915 e no qual os princípios que adota na experiência de Summerhill já estavam
delineados.

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Movimentos e temas dominantes nos processos de autoformação de A. S. Neill

damentalmente aquela que havia arruinado a via procurar outro emprego. Por sorte, recebi um
minha própria vida, na Escócia: inspirada pelas convite para tomar parte em um Congresso Edu-
normas morais do exterior. (...) Comecei a tratar cativo em Calais. [do qual Beatrice participa ati-
de ‘melhorar’ a escola nas reuniões dos profes- vamente]. (NEILL, 1976, p.115)
sores. Queixava-me de que a escola não funcio-
nava de acordo com a época. Devia ter um Pouco depois, recebe um convite para pro-
autogoverno. O querido J. Russell estendeu suas ferir uma Conferência no Congresso Internaci-
mãos e me disse com seu sorriso habitual: ‘Avan- onal de Mulheres em Salzburg, na Áustria. Vai
te, Neill. Tente, tente’. a Alemanha onde funda, com outros sócios, a
Escola Internacional, em Hellerau, um subúr-
Tentei. Os alunos saíam de uma sala para outra
bio de Dresden; na mesma época faz contato
quando tocava a campainha. O grupo Beta tinha
aulas de matemática no primeiro período, e logo com Stekel com quem realiza sessões de psi-
se dirigiam para a minha sala para tomar aula de canálise, em Viena.
geografia, quando a campainha tocava. (...). Na Neill registra a experiência descrevendo suas
primeira reunião, os professores afirmaram que impressões e sentimentos:
evidentemente o autogoverno não servia. Isso
era verdade. Com certeza ‘funcionava’. Certo dia, A Alemanha me ofereceu muitas coisas que não
J.R. chegou e, muito triste, me disse: ‘Neill um de podia obter em minha pátria. Vivi ali quase três
nós dois deve renunciar’. anos (...). Conheci cidadãos de quase todos os
países europeus e diariamente aprendi algo.
Uma vez mais fiquei sem emprego. (NEILL, 1976, Minha estadia em Hellerau resultou no período
p 106-108). mais divertido da minha vida. Só o sistema de
d) Participação em movimentos interna- educação alemã não me ensinava nada. Parecia-
cionais de educação e contato com idéias e me estéril, vazio, pedanteria disfarçada de
propostas educacionais renovadoras e pro- progresso (...). Ajudou-me a ter (...) uma
cosmovisão e a destruir meu nacionalismo,
gressistas
tornou-me internacional. A experiência me fez
Embora Neill em sua autobiografia não faça
humilde. Eu tinha título de professor de Língua
referências às repercussões sobre o seu pensa- Inglesa, porém devia manter silêncio, enquanto
mento e idéias, entre 1919 e 1923 esteve em con- outras pessoas conversavam sobre arte, música
tato com defensores de idéias progressistas e e filosofia. Sentia-me inculto, do mesmo modo
renovadores entre os quais se encontrava Beatri- como me sinto hoje em dia, quando se fala destas
ce Esnor, que teve participação ativa em vários matérias. A educação universitária não me serviu
eventos do movimento da educação nova.7 As muito. (NEILL, A.S., 1976, p. 115 - 120).
atividades realizadas junto a Beatrice Ensor abrem
O pedagogo reconhece a influência de Ho-
a oportunidade de Neill se lançar no cenário inter-
mer Lane em sua obra, entretanto não deixa
nacional, no período que corresponde aos anos de
claro em sua autobiografia o peso que as de-
1921 a 1923.
mais experiências teve em sua concepção da
A senhora Beatrice Ensor me ofereceu um empre- escola e do ensino.
go para que editasse junto com ela The New Era.
7
Pertencia à Sociedade Teosófica Britânica e foi fundadora,
Era divertido editar um periódico. A senhora En- com educadores progressistas e pensadores liberais, da New
sor me dava liberdade para escrever; logo perce- Educacional Fellowship, organização que se tornou inter-
bi que quanto mais atacava aos pedantes e as nacional a partir de 1966, com o nome de World Education
Fellowship. Participou ativamente, em 1921, do Congres-
escolas, mais contente ela ficava (...) era uma so de Calais e da criação da Liga Internacional para a Educa-
organizadora inata e graças a ela fui à Holanda ção Nova, que dirigiu juntamente com Ferrière e Elizabeth
aquele mesmo ano para receber a umas crianças Rotten. Também participou da criação da Revista da Liga,
sendo responsável, com Alexandre S. Neill, da edição ingle-
austríacas que vinham à Inglaterra depois da sa, The New Era. (CAPITANESCU, [entre 1993 e 2005];
guerra. Foi minha primeira viagem ao Continente VELLAS, 2002). Fundou, em 1925, em Letchworth, na
Europeu e passei dez dias muito interessantes Inglaterra, junto com Isabel King, a Escola Frensham Hill,
atualmente Frensham Heights, cuja proposta contemplava
na Holanda (...). O trabalho era agradável, porém a co-educação. (http://www.frensham-heights.org.uk/ethos/
The New Era não parecia estável; sabia que de- history.html . Acessado em 10 fev. 2005).

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Elizabete Santana

Quanto a Lane, Neill registra as seguintes cretas, sentimentos, percepções e crenças re-
impressões de sua visita realizada em 1917. feridos direta ou indiretamente nas falas dos
Homer Lane foi a personalidade mais impressionan- sujeitos investigados e que indicam uma deter-
te que eu conhecera. Contou-me suas experiências minada direção ou uma característica impor-
enquanto eu o escutava extasiado. Seus jovens de- tante no seu modo de enfrentar e satisfazer as
linqüentes me fascinaram, e obtive a promessa de suas necessidades de formação. Nesse senti-
Lane de que me permitiria trabalhar em Little Com- do, o termo guarda uma correspondência com
monwealth quando terminasse meu serviço militar. o conceito de “perspectivas” na forma em que
Lane me falou de seus alunos, os adolescentes
foi empregado por Becker - “um conjunto de
mais rudes que pôde encontrar nos juizados para
menores. Tudo era incrível! ladrões e ratos cura- idéias e ações coordenadas utilizado por uma
dos mediante a liberdade e o autogoverno! Não, pessoa para resolver um problema em determi-
seguramente não podia ser assim. Quando final- nada situação” (COULON, 1995, p. 71).
mente conheci a esses jovens, comprovei que Os movimentos de formação identificados
Lane não exagerava (...). Lane me mostrou o ca- no conjunto das diversas histórias estudadas
minho, e isso sempre reconheci. Foi uma revela- refletem as perspectivas concretas que os su-
ção para mim (NEILL, 1976, 127-129).
jeitos adotaram para enfrentar suas necessida-
des de formação. Ao aparecer mais de uma
4. A criação de Summerhill e o vez na mesma história ou em histórias diferen-
início de um outro movimento de tes, indicam a repetição de situações e circuns-
formação tâncias e, também, a existência de um mesmo
modo ou de formas semelhantes de enfrentá-
Em 1923 irrompe a revolução na Saxônia. las. Daí que estão indicando a existência de
Há disparos nas ruas de Dresden. A escola de padrões ou temas que atravessam as diversas
Hellerau fica quase vazia. A divisão de dança histórias ou que se repetem em diferentes mo-
foi para perto de Viena. Neill leva a sua divisão mentos de uma mesma história.
para uma montanha nas encostas do Tirol, dis- Entre os casos de professores que não in-
tante de Viena, a quatro horas em viagem de vestiram em autoformação profissional se en-
trem. Ali não é bem visto pelos habitantes. “Os contram sujeitos que revelaram, como Neill,
campesinos do lugar eram os mais odiosos que indefinição, falta de certeza ou rejeição
conheci (...) A crise ocorreu quando me cita- quanto à profissão escolhida e se mantive-
ram no Ministério de Educação em Viena. (...) ram distanciados de um processo de busca au-
Viajei com o meu pequeno grupo para a Ingla- todirigida de conhecimento profissional.
terra” (NEILL, 1976, p. 119-120). As histórias das professoras K e R apre-
O terceiro momento da história de forma- sentam semelhanças com a de Neill, principal-
ção de A.S. Neill se encerra dando lugar a um mente quanto à aspiração por abraçar outra
carreira, o que significa uma não opção defini-
outro período: “Ao fim de 1924, quando levei
tiva pelo ensino como atividade profissional.
meus alunos para a Inglaterra, aluguei uma casa,
Um outro tema que emerge nessas histórias
em Lyne Regis, um pequeno povoado de Dor-
é a culpabilização dos outros e de si mesmo e
set. A casa ficava em uma colina e tinha o nome
que está presente em Neill, que culpa os pais
de Summerhill” (NEILL, 1976, p.120).
por ter abortado suas chances de prosseguir os
estudos, e em três professoras da escola muni-
5. Pontos de convergência e seme- cipal, incluída no estudo.
lhanças entre a história de formação Vários estudos apontam que uma inserção
de Neill e as de outros professores precária na carreira, representada pelo exer-
cício de atividades temporárias, pelo ensino si-
O termo movimento foi escolhido para de- multâneo em várias escolas e pela grande
signar uma ação ou um conjunto de ações con- mobilidade de local de trabalho, ano após ano,

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 41-53, jul./dez., 2005 53
Movimentos e temas dominantes nos processos de autoformação de A. S. Neill

são condições que impedem o professor inici- contato fazia doze anos e onde ainda encontra-
ante de experimentar o próprio trabalho como va mistérios. Assume, assim, uma lógica de
uma oportunidade de rever a decisão de ser preservação e de confirmação de sua identida-
professor e de aperfeiçoar a sua formação. de profissional.
Segundo Mukamurera, citado por Tardiff (2002), Do mesmo modo, depois de um longo perío-
a precariedade tem conseqüências psicológicas, do de rejeição da atividade de ensino, Neill se
afetivas, relacionais e pedagógicas provocadas inscreve em uma lógica de conversão de iden-
pelas mudanças profissionais. tidade profissional.
Os movimentos para a construção de uma A partir daí, a atividade de ensino é assumi-
forma de ser professor, anteriormente descri- da em caráter permanente. Neill começa um
tos, indicam que Neill também se insere no gru- novo estágio em sua autoformação profissional
po de professores que despertam tardiamente e sua história apresenta novos temas dominan-
para o uso da autoformação como um instru- tes. Entretanto, a inexistência de um esforço
mento de aperfeiçoamento profissional. de busca autodirigida no início da carreira pre-
A frase “Sem embargo, comecei a pensar judica a retomada ou o exercício tardio de uma
em educação pela primeira vez em Gretna” postura de autoformação. No caso de Neill, a
(NEILL, 1976, p.94) revela uma atitude ante- busca difusa que realiza, quando pretende dar
rior de não implicação na prática e signifi- um outro significado a sua carreira, não tem a
ca que só a partir de então o pedagogo começa pedagogia, o ensino e a aprendizagem como
a refletir sobre a sua prática em sala de aula. eixos. E quando precisa estruturar e desenvol-
Com a experiência de Gretna Green, vivenci- ver a escola de Summerhill ele:
ada entre 1914/15, e com a repercussão da
obra Diário de um Mestre Neill passa a ser • apóia-se nos conhecimentos de psicologia
considerado como um professor progressista. aprendidos no contato com psicanalistas,
A partir daí, dezesseis anos depois de ter se através de sessões de terapia, conversas,
iniciado como professor, faz a sua opção defi- leituras e da participação em grupos de
nitiva pelo ensino e entra em um novo momento estudo coordenados por psicanalistas
da carreira. famosos;
No seu caso e no de outros professores in- • inclui elementos correspondentes a uma
vestigados, a retomada voluntária de situações visão crítica da sociedade e da escola
de formação implicou em adotar uma lógica construídos certamente em sua vivência
de legitimação de atividades sócio profissi- como professor, como aluno e no decorrer
onais realizadas que, segundo Font-Harmant do exercício da atividade de jornalismo
(1995), são empreendidas para validar uma po- estudantil e profissional;
sição social de origem familiar, para se confir-
• adota princípios sobre a liberdade da
mar como dominante em um novo espaço de
criança, construídos a partir da psicologia,
trabalho, para se integrar formalmente em um
espaço já freqüentado. da reflexão sobre o autoritarismo a que foi
Assim como Neill, a professora C, depois submetido na infância e que continuou
de vários anos de trabalho, adota uma postura presenciando em suas experiências como
de busca autodirigida de conhecimento para se professor.
apropriar de algo que alimenta a sua aspiração Refletindo sobre suas fontes, o pedagogo
de, no futuro, assumir a função de coordenado- confessa:
ra /formadora. Já a professora B empreendeu Em meus primeiros tempos, li What is and What
um novo percurso de formação para se apro- Might Be, de Edmond Holmes; Payway, de Caldwell
priar dos conhecimentos e competências neces- Cook, Path to Freedom in the School, de Norman
sários para compreender mais a proposta MacMunn. Imagino que não me influenciaram
pedagógica da rede com a qual já estava em muito, pois se reduziam demasiado a assuntos da

54 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 41-53, jul./dez., 2005
Elizabete Santana

escola e dos métodos de ensino; pela mesma razão, ses, salários, pensões, inspetores e matérias es-
Montessori também me deixou frio. colares (NEILL, 1994, p.259).
Encontrei minha inspiração fora da fraternidade Percebe-se, na sua autobiografia e na obra
docente, em Freud, Reich, Lane, Wells, Shaw e, Diário de um Mestre, a ausência dos elementos
por suposto, Cristo. Aceito com reserva esta que teriam contribuído para dar ao eixo norteador
última influência por causa das minhas primeiras da sua prática uma constituição mais sólida. São
aprendizagens ‘religiosas’ que o converteram em elementos que poderiam ter sido incorporados a
um deus em lugar do mais humano dos humanos. sua concepção de ensino e educação, no início da
(NEILL, 1994, p. 258).
carreira, se desde então houvesse a adoção de
E, mais adiante, ele complementa, fazendo um processo de autoformação dirigido para a cons-
referências às revistas e a outros veículos de trução de uma forma de ser professor. Essa in-
publicação. completude dos processos de autoformação
traduz-se em incompletude da obra de Neill. Para
Ao mesmo tempo em que considerei enfadonha
a maioria dos escritores de temas educativos, os críticos seus argumentos são simplistas e suas
também me enfadaram a maior parte das publica- obras não transmitem um pensamento acabado.
ções sobre o tema. Um dos meus sonhos foi di- Neill não conseguiu ir além das idéias vagas, das
rigir uma revista sobre temas relacionados com a impressões genéricas que expressa em suas pri-
educação na qual se elimine toda menção de clas- meiras obras (SAFFANGE, 1995, p. 234).

REFERÊNCIAS

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BUSCATTO Marie, Les modalités d’articulation de la formation avec l’organisation du travail: le cas d’une
formation “innovante” dans une grande entreprise industrielle. Education permanente, Arcueil, n. 127, p.
139-152, 1996-2
CAPITANESCU, Andreea. Le Groupe Romand d’Education Nouvelle existe! ...une petite “Green”qui
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CARRÉ, Philippe. L’apprentissage autodirigé dans la recherche nord-américaine. Revue Française de
Pédagogie, Paris, n. 102, p. 17-22, janv./mars., 1993.
_____; MOISON, André. (Dir). La formation autodirigée. Aspects psychologiques et pédagogiques.
Paris: L’Harmattan, 2002. (Collection Savoir et formation).
COULON, Alain. Etnometodologia e educação. Petrópolis: Vozes, 1995.
FOND-HARMANT, Laurence. Approche biographique e retour aux études. Education Permanente. Arcueil,
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MIGUEL, Jesús M. de. Autobiografias. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas-CIS, 1999.
NEILL, Alexander S. Diário de un maestro. In: _____. Autobiografía. Neill! Neill! Orange Peel! 1. ed. em
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_____. Autobiografía. Neill! Neill! Orange Peel!. 1. ed. em espanhol. Tradução Carlos Valdés Vazquez.
México: Fondo de Cultura Económica, 1976.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 41-53, jul./dez., 2005 55
Movimentos e temas dominantes nos processos de autoformação de A. S. Neill

_____. El nuevo Summerhill. 1. ed em espanhol. Compilado por Albert Lamb. Tradução Marco Antonio
Pulido. México: Fondo de Cultura Económica, 1994.
SAFFANGE, Jean-François. Alexander Sutherland Neill. In: HOUSSAYE, Jean. Quinze pedagogos. La seva
influéncia, avui. Barcelona : Universitat Oberta da Catalunya, 1995. p 233-234.
STAKE, R.E. Investigación com estudio de casos. Madrid: Ediciones Morata, 1999.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
VELLAS, Etiennette. De la LIGUE au LIEN. Lien international de l’Éducation Nouvelle, n. 1, fev. 2002.
Disponível em: http://www.gren-ch.org/Textes/BLIEN_1.pdf. Acesso em: 10 fev. 2005.
YIN, Roberto K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2001.
SITE sobre A.S. Neill e Summerhill: http://www.summerhillschool.co.uk/pages/index.html

Recebido em 30.05.05
Aprovado em 09.08.05

56 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 41-53, jul./dez., 2005
Paula Perin Vicentini; Rosario S. Genta Lugli

O MAGISTÉRIO SECUNDÁRIO COMO PROFISSÃO:


o associativismo docente e a expansão do sistema
educacional brasileiro entre os anos 1940 e 1960

Paula Perin Vicentini*


Rosario S. Genta Lugli**

RESUMO

O texto analisa as representações sobre a profissão, constituídas pelos


professores secundários, privilegiando a história da APESNOESP (Associação
dos Professores do Ensino Secundário e Normal Oficial do Estado de São
Paulo), desde a sua fundação (em 1945) até o início dos anos 1960, quando
esse segmento da categoria definia um perfil de formação e de atuação,
procurando afirmar-se no interior do movimento docente. Trata-se de um período
pouco estudado pela produção nacional na área da História da Educação, uma
vez que corresponde a formas tradicionais de associativismo e não a modos
sindicais de reivindicação, cuja disseminação, a partir do final dos anos 1970, é
considerada pela maioria das pesquisas como o marco inicial do processo de
organização dos professores. No entanto, é justamente no período assinalado
aqui que ocorrem as lutas que definem a identidade profissional no interior do
campo educacional e, no caso do magistério secundário, busca-se dar visibilidade
às especificidades que caracterizavam o exercício da docência neste nível de
ensino, em processo de expansão, com vistas a melhorar o seu estatuto
profissional no âmbito do serviço público. Utiliza-se como principais referenciais
teóricos a teoria dos campos de Pierre Bourdieu e o conceito de
profissionalização de António Nóvoa e, como fontes, notícias da grande imprensa,
entrevistas, documentação da entidade e o seu periódico oficial.

Palavras-chave: Magistério secundário – Profissionalização docente.

* Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Estudos Pós-graduados em
Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo. Endereço para correspondência: Faculdade de Educação da USP, Avenida da Universi-
dade, 308, Cidade Universitária – 05508-040 São Paulo, SP. E-mail: paulavicentini@yahoo.com.br
** Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora do Curso de Mestrado em Educação da Univer-
sidade São Francisco. Endereço para correspondência: Av. Alexandre Rodrigues Barbosa, 45 – Centro – 13 251-900
Itatiba, SP. E-mail: gentalugli@yahoo.com

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O magistério secundário como profissão: o associativismo docente e a expansão do sistema educacional Brasileiro...

ABSTRACT

SECONDARY TEACHING AS A PROFESSION: teachers’ associations


and the growing of the Brazilian school system between 1940 and 1960
This text analyzes the professional representations that were built by high school
teachers, focusing specially the APESNOESP (Association of High School
and Normal School Teachers of São Paulo State) history, since its foundation
(in 1945) until the beginning of the 60’s, when these teachers were still trying
to define a work and formation profile and also searching for legitimacy inside
teachers’ associativism. This period isn’t often selected to study by national
historians of education, because it corresponds to traditional forms of
associativism rather than unionism. The union model spreaded in teachers’
movement since the late seventies, and is considered by most of researches as
the initial point of the teachers’ organization movement. However, we consider
that is in the period we analyze here that the struggles to define professional
identity in the educational field happen. Particularly for high school teachers,
they also worked to make visible the specificities that characterized teaching
in that level, which was also growing at that time, trying to improve their
professional status in the public service. We use as main theoretical references
Pierre Bourdieu’s field theory and the concept of professionalization by António
Nóvoa. As sources, we have daily newspapers, interviews, administrative
documents and the journal of the association.
Keywords: High School Teachers – Teachers’ professionalization
O presente artigo1 propõe-se a examinar como as representações sobre a profissão docente se

constituíram no campo educacional brasileiro, do com o reconhecimento alcançado dentro do


privilegiando o processo de afirmação do ma- próprio campo mediante as disputas pela legiti-
gistério secundário que começou nos anos 1940, midade. Assim:
com o início do crescimento deste nível de en- ... a razão de ser de uma instituição (ou de uma
sino.2 Busca-se aqui analisar os esforços deste medida administrativa) e dos seus efeitos sociais,
segmento da categoria para divulgar as especi- não está na ‘vontade’ de um indivíduo ou de um
ficidades que caracterizavam o exercício da grupo mas sim no campo de forças antagonistas
docência no ensino secundário, com vistas a ou complementares no qual, em função dos
melhorar o seu estatuto profissional no âmbito
do serviço público, adotando como núcleo a tra- 1
Este texto integra resultados de pesquisas realizadas em
jetória da APESNOESP (Associação dos Pro- nível de mestrado e de doutorado na Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo e que contaram com o auxílio
fessores do Ensino Secundário e Normal Oficial financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
do Estado de São Paulo), desde a sua fundação São Paulo. Ver: Vicentini (1997, 2002) e Lugli (1997, 2002).
(em 1945) até o início dos anos 1960.3 Tal aná- 2
Cabe esclarecer que, embora de acordo com a organização
do sistema educacional brasileiro anterior à Lei de Diretri-
lise toma como referência a noção de campo, zes e Bases da Educação de 1971 a escola secundária consti-
tal como a define Pierre Bourdieu (1989): um tuísse “um dos ramos do ensino médio” (SPOSITO, 1984,
p. 80), utilizamos aqui o termo magistério secundário para
espaço de lutas estruturado em função de obje- nos referirmos aos docentes que atuavam em todos os ra-
tos de disputa, no qual se constituem interesses mos deste nível de ensino.
específicos e regras de funcionamento própri- 3
Esta entidade passou a ser denominada APEOESP (Asso-
ciação de Professores do Ensino Oficial do Estado de São
as, ao mesmo tempo em que se estabelece a Paulo) a partir de 1971 e, desde 1988, tornou-se o sindicato
posição de seus agentes e instituições de acor- da categoria em São Paulo.

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Paula Perin Vicentini; Rosario S. Genta Lugli

interesses associados às diferentes posições e celino Kubitschek. Além disso, os professores


dos habitus dos seus ocupantes, se geram as secundários começaram a se afirmar como um
‘vontades’ e no qual se define e se redefine segmento expressivo da categoria, passando a
continuamente, na luta – e através da luta – a disputar uma posição no movimento docente e
realidade das instituições e dos seus efeitos
inserindo-se nas lutas para definir ou re-definir
sociais previstos e imprevistos (BOURDIEU,
a identidade do grupo que, até então, estava
1989, p. 89-90).
fortemente vinculada ao magistério primário.
No caso do campo educacional, a organiza- O processo mediante o qual os professores
ção do sistema de ensino e a delimitação do secundários passaram a organizar-se com vis-
espaço profissional docente constituíram mar- tas a lutar pela melhoria do seu estatuto profis-
cos do seu processo de estruturação que en- sional assumiu uma configuração bastante
volveu, também, a criação de instituições para específica em São Paulo devido à natureza da
a formação, a produção e a circulação de co- expansão deste nível na rede de ensino público
nhecimentos específicos para a área (CATA- do estado. Segundo Celso Beisiegel (1974), já
NI, 1989). As entidades representativas do nos anos 1940 o ensino primário havia se di-
magistério inseriram-se nesse processo dispu- fundido para a população urbana do estado, em-
tando a posição de porta-voz da categoria, numa bora na zona rural o atendimento ainda fosse
tentativa de interferir nos rumos adotados pe- reduzido e, em 1967, “a quase totalidade da
las políticas educacionais, conquistar melhores população escolarizável já aparecia matricula-
condições para o exercício da profissão e mai- da em escolas primárias” paulistas. Além da
or prestígio social. Estas associações foram construção de novos prédios, foram utilizadas
criadas à medida que os diferentes níveis de soluções de emergência: a redução do número
ensino expandiam o seu atendimento à popula- de anos do ensino primário e a ampliação dos
ção e representavam diferentemente os profes- turnos dos grupos escolares, chegando até a três
sores conforme correspondessem ao primário por dia. Já o ensino secundário, concebido para
ou ao secundário, às escolas particulares ou a formação das futuras elites do país, expan-
públicas. Desenvolveu-se, assim, aquilo que diu-se apenas com a ascensão dos governos
Bourdieu chamou de lutas de representações, populistas no estado, perdendo o seu caráter
às quais correspondem diferentes princípios de altamente seletivo. No dizer do autor:
classificação e de divisão do mundo social, tan-
to “no sentido de imagens mentais” quanto de ... assumindo diante da população o caráter de
“manifestações sociais” para manipulá-las e até condição necessária à realização de expectativas
de ascensão social e, pelas suas características,
modificá-las e por meio das quais se estabele-
aparecendo como uma escola relativamente barata,
ce “o sentido e o consenso sobre o sentido, em de fácil multiplicação, a escola secundária teve
particular sobre a identidade e a unidade do gru- progressivamente ampliada a sua capacidade de
po, que está na raiz da realidade da unidade e atendimento da procura. Sua função na formação
da identidade do grupo” (BOURDIEU, 1996, das futuras elites aos poucos veio sendo
p. 108). Nessa perspectiva, o período analisado relativizada. A expansão das oportunidades de
aqui é particularmente rico, pois no que con- matrícula (...) teve o efeito de reforçar e generalizar,
cerne à história da profissionalização docente entre os educadores e mesmo nas populações
(NÓVOA, 1991, 1998) no Brasil, trata-se de urbanas, em geral, a compreensão dos estudos
secundários como uma simples continuidade dos
um momento em que ocorreram mudanças ex-
estudos iniciados na escola primária. (BEISIEGEL,
tremamente significativas com relação à natu-
1974, p. 23-24)
reza do conhecimento especializado que deveria
instrumentar o trabalho docente e às práticas O crescimento das escolas secundárias ofi-
reivindicativas utilizadas para combater a des- ciais em São Paulo acentuou-se durante as ges-
valorização de seus vencimentos devido ao surto tões de Adhemar de Barros e de Jânio Quadros
inflacionário desencadeado no governo de Jus- (os principais representantes do populismo no

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O magistério secundário como profissão: o associativismo docente e a expansão do sistema educacional Brasileiro...

estado) os quais, para ampliar suas bases elei- incidindo com a introdução do “sindicalismo
torais, procuravam atender às pressões da po- combativo” – que, no dizer de Aparecida de
pulação que passou a ter “aspirações Souza, caracterizou-se “pelo enfrentamento dos
educacionais voltadas para a realização de ex- governos através de grandes mobilizações,
pectativas de mobilidade social vertical compa- manifestações de ruas e greves prolongadas”
tíveis com as mudanças observadas na estrutura (1996, p. 7). Este momento de transformação
do mercado de trabalho” (BEISIEGEL, 1974, das representações sobre a profissão tem con-
p. 30-31). Este processo iniciou-se no interior centrado o interesse da produção da área que,
do estado, reduto eleitoral de Adhemar de Bar- em alguns casos, o consideram como o marco
ros (1947-50), que procurou satisfazer as rei- inicial do processo de organização dos profes-
vindicações das cidades onde não havia sores, desconsiderando a movimentação ante-
estabelecimentos desse nível de ensino, tanto rior a esse período.
particulares como públicos. Segundo Marília A proposta de analisar a história da APES-
Sposito (1984), a demanda pelas escolas secun- NOESP desde a sua fundação (em 1945) até a
dárias na capital foi atendida em parte pela ini- realização da primeira greve geral do magisté-
ciativa privada, porém, no governo Jânio rio público de São Paulo, realizada em 1963 –
Quadros (1955-58), a rede oficial ampliou o cerca de seis meses antes do Golpe Militar de
número de vagas oferecidas com a criação de 1964 –, procura contribuir para superar esta
“seções” anexas aos ginásios já existentes, que lacuna dos estudos historiográficos e articula-
passaram a funcionar em diversos horários e se aos estudos que desenvolvemos desde 1997,
com professores contratados em caráter tem- com vistas a mapear o conjunto das represen-
porário, favorecendo “a rápida proliferação dos tações acerca da profissão, considerando prin-
cursos ginasiais da cidade”, anteriormente sob cipalmente as concepções presentes nos mo-
a “égide da iniciativa particular”. mentos anteriores ao final da década de 1970,
É justamente no âmbito do processo de ex- quando o “novo sindicalismo” fez emergir e tor-
pansão do sistema educacional paulista que sur- nou legítima a imagem do docente como traba-
giram entidades representativas de setores lhador em educação. Esta imagem, que passou
específicos do magistério que alcançaram ex- a ser predominante, vem sustentando os movi-
pressão, dentre as quais se destacou a APES- mentos sindicais da categoria tanto no plano
NOESP que passou a disputar a posição de estadual quanto nacional e tem sido privilegia-
porta-voz da categoria com o Centro do Pro- da nos estudos a esse respeito, silenciando as
fessorado Paulista (CPP), fundado em 1930 e formas tradicionais de representar a profissão,
que constitui a entidade mais antiga do estado desqualificadas pela hierarquia de legitimidades
ainda em funcionamento. O CPP, vinculado aos existente no campo. No entanto, tais represen-
professores primários (que era o grupo mais tações que, num primeiro momento, exaltavam
numeroso na época de sua criação), foi a prin- a nobreza e o caráter sacerdotal da missão do
cipal associação docente do estado até o final professor e, a partir do final dos anos 1950, in-
dos anos 1970. Naquele momento, o grupo res- corporaram a imagem do profissional que pre-
ponsável pelas greves de 1978 e 1979 – reali- cisava ser condignamente remunerado para o
zadas durante a ditadura, portanto – assumiu a bom exercício do magistério fizeram parte da
diretoria da APEOESP, fazendo com que ela estruturação e delimitação do campo educaci-
se posicionasse politicamente à esquerda, apro- onal, dando origem a movimentos associativos
ximando-se do movimento operário e opondo- e a práticas reivindicatórias, bem como a proje-
se à pretensa neutralidade política das entidades tos de formação. Mesmo os modos mais pro-
representativas da categoria. A partir de então, priamente “sindicais” e politizados de mobiliza-
a imagem dos trabalhadores em educação e a ção docente referem-se às representações que
referência ao Estado como patrão passaram a se construíram durante os primeiros três quar-
ser predominantes no movimento docente, co- tos do século XX, contra as quais reagiram e

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também a partir das quais se formaram. Nesse do custo de vida, passou a contar com a organi-
sentido, é importante conhecer as característi- zação de um segmento que, até então, se ca-
cas concretas da situação de trabalho, que aca- racterizava pelo “comodismo” e pela desunião.
bavam por condicionar as apropriações que os O colunista também informou os estabelecimen-
professores faziam dos conhecimentos peda- tos que enviariam representantes ao evento –
gógicos disponíveis no campo. Para tanto, é em sua maioria, do interior do estado – e os
preciso ter em conta a “heterogeneidade da temas previamente definidos para serem dis-
categoria” (ENGUITA, 1991), constituída por cutidos, dentre os quais ressaltou o objetivo de
docentes de diferentes níveis de ensino, com interferir na política educacional do estado de
tipos de contratos diversos, tanto nas escolas São Paulo mediante a criação do Conselho Es-
públicas como particulares, que implicavam for- tadual de Educação que, ao seu ver, juntamen-
mações e modos de atuação específicos. te com “a união da classe”, deveriam constituir
as principais metas do movimento de organiza-
ção dos professores secundários. Nesse senti-
A fundação da APESNOESP e a do, ele defendeu a criação de uma Associação
precariedade das condições de de Educação nos moldes das entidades ameri-
trabalho no início dos anos canas, mediante as quais os docentes poderiam
1940 opinar sobre os rumos do ensino paulista e con-
tribuir para a “elevação moral e cultural” da
Segundo os seus Estatutos, a APESNOESP categoria. Dentre os temas discutidos, cabe
foi fundada em 12 de março de 1945 para lutar destacar:
contra os problemas específicos do magistério
a) equiparação de vencimentos de modo a atender
secundário e, de certo modo, suprir a deficiência a um padrão de vida compatível com o cargo; b)
do CPP, cuja atuação estava direcionada para a pagamento com regularidade dos professores
defesa do professorado primário. De acordo com interinos, contratados e assistentes, seja qual
o depoimento de Raul Schwinden (membro da for a forma de nomeação ou de contrato; c)
diretoria da entidade desde 1958 e seu presiden- pagamento com regularidade dos professores
te entre 1960 e 1978), “alegava-se que o CPP só que tomem parte em bancas examinadoras, ou
cuidava dos professores primários e que os se- concursos; d) inclusão em folha (...) de
cundários estavam sem uma entidade que os pagamento, para recebimento mensal das aulas
pudesse liderar” (JÓIA; KRUPPA, 1993, p. 21). extraordinárias; e) regularizar o pagamento por
saldos e verba, evitando atrasos constantes; f)
Tal proposta foi lançada pelo Congresso de Pro-
efetivação de todos os professores que foram
fessores Secundários, promovido pelos docen-
aprovados nos últimos concursos de títulos e
tes da Escola Normal e Colégio Estadual de São provas; g) abono de faltas por motivo de moléstia
Carlos, amplamente divulgado por Elisiário Ro- aos professores interinos, contratados ou
drigues de Sousa (presidente de honra do Con- substitutos; h) aproveitamento de todos os
gresso e membro da primeira diretoria da enti- professores secundários que perderam suas
dade) na coluna que manteve, diariamente, no cadeiras em conseqüência do último concurso;
jornal Diário de S. Paulo por mais de vinte anos: i) cessar a distinção entre professores de aula e
Educação e Ensino. Segundo o colunista, a reu- de cadeira.5
nião tinha por objetivo articular os professores Os temas estabelecidos para a discussão no
para pensar novas formas educativas em fun- Congresso evidenciam a precariedade que ca-
ção do clima social do pós-guerra.4
Na véspera da abertura do Congresso de 4
SOUSA, E. R. de. Congresso de Professores Secundário.
Professores Secundários, Elisiário Rodrigues de Diário de S. Paulo, 12/12/1944, p. 6.
Sousa renovou as suas esperanças no evento, 5
SOUSA, E. R. de. O Congresso de S. Carlos. Diário de S.
Paulo, 12/01/1945, p. 6. Congresso de Professores Secun-
louvando a iniciativa como símbolo de uma dários, 13/12/1944, p. 6. Mensagem ao Congresso, 13/01/
“nova fase” para a categoria que, devido à alta 1945, p. 6 (grifos nossos).

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racterizava a vida profissional do magistério ria visitou o Secretário da Educação e o Dire-


secundário e normal em meados dos anos 1940. tor do Departamento de Educação (respecti-
Este problema apareceu também no depoimen- vamente Sebastião Nogueira de Lima e Sud
to de Alberto Mesquita de Carvalho (um dos Mennucci) para reiterar a reivindicação de ven-
organizadores do Congresso), segundo o qual cimentos iniciais de Cr$ 1.300,00 e solicitar a
os professores participantes, apesar do receio incorporação da gratificação de magistério para
de serem punidos, decidiram solicitar o paga- os professores secundários.7
mento, atrasado havia quase um ano, das aulas Os momentos iniciais da APESNOESP não
extraordinárias que, às vezes, ultrapassavam em se caracterizaram por iniciativas assistencialis-
valor a parte fixa do salário, paga com regulari- tas com relação aos professores, embora se
dade (KRUPPA, 1994, p. 142). O contrato dos reconhecessem as dificuldades de sua vida co-
professores secundários previa um número de tidiana, num claro movimento de diferenciação
aulas ordinárias variável, de acordo com a sua da associação dos professores primários, o CPP,
categoria: no caso dos lentes dos ginásios, co- que se dedicava essencialmente a atividades
légios ou escolas normais, eram 50 por mês ou recreativas e à prestação de serviços aos asso-
12 por semana e, no caso dos professores de ciados. Os Estatutos aprovados em 1946 visa-
aula e assistentes, eram 75 por mês ou 18 por vam a conquistar um “nível de vida compatível
semana. Entretanto, era comum que os profes- com a dignidade humana” e a possibilidade de
sores excedessem este quantum, em razão do interferir na política educacional, mediante a
aumento das matrículas nas escolas secundári- promoção de “uma aproximação mais eficien-
as; nesses casos, as aulas eram consideradas te, com os responsáveis pelo ensino no Brasil e
“extraordinárias”, sendo limitadas ao máximo no Estado de São Paulo, de modo a serem os
de 30 por semana. O Congresso também regis- professores ouvidos por intermédio desta As-
trou a insatisfação no que concerne à diferen- sociação no estudo da legislação e métodos que
ça de pagamento entre lentes e assistentes, pois visem a melhor aplicação e difusão das ativida-
ambos eram sujeitos às mesmas formas de con- des pedagógicas”. Além de organizar “depar-
curso e, mesmo assim, os assistentes ganha- tamentos especializados para estudo de todas
vam um ordenado fixo menor e tinham mais as questões referentes ao ensino e legislação,
encargos. A requisição feita aos poderes públi- de modo a (...) poupar tempo e suavizar a difí-
cos a partir do Congresso obteve a promessa cil tarefa do professor”, a entidade propunha-
de uma melhor remuneração. Segundo Elisiá- se a colaborar para o aperfeiçoamento cultural
rio Rodrigues de Sousa, os professores secun- do magistério secundário por meio de diversas
dários passariam a receber de acordo com o atividades, tais como “o intercâmbio entre os
“padrão J” no quadro do funcionalismo, ou seja, alunos dos Ginásios, Colégios e Escolas Nor-
vencimentos fixos de Cr$ 1.300,00 – o que, em mais de diferentes localidades, facilitando-lhes
seu dizer, fez a alegria de “quase 1000 cole- condução e estadia (...); palestras, conferênci-
gas” –, sem a extinção das aulas extraordinári- as, reuniões, comemorações cívicas, congres-
as, apesar das mesmas não serem reajustadas
proporcionalmente.6 6
SOUSA, E. R. de. Aulas Extraordinárias. Diário de S.
Em março de 1945, foi convocada uma reu- Paulo, 02/12/1944, p. 6; Pagamentos atrasados, 12/10/
nião no auditório da Escola Normal Caetano de 1944, p. 6.
7
Campos para fundar a Associação dos Profes- SOUSA, E. R. de Associação dos Professores Secundários.
Diário de S. Paulo, 06/03/1945, p. 6; Associação dos Pro-
sores do Ensino Secundário e Normal, à qual fessores Secundários, 09/03/1945, p. 6; Vai ser instalada a
compareceram muitos professores da capital e Associação dos Professores Secundários,10/03/1945, p. 6.
Associação de Professores, 11/03/1945, p. 6; Congregam-
do interior, o que indica a repercussão da inici- se professores do ensino secundário e normal, 11/03/1945,
ativa à época. Na ocasião, foram discutidos os p. 6; Associação dos Professores do Ensino Secundário e
Normal, 13/03/1945, p. 6; Foi fundada ontem à tarde a
Estatutos da entidade e eleita a primeira dire- Associação dos Professores do Ensino Secundário e Nor-
toria. Após ter sido empossada, a nova direto- mal, 18/03/1945, p. 9.

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sos e tudo quanto possa estimular o maior inte- Os professores eram nomeados interinamente,
resse pelo estudo, pelo ensino, e pelos grandes quase sempre por influência política. O professor
vultos que engrandeceram a nossa Pátria” e a interino ficava com a espada na cabeça; qualquer
criação de “um centro de reuniões onde os as- vereador analfabeto, quando o professor era um
pouco mais exigente ou saía daquelas normas,
sociados possam debater e cultivar os grandes
vinha a São Paulo e, por meio de politicagem,
ideais de solidariedade humana e profissional”
conseguia exonerá-lo. (...) Posteriormente, a
(Estatutos aprovados em 1946, Capítulo I, art. APESNOESP numa batalha que entrou com o
2º, p. 1-2). A APESNOESP previa, também, a CPP, conseguiu a realização de concursos para
realização de “um congresso de ensino secun- ingresso e remoção, a partir de 1948 (JÓIA;
dário e normal” anualmente e em diferentes KRUPPA, 1993, p. 21).
cidades do estado – o qual, em 1946, ocorreu
Segundo Schwinden, a proposta de realizar
na capital.8
um concurso de ingresso para o magistério se-
cundário oficial em 1943 gerou “uma luta na
classe” porque os interinos eram bastante nu-
A ambigüidade das primeiras lu-
merosos e temiam perder sua cadeira para os
tas: a delimitação do espaço pro-
licenciados pela Faculdade de Filosofia, Ciên-
fissional e os conflitos entre in-
cias e Letras da USP, que levavam vantagem
terinos e efetivos
devido à formação recebida na Universidade.
Esse temor devia-se sobretudo ao fato dos con-
No Brasil, o processo de delimitação do es-
cursos serem extremamente rigorosos (havia
paço profissional do magistério secundário teve
três provas: escrita, didática e de erudição) e
início em 1931, com a Reforma Francisco Cam-
gerarem altos índices de reprovação. De fato,
pos que criou o Registro deste segmento da
segundo informações publicadas na grande im-
categoria junto ao Ministério da Educação, pre-
prensa, entre 1934 e 1943, o Estado atendeu à
vendo a exigência da formação universitária
demanda para o magistério secundário e nor-
específica, fornecida pelas Faculdades de Filo-
mal por meio da nomeação interina de cerca
sofia. Embora o Registro Definitivo se desti-
900 professores. Estes docentes passaram a
nasse apenas aos licenciados, o Decreto nº
lutar contra o concurso de títulos e provas, exi-
8.777 (24/1/1946) abriu a possibilidade de con-
gido por lei, reivindicando a sua efetivação sem
cedê-lo mediante a comprovação de três anos
que tivessem que passar pela avaliação. Este
de docência, favorecendo, assim, os “velhos
movimento não conseguiu resultados e eles ti-
mestres” – autodidatas ou oriundos de cursos
veram que se submeter ao concurso promovi-
superiores diversos (direito, medicina, engenha-
do em 1943, no qual um número elevado de
ria etc.) e de seminários –, que dispunham so-
candidatos foi reprovado e entrou com recur-
mente do Registro Provisório (COELHO,
sos, impedindo os aprovados de assumirem as
1988).9 Particularmente no caso do magistério
suas cadeiras, processo que se arrastou até
oficial, a realização de concursos de ingresso e
1945. Em seu depoimento (VICENTINI, 1997,
remoção constituía não só um instrumento de
vol. II, p. 16-23), Sólon Borges dos Reis (um
delimitação do espaço profissional, como tam-
dos sócios fundadores da APESNOESP e pre-
bém uma garantia contra as interferências polí-
sidente do CPP a partir de 1956) descreveu o
ticas na carreira docente. Como foi possível
processo que, em 1948, resultou na realização
notar, essa delimitação e garantia ainda não ti-
anual dos concursos como uma “verdadeira
nha se efetivado em meados dos anos 1940,
pois os professores efetivos eram em pequeno
número, sendo a maioria dos cargos ocupada 8
Infelizmente há poucas informações quanto à regularidade
dos congressos, pois a entidade parece não ter sido rigorosa
por docentes interinos, situação esta muito ins- ao definir as suas edições, promovendo o X Congresso em
tável. No dizer de Schwinden, ex-presidente da 1953 e em 1961, ambos na capital.
entidade: 9
A esse respeito, também ver NADAI (1991).

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O magistério secundário como profissão: o associativismo docente e a expansão do sistema educacional Brasileiro...

guerra política e administrativa”. Em seu en- ou a nomeação pelo concurso. Em suas pala-
tender, enquanto o concurso de ingresso para vras,
os professores primários havia se tornado roti- A grande expansão da rede escolar oficial, do-
na na década de 1930, para os professores se- tando os mais distantes núcleos urbanos de
cundários havia ocorrido somente em 1931 e unidades de ensino médio, desde 1930, (...), criou
1943 e, quando o Secretário da Educação (João uma grande classe nova, dentro do funcionalis-
de Deus Cardoso de Melo) na gestão de Ade- mo estadual, com características bem distintas
mar de Barros (1947-50) resolveu instituí-los, e nitidamente configuradas, distinguindo-se
pela alta preparação cultural geral e especi-
enfrentou grande resistência, conseguindo pro-
alizada de seus membros. (...) A heterogeneida-
mover em 1948 apenas o concurso de remoção de de formação, as poucas oportunidades de
e no ano seguinte o de ingresso. Entretanto, “os congraçamento, as solicitações político-partidá-
que não queriam concurso ganharam a eleição rias e o impulso egoístico de firmar-se e acomo-
na APESNOESP que passou a ser presidida dar-se, até com prejuízo dos que apresentam as
por Geraldo Ulhôa Cintra, culto professor de credenciais indiscutíveis do mérito e tempo de
Latim e lutador perseverante. A entidade pas- serviço, têm sido empecilhos dificilmente arre-
dados da vereda deste órgão de classe. Nem sem-
sou a desempenhar (...) o papel de advogado
pre venceram as forças centrípetas de união em
do diabo, contra o concurso”, procurando, in- torno da APESNOESP. Para tratar contra a en-
clusive, rebaixar a média de aprovação do tidade sempre estiveram ativos os políticos pro-
concurso anterior, realizado em 1943, através fissionais, os maus burocratas do ensino, os
da interferência do poder legislativo e do judici- perpétuos apadrinhados do situacionismo, (...)
ário, mas esta tentativa não foi bem sucedida e, os solitários aristocratas do magistério, entroni-
em 1949, foi realizado o concurso de ingresso zados numa falsa auto-suficiência, esclerosados
ao magistério secundário oficial que passaria a na rotina, impermeabilizados na especialização e
por um mórbido narcisismo. A ignorância dos
ocorrer anualmente. Cerca de cinco anos após problemas gerais e a cegueira diante dos siste-
a realização regular de concursos, a reprova- máticos esbulhos da classe podem manter, en-
ção de cerca de 73% dos candidatos no ano de clausurados, colegas respeitáveis, ativos na
1954 permite avaliar o impacto causado por tal cátedra e na aquisição de cultura. (...) Não pode-
medida para este segmento da categoria, so- mos, entretanto, atribuir as recentes vitórias a
bretudo se considerarmos a existência de arti- um trabalho individual, (...), mas como efeito de
gos (inclusive editoriais) na grande imprensa uma cristalização ou enrijecimento, de uma to-
mada de consciência interna da classe pela pró-
exigindo a exoneração dos professores repro-
pria classe, através das lutas constantes, desde
vados e que continuavam atuando nas escolas a renovação de métodos pedagógicos, (...) des-
oficiais.10 de o esforço de criação de uma ambiência de
Identifica-se, neste momento inicial da his- cultura em nossas cidades do interior, (...) até à
tória da APESNOESP, a existência de interes- oposição e bloqueio, (...) das leis tumultuárias
ses conflitantes, devido à heterogeneidade dos do setor educacional, denúncia e protesto da
professores secundários (concursados e interi- interferência político-partidária em nossas esco-
las. (PINHO, 1954, p. 3 – grifos originais)
nos, lentes e assistentes). O presidente da enti-
dade, Clemente Segundo Pinho, em relatório Nos Estatutos aprovados em Assembléia
datado de 1954, assinalou este fato, identifican- Geral Extraordinária, realizada em 12/03/1946,
do a “alta preparação cultural” como signo co- a heterogeneidade do magistério secundário se
mum de distinção dos professores secundários fez presente no capítulo relativo aos sócios, que
no quadro do funcionalismo público e critican- previa a inclusão de “todos os professores do
do a interferência política na regulamentação ensino oficial, secundário e normal, do Estado
da carreira docente. No entanto, entre os pró-
prios professores havia o conflito entre duas 10
SOUSA, E. R. de. Mais um capítulo dos concursos. Diário
formas alternativas de legitimidade: ou a expe- de S. Paulo, 24/02/1945, p. 6; Reajustamento de professo-
riência de longos anos de ensino como interinos res. 0/03/1945, p. 6.

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de São Paulo, catedráticos, assistentes, orien- lidade, gerando muitas vezes constrangimento
tadores, preparadores, interinos, contratados para os professores sem dinheiro no momento
substitutos, comissionados e os professores de de sua visita. Em 1954, o presidente da APES-
Educação das Escolas Normais Livres Munici- NOESP, Segundo Pinho, lamentou que apenas
pais, os diretores e vice-diretores dos Colégios- 36% dos 300 “sócios de fato inscritos” houves-
Escolas Normais e Ginásios Oficiais, bem como sem pago a anuidade, o que constitui um forte
inspetores do Ensino Secundário e Normal do indício da escassa representatividade da asso-
Estado de São Paulo” (Capítulo II, Art. 3º, p. 2- ciação junto ao magistério secundário oficial.
3). Ao serem reformulados em 1952, os Esta- A precariedade das condições de funciona-
tutos da APESNOESP, mantidos até os anos mento evidenciava-se pela falta de uma sede -
1960, apresentaram algumas modificações apenas em 1951 a entidade obteve uma sede
quanto a este dispositivo, pois a menção aos em conjunto com a ADEIA (Associação dos
“interinos, contratados substitutos, comissiona- Docentes do Ensino Industrial e Agrícola): uma
dos” foi suprimida em contrapartida à inclusão sala na Praça da Sé, cedida por um deputado
da referência genérica a “professores” e aos estadual. Em 1953, as duas associações trans-
docentes “que, com dois anos, pelo menos, de feriram-se para uma nova sede cedida pelo Sin-
atividade efetiva no magistério, dele se afas- dicato dos Professores do Ensino Comercial do
tem ou se dediquem a outras atividades, (...) Estado de São Paulo, também no centro da ci-
cuja defesa incumbe à Associação ou a eles dade, onde permaneceram até os anos 1960 com
não se mostrem indiferentes ou hostis” (Art. mobiliário doado (PINHO, 1954, p. 13-14). Após
3º, p.4-5). Evidentemente, ao permitir a filiação ter se associado à ADEIA, a APESNOESP
de professores secundários de todos os estatu- parece ter conseguido se reorganizar, pois pro-
tos profissionais, inclusive os que exerceram o moveu inúmeras atividades em prol de uma
magistério temporariamente, a APESNOESP melhor remuneração para o magistério secun-
pretendia atrair o maior número de sócios, ga- dário, participando da Comissão de Reajusta-
rantindo maior sustentação para as suas posi- mento instituída pelo Governador Lucas
ções e aparentemente abdicando da defesa de Nogueira Garcez em 1951, bem como organi-
um estatuto profissional estrito, baseado no co- zando uma “assembléia permanente do profes-
nhecimento especializado adquirido pela via da sorado” e concentrações regionais, efetuadas
formação em nível superior. em cidades do interior do estado. Além disso, a
entidade comemorou, naquele ano, o Dia do
Professor, com a promoção de um baile de gala.
As condições de funcionamento Em 1952, juntamente com a Secretaria da Edu-
da entidade e a sua consolidação cação, patrocinaram um “majestoso concerto
como representante dos professo- da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de
res secundários São Paulo, sob a regência de Zacarias Autuori,
no Teatro Colombo” (PINHO, 1954, p. 7 e 14).
Durante seus anos iniciais, a APESNOESP Nessa ocasião, ocorreu também a refor-
enfrentou problemas financeiros, pois somente mulação dos Estatutos da APESNOESP, já
em 1963 conseguiu o desconto das mensalida- mencionada, que previa “a formação do espíri-
des na folha de pagamento. O fato de a maioria to de solidariedade na classe professora, man-
dos associados residir no interior do estado difi- tendo-a prestigiada e em posição condigna
cultava a arrecadação das mensalidades. Áu- com sua ação social e cultural” e “opor-se à
reo Parolo, que participou da fundação da interferência política na vida dos estabelecimen-
entidade, em depoimento a Laurita Fassoni tos de ensino e repetidas reformas de ensino
(1991), contou que havia um cobrador que não preparadas clandestinamente, sem prévia con-
podia visitar as escolas todos os meses e que, sulta ao magistério e à sua associação de clas-
por isso, precisava cobrar mais de uma mensa- se”. No tocante ao desenvolvimento cultural dos

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O magistério secundário como profissão: o associativismo docente e a expansão do sistema educacional Brasileiro...

associados, a entidade pretendia, ainda, obter Em 1958, a entidade ingressou numa nova
bolsas para viagens de estudo, no Brasil e no fase com a eleição de Raul Schwinden para
Exterior, constituir uma “biblioteca escolhida e vice-presidente. Em 1960, ele assumiu a presi-
museu especializado” e publicar “um órgão ofi- dência da associação, tendo sido reeleito para
cial sobre a vida associativa”. Dentre as alte- este cargo até 1979, quando a sua chapa foi
rações realizadas, sobressaiu-se a preocupação derrotada pelo grupo que liderou as greves de
com atividades de caráter assistencial: a cria- 1978 e 1979, numa eleição extremamente con-
ção de serviço médico e dentário gratuito ou turbada, como já mencionamos. Segundo Cos-
“pelo menos com (...) descontos para seus as- ta, Camarini, Álvares e Ugayama, a sua eleição
sociados”, de “uma seção de procuradoria, que marcou o início do período mais significativo da
zele pelos interesses de seus associados” e de história da APESNOESP anterior aos anos 70,
“um Departamento Especial de Assistência o qual se encerrou em 1968, com a cassação
Monetária aos Associados, com facilidade de do seu mandato na Assembléia Legislativa. A
ajuda e empréstimo em dinheiro” e ainda de partir de então, a entidade tornou-se menos
“uma cooperativa para aquisição de casa pró- agressiva, sobretudo com relação ao movimen-
pria e construir a Casa do Professor” (Estatu- to reivindicatório da categoria, sobressaindo-se
tos aprovados em 1952, Art. 2º, p. 3-4 – grifos pela atuação de seu Departamento Jurídico, di-
originais). rigido por Schwinden (1982, p. 52). Data do seu
Outro indício da reorganização da APES- primeiro mandato a aquisição da sede própria,
NOESP refere-se ao seu engajamento na luta localizada no centro da cidade de São Paulo,
contra o projeto que resultou na Lei nº 1.844, devido à estabilidade financeira assegurada pelo
que permitia a acumulação de dois cargos “aos desconto das mensalidades na folha de paga-
candidatos aprovados e classificados no con- mento que havia sido conquistado graças à sua
curso de ingresso no magistério secundário e atuação como deputado estadual pelo Partido
normal”, assegurando-lhes, ainda, o direito de Socialista Brasileiro (PSB). Em 1961, foi lan-
“inscrever-se no concurso subseqüente com a çada a Revista APESNOESP que circulou até
mesma média obtida no concurso anterior” e a 1963, publicando apenas três números. Embo-
possibilidade de “escolha, pela ordem de sua ra tenha previsto editá-la a cada três meses,
classificação,” de cadeiras que “porventura isto não se concretizou provavelmente por ra-
venham a ser criadas até a realização do próxi- zões financeiras, pois no X Congresso de Pro-
mo concurso de remoção”. Embora tivesse sido fessores do Ensino Secundário e Normal do
aprovado pela Comissão de Constituição e Estado de S. Paulo, realizado em 1961, criti-
Justiça e de Educação e Cultura, tal projeto cou-se o alto custo do papel para jornais e li-
foi vetado pelo então governador Lucas No- vros.11
gueira Garcez, sob a alegação de que prejudi- Ao nosso ver, a análise da atuação e do sig-
cava a terceiros, sobretudo aqueles que nificado de qualquer associação não se com-
desejavam remover-se; além disso, o projeto pleta sem um olhar para o seu órgão informativo,
ignorava que a acumulação no quadro do fun- que contribui para reforçar os vínculos com os
cionalismo era uma possibilidade e não um di- associados, aos quais quase sempre é distribu-
reito. A Assembléia Legislativa aceitou o veto, ído gratuitamente. Trata-se não só do veículo
mas, em 30 de abril de 1952, o projeto reapare- que expressa a visão “oficial” da entidade, mas
ceu sob o número 240/52 e foi rapidamente também da instância em que ocorre uma espé-
aprovado, a despeito dos protestos da APES- cie de negociação quanto aos valores próprios
NOESP e do CPP. Segundo o presidente da
APESNOESP, tratava-se de “um atentado fron-
tal ao magistério, mais uma desconsideração ao 11
Convém notar que o periódico contava com um grande
número de anúncios publicitários de escolas particulares, de
ensino, à dignidade do processo democrático da grandes empresas (Nestlé, Sheaffer’s, Chevrolet, Banco Itaú
Educação”. (MASCARO, 1953, p. 3) etc.) e de lojas de pequeno porte.

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da profissão e que são reconhecidos como legí- porém, para ser agradável a qualquer autorida-
timos pelos seus associados na medida que di- de, se esta não se conduziu de acordo com os
gam respeito às representações partilhadas, justos interesses dos professores ou do ensino.
Querem alguns alcagüetes (...) que a Diretoria
evidenciando os temas tidos como mais rele-
responda às mentiras, às afrontas e às injustiças
vantes pelo grupo. No caso da Revista APES- com mesuras, palmas e outras meios de que se
NOESP, é importante considerar, ainda, que ela têm valido eles para ser tornarem simpáticas aos
foi lançada quando o presidente que permane- seus superiores. (...) Aceitamos a direção da
ceu cerca de duas décadas neste cargo – Raul APESNOESP para corresponder à confiança dos
Schwinden – estava se afirmando como líder Professores (com letra maiúscula) e não para
do magistério secundário num período em que acomodar-nos à bem-aventurança dos mansos
e dos bajuladores. (...) Os políticos ocupam car-
as condições de trabalho deste segmento da
gos transitoriamente; o Magistério é perene. 13
categoria passavam por um grande desgaste.
A oposição ao governo de Carvalho Pinto A capa da primeira edição da revista tam-
(1959-62) constituiu a principal marca da pro- bém deu visibilidade às tensões existentes en-
dução difundida pelo periódico. Já no seu pri- tre os dirigentes da APESNOESP e o governo
meiro editorial, a APESNOESP acusou o do Estado, publicando a fotografia de Raul
governador de indiferença com relação ao se- Schwinden, no dizer do periódico, “um incansá-
tor humano, pois se limitava a construir prédios vel batalhador pelas reivindicações do profes-
escolares. A revista pretendia justamente com- sorado”, com a inscrição “Edição em Homena-
bater este tipo de atitude, levando as autorida- gem ao Dia do Professor”. Ao transcrever um
des a darem maior atenção aos professores, trecho do Boletim da Associação dos Antigos
cuja situação financeira havia piorado devido à Alunos da Faculdade de Filosofia da USP, a
inflação, “obrigando-o a trabalhar, muitas ve- revista esclareceu a razão de tal homenagem,
zes em três turnos, ou a se dedicar a outras dizendo que ele fora dispensado do cargo de
atividades com prejuízos incalculáveis para a Diretor Superintendente do Instituto de Educa-
boa formação intelectual e moral de nossos alu- ção “Caetano de Campos” e “suspenso por oito
nos”. Em seu dizer, dias da função docente” devido ao “entrevero
Surge a Revista APESNOESP! Será ela o instru- da luta em prol do padrão universitário para o
mento com que o Magistério Oficial tentará que- professor secundário.” No mesmo ano, a Fo-
brar as muralhas da má vontade, do indiferentis- lha de S. Paulo noticiou a concentração reali-
mo, do comodismo de todos aqueles que, zada pela entidade diante da estátua de Anchi-
ocupando cargos no ensino, nada fazem em be- eta para homenagear o seu presidente,
nefício do nosso pobre magistério secundário. “dissociando-se da homenagem oficial à Mes-
(...) Deseja ser imparcial.12
tra do Ano” – Dorina Nowill, deficiente visual
No editorial do segundo número, Schwinden e, à época, presidente da Fundação do Livro do
rebateu as críticas que parecem ter sido dirigi- Cego no Brasil –, sem explicitar a razão do pro-
das à diretoria da entidade, insinuando que pro- testo.14
vinham de “bajuladores”, cuja única pretensão Embora o periódico apresentasse textos so-
era conquistar cargos políticos. Nesse sentido, o bre temas variados – canto orfeônico, proble-
mas de aritmética, ginásio vocacional etc. – e
presidente da associação ressaltou que ela nun-
os seus dois últimos números tenham home-
ca se negou a colaborar com o Estado, desde
nageado as cidades de São Carlos e de Araras,
que isso não contrariasse os interesses dos pro-
fessores, para os quais reivindicava um tratamen-
to de acordo com a importância de sua missão. 12
Apresentação. Revista APESNOESP, ano I, n. 1, p. 3.
Em suas palavras, a diretoria da APESNOESP: 13
SCHWINDEN, Raul. Aos professores (editorial). Revista
APESNOESP, ano II, n. 2, p. 2.
.... sempre que solicitada, cooperou com os ór- 14
A Mestra do Ano receberá o seu título depois de amanhã.
gãos da administração. (...) Nunca silenciou, Dorina Gouveia Nowill. Folha de S. Paulo, 12/10/1961, p. 8.

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O magistério secundário como profissão: o associativismo docente e a expansão do sistema educacional Brasileiro...

a remuneração e as condições de trabalho do eram pagas nas férias nem incorporadas à apo-
professorado secundário constituíam a temáti- sentadoria. O pagamento destas aulas nas féri-
ca da maioria dos seus artigos. O texto de An- as foi obtido com a Lei nº 5.052 (de 23/12/1958),
tônio de Souza Teixeira Jr. sobre a gestão de sancionada pelo governador Jânio Quadros, mas
Carvalho Pinto exemplifica esta tendência. O ainda em 1962 a entidade lutava pela sua incor-
autor criticou o Plano de Ação do governador poração à aposentaria e pela paridade com re-
para o sistema de ensino secundário e normal, lação ao valor pago pelas aulas ordinárias.16
acusando-o de estabelecer como meta a cons- Contudo, a principal bandeira de luta da enti-
trução de 166 novos prédios, sem se preocupar dade foi a reivindicação do “padrão universitá-
com a conservação das instalações das esco- rio” – instituído por Lucas Nogueira Garcez em
las já existentes, obrigando-as a recorrerem ao 29 de dezembro de 1952 (Lei nº 2.124) – para os
auxílio dos alunos para a limpeza e pequenos professores secundários, que lhes asseguraria
reparos. Teixeira Jr. também chamou a aten- uma remuneração condizente com o seu nível
ção para a baixa remuneração do professorado de formação na escala de vencimentos do funci-
paulista, inferior ao do Distrito Federal e do es- onalismo público. Para tanto, a entidade amea-
tado da Guanabara, e para a diminuição das çou deflagrar greve em 1961, pois o Estado
verbas destinadas ao setor educacional, utilizan- recusava-se a atender tal reivindicação, alegan-
do o estudo de Carlos Corrêa Mascaro que do que os professores de Desenho e Trabalhos
considerou a desvalorização da moeda decor- Manuais não tinham formação superior, o que
rente da alta do custo de vida. A Revista APES- deu origem a uma campanha pela criação de
NOESP também deu ênfase à cobertura da seções destinadas a estas disciplinas na Facul-
tramitação do projeto 1.048 que, conforme ve- dade de Filosofia. O governo do Estado também
remos a seguir, teve grande importância na luta alegava que o professor secundário tinha uma
dos professores secundários pela melhoria do carga horária reduzida (12 horas semanais) para
seu estatuto profissional.15 obter o padrão universitário. A APESNOESP
argumentava que o seu trabalho não se restrin-
gia ao período em que ele permanecia em clas-
Em busca do reconhecimento e se, pois envolvia o “preparo de aulas, correção
sob a ameaça da proletarização: de provas e aprimoramento de sua cultura” e,
a conquista do padrão universi- durante os exames orais, de admissão e vestibu-
tário e a luta contra a desvalori- lares, eles trabalhavam sem horário, de acordo
zação salarial com as necessidades do estabelecimento.17
O governador Carvalho Pinto enviou, então,
No final da década de 50, a APESNOESP à Assembléia Legislativa, em 1961, o Projeto nº.
engajou-se em campanhas contra a desvalori- 1.048, segundo o qual o número de aulas ordiná-
zação salarial da categoria, decorrente da alta rias passaria de 12 para 18 por semana e de 50
do custo de vida, que passaram a contar com a para 81 por mês. Tal projeto foi extremamente
mobilização dos professores em atos públicos, mal recebido pela entidade, pois atribuiu ao ma-
tais como passeatas e concentrações diante do
Palácio do Governo e da Assembléia Legislati-
15
TEIXEIRA Jr., Antônio de Souza. Realizações e omissões
va. Estas campanhas eram lideradas pelo CPP do Governo do Estado no setor do Ensino. Revista
e contavam com a participação de outras enti- APESNOESP, ano I, n. 1, p. 25-27.
dades. Mas o magistério secundário tinha uma 16
Críticas ao Projeto de Lei nº 1048, Revista APESNOESP,
ano II, nº 2, p. 35-36. APESNOESP sugere emendas ao
pauta específica de reivindicações relativas ao projeto que concede aumento aos professores. Revista
seu regime de trabalho, totalmente diferente do APESNOESP, s/nº, p. 49-50.
que regia o magistério primário, pois se dividia 17
Empenha-se o professorado na luta em defesa de melho-
res vencimentos - Da necessidade da formação universitária
entre as aulas ordinárias e extraordinárias (pos- do Professor de Desenho e a defesa da escola pública. Revis-
teriormente, designadas excedentes), que não ta APESNOESP, ano I, n. 1, p. 7, e p. 20-21.

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gistério secundário “o padrão 53, sem a especifi- fessores cansados, doentes ou que, por ques-
cação de inicial das carreiras de nível uni- tões de família (professoras gestantes ou com
versitário”, não garantindo, portanto, “o direito filhos menores), não podiam ministrar aulas
de acompanhar as demais carreiras de nível uni- excedentes quanto os mestres que precisavam
versitário, quando estas passarem a nova refe- completar seu orçamento atuando em escolas
rência.” Além disso, a mudança no número de particulares. No dizer da entidade, “limitar seu
aulas ordinárias não só implicava um aumento trabalho é matá-lo de fome, além de criar pro-
nos encargos do magistério secundário, como blemas para o próprio magistério particular, cujo
também representava de fato uma redução no corpo docente é, em grande parte, constituído
valor pago por hora de trabalho, de modo que o de professores do magistério oficial”.19
professor – cujo salário era de Cr$ 23.465,00 Em maio de 1962, o Projeto 1.048 foi apro-
por 50 aulas mensais; portanto, Cr$ 469,30 por vado dando origem à Lei nº 6.805. No editorial
aula – passaria a perceber Cr$ 33.800,00 por 81 do terceiro número da Revista APESNOESP,
aulas mensais, o equivalente a Cr$ 417,20 por Raul Schwinden lamentou que, embora a dire-
aula, acarretando uma redução de Cr$ 52,10. toria tivesse se mantido vigilante durante a sua
Num artigo publicado pela Revista APESNOESP, discussão na Assembléia Legislativa, as suas
Argino da Silva Leite demonstrou que, enquanto reivindicações não haviam sido atendidas. Em
o restante do funcionalismo receberia 30% de contrapartida, a Lei atendeu boa parte do rea-
reajuste em janeiro de 1962, os professores se- juste salarial reivindicado pelo magistério pri-
cundários teriam um aumento de 14,8% devido mário no decorrer de uma campanha organizada
à alteração da carga horária mensal. Noutro ar- pelo CPP, levando a entidade a comemorar o
tigo, Alberto de Mello mostrou que, em 1935, o fato de este segmento ter obtido a referência
professor secundário encontrava-se na mesma “36” no quadro do funcionalismo. Nesse senti-
faixa salarial dos chefes de seção e dos delega- do, é preciso considerar que o presidente do
dos de polícia e que, em 1950, obteve o direito à Centro entre 1956 e 2000, Sólon Borges dos
gratificação de magistério (Cr$ 400,00 por qüin- Reis, assumiu o cargo de Secretário da Educa-
qüênio) “que elevava seus proventos em relação ção durante a cerimônia em que esta lei foi san-
aos servidores referidos”. Entretanto, na gestão cionada pelo governador Carvalho Pinto e foi
de Carvalho Pinto, com a extinção desta gratifi- reeleito deputado estadual logo em seguida, com
cação, o professor secundário recebia Cr$ 19.016 votos – segundo o jornal O Professor
23.050,00, o chefe de seção, Cr$ 24.000,00 e o (ago/1966), a quarta votação da legislatura.20
delegado, Cr$ 33.800,00, uma vez que esta car-
reira dispunha do nível universitário.18 18
As nossas lutas. Revista APESNOESP, ano I, n. 1, p. 44.
O projeto de Carvalho Pinto previa, ainda, “Críticas ao Projeto de Lei nº 1048”. APESNOESP sugere
emendas ao projeto que concede aumento aos professores.
um limite de 36 aulas por semana, consideran- LEITE, Argino da Silva. Aumento para o professor secun-
do também as que eram ministradas nas esco- dário: 14,8%, e MELLO, Alberto. Vencimentos do Profes-
sor Secundário. Revista APESNOESP, ano II, n. 2, p. 23-25
las particulares, obrigando o professor a reali- e p. 63-64.
zar atividades sem vínculo com o ensino para 19
Críticas ao Projeto de Lei nº 1048. Revista APESNOESP,
conseguir sustentar a sua família. Além disso, ano I, n. 1, p. 44. APESNOESP sugere emendas ao projeto
que concede aumento aos professores.
havia a exigência de que os professores lecio- 20
SCHWINDEN, Raul Prezado Colega (editorial). Revista
nassem, pelo menos, seis aulas excedentes por APESNOESP, s/n, p. 2. Vencimentos do magistério primá-
semana, contrariando a Lei nº. 5.053, sancio- rio a partir de abril de 1962, graças à lei de aumento
conseguida pelo Centro do Professorado Paulista. Revista
nada por Jânio Quadros em 23/12/1958, que do Professor, Ano XX, n° 67, mar-maio/1962, p. 41. A
isentou os docentes da obrigatoriedade de mi- esse respeito, cabe mencionar o estudo realizado por Íris
Barbieri na década de 70 que, tomando por base a remunera-
nistrá-las, por se tratar de um trabalho faculta- ção obtida no início da carreira, concluiu que, apesar do
tivo que dependia da necessidade econômica e reajuste de 670,9% entre 1960-64, superior ao restante do
funcionalismo público, o professor primário, de 2,1 salários
de sua disponibilidade. Para a APESNOESP, mínimos em 1960, passou a receber 1,9 em 1964
ambas as restrições prejudicavam tanto os pro- (BARBIERI, 1974, p. 54-55).

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 57-73, jul./dez., 2005 69
O magistério secundário como profissão: o associativismo docente e a expansão do sistema educacional Brasileiro...

O aumento da carga horária do magistério status social. Para o autor, nesse período, os
secundário promovido na gestão de Carvalho segmentos assalariados, pertencentes às “clas-
Pinto – agravado pela exigência do cumprimen- ses médias” (na concepção de Wright Mills),
to de um número mínimo de aulas excedentes – passaram a sofrer a ameaça de proletarização
fez com que o padrão universitário, conquistado devido à “melhoria da condição econômico-so-
sem a devida precisão legal, não representasse cial dos assalariados manuais” (PEREIRA,
o reconhecimento esperado por este segmento 1969, p. 137-138). Estes setores caracteriza-
da categoria. Numa época em que a inflação vam-se pela tentativa de “superar um critério
corroía, com grande rapidez, o poder de compra de estratificação exclusivamente econômico”
dos salários e a expansão dos ginásios na rede e pela busca incessante de símbolos de prestí-
pública de ensino se intensificava de maneira gio, como roupas e outros sinais distintivos, que
desordenada e muitas vezes à custa de profissi- os associassem aos estratos mais elevados. Tal
onais contratados à título precário, os professo- comportamento decorria da posição intermedi-
res secundários viram a possibilidade de melho- ária desses setores na estrutura social, pois,
ria do seu estatuto profissional e de distinção no embora fossem assalariados como o proletari-
interior da categoria docente ser praticamente ado, realizavam um trabalho não manual e, por
esmagada pela ameaça de proletarização que isso, procuravam distanciar-se do operariado por
atingia o magistério como um todo, mas tinha uma meio de maiores salários e de um maior prestí-
conotação específica para este segmento com gio social, tentando aproximar-se do tipo de vida
nível superior e um regime de trabalho comple- das esferas mais elevadas. Ao caracterizar os
tamente diverso do primário. Não foi por acaso professores como integrantes desses setores,
que a Revista APESNOESP (ano II, n. 2, 1961, mais especificamente como “proletários das
p. 39) a propósito do Projeto 1.048 representou profissões liberais”, Wright Mills definiu os pro-
visualmente o professor secundário como um fessores do ensino primário e secundário como
homem abatido, vestindo um terno remendado, “servidores remotos do saber”, observando que,
evocando a imagem do docente como um “men- nos Estados Unidos, mesmo a carreira no ensi-
digo de gravata”, expressão utilizada em 1956 no universitário não oferecia um status “com-
pelo então presidente do CPP e deputado esta- pensador em relação aos sacrifícios pecuniários
dual Joaquim Silvério dos Reis em pronunciamen- que exige” (MILLS, 1969, p. 147-151). Segun-
to feito na Assembléia Legislativa em que rei- do Pereira:
vindicava o envio da mensagem de aumento ... este processo, por um lado, leva essa catego-
salarial.21 Um termo semelhante – “mendigo de ria a colocar-se em baixo estrato de classe média
colarinho” – foi empregado pelo Áureo Parolo, assalariada; por outro lado, a luta contra essa
no depoimento já citado. Este tipo de imagem degradação ocupacional estimula o fortalecimen-
chama a atenção para o contraste entre as exi- to da profissionalização do magistério primário,
gências relativas ao cargo, precisamente a ne- solapadora dos moldes artesanal e paternalista
associados a essa atividade, característicos da
cessidade de se vestir bem (representada pelo
etapa pré-urbano-industrial, mas em boa dose
terno e pelas alusões ao colarinho e à gravata), e ainda preservados (1969, p. 177).
as dificuldades financeiras decorrentes da alta
do custo de vida. Ao mesmo tempo em que chamou a aten-
Embora se referisse à situação do magisté- ção para a proletarização desse segmento da
rio primário em São Paulo no início dos anos categoria no Brasil, Pereira identificou indícios
1960, a análise de Luiz Pereira que procurou de profissionalização a partir da oposição entre
situá-lo na estrutura de classes da sociedade
brasileira é bastante pertinente, pois o autor in- 21
Em defesa do professor – discurso pronunciado pelo depu-
terpretou a constância com que os professores tado Joaquim S. Gomes dos Reis na Assembléia Legislativa
do Estado, no dia 14/05/1956 e publicado no Diário Oficial
se definiam como “proletários de gravata” como do dia 15. Revista do Professor, ano XIV, n. 29, ago. 1956,
um indício de sua insatisfação com o próprio p. 33-36.

70 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 57-73, jul./dez., 2005
Paula Perin Vicentini; Rosario S. Genta Lugli

o modelo artesanal e o profissional de trabalho, ram os 60% reivindicados como reajuste ao pas-
baseada nos tipos ideais de Max Weber. A esse so que os secundários não ficaram satisfeitos com
respeito, cabe esclarecer que o termo “proleta- os resultados obtidos e pretendiam continuar com
rização” não é empregado aqui na perspectiva a greve, criticando o magistério primário por dei-
marxista, da qual análises sobre a profissão xá-los “sozinhos na luta”.23
docente se apropriaram no início dos anos 1980, Alguns leitores da Folha de S. Paulo che-
mas sim como sinônimo de um processo de garam a se dirigir à sua seção de cartas para
empobrecimento. Nesse sentido, convém men- reclamar da predileção da grande imprensa
cionar o artigo originalmente escrito em 1988 e paulista pelo professorado primário. Esta dis-
publicado no Brasil em 1991 de M. Lawn e J. cussão iniciou-se com a carta de Agenor Ara-
Ozga, no qual os autores fizeram uma revisão újo Campos, publicada em 17/10/1963, segundo
crítica de um texto elaborado anteriormente no a qual este segmento da categoria usufruía de
qual eles, com base na oposição entre o traba- uma série de privilégios (férias, jornada de tra-
lho artesanal e a produção em série, constata- balho de 3 horas, 36 faltas permitidas, aposen-
ram a proletarização do magistério devido à tadoria proporcional, isenção de imposto de
separação entre concepção e execução do tra- renda) e era constituído, em sua maioria, por
balho docente que resultava na sua desqualifi- mulheres casadas cujo salário era para auxiliar
cação, sem considerar a sua “natureza o marido, evocando um tipo de argumento que,
cambiante”. Ainda nesse sentido, é importante em certas ocasiões, foi utilizado para justificar
notar que o próprio presidente do CPP (Sólon a sua baixa remuneração. Em 26/10/1963, a
Borges dos Reis), recorreu a esta expressão Folha publicou uma síntese de quatro cartas
em 1961 para justificar as campanhas salariais que comentaram a opinião de Campos, dentre
organizadas pela entidade, expressando a ma- as quais apenas uma – a de Felício Junqueira
neira pela qual a categoria ou parte dela perce- Filho – afirmou concordar com este leitor, diri-
bia a perda de poder aquisitivo decorrente do gindo duras críticas ao professorado primário e
processo inflacionário em curso no país.22 deixando entrever sérias diferenças com rela-
A deflagração da primeira greve geral do ção ao secundário. Em seu dizer, “convencido
magistério de São Paulo (primário e secundário; e pedante, por culpa da imprensa, que vive a
público e privado), em outubro de 1963, pode ser elogiá-lo por qualquer motivo, o magistério pri-
tomada como um outro indício de proletarização mário julga-se com direitos iguais ou superiores
da categoria como um todo. Com uma ampla aos de funcionários de nível cultural mais ele-
repercussão na grande imprensa, a greve obte- vado, como os professores de ginásios ou di-
ve o apoio de O Estado de São Paulo e da plomados pelas Faculdades de Filosofia.” 24
Folha de São Paulo, segundo os quais a recusa
do governador Adhemar de Barros (no cargo
entre 1963-65) em negociar com o magistério 22
REIS, Sólon Borges dos. O que o Centro reivindica (edito-
rial). Revista do Professor, ano XIX, n. 64, jul-set/1961, p.
levara uma categoria “tão ordeira” a tomar esta 3. Defende o deputado Sólon Borges dos Reis o funcionalis-
decisão extrema. Ambos os jornais destacaram mo e o professorado” (extraído do Diário de S. Paulo).
Revista do Professor, ano XIX, n. 61, jan/1961, p. 7 (grifos
a ordem e a disciplina do movimento. Em seu nossos).
editorial, O Estado afirmou que os professores 23
Terminou a greve: as aulas começam hoje. Diário de S.
foram “mestres até na greve”. A Folha cobriu Paulo, 22/10/1963, Primeiro caderno, p. 2. Professores
(Editorial). Folha de S. Paulo, 15/10/1963, p. 4. Greve e
amplamente a greve, publicando, todos os dias, revolução (Editorial). O Estado de S. Paulo, 17/10/1963,
manchetes e artigos na primeira página a seu p. 16. Desvirtuando a greve (Editorial). O Estado de S.
Paulo, 19/10/1963, p. 9. A vitória do professorado. O Es-
respeito. Mas a grande imprensa deu ênfase à tado de S. Paulo, 22/10/1963, p. 15.
participação das professoras primárias na gre- 24
Vencimentos de professores e funcionários. Folha de S.
ve, bem como nas passeatas e nas concentra- Paulo, 17/10/1963, Primeiro caderno, p. 4. Servidores, ci-
ência, mandamentos. Folha de S. Paulo, 22/10/1963, Pri-
ções. Após o término da paralisação, que durou meiro Caderno, p. 4. Magistério: defesa e ataque. Folha de
uma semana, os professores primários obtive- S. Paulo, 26/10/1963, Primeiro Caderno, p. 4.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 57-73, jul./dez., 2005 71
O magistério secundário como profissão: o associativismo docente e a expansão do sistema educacional Brasileiro...

A análise da trajetória da APESNOESP no tura) sobre o ensino, começou a se opor ao con-


campo educacional, tomando particularmente as tingente de professores que, embora profissio-
dimensões do associativismo docente e os seus nais de nível universitário (ou autodidatas), não
vínculos com as representações profissionais, possuíam a formação específica para lecionar.
permite identificar a heterogeneidade que foi Pode-se dizer que na década de 1940 o conflito
se instaurando no interior da categoria em de- centralizou-se na oposição entre licenciados e
corrência das mudanças das condições concre- professores cujo valor de legitimidade era a
tas de trabalho e dos padrões de legitimidade. experiência. Deve-se ressaltar que uma das
Não se pretende aqui dizer que o processo pau- conseqüências disso foi o progressivo fecha-
lista seja exemplar no sentido de representativo mento do campo a profissionais cujas carreiras
das tendências em nível nacional ou em outros universitárias não admitiam a licenciatura, como
estados, sobre os quais é importante constituir advogados e engenheiros. O momento seguin-
estudos para conhecer como este processo te, nos anos 50, correspondeu à definição de
ocorreu em diferentes contextos, numa tentati- uma imagem profissional característica do se-
va de apreender as especificidades locais e de cundário, que se deu no bojo das disputas pela
favorecer estudos comparados entre as dife- realização de concursos. Um duplo movimento
rentes regiões do país. Em nosso entender, esta de diferenciação ocorreu aí: a certificação es-
análise identifica aspectos para os quais é pre- tatal para lecionar que o concurso estabelecia
ciso atentar quando se fala da profissionaliza- delimitava o nível e o tipo de conhecimentos
ção da categoria: as condições concretas de exigidos do docente e ao mesmo tempo permi-
trabalho, as representações do profissional e o tia lutar contra as interferências políticas na área
modo com estas se articulam, influenciam e são do ensino, justamente quando elas se faziam
influenciadas pelos movimentos associativos e muito visíveis a propósito da expansão do ensi-
pelo conhecimento específico sobre o trabalho. no. O último dos momentos explorados neste
Particularmente quanto ao percurso da texto refere-se aos anos 60, quando a repre-
APESNOESP, ocorreram dois processos de sentação do professor secundário como “pro-
diferenciação para os quais é preciso atentar: a fissional” e funcionário público a exercer uma
distinção com relação aos professores primári- “nobre missão” começa a ser questionada, ten-
os e a tentativa de delimitação do campo edu- do em vista o aumento de sua carga de traba-
cacional como um espaço privilegiado para a lho e o empobrecimento da categoria. É preci-
decisão técnica, baseada em conhecimentos so considerar, a partir da análise destes dados,
especializados, ao invés da ação política. Estas o quanto os modos sindicais de reivindicação e
diferentes perspectivas, ao se entrelaçarem na de associativismo próprios dos anos 70 devem
reconstrução da história profissional dos docen- a uma necessidade de diferenciação com rela-
tes de nível secundário, fizeram emergir mo- ção ao que existia no momento anterior e, ain-
mentos característicos: a exigência da licencia- da, como esta identidade profissional apresenta
tura e a obrigatoriedade do registro junto ao configurações cambiantes, relativas não somen-
Ministério da Educação marcaram o início do te ao contrato de trabalho, como também ao
primeiro período, quando a legitimidade do co- conhecimento pedagógico disponível e aos pro-
nhecimento especializado (dado pela licencia- cessos de diferenciação e coesão do grupo.

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Recebido em 30.05.05
Aprovado em 08.08.05

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 57-73, jul./dez., 2005 73
Maria Inês Sucupira Stamatto

A ESCOLA DA ORDEM E DO PROGRESSO


(BRASIL: 1889-1930)

Maria Inês Sucupira Stamatto*

RESUMO

Apresenta características da escola primária instituída no primeiro período


republicano no Brasil, através da análise iconográfica do Grupo Escolar Cel.
Silvino Bezerra fundado em 1927, em Vila das Flores (atual Florânia), no Rio
Grande do Norte. Relaciona a construção do prédio escolar ao ideário de
modernização das elites locais que controlavam a administração pública naquele
momento. Escreve sobre a passagem do mestre-escola ao professor formado
pela Escola Normal, também estabelecida nesse período no estado potiguar.
Conclui sobre o mito da escola republicana e a exclusão da maioria da população
à escolarização mesmo levando-se em conta o discurso divulgado e defendido
pelos governantes sobre a necessidade da educação como formadora do cidadão
republicano.
Palavras-chave: Escola – República – Prédio Escolar – Professora

ABSTRACT

THE SCHOOL OF ORDER AND PROGRESS (BRAZIL, 1889-1930)


It shows characteristics of a elementary school established in the first republican
period of Brazil, by iconographic analyze of the Grupo Escolar Cel. Silvino
Bezerra founded in 1927, in Vila das Flores (today Florânia) in Rio Grande do
Norte. It links the construction of the scholar building to the local elites ideology
of modernity in that time. It writes about the change of the mestre-escola to
the teacher formed by Escola Normal also established in this same period, in
the potiguar country. It concludes about the myth of republican school and the
exclusion of majority to leaning even considering the divulgated speech of the
necessity of education to form the republican citizen.
Keywords: School – Republic – Scholar Building –Teacher

* Doutora em História, Université de la Sorbonne Nouvelle - Paris III. Professora da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte / Departamento de Educação / Programa de Pós-Graduação em Educação. Endereço para correspon-
dência: UFRN: Campus Universitário, BR-101, Lagoa Nova, s/n. – 59072-970 Natal/ RN. E-mail: malelu@digi.com.br

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 75-85, jul./dez., 2005 75
A escola da ordem e do progresso (Brasil: 1889-1930)

... essas imagens nos levam ao passado numa fração de segundo. (Boris Kossoy)

Trabalhando com temas sobre instituições racterísticas descritas na historiografia da edu-


escolares, encontramos freqüentemente foto- cação e da instituição escolar no período repu-
grafias de professores, alunos e escolas. Certa blicano?
vez, nos deparamos com a foto do Grupo Esco- Permanecemos, muito tempo, com essa
lar Cel. Silvino Bezerra, construído em 1927, imagem remoendo na memória e, finalmente,
em Vila das Flores, no Rio Grande do Norte. resolvemos realizar uma análise iconográfica,
Esta fotografia, que reproduzimos aqui, nos no sentido atribuído por Kossoy1 , destacando
impressionou imediatamente. Como uma ima- os elementos que nos levaram a reconhecer
gem de uma turma à frente da escola podia nos neste retrato atributos marcantes da escola re-
invocar, numa fração de segundo, tantas ca- publicana.

Foto 1: GRUPO ESCOLAR CEL. SILVINO BEZERRA


Vila das Flores / Rio Grande do Norte
Fotógrafo anônimo, acervo pessoal de Flávio José de Oliveira, prefeito de Florânia
(atual nome de Vila das Flores) mandato 2005. Este Grupo Escolar foi criado pelo
Decreto nº. 341 de 23 de agosto de 1927. Em 1934 foi convertido em Escolas Reunidas
da Vila das Flores. Atualmente, neste prédio funciona a prefeitura de Florânia. 2

1. A ORDEM
que foi considerado importante, para o anôni-
1.1 - A administração mo fotógrafo que preparou esta tomada, foi o
prédio da escola.
O prédio imponente chama instantaneamente
1
nossa atenção nesta fotografia. O pé-direito alto, Este autor classifica em dois tipos a operação de análise de
uma fotografia: Análise técnica: análise do artefato, a ma-
ocupando todo o espaço da imagem, de lado a téria, ou seja, o conjunto de informações de ordem técnica
lado, faz com que tenhamos a impressão de que que caracterizam a configuração material do documento; e
Análise iconográfica: análise do registro visual, isto é, o
a construção transforma as pessoas que posam conjunto de informações visuais que compõem o conteúdo
para a foto em minúsculos e distantes seres, do documento (KOSSOY, 2001, p.77). De nossa parte, é
nossa intenção nos restringirmos a esta última.
cuja importância é dada apenas pelo fato de 2
Fotografia publicada com autorização de Flávio José de
estarem na frente do imóvel. Aparentemente, o Oliveira, a quem agradecemos a permissão para publicação.

76 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 75-85, jul./dez., 2005
Maria Inês Sucupira Stamatto

A construção de prédios escolares foi uma A partir deste contexto, é que podemos com-
marca da administração republicana nas pri- preender a legislação educacional dessa época
meiras décadas do século XX, no Brasil. O que determinava a construção de prédios esco-
grupo partidário que assumiu o estado norte- lares, as campanhas de alfabetização ocorridas
riograndense identificava-se com ideário po- nos vinte anos iniciais do século XX, o discurso
sitivista, especialmente ligado ao discurso da intensivo e difundido sobre a educação, elabo-
modernidade, urbanização, higienização e pro- rado pelas elites no governo.
gresso. Aliás, nesse período, a maioria dos gru- Igualmente, podemos entender a profusão
pos partidários na administração de outros de fotografias de edifícios escolares, salas de
estados brasileiros encontrava-se alinhado aula, turmas de alunos e professores, muitas
politicamente a esta posição ideológica. Em vezes, inclusive, com as autoridades presentes,
nosso país, este período coincide com mudan- o que passou a ser comum a partir de então.
ça de regime, do imperial ao republicano, ca- Borges (2003, p.84) nos informa que isto pas-
racterizado na historiografia brasileira como sou a ocorrer justamente entre fins do século
República Velha. XIX e primeiras décadas do século XX, cor-
Por conseguinte, o espaço urbano passou respondendo, portanto, à implementação do re-
a ser percebido como a expressão de uma boa gime republicano no Brasil, e que “muitos
administração governamental, e o indivíduo fotógrafos se dedicaram à produção de álbuns
passou a ser visto como um cidadão de uma de cidade (...) em geral, a seqüência da ima-
república, não mais um súdito de uma realeza. gem deixava ver uma cidade moderna, evoluí-
Neste sentido, para as elites que estavam or- da e quase sempre higienizada”.
ganizando, naquele momento, a administração Neste caso, percebemos a função da foto-
pública, tornou-se fundamental a reorganiza- grafia como um dos meios de produção, divul-
ção espacial da cidade, com a abertura de ruas gação e afirmação da ideologia dominante.
e avenidas calçadas; a criação de parques e
praças para passeios públicos; a construção
de prédios que testemunhassem o empenho fi- 1.2 - O prédio
nanceiro e progressista do governo em bem
administrar o estado. O prédio escolar retratado na fotografia que
ora analisamos foi construído nos mesmos pa-
Ao lado destes aspectos dominantes deve,
porém, ser destacada também a presença de drões das outras escolas erguidas nesse perío-
outras características típicas da posição do (MOREIRA, 2005)3 . Podemos constatar
“positiva”: a valorização da educação como que igualmente seguiu o que estava estipulado
“dever” essencial das sociedades modernas e na Lei nº. 359,de 22 de dezembro de 1913, ao
como “direito” de cada cidadão e, portanto, como menos em relação às janelas e amplidão das
meio primário para operar uma evolução no salas. Na imagem, o prédio foi colocado no cen-
sentido laico e racional da vida coletiva; a atenção tro do foco, emoldurando o ambiente e as pes-
aos problemas da escola, sentida como o soas, e revelando o papel que se atribuía à
instrumento essencial desse crescimento construção em si, parecendo-nos o principal
educativo das sociedades industriais (CAMBI,
componente da foto.
1999, p. 467).
Borges (2003, p. 84) explica a importância
Da mesma maneira, para estes governan- de se fotografar, nesse momento, justamente
tes tornou-se importante o sistema educacional construções:
público como uma instância formadora do ci-
dadão republicano, já que o analfabeto, pela le-
gislação vigente, estava impedido de votar e ser 3
Ana Zélia Maria Moreira, a quem agradecemos as infor-
mações sobre as construções de prédios escolares, e a doa-
eleito, e, portanto, não tinha condições do exer- ção da foto, pois foi quem gentilmente nos passou uma
cício pleno da cidadania. cópia da fotografia.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 75-85, jul./dez., 2005 77
A escola da ordem e do progresso (Brasil: 1889-1930)

Em posição de destaque encontravam-se as horas,usada pelos moradores em outras ativi-


fachadas dos estabelecimentos comerciais e dades; e até mesmo a cozinha podia passar a
bancários; dos hotéis que aguardavam turistas ser, de um instante para outro, um lugar de “de-
e homens de negócios de outras praças sasnar5 meninos”.
comerciais; a casa, varandas e jardins particulares
Nos documentos oficiais – Relatórios de
onde viviam as famílias da elite local; as
Presidentes, de Diretores de Instrução – e mes-
inovações urbanas atestavam o dinamismo da
administração pública; o movimento das ruas que mo em diários de viajantes, em obras de litera-
informavam e, simultaneamente, produziam uma tura e em relatos orais de pessoas que tiveram
leitura da “urbe” marcada pela visão positiva do seus pais ou avós professores daquela época,
progresso e da modernidade. encontramos situações descritas como estas.
Sendo assim, pensamos que os prédios es- Esta casa, onde estamos agora, quando eu tomei
colares fizeram parte da produção da leitura da conta dela não tinha nada. Fiz tudo sozinha (...)
modernidade e progresso feita pelas elites lo- Muitos meninos estudaram aqui, aqui estudaram
minhas netas. Tinha uma escola aqui nesta sala,
cais e se transformaram em um dos alvos pre-
outra naquela sala ali e outra no quarto do
diletos de fotógrafos e autoridades.
armazém. Fazia festa, cantava o Hino Nacional.
Na perspectiva que estamos colocando, é Eu ensinava o 1º, 2ºe 3ºano, tudo na mesma
importante ressaltar que, no período imperial, classe. (...) A gente copiava o dever nos cadernos
quase não foram construídos prédios com o pro- dos alunos (ENTREVISTA, 2001, p.87)6
pósito de abrigar escolas. O relatório para o
Ministro dos Negócios do Império apontava 57 Há mesmo histórias de professores que es-
imóveis escolares, existentes em todo o país, tabeleciam, também, nestas casas alugadas para
em 1876 (DIRETORIA GERAL DE ESTA- o funcionamento das aulas, pequenos pontos
TÍSTICA, 1879, p. 36). comerciais, nas quais atendiam alternadamen-
Em geral, as aulas eram ministradas em ca- te e até mesmo simultaneamente, algumas ve-
zes, seus alunos e seus clientes...
sas comuns, isto é, casas não construídas para
Já no período republicano, os governos es-
serem escolas. Eram alugadas pelos professo-
taduais passaram a construir imóveis – como
res, em muitas províncias subsidiadas pelos go-
os da fotografia – especialmente destinados ao
vernos provinciais. Ou seja, os professores
funcionamento das aulas e da administração
recebiam uma parte do aluguel nos proventos.
escolar. Nesses prédios não havia a possibili-
Nas últimas décadas do Império, muitos gover-
dade nem a permissão para os professores se
nos provinciais passaram a pagar o aluguel da instalarem para morar.
casa onde ficava o professor / a escola, inclusi- Todavia, o edifício escolar não seria um pré-
ve com rubrica específica no orçamento anual dio qualquer, pois a lei impunha também padrões
da província. Mesmo durante as primeiras dé- para as construções de prédios especificamen-
cadas da República, no interior, em alguns mu- te escolares. A legislação posta em vigor deter-
nicípios, esse costume ainda continuou: “a minava que cada município erguesse, às suas
primeira escola funcionou na primeira casa da custas, o prédio onde funcionaria o ensino, sen-
cidade, já desmanchada. Quem pagava era o do que, na Capital, esta obra ficaria sob a res-
Estado” (ENTREVISTA, 2002, p.96)4 .
Portanto, no próprio lugar onde habitava o
professor, com sua família, acontecia a escola. 4
Floripes Medeiros, professora nomeada em 1945, no mu-
nicípio de Serra Negra, Rio Grande do Norte. Entrevista
O mestre-escola acolhia seus alunos para as concedida a Grinaura Medeiros de Morais em 2002.
aulas em uma dependência da sua casa, reser- 5
Expressão que já foi muito comum no Rio Grande do
vada ou não para sala de aula. Podia ser qual- Norte, significando ensinar. Atualmente está em desuso.
6
quer cômodo: um quarto especialmente Nathércia Cunha de Morais começou a lecionar em 1912,
aos 14 anos, como professora leiga, no município de Jardim
preparado; a sala de estar da casa, transforma- do Seridó, Rio Grande do Norte. Concedeu entrevista a
da em escola na hora da aula e, nas demais Grinaura Medeiros de Morais em 2003.

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Maria Inês Sucupira Stamatto

ponsabilidade do governo estadual. Legislações é, pois, o documento que retém a imagem fugidia
como esta se espalharam pelo país. de um instante da vida que flui ininterruptamente.
Regulamentados por lei, os edifícios escola- (KOSSOY, 2001, p. 156).
res eram construções sólidas, compactas, sun- Contudo, se olharmos com outros olhos uma
tuosas, levantadas em locais nobres e valoriza- foto como esta, perceberemos, talvez, outros
dos, de alvenaria, com janelas grandes, aspectos que a afetividade da lembrança do
permitindo a circulação do ar e da luminosida- momento vivido não nos permite invocar. A ves-
de. Muitos destes prédios sobreviveram às in- timenta da professora, por exemplo, sóbria, es-
tempéries do tempo e ainda estão de pé, embo- cura, sem enfeites e feminilidade, traços de uma
ra não mais funcionado como escolas – como é época em que a mulher, para ocupar um espa-
o caso do prédio da foto onde, atualmente, é a ço profissional público, deveria vestir-se assim,
prefeitura da cidade – outros não resistiram às para não ficar “falada”. Os uniformes diferen-
intempéries do homem... e foram demolidos. ciados para meninos e meninas. A postura sé-
A planta desses imóveis era contratada a ria, a pose inflexível dos corpos parados, em
arquitetos e engenheiros e a construção deve- posição de sentido, em ordem e em silêncio, com
ria situar-se próxima aos demais prédios impor- respeito. O lugar de cada um previamente es-
tantes da cidade, como a Intendência (Prefei- tabelecido, por hierarquia e sexo.
tura), Polícia, Casa Legislativa, Igreja etc. e, de Ao conduzirmos nosso olhar desta forma,
preferência, com a praça principal a sua frente notaremos que a professora se encontra bem
ou lado. O prédio da escola fazia parte, quando no meio da turma, na parte central do grupo de
construído nesse período, do conjunto de imó- pessoas, e que os alunos estão repartidos em
veis a ser visto pela população local, especial- dois grupos nitidamente separados: à esquerda
mente aquele grupo que podia freqüentar os de quem olha, os meninos, e à direita, as meni-
lugares de maior prestígio da municipalidade. nas. Não há o menor contato físico, nem de
Por ocasião de comemorações importantes na olhar, entre os dois grupos, com a professora
cidade, como festas, procissões, desfiles, ativi- na linha divisória, demarcando e controlando
dades públicas realizadas na praça principal, a espaços.
instituição escolar marcava sua presença com Constatamos, desse modo, que a questão do
a suntuosidade de seu prédio ali erguido. gênero é construída, entre outros elementos, a
partir da organização física do espaço. Heran-
ça do Império e da Colônia, as atribuições mas-
1.3 - A turma culinas e femininas na sociedade permanece-
ram discriminatórias no novo regime político, e
Lembrar daquela professora, do colega que podemos detectar isto naquela imagem, pois
ficava ao lado, ou daquele dia que saímos da “para além de sua dimensão plástica, ela (a fo-
rotina do bê-a-bá para irmos à frente da escola tografia) nos põem em contato com os siste-
e fazermos pose, por minutos intermináveis de mas de significação das sociedades, com suas
espera do flash libertador de movimentos... é o formas de representação, com seus imaginári-
que muitas vezes significa uma foto nossa dos os” (BORGES, 2003, p.79).
tempos idos que não voltam mais. O tipo de construção escolhida organiza o
espaço escolar que, por sua vez, é um dos com-
Fotografar é memória e, com ela se confunde.
ponentes que organiza a ação educativa. O
Fonte inesgotável de informação e emoção.
Memória visual do mundo físico e natural, da ambiente escolar foi concebido com salas de
vida individual e social. Registro que cristaliza, aulas amplas, situadas nos corredores laterais,
enquanto dura, a imagem – escolhida e refletida salas para administração, geralmente no centro
de uma ínfima porção de espaço do mundo do prédio, com banheiros masculinos e femini-
exterior. É também paralisação súbita do nos, com pátio para a recreação e a ginástica,
incontestável avanço dos ponteiros do relógio: murado, e, sobretudo, todos os ambientes sepa-

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 75-85, jul./dez., 2005 79
A escola da ordem e do progresso (Brasil: 1889-1930)

rados por sexo e hierarquia, inclusive com por- ninos, a perceber os homens ocupando posição
tas de entrada e saída laterais separadas, uma superior nos postos de trabalho, como a de dire-
para meninos, outra para meninas e a principal tores, supervisores, inspetores, Diretor da Ins-
para a direção e autoridades (MOREIRA, trução, enfim, autoridades; e as mulheres, quando
2005). trabalhavam fora, ficavam nos postos subalter-
Nesta dimensão, o espaço escolar contém nos como professoras, mesmo “professorinhas”
uma concepção de ensino e de mundo; por isso, – expressão cunhada no século XX. Isto era
compreendemos sua organização a partir do aprendido no silêncio das salas de aula, nos pas-
sexo e da hierarquia, costume de uma socieda- sos percorridos nos corredores da escola, na se-
de discriminatória e autoritária. A interioriza- paração física dos muros levantados nos pátios
ção dos papéis femininos e masculinos na de recreio repartindo meninas e meninos. Muros
sociedade é construída na socialização, levada que iriam levantando também as demarcações
a termo nos espaços privados e públicos, em invisíveis da divisão dos lugares sociais femini-
que o indivíduo vive. Desta forma, torna-se im- nos e masculinos na sociedade; à mulher-mãe: o
portante reconhecermos a organização espaci- casamento e o lar; à mulher-solteira, a “tia”, se-
al como um dos elementos da construção social gunda mãe: o magistério, profissão docente e
de gênero. “decente” permitida; aos homens: donos do pú-
No primeiro espaço público vivido pelas me- blico e do privado. Era um discurso material que
ninas, sem a companhia de alguém da família – se interiorizava todos os dias, não verbalizado,
a escola – elas aprendem a separar-se dos me- mas vivido cotidianamente.

Foto 2- Turma do Grupo Escolar Cel. Silvino Bezerra


Destaque ampliado da turma e da professora da foto 1.

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Maria Inês Sucupira Stamatto

2. O PROGRESSO lugares em que ainda não havia sido implanta-


do o grupo escolar, nem construído o prédio da
2.1 - O professor escola, era possível uma professora fazer uma
afirmação como esta: “Eu sou a dona da esco-
O governo republicano inovou em termos de la, sou quem mando.” (ENTREVISTA, 2003,
educação instituindo os grupos escolares para p.86) A escola era de dona Nathércia. “Quem
o ensino primário e mantendo permanentemen- vai dar escola é Nathércia ...” (ENTREVIS-
te a formação do professor, através da Escola TA, 2003, p.87), foi o que disseram a ela quan-
Normal7 . No Rio Grande do Norte, estas duas do passou em seu concurso. Por isso, o
instituições praticamente foram estabelecidas mestre era a escola: era de fato o mestre-
juntas em 1908/1909. escola.
Então, o professor, preparado para sua fun- A partir do prédio estabelecido, no centro
ção pela Escola Normal, era nomeado para os da cidade, a escola estava ali. Poderia o pro-
grupos escolares que funcionavam com o ensi- fessor ser transferido ou não, a instituição es-
no primário seriado e a presença permanente colar continuava presente na comunidade, não
de um diretor responsável pela administração pela ação educativa do mestre, mas pela pre-
escolar, mas, também, pela supervisão do tra- sença suntuosa do edifício onde funcionava a
balho do corpo docente da escola e que, de fato, aula que atestava também a presença do Esta-
passou a ser majoritariamente feminino. do e marcava na memória das pessoas o lugar
A novidade, então, era a reunião, em um físico organizado – destinado à escolarização.
mesmo prédio, de várias escolas, isto é, de vá- O mestre, deixando de ser escola, tornava-
rios professores – por isso, o nome de grupo se o professor que ministraria suas aulas, con-
escolar – sob fiscalização diária de um único forme os cânones pedagógicos instituídos
administrador – o diretor homem – que zelava através da Escola Normal e sob a batuta admi-
pela ordem e respeito à hierarquia e pelo bom nistrativa de uma outra figura, sempre presente
funcionamento das aulas. no seu cotidiano escolar, o diretor do Grupo
Sob o nosso ponto de vista, esta foi a maior Escolar, representante direto do Estado na ins-
invenção em matéria de educação realizada pela tituição escolar. Até mesmo na legislação o
administração republicana, e isto ficou tão for- mestre vai tornando-se, aos poucos, o profes-
temente arraigado na cultura popular, e mesmo sor, pois o vocabulário empregado passa, pau-
na literatura de história da educação brasileira, latinamente, a ser este último, em detrimento
que até hoje, para muitos, “a República inven- do antigo termo “mestre-escola”.
tou a escola no Brasil”.
O edifício construído materializava a idéia
de educação, como se a instrução – termo usa- 2.2 - O mito
do no Império para a educação – tivesse ga-
nhado um corpo físico. Acabava-se com o Ainda examinando a foto, nos damos conta
mestre-escola, que “carregava” a escola por de como um costume que se generalizou no iní-
onde quer que fosse, retirando-lhe igualmente cio do século XX – fotografias de escolas – foi
parte de sua autonomia no exercício da profis- condicionado pela idéia que as elites governan-
são e toda a função administrativa escolar que tes atribuíam à educação a função de agente
antes realizava, como, por exemplo, a matrícu- transformadora dos súditos brasileiros em ci-
la dos alunos. dadãos republicanos.
No período anterior, a escola era o profes-
sor nomeado e pago pelo erário régio. Se ele
fosse transferido, transferida era a escola; se 7
Durante o período imperial, foram tentadas algumas expe-
riências de Escola Normal no Rio Grande do Norte, entre-
ele fosse destituído ou morresse, a escola fe- tanto, foram efêmeras e fechadas antes do estabelecimento
chava. Nos primeiros anos do século XX, nos da República.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 75-85, jul./dez., 2005 81
A escola da ordem e do progresso (Brasil: 1889-1930)

O tipo de prédio escolhido e regulamentado O ideário republicano, destacando ao máxi-


concretizava a representação social feita por mo a educação como um dos seus pilares, trans-
estas elites do papel da educação que demar- formando-a em um dos seus símbolos, apro-
caria o espaço cívico do indivíduo. Desta for- priou-se da instituição escolar como se fosse
ma, o sistema de educação público, através da uma conquista para o povo brasileiro realizada
construção de prédios escolares, junto com o pela República.
sanitarismo e o urbanismo, comporiam o pen-
samento de modernidade e progresso dos gru-
pos republicanos.
2.3 - O menino
Longe de ser um documento neutro, a fotogra-
fia cria novas formas de documentar a vida em O menino no canto da foto que, humilde,
sociedade. Mais que a palavra escrita, o dese- espremendo-se na parede como querendo tor-
nho e a pintura, a pretensa objetividade da ima- nar-se invisível, menor que a janela do porão,
gem fotográfica, veiculada nos jornais, não espreita a turma esperando, talvez, o momento
apenas informa o leitor sobre datas, localiza-
de poder mexer-se de novo, tem, todavia, a for-
ção, nomes de pessoas envolvidas nos aconte-
ça de questionar, com sua presença ausente da
cimentos – sobre as transformações do tempo
curto, como também cria verdades a partir das
escola, o mito da escola republicana.
fantasias do imaginário, quase sempre produzi- Não temos informações a seu respeito, além
do por frações da classe dominante (BORGES, de sua participação fortuita na imagem capta-
2003, p. 63). da pelo fotógrafo.
E, por isso, o professor com sua turma e, às Muitas vezes, enquanto os códigos culturais do
vezes, também o diretor e outras autoridades fotógrafo definem a composição dos cenários
fotográficos, a velocidade da câmara pode captar
da comunidade ou do estado, que posavam em
fragmentos do real, não previstos na idealização
frente dos suntuosos prédios dos Grupos Esco-
das poses, porque a chapa foto-sensível capta a
lares, faziam da ação destes instantes imóveis luz emanada do objeto fotografado, sem a
um hábito socialmente difundido; uma lembran- intervenção humana – Roland Barthes afirmou
ça de um momento escolar para aqueles da foto; que a fotografia, nessa e apenas nessa fração de
e uma função da imagem escolar para a leitura tempo, é uma mensagem sem código. (BORGES,
da modernidade republicana. 2003, p.83).

Foto 3: Grupo Escolar Cel. Silvino Bezerra


Destaque ampliado do menino da foto 1.

82 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 75-85, jul./dez., 2005
Maria Inês Sucupira Stamatto

Acreditamos que o garoto não foi percebido cacional não atendia a todas as crianças. Basta
no instante da fotografia, pois se o tivesse sido, verificarmos os índices de alfabetização dessa
provavelmente teria recebido um ”sai daí, me- época. Ao final do período imperial, o dado de
nino!” ou o fotógrafo o teria excluído do foco escolarização fornecido pelo censo de 1890 (por-
da máquina. tanto, os resultados indicados são da adminis-
De qualquer maneira, a sua humilde pre- tração anterior à republicana, visto que a
sença nos permite questionar a obra educaci- mudança de sistema havia ocorrido apenas um
onal dos republicanos instalados no governo, ano antes) aponta para 85,2% da população
considerada um dos pilares do ideário de mo- brasileira e 84,6% da população norte-riogran-
dernidade e progresso deste grupo: todas as dense analfabetas (SÉRIES ESTATÍSTICAS
crianças puderam participar desta escola? RETROSPECTIVAS, 1986, p.13).
Quantos tiveram acesso à instituição escolar, No entanto, os dados do censo de 1920 (SÉ-
para tornarem-se cidadãos? Quem foram os RIES ESTATÍSTICAS RETROSPECTIVAS,
excluídos? 1986, p.13), ou seja, após 31 anos de adminis-
Ora, sabemos que um prédio construído tração republicana, demonstram que esta por-
para o grupo escolar não possuía um número centagem não se alterou significativamente
grande de salas de aula e que cada municipa- para o estado potiguar, pois 82,1% da popula-
lidade construía apenas um prédio para o fun- ção continuavam analfabeta. Para a popula-
cionamento de um grupo escolar. O Decreto ção brasileira, constatamos que a mudança em
nº. 174 de 5 de março de 1908 previa a reu- relação ao censo anterior foi maior, pois 75,5%
nião de três cadeiras – a masculina, a femini- foram registrados como analfabetos, haven-
na e a mista – e estipulava a matrícula de 20 do, desse modo, um aumento de 10% no índi-
alunos por classe. Já a Lei nº 359 de 22 de ce de pessoas alfabetizadas. Com isto, nos
dezembro de 1913 preconizava que “a direção indagamos se o “nosso” menino da foto não
dos Grupos Escolares, até o máximo de cinco teria sido um dos que sobraram do sorteio por
escolas” (Art. 22) poderia ser feita por um ocasião da matrícula no Grupo Escolar Cel.
professor indicado pelo governo, mas, que “os Silvino Bezerra.
Grupos de seis ou mais escolas” (Art. 23) so- Longe de pretendermos defender outros re-
mente poderiam ser dirigidos por professores gimes ou outras épocas, consideramos, porém,
formados pela Escola Normal, ficando, assim, nesta imagem, a figura do menino marcante,
o número de classes indefinido. nos fazendo lembrar de toda esta parte da po-
A Lei nº 405 de 29 de novembro de 1916 pulação excluída das fotos escolares. Ele, úni-
mantinha a matrícula mínima de 20 alunos por co e pequeno, representaria a multiplicidade da
“escola” – classe (Art. 4), porém determina- enorme maioria dos excluídos.
va o mínimo de três e o máximo de dez esco- Desta forma, o menino representaria tam-
las que um Grupo poderia comportar (Art. bém a expressão do fracasso dos governos re-
59). Ademais, indicava que o processo de ma- publicanos, do chamado período República Ve-
trícula nestes grupos seria feito por edital, e lha, em estender a escolarização primária a
quando houvesse maior número de candida- todos, e reservando os grupos escolares, esta-
tos às vagas, se procederia por sorteio (Art. belecidos em prédios suntuosos, que requeriam
82). Assim, podemos imaginar que a quanti- certamente gastos enormes das finanças públi-
dade de crianças atendida por esses grupos cas, a uma pequena parcela da população. So-
não contemplava a maioria das crianças da mente alguns se formariam cidadãos republi-
comunidade. canos. E somos forçados a concluir que, em
Embora as escolas isoladas permaneces- realidade, o objetivo desses governos foi o de
sem em atividade enquanto não houvesse a ins- aparecer através da instituição escolar, mas não
talação do Grupo Escolar na comunidade, efetivar essa educação, de fato, a toda popula-
estamos convencidos de que este sistema edu- ção sob sua administração.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 75-85, jul./dez., 2005 83
A escola da ordem e do progresso (Brasil: 1889-1930)

A escola e o fotógrafo estaria fazendo história? Ou será que captou,


em seu trabalho costumeiro de fotografar tur-
Será que o fotógrafo terá notado a presen- mas à frente da escola, uma fração da reali-
ça do garoto e, mesmo assim, teria permitido dade congelada num instante, sem perceber
que ele aparecesse na pose feita pela turma da que estava retratando a escola republicana com
escola? Será que achou que o menino era tão todas as suas principais características?
insignificante que não teria importância se apa- Por conseguinte, concordamos com os au-
recesse lá no cantinho, que ninguém iria se dar tores citados, quando explicam que a fotografia
conta? Ou será que percebeu o significado de não reflete simplesmente a realidade, ou parte
um menino excluído da turma na frente de uma
dela; que há sempre a subjetividade do fotógra-
escola? Não sabemos.
fo presente na imagem, ao fazer escolhas de
Fotografar é sempre fazer história, seja a de nos- foco, de temas, de poses, de ângulos. Há sem-
sas pequeninas vidas, da vida dos grandes ho- pre uma escolha. Os prédios escolares teriam
mens, ou das nações. Mas, em alguns momentos, sido fotografados com tanta recorrência se isto
o fotógrafo tem mais nítida e precisa a certeza de não fosse uma demonstração de progresso?
estar “fazendo história” com seu trabalho, usan- Ainda assim, pensamos que, às vezes, o fo-
do seu engenho e arte para documentar as mais tógrafo, sem se dar conta, capta com sua câ-
formidáveis realizações de seus contemporâne- mara instantes, detalhes, ações não intencionais,
os ou as avassaladoras tragédias que se abatem
que revelam e desnudam elementos próprios de
sobre eles (VASQUEZ, 2002, p. 32).
uma sociedade, de uma época, que ficam imu-
Será que o fotógrafo que fez esta foto, uma táveis para a posteridade, como testemunhos
pessoa que não sabemos quem foi, sabia que silenciosos do que foi visto, do que foi vivido.

REFERÊNCIAS

BORGES, M. Eliza Linhares. História e fotografia. Belo Horizonte: Autentica, 2003.


CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Ed.UNESP, 1999.
DIRETORIA GERAL DE ESTATÍSTICA. Relatório e trabalhos estatísticos apresentados ao Ilm. e Exm.
Sr. Conselheiro Dr. Carlos Leôncio de Carvalho, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do
Império pelo Diretor Geral Conselheiro Manoel Francisco Correia em 20 de novembro de 1878. Rio de
Janeiro: Typ. Nacional, 1879.
FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRÁFIA E ESTATÍSTICA. Repertório estatístico do
Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1986. v. 1. (Séries estatísticas retrospectivas).
KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
MEDEIROS, Floripes. Entrevista concedida a Grinaura Medeiros de Morais em 2002. In: _____. Abraços
de gerações: memórias de professoras primárias no Seridó: uma viagem pelo século XX. Tese (Doutorado)
- Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2004. Cap. 2, p.94-104.
MORAIS, Nathércia Cunha de. Entrevista concedida a Grinaura Medeiros de Morais em 2003. In: _____.
Abraços de gerações: memórias de professoras primárias no Seridó: uma viagem pelo século XX. Tese
(Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2004. Cap.2, p.85-93.
MOREIRA, Ana Zélia. Um espaço pioneiro de modernidade educacional: Grupo Escolar Augusto Seve-
ro, Natal (1909-1913). Natal: PPGAE .Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,2005. Texto de
qualificação para Dissertação de Mestrado.
RIO GRANDE DO NORTE. Decreto nº 174 de 5 de março de 1908. Actos Legislativos e Decretos do
Governo de 1908. Natal: Typ. d’A República, 1909.

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Maria Inês Sucupira Stamatto

RIO GRANDE DO NORTE. Lei nº 359 de 22 de dezembro de 1913. Actos Legislativos e Decretos do Governo
de 1912 /1913. Natal: Typ. d’A República, 1913.
RIO GRANDE DO NORTE. Lei nº 405 de 29 de novembro de 1916. Actos Legislativos e Decretos do
Governo de 1916. Natal: Typ. d’A República, 1917.
VASQUEZ, Pedro Karp. A fotografia no Império. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

Recebido em 30.05.05
Aprovado em 08.08.05

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 75-85, jul./dez., 2005 85
Luciene Chaves de Aquino

DE ESCOLA NORMAL DE NATAL A INSTITUTO


DE EDUCAÇÃO PRESIDENTE KENNEDY (1908–1965):
uma referência na formação docente
no Rio Grande do Norte - um lugar generificado

Luciene Chaves de Aquino*

RESUMO

Este trabalho pretende construir a trajetória da Escola Normal de Natal e de


sua transformação no Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908-1965).
Apontando os avanços, conquistas e mudanças, considerando as relações de
gênero implicadas numa instituição constituída de e para moças. Assim, serão
evidenciados momentos significativos da educação norte-rio-grandense, no que
se refere à formação do professor. Neste intento, apontaremos as primeiras
iniciativas de instituição de uma Escola Normal, em Natal, ainda no século
XIX, que não prosperaram, bem como a sua institucionalização definitiva no
início do século XX, em 1908, e seu desenvolvimento. Destacaremos momentos
de ruptura desta instituição tais como: a transformação de Escola Normal
Primária em Escola Normal Secundária, por meio da reforma de 1938, que
introduziu as disciplinas modernas tais como: Psicologia, Sociologia e
Antropologia Educacional. Analisaremos o processo de transição dessa
instituição da modalidade Escola Normal de Natal a Instituto de Educação,
dando ênfase à ação de Francisca Nolasco Fernandes, a primeira mulher a
dirigir a Escola Normal de Natal, tradicionalmente administrada por homens.
Constatamos aí a configuração de um novo quadro nas relações de poder.
Refletiremos sobre os efeitos dessa recolocação de força nas relações sociais
entre os homens e as mulheres que constituíam a Escola Normal de Natal.
Palavras-Chave: Escola Normal – Instituto de Educação – Gênero

ABSTRACT
FROM NORMAL SCHOOL OF NATAL TO PRESIDENT KENNEDY
EDUCATION INSTITUTE (1908-1965): a reference in professors
professional education in the State of Rio Grande do Norte (Brazil) - a
gendered place
This work intends to build up a trajectory of the Escola Normal de Natal as well as
its transformation into Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908 – 1965).
Pointing out the progress, the conquests and changes, considering the relations of

*
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação da UFRN. Professora e Orientadora Educacional da Rede
Municipal de Educação de Natal. Endereço para correspondência: UFRN, Centro de Ciências Sociais Aplicadas,
Departamento de Educação - Campos Universitário, Avenida Senador Salgado Filho s/n, Lagoa Nova – 59072-970
NATAL/RN E-mail: vitorluciene@ig.com.br

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 87-102, jul./dez., 2005 87
De escola normal de Natal a Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908-1965): uma referência na formação docente ...

gender implicated in an Institution constituted of girls and for girls. Thus significant
moments of the education in the state of Rio Grande do Norte will be emphasized,
referring to the formation of the teacher. With this objective, we will aim at the first
institution initatives of a Escola Normal de Natal in the 19th (nineteenth) century
which didn’t prosper, as well as its definite institutionalization in the beginning of the
20th (twentieth) century, in 1908 and its development. We will stand out rupture
moments of this institution such as: the transformation from Primary Normal School
into Secondary Normal School by means of the 1938 reform which introduced the
modern disciplines like: Psychology, Sociology and Educational Antropology. We
analysed the process of transition of this institution from the characteristic Escola
Normal de Natal to Institute of Education, giving emphasis to the deeds of Francisca
Nolasco Fernandes, the first woman to direct the Escola Normal de Natal,
traditionally managed by men we verified there the configuration of a new reality
among the relations of power we reflected on the effects of this replacement of
power inside the social relations among men and women, who established the
Escola Normal de Natal.
Keywords: Escola Normal – Institute of Education – Gender

Introdução As primeiras iniciativas de insti-


tuição de uma Escola Normal em
O objetivo principal deste trabalho é cons- Natal
truir a trajetória da Escola Normal de Natal e
de sua transformação no Instituto de Educa- As Escolas Normais surgiram no cenário da
ção Presidente Kennedy (1908-1965), apon- história da educação brasileira no século XIX,
tando seus avanços, conquistas e mudanças, mais precisamente em 1835, quando foi fundada
considerando as relações de gênero implica- a Escola Normal de Niterói, pelo poder público,
das numa instituição constituída de e para seguida pela Escola Normal da Bahia, em 1836;
moças. Assim serão analisados momentos sig- do Ceará, em 1845; de São Paulo, em 1846; e do
nificativos da educação norte-rio-grandense, Rio de Janeiro em 1880 (AQUINO, 2002).
no que se refere à formação de professores e Como em outras regiões, no caso de Sergi-
professoras. pe, em 1870, e de Goiás em 1882 (FREITAS,
Neste intento, apontaremos as primeiras ini- 2002), somente nas últimas décadas do século
ciativas de instituição de uma Escola Normal XIX é que foram experimentadas as tentativas
em Natal, ainda no século XIX, as quais não de Escolas Normais no Rio Grande do Norte.
prosperaram, bem como a sua institucionaliza- A primeira Escola Normal Primária em Na-
ção definitiva no início do século XX, em 1908, tal, criada em 1873 e inaugurada em 1874, com
e seu desenvolvimento na década de 20. Des- um corpo docente de seis professores do sexo
tacaremos momentos de ruptura desta institui- masculino, iniciou suas atividades com vinte alu-
ção tais como: a transformação de Escola nos, mas diplomaram-se apenas três professo-
Normal Primária à Escola Normal Secundária, res, também do sexo masculino (LIMA, 1921,
por meio da reforma de 1938, os anseios e en- p.14). A Escola Normal era anexa ao Atheneu
saios na transição da modalidade de Escola Norte-Riograndense1, não só fisicamente, como
Normal de Natal a Instituto de Educação Pre- 1
O Colégio Atheneu Norte-Riograndense foi criado em
sidente Kennedy (instituído em 1965), dando 1834, sendo a primeira instituição de ensino secundário do
ênfase à luta de Francisca Nolasco Fernandes, Brasil, foi o colégio modelo da terra potiguar, tornou-se,
até a primeira metade do século XX, o reduto dos jovens
a primeira mulher a dirigir a Escola Normal. advindos das elites econômica, política e cultural de Natal.

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Luciene Chaves de Aquino

também irmanada na formação intelectualista dido o acesso às mulheres, com a devida adap-
em decorrência de sua estrutura de ensino. tação. Àquela altura dos acontecimentos, já era
Antes da criação da referida Escola, foi publi- uma realidade a presença das meninas nas sa-
cado o regulamento do Colégio Atheneu Nor- las de aula do ensino primário, mesmo que em
te-Riograndense, em 1872, que apontava as número bem inferior ao dos meninos.
normas regulamentares para o funcionamento
de um Curso Normal. O referido curso era de
três anos e, conforme o Artigo Primeiro do re- A Escola Normal de Natal: sua
gulamento, buscava-se a preparação de “pro- institucionalização e desen-
fessores de ambos os sexos para a instrução volvimento no início do século
primária” (REGULAMENTO DO CURSO DE XX (1908)
ESTUDOS DA ESCOLA NORMAL, 1872,
p.184). O currículo, com forte teor de forma- A Escola Normal de Natal foi instituída de-
ção intelectual, assemelhava-se ao do Atheneu, finitivamente em 1908, através do Decreto 178
ressalvando as disciplinas de formação peda- do mesmo ano, que teve por objetivo restabe-
gógica. Assegurava a formação diferenciada lecer a Diretoria Geral da Instrução Pública,
para os sexos, conforme exposição do Art. quin- criar a Escola Normal de Natal e os Grupos
to: “O estudo da álgebra e da escripturação Escolares Mistos (AQUINO, 2002). Foi pio-
mercantil será substituído, para o sexo femini- neira e modelar na formação docente do Es-
no, pelo de principios theoricos dos trabalhos tado do Rio Grande do Norte, constituiu-se
de agulha, o qual será leccionado pelo profes- também no símbolo de uma nova época, no
sor da 1ª série” (REGULAMENTO DO CUR- anúncio de uma sociedade que se pretendia
SO DE ESTUDOS DA ESCOLA NORMAL, inovar.
1872, p.185). Supomos que tenha sido este o Entoando o discurso modernizador, na Es-
regulamento da primeira Escola Normal, inau- cola Normal de Natal, desde o princípio, a fre-
gurada em 1874. Um espaço com funções de- qüência de mulheres foi predominante, a
marcadas pela diferença dos sexos. observar pela primeira turma, na qual se for-
A segunda Escola Normal foi criada em maram sete rapazes e vinte moças (AQUINO,
1890, já no Brasil República, mas não chegou a 2002). Logo, foi pensada e organizada para a
ser efetivada concretamente; permaneceu no formação de moças para atuar no magistério
papel (LIMA, 1921). primário: o currículo assume contornos femini-
A terceira Escola Normal de Natal foi cria- nos, incorporando na sua grade curricular dis-
da em 1892 e instalada em 1896, “era exclusi- ciplinas como Economia e Arte Doméstica
vamente masculina e o seu curso constava das (AQUINO, 2002).
matérias ensinadas no Atheneu Norte-riogran- A Escola Normal de Natal, assim como as
dense acrescentado das disciplinas de Moral, demais do Brasil e de outros países tornaram-
Sociologia e Pedagogia” (LIMA, 1921, p.15). se um lugar generificado. Concebê-la dessa
Até o ano de 1901, diplomou cinco alunos, sen- forma significa vê-la como um lugar social que
do extinta após esse período. Os relatórios pes- é constituído e constituinte dos gêneros, ou seja,
quisados por Lima (1927) apresentavam como um lugar onde as práticas ali realizadas con-
motivos para a extinção a falta de recursos e vergem para a construção de significados ba-
de demanda. Entendemos, entretanto, que exis- seados nas diferenças sexuais. Assim seria um
tem outras questões implicadas2.
Neste contexto, a Escola Normal de Natal 2
Apontamos como alguns dos motivos a falta de interesse
se configura, enquanto uma instituição pensada do poder público em estruturar uma rede de ensino escolar
para o sexo masculino, por seguir o modelo de pública; em conseqüência, negligenciava a formação docen-
te. Os incentivos voltavam-se para a agricultura exporta-
organização do ensino secundário ministrado no dora, cuja mão-de-obra prescindia do conhecimento escolar
Atheneu, sendo, em algumas situações, conce- (AQUINO, 2002).

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De escola normal de Natal a Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908-1965): uma referência na formação docente ...

lugar em que se reproduziram os símbolos cul- preparar bem as lições, dispor metódica e previ-
turais constituídos e constituintes do significado amente o seu trabalho, fazer a escrituração da
de ser feminino e de ser masculino em uma classe, estudar e ilustrar-se constantemente.
(LIMA, 1921, apud DIAS, 2003, p.67-68).
sociedade.
Utilizar, aqui, o gênero como análise de ca- Assim, no entender de Nestor Lima, existia
tegoria história implica necessariamente em uma incompatibilidade entre o exercício do tra-
conceber o significado de feminino e masculino balho doméstico e o magistério. Por isso, so-
como símbolos construídos socialmente, portan- mente as mulheres solteiras deveriam assumir
to, passíveis de serem desconstruídos. Logo, o magistério primário, embora a Lei 405 de 29
“gênero foi o termo usado para teorizar a ques- de dezembro de 1916, que organizava o ensino
tão da diferença sexual” (SCOTT, 1992, p. 86). primário, secundário e profissional do estado
Seria, dessa forma, o grande desafio da história norte-riograndense, já assegurasse às profes-
combater a noção de fixidez da oposição entre soras públicas através do Art. 224 o direito a
homem e mulher. uma “licença especial de dois meses” (RIO
Na década de 20 a Escola Normal de Natal GRANDE DO NORTE, 1916, p. 101).
constituiu-se num ponto de irradiação e de con- No estado potiguar não foi implantado o ce-
vergência das discussões referentes à educa- libato do magistério feminino, mas constatamos
ção, atuando não só no âmbito do discurso, mas em um dos regulamentos da Escola Normal,
contribuindo na criação de instituições culturais assim como em outras congêneres do país, as
como: a Associação dos Professores do Rio restrições à presença de alunos e alunas casa-
Grande do Norte (APRN), em 1920, a Revista das. Em consulta feita à legislação da Escola
Pedagogium, em 1921, a Escola Normal de Normal de Natal3, só encontramos um disposi-
Mossoró, em 1922 e o Departamento Estadual tivo que impedisse alunos (se referindo a mo-
da ABE-1929 (AQUINO, 2002). ças e rapazes) casados de freqüentar a Escola
Identificamos a sintonia da Escola Normal Normal de Natal: o Regulamento de 1950, no
de Natal com alguns dos discursos que circu- Art. 39, que dispõe que “o aluno que contrair
lavam no país, através de seu diretor, o pro- matrimônio terá sua matrícula automaticamen-
fessor Nestor dos Santos Lima, como a te cancelada qualquer que seja a série a que
nacionalização dos diplomas das professoras, pertença, e a época do ano letivo” (RIO GRAN-
inspirada no movimento nacionalista. Enfati- DE DO NORTE, 1950, p.121).
zamos ainda, nessa década, a renovação do Supomos, entretanto, que essa prática tenha
regulamento da Escola Normal de Natal em acompanhado a Escola Normal de Natal em
1922, e a introdução da matéria Pedologia, que sua trajetória. Mas, no contexto da década de
tinha como objetivo central o estudo do com- 1950, era uma prática considerada obsoleta e
portamento do aluno. repudiada, a exemplo do que afirma o profes-
À medida que o professor Nestor Lima bus- sor Raimundo Nonato, ao declarar que “fizera
cava a introdução das disciplinas com os pre- parte da comissão elaboradora do Regulamen-
ceitos da nova pedagogia, paradoxalmente to de 1950, e já, nessa época, combatera esses
defendia idéias conservadoras como o “celiba- dispositivos regulamentares, para os quais já não
to do magistério feminino”, já combatido por havia cabimento nos dias de hoje” (ESCOLA
alguns grupos naquela época. O mesmo consi- NORMAL DE NATAL, 1957, p. 55).
derava inviável a mulher exercer a função de Assim sendo, a Escola Normal de Natal
dona de casa e de professora ao mesmo tem- consolidou-se assumindo a identidade de “es-
po, argumentando que: cola para moças”, como era no Brasil e em
... por mais diligente e laboriosa que a mulher 3
Foram consultados os regulamentos da Escola Normal de
seja, não poderá dar conta dos encargos da fa- Natal de 1908, 1917 e 1922; os decretos de reforma de
mília, (...) dirigir os empregados, enfim, (...) à re- 1938 e 1947; o regulamento de 1950; bem como as leis de
gularidade da vida doméstica, (...) por outro lado reformas de 1916 e 1957.

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outras partes do mundo. Os currículos, as nor- A seção feminina do Atheneu foi instalada
mas, os uniformes, a organização do espaço fí- no edifício onde funcionava a Escola Normal
sico e do tempo, à medida que formavam de Natal (Grupo Escolar Antônio de Souza), mas
também informavam, conforme Louro, “uma seguia as orientações do Colégio Atheneu, era
série de rituais e símbolos, doutrinas e normas independente, com direção, professores e ins-
foram mobilizadas para a produção dessas mu- petores próprios (AQUINO, 2002). A convi-
lheres professoras” (1997b, p. 455). vência das normalistas com as secundaristas
As Escolas Normais funcionavam sob o num mesmo espaço físico não foi tão harmoni-
controle do Estado, que irradiava uma ótica osa, pois o comportamento indisciplinado des-
masculinizada da sociedade, que incidia na ela- tas chocava-se com as rígidas normas
boração da legislação e das normas regulamen- disciplinares que conduzia a rotina da Escola
tares dessas instituições, pois, na sua maioria, Normal e simultaneamente moldava o compor-
eram dirigidas e controladas por diretores –ho- tamento das normalistas. Inevitavelmente as
mens-, a exemplo da Escola Normal de Natal alunas do Atheneu eram expostas à compara-
que somente na década de 1950 veio a ter uma ção com as normalistas, como podemos perce-
mulher como diretora.. ber no relatório do Diretor da Escola Normal,
professor Clementino Câmara:
Começaram a funcionar no edifício da Escola as
De Escola Normal Primária a Esco- aulas do elemento feminino do Atheneu Norte-
la Normal Secundária: a Reforma Riograndense. Com direção diferente e, sobre-
de 1938 tudo, parece que devido à deficiência de
inspetoras enérgicas, falecem-me palavras para
Na década de 30, o Ensino Normal sofreu louvar a parte que se relaciona com a disciplina
algumas modificações, visando à sintonização das meninas, material escolar estragado, pare-
des do edifício riscadas e danificadas, peças de
ao projeto de uniformização cultural e de cen- máquinas de costuras da Escola Normal subtra-
tralização administrativa do governo federal, ídas e até, o que é sobremodo para lamentar os
que incorporou como seu muitos dos elemen- gabinetes sanitários com dizeres e pinturas de
tos dos discursos e das reivindicações das di- envergonhar, tais são os vestígios ali deixados e
ferentes agremiações, encetadas na década de que, só por força da verdade sou constrangido a
20. Assim, em janeiro de 1938, foi instituído o dizer, em triste confronto com a disciplina da
Decreto nº 411 que reformou o Ensino Nor- Escola. (ESCOLA NORMAL DE NATAL, 1940c,
p. 45).
mal Norte-Riograndense (AQUINO, 2002):
separou o curso de formação geral do curso Podemos aludir essa diferença de compor-
profissional, introduziu as disciplinas ditas mo- tamento à própria formação das alunas do
dernas, baseadas nas idéias escolanovistas, tais Atheneu, tendo em vista que a Escola Normal,
como: a Psicologia, a Sociologia e a Antropo- enquanto instituição pensada para formar mu-
logia Educacional. Essas disciplinas se tradu- lheres professoras, sempre teve entre suas
ziram num avanço educacional por permitir um preocupações precípuas, a formação da moral,
melhor entendimento do comportamento do a contenção dos movimentos, dos desejos, bem
aluno. como a precisão nas ações. Tais qualidades tal-
A partir da referida reforma, tornou-se obri- vez não fossem tão cultivadas e perseguidas no
gatória, para o ingresso na Escola Normal, a ensino secundário, já que era uma modalidade
realização do ciclo fundamental de cinco anos de ensino onde ainda predominava o elemento
do curso secundário. Para tanto, foi necessário masculino.
criar uma seção feminina no Colégio Atheneu A partir de 1938, a Escola Normal de Natal
Norte-Riograndense (regido por leis federais) suspendeu a matrícula para novos alunos, pois
destinada às meninas que iriam ingressar na estes teriam que antes cursar os cinco primei-
Escola Normal. ros anos no curso seriado.Enquanto isso não

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De escola normal de Natal a Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908-1965): uma referência na formação docente ...

acontecia, a escola assistia ao seu progressivo especialização de professor primário e habilita-


esvaziamento, funcionando somente com as alu- ção de administradores escolares e demais cur-
nas remanescentes da matrícula de 1937. A sos. Seria a instituição de formação de educador
operacionalização da reforma que se propunha mais completa para aquele momento. Em de-
a introduzir as ciências da educação, ocorreu corrência, muitos Estados começaram a mos-
de forma catastrófica e levou à iminência de trar interesse em transformar as Escolas
fechamento da Escola Normal de Natal (AQUI- Normais Oficiais em Institutos de Educação.
NO, 2002)4. Em fins da década de 1940, deu-se a sedi-
mentação e reorganização do Ensino Normal,
enquanto curso de ensino médio de segundo
O Instituto de Educação: ensaios, ciclo, ou seja, realizado após os quatro anos de
anseios e realizações primário e mais quatro do antigo ginásio. Entre-
tanto, foi na década de 1950 que se intensifica-
O modelo de estabelecimento de ensino, ram os anseios e as ações pela instalação do
denominado Instituto de Educação, já vinha Instituto de Educação de Natal, época em que
sendo instituído em vários locais do país e era se ampliava e se psicologizava cada vez mais a
considerado o que se tinha de mais moderno prática docente; disseminava-se também o dis-
em termos de formação docente; foi regulamen- curso da profissionalização docente em que se
tado através da Lei Orgânica do Ensino Nor- propugnava não somente a expansão da for-
mal, Decreto nº. 8.530 de janeiro de 1946. A mação docente, mas também a incrementação
Lei Orgânica centralizou as normas e diretrizes dos cursos de formação para docência.
do ensino Normal em âmbito nacional (ROMA- Num contexto em que se bradava a exigên-
NELLI, 1998, p.163). cia da profissionalização docente e que cada
Fixadas as diretrizes e finalidades para o vez mais se recorria às teorias em busca de
Ensino Normal, caberia a cada governo adap- respostas para os problemas educacionais, tor-
tá-las aos seus Estados. Com este intuito, o in- nou-se uma tendência a instituição de Institutos
terventor Federal do Rio Grande do Norte, de Educação onde funcionavam as tradicionais
Orestes da Rocha Lima, baixou o Decreto-Lei Escolas Normais Oficiais.
nº 684 de 11 de fevereiro de 1947, que adaptou Na Escola Normal de Natal, essa luta foi
à Legislação Federal o sistema de Ensino Nor- alavancada pela professora Francisca Nolasco
mal do Estado, que determinou como finalida- Fernandes, a sua primeira diretora, nomeada em
des do Ensino Normal, enquanto nível de setembro de 1952. Em seu livro de reminiscên-
segundo grau, prover a formação de professo- cia s a professora afirma: “... não pude ser a
res/as primárias; além habilitar administradores melhor. Fui apenas a primeira, depois de sete
escolares, bem como aplicar, desenvolver e direções masculinas” (FERNANDES, p.151,
propagar os conhecimentos e técnicas relati- 1973).
vas à educação da infância. A feminização do exercício do magistério
Para atingir tais finalidades, determinou três primário já era uma realidade que se deu em
tipos de estabelecimentos diferentes para mi- decorrência da expansão da escola e da instru-
nistrar o Ensino Normal: o Curso Normal Regi- ção das meninas. Conforme estudiosas, como
onal, a Escola Normal e o Instituto de Educação. Silva (2002), Louro (1997a) e Almeida (1998),
Cada uma dessas instituições passaria a a predominância das mulheres no magistério
ministrar cursos normais de modalidades dife-
rentes. O Instituto de Educação seria a institui- 4
No ano de 1938 a Escola Normal de Natal contava com
ção em que eram ministrados o curso ginasial e uma matrícula de 198 alunos, sendo 15 do sexo masculino e
os cursos próprios das Escolas Normais (Cur- 183 do sexo feminino. Em 1939 havia 12 rapazes e 126
moças e um total de 138 alunos. Em 1942 a matrícula total
sos Normais de 2º ciclo, o Jardim de Infância e havia caído para cinco, sendo dois rapazes e três moças
a Escola Primária anexa), além dos cursos de (AQUINO, 2002).

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primário público iniciada ainda no século XIX, O cenário se alterou em 1952, com a nome-
se efetivou nas primeiras décadas do século XX ação de Francisca Nolasco Fernandes ou Dona
e está intrinsecamente ligada à expansão do Chicuta Nolasco, como era chamada entre os
ensino primário público e, simultaneamente, à mais próximos, para a direção da Escola Nor-
luta das mulheres pela instrução e para estabe- mal de Natal.
lecer-se profissionalmente e ingressar no mer- Eram outros tempos, um princípio de mu-
cado do trabalho. dança se anunciava em relação ao reconhe-
Assim como as suas congêneres, a Escola cimento da capacidade da mulher para
Normal de Natal se consolidou também como exercer cargos de comando. Uma nova con-
“escola para moças”. Apesar disso, tinha, até cepção poderia estar se forjando, diferente
então, uma direção masculina e a maioria do daquele retratado pelo Governador Lamarti-
corpo docente masculino, enraizada nos padrões ne. Dona Chicuta Nolasco era conhecida por
de uma sociedade conservadora e de um Esta- ter “pulso forte” e determinação; por isso,
do sexista, conforme se confere na exposição assumiu a direção da Escola Normal, num
do Governador Juvenal Lamartine, em 1930: momento em que esta enfrentava problemas
O nosso magistério vem sofrendo uma verda- de indisciplina do corpo docente e discente.
deira crise relativamente ao elemento masculino. Foi designada a uma mulher a direção da
Nas Escolas Normais de Natal e Mossoró gran- Escola Normal e a incumbência para que fos-
de é o número de alunas, ao passo que o número se “restabelecida a ordem”, conforme a pró-
de aluno é sempre diminuto. Turmas há que se pria Fernandes declara:
diplomam sem que haja um rapaz sequer e, entre-
Eu vivia num clima de confiança e estima recí-
tanto, estamos observando que o ensino públi-
proca entre a Diretoria e todos da Congregação.
co não se pode privar da cooperação do elemento
(...). Os rumores que eu ouvira na Escola não
masculino, pois a prática nos tem demonstrado
eram de molde a me oferecerem a continuação
que, nos estabelecimentos dirigidos por homem,
daquele clima ideal. Mas o diretor [do Departa-
a atuação sobre o meio é muito mais intensa do mento de Educação] não deixou que eu reiteras-
que nos dirigidos por senhoras. se a minha recusa, dizendo que estava precisando
Os rapazes que se diplomam não se demoram de alguém de confiança que não estivesse muito
muito em procurar um outro meio de vida, que vinculado à Escola, pois os acontecimentos iri-
melhor lhes garanta o conforto seu e de sua fa- am exigir um pouco de energia para restabelecer
mília, e isto porque, sendo o professor um ele- a ordem. (1973, p. 118).
mento de representação no meio em que vive, Foi desafiante em decorrência da tradição
não pode sustentar-se acompanhado dessa re-
cultural do Brasil, porque, por muito tempo, as
presentação, com os vencimentos que atualmen-
te recebe. Infelizmente a situação financeira do
escolas públicas reproduziram e reforçaram a
Estado, atualmente não nos permite falar em qual- hierarquia doméstica, em que as mulheres fica-
quer aumento de despesa. (RIO GRANDE DO vam nas salas de aulas, executando as funções
NORTE, 1930, p.57). mais imediatas do ensino, enquanto os homens
dirigiam e controlavam todo o sistema. Então,
Tradicionalmente, o cenário nas escolas pri-
romper com essa estrutura não foi uma tarefa
márias e normais configurou no que Demarti-
fácil. Assim, endossamos Louro, quando este
ni e Antunes (2002) denominaram de “profis-
afirma que:
são feminina, carreira masculina”, pois, apesar
de nessas instituições o trabalho feminino ser Essas primeiras diretoras estavam, de algum
predominante, os postos de comando como di- modo, rompendo com a representação ou as ex-
pectativas mais tradicionais, o que poderia con-
reção, inspeção, cargos técnicos e administra-
tribuir para que fossem admiradas e imitadas
tivos estavam sempre sob o controle masculi- pelas professoras e alunas. Dessa forma, algu-
no. Tal quadro configurou a realidade da mas delas acabaram por imprimir marcas extre-
Escola Normal de Natal até a metade do sé- mamente pessoais às instituições que dirigiram,
culo XX. criando escolas. (1997b, p. 460).

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De escola normal de Natal a Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908-1965): uma referência na formação docente ...

Sendo pioneira, teria que ser também o mo- iniciais de Chicuta Nolasco, pois estava con-
delo, por ainda não ter um pronto para segui-lo. victa, e pretendia convencer a todos de que a
Chicuta Nolasco, ao assumir a direção da Es- “Escola permanecia e deveria continuar com a
cola Normal, foi instigada a imprimir de imedia- sua tradição, o seu conceito impoluto, como
to sua marca: precisão, perseverança, coragem ontem” (FERNANDES, 1973, p.123). Para tan-
sabedoria, pois o momento assim o exigia. to, ela contava com a experiência adquirida “para
Àquela altura dos acontecimentos, um gru- suprir os conhecimentos técnicos que me falta-
po de alunas da Escola Normal de Natal, pela vam” (FERNANDES, 1973, p.118).
primeira vez, mobilizou uma greve, em protesto E assim o fez, começando por fazer valer
pela renúncia do professor Clementino Câma- os dispositivos regulamentares, obteve a cola-
ra que dirigia a Escola há dezoito anos. boração de alguns funcionários, professores e
As alunas não aceitaram (...) abandonaram as alunas, mas também sofreu resistência de ou-
aulas e foram para as ruas com cartazes e até tras, em particular, das normalistas grevistas da
marchinhas (...). Sei que nós, os professores, terceira série, as reservas de alguns professo-
chegávamos para dar aula e só encontrávamos res, mas enfim, depois de muito esforço “resta-
funcionários. (...) Reunidas, foram ao Diretor do beleceu a ordem”. E, mais adiante, avalia esse
Departamento que explicou a situação e a opção momento com uma ponta de angústia: “Essa
do Diretor da Escola. Inconformadas foram ao
primeira etapa da minha direção foi um período
Governador que manteve o “status quo”. (FER-
NANDES, 1973, p.117). péssimo para a Escola, pois outra coisa não fi-
zemos senão adaptar, readaptar, instalar, orga-
Uma mulher assumindo a direção da Escola nizar” (FERNANDES, 1973, p.125).
Normal de Natal, tradicionalmente dirigida por
homens, uma instituição reconhecida pelo rigor
nas normas e pela disciplina, paralisada em de- As migrações da Escola Normal de
corrência de uma greve das normalistas, pode- Natal: antes e durante a direção
mos dizer que esses fatos eram elementos de Chicuta Nolasco
importantes na composição de uma nova confi-
guração da atuação das mulheres ou das futu- Tempos de mudanças, às vezes, implicam de-
ras professoras na sociedade natalense. sacomodação na ordem, poderes sucumbiriam,
Atribuímos, também, à ação das alunas de or- outros se ergueriam. Mudanças trazem também
ganizar uma greve, reivindicarem seus interes- diferentes dificuldades e transtornos; neste caso,
ses, um rompimento com os grilhões impostos referimo-nos àqueles em que a Escola Normal de
socialmente, fazendo-se serem reconhecidas Natal teve que passar por não dispor de uma sede
como sujeito social. própria. A isso, na época, Dona Chicuta chamou
Ali, então, se delineou um novo quadro nas de “migrações”. Entretanto, as migrações sem-
relações de poder; há de se pensar sobre os pre fizeram parte da história da Escola Normal de
efeitos dessa recolocação de força nas rela- Natal desde sua instituição em 1908.
ções entre os sujeitos envolvidos: ou seja, ho- A Escola Normal de Natal, fundada em 1908,
mens e mulheres no interior da Escola Normal. foi instalada como anexo do Colégio Atheneu
Seria um desafio, não somente pela especifici- Norte-Riograndense, onde permaneceu por dois
dade do cargo de direção, mas pelo estado de anos. Mudou-se, em 31 de dezembro de 1910,
conflito em que a escola se encontrava entre para o prédio do Grupo Escolar Augusto Seve-
os diferentes grupos que a compunham. ro, no Bairro da Ribeira, onde funcionava tam-
Administrar aquela situação de tensão em bém o Jardim de Infância Modelo e se
relação às alunas grevistas (que se restringia concentrava, naquela época, o centro comerci-
às da terceira série), conquistar o respeito e a al político e cultural de Natal.
credibilidade dos funcionários e professores, Constatamos algumas tentativas para a
retomar a rotina da Escola, eram os objetivos construção de um edifício próprio para a Esco-

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la Normal de Natal, como em 1919, no governo que verificou estarem duas tesouras com as pon-
de Joaquim Ferreira Chaves, que foi obrigado a tas roladas, repousando sobre os caibros (...).
suspender essa e outras obras por causa da Sobre o telhado, opinou ele, fosse imediatamen-
te retiradas todas as aulas, pois segundo afir-
seca. A outra iniciativa ocorreu em 1937, por
mou, de um momento para outro, pode tudo
ter a escola passado por mais um constrangi- desabar, mesmo sem chuva forte e ventania. Na
mento, já que não tinha como acomodar o avul- iminência de um sério desastre que bem pode
tado número de alunas matriculadas naquele ser fatal a centenas de crianças e senhoritas, tan-
ano. Logo, o Governo do Estado abriu crédito to da Escola Normal como da Seção do Athe-
para a construção de um prédio para a Escola neu, venho reclamar as mais urgentes medidas
Normal da capital (AQUINO, 2002). que o caso exige. (ESCOLA NORMAL DE NA-
TAL, 1940b, p. 43).
Entretanto, essas iniciativas não lograram
sucesso, permaneceram no papel. Em 1937, a Mas chegou ao término do ano de 1940 e a
Escola saiu do Grupo Escolar Modelo Augusto situação se agravava sem ser reconhecida pelo
Severo e instalou-se no prédio do Grupo Esco- poder público, o Diretor Clementino Câmara
lar Antônio de Souza, na R. Jundiaí, 641, no lamenta novamente:
bairro de Tirol. O edifício era propriedade da São más para não dizer péssimas as condições
Associação de Professores do Rio Grande do do prédio da Associação dos Professores, onde
Norte (APRN), cedido gratuitamente ao Go- presentemente funciona a Escola Normal de Na-
verno do Estado e dispunha de seis salões com tal. Desde o teto até o piso tudo reclama reparo.
diferentes dimensões. Linhas roladas, paredes sujas, vidros das ban-
Na nova sede continuavam os problemas de deiras quebradas a cair, como aconteceu certo
dia ferindo na mão uma quartanista, ferrolhos e
acomodação da Escola Normal de Natal; o pré-
fechaduras a pedir substituição, portas reclaman-
dio não atendia às exigências didático-pedagó- do pintura, gabinetes sanitário sem caixas de
gicas inerentes ao ensino normal, além de descarga, eis o estado do edifício, pelo que se
encontrar-se em condições precárias, confor- fazem necessários, urgentes reparos. Uma aber-
me relatório do Diretor da Escola Normal de ração é manter duas cadeiras: Uma de Pedago-
Natal, Clementino Câmara: gia e outra de Higiene num prédio escolar em tal
Estado, prestes à ruína. (ESCOLA NORMAL DE
O edifício da Associação de Professores onde NATAL, 1940c, p.46).
presentemente se acha funcionando a Escola
vem de há muito reclamando não só uma limpeza A narrativa supracitada nos permite aden-
como condição higiênica, senão também alguns trar por entre os salões daquele edifício, deteri-
reparos de certa monta. Pequenos consertos fo- orado, desgastado pelo tempo, marcado pelo
ram feitos no teto por causa das fortes chuvas. abandono. Paradoxalmente a esse cenário de
Entretanto, há portais bichados, janelas desman-
decadência, o ano de 1940 transcorreu num cli-
teladas a se estragarem mais ainda pela falta de
conservação, ferrolhos enferrujados, bandeiras ma festivo, no qual se registrou o maior número
com vidros partidos, parede e assoalho sujos. de formandos desde a existência da Escola.
Além disso, a [área] exterior ao edifício reclama Naquele 21 de dezembro ocorreu a solenidade
caiação. (ESCOLA NORMAL DE NATAL, 1940a, de Colação de Grau de 79 professorandas.
p.35). (AQUINO, 2002).
A situação se agravou de tal modo que o Mesmo que a Escola Normal de Natal te-
diretor da Escola Normal expediu um ofício nha sido exaltada desde a sua instituição como
especial, solicitando ao Diretor do Departamen- uma insígnia do moderno, carregou em sua tra-
to de Educação providências urgentes. jetória o peso do atraso: uma escola sem edifí-
cio, um corpo sem face.
Com as pesadíssimas chuvas do inverno deste
No início de 1941, a Escola Normal de Na-
ano, o salão desta escola no qual funciona o 4º
ano apareceu com o ferro afastado da parede tal retornou para o Grupo Escolar Modelo Au-
cerca de uns dois centímetros. Imediatamente gusto Severo, onde permaneceu até 1954. Foi
mandei verificar por um perito mestre-de-obra, no início dessa década que se deu o encontro

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De escola normal de Natal a Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908-1965): uma referência na formação docente ...

da instituição com a professora Chicuta Nolas- ou curso ginasial, um jardim de infância, uma
co, a qual depois de assumir sua direção pas- escola para aperfeiçoamento de professores pri-
sou a protagonizar a luta por uma sede para a mários e mais cursos de habilitação para admi-
nistradores escolares de grau primário, era a
Escola Normal de Natal, ou melhor, neste con-
conta de encher aquele colosso, que assim nos
texto, para o Instituto de Educação. parecia naquela época. Foi quando nos adverti-
Em outubro de1946, deu-se início à constru- ram que o Atheneu também ia para lá. (...) Como
ção do prédio que, desde logo, passaram a cha- acomodar todas essas coisas com que sonháva-
mar de Instituto de Educação, hoje Colégio mos e mais 600 alunos do Atheneu? (FERNAN-
Atheneu Norte-Riograndense, situado na Rua DES, 1973, p.129).
Potengi, no bairro de Petrópolis. Tal construção Aquilo que era uma dúvida transformara-se
se conduziu por pequenas etapas intercaladas por em certeza quando se deu a mudança, pois o
períodos de paralisação, passando pelos interven- prédio que chamaram de Instituto de Educação
tores e os governos de José Augusto Varela havia sido edificado para acomodar o Atheneu
(1947-1951) e Jerônimo Dix-Sept Rosado (1951); Norte-Riograndense. “O Instituto de Educação
foi concluído e inaugurado em 1954, no Mandato que era bom nada. O Atheneu absorveu tudo.
de Sílvio Piza Pedroza (1951-1955). A escola Normal ocupou uma perninha do X,
O prédio que passou a denominar-se Insti- exatamente uma onde nem sequer havia sani-
tuto de Educação foi construído com recursos tários” (FERNANDES, 1973, p.130).
do Governo Estadual, auxiliado pelo Governo Nessas condições o Curso Normal ficou iso-
Federal, através do Ministério da Educação. Foi lado e sem constituir nenhuma das modalida-
edificado para acomodar os vários cursos se- des exigidas pela Lei Orgânica de Ensino do
cundários da capital, atualmente espalhados em Normal, pois o Jardim de Infância e o Grupo
vários edifícios. Escolar Modelo, que serviam à prática pedagó-
Seja pela falta de planejamento racional da gica das normalistas, a essa altura já funciona-
educação e da formação docente, seja pela vam cada um com endereço diferente.
imponência do prédio, o Governo local procu- “A Escola era uma hóspede indesejável”,
rou remediar um problema que se arrastava há desabafa Dona Chicuta Nolasco (FERNAN-
quase meio século: a falta de uma sede para o DES, 1973, p.130). Num diálogo com a experi-
Curso Normal da capital. ente educadora, diríamos, hoje, que aquele
Assim, resolveu-se unir num mesmo espa- espaço, predominado pelo elemento masculino
ço físico algo que estava separado no imaginá- e para ele organizado, configurava-se em um
rio das pessoas envolvidas, nos objetivos de lugar social generificado na medida em que era
ensino, nas representações sociais construídas constituído e constituinte do que é ser masculi-
sobre as diferenças sexuais, já que o secundá- no e feminino, ou melhor, identidades eram
rio era visto como ensino para os meninos e a construídas socialmente, feitas sobre as dife-
Escola Normal para moças. renças sexuais. A escola e os curso de forma-
Naquele ano de 1954 foi inaugurado o tão ção docente são lugares que necessitam de
esperado Instituto de Educação, onde passa- serem clarificados à luz das relações de gêne-
ram a funcionar os cursos secundários e a Es- ro, conforme reitera Louro:
cola Normal de Natal, que, até então, se Não parece ser possível compreender a história
encontrava instalada no Grupo Escolar Modelo de como as mulheres ocuparam as salas de aula
Augusto Severo. Rememorando, Dona Chicu- sem notar que essa foi uma história que se deu
ta Nolasco expressa: também no terreno das relações de gênero: as
representações do masculino e do feminino, os
Eu pensava que aquilo era destinado exclusiva- lugares sociais previstos para cada um deles são
mente à instalação de um Instituto de Educação integrantes do processo histórico (1997b, p. 478).
que nós ainda não tínhamos e, justamente ocu-
paria aquela monumental construção em forma Portanto, constitui-se um equívoco aceitar a
de X. Uma escola normal, um curso de regentes construção de relações de poder baseadas sim-

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Luciene Chaves de Aquino

plesmente no inatismo sexual. Ao se investigar Chicuta Nolasco, por sua vez, era reconhecida
as relações de gênero e a história da formação por sua experiência, competência e por ter “pul-
decente, deve-se superar o enfoque da vitima- so forte”, mas também ocupava uma confortá-
ção, ou seja, aquele que “postula às mulheres vel posição na sociedade natalense, e era bem
uma posição de vitimação absoluta numa soci- articulada com as autoridades políticas do Es-
edade centrada na autoridade masculina” tado Potiguar. Quanto a isso, ela comenta em
(TORNQUIST, 1998, apud SILVA, 2002, tom de brincadeira, “entre os meus apelidos (...),
p.99). É imprescindível considerar que nem sem- um era - Diretora Política. Meu marido era de-
pre essa relação é harmoniosa e que, em al- putado estadual e líder do Governo na Assem-
guns lugares considerados femininos, se bléia” (FERNANDES, 1973, p. 130).
estabelecem os conflitos, uma vez que ali estão Assim, Dona Chicuta Nolasco enfrentou por
instituídos também, poderes e saberes. várias vezes situações adversas, algumas até
Os conflitos estiveram presentes nas expe- preconceituosas; isto se deveu à sua obstina-
riências vivenciadas na referida Instituição en- ção e por ter “uma quase obsessão de vencer
tre 1954 a 1956. A esse respeito Dona Chicuta os obstáculos” (FERNANDES, 1973, p. 122),
reforça que, apesar da rejeição da Escola Nor- mas não podemos deixar de considerar que sua
mal no referido prédio: condição social lhe favorecia, abrindo-lhe ca-
... fazia valer os seus direitos. Organizávamos minhos, tornando-a pioneira de uma trajetória e
sessões solenes comemorativas das datas es- forjando precedentes para uma reorganização
colares, ciclos de alunos, festivais escolares, na ação das mulheres professoras, ou melhor,
ocupando com freqüência o auditório do prédio. na realidade educacional Norte-Riograndense.
(...) E assim chegou o 7 de Setembro e a parada Uma realidade era plausível: o prédio em
escolar. Foi a primeira e última briga Atheneu x disputa não comportava um Instituto de Educa-
Normal. (...) O Atheneu, com toda a sua força, ção e o Colégio Atheneu. A luta estava por co-
naturalmente queria comandar a parada. Eu não meçar. Dona Chicuta Nolasco, usando também
admitia que a escola não fosse a primeira, uma sua condição de “diretora política”, solicitou ao
vez que ali era o Instituto de Educação. Foi um Governador Sílvio Pedroza, um novo edifício
escarcéu. Eu e o professor Roque discutimos,
para o Instituto de Educação, o qual assumiu o
mas a Escola formou na frente, comandando o
compromisso de providenciar. E assim o fez,
desfile do Atheneu. Isso me valeu boas antipati-
as. (FERNANDES, 1973, p.130-131). no final de seu mandato, inaugurou o prédio que
passou a ser chamado de Instituto de Educa-
Podemos perceber que as relações homem ção5. Embora não contemplasse todos os re-
e mulher estão imbricadas, por sua vez, com as quisitos para tal, ali foi instalada “a Escola
relações de poder que revelam os conflitos e as
Normal, o Grupo Modelo, agora com o nome
contradições que marcam a sociedade, sendo
de Escola de Aplicação e o Jardim Modelo,
assim entendidas a partir do estudo das rela-
ções de gênero, “que permite (...) desestabili- anexo, reorganizando, o que se chamava uma
zar a aparente oposição homem/mulher, Escola Normal, não um Instituto de Educação”
levando-nos a considerar as distinções de raça, (FERNANDES, 1973, p. 131). Seguindo a tra-
de classe, de idade, de religião que os dividem jetória que Chicuta Nolasco chamou de “mi-
internamente” (LOURO, 1995, p.126). grações”, a Escola Normal de Natal iniciara o
Tais considerações possibilitam a interpre- ano letivo de 1956, em um novo endereço.
tação da trama dos acontecimentos no Instituto Nesse estabelecimento permaneceu por
de Educação, quando a diretora da Escola Nor- uma década (1956-1966). Foi quando se tor-
mal enfrenta a Direção do Atheneu Norte-Rio-
grandense, um Colégio de Ensino Secundário,
centenário e tradicional na formação dos jovens 5
O edifício localizava-se na Praça Pedro Velho nº 400, no
bairro de Petrópolis. Após a saída da Escola Normal em
abastados, vindos de famílias influentes na vida 1965, passou a sediar a Faculdade de Educação. Neste ende-
política, econômica e cultural do Estado. Dona reço funciona hoje a Escola Estadual Anísio Teixeira.

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De escola normal de Natal a Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908-1965): uma referência na formação docente ...

nou, oficialmente, um Instituto de Educação atra- ensino primário e normal Norte-Riogranden-


vés da Lei 2171 de dezembro de 1957, cujo Art. se, em virtude de seus conhecimentos sobre
19 determinava que o Instituto de Educação de os novos pressupostos da pedagogia escola-
Natal, com caráter experimental em seus cur- novista. Pretendia-se dar, assim, uma nova
sos de pesquisas, seria destinado à melhoria do feição ao trabalho pedagógico e ao ato educa-
Ensino Normal do Estado, mantendo, na medi- tivo do professor no ensino do Estado (ARA-
da de suas possibilidades, cursos de especiali- ÚJO, 2000, p. 6).
zação e aperfeiçoamento, contando se houver Outras intelectuais, também designadas pelo
necessidade, com a cooperação de técnicos MEC, deram sua contribuição para a educação
nacionais ou estrangeiros. (RIO GRANDE DO norte riograndense. Destacamos as professo-
NORTE, 1957). ras Eny Caldeira, antiga Diretora do Instituto
A reforma6 pretendia organizar e fixar as de Educação de Curitiba/PR e auxiliar de méri-
bases da educação elementar e da formação to do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacio-
do magistério. Criou a Escola de Aplicação (an- nais, e a profª Juracy Silveira, ex-Diretora do
tes Grupo Escolar Modelo) e o Centro de Pes- Ensino Primário da Prefeitura do Distrito Fe-
quisa Educacional (CEPE). Teve seu antepro- deral. Destacamos também a atuação do profº
jeto elaborado na Secretaria de Educação e Júlio César de Melo e Souza, que chegou a re-
Cultura sob a supervisão do seu titular Dr. Tar- alizar cerca de quinze conferências em todos
císio de Vasconcelos Maia e do Diretor do De- os estabelecimentos de ensino superior e insti-
partamento de Educação, Dr. Carlos Borges tuições culturais, além dos Cursos de Didática
Medeiros (EDUCAÇÃO.., 1958) e com orien- e Metodologia que realizou no Colégio Estadu-
tação político-pedagógica do professor Anísio al, para professores secundários e professores
Teixeira, então diretor do Instituto Nacional de em estágio, no Curso de Aperfeiçoamento.
Estudos Pedagógico (INEP). Além das ações pedagógicas realizadas no
Assim sendo, o alvo principal era a renova- Estado, foi agilizado o deslocamento de profes-
ção da didática como forma eficiente de atingir soras, supervisoras e diretoras de escolas para
os objetivos, portanto “terá de começar (...) do os centros de especialização do Norte e do Sul
curso primário – e de penetrar, ainda com mais do país, através de acordos entre a Secretaria
profundidade, no setor de educação pedagógi- de Estado de Educação e Cultura junto ao MEC,
ca, onde se formam os professores, de cuja efi- para o qual foram destinadas, no ano de 1958,
ciência e capacidade intelectual depende todo cerca de cinqüenta e três bolsas de estudo dis-
o êxito do programa em referência” (EDUCA- tribuídas entre as diversas áreas do ensino (RIO
ÇÃO..., 1958, p.3). GRANDE DO NORTE, 1959, p.54).
Entre as metas a serem atingidas foi dada A profª Lia Campos e sua equipe7 se incum-
ênfase ao preparo do professor primário, a biram de ministrar diversos cursos de aperfei-
quem se deve assegurar uma igualdade básica çoamento, treinamentos e palestras no interior
e unidade de formação pedagógica (EDUCA- do Estado, através das Missões Pedagógicas,
ÇÃO.., 1958). Logo, o aperfeiçoamento e a como também nos Centros de Formação de
formação pedagógica do professor seriam ponto Magistério Primário do Estado (localizados em
principal para que este pudesse planejar, ensi- Natal, Caicó e Mossoró).
nar, e educar conforme os procedimentos téc-
nico-científico.
As ações se iniciaram no sentido de agili- 6
A mesma ficou conhecida como reforma “Tarcísio Maia”
em homenagem ao Dr.Tarcísio de Vasconcelos Maia, Secre-
zar a capacitação do professor. Para tal, o Se- tário de Estado de Educação e Cultura do Rio Grande do
cretário de Educação firmou convênios com o Norte e um dos seus idealizadores.
presidente do INEP, que designou a professo- 7
Nessa equipe, algumas professoras já tinham realizado cur-
sos de especialização nos centros educacionais do sul, adqui-
ra Lia Campos para coordenar elaborar e aci- ridos por meio de bolsas de estudos (FERNANDES, 1973,
onar os planos de execução da reforma do p.133)

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Divulgação, treinamento, qualificação, ade- No ano de 1963, foi criada a SECERN (Servi-
sões e resistências, euforia e rejeição, dificul- ço Cooperativo do Ensino do Rio Grande do
dade de adaptação e envolvimento: manifesta- Norte), uma repartição que se encarregava de
ções de diferentes formas de ver a reforma aplicar as verbas vindas destes convênios, prin-
educacional de 1957. Entretanto, era concebi- cipalmente aquelas destinadas à construção de
da pelo Governo estadual como sendo uma das prédios escolares.
suas maiores obras, revestida de renovação, Dona Chicuta Nolasco, que retornara à di-
pioneirismo e ousadia, pois levou o Rio Grande reção do Instituto de Educação em 1959, acom-
do Norte a ser mencionado no relatório da panhou o processo de construção do novo
UNESCO, entre os três Estados brasileiros de edifício, não de perto, porque o pessoal da SE-
melhor padrão educativo do país (RIO GRAN- CERN não costumava ser amistoso, nem dava
DE DO NORTE, 1960, p.82). importância à opinião de professora conforme
Neste momento considerado revolucionário comenta sobre a visita feita a este local, por
para a educação do Estado, apontamos a pre- orientação do Secretário de Educação. “O as-
sença marcante das mulheres professoras, que sunto que me levava lá era a planta do Instituto
se encontraram em torno da causa educacio- Kennedy (...), fui mal recebida [não] me de-
nal. Para muitas delas, aquela experiência pes- ram o cabimento de me mostrarem a planta”
soal e profissional é que fora revolucionária. (FERNANDES, 1973, p.141).
Sejam elas as intelectuais que se deslocaram A experiente diretora já se acostumara a
das regiões Sul e Sudeste do país, para no Es- enfrentar obstáculos dessa natureza e não se
tado Potiguar multiplicar seus conhecimentos, deu por vencida; sugeriu ao governador que
ou aquelas que daqui saíram em busca de no- nomeasse uma comissão de professores expe-
vos conhecimentos em terras alheias. Quantos rimentados que estivessem na ativa para acom-
às professoras que aqui permaneceram, na ca- panharem a construção, dando sugestões naquilo
pital ou interior, elas também participaram des- que fosse esquecido, não na parte arquitetôni-
sa história. Usando as palavras de Dona ca, mas no que se referisse ao plano didático e
Chicuta, “tivemos que ser envolvidos, nós, da funcional. A comissão foi formada e a planta
Normal, como de resto de todo o Estado na onda foi apresentada aos professores do Instituto,
avassaladora de renovação” (FERNANDES, “que discutiram e criticaram construtivamente.
1973, 133). Mas o engenheirinho (...) nem deu ouvidos a
Apesar do discurso em torno das ações da ninguém, e as falhas, outras e mais graves, lá
racionalização, da renovação didático-pedagó- estão para quem quiser vê-las, apesar das ten-
gica, pesquisa em educação, o Instituto de Edu- tativas que fizeram para remediá-las” (FER-
cação continuava a funcionar em um edifício NANDES, 1973, p141).
que não atendia às suas exigências, ou seja, não Mesmo com inúmeros problemas e constru-
comportava todos os componentes que lhes ção inacabada, o prédio foi inaugurado em 22
eram fundamentais. de novembro de 1965, por ocasião da visita do
Senador Robert Kennedy, com a denominação
de INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PRESI-
O Instituto de Educação Presiden- DENTE KENNEDY, em homenagem ao Pre-
te Kennedy sidente dos Estados Unidos da América, país
com o qual foram firmados os convênios de fi-
O prédio onde finalmente se assentou o Ins- nanciamentos.
tituto de Educação foi edificado no início da Associadas a tais acordos adentravam-se,
década de 1960, no Governo de Aluísio Alves, também, as teorias educacionais, que já anun-
em decorrência do convênio firmado com a ciavam o exagero do tecnicismo na educação,
SUDENE, MEC e USAID, obtendo financia- bem como a invasão, ou melhor, a imposição
mento da ALIANÇA PARA O PROGRESSO. cultural personificada no imperialismo americano

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De escola normal de Natal a Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908-1965): uma referência na formação docente ...

que passou a exercer fortes influências sobre o Considerações finais


Brasil, em específico, sobre o Estado Potiguar,
ficando cravado na denominação de uma insti- Nesses termos, buscamos identificar na tra-
tuição de representatividade imensurável para jetória dessa instituição a sua identidade, aquilo
a história cultural e educacional do Rio Grande que a marcou no decorrer de quase seis déca-
do Norte. das pesquisadas (1908-1965), aquilo que a acom-
Em 1966, o Instituto já funcionara no novo panhou nas várias nuances que esta iria
endereço na Rua Jaguarari no bairro de Lagoa formando, decorrentes das mudanças ocorridas
Nova, “mas as instalações eram precaríssimas no contexto social, político e educacional em
(...). Não foram poucos os problemas que tive- que foram produzidas. Desse modo, apontamos
mos de enfrentar, alguns de natureza grave, como elementos constitutivos de sua identida-
afora a precariedade de instalações e recursos de: o pioneirismo e o empreendimento daqueles
mínimos para melhorá-las” (FERNANDES, que faziam a instituição colocar-se num pata-
1973, p.143). mar de elevado conceito na sociedade natalen-
Os percalços ali enfrentados não eram con- se. Endossamos, assim, as palavras de Chicuta
cebidos como se fossem “naturais”; entretan- Nolasco ao afirmar que:
to, a necessidade de cumprir o dever falava Sem eles, os professores, seria impossível reali-
mais alto, logo, apesar das dificuldades, sobres- zar a tarefa, e não teríamos registrado um índice
saíam-se os esforços para dar conta de “pro- de freqüência quantitativa e qualitativa jamais
gramas, currículo, atividades, como se tudo alcançado, elevando, ao lugar que lhe competia,
estivesse funcionando 100% (...), principal- o nome de Instituto, que não era outro senão a
mente a prática pedagógica (...), pois bem sa- velha Escola Normal. É por isso que acreditei
nos resultados obtidos e afirmo que eles foram
bíamos quanto era imprescindível à formação
magníficos (FERNANDES, 1973, p.145).
dos professores” (FERNANDES, 1973, p.
142-143). Dona Chicuta está se referindo aos profes-
Compreendemos que a história de uma ins- sores do seu tempo de direção, entretanto, afir-
tituição extrapola a organização dos decre- mamos que estes deram continuidade a obra
tos de criação, data de inauguração, portarias, educacional que a tradicional Escola Normal já
leis e regulamentos. Consideramos, portanto, desenvolvia desde sua instituição, cujos mes-
todos os elementos que a compõem e cons- tres e mestras se caracterizaram pela credibili-
troem a identidade de uma instituição educa- dade, seriedade e perseverança. Os quais
cional, ou seja, “daquilo que lhe confere um fizeram desta uma instituição modelar, que se
sentido único no cenário social, do qual fez consolidou enquanto tal pela preocupação em
ou ainda faz parte, mesmo que se tenha trans- observar as mudanças didático-pedagógicas
formado no decorrer dos tempos” (GATTI predominantes em diferentes épocas. Em al-
JÚNIOR, 2002, p.20). Assim sendo, aquilo guns momentos as inovações foram assimila-
que constituía a identidade da Escola Normal das com maior entusiasmo, em outros, com
continuou presente na prática do Instituto de menos, acatando-os por força dos acontecimen-
Educação, que é a busca do melhoramento tos em seu entorno, mas confirmando sempre o
pedagógico e da profissionalização do exer- caráter pioneiro no que concerne à formação
cício da docência. docente no Estado Potiguar.

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_____. Secretaria de Estado da Educação e Cultura. Mensagem apresentada pelo Governador Dinarte de
Medeiros Mariz à Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Norte, em 1º de junho de 1960.
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Recebido em 30.05.05
Aprovado em 08.08.05

102 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 87-102, jul./dez., 2005
Jacques Jules Sonneville

Maria Luiza Marcílio:


HISTÓRIA DA ESCOLA EM SÃO PAULO E NO BRASIL
- um clássico na literatura sobre educação

Jacques Jules Sonneville *

RESUMO

O presente artigo é um resumo do livro de Maria Luiza Marcílio1 onde serão


destacados os achados mais importantes para o entendimento da evolução
escolar paulistana, com extrapolações e projeções para a realidade nacional. O
livro é dividido em três partes: 1) Origens: 1554-1870; 2) O “século” da escola:
1870-1990; 3) Educação para todos: 1990-2000. A estreita relação entre os
aspectos demográficos da história e o sistema educacional, presente em todo o
livro, é um exemplo de estudo multidisciplinar, indispensável para a compreensão
da realidade em toda a sua complexidade. Consideramos o livro um roteiro
indispensável para entender a luta por uma educação de qualidade para todos
os brasileiros.
Palavras-chave: História da escola – Cidade de São Paulo – Brasil

ABSTRACT
Maria Luiza Marcílio: SCHOOL HISTORY IN SAO PAOLO AND IN
BRAZIL - a classic in education literature
This paper is an abridgment of Maria Luiza Marcílio’s book where we will
sketch the main findings for the understanding of the evolution of the Sao Paolo
school system, with extrapolations and projections into the global Brazilian reality.
The book is divided in three sections: 1) origin: 1554-1870 2) the school century:
1870-1990 3) education for everyone: 1990-2000. The narrow relation between
the demographic dimensions of history and the school system, present in the
whole book, constitutes an example of a multidisciplinary study, essential for
the understanding of reality in all its complexity. We consider this book an
indispensable tool for the understanding of the struggle for a quality education
for all the Brazilian people.
Keywords: School History – Sao Paolo - Brazil

*
Mestre em Ciências Sociais pela UFBA. Doutor pela Universidade Católica de Louvain – Bélgica. Professor na linha
de pesquisa 2 do Mestrado em Educação e Contemporaneidade da UNEB – PEC/UNEB. Editor executivo da Revista
da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia -
UNEB, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/
BA. E-mail: jacqson@uol.com.br
1
MARCÍLIO, Maria Luiza. História da escola em São Paulo e no Brasil. São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo / Instituto Fernand Braudel, 2005. 485 p.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 103-112, jun./dez., 2005 103
Maria Luiza Marcílio: história da escola em São Paulo e no Brasil – um clássico na literatura sobre educação

INTRODUÇÃO reflexo sobre os novos desafios para a educa-


ção (p.335-437). A estreita relação entre os
O livro de Maria Luiza Marcílio é o resulta- aspectos demográficos da história e o sistema
do de quatro décadas de pesquisas sobre a his- educacional, presente em todo o livro, é um
tória da cidade de São Paulo e do Brasil. Após exemplo de estudo multidisciplinar, indispensá-
se formar no curso superior de História da en- vel para a compreensão da realidade em toda a
tão Faculdade de Filosofia da Universidade de sua complexidade.
São Paulo (USP), a autora estudou durante Cada uma das três partes termina com Con-
quatro anos, em Paris, com bolsa do governo siderações sobre o período estudado, onde a
da França, a ciência recém-criada – Demogra- autora, a partir de uma síntese dos dados pes-
fia Histórica – para elaborar, sob a orientação quisados, tira as conclusões para o entendimento
de Louis Henry e Fernand Braudel, sua tese de da realidade educacional no Brasil. No final do
doutorado sobre a história da população da ci- livro encontram-se os créditos das imagens (56
dade de São Paulo, publicada na França sob o fotos, gravuras e objetos), a lista das tabelas, a
título La ville de São Paulo: peuplement et bibliografia, o índice remissivo e a lista das abre-
population. 1750-1850. De volta ao Brasil, viaturas. A Apresentação foi escrita por Ru-
criou o Centro de Estudos de Demografia His- bens Ricupero e Norman Gall. O Prefácio é de
tórica da América Latina – CEDHAL, na USP. Cláudio de Moura Castro.
Foi professora visitante em universidades da Neste artigo serão destacados, dentro dos
Europa e Estados Unidos e assessora de gabi- inúmeros dados e análises, os achados mais
nete da Secretaria da Criança, Família e Bem- importantes para o entendimento da evolução
Estar Social, durante o governo de Mário Covas, escolar paulistana, com extrapolações e proje-
no Estado de São Paulo. ções para a realidade nacional. É importante
Convidada, em 2000, pelo Instituto Fernand observar que, devido à amplitude da temática,
Braudel de Economia Mundial, para resgatar a as teses da autora serão apresentadas, sem
história da escola pública na cidade de São Pau- confrontá-las com outros autores. No âmbito
lo, desde sua fundação até nossos dias, reuniu deste pequeno texto, não há como iniciar uma
todas as informações disponíveis em arquivos, discussão desta natureza sobre um tema tão
bibliotecas e na internet – dados, documentos, complexo e diversificado. Além disso, a esco-
manuscritos, biografias, imagens, bibliografia, lha dos temas aqui apontados é de exclusiva
entrevistas etc. O foco do livro foi a escola pú- responsabilidade do autor do artigo.
blica, o aluno e os vários fatores que constituem
a educação, tais como legislação, formação de
professores, gestão escolar, avaliação, recursos I - ORIGENS: 1554-1870
e condições de trabalho, tendo como meta a re-
construção da trajetória secular para alcançar a Nesta primeira parte, há um primeiro capí-
“Educação para Todos”, ainda não alcançada. tulo – O ensino dos Jesuítas na cidade:
O livro é dividido em três partes: 1) Origens: 1554-1759 – (p. 3-16) que descreve e analisa
1554-1870 – foi em 1554 que nasceu a Vila de os 210 anos em que os Jesuítas exerceram o
São Paulo, em torno de uma casa de ensino dos monopólio da educação na Colônia. Durante
Jesuítas, para evangelizar os índios do planalto este período o Governo português não interveio
(p.1-29). 2) O “Século” da escola: 1870-1990 – nem se preocupou com o ensino.
é a parte mais extensa do livro, tratando da ex- Em 1759, ano de expulsão dos Jesuítas, seus
pansão do sistema escolar na cidade de São alunos atingiam menos que 0,1% da população
Paulo e sua relação com o crescimento gigan- brasileira (p. 1).2 O ensino humanista dos Jesu-
tesco da sua população (p.91-333). 3) Educa-
2
Em toda a colônia eram três os grandes colégios dos Jesu-
ção para todos: 1990-2000 – são analisadas as ítas: Bahia, Olinda e Rio de Janeiro, onde os jovens colonos
grandes polêmicas da década de 1990 e seu estudavam as mesmas coisas que os jovens nobres e burgue-

104 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 103-112, jun./dez., 2005
Jacques Jules Sonneville

ítas era destinado à formação de seus próprios reforma de Pombal introduziu as aulas régi-
quadros e às elites, mesmo tendo uma parte as de latim, grego e retórica, continuando a
destinada ao ensino do gentio. É importante tradição humanista e elitista. Somente 13 anos
destacar que a cultura humanista, baseada na depois, em 1759, foram redigidos os estatu-
aprendizagem do latim e grego, perdurou até o tos dos estudos menores, para as escolas de
século XX.3 primeiras letras nas comarcas e vilas do Rei-
Enquanto isso, outro modelo de educação no. O resultado foi trágico. Cada aula régia
surgiu, a “instrução popular”, seja sob o impul- constituía uma unidade autônoma, com pro-
so da Reforma e do Iluminismo, junto com o fessor único, geralmente de baixo nível, por-
capitalismo nascente (na Alemanha, Inglaterra que improvisado e mal pago. Os alunos se
e América do Norte), seja sob inspiração cristã matriculavam em tantas disciplinas que de-
(as escolas lassalistas na França). sejassem e podiam entrar e sair durante qual-
O segundo capítulo (p. 17-82) – A trajetó- quer época do ano. Essa prática de ensino
ria inicial do ensino público: 1759-1870 – fragmentado arraigou-se de tal forma no en-
descreve e analisa o sistema escolar no final do sino das primeiras letras e secundário que per-
período colonial e durante quase todo o impé- durou até bem entrado o século XX (p.22).
rio. Com o abandono da caça ao índio e a ex- Na ausência de boas escolas difundiu-se a
pulsão das minas (Guerra dos Emboabas - educação doméstica5 ou, nas famílias mais
1710), a capitania de São Paulo, criada em 1765, ricas, a contratação de preceptores.
implantou a agricultura de exportação (açúcar Outro exemplo é o sistema lancasteriano6
e café), base de um lento e secular processo de de ensino, também chamado ensino mútuo.
enriquecimento. Mas, em 1836, a cidade ainda Com a falta de recursos e de mestres qualifica-
contava com uma diminuta população de 21.933 dos parecia uma solução genial para resolver a
habitantes (dos quais 45% eram brancos e questão da educação de massa. Em um único
73,7% livres), em sua grande maioria dispersa local bem grande, centenas de crianças podiam
em um vasto território, equivalente ao atual gran- ser divididas de acordo com seu aproveitamen-
de São Paulo (p. 46; 59) to e confiadas aos monitores, os alunos mais
Este capítulo é dividido em dois períodos, adiantados, sendo necessário apenas um mes-
sendo o primeiro (Os primórdios) de 1759 até tre. Em 1825, o governo decidiu implantar o
1834, e o segundo de 1834 a 1870 (Estagna- método do ensino mútuo em todas as provínci-
ção do ensino na cidade: 1834-1870). Foi as. De novo, o sistema nunca foi devidamente
em 1834 que o ato adicional exonerava o poder implantado, devido à falta de salas7, de móveis
central do ensino primário e secundário, per- e material didático e, sobretudo, de professores
manecendo só com o ensino superior, resultan- e alunos-monitores preparados. Perdurou no
do em uma pluralidade de sistemas regionais, século XIX, como nos tempos coloniais, o mé-
de acordo com o entendimento de cada presi-
dente de província4
A característica básica dos dois períodos 3
Na década de 1950, eu estudei, num dos “colégios católi-
é a discrepância entre o discurso e a prática, cos” da Bélgica, o segundo grau denominado Humaniora,
conforme este modelo. O último ano chamava-se Retórica.
entre as leis e sua aplicação. Entre os inú- Este modelo permanece até hoje, pelo menos como uma
meros dados descritos e analisadas pela au- das opções de ensino secundário que tem a duração de seis
anos nesse país. (Nota do autor).
tora, apontamos dois. Em substituição ao 4
Essa política de descentralização durou até os anos de
ensino seriado dos colégios dos Jesuítas, a 1930.
5
O futuro barão de Mauá teve uma única mestra: sua mãe
(p.54).
ses das grandes cidades européias (p. 14). A biblioteca dos 6
jesuítas da Bahia era a mais importante, mas sua coleção se Do quacre Joseph Lancaster (1779-1838) que, em Lon-
perdeu quase inteiramente. Enquanto isso, a cidade de São dres, abriu uma escola para crianças pobres, em 1798.
Paulo ainda não era um centro de cultura, sendo o paulista 7
Cabia ao professor arcar com o aluguel de sua sala de aula
um rústico, isolado no interior (p. 16). ou, então, ministrar as aulas em sua própria casa (p. 66).

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 103-112, jun./dez., 2005 105
Maria Luiza Marcílio: história da escola em São Paulo e no Brasil – um clássico na literatura sobre educação

todo individual8, onde o professor atendia um Mesmo com todas as deficiências acima des-
aluno por vez, enquanto os demais ficavam oci- critos (falta de salas, professores preparados e
osos, sendo necessária a aplicação de castigos material didático), as escolas populares aos pou-
físicos (a palmatória) para manter a ordem. Os cos foram sendo instaladas, emergindo e se
mestres de escola “sempre ganhavam salário entranhando na consciência coletiva e das eli-
de fome; bastava saber suficientemente ler e tes a importância da instrução e da educação
escrever, com noções de cálculos, para dar au- para a população. Este processo moroso foi
las; o professor sabia só um pouco mais que o essencial para o “Século da Escola”, tema da
aluno.” (p.85). Era grande o absenteísmo do segunda parte do livro.
professorado, prática que perdura até os nos-
sos dias (p.86).
Sendo o principal problema a falta de pre- II - O SÉCULO DA ESCOLA 1870-
paro dos mestres, várias foram as tentativas de 1990
criar “cadeiras de primeiras letras e de gramá-
tica latina” (p.27). Como sempre, a proposta Esta segunda parte tem três grandes seg-
sequer foi considerada pela metrópole, sendo mentos: Contextos (p. 93-126); O século da
que Portugal jamais permitiu a existência de reforma de ensino (p. 127-157); e A expan-
universidades ou de unidades isoladas de ensi- são da escola na cidade de São Paulo: 1870-
no superior, ao contrário da Espanha que desde 1990) (p.159-324); encerrando com as
1521 estabeleceu universidades em suas colô- Considerações Gerais (325-333) sobre o pe-
nias americanas (p. 28). No século XIX, a im- ríodo estudado.
plantação de Escolas Normais, em que “A cidade de São Paulo passou de 31 mil
professores das escolas públicas pudessem ser habitantes em 1872 para 10 milhões no ano
preparadas, seguiu um ritmo muito lento, em con- 2000.” (p.93). Assim começa o primeiro seg-
traste não somente com os países da Europa, mento – Contextos – onde a autora, especia-
mas também com a Argentina, que introduziu lista em demografia histórica, descreve As ba-
uma verdadeira revolução educacional no sé- ses demográficas e seus impactos sobre o
culo XIX, com a criação de novas universida- processo da universalização da educação
des, colégios de formação secundária e Escolas de base: 1870-1990. São descritas e analisa-
Normais, e a contratação de professores na das as diversas causas deste crescimento ver-
América do Norte (p.87). tiginoso. Em primeiro lugar, a taxa de cresci-
Apesar deste quadro de ensino precário e mento, aumentando de 1%, nos anos de 1870,
caótico, Maria Luiza Marcílio aponta dois fatos
positivos. Na primeira metade do século XIX é 8
A autora dá dois exemplos de relação manuscrita de alunos
freqüente a presença de escravos nas aulas matriculados, acompanhada por observações sobre o de-
públicas. Não somente em São Paulo, mas tam- sempenho de cada aluno. Numa relação de meninas numa
escola pública feminina do distrito da Sé, na cidade de São
bém em Belo Horizonte, os arquivos com as Paulo, transcrevemos dois relatos: 2. Ana Florinda, natural
listas de alunos matriculados mostram como desta Cidade, filha do Capitão Joaquim Ignacio, entrou em 3
de Março de 1837. Idade 10 annos. Não freqüenta. 4) Anna
fato surpreendente a convivência na mesma sala Francisca Cezar, natural desta Cidade, filha de Affonso Fran-
de aula filhos de cidadãos livres, filhos de es- cisco Cezar, entrou em 10 de Novembro de 1837. Acha-se
corrente em ler, escrever, contar e finalizando Grammatica.
cravos, filhos ilegítimos, expostos (abandona- Idade 9 annos.
dos), brancos, pardos e negros, ricos e pobres. 9
Em 1854, a lei 133 que regulamenta a instrução primária e
A primeira lei que barrava a entrada de escra- secundária no “Município da Corte”, com reflexo em todo o
resto do país, proibia a presença de escravos (p.31-32).
vos na escola pública paulista data de 1868 (p. 10
“Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro ope-
32; 69). 9 rações de aritmética, prática de quebrados, decimais e pro-
A Lei Geral de Ensino de 1827 determinou porções, as noções mais gerais de geometria prática, a gra-
mática da língua nacional, os princípios de moral cristã e de
a criação de escolas de primeiras letras em to- doutrina da religião católica e apostólica romana, proporci-
das as cidades, vilas e lugares populosos.10 onadas à compreensão dos meninos” (art. 6º) (p. 47).

106 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 103-112, jun./dez., 2005
Jacques Jules Sonneville

para 2,9%, na década de 1950, para depois de- 1990, são descritas A emergência e a explo-
clinar de modo lento até os atuais 1,8%. Nestes são da metrópole (p. 121-126). São transfor-
130 anos, a população brasileira aumentou 17 mações que ocorreram no país e, em especial,
vezes, o Estado de São Paulo 44 vezes e a na cidade de São Paulo, nas mais diversas áre-
município de São Paulo 331 vezes. Outra cau- as: na economia (café, desenvolvimento indus-
sa foi a entrada maciça de imigrantes europeus, trial acelerado, substituição das importações,
que se dirigiam sobretudo para São Paulo11. A penetração do capital externo, inflação, reces-
partir de 1930 foi a entrada cada vez mais nu- são); nos transportes (ferrovias, bondes, depois
merosa dos migrantes nacionais, sobretudo de substituídos por rodovias, asfalto e automóveis);
Minas Gerais e do Nordeste, que fez da cidade na urbanização (reformas constantes do perfil
de São Paulo a terceira cidade do planeta na urbano, ocupação sem controle de áreas peri-
década de 1990. Tudo isso teve um impacto no féricas); no saneamento e no abastecimento de
perfil da população, cuja parcela de menos de energia, água e alimentos; nos meios de comu-
20 anos dificilmente atingia 50%, na cidade de nicação (telefone, jornais, TV); na cultura (tea-
São Paulo. Além disso, na mesma cidade, a tros e casas de espetáculo, bibliotecas, livrarias,
mortalidade infantil, que atingia a taxa de 174,312 artes)14; nas universidades (USP, PUC e Ma-
em 1926, caiu para 15,8 em 2001.13 Finalmente, ckenzie e multiplicação desenfreada de univer-
a rápida ocupação de amplas áreas urbanas, sidades e faculdades particulares); nas idéias e
sobretudo na periferia da cidade e sem planeja- na política.
mento, ocasionou o surgimento das favelas que, O século da reforma de ensino (p. 127-
inexistentes até meados do século XX na cida- 157), o segundo segmento da segunda parte do
de, abrigaram um milhão de habitantes em 1995, livro, é dedicado ao entendimento das reorde-
e 1,9 milhão em 2000 (p.103). nações sucessivas do sistema educacional.
Mesmo que, em todo o período até 1990, o “Uma reforma radical do ensino público é a
crescimento populacional fosse sempre mais primeira de todas as necessidades da pátria”,
rápido que a abertura de mais escolas, São Paulo afirmava Rui Barbosa (p.131)15. Na realidade,
conseguiu colocar grande proporção de crian- o que não faltou na história da educação brasi-
ças e jovens nas suas escolas. A partir de 1990, leira foram reformas. Somente para o ensino
porém, as novas exigências do mercado de tra- médio, entre 1759, ano de expulsão dos Jesuí-
balho e do mundo moderno estimularam os jo- tas, e 1996, ano da mais nova LDB, houve nada
vens a permanecer mais tempo na escola. Em menos do que 21 reformas, sendo que as do
apenas três anos (entre 1992 e 1995), o per- ensino fundamental foram muito mais numero-
centual de adolescentes fora da escola caiu de sas (p.128). Transplantando sistemas educaci-
64% para 42% (p.103). Em detrimento das ne- onais de países avançados, a fim de superar a
cessidades das crianças e jovens mais pobres; situação caótica do ensino, a reforma pela lei
para estas novas exigências a escola pública
não estava preparada. 11
“Entre 1882 e 1930, 2.223.000 pessoas foram para o
Além das mudanças demográficas, Maria Estado de São Paulo; dessas, 46% eram italianos e 18%
Luiza Marcílio traça um quadro amplo das trans- portugueses” (p. 95, apud LOVE, Joseph. A locomotiva.
São Paulo na federação brasileira 1889-1937. Rio de Janei-
formações que ocorreram nos mais diversos ro, RJ: Paz e Terra, 1982, p. 25).
setores, importantes para entender seu impac- 12
Taxa de mortes de menores de um ano par cada mil nasci-
to no sistema educacional. Primeiro, no período dos vivos.
13
Ainda muito alta, sendo que a ONU considera aceitável
de 1870 a 1930 (A cidade se agiganta – p. apenas uma taxa menor que 10 (p.101).
105-119). No fim desse período, quando a oli- 14
“São Paulo tornou-se um dos mais importantes centros
garquia do café cedeu o poder a uma burguesia artísticos do país. (...) Em 2000, o município contava, en-
tre museus, centros culturais, espaços culturais, casas de
industrial emergente, a cidade de São Paulo já cultura e teatros, com 130 unidades.” (p. 125-6)
atingia quase um milhão de habitantes. Depois, 15
Apud BARBOSA, Rui. A reforma do ensino primário.
para os sessenta anos seguintes, entre 1930 e 1883. Rio de Janeiro, RJ: MEC, 1947, t. 1, p. 143.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 103-112, jun./dez., 2005 107
Maria Luiza Marcílio: história da escola em São Paulo e no Brasil – um clássico na literatura sobre educação

foi usada como instrumento mágico, capaz de dário, que organizou o ginásio de quatro anos,
mudar por si mesmo as coisas. Deste modo, há como base para o colegial de três anos, seja no
uma sucessão de reformas por decreto, sem curso científico (com ênfase nas ciências natu-
correspondência com as reais necessidades do rais e exatas), seja no clássico (com ênfase nas
ensino. humanidades) (p.147-8).
Um exemplo foi a confrontação secular, no A nova grande reforma que foi promulgada
ensino secundário, entre os preparatórios (atra- em plena ditadura militar, em 1971, teve um saldo
vés de exames “cumulativos”, o aspirante à altamente negativo. Fora da fusão do curso pri-
escola superior podia estudar as matérias num mário e do ginásio em um único curso de oito
tempo a sua escolha) e o ensino seriado. Na anos (o único ponto positivo, segundo a autora,
Primeira República, após uma sucessão de “Re- por eliminar os exames de admissão), a profis-
formas”, somente em 1925 a Reforma Rocha sionalização universal do ensino de 2º grau, além
Vaz preparou a implantação do Ensino Médio de causar uma desastrosa confusão no ensino
como curso regular e graduado que, no entan- colegial, extinguiu o curso normal, o único que
to, só vem a se tornar realidade a partir de 1930. estava dando certo, preparando o professor pri-
No Estado de São Paulo, a Reforma de 1892 mário. Antes disso, a Reforma Universitária de
criou um sistema escolar, “que ia do ensino pri- 1968 desmantelou a Faculdade de Filosofia,
mário e secundário à Escola Normal e ao supe- desestruturando a formação de professores
rior, incluindo a criação do jardim-de-infância e para o ensino médio.
do Ginásio de Estado” tornando-se o paradig- A autora analisa, também, a história da pri-
ma para todo o país. (p.138). Em 1920, porém, meira Lei das Diretrizes e Bases da Educação
Sampaio Dória propõe uma nova reforma do Nacional, de 1961. Depois da nova Constitui-
ensino paulista, reduzindo tanto o ensino primá- ção de 1946, o então Ministro de Educação e
rio quanto o ensino médio a dois anos. Sofreu Saúde Clemente Mariani tinha constituído uma
severas críticas por parte dos educadores. O comissão de eminentes educadores, não para
debate teve como resultado o surgimento de propor “uma nova reforma de ensino”, mas “um
movimentos e idéias novas, provocando a cria- conjunto de princípios, de bases, de limites e de
ção em 1924 da Associação Brasileira de Edu- faculdades flexíveis e criadoras” (p.149)16.
cação (ABE). O Brasil já contava com um Apresentado em 1946, na Câmara Federal, o
grupo mais amplo de educadores preparados, projeto demorou 13 anos para ser aprovado,
alguns com estágio nos Estados Unidos ou na após sofrer profundas modificações, sob pres-
Europa, que introduziram novas teorias educa- são da Igreja Católica, em relação à laicidade
cionais no país. (p.143) do ensino, à co-educação dos sexos e à escola
A partir de 1930, finalmente, com atraso de pública, popular e gratuita.
quatro séculos em relação aos demais países O terceiro segmento da segunda parte – A
da América, iniciou-se a criação de universida- expansão da escola na cidade de São Paulo
des. Também a reordenação do ensino foi re- 1870-1990 – ocupa mais de um terço do livro.
colocada no âmbito nacional. A Reforma de Através de uma quantidade impressionante de
Francisco Campos (1931/1934), que reorgani- dados, tabelas e imagens, a autora descreve e
zou o ensino secundário, e as várias reformas analisa a implantação da vasta rede escolar na
parciais de Gustavo Capanema (entre 1942- cidade de São Paulo, de maneira densa, clara e
1946), abrangendo o ensino primário e secun- precisa, de modo que cada uma de suas 165
dário, resultaram na Lei Orgânica do Ensino páginas representa uma fonte rica de informa-
Primário (a segunda, depois da Lei de 1827),
determinando a duração de quatro anos para o
curso elementar e um ano para o complemen- 16
Apud MARIANI, Clemente. Exposição de Motivos do
Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
tar (destinado para o exame de admissão ao Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 13,
ginásio), e na Lei Orgânica do Ensino Secun- n. 36, maio/ago. 1949. p.64.

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Jacques Jules Sonneville

ções. Na primeira fase (1870-1930) são abor- escolas particulares de todo tipo, sem controle
dados o Ensino Primário e o nascimento da nem fiscalização, embora algumas delas, em
Educação Infantil, o Ensino Secundário, em grande parte em mãos de ordens religiosas, te-
especial a Escola Normal e o Ginásio. Na se- nham contribuído para a renovação e moderni-
gunda fase (1930-1990) são tratados sucessi- zação do ensino. Foi o início do dualismo vigente
vamente o processo de universalização da no sistema educacional brasileiro, já denuncia-
escola na cidade de São Paulo, a Educação In- do pelos líderes da Escola Nova: “escolas pri-
fantil, o Ensino Primário, o Ensino secundário vadas, caras, de alta qualidade, para as crianças
(Ginásios, Colégios, Ensino Profissional), a For- de elite e classe média, e escolas públicas ou
mação do Professor (descrevendo o fim da privadas, de baixo custo e baixa qualidade para
Escola Normal, a desagregação da Faculdade as demais.” (p.333).
de Filosofia, Ciências e Letras), a Alfabetiza- Deste modo, se a formação do professor para
ção de Adultos e o Ensino Supletivo. o ensino fundamental e médio sempre foi fraca
Sob o impulso do ideal republicano, segundo em todo o período, foi a Reforma de 1971 que
o qual o Estado é o responsável pela manuten- rebaixou a preparação do professor primário ao
ção e o desenvolvimento da instrução pública, nível de habilitação de 2º grau, com graves pre-
a escola começou a fazer parte da paisagem juízos para uma formação adequada do profes-
urbana paulista, com prédios grandes e bem sor de educação infantil e das séries iniciais. O
equipados. A fim de preparar os professores, professor alfabetizador, então, teve que ser im-
instalaram-se Escolas Normais públicas em pré- provisado, preparado na prática do magistério.
dios especiais, com bibliotecas e espaço para Assim, apesar da notável expansão da escola
esportes, tendo como modelo a Escola Normal pública de base e do aumento considerável da
Secundária, da Praça da República, com sua escolaridade, o desempenho do Brasil é dos pi-
escola primaria “Caetano de Campos”, anexa, ores em comparações internacionais, mesmo
como lócus de experimentação dos novos pro- com os países mais pobres.
cedimentos pedagógicos. Foram importados Ao entrar na década de 1990, a escola públi-
móveis escolares e material didático, convida- ca fundamental da cidade de São Paulo sofre de
dos professores estrangeiros e traduzidas obras falta de prédios escolares de qualidade, falta ou
dos maiores educadores do momento. A Re- precariedade de bibliotecas bem organizadas,
forma de 1892, acima citada, serviu de padrão material didático. É uma escola com vários tur-
de excelência para outras unidades federais. nos, classes superlotadas, taxas de evasão e re-
Além do sistema vertical, desde o pré-primário petência elevadas, professores mal preparados,
até o superior, surgiram novos setores, como a desanimados e com baixos salários.
educação infantil, o ensino noturno e o ensino
profissional.
Com a crescente importância atribuída à III - EDUCAÇÃO PARA TODOS NA
educação, o normalista e o professor adquiri- ERA DA GLOBALIZAÇÃO 1990-2000
ram dignidade, tomando o lugar do professor
leigo, despreparado. Inaugurou-se a carreira A terceira parte (p.337-437) do livro de
profissional do professor. A mulher pouco a Maria Luiza Marcílio parte do entendimento de
pouco foi conquistando o seu lugar, em todos os que a educação universal de qualidade se tor-
níveis, da Escola Normal17 até o ensino superi- nou mais do que nunca vital para enfrentar os
or. E por conta da valorização da profissão, as novos desafios no final de século XX e início do
normalistas provinham, na sua maior parte, das século XXI. A globalização, junto com a infor-
classes médias e altas. mática e a internet, é a causa da crescente in-
Mas na mesma década de 1920, a fim de
atender à crescente demanda por escolas, o 17
Em 1920, 82% dos matriculados nas Escolas Normais do
Estado abriu espaço para o aparecimento de Estado eram do sexo feminino (p.326).

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 103-112, jun./dez., 2005 109
Maria Luiza Marcílio: história da escola em São Paulo e no Brasil – um clássico na literatura sobre educação

terdependência econômica das nações, da mu- 1999 mostraram que o concluinte médio de 8ª
dança radical no acesso ao conhecimento e da série apenas domina o esperado de um aluno
transformação do emprego. Em todos estes de 4ª série, que o concluinte da 4ª série mal
setores, a educação se tornou um dos fatores sabe decodificar as palavras, e que ambos são
decisivos. incapazes de ler e compreender uma notícia de
Na década de 1990, a autora aponta dois jornal (p.359).19
tipos de indicadores. De um lado, o acesso à A fim de enfrentar o problema da repetên-
escola em todos os níveis teve um crescimento cia e do atraso escolar, a partir de 1995 o go-
significativo. No ensino fundamental, graças a verno de São Paulo implantou o sistema de Ciclos
dois programas do governo federal, o Fundo no ensino fundamental (Ciclo I, de 1ª à 4ª série,
Nacional de Manutenção de Desenvolvimento e o Ciclo II, de 5ª à 8ª série), abolindo a avalia-
do Ensino Fundamental e Valorização do Ma- ção por série. O aluno que não atingir o pata-
gistério – FUNDEF e o Programa Bolsa-Esco- mar esperado passa para a série seguinte, mas
la18, 97% das crianças de 7 a 14 anos de idade recebe aulas de reforço e recuperação, sendo
estavam na escola, em 2001. Pela primeira vez, que, no final de cada ciclo, o aluno que não su-
o MEC deixou de planejar a política educacio- pera as lacunas de aprendizagem fica retido por
nal pelo vértice da pirâmide, passando a fazê-lo um ano para recuperação. Neste sentido, a ava-
pela base, chegando, no fim do século XX, a liação deixa de ser seletiva e excludente, para
prover escola fundamental para toda criança se tornar um processo de acompanhamento do
brasileira. Também no ensino médio, entre 1991 estágio de aprendizagem do aluno. Mudando a
e 2000 o número de matrículas mais que dupli- avaliação, alteraram-se a prática do ensino e a
cou, chegando a 8,2 milhões de alunos, sendo própria escola. É evidente que esta nova práti-
que a escolarização de jovens 15 e 17 anos su- ca escolar exige uma nova gestão da escola,
biu de 53,3% para 66,8% em apenas 5 anos, baseada na autonomia, na competência técni-
entre 1991 e 1996, apesar de ainda ficar longe ca, na liderança pedagógica, na capacitação dos
da Argentina e do Chile com 75% (p.396). Tam- professores e no apoio e participação dos pais.
bém no ensino superior o Brasil, que no início Para isso, é preciso mudar as formas de esco-
do século contava “com algumas poucas esco- lha dos diretores de escola, combinando a sele-
las e nenhuma universidade, chega ao terceiro ção via concurso com a participação da
milênio com 894 instituições de ensino superior, comunidade escolar.
das quais 222 são públicas e 127 universida- A autora faz uma análise da educação pú-
des.” (p. 434). Mesmo assim, apenas 10% dos blica na década de 1990 na cidade de São Pau-
jovens da faixa etária correspondente são aten- lo: a Educação Infantil, o Ensino Fundamental
didos no ensino superior. e Médio, a Educação de Jovens e Adultos e a
Há, porém, um segundo tipo de indicadores. Educação a Distância.
Além da desigualdade social, na qual o Brasil Mas queremos destacar o texto dedicado à
tem um dos piores índices do mundo, o país é “Promoção e valorização do professor da es-
campeão mundial em aluno repetente. Maria cola publica: o ponto do estrangulamento”
Luiza Marcílio escreve: “perdemos a capaci- (p.407-421) e as “Considerações sobre a déca-
dade de indignação perante um sistema educa- da de 1990” (p.431-437). Há uma consciência
cional em que os professores não ensinam e as
crianças não aprendem.” De fato, como não 18
“Pesquisas socioeconômicas indicam que para cerca de
haver espanto quando apenas 3% dos alunos seis milhões de famílias brasileiras é quase insuportável o
custo de manter um filho na escola, ainda que gratuita.” (p.
chegam à oitava série sem nenhuma repetên- 344, apud MEC. Política e resultados. 1995-2002. A
cia? (p.356). Por conseguinte, o desempenho universalização do ensino fundamental no Brasil. Brasília,
dez. 2002. p.19.)
médio dos alunos é extremamente deficiente, 19
Apud OLIVEIRA, João Batista; SCHWARTZMAN, Simon.
como atesta o SAEB – Sistema de Avaliação A escola vista por dentro. Belo Horizonte: Alfa Educativa,
do Ensino Básico, cujos resultados de 1997 e 2002. p. 25.

110 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 103-112, jun./dez., 2005
Jacques Jules Sonneville

política extremamente baixa em relação à im- Diante disso, criou-se o Instituto de Edu-
portância do professor para o desenvolvimento cação Superior, voltado exclusivamente para
do país, especialmente em se tratando do pro- a formação de profissionais da educação de
fessor da escola pública de base, resultando em base, incluindo a Escola Normal Superior, para
uma formação precária e condições aviltantes formar o professor da educação infantil e das
de trabalho e de remuneração. séries iniciais. Para estes, foram indicados ex-
De fato, a profissão de professor tornou-se clusivamente os cursos normais superiores, pelo
cada vez menos atraente para camadas impor- Decreto 3.276, de 6 de dezembro de 1999, pro-
tantes da juventude do país.20 Os salários dos vocando forte resistência das associações ci-
professores do Brasil, em comparação com os entíficas (Anfope, Anped e Anpae).
demais países do WEI 21, superam apenas os A LDB de 1996 determinou que a forma-
da Indonésia e do Peru (p.421). Entre 1963 e ção de docente para atuar na educação básica
1996, em São Paulo, o salário do professor de deva ser em nível superior. De fato, ficou pro-
1ª a 4ª série caiu de 1.042,61 (em valores corri- vado que o desempenho dos alunos de profes-
gidos) para 238,55 (dados publicados na Folha sores com curso superior é nitidamente mais
de São Paulo, 05.05.1996) (p.420). A conseqü- elevado. A única exceção, por um prazo provi-
ência é o êxodo de professores qualificados e sório até fins de 2006, foi para os professores
experientes. E muitos formados em cursos de de educação infantil e séries iniciais. Para es-
licenciatura buscam empregos com remunera- tes, o MEC adiou esta obrigatoriedade, em 2003,
ção mais atraente. Dos 2,5 milhões de educa- significando um novo retrocesso.
dores da rede pública, 60% estão perto da Ter um curso superior, porém, não garante,
aposentadoria em 2003, de modo que as proje- por si só, a qualidade do ensino. Por exemplo,
ções mostram que a rede pública do país corre as licenciaturas nas universidades são cursos
o risco de ficar sem professores na próxima justapostos aos bacharelados, sem articulação
década (p.420). com estes. Elas não asseguram nenhuma ins-
A reforma de 1971, que rebaixou a prepa- trumentação pedagógica para os futuros docen-
ração do professor primário ao nível de habili- tes. Existem, também, muitos cursos aligeirados
tação de 2º grau, criou também as chamadas de pedagogia e faculdades de fim de semana,
licenciaturas curtas de 1º grau (os HEM), com funcionando em condições precárias, graças à
conseqüências catastróficas para a capacita- inércia do poder público e sua burocracia.23 A
ção dos professores, em contraste com “os an- fim de oferecer uma alternativa à fragmenta-
tigos Cursos Normais, integralmente voltados ção das licenciaturas e ao aligeiramento na for-
para a profissionalização no magistério neste mação pedagógica, Bernadete Gatti vê com
nível.”22 Anteriormente, a Reforma Universi- esperança a criação dos institutos de educação
tária de 1968 tinha desmantelado as Faculda- superior, específicos para a formação de do-
des de Filosofia, criando as faculdades de
educação, muito mal aparelhadas, “em função
20
Vide: GATTI, Bernadete A. Formação de professores e
da pesquisa e do trabalho de produção acadê- sua carreira. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2000.
mica, em que predominam temas de caráter p.14.
teórico, com constantes modismos importados 21
WEI – World Education Indicators: um programa da OCDE
que inclui 19 países (Argentina, Brasil, Chile, China, Egito,
e pouca pesquisa empírica. A função, ou seja, Índia, Indonésia, Jamaica, Jordânia, Malásia, Paraguai, Peru,
a formação do professor, tornou-se uma ativi- Filipinas, Federação Russa, Sri Lanka, Tailândia, Tunísia,
Uruguai e Zimbábue), somando 70% da população mundial.
dade ‘menor’.” (p.409). O professor alfabeti- Disponível em <http://www.uis.unesco.org
zador, por exemplo, deve ter um preparo teórico ev.php?URL_ID=5263&URL_DO=DO_TOPIC&URL_
e prático específico, mas sua formação geral- SECTION=201>, acessado por mim em 20 de ago. 2005.
22
GATTI, B. Formação de professores e sua carreira. p. 49
mente se limita a uma só disciplina, centrada 23
GATTI, Bernadete A. A formação dos docentes: o con-
nos aspectos teóricos e históricos da escrita e fronto necessário professor X academia. Cadernos de Pes-
da leitura (p.417). quisa, 81, maio 1992.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 103-112, jun./dez., 2005 111
Maria Luiza Marcílio: história da escola em São Paulo e no Brasil – um clássico na literatura sobre educação

centes para o ensino fundamental, desde que longo do tempo, mas também um exame analí-
satisfeitas as condições básicas para seu funci- tico dos problemas atuais que caracterizam a
onamento.24 educação no Brasil. Este texto tocou apenas
Proclama a declaração de Jontiem25 que os em uma parcela ínfima dos dados e análises da
investimentos na educação básica são o inves- obra. É um convite ao leitor para percorrer e
timento mais importante para o futuro de um estudar no próprio livro toda a sua riqueza, ba-
país, porque asseguram as necessidades bási- seada em arquivos, jornais, pesquisas, bibliogra-
cas da aprendizagem, ou seja, os instrumentos fia, entrevistas com alunos e autoridades, visitas
básicos da aprendizagem (leitura, escrita, ex- a escolas da periferia e repartições, e apresen-
pressão oral, cálculo, solução de problemas) e tada com precisão, clareza e coragem. Serve
os conteúdos básicos da aprendizagem (conhe- também como roteiro para uma prática siste-
cimentos, habilidades, valores e atitudes). In- mática de pesquisas empíricas sobre a educa-
vestir na qualidade da educação implica a ção de base. Segundo a autora, as pesquisas
valorização efetiva do professor e a sua forma- atuais no geral se restringem ao cumprimento
ção, vinculada a mecanismos de avaliação. Para das etapas da carreira docente, através de dis-
isso, as políticas educacionais devem superar o sertações e teses, resultando num conhecimento
imediatismo que caracteriza geralmente a ati- precário ou pontual da realidade educacional,
vidade dos políticos e dos governos. “Daí por- ou, em outros casos, na repetição de métodos
que a educação deveria ser uma questão de de pesquisa da moda, teorias e modelos vindos
Estado e não de governo.” (p.437). de fora ou de uma visão ideológica dicotômica
simplificada, sem base em pesquisas empíricas
e fora do contexto real da nossa educação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclusão: “A escola ‘vista por dentro’ ainda é
praticamente uma incógnita nos estudos de edu-
Os autores da apresentação afirmam que o cação.” (p.333).
livro de Maria Luiza Marcílio merece tornar-se
uma clássico na literatura mundial sobre edu- 24
GATTI, B. Formação de professores e sua carreira. p. 93.
cação, porque oferece não só uma radiografia 25
Ver o documento da ONU de 1990, dito Declaração de
completa do projeto educacional brasileiro ao Jontiem (Tailândia), artigo 1.

112 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 103-112, jun./dez., 2005
Alfredo Eurico Rodríguez Matta

A EDUCAÇÃO E A ASCENSÃO DA BURGUESIA NA BAHIA

Alfredo Eurico Rodríguez Matta*

RESUMO

O artigo analisa o processo de emergência da educação formal na sociedade


baiana e sua estreita relação com o desenvolvimento do mercado no estado
nos últimos séculos, mostrando como a contradição social e suas superações
históricas participam e influenciam, dialeticamente sendo influenciadas pelas
transformações na educação, e pela dinâmica das classes sociais.
Palavras-chave: História da Educação – História da Educação na Bahia –
História da Bahia – Classes Sociais na Bahia

ABSTRACT

EDUCATION AND THE RISING OF THE BOURGEOISIE IN


BAHIA
The article analyzes the process of emergence of formal education in the Bahian
society and its close relationship with the state’s market development in the
last centuries, showing how the social contradictions and the way they
were historically overcome, participate and influence, being dialectically
influenced
Key words: History of Education – History of Education in Bahia - History of
Bahia – Social classes in Bahia

INTRODUÇÃO desenvolvimento. A seguir, estudamos o pensa-


mento científico e sua chegada ao Brasil, e à
Este artigo está dedicado ao estudo da emer- Bahia, entendendo que este foi um passo im-
gência da educação formal e de suas instituições portante para que a educação formal ganhasse
na Bahia. Considera-se que a expansão da edu- sua função social burguesa.
cação é uma estratégia para a expansão da pró- A terceira parte apresenta um estudo sobre
pria sociedade burguesa e de sua lógica social. o desenvolvimento da educação formal na ci-
O trabalho está dividido em quatro partes. dade, em meio à contradição existente entre a
Na primeira, analisamos o desenvolvimento sociedade senhorial tradicional e as propostas
da sociedade de mercado em Salvador, desde burguesas.
os primeiros passos no século XVIII, até os dias A quarta e última parte analisa o desenvol-
de hoje, procurando entender a lógica do seu vimento da educação formal após os anos 30,

*
Doutor em Educação. Professor de História da Bahia - UCSal. Professor do Mestrado em Educação e
Contemporaneidades – UNEB. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus I,
Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA. E-
mail: alfredo@matta.pro.br

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 113-123, jul./dez., 2005 113
A educação e a ascensão da burguesia na Bahia

lançando hipóteses interpretativas e possíveis doria, e na economia monetária, também já es-


caminhos de pesquisa, partindo de uma análise tava amadurecido, e como os mais antigos indí-
dialética da História e da presença da educa- cios de sua existência remontam ao século
ção, em meio ao contexto de contradição e con- XVIII, esta pode ter sido a primeira manifesta-
vivência de duas estruturas de sociedade e de ção concreta da chegada das organizações bur-
poder, a senhorial e a burguesa, procurando in- guesas em Salvador. (MATTOSO, 1978).
terpretar o papel do processo de transforma- Também são antigos na cidade os bancos e
ção histórica da educação em função desta as associações de artesãos, como de carpintei-
contradição. ros e pedreiros. Estas últimas eram organiza-
ções parecidas com as corporações de ofício
européia, que já estavam decadentes no antigo
SALVADOR: SOCIEDADE DE MER- continente. Porém, na Bahia, a sua existência
CADO demonstrava, nesse momento, o crescimento da
consciência profissional, regulamentação de
Desde o final do século XVIII podemos iden- profissões e preocupação em disciplinar e re-
tificar a formação de uma estrutura importante gulamentar o trabalho. Em outras palavras, sur-
de mercado na cidade do Salvador. Já no início gia a consciência do profissionalismo, a idéia
do século XX a Bahia orgulhava-se de seus de organização e de cidadania, em nosso meio
bondes urbanos, do novo porto e muitas modifi- urbano.
cações em seu traçado, conquistas da ascen- O capitalismo que surgia na Bahia era, as-
dente classe burguesa comercial da cidade. O sim, voltado para urbanização e padronização
número de indústrias já era representativo, em- de hábitos e consumo. Salvador crescia mer-
bora fossem contabilizadas conjuntamente mui- cado de consumo e capitalismo periférico dos
tas oficinas de artesanato, além das verdadeiras centros produtores do Sudeste, ou de fora do
indústrias. A sociedade de mercado e a moder- país, mas ainda assim, formava-se uma socie-
nidade continuaram crescendo, principalmente dade de mercado local.
a partir da descoberta do petróleo em 1939. Fi- Esse mercado, apesar de pequeno e perifé-
nalmente, nos últimos 30 anos de nossa história rico, incapaz de dinamizar muito mais que a re-
recente, Salvador amadureceu como socieda- gião em torno da capital, foi capaz de dinamizar
de de mercado e moderno centro de consumo. diversas reformas na cidade, e sua estrutura
(MATTA, 2000). social e práxis cotidiana, que passou a transfor-
O processo de estruturação da sociedade mar-se na direção da urbanidade e organiza-
burguesa e de sua hegemonia foi lento e gradu- ção necessárias a uma cidade burguesa.
al, de maneira que se torna possível estudar o O avanço da hegemonia burguesa não se
avanço gradativo de suas instituições e práti- dá de forma linear, e nem sem resistência. As
cas sociais no tempo. tradições e estruturas próprias da sociedade
A existência de oficinas de artesãos e de senhorial, dominantes até então, continuam co-
algumas indústrias, no início do século XX, mos- existindo e dividindo o espaço das práxis cotidi-
trava que a cidade já tinha dinamismo suficien- anas dos sujeitos históricos, o que nos habilita a
te para organizar seu mercado interno possibili- observar as contradições entre as duas formas
tando, tanto aos mestres artesãos como às de vida e organização social.
primeiras indústrias, a organização de sua pro- Nesse contexto, torna-se necessário tentar
dução na forma disciplinada segundo otimiza- descobrir como as instituições burguesas, e com
ção de espaço e tempo, como é próprio da so- elas a hegemonia deste processo social, avan-
ciedade capitalista. çaram e adaptaram-se às contradições presen-
Nesse mesmo período, a estruturação de um tes na capital, mercado capitalista em formação
mercado diversificado, movimentado, baseado e capital centralizadora de uma região estrutu-
em intensa troca interna e externa de merca- rada na sociedade senhorial, ao mesmo tempo.

114 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 113-123, jul./dez., 2005
Alfredo Eurico Rodríguez Matta

Entre estas instituições, neste artigo, pretende- tema produtivo. A educação formal, por outro
se destacar o avanço da educação burguesa. lado, era essencialmente ilustrativa, servindo
mais para reafirmação dos rituais de poder e
legitimização da ordem social senhorial, do que
A EMERGÊNCIA DO CIENTIFICISMO para qualquer tipo de aporte no sistema produ-
NO BRASIL tivo. (RIBEIRO, 1991).
Mas foi nesse Brasil, ainda pouco familiari-
O pensamento científico, e com ele a che- zado com o pensamento burguês, que surgiram
gada de um discurso de verdade da burguesia, as primeiras instituições comuns à burguesia,
estão entre as principais ferramentas para a com a chegada da família real. Foram criadas
ascensão da nova sociedade. No período pom- a Imprensa Régia, bibliotecas, escolas de nível
balino, o desejo de uma aprendizagem de novas superior, bancos e outras instituições adequa-
técnicas no aperfeiçoamento da agricultura das ao contexto hegemônico burguês.
criou o primeiro interesse científico no Brasil. A chegada das primeiras instituições bur-
Este, no entanto, cresceu somente para o co- guesas e de sua forma de ver o mundo fizeram
nhecimento das técnicas que tinham aplicação com que o pensamento brasileiro sofresse trans-
prática imediata, enquanto o conhecimento e formações. Era necessário introduzir uma filo-
aprimoramento teórico continuavam desinteres- sofia urbana, capaz de orientar o mercado
santes. O empirismo do período pombalino re- consumidor das cidades que se formavam, mas,
presentou um avanço na direção da sociedade ao mesmo tempo, manter o prestígio do rei, do
burguesa. Ao contrário da escolástica, forma poder moderador, a nobreza e a cidadania ple-
de pensamento clássico jesuíta, ele pregava uma na limitada a poucos privilegiados.
ética do enriquecimento produzido pelo traba- A Legislação, cada vez mais precisa e ne-
lho e pelo acúmulo de bens. Pregava também o cessária, deveria distinguir entre os direitos dos
mérito da riqueza e defendia o conhecimento homens e dos cidadãos. Ao mesmo tempo, de-
como forma de aprimoramento para a obten- veria abrir espaço ao pensamento científico, à
ção deste enriquecimento. O crescimento des- disciplina urbana e ao reconhecimento dos di-
se tipo de pensamento foi paralelo ao da reitos básicos das pessoas.
urbanização e importância de Salvador como Era necessário criar uma forma de pensamento
centro comercial. capaz de avançar, sem forçar o rompimento dos
Parte deste contexto, o iluminismo e a as- laços de dependência e mandonismo, existentes
censão política da burguesia na Europa são ca- desde o Brasil colônia, e convenientes para um
racterísticas do início do século XIX. A burguesia centro de consumo e não de produção.
ascende e com ela os direitos cíveis, direitos Nesse período acabou predominando a idéia
humanos, a necessidade da existência de leis de que a ciência e Deus não eram opostos. Na
soberanas e democráticas. Ascende também o verdade, a ciência explicava o universo, e, como
pensamento liberal. o mesmo era criação divina, nada mais lógico
No Brasil, porém, os únicos com plenos di- que considerar a ciência divina também. Para
reitos de cidadania eram os grandes comerci- essa forma de pensamento, a ciência era o pen-
antes e senhores de engenho, e a existência da samento divino, que Deus decidira revelar aos
escravidão fazia do liberalismo quase uma iro- homens. Abriam-se as portas para harmonizar
nia. A necessidade educacional da sociedade a ciência burguesa emergente, com a religião
senhorial não está muito voltada para a produti- tradicional e pilar da sociedade aristocrática.
vidade e formação profissional. Esse pensamento que dominou os brasileiros
É certo que os mestres de ofício, os sujeitos durante o século XIX é hoje conhecido como
mais experientes e velhos, vão, por tradição, Espiritualismo Eclético.
passar suas habilidades e trabalhos para os mais O processo histórico do século XIX tomava
moços, provocando, assim, a reprodução do sis- cada vez mais obrigatória a adoção do liberalis-

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 113-123, jul./dez., 2005 115
A educação e a ascensão da burguesia na Bahia

mo, das idéias iluministas, da sociedade de mer- força de quem o defendia era menor que a dos
cado e do cientificismo burgueses; era neces- interessados no Plantation e na preservação
sário criar ou adotar um ideário que fosse capaz das relações de dependência do país com o
de adaptar essas necessidades ao Brasil e a exterior. Somente um ideário capaz de manter
sua sociedade conservadora. (PAIM, 1984). o status quo das relações tradicionais de poder
Logo, o Espiritualismo Eclético permitia con- e, ainda assim, permitir o avanço do mercado
ciliar as conquistas da ciência com as tradições de consumo brasileiro lograria chance de apoio
que se desejava conservar, mas, principalmen- de toda a classe dominante: oligarquia tradicio-
te, permitia conservar os interesses da aristo- nal e burguesia comercial emergente. Vanta-
cracia senhorial e a velha estrutura social e as gem para o Ecletismo. O pensamento fortemente
relações do Brasil colônia. Foi possível, então, liberal do culturalismo só poderia encontrar di-
frear as tentativas de superação estrutural po- ficuldades no Brasil e na Bahia do século XIX.
pular, advindas dos centros urbanos e das emer- O pensamento científico brasileiro surge,
gentes classes burguesas e, ao mesmo tempo, como dissemos, no período pombalino, essenci-
criar um ambiente de modernidade e desenvol- almente técnico e pragmático, buscando elimi-
vimento urbano, necessário à nova realidade nar todo o caráter teórico do conhecimento. A
internacional. ciência no Brasil nascia para copiar o que já
O ecletismo pode ser considerado o primei- estivesse pronto e fosse imediatamente útil e
ro pensamento burguês a ganhar espaço no não para o investimento de tempo e recursos
Brasil. Outro pensamento do período, também em descobertas e estudos. A evolução deste
de origem burguesa, foi o do grupo de Tobias pensamento acabou por fazer surgir a idéia de
Barreto, o Culturalismo, que teve origem em que existiam técnicas e formas científicas de
Recife, mas que ganhou adesões importantes manipular e organizar a sociedade e que era
na Bahia. necessário aplicar tais técnicas de forma rigo-
Ao comparar o ecletismo com o culturalis- rosa para conseguirmos uma nova sociedade
mo, notamos que o primeiro procurava concili- moderna e urbanizada.
ar o pensamento burguês e a ciência da época As modificações na organização da socie-
com o tradicionalismo aristocrático. Desta for- dade brasileira eram limitadas pela função pe-
ma, ele não ameaçaria a estrutura social e de riférica desejada tanto pela potência do
poder vigente, e nem deveria alterar a realida- capitalismo central, como pelas tradicionais eli-
de dos processos de formação e educação, que tes locais, que sempre se alimentaram da de-
continuariam adequados à práxis senhorial. pendência. O culturalismo abria uma ampla
Os senhores procuravam, então, aderir às possibilidade de reformas, grande demais para
inovações, dar algum espaço ao desenvolvimen- o interesse das classes dominantes. Seu cres-
to do ambiente urbano, mas preservar antigas cimento poderia não ser apropriado a projetos
relações e aliados, principalmente no meio rural, de dependência e mercado periférico. Essa ne-
então dominante. O culturalismo desejava alte- cessidade fez com que a modernização da so-
rar a sociedade e criar um ambiente realmente ciedade brasileira passasse, desde o início, por
propício à burguesia e seu modelo social, sem processos autoritários, cientificistas, mas qua-
conciliação com a tradição aristocrática. É im- se nunca liberais como no capitalismo central.
portante constatar que o culturalismo, mais avan- Modernização sob controle. As idéias de Comte,
çado como pensamento burguês, surge e se o social visto como cientificamente organizá-
desenvolve no Nordeste brasileiro, o que demons- vel, a sociedade da moral, da ordem social pla-
tra que era nessa região que as pré-condições nejada, as idéias positivistas ganharam
para o surgimento de uma sociedade burguesas rapidamente um grande espaço entre os milita-
tinham sido atingidas primeiramente. res e nas escolas politécnicas. Respondiam às
O culturalismo não conseguiu ultrapassar os inquietações da época e aos problemas sociais
limites das cidades e de seu mercado, pois a já existentes, como vimos anteriormente, desde

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Alfredo Eurico Rodríguez Matta

o período pombalino. A modernização sob con- representa uma necessária estabilidade social.
trole, o avanço positivo e ordenado combinado Ocorreram então, convenientes, embora tem-
com regime totalitário. O positivismo ganha porárias, alianças das classes dominantes, a
importância principalmente no Sudeste, e cres- senhorial tradicional e a burguesa em ascen-
ce à medida que o café e a economia desta são, que acabaram por direcionar a História do
região se fortalecem. O castilhismo de caráter país após a independência.
positivista pregava a ordem política do progres- Destaca-se, também, que nesse tipo de so-
so, organizava o Estado brasileiro em função ciedade capitalista periférica, a ciência, ferra-
da economia do Sudeste e facilitava a organi- menta das maiores conquistas burguesas, deixa
zação do mercado brasileiro como dependente de ser apenas um instrumento para obtenção
do exterior. As idéias de Estado centralizado e de verdade e pesquisa e passa a ser facilitado-
progresso positivo ainda estariam presentes no ra da aceitação e consumo. A ciência, liberta-
Estado Novo e até mesmo o Golpe de 64. dora para Europa e E.U.A., facilitava a
A burguesia só avançou seu projeto no Bra- dependência no Brasil.
sil, na medida em que dialogava com o tradicio- No caso da Bahia, como o processo de cres-
nal poder senhorial. Sua expansão era contínua, cimento da sociedade burguesa no Brasil ocor-
obrigando a oligarquia a reduzir gradativamente re a partir do Sudeste, estava facilitado o
seus redutos e poder, mas a necessidade de man- caminho para a elite da província. Para essas
ter o país em ordem e sob controle forçava a elites, era conveniente manter as tradições o
burguesia a aceitar, ao menos temporariamente, mais que possível, pois preservariam seu sta-
as diretrizes das classes senhoriais. Nesse tus quo de dominação senhorial local. Eram
sentido,é necessário perceber que no século XIX, desejáveis alianças, primeiramente com a bur-
e mesmo em grande parte do XX, uma educa- guesia dominante internacional, depois com a
ção verdadeiramente burguesa não vai realizar- do Sudeste, de forma a criar para a elite local a
se de forma plena no Brasil, muito menos na função de controlar a comunidade a partir da
Bahia, onde as relações senhoriais se tornaram antiga prática senhorial, embora sob o controle
ainda mais fortes, na medida em que o processo dos projetos modernizadores burgueses. Con-
de independência do Brasil logrou abafar e de- trolada, a Bahia não seria, a princípio, palco para
sarticular os projetos urbanos e burguesas de o desenvolvimento do capitalismo, a não ser
poder do mercado emergente de Salvador, bem como centro de consumo e periferia, dependen-
representado pela Conjuração dos Alfaiates em te de projetos externos.
1798 (TAVARES, 1975). As propostas de edu- O cientificismo já dava sinais de sua pre-
cação profissional e eficiente vão sempre en- sença no final do século XVIII, quando manu-
contrar obstáculo na necessidade prática senhorial ais agrícolas franceses eram consultados na
de manter a educação ilustrativa e legitimadora Bahia. Desde o final deste século, Salvador
das posições e privilégios, o que era contrário à estava sendo invadida por ideais liberais, o que
educação massiva proposta pela sociedades bur- acabou por influenciar várias revoltas e tentati-
guesas. Os projetos de educação burguesa serão vas de rebelião e a própria independência. A
quase sempre obstacularizados pelas ações dissi- primeira instituição brasileira a fazer pesquisa
muladoras dos planos senhoriais. científica, a Escola de Medicina, estava na Bahia.
É importante notar que o sucesso das dou- Porém, de modo geral, a adesão pela ciência
trinas científicas, jurídicas e políticas burguesas era limitada à utilização imediata de técnicas e
no Brasil somente se dá a partir do autoritaris- conhecimento absorvidos de livros e produções
mo capaz de organizar cada processo no nível científicas européias. A ciência era apenas vis-
desejado de controle, centralização e massifi- ta como ferramenta para o progresso material
cação, próprios do avanço burguês, ao mesmo imediato e técnico.
tempo em que se cuida da permanência da es- Como conseqüência, o pensamento científi-
trutura senhorial aonde interessa, ou quando ela co e sua influência atingiram primeiramente os

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A educação e a ascensão da burguesia na Bahia

serviços públicos urbanos. As fábricas e os pro- jeto republicano brasileiro, que centralizou no
cessos produtivos burgueses ainda eram inde- Sudeste o capitalismo produtivo pelo menos até
sejados na Bahia, que se destinava, como já foi os anos 70 do século XX.
dito, à periferia do sistema. Somente no decorrer do século XIX, o li-
beralismo começou a influenciar as escolas e
instituições de ensino baianas; até então, o do-
A CHEGADA DA EDUCAÇÃO BUR- mínio da escolástica era absoluto. Mesmo as-
GUESA EM SALVADOR sim, o ingresso gradativo e parcial dos
pensamentos educacionais burgueses ocorreu
A chegada das instituições e hegemonia apenas naquelas escolas destinadas às clas-
burguesas, certamente influenciou a educação ses dominantes, ainda vivenciando a hegemo-
brasileira. Desde os tempos coloniais, muitos nia senhorial, mas já se preparando, graças a
modelos educacionais foram utilizados pelo Bra- pressões locais e externas para a convivência
sil. Estes modelos procuraram satisfazer as em uma nova ordem. As novas formas de edu-
necessidades de todas as classes sociais, des- cação, então, trataram de tentar equipar ideo-
de proprietários, trabalhadores, até comercian- logicamente e culturalmente, ao menos uma
tes e escravos, contanto que fossem reproduzi- parte das classes senhoriais, para uma nova
das as condições e processos da sociedade forma de exercício e organização social, bur-
senhorial, hegemônica então. guesa e baseada no mercado. O resto da po-
Como já nos referimos, tradicionalmente a pulação continuaria por muito tempo sendo
formação profissional da sociedade senhorial educada pela convivência com os mais velhos,
era feita informalmente. Os artífices e arte- pois estaria voltada a viver segundo a ordem
sãos e demais trabalhadores aprendiam seus tradicional senhorial ou, no máximo, a integrar
ofícios através do convívio com os mais ve- o conjunto dos consumidores urbanos, para os
lhos. Aliás, essa era a forma de educação exis- quais a educação massiva e profissionalizante
tente entre os índios antes do descobrimento. burguesa não se faziam muito necessárias. É
Já a educação dos proprietários e negociantes claro, porém, que o gradativo desenvolvimen-
era formal, mas feita principalmente para cri- to das organizações burguesas na cidade, foi
ar uma demonstração de superioridade para pressionando cada vez mais para que uma
com as outras classes sociais. Era basicamente verdadeira educação profissional, massiva e
religiosa e filosófica, passando pela obrigato- eficiente fosse organizada, mas esta o foi ape-
riedade da alfabetização e aritmética funda- nas na medida em que se tornou inevitável para
mental, mas sem a preocupação da aplicação a sociedade, o que significa dizer que atingiu
dos conhecimentos no cotidiano ou nos pro- pequenos grupos de cada vez, embora cada
cessos produtivos. Como conseqüência, o Bra- vez maiores e mais representativos. A trans-
sil foi vítima de uma monocultura intelectual, formação das instituições educacionais, de
de subordinação, alienação, inteligência passi- senhoriais a burguesas, graças a este proces-
va e do bacharelismo, características que fa- so lento, pode ser bem percebida.
cilitavam sua posição periférica. Eram O enciclopedismo, o positivismo, o libera-
características convenientes para o mercanti- lismo são pensamentos burgueses que cres-
lismo que ligava o Brasil aos mercados euro- ceram na Bahia, paralelos a ascensão do
peus e continuariam interessantes para o cientificismo. Ao mesmo tempo crescia na
desenvolvimento do capitalismo periférico que Bahia a tendência de união por casamento das
se instalou no Brasil, e principalmente na antigas classes proprietárias com os ricos do-
Bahia, já que São Paulo acabou desenvolven- nos do grande comércio soteropolitano. Des-
do um papel importante no capitalismo central sa forma, ocorre a aliança das duas camadas
produtivo mundial, a partir do projeto conser- dominantes senhoriais com a ascendente bur-
vador da independência, e mais ainda do pro- guesia urbana, o que veio dar início à unifor-

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Alfredo Eurico Rodríguez Matta

mização de projeto político das elites. No pri- da nos anos 70 do século XIX. Mesmo lenta-
meiro momento desta união, podemos perce- mente, a educação massiva, profissional e aca-
ber o interesse em modernizar a capital, mas dêmica própria das sociedades burguesas
deixar organizado de forma tradicional o cam- foram se instalando na cidade durante o sécu-
po. Uma das conseqüências desse processo lo XIX. Podemos notar que, no princípio do
foi o bacharelismo. O bacharelismo era uma século XX, a escolaridade e alfabetização já
valorização dos que obtinham diploma univer- estão no imaginário da população como ne-
sitário, que passaram a ser conhecidos pelo cessidades para ascensão social e adequação
título de doutores. O valor estava, então, no à vida urbana. (MATTA, 1999).
título e não na eficiência ou produtividade. Apesar disso, o alcance desta escolarida-
Sendo assim, há uma fase em que a educação de era limitado não só em número como em
formal acaba por reforçar os rituais de legiti- qualidade. Não era do interesse do capitalis-
mização do poder senhorial. A educação ba- mo periférico que se instalava a existência
seada na retórica e teologia, conseqüência da de operários bem formados e exigentes, bas-
influência escolástica, acabava por produzir nos tava que pudessem tocar alguns trabalhos sim-
brasileiros letrados o conceito de que a socie- ples e participar do coletivo consumidor. O
dade ideal deveria ser como a européia, o que trabalhador especializado era considerado
afastava ainda mais da realidade nacional os caro na formação, caros também por deseja-
que mais estudavam e detinham o poder, as- rem melhores salários, e geralmente desne-
sim como os afastava da possibilidade de apli- cessários, pois tudo o que se desejava era
car seu conhecimento nas necessidades do uma padronização de costumes e consumo e
nosso mercado então nascente. (RIBEIRO, uma urbanização e estrutura suficientes ape-
1991; BERGER, 1976). nas para o funcionamento da nova ordem
Salvador cresceu naqueles tempos sempre social. O que era mais sofisticado, ou aquilo
tendo como referência de urbanização cidades que não poderia deixar de ser muito especi-
européias. Esse crescimento era estimulado alizado, normalmente era suprido com impor-
pelo movimento comercial, e eram os comerci- tações diretas de bens, ou com a contratação
antes os que mais influenciavam na modelação de profissionais forasteiros, caros, mas bem
do espaço urbano. A educação profissionalizan- relacionados e prestigiados devido a sua li-
te dos baianos foi continuamente orientada para gação com o capitalismo central do sudeste
adequar-se a esse crescimento sob modelagem ou de outros países.
comercial. Quanto às classes dominantes, continuavam
A educação era, portanto, privilégio da ci- interessadas mais na Europa que no Brasil. Os
dade, e é nela que vamos encontrar as mais pais pensavam na escola para os filhos, mas
antigas instituições escolares da Bahia. Em 1808, sua maior preocupação era com o título obtido
foi criado um Curso Superior de Medicina. Três e não com os possíveis conteúdos a serem
décadas depois, o Curso Normal, é, no decor- aprendidos.
rer do século, várias escolas, como o Ginásio Esse modelo reforçava a afirmação de que
Baiano em 1858, iniciam uma formação regu- se formava na Bahia um capitalismo periféri-
lar e acadêmica nos moldes da pedagogia de co. De fato, o capitalismo surgia às avessas,
massa e cientificismo burgueses. ingressava na cidade de fora para dentro, ao
Por outro lado, instituições como a Casa contrário do capitalismo central formado de
Pia de Órfãos de São Joaquim e o Liceu de contradições internas, como na Europa ou em
Artes e Ofícios iniciaram a preparação de tra- São Paulo.
balhadores capazes de responder às necessi- Ao contrário de uma necessidade da produ-
dades de mão-de-obra urbana, a primeira em ção, o que provocou o aumento da importância
1799, a mais antiga escola regular em funcio- da educação em Salvador foi um crescimento
namento no Brasil, que tenho notícia, a segun- no consumo e uma alteração nos hábitos urba-

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A educação e a ascensão da burguesia na Bahia

nos. O proletariado urbano teria seu desenvol- AMADURECIMENTO DA EDUCAÇÃO


vimento limitado a esses interesses e não pode- BURGUESA EM SALVADOR
ria ser diferente já que os comerciantes das
cidades estavam aliados aos interesses dos se- O primeiro projeto nacional de poder burgu-
nhores de terra e no campo ainda manteriam, ês brasileiro foi a Republica. A então agro-bur-
por muito tempo, as organizações tradicionais guesia cafeeira investiu na derrocada do
de produção e trabalho. Império, que bem representava o poder senho-
A instrução pública foi municipalizada no rial e seus interesses, incapazes de implemen-
século XIX, o que permitiu a cada uma das re- tar as modificações estruturais já desejadas
giões brasileiras aplicar a educação na forma pelos empresários do café e da nascente indús-
que necessitava. São Paulo, por exemplo, co- tria paulistas. Apesar do sucesso político do pro-
meçou a formar operários e proletários de me- jeto e da tentativa de implementar projetos
lhor instrução, pois se desenvolvia de outra modernizadores em todo Brasil, a República
forma, alterando processos produtivos. O ensi- Velha foi incapaz de concretizá-las, exceto no
no superior se desenvolveu também mais rapi- âmbito do próprio sudeste. As oligarquias regi-
damente e, assim que necessário à nascente onais eram então muito fortes e resistiram às
indústria paulista, voltou-se para pesquisa. A tentativas de modernização, inclusive da edu-
Bahia e o Nordeste puderam realizar seus pro- cação, como a tentativa empreendida por Ma-
jetos educativos em consonância com sua rea- nuel Vitorino. (NUNES, 2000).
lidade social atendendo à modernização mais Apesar da mudança na política nacional, na
tímida e as necessidades de manutenção da Bahia as oligarquias continuaram a ditar as re-
ordem e da dependência, desejada pela socie- gras após a Constituição de 1891, que criou uma
dade senhorial. (RIBEIRO, 1991). situação de acomodação entre a burguesia pau-
O positivismo, que passou a dominar nessa lista em ascensão, e seus projetos de ordem
época, foi conveniente para a efetivação desse nacional, e as oligarquias dos estados que, des-
modelo. O pragmatismo positivista pregava a ta forma, mantinham seus redutos e processos
não existência de universidades e de cursos te- tradicionais de poder. A situação da educação
óricos, a formação de proletários voltados para quase não mudou se compararmos com aquela
o estritamente necessário, evitava a evolução oferecida na época do Império. É certo que al-
da pesquisa científica, e incentivava a importa- gumas novas escolas apareceram, é certo que
ção de soluções tecnológicas prontas, o que surgiu a Escola Técnica Federal em 1909, mas
facilitava o mergulho do país, principalmente a educação formal profissionalizante e voltada
fora de São Paulo, em completa dependência para o mercado continuava bastante reduzida.
externa. Além disso, a hegemonia do positivis- Esta situação só começará a mudar nos anos
mo serviu para criar a organização urbana e de 30 com o governo Vargas.
mercado mínima, propícia ao estabelecimento Com o golpe de 30 e a ascensão de Vargas,
do capitalismo periférico que surgia. A educa- apoiada pela burguesia fortalecida do Sul-Su-
ção primária e secundária, bem como a profis- deste, a ordem burguesa passou definitivamen-
sional, alem de pragmática, poderia ser baseada te a dominar o Brasil. A partir desse momento,
na rigorosa moral social e científica necessária os projetos educacionais próprios na sociedade
ao mesmo modelo. capitalista recebem uma nova força, empurra-
O crescimento dos índices de alfabetização dos por interesses de ordem burguesa nacional,
de Salvador, no século XIX, embora tímidos, fez mesmo que ainda sob forte oposição senhorial
surgir um número significativo de livrarias, bi- local.
bliotecas, tipografias, jornais e outros periódi- A orientação do poder central, que objetiva-
cos, os quais mostram a penetração do novo va modernizar o Brasil e afirmar o país como
modelo social ainda no século passado. (MAT- economia burguesa-industrial, criou logo em
TA, 1999). 1930 o Ministério da Educação. Por outro lado,

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Alfredo Eurico Rodríguez Matta

várias discussões sobre metodologia, gestão e dependência e de favorecimentos necessárias


currículo, acabaram por normalizar todos os ní- à estruturação do poder senhorial, já que a nor-
veis do sistema educacional brasileiro, inclusi- malização e controle impostos pela educação
ve as escolas técnicas profissionais. Esta burguesa provocam o desligamento gradual das
normalização deveria ser seguida e realizada relações de dependência que sustentam a legi-
uniformemente em todo o País. Era a chegada timidade do poder senhorial. Na medida em que
definitiva da educação massificada e profissio- a Bahia era forçada a aceitar os modelos lega-
nal em todo Brasil, pelo menos em projeto, já lizados e formalizados de educação advindos
que a sociedade senhorial, mesmo submetida, dos projetos centralizados, republicanos e bur-
continuava a tentar resistir como podia, em seus gueses do Sudeste, criavam-se formas de re-
redutos de poder. (RIBEIRO, 1991). sistência senhorial aos padrões invasores. A
Multiplicaram-se as escolas em todo Brasil, sociedade senhorial, ainda no poder, simples-
inclusive na Bahia. mente não podia permitir que a situação de de-
A Bahia testemunha o avanço das institui- pendência que a sustentava fosse substituída
ções de ensino, e a emergência de projetos tais por outra baseada na profissionalização e pa-
como o futuro ICÉIA- Instituto Central de Edu- dronização.
cação Isaías Alves e a UFBA- Universidade Embora ainda seja necessário realizar um
Federal da Bahia, a ampliação da Escola Téc- levantamento sistemático das fontes, capaz de
nica Federal, em paralelo à expansão da alfa- revelar os dados exatos, conhecemos, por tes-
betização, da escolarização e da formação temunho, ao menos a forma geral de duas for-
profissional, principalmente em Salvador. Mas mas principais de resistência da lógica senhorial
o modelo escolarizado não era exatamente ade- à invasão burguesa.
quado ao poder oligárquico ainda dominante no 1) A primeira delas foi a desvalorização da
âmbito regional. Como teriam podido conviver docência, tanto pelos baixos salários, quanto pela
as classes senhoriais baianas com um projeto imagem pouco reverenciada e respeitada que
educacional desta monta, que de fato estava os professores foram adquirindo na Bahia des-
reeditando muitos dos planos que possibilitaram de aquele momento. Na medida em que os sa-
a derrota de Manoel Vitorino no início da Re- lários e a imagem dos professores eram
pública, cujas propostas foram fortemente re- diminuídos, a própria educação também o era.
chaçadas pelas oligarquias da época? Assim, era reforçada a idéia de que educação
Para responder, é necessário investigar um formal não levava ninguém a melhorar de vida,
pouco mais sobre a função estratégica da edu- já que nem os professores conseguiam estar
cação nas sociedades burguesas. bem. A formação dos professores também foi
A educação burguesa tem basicamente três negligenciada.
funções: 1) em primeiro lugar, a educação é um 2) Por outro lado, e em reforço ao primeiro
forte elemento massificador e uniformizador, o aspecto, existiu um processo de elaboração de
que garante a ampliação dos padrões de con- currículos e conteúdos escolares cada vez mais
sumo; 2) além disso, ela vai facilitar o controle afastados das necessidades práticas dos sujei-
social, já que os comportamentos, desejos, ati- tos e do mercado de trabalho, de maneira que
tudes, também são massificados; 3) por fim, ela ficou evidente que uma profissão só era apren-
deve aprimorar as habilidades profissionais dos dida na prática dos trabalhos e não nas escolas.
trabalhadores, ampliando sua eficiência e pro- Reforçava-se não a competência e o profissio-
dutividade, o que servirá para alimentar as má- nalismo como fator de seleção profissional, mas
quinas produtivas da burguesia. sim o tradicional apadrinhamento senhorial, ago-
A expansão da escolaridade está, portanto, ra capaz de direcionar os sujeitos para ocupa-
associada ao crescimento da sociedade de mas- ções mais ou menos importantes no mercado
sas, e isso significa que os projetos de educa- de trabalho. Esta prática era uma distorção de
ção da burguesia vão dificultar as relações de origem senhorial, que atingia e prejudicava o

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A educação e a ascensão da burguesia na Bahia

desenvolvimento do mercado em Salvador. Com Somente na década de 1980, quando a soci-


raras exceções, como a tentativa da Escola edade baiana, após longo processo de industri-
Parque, estes procedimentos lograram desva- alização e desenvolvimento de mercado,
lorizar a educação em massa, de moldes bur- experimentou a hegemonia de uma estrutura
gueses, que chegava à Bahia até muito pouco social e de poder burguesas, foi que o perfil e
tempo atrás. as demandas educacionais massivas e profissi-
O conhecimento deste quadro é muito co- onais lograram inverter a situação, iniciando um
mum aos baianos. Quantas vezes não testemu- lento processo de valorização do ensino e da
nhamos o diálogo de jovens, estudantes, e de formação profissional. (MATTA, 2000)
outros sujeitos sociais, que defendem a inope- A partir dos anos 80 do século passado, mais
rância escolar, a inutilidade do que se estuda, ainda depois dos 90, e ainda mais intensamente
ou o pouco valor de ser professor, algo que nesse início de século XXI, temos assistido à
muitos pais revelam não desejar de forma algu- mudança gradativa da situação. Os salários dos
ma para seus filhos. Quantas vezes não ouvi- professores, tanto nas escolas públicas como
mos alguém comentar algo sobre o pouco valor nas particulares, assim também no nível superi-
de estudar e/ou de aperfeiçoar-se, já que o es- or, ainda é baixo, mas tem crescido considera-
paço na sociedade deve ser conquistado na prá- velmente e de forma perceptível, a ponto de
tica e no dia- a- dia, a partir do apoio e favor de poder-se verificar uma alteração na imagem dos
algum conhecido bem situado e conhecedor de professores como profissionais e cidadãos. Por
algum contexto ou situação profissional. De fato, outro lado, novas legislações, exigências do
estes comentários revelam a sobrevivência das MEC, mas também das secretarias estaduais e
antigas formas de educação informal e basea- municipais de educação, criação de fundações
das nos exemplos de mestres e pessoas expe- e centros de pesquisa, maior valorização de
rientes ou influentes, que afirmamos anterior- estudos e análises teóricas, maior entrosamen-
mente ser o modo de formação profissional da to entre escolas e empresas, maior número de
sociedade senhorial. De fato, a coexistência, escolas e escolaridade que se aproxima de
ainda hoje, dos dois modelos e do conjunto de 100% dos que deveriam escolarizar-se, maior
seus significados para o cotidiano revelam que interesse da população, dos jornais, das mídias
estarmos ainda vivendo em pleno processo de em geral, todo o contexto nos revela o novo
transformação, embora seja evidente que atu- momento atualmente vivido pela educação bai-
almente este tipo de comentário e de testemu- ana, que sabemos estar distante de deixar de
nhos estejam ficando mais raros e sejam me- ter problemas, mas não podemos negar tem
nos considerados. assumido novo papel e importância nessa nova
Esta realidade parece ter acompanhado a fase da Bahia sob a hegemonia de uma socie-
educação baiana por toda a República Nova, dade burguesa e de mercado.
foi reforçada e continuou acontecendo após o
golpe de 1964. Entre 1950 a 1979, foi se tor-
nando cada vez mais importante a escolariza- CONCLUSÃO
ção e o profissionalismo, mas a estratégia de
desvalorização da ação da escola permanecia Foi discutido neste artigo que a educação se
mais ou menos ativa, a depender do controle do desenvolveu de forma paralela à sociedade de
Estado pelas classes senhoriais ainda hegemô- mercado em Salvador. Na medida em que a
nicas. Vale destacar, porém, a transformação cidade crescia, e seu mercado se diversificava,
da educação formal, até então mais preocupa- desde o século XVIII, via-se surgir a educação
da com as necessidades da burguesia comerci- formal profissionalizante, ainda que no início não
al, mas que após 50, em decorrência do petróleo atendesse a grandes contingentes, mas cami-
e da industrialização do estado, passou a dar nhava no sentido de tornar-se cada vez mais
mais atenção à educação operária e industrial. popular e de levar a escolaridade a uma posi-

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ção de necessidade social. A primeira necessi- ameaça seu próprio poder advindo do mandonis-
dade desta educação foi quanto ao atendimen- mo, jogo de prestígios e conchavos.
to do comércio da cidade. Somente a partir daquela década de 80 a
Pudemos também observar como o cresci- conjuntura mudou para um apoio explícito à
mento da educação formal está associado à política de expansão da escolaridade e educa-
popularização do discurso científico e do cienti- ção do estado, na medida em que a Bahia se
ficismo, que vai galgando o espaço de discurso tornava indubitavelmente dominada pela socie-
de verdade da burguesia. A escola ganhou o dade de mercado e sua lógica de poder basea-
papel de divulgação destas verdades, o que a da nos projetos sociais, demandante da
autorizou a massificar, determinando assim no- educação massiva e profissional burguesa como
vos e úteis padrões de consumo e controle so- parte de sua política de acúmulo e poder.
cial, além de preparar a competência profissional Parte deste artigo, mais especificamente
de que o mercado necessitava. aquela dedicada ao exame da expansão e re-
Apesar dos avanços, a escola formal não vai sistências à educação burguesa a partir da dé-
se tornar dominante senão após o golpe de 30, cada de 1930, necessita ser levantada com
acompanhado que foi pelo fortalecimento das detalhamento, nas fontes cabíveis, para que os
relações e poder burguês no Brasil. A partir deste resultados possam ser mais bem organizados e
ponto, a escolaridade passou a crescer em todo provoquem mais e melhores conclusões. No
Brasil, não sem resistência, pois a oligarquia, ainda entanto, pensamos que, de forma geral, pode-
no poder do Estado até a década de 80 do século mos interpretar desta maneira dialética, o pro-
passado, não poderia permitir a profissionaliza- cesso de transformação da educação na
ção e eficácia das escolas, o que iria pôr sob sociedade baiana e soteropolitana.

REFERÊNCIAS

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MATTA, Alfredo. Casa Pia de Órfão de São Joaquim. Salvador: Secretaria de Cultura e turismo, 1999.
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estruturas sociais do estado. In: _____. Bahia republicana governadores e interventores. Salvador:
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Bahia republicana governadores e interventores. Salvador: UCSAL, 2000. p. 23-28.
PAIM, Antônio. História das idéias filosóficas no Brasil. São Paulo: Convívio, 1984.
RIBEIRO, Maria Luiza. História da educação brasileira, a organização escolar. São Paulo: Cortez, 1991.
TAVARES, Luis. História da sedição intentada na Bahia em 1798. Salvador: Pioneira, 1975.

Recebido em 30.05.05
Aprovado em 09.08.05

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 113-123, jul./dez., 2005 123
Maria Alba Guedes Machado Mello

ISAÍAS ALVES DE ALMEIDA E A EDUCAÇÃO NA BAHIA

Maria Alba Guedes Machado Mello*

RESUMO

Este artigo1 apresenta o pensamento e a proposta pedagógica de Isaías Alves


de Almeida, bacharel em Direito, pós-graduado em Psicologia Experimental,
que se dedicou à Educação e, mais particularmente, à formação de professores.
Enquanto Secretário da Educação na Bahia, entre 1938 e 1942, realizou
reformas significativas na estrutura do ensino que perduraram até a década de
1960. Foi um dos pensadores que, durante o Estado Novo, contribuiu para a
consolidação da Educação como um mecanismo de legitimação do Estado,
articulando o ideário cristão à nova ordem ditatorial.

Palavras-chave: Educação no Estado Novo – Bahia – Isaías Alves.

ABSTRACT

ISAÍAS ALVES DE ALMEIDA AND THE EDUCATION IN BAHIA

This article presents the thought and the pedagogical proposing of Isaías Alves
de Almeida, law’s bachelor, post-graduate en experimental Psychology, who
had been dedicated to education, particularly to teachers formation. As long as
been the sate secretary of Education in Bahia, between 1938 and 1942,
accomplished significants reforms on education structures that last long until
the 1960-decade. The was on of thinkers that during the New State, contributed
to consolidate the education as a mechanisms of the State legitimation,
articulating the Christian’s devising to the new dictatorial order.

Keywords: Education in the New State – Bahia – Isaías Alves.

Educador, que foi durante toda a sua vida, a vida, de mundo e seu projeto político para o
produção teórica de Isaías Alves de Almeida Brasil. Desenvolve uma idéia de nacionalidade,
está inteiramente voltada para a Educação. É ou mais especificamente de brasilidade, que
no bojo da discussão sobre a função social da considera o eixo para a Reconstrução Nacio-
Educação que apresenta suas concepções de nal; e, em um contexto internacional de tendên-

*
Doutoranda em Ciências da Educação pela Universidade de Barcelona - Espanha. Professora Adjunto do Departa-
mento de Educação - Campus 1, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Pesquisadora associada ao Grupo de
Pesquisa Memória da Educação vinculado ao Mestrado em Educação e Contemporaneidade – Departamento de
Educação I, da UNEB. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Mestrado em
Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 Salvador/BA. E-mail: mmello@uneb.br
1
Este artigo é uma versão resumida de um dos capítulos da minha tese de doutoramento: Isaías Alves de Almeida e a
formação de professores: Bahia, 1938-1942, em processo final de elaboração, com o apoio da FAPESB - Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia.

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Isaías Alves de Almeida e a educação na Bahia

cias a governos ditatoriais, Isaías Alves incor- coletâneas. Em suas publicações coloca como
pora às suas concepções teóricas e à sua práti- objetivo apontar os erros, tanto da filosofia como
ca educacional, a doutrina do Estado Novo. da prática da educação nacional que, para ele,
Enquanto pesquisador, dedicou-se à Psicolo- estava ‘contaminada pelas doutrinas bolchevi-
gia Experimental e, mais particularmente, à adap- zantes e métodos excessivamente individualis-
tação e tradução de testes voltados para medidas tas’, e também tornar pública a atuação da
de inteligência, desenvolvimento da personalida- Secretaria de Educação e Saúde da Bahia, di-
de e avaliação do aproveitamento do aluno. Os vulgando e difundindo os valores do Estado
testes são, para Isaías Alves, um instrumento de Novo.
gestão que tanto incidem na organização das clas-
ses como no atendimento individual às crianças.
Essa medida tem por base a compreensão de O ideário
que as classes homogêneas facilitam o trabalho
do professor e melhoram o rendimento do aluno, Isaías Alves de Almeida é um dos represen-
pois a adequação do nível de inteligência ao pro- tantes mais exemplares do pensamento conser-
cesso de aprendizagem, proporcionaria maior vador na história da educação brasileira. Faz
interesse pelo estudo, evitando a indisciplina e parte de uma geração que trabalhou de forma
diminuindo o fracasso escolar. reflexiva e entusiástica pela constituição de uma
Mas a temática central da sua produção te- nacionalidade, propondo valores básicos para a
órica está concentrada em política educacional formação de uma identidade nacional, na Se-
e intimamente ligada à sua militância política gunda República Brasileira (1930 a 1945).
como defensor do Estado Novo. Seus estudos O sentido da vida, para ele, estava em ser-
elaboram muito mais uma crítica à situação bra- vir. A vida é uma dádiva de Deus e seu sentido
sileira, que teorizações; entretanto, sua crítica ontológico é servi-Lo. Pensa a si mesmo como
vai além da defesa de posições políticas, man- um ‘evangelizador cívico’, um pregador da edu-
tendo-se sempre propositiva. No conjunto de cação cívica e moral. A doutrina cristã e cató-
sua produção teórica, destacam-se como temas lica é a base das suas concepções filosóficas,
recorrentes o combate ao analfabetismo, o en- mas também percorre as idéias positivistas, sem
sino profissionalizante e a valorização do pro- ser propriamente um comteano; respeita e de-
fessor, inclusive com a formação em nível fende o humanismo clássico e define-se como
superior. antiliberal.
Como o espírito da produção teórica de Isa- Noções de objetividade, fundamentada na
ías Alves (conforme sua própria apresentação) experimentação, de homogeneidade e ainda de
é muito mais técnico que teórico, preocupando- progressão evolutiva ou mesmo o exemplar
se mais em propor e estabelecer diretrizes polí- “Ordem e Progresso” do catecismo positivista
ticas para a educação do que formular teorias são pilares das suas formulações tanto políticas
pedagógicas, utilizando como referência expe- como pedagógicas.
riências de diferentes países como os Estados Para ele, é através da inserção social que o
Unidos, Alemanha, França, Japão, Rússia e ser humano se realiza; quando está socialmen-
Argentina. Por isso, seus trabalhos assumem te integrado (via educação, trabalho e profis-
um estilo de debate entre as diferentes corren- são) se transforma em servo de Deus e cidadão
tes de pensamento pedagógico e, particularmen- com direitos e deveres, e a educação, por ex-
te, com a Escola Nova. celência, é o mecanismo de socialização, que
Dentre os trabalhos publicados por Isaías deve adequar-se não só às condições sociopo-
Alves, a maioria constitui-se em artigos de jor- líticas do país, como às condições peculiares de
nais ou periódicos, conferências pronunciadas cada indivíduo.
em eventos solenes e em cursos que ministrou Acredita que a lei da vida é a lei da diferen-
para o professorado, alguns organizados em ça e não da igualdade, tendo em vista que todo

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Maria Alba Guedes Machado Mello

ser humano tem talentos e vocações singulares A Democracia é um sistema político de extraor-
e nasce com determinado potencial intelectual. dinária sensibilidade e extrema facilidade de des-
O mérito pessoal, substanciado na inteligência, moralização. (...) A democracia é o regimen mais
sensível a esses movimentos inesperados, pois
no talento e na força moral, fundamenta a dife-
está na sua própria natureza não dirigir e contro-
renciação entre os indivíduos. A inteligência e lar as atividades dos cidadãos. Póde-se falar e
o talento, como características inatas ao indiví- pensar como aprouver a cada um; aceitar ou não
duo, podem apenas ser exercitadas ao longo da a idéia de pátria; ter ou não a veneração a uma
vida; não se cria inteligência nem talentos; os bandeira.
indivíduos já as trazem desde o nascimento, mas Mas é esse o erro, porque a democracia só sub-
precisam de oportunidades para expressá-las. siste quando os símbolos da nacionalidade têm
A força moral, ao contrário, deve ser construí- sido para todos, e quando o povo é uma unida-
da através da educação em valores, pela famí- de de sentimento ainda que não seja uma unida-
lia e pela escola, e constitui-se, principalmente, de de pensamento. (ALVES, 1941, p.82).
na formação de hábitos virtuosos. O mérito A crítica à democracia liberal, como um re-
pessoal, assim constituído, é o único fundamen- gime fracassado na história da humanidade, está
to justo para a diferenciação social, portanto, apoiada na interpretação das experiências de-
as demais desigualdades (econômicas, sociais mocráticas no mundo e principalmente no Bra-
e raciais) devem ser superadas e essa é uma sil. Alves vê o liberalismo como o regime da
atribuição do governo. escravidão dos fracos pelos fortes, dos pobres
Com esse pressuposto, propõe um novo pelos ricos e, no Brasil, por ter sido baseado na
modelo democrático “verdadeiramente justo” política coronelista no interior dos estados e a
baseado na ordem e na preservação de forças política profissional na capital, considera que foi,
morais que conduzam ao progresso. Assim to- em verdade, uma fraude.
dos os cidadãos trabalharão pela Nação, con- Desde as eleições ‘a bico de pena’ nos cur-
forme suas possibilidades de mérito e talento; rais eleitorais do interior, até as urnas raptadas
não se deve exigir demasiado daqueles de me- e adulteradas na cidade, aprofundando a práti-
nor capacidade, nem desperdiçar talentos em ca do clientelismo e da corrupção, o Brasil vi-
função das condições sociais ou preconceitos veu, até então, uma farsa democrática. O
raciais. Parlamento Nacional, historicamente, espoliou
A elite dirigente da Nação deve ser forma- ao invés de contribuir para a Pátria; os políticos
da, sobretudo, por homens de talentos e de alta profissionais (como denomina os parlamenta-
capacidade intelectual, além de grande força res) atuam apenas em função dos seus interes-
moral. A família é a base da Nação que está ses e ambições pessoais de poder. Conclui,
acima do indivíduo. A ordem e a disciplina fun- então, que as gerações educadas no liberalis-
damentam a vida social e são funções coleti- mo não são capazes de realizar uma obra de
vas, não só do governo. coesão nacional.
Da mesma forma que a maior parte dos Além dessa herança histórica, Isaías Alves
defensores do Estado Novo, Isaías Alves criti- critica o momento político em que vive, apon-
ca com veemência o regime democrático-libe- tando “os prejuízos” que os debates políticos
ral. Compreende a democracia vigente como entre integralistas e comunistas causam à mo-
um sistema político ineficiente, incapaz de fa- ral, pois ambos não admitem a religião e des-
zer progredir a humanidade e mesmo injusto. qualificam o “sagrado respeito” à família.
Aponta a emergência dos movimentos nazi-fas- Ante tal análise, defende abertamente um
cistas e dos movimentos comunistas como uma regime forte dirigido por uma elite intelectuali-
ameaça aos regimes democráticos e, por isso, zada, que torne a Democracia voltada para o
compreende a necessidade de defesa da De- que ele considera o bem comum, que não impli-
mocracia que só poderia ser feita por um go- ca igualdades, mas um tratamento diferenciado
verno forte. Para Isaías Alves: dos indivíduos, conforme capacidades e mérito

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Isaías Alves de Almeida e a educação na Bahia

de cada qual, secundado pelo sentido de en- tipo de laissez-faire proveniente do desejo da-
grandecimento à Pátria. Este pressuposto, em- queles que queriam importar para o Brasil mo-
bora comum para toda a humanidade, é delos estrangeiros. Há, nos escritos de Isaías
particularmente adequado às peculiaridades Alves, uma queixa contra as elites brasileiras
brasileiras. que, ao contrário das elites de outros países,
Segundo Isaías Alves, o Brasil tem uma con- nos quais exploraram as classes inferiores, mas
formação muito especial e que, portanto, deve cultivaram as artes e as letras, aqui abandona-
criar um modelo próprio de sociedade e Nação, ram a educação popular, cuja conseqüência é
sem copiar exemplos e/ou modelos estrangei- um país de ignorantes que, nesse momento,
ros, que não se adequam nem às nossas tradi- deprimem a Nação.
ções, nem ao momento histórico em que vive. Do ponto de vista antropológico, o Brasil é
É esse, então, o propósito da Reconstrução visto como um país formado por três raças que
Nacional: o Brasil precisa de progresso econô- não puderam dar uma identidade ao país, pois
mico, ordem social e sentimento de Nação. Urge não tiveram um sentido nacional para a sua
a construção de uma brasilidade. existência. O índio e o negro não possuíam no-
O núcleo do seu ideário é a aspiração de ção de ordem social; o branco, particularmen-
fazer a passagem entre a Pátria romântica da te o português, também não soube construir
quadra liberal e a Pátria robusta e organizada, uma Nação aqui no Brasil, apesar de na Euro-
com uma nova alma política, para torná-la uma pa já ter estabelecido, há séculos, a ordem tra-
potência e apontar, ao Brasil, o rumo dos seus dicional de família e sociedade; o mestiço não
grandes destinos, cuja base fundamental é a se impôs culturalmente. Disso resultam as mar-
Tradição. cas da escravidão, manifestadas na discrimi-
Na análise da conjuntura brasileira, consta- nação, no preconceito e na excessiva valori-
ta um total atraso político, econômico, social e zação do que é estrangeiro em detrimento do
antropológico, e a República, por construir-se. que é nacional. Entretanto, considera possível
Segundo Isaías Alves, a República brasileira a conquista de certo grau de uma homogenei-
nasceu de um caos em 1891, que foi agravado dade social, pois o preto e o mulato adapta-
pelos erros e vacilação de 1934, mas com o ram-se à cultura européia e o Brasil já forma-
Estado Novo, estabelecendo liberdade, ordem va uma nova raça,
e disciplina surgem novas esperanças.
Raça, sem dúvida, no sentido lato. Somos uma
Do ponto de vista econômico, Isaías Alves
nação. Das origens luso-indio-africanas está
vê um Brasil atrasado com uma industrializa- nascendo um grande povo, cujas forças é mister
ção incipiente e as iniciativas existentes de pro- desenvolver, pela escola, que lhe levará as téc-
gresso em mãos de imigrantes estrangeiros que nicas da vida, os ensinamentos da defesa orgâ-
ameaçavam a brasilidade. O Brasil, possuin- nica e as vias intelectuais de aquisição do
do muitas riquezas naturais e imensos terrenos orgulho nacional, baseado na fé, nas tradições e
devolutos, teria como principal missão a ocupa- na consciência de nosso valor econômico. (AL-
ção do território que poderia ser feita através VES, 1941, p. IV).
de distribuição de terras a colonos nacionais, Segundo Isaías Alves, havia no Brasil da sua
inclusive a universidades, pois os imigrantes época o consenso sobre a multiplicidade de ra-
estrangeiros que se adiantavam nas suas colô- ças que formam o país, mas também uma gran-
nias no trabalho e na educação dos seus, sem de diferenciação de níveis culturais, pelas
sentido algum de nacionalidade, buscavam ape- notórias influências indígenas e africanas na ci-
nas o proveito próprio. vilização brasileira, que o português criou. As-
Do ponto de vista social, para Isaías Alves, sim, diante de tanta diversidade de culturas, não
o Brasil estava marcado por desigualdades ori- teria sentido se falar em pureza de raça, mes-
ginadas do atraso econômico, por injustiças e, mo porque não crê em superioridade racial.
particularmente, pela desordem atribuída a certo Para ele, a “pureza” brasileira é a mestiçagem

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do conjunto índio-afro-português ao qual, nesse O clima social necessário ao desenvolvimen-


momento histórico do Estado Novo, se associ- to dos princípios políticos de um regime que
am outras etnias de imigrantes que devem ser garanta a liberdade pela organização moral, pela
assimiladas. disciplina e pelo império da lei, numa atmosfera
Este diagnóstico do Brasil é a referência para de confiança e de respeito aos direitos e aos
a construção da brasilidade, que requer um interesses econômicos do povo, só poderia ser
esforço de mobilização nacional e, para isso, criado pelo Estado Novo.
existiam dois instrumentos básicos: a Educação Defende o Estado Novo como uma neces-
e o Exército. A Educação como estratégia e o sidade para o Brasil equiparar-se às nações
Exército como única força política capaz de desenvolvidas, o que significa firmar valores
realizar a mobilização nacional. como a hierarquia, que se traduz na obediência
Isaías Alves propõe a construção de um à autoridade; a religiosidade, base da moral, cuja
Brasil de classe média, sem diferenciações so- responsabilidade é da família; e o legalismo que
ciais gritantes – que ele considera perturbado- é a referência de respeitabilidade do Estado.
ras –, onde o pobre possa viver com o mínimo O Estado deve ser um coordenador das or-
conforto necessário à pessoa humana. Um país ganizações sociais para melhorar a disciplina
agroindustrial capaz de projetar-se no cenário dos grupos humanos e sua responsabilidade, com
mundial, liderando economicamente a América a educação, é a do controle dos serviços edu-
Latina, e governado por uma meritocracia. cacionais. A família, detentora da tradição da
A sociedade ideal é, para ele, a composta sociedade, é uma das bases dessa nova ordem
por trabalhadores conscientes dos seus direitos e estreita colaboradora do Estado – que não
e deveres como cidadãos, na qual todos serão quererá substitui-la – principalmente no que
respeitados e sua elite dirigente será, sobretu- concerne às suas funções educativas, com pre-
do, altruísta. Dever-se-ia dar oportunidade a ponderância na educação religiosa. Tal Estado
todos, independente da condição social ou de constitui-se em um:
raça, para que cada indivíduo pudesse assumir
... regimen de autoridade, de ordem, de respon-
a sua verdadeira vocação. Dever-se-ia procu- sabilidade e pundonor, em que os homens não
rar corrigir as desigualdades sociais, buscando apelam somente para os direitos e regalias, mas
dignificar todo tipo de trabalho, sobretudo o tra- adquirem a noção profunda do dever, e cumprem,
balho manual, à época, tão depreciado. conscientemente, as suas obrigações para com
Segundo Isaías Alves, a multidão não teria a a sociedade, para com a Pátria, para com as cri-
mesma capacidade de critério que os homens anças, para com os operários, para com os po-
iniciados na filosofia; portanto, seria indispensá- bres e impaludados lavradores, que constituem
a fonte primeira das nossas riquezas econômi-
vel a formação de uma elite esclarecida. Para cas e que viveram sempre abandonados às mar-
isso, deveriam ser abertas, aos jovens de talento, gens dos nossos rios, sem conforto material, sem
as oportunidades de ascensão, evitando-se criar esclarecimento para a inteligência, e até sem alí-
os revoltados pelas injustiças sociais, que propa- vio para as dores da alma, por falta de padres
gam a dissolução da Nação, como recurso do suficientes que lhes levem a palavra da caridade
próprio reajustamento. Diz Isaías Alves que: cristã. (ALVES, 1939, p.117-118).
Não é possível governar sem o talento, sem alta A principal missão do Estado Novo é firmar
capacidade de perceber as necessidades sociais a unidade nacional e garantir a integridade ter-
do povo e de conceber as resoluções dos gra- ritorial do Brasil, tornando-o uma nação forte e
ves problemas de sua satisfação. Por isso, a so- respeitada pelas outras nações, em vez de um
ciedade, por seu governo, quando não por suas
conjunto de retalhos estaduais; propugna, por-
instituições filantrópicas, está no dever de pro-
curar e descobrir os espíritos superiores da in- tanto, por uma centralização do poder político,
fância e da juventude a fim de abrir-lhes mais em detrimento das regionalidades.
vantajosas oportunidades, tornando-lhe o am- Isaías Alves considera o Estado Novo uma
biente mais propício. (ALVES, 1937, p.52). segunda etapa do Estado brasileiro constituído

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Isaías Alves de Almeida e a educação na Bahia

em 1930, momento em que se estabeleceu a ciência coletiva, para que as fôrças do mal, que
unidade nacional, ou seja, a centralização. Com irradiam seu pensamento dissolvente na obscu-
base na ordem e na disciplina, o Estado Novo ridade da propaganda clandestina, encontrem na
infatigável campanha do bem, no ininterrupto
instalaria uma nova democracia voltada para o
chamamento da alma à defesa das mais puras
bem comum, traduzido no sentimento de Pá- tradições e ao serviço da construção nacional, a
tria, que deve ser infundindo na população, afir- neutralização de sua obra demolidora. (ALVES,
mando a fé e os valores cristãos, re-dignificando 1939, p.195).
a família.
A Reconstrução Nacional tem a Tradição
Dentre as medidas que o Estado Novo já
como princípio básico para a nacionalidade que
havia tomado, Alves salienta as econômicas que
significa: o respeito aos mais velhos, o culto aos
possibilitaram reduzir as diferenças entre ricos
antepassados, às origens da raça, ao solo pá-
e pobres, buscando acabar com a “luta de clas-
trio, às lendas e à cultura nacional. Essa é uma
ses” no Brasil. O cooperativismo é um exem-
reação salvadora contra o internacionalismo
plo do que se estimulava em todo o país,
pregado pelas ideologias de direita e de esquer-
proporcionado um grande impulso na economia
da que, então, se alastravam no Brasil.
rural, como também o disciplinamento das es-
Outro recurso para o progresso da Nação,
tradas de ferro, permitindo o aumento e a cir-
do qual o Estado Novo vinha lançando mão, foi
culação da produção agrícola. Afirma também
a modernização técnica. Isaías Alves crê que a
que o sucesso de tais medidas deveu-se à tra-
técnica, a grande arma do homem civilizado, é
dição brasileira da cultura de solidariedade e
indispensável à vida do homem moderno pois,
espírito associativo que poderiam ser percebi-
através dela, a energia individual seria multipli-
dos nas relações de vizinhança, das comunida-
cada tornando milhares de vezes mais benéfica
des tanto de bairros urbanos como rurais, pela
a capacidade e a eficiência do trabalho. Como
prática do ‘adjutório’.
filha dileta da Ciência, a técnica consegue re-
Isaías Alves aponta ainda que, conjuntamen-
ger todos os campos da vida, embora existam
te a essas medidas, o Estado Novo estava cri-
dificuldades para intervir na política, particular-
ando o espírito de empreendimento e diminuindo
mente no Brasil onde os interesses e as ambi-
a tendência ao emprego público, reeducando o
ções pessoais ainda não se dobram aos ditames
povo brasileiro no sentido do dever e do sacrifí-
da experiência científica. Para Isaías Alves,
cio para com o progresso da Pátria.
essa é uma conquista lenta que seria processa-
E, nessa ordem social, são bandeiras para a
da à medida que a vida coletiva fosse sofrendo
formação da cidadania: primeiro, o conhecimen-
a influência organizadora dos técnicos.
to das condições sociais e econômicas do país,
Entretanto, apesar da técnica (as condições
seus problemas e respectivas soluções, no sen-
técnicas, os dispositivos científicos, os elemen-
tido de sensibilizar a população para a mobiliza-
tos materiais, os produtos da atividade intelec-
ção nacional; segundo, o fortalecimento da idéia tual) ser um elemento indispensável à formação
de serviço e do esforço pelo bem coletivo. Tais de um novo Brasil, a questão moral e a espiritu-
bandeiras a educação deveria assumir como al estão em primeiro lugar. E tal afirmativa está
objetivo maior da sua função social. acompanhada de uma crítica subliminar ao nazi-
O Estado Novo, um governo forte, capaz de fascismo:
limitar a expansão do materialismo ateu e al-
cançar, na paz, a cristianização do pavilhão re- ... os povos que cultivam apenas o egoísmo e o
conforto material, e os que se adoram no mito da
publicano, tem:
superioridade do indivíduo e da raça, segundo
O sentido disciplinador do Estado Novo, criado sua eficiência no campo intelectual e no indus-
para reerguer o Brasil e torná-lo uma potência trial e econômico, acabam sempre em fanatismos
mundial pelo aproveitamento de todas as suas perigosos (...) a preparação intelectual e material
energias econômicas, sociais, morais e espiritu- [só] será uma força eficiente quando dirigida pela
ais, deve ser reiteradamente apresentado à cons- energia moral. (ALVES, 1937, p.129).

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Maria Alba Guedes Machado Mello

A superioridade de uma Nação, segundo tão, vencendo a resistência dos poderes locais.
Isaías Alves, se faz através da educação, da Isaías Alves aponta a urgência do governo
cultura, do progresso econômico, do idealismo em firmar a estabilidade democrática e, para
e devoção à Pátria; essa superioridade qual- isso, um dos caminhos é a salvação dos talen-
quer raça poderá construir. tos. Identificar jovens talentosos que pudessem
Neste particular, sugere que o nordestino desenvolver seus talentos, abrir novos horizon-
tenha uma missão especial: será o elemento tes à sua vida, saciar sua sede de cultura, seria
fundamental da “liga resistente” da brasilida- uma forma de aplacar ódios e desejos de mu-
de, pois é o mais perfeito representante da danças da ordem social.
mestiçagem, descendente direto do caboclo, sím- A juventude é eleita como a grande força
bolo nacional. Por isso, Isaías propõe que, ao moral da pátria e merecerá uma formação es-
invés de buscar a fixação do nordestino no seu pecial, seja no Exército, seja nas escolas, cujo
lugar de origem, o Estado deve prepará-lo para “primeiro passo é ensinar-lhes o trabalho ma-
migrar para o sul, suficientemente educados, nual, habituá-los a alimentos sadios e a exercí-
homens e mulheres, tendo em vista superar o cios activos e hygienicos”. (ALVES, 1931,
estrangeiro que vem tentar a vida no Brasil. A p.79). A educação torna-se, assim, uma estra-
brasilidade, mais que uma idéia, é um senti- tégia para a Reconstrução Nacional, à medida
mento: a certeza da eficiência da “amalgação que identifica e forma talentos.
mística” das três raças; e isso deve alimentar a Transformar um Brasil pobre, vilipendiado,
todos os patriotas. enfraquecido pela invasão de idéias, gentes e
A construção da nacionalidade também pas- ideologias estrangeiras, em uma Nação cristã,
sa pelo tratamento da questão do imigrante, ou de classe média, liderando economicamente a
melhor, da assimilação do imigrante, que é co- América Latina e governada por uma merito-
locada como uma questão de defesa nacional, cracia é o ideal cívico de Isaías Alves, ao qual
tendo em vista a negativa de incorporação da coloca a serviço sua proposta educacional.
nossa língua nas suas escolas e a manutenção
de seus usos e seus costumes. Isso, para Isaías
Alves, ameaça a integridade da cultura nacio- A política educacional
nal. Diferentemente dos Estados Unidos, onde
os imigrantes assumiram a cultura americana, Isaías Alves situa o debate político em torno
tipo ‘Deus salve a América’, no Brasil, os imi- da educação, naquele momento histórico, entre
grantes estão assumindo uma aberta superiori- dois modelos: o democrático e o tecnocrático.
dade em todos os níveis da vida (urbano, No modelo democrático, a educação seria uni-
industrial, educacional, sanitário etc), o que hu- versal, igual para todos (escola única) e as re-
milha e deixa um complexo de inferioridade nas formas ou mudanças emergindo do povo sem
populações nacionais, persistindo cada vez mais obedecer aos ditames das autoridades. No mo-
a cultura de que ‘o que é estrangeiro é sempre delo tecnocrático, a educação seria essencial-
o melhor’. mente profissionalizante, com oportunidades
Nesse âmbito, Isaías Alves indica como so- especiais reservadas a poucos (sistema dual) e
lução a melhoria da qualificação das escolas os tecnocratas como agentes organizadores dos
rurais nacionais, de modo que possam concor- planos que o povo deve seguir.
rer com as escolas de imigrantes, assim como Num esforço de síntese entre essas ten-
o preparo do próprio camponês. Diz que não se dências, e coerente com seu conceito de de-
pode impor o uso da língua nacional (mesmo mocracia, ele propõe uma educação democrá-
porque não se obedece a isso) nem esperar que tica voltada para o bem comum – materializado
o imigrante aceite uma forma de vida inferior à no amor e no serviço à Pátria – e fundamen-
que tinha no seu país de origem. Propõe, então, tada no conhecimento técnico, resultante de
que o governo federal intervenha nessa ques- pesquisas, de bases experimentais, que, à sua

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Isaías Alves de Almeida e a educação na Bahia

época, eram, enfaticamente, associadas às da Escola Nova no Brasil, tornando-o susceptí-


teorias da Psicologia Experimental. Uma edu- vel ao que chama de “reformadores temerári-
cação que propicie oportunidades a todos, con- os”; temerários também porque a Escola Nova,
forme seus talentos, e, portanto, uma educa- já superada no mundo, queria implantar-se no
ção diferenciada. Brasil.
Não há nas obras de Isaías Alves uma teo- A educação brasileira deveria adotar como
ria da educação propriamente dita; suas con- filosofia o sentido do dever e do esforço, ao
cepções vão sendo formuladas no bojo da contrário do que querem os escolanovistas, pre-
discussão com os escolanovistas e também no gando apenas o direito e o conforto pessoal, que
debate internacional entre as diferentes corren- terminam por desagregar as forças morais que
tes de pensamento pedagógico. Assume, como deveriam unir-se para a construção da discipli-
atribuição pessoal, a crítica à Escola Nova no na social. Na nova ordem social, a educação
Brasil – mesmo com o risco de ser punido com não poderia ter a função de servir às individua-
o ostracismo –, pois se inquieta ao ver a educa- lidades, como a queriam os escolanovistas; de-
ção brasileira entregue ao que chama de ‘pre- veria, ao contrário, assumir um papel de
conceitos doutrinários’. destaque como força de homogeneização de
O combate à Escola Nova está focado nas toda sociedade, como estratégia mobilizadora
questões políticas sobre a função social da Edu- da Reconstrução Nacional ou da própria nacio-
cação. Para Isaías Alves, a educação proposta nalidade.
pela Escola Nova era uma força de desnacio- Segundo Isaías Alves, a chave do sucesso
nalização, pois não cultuava os heróis e os sím- estava em propor uma educação adequada às
bolos pátrios, como a bandeira e o hino nacional; tradições; afirma que uma organização educa-
abandonava a educação religiosa – alegando cional não obedece a princípios filosóficos alhei-
proteção contra os interesses eclesiásticos –, os ao modo de ser de uma Nação. Somente as
além de enfraquecer a tradição, entendida mais ditaduras violentas podem, transitoriamente,
particularmente como respeito aos mais velhos, impor a um povo modos de viver artificiais. Se
no sentido da obediência reverente aos pais. a educação não vier ao encontro dos ideais de
O rompimento da Escola Nova com a tradi- um povo, se seus métodos e organização não
ção teria como evidência, por exemplo, a prega- estiverem adequados às condições sociais do
ção escolanovista da superioridade do pensamen- país e se sua pedagogia for estranha às tradi-
to juvenil, fincada apenas na sua própria ções culturais da Nação, a educação será um
experiência de vida. Aponta também o que seri- projeto falido.
am equívocos nos dogmas da Escola Nova: o A educação é uma função do organismo que
fato de os escolanovistas afirmarem, por exem- é a Nação. Portanto, no Brasil:
plo, a necessidade de dar liberdade à criança é, Será profundamente brasileira; pacífica perante
para Isaías Alves, um preceito superado, pois as nações amigas; corajosa e heróica perante as
estava provado que crianças normais precisa- ambições agressivas à nossa soberania; prag-
vam de direção e controle, mesmo porque a li- mática perante as riquezas adormecidas no vas-
berdade não é um dom natural, como a queria to solo e idealista perante os valores espirituais
de nossa gente, que vive da poesia mística de
Rousseau; ao contrário, na história da humani- três raças profundamente sentimentais, genero-
dade, a liberdade sempre foi uma conquista. sa no desenvolvimento dos valores de hospita-
Considera que a doutrina da Escola Nova é lidade, prudente e reservada na defesa de nossos
uma conseqüência e não um elemento propul- costumes, perante a sugestão dissolvente de
sor da riqueza econômica e artística, e da pros- forasteiro que nos pretendam enfraquecer na luta
peridade material e moral das Nações que a de nossa própria conservação. (ALVES, 1941,
adotaram; portanto, tal doutrina só se aplicaria p.10).
a países ricos. Identifica, na falta de uma filo- O Brasil necessita não só de uma filosofia
sofia da educação brasileira, a razão da difusão da educação, como também de uma política

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educacional clara, objetiva e pragmática que grante, que, para ele, se constitui em um traba-
solucione seus problemas educacionais. Os lho muito mais pedagógico que burocrático e/
grandes problemas da educação e “que a Na- ou policial. Afirma que as escolas alemãs eram
ção brasileira está tardando de levar a serio”, subsidiadas pelo Reich ou por colonos alemães;
são: a alfabetização das massas (principalmen- os japoneses chegavam ao Brasil garantidos por
te as das zonas rurais), educação profissional companhias subvencionadas pelo governo de
(sobretudo para a qualificação do operariado) Tóquio, daí a superioridade da organização das
e a assimilação dos imigrantes. Estes aspectos suas fazendas, estradas, pontes e escolas. Jun-
devem ser os eixos da Política Educacional ta-se a isso o ‘pouco caso’ que os japoneses e
Brasileira. alemães fazem das escolas públicas, além de
Diz Isaías Alves que o analfabetismo é o não admitirem crianças brasileiras nas suas. O
grande mal do Brasil. A situação de atraso e problema se agrava quando é constatado que,
pobreza, em que se encontrava o país foi, in- nas fronteiras, todos estudam no outro país e
sistentemente, criticada por ele. Apontada, in- não no Brasil.
clusive como causa do que entende como “luta Ante tal quadro, Isaías Alves propõe insta-
de classes”, no Brasil. O combate ao analfa- lação de escolas públicas nas colônias – princi-
betismo deveria ser em todas as frentes: de palmente nas alemãs – contrapondo-se às
crianças, de jovens e de adultos, pois 75% da escolas dos colonos, indicando que a única for-
população brasileira estavam, à época, anal- ma de concorrer com as escolas dos colonos e
fabeta. construir a brasilianização é tornar a escola
O principal argumento de Isaías Alves é o brasileira bem organizada, bem dirigida, com
de que um povo sem instrução não pode ala- professores de elite e com ensino bilíngüe.
vancar o desenvolvimento econômico, sobretu- Além dos imigrantes, outras minorias étni-
do porque, se o povo não sabe ler, o governo cas preocupam Isaías Alves: o negro e o índio.
não pode formar uma opinião pública favorável Para o negro, propõe a inclusão na rede públi-
a si, através da imprensa. Por isso, a principal ca, sem diferenciação, nem discriminação. Cri-
diretriz da política educacional é a expansão da tica o modelo americano que discrimina o negro,
oferta de escolas. Sem isso “a multidão perma- dando-lhe uma educação inferior em escolas
necerá uma presa da exploração dos ambicio- nas quais o custo-aluno e o salário dos profes-
sos, para os quais o aumento dos brasileiros sores são mais baixos que nas escolas dos bran-
alfabetizados é um grande perigo, porque im- cos; considera isso um grave erro, porque assim
portará no crescimento do eleitorado, difícil de se desperdiçam os gênios que há entre os ne-
ser comodamente manobrado”. (ALVES, 1941, gros norte-americanos. Para o índio, defende a
p.13). instalação de escolas públicas nas reservas in-
A educação profissional, tanto urbana como dígenas, sob a responsabilidade federal.
rural, tem em vista a formação para a indústria Na realidade brasileira, em que o poder pú-
e para a agropecuária, setores vitais da econo- blico ainda é incapaz de dar escolas aos que a
mia do país, naquele momento. Articular a edu- pedem, o dever precípuo do Estado é a instru-
cação com a indústria e formar operários ção primária. Portanto, não se poderia colocar
conforme as suas demandas, poderia, por exem- em plano secundário a cooperação das funda-
plo, na visão de Isaías Alves, amenizar o de- ções civis ou religiosas, que educam dezenas
semprego, um dos problemas do capitalismo, já de jovens. A educação é um direito e um dever
à época. primordial dos pais. Ao governo compete orga-
A educação rural tem um destaque nas di- nizar e dirigir a educação de modo que se obte-
retrizes políticas da educação propostas por Isa- nham os mais excelentes resultados dos
ías Alves, não só por sua importância para o impostos empregados no ensino.
desenvolvimento econômico do país, mas prin- No caso da alfabetização rural, Isaías Al-
cipalmente pela questão da assimilação do imi- ves defende a parceria com o Exército que al-

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Isaías Alves de Almeida e a educação na Bahia

fabetiza e socializa “o homem rústico” e já tem riência de sucesso na Dinamarca que, à época,
uma obra iniciada, particularmente nas escolas já havia universalizado até o ensino secundário.
rurais de fronteiras. O Exército – credenciado A escola é apontada ainda como um espaço
pela salvação das instituições na hora amarga onde os talentos se revelam. Esse é um traba-
da sublevação – deve ser o coordenador desse lho de base para a educação nacional: desco-
ambiente em que a escola agirá no preparo das brir talentos, formá-los e constituir a elite
novas gerações, inclusive requerendo verbas dirigente do país. O Brasil tem urgência em
públicas para essa função. possuir uma elite bem formada, tanto técnica
A educação é estratégica e conta com dife- como moralmente. As elites brasileiras, até en-
rentes mecanismos e agentes, mas é a escola o tão, não foram suficientemente altruístas para
espaço privilegiado para sua consecução. A fazer do Brasil a grande nação correspondente
escola é, sobretudo, o “laboratório da nacionali- ao seu potencial.
dade”, um centro irradiador de cultura, com uma Uma das questões mais combatidas por Isa-
clara predominância do processo formativo em ías Alves é a localização das escolas. Denun-
detrimento da transmissão de conhecimentos. cia que o prestígio político – sobretudo dos
Deve-se tornar um centro social, onde se unam fazendeiros – tem sido o critério para localiza-
diretoras e trabalhadoras proporcionando ao fi- ção de escolas, tanto urbanas como rurais. Isso
lho do operário as mesmas vantagens que têm tem levado ao desperdício de verbas públicas,
filhos de milionários. ao favorecimento dos que podem prescindir da
Segundo Isaías Alves, o Brasil não poderá ajuda do governo, tem deixado as populações
pensar em escola única antes do ano 2000. A pobres no seu eterno atraso.
escola única seria muito cara para os cofres Na nova ordem social, as escolas deveriam
públicos, haja vista o contingente de crianças ser localizadas de acordo com as necessidades
sem acesso à escola, além do que as famílias da população, não só no sentido de sua instru-
pobres não poderiam dispensar o trabalho da ção, mas para que a escola pudesse cumprir
criança, principalmente nas zonas rurais que têm seu papel de centro irradiador de cultura, disse-
a tradição do trabalho familiar. Por isso, defen- minando a propaganda patriótica, organizando
de a diferenciação da escola tanto pela sua lo- as populações para combates a endemias etc.
calização (urbana ou rural) como pela sua Um plano de construção de escolas precisaria
finalidade (formação das elites ou formação das ser orientado por critérios científicos, resultan-
massas). tes de pesquisas demográficas (inclusive com
Como veículo de uma educação diferencia- projeções) e inquéritos sociais.
da, a escola deveria preparar o homem para Entretanto, todas essas diretrizes só teriam
ajustar-se ao ambiente; assim, nem todas as sentido se o governo federal tomasse a si o Ensi-
escolas deveriam ter pretensões literárias; nas no Normal que é o centro do problema da edu-
escolas mais humildes de zonas mais pobres, cação brasileira2. O Ensino Normal deve ser uma
por exemplo, as escolas estariam mais ligadas função orgânica e realizada diretamente pelo
à vida doméstica e às atividades econômicas Estado. Como o ensino militar e o religioso, o
das cidades e dos campos, para orientar as cri- ensino normal exige qualidades especiais e apti-
anças a colaborarem na economia familiar. dões claramente favoráveis ao exercício de de-
Entretanto, Isaías Alves sabe que é preciso ter veres árduos, de funções delicadas e patrióticas.
coragem para implantar e levar adiante este tipo Para ele, o professor deve ser selecionado, pe-
de escola, pois implica romper com o precon- los métodos da orientação profissional, entre os
ceito de que adaptar a escola às condições lo- melhores e mais vantajosos elementos, entre as
cais significa assumir que somos um país
atrasado. Esse modelo de escola, voltada para 2
O ensino normal foi o objeto privilegiado das proposições
mais dedicadas de Isaías Alves, no período de sua atuação
os interesses locais, mas que tem por finalidade como secretário de Educação e Saúde na Bahia, durante o
o serviço à Nação foi, segundo ele, uma expe- Estado Novo.

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inteligências mais robustas e os caracteres mais Diz que, para realizar o trabalho de constru-
fortes das várias camadas sociais. ção moral da Nação, é preciso que tenha o va-
A Escola Normal, mais que qualquer outra, lor moral à altura de sua função; e isso deve
é uma prioridade educacional. Isaías Alves la- ser adquirido por uma formação de alto nível e
menta que a Escola Normal na Bahia, tendo também através do tratamento dispensado ao
sido fundada em 1836, e a cinco anos de com- professorado pelas autoridades. Defende aber-
pletar um século, esteja oferecendo apenas o tamente a necessidade de aumento salarial, de
nível secundário. Os professores formados por prestígio político e social, e ainda o rompimento
essa Escola saíam ainda muito jovens para as- com a prática de tratar o professor como um
sumirem a grande responsabilidade atribuída ao humilde auxiliar de governos ou fazendeiros.
professor e, ainda mais, na nova ordem social. Tais medidas, segundo ele, engrandeceriam a
Propõe que a formação de professores seja em profissão e dariam ao professorado o entusias-
nível superior e que o/a normalista tenha mais mo necessário para cumprir sua missão. Os
anos de estudo e amadurecimento para as suas professores devem ser vistos como “verdadei-
funções. ros oficiais de um exercito da paz e do futuro”
Na sua obra educacional, o professorado e não como “simples funcionários subalternos”.
ocupa o lugar central, pois o Brasil pobre preci- (ALVES, 1936, p.99).
sa desenvolver-se. A educação é um mecanis- Em termos de gestão, Isaías Alves espelha-
mo fundamental para o desenvolvimento; o se nos Estados Unidos e propõe um sistema
professor é peça-chave na Educação. É a lide- descentralizado e compartilhado com outros
rança no âmbito educativo, que somará forças agentes sociais. Admite a autonomia dos Esta-
para a mobilização nacional. É um descobridor dos e dos Municípios, mas com os princípios
dos talentos, que formará a elite dirigente do gerais e os objetivos a atingir ditados pelo po-
país. É o exército da cultura, o Estado Maior da der federal. À União cabe disseminar a educa-
formação moral do povo brasileiro e o exemplo ção primária, com ação supletiva, e buscar a
a seguir por seus educandos. Mais que qual- cooperação de fundações civis ou religiosas. A
quer outro profissional, deve formar uma cate- União deve intervir particularmente no ensino
goria uníssona e tem, principalmente, um papel rural como um auxílio para resolver o problema
histórico a cumprir: da alfabetização, criando um clima de colabo-
... de reeducação dos hábitos morais, transfor- ração dos cidadãos, que, entre outras coisas,
mação dos princípios políticos, rejuvenescimen- poderão expandir o ensino primário (particular),
to da sociedade, fortalecimento da família, subsidiados pelo governo e com a devida fisca-
engrandecimento da Pátria; por isso deve ser lização federal.
uma elite bem aparelhada espiritual, física e inte- Critica a desarticulação e a grande quanti-
lectualmente, homens de palavras claras, bata- dade de organismos administrativos, propondo
lhadores da honra, da honestidade e do brio
uma estrutura enxuta com vinculação entre os
nacional (ALVES, 1937, p.124)
Departamentos de Educação e os Conselhos
Juntamente com os militares e os religiosos, federal e estaduais que, para ele, parecem, na-
o professorado compõe o apostolado da Recons- quele momento, sem função.
trução Nacional: da ordem e disciplina, da fé A pesquisa educacional deveria ser o único
cristã e da formação cívica e moral. Se, por um critério para as decisões de política educacio-
lado, é a principal solução para erguer a educa- nal e para subsidiar a administração também
ção nacional ao nível da de um país civilizado, nas questões de financiamento da educação
por outro, é o principal problema da situação da (como estudos tributários, por exemplo), de ade-
educação no Brasil. Acredita Isaías Alves que quação de mobiliário escolar, de materiais pe-
o professorado só poderia cumprir seu papel dagógicos etc. Para Isaías Alves, só se pode
histórico se lhe fossem dadas condições e tra- economizar o dinheiro público, investindo em
tamento equivalentes. pesquisa.

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Isaías Alves de Almeida e a educação na Bahia

Quanto ao financiamento da educação, Isa- uma escola secundária seletiva ao lado de uma
ías Alves resume-se a propor uma otimização escola média ou da escola primária superior.
dos recursos públicos e uma associação aos Isso significa que não se deve abandonar a edu-
setores privados. Para financiamento das es- cação das elites, pois elas sustentam a Nação;
colas rurais, defende o sistema de Caixas Es- entretanto, também não se podem desprezar os
colares, então já vigente no Rio de Janeiro, pobres de talento que pertencem às grandes
chamando a atenção de que a Constituição de massas.
1937 determina que o ensino primário seja obri- Ante a necessidade de uma educação práti-
gatório e gratuito; entretanto, isso não deveria ca e utilitária – sobretudo, de orientação agrí-
impedir que os que têm recursos contribuam cola – tanto para desenvolver o campo, como
para os que não os têm. E, por conta da incapa- para qualificar os menos inteligentes, o sistema
cidade de fiscalização por parte do governo, de ensino deve ser dual, pois assim poderia aten-
sobretudo pela imensidão do Brasil, o encargo der, ao mesmo tempo, à formação profissional
da fiscalização dessas Caixas Escolares deve- das amplas massas e à preparação de uma eli-
ria ser atribuído à população. te intelectual, capaz de servir não só à vida pro-
Com o eixo da Reconstrução Nacional, a fissional como garantir a construção de uma
política educacional proposta por Isaías Alves cultura nacional.
tem em vista a formação moral dos cidadãos, Em verdade, Isaías Alves considera o ensi-
cujo elemento central é o professorado asse- no dual como uma medida emergencial; para
melhado em sua vocação aos religiosos e aos ele deveria ser generalizado um sistema único
militares. Assume como finalidades a forma- de ensino secundário, conforme o modelo ame-
ção das elites e o preparo profissional, tendo ricano: cursos comerciais, técnicos, industriais
como medidas emergenciais a alfabetização em etc. Contudo, entende que a mentalidade do
massa e a assimilação do imigrante. Brasil, ainda fortemente aferrada aos ensina-
Para sua consecução, o Estado coloca-se mentos clássicos e literários, não permitiria tal
como organizador e articulador das iniciativas transformação; assim, se torna preferível o cri-
públicas e privadas, incorporando, inclusive, a tério de separação e distinção.
população como agente de fiscalização. E, como O ensino está estruturado, na proposta de
critério ideal para tomada de decisões, a pes- Isaías Alves, em três níveis (primário, secun-
quisa científica. dário e superior) com uma função comum –
essencialmente formadora – e objetivos peda-
gógicos específicos: alfabetizar, profissionalizar,
A proposta pedagógica formar a elite. A prioridade é o nível elementar
que o Estado deve assumir como sua atribui-
Para Isaías Alves, o grande problema das ção, pois, “uma Nação não pode prescindir dos
sociedades civilizadas é como conciliar a edu- alicerces de uma infância educada no sentido
cação das elites e a educação das massas. A moral de respeito à Pátria”. (ALVES, 1937,
democratização da escola na Alemanha, nos p.34).
Estados Unidos, na Polônia, no Japão, na Fran- Isaías Alves concebe a alfabetização como
ça e no Canadá, onde a educação se generali- um meio e não um fim: serve para formar cida-
zou, trouxe também um rebaixamento dos dãos trabalhadores. As crianças alfabetizadas
padrões de qualidade do ensino. entre os sete e doze anos terão mais probabili-
Estudando as experiências internacionais, ele dade de evidenciar sua capacidade intelectual
verifica que a universalização da escola secun- e vocacional, elevando-se acima do nível social
dária nos Estados Unidos levou à desilusão: em que nasceram e concorrendo para o traba-
geração de desempregados que não conseguem lho industrial e cultural do país.
ingressar nas universidades, que são bastante Alfabetizando as massas, o governo terá
seletivas. A Europa não caiu neste erro e fez mais facilidades na propaganda dos princípios

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políticos, morais, religiosos e higiênicos, trans- gias e o extensivo é mais adaptado ao nosso
mitidos por livros e jornais ou periódicos. Além clima. A escola deve ser ampliada aos mais lon-
disso, alfabetizar é uma forma de descobrir as gínquos rincões do país e o ensino adaptado ao
inteligências brilhantes que também existem nas ambiente. A maior ênfase é para o ensino pro-
camadas sociais consideradas inferiores. Os fissional em todos os níveis: elementar, médio e
professores, no trato diário com o aluno, são superior, particularmente voltado para profissões
capazes de descobrir líderes; mas, para uma da agricultura, pecuária, indústria, comércio e
seleção de talentos bastante justa, devem-se magistério. Denuncia o preconceito existente
utilizar testes que identifiquem a personalidade na mentalidade brasileira, que desqualifica o tra-
total do aluno. É notória a preocupação de Isa- balho manual, como uma herança colonialista
ías Alves com os talentos escondidos nas clas- da sociedade escravista, e elabora todo um dis-
ses pobres: “E quantas dessas crianças dotadas curso no sentido de nobilitar o trabalho manual.
de valor intelectual, que a Pátria não aproveita A expansão do ensino secundário, além da
porque não tem organização escolar para sele- iniciativa federal, poderá contar com instituições
cionar os talentos que nascem e fenecem nas privadas, desde que o governo exerça fiscali-
camadas inferiores da sociedade?” (ALVES, zação criteriosa do funcionamento dos cursos.
1939, p.37). Afirma Alves que, para tornar esse nível de
Este nível de ensino, segundo ele, deve es- ensino eficiente, não são necessárias grandes
tar provido de museus e bibliotecas, programas reformas; bastam pequenas mudanças no âm-
de rádio e de cinema, discotecas, educação téc- bito pedagógico como distribuição das matéri-
nica, estética e musical para os filhos dos ope- as, redução de programas, período escolar mais
rários e mesmo para os adultos. longo e incentivo à expansão de instituições pri-
A dualidade do sistema de ensino se con- vadas, através de um sistema de bolsas para
centra no ensino secundário. Alves propõe um alunos necessitados e de capacidade superior.
curso secundário bastante seletivo, propedêuti- A Escola Normal deve preparar professo-
co (cultura geral e clássica) com sete a oito res primários e secundários e nesse nível de
anos de duração para formar uma elite intelec- ensino, procurará articular os professores de
tual; ao lado de cursos médios especializados, modo que ministrem um ensino integrado e não
destinados ao preparo direto para a vida: co- isolado por cátedras, como se faz no momen-
merciais, técnicos, industriais etc, formando dois to. Propõe uma preparação de professores pri-
sistemas estanques. mários para populações urbanas e rurais e para
Porém, em ambos os sistemas não se pode- as escolas de artífices; de professores secun-
ria perder de vista que a escola é essencial- dários para o ensino ginasial e técnico indus-
mente formadora. O ensino secundário, período trial; e de professores para o ensino superior.
que atende aos adolescentes, além de transmi- É preciso, também, criar uma filosofia da edu-
tir conhecimentos superiores ao nível elemen- cação para ser ensinada na Escola Normal e
tar, imprimir hábitos de raciocínio, atitudes sociais introduzir a Psicologia como a mais importan-
e experiência científica e literária, tem como te das matérias.
finalidade preparar o futuro cidadão para resol- Isaías Alves considera também a Universi-
ver os problemas econômicos, familiares e po- dade indispensável ao progresso da Nação, pois
líticos, e, sobretudo, o caráter moral. “A é a única instituição que não tem interesses
integração de hábitos de trabalho intelectual e econômicos e pode opinar tecnicamente sobre
manual é o fundamento do êxito desse período as necessidades do desenvolvimento. É função
de educação”. (ALVES, 1941, p.44). da Universidade, além da transmissão, a pes-
A proposta de Isaías Alves prevê uma es- quisa e a produção do conhecimento. Pensa o
cola de ensino extensivo, com os dias escola- nível universitário segundo o modelo de Cida-
res mais curtos e o ano letivo mais longo, pois des Universitárias, inspirado no Columbia Uni-
considera que o ensino intensivo esgota as ener- versity, onde a vida universitária cria vida social,

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Isaías Alves de Almeida e a educação na Bahia

científica, literária e até religiosa, de onde saem que devem ser intensificados nos dois últimos
os líderes da Nação. Para ele: anos do secundário. A parte teórica da edu-
O Brasil, pela má influência positivista, tardou cação cívica inclui o conhecimento da realida-
muito em criar sua Universidade e agora carece de brasileira (pobreza da população, o precário
de quadros estruturais para conduzir o desen- estado sanitário, atraso cultural etc), o que jus-
volvimento das várias atividades cívicas, indus- tifica a mobilização para a Reconstrução Na-
triais, comerciais, militares, e políticas, no sentido cional – conforme propunha o Estado Novo –
da formação do grande todo que é o tecido da e o conhecimento dos deveres e dos direitos
Pátria. (ALVES, 1937, p.170)
dos cidadãos; além disso, é importante ensi-
Também no nível universitário o ensino se- nar noções de nutrição e de cuidados com a
ria diferenciado e Alves idealiza uma Universi- saúde. A parte prática da educação cívica
dade do Trabalho, voltada para a formação abrange o culto à bandeira, a manifestação da
profissional, inclusive no meio rural, além das fé patriótica – através da entoação cotidiana
tradicionalmente existentes. dos hinos – e exercícios físicos, para o que o
Em termos de conteúdos curriculares, o eixo governo deve instalar campos e quadras es-
para todos os níveis de ensino é a Educação portivas nas cidades e em suas proximidades.
Moral e Cívica. A Educação Moral é, em últi- A educação cívica espelha-se no modelo mili-
ma instância, uma educação religiosa. Defen- tar e, também, recruta entre os militares seus
de a obrigatoriedade do ensino religioso nas professores.
escolas, pois entende que os ensinamentos éti- A arte é introduzida no currículo como um
cos laicos não convertem a alma e o coração: a mecanismo de formação da criança, no sentido
adoção de uma filosofia de vida só se daria pela de despertar (ou formar) sua sensibilidade, par-
via da crença, da religiosidade e da fé. Apenas ticularmente no que diz respeito à espiritualida-
a educação religiosa é capaz de formar inte- de; tem, portanto, um objetivo pedagógico claro
gralmente o ser humano porque, além de propi- de formação do desenvolvimento humano e
ciar uma compreensão abrangente da vida, permeia todo o trabalho do professor, desde a
conduz a uma postura ética alicerçada no raci- sua apresentação pessoal até a linguagem em
ocínio e em princípios de conduta pelo coração. sala de aula. A arte deve, inclusive, estar pre-
Assim, as crianças estariam formadas no seu sente na construção das escolas, no cuidado com
raciocínio e na sua emocionalidade. a estética dos edifícios.
Embora católico fervoroso, Isaías Alves Para a formação da normalista, o aspecto
admite a liberdade religiosa nas escolas, mas técnico de maior ênfase é a Psicologia. Isaías
no âmbito das religiões monoteístas e ociden- Alves acredita que todo trabalho pedagógico
tais. Apesar de não expressar claramente que sofre o influxo de resultados de investigações
religião as escolas devem adotar, as referênci- científicas. Ressalta a importância da Psicolo-
as constantes a um só Deus e a Cristo único, gia, ciência que, segundo ele, ocupa lugar privi-
permitem inferir que a liberdade religiosa esta- legiado nos currículos de Escolas Normais dos
ria restrita às religiões cristãs. A educação re- povos “civilizados”, servindo de fundamento
ligiosa tem na catequese seu padrão de para as demais matérias. Isaías Alves preten-
referência e, muitas vezes, as catequistas são de que a Psicologia Educacional se articule a
admitidas como colaboradoras das escolas. outras cadeiras do currículo e vá proporcionan-
A educação cívica é espelhada na educa- do subsídio às demais, o que indica que a Psi-
ção militar, pois Isaías Alves considera impos- cologia é uma disciplina transversal e do núcleo
sível manter qualquer que seja a estrutura da formação do professorado.
social sem o apoio da ordem militar, o que não A melhor pedagogia é a que se opõe aos
significa ser militarista. Vê a instrução militar excessos, tanto os do rigor disciplinar do pas-
com grande valor pedagógico, se desenvolvi- sado, como aos extremismos de liberdade do
da em cursos sistemáticos, teóricos e práticos, presente. A disciplina esclarecida é a do equi-

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líbrio entre a espontaneidade do aluno e o dis- A progressão do aluno deve ser avaliada pelo
ciplinamento do professor. O professor deve conjunto do seu trabalho durante o curso e não
ter um espírito científico, buscar aprender e só pelo exame final.
investigar seu trabalho, observando, por exem- Um que fez suficiente esforço é inferiormente
plo, que métodos de leituras são os mais efi- dotado ou teve contra si condições negativas
cazes; que ambiente (espaço físico, horário de saúde pessoal ou da família, deverá ser pro-
etc.) melhor favorece a assimilação pelo alu- movido, contanto que no ano imediato haja cui-
no; qual a melhor distribuição de alunos em dado da consolidação de sua aprendizagem.
classe; qual o efeito dos castigos; que atitudes Outro que demonstrou desinteresse pelo estu-
do, a despeito de boas condições intelectuais,
do professor influem nos resultados da apren-
físicas e sociais, deve se compelido a repetir a
dizagem etc. Esse conhecimento é dado pela matéria, a fim de adquirir hábitos de trabalho efi-
Psicologia que estuda as leis da aprendizagem, ciente. (ALVES, 19336, p.179).
do trabalho mental, das relações corpo-men-
te, “das condições físico-psíquicas da vonta- A atuação dos técnicos deve ser rigorosa-
de”, do caráter, das habilidades manuais, da mente baseada em pesquisas educacionais, cujo
capacidade artística, enfim, a importância do escopo abrange desde os inquéritos para diag-
estudo da Psicologia reside, sobretudo, em ver, nósticos até as investigações psicopedagógica,
cientificamente, as condições que tem a cri- através de testes.
ança para aprender. Em síntese, a proposta pedagógica de Isaí-
O aluno é o foco do ensino e deve ser con- as Alves prevê como eixo curricular a Educa-
siderado de forma ampla: QI; conhecimentos ção Moral e Cívica, num sistema de ensino
adquiridos no lar; disponibilidade de bibliotecas; diferenciado conforme objetivos pedagógicos
acesso a revistas; conversa com amigos; rela- específicos, adaptados ao ambiente da escola,
ções familiares; acesso à música (ALVES, tendo como mecanismo de gestão da organiza-
1937, p.101); além das próprias condições so- ção escolar os instrumentos da Psicologia Ex-
ciais da circunscrição da escola, da nacionali- perimental.
dade e da etnia do aluno. A motivação é a base
do trabalho escolar – seja qual for a escola psi- Considerações finais
cológica adotada – e o centro dessa questão é
o professor, a liderança da classe. É importante identificar em Isaías Alves,
No âmbito pedagógico, a proposta de ges- como representante do pensamento conserva-
tão tem como ponto chave a homogeneização dor, os elementos constitutivos da brasilidade:
de classes. A organização escolar perfeita, vi- a formação étnica brasileira como o marco sim-
ável, eficiente e produtiva das classes é a ho- bólico para a nacionalidade que, apesar de as-
mogeneização e, para isso, o único critério sumir uma nova identidade representada pelo
democraticamente aceitável é o psicológico: in- caboclo, legitima-se pela Tradição. O progres-
teligência, vontade, emocionalidade, conforme so econômico, integrador e nivelador das regi-
o padrão americano, cuja referência teórica é ões, que tem como agentes (leia-se, mão-de-
Terman. A atuação dos técnicos deve ser rigo- obra) tanto os imigrantes europeus, como os
rosamente baseada em pesquisas educacionais, nordestinos que devem ser educados para tal.
cujo escopo abrange desde os inquéritos para E, enfim, uma ordem social que, em síntese, é a
diagnósticos até as investigações psicopedagó- “meritocracia”, cujo mérito é constituído pelo
gica, através de testes. Os testes de inteligên- conjunto dos talentos inatos e a formação mo-
cia devem ser aplicados individualmente e requer ral adquirida via educação.
muito cuidado na tradução e na administração. A distinção pelo mérito pessoal, o altruísmo
Os testes de aproveitamento servem para ava- pelo bem-comum (resumido na idéia de Pátria)
liação coletiva, de grupo ou classe. Nesse as- e o apostolado cívico são os valores que cre-
pecto, cabe destaque a promoção do aluno. denciam os indivíduos para compor a elite diri-

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 125-140, jul./dez., 2005 139
Isaías Alves de Almeida e a educação na Bahia

gente. E tanto os agentes econômicos como as doxo entre expansão e qualidade de ensino e a
elites dirigentes são resultantes da missão edu- valorização do magistério ainda estão longe de
cativa. uma resolução satisfatória.
A Educação, único mecanismo capaz de Se, ainda, for levado em conta que a “me-
formar uma nova alma para a Nação, além de ritocracia” é, para muitos, um ideal desejável
ideologizante, está a serviço do Estado forte e para a Educação (como, por exemplo, para
é estratégica para a Reconstrução Nacional. aqueles que, nos debates sobre a cota de va-
Apesar desse papel fundamental, Isaías Alves gas para os afros-descendentes se posiciona-
não tem uma concepção salvacionista nem da vam contra as cotas, alegando o perigo do
educação, nem da escola. A nova Nação far- rebaixamento do nível de ensino), e que o atu-
se-á pela triangulação entre Estado, Exército e al sistema de avaliação escolar está fortemente
Igreja e, por isso, a vocação militar, a religiosa marcado pelo critério de mérito (agora equi-
e a docente estão no mesmo patamar de im- valente a desempenho), pode-se dizer que o
portância para a nova ordem social. pensamento conservador tem heranças bas-
Se, por um lado, as proposições elitistas e tante presentes, apesar do consenso democrá-
conservadoras de Isaías Alves são, hoje em dia, tico nos discursos políticos. Ao contrário, a
indefensáveis, ante os ideais democráticos da importância social e o respeito das autorida-
sociedade contemporânea, por outro, as gran- des para com o professorado, sonhado por Isa-
des questões educacionais postas por ele, como ías Alves, está completamente esquecido...
a erradicação do analfabetismo, o falso para- Que pena!

REFERÊNCIAS

ALVES, Isaías. Problemas de educação. Salvador: A Nova Graphica, 1931.


_____. Os testes e a reorganização escolar. 2. ed. aumentada. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,
1934.
_____. Técnica e Política Educacional. Rio de Janeiro: Revista Infância e Juventude Editora, 1937.
_____. Educação e brasilidade: idéias forças do Estado Novo. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1939.
_____. Estudos objetivos de educação. 2.ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941. (1.ed.,
1936).

Recebido em 27.04.05
Aprovado em 08.08.05

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Célia Rosângela Dantas Dórea

ESCOLA PLAYGROUND NO RIO DE JANEIRO, DF (1931-1935):


A GÊNESE DA ESCOLA PARQUE DA BAHIA

Célia Rosângela Dantas Dórea*

RESUMO

Este artigo tem como objetivo demonstrar que o modelo Escola Playground,
construída no Rio de Janeiro - DF, à praça Cardeal Arcoverde, em Copacabana,
no início da década de 1930, foi o embrião do modelo Escola Parque, construído
em Salvador – Bahia, no período de 1947 a 1951, quando Anísio Teixeira foi
secretário de Educação e Saúde daquele estado. Texto que se originou da pesquisa
desenvolvida durante o curso de doutorado, que tinha como foco a organização
do espaço nos modelos de escolas idealizados por Anísio Teixeira durante a sua
gestão à frente da Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal (1931-
1935), à época o Rio de Janeiro. Apesar de surgir como proposta circunstancial,
que visava conciliar dificuldades técnicas e econômicas, esse tipo de escola se
firmaria como a solução ideal para o problema da educação integral e serviria de
base para a concepção de novos modelos de escola a partir de então.
Palavras-chave: Anísio Teixeira – Edificações Escolares – Escola Parque –
Escola Playground

ABSTRACT

PLAYGROUND SCHOOL IN RIO DE JANEIRO, DF (1931-1935):


GENESIS OF BAHIA PARK SCHOOL
This essay has the objective demonstrating that the model Playground School,
built in Rio de Janeiro – DF, at Cardeal Arcoverde Square, in Copacabana, in
the beginning of the 1930’s, was the source of Park School model, built in
Salvador – Bahia, from 1947 to 1951, when Anísio Teixeira was secretary of
Education and Health State from there. It began with the research developed
in doctorate’s course, whose focus was in organization of space at school
models idealized by Anísio Teixeira during his administration at Director’s Office
of Public Education at Federal District (1931-1935), that time Rio de Janeiro.
Although arising as circunstantial purpose, which aimed at conciliating technical
and economical difficulties, this type of school would be settled as ideal solution
for the problem of entire education and it would serve as basis for conceiving
new school models ever since.
Keywords: Anísio Teixeira – Scholar Buildings – Park School –Playground
School

* Doutora em Educação: História, Política, Sociedade - PUC/SP. Professora Titular da Universidade do Estado da
Bahia – UNEB, Campus de Teixeira de Freitas. Endereço para correspondência: UNEB, Departamento de Educação -
Campus X, Avenida SS, s/n, Jardim Caraípe – 45995.000 Teixeira de Freitas/BA. E-mail: vcdorea@ig.com.br

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Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia

Introdução O plano de edificações escolares


para o Rio de Janeiro, DF (1931-
Este artigo tem como objetivo demonstrar 1935).
que o modelo Escola Playground, criado no Rio
de Janeiro, no início da década de 1930, foi o Em 15 de outubro de 1931, quando assumiu
embrião do modelo Escola Parque, construída a Diretoria da Instrução Pública do Distrito
na Bahia durante a década de 1950, pelo me- Federal, o nome de Anísio Teixeira ainda não
nos no que diz respeito à concepção pedagógi- despertava ressonância nacional, mas, segun-
ca e à organização de espaço presentes nas do Lima (1978), já se tornara bem conhecido
duas propostas. Foi elaborado a partir da pes- nos círculos dos educadores.
quisa de doutorado, intitulada “Anísio Teixeira Após a Revolução de 30, Anísio chegara ao
e a arquitetura escolar: planejando esco- Rio de Janeiro “sem trabalho nem emprego”,
las, construindo sonhos” 1 , cujo foco foi a conforme suas próprias palavras em entrevista
organização do espaço nos modelos de esco- a Odorico Tavares (1992), 2 mas levava consi-
las idealizados por Anísio Teixeira durante a go a convicção de poder realizar “um progra-
sua gestão à frente da Diretoria de Instrução ma de luta pela educação no Brasil” e foi “logo
Pública do Distrito Federal (1931-1935), à épo- chamado para servir à educação no campo fe-
ca o Rio de Janeiro. deral, primeiro, e depois no Distrito Federal”
A concepção de uma proposta arquitetôni- (ROCHA, 1992, p.193).
ca específica para a escola, no início dos anos Naquele mesmo ano, Anísio foi convidado
30, implicava numa nova conformação do es- pelo prefeito Pedro Ernesto a assumir a Dire-
paço escolar e possibilitava um novo modo de toria da Instrução Pública do Distrito Federal,
ordenação das práticas e dos hábitos escolares onde “teve a oportunidade de conduzir impor-
ali desenvolvidos. Os prédios escolares implan- tante reforma educacional (...) que atingiu des-
tados eram constituídos de programas arquite- de a escola primária à escola secundária e ao
tônicos distintos (tipos Mínimo, Nuclear, ensino de adultos, culminando com a criação
Platoon de 12, de 16 e de 25 classes e de uma universidade municipal, a Universidade
Playground ou “escola-parque”) e foram ide- do Distrito Federal” (NUNES, 1999, p.56).
alizados de modo a atender às exigências das Por essa época, havia escolas de toda or-
modernas conquistas pedagógicas e dos novos dem no Rio de Janeiro, e a transformação ime-
hábitos de higiene que a escola passava a exi- diata desse quadro era uma tarefa impossível.
Urgia, portanto, a implementação de “progra-
gir a partir de então.
mas desiguais para situações desiguais”. O ad-
Dessa forma, modificada a função da esco-
ministrador escolar devia se colocar diante da
la, alterava-se também a demanda por um novo
situação real da comunidade, “levando tanto em
tipo de edifício especialmente adaptado aos fins
conta a sua geografia, quanto a sua humanida-
dessa nova educação. A organização do espa-
ço escolar alterava-se, assim, conforme a mo-
1
Vale ressaltar que o contato inicial com a obra de Anísio
dificação dos objetivos dessa nova escola
Teixeira e a opção por estudar, preliminarmente, a
pública. E para uma nova educação, uma nova organização espacial da Escola Parque, deu-se em função da
escola. O prédio tinha de se transformar: já não minha participação no projeto Memória da Educação na
Bahia, implementado por um grupo de professores da
se tratava da simples sala de aula, mas da com- Universidade do Estado da Bahia, que conta com o
binação de todo um conjunto de ambientes. Da envolvimento do Campus de Salvador (Mestrado em
Educação e Contemporaneidade) e de diversos campi do
arquitetura escolar esperava-se, agora, que pu- interior.
desse refletir um projeto educacional que se 2
Odorico Tavares era, então, diretor dos Diários Associados
mostrava novo, moderno. Uma arquitetura que, da Bahia. A entrevista foi publicada no Diário de Notícias
da Bahia, em 06/01/1952. Segundo Rocha (1992), trata-se
pela sua forma, pudesse refletir a sua função: de uma das poucas oportunidades em que Anísio Teixeira
educar. fala tanto e tão profundamente de si mesmo.

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Célia Rosângela Dantas Dórea

de”, e efetivar apenas os planos que estives- de plano, de organização e de métodos” torna-
sem de acordo com as condições materiais e va-se indispensável. Dentre essas necessida-
espirituais do meio sobre os quais teria de agir. des:
(TEIXEIRA, 1935, p. 106). ... ocupa lugar predominante, porque é indispen-
Naquele ano, para uma população escolar sável a todos os demais planos de ensino pro-
mínima (crianças de 6 a 12 anos) de 196 mil priamente dito, o plano de edificações escola-
indivíduos, só existiam escolas para 85 mil cri- res. Plano de distribuição, para que se possa
anças, isto é, para menos de 45%. Esse fato convenientemente servir a toda a população es-
era agravado pelas condições em que recebi- colar; e plano do edifício, para que este compor-
te a execução dos planos de ensino e permita o
am instrução as crianças que freqüentavam as
máximo de eficiência, com o mínimo de dispên-
escolas. E ainda pior, dadas as dificuldades en- dio. (TEIXEIRA, 1935, p.194 e 1997, p.239).
contradas no acesso à educação escolar, era a
idéia amplamente disseminada de que qualquer Assim, além da preocupação com a forma-
educação ou qualquer escola serviria, desde que ção do professor, as edificações escolares – as
ensinassem a ler, escrever e contar. (TEIXEI- instalações físicas da escola – passaram a cons-
RA, 1932). tituir, nas reformas educacionais implementa-
Em novembro de 1932, em sua coluna das por Anísio Teixeira, o marco fundamental
“Commentario”, no Diário de Notícias, Cecí- que caracterizaria todas as suas gestões admi-
lia Meireles (1932) afirmava que as escolas do nistrativas. Em suas três administrações públi-
Distrito Federal representavam, ainda, “um triste cas, na área educacional, seja como inspetor
índice” e, numa grande parte, eram “um ates- geral do Ensino da Bahia (1924-1928), seja
tado doloroso da nossa pobreza, e, conseqüen- como diretor da Instrução Pública do Distrito
temente, do retardamento a que estaremos Federal-RJ (1931-1935), seja ainda como se-
condenados se esse estado de coisas não evo- cretário de Educação e Saúde do Estado da
luir de modo a permitir a eficiência de ação ain- Bahia (1947-1951), Anísio Teixeira sempre en-
da não conseguida” (MEIRELES, 1932, p. 6). frentou o problema da escassez da educação
Naquele momento, Anísio Teixeira encon- pública oferecida à população. Talvez por isso
trava-se empenhado em resolver o problema tenha privilegiado, em todos esses momentos, o
das edificações escolares no Distrito Federal e planejamento e a organização das edificações
acreditava que para a realização de sua obra escolares, principalmente em relação à escola
educacional, necessariamente precisava dotar primária.
a escola de condições materiais, pois, segundo No caso do Rio de Janeiro, considerando a
suas convicções, “sem instalações adequadas, extensão do problema e a impossibilidade de
não poderia haver trabalho educativo”, por isso, resolvê-lo em um só período administrativo,
o prédio, base física e preliminar para qualquer adotou-se uma solução progressiva e gradual:
programa educacional, tornava-se indispensá- a construção de um plano geral diretor das edi-
vel para a realização de todos os demais planos ficações escolares e um programa anual de
de ensino (TEIXEIRA, 1935, p.202). construções, a ser desenvolvido no período de
Para ele, enquanto as demais instituições 10 anos. Traçado o plano geral, que deveria
exerciam “ação educativa sem plano definido e servir de parâmetro para a localização de qual-
sem controle de resultados”, a escola era, tão- quer edifício escolar da cidade, passou-se ao
somente, “a instituição conscientemente plane- programa anual de construções, dividido em dois
jada para educar” (TEIXEIRA, 1997, p. 255). períodos de cinco anos: o primeiro, o plano mí-
Ele considerava que, numa sociedade em cons- nimo de construção, deveria ser realizado até
tante transformação, onde a educação passa a 1938; o segundo, dando continuidade ao pro-
ser uma exigência de todos, e o sistema de en- grama de construções, iria até 1942, dentro das
sino passa a ser um ensaio planejado e organi- previsões do plano regulador. O plano mínimo,
zado de “educação em massa”, “a necessidade que visava atender de forma mais imediata à

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Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia

população escolar atual, em suas linhas gerais, posta inovadora, o sistema escolar deveria fun-
compreendia as seguintes etapas: 16 ampliações cionar em dois turnos, para cada criança: no
de próprios municipais existentes, que ficariam primeiro turno, esta receberia, “em prédio ade-
com 306 salas de aula; 74 edificações novas, quado e econômico” (escolas nucleares ou es-
com o tipo médio de 25 classes, que ficariam colas-classe), “o ensino propriamente dito”; no
com 1.431 salas; e 25 prédios que poderiam ser segundo, “em um parque escolar aparelhado e
aproveitados, com 219 salas de aula. Assim, desenvolvido” (escola-parque),3 “sua educação
dentro de cinco anos, executado esse plano de propriamente social, a educação física, a edu-
construção, haveria 1.956 novas salas de aula cação musical, a educação sanitária e a assis-
que, funcionando em dois turnos, comportari- tência alimentar”. Dessa forma, as duas
am 156.480 alunos matriculados nas escolas pú- naturezas das edificações escolares se comple-
blicas do Distrito Federal – ou seja, aproxima- tariam e harmonizariam, “integrando-se em um
damente 80% das crianças que, estimava-se, todo equivalente ao das melhores escolas mo-
estavam em idade escolar em 1932 (TEIXEI- dernas do mundo” (TEIXEIRA, 1935, p.199).
RA, 1935, p.198). Assim, em atendimento às recomendações
do plano, “os prédios foram construídos em con-
dições de material e de projeto, tão modernos e
Os modelos de escolas projetados econômicos quanto possível”, e obedeciam a
e construídos no Rio de Janeiro cinco tipos principais, de acordo com seus pro-
gramas arquitetônicos, projetados pelo arquite-
Para a viabilização do plano mínimo, algu-
to-chefe Enéas Silva, da Divisão de Prédios e
mas alterações tiveram que ser realizadas, prin-
Aparelhamentos Escolares (TEIXEIRA, 1935,
cipalmente quanto às grandes concentrações
p.201-202 e 1997, p.245-246).4
escolares. Em decorrência de “dificuldades de
A escola tipo Mínimo, com duas salas de
terreno, de localização, de condições do prédio,
aula e uma sala de ateliê e oficina, destinava-se
de economia e de programa educacional”, o
a regiões de reduzida população escolar.
plano de construções escolares foi adaptado às
A escola tipo Nuclear ou “escola-classe”
áreas disponíveis. “Conseguir-se o terreno bom
dispunha de 12 salas de aula, além de locais
e bastante, a localização adequada, o prédio
apropriados para administração, secretaria e
perfeito e o programa educacional rico e vasto
biblioteca de professores. As escolas deste tipo,
– tudo, em um conjunto ideal – é nada menos
constituídas exclusivamente de salas de aula
que impossível”. Cumpria encontrar soluções
comuns, devido à sua finalidade de ensino, de-
em que se contrabalançassem as deficiências
veriam ser complementadas com as atividades
de cada um desses elementos, sem diminuir,
sociais, oferecidas no parque escolar, em um
“quanto ao alcance e eficiência”, as condições
outro prédio e horário.
recomendáveis para a escola, de modo a “apro-
Os outros três tipos de prédios escolares
veitar os maus terrenos, as localizações medío-
obedeciam, em termos de organização, ao sis-
cres, a pobreza das construções, a redução
tema administrativo Platoon, constituído de
forçada do programa educativo” (TEIXEIRA,
salas de aula comuns e salas especiais para
1935, p.199).
auditório, música, recreação e jogos, leitura e
Nessas circunstâncias, em sua administra-
ção no Rio de Janeiro (1931-1935), Anísio Tei-
xeira concebe “um plano que permite essa feliz 3
Embora não se explicite o termo “escola-parque”, percebe-
se que esta proposta é a mesma que Anísio vai realizar na
combinação”, um “sistema escolar” que conci- Bahia, de 1947 a 1951, quando secretário de Educação e
lia essas dificuldades e prevê edificações de Saúde daquele estado.
4
duas naturezas: “escolas nucleares e parques Enéas teve a colaboração de outros profissionais, como
Wladimir Alves de Souza, Attilio Corrêa Lima, Paulo de
escolares, obrigada a criança a freqüentar re- Camargo Almeida e Raul Penna Firme (cf. SISSON, 1990,
gularmente as duas instalações”. Nessa pro- p.75 e OLIVEIRA, 1991, p.180).

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Célia Rosângela Dantas Dórea

literatura, ciências, desenho e artes industriais. apresenta as plantas baixas e fotografias des-
Seu funcionamento dava-se pelo deslocamento ses modelos de escolas. São plantas padroniza-
dos alunos, em “pelotões” (daí o nome “Plato- das, “plantas tipo”, repetidas em várias escolas,
on”), pelas diversas salas, que eram cativas das com algumas modificações internas e mantidas
disciplinas, conforme horários preestabelecidos, as mesmas características externas. Dão uma
o que, para Oliveira (1991, p.153), permitia “a idéia da distribuição das salas e dos seus res-
maximização do rendimento dos espaços de tra- pectivos fins. Todos os tipos de prédios escola-
balho”. Convém lembrar que Anísio tomou co- res tinham ambientes projetados para abrigar
nhecimento desse sistema nas visitas que fez a as atividades administrativas, o gabinete médi-
diversas escolas nos Estados Unidos, quando co-dentário e as instalações sanitárias para
ficou impressionado com o funcionamento e o ambos os sexos, além das salas de aula comuns.
grau de eficiência dessas escolas. O que os diferenciava era a existência ou não
A escola Platoon de 12 classes era consti- de salas especiais, bibliotecas e auditório (cf.
tuída de seis salas comuns de classe e de seis DÓREA, 2003).
salas especiais (para leitura e literatura, ciênci- Observa-se, nessas plantas esquemáticas,
as sociais, desenho e artes industriais, auditó- que não foram previstas instalações apropria-
rio, música e recreação e jogos e ciências). Foi das para refeitório e anexos (copa, cozinha e
projetada para atender a esse tipo de organiza- serviços). Imagina-se que esses serviços seri-
ção escolar, “com o mínimo de facilidades para am oferecidos nas instalações dos parques es-
o seu programa respectivo” e, juntamente com colares, uma vez que esse tipo de escola tinha,
o tipo “nuclear”, deveria ter por centro o par- entre outras funções, a assistência alimentar.
que escolar na complementação de suas ativi- Esses parques não se concretizaram, e sabe-se
dades (TEIXEIRA, 1935, p. 201). que, nos diversos tipos de prédios construídos,
A escola tipo Platoon de 16 classes com- foram adaptados ambientes para alojar aquelas
punha-se de 12 salas comuns de classe e de instalações, com a utilização, em alguns casos,
quatro salas especiais para auditório, música, da área dos terraços.
recreação e jogos, ciência e ciências sociais. É importante ressaltar que, apesar das inú-
Este modelo de prédio permitia o desenvolvi- meras referências ao parque escolar (ou esco-
mento de um programa de educação elemen- la-parque) como complemento aos demais tipos
tar, enriquecido com o ensino especial de de escola, no relatório de 1935 não existe regis-
ciências, artes e recreação. Segundo Teixeira tro de sua planta baixa nem indicação de que
(1935, p. 201), bastava-se a si mesmo, “possu- tenha sido construído – fato que, na prática,
indo todas as demais dependências para o fun- impossibilitou a permanência da criança na es-
cionamento de um verdadeiro instituto de cola durante os dois turnos, como fora previsto
educação”, mas ganharia sobremodo com o uso inicialmente pelo plano. Entretanto, alguns indí-
do parque escolar. cios apontam para uma escola construída na
A escola Platoon de 25 classes reunia 12 Praça Cardeal Arcoverde, em Copacabana,
salas comuns de classe, 12 salas especiais, dis- hoje Escola Dom Aquino Corrêa, como exem-
tribuídas em pares para cada especialidade, am- plar de parque escolar construído no Rio de
plo ginásio e todas as demais dependências de Janeiro, durante a gestão de Anísio Teixeira.
uma escola de grandes proporções. Era um Ao final de 1935, época da exoneração de
prédio completo, “com todas as instalações Anísio Teixeira da então Secretaria de Educa-
para o funcionamento regular”, e perfeitamente ção, o Rio de Janeiro contava com 28 novos
adequado ao sistema Platoon (TEIXEIRA, prédios escolares, construídos no curto período
1935, p. 201). de 1934 a 1935. A seguir, a relação completa
O relatório Educação pública: administra- dessas escolas, com a devida atualização, com
ção e desenvolvimento (TEIXEIRA, 1935) base na atual rede física escolar municipal e

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Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia

estadual.5 Essas escolas, de acordo com o pro- e em Vila Isabel (SILVA, 1936). O arquiteto
grama arquitetônico adotado, ficaram assim dis- exibe um desenho da fachada do edifício prin-
tribuídas: 12 escolas do Tipo Nuclear de 12 cipal desse estabelecimento e define o que
classes (Ceará, Chile, Cócio Barcellos, Escola seriam os “parques-escolares”:
Estadual Infante Dom Henrique – antiga Gene- São tipos especiais de PLAYGROUNDS instala-
ral Trompowsky, Honduras, Nicarágua, Pará, dos fora do limite de ação de cada prédio escolar
Paraguai, Paraná, Pernambuco, Santa Catarina em condições, porém, de acesso e capacidade
e Venezuela); uma escola do Tipo Nuclear de 8 suficiente para atender, em dois turnos, aos alu-
classes (Portugal); cinco escolas do Tipo Plato- nos de três ou quatro escolas primárias situadas
on de 12 classes (Bahia, Mato Grosso, México, em zonas circunvizinhas. Esses parques-escola-
res, localizados em terrenos ou grandes praças
Paraíba e Pedro Ernesto); duas escolas do Tipo
de área superior a 10.000 mqs. [m²], com adminis-
Platoon de 16 classes (Escola Técnica Estadu- tração e direção própria, destinam-se exclusiva-
al Visconde de Mauá e São Paulo); três escolas mente às finalidades especializadas de educa-
do Tipo Platoon de 25 classes (Argentina, Ge- ção física, recreação e jogos, educação social e
túlio Vargas e Rio Grande do Sul); duas escolas artística e jardim de infância, dispondo para tal
do Tipo Mínimo de três classes (Estácio de Sá e fim das seguintes instalações: estádio para con-
Humberto de Campos); uma escola do Tipo Es- centração e pista de corrida; 14 pequenos cam-
pos para voleyball; suítes completas de apare-
pecial de seis classes (Machado de Assis); um lhos, deslizadores, jinglegim [sic], balanços,
acréscimo de 12 classes (Conde de Agrolongo) gangorras, etc.; campos para jardim de infância
e uma escola-parque do Tipo Playground (Dom com wading pool [piscina para crianças peque-
Aquino Corrêa). nas] e caixas de areia, assim como arborização e
pavimentação adequada a cada finalidade; um
edifício principal dentro do ambiente do
Escola Playground: a gênese da Es- playground com instalações apropriadas para
cola-Parque da Bahia direção geral, serviço médico e fichamento para
controle de educação física, auditório e palco,
O tipo de escola Playground, ou “parque- ginásio, banheiros, vestiários e instalações sa-
nitárias para ambos os sexos, sala de música,
escolar”, teve um único exemplar construído na jardim de infância e biblioteca, salas para clubes
cidade do Rio de Janeiro. A primeira indicação escolares e sala de projeção; terrasses-jardins
a que tive acesso sobre a construção desse tipo (SILVA, 1936, p.15).
de escola no Distrito Federal foi o trabalho de
A escolha de Copacabana para a localiza-
Beatriz de Oliveira, que apresenta “plantas
ção desse primeiro parque escolar podia ser
modificadas”, na realidade croquis ilegíveis, do
justificada só pela grave deficiência de escolas
primeiro e do segundo pavimentos e da cober-
naquele distrito – isto, se não se quisesse consi-
tura dessa edificação (OLIVEIRA, 1991,
p.160). Esses croquis, identificados como per-
tencentes ao Arquivo DMP/SME-RJ, hoje es- 5
Silva (1935) refere-se a 28 prédios construídos e em
tão localizados no arquivo da Diretoria de construção. A lista aqui apresentada compreende as 25
escolas relacionadas no relatório de 1935, todas identificadas
Planejamento e Projeto (DPP) da Empresa na rede atual, e mais três escolas ausentes dessa primeira
Municipal de Urbanização (Riourbe). relação e posteriormente indicadas na pesquisa de Oliveira
Enéas Silva, em artigo publicado em janei- (1991, p. 330): a “Dom Aquino Corrêa”, do tipo
Playground, a “Portugal”, do tipo Nuclear de 8 classes, e a
ro de 1936, faz referência à escola tipo “Doutor Cócio Barcellos”, do tipo Nuclear de 12 classes.
Playground que se encontrava em constru- Atualmente, 26 escolas pertencem à rede municipal, e apenas
duas à rede estadual: a Escola Estadual Infante Dom Henrique,
ção à praça Cardeal Arcoverde, em Copaca-
que funciona no prédio da antiga Escola Marechal
bana, destinada a atender às crianças desse Trompowsky, em Copacabana, e a Escola Técnica Estadual
bairro e do Leme, como a primeira de uma Visconde de Mauá, em Marechal Hermes. As pastas/arquivos
referentes às escolas municipais encontram-se no Arquivo
série de cinco que deveriam ser erguidas em da Diretoria de Planejamento e Projetos (DPP), da Empresa
São Cristóvão, no Centro da cidade, na Tijuca Municipal de Urbanização (Riourbe).

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Célia Rosângela Dantas Dórea

derar a tendência de crescimento de sua popu- propriamente social, a educação física, a educa-
lação escolar e a facilidade de transportes. De ção musical, a educação sanitária e a assistência
acordo com Sampaio (1935, p. 253-255), quan- alimentar (TEIXEIRA, 1935, p.199).
do da elaboração do plano de edificações esco- Nesse relatório, são descritos os cinco ti-
lares, a situação de Copacabana era “angustio- pos de escolas previstos no plano de edifica-
sa”, pois, com uma população em idade escolar ções escolares (Mínimo, Nuclear e Platoon
de aproximadamente 8.500 crianças, contava de 12, 16 e 25 classes), com a indicação do
apenas com duas escolas que ocupavam imó- “parque-escolar” como seu complemento,
veis alugados. Vale lembrar que, no momento mas não existe referência ao tipo
em que a Playground estava sendo implanta- Playground. Essa omissão, de certa forma,
da, Copacabana já contava com duas novas é ilógica, uma vez que foram construídas vá-
escolas do tipo Nuclear, a “Dr. Cócio Barce- rias escolas do tipo Nuclear, às quais, na con-
llos” e a “Marechal Trompovsky”, construídas dição de escolas-classe, era imprescindível o
em conformidade com o plano. uso do parque escolar. A própria relação das
Sabe-se, pelo relato de Anísio Teixeira escolas construídas no Distrito Federal apre-
(1935, p.199), que esse tipo de escola surgiu sentada por Anísio não incluía esta de Copa-
como alternativa para a viabilização de um pla- cabana, do tipo Playground.
no mínimo de construções escolares. Em de- Nas pastas/arquivos da Escola Dom Aqui-
corrência das dificuldades encontradas em no Corrêa, atual designação do referido pré-
relação ao terreno, à localização, às condições dio, encontra-se a “Escritura de contrato
do prédio e ao programa educacional, foram parcial para construção de um prédio tipo
necessárias algumas alterações, principalmen- ‘Play-Ground’, em terreno situado à Praça
te quanto às grandes concentrações escola- Arcoverde, em Copacabana”. O contrato foi
res, que tiveram de ser adaptadas às áreas firmado, em 17 de junho de 1935, pela Pre-
livres cada vez mais reduzidas da cidade, che- feitura do Distrito Federal, representada pelo
gando-se a uma solução que conciliava edifi- Dr. Anísio Spínola Teixeira, diretor geral do
cações escolares de duas naturezas, as Departamento de Educação, e pela Socieda-
“escolas nucleares” e os “parques-escolares”; de Anônima Construtora Comercial e Indus-
devendo a criança freqüentar regularmente as trial do Brasil. Seu valor era de 533:988$521.
duas instalações, em dois turnos diários. Da O prédio seria construído de acordo com as
mesma forma, em Silva (1936, p.15), justifica- plantas e especificações aprovadas pelo pre-
se a criação dos “parques-escolares”: feito, em despacho de 12 de junho de 1935, e
Decorrentes da valorização extraordinária dos as obras estariam concluídas em 10 meses a
terrenos em determinados bairros do Distrito contar da data da entrega do terreno. A pas-
Federal, surgiram, na execução do programa de ta/arquivo contém ainda um orçamento da Ins-
construções escolares da atual administração, petoria de Águas e Esgotos, de 3 de outubro
dificuldades de ordem técnica e econômica para
de 1935, “para o esgotamento do ‘playground’
se dotarem todos os prédios escolares recém-
construídos de campos de recreação e educa- em construção à Praça Cardeal Arcoverde”,
ção física em proporções adequadas às respec- e plantas baixas, cortes e fachadas do edifí-
tivas capacidades. Daí a criação dos Parques- cio principal da escola Playground, em cu-
Escolares (SILVA, 1936, p.15). jas legendas pode-se identificar “Projeto
Também no relatório de 1935, Anísio expli- ‘Playground’/Parque Escolar”, de responsa-
cava o funcionamento desse novo sistema: bilidade do engenheiro-arquiteto Enéas Silva.
Embora sem data, percebe-se que correspon-
No primeiro turno, a criança receberá, em prédio
adequado e econômico, o ensino propriamente dem ao mesmo edifício cuja perspectiva da
dito; no segundo, receberá, em um parque esco- fachada foi apresentada em Silva (1936, p.15)
lar aparelhado e desenvolvido, a sua educação (Figuras 1 e 2).

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 141-153, jul./dez., 2005 147
Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia

Figura 1 - Perspectiva de escola tipo Playground, atual Dom


Aquino Corrêa, no Rio de Janeiro.
(Extraído de SILVA, 1936, p. 15)

O prédio construído à praça Cardeal Arco- Teatros e Diversões da Secretaria de Educa-


verde correspondeu, de fato, à parte do “con- ção”. 7 Na pasta/arquivo, com data de 1958,
junto” Playground, ou seja, ao seu edifício existem duas plantas relativas à reforma do
principal, que, segundo Silva (1935, p.15), de- centro de recreação (agora já identificado como
veria abrigar dependências apropriadas para a “Aquino Corrêa”): uma prevê “reparações e
administração geral do parque escolar, salas para instalações”; a outra, “gradil de fechamento do
o serviço médico, auditório e palco, vestiários e térreo e portão”.
instalações sanitárias para ambos os sexos, sala Atualmente, o prédio da “Dom Aquino”, pro-
de música, jardim de infância, biblioteca, salas jetado para abrigar outro tipo de instalação es-
para clubes escolares e sala de projeção. Com colar, não dispõe das condições mais adequadas
a exoneração de Anísio no final de 1935, o pro- para o funcionamento de uma escola, mesmo
jeto do parque-escolar – cuja finalidade era tendo se submetido a diversas reformas e adap-
atender às atividades especializadas de educa- tações de uso. As próprias salas de aula têm
ção física, recreação e jogos, educação social dimensões impróprias (com área em torno de
e artística e jardim de infância – foi interrompi- 30 m²). O espaço físico da Escola desenvolve-
do, e as instalações específicas para estádio, se adjacente ao Teatro Gláucio Gil, cujas insta-
pista de corrida, campos de esportes, etc., que lações foram previstas no projeto original, mas
complementariam o conjunto, não foram cons- que agora funciona de forma independente, ten-
truídas. do-se, portanto, duas instalações em um mes-
Nessas condições, o edifício principal, con- mo edifício.
cluído provavelmente em meados de 1936, pas- Observe-se que, embora essa escola de tipo
sou a ter outra finalidade. Nesse prédio, onde Playground tenha sido parcialmente edificada,
hoje funciona a Escola Dom Aquino Corrêa, dado que apenas o prédio principal foi constru-
existiu antes (não se sabe a partir de quando) ído, e com todas as descaracterizações que so-
um centro de recreação e cultura. A Escola freu posteriormente, o centro de recreação que
Dom Aquino foi criada em 1962 e, de acordo
com nota do jornal O Globo, foi instalada “no
6
local onde funcionava o antigo Centro de Re- Pequena nota incluída na edição de 4/9/62. Cópia no arquivo
da Escola, divulgada em jornal interno comemorativo dos
creação e Cultura (Praça Cardeal Arcover- 35 anos de criação da Escola Dom Aquino (setembro de
de)”. 6 A nota informava ainda: “Ali será 1997). A Escola não dispõe de nenhuma outra informação
mantido, inteiramente separado da escola, o a respeito do prédio.
7
Hoje é o Teatro Gláucio Gil, pertencente ao Estado e
Teatro da Praça, subordinado ao Serviço de independente da escola, embora ocupem mesmo edifício.

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Célia Rosângela Dantas Dórea

aí se instalou, de alguma forma, exerceu fun- às crianças das regiões circunvizinhas partici-
ção semelhante a que havia sido idealizada na pação em atividades de arte, teatro e dança,
proposta de Anísio, uma vez que proporcionava em horários diferentes dos da Escola.

Figura 2 - Planta baixa do 3º pavimento de escola tipo


Playground, atual Dom Aquino Corrêa. (Extraído de arquivo
da Diretoria de Planejamento e Projetos da Riourbe)

A Escola-Parque da Bahia participar desta instituição como conselheiro de


ensino superior. Em 1947, a convite do governa-
Após sua demissão da então Secretaria de dor Otávio Mangabeira, assumiu a Secretaria de
Educação do Rio de Janeiro, Anísio Teixeira afas- Educação e Saúde do Estado da Bahia (1947-
tou-se da vida pública por um período de 12 anos. 1951) e retomou a luta pela causa da educação
Acusado e perseguido politicamente, refugiou- pública em sua terra natal (cf. www.prossiga.br/
se no sertão da Bahia, na região de Caetité, onde, anisioteixeira).
no período de 1935 a 1945, dedicou-se a diver- No relatório de 1949 (TEIXEIRA, 1949), o
sas atividades, como exploração de minério de educador apresenta ao governador da Bahia um
manganês, comercialização de automóveis, tra- balanço da situação em que se encontravam os
dução de livros para a Companhia Editora Naci- serviços educacionais no estado e traça um pla-
onal e correspondência com os amigos. Em 1946, no de atuação específico para o interior e para
aceitou o convite de Julian Huxley, secretário a capital.
executivo da Organização Educacional, Científi- Para o interior, além do sistema de educa-
ca e Cultural das Nações Unidas (Unesco), para ção elementar, com atendimento também para

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 141-153, jul./dez., 2005 149
Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia

a zona rural, planejou um sistema de ensino co anos de curso. E desejamos dar-lhe seu pro-
médio ou secundário, que previa a constru- grama completo de leitura, aritmética e escrita,
ção de centros regionais de educação, lo- e mais ciências físicas e sociais, e mais artes
industriais, desenho, música, dança e educa-
calizados em 10 regiões administrativas, que ção física. Além disso, desejamos que a escola
compreendiam jardim de infância, escola ele- eduque, forme hábitos, forme atitudes, cultive
mentar modelo, escola normal, escola secun- aspirações, prepare, realmente, a criança para a
dária, parque escolar, centro social e de sua civilização (...). E, além disso, desejamos
cultura e internatos. Na capital, o plano es- que a escola dê saúde e alimento à criança, vis-
colar envolvia um sistema de escolas elemen- to não ser possível educá-la no grau de desnu-
tares, seguido de um conjunto de escolas trição e abandono em que vive. Tudo isso soa
como algo de estapafúrdio e de visionário. Na
secundárias de cultura geral e técnica e da realidade, estapafúrdios e visionários são os
escola de formação de professores em nível que julgam que se pode hoje formar uma nação
de ensino superior. Mas, segundo Anísio, as pelo modo por que estamos destruindo a nos-
escolas elementares teriam uma organização sa. (...) Por isso é que este Centro de Educação
especial, constituindo os centros de educa- Popular tem as pretensões que sublinhei. É cus-
ção popular que, localizados na periferia da toso e caro porque são custosos e caros os
objetivos a que visa. Não se pode fazer educa-
cidade, funcionariam como núcleos de arti-
ção barata – como não se pode fazer guerra
culação de bairro, onde as funções tradicio- barata. Se é a nossa defesa que estamos cons-
nais da escola seriam preenchidas em truindo, o seu preço nunca será demasiado caro,
determinados prédios e as de educação físi- pois não há preço para a sobrevivência. (...) Daí
ca, social, artística e industrial, em outros. O esta escola, este centro aparentemente visio-
conjunto compreenderia, assim, escolas-classe nário. Não é visionário, é modesto. O começo
e escolas-parque (TEIXEIRA, 1949). que hoje inauguramos é modestíssimo: repre-
senta apenas um terço do que virá a ser o Cen-
Dos dez centros de educação popular pla-
tro completo. Custará, não apenas os sete mil
nejados inicialmente, só foi possível a constru- contos que custaram estes três grupos escola-
ção de um deles, o Centro Educacional res, mas alguns quinze mil mais. Além disto,
Carneiro Ribeiro (CECR), localizado no bair- será um centro apenas para 4.000 das 40.000
ro da Liberdade, em Salvador. Popularmente crianças que teremos, no mínimo, de abrigar nas
conhecido como “Escola Parque”, transfor- escolas públicas desta nossa cidade
(TEIXEIRA, 1959, p.78-84).
mou-se na obra máxima de seu idealizador e
constituiu-se numa “tentativa de se produzir Anísio esclarece, também, sobre a organi-
um modelo para a nossa escola primária” zação do que ele estava a chamar de “centro
(TEIXEIRA, 1967). de educação popular”:
O discurso de Anísio Teixeira, proferido em A escola primária seria dividida em dois seto-
21 de setembro de 1950,8 por ocasião da inau- res, o da instrução, propriamente dita, ou seja,
guração de três escolas-classe que integrariam da antiga escola de letras, e o da educação,
o conjunto do CECR, é esclarecedor sobre a propriamente dita, ou seja, da escola ativa. No
concepção do Centro, que, segundo ele, era “o setor instrução, manter-se-ia o trabalho con-
vencional da classe, o ensino de leitura, escri-
começo de um esforço pela recuperação, entre
ta e aritmética e mais ciências físicas e sociais,
nós, da escola pública primária” (TEIXEIRA, e no setor educação – as atividades
1959, p. 78-84). socializantes, a educação artística, o trabalho
A construção desses grupos obedece a um pla- manual e as artes industriais e a educação físi-
no de educação para a cidade da Bahia, em que ca. A escola seria construída em pavilhões,
se visa restaurar a escola primária, cuja estru- num conjunto de edifícios que melhor se ajus-
tura e cujos objetivos se perderam nas idas e
vindas de nossa evolução nacional. (...) Dese- 8
Esse discurso é reproduzido em Teixeira (1959, p.78-84 e
jamos dar, de novo, à escola primária, o seu dia 1994, p.172-180) e Eboli (2000, p.4-12), entre outras
letivo completo. Desejamos dar-lhe os seus cin- publicações.

150 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 141-153, jul./dez., 2005
Célia Rosângela Dantas Dórea

tassem às suas diversas funções. Para econo- Com esse tipo de organização, a escola daria
mia tornava-se indispensável que se fixasse ao aluno a oportunidade de participar, como
um número máximo para a matrícula de cada membro da comunidade escolar, de um con-
centro. Pareceu-nos que 4.000 seria esse nú-
mero, acima do qual não seria possível a mani-
junto rico e diversificado de experiências, de
pulação administrativa. Fixada, assim, a popu- modo que ele se sentisse “o estudante na es-
lação escolar a ser atendida em cada centro, cola-classe, o trabalhador, nas oficinas de ati-
localizamos quatro pavilhões, como este, para vidades industriais, o cidadão, nas atividades
as escolas que chamamos de escolas-classe, sociais, o esportista, no ginásio, o artista, no
isto é, escolas de ensino de letras e ciências, e teatro e nas demais atividades de arte”. Des-
um conjunto de edifícios centrais que desig- sa forma, “se a escola-classe se mantinha, em
namos de escola-parque, onde se distribuiri-
am as outras funções do centro, isto é, as ati-
essência, a antiga escola convencional, as con-
vidades sociais e artísticas, as atividades de dições de trabalho na escola-parque iriam fa-
trabalho e as atividades de educação física. A cilitar sobremodo a aplicação dos melhores
escola-classe aqui está: é um conjunto de 12 princípios da educação moderna” (TEIXEIRA,
salas de aula, planejadas para o funcionamen- 1967, p.246-253).
to melhor que for possível do ensino de letras A conclusão desse Centro só foi possível
e ciências, com disposições para administra-
graças ao empenho do próprio Anísio Teixeira.
ção e áreas de estar. É uma escola parcial e
para funcionar em turnos. Mas virá integrá-la Em 1952, ao ser nomeado diretor do Instituto
a escola-parque. A criança fará um turno na Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), via-
escola-classe e um segundo turno na escola- bilizou um convênio de colaboração e assistên-
parque. Nesta escola, além de locais para suas cia técnica com a Secretaria de Educação da
funções específicas, temos mais a biblioteca Bahia para o prosseguimento e a conclusão da
infantil, os dormitórios para 200 das 4.000 cri- obra da “Escola Parque”. Em 1964, com o tér-
anças atendidas pelo Centro e os serviços ge-
mino da construção da escola-classe número 4,
rais e de alimentação. Além da reforma da es-
cola, temos o acréscimo desse serviço de as- o Centro foi dado por concluído, todavia, sem o
sistência, que se impõe, dadas as condições orfanato.
sociais (TEIXEIRA, 1959, p.78-84). Embora Anísio soubesse que não se podia
contestar a necessidade de construir e operar
Esse Centro, cujo projeto arquitetônico fi-
um modelo de escola desse tipo, sabia também
cou a cargo dos arquitetos Diógenes Rebou-
que o Centro de Educação Primária de Salva-
ças, da Bahia, e Hélio Duarte, de São Paulo,9
dor não era algo já definitivamente aceito e em
foi planejado para atender a um grupo de 4 mil
processo de generalização. Era um programa,
alunos, em sua capacidade máxima. O conjun-
uma aspiração em vias de experiência e con-
to foi constituído de quatro “escolas-classe”,
cretização. Segundo ele, para que essa idéia se
compostas tão-somente de salas de aula e de-
realizasse, seria necessário:
pendências para o professor, para atender a
1.000 alunos cada uma, em dois turnos, e uma ... amadurecer o sentimento de que a justiça so-
cial somente será efetiva, num regime livre, com
“escola-parque” para 2 mil alunos em cada tur-
a igualdade de oportunidade educativa, e que
no, com salas de música, dança, teatro, educa- esta somente se há de concretizar com uma es-
ção artística e social, salas de desenho e artes cola que ofereça ao pobre ou ao rico uma educa-
industriais, ginásio de educação física, bibliote- ção que os ponha no mesmo nível ante as pers-
ca, restaurante, serviços gerais e residência ou pectivas da vida (TEIXEIRA, 1962, p.21-23).
internato para as chamadas “crianças abando-
nadas”. O funcionamento se daria em turnos
alternados: enquanto metade dos alunos estava
na escola-parque, a outra metade distribuía-se 9
Ver, a esse respeito, o depoimento de Diógenes Rebouças,
por quatro escolas-classe; ao meio-dia, os dois em Rocha (1992, p.147-154), Duarte (1973) e Teixeira
grupos revezavam-se. (Figura 3) (1967).

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 141-153, jul./dez., 2005 151
Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia

Figura 3 - Esquema de funcionamento do Centro Educacional


Carneiro Ribeiro, em Salvador, BA (extraído de EBOLI, 2000) 10

Concluindo... Arcoverde, em Copacabana, seja, realmente, a


gênese do modelo “escola-classe – escola par-
A escola é que sempre nos dirá o que que” que se concretizou na Bahia, no período
somos e o que seremos. Ela é o índice da de 1947 a 1951, quando Anísio Teixeira foi se-
formação dos povos: por elas se tem a
cretário de Educação e Saúde do estado.
medida das suas inquietudes, dos seus
Apesar de surgir como proposta circunstan-
projetos, das suas conquistas e dos
seus ideais (Cecília Meireles, 1932, p. 6). cial, que visava a conciliar as dificuldades téc-
nicas e econômicas às novas exigências do
Pelo exposto, e diante dos detalhes apresen- programa pedagógico, esse tipo de escola se
tados no texto de Enéas Silva (1936, p.15), dando firmaria como a solução ideal para o problema
conta do funcionamento e da concepção des- da educação integral e serviria de base para a
ses parques-escolares dentro da proposta de concepção de novos modelos de escola a partir
edificações idealizada para o Rio de Janeiro, de então.
Distrito Federal, pode-se admitir que a escola de
tipo Playground construída à praça Cardeal 10
Disponível também em Teixeira, 1962.

152 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 141-153, jul./dez., 2005
Célia Rosângela Dantas Dórea

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Recebido em 30.05.05
Aprovado em 09.08.05

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 141-153, jul./dez., 2005 153
Edivaldo M. Boaventura

ORIGEM E FORMAÇÃO DO SISTEMA ESTADUAL


DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DA BAHIA – 1968-1991

Edivaldo M. Boaventura *

RESUMO

Desde o Século XIX que a administração estadual mantém um ensino superior


voltado, inicialmente, para o setor primário da economia, tendência que persistiu
até 1967. De 1968 a 1971, foram instituídas as faculdades de formação de
professores, respondendo à demanda dos sistemas de ensino em plena expansão
com o aumento dos efetivos escolares. Objetivando a interiorização da educação
superior, o Estado da Bahia instituiu quatro universidades que possibilitaram a
autonomia da educação superior baiana, na sua função de formadoras de
profissionais para o ensino e qualificação de recursos humanos para outros
setores produtivos, cooperando para o desenvolvimento sócio-econômico e
cultural das regiões interioranas onde estão inseridas.
Palavras-chave: Educação superior – Evolução da educação superior na Bahia
– Universidades estaduais

ABSTRACT

ORIGIN AND FORMATION OF THE BAHIA STATE HIGHER


EDUCATION SYSTEM - 1968-1991
Since the 19th century, the state administration maintains a higher education
initially directed to the primary sector of the economy, a trend that persisted up
to 1967. From 1968 to 1971, the schools for teaching formation were instituted,
acting in response to the demand of the education systems in full expansion
because of the increase in the school effectives. Aiming at the expansion of
the higher education to the interior, the State of Bahia instituted four universities
which make possible the autonomy of the Bahian higher education, in its function
of forming professionals for the education and the human resources qualification
to the profit of other productive sectors, cooperating to the socioeconomic and
cultural development of the hinterland regions where they are inserted.
Keywords: Higher education – Evolution of the higher education in Bahia –
State universities.

*
Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia (Ufba), professor da Universidade Salvador (Unifacs) e da
Fundação Visconde de Cairu; Mestre e Ph.D. em Administração Educacional pela The Pennsylvania State University
(Penn State), Doutor e Docente Livre em Direito pela Ufba. Entre suas publicações encontram-se UFBA: trajetória de
uma universidade 1946-1996 (1999); Metodologia da Pesquisa: monografia, dissertação e tese. (2004) Endereço para
correspondência: Rua Dr. José Carlos, 99 Apto. 801. Ed. Parque das Mangueiras, Acupe de Brotas. 40290-040
Salvador-BA. Vide site: www.edivaldo.pro.br. E-mails: boaventura@edivaldo.pro.br /edivaldo@atarde.com.br /
edivaldoboaventura@terra.com.br

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 155-173, jul./dez., 2005 155
Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

1. INTRODUÇÃO saram a nortear esta explanação, levando sem-


pre em consideração a demanda e a oferta de
A discussão de temas e problemas da educa- educação, em termos de formação de pessoal
ção superior estadual projeta a idéia de uma in- de nível superior. Atente-se, por exemplo, para
vestigação que engloba, principalmente, surgimen- a Ufba, criada em 1946 que, embora formada
to, lideranças locais, gestão e atendimento à pelo tradicional processo de reunião de facul-
demanda, não somente pelas universidades, como dades, diversificou a sua oferta para atender à
também por meio das instituições de ensino supe- demanda de geólogos, requerida pela explora-
rior (IES). A análise da criação da Universidade ção e refino do petróleo na Bahia, o que induziu
Federal da Bahia (Ufba) (BOAVENTURA, 1999) à criação da Escola de Geologia, integrada ao
e de suas etapas de crescimento, fundação em Instituto de Geociências com a reestruturação
1946 e reestruturação em 1968, serve de referen- e reforma da Ufba, de 1967 a 1971. Outro caso
cial para a expansão da educação superior no de pleno sucesso foi o surgimento da Escola de
Estado da Bahia. As instituições universitárias se Administração, formando pessoal de nível su-
intensificaram a partir da década de sessenta do perior para os quadros burocráticos do setor
século XX, como a Universidade Católica do Sal- público e para a gestão de empresas emergen-
vador (Ucsal), precisamente, em 1961, seguindo- tes no período, estimuladas especialmente pe-
se das quatro faculdades de formação de profes- los incentivos da Superintendência do Desen-
sores de Feira de Santana, Conquista, Alagoinhas volvimento do Nordeste (Sudene) e do
e Jequié, no final dessa década, e das universida- financiamento do Banco do Nordeste, em apoio
des estaduais nas décadas seguintes. às iniciativas do Centro Industrial de Aratu e
A educação superior pública estadual foi acom- do Pólo Petroquímico.
panhada, ainda na década de cinqüenta do século Pergunta-se então: quais foram os fatores
XX, do surgimento das faculdades particulares, a que determinaram o surgimento e o crescimen-
exemplo da Escola de Serviço Social da Bahia to relativos às universidades estaduais da
(1952), Faculdade Católica de Filosofia e Escola Bahia? Por que a administração estadual en-
Baiana de Medicina e Saúde Pública, integradas trou na oferta de educação superior nos anos
ou agregadas depois à Ucsal quando de sua cria- sessenta, primeiramente com as Faculdades de
ção, concentradas todas na capital. O surgimento Formação de Professores e depois com as uni-
do maior número de instituições de educação su- versidades estaduais? Tem-se como um dos
perior, isoladas e particulares, é relativamente re- motivos a carência de professores com forma-
cente, conforme demonstrou Mônica Araújo (2003). ção superior para os sistemas de educação que
Algumas ainda apareceram nos anos sessenta, como se expandiam, fato que desempenhou e conti-
a Faculdade de Educação da Bahia (Feba), inicia- nua cada vez mais a desempenhar expressiva
tiva da professora Olga Pereira Mettig, uma das pressão e estímulo. O Plano Nacional de Edu-
pioneiras no gênero no país, após a primeira Lei de cação, logo após a Lei de Diretrizes e Bases de
Diretrizes e Bases da educação nacional, de 1961, 1961, e o Salário-Educação aportaram novos
antecedida pela Escola Superior de Estatística da recursos financeiros que fizeram crescer os
Bahia, de 1966. A Escola de Administração de Em- efetivos escolares do ensino fundamental e
presas da Bahia, de 1972, é a origem da Universi- médio, impulsionando a demanda pela educa-
dade Salvador (Unifacs). ção superior.
Há, ainda, outras questões, tais como: Que
condições que impulsionaram o crescimento da
1.1 Questionamentos e perspecti- educação superior nos municípios sedes de re-
vas gião como Feira de Santana, Ilhéus, Itabuna,
Conquista, Alagoinhas, Jequié, Juazeiro e ou-
Em face dessas constatações, procurou-se tros? Essas e muitas outras questões deverão
indagar sobre uma série de questões que pas- ser encaminhadas, enfatizando-se, sobretudo, o

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Edivaldo M. Boaventura

atendimento às necessidades de educação su- lavoura da cana, aquele instituto proporcionou


perior em todo o Estado da Bahia e não somen- instrução agrícola, tendo os seus reflexos na
te na capital, onde se concentra boa parte das crise da economia açucareira na segunda me-
unidades acadêmicas. A documentação utiliza- tade do século XIX, conforme a dissertação
da parte das disposições das políticas expres- de Maria Antonietta de Campos Tourinho
sas na legislação federal, combinadas com as (1982).
políticas estaduais manifestadas em planos, pro- Depois de fundada a Universidade da Bahia,
gramas, na legislação do ensino estadual, e na em 1946, a administração estadual continuou
experiência do autor como secretário da Edu- mantendo a Escola de Agronomia de Cruz das
cação e Cultura da Bahia, nos governos de Luiz Almas e criou a de Medicina Veterinária, pela
Viana Filho (1970-1971) e João Durval Carnei- Lei Estadual n. 423, de 20 de outubro de 1951,
ro (1983-1987). Delineia-se o sistema de edu- no governo Regis Pacheco (1951-1955), sendo
cação superior estadual da Bahia, cuja estrutura secretário de Agricultura Nonato Marques. Em
vai se desenvolvendo entre o final dos anos ses- 1967, as Escolas de Agronomia e Medicina
senta e o começo dos anos noventa, ressaltan- Veterinária passaram a integrar a Universida-
do-se que o referido sistema encontra-se em de Federal. Porém, o Estado da Bahia já man-
pleno funcionamento com quatro universidades tinha a Faculdade de Agronomia do Médio São
que se expandem por todo o território baiano. Francisco (Famesf) desde o governo Lomanto
(BAHIA, 1998). Júnior (1963-1967). Segundo Joston Simão de
Assis (1985), a Famesf foi fundada em 1960,
por um grupo de líderes de Juazeiro, tendo à
1.2 Dois momentos da educação frente Edson Ribeiro, com a denominação de
superior na Bahia Escola de Agronomia de Juazeiro, sendo o seu
primeiro diretor o engenheiro agrônomo João
A administração estadual da Bahia, primei- Marcelino da Silva Neto.
ramente, criou as faculdades de formação de Até março de 1967, a administração esta-
professores e depois as universidades estadu- dual contava apenas com a Famesf, a qual, pas-
ais, dando-se ênfase no presente a esses dois
sa mais tarde a ser gerida pela Secretaria de
momentos significativos. No primeiro, antece-
Educação e Cultura que “empreende esforços
dentes e propostas de educação superior; no
no sentido de fornecer à Escola de Agronomia
segundo, o surgimento das universidades esta-
do Médio São Francisco os recursos necessá-
duais da Bahia.
rios à sua ampliação e reaparelhamento, para
que passe a operar nos moldes recomendados
...” (BAHIA, 1969, p. 72, v.2). Registre-se, ain-
2. ANTECEDENTES E PROPOSTAS
da, que a Famesf, após sua absorção pela ad-
DE EDUCAÇÃO SUPERIOR
ministração estadual da educação, em 1983,
2.1 Educação superior estadual integra-se às unidades formadoras da Univer-
voltada para a agricultura: Agro- sidade do Estado da Bahia (Uneb).
nomia e Medicina Veterinária É importante observar que essas unidades
voltadas para o setor primário da economia não
Ainda no tempo do Império, a educação su- estavam vinculadas à Secretaria de Educação
perior na Bahia já contava, além da tradicio- do Estado da Bahia, criada em 1935; eram in-
nal Faculdade de Medicina, com o Imperial tegradas à Secretaria de Agricultura. É com o
Instituto Bahiano de Agricultura, que depois Planto Integral de Educação e Cultura da
de sucessivas mudanças passou a ser a Esco- Bahia (1969, v. 2) que se pode fixar o momen-
la de Agronomia de Cruz das Almas, integra- to de mudança da área da agricultura para a
da à Secretaria de Agricultura. Vinculado à educação.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 155-173, jul./dez., 2005 157
Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

2.2 Educação superior estadual voltada para o Em atos posteriores, implantaram-se as Fa-
ensino: Faculdades de Formação de Professores culdades em Feira de Santana, Alagoinhas e
Em 1968, o governo Luiz Viana Filho (1967- Vitória da Conquista, criando-se a de Jequié. A
1971), gestão dos secretários Luiz Navarro de educação superior, que então surgia vinculada
Brito (1967-1999) e Edivaldo M. Boaventura às necessidades de formação de professores
(1970-1971), deu início a uma nova estratégia para o ensino médio, integrava-se ao Departa-
de educação superior com a implantação das mento de Educação Superior e Cultura (Desc),
Faculdades de Formação de Licenciados de 1º dirigido pelos professores Luís Henrique Dias
Tavares e Remy de Souza.
Ciclo no Interior com os três cursos de licenci-
A primeira das faculdades a ser instalada,
aturas curtas em Letras, Estudos Sociais e Ci-
em 1968, foi em Feira de Santana. Começou
ências e Matemática. O Plano Integral de
pelo Curso de Letras, com a participação da
Educação e Cultura optou por essas Faculda- professora Joselice Macedo de Barreiro, segui-
des de Formação de Licenciados, que já existi- do do Curso de Estudos Sociais, assessorado
am em Pernambuco, pela criação de uma pela professora Zahidé Machado Neto, em
Universidade Estadual no Sul do Estado e pela 1969, e o Curso de Ciências e Matemática, em
Escola Superior de Educação Física da Bahia: 1970, coordenado pela professora Maria Cris-
A solução teoricamente justificável de aumen- tina de Oliveira Menezes. Instala-se a Facul-
tar na Capital os núcleos existentes de formação dade de Educação de Feira de Santana, assim
pedagógica teriam, na prática, o inconveniente chamada embora não possuísse o curso de Pe-
de deslocar pessoas da região (os desejáveis dagogia. Em 1969, foi ministrada a sua primei-
candidatos ao exercício de magistério no interi- ra aula inaugural. (BOAVENTURA, 1971, p.
or) que talvez não regressassem. Em decorrên- 105-122).
cia dos fatores sumariamente analisados, adotou A Escola Superior de Educação Física da
o Governo do Estado a solução de organizar e Bahia, apesar dos esforços, não foi instalada
instalar Faculdade de Licenciados de primeiro por falta de apoio para as disciplinas da área de
ciclo no interior. A implantação progressiva em Saúde. Do mesmo modo, a projetada Universi-
dade do Sul da Bahia, que agregaria as unida-
diversas cidades prevê para o triênio quatro es-
des universitárias já existentes na região, não
colas. (BAHIA, 1969, v. 2, p. 65-66)
foi implantada, embora fosse tentada a criação
E acerca da universidade, o mesmo Plano
do seu Conselho Diretor. Todavia as quatro
Trienal previu: “Sendo a zona cacaueira aquela
Faculdades de Formação de Professores tive-
que oferece as melhores condições de receptivi-
dade para um empreendimento dessa categoria, ram pleno êxito e expansão. Contando com pro-
optou o Governo pela implantação da Universi- blemas de carências de corpo docente,
dade Estadual em Uruçuca”. (v. 2, p. 69 e 72) encarregou-se o Programa de Pós-Graduação
O Plano Trienal estabeleceu, dentre outras e Pesquisa em Educação, Mestrado, da Ufba,
metas: de ministrar um Curso de Especialização de
- Instalação, no interior do Estado, de quatro Conteúdos e Métodos de Ensino Superior, cur-
Faculdades de Educação para formação de pro- so coordenado pelos professores Giselda San-
fessores de 1º Ciclo do ensino médio (ginásio). tana Moraes e Hermes Teixeira de Melo. A
- Criação da Universidade Estadual situada especialização abrangeu as áreas de Letras,
no Sul do Estado (Uruçuca). Estudos Sociais, Ciências e Matemática, e Edu-
- Implantação de uma Escola Superior de Edu- cação. Para tanto, contou-se com a participa-
cação Física no Estado, sediada em Salvador. ção dos Institutos básicos recém-criados pela
- Equipamento e ampliação da Faculdade de reforma da Ufba.
Agronomia do Médio São Francisco (Famesf). É importante observar a mudança de estra-
(BAHIA, v. 2, 1969, p. 65-66) tégia do governo estadual, em matéria de edu-

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Edivaldo M. Boaventura

cação superior, localizando em municípios ca- sos, aumentaram-se novas unidades de educa-
pitais regionais entidades deste nível de ensino ção superior nos municípios, construindo e con-
para atender, primeiramente, à demanda edu- solidando a Universidade Estadual de Feira de
cacional e, em segundo lugar, responder às ne- Santana e ajudando o crescimento desta cor-
cessidades sociais e econômicas pela formação poração na fase de fundação (1970-1980). A
de quadros profissionais. Os governos seguin- Uefs foi durante dez anos a única universidade
tes, no período abrangido por este estudo, se- estadual.
guiram a mesma política: Antônio Carlos As tabelas 1 e 2 registram os efetivos de
Magalhães (1971-1975; 1979-1983; 1991-1995); alunos universitários, na Ufba e na Ucsal, an-
Roberto Santos, (1975-1979); João Durval Car- tes das universidades estaduais. Os percentu-
neiro, (1983-1987); Waldir Pires – Nilo Coelho, ais de aprovação no vestibular da Ufba
(1987-1991). Completando o número de cur- expressam a demanda de educação superior.

Tabela 1 - Crescimento da matrícula na Universidade Federal da Bahia (1963-1967)

Fonte: Plano Integral de Educação e Cultura. V. 2. p. 57

Tabela 2 - Universidade Católica de Salvador — Alunos matriculados

Fonte: Plano Integral de Educação e Cultura. V. 2. 1969

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 155-173, jul./dez., 2005 159
Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

Do exposto, pode-se deduzir que o sentido 3 - uma faculdade ou universidade, pelas exigên-
da política estadual foi a implementação de nú- cias próprias à condição mesma da educação
cleos de educação superior nas principais capi- superior, concentra laboratórios, bibliotecas e
equipamentos, que mudam e enriquecem a vida
tais regionais do Estado. Por volta dos anos
cultural de uma comunidade urbana do interior
oitenta, pelo menos oito sedes de Regiões Ad- como fator do progresso. (BOAVENTURA, 1987,
ministrativas possuíam faculdades mantidas pela p. 82)
administração estadual, tais como Feira de San-
Para efetivação daquele projeto de univer-
tana, Alagoinhas, Santo Antônio de Jesus, Je-
sidade multicampi, o Plano de Educação e Cul-
quié, Juazeiro, Jacobina, Vitória da Conquista e
tura da Bahia (1984-1987), no governo João
Caetité. Indagou-se, então, como organizar
melhor e mais produtivamente o sistema esta- Durval Carneiro, priorizou a interiorização da
dual de educação superior a fim de que pudes- educação superior:
se responder às exigências da população – A expansão e consolidação da educação superi-
jovem, adolescente e adulta – que necessitava or na esfera estadual se processará, por um lado,
de professores para o sistema estadual de edu- num movimento de interiorização, desconcen-
trando suas unidades de ensino, adequando-o
cação? No particular, é preciso que se atente
às variações e especificidades da relação oferta/
para a escolarização no ensino superior, que na aluno de cada região. Por outro lado, num senti-
Bahia era da ordem de 4,1% (DISTRITO FE- do mais quantitativo, pretende-se uma reorien-
DERAL, Secretaria da Educação e Cultura, tação da oferta de modo a se privilegiar a forma-
DEPLAN, 1982, Apud, BAHIA, 1984, p. 37). ção de professores de 1º grau, em especial para
Por dependência administrativa, a União aquelas áreas mais carentes como pré-escolar,
mantinha todos os seus cursos de graduação alfabetização de crianças e adultos e educação
continuada. (BAHIA, Plano de Educação e Cul-
em Salvador, capital do Estado da Bahia, com
tura 1984-1987, 1984, p. 92)
exceção da Escola de Agronomia, no interior,
em Cruz das Almas. Inversamente, a adminis- Para o conhecimento das estruturas acadê-
tração estadual administrava quase todos os seus micas, muito serviu a experiência de reforma da
cursos, nos centros urbanos do interior, excetu- Universidade Federal da Bahia, nos reitorados
ando o Centro de Educação Técnica da Bahia Miguel Calmon e Roberto Santos, especialmen-
(Ceteba), em Salvador, onde se concentravam te quanto ao planejamento e à departamentaliza-
os estabelecimentos isolados de ensino superi- ção (BOAVENTURA, 1971a; BOAVENTURA,
or particular. 1971b). O conhecimento da organização multi-
campi da Universidade da Califórnia e da Uni-
versidade do Estado de New York, (State Uni-
2.3 Interiorização pela universi- versity of New York, SUNY) em Albany, eram
dade multicampi experiências conhecidas. Mas foi decisiva a ob-
servação do funcionamento da Universidade do
Assim, em 1º de março de 1983, já se anun- Estado da Pennsylvania (Penn State), como uma
ciava a concepção de uma universidade multi- universidade multicampi, que cobre todo o terri-
campi para a Bahia. (BOAVENTURA, 1983a, tório desta Commonwealth, com o campus prin-
p. 97-106; BOAVENTURA, 1983b, p. 29-40). cipal, em University Park, (State College, Cen-
Em síntese, três fatores a considerar: tral Country) cabeça dos diversos campi.
1 - um sistema estadual de educação para ser (BOAVENTURA, 1984, p. 21-24; BOAVEN-
completo há de possuir todos os níveis e tipos TURA, 1994, p. 10)
de ensino, indo do infantil às instâncias superi- Aprofundando com Cugene C. Lee e Frank
ores da pós-graduação; M. Bowen (1971) a problemática da universi-
2 - uma educação superior estadual há de se or- dade multicampi, a continuidade do sistema edu-
ganizar regionalmente, confirmando a identida- cacional com base regional levou ao estabele-
de cultural, em unicampus e multicampi; cimento de um sistema de educação superior

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estendendo-se a todo o estado-membro com Escola de Administração de Empresas da Bahia,


diversidade de campi autônomos. Escola de Administração de Vitória da Conquis-
Aos poucos, a forma multicampi, além de ta, Escola de Engenharia Eletro-Mecânica da
apresentar-se como a melhor para atendimento Bahia com o Curso Superior de Agrimensura,
aos objetivos propostos pelo governo, coaduna- Escola Superior de Estatística, Faculdade Ca-
se com as circunstâncias estaduais, permitindo a tólica de Ciências Econômicas da Bahia, Fa-
economia de meios. Sem o modelo multicampi, culdade de Agronomia do Médio São Francisco,
tem-se uma duplicação de serviços com várias Faculdade de Ciências Contábeis da Fundação
reitorias ou a não aconselhável faculdade isola- Visconde de Cairu, Faculdade de Educação da
da. Quando da implantação da Uneb, a concep- Bahia, Faculdades de Formação de Professo-
ção da universidade multicampi foi discutida res de Alagoinhas, Jacobina, Jequié e Conquis-
sucessivamente em seminários promovidos pelo ta. Mesmo sem incluir os cursos do Ceteba e
Instituto de Gestão Universitária (Iglu), progra- do Centec, as vinte entidades forneciam 93 cur-
ma da Associação Universitária Interamericana sos de graduação, concentrando 67 na capital e
(AUI), em Salvador. (BOAVENTURA, 1985, 26 no interior do Estado. (BOAVENTURA,
p. 02-04; BOAVENTURA, 1987a, p. 93-94; BO- 1984, p. 128)
AVENTURA, 1987b, p. 31-33)
A educação superior, como um segmento
do sistema estadual, enfatizava a proposta de 2.4 A universidade e o desenvol-
1983, apresentada à Federação das Escolas Su- vimento local
periores de Ilhéus e Itabuna (Fespi). Para a ex-
pansão deste segmento, o esforço estadual em No caminho para o status de instituição uni-
estabelecer cursos e faculdades e mesmo em versitária, num processo que demanda tempo e
criar universidades, só fará retro-alimentar os recursos, a faculdade instalada na comunidade
demais níveis do sistema educacional. Numa interiorana deverá passar, como unidade deci-
visão sistêmica, parte dos produtos do sistema sória, a centro universitário e, finalmente, com
educacional a ele retorna, através da atuação consistência e maturidade, à condição de uni-
de professores e especialistas. Tendo em vista versidade. Assim, pelos recursos que concen-
a melhoria da qualidade da educação para os tra, pelos sentimentos, atividades e interações
contingentes de alunos no interior, os objetivos que vão criando a faculdade e a universidade
da educação superior só serão vislumbrados e transformam-se em fatores de desenvolvimen-
alcançados com a oferta de professores licen- to local. Para ministrar o segmento mais avan-
ciados, cuja formação é proporcionada pelos çado do processo educacional, exigem-se con-
principais pólos de crescimento regional. dições e requisitos que normalmente não
Para a Coordenação de Informática da Se- existiriam numa comunidade municipal. A im-
cretaria da Educação Superior do Ministério de plantação de laboratórios de ciências, de com-
Educação e Cultura, em 1980, existiam na Bahia putação e de bibliotecas atesta a presença de
20 (vinte) entidades de educação superior, sen- equipamentos que mudam a vida cultural de uma
do 3 (três) universidades: Federal da Bahia, comunidade urbana.
Católica do Salvador e Estadual de Feira de O desenvolvimento do segmento educação
Santana; 1 (uma) federação de escolas, a Fe- superior do sistema estadual, com base regional,
deração das Escolas Superiores de Ilhéus e Ita- tem conduzido às universidades estaduais, inte-
buna (Fespi); e 16 (dezesseis) estabelecimentos gradas em colegiados e departamentos, a ofere-
isolados de ensino superior, a saber: Centro de cem: educação pelas habilidades avançadas em
Educação Técnica da Bahia (Ceteba), Centro aprendizagens, formação profissional, serviços à
de Educação Tecnológica da Bahia (Centec), comunidade, educação continuada, capacitação,
Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, especialização, bem assim, cursos de nível tec-
Escola Bahiana de Processamento de Dados, nológico, comercial ou agrícola, carreiras longas

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Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

e, como não poderia deixar de cogitar, variadas As políticas estabelecidas pela Secretaria de
formas de valorização da cultura local e regio- Educação em expandir o ensino superior, ao
nal, complementadas pela intervenção das múl- estabelecerem como objetivo maior a interiori-
tiplas manifestações culturais eruditas. zação da educação superior, levou em conside-
ração as circunstâncias que caracterizam o
homem interiorano e as heterogeneidades das
3. A EMERGÊNCIA DAS UNIVERSI- regiões, para que nenhuma delas pudesse per-
DADES ESTADUAIS DA BAHIA der a sua identidade cultural, (BAHIA, 1984, p.
92). Assim, somente, em 1991, foi instituída a
A criação das universidades estaduais efe- quarta universidade: Universidade Estadual de
tivou-se pelo critério tradicional de reunião de Santa Cruz (Uesc).
faculdades isoladas, num processo que vai per-
durar por muito tempo, antes e depois das leis
de diretrizes e bases da educação referentes à 3.1 A criação da Universidade Es-
educação superior (Leis 4.024/61 e 5.540/1968). tadual de Feira de Santana (Uefs)
A Universidade Estadual de Feira de Santana em 1970
(Uefs) foi uma exceção a esse procedimento.
Nasceu estruturada em departamentos, absor- Os antecedentes da universidade feirense
vendo a Faculdade de Educação, existente des- remontam, pelo menos, a 1955, quando se reu-
de 1968. Em 1970, o governador Luiz Viana niu a Primeira Jornada da Universidade do in-
Filho instituiu a primeira universidade estadual, terior baiano com a presença do reitor Edgard
sob a forma de Fundação Universidade Feira Santos da Ufba (reitorado 1946-1961). Em
de Santana. 1963, criou-se a Fundação Simões Filho, com a
Em 1980, o secretário Eraldo Tinoco deu um finalidade de implantar uma universidade rural.
passo decisivo no sentido da integração acadê- Ainda no mesmo ano, constituiu-se a Associa-
mica pela Lei Delegada Estadual nº 12, de 30 ção Educacional Desembargador Filinto Bas-
de dezembro, grupando entidades e cursos su- tos. Concretamente, somente em 1968, no
periores de graduação em três conjuntos: (1) a governo Luiz Viana Filho, foi instalada a Facul-
Universidade Estadual de Feira de Santana, já dade de Educação, efetivamente, a primeira
existente desde 1970 e autorizada a funcionar, unidade universitária de Feira.
em 1976, pelo Conselho Federal de Educação; No ano seguinte, pelo Decreto 21.583, de 28
(2) Universidade do Sudoeste, integrada pela de novembro, foi criada uma comissão encarre-
Faculdade de Formação de Professores e Es- gada de elaborar o anteprojeto da Universidade.
cola de Administração de Vitória da Conquista, Documento da maior importância histórica foi a
bem assim, pela Faculdade de Formação de Pro- Lei Estadual nº 2.784 de 24 de janeiro de 1970,
fessores de Jequié e Escola de Zootecnia de que autorizou o Poder Executivo a instituir, sob a
Itapetinga; e (3) a Superintendência de Ensino forma de Fundação, a Universidade de Feira de
Superior do Estado da Bahia (Seseb), compos- Santana, iniciativa do governador Luiz Viana Fi-
ta pelo Centro de Educação Técnica da Bahia lho, atendendo às lideranças políticas locais de
e pelas faculdades dos municípios, em número Feira de Santana. Dessa forma, em 1970, a As-
de seis. A Seseb é a antecedente próxima da sembléia Legislativa aprovou o anteprojeto da
Uneb. (CUNHA, 2002). Com a criação da Universidade de Feira de Santana. Com esse ato,
Universidade do Sudoeste, em 1980, a Bahia atendia-se às justas aspirações da comunidade
passou a contar com a segunda universidade. feirense e demais municípios circunvizinhos, cu-
Em 1983, surgiu a terceira Universidade: a jas populações se somaram na luta pela criação
Universidade do Estado da Bahia (Uneb). A desta instituição de ensino.
tabela 3 mostra os efetivos de alunos nas três As justificativas que levaram o Governo do
universidades estaduais. Estado a criar esta Universidade são diversas.

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Edivaldo M. Boaventura

Podem-se enumerar e recordar algumas: Fei- Cultura tomou a iniciativa de editar vários atos
ra de Santana era, como ainda é, o segundo em apoio à Fundação Universidade de Feira de
pólo de desenvolvimento do Estado; um dos Santana: 1) Decreto Estadual nº 21.812, de 16
maiores centros rodoviários do Nordeste do de abril de 1970, que aprovou os Estatutos da
Brasil; o maior centro comercial e industrial Fundação; 2) Lei Estadual nº 2.817, de 24 de
do interior do Estado; e, sem dúvida, a maior junho de 1970, que autorizou o Poder Executi-
praça bancária do interior, tendo como área vo a doar área de terra para o campus; 3) Lei
de influência 94 municípios, situados no vale Estadual nº 22.147, de 20 de novembro de 1970,
do rio Paraguaçu com destaque para o seu que incorporou bens móveis e imóveis; 4) De-
afluente o rio Jacuipe. creto Estadual nº 22.073, de 16 de outubro de
Durante todo o ano de 1970, continuando 1970, que aprovou o primeiro plano de aplica-
pelo início de 1971, a secretaria de Educação e ção de recursos. (BOAVENTURA, 1985)

Tabela 3 - Matrícula de Educação Superior na Rede Pública Estadual – 1983-1985

Fonte: BAHIA, Secretaria da Educação e Cultura. Três anos de Educação e Cultura: relatório de atividades 1983/
1985. Salvador, 1986. p. 107.

3.1.1 Instalação do Conselho Di- instituiu o Conselho Diretor da Fundação Uni-


retor da Fundação versitária de Feira de Santana. Conselho este
que teve importância fundamental na estrutu-
Muitos outros atos administrativos estadu- ração da Universidade sempre se reunindo, em
ais foram editados, dentre os quais destaca-se Feira, ouvindo e discutindo com as suas lide-
o Decreto Estadual de 27 de abril de 1970, que ranças e representações sociais e políticas. As

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Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

lideranças feirenses que propuseram a criação de 16 de dezembro de 1970, que colocou a


da Universidade compuseram o primeiro Con- Biblioteca Municipal Arnold Silva à disposição
selho: Wilson Falcão, médico e deputado fede- da Fundação recém-criada. Fatos que eviden-
ral; Áureo de Oliveira Filho, educador, fundador ciam a ação conjunta dos poderes públicos sob
do Colégio Santanópolis e deputado estadual; a liderança do governador Luiz Viana Filho e
Yeda Barradas Carneiro, professora e secretá- do prefeito João Durval Carneiro, portanto, Es-
ria municipal de Educação; José Maria Nunes tado-membro e Município concertam-se para
Marque, diretor da Faculdade de Educação; dar a Feira de Santana a sua universidade. É
Fernando Pinto de Queiroz, advogado e reda- deste acordo de lideranças, unânime e direci-
tor do estatuto e do regimento interno da uni- onado, que surgiu a força política para a cria-
versidade; Geraldo Leite, médico, pesquisador ção da Uefs.
e coordenador da proposta da universidade e
Edivaldo M. Boaventura, secretário de Educa-
ção e Cultura da Bahia; como suplentes, Au- 3.1.3 Autorização de funciona-
gusto Mathias da Silva, monsenhor Renato mento e instalação da universi-
Andrade Galvão, Maria Cristina Oliveira Me- dade
nezes, Faustino Dias Lima, Joaquim Pondé Fi-
lho, Jorge Bastos Leal e Maria da Hora Oliveira. No primeiro governo Antônio Carlos Ma-
O governador Luiz Viana Filho, que verdadei- galhães (1971-1975), o Conselho Diretor da
ramente tomou a decisão política de criar a Fundação foi confirmando e continuou traba-
Universidade de Feira, deu posse, em 1970, ao lhando pela implantação da entidade. Passo
primeiro Conselho Curador, que passou a Con- decisivo foi a elaboração do Plano Diretor do
selho Administrativo, com a transformação da campus e a construção dos primeiros pavilhões.
fundação em autarquia, pela Lei Delegada nº Com o governo Roberto Santos (1975-1979),
12, de 30 de dezembro de 1980. intensificaram-se os trabalhos para a autori-
zação de funcionamento, na dependência do
Conselho Federal de Educação (CFE). Para
3.1.2 Apoio municipal à universi- tanto, o Instituto de Serviço Público (ISP/Ufba)
dade que emergia encarregou-se do projeto acadêmico e admi-
nistrativo para envio ao CFE sempre com a
Se tantos foram os atos estaduais, não de participação do Conselho Diretor. A autoriza-
menor significado contribuíram os municipais, ção de funcionamento, conforme parecer do
do prefeito João Durval Carneiro. Criada a conselheiro Newton Sucupira, foi manifesta
Universidade pelo governo estadual, como ex- expressão do prestígio pessoal do governador
pressão maior da comunidade feirense e de suas Roberto Santos, que antes tinha sido membro
lideranças políticas, o governo municipal, em e presidente daquele colegiado, de 1964 a
concerto com o estadual, expediu atos em apoio 1974. Conseguida a autorização para funcio-
ao projeto universitário. Leis e decretos do go- nar, em 1976, o governador instalou solene-
verno local valem ser lembrados: Lei Municipal mente a Universidade. O professor Geraldo
nº 669, de 8 de janeiro de 1970, que autorizou o Leite, presidente do Conselho e líder do proje-
Poder Executivo a doar uma área de terra à to da universidade, foi escolhido o seu primei-
Fundação. Completava-se, assim, o terreno para ro reitor. A sua liderança idiográfica foi
o campus, origem de uma antiga gleba do Insti- decisiva para a implantação da nova institui-
tuto de Fumo da Bahia; e Decreto Municipal nº ção. A construção e a expansão continuaram
3.589, de 30 de setembro de 1970, que declara- pelos sucessivos governos estaduais.
va de utilidade pública, para fins de desapropri- Essas e outras razões justificaram a uni-
ação, aquela área de terra. São leis, decretos e versidade pelos cursos consolidados após a
ofícios de relevância, como aquele documento autorização tais como: Engenharia Civil, En-

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Edivaldo M. Boaventura

fermagem, Ciências Contábeis, Economia, 3.1.5 Autonomia da educação es-


Letras, Licenciatura em Ciências e Matemá- tadual
tica, Estudos Sociais e Administração, con-
tando com uma população estudantil de 3.221 Com a obtenção do reconhecimento da
alunos. A Universidade projetou em 1983, Uefs, o Estado da Bahia se juntou a São Paulo,
novos cursos como: Odontologia, Geografia, Rio de Janeiro e Paraná, na obtenção das prer-
História e Pedagogia. E, numa segunda ins- rogativas do artigo 15 da Lei nº 4.024/61, de
tância, a criação dos cursos de Matemática, Diretrizes e Bases da Educação Nacional, dan-
Física, Música e Biologia. (BOAVENTURA, do plena autonomia à sua educação superior.
1987, p. 81-92) Com esse reconhecimento da Uefs, completa-
dos cinco anos, em 1991, foi solicitado ao então
Conselho Federal de Educação a delegação de
3.1.4 Consolidação e reconheci- competências, possibilitando autonomia ao sis-
mento tema de educação superior da Bahia conforme
previa este dispositivo da primeira LDB. Se-
O governo João Durval Carneiro (1983- guem-se os reitorados Iara Cunha Pires, Josué
1987), segunda gestão do secretário de Edu- Melo, que deu uma nova dimensão cultural à
cação Edivaldo M. Boaventura, procurou Universidade com a criação do Centro de Cul-
contribuir de todas as maneiras para a con- tura e Arte (Cuca), e Anaci Bispo Paim.
solidação da Uefs, tais como: construção de Não pôde ser rápido o processo de instituci-
Unidades de Ensino, Pesquisa e Extensão, onalização da Universidade Feirense. Da cria-
ampliação do Biotério, construção da praça ção, em 1970, ao reconhecimento, em 1986, teve
de desportes, instalação da comissão para o que responder às exigências do Ministério da
reconhecimento, apoio a novos cursos, como Educação duramente impostas às universida-
o de Odontologia, construindo e equipando a des públicas estaduais.
biblioteca central, uma das condições para o
reconhecimento. No particular, muito contri-
buiu a conselheira Yeda Barradas Carneiro. 3.2 O surgimento da Universida-
Um dos passos significativos para a informa- de Estadual do Sudoeste da Bahia
tização foi a criação do Centro de Processa- (Uesb), em 1980.
mento de Dados, de que tanto carecia a
instituição. A Secretaria de Educação e Cul- A autarquia Universidade do Sudoeste foi
tura, percebendo a necessidade de informa- criada pelo secretário de Educação Eraldo Ti-
tização, integrou a Uefs no Programa de noco, no segundo governo Antônio Carlos Ma-
Automação Administrativa e Informática galhães (1979-1983), conforme a Lei Delegada
(Proadin). Essa reivindicação foi atendida nº 12, de 30 de dezembro de 1980. Merece des-
prontamente, em 1984. (BAHIA, 1986, p. taque, a partir de 1983, o funcionamento do seu
104-105) Conselho de Administração. A sinergia das suas
Constituiu-se a Uefs, como a Universidade reuniões pôde-se considerar relevante para le-
que poderia, a curto prazo, desenvolver proje- var avante o projeto da Universidade.
tos de pesquisa. Coube ao professor José Ma-
ria Nunes Marques, seu segundo reitor 3.2.1 Conselho Administrativo da
(1979-1983, no governo Antônio Carlos Maga- Autarquia Universidade do Sudo-
lhães; 1983-1987, governo João Durval Carnei- este
ro), dirigí-la e liderá-la, nomoteticamente, no seu Repetiu-se o mesmo processo de reuniões lo-
processo de reconhecimento, obtido no final de cais que gestou em boa parte a Uefs, com a par-
1986. ticipação de representantes dos organismos

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estaduais sediados em Salvador. Trabalhando-se a participação, em todo o processo, do se-


conjuntamente com a direção da autarquia, enca- cretário de Educação e Cultura e de outras
minhavam-se as gestões e preparava-se o pro- autoridades estaduais, e da regularização de
cesso de autorização de funcionamento cursos e faculdades, realizações outras são
(CONSELHO, 1986, p. 15). Procurou-se, como levadas em consideração como: acesso as-
preocupação primeira, a regularização dos cursos fáltico ao campus de Conquista; planejamen-
e faculdades existentes, o que se concretizou, em to dos três campi, com a elaboração dos pla-
parte, pelos seguintes atos do governo federal: nos diretores de Conquista e Itapetinga;
1. Decreto nº 90.587, de 29 de novembro de 1984 carta-consulta ao CFE sobre a autorização
autoriza o funcionamento da Faculdade de Enfer- da Uesb; convênio com a Escola Fazendária
magem de Jequié, com o Curso de Enfermagem da da Secretaria da Fazenda; projeto de cursos
Autarquia Universidade do Sudoeste da Bahia; modulados da rede para Brumado e Itapetin-
2. Decreto nº 90.588, de 29 de novembro de 1984 ga; capacitação docente para professores com
autoriza o funcionamento do Curso de História curso de especialização e de mestrado, em
da Autarquia Universidade do Sudoeste da convênio com a Capes; acrescente-se, ain-
Bahia; da, para experimento e estudo a criação de
3. Decreto nº 90.589, de 29 de novembro de 1984 rebanho bovino e suíno, plantação experimen-
autoriza o funcionamento do Curso de Geogra- tal de maracujá e projeto de apicultura. Cons-
fia da Autarquia Universidade do Sudoeste da trução e conclusão de várias obras, desen-
Bahia; volvimento de recursos humanos e de
4. Decreto nº 90.841, de 23 de janeiro de 1985 condições para a pesquisa. (BAHIA, 1986,
autoriza o funcionamento da Escola de Zootecnia p. 105-106).
da Autarquia Universidade do Sudoeste da Na implantação da base administrativa e
Bahia, com o curso de zootecnia; acadêmica, nos anos oitenta, levou a adminis-
5. Decreto nº 90.842, de 23 de janeiro de 1985 tração da superintendente Walquíria Albuquer-
autoriza o funcionamento da Escola de Agrono- que (1983-1987) a priorizar a autorização de
mia de Vitória da Conquista, com o curso de funcionamento junto ao Conselho Federal de
Agronomia da Autarquia Universidade do Su-
Educação, só obtida no começo de 1987, já no
doeste da Bahia;
governo Waldir Pires.
6. Decreto nº 90.973, de 22 de fevereiro de 1985 A expansão do ensino superior chegou,
autoriza o funcionamento do Curso de Letras da
portanto, à região, com o funcionamento da
Autarquia Universidade do Sudoeste da Bahia.
(BOAVENTURA, 1987a, p. 88-89) autarquia Universidade Estadual do Sudoes-
te da Bahia (Uesb). Em fase de implantação,
Estes atos foram conseguidos da ministra a Universidade contava com os cursos de Es-
de Educação, Esther de Figueiredo Ferraz, que tudos Sociais, Letras Vernáculas, Matemáti-
muito ajudou a educação baiana na sua gestão. ca, Física, Química, Biologia, Enfermagem,
Ressalte-se a cooperação do Conselho Esta- Zootecnia, Agronomia e Administração, dis-
dual de Educação, em especial do seu presi- tribuídos pelos três campi: Conquista, sede,
dente, Raimundo José da Matta, no relaciona- Jequié e Itapetinga. Em 1987, a clientela que
mento com as autoridades do MEC e nos freqüenta os diversos cursos era cerca de
processos da competência do colegiado esta- 1.576 estudantes. No reitorado Pedro Gus-
dual. mão, procedeu-se ao levantamento das ne-
cessidades regionais a serem atendidas pela
3.2.2 Construção do campus e Uesb. A expansão planejada do ensino e a
autorização de funcionamento participação da comunidade universitária lo-
Além do funcionamento regular na sede cal muito engrandeceram o sistema educaci-
da instituição, em Vitória da Conquista, com onal na região.

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Edivaldo M. Boaventura

3.3 A institucionalização da Uni- N. 46/83); 2) organização do Conselho Estadu-


versidade do Estado da Bahia al de Cultura (Lei N. 51/83); 3) proteção aos
(Uneb), em 1983 arquivos públicos e privados (Lei N. 52/83); 4)
transformação do Irdeb em fundação (Lei N.
3.3.1 Cooperação do Quebec e 65/83); 5) criação da Universidade do Estado
contribuição paulista da Bahia - Uneb (Lei N. 66, de 1 de junho de
1983); e 6) reorganização da Secretaria da Edu-
Em abril de 1983, reuniu-se, em Salvador, a
cação e Cultura da Bahia (Lei N. 67, de 1 de
III Conferência da Organização Universitária
junho de 1983). De todo esse conjunto, a cria-
Interamericana (OUI), presidido por Gilles Bou-
ção da Uneb foi a de maior alcance para a edu-
let, Reitor da Universidade de Québec, e se-
cação superior.
cretariado por François Loriot. Para esse
Tinha-se o exemplo próximo, brasileiro e
conclave, foi apresentada uma comunicação
paulista da Unesp. Acreditava-se em um ponto
acerca da educação superior e cooperação in-
de vista, que cada vez mais se consolidou com
teramericana, com insistência na interiorização,
o tempo, que o modelo multicampi é o que me-
racional e organizada, da universidade. (BOA-
lhor se ajusta ao território de um Estado-mem-
VENTURA, 1983)
bro. Essa era a experiência brasileira e também
Com esse evento internacional, iniciava-se
internacional, do Canadá e dos Estados Uni-
a cooperação com o governo do Quebec. Fir-
dos. A Universidade Estadual da Pennsylvania
mou-se convênio que permitiu a realização pos-
(Penn State) é uma universidade multicampi.
terior de um Mestrado em Educação da
A concepção de uma universidade multicampi
Universidade do Quebec, na Uneb, com a co-
concretizou-se em face do exemplo das univer-
ordenação do professor Marcel Lavallée. Des-
sidades paulistas: Universidade de São Paulo
de os seus primeiros anos, a Uneb abriu-se para
(USP), Universidade de Campinas (Unicamp)
a cooperação internacional, em especial, com o
e Universidade Estadual Paulista Júlio de Mes-
Canadá. Seguia-se o exemplo da Universidade
quita Filho (Unesp). Todas com pluralidade de
de São Paulo e da Universidade do Distrito
campi, como demonstrou Irany Novah Mora-
Federal, a UDF de Anísio Teixeira, que pude-
es. (1986, p. 17-24)
ram contar com a colaboração de conhecidos
Em realidade, um conjunto universitário já
mestres estrangeiros, no início do seu funcio-
pré-existia com as unidades integradas pela
namento.
Superintendência de Ensino Superior do Esta-
De todo esse conjunto de fatores, pôde-se
do da Bahia (Seseb), instituída pelo secretário
destacar as marcantes contribuições para o
Eraldo Tinôco e administrada pela professora
projeto da Uneb. São agentes principais dessa
Clélia Silveira Andrade. Pois bem, tomou-se
fase do projeto o professor Alírio Fernando
esse conjunto e deu-se forma e espírito de uma
Barbosa de Souza, doutor em educação supe-
universidade com a Lei Delegada n° 66, de 1°
rior pela The Pennsylvania State University e
de junho de 1983.
professor da Universidade Federal da Bahia
Nessa trajetória da Uneb, a sua criação por
(Ufba), o reitor Armando Otávio Ramos, da
esta lei foi um ato singular. A Lei foi bastante
Unesp, e o reitor Gilles Boulet, da Universida-
clara quando disse logo no caput:
de do Quebec.
Ao organizar a universidade multipolar, no Fica criada, nos termos da Lei Federal N°. 5.540,
início de 1983, integraram-se unidades univer- de 28 de novembro de 1968, a Universidade do
Estado da Bahia - UNEB, sob a forma de
sitárias existentes principalmente nos municípi-
autarquia em regime especial vinculada à Se-
os e mais o Ceteba, em Salvador. A Uneb cretaria da Educação e Cultura, com personali-
compôs o conjunto de leis delegadas, promul- dade jurídica de direito público, autonomia aca-
gadas em junho de 1983, a saber: 1) organiza- dêmica, administrativa, financeira e patrimônio
ção do Conselho Estadual de Educação (Lei próprio.

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Era a etapa da criação jurídico-administra- Educação Infantil e nas Séries Iniciais do Ensi-
tiva da autarquia mantenedora, que congregou no Fundamental, Educação de Adultos, criação
as Faculdades de Agronomia do Médio São do bacharelado em Nutrição e instalação de
Francisco, de Formação de Professores de cursos superiores pioneiros na região Além São
Alagoinhas, Jacobina e Santo Antônio de Je- Francisco, especificamente, em Barreiras. O
sus, além do Centro de Educação Técnica da Parque Estadual de Canudos e o Centro de
Bahia (Ceteba), núcleo inicial da Uneb, em Estudos Euclides da Cunha vincularam-se cons-
Salvador, a Faculdade de Filosofia, Ciências e cientemente à Uneb e mais ainda aos sertões
Letras de Juazeiro, velha e acalentada aspira- da Bahia.
ção daquela comunidade, iniciativa do arqui- No tempo em que se trabalhou na imple-
teto Pedro Raimundo Rego, Jorge Duarte e mentação da Uneb, o secretário de Educação
outros. A Uneb se expandiu nos anos iniciais acumulou as funções de reitor, facilitando a
de sua criação com os Centros de Educação sua implantação conforme a lei delegada que
Superior em Paulo Afonso e outro em Barrei- a criou. Procurou-se estruturá-la dentro dos
ras, de Ciências da Saúde e dos Alimentos, princípios que a política da União e do Gover-
em Salvador, das Faculdades de Educação do no do Estado estabeleciam. Assim, saiu o Re-
Estado da Bahia (Faeeba), em Salvador e em gulamento da Uneb, pelo Decreto 3.299, de
Senhor do Bonfim, Serrinha e Euclides da 30 de novembro de 1984, peça importante para
Cunha com funcionamento de 31 cursos su- implantação da nova autarquia acadêmica, que
periores e mais de 2.400 alunos. permitiu a criação dos cargos e preenchimen-
Com a experiência da reforma universitária to de alguns postos. Seguiram-se depois os de-
da Ufba, colocou-se estrategicamente a Faculda- mais atos, como o Estatuto aprovado pelo
de de Educação do Estado da Bahia (Faeeba), na parecer CEE 128/85, do Conselho Estadual de
Uneb. Não era possível uma Universidade funci- Educação.
onar e mesmo existir sem um núcleo de conheci- Segundo a política de educação, do quatriê-
mentos pedagógicos. Era a lição de Anísio Tei- nio 1983-1987, cada capital regional da Bahia
xeira quando criou a Universidade do Distrito devia ter a sua Faculdade, formando professo-
Federal (UDF) e a mesma quando ele e Darcy res para o sistema de educação e para os de-
Ribeiro planejaram a Universidade de Brasília. mais setores da sociedade. A Uneb nascia com
Desse conjunto integrado, a Uneb evoluiu a cor da Bahia, comprometida com as suas re-
com os seus próprios quadros, com os seus pro- giões, com a negritude, com os sertões, com a
fessores, alunos e servidores. O Secretário de pobreza, com os problemas de educação, de
Educação e Cultura, como autoridade, tinha alimentação e de saúde. Era mais uma educa-
poderes para criar e criou, dando-lhe melhor ção superior voltada para o ensino, para a for-
concepção e estrutura. O desenvolvimento e o mação de pessoal docente, enfim, para a
crescimento alcançados devem ser tributados construção do conhecimento. A isso o modelo
aos seus componentes e às lideranças dos rei- interdisciplinar e multicampi muito favoreceu.
tores José Edelzuito Soares, e dos primeiros pró- A circunstância muito especial de ter sua sede
reitores Antônio Amorim, Edson Tranzillo no Cabula, mais precisamente no bairro da En-
França, Hetty Loreti Rossi, Joaquim de Almei- gomadeira, criou compromissos sociais e urba-
da Mendes e Luiz Jorge da Silva Teles, e pro- nos com a instituição. A Uneb está presente
fessor Antônio Fábio Dantas seguem-se os em todo o Estado, identificando-se com as re-
reitores, monsenhor José Raimundo dos Anjos giões, especialmente, com o Nordeste da Bahia.
e mais recentemente Ivete Sacramento. (PI- A lei que a criou estabeleceu a sua competên-
MENTA, 2002) cia para todo território baiano. Diploma legal
Ressaltem-se algumas inovações como a li- que contou com a colaboração de Pierre Casa-
cenciatura em Pedagogia, com habilitações na lis, pró-reitor de Planejamento da Universidade

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Edivaldo M. Boaventura

de Quebec, Armando Otávio Ramos, reitor da der entre o governo central e os governos esta-
Unesp, Luiz Navarro de Britto, pró-reitor de duais, no conjunto de uma federação.
planejamento da Ufba, Clovis Spínola, procura- Há uma particularidade no decreto autori-
dor geral do Estado da Bahia, Waldeck Orne- zador. Talvez pela primeira vez tenha-se usado
las, secretário de Planejamento, Ciência e a expressão “sistema multicampi” em um do-
Tecnologia da Bahia, e Alírio Fernando Barbo- cumento legal. A Universidade do Estado da
sa de Souza, assessor e coordenador do projeto Bahia (Uneb) foi autorizada pelo governo fe-
da Uneb. deral, conforme Decreto N° 92.937, de 17 de
julho de 1986, publicado no Diário Oficial da
União, de 18 de julho de 1986. A autorização
3.3.2 Autorização de funciona- foi uma etapa no processo de oficialização do
mento pelo governo federal ensino, que é sucedida pelo reconhecimento.
Etapa que foi da maior importância para a edu-
A autorização de funcionamento não foi fá- cação da Bahia, pois veio consagrar o esforço
cil, entendendo o problema no conjunto das re- de um Estado nordestino que mantinha até
lações dialéticas e assimétricas federais e àquela época três autarquias universitárias (BO-
estaduais. Exigiu muito esforço do secretário AVENTURA, 1987, p. 19-21), compensado, em
de Educação, responsável pela criação da parte, a ausência de universidades federais no
Uneb, além de muita energia e persistência. território baiano.
Houve, no período, a mudança de três minis- Pelo decreto de autorização de funciona-
tros da Educação, Esther de Figueiredo Ferraz, mento do Presidente José Sarney, explicitou-se
que muito ajudou a Bahia em vários processos sua condição de “sistema multicampi”, servin-
de autorização de cursos, Marco Maciel e Jor- do a todo o Estado da Bahia. Para que fosse
ge Bornhausen. O problema ligava-se ao en- autorizada por decreto presidencial, foi oportu-
tendimento da burocracia do Ministério da na a doutrina do parecer n° 647/84, do Conse-
Educação. Tinha-se o parecer favorável do lho Federal de Educação, de autoria do jurista
Conselho Estadual de Educação da Bahia, de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que deu inte-
autoria do conselheiro padre José Hamilton de ligente interpretação ao artigo 47, da Lei Fede-
Almeida Barros, mas faltava o ato federal de ral 5.540/68. O sistema multicampi serve a todo
autorização. O processo peregrinava entre o Estado da Bahia, confirmando a lei que criou a
gabinete do ministro e o Conselho Federal de Uneb:
Educação, que não tinha competência específi- A Uneb tem por finalidade desenvolver, de for-
ca no caso. ma harmônica e planejada, a educação superior,
Deve-se ao ministro da Educação Jorge promovendo a formação, o aperfeiçoamento (...)
Bornhausen a autorização de funcionamento da bem como estimulando a implantação de cursos
Uneb. Para tanto, colaborou o ministro das Co- e campi universitários nas regiões do Estado,
observando as suas peculiaridades.
municações, Antônio Carlos Magalhães, que
acolheu a solicitação do reitor José Edelzuito A forma multicampi foi definitivamente con-
Soares. sagrada no decreto presidencial, sendo realmen-
Enfim, a autorização saiu em 17 de julho de te a que melhor convém a uma universidade
1986 e, dias depois, o ministro Bornhausen visi- estadual. É a lição da Penn State que tanto tem
tou o campus da Uneb, em Narandiba. Para a fertilizado e enriquecido a educação superior
comunidade acadêmica e para os dirigentes da baiana. O Estado-membro é, de qualquer for-
Secretaria de Educação foi um dia solar de ple- ma, um espaço a ser ocupado pela educação
na realização. Foi uma vitória alcançada depois superior. Como se dizia, na década de oitenta:
de três anos de lutas junto ao MEC, o que com- “educação superior rima com interior, enquan-
prova, como são polêmicas as relações de po- to educação federal com capital e litoral”.

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Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

3.3.3 Reconhecimento pelo Con- A Uesc originou-se de três unidades acadê-


selho Estadual de Educação da micas da região do cacau. A Faculdade de Di-
Bahia reito de Ilhéus, autorizada pelo Ministério de
Educação, em 1960, começou a funcionar no
Do ponto de vista normativo, trabalhou-se ano letivo de 1961. Criada pelas lideranças lo-
no seu processo de reconhecimento, tarefa co- cais, tendo à frente Soane Nazaré Andrade,
metida ao Conselho Estadual de Educação da Amilton Ignácio de Castro, Jorge Fialho, Rui
Bahia com a delegação de competência do Cajueiro, Ramagem Badaró e Francelino Neto.
Conselho Federal. Com os serviços prestados Já a Faculdade de Filosofia de Itabuna foi insti-
à comunidade acadêmica, a declaração de re- tuída pela Ação Fraternal, entidade mantida por
conhecimento foi uma etapa importante no pro- Amélia Tavares Amado, começou a funcionar
cesso de consolidação da instituição, que lhe pela mesma época da Faculdade de Direito de
permitiu criar cursos de graduação e pós-gra- Ilhéus. A terceira unidade acadêmica, Facul-
duação, celebrar convênios nacionais e inter- dade de Ciências Econômicas de Itabuna, ma-
nacionais, registrar os diplomas dos seus alunos. nifesta a liderança do bacharel Érito Machado,
Da criação, em 1983, passando pela auto- juiz do trabalho.
rização de funcionamento, de 1986, chegou- As três entidades foram reunidas na Fede-
se pela Portaria nº 909, de 31 de julho de 1995, ração das Escolas Superiores de Ilhéus e Ita-
buna (Fespi), em 1974, com a construção do
do Ministro de Educação e Desporto, Paulo
campus na estrada Ilhéus e Itabuna, passando
Renato de Souza, ao reconhecimento, com
a contar com apoio financeiro e da Comissão
sede e foro na cidade do Salvador e jurisdição
Executiva do Plano de Recuperação da Lavoura
em todo o Estado da Bahia, conforme o Pare-
Cacaueira (Ceplac). (UNIVERSIDADE E.
cer do Conselho Estadual de Educação da
SANTA CRUZ, 2003. p. 43-50).
Bahia, nº 133/1995 (BRASIL, 1995). Foram As instalações construídas pela Ceplac e o
doze anos para o processo de oficialização da pagamento dos professores com as taxas esco-
Uneb. A Uneb foi reestruturada pela Lei n° lares resultaram do acordo estabelecido entre o
7.176, de 10 de setembro de 1997, tendo como diretor da Fespi, professor Soane Nazaré An-
base de sua estrutura acadêmica os vinte e drade, e o secretário geral da Ceplac, José Arol-
quatro departamentos. do Castro Vieira. Esse esquema funcionou por
certo tempo. Quando da mudança na taxa de
retenção do cacau, a Ceplac passou para a juris-
3.4 O começo da Universidade dição do Ministério da Agricultura, começaram
Estadual de Santa Cruz (Uesc), em as dificuldades financeiras da Fespi.
1991

3.4.1 Federação das Escolas Su- 3.4.2 Federalização e estaduali-


periores de Ilhéus e Itabuna zação
(Fespi) e a Ceplac
Já no início de 1987 começou a crise econô-
Antecedida pela Federação das Escolas mica. Apresentaram-se como alternativa solu-
Superiores de Ilhéus e Itabuna (Fespi), foi de- cionadora a federalização ou a estadualização.
finida como Universidade Estadual de Santa Em face das dificuldades para a federalização,
Cruz (Uesc), pela Lei nº 6.344, de 05 de de- foi trabalhada a estadualização que só se efeti-
zembro de 1991 e reorganizada pela Lei nº vou em 1991. Para Ubaldo Dantas, prefeito de
6.898, de 18 de agosto de 1995, no terceiro Itabuna, patrono da turma de formandos de 1988,
governo Antônio Carlos Magalhães (1991- “só resta à Fespi a hipótese de estadualização,
1995), gestão da secretária Dirlene Mendon- já que o presidente Sarney foi muito enfático
ça. (BAHIA, 1998, p. 77) (...), ao afirmar que existem pedidos mais anti-

170 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 155-173, jul./dez., 2005
Edivaldo M. Boaventura

gos e influentes” (A TARDE, 5 fev. 1988). de desencadear a gestão do conhecimento nas


Nesse sentido houve gestões no governo Wal- diversas comunidades baianas. São núcleos im-
dir Pires (1987-1989) para encaminhar a solu- portantes no presente e projetam para o futuro
ção para greve e mudança na direção da Fespi. novas alternativas de formação como os progra-
O governo estadual assumiu os ônus finan- mas de mestrado e doutorado.
ceiros da manutenção da Fespi, conforme com- As quatro faculdades de formação de profes-
promisso político e dispositivo da Constituição sores, implantadas de 1968-1970, efetivaram a
da Bahia de 1989. Posteriormente veio a esta- mudança da política de educação superior do Es-
dualização da Fespi e sua transformação em tado da Bahia. Antes, as Escolas de Agronomia e
universidade, quando reitor Altamirando Mar- Medicina Veterinária expressaram as necessida-
ques. O governador Antônio Carlos Magalhães, des de formação do setor primário da economia.
em 1991, enviou projeto de lei à Assembléia Com as Faculdades de Formação de Professo-
Legislativa propondo a estadualização. A Fespi res, voltou-se o Estado da Bahia para objetivos
oferecia àquela época os cursos de Direito, Li- educacionais com a implantação das licenciatu-
cenciaturas em Ciências, Filosofia, Letras, Pe- ras curtas em Letras, Estudos Sociais, Ciências e
dagogia, Estudos Sociais, Administração, Matemática. Em seguida, vieram as Universida-
Ciências Econômicas e Enfermagem (A TAR- des que surgiram nas cidades sedes dessas facul-
DE, 31 out. 1991). A Uesc obteve o credenci- dades, como Feira de Santana (Uefs), Vitória da
amento pelo Conselho Estadual de Educação, Conquista e Jequié (Uesb), Alagoinhas (Uneb).
conforme parecer nº 089/99, relator conselhei- A administração estadual, por determinação
ro José Rogério da Costa Vargens. das forças locais, teve e terá de ocupar lugar
Embora a Uesc incorpore a primeira e a mais de significativa importância, desde quando não
antiga faculdade fora da capital, a Faculdade conta a Bahia com recursos do governo fede-
de Direito de Ilhéus e tenha funcionado antes ral para a educação superior, como acontece
da estadualização como Federação das Esco- com outros estados, a exemplo de Minas Ge-
las Superiores, a quarta e última universidade rais e Rio Grande do Sul, onde é bem mais ex-
da administração estadual instituiu-se apenas em pressiva a presença do sistema federal de ensino
1991. Dirigida pela reitora Renée Abagli No- superior.
gueira que soube exercer reconhecida lideran- A partir da década de sessenta, precisamen-
ça. Completou-se, assim, o quadro das quatro te, com as Faculdades de Formação de Profes-
universidades estaduais. sores, em 1968, até os anos noventa, com a
Universidade Estadual de Santa Cruz, em 1991,
formou-se um sistema estadual de educação
4. CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES superior para responder às demandas do ensi-
no, contando com recursos financeiros e orça-
No desenvolvimento científico e tecnológico mentários do Estado da Bahia.
da Bahia, Uefs, Uesb, Uneb e Uesc têm tarefas Em todo esse processo de construção da
a cumprir. Presentes em todo território baiano, educação superior, houve não somente a parti-
formam professores para os sistemas de educa- cipação decisiva dos governos estaduais mas
ção estadual e municipal, e recursos humanos também a contribuição pessoal dos governado-
para a sociedade. As suas unidades estão locali- res. Antecedendo ou concomitantemente aos
zadas em municípios, centros regionais que con- atos do poder público, destacam-se as lideran-
centram recursos humanos e materiais, bibliote- ças locais, motivadoras e gestoras das imana-
cas, laboratórios, professores e especialistas. ções da coletividade que expressaram as
Desenvolvem assim o ensino superior, a pesqui- necessidades da educação superior como ma-
sa, as mais variadas atividades comunitárias e a triz formadora de profissionais para os siste-
gestão. As universidades representam ilhas da mas de ensino. Não pode haver educação e
cultura moderna e funcional, no interior, capazes educação de qualidade sem universidade.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 155-173, jul./dez., 2005 171
Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

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Recebido em 30.05.05
Aprovado em 08.08.05

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 155-173, jul./dez., 2005 173
Tânia Mara Pereira Vasconcelos

DO CASTIGO AO PRÊMIO:
CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA E EDUCAÇÃO
NUMA COMUNIDADE DO INTERIOR (1940-1970)

Tânia Mara Pereira Vasconcelos*

RESUMO

Esse artigo se propõe a discutir concepções de infância e educação em


Serrolândia, uma comunidade do interior da Bahia, dos anos quarenta aos
sessenta. Faz um histórico da relação entre as visões a respeito da criança e
educação, levando em conta ser a infância um conceito construído
historicamente. Analisa discursos e práticas que refletem a mentalidade em
relação à criança, a partir da análise histórica da educação formal em
Serrolândia. A escola aparece como uma das principais instituições que visam
ao adestramento da criança, sendo identificados três tipos: a escola particular
rural, a escola paroquial e a escola pública. Apesar de serem organizadas de
formas diferentes, em todas elas aparece o objetivo de moldar a criança,
variando, no entanto, as formas utilizadas para alcançar este fim, sendo as
principais delas: a repressão, através do uso dos castigos físicos, a religião e a
disciplina moderna. As fontes utilizadas se constituem centralmente de
entrevistas com pessoas que vivenciaram experiências como alunos (as) e
professores (as) no período estudado, além de documentos escolares, como
livros de matrícula e assiduidade.
Palavras-chave: Infância – Escola – Repressão – Disciplina

ABSTRACT

FROM PUNISHMENT TO REWARD: CONCEPTIONS OF


CHILDHOOD AND EDUCATION IN AN INLAND BRAZILIAN
COMMUNITY (1940-1970)
This paper aims to discuss conceptions of childhood and education in Serrolândia,
an inland community in the state of Bahia (Brazil), from 1940 to 1970. Since
the concept of childhood is historically constructed, the relationships between
the views of childhood and education are first put into historical perspective.
An analysis of the formal education system in Serrolândia is then carried out
through the speeches and practices reflecting the mental attitudes concerning

*
Mestranda em História Social - USP. Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB - Campus V. Endereço
para correspondência: UNEB - Campus V - Loteamento Jardim Bahia, s/n, Centro – 44570-001 Santo Antonio de
Jesus/BA. E-mail: taniahisto@yahoo.com.br

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Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

the child. Former students and teachers in the local school system during the
time span under study were interviewed, and school enrollment and attendance
documents were examined. The school system was found to be one of the
main institutions designed to child training in the community and three school
types were identified: the rural private school, the parochial school and the
public (government-owned) school. Despite their different organizational
structures, all of them were shown to shape the children’s behavior with varying
methods, such as repression by means of physical punishment, religion and
modern discipline.
Keywords: Childhood – School – Repression – Discipline

CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA E EDU- nos, instituições fechadas, nas quais as crian-


CAÇÃO: UM BREVE HISTÓRICO ças passam a ser rigidamente disciplinadas e
enclausuradas, com o propósito de afastá-las
No mundo ocidental, a infância vista pelo do mundo adulto. A escola passa a ter a preo-
olhar adulto, aparece como a fase das paixões, cupação de educar, tanto quanto instruir. Essas
do predomínio do corpo sobre o espírito, do ins- transformações, que se iniciaram por volta do
tintivo sobre o racional. Daí a caracterização século XIV, na Europa, se baseiam em duas
pejorativa das coisas consideradas infantis. A novas idéias: a noção de fraqueza da infância e
inferioridade da criança é parte de um pensa- o sentimento de responsabilidade moral dos
mento fundado em hierarquias, no qual todos mestres, que passam a ter também a função de
os seres são definidos a partir de valores dico- inculcar virtudes, formar os espíritos (ÀRIES,
tômicos, associados ao bem e ao mal.1 1981, p.165-166). A vigilância constante e os
Até meados do século XVII, a filosofia e a castigos corporais se constituem parte indispen-
teologia manifestam um verdadeiro horror à in- sável desse sistema disciplinar. Badinter (1985,
fância. A associação da criança com o mal está p.56) observa que a palavra educação – que
presente nos discursos de vários teólogos cris- vem do latim educare e significa endireitar o
tãos, sendo Santo Agostinho o principal repre- que é torto ou mal formado – nunca foi tão jus-
sentante desse pensamento que, segundo tamente utilizada.
Elizabeth Badinter (1985, p.55), teria inspirado No Brasil, o modelo de escola trazido pelos
outros pensadores, exercendo uma forte influ- colonizadores refletia os princípios da Contra-
ência na pedagogia. Segundo essa concepção, Reforma. Todo o ensino estava sob a respon-
“a criança é símbolo da força do mal, um ser sabilidade da Igreja e se destinava a um limita-
imperfeito esmagado pelo peso do pecado ori-
ginal”. A Redenção passaria, necessariamen-
1
Com base nesse pensamento, desenvolvido a partir do séc.
te, pela luta contra a infância, vista como um XVI, a criança é colocada no mesmo patamar de valoração
estado negativo. A educação teria, nesse senti- da mulher, do índio e do louco, que seriam opostos e inferi-
ores ao homem branco adulto e cristão, considerado como
do, o papel primordial de reprimir o que se con- o sujeito humano universal na concepção da própria ciência
siderava a natureza corrompida da criança. moderna. (TODOROV, 1993).
Philippe Áries2 discute como o progresso do 2
Esse autor foi pioneiro nos estudos históricos sobre a
criança. Ao publicar A criança e a família no Antigo Regi-
sentimento da infância está relacionado à trans- me, em 1960, discute a infância - considerada uma fase
formação da escola e do colégio, “que na Idade específica - como uma invenção moderna. Na Idade Média,
o “sentimento da infância” era desconhecido, já que as cri-
Média eram reservados a um pequeno número anças não viviam em um mundo à parte, separadas dos
de clérigos e misturavam as diferentes idades adultos, vestiam-se da mesma forma, participavam dos
mesmos jogos, trabalhos e festas, mas eram excluídas de
dentro de um espírito de liberdade dos costu- suas conversas. No mundo moderno a criança se torna o
mes”, se tornando, no início dos tempos moder- centro da família.

176 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 175-191, jul./dez., 2005
Tânia Mara Pereira Vasconcelos

do número de pessoas da elite dominante. Seu cano pelo novo poder político que se instala – à
conteúdo caracterizava-se por um apego às for- barbárie, associado ao velho, representado pela
mas dogmáticas de pensamento, pela revalori- Monarquia. Nesse contexto, é elaborada uma
zação da Escolástica, pela reafirmação da au- nova imagem de criança, valorizada e repre-
toridade e pela valorização da memória sentada como herdeira da República recém-ins-
(ROMANELLI, 1999, p.33-34). No momento talada. Carlos Monarcha discute a construção
em que esse modelo é transplantado para cá, desta imagem de criança pelos republicanos
muitos dos seus valores estavam sendo questi- paulistas a partir da análise da arquitetura da
onados na Europa. No entanto, podemos per- escola normal da praça, em São Paulo:
ceber sua permanência, em parte, até recente- Nesse momento histórico, representado como o
mente em nosso país. Ano 1 da nova era, o discurso republicano, ple-
No século XIX, um novo ideal de criança no de messianismo político, promove uma súbi-
começa a se configurar no Brasil. As políticas ta valorização da criança representando-a como
sociais filantrópicas surgem aqui com base nos a herdeira da República (...). Para este ponto de
moldes europeus. Desenvolve-se nesse momen- vista, cabe ao Estado exercer o papel de precep-
tor dos novos, subtraindo-os no âmbito do pri-
to um discurso em relação à assistência às cri-
vado, familiar e afetivo e conduzindo-os para o
anças abandonadas, que se multiplicavam pe- âmbito do público, social e político. (MONAR-
las ruas dos grandes centros do país.3 Maria CHA, 1997. p. 119).
Luiza Marcílio (1998) analisa a passagem da
assistência caritativa para a assistência filan- Apesar desse discurso que exaltava a cri-
trópica, que trazia todo um ideal científico-bur- ança e o povo, o advento da República não trou-
guês, responsabilizando o Estado pela assistên- xe mudanças efetivas com relação à responsa-
cia caritativa às crianças. Em 1855, é criado bilidade do Estado pela educação, que continuou
um Programa Nacional de Políticas Públicas vol- constituindo um privilégio das elites. Somente
tado para a criança desvalida, que representou na década de trinta, com o incipiente desenvol-
a primeira etapa da construção de uma assis- vimento industrial, a educação começa a fazer
tência filantrópico-científica no Brasil. No final parte das preocupações governamentais.
do século XIX, a Medicina e o Direito passam Segundo Romanelli (1999, p.61), a nova re-
a ocupar o centro das questões sociais, interfe- alidade social surgida a partir dos anos trinta,
rindo como um poder legitimado nas questões levou a população, especialmente nas áreas
relativas às crianças pobres. Surge o termo atingidas pela industrialização, a exigir cada vez
“menor”, como forma pejorativa de classificar mais a democratização do ensino. No entanto,
a criança desvalida4. “A infância se torna caso essa expansão ocorre de forma contraditória,
de polícia”. Fundam-se, assim, grandes estabe- uma vez que o sistema escolar passa a sofrer,
lecimentos totais de internamento e de segre- de um lado, a pressão social da população e, de
gação da sociedade para crianças e adolescen- outro, o controle das elites, que buscavam “con-
tes carentes, com o objetivo de preparar o ter a pressão popular pela distribuição limitada
homem higiênico, bom trabalhador, estruturar o de escolas, e, através da legislação do ensino,
cidadão normatizado e disciplinado. As causas manter o seu caráter elitizante.”
apontadas pela autora para essas mudanças são
principalmente a preocupação das elites com o
3
Walter Fraga Filho analisa o crescente papel do Estado, no
fim da mão-de-obra escrava. “A filantropia século XIX, no controle sobre os meninos que viviam nas
atraía as elites, pois acreditava-se que ela per- ruas de Salvador, o qual se baseava num discurso que coloca-
va a infância como uma fase propensa à vadiagem (1996, p.
mitiria exercer um melhor controle sobre a so- 127).
ciedade.” (MARCÍLIO, 1998, p.206). 4
Fernando Torres Londoño analisa a história do termo
A Proclamação da República vem acompa- “menor” no Brasil. Inicialmente utilizado apenas para se
referir aos limites etários, este termo adquire um caráter
nhada de um discurso idealizador, opondo a ci- moral a partir do século XIX, passando a ser associado à
vilização – representada no imaginário republi- figura do delinqüente (1996, p. 129-145).

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 175-191, jul./dez., 2005 177
Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

O movimento escolanovista5, que se colocou dades de aprender a “ler, escrever e contar”


como crítico da escola tradicional, surgiu no Bra- daquela comunidade, numa época em que o
sil na década de 1920, tendo influenciado algumas Estado não assumia nenhuma responsabilidade
reformas do ensino público, contribuindo para a com a educação. Não nos foi possível precisar
sua expansão. Suas idéias expressaram-se de a data do seu surgimento, sendo provável que
maneira clara em 1932, no Manifesto dos Pionei- tenha ocorrido logo após a chegada dos primei-
ros da Educação, que teve como principais signa- ros habitantes.7 Funcionava em casas de famí-
tários: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e lia, a partir da união de vizinhos, que contratavam
Lourenço Filho. As principais propostas contidas um professor para dar instruções elementares
no documento foram: ênfase para a educação aos filhos, geralmente por um curto período que
pública, a escola única e a co-educação, a gratui- fosse suficiente, na visão do professor, para que
dade e a obrigatoriedade do ensino elementar, a os alunos se “alfabetizassem” e aprendessem
laicidade, a descentralização do sistema escolar, a fazer “alguns tipos de contas”. O professor,
renovação na metodologia a partir do uso da psi- na maioria das vezes, era leigo e tinha sido ins-
cologia na educação. (ROMANELLI, 1999). truído por esse mesmo sistema.
Esse movimento teve uma grande influência na Seu José dos Santos Filho, agricultor apo-
expansão do ensino. No entanto, as transforma- sentado, que nasceu em 1924, freqüentou a es-
ções pedagógicas propostas por ele não chegaram cola na adolescência, por um período de
a se concretizar no sistema escolar brasileiro como aproximadamente cinco meses. Como era con-
um todo. A maioria das escolas permaneceu com siderado um aluno inteligente, depois dessa for-
um ensino tradicional, distante da realidade da po- mação, já pôde se tornar professor, passando a
pulação que passou a freqüentá-las. reproduzir o mesmo ensino:
Quando eu também passei a ser professor parti-
cular (...) Da maneira que eu aprendi, que eu via
A ESCOLA EM SERROLÂNDIA os professor ensinar, dessa maneira também eu
ensinava...
Serrolândia é um pequeno município do in- Parece-nos que a reprodução desse modelo
terior da Bahia6, localizado no Piemonte da de escola em Serrolândia perpassou muitas déca-
Chapada Diamantina, a 319,9 Km de Salvador, das, não desaparecendo com a chegada da esco-
no sertão da região Nordeste brasileira. la pública. Exemplo dessa permanência, é o caso
Levando em conta ser a infância um con- de Seu Edivaldo da Cunha, pequeno proprietário
ceito construído historicamente, procuraremos rural, que por volta de 1961, aos dezessete anos,
analisar, nessa sociedade, discursos e práticas freqüentou uma escola rural, com uma metodolo-
que refletem visões a respeito da criança, re- gia semelhante à descrita por Seu José Filho:
presentadas na escola.
A partir da análise dos depoimentos grava- 5
Este movimento surgiu no século XIX, na Europa, com
dos, classificamos a instituição escolar em Ser- base nos princípios liberais, propondo novos caminhos para
a educação que se encontrava em descompasso com o mun-
rolândia, no período estudado (1940 a 1970), em do no qual se achava inserida. Sua pedagogia colocava a
três tipos: a escola rural particular, a escola pa- criança como o eixo do processo pedagógico, vista não
mais como um “adulto incompleto”, mas como alguém que
roquial e a escola pública. A diferença entre elas necessitava ser atendida nas suas especificidades. Rousseau
se encontra principalmente na sua forma de or- é considerado o seu principal precursor (ROMANELLI,
ganização e não na essência da sua pedagogia. 1999).
6
Serrolândia foi fundada no início dos anos quarenta como
povoado de Serrote, pertencente ao município de Jacobina.
Tendo sido emancipada em 1962 (REIS, 1994), a sua popu-
1. A Escola Rural Particular lação, segundo dados do Censo Demográfico do IBGE, era
de 12.616 habitantes em 2000, sendo que 52% residia na
zona rural. IBGE.
A escola rural particular surgiu. provavel- 7
De acordo com Diomedes Reis o povoado começou a se
mente, com a finalidade de atender às necessi- formar em 1929 (1994. p. 16).

178 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 175-191, jul./dez., 2005
Tânia Mara Pereira Vasconcelos

... aí quando eu fui pra outra escola eu tinha tar o ensino do mestre ao nível do aluno.” Essa
dezessete anos, era uma légua (...) Aí Nivaldo distinção das classes, segundo o autor, indica
meu irmão, botava a farofinha na sacolinha. De uma conscientização da particularidade da in-
pés, e era o dia todinho, estudando o dia todo, aí
foi mais ou menos cinco meses e terminou a es-
fância.
cola. Agora num tinha esse negócio... nunca fiz Na escola rural que estamos analisando, a
prova, era só aqueles livros velhos. O livro que ausência da distinção de idades se reflete tam-
meu pai aprendeu, meu irmão mais velho apren- bém na pedagogia utilizada, que tinha como base
deu, eu aprendi, era o mesmo livro. Aquele livro a repetição do conteúdo dos livros que eram
antigo. (...) Os livros ensinava a ler, escrever e estudados em seqüência. A progressão do alu-
fazer conta. Nesses cinco meses eu aprendi qual- no se baseava na seqüência dos livros e não
quer coisa e saí sabendo fazer três tipo de conta,
só nesses cinco meses, porque estudava mes-
das séries. Vejamos os depoimentos de Seu José
mo e tinha que ler e fazer conta e num era esse Filho e Seu Edivaldo a respeito disso:
negócio... fazia mesmo. Primeiro ia estudar o ABC, depois vinha a cartilha,
A falta de acesso a uma escola mais próxi- depois da cartilha era o primeiro livro (...) aí no
terceiro livro eles achava que a pessoa já tava
ma, obrigava grande parte dos alunos a percor-
pronta...
reram longas distâncias, na maioria das vezes a
pé. Como a principal finalidade dessa escola Tinha lição, agora tinha o seguinte: se você qui-
parece-nos ser a de ensinar o aluno a “ler, es- sesse estudar um livro todinho numa semana,
crever e fazer contas”, diante das dificuldades você deixava aquele. Agora tinha que ler aquele
encontradas, ela deveria ser abreviada ao má- todinho e recordar, se você quisesse dar duas,
ximo, daí o seu caráter intensivo, funcionando o três ou quatro lição por dia cê dava (...) você
estudava de acordo sua inteligência.
dia inteiro por um período de cinco meses ape-
nas. A idéia de seriação era ignorada, uma vez A lição talvez fosse o parâmetro utilizado
que a forma de organização do ensino era ba- para medir o nível de “inteligência” dos alunos.
seada na seqüência dos livros e não em séries, Como, segundo o depoente, não se faziam pro-
não havendo nenhuma preocupação com a se- vas, o critério de avaliação, para que o aluno
paração das idades, como aparece no depoi- pudesse alcançar um outro estágio, era conse-
mento de Seu Edivaldo: “Quem tava no ABC guir fazer a leitura seqüenciada das “lições” de
era tudo junto com quem já tava no segundo e um determinado livro, e assim, poder “passar”
terceiro (...) tinha moça, tinha rapaz, tinha pe- para outro. O que se chamava de “estudar a
queno...” lição” consistia em conseguir memorizar o tex-
A indiferença em relação à idade dos alu- to indicado pelo professor. Nesse sentido, a in-
nos nos indica uma certa ausência, por parte teligência é confundida com capacidade de
dessa escola, do sentimento moderno de in- memorização. Vejamos o depoimento de Seu
fância, ou seja, a falta de noções de psicologia Alexandre Argemiro dos Santos, pequeno pro-
infantil, que distinguem as várias fases da cri- prietário rural, outro ex-aluno e ex-professor da
ança, segundo às quais a sua aprendizagem escola rural sobre a “lição de cór”:
depende do nível de desenvolvimento em que Porque a gente tem a lição e depois da lição tem
se encontra. um questionário, né? O questionário. Então vai
Philippe Áries (1981, p.173) destaca a rari- questionar a... algumas palavras da lição anteri-
dade, nos textos medievais, de referências à or pra ver se o aluno meditou aquela historinha,
idade dos alunos, o que indica uma indiferença se ele estudou. Se ele estudou a historinha do
passarinho, chamava o canarinho, lá adiante
à idéia de idade na Europa nesse período. So-
perguntava: “Como chamava o passarinho?” Aí
mente no século XVI, se inicia lentamente nos ele vai dizer que é o canarinho fulano de tal (...)
colégios a separação das idades, com a criação eu gostava muito de lição de cór. Sempre eu gos-
das classes escolares. “Esse processo corres- tava nisso, porque a gente meditava e desafia-
pondeu a uma necessidade ainda nova de adap- va, porque depois vinha a sabatina né?

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Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

Parece-nos que não havia nenhuma preo- medo que eu fazia: “Ói, quem num dá a lição hoje
cupação com o tipo de conteúdo transmitido, aqui ó, Maria Chiquinha!” Que era o nome da
sendo importante apenas a capacidade de me- palmatória, tá entendendo? E a régua Maria do
cabo comprido: “Ó qui Maria do cabo comprido,
morização do aluno. A sabatina era o principal cuidado!”(...) E os alunos... é com aquele tipo de
método utilizado para verificar a assimilação dos medo que eu fazia eles aprendia e dava lição.
conteúdos, durante quase todo o período estu-
dado e em todos os tipos de escola, o que refle- Seu Alexandre se orgulha do seu método de
te a permanência de uma pedagogia tradicional ensino extremamente rígido, defendendo vee-
trazida pelos Jesuítas no período colonial e que mentemente a “pedagogia do medo”. A impor-
se manteve até o século XX. O incentivo à com- tância dos castigos físicos, segundo a sua
petitividade entre os alunos devido ao “desa- concepção, não está apenas em punir o aluno
fio” que ela representava é defendido pelo que erra, mas na internalização do medo por
depoente que, por ser considerado um aluno “in- parte da classe. Não era necessário “execu-
teligente” batia mais que apanhava. As “vanta- tar” muito, uma vez que os alunos já tinham
gens” da sabatina como um bom método de consciência da possibilidade de serem punidos
ensino, são ressaltadas pelo depoente, que pro- a qualquer momento.
cura demonstrar também a utilidade da mistura Percebemos em seu depoimento uma espé-
de alunos de séries diferentes numa mesma cie de ideal civilizador, uma vez que coloca seu
classe: papel de professor como um destino, uma es-
pécie de “missão redentora”. Vejamos alguns
E sabatina é boa porque quando você chamava trechos que expressam esse ideal:
o aluno pra fazer, os outro já... já aprendia algu-
ma pergunta ali aquele que respondia. Quando o ...eu sempre dizia: não vou ficar neste trabalho.
menino chegava na segunda série, você acredi- Eu vou estudar e vou ser um professor. Isso era
ta que o aluno já tava muito inteligente porque meu destino (...) mas eu nunca quis ir pro Esta-
via os outro ali estudar, responder de cór. Eles do, eu dava valor muito à escola particular, que
aprendia, tá entendendo? Isso era muito impor- eu botei na cabeça que eu ia estudar pr’eu ser
tante. Como eu aprendi, muitos aprenderam. um professor, procurando onde não tinha alu-
nos... aonde não tinha escola, aonde não tinha
É interessante notar a naturalidade com que escola. Ah! O meu desafio era este (...) porque
os entrevistados tratam a sabatina. Embora al- eu saía daqui, as fazenda nunca tinha escola, aí
guns alunos falem do medo que ela lhes trazia, eu mudava.
nenhum deles questiona esse método. Fenôme- Sua preferência pela escola particular, es-
no semelhante acontece com a naturalização pecialmente em lugares onde não houvesse es-
do uso dos castigos corporais na escola, consti- cola, provavelmente se deve ao fato de não ter
tuindo-se parte de uma mentalidade a respeito que se submeter a nenhuma regra de caráter
da infância que vê a criança como um ser im- institucional, tendo a aprovação dos pais para
perfeito, que necessita de um penoso trabalho “executar” os castigos que considerava indis-
de adequação ao mundo adulto.8 O uso dos pensáveis à uma boa “aprendizagem”. Outro
castigos era parte essencial de uma pedagogia motivo dessa preferência, é que nesse tipo de
que impunha a “aprendizagem” e o “bom com- escola o professor Alexandre se considerava
portamento” através do medo. De todos os en- mais valorizado pelos pais dos alunos, inclusive
trevistados, Seu Alexandre, ex-professor da financeiramente.
escola rural particular e da escola municipal, é Nessa sociedade rural a relação entre o pro-
o maior defensor desse sistema. fessor e os pais dos alunos era muito importan-
Aí o povo sabia que eu era um... um professor
muito rígido, tá entendendo? Porque meus alu- 8
Em artigo publicado anteriormente faço uma discussão
no tinha que estudar mesmo, e então tinha régua mais aprofundada sobre o valor da criança, analisando re-
e tinha palmatória sim! Precisando a palmatória e presentações da infância ao longo da história. (VASCON-
a régua... mas eu não executava muito, mas só o CELOS, 2001, p. 54-75).

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Tânia Mara Pereira Vasconcelos

te e ia além do âmbito escolar, uma vez que as mínimos erros. Mary Del Priore (1999, p.97)
próprias aulas aconteciam na casa de uma das comenta a naturalidade dos castigos físicos
famílias, o professor fazia suas refeições tam- como forma de educar as crianças, no período
bém em uma das casas, o que pressupõe o es- colonial. “A correção era vista como uma for-
tabelecimento de certos laços. ma de amor.” Nos sermões dos padres jesuítas
Parece-nos que a relação do professor particu- o mimo dos pais, e principalmente das mães para
lar com os pais se baseava numa certa cumplicida- com os filhos, era combatido e considerado como
de, uma vez que os dois tinham a função de “educar” o responsável pelos desvios de conduta. A par-
a criança, para que esta pudesse se tornar um adul- tir da segunda metade do século XVIII, com a
to socialmente adequado. Para o professor Ale- instituição das Aulas Régias, a palmatória pas-
xandre, era imprescindível uma conversa com um sa a ser o principal instrumento de correção.
dos pais do aluno no momento da “matrícula”, para A permissão dos pais para que o professor
que ficassem estabelecidas as regras da relação pudesse bater em seus filhos se baseava nesse
entre o professor e os alunos: mesmo pensamento. A questão financeira re-
forçava essa cumplicidade, já que os pais não
...pra eu tomar o nome do aluno tinha que vim acom-
panhado com o pai, ou com o pai ou com a mãe. (...)
poderiam se sacrificar para pagar a escola do
Aí eu conversando mais ele: “Seu Antuzo, eu gos- filho se todo o tempo não fosse aproveitado de
to que o pai ou a mãe venha porque se o aluno forma séria: “estudar e não brincar”. O profes-
desobedecer e eu passar um bolo nele ou dar um sor deveria prestar conta do seu trabalho, mos-
castigo ele pode chegar em casa chorando (...). E trando os resultados, ou seja, o adestramento
qualquer coisa que o senhor não achar bom, aí o da criança. Para isso, o professor Alexandre
senhor diz: ‘Oh, Alexandre, meu aluno vai estudar, visitava todos os meses os pais dos alunos:
agora se merecer o senhor não vai bater’. Eu não
aceito, porque vai dar mal exemplo aos outro”. Como eu fazia visita aos pais (...) o professor ia
dormir na casa de fulano, pra saber a obediência
Parece-nos que os pais não tinham muita do aluno, se melhorou lá com os pais, se ele tava
escolha, mas provavelmente havia os que se sendo obediente, se ele tava achando diferença
posicionavam ao lado do filho, não admitindo os da escola. Se depois que ele colocou na escola,
castigos do professor, já que o depoente levan- se o aluno tava adiantado (...) ele tinha que ler
ta essa hipótese. No entanto, nos parece que a uma historinha e papai tinha que escutar, pra
saber se o dinheiro que ele estava pagando se
maioria deles era a favor do uso dos castigos
era bem pago.
físicos como o “melhor remédio” para a crian-
ça ser “educada”, uma vez que a própria rela- Mais uma vez aparece o “ideal civilizador”
ção entre pais e filhos geralmente se baseava da escola. A função de disciplinar a criança era
também no autoritarismo. A figura do profes- considerada talvez mais importante que a de
sor é, dessa forma, comparada à figura do pai: instruir, daí a necessidade da vigilância cons-
tante do professor, que não se restringia ape-
Eu mais o pai combinava assim: estando na casa
do pai era o pai, estando na minha casa o pai era nas ao momento das aulas. O controle disciplinar
eu. Então... eu nunca bati um menino de chegar e estabelecido sobre os alunos se estendia tam-
o pai vim contra mim, dizer: “Alexandre, porque bém à hora do recreio, na qual estes não podi-
você bateu meu filho?” Não, eles dizia assim: am sequer escolher as suas brincadeiras
“Você bateu pouco (...) que o professor é um preferidas, sendo controlados pelo professor
pai” (...) Porque eu conversava e ficava bem ex-
todo o tempo:
plicado e ele ia pagar o dinheiro, como pagava, e
pagava era pra estudar e não pra brincar. A brincadeira da gente não era a brincadeira de
recreio, de pular. Tinha o campinho de bola. (...)
A cumplicidade entre pais e professor na Eu achei que era bonito demais os aluno tudo
“educação” da criança se baseia numa concep- pra fazer gol, tá entendendo? As mulheres ia fa-
ção tradicional, segundo a qual para o seu bem zer rodinha de verso, mas eu num aceitava... elas
é necessário exigir-lhe sacrifícios, corrigi-la nos tinha que saber qual é a brincadeira, já me dizer:

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“professor eu vou... a nossa brincadeira hoje é preocupação com a separação das idades e das
essa.” Aí eu já escrevia: brincadeira fulana de séries. Ele afirma que classificava os alunos,
tá... da série fulana, sicrana, sicrana e se num separando os mais jovens dos mais velhos, em
brincasse eu mandava sentar no fundo lá da sala.
diferentes turnos. Além da tradicional “lição de
E se fosse brincar tudo, aí eu ficava corrigindo
as brincadeiras, quem brincava certo, quem não. cór” e do uso da sabatina, havia também a ava-
(...) Eu estava corrigindo o recreio. liação em forma de provas, inexistentes no estu-
do intensivo dos outros depoentes. A média de
A vigilância também se estendia ao “re- tempo que o aluno freqüentava a escola era de
creio”. É provável que a preferência do pro- quatro anos, sendo o primeiro ano destinado ao
fessor pelo jogo de futebol se deva à possibili- ABC e cartilha (fase considerada no ensino tra-
dade de exercer uma maior disciplina sobre os dicional como alfabetização) e os três seguintes
corpos, mesmo fora da sala de aula. No caso condensavam da primeira à quarta série. O ob-
das meninas era necessário que o professor jetivo do ensino, dessa forma, não se limitava
estivesse informado sobre o tipo de brincadei- apenas a levar o aluno a ler, escrever e contar.
ra, que deveria ser apenas uma para cada sé- Havia também uma grande preocupação com a
rie, para que assim ele pudesse controlar me- formação moral do educando. A escola aparece
lhor os passos dos alunos. Se cada pequeno como responsável pela formação do caráter.
grupo escolhesse uma brincadeira diferente, Nesse sentido, a necessidade do conhecimento
poderia se dispersar, fugindo do olhar vigilante individual do aluno se fazia necessária, daí a im-
do professor. portância das visitas aos pais. A preocupação
Segundo Michel Foucault (1979, p.218), a com a vigilância constituía-se, assim, imprescin-
vigilância constante se constitui uma das for- dível para a disciplinarização do educando.
mas principais de exercer o poder disciplinar. A chegada de mudanças pedagógicas na
“Um olhar que vigia e que cada um, sentindo-o escola pública, que, segundo o depoente, ocor-
pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto reu por volta de 1970, determinando o fim dos
de observar a si mesmo.” Esse poder age dire- castigos físicos, levou-o a deixar a instituição:
tamente sobre os corpos procurando tirar deles
Tem grande diferença. Quando veio a reforma
o máximo de produtividade, através do ades- do ensino, que a gente pegou o treinamento (...)
tramento. Esse período de reforma do ensino, que mudou.
A escola que estamos analisando se distan- Aí eu digo: oh pró, com Dolores, eu não vou
cia do que Foucault define como um aparelho ensinar escola mais pública. Eu vou ensinar onde
disciplinar moderno, uma vez que o poder disci- os pais queira que tenha execução nos aluno...
plinar, diferente da simples repressão, se impõe A citada reforma do ensino, era provavel-
de forma sutil, quase imperceptível, o que não mente baseada no ideal escolanovista, que ana-
corresponde à realidade de uma escola em que lisaremos adiante.
os castigos físicos são a base da pedagogia. No
entanto, ao compararmos as descrições conti-
das nos depoimentos sobre a escola rural parti- 2. A Escola Paroquial
cular, percebemos que a escola do professor
Alexandre se diferenciava das anteriores por A escola paroquial foi fundada no povoado
se aproximar mais do caráter institucional da de Serrote, em 1941, trazida pelo Padre alemão
escola moderna, fazendo parte do seu método Alfredo Hasller, que ficou muito conhecido na
de ensino alguns dispositivos disciplinares. É região de Jacobina como um “grande catequi-
provável que essa diferença seja devido à in- zador,” tendo fundado escolas em toda a mi-
fluência da formação recebida por ele como cro-região. O ensino era gratuito. As professo-
professor também da escola pública. ras eram formadas e vinham de fora, ficando
Em sua escola, apesar de funcionar também hospedadas em casas de pais de alunos. Essa
o sistema de classes multisseriadas, havia certa escola permaneceu no Povoado até 1951.

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Tânia Mara Pereira Vasconcelos

Alguns depoentes nos informaram que, du- sem a escola rural particular, mesmo sendo paga,
rante o período em que funcionou, a escola pa- com professores conhecidos, próximos da sua
roquial era a única existente no povoado, realidade, como no caso dos pais de Seu Ale-
funcionando com uma única sala de aula, nos xandre.
turnos matutino e vespertino. Dessa forma, aca- Como parte das exigências da escola pa-
bava substituindo o Estado, numa época em que roquial, a pontualidade e a higiene eram requi-
se propagava no Brasil a idéia de uma “educa- sitos indispensáveis aos alunos: “Tinha
ção para todos”. Provavelmente, nos pequenos disciplina mesmo e o horário, era horário bri-
povoados como Serrote, o ideal dos reforma- tânico, tinha que chegar na hora e sair na hora
dores escolanovistas estava muito longe de se (...) todo mundo de unha cortada e cabelo pen-
concretizar. Por conta disso, o Pe. Alfredo, teado...” (Seu Florisvaldo)
como fundador das escolas paroquiais, que ofe- A preocupação com a pontualidade e a higi-
reciam ensino gratuito, se tornou quase um mito. ene é parte de um ideal moderno civilizador que
A importância da escola paroquial no Povoado visa a disciplinar a população, interferindo no
de Serrote é ressaltada por um ex-aluno, Flori- seu cotidiano, procurando, assim, modificar há-
valdo Magalhães Souza, comerciante aposen- bitos e costumes. A disciplina da escola paro-
tado, que afirma: “Se não fosse Padre Alfredo, quial, enfatizada pelo depoente, era bastante
isso aqui só tinha analfabeto”. rígida, fundamentando-se numa moral religio-
O fato de a escola paroquial oferecer um sa. Os castigos, como na escola rural particu-
ensino gratuito poderia ser um motivo para atrair lar, eram muito freqüentes, se constituindo a
a população mais pobre, como nos afirmou D. base da pedagogia. A sabatina era o principal
Elisa de A. Moreira, professora aposentada e meio de verificação da assimilação dos conteú-
ex-aluna: “Era a única escola que tinha, vinha dos. A ex-aluna Elisa destaca a freqüência dos
menino da roça (...) estudava todo mundo, po- castigos físicos e a importância da memoriza-
bres e ricos”. ção nessa escola:
No entanto, a extrema organização e rigi- Por qualquer coisa apanhava, era uma coisa im-
dez da escola, comentada por todos os depoen- pressionante, as professoras batiam mesmo (...)
tes, talvez trouxesse exigências impossíveis de Botava de castigo se num desse a lição. Tinha
serem cumpridas por famílias mais pobres. Po- que aprender a lição de cór (...) tinha que apren-
demos comparar os depoimentos de D. Elisa, der de cór e salteado, e a professora perguntava
e tinha que responder ali, sem faltar uma vírgula.
ex-aluna e Seu Alexandre, que afirmou não ter
tido condições de freqüentá-la: A prova era a principal forma de “medir” a
aprendizagem do aluno. Nessa escola, ela era
Farda branca com gola marinheiro, gravata. A
farda era alinhada e todo mundo tinha que ir pra feita de duas maneiras: escrita e oral, uma ser-
escola de farda e sapato... (D. Elisa) via para atestar a validade da outra: “pra ver se
o aluno pescou”.
...quando eu peguei a estudar eu não tinha con- A desconfiança na validade da prova escri-
dições de ir para a escola paroquial porque eu ta, por parte das professoras, indica a existên-
não tinha condições de comprar fardinha e Pa-
cia de formas, encontradas pelos alunos, de
dre Alfredo tinha a fardinha. (Seu Alexandre)
burlar a vigilância e conseguir “pescar”. A ên-
O livro era comprado, uma dificuldade! Tinha fase na memorização dos conteúdos, sem a pro-
que mandar buscar em Jacobina, em Senhor do mover a reflexão, é característica dos dois tipos
Bonfim (...) Todo mundo tinha livro. Livro, ca- de prova. D. Elisa consegue se lembrar ainda
derno, lápis de cor. (D. Elisa) hoje, de conteúdos que teve que decorar na
O caráter institucional dessa escola, distan- época da escola:
te da realidade de uma população rural caren- Aí a professora perguntou o que era civilidade.
te, talvez fizesse com que alguns pais preferis- Mas menino! Eu não soube responder na prova

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Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

escrita (...) Aí minha mãe disse: “Quero ver se tu sa fazia parte. No depoimento abaixo, ela fala
num vai aprender pra responder na prova oral, da sua importância:
que ela vai perguntar, você vai ver.” Pois foi dito
e certo! Ela perguntou, aí eu respondi certinho: Tinha oração (na escola), iniciava com oração e
“Civilidade é o conjunto de formalidades usada encerrava com oração (...). Tinha catequese, ti-
na sociedade pelas pessoas bem educadas, tam- nha missa e tinha um grupo, eu mesmo era do
bém tem o nome de cortesia e boas maneiras, grupo (...). A Cruzada era um grupo de alunos
consiste em tratar com amabilidade as pessoas que tinham responsabilidade de distribuir folhe-
mais humildes e com... (...) esqueci... as mais exal- to. (...) se tinha o pai de um aluno doente, qual-
tadas.” (...) Marcou! Oh menina, ficou... e eu sa- quer coisa a gente dava notícia à professora...
bia. Mas era uma pressão tão grande que os pro- Era como um grupo de evangelização.
fessores faziam. Dava a prova e marcava tantos Parece-nos que esse grupo tinha uma fun-
minutos...
ção disciplinar, que funcionava como uma es-
Diferente da “historinha do canarinho” da pécie de vigilância, atuando, de certa forma,
escola de Seu Alexandre, exigir do aluno que como intermediário da relação escola-comuni-
soubesse “de cór e salteado” o que é civilidade, dade, mantendo as professoras sempre infor-
talvez tivesse muita importância dentro dos ob- madas sobre a vida das famílias dos alunos. A
jetivos da escola paroquial. A idéia de formar hierarquia era fundamental nesse sistema dis-
um “cidadão civilizado”, católico, cumpridor dos ciplinar. D. Elisa comenta os critérios de esco-
seus deveres, enfim, normatizado e disciplina- lha desses alunos:
do, certamente fazia parte dos objetivos dessa Através do comportamento... mais comportado
escola. O conceito de civilidade, que ficou gra- (...) era oração, um ajudava o outro... É uma ir-
vado na memória de D. Elisa, reflete o caráter mandade, entendeu? Depois disso, quando a
elitista do ensino católico tradicional. A distin- gente saía da Cruzada, que passava... que lá é
ção entre o tratamento que deve ser dispensa- até a adolescência, né? No final da adolescência
do às pessoas mais humildes e às mais exaltadas as meninas iam ser filhas de Maria, aí já mudava
a cor da fita, a fita já era vermelha...
indica, de certa forma, a justificação e a natu-
ralização das diferenças econômicas. A Cruzada provavelmente se constituía
Podemos perceber também, nesse depoi- como uma elite dentro da escola. O distintivo
mento, a pressão psicológica a que estavam utilizado por esse grupo, a fita azul com a me-
submetidos os alunos sujeitos a esse tipo de dalha, se modificava à medida que o grupo atin-
avaliação. Segundo Foucault (1999, p. 154), “o gia uma outra faixa etária. É provável que o
exame combina as técnicas da hierarquia que que diferenciasse esse grupo do restante dos
vigia e as da sanção que normaliza.” Ele exer- alunos fosse sua maior adequação à disciplina
ce o seu poder ao estabelecer sobre os indiví- desejada pela escola.
duos uma visibilidade que permite diferenciá-los. Os alunos da escola paroquial, eles eram prepa-
Na escola moderna, o exame tornou-se uma rados (...) A gente na época da Semana Santa,
forma privilegiada de impor a disciplina, por jejuava os três dias. (...) a turma que era da Cru-
permitir ao mestre levantar um campo de co- zada não tomava café, ia pra escola, lá pra o sa-
nhecimento sobre os alunos, podendo, assim, lão e depois os pais mandavam o café, a gente
tomava café já era tarde... (D. Elisa)
classificá-los hierarquicamente. A escola exa-
minatória marca o início de uma pedagogia que O sacrifício religioso aparece como mais
funciona como ciência. uma forma de diferenciação dos alunos da Cru-
A disciplina da escola paroquial era calcada zada. A dimensão religiosa dessa escola está
em princípios religiosos. Além de haver o ensi- relacionada a uma visão de infância que ideali-
no religioso nas aulas, os alunos deveriam ser za a criança como um ser puro e inocente. Esse
necessariamente católicos, freqüentando todas ideal nos remete ao mito da criança-santa, dis-
as missas e participando da catequese. Havia cutido por Mary Del Priore (1996, p.11-15).
um grupo denominado Cruzada, do qual D. Eli- Segundo a autora, no Brasil, os jesuítas foram

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Tânia Mara Pereira Vasconcelos

responsáveis pela elaboração dos primeiros Podemos identificar na escola paroquial de


modelos ideológicos sobre a criança. Na Euro- Serrote um sistema disciplinar baseado na hie-
pa, ao longo do século XVI, fabricou-se a de- rarquização, através de promoções e brindes:
voção ao menino Jesus. O sentimento de Final do ano assim, Pe. Alfredo trazia, fazia brin-
valorização da criança, a partir daí, esteve pre- de, alunos que mais destacavam ganhavam (...)
sente nos discursos dos jesuítas que, na inten- Tinha primeiro lugar, segundo lugar (...) Era pe-
ção de evangelizar os habitantes do “Novo las notas, somava comportamento também, viu?
mundo” davam preferências às crianças, con- Mais quase... o comportamento dos alunos na
sideradas como “o papel branco”, a “cera vir- escola era bom, porque a escola paroquial
catequizava mesmo. Era difícil ter um aluno insu-
gem”, mais propensos a aceitar os ensinamentos
bordinado na sala de aula, num tinha.(...) Todo
religiosos católicos do que os adultos. Nesse mundo entrava ali, era o mesmo comportamento,
sentido, a infância é percebida como um mo- como se estivesse na Igreja... (D. Elisa)
mento oportuno para a catequese. Com base
Para a depoente, o “bom comportamento”
nesse ideal, se formaram os primeiros colégios
era conseqüência da catequização, que atingia
do Brasil colonial.
a todos. Apesar dos dois ex-alunos que entre-
Municiados por um regime de normas a subme- vistamos não se lembrarem de haver “insubor-
ter a criança, os jesuítas ajudaram a fazer a pas- dinação” por parte dos alunos, através da
sagem entre a escola da Idade Média e o colégio
dos tempos modernos, substituindo a instrução
documentação escrita foi possível perceber que
técnica atabalhoadamente dirigida a jovens e essa disciplinarização não era assim tão hege-
velhos, por uma formação social e moral rigida- mônica, nem pacífica.
mente hierarquizada. (PRIORE, 1996, p. 14). Nos livros de matrícula a que tivemos aces-
A disciplina escolar teve origem na discipli- so, correspondentes a nove anos, foram encon-
na eclesiástica, sendo os jesuítas os primeiros a trados o registro de dez casos de expulsão de
alunos por “desobediência” ou “insubordina-
chamar a atenção para a especificidade infan-
ção”, o que indica ser este um fato muito pre-
til. Segundo Áries (1981, p.191), “ela era me-
sente nesta escola, especialmente entre os anos
nos um instrumento de coerção do que de
de 1944 a 1947. É significativo um caso de 1944
aperfeiçoamento moral e espiritual e foi adota-
sobre a expulsão de um aluno por desobediên-
da por sua eficácia por que era a condição ne-
cia. Em seguida seus três irmãos deixaram a
cessária do trabalho em comum”.
escola em protesto à essa expulsão. Este fato
A partir das análises de Michel Foucault
nos indica uma certa revolta por parte dos alu-
(1979, p.187), foi possível pensar a disciplina
nos e talvez dos próprios pais, contra a excessi-
como um novo tipo de poder, uma das grandes
va rigidez da escola. A partir de 1948 estes casos
invenções da sociedade burguesa. “É um tipo
não aparecem nos registros, o que nos leva a
de poder que se exerce continuamente através
pensar em duas hipóteses: teria havido a partir
da vigilância”. As disciplinas têm como princi-
desse momento um maior afrouxamento da dis-
pal objetivo a normatização, através do ades-
ciplina, ou os alunos se adequaram a ela, tendo
tramento dos corpos. A punição no sistema
sido realmente “catequizados”, como supõe a
disciplinar funciona através do mecanismo gra-
depoente Elisa. A segunda hipótese nos parece
tificação-sanção.
menos provável, pois não acreditamos na pos-
A divisão segundo as classificações ou os graus sibilidade da disciplina se impor de tal forma a
tem um duplo papel: marcar os desvios, hierarqui- ponto de não haver resistências.
zar as qualidades, as competências e as aptidões;
A escola paroquial tinha uma interferência
mas também castigar e recompensar. (...) A disci-
plina recompensa unicamente pelo jogo das pro- direta na vida da comunidade. A figura do Pe.
moções que permitem hierarquias e lugares. (...) O Alfredo, diretor das escolas paroquiais e líder
próprio sistema de classificação vale como recom- do catolicismo na região, era extremamente
pensa ou punição. (FOUCAULT, 1999, p.151). respeitada, exercendo talvez uma influência

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Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

maior que a do Estado. Suas funções ultrapas- mundo e principalmente dos pais dos alunos da
savam muito as sacerdotais: escola paroquial. Aí falaram que essa professo-
ra num era assim, amiga, que num procurava a se
Ele trabalhava em prol da comunidade. No lugar aproximar dos pais dos alunos. Eu sei que ela
que tinha escola paroquial ele era de parteiro a demorou bem pouco, Pe. Alfredo trocou (...) O
juiz. Freqüentava, visitava, conhecia todo pai... povo se ligava muito às pessoas.
conhecia todo mundo, num é? E ajudava a to-
dos... e ele receitava, ele trazia remédios, medica- Nessa sociedade, as relações pessoais so-
mentos... (D. Elisa) brepunham-se às profissionais, por isso a ex-
Mais uma vez podemos perceber a vigilân- clusão da professora da escola provavelmente
cia hierárquica, que ultrapassava os limites da não estivesse relacionada à sua competência
escola, atingindo toda a comunidade. As múlti- profissional. O professor, mesmo vindo de fora,
plas funções exercidas pelo Pe. Alfredo – ecle- para ser aceito, deveria se integrar à comuni-
siástica, médica, caritativa e pedagógica – dade, se tornando “amigo da cidade”.
provavelmente lhe conferiam o poder de maior Esse ideal nos remete à discussão feita por
autoridade dentro da comunidade. A Igreja, Sérgio Buarque de Holanda, em sua importan-
como um poder legitimado, procurava exercer tíssima obra Raízes do Brasil (1987), na qual
o controle social, facilitado pela penetração que procura traçar o perfil do homem brasileiro, que
a instituição escolar conseguia ter na comuni- seria “o homem cordial”. Formado na estrutura
dade. Em relação às professoras, seu papel tam- patriarcal da família brasileira, onde prevalecem
bém ultrapassava muito a simples relação o autoritarismo e a super-proteção, este homem
institucional, era parte das exigências da escola é avesso às relações impessoais típicas do Es-
que estas também estabelecessem uma rela- tado moderno. Resultando daí um “Estado Pa-
ção de proximidade com as famílias: trimonial”, onde as relações pessoais e afetivas
sobrepõem-se à capacidade técnica. Fugindo
... o cuidado que os professores tinham com os da lógica da sociedade moderna capitalista, que
alunos, eram verdadeiros pais, tinham cuidado
pressupõe valores racionais, no “homem cordi-
mesmo, e o Pe. Alfredo cobrava isso. Quando o
aluno adoecia o professor dava assistência. (...) al” predomina o comportamento emotivo, ex-
todos os problemas elas tavam por dentro, princi- tremamente intimista, onde o personalismo se
palmente dos alunos, num é? (...) Professores eram configura como principal elemento das relações
como se fossem pais e mães. A comunidade, todo entre as pessoas.
mundo gostava dos professores. (D. Elisa) Apesar das generalizações, as relações ana-
Podemos perceber nessa escola o ideal do lisadas por Sérgio Buarque nos ajudam a pensar
“professor-pai ou professora-mãe”, presente tam- determinados comportamentos, presentes ainda
bém na escola particular rural de Seu Alexandre, hoje em nossa sociedade, principalmente no in-
analisada anteriormente. A relação de cumplici- terior do Nordeste. Na escola paroquial, apesar
dade dos professores com os pais na educação de seu caráter institucional disciplinar, percebe-
das crianças era essencial numa comunidade ru- mos o mesmo caráter intimista nas relações en-
ral, em que a distinção entre o público e o privado tre pais e professores, analisados na escola
era quase inexistente. D. Elisa relata a história de particular. Essas características estão presentes
uma professora que, por não se enquadrar nessas nos três tipos de escola, se constituindo, desse
exigências, foi excluída da escola: modo, o principal elemento comum entre elas.
... muitos pais falaram a respeito de uma profes-
sora que teve aqui, que num era amiga (...) era
metida a importante (...) num dava muita impor- 3. A Escola Pública
tância às pessoas, num visitava, num conhecia
as pessoas, né? E eles já tavam naquele costume A escola pública chegou ao povoado de Ser-
dos professores ser amigo. O professor na cida- rote na década de cinqüenta. Entrevistamos
de era um amigo da cidade, era amigo de todo duas professoras estaduais, uma que lecionou

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Tânia Mara Pereira Vasconcelos

numa escola na “roça” e a outra em uma esco- começar as aulas, eu distribuía os cadernos...
la no Povoado. A primeira delas, D. Alaíde La- Diferente da professora que foi demitida da
ges Rocha Vieira, foi professora da Escola escola paroquial, porque “não era amiga da ci-
Rural Pau Ferro durante onze anos e oito me- dade”, D. Alaíde parece ter se integrado total-
ses, de 1952 a 1963, período em que morou com mente àquela comunidade, ao ponto de abrir sua
o esposo e os filhos nessa fazenda. A outra pro- casa para os vizinhos, realizando trabalhos que
fessora, D. Arionete Guimarães Souza, come- iam muito além da função de professora:
çou a lecionar no Povoado de Serrote, em 1958,
permanecendo como professora durante todo Eu não descansava lá, minha filha. Eu era pro-
fessora, eu era cabeleireira, eu era enfermeira.
o período estudado. As duas eram de Jacobina, (...) Quando era dia de domingo eu não tinha
tendo sido formadas em escolas de normalis- tempo pra nada, quando eu estava almoçando aí
tas. Nos depoimentos dessas professoras, per- chegava as alunas, as mães de alunas, primas,
cebemos algumas diferenças relativas à cunhadas, tudo pra eu cortar cabelo... Eu passa-
concepção de educação, que procuraremos va a tarde de domingo toda no alpendre da mi-
analisar comparativamente. nha casa, cortando o cabelo das moças. Quando
adoeciam... minha casa virou um posto de saú-
Como foi discutido anteriormente, nessa so-
de...
ciedade rural a relação do professor com a co-
munidade extrapolava o âmbito institucional. As múltiplas funções assumidas pela Pro-
Durante todo o período estudado e nos três ti- fessora Alaíde, de certa forma, parecem próxi-
pos de escola, a relação de proximidade entre mas da atuação do Pe. Alfredo, num período
pais e professores aparece de forma marcan- anterior, embora sem a dimensão religiosa.
te. D. Alaíde em seu depoimento demonstra, Numa comunidade rural sem nenhum tipo de
como nenhum outro professor, a importância serviço público, com exceção da escola, a rela-
que a escola tinha em sua vida cotidiana, ao ção da comunidade com a professora, vinda de
ponto de dedicar a esta um tempo muito maior fora, com outra condição econômica e outros
que o obrigatório: saberes, acabava por se tornar uma relação
paternalista ou “maternalista”.
Quando eu dava aula extra à tarde (...) ensinava
as meninas costura, ensinava os meninos a fazer No depoimento da professora Arionete apa-
cadeirinha, fazer mesa, trabalhos manuais (...) rece também essa relação de proximidade com
quando eu marcava o dia eles vinham com a a comunidade, embora de forma um pouco di-
sacolinha de comida, aí passava o dia, eles pas- ferente:
savam o dia. Eu almoçava e ia pra lá. (...) toda a
Eu recebi muito apoio e assim... convite pra al-
costura que eu sabia fazer eu ensinava as meni-
moçar, quase todo domingo (...) e faziam bande-
nas. (...) Elas adoravam, elas gostavam muito.
jas de coisa, mandavam me levar, mandavam me
Em seu depoimento, sua dedicação à escola levar presentes. Eu também quando ia pra
não aparece como um sacrifício mas como um Jacobina às vezes (...) eu também levava um, dois
prazer. Ela demonstra uma satisfação em ensi- alunos comigo, quer dizer, tudo isso facilitava a
amizade, né?
nar aquilo que sabia fazer e considerava útil para
os alunos. Além das aulas extras, ela ainda de- Nesse caso, como a professora morava fora,
dicava suas férias a produzir material, já que a parece-nos que a comunidade era quem abria
maioria dos alunos não podia comprar livros: as portas para ela, que procurava retribuir le-
vando alguns alunos para passar o fim de se-
...a maioria era pobrezinhos, eles não podiam
mana em sua cidade, fortalecendo assim os
comprar livros. O que eu fazia? Nas férias, eu
trabalhava as férias todas. Eu comprava cader-
laços de amizade. Mais uma vez aparece a
no, aí ia pros livro, ia resumindo os pontos (...) “amizade” entre pais e professores, caracterís-
Era minha distração. Eu trabalhava as férias to- tica do “homem cordial” de Sérgio Buarque. O
das fazendo esse trabalho, fazendo os cadernos paternalismo, muito comum nas comunidades
pra cada um. Quando terminava, já era tempo de do interior, se torna importante nessas relações,

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Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

na medida em que sustenta interesses mútuos. De Tempo de inverno lá, há trinta anos atrás era um
um lado a “consideração” e o “apoio” da comuni- sacrifício, era um horror. Os pobres dos meninos
dade em troca da “amizade” da professora. vinham de jegue, montado de jegue pra escola.
Tinha dia que eles chegavam bem molhados,
A escola da professora Alaíde, em alguns ensopados, tremendo de frio (...) Eu então pega-
momentos, conseguia movimentar a comunida- va roupa de minha filha, de meu filho e vestia
de através de eventos que promovia em datas aqueles mais molhados (...) e eu deixava a em-
comemorativas, sendo o Sete de Setembro a pregada arrodear o fogão (...) botava as roupa
principal delas. Mais que um ato cívico, esse dos menino pra ir enxugando. Quando termina-
dia se transformava numa verdadeira festa, va as aulas eles iam, trocavam de roupa e iam pra
envolvendo toda a comunidade: casa. (D. Alaíde)

Dia de 07 de setembro, eles todos fardados, cada


qual com sua mochilazinha de comida, aí saímos Nos três tipos de escola percebemos esse
marchando... tinha tambor, comprei tambor, com- ideal, que de certa forma, associa a imagem
prei bandeira. Aí saía marchando na estrada, até dos professores à dos pais. No entanto, ela apa-
a casa de João Cafundó. De lá então eu inventa- rece de forma diferenciada referindo-se ao pro-
va brinquedo, de pular de saco (...) fazia quebra- fessor ou à professora, refletindo a diferenciação
pote, fazia toda espécie de brincadeira, aí eles na definição dos papéis sociais do homem e da
passavam o dia brincando. De noite eles arranja- mulher, presentes nessa sociedade. Na escola
vam sanfona, violão, aí tocavam a noite toda e
de Seu Alexandre, o professor é associado ao
os pais, os irmãos, os amigos, dançavam a noite
pai, pelo seu poder autoritário, ao passo que,
toda até amanhecer o dia (risos).
tanto na escola que estamos analisando, quanto
A forma como a depoente se refere a essa na escola paroquial, por se tratar de mulheres,
festa reflete a importância que esta possuía professoras, estas são associadas à figura da
para aquela comunidade. Edite Vasconcelos mãe, aquela que cuida e protege.
Mota, uma das nossas entrevistadas, foi alu- As dificuldades enfrentadas por esses alu-
na da professora Alaíde, e também se refere nos para chegar até a escola, indica a impor-
à mesma festa, demonstrando um certo sau- tância que ela representa nesse mundo rural.
dosismo: Segundo as professoras entrevistadas, a mai-
... e tinha o desfile do dia sete também... tinha oria dos seus alunos era pobre, o que implica-
gente do Tanquinho, de Várzea do Poço... Era de va em dividir o tempo entre a escola e o
farda, os menino era fardado como soldado (...) e trabalho. A respeito disso, vejamos os depoi-
agora todo mundo levava uma sacolinha, era pra mentos das professoras Alaíde e Arionete, res-
fazer uma amarela e uma verde (...) pra levar co- pectivamente:
mida pra almoçar meio dia, era depois que acaba-
va o desfile. Tinha pau de sebo, tinha a brinca- Eu tinha uma base de quarenta e tantos alunos.
deira do saco, de pular no saco, tinha quebra- Agora, na época da colheita faltavam muito. Na
pote... pulava corda... hora da plantação eles faltavam também. Tinha
vez de faltar dez, vinte. (...) Quando eles podiam
Nessa forma de comemoração de uma data eles vinham. (D. Alaíde)
cívica, percebemos a mistura de elementos Havia evasão na época de colheita, porque na
modernos, urbanos, disciplinares - representa- época do plantio sempre era... acontecia na épo-
dos no desfile, em que os meninos se vestiam ca de férias, né? (...) Havia evasão, mas eles
de soldado - com elementos lúdicos, típicos de retornavam, né? (D. Arionete)
uma festa na “roça”, os jogos e brincadeiras, a Tudo leva a crer, que nesse sistema, em que
festa embalada pela sanfona, envolvendo toda as relações pessoais se sobrepunham às insti-
a comunidade. tucionais, a escola acabava abrindo mão de
O ideal do professor-pai, ou professora-mãe, certas exigências, sendo sensível às dificulda-
aqui se reflete na preocupação e cuidado com des pessoais dos alunos. Permitindo, por exem-
os alunos: plo, que todos tivessem retorno garantido às

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Tânia Mara Pereira Vasconcelos

aulas, caso precisassem se afastar por causa perguntar”, o que devia ser considerado a me-
de trabalho. lhor forma de testar o conhecimento dos alu-
Analisando comparativamente o depoimen- nos. Apesar de tratar esse método com
to das duas professoras, podemos perceber al- naturalidade, Edite relata o drama do colega,
gumas diferenças na abordagem que elas dão que não conseguia acertar nem as questões
à questão da educação, sendo o discurso da mais fáceis, provavelmente devido à pressão
professora Alaíde mais espontâneo, permeado psicológica sofrida nesse momento.
por questões afetivas e emocionais, enquanto o A professora Arionete se coloca contra o
discurso da professora Arionete parece mais uso da palmatória, utilizando outros métodos para
ideológico, carregado de elaborações teóricas, manter a disciplina da classe:
próprios da pedagogia moderna, exemplo disso, ...quando pintava demais eu num dava recreio,
é a utilização do termo evasão. A questão da né? E outras vezes também eu fazia o seguinte: o
disciplina também é tratada de uma forma dife- quadro era muito grande, né? Então eu fazia...
rente pelas duas professoras, embora ambas se mandava fazer frases no quadro, ou escrever
diferenciem dos outros professores entrevista- números no quadro (...) era uma maneira de acal-
dos, por não defenderem o uso dos castigos. mar. Também eu fazia o seguinte: aqueles alunos
melhores, assim, de comportamento melhor, que
Na escola da professora Alaíde, havia a per-
estudavam muito, às vezes eu levava lá pra casa
manência de práticas tradicionais como o uso pra almoçar (...) às vezes eu levava ele pra fazer o
da palmatória, embora ela não admita que cas- dever lá em casa comigo, pra explicar direitinho,
tigava seus alunos: aconteceu muito isso (...) mas eu nunca usei pal-
matória, eu tinha horror...
Eu não dava castigo, eu botava em pé. Quando
um tava sendo impossível eu botava no canto, Percebemos uma mudança na forma de
na parede... dez, quinze minutos. Quando era punir os desvios, típica da escola moderna. Não
Matemática eles não gostavam. Tinha deles que mais o castigo físico, mas sim a punição sutil
não gostava de Matemática, então eu fazia sa-
como forma de corrigir os erros. Segundo Fou-
batina, eu fazia a volta, aí eu ia perguntando.
Aqueles que num soubesse, o que respondesse cault (1999, p.150), “os sistemas disciplinares
certo: dois, três bolo. Eu não sabia bater não, se privilegiam as punições que são da ordem do
eu fosse bater, quem apanhava era eu (risos). exercício - aprendizado intensificado, multipli-
Então eu fazia sabatina pra eles mesmo, né?... cado, muitas vezes repetido”, tendo a função
Fazer a consciência deles. de reduzir os desvios, sendo essencialmente
A sabatina acabava sendo uma maneira de corretivo. A concessão do privilégio aos “me-
promover a disciplina, sem que fosse necessário lhores alunos” de uma proximidade maior com
a professora aplicar pessoalmente o castigo. a professora, faz parte desse mesmo sistema
Como ela “não sabia bater” encarregava os pró- normatizador, através do mecanismo gratifica-
prios alunos “de fazer a consciência deles”. Edi- ção-sanção, que hierarquiza os indivíduos e di-
te, uma de suas alunas, comenta essa prática: vide-os entre os bons e os maus.
É provável que o ideal escolanovista tenha
Ela não batia não, só batia na hora de perguntar chegado à Serrolândia, através dessas escolas
(...) porque antigamente a gente lia tabuada e aí
ia perguntar, né?... Fazia uma fila assim, aí ficava estaduais, com professores concursados, que
perguntano tanto mais tanto?... Aí tinha um me- participavam de cursos de atualização em Sal-
nino lá, que era tão rude, tadinho, que ele ficava vador, conforme nos informou a depoente, que
todo se espremendo assim, perguntava dois mais na década de sessenta passou a ser Coordena-
dois, ele só falava errado. dora Municipal de Educação, sendo portanto,
Mais uma vez, podemos perceber a natura- responsável por repassar os novos valores para
lidade com que a sabatina era vista. Contradi- os outros professores.
toriamente a professora “não batia”, talvez como ...num era aquela escola mais tão tradicional como
uma forma de castigo, mas apenas “na hora de era antigamente (...) a minha época já estava co-

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Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

meçando a mudar (...) As aulas já eram mais aber- culo XX, a respeito da infância e da escola. O
tas, o ensino já era melhor (...) nós tínhamos trei- pensamento escolanovista representava o ideal
namento em Salvador final do ano, mês de janei- científico-burguês que visava à normatização.
ro nós íamos, só retornávamos em março. Os
professores né? Todo mundo quentinho, todo
Os novos métodos empregados pela pedagogia
mundo preparado por professores de faculdade. científica se baseavam na análise meticulosa
(D. Arionete) de cada aluno, para através do conhecimento
individual, ser possível classificar, mensurar,
É evidente o discurso da mudança, carrega-
excluir e finalmente normatizar. O otimismo
do de um ideal progressista. A formação pro-
pedagógico característico desse movimento
fissional, para a depoente, seria a responsável
conta com a natureza. “Nas representações que
pela transformação da educação. Com base
o articulam a natureza infantil é matéria plásti-
num ideal cientificista essa escola prima pela
ca e plasmável, desde que respeitada no seu
eficiência. Ao ser questionada a respeito da dis-
vir-a-ser natural.”
ciplina aplicada aos seus alunos, a depoente
O papel da ciência pedagógica seria, então,
responde com base na legalidade:
o de guiar a “liberdade” do aluno, coibindo as
Tinha o estatuto, num é? (...) O estatuto você paixões, de modo a conseguir o máximo de fru-
sabe que a lei que rege todo o estabelecimento, tos com o mínimo de tempo e esforços perdi-
num é? Então a disciplina dos alunos era o se-
dos. A infância, a partir desse pensamento, seria
guinte: primeiro a exigência de fardamento, né?
Naquela época, a farda bem cuidada, exigia a far- a fase da formação do futuro adulto, através do
da bem cuidada e... a disciplina era muito boa (...) ajustamento da natureza infantil aos fins postos
os alunos eram bem disciplinados, não é? (...) pela sociedade.
eram muito conscientizados, nós não tínhamos Podemos concluir que a idéia de moldar a
problemas com disciplina não, e também eram criança está presente nos três tipos de escola,
muito estudiosos, cada um queria estudar mais embora os métodos e o discurso utilizados para
que o outro. Era uma beleza! (D. Arionete)
conseguir esse fim sejam diferentes. A idéia da
Podemos perceber o otimismo pedagógico especificidade infantil aparece de alguma for-
característico do escolanovismo. A idéia de ma em todas elas. No entanto, a idéia do que
conscientização dos alunos tem por base um representaria essa especificidade se diferencia,
ideal de eficiência escolar que atingiria a todos, sendo três, as representações da infância per-
conseguindo a normatização. O estatuto era a cebidas por nós através dos discursos: 1. a cri-
garantia de neutralidade. Não mais a escola que ança associada ao mal que precisa ser reprimida
castiga de forma arbitrária, mas sim a escola através da educação; 2. a criança como um ser
eficiente e harmônica, que segue “direitinho” a puro e inocente, que necessita ser preservado
norma. do mundo adulto, através da religião; 3. a crian-
À luz do pensamento foucaultiano, Carva- ça como um ser dotado de liberdade, embora
lho (1979. p.286) analisa o discurso produzido precise ser guiada de forma racional, através
no Brasil, nas quatro primeiras décadas do sé- da disciplina.

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Recebido em 30.05.05
Aprovado em 09.08.05

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 175-191, jul./dez., 2005 191
Ana Rita Santiago da Silva; Rosângela Souza da Silva

A HISTÓRIA DO NEGRO NA EDUCAÇÃO:


ENTRE FATOS, AÇÕES E DESAFIOS

Ana Rita Santiago da Silva*


Rosângela Souza da Silva **

RESUMO

O texto resulta de pesquisas no Curso de Mestrado em Educação e


Contemporaneidade, da UNEB, discute as desigualdades educacionais vividas
pelos afrodescendentes, como uma das conseqüências do projeto de educação
elaborado no processo de abolição da escravatura no Brasil. Apresenta também
iniciativas em torno da educação, organizadas pelo povo negro brasileiro e as
implicações das questões étnico-raciais e sociais no desenvolvimento de ações
para se contrapor às desigualdades educacionais existentes na atualidade.
Palavras-chave: Resistência – Exclusão – Educação – Negro

ABSTRACT

BLACK HISTORY IN EDUCATION: BETWEEN FACTS, ACTIONS,


AND CHALLENGE
The text results of searches course of Master in Education. It discusses unlike
educations lived out descents of Africans, how one of consequences of project
of education colony. Presents also initiatives, into of educations organizations
in black Brazilian people.
Keywords: Resistance – Exclusion – Education – Black

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele foi de fato.
Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de
um perigo. (...) O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privi-
légio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão
em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (...).
Existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa.

*
Mestre em Educação e Contemporaneidade, pelo Programa em Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade, no
Departamento de Educação Campus I – Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Desenvolveu sua pesquisa sob a
orientação da Profª Narcimária Correia do Patrocínio Luz. Professora das Faculdades Jorge Amado. Endereço para
correspondência: Faculdades Jorge Amado, Av. Luis Vianna Filho, n.6775, Paralela – 41745-130 Salvador-BA. E-mail:
asantewaa@terra.com.br
**
Mestre em Educação pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Desenvolveu sua pesquisa sob a orientação da
Profª Ana Célia da Silva. O projeto dessa pesquisa foi premiado no III Concurso de Dotação de Pesquisa Negro e
Educação, organizado pela Fundação Ford, Ação Educativa e a Anped. Professora da rede pública estadual de ensino.
Endereço para correspondência: Colégio Estadual Imaculada Conceição, Rua Calamar s/nº, Conceição I – 44100-000
Feira de Santana/BA. E-mail: nozipo13@yahoo.com.br

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 193-204, jul./dez., 2005 193
A história do negro na educação: entre fatos, ações e desafios

Alguém na Terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos
concedida uma frágil força messiânica para qual o passado dirige um apelo. Esse
apelo não pode ser rejeitado impunemente. (Valter Benjamim).

Introdução construções alternativas educacionais e edifi-


cações de outras comunalidades, frente às ad-
Ao retomarmos a História da Educação no versidades colocadas naquele contexto histórico.
Brasil, perceberemos como as especificidades Há ainda uma discussão sobre a exclusão
étnico-raciais e sociais delineiam trajetórias di- de temas relativos à história e à cultura negra
ferenciadas para grupos que compuseram esse nos currículos; referindo-nos à maneira estere-
país. O déficit educacional, vivido pelo povo otipada e preconceituosa com que o negro vê a
negro brasileiro, desde o sistema escravocrata, sua história sendo tratada nos livros didáticos e
ainda perdura, de forma perversa, na configu- no cotidiano escolar. Por fim, este estudo abor-
ração atual da sociedade brasileira. Revela-nos da a falta de políticas que assegurem o acesso
ainda como os veios excludentes, sobre os quais e a permanência da população de baixa renda
se estruturou a sociedade brasileira, determi- nas escolas e apresenta algumas iniciativas con-
nam o quadro atual das desigualdades educaci- temporâneas, desenvolvidas pelas organizações
onais1 da maioria da população negra. Mas negras em torno da educação.
discute também ações educativas, forjadas em
favor da promoção da dignidade e dos direitos
sociais dessa população. 1. O negro e a educação no Brasil:
Este texto trata de uma História do Negro uma história de exclusão
na Educação, perfilada por estratégias e modo
de resistências que rompem fronteiras estabe- Ao conhecermos a história da educação no
lecidas pelo regime escravista, inicialmente, e Brasil, e, sobretudo, o processo e o período de
excludente, até aos nossos dias. Permite com- inserção dos negros na educação brasileira,
preender, por exemplo, que para os egressos percebemos que se constituem em uma traje-
do sistema escravocrata tal trajetória e realida- tória permeada por conflitos, contradições e
de, mesmo frente aos impedimentos conjuntu- exclusão. Embora haja registros históricos, na
rais e estruturais, são marcadas por desafios e primeira metade do século XIX, que indicam a
ações que se contrapõem, de modo veemente presença de africanos escravizados nas esco-
e incisivo, aos lugares sociais que lhes são des- las públicas paulistas e mineiras, ainda nesse
tinados e/ou predeterminados dentro das estru- mesmo século fora decretada a Lei nº. 133 do
turas sociais. Discute também ações educativas, Município da Corte, que proibira a entrada de
forjadas em favor da promoção da dignidade e africano escravizado na escola oficial (MAR-
dos direitos sociais dessa população. CÍLIO, 2005, p.32; 69). A crise do escravismo,
Ao propor o aguçamento e a ampliação dos ao final do século XIX, repercute de várias
olhares sobre parte dessa história, o presente maneiras na dinâmica social da época. Um dos
artigo apresenta como, desde as origens, as ini- seus impactos se configura com a permissão
ciativas postuladas pelas classes dirigentes da aos africanos escravizados a terem acesso ao
época elaboraram uma educação para os ex- ensino. Só nesse período de transição do Impé-
escravizados, regida por uma lógica moral, reli- rio para a República, com o advento das leis
giosa e social que os conservassem no mundo
da produção e da submissão. Contrapondo-se
1
Ver em Gomes (2004) dados da pesquisa realizada pelo
a essa lógica, apresentamos também as ações, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA): Desi-
desenvolvidas pelas organizações negras. Tra- gualdade racial no Brasil: Evolução das Condições de Vida na
zemos também à tona o processo de emanci- década de 90. Dados do DIEESE, Rio de Janeiro: Edição
Especial, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, 2003,
pação dos cidadãos negros, através de p. 13.

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Ana Rita Santiago da Silva; Rosângela Souza da Silva

abolicionistas, sobretudo da Lei do Ventre Li- população, bem mais numerosa, constituída por
vre, em 1871, e, em seguida, a Lei Áurea, em mulheres, nativos e africanos, não cabia esse
1888, a elite brasileira passou a se preocupar direito. Ao se considerar a história da educa-
com o contingente de escravizados. Onde co- ção, denota-se que o acesso dos negros à edu-
locá-los? Como abrigá-los? Como ocupá-los cação, além de tardia, não lhes garantira
para que sejam evitadas as desordens nas ruas? devidamente a inclusão. Durante o escravismo
A educação, então, fora uma alternativa de e o predomínio da oligarquia rural, não se con-
superação desse impasse, embora as preocu- cebia sequer a alfabetização dos africanos, haja
pações de diversos segmentos sociais, naquele vista que prevalecia, por um lado, a concepção
momento, fossem tão somente o estabelecimen- de que eram destituídos de inteligência e de
to e a manutenção da ordem. Essa seria uma alma. Por outro, a eles cabia apenas o trabalho
preocupação recente, visto que, até então, no doméstico e braçal, logo não havia necessidade
modelo escravagista, a ordem era mantida atra- de adquirir outros saberes e conhecimentos.
vés dos castigos e da violência. O discurso ofi- Além disso, a escolarização para os africanos
cial, através da Constituição de 1824, da Lei do e seus descendentes significaria possibilidade
Ventre Livre, de 1871, e dos decretos nº 7.031, de insurgência e de tomada de consciência. Isso
de 1878, é um exemplo contundente, segundo é reiterado por Fonseca (2001, p. 14):
Cunha, que “... demonstram que os governan- A educação tornava-se, assim, um ponto de dis-
tes queriam fazer reformas sem mudar as es- córdia, pois dividiria as práticas que regiam o
truturas internas e garantir a ordem e o mundo do trabalho à medida que conferia um novo
progresso, adequando a esta sociedade essa status às crianças nascidas livres de escravas.
nova camada social de ex-escravos ...” (CU- Significaria também, de acordo com Rodrigo A.
NHA, 1999, p. 71-72). Silva, que essas crianças poderiam ser retiradas
do trabalho produtivo para receberam instrução,
Ao referir-nos à educação no Brasil, sob a
o que não só afetaria os lucros dos senhores,
ótica étnico-racial, somos levados a tratar da como despertaria o descontentamento entre os
desigualdade e da exclusão, no que tange ao escravos que não possuíssem esse benefício.
acesso aos bancos escolares, vividas pela po-
O período de abolição da escravatura provoca
pulação não-branca. Por mais de duzentos anos,
um debate sobre o negro e o seu acesso à educa-
os africanos escravizados não tiveram nenhum
ção. Só o processo de elaboração e de execução
tipo de oportunidade de estudo formal. Inicial-
da Lei do Ventre Livre, por exemplo, torna-se um
mente, o processo de alfabetização dos negros
momento em que há um conjunto de discussões e
se deu em base de atos de caridade e, quando
de experiências educacionais envolvendo negros
muito, de filantropia. Até a metade do século
(MALHEIROS, [1867]1976, v. I, p.156). As im-
XX, o Brasil era destituído de política educaci-
plicações do cumprimento da Lei do Ventre Livre
onal, conforme já afirmara Siss (1999, p. 63):
e do projeto educacional, propício para as crian-
A existência de uma efetiva política educacional ças livres nascidas de escravas, provocam deba-
estatal no Brasil, porém, data de pouco mais de tes entre intelectuais, parlamentares e proprietários
meio século. Até então e sob o pulso escravocrata
e oligarca rural, “O Brasil reservou a aprendiza-
diretamente interessados com a preparação dos
gem letrada para a classe dirigente, tanto que até negros para a liberdade, sendo a educação o foco
na década de 20 apenas 25% da população brasi- principal. Em relação a isso, Fonseca, citando
leira era alfabetizada” (Linhares, 1995, p. 09). Cons- Malheiros, afirma:
tata-se que uma imensa maioria do contingente
Mas pergunta-se: que educação deve receber
populacional brasileiro estava excluída do pro-
estas crias, que aos 21 anos2, por exemplo, têm
cesso educacional ...
A escolarização, até esse período, foi de res- 2
No item 1 do parágrafo 1º da Lei do Ventre Livre, o senhor
tinha o direito de explorar as crianças até 21 anos de idade,
ponsabilidade particular e privilégio dos senho- caso quisesse. Senão poderia entregá-las ao Estado median-
res e de seus filhos homens. À outra parcela da te indenização. (FONSECA, 2002).

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A história do negro na educação: entre fatos, ações e desafios

que entrar no gozo pleno dos seus direitos? Res- ocupação para com a educação do escravo
pondo que aquela que for compatível com suas centrava-se sobre as conseqüências para com
habilitações e disposições naturais, com as fa- as relações de produção e não necessariamente
culdades dos senhores, com as circunstâncias com a integração do negro na sociedade brasi-
locais. O essencial é que além da educação mo- leira. Em outras palavras, a preocupação não era
ral e religiosa, tomem uma profissão, ainda que para com o futuro dos africanos a serem libertos,
seja de lavradores ou trabalhador agrícola; ele mas, com a manutenção da ordem produtiva.
continuará aí se lhe convier, ou irá servir a ou- (ROMÃO, 2001, p. 341-342).
trem, ou se estabelecerá sobre si; em todo caso,
aprenda um ofício mecânico, uma profissão, que No que se refere às discussões, relativas às
possa tirar recursos para se manter e a família, se crianças protegidas pela da Lei do Ventre Li-
tiver. Alguns poderão mesmo ser aproveitados vre, Fonseca declara:
nas letras ou em outras profissões, as escolas ... a articulação entre abolição e educação – tal
lhes são francas, como livres que serão por nas- como se deu nos debates relativos à libertação
cimento. Obrigar os senhores a mandá-los a elas do ventre – não foi colocada em destaque para
é ainda problema a resolver; a instrução obriga- proteger as crianças que nasceriam livres. No
tória ou forçada não está admitida entre nós, nem fundo, o que ela verdadeiramente expressa é a
mesmo para os demais cidadãos livres. Os se- tentativa de minimizar o impacto que o fim do
nhores devem ter para isto um prudente arbítrio, trabalho escravo poderia gerar no perfil da soci-
como aos pais é dado em relação aos filhos. edade brasileira, que receberia um número signi-
(MALHEIROS, [1867]1976, v. I, p.156, apud FON- ficativo de indivíduos originários do cativeiro
SECA, 2002, p. 43-44). na condição de cidadãos livres. (FONSECA,
Conjeturando sobre a educação para os ne- 2002, p. 13).
gros, Malheiros (1867), citado por Fonseca, Quem teria o dever de assegurar o acesso
acentua uma certa imprevisibilidade quanto à das crianças livres à educação? Seria o gover-
resolução desse problema, quando evidencia a no do Império ou os senhores? Se esses assu-
relação do escravizado com o tipo de educação missem tal compromisso, seriam indenizados?
que a ele seria destinado e quando evoca as Diante do impasse, surgiram, com o auxílio do
possibilidades dos senhores e os limites locais governo, a partir de 1879, as associações para
como situações que delineariam essa educação. recolhimento e para educação de crianças fi-
Ainda enfatiza a importância de se manter a lhas de escravas, porém nascidas livres. Poste-
educação “moral e religiosa”, que atuaria como riormente a 1879, o Ministério da Agricultura,
mecanismo de sujeição e abnegação daqueles responsável pela política educacional do Brasil
sujeitos aos moldes da época. O paradigma Colônia, recua em relação ao fomento ao sur-
educacional do século XIX postulava caminhos gimento de associações de amparo àquelas cri-
que provavelmente (re)conduziriam os negros anças. Esse refluxo traz à tona, como tão bem
a continuarem sendo produtores de riquezas dos declara Fonseca (2001, p. 18), mais uma vez o
grupos dominantes, sendo “lavradores, mecâ- debate sobre a responsabilidade com os filhos
nicos, servindo a quem lhe convier” e manten- de africanas escravizadas e com a sua educa-
do a ordem social vigente. Certamente, o ção. Toda essa discussão trouxe, em seu bojo,
cumprimento desses postulados permitiria que a preocupação, não com o futuro e a realização
eles continuassem a compor os estratos sociais dos indivíduos, mas com a preparação dos fu-
mais baixos da sociedade. O seu ingresso na turos trabalhadores – por conseguinte, com a
escola se deu graças aos interesses com a pro- produção e a riqueza – e com o combate aos
dução e não com a sua integração na socieda- vícios e às más inclinações que esse grupo
de. Romão nos assegura mais incisivamente traria das senzalas ou da sua condição de es-
qual o papel da educação para o negro: cravizado.
A educação para o negro se torna necessária Em 1879, vigorava uma preocupação: o Im-
como adestradora e garantia da manutenção da pério deveria indenizar os senhores por cada
força de trabalho. Importante ressaltar que a pre- criança livre que a ele fosse entregue. Naquele

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Ana Rita Santiago da Silva; Rosângela Souza da Silva

ano, as crianças livres nascidas de escravas futuro das próximas gerações, excluindo-a as-
completariam oito anos de idade. Caso os se- sim da participação dos estratos ocupacionais
nhores as entregassem ao Estado causaria um e sociais mais elevados. Destarte, a omissão
“... colapso na organização financeira do Im- do Estado, no sentido de promover efetivamen-
pério, pois não só acarretaria a mobilização de te a educação das crianças livres, nascidas de
enormes recursos para a indenização dos se- escravas, possibilitou, eficazmente, que o défi-
nhores, como não havia um número de associ- cit educacional se consolidasse para os descen-
ações que pudessem receber tal quantidade de dentes de africanos escravizados.
crianças”. (FONSECA, 2002, p. 73). Tal procedimento demonstra a inexistência
Mas contrapondo-se a essas expectativas, de propostas políticas orientadas no sentido de
o relatório do Ministério da Agricultura de 1885, garantir efetivamente uma educação que pre-
apresenta: parasse os ingênuos e os libertos a gozarem
... do total de 403.827 de crianças apenas 113 da sua liberdade, quiçá da cidadania. O pouco
foram entregues ao Estado mediante a indeniza- interesse para se pensar e operacionalizar as
ção insignificante de 600$000. Uma quantia in- questões de cunho educacional e social obstruiu
significante, não chega a responder a 1% do bem como fragilizara as tentativas de mudança
número total de crianças nascidas livres de mãe que viessem a “beneficiar” os ex-escravizados
escrava em todo o País. O que representa que dentro daquela sociedade.
essas crianças estiveram durante todo o perío-
do em que esteve em vigor a Lei 2040 pratica-
mente nas mesmas condições que os trabalha-
dores escravos, sendo educadas sob os mes- 2. Os negros e a educação: tran-
mos moldes. Ou seja, uma educação que trans- sitando entre sentidos e signifi-
corria no espaço privado, onde a atribuição dos cados
senhores era de criar3 os menores sem nenhuma
obrigação de prestar conta a respeito dessa cri- A transição do século XIX para o XX de-
ação. (FONSECA, 2002, p. 96-97).
marca profundas mudanças nas relações de tra-
Tomada como instrumento que possibilita- balho e de produção, no que se refere aos
ria a integração dos negros àquela sociedade valores sociais e as outras formas organizacio-
em transformação, a educação dos ingênu- nais da sociedade brasileira. Essa, naquele pe-
os4 e dos libertos foi negligenciada e minimi- ríodo, estava bastante motivada pelos anseios
zada pelo Estado nas suas intenções e ações. por modernização e, ao mesmo tempo, atrelada
Isso oportunizou aos que se serviam das prer- às estruturas sociais, políticas e econômicas
rogativas da lei, durante o processo da Aboli- arcaicas. No que tange aos os ex-escraviza-
ção da escravatura, manter os negros dos, vítimas de um processo histórico de exclu-
circunscritos ao mundo da produção (os futu- são e abandono e compelidos a adequar-se a
ros trabalhadores livres) e hierarquicamente uma nova ordem social, continuaram a opera-
no lugar e com as condições estabelecidas
pelo regime escravocrata.
3
Ao criar os menores, os senhores não tinham obrigação de
Não são poucos os procedimentos utiliza- educá-los, isto é, uma educação no espaço público com a
dos pelo Estado, que indicam o descaso com a instrução elementar, preparando-os para a vida como pes-
educação dessa população: facultou aos inte- soas livres. (FONSECA, 2002).
4
Terminologia herdada do direito romano; é a denomina-
resses dos senhores, ao deixar brechas na lei5; ção atribuída às crianças livres nascidas de escravas. Para
fomentou a criação de asilos agrícolas para uma análise da aplicação dessa terminologia, ver Fonseca
(2002).
cuidar das crianças; equiparou os problemas das 5
No artigo 7º, parágrafo 1º da Lei do Ventre Livre, reza que
crianças livres nascidas de escravas aos das os libertos ficariam “... sob a autoridade dos senhores de
crianças desamparadas. Isso marca, de forma suas mãis, que exercerão sobre elles o direito de patronos, e
terão a obrigação de crea-los e trata-los, proporcionando-
indelével, a história sócio-educacional da popu- lhes sempre que for possível a instrucção elementar”. (grifos
lação negra, comprometendo, de modo tenaz, o nossos). (FONSECA, 2002, p. 49).

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 193-204, jul./dez., 2005 197
A história do negro na educação: entre fatos, ações e desafios

cionalizar mecanismos de enfrentamento e de Outro aspecto a ser destacado também na


resistência para subsistir aos degredos da nova imprensa negra da época é a sinonímia que se
configuração social. faz de “educação e cultura”. Os propugnado-
Neste contexto, a questão educacional cons- res da importância do acesso à educação apre-
titui-se em um leitmotiv para a comunidade sentam locais e atividades, consideradas
negra. Ampliam-se a ação e o fortalecimento importantes para serem freqüentados e reali-
das organizações de protesto negro em várias zadas pelos negros, tais como: bibliotecas, con-
regiões do país. Desencadeia-se um processo ferências, teatros, representações teatrais,
de mobilização política e educacional entre os concertos musicais e outros. Segundo essa óti-
negros, pois, como afirmam Cunha Júnior e ca, todo esse arsenal sociocultural contribuiria
Gomes (2003, p. 5): “As ações dos movimen- para a formação política e intelectual da comu-
tos negros do início do século XX foram todas nidade negra.
no sentido do incentivo à população afrodes- É salutar destacar que tais preocupações e
cendente para a educação. Os jornais da co- ações referentes à educação, naquela época,
munidade negra retratam estas campanhas.” em que a maioria da população adulta negra
Dessa forma, a preocupação com a questão era analfabeta, serviram de incentivo ao domí-
educacional era propalada em jornais da impren- nio das letras pelas entidades do movimento
sa negra paulista. Antunes Cunha, citado por negro. Isso foi fundamental, porque fortaleceu
Gonçalves e Silva, declara que: “... o jornalis- o processo de reivindicações políticas, de com-
mo negro, real instrumento de luta dos afrodes- bate ao preconceito e à discriminação racial e
cendentes na primeira metade do século XX, ainda potencializou o caráter emancipatório do
tenha se constituído em fator importante na ponto de vista da formação pessoal e político-
educação e desenvolvimento do povo negro ...” social da comunidade negra. Além disso, nota-
(CUNHA, 2000, apud GONÇALVES; SILVA, bilizou o compromisso que instituições negras
2000, p.140). assumiram naquele contexto histórico.
Imbuídos por demonstrar aos negros o ca- Vale a pena ainda salientarmos as críticas
ráter emancipatório que a educação teria nas da imprensa negra em relação à forma com que
suas vidas, os militantes das organizações ne- os grupos escolares oficiais recebiam os negros.
gras utilizavam a imprensa escrita para divul- O artigo do militante Olímpio Moreira, publica-
gar a relevância da educação formal e do no jornal a Voz da Raça, em 17/02/1934,
conscientizá-los sobre a importância da partici- citado por Gonçalves e Silva, denuncia:
pação efetiva nos cursos e de aprender a ler e Ainda há grupos escolares que recebem negros
escrever. Para eles, esses seriam procedimen- porque é obrigatório, porém os professores me-
tos e estratégias que possibilitariam a integra- nosprezam a dignidade da criança negra, deixan-
ção dos negros na sociedade de classes. Na do-os de lado para que não aprendam, e os pais
pobres e desacorçoados pelo pouco desenvol-
imprensa negra, os apelos cotidianos eram inci- vimento dos filhos resolvem tirá-los da escola e
sivos, no sentido de mobilizar e sensibilizar os entregar-lhes serviços pesados (GONÇALVES;
negros para se educarem, evidenciando bem a SILVA, 2000, p.143).
firmeza com que se acreditava no valor da edu-
Historicamente foram implementadas medi-
cação. Gonçalves e Silva sobre isso afirmam:
das pelos diversos segmentos do movimento ne-
Em 1936, o jornal Alvorada apresenta matéria gro brasileiro para incentivar e proporcionar a
veemente quanto à necessidade de crianças e educação do povo negro. Também é histórica a
adultos saberem ler, escrever e contar. Ensina preocupação com o descaso com o qual a crian-
como proceder para se matricular em cursos. Dá
conselhos no sentido de que se abra mão de
ça negra foi/é tratada na escola, delineando o
horas de lazer ou descanso do trabalho, para veio racista e excludente, através do qual vai se
adquirir ‘tão valioso instrumento’. (GONÇAL- estruturando essa instituição. Em verdade, a edu-
VES; SILVA, 2000, p.142). cação sempre foi uma das bandeiras de luta do

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movimento negro. A ela foram e são atribuídos os valores, os conhecimentos, as manifestações


sentidos e utilidades diferenciadas. O movimen- sócio-culturais e religiosas da maioria dos su-
to negro brasileiro, em momentos diversos, não jeitos que nela estão presentes, determinando,
tem dispensado da sua agenda política o signifi- às vezes, a evasão, a repetência e o “fracasso”
cado crucial da educação. Essa, segundo Gon- desses sujeitos.
çalves, mencionado por Gonçalves e Silva, tem Por conta disso, na década 30, os militantes
sido utilizada pelos segmentos das organizações dos movimentos negros assumiram a respon-
negras, com plurais finalidades: sabilidade pelo incremento de ações educacio-
Ora vista como estratégia capaz de equiparar nais em prol da comunidade negra – por
os negros aos brancos, dando-lhe oportunida- estarem atentos ao descaso do Estado para com
des iguais no mercado de trabalho; ora como a educação dos negros –, implementando vári-
veículo de ascensão social e, por conseguinte as iniciativas educacionais e tomando para si
de integração; ora como instrumento de um problema que era nacional, mas ainda ne-
conscientização por meio da qual os negros gligenciado pelo Estado. Souza (2003) demons-
aprenderiam a história de seus ancestrais, os
tra, no seu trabalho de mestrado, Ideologia
valores e a cultura de seu povo, podendo a par-
tir deles reivindicar direitos sociais e políticos, Racial Brasileira, Movimento Negro no Rio
direito à diferença e respeito humano. (GON- de Janeiro e Educação Escolar, que:
ÇALVES, 2000, apud GONÇALVES; SILVA, 2000, ... dez organizações do movimento negro anali-
p. 139). sadas concordaram que a educação escolar tem
Para bem compreendermos os sentidos da um papel significativo na luta contra a discrimi-
educação para as organizações negras, faz-se nação e o preconceito racial em relação à popu-
lação negra e/ou afrodescendente, e atuaram, de
necessário enfrentar o lugar a que se submete
alguma forma, em prol de uma educação formal
o povo negro nas ações educativas da escola menos discriminatória”. (SOUZA, 2003, p.2).
oficial. A educação formal proporcionada pela
escola tem uma centralidade na vida dos indiví- Já na década de 40 e início dos anos 50, um
duos e, às vezes, é a partir dela que aqueles de momento marcado por mudanças sociais e po-
famílias pobres e, em sua maioria negra, depo- líticas na sociedade brasileira6, as organizações
sitam a “esperança” de garantir um lugar no negras ampliam as demandas do ponto de vista
mercado de trabalho. Para Oliveira: sócio educacional e político da comunidade ne-
gra. Daquele momento, destacamos a atuação
Um dos resultados concretos da passagem do
indivíduo pela escola é a formação para o traba- do Teatro Experimental do Negro - TEN, lide-
lho; neste sentido, as exigências do mercado se rado por Abdias Nascimento, que continua a
concentram na avaliação de dois tópicos: a qua- promover dentro da comunidade negra ações
lidade da escola e o tempo de estudo. Destas em que a questão da educação é primordial,
variáveis surgem as diferenças básicas entre os haja vista ainda se ter um grande número de
currículos das pessoas que fracassam ou obtêm negros com baixa escolarização.
sucesso no mercado de trabalho (OLIVEIRA,
Ampliando as suas reivindicações, quanto
2001, p.12).
aos níveis de ensino para a comunidade negra,
No entanto, se nos ativermos a avaliar as o empenho das iniciativas centra-se no acesso
trajetórias escolares de crianças, jovens e adul- aos níveis médio e superior. No projeto político
tos negros, perceberemos que a qualidade do do TEN havia uma cobrança ao Estado, quanto
ensino, o tempo passado na escola, a dinâmica ao direito à educação. Cunha Júnior, Gomes e
e a organização escolar, dentre outras circuns- Santos ( 2003, p. 09) apontam: “A educação é
tâncias, não possibilitam que tais trajetórias se- indiscutivelmente dever do Estado. É direito dos
jam marcadas por uma adequação às demandas
do mercado de trabalho. Além disso, depara-
6
É um momento que diferentes forças políticas irão se unir
mo-nos com uma escola, inserida num sistema para interferir na Constituição de 1946, quando temos um
educacional, que desvaloriza, denega e recalca movimento em prol da democratização do país.

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A história do negro na educação: entre fatos, ações e desafios

cidadãos”. Cientes da importância da implemen- Diante disso, consideramos que demonstrar


tação de ações, no campo educacional, foram as trajetórias percorridas pela comunidade ne-
elaborados outros encaminhamentos para a gra, no que se refere a sua inserção no campo
construção de subsídios políticos para a incre- educacional, significa compreendê-las sob a
mentação de políticas educacionais no âmbito ótica da resistência, sob seus limites e suas es-
do Estado voltadas para comunidade negra. As pecificidades, sob abnegação dos/as militantes.
lideranças negras daquele contexto ampliam sua Esses, a partir dos arremedos conjunturais e
atuação política e “opõem-se” às iniciativas estruturais, educaram e politizaram o seu povo,
educacionais afastadas do Estado que deveria construindo referências que operacionalizam as
o seu promotor. ações das novas gerações.
As décadas de 1960, 1970 e 1980 foram
marcadas pelo surgimento de diversos grupos
e associações do movimento negro (notadamen- 3. Educação pluricultural e anti-
te nos anos 70 e 80). Nesse contexto, o desen- discriminatória é uma outra his-
volvimento de ações políticas, em torno das tória
questões educacionais, compôs, de forma inci-
siva, as suas agenda políticas. Naquele momento, Integrantes de movimentos sociais e negros,
foi imprescindível notar que as práticas racis- pesquisadores, professores negros e indígenas
tas e discriminatórias, operadas nos espaços e de outros segmentos sociais, unidos às reali-
escolares, continuaram a ser combatidas. Os dades e ações dos sujeitos sócio-culturais, têm
militantes do movimento negro ampliaram, na- traçado uma outra história da educação. Como
quele período, atividades como seminários, de- formas de resistência, vêm criando possibilida-
bates, núcleos de estudo, cursos, palestras e des de uma educação pluricultural. Têm, inclu-
conferências. Produziram materiais como jor- sive, se posicionado em favor de mecanismos
nais, cartilhas, cartazes, manifestos, livros para- de superação do racismo, do sexismo e da dis-
didáticos e intervieram junto ao poder público criminação no cotidiano escolar e nos outros
para aprovação e implementação de componen- segmentos da sociedade. Forjar políticas públi-
tes curriculares sobre estudos africanos7. cas, tão discutidas por Silva (2001), que favo-
Na década de 90, as organizações fortalece- reçam uma educação pluricultural e antidiscri-
ram suas iniciativas em prol da escolarização, minatória, caracterizada por Cavalleiro (2001),
nos níveis fundamental e médio. Contudo, o em- também tem sido pauta das diversas organiza-
penho se concentra em forjar políticas públicas ções negras e sociais.
e ações governamentais que facilitem não só o Pesquisadores e experiências pedagógicas,
acesso do povo negro à educação, mas assegu- também, em educação, apontam outros cami-
rem inclusive a sua permanência e a divulgação nhos de elaboração de saberes e de superação
de valores culturais das culturas negras através dessa postura homogeneizante e discriminató-
de práticas pedagógicas e de recursos didáticos. ria da escola. Mais ainda, salientam e fazem
Com o novo milênio, estabelece-se mais uma emergir a totalidade das várias dimensões hu-
pauta de busca de ações e políticas públicas para manas que compõem os sujeitos sócio-culturais
organizações negras e sociais: o acesso do povo envolvidos na prática escolar – alunos, profes-
negro ao nível superior e, por conseguinte, às ins- sores e funcionários. Provocam também uma
tâncias profissionais que exigem esse nível de pedagogia que prime pela pluralidade que per-
escolaridade. Esse segmento provoca um efeti- meia a escola.
vo debate com outros segmentos da sociedade
brasileira, sobretudo com o governo, a fim de que 7
Na Bahia, em 8 agosto de 1983, o Conselho Estadual de
sejam forjadas ações e leis que favoreçam e fa- Educação (CEE/BA), devido às pressões de segmentos do
Movimento Negro, aprova a inclusão da disciplina Introdu-
cilitem o ingresso e a permanência do povo ne- ção aos Estudos Africanos nos currículos do Ensino Funda-
gro ao nível superior. mental e Médio. (BOAVENTURA, 2003).

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Permitem, inclusive, compreender a produ- to e recriado no Brasil: o projeto piloto de educa-


ção de saberes e os sujeitos sócio-culturais para ção pluricultural Mini Comunidade Oba Biyi, que
além da escola. Nesse sentido, os diversos pa- se desenvolveu de 1976 a 1986.
trimônios culturais que circulam no ambiente Iyá Oba Biyi nos indica o grande desafio que se
escolar devem compor o currículo e todo o pro- apresenta para nós educadores. De um lado, o
cesso de ensino-aprendizagem. Reconhecem “anel no dedo”, que significa as possibilidades
de mobilidade social da população infanto-juve-
que os Quilombos Educacionais e a Educação
nil de descendência africana na sociedade ofici-
Quilombola8 são pertinentes propostas de cons- al, e, de outro, Xangô, Orixá do fogo, que asse-
trução de conhecimento e de afirmação do le- gura a vida no àiyè, a expansão de linhagens,
gado cultural africano-brasileiro. Justificam, da existência concreta ininterrupta, filhos, des-
inclusive, a importância do resgate e da ressig- cendência, ancestralidade, continuidade da
nificação das organizações negras, tais como comunalidade africano-brasileira, presença tran-
irmandades, quilombos, terreiros, sociedades satlântica dos valores culturais.
negras, grupos, fóruns, como expressão de re- A proposição de uma educação no contexto des-
sistência e de afirmação da identidade e do le- se desafio é promover uma linguagem pedagó-
gado cultural afro-brasileiro e de superação do gica que estabeleça uma relação dinâmica entre
os valores sócio-comunitários da tradição e os
racismo.
códigos da sociedade oficial, exigindo e assegu-
Possibilitam, ainda, reconhecer outras ins- rando nesta relação o direito à identidade pró-
tâncias, que extrapolam o ambiente escolar, os pria. (LUZ, 2000, p. 161).
Egbés9, por exemplo, como espaços legítimos
Hoje funciona, no Ilê Axé Opô Afonjá, a
de construção e de partilha de conhecimentos
Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos.
e vivências, como expressão de preservação,
Essas duas experiências constituem, em Salva-
de sustentação e de dinamização do legado afri-
dor, exemplos históricos relevantes de uma edu-
cano-brasileiro. Todas essas vivências, pois, si-
nalizam aos outros segmentos sociais, culturais cação pluricultural. Indicam também outras
e políticos que é possível elaborar, não tão so- iniciativas que têm um currículo que prima pela
mente um projeto educacional, mas também um diversidade, mas também reforça e valoriza o
projeto social em que coexistam a igualdade e legado africano-brasileiro já no nível fundamen-
a diferença. tal. Outros Egbés criam, continuamente, opor-
Nesse sentido, são elaboradas, em várias tunidades para assegurar a manutenção das
regiões do Brasil, inúmeras oportunidades de suas tradições e dos valores africano-brasilei-
processos educacionais pluriculturais, pautadas ros e que forjem iniciativas que facilitem o aces-
na valorização da construção da identidade ne- so à educação dos membros da comunidade.
gra, apresentados por Silva. Na Bahia não fal- As escolas das associações culturais, como
tam também experiências e projetos pedagógi- aquelas criadas pelos blocos afros, tais como
cos, embora insuficientes para atender ao
contingente ainda alijado do direito à educação,
que facilitem a afirmação da afrodescendência 8
Quilombos Educacionais são as diversas entidades negras,
e o acesso à educação10. surgidas desde a década de 80, que se espalham por todo o
Com o intuito de assegurar os valores afri- Brasil. Organizam Cursos Pré-vestibulares, Reforço Esco-
lar, Preparação para concursos, destinados à comunidade
canos, foi criada a escola Mini Iyá Oba Biyi, do negra brasileira. Educação Quilombola é um projeto peda-
Ilê Axé Opô Afonjá, na década de 1970. Luz gógico que se realiza em comunidades remanescentes de
quilombos, com experiências em várias partes do Brasil.
narra o surgimento desse projeto educacional: 9
Egbés – em iorubá significa comunidades de asè, referindo-
... instaurou-se, no Brasil e, particularmente, na se aos terreiros de candomblé.
10
Bahia, a primeira experiência de educação O Fórum de Quilombos Educacionais de Estado da Bahia,
por exemplo, é constituído por 15 instituições que têm
pluricultural, inaugurando uma rica e complexa Cursos Pré-vestibulares para Jovens e Adultos Negros. E
linguagem pedagógica, ancorada nos princípios ainda há escolas e atividades culturais e educacionais em
e valores do patrimônio milenar africano, repos- Terreiros e Blocos Afros.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 193-204, jul./dez., 2005 201
A história do negro na educação: entre fatos, ações e desafios

Escola criativa do Olodum, Escola Mãe Hilda e As experiências educacionais pluriculturais,


o Projeto Pedagógico do Ilê Aiyê, o CEAFRO, estudos e pesquisas também têm apontado al-
criado pela UFBA, através do CEAO – Centro guns desafios, decorrentes da visão estereoti-
de Estudos Afro-Orientais, são alguns exem- pada e homogeneizante, presentes na escola,
plos de projetos educacionais que visam a cola- que devem ser enfrentados, tais como: a inclu-
borar efetivamente com a educação do negro são de temáticas como cultura, raça/etnia, re-
em Salvador. Os Quilombos Educacionais, sur- lações de gênero em sala de aula; estudos so-
gidos, desde a década de 80, também se inse- bre os processos civilizatórios africanos e sobre
rem em possibilidades educacionais pertinentes, as africanidades na sociedade brasileira; com-
que não visam apenas à transmissão de con- preensão dos alunos como portadores e produ-
teúdos, o acúmulo de formação e a capacita- tores de cultura e não apenas como sujeitos de
aprendizagem; articulação da educação cida-
ção profissional da comunidade negra, mas
dania e raça em suas ações pedagógicas; de-
também a construção da sua identidade negra,
bates sobre diversidade sócio-cultural; visibili-
a preservação e a divulgação do acervo cultu-
zação da construção da identidade étnico-racial
ral e religioso africano-brasileiro. A pesquisa-
do povo negro; elaboração de material didáti-
dora Silva, ao analisar as iniciativas educativas co; continuidade de análise do livro didático
que foram implementadas em Salvador, nas dé- quanto à representação do negro e de gênero e
cadas de 1980 e 1990, afirma: revisão bibliográfica e de conceitos.
Paralelo às denúncias da existência de desigual- As experiências de educação pluricultural
dades raciais na educação, ao longo das déca- suscitam, pois, mudanças de currículos, de pa-
das de 80 e 90, começaram a surgir iniciativas de radigmas e de procedimentos que contribuam
desenvolvimento de projetos educativos bus- para desconstruir a história da educação do
cando adotar perspectivas pluriculturais e anti- negro no Brasil, pautada no recalque, na homo-
racistas. Em Salvador, assim como em outras ci- geneização, em abordagens, metodologias, pro-
dades brasileiras, existem projetos educativos jetos e práticas pedagógicas excludentes e
em andamento e estes são significativos da pres-
racistas. Essa concepção pedagógica vem, cer-
são que tem sido exercida, pelos Movimentos
tamente, elaborando uma outra história da es-
Negros e por outros segmentos da sociedade,
para que haja, dentro do sistema educacional colarização e de educação do negro no Brasil,
brasileiro, reconhecimento e respeito às diferen- na qual não apenas o acesso seja o objeto da
ças étnicas e raciais existentes no interior da narrativa, mas também a permanência e a sua
população. A reivindicação feita por tais proje- inclusão com todas as vicissitudes do que signi-
tos é que seja dado um outro tratamento à pro- fica ser negro no Brasil, bem como do legado
blemática racial na escola, pois, apesar de o Bra- cultural africano-brasileiro.
sil ser uma sociedade multicultural e multirracial,
o sistema de ensino ainda não adotou princípios
pedagógicos coerentes com tal diversidade. Considerações Finais
A presença de iniciativas da própria sociedade
e, especificamente, dos Movimentos Negros, de Constatamos, com este trabalho, que, de
realizar projetos educativos voltados para aten- fato, a nação brasileira tem uma dívida social
der às reivindicações desse segmento é muito efetiva com o povo negro, em relação aos di-
importante, e anuncia um fato novo no Brasil, reitos sociais, sobretudo no que se refere à edu-
que é a transformação das denúncias em ações cação. Como vimos, por um lado, a história do
de caráter autônomo e que se apóiam em organi-
negro na educação é formada por capítulos de
zações de caráter local. Embora seja recente o
surgimento de demandas dos Movimentos Ne- exclusão, desigualdade, preconceito e racismo.
gros relacionadas à educação, tem aumentado Por outro, as organizações negras têm en-
muito o número de experiências desse tipo em frentado esse déficit, por meio de diversos pro-
todo Brasil, nas últimas décadas ... (SILVA, 1997, jetos pedagógicos e de estratégias, que forjam
p. 135-136). políticas públicas, as quais favoreçam uma re-

202 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 193-204, jul./dez., 2005
Ana Rita Santiago da Silva; Rosângela Souza da Silva

paração, através da implementação do Proje- realizadas por pesquisadores(as) negros(as)11.


to de Políticas de Ações Afirmativas, que são Já não somos tão somente objeto de pesquisa.
as políticas compensatórias de caráter repa- Sempre soubemos falar, através das formas de
ratório para proteger minorias e grupos que resistências. Mas agora já temos tradição ci-
tenham sido discriminados no passado, que entífica, ou seja, já temos uma história legiti-
oportunizem uma real, eficaz e efetiva demo- mada no âmbito das ciências.
cratização do sistema educacional (SILVÉRIO, Possivelmente, enquanto sociedade, construi-
2002). Evidentemente, já há uma trajetória de remos um capítulo, em meio às tensões e con-
lutas, resistências e conquistas de reconheci- flitos, sobre o Projeto de Políticas de Ações
mento do direito à educação que compõe uma Afirmativas, elaborado pelo governo brasileiro,
outra história da educação do negro no Brasil. e a Lei 10.63912, em fase de implantação. Mais
As ações educativas, elaboradas pelas orga- convictas ainda estamos de que as organiza-
nizações negras, ainda denunciam a perversa ções negras continuarão a fazer uma outra his-
e negativa realidade educacional do povo ne- tória da educação do povo negro, apontando e
gro brasileiro e todo processo de legitimação traçando, para/com outros segmentos da soci-
da pedagogia excludente. edade brasileira, caminhos de superação do ra-
Certamente, há um outro capítulo que es- cismo na educação e para implementação de
tamos construindo com pesquisas afins à ques- ações educativas que considerem a nossa his-
tão educacional e outras áreas do conhecimento, tória e nossos saberes.

REFERÊNCIAS

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afrodescendentes na visão dos movimentos negros. In: XVI EPENN - ENCONTRO DE PESQUISA EDU-
CACIONAL DO NORTE NORDESTE. São Cristóvão: UFS, 2003. p. 1-10.

11
Estamos nos remetendo à Associação Nacional de Pesquisadores, que já realizou três Congressos Brasileiros de Pesquisadores
Negros, que objetivam fazer um balanço e difundir a produção desses pesquisadores. O primeiro foi realizado em Recife/Pe, no
período de 22 a 25 de novembro de 2000; o segundo, no período de 25 a 29 de agosto de 2002, na cidade de São Carlos/SP; e
o terceiro, de 06 a 10 de setembro, em São Luís/MA. O próximo congresso acontecerá na Bahia, em 2006, conforme
deliberação do último congresso.
12
Conforme Parecer, expresso na Indicação CNE/CP 06/2002, bem como o regulamento da alteração trazida à Lei 9394/
96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei 10639/2003 estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica. Desta forma, busca cumprir o estabelecido na Constituição Federal
nos seus Art. 5, I, Art. 210, Art. 206, I, § 1° do Art. 242, Art. 215 e Art. 216, bem como nos Art. 26, 26A e 79B na Lei 9394/
96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que asseguram o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, assim
como garantem igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do direito de acesso às diferentes
fontes da cultura nacional a todos brasileiros. (Ministério da Educação – Conselho Nacional de Educação – CNE/CP 003/
2004, aprovado em 10/03/2004).

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 193-204, jul./dez., 2005 203
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Recebido em 30.05.05
Aprovado em 08.08.05

204 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 193-204, jul./dez., 2005
Tahís Cristina Rodrigues Tezani

CONSIDERAÇÕES SOBRE
A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ESPECIAL NO BRASIL:
MOVIMENTOS E DOCUMENTOS

Thaís Cristina Rodrigues Tezani*

RESUMO

Este texto tem como objetivo divulgar os resultados de um estudo que buscou
conhecer um pouco da história e dos paradigmas vividos pelo homem para se
compreender a dinâmica desenvolvida pela sociedade no atendimento às pessoas
com necessidades especiais. São acrescentados os fatos marcantes da educação
e da educação especial nacional, fazendo uma revisão dos movimentos e
documentos internacionais e nacionais que influenciaram o movimento inclusivo
no Brasil, segundo o paradigma correspondente. O Paradigma da Exclusão
que prevaleceu durante vários séculos se caracteriza por excluir totalmente do
convívio social e educacional a pessoa com algum tipo de deficiência. O
Paradigma da Institucionalização é marcado pelo confinamento da pessoa
deficiente em asilos, conventos e hospitais psiquiátricos para o seu tratamento.
O foco do Paradigma de Serviços está na modificação da pessoa especial para
que esta se assemelhe aos demais cidadãos e, assim, possa ser integrada/
inserida no convívio social. O Paradigma de Suportes estabelece que a sociedade
necessita se reorganizar, visando à garantia do acesso ao convívio social de
todos. O Paradigma da Inclusão pressupõe o atendimento educacional
especializado na rede regular de ensino para alunos com necessidades
educacionais especiais, com base nas devidas adaptações que são necessárias.
Palavras-chave: Paradigmas educacionais – Educação inclusiva – História
da educação especial brasileira

ABSTRACT

CONSIDERATIONS ON THE HISTORY OF EDUCATION


ESPECIAL IN BRAZIL: ACTIONS AND DOCUMENTS
This text has as objective to divulge the results of a study that sought to know
a little of the history and of the paradigms lived by the man for if it comprehends
the dynamics developed by the society in the assistance to people with special
needs. To be added the education striking facts and of the national special

*
Pedagoga. Especialista em Psicopedagogia. Mestra e doutoranda em Educação, área de concentração: Fundamentos da
Educação, na PPGE/CECH - UFSCar - Universidade Federal de São Carlos, SP. Professora da rede municipal e da
Faculdade Fênix de Bauru, SP. Endereço para correspondência: Faculdade Fênix de Bauru, Rua Anhanguera 9-19, Vila
Silva Pinto – 17013-190 Bauru-SP. E-mail: thaistezani@yahoo.com.br

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 205-216, jul./dez., 2005 205
Considerações sobre a história da educação especial no Brasil: movimentos e documentos

education, doing a actions and international and national documents revision


that influenced the inclusive action in Brazil, according to corresponding
paradigm. The Exclusion Paradigm that prevailed during several centuries
characterizes for excluding totally of the social and educational conviviality the
person with some deficiency kind. The Institutionalization Paradigm is marked
by the person’s deficient confinement in asylums, convents and psychiatric
hospitals for your treatment. The Services Paradigm focus is in the person’s
special modification so that this resembles to the too much citizens and, thus,
can be integrate/insured in the social conviviality. The Supports Paradigm
establishes that the society needs if it reorganizes, aiming at the access warranty
to the social conviviality of all. The Inclusion Paradigm presupposes the
specialized educational assistance in the teaching regular net for students with
special educational needs, with base in the owed adaptations that are necessary.
Key words: Educational paradigms – Inclusive education – Brazilian special
education history

Os processos para construção de Educação Especial, sob o título geral: “Projeto


um sistema educacional inclu- Escola Viva: garantindo o acesso e permanên-
sivo cia de todos os alunos na escola – Alunos com
necessidades educacionais especiais” (BRA-
Ao longo da história foram sendo elabora- SIL, 2000), o qual confirma a relevância de
das formas de lidar com a pessoa diferente com conhecer a perspectiva histórica para entender
base em concepções, crenças e valores, parti- o momento atual, pois “para compreender mais
lhados pelos membros da sociedade em cada amplamente esse processo histórico há que se
período. Aplica-se o conceito de paradigma1 a conhecer os muitos caminhos já trilhados pelo
essas questões relativas ao tratamento do indi- homem ocidental em sua relação com a parce-
víduo diferente. Quando a sociedade passa a la da população constituída pelas pessoas com
enfatizar outro paradigma não significa que o necessidades educacionais especiais” (BRA-
anterior deixou de existir; ele ainda existe, mas SIL, 2000, p. 7).
com menor intensidade. Para Akashi e Dakuzaku (2001, p. 46), a
O pensar e o agir do homem em sociedade história da pessoa especial no Brasil é marcada
alteram-se de acordo com as condições sócio- pela exclusão, que se apresenta de diferentes
históricas, que acompanham a trajetória de cada formas e varia conforme “o lugar, o tempo e o
período na história mundial (COSTA, 1997), momento histórico: desde o infanticídio, o aban-
variando, então, a concepção de pessoa com dono, o exílio, o esmolar, o assistencialismo, o
necessidade educacional especial e o tratamento paternalismo, a internação e o asilamento até a
dado a ela. No Ocidente, predominou por vári- solicitação da participação social, porém sem
os séculos a segregação, a discriminação, a in- as reais condições que permitem a integração.”
diferença, em diferentes condições e momentos, Ao realizar uma abordagem tão ampla, en-
tema este discutido por Mazzotta (1996), Jan- volvendo povos e séculos tão diversos, tem-se
nuzzi (1992), Bueno (1993), Mendes (2000; consciência da fragilidade das concepções as-
2001a/b; 2002), Aranha (1994; 2000; 2001),
Brasil (2000), Akashi e Dakuzaku (2001). 1
Considera-se paradigma o conjunto de crenças, técnicas,
O estudo tem como uma das referências valores e opiniões utilizados pelos seres de uma determina-
da sociedade, em uma determinada época. “Um paradigma é
básicas o conjunto de documentos produzidos aquilo que os membros de uma comunidade partilham”
pelo Ministério da Educação, Secretaria de (KUHN, 1992, p. 219).

206 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 205-216, jul./dez., 2005
Tahís Cristina Rodrigues Tezani

sumidas. No entanto, algumas concepções pre- prejudicarem o grupo, devendo ser evitado o
dominam, o que permite para o objetivo do es- convívio, servindo apenas como diversão e/ou
tudo agrupá-las. podendo ser até executadas.2
Na Idade Média européia (século V a XV),
a economia caracteriza-se pelo comércio ba-
O Paradigma da Exclusão seado na agricultura, na pecuária e no artesa-
nato. Na organização social e política, há novos
O Paradigma da Exclusão se caracteriza por segmentos: o senhor, o servo e o clero católico.
excluir totalmente do convívio social e educaci- A sociedade se caracterizava por ser essenci-
onal a pessoa com algum tipo de deficiência. almente agrária, auto-suficiente na atividade
Na Antigüidade (dos primórdios ao século agrícola, no artesanato caseiro e o comércio
IV), segundo Aranha (1989), Cambi (1999), local era considerado restrito (BRASIL, 2000).
Brasil (2000) e Manacorda (2002), os grupos Nessa época, era muito comum a hansenía-
sociais estavam divididos em aristocracias; que se e, para banir a pessoa com esta doença do
detinham o poder e a população, que se carac- convívio social, foram criados leprosários, onde
terizava por péssimas condições de vida. A eco- viviam confinadas (AKASHI; DAKUZAKU,
nomia estava baseada na agricultura, na 2001).
pecuária, no artesanato e no comércio, visando “A educação surge como instrumento para
ao enriquecimento da aristocracia, havendo lu- um fim considerado maior, a salvação da alma
tas pela propriedade de terra e a exploração do e a vida eterna” (ARANHA, 1989, p. 97). Deus
sistema escravista. é considerado o fundamento da ação e finalida-
Os processos educativos, de acordo com de pedagógica. As pessoas diferentes não po-
Manacorda (2002), eram divididos segundo as deriam ser exterminadas, pois eram considera-
classes sociais. Havia a escola do pensar/falar das criaturas de Deus, mas continuavam
e a escola do agir: a primeira encarregava-se excluídas do convívio social. Serviam como di-
de preparar para a política através da oralida- versão para as camadas abastadas da socieda-
de, e a segunda para a guerra, usando habilida- de da época, trabalhavam de bobo da corte, em
des corporais e a força física. A educação “se circos, tabernas ou bordéis (AKASHI; DAKU-
organizava em torno dos valores da força e da ZAKU, 2001).
persuasão, da excelência física e espiritual, das O processo de declínio da Idade Média e
armas e das palavras” (CAMBI, 1999, p. 50), início da Idade Moderna é caracterizado pelo
excluindo totalmente as pessoas com algum tipo surgimento da burguesia, evolução do comér-
de deficiência, fossem estas físicas, motoras ou cio e das grandes navegações. A burguesia é a
intelectuais, dos processos educacionais. “classe que faz amadurecer princípios novos,
Werner Jaeger analisa em sua obra, Pai- novos valores e novos ideais: o individualismo,
déia, toda a educação grega, afirmando que a liberdade, a produtividade” (CAMBI, 1999,
havia a valorização do corpo. Para ele, a valo- p. 172).
rização do corpo era percebida nas estátuas dos Nesse momento histórico, a educação esta-
vencedores olímpicos e a “criação dos meni- va dividida em religiosa, para a formação do
nos” englobava o conjunto de exigências ide- clero, e outra voltada para as necessidades lo-
ais, físicas e espirituais para realizar a formação cais (artesanato, guerra). A exclusão do pro-
espiritual consciente do homem apto ao conví- cesso educacional não era apenas da pessoa
vio em sociedade, havendo “exaltada valoriza- diferente, mas também das camadas popula-
ção do indivíduo” (JAEGER, 1936, p. 436). res, pois a educação formal era, na época, um
Não há registro de nenhuma atenção edu- privilégio para poucos. Para Manacorda (2002),
cacional à pessoa especial, pois em uma época
na qual a força física era necessária e valoriza- 2
Observa-se essa situação em algumas tribos indígenas bra-
da, essas pessoas eram abandonadas para não sileiras.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 205-216, jul./dez., 2005 207
Considerações sobre a história da educação especial no Brasil: movimentos e documentos

a educação tinha como método a intensa me- basicamente ligadas a misticismo e ocultismo,
morização e repetição em voz alta, dando pou- não havendo base científica para o desenvolvi-
ca ênfase à escrita. mento de noções realísticas. O conceito de di-
De acordo com Akashi e Dakuzaku (2001, ferenças individuais não era compreendido ou
p. 31), quem se opunha às normas estabeleci- avaliado.”
das pela aristocracia e pelo clero recebia puni- Portanto, conclui-se que o Paradigma da
ções, como o vazamento dos olhos e mutilações Exclusão é caracterizado por impedir o conví-
pelo corpo. De forma semelhante, a pessoa di- vio social e educacional da pessoa com neces-
ferente era considerada “castigada”, pagando sidade especial, prevalecendo durante vários
pecado por algum crime e separada do conví- séculos. Com a perda de sua hegemonia, o Pa-
vio social. Em outros casos, era considerada radigma da Institucionalização se fortalece.
diabólica, pois acreditava-se que “corpo defor-
mado significava ter a mente também defor-
mada”. Viviam da compaixão das pessoas, O Paradigma da Institucionaliza-
recebendo esmolas, doações de alimentos e ção
vestimentas. Separar do convívio social era um
bem para a aristocracia e não para a pessoa O Paradigma da Institucionalização se ca-
diferente. racteriza por ser o primeiro paradigma formal a
Com a Inquisição Católica, a pessoa dife- estabelecer uma relação entre a sociedade e a
rente, aquele que discordasse das idéias e or- pessoa diferente. É marcado pelo confinamen-
dens da Igreja, sofria perseguições, torturas e, to da pessoa deficiente em asilos, conventos e
como última conseqüência, a morte. A pessoa hospitais psiquiátricos para o seu tratamento.
diferente passa por um momento delicado, pois Para Aranha (2000), esse paradigma se ca-
podia ser considerada herege ou endemoniada, racteriza pelo princípio de que a pessoa com
fugindo da imagem e semelhança de Deus e, necessidade especial será melhor cuidada, se
assim, sofrer com a perseguição, caça e exter- permanecer isolada e confinada em ambientes
mínio (BRASIL, 2000). segregados, longe do convívio social, apenas em
Percebe-se, nesses momentos da história contato com seus semelhantes.
da humanidade, que o paradigma da exclusão Jannuzzi (1992, p. 9), em seu levantamento
sofre uma evolução; num primeiro momento, histórico sobre a Educação Especial no Brasil,
a pessoa diferente não é considerada ser hu- concluiu que esta foi “sendo o centro de aten-
mano, apenas criatura de Deus como um ani- ção e preocupação apenas nos momentos e na
mal; num segundo momento, a concepção medida exata em que dela sentira necessidade
passa a ser metafísica, considerada como pos- os segmentos da sociedade.” Para a autora, em
suída pelo demônio. 1600, em São Paulo, ainda no Brasil Colônia,
No século XVII, com as novas descobertas surgiram instituições de atendimento à pessoa
no campo da Biologia, Medicina e Saúde, colo- diferente, apontando que, no século XIX, “a
ca-se a deficiência como origem orgânica, o que educação popular, e muito menos a dos ‘defici-
fomentou ações para o tratamento médico, entes mentais’, não era motivo de preocupa-
como: remédios e medicamentos, o que foi clas- ção”, havendo registros de algumas iniciativas
sificado como tese da organicidade. No século isoladas. (1992, p. 23)
XVIII, tal perspectiva proporcionou, mesmo que Como exceção, há, entre os anos de 1835 e
lentamente, a tese do desenvolvimento por meio 1869, no Brasil, a preocupação do Império com
da estimulação, na qual o conceito de deficiên- os surdos, os mudos e os cegos. Assim, é cria-
cia estava relacionado a causas naturais (BRA- do o cargo de professor específico para esses
SIL, 2000). alunos em 1835. Em 1854, cria-se o Imperial
Para Mazzotta (1996, p. 16), até o século Instituto dos Meninos Cegos e, em 1857, o Ins-
XVIII, “as noções a respeito da deficiência eram tituto dos Surdos-Mudos. Em 1869, Benjamin

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Tahís Cristina Rodrigues Tezani

Constant assume a direção do Imperial Institu- volvimento, pois já havia grande expansão do
to dos Meninos Cegos, que, posteriormente, número de escolas para suprir a demanda po-
recebe seu nome. A educação brasileira na épo- pulacional; porém, o crescimento quantitativo
ca é acessível para poucos, mas as camadas não garantiu a qualidade do ensino. Com o au-
populares começam a galgar seus espaços e mento do número de pessoas nas cidades, o
que os alunos com necessidades especiais tam- governo tenta fixar o homem no campo, mas,
bém buscam seu lugar no campo educacional para isso, seria necessária a reformulação da
(BRASIL, 2000). Para Mazzotta (1996, p. 28), educação, visando ao ensino técnico rural. Esse
esse momento, que abrange de 1854 a 1956, é contexto é caracterizado também pelo modelo
classificado por “iniciativas oficiais e particula- nacional-desenvolvimentista, com base na in-
res isoladas”. dustrialização (1937-1955).
Cabe destacar os estudos feitos por Maria Para Romanelli (1978), entre 1946 e 1961,
Montessori3, na Itália, que se interessou, inici- há a votação da Constituição e da Lei 4.024/61,
almente, pela educação de crianças especiais, que fixam as Diretrizes e as Bases da Educa-
ao realizar observações sobre psicologia infan- ção Nacional, que é marcada por conflitos ide-
til. A partir disso, escreveu uma obra extensa e ológicos de esquerda e de direita e a oposição
espalhou seu método por todo o mundo, marca- entre escola pública e privada. Com a Lei acen-
do pelo respeito às diferenças individuais e pela tua-se a discussão em relação à educação po-
atividade do aluno, sendo este responsável tam- pular, métodos pedagógicos, alfabetização
bém pela higiene e limpeza das salas de aula. É (BUFFA, 1989; PAIVA, 1984; CURY, 1985).
marcado pelo ensino individualizado, centrado A referida Lei (BRASIL, 1961) estabele-
na auto-educação. ce, no Título X, o princípio de integração, no
Entre 1915 e 1943, há diversas inaugurações qual a educação dos excepcionais se enqua-
em várias partes do País: Instituto Nacional dos dra no sistema geral de educação, garantindo
Surdos, em Laranjeiras-RJ, Instituto Rafael para a integração em comunidade e prevendo o
Cegos, em Belo Horizonte, Sociedade Pestalo- apoio financeiro. A educação dos alunos com
zzi, em Canoas-RS. Na Santa Casa de Miseri- necessidades especiais deveria ser articulada
córdia de São Paulo é criado o Pavilhão ao sistema comum de ensino, visando ao prin-
Fernadinho Simonsens, com classe de alfabeti- cípio da integração dos alunos com a comuni-
zação para alunos hospitalizados; o Instituto dade. Em 1962, surge o Primeiro Plano
Pestalozzi é fundado em Minas Gerais e há a Nacional de Educação.
inauguração de vários Institutos para Cegos: Sobre a Educação Especial na época desta-
São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Ceará ca-se que, em 1942, há a edição da primeira
(BRASIL, 2000). Revista Brasileira para Cegos e, como conse-
Para Mendes (2000), a sociedade começa qüência, em 1946, é criada a Fundação para o
a admitir que as pessoas especiais poderiam ser Livro do Cego, objetivando a divulgação de li-
produtivas, se recebessem cuidados especiais vros em Braile no País. Com isso, em 1949,
(educação e treinamento); assim, surgiram, no através da Portaria Ministerial no 504, o Gover-
contexto do século XX, algumas escolas espe-
no garante a distribuição gratuita de livros em
ciais e centros de reabilitação.
Braile. E, em 1954, é fundada, no Rio de Janei-
O contexto da nova crise do modelo agrá-
ro, a Associação de Pais e Amigos dos Excep-
rio-comercial exportador dependente e do iní- cionais (APAE).
cio de estruturação do modelo nacional-desen-
volvimentista, com base na industrialização 3
Maria Montessori (1870-1952), médica italiana, católica
fervorosa, iniciou seus estudos misturando o espírito cientí-
(1920–1937) caracterizam a fase anterior e fico com misticismo. Estuda, inicialmente, crianças com
posterior à Revolução de 30. necessidades educacionais especiais; depois, desenvolve um
método de ensino para todas as crianças. Em 1907, abre, na
No Período Vargas (1930-1945), o Brasil foi Itália, um espaço para atender aos filhos de operários, co-
marcado pela relação entre educação e desen- nhecida como a Casa de Bambini (ARANHA, 1989).

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Considerações sobre a história da educação especial no Brasil: movimentos e documentos

O século XX acentua o declínio do Paradig- 70, houve um grande movimento para retirar
ma da Exclusão, fortalecendo o Paradigma da pessoas com deficiências das grandes institui-
Institucionalização. ções e reinseri-las na comunidade, que se con-
Por volta de 1960, em vários países e no figurou no movimento de desinstitucionalização”
Brasil, o Paradigma da Institucionalização co- (MENDES, 2001b, p. 6).
meça a ser repensado: a crítica que se faz é O Paradigma da Institucionalização perde
que esse modelo não proporciona nem favore- sua hegemonia, proporcionando o surgimento
ce a preparação da pessoa com necessidade do Paradigma de Serviços, pois, para que a pes-
especial para o convívio em sociedade, enquanto soa especial pudesse se adequar/modificar para
o custo de uma pessoa institucionalizada é cada viver em sociedade, é necessário que se ofere-
vez mais alto. çam serviços e recursos favoráveis ao princí-
Outro aspecto que favoreceu a perda da pio da integração.
hegemonia deste Paradigma são os movimen-
tos em prol dos direitos humanos que se forta-
lecem. Para Bobbio (1992, p. 5), a luta pela O Paradigma de Serviços
garantia dos direitos humanos tem provocado
inúmeros debates e constantes indagações, pois Com a perda da hegemonia do Paradigma
“os direitos humanos são direitos históricos que da Institucionalização, o Paradigma de Servi-
emergem gradualmente das lutas que o homem ços emerge devido às idéias de normalização e
trava por sua própria emancipação e as trans- ao conceito de integração. O foco deste para-
formações das condições de vida que essas lu- digma está em modificar a pessoa especial para
tas produzem.” que esta se assemelhe aos demais cidadãos e,
A década de 1960 foi decisiva e marcante assim, possa ser integrada/inserida no convívio
para o declínio do Paradigma da Institucionali- social. A mudança deveria ocorrer na pessoa
zação, iniciando as propostas de desinstitucio- diferente e para isso cabe à sociedade ofere-
nalização e normalização.4 Nessa perspectiva, cer os serviços e os recursos necessários
pensa-se na introdução da pessoa com neces- (BRASIL, 2000).
sidade especial na sociedade, “procurando aju- O Paradigma de Serviços se caracteriza por
dá-la a adquirir as condições e os padrões da três etapas: primeira – avaliação feita por uma
vida cotidiana, no nível mais próximo possível equipe de profissionais que especifiquem o que
do normal” (BRASIL, 2000, p. 16). deve ser modificado na vida do sujeito, para
Segundo Mendes (2001b), a década de 1960 torná-lo o mais próximo da normalidade; segun-
é relevante por apresentar avanço científico na da – a equipe passa a intervir e oferecer aten-
comprovação das potencialidades dos alunos dimento, de acordo com os resultados da
com necessidades educacionais especiais. avaliação realizada; e terceira – encaminha-
Com a economia mundial abalada, manter mento da pessoa com necessidade especial para
programas de segregação tinha um custo alto, a vida na comunidade (BRASIL, 2000).
se tornando inviável. Passou-se a analisar que Para Aranha (2000), o Paradigma de Servi-
a pessoa com necessidade especial poderia re- ços se baseia no pressuposto de que a pessoa
alizar serviços à comunidade, fortalecendo sua com necessidade especial tem o direito de con-
integração e contribuindo para a economia ca- vívio em sociedade, mas desde que esteja pre-
pitalista (ARANHA, 1994). parada para tal. Esse Paradigma se ajusta para
Como conseqüência das propostas de supe- os que conseguiam se adaptar, deixando muitos
ração do Paradigma da Institucionalização, ini- excluídos.
ciam-se as idéias de Normalização, fomentando
o conceito de integração, ou seja, a pessoa com
necessidade especial deve estar inserida ou in- 4
Percebe-se esse movimento também na luta contra os
tegrada no convívio social. “Na década de 60 e manicômios.

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Tahís Cristina Rodrigues Tezani

Alguns movimentos marcaram o Paradig- o exame de admissão. A escola profissional


ma de Serviços, como, no final dos anos 1960, passa a ser o resultado da soma da escola se-
a Campanha Nacional de Educação e Reabili- cundária e técnica, ficando estabelecido o prin-
tação de Deficientes Mentais, a Campanha Na- cípio da continuidade e terminalidade.
cional de Educação de Cegos; são criados: Estabelece-se, no seu Artigo 9, o tratamento
Centro de Reabilitação de Cegos no Brasil, especial aos excepcionais (física, mental, su-
Federação Nacional das APAEs, Secretaria de perdotados), sendo que a educação oferecida a
Educação Especial e Associação Brasileira de eles deveria ser especial.
Educadores de Deficientes Visuais. Até aquele momento, a legislação nacional
No período, em que o Paradigma de Servi- garantia o princípio da integração social, mas
ços é emergente, há, no Brasil, o contexto da não estabelecia os princípios da inclusão edu-
crise do modelo nacional-desenvolvimentista, cacional.
iniciado em 1930 e falido no final da década de Na década de 1970 é criada a Federação
70, da industrialização e da implantação do Nacional das Sociedades Pestalozzi. O Oficio
modelo “associado” de desenvolvimento eco- no 93/71 extingue as Campanhas de Educação
nômico, que pode ser dividido em dois períodos: Especial e sugere que se realize um programa
o período anterior ao golpe de 1964 (democra- integrado de assistência a todos os excepcio-
cia restrita, 1945-1964) e o período posterior ao nais e é estudado um currículo para formação
golpe (período militar, 1964-1985). de profissionais em nível universitário. Em 1973,
A política educacional dos governos milita- é criado o Centro Nacional de Educação Espe-
res resultou em alguns avanços em nível de cial e, no ano seguinte, o Parecer no 3.763/74
normas para o campo da educação especial. dispõe sobre o tratamento especial para o alu-
Por outro lado, houve falta de recursos huma- no cego no exame vestibular. Em 1977, a Por-
nos e materiais para manter com qualidade os taria Interministerial no 477 (MEC) estabelece
oito anos de obrigatoriedade de ensino, forma- as diretrizes de ensino para o atendimento inte-
ção de um exército de reserva com mão-de- grado dos excepcionais no sistema regular de
obra barata, preparação das elites para o ensino e em instituições especializadas com
vestibular, afirmação do sistema dual de ensi- assistência médico-psicossocial. Em 1979, o
no, privatização do ensino nos moldes empre- Plano Nacional de Educação Especial estabe-
sariais e não-pedagógicos, aumento na criação lece diretrizes para ação na área (BRASIL,
de cursos superiores. Essas políticas educacio- 2000).
nais enfatizaram o aspecto administrativo da O processo de normalização foi amplamen-
educação, promovendo avanços quantitativos e te criticado, pois não é possível que a pessoa
técnicos, esquecendo-se da qualidade do ensi- com necessidade especial seja igual aos outros;
no e da formação integral do aluno (ARANHA, seria descaracterizá-la como pessoa. Esse pa-
1989, MENDES, 2000; 2001b). radigma propõe a substituição da expressão
As associações Sociedade Pestalozzi, “alunos excepcionais” por “alunos portadores
AACD (Associação de Assistência à Criança de necessidades especiais” (BUENO, 1993).
Defeituosa), APAE (Associação de Pais e O Paradigma de Serviços que, desde o iní-
Amigos do Excepcional) passaram a enfatizar cio da sua implementação, foi amplamente cri-
a questão educacional da pessoa diferente. ticado pela comunidade científica, pelas
No Parecer no 252, de 1969, fica estabele- associações e pelos órgãos de representação
cido que o Curso de Pedagogia poderá ter, den- das pessoas com necessidades especiais, por
tre suas habilitações, a Educação Especial. A
Lei 5.692/715 estabeleceu a obrigatoriedade de
oito anos de escolarização, “resultante da fu- 5
Em 1971, foi aprovada a Lei 5.692/71, que estabelece
apenas as diretrizes e bases para os ensinos de 1o e 2o graus
são do ensino primário com o ginasial” (OLI- e não para a educação nacional; assim, é considerada apenas
VEIRA; ADRIÃO, 2002, p. 35), e acabou com Lei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1o e 2o graus.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 205-216, jul./dez., 2005 211
Considerações sobre a história da educação especial no Brasil: movimentos e documentos

acreditarem que não seja possível modificar a Em 1981, a Resolução no 2 do Conselho


pessoa especial para que esta seja considerada Federal de Educação aumenta os prazos para
normal; desta forma perde sua hegemonia para conclusão dos cursos de graduação aos alunos
o Paradigma de Suportes. com deficiências e a Secretaria de Educação
Especial passa a ser um órgão que visa à cria-
ção e à coordenação de políticas voltadas para
O Paradigma de Suportes as pessoas com deficiências. Há, nessa déca-
da, o lançamento, em todo o País, da Revista
Com o declínio do Paradigma de Serviços, Integração, que oferece artigos sobre educa-
emerge o Paradigma de Suportes: ao constatar ção especial.
que os serviços de avaliação e de capacitação Para Mazzotta (1996), esses paradigmas
não garantiram o convívio da pessoa com ne- (serviços e suportes) abrangem o período de
cessidade especial na sociedade; percebeu-se 1957 a 1993, no qual há iniciativas oficiais de
que a sociedade necessita se reorganizar, vi- âmbito nacional.
sando à garantia do acesso ao convívio social O Paradigma de Suportes está presente na
de todos. atualidade, mas o Paradigma da Inclusão se
Ao comparar o Paradigma de Serviços com fortalece. A educação inclusiva está baseada
o Paradigma de Suportes, analisa-se que, no em práticas educacionais resultantes do movi-
primeiro, o foco é a pessoa com deficiência e o mento de inclusão social, tendo, como pressu-
desenvolvimento de serviços junto a ele, para posto, a democracia, a diversidade, a aceitação
que desenvolva suas competências e habilida- e a cidadania (MENDES, 2002).
des; no segundo, o foco é a sociedade e o de-
senvolvimento de ações para o acolhimento e a
construção de uma sociedade inclusiva, acolhe- O Paradigma da Inclusão
dora.
Para garantir essa convivência, “se desen- Entende-se como Paradigma da Inclusão o
volveu o processo de disponibilização de supor- atendimento educacional especializado na rede
tes, instrumentos que garantam à pessoa com regular de ensino para alunos com necessida-
necessidades educacionais especiais o acesso des educacionais especiais, com base nas adap-
imediato a todo e qualquer recurso da comuni- tações que se fizerem necessárias.
dade” (BRASIL, 2000, p. 18). Há, na história da educação brasileira, al-
Aranha (2001) afirma que a hegemonia do guns fatos isolados, exceções, que indicam o
Paradigma de Suportes proporcionou o movi- Paradigma da Inclusão (BRASIL, 2000):
mento de inclusão social, necessário por garan- - em 1910, três cegos que estudaram no
tir uma estrutura de base para que o processo Instituto Benjamin Constant ingressam na
de inclusão ocorra como apoio físico, pessoal, Faculdade de Direito de São Paulo e, em
material, técnico e social. 1915, se formam.
Inclusão e integração partem do mesmo
- em 1933, a Comissão do Ensino Secundário
pressuposto: a pessoa com necessidade espe-
do Conselho Nacional de Educação autoriza
cial tem direito de acesso aos espaços da vida
a matrícula de um aluno cego no ensino
em sociedade, com igualdade e respeito. O
regular, na cidade de Curitiba. Dez anos
Paradigma de Serviços norteia a idéia de inte-
depois, a mesma Comissão autoriza um
gração, ou seja, investe-se na promoção de
aluno cego a se matricular na Faculdade
mudanças no sentido de normalizar a pessoa
de Filosofia, Ciências e Letras.
com necessidade especial, atuando na família,
na escola e na comunidade. Já a inclusão re- - no início da década de 50, surge, a título
quer muito mais que suportes e serviços; ne- experimental, a primeira classe integrada
cessita de mudança de postura e ações. com alunos cegos no ensino regular, que

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Tahís Cristina Rodrigues Tezani

haviam concluído o curso ginasial no partir da legislação vigente. Para Cury (2002,
Instituto Benjamim Constant. Os cegos, p. 5), a legislação insiste em dois pontos: a igual-
mediante Portaria Ministerial n o 12, dade e a diversidade, favorecendo, assim, a “in-
ganharam o direito de acesso aos cursos clusão democrática.”
universitários. Para Minto (2002, p. 36), a legislação edu-
cacional tem avançado no que se refere à edu-
- em São Paulo, em 1957, é realizada a
cação do aluno especial, ao considerar a
integração de alunos com deficiências
educação especial como “uma modalidade de
físicas no ensino regular.
educação escolar a ser oferecida, preferenci-
- a partir de 1958, há investimentos técnico- almente, na rede regular de ensino para as pes-
financeiros nas secretarias de educação e soas com necessidades educativas especiais.”
instituições especializadas, advindos do
Ministério da Educação, estimulando
campanhas nacionais para a educação das Interpretando o paradigma emer-
pessoas especiais (JANNUZZI, 1992). gente: a educação inclusiva
A educação inclusiva, no Brasil, está em-
basada nos seguintes documentos oficiais: Percebe-se, com os movimentos e documen-
tos na área educacional, que há uma mudança
• Constituição de 1988 (BRASIL, 1988). de paradigma. O paradigma emergente é o da
• Estatuto da Criança e do Adolescente inclusão, da igualdade de direitos na busca por
(ECA, Lei no 8.069/90). uma sociedade e uma escola mais justa.
• Declaração Mundial de Educação para Entendemos que ora a lei é resultado da luta
Todos (UNESCO, 1990). pelos direitos, ora discrimina, ora necessita de
ajustes. Acreditamos, portanto, que os movi-
• Declaração de Salamanca e Linha de Ação mentos sociais, as leis, os programas, as co-
sobre necessidades educativas especiais missões e os conselhos fazem parte de um pro-
(BRASIL, 1997a). cesso de construção e exercício da cidadania
na garantia dos direitos humanos. Sabemos
• Lei de Diretrizes e Bases da Educação
que, para assegurar a integração da pessoa
Nacional no. 9394/96 (BRASIL, 1996, art. com deficiência na sociedade, mais do que sim-
58 e 59). ples legislação são importantes mudanças con-
• Parâmetros Curriculares Nacionais do cretas de atitudes (AKASHI; DAKUZAKU,
2001, p. 48).
Ensino (BRASIL, 1997).
• Adaptações Curriculares para Alunos com Para Demo (1993, p. 33), a educação deve
Necessidades Educacionais Especiais, levar ao aprender a aprender6, na qual a habili-
conhecido como os “Parâmetros Curriculares dade de ler, interpretar sua realidade e a capa-
Nacionais da Educação Especial”(BRASIL, cidade de atualização são constantes. Propõe a
1998). pesquisa como princípio educativo, pois “tem
como finalidade principal dotar a pessoa da ca-
• Plano Nacional de Educação (BRASIL, pacidade de pensar crítica e criativamente, e
2001b). de manter-se em estado de ininterrupto de atu-
• Diretrizes Nacionais da Educação Especial, alização.”
na Educação Básica (Resolução no. 02/ É necessária a formação de competências
2001, da Câmara de Educação Básica do cognitivas e sociais da população; sendo esta
Conselho Nacional de Educação).
Vários autores, como Cury (2002), Demo 6
De acordo com o Relatório para a UNESCO, da Comissão
Internacional para o século XXI (DÉLORS, 2000, p. 49) a
(1997), Ferreira (1998), Mantoan (2003), Sou- educação brasileira tem como alicerces: aprender a conhecer,
za e Prieto (2002) discutem sobre a inclusão a aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 205-216, jul./dez., 2005 213
Considerações sobre a história da educação especial no Brasil: movimentos e documentos

capaz de compreender e pensar de forma abs- Segundo Cury (2002, p. 12), é importante res-
trata e analítica, com “flexibilidade de raciocínio saltar que a defesa da igualdade de direitos é
para entender situações novas e solucionar pro- princípio para a busca da cidadania, pois “os alu-
blemas, bem como formação de competências nos com necessidades especiais têm cidadania
sociais como liderança, iniciativa, capacidade de plena na escola comum e nas salas comuns.” O
tomar decisões, autonomia no trabalho, habilida- aparato legal fornecido atualmente no País está
de de comunicação” (DEMO, 1993, p. 24). em consonância com a situação mundial e social
A inclusão não é apenas um processo esco- na busca por igualdades de direitos. Cabe res-
lar, mas o reflexo de algo mais amplo: a inclu- saltar que a garantia legal da educação inclusiva
são social. Vive-se na “era dos direitos”, como é necessária, mas dependerá, entre outros fato-
lembra Bobbio (1992), e esta proporciona um res, da mudança de paradigma.
movimento contínuo de aceitação do outro en- Em síntese, a tendência atual do ensino do
quanto pessoa. “O respeito ganha um significa- aluno com necessidade educacional especial é,
do mais amplo quando se realiza como respeito então, conforme todos os movimentos e docu-
mútuo: ao dever de respeitar o outro, articular- mentos mencionados, sua inclusão no ensino
se o direito de ser respeitado. O respeito mútuo regular, de acordo com as suas necessidades e
tem sua significação ampliada no conceito de havendo possibilidades de adaptações.
solidariedade” (BRASIL, 2001, p. 26a). A trajetória histórica da pessoa com deficiência
Incluir alunos com necessidades educacionais mostra-nos que o caminho percorrido na con-
especiais no ensino regular não é apenas garan- quista dos direitos humanos é um processo em
tir que estes freqüentem a escola, mas proporci- constante construção. E sabemos que em uma
onar-lhes o desenvolvimento de potencialidades, sociedade como a brasileira, com desigualda-
des sociais e econômicas, a promoção dos di-
quebra de antigos paradigmas, superação de obs-
reitos humanos será mais viável se a solução
táculos, buscando construir um ambiente esco- dos problemas estruturais forem objetos de
lar adaptado para as suas necessidades, políticas governamentais (AKASHI; DAKU-
formando uma comunidade escolar inclusiva. ZAKU, 2001, p. 44).

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Recebido em 08.11.04
Aprovado em 08.08.05

216 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 205-216, jul./dez., 2005
Cristina d’Ávila

A MEDIAÇÃO DIDÁTICA
NA HISTÓRIA DAS PEDAGOGIAS BRASILEIRAS

Cristina d’Ávila *

Minha mãe achava o estudo


A coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo
É o sentimento.
(Adélia Prado)

RESUMO

Com este artigo pretendemos discutir a natureza da mediação didática no seio


das pedagogias que compuseram o cenário educacional brasileiro desde a
chegada da Companhia de Jesus no séc. XVI até os dias atuais. Trazemos à
baila as características da pedagogia jesuítica, da pedagogia nova, tecnicista,
freireana, histórico-crítica e construtivista, enfatizando em cada uma das
tendências pedagógicas apresentadas o tipo de mediação didática mais
marcante, seja através do mestre (como na pedagogia jesuítica), dos meios
(como na tecnopedagogia), dentre outros. A compreensão dessas tendências
se dá par e passo à análise do quadro didático-pedagógico que se descortina
atualmente no contexto escolar. Concluímos pela possibilidade de construção
de uma síntese superadora das tendências apresentadas, tendo em vista uma
prática pedagógica mais criativa, prazerosa e construtiva, sem que para isso
precisemos abrir mão do conteúdo sistematizado e da autoria docente.
Palavras-chave: Mediação didática – Teorias pedagógicas – Trabalho docente

ABSTRACT
DIDACTIC MEDIATION IN THE HISTORY OF BRAZILIAN
PEDAGOGIES
This paper aims at discussing the nature of didactic mediation within the
pedagogical tendencies which have composed the Brazilian educational scene
from the Jesuits arrival on the sixteenth century up to our days. We make clear
the characteristics of all: the Jesuits’ pedagogy, the new pedagogy, the technical
one, as well as those inspired from Paulo Freire, and from the historic-critical
and constructivist epistemologies. We stress in each of the pedagogical

*
Doutora em Educação pela UFBA, com estágio doutoral na Université de Montréal, Canadá. Professora adjunta da
Faculdade de Educação – FACED/UFBA. Professora adjunta do Departamento de Educação Campus I e do Mestrado
em Educação e Contemporaneidade – UNEB. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia -
UNEB, Campus I, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000
SALVADOR/BA. E-mail: cmdtm@terra.com.br

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 217-238, jul./dez., 2005 217
A mediação didática na história das pedagogias brasileiras

tendencies the most important type of didactic mediation, through the teacher
(in the Jesuits’ pedagogy), through means (technical pedagogy) and so on. We
present these pedagogical tendencies at the light of the present didactic and
pedagogic context within Brazilian schools. We conclude to the possibility of a
unifying synthesis of all presented tendencies, aiming at a more creative,
pleasurable and constructive pedagogical practice, without denying systematized
content and authorship.
Keywords: Didactic mediation – Pedagogical theories – Teacher’s practices

Introdução difícil momento de silêncio político e obscuran-


tismo educacional. Nesta, a mediação didática
O olhar sobre a mediação didática docente docente é eclipsada em nome dos meios tec-
sob ângulos distintos, consubstanciado em prá- nológicos, que davam o tom desta pedagogia.
ticas pedagógicas que vigoraram na história da Era preciso, em pleno regime militar, respi-
educação brasileira, levou-me a desenvolver o rar um pouco da esperança perdida, incluindo,
presente artigo. A análise histórica do fenôme- na compreensão do fenômeno educativo e na
no educativo e, no seu seio, da mediação didá- eclosão de um pensamento pedagógico coeso,
tica docente, permitiu articulações necessárias o componente social e político, banido deste
à compreensão deste olhar múltiplo e, ao mes- processo desde o início dos anos de 1960. As-
mo tempo, integrado, do que vivenciamos como sim, as pedagogias de cunho sociopolítico se
processo educacional no Brasil, mormente a imiscuíram no processo educacional brasileiro,
partir dos estudos das teorias de maior expres- como possibilidade de luta e transformação con-
são na nossa história. tra o que se instituía como poder. Paulo Freire
A opção por iniciar este artigo com a Peda- concede a abertura da porta com a elaboração
gogia Tradicional Jesuítica está em ter sido esta do seu ideário pedagógico que, por força do
pedagogia a que primeiro se estabeleceu, no exílio a que se submetera, havia de se tornar
Brasil, como modelo formal de ensino, ofere- realidade fora do país. O professor haveria de
cendo, assim, as balizas fundamentais que fari- ser um mediador político que, além de ensinar,
am evocar, posteriormente, suas próprias a partir da vivência concreta dos educandos,
críticas e o nascedouro de outras teorias peda- proporcionaria a elaboração do pensamento
gógicas. A concepção de mediação didática crítico e da conscientização política, necessári-
docente que temos hoje é, sem dúvida e tam- os à transformação social.
bém, resultado do que se viveu e se herdou des- A pedagogia histórico-crítica surge como
ta pedagogia. oposição às vertentes tradicionais e da Escola
A pedagogia da Escola Nova se colocou Nova, bem como crítica ao ideário freireano.
como eixo importante na compreensão deste Nesta, o professor é responsável por uma me-
processo, tendo representado influência signifi- diação de natureza também sociopolítica, com
cativa nos rumos da educação nacional. Nesta, o acento muito mais evidente na transmissão
a mediação didática docente, como se poderá de conteúdos de caráter universal — expedi-
verificar do capítulo que se segue, se dialetiza ente este que deveria constituir-se em ferra-
na relação com o educando, onde o professor menta necessária às lutas pela transformação
deixa de ser o detentor absoluto do saber – como das estruturas sociais do país.
na pedagogia tradicional – e passa a constituir- Com a teoria construtivista e a sociocons-
se em orientador da aprendizagem. trutivista, veremos como a mediação didática
A Tecnopedagogia também se insere no volta o eixo para a compreensão dos processos
movimento histórico da educação no Brasil, num de aprendizagem e desenvolvimento cognitivo

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Cristina d’Ávila

do educando – como se fazia no período em pese a importância conferida aos conteúdos


que vicejou a Escola Nova. O professor, nesta clássicos, o preciosismo da Ratio estava na
tendência, volta os olhos, efetivamente, à apren- metodologia de ensino.
dizagem significativa do conhecimento e à ca- A mediação didática não se resumia à trans-
pacidade de construção e reconstrução de missão dos conhecimentos. Os jesuítas toma-
saberes pelo educando. O professor é um me- vam esse processo como ponto de partida numa
diador de saberes ressignificados e reconstruí- prática pedagógica onde a exercitação e a trans-
dos pelos educandos. A mediação didática não ferência de conhecimentos estavam perfeita-
se resume à transmissão do conhecimento ela- mente associadas. A aula se iniciava pela
borado, mas às possibilidades de reelaboração preleção, ou prelectio, que consistia numa li-
deste pelos educandos, que haverão de impri- ção antecipada, ou seja, numa explicação do
mir-lhe significação pessoal. que o aluno deveria estudar.
É este o panorama que se pretende descor- Nas classes elementares de gramática, o
tinar no corpo deste artigo. processo de ensino constituía-se de explicações
sobre o texto, esclarecimentos sobre o vocabu-
lário quanto à propriedade dos termos, ao senti-
1. A pedagogia Jesuítica e a medi- do das metáforas, à gramática, à ordem e
ação do mestre conexão das palavras.
Chamava-se eruditio o estudo mais apro-
A volta entusiasta à antigüidade clássica fundado e complexo do conteúdo ministrado
marcava a Renascença. Após o período das mediante o conhecimento das realia indispen-
trevas da Idade Média, Grécia e Roma reto- sáveis, ou conhecimentos positivos, em outras
maram seus postos como fontes de beleza hu- palavras, subliminares. O eruditio, então,
mana imortal. Ao seu lado renascia também a compreendia as noções de história, geografia,
pedagogia dos seus mais célebres educadores. mitologia, etnologia e arqueologia, que pudes-
As citações dos grandes clássicos fervilhavam: sem elucidar o sentido do texto estudado. As-
ao lado da retórica de Aristóteles se afigurava sim, às noções de gramática elementar
o De oratore de Cícero. Plutarco e Sêneca fi- sucederiam os estudos da sintaxe, estilo e arte
guravam como moralistas preconizadores de um de composição. O mestre aí estava mais ocu-
ideal humano quase cristão. Finalmente, Quin- pado com as idéias e sua expressão.
tiliano encarnava, no século XVI, a pedagogia A função do professor era mais a de possi-
romana. bilitar a análise e, menos, a de propiciar o acú-
A Companhia de Jesus imprimia, nesse pe- mulo de conhecimentos. Que se permita uma
ríodo, uma pedagogia de cunho tradicionalista e associação à prática pedagógica de hoje... Em
clássico. Sobretudo no que se refere ao ensino que pese o academismo, como marca registra-
das humanidades, a força da antiguidade clás- da da pedagogia jesuítica, aprender significava
sica suplantou a tradição escolar da Idade Mé- mais que acumular conhecimentos.
dia, que conservara a filosofia e a teologia como A prática pedagógica jesuítica, por outro
primados. Os séculos XIV e XV assistiam à lado, esteve sempre associada à disciplina. O
decadência visível da escolástica que atingira colégio deveria funcionar como um pequeno Es-
seu apogeu no século XIII. Entretanto, nos pri- tado escolar tendente à autonomia, onde os ci-
meiros anos do século XVI, a restauração da dadãos seriam recrutados com prudência. Nesse
síntese clássica do pensamento medieval co- ponto, a relação com as famílias era de estrei-
meçava a se configurar. teza ímpar: constituía-se numa relação de dele-
É na Ratio Studiorium (plano curricular je- gação de poderes, onde um pai aceitaria os
suítico, publicado em 1599) que iremos visuali- princípios e a disciplina do colégio. Os jesuítas
zar com clareza a mediação do mestre. Em que recriariam a atmosfera familial e alegre nos in-

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A mediação didática na história das pedagogias brasileiras

ternatos e exerceriam sobre a criança a autori- electio. Nas classes de gramática a finalidade
dade do pai ausente. era lembrar ao aluno o funcionamento das re-
Mas não se pode falar em método sem con- gras, sem deixar de incentivar a sua sensibili-
teúdo, assim como não se pode compreender o dade. A praelectio atingia o seu ápice nas
processo de mediação do mestre sem a maté- classes de retórica.
ria prima do seu trabalho: o saber. O saber e o O método jesuítico de avaliação se restrin-
saber fazer pedagógico se encontram, assim, gia a exames e revelava objetivos pedagógicos
imbricados no processo ensino-aprendizagem, fundados na capacidade analítica dos estudan-
o que explica, vez por outra, nesse texto um ir- tes. Aliás, a metodologia de ensino jesuítica de-
e-vir do conteúdo ao método. monstrava atenção, para além da memorização,
O conteúdo marcadamente clássico dava o para com a capacidade criadora dos alunos. A
tônus dessa pedagogia e era exatamente atra- exemplo, nas classes superiores, os sábados
vés deste que a mediação desenvolvida pelos eram destinados a uma verdadeira parada lite-
mestres se fazia sentir. Escolheram os jesuítas, rária, caracterizada por uma brilhante preleção,
como plano de estudos, a formação exclusiva- um discurso latino ou grego, ou mesmo um po-
mente literária, baseada nas humanidades clás- ema clássico criado pelos alunos. Logo, a me-
sicas. diação didática capitaneada pelo mestre jesuíta,
Inicialmente, a Ratio Studiorum previa en- permitia o exercício da criação (ainda que com
sino puramente formal e gramatical, mas, pou- os limites de um conteúdo impregnado da ideo-
co a pouco, diversas disciplinas foram introdu- logia cristã).
zidas (auxiliares do humanismo), constituindo o O virtuosismo da pedagogia jesuítica esta-
eruditio, que tornaria mais forte a eloqüência va, pois, no método aliado a um conteúdo de
dos adolescentes. Com a arte de discorrer (art natureza abstrata.
de conférer), os estudantes estariam prepara- A técnica da emulação compunha-se de
dos para sustentar, na sociedade, discussões encenação inspirada nas próprias humanidades.
brilhantes sobre todos os assuntos referentes à A classe era dividida em duas frações, Roma-
condição humana e à defesa da religião cristã. nos ou Cartagineses. Os melhores alunos tra-
Logo à entrada no colégio, as crianças eram vestiam-se da magistratura soberana, e os
convidadas ao aprendizado do latim e do grego. cargos menos importantes constituíam, em cada
E, como língua de conversação, o latim era um dos grupos, um estado-maior valoroso que
prescrito até no recreio. A fixação era facilita- participava da disciplina da classe. Colocados
da através de exercícios que desenvolviam a em ordem decrescente, em cada coluna um alu-
memória. no tinha diante de si um homólogo da mesma
A classe era dividida em decúrias e o estu- força, seu êmulo – adversário regular, de quem
dante de confiança do mestre fazia, cada ma- devia assinalar os erros e as inexatidões. De
nhã, os colegas repetirem a lição, enquanto o acordo com a vantagem de um aluno sobre seu
professor procedia à correção dos exercícios. êmulo, o campo estava aberto às honras ou às
A aula estava resumida a um exercício metódi- desonras. Esse método mantinha a emulação
co, onde a preleção da véspera era repetida pelos não só entre os melhores alunos, mas também
alunos, a começar dos melhores. Sem dúvida, o aos últimos da classe, no qual a vitória sobre o
método quase sempre resvalava para a mono- êmulo oposto (que poderia ser o melhor colo-
tonia, e a luta contra esta fazia consagrar um cado na classe) era seguida da redistribuição
dia na semana (o sábado) para exercícios mais dos cargos que se realizava a cada dois meses.
interessantes e opção por variedade de autores Quanto ao ensino da língua materna, con-
estudados. vém ressaltar que a ausência desta como con-
O sistema de exames prévios, no segundo teúdo obrigatório não se constituía em falta
ciclo, partia de um exercício fundamental: pra- grave, uma vez que, para os jesuítas, o conhe-

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Cristina d’Ávila

cimento do vernáculo era uma prescrição. As tão, e suas aplicações práticas começavam a
Constituições e as regras comuns lembravam a ser percebidas.
todos o dever de estudar a língua falada pelo Finalmente, podemos dizer que a mediação
povo. Ocasionalmente, as traduções, versões, do mestre na pedagogia jesuítica, do ponto de
ditado e exposições de argumento, garantiam a vista didático, estava marcada por três elemen-
todos um estudo eficiente do vernáculo. Inclu- tos fundamentais: o conteúdo clássico com o
sive, com o desenvolvimento progressivo das acento na ideologia cristã, o rigor da disciplina
literaturas modernas, a Ratio Studiorium abria e o preciosismo do método.
espaço para o estudo direto das línguas vivas. Ao contrário do que diziam as variadas crí-
Além disso, o aluno podia praticar, no estudo da ticas sobre essa pedagogia, descobri na Ratio
gramática, o manejo da língua pátria mediante Studiorium um estudo didático profundo, o que
o comentário dos autores clássicos e a compo- revela a preocupação desses mestres para com
sição literária. Ademais, os jesuítas imprimiram o método pedagógico e, por conseguinte, para
grande importância aos estudos práticos do ver- com a aprendizagem dos alunos. Sem dúvida,
náculo, configurados em composições, constru- era o mestre o centro do processo ensino-apren-
ções variadas de análises e argumentos sobre dizagem. Não há dúvidas também que o aluno,
os clássicos. O rigor dos exercícios, inclusive nessa perspectiva, assumia forçosamente uma
de caráter prático, era uma constante. atitude passiva diante das verdades sacrossan-
O conteúdo de filosofia era a matéria pri- tas que caracterizavam o conteúdo transmiti-
ma da pedagogia jesuítica. Na Ratio, o aristo- do. Entretanto, havia espaço para que o espírito
telismo era a substância do ensino. Não analítico fosse exercitado, o que prova o surgi-
obstante, as lutas travadas entre defensores da mento de pensadores revolucionários formados
Reforma e da Contra-Reforma fizeram eclodir pela Companhia de Jesus.
certo estreitamento no ensino de filosofia, a qual,
intimamente ligada à teologia, fez transmudar,
muitas vezes, em sabedoria cristã os conheci- 2. Mediação docente na peda-
mento teóricos ou práticos adquiridos no longo gogia da Escola Nova: o pro-
contato com a Antigüidade Clássica. fessor como parceiro de jor-
Era Aristóteles o autor de base, mas os li- nada
vros oferecidos aos alunos permitiam a cons-
trução de um curso inteiro de filosofia. Nos Para explicitar a mediação didática docente
primeiros anos, a Lógica e a Física iluminadas na Escola Nova (tendência pedagógica forte-
pelos comentários de S. Tomás de Aquino per- mente vivenciada no Brasil a partir dos anos
faziam a filosofia natural. O professor de Filo- 1930), é preciso entender o pensamento peda-
sofia Moral se incumbia de ensinar a Ética, que gógico de Anísio Teixeira, seu idealizador, a
editava os valores eternos da sabedoria antiga, partir das influências que ele recebeu àquela
e o professor principal culminava com perspec- época, especialmente de John Dewey, pedago-
tivas elevadas da Metafísica e do tratado da go norte-americano, que viveu entre o final do
alma. Aristóteles era considerado o mestre da século XIX e a primeira metade do século XX.
física e a Ratio de 1586 ordenara sua leitura O movimento pela educação ativa que ha-
como obrigatória. O ensino de Física, a essa veria de influenciar Anísio Teixeira e seus se-
época, versava primordialmente sobre os dois guidores no Brasil da primeira metade do século
tratados: Do céu e os meteoros. XX, nascera na Europa, em fins do século XIX,
O humanismo italiano concedia lugar de des- com as idéias de Seidel, na Alemanha e Suíça,
taque às matemáticas e, posteriormente, Inácio com a constituição do Bureau International
de Loyola não hesitou em declarar-se partidá- pour l’École Nouvelle, organizado por Adol-
rio manifesto. A utilidade das matemáticas, en- phe Ferrière, com a obra de Kerschensteiner

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 217-238, jul./dez., 2005 221
A mediação didática na história das pedagogias brasileiras

em Munique, Ligthart, na Holanda, Ovide De- nha, a costura ou a tecelagem, tinham lugar de
croly, na Bélgica, que, no ano de 1907, fundara destaque e ligação estreita com as necessida-
a renomada École de l’Ermitage em Bruxe- des cotidianas da criança. Assim, estaria asse-
las, mesmo ano da fundação da Casa dei Bam- gurada a sua base de interesse.
bini, na Itália, por Maria Montessori. Em Democracia e Educação (1959),
O movimento em prol da educação ativa, Dewey torna bastante clara a diferença exis-
àquela época, se insurgia contra o que era es- tente entre a atmosfera social criada na escola
sencial na escola tradicional: a preparação para tradicional e a que ele argüia como necessária
a vida adulta, segundo Dewey a “preparação à vida. Seu programa refletia a vida em comu-
para uma vida após a morte”. Preocupava-se nidade e aproveitava as situações para promo-
muito mais em preparar a criança para uma fase ver na criança o sentimento de cooperação
futura da vida do que para a vida no presente. mútua e o de trabalhar positivamente para a
O desenvolvimento das capacidades das crian- comunidade. A ordem e a disciplina não se pau-
ças repousava, principalmente, sobre a razão e tavam, pois, em atitudes coercitivas, mas a par-
a memória. O método de instrução autoritário, tir do respeito que a criança obtinha pelo
a disciplina cultivada e o estudo, uma desagra- trabalho que realizava e da consciência dos di-
dável tarefa. O mestre era a autoridade inques- reitos dos outros, empenhados em outras par-
tionável e a submissão à ordem, a palavra de tes da tarefa comum.
fé. O aluno, enfim, era visto como um adulto A educação nova estava baseada em prin-
infeliz miniaturizado. cípios científicos e deveria valer-se de méto-
A Escola Nova voltava as costas contra tudo dos ativos. Assim, Anísio Teixeira acreditava
isso, almejando um espaço escolar e também que o método científico deveria reger a Escola
pedagógico verdadeiramente construído pelos Nova:
alunos. Com o método científico, vamos submeter as
Um dos maiores inspiradores dessa tendên- «tradições» ou as chamadas «escolas» ao cri-
cia foi, sem dúvida alguma, John Dewey (1859 vo do estudo objetivo, os acidentes às inves-
- 1952). O educador norte-americano tinha tigações e verificações confirmadoras e o po-
grande interesse em fazer florescer suas idéi- der criador do artista às análises reveladoras
dos seus segredos, para a multiplicação de
as pedagógicas num meio e numa época em
suas descobertas; ou seja, vamos examinar
que o ideário tradicionalista de ensino fazia eco. rotinas e variações progressivas, ordená-las,
Acreditava que os métodos das escolas ele- sistematizá-las e promover, deliberadamente,
mentares não se afinavam com as concepções o desenvolvimento contínuo e cumulativo da
psicológicas da hora. Fora, então, convidado a arte de educar. (TEIXEIRA, 1957, in: ROCHA,
dirigir a seção de Filosofia e Psicologia na Uni- 1992, p. 257).
versidade Chicago (1894) e viu, neste empre- Lourenço Filho (1978), um dos integrantes
endimento, uma oportunidade valiosa para do movimento da Escola Nova no Brasil da pri-
associar a Pedagogia à Filosofia e, sobretudo, meira metade do século XX, descreve no seu
à Psicologia. livro Introdução ao Estudo da Escola Nova,
Erguia, então, a sua célebre escola-labora- os princípios fundamentais que regem essa pe-
tório, mais conhecida como Escola Dewey, cujo dagogia. São eles:
ponto de partida se apoiava nas atividades co- • o respeito à personalidade do educando ou
muns nas quais as crianças estavam imediata- o reconhecimento que este deverá desfrutar de
mente envolvidas. Os propósitos da educação liberdade, desenvolvendo suas próprias
teriam matriz na vida da criança, razão pela qual capacidades por ação e esforço individual;
ela passaria a assumir com total interesse o pró- • a compreensão funcional do processo
prio aprendizado. Os fins estariam aceitos. As educativo, tanto sob o aspecto individual, quanto
atividades manuais como a marcenaria, a cozi- social;

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Cristina d’Ávila

• a compreensão da aprendizagem simbólica cias, advindas da testagem destas, resume o


em situações da vida social. Isto significa levar percurso do aprendiz. Se a criança antecipa
em conta a cooperação social, a necessidade através da imaginação as possíveis conseqüên-
que tem o homem de interagir com seu próprio cias daquilo que está em vias de realizar, obterá
meio; a liberdade de escolher e controlar o desenvol-
• as características de cada indivíduo são vimento dos acontecimentos. E, ainda, após ter
variáveis segundo a sua própria cultura. Este sido feita a escolha do fim, poderá apreciar se
princípio evoca o aspecto do naturalismo as circunstâncias lhe serão favoráveis ou não.
presente na tendência da escola nova. Afirma Logo, a escolha do fim sugere a ordem do pró-
Lourenço Filho que: prio método de aprendizagem.
Ninguém poderá negar que há diferenças indivi- Na pedagogia da Escola Nova, então, a prá-
duais de natureza biológica que se refletem na tica pedagógica passa a ser regulada por ativi-
expressão de cada pessoa. “Tais diferenças, no dades reais, ou melhor, cotidianas, e quase in-
entanto, são mais de possibilidade de desenvol- teiramente conduzida pela capacidade que o
vimento que mesmo de qualificação essencial aluno tenha em auto-desenvolver-se. O méto-
quanto às aquisições possíveis, de ordem inte- do de ensino se resume à pesquisa, às possibili-
lectual e moral” (1978, p. 248).
dades de elaboração de hipóteses que normali-
O autor afirma que nenhum sistema educa- zam o caminho que o aluno deve percorrer para
cional poderá se furtar de observar certas con- fazer descobertas. A mediação do professor é
dições para desenvolvimento do processo exercitada aqui mediante orientação das ativi-
educativo, dentre as quais destaca o desenvol- dades didáticas. O seu papel é de orientação
vimento biológico do educando, a socialização, de estudos e não de imposição de conteúdos
a preparação para o trabalho, a afirmação pes- abstratos.
soal e o relacionamento “com os mais altos fins A mediação didática entre aluno e conheci-
de expressão humana” (LOURENÇO FILHO, mento é responsabilidade dos métodos ativos
1978, p. 249). de ensino, o que inclui a capacidade de experi-
Os pressupostos da Escola Nova apresen- mentar que cada criança desenvolve ao longo
tados por Lourenço Filho expressam com cla- do seu processo de formação. Experimentar é,
reza a essência desta pedagogia a partir da pois, a palavra chave nesse processo de medi-
influência sofrida pelos educadores apontados ação.
no início. A influência de Montessori e Decro- A escolha dos estudos depende do valor que
ly, por exemplo, se faz sentir no que tange à apresentam como instrumentos para atingir fins
observância do aluno, enquanto ser individual específicos. Não há hierarquia fundamental de
biológico, em condições para desenvolver-se em estudos dispostos em ordem dos menores para
toda sua plenitude, a partir de esforços e ação os mais elevados, evocável em qualquer ocasião.
pessoais. O método da descoberta significa tanto o
Em Dewey, o conceito de experiência re- método de ensino, quanto o método de aprendi-
sume o espírito da filosofia educacional escola- zagem. Constitui-se, numa só palavra, em pes-
novista. Para ele, a experiência se constitui de quisa. São cinco os passos necessários à
duas partes: uma, ensaiar, e a outra, provar. A aprendizagem:
experiência compreendia a prova como conhe- A primeira fase, então, do método do pro-
cimento, uma vez que, para ele, a realidade pri- blema se inicia com alguma experiência atual
mitiva, anterior, é essencialmente diferente da da criança e isso não deve ser presumido. O
experiência comum de cada dia. ponto de partida, portanto, será alguma situa-
No famoso método da descoberta, o meca- ção empírica específica e atual.
nismo de elaboração de hipóteses para a solu- Em segundo lugar, como as conseqüências
ção de determinado problema e as conseqüên- do que havia sido tentado fazer são incomple-

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 217-238, jul./dez., 2005 223
A mediação didática na história das pedagogias brasileiras

tas, sugere-se um problema, o qual pede pes- do. A remissão à própria criança da escolha dos
quisa, ou investigação do melhor meio para se seus fins pedagógicos excluiria do professor a
restaurar a continuidade da experiência. responsabilidade em conduzir a prática peda-
A análise dos dados disponíveis pode forne- gógica, tornando-se o aluno professor de si
cer a solução. Nesse ponto os alunos necessi- mesmo.
tarão do capital da experiência passada. Essa é Todavia, por mais que os métodos ativos e,
a terceira fase, e representa o conteúdo que dentre estes, o método da descoberta tenham
constituirá o programa. tido papel significativo na Escola Nova, não se
Na quarta fase, os alunos formulam hipóte- pode afirmar que Dewey ou Anísio Teixeira
ses com o fim de restaurar a continuidade da tenham defendido a rarefação dos conteúdos e
experiência. a instituição de práticas espontaneístas na sala
A restauração da continuidade quebrada da de aula. O que esses educadores advogavam é
experiência é obtida mediante a escolha da hi- que os estudantes deveriam apropriar-se sig-
pótese mais apta à solução do problema, o que nificativamente dos conteúdos, participando
constitui a última fase do método. ativamente do seu processo de ressignificação
A atividade intelectual puramente abstrata e produção. Aliás, eles não negavam a trans-
e verbal seria insuficiente à aprendizagem. Para missão do conhecimento, mas a colocavam den-
Anísio Teixeira, pensar vai além e implica em tro de pré-requisitos fundamentais à aprendiza-
agir sobre as coisas, alterar as condições do gem significativa. Dewey se perguntava no livro
meio, a fim de verificar se as conseqüência Como pensamos (1959), a propósito da instru-
advindas daí corroboram as previsões hipotéti- ção baseada na palavra e na experiência dos
cas. O método do problema asseguraria, segun- outros: “Como tratar a matéria apresentada pelo
do essa tendência pedagógica, o interesse da compêndio e pelo professor, para que ela se ins-
criança. As atividades intelectuais, abstratas, titua em material de investigação reflexiva e não
não cumpririam tal objetivo. permaneça um mero alimento intelectual, já pre-
O ideário escolanovista no Brasil não este- parado para ser recebido e ingerido, como se
ve imune às críticas de educadores brasileiros. comprado numa mercearia?” (DEWEY, 1959,
Dermeval Saviani (1984) faz uma crítica con- p. 254).
tundente à Escola Nova, na sua obra Escola e Em resposta, Dewey sugeria que a trans-
Democracia. Segundo a sua compreensão, o missão do conhecimento deveria ser, antes de
ensino se diluiria em atividades de pesquisa, tudo, necessária, ou seja, tratar de um objeto
sendo o professor substituído pelos chamados impossível de ser apreendido pela observação,
métodos ativos e pela aprendizagem auto-re- justificando que “o professor, ou o compêndio,
gulável. Para Saviani, a Escola Nova privile- que atulha os alunos com noções que, com pouco
giou a pesquisa em detrimento do ensino de mais de trabalho, eles próprios poderiam des-
conteúdos. Segundo ele, os conteúdos eram cobrir por investigação direta, ofende-lhes a in-
rarefeitos nesta tendência pedagógica, em ra- tegridade intelectual, leva-os a cultivar a
zão de certo espontaneísmo reinante no pro- servidão mental” (p. 254).
cesso ensino/aprendizagem, vez que o professor Talvez tenha havido exagero na prática mal-
teria papel secundarizado. Segundo Saviani, a versada do ideário pedagógico de Anísio em
dinâmica do processo didático de ensinar e território brasileiro nos poucos anos em que
aprender, na perspectiva da Escola Nova, ex- tal tendência vigorou (principalmente nos anos
clui o ensinar. A construção e validação de hi- 1950 e início dos anos 1960). O certo é que,
póteses construídas pelas crianças a partir do depois do advento do governo militar, em 1964,
seu universo particular, sedimentam-se numa as escolas públicas que começavam a remo-
única visão (a da criança), e se dissipariam por delar sua prática, a investir na criatividade pe-
não se consubstanciarem no saber já elabora- dagógica e apostar na curiosidade e no respeito

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Cristina d’Ávila

ao saber das crianças, foram obrigadas a aqui- veis: a Tecnopedagogia. Ao lado dessas con-
escer em nome de uma ideologia absolutamente cepções, o comportamentalismo e o positivis-
contrária a toda e qualquer investida demo- mo lógico foram tendências incorporadas ao
crática. Mesmo antes, logo no início da ideali- ideário tecnopedagógico, tendo em vista o aten-
zação deste novo modelo educacional e dimento de níveis cada vez mais altos de efici-
pedagógico no País, Anísio e seus companhei- ência e eficácia exigidos pelo modelo de
ros de jornada já sofriam uma primeira derro- desenvolvimento.
ta: com a ditadura do Estado Novo de Getúlio Esta abordagem, somada à teoria behavio-
Vargas (entre 1937 e 1945) foram obrigados a rista de Skinner, deu o tom da tecnopedagogia.
calar-se. Presentes na letra da Lei 5692/71, a mistura do
Assim, entre uma ditadura e outra, o Brasil enfoque sistêmico e da teoria comportamenta-
não chegou a ver florescer os primeiros frutos lista de Skinner integram o texto da lei e os inú-
da Escola Nova (o trabalho pedagógico é um meros pareceres daí decorrentes. O conteúdo
processo que envolve gerações). Antes que dos livros didáticos se fragmenta em nome da
isso pudesse acontecer, o modelo tecnocráti- suposta eficiência. O conceito básico da teoria
co que se impunha no poder político instituía de Skinner é o de comportamento operante,
também na esfera educacional a sua ideolo- caracterizado pelas relações que estabelece com
gia, dando lugar, assim, ao que se convencio- o meio ambiente, ao receber deste influências
nou chamar de tecnicismo pedagógico, ou ainda determinantes.
e para melhor corresponder a esse ideário, à Das prerrogativas teóricas mencionadas,
Tecnopedagogia. podemos depreender o sentido pedagógico e,
mais especificamente, didático desta tendên-
cia, tentando recortar desse contexto as me-
3. A mediação didática docente diações didáticas decorrentes: a mediação do
na Tecnopedagogia professor (quando existiu) e a mediação esta-
belecida pelos recursos tecnológicos inerente
A perspectiva tecnológica na educação bra- à essa pedagogia.
sileira surgiu, na década de 1960, mais especi- Do ponto de vista didático, essa tendência
almente depois de instalado o governo militar visa ao ajustamento dos objetivos de ensino (ago-
de 1964, como uma alternativa para a educa- ra, objetivos instrucionais, daí a redução do en-
ção popular. No seio do desenvolvimento capi- sino à instrução), às exigências do sistema social,
talista que lhe deu origem – o norte-americano sem fugir aos critérios de maximização de ren-
– a racionalização do sistema de ensino, tendo dimentos e minimização de custos. O detalha-
em vista sua eficiência e eficácia, deveria ga- mento dos objetivos deveria ser classificado de
rantir um produto que atendesse às necessida- tal ordem, a fim de tornar possível a sua imple-
des do modelo econômico e político vigentes: a mentação e a mensuração dos resultados a partir
ideologia empresarial. de uma prática diagnóstica de avaliação. Por-
Depois da Teoria Geral de Administração tanto, eram discriminados em terminais e par-
como primeira sistematização sobre a organi- ciais, intermediários, mediatos e imediatos.
zação do trabalho e seu controle, é no âmbito Os meios são o cerne da tecnopedagogia,
da Teoria Geral dos Sistemas que a racionali- determinando, assim, os próprios objetivos de
zação e o controle referidos chegam aos limi- ensino-aprendizagem e as finalidades da edu-
tes da perfeição. No Brasil, tal ideologia se cação escolar. Isto porque a relevância do mo-
concretiza na política administrativa do Estado delo estava na quantificação dos resultados;
autoritário e, no campo educacional, através de daí a inversão: os meios justificam os fins. A
uma pedagogia capaz de responder à ineficá- mediação didática docente nesta pedagogia é
cia do sistema de ensino em todos os seus ní- eclipsada em nome da técnica, passando, as-

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A mediação didática na história das pedagogias brasileiras

sim, o meio técnico a ser o mediador principal sujeitos-alunos e conhecimento crítico.


e o professor, seu administrador. Na Escola A mediação didática docente repousava,
Nova a mediação docente não é diluída ou se- pois, sobre a organização das condições de
cundarizada. Ao contrário, ela é dialetizada aprendizagem (o conceito de aprendizagem
na relação de orientação pedagógica; ela não estava restrito às mudanças de comportamen-
é ausente, é diversa da mediação da pedago- to). Mas, que tipo de organização se requeria?
gia tradicional. A tarefa do professor consistia em modelar as
Na tecnopedagogia diminui-se a importân- respostas que fossem apropriadas aos objeti-
cia das relações interpessoais (importante gan- vos instrucionais, buscando, como conseqüên-
ho da anterior Escola Nova), e mantêm-se o cia, o comportamento adequado pelo controle
individualismo, agora sobre outras bases: o re- do ensino. O sistema instrucional estava apoia-
curso tecnológico coloca-se na linha de frente, do em três componentes básicos, como descre-
com o qual o aluno irá se relacionar, supondo, veu Libâneo:
portanto, uma outra forma de relação entre aluno As etapas básicas do processo ensino-aprendi-
e conhecimento. Se antes, na Escola Nova, era zagem são: a) estabelecimento de comportamen-
o aluno quem escolhia o meio mais adequado tos terminais, através de objetivos instrucionais;
para aprender e/ou descobrir, com a padroniza- b) análise da tarefa de aprendizagem, a fim de
ção dos meios de ensino, essa escolha passa a ordenar seqüencialmente os passos da instru-
ser estranha para ele. ção; c) executar o programa, reforçando gradu-
almente as respostas corretas correspondentes
A mediação didática aqui se faz pelos re-
aos objetivos. (LIBÂNEO, 1986, p. 30).
cursos tecnológicos, dentre os quais ganham
destaque os manuais didáticos, mais do que Ao professor restava seguir os passos esta-
nunca fragmentados em instruções sobre como belecidos pelo programa de ensino, programa
fazer, responder aos exercícios e avaliar-se. que não era idealizado por ele, mas por técni-
Esse recurso de ensino, mais as máquinas de cos, especialistas, alheios ao processo de ensi-
ensinar, o método Keller, a instrução progra- no em curso, ou pelo livro didático. Era o
mada e outros métodos acéfalos substituem a professor um administrador das condições de
figura do professor e o ensino, enquanto pro- transmissão da matéria, reduzindo-se a um elo
cesso de criação. Com efeito, mesmo com a tênue de ligação entre verdade científica e alu-
criação da Comissão Nacional do Livro Didáti- no. Este último, um elemento responsivo, es-
co (CNLD), em 1938, é com a instituição da pectador frente à verdade objetiva.
Fundação Nacional do Material Didático (FE- Essa prática mudou nos últimos tempos, prin-
NAME), em 1968, que esse recurso de ensino cipalmente dos anos 1980 para cá, mas os res-
ganha fôlego e assume a posição de comando quícios da tecnocracia continuam vivos na
na mediação entre o saber escolar e o aluno. insistência do autoritarismo, muitas vezes visto
Por isso, quando se fala em mediação didá- e vivido na escola, nos ditames de um plano de
tica na tecnopedagogia é preciso, praticamen- ensino fabricado por autoridades exógenas a
te, deixar de citar o professor. Numa posição este processo (como o manual escolar, coorde-
secundária, o seu papel passa a ser o de admi- nadores pedagógicos, diretores de escola etc.),
nistrador de um saber fragmentário, pré-mol- funcionando como camisa de força para aque-
dado e da ideologia do sistema. Não quero les que almejam mudar alguma coisa no espa-
parecer fatalista. Em verdade, muitos profes- ço da sala de aula. O fato é que, desde essa
sores lutaram contra esse estado de coisas, mas época, o manual didático ainda reina como ba-
o que se depreende, como efeitos dessa época, luarte, num contexto onde a criatividade teima
é uma prática pedagógica que corrói a função em adormecer.
do professor como sujeito mediador entre soci- Todavia, como o processo histórico e, com
edade e alunos que se formam e entre estes ele, a história da educação brasileira, é um pro-

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cesso contraditório e dinâmico por natureza, e o ato de agir politicamente no mundo. Edu-
outras tendências pedagógicas lutaram por se car é um ato eminentemente político, já dizia
materializar em práticas mais humanas, mes- o próprio Freire. Entretanto, e no que toca o
mo nas épocas mais difíceis. Não poderíamos, presente estudo, importa conhecer os elemen-
pois, deixar de falar da mediação didática sob tos que instrumentalizariam a prática política na
as lentes críticas de Paulo Freire. proposta pedagógica freireana.
O método psicossocial de alfabetização de
adultos, na pedagogia freireana, almeja tornar
4. A mediação docente na peda- possível o postulado da unidade conhecimento-
gogia de Paulo Freire práxis-conhecimento, desenvolvido numa ativi-
dade concreta. A filosofia da alfabetização
Não se pode falar em mediação didática sem problematizadora objetiva mostrar, como indis-
se falar em mediação também sociopolítica, solúvel, a unidade entre investigação e educa-
quando se trata das idéias pedagógicas deste ção, o que geraria um produto não menos
educador que revolucionou práticas educacio- indissociável: alfabetização-conscientização.
nais em várias partes no mundo. A mediação O primeiro passo metodológico nessa peda-
didática na pedagogia de Paulo Freire pode ser gogia é a investigação temática. O objetivo des-
conceituada como uma atividade crítica, cujo sa etapa reside em encontrar os temas gerado-
objetivo maior reside na transformação cotidia- res – expressões da palavra do povo – para
na e permanente do mundo sociocultural que que, atendendo a uma programação educativa,
circunda os sujeitos envolvidos no processo possa se desenvolver uma ação cultural pro-
educativo. A mediação didática nessa pedago- blematizadora. A trajetória da investigação te-
gia é também de natureza política. mática passa por três etapas ou fases: a pri-
Com efeito, a atividade crítica de educar/ meira fase seria investigadora, a segunda,
alfabetizar derivaria de um método dialético de eminentemente pragmática e a terceira, emi-
investigação e inserção política concreta na re- nentemente pedagógica. Nessa fase pedagógi-
alidade social. Para Paulo Freire, essa ativida- ca se incluem as técnicas: brevemente, redu-
de crítica, essencialmente política, teria por ção, codificação e decodificação. E é também
finalidade última a conscientização e, por con- justo nessa fase que podemos perceber com
seqüência, a inserção das classes oprimidas no maior precisão a mediação do professor-coor-
processo político do seu meio, país. A educa- denador.
ção, portanto, possibilitaria uma passagem in- Para explicar a mediação didática (suben-
dispensável para a humanização do homem, tenda-se a dimensão política sempre contida na
oferecendo ao povo a reflexão sobre si mesmo, ação didática) do coordenador, é necessário
seu tempo e seu papel na cultura. A educação conhecer as técnicas pedagógicas inseridas no
seria um instrumento capaz de lograr a passa- método dialético da pedagogia de Freire, muito
gem do estado de consciência ingênua do povo bem deslindado no seu livro Conscientização
à uma consciência de si, enquanto sujeitos polí- (1980).
ticos, e de sua realidade sociocultural. A edu- Redução: consiste em um processo de te-
cação, na pedagogia de Freire, é uma atividade matização-elaboração dos temas que, numa
mediadora. No limite, uma atividade de media- seqüência pedagógica, serão devolvidos à co-
ção política. munidade alfabetizanda, de onde foram desco-
Tentar recortar os aspectos didáticos (rela- bertos. Os temas são, pois, reduzidos em
tivamente ao processo ensino-aprendizagem) unidades de aprendizagem. A seleção da pala-
que viabilizariam a mediação política na peda- vra geradora supõe dois momentos essenciais:
gogia de Freire é uma tarefa arbitrária, pois que o da crítica interna, onde a equipe de investiga-
não há disjunção possível entre o ato de educar ção temática submete o conjunto de temas (as

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A mediação didática na história das pedagogias brasileiras

esperanças, dúvidas, sonhos, problemas, lutas o professor abrir-se à afetividade na relação que
e conflitos da comunidade) a uma crítica cientí- estabelece com seus alunos (2000, p. 150). “Esta
fica e disciplinada, até detectar o valor funcio- abertura ao querer bem não significa na verda-
nal e lingüístico dos temas saídos do contexto de, que, porque professor, me obrigo a querer
investigado (NÓVOA, 1977); e o da crítica bem a todo os alunos de maneira igual”, mas não
externa, quando se conferem os primeiros re- descarta a união entre “seriedade docente e afe-
sultados com voluntários do grupo de alfabeti- tividade” (2000, p. 150). A afetividade está na
zandos que atuam aí num duplo papel: o de base da cognoscibilidade, para Freire e não pode
informantes e o de representantes da constru- interferir no cumprimento ético do dever de ser
ção popular. A informação selecionada é dis- professor. Assim, afirma ainda na Pedagogia
cutida em sucessivas reuniões até se delimitar da Esperança: “Enquanto relação democráti-
os pontos centrais do programa pedagógico. ca, o diálogo é a possibilidade de que disponho
Codificação: é a simbolização gráfica de de, abrindo-me ao pensar dos outros, não fene-
cada situação existencial estratégica, reduzida cer no isolamento” (1999, p. 120).
em unidades de aprendizagem. Para Freire, a educação problematizadora
Decodificação: discussão da codificação deveria romper com os esquemas verticais ca-
existencial. Pode dar-se no momento da crítica racterísticos da educação bancária, aspecto que
exterior, onde a etapa descritiva se integra à só seria possível com a superação da contradi-
analítica, para se chegar a uma síntese que pro- ção entre educador e educandos. Assim, não
jete a temática significativa detectada. existiria educador do educando, nem educando
Tomemos como referência ao processo de do educador, mas educador-educando e edu-
mediação didática, a palavra diálogo. Com efei- cando - educador, uma clara expressão do diá-
to, a mediação didática, na pedagogia de Freire, logo pedagógico defendido por Freire.
se realiza através do diálogo, aspecto este sem- Se na pedagogia tradicional jesuítica, o ele-
pre recorrente nos seus escritos. Para ele, “o diá- mento marcante na mediação didática capita-
logo é o encontro entre os homens, mediatizados neada pelo mestre jesuíta, eram os conteúdos
pelo mundo, para designá-lo”. O diálogo, então, clássicos, despidos do caráter sociocultural e
seria o encontro dos que se orientam para o mun- da reflexão crítica por parte dos discípulos, in-
do que é preciso transformar, não podendo existir versamente se situava Paulo Freire contra a
sem profundo amor pelos homens e pelo mundo. cultura pedagógica verbalista, a qual ele deno-
“O amor é ao mesmo tempo o fundamento do minou de bancária.
diálogo e o próprio diálogo. Este deve necessaria- O maior objetivo da pedagogia de Freire re-
mente unir sujeitos responsáveis e não pode exis- sidia na conscientização política. O elemento
tir numa relação de dominação” (FREIRE, 1980, forte na mediação didática não era a transmis-
p. 83). Em Pedagogia da Autonomia (2000), seu são de conteúdos abstratos, mas o saber que
último livro, Freire enfatiza o diálogo pedagógico dela resultava, a partir de metodologias ativas,
no processo de mediação didática, esclarecendo do savoir-faire da comunidade alfabetizanda.
que ensinar exige disponibilidade para o diá- A ação educativa seria um processo onde o
logo. Não existe, pois, uma ação isolada por par- ponto de partida estava na prática social, e o
te do educador. Os sujeitos do ato educativo retorno, sempre provisório, na leitura crítica
convivem numa relação horizontal, onde quem en- dessa prática social, com conseqüente retorno
sina, aprende e quem aprende também ensina. A à prática social.
questão das relações pedagógicas, na proposta de Portanto, a leitura da palavra escrita possi-
Paulo Freire, assume, assim, dimensões importan- bilitaria o acesso a um conhecimento mais pro-
tíssimas que vale aqui ressaltar. fundo e crítico da realidade que circundaria os
Resumida na frase “ensinar exige querer bem sujeitos do ato educativo. A palavra geradora
aos educandos”, Freire afirma a necessidade de criaria uma compreensão dessa realidade e se

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alongaria na compreensão do mundo. Muitos 5) havia uma indicação importante para os gru-
educadores brasileiros, autores de livros sobre pos que implementariam o método: a parti-
a educação no país, centralizaram suas críticas cipação em segmentos políticos, como
sobre o suposto regionalismo em que incorre- movimentos, organizações, partidos, etc.,
ria a pedagogia de Freire, vez que os alfabeti- para garantir, assim, a continuidade e a co-
zandos teriam acesso somente aos conhecimen- bertura política, em momentos de repres-
tos da sua realidade mais próxima, o que seria são política;
um aspecto limitante à sua formação. Entre- 6) uma vez terminada a etapa de lecto-escrita,
tanto e em que pesem suas críticas ao sistema dar-se-ia início à etapa de pós-alfabetiza-
educacional escolar que tem no conteúdo siste- ção. Além de iniciados na aprendizagem de
matizado seu aporte mais seguro, ele jamais operações matemáticas básicas, os grupos
negou a necessidade de se estender os hori- de alfabetizandos deveriam responder ao
zontes da população alfabetizanda para além desafio de realizar um livro-texto para pos-
das cercanias de sua realidade imediata. teriores grupos de alfabetização. Essa eta-
A aplicação e implementação do método de pa, extremamente criativa, possibilitaria a
alfabetização de adultos, previa uma interven- revisão das dificuldades da etapa desenvol-
ção do tipo não-diretiva pelo coordenador e vida anteriormente pelo grupo, desvendan-
uma ação coletiva, interativa, entre os sujeitos do-o para a busca de soluções possíveis. O
envolvidos no processo educativo (educando - espírito criativo do grupo seria estimulado
educador e o educador-educando): através da criação de um novo livro, pleno
1) o coordenador deveria evitar dirigir o grupo de suas peculiaridades, com palavras gera-
e, enquanto líder, evitar a imposição de seus doras específicas e que serviria como ma-
pontos de vista. Deveria ir, isto sim, paulati- terial didático para outros grupos.
namente desafiando e problematizando o Freire não entendia a pós-alfabetização jus-
grupo de alfabetizandos. O coordenador era, taposta ao processo de alfabetização. E esta,
pois, o mediador entre as experiências indi- por sua vez, não significaria um momento de
viduais (sobretudo nas primeiras fases), e a aprendizagem formal de escrita e de leitura. A
formação de uma consciência crítica sobre alfabetização conteria o processo de pós-alfa-
essas experiências, redefinidas numa práti- betização:
ca social concreta; Tal como a entendo, a alfabetização de adultos
2) além do coordenador, outro elemento do gru- já contém em si a pós-alfabetização. Esta conti-
po de investigação temática (um observa- nua, alonga e diversifica o ato de conhecimento
dor não-participante) deveria registrar (se o que se inicia naquela. Não se trata, pois, de dois
processos separados – um antes e outro depois
grupo não permitisse o registro das sessões
–, senão de dois momentos de um mesmo pro-
em gravadores) toda a produção do círculo cesso social de formação. E este, não importa o
de cultura; nome que se lhe dê - educação, ação cultural,
3) as perguntas formulados pelo coordenador animação -, implica sempre, assim na alfabetiza-
ao grupo de alfabetizandos deveriam ser ção como na pós-alfabetização, uma determina-
colocadas sempre em termos comunitários da teoria do conhecimento posta em prática.
e não individuais; (FREIRE, 1978, p. 121).
4) os trabalhos de alfabetização-conscientiza- A crítica contundente às cartilhas tradicio-
ção só poderiam ter início num grupo onde nais e a ênfase que dava ao saber provindo da
as reflexões sobre os possíveis caminhos a vivência dos educandos lhe renderam críticas
trilhar em parceria, fossem exaustivas. A por parte de educadores conteudistas; críticas,
expressão inédito viável resume, então, o muitas vezes, injustas, diga-se de passagem, vez
limite a ser alcançado, não entre o ser e o que, embora crítico, Paulo Freire jamais negou
não-ser, mas entre o ser e o ser mais; a importância do saber sistematizado na edu-

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A mediação didática na história das pedagogias brasileiras

cação dos homens. Nos seus últimos livros revê sintetizando o sentimento brasileiro num misto
o espaço do conhecimento sistematizado e, de irreverência e saudade.
mesmo, da transmissão deste conhecimento, No campo educacional, não passamos incó-
como se pode conferir no seu Pedagogia da lumes. Além do irmão do Henfil (Herbert, mais
Esperança (1999): “Não há, nunca houve, nem conhecido como Betinho, um renomado soció-
pode haver educação sem conteúdo, a não ser logo atuante e sensível) descrito na canção, inú-
que os seres humanos se transformem de tal meros foram os professores, estudantes e
modo que os processos que hoje conhecemos intelectuais, em geral, desaparecidos e exilados
como processos de conhecer e de formar per- durante este longo e tenebroso inverno.
cam seu sentido atual” (p. 110) . Nas universidades, para além do clima de
Assim, Freire jamais acreditou que o ato de terror, gestavam-se idéias de análise e compre-
ensinar e de aprender pudesse descartar o con- ensão da sociedade injusta em que estávamos
teúdo sistematizado: “Não há educação sem inseridos, à luz de estudos marxistas, com es-
ensino, sistemático ou não, de certo conteúdo. peranças de varrer do solo brasileiro as duras
E ensinar é um verbo transitivo-relativo. Quem injustiças sociais.
ensina, ensina alguma coisa – conteúdo – a al- A pedagogia histórico-crítica surge no Bra-
guém – aluno” (p. 110). Conclui, como bom sil, nessa época, com a esperança dos anos 1980
professor de Lingüística que fora por longo tem- e na esteira do movimento crítico marxista que
po no Recife. invadira a Europa e se explicitara no manifesto
Paulo Freire não deixou de rever suas posi- dos estudantes universitários franceses, em maio
de 1968. Com efeito, esse movimento marcou
ções pedagógicas nos últimos anos de sua exis-
profundamente uma época e retumbou em vá-
tência. Inclusive quanto ao papel do educador
rios países, inclusive no Brasil. Os revolucioná-
e do saber sistematizado, como se pode atestar
rios pretendiam fazer eclodir a revolução social
de seus últimos livros: Pedagogia da Esperan-
a partir de uma revolução cultural, abrangendo
ça (1ª edição em 1992), e Pedagogia da Au-
toda a superestrutura cultural da sociedade, o
tonomia (1996). A compreensão da evolução
que incluía a escola. Foi um movimento ambici-
histórica do pensamento freireano sobre edu-
oso que não conseguiu, de fato, mudar a ordem
cação e, em particular, sobre a mediação didá- instituída, mas abalou as suas bases.
tica, é uma questão de justiça. A partir do movimento, surge um pensamento
O pensamento pedagógico de Paulo Freire novo e dominante na França que, por força do
jamais deixou de ser atual e preciso, A um só seu determinismo, ficara conhecido, aqui no
tempo contundente e amoroso. Educar, para Brasil, como movimento crítico-reprodutivista.
este homem, além ser uma ato político se cons- (Os teóricos como Bourdieu e Passeron (1970,
tituía em ato de amor. Acima de tudo. apud SAVIANI, 1984), Baudelot e Establet
(1971, apud SAVIANI, 1984)) e, principalmen-
te, Louis Althusser (1969) pretendiam provar a
5. A mediação docente na Peda- impossibilidade de transformação social pela
gogia Histórico-Crítica revolução cultural, onde se incluía a ação esco-
lar. Para Althusser, por exemplo, as instituições
O grito sufocado, premido pelo desejo de sociais e políticas, dentre as quais a escola,
viver numa sociedade livre e justa, que vigorou funcionariam como aparelhos ideológicos de Es-
durante a ditadura militar (1964-1981) no Bra- tado. A função precípua desses aparelhos era
sil, ecoou veemente nos anos que se seguiram a difusão e inculcação da ideologia dominante
imediatamente a este período, inaugurando um burguesa, manifesta através do discurso e prá-
novo momento chamado de abertura política. tica dos sacerdotes e seus seguidores, no caso
Vem de lá a célebre canção de João Bosco e da Igreja, do discurso e prática dos professo-
Aldir Blanc – “O bêbado e a equilibrista” – res, no caso da escola.

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Cristina d’Ávila

A teoria crítico-reprodutivista foi importan- programas até a sua atualização na sala de aula).
te, pois conseguiu articular uma contra-ideo- Saviani propunha uma pedagogia onde o aluno
logia que, no caso dos brasileiros, serviu de pudesse ser respeitado como sujeito, mas que
argumento e estímulo às lutas contra a ditadu- não fosse ele o principal artífice do processo
ra militar. Todavia, era uma corrente teórica ensino-aprendizagem. Propunha uma relação
contraditoriamente inflexível, pois não via ou- horizontal entre estes sujeitos do ato educativo
tra função para a escola (e demais aparelhos (professor e alunos), mas não destituía o pro-
ideológicos de estado) senão a reprodução da fessor de sua autoridade pedagógica. Foi deno-
ideologia da sociedade de classes. Vale res- minada de pedagogia histórico-crítica.
saltar que o estudo desses sociólogos france- Não se pode dizer que essa pedagogia te-
ses não objetivava a construção de uma nha se firmado nas práticas escolares de modo
pedagogia; contudo, concedeu elementos im- generalizado; não se tem notícia da institucio-
portantes à análise da sociedade e do papel nalização dessa tendência pedagógica. Arrisco
social da educação. mesmo a dizer que ela se restringiu aos meios
Foi preciso a organização de um contra- acadêmicos, à universidade, pois foi concebida
modelo para que se pudesse, no meio acadêmi- nestes centros e sua divulgação não tocou se-
co, voltar a ver a escola como instituição social não os professores universitários, com exceções.
e palco efervescente de contradições sociais: O objetivo maior dessa pedagogia está na
como espaço onde a luta contra o modelo só- transmissão/assimilação do saber universal so-
cio-político e econômico estabelecido pudesse cialmente produzido. Nesta tendência, Saviani
se constituir; mesmo o aspecto reprodutor da procurou objetivar historicamente a questão da
educação escolar é contraditório, portanto ca- escola e da importância do trabalho pedagógi-
paz de fazer engendrar mudanças. co escolar no processo de desenvolvimento
Saviani engendrou sua teoria pedagógica, cultural e social.
para além das análises sociológicas, na busca É aí que se insere a idéia de mediação; uma
de modos de intervenção que pudesse, de algu- mediação de natureza político-social, pois que
ma maneira e mesmo que indiretamente, incidir se pretendia, através da ação educativa (uma
sobre o modelo social instituído. Ao professor, atividade mediadora), prover as classes desfa-
como mediador político de uma pedagogia re- vorecidas de um saber e de uma consciência
volucionária, estava reservada a tarefa de mu- política capaz de levá-las à compreensão do seu
nir os alunos de classes desfavorecidas, das meio social para nele poder intervir. Saviani,
mesmas armas que possuía a classe burguesa àquela época, não tinha ainda bem esclarecido
– o saber sistematizado – para, assim, fazer a si mesmo o que queria dizer com a idéia de
avançar as lutas sociais por transformações. mediação nesta pedagogia. A idéia, posterior-
O ideário pedagógico progressista surge pri- mente desenvolvida por Cury, Guiomar Mello,
meiramente através dos escritos de George Betty Oliveira, Luckesi, dentre outros educa-
Snyders na França, em 1979. Dermeval Savia- dores, reunia o objetivo político de transforma-
ni, um pouco mais tarde, publica, em 1983, o ção das estruturas sociais, mediante (a mediação
livro Escola e Democracia, onde anuncia suas didática deveria favorecer a isso) a ação políti-
onze teses em favor de uma pedagogia progres- ca do educador que instrumentalizaria seus alu-
sista. A sua idéia era buscar uma síntese supe- nos através da transmissão e domínio do saber
radora entre as tendências tradicional (que tinha escolar.
no professor o detentor e transmissor exclusivo Assim, a mediação propriamente didática,
de um saber abstrato) e a escolanovista (que, que incide sobre o processo de objetivação cog-
segundo o próprio Saviani, colocava no aluno nitiva dos educandos, se revela como uma ação,
as responsabilidades do processo ensino-apren- prioritariamente, política. Betty Oliveira (1985)
dizagem, desde as escolhas dos conteúdos e decodificou com clareza a idéia de mediação

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A mediação didática na história das pedagogias brasileiras

na pedagogia histórico-crítica, entendendo a Talvez o equívoco desta pedagogia tenha sido


escola como locus privilegiado para a instru- o de enfatizar, por demais, a importância da
mentalização dos educandos (apropriação do transmissão do conteúdo sistematizado em de-
saber sistematizado) e conseqüente atuação no trimento da compreensão dos processos cogni-
meio social. tivos que nos esclarecem sobre a aprendizagem
A transformação das estruturas sociais é o e, portanto, sobre os mecanismos de aquisição,
objetivo último da pedagogia histórico-crítica. construção e reconstrução do saber.
O princípio básico se sustenta sobre a idéia de José Carlos Libâneo (1986) foi outro edu-
transmissão do saber, chamado pelos autores cador que sistematizou os pressupostos da ten-
histórico-críticos, de universal, o saber sistema- dência histórico-crítica, explicitando-a do ponto
tizado, como direito de todos os cidadãos. A de vista didático. Emprestou-lhe o codinome de
educação escolar, enquanto atividade mediadora pedagogia crítico-social dos conteúdos e
no seio da prática social mais ampla, não deixa- descreveu a sua manifestação na prática peda-
ria de propiciar uma passagem na vida do indi- gógica escolar.
víduo que deveria assimilar criticamente o saber Libâneo avança bastante no que toca à com-
sistematizado e atuar no seio meio social, em preensão da didática na pedagogia dos conteú-
prol das transformações das estruturas. dos. Segundo o autor, o trabalho docente
A prática educativa realizada intencional- consiste em buscar transmitir os conteúdos cul-
mente é, então, vista como uma modalidade da turais universais, compreendendo os meios pe-
prática social e, como atividade mediadora, tem los quais os alunos se apropriam desses
possibilidades de influir sobre a prática social e conteúdos. Nesse particular, parte do conheci-
contribuir positivamente no rumo das proclama- mento didático se refere às mediações que pro-
das mudanças sociais. moverão o encontro entre o aluno – e seu
Dentro do próprio espaço da sala de aula, currículo oculto – e o saber escolar. Desta for-
os teóricos histórico-críticos já acreditam ser ma é o professor também “portador das media-
possível engendrar transformações. “Essas ções que tornarão viáveis o trabalho docente
transformações, embora específicas da prática que garanta o acesso do aluno ao saber esco-
educativa (escolar), constituem-se partes im- lar” (1986, p. 140) .
portantes de transformações que se dão nas A atividade nuclear do trabalho docente se-
demais modalidades da prática social global”. ria exatamente o encontro entre o aluno e o
(OLIVEIRA, 1985, p. 99). objeto de conhecimento:
Creio que esta citação resume bem o que
quero dizer com a mediação de caráter político ... cujos resultados formativos passam por inú-
meras mediações que contextualizam a situação
da pedagogia histórico-crítica. Este é o objetivo
pedagógica (contexto sociopolítico-cultural, con-
e o meio pelo qual esta teoria pedagógica se texto sociopsicológico, processos mentais im-
corporifica em prática. Assim, a ação pedagó- plicados na aquisição e apropriação dos conhe-
gica “cumpre já na sua própria produção uma cimentos, processos de seleção de conteúdos
dimensão política, que lhe é, portanto, intrínse- básicos das matérias e organização da sua se-
ca”. (OLIVEIRA, 1985, p. 99). qüência lógica, especificidade metodológica de
É preciso salientar, no entanto, que os teóricos cada matéria etc.). (Libâneo, 1986, p. 141).
desta tendência nunca foram ingênuos ou postu- Essas mediações constituiriam, segundo Li-
laram a transformação das estruturas sociais e bâneo, a base da prática pedagógica.
econômicas na sociedade capitalista, mediante a Todavia, seria ainda preciso uma outra cor-
ação pedagógica escolar. Acreditavam, isto sim, rente pedagógica que avançasse ainda mais
que a educação escolar poderia contribuir indire- neste terreno, dando conta do ato de conhecer
tamente para tal fim. E este seria o seu sentido como processo construtivo. E, nesse contexto,
mediador enquanto atividade política. a ação do professor deverá passar a incidir, não

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Cristina d’Ávila

na transmissão do saber, mas na problematiza- afora todas as questões de ordem política, soci-
ção do conhecimento, no levantamento de sus- al ou econômica que estão na base desses pro-
peitas, no aguçamento das curiosidades e no blemas – de conhecimento profundo e crítico
desejo de aprender. Jean Piaget e Vygotsky de alguma teoria pedagógica que pudesse fa-
forneceram as bases para a compreensão des- zer alavancar um trabalho mais consistente e
se processo. Outros autores, na atualidade, se criativo na escola.
incumbiram de gerar, a partir dos estudos dos O clima de desesperança e desestímulo ain-
primeiros, uma tendência pedagógica, então da não partiu, de todo; hoje, o sentimento nega-
conhecida como construtivista. tivo pode ser atribuído muito mais às precárias
Assim é que a pedagogia histórico-crítica, condições de trabalho docente que ao desco-
embora proponha uma síntese superadora en- nhecimento de um pensamento pedagógico ra-
tre a corrente tradicional e a pedagogia da Es- zoavelmente ordenado. Não quero dizer, com
cola Nova, deixa uma lacuna do ponto de vista isso, que os professores das escolas brasileiras,
da compreensão dos modos de aprender das em geral, dominam o que se convencionou cha-
crianças, não apresentando subsídios suficien- mar de tendência pedagógica construtivista
tes para a elaboração de um pensamento peda- e desenvolvem uma prática absolutamente co-
gógico também construtivo. Talvez essas erente com os princípios desta teoria. Não sus-
lacunas tenham concorrido para a exacerba- tento, tampouco, que o construtivismo tenha
ção, dos anos 1990 para cá, do construtivismo surgido como panacéia para resolver todos os
pedagógico que assola as escolas da rede ofici- males do ensino público brasileiro, bem ao con-
al de ensino, praticamente, em todo o país – trário disso. Seu desenvolvimento, ou melhor,
pedagogia esta que conclui o presente artigo, seu mau desenvolvimento, nestas escolas, se
logo em seguida. deve, em muito, à política estadual, e também
federal, de esvaziamento ainda maior da quali-
dade desse ensino. Falta formação adequada e
6. A mediação didática do- boas condições de trabalho para que os nossos
cente no construtivismo pedagó- professores saibam e possam desempenhar bem
gico suas funções. Todavia, já se pode apreciar, hoje
em dia, práticas pedagógicas, no ensino públi-
O amálgama pedagógico em que se consti- co, bem diferentes das de outrora e mesmo ali-
tuía a prática pedagógica de professores, no nhadas ao ideário construtivista, que aportam
período pós-regime militar, evocava a necessi- bons resultados e satisfação, tanto para quem
dade de elaboração de um pensamento peda- ensina quanto para quem aprende.
gógico que pudesse dar conta da compreensão Antes de tudo, é preciso esclarecer o que
do ato de aprender e de ensinar, e, assim, da se entende por construtivismo e também por
busca de modos de intervenção pedagógica mais socioconstrutivismo ou socio-interacionismo ou,
instigantes e prazerosos. O ingrediente do pra- ainda, construtivismo sócio-histórico – uma ver-
zer e da ludicidade tinham partido, de há muito. tente, digamos, sócio-histórica do construtivis-
Como que desesperançados, os professores, mo piagetiano que tem, em Vygotsky, seu
mormente os de nível fundamental e médio, precursor.
desenvolviam, nesses tempos taciturnos, uma O construtivismo pedagógico pode ser com-
prática um tanto quanto amorfa, inodora e ino- preendido como conjunto de pensamentos psi-
perante nas escolas da rede pública estadual. copedagógicos organizados empiricamente e fun-
Este amálgama, constituído de resquícios da damentados em inúmeras pesquisas: desde Jean
vertente tradicional, escolanovista e tecnicista, Piaget (1965a, 1970b, 1970c) e Vygotsky (1984a,
se imprimiam nas mais variadas manifestações 1987b) a Emília Ferreiro (1985), seus maiores
de prática pedagógica, por falta, a meu ver – e expoentes. Os estudos mais atuais que empres-

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A mediação didática na história das pedagogias brasileiras

taram uma releitura à teoria construtivista apli- um objeto de conhecimento objetivamente exis-
cada ao âmbito pedagógico, que considerarei aqui tente. Este aspecto da aprendizagem resume a
como referência, provém de Teberosky (1993), tarefa do ensino no construtivismo.
Deheinzelin (1986), e Coll e Solé (2001). A mediação didática, nesta tendência, é um
O elemento cultural na teoria construtivista, processo compartilhado, em que “o aluno, gra-
por vezes mal interpretado por críticos ao cons- ças à ajuda que recebe do professor, pode mos-
trutivismo piagetiano, é um ponto fundamental trar-se progressivamente competente e
no estudo de Deheinzelin (1986), pois que per- autônomo na resolução de tarefas, na utiliza-
mite a união daquilo que antes poderia ser visto ção de conceitos, na prática de determinadas
como oposição entre o pensamento de Piaget e atitudes e em numerosas questões” (COLL;
de Vygotsky. Mas, retornarei a este ponto, ao SOLÉ, 2001, p. 22).
final, quando da síntese das teorias e conclusão Tal como apregoa Lenoir (1999), a media-
deste artigo. ção didática deverá incidir na capacidade cons-
A questão da mediação didática, na tendên- trutiva do educando (em que pesem outras
cia pedagógica construtivista, é um dos pontos dimensões aí presentes: sociais, afetivas, políti-
mais importantes nos trabalhos de Coll e Solé cas e outras), desafiando-o, instigando-o. Uma
(2001) e a sua exposição auxiliará, sobrema- ajuda, segundo Coll e Solé, que vai do desafio à
neira, a compreensão deste processo aqui. demonstração mais minuciosa, da demonstra-
Segundo Coll e Solé, o construtivismo não é, ção de afeto à correção, ajustando-se sempre
no sentido estrito, uma teoria, mas um referen- às necessidades dos educandos.
cial explicativo que “integra contribuições di- Esta ajuda do professor deve incidir, para os
versas cujo denominador comum é constituído autores, na zona de desenvolvimento proxi-
por um acordo em torno dos princípios constru- mal (ZDP), entre o nível de desenvolvimento
tivistas” (COLL; SOLÉ, 2001, p. 10). A pre- efetivo e o nível de desenvolvimento potencial
missa básica desta tendência está em que que pode atingir o educando.
aprender é construir. E se aprende quando se é A versão construtivista atualizada de César Coll
capaz de elaborar uma representação social e Isabel Solé não se coaduna com a idéia espon-
sobre um dado objeto da realidade ou de um taneísta de ensino. O construtivismo, na versão
conteúdo que se deseja aprender. Essa elabo- de Coll e Solé, não enjeita os conteúdos escolares,
ração não é vazia, mas mediada por múltiplas ressignifica-os. A ação do professor, este media-
experiências, interesses, conhecimentos prévi- dor de saberes, deve, pois, incidir na capacidade
os que darão conta de uma nova ressignifica- construtiva do aluno para que também ele seja
ção. Assim é que, de posse dos nossos um autor na sua trajetória como aprendiz.
significados, nos aproximamos de um novo as- Não poderia falar em construtivismo sem
pecto do real que, na verdade, será interpreta- mencionar o nome daquela que revolucionou os
do com os significados que já possuíamos, e que, meios educacionais, principalmente, na Améri-
assim parecerá novo. Porém, de outras vezes, ca Latina, com suas pesquisas científicas em
“colocará para nós um desafio ao qual tenta- torno dos processos que envolvem a aquisição
mos responder modificando os significados dos da lecto-escrita: Emília Ferreiro. Psicóloga e
quais já estávamos providos, a fim de poder- pesquisadora argentina, radicada no México, fez
mos dar conta do novo conteúdo, fenômeno ou seu doutorado na Universidade de Genebra, sob
situação” (COLL; SOLÉ, 2001, p. 20). É as- a orientação de Jean Piaget. A partir de 1974,
sim que, além de podermos transformar o que iniciou seus trabalhos experimentais, na Univer-
já possuíamos como saber, também podemos sidade de Buenos Aires, que derivaram na teo-
interpretar o novo, de forma singular. ria sobre a Psicogênese do Sistema de Escrita.
Então, aprender significativamente quer di- A criança, para Emília Ferreiro, longe de ser
zer construir um significado próprio, pessoal para um ser passivo, é um sujeito que pensa e intera-

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Cristina d’Ávila

ge com o mundo ao seu redor. Um sujeito que A diferença conceitual entre as teorias con-
constrói, ativamente, suas próprias hipóteses e teudistas e a teoria de Piaget sobre o sujeito da
teorias; põe à prova suas antecipações. Com aprendizagem reside no fato de que, para as pri-
relação à linguagem não poderia ser diferente: a meiras, o conhecimento é exterior ao sujeito é
criança concebe também suas hipóteses, busca recebido de fora. Para a teoria piagetiana, o su-
regularidades e forja assim sua própria gramáti- jeito é o construtor de seu conhecimento. Desta
ca. A criança é capaz de reconstruir sua lingua- forma, o conhecimento objetivo não aparece de
gem, abordando seletivamente as informações modo linear; é um caminho que se faz por rees-
que lhe provêm do meio. Os erros que comete truturações progressivas e simultâneas, algumas
nessa busca complexa da própria linguagem não das quais errôneas, mas construtivas. Tais er-
são erros, mas ocasiões extremamente bem ela- ros podem ser entendidos como pré-requisitos
boradas e situadas numa trajetória sempre in- necessários à obtenção da resposta correta.
conclusa. Estes erros construtivos, longe de Um outro aspecto fundamental da teoria de
constituir-se em empecilhos, são provas de que Piaget, resgatado por Emília Ferreiro, é o da
os sucessos futuros, no processo construtivo da possibilidade de reconstrução do conhecimento
aprendizagem, serão perfeitamente possíveis. pelo sujeito cognoscente a partir das leis de
Segundo Ferreiro, a literatura em torno da composição do objeto de conhecimento. O co-
aprendizagem da língua escrita se restringe a nhecimento progredirá através de conflitos
tipos de metodologias capazes de solucionar cognitivos, isto é, através da presença de um
todos os problemas concernentes a tal proces- objeto que force o sujeito a modificar seus es-
so. São estudos que, de modo geral, buscam quemas de assimilação, realizando assim um
estabelecer um rol de habilidades e capacida- esforço de acomodação para incorporar o que
des necessárias a esta aprendizagem em parti- anteriormente resultava em inassimilável.
cular: lateralização espacial, discriminação visual Não se trata de colocar o indivíduo diante
e auditiva, coordenação psicomotriz, etc. Esses de situações irrealizáveis. Do ponto de vista
fatores podem, de fato, concorrer positivamen- prático, significa gerar situações conflitivas em
te para o progresso na aprendizagem da lecto- momentos específicos, diante das quais o sujei-
escrita, mas esta relação não é causal, como to esteja preparado para transpô-las. Resolven-
estes trabalhos fazem supor. do suas próprias contradições, o sujeito
Emília Ferreiro busca na teoria de Piaget um cognoscente estará em condições de avançar
papel ativo para o sujeito aprendiz ou o sujeito no sentido de novas reestruturações.
cognoscente – um sujeito que busca seu pró- O estudo de Emília Ferreiro demonstra a per-
prio conhecimento e trata ativamente de com- tinência da teoria psicogenética de Piaget, bem
preender o mundo que o cerca, construindo suas como os conceitos advindos da psicolingüística
próprias categorias de pensamento. Este sujei- contemporânea, aplicados à natureza dos proces-
to cognoscente está também presente na apren- sos de aquisição do conhecimento em lecto-escri-
dizagem da língua escrita. ta. Não se trata de um método de alfabetização.
Seguindo a referência piagetiana, não exis- Não se pode cair no mesmo erro tão alardeado
te um ponto de partida inteiramente novo no pela autora em passagens diversas no seu livro,
momento em que se aprende. Um conteúdo confundindo-se método com teoria sobre o pro-
novo, mesmo que ainda desconhecido, deverá cesso de conhecimento. A teoria tratada pela au-
ser assimilado pelo sujeito segundo seus esque- tora visa a iluminar os problemas de natureza epis-
mas de assimilação disponíveis. A depender temológica no campo da lecto-escrita para, assim,
desses esquemas, a assimilação será mais ou ajudar a solucionar os problemas de aprendiza-
menos deformante. O ponto de partida de toda gem nesta área na América Latina, evitando, des-
aprendizagem é o próprio sujeito e não o con- se modo, o processo de formação de analfabetos
teúdo a ser abordado. ainda em curso no sistema escolar.

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A mediação didática na história das pedagogias brasileiras

Considerações finais: em busca de possam trabalhar com maior segurança.


uma síntese possível O espaço da mediação didática está justa-
mente em descobrir o que os alunos sabem e
Podemos afirmar que, ao invés de oposição, como o sabem. O professor, parafraseando
há complementaridade entre as obras de Vygotsky Macedo (2000), como mediador de saberes é
e seus seguidores da Escola sócio-histórica de também um tradutor. Assim, o professor é um
Moscou e a obra de Jean Piaget e de seus cola- mediador entre as idéias dos educandos e os
boradores na Escola de Genebra. O elemento da objetos de conhecimento. Este é o sujeito que
cultura, tão criticado e tido como alheio na obra sabe quando e como deve ressaltar este ou aque-
de Piaget, deve ser então, incorporado ao que se le ponto, introduzir esta ou aquela demonstra-
pode chamar de socioconstrutivismo. A compre- ção, detalhar uma explicação, ilustrar com
ensão de uma e de outra teoria, certamente, será exemplos, iluminar. O que importa, para o de-
muito útil a todo e qualquer processo de ensino senvolvimento adequado da mediação didática
que se deseje crítico e construtivo. docente, é considerar o que o aluno traz como
É preciso romper com o ensino verbalístico bagagem cultural e, então, ensinar/mediar de
da pedagogia tradicional sem, entretanto, rom- acordo. O trabalho pedagógico é um trabalho
per com as tradições, pois que elas têm sua de delicada tradução.
importância. As estruturas internas do conhe- Fechar este artigo supõe abri-lo à compre-
cimento são elementos da cultura e são, inicial- ensão do que se passa atualmente, no âmbito
mente, compreendidos, segundo Piaget, por da mediação que pratica o professor. Significa,
meio da imitação, gerando, assim, a função sim- ainda, a busca pela elaboração de outros sabe-
bólica, as imagens mentais, as linguagens e os res que poderão nos conduzir a outras possibili-
esquemas operatórios que abrem possibilidades dades didáticas numa engrenagem educativa
e necessidades ad infinitum para o pensamen- mais prazerosa, desafiadora e criativa. Cada
to e para a cultura (PIAGET, 1996, p. 84). Logo, tendência pedagógica apresentada aqui pode
a versão atualizada do construtivismo não nega oferecer-se como ingrediente interessante para
a importância do conteúdo escolar, mas redi- a reconstelação de práticas pedagógicas que
mensiona-o, em função do que as crianças tra- apontem para outras direções menos indiges-
zem como saber e das suas condições para tas do que aquelas com as quais se afirmaram
aprender. Cabe ao professor decifrar, interpre- as práticas autoritárias de ensino.
tar, traduzir estes elementos e então criar con- O conhecimento das pedagogias (ao menos
dições adequadas de ensino/aprendizagem. aquelas de maior expressão) que deram forma
Muitos dos projetos pedagógicos atuais es- às mediações didáticas empreendidas pelos pro-
tão colocados diante de um falso dilema: de um fessores, ao longo da história, nos garante a
lado, a cultura verbalística do ensino tradicional compreensão das práticas pedagógicas na atu-
e, de outro, a ênfase no desenvolvimento cog- alidade. Finalmente, devo concluir, acreditando
nitivo e na livre expressão das crianças, carac- que a mediação didática docente é um proces-
terísticas típicas das chamadas escolas so que se constrói significativamente, como ação
alternativas. Os resultados dessa dicotomia são criadora que deve nascer das necessidades mais
negativos, pois contribuem ainda mais para profundas dos educandos como seres humanos
agravar o fosso existente entre as classes soci- aprendizes e cidadãos que são. E que o mestre
ais no Brasil, muito embora as camadas popu- seja, como afirmou Anísio, sempre de forma
lares não freqüentem escolas com uma ou outra tão atual: “...o sal da terra, capaz de ensinar-
dessas características tão bem definidas. O que nos, a despeito da complexidade e confusão mo-
parece estar acontecendo na atualidade é uma dernas, a arte da vida pessoal em uma
falta de concepção pedagógica clara e bem sociedade extremamente impessoal” (TEIXEI-
assimilada pelos professores para que estes RA, 1963, in: ROCHA, 1992, p. 8).

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Cristina d’Ávila

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Recebido em 30.05.05
Aprovado em 08.08.05

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ESTUDOS
Carlos Roberto Jamil Cury

DA DIFERENÇA E DA IGUALDADE

Carlos Roberto Jamil Cury*

RESUMO

A diferença chegou ao terreno da educação: são as pessoas com deficiências,


são os afro-descendentes, são os povos indígenas. Com ela surge a necessidade
de administrar essas realidades. Aceder aos conceitos é um modo de sistematizar
essa administração. Este artigo pretende explicitar termos bastante utilizados
na área como: igualdade, eqüidade e diferença. Além disso, busca analisá-los,
referindo-os à educação.
Palavras-chave: Educação – Eqüidade – Diferença – Igualdade

ABSTRACT

ON DIFFERENCE, ON EQUALITY
Difference reached the realm of education: physically challenged people, afro-
descendents, native communities. Along with it arises the need to manage
those realities. Developing concepts is a way to work out this management
systematically. This article aims to bring into light terms largely used in the field
such as: equality, equity and difference. Moreover, it endeavors to analyze
them in an educational perspective.
Keywords: Education – Equality – Equity – Difference

... temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito
de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma
igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou
reproduza as desigualdades. (Boaventura Santos).

INTRODUÇÃO ência ética partilhada por Estados, seja em tra-


tados e acordos de dimensão internacional, seja
Este texto tem por objetivo refletir sobre a nos de feitio regional. Simultaneamente avulta,
problemática da igualdade e da diferença en- a cada dia, um estado de violação profunda
tre as pessoas e os grupos humanos, expres- desses direitos, indicando uma verdadeira situ-
são que é da tão nova quão antiga questão do ação esquizofrênica. Prolonga-se a vida, a ci-
uno e do múltiplo. ência avança, as vozes humanitárias se sucedem
A realidade mundial vem revelando uma e, concomitantemente, a fome, a miséria não
consciência cada vez maior da relação igualda- são debeladas, e a realidade das invasões e
de/diferença nos direitos humanos por meio de ocupações de nações suscita cada vez mais
uma proteção que expressa uma maior consci- morte e terrorismo.

* Doutor em Filosofia da Educação. Professor na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUCMG.
Endereço para correspondência: PUCMG, Mestrado em Educação, Av. Itaú, 505, Coração Eucarístico – 30730-280
Belo Horizonte/MG. E-mail: crjcury.bh@terra.com.br

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Da diferença e da igualdade

Se a humanidade possui um estoque de ri- diferença, custa a aceitar como legítima essa
quezas acumuladas que permitiria uma vida dig- presença cultural diferenciada em matéria, por
na para todos os humanos, a concentração delas exemplo, de hábitos, linguagem e costumes.
em uma ponta do mundo implica a campeação Não se trata de uma problemática simples.
das doenças e do sofrimento na outra e da po- Muito pelo contrário. Ela se revela complexa e,
larização social no interior dos países. por isso mesmo, tensa e, por vezes, polarizada.
A igualdade é um conceito controverso, A literatura, inclusive a que comparece neste
evolutivo e dependente de variações sócio- texto, manifesta essa complexidade e tensão.
contextuais. Ela expressa relações entre clas- Mas trata-se de uma problemática que instiga
ses ou grupos sociais distintos face a um hori- a busca de uma resposta condizente com a sua
zonte comum. E, no seu processo histórico, importância, especialmente no espaço da edu-
vem revelando, enquanto direito proclamado, cação.
um caminho de mais desigualdade para me- Essa tensão entre conceitos que expressam
nos desigualdade, manifestando uma supera- realidades complexas tornou-se mais explícita
ção lenta e difícil, na sua efetivação, dessas quando formas clássicas de desigualdade soci-
situações.(BOBBIO, 1992) al se mostraram ainda mais agudas perante o
A diferença, por sua vez, – do latim differ- recuo do Estado Social, a crise das esquerdas e
ro, differre = dispersar, espalhar, semear –, é a a presença do desemprego estrutural. O vácuo
característica de algo que distingue uma coisa deixado por esse recuo carece de políticas uni-
da outra. Seu antônimo não é igualdade, mas versalistas e é ocupado por projetos de focali-
identidade.1 Diferença é sempre diferença de zação calcados na diferença ou em interpreta-
uma identidade com relação a outra identidade, ções peculiares da eqüidade.
geralmente entre pessoas. E por serem identi- Este texto não foge dessas dificuldades; não
dades próprias, elas são relacionais, já que pos- tem respostas aos problemas postos, nem pre-
tas uma diante da outra, marcam, assim, a tende esgotar o assunto. Ele pretende repassar,
diferença. Ser igual não quer dizer ser idêntico. rapidamente, por momentos históricos que re-
Como afirma Galluppo (2002, p. 215): fletiram essa problemática, expressar essa re-
Enquanto etimologicamente o termo identidade
alidade no Brasil, e tentar uma reflexão sobre
se refere mais propriamente à substância dos pontos que tensionam os pólos dessa relação.
entes, o termo igualdade se refere mais propria- Em um livro estimulante, o prof. Alain Tou-
mente à relação que estabelecem entre si. Dois raine (2002) repõe, em termos sociais e atuais,
seres idênticos são necessariamente iguais, mas o eterno problema filosófico – que subjaz a es-
nem todos os seres iguais são necessariamente sas questões – do Uno e do Múltiplo. Ele se
idênticos. Daí ser possível que dois seres iguais pergunta se “podemos viver todos juntos”, sen-
possam ter diferenças entre si.
do ao mesmo tempo “iguais e diferentes”. Tra-
Analogamente à igualdade, a diferença é um ta-se de uma pergunta crucial para países,
conceito polissêmico e variável em contextos grupos e pessoas. Se não pudermos viver jun-
históricos específicos. tos, iguais e diferentes, talvez se possa respon-
Um exemplo atual é a situação dos imigran- der que é possível vivermos como iguais e
tes presentes em nações, geralmente ex-me- diferentes, porém separados, ou então vivermos
trópoles coloniais. Esses indivíduos, em busca juntos como diferentes porque desiguais. No
de vida melhor, carregam lastros culturais nati- primeiro caso, trata-se de um regime de apar-
vos, os quais acabam por gerar um enfrenta- theid já condenado; no segundo, voltaríamos ao
mento de culturas. Assim, do ponto de vista regime de estamentos. Na verdade, a pergunta
cultural, etnias sufocadas, minorias segregadas
convivem com realidades discriminatórias can-
1
Idêntico tem a ver com idem (do latim = o mesmo). Tem
dentes, na medida em que o pólo cultural domi- a ver com o idiós, do grego, que significa o próprio, o
nante, referencial para o delineamento da singular.

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Carlos Roberto Jamil Cury

de Touraine supõe uma resposta que corres- tuição de alguma autoridade pública universal.
ponda à dignidade igualitária de todos, enrique- (p. 66).
cida pelos matizes culturais de uma humanidade E, na realidade atual, especialistas em eco-
una, indivisível e múltipla e diferenciada. Esse nomia internacional, como Celso Furtado (1999),
caminho de uma utopia concreta é aquele do não se esquivam em postular uma idêntica au-
qual não se pode abrir mão, mas cuja trajetória toridade para regular a possessividade desen-
se vê obstaculizada por inúmeras barreiras que freada dos mercados internacionais, cuja
se cruzam ora com o nacional, ora com o soci- procura por lucros fáceis vem impondo custos
al, ora com o cultural. sociais desastrosos. Na busca de uma Autori-
Um momento importante e ainda atual da dade Financeira Mundial, ele esclarece:
defesa da igualdade, como elo essencial entre
A consciência de que as estruturas atuais ex-
os homens, é a Declaração Universal dos Di- põem povos ricos e pobres a crises de custo
reitos Humanos de 10/12/1948, seguida do Pac- social crescente está na origem de múltiplas ini-
to Internacional sobre os Direitos Civis e ciativas para que se realize um esforço comum
Políticos e do Pacto Internacional sobre Direi- de reconstrução institucional. Para avançar nes-
tos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de se terreno se requerem espírito de cooperação,
16/12/1966. Apesar da solenidade de sua pro- visando conciliar interesses divergentes, e espí-
rito de luta a fim de que os que ocupam posição
clamação, eles não conseguiram se impor às
de poder e têm mais amplo acesso às fontes es-
nações signatárias com a força jurídica, vincu- tratégicas de informação não obriguem os fra-
lante e assecuratória, correspondente à contun- cos a aceitar mais um desses Diktats responsá-
dência dos termos em que igualdade e diferença veis por tantas tragédias históricas.
foram exaradas.2 O Fundo Monetário Internacional continua
Não é de hoje que a busca de maior igual- enfeudado ao Tesouro dos Estados Unidos e
dade entre os homens põe ênfase no que é co- aos interesses financeiros internacionais para
mum à espécie humana em que a superioridade desempenhar adequadamente esse papel. Recen-
axiológica da humanidade vista ut genus se temente deu-se um passo adiante com a institui-
sobreponha a uma visada dos grupos e dos pa- ção de força-tarefa no Comitê Consultivo das
Nações Unidas para Assuntos Econômicos e
íses vistos ut singuli.
Sociais. Esse órgão recomendou a instituição de
Kant (1939), no século XVIII, à cata da uma Autoridade Financeira Mundial com pode-
“Idéia de uma história universal em sentido cos- res para definir padrões de regulação financeira.
mopolita” (1784), assinala que o uso da razão (p. 25-26).
só se desenvolve plenamente na espécie e não É do reconhecimento da igualdade essenci-
nos indivíduos. É da espécie humana que o foro al de todas as pessoas do gênero humano que
privilegiado da razão, apanágio da hominidade, se nutriram todas as teses dos direitos univer-
se desenvolve, e sua plenitude em humanidade sais da pessoa humana e, por decorrência, as
só se realiza pela “paz perpétua”. teorias da cidadania, da democracia e da pos-
Também autoridades morais entenderam que tulação de uma autoridade internacional. É des-
essa “paz perpétua” supõe uma autoridade se reconhecimento de uma igualdade substan-
mundial. É o caso do papa João XXIII, na encí-
clica Pacem in Terris (1963):
O bem comum universal levanta hoje problemas 2
O Brasil é signatário, na Organização das Nações Unidas
de dimensão mundial que não podem ser enfren- (ONU), da Declaração Universal dos Direitos do Homem de
1948, é ratificante da Convenção para a Prevenção e a
tados e resolvidos adequadamente senão por Repressão do Crime de Genocídio, também de 1948, é
poderes públicos que possuam autoridade, es- aprovante da Convenção Internacional sobre a Eliminação
truturas e meios de idênticas proporções, isto é, de todas as formas de Discriminação Racial de 1968, é par-
ceiro na Convenção da UNESCO para Eliminação da Dis-
de poderes públicos que estejam em condições criminação na Educação de 1960, e é signatário do Pacto
de agir de modo eficiente no plano mundial. Por- Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, entre
tanto, é a própria ordem moral que exige a insti- outros.

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Da diferença e da igualdade

cial da categoria humana onde quer que ela Trata-se de um ser potencial marcado pelo ca-
se apresente, em quaisquer dos espaços nacio- ráter passivo oposto à atividade dos “melhores”.
nais, que se pode ter como horizonte uma outra E como não são todos os homens que podem
natureza nas relações entre nações, no interior ter acesso à plenitude da vida política na ágo-
delas e nas relações entre grupos sociais e pes- ra, dada a sua visão organicista da comunida-
soas, todas sempre marcadas por diferenças de, só os cidadãos (andér) são ativos.
nacionais, grupais, culturais e individuais. (BOBBIO; BOVERO, 1986).
A justiça segundo ele, em Ética a Nicôma-
co, se define pelo que é conforme à lei e res-
IGUALDADE E DIFERENÇA peita a eqüidade; o injusto é o que viola a lei e a
falta à eqüidade. As leis devem buscar a justi-
A presença entre os homens de situações ça pela sua finalidade que é a de serem veícu-
indicadoras e reveladoras de guerra e violên- los da felicidade de todos os membros da
cia, de fratura social, dos desastres ecológicos comunidade. Segundo Aristóteles, a comunida-
e as formas de desigualdade, discriminação e de é composta por três estamentos básicos: os
opressão, entre muitas outras, sempre se cho- escravos, os metecos e os cidadãos atenien-
cou com a consideração básica do outro como ses. Cada estamento, em seu próprio interior,
um igual. O relato bíblico de Caim e Abel é reconhece em seus membros uma igualdade,
emblemático. À fraternidade originária se se- mas essa não se aplica aos outros estamentos.
gue o fratricídio. Algo semelhante pode-se de- Iguais entre si no interior de cada estamento,
preender do relato mítico grego de Chronos que cada qual deve se estabelecer e se reger por
chegava mesmo a devorar seus filhos. sua função específica. Nesse sentido, há uma
Essa tensão entre a igualdade entre os se- ordem hierárquica entre os estamentos e das
res humanos e a manifestação de suas diferen- pessoas que os compõem, o que pressupõe uma
ças perpassa a real história das sociedades desigualdade entre eles. Essa igualdade interna
humanas. e desigualdade externa, para serem harmôni-
A Grécia Clássica, na ordem social e políti- cas, só se realizam quando cada estamento re-
ca, defrontava-se com as dificuldades de se aliza sua função. Ao fazê-lo, eles cooperam para
entender o escravo, o bárbaro ou o meteco. Na a finalidade comum que é a harmonia e o bem
ordem filosófica, o problema não passou des- de todos.
percebido. Antifonte (480-411 A.C}, ilustre so- Mas como isso se dá? Em primeiro lugar,
fista, punha claramente a questão: pelo suum cuique própria da igualdade distri-
... os que descendem de ancestrais ilustres, nós butiva. A justiça distributiva ou geométrica4 é
os honramos e veneramos; Mas os que não des- a partilha proporcional dos bens e das honrari-
cendem de uma família ilustre, não honramos e as segundo o que cada um, no interior do seu
nem veneramos. Nisto, somos bárbaros, tal como
estamento e de sua posição na hierarquia, pode
os outros, uma vez que, pela natureza, bárbaros
e gregos somos todos iguais. (Apud Comparato, dar para a comunidade. Essa, ao presidir a des-
2003, p. 14). tinação das honrarias e bens entre as pessoas
de um estamento de uma comunidade, baseia-
Também a Protágoras deve-se o famoso
se no mérito e deve ser proporcional a esse.
princípio humanista de que “O homem é a me-
dida de todas as coisas; das que são, que elas
são, e das que não são, que elas não são”.3 3
Explica CHAUÍ (2002): “O homem é medida da realidade
Para Aristóteles, o ser humano é um ani- não significa, portanto, que o homem tem o poder total
para fazer as coisas ser ou não ser, mas tem o poder pleno
mal político cuja vida em ato só se resolve para decidir o que ela são ou podem ou devem ser e quais não
necessariamente na comunidade da pólis. Fora deverão passar à existência” (p. 171-172).
4
É geométrica porque coloca uma ordem e harmonia esté-
da cidade, isto é, da vida política ou da vida in- ticas na pluralidade que compõe a comunidade. Pode-se ver
telectual, o homem não está em sua plenitude. aqui a influência pitagórica.

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Carlos Roberto Jamil Cury

Nesse caso, igualam-se os desiguais por um tra- e sim uma correção da justiça legal. (...) e é
tamento desigual em relação à distribuição. Tor- essa a natureza do eqüitativo: uma correção da
na-se, pois, justo tratar igualmente os iguais e lei quando ela é deficiente em razão de sua uni-
desigualmente os desiguais.5 E torna-se injusto versalidade.” A eqüidade é, pois, a adequação
quando os iguais ganhem desigualmente ou contextuada e prudente dos fenômenos não re-
quando os desiguais ganhem igualmente. Por gulados pelo caráter amplo da lei universal.
isso, o que é justo para um estamento, não o é Para Aristóteles, é a natureza complexa do
para outro, podendo até mesmo ser um desvio objeto ou da situação a ser confrontada com o
ou crime. caráter absoluto da lei que, frente à necessida-
Ao mesmo tempo, diz Chauí (2002, p. 470): de de se fazer justiça, postula o princípio da
A justiça distributiva deve impedir o crescimen- eqüidade. Nesse sentido, sua posição é magis-
to das desigualdades...pois estas são as causas tral, na medida em que, para ele, em certas
da corrupção de uma Cidade, isto é, as causas circunstâncias, a eqüidade traduz melhor a exi-
das sedições e revoltas que destroem a Cidade e gência da justiça do que a igualdade tomada
lhe dão uma Constituição pior do que a que pos- como igualitarismo.8
suía. A justiça fundante é aquela que define a A sociedade ocidental continuou a conhe-
regra da proporcionalidade entre os cidadãos,
cer formas hierarquizadas de vida social. Na
criando os iguais pelo tratamento desigual dos
desiguais. Idade Média, apesar do significado nuclear da
mensagem cristã que torna os homens iguais
Os cidadãos ativos e os devotados à inteli- entre si na sua filiação divina, na sua dignidade
gência das coisas tinham, nas finalidades dos transcendente, a organização hierárquico-comu-
outros estamentos, um suporte de realização da nitária medieval impedirá o desenvolvimento
sua finalidade. Trata-se, pois, de uma justiça que dessa abertura9 que, doutrinariamente, se con-
exclui os outros estamentos da participação nas trasta com a oposição medieval entre “senho-
mais altas funções da pólis. res superiores e vassalos inferiores”.
A justiça distributiva é aquela que implica dar a
cada um conforme o seu valor (arethê) ou seja, 5
Nas condições do desenvolvimento atual em face das
proporcionalmente àquilo que cada um agregou marginalizações sociais, Bobbio (1996) diz: “...não é supér-
à comunidade política. Essa justiça é a mais im- fluo chamar a atenção para o fato de que, precisamente a
fim de colocar indivíduos desiguais por nascimento nas
portante de todas, pois é responsável pela cria- mesmas condições de partida, pode ser necessário favorecer
ção da ordem e da harmonia da comunidade. os mais pobres e desfavorecer os mais ricos, isto é, introdu-
(GALUPPO, p. 39-40) zir artificialmente ou imperativamente, discriminações que,
de outro modo não existiriam...” (p. 32).
Nesse sentido, os indivíduos também não são 6
Hoje dir-se-ia que os não cidadãos, sujeitos à justiça
distributiva e comutativa, gozam de direitos individuais e
iguais entre si, a não ser no interior de cada privados. Isso remete à posterior divisão entre cidadania
estamento. Estamos, pois, no interior de uma ativa e passiva.
igualdade excludente.6 7
No direito, diz-se comutativo de um contrato cujas presta-
ções a que se obrigam os contratantes são perfeita e reci-
Já a justiça retificadora busca corrigir as procamente equivalentes. Comutar é trocar ou mudar algo
falhas ou os erros da justiça distributiva especi- entre si. Seu antônimo é conservar.
almente no que se refere às transações dos 8
De acordo com Jean-Pierre Vernant, em “Les origines de
la pensée grecque” (1995), há que se distinguir duas corren-
homens entre si de bens e de relações entre si tes em torno da noção de eqüidade. A corrente aristocrática
como a violência física ou simbólica. Ela aplica recorre à eqüidade para justificar uma arquitetura jurídica
hierárquica fundada na desigualdade de direitos, e, com isto,
as regras e as leis do momento anterior da jus- o estatuto jurídico de “inferiores” não se altera. Neste caso,
tiça. Chama-se também justiça comutativa.7 Ela ela é uma disposição moral pela qual os bem aquinhoados
ajudam os pobres. A outra corrente, a eqüidade democráti-
se baseia na igualdade aritmética. É essa igual- ca, funda-se na igualdade de direitos e na realização da justi-
dade que há se tornar referência dominante na ça.
Modernidade. 9
A igualdade sobrenatural dos filhos de Deus atingia um
caráter universal do qual São Paulo, na epístola aos Gálatas,
Como diz Aristóteles (1973, p. 336): “... o afirmava: “já não há nem judeu nem grego, nem escravo
eqüitativo é justo, porém não legalmente justo, nem livre, nem homem, nem mulher”. (Gal. 3, 28).

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Da diferença e da igualdade

Do ponto de vista doutrinário, não se pode partir de Kant, quer dizer, com a sociedade con-
deixar de considerar que essa igualdade de temporânea, torna-se impossível pensar uma
todos em Cristo prenuncia a valorização de igualdade geométrica na organização social mo-
derna e contemporânea. (GALLUPPO, 2002, p.
cada um, de cada indivíduo, agraciado que é 99).
por Deus e chamado à salvação. Esse deslo-
camento para o indivíduo, ainda que tênue, e Com essa defesa da igualdade, diga-se igual-
o caráter transcendente da fundamentação dade includente, a sociedade moderna comba-
externa da lei positiva e da lei natural na lei te diferenças discriminatórias em favor da
divina determinarão que, ao menos nesse sen- afirmação da igualdade básica de todos e de
tido, a igualdade aritmética se rivalize com a cada um. Ela impede que as diferenças obsta-
geométrica. culizem o gozo dos direitos, pois todos são iguais
O jusnaturalismo, na Modernidade, vai se e iguais no jogo processual da lei.
ocupar da igualdade aritmética. Na versão de Rouanet (1992) sintetiza princípios do Ilu-
Hobbes, a idéia de um homem naturalmente minismo:
social como queriam os clássicos, os medievos ... a idéia de que a moral podia ter um fundamen-
e até, em certo sentido ex-ante, Rousseau, é to secular; a idéia de que o indivíduo, considera-
colocada em questão. Cada um é cada um e a do como célula elementar da sociedade, tinha
direito à auto-realização e à felicidade e podia
base de qualquer relação é o indivíduo. Só que descentrar-se com relação à vida comunitária,
ele advoga o indivíduo em face do outro como criticando-a de fora; e a idéia de que existe uma
homo homini lupus. Nesse estado primacial, natureza humana universal, de que existem prin-
estado de natureza, todos se põem na situação cípios universais de validação ética, e de que
de guerra mútua: bellum omnium contra om- existe um pequeno núcleo de normas materiais
universais. (p. 153).
nes. Será pelo pacto de sujeição a um poder
forte e comum, no Estado, que se buscará um As diferenças apontavam o aristocrata, o alto
estado de segurança capaz de assegurar o di- clero, o colonizador, que se julgavam detento-
reito à vida, direito inalienável de todos e princí- res de privilégios de sangue, de religião ou de
pio de propriedade de cada um. cor. Ao privilégio “natural” da diferença hie-
A modernidade ocidental, especialmente rárquica – agora tornada intolerável – sucede-
no Iluminismo, defendeu enfaticamente a afir- se o direito de igualdade básica de todos ao
mação da igualdade de cada um enquanto in- nascer e a igualdade na lei, ou seja, a igualdade
divíduo e, por extensão, de todos. Kant jurídica.
afirmará que todos os homens e cada um são Isso não significou uma conquista efetiva e
fins em si mesmos, pois que todos dotados da imediata desses princípios.10 Quando a moder-
razão. A natureza universal da razão é co- nidade ocidental segregou mais para os homens
mum a todos os homens. E por serem assim (sexo masculino) a presença dessa razão uni-
dotados, eles não podem ser transformados versal, quando incorporou a noção de um pro-
em meios. Aqui, a igualdade aritmética co- gresso evolucionista frente aos povos não-eu-
meça a se esclarecer: ropeus, ela estabeleceu uma escala de valores
na qual a alteridade diferente, estranha ou “es-
... a igualdade em uma sociedade em que todos
são tidos como fins, ou seja, que não dissolve a trangeira” foi posta em pontos “atrasados” ou
finalidade da existência moral em um comunita- “inferiores” dessa escala, medidos pela distân-
rismo, tem de considerar a igualdade entre os cia em relação aos valores “superiores e uni-
homens como igualdade aritmética.
Ora, a igualdade aritmética, estendida pela
10
universalização a todos os homens, é um con- Comentando esse momento da Modernidade, Bobbio
(1986) afirma que a interpretação corrente, ao contrastar
ceito inclusivo de igualdade. Ela exige que o entre o modelo aristotélico e o jusnaturalista, faz desse
maior número possível de pessoas (idealmente, último o “reflexo teórico e, ao mesmo tempo, o projeto
a humanidade) seja incluída pelo direito. (...) A político da burguesia em formação” (p. 45).

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Carlos Roberto Jamil Cury

versais” já comungados pelos povos eurocên- recursos financeiros (assalariados). É daí que
tricos.11 surgirá a distinção entre cidadãos ativos e cida-
Sabemos também que, no interior mesmo des- dãos passivos. Os primeiros, por serem indepen-
ses povos, as elites (as quais se auto-atribuíam dentes, e os outros, pela sua (suposta) depen-
serem dotadas dos “universais”) buscavam dis- dência a outrem.
tinguir-se dos outros, diferentes e estranhos a elas Isso revela não só a conquista progressiva
ou exóticos, e submeter esses grupos ou pessoas (mas não inevitável) de maior igualdade e de
“atrasados” a um processo “civilizatório”.12 novos direitos, como os de natureza social, como
Trata-se de uma concepção que pode adaptar- o caráter contraditório desses direitos. A eman-
se ao colonialismo e ao racismo, que muitas ve- cipação que esses direitos contém se choca, por
zes justificou o desprezo e a exploração exerci- vezes, com o sentido possessivo da proprieda-
dos sobre as populações consideradas inferio- de e com a ocupação do Estado por forças con-
res; (o colonialismo e o racismo)assentam então servadoras.
na idéia de que estas poderão, sem dúvida, vir a Entretanto, a negação de toda e qualquer
ingressar na modernidade, mas de baixo para
categoria geral, universal, especialmente a que
cima e porque aqueles que a dominam lhes co-
municam uma cultura que não tinham ainda. Foi faz do reconhecimento da igualdade básica de
assim que, na França de finais do século XIX, o todos os seres humanos, fundamento da digni-
discurso republicano e o colonialismo puderam dade de toda e qualquer pessoa humana, acaba
entender-se bem. (WIEVIORKA, 2002, p. 28). por abrir portas e janelas para a entrada de to-
Ou nos termos de Bobbio (1986): das as formas de discriminação e correlatas de
que o século XX deu trágicas provas.
À medida que o jusnaturalismo desemboca no
Sem o reconhecimento e respeito por essa
leito da filosofia das Luzes, da qual se torna o
aspecto jurídico-político, a antítese paixão/razão igualdade una e universal, seu lugar fica ocupa-
é substituída (ou melhor complementada) pela do pela multiplicidade do micro, pela capilarida-
antítese costume/lei, onde o primeiro termo re- de do privado e pela dispersão das subjetivida-
presenta o depósito cada vez melhor documen- des, cujo diferencialismo arbitrário, excessivo e
tado e não ulteriormente ampliável de tudo o que exacerbado, pode levar a toda sorte de intole-
homem produziu na história sem o concurso da rância como, por exemplo, a idéia de um “povo
razão. (p. 93).
eleito” e uma “raça superior” ou mesmo, em
Tomando um ponto de vista semelhante, outro limite, à equalização de toda e qualquer
Touraine (2001) afirma: diferença.
Le principe d’égalité, quel qu’il soit, repose sur Ao analisar a relação entre o Eu público e o
la référence a un principe métasocial de Eu privado, na assim chamada pós-modernida-
représentation, alors que la logique du social de, assim se expressa Khosrokavar (2001):
exclut l’égalité et même ne peut pas la concevoir. ...la dualité public/privé est frontalement remise
Il est en conflit avec toutes les formes du pouvoir. en cause et le soi multiple peut voguer entre les
Des théologiens espagnols défendirent – contre
les autres – que les Indiens étaient des créatures 11
Os filósofos da Ilustração faziam uma diferença entre
de Dieu comme les espagnols, mais leur voix natureza e costume. Como diz Rouanet (1994): “O reino do
n’empêcha pas les conquérants de massacrer les costume é o da diversidade empírica. É na ótica do costume
habitants de vastes régions. C’est même au nom que o que é válido na França não é válido no Brasil. Mas essa
variedade é limitada por um pequeno número de normas
de la civilisation et des libertes que se sont créés invariáveis, que constituem a esfera da natureza” (p. 153).
des empires coloniaux. (p. 86-87)13 12
A lembrança, aqui, da teoria dos Estados progressivos em
Augusto Comte, é quase imediata.
Ainda que no interior mesmo das elites domi- 13
Aqui, o autor se refere ao debate em Valladolid, em 1550-
nantes, não deixou de haver grupos considera- 1551, no qual a Igreja proclamou a plena humanidade dos
dos “incompletos”, “imaturos” ou “dependentes” índios, portadores da razão natural, de alma humana e os
considerou dignos, como quaisquer outros, de receber a
e que eram vistos pelo prisma da sexualidade mensagem cristã. Os índios tiveram como seu grande defen-
(mulher), da idade (criança) ou da percepção de sor o frei Bartolomeu de las Casas. (ROULAND, 2004).

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Da diferença e da igualdade

diverses composantes de l’ego selon un ordre e proteger todos os direitos humanos e liberda-
cette fois non hiérarchique; dans l’univers men- des fundamentais, sejam quais forem seus siste-
tal du sujet, le politique n’est plus alors la mas políticos, econômicos e culturais.
catégorie dominante, les modes de gestion de
sens se fragmentent, sont de plus en plus Ou seja, ao afirmar a universalidade dos di-
décontextualisés, et non obéissent qu’‘a la reitos humanos rejeita-se, nessa matéria, o re-
logique de l’autonomie individuelle. (p. 19) lativismo cultural. E, ao reconhecer as
particularidades nacionais e regionais e os
As causas diferencialistas, por si só, quando
diferentes contextos, a ONU aponta um méto-
não têm como base o direito à igualdade, cau-
do de tornar mais efetivos os meios de efetivar
sam problemas sérios. Como afirma Tabboni
os direitos humanos.14
(2001), “La référence à la différence comme
Como assevera Piovesan (2004):
nouveau point de vue cognitif et opératoire, ex-
pression des besoins d’un sujet libérateur, por- ... se uma primeira vertente de instrumentos in-
teur de nouvelles formes de vie, se heurte à la ternacionais nasce com a vocação de proporcio-
nar uma proteção geral, genérica e abstrata, re-
prolifération sans limite des differénces.” (p. 76).
fletindo o próprio temor da diferença (que na era
E continua: Hitler foi justificativa para o extermínio e a des-
L’appel à la différence peut devenir purement dé- truição), percebe-se, posteriormente, a necessi-
fensif et conduire au rejet de tout universalisme, dade de conferir a determinados grupos uma pro-
identifié à une domination. Parallèlement, l’appel teção especial e particularizada em face de sua
à l‘égalité peut devenir um instrument de domina- própria vulnerabilidade. Isto significa que a di-
tion, en nivelant les différences et en faisant rég- ferença não mais seria utilizada para a aniquila-
ner en son nom les intérêts du plus fort. (p. 83) ção de direitos, mas, ao revés, para a promoção
de direitos. (p. 65)
Comentando movimentos culturais dos anos
80, diz Wieviorka (2002): “A segunda vaga dos Só quando articulada à igualdade, a defesa
anos 80 desperta uma inquietação crescente. das diferenças não-arbitrárias ganha seu real
A percepção dominante concentra-se em sua valor e pode se situar no âmago de uma teoria
face de sombra, nas suas tendências comunita- democrática da sociedade.
ristas, sectárias e isolacionistas. São vividos so- Ao mesmo tempo, na passagem do Estado
bretudo como uma ameaça em razão de seu Liberal para o Estado Social, conquistam-se
caráter radical...” (p. 45). vários direitos sociais e o Estado assume o de-
Só quando articulada à igualdade, a defesa ver de propiciar condições para o gozo desses
das diferenças não-arbitrárias ganha seu real direitos desobstaculizar as barreiras que impe-
dem o exercício dos direitos.15 Em outros ter-
valor e pode se situar no âmago de uma teoria
mos, é preciso que ele interfira na liberdade para
democrática da sociedade.
destruir barreiras que impedem a promoção da
Por outro lado, não se pode ignorar que a
igualdade de modo efetivo e, com isto, amplie
idéia de um progresso evolutivo e necessário,
os espaços de liberdade.16
presente em teses da modernidade, tidas todas
de caráter universal, conduziu à violência cul- 14
Cf. a Declaração e Programa de Ação de Viena, de junho
tural tal como se viu no colonialismo ou no im- de 1993.
perialismo. 15
Os direitos sociais não só não nascem da matriz liberal,
como também interferem na propriedade por serem de na-
Na própria formulação da Declaração dos tureza coletiva ao invés de privada. E, por representarem
Direitos do Homem se lê no Art. 5º: um meio de (re)distribuir bens partilháveis, o investimento
neles é alto. Uma questão é negá-los ou fazê-los recuar,
Todos os direitos humanos são universais, indi- outra questão é a boa administração desses direitos.
visíveis, interdependentes e interrelacionados 16
A Constituição Brasileira de 1988 não só se posiciona
(...) Embora particularidades nacionais e regio- pela não-discriminação, como aponta direitos assecuratórios
nais devam ser levadas em consideração, assim da igualdade. Cf. no primeiro caso o Art. 3º, III e o Art. 23,
X; no outro caso, cf. Art. 3º. IV e o mesmo Art. 23, X. A
como os diversos contextos históricos, cultu- Constituição aceita, mas não sem reservas, o princípio libe-
rais e religiosos, é dever dos Estados promover ral da meritocracia.

248 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 241-256, jul./dez., 2005
Carlos Roberto Jamil Cury

A recusa a um dualismo maniqueísta entre aos bens sociais mais fundamentais para uma
o universal e o diferencial pode ser considera- vida digna.
da um avanço. Mas, só um Estado Democráti- Contudo, distribuir bens sociais por meio de
co de Direito, em um clima de diálogo, respeito políticas públicas não significa, a fortiori, o re-
e, no mínimo, de tolerância17 , pode conduzir uma conhecimento de valores culturais específicos.
síntese axiológica que assegure, tanto o nosso Pode ser até o contrário. E, inversamente, re-
pertencimento igualitário ao gênero humano, conhecer valores culturais específicos não quer
quanto o multipertencimento às nossas inser- dizer, ipso facto, a distribuição de bens sociais.
ções diferenciais em matéria de sexualidade, Retomando, junto a Tabboni (2001), o pen-
etnia, nacionalidade, religião, idade e outros com- samento de Fraser (2001) a respeito da
ponentes culturais. (in)compatibilidade entre esses dois paradigmas,
De um lado, é preciso fazer a defesa da diz ela:
igualdade como princípio da democracia e, por Le but de Fraser est de mettre en communicati-
ele, dos direitos humanos, da cidadania e da on les deux paradigmes, de résoudre le dilemme
modernidade. De outro lado, a igualdade é um qui se presente quand on essaie de lutter em
princípio, na lei, pelo qual se abolem os privilé- même temps pour la redistribution et pour la
gios e as formas discriminatórias de tratamento reconnaissance. Elle note qu’il este difficile de
do outro como “estranho”. Por esse eixo, a igual- concilier ces deux paradigmes dans un même
dade é o foco pelo qual homens lutaram para projet politique car les politiques de distributi-
on ont pour but de’abolir les inégalités qui sont
eliminar os privilégios de nascença, sangue, de
la base des différences, tandis que les politi-
etnia ou de crença. A igualdade aqui tem um ques de reconnaissance ont pour but de les
conteúdo negativo, na medida em que nega a souligner et d’assurer leur survie, qui serait éli-
discriminação trazida por privilégios. A igual- minée par des politiques vraiment efficaces...
dade ainda é o norte pelo qual as pessoas lutam (TABBONI, 2001, p. 80).
para ir reduzindo as desigualdades em favor de Contudo, em muitos casos, ambas as injus-
maior igualdade. Como ensina Bobbio (1996), tiças coexistem e a distribuição torna-se con-
“... uma desigualdade torna-se um instrumento dição de reconhecimento e vice-versa
de igualdade, pelo simples motivo de que corri-
(TELLES, 2003; FRASER, 2001). Daí que, em
ge uma desigualdade anterior: a nova igualdade
políticas de igualdade, deve evitar a dicotomia
é o resultado da equiparação de duas desigual-
entre ambos os paradigmas ou o simplismo do
dades (p.32)18
“contra ou a favor”, buscando, em cada caso,
Aqui se situam tanto as políticas de reco-
caminhos cruzados e contextualizados, própri-
nhecimento – que possuem um horizonte e um
os de superação como vias de se fazer
conteúdo positivos –, quanto as políticas de dis-
justiça.(SILVA; SILVÉRIO, 2004).
tribuição como as dos direitos sociais e as rela-
O concreto é concreto, dirá Marx, porque é
tivas à renda.
síntese de múltiplas determinações. Estamos,
As primeiras (políticas) captam as injusti-
assim, diante do homem concreto, ele também
ças do ponto de vista dos direitos culturais. Tais
síntese de múltiplas determinações, em quem
injustiças concernem à falta de respeito para
com o outro em sua alteridade para além do o princípio de igualdade se aplica ante uma pes-
sócio-econômico. soa humana, cuja concretude se vê em situa-
As segundas partem da existência de uma ção de multipertencimentos grupais ou culturais.
exploração sócio-econômica, de uma margina- Nesse momento, faz-se necessário o recur-
lização social, enfim, de algo a que hoje se dá o so ao conceito de eqüidade. A eqüidade, se-
nome genérico de exclusão. Nesse caso, a eqüi- gundo Aristóteles (1973, p. 336), é “a retificação
dade se impõe como forma de redistribuição de 17
Vide, a respeito da tolerância, Claudio Zangui. (In:
renda e de garantia de direitos sociais, para que SYMONIDES, 2003).
todos tenham oportunidades iguais de acesso 18
Vide também a esse respeito Bobbio (2000, p. 308-314).

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 241-256, jul./dez., 2005 249
Da diferença e da igualdade

da lei onde esta se revela insuficiente pelo seu Por sua vez, o termo eqüidade localiza-se no pla-
caráter universal”. A lei, por seu caráter uni- no da ética, faz referência à “justiça natural por
versal e generalizante, revela-se de difícil apli- oposição à lei positiva. É guiar-se pelo senti-
mento do dever ou da consciência mais do que
cação em casos particulares ou específicos. pelas prescrições da lei (...) que leva a dar a cada
Desse modo, a eqüidade, espécie da justiça, julga um o que ele merece”. As oportunidades são
um fato concreto buscando um equilíbrio pro- regidas pela eqüidade. Por último,
porcional entre o texto da lei e o que manda a homogeneidade/diversidade refere-se “à varie-
justiça. dade, semelhança e diferença” que pode ter uma
A igualdade também é um princípio diante origem cultural. (p. 46).
da lei pelo qual as normas gerais são aplicadas Numa época de múltiplos particularismos de
em conformidade com o que elas estabelecem. toda a espécie, é preciso atentar para não con-
A eqüidade considera uma particularidade em fundir uma diferença justificada com diferença
vista de uma solução justa que contenha a lei e arbitrária.
a especificação das circunstâncias.19 Ao tratar da convivência entre o princípio
A eqüidade (democrática) define critérios da igualdade e um discrímen legal que rompe a
objetivos de escolha de natureza científica ou igualdade de direitos a fim de restabelecer uma
situacional que permitem tornar mais preciso o igualdade de oportunidades não ocorrida, Mello
universalismo próprio da igualdade. A igualda- (2001) entende que há justificativa para tal, des-
de de direitos, proclamada em documentos ofi- de que preencha algumas condições:
ciais, não gera por si só nem a igualdade de a) que a desequiparação não atinja de modo atu-
oportunidades e nem a igualdade de condições. al e absoluto, um só indivíduo;
Se – como diz Aristóteles – o justo é o que é
conforme a lei e a igualdade, então, a lei e a b) que as situações ou pessoas desequiparadas
igualdade perante a lei (isonomia = a lei é igual pela regra do direito sejam efetivamente distin-
para todos) representam uma proteção funda- tas entre si, vale dizer, possuam características,
traços, nela residentes, diferenciados;
mental contra o arbítrio do governo dos ho-
mens. c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica
Contudo, é preciso que a própria lei defina entre os fatores diferenciais existentes e a dis-
os objetivos da justiça, de modo a permitir, em tinção de regime jurídico em função deles,
situações específicas, a flexibilidade com rela- estabelecida pela norma jurídica;
ção à universalidade da lei. A eqüidade, pois,
d) que, in concreto, o vínculo de correlação su-
postula o concurso da lei igualitária (regras pro- pra-referido seja pertinente em função dos inte-
cedimentais da democracia), do objetivo maior resses constitucionalmente protegidos, isto é,
da justiça e de uma alteridade em situação es- resulte em diferenciação do tratamento jurídico
pecífica própria, por exemplo, das graves con- fundada em razão valiosa – ao lume do texto cons-
dições de desigualdade e/ou de discriminação titucional – para o bem público. (p. 41).
de largas camadas sociais. Mais do que como positividade jurídica, a
Casassus (2002) explica essa dialética: discriminação deve ser justificada em vista da
Os termos igualdade/desigualdade pertencem ao redução de uma desigualdade. Como assevera
âmbito jurídico, e fazem referência ao direito. Galluppo (2002):
Portanto, quando se fala de igualdade, deveria
entender-se “o princípio que reconhece a todos
os cidadãos o mesmo direito”20 à educação.
Igualdade também se refere à “equivalência de 19
O antônimo próprio da eqüidade é iniqüidade, que signifi-
duas quantidades ou, expresso de outra forma, à ca um ato contrário à justiça, embora o significado mais
comum seja o de um ato perverso.
equivalência de resultados”. Portanto, igualda- 20
Nota do próprio autor citado: “Todas as definições cita-
de/desigualdade é ao mesmo tempo um direito e das e frases entre aspas foram tiradas do Diccionario de la
um resultado objetivo. lengua española, da Real Academia Española, 2001.”

250 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 241-256, jul./dez., 2005
Carlos Roberto Jamil Cury

Exatamente porque o termo identidade e igual- há que se distinguir esses paradigmas para bus-
dade não são sinônimos, a discriminação não é car uma harmonização entre eles e que seja
necessariamente atentória da igualdade. Discri- possível.
minar significa diferenciar, e diferença é termo
que se liga, como antônimo, à identidade (não à
O fato é que nossas sociedades, desiguais e
igualdade). A discriminação é compatível com a assimétricas, mediadas por Estados, não con-
igualdade se não for, ela também, fator de desi- seguiram aqueles patamares básicos de acesso
gualdade injustificável. E, mais do que isso, a a bens sociais para todos. A superação da de-
discriminação é fator que pode contribuir para a sigualdade e das discriminações implica a bus-
produção da igualdade. (...) toda vez que ela im- ca de uma religação virtuosa em que o outro é
plicar maior inclusão dos cidadãos... (p. 216) visto como igual, o que significa, por sua vez,
Nesse sentido, a relação entre uma dis- uma negação do status quo existente. Mas é
criminação justificada e a afirmação de di- do reconhecimento realista desse status quo
reitos foi posta em evidência por Bobbio que se deve partir, não para ficar nele e sim
(1987). Para ele, a valorização justificada de para buscar superá-lo. Ora, esse status quo,
uma concepção eqüitativa da igualdade ga- na sua desigualdade e assimetria, impôs uma
nha substância cada vez que ela serve para relação entre dominantes e dominados, de tal
pôr abaixo uma discriminação baseada em modo que o pólo dos dominantes passou a ser a
qualquer modalidade de preconceito. Nesse referência hegemônica da existência social.
sentido, ele aponta para uma dialética entre Essa referência sobre os dominados tem sido
liberdade e igualdade: envolvida sempre por alguma forma de injusti-
Considero liberdade socialista por excelência ça social, seja dentro dos espaços nacionais, seja
aquela que, liberando, iguala e iguala quando entre os espaços nacionais.
elimina uma discriminação; uma liberdade que Por isso, os Estados Democráticos de Di-
não somente é compatível com a igualdade, mas reito devem garantir os direitos sociais e assi-
que é condição dela. Voltemos aos nossos exem- nalar aquelas discriminações que devem ser
plos: os loucos que se livraram das instituições
sempre proibidas: origem, raça, sexo, religião,
de internação não só ficaram livres, mas ao mes-
mo tempo tornaram-se mais iguais em relação cor, crença. Um tratamento diferenciado, que
aos outros do que eram antes; uma reforma do inclua discriminações justificadas, somente se
direito de família que elimina o poder marital legitima perante uma situação objetiva e racio-
torna a mulher mais livre e, liberando-a, torna-a nal, em cujo diagnóstico e aplicação se consi-
igual ao marido; a liberalização do acesso à uni- dere o contexto mais amplo. A diferença de
versidade para os jovens que concluíram o se- tratamento deve estar relacionada com o obje-
gundo grau eliminou uma limitação (liberou-os)
e uma discriminação (igualou-os). Permitam-me
to e com a sua finalidade e ser suficientemente
ainda um outro pequeno exemplo, muito signi- clara e lógica para a justificar.21 Ao mesmo tem-
ficativo, que me foi sugerido por um amigo há po, tendo em vista o princípio da eqüidade, se-
pouco tempo: os avisos que são colocados em ria absurdo pensar um igualitarismo, uma
certos acessos para facilitar o deslocamento dos igualdade absoluta, de modo a impor, de modo
deficientes físicos também não são um meio de uniforme, as leis sobre todos os sujeitos e em
liberá-los de uma barreira e simultaneamente todas as situações.
torná-los iguais ou quem sabe um pouco me-
nos diferentes das pessoas normais? (BOBBIO,
1987, p. 23) 21
O caminho da igualdade pode permitir que a lei venha em
ajuda de pessoas de vulnerabilidade congênita ou adquirida,
Essa síntese axiológica, equilibrada, justifi- tal como no caso dos portadores de necessidades especiais
cada e prudente, terá que enfrentar, por vezes, ou de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Em
vista de equalização de condições para atenuar profundas
uma espécie de ambivalência ou de conflito desigualdades, pode-se ter uma desigualdade jurídica para
baseada na distinção, já posta, entre o paradig- maior igualdade social. O problema maior se instaura quan-
do essas pessoas passam a reivindicar sua pertença a um
ma da distribuição e o do reconhecimento. Se a grupo cuja especificidade seria a comunhão de uma identida-
justiça é a síntese entre igualdade e eqüidade, de coletiva.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 241-256, jul./dez., 2005 251
Da diferença e da igualdade

BRASIL XLI – a lei punirá qualquer discriminação


atentatória dos direitos e liberdades fundamen-
Nosso país, calcado em um processo colo- tais;
nial e escravista, exibe uma desigualdade en- XLII – a prática do racismo constitui crime
dêmica ao lado de discriminações manifestas. inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
Essa face “anacrônica” convive contraditoria- reclusão, nos termos da lei;25
mente com uma legislação avançada que, na As normas definidas nesse artigo têm apli-
Constituição de 1988, houve por bem tanto coi- cação imediata.26 Esses direitos, segundo o Art.
bir situações injustas promotoras de mais desi- 60 da Constituição, não podem ser objeto de
gualdade e de maiores discriminações, quanto emenda constitucional e a própria Constituição
promover direitos universais em vista de maior prevê, entre as funções do Ministério Público,
igualdade.22 “a defesa da ordem jurídica, do regime demo-
O caráter multirracial, multiétnico, multirre- crático e dos interesses sociais e individuais in-
ligioso de nosso país obriga-nos a encarar a di- disponíveis” (Art. 127).
ferença como elemento cultural constituinte de Ao lado da defesa contra os atentados à dig-
nossas relações histórico-sociais, reconhecê-la nidade da pessoa humana, há outros direitos
e dentro do respeito à diferença, caminhar em especificados no capítulo dos Direitos Sociais e
busca de uma igualdade já proclamada e de um listados no Art. 6º que acolhe discriminações
reconhecimento formalizado. não-proibidas. O inciso XX deste artigo reco-
A Constituição Federal de 1988 vai incor- nhece direitos específicos das mulheres no
porar em seu Preâmbulo, entre outros princípi- mercado de trabalho; o inciso XXX proíbe dife-
os, o de assegurar no Brasil uma “sociedade rença de salários por “motivos de sexo, idade,
fraterna e pluralista”.23 cor ou estado civil”; e o inciso XXXI proíbe a
O Art. 1º da Constituição assinala como um discriminação de salário e de critérios de ad-
dos fundamentos do “Estado Democrático de missão por alguém que seja “portador de defi-
Direito” a “dignidade da pessoa humana” e o ciência”. Este último inciso reserva “percentual
“pluralismo político”. O Art. 3º afirma ser “ob-
jetivo fundamental” da República “promover o 22
Em Durban, África do Sul, na Conferência da ONU contra
o racismo, ano de 2001, o Brasil, por meio de documento
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, oficial, propôs ações afirmativas para a etnia negra em
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de vista de maior igualdade no mercado de trabalho e da educa-
ção.
discriminação”.24 Trata-se da igualdade na Lei. 23
O princípio da fraternidade simboliza a igualdade univer-
O Art. 4º estabelece, como princípio de nosso sal dos “irmãos” (frater). Já o pluralismo (plus = mais que
país, o “repúdio ao terrorismo e ao racismo”. um) sinaliza a diferença e a diversidade. Pode-se ler aqui
uma relação dialética entre “o todo e as partes” no interior
O Art. 5º é uma longa e saudável lista de 77 de uma sociedade democrática.
incisos cujo teor expressa a igualdade perante 24
Ver a este respeito o Programa Nacional dos Direitos
a lei na defesa dos direitos e deveres individu- Humanos, no Decreto n. 1904 de 1996.
25
As leis n. 7.716 de 05/01/1989 e a lei n. 9.459 de 13/05/
ais e coletivos. Cumpre destacar o caput do 1997 regulam os crimes resultantes de preconceitos de raça
artigo e alguns de seus incisos: ou de cor. Já a lei n. 8.081 de 21/09/1990 estabelece os
crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de preconceitos de raça, cor, religião, etnia ou procedência
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros nacional praticados pelos meios de comunicação ou por
publicação de qualquer natureza. O Decreto n. 40 de 15/02/
e aos estrangeiros residentes no País a inviola-
1991 reforça a condenação à tortura e o Decreto Legislativo
bilidade do direito à vida, à liberdade, à igualda- n. 26 de 22/06/1994 visa à eliminação de todas as formas de
de, à segurança e à propriedade... (...) discriminação das mulheres. A lei n. 7.853/89 é relativa às
pessoas portadoras de deficiência.
I – homens e mulheres são iguais em direitos e 26
Pelo inciso LXXI, concede-se o mandado de injunção
obrigações, nos termos desta Constituição; (...) quando a efetivação de um destes direitos se torne inviável
por falta de norma reguladora. Isto coloca na mão dos sujei-
III – ninguém será submetido à tortura nem a tra- tos um instrumento jurídico importante na defesa de seus
tamento desumano ou degradante; (...) direitos individuais e coletivos.

252 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 241-256, jul./dez., 2005
Carlos Roberto Jamil Cury

dos cargos e dos empregos públicos” para por- Considerando, por derradeiro, que para se rom-
tadores de deficiência. per com os limites da retórica e das declarações
Comentando o Art. 5º da Constituição Fe- solenes é necessária a implementação de ações
afirmativas, de igualdade de oportunidades,
deral, Silva Jr. (2002) esclarece que o inciso traduzidas por medidas tangíveis, concretas e
XLI desse artigo diz que a lei deve punir “qual- articuladas...
quer discriminação atentatória dos direitos e li-
berdades fundamentais”. E conclui: Recentemente, o Conselho Nacional de Edu-
cação (CNE), em articulação com o Ministério
Temos, pois, que o critério que diferencia discri- da Educação (MEC), aprovou, em seu Conse-
minação vedada de discriminação não-vedada é
critério de natureza constitucional – são veda-
lho Pleno (CP), o Parecer CNE/CP 03/04 e tam-
das as discriminações atentatórias dos direitos bém a Res. CNE/CP 01/04, que institui as
e liberdades fundamentais –, é dizer, nem toda a Diretrizes Curriculares para a Educação das
discriminação será sancionada: apenas e tão Relações Étnico-Raciais e para o ensino de
somente aquela que resultar em violação de di- História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
reitos, em desigualação. (p. 111) Homologado o Parecer pelo Ministro da Edu-
O trabalho de menores é proibido antes dos cação, a Resolução CNE/CP 01/04 passou a
16 anos, a fim de que possam cumprir a escola- ter força de lei e o assunto despertou polêmica
ridade obrigatória.27 na imprensa.
O Art. 34 possibilita a intervenção da União Na verdade, o CNE apenas buscou inter-
nos estados e municípios que não assegurarem pretar uma série de dispositivos constitucionais
a observância dos “direitos da pessoa huma- e legais já existentes sobre o assunto, fartamente
na”. De mais a mais, eles não excluem outros citados no Parecer CNE/CP 03/04. (CURY,
direitos e garantias fundamentais assinados pelo 1999).28
Brasil em tratados internacionais. O mesmo colegiado já havia aprovado o
A realidade brasileira atual se impôs essa Parecer CNE/CEB n. 14/99, a propósito da
problemática dos direitos humanos em relação Educação Indígena de cuja homologação mi-
à discriminação que sofrem grupos sócio-cul- nisterial resultou a Resolução CNE/CEBn. 03/
turais marcados, por exemplo, pelas seqüelas 99. Ambos os instrumentos normativos apóiam-
da escravidão e de outras formas de segrega- se em injunções do ordenamento jurídico naci-
ção. (HASENBALG; SILVA; LIMA, 1999). onal, como é o caso do Art. 231 da Constituição
A Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003 Federal de 1988 e o Art. 78 da LDB, entre ou-
altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de tros.29
1996 (LDBEN), para incluir no currículo oficial No mesmo sentido vão as Diretrizes Curri-
da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temá- culares Nacionais da Educação Especial, con-
tica “História e Cultura Afro-Brasileira”. seqüentes aos Pareceres CNE/CEB 17/01 e 04/
Em 23 de maio de 2003, mediante a Lei n. 02 acompanhados da Resolução CNE/CEB 02/
10.678, o Congresso aprova a criação de uma 01, e que despertaram também muita polêmica
Secretaria Especial de Políticas de Promo- desde o âmbito de associações beneficentes até
ção da Igualdade Racial, da Presidência da o Ministério Público.
República. Deve-se apontar, também, como modalida-
O Decreto nº 4.886, de 20 de novembro de de pedagógica própria, as Diretrizes Curricula-
2003, institui a Política Nacional de Promoção
da Igualdade Racial. Em um dos Consideran- 27
O artigo abre exceção para aprendizes que tenham com-
dos desse Decreto, antes de definir ações de pletado 14 anos.
reconhecimento, de proibição de ações discri- 28
Entre outros, podem-se apontar os Artigos 3º, 4º, 5º, 215
minatórias e incentivo à adoção de políticas de e 216 da Constituição Federal, o Artigo 26 da LDB e, em
especial, a Lei n. 10.639/03.
cotas nas universidades e no mercado de tra- 29
Para uma visão mais ampla desse segmento grupal, vide
balho, pode-se ler : Rouland (2004), especialmente a parte III.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 241-256, jul./dez., 2005 253
Da diferença e da igualdade

res Nacionais da Educação de Jovens e Adul- minações nas quais, como diz Rouanet (1994),
tos dadas pelo Parecer CNE/CEB 11/00 e pela domina a ontologização da diferença. É do mes-
Res. CNE/CEB 01/00. mo autor a defesa do que ele chama de “uni-
Na medida em que o ordenamento jurídico versalismo concreto”.
nacional reconhece explicitamente o direito à A utopia iluminista é a de uma ética fundada na
diferença, ancorando-o no direito à igualdade, razão, voltada para a felicidade, capaz de julgar e
vê-se que o órgão normativo encarregado de criticar o existente, e tendo como telos uma co-
normatizar a legislação educacional, desincum- munidade argumentativa sem fronteiras, em que
biu-se de suas funções, cabendo às instituições a igualdade não signifique nivelamento e em que
de pesquisa, aos sistemas de ensino e outros a universalidade não leve à dissolução do parti-
cular. (ROUANET, 1994, p. 162).
órgãos implicados, tanto a aplicação dessas
normas quanto a sua análise crítica. A democracia supõe tanto a igualdade para
A maior dificuldade reside, certamente, na o que é igual ou que deve ser igual, quanto a
efetivação dos direitos sociais como patamar consideração positiva da identidade diferencial
e base de uma igualdade de direitos da cida- como reveladora da profunda riqueza de que
dania e de uma eqüidade justificada que en- se revestem todos os seres humanos, desde que
contre na educação para os direitos humanos tal diferença se expresse na matriz igualitária
o momento de reconhecimento do outro dis- do ser humano e postule algo mais do que a
criminado como igual. proibição da discriminação e do que a crítica às
desigualdades.
Esta tomada axiológica se justifica porque,
CONCLUSÃO através dela, se reconhece a complexidade do
real e seu caráter matizado. A igualdade, para
Essas realidades filosóficas expressam e ser virtuosa e justa, como queria Aristóteles,
contêm, ao mesmo tempo, as formas pelas quais deve conter o igual, o relativo e o proporcional.
o ser humano e as sociedades humanas busca- Em sociedades em que a igualdade aritmética
ram compreender e responder ao quadro múlti- é proclamada, tal relação é profundamente ten-
plo das manifestações próprias da manutenção sa e de difícil solução, pois não há passagem
e reprodução das condições da existência soci- automática da proibição da discriminação e da
al em sua pluralidade. crítica às desigualdades para patamares mais
A Justiça é essa dialética contextualizada equânimes de vida social. Daí a necessidade
entre igualdade, equidade, universalidade e di- de políticas que superem as diferenças discri-
ferença e que se sintetizam em políticas de dis- minatórias negativas e que propiciem a igual-
tribuição e de reconhecimento. dade de oportunidades.
Todas as formas impeditivas da igualdade, A identificação histórica de várias culturas
tomadas pelo ângulo da uniformidade, ignoram presentes no país não significa um amálgama
o valor das diferenças ou as condenam aos es- entre elas ou o esquecimento no modo como
treitos espaços do privado, terminam em regi- elas se encontraram em distintas circunstânci-
mes autoritários, ditatoriais ou mesmo totalitá- as históricas, ou mesmo tomar partido de uma
rios. Por outro lado, a excessiva e a desmedida delas em detrimento de outras. E também não
consideração das diferenças pode redundar no pode significar o esquecimento do universalis-
oposto de sua valorização, isto é, como o não- mo da igualdade. Mais do que nunca é preciso
enriquecimento da ontologia do ser social do uma virtude proclamada por Aristóteles: a phrô-
homem. Algo que se pode verificar em socie- nesis, ou seja, a virtude do discernimento.
dades tomadas por fundamentalismos ou cris- No fundo, está em questão a alteridade e a
pações identitárias de qualquer espécie ou em existência do(s) outro(s) como iguais, em sua
políticas de caráter demagógico que nem redu- substância fundamental, e como pares de uma
zem as desigualdades nem exorcizam as discri- trajetória sócio-histórica (igualdade aritmética)

254 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 241-256, jul./dez., 2005
Carlos Roberto Jamil Cury

para o que se torna fundamental a existência existência de discriminação, torna-se impres-


de políticas de distribuição dos bens sociais. cindível a existência de políticas, como de re-
Mas a alteridade também se compõe de pares conhecimento, capazes de (re)estabelecer a
iguais em que cada qual é idêntico a si mesmo dignidade da pessoa humana proclamada nos
e diferente com relação ao outro para o que, na direitos humanos.

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Recebido em 20.05.05
Aprovado em 08.08.05

256 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 241-256, jul./dez., 2005
Bernadete A. Gatti

A PESQUISA EM EDUCAÇÃO NO BRASIL:


OSCILAÇÕES NO TEMPO

Bernardete A. Gatti*

RESUMO

Considerando que o campo de estudos em educação abrange um variado


conjunto de subáreas, analisa-se a produção da pesquisa nesse campo, no Brasil,
tratando do papel das instituições, as temáticas, os procedimentos, a
consolidação de grupos de pesquisa. Discute-se o confronto das abordagens
qualitativas x quantitativas e os problemas do emprego de procedimentos, em
ambas as abordagens. Colocam-se questões quanto à existência de um
paradigma nesse campo, lembrando a diversidade de teorizações nele presentes.
Palavras-chave: Pesquisa – Paradigma – Métodos Qualitativos – Métodos
quantitativos

ABSTRACT

EDUCATIONAL RESEARCH IN BRAZIL: FLOW ALONG THE


TIME
Considering that the study field of Education involves a varied set of sub-
areas, the research production in this field and in Brazil is analysed, dealing
with the role of institutions, the issues, the procedures, and the consolidation of
research groups. It is also discussed qualitative X quantitative approaches as
well as the problems related to the use of procedures in both of them. Also,
questions related to the existence of a paradigm in this field are presented,
remembering the diversity of theorizations present in it.

Keywords: Research – Paradigm – Qualitative and Quantitative Methods

A educação tem se caracterizado em sua campo com conotações de ciência, não fugiu
história constitutiva pela grande diversidade de ao dominante contexto das preocupações com
tentativas de teorizações e, um pouco mais tar- a produção do conhecimento no mundo ociden-
diamente, de procedimentos de pesquisa, o que tal, preocupações vinculadas à validade e ade-
tem gerado áreas de oposição e confronto nas quação de seus pressupostos teóricos e métodos
formas de compreensão de seus problemas. A de investigação, em relação aos fatos a serem
constituição do espaço da educação, enquanto compreendidos.

*
Doutora em Psicologia Social pela Universidade de Paris; Pós-Doutorado na Université de Montréal e na Pennsylvania
University; docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação da PUC-SP; coordenadora do Depar-
tamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas. Endereço para correspondência: Av. Prof. Francisco
Morato, 1565, Jardim Guedala – 05513.900 São Paulo/SP. E-mail: gatti@fcc.org.br

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 257-263, jul./dez., 2005 257
A pesquisa em educação no Brasil: oscilações no tempo

Lembremos ainda que o campo de estudos Nesta perspectiva, torna-se muito difícil co-
em educação abrange um grande conjunto de locar os estudos e pesquisas em educação como
sub-áreas com características distintivas e ob- ciência, estando ainda na condição de conheci-
jetos de estudo diferentes (por exemplo, histó- mentos pré-paradigmáticos. Não há consenso
ria da educação, gestão escolar, políticas paradigmático no campo das pesquisas em edu-
educacionais, sociologia da educação, currícu- cação. Isto não quer dizer, no entanto, que não
lo, ensino, etc.). Por isso, discutir pesquisa no se possa ter nos estudos no campo da educa-
campo da educação em geral não é trivial. Lem- ção uma preocupação com questões de teoria
bremos também que o campo da educação sub- e método, e quanto ao sentido mais geral e a
sistiu muito tempo, e ainda hoje subsiste, pela certa consistência dos conhecimentos a serem
apropriação de estudos produzidos em áreas construídos. Não quer dizer que não se cuide
afins, como a psicologia, a antropologia, a soci- de uma atitude científica no trato com os fatos
ologia, a economia, sem colocar estes estudos, que constituem as bases de tratamento e com-
na maioria das vezes, sob o crivo de uma pers- preensão de problemas do campo educacional.
pectiva própria. Por outro lado, pode-se também questionar a
Nesse quadro cabe a pergunta: tratando- relação necessária proposta por Kuhn entre ci-
se de pesquisa em educação, podemos falar ência e paradigma. Com este questionamento
em paradigmas? Thomas Kuhn (1996) foi o a questão paradigmática perde em importância
autor que trouxe o termo para dentro do dis- (CARONE, 2003, p.109).
curso e dos debates da comunidade científica A educação, enquanto campo de pesquisa,
nos anos sessenta, colocando uma nova pers- foi alvo de debates acirrados em meados do
pectiva no fazer filosofia da ciência olhando século XX, com grupos defendendo a experi-
para a história da ciência. Embora o termo mentação científica como possível de ser con-
paradigma tenha assumido os mais variados duzida nesse campo e grupos se opondo a isso,
sentidos no discurso acadêmico, o autor lem- debatendo a impossibilidade dos objetos desse
bra a necessidade de existência de um con- campo serem sujeitados a processos experimen-
senso em relação a referentes analíticos tais. Estudos empíricos, como base para a dis-
básicos, historicamente constituídos e institu- cussão educacional, ou são rejeitados ou são
cionalizados organicamente, após um movi- defendidos sob várias óticas por diferentes au-
mento pré-paradigmático, ou, após crises tores nesse período, consolidando-se, no entan-
dentro de um paradigma já instalado. A crise to, no tempo, o uso de investigações com base
se instala em certo paradigma pelo acúmulo na empiria para subsidiar a compreensão dos
de problemas não resolvíveis dentro de seus problemas educacionais. A ampliação do uso
cânones. Nesses termos, a trajetória de uma de investigações empíricas para estudos de te-
ciência já constituída teria uma seqüência: ci- mas em educação – fenômeno relativamente
ência normal – crise – revolução – nova ciên- recente em nosso país – trouxe um conjunto de
cia normal. A ciência normal seria a atividade trabalhos um tanto heterogêneos quanto a seu
de estudo e pesquisa de problemas segundo a escopo teórico e à sua qualidade metodológica
normatização instituída e aceita por uma co- (WARDE, 1990; GATTI, 1992; 2001 ALVES-
munidade científica, não se questionando nes- MAZZOTTI, 2001; ANDRÉ, 2001).
sa atividade os fundamentos da ciência tal
como está normatizada. Então, “... não há ci-
ência sem o consenso paradigmático e a con- 1. No tempo: instituições,
cordância dos membros da comunidade temáticas, convergências, di-
científica a respeito de problemas, métodos, versificação
formas de resolução de problemas e finalmen-
te, um léxico ou vocabulário básico de comu- Nos primórdios do século XX encontramos
nicação.” (CARONE, 2003, p.109). poucos trabalhos que são reveladores de certa

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Bernadete A. Gatti

preocupação científica com questões da área de produção e de formação de quadros para as


educacional no Brasil. Apenas com a criação, universidades. Paralelamente os centros regio-
no final dos anos 30, do Instituto Nacional de nais de pesquisa do INEP são fechados e co-
Pesquisas Educacionais é que estudos mais sis- meçam investimentos dirigidos aos programas
temáticos em educação, no país, começam a de pós-graduação – mestrados e doutorados –
se desenvolver. Mais tarde, com o desdobra- nas instituições de ensino superior.
mento do INEP no Centro Brasileiro de Pes- No contexto dessa trajetória, e tendo durante
quisas Educacionais e nos Centros Regionais algumas décadas uma produção bem pequena
do Rio Grande do Sul, São Paulo, Bahia e Mi- em grupos localizados, a pesquisa em educação
nas Gerais, a construção do pensamento edu- no Brasil passou por algumas convergências te-
cacional brasileiro, através da pesquisa siste- máticas e metodológicas. As pesquisas, nas pri-
mática, encontrou um espaço específico de meiras décadas do século vinte, tiveram
produção e formação, e de estimulação. A im- inicialmente um enfoque predominantemente
portância desses centros no desenvolvimento psicopedagógico, em que a temática abrangia
de bases metodológicas, sobretudo quanto à estudos do desenvolvimento psicológico das cri-
pesquisa com fundamento empírico, no Brasil, anças e adolescentes, processos de ensino e ins-
pode ser dada pelo contraponto com as insti- trumentos de medida de aprendizagem. Em
tuições de ensino superior e universidades da meados da década de 50, esse foco se desloca
época nas quais a produção de pesquisa em para as condições culturais e tendências de de-
educação ou era rarefeita, ou inexistente. O senvolvimento da sociedade brasileira. Nesse
INEP e seus Centros constituíram-se em fo- período, o país vinha saindo de um ciclo ditatorial
cos produtores e irradiadores de pesquisas e e tentava integrar processos democráticos nas
de formação em métodos e técnicas de inves- práticas políticas. Vive-se um momento de certa
tigação científica em educação, inclusive as efervescência social e cultural, inclusive com
de natureza experimental. Pesquisadores des- grande expansão da escolarização da população
ses centros passaram a atuar também no en- nas primeiras séries do nível fundamental, com a
sino superior e professores de cursos superio- luta pela ampliação de oportunidades em esco-
res também vieram atuar nos centros, criando las públicas, comparativamente ao período ante-
uma fecunda interface, especialmente com rior. O objeto de atenção mais comum nas
algumas universidades nas décadas de 40 e pesquisas educacionais passou a ser, nesse mo-
50 dos anos novecentos. mento, a relação entre o sistema escolar e cer-
Com o desenvolvimento de pesquisas com tos aspectos da sociedade.
base em equipes fixas, com uma série de publi- A partir de meados da década de 60 come-
cações regulares e o oferecimento de cursos çaram a ganhar fôlego e destaque os estudos
para formação de pesquisadores com a partici- de natureza econômica, com trabalhos sobre a
pação de docentes de diversas nacionalidades, educação como investimento, demanda profis-
especialmente latino-americanos, esses centros sional, formação de recursos humanos, técni-
contribuíram para certa institucionalização da cas programadas de ensino etc. É o período em
pesquisa, com a formação de fontes de dados e que se instalou o governo militar, redirecionan-
com a implantação de grupos voltados à pes- do as perspectivas sócio-políticas do país. Pas-
quisa educacional em universidades. Mas, foi sa-se a privilegiar os enfoques de planejamento,
somente com a implementação de programas dos custos, da eficiência e das técnicas e tec-
sistemáticos de pós-graduação, mestrados e nologias no ensino e ensino profissionalizante.
doutorados, no final da década de 60, e com A política científica passa a ser definida num
base na intensificação dos programas de for- contexto de macroplanejamento, direcionando
mação no exterior e a reabsorção desse pesso- os esforços e financiamentos no conjunto da
al, que se acelerou o desenvolvimento dessa política desenvolvimentista, não fugindo a pes-
área de pesquisa no país, transferindo seu foco quisa educacional em sua maior parte deste

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 257-263, jul./dez., 2005 259
A pesquisa em educação no Brasil: oscilações no tempo

cenário e interesses. para uma elite, e em que as tecnologias de dife-


Embora a tônica nas pesquisas seja esta rentes naturezas passam a ser valorizadas com
durante alguns anos, especialmente as financi- prioridade. Em um segundo momento, depara-
adas por órgãos públicos, as instituições de en- mo-nos com movimentos sociais diversos que
sino superior, ou outras ligadas à produção da começam a emergir, vêm num crescendo, cri-
pesquisa em educação, mantêm uma formação ando espaços mais abertos para manifestações
diversificada de quadros. Com a necessária sócio-culturais e a crítica social, inaugurando-
expansão do ensino superior e o trabalho em se um período de transição, de lutas sociais e
alguns cursos de mestrado e doutorado, que políticas, que constroem a lenta volta à demo-
começam a se consolidar, em meados da déca- cracia. A pesquisa educacional, em boa parte,
da de 70, deparamo-nos não só com uma am- vai estar integrada a essa crítica social, e, na
pliação das temáticas de estudo, mas também década de oitenta, encontramos nas produções
com um aprimoramento metodológico, especi- institucionais, especialmente nas dissertações de
almente em algumas subáreas. Levantamentos mestrado e teses de doutorado – as quais pas-
disponíveis nos mostram que os estudos come- sam a ser a grande fonte da produção da pes-
çam a se distribuir mais eqüitativamente entre quisa educacional – a hegemonia do tratamento
diferentes problemáticas: currículos, caracteri- das questões educacionais com base em teori-
zações de redes e recursos educativos, avalia- as de inspiração marxista, ou estudos chama-
ção de programas, relações entre educação e dos genericamente de qualitativos. Do ponto de
profissionalização, características de alunos, vista metodológico, no entanto, encontramos
famílias e ambiente de que provêm, nutrição e alguns problemas de base na construção dos
aprendizagem, validação e crítica de instrumen- estudos e das pesquisas. Questão que não se
tos de diagnóstico e avaliação, estratégias de acha ainda hoje suficientemente trabalhada pe-
ensino, entre outros. Não houve apenas aumento los pesquisadores é a tendência à não discus-
de trabalhos em temas diversificados, como são em profundidade das implicações do uso
também quanto aos modos de enfocá-los. Pas- de certas formas de coleta de dados e modali-
sou-se a utilizar tanto métodos quantitativos mais dades de análise, e mesmo da adequação de
sofisticados de análise, como também, qualita- seus usos e de sua apropriação de forma con-
tivos e, no final da década, um referencial teó- sistente, além de sua relação com o enquadra-
rico mais crítico, cuja utilização se estende a mento teórico pretendido.
muitos estudos. Mas, predominaram ainda nes- A formação de quadros no exterior também
se período os enfoques tecnicistas, o apego a é grandemente expandida na segunda metade
taxonomias e à operacionalização de variáveis dos anos oitenta e inícios dos noventa. O retor-
e sua mensuração. no desses quadros traz para as universidades,
Com as críticas aos limites desse tipo de in- no final da década de oitenta e durante a déca-
vestigação, com a propagação do emprego das da de 90, contribuições que começam a produ-
metodologias da pesquisa-ação e das teorias do zir grandes diversificações nos trabalhos, tanto
conflito nos anos 80, ao lado de certo descrédito em relação às temáticas como às formas de
de que soluções técnicas resolveriam problemas abordagem. Ao lado disso, alguns pesquisado-
de base na educação brasileira, o perfil da pes- res experientes alimentam a comunidade aca-
quisa educacional se enriquece com novas pers- dêmica com análises contundentes quanto à
pectivas, abrindo espaço a abordagens críticas. consistência e significado do que vem sendo
Todo esse processo da década de setenta e produzido sob o rótulo de “pesquisa educacio-
dos anos oitenta se faz num contexto político e nal”. É também nesses anos que se consolidam
social em que, num primeiro momento, a socie- grupos de pesquisa em algumas subáreas, quer
dade é cerceada em sua liberdade de manifes- por necessidades institucionais à luz das avalia-
tação, na vigência da censura, em que se impõe ções de órgãos de fomento à pesquisa, quer
uma política econômica de acúmulo de capital pela maturação própria de grupos que durante

260 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 257-263, jul./dez., 2005
Bernadete A. Gatti

as duas décadas anteriores vinham desenvol- 2. Quantitativo ou qualitativo?


vendo trabalhos integrados. Descortinam-se, no
final desse período, grupos sólidos de investiga- Esta questão é relevante de ser considera-
ção, por exemplo, em alfabetização e lingua- da. A expansão na pesquisa educacional da
gem, aprendizagem escolar, formação de chamada pesquisa qualitativa veio no bojo de
professores, ensino e currículos, educação in- uma busca de métodos alternativos aos mode-
fantil, fundamental e média, educação de jovens los experimentais, às mensurações, aos estu-
e adultos, ensino superior, gestão escolar, avali- dos empiricistas, aos estudos chamados de
ação educacional, história da educação, políti- quantitativos, cujo poder explicativo sobre os
cas educacionais, trabalho e educação. fenômenos educacionais veio sendo posto em
As novas perspectivas com que se traba- questão, como se pôs em questão os conceitos
lhou na pesquisa educacional na década dos de objetividade e neutralidade embutidos nes-
noventa, assentaram-se em críticas relativas a ses modelos.
questões de teoria e método, que, como já dis- As alternativas apresentadas pelas análises
semos, não estão resolvidas, mas deram novo chamadas qualitativas compõem um universo
impulso aos trabalhos e alimentaram alguns gru- heterogêneo de perspectivas, métodos e técni-
pos de ponta na pesquisa. Assim, a qualidade cas, que vão desde a análise de conteúdo com
da produção vai se revelar muito desigual quanto toda sua diversidade de propostas, passando
ao seu embasamento ou elaboração teórica e pelos estudos de caso, pesquisa participante,
quanto à utilização de certos procedimentos de estudos etnográficos, antropológicos, etc.
coleta de dados e de análise. Estudos dão con- É preciso considerar que os conceitos de
ta da dificuldade de se construir na área cate- quantidade e qualidade não são totalmente dis-
gorias teóricas mais consistentes, que não sejam sociados, na medida em que de um lado a quan-
a aplicação ingênua de categorias usadas em tidade é uma interpretação, uma tradução, um
outras áreas de estudo, e que abarquem a com- significado que é atribuído à grandeza com que
plexidade das questões educacionais em seu um fenômeno se manifesta (portanto é uma
instituído e contexto social. qualificação dessa grandeza), e de outro, ela
Adentrando os anos 2000, uma tendência in- precisa ser interpretada qualitativamente, pois,
teressante começa a perpassar a produção na sem relação a algum referencial, não tem signi-
pesquisa em educação: alguns grupos consoli- ficação em si.
dados, em várias partes do país, passam a tra- De qualquer forma, o conjunto de procedi-
balhar em pesquisa a partir, não de problemas mentos de pesquisa que envolve tratamentos
de porte muito limitado, com enfoque restrito, numéricos, e sua análise, está atrelado às pro-
mas sim, em torno de temas de natureza mais priedades do tipo de conjunto numérico associ-
complexa e que demandam abordagens multi ado às variáveis em estudo, portanto, à definição
ou interdisciplinares, centrados em processos destas e à garantia de que gozam de certas
educacionais, sob diferentes ângulos e níveis de características. Isto impõe um tipo de lógica no
abrangência. O tema do letramento é um des- tratamento do problema em exame e o uso de
tes, o tema da educação no e pelo trabalho é delineamentos específicos para a coleta e aná-
outro, a questão da profissionalidade e identi- lise dos dados, que nem sempre os pesquisado-
dade social dos docentes é outro etc. res dominaram, nem dominam, para uma
Com isso, há sinalizações de uma matura- utilização adequada, enriquecedora e crítica. No
ção salutar no desenvolvimento da pesquisa em entanto, restrições de diferentes naturezas fo-
educação, com desprendimentos de estritos ram feitas entre nós a esses modelos quantifi-
campos disciplinares e avanços na procura de cadores, sem uma análise mais profunda das
interfaces e diálogos pertinentes com várias suas implicações e as análises com dados quan-
áreas, diferentes abordagens e diferentes mo- titativos foram praticamente banidas dos estu-
dos de teorização. dos em educação, com poucas exceções.

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A pesquisa em educação no Brasil: oscilações no tempo

Por outro lado, o uso de técnicas não quanti- Precisa-se considerar o alto grau de ma-
tativas de obtenção de dados, tipo observação turidade e refinamento subjetivo exigido pe-
cursiva ou participante, análise de conteúdo, aná- las chamadas metodologias qualitativas
lise documental, histórias de vida, depoimentos (ANDRÉ; LÜDKE, 1986), e podemos con-
etc., se colocaram como alternativas para o tra- cluir que elas não estejam sendo, em muitas
to de problemas e processos escolares. As abor- situações, adequada e oportunamente utiliza-
dagens qualitativas trazem um grau de exigência das. Isto, não só, como em geral se quer fa-
alto para o trato com a realidade e a sua recons- zer crer, pelas condições adversas em que se
trução, justamente por postularem o envolvimento realizam as pesquisas, mas porque a forma-
do pesquisador. O que se encontra em muitos ção que vem sendo dada não é adequada nem
trabalhos são observações casuísticas, sem pa- suficiente.
râmetros teóricos, a descrição do óbvio, a elabo- É preciso reconhecer que não temos nos
ração pobre de observações de campo conduzi- omitido no enfrentamento desses problemas,
das com precariedade, análises de conteúdo mas que, por outro lado, nem tudo o que se
realizadas sem metodologia clara, incapacidade faz sob o rótulo de pesquisa educacional pode
de reconstrução do dado e de percepção crítica ser realmente considerado como fundado em
de vieses situacionais, desconhecimento no trato princípios de uma investigação científica, tra-
da história e de estórias, precariedade na docu- duzindo com suficiente clareza suas condi-
mentação e na análise documental. Os proble- ções de generalidade e, simultaneamente, de
mas não são poucos, tanto no trato de dados qua- especialização, de capacidade de teorização,
litativos, como nos quantitativos, o que nos leva de crítica e de geração de uma problemáti-
a pensar na precária formação que tivemos e ca própria, transcendendo pelo método não
temos, para uso e crítica tanto dos métodos ditos só o senso comum, como as racionalizações
quantitativos como dos qualitativos. primárias.

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Recebido em 30.05.05
Aprovado em 08.08.05

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 257-263, jul./dez., 2005 263
RESENHAS
ALVES, Lynn Rosalina G. Game Over: jogos eletrônicos e violência.
São Paulo: Futura, 2005. 255 p.

Camila Santana*
Janaína Rosado **

ALVES, Lynn Rosalina G. Game Over: Electronic Games and Violence. São Paulo:
Futura, 2005. 255 p.

Frente ao novo, devemos imergir, distanciar-se e apropriar-se.


(Babin e Kouloumdjian)
Lynn Alves, doutora e mestra em Educação nea, visto que o tema inquieta a sociedade, já
e Comunicação pela Universidade Federal da que os jovens cada vez mais mostram interesse
Bahia, pedagoga e psicopedagoga, é professo- e desejo por estes elementos tecnológicos, em
ra assistente dos Departamentos de Educação especial os jogos com cenas de violência. Além
e de Comunicação da Universidade do Estado da divulgação pela mídia de informações sobre
da Bahia – Campus I, onde orienta projetos de jovens que ao interagir com games violentos
pesquisa na área de Educação a Distância, tornam-se violentos.
Educação e Tecnologia e coordena o projeto A autora, além de realizar pesquisa biblio-
de pesquisa Ensino On-line: trilhando novas gráfica de teóricos que abordam a articulação
possibilidades pedagógicas mediadas pelos jo- entre as categorias games e violência, partici-
gos eletrônicos. É também professora do Mes- pou da rotina de cinco jovens que vivem imer-
trado em Educação e Contemporaneidade da sos em atmosferas tecnológicas, visitando os
UNEB e coordenadora dos núcleos de Educa- ambientes de convivência dos jogadores com
ção e Tecnologia e Educação a Distância das olhar atento aos fatos e situações partindo de
Faculdades Jorge Amado e co-autora de diver- uma perspectiva qualitativa de pesquisa.
sos livros, entre eles Educação e Tecnologia: Para familiarizar o leitor, Alves caracteri-
trilhando caminhos; Educação e Cibercul- za o jogo sobre diversos aspectos: cultural,
tura e Educação à distância: uma nova con- social, afetivo, psicológico, cognitivo, tecendo
cepção de aprendizado e interatividade. um diálogo interessante entre autores como
Em Game Over: jogos eletrônicos e vio- Huizinga, Vygotsky, Piaget, Wallon, Freud,
lência, a autora levanta a discussão sobre a Winicott, Benjamin, entre outros. Articulando
relação entre estas categorias, discutindo a su- o jogo com o prisma teórico destes autores, a
posta influência de jogos eletrônicos, que exi- autora compreende-o enquanto tecnologia in-
bem cenas agressivas, no comportamento dos telectual, reafirmando a posição de Lèvy, que
indivíduos. Discussão esta que é contemporâ- acredita que os jogos transformam a ecologia

*
Licenciada em Pedagogia pela UNEB; aluna do curso de Especialização em Educação e Tecnologias da Comunicação e
Informação; mestranda em Educação e Contemporaneidade da UNEB; professora da Rede Municipal de Ensino de
Salvador. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus I, Mestrado em Educa-
ção e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA.
E-mail: camilalimasantana@yahoo.com.br
** Licenciada em Pedagogia pela UNEB; aluna do curso de Especialização em Educação e Tecnologias da Comunicação
e Informação; mestranda em Educação e Contemporaneidade da UNEB; professora da Rede Municipal de Ensino de
Salvador. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus I, Mestrado em Educa-
ção e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA.
E-mail: janainarosado@yahoo.com.br

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 267-276, jul./dez., 2005 267
cognitiva proporcionando a elaboração de fun- se, desta forma, em artifícios idolatrados e exe-
ções cognitivas. crados pela sociedade.
Entendendo a cultura como um sistema se- O olhar apocalíptico em torno dos jogos ele-
miótico, a autora pede atenção especial à infor- trônicos instiga a pesquisadora a questionar-se
mática, que emerge na metade do século XX, sobre a análise simples que é feita sobre a vio-
como um elemento que traz novas implicações lência – ao negligenciar-se seu caráter com-
culturais e faz surgir uma “cultura da simula- plexo – e o reflexo que cenas violentas dos jogos
ção”. No livro, o conceito de cultura da simula- têm no cotidiano dos sujeitos. A autora afirma
ção é vislumbrado sob a ótica de Turkle que a que a categoria violência deve ser abordada sob
caracteriza por maneira de pensamentos não distintas ciências, ressaltando que o tema não
lineares, que criam novas lógicas, envolvem pode ser tratado superficialmente.
negociações e abrem caminhos para diferentes Em Faces da Violência, no quarto capítu-
estilos cognitivos. lo, a autora traz a visão inatista de Freud sobre
Diante do fascínio que os jogos eletrônicos a agressividade e também como fator impor-
despertam na geração net, a escritora faz um tante para garantir a paz, a ordem e a lei. Tem-
importante levantamento histórico sobre os vi- pos depois, Freud diferencia agressividade de
deogames, desde o jogo de tênis criado em 1958, violência, entendendo a primeira como elemen-
passando pelos jogos eletrônicos de salão, por to instintivo e a segunda como acontecimento
videogames conectados à televisão doméstica sócio-histórico-cultural que surge diante da de-
até os jogos para PC (Personal Computer). manda do indivíduo. Outra concepção de vio-
Com a inovação tecnológica, ou seja, desenvol- lência levantada no livro é a violência como
vimento de novos gráficos, avatares, consoles linguagem. Sobre esse aspecto, Alves cita o
e principalmente de maiores possibilidades de autor russo Vygotsky, que compreende a lin-
interatividade, o desejo pelos jogos eletrônicos guagem como o mais importante instrumento
foi intensificado. Assim, os jogos emergem neste do pensamento que intercede as relações cog-
contexto como representantes de uma geração nitivas, afetivas, sociais e culturais. A lingua-
que não se contenta em ser mero espectador, gem é uma maneira de perceber e decifrar o
mas anseia interagir, participar com autonomia mundo. Deste modo, a violência é uma lingua-
na escolha dos caminhos a percorrer. gem que o indivíduo usa para marcar que algu-
Nesta perspectiva, os jogos de RPGs, na ma coisa não está bem.
visão da autora, são os que possuem maior ní- E, para expressar o que não é falado, os jo-
vel de interatividade. Esse alto grau de interati- vens utilizam os jogos como ambiente de catar-
vidade pode ser um dos motivos de os pais terem se, expurgando seus medos, perdas e reelabo-
mais “medo” do videogame do que da televi- rando sua realidade, já que a aprendizagem que
são, por exemplo, afinal, “o telespectador pula acontece nestas comunidades não é simples
entre os canais, o jogador age”. (p. 77). repetição automática da realidade como tal.
Em seu livro, Lynn Alves pede que repen- Diante deste entendimento, a subjetividade do
semos a adoção de posturas maniqueístas no indivíduo estabelecida na estrutura familiar é
que se refere aos jogos eletrônicos, enfatizan- preponderante para explicar atos violentos, o
do que na sociedade contemporânea não há que não tem relação direta com jogos eletrôni-
espaço para tais atitudes. Esse clamor deve-se cos que exibem cenas de violências. Sendo as-
ao fato de a própria comunidade acadêmica e a sim, Lynn Alves acredita que a violência pre-
opinião pública dividirem opiniões em relação sente nos jogos eletrônicos por promover “um
aos indivíduos que interatuam com as tecnolo- efeito terapêutico”, contribuindo para catarse,
gias, alegando muitas vezes que estes se tor- passa a ser entendida de maneira “construti-
nam anti-sociais, egoístas, violentos, dando aos va”. Não sendo responsável pelo comportamen-
suportes tecnológicos uma função funesta e to violento dos jovens, permitindo-lhes ressigni-
calamitosa. Os jogos eletrônicos transfiguram- ficar seus sentimentos, conceitos, agindo na

268 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 267-276, jul./dez., 2005
Zona de Desenvolvimento Proximal, podendo, apocalíptico e cheio de preconceitos sobre os
dessa forma, ser utilizado em contextos escola- jogos eletrônicos.
res. A autora compreende que não existe rela- Resultado de uma investigação feita ao longo
ção de causa-efeito entre jogos eletrônicos e de oito anos na área de Educação e Tecnologia,
violência, assim como a compulsividade de al- esta obra é interessante para pais, educadores,
guns jogadores pode estar relacionada com ou- pesquisadores em geral que, diante das situações
tros aspectos que circundam a vida do jogador. envolvendo jogos eletrônicos e violência, dese-
Os jogadores, entrevistados durante a pesqui- jam refletir e entender esta relação para além da
sa, exercem outras atividades em que o jogo visão simplista, atuando na sociedade a fim de
não está presente, sinalizando, assim, que a in- desmistificar esta falsa interpretação para não
teração com os games é apenas mais um ele- desviar o olhar da real causa de atos violentos:
mento na sua rotina diária. questões afetivas (falta de estrutura famíliar,
Game Over: jogos eletrônicos e violên- ausência de limites etc) e socioeconômicos (fal-
cia apresenta metodologia cuidadosa que ex- ta de dinheiro, desemprego etc).
plora e conclui sobre o problema que pretende A obra apresenta discurso simples e claro,
pesquisar. É uma obra de suma importância nos convidando a pensar, sem preconceitos –
porque aborda um tema recorrente na socieda- no sentido etimológico da palavra –, sobre o
de atual, citado sempre pela mídia com um olhar tema em questão.

Recebido em 20.05.05
Aprovado em 20.05.05

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 267-276, jul./dez., 2005 269
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio
de Janeiro, RJ: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asi-
áticos, 2001. 432 p.

Isabele Pires Santos*

GILROY, Paul. The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness.


Rio de Janeiro, RJ: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-
Asiáticos, 2001. 432 p.

O livro de Paul Gilroy - O Atlântico Negro: uma reflexão sobre a diáspora negra e seus sig-
modernidade e dupla consciência – tem como nificados. O Atlântico Negro constitui-se, en-
contribuição fundamental à produção do conhe- tão, num “conjunto cultural irredutivelmente
cimento sobre a modernidade o fato de inserir moderno, excêntrico, instável e assimétrico, que
no âmbito dessa discussão a intervenção que escapa à lógica estreita das simplificações ét-
tem a diáspora negra e seus desdobramentos nicas, e se manifesta tanto nos escritos de
na construção desse ‘movimento’ que Berman W.E.B Du Bois como nas letras dos rappers do
(1986, p.15)1 chamaria de - “uma experiência século XXI”.
de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, A idéia fundamental do livro é de que nas
das possibilidades e perigos da vida – que é relações produzidas entre Europa, África e
compartilhada por homens e mulheres de todo América no contexto advindo da escravidão
o mundo, hoje”. Parece-nos que, contraditoria- sedimentaram-se os processos de racialização
mente a este compartilhar de homens e mulhe- e os ideais anti-racistas. Além de formas de
res de todo o mundo, a literatura e os pensadores produção/apreensão da cultura e de resistência
da modernidade têm esquecido do peso dos pro- político-cultural manifestas não apenas em
cessos de escravidão estabelecidos na Améri- ações políticas no sentido estrito, mas em for-
ca e que se tornaram elementos estruturais na mas artísticas como a literatura e a música.
construção da modernidade. O Atlântico Negro de Gilroy significa não
Como pensar a modernidade sem a força só uma dimensão geográfica e histórica, mas
de trabalho escrava que na base do processo sobretudo um transitar numa tríade que com-
produtivo moveu suas relações sócio-políticas, preende os loci de origem, de dominação e ne-
interligando África, Europa e América? Como gação da identidade e de construção de
entender os processos culturais modernos de- processos de sobrevivência/resistência. Estes
sencadeados nesses três continentes, negligen- deslocamentos configuram-se em elementos
ciando a interferência negra na dinâmica da que não mais podem ser negados na estrutura
produção de uma ‘cultura moderna’? Gilroy traz e nos processos da modernidade.
à tona a possibilidade de se sistematizar um É verdade que o autor fala do ponto de vis-
pensamento sobre a modernidade que inclua as ta de um europeu, ou mais precisamente, do
relações e dinâmicas estabelecidas a partir de ponto de vista de um indivíduo negro e inglês.

* Mestranda em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia. Professora do Departamento de


Saúde da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, Campus Jequié. Endereço para correspondência:
Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus I, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira
Martins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA. Email: beuca@uesb.br; beuca@uol.com.br
1
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 1986.

270 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 267-276, jul./dez., 2005
Isso significa que seu esforço intelectual, por políticas forjadas com base na experiência de
mais que se dirija a um “atlântico”, parte de opressão e subordinação num contexto racista.
um modo europeu de ver e pensar o mundo, Há uma mudança na percepção da condição de
distante, conseqüentemente, da realidade ime- oprimido que vai do sentimento de dominação à
diata a nós, brasileiros, baianos, viventes nes- produção de formas de resistência e de novos
te cadinho de atlântico. Entretanto, essa papéis no processo de escravidão.
ressalva não diminui em nada o significado Fazendo uma incursão pela literatura, no
dessa obra, apenas serve como provocação capítulo cinco o autor Richard Wright3 é foca-
aos leitores do livro, convidando-os a refletir lizado. Considerando que a obra desse autor foi
questões sobre o significado da diáspora ne- apenas suficientemente analisada do ponto de
gra e seus desdobramentos, por exemplo, na vista literário, mas ainda não do ponto de vista
dinâmica histórica de Salvador, cidade que político, Gilroy evidencia o papel de Wright (e
nasce moderna e se constrói – econômica, as conseqüentes críticas por ele recebidas) na
política e culturalmente – nas ondas desse elaboração de um pensamento sobre a identi-
oceano que Gilroy nos fala. dade negra, inicialmente pela sua penetração
Em sua construção, Paul Gilroy distribui seus nos meios editoriais e pelo seu sucesso como
argumentos em seis capítulos. O primeiro con- escritor negro, mas fundamentalmente pela for-
fronta as formas nacionalistas de produção do ça de suas idéias e de suas posições políticas
pensamento cultural com a possibilidade de num contexto político mundial bastante desfa-
abordagem transnacional e intercultural. Neste vorável ao conteúdo de suas posturas.
capítulo o autor lança a tese que será desdo- Encerrando, o livro Paul Gilroy critica a idéia
brada e aprofundada nos capítulos seguintes. de invariabilidade da tradição presente muitas
O capítulo dois trata da ausência dos temas vezes nas tendências africentristas. Refletindo
ligados às questões étnicas na produção teóri- sobre o conceito de diáspora e pontuando as-
ca sobre a modernidade. O autor constrói sua pectos culturais e artísticos produzidos no pro-
crítica a esta negação e desenvolve os argu- cesso da diáspora negra, ele conclui com a
mentos que sustentam a tese de que todo o pro- indicação dialética da permanência e da mu-
cesso de escravidão constitui-se como funda- dança na construção/abordagem da tradição na
mental na sedimentação da sociedade moderna. diáspora negra.
Aqui ele discorre sobre a relação senhor-es-
cravo que tem estado na base das discussões Recebido em 30.05.05
desenvolvidas por intelectuais negros sobre a Aprovado em 25.06.05
modernidade.
O terceiro capítulo ocupa-se da música ne-
2
DU BOIS, W.E.B. The Souls of Black Folk. Nova York:
gra na perspectiva de construir argumentos Bantam, 1989.
antimaniqueístas na fundamentação das teori- DU BOIS, W.E.B. Black Reconstruction in America (1938).
as da identidade negra. Nova York: Atheneum, 1977.
3
O quarto capítulo fala de resistência. A partir WRIGHT, Richard. White Man Listen! Nova York: Anchor
Books, 1964.
da análise da obra de W.E.B. Du Bois2 , Gilroy WRIGHT, Richard. Twelve Million Black Voices. Londres:
fala de apropriações e reelaborações culturais e Lindsay Drummond Ltd., 1947.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 267-276, jul./dez., 2005 271
COLE, Michael & COLE, Sheyla. O desenvolvimento da criança e do adolescente. 4.
ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004. 800 p.

CULTURALISMO:
UMA ABORDAGEM MULTIREFERENCIAL AO
DESENVOLVIMENTO HUMANO

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu*

COLE, Michael & COLE, Sheyla. The Development of Children. 4. ed. Por-
to Alegre: Artes Médicas, 2004. 800 p.

O desenvolvimento de cada ser humano ocorre mericano do “ir direto ao ponto”. Isso faz do
intimamente ligado à sua cultura. Mesmo antes livro um material acessível a qualquer pessoa
do nascimento, a cultura contribui para o desen- que tenha interesse pela psicologia do desen-
volvimento das crianças através de fatores como
a alimentação à qual a mãe teve acesso e aos
volvimento humano.
padrões de fala que ela [a criança] filtrou através O volume encontra-se organizado em cinco
do seu corpo. Depois do nascimento a cultura grandes partes subdivididas em dezesseis capí-
ocupa um papel fundamental na experiência das tulos. O primeiro capítulo apresenta a psicolo-
crianças porque elas são extremamente depen- gia do desenvolvimento como “o estudo das
dentes de outras pessoas para apoiar seu de- mudanças físicas, cognitivas e psicossociais
senvolvimento continuado. (p. 715).
que as crianças sofrem a partir do momento
O desenvolvimento da criança e do ado- da concepção” (p. 24) e identifica suas origens
lescente é o primeiro livro, publicado no Brasil, no final do século XVIII, na França, quando o
da autoria do Prof. Dr. Michael Cole – docente então jovem médico Jean-Marc Itard passou a
e pesquisador da Universidade da Califórnia em observar, de modo sistemático, Victor – o meni-
San Diego (EUA). Trata-se de um compêndio no selvagem que apareceu procurando por co-
escrito em parceria com a jornalista Sheyla Cole mida em uma aldeia da província de Aveyron no
– sua mulher – destinado a introduzir os alunos inverno de 1800. Para Cole & Cole, o fato de
de Pedagogia e Psicologia na problemática do Itard ter criado um conjunto elaborado de proce-
desenvolvimento humano. O volume é ricamen- dimentos experimentais para ensinar Victor a
te ilustrado e apresenta-se diagramado de ma- categorizar objetos, raciocinar e se comunicar
neira original, oferecendo ao leitor uma espécie verbalmente faz dele o legítimo precursor da ci-
de escrita hipertextual, apesar dos limites à li- ência da psicologia do desenvolvimento porque,
nearidade do texto veiculado em meio não-digi- agindo desse modo, Itard movia-se para além da
tal. Os autores optam por uma linguagem especulação, buscando conduzir experiências que
simples, sem eruditismo, bem ao estilo nortea- pudessem testar suas idéias (p. 25).

* Doutor em Educação (Psicologia e Educação) e mestre em Artes (Artes Cênicas/Teatro) pela USP. Professor adjunto
do DEDC Campus XV da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Valença/Ba. Endereço para correspondência:
Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Departamento de Educação/Campus XV, Rua do Arame, s/n, Tento –
45400.000 Valença/BA. E-mail: rjapias@yahoo.com.br; rjapias@uol.com.br

272 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 267-276, jul./dez., 2005
Após o primeiro capítulo, inicia-se a primei- lacional de formação das identidades heteros-
ra parte do livro intitulada O Início, composta sexual, não-heterossexual e étnica. O livro traz
pelos capítulos dois e três. O capítulo segun- ainda um epílogo sob o título Juntando tudo,
do focaliza a reprodução sexual humana. Ali, em que Cole & Cole propõem ao leitor uma
as leis da herança genética são apresentadas articulação entre teoria e prática com base em
de modo a problematizar sua complexa intera- seis conceitos considerados “indispensáveis
ção com os fatores ambientais a partir do con- para o entendimento do desenvolvimento
ceito de co-evolução de Futuyma (p. 95). No humano” (p. 713): (1) seqüência; (2) momen-
terceiro capítulo os autores apresentam uma to; (3) diferenciação e integração; (4) padroni-
excelente descrição do desenvolvimento pré- zação; (5) fontes múltiplas e (6) mediação
natal até o nascimento do sujeito, destacando cultural. Além do epílogo, a publicação ofere-
os períodos germinal, embrionário e fetal. ce um apêndice-guia para discussões de dife-
Este capítulo focaliza sobretudo a aprendiza- rentes aspectos do desenvolvimento; um
gem fetal e os efeitos teratogênicos do uso de glossário de termos técnico-científicos e um
drogas como álcool, maconha, cocaína e deri- índice onomástico.
vados do ópio em crianças a elas expostas quan- A grande novidade deste compêndio (4. edi-
do ainda no útero materno. ção revista e ampliada da obra originalmente
A segunda parte do livro recebe o título de publicada nos Estados Unidos sob o título The
O Bebê e compõe-se dos capítulos quarto, quin- development of Children, em 1989) é apre-
to, sexto e sétimo. Estes quatro capítulos des- sentar, numa perspectiva crítica, um panorama
crevem as habilidades iniciais da criança e o contemporâneo dos saberes em construção a
curso de seu desenvolvimento desde o primeiro respeito da psicologia do desenvolvimento.
ano de vida até o término da fase de bebê, ou Embora Michael Cole seja uma das princi-
seja, até quando o sujeito se locomove sozinho, pais lideranças da escola de psicologia nortea-
faz uso da fala e demonstra maior autonomia mericana denominada socioculturalismo ou
nas suas interações com o meio físico e social. culturalismo, isso não o impede, no livro, de
Os capítulos oitavo, nono, décimo e décimo-pri- expor com clareza, respeito e honestidade ou-
meiro configuram a terceira parte do livro inti- tras abordagens ao desenvolvimento humano
tulada Primeira Infância. Esta parte é dedicada divergentes do culturalismo – como é o caso,
aos saberes contemporâneos a respeito dos pro- por exemplo, das teorias do processamento da
cessos de aquisição da linguagem e da consti- informação, da ciência cognitiva e da episte-
tuição do pensamento verbal dos dois aos quatro mologia genética.
anos de idade. Com os capítulos décimo-segun- Um aspecto polêmico do livro é que os au-
do, décimo-terceiro e décimo-quarto apresen- tores agrupam as perspectivas teóricas do cam-
ta-se a quarta parte do volume sob o título po da psicologia do desenvolvimento em
Segunda Infância. Estes capítulos buscam quatro grandes abordagens: (1) maturação
compreender as aquisições cognitivas, sociais biológica; (2) aprendizagem; (3) construti-
e biológicas dos cinco aos doze anos, focalizan- vismo e (4) contexto cultural. Cole & Cole
do, de modo privilegiado, o importante papel da “separam” construtivismo e culturalismo, ain-
escolarização e do grupo de pares no modo de da que ambas abordagens possam ser reuni-
pensar e de agir da criança. A quinta parte do das, confortavelmente, sob a consigna do
livro denomina-se Adolescência e compõe-se interacionismo: “os psicólogos que atuam den-
dos capítulos décimo-quinto e décimo-sexto. tro da abordagem culturalista também concor-
Nesta última parte os autores procuram apre- dam que os fatores biológicos e experiências
sentar as bases biológicas e sociais da adoles- têm papéis recíprocos a desempenhar no de-
cência, destacando o processo de constituição senvolvimento e, como os construtivistas, acre-
das singularidades humanas na perspectiva re- ditam que as crianças constroem seu próprio

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 267-276, jul./dez., 2005 273
desenvolvimento através de um engajamento versalização das etapas do desenvolvimento tor-
ativo com o mundo.” (p. 58-59). na-se um obstáculo teórico-metodológico de
Evidentemente não se pode negar a exis- difícil, senão impossível, ultrapassagem.” (p.
tência de uma diferença fundamental entre o 27).3 Ainda Oliveira é quem traduz a preocu-
construtivismo individualista de orientação pação de muitos culturalistas com esta ques-
piagetiana e o co-construtivismo ou constru- tão: “O que precisa ser explicado por meio da
tivismo socialista de orientação vygotskia- cultura não são as características de diferentes
na.1 Sem dúvida, existe um “divisor de águas” indivíduos e grupos que divergem das normas
entre ambas as abordagens: o conceito de me- européias e americanas de funcionamento men-
diação cultural. Todavia, “os pontos de vista da tal, mas a própria mente humana e seu funcio-
abordagem culturalista e construtivista são si- namento. A cultura tem que ser o princípio
milares em vários aspectos. Ambas declaram explicativo da mente especificamente hu-
que o indivíduo sofre mudanças qualitativas no mana.” (p. 216) (Grifos meus).4
curso do seu desenvolvimento e ambas enfati- Evidentemente não é possível, no âmbito
zam que o desenvolvimento é impossível sem restrito desta resenha, verticalizar a discussão
a participação ativa do indivíduo.” (p. 59 - dessas e outras polêmicas suscitadas pela lei-
grifos meus). tura das oitocentas páginas de O desenvolvi-
A polêmica gerada por Cole & Cole tem mento da criança e do adolescente. O livro,
origem em uma “ação afirmativa” do cultura- entretanto, apresenta-se como leitura indispen-
lismo. Porém, admitamos, seria mais didático sável à formação de profissionais da educação
agrupar as perspectivas teóricas do campo da e da psicologia, constituindo importante materi-
psicologia do desenvolvimento em apenas três al de consulta para pais, tios, tias, avôs e avós
grandes blocos: (1) abordagens inatistas ou de todas as etnias, idades e classes sociais.
maturacionistas; (2) abordagens ambientalis- Resta-nos parabenizar a Editora Artes Mé-
tas ou da aprendizagem e (3) abordagens in- dicas por disponibilizar pioneiramente, em lín-
teracionistas.2 Estas últimas subdividindo-se gua portuguesa, o pensamento de Michael Cole.
em (3.1) abordagens interacionistas univer-
salistas (o construtivismo de orientação piage-
Recebido em 15.02.05
tiana) e (3.2) abordagens interacionistas
Aprovado em 18.02.05
culturalistas (o co-construtivismo de orienta-
ção vygotskiana). As razões para Cole & Cole
destacarem o culturalismo do conjunto das 1
VALSINER, Jaan & VASCONCELOS, Vera M. R. de. Pers-
abordagens interacionistas devem ser a neces- pectiva co-construtivista na psicologia e na educação.
sidade identitária de sua “diferença” em rela- Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
2
ção ao construtivismo universalista de orientação PALANGANA, Isilda Campaner. Desenvolvimento e
aprendizagem em Piaget e Vygotsky: a relevância do social.
piagetiana. São Paulo: Summus, 2001.
Uma outra questão que vem à tona no com- 3
OLIVEIRA, Marta Kohl de; TEIXEIRA, Edival. A ques-
pêndio é a universalização da periodização do tão da periodização do desenvolvimento psicológico. In:
OLIVEIRA, Marta Kohl de e outros (Orgs.). Psicologia,
desenvolvimento humano porque, como expli- educação e as temáticas da vida cotidiana. São Paulo:
cam Oliveira & Teixeira, “em virtude de o psi- Moderna, 2002. p. 23-46.
4
OLIVEIRA, Marta Kohl de. Ciclos de vida: algumas ques-
quismo se desenvolver por referência a tões sobre a psicologia do adulto. Educação e Pesquisa,
determinado contexto histórico e cultural, a uni- São Paulo, v. 30, n. 2, p. 211-229, maio/ago. 2004.

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OROFINO, Maria Isabel. Mídia e educação: contribuição dos estudos
da mídia e comunicação para uma pedagogia dos meios na escola. In:
FLEURI, Reinaldo Matias (org.). Educação intercultural: mediações necessári-
as. Rio de Janeiro, RJ: DP&A, 2003. p. 109-124.

Leonardo de Oliveira Palmeira *

OROFINO, Maria Isabel. Mass Media and Education: the Contribution of


Mass Media and Communication Studies for a Pedagogy of Mass Media at
School. In: FLEURI, Reinaldo Matias (org.). Intercultural Education:
Necessaries Mediations. Rio de Janeiro, RJ: DP&A, 2003. p.109-124.

Maria Isabel Rodrigues Orofino graduou-se escola deve ser um espaço de crítica ao consu-
em Comunicação Social com Habilitação em mo social das mídias, para construção de uma
Jornalismo pela UFSC, em 1986, onde perse- visão reflexiva sobre elas que lhes propicie uma
guiu seus estudos de Mestrado em Educação resposta social.
obtendo este título no ano de 1997 com a tese: Entendendo que a experiência cultural de
A Mediação Escolar na Recepção Televisi- hoje é permeada pela oferta de símbolos origi-
va. Realizou estudos de doutorado-sanduíche nados nos meios de comunicação de massa
em Teoria da Comunicação na University of (M.C.M.), sendo o meio televisivo o mais usa-
London e tornou-se Doutora em Ciências da do pelas crianças brasileiras, apesar do adven-
Comunicação pela USP no ano de 2002. Auto- to do computador e da internet, chama a atenção
ra e co-autora de livros sobre mediação na co- para a falsa idéia de integração universal pro-
municação como O Fantástico na Ilha de pagada pela presença ubíqua das empresas
Santa Catarina (1992), Vozes da Lagoa controladoras dos M.C.M., em descompasso
(2000), e do capítulo A mediação Videotecno- com a realidade de uma profunda exclusão so-
lógica na Telenovela, do livro Vivendo com a cial gerada pela diferença de oportunidade no
Telenovela (2002). Atualmente, desenvolve acesso a esses meios, principalmente ao com-
pesquisas nos grupos Educação Intercultural e putador e à internet.
Movimentos Sociais; e Infância, Comunicação, Diante dessa diferença, a autora aborda a
Cultura e Arte; e é professora do Departamen- necessidade de se compreender o contexto so-
to de Comunicações e Artes da USP. cial em que o consumo cultural se processa,
No texto Mídia e Educação: contribui- vinculando o significado atribuído à mensagem
ções dos estudos da mídia e comunicação ao contexto de recepção e consumo desta.
para uma pedagogia dos meios na escola, Contexto que é definido pelos diferentes cená-
Orofino sugere um papel para a escola na inte- rios sócio-históricos e suas mediações.
ração com a cultura de massa – em constante Para tal abordagem, a autora utiliza as teo-
produção – e estabelece a relação entre con- rias latino-americanas que definem mediações
sumo cultural e educação, defendendo que a como “a circulação de significados no cenário

* Leonardo de Oliveira Palmeira é médico, graduado pela Universidade Federal da Bahia – UFBa, em 2003, músico
instrumentista e poeta, pós-graduando em Metodologia do Ensino Superior pela Unyahna. Endereço para correspon-
dência: Instituto de Educação Superior UNYAHNA de Salvador, Rua Bicuíba, s/n, Alameda Patamares – Patamares –
41680-440 Salvador/BA. E-mail: drmedsax@yahoo.com

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social e os diferentes modos de apropriação nicação social para o contexto escolar, alertan-
desses” (p. 113). Nesse momento, apresenta a do para o fato de que é inevitável convivermos
escola como o cenário social que atua em nível com a participação dos MCM na educação, e
local, e ressalta a importância da “mediação que esse fenômeno demanda novas habilida-
escolar” (p. 113) na crítica ao consumo cotidia- des dos educadores.
no das mídias e suas mensagens dirigidas a um Todavia, assim como o arcabouço teórico
público global. da comunicação social está ganhando novas
Orofino cita Martin-Barbero e Orozco, prin- perspectivas, sua aplicação prática dentro ou
cipais teóricos dos estudos da teoria latino-ame- fora da escola não passa de uma experimenta-
ricana das mediações, ao levantar outros ção e não pode, ainda, ser bem definida. A aná-
contextos de mediação importantes, a serem lise apresentada pela autora de forma simples
considerados pelos educadores, com a finalida- e direta tem, portanto, o mérito de fornecer aos
de de compreender “os modos pelos quais se educadores uma nova visão dos processos im-
processam uma ‘produção social do significa- bricados na atuação da mídia, na formação da
do’ a partir de uma ‘analise integral do consu- cultura pelas crianças e adolescentes, e, por
mo’ entendido como ‘o conjunto dos processos conseguinte, presente na escola. O movimento
sociais de apropriação dos produtos’” (MAR- do pensamento de Orofino nesse texto consti-
TÍN-BARBERO, 1997, p.290)1 . Ao fazê-lo, tui, portanto, leitura indispensável para os edu-
desmistifica a noção de que toda assimilação cadores que pretendam desenvolver a visão
da cultura hegemônica da mídia constitui sub- crítica dos seus educandos sobre os símbolos
missão, pois salienta o papel do consumidor gerados pelos MCM, e assim contribuir para a
como ator nos processos de mediação onde o construção reflexiva dos seus significados e
“político se revela a partir do cultural” (p. 118) para a produção de mensagens no âmbito es-
transformando a cultura de massa, de um mero colar, mediando ativamente a formação de uma
produto de alienação, em uma produção social nova cultura de massa.
do sentido através da interação entre audiência
Recebido em 23.05.05
e MCM. Esses outros contextos de mediação
Aprovado em 23.05.05
são: a) a mediação individual, b) a mediação
situacional, c) a mediação institucional – na qual
está incluída a mediação escolar, e d) a media-
ção tecnológica.
1
O texto de Orofino traz as tendências inci- MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações:
comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora
pientes dos estudos contemporâneos da comu- UFRJ, 1997.

276 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 267-276, jul./dez., 2005
INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES

A Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade é uma publicação semestral e


aceita trabalhos originais que sejam classificados em uma das seguintes modalidades:
- resultados de pesquisas sob a forma de artigos, ensaios e resumos de teses ou monografias;
- entrevistas, depoimentos e resenhas sobre publicações recentes.
Os trabalhos devem ser enviados via Internet para Jacques Jules Sonneville – e-mail:
jacqson@uol.com.br - segundo as normas definidas a seguir:
1. Na primeira página devem constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereços
profissional e residencial, telefone, e-mail para contato; c) titulação; d) instituição a que pertence(m)
e cargo que ocupa(m).
2. Resumo e Abstract, cada um com no máximo 200 palavras, incluindo objetivo, método, resultado,
conclusão. Logo em seguida, as Palavras-chave e Keywords, cujo número desejado é de, no
mínimo, três e, no máximo, cinco. Traduzir, também, o título do artigo. Atenção: cabe aos autores
entregar traduções de boa qualidade, indispensável para a aceitação do texto.
3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias, quando apresentados em folhas separadas, devem
ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar referências de sua
autoria/fonte. Para tanto, devem seguir a Norma de apresentação tabular, estabelecida pelo
Conselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE em 1979.
4. Sob o título Referências deve vir, após parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dos
autores e das publicações, conforme a NBR 6023 de setembro de 2003, da ABNT (Associação
Brasileira de Normas Técnicas). Vide os seguintes exemplos:
a) Livro de um só autor:
BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.
b) Livro até três autores:
NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tradução
de Geraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.
c) Livro de mais de três autores:
CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
d) Capítulo de livro:
BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA, Joaquim (Org.).
Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.
e) Artigo de periódico:
MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? Uma
breve reflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA, Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./
jun. 2002.
f) Artigo de jornais:
SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público. O
Globo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.
g) Artigo de periódico (formato eletrônico):
TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira
de História, São Paulo, SP, v. 19, n. 37, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acessado em: 14
ago. 2000.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, jul./dez., 2005 277
h) Livro em formato eletrônico:
SÂO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://
www.bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm >. Acessado: em 19 out. 2003.
i) Decreto, Leis:
BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para
despacho de aeronave em serviço internacional. Lex: Coletânea de legislação e Jurisprudência, São
Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar., 1. trim. 1984. Legislação Federal e marginalia.
j) Dissertações e teses:
SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado)
– Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
k) Trabalho publicado em Congresso:
LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridades
brasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE:
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 13., 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.
IMPORTANTE: Ao organizar a lista de referências, o autor deve observar o correto emprego da
pontuação, de maneira que esta figure de forma uniforme. Por exemplo: após cada ponto, deixar
dois espaços antes de iniciar a parte seguinte da referência.
5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data, de acordo com a NBR
10520 de 2003. As citações bibliográficas ou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entre
aspas ou em parágrafo com recuo e sem aspas, remetendo ao autor. Quando o autor faz parte do
texto, este deve aparecer em letra cursiva, observando e respeitando a língua portuguesa. Exemplo:
De acordo com Freire (1982, p.35), etc. Já quando o autor não faz parte do texto, este deve
aparecer no final do parágrafo, entre parênteses e em letra maiúscula, como no exemplo a seguir:
A pedagogia das minorias está à disposição de todos (FREIRE, 1982, p.35). As citações extraídas
de sites devem, além disso, conter o endereço (URL) entre parênteses angulares e a data de
acesso. Para qualquer referência a um autor deve ser adotado igual procedimento. Deste modo,
no rodapé das páginas do texto, devem constar apenas as notas explicativas estritamente
necessárias, que devem obedecer à NBR 10520, de 2003.
6. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como os
agradecimentos, apêndices e informes complementares.
7. Os artigos devem ter, no máximo, 30 páginas, e as resenhas até 4 páginas. Os resumos de
teses/dissertações devem ter, no máximo, 250 palavras, e conter título, número de folhas, autor (e
seus dados), palavras-chave, orientador, banca, instituição e data da defesa pública.
Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no Winword 97 ou 2000:
• letra: Times New Roman 12;
• tamanho da folha: A4;
• margens: 2,5 cm;
• espaçamento entre as linhas: 1,5;
• parágrafo justificado.
8. As colaborações encaminhadas à revista são submetidas à análise do Conselho Editorial,
atendendo a critérios de seleção de conteúdo e normas formais de editoração, sem identificação
da autoria para preservar isenção e neutralidade de avaliação. A aceitação da matéria para
publicação implica na transferência de direitos autorais para a revista.

A Comissão de Editoração

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