A LINGUAGEM DO ADVOGADO
Theotonio Negrão
Prezado Prof. Dr. Calixto Antônio, prezado Prof. Dr. Sidnei Beneti, meus alunos.
Confesso que estou um pouco preocupado por ter que falar coisas a vocês,
porque não tenho o hábito de fazer palestras. Sou um advogado militante há
quarenta e tantos anos, tenho o hábito de falar aos juízes nos Tribunais, mas não
o de falar aos estudantes de Direito.
Quanto aos juízes, tenho a dizer o seguinte: nem sei mesmo se sou bem ouvido,
porque geralmente, depois que faço minhas sustentações, os juízes “acordam”.
Leio sempre, no final das decisões coletivas, que os juízes “acordam”... A
impressão é a de que não me devem ouvir com muito prazer. Peço, por isso, a
indulgência de vocês, e esta indulgência deve ser revestida de um certo tom
sentimental, porque, voltando a São Bernardo do Campo e encontrando aqui meu
querido Prof. Dr. Calixto Antônio, sou levado ao passado, a 1961, quando tive a
honra de presidir aqui um Congresso de Associações de Advogados.Tivemos,
naquela oportunidade, 15 entidades de classe que resolveram salvar o país; só
que não tomaram muito conhecimento de nossa deliberação... mas a verdade é
que fizemos o que estava ao nosso alcance.
Sei por experiência própria, pois tenho ouvido uma porção de palestras, que o
orador nunca se atém ao tema, e as partes mais interessantes são exatamente
aquelas que estão de fora dele. Por isso, peço licença para não falar apenas sobre
a linguagem do advogado. Falarei um pouco mais, também, sobre o estilo do
advogado, sobre a conduta do advogado, que está mais ou menos ligada à
linguagem do advogado, e que talvez seja mais importante que esta.
De que maneira se obtém esse perfeito domínio? A primeira coisa que o advogado
deve pensar é que existem estilos, e, entre eles, o estilo forense; esse estilo
forense é mais ou menos clássico: o advogado não pode se dar ao luxo de usar
expressões coloquiais, assim como na Faculdade de Direito o professor não pode
se dar ao luxo de usar expressões chulas.
O advogado não pode recorrer à gíria, não pode usar expressões menos
adequadas, nem expressões vulgares. A linguagem tem uma certa dignidade e
essa dignidade deve ser atingida pelo advogado, que não deve transigir.
Um saudoso mestre, o Prof. Noé Azevedo, contava que, certa vez, Aristides
Malheiros, que foi seu secretário, levou uma petição para despachar. Quando
Aristides voltou, disse: “Professor, nós vamos ganhar esta causa!” ao que o mestre
perguntou: “Por quê?” . A resposta de Aristides foi: “porque o juiz disse: Que
beleza de trabalho de datilografia!”.
Realmente, devo acrescentar que ganharam. E por quê? Porque acontece que a
limpeza do trabalho dá impressão de honestidade, de seriedade, de vontade de
colaborar com a justiça.
Eu me permito dar algumas sugestões. Sei que vocês talvez ainda não estejam
advogando, mas estarão, dentro em breve: então, pensem nisto: há algumas
coisas que são importantes, no trabalho forense, a começar pelo modo de
datilografar.
Tenho um amigo a quem prezo muito, mas não consigo ler o que ele escreve,
porque os períodos dele têm três páginas. Não consigo ler períodos de três
páginas: fico aflito, desesperado, sinto-me sufocado.
Em todo caso, estou dando minha experiência, estou lhes dizendo isto: por favor,
tenham pena do juiz, porque, assim, vocês estarão ajudando seu cliente.
Tenho uma outra experiência com um livro, um best seller que me foi dado por um
saudoso e grande amigo. Esse livro se chama Anatomia do Crime e principia com
a seguinte frase: “O telefone tocou”. Comecei a ler o livro, esperando que
atendessem ao telefone. Pois, olhem, até o quinto capítulo o cidadão não tinha
atendido ao telefone... Não consegui ler o livro. Desisti.
Vamos ver, portanto, quais as coisas que poderiam facilitar a vida do juiz. Uma
delas é a clareza. E a clareza é absolutamente necessária. Escrevam com a maior
clareza possível, voltem, refaçam a frase, mas sejam claros. Principalmente, não
se preocupem muito com a repetição de palavras. Em estilística, existe a idéia de
trocarem-se as palavras por sinônimos, para que se evitem as repetições. A
linguagem da lei, a linguagem do jurista, porém, não é avessa a repetições. Se eu
falo “posse”, tenho de falar “posse”, porque é um termo técnico; se eu falo
“servidão”, tenho que continuar falando “servidão”, porque é um termo técnico.
Devo evitar, inclusive, mudar as palavras porque facilito ao juiz acompanhar o meu
raciocínio, usando sempre as mesmas palavras.
O Código de Processo Civil, que é um modelo de boa linguagem, feito pelo Prof.
Alfredo Buzaid, teve uma correção sintomática, em matéria de agravo de
instrumento. Fora aprovada uma modificação no Código de Processo, quando
entrou em vigor; na parte de agravo de instrumento, ela dizia “o recorrente” e “o
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Por quê? Porque aquele era o sistema da lei, que se manteve coerente. Isso é
importante num arrazoado. Um arrazoado deve ter uma estrutura arquitetônica.
Gosto de dizer isto, porque sinto, pelo menos no trabalho que faço, que procuro
fazê-lo como se fosse uma obra de arquitetura. Ele tem início, tem meio e tem fim;
ele se desdobra em idéias, eu passo de uma idéia para outra e, sempre que o
encerro, faço um resumo da idéia, porque tenho a impressão de que o juiz, e peço
licença para dizê-lo, ou está muito atarefado, ou não percebeu exatamente onde
quero chegar. Resumo minha idéia e meu argumento, e é só ali que me repito,
porque acho que o advogado não tem o direito de repetir; se ele disse, falou. Só
deve se repetir quando resume seu argumento, a cada vez que o encerra.
E dêem primeiro a exposição dos fatos, para depois dar a exposição do direito. Há
advogados que escrevem, escrevem, e até a terceira ou quarta página e, às
vezes, até o fim, não se fica sabendo se se trata de uma ação de despejo, ou se é
um compromisso de compra e venda, ou mesmo uma separação judicial litigiosa...
O leitor fica pensando: “acho que é uma ação de despejo; ou então, não, não,
deve ser uma ação possessória”... e nunca se fica sabendo exatamente.
Por isso, não deixem de expor os fatos inicialmente. É importante, e vou dizer por
que: o advogado tem de separar argumentos jurídicos de argumentos
extrajurídicos ou parajurídicos, argumentos que não têm relação direta com a tese
jurídica, mas que são importantes, que fazem aquilo que no rádio se chama
moldura, dão uma idéia simpática, trazem simpatia para a causa.
Agora, falo de clareza. Já disse que as palavras podem ser repetidas, e devem
ser repetidas, para maior clareza. Por exemplo, o adjetivo “seu”; o “seu” tem de
ser relacionado com o substantivo mais próximo. Agora, “este” e “aquele” são
problema: “O juiz tem de dar atenção a “este” (o autor) . E qual é “aquele”? O réu.
É muito comum o advogado se enganar e não saber dizer se é o autor ou o réu,
principalmente porque, às vezes, se sente meio réu, quando é, na verdade autor...
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Expressões vulgares absolutamente não podem ser utilizadas. A Justiça tem a sua
dignidade.
Agora, uma coisa que não parece tão contraindicada, mas que às vezes acontece:
é o ser claro demais. Vocês devem evitar o óbvio, aquilo que se chama de óbvio
ululante, aquilo que todos percebem, acredito que “até o juiz perceberá”... Não há
necessidade de ser tão claro. Essas coisas acontecem até no STF. Um dos
maiores juizes do STF cunhou a seguinte ementa para um acórdão: “Ao início do
processo, cada parte alega que tem razão; mas só no fim do processo é que o
Tribunal dará razão a quem efetivamente a tem” (RTJ 103/465). Ora, acho que
não preciso dizer mais nada, não é? É duro ter que chegar até o Supremo para
ouvir isso!
Eu diria que o advogado deve ter, quanto possível, um estilo ático. Cada palavra
deve ser necessária, não deve haver palavras sobrando, nem faltando. E quando
digo estilo ático, sinto-me à vontade, porque já uma vez disse que o Prof. Beneti
tem “um estilo ático” , lembra-se Professor?
O livro Como se Faz uma Tese, de Umberto Ecco, autor de O Nome da Rosa, dá
uma porção de conselhos que são úteis até para o advogado, e dá também alguns
conselhos úteis apenas àqueles que vão fazer uma tese na Faculdade de Direito.
Por exemplo: diz que as reticências não devem ser usadas. Claro, um trabalho
científico deve ser um trabalho firme, e não deve ter insinuações. Mas acho que o
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Existe outra forma de grifar que nem todos utilizam. Se quero chamar a atenção
para determinado argumento, uso um texto latino, ou cito em francês, ou mesmo
em inglês, porque aí o juiz, que está meio distraído lendo, fica um pouco
assustado com meu latim ou meu francês, e aquilo chama a atenção fortemente. É
outra forma de grifar.
Agora, chego a um ponto que seria realmente fora do nosso tema, porque não se
refere exatamente à linguagem do advogado, mas à sua conduta. É a conduta do
advogado que inspira a sua linguagem. A conduta é muito importante, antes
mesmo que ele se torne advogado da causa.
Quando pode o advogado aceitar a causa e quando não deve aceitá-la? Há duas
posições que devem ser examinadas: a primeira é a do advogado do autor; a
segunda é a do defensor do réu. Num processo penal, todo réu tem direito à
defesa e, portanto, o advogado que defende o réu num processo criminal está
inteiramente à vontade para aceitar a causa.
Há causas que têm base moral, embora não tenham base legal, e um dos méritos
do advogado é exatamente fazer com que o rigor dos textos acabe sendo elidido
por um sentimento de piedade e justiça; isso é muito importante.
O advogado que é procurado por um cidadão que lhe diz: “Olhe, eu quero que o
senhor faça isso”, pode responder: “o que o senhor pretende é considerado ilegal,
mas, dentro de meu sentimento de justiça, o senhor tem razão e estará mais do
que justificado para aceitar a causa.
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Sabemos que nem tudo o que é lícito é honesto. O advogado deve recusar uma
causa que considere desonesta: mas sabemos que muita coisa que é honesta não
é reconhecida pela justiça ou, mais propriamente, pelo direito. E aí está a beleza
da profissão, porque o advogado esclarece o juiz, que poderá, assim, fazer justiça.
Tive na minha vida como advogado algumas alegrias, por fazer prevalecer aquilo
que era o verdadeiro espírito da lei, acima do texto frio da lei. Acho que esta é uma
das alegrias do advogado. E não digo isso por glória, estou dizendo para contar
uma experiência a vocês, porque todos podem e devem fazer isso. Esta é a
beleza de nossa profissão.
Vamos dar um exemplo próximo. Dizia-se que ia ser promulgada uma lei
suspendendo as ações de despejo. Muito bem: está para ser executado um
despejo; qual é a conduta do advogado, sabendo que a lei está para ser
aprovada? Deve permitir que seu cliente seja despejado? Não; deve usar de todos
os meios protelatórios válidos para evitar que o cliente seja despejado. Direi
sinceramente, pois não quero ser hipócrita: eu usaria de todos os meios para que
meu cliente não fosse despejado, e por isso não posso aconselhar que vocês
ajam de outra forma.
fossem julgados sob a vigência da Emenda Regimental 2 do STF. Foi o que fiz. A
lei me permitia, o Código de Processo me permitia e eu o fiz tranqüilamente.
Felizmente, tudo deu certo, porque, já na vigência dessa emenda, ganhamos por 3
a 2.
O advogado deve expor os fatos com honestidade total. Essa honestidade total
começa, inclusive pela obrigação de citar as folhas dos autos. O advogado
cuidadoso de verdade jamais menciona fato que se encontra nos autos sem
imediatamente dar a contraprova de que ele se acha a folhas tais. Mesmo porque
o advogado da parte contrária pode ser mais minucioso do que ele e citar um
documento oposto que está em outra folha e que o juiz vai ler, porque este
advogado citou a folha, e não vai ler o documento que o primeiro advogado citou,
sem dizer onde podia ser localizado...
Menos ainda se pode entender que o advogado faça alterações em citações, para
atender às necessidades da argumentação, isto é, que “colabore” com o autor
citado, ou modifique um pouco o português, para que a frase fique melhor. Não;
ele tem de citar exatamente como está: quando omitir, tem de colocar reticências;
se, no final, a citação ainda não estiver completa; será bom que coloque um “etc”,
para mostrar ao juiz que, se lhe interessar ler a citação na íntegra, ainda
encontrará aí algo mais. Isto tudo, para não parecer que o advogado está faltando
com a verdade, porque a coisa mais importante que há para o advogado é a sua
credibilidade. O juiz tem de acreditar no advogado. Isto é importante, porque o
advogado, na realidade, não se pertence; ele pertence a todos os seus clientes. O
advogado que às vezes faz uma citação pouco correta num processo, com a idéia
de favorecer seu cliente, corre o risco de prejudicar outro cliente mais adiante,
porque o juiz vai pensar; “Este advogado eu ponho sob reserva, porque não
acredito nas citações que ele faz”.
Outro problema de conduta é o respeito aos juízes, aos colegas e aos clientes.
Quanto ao respeito aos juízes, existe uma disposição do Estatuto da Ordem dos
Advogados que situa a questão de maneira precisa, tanto para os advogados
quanto para os magistrados: o advogado deve respeito ao juiz, mas não deve
subserviência; e nenhum temor de desagradar o juiz deve reter o advogado no
exercício de sua profissão. Se proceder assim, se tiver receio do juiz ou das
conseqüências, estará prevaricando. O advogado não pode fazer isso. Mas tem
de respeitar o juiz.
E esse respeito começa pela forma de tratamento: Meritíssimo juiz. Começa aí,
inclusive por não fazer menções pessoais ao juiz. Não é permitido fazer menção
pessoal ao juiz. Na realidade, nem mesmo é recomendável que se diga: “o MM.
juiz decidiu assim”, mas: “A respeitável sentença apelada julgou” etc. A atividade
do juiz é impessoal, ele é apenas o intérprete da lei. O juiz não está em causa.
Conto um caso pessoal meu, para me penitenciar, de público: um colega, cujo pai
falecera, enquanto seu prazo para falar estava correndo, me perguntou se eu
concordaria com uma dilação do prazo. Pensei duas vezes: “Acho que vou dizer
não”, mas, de qualquer modo, indaguei de outro colega mais idoso como fazer, e
ele me disse: “Você não pode se negar, você não está advogando contra o colega,
está advogando contra a parte contrária”. Quero que vocês aprendam isto: que
estão advogando contra a parte contrária, e aí devem ser intransigentes; mas
contra o colega, não. O respeito ao colega, a deferência, isto é fundamental para o
advogado.
Lembro-me que certa vez um velho advogado, que eu muito respeitei, ouviu de
outro a seguinte observação: “O seu cliente não presta”. Ao que ele respondeu:
“Olha, eu não tenho nada com isso, isso é problema de meu cliente, eu só
defendo os direitos dele”.
Eu me lembro de uma vez, um grande juiz, que fora meu colega de turma, me
dizer, depois de minha sustentação oral: “Você sabe por que perdeu esta questão?
Porque você sustentou sem nenhuma convicção”. Até ali, ele tinha razão. O que
não esperava era a resposta que lhe dei: “Eu sustentei sem convicção porque
sabia que neste Tribunal ia perder, mas vou ganhar no Supremo Tribunal”. E,
realmente, ganhei.
Creio que examinei, mais ou menos, os aspectos importantes do tema que me foi
proposto, até com alguma digressão além daquilo que me foi proposto.