No decorrer da graduação em Psicologia, fui tomado por uma insatisfação, devido a boa
parte das teorias enquadrarem a subjetividade em categorias e escalas, que incitou a busca por
outros conhecimentos e espaços que pudessem ser significativos para a formação de psicólogo.
Nesse período, participei de projetos de extensão que proporcionaram encontros intensos com
pessoas, artes, saberes, lugares. Mais tarde, no estágio de licenciatura fui instigado a dialogar
com outras áreas do conhecimento e a outros modos de pensar o processo ensino-aprendizagem.
Também, na elaboração do trabalho de conclusão de curso, investiguei os efeitos do olhar nos
encontros com a deficiência, tomando como referência autores como Deleuze, Guattari, Rolnik,
Kastrup, Chauí, entre outros.
Esses e outros encontros, proporcionaram o interesse pela Educação e direcionaram a
elaboração do projeto de pesquisa para participar do Mestrado do Programa de Pós-Graduação
em Educação da UFG/Catalão. Um dos questionamentos norteadores da proposta foi: como as
experiências vividas (encontros) compõem a atuação do psicólogo? A partir disso, propus
investigar as histórias dos encontros como disparadores dos modos de pensar e viver as práticas
profissionais, procurando perceber como os encontros podem desencadear concepções, rupturas
e devires na atuação dos psicólogos e como o falar de si se torna instrumento de formação
humana e profissional.
São essas experiências, apresentadas de modo breve, que impulsionaram a escrita desse
texto. São momentos específicos da minha formação, são encontros e intensidades vividas.
Esses encontros e suas intensidades colocam-me à disponibilidade para novas composições,
possibilidades, territórios, afetos, atravessamentos. Compõem o modo de pensar a formação e
atuação profissional, a Educação, o processo ensino-aprendizagem, a vida. Possibilitam
compreender que nas histórias de vida há experiências e história de encontros que compõem
aquele que fala de si.
Contudo, ao incluir a história dos encontros no veio teórico-metodológico da pesquisa
com história de vida, faz-se necessário definir aspectos que contornam, dão forma ou deforma,
aquilo que se chama de encontro. Tendo como referência a filosofia de Deleuze para a
compreensão dos encontros, este texto visa pensar a pesquisa com histórias de vida, a partir da
história dos encontros, que incluem a dimensão intensiva das experiências vividas.
Histórias de vida
Nessa filosofia, o encontro ordinário está exposto a uma reviravolta instantânea que
pode projetar tudo para fora dos eixos. Segundo Orlandi (2009), é como se a vida se sentisse
abalada por um vinco em que uma experiência ordinária é dobrada junto a outra, a
extraordinária. Percebemos, então, que a complexidade da experiência dos encontros depende
do que se passa nessa dobra. Para o autor, cada um sente e exprime a seu modo essa ocorrência
simultânea de linhas divergentes, a estranha dobradura na qual os juntados experimentam seu
próprio vínculo como sendo aquilo que os lança num tempo fora dos eixos.
O termo encontro, conforme Cunha (1982), deriva do latim incontrare, surge da junção
in + contra, onde “in” significa dentro de; “contra” pode significar ir contra alguém. Vieira
(2007) aborda que incontrare pode representar união, junção, confluência, choque, colisão,
briga, luta, disputa esportiva. Incontrare, também, referia-se a encontro de adversários. Ainda,
significava enfrentar, estar face a, mas com o tempo o sentido de animosidade desapareceu.
Os significados do termo incontrare parecem indicar aspectos para se pensar os
encontros. Se, inicialmente, o termo se referia a algum tipo de violência, o encontro em Deleuze
pode indicar certa violência posta pelo estranhamento, que para Orlandi (2009) gerariam as
estranhas dobraduras que nos lança a outros devires e possibilidades do pensar.
Nesse sentido, o encontro não trata da hora marcada, da experiência ordinária, da forma
ou modo como ocorre ou de quem se encontra. Essas dimensões referem-se àquilo que a
consciência é capaz de conceber: os afetos já vividos, as expressões já vistas, o sentidos já
experimentados. Esses são os encontros extensivos, os quais Orlandi (2009) considera como
necessários e úteis do ponto de vista da sobrevivência, dos passeios, da vida em geral, mas que
não dão conta da complexidade dos encontros. Já os encontros intensivos ativam-nos a estados
aos quais somos involuntariamente lançados; abre-nos a virtualidades que estão aquém ou além
aspecto extensivo.
A intensidade nos encontros “fissura a linha do sentir, escapa das ligações recognitivas
comandadas pelo senso comum, [...] forçando-nos a perguntar pelo que se passa nesse estranho
instante” (ORLANDI, 2009 p. 262). Há neles alguma coisa que força a pensar e não sabemos
ainda como opera esse algo. É a complexidade da experiência que pede passagem.
Segundo Orlandi (2009), na experiência dos encontros há a reelaboração da relação
entre sentir e pensar, pois a pluralidade dos sentidos não concebem o que se passa quando, ao
romper a própria tecedura do sentir, uma fissura propaga-se como raio e vem fissurar o pensar,
o imaginar. Para o autor, essas experiências provocam variações em nosso poder de ser afetado,
forçando-nos a sentir, a memorar, a imaginar... a pensar de outro modo, sem o apoio dos
dispositivos de simplificação do já vivido, dos dispositivos de fixação de identidades, de
semelhanças, de oposições e de analogias. Os fluxos intensivos abrem afectos e perceptos, isto
é, outros modos de sentir e perceber; disparam no próprio pensar um pensamento intenso.
Nessa direção, investigar a partir das histórias dos encontros é voltar a atenção para os
momentos em que se percebe as rupturas e fissuras que vão aparecendo nas histórias de vida.
Não se trata de buscar encontros pré-definidos, mas exige o trabalho minucioso da atenção para
cartografar os fluxos e processos intensivos que surgem nas narrativas de si. Assim como há
nos encontros intensivos alguma coisa que força a pensar e não se sabe como opera esse algo,
as histórias de vida podem trazer dados em que o investigador se depara com algo lhe escapa e
estranha e não se sabe ao certo o que aconteceu. Narrador e investigador, juntos, trabalham no
intuito de fazer emergir as marcas, os estados inéditos que se produziram ao longo da vida, ou
seja, a história dos encontros.
Considerações Finais
O rastreio das histórias dos encontros por meio das histórias de vida parecem considerar
aspectos importantes para a compreensão da formação pessoal e profissional. Pensar a partir
dessa perspectiva propõe outra compreensão a respeito do método de pesquisa que trabalha com
histórias de vida, que não desconsidera o que se tem desenvolvido nos estudos atuais, mas,
tendo como ponto de partida a filosofia de Deleuze, esse método é reinventado e lançado ao
campo das intensidades. Se, conforme Orlandi (2009), Deleuze considera a filosofia como a
arte de inventar os próprios conceitos para pensar nosso mundo e nossa vida, a reflexão sobre
os encontros mostra-se como campo de invenção de conceitos acerca dos aspectos que podem
aparecer nas narrativas de si.
Assim, pesquisar a história dos encontros propõem conceber cada um deles como
processo intensivo que direciona a formação. Nessa concepção, a formação pessoal e
profissional passa pelas linhas que fissuram o pensar e o sentir, que geram estados inéditos e
possibilidades inusitadas decorrentes da violência dos encontros.
Referências Bibliográficas
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa.
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NÓVOA, Antonio. Os professores e as histórias da sua vida. In: NÓVOA, Antonio (Org.),
Vidas de Professores. Porto-Portugal: Porto, 1995. 2ª ed. p. 11-31.
ORLANDI, Luiz Benedicto Lacerda. Deleuze. In: PECORARO, Rossano (Org.). Os Filósofos
Clássicos da Filosofia. Petrópolis: Editora Puc-Rio e Editora Vozes, 2009, vol. III, p. 256-279.
PERES, Lúcia Maria Vaz; ASSUNÇÃO, Alexandre Vergínio. A narrativa de si como mestra
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Barreto (Org.). (Auto)biografia e formação humana. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. p. 139-
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