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Sobre o olhar –

86 um exercício de
ARTIGO apresentação e
discussão do
conhecimento
produzido sobre os
grafismos rupes-
tres da região de
Diamantina,
Minas Gerais.
Luiza Câmpera
Estudante de graduação em Ciências Sociais, FAFICH-UFMG e pesquisadora colabora-
dora do Setor de Arqueologia do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG.
Rua Gustavo da Silveira, 1035, Santa Inês, CEP 31080-010. Belo Horizonte – MG.
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“Tudo é dito por um observador”


(Maturana, H.R. 2002:53)

resumo
A análise de pinturas rupestres envolve abstract
um aspecto importante: a construção de um Analysis of rock art involves an impor-
olhar especializado, desenvolvido durante a tant aspect: the construction of an expert
pesquisa, que permite a identificação das view, developed during the research, which
características dos grafismos e painéis. Este allows the identification of aspects of figures
artigo aborda o processo cognitivo e meto- and panels. This article intends to discuss
dológico da pesquisa com as pinturas ru- the cognitive process and methodological
pestres de Diamantina. Destacarei alguns choices applied in the study of the painted
preceitos teóricos sobre o olhar científico e shelters of Diamantina region (Central Bra-
a percepção dos observadores em relação zil). I will highlight some theoretical con-
às pinturas, apresentando alguns exemplos cepts about the view and perception of rese-
observados nos trabalhos com os grafismos. archers of rock art, and some examples
Pretendo tornar público os métodos escolhi- observed in our work with graphisms. I in-
dos e as dificuldades envolvidas durante o tend to make public the methods chosen,
levantamento, registro e análise dos grafis- the difficulties and problems involved in the
mos rupestres. recording and analyses of rock art.

Palavras chavA: Pinturas rupestres Key-words: rock art – view - Diamanti-


- olhar - Diamantina. na

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Introdução Arqueologia da UFMG e desde então noven-


ta e oito abrigos quartzíticos pintados foram
Os abrigos quartzíticos e os grafismos encontrados nas prospecções, realizadas
rupestres analisados neste artigo estão inse- em diversas áreas da região estudada. Oito
ridos em terras diamantinenses do Planalto deles2, localizados em Diamantina e Gou-
Meridional da Serra do Espinhaço, situadas veia, tiveram os seus grafismos rupestres
na região centro-norte de Minas Gerais. A registrados através da técnica de reprodu-
Serra do Espinhaço, divisora das bacias do rio São ção em tamanho natural, denominada “cal-
Francisco, Jequitinhonha e Doce é uma das maiores que”, por vezes integral, por vezes amostral.
cordilheiras do país, agrupando uma ampla Estes sítios foram escolhidos considerando
extensão de serras, montes e vales dos quais a densidade de informações que apresenta-
fazem parte a Serra do Cipó (onde está inse- vam: o número de figuras, intensidade de
rido o Grande Abrigo de Santana do Riacho) sobreposições, variedade temática e estilís-
e Grão Mogol,
próximos a Ser-
ra do Cabral e o
Planalto Cársti-
co de Lagoa
Santa. Tais regi-
ões constituem
trechos impor-
tantes para o es-
tudo do contexto
arqueológico de
Diamantina,
pois em relação
aos grafismos,
trata-se de uma
área rica em
Figura 1: Localização do município de Diamantina, área da pesquisa. Fonte : Google Maps e
painéis densa- Wikipédia, a enciclopédia livre.
mente pintados,
que forneceram
informações estilísticas fundamentais para tica, esta última avaliada quase que intuiti-
o entendimento do comportamento gráfico vamente, uma vez que a análise da docu-
das pinturas aqui abordadas. A região estu- mentação dos grafismos que permitiria a
dada abrange os municípios de Diamantina, definição de conjuntos estilísticos para a
Serro, Datas e Gouveia. realização da análise cronoestilística.3 Esta
As pesquisas arqueológicas em Diaman- analise nos permitiu perceber diferentes
tina foram iniciadas em 20041 pelo Setor de
iniciou as pesquisas sistemáticas da região.
1-Antes das pesquisas empreendidas pelo Setor de Arqueo-
2-Em dois dos oito sítios: a Lapinha das Emas e o Moisés,
logia da UFMG, a região foi visitada na década de 70 por
os calques foram realizados no contexto do projeto do Cen-
pesquisadores do IAB responsáveis pela identificação de
tro Universitário Newton Paiva, ainda em 2004.
alguns sítios de pintura rupestre. Prospecções oportunísticas
foram também empreendidas na mesma época pela equipe 3-Estudo das relações de sobreposição entre conjuntos grá-
do próprio Setor. Entre 2003 e 2004, um pequeno projeto de ficos, que auxilia a definição de mudanças estilísticas no
iniciação científica do Centro Universitário Newton Paiva tempo.

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momentos de pintura nos painéis e modos mento do registro, sempre levando em con-
distintos de grafar nos suportes de quartzito sideração a preservação das pinturas.
dos abrigos rochosos. Além disso, minha proposta consiste em
Os estudos dos grafismos rupestres ge- ressaltar a construção de um “olhar” atento
ralmente enfocam aspectos interpretativos, e especializado que se desenvolve durante
descritivos, arqueométricos (em relação á as análises das pinturas, sendo que este
análise dos pigmentos das pinturas) e clas- olhar pode ser o causador, bem como a so-
sificatórios. Em tais perspectivas de análise lução, de uma série de problemas de análise
são exercidas respectivamente: a tentativa dos grafismos.
de se aproximar dos significados das figuras Assim, o objetivo deste artigo é a aborda-
através da interpretação de suas formas e, gem do processo cognitivo e metodológico
por vezes, dos conjuntos que as contém; a desenvolvido no estudo dos grafismos ru-
descrição dos sítios e dos estados de conser- pestres, tomando as experiências e os olha-
vação das pinturas; a busca pela composi- res dos pesquisadores envolvidos com a
ção das tintas e, principalmente, a adequa- pesquisa arqueológica em Diamantina, as-
ção dos grafismos pesquisados ás categorias sim como alguns preceitos teóricos sobre o
classificatórias, como as tradições arqueo- olhar científico e a percepção dos observa-
lógicas. Estes enfoques são freqüentes nas dores. Para tanto, apresentarei alguns
publicações, mas ficam à margem, muitas exemplos observados durante a etapa de
vezes, as metodologias empregadas (como o conferência das pinturas, a fim de analisar
autor chegou à determinada interpretação, as dificuldades dos processos de registro e
como os grafismos foram analisados, quan- redução das mesmas.
tas vezes o pesquisador foi ao sítio, se foram Os sítios arqueológicos de pintura ru-
realizadas técnicas de calque, o porquê da pestre que serão abordados neste artigo
escolha de determinados painéis para o cal- são: Lapa do Boi, Lapa do Boi Leste, Lapa
que, entre outras questões). do Galheiros, Lapa do Voador Sul, Lapa do
Refletindo sobre a necessidade de tornar Voador Norte, Lapa do Moisés, Lapa do
público não só os resultados de uma pesqui- Moisés Leste e Lapinha das Emas. Com ex-
sa, mas também os processos metodológicos ceção destes três últimos4, todos eles tive-
que a constrói, o presente artigo pretende ram as suas pinturas rupestres calcadas,
apresentar e discutir alguns aspectos da me- digitalizadas e conferidas, o que possibili-
todologia do trabalho, em campo e em labo- tou um conhecimento intenso e sistemati-
ratório, com as pinturas rupestres. Neste zado destas figuras e a observação detalha-
sentido são aqui abordadas as etapas de cal- da da composição dos seus traços e formas.
que e conferência, destacando a importância
desta última para um conhecimento mais A trajetória da pesquisa com os
detalhado dos painéis a serem analisados. grafismos rupestres de Diaman-
Em contrapartida, não pretendo aqui evi- tina, MG.
denciar qual a melhor técnica para o registro A fim de elucidar sobre os processos
dos grafismos e sim refletir sobre as possibi- analíticos envolvidos na pesquisa com as
lidades de observação que cada uma delas pinturas rupestres de Diamantina e refletir
proporciona ao pesquisador. A “melhor téc- 4-A conferência nos sítios Lapinha das Emas, Lapa do
nica” está relacionada à necessidade e aos Moisés e Lapa do Moisés Leste foi adiada uma vez que os
outros sítios nos exigiram mais tempo nas correções que o
objetivos que cada arqueólogo possui no mo- esperado para esta etapa de campo.

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sobre as metodologias utilizadas, serão guras em temas foi realizada em cada um


pontuados a seguir os levantamentos siste- dos sítios calcados considerando os dife-
máticos intensivos dos grafismos e o que rentes momentos cronoestilísticos.
possibilitaram: 7) Uma análise tipológica foi esboçada a
1) A análise detalhada das relações de partir do reconhecimento de atributos re-
sobreposição presentes entre os grafismos. correntes em cada classe temática.
2) O delineamento de diferentes estilos 8) Realização da etapa de conferência
de pintura, possibilitando a construção de dos calques, que revelou novas figuras e
um quadro cronoestilístico dos grafismos formas que antes não foram percebidas e
atribuíveis à Tradição Planalto em Dia- confirmou algumas características de com-
mantina. Os conjuntos foram definidos em posição e fluidez diagnosticadas preterita-
função de distinções estilísticas como o ta- mente.
manho e composição dos grafismos, cores Os levantamentos sistemáticos das pin-
das tintas, contornos e preenchimentos, turas dos sítios rupestres de Diamantina
densidade de figuras nos painéis, intensi- disponibilizaram uma amostra razoável
dade de sobreposições e localização nos para o conhecimento sistematizado da va-
suportes; riabilidade temática e estilística dos grafis-
3) Observar a composição gráfica das mos daquela região. Assim, o conhecimen-
pinturas, ou seja, como os traços foram ar- to adquirido sobre as pinturas rupestres de
ranjados para desenhar as figuras; Diamantina foi responsável por um ama-
4) Perceber características de comporta- durecimento dos pesquisadores perante os
mento dos autores dos grafismos rupestres painéis, influenciando diretamente no de-
de Diamantina. Entre elas destacam-se senvolvimento de um modo de olhar e re-
comportamentos vinculados à construção conhecer nas pinturas os aspectos gráficos
do painel promovendo interação entre gra- que definem os signos formadores de uma
fismos preexistentes. “gramática” (Ribeiro 2006:24, Isnardis,
5) A realização da dissertação de mes- 2009:118). Neste sentido, os signos reme-
trado de Vanessa Linke (2008) que desen- tem ao conceito de Ferdinand de Saussure
volveu a análise da paisagem dos sítios de (1970), que evoca a complementaridade en-
pintura rupestre,com o objetivo de reco- tre significante e significado. Os grafismos
nhecer padrões de escolha entre os sítios e são assim considerados como conjuntos de
suportes, para cada um dos conjuntos esti- signos e as análises se sobrepujam nos sig-
lísticos definidos na pesquisa. nificantes e não nos significados, pois estes
6) Realização da análise temática dos últimos são inacessíveis à nossa percepção
painéis calcados no âmbito de uma bolsa de pesquisadores.
de Iniciação Científica (PROBIC/FAPE-
MIG) que priorizou o estudo das figuras Sobre a metodologia aplicada
individualmente. Este estudo buscou clas- nos grafismos: calque, fotogra-
sificar cada unidade que pudesse ser reco- fia e digitalizações
nhecida figurativamente enquanto um Os abrigos aqui abordados possuem ex-
tema. As figuras foram então contadas den- tensa variabilidade de figuras pintadas, al-
tro de cada categoria temática definida em guns com menor densidade de pinturas
cada grupo cronoestilístico e em cada sítio (menos de 50), mas outros apresentando
analisado. Ou seja, a categorização das fi- centenas de figuras, muitas vezes sobre-

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postas e cobrindo os belos paredões quart- das, além das pinturas ou gravuras6, infor-
zíticos dos abrigos. A variabilidade é obser- mações relevantes para o entendimento do
vada não só na quantidade de grafismos, contexto natural do painel como as marca-
mas também nos padrões estilísticos e te- ções do suporte, fendas, diáclases, casas de
máticos internos à Tradição Planalto. bicho, escorrimentos, entre outros. Os gra-
A abundância de sítios rupestres nessa fismos modernos como, por exemplo, as
região nos levou a demarcar uma amostra pichações, também são copiados uma vez
para a realização das análises sistemáticas. que fazem parte do contexto histórico-cul-
Na Lapa do Moisés Leste e na Lapinha das tural de uso do sítio e de seus suportes.
Emas a reprodução foi feita de maneira in- O material utilizado para a cópia é basi-
tegral, devido ao tamanho reduzido dos camente o plástico, as canetas, algodão e
painéis e dos sítios. Os outros seis foram álcool para apagar a tinta da caneta quando
reproduzidos posteriormente em conjunto for preciso. Este plástico é colocado com
com outras intervenções como sondagens, cuidado sobre o painel rupestre, utilizando
escavações e coletas de superfície. Neles, galhos e gravetos para apoiá-lo nas reent-
alguns painéis foram selecionados para a râncias da parede e algumas fitas adesivas,
aplicação da técnica do calque, de acordo colocadas sempre em locais onde não há
com os critérios considerados principais grafismos. Uma ressalva para a escolha do
para a pesquisa como o número de figuras, painel a ser calcado é ter a certeza que ele
intensidade de sobreposições, variedade te- não corre risco de desplaquetamento e se a
mática e estilística. rocha não está intemperizada o bastante
O Setor de Arqueologia da UFMG tem para sofrer descamações, evitando que o
utilizado a técnica do calque desde a déca- plástico ao entrar em contato com o suporte
da de 70, trazida para o Brasil pela missão não contribua com a degradação do painel.
arqueológica franco-brasileira e aplicada O procedimento do calque possibilita a
nos principais sítios de pinturas rupestres identificação dos contornos das figuras, di-
estudados pelo Setor, primeiramente nos reção dos traços e detalhes de preenchi-
sítios rupestres de Lagoa Santa e alguns mentos, o que na fotografia muitas vezes
importantes sítios do Vale do Peruaçu e no não é possível, por mais avançada que seja
Grande Abrigo de Santana do Riacho. O re- a qualidade da imagem. Assim, no que tan-
gistro dessas pinturas através do calque ge a execução gráfica das figuras, o calque
possibilitou a análise sistemática desses permite um conhecimento detalhado das
grafismos e o conhecimento das principais mesmas. Esta técnica dispõe ao pesquisa-
características estilísticas deste tipo de ves- dor o contato direto com o painel, a obser-
tígio em Minas Gerais. vação intensa da reação da tinta no suporte
O decalque, ou calque, como ficou mais (o quão incrustada está na rocha, a textura
conhecido, consiste numa cópia na escala das tintas, pátina). No momento do calque
1/1 do painel grafado, geralmente utilizan- a sensibilidade do pesquisador é aguçada,
do grandes porções de plástico transparen- uma vez que tem que se aproximar dos ges-
te de espessura mais grossa e resistente5, tos e posições realizados na construção dos
onde é feita a reprodução das figuras com grafismos. A interação com as pinturas ru-
canetas permanentes coloridas. São copia- 6-A reprodução de gravuras através da técnica do calque
é realizada tal como com pinturas, porém contorna-se
5-Normalmente utilizamos plástico volcon 10. as linhas de picoteamentos e fissuras presentes no painel
gravado que se pretende copiar.

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pestres, a repetição dos traços, as sensa- pintados e de todo o contexto do sítio é in-
ções de proximidade com o suporte e com dispensável para o trabalho posterior com
demais características do sítio sensibilizam as imagens em laboratório, sendo que o
os sentidos do pesquisador, favorecendo a ideal é utilizar as duas metodologias em
discussão sobre as pessoas que grafaram conjunto. Entretanto, o calque não é subs-
os suportes rochosos. Enquanto resultado tituível pela fotografia, pois por melhor que
prático, o contato direto com os grafismos seja a máquina fotográfica, há casos em que
através do calque pode evitar erros clássi- não é possível captar com nitidez os traços
cos como confundir com pinturas as man- das figuras e as relações de sobreposição
chas na parede, casas de bichos e exuda- ficam duvidosas devido a alguns fatores
ções. como a iluminação sobre os painéis em de-
Todos esses fatores podem parecer irre- terminadas horas do dia e distorções co-
levantes a primeira vista, levando a pensar muns nas fotografias que podem também
que as fotografias ou os “scanners de pare- comprometer a análise das imagens. Con-
de” consistem em processos mais ágeis e tudo, a realização da cobertura fotográfica
práticos para registrar as pinturas. Entre- dos grafismos é um recurso rápido, que
tanto, o procedimento do calque não é ape- num momento de prospecções, por exem-
nas um registro, e sim o momento de co- plo, é imprescindível, pois há sempre a pos-
nhecer o painel a fundo, utilizando do sibilidade de ocorrer alguma intervenção
maior número de informações sensoriais e natural ou antrópica nos painéis e muitas
coletando dados essenciais para o estudo informações podem ser perdidas.
posterior em laboratório, como os elemen- Tanto a fotografia como o calque são
tos das relações de sobreposição entre os embebidos de interpretações daqueles que
grafismos e outras possíveis informações os realizam. No caso da fotografia é o mo-
de cronologia observadas no painel e na in- mento em que o fotógrafo faz escolhas, se-
teração das pinturas com o suporte. leciona as informações que quer captar,
Além da técnica do calque, os outros sí- elege o que vai centralizar na foto e eviden-
tios de pinturas rupestres tiveram seus pai- ciar no registro. Ou seja, é o olhar do fotó-
néis registrados através das fotografias, grafo que guia o foco da fotografia. O cal-
croquis e fichas de descrição (também apli- que mesmo realizado em conjunto, com as
cados aos calcados). Entretanto a escolha pessoas envolvidas discutindo sobre o que
dos oito sítios para a realização da técnica estão fazendo, é construído a partir de in-
do calque está relacionada aos objetivos do terpretações individuais daqueles que co-
projeto naquele momento, de construção piam cada figura, cada traço. Este é um
de uma cronologia relativa e conhecimento exemplo do que explicita Ian Hodder (1999)
do comportamento estilístico das figuras. ao evocar a multivocalidade da arqueolo-
No caso do abrigo do Voador, por exemplo, gia, em que pessoas diferentes podem ver
alguns painéis não se encontravam tão ní- relações diferentes nos dados, que são vis-
tidos como outros e a fotografia não era ca- tos através dos pré - julgamentos, das histó-
paz de captar as informações que precisá- rias de interações, domínio cognitivo refe-
vamos. rente a cada observador no procedimento
Assim, é importante ressaltar que mes- da pesquisa arqueológica. Ou seja, os dados
mo realizando o calque dos grafismos, a não são adquiridos para depois serem in-
cobertura fotográfica ampla dos painéis terpretados, pois todo o processo já é cons-

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trução de conhecimento, baseado na histó- vés da digitalização e vetorização dos cal-


ria de vida das pessoas que estão envolvidas ques foi possível trabalhar com camadas de
direta ou indiretamente na pesquisa. Por figuras, separando-as em conjuntos com
isso é indispensável para o trabalho em la- características estilísticas semelhantes. Em
boratório que se anote o maior numero de relação á análise da composição gráfica das
informações sobre o painel no próprio cal- pinturas, o arquivo vetorizado permitiu o
que, como as legendas, marcações de dis- reconhecimento de cada traço, o que auxi-
tancias entre os painéis, cores, relações de liou na identificação dos atributos que for-
sobreposição entre as figuras, linhas de su- mam cada figura e no entendimento das
porte, casas de bichos, manchas, exuda- morfologias e temas presentes no painel,
ções, entre outros. As subjetividades preci- além de minúcias nos contornos e preen-
sam estar expressas para que os dados chimentos, posições e relações de cronolo-
científicos sejam conscientes e válidos. gia. O estudo desses aspectos possibilitou a
Em laboratório o processo de trabalho construção do quadro cronoestilístico dos
com os grafismos rupestres, depois dos le- grafismos diamantinenses, levando em
vantamentos de campo, consistiu em foto- consideração principalmente a análise das
grafar os plásticos dos calques numa super- relações de sobreposição e das afinidades
fície branca para que a cópia se tornasse entre as tintas.
visível. Digitalizamos tais fotografias trans- É importante salientar aqui que a classi-
pondo todas as informações contidas no ficação estilística foi escolhida para os gra-
calque para um software de criação e mani- fismos de Diamantina, não só propondo
pulação de “objetos” vetoriais. Este foi o uma cronologia relativa, mas também por
procedimento adotado para a digitalização considerar que a análise estilística é uma
dos calques das pinturas de Diamantina, opção possível quando não se pretende de-
que gerou arquivos fotográficos digitais nos cifrar os significados das figuras. Acredita-
quais os grafismos foram transformados mos que a análise do estilo nos estudos com
em imagens vetorizadas. Entretanto esta os grafismos, considerando especificidades
etapa pode ser realizada de outras formas, e recorrências espaciais, técnicas e gráfi-
há pesquisadores que utilizam scanners cas, pode nos auxiliar no entendimento so-
para a digitalização e muitas vezes substi- bre aspectos culturais, sociais, econômicos
tuem a vetorização pela cópia à mão. Existe e simbólicos envolvidos em sua produção
também a possibilidade de realizar o cal- (Ribeiro, 2006). Neste viés, ao analisar as
que das pinturas através das fotografias, variações estilísticas formais que ocorrem
utilizando o mesmo software de criação e entre os diversos grafismos, estamos lidan-
manipulação de “objetos” vetoriais. Para do com as escolhas realizadas pelos pinto-
tanto é preciso estabelecer uma escala da res, em meio às alternativas possíveis.
imagem fotografada ao transportá-la para o “O uso do estilo como uma ferramenta
desenho vetorizado. Assim a técnica de digi- teórica na Arqueologia é dessa forma apre-
talização e vetorização dos grafismos per- endido como um elemento ativo, uma vez
mite que os traços das figuras sejam anali- que pode ser considerado como componen-
sados com mais visibilidade e detalhamento, te da ação humana (...). Quanto mais os ar-
o que muitas vezes apenas a fotografia não queólogos explorarem as várias dimensões
permite. do estilo tanto como um componente da
Com a manipulação dos grafismos atra- atividade humana e como a variação da

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cultura material, a relação entre os dois é servando-as muitas horas ao dia e fazendo
cada vez melhor compreendida” (Hegmon, com que elas “povoassem” nossos pensa-
1992:519, trad.livre). mentos constantemente.
Assim, de acordo com a concepção de Entretanto tal conhecimento intenso
estilo como um “modo de fazer”, buscamos dos grafismos também influenciou de for-
nas especificidades e recorrências encon- ma restritiva na maneira de olhar os pai-
tradas nos painéis pintados, através das néis, enviesando a percepção para o conhe-
analises sistemáticas, um comportamento cido e deixando de perceber as
gráfico específico dos autores das pinturas peculiaridades e inovações presentes no
de Diamantina, definido por escolhas em registro gráfico. Dessa forma é preciso es-
relação ao modo de pintar, onde pintar e o tar atento para que o olhar especializado
que pintar nos abrigos. não se torne um olhar “viciado”, que impe-
Os arquivos digitais também possibilita- ça que as exceções também sejam apreen-
ram isolar algumas figuras de modo a estu- didas pelos pesquisadores.
dar os sítios quantitativamente, realizando Assim, considerando os resultados posi-
a análise temática e a análise tipológica dos tivos gerados pelo olhar especializado, a
grafismos. A primeira foi desenvolvida a experiência científica vivenciada durante a
partir da individualização das figuras (re- pesquisa nos proporciona a posição privile-
conhecíveis pelo nosso processo cognitivo giada de observadores de fenômenos espe-
como unidades) e a contabilização destas, a cíficos do mundo em que vivemos, com ob-
fim de buscar recorrências e peculiarida- jetivo de buscar os mecanismos explicativos,
des temáticas na amostra de sítios calcados. repostas às nossas perguntas. Este fato não
Trabalhando ainda com figuras isoladas, significa que a simples vivência do indiví-
foi viável perceber e contabilizar os dife- duo, que não está inserido numa pesquisa
rentes atributos que compõem as figuras, científica, não proporcione também a práti-
como por exemplo, contar as patas repre- ca da observação, mas ela acontece de ma-
sentadas nos zoomorfos ou membros de neira distinta. Esta é uma das diferenças
um antropomorfo, objetivando a identifica- entre o ver e o olhar. Essas duas ações im-
ção de tipos e esboçando assim uma análise plicam posturas diferentes, ou como salien-
tipológica. ta o neurobiólogo Humberto Maturana,
As análises desenvolvidas ao longo do uma “conduta adequada” (Maturana,
trabalho com as pinturas em laboratório e H.R.2002:54), ou seja, um conhecimento
o contato com elas em campo possibilita- adequado para explicar cientificamente um
ram aos pesquisadores um conhecimento determinado mecanismo. Esse mecanismo
intenso dos sítios e dos painéis estudados. é proposto na própria explicação científica,
Este conhecimento foi responsável pela que para Maturana, é uma descrição. Em
construção de um olhar específico para os outras palavras e considerando o olhar
grafismos de Diamantina, nos fazendo per- para os grafismos, para uma pessoa distan-
ceber logo ao retornar aos sítios as caracte- te do conhecimento arqueológico, muitos
rísticas mais marcantes dos painéis, como aspectos das pinturas como as técnicas em-
os temas dominantes, a composição fluida pregadas, os diferentes estilos e temas não
de traços de algumas figuras, os detalhes são percebidos, pois elas apenas vêem as
anatômicos, entre outros. Nossos olhos fo- pinturas, admiram seus elementos estéti-
ram acostumados com aquelas figuras, ob- cos e até arriscam alguma interpretação. Já

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o pesquisador as observa com outra postu- proceder da pesquisa arqueológica fica


ra, através de um olhar um pouco mais re- mais evidente a diferenciação entre o ver e
finado. o olhar, aplicado sobre o material analisa-
“Primeiro, você observa o fenômeno que do. Não só na arqueologia esta forma de
você quer explicar, que constitui a pergunta; olhar é construída como também na antro-
segundo, você tem que fornecer um mecanis- pologia, nas etnografias. É comum para o
mo - não existe explicação científica se você antropólogo chegar à comunidade que pre-
não propuser um mecanismo. Mas isso, iso- tende estudar e na primeira vez não reco-
ladamente, não é suficiente. O que é também nhecer seu “objeto”. As pessoas parecem
necessário fazer para que uma explicação estranhas, os hábitos bizarros, desconheci-
seja uma explicação científica - e aqui é onde dos. Mas o convívio intenso gera o olhar
surge o problema da predição - é que o me- atento, que vai identificando aos poucos as
canismo proposto gere não apenas o fenô- características mais marcantes, plausíveis
meno que você quer explicar, mas outros fe- de uma análise sistemática. E ao final da
nômenos que você também pode observar. pesquisa tudo o que parecia estranho no
Levar em consideração outros fenômenos início começa a fazer sentido, relacionável
observados é um requisito das explicações ás teorias, familiar aos olhos do observador.
científicas porque os cientistas afirmam que
o que eles dizem tem algo a ver com o mun- O retorno aos sítios e a confe-
do em que vivemos, e que os fenômenos que rência: descobrindo novas figu-
eles querem explicar são os fenômenos do ras
mundo” (Maturana, H.R, 2002:55). Durante o trabalho com os arquivos di-
Assim a diferenciação entre o ver e o gitais dos grafismos de Diamantina, em
olhar evoca uma ruptura, que tem a ver não contato com cada figura de maneira fre-
só com a intensidade da ação, mas também qüente, foram surgindo dúvidas em relação
com a “conduta adequada” dos observado- àquelas que pareciam incompletas e não
res. Segundo o antropólogo José Marcio sabíamos ao certo se foram pintadas dessa
Barros: forma ou se perderam a parte faltante devi-
“O ver pode ser afirmado como uma ati- do às deteriorações do tempo. Foram ainda
tude involuntária, marcada pela imposição percebidas falhas nos registros quanto a al-
das coisas sobre o sujeito. (...). Ver não exi- gumas informações importantes que esta-
ge vontade, basta o registro espontâneo da vam ausentes, como informações sobre tin-
superfície visível. O olhar é outra coisa, tas e sobreposições. Ainda a conferência
pressupõe outra postura, desencadeia outra dos levantamentos dos grafismos se fazia
relação, exige outro sujeito. Olhar é ir além necessária para referendar ou corrigir in-
da visão, rumo à realização de algo inten- terpretações a cerca da composição gráfica
cionado. O olhar é próprio daqueles que de algumas figuras e estilos, bem como
investigam que se perguntam. É, pois, algo questões a cerca do delineamento cronoes-
deliberado, que tenciona a relação do sujei- tilístico realizado a partir dos dados em la-
to com o mundo. No olhar, o sujeito pensa boratório. Neste último caso, uma observa-
no ver se acomoda” (Barros, 1997:1). ção sistemática dos sítios, sobretudo de
Nosso trabalho como arqueólogos, pes- porções não calcadas se fez absolutamente
quisadores dos grafismos rupestres, exige necessária e imprescindível.
esta conduta do olhar apurado. Durante o O procedimento de campo da conferên-

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cia das pinturas rupestres calcadas nos oito cada figura, mas com um olhar carregado
sítios arqueológicos de Diamantina em de informações, histórias, pré - julgamen-
2005 se deu em Fevereiro de 2010. Para esta tos.
etapa da pesquisa com os grafismos, foram Maturana considera a centralidade do
traçados anteriormente os seguintes objeti- “background” no entendimento de qual-
vos: verificar as reduções digitalizadas fei- quer coisa que possa ser distinguida como
tas anteriormente e corrigir as figuras co- uma unidade e que o processo de retomada
piadas de maneira equivocada, conferir as do “background” é o que fazemos continu-
cores das tintas e a coerência entre as tin- amente ao identificar alguma coisa. Este
tas, ver as formas de compor as figuras e as processo está diretamente relacionado com
interações entre elas, conferir as semelhan- as diferentes histórias pessoais e individu-
ças e diferenças entre as tintas de temas ais dos observadores, responsável também
que pareciam compor conjuntos gráficos por uma história de interações que vai sen-
bastante diferentes entre si e observar os do construída com o tempo. Dessa forma a
crayons de maneira mais detalhada. história de interações gera as correspon-
Dessa forma, com todo o material redu- dências entre observador e entidade obser-
zido impresso às mãos e algumas dúvidas vada, e essas correspondências não são aci-
na cabeça retornamos aos sítios para reali- dentais, salienta Maturana, trata-se da
zar a conferência. Nesse momento a ques- “ontogenia do indivíduo em seu meio” (Ma-
tão do olhar apurado foi comprovada, uma turana, H.R.2002:62). Em outras palavras,
vez que ao chegar ao primeiro sítio já per- a congruência entre o observador e o seu
cebemos imediatamente alguns erros pre- meio é sempre resultado de sua história.
sentes nos calques digitalizados. Assim, o O raciocínio de Maturana pode ser apli-
olhar especializado para os grafismos dia- cável à pesquisa arqueológica uma vez que
mantinenses nos “familiarizou” às princi- ao analisar um determinado material bus-
pais características de composição das figu- camos nosso “background” para tentar
ras, aos temas dominantes e à dinâmica de identificar atributos preliminares. Para Ho-
organização dos painéis, aspecto que foi o dder (1999:34) esse processo é denominado
diferencial no momento do retorno aos sí- “pré understanding”, ou seja, pré - julga-
tios para a realização da conferência dos mentos que consistem em definições de ter-
calques. mos (séries de tipos), critérios para identi-
“Como não vimos esta figura antes?”, ficar quais fatos são significantes. Ele
nos perguntávamos incessantemente. E a também elucida sobre o conhecimento pré-
resposta: porque não possuíamos ainda um vio e alerta que muitas vezes a pesquisa
olhar aguçado o bastante para compreen- não se desenvolve como o previsto por não
der a dinâmica dos painéis. Este olhar foi sabermos o que procurar. Quando busca-
construído lentamente, com paciência e mos novas formas de procurar encontra-
persistência por pessoas que estavam en- mos o meio pelo qual é possível achar o que
volvidas no trabalho com as pinturas. antes não era visível.
Toda a carga de conhecimento adquiri-
do numa pesquisa científica, que Maturana Os resultados obtidos a partir
denomina de “background” (Maturana, da conferência dos grafismos
H.R.2002:83), fez sentido no momento de rupestres
retornar aos sítios, olhar mais uma vez A etapa de conferência dos sítios rupes-

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tres de Diamantina gerou mudanças nas


análises desenvolvidas (temática e tipológi- deos pintados da Tradição Planalto. Esta
ca) além de outras observações referentes correção ocorreu na Lapa do Boi, na Lapa
às técnicas empregadas e à composição das do Voador Norte e na Lapa do Galheiros.
figuras. Identificamos erros nos calques e - Representações de zoomorfos como al-
enxergamos figuras que antes não foram guns cervídeos da Lapa do Boi e do Galhei-
vistas, mas ao mesmo tempo confirmamos ros e alguns quadrúpedes do Voador Norte,
características estilísticas diagnosticadas e que se encontravam incompletos, tiveram
delineadas preteritamente. Muitos dos gra- os membros faltantes percebidos e acres-
fismos que a priori nos pareciam estranhos centados no levantamento gráfico. Assim
dentro do repertório gráfico percebido, pas- para tais figuras a análise por atributos será
saram a fazer mais sentido. Deste modo as rediscutida, uma vez que serão redefinidos
correções realizadas foram as seguintes: como tipos distintos daqueles classificados
anteriormente.

Figura 4: Exemplo da Lapa do Boi Leste (painel 1 calque 5


e 6). Cervídeo registrado com preenchimento “chapado” e
ao lado mesmo cervídeo preenchido com linhas.

- Comprovamos a chamada “fluidez” de


Figura 2: Exemplos - Lapa do Boi (painel 1, calque 2) e Lapa composição de algumas figuras (Isnardis,
do Voador Norte (painel 1, calque 7 e 8). Adição de “flechas” Linke & Prous, 2009), comportamento grá-
ou “dardos”, patas e orelhas.
fico característico das pinturas de Diaman-
tina. Neste sentido, os contornos e preen-
- Algumas figuras classificadas na análi- chimentos dos zoomorfos grafados na Lapa
se temática como ‘cervídeos não flechados’ do Boi, Lapa do Boi Leste e na Lapa do Ga-
passaram a compor a categoria ‘cervídeos lheiros foram alterados, concordando com
flechados’ devido ao acréscimo das “fle- tal aspecto identificado em etapas anterio-
chas” ou “dardos”, aspecto típico dos cerví- res da pesquisa. Outra característica perce-
bida a priori, que também foi comprovada
e acrescentada, foi o detalhamento anatô-
mico dos cervídeos, que na Lapa do Voador
Sul e na Lapa do Galheiros gerou revisões
na análise de atributos destas figuras.

- Registramos na Lapa do Boi Leste e na


Figura 3: Exemplo da Lapa do Boi (painel 8, calque único):
Figura do tipo ‘cervídeo flechado sem patas dianteiras e Lapa do Galheiros uma alteração em rela-
traseiras’ passou a compor o tipo ‘cervídeo flechado com
patas dianteiras e traseiras’. ção à técnica aplicada na execução dos gra-
fismos. Figuras que estavam reproduzidas

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em crayon no calque foram identificadas que tais figuras duvidosas consistiam em


como pinturas feitas com outra técnica, cinco peixes em sobreposição ao cervídeo,
provavelmente utilizando um instrumento enfileirados verticalmente ao longo do seu
como um pincel e um pigmento mais resse- dorso.
cado, e não o típico crayon semelhante a
um lápis, proporcionando um aspecto mais - Na Lapa do Voador Norte também
afinado dos contornos das figuras. identificamos um antropomorfo distinto
dos outros representados nessa região. No
- Mudanças na dinâmica dos preenchi- primeiro registro esta figura foi calcada
mentos e contornos de algumas figuras da como sendo uma forma indefinida, aproxi-
Lapa Boi Leste, do Voador Norte, Voador Sul mada ao geométrico, semelhante aos “ces-
e Galheiros foram registradas. Esta altera- tos” típicos da Tradição São Francisco. Após
ção também gerou revisões para os tipos percebermos sua morfologia antropomórfi-
propostos anteriormente na análise de atri- ca, a classificação desta figura foi revista,
butos, uma vez que os diferentes tipos de uma vez que pertencia à categoria dos ‘geo-
preenchimentos foram considerados nas métricos’ na análise temática e foi inserida
classificações. no grupo dos ‘antropomorfos’.

- Na Lapa do Voador Norte foi possível


confirmar uma das características defini-
das para a expressão da Tradição Planalto
em Minas Gerais: a associação recorrente
entre peixes e cervídeos, como pode ser
encontrado, por exemplo, na Serra do Ca-
bral onde há uma figura em que o corpo e Figura 6: Exemplo da Lapa do Voador Norte (painel 1
calque 4 e 5). Mudança de categoria temática: ‘geométrico’
cabeça são de cervídeo e as pernas substi- para ‘antropomorfo’.
tuídas por peixes (Prous, 1992:519). Nesta
ocorrência de Diamantina as barbatanas
não haviam sido registradas anteriormen- - Na Lapa do Galheiros registramos
te, o que nos deixava a dúvida sobre esta uma nova sobreposição entre duas figuras,
figura estar atribuída à categoria temática num painel que acreditávamos possuir um
dos ‘peixes’, ou seriam representações de único grafismo.
foliáceas, ou algo com formato semelhan- Ao final da conferência, já em laborató-
te, mas que não conseguíamos identificar. rio, as correções realizadas nas reduções
Assim depois das correções observamos foram novamente digitalizadas e acrescen-
tadas ao calque original dos painéis. Guar-
dadas as devidas proporções e distorções,
os calques dos painéis rupestres encon-
tram-se mais completos com informações
mais coerentes, permitindo melhor inteligi-
bilidade e passíveis de novas análises. As-
sim, uma vez que várias figuras tiveram
Figura 5: Exemplo da Lapa do Voador Norte (painel 1
calque 2). Associação peixes e cervídeo. mudanças na morfologia, na composição e
até mesmo na temática, adquirindo novas

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características estilísticas, elas deverão ser modo a cada vez mais se tornar perceptível”.
novamente analisadas e atribuídas a uma (Da Matta, 1978:30).
nova classificação. O aspecto que gostaria de enfatizar nes-
se artigo é a importância de retornar aos
Considerações finais sítios estudados e realizar a conferência
O trabalho com vestígios arqueológicos dos painéis calcados e até mesmo dos foto-
é guiado por um aspecto fundamental no grafados, pois cada vez que regressamos
modo de fazer pesquisa científica: a cons- aos sítios e olhamos recursivamente para
trução de um “olhar” específico que vai os painéis, enxergamos algo diferente, no-
sendo treinado ao longo do contato com o vas figuras, novas cores, novas sobreposi-
material, tanto em campo como em labora- ções. As fotografias podem nos enganar e
tório. Para saber “enxergar” as retiradas de passar informações ilusórias que distorcem
um artefato lítico lascado ou para identifi- os dados. E mesmo com a técnica do calque
car antiplásticos num fragmento de cerâ- realizada com detalhamento, deixamos
mica é necessário o desenvolvimento deste passar alguma informação que não foi pos-
olhar especializado, que possibilita a análi- sível enxergar naquele dia, devido à lumi-
se sistematizada e assim algumas interpre- nosidade, a posição ocasionalmente des-
tações preliminares. confortável em que ficam os pesquisadores
O contato que adquirimos com cada pai- durante a reprodução, ou porque simples-
nel rupestre que estudamos é em grande mente nossos olhos ainda não estavam
parte regido por esse olhar, obtido por uma acostumados àquelas figuras e não conse-
história de pesquisa, discussões e leituras. guiram reconhecê-las.
Na arqueologia muitas vezes temos que nos Neste viés é possível concluir que a
debruçar sobre o material que analisamos, questão da subjetividade, das abstrações e
“namorar” cada pote de cerâmica, passar percepções individuais relacionadas à his-
horas à frente de uma bandeja de artefatos tória de vida de cada pesquisador não inva-
líticos. Nesse contato, o processo cognitivo lidam a pesquisa cientifica, mas fazem par-
se desenvolve e vai se apurando, a cada eta- te dela. É a consciência de que estágios de
pa de análise, nos fazendo errar e acertar, compreensão e apreensão existem media-
ver coisas que não existiam realmente ou dos por distintos fatores (individuais, cole-
simplesmente não enxergar o óbvio, o que tivos, temporais e espaciais) que permitem
parecia estar sempre ali. Em campo, esse a discussão epistemológica da ciência e a
processo é ainda mais intenso. Passamos reflexão e consciência sobre a produção de
dias escavando em abrigos, utilizando su- “realidades” científicas. Assim o desenvol-
portes rochosos para nos apoiar, para des- vimento do olhar especializado, apurado e
cansar, guardar os alimentos. Mergulha- atento dos pesquisadores para o seu ‘objeto’
mos naquele ambiente durante semanas e de análise é um dos fatores distintivos que
em algum momento nos sentimos como torna possível tal discussão.
parte dele, nos acostumando com cada blo- No caso dos grafismos rupestres de Dia-
co, cada inseto, cada espinho. Em acordo mantina a experiência cognitiva do olhar
com o antropólogo Roberto Da Mata que foi fundamental para o desenvolvimento
salienta: a pesquisa científica nas ciências das análises, pois permitiu aos pesquisado-
sociais é como um blues, “cuja melodia ga- res envolvidos uma compreensão significa-
nha força pela repetição das suas frases de tiva das pinturas e dos sítios. A realização

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da técnica do calque foi um dos fatores res- construção do quadro cronoestilístico e


ponsáveis pelo contato direto com os grafis- análise da composição das figuras foram
mos e possivelmente o momento da primei- atingidos, gerando uma série de conclusões
ra observação mais intensa. Depois, em a respeito da Tradição Planalto em Dia-
laboratório, o contato não é mais direto, mantina. O olhar para a Tradição Planalto
mas continua acontecendo de outra forma, se apurou e nos possibilitou, em uma nova
através das reduções digitais. O painel gra- espiral do nosso ciclo hermenêutico, desco-
fado, agora na tela do computador, ganha brir novas características relacionadas ao
outra dinâmica e pode ser analisado de vá- comportamento gráfico das pinturas.
rias formas distintas, com estratégias que
ficam a critério dos objetivos da pesquisa, “A sensação é uma abstração, não uma
da disponibilidade do pesquisador, e sua réplica do mundo real”
disposição para a imersão no mundo digi- (Mountcastle, 1975 apud in Maturana, 2002:75).
tal. A digitalização dos painéis rupestres é o
momento da leitura das pinturas, pois ob- Agradecimentos: à Vanessa Linke pelas
servamos e copiamos cada detalhe, um por revisões e sugestões e ao André Prous, An-
um e conhecemos as figuras com as quais drei Isnardis e Luis Felipe Bassi pela leitu-
trabalhamos. No nosso caso os objetivos de ra. Obrigada.

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