DESCARTES E HUME
— Razão ou entendimento;
— Sentidos;
— Ideias
R.: As posições de Hume e Descartes relativamente ao conhecimento humano não podem ser
mais díspares. Partindo da ideia de que só são conhecimento as ideias que são claras e
distintas, isto é, das quais não há a mínima possibilidade de duvidar, Descartes é levado a fazer
da razão, e não dos sentidos, a origem do conhecimento, precisamente porque nenhuma ideia
com origem neles pode ter o caráter de indubitabilidade que o conhecimento requer. A dúvida
metódica, processo pelo qual a razão submete a apreciação crítica o saber tradicional, mostra,
primeiro por intermédio do argumento das ilusões dos sentidos, depois por intermédio do
argumento dos sonhos, que duas proposições básicas para o nosso conhecimento e para a
nossa vida quotidiana, como «o mundo existe» e «os sentidos são fidedignos na informação
que nos fornecem acerca do mundo», não são indubitáveis, e, embora o argumento do Deus
enganador permita duvidar das verdades da matemática, isto é, das proposições não
empíricas, o cogito, verdade de razão, afirma-se com tal evidência que é impossível recusar a
sua indubitabilidade. É, portanto, na razão, e não na experiência (ou melhor, nas ideias
adventícias, como Descartes lhes chama, que têm origem na experiência e que são incertas e
confusas) que o conhecimento tem origem. Dada esta origem racional do conhecimento,
Descartes é ao mesmo tempo compelido para a tese segundo a qual existem ideias inatas, isto
é, ideias que a mente descobre em si mesma. Se é na razão, e não na experiência, que o cogito
se descobre a si próprio enquanto verdade primordial, então essa ideia tem de ser inata. Todo
o conhecimento, para Descartes, é constituído por ideias a que a razão chega por deduções, à
maneira da geometria de Euclides, a partir de intuições fundamentais que o cogito descobre
em si mesmo pela análise dos seus conteúdos. Dado o caráter absolutamente racional e
demonstrativo destas deduções, tudo o que conhecemos por seu intermédio é igualmente
indubitável. O conhecimento é, portanto, constituído por todas as ideias que somos capazes
de deduzir a partir das ideias inatas. É desse modo que a partir do cogito, isto é, o
conhecimento da nossa própria existência enquanto alma, somos capazes de conhecer Deus
do mundo. Nada está fora do alcance da razão, na condição de sermos capazes de o deduzir de
proposições indubitáveis. Esse é, pelo menos, o espírito do projeto cartesiano, embora o
próprio Descartes reconheça que a existência do mundo exterior, posta em causa pela dúvida
metódica, em rigor, não pode ser deduzida de princípios estritamente racionais. O
racionalismo de Descartes manifesta-se, em resumo, na ideia de que é a razão, e não os
sentidos, que fornecem as ideias que constituem o ponto de partida para o conhecimento. A
posição de David Hume acerca do papel dos sentidos, da razão e das ideias no conhecimento
não poderia ser mais diferente. De acordo com ele, todos os conteúdos da mente, a que
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chama perceções, são de dois tipos, impressões e ideias, que se distinguem apenas entre si
pelo grau de força e vivacidade com que se apresentam à mente. As impressões, que podem
ter origem em sensações, mas também em emoções e sentimentos, são mais intensas, vívidas,
que as ideias. Tirando esta diferença de grau de intensidade, impressões e ideias são, em tudo,
semelhantes. Outra coisa que a análise dos conteúdos da mente revela é que as ideias são
cópias das impressões e não o contrário. Com efeito, diz Hume, aqueles a quem, por alguma
razão, falta a impressão também nunca têm a respetiva ideia. Um cego de nascença, que não
tem, por exemplo, a sensação de vermelho, também nunca tem a respetiva ideia. Do mesmo
modo, quando alguém nunca teve uma dada sensação, não tentamos fazer que a tenha a
partir de uma ideia, mas pondo a pessoa numa situação em que possa adquirir essa sensação.
Tudo isto prova, pensa Hume, que não existem ideias inatas e que todo o conhecimento tem
origem, não na razão, mas na experiência. Há, no entanto, um ponto em que Hume e
Descartes estão de acordo. Ambos pensam que a experiência não pode ser a origem do
conhecimento, se entendermos que só as ideias de cuja verdade temos absoluta certeza são
conhecimento. A constatação disto leva Descartes a encontrar na razão a origem e o critério
do conhecimento.
Para Hume, esta via está vedada pela recusa do inatismo e, portanto, ele, ao contrário de
Descartes, pensa que só a experiência legitima as nossas ideias sem, no entanto, lhes conferir
absoluta certeza, isto é, o estatuto de conhecimento, à exceção dos domínios da matemática e
da lógica. Hume distingue dois tipos de ideias, as relações de ideias e as questões de facto. As
primeiras, como 2 + 2 = 4, baseadas em relações de identidade, são verdades necessárias e
podem ser conhecidas a priori. As ideias a que chama questões de facto são verdades
contingentes e só podem ser conhecidas a posteriori, pela experiência, isto é, fazendo-as
remontar a impressões das quais derivem. Ora, para Hume, ideias como as de alma, de Deus e
do mundo nunca podem ser assim justificadas porque não temos experiência dessas
entidades, e a experiência traça os limites daquilo de que temos conhecimento. Assim, o
racionalismo de Descartes representa uma perspetiva otimista dos poderes da razão. Quando
corretamente utilizada, a razão pode dar-nos conhecimento mesmo das entidades mais
afastadas da experiência quotidiana. O empirismo de Hume, ao contrário, é uma posição mais
pessimista, cética, sobre a razão. Por si só, a razão não nos fornece qualquer conhecimento do
mundo, e a experiência só nos permite conhecer aquilo de que temos impressões. De Deus, da
alma e do mundo, se é que existem, não temos quaisquer impressões e, portanto, não temos
conhecimento. Em Hume, só temos conhecimento daquilo que temos experiência.
R.: A forma que Descartes encontrou para responder aos céticos do seu tempo, que afirmavam
não existir conhecimento, foi procurar uma proposição indubitável, isto é, uma proposição
cuja verdade fosse tão evidente que não levantasse qualquer dúvida, como ponto de partida
para o conhecimento. Descartes assume, assim, um ponto de vista sobre o conhecimento que
hoje é conhecido como fundacionismo. De acordo com este ponto de vista, há dois tipos de
proposições, as não fundacionais, que precisam de ser justificadas por intermédio de outras
proposições, e as fundacionais, que, dada a sua evidência, não precisam de justificação e,
devido a isso, podem fornecer a justificação última para as primeiras. Para Descartes, só o
cogito, «penso, logo existo», descoberto na dúvida metódica, tem este estatuto fundacional. O
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qualquer significado. Não há, nem pode haver, portanto, conhecimento destas entidades, e a
metafísica, enquanto disciplina que estuda este tipo de entidades não empíricas, não constitui
uma ciência.