A. D. Sertillanges
II
1
Cf. infra, Cap. V.
bloco, é normal; mas fazer uma boa estátua
com uma má estátua já desbastada, para isto
é preciso ser um Miguel Ângelo. O autor do
David de Florença faz desses prodígios; mas
estes não se repetem muitas vezes, mesmo na
sua própria história.
Por isso é que os primeiros cristãos
foram tão duros para as religiões estranhas;
bem longe de as chamarem providenciais,
chamavam-nas demoníacas, e, do seu ponto
de vista, tinham razão. Mas, tratando-se um
juízo de conjunto, não nos devemos deixar
cegar por um ponto de vista, por mais justo e
mais importante que seja na sua categoria.
Demoníaco e providencia, isto não se opõe
tanto como se poderia pensar. O demônio
também é providencial; só age segundo a
extensão da sua cadeia, e isso mesmo que ele
faz pode entrar e entra na grande corrente
que Deus dirige.
No cristianismo, sempre temos dito
que uma religião qualquer é preferível à
ausência de religião. É que, portanto, uma
religião qualquer tem valor em relação à
nossa, e pode servir-lhe de preparação.
Verdade é que é com a condição de morrer,
como uma espécie que se transmuda noutra,
como um vivente que nutre um vivente
superior.
Quando o passado fica aberto no
sentido do futuro, prepara-o; quando
pretende fechar-se e resistir à absorção,
neutraliza-se, e é nisto que se torna
demoníaco; porquanto, resistindo ao bem,
trabalha para o mal. Com a maioria de razão
o será se, à sua imperfeição que deveria
fazer-lhe ceder o lugar, se misturam
elementos perversos que exigem uma
reforma.
É o caso das religiões antigas. O que
elas têm de demoníaco é a corrupção de
certas crenças e de certos ritos impostos aos
seus adeptos; é, depois, a sua pretensão de
reger definitivamente por sua própria
autoridade a alma humana. Mas nem por isso
é menos certo que elas permanecem úteis, e
que, aos olhos da Providência, são etapas.
Por mais que recusem deixar-se sobrepujar,
o que elas recusam Deus saberá fazê-lo, e,
completada a obra de Deus, poderemos,
como S. Paulo, volver-nos para esse passado
de imperfeições e de taras, para reconhecer
nele, a despeito de tudo, o si forte attrectent
eum: a procura a que Deus devia
corresponder, por conseguinte uma real
preparação.
2
Em Chartres, quatro vitrais apresentam a mesma ideia de
maneira mais audaciosa, mostrando, cada um, um evangelista
empoleirado nos ombros de um profeta.
paganismo, digo o paganismo piedoso, é a
escura claridade das noites, quando o peso
das nuvens ou o peso voluntário do sono não
a escurecem para os nossos olhos.
Unindo os dois, ter-se-á o ciclo
completo das iluminações que preparam as
claridades diurnas. Tudo o que mais tarde
poderá vir a ser cristão por incorporação, em
toda a amplitude do mundo antigo já é cristão
por antecipação. A nossa Igreja católica, isto
é, universal, mostra-se assim deveras
universal, reunindo a amplitude dos tempos
sob o imenso amplexo do seu
desenvolvimento multiforme. Aquele que é
revela-se, na sua Igreja, ao mesmo tempo
Aquele que foi e Aquele que será.