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mentados nos diferentes setores do sistema teiras definidas entre si. Embora não formem
médico. A comparação entre estes setores uma totalidade funcionalmente integrada, os
(assim como a análise de suas inter-relações) é subsetores podem ser interconectados de diver-
essencialmente um estudo dos seus diferentes sas formas. Assim, eles podem coexistir com
modelos explicativos. Como diz Kleinman pouca capacidade de excluirem-se mutuamente.
(1978), “os relacionamentos no cuidado à Por outro lado, é também importante observar,
saúde (por exemplo, as relações paciente- como chama a atenção Comaroff (1978), que as
família ou paciente-terapeuta) podem ser estu- relações entre as interpretações subjetivas dos
dados e comparados como transações entre indivíduos e os modelos explicativos dos siste-
diferentes MEs e os sistemas cognitivos e mas médicos não são necessariamente enqua-
posições na estrutura social nos quais eles dradas de acordo com um modelo integrativo e
estão ligados”. coerente. Conforme observa Last (1981), em
Como regra, os teóricos dos MEs observam um sistema médico pluralista, as pessoas podem
que os subsetores de um sistema médico são se engajar em processos terapêuticos sem saber
compartimentalizados: “certos tipos de prática ou querer saber sobre a lógica interna do siste-
são mais adequadas a explicar e, portanto, ma escolhido. Para este autor, sob certas con-
curar certos tipos de doença” (Harrel, 1991). dições, o não saber ou não querer saber pode-se
Desta forma, em um contexto pluralístico, os tornar institucionalizado como parte de uma
subsistemas médicos tendem a se tornar ligados cultura médica.
a doenças específicas, de tal forma que os A interpretação que as pessoas elaboram para
padrões de procura de auxílio (pathways of uma dada experiência de enfermidade é o
resort) podem ser delineados por diferentes resultado dos diferentes meios pelos quais elas
tipos de situações de enfermidade. adquirem seus conhecimentos médicos. Tais
A idéia dos modelos explicativos é um pode- conhecimentos são diferentes entre as pessoas,
roso instrumento teórico que permite explorar por serem originados em situações biográficas
questões como aderência a tratamentos, escolha determinadas. Conseqüentemente, os conheci-
e avaliação de terapias. Acreditamos, contudo, mentos médicos construídos pelos membros
que o conceito de ME responde apenas parcial- ordinários da sociedade devem ser “localizados”
mente à questão da experiência da enfermidade. em um contexto compreensivo mais amplo do
Os teóricos dos MEs tendem a explicar os que aquele oferecido pelos diversos subsetores
conhecimentos e crenças médicas em termos de de um sistema médico.
um conjunto singular de estruturas cognitivas O conhecimento médico de um indivíduo tem
subjacentes aos setores do sistema médico. Na sempre uma história particular, pois é constituí-
procura de uma lógica interna dos significados do de e por experiências diversas. Assim, é de
atribuídos à enfermidade, e dentro de um inte- se esperar que este conhecimento exista em um
resse essencialmente clínico, Kleinman e seus fluxo contínuo e quo mesmo seja passível de
seguidores não dão a devida atenção ao fato de, mudanças, tanto em termos de extensão como
geralmente, as pessoas atribuírem, ao mesmo em termos de estrutura. A interpretação da
tempo, diferentes interpretações para as suas enfermidade tem uma dimensão temporal não
aflições. As percepções, crenças e ações dos apenas porque a doença, em si mesma, muda
indivíduos são geralmente heterogêneas, com- no decorrer do tempo, mas também porque a
plexas e ambíguas. sua compreensão é continuamente confrontada
É importante observar que as crenças, valores por diferentes diagnósticos construídos por
e práticas existentes em um sistema médico não familiares, amigos, vizinhos e terapeutas. O
estão constituídas necessariamente por catego- conhecimento médico de um indivíduo está
rais lógicas coerentes. As incoerências e contra- continuamente sendo reformulado e reestrutura-
dições tornam-se, muitas vezes, mais visíveis do, em decorrência de processos interativos
no contexto de um sistema médico pluralístico, específicos. Assim, como argumenta Young
com realidades clínicas muitas vezes conflitan- (1981, 1982), é esperado que o indivíduo pro-
tes. Nestes contextos, os diversos subsetores duza mais do que um tipo de explicação sobre
terapêuticos usualmente não estabelecem fron- sua enfermidade, porque seu conhecimento é
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sempre recorrente e processual. Conseqüente- doença e, por outro lado, põe em movimento a
mente, os modelos explicativos da enfermidade nossa capacidade de transformar esta experiên-
são apenas uma entre as diversas formas de cia em um conhecimento. É através das im-
conhecimento médico, não estando os mesmos pressões sensíveis produzidas pelo mal-estar
necessariamente implícitos em todas as ex- físico e/ou psíquico que os indivíduos se consi-
pressões que os indivíduos fazem sobre as suas deram doentes. Não poderíamos saber a priori
aflições. Como nenhum conjunto singular de que estamos doentes sem que a sensação de que
estruturas cognitivas pode ser tomado como “algo não vai bem” tenha sido revelada ante-
fonte última das expressões do indivíduo, riormente. Assim, esta sensação constitui o
nenhuma forma é, a priori, o autêntico conheci- primeiro passo para designar, de modo conve-
mento dos fatos médicos do indivíduo. niente, o sentido da enfermidade (Telles &
Pollack, 1981). Neste aspecto, a enfermidade é
um processo subjetivo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Antes de prosseguirmos, é importante ressal-
tar que nem toda alteração ou disfunção orgâni-
Nas páginas precedentes, procuramos exami- ca ou psíquica desperta necessariamente uma
nar alguns pontos básicos da literatura sócio- experiência de sentir-se mal. Processos ou
antropológica que são pertinentes ao entendi- estados patológicos podem estar presentes no
mento da questão da enfermidade. Ao apresen- nosso corpo sem que tenhamos consciência
tá-los de forma um tanto sistemática, podemos deles. As perturbações fisiológicas, tomadas em
observar que estes estudos não estabelecem de si mesmas, constituem o objeto da investigação
forma satisfatória os fundamentos teóricos que biomédica. Só quando transformada em sinto-
lhes permitam responder como os processos mas, em impressões sensíveis, é que a doença
cognitivos sobre a enfermidade são socialmente torna-se uma enfermidade.
construídos. Para respondermos a esta questão, A enfermidade, por outro lado, é mais do que
a nosso ver, é necessário descermos ao nível uma situação emotiva decorrente de uma reação
dos microfundamentos da experiência da enfer- corporal. Ela estende-se para além dos limites
midade, para que possamos atingir o domínio do mundo sensível. Se a enfermidade se inicia
dos macroprocessos sociais (padrões de com- com a experiência, isso não prova que toda ela
portamento, quadros culturais de referência, derive da experiência. O corpo humano, durante
instituições, etc.). Assim, sem se perder em um um processo patológico, pode fornecer um
“torvelinho de relativismo cultural”, torna-se somatório de informações heterogêneas, como
necessário “descer aos detalhes, além das dor de cabeça, vômito, febre, fraqueza, etc.
etiquetas enganadoras, além dos tipos metafísi- Cada informação constitui um “fato” isolado e,
cos, além das similaridades vazias, para apre- portanto, fechado. Uma dor de cabeça, por
ender corretamente o caráter essencial não exemplo, é uma simples informação entre tantas
apenas das várias culturas, mas também dos outras e, em si mesma, nunca permitirá compre-
vários tipos de indivíduos dentro de cada ender outra coisa que não ela própria. Tomadas
cultura “ (Geertz, 1978). isoladamente, as simples informações não
Nas páginas seguintes, procuraremos estabele- significam quase nada. Por outro lado, não é
cer algumas premissas teóricas que julgamos pela percepção de uma miríade de sensações
serem necessárias para a compreensão da coligadas que podemos garantir a validade da
enfermidade. Evidentemente, esta análise não nossa apreensão da enfermidade. A multidão de
será exaustiva, mas esperamos que ela possa experiências diversas precisa ser organizada em
estimular a discussão crítica de se trabalhar uma totalidade sintética, isto é, em configu-
com o conceito de experiência da enfermidade. rações globais dotadas de sentido. Neste aspec-
Acreditamos que o ponto de partida para a to, a idéia de enfermidade não aponta apenas
compreensão da enfermidade é que ela está para as impressões sensíveis, e sim para o
necessariamente presa a uma experiência. É a sentido atribuído a elas. Torna-se necessário,
experiência de sentir-se mal que, por um lado, portanto, circunscrever as reações corporais em
origina, por si mesma, as representações da sistemas significantes.
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Para que a “matéria bruta” das impressões va. Telles & Pollack (1981), por exemplo,
sensíveis seja organizada é necessário que ela observam que o processo através do qual os
seja “apreendida”, isto é, fundamentada pela indivíduos interagem com outros, no curso da
“tomada de consciência” de uma condição. enfermidade, envolve quatro estágios: “a) os
Tomar consciência de uma dada situação é outros sugerem, verificam ou negam que a
organizar um somatório de fatos em algo com- pessoa está doente; b) ou outros indicam que
preensivo e, portanto, significativo. A sensação tipo ou quantidade de sentimentos são aceitá-
de sentir-se mal encontra-se intrinsecamente veis; c) os indivíduos encontram meios para
acompanhada de uma compreensão do seu demonstrar a validade dos seus sentimentos, um
significado. Significar, como observa Sartre processo para o qual outros contribuem; e d)
(1972), “é indicar outra coisa, indicá-la de tal outros dirigem o indivíduo para os legitimado-
forma que desenvolvendo a significação se vá res oficiais”. Neste sentido, que podemos dizer
encontrar precisamente o significado”. A enfer- que a consciência de sentir-se mal é sempre
midade, neste sentido, constitui-se em uma uma “consciência em situação”, pois está rela-
interpretação e em um julgamento sobre a cionada com projetos e contextos existenciais
matéria bruta das impressões sensíveis produzi- específicos. Assim, para uma compreensão
das pelo corpo. Enfermidade não é um fato, adequada da enfermidade, deve-se levar em
mas significação. conta tanto seus aspectos subjetivos, o que
A noção de significado, como enfatiza a determina um mundo de diferenças interpretati-
filosofia hermenêutica, é sempre “significado vas, como sues aspectos intersubjetivos, o que
para” alguém. O componente subjetivo da a torna “objetiva” para os outros.
enfermidade, como visto, está fundamentado no Ao afirmarmos o caráter intersubjetivo da
ato individual de perceber uma experiência enfermidade, pressupomos a existência de
interior como problemática. Contudo, a cons- certos parâmetros ou quadros de referência
trução do significado desta experiência não graças aos quais é construído o significado da
ocorre como um processo isolado. A consciência experiência da enfermidade. Estes quadros de
não constitui seus objetos ex nihilo, pela referência são internalizados pelos indivíduos
autonomia da interioridade subjetiva, mas a através de processos concretos de interação
partir de processos interpretativos adquiridos na social. Neste aspecto, os padrões culturais que
vida cotidiana. A enfermidade é subjetivamente as pessoas utilizam para interpretar um dado
dotada de sentido, na medida em que é afirma- episódio de doença são criações sociais, ou seja,
da como real para os membros ordinários da são formados a partir de processos de definição
sociedade. É real porque é justamente originada e interpretação construídos intersubjetivamente.
no mundo do senso comum. Como observa Só dentro das coordenadas estabelecidas pelo
Schutz (1973), o mundo da vida cotidiana mundo intersubjetivo do senso comum é que a
funciona como um código de referência para os experiência da enfermidade é admitida como
indivíduos. É importante lembrar que todo facticidade evidente por si mesma e compulsó-
significado só é lógico para o indivíduo porque ria.
é socioculturalmente legitimado pelos seus
semelhantes.
A produção dos significados é resultante não AGRADECIMENTOS
de um instante pontual do “eu”, mas de toda
uma história do “eu”. Uma história que, neces- Este trabalho não teria sido possível sem a
sariamente, constitui-se por processos de inte- importante colaboração da Dra. Miriam Rabelo
ração e comunicação com os outros. No dizer e companheiros do CESAME, aos quais agrade-
de Husserl, a consciência é, para um indivíduo, ço.
a possibilidade que tem o sujeito de constituir-
se em objeto para si mesmo e para os demais.
O uso de vocabulários e técnicas apropriadas
de representação legitima socialmente o significado
que o indivíduo atribui à sua experiência afliti-
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