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Liev Trotsky

História da Revolução Russa


Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/index.htm
Índice
Tomo I.....................................................................................................................................4
Prefácio..............................................................................................................................4
Particularidades do desenvolvimento da Rússia...............................................................9
A Rússia czarista e a guerra............................................................................................18
O proletariado e o campesinato......................................................................................31
O czar e a czarina............................................................................................................44
A ideia de uma revolução palaciana................................................................................53
A agonia da monarquia....................................................................................................63
Cinco Dias: do 23 ao 27 Fevereiro 1917.........................................................................80
Quem dirigiu a insurreição de Fevereiro?.....................................................................103
O paradoxo da Revolução de Fevereiro........................................................................115
O Novo Poder................................................................................................................133
A dualidade de poderes.................................................................................................150
O comité executivo........................................................................................................156
O exército e a guerra.....................................................................................................176
Os dirigentes e a guerra................................................................................................190
Os bolcheviques e Lenine.............................................................................................199
O rearmamento do partido.............................................................................................217
As «Jornadas de Abril»..................................................................................................229
A primeira coligação......................................................................................................246
A ofensiva......................................................................................................................255
O campesinato...............................................................................................................266
Reagrupamentos nas massas.......................................................................................279
O Congresso dos Sovietes e a manifestação de Junho...............................................297
Conclusão......................................................................................................................310
Tomo II................................................................................................................................313
Prefácio..........................................................................................................................313
As «Jornadas de Julho»: a preparação e o início.........................................................318
As «Jornadas de Julho»: o ponto culminante e esmagamento....................................336

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Os bolcheviques podiam tomar o poder em Julho?......................................................356
O mês da grande calúnia...............................................................................................372
A contra-revolução levanta a cabeça............................................................................391
Kerensky e Kornilov.......................................................................................................406
A conferência de Estado em Moscovo..........................................................................421
A conspiração de Kerensky...........................................................................................436
O Levantamento de Kornilov.........................................................................................449
A burguesia mede-se com a democracia......................................................................461
As massas expostas aos golpes...................................................................................478
A maré enchente............................................................................................................495
Os bolcheviques e os sovietes......................................................................................514
A última coligação..........................................................................................................527
O campesinato diante de Outubro.................................................................................545
Saída do parlamento e a luta pelo congresso dos sovietes..........................................567
A questão nacional........................................................................................................584
O comité militar revolucionário......................................................................................603
Lenine apela à insurreição.............................................................................................626
A arte da insurreição......................................................................................................654
A tomada da capital.......................................................................................................676
A Tomada do Palácio de Inverno...................................................................................702
A insurreição de Outubro...............................................................................................725
O congresso da ditadura soviética................................................................................742
Conclusão......................................................................................................................770
Apêndices......................................................................................................................774
1 Particularidade do desenvolvimento da Rússia.....................................................774
Sobre as Particularidades ou Desenvolvimento Histórico da Rússia...................774
2 «O rearmamento do partido».................................................................................780
3 O congresso dos sovietes e a manifestação de Junho.........................................785

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Tomo I
Prefácio
Durante os dois primeiros meses de 1917, a Rússia ainda era a monarquia dos
Romanov. Oito anos mais tarde, os bolcheviques já estavam ao leme do governo, eles
que eram desconhecidos no início do ano e cujos líderes, no momento do ascenso ao
poder, ainda eram acusados de alta traição. Na história não se encontraria outro exemplo
de uma reviravolta tão brusca, sobretudo lembrando-nos que se trata de uma nação de
cento e cinquenta milhões de almas. É claro que os acontecimentos de 1917 – qualquer
que seja a maneira considerada – merecem ser estudados.
A história de uma revolução, como toda história, deve, antes de tudo, relatar o que
se passou e dizer como. Mas isso não é suficiente. Segundo a própria narração, é
necessário que se veja nitidamente porquê as coisas se passaram assim e não de outra
forma. Os acontecimentos não poderiam ser considerados como um encandeamento de
aventuras, nem baseados, uns após outros, numa moral pré-concebida. Eles devem
conformar-se com a sua própria lei racional. É na descoberta desta lei íntima que o autor
vê a sua tarefa.
O traço mais incontestável da Revolução é a intervenção directa das massas nos
acontecimentos históricos. Habitualmente, o Estado, monárquico ou democrático, domina
a nação; a história é feita pelos especialistas do ofício: monarcas, ministros, burocratas,
deputados, jornalistas. Mas, nos momentos decisivos, quando um velho regime se torna
intolerável para as massas, estas quebram as muralhas que os separam da arena
política, derrubam os seus representantes tradicionais, e, intervindo assim, criam o ponto
de partida para um novo regime. Que seja bem ou mal, os moralistas que julguem.
Quanto a nós, tomamos os factos tal como eles se apresentam, no seu desenvolvimento
objectivo. A história da revolução é para nós, antes de mais, a narração de uma irrupção
violenta das massas no domínio onde se regulam os seus próprios destinos.
Numa sociedade em revolução, as classes estão em luta. É evidente que as
transformações que se produzem entre o princípio e o fim de uma revolução, nas bases
económicas da sociedade e no substrato social das classes, é insuficiente para explicar a
marcha da própria revolução, a qual, num breve lapso de tempo, deita abaixo as
instituições seculares, criando novas e derrubando-as novamente. A dinâmica dos
acontecimentos revolucionários é determinada directamente pelas conversões
psicológicas rápidas, intensivas e apaixonadas das classes constituídas antes da
revolução.
Uma sociedade não modifica as suas instituições à medida das necessidades, como
um artesão renova as suas ferramentas. Pelo contrário: praticamente considera as
instituições que a dominam como uma coisa para sempre estabelecida. Durante dezenas
de anos, a crítica da oposição serve de válvula de escape ao descontentamento das
massas e ela é a condição à estabilização do regime social: tal é, por exemplo, em

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princípio, o valor adquirido pela social-democracia. São necessárias circunstâncias
absolutamente excepcionais, independentes da vontade dos indivíduos ou dos partidos,
para libertar os descontentes dos genes do espírito conservador e levar as massas à
insurreição.
As rápidas mudanças de opinião e de humor das massas, em tempos de revolução,
provêm, por consequência, não da maleabilidade e da mobilidade do psiquismo humano
mas do seu profundo conservadorismo. As ideias e as relações sociais continuam em
permanência atrasadas sobre as novas circunstâncias objectivas, até ao momento que
estas caem em cataclismo, e resulta em tempo de revolução, sobressaltos de ideias e de
paixões que os cérebros de polícias as representam simplesmente como obra de
“demagogos”.
As massas metem-se em revolução não como tendo um plano prévio de
transformação social, mas com o sentimento amargo de não poder tolerar por mais tempo
o antigo regime. É somente o meio dirigente da sua classe que possui um programa
político, o qual tem no entanto necessidade de ser verificado pelos acontecimentos e
aprovado pelas massas. O processo político essencial de uma revolução é precisamente
aquele em que a classe toma consciência dos problemas postos pela crise social, e que
as massas orientam-se activamente segundo o método das aproximações sucessivas. As
diversas etapas do processo revolucionário, consolidadas pela substituição a tais partidos
por outros sempre mais extremistas, traduzem a pressão constante reforçada das massas
sobre a esquerda, enquanto este impulso não se quebre contra obstáculos objectivos.
Então começa a reacção: desilusão em certos meios da classe revolucionária,
multiplicação dos indiferentes, e, seguidamente, consolidação das forças contra-
revolucionárias. Tal é pelo menos o esquema das antigas revoluções.
É somente pelo estudo dos processos políticos nas massas que se pode
compreender o papel dos partidos e dos líderes que nós não poderemos de forma
nenhuma ignorar. Eles constituem um elemento não autónomo, mas muito importante do
processo. Sem organização dirigente, a energia das massas se volatilizaria como o vapor
não fechado num cilindro de pistão. Todavia, o movimento não vem nem do cilindro nem
do pistão, mas do vapor.
As dificuldades que reencontramos no estudo das modificações da consciência das
massas em tempos de revolução são absolutamente evidentes. As classes oprimidas
fazem a história nas fábricas, nos quartéis e nos campos, nas cidades, nas ruas. Mas elas
não têm o hábito de notar por escrito o que fazem. Os períodos onde as paixões sociais
atingem a sua mais alta tensão não deixam em geral pouco lugar à contemplação e às
descrições. Todas as musas, mesmo a musa plebeia do jornalismo, ainda que ela tenha
os flancos sólidos, têm dificuldades em viver em tempos de revolução. Todavia, a situação
do historiador não é de forma nenhuma desesperada. As notas tomadas são incompletas,
discordantes, fortuitas. Mas, à luz dos acontecimentos, esses fragmentos permitem
muitas vezes adivinhar a direcção e o ritmo do processo subjacente. Bem ou mal, é ao
apreciar as modificações da consciência das massas que um partido revolucionário
baseia a sua táctica. A via histórica do bolchevismo testemunha que esta avaliação, de

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certa forma, era realizável. Porquê então o que é acessível a uma política revolucionária,
no turbilhão da luta, não seria acessível ao historiador retrospectivamente?
No entanto, os processos que se produzem na consciência das massas não são
nem autónomos nem independentes. Que os idealistas e os eclécticos não levem a mal, a
consciência é todavia determinada pelas condições gerais de existência. Nas
circunstâncias históricas da formação da Rússia, com a sua economia, as suas classes, o
seu poder de Estado, na influência exercida sobre ela pelas potências estrangeiras,
deveriam ser incluídas as premissas da Revolução de Fevereiro e da sua substituta – a
de Outubro. À medida onde parece particularmente enigmático que um país atrasado
tenha sido o primeiro a levar o proletariado ao poder, é necessário previamente procurar a
palavra do enigma no carácter original do dito país, isto é, no que o diferencia dos outros
países.
As particularidades históricas da Rússia e do seu peso específico são caracterizadas
nos primeiros capítulos deste livro que contêm uma exposição sucinta do
desenvolvimento da sociedade russa e das suas forças internas. Esperemos que o
inevitável esquematizar desses capítulos não desencoraje o leitor. No seguimento da
obra, encontrar-se-á as mesmas forças sociais em plena acção.
Esta obra não é de forma nenhuma baseada em lembranças pessoais. A
circunstância que o autor participou nos acontecimentos não a dispensa do dever de
estabelecer a narração sobre documentos rigorosamente controlados. O autor fala de si
na “terceira pessoa”. Isso não é uma simples forma literária: o tom subjectivo, inevitável
numa autobiografia ou memórias, seria inadmissível num estudo histórico.
No entanto, pelo facto que o autor participou na luta, é-lhe naturalmente mais fácil
compreender não somente a psicologia dos actores, indivíduos e colectividades, mas
também a correlação interna dos acontecimentos. Esta vantagem pode dar resultados
positivos, contudo com uma condição: a de não se relacionar aos testemunhos da sua
memória nas pequenas como nas grandes coisas, na exposição dos factos como em
consideração dos mobiles e dos estados de opinião. O autor considera que tanto que
dependa dele, teve em conta esta condição.
Resta uma questão – a da posição política do autor que, na sua qualidade de
historiador limita-se ao ponto de vista que era o seu como actor nos acontecimentos. O
leitor não está obrigado, bem entendido, a partilhar os pontos de vista do autor, o que este
último não tem motivo para dissimular. Mas o leitor tem o direito de exigir que uma obra
de história constitua não a apologia de uma posição política, mas uma representação
intimamente fundada do processo real da revolução. Uma obra de história só responde
plenamente ao seu destino se os acontecimentos se desenvolvem de página a página, no
todo natural da sua necessidade.
É para isso indispensável que intervenha o que se chama a “imparcialidade” do
historiador? Ninguém explicou ainda claramente no que isso deve considerar. Muitas
vezes cita-se um certo aforismo de Clemenceau, dizendo que a revolução deve ser
tomada “em bloco”; o que não é mais do que um subterfúgio espiritual: como se declararia

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um partidário de um todo que trás em si a divisão? A palavra de Clemenceau foi-lhe
ditada, parcialmente, por uma certa vergonha de antepassados demasiados resolutos,
parcialmente também pelo mal-estar do descendente diante das suas sombras.
Um dos historiadores reaccionários, e, por consequência, bem cotados, da França
contemporânea, Sr. Louis Madelin, que caluniou tanto, como homem de salão, a grande
Revolução – quer dizer o nascimento da da nação francesa – afirma que um historiador
deve subir sobre a muralha da cidade ameaçada e, daí, considerar os cercadores como
os cercados. É somente assim, segundo ele, que se chegaria à “justiça que reconcilia”.
Porém, as obras do sr. Madelin provam que, se ele sobe à muralha que separa os dois
campos, é somente na condição de batedor da reacção. Felizmente, aqui trata-se de
campos de outrora: em tempos de revolução, é extremamente perigoso de se manter nas
muralhas. Aliás, no momento de perigo, os pontífices duma “justiça que reconcilia”
continuam normalmente fechados em casa, esperando para ver que qual lado se decidirá
a vitória.
O leitor sério e dotado de sentido crítico não precisa de uma imparcialidade falaciosa
que lhe estenderia a taça do espírito conciliador, saturada por uma boa dose de veneno,
com sedimento de ódio reaccionário, mas falta-lhe a boa-fé científica que, para exprimir
as sua simpatias, francas, sem mascaras, procura apoiar-se sobre um honesto estudo
dos factos, sobre a demonstração das relações reais entre os factos, sobre a
manifestação de o que tem de racional no desenrolamento dos factos. Aí somente é
possível a objectividade histórica, e ela é então suficiente, porque é verificada e
certificada de outra forma que vai além das boas intenções do historiador – que aliás
garante – mas pela revelação da lei íntima do processo histórico.
As fontes desta obra consistem em numerosas publicações periódicas, jornais e
revistas, memórias, processos verbais e outros documentos, alguns manuscritos, mas a
maior parte publicados pelo Instituto de História da Revolução, em Moscovo e
Leninegrado. Julgámos inútil dar no texto referências que estorvariam o leitor. Entre os
livros de história que têm carácter de estudo de conjunto, utilizámos os dois volumes de
Ensaio sobre a História da Revolução de Outubro (Moscovo-Leninegrado, 1927). Esses
ensaios redigidos por diversos autores não têm todos o mesmo valor, mas contêm, de
qualquer forma, uma documentação abundante sobre os factos.
As datas referidas nesta obra são as do antigo estilo, isto é, elas atrasam 13 dias no
calendário universal, actualmente adoptado pelos sovietes. O autor foi forçado a seguir o
calendário utilizado na época da Revolução. Não seria difícil, na verdade, transpor as
datas no estilo moderno. Mas esta operação, que eliminaria certas dificuldades, criaria
outras mais graves. A queda da monarquia inscreveu-se na História sob o nome de
Revolução de Fevereiro. Porém, segundo o calendário ocidental, o acontecimento teve
lugar em Março. Certa manifestação armada contra a política imperialista do governo
provisório foi marcada na história como “jornadas de Abril”, enquanto, segundo o
calendário ocidental, ela teve lugar em Maio. Não nos detenhamos sobre outros
acontecimentos e datas intermediárias, notemos ainda que a Revolução de Outubro
produziu-se, para a Europa, em Novembro. Como se vê, o próprio calendário tomou a cor

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dos acontecimentos e o historiador não pode desembaraçar-se das efemérides
revolucionárias pela simples operação de aritmética. Queira o leitor lembrar-se que antes
de suprimir o calendário bizantino, a Revolução teve que abolir as instituições o temiam
conservar.
Léon Trotsky
Prinkipo, 14 Novembro 1930

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Particularidades do desenvolvimento da Rússia

O aspecto essencial e o mais constante de história da Rússia, é a lentidão da


evolução do país, tendo como consequências uma economia atrasada, uma estrutura
social primitiva, um nível de cultura inferior.
A população da planície imensa um clima rigoroso, aberto aos ventos de Este e às
migrações asiáticas, estava condenada pela própria natureza à estagnação prologada. A
luta contra os nómadas durou quase até ao fim do século XVII. A luta contra os ventos
que trazem as geadas no Inverno e a seca no Verão não terminou nos nossos dias. A
agricultura – base de todo o desenvolvimento – progredia pelas vias extensivas: no Norte,
cortavam-se e queimava-se as florestas; no Sul, as estepes virgens eram transtornadas.
Tomava-se posse da natureza no sentido da largura e não em profundidade.
Na época onde os Bárbaros do Ocidente se instalavam nas ruínas da civilização
romana e utilizavam tanto as pedras antigas como materiais de construção, os Eslavos do
Oriente não encontraram nenhuma herança nas suas planícies sem alegria : o nível de
seus predecessores tinha sido ainda mais baixo. Os povos da Europa ocidental, em breve
bloqueadas nas suas fronteiras naturais, criariam as aglomerações económica e culturais
das cidades industriais. A população da planície oriental, começava a sentir-se apertada,
penetrava nas florestas ou emigrava para a periferia, na estepe. Os elementos
camponeses dotados de iniciativa e os mais empreendedores tornavam-se, do lado
Oeste, citadinos, artesãos, comerciantes. No Este, certos elementos activos, audaciosos
estabeleciam-se como comerciantes, mas, em maior número, tornavam-se cossacos,
alfandegários ou colonos. O processo de diferenciação social, intensa no Ocidente,
atrasava no Oriente e se diluía-se por extensão. “O czar de Moscóvia” – mesmo se cristão
– governa as pessoas de espírito preguiçoso” escrevia Vigo, contemporâneo de Pedro I.
O “espírito preguiçoso” dos moscovitas reflectia o ritmo lento da evolução económica, a
amorfia das relações entre as classes, a indigência da história interior.
As antigas civilizações do Egipto, da Índia, e da China tinham um carácter
suficientemente autónomo e dispunham de bastante tempo para elaborar, mesmo
medíocres que fossem as suas possibilidades de produção, relaçõessociais tão completas
em detalhe como as obras dos artesãos destes países. A Rússia ocupava entre a Europa
e a Ásia uma situação intermediária não somente pela geografia mas pela sua vida social
e história. Ela distinguia-se do Ocidente europeu, mas diferia também do Oriente asiático,
aproximando-se em diversos períodos, por diversos aspectos, ora de um, ora de outro. O
Oriente impôs o jugo tatar que entrou como o elemento importante na edificação do
Estado russo. O Ocidente foi um inimigo ainda mais temível, mas ao mesmo tempo um
mestre. A Rússia não teve a possibilidade de forma-se segundo os modelos do Oriente
porque ela teve sempre que se acomodar face à pressão militar e económica do
Ocidente.

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A existência do feudalismo na Rússia, negada pelos historiadores de outrora, pode
ser considerada como incontestavelmente demostrada pelos estudos mais recentes.
Ainda mais: os elementos essenciais da feudalidade na Rússia eram os mesmos que
existiam no Ocidente. Mas só por esse facto, para estabelecer a realidade de uma época
feudal na Rússia foi preciso longas discussões científicas. Está suficientemente provado
que a feudalidade russa nasceu antes do tempo, que era informe e pobre em
monumentos da sua cultura.
Um país atrasado assimila as conquistas materiais e ideológicas dos países
avançados. Mas isso não significa que ela siga servilmente esses países reproduzindo
todas as etapas de seu passado. A teoria da repetição dos ciclos históricos – a de Vico e,
mais tarde dos seus discípulos – apoia-se na observação dos ciclos descritos pelos
antigas culturas pré-capitalistas, em parte sobre as primeiras experiências do
desenvolvimento capitalista. O carácter provincial episódico de todo o processo comporta
efectivamente certas repetições das fases culturais nesses focos sempre novos. O
capitalismo, porém, marca um progresso sobre tais condições. Ele preparou e, num certo
sentido, realizou a universalidade e a permanência do desenvolvimento da humanidade.
Por aí está excluída a possibilidade da repetição das formas de desenvolvimento das
diversas nações. Forçado a meter-se a reboque dos países avançados, um país atrasado
não se conforma com a ordem de sucessão: o privilégio de uma situação históricamente
atrasada – esse privilégio existe – autoriza um povo, ou mais exactamente, força-o a
assimilar tudo antes dos prazos fixados, saltando uma serie de etapas intermediárias. Os
selvagens renunciam ao arco e flechas, para tomar logo o fuzil, sem percorrer a distância
que separava, no passado, essas diferentes armas. Os Europeus que colonizaram a
América não retomavam a história pelo início. Se a Alemanha ou os Estados-Unidos
ultrapassaram a Inglaterra, foi justamente no seguimento de atrasos da sua evolução
capitalista. Em contrapartida, a anarquia conservadora na indústria carvoeira britânica,
como nos cérebros de MacDonald e dos seus amigos, é o resgato de um passado
durante o qual a Inglaterra – demasiado tempo – possuiu a hegemonia sobre o
capitalismo. O desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada conduz
necessariamente a uma combinação original de diversas fases do processo histórico. A
curva descrita toma no seu conjunto um carácter irregular, complexo, combinado.
A possibilidade de saltar por cima dos graus intermediários, não é, compreende-se,
completamente absoluta; ao fim das contas, ela está limitada pelas capacidades
económicas e culturais do país. Um país atrasado, aliás, rebaixa frequentemente o que
ele pede emprestado o pronto a usar no exterior para adaptar à sua cultura mais primitiva.
O próprio processo de assimilação toma, nesse caso, um carácter contraditório. É assim
que a introdução de elementos da técnica e do saber ocidentais, antes de mais a arte
militar e a manufactura, sob Pedro I, agravou a lei da servidão, como forma essencial da
organização do trabalho. O armamento à europeia e os empréstimos à Europa ao mesmo
título – incontestavelmente resultados de uma cultura mais elevada – conduziram ao
reforço do czarismo que, pelo seu lado, travou o desenvolvimento do país.
A lei racional da história não tem nada de comum com os esquemas pedantes. A
desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processo histórico, manifesta-se com

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maior vigor e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob a força das
necessidades exteriores, a vida retardatária é obrigada a avançar por saltos. Desta lei
universal de desigualdade dos ritmos decorre uma outra lei que, falta de denominação
mais apropriada, pode-se chamar lei do desenvolvimento combinado, no sentido da
reaproximação das diversas etapas, da combinação de fases distintas, da amalgama de
formas arcaicas com as mais modernas. Na falta desta lei, tomada, bem entendido, em
todo o seu conteúdo material, é impossível compreender a história da Rússia, como, em
geral, de todos os países chamados à civilização em segunda, terceira ou décima linha.
Sob a pressão da Europa mais rica, o Estado russo absorvia em comparação com o
Ocidente, uma parte relativa da riqueza pública muito mais forte, e não somente
condenava assim as massas populares a uma miséria dupla, mas enfraquecia também as
bases das classes possuidoras. O Estado, tendo porém necessidade do apoio destas
últimas, pressionava e regulava a sua formação. Resultado, as classes privilegiadas,
burocratizadas, nunca mais puderam levantar-se com todo o seu peso e o Estado russo
aproximava-se ainda mais dos regimes despóticos da Ásia.
A autocracia bizantina que os czars moscovitas se apropriaram oficialmente desde
do início do século XVI submeteu os grandes feudais, os boiardos, com a ajuda dos
nobres da Corte (dvoriane) e sujeitou estes últimos subjugando-lhes o campesinato para
se transformar em monarquia absoluta, a dos imperadores de Petersburgo. O atraso do
conjunto do processo é suficientemente caracterizado pelo facto que o direito de servidão
nascendo no fim do século XVI, estabelecido no XVII, atingiu o seu desenvolvimento no
XVIII e foi juridicamente abolido somente em 1861.
O clérigo, depois da nobreza, jogou na formação da autocracia czarista um papel
não negligenciável, mas unicamente o de um funcionalismo. A Igreja nunca se elevou na
Rússia ao grau de potência dominante que o catolicismo teve no Ocidente: ela contentou-
se com um estado de domesticidade espiritual junto dos autocratas e ela fazia-o com uma
humildade meritória. Os bispos e os metropolitas dispunham de um certo poder somente
a título de subalternos da autoridade civil. Havia mudança de patriarca quando sucedia
um novo czar. Quando a capital foi estabelecida em Petersburgo, a dependência da Igreja
em relação ao Estado tornou-se ainda mais servil. Duzentos mil padre e monjes
constituíram, em suma, uma parte da burocracia, uma especie de polícia confessional.
Em recompensa, o monopólio do clérigo ortodoxo nos assuntos da fé, as suas terras e
rendimentos, encontraram-se sob a protecção da polícia geral.
A doutrina eslavista, messiânica de um país atrasado, edificava a sua filosofia sobre
esta ideia que o povo russo e a sua Igreja são profundamente democratas, enquanto que
a Rússia oficial teria sido uma burocracia alemã, implantada por Pedro I. Marx notou
sobre esse sujeito:
“Foi portanto assim que os burros da Alemanha fazem recair a responsabilidade do
despotismo de Frederico II sobre os franceses, como se os escravos atrasados não
tivessem sempre necessidade da ajuda dos outros escravos mais civilizados para
aprender.”

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Esta breve nota atinge o fundo não somente da velha filosofia eslavista, mas
também as descobertas contemporâneas dos “racistas”.
A indigência, aspecto assinalável não somente da feudalidade russa, mas de toda a
história da antiga Rússia, encontra a sua expressão mais intolerável na falta de cidades
do verdadeiro tipo medieval, como centros de artesãos e de comerciantes. O artesanato
na Rússia não conseguiu destacar-se da agricultura e conservou o carácter das pequenas
indústrias locais. As cidades russas dos antigos tempos eram centros comerciais,
administrativos, militares, residências de proprietários nobres, em consequência centros
de consumo e não de produção. Mesmo Novgorod, que estava em relações com a Liga
Hanseática e nunca conheceu o jugo tatar, era unicamente uma cidade de comércio, e
não um centro de indústria. É verdade que dispersão das pequenas indústrias rurais nas
diversas regiões do país pedia serviços intermediários de uma actividade comercial
alargada. Mas os comerciantes nómadas não podiam de forma nenhuma ocupar na vida
social um lugar análogo ao que no Ocidente detinha a pequena e média burguesia das
corporações de artesãos, comerciantes, industriais, burgueses indissoluvelmente ligadas
à sua periferia rural. Além disso, as linhas magistrais do comércio russo conduziam ao
estrangeiro, assegurando desde séculos um papel dirigent ao capital comercial do exterior
e dando um carácter semi-colonial a todo o movimento de negócios no qual o comerciante
russo era intermediário, entre as cidades do Ocidente e a aldeia russa. Tais relações
económicas continuaram a desenvolver-se na época do capitalismo russo e encontraram
a sua expressão suprema na guerra imperialista.
A importancia insignificante das cidades russas contribuiu mais à elaboração de um
Estado de tipo asiático e excluía, em particular, a possibilidade de uma Reforma religiosa,
isto é da substituição da ortodoxia feudal e burocrática por uma variedade mais moderna
do cristianismo, adaptada às necessidades da sociedade burguesa. A luta contra a Igreja
do Estado não se coloca acima da formação de seitas de camponeses, cuja força era a
dos Velhos Crentes.
Quinze anos aproximadamente antes da grande Revolução francesa, eclodiu na
Rússia um movimento de cossacos, de camponeses e operários servos no Ural – o que
se chamou a revolta de Pougatchev. O que faltou a esse terrível levantamento popular
para que ele se transformasse em revolução? Um terceiro estado. Na falta de uma
democracia industrial das cidades, a guerra camponesa não podia transformar-se em
revolução, assim como as seitas religiosas dos campos não podiam erguer-se até à
Reforma. O resultado da revolta de Pougatchev foi, ao contrário, consolidar o absolutismo
burocrático, protector dos interesses da nobreza, que mostrou de novo o que ele valia na
hora difícil.
A europeização do país, começou formalmente sob Pedro I, tornava-se cada vez
mais, no decurso do século seguinte, uma necessidade para a classe dirigente, isto é
para a nobreza. Em 1825, os intelectuais desta casta, generalizando num sentido político
essa necessidade, chegaram à conspiração militar com o objetivo de restringir a a
autocracia. Sob o impulso da burguesia europeia que se desenvolvia, os elementos
avançados da nobreza experimentaram substituir um terceiro estado que faltava.

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Contudo, a intenção deles era de combinar o regime liberal com as bases da sua
dominação de casta, e era por isso que eles temiam sobretudo o levantamento dos
camponeses. Não é de espantar que esta conjura tivesse sido obra de um grupo brilhante
mas isolado, de oficiais que quebraram a espinha quase sem terem combatido. Tal foi o
sentido da revolta dos dezembristas.
Os nobres donos de fábricas foram os primeiros, da sua casta, a opinar a
substituição do trabalho dos servos pelo livre salariado. Eles foram nisso empurrados pela
exportação crescente do trigo russo. Em 1861, a burocracia nobre, apoiando-se sobre os
proprietários liberais, efectuou a sua reforma camponesa. Impotente, o liberalismo
burguês assistiu a esta operação na qualidade de coro dócil. Inútil de dizer que o
czarismo resolveu o problema essencial da Rússia – a questão agrária – de uma maneira
mais sovina e velhaca que aquela utilizada pela monarquia prussiana, nos dez anos que
seguiram, para resolver o problema essencial da Alemanha – a sua unificação nacional.
Que uma classe se encarregue de dar uma solução às questões que interessem a uma
outra classe, é uma das combinações que são naturais aos países atrasados.
Porém, a lei da evolução combinada mostra-se a mais incontestável na história e no
carácter da indústria russa. Esta, nascida tardiamente, não voltou a percorrer o ciclo dos
países avançados, mas ela inseriu-se, acomodando ao seu estado atrasado os resultados
mais modernas. Se a evolução económica da Rússia, no seu conjunto, saltou as épocas
do artesanato corporativo e da manufactura, vários desses ramos industriais também
saltaram certas etapas da técnica que tinham exigido, no Ocidente, dezenas de anos.
Seguidamente, a indústria russa desenvolveu-se, em certos períodos, com uma extrema
rapidez. Da primeira revolução até à guerra, a produção industrial da Rússia tinha pouco
mais ou menos duplicado. Isso parece a alguns historiadores russos um motivo suficiente
para concluir que seria necessário abandonar a legenda de um Estado atrasado e do
progresso lento do país. (Nota. Esta afirmação é do professor M. N. Pokrovsky. Ver
Apêndice I no fim do 2º volume.) Na realidade, a possibilidade de um progresso tão rápido
era precisamente determinada por um estado atrasado que, infelizmente, não somente
subsistiu até a liquidação do antigo regime, mas como herança deste último, manteve-se
até hoje.
O nível económico de uma nação é medido, essencialmente, pela produtividade do
trabalho, a qual, pelo seu lado, depende da densidade da indústria na economia geral do
país. Na véspera da guerra, quando a Rússia dos czares tinha chegado ao apogeu da sua
prosperidade, o rendimento público era, por pessoa, de oito a dez vezes inferior àquele
que se atingia nos Estados-Unidos, e não é de espantar se considerarmos que os quatro
quintos da população russa trabalhando para ela própria compunha-se de cultivadores,
enquanto que nos Estados-Unidos, para um cultivador havia 2,5 trabalhadores industriais.
Acrescentemos que na véspera da guerra, na Rússia, contavam-se 400 metros de vias
férreas por 100 Km2 , enquanto que a Alemanha contava 11,7 Km pela mesma extensão,
e que a Austria-Hungria, 7 Km. Os outros coeficientes comparativos são da mesma
ordem.

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Mas é precisamente no domínio da economia, como já foi dito, que a lei da evolução
combinada se manifesta com mais vigor. Enquanto que a agricultura camponesa ficava a
maior parte, até à revolução, quase ao nível do século XVII, a indústria russa, pela sua
técnica e estrutura capitalista, encontrava ao nível dos países avançados, e mesmo, em
certos aspectos, deixava-os para trás. As pequenas empresas cuja mão de obra não
ultrapassava as cem pessoas ocupavam em 1914 nos Estados Unidos, 35% do efectivo
total de operários industriais, enquanto que na Rússia a proporção era somente de 17,8%.
Admitindo um peso específico aproximadamente igual das médias e grandes empresas,
ocupando de cem a mil trabalhadores as empresas gigantes que ocupavam mais de mil
operários cada uma empregava nos Estados-Unidos somente 17,8% da totalidade dos
operários, enquanto que na Rússia a proporção era de 41,4%! Assim, para as principais
regiões industriais, a percentagem era mais elevada : para a região de Petrogrado, 44,4%
e mesmo, para a região de Moscovo, 57,8%. Chegar-se-à aos mesmos resultados se
estabelecer-mos uma comparação entre a indústria russa e a indústria britânica ou alemã.
Ese facto, estabelecido pela primeira vez por nós em 1908, inseria-se difícilmente na
representação banal que se dá de uma economia russa atrasada. Portanto, ele não
contesta o carácter atrasado, dá somente o complemento dialéctico.
A fusão do capital industrial com o capital bancário efectuou-se na Rússia, também,
de maneira tão completa que não se viu igual em nenhum outro país. Mas a indústria
russa, ao subordinar-se aos bancos, mostrava efectivamente que ela submetia-se ao
mercado monetário da Europa ocidental. A indústria pesada (metais, carvão, petróleo)
estava quase completamente sob o controlo da finança estrangeira que tinha constituido
para seu uso, na Rússia, uma rede completa de bancos auxiliares e intermediários. A
indústria ligeira seguia o mesmo caminho. Se os estrangeiros possuíam, no conjunto,
pouco mais ou menos 40% de todo o capital investido na Rússia, essa percentagem nos
ramos industriais directores era nitidamente mais elevada. Pode-se afirmar sem exagero
que a bolsa de controle das acções emitidas pelos bancos, fábricas e companhias russas
encontravam-se no estrangeiro, e a participação dos capitais da Inglaterra, da França e
da Bélgica duplicava comparativamente à Alemanha.
As condições nas quais se constituía a indústria russa, a estrutura mesmo de esta
indústria, determinaram o carácter social da burguesia do país e a sua fisionomia política.
A alta concentração da indústria marcava já ela própria que entre as esferas dirigentes do
capitalismo e as massas populares, não havia nenhuma hierarquia intermediária. Ao que
se juntava as mais importantes empresas industriais, da banca e dos transportes eram
propriedade de estrangeiros que, não somente acumulavam lucros na Rússia, mas
firmavam a sua influência política nos parlamentos de outros países, e que, longe de
favorecer a luta pelo regime parlamentar na Rússia, opunham-se muitas vezes. Basta
aqui lembrar o papel abominável que jogou a França oficial. Tais foram as causas
elementares e irredutíveis do isolamento político da burguesia russa e da sua atitude
contrária aos interesses populares. Se, na aurora da sua história, ela mostrou-se
demasiado pouco madura para efectuar uma Reforma, ela estava demasiado quando veio
o momento de dirigir a revolução.

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No conjunto da evolução do país, a reserva donde saía a classe operária russa não
foi o artesanato corporativo: foi o meio rural; não a cidade, mas a vila. Note-se aqui que o
proletariado russo formou-se não pouco a pouco, no decurso dos séculos, arrastando o
fardo do passado, como na Inglaterra, mas que ele procedeu por saltos, por mudanças
bruscas de situações, de ligações, de relações, e por rupturas violentas com o que existia
na véspera. É precisamente assim – sobretudo no regime de opressão concentrada do
czarismo – que os operários russos tornaram-se acessíveis às deduções mais ousadas
do pensamento revolucionário, assim que a indústria russa atrasada encontrou-se capaz
de ouvir a última palavra da organização capitalista.
O proletariado russo voltou sempre ao início da história da sua origem. Enquanto
que, na indústria metalúrgica, sobretudo em Petersburgo, se cristaliza o elemento do
proletariado de raíz autêntica, aquele que tinha definitivamente rompido com a aldeia – no
Ural predominava ainda o tipo de meio proletário, ele próprio meio camponês. O afluxo
anual da mão de obra que fornecia o campo a todos os distritos industriais restabelecia o
contacto entre proletariado e a reserva social donde ele tinha saído.
A incapacidade política da burguesia foi determinada directamente pelo carácter das
suas relações com o proletariado e os camponeses. Ela não podia arrastar consigo os
operários que se lhe opunham odiosamente na vida cotidiana, e que, cedo, aprenderam a
dar um sentido mais geral às suas ambições. Por outro lado, a burguesia foi igualmente
incapaz de arrastar a classe camponesa, porque foi apanhada nas malhas dos interesses
comuns com os dos proprietários de terras, e que temia uma ameaça à propriedade, de
qualquer maneira que fosse. Se a revolução russa tardou a desencadear, não foi somente
uma questão de cronologia: a causa deve-se também à estrutura social da nação.
Quando a Inglaterra realizou a sua revolução puritana, a população do país não
excedia cinco milhões quinhentos mil almas, cujo meio milhão em Londres. A França,
quando a ela fez a sua revolução contava em Paris com meio milhão de habitantes sobre
vinte cinco milhões do conjunto da sua população, a Rússia, no início do século XX
contava cerca cento e cinquenta milhões de habitantes, com mais de três milhões em
Petrogrado e Moscovo. Esses números, comparados cobrem além disso diferenças
sociais da mais alta importancia. Não somente a Inglaterra do século XVII, mas a França
do século XVIII ignoravam ainda o proletariado que conhece a nossa época. Ora, na
Rússia, a classe operária, em todos os domínios do trabalho, nas cidades e nos campos,
contava já, em 1905, pelo menos dez milhões de pessoas, o que representava mais de
vinte e cinco milhões – famílias incluídas – quer dizer mais que a população da França na
época da sua grande Revolução. Partido dos rudes artesãos e dos camponeses
independentes que formaram o exército de Cromwell, tomando seguidamente os sans-
culottes de Paris, para chegar aos proletários das indústrias de Petersburgo, a revolução
modificava profundamente o seu mecanismo social, os seus métodos, e, por
consequência, as suas desígnios.
Os acontecimentos de 1905 foram o prólogo das duas revoluções de 1917 – a de
Fevereiro e a de Outubro. O prólogo continha já todos os elementos do drama, que,
porém, não estavam afinados. A guerra russo-japonesa fez tremer o czarismo. Utilizando

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o movimento de massas como contraste, a burguesia liberal alarmou a monarquia pela
sua oposição. Os operários organizavam-se independentemente da burguesia, opondo-se
mesmo a ela, quando nasceram os sovietes (ou conselhos) pela primeira vez. A classe
camponesa insurgia-se sobre uma imensa extensão de território, pela conquista de terras.
Da mesma forma que os operários agrícolas, os efectivos revolucionários no exército
foram atraídos pelos soviets, os quais, no momento onde o desenvolvimento
revolucionário era mais forte, disputaram abertamente o poder à monarquia. Todavia,
todas as forças revolucionárias se manifestaram pela primeira vez, elas não tinham
experiência, faltava-lhes firmeza. Os liberais afastaram-se ostensivamente da revolução
quando se tornou evidente que não bastava fazer tremer o trono, mas que era necessário
o derrubar. A brutal ruptura da burguesia com o povo – tanto mais que a burguesia
arrastava desde então consideráveis grupos de intelectuais democratas – facilitou à
monarquia a sua obra de desagregação no exército, de escolha de contingentes fiés e de
repressão sangrenta contra os operários e camponeses. O czarismo, mesmo tendo
algumas costelas quebradas, saía vivo, suficientemente vigoroso, das dificuldades de
1905.
Quais foram então, nas relações de força, as modificações que a evolução histórica
provocou, no decurso dos onze anos, entre o prólogo e o drama? O regime czarista,
nesse período, chegou a colocar-se ainda mais em contradição com as exigências da
história. A burguesia tornou-se económicamente mais poderosa, mas, como já vimos, a
potência repousava sobre uma concentração mais forte da indústria e do crescimento do
papel do capital estrangeiro. Influenciada pelas lições de 1905, a burguesia fez-se mais
conservadora e desconfiada. O peso específico da pequena e média burguesia, antes já
insignificante, diminui ainda mais. Os intelectuais democratas não tinham geralmente
base social estável. Eles podiam exercer provisoriamente uma certa influência política
mas não jogavam um papel independente: a submissão dos intelectuais em relação ao
liberalismo burguês tinha-se agravada extraordinariamente. Nessas condições, só o
jovem proletariado pode dar à classe camponesa um programa, uma bandeira, uma
direcção. Os grandes problemas que se colocavam assim diante dele necessitaram a
criação sem demora de uma organização revolucionária especial, que poderia englobar
de uma só vez as massas populares e as tornar capazes de uma acção revolucionária
sob a direcção do operariado. Foi assim que os sovietes de 1905 conheceram um
desenvolvimento formidável em 1917. Note-se que os sovietes não são simplesmente
uma produção devida ao estado históricamente atrasado da Rússia, mas resultam de um
desenvolvimento combinado; a tal ponto que o proletariado do país mais industrial, a
Alemanha, não encontrou, na época do desenvolvimento revolucionário de 1918-1919,
outra forma de organização que os sovietes.
A revolução de 1917 tinha por objetivo imediato derrubar a monarquia burocrática.
Mas ela diferenciava-se das antigas revoluções burguesas no que respeita o elemento
decisivo que se manifestava agora era uma nova classe, constituida na base de uma
indústria concentrada, porvida de uma nova organização e de novos métodos de luta. A lei
do desenvolvimento combinado mostra-se aqui na sua expressão mas extrema:

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começando por derrubar o edifício medieval podre, a revolução levou ao poder, em alguns
meses, o proletariado com o partido comunista à cabeça.
Assim, segundo as suas tarefas iniciais, a revolução russa foi democrática. Mas ela
colocava de uma maneira nova o problema da democracia política. Enquanto os operários
cobriam todo o país de sovietes, juntando-lhe os soldados, et, parcialmente, os
camponeses, a burguesia continuava a negociar, questionando-se se ele convocaria ou
não a Assembleia constituinte. No decurso dos acontecimentos, esta questão apresenta-
se-nos de maneira concreta. Aqui, não queremos senão marcar o lugar dos sovietes na
sucessão histórica das ideias e das formas revolucionárias.
No meio do século XVII, a revolução burguesa, em Inglaterra, desenrolou-se sob a
cobertura de uma Reforma religiosa. A luta pelo direito de czar segundo um certo livro de
horas identificou-se à luta travada contra o rei, a aristocracia, os principes da Igreja e
Roma. Os presbiterianos e puritanos estavam convencidos de ter colocado seus
interesses terrestres sob a égide firme da divina providência. Os objetivos pelos quais
combatiam as novas classes confundiam-se indissoluvelmente, na sua mentalidade, com
os textos da Bíblia e com os ritos eclesiásticos. Os que emigraram levaram com eles esta
tradição confirmada no sangue. Daí a excepcional vitalidade das interpretações do
cristianismo dadas pelos Anglo-saxões. Vemos ainda hoje ministros “socialistas” da
Grande Bretanha basear a sua cobardia sobre textos mágicos nos quais as pessoas do
século XVII justificavam a sua coragem.
Em França, país que tinha saltado por cima da Reforma, a Igreja católica, na sua
qualidade de Igreja do Estado, conseguiu viver até à revolução que encontrou, não nos
textos bíblicos, mas nas abstracções democráticas, uma expressão e uma justificação
para os desígnios da sociedade burguesa. Qualquer que seja o ódio dos regentes actuais
da França pelo jacobismo, é um facto que, precisamente graças à acção rigorosa de um
Robespierre, eles têm ainda a possibilidade de dissimular a sua dominação de
conservadores sob formulas que, outrora, fizeram saltar a velha sociedade.
Cada revolução marcou uma nova etapa da sociedade burguesa e novos aspectos
da consciência das suas classes. Da mesma maneira que a França saltou por cima da
Reforma, a Rússia ultrapassou com um salto a democracia de simples forma. O partido
revolucionário da Rússia que devia selar sobre uma época completa procurou uma
formula para os problemas da revolução não na Bíblia nem no cristianismo secularizado
duma “pura” democracia, mas nas relações materiais existentes entre as classes. O
sistema dos sovietes deu a essas relações a mais simples expressão, a menos
disfarçada, a mais transparente. A dominação dos trabalhadores pela primeira vez
realizou-se no sistema dos sovietes, que, qualquer que tenham sido as peripécias
históricas mas próximas, entrou na consciência das massas de forma tão inextirpável que
nos outros tempos da Reforma ou a pura democracia.

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A Rússia czarista e a guerra
A participação da Rússia na guerra tinha contradições nos motivos e nos objectivos.
Com efeito, a luta sangrenta tinha por fim a dominação mundial. Nesse sentido, ela
ultrapassava as possibilidades da Rússia. O que se chamava os objectivos de guerra da
Rússia (os estreitos na Turquia, Galicia, Arménia) tinha uma importância muito relativa,
provincial, e não podia ter solução senão acessoriamente, tanto que não convinha aos
interesses dos principais beligerantes.
Ao mesmo tempo, a Rússia, na qualidade de grande potência, não podia abster-se
de participar na luta dos países capitalistas mais avançados, da mesma maneira que ela
não teria podido, durante a época precedente, dispensar-se de estabelecer no país
fábricas, vias férreas, adquirir armamento moderno e aviões. Frequentemente, entre os
historiadores russos da nova escola, as discussões iam ao ponto de saber em que
medida a Rússia czarista estava madura para uma política imperialista moderna, mas
essas controvérsias caem sempre na escolástica, porque se considera a Rússia sobre o
terreno internacional como um elemento isolado, como um factor independente. Ora, a
Rússia era somente um elo de um sistema.
A Índia, na forma e no conteúdo, participou na guerra como colónia da Inglaterra. A
intervenção da China, “voluntária” no sentido formal, era na realidade a intervenção de um
escravo numa rixa entre donos. A participação da Rússia tinha um carácter mal definido,
intermediário entre a participação da França e a da China. A Rússia pagava assim o
direito de ser a aliada de países avançados, de importar capitais e de pagar juros, isto é,
em suma, o direito de ser uma colónia privilegiada dos seus aliados; mas, ao mesmo
tempo, ela adquiria o direito de oprimir e de espoliar a Turquia, a Pérsia, a Galicia e em
geral os países mais fracos, mais atrasados que ela. O imperialismo equivoco da
burguesia russa tinha, no fundo o carácter de uma agência ao serviço das grandes
potências mundiais.
O sistema de compradores (intermediários comerciais) na China apresenta o tipo
clássico de uma burguesia nacional constituída em agência entre o capital financeiro
estrangeiro e a economia do seu próprio país. Na hierarquia mundial dos Estados, a
Rússia ocupava antes da guerra um lugar muito mais elevado que o da China. Que lugar
a Rússia teria ocupado após a guerra se a revolução não tivesse vindo? É uma outra
questão. Mas a autocracia russa, por um lado, a burguesia russa por outro, tinham
caracteres cada vez mais marcados de compradorismo: uma e outra viviam e subsistiam
da sua ligação com o imperialismo estrangeiro, serviam-no e não podiam manter-se sem
se apoiar nele. É verdade que no fim dos fins elas não podiam resistir, mesmo apoiadas
por ele. A burguesia russa meio compradora da finança estrangeira tinha interesses
imperialistas mundiais ao mesmo título que um agente retribuído por uma percentagem
está interessado nos negócios do seu patrão.
O instrumento de uma guerra, é um exército. Dado que todo exército, na mitologia
nacionalista, tem a reputação invencível, as classes dirigentes da Rússia não tinham
nenhum motivo de abrir uma excepção para o exército do czar. Na realidade, este exército

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não constituía uma força séria senão contra os povos meio bárbaros, os vizinhos pouco
consideráveis e os Estados em decomposição; sobre o terreno europeu, este exército não
podia agir senão como componente de coligações; para a defesa do país, ele não
preenchia a tarefa senão tirando partido dos imensos espaços onde a população era rara
e os caminhos impraticáveis. A virtude do exército de camponeses (mujiques) servos foi
Souvorov. A revolução francesa, que tinha escancarado as portas a uma nova sociedade
e a uma nova arte militar, deu o veredicto implacável contra o exército de Souvorov.
A meia abolição da servidão e a instituição do serviço militar obrigatório
modernizaram o exército tanto mais que o país – dito de outra forma, introduziram no
exército todos os organismos da nação que tinha ainda que fazer a sua revolução
burguesa. Na verdade, o exército czarista construía-se e armava-se segundo os modelos
ocidentais; mas isso aplicava-se mais sobre a forma que sobre o fundo. Entre o nível
cultural do camponês soldado e o nível da técnica militar não havia correspondência. No
corpo dos oficiais manifestava-se a ignorância grosseira, a preguiça, e a patifaria das
classes dirigentes da Rússia. A indústria e os transportes mostravam-se invariavelmente
incapazes de responder às exigências concentradas em tempo de guerra. Armadas, ao
que parece no primeiro dia das hostilidades, como convinha, as tropas encontraram-se
logo desprovidas não somente de armas, mas mesmo de botas. No decurso da guerra
russo-japonesa, o exército do czar mostrou o que valia. Na época da contra-revolução, a
monarquia, secundada pela Duma, encheu os depósitos de material de guerra e fez no
exército múltiplas remendos, atamancando também a sua reputação de invencibilidade.
Com a guerra de 1914 veio uma nova verificação, muito mais penosa.
Considerando os abastecimentos de guerra e as finanças, a Rússia encontrou-se
logo na dependência servil diante dos seus aliados. Havia aí a expressão militar da
dependência geral onde ela vivia em relação aos países capitalistas avançados. Mas a
ajuda oferecida pelos Aliados não salvou a situação. A falta de munições, o pequeno
número de fabricantes, o alongamento da rede rodoviária que deve distribuir traduzia o
estado atrasado da Rússia na linguagem clara das derrotas que lembravam aos
nacionais-liberais russos que os seus antepassados não tinham feito a revolução
burguesa e que, em consequência, a posteridade era devedora diante da história.
Os primeiros dias da guerra foram os primeiros da vergonha. Após um certo número
de catástrofes parciais, uma retirada geral declarou-se na Primavera de 1915. Os
generais vingavam-se da sua incapacidade criminosa sobre a população civil. Imensos
territórios foram devastados pela violência. O gafanhoto humano foi expulso a golpes de
nagaika (estilete camuflado no cabo de um chicote) em direcção à retaguarda. O desastre
da frente completou-se por um desastre no interior.
O general Polivanov, ministro da Guerra, respondendo às questões ansiosas dos
seus colegas sobre a situação na frente, declarou literalmente o que segue:
“Confiando na imensidão do nosso território, contando sobre as nossas lamas
impraticáveis, remeto-me também às boas graças de São Nicolau, padroeiro da Santa
Rússia.” (Conselho de ministros, processo verbal do 4 de Agosto 1915)

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Oito dias mais tarde, o general Roussky fazia aos mesmos ministros a confissão
seguinte:
“As exigências modernas das técnica militar são superiores às nossas
possibilidades. De qualquer forma, nós não podemos rivalizar com os alemães.”
E não era uma anedota. Um oficial chamado Stankevitch, relatou deste modo as
palavras de um chefe do corpo de engenharia:
“a guerra contra os alemães é sem apelo, porque não estamos em condições de
fazer o que quer que seja. Os novos métodos de luta tornam-se para nós as causas de
revés.”
Existem numerosos testemunhos nesse sentido.
A única coisa sobre a qual os generais russos se entendiam bem, era fornecer a
carne para canhão. Economizou-se bastante sobre a carne de vaca e de porco. As
incompetências que se encontravam à frente do Grande Quartel-General (G. Q. G.) tais
que Ianochkevitch sob o comando de Nicolas Nicolaievitch, e Alexeiev sob o comando do
czar, tapavam todas as brechas com novas mobilizações e consolavam eles e os aliados,
em alinhar colunas de cifras enquanto se necessitavam de colunas de combatentes.
Cerca de quinze milhões de homens foram mobilizados, enchendo os depósitos, quartéis,
acampamentos, multidões em tumulto que tripudiavam, onde se esmagavam pés,
multidões exasperadas que maldiçoavam. Se na frente esta massa humana foi um valor
ilusório, ela foi, na retaguarda um factor muito activo de desespero. Houve cerca de 5
milhões 500 000 de mortos, feridos e prisioneiros. O número de desertores aumentava. A
partir de Julho 1915, os ministros propagavam a lamentação:
“Pobre Rússia! Mesmo o seu exército que outrora tinha enchido o mundo com a
trovoada das suas vitórias, compõe-se agora de desertores e cobardes!”
Os próprios ministros, com o seu estilo de traquinas zombavam da “valentia dos
generais em retirada”, mas eles perdiam ao mesmo tempo horas a discutirem esse
problema: evacuar-se-ia ou não as relíquias de Kiev. O czar considerava que não ser
indispensável, porque os alemães não ousariam tocá-las, e, nos casos que se atrevessem
não seria tão importante.” Todavia, o Santo Sínodo tinha já iniciado a evacuação: “Ao
partir, nós levamos o que nos é caro...” Isto passava-se não na época das cruzadas, mas
no século XX, quando as derrotas da Rússia eram anunciadas pela rádio.
Os sucessos obtidos pela Rússia sobre a Austria-Hungria provinham muito mais do
estado de esta que da Rússia. A monarquia dos Habsburgo, em dissolução, reclamava há
muito tempo o seu coveiro, sem mesmo exigir que ele fosse altamente qualificado. A
Rússia, mesmo no passado, tinha tido a supremacia sobre os Estados em decomposição
como a Turquia, a Polónia ou a Pérsia. A frente Sul-Este das tropas russas, que era
dirigida contra a Austria-Hungria, conheceu grandes vitórias que distinguiram entre as
outras frentes. Aqui manifestaram-se vários generais que, na verdade, não demonstraram
de forma nenhuma suas aptidões de guerreiros, mas não estavam, de qualquer forma,

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embebidos desse fatalismo que caracteriza os capitães invariavelmente derrotados. É
desse meio que saíram mais tarde certos “heróis”, entre os Brancos, na guerra civil.
Por todo o lado procurava-se a quem se agarrar. Acusava-se de espionagem, sem
excepção, todos os judeus. Sacavam-se as pessoas cujo apelido era alemão. O G. Q. G.
do grande duque Nicolas Nicolaievitch mandou fuzilar o coronel da guarda Miassoiedov,
como espião alemão – que provavelmente não era. O ministro da Guerra Soukhomlinov
foi preso, homem insignificante e tarado, acusando-o talvez com fundamento, de alta
traição. O ministro dos Negócios estrangeiros da Grande-Bretanha, sir Edward Grey,
declarou ao presidente da delegação parlamentar da Rússia que o governo do czar agia
temerariamente se decidia, em tempo de guerra, acusar de traição o ministro da Guerra.
Os estados-maiores e a Duma acusavam de germanofilia a Corte imperial. Toda a
gente tinha ciúmes dos Aliados e detestava-os. O comando francês poupava as suas
tropas, expondo primeiro os soldados russos. A Inglaterra avançava lentamente. Nos
salões de Petrogrado e nos estados-maiores da frente, entregavam-se a gracinhas
inocentes: “A Inglaterra, dizia-se, jurou de aguentar até à última gota de sangue...do
soldado russo.” Tais piadas deslizavam para níveis inferiores e se repetiam na frente.
“Tudo pela guerra!” diziam os ministros, os deputados, os generais, os jornalistas. “Sim,
começava a dizer o soldado na trincheira, todos eles estão prontos a batalhar até à última
gota … do meu sangue.”
O exército russo, no decurso da guerra, sofreu mais percas que qualquer outro
exército comprometido no massacre : houve cerca de 2 milhões 500 000 homens mortos,
seja 40% das percas de todos os exércitos da Aliança. Durante os primeiros meses, os
soldados caiam sob os projecteis sem reflectir ou sem muita reflexão. Mas, de um dia ao
ao outro, sua experiência aumentava, a amarga experiência das camadas inferiores que
não se é capaz de comandar. Eles avaliavam a imensidade da desordem criada pelos
generais segundo as inúteis marchas e contramarchas feitas com solas que se
desmanchavam, segundo as cifras dos almoços que faltaram. Na sangrenta derrocada de
gentes e coisas, uma palavra sobressaía que explicava tudo: “Que absurdidade!” E, na
linguagem do soldado, o termo era mais apimentado.
A decomposição era mais rápida que noutro lado na infantaria, composta de
camponeses. A artilharia, que conta uma proporção muito forte de operários industriais,
distingue-se, em geral, por uma capacidade incomparavelmente maior de assimilação de
ideias revolucionarias: tinha-se visto em 1905. Se, em, 1917, pelo contrário, a artilharia se
mostrou mais conservadora que a infantaria, isso deve-se aos quadros desta última que
filtravam constantemente novas massas humanas, cada vez menos educadas; enquanto
a artilharia, que sofria percas infinitamente menores, tinha guardado os seus antigos
quadros. A mesma observação deveria ser feita com as outras armas especiais. Mas, no
fim de contas, a artilharia também começou a ceder.
Durante a retirada de Galicia, uma ordem secreta do generalíssimo recomendava
que se fizesse dessem vergastadas aos soldados que desertassem ou seriam culpados
de outros crimes. O soldado Pireiko diz nas suas memórias:

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“Os homens foram fustigados pelo mais pequeno delito, por exemplo por se
ausentarem algumas horas sem autorização; às vezes as vergastadas eram dadas
unicamente para levantar a moral das tropas!”
A partir de 17 Setembro 1915, Koropatkine notava, ao referir-se a Goutchkov:
"Soldados e sargentos começaram a guerra com aplicação. Agora estão extenuados
e, à força de bater em retirada, perderam qualquer fé na vitória.”
Pouco mais ou menos na mesma data, o ministro do Interior declarava sobre os
trinta mil soldados que se encontravam em convalescença em Moscovo:
“São elementos turbulentos que se insurgem contra qualquer disciplina, fazem
escândalo, metem-se em rixas com os agentes da polícia (ultimamente, um agente foi
morto por um soldado), que libertam pela força os indivíduos que são presos, etc. Sem
dúvida que em caso de sarilhos, toda a horda tomará o partido da multidão.”
O soldado Pireiko, já citado, continua:
“Todos, sem excepção, só se interessam a uma coisa: a paz... Quem seria o
vencedor? Que daria esta paz? Era a menor das preocupações do exército: ela queria a
paz a qualquer preço, porque ele estava cansado da guerra.”
Uma boa observadora, S. Fedortchenko, que serviu como enfermeira, surpreendeu
conversas de soldados, quase que adivinhou seus pensamentos, e anotou-os
correctamente no papel. Daí resultou um livrinho, O povo na guerra, o qual permite um
golpe de vista no laboratório onde as granadas, o arame farpado, os gazes asfixiantes e
vileza da autoridades trabalhavam durante longos meses, a consciência de vários milhões
de camponeses russos e onde foram triturados, ao mesmo tempo que os ossos das
criaturas humanas, preconceitos centenários. Muitos aforismos originais pronunciados
pelos soldados continham já as palavras de ordem da próxima guerra civil.
O general Roussky queixava-se em Dezembro 1916 de que Riga era a grande
miséria da frente setentrional. Era, segundo ele, um “ninho de propaganda”, assim que
Dvinsk. O general Brossilov confirmava esse julgamento: os efectivos que voltavam do
sector de Riga chegavam desmoralizados, os soldados recusavam de atacar, eles
mataram um capitão à baioneta, alguns homens tiveram que ser fuzilados, etc. “O terreno
propício a desagregação definitiva do exército já existia antes da revolução”, confessa
Rodzianko, que estava ligado aos círculos de oficiais e tinha visitado a frente.
Os elementos revolucionários, disseminados no início, infiltraram-se no exército sem
deixar rasto. Mas, à medida que se afirmava o descontentamento geral, eles emergiram.
Quando se expediu para a frente, por medida disciplinar, os operários que entraram em
greve, as fileiras dos agitadores reforçaram-se, e os movimentos de recuo do exército
dispunham a seu favor auditórios. A Segurança (Okhrana) declarava num relatório:
“O exército, na retaguarda e particularmente na frente, está cheia de elementos que
são capazes de se tornarem forças activa de um levantamento que outros não poderiam
senão recusar de reprimir...”

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A direcção da guarda da província de Petrogrado comunica, em Outubro 1916,
baseando-se no relatório de um investido de poder da União dos zemstvos, que o estado
de espírito do exército é alarmante, que as relações entre oficiais e soldados são
extremamente tensas, que se produz mesmo afrontamentos sangrentos, que, de todos os
lados, se encontraram milhares de desertores. “Alguém que permaneça junto do exército
deve ter a impressão sincera e completa que de uma incontestável desmoralização das
tropas.” Por prudência, o comunicado acrescenta que, se as informações parecem
credíveis em vários aspectos, mesmo assim é necessário dar crédito, tanto mais que
numerosos médicos retornados da frente deram informações idênticas.
O estado de espírito na retaguarda correspondia ao da frente. A conferência do
partido cadete, em Outubro 1916, a maioria dos delegados mostrara apatia e falta de fé
na vitória “em todas as camadas da população particularmente nos campos e entre a
classe pobre das cidades”. A 30 de Outubro 1916, o director do Departamento da polícia,
resumindo um certo número de relatórios, escreveu o que se segue:
“Observa-se de todo o lado e em todas as camadas da população uma sorte de
lassidão causada pela guerra, um desejo ardente de paz expeditiva, quaisquer que sejam
as condições que esta seja concluída...”
Alguns meses mais tarde, todos esses senhores, deputados e polícias, generais e
investidos de poder dos zemstvos, médicos e ex-guardas, afirmavam com tanta
segurança, que a revolução matou, no exército, o patriotismo e uma vitória garantida
antecipadamente lhe tinha sido confiscada pelos bolcheviques.
Foram indiscutivelmente os cadetes (constitucionalistas-democratas) que
interpretavam o papel de corifeu no concerto belicoso dos patriotas. Tendo rompido seus
laços problemáticos com a revolução desde do fim de 1905, o liberalismo, logo de início
da contra-revolução, levantou a bandeira do imperialismo. Esta nova atitude era a
consequência da primeira: a partir do momento que era impossível desembaraçar o país
das velharias do feudalismo, para assegurar à burguesia uma situação dominante, só
faltava concluir uma aliança com a monarquia e a nobreza, com o objectivo de melhorar a
situação do capital russo no mercado mundial. Se é exacto que a catástrofe universal foi
preparada por diversos lados, de tal maneira que ela foi, até um certo ponto, inesperada,
mesmo para os organizadores mais responsáveis, é pouco duvidoso que, na preparação
desta catástrofe, o liberalismo russo, como animador da política exterior da monarquia,
não se encontrava na última fila.
A guerra de 1914 foi reconhecida pelos líderes da burguesia russa como sendo a
sua própria guerra. No decurso de uma sessão solene da Duma de Estado, em 26 Julho
1914, o presidente da fracção cadete declarava isto:
“Nós não colocamos condições nem reivindicações; nós jogamos na balança nossa
firme vontade de vencer o adversário.”
A União sagrada, tornava-se, também na Rússia, a doutrina oficial. Durante as
manifestações patrióticas que tiveram lugar em Moscovo, o conde Benckendorf, grande
mestre-de-cerimónias, afirmou na presença de diplomatas:

23
“É essa aí a revolução que nos prediziam em Berlim?”
O embaixador da França, Paléologue, acrescentava:
“Um mesmo pensamento parece ter-se amparado de todos.”
Essa gente acreditava que era seu dever de alimentar e de semear ilusões em
circunstâncias que, pensar-se-ia, excluíam qualquer possibilidade de engano.
As lições que deviam remediar a esta bebedeira não se fizeram esperar muito
tempo. Pouco depois do início da guerra, um dos cadetes mais expansivos, Roditchev,
advogado e proprietário de terras, afirmou no seio do Comité central do seu partido:
“Pensam vocês que com esses imbecis se possa obter a vitória?”
Os acontecimentos provaram que não se pode ser vencedor quando se é
comandado por imbecis. Tendo perdido mais que metade a esperança de vencer, o
liberalismo tentou utilizar a situação criada pela guerra para proceder à depuração da
camarilha e obrigar a monarquia a um arranjo. O principal meio empregado foi acusar o
partido da Corte de ter sentimentos germanófilos e de tramar uma paz separada.
Na Primavera de 1915, quando as tropas nas linhas da frente desprovidas de armas
recuaram, nas esferas governamentais decidiu-se, não sem um certa pressão dos
Aliados, em apelar à iniciativa da indústria para os fornecimentos do exército. Com este
propósito foi constituído uma Conferência especial que se compôs, com os burocratas, de
industriais designados entre os mais influentes. As Uniões de zemstvos e das cidades que
foram criadas no início das hostilidades, assim que os Comités das indústrias de guerra,
formados na Primavera de 1915, tornaram-se os pontos de apoio da burguesia na sua
luta pela vitória e pelo poder. A Duma de Estado, apoiando-se sobre essas organizações,
devia manifestar-se com mais ousadia, como intermediária entre a burguesia e a
monarquia.
Grandes perspectivas políticas não desviavam, no entanto, a atenção dos pesados
problemas da actualidade. A Conferência especial, reserva central, dezenas, centenas de
milhões que se juntaram em biliões, foram distribuídos por canais ramificados, irrigando
abundantemente a indústria, satisfazendo pelo caminho uma multitude de apetites. A
Duma de Estado e na imprensa, certos benefícios de guerra para 1915-1916 foram
trazidos ao conhecimento do publico: a Companhia do Têxtil que pertencia a
Riabochinsky, liberais moscovitas, confessava 75% de lucros líquidos; a Manufactura de
Tver obteve mesmo 111%; a Laminagem de cobre de Koltchoguine, cujo capital era de 10
milhões, tinham ganho mais de 12 milhões num ano. Nesse sector, a virtude patriótica era
recompensada generosamente, e, note-se, sem demora.
A especulação de todo o tipo e o jogo na Bolsa atingiram o paroxismo. Imensas
fortunas elevaram-se sobre uma espuma de sangue. O pão e o combustível faltaram na
capital: isso não impediu o joalheiro Fabergé – fornecedor titular da Corte imperial – de
anunciar soberbamente que nunca tinha feito assim tão belos negócios. Vyroubova, dama
de honor da czarina, relata que em nenhuma outra estação precedente não se
encomendou tantos adornos, não se compraram tantos diamantes como no Inverno 1915-

24
1916. As boîtes de noite estavam sobrepovoadas de heróis da retaguarda, emboscados e,
simplesmente falando, personagens honradas que eram demasiado idosas para combater
na frente, mas suficientemente jovens para levar uma vida alegre. Os grandes duques
não foram os últimos a participar no festim dado em tempo de peste. (Alusão a um poema
celebre do grande poeta russo Alexandre Pouchkine.) Ninguém hesitou em fazer
despesas excessivas. Uma chuva de ouro caía do alto sem parar. A “alta sociedade”
estendia os braços, abria os bolsos para “apanhar”, as damas da aristocracia levantavam
as suas saias o mais alto que podiam, todos patinhavam na lama sangrenta – banqueiros,
intendentes, industriais, bailarinas do czar e dos grandes duques, prelados da Igreja
ortodoxa, damas e meninas da Corte, deputados liberais, generais da frente e da
retaguarda, advogados radicais, sereníssimos tartufos de um ou outro sexo, numerosos
sobrinhos e sobretudo numerosa sobrinhas. Todos apressavam-se em saquear e
alambazar, com a apreensão de ver o fim da chuva de ouro, tão bendita, e todos
empurravam com indignação a ideia de uma paz prematura.
Os lucros realizados em comum, as derrotas no exterior, os perigos no interior
estabeleceram uma aproximação entre os partidos das classes possuidoras. A Duma, que
tinha estado dividida na véspera da guerra, encontrou em 1915 a sua maioria de oposição
patriótica que passou a chamar-se “bloco progressista”. O objectivo oficialmente
confessado foi, bem entendido, “satisfazer as necessidades provocadas pela guerra”.
Nesse bloco não entraram, da esquerda os sociais-democratas e os trabalhistas, da
direita os pequenos grupos que eram bem conhecidos como os Cem Negros
(extremamente reaccionários). Todas as outras fracções da Duma – os cadetes, os
progressistas, os três grupos de outubristas, o centro e uma parte dos nacionalistas,
entraram no bloco ou se juntaram a ele, mesmos grupos nacionalistas: polacos, lituânios,
muçulmanos, judeus e outros.
Temendo enfurecer o czar ao pedir-lhe um ministério responsável, o bloco reclamou
“um governo unificado, composto de personalidades gozando da confiança do país”.
Desde então, o principe Chtcherbatov, ministro do Interior, caracterizava o bloco como um
grupo provisório, “uma coligação nascida das apreensões que se tem de uma revolução
social”. Aliás, para compreender esse raciocínio, não era necessário uma grande
perspicácia. Miliokov, que estava à cabeça dos cadetes, e em consequência do bloco de
oposição, dizia numa conferência do seu partido:
“Nós caminhamos sobre um vulcão... A tensão atingiu o seu grau extremo... Basta
um fósforo jogado por imprudência para provocar um tremendo incêndio...Qualquer que
seja o poder – mau ou bom - um poder firme é, por enquanto, mais necessário que
nunca.”
Se a esperança era grande em ver o czar, impressionado por tantos desastres, fazer
concessões, que, na imprensa liberal, apareceu no mês de Agosto uma lista feita de
antemão dos membros de um “gabinete da confiança”: o presidente da Duma, Rodzianko,
tinha sido o primeiro-ministro (segundo uma outra versão, designava-o como primeiro
ministro o príncipe Lvov, presidente da União dos zemstos); o ministro do interior tinha
sido Goutchkov, o dos negócios estrangeiros Miliokov, etc. A maior parte dessas

25
personalidade que se designavam elas próprias para uma aliança com o czar contra a
revolução deviam, dezoito meses mais tarde fazer parte de um governo dito
“revolucionário”. São essas piadas que a história permitiu-se mais uma vez. No momento
que falamos, a gracinha, pelo menos não durou.
Na maioria, os ministro do gabinete Goremykine não eram senão os cadetes
estupefactos do desenvolvimento que tomavam os assuntos, e, seguidamente, inclinavam
um acordo com o bloco progressista.
“Um governo que não tem a seu favor nem a confiança do depositário do poder
soberano, nem do exército, nem a das cidades, nem dos zemstvos, nem a da nobreza,
nem a dos comerciantes, nem a dos operários, é incapaz não somente de trabalhar, mas
mesmo de existir. A absurdidade é evidente”.
Foi nestes termos que o príncipe Chtcherbatov apreciou, em Agosto 1915, o governo
que ele fazia parte na qualidade de ministro do Interior.
“Se o assunto fosse conduzido convenientemente e se abre uma escapatória, dizia
Szonov, ministro dos Negócios estrangeiros, os cadetes serão os primeiros a procurar um
acordo. Miliokov é um burguês enfeudado e teme mais que tudo a revolução social. Além
disso, a maior parte dos cadetes tremem pelo seu capital.”
Pelo seu lado Miliokov considerava também que no bloco progressista “teria que
fazer concessões”. Portanto, as duas partes pareciam dispostas a transaccionar e pôde-
se crer que tudo iria bem funcionar. Mas, no 29 de Agosto, o presidente do Conselho,
Goreykine, burocrata carregado de anos e de honras – velho cínico que se ocupava de
política entre duas jogadas de cartas e que afastava todas as queixas dizendo que a
guerra “não lhe dizia respeito” - foi ao G. Q. G. , ver o czar, apresentar-lhe um relatório, e
voltou de lá para anunciar que cada um deveria ficar no seu posto, com a excepção da
Duma de Estado, demasiado presunçosa, cuja sessão seria adiada para o 3 de Setembro.
A leitura da okasa do czar decretando o adiamento da Duma foi ouvida sem uma só
palavra de protesto: os deputados gritaram “hurra para o czar” e dispersaram-se.
Como é que o governo czarista, que, segundo as suas próprias confissões, não tinha
nenhum apoio, pôde aguentar-se mais de dezoito meses? Os sucessos efémeros do
exército russo tiveram sem dúvida a sua influência reforçada por uma benéfica chuva de
ouro. Os sucessos, na frente, pararam, na verdade, logo, mas os benefícios da
retaguarda subsistiam. Porém, a causa principal do fortalecimento da monarquia, um ano
antes da sua queda, residia numa muito nítida diferenciação do descontentamento
popular. O chefe da Segurança de Moscovo, num relatório, declarava que a burguesia
evoluía para a direita, pela “apreensão de excessos revolucionários que se produziriam
após a guerra”; no decurso das hostilidades, viu-se, a revolução era ainda considerada
como improvável. O que alarmava além disso os industriais, era que “certos dirigentes
dos comités das indústrias de guerra estivessem com graciosidade com o proletariado”.
Em conclusão, o coronel da guarda Martynov, que, pela sua profissão, não tinha lido sem
proveito a literatura marxista, declarava que um certo melhoramento da situação política
era devido a

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“uma diferenciação continuamente acentuada das classes sociais, que revelava
vivas contradições de interesses particularmente sentidas no período que se
atravessava”.
O adiamento da Duma, em Setembro 1915, foi um desafio lançado directamente à
burguesia, e não aos operários. Mas, enquanto os liberais se dispersavam gritando (na
verdade sem grande entusiasmo) “hurra para o czar”, os operários de Petrogrado e de
Moscovo replicaram com greves de protesto. Foi um novo duche de água fria para os
liberais: eles temiam mais que tudo a intervenção indesejável de terceiros no seu duo de
família com a monarquia. Todavia, que iriam eles fazer seguidamente? Com ligeiros
grunhidos da sua ala esquerda, o liberalismo decidiu escolher uma receita aprovada: ficar
exclusivamente no terreno da legalidade e tornar a burocracia “de qualquer forma inútil”
ao assumir as funções patrióticas. Foi necessário de qualquer forma deixar de lado a lista
do ministério liberal que se tinha projectado.
Entretanto, a situação agravava-se automaticamente. Em Maio 1916, a Duma foi de
novo convocada, mas ninguém, propriamente dito, não sabia para quê. De qualquer
maneira, a Duma não tinha intenção de lançar um apelo à revolução. Além disso, ela não
tinha nada a dizer.
“No decurso desta sessão – disse Rodzianko nas suas Memórias – as sessões
foram aborrecidíssimas, os deputados pouco assíduos... A luta contínua parecia
infrutífera, o governo não queria saber de nada, o desespero crescia, e o país estava em
perdição”.
O espantalho da burguesia diante da revolução e a sua impotência na falta de
revolução, asseguraram à monarquia, durante o ano 1916, alguma aparência de apoio
social.
Cerca do Outono, a situação ainda se agravou. Tornava-se evidente que a guerra
não deixava alguma esperança; a indignação das massas populares ameaçava de
transbordar a qualquer instante. Ao mesmo tempo que atacava, como antes, o partido da
Corte, ao acusar de “germanofilia”, os liberais consideravam indispensável sondar para
ver se não haveria oportunidades de paz, porque eles preparavam o seu futuro. É
somente assim que se explica as conversações que tivera lugar em Estocolmo, em
Outono de 1916, entre o deputado Protopopov, um dos líderes do bloco progressista, e o
diplomata alemão Warburg.
A delegação da Duma que se dirigiu, em visita de cortesia, em França e em
Inglaterra, pode, sem dificuldades, constatar em Paris e Londres, que os caros aliados
tinham, durante a guerra, a intenção de exprimir da Rússia todas as forças vivas, depois,
após a vitória, de fazer deste país atrasado o campo principal da sua exploração
económica. A Rússia quebrada e a reboque pela Entente vitoriosa não teria sido mais do
que uma colónia. As classes possuidoras da Rússia não tinham mais nada que fazer
senão tentar desembaraçar-se dos abraços demasiados apertados da Entente e de
encontrar o seu próprio caminho para a paz, ao utilizar o antagonismo de dois formidáveis
adversários. A entrevista que o presidente da delegação da Duma teve com o diplomata

27
alemão, como primeiro passo nesta via, significava também uma ameaça aos aliados,
visando obter concessões, e um esforço de sondagem para reconhecer as possibilidades
efectivas de reaproximação com a Alemanha. Protopopov agia segundo não somente com
a diplomacia do czar (a entrevista teve lugar na presença do embaixador da Rússia na
Suécia, mas com toda a delegação da Duma de Estado.
Entre outros objectivos, ao efectuar este reconhecimento, os liberais tinham, para o
interior, intenções que não eram de menor importância: fia-te a nós, teriam eles dito ao
czar, e arranjar-te-emos uma paz separada, melhor e mais segura que a de Stürmer.
Segundo o plano de Protopopov, isto é dos seus inspiradores, o governo russo deveria
advertir os aliados, “com alguns meses de antecedência”, da necessidade de terminar a
guerra, e, se os aliados recusarem iniciar negociações de paz, a Rússia devia concluir
uma paz separada com a Alemanha. Numa confissão escrita após a revolução,
Protopopov diz, como uma coisa que se compreende naturalmente:
“Entre todas as pessoas razoáveis que havia na Rússia, e entre elas quase todos os
líderes do partido “a liberdade do povo” (cadetes) estavam convencidos que a Rússia não
estava em condições de continuar a guerra”.
O czar, a quem Protopopov, desde do seu regresso, entregou um relatório sobre a
sua viagem e as conversações, acolheu a ideia de uma paz separada com toda a
simpatia. Mas ele não via nenhuma razão em associar a este assunto os liberais. Se o
próprio Protopopov, por simples acaso, fosse admitido na camarilha do Palácio, rompendo
assim com o bloco progressista, isso se explica unicamente pelo carácter vaidoso que se
tomou, segundo a sua própria expressão, do czar e da czarina, ao mesmo tempo que se
apaixonava de uma inesperada pasta de ministro do Interior. Mas que Protopopov tenha
traído o liberalismo, é um episódio que não modifica absolutamente nada o sentido geral
da política exterior dos liberais, combinação de cupidez, cobardia e traição.
No 1º de Novembro, a Duma reuniu-se de novo. A sobre-excitação do país tinha
atingido um grau de intolerância. Esperava-se que da Duma actos decisivos. Era preciso
fazer ou, pelo menos, dizer qualquer coisa. O bloco progressista viu-se forçado mais uma
vez a recorrer às denúncias parlamentares. Numerando na tribuna os principais actos do
governo, Miliokov, a cada ponto, colocava esta questão: “É uma asneira ou uma traição?”
Outros deputados levantaram igualmente o tom. O governo não encontrou resposta. Ele
respondeu à sua maneira: proibiu a impressão dos discursos pronunciados na Duma. Em
consequência, esses discursos foram difundidos em milhões de exemplares. Não houve
serviço público não somente na retaguarda, mas na frente, onde não se ocupava de
recopiar os arengues sediciosos, frequentemente com as adendas que correspondiam ao
temperamento do copista. A ressonância dos debates foi tal que os próprios acusadores
tremeram.
O grupo de extrema-direita, o dos burocratas inveterados que inspirou Dornovo, o
homem que tinha reprimido a Revolução de 1905, apresentou então ao czar uma petição
contendo um programa. As perspectivas dos dignitários experientes, que tinham passado
pela escola policial, levaram longe e se as suas recomendações se mostraram inúteis, é
porque não existia nenhum remédio contra as doenças do antigo regime. Os autores da

28
petição pronunciavam-se contra todas as concessões à oposição burguesa – não,
pensavam eles, que os liberais desejassem levar demasiado longe as suas
reivindicações, como imaginavam os Cem Negros da ralé que os dignitários da reacção
consideravam de forma altiva, não, mas a desgraça era, segundo eles, que os liberais
fossem “tão fracos, tão divididos entre eles, e, para falar francamente, tão estúpidos que o
seu triunfo tivesse sido também tão efémero como instável.”
A fraqueza do principal partido da oposição, o dos democratas constitucionais
(cadetes) foi definida nos próprios termos: esse partido dizia-se democrático embora ele
fosse essencialmente burguês; compunha-se, em grande medida, de proprietários
liberais, tinha inscrito no seu programa a obrigação para os camponeses de readquirir as
terras.
“Excepção feita para esses trunfos emprestados ao jogo do outro – escreviam os
conselheiros secretos, utilizando uma linguagem que traia os seus hábitos – os cadetes
não são nada mais que uma numerosa aglomeração de advogados, professores e
funcionários de diversos departamentos, todos liberais : nada mais.”
Com os revolucionários era diferente. A petição dirigida ao czar reconhecia a
importância dos partidos revolucionários, e os autores rangiam os dentes ao escrever:
“O perigo representado por esses partidos e a sua força reside no facto que eles têm
uma ideia, que têm dinheiro (!), que têm a favor deles uma multidão pronta e bem
organizada. “Os partidos revolucionários” têm o direito de contar com as simpatias da
esmagadora maioria da classe camponesa que seguirá o proletariado desde que os
líderes revolucionários lhes façam sinal de se apoderar das terras do outrem. Que daria,
nessas condições, o estabelecimento de um ministério responsável diante do parlamento?
“O esmagamento completo e definitivo dos partidos de direita, uma absorção gradual dos
partidos intermediários (centro, conservadores liberais, outubristas e progressistas) pelo
partido dos cadetes que, no início, tomaria uma importância decisiva. Mas os cadetes
seriam ameaçados de sofrer a mesma sorte... E a seguir? A seguir viria a multidão
revolucionária, seria a Comuna, a perca da dinastia, a pilhagem das classes possuidoras,
para terminar, o banditismo do mujique”.
Não se pode negar que o furor reaccionário e policial subia aqui a originais previsões
históricas.
A petição, no seu programa positivo, não tinha nada de novo, mas era a
consequente: constituir um governo de implacáveis partidários da autocracia; abolir a
Duma; decretar o estado de sítio nas duas capitais: preparar os contingentes a esmagar a
revolta. Esse programa foi, em suma, a base da política governamental durante os últimos
meses que precederam a revolução. Todavia, para se realizar, esse plano pressupunha
forças que Dornovo dispunha durante o Inverno de 1905, mas que não existiam mais em
Outono 1916. A monarquia procurava abafar o país discretamente, dividindo as
resistências. O ministério foi remodelado. Aí entrou gente de confiança, indiscutivelmente
dedicada ao czar e à czarina. Mas essas personalidades, e à frente, o trânsfuga
Protopopov, eram insignificantes e lamentáveis. A Duma não foi dissolvida, mas foi

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fechada de novo. A declaração do estado de sítio em Petrogrado foi reservada para uma
data à qual a revolução teria logo obtido a vitória. Quanto às forças militares preparadas
para esmagar a revolta, elas foram levadas por elas próprias à sedição. Tudo isso foi
revelado dois ou três anos mais tarde.
O liberalismo, entretanto, esforçava-se para salvar a situação. Todas as
organizações da burguesia censitária apoiaram os discursos da oposição pronunciados
em Novembro na Duma por uma serie de novas declarações. Entre todas, a mais
insolente foi a resolução da União das Cidades, datada de 9 Dezembro:
“Criminosos irresponsáveis, facínoras, levam a Rússia à derrota, o opróbrio e a
escravatura.”
A Duma era convidada a “não separar-se tanto que não tivessem obtido um governo
responsável”. O próprio Conselho de Estado, órgão da burocracia e da grande
propriedade, pronunciou-se por um apelo ao poder de personalidades gozando da
confiança do país. A mesma petição foi formulada pelo Congresso da nobreza unificada:
pedras cobertas de musgo começavam a falar. Mas nada mudou. A monarquia não
abandonava o que lhe restava de poder entre as mãos.
A última sessão da última Duma foi marcada, após hesitações e contratempos, para
o dia 14 de Fevereiro 1917. Até à vinda da revolução, restava menos de quinze dias.
Esperavam-se manifestações. No Rietch (A palavra), órgão dos cadetes, ao mesmo
tempo que um comunicado do general Khabalov, chefe do corpo do exército da região de
Petrogrado, proibindo as manifestações, foi impressa uma carta de Miliokov prevenindo
os operários contra “os maus e perigosos conselhos” vindos de “fontes obscuras”. A
despeito das greves, a abertura da Duma teve lugar numa calma relativa. Fingindo não se
interessar à questão do poder a Duma ocupou-se de um problema exclusivamente
prático, ainda que grave: o do reabastecimento. A atmosfera era lânguida – como
descreveu mais tarde Rodzianko - “sentia-se a impotência da Duma, a sua lassitude numa
luta inútil”, Miliokov repetia que o bloco progressista “agiria pela palavra e somente pela
palavra”. Foi assim que a Duma se comprometeu no turbilhão da Revolução de Fevereiro.

30
O proletariado e o campesinato
O proletariado russo deu os seus primeiros passos nas condições políticas de um
Estado despótico. Greves proibidas por lei, círculos clandestinos, proclamações ilegais,
manifestações de rua, conluio entre a polícia e a tropa – tal foi a escola formada pela
combinação de um capitalismo em rápido desenvolvimento e dum absolutismo que cedia
terreno lentamente. A concentração dos operários nas empresas gigantescas, o carácter
igualmente concentrado da opressão exercida pelo Estado, enfim os desenvolvimentos
impulsivos de um jovem proletariado e cheio de frescura, fizeram da greve política, tão
rara em Ocidente, o método essencial da luta na Rússia. Os números de greves operárias
desde do princípio do século são os índices mais instrutivos sobre a história política
política na Rússia. Apesar do desejo que se tenha de não atravancar o texto de números,
é impossível de abster-se de citar os quadros das greves políticas no período entre 1903
a 1917. Esses dados, levados a sua mais simples expressão, dizem respeito somente às
empresas que eram da competência da inspecção das fábrica: os caminhos de ferro, as
indústrias mineiras e metalúrgicas, diversos ofícios e, em geral as pequenas empresas,
sem falar, bem entendido, da agricultura, não entram , por diferentes razões, neste
cálculo. Porém, a curva do movimento de greves não deixa portanto de se manifestar
nitidamente.

Anos Número de Grevistas (em milhares)


1903 87 [1]
1904 25 [1]
1905 1843
1906 651
1907 540
1908 93
1909 8
1910 4
1911 8
1912 550
1913 502
1914 (primeiro semestre) 575
1915 156
1916 310
1917 (Janeiro - Fevereiro) 575
[1] Para 1903 e 1904, a estatística relaciona-se a todas a greves, nas quais predominam sem dúvida as
greves económicas.

Temos diante de nós a curva, única no seu genero, da temperatura política de uma
nação que trazia no seu seio uma grande revolução. Num país atrasado onde o

31
proletariado não é numeroso – nas empresas subordinadas à inspecção das fábricas –
cerca de um milhão e meio de operários em 1905, cerca de dois milhões em 1917. O
movimento de greve toma uma amplitude que ele nunca teve em lado nenhum no mundo.
Dada a fraqueza da democracia pequena burguesa, da dispersão e da cegueira política
do movimento camponês, a greve revolucionária dos operários torna-se o aríete que a
nação ao acordar dirige contra a muralha do absolutismo. Que fossem 1 milhão 843 000
participantes nas greves políticas somente no ano 1905 (os operários tendo participado a
várias greves são, bem entendido, contados aqui como grevistas) esse número por si só
nos permitia indicar no quadro o ano da revolução, mesmo quando nós desconhecemos
as efemérides políticas da Rússia.
Em 1904, primeiro ano da guerra russo-japonesa, a inspecção das fábricas registou
no total somente 25 000 grevistas. Em 1904, as greves políticas e económicas no seu
conjunto contaram 2 milhões 863 000 participantes, seja um número 115 vezes superior
ao do ano precedente. Esse salto prodigioso sugere já que o proletariado, forçado pela
marcha dos acontecimentos improvisar essa actividade revolucionária extraordinária,
devia a qualquer custo tirar do seu próprio fundo uma organização que correspondesse à
amplitude da luta e à imensidão das tarefas previstas: assim nasceram os sovietes
(conselhos) da primeira revolução que se tornaram os órgãos da greve geral e da luta
pela conquista do poder.
Quebrado na sua insurreição de Dezembro 1905, o proletariado faz esforços
heróicos para conservar uma parte das posições tomadas no decurso dos dois anos
seguintes, os quais, como mostram os números das greves, ligam-se ainda muito perto à
revolução, sendo já anos de regressão. Os quatro anos seguinte (1908-1911) surgem no
espelho da estatística das greves como o período da contra-revolução vitoriosa. A crise
industrial que coincide com ela esgota ainda mais o proletariado já exsangue. A
profundidade da queda é simétrica à altura do voo anterior. As convulsões da nação
encontra as suas marcas nesses simples números.
A vida industrial reanimando-se a partir de 1910 levanta de novo os operários e dá
novo impulso à sua energia. Os números de 1912-1914 reproduzem quase os dados de
1905-1907, mas no sentido contrário: a tendência já não é a queda, é a subida. Sobre
novas bases históricas mais elevadas – os operários agora são mais numerosos e mais
experientes – uma nova ofensiva revolucionária se desencadeia. O primeiro semestre de
1914 aproxima-se evidentemente, quanto à importância das greves políticas, do ano que
data o ponto culminante da primeira revolução. Mas a guerra rebenta e interrompe
brutalmente esse processo. Os primeiros meses são marcados pela inacção política da
classe operária. Porém, desde da Primavera de 1915, esse entorpecimento começa a
dissipar-se. Ele abre-se um novo ciclo de greves políticas que, em Fevereiro de 1917,
conclui na insurreição dos operários e dos soldados.
Os bruscos fluxos e refluxos da luta das massas tornaram, em alguns anos, o
proletariado russo quase desconhecido. As fábrica que, dois ou três anos antes, se
meteram em greve, de acordo unânime, a propósito de um qualquer acto de arbítrio
policial, perdiam agora toda a aparência de espírito revolucionário e deixavam passar sem

32
protesto os crimes mais monstruosos das autoridades. As grandes derrotas são
duravelmente desencorajantes. Os elementos revolucionários perdem o seu poder sobre
a massa. Na consciência desta surgem na superfície os preconceitos e as superstições
mal digeridas. Os recém-chegados do campo, massas ignorantes, abandonavam durante
esse período as fileiras operárias. Os cépticos abanavam a cabeça irónicamente. Foi
assim de 1907 a 1911. Mas esses processos moleculares nas massas curavam as feridas
psicológicas causadas pelas derrotas. Um novo curso dos acontecimentos ou um
desenvolvimento económico surdo inaugurava um novo ciclo político. Os elementos
revolucionários reencontraram o seu auditório. A luta retoma um grau mais elevado.
Para compreender os duas principais correntes na classe operária da Rússia, é
importante considerar que o menchevismo formou-se definitivamente durante os anos da
reacção e da regressão, apoiando-se principalmente sobre uma fina camada de operários
que tinham rompido com a revolução; enquanto que o bolchevismo, terrivelmente
esmagado durante o período da reacção, subiu rapidamente, no decurso dos anos que
precederam a guerra, a crista do novo fluxo revolucionário.
“O elemento mais energético, o mais alegre, o mais capaz de lutar infatigavelmente,
de resistir e de se organizar constantemente, encontra-se nos grupos e indivíduos que se
concentram à volta de Lenine...”
É assim que o departamento da polícia apreciava o trabalho dos bolcheviques, nos
anos que precederam a guerra.
Em Julho de 1914, quando os diplomatas pregavam os últimos pregos na cruz sobre
a qual devia ser crucificada a Europa, Petrogrado estava em plena ebulição
revolucionária. O presidente da República francesa, Poincaré, quando veio depositar uma
coroa de flores no túmulo de Alexandre III, ouviu os últimos ecos de uma batalha de rua
com os primeiros fragores de uma batalha das manifestações patrióticas.
O movimento da ofensiva das massas em 1912-1914 teria levado à queda do
czarismo se a guerra não se intercalasse? Não é possível responder a esta questão com
toda a certeza. O processo conduzia implacavelmente à revolução. Mas por quais etapas,
nesse caso, dever-se-ia passar? Não corríamos para una nova derrota? Quanto tempo
teria sido necessário aos operários para revoltar os camponeses e conquistar a tropa? Em
todas as direcções, só se pode conjecturar. A guerra, de qualquer forma, fez retrogradar o
processo para acelerar tanto mais potentemente na fase seguinte e assegurar-lhe uma
esmagadora vitória.
Aos primeiros toques do tambor, o movimento revolucionário foi suspendido. As
camadas operárias mais activas foram mobilizadas. Os elementos revolucionários
tomados nas fábricas foram empurrados para a frente. As greves eram castigadas com
rigor. A impressa operária foi varrida. Os sindicatos foram abafados. Foram admitidos nas
oficinas, por centenas de milhar, mulheres, adolescentes, camponeses. Políticamente, a
guerra, em ligação com o afundar da Internacional, desorienta extraordinariamente as
massas e deu aos directors de fábrica que levantavam a cabeça a possibilidade de falar a
linguagem patriótica em nome das suas empresas, arrastando consigo uma parte

33
considerável da mão-de-obra e obrigando ao silêncio atentivo os operários mais afoitos e
resolutos. O pensamento revolucionário reduziu suas actividades nos pequenos círculos
que se silenciaram. Nesse tempo, ninguém se arriscava, nas fábricas, a se dizer
“bolchevique”, temendo ser preso ou mesmo brutalizado pelos operários atrasados.
Na Duma, a fracção bolchevique, cujo efectivo era fraco, não se mostra, no momento
que rebenta a guerra, à altura da sua tarefa. De acordo com os deputados mencheviques,
ela depositou uma moção que se comprometia a “defender os bens culturais do povo
contra qualquer atentado, viesse donde viesse”. A Duma sublinhou por aplausos esta
rendição. De todas as organizações e grupos russos do partido, nem um tomou
abertamente a posição derrotista que Lenine proclamou no estrangeiro. Porém, a
proposição dos patriotas entre os bolcheviques mostrou-se insignificante. Ao contrário dos
populistas e mencheviques, os bolcheviques, desde 1914, começaram a desenvolver nas
massas, pela imprensa e pela palavra, a sua agitação contra a guerra. Os deputados na
Duma encorajaram-se e retomaram o seu trabalho revolucionário sobre o qual as
autoridades estavam informadas de perto, graças às ramificações dos seus serviços de
provocadores. Basta dizer que, sobre sete membros do comité do partido em
Petersburgo, na véspera da guerra, três eram agentes da Segurança (Okhrana). Foi
assim que o czarismo brincava à cabra cega com a revolução.
Em Novembro,os deputados bolcheviques foram presos. Foi tentada a destruição do
partido em todo o país. Em Fevereiro 1915, o caso da fracção parlamentar foi ouvida no
Palácio da Justiça. Os acusados mantiveram-se calados. Kamenev, como teórico
inspirador da fracção, negava a posição derrotista de Lenine, assim como Petrovsky,
actualmente presidente do Comité executivo central em Ucrânia. O departamento da
polícia notou com satisfação que a sentença severa relatada contra os deputadas não
tinha dado ocasião a nenhum movimento de protesto entre os operários.
Em Agosto de 1915, os ministros do czar comunicavam entre eles dizendo que os
operários
“procuravam por todo o lado descobrir a traição, a conivência com os alemãs, a
sabotagem a proveito destes e que eles deleitavam-se ao se interrogarm sobre os
culpados dos nossos revés na frente”.
Efectivamente, nesse período, o sentido crítico da massa acordava e, parcialmente
sincero, parcialmente camuflado reclamava-se muitas vezes da “defesa da pátria”. Mas
esta ideia assinalava um ponto de partida. O descontentamento dos operários procede
então a avanços cada vez mais importantes, reduzindo ao silêncio os contra-mestres, os
Cem Negros do seu meio, permitindo aos trabalhadores bolcheviques de levantarem a
cabeça.
Da crítica, as massas vêem à acção. A indignação encontra, antes de tudo, uma
saída nos sarilhos causados pela insuficiência de abastecimento, os quais, aqui e ali,
tomam a forma de motins locais. Mulheres, velhos, adolescentes sentam-se, no mercado
ou na praça pública, mais independentes e mais ousados que os operários mobilizados
nas fábricas. Em Moscovo, o movimento, no mês de Maio, deriva do saque das casas

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alemãs. Ainda que os participantes sejam principalmente originários da ralé patrocinada
pela polícia, o facto que o progrom seja possível no Moscovo industrial prova que os
operários não tinham ainda acordado ao ponto de impor as suas palavras de ordem e
disciplina ao povinho das cidades, saídos do seu equilíbrio. Espalhando-se por todos o
país, os sarilhos sobre o abastecimento dissipam a hipnose da guerra e abrem caminho
às greves.
O afluxo de uma mão-de-obra pouco qualificada nas fábricas e a corrida
desenfreada aos lucros de guerra ocasionaram, por todos os lados, o agravar das
condições de trabalho e ressuscitaram os procedimentos grosseiros de exploração. O
aumento do custo de vida reduzindo automaticamente o valor dos salários. As greves
económicas foram inevitavelmente o reflexo da massa, tanto mais violento que ele tinha
sido contido durante muito tempo. As greves foram acompanhadas de comícios, de
moções de ordem política, de confrontações com a polícia, frequentemente com tiros de
armas de fogo, e houve vítimas.
A luta ganha primeiro a região central do têxtil. A 5 de Junho, a polícia dispara uma
salva sobre os tecelões em Kostroma: 4 mortos, 9 feridos. No 10 de Agosto, as tropas
abrem o fogo sobre os operários de Ivanovo-Voznessensk: 16 mortos, 30 feridos. No
movimento dos operários do têxtil estão comprometidos os soldados do batalhão
aquartelados nesse sítio. As greves de protesto respondem, em diversos pontos do país,
ao tiroteio de Ivanovo-Voznessens. Paralelamente propaga-se a luta económica. Os
operários do têxtil avançam muitas vezes nas primeiras filas.
Em comparação com o primeiro trimestre de 1914, o movimento, quanto à violência
da pressão e à nitidez das palavras de ordem, marca um grande recuo. Não é de
estranhar: na luta são levados, por uma parte considerável, as massas incultas, enquanto
que as camadas operárias dirigentes estão perturbadas. Contudo, desde das primeiras
greves em tempo de guerra, sente-se a iminência das grandes batalhas. Khvostov,
ministro da Justiça, declarava, em 16 de Agosto:
“Se os operários não se entregam neste momento a manifestações armadas, é
unicamente porque eles não têm organização.”
Goremykine exprimiu-se de uma forma mais precisa:
“A questão, para os agitadores de operários, reside na insuficiência de uma
organização deslocada no seguimento da prisão de cinco membros da Duma”.
O ministro do Interior acrescentou:
“É impossível amnistiar os membros da Duma (os bolcheviques), porque eles
constituem o centro da organização do movimento operário nessas manifestações mais
perigosas.”
Essa gente, de qualquer forma, sabia discernir sem erro onde se encontrava o
verdadeiro inimigo.

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Enquanto que o governo, mesmo num momento de pânico extremo, mesmo disposto
a fazer concessões liberais, considerava indispensável de continuar a bater os
bolcheviques, a alta burguesia esforçava-se de colabora com os mencheviques.
Assustados pela amplitude das greves, os industriais liberais tentaram impor aos
operários uma disciplina patriótica ao admitindo seus eleitos nos comités de indústria de
guerra. O ministro do Interior queixava-se de não poder opor-se senão com dificuldades a
esta iniciativa de Gotchkov:
“Todo este assunto apresentou-se sob o signo do patriotismo e em nome dos
interesses da defesa.”
É preciso, no entanto, notar que a própria polícia evitava prender os sociais
patriotas, vendo neles aliados indirectos na luta contra as greves e os “excessos”
revolucionários. A confiança exagerada na força do socialismo patriota baseava-se a
convicção da Segurança que enquanto durasse a guerra não haveria insurreição.
Quando as eleições do comité das indústrias de guerra, os partidários da defesa
nacional, à cabeça dos quais se encontrou o energético Gvozdiev, operário metalúrgico –
nós encontrámos-o ministro do Trabalho num governo revolucionário de coligação – foram
colocados em minoria. Eles aproveitaram porém de diversos apoios, vindos não somente
da burguesia liberal, mas também da burocracia, para derrubar os partidários do boicote
que guiavam os bolcheviques e impor ao proletariado de Petrogrado uma delegação nos
grupos orgânicos do patriotismo industrial. A posição dos mencheviques foi claramente
formulada num discurso que um dos seus representantes pronunciou seguidamente
diante dos industriais, no seio do comité:
“Vós deveis exigir que o poder burocrático existente abandone a cena, cedendo o
lugar a vocês, herdeiros do actual regime.”
Esta nova amizade política crescia de hora a hora. Após a revolução, ela daria fruto.
A guerra devastou terrivelmente as organizações clandestinas. Os bolcheviques
deixaram de ter organização centralizada do partido após a prisão da fracção parlamentar.
Os comités tinham uma existência episódica e nem sempre estavam em contacto com os
distritos. A acção vinha dos grupos disseminados, de círculos, de indivíduos isolados.
Todavia, o movimento de greve que começava a se reanimar nas fábricas, dava ardor e
vigor. Pouco a pouco, eles reencontraram-se entre eles, criando ligações entre grupos. O
trabalho retomou, clandestino. No departamento da polícia, escrevia-se mais tarde:
“Os partidários de Lenine, que lideram na Rússia a grande maioria das organizações
sociais democratas clandestinas, fizeram circular desde do início da guerra, nos seus
principais centros (a saber: Petrogrado, Moscovo, Kharkov, Kiev, Toula, Kostroma, o
governo de Vladimir, Samara), uma enorme quantidade considerável de folhetos
revolucionários, reclamando o fim das hostilidades, o queda do poder actual e a
proclamação da República; além disso, esta actividade teve como resultado sensível a
organização pelos operários de greves e de desordens.”

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O aniversário tradicional da marcha dos operários em direcção ao Palácio de
Inverno, que quase não se tinha notado no ano precedente, suscita uma grande greve no
9 de Janeiro 1916. O movimento de greves, nesse ano, torna-se duas vezes mais intenso.
Confrontações com a polícia acompanham toda a greve potente e obstinada. Em relação
às tropas, os operários têm uma atitude abertamente amistosa e a Segurança nota mais
que uma vez esse facto alarmante.
As indústrias da guerra aumentavam sem limites, devorante à volta delas todos os
recurso e minando assim suas próprias bases. Os ramos de produção de natureza
pacífica começaram a se esfarrapar. A regulamentação da economia geral, a despeito de
todos os planos, não chegava a nada. A burocracia, já incapaz de assumir esta tarefa
diante da obstrução dos poderosos comités das indústrias, não consentia todavia a se
despossuir do papel regulador em favor da burguesia. O caos aumentava. Os operários
experimentes eram substituidos por noviços. As carvoeiras, as fábricas da Polónia logo se
encontrariam perdidas: no primeiro ano da guerra, o país foi despossuido de cerca de um
quinto dos seus recursos industriais. Até 50% da produção fora afectada às necessidades
do exército e da guerra, cujo cerca de 75% dos tecidos fabricados no país. Os
transportes, sobrecarregados de trabalho, não estavam em condições de entregar às
fábricas as quantidades indispensáveis de combustíveis e as matérias primas. Não
somente a guerra absorvia todo o rendimento nacional corrente, mas ela começou a
dissipar seriamente o capital fondamental do país.
Os industriais recusavam cada vez mais em fazer concessões aos operários e o
governo continuou a responder a cada greve por uma rigorosa repressão. Tudo isso
levava o pensamento operário do particular ao geral, da economia à política: “é preciso
que todos declararemos greve ao mesmo tempo.” Assim renasceu a ideia de uma greve
geral. O processo da radicalização das massas exprimiu-se da maneira mais convencida
para a estatística. Em 1915, o número de participantes nas greves políticas é de 2,5
inferior ao dos operários comprometidos nos conflitos económicos; Em 1916, a
inferioridade exprimida pelo número 2; no decurso dos primeiros meses de 1917, as
greves políticas englobaram seis vezes mais de operários que as greves económicas . O
papel de Petrogrado é suficientemente indicado pelo número: durante os anos da guerra,
73% dos grevistas políticos pertenciam à capital !
No calor da luta, as velhas crenças foram consumidas. A Segurança declarou “com
dor”, num relatório, que se se reagiam conformemente às exigências da lei, “em todas as
ocasiões onde se produzem isoladamente ou abertamente crimes de lesa majestades, o
número dos processos baseados sobre o artigo 103 seria sem precedentes”. Porém, a
consciência das massas se atrasa perante o seu próprio movimento. A terrível pressão da
guerra e o desespero acelera de tal forma o processo de luta que largas massas
operárias não têm tempo de se desfazer, antes da revolução, das ideia e preconceitos
trazidos do campo, ou nas cidades, das familias pequeno burguesas. Esse facto deixava
marcas nos primeiros meses da Revolução de Fevereiro.
Perto do fim de 1916, o custo de vida sobe por saltos. À inflação e a desorganização
dos transportes, juntou-se uma verdadeira penúria de mercadorias. O consumo, por esta

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data, reduziu-se por metade. A curva do movimento operário desenha um ascenso
brusco. A datar de Outubro, a luta entra numa fase decisiva, unificando todas as
variedades de descontentamento: Petrogrado toma impulso para o grande salto de
Fevereiro. Nas fábricas explode o número de comícios. Sujeitos tratados: os
abastecimentos, vida cara, a guerra, o governo. Os panfletos dos bolcheviques são
difundidos. Greves políticas são declaradas. À saída das fábricas têm lugar manifestações
improvisadas. Acontece que os operários de certas empresas fraternizam com os
soldados. Uma violenta greve rebenta, em protesto contra o processo levantado aos
marinheiros revolucionários da frota do mar Báltico. O embaixador da França, informado
de um caso de tiroteio dos soldados sobre a polícia, atraiu a atenção de Stümer,
presidente do Conselho, sobre o incidente. Stümer tranquiliza o embaixador: “A repressão
será impiedosa”. Em Novembro, um importante contingente de operários das fábricas de
Petrogrado é mobilizado e enviado para a frente. O ano termina na tormenta.
Comparando a situação com a de 1905, Vassiliev, director do departamento da
Polícia, chega a conclusões extremamente pouco consoladoras.
“O espírito da oposição ganhou proporções excepcionais, que estava longe de
atingir, entre as largas massas, no decurso do período de sarilhos acima mencionados.”
Vassiliev não conta com as guarnições. E mesmo a guarde móvel não lhe parece
segura. A Segurança reporta que a palavra de ordem de greve geral se reanima e que a
perigo de retoma de terrorismo. Os soldados e oficiais que voltam da frente dizem da
situação actual:
“Para que serve procurar? Basta passar a baioneta pelo malandro. Se
permanecermos aqui, não seria por muito tempo...”
Chliapnikov, membro do Comité central dos bolcheviques, antigo operário
metalúrgico, conta que nesses dias os operários estavam muito nervosos:
“Basta às vezes que um só assobio, um rumor, para que os operários acreditassem
ter ouvido o sinal de entrar em greve.”
Esse detalhe é tão notável como sintoma político e como aspecto psicológico: a
revolução espera nervosamente descer à rua.
A província passa pelas mesmas etapas, mas mais lentamente. O carácter massivo
e a combatividade crescente do movimento transferem o centro de gravidade dos
operários do têxtil aos da metalurgia, as greves económicas às greves políticas, da
província a Petrogrado. No decurso dos primeiros meses de 1917, contavam-se 575 000
grevistas políticos, cuja parte do leão pertence à capital. Ainda que a polícia tivesse
infligido rigorosamente na véspera do 9 de Janeiro, houve, para este aniversário do dia
sangrento, 150 000 operários em greve em Petrogrado. Os espíritos estão
superexcitados, os metalúrgicos tomaram a dianteira, os operários sentem cada vez mais
que não há retirada possível. Em cada fábrica se destaca um núcleo de acção, a maior
parte das vezes aglomerado à volta dos bolcheviques. As greves e os comícios seguem-
se sem interrupção durante as duas primeiras semanas de Fevereiro. A 8, a fábrica

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Potilov, os polícias são acolhidos por “uma chuva de ferro e escória”. A 14 , dia de
abertura da Duma, houve em Petrogrado cerca de 90 000 grevistas. Várias empresas
fecharam também em Moscovo. No 16, as autoridades decidiram introduzir em
Petrogrado as “cartas de pão”. Esta inovação fez crescer a nervosidade. No 19, perto das
boutiques, em certos bairros da cidade, as padarias foram assaltadas. Foram os primeiros
relâmpagos precursores da insurreição que devia eclodir alguns dias mais tarde.
O proletariado russo não só extraía em si mesmo a audácia revolucionária. A sua
situação de minoria na nação mostra já que ele não poderia ter dado à sua luta uma tal
amplitude, nem, pela mais forte razão, tomar a direcção do Estado, se ele não tivesse
encontrado um poderoso apoio no mais grosso das massas populares. É a questão
agrária que lhe assegurou esse apoio.
A meia emancipação tardia dos camponeses, em 1861, influenciou uma economia
rural cujo nível não era diferente daquele que tinha existido dois séculos antes. A
manutenção dos antigos fundos de terras comunais, fraudulentamente desfalcadas
quando da reforma, com os métodos de cultura arcaicas, agravava automaticamente a
crise da superprodução nos campos, que era também a crise do sistema de afolhamentos
treinais. A classe camponesa sentia-se tanto mais armadilhada na medida que o processo
se desenrolava não no século XVII, mas no século XIX, isto é nas condições onde o papel
do dinheiro na economia já estava muito avançado, impondo à relha do arado em madeira
as exigências que só eram admissíveis para os tractores. Ainda aqui nós constatamos a
coincidência dos graus desiguais do processo histórico – no seguimento do qual se
afirmavam as contradições extremamente agudas.
Sábios agrónomos e economistas pregavam que os fundos de terra, na condição de
os trabalhar racionalmente, teriam sido perfeitamente suficientes, isto é, eles convidavam
o camponês a ganhar de uma só vez um grau superior de técnica e de cultura, sem
contrariar o proprietário nobre, nem o chefe da polícia nem o czar. Mas nenhum regime
económico, e ainda menos um regime agrícola, o mais atrasado de todos, nunca cedeu
terreno sem ter primeiro esgotadas todas as suas possibilidades. Antes de se ver forçado
a adoptar métodos de cultura mais intensa, o camponês devia entregar-se a uma última
experiência: ele tentaria alargar a sua exploração sem afolhamentos treinais. Ele não
poderia evidentemente aí chegar senão ao apoderar-se de terras que não lhe pertenciam.
Asfixiado, sentindo-se apertado nos vastos espessos que ocupava, maltratado pelo fisco
e pelo mercado, o mujique devia inevitavelmente tentar acabar uma vez por todas com o
proprietário nobre.
Na véspera da primeira revolução, a superfície global das terras utilizáveis, nos
limites da Rússia europeia, estavam avaliadas em 280 milhões de deciatines, isto é, uma
superfície tal que, em números redondos, poderia ser possuída por 10 milhões de famílias
rurais. Esta estatística agrária representava o programa completo de uma guerra
camponesa.
A primeira revolução não conseguiu resolver a questão dos proprietários nobres. A
massa rural não se sublevou inteiramente, o movimento nos campos não coincidiu com o
das cidades, a tropa, composta de camponeses, não ousou decidir-se e, finalmente,

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forneceu os efectivos suficientes para esmagar os operários. Desde que o regimento
Semenovsky, da Guarda imperial, tomou vantagem sobre a insurreição de Moscovo, a
monarquia rejeitou qualquer ideia de adiantamento sobre a grande propriedade, ou de
redução dos seus privilégios autocráticos.
Porém, a revolução quebrada estava longe de ter passado sem deixar traços na vida
do campo. O governo anulou as credenciais de 1861 a título de compra das terras pelos
camponeses e abriu novas possibilidades de imigração na Sibéria. Os proprietários,
assustados, cederam não somente importantes descontos nas rendas mas apressaram-
se a vender por lotes o seu latifundio. Esses resultados da revolução foram proveitosos
para os camponeses mais ricos que estavam em condições de comprar as terras do
domínio público.
A maior latitude para a formação, na classe camponesa, de uma categoria de
agricultores capitalistas foi, contudo, atribuida pela lei de 9 Novembro de 1906, principal
reforma da contra-revolução vitoriosa. Cedendo mesmo a uma pequena minoria de
camponeses, em qualquer comuna, o direito de retirar, contra a vontade da maioria, um
lote independente sobre as terras comunais, a lei de 9 Novembro caía como uma bomba
lançada pelo campo capitalista contra a comuna. Stolypine, presidente do Conselho,
definia a nova política do governo na questão agrária como “uma posição sobre os mais
fortes”. O que significava: empurrar a categoria superior de camponeses a lançar mão
sobre as terras comunais por compra de lotes “que se tornaram autónomos” e transformar
assim os novos agricultores capitalistas em apoios do regime. Era mais fácil de colocar
esse problema do que o resolver. Tentando substituir a questão agrícola à da sorte dos
kolaques (camponeses ricos), a contra-revolução deveria partir o pescoço.
Em 1 de Janeiro de 1916, 2 milhões 500 000 cultivadores tinham propriedade sua 17
milhões de deciatines. Dois outros milhões reclamavam que lhes fosse cedido 14 milhões
de deciatines. Isso podia passar por um formidável sucesso da reforma. Mas, na maioria,
as explorações isoladas das comunas eram totalmente desprovidas de vitalidade e não
representavam senão os elementos condenados a selecção natural. Enquanto que os
proprietários mais atrasados e os camponeses de condição modesta vendiam a quem
mais oferecesse – uns seus latifundios, outros arpentes de terras, os compradores vinham
principalmente da nova burguesia rural. A economia agrícola entrou numa fase de
indiscutível desenvolvimento capitalista. A exploração dos produtos da terra russa
aumentou, passando em cinco anos (de 1908 a 1912) de um bilião de rublos a 1 bilião e
meio. Isso significava que as largas massas camponesas se proletarizavam enquanto que
os elementos ricos do campo lançavam no mercado quantidades de trigo cada vez
maiores.
Os ataques obrigatórios do regime comunal nas aldeias substituíam rapidamente a
cooperação voluntária que conseguia, em alguns anos, penetrar de maneira relativamente
profunda as massas camponesas e que se tornou logo objecto de uma idealização liberal
e democrática. A força real, na cooperação, pertencia aos camponeses ricos, os quais, no
fim de contas, tiravam proveito. Os intelectuais populistas, que tinham concentrado na
cooperação camponesa as suas principais forças, dirigiam enfim o seu amor do povo para

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os caminhos resistentes da burguesia. Foi assim, em particular, que se preparou o bloco
do partido socialista-revolucionário “anti-capitalista” com o partido cadete que era, por
excelência, o do capitalismo.
O liberalismo, guardando as aparências de oposição em consideração pela política
agrária da reacção, considerava portanto com grande esperança a destruição da comuna
rural empreendida pelo capitalismo.
“No campo – escrevia um liberal, o príncipe Trobetskoi – forma-se uma poderosa
pequena burguesia que, pela sua natureza, pela sua estrutura, é igualmente estrangeira
aos ideais da nobreza unificada e aos sonhos socialistas.”
Mas esta maravilhosa medalha tinha o seu reverso. Da comuna rural destacava-se
não somente “uma poderosa pequena burguesia” mas também o seu extremo oposto,
seus antípodas. O número de camponeses que tinham vendido seus lotes inviáveis tinha
aumentado, no início da guerra, até ao milhão, o que significa pelo menos cinco milhões
de habitantes proletarizados. Como reservas de explosivos bastante potentes, existia
também milhões de camponeses pobres que não tinham outra coisa a fazer senão
manterem-se nos seus lotes de fome. Seguidamente, na classe camponesa,
reproduziram-se as contradições que tinham, cedo, entravado na Rússia o
desenvolvimento da sociedade burguesa no seu conjunto. A nova burguesia rural, que
devia constituir o apoio dos proprietários mais antigos e mais poderosos, se encontrava
em estado de hostilidade declarada em relação às massas camponesas, tanto que os
antigos proprietários em relação ao povo tomado em bloco.
Antes de se tornar um apoio da ordem, a burguesia rural tinha ela própria
necessidade de uma ordem fortemente estabelecida para manter as posições
conquistadas. Nessas condições, não é de espantar que a questão agrária, em todas as
Dumas do Império, tenha conservado a sua acuidade. Todos sentiam que a última palavra
não tinha sido dita. Petritchenko, deputado camponês, declarou um dia do alto da tribuna
da Duma:
“Vocês poderão proseguir vossos debate com quiserem, não conseguirão criar outro
globo terrestre. Será preciso que vocês cedam a terra sobre a qual nós estamos.”
Ora, esse camponês não era nem bolchevique, nem socialista-revolucionário; longe
disso, era um deputado de direita, um monarquista.
O movimento agrário, que, perto do fim de 1907, se tinha acalmado, assim que o
ascenso das greves operárias, acordou parcialmente desde 1908 e reforça-se no decorrer
dos anos seguintes. É verdade que a luta se transferiu, por uma boa parte, para o interior
da vida comunal: é nisso que consiste o calculo político da reacção. As coligações entre
camponeses armados não são raros por ocasião das partilhas das terras comunais. Mas
a luta contra o proprietário nobre não tem descanso. Os rurais obstinam-se a incendiar os
solares senhoriais, as colheitas, medas de feno, sem poupar pelo caminho os
camponeses ricos que se constituíram contra a vontade das comunas.

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Era essa a situação quando eclodiu a guerra. O governo expediu para a frente cerca
de 10 milhões de cultivadores e perto de 2 milhões de cavalos. As empresas agrícolas, já
fracas, foram ainda mais debilitadas. O número dos que não tinham campos a semear
aumentou. Mas, desde do segundo ano de guerra, os camponeses de média condição
baixaram de condição por sua vez. A aversão crescente do camponês pela guerra
afirmava-se de mês em mês. Em Outubro 1916, a direcção da guarda de Petrogrado
relatava que, nos campos, não se acreditava já mais a uma saída feliz das hostilidades:
segundo as afirmações tidas por agentes de seguros, os mestres de escola, os
comerciantes e outras pessoas,
“toda a gente espera com a última das paciências o fim desta maldita guerra”.
Ainda mais:
“Em todo o lado, discute-se questões políticas, votam-se resoluções contra os
proprietários nobres e os comerciantes; diversas organizações criam células...Pelo
momento, não existe ainda centro unitário, mas é preciso pensar que os camponeses
encontrarão a unidade por intermediário das cooperativas que se multiplicam de hora em
hora por toda a Rússia.”
Há aí alguns exageros, o guarda anticipa um pouco os factos, mas, sem dúvida, ele
tem razão no essencial.
As classes possuidoras não podiam abster-se de prever que as campanhas
apresentariam a factura, mas tentavam expulsar as pensamentos negros, esperando
livrar-se de qualquer maneira. Sobre isso, Paléologue, embaixador de França, que
gostava de se instruir, teve conversas, em tempo de guerra, com Krivochine, antigo
ministro da Agricultura, com Kokovtsev, antigo presidente o Conselho, com o conde
Bobrinsky, grande proprietário, com Rodzianko, presidente da Duma do Império, com o
grande industrial e com outros personagens distintas. Eis o que ele tirou dessas
entrevistas: para que se possa aplicar uma reforma radical na questão agrária, seria
necessário empregar um exército permanente de 300 000 agrimensores durante pelo
menos quinze anos; mas, durante esse tempo, o número de explorações agrícolas teriam
aumentado a 30 milhões e, consequentemente, todos os cálculos preliminares não teriam
mais nenhum valor. Assim, a reforma agrária, nos olhos dos proprietários nobres, altos
dignitários e banqueiros, apresentavam-se como a quadratura do círculo. Inútil dizer que
tais escrúpulos de matemáticos eram totalmente estrangeiros a mentalidade do mujique.
O camponês considerava que seria necessário antes de tudo defumar o senhor: o resto
logo se veria.
Se, contudo, os campos continuaram relativamente calmos durante os anos da
guerra, é que suas forças activas se encontraram na frente. Os soldados não esqueciam
a questão da terra, pelo menos quando eles não pensavam na morte, e suas reflexões de
mujiques sobre o futuro penetravam-se, nas trincheiras, do odor da pólvora. No entanto, a
classe camponesa, mesmo formada no manuseio das armas, nunca realizou pelas suas
próprias forças uma revolução agrária democrática, isto é a revolução que ela queria. Ela
tinha necessidade de uma direcção. Pela primeira vez, na história universal, o camponês

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devia encontra o seu guia na pessoa do operário. É essencialmente e, pode-se dizer,
integralmente o que distinguia a revolução russa de todas as que lhe procederam.
Em Inglaterra, a servidão desapareceu efectivamente cerca do fim do século XIV,
isto é dois séculos antes que ela fosse instituída na Rússia, quatro centos cinquenta anos
antes da sua abolição neste último país. A expropriação dos bens de raíz da classe
camponesa inglesa prolonga-se, através da Reforma e duas revoluções, até ao século
XIX. O desenvolvimento do capitalismo, que não precipitava nenhuma opressão do
exterior, teve assim todo o tempo necessário para meter fim à autonomia dos rurais, muito
tempo antes que o proletariado não desperte para a vida política.
Em França, a luta contra a monarquia absoluta, a aristocracia e os príncipes da
Igreja forçou a burguesia de diferentes níveis a completar, por etapas, cerca do fim do
século XVIII, uma revolução agrária radical. Depois disso, os rurais de França, que se
tornaram independentes, mostraram durante muito tempo o apoio seguro da ordem
burguesa e, en 1871, ajudaram a burguesia a dominar a Comuna de Paris.
Na Alemanha, a burguesia mostrou-se incapaz de dar uma solução revolucionária à
questão agrária e, em 1848, entregou os camponeses aos fidalgos provincianos, tal como
Luther, mais de três séculos antes, tinha abandonado os mendigos revoltados aos
principes do Império. Por outro lado, o proletariado alemão, no meio do século XIX, era
ainda demasiado fraco para tomar a direcção da classe camponesa. Seguidamente, o
desenvolvimento do capitalismo, na Alemanha, obteve também um prazo suficiente, ainda
que menos extenso que na Inglaterra, para se subordinar à economia agrícola tal como
ela tinha saído de uma revolução inacabada.
A reforma do estatuto do campesinato, na Rússia, em 1861, foi obra de uma
monarquia conduzida por nobres e funcionários sob a pressão das necessidades da
sociedade burguesa, e no entanto a burguesia era completamente impotente na política.
O carácter da emancipação dos camponeses era tal que a transformação acelerada do
país, no sentido do capitalismo, fazia inevitavelmente do problema agrário um problema
de revolução. Os burgueses russos sonhavam com uma evolução agrária à francesa, à
dinamarquesa, ou à americana – tudo que se quisesse, salvo de uma evolução russa.
Eles não sonhavam, todavia, a se porvir na história da França, no tempo oportuno, ou
melhor na estrutura social da América. Os intelectuais democratas, a despeito do seu
passado revolucionário, alinharam-se, no momento decisivo, do lado da burguesia liberal
e dos proprietários nobres, não do lado dos camponeses revolucionários. Nessas
condições, a classe operária era a única que pode colocar-se à cabeça da revolução
camponesa.
A lei de um desenvolvimento combinado dos países atrasados – no sentido de uma
combinação original dos elementos atrasados com os factores mais modernos – formula-
se aqui por nós nos termos mais perfeitos e dá, ao mesmo tempo, a chave do enigma da
revolução russa. Se a questão agrária, herdeira da barbarie, da história antiga da Rússia,
tinha recebido a sua solução da burguesia, se ele tinha podido receber uma solução, o
proletariado russo nunca teria chegado a tomar o poder em 1917. para que se fundasse o
Estado soviético, foi preciso a reaproximação e a penetração mútua de dois factores de

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natureza histórica completamente diferente: uma guerra de camponeses, isto é, um
movimento que caracteriza a aurora do desenvolvimento burguês, e uma insurreição
proletária, isto é um movimento que assinala o declínio da sociedade burguesa. Todo o
anos de 1917 se desenha aí.

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O czar e a czarina
O objectivo deste livro não é praticar esse tipo de pesquisas psicológicas autónomas
que frequentemente tentam, hoje em dia, de se substituir à análise social e histórica. O
nosso campo de observação trata antes de mais das grandes forças motoras da história
que têm um carácter supra-pessoal. A monarquia é uma dessas forças. Mas todas essas
forças agem por intermédio dos indivíduos. A monarquia está ligada à individualidade em
virtude do seu próprio princípio. Assim se justifica por si o interesse dado à personalidade
de um soberano que o desenvolvimento da história confrontou coma revolução. Nós
esperamos, além disso, mostrar no seguimento, pelo menos parcialmente, quais são os
limites do individual no indivíduo - muitas vezes mais estreito do que parece - e como, em
muitas ocasiões, o ''sinal particular'' não é outra coisa senão a marca individual de uma lei
geral superior.
Nicolau II recebeu a herança dos seus avós não somente um imenso Império, mas
também a revolução. Eles não lhe deixaram nenhuma qualidade que o tornasse apto a
governar seja o Império, uma província ou um distrito. No fluxo da história, cujas vagas se
aproximavam cada vez mais das portas do palácio, o último Romanov opunha uma
despreocupação surda: dizer-se-ia que entre a sua mentalidade e a sua época se erguia
uma ligeira mas impenetrável divisão.
As personalidades que frequentavam o czar relataram mais de uma vez, após a
revolução, que nos momentos mais trágicos do seu reinado - quando da rendição de Port
Arthur e quando a frota russa foi afundada em Tsou-Shima, e depois dez anos mais tarde,
quando as tropas russas bateram em retirada, abandonando Galicia, e depois ainda dois
anos mais tarde, nos dias que antecederam a abdicação, enquanto a Corte se sentia
esmagada, amedrontada, consternada - Nicolau II era o único que se mantinha calmo. Ele
continuou a informar-se do número de verstes (antiga unidade de medida utilizada na
Rússia) por si percorridas nas suas viagens pela Rússia, evocava os incidentes de caça,
anedotas relativas às recepções oficiais e, de maneira geral, interessava-se às futilidades
da sua vida habitual, enquanto a trovoada rebentava sobre a sua cabeça e que o seu céu
riscava-se de relâmpagos.
''O que é que isso significa? perguntava um dos generais que o abordava. Seria um,
quase inacreditável domínio de si devido à educação, à fé na Providência divina, ou a
uma inconsciência dos factos?''
A questão trás é já em si metade da resposta. O que se chama ''educação'' do czar,
sua faculdade em dominar-se em circunstâncias muito extremas, não se explica
unicamente de forma nenhuma por fingimento: o seu foro era duma indiferença profunda,
duma grande indigência de forças morais, a fraqueza dos impulsos volitivos. A máscara
da indiferença, que em certos meios, se nomeia ''educação'', confundia-se naturalmente
com o próprio rosto de Nicolau.

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O diário particular do czar tem mais valor que qualquer testemunho: de um dia ao
outro, de um ano ao outro, estende-se nessas páginas, anotações perturbadoras do seu
vazio moral.
“Passeei demoradamente e matei dois corvos. Ainda estava claro quando tomei chá.
Passeei a pé, canoagem. Outros corvos mortos e chá”.
Tudo nos limites da fisiologia. As cerimonias de igrejas são mencionadas no mesmo
tom que as bebidas.
Na véspera da abertura da Duma do Império, enquanto todo o país estava em
convulsão, Nicolau escrevia:
“14 de Abril. Passeei de blusa fina e retomei canoagem. Tomei chá na varanda.
Stana jantou e andou de canoa connosco. Depois, leitura.”
Nem uma palavra sobre a leitura: era um romance sentimental inglês ou um relatório
de polícia?
“15 de Abril. Aceitei a demissão de Witte. Jantaram connosco Maria e Dmitri. Foram
levados de carruagem ao palácio.”
No dia que se decidiu o adiamento da Duma, quando os altos dignitários assim como
os círculos liberais passavampelas angústias do medo, o czar escrevia no seu jornal:
“7 de Julho. Sexta-feira. Manhã muito ocupada. Atrasámos-nos meia hora pelo
almoço dos oficiais... Houve trovoada e uma atmosfera abafada. Passeio conjunto.
Recebido Goremykine; assinado o oukase do adiamento da Duma! Jantei na casa da
Olga e Petia. Li toda a noite.”
O ponto de exclamação que segue o anúncio do adiamento da Duma exprime o
máximo das emoções do czar.
Os deputados da Duma dispersada exortaram o povo a recusar o pagamento dos
impostos e do serviço militar. Várias revoltas militares tiveram lugar: em Sveaborg, em
Cronstadt, nos vasos de guerra e entre as tropas; o terrorismo revolucionário dirigido
contra os altos dignitários cresceu de maneira inaudita. O czar escreveu:
"9 de Julho. Domingo. A coisa está feita! A Duma fechou hoje. Ao pequeno-almoço,
após a missa, as caras fechadas eram visíveis...Belo tempo. No passeio encontrei o tio
Micha, que veio instalar-se aqui desde o inverno, vindo de Gatchina. Até ao jantar e toda a
noite, trabalhei tranquilamente. Passeio de canoa."
Que ele tenha passeado de barco, a coisa é clara; mas no quê ele trabalhou? Ele
não diz. É sempre a mesma coisa.
Vejamos mais longe nesses dias fatais:
“14 de Julho. Vestido, fui de bicicleta à casa de banhos, banhei-me no mar com
deleito.” “15 de Junho. Tomei banho duas vezes. Estava muito calor. Jantar a sós. A
trovoada passou.” “19 de Julho. Banhei-me esta manhã. Recepção na herdade. O tio
Vladimir e Tchaguine ao almoço.”

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Os levantamentos, as explosões de dinamite são indicadas por esta apreciação:
“Quanto aos acontecimentos, têm piada!” Somos fulminados por esta baixa
indiferença que não chega a um cinismo consciente. “Às nove horas e meia da manhã,
visitámos o regimento da Caspiana...Feito um longo passeio. Um tempo magnífico. Banho
de mar. Após o chá, recebi Lvov e Goutchov.'”
Nem uma palavra para dizer que esta audiência extraordinária, concedida a dois
liberais, foi motivada por uma tentativa de Stolypine de incluir políticos da oposição no seu
ministério. O príncipe Lvov, que devia encontrar-se mais tarde à cabeça do governo
provisório dizia então desta audiência:
“Esperava ver o soberano esmagado pelo tormento; em vez disso ele avança para
mim, jovial, desenvolto, um valentão em camisa cor framboesa.”
A visão do czar não ia mais longe que a de um medíocre funcionário da polícia, com
a única diferença que um polícia conhecia melhor a realidade e era menos
sobrecarregado de superstições. A única gazeta que Nicolau tinha lido durante anos, e na
qual ele inspirava suas ideias, era um semanário publicado, pago pelas finanças públicas,
pelo príncipe Mechtchersky, um ser vil, vendido, desprezado pelo seu próprio meio,
jornalista das cliques reaccionárias da burocracia. A perspectiva geral do czar em nada
mudara no decurso de duas guerras e de duas revoluções: entre a sua mentalidade e os
acontecimentos erguia-se sempre uma parede impenetrável de indiferença.
Não é sem razão que se chamava Nicolau fatalista. É necessário acrescentar que o
seu fatalismo era completamente oposto a uma fé activa na sua “estrela”. Pelo contrário,
Nicolau considerava-se ele próprio como um falhado. O seu fatalismo não era senão uma
forma de defesa passiva diante do desenvolvimento histórico e acompanhava-se de
arbítrio mesquinho nos seus motivos psicológicos, mais monstruosos pelas suas
consequências.
“Eu quero assim, assim deve ser”, escreveu o conde Witte. “Esta formula se
manifestava em todos os actos desse soberano débil que fez, unicamente por fraqueza,
tudo o que caracterizou o seu reino – vertendo constantemente sangue mais ou menos
inocente, e, a maior parte das vezes, sem nenhuma utilidade...”
Comparou-se por vezes Nicolau ao seu trisavô meio louco, Paulo I, que uma
camarilha sufocou, com o consentimento do próprio filho, Alexandre I, o imperador
“benigno”. Esses dois Romanov aproximavam-se com efeito pela sua desconfiança em
relação a todos, procedendo com desconfiança em relação a eles próprios, pelas mesmas
disposições desconfiadas de toda a sua poderosa nulidade, pelos sentimentos de
relegados, e, poder-se-ia dizer, por uma mentalidade de párias coroados. Mas Paulo I
tinha infinitamente maior brilho, as suas divagações comportavam um elemento de
fantasia, ainda que demente. No seu descendente tudo é terno; sem um traço vivo.
Nicolau era não somente desequilibrado, mas desleal. Os seus aduladores diziam
dele que era um sedutor, um encantador, por causa da amenidade nas suas relações com
a Corte. Mas ele mostrava-se particularmente carinhoso em relação aos dignitários que

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ele decidia despedir: tal ministro, contentíssimo do seu acolhimento encontrava, voltando
a casa, uma carta de destituição. Era para o czar uma maneira de vingar a sua nulidade.
Nicolau desviava-se com hostilidade de tudo o que era talentoso e grande. Ele não
se sentia à vontade senão no meio de espíritos indigentes, desprovidos de qualquer
talento, de devotos, de deliquescentes, que ele não tinha que olhar de alto a baixo. Ele
tinha o seu amor-próprio, mesmo bastante refinado, mas inactivo, sem uma ponta de
iniciativa, mantendo-se na defensiva de invejosos. Na escolha dos seus ministros, o seu
princípio era de os tomar sempre mais baixo. Só chamava a ele gente de espírito e de
carácter em caso último e se não houvesse outra saída, como se chama o cirurgião
quando se está em perigo de morte. Assim foi com Witte, seguidamente com Stolypine. O
czar considerava-os, um e outro, com uma aversão mal dissimulada. Logo que a crise
estava resolvida, Nicolau apressava-se de se desembaraçar dos conselheiros que eram
demasiado grandes para o seu tamanho. A selecção era de tal forma sistemática que
Rodzianko, presidente da última Duma, atreveu-se a dizer ao czar, no 7 Janeiro 1917,
quando a revolução batia à porta:
“Majestade, à sua volta, não fica um homem seguro e honesto: os melhores foram
afastados ou abandonaram; só restam os que gozam de má reputação.”
Todos os esforços da burguesia liberal para discutir com a Corte não levaram a
nada. Incoercível, e ruidoso, Rodzianko tentava sacudir o czar através de relatórios. Em
vão! Nicolau calava-se, não somente sobre os argumentos invocados, mas sobre as
impertinências, preparando em segredo a dissolução da Duma. O grande duque Dmitri,
outrora favorito do czar e que devia, mais tarde, participar no assassinato de Rasputine,
queixava-se diante do príncipe Iossopov, seu conjurado, do que o czar por qualquer
mistura que lhe tolhia as suas faculdades espirituais.
“Segundo certos rumores, escreveu por seu lado Miliokov, historiador liberal, este
estado de apatia intelectual e moral do czar era entretido pelo abuso do álcool.”
Tudo isso não passava de invenção ou exageração. O czar não tinha necessidade
de estupefacientes; a “mistura” mortal, tinha-a no sangue. Mas os sinais de intoxicação
pareciam particularmente impressionantes sobre o fundo dos grandes acontecimentos da
guerra e da crise interior que conduzia à revolução. Rasputine, que era psicólogo, dizia
brevemente do czar “que lhe faltava qualquer coisa lá dentro”.
Este homem desinteressante, ponderado, e “bem-educado”, era cruel. Não de
crueldade activa, perseguindo fins históricos, de um Ivan o Terrível ou de um Pedro – que
de comum entre Nicolau e eles? - mas crueldade cobarde de um rebento assustado por
sentir-se condenado. Desde da aurora do seu reino, ele felicitou “os bravos do regimente
de Fanagoria” que tinham disparado sobre os operários. Sempre ele “lia com prazer”
como se tivesse fustigado a golpes de nagaika os estudantes “de cabelos curtos”, como
pessoas sem defesa tinham tido o crânio quebrado nos progroms de judeus. Refugo
coroado da sociedade, ele era levado de todo a sua alma para os fundos imundos, para
os bandidos Cem Negros, e não somente ele pagava abundantemente na base das
disponibilidades do Tesouro, mas ele gostava de se entreter com eles sobre as suas

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proezas e agraciá-los quando, por acaso, eles estavam convencidos de ter assassinado
deputados da oposição. Witte, que se encontrava à cabeça do governo na época onde se
reprimia a primeira revolução, escreveu nas suas Memórias:
“Quando inúteis sevícias cometidas pelos chefes desses destacamentos chegavam
ao conhecimento do soberano, ele aprovava ou, pelo menos, cobria-as”.
Como o governador-geral das províncias bálticas pedia que se disciplinasse um
certo capitão chamado Richter que
“procedia a execuções por sua livre vontade, sem qualquer julgamento, mesmo em
relação de pessoas que não tinham oposto resistência”,
o czar notou sobre o relatório: “Ah! Esse folgazão!” Ele distribuía sem contar tais
encorajamentos. Esse “sedutor”, sem vontade, sem objectivo, sem imaginação, foi mais
terrível que todos os tiranos da história antiga e moderna.
O czar encontrava-se sob a influência da czarina, influência que aumentava com os
anos e as dificuldades. Juntos, eles constituíam uma espécie de tudo. Esta combinação
mostra já em que medida, sob a pressão das circunstâncias, o individual se completa pelo
elemento do grupo. Mas convém falar primeiro da czarina.
Maurice Paléologue, antigo embaixador da França em Petrogrado durante a guerra,
psicólogo refinado para académicos e para porteiros, deu um retrato cuidadoso lambido
da última czarina: ansiedade moral, diz ele substancialmente, melancolia crónica,
angústia sem limites, alternativas de sobressaltos de forças e de crises de astenia,
meditações dolorosas sobre o mundo invisível, superstições – todos esses traços, tão
fortemente marcados na pessoa da imperatriz, não são os que caracterizam o povo
russo? Tão estranho que possa parecer, há um grau de verdade nesta ficção adocicada.
Não é sem erro que o satírico russo Saltykov dizia dos ministros e dos governadores
saídos das baronias bálticas que eles eram “alemães com alma russa”: está fora de
dúvida que precisamente alógenos, não tendo nenhum laço com o povo, elaboravam a
mais fina cultura do administrador “verdadeiramente russo”.
Mas então porquê o povo retribuía um ódio tão declarado à czarina que, acreditando
em Paléologue, tinha tão bem adaptado a alma nacional? A resposta é simples: para
justificar a sua nova situação, esta alemã tentava assimilar, com um frio frenesim, todas
as tradições e as sugestões da Idade média russa, de todos o mais indigente e o mais
grosseiro, num período onde o povo fazia poderosos esforços para se emancipar da sua
própria barbárie medieval. Esta princesa alemã era literalmente possuída pelo demónio da
autocracia: tendo saído do seu buraco provincial até à cimeira do despotismo bizantino,
ela não queria por nada no mundo aí voltar. Ela encontrou na ortodoxia uma mística e
uma magia misturada ao seu novo destino. Ela acreditou tanto mais inabalavelmente na
sua vocação que a ignomínia do antigo regime se desvendava cada vez mais. Com
carácter forte, capaz de uma exaltação seca e dura, a czarina completava o czar mole,
dominando-o.

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No 17 de Março 1916, um ano antes da revolução, quando o país rasgado se torcia
já nas tenazes da derrota e do desespero, a czarina escrevia ao seu marido, no G. Q. G.:
“...Tu não deves deixar-te dobrar; sem ministério responsável, etc. - nada do que ele
queiram. Esta guerra deve ser a tua guerra, e a paz a tua paz, em tua honra, e a da
pátria, mas em nenhum caso em honra da Duma. Essa gente aí não tem o direito de dizer
mesmo uma só palavra sobre essas questões.”
Era de qualquer forma um programa acabado e que, precisamente, ganhava sempre
sobre as continuas hesitações do czar.
Quando Nicolau partiu para a tropa, na qualidade de generalíssimo fictício, foi a
czarina que se ocupou abertamente dos assuntos do interior. Os ministros apresentavam-
se a ela com os seus relatórios, como a uma regente. Ela conspirava com uma pequena
camarilha contra a Duma, contra os ministros, contra os generais do G. Q. G., contra toda
a gente, parcialmente mesmo contra o czar. No 6 de Dezembro 1916, ela escreveu a
Nicolau:
“No momento que disseste que querias manter Protopopov, como ele se atreve (o
presidente do Conselho, Trepov) agir contra a tua vontade? Dá um bom murro na mesa,
não cedas, sê o mestre, escuta a tua mulherzinha e o nosso Amigo. Acredita-nos”.
Três dias depois:
“Tu sabes que tens razão. Levanta bem a cabeça, ordena a Trepov a trabalhar com
ele... Dá um bom murro na mesa...”
Essas frases parecem inventadas. Mas são extraídas de cartas autênticas. E não
são coisas que se inventem.
No 13 de Dezembro, a czarina volta à carga:
“Sobretudo, não a esse ministério responsável que é a marioneta de todos. Tudo se
acalma e vai cada vez melhor, mas queremos sentir o teu punho. Há muito tempo, anos
inteiros, que me repetem a mesma coisa“
A Rússia gosta que lhe acariciem com a chibata, escreve a czarina da Rússia, ao
czar da Rússia, falando do povo russo, e isso dez semanas antes do dia que a monarquia
caia no abismo.
Ainda que mais dotada de carácter do que o marido, a czarina não lhe é superior
intelectualmente, ela é-lhe mesmo inferior; ainda mais que ele, ela procura a sociedade
dos pobres de espírito. A estreita amizade que, durante longos anos, liga o czar e a
czarina com a dama de honor Vyroubova marca o nível espiritual do casal imperial.
Vyroubova dizia-se ela própria idiota, e não era modéstia. Witte, a quem não se pode
recusar a segurança do golpe de vista, caracteriza-a como
“a mais banal, a mais imbecil dama do género petersburguês, vilã, igual a um
inchaço sobre uma pasta de brioche”.

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Na sociedade desta pessoa que cortejava servilmente os dignitários encarnecidos,
embaixadores, financeiros, e que tinha portanto bastante tino para não negligenciar de
encher os bolsos, o czar e a czarina passavam horas e horas, consultavam-na sobre
negócios, correspondiam com ela e relacionavam-se com ela através de cartas.
Vyroubova era mais influente que a Duma do Império e mesmo que o ministério.
Ela própria não era senão o médio do “Amigo” cuja autoridade dominava essas três
pessoas.
“...Tal é a minha opinião particular – escreveu a czarina ao czar – mas vou tratar de
saber o que pensa o nosso Amigo.”
A opinião do Amigo não é uma “opinião particular”; ela é decisiva.
“...Eu sou forte – insiste a czarina, algumas semanas mais tarde – mas ouve bem,
isto é, escuta o nosso Amigo e confia-nos em tudo... Eu sofro por ti como uma criança
delicada, de coração terno, que tem necessidade de ser dirigida, mas que dá atenção aos
maus conselhos quando um homem está aí, enviado de Deus, que lhe diz o que deve
fazer.”
O Amigo, o enviado de Deus, é Grigori Rasputine.
“...Com as preces e a assistência do nosso Amigo, tudo irá bem.” “Se não o
tivéssemos perto de nós, tudo teria terminado há muito tempo, estou absolutamente
convencida disso.”
Durante todo o reinado de Nicolau e Alexandra, chamaram à Corte curandeiros,
magos, possuídos, angariadores não somente de toda a Rússia, mas do estrangeiro.
Existia para esse efeito dignitários com títulos de fornecedores, que se agrupavam à volta
do oráculo para o momento, constituindo junto do monarca uma Câmara Alta toda-
poderosa. A esse meio não lhe faltava nem velhas beatas, nomeadas condessas, nem
excelentes hipocondríacos por falta de emprego, nem financeiros que consolidavam
gabinetes ministeriais inteiros. Considerando com ciúmes a concorrência não patenteada
de hipnotizadores e de bruxos, o alto clérigo ortodoxo apressava-se a trilhar escoamento
no santuário da intriga. Witte chamava o círculo dirigente, que lhe tinha partido a espinha
por duas vezes, “uma camarilha leprosa”.
Mais a dinastia se isolava, mais o autocrata se sentia abandonado, mais ele
ressentia a necessidade de uma ajuda do mundo espírita. Certos selvagens, para obter
bom tempo, fazem revolver no ar uma prancheta agarrada a um fio. O czar e a czarina
serviam-se de pranchetas para os mais diversos fins. Existia no vagão imperial um
oratório bem montado com grandes e pequenos ícones e toda a espécie de objectos de
piedade que foram opostos primeiro à artilharia japonesa, mais tarde à artilharia alemã.
O nível intelectual da Corte não tinha, propriamente dito, mudado muito de uma
geração à outra. Do tempo de Alexandre II, apelidado “o Emancipador”, os grandes
duques acreditavam firmemente nos diabos que assombram as casas e nas bruxas. Sob
Alexandre III, a coisa não era melhor, mas era mais calma. A “camarilha leprosa” existiu
sempre, modificava a sua composição, mudando os procedimentos. Nicolau II não criou,

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mas herdou dos seus avós a atmosfera de selvajaria medieval que reinava no palácio.
Mas, durante essas dezenas de anos, o país transformou-se, os problemas tornaram-se
mais complexos, a cultura aumentou, e o círculo da Corte encontrou-se empurrada para
trás, ultrapassada de longe. Se a monarquia fez, pela força, concessões às forças novas,
ela não chegava a se modernizar interiormente; pelo contrário, ela fechava-se sobre ela
própria; o seu espírito medieval engrossava sob a pressão do ódio e do temor, até que
tomou o carácter de um terrível pesadelo que cobriu o país.
No primeiro de Novembro 1905, isto é no momento mais crítico da primeira
revolução, o czar escreveu no seu diário:
“Fizemos conhecimento de um homem de Deus, Grigori, da província de Tobolsk.”
Tratava-se de Rasputine, camponês siberiano que tinha na cabeça uma cicatriz
indelével consequência de golpes recebidos por roubo de cavalos. Valorizado no
momento oportuno, “o homem de Deus” logo encontrou auxiliares bem colocados, ou,
mais exactamente, encontraram-lhe, e assim se formou uma nova cotaria dirigente que
meteu fortemente a mão sobre a czarina e, por intermédio desta, sobre o czar.
A partir do inverno de 1913-1914, na alta sociedade petersburguesa, dizia-se já
abertamente que da clique de Rasputine dependiam todas as altas nomeações, os
comandos e as adjudicações. O “santo idoso”, o peregrino, tornou-se pouco a pouco, uma
instituição do Estado. Vigiava-se cuidadosamente pela sua segurança e, não menos
cuidadosamente, os ministérios rivais espionavam-no. Os agentes do departamento da
Polícia mantinham a dia um horário da sua existência e não faltavam os relatórios
segundo os quais Rasputine, em visita à familia, na aldeia de Pokrovskoie, bêbado, ter-
se-ia batido violentamente com o seu próprio pai. No mesmo dia, 9 de Setembro 1915,
Rasputine mandou dois telegramas afáveis, um para a imperatriz, em Tsarskoie-Selo,
outro para o czar, no G. Q. G..
São épicos os relatórios dos bufos, escritos, no dia a dia, sobre as estroinices do
Amigo. “
Ele voltou para casa, hoje, às cinco horas da manhã, completamente bêbado”. “O
artista V. dormiu na casa de Rasputine na noite do 25 a 26.” “Ele chegou com a princesa
D. (mulher de um gentil-homem da Corte) ao Hotel Astoria.”
Lê-se um pouco mais à frente:
“Ele voltou para casa em Tsarkoie-Selo cerca das onze horas da noite.” “Rasputine
voltou para casa com a pr. Ch.; ele estava muito bêbado; todos os dois voltaram logo a
sair.”.
No dia seguinte, pela manhã ou à tarde, visita a Tsarskoie-Selo. Um bufo,
perguntando com arrependimento ao santo velho porquê ele parecia preocupado, obteve
esta resposta: “Não posso decidir se deve convocar-se ou não a Duma.”
Lê-se a seguir:
“Voltou a casa às cinco da manhã, bastante bêbado.”

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Assim, durante meses e anos, a mesma melodia tocava-se sobre três tons: “bastante
bêbado”, “muito bêbado”, “completamente bêbado”. Essas informações de alta
importância para o Estado eram coligidas e assinadas pelo general da guarda Globatchev.
O desenvolvimento da influência rasputiana durou seis anos, nos últimos anos da
monarquia.
“A sua existência em Petersburgo – conta o príncipe Iossopov, que participou em
certa medida nesta vida de Rasputine para se matar em seguida – era uma núpcia
continua, a bebedeira e o regabofe de um forçado que teve sorte.”
“Dispus – escrevia Rodzianko, presidente da Duma – de um grande número de
cartas de mães cujas filhas tinham sido desonradas por esse descarado devasso.“
Nesse mesmo tempo, é a Rasputine que Pitirim, metropolita de Petrogrado, e o
arcebispo de Varnava, que lia com dificuldade, que deviam os seus lugares. É sobre
Rasputine que repousou durante muito tempo o poder de Sabler, alto procurador do Santo
Sínodo, foi com o acordo de Rasputine que foi despedido o presidente do Conselho
Kokovtsev que não quis receber o “santo velho”. Rasputine nomeou Stürmer presidente
do Conselho de ministros, Protopopov, ministro do Interior, Raiev, novo alto-procurador do
Santo Sínodo, assim como outros. Paléologue, embaixador da República francesa, obteve
audiência de Rasputine, abraçou-o e disse: “Eis um verdadeiro iluminado!” Ele pensava
conquistar assim o coração da czarina para a causa da França. Um judeu chamado
Simanovitch, agente financeiro do “santo velho”, identificado pela polícia como jogador
nos clubes e como usurário, nomeou, com a ajuda de Rasputine, ministro da Justiça um
homem completamente vicioso, Dobrovolsky.
“Guarda na tua posse a pequena lista – escreve a czarina ao czar, sobre as novas
nomeações. O nosso Amigo pediu que tu converses de tudo isso com Protopopov.“
Dois dias mais tarde:
“O nosso Amigo diz que Stürmer pode ficar ainda por um certo tempo presidente do
Conselho de ministros.”
E ainda o seguinte:
“Protopopov venera o nosso Amigo, ele será bendito.”
Um dia, como os bufos tinham assinalado mais uma vez o número de garrafas e de
mulheres, a czarina confessava a sua aflição numa carta ao czar:
“Acusam Rasputine de ter beijado mulheres, etc. Lê os Apóstolos, eles beijavam
todos e todas, em jeito de boas-vindas.”
É duvidoso que essa referência aos Apóstolos tenha sido persuasiva para os bufos.
Numa outra carta, a czarina vai mais longe:
“Durante a leitura do Evangelho da noite, escreve ela, pensei tanto no nosso Amigo:
eu vi-o como os escribas e os fariseus perseguiram Cristo, fingindo serem perfeitos... Na
realidade, ninguém é profeta no seu país.”

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Era hábito, nesse meio, de comparar Rasputine a Cristo, e de forma nenhuma por
acaso. O temor diante das forças sussurrantes da história era demasiado penetrante para
que fosse suficiente ao casal imperial um Deus impessoal e da sombra não carnal de um
Cristo de Evangelho. Era-lhes necessário um novo acontecimento do “Filho do Homem”.
Em Rasputine a monarquia condenada e agonizante encontra um Cristo à sua imagem e
à sua semelhança.
“Se Rasputine não tivesse existido – disse um homem do antigo regime, o senador
Tagantsev – teria sido necessário inventá-lo.”
Esta palavra tem mais sentido do que pensava o seu autor. Se compreendermos por
“malandragem” a expressão extrema do parasitismo anti-social na escumalha da
sociedade, pode-se dizer, a propósito, da aventura rasputina que é em primeiro lugar uma
questão de malandragem coroada.

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A ideia de uma revolução palaciana
Porquê as classes dirigentes, procurando preservar-se da revolução, não tentaram
desembaraçar-se do czar e do seu séquito ? Elas quiseram, mas não ousaram. Elas não
tinham nem bastante fé na sua própria causa nem suficiente resolução. A ideia de uma
revolução palaciana assombrou os espíritos até ao dia que ela se afundou na revolução
de Estado. Convém insistir sobre o sujeito, nem que fosse para ter uma concepção mais
nítida das relações entre a monarquia e a cimeira da burocracia e da burguesia, na
véspera da conflagração.
As classes possuidoras eram monárquicas na quase totalidade: pela força dos
interesses, costume e cobardia. Mas elas desejavam uma monarquia sem Rasputine. A
monarquia respondia-lhes: tomem-me tal como sou. Em resposta a quem reclamava um
ministério decente, a czarina enviava ao Grande Quartel General uma massa dada por
Rasputine, exigindo do czar que ele a comesse para consolidar a sua vontade! Ela
conjurava-o:
“Lembra-te que mesmo M. Philippe (trata-se de um charlatão hipnotizador) disse que
não deverias ceder uma constituição, porque isso seria a tua perca e a da Rússia...” “Sê
um Pedro o Grande, um Ivan o Terrível, um imperador Paul, e esmaga toda essa gente
sob os teus pés!”
Que odiosa mistura de cobardia, de superstição e de aversão para um país do qual
se mantém à distância! Poderia parecer, na realidade, que, pelo menos na alta sociedade,
a família imperial não estava assim tão isolada: porque enfim Rasputine estava sempre
rodeado de uma plêiade de grandes damas e, de maneira geral, a bruxaria está em voga
na aristocracia. Mas esta mística do medo não liga as pessoas; pelo contrário, ela
desunia-os. Cada um conta salvar-se à sua maneira. Numerosas casas aristocrática
concorrem entre elas com os seus “santos”. Mesmo na alta esfera de Petrogrado, a
família imperial, como fosse pestilenta e colocada em quarentena, é rodeada de
desconfiança e hostilidade. A dama de honor Vyroubova escreveu nas suas Lembranças:
“Eu discernia e ressentia profundamente em toda à volta a animosidade em relação
aos que eu adorava, e sentia que esta animosidade tomava proporções espantosas...”
No fundo purpureado da guerra, os rumores distintos dos tremores subterrâneos, os
privilégios não renunciaram um só instante aos prazeres da existência, mas, pelo
contrário, grisalhavam-se. Mas, nos seus festins, apareciam cada vez mais um espectro
que lhes ameaçava com os seus dedos esqueléticos. Eles começavam então a imaginar
que todo o mal vinha do detestável carácter de Alice, da cobarde moleza do czar, de esta
idiota, cúpida Vyroubova, e do Cristo siberiano, de crânio golpeado. Intoleráveis
pressentimentos abatiam-se sobre as classes dirigentes, resentido-se por espasmos da
periferia para o centro, isolando cada vez mais a o cume detestado de Tsarkoie-Selo.
Vyroubova exprimiu com bastante vivacidade qual foi então o estado de alma desse
pequeno grupo nas suas Lembranças, seja dito, em geral, extremamente mentirosos:

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“...Pela centésima vez perguntava-me o que tinha acontecido à sociedade de
Petrogrado. Teriam todos sido atingidos de doença mental ou de uma epidemia infligida
em tempo de guerra? É difícil dar-se conta, mas, com efeito, todos estavam num estado
de sobreexcitação anormal.”
Muitos desses dementes pertenciam também à família dos Romanov, toda esse
matilha, odiada por todos, grandes duques e grandes duquesas. Mortalmente assustados,
tentavam escapar ao cerco cada vez mais apertado, cacarejavam com a aristocracia
fundibulária, propagavam boatos sobre o casal imperial, quezilavam-se entre eles e os
que os rodeavam. Muitos augustos tios dirigiam-se ao czar cartas de advertências nas
quais, sob formas respeitosas, compreendiam-se ranger de dentes e zombaria.
Protopopov, após a Revolução de Outubro, devia caracterizar com um estilo
bastante incorrecto, mas pitoresco, o estado de espírito das altas esferas:
“Mesmo as classes mais altas mostraram-se críticas na véspera da revolução. Nos
salões e nos clubes da alta sociedade, a política do governo era objecto de críticas
acerbes e maldosas; examinava-se, discutiam-se os relatórios que se tinham estabelecido
no seio da familia imperial; anedotas contavam-se acerca do chefe do Estado; escreviam-
se epigramas; numerosos eram os grandes duques que frequentavam essas reuniões
pérfidas. Até ao último momento, não havia consciência do perigo que havia nesse jogo”.
Os rumores que corriam sobre a camarilha do palácio tomava particular gravidade
pelo facto que se acusava de germanofilia e mesmo de conivência directa com o inimigo.
O ruidoso e pouco sagaz Rodzianko declara sem rodeios:
“A relação e analogia das tendências são lógicamente tão evidentes que não resta
mais, pelo menos para mim, dúvidas sobre a acção conjugada do estado-maior alemão e
do círculo de Rasputine: sobre isso, nenhuma dúvida pode subsistir.”
Como aqui a evidência “lógica” é alegada sem provas, o tom categórico desse
testemunho perde muito da sua força persuasiva. Nenhuma prova de um conluio dos
rasputines com o estado-maior alemão não foi descoberta, mesmo após a revolução.
Quanto à “germanofilia”, é um outro assunto. Não se trata, bem entendido, das simpatias
ou antipatias nacionais de uma czarina alemã, de um Stürmer primeiro-ministro, de uma
condessa Kleinmichel, de um conde Frederiks, ministro da Corte, ou de outros
personagens com nomes alemães. As cínicas Memórias da velha intrigante Kleinmichel
mostram com uma certa vivacidade impressionante o carácter supra-nacional que
distinguia as alta esferas aristocrática de todos os países europeus, ligados entre eles
pelos nós de família, de hereditariedade, pelo desdém por tudo o que se encontrava
abaixo de elas e – last, but not least – pelo cosmopolitismo de adultério nos velhos
castelos, nos solares na moda e nas Cortes da Europa. Muito mais reais foram as
antipatias orgânicas dos valetes do Palácio em relação aos obsequiosos advogados da
República francesa, e os simpáticos reaccionários, com apelidos teutónicos ou eslavos,
para o espírito puramente prussiano do regime berlinense que lhe havia imposto há muito
tempo com os seus bigodes cosméticos, as suas maneiras de Feldwebel e a sua
arrogante imbecilidade.

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Mas isso não resolvia a questão. O perigo resultava da própria lógica da situação: a
Corte, com efeito, não podia dispensar-se de procurar a sua salvação numa paz
separada, e com tanto mais obstinação que o perigo tornava-se mais eminente. O
liberalismo, na pessoa dos seus líderes, como ainda veremos, pensava reservar-se as
oportunidades de uma paz separada, calculando sobre a perspectiva da sua chegada ao
poder. Mas é precisamente por esta razão que ele conduzia a sua agitação chauvinista
com empenho, enganando o povo e aterrorizando a Corte. A camarilha, numa questão tão
grave, não ousava desmascarar-se antes do tempo e encontrava-se mesmo forçada de
falsificar o tom patriótico da opinião, ao mesmo tempo que apalpava o terreno para chega
a uma paz separada.
O general Korlov, antigo grande chefe da Polícia, que tinha aderido à camarilha
rasputina, nega, bem entendido, nas sua Memórias, as relações com a Alemanha, e a
germanofilia dos seus protectores, mas logo acrescenta:
“Não poderíamos censurar a Stürmer de ter pensado que a guerra feita à Alemanha
era a maior das desgraças para a Rússia e que ela não tinha nenhum sério motivo
político.”
Não se pode porém esquecer que Stürmer, que “pensava” de uma maneira tão
interessante, estava à cabeça do governo de um país em guerra com a Alemanha.
Protopopov, o último dos ministros do czar na pasta do Interior, teve, na véspera de entrar
no governo, conversões em Estocolmo com um diplomata alemão, das quais ele fez um
relatório ao czar. O próprio Rasputine, segundo o mesmo Korlov,
“considerava que a guerra com a Alemanha era uma enorme calamidade para a
Rússia”.
Enfim, a imperatriz escrevia ao czar, no dia 5 de Abril 1916:
“...Que eles não ousam dizer que tenha havido da parte Dele a menor coisa em
comum com os alemães; ele é bom e magnânimo. Para todos, como o Cristo, qualquer
que seja a religião que as pessoas pertençam; assim deve ser o verdadeiro cristão.”
Sem dúvida, junto deste verdadeiro cristão que não saía praticamente do estado de
bebedeira, poderiam muito bem se infiltrar, como larápios, usurários e aristocráticas
alcoviteiras, verdadeiras espias. “Ligações” desta natureza não são impossíveis. Mas os
patriotas da oposição colocavam questões mais largas e directamente: eles acusavam
nitidamente a czarina de traição. Nas suas Memórias escritas muito mais tarde, o general
Denikine disso testemunha:
“No exército, falava-se em voz alta, sem preocupação da hora e do lugar, da
instâncias da imperatriz que queria uma paz separada, da sua traição em relação ao
marechal de-campo Kitchner, a quem ela teria informado da viagem à Alemanha, etc. Esta
circunstância jogou um papel enorme na opinião do exército, da sua atitude em relação à
dinastia e da revolução.”
Esse mesmo Denikine conta que após a revolução, o general Alexeiev, como lhe
perguntaram claramente se a imperatriz tinha traído, respondeu “evasivamente de má-

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vontade” que tinham descoberto na casa da czarina, classificando os seus papeis, uma
carta onde estavam indicados em detalhe as colocações dos corpos do exército na frente,
e que ele, Alexeiev, tinha resentido que esse achado uma impressão intolerável...” Nem
mais uma palavra – acrescentou Denikine de uma maneira muito significativa: Alexeiev
mudou de conversa. “Que a czarina tenha ou não detido em sua casa uma carta
misteriosa, os generais mal-aconselhados estavam evidentemente bastante inclinados em
rejeitar sobre ela uma parte da responsabilidade dos seus defeitos. As culpas de traição
levadas contra a Corte espalhavam-se pela tropa, vindo sem dúvida principalmente do
alto, dos estados-maiores incompetentes.
Mas se a própria czarina, à qual o czar se submete em toda as coisas, entregou a
Guilherme os segredos militares e mesmo as cabeça dos grandes capitãs aliados, que
falta esperar, a não ser sanções contra o casal imperial? Ora, considerava-se o grão-
duque Nicolau Nicolaievitch como o verdadeiro chefe do exército e do partido anti-
germânico e, por consequência, e por assim dizer em virtude das suas funções, era ele
que estava indicado para patrocinar uma revolta de palácio. Foi por essa razão que o
czar, sob conselho de Rasputine e da czarina, destituiu o grão-duque e assumiu em
pessoa o comando supremo. Mas a imperatriz apreendia a entrevista do sobrinho com o
tio, no momento da possessão dos poderes:
“Meu caro, escreveu ela ao czar no G. Q. G., procura ser prudente e não te deixes
enganar por quaisquer promessas de Nicolacha, ou por qualquer outra coisa; lembra-te
que Grigori (Rasputine) salvou-te dele e dessa gente malvada...Lembra-te, em nome da
Rússia, o que ele querem fazer: expulsar-te (não é um mexerico, em Orlov todos os
papeis estavam já prontos) e a mim, fechar-me num convento...”
O irmão do czar, Miguel, dizia a Rodzianko:
“Toda a família reconhecia até que ponto é prejudicava Alexandra Fedorovna. Meu
irmão e ela estão exclusivamente rodeados de traidores. Toda a gente honesta foi
afastada. Mas que fazer em tal caso?”
Sim, precisamente: que fazer em tal caso?
A grande-duquesa Maria Pavlovna, em presença dos seus filhos, dizia e repetia que
Rodzianko devrait tomar a iniciativa de “eliminar” a czarina. Rodzianko propos que essas
afirmações não tiveram lugar, porque de outra forma, o seu juramento de fidelidade o
tivesse obrigado a comunicar ao czar, que uma grão-duquesa convidava o presidente da
Duma a suprimir a imperatriz. É assim que o imaginativo gentil-homem levava a questão
do assassinato da czarina como uma gentil gracinha inocente.
O próprio ministério encontrava-se por momentos em aberta oposição com o czar.
Desde 1915, dezoito meses antes da revolução, mantinha-se abertamente, em Conselho
de ministros, afirmações que nos parecem ainda hoje inacreditáveis. Polivanov, ministro
da Guerra:
“Só uma política de conciliação com a sociedade pode salvar a situação. Os diques
frágeis que existem actualmente não poderão evitar uma catástrofe.”

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Grigorovitch, ministro da Marinha:
“Não é segredo que a tropa não tem confiança em nós e espera mudanças.”
Sazonov, ministro dos Estrangeiros:
“A popularidade do czar e a sua autoridade são consideravelmente abalada aos
olhos da massas”.
O príncipe Chtcherbatov, ministro do Interior:
“Somos todos incapazes de governar a Rússia nas presentes circunstâncias … É
preciso uma ditadura ou uma política de conciliação.” (Sessão de 21 de Agosto 1915).
Nem uma nem outra solução não serviam de nada; nem uma nem outra eram
realizáveis. O czar não se decidia pela ditadura, rejeitava uma política de conciliação e
não aceitava demissões de ministros que se julgavam incapazes. Um alto funcionário que
tomava notas, acrescentou aos arengues ministeriais este breve comentário:
“ Para nós, então, é a lanterna!”
Em tal situação, não é de estranhar que, mesmo nos meios burocráticos, se tenha
falado da necessidade de uma revolução de palácio, como o único meio de evitar uma
revolução eminente. “Se eu fechasse os olhos – escreve um dos que participaram nessas
conversações – teria acreditado que me encontrava numa sociedade de revolucionários
enraivecidos.”
Um coronel da guarda que fez um inquérito, uma missão especial, nas tropas do Sul,
deu no seu relatório um quadro sombrio: no seguimento dos esforços de propaganda
sobre a germanofilia da imperatriz e do czar, o exército estava disposto a acolher a ideia
de uma revolução palaciana.
“Houve, nesse sentido, nas assembleias de oficiais, francas conversas que não
encontravam a indispensável reacção do alto comando. “Protopopov, por outro lado,
declarou que “um grande número de personagens do alto comando eram favoráveis a
uma revolução; alguns encontravam-se nas relações e sob a influência dos principais
líderes do chamado bloco progressista.”
O almirante Koltchak, que, em consequência se tornou famoso, declarou, diante da
comissão rogatória dos Sovietes, quando as suas tropas foram derrotadas pelo Exército
Vermelho, que ele estava em ligação com numerosos membros da oposição na Duma,
que ele tinha aprovado as manifestações, visto que “a sua atitude em relação ao poder
existente antes da revolução era negativo.” Koltchak, no entanto, não foi posto ao corrente
dos planos da revolução palaciana.
Depois do assassinato de Rasputine, as medidas de relegação que atingiram por
consequência certos grandes duques, a alta sociedade meteu-se a falar mais alto que
nunca da necessidade de uma revolução na Corte. O príncipe Iossopov conta que o grão-
duque Dmitri, em prisão domiciliária no seu palácio, recebeu visitas de oficiais de vários
regimentos que lhe propuseram diversos planos de acção decisiva ”que ele não podia
aceitar, naturalmente.”

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Considera-se que a diplomacia dos Aliados participou na conspiração, pelo menos a
do embaixador da Grande-Bretanha. Este último, por iniciativa dos liberais russos, tentou,
em Janeiro de 1917, influenciar Nicolau II, após ter pedido a sanção prévia do seu
governo. Nicolau ouviu com atenção e educadamente, agradeceu-lhe...e falou de outra
coisa. Protopopov, informava Nicolau que existiam relações entre Buchanan e os
principais líderes do bloco progressista e propunha estabelecer a vigilância à volta da
embaixada britânica. Parece que Nicolau não teria aprovado essa medida, achou que a
vigilância exercida sobre um embaixador “seria contrária às tradições internacionais”.
Entretanto, Korlov, sem rodeios, declarou que
“os serviços de informações notaram diariamente as relações do líder do partido
cadete Miliokov com o embaixador de Inglaterra”.
Em consequência, as tradições internacionais não impediam nada. Mas elas foram
violadas, o resultado mediocre: a conspiração palaciana não foi descoberta.
Existiu? Nada o prova. Ela foi demasiando extensa, essa “conspiração”, englobava
os círculos demasiado numerosos e diversos para se uma conspiração. Pairava no ar,
como rumor nas altas esferas da sociedade petersburguesa, como ideia confusa de
salvamento ou como formula de desespero. Mas não se condensa até se tornar um plano
prático.
No século XVIII, a alta nobreza, teve, mais de uma vez, de corrigir a ordem de
sucessão dos ocupantes do trono, encarcerando, ou abafando os imperadores
incómodos: pela última vez, esta operação foi feita com Paulo I, em 1801. Não se pode
afirmar, em consequência, que uma revolução palaciana tivesse transgredido as tradições
da monarquia russa: foi pelo contrário um elemento indispensável. Porém, a aristocracia
tinha cessado há muito tempo de se sentir segura. Ela concedia a honra de abafar o czar
e a czarina à burguesia liberal. Mas os líderes desta última não estavam muito decididos.
Após a revolução, designou-se mais de uma vez os capitalistas liberais Gotchkov e
Terechtchenko, assim que o general Krymov que lhe era próximo, como o núcleo da
conspiração. Gotchkov e Terechtchenko testemunharam eles próprios nesse sentido, mas
sem darem precisões. Antigo voluntário no exército do Boers contra os ingleses, duelista,
liberal que calçava esporas, Gotchkov devia parecer à generalidade da “opinião pública” o
homem mais adequado para um conspiração. Não o professor prolixo Miliokov, na
verdade! Gotchkov teve de lembrar-se mais de uma vez que um regimento de Guarda, ao
dar rapidamente um bom golpe, pode substituir-se à revolução e preveni-la. Já, nas suas
Memórias, Witte denunciava Gotchkov, que ele detestava, como um administrador dos
métodos empregados pelos jovens turcos para resolver o caso de um sultão indesejável.
Mas Gotchkov que, na sua juventude não tinha tido tempo para manifestar a sua bravura
de jovem turco, estava agora numa idade demasiado avançada. E, sobretudo, esse emulo
de Stolypine não podia dispensar-se de ver a diferença entre as condições russas e as da
velha Turquia: um golpe de Estado no Palácio, em vez de ser um meio preventivo contra a
revolução, não seria a última comoção que desencadearia a avalanche, e o remédio não
se tornaria pior que o mal?

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Na literatura consagrada à Revolução de Fevereiro, fala-se de preparativos de uma
revolução palaciana como de um facto perfeitamente estabelecido. Miliokov exprime-se
assim:
“A realização desse plano estava prevista para Fevereiro.”
Denikine atrasa a operação para a Março. Um e outro mencionam que estava no
“plano” parar no caminho o comboio imperial, exigir a abdicação e, em caso de recusa, o
que se supunha inevitável, proceder à “eliminação física” do czar. Miliokov acrescenta
que, diante da eventual admissível do golpe de Estado, os líderes do bloco progressista
que não participavam na conspiração e que não estavam ao corrente dos preparativos
dos conspiradores, deliberaram em comité restrito sobre a melhor maneira de utilizar o
golpe de Estado se ele fosse vitorioso. Vários estudos marxistas, nestes últimos anos,
acreditam a versão de uma preparação prática da revolução. Segundo este exemplo –
seja dito de passagem – pode-se constatar a facilidade com que a legenda se sobrepõe à
ciência da história.
Dá-se muitas vezes como a mais importante prova da conspiração uma narração
pitoresca de Rodzianko que demonstra que, precisamente, não houve qualquer
conspiração. Em Janeiro 1917, o general Krymov, regressando à capital vindo da frente,
queixava-se diante dos membros da Duma de uma situação que não poderia perdurar:
“Se vocês decidirem por esta medida extrema (derrubar o czar), nós vos
apoiaremos.”
Se vocês decidirem...Um outubrista, Chidlovsky, gritou exasperado:
“Inútil de poupá-lo e de ter piedade quando ele leva a Rússia à sua perca!”
Num debate tumultuoso, citou-se uma afirmação autêntica ou apócrifo de Brossilov:
“Se for necessário escolher entre o czar e a Rússia, caminharei pela Rússia.”
Se for necessário! O jovem milionário Terechtchenko mostrou-se um irredutível
regicida. Chingarev, cadete, declarou:
“O general tem razão: um golpe de Estado é indispensável. Mas quem decidirá?”
Toda a questão está aí: quem se decidirá? Tais são em substância as declarações
de Rodzianko quem, ele próprio, se pronunciava contra o golpe de Estado. No decurso
das poucas semanas que seguiram, o plano não progrediu, verosimilmente. Falava-se de
parar o comboio imperial, mas não se via qual homem deveria se encarregar da
operação.
O liberalismo russo, quando ele era jovem, apoiava com o seu dinheiro e as suas
simpatias os terroristas revolucionários, esperando que à força de bombas estes últimos
reduziriam a monarquia a deitar-se nos seus braços. Nenhum desses honrosos
personagens não estava habituado a arriscar a sua cabeça. Mas o temor não era tanto o
dos indivíduos mas de uma classe: isso vai mal pelo momento – pensavam eles – mas se
pioramos! De qualquer modo, se Gotchkov, Terechtchenko e Krymov tinham caminhado
seriamente para um golpe de Estado, preparando-o praticamente, mobilizando forças e

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recursos, ter-se-ia sabido de maneira mais exacta e mais precisa após a revolução,
porque os participantes, sobretudo os jovens executantes que seriam necessários, em
grande número, não tivessem tido nenhum motivo de calar o feito “quase” realizado: a
datar de Fevereiro, isso teria seguramente assegurado a carreira deles. Ora, nenhuma
revelação desse tipo não foi feita. É perfeitamente evidente também que, do lado de
Gotchkov e de Krymov, o caso não foi levado para além de suspiros patrióticos entre o
vinho e o charuto. Assim, os tontos da conspiração aristocrática assim que os
desajeitados da oposição plutocrática não encontraram neles próprios fôlego suficiente
para corrigir por actos a caminhada de um empreendimento que não funcionava.
Em Maio de 1917, Maklakov, um dos liberais dos mais eloquentes e mais fúteis,
bradava, numa conferência particular da Duma que a revolução despedirá a monarquia:
“Se a história virá amaldiçoar esta revolução, ela nos amaldiçoará também por não ter
sabido prevenir os acontecimentos oportunamente por um golpe de Estado a partir de
cima!” Mais tarde ainda, na emigração, Kerensky, seguindo Maklakov, dirá sem contrição:
“Sim, a Rússia censitária hesitou demasiado para executar em tempo útil o golpe de
Estado no alto (que se falava tanto e para o qual nos preparámos tanto [?]); ela demorou
a prevenir a explosão das forças elementares do Estado.”
Essas duas exclamações concretizavam o quadro, mostrando que mesmo após a
revolução, quando esta desencadeou todas as suas indomáveis energias, os sábios
patifes continuaram acreditar que se teria podido prevenir-la, substituindo-a, “em tempo
útil” uma pequena cabeça dinástica!
Não houve bastante audácia para decidir uma “grande” revolução palaciana. Mas daí
nasceu o plano de um pequeno golpe de Estado. Os conspiradores liberais não ousaram
suprimir o principal actor da monarquia; os grandes duques conceberam o assassinato de
Rasputine como o derradeiro meio de salvar a monarquia.
O príncipe Iossopov, casado com uma Romanova, assegurou-se do apoio do grão-
duque Dmitri Pavlovitch e do deputado monárquico Porichkevitch. Tentaram arrastar o
liberal Maklakov, evidentemente para dar ao assassinato um carácter de acto nacional. O
celebro advogado recusou sabiamente, após ter fornecido o veneno aos conjurados.
Detalhe de grande estilo! Os cúmplices juraram, não sem razão, que um automóvel da
casa imperial facilitaria o rapto do cadáver: os brasões de grão-duque tornaram-se úteis.
Os factos desenrolaram-se seguidamente como uma encenação de cinema calculada por
pessoas de mau gosto. Na noite de 16 a 17 de Dezembro, Rasputine, atraído para uma
patuscada no palácio Iossopov, foi morto.
As classes dirigentes, excepção feita de uma restricta camarilha e de místicas
admiradoras, consideraram o assassinato de Rasputine como um acto de salvação. Sob
prisão domiciliária, o grão-duque cujas mãos, segundo a expressão do czar, encontraram-
e manchadas do sangue do mujique – um Cristo, entendido, mas um mujique mesmo
assim! - recebeu visitas de simpatia de todos os membros da família imperial que se
encontravam em Petrogrado. A própria irmã da czarina, viúva do grão-duque Sérgio,
telegrafou dizendo que rezaria pelos assassinos e que ela benzia o seu gesto patriótico.

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Os jornais, enquanto não lhes foi interdito de mencionar Rasputine, publicaram artigos
entusiastas. Nos teatros, houve tentativas e manifestações em honra dos assassinos. Na
rua, as felicitações eram trocadas pelos transeuntes.
“Nas casas privadas, nas assembleias de oficiais, nos restaurantes – escreveu o
príncipe Iossopov – bebia-se à nossa saúde; nas fábricas, os operários lançavam urras
em nossa honra.”
É perfeitamente admissível que os operários não estavam entristecidos quando
souberam do assassinato de Rasputine. Mas as suas aclamações nada tinham em
comum com as esperanças fundadas no renascimento da dinastia.
A camarilha rasputina escondia-se na expectativa. O eremita foi enterrado na mais
restricta intimidade, pelo czar, a czarina, seus filhos, Vyroubova; depois do cadáver do
santo Amigo, de antigo ladrão de cavalos, executado pelos grão-duques, a família
reinante ela própria devia sentir-se proscrita. Porém, mesmo enterrado, Rasputine não
tinha repouso. Quando Nicolau e Alexandra Romanov foram constituidos prisioneiros,
soldados, em Tsarkoi-Selo, arrombaram com a tomba e abriram o caixão. Na cabeceira do
morto encontraram um ícone com a inscrição: “Alexandra, Olga, Tatiana, Maria, Anastásia,
Ania.” O governo provisório enviou um oficial encarregado – pergunta-se porquê – de
levar o corpo para Petrogrado. A multidão opôs-se e o delegado teve que fazer incinerar o
cadáver no próprio lugar.
Depois do assassinato do Amigo, à monarquia só lhe restava dez semanas para
viver. Porém, esse curto lapso de tempo pertencia-lhe ainda. Rasputine não existia mais,
mas a sua sombra continuava a reinar. Contrariamente a todas as esperanças dos
conspiradores, o casal imperial, após o assassinato, teimou em meter na primeira linha as
personagens mais detestáveis da clique rasputina. Dizia-se que Protopopov ocupava-se
de espiritismo, evocando o espírito de Rasputine. O nó de uma situação sem saída
apertava-se.
O assassinato jogou um grande papel, mas não aquele que tinham contado os
executantes inspiradores. Em vez de atenuar a crise, este acto agravou-a. Por toda a
parte falava-se desse assassinato: nos palácios, nos estados-maiores, nas fábricas, e nas
isbas dos camponeses. Uma dedução impunha-se: os próprios grão-ducados não tinham
contra a camarilha leprosa outras vias senão o veneno e o revolver. O poeta Blok
escreveu sobre o assassinato de Rasputine:
“A bala que o acabou atingiu em cheio a dinastia reinante.”
Robespierre lembrava já na Assembleia constituinte que a oposição da nobreza,
tendo enfraquecido a monarquia, tinha desencadeado a burguesia e, depois dela, as
massas populares. Robespierre dava ao mesmo tempo este aviso: no resto da Europa,
dizia ele, a revolução não poderia desenvolver-se tão rapidamente como em França,
porque as classes privilegiadas dos outros países, instruidas pela experiência da nobreza
francesa, não se encarregaria da iniciativa de fazer uma revolução. Ao apresentar esta
análise notável, Robespierre enganava-se porém em supor que a nobreza francesa, pela
sua leviandade na oposição, devia ter dado uma vez por todas uma lição aos aristocratas

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dos outros países. A Rússia demonstrou de novo, e em 1905 e, particularmente, em 1917,
que uma revolução dirigida contra um regime autocrático e de meia servidão, por
consequência contra a classe nobre, reencontra, nas suas primeiras acções, a assistência
não sistemática, contraditória, contudo muito eficaz não somente da nobreza média mas
também cimeiras de privilegiados desta classe, incluindo mesmo certos membros da
dinastia. Esse notável fenómeno histórico pode parecer inconciliável com a teoria de uma
sociedade constituida em classes, mas, na realidade, não contradiz senão a concepção
trivial.
A revolução eclodiu quando os protagonistas sociais atingiram a tensão extrema.
Mas é precisamente assim que a situação se torna intolerável mesmo par as classes da
velha sociedade, isto é para aquelas que estão condenadas a desaparecer. Sem acordar
mais valor do que convém às analogias biológicas, vem a propósito lembrar que um parto,
a uma certa data, torna-se também tão inevitável para o órgão maternal como para o seu
fruto. A oposição das classes privilegiadas prova que a sua situação tradicional é
incompatível com as necessidades de sobrevivência da sociedade. A burocracia dirigente
começa a deixar passar tudo por água abaixo. A aristocracia, sentindo-se directamente
visada pela hostilidade geral, joga a culpa sobre a burocracia. Esta acusa a aristocracia, e
seguidamente essas duas castas, juntas ou separadas, voltam o seu descontentamento
contra a monarquia que coroa o poder deles.
O príncipe Chtcherbatov, que, exercendo as funções nas instituições da nobreza, foi
chamado a dado momento ao ministério, dizia isto:
“Samarine e eu somos antigos marechais da nobreza. Até agora, ninguém nos
considerou como homens de esquerda, e nós não nos consideramos como tais. Mas nem
um nem o outro não compreendemos uma tal situação no Estado: o monarca e o seu
governo estando em desacordo radical com tudo o que há de razoável na sociedade (as
intrigas revolucionárias nem merece a pena falar), com a nobreza, os comerciantes as
municipalidades, os zemstvos, e mesmo o exército. Se, no alto, não querem ter em conta
as nossas opiniões, o nosso dever é de partir.”
A nobreza vê a origem de todos os males na cegueira da monarquia cegou ou na
perca da razão. Em geral, a casta privilegiada não acredita que não possa mais haver
política que reconciliaria a antiga sociedade com a nova ; noutros termos a nobreza não
se resigna em aceitar a sua condenação e, nas tormentas da agonia, se mete em
oposição contra o que há de mais sagrado no antigo regime, contra a monarquia. A
violência e irresponsabilidade da oposição aristocrática explicam-se pelos privilégios que
beneficiaram historicamente as altas esferas da nobreza e pelos temores intoleráveis face
à revolução. O falta de sistema e de contradições da oposição aristocrática explicam-se
pelo facto que é a oposição de uma classe que não tem saída. Mas, tal como uma vela,
antes de se extinguir, projecta um brilhante ramo de flamas, mesmo se fumacenta, a
nobreza, antes de se apagar, passa por brilhos de oposição que prestam grandes auxílios
aos seus inimigos mortais. Tal é a dialéctica desse processo que não somente concorda
com as teorias das classes sociais, mas que se explicam por esta teoria.

64
A agonia da monarquia
A dinastia caiu como um fruto podre antes mesmo que a revolução tenha tido o
tempo de examinar os seus problemas mais urgentes. A imagem da antiga classe
dirigente não seria completa se não nos esforçasse-mos em mostrar como a monarquia
chegou à hora da sua queda.
O czar encontrava-se no Grande Quartel General, em Mohilev, onde ele se dirigiu
não porque aí tinham necessidade dele, mas para escapar às preocupações que dava
Petrogrado. O general Dobensky, memorialista da Corte, que tinha acompanhado o czar
ao G. Q. G., escreveu no seu diário:
“Aqui, a vida é tranquila. Tudo continuará como no passado. Nada se espera dele
(do czar). Salvo em circunstâncias exteriores que possam, por acaso, provocar alguma
mudança...”
No 24 de Fevereiro a czarina escrevia (em inglês, como habitualmente) a Nicolau, no
G. Q. G.:
“Espero que o Kendrinsky da Duma (trata-se de Kerensky) seja enforcado pelos
seus espantosos discursos: é indispensável (a lei marcial) e será um exemplo. Todos
estão extremamente desejosos de te ver mostrar firmeza e imploram-te de a exercer.”
No 25 de Fevereiro, G. Q. G. recebia um telegrama do ministro da Guerra,
anunciando que as greves se tinham declarado na capital, que os sarilhos começavam
nos meios operários, mas que medidas tinham sido tomadas e que não se passava nada
de inquietante. Numa palavra, já se tinham visto outras e ver-se-iam ainda!
A czarina, que tinha sempre exortado o czar a não ceder, tentava ainda de se manter
em aprumo. No dia 26 de Fevereiro, com a evidente intenção de inculcar a coragem
incerta de Nicolau, ela telegrafou-lhe que “tudo está calmo na cidade”. Mas, num
telegrama da noite, ela é já forçada em reconhecer que “na cidade as coisas não estão
bem de forma nenhuma”. Em carta, ela diz:
“É preciso declarar claramente aos operários que é proibido entrar em greve e, em
caso de infracção, serão enviados para a frente como castigo. Os fuzilamentos são
inúteis; só é necessário manter a ordem e impedir os operários de passar as pontes.”
Sim, na verdade, basta pouco: somente ordem! E sobretudo não admitir operários no
centro, deixá-los sufocar na raivosa impotência dos arredores.
Na manhã do 27, o general Ivanov é expedido da frente para a capital com um
batalhão de cavaleiros de São Jorge e com poderes de ditador que ele só revelará após a
ocupação de Tsarskoie-Selo.
“É difícil imaginar uma personagem menos apropriada à situação – brada o general
Denikine, que, em seguida, exerceu ele próprio a ditadura militar – um velho caduco, que
não tinha em conta a situação política, que não tinha nem as forças nem energia, nem
vontade, nem rigor.”

65
A escolha tinha caído em Ivanov segundo as recordações guardadas na primeira
Revolução: onze anos antes, ele tinha reprimido o levantamento de Cronstadt. Mas esses
anos não passaram sem deixar traços: os castigadores tinham-se gasto, os punidos
tinham-se tornado homens maduros. As frentes do Norte e do Oeste receberam ordens de
preparar as tropas para uma expedição a Petrogrado. Evidentemente, pensavam ter
bastante tempo. Ivanov, pessoalmente, pensava terminar em breve com sucesso, e não
esqueceu mesmo de encargar um dos seus ajudantes de campo em Mohilev dos
abastecimentos para os conhecimentos que ele tinha em Petrogrado.
No 27 de Fevereiro, na manhã, Rodzianko expediu ao czar um novo telegrama que
terminava assim:
“A última hora chegou: a sorte da pátria e da dinastia está em jogo.”
O czar disse ao conde Frederiks, ministro da Corte:
“É outra vez esse gordo Rodzianko que me escreve toda a especie de futilidades às
quais não lhe responderei.”
Portanto, não, não eram futilidades! E seria necessário responder.
Cerca do meio-dia desse mesmo 27 de Fevereiro, o G. Q. G. recebia do general
Khabalov um relatório sobre o levantamento dos regimentos Pavlovsky, volhynien, lituano
e Preobrajensky, e sobre a necessidade de enviar da frente tropas seguras. Uma hora
depois chega, do ministro da Guerra, um telegrama animador:
“Os sarilhos que tinham começado, esta manhã, com certos elementos da
guarnição, são reprimidos fortemente e energicamente pelas companhias e batalhões fiéis
ao seu dever. ...Estou firmemente convencido de um rápido restabelecimento da calma...”
Portanto, após sete horas da noite, o mesmo Beliaev comunica já que “as poucas
tropas que continuam fiéis ao dever não conseguem acabar com a motinaria”, e pede o
envio urgente, de tropas verdadeiramente seguras, e em quantidade suficiente” para que
elas possam agir simultaneamente nos diferentes sectores da cidade”.
O Conselho de ministros, nesse dia, acreditou na oportunidade de eliminar, do seu
próprio meio, aquele que estava suposto de ser o responsável de todas as desgraças:
Protopopov, o perturbado que era ministro do Interior. Ao mesmo tempo, o general
Khabalov pôs em circulação um documento preparado sem o conhecimento do governo
declarando Petrogrado em estado de sítio, com a ordem de Sua Majestade. Foi assim que
se tentava ainda combinar o frio e o quente, mas ao que parece sem premeditação e, em
qualquer caso, sem esperança de sucesso. Nem mesmo se conseguiu fazer colar na
cidade os cartazes anunciando o estado de sítio: o gradonatchalnik (presidente da
Câmara) Balka não encontrava nem escovas nem cola. De maneira geral, “nada colava”
para as autoridades, porque ela pertenciam já ao reino das sombras.
A maior dessas sombras, no último ministério do czar, foi um septuagenário, o
príncipe Golytsine, que tinha antes dirigido certas obras filantrópicas da czarina, e que
esta tinha promovido a chefe de governo durante o período de guerra e de revolução.

66
Quando os amigos pediam a esse “bonacheirão russo”, a esse “velho mole” (segundo os
termos do barão Nolde, liberal), porquê ele tinha aceite um posto tão cheio de problemas,
Golytsine respondia: “Para ter mais uma lembrança”. Contudo ele na chegou a esse
resultado. Sobre o estado de espírito do último governo do czar nessas horas, temos
como testemunho a narração seguinte de Rodzianko:
“À primeira notícia de um movimento de massas em direcção ao palácio Maria, onde
o Conselho de ministros tinha as suas sessões, todas as luzes foram imediatamente
apagadas no edifício. Os governantes só queriam uma coisa: não serem notados pela
revolução. Portanto,o rumor que corria era enganador, o palácio não foi atacado e quando
se acenderam as luzes, um dos membros do governo do czar foi descoberto, “para sua
própria surpresa”, escondido debaixo da mesa. Tais eram as recordações que ele juntava
aí, não se sabe.”
Mas o estado de espírito do próprio Rodzianko não parecia estar à altura das
circunstâncias. Por longos mas vãs chamadas telefónicas ao governo, o presidente da
Duma tentava ainda dizer ao príncipe Golytsine. Este respondeu-lhe:
“Peço-lhe de não se dirigir a mim. Já me demiti.”
A esta notícia, Rodzianko, segundo a narração do seu fiel secretário, deixou-se cair
no cadeirão e cobriu o rosto com as duas mãos...
“Senhor, é terrível! Não temos mais o poder!... É a anarquia!...É o sangue!...”
E ele chorou docemente. Quando se desvaneceu o fantasma senil do poder czarista,
Rodzianko sentiu-se infeliz, abandonado, órfão. Como ele estava longe de pensar que, no
dia seguinte, ele devia “meter-se à cabeça” da revolução!
A resposta que Golytsine dava por telefone explica-se assim: na noite do 27, o
Conselho de ministros reconheceu-se incapaz de dominar a situação e convidou o czar a
meter à cabeça do governo uma personalidade gozando da confiança geral. O czar
respondeu a Golytsine:
“No que diz respeito a mudanças de pessoal nestas circunstâncias, julgo-as
inadmissíveis. Nicolau.”
Que outras circunstância estava ele à espera? Ao mesmo tempo, ele exigia que se
tomassem as “medidas resolutas” para esmagar a revolta. Era mais fácil em dizer que a
fazer.
No dia seguinte, 28, é a vez da indomável czarina perder enfim coragem. Ela
telegrafou a Nicolau:
“Concessões são indispensáveis. As greves continuam. Numerosas tropas
colocaram-se ao lado da revolução. Alice.”
Foi necessário o levantamento de toda a Guarda, de toda a guarnição, para forçar a
Hessense, zeladora da autocracia, a reconhecer que “concessões eram indispensáveis”.
Então, o czar começa a entrever que “o gordo Rodzianko” não lhe tinha comunicado

67
futilidades. Nicolau decide de juntar-se à sua família. É possível que ele tivesse sido
empurrado pelos generais do G. Q. G. que sentiam um certo mal estar.
O comboio imperial passou primeiro sem incidentes; como habitualmente, os chefes
da polícia e os governadores vinham saudá-lo às estações. Longe do turbilhão
revolucionário, na sua carruagem habitual, rodeado do seu séquito familiar, o czar tinha
aparentemente ainda perdido o sentido de um desfecho iminente. A 28, às 3 horas da
tarde, quando a sua sorte já está decidida pela marcha dos acontecimentos, ele mandou
à czarina, de Viazma, este telegrama:
“Está um lindo dia. Espero que você se sinta bem e calma. Muitas tropas são
enviadas da frente. O seu carinhoso Niki.”
Em vez das concessões que a própria czarina pede com insistência, o czar
carinhoso envia tropas da frente. Mas, apesar do “belo dia”, o czar vai encontrar-se,
dentro de algumas horas, frente a frente com a tempestade revolucionária. O trem
imperial chegou à estação de Vichera: os ferroviários não o deixam ir mais longe: “uma
ponte em mau estado”. O mais provável foi que esse pretexto foi inventado pelo séquito
imperial para dar melhor aspecto à situação. Nicolau tentou passar ou tentaram que ele
passasse por Bologoie, que se encontra no caminho-de-ferro de Moscovo a Petrogrado;
mas o seu comboio não obteve autorização desse lado. A demonstração tornava-se mais
eloquente que todos os telegramas recebidos de Petrogrado. O czar, cortado do seu G. Q.
G., não tinha meio de chegar à capital. Como simples “peons”, os ferroviários, a revolução
fazia xeque ao rei!
O historiógrafo da Corte, Dobensky, que acompanhava o czar no comboio, notou no
seu diário particular:
“Todos reconheciam que a passagem da noite em Vichera tem uma importância
histórica... Para mim, está absolutamente claro que a questão de uma constituição está
resolvida; certamente a constituição será cedida...Todos dizem que é preciso somente
caminhar com eles, com os membros do governo provisório.”
O caminho está cortado por um semáforo para lá do qual há perigo de morte, e o
conde Frederiks, o príncipe Dolgouroky, o duque de Leuchtenberg, todos, todos os altos
senhores, são agora partidários de uma constituição. Eles nem pensam mesmo na luta.
Basta caminhar, isto é, tentar ainda enganar as pessoas, como em 1905.
Enquanto que o comboio errava, não encontrando o caminho certo, a czarina
enviava telegramas e mais telegramas, rogando-lhe que volte o mais breve possível. Mas
os telegramas eram-lhe devolvidos com a menção em lápis azul:
“Residência do destinatário desconhecida.”
Os empregados do telegrafo não encontravam o paradeiro do czar da Rússia...
Regimentos, bandeiras e música à cabeça, marchavam em direcção ao palácio de
Tauride. Os membros da Guarda começavam a movimentar-se sob o comando do grão-
duque Kiril Vladimirovitch, o qual encontrou de uma só vez, como testemunha a condessa

68
Kleinmichel, a desenvoltura de um revolucionário. Os funcionários tinham dispersado. Os
habituados do palácio abandonaram o lugar. “Foi um salve-se quem puder”, escreveu
Vyroubova. No palácio rondavam bandos de soldados revolucionários, examinando todas
as coisas com uma ávida curiosidade. Antes mesmo que as altas esferas não tivessem
decidido da sorte da monarquia, os elementos da base transformavam o palácio dos
czares em museu.
O czar, cujo domicílio era incerto, obliquou em direcção de Pskov, a caminho de
estado-maior da frente Norte, que era comandada pelo velho general Roussky. Os
membros do séquito imperial fazem proposições em cima de proposições. O czar hesita.
Ele conta ainda com os dias e semanas, ainda que a revolução não se calcule senão por
minutos.
O poeta Alexandre Blok caracterizava o czar, no decurso dos últimos meses da
monarquia, nos seguintes termos:
“Teimoso e no entanto desprovido de vontade, nervoso mas enfraquecido em todas
as relações, não confiando em mais ninguém, excedido mas circunspecto nas suas
afirmações, ele não se domina mais. Ele tinha deixado de compreender a situação e não
dava mais nenhum passo sem se dar conta, deixando-se ir totalmente pela mão dos que
ele próprio tinha ergueu no poder.”
A que ponto tiveram que se acentuar os traços particulares, falta de vontade,
nervosismo, circunspecção e desconfiança no fim de Fevereiro e no início de Março !
Finalmente, Nicolau decidiu enviar – e portanto, parece nada expediu – um
telegrama a Rodzianko que ele detestava: dizendo que, para a salvação da pátria, o
presidente da Duma estava encarregado de constituir um novo governo. Porém, o czar
reservava-se o direito de distribuir ele próprio as pastas ministeriais dos Assuntos
estrangeiros, da Guerra, e da Marinha. Ele queria ainda negociar com “esse gente”; as
“numerosas tropas” não marchavam sobre Petrogrado?
Efectivamente, o general Ivanov chegou sem dificuldade a Tsarskoie-Selo:
claramente, os ferroviários não ousariam opor resistência ao batalhão de São Jorge. O
general confessou mais tarde que a caminho teve de fazer três ou quatro vezes
“reprimendas paternais” a simples soldados que lhe tinham falado sem maneiras: ele
fazia-os ajoelharem-se. Desde da chegada do “ditador” a Tsarskoie-Selo, as autoridade
locais vieram dizer-lhe que um confito entre o batalhão São Jorge e as tropas traziam
perigo para a família imperial. Simplesmente, as autoridades, tendo medo pelo seu lado,
aconselhavam ao “pacificador” de voltar atrás sem descargar seus vagões.
O general Ivanov colocou ao outro “ditador”, Khabalov, dez questões às quais lhe
respondeu com precisão. Reproduzimos-as integralmente – vale a pena.
Questões de Ivanov, respostas de Khabalov
1. Quais são os contingentes que continuam disciplinados e quais são os que se
dedicam à desordem?

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Tenho à minha disposição, nos navios do Almirantado, quatro companhias da
Guarda, cinco esquadrões e sotnias de cossacos, duas baterias de artilharia; as outras
tropas tomaram o lado dos revolucionários, ou então, de acordo com estes últimos, são
neutros. Há soldados e bandos que rondam pela cidade e desarmam os oficiais.
2. Quais são as gares que estão guardadas?
Todas as gares estão na posse dos revolucionários e rigorosamente guardadas por
eles.
3. Quais são os bairros da cidade onde se mantém a ordem?
Toda a cidade está na posse dos revolucionários, o telefone não funciona, e deixou
de haver ligação com os bairros.
4. Quem são as autoridades que administram esses bairros?
Não posso responder.
5. Todos os ministérios funcionam normalmente?
Os ministros foram presos pelos revolucionários.
6. Quais são as forças de polícia que você dispõe actualmente?
Nenhuma.
7. Quais são as instituições técnicas e administrativas do departamento da
Guerra que você dispõe neste momento?
Nenhuma.
8. Que quantidade de abastecimentos você dispõe?
Não disponho de nenhuma quantidade. Havia na cidade, em 25 de Fevereiro, 5 600
000 libras de farinha de reserva.
9. É grande a quantidade de armas, de peças de artilharia e de munições que os
amotinados se apoderaram?
Tudo o que depende da artilharia está nas mãos dos revolucionários.
10.Quais são os poderes militares e estado-maiores que continuam às vossas
ordens?
Pessoalmente tenho à minha disposição o chefe do estado-maior do corpo do
exército; não tenho contacto com os outros centros de comando.
Assim informado, de uma maneira pouco equivoca, sobre a situação, o general
Ivanov “consentia” a levar para trás as suas tropas, que não desembarcado, até à estação
de Dno.
“É desta maneira – concluiu o general Lokomsky, uma das principais personagens
do G. Q. G. - que nada resultou, salvo um escândalo, da missão confiada ao general
Ivanov com plenos poderes de ditador”.

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Aliás, esse escândalo teve poucas repercussões, ele afogou-se sem deixar traços na
vaga dos acontecimentos. O ditador expediu, dever-se-ia acreditar, abastecimentos aos
seus conhecimentos de Petrogrado e teve uma longa conversação com a czarina: ela
alegou a a abnegação do seu trabalho nos hospitais militares e queixou-se da ingratidão
do exército e do povo.
Entretanto chegam a Pskov, por Mohilev, notícias cada vez mas desastrosas. Os
guardas-costas da sua majestade, que tinham ficado em Petrogrado, e que cada soldado
era conhecido pelo seu nome e era alvo de favores da família imperial, apresentaram-se
na Duma do Império, pedindo autorização de prender os seus oficiais que tinham
recusado em participar no levantamento. O vice-almirante Kouroch que não via a
possibilidade de tomar medidas para dominar a rebelião em Cronstadt, dado que ele não
tem nenhum regimento à sua disposição. O almirante Nepenine telegrafava que a frota do
Báltico reconheceu o Comité provisório da Duma do Império. O chefe do corpo do exército
de Moscovo, Mrozovsky, comunicou:
“A maioria das tropas, com a artilharia, entregou-se aos revolucionários que, em
consequência, dominam a cidade; o gradonatchalnik e o seu ajudante abandonaram as
suas residências.”
Abandonar significava fugir.
O czar teve conhecimento de tudo isso no 1 de Março à noite. As conversações,
exortações sobre um governo responsável duraram até horas tardias, na noite. Enfim, o
czar, cerca de duas da manhã, deu o seu consentimento e houve, no seu círculo, um
suspiro de alívio. Assim, acreditava-se assim que o problema revolucionário tinha
recebido a sua solução, a ordem foi dada de trazer de volta para a frente os contingentes
que tinham sido dirigidos para Petrogrado para esmagar o levantamento. Rossky,
apressava-se a partir de madrugada, em comunicar a boa notícia a Rodzianko. Mas o
relógio do czar atrasava muito. Rodzianko, que, no palácio de Tauride, tinha já sido
assaltado pelos democratas, os socialistas, os soldados, os deputados operários,
respondia a Rossky:
“O que vocês contam fazer é insuficiente e é a sorte da dinastia que se joga... Em
toda a parte, as tropas tomam partido da Duma e do povo, exigindo a abdicação em favor
do herdeiro sob a regência de Miguel Alexandrovitch.”
Na verdade, as tropas nem pensavam de forma nenhuma reclamar o herdeiro, nem
Miguel Alexandrovitch. Rodzianko atribuía simplesmente à tropa e ao povo uma palavra
de ordem com a ajuda da qual a Duma esperava ainda conter a revolução. De qualquer
forma, o acordo do czar foi tardio.
“A anarquia, declarou Rodzianko, toma uma tal extensão que fui forçado, esta noite,
em nomear um governo provisório. Lamento, o manifesto veio demasiado tarde...”
Estas palavras solenes provam que o presidente da Duma tinha já encontrado tempo
de secar as lágrimas vertidas por ele sobre Golytsine. O czar leu o relato dessa conversa

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entre Rodzianko e Rossky, hesitou, releu o documento e resolveu esperar. Mas, então, os
chefes do exército deram o alarme: eles sentiam-se um pouco em causa, eles também!
O general Aleixeiev procedeu durante a noite a uma especie de plebiscito no alto
comando das diversas frentes. É bom que as revoluções modernas se realizem com a
ajuda do telegrafo, de modo que as primeiras reacções e réplicas dos detentores do poder
sejam registadas pela história na fita de papel. As conversações que tiveram lugar entre
os marchais-de-campo de sua majestade na noite do 1 e 2 Março constituem um
documento humano de um interesse incomparável. O czar deveria, sim ou não, abdicar?
Evert, general chefe da frente Oeste, só dava a sua opinião depois de conhecer a dos
generais Rossky e Brossilov. O general Sakharov, comandante na frente romena, exigia
que se lhe comunicasse previamente as conclusões de todos os outros grandes chefes.
Depois de muito fingimento, esse valente guerreiro declarou que a sua ardente ligação ao
monarca não lhe permitia, na sua consciência, aceitar a “infame proposição”; contudo,
“soluçando”, ele recomendou a abdicação ao czar, a fim “de se poupar solicitações ainda
mais abomináveis”. O general Evert explicava de modo convincente a necessidade da
capitulação:
“Tomo todas as medidas para que as informações sobre a situação actual nas
capitais não entrem no exército, a fim de evitar sarilhos que se produziriam sem dúvida.
Não existe nenhum meio de parar o curso da revolução nas capitais.”
O grão-duque Nicolau Nicolaievitch, da frente caucasiana, suplicou de joelhos ao
czar de tomar “medidas extraordinárias” e de abdicar; as mesmas súplicas foram feitas
pelos generais Aleixeiev e Brossilov, e almirante Nepenine. Quanto a Rossky, ele
formulava oralmente os mesmos pedidos. Sete grandes chefes apontavam
respeitosamente seus revolveres à cabeça do monarca adorado. Apreendendo o
momento de deixar passar a conciliação com o novo poder, temendo além disso as suas
próprias tropas, esses altos capitães, habituados a ceder posições, deram ao seu czar
generalíssimo um conselho unânime: desaparecer da cena sem resistência. Assim falava
não somente o longínquo Petrogrado contra o qual, parecia, ter sido possível enviar
tropas, mas a frente sobre a qual foi necessário retirar contingentes.
Depois de ter ouvido um relatório tão convincente, o czar determinou-se a
abandonar o trono que ele já não possuía. Um telegrama apropriado às circunstâncias foi
preparado, dirigido a Rodzianko:
“Não há sacrifício que eu não possa consentir para o verdadeiro bem e a salvação
da nossa mãe Rússia. No seguimento disso, estou disposto a abdicar em favor do meu
filho, com a condição que ele fique junto de mim até à sua maioridade, sob a regência do
meu irmão o grão-duque Miguel Alexandrovitch. Nicolau.”
Porém, mais uma vez, esse telegrama não foi enviado, porque soube-se que da
capital, dirigiam-se a Pskov os deputados Gotchkov e Cholguine. Era um novo motivo de
diferir a decisão. O czar ordenou que lhe devolvessem o telegrama. Ele temia
evidentemente fazer um mau negócio e esperava ainda notícias consoladoras, ou, mais
exactamente, esperava um milagre. Os deputados tendo chegado, Nicolau recebeu-os à

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meia-noite, entre o 2 e 3 de Março. O milagre não se deu e era impossível de se esquivar.
O czar declarou inopinadamente que não podia separar-se do seu filho (que vãs
esperanças fermentavam então na sua cabeça ?) e assinou o manifesto de abdicação em
favor do seu irmão. Assinou ao mesmo tempo oukases ao Senado, nomeando o príncipe
Lvov presidente do conselho de ministros, e Nicolau Nicolaievitch generalíssimo. As
suspeitas familiares da czarina justificaram-se assim: o execrado “Nicolacha” voltava ao
poder com os conspiradores. Ao que parece, Gotchkov considerava seriamente que a
revolução resignava-se a ter um muito augusto chefe de guerra. Nicolau Nicolaievitch, ele
também, tomou esta nomeação como algo de sólido. Procurou mesmo, durante alguns
dias, dar ordens e lançar apelos ao cumprimento do dever patriótico. Todavia, a revolução
procedeu sem dor à sua expulsão.
Para manter a aparência de um árbitro livre, o manifesto de abdicação foi datado das
15 horas, sob pretexto que esta decisão do czar tinha sido primitivamente tomada a essa
hora. Mas, com efeito, a “solução” adoptada na jornada, transmitindo o trono ao filho e
não ao irmão, tinha sido retirada com a esperança que os acontecimentos lhe fossem
favoráveis. Ninguém, portanto, não constatara abertamente o falso. O czar tentava uma
última vez salvar a cara diante dos odiosos deputados, os quais, por outro lado,
admiraram a falsificação como um acto histórico, isto é, uma impostura diante do povo. A
monarquia deixava a cena guardando o seu estilo particular. Mas os seus herdeiros
continuavam tão fiéis a eles próprios. É provável que eles considerem mesmo a sua
fraqueza como a magnanimidade do vencedor em relação ao vencido.
Abandonando um pouco o estilo impessoal, no diário íntimo Nicolau nota isto, no 2
de Março:
“Esta manhã Rossky veio e leu-me o texto de uma longa conversa que ele teve pelo
telefone com Rodzianko. A ouvi-lo, a situação em Petrogrado é tal que um governo
composto de membros da Duma do Império será impotente em fazer o que quer que seja,
porque ele é combatido pelo partido social democrata representado por um comité
operário. A minha abdicação é necessária. Rossky transmitiu o conteúdo desta conversa
ao G. Q. G. de Aleixeiev e a todos os comandantes do exército. Ao meio-dia e meia, a as
respostas foram recebidas. Para a salvação da Rússia e a manutenção da tropa na frente,
decidi dar esse passo. Consenti e um projecto de manifesto foi enviado ao G. Q. G..À
noite chegaram de Petrogrado Gotchkov e Cholguine com os quais conversei e a quem
remeti o manifesto modificado e assinado. À uma hora da manhã parti para Pskov, com o
coração pesado ; à volta de mim tudo é traição, cobardia e engano.”
A amargura de Nicolau II não era, é precio reconhecer, desprovida de motivos.
Recentemente ainda, no 28 de Fevereiro, o general Alexeiev telegrafava a todos os
comandantes em chefe sobre a frente:
“Nós temos todos a obrigação sagrada, diante do soberano e da pátria, de manter
nas tropas da frente a fidelidade ao dever e ao juramento prestado.”
Ora, dois dias após, Alexeiev convidava os mesmos chefes a faltar ao seu “dever”, a
violar seus “juramentos”. No alto comando, não se encontrou ninguém que interviesse a

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favor do seu czar. Todos se apressavam em tomar lugar no barco da revolução, contando
aí encontrar lugares confortáveis. Generais, almirantes desfaziam-se das insígnias
czaristas e ostentavam fitas vermelhas. Seguidamente, assinalou-se o caso único de um
justo: um chefe de corpo de exército morreu de uma embolia no momento de prestar novo
juramento. Mas não foi demonstrado que a ruptura cardíaca tivesse lugar no seguimento
da ofensa feita ao seu sentimento monárquico e não por qualquer outra razão. Os
dignitários civis, pela sua própria situação, não eram tidos em dar provas de coragem
como os militares. Cada um se desenvencilhava como podia.
Decididamente, o relógio da monarquia não estava coordenado com o da revolução.
A 3 de Março, na madrugada, Rossky foi novamente chamado da capital, pelo telefone.
Rodzianko e o príncipe Lvov exigiam que se retirasse o manifesto que vinha ainda
demasiado tarde. A chegada de Alexis, diziam evasivamente os novos mestres do poder,
poderia ser aceite por quem? - mas a entronização de Miguel é absolutamente
inaceitável. Rossky, não sem ser cáustico, lamentou saber que os deputados da Duma
chegados na véspera não estavam suficientemente informados sobre o objectivo da sua
viagem. Mas os deputados encontraram também a sua justificação:
“De uma forma inesperada para toda a gente eclodiu um motinaria de soldados tal
que nunca vi coisa igual”,
explicou o gentil-homem a Rossky, como se ele não tivesse feito outra coisa, toda a
sua vida, senão observar motinarias de soldados.
“Proclamar Miguel emperador, seria deitar óleo no fogo e então começaria a
implacável exterminação de tudo o que pode ser exterminado.”
Eis que voltaram, sacudidos, curvados, torcidos!
O corpo de generais encaixa ainda sem nada dizer esta nova “pretensão infâme” da
revolução. Somente, Alexeiev alivia um pouco a sua consciência telegrafando ao chefes
do exército:
“O presidente da Duma sofre a pressão dos partidos de esquerda e dos deputados
operários; nas comunicações de Rodzianko, não há franqueza, nem sinceridade.”
Somente, a sinceridade faltava aos generais nessas horas.
Mas o czar mudou de opinião mais uma vez. Chegado de Pskov a Mohilev, ele
remeteu ao seu antigo chefe do estado-maior Aleixeiev uma folha de papel a transmitir a
Petrogrado: declarava consentir deixar o trono ao seu filho. Evidentemente, esta
combinação lhe parecia finalmente mais sedutora. Aleixeiev, segundo a narração de
Denikine, leva o telegrama e... não o envia. Ele considerava que já chegavam os dois
manifestos precedentes dirigidos ao exército e ao país. A incoerência provinha do facto
que não somente o czar e os seus conselheiros, mas também os liberais da Duma
pensavam mais lentamente que a revolução.
Antes de abandonar definitivamente Mohilev, no 8 de Março, o czar, que,
formalmente, se encontrava já preso, redigiu um apelo às tropas que terminava assim:

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“Quem quer que seja que pense neste momento na paz, alguém que a deseje é um
cobarde, um traidor à pátria.”
Era uma tentativa feita, instigada por alguém, para desarmar os liberais que o
acusavam de sentimentos germanófilos. Esta tentativa falhou: ninguém se atreveu a
publicar o apelo.
Assim se terminava um reino que, de uma ponta à outra, tinha sido um
encadeamento de descontentamentos, de infelicidades, de calamidades e de actos
criminosos, desde da catástrofe no terreno da Khodynka, no dia do coroamento,
passando pelo fuzilamento dirigido contra os grevistas e os camponeses revoltados, pela
guerra russo-japonesa, pelo impiedoso esmagamento da Revolução de 1905, pelas
numerosas execuções, expedições punitivas, progroms nacionais, para acabar pela louca
e infâme participação da Rússia na louca e infâme guerra mundial.
Quando chegou a Tsarskoie-Selo, onde ele foi internado com a sua família no
palácio, o czar teria dito em voz baixa, se acreditarmos em Vyroubova:
“Não há justiça entre os homens.”
Ora, essas próprias palavras testemunhavam de forma irrefutável a existência de
uma justiça da história que, por ser tardia, não é menos real.
A semelhança do último casal dos Romanov e do casal real francês na época da
grande Revolução saltou aos olhos. Ela já foi notada, na literatura, mas brevemente e
sem deduções. Ora ela não é absolutamente fortuita como parece à primeira vista, e ela
dá preciosa matéria para conclusões.
A vinte e cinco lustros de distância entre eles, o czar e o rei se apresentam,em certos
momentos, como dois actores que preencheram um só e mesmo papel. Uma traição
passiva, expectante mas vindicativa, caracterizava esses dois homens, com a diferença
que, do lado de Luís, a falsidade se dissimulava sob a duvidosa bonomia, enquanto com
Nicolau ela parecia afável. Um e outro deram a impressão de homens a quem o ofício
estava a cargo e que, todavia, não consentiam ceder a menor parcela dos seus direitos,
que eles não sabiam dar uso. Os seus diários íntimos, análogos mesmo no estilo, ou por
falta de estilo, mostravam igualmente uma sufocante vacuidade espiritual.
A austríaca e a alemã, por outro lado, constituíam uma evidente simetria. As duas
soberanas são maiores que os seus soberanos não somente pela estatura, mas pela
moral. Maria Antonieta era menos piedosa que Alexandra Fedorovna, e distingua-se dela
pela sua paixão dos divertimentos. Mas um e outra desprezavam igualmente o povo, não
toleravam a ideia de concessões, não acreditavam na virilidade dos respectivos maridos,
olhavam-nos altivamente, Maria Antonieta com uma nuança de desprezo, Alexandra com
piedade.
Quando os autores de Memórias que, em seu tempo, tiveram intimidade com a Corte
de Petersburgo tentam mostrar-nos que Nicolau II se ele tivesse sido um simples
particular, tivesse deixado boas lembranças, eles reproduziriam simplesmente clichés de

75
julgamentos bem intencionados sobre Luís XVI, não nos enriquecendo em relação à
história nem ao conhecimento da natureza humana.
Já se leu que o príncipe Lvov, no momento mais alto dos trágicos acontecimentos da
primeira Revolução, indignou-se em encontrar não um czar desanimado, mas “um tipo
alegre, desenvolto, em camisa de cor framboesa”. Sem o saber, o príncipe reproduzia
simplesmente um relatório do governador Morris, enviado a Washington, em 1790, sobre
Luís XVI:
“Que esperar de um homem que, na situação, come bem, bebe bem, dorme bem e
sabe rir ; que esperar desse bravo rapaz que é mais alegre que ninguém?”
Quando Alexandra Fedorovna, três meses antes da queda da monarquia, vaticina
(“Tudo se arranja pelo melhor, os sonhos do nosso Amigo, são de tal forma significativos”)
ela identifica-se simplesmente a Maria Antonieta que escrevia, um mês antes da queda do
poder real:
“Sinto-me cheia de entusiasmo e qualquer coisa me diz que, brevemente, nós
seremos felizes e fora de perigo.”
Afogando-se, elas têm todas as duas sonhos iridescentes.
Certos traços de parecença são, naturalmente, devidos ao acaso e não têm, na
história, senão um interesse anedótico. Infinitamente mais importantes são os traços
implantados ou directamente impostos pelas todo-poderosas circunstâncias, que deitam
uma luz viva sobre as relações reciprocas do indivíduo e dos factores objectivos da
história.
“Ele não sabia querer e eis o traço principal do seu carácter”, declara, sobre Luís, um
historiador reaccionário francês.
Parecia que foi escrito sobre Nicolau. Um e outro eram incapazes de querer. Mas
todos os dois eram capazes de não querer. Na verdade, que teriam bem podido “querer”
os últimos representantes de uma causa histórica irreversivelmente perdida?
“Habitualmente, ele escutava, sorria; raramente, tomava uma decisão. Começava
por dizer: não”.
Aqui de quem se trata? Ainda de Capet. Mas, nesse caso, a maneira de agir de
Nicolau foi constantemente um plagiado. Todos dois vão pelo abismo, “a coroa cai-lhe nos
olhos”. Mas é mais fácil caminhar de olhos abertos para o abismo de forma inevitável?
Que mudança teria havido, na verdade, se eles tivessem a coroa sobre a nuca?
Poder-se-ia recomendar aos profissionais da psicologia em estabelecer uma
crestomatia das simétricas apreciações de Nicolau e Luís, de Alexandra e de Maria
Antonieta, assim como dos seus parentes sobre eles. Não são os materiais que faltam e o
resultado seria um testemunho histórico dos mais edificantes a favor da psicologia
materialista: excitações da mesma natureza (bem entendido, não idênticas, longe disso),
nas condições similares, apelam aos mesmos reflexos. Mais o excitante é poderoso, mais
rapidamente ele toma vantagem sobre as particularidades individuais. Às cócegas as

76
pessoas reagem diferentemente; à prova do ferro em brasa todos reagem da mesma
maneira. Tal como o martelo-pilão transforma indiferentemente em lamela uma bola ou
um cubo, assim, sob as fortes pancadas e implacáveis dos acontecimentos, os que
resistem são esmagados, perdendo as arestas da sua “individualidade”.
Luís e Nicolau eram os últimos rebentos de dinastias cuja vida foi tempestuosa. Num
e noutro, um certo equilíbrio, calma, “alegria” nos minutos difíceis exprimiam a indigencia
das suas forças íntimas de pessoas bem educadas, a fraqueza das suas distinções
nervosas, a miséria dos seus recursos espirituais. Moralmente castrados, todos os dois,
absolutamente desprovidos de imaginação e de faculdades criadoras, não tiveram
bastante inteligência senão mesmo antes de sentir a sua trivialidade e eles alimentavam
uma hostilidade ciumenta em relação a tudo que é talentoso e considerável. Todos os dois
tiveram que governar em presença de profundas crises interiores e do despertar
revolucionário das populações. Todos os dois defenderam-se contra a invasão de ideias
novas e a ascensão de forças inimigas. A resolução, a hipocrisia, a falsidade foram neles
dois a expressão não tanto Duma fraqueza pessoal mas da completa impossibilidade em
manterem-se em posições herdadas.
Mas, do lado das esposas, como se passava? Alexandra, ainda mais que Maria
Antonieta, tinha sido levada à cimeira dos sonhos de uma princesa, dado que ela casou,
simples provinciana do ducado de Hesse, o monarca absoluto de um poderoso país.
Todas as duas tomaram consciência máxima das suas altas missões: Maria Antonieta
num sentido mais frívola; Alexandra num espírito de hipocrisia protestante transposta em
esloveno ortodoxo. As desgraças do reino e o descontentamento crescente do povo
destruíam sem piedade o mudo da fantasia que tinham construido mioleiras presunçosas
que não eram, finalmente, senão mioleiras de mulheres pretensiosas e estúpidas. Daí
uma execração crescente, um ódio devorador em relação a um povo estrangeiro que não
se inclinava diante delas; daí a aversão pelos ministros que tinham em conta de certa
forma o mundo inimigo, isto é do país; daí o isolamento dessas mulheres na sua própria
Corte, e seus perpétuas queixas contra o marido que não tinha justificado as esperanças
suscitadas pelo noivo.
Os historiadores e os biógrafos com tendências psicológicas procuram
frequentemente e descobrem o elemento puramente individual, ocasional, onde se
reflectem, através das individualidades, as grandes forças históricas. É uma ilusão de
óptica análoga à das cortesãs que consideravam o último czar da Rússia como um
“falhado” de nascimento. Ele próprio acreditava ter nascido sob uma má estrela. Na
realidade, os seus infortúnios provinham de uma contradição entre os velhos objectivos
que lhe tinham deixado os seus antepassados e as novas condições históricas nas quais
ele encontrara lugar. Quando os Antigos diziam que Jupiter, quando quer tomar alguém,
tira-lhe primeiro a razão, eles resumiam, sob uma forma supersticiosa, profundas
observações de história. Quando Goethe fala da razão que se torna um non-sens ,
Vernunft wird Unsinn, nós rencontramos a mesma ideia de um Jupiter impessoal da
dialéctica histórica que priva da razão as instituições prescritas e condena os seus
defensores a toda a má sorte. Os textos dos papeis de Romanov e de Capet eram
estabelecidos com antecedência pelo desenvolvimento do drama histórico. Só restava

77
aos actores matizar a interpretação. Os dissabores de Nicolau como os de Luís
provinham não do seu horóscopo pessoal, mas do horóscopo histórico de uma monarquia
de casta burocrática. Todos os dois eram, antes de tudo, rebentos do absolutismo. A sua
nulidade moral, resultado da sua situação de epígonos de dinastias, dava a esta posição
um carácter particularmente sinistro.
Pode-se objectar que se Alexandre III tinha bebido menos, ele teria tido maior
longevidade ; a revolução encontrou um czar de um outro temperamento e sem
associação simétrica com Luís XVI não teria sido possível. Esta objecção não atingiu
portanto em nada o que foi citado acima. Nós não temos de forma nenhuma a intenção de
negar a importância do elemento individual no mecanismo do processo histórico, nem o
significado do fortuito no individual. Uma personalidade histórica deve ser somente
considerada, com todas as suas particularidades, não como uma simples soma de
aspectos psicológicos, mas como uma realidade viva, saída das condições sociais bem
definidas e reagindo a estas últimas. Assim como uma rosa não deixa de dar perfume
quando um naturalista indicou quais são os ingredientes que ela obtém do solo e da
atmosfera, a nudez das raízes sociais de uma individualidade não lhe retira nem o seu
perfume nem o seu fedor.
Se considerar-mos, como é dito mais acima, que Alexandre III pôde atingir uma
idade avançada, o mesmo problema esclarece-o por outro lado. É permitido conjecturar
que em 1904 Alexandre III não se comprometeu numa guerra com o Japão. Por esse
facto, a primeira Revolução tinha sido diferida. Até quando? É possível que a “Revolução
de 1905”, isto é um primeiro teste de forças, primeira racha no sistema do absolutismo, foi
então o prelúdio da segunda revolução, republicana, e a terceira, proletária. A este
respeito, só se pode suposições mais ou menos interessantes. É incontestável, de
qualquer forma, que a revolução não foi o resultado do carácter de Nicolau III e que
Alexandre III não estava mas habilitado a resolver os problemas. Basta lembrar que
nunca, em parte alguma, a transição do regime feudal ao regime burguês não se efectuou
sem violentos choques. Ontem ainda, nós observámos na China; hoje, constatamos na
Índia. O que se pode dizer é que tal ou tal política da monarquia, tal ou tal monarca
podiam aproximar ou afastar a revolução, e dar-lhe, superficialmente, uma especie de
carimbo.
Tal foi a obstinação enraivecida e impotente do czarismo ao tentar manter-se nos
seus últimos meses, suas últimas semanas, seus últimos dias, quando ele tinha
irremediavelmente perdido a partida ! Se houvesse em Nicolau a insuficiência da vontade,
a compensação encontrou-se no lado da czarina. Rasputine era o instrumento de uma
clique que lutava com determinação pela sua própria salvação. Mesmo nesse quadro
estreito, a personalidade do czar é absorvida pelo grupo no qual se concentra o passado
e se manifestam as últimas convulsões. A “política” dos dirigentes mediocres de Tsarskoi-
Selo, colocados face à revolução, foram reflexos de uma fera perseguida e enfraquecida.
Se, na estepe, um automóvel persegue velozmente um lobo, o animal acabará por se
cansar e deitar-se-a esgotado. Mas tente-se meter-lhe uma coleira; ele procurará rasgar-
vos em pedaços, ou pelo menos ferir-vos. Aliás, que lhe poderia ele fazer, nessas
condições ?

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Os liberais consideravam que havia qualquer coisa a fazer. Em vez de procurar no
momento oportuno um acordo com a burguesia censitária e de evitar assim a revolução
(tal era a acusação do liberalismo contra o último czar) Nicolau recusava obstinadamente
qualquer concessão, e mesmo, nos últimos dias, sob a faca fatal, quando cada minuto era
precioso, hesitava, negociava com o destino, deixava escapar as últimas possibilidades.
Tudo isso parece convincente. Mas como é lamentável que o liberalismo, que conhecia
tão infalíveis remédios para salvar a monarquia, não tinha encontrado meios de se salvar
ele próprio !
Seria absurdo afirmar que o czarismo nunca fez, em qualquer circunstância,
concessões. Ele cedeu todas as vezes que se viu obrigado para a sua salvaguarda. Após
a desastrosa guerra de Crimeia, Alexandre II procedeu a uma meia-emancipação dos
camponeses e a um certo número de reformas liberais nos domínios dos zemstvos, dos
tribunais, da imprensa, do ensino, etc. O próprio czar exprimiu então o pensamento sobre
as reformas: emancipar os camponeses de cima para que os de baixo não se
emancipem. Sob a pressão da primeira revolução, Nicolau cedeu uma metade de
constituição. Stolypine tomou a comuna rural para alargar a arena das forças capitalistas.
Todas essas reformas não tinham, todavia, sentido senão na medida onde as concessões
parciais salvavam o principal, as bases de uma sociedade de castas e da própria
monarquia. Quando as consequências das reformas começaram a desferrar para além
desses limites, a monarquia recuava inevitavelmente. Alexandre II, na segunda metade do
seu reinado, escamoteava as reformas da primeira metade. Alexandre III levou mais longe
as contra-reformas. Nicolau II bateu em retirada em Outubro de 1905, diante da
revolução, seguidamente pronunciou a dissolução das Dumas que ele próprio tinha
criado, e, assim que a revolução enfraqueceu, fez um golpe de Estado. Em três quartos
de século, se contarmos a partir das reformas de Alexandre II, desenrolou-se, seja
clandestinamente, seja abertamente, a luta de forças históricas superiores às qualidades
individuais dos czares, que se termina pela queda da monarquia. É somente nos quadros
históricos desse processo que se pode situar os czars, seus caracteres, suas “biografias”.
Mesmo o mais autoritário dos déspotas parece muito pouco à individualidade “livre”
que deixaria a sua marca, à sua vontade, sobre os acontecimentos. É sempre o agente
coroado das classes privilegiadas que forma a sociedade à sua imagem. Enquanto essas
classes não esgotarem a sua missão, a monarquia continua forte e segura dela própria.
Ela possui ainda um aparelho seguro de poder, uma escolha ilimitada de executantes,
porque os homens mais capazes ainda não ganharam o campo do adversário. Nesse
caso, o monarca, pessoalmente ou por intermédio de um favorito, pode tornar-se o
realizador de uma grande tarefa histórica, nesse sentido progressista. Passa-se de outra
forma quando o sol da velha sociedade cai no poente; as classes privilegiadas,
organizadoras da vida nacional, se transformam em excrescências parasitárias:
despojadas das suas funções directoras, elas perdem consciência da sua missão e a
certeza nas suas próprias forças; do descontentamento que elas têm delas próprias, elas
fazem o descontentamento da monarquia; a dinastia isola-se; o círculo dos que lhe
continuam fiéis até ao fim diminui; o seu nível baixa; porém, os perigos crescem; novas
forças pressionam; a monarquia perde toda a capacidade de iniciativa criadora; ela

79
continua na defensiva, debate-se, recua, os seus gestes tomam o automatismo dos mais
simples reflexos. A esta sorte não escapou o despotismo meio asiático dos Romanov.
Se se representar o czarismo na sua agonia, como, digamos, um corte vertical,
Nicolau seria o eixo de uma clique cujas bases repousavam sobre um passado
irremediavelmente condenado. Em corte horizontal, na história da monarquia, Nicolau era
o último elo da cadeia dinástica. Os seus mais recentes predecessores, que tinham
pertencido à colectividade da família, de casta, de burocracia, somente mais extensiva,
tentaram aplicar diversas medidas, diversos procedimentos de governo, para proteger o
antigo regime social contra os destinos que o ameaçavam e, contudo, legaram a Nicolau
II um império caótico, que trazia já a revolução nas suas entranhas. Se Nicolau tinha tido
escolha, teria sido entre diferentes caminhos de perdição.
Os liberais sonhavam com uma monarquia de tipo britânico. Mas o parlamentarismo
à beira Tamisa fosse ele o fruto de uma pacífica evolução ou o resultado da “livre”
previdência do monarca? Não, o parlamentarismo estabeleceu-se aí como resultado de
uma luta que tinha durado séculos e na qual um rei tinha deixado a sua cabeça numa
encruzilhada.
O paralelo histórico e a psicologia esboçada acima entre os Romanov e os Capet
pode aliás muito bem ser relacionada com o casal real que se encontrava à cabeça da
Grande-Bretanha na época da primeira revolução. Carlos I representava, no fundo, a
mesma combinação de aspectos essenciais que os memorialistas e os historiadores
atribuem com mais ou menos razão a Luís XVI e a Nicolau II.
“Carlos continuou passivo – escreveu Montégut – cedia quando lhe era impossível
resistir, ainda que contra a sua vontade, mas recorrendo à malícia, e não soube conciliar-
se nem com popularidade, nem com a confiança.”
“Ele não era obtuso – disse de Carlos Stuart outro historiador – mas faltava-lhe
firmeza...O papel de uma malvada fatalidade jogou, em relação a ele, pela sua mulher,
Henriette, uma francesa, irmã de Luís XIII, que era ainda mais convencida que Carlos das
ideias absolutistas...”
Não insistamos sobre os detalhes desse terceiro casal real – o primeiro
cronológicamente – que foi esmagado por uma revolução nacional. Notemos somente que
na Inglaterra também a aversão era personalizada pela rainha, francesa e papista, que
era acusada de intrigas com Roma, de relações clandestinas com os irlandeses
revoltados e de tramas junto da Corte francesa.
Pelo menos a Inglaterra tinha séculos de descanso à sua disposição. Ela foi pioneira
da civilização burguesa. Não sofreu opressão de outras nações: pelo contrário, ela
impunha cada vez mais a sua dominação no exterior. Ela explorava o mundo inteiro. Isso
atenuava os antagonismos interiores, condensava o espírito conservador, contribuía à
multiplicação e à estabilidade das camadas de exploradores parasitas sob formas de
landlords, da monarquia, da Câmara Alta e da Igreja do Estado. Graças aos privilégios
históricos excepcionais da Inglaterra burguesa no seu desenvolvimento, o espírito
conservador passou com flexibilidade das instituições aos costumes. É o que suscita

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ainda hoje a admiração dos filisteus do continente, gente tal que o professor Miliokov ou o
austro-marxista Otto Bauer. Mas, precisamente no presente, quando a Inglaterra,
incomodada no mundo inteiro, dissipa os últimos recursos dos seus privilégios de outrora,
o seu espírito conservador perde a sua elasticidade e mesmo, na pessoa dos trabalhistas
torna-se uma reacção colérica. Em frente da revolução da Índia, o “socialista” MacDonald
não encontra outros métodos senãos os que se servia Nicolau II contra a revolução russa.
É preciso ser cego para não ver que a Grande-Bretanha encaminha-se para formidáveis
tremores revolucionários nos quais desaparecerão definitivamente os restos do seu
espírito conservador, os restos da sua potência mondial e da sua actual máquina
governamental. MacDonald prepara esses tremores de forma especializada tal como
Nicolau II e não é menos cego que este último. Temos aí, constatemos, uma bastante boa
ilustração do papel de uma personalidade “livre” na história !
Mas como estabeleceu a Rússia, de desenvolvimento atrasado, a última de todas as
nações europeias, sobre bases económicas medíocres, teria podido elaborar um “espírito
conservador flexível” em formas sociais – sem dúvida especialmente para as
necessidades dos professores liberais e da sua sombra de esquerda, os socialistas
reformistas ? A Rússia ficou atrasada durante muito tempo, e, quando o imperialismo
mundial a prendeu nas suas mordentes, ela viu-se forçada a viver a sua história política
com abreviações consideráveis. Se Nicolau tivesse feito boa recepção ao liberalismo e
substituido Stürmer por Miliokov, a marcha dos acontecimentos teria sido pouco diferente,
mas ela teria sida no fundo a mesma. Porque é o caminho que seguiu Luís XVI, na
segunda etapa da Revolução, ao chamar a Gironde ao poder, o que não salvou da
guilhotina nem ele próprio, nem os Girondins. Os antagonismos sociais acumulados
deviam explodir, e, após a explosão, limpar o lugar. Diante da pressão das massas que
manifestavam em fim, abertamente, as suas queixas, calamidades, vexações, paixões,
esperanças, ilusões e reivindicações, as combinações superficiais da monarquia com o
liberalismo só tinham um interesse episódico e não podiam de forma nenhuma influenciar
senão a ordem das sucessões dos acontecimentos, talvez também o número dos actos
desempenhados; mas de forma nenhuma o desenvolvimento geral do drama, e ainda
menos a terrível conclusão.

81
Cinco Dias: do 23 ao 27 Fevereiro 1917
O dia 23 de Fevereiro, era o “Dia internacional das Mulheres”. Planeava-se, nos
círculos da social-democracia, dar a esse dia o seu significado por meios de uso corrente:
reuniões, discursos, panfletos. Ainda na véspera, ninguém pensaria que este “Dia das
Mulheres” poderia inaugurar a revolução. Nenhuma organização preconizou a greve para
esse dia. Ainda mais, uma organização bolchevique, e das mais combativas, o comité de
bairro essencialmente operário de Vyborg, desaconselhava qualquer greve. O estado de
espírito das massas segundo os testemunhos de Kaiorov, um dos chefes operários do
bairro, estava muito tenso e cada greve ameaçava tornar-se em confrontação aberta. Mas
o comité considerava que o momento de iniciar as hostilidades não tinha chegado – o
partido ainda não era suficientemente forte e a ligação entre operários e soldados sendo
demasiado insuficiente – decidiu portanto de não apelar à greve, mas de preparar-se para
a acção revolucionária para uma data indeterminada. Tal foi a linha preconizada pelo
Comité na véspera do dia 23, e parecia que todos a tinham adoptado. Mas no dia
seguinte pela manhã, apesar de todas as directivas, os operários do têxtil abandonaram o
trabalho em várias fábricas e enviaram delegados aos metalúrgicos para lhes pedir apoio
na greve. Foi de “contra-vontade” escreve Kaiorov, que os bolcheviques marcharam
seguidos pelos operários mencheviques e socialistas-revolucionários. Mas no momento
que se tratava de uma greve de massa, foi preciso comprometer toda a gente a descer à
rua e tomar a cabeça do movimento: tal foi a resolução que propôs Kairov, e o comité de
Vyborg viu-se na obrigação de apoiar”. A ideia de uma manifestação amadurecia há muito
tempo entre os operários, mas, nesse momento, ninguém fazia ideia do que é que
resultaria”. Tomemos nota do testemunho de um participante, muito importante para a
compreensão do mecanismo dos acontecimentos.
Acreditava-se antecipadamente que, sem a menor dúvida, em caso de
manifestação, as tropas deveriam sair dos quartéis e opor-se-iam aos operários. Que iria
passar-se? Estava-se em tempo de guerra, as autoridades não estavam dispostas a
brincar. Mas, por outro lado, o soldado da “reserva”, nesses dias, não era mais aquele
que, outrora se conheceu nos quadros do “activo”. Era verdadeiramente temível ? Sobre
isso, pensava-se muito nos círculos revolucionários, mas sobretudo abstractamente,
porque ninguém, absolutamente ninguém – pode afirmar categóricamente segundo todos
os documentos recolhidos – pensava ainda que o dia 23 de Fevereiro marcaria o início de
uma ofensiva decisiva contra o absolutismo. Tratava-se somente de uma manifestação
cujas perspectivas eram indeterminadas e, de qualquer modo, muito limitadas.
De facto, estabeleceu-se que a Revolução de Fevereiro foi desencadeada por
elementos da base que ultrapassaram a oposição das suas próprias organizações e que a
iniciativa foi espontaneamente tomada por um contingente do proletariado explorado e
oprimido mais que todos os outros – as trabalhadoras do têxtil, cujo número, deveria-se
pensar, devia-se contar muitas mulheres soldados. A última impulsão veio das
intermináveis sessões de espera às portas das padarias. O número de grevistas,
mulheres e homens foi, nesse dia, cerca de 90 000. As disposições combativas
traduziram-se em manifestações, comícios, confrontações com a polícia. O movimento

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desenvolveu-se primeiro no bairro de Vyborg, onde se encontram as grandes
companhias, e ganhou seguidamente o bairro dito “de Petersburgo”. Nas outras partes da
cidade, segundo as relações da Segurança, não houve greves, nem manifestações.
Nesse dia, as forças da polícia foram completadas com destacamentos de tropas,
aparentemente pouco numerosas, mas não houve confrontações. Uma multidão de
mulheres, que não eram todas operárias, dirigiu-se para a Duma municipal para reclamar
pão. Era como pedir leite ao bode. Em diversos bairros apareceram bandeiras vermelhas
cujas inscrições atestavam que os trabalhadores exigiam pão, mas não queria mais
autocracia nem guerra. O “Dia das Mulheres” tinha conseguido, ele estava cheio de
entusiasmo e não tinha causado vítimas. Mas era um dia difícil e à noite ainda ninguém
duvidava.
No dia seguinte, o movimento, longe de se acalmar, redobrou em recrudescência:
cerca de metade dos operários industriais de Petrogrado fazem greve no dia 24 de
Fevereiro. Os trabalhadores apresentaram-se a partir da manhã nas suas fábricas e, em
vez de iniciarem o trabalho fizeram comícios, depois disso dirigiram-se para a baixa da
cidade. Novos bairros, novos grupos da população foram levados no movimento. A
palavra de ordem “Pão” foi afastada ou coberta por outras formulas: “Abaixo a autocracia!”
e “Abaixo a guerra!” As manifestações não param na Perspectiva Nevsky: primeiro as
massas compactas de operários cantando hinos revolucionários; depois uma multidão
disparata de citadinos, de bonés azuis de estudantes. “O público nos passeios nos
testemunhava simpatia e, nas janelas de vários hospitais, soldados nos saudaram
acenando com o que lhe vinha à mão”. Eram numerosos os que compreendiam o alcance
desses gestes de simpatia dos soldados doentes em relação aos manifestantes ?
Todavia, os cossacos atacavam a multidão, ainda sem brutalidade; seus cavalos estavam
cobertos de espuma; os manifestantes jogavam-se de lado e de outro, depois tornavam a
formar grupos compactos.
A multidão nada temia. O rumor corria de boca em boca: “Os cossacos prometeram
não atirar.” Era claro que os operários tinham conseguido entender-se com um certo
número de cossacos. Um pouco mais tarde, portanto, os dragões surgiram meio bêbados,
lançando injúrias e furando a multidão, golpeando as cabeças com lanças. Os
manifestantes aguentaram com todas as suas forças, com coragem. “Eles não
dispararão”. E, ele não dispararam.
Um senador liberal que observou, nas ruas, os tróleis imobilizados (mas isso não se
passava no dia seguinte?), alguns com os vidros partidos, outros deitados de lado sobre
os carris, evocou as jornadas de Julho de 1914, na véspera da guerra. “Acreditava-se ver
renovar-se a tentativa de outrora.” O senador via com justeza, havia seguramente um laço
de continuidade: a história recolhia as pontas do fio revolucionário quebrados pela guerra
e reatava-os.
Durante todo esse dia, a multidão circulava de bairro em bairro, violentamente
perseguidos pela polícia, contida e empurrada pela cavalaria e por certos destacamentos
de infantaria. Gritava-se “Abaixo a polícia!” mas, cada vez com mais frequência,
lançavam-se urras dirigidas aos cossacos. Foi significativo. A multidão testemunhava à

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polícia um ódio feroz. Os agentes a cavalo eram acolhidos com assobios, pedras, gelo.
Diferente foi o contacto dos operários com os soldados. À volta dos quartéis, junto das
sentinelas, das patrulhas e dos cordões de barragem, trabalhadores e trabalhadoras
juntavam-se, conversando amigavelmente com a tropa. Foi uma nova etapa devido ao
crescimento da greve e da confrontação dos operários com o exército. Esta etapa é
inevitável em toda a revolução. Mas ela parece sempre inédita e, com efeito, apresenta-se
cada vez sob um novo aspecto: os que leram ou escreveram sobre o assunto não se dão
conta do acontecimento quando ele se produz.
A Duma do Império, contava-se, nesse dia, que uma formidável multidão cobria a
praça Znamenskaia, toda a Perspectiva Nevsky e todas as ruas vizinhas, e que se
constatava um fenómeno absolutamente insólito: a multidão revolucionária, e não
patriótica, aclamava os cossacos e os regimentos que marchavam ao som de música.
Como um deputado perguntava o que isso significava, um transeunte, respondeu-lhe:
“Um policia agrediu uma mulher com uma nagaika; os cossacos intrometeram-se e
perseguiram a polícia”. É possível que as coisas não se tenham passado assim, ninguém
estava em condições de confirmar. Mas a multidão acreditava que foi assim mesmo, que
a coisa foi possível. Crença que não caía do céu, mas que vinha da experiência já feita e
que, por consequência, devia ser uma aposta da vitória.
Os operários da fábrica Erikson, que conta entre as mais modernas do bairro de
Vyborg, depois de se terem juntado na manhã, avançaram em massa, cerca de 2 500
homens, na Perspectiva Sampsonovky, e, numa passagem estreita caíram sobre os
cossacos. Empurrando seus cavalos, os oficiais cortaram a multidão. Atrás deles, sobre
toda a largura da calçada, trotavam os cossacos. Momento decisivo ! Mas os cavaleiros
passaram cuidadosamente, numa longa fila, pelo corredor que acabavam de lhes abrir os
oficiais”. Alguns dentre eles sorriam, escreve Kaiorov, e um deles piscou o olho, como
amigo, do lado dos operários”. Significava qualquer coisa, esse piscar de olhos! Os
operários encorajaram-se, num espírito de simpatia e não de hostilidade em relação dos
cossacos que eles tinha ligeiramente contaminado. O homem que tinha piscado o olho
teve imitadores. A despeito das novas tentativas dos oficiais, os cossacos, sem transgredir
abertamente a disciplina, não perseguiram a multidão com demasiada insistência e
passaram somente através dela. Assim foi três ou quatro vezes e as duas partes opostas
ainda se reaproximaram mais. Os cossacos respondiam individualmente às questões dos
operários e tiveram mesmo com eles breves conversas. Da disciplina, só restava as finas
aparências e as mais ténues, com o perigo de uma quebra iminente. Os oficiais
apressaram-se a afastar as tropas da multidão e, renunciando à ideia de dispersar os
operários, dispuseram as tropas em barragem de uma rua para impedir os manifestantes
de alcançar o centro. Foi tempo perdido: colocados e de guarda, os cossacos não se
opuseram porém, aos “mergulhos” que faziam os operários entre as pernas dos cavalos.
A revolução não escolhia os seus caminhos à vontade: ao princípio da sua marcha à
vitória, ela passava sob o ventre de um cavalo cossaco. Episódio notável! Notável
também o golpe de vista do narrador que fixou todas estas peripécias. Nada de espantar,
o contador foi um dirigente, ele tinha atrás dele mais de dois mil homens: o olho do chefe
que se mantém vigilante contra as nagaikas ou as balas do inimigo é aguçado.

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A mudança de opinião no exército parece ter-se manifestado primeiro nos cossacos,
perpétuos fazedores da repressão e de expedições punitivas. Isso não significa portanto
que os cossacos tenham sido mais revolucionários que os outros. Ao contrário, esses
sólidos proprietários, montados nos seus próprios cavalos, orgulhosos das
particularidades da sua própria casta, tratando com um certo desdenho os simples
camponeses, desconfiados em relação aos operários, eram imbuídos de um forte espírito
conservador. Mas é precisamente a esse título que as mudanças provocadas pela guerra
pareciam ser mais vivas neles. E, por outro lado, não era precisamente eles que eram
puxados por todos os lados, enviando-os constantemente em expedição, lançando-os
contra o povo, enervando-os, e que, foram os primeiros postos à prova ? Eles estavam
“fartos”, queriam voltar aos seus lares e piscando o olho: “Façam à vossa vontade, se
forem capazes, nós não vos estorvaremos.” Porém, só existiam sintomas, aliás muito
significativos. O exército está ainda armado, lidado pela disciplina, e os fios condutores
encontram-se ainda nas mãos da monarquia. As massas operárias estão desprovidas de
armas. Seus dirigentes nem mesmo sonham ainda à conclusão decisiva.
Nesse dia, em conselho de ministros, a ordem do dia comportava, entre outras
questões, a dos sarilhos na capital. A greve ? Manifestações ? Já se tinham visto outras...
Tudo é previsto, ordens são dadas. Passa-se simplesmente à expedição dos assuntos
correntes.
Mas quais eram então as ordens ? Ainda que os dias 23 e 24, vinte e oito polícias
tivessem sido agredidos – sedutora exactidão da estatística ! - o general Khabalov, chefe
da região militar de Petrogrado, investido de poderes quase ditatoriais, não recorria ainda
ao fuzilamento. Não por bondade de alma ! Mas tudo tinha sido previsto e premeditado;
os tiros seriam disparados na sua hora.
Não houve revolução inesperada senão no momento que ela se desencadeou. Em
suma, os dois polos contrários, o dos revolucionários e o do governo, tinham-se
preparado cuidadosamente há anos, desde sempre. No que diz respeito aos
bolcheviques, toda a sua actividade desde 1905 tinha consistido unicamente nesses
preparativos. Mas a obra do governo tinha sido, ela também, em muita boa parte,
preparar com antecedência o esmagar da segunda revolução que se anunciava. Nesse
domínio, o trabalho do governo tomou, a partir de Outono de 1916, um carácter
particularmente metódico. Uma comissão presidida por Khabalov tinha acabado, cerca de
meados de Janeiro de 1917, a elaboração minuciosa de um plano para esmagar a nova
insurreição. A capital tinha sido dividida em seis sectores administrados por “mestres da
polícia” e subdivididos em bairros. À cabeça de todas as forças armadas tinha-se
colocado o general Tchebykine, comandante em chefe das reservas da Guarda. Os
regimentos foram repartidos nos bairros. Em cada um dos seis principais sectores, a
polícia, a guarda e o exército eram agrupados sob o comando de oficiais do estado-maior
especialmente designados. A cavalaria cossaca ficava à disposição de Tchebikine em
pessoa, para as operações de maior envergadura. O método de repressão era ordenado
da maneira seguinte: fazer-se-ia primeiro marchar a polícia; seguidamente, lançar-se-iam
os cossacos com as sua nagaikas; no fim, meter-se-iam em linha as tropas com seus
fuzis e metralhadoras. Foi precisamente esse plano, aplicação alargada da experiência de

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1905, que foi aplicado em Fevereiro. A infelicidade não estava num defeito da previdência,
nem numa concepção viciosa, mas no material humano. Foi aí que a arma devia se
encravar.
Formalmente, o plano contava sobre o conjunto da guarnição que contava até cento
e cinquenta mil homens; mas na realidade considerava-se no máximo o emprego de uma
dezena de milhar de homens; independentemente dos agentes da polícia que eram cerca
de três mil e quinhentos, a mais firme esperança fixava-se sobre os alunos cadetes. Isso
explica-se pela própria composição da guarnição nessa data: ela era composta quase
exclusivamente de reservistas, antes de mais 14 batalhões de reserva, ligados aos
regimentos da Guarda que se encontravam na frente. Além disso, a guarnição incluía: um
regimento de infantaria de reserva, um batalhão de reserva automóvel, uma divisão de
reserva de autos blindados, alguns contingentes de sapadores e de artilharia e dois
regimentos de cossacos do Don. Era muito, mesmo demasiado. Os efectivos da reserva,
demasiados copiosos, consistiam numa massa humana apenas trabalhada ou melhor,
livre desse treino. Além disso, todo o exército não tinha a mesma composição ?
Khabalov seguia cuidadosamente o plano que tinha elaborado. O primeiro dia, 23, só
a polícia surgiu. No 24, fizeram avançar nas ruas sobretudo a cavalaria, mas somente
armada de lanças e de nagaikas. Não se pensava utilizar a infantaria e abrir fogo segundo
o desenvolvimento dos acontecimentos. Ora os acontecimentos não se fizeram esperar.
No dia 25, a greve tomou uma nova amplitude. Segundo os dados oficiais, ela
englobava 24 000 operários. Elementos atrasados comprometeram-se a seguir da
vanguarda, um bon número de pequenas empresas pararam o trabalho, os tróleis não
funcionaram, as casas de comércio ficaram fechadas. No correr do dia, os estudantes do
ensino superior juntaram-se ao movimento. Cerca do meio-dia, foi por dezenas de milhar
que a multidão se juntou à volta da catedral de Kazan e nas ruas vizinhas. Tentou-se
organizar comícios a céu aberto, produziram-se conflitos com a polícia. Diante da estátua
de Alexandre III homens tomaram a palavra. A polícia montada começa a disparar. Um
orador cai, ferido. Tiros partem da multidão: um comissário da polícia é morto, um mestre
da polícia ferido assim que vários dos seus agentes. Lançam-se sobre os guardas
garrafas, bombas, granadas. A guerra deu boas lições sobre esta arte. Os soldados dão
prova de passividade e por vezes de hostilidade em relação à polícia. A emoção entre a
multidão é grande quando se sabe que os polícias dispararam sobre o povo junto da
estátua de Alexandre III e que os cossacos dispararam uma salva sobre a polícia: os
“faraós” a cavalo (assim chamavam aos agentes da polícia) foram forçados a fugir a
galope. Não era verdadeiramente uma legenda propagada com o objectivo de reforçar a
coragem, porque o mesmo episódio, ainda que relatado diferentemente, foi certificado por
vários lados.
Um dos autênticos condutores dessas jornadas, o operário bolchevique Kaiorov,
conta que os manifestants fugiram todos, a um certo momento, sob os golpes de nagaika
da polícia a cavalo, na presença de um pelotão de cossacos; então Kaiorov, e mais
alguns operários que não fugiram, destaparam a cabeça, aproximaram-se dos cossacos,
e de boné na mão: “Irmãos cossacos, vinde ao socorro dos operários na luta pelas

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reivindicações pacíficas ! Vocês vêm como nos tratam, nós, operários esfomeados, esses
faraós. Ajudai-nos ! Esse tom conscientemente obsequioso, esses bonés na mão, que
justo cálculo psicológico, que geste inimitável ! Toda a história dos combates de rua e das
vitórias revolucionárias fervem de tais improvisações. Mas elas perdem-se habitualmente
nos abismos dos grandes acontecimentos, e os historiadores colhem somente um
tegumento dos lugares comuns. “Os cossacos trocaram entre neles olhares singulares,
diz ainda Kaiorov, e nós mal tivemos tempo de nos afastar já eles se lançaram em cheio
na confusão”. Alguns minutos mais tarde, diante da entrada da gare, a multidão levava em
triunfo um cossaco que acabara de passar o sabre sobre um comissários da polícia.
Os faraós logo desapareceram, dito de outra forma, actuaram pela calada. Mas os
soldados mostraram-se baionetas em riste.
Operários interpelavam-os, angustiados: “Camaradas, vocês vêm ajudar a polícia ?”
Tiveram como resposta: “Circulai !”
Nova tentativa para retomar conversações; o mesmo resultado. Os soldados estão
deprimidos, atormentados por um mesmo pensamento, e toleram mal que a sua
ansiedade seja atingida em cheio.
Entretanto, a palavra de ordem geral é desarmar os faraós. A polícia é o inimigo
feroz, inexorável, odiado e odioso. A questão da conciliação nem se coloca. Eles são
agredidos ou abatidos. Mas em relação às tropas é diferente; a multidão esforça-se de
todas as maneiras em evitar conflitos com o exército; ele procura, pelo contrário, os meios
de conquistar os soldados, de os convencer, de os atrair, de os associar. Apesar dos
rumores favoráveis – talvez ligeiramente exagerados – que correram sobre o
comportamento dos cossacos, a multidão considera ainda a cavalaria com uma certa
inquietação. Um cavaleiro domina do alto a multidão; entre a sua mentalidade e a do
manifestante há quatro patas de cavalo. Uma personagem que se é obrigado de olhar de
baixo para cima parece sempre mais considerável e mais temível. Com a infantaria,
encontramos-nos em pé de igualdade na calçada, ela está mais próxima, mais acessível.
A massa esforça-se para abordar o soldado, olhá-lo francamente, de lhe soprar o hálito
quente. Nesses encontros entre soldados e operários, as trabalhadoras jogam um papel
importante. Mais ousadas que os homens, elas avançam em direcção às tropas agarram-
se às armas, suplicam e comandam quase: “Retirai as baionetas, juntem-se a nós!” os
soldados emocionam-se, sentem-se envergonhados, trocam olhares entre eles com
ansiedade, hesitam; um deles, enfim, decide-se antes dos outros e as baionetas são
retiradas num movimento de arrependimento sobre os ombros dos manifestantes, a
barragem abre-se, no ar soam os huras alegres de reconhecimento, os soldados são
rodeados, de todo o lado discute-se, crítica-se, apela-se; a revolução dá mais um passo.
No Grande Quartel General (G. Q. G.), Nicolau telegrafou a Khabalov para que
metesse fim às desordens “a partir de amanhã”. A vontade do czar concordava com a
segunda parte do plano de Khabalov; o telegrama limitava-se a dar um impulso
suplementar. A partir do dia seguinte a tropa deveria falar. Não é demasiado tarde ? Ainda
não se pode dizer. A questão é colocada, mas está longe de ser resolvida. A
condescendência dos cossacos, as oscilações de certas barreiras de infantaria são

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somente episódios cheios de promessas, às quais a rua em ebulição dá ressonância aos
milhares de ecos. É bastante para exaltar a multidão revolucionária, mas muito pouco
para a vitória. Tanto mais que são os produtos de incidentes de características contrárias.
Na tarde, um pelotão de dragões, dito em réplica aos disparos de revolver vindos da
multidão, abriu, pela primeira vez, fogo sobre os manifestantes, diante das Galerias do
Comércio (Gostiny Dvor): segundo o relatório de Khabalov enviado ao G. Q. G., houve
três mortos e dez feridos. Sério aviso ! Ao mesmo tempo, Khabalov ameaça expedir para
a frente todos os operários mobilizáveis que não teriam retomado o trabalho antes do dia
28. Ultimato do general dava portanto um prazo de três dias: era mais que do que
necessário para a revolução derrubar Khabalov e a monarquia acima de tudo. Mas só
após a vitória é que nos demos conta disso. E na noite de 25, ninguém sabia ainda como
seria o dia seguinte.
Tentemos de constituir mais claramente a lógica interna do movimento. Sob a
bandeira do “Dia das Mulheres”, 23 de Fevereiro, desencadeou-se uma insurreição há
muito madura, e contida, das massas operárias de Petrogrado. A primeira fase foi a greve.
Em três dias, ele estendeu-se ao ponto de se tornar praticamente geral. Esse único facto
bastou já para dar à massa e empurrá-la por diante. A greve, tomando o carácter cada vez
mais ofensivo, grave, combinou-se com manifestações que confrontaram as tropas e as
multidões revolucionárias. O problema era levado no seu conjunto, a um plano superior
onde devia resolver-se pela força das armas. Esses primeiros dias foram marcados pelos
sucessos parciais, sintomáticos em vez de efectivos.
Um levantamento revolucionário que se prolongou vários dias não pode ser vitorioso
senão, por degrau em degrau, se ele regista constantemente novos sucessos. Uma
paragem no movimento de vitórias é perigoso; marcar passo, é perder-se. Os sucessos
por eles próprios não bastam; é preciso que a massa tenha consciência do tempo útil e
que possa apreciá-los. Pode-se deixar escapar uma vitória no momento onde basta
estender a mão para a colher. Viu-se na história.
Os três primeiros dias foram marcados pela ascensão e agravamento constante da
luta. Mas é precisamente por esta razão que o movimento chegou a um nível onde os
sucessos sintomáticos tornaram-se insuficientes. Toda a massa activa desceu à rua. Ela
resistiu à polícia com bons resultados e sem demasiadas dificuldades. As tropas, nas
duas últimos desses três dias, encontraram-se já comprometidas nos acontecimentos: no
segundo dia, só a cavalaria tinha avançado; no terceiro dia, a infantaria. Elas resistiam,
formavam barragens, às vezes deixavam fazer, mas quase que não recorreram às armas
de fogo. A autoridade superior não se apressava a modificar o seu plano, subestimava em
parte a importância dos acontecimentos ( esta ilusão de óptica da reacção foi completada
pelo erro paralelo dos dirigentes da revolução) e, em certa medida, não tendo confiança
no seu exército. Mas, justamente, no terceiro dia, por causa do desenvolvimento da luta
como em consequência da ordem do czar, o governo viu-se forçado a alinhar as tropas.
Os operários, sobretudo a elite, tinham compreendido, tanto mais que na véspera, os
dragões tinham disparado. Desde então, a questão estava colocada pelos dois lados com
todo a sua amplitude.

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Na noite do 25 a 25, nos diferentes bairros, uma centena de militantes
revolucionários foram presos. Incluindo cinco membros do comité dos bolcheviques de
Petrogrado. Isso significou também que o governo tomava a ofensiva. Que iria então
passar-se ? Qual seria o despertar dos operários após o tiroteio do dia precedente ? E –
problema essencial – que diriam as tropas ? A aurora do dia 26 foi coberta de um nevoeiro
de incertezas e de vivas ansiedades.
O comité de Petrogrado tendo sido preso, a condução das operações na cidade é
transmitida ao distrito de Vyborg. Talvez seja para melhor. A alta direcção do partido zig-
zaga desesperadamente. É só na manhã do 25 que o bureau do comité central dos
bolcheviques decidiu enfim publicar um panfleto apelando à greve geral em toda a Rússia.
No momento que este panfleto saiu – a greve geral em Petrogrado, tornava-se em
insurreição armada. A direcção observava do alto, hesitou, atrasa, isto é, não dirige. Ela
está a reboque do movimento.
Mais nos aproximamos das fábricas, mais se descobre a resolução. Todavia, hoje,
no 26, o alarme chega a todos os distritos. Famélicos, estafados tremendo, sob o fardo de
uma enorme responsabilidade histórica, os cabecilhas de Vyborg mantêm conciliábulos,
fora da cidade, nas hortas, trocam impressões, tentam estabelecer um itinerário. O
qual ?... o de uma nova manifestação? Onde levaria uma manifestação de pessoas
desarmadas se o governo decidisse ir até ao fim ? Questão que atormenta as
consciências”.“Disse-se somente que a insurreição iria ser liquidada.” Assim se exprime
uma voz já conhecida, a de Kaiorov, e, primeiro, esta voz, parece, não é a sua. O
barómetro tinha tombado muito abaixo da tempestade.
Nas horas onde as hesitações atingem os revolucionários mais próximos das
massas, o movimento foi, de facto, muito mais longe daquilo que imaginavam os
participantes. Ainda na véspera, na noite do 25, os bairros de Vyborg encontraram-se
totalmente na posse dos insurrectos. Os comissariados da polícia foram arrombados, os
agentes massacrados; a maior parte dos outros desapareceram. O centro prefeitoral do
sector (gradonatchalstvo) teve as comunicações cortadas com a maior parte da capital.
Na manhã do 26, constata-se que não somente esse sector, mas os bairros de Peski,
quase até à Perspectiva Liteiny, estavam no poder dos rebeldes. Foi pelo menos o que os
relatórios da polícia descreviam da situação. Num certo sentido, era exacto, ainda que,
muito provavelmente, os insurrectos não se dessem conta: está fora de dúvida que em
muitos casos a polícia fugiu dos buracos antes mesmo de se encontrarem ameaçadas
pela ofensiva operária. Mas, independentemente do facto, a evacuação dos bairros
industriais pela polícia não podia ter, aos olhos dos trabalhadores, um significado decisivo,
porque as tropas não tinham ainda dito a sua última palavra. A insurreição “vai ser
liquidada”, pensaram os bravos dos bravos. Ora, ela desenvolvia-se.
No dia 26 de Fevereiro foi um domingo; as fábricas continuaram fechadas, e,
seguidamente, foi impossível calcular logo de manhã, segundo a amplitude da greve, a
força do desenvolvimento das massas. Além disso, os operários não puderam reunir-se,
como eles tinham feito nos dias precedentes, nas suas fábricas, e era mais difícil
manifestar. A Perspectiva Nevsky esteve calma na manhã. É então quando a czarina

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telegrafou ao czar: “ a calma reina na cidade”. Mas esta tranquilidade não durou muito
tempo. Pouco a pouco os operários operaram a concentração e, em todos os bairros,
convergiram para o centro. Impediram-nos de atravessar as pontes. Eles descem sobre o
gelo; porque, em Fevereiro, todo o Neva é uma ponte de gelo. Não basta puxar pela
multidão que atravessa o rio gelado para a reter. A cidade mudou totalmente de aspecto.
Por todo o lado as patrulhas, barragens, reconhecimentos de cavalaria. As artérias que
levam à Perspectiva Nevsky estão particularmente bem guardadas. Frequentemente
rebentam salvas, partindo de pontos de emboscadas. O número de mortos e de feridos
aumenta. Ambulâncias circulam nos diversos sentidos. De onde disparam ? Quem dispara
? Nem sempre é possível dar-se conta. Sem nenhuma dúvida, a polícia, fortemente
corrigida, resolveu não se expor mais. Ela dispara a partir das varandas, por detrás das
colunas, do alto dos telhados. Hipóteses são avançadas que se tornam facilmente
legendas. Conta-se que, para assustar os manifestantes muitos soldados vestiram o
uniforme dos polícias. Conta-se que Protopopov estabeleceu numerosos postos de
metralhadores nos telhados. A comissão de inquérito que foi instituida após a revolução
não encontrou traços desses postos. Não há provas que não tivessem existido. Todavia,
nesse dia, a polícia passa para segundo plano. É o exército que, definitivamente, entra
em acção. Os soldados receberam ordem rigorosa de disparar, e eles disparam,
principalmente aqueles que pertencem às escolas de oficiais subalternos. Segundo os
dados oficiais, houve, nesse dia, cerca de quarenta mortos e o mesmo número de feridos,
sem
contar os que a multidão pôde levar. A luta chegou à fase decisiva. A massa vai
recuar, sob as balas, em direcção dos seus bairros ? Não, ela não recua. Ela quer ganhar
a partida.
A vida dos funcionários, dos burgueses, dos liberais, Petersburgo, está aterrorizada.
O presidente da Duma do Império, Rodzianko, reclamava, nesse dia, o envio de tropas
seguras da frente seguidamente ele “mudou de ideia” e aconselha ao ministro da Guerra,
Beliaev, de a empregar contra a multidão não as armas mas as lanças dos bombeiros,
água fria... Beliaev, após ter consultado o general Khabalov, respondeu que os duches de
água fria tinham o efeito contrário, “precisamente porque são um excitante”. Tais eram as
conversações que levavam os liberais com os altos dignitários e os polícias sobre as
vantagens relativas do duche frio ou quente para dominar um povo insurrecto. Os
relatórios da polícia, nesse dia, provam que as lanças dos bombeiros não eram
suficientes: “No decurso dos sarilhos, observou-se de maneira geral, uma atitude
extremamente provocante dos ajuntamentos de amotinados em relação dos
destacamentos de tropas, sobre os quais a multidão respondia aos avisos lançando
pedras e pedaços de gelo colhidos na calçada. Quando a tropa disparava para o ar, como
aviso, a multidão, em vez de se dispersar, respondia às salvas com risadas. É somente
em disparando sobre a multidão que se conseguia deslocar os ajuntamentos: ainda os
participantes se escondiam, na maior parte, nas traseiras das casas vizinhas e, desde que
o tiroteio cessava, voltavam para a rua.” Esse relatório da polícia testemunha a elevada
temperatura das massas. Na realidade, é pouco provável que a multidão tenha sido a
primeira a começar a bombardear com pedras e gelo os soldados, mesmo os

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contingentes das escolas de oficiais subalternos: há aí uma grande contradição com a
psicologia dos insurrectos e a sua táctica sábia em relação ao exército. Par melhor
justificar os massacres de massas, as impressões transmitidas pelo relatório e a sua
disposição não são completamente as que convinham. Todavia, o essencial encontra-se
aí exactamente representada, e com um realismo notável: a massa não quer bater mais
em retirada, ela resiste com um furor optimista e mantém-se na rua na mesma após ter
recebido as salvas mortíferas; ela agarra-se não à vida, mas ao asfalto, às pedras, aos
pedaços de gelo. A multidão não está simplesmente exasperada, ela é intrépida. A
despeito do tiroteio, ela não perde confiança na tropa. Ela conta na vitória e quer obtê-la
custe o que custe.
A pressão exercida pelos operários sobre o exército acentua-se, contrariando a
acção das autoridades sobre as forças militares. A guarnição de Petrogrado torna-se
definitivamente o ponto de mira dos acontecimentos. O período de expectativa, que dura
quase três dias, durante os quais a grande maioria da guarnição pode ainda guardar uma
neutralidade amigável em relação aos insurrectos, chegava ao fim. “Disparai sobre o
inimigo !” ordenou a monarquia. “Não disparai sobre os vossos irmãos e irmãs !” gritam os
operários e as operárias. E não somente isso: “Vinde connosco !” Assim, nas ruas, nas
praças, diante das pontes, nas portas dos quartéis, desenvolve-se uma uma luta
incessante, ora dramática, ora imperceptível, mas sempre renhida, pela conquista do
soldado. Nesta luta, nesses violentos contactos entre trabalhadores, trabalhadoras e
soldados, sob contínuas detonações de espingardas e das metralhadoras, decidem-se os
destinos do poder, da guerra e do país.
Os disparos dirigidos sobre os manifestantes aumentam a incerteza dos líderes. A
amplitude do próprio movimento começa a parecer perigosa. Mesmo a sessão do comité
de Vyborg, na noite do 26, isto é doze horas antes da vitória, alguns vieram perguntar se
não era tempo de acabar com a greve. O facto pode parecer surpreendente. Mas deve-se
compreender que uma vitória constata-se mais facilmente no dia depois que na véspera.
Além disso, os estados de espírito modificam-se muitas vezes em resposta aos
acontecimentos e às notícias recebidas. A prostração sucede rapidamente ao novo
entusiasmo. Os Kairov e os Tchogorine têm coragem suficiente, mas, em certos
momentos o que dói é o sentimento de responsabilidade diante das massas. Há menos
hesitações nas fileiras operárias. Das suas disposições de então, possuía-se um relatório
dirigido à autoridade superior por um agente bem informado da Segurança, Chorkanov,
que jogou um papel importante na organização bolchevique: “Dado que as tropas não
colocaram obstáculos à multidão – escrevia o provocador – que em certos casos,
tomaram medidas com o objectivo de paralizar as iniciativas da polícia, as massas
sentiram-se seguras da sua impunidade, e, actualmente, após dois dias de idas e vindas
livres na rua, enquanto que os círculos revolucionários lançaram palavras de ordem tais
como “Abaixo a guerra !” o povo convenceu-se que a revolução tinha começado, que o
sucesso estava assegurado às massas, que o poder seria incapaz de reprimir o
movimento, visto que as tropas alinhavam do lado dos revoltosos e que a sua vitória
decisiva está próxima, visto que o exército, hoje ou amanhã, tomará abertamente o
partido das forças revolucionárias e que então o movimento, longe de se acalmar,

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crescerá constantemente, até à vitória completa e à queda do regime.” A apreciação de
uma brevidade e de uma luminosidade notável ! Esse relatório é um documento histórico
de grande valor. Isso não devia impedir, bem entendido, os operários, após a vitória, de
fuzilar o autor.
Os provocadores, cujo número era formidável, sobretudo em Petrogrado, temem,
mais que ninguém, a vitória da revolução. Eles dirigem a sua política: nas conferências
dos bolcheviques, Chorkanov pronuncia-se a favor das medidas mais extremistas; nos
seus relatórios à Segurança, ele sugere a necessidade de fazer resolutamente uso das
armas. Talvez Chorkanov se esforce, com esse fim, exigir a mesma certeza dos operários
na sua ofensiva. Mas, no essencial, ele tinha razão: os acontecimentos deviam
brevemente justificar a sua avaliação.
Hesitava-se e conjecturava-se nas esferas superiores dos dois campos, porque
nenhum podia, à priori, medir a relação de forças. Os índices exteriores tinham
definitivamente parado de servir de medida: um dos principais aspectos de uma crise
revolucionária consiste, com efeito, num violento contraste entre a consciência e as
antigas formas das relações sociais. As novas proporções das forças albergavam-se
misteriosamente na consciência dos operários e dos soldados. Mas, precisamente, a
passagem do governo à ofensiva chamada e precedida pela das massas revolucionárias
transformou a relação de forças de potencial a efectivo. O operário considerava o soldado
em frente, avidamente e imperiosamente; este, inquieto, desnorteado, olhava para o lado;
o que assinalava que o soldado já não estava seguro dele. O operário avançava mais
ousadamente que o soldado. O militar melancólico, sem ser hostil, sobretudo arrependido,
defendia-se através do silêncio e às vezes cada vez mais – replicava com um tom de
severidade fingida para dissimular a angústia com a qual batia o seu coração. É assim
que se realizava a ruptura. O soldado desembaraçava-se evidentemente do espírito
soldadesco. Mesmo assim, nesse caso, não se reconhecia logo a ele próprio. Os chefes
diziam que o soldado estava embriagado pela revolução; parecia ao soldado que ao
contrário ele retomava o sentido após o ópio do quartel. Assim se preparou o dia decisivo:
o 27 Fevereiro.
Portanto, na véspera ainda, um facto produziu-se que por ser episódico, não deixa
de dar uma nova cor a todos os acontecimentos do 26 de Fevereiro: ao anoitecer se
revolta a 4ª companhia do regimento Pavlovsky, guardas da sua majestade. No seu
relatório escrito um comissário da polícia, a causa dessa revolta é indicada, em termos
completamente categóricos: “É um movimento de indignação em relação dos alunos
oficiais subalternos do mesmo regimento que, encontrando-se de serviço na Perspectiva
Nevsky, dispararam sobre a multidão.” Por quem a 4ª companhia foi informada ? Sobre
esse ponto nos informa um testemunho conservado por acaso. Cerca das duas da tarde,
um pequeno grupo de operários acorreu às casernas do regimento Pavlovsky; em
palavras entrecortadas, eles falavam do tiroteio sobre o Nevsky. “Digam aos camaradas
que os vossos também disparam sobre nós; nós vimos sobre a Perspectiva soldados que
têm o vosso uniforme!” A reprimenda foi implacável, o apelo foi ardente. “Todos estavam
cansados e lívidos.” A semente não cai sobre a pedra. Cerca de seis horas, a 4ª
companhia deixou de livre vontade o quartel, sob o comando de um oficial subalterno –

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qual ? O seu nome perdeu-se sem deixar marca, entre as centenas e milhares de outros
nomes heróicos – e se dirigiu para o Nevsky para substituir os alunos oficiais subalternos
do regimento. Não era um motim sobre a carne estragada; era um acto de alta iniciativa
revolucionária. A caminho, a 4ª companhia teve uma escaramuça com uma patrulha da
polícia montada, disparou, matou um agente e um cavalo, fere outro polícia e outro
cavalo. O itinerário que seguiram então os “pavlovtsy”, na barafunda, não foi reconstituido.
Eles voltaram para o quartel e revoltaram o regimento completo. Mas as armas tinham
sido escondidas; segundo certos dados, os amotinados ter-se-iam apoderado de trinta
espingardas. Logo, ele foram cercados pelo regimento Preobrajensky; dezanove dos
“pavlovtsy” foram presos e levados para a fortaleza; outros renderam-se. Segundo outras
informações, vinte e um soldados faltaram à chamada, nessa noite,com as suas armas.
“Fuga” perigosa. Esses vinte e um soldados levaram a noite à procura de aliados,
defensores. Só a vitória da revolução os pôde salvar. Os operários aprenderam com eles,
certamente, o que se passou. Não foi um mau presságio para as batalhas do dia seguinte.
Nabokov, um dos líderes liberais mais popular e cujos verídicas Memórias parecem
ser por vezes o diário íntimo do seu partido e da sua classe, voltava a pé de uma noite
passada na casa de amigos, cerca de uma da manhã, por ruas sombrias e ansiosas; ele
voltava “alarmado e cheio de pressentimentos sombrios”. Pode ser que ele tenha
encontrado em qualquer cruzamento um dos desertores do regimento Pavlovsky. Todos
os dois apressaram-se a se afastar: eles não tinham nada a se dizer. Nos bairros
operários e nos quartéis, alguns vigiavam ou se consultavam, outros, mergulhados num
sono leve sonhavam febrilmente sobre o dia seguinte. Por aí o desertor “pavlovets”
encontrava asilo.
Como eram indigentes as notas tomadas sobre os combates de massas em
Fevereiro, mesmo comparadas aos relatos pouco rigorosos que foram dados das batalhas
de Outubro. Em Outubro, os insurrectos mantinham-se diariamente sob a direcção do
partido, cujos artigos, manifestos, processos verbais representam pelo menos a
continuação exterior da luta. Em Fevereiro não se passou assim. Do alto, as massas
quase que não eram dirigidas. Os jornais calavam-se, a greve era toda-poderosa. As
massas, sem olharem para trás, faziam elas próprias a sua própria história. Reconstituir
um quadro vivo dos acontecimentos que se produziram na rua é quase inconcebível.
Deve-se estar feliz se se conseguiu a encontrar a sucessão geral e a lógica interna.
O governo, que não tinha ainda abandonado o aparelho do poder, considerava o
conjunto dos acontecimentos de uma maneira mesmo mais pessimista que os partidos de
esquerda que , portanto, sabemos-lo, estavam menos que os outros à altura. Após o
tiroteio “conseguido” do 26, os ministros sentiram-se por um momento reconfortados. Na
madrugada do 27, Protopopov afirmava, num comunicado tranquilizador, que, segundo as
informações recebidas, “um certo número de operários estariam dispostos a retomar o
trabalho”. Ora, os operários nem sonhavam de forma nenhuma voltar para as suas
máquinas. O tiroteio e o revés da véspera não tinham desencorajado as massas. Como
explicar o facto ? Evidentemente, os “menos” eram largamente compensados por certos
“mais”. Propagam-se nas ruas, confrontando-se com o inimigo, sacudindo os soldados
pelos ombros, penetrando sob o peito dos cavalos, dirigindo-se para a frente, pondo-se

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em debandada, deixando os cadáveres nos cruzamentos, apoderando-se por vezes de
algumas armas, transmitindo notícias, captando rumores, a massa insurgida torna-se um
ser colectivo que tem um sem número de olhos, orelhas e tentáculos. Abandonando ao
anoitecer o terreno da batalha para voltar para casa, nos bairros das fábricas, a multidão
remói as impressões do dia, e, deixando cair os factos menores, os factos acidentais,
estabelece o balanço pesado. Na noite do 27, esse balanço foi aproximadamente o que o
provocador Chorkanov tinha apresentado às autoridades. A partir do dia seguinte, os
operários correm para as fábricas e, nas suas assembleias gerais, decidem continuar a
luta. São os do bairro de Vyborg que, como sempre, mostram-se os mais resolutos. Mas,
nos outros distritos, os comícios dessa manhã estão cheios de entusiasmo. Continuar a
luta ! Mas o que isso significa nesse dia ? A greve geral levou a manifestações
revolucionárias de massas imensas, as manifestações levaram os manifestantes a
choques com as tropas. Continuar a luta significa, nesse dia, apelar à insurreição armada.
Todavia, esse apelo não foi lançado por ninguém. Inevitavelmente, os acontecimentos
impõem-no, mas ele não está de forma nenhuma inscrito na ordem do dia do partido
revolucionário.
A arte de uma direcção revolucionária, nos momentos mais críticos, consiste, para os
nove décimos, saber surpreender a voz das massas – assim como Kaiorov tinha
surpreendido o movimento de sobrancelhas de um cossaco – ainda que seja necessário
ter uma visão ampla. A faculdade nunca ultrapassada em surpreender a voz da massa
fazia a força de Lenine. Mas Lenine não se encontrava em Petrogrado. Os estados-
maiores “socialistas”, legais ou meio legais, os Kerensky, os Tchkeidzé, os Skobelev e
todos os que giravam à volta deles, preferiam muitos avisos e contrariavam o movimento.
Mas mesmo o estado-maior central dos bolcheviques, que se compunha de Chliapnikov,
de Zalotsky e de Molotov, mostra uma incapacidade e uma falta de iniciativa cada vez
mais impressionantes. De facto, os bairros da cidade e os quartéis estavam entregues a
eles mesmos. O primeiro manifesto dirigido às tropas por uma organização da social
democracia próxima dos bolcheviques só foi lançada no 26. Esse manifesto, concebido
em termos bastante hesitantes, que nem sequer exortava o exército a tomar o partido do
povo, foi distribuido, logo na manhã do 27, em todos os distritos. “Porém – declara
Ioreniev, um dos dirigentes da organização – o desenrolar dos acontecimentos
revolucionários foi tal que as palavras de ordem vinham atrasadas. Quando os panfletos
foram difundidos nas massa dos soldados, esta estava já em movimento. “No que diz
respeito ao centro dos bolcheviques, Chliapnikov, seguindo os conselhos de Tchogorine,
um dos melhores líderes operários de Fevereiro, redigiu somente na manhã do 27 um
apelo aos soldados. Este apelo foi imprimido ? No melhor dos casos, só pôde aparecer no
fim da sessão, à hora da saída. É impossível que tivesse qualquer influência sobre os
acontecimentos do 27 de Fevereiro. Deve-se ter como princípio que nesses dias, os
dirigentes atrasaram-se de tal forma que eles dominavam do alto a massa.
Mas a insurreição, que ninguém ainda chamava pelo seu próprio nome, era, todavia,
levada à ordem do dia. O pensamento operário concentrava-se sobre o exército. Este
poderia arrastar aquele ? Não bastava uma agitação disseminada. Os trabalhadores do
bairro de Vyborg organizaram um comício diante dos quartéis do regimento moscovita. A

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acção deu mau resultado: é difícil a um oficial ou a um ajudante premir o gatilho de uma
metralhadora ? Os operários foram dispersados por um tiroteio violento. Outra tentativa
fora feita diante do quartel do regimento de reserva. O mesmo resultado: entre os
operários e os soldados se colocaram oficiais, armados de metralhadora. Os instigadores
operários, exasperados, procuravam armas, reclamavam-as ao partido. Responderam-
lhes que as armas estavam em posse dos soldados, entre os quais dever-se-ia procurá-
las. Os operários já sabiam disso. Mas como se apoderar ? E se o jogo estivesse
totalmente perdido durante o dia ? Foi assim que se chegou ao ponto crítico da luta. A
metralhadora devia varrer a insurreição, ou esta apoderar-se-ia das metralhadoras.
Nas suas memórias, Chliapnikov, principal figura de então no meio dos bolcheviques
de Petrogrado, conta que, a pedido dos operários que queriam armas, pelo menos
revolveres, ele lhe recusava, enviando-os procurarem nos quartéis. Ele queria assim
evitar afrontamentos sangrentos entre operários e soldados, apostando exclusivamente
na agitação, isto é sobre a conquista dos soldados pela palavra e o exemplo. Não
conhecemos outros testemunhos que confirmariam ou refutariam esta disposição de um
dos dirigentes mais populares nesses dias, deposição mais evasiva que providencial.
Teria sido mais simples confessar que os dirigentes não tinham armas. Sem sombra de
dúvida a sorte de toda revolução, numa certa etapa, decide-se por uma reviravolta de
opinião no exército. Contra uma tropa numerosa, disciplinada, bem equipada e habilmente
dirigida, as massas populares desprovidas, completamente ou pouco mais, de armas de
combate, não poderiam vencer. Mas nenhuma crise nacional profunda não pode deixar de
alcançar, a qualquer grau que seja, o exército; de maneira que, nas condições de uma
revolução verdadeiramente popular, a possibilidade abre-se – bem entendido sem
garantia – de uma vitória do movimento. Todavia, a passagem do exército para o lado dos
insurrectos não se faz sozinha e não é o resultado unicamente da agitação. O exército é
heterogéneo e os seus elementos antagónicos estão ligados pelo terror da disciplina. Os
soldados revolucionários, na véspera da hora decisiva, não sabem ainda o que eles
representam como força e qual pode ser a sua influência. Bem entendido, as massas
operárias não são homogéneas. Mas elas têm infinitamente mais possibilidades de rever
seus efectivos no decurso dos preparativos de um conflito decisivo. As greves, os
comícios, as manifestações são tanto actos de luta como meios de os medir. A massa não
se compromete inteiramente na greve. Os grevistas não estão todos dispostos a baterem-
se. Nos momentos mais graves, os mais decididos encontram-se na rua. Os que hesitam,
seja por lassidão, seja por espírito conservador, ficam em casa. Aí, a selecção
revolucionária faz-se sozinha; os homens são escolhidos pela história. No exército passa-
se de outro modo. Os soldados revolucionários, simpatizantes, hesitantes, hostis, ficam
ligados por uma disciplina rígida cujos comandos se juntam até ao último momento, sob a
férula do oficial. Os soldados estão ainda como antes contados como de “primeira” ou de
“segunda” classe; mas como é que eles se repartem entre amotinados e submissos ?
O momento psicológico onde os soldados passam à revolução é preparado por um
longo processo molecular que, como todo o processo revolucionário, atinge o seu ponto
crítico. Mas onde colocar exactamente esse ponto ? A tropa pode estar pronta a juntar-se
ao povo, mas não pode receber de fora o impulso necessário. A direcção revolucionária

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não acredita ainda na possibilidade de ganhar para si a tropa e deixa escapar as
oportunidades de vitória. Após esta insurreição amadurecida, mas não realizada, uma
reacção pode produzir-se nas tropas: os soldados perderão a esperança que os
inflamava, terão uma vez mais a cabeça sob o jugo da disciplina e, a partir de um novo
encontro com os operários, encontrar-se-ão a partir de então instigados contra os
insurrectos, sobretudo à distancia. Nesse processo, os imponderáveis ou dificilmente
ponderáveis, as correntes cruzadas, as sugestões colectivas ou individuais são
numerosas. Mas desta combinação complexa de forças materiais e físicas, uma dedução
impõe-se, numa nitidez irresistível: a massa dos soldados são tanto mais capazes de virar
as suas baionetas, ou então passar para o lado do povo com as suas armas, que eles
vêm melhor que os insurrectos são verdadeiramente em insurreição, que não é uma
manifestação após a qual o soldado deverá voltar novamente e dar contas; que haja luta
mortal; que o povo possa vencer se nos juntarmos a ele, e que assim não somente poder-
se-à assegurar-se da impunidade, mas dos consolos na existência. Noutros termos, os
insurrectos não podem provocar uma reviravolta no estado de espírito do soldado senão
com a condição de estarem eles próprios prontos a arrancar a vitória a qualquer preço,
em consequência também ao preço do sangue. Ora, esta determinação superior não
pode e não quererá passar-se das armas.
A hora crítica da tomada de contacto da massa insurrecta com os soldados que lhe
barram o caminho no momento crítico, é quando a barragem dos capotes cinzentos ainda
não se deslocou, quando os soldados mantêm-se ainda ombro a ombro, mas hesitam já,
enquanto o oficial, juntando o que lhe resta de coragem, comanda o fogo. Os gritos da
multidão, os urros de pavor e de ameaça, cobrem, a metade, a voz do chefe. As
espingardas estão suspensas, a multidão pressiona. Então, tal oficial aponta o seu
revolver sobre o mais suspeito dos soldados. No minuto decisivo, eis o segundo decisivo.
A morte do soldado mais ousado em direcção do qual os outros se voltam
involuntariamente, o tiro da espingarda dado sobre a multidão por um oficial subalterno
que apanhou a arma do morto – e eis que a barragem se volta a apertar, as armas
disparam sozinhas, varrendo a multidão, pelas ruas e quintais. Quantas vezes, desde
1905 não se passou assim: no segundo mais crítico, quando o oficial aperta o gatilho, o
seu gesto é previsto por um disparo saído da multidão que tem os seus Kaiorov e os seus
Tchogorine. Isso decide não somente a questão de uma escaramuça na rua, mas talvez
os resultados de todo o dia ou mesmo de toda a insurreição.
A tarefa que se atribuiu Chliapnikov – preservar os operários dos afrontamentos
violentos com os soldados, recusando distribuir armas aos insurrectos – não é em geral
realizável. Antes de chegar ao encontro com as tropas, houve numerosas escaramuças
com a polícia. A batalha das ruas começava pelo desarmamento dos faraós odiados,
portanto os revolveres passaram para as mãos dos insurrectos. O revólver, em si, é uma
arma fraca, quase um brinquedo, quando se opõe às espingardas, às metralhadoras e
aos canhões do inimigo. Mas essas armas estão verdadeiramente nas mãos do inimigo ?
É para verificação que os operários reclamavam armas. A questão é do domínio
psicológico. Todavia, mesmo uma insurreição, os processos psíquicos não podem ser

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isolados dos factos materiais. Para atingir a espingarda do soldado, é preciso primeiro
retirar o revólver ao polícia.
As emoções dos soldados nessas horas foram menos presentes que as dos
operários, mas não menos profundas. Lembremos ainda que a guarnição compunha-se
principalmente de batalhões de reservistas contando bastantes milhares de homens
destinados a completar os regimentos da frente. Esses homens, na maior parte pais de
família, previam o seu envio para as trincheiras, enquanto na frente a jogo estava já
perdido e o país arruinado. Eles não queriam guerra, eles queriam voltar para casa, voltar
para as suas famílias. Eles sabiam de antemão o que se preparava na Corte e não se
sentiam de forma nenhuma ligados à monarquia. Eles não queriam lutar contra os alemãs
e ainda menos com os operários de Petrogrado. Eles detestavam a classe dirigente da
capital que festejava em tempo de guerra. Entre eles encontravam-se operários que,
tendo um passado revolucionário, sabiam dar a todos esses estados de espíritos uma
expressão generalizada.
Conduzir os soldados, partindo dum descontentamento revolucionário profundo mas
ainda não manifestado, aos actos de franca rebelião ou pelo menos, para começar, a uma
sediciosa recusa da acção – tel era o problema. Cerca do terceiro dia de luta, os soldados
tinham perdido definitivamente toda a possibilidade de se manterem em posições de uma
neutralidade benevolente em relação à insurreição. Foi somente por acaso que indicações
fragmentárias sobre o que se passou nessas horas entre operários e soldados nos
chegaram. Sabe-se como, na véspera, os trabalhadores tinha retirado face aos
“pavlovtsy”, queixas veementes contra o comportamento dos cadetes. Cenas,
conversações, reprimendas, citações do mesmo género tiveram lugar sobre todos os
pontos da cidade, os soldados não tinham mais tempo para hesitações. Forçaram-nos ,
na véspera, a disparar; forçá-los-ão ainda hoje. Os operários não cedem nada, não
recuam e sob as balas, conseguem chegar aos seus objectivos. Depois deles, as
operárias, mães e irmãs, esposas e companheiras. Então a hora sobre a qual se falava
em voz baixa ainda não chegou: “Se nos juntássemos todos ?” E no momento das
supremas aflições, o terror intolerável diante do dia que se aproxima, de um ódio
sufocante em relação aos que vos impõem o papel de carrasco, os primeiros gritos de
revolta aberta levantam-se nos quartéis, e nessas vozes que ninguém sabe nomear, todo
o quartel, aliviado, entusiasta, reconhece-se. Foi assim que surgiu o dia da queda da
monarquia dos Romanov.
A reunião da manhã, na casa do infatigável Kaiorov, uma quarentena de delegados
de fábrica pronunciaram-se maioritariamente pela continuidade do movimento. A maioria,
mas não a unanimidade. É lamentável que não se pudesse estabelecer o que foi essa
maioria. Mas a hora não era propícia para redacções de processos verbais. Aliás, esta
decisão estava atrasada em relação os factos: a reunião foi interrompida por uma notícia
perturbante; os soldados tinham-se revoltado e as portas das prisões tinham sido
arrobadas. “Chorkanov trocou beijos com todos os assistentes”: beijos de Judas que,
felizmente, não anunciavam uma crucificação.

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Um depois do outro, logo pela manhã, antes de sair dos quartéis, batalhões da
reserva da Guarda revoltaram-se, seguindo o exemplo dado, na véspera, pela quarta
companhia dos “pavlovtsy”. Na documentação, notas e memórias, só restam pálidos
traços desse grandioso acontecimento da história humana. As massas oprimidas, mesmo
quando elas sobem aos mais altos cumes da criação histórica, contam poucas coisas
delas próprias e ainda menos tomam notas. E o sentimento lancinante do triunfo apaga
logo o trabalho da memória. Contentemo-nos do que resta.
Foram primeiro os soldados do regimento de Volhynia que se insurgiram. Desde das
7 horas da manhã, um comandante do batalhão chamou Khabalov pelo telefone para lhe
comunicar uma terrível notícia: os alunos cadetes, isto é um contingente especialmente
destinado à tarefa da repressão, tinham recusado marchar, e o respectivo chefe tinha sido
morto ou tinha-se suicidado diante das tropas; a segunda versão foi aliás logo
abandonada. Tendo queimado as naves, os “volhynianos” esforçaram-se e alargar a base
da insurreição: era a sua única chance de salvação. Eles precipitaram-se para os quartéis
vizinhos, os regimentos lituano e Preobrajensky, para aí “desobstruir” os soldados, assim
que os grevistas, correndo de fábrica em fábrica, “desobstruindo” os operários. Pouco
depois, Khabalov soube que os “volhynianos” não somente recusavam-se a devolver seus
fuzis como o general tinha ordenado, mas, com os “preobrajentsy” e os “lituanos”, e, o que
era pior, “unindo-se aos operários”, tinham saqueado os quartéis da divisão da guarda.
Isso prova que a experiência feita, na véspera, pelos “pavlovtsy” não tinham sido perdida:
os amotinados tinham encontrado dirigentes e, ao mesmo, um plano de acção.
Nas primeiras horas do dia 27, os operários imaginavam a solução do problema da
insurreição como infinitamente mais longínquo que ela não era na realidade. Mais
exactamente eles acreditavam ainda ter tudo a fazer, enquanto que a sua tarefa, pelos
nove décimos estava realizada. O ímpeto revolucionário dos operários do lado dos
quartéis coincidia com o movimento revolucionário dos soldados que saíam já na rua. No
decorrer do dia, essas duas correntes impetuosas misturaram-se para descer e levar o
telhado do velho edifício, a seguir as paredes, e mais tarde as fundações.
Tchogorine foi um dos primeiros a se apresentar no local dos bolcheviques, de
espingarda na mão, com uma fita de munições à bandoleira, “todo sujo, mas
resplandecente e triunfante”. Porque não resplandecer! Os soldados passam para o
nosso lado, de armas na mão ! Aqui e acolá, os operários já conseguiram unir-se com as
tropas, a penetrar nos quartéis, a obter espingardas e munições. O grupo de Vyborg, em
colaboração com os soldados mas resolutos, esquematizou um plano de acção: amparar-
se dos comissários da polícia, onde estão os agentes da polícia, e desarmar todos os
agentes; libertar os operários encarcerados nos comissariados, assim como os detidos
políticos nas prisões; esmagar as tropas governamentais na cidade, agrupar as tropas
ainda não revoltadas e os operários dos outros bairros.
O regimente “moscovita” aderiu ao levantamento não sem luta interior. O que é
impressionante, é que houvesse esse tipo de luta no exército. A pequena cimeira da
monarquia impotente, caía, tendo perdido o apoio da massa dos soldados, e escondia-se
nos interstícios, ou então apressava-se a vestir as novas cores. “Cerca das duas horas da

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tarde – conta Korolev, operário da fábrica “Arsenal” - como o regimento “moscovita” saía,
nós pegámos em armas... Cada um tinha um revolver e uma espingarda. Nós treinámos
um grupo de soldados que se aproximou (alguns deles nos pediram para os comandar e
de lhes indicar o que seria necessário fazer) e nós nos dirigimos para a rua Tikhvinskaia
para abrir fogo sobre o comissariado da polícia.” Foi assim que os operários não se
embaraçaram para mostrar aos soldados “o que havia a fazer”.
As boas notícias da vitória sucediam-se umas às outras: os insurrectos tinham carros
blindados. Cobertos de bandeiras vermelhas, eles espalhavam o pânico nos lugares ainda
não submetidos. Já não havia necessidade de rastejar sob os cavalos. A revolução
assumia toda a sua grandeza.
Pelo meio-dia, Petrogrado voltou a ser um campo de batalha: os tiros e os e o ruído
das metralhadoras ouviam-se por todos os lados. Nem sempre é fácil saber quem dispara
e de onde. O que é claro, é que se dispara entre o passado e o futuro. Bastantes disparos
foram inúteis: os adolescentes disparam com revolvers que procuraram para a ocasião. O
arsenal foi pilhado: “O que se diz, se contarmos só as brownings, distribuíram-se várias
dezenas de milhares.” A fumaça subia em colunas do palácio da justiça e dos
comissariados da polícia que ardiam. Em certos pontos, as escaramuças e as trocas de
fogo agravavam-se até se tornarem verdadeiros combates. Na Perspectiva
Sampsonovsky, diante dos edifícios ocupados pelos soldados viaturas de guerra, algumas
juntavam-se às portas, os operários aproximavam-se:” O que é que vocês esperam
camaradas ?” Os soldados sorriem, mas “um mau sorriso”, e eles calavam-se, diz uma
testemunha; os oficiais ordenam brutalmente aos trabalhadores para seguir caminho.
Os condutores do exército, assim como a cavalaria, mostraram-se, em Fevereiro
como em Outubro, como sendo as forças mais conservadoras. Brevemente, diante da
palissada, se agruparam os operários e os soldados revolucionários. É preciso obrigar a
sair o batalhão duvidoso. Alguém vem dizer que enviaram carros blindados: de outra
forma não haveria provavelmente os carros do exército, cuja equipa se fortaleceu com as
metralhadoras. Mas a massa pena em esperar, ela impacienta-se, alarma-se, e, na sua
impaciência, ela tem razão. Os primeiros disparos partem dos dois lados. No entanto, a
palissada é um obstáculo entre os soldados e a revolução. Os assaltantes decidem
demolir esta barreira. Abate-se parcialmente, incendia-se a outra parte. Os edifícios são
saqueados, há uma vintena. Os automobilistas refugiam-se em dois ou três. Os edifícios
são evacuados são imediatamente incendiados. Seis anos mais tarde, Kairov escreveu
nas suas Memórias: “Os edifícios em fogo, e à volta deles a palissada derrubada, o tiro
das metralhadoras e das espingardas, a animação visível dos assaltantes, a rápida
chegada de um camião trazendo revolucionários armados e, enfim, um auto blindado
cujas peças de artilharia brilhavam, formavam um esplêndido quadro inesquecível”. Era a
velha Rússia dos czares, da servidão, dos papas e da polícia que ardia com os seus
edifícios, cuspindo fogo e fumo, morrendo nos soluços dos tiros das metralhadoras.
Como os Kairov, dezenas, centenas, milhares de Kairov não se teriam
entusiasmado? O auto blindado que surgiu disparou alguns tiros de canhão sobre o
edifício onde se tinham refugiado os oficiais e os soldados condutores. O comandante da

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defesa foi morto. Os oficiais, despossuidos dos seus galões e decorações, fugiram a
través das hortas da vizinhança. Os outros renderam-se. Foi talvez o maior afrontamento
do dia.
O levantamento no exército tomava entretanto um carácter epidémico. Nesse dia os
efectivos que não se sublevaram foram só os que acharam que ainda não era o momento
de o fazer. Pela noite juntaram-se ao movimento os soldados do regimento Semenovsky,
conhecido por ter esmagado impiedosamente a insurreição moscovita em 1905: onze
anos passados tinham deixado a sua marca ! Com os caçadores, os “semenovtsy” vieram
à noite raptar os soldados do regimento Ismailovsky que as chefias mantinham fechados
nas casernas; esse regimento que, no 3 de Dezembro de 1905 tinha cercado e feito
prisioneiros os membros do primeiro Soviete de Petrogrado, era ainda considerado como
um dos mais atrasados. A guarnição do czar, na capital, com cerca de 150 mil homens, se
desagregava, fundia-se, eclipsava-se. Pela noite, ela já não existia.
Informado pela manhã do levantamento dos regimentos, Khabalov tenta opor ainda
alguma resistência, ao enviar contra os insurrectos um destacamento seleccionado de
cerca de mil homens, munidos das mais draconianas instruções. Mas a sorte desse
destacamento envolve-se de mistério. “Passa-se qualquer coisa, nesse dia, coisas
inacreditáveis, conta, após a revolução, o incomparável Khabalov: o destacamento mete-
se a caminho, e parte sob o comando de um oficial bravo e resoluto – trata-se do coronel
Kotiepov – mas...sem resultados ! “Companhias enviadas a seguir ao destacamento
desapareceram igualmente sem deixar rasto. O general começou a formar reservas na
praça do Palácio, mas “as munições faltavam e não sabíamos onde as procurar”. Tudo
isso está estabelecido autenticamente nas deposições de Khabalov diante da comissão
do governo provisório. Para onde tinha escapado os destacamentos destinados à
repressão ? Não é difícil adivinhar: desde que eles se encontraram fora , eles se fundiram
com a insurreição. Operários, mulheres, adolescentes, soldados insurrectos penduravam-
se por todos os lados às tropas de Khabalov, tomando-os como novos recrutas ou
esforçavam-se por os converter e não lhes davam possibilidades de se moverem de outra
forma senão com a imensa multidão. Fazer guerra a essa massa aglutinante que não
temia nada, que se agitava inesgotável, que penetrava por todo o lado, teria sido como
fazer espadachim num amassadouro !
Ao mesmo tempo que chegavam os relatórios sobre a extensão da revolta nos
regimentos, Khabalov reclamava tropas seguras para a repressão, para a protecção da
Central telefónica, do palácio Litovsky, do palácio Maria e outros lugares ainda mais
sagrados. O general telefonou à fortaleza de Cronstadt, exigindo reforços, mas o
comandante respondeu que ele próprio temia sobre a segurança da própria fortaleza.
Khabalov não sabia ainda que a insurreição tinha ganho guarnições vizinhas. Ele tentou,
ou fez de conta, em transformar o palácio de Inverno em reduto, mas esse plano foi logo
abandonado como irrealizável, e o último punhado de tropas “fiéis” foram enviados para o
almirantado. Aí, o ditador preocupou-se enfim em tomar as medidas urgentes e
importantes; ele mandou imprimir dois avisos à população que constituem os últimos
actos oficiais do regime: um sobre a demissão de Protopopov “por motivo de doença”;
outro decretando o estado de sítio em Petrogrado. Era efectivamente urgente tomar esta

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última medida porque, algumas horas mais tarde, o exército de de Khabalov levantava o
“estado de sítio” e, esquivando-se do almirantado, dispersava-se, voltado cada um para
casa. Foi somente por inadvertência que a revolução não prendeu logo na noite de 27 o
general, cujos poderes eram enormes, mas que ele próprio não era de temer. A prisão
teve lugar no dia seguinte sem complicações.
Era toda a resistência que o terrível regime imperial da Rússia pode manifestar
diante do perigo de morte ? Sim, pouco mais ou menos tudo, em despeito de uma grande
experiência na repressão, apesar dos planos minuciosamente elaborados. Mais tarde, os
monarquistas, tendo acordado, explicaram a vitória fácil do povo em Fevereiro pelo
carácter particular da guarnição de Petrogrado. Mas o curso ulterior da revolução refuta
esta explicação. É verdade que, desde do início do ano fatal, a camarilha sugeria ao czar
a necessidade de modificar a guarnição da capital. O czar acreditou sem dificuldades que
a cavalaria da Guarda, considerada como particularmente devotada, tinha-se
“suficientemente exposto ao fogo” e tinha merecido descanso nos quartéis de Petrogrado.
No entanto, cedendo às respeitosas advertências vindas da frente, o czar concordou em
substituir quatro regimentos da Guarda montada por três unidades da tripulação da frota
da Guarda. Segundo a versão de Protopopov, esta troca teria sido feita sem o
consentimento do czar, pela premeditação traidora dos grandes chefes: “os marinheiros
foram recrutados entre os operários e constituem o elemento mais revolucionário de todas
as Forças Armadas.” Mas são evidentes absurdidades. Simplesmente, o alto comando da
Guarda, sobretudo na cavalaria, estabelecia uma excelente carreira para voltar. Além
disso, esses oficiais superiores deviam sentir-se apreendidos ao pensar na obra de
repressão que lhes seria imposta, à cabeça dos regimentos que não se pareciam com
nada ao que eles tinham na guarnição da capital. Como provaram logo os acontecimentos
na frente, a Guarda montada não se distinguia mais do resto da cavalaria, e os marujos
da Guarda que se instalaram em Petrogrado não jogaram nenhum papel activo na
Revolução de Fevereiro. Porque o tecido do regime estava definitivamente podre e não
havia um só fio inteiro...
No dia 27, a multidão libertou sem encontrar resistência, os detidos políticos de
numerosas prisões da capital, e, nesse número, o grupo patriótico das indústrias de
guerra que tinha sido preso no 26 de Janeiro e os membros do comité bolchevique de
Petrogrado que Khabalov tinha mandado prendes quarenta horas antes. As distâncias
políticas estabeleciam-se desde da saída da prisão: os mencheviques patriotas dirigiam-
se para a Duma, onde se distribuíam os papeis e os postos: os bolcheviques voltam para
os bairros, para os operários e soldados, para acabar juntamente com eles a conquista da
capital. Não se dá ao inimigo o tempo de retomar o fôlego. A revolução, mais
necessariamente que qualquer outro assunto, deve ser levada até ao fim.
Quem deu a ideia de dirigir os regimentos insurrectos para o palácio Tauride ? Não
se sabe. Esse itinerário político resultou do conjunto da situação. Para o palácio Tauride,
como centro de informação da oposição, se dirigiam naturalmente todos os elementos do
radicalismo sem ligação às massas. É muito provável que foram precisamente esses
elementos que, no dia 27 de Fevereiro, sentindo um inesperado afluxo de forças vitais,
tomaram a liderança da Guarda revoltada. Foi um papel honroso que não comportava

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quase nenhum perigo. O palácio Potemkine, por todas as suas disposições, era o que se
podia conceber de melhor como centro da revolução. O jardim de Tauride não é separado
senão por uma rua de uma pequena cidadela militar onde se encontram as casernas da
Guarda e diversos serviços administrativos do exército. É verdade que, durante muitos
anos, esta parte da cidade tinha sido considerada, tanto pelo governo como pelos
revolucionários, como o torreão da monarquia. E assim era. Mas, presentemente, tudo
mudou. É um sector da Guarda que sai uma insurreição de soldados. As tropas só tinham
que atravessar a rua para chegar ao jardim de Tauride que só estava separado do rio
Neva por um quarteirão de casas. Ora, do outro lado do Neva, estende-se o bairro de
Vyborg, caldeira da revolução: aos operários bastava-lhes passar a ponte Alexandre, ou
então, se esta estivesse cortada, descer sobre o gelo do Neva, para alcançar os quartéis
da Guarda ou o palácio de Tauride. É assim que esta formação heterogénea e de origens
opostas, o tringulo do nordeste de Petrogrado – a Guarda, o palácio Potemkim, as
fábricas gigantes – se concentra em bastião da revolução.
No interior do palácio de Tauride criaram-se ou esboçaram-se diversos centros, cujo
estado-maior insurreccional. Não se saberia dizer que este estado-maior tenha tido uma
carácter sério. Oficiais “ revolucionários”, isto é oficiais que qualquer coisa, mesmo um
mal-entendido, ligou à revolução, mas que beatamente adormeceram nas primeiras horas
da insurreição, apressam-se a lembrar, após a vitória, que existem, ou melhor, solicitados
por outros vêm meter-se “ao serviço da revolução”. Eles examinam com um ar sagaz o
conjunto da situação e agitam a cabeça com pessimismo. Porque essas multidões de
soldados exasperados, muitas vezes desarmados, são incapazes do que quer que seja.
Eles não têm nem artilharia , nem metralhadoras, nem ligação, nem chefes. O inimigo
safar-se-ia com uma único destacamento sólido ! Pelo momento, as multidões
revolucionárias impedem, na realidade, qualquer operação metódica nas ruas. Mas, vinda
a noite, os operários voltam para casa, os citadinos acalmar-se-ão, a cidade ficará
deserta. Se Khabalov ataca os quartéis com um contingente forte, ele pode tornar-se
mestre da situação. Esta ideia, diga-se de passagem, apresenta-se, sob diversas
variantes, em todas as etapas da revolução. “Dêem-me um regimento sólido, dirão mais
de uma vez nos seus meios de valentes coronéis, eu varrerei em rapidamente todo esse
lixo”. Vários desses oficiais tentaram a aventura, como nós veremos. Mas todos só
podiam repetir a declaração de Khabalov: “O destacamento está a caminho, comandado
por um bravo oficial, mas...não há resultados...”
E donde poderiam eles provenir ? O contingente mais firme compunha-se de
agentes da polícia, de guardas e parcialmente de cadetes de alguns regimentos. Mas
esses efectivos revelavam-se lamentáveis diante do avanço das massas, assim que os
batalhões de São Jorge e as escolas de oficiais, oito meses mais tarde, em Outubro.
Onde é que a monarquia teria ela encontrado, para a sua salvação, a força armada pronta
e capaz de encetar um duel prolongado e desesperado com uma cidade de dois milhões
de habitantes ? A revolução parece-se com chefes de exércitos, empreendedores em
palavras, indefensável porque é terrivelmente caótica: por todo o lado movimentos sem
objectivo, correntes contrárias, agitações humanas, rostos espantados e como
subitamente pasmados, capotes ao vento, estudantes que gesticulam, soldados sem

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armas, armas sem soldados, miúdos disparando para o ar, o rumor de milhares de vozes,
o turbilhão dos rumores desencadeados, medos injustificados, alegrias enganadoras...;
bastava, ao que parece, levantar o sabre sobre toda esta multidão e ela espalhar-se-ia
imediatamente sem pedir contas. Mas é aí que está a grande ilusão de óptica. Um caos
somente em aparência. Sobre isso tem lugar uma irresistível cristalização das massas
sobre novos eixos. Essas multidões numerosas ainda não se deram conta completamente
de que elas querem, mas elas estão cheias de ódio ardente que elas não querem mais.
Elas deixam atrás de si um irreparável desmoronamento histórico. Sem meio de regresso
possível. Se alguém as dispersasse, elas votavam a reunir-se, uma hora mais tarde, e o
novo ascenso da multidão seria ainda mais furioso e sangrento. A partir desses dias de
Fevereiro, a atmosfera de Petrogrado tornou-se de tal forma incandescente que toda a
tropa hostil caindo ao seu alcance, ou se aproximando somente e expondo-se ao seu
hálito ardente, transforma-se, perde toda a segurança, sente-se paralizada, e rende-se,
sem resistência, à mercê do vencedor. Era o que devia compreender, no dia seguinte, o
general Ivanov que, sob ordem do czar, chegou à frente com um batalhão de cavaleiros
de São Jorge. Cinco meses mais tarde, a mesma sorte foi reservada ao general Kornilov.
Oito meses depois, a Kerensky.
Na rua, no decorrer dos dia precedentes, os cosacos pareciam os mais conciliantes:
foi assim que, mais que os outros, foram atormentados. Mas quando chegamos à
verdadeira insurreição, a cavalaria justifica uma vez mais a sua reputação de elemento
conservador ao deixar-se ultrapassar pela infantaria. No dia 27, ela tinha ainda na
expectativa uma aparência de neutralidade. Se Khabalov não contava mais com ela, a
revolução temia-a ainda.
Sobrava assim o enigma da fortaleza Pedro e Paulo, situada na ilha que banha o
Neva, em frente ao palácio de Inverno e das residências dos grandes duques. Por detrás
das muralhas, a guarnição estava ou parecia ser um pequeno mundo muito protegido
contra as influências exteriores. Não há artilharia permanente no lugar, com a excepção
de um antigo canhão que anuncia diariamente o meio-dia. Mas, hoje, as peças de
campanha foram içadas sobre as muralhas, e apontadas sobre a ponte. Que se prepara
por lá ? O estado-maior do palácio de Tauride, à noite, quebra a cabeça a questionar-se
sobre o que fazer em relação à “Pedro-Paulina”, e na fortaleza das pessoas se
atormentam a perguntar o que a revolução fará deles. Na manhã, o enigma terá solução:
“Sob condição de salvo-conduto para o corpo de oficiais”, a praça se renderá à discrição
do palácio Tauride. Tendo em fim visto claro na situação, o que não era muito difícil, os
oficiais da guarnição adiantaram-se aos acontecimentos inevitáveis.
Pela noite do dia 27 avançaram em direcção do palácio de Tauride, soldados,
operários, estudantes, gente comum. Aí, eles esperaram encontrar os que sabem tudo,
obter informações ou directivas. É aos molhos que se introduziram armas no palácio
juntas em diversos lados, e foram depositadas na sala transformada em arsenal.
Entretanto, à noite, nesses lugares, o estado-maior meteu-se ao trabalho. Expediu
destacamentos para vigiar as gares, e patrulhas em todas as direcções donde se pode
esperar uma ameaça. Os soldados cumprem de boa vontade, sem discutir, ainda que na
maior desordem, as instruções do novo poder. Eles exigem somente, de cada vez, uma

103
ordem escrita: esta iniciativa provém, provavelmente, dos restos do comando que ficaram
ligados aos regimentos, ou aos escribas militares. Mas eles têm razão: é necessário sem
falta meter ordem no caos. O estado-maior revolucionário, assim como o soviete que
acabou de serem criado, ainda não tem selos. A revolução deve ainda procura no seu
material burocrático. Infelizmente, dentro de algum tempo, ela fará esta aquisição para
além do necessário.
A revolução mete-se à procura dos seus inimigos. Na cidade dão-se prisões -
“arbitrárias”, dirão, num tom de censura, os liberais. Mas toda a revolução é arbitrária.
Não param de levar suspeitos ao palácio de Tauride: o presidente do Conselho de Estado,
ministros, polícias, agentes da Okhrana, uma condessa “germanofila”, agentes da guarda,
em grandes quantidades. Certos dignitários, como Protopopov, vêm por própria iniciativa
constituir-se prisioneiros: é mais seguro, “Os murros desta sala que, outrora, tinham
ressoado os hinos em honra do absolutismo, não ouviram mais nesse dia senão os
suspiros e os soluços, contou mais tarde a condessa devolvida à liberdade. Um general
preso sentou-se, esgotado, sobre a cadeira mais próxima. Vários membros da Duma
ofereceram-me amavelmente uma chávena de chá. Abalado até ao fundo da alma, o
general dizia-me:
“ Condessa, nós assistimos à ruína de um grande país.”
No entanto, esse grande país, que não estava de forma nenhuma disposto a morrer,
passava diante dos demitidos, batendo as botas, e o chão com a coronha das
espingardas, tremendo o ar com as suas chamadas e pisando as pessoas. As revoluções
sempre se distinguiram pela falta de urbanidade: provavelmente porque as classes
dirigentes não tinham tomado o cuidado, no devido tempo, de inculcar ao povo boas
maneiras.
O palácio de Tauride torna-se provisoriamente um Quartel-General, um centro
governamental, um arsenal, um centro de reclusão da revolução que ainda não absorveu
a sua face coberta de sangue e de suor. Nesse lugar, nesse remoinho, infiltram-se os
inimigos empreendedores. Por acaso, desmascarou-se um coronel da guarda que,
disfarçado, toma notas a um canto, não para servir a história, mas para informar as
tribunais marciais. Soldados e operários querem executá-lo mesmo ali. Mas pessoas do
“estado-maior” interpõem-se e raptam à multidão sem dificuldade o guarda. Nesta data, a
revolução ainda está indolente, confiante, mansa. Ela tornar-se-à implacável somente
após uma serie de traições, de logros e experiências sangrentas.
A primeira noite da revolução triunfante foi cheia de alarmes. Comissários
improvisados, para a vigilância das gares e outros pontos, na sua maior parte intelectuais
que as suas relações pessoais levaram por acaso, aventureiros, os que tiraram o chapéu
à revolução (oficiais subalternos, sobretudo de origem operária tivessem sido mais úteis !)
começam a enervar-se, vêm perigos em todo o lado, enervam os soldados e, por telefone,
pedem constantemente reforços ao palácio de Tauride. Aí também amotinam-se,
telefonam, enviam reforços que, muitas vezes, não chegam ao destino. Um daqueles que,
nessa noite, fizeram parte do “estado-maior” de Tauride exprimem-se assim:

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“Os que recebem ordens não as executam; os que agem fazem sem receber
ordem...”
É sem ordens que agem os bairros operários. Os dirigentes da revolução, tendo
iniciado os efectivos nas suas fábricas, aparando-se de comissariados, tendo
seguidamente sublevado os regimentos e demolido os refúgios da contra-revolução, não
se apressam em alcançar o palácio de Tauride, os estados-maiores, os centros directores;
pelo contrário; pelo contrário, acenam a cabeça com ironia e desconfiança desse lado: já
a rapaziada ocorre para partilhar a pele do urso que eles não mataram e que ainda não foi
acabado. Os operários bolcheviques, assim como os operários dos outros partidos de
esquerda, passam os seus dias na rua e as noites nos “estados-maiores” de distrito,
mantêm-se em contacto com os quartéis, preparam o dia seguinte. No decurso da
primeira vigia da vitória, eles continuam e desenvolvem o trabalho que realizaram nos
cinco primeiros dias. Eles constituem o esqueleto embrionário da revolução, ainda
demasiada fraco, como toda revolução no seu ínicio.
Nabokov, que o leitor já conhece na sua qualidade de membro do centro
constitucional democrata (cadetes), então desertor legal, emboscado no grande estado-
maior das forças armadas czaristas, rendeu-se como habitualmente, no dia 27, ao seu
serviço e aí ficou, ignorando tudo dos acontecimentos, até às três da tarde. À noite, na rua
Morskaia, ouvi-se tiros – Nabokov, no seu apartamento, afinou a orelha – autos blindados
passaram a toda a velocidade, soldados, marinheiros também corria, demolindo
paredes... O prezado liberal observa-os pela vidraça lateral de uma janela em tambor.
“O telefone funcionava ainda e as informações sobre o que se passara no dia eram-
me transmitidas, como me lembro, por amigos. Deitámo-nos à hora habitual.”
Esse homem devia tornar-se em breve um dos inspiradores do governo provisório
revolucionário (!), na qualidade de secretário geral. Na rua, no dia seguinte, uma velha
criatura desconhecida, um empregado de escritório ou um mestre escola, aproximou-se,
tirou o boné e dira:
“Obrigado por tudo o que você fez pelo povo.”
Contou próprio Nabokov com um modesto orgulho.

105
Quem dirigiu a insurreição de Fevereiro?
Os advogados e os jornalistas pertencendo às classes atingidas pela revolução
tiveram, no seguimento, despendido bastante tinta para demonstrar que em Fevereiro não
houve em suma senão um motim de mulheres, reforçada por uma revolta de soldados; foi
precisamente assim que alguns nos apresentaram a revolução. Luís XVI, no seu tempo,
quis ele também imaginar que a tomada da Bastilha foi de facto uma revolta, mas
explicaram-lhe com deferência que era na verdade uma revolução! Os que perdem numa
revolução estão raramente inclinados em lhe reconhecer o seu verdadeiro nome, porque
este, a despeito de todos os esforços dos reaccionários exasperados, toma na memória
histórica da humanidade a aureola de uma libertação em relação às velhas correntes e
preconceitos. Sempre os privilégios e os seus lacaios experimentaram infalivelmente
apresentar a revolução que os tinha derrubado como diferentes das revoluções
precedentes, como uma insubordinação, como sarilhos ou motins da ralé. As classes que
sobrevivem não se distinguem pelo espírito inventivo.
Logo após o dia 27 de Fevereiro, tentaram estabelecer analogias entre a revolução
russa e o golpe de Estado militar dos Jovens Turcos, que, como se sabe, as camadas
superiores da burguesia russa tinham sonhado bastante. Essa aproximação foi, contudo,
tão pouco convincente que ela reencontrou uma serie de refutações num jornal burguês.
Tougan Baranovsky, economista que, na sua juventude, tinha passado pela escola de
Marx, e que era na Rússia uma especie de Sombart, escreveu em 10 de Março no
Birjevye Viedomosti:
“A revolução turca consistiu num pronunciamento vitorioso do exército, preparado e
realizado pelos chefes deste. Os soldados eram somente executantes dóceis dos
projectos dos seus oficiais. Em contrapartida, os do regimento da Guarda que, no dia 27
de Fevereiro derrubaram o trono da Rússia, marcharam sem os seus oficiais... Não foi o
exército quem desencadeou a insurreição, foram os operários. Não foram os generais,
mas soldados que se dirigiram à Duma do Império. E os soldados apoiaram os operários
não por obtemperar dócilmente às ordens dos seus oficiais, mas... porque eles sentiam-se
aparentados pelo sangue aos operários, como classe trabalhadora, como eles próprios.
Os camponeses e os operários constituem as duas classes sociais que fizeram a
revolução russa.”
Não há nada a rectificar ou a completar nesses termos. O desenvolvimento ulterior
da revolução confirmou suficientemente o seu significado.
O último dia de Fevereiro, em Petrogrado, foi o primeiro dia que seguiu a vitória: dia
de entusiasmo, de abraços, de lágrimas de alegria, de desabafos prolixos, mas também o
dia onde se disparavam os últimos tiros sobre o inimigo. Nas ruas rebentavam ainda
disparos de espingarda. Contava-se que os faraós de Protopopov, ainda inadvertido da
vitória do povo, continuavam a disparar do alto dos telhados. Em baixo, disparava-se
sobre os granadeiros, as lucarnes e o sinos, onde se imaginava ver fantasmas armados
do czarismo. Pelas quatro horas da tarde foi ocupado o almirantado, onde se escondiam
os últimos resistentes do que outrora fora o poder de Estado. Organizações

106
revolucionárias e grupos improvisados procediam a prisões na cidade. A fortaleza presídio
de Schlusselburgo foi tomada sem resistência. Em todo o momento, novos regimentos
aderiam à revolução: na capital e nos arredores.
O queda do regime em Moscovo foi somente um eco da insurreição de Petrogrado.
Os mesmos estados de opinião nos operários e soldados, ainda que menos vivamente
exprimidos. As posições um pouco mais à esquerda na burguesia. A fraqueza das
organizações revolucionárias ainda mais marcada que em Petrogrado. Quando
começaram os acontecimentos sobre o Neva, os intelectuais radicais de Moscovo
consultaram-se entre eles sobre o que havia a fazer e não encontraram solução. Foi
somente a 27 de Fevereiro que nas fábricas de Moscovo rebentaram as greves, seguidas
de manifestações. Os oficiais diziam aos soldados, nos quartéis, que a canalha se
amotinava nas ruas que era necessário reprimir.” Mas, a partir desse momento, conta o
soldado Chichiline, os nossos davam à palavra “canalha” um sentido totalmente oposto!”
Pelas duas da tarde, numerosos soldados, pertencendo a diversos regimentos,
apresentaram-se diante da Duma municipal, procurando meio de aderir à revolução. No
dia seguinte, as greves estenderam-se. As massas avançavam com bandeira em direcção
à Duma. Moralov, soldado da companhia automóvel, velho bolchevique, agrónomo,
gigante magnânimo, e valente, conduziu à Duma o primeiro destacamento de tropas
sólido e disciplinado que ocupou a estação de TSF e outros postos. Oito meses mais
tarde, Moralov devia comandar a região militar de Moscovo.
As prisões abriram-se. O mesmo Moralov levou um camião de prisioneiros políticos
libertados. Saudando, a mão na viseira, um subcomissário da polícia pediu ao
revolucionário se deviam também libertar os judeus. Dzerjinski, mal tinha saído da casa
de reclusão e sem ainda se ter desembaraçado da vestimenta de prisioneiro, tomava a
palavra no interior da Duma onde o soviete estava já em formação. Dorofeiv, artilheiro,
devia contar mais tarde como os operários da doçaria Siou apresentaram-se, no primeiro
de Março, com bandeiras, no quartel de brigada de artilharia, confraternizaram com os
soldados e de que maneira, no excesso da alegria, vários desses homens não deixaram
de chorar. Houve na cidade alguns tiros emboscados, mas no conjunto, não se
produziram afrontamentos armados e não houve vítimas: foi em Petrogrado que
aguentava por Moscovo.
Num certo número de cidades da província, o movimento só se desencadeou no
primeiro de Março, quando a revolução estava já realizada em Moscovo. Em Tver, os
operários, abandonando o trabalho, foram manifestar diante dos quartéis e, misturados
aos soldados, desfilaram nas ruas da cidade. Nesta época, cantava-se ainda a
Marselhesa e não a Internacional. Em Nijni-Novgorod, milhares de pessoas juntaram-se
diante do edifício da Câmara municipal que, como a maior parte das cidades, fazia de
“palácio de Tauride”. Após um arengue do presidente da Câmara, os operários, com as
suas bandeiras vermelhas, foram libertar os detidos políticos. Sobre os vinte e um
contingentes que formavam a guarnição, dezoito vieram, antes de anoitecer, aderir
espontaneamente à revolução. Em Samara e em Saratov, houve comícios, e os sovietes
de deputados operários foram constituidos. Em Kharkov, o chefe da polícia, tendo tido
tempo de se informar na estação sobre os acontecimentos, subiu no carro diante da

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multidão excitada, e, tirando o boné, gritou: “Viva a revolução ! Hurra !” Ekaterinoslav
recebeu de Kharkov a notícia. À cabeça da manifestação caminhava o ajudante do chefe
da polícia, apoiando com a mão o forre do seu grande sabre, numa atitude regulamentar
com a parada, nos dias de festa imperial. Quando foi definitivamente demonstrada que a
monarquia estava perdida, houve quem retirasse com precaução, nos edifícios públicos,
os retratos do czar que foram enviados para os sótãos. As anedotas desse genero,
verdadeiras ou inventadas, circulavam em quantidade nos círculos liberais que ainda não
tinham perdido o gosto pelos gracejos a propósito da revolução. Os operários como os
soldados das guarnições viviam os acontecimentos de outra maneira.
Sobre o que se passou num certo número de cidades (Pskov, Orel, Rybinsk, Penza,
Kazan, Tsaritsyne, etc.), a crónica, ainda que sumária, traduziu exactamente o que se
passou.
No campo, as notícias da revolução vinham das cidades vizinhas, parcialmente das
autoridades, mas principalmente dos mercados, dos trabalhadores, dos soldados de
licença. A aldeia acolhia o acontecimento com uma reacção mais lenta e menos
entusiasta que a da cidade, mas não menos profunda: a aldeia vivia a relação da
revolução com a guerra e a questão da terra.
Não é exagerado dizer que só Petrogrado cumpriu a Revolução de Fevereiro. O
resto do país limitou-se a se juntar a ele. Só houve batalhas em Petrogrado. Em todo o
país não existiam grupos populares, partidos, instituições ou efectivos militares que
fossem erguidos para a defesa do antigo regime. O que mostra a que ponto eram pouco
fundadas as informações tardias de reaccionários, dizendo que se a cavalaria da Guarda
se encontrava em Petrogrado, ou se Ivanov tivesse levado da frente uma brigada segura,
a sorte da monarquia teria sido diferente. Nem na retaguarda, nem na frente, não se
encontrou brigada ou regimento pronto a bater-se por Nicolau II.
A queda do poder teve lugar sob a iniciativa e pelas forças de uma cidade constituida
por cerca de soixante-quinze partie da população do país. Pode-se dizer que os maiores
actos democráticos foram realizados de uma maneira não democrática. O país inteiro
encontrou-se colocados diante do facto consumido. Se havia em perspectiva uma
Assembleia constituinte, esta circunstância não mudava nada a nada, porque os prazos e
as modalidades da convocação de uma representação nacional deveria ser determinada
por órgãos que emanassem da vitoriosa insurreição de Petrogrado. Isso projectou uma
luz crua sobre a questão da função das formas democráticas em geral, e, em particular,
em período revolucionário. Ao feitichismo jurídico da “vontade popular” as revoluções
infligiram constantemente rudes golpes, tanto mais implacáveis, que elas foram
profundas, audazes, mais democráticas.
Diz-se muitas vezes, particularmente em relação à grande Revolução francesa, que
a extrema centralização da monarquia permitiu mais tarde à capital revolucionária pensar
e agir por todo o país. É uma explicação superficial. Se a revolução manifesta tendências
centralizadoras, ela age, não imitando a monarquia derrubada, mas em função de
necessidades inevitáveis de uma nova sociedade que não é mais compatível com o
particularismo. Se, numa revolução, uma capital desempenha um papel de tal forma

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dominante e, em certos momentos, concentra de certa maneira as vontades da nação, é
precisamente porque ele exprime de modo mais vivo as tendências essenciais da nova
sociedade e as empurra até ao seu fim. A província considera o comportamento da capital
como resultado das suas próprias intenções, mas já transformada em acção. A iniciativa
dos centros não é um prejuízo à democracia, mas a sua realização dinâmica. Todavia,
nas grandes revoluções, o ritmo desta dinâmica nunca correspondeu ao da democracia
formal e representativa. A província junta-se aos actos do centro, mas atrasada. Em
virtude da rapidez característica com a qual se desenvolvem os acontecimentos
revolucionários, chega-se a crises graves do parlamentarismo revolucionário, insolúveis
por métodos da democracia. Em todas as verdadeiras revoluções, a representação
nacional partiu o pescoço, chocando com a dinâmica revolucionária dirigente cujo foco
principal era a capital. Foi assim no século XVII na Inglaterra, no século XVIII em França e
no século XX na Rússia. O papel da capital é determinada não por tradições do
centralismo burocrático, mas pela situação da classe revolucionária dirigente, cuja
vanguarda é naturalmente concentrada na metrópole: isso aplica-se tanto à burguesia
como ao proletariado.
Quando a vitória da Fevereiro se estabeleceu solidamente, ocuparam-se do
recenseamento das víctimas. Em Petrogrado contaram-se mil quatrocentos e quarenta e
três mortos ou feridos, desse número oito centos e sessenta e nove militares, entre os
quais sessenta oficiais. Comparativamente ao número de homens caídos em qualquer
batalha da Grande Guerra, essas números foram insignificantes. A imprensa liberal
proclamou que a Revolução de Fevereiro não tinha sido sangrenta. Nos dias de efusão
geral e de amnistias reciprocas entre os partidos patriotas, ninguém empreendeu a
reconstituição da verdade. Albert Thomas, sempre amigo do vencedor, e mesmo de uma
insurreição vitoriosa, escreveu então que a revolução lhe surgiu “completamente
ensolarada, cheia de alegria, exempta de qualquer infusão de sangue”! Sem dúvida ele
esperava que esta revolução ficaria às ordens da Bolsa de Paris. Mas, decididamente,
Albert Thomas não tinha inventado a pólvora. Já a 27 de Junho de 1789, Mirabeau
bradava:
“Que felicidade ver esta grande revolução realizar-se sem ter cometido o homicídio,
sem ter feito chorar!... A história fala-nos bastante de actos de bestas ferozes...
Esperemos ter começado a história humana.”
Quando os três Estados foram constituidos em Assembleia nacional, os
antepassados de Albert Thomas escreviam:
“A revolução acabou, ela não custou uma gota de sangue.”
E deve-se conceder que efectivamente, neste período, nenhuma efusão de sangue
não teve lugar. O mesmo não se pode dizer dos dias de Fevereiro. Todavia, a legenda de
uma revolução não sangrenta foi obstinadamente apoiada, respondendo à necessidade
que tinham os burgueses liberais em representar os factos como se o poder lhes tivesse
caído nas mãos.

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Se a Revolução de Fevereiro não foi exempta de efusão de sangue, só poderemos
ficar estupefactos pelo pequeno número de víctimas, tanto no momento da insurreição
como no período que se seguiu. Havia um acertar de contas após a opressão, os
perseguimentos e humilhações, segundo ignóbeis tratamentos que as massas populares
russas tinham sofrido desde séculos ! Daqui, dali, é verdade, os marujos e soldados
acertavam contas com os seus piores opressores, com os oficiais. Todavia, o número
desses actos de represália foram insignificantes, ao princípio, em relação à quantidade de
sangrentos ultrajes outrora ainda recentemente infligidos. As massas só abandonaram a
sua bonomia bastante mais tarde, quando constataram que as classes dirigentes
procuravam retomar todo o terreno e explorar a seu proveito a revolução que elas não
tinham feito, assim que elas se apropriavam dos bens que elas não tinham produzido.
Togan-Baranovky tem razão em afirmar que a Revolução de Fevereiro foi obra dos
operários e camponeses, esses últimos representados pelos soldados. Subsiste todavia
uma grande questão: quem dirigiu a insurreição? Quem organizou os operários? Quem
levou à rua os soldados? Após a vitória, essas questões tornaram-se objecto da luta dos
partidos. A solução mais simples consistia nesta formula universal: ninguém conduziu a
revolução, ela fez-se sozinha. A teoria das “forças elementares” era melhor que qualquer
outra com a conveniência não somente de todos os senhores que, na véspera ainda,
tinham tranquilamente administrado, julgado, acusado, pleiteado, comercializado ou
encomendado, e que se apressavam, agora, a juntar-se à revolução; mas ela convinha a
numerosos politicos profissionais e a ex-revolucionários que, tendo dormido durante a
revolução; desejavam acreditar que, nesse caso, eles portaram-se como todos os outros.
Na sua curiosa História dos Sarilhos na Rússia, o general Denikine, antigo
generalíssimo do exército branco, disse sobre o dia 27 de Fevereiro:
“Nesse dia decisivo, não houve dirigentes; houve somente elementos enfurecidos.
No seu curso impetuoso, não se podia discernir nem plano, nem palavras de ordem.”
O douto historiador Miliokov não aprofundou mais a questão que o general cuja
paixão era de rabiscar sobre o papel. Até à insurreição, o líder liberal tinha apresentado
toda a ideia da revolução como sugerida pelo estado-maior alemão. Mas a situação
complicou-se após a insurreição que levou os liberais ao poder. Desde então, a tarefa de
Miliokov não foi mais a de desonrar a revolução ao ligá-la a uma iniciativa do
Hohenzollern, mas pelo contrário, de retirar aos revolucionários a honra e a iniciativa.
O liberalismo adoptou completamente a teoria do carácter elementar e impessoal da
insurreição. É com simpatia que Miliokov se reclamou meio liberal, meio socialista,
Stankevitch, mestre de conferências, que foi por momentos comissário do governo no
Grande Quartel General.
“A massa meteu-se em movimento, obedecendo a um apelo íntimo, inconsciente... -
escreveu Stankevitch acerca das jornadas de Fevereiro. - Sobre quais palavras de ordem
começaram os soldados? O que os conduziu quando se ampararam de Petrogrado,
quando incendiaram o Palácio da Justiça? Nem uma ideia política, nem uma palavra de
ordem revolucionária, nem uma conspiração e nem um motim, mas um movimento das

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forças elementares que reduziu bruscamente em cinzas o antigo regime sem deixar
nada.”
A força elementar toma aqui um carácter quase místico.
O mesmo Stankevitch traz um testemunho de grande valor:
“No fim de Janeiro, tive ocasião de encontrar Kerensky num círculo muito íntimo.
Sobre a possibilidade de um levantamento popular, todos pronunciaram-se de forma
nitidamente negativa, de medo de ver o movimento de massas, uma vez desencadeado,
cair nas correntes de extrema esquerda e criar assim grandes dificuldades na conduta da
guerra.”
Os pontos de vista do círculo de Kerensky não se diferenciavam de forma nenhuma
no essencial da dos cadetes. Não era daí que a iniciativa poderia surgir.
“A revolução caiu como um relâmpago num céu azul”, disse Zenzinov, representante
do partido socialista revolucionário. “Sejamos francos: ela chegou como uma grande e
alegre surpresa também para nós, revolucionários, que para ela tínhamos trabalhado
durante muitos anos e a tínhamos constantemente esperado.”
O caso não se apresentava muito melhor com os mencheviques. Um jornalista
pertencendo à imigração relata o encontro que ele teve, num trólei, no dia 24 de
Fevereiro, de Skobelev, futuro ministro do governo provisório:
“Esse social democrata, um dos líderes do movimento, declarou-me que as
desordens transformavam-se em depredações que era indispensável reprimir. Isso não
impedia Skobelev, um mês mais tarde, de pretender que ele e os amigos tinham feito a
revolução.“
As cores são aqui visivelmente carregadas. Mas, no essencial, a posição dos sociais
democratas mencheviques tornou-se de uma maneira que corresponde bastante bem à
realidade.
Enfim, Mstislavsky, que mais tarde devia ser um dos líderes da ala esquerda dos
socialistas revolucionários, para passar a seguir para os bolcheviques, disse da
Revolução de Fevereiro:
“A revolução nos surpreendeu, nós, homens de partido, em pleno sono, como
virgens loucas do Evangelho.”
Pouco importa aqui que esses homens se tenham parecido de certa forma com
virgens; mas eles dormiam todos efectivamente.
Mas o que aconteceu aos bolcheviques? Em parte já se sabe. Os principais líderes
das organizações bolcheviques clandestinas em Petrogrado eram então três: os antigos
operários Chliapnikov e Zaloustsky, e o antigo estudante Molotov. Chliapnikov, que tinha
vivido bastante tempo no estrangeiro e tinha estado ligado a Lenine, era, do ponto de
vista político, o mais maduro e o mais activo dos três que constituíam o Bureau do Comité
Central. Todavia, as lembranças do próprio Chliapnikov estabeleciam bem que todo o trio
não estava à altura dos acontecimentos. Até à última hora, os líderes imaginavam que se

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tratava somente de uma demonstração revolucionária, uma entre tantas outras, mas de
forma alguma uma insurreição armada. Kaiorov, que já citámos, um dos líderes do distrito
de Vyborg, afirmou categóricamente isto:
“Não se pressentia nenhuma directiva do centro do partido... O Comité de
Petrogrado estava prisioneiro, e o representante do Comité central, o camarada
Chliapnikov encontrava-se impotente para dar as directivas para o dia seguinte.”
A fraqueza das organizações clandestinas foi o resultado imediato das manobras
policiais de destruição que deram ao governo vantagens excepcionais diante a opinião
patriótica no início da guerra. Toda a organização, e, desse número, uma organização
revolucionária, tende ficar atrás da sua base social. As organizações clandestinas dos
bolcheviques, no início de 1917, ainda não tinham recuperado da destruição e da sua
desagregação, enquanto que, entre as massas, a atmosfera de patriotismo dava lugar,
repentinamente, à indignação revolucionária.
Para apresentar mais claramente a situação no domínio da direcção revolucionária,
é necessário lembrar que os revolucionários mais autorizados, os líderes dos partidos de
esquerda, encontravam-se na emigração, e, parcialmente, nas prisões ou deportados.
Mais um partido era temido pelo antigo regime, mais ele se encontrava rigorosamente
decapitado no início da revolução. Os populistas tinha na Duma uma fracção cujo líder,
Kerensky, era um radical independente. O líder oficial dos socialistas revolucionários,
Tchernov, encontrava-se na emigração. Os mencheviks dispunham na Duma uma fracção
à cabeça da qual figuravam Tchkheidzé e Skobelev. Martov estava imigrado. Dan e
Tseretelli deportados. À volta das fracções de esquerda – populistas e mencheviks –
agrupavam-se um grande contingente de intelectuais socialistas tendo um passado
revolucionário. Isso constitui uma aparência de estado-maior político, mas que só foi
capaz de se mostrar após a vitória. Os bolcheviques não tinham nenhuma fracção na
Duma: os cinco deputados operários que o governo czarista considerava como
constituindo o centro organizador da revolução tinham sido presos desde dos primeiros
meses da guerra. Lenine estava na emigração com Zinoviev, Kamenev tinha sido
deportado, assim como os dirigentes tarefeiros, pouco conhecidos então, Sverdlov,
Rykov, Staline. A social democrata polaco Dzerjinski, que não pertencia ainda aos
bolcheviques, encontrava-se preso. Os líderes que, por acaso, estavam presentes,
precisamente porque estavam habituados a agir sob a direcção autorizada e sem apelo,
não eram reconhecidos pelos outros como sendo capazes de jogar nos acontecimentos
revolucionários um papel dirigente.
Mas, a partir do momento que o partido bolchevique não podia asegurar aos
insurrectos uma direcção autorizada, que dizer das outras organizações políticas? Assim
se fortalecia a convicção geral de um movimento de forças elementares na Revolução de
Fevereiro. Contudo, esta opinião é profundamente errada, ou, no melhor dos casos, sem
conteúdo.
A batalha, na capital, durou não uma ou duas horas, mas cinco dias. Os líderes
esforçaram-se por travá-la. As massas responderam com uma dinâmica tanto mais forte e
levaram por diante. Elas tinham contra elas o velho Estado cuja fachada tradicional

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dissimulava ainda, poder-se-ia presumir, uma potente força, a da burguesia liberal, com a
sua Duma do Império, a União dos zemstvos e das Cidades, os comités das indústrias da
guerra, as Academias, as Universidades e uma imprensa ramificada; enfim, dois fortes
partidos socialistas que opunham uma resistência patriótica à força vinda de baixo. No
partido bolchevique, a insurreição encontrava a organização que lhe estava mais próxima,
mas decapitada, os quadros deslocados, fracas células clandestinas. Todavia, a
revolução, a qual ninguém esperava nesses dias, se tinha estendido e, enquanto que, nas
esferas superiores, acreditava-se na extinção do movimento, esta assegurava-se da
vitória através de um violento empurrão e potentes convulsões.
De onde provinha então esta potência sem par de perseverança e de
impetuosidade? Não basta alegar a exasperação. A exasperação explica pouco. Tão
diluidos que tenham sido os elementos operários de Petrogrado durante a guerra, em
virtude da mistura de elementos brutos, eles tinham uma grande experiência
revolucionária. Na perseverança e impetuosidade, apesar da falta de direcção e das
resistência vindas do alto, havia uma apreciação das forças, nem sempre expressada,
mas baseada na experiência da vida e num cálculo estratégico espontâneo.
Na véspera da guerra, os elementos operários revolucionários alinhavam com os
bolcheviques e arrastavam as massas consigo. Desde do início da guerra, a situação
modificou-se bruscamente: as camadas conservadoras intermediárias levantaram a
cabeça e arrastaram consigo uma parte considerável da classe operária; os elementos
revolucionários ficaram isolados e silenciosos. No decurso da guerra, a situação começou
a modificar-se, lentamente ao princípio, depois, após as derrotas, cada vez mais depressa
e mais radicalmente. Um descontentamento activo amparou-se da classe operária
completa. Na realidade, esta irritação foi ainda, em largos círculos, patrióticos, mas não
havia nada em comum com o patriotismo calculado e cobarde das classes dominantes
que adiavam todos os problemas interiores até à vitória. Porque, precisamente, a guerra,
as suas vítimas, os seus medos e as suas infâmias empurravam as antigas como as
novas camadas operárias contra o regime czarista, levava-os com uma violência temível e
à seguinte conclusão: isso não pode durar? Era uma opinião geral que contribuiu para a
coesão das massas e deu-lhes uma enorme força para a ofensiva.
O exército tinha aumentado, com milhões de operários e camponeses. Cada um
contava na tropa alguém de família: um filho, um marido, um irmão, um parente próximo.
O exército não era mais como antes da guerra, um meio separado do povo. Agora,
encontrávamos os soldados mais frequentemente; acompanhávamos quando eles
partiam para a frente, quando vinham de licença, ouvíamos as suas histórias,
conversávamos com eles, nas ruas, nos tróleis, falava-se das trincheiras, íamos vê-los ao
hospital. Os bairros operários, os quartéis, a frente e também, numa considerável
proporção, as aldeias tornaram-se de certa maneira, vasos de comunicação. Os operários
sabiam o que o soldado sente e pensa. Entre eles, haviam intermináveis conversas sobre
a guerra, sobre as pessoas que se enriquecem, sobre os generais, sobre o governo,
sobre o czar e a czarina. O soldado dizia da guerra: “Maldição!” O operário respondia,
falando do governo: “Que eles sejam amaldiçoados!” O soldado dizia: “Porquê calai-vos
aqui, no centro?” O operário respondia: “Quando se tem as mãos vazias, não há nada a

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fazer. Em 1905, nós já afrontámos infelizmente a tropa.” O soldado, após reflexão: “Ah! Se
todos se rebelassem conjuntamente!” O operário: “Sim, todos juntos.” Conversas deste
tipo, antes da guerra, só tinham lugar entre indivíduos isolados e de maneira clandestina.
Agora, era assim que se falava por todo o lado, a propósito de tudo, e quase abertamente,
pelo menos nos bairros operários.
A Okhrana czarista conseguia às vezes fazer boas sondagens. Quinze dias antes da
revolução, um bufo de Petersburgo, que assinava sob o pseudónimo de Krestianinov, fez
um relatório sobre uma conversa longa num trólei que atravessava um bairro operário.
Um soldado teria contado que oito homens do seu regimento tinham sido enviados para o
degredo por terem recusado, no último Outono, disparar sobre operários da fábrica Nobel
e por terem disparado sobre a polícia. Esta conversa teve lugar abertamente, visto que os
polícias e os bufos, nos bairros operários, preferiam passar despercebidos. “Nos faremos
contas com eles”, concluiu o soldado. O relatório continua assim: “Um operário disse
então: “Para isso, devemos organizar-nos, para que sejamos todos como um só homem.”
O soldado respondeu: “Para isso, não vale a pena preocupar-nos, há muito tempo que
nos organizamos... Eles beberam bastante sangue, os homens sofrem na frente, mas,
aqui, as pessoas empanturram-se!...” Não houve qualquer incidente particular. 10 de
Fevereiro de 1917. Krestianinov.” Incomparavelmente épico, o relatório do bufo ! “Sem
incidentes particulares!” Os incidentes deviam produzir-se, e logo: a conversa no trólei
assinala a iminência inevitável.
O carácter elementar da insurreição é ilustrado pelo exemplo curioso que dá
Mstislavsky: quando “a União dos Oficiais do 27 de Fevereiro”, constituida logo após a
insurreição, tentou estabelecer por inquérito quem, primeiro, tinha trazido para a rua o
regimento de Volhynie, houve sete deposições respeitante aos sete iniciadores dessa
acção decisiva. É muito provável, acrescentemos, que uma parte da iniciativa pertenceu a
alguns soldados; o que não impediu que o principal dirigente tenha podido cair nos
combates de rua, anonimamente. Mas isso não minimiza o valor histórico da sua iniciativa
anónima. O que é mais importante ainda, é que o outro lado do assunto, pelo qual nós
saímos do interior do quartel. O levantamento dos batalhões da Guarda que se declarou,
para a grande surpresa dos círculos liberais e dos socialistas legalistas, não foi de forma
nenhuma inesperada pelos operários. Se estes últimos não se revoltaram, o regimente
“volhyniano” nunca teria saído. O encontro entre operários e cossacos que um certo
advogado pôde observar pela janela, par dar parte a seguir, por telefone, a um deputado,
pareceu a um e a outro como um episódio de um processo impessoal: os gafanhotos das
fábricas tinham afrontado os gafanhotos dos quartéis. Mas pareceu ser outra coisa para o
cossaco que ousou piscar o olho do lado do operário, de outro jeito ainda ao operário que
decidiu de uma vez que o cossaco “tinha tido um bom golpe de vista”. A interpenetração
molecular da tropa e do povo continuou, sem interrupção. Os operários tomavam
constantemente o pulso da tropa e sentiam logo se aproximar o ponto crítico. O que lhes
deu também ao desenvolvimento das massas, que acreditavam na vitória, essa força
irresistível.
Aqui, nós devemos transmitir a impressionante nota de um dignitário que tentou
estabelecer um balanço das suas observações em Fevereiro:

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“É hábito dizer que o movimento começou pelo desencadeamento das forças
elementares, que os soldados saíram para a rua por sua própria iniciativa. Não estou de
acordo, de forma nenhuma sobre isso. E o que significa aliás essa palavra: “elementar”?...
A “geração espontânea” é, em sociologia, ainda menos apropriada que nas ciências
naturais. Se algum dirigente revolucionário de envergadura não atribuiu a sua etiqueta, o
movimento, sem ser impessoal, seria somente anónimo.”
Esta maneira de colocar a questão, incomparavelmente mais rigorosa que as
alegações de um Miliokov, respeitante os agentes da Alemanha e as forças elementares
da Rússia, é devido a um antigo procurador do czar que foi senador quando rebentou a
revolução. Talvez, seja a sua experiência judiciária que permitiu a Zavadsky de discernir
que um levantamento revolucionário não podia provenir das directivas de agentes do
estrangeiro, nem de um processo natural onde as personalidades não interviriam.
O mesmo autor cita dois episódios que lhe permitiram, de certa forma pelo buraco da
fechadura, um olhar sobre o laboratório do processo revolucionário. Na sexta-feira 24 de
Fevereiro, enquanto que, nos escalões superiores, ninguém previa ainda um
levantamento a curto prazo, um trólei no qual o senador tinha tomado lugar voltou-se
bruscamente com um tal vacarme que os vidros tiritaram e que um se quebrou, entre a
Perspectiva Liteiny e uma rua vizinha, imobilizando-se. O condutor convidou todos os
ocupantes a descerem. “ A viatura não irá mais longe”. Os viajantes protestaram,
injuriaram mas desceram. “Vejo ainda a cara do condutor, taciturno, sobriamente resoluto:
uma cara de lobo.” A circulação de tróleis parou por todo o lado. Esse condutor resoluto,
que já dava a um dignitário liberal a visão de uma “cara de lobo”, devia ter uma grande
consciência do dever para ousar ser o único a parar a sua viatura, cheia de funcionários,
numa rua de Petersburgo imperial, em tempo de guerra. São justamente tais condutores
que param o vagão da monarquia, pouco mais ou menos nestes termos: “ A viatura não
sairá daqui”, e desembarcou a burocracia sem estabelecer, estando apressada, estando
apressados, qualquer diferença entre generais da Guarda e os senadores liberais. O
condutor da Perspectiva Liteiny era um instrumento consciente da história. Ele deveria ter
sido educado previamente.
Durante o incendio do Palácio da Justiça, um jurista liberal, da mesma maneira que
o dito senador, lamentou-se na rua do facto de assistir à destruição do laboratório de
especialistas judiciários e dos arquives notariais. Um homem de idade madura, de
aspecto aborrecido, aparentemente, respondeu, resmungando: “Nós saberemos partilhar
as casas e as terras sem arquivos”. Provavelmente, o episódio foi arranjado
literáriamente. Mas os operários de idade madura desta especie e em posição de
responder indispensável não eram poucos na multidão. Eles próprios nada tinham a ver
com o incendio do Palácio de Justiça: ao que serviria? De qualquer forma, tais “excessos”
não poderiam de maneira alguma assustá-los. Eles armariam as massas, inspirando-lhe
não somente as ideias indispensáveis contra a polícia do czar, mas também contra os
juristas liberais, que temiam sobretudo que o fogo da revolução queimasse os actos
notariados da propriedade. Esses anónimos, rudes políticos da fábrica e da rua, não
tinham caído do céu; eles deviam ter sido educados.

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Registando os acontecimentos dos últimos dias de Fevereiro, a Okhrana dizia
também que ele era “elementar”, isto é, não dirigido metódicamente de cima; mas logo
acrescentou:
“O proletariado inteiro foi trabalhado pela propaganda.”
Esta afirmação era acertada: os profissionais da luta contra a revolução, antes de
ocupar as células dos revolucionários libertados, tinham discernido o processo do
momento melhor que não souberam os líderes do liberalismo.
A mística das “forças elementares” não esclarece nada. Para avaliar justamente a
situação e determinar o momento do levantamento contra o inimigo, era indispensável
que a massa, nos seus elementos dirigentes, colocasse as suas próprias reivindicações
face aos acontecimentos históricos, e possuísse os seus próprios critérios, para agir.
Noutros termos, não era necessário que a massa em geral, mas a massa dos operários
de Petrogrado, e de toda a Rússia, tendo passa pela revolução de 1905, pela insurreição
moscovita de Dezembro de 1905 que tinha quebrado o regimento da Guarda, dito
Semenovskyl; era preciso que, nessa massa, fossem disseminados os operários que
tinham reflectido sobre a experiência de 1905, criticado as ilusões constitucionais dos
liberais e dos mencheviks, tinham assimilado as perspectivas da revolução, tinham
examinado montes de vezes o problema da tropa, tinham observado atentamente o que
se passava nesse meio, e eram capazes de chegar às suas conclusões revolucionárias, e
de as comunicar aos outros. Enfim, era preciso encontrar, na guarnição, soldados de
espírito avançado, outrora tocados ou não, pela propaganda revolucionária.
Em cada fábrica, em cada corporação, em cada companhia militar, em cada taberna,
nos hospitais da tropa, a cada aquartelamento, e mesmo nos campos despovoados,
progredia um trabalho molecular da ideia revolucionária. Em todo o lado existia
comentadores dos acontecimentos, principalmente operários, junto de quem informavam-
mo-nos e que se esperava a palavra necessária. Os chefes de fila foram muitas vezes
abandonados à sua sorte, absorviam pedaços de generalizações revolucionárias que lhes
chegavam por diversas vias, descobrindo por eles próprios, nos jornais liberais, o que
precisavam ao ler entre as linhas. O seu instinto de classe era disfarçado pelo critério e,
se eles não pressionavam por todas as suas ideias até ao fim, o seu pensamento não
parava de, trabalhar obstinadamente, penetravam as massas e constituíam o mecanismo
íntimo, incompreensível, contudo decisivo, do movimento revolucionário, como processo
consciente.
Os políticos presuntuosos do liberalismo e do socialismo domesticado, tudo o que se
produz na massa parece ser simplesmente um processo instintivo, como se isso se
passasse num formigueiro ou numa colmeia. Na realidade, o pensamento que
atormentava a massa operária era mais arrojado, mais perspicaz, mais consciente que as
pequenas ideias com as quais se divertia a classe cultivada. Mais ainda: o pensamento
operário era mais científico: não somente porque ela tinha sido fecundada em larga
medida pelos métodos do marxismo, mas antes de mais porque ela tinha-se alimentado
da experiência viva das massas que deviam entrar logo na arena revolucionária.

116
O carácter científico do pensamento manifestou-se na sua correspondência com o
processo objectivo e na sua aptitude em influenciar o processo e regulá-lo. Que faculdade
era essa, mesmo no mais pequeno aspecto, pertencendo à mentalidade das esferas
governantes, onde se inspiravam do Apocalipse, onde se acreditava nos sonhos de
Raspotine? Ou então, por acaso, teriam elas sido científicamente fundadas, as ideias do
liberalismo que esperava que a Rússia atrasada, participando na luta dos gigantes
capitalistas, poderia ao mesmo tempo vencer e obter um regime parlamentar? Ou, talvez,
seriam concepções científicas dos círculos intelectuais que se confundiam servilmente
com o liberalismo decrepito desde da sua infância, abrigando assim a sua independência
ilusória sob uma verborreia há muito tempo ultrapassada? Na verdade, encontramo-los lá
no reino de um entorpecimento espiritual todo poderoso, no país dos fantasmas, das
superstições, da ficções, se quisermos, o reino das “forças elementares”.
Em consequência, não temos o direito absoluto de revisar completamente a filosofia
liberal da Revolução de Fevereiro? Sim ! Nós temos o direito de dizer: enquanto que a
sociedade oficial – esta superstrutura com numerosos andares que constituem as classes
dirigentes, com as suas camadas distintas, seus grupos, seus partidos e suas cliques –
vivendo dia a dia a sua inércia e o seu automatismo, alimentando-se dos restos de ideias
usadas, surda às exigências fatais da evolução, seduzida pelos fantasmas, não previam
nada, não se cumpria nas massas operárias um processo espontâneo e profundo, não
somente de ódio crescente contra os dirigentes, mas de julgamento crítico sobre a sua
impotência, de acumulação de experiência e de consciência criadora que se confirmou no
levantamento revolucionário e na sua vitória.
A questão posta acima: quem conduziu a Revolução de Fevereiro? Podemos, por
consequência responder com clareza desejada: operários conscientes e endurecidos que,
sobretudo, tinham sido formados na escola do partido de Lenine. Mas devemos
acrescentar que esta direcção, se ela foi suficiente para segurar a vitória da insurreição,
não esteve em posição de colocar, desde do início, a liderança da revolução entre as
mãos da vanguarda proletária.

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O paradoxo da Revolução de Fevereiro
A insurreição tinha vencido. Mas a quem ela passou o poder arrancado à
monarquia? Chegámos ao problema capital da Revolução de Fevereiro: como e porquê o
poder se encontrou nas mãos da burguesia liberal?
Quando os sarilhos rebentaram, no 23 de Fevereiro, não prestaram importância nos
círculos da Duma e da “sociedade” burguesa. Os deputados liberais e os jornalistas
patriotas encontraram-se como habitualmente nos salões e discutiam juntos a questão de
Trieste e de Fiume, e afirmavam de novo que a Rússia tinha necessidade absoluta dos
Dardanelos. Enquanto que a oukase de dissolução da Duma tinha já sido assinada, uma
comissão parlamentar discutia ainda, apressadamente, a transmissão dos serviços de
abastecimento à municipalidade. Menos de douze horas antes do levantamento dos
batalhões da Guarda, a Associação para as relações entre eslavos ouvia calmamente a
leitura do seu relatório anual.
“Foi ao regressar a pé dessa reunião – escreveu um dos deputados – foi somente
então que o silêncio angustioso e o aspecto desértico das ruas que, que habitualmente
eram mais animadas.”
Um vazio angustioso fez-se à volta das velhas classes dirigentes, e os seus
herdeiros de amanhã estavam apreensivos.
Por volta do dia 26, tornou-se evidente, tanto para o governo como para os liberais,
que o movimento era sério. Nesse dia, houve entre os ministros e certos membros da
Duma conciliábulos tendendo a um acordo, sobre os quais os liberais nunca mais tocaram
no assunto. Protopopov, nas suas deposições, declarou que os líderes do bloco da Duma
exigiam ainda, como habitualmente, a nomeação de novos ministros gozando da
confiança pública:
“Esta medida, talvez, acalmará o povo.”
Mas o dia 26 marcou, como se sabe, uma pausa no desenvolvimento da revolução e
o governo, por algumas horas, sentiu-se mais confortável. Quando Rodzianko se
apresentou junto de Golytsine para o persuadir a demitir-se, o presidente do Conselho
indicou sobre a mesa, a oukase da dissolução da Duma, já assinada por Nicolau, mas
ainda sem data. Foi Golytsine quem datou o documento. Como o governo poderia tomar
esta resolução no momento em que se desenvolvia a revolução? Sobre isso, a burocracia
dirigente tinha já há muito tempo estabelecido a sua posição.
“Que nós estejamos com ou sem o bloco, pouco importa ao movimento operário.
Pode-se vencer esse movimento por outros meios e, até ao momento, o ministério do
Interior safou-se bem.”
Foi assim que falava Goremykine desde Agosto 1915. Por outro lado, a burocracia
considerava que a Duma, se ela foi dissolvida, não se terminaria por nenhuma conclusão
audaciosa. Foi assim que em Agosto de 1915 que o príncipe Chtcherbatov, ministro do
Interior, no momento da discussão da dissolução da Duma, descontente, afirmou:

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“É muito improvável que os deputados se decidam em se insubordinar. São, em
maioria, cobardes, que não ariscam a pele.”
O príncipe não se exprimia com muita elegância, mas acertava em cheio, no fim de
contas. Na sua luta contra a oposição liberal, a burocracia sentia-se assim em terreno
firme.
Na manhã do dia 27, os deputados alarmados pela amplitude crescente dos
acontecimentos, reuniram-se em sessão ordinária. Foi somente então que a maioria
soube que a dissolução foi proclamada. A medida pareceu tanto mais inesperada que,
ainda na véspera, houve conversações de conciliação.
“E no entanto – escreveu orgulhosamente Rodzianko – a Duma inclinou-se diante da
lei, esperado ainda encontrar uma saída para esta situação complicada; ela não votou
nenhuma resolução no sentido de recusar em dissolver-se ou do recurso à violência para
se reunir.”
Os deputados juntaram-se em conferência privada, e confessaram a sua impotência.
Chidlovsky, liberal moderado, lembrou mais tarde, com algum sarcasmo, que um certo
Nekrassov, cadete da extrema esquerda, futuro associado de Kerensky, propôs
“estabelecer uma ditadura militar que devolveria o poder a um general popular”.
Entretanto, certos dirigentes do bloco progressista, que não assistiram a esta
conferência particular, tentaram de maneira prática salvar a situação. Rogaram o grande-
duque Miguel para vir a Petrogrado e, aí, propuseram exercer a ditadura, “forçar” o
pessoal do governo a demitir-se e exigir do czar, pelo telefone, que ele “cedesse” um
ministério responsável. No mesmo momento que se rebelavam os primeiros regimentos
da Guarda, os líderes da burguesia faziam uma última tentativa para esmagar a
insurreição com a ajuda de uma ditadura dinástica e, ao mesmo tempo, concordarem com
a monarquia às despensas da revolução.
“A irresolução que manifestou o grande-duque – declarou Rodzianko, com um tom
desolado – teve por consequência que se deixou escapar o momento favorável.”
A facilidade com a que os intelectuais radicais acreditavam no que eles desejavam,
vê-se no testemunho de Sokhanov, socialista sem afiliação partidária, que começou neste
período, a desempenhar, no palácio Tauride, um certo papel político.
“Informaram-me – escreveu nas suas amplas Memórias – o essencial que se
produziu novamente na política nas primeiras horas desta inesquecível jornada: a oukase
despedindo a Duma foi promulgada, e a Duma recusou disolver-se, elegendo um comité
provisório.”
O que procede foi escrito por um homem que mal saía do palácio de Tauride e que
tinha na mão os deputados notórios. Na sua História da Revolução, Miliokov, segundo
Rodzianko, declarou categóricamente:

119
“Após uma serie de discursos inflamados, decidiu-se que os deputados não
deixariam Petrogrado, mas não foi dito que, contrariamente à legenda que pretende, que
os membros da Duma recusariam separar-se como representantes de uma instituição.”
Recusar separar-se, foi tomar, de facto, uma iniciativa, ainda que tardia. Não deixar a
capital, era lavar as mãos e esperar para ver a volta que as coisas tomavam. A
credulidade de Sokhanov desculpa-se portanto por certas circunstâncias atenuantes. O
rumor segundo o qual a Duma teria tomado a decisão revolucionária de não obedecer à
okase imperial tinha sido metida a circular, à pressa, pelos jornalistas parlamentares, no
seu boletim de informação, a única publicação de então, no seguimento da greve geral.
Ora, como a insurreição tinha vencido naquele dia, os deputados não se apressaram em
refutar o erro cometido, encorajando assim na sua ilusão seus de esquerda: eles só
restabeleceram a verdade após terem emigrado. O episódio é, parece, de importância
secundária, mas é muito significativa. O papel revolucionário da Duma no dia 27 de
Fevereiro na sua totalidade um mito nascido da credulidade política dos intelectuais
radicais, satisfeitos e assustados pela revolução, incapazes de acreditar que as massas
pudessem levar a questão a bom termo, e apressados em encontrar rapidamente apoio
junto da burguesia censitária.
Entre as Memórias dos deputados que pertenceram então à maioria da Duma, foi
felizmente conservado um relatório que nos diz como esta Duma acolheu a revolução.
Segundo o príncipe Mansyriev, cadete de direita, não se encontrou, entre os deputados
que se juntaram em grande número na manhã do dia 27, nenhum dos membros da
direcção, nenhum dos líderes dos partidos, nenhum dos chefes de fila do bloco
progressista: os ausentes já estavam informados sobre a dissolução da Duma e sobre a
insurreição, e preferiram não se mostrarem o mais tempo possível; tanto mais que,
precisamente nesse tempo, eles estavam provavelmente em conversações com o grande-
duque Miguel sobre uma ditadura.
“No seio da Duma, a emoção era geral, o transtorno profundo, - disse Mansyriev.
Nem se ouviam conversas animadas; eram somente suspiros e curtas respostas do
género: “Cá estamos!” ou ainda confissões de temores pessoais.”
Tal é a narrativa de um deputado dos mais moderados, que deve suspirar mais
profundamente que os outros.
Antes das duas horas da tarde, quando os líderes se viram forçados em ir à Duma, o
secretário da direcção trouxe um alegre notícia, no entanto infundada:
“As desordens serão brevemente reprimidas, foram tomadas medidas.”
É possível que tenham compreendido “medidas” em vez de conversações sobre
uma ditadura. Mas a Duma, estava esgotada, e esperava uma palavra decisiva do líder do
bloco progressista. Ora, Miliokov declarou:
“Nós não podemos tomar, neste momento, nenhuma decisão, primeiro porque não
sabemos qual é a extensão dos sarilhos, seguidamente porque ignoramos de qual lado
alinha a maioria das tropas da guarnição, dos operários e das organizações sociais. É

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necessário recolher as informações precisas sobre tudo isso, e, seguidamente examinar a
situação; agora, ainda é demasiado cedo.”
Às duas horas da tarde, dia 27 de Fevereiro, era ainda demasiado “cedo” para o
liberalismo! “Recolher informações” significa lavar as mão e esperar a conclusão da luta.
Mas Miliokov não acabou o seu discurso, que aliás, ele tinha começado com a ideia
de a terminar com nada, porque Kerensky que se precipitou na sala, muito comovido
anunciou: uma imensa multidão de povo e de soldados, avançara a caminho do palácio
de Tauride, e esta multidão tem intenção de exigir da Duma que ela tome o poder!... Um
deputado radical sabe exactamente o que reclamam as potentes massas populares. Na
realidade, é Kerensky em pessoa que exige, pela primeira vez, que a Duma tome o poder
– esta Duma que, no fundo, espera sempre que a insurreição seja reprimida. A
comunicação de Kerensky provoca “um sarilho geral” e há “olhares assustados”. Todavia,
ele não teve tempo de terminar quando foi interrompido pelo oficial de diligências, que
ocorreu assustado: destacamentos de soldados, ultrapassando outros, aproximaram-se
do palácio, não sendo impedidos de entrar pelos homens do posto, o chefe da guarda
seria gravemente ferido. Um minuto depois, aconteceu que os soldados entraram no
palácio.
Mais tarde, deveria ser dito, nos discursos e nos artigos, que os soldados vieram
saudar a Duma e prestar sarmento. Mas, pelo momento, todos foram invadidos por um
pânico mortal. A vaga subiu-lhes à garganta. Os líderes sussurravam entre eles. É preciso
ganhar tempo. Rodzianko apressou-se em submeter à votação a proposição que lhe
sugeriram para constituir um comité provisório. Aclamações. Mas todos só tinham uma
ideia: fugir dali rapidamente, não se tratava de forma nenhumas eleições! O presidente,
tão aterrorizado como os outros, propôs que se confiasse ao Conselho dos decanos a
tarefa de formar o comité. Novas aprovações tumultuosas do punhado de deputados que
ficaram na sala: a maioria eclipsou-se. Foi assim que reagiu primeiro a Duma dissolvida
pelo czar diante a insurreição vitoriosa.
Entretanto, a revolução, no mesmo edifício, mas num local menos decorativo, criava
um outro órgão de poder. Os dirigentes revolucionários não tinham nada para inventar. A
experiência dos sovietes de 1905 estavam gravados para sempre na consciência
operária. A cada ascenso do movimento, mesmo no decurso da guerra, a ideia de
constituir sovietes renascia quase automaticamente. E, ainda que a concepção do papel
dos sovietes fosse profundamente diferente entre os bolcheviques e os mencheviques (os
socialistas revolucionários não tinham opinião estabelecida), a própria forma desta
organização estava, parece, fora de discussão. Os mencheviques, membros do comité
das indústrias de guerra, que acabavam de tirar da prisão, encontraram-se no palácio de
Tauride com os representantes activos do movimento sindical e da cooperação
pertencentes à mesma ala direita, assim que como os parlamentares Tchkheidzé e
Skobelev, - e eles constituíram logo ali um comité executivo provisório do Soviete dos
deputados operários, o qual se completou durante o dia, principalmente com os antigos
revolucionários que tinham perdido o contacto com as massas, mas mantinham “um

121
nome”. O comité executivo, cooptando igualmente bolcheviques, convidou os operários a
elegerem imediatamente os seus deputados.
A primeira sessão do Soviete foi marcada para a noite do mesmo dia, no palácio de
Tauride. Ela abriu, às nove horas, e rectificou a composição do executivo e designou,
além disso, representantes oficiais de todos os partidos socialistas. Mas não se tratava aí
do verdadeiro significado desta primeira assembleia dos representantes do proletariado
vencedor na capital. Os delegados dos regimentos insurgentes vieram à sessão exprimir
as sua felicitações. Entre eles, haviam os soldados analfabetos, marcados pela
insurreição e que não tinham papas na lingua. Mas eles encontravam precisamente as
palavras que nenhum outro tribuno possuía.
Foi uma das cenas das mais patéticas de uma revolução que acabava de sentir a
sua força, o despertar das massas sem número, a imensidade das tarefas a realizar, o
orgulho dos seus sucesso, uma alegre palpitação do coração ao pensar num dia seguinte
que devia ser ainda mais radioso que este dia. A revolução ainda não tem ainda ritos, a
rua está ainda cheia de fumo, as massas não sabem ainda cantar o seu novo repertório, a
sessão desenrola-se na desordem, com a potência das águas vernais que transbordam, o
Soviete abafou-se pelo entusiasmo. A revolução é já potente, mas ainda pueril na sua
ingenuidade.
Nesta primeira sessão foi decidido unir a guarnição com operários num só Soviete
de deputados e soldados. Quem, primeiro, propôs esta resolução? É provável que ela
viesse de diversos lados, como um eco da fraternização entre operários e soldados, que,
nesse dia, tinha decidido da sorte da revolução. Não se pode, todavia, dispensar de
assinalar que, segundo Chliapnikov, os sociais patriotas protestavam contra a intromissão
da tropa na política.
A partir do momento onde foi constituido, o Soviete, pelo intermédio do seu comité
executivo, começou a agir como o poder governamental. Ele elegeu uma comissão
provisória para os abastecimentos e o cargo de se ocupar de maneira geral das
necessidades dos insurrectos e da guarnição. Organizou o seu estado-maior
revolucionário provisório (tudo, nesses dias, foi declarado provisório) que falámos
precedentemente. Para retirar aos funcionários do antigo regime a faculdade de dispor
dos recursos financeiros, o Soviete decidiu que os corpos da guarda revolucionária
ocupassem logo o Banco do Império, a Tesouraria, a Moeda e os serviços de fabricação
de títulos do tesouro. As tarefas e as funções aumentaram constantemente sob a pressão
das massas. A revolução encontrou o seu centro incontestado. Os operários, os soldados
e logo os camponeses não se dirigiram senão ao Soviete, que tornou-se, aos seus olhos,
o ponto de concentração de todos as esperanças e de todos os poderes, a incarnação
mesmo da revolução. Mas os representantes das classes possuidoras virão também pedir
ao Soviete, mesmo rangendo os dentes, uma protecção, directivas, soluções a conflitos.
Todavia, desde das primeiras horas da vitória, enquanto que o novo poder
revolucionário se constituía com rapidez fabulosa e uma força irresistível, os socialistas
que se encontravam à cabeça do Soviete lançavam à volta deles olhares inquietos,
procurando um verdadeiro “patrão”. Eles consideravam coisa natural que o poder

122
passasse para a burguesia. Aqui forma-se o nó político principal do novo regime: por um
lado, o fio conduz à sala do Executivo dos operários e dos soldados; por outro, ele leva ao
centro dos partidos burgueses.
O conselho dos decanos da Duma, pelas três horas, no momento que a vitória na
capital já estava decidida, eleito um “Comité provisório dos membros da Duma”,
constituido com elementos dos partidos do bloc progressista, ao qual se juntou Tchkeidzé
e Kerensky. Tchkeidzé recusou. Kerensky hesitava. O nome do comité indicava, em
termos circunspectos, que não se tratava de um órgão oficial da Duma do Império, que se
formava somente, a título privado, um órgão da conferência dos membros da Duma. Os
líderes do bloco progressista só meditaram somente numa questão até ao fim: como
escapar às responsabilidades e manter as mãos livres?
A tarefa do Comité foi determinada em termos ambiguos, cuidadosamente
escolhidos:
“restabelecer a ordem e as relações com as instituições e as personalidades”.
Nem uma palavra sobre a natureza da ordem que esses senhores entendem
restabelecer, sobre as instituições com as quais eles desejam manter relações. Eles ainda
não estendem a mão para pele do urso...possivelmente o animal ainda não estava morto,
mas gravemente ferido!... Foi somente às onze horas da noite, do dia 27 de Fevereiro,
quando, segundo a confissão de Miliokov, “o movimento revolucionário manifestou-se
com toda a sua amplitude”, que “o comité provisório decidiu dar mais um passo e de
tomar o poder que deixava escapar o governo”. Imperceptívelmente, o comité dos
membros da Duma transformou-se em comité da Duma: quando se quer conservar as
aparências jurídicas de uma sucessão do poder, não há melhor meio senão falsear.
Mas Miliokov calou-se sobre o mais importante: os líderes do Comité executivo que
se formou durante o dia tinham arranjado tempo de se apresentarem ao Comité provisório
e de lhe persuadir a tomar o poder. Esta pressão amigável devia ter consequências.
Seguidamente, Miliokov explicou a decisão do Comité da Duma dizendo que o governo
ter-se-ia aprontado a marchar contra os insurrectos das tropas seguras e que,
“nas ruas da capital, poder-se-ia temer verdadeiras batalhas”.
Na realidade, o governo não dispunha mais de tropas, era já tinha sido derrubado.
Rodzianko escreveu mais tarde que
“se a Duma tinha recusado tomar o poder, ela teria sido detida e massacrada
completamente pelas tropas revoltadas, e que o poder teria caído imediatamente nas
mãos dos bolcheviques.”
Há aí, seguramente, um exagero absurdo, completamente no espírito do honrado
cavalheiro; mas ela traduz sem dúvida o estado de espírito da Duma que, vendo-se
atribuir o poder, considerou-se como políticamente violada.
Em tal situação, a solução não era fácil. As hesitações de Rodzianko eram
particularmente movimentadas, que suscitavam outras:

123
“O que vai acontecer? É uma revolta ou não?”
Um deputado monárquico, Chulguine, deu, segundo as suas palavras, esta resposta
à Rodzianko:
“Não há nenhuma revolta. Tomai o poder na qualidade de sujeito fiel...Se os
ministros fugiram, alguém deve substituí-los...Pode haver duas saídas: ou tudo acabará
por se arranjar, o soberano designará um novo governo, nós remetemos-lhe o poder. Se
isso não resultar, se nós não recolhemos o poder, este cairá nas mãos de gente já eleita
por uma certa canalha, nas fábricas...”
Inútil de citar as bestialidades pronunciadas pelo cavalheiro reaccionário contra os
operários: a revolução esmagou esses senhores. A moral é clara: se a monarquia ganhou,
nós estaremos com ela; se a revolução é vencedora, despachemos-nos a elaborá-la.
A consulta demorou. Os líderes democratas esperavam, muito agitados, uma
solução. Enfim, do gabinete de Rodzianko, saiu Moliokov. Tinha um ar solene. Avançando
para a delegação do Soviete, declarou:
“Há uma decisão, tomamos o poder...”
E, nas suas Memórias, Sokhanov escreveu com entusiasmo:
“Não perguntei o que significava esse “nós”. Não pedia mais nada. Mas, segundo a
expressão corrente, sentia em todo o meu ser a nova situação. Sentia-me como o barco
da revolução, balançava nesse tempo, ao grado dos elementos furiosos, vinha içar as
velas, encontrar a estabilidade e a regularidade dos movimentos na temível tempestade
que o sacudia.”
Que termos refinados foram utilizados para confessar prosaicamente o servilismo da
democracia pequeno-burguesa diante do capitalismo liberal! E que tremendo erro de
perspectiva política: o abandono do poder aos liberais não dará nenhuma estabilidade ao
barco do Estado, e, ao contrário, a partir desse dia, tornar-se-à para a revolução uma
razão de impotência, de caos formidável, de sobreexcitação das massas, de debandada
da frente e, a seguir, de um extremo empenhamento na guerra civil.
Se olharmos para os séculos passados, a passagem do poder para as mãos da
burguesia parece seguir uma regra definida: em todas as revoluções precedentes, nas
barricadas lutavam operários, pequenos camponeses, pequenos artesãos, um certo
número de estudantes; os soldados tomavam partido; a seguir, a burguesia bem
abastecida, que tinha prudentemente observado os combates de barricadas pela janela,
recolhia o poder. Mas a Revolução de Fevereiro de 1917 diferenciava-se das revoluções
precedentes pelo carácter incomparavelmente mais elevado e pelo alto nível político da
classe revolucionária, pela desconfiança hostil dos insurrectos em relação à burguesia
liberal e, em consequência, pela criação, no próprio momento da vitória, de um novo
órgão de poder revolucionário: um Soviete apoiando-se sobre a força armada das
massas. Nessas condições, remeter o poder à burguesia isolada politicamente e
desarmada pede uma explicação.

124
Antes de tudo, é preciso considerar de perto as relações de forças que se
estabeleceram, resultado da insurreição. A democracia soviética não estava obrigada
pelas circunstâncias objectivas a renunciar ao poder, em proveito da alta burguesia? A
própria burguesia nem pensava nisso. Já sabemos que, longe de esperar que revolução
lhe daria o poder, a burguesia previa desta última um perigo de morte para toda a sua
situação social.
“Os partidos moderados – escreveu Rodzianko – não somente não desejavam uma
revolução: eles temiam-na simplesmente. O partido da liberdade do povo (“cadetes)”,
nomeadamente, como esquerda dos grupos moderados e, em consequência, tendo mais
pontos de contacto com os partidos revolucionários do país, estava mais que qualquer
outro preocupado diante da catástrofe iminente.”
A experiência de 1905 lembrava de maneira demasiado convincente aos liberais que
uma vitória dos operários e dos camponeses poderia revelar-se não menos perigosa para
a burguesia que para a monarquia. A marcha da insurreição de Fevereiro, segundo as
aparências, confirmava somente esta previsão. Uniformes que fossem, sob vários pontos
de vista, as ideias política das massas revolucionárias, nesses dias, a linha de separação
entre trabalhadores e a burguesia foi contudo traçada.
Stankevitch – docente na Universidade, que tinha conhecimentos nos círculos
liberais, amigo e não inimigo do bloco progressista, caracterizou da seguinte maneira o
estado de espírito desses meios no dia após a insurreição que eles não com seguiram
prevenir:
“Oficialmente, eles triunfariam, eles celebrariam a revolução, gritavam vivas em
honra dos combatentes da liberdade, cobriam-se de fitas vermelhas, marchavam sob as
bandeiras vermelhas... Mas, no fundo, e a sós, eles estavam amedrontados, tremiam e
sentiam-se prisioneiros do elemento hostil que se metia por caminhos desconhecidos.
Nunca esquecerei a cara de Rodzianko, grande e gordo proprietário, grande personagem,
quando, mantendo um ar de altiva dignidade, mas também, com os seus traços pálidos,
as marcas de um profundo sofrimento e do desespero, atravessava a multidão de
soldados, descontraídos nos corredores do palácio de Tauride. Oficialmente, dizia-se que
“os soldados tinham vindo apoiar a Duma na luta contra o governo”, mas, de facto, a
Duma tinha sido dissolvida, desde dos primeiros dias. E encontrar-se-ia a mesma
expressão sobre todos os rostos, entre os membros do Comité provisório da Duma e nos
meio que a rodeavam. Diz-se que representantes do bloco progressista choraram, quando
chegaram a casa, em cenas de histeria causadas pelo desespero e impotência.”
Esse testemunho vivo tem mais valor que todas as outras pesquisas sociológicas
sobre as relações entre as forças. Segundo a narrativa de Rodzianko, este tremia de
indignação impotente ao ver os soldados desconhecidos, “obedecendo a ordens dadas
não se sabe por quem”, procediam à prisão de altos dignitários do antigo regime e
levavam-os à Duma. O cavalheiro encontrava-se assim, de certa maneira, responsável
pela prisão de de pessoas com as quais não estava sempre de acordo mas que era
pessoas do seu meio. Consternado por essas medidas “arbitrárias”, Rodzianko convocou

125
ao seu gabinete Chtcheglovitov, que tinham prendido, mas os soldados recusaram-se a
remetê-lo ao dignitário que eles detestavam.
“Como tentava dar provas de autoridade – escreve Rodzianko – os soldados
cercavam o prisioneiro mostrando-lhe suas armas, com um ar provocante e insolente;
seguidamente, Chtcheglovitov foi levado não sei para onde.”
Poder-se-ia confirmar de maneira mais clara Stankevitch, afirmando que os
regimentos vindos, dizia-se, apoiar a Duma, revogavam a realidade?
Que o poder, desde da primeira hora, pertenceu ao Soviete, os membros da Duma
podiam somente permitirem-se sobre esse assunto menos ilusões que ninguém.
Chidlovsky, deputado outubrista, um dos chefes do bloco progressista, escreveu nas sua
Lembranças:
“O Soviete tomou possessão de todos os centros de correios e do telegrafo, de
todas as gares de Petrogrado ou ainda das tipografias, de maneira que, sem autorização,
tivesse sido impossível enviar um telegrama ou abandonar Petrogrado ou mesmo de
imprimir um manifesto.”
Esta característica sem equívocos das relações de força só precisam de serem
esclarecidas sob um aspecto: a “tomada” dos correios e telégrafos, caminhos de ferro,
tipografias, etc., pelo Soviete, significa somente que os operários e os empregados
dessas empresas não queriam subornar-se a ninguém, excepto ao Soviete.
A queixa de Chidlovsky ilustra-se melhor por um episódio que se desenrolou quando
as negociações sobre o poder entre os líderes do Soviete e da Duma. A reunião geral foi
interrompida por um comunicado urgente informando de Pskov, onde o czar se
encontrava agora, após ter deambulado sobre as linhas de caminho de ferro, quando
Rodzianko foi chamados à estação de telegrafo. O todo poderoso presidente da Duma
declarou que não iria sozinho. Que os Senhores deputados operários e soldados me
forneçam uma escolta ou venham comigo; senão serei preso ao chegar ao telegrafo...
Bem entendido! - continuou, irritando-se. - Vocês têm agora o poder e a força. Podem
naturalmente mandarem prender-me... Talvez nos prendam todos! Não sabemos!” Isto
passou-se no primeiro de Março; apenas quarenta e oito horas passadas desde que o
comité provisório, à cabeça do qual se encontrava Rodzianko, tinha “tomado” o poder.
Como, entretanto, em tais circunstâncias, os liberais se encontravam no poder?
Quem (e como?) os tinham habilitado a formar esse governo saído de uma revolução que
eles temiam, contra a qual eles tinham agido, que procuraram esmagar, que se tinha feito
com tanta resolução e ousadia que o Soviete dos operários e soldados, saído da
insurreição, mostrava-se naturalmente e incontestavelmente mestre da situação?
Escutemos agora o outro lado, o que abandonou o poder. Sokhanov escreveu
sobres os dias de Fevereiro:
“O povo não estava de forma nenhuma voltado para a Duma, ele não se interessava
por ela e não sabia que fazer dela – a título político ou técnico – o centro do movimento.”

126
Essa confissão é tanto mais digna de atenção que o autor, nas primeiras horas, vai
esforçar-se para que o poder seja transmitido a um governo da alta burguesia. “Podemos-
nos exprimir mais categóricamente? Uma situação política poderia ser mais clara? E, no
entanto, Sokhanov, em plena contradição com a situação e com ele mesmo, declarou
logo:
“O poder que acaba de substituir o czarismo não deve ser burguês...É sobre esta
dedução que é preciso guiarmo-nos. De outro jeito, a insurreição falharia e a revolução
perder-se-ia.”
A revolução perdida por causa de um Rodzianko!
A questão das relações de forças entre as forças sociais é aqui substituida por um
esquema concebido à priori e na terminologia convencional: aí precisamente está a
quinta-essência do doutrinário dos intelectuais. E veremos mais longe que esse
doutrinário não tinha nada de platónico: ele substituía uma função política perfeitamente
realista, ainda que ele tivesse os olhos vendados.
Não foi por acaso que citámos Sokhanov. Neste primeiro período, o impostor do
comité executivo não era o seu presidente, Tchkheidzé, honesto e provinciano limitado,
mas Sokhanov, o homem menos adequado, digamos, de uma maneira geral para a
liderança de uma revolução. Meio populista, meio marxista, mais observador
consciencioso que homem político, mais jornalista que revolucionário, mais pensador que
jornalista, ele não era capaz de manter uma concepção revolucionária até ao momento
que esta concepção deveria ser aplicada. Internacionalista passivo durante a guerra,
decidiu desde do primeiro dia da revolução, que se deveria logo que possível entregar o
poder e a guerra à burguesia. Como teórico, pelo menos por necessidade, senão pela sua
capacidade de juntar as duas pontas, ele era superior aos outros membros do comité
executivo de então. Mas a sua principal força consistia mesmo assim no facto que ele
traduzia em linguagem doutrinária os traços orgânicos desta irmandade de gente de toda
a especie, portanto homogénea: falta de fé nas suas próprias forças, medo das massas,
atitude arrogante, mas deferente em relação à burguesia. Lenine dizia de Sokhanov que
ele era um dos melhores representantes da pequena burguesia. E é o que se pode dizer
de lisonjeiro sobre ele.
Não se deve esquecer que se trata aqui, antes de mais, da pequena burguesia de
um novo tipo capitalista: empregados da indústria, do comércio, da banca, funcionários do
capital por um lado, e da burocracia operária por outro lado, isto é desse novo terceiro
estado em nome do qual o social democrata alemão bem conhecido Eduard Bernstein, no
fim do século passado, tinha empreendido a revisão da concepção revolucionária de
Marx. Para dizer como a revolução cedeu o poder à burguesia, devemos introduzir um elo
intermediário no seguimento dos factos políticos: os pequenos burgueses democratas e
socialistas do género de Sokhanov, os jornalistas e os políticos de um novo terceiro
estado, que ensinavam às massas que a burguesia é a inimiga, mas temiam sobretudo
subtrair as massas à autoridade deste inimigo. A contradição entre o carácter da
revolução e o de um governo que daí resultou explica-se pelo carácter contraditório do
novo meio pequeno burguês que se colocou entre as massas revolucionárias e a

127
burguesia capitalista. No decurso dos acontecimentos ulteriores à revolução, o papel
político da democracia pequena burguesa novo género nos será completamente
desvendada. Previamente, limitemos-nos em dizer algumas palavras.
Na insurreição, é a minoria da classe revolucionária que intervém directamente e
encontra a sua força no apoio ou, pelo menos, as simpatias da maioria. A maioria activa a
e combativa, sob o fogo do inimigo, avança inevitavelmente os seus elementos mais
revolucionários e os mais abnegados. É sobretudo natural que, nos combates de
Fevereiro, os operários bolcheviques tenham estado nos postos avançados. Mas a
situação muda com a vitória, quando ela encontra a sua estabilidade política. Nas
eleições para a constituição de órgãos e instituições da revolução vitoriosa são convocada
e afluem as massas infinitamente mais numerosas que as que combateram de armas na
mão. Isto diz respeito não somente às instituições gerais da democracia,tais que as
Dumas municipais, os zemstvos, ou mais tarde a Assembleia constituinte, mas também os
órgãos de castas tais como os sovietes de deputados operários.
A esmagadora maioria dos operário, mencheviques, socialistas revolucionários e
sem partido, apoiaram os bolcheviques no momento onde a luta contra o czarismo se
tornou uma luta de corpo a corpo. Mas só houve uma pequena maioria de operários que
compreenderam que os bolcheviques se distinguiam dos outros partidos socialistas.
Todavia, todos os trabalhadores traçaram uma clara linha de demarcação entre eles e a
burguesia. Foi o que determinou a situação política após a vitória. Os operários elegeram
socialistas, isto é, os que estavam não somente contra a monarquia, mas também contra
a burguesia. Eles quase que não diferenciavam entre os três partidos socialistas. Mas
como os mencheviques e os socialistas revolucionários dispunham de quadros
intelectuais incomparavelmente mais consideráveis que se juntavam a eles vindos de
todos os lados, obtendo assim de uma vez uma reserva formidável de agitadores, as
eleições, mesmo nas fábricas e oficinas, deram-lhes uma preponderancia formidável.
No mesmo sentido, mas com uma força incalculável, ia a pressão da tropa
despertada. No quinto dia da insurreição, a guarnição de Petrogrado seguiu os operários.
Após a vitória, ela foi chamada a eleger sovietes. Os soldados deram voz e confiança aos
que se pronunciavam contra os oficiais monárquicos, pela revolução, e souberam dizê-lo
em voz alta: estes últimos eram voluntários, escriturário da tropa, oficiais da saúde, jovens
oficiais do tempo da guerra recrutados entre os intelectuais, pequenos empregados da
administração militar, isto é, a camada inferior do mesmo “novo terceiro Estado”. Quase
todos inscreveram-se desde Março no partido socialista revolucionário que, pela
inconsistência do seu pensamento, respondia melhor à situação social intermediária
assim como à insuficiência política deles. Os representantes da guarnição foram, por
consequência, muito mais moderados e mais burgueses que a própria massa dos
soldados. Esta, todavia, não via a diferença, a qual só se devia manifestar após a
experiência dos meses seguintes.
Os operários, por outro lado, queriam tornar sua ligação com os soldados tão
estreita que possível para consolidar uma aliança comprada com sangue e armar de
forma mais segura a revolução. E como, em nome do exército, falavam sobretudo os

128
socialistas revolucionários da última hora, a autoridade desse partido e dos seus aliados,
os mencheviques, só podiam aumentar aos olhos dos operários. Foi assim que, nos
sovietes, se afirmou a preponderancia dos dois partidos conciliadores. Basta dizer que,
mesmo no Soviete do bairro de Vyborg, o papel dos dirigentes pertenceu nos primeiros
tempos aos operários mencheviques. O bolchevismo, nesse período, fervia somente nas
profundidades da revolução. Os oficiais do bolchevismo, mesmo no seio do Soviete de
Petrogrado, representavam uma minoria que, aliás, não definia muito claramente a sua
tarefa.
Foi assim que se constituiu o paradoxo da Revolução de Fevereiro. O poder está
nas mãos dos socialistas democratas. Eles não o detêm de forma nenhuma por acaso,
por um golpe de mão à moda de Blanqui; não, o poder foi-lhe abertamente dado pelas
massas populares vitoriosas. Essas massas não somente recusaram a sua confiança à
burguesia, o seu apoio, mas elas não a diferenciavam da nobreza ou da burocracia. Elas
meteram as suas armas exclusivamente à disposição dos sovietes. Ora, a única
preocupação dos socialistas que acederam facilmente à cabeça dos sovietes era de saber
se a burguesia, politicamente isolada, odiada pelas massas, inteiramente hostil à
revolução, consentiria em recolher o poder das suas mãos. O seu consentimento deve ser
adquirido a qualquer preço; mas como a burguesia não pode evidentemente renunciar ao
seu programa, somos nós, “socialistas” que convêm que desistamos do nosso: calarmo-
nos sobre a monarquia, sobre a guerra, sobre a questão agrária, com a condição que a
burguesia aceite a prenda do poder.
Entregando-se a esta operação, os “socialistas”, como eles riam deles próprios,
continuam a denominar a burguesia de outra forma salvo de inimigo de classe. É com um
ceremonial quase religioso que se celebra um acto de provocação sacrilégio. Uma luta de
classe levada até ao fim visa a conquista do poder. A faculdade essencial de uma
revolução é de levar a luta de classe até ao fim. Uma revolução é precisamente uma luta
directa pela tomada do poder. Ora, nós, “socialistas” preocupamo-nos não de arrancar o
poder ao inimigo de classe, (dizem) que, portanto, não o detém e não o saberia tomar
pelos seus próprios meios, mas de lhe entregar a qualquer preço esse poder. Não é um
paradoxo? Parece tanto mais impressionante que a experiência da Revolução alemã de
1918 ainda não existia e que a humanidade não tinha ainda sido testemunha da
prodigiosa operação do mesmo género, com sucesso, que realizou o “novo terceiro
Estado” que dirige a social democracia alemã.
Como é que os conciliadores explicam a sua conduta? Eles tinham primeiro um
argumento de doutrinários: a revolução sendo burguesa, os socialistas não devem
comprometer-se ao tomar o poder; - que a burguesia responda por ele própria! Foi com
um tom muito intransigente. Mas, na realidade, a pequena burguesia escondia sob o
exterior da intransigência as suas lisonjas diante da potência da riqueza, da instrução, do
censo. Os pequenos burgueses reconheciam à alta burguesia uma especie de direito
primordial a tomar o poder, independentemente das relações de forças. Foi pouco mais ou
menos, no fundo, o gesto instintivo do pequeno comerciante ou do modesto professor
que, na gare ou no teatro, apaga-se respeitosamente para deixar passar...Rothschild! Os
argumentos dos doutrinários servem de compensação à consciência que eles tinham da

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sua própria nulidade. Dois meses mais tarde, quando se tornou evidente que a burguesia
não chegaria a reter pelos seus próprios meios o poder que lhe tinha sido cedido, os
conciliadores rejeitaram sem dificuldade os seus preconceitos “socialistas” e entraram
num governo de coligação. Não para expulsar a burguesia, mas para a salvar. Não contra
a vontade desta, mas a convite que tinha o tom de uma ordem: a burguesia ameaçava os
democratas de lhe jogar o poder à cabeça, em caso de recusa.
O segundo argumento invocado para rejeitar o poder foi, teve a aparência, de ordem
prática, sem ser, no fundo, mais séria. Sokhanov, que já conhecemos, invocava antes de
tudo “a dispersão” da Rússia democrática: “Nas mãos da democracia não se encontrava
então organizações sólidas e influentes, nem partidos, nem sindicatos, nem
municipalidades.” Isso tinha um tom de troça! Sobre os sovietes de deputados operários e
soldados, nem uma palavra é pronunciada por um socialista que fale em nome dos
sovietes. E no entanto, graças à tradição de 1905, os sovietes surgiram, de qualquer
modo, da terra e tornaram-se incomparavelmente mais potentes que todas as outras
organizações que tentaram mais tarde rivalizar com eles (municipalidades, cooperativas,
parcialmente os sindicatos). No que diz respeito à classe camponesa, a força dispersa
pela sua própria natureza, ela era organizada, mais do que ela tinha alguma vez sido, em
consequência da guerra e da revolução: a guerra tinha reunido os camponeses na tropa e
a revolução tinha dado ao exército um carácter político! Pelo menos oito milhões de
camponeses reunidos em companhias e em esquadrões, os quais constituíam
imediatamente suas delegações revolucionárias por intermédio dos quais, a qualquer
momento, sob apelo telefónico, poderiam constituir-se. Isso equivaleria à dispersão?
Pode-se seguramente dizer que no momento onde se decidia a questão do poder, a
democracia ainda não sabia qual seria a atitude da tropa na frente. Nós não levantaremos
a questão de saber se havia o mais pequeno motivo de temer ou de esperar que os
soldados da frente, excedidos pela guerra, quisessem apoiar a burguesia imperialista.
Basta constatar que esta questão fosse integralmente resolvida nos dois ou três primeiros
dias que os conciliadores empregaram justamente a preparar nos corredores um governo
burguês. “A insurreição estava, no 3 de Março, felizmente terminada”, confessou
Sokhanov. Embora todo o exército tivesse aderido aos sovietes, seus líderes afastavam o
poder com toda a sua força: eles temiam-o tanto mais que ele se concentrava
completamente entre as suas mãos.
Mas então porquê? Como é que os democratas, os “socialistas” que se apoiavam
directamente sobre tais massas humanas que não conheceu nunca nenhuma democracia
na história, e ainda sobre massas providas de uma experiência considerável, disciplinada,
armadas, organizadas em sovietes – como esta democracia poderosa, inquebrável
tivesse parecido, poderia temer a tomada do poder? Este enigma, subtil à primeira vista,
se explica pelo facto que a democracia não tinha confiança no seu próprio apoio,
apreendiam as massas, duvidavam da solidez da confiança dada a esta, e, sobretudo,
temia a “anarquia”,isto é receava, após ter recolhido o poder, tornar-se, no exercício da
autoridade, o instrumento do que se chama os elementos desencadeados. Noutros
termos, a democracia não se sentia convidada a tomar a liderança do povo, no momento
do seu ascenso revolucionário, mas designada como ala esquerda da ordem burguesa,

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uma especie de antena desta estendida do lado das massas. Ela se dizia e considerava-
se mesmo socialista para esconder não somente às massas, mas aos seus próprios
olhos, seu papel efectivo: se ela não se excitava, ela não pôde jogar esse papel. Assim se
explica o paradoxo fondamental da Revolução de Fevereiro.
Na noite do primeiro de Março, os delegados do comité executivo, Tchkheidzé,
Stieklov, Sokhanov e outros foram à sessão do comité da Duma para discutir as
condições nas quais o novo governo seria apoiado pelos sovietes. O programa dos
democratas passava completamente em silêncio os problemas da guerra, da proclamação
da República, da repartição das terras, do dia de oito horas, e concluía uma única
reivindicação: a da liberdade de agitação para os partidos de esquerda. Belo exemplo de
desinteresse, para os povos e o séculos: os socialistas que tinham nas mãos todo o
poder,e de quem dependia completamente a recusa ou cedência de outras liberdades de
agitação, cediam o poder aos seus inimigos de classe “sob as condições que estes
prometiam... a liberdade de agitação! Rodzianko não ousava ir à estação de telegrafo e
dizia a Tchkhei
dzé e a Sokhanov: “Vocês têm o poder, podem calar-nos todos.” Tchkheidzé e
Sokhanov responderam-lhe; “Tomai o poder, mas não nos prenda por ter feito
propaganda!” Se estudasse-mos as negociações dos conciliadores com os liberais e, em
suma, todos os episódios das relações mútuas entre a ala esquerda e a ala direita do
palácio de Tauride, nesses dias, dir-se-ia que, sob a cena gigantesca onde se
desenrolava um drama popular histórico, um grupo de actores provinciais, aproveitando
um canto livre e de uma pausa, desempenhava uma comédia musical por travestis
interpostos.
Os líderes da burguesia, devemos prestar-lhes essa homenagem, não esperavam
nada de igual. Teriam temido talvez menos a revolução se tivessem calculado que os
seus dirigentes adoptariam uma tal politica. Na verdade, mesmo nesse caso, eles teriam
cometido um erro de cálculo, mas logo de forma comum com estes últimos. Temendo
portanto que a burguesia não consentisse tomar o poder, mesmo nas condições
propostas, Sokhanov lançou um ultimato ameaçador: “Os elementos desencadeados
podem ser dominados por nós – ou por ninguém... Só há uma saída: que vocês aceitem
as nossas condições.” Noutros termos: “Aceitai um programa que é também o vosso. Mas
nós prometemos-vos, em contrapartida, de refrear as massas que nos deram o poder.”
Pobres domadores de elementos!
Miliokov foi surpreendido. “Ele nem sonhava – escreve Sokhanov – em esconder a
sua satisfação e sua agradável surpresa. Mas quando os delegados do Soviete, para dar
às suas palavras mais peso, acrescentaram que as suas condições eram “definitivas”,
Miliokov tornou-se sentimental e encorajou-os por uma frase: “Sim, compreendi-os bem e
reflecti muito e pensei como o nosso movimento operário tinha avançado desde 1905...”
Foi sobre este mesmo tom indulgente que os crocodilos da diplomacia do Hohebzollern se
entretinham, em Brest-Litovsk, com os delegados da Rada ucraniana, homenageando a
maturidade de homens de Estado antes de os engolir. Se a democracia soviética não foi
engolida pela burguesia, não foi por mérito de Sokhanov, nem por culpa de Miliokov.

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A burguesia recebeu o poder nas costas do povo. Ela não dispõe de qualquer apoio
nas classes trabalhadoras. Mas, com o poder, ela obteve em segunda mão qualquer coisa
como um apoio: os mencheviques e os socialistas revolucionários, incitados pelas
massas, remetiam por sua própria iniciativa um mandato de confiança à burguesia. Se
considerar-mos esta operação numa perspectiva enviesada de uma democracia formal,
ter-se-á o quadro das eleições em duas etapas, nas quais os mencheviques e os
socialistas revolucionários tomam o papel técnico de intermediários, isto é de eleitores
dos cadetes. Se consideramos a questão do ponto de vista politico, devemos dizer que os
conciliadores traíram a confiança das massas ao apelar ao poder daqueles contra os
quais eles próprios tinham sido eleitos. Enfim, de um ponto de vista social mais profundo,
a questão coloca-se assim: os partidos pequeno burgueses que, nas condições da vida
quotidiana, se mostram extraordinariamente pretenciosos e satisfeitos com eles próprios,
ressentiram, logo que a revolução os levou à cimeira do poder, ansiedade diante a sua
própria insuficiência e se apressaram a passar o leme aos representantes do capital.
Nessa acção vacilante manifestaram-se de repente a temível inconsistência do novo
terceiro Estado e a sua humilhante dependência diante da alta burguesia.
Compreendendo ou simplesmente pressentindo que, aliás, eles não estariam em
condições de manter por muito tempo o poder, que eles deveriam em breve ceder, seja à
direita, seja à esquerda, os democratas concluíram que era preferível entregá-lo no
próprio dia aos sólidos liberais, em vez de ser no dia seguinte aos representantes
extremistas do proletariado. E assim elucidado, o papel dos conciliadores, qualquer que
seja o seu condicionamento social, não deixa de ser uma traição para com as massas.
Tendo confiado nos socialistas, os operários e os soldados viram-se, de uma
maneira imprevista por eles próprios, politicamente expropriados. Ficaram
desconcertados, alarmaram-se, mas não encontraram logo saída. Seus próprios eleitos
atordoaram-os com argumentos aos quais eles não tinham qualquer resposta pronta, mas
que contradiziam todos os seus sentimentos e os seus anseios. As tendências
revolucionárias das massas não correspondiam mais, no momento da insurreição de
Fevereiro, às tendência conciliadoras dos partidos pequenos burgueses. O proletariado e
os camponeses votavam pelo menchevique e o socialista revolucionário, não como para
conciliadores, mas como para inimigos do czar, do proprietário, do capitalista. Ao votar por
estes últimos, eles estabeleceram uma divisória entre eles próprios e os seus objectivos.
Eles já não podiam avançar mais sem bater na parede que eles mesmos tinham erigido
sem a derrubar. Tal foi o surpreendente quiproquó nas relações de classe que revelou a
Revolução de Fevereiro.
Ao paradoxo fundamental se juntou imediatamente outro. Os liberais consentiram
em recolher o poder das mãos dos socialista somente com a condição que a monarquia
aceitaria o poder das suas próprias mãos.
Enquanto que Gotchokov, com o monárquico Cholguine, que o leitor já conhece, foi a
Pskov para salvar a dinastia, o problema de uma monarquia constitucional tornou-se o
ponto central das negociações entre os dois comités do palácio de Tauride. Miliokov
esforçou-se em demonstrar aos democratas que lhe traziam o poder na palma da mão,
que os Romanov não seriam mais um perigo, que naturalmente, Nicolau devia ser

132
eliminado, mas que o czarevitch Alexis, sob a regencia de Miguel, poderia muito bem
assegurar a prosperidade do país: “Um é uma criança doente, o outro um imbecil.”
Juntemos a isso a característica dada por um monárquico liberal, Chidlovsky, ao
candidato czar: “Miguel Alexandrovitch evitava de qualquer maneira de se intrometer nos
assuntos do Estado, qualquer que ele fosse, e consagrar-se-ia inteiramente aos desportos
hípicos.” Surpreendente recomendação, sobretudo se se quisesse apoiá-la diante das
massas. Quando da fuga de Luís XVI para Varennes, Danton declarou pretensamente, no
clube dos Jacobins, que um homem que tinha o espírito fraco não podia mais ser um rei.
Os liberais russos acreditavam contrariamente que um monarca de espírito fraco faria o
mais belo ornamento do regime constitucional. Aliás, foi um argumento que não foi
forçado, calcado sobre a psicologia dos idiotas da esquerda, e foi mesmo assim
demasiado grosseiro para eles. Sugeriu-se, nas largas esferas da burguesia liberal, que
Miguel Alexandrovitch era um “anglomane”, sem precisar se a sua anglomania dizia
respeito as corridas de cavalos ou o parlamentarismo. O essencial era ter um “símbolo
familiar do poder”, falta do qual o povo imaginar-se-ia que o poder não existia mais.
Os democratas escutavam, admiravam solenemente e aconselhavam … a
proclamação da República? Não, somente não antecipar sobre esta questão. O artigo 3
das estipulações do comité executivo dizia explicitamente:
“O governo provisório não deve de maneira nenhuma empreender acções que
predeterminem a forma futura do governo.“
Miliokov colocava a questão da monarquia como um ultimato. Os democratas
desesperavam. Então as massas vieram ao seu socorro. Nos encontros no palácio de
Tauride, absolutamente ninguém, nem operários, nem soldados, não queria um czar e não
havia meio de lhes impor. Contudo, Miliokov tentou contrariar a opinião e passar por cima
das cabeças dos aliados de esquerda para salvar o trono e a dinastia.
Na sua História da Revolução, ele próprio notou, circunspecção que, na noite do 2
de Março, a agitação causada pelo seu comunicado sobre uma regencia de Miguel
“cresceu consideravelmente”. Rodzianko descreveu em cores muito mais vivas o efeito
que produziram sobre as massas as maquinações monárquicas dos liberais. Logo que
chegou de Pskov, comunicando o acto de abdicação de Nicolau em favor de Miguel,
Gotchkov, a pedido dos ferroviários, nas oficinas do caminho de ferro, descreveu o que se
tinha passado, leu em público o documento e terminou gritando: “Viva o emperador
Miguel”. O resultado foi inesperado. O orador, segundo a relação de Rodzianko, foi
imediatamente preso pelos operários, mesmo, diz-se, ameaçado de ser fuzilado.
“Foi com dificuldades que o libertaram com a ajuda de uma companhia que estava
de guarda num regimento da vizinhança.”
Como habitualmente, Rodzianko exagerou sobre certos pontos; mas, no essencial,
os factos foram exactamente reproduzidos. O país tinha tão radicalmente vomitado a
monarquia que ela não teria podido de maneira nenhuma ser engolido pelo povo. As
massas revolucionárias não admitiam mais um novo czar?

133
Colocados diante de tais circunstâncias, os membros do comité provisório, um após
outro, afastavam-se de Miguel não definitivamente mas “esperando a Assembleia
constituinte”: logo se verra. Só Miliokov e Gotchkov apoiaram a monarquia até ao fim e
continuaram a colocar esta condição prévia para a sua participação no governo. Que
fazer? Os democratas pensavam que, sem Miliolov, não se poderia formar um governo
burguês e que, sem um governo burguês, não se poderia salvar a revolução. As
recriminações e conversas se prolongaram interminavelmente. Na sessão da manhã, no
dia 3 de Março, o comité provisório parecia ter alinhado completamente com esta opinião
que “seria necessário levar o grande-duque a abdicar...” Miguel considerava-se já como o
czar! Um cadete da esquerda, Nekrassov, tinha mesmo um texto de abdicação já pronto.
Mas como Miliokov recusava obstinadamente ceder, encontraram enfim, após debates
apaixonados, esta formula: “os dois partidos submetem ao grande duque as suas opiniões
motivadas e, sem avançar mais a discussão, submetem-se à sua decisão.”
Assim, o homem “completamente imbecil” que o seu irmão mais velho, transtornado
pela insurreição, tinha tentado, contrariamente aos próprios estatutos dinásticos, de
transferir o trono, tinha-se constituido em árbitro na questão da forma do Estado que
convinha a um país em revolução. Tão verosimilhante que isso possa parecer, esses
debates sobre a sorte do Estado tiveram realmente lugar. Para incitar o grande-duque a
desinteressar-se pelas suas cocheiras em consideração do trono, Miliokov assegurou-lhe
que haveria a inteira possibilidade de reunir, fora de Petrogrado, forças militares que
defenderiam os seus direitos. Noutros termos, mal Miliokov recebeu o poder das mão dos
socialistas que logo produziu o plano do golpe de Estado monárquico. Quando
terminaram os discursos para ou contra, os quais não tinham sido poucos, o grande-
duque pediu um momento de reflexão. Convidou Rodzianko à sala vizinha e pôs-lhe
cruamente esta questão: os novos dirigentes poderiam garantir-lhe não somente a coroa,
mas também a sua cabeça?
O incomparável gentil-homem respondeu que só podia prometer ao monarca morrer
com ele, se fosse necessário.
Isso não convinha de forma nenhuma ao pretendente. Quando, após ter apertado
Rodzianko nos braços, Miguel Romanov voltou-se para os deputados que esperavam,
explicou, “muito firmemente”, que renunciava à alta mas terrível função que lhe
ofereceram. Então, Kerensky, que personificava nas conversações a consciência da
democracia, sobressaltou da cadeira exclamando:
“Sua Alteza é um coração nobre?”
Ele jurou que iria proclamá-lo em todo o lado.
“A ênfase de Kerensky – notou secamente Miliokov – harmonizava-se mal com a
decisão prosaica adoptada.”
Não se pode estar de acordo sobre isso. O texto desse intermédio não se prestava
com certeza a discursos enfáticos. A comparação feita acima com uma comédia musical
interpretada num canto de uma arena antiga deve ser completada no sentido que a cena
se encontra cortada em duas por écrans: de um lado, os revolucionários suplicando os

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liberais para salvarem a revolução; de outro, os liberais suplicando a monarquia de salvar
o liberalismo.
Os representantes do comité executivo ficaram espantados ao verem que um
homem tão esclarecido e perspicaz como Miliokov se mostrou recalcitrante, teimando por
uma monarquia qualquer, e mesmo estando pronto a desistir do poder no momento que
não lhe davam como prenda suplementar um Romanov. O monarquismo de Miliokov não
era nem de um doutrinário nem de um romântico; pelo contrário, provinha de um cálculo
explicito dos proprietários assustados. O seu cinismo consistia também da sua debilidade
irremediável. O historiados Miliokov podia certamente alegar que um dos líderes da
burguesia revolucionária francesa, Mirabeau, no seu tempo, tinha igualmente tentado
reconciliar a revolução com o rei. Aí também, a base estava nas apreensões dos
proprietários sobre a propriedade: era mais prudente de abrigar a monarquia, mesmo se a
monarquia se mantinha sob a protecção da Igreja. Mas, em 1789, a tradição do poder real
em França era ainda reconhecida pelo povo, sem contar que toda a Europa circundante
era monárquica. Ao ligar-se ao rei, a burguesia francesa mantinha-se sobre um mesmo
terreno, com o povo, pelo menos no sentido que explorava os preconceitos deste último
contra ele próprio.
A situação era completamente diferente na Rússia em 1917. Abstracção feita das
catástrofes e dos prejuízos sofridos pelo regime monárquico em diferentes países, a
monarquia russa tinha sido irremediavelmente rachada depois de 1905. Após o dia 9 de
Janeiro, o papa Gapone lançou o anatema sobre o czar e a sua “raça de víboras”. O
Soviete dos deputados operários que se constituiu em 1905 mantinha-se abertamente no
campo republicano. Os sentimentos monarquistas da classe camponesa, sobre os quais o
czarismo contou muito tempo e que alegava a burguesia para cobrir o seu próprio
monarquismo mostrou-se simplesmente inexistente. A contra-revolução belicosa, que,
mais tarde, ergueu-se -a datar da empresa de Kornilov – ainda que hipocritamente, mas
tanto mais demonstrativa, negava o poder czarista: a ideia monárquica tinha perdido as
suas raízes no povo.
Todavia, esta mesma Revolução de 1905, que tinha dado um golpe mortal à
monarquia, minou para sempre as tendências repúblicas incertas da burguesia
“avançada”. É em contradição de um com outro que se realizaram estes dois processos
complementares. A partir das primeiras horas da Revolução de Fevereiro, a burguesia,
sentindo que ela se afogava, agarrou-se a uma palhinha. Ela precisava da monarquia,
não que ela tivesse essa fé em comum com o povo, mas, pelo contrário, porque ela não
podia mais opor-se às crenças populares outra coisa senão um fantasma coroado. As
classes “cultivadas” da Rússia avançaram sobre o terreno da revolução não como
anunciadoras de um Estado racional, mas como os campeões das instituições medievais.
Não tendo nem povo, nem neles próprios nenhum ponto de apoio, elas procuraram por
cima delas.
Arquimedes pretendia levantar a terra, se lhe dessem um ponto de apoio. Miliokov,
ao contrários procurava um ponto de apoio para impedir que lhe transtornem a
propriedade. E aí, ele sentia-se mais próximo dos mais decrépitos generais do czar, dos

135
altos dignitários da Igreja ortodoxa, que os democratas domesticados que não se
preocupavam que a condescendência dos liberais. Impotentes em fazer malograr a
revolução, Miliokov tomou firmemente a resolução de a enganar. Ele estava pronto a
encaixar muitas coisas: as liberdades cívicas para os soldados, as municipalidades
democráticas, a Assembleia constituinte, mas somente com a condição que lhe
deixassem o seu ponto de apoio de Arquimedes: a monarquia. Ele propunha-se fazer
gradualmente da monarquia o eixo à volta do qual se agruparia o corpo dos oficiais
generais, a burocracia renovada, os príncipes da Igreja, os proprietários, todos os
descontentes da revolução e, começando por um “símbolo”, criar pouco a pouco um
travão real monárquico, à mediada que as massas se cansassem da revolução. Tratava-
se de ganhar tempo!
Um outro líder do partido cadete, Nabokov, explicou mais tarde qual teria sido a
vantagem capital se Miguel tivesse aceite o trono:
“A questão fatal da convocação de uma Assembleia constituinte em tempo de guerra
teria sido metida de lado.”
São palavras que não devem ser esquecidas: a luta levada a cabo para adiar os
prazos da Assembleia constituinte teve um lugar importante no período que vai entre
Fevereiro e Outubro; os cadetes, nessa luta, ao negarem categóricamente que a sua ideia
foi de atrasar a convocação dos representantes do povo, perseguiram perseverantes,
obstinados, uma política de escamoteio. Infelizmente! Agindo assim eles não precisavam
de se apoiar senão neles próprios: não tiveram que se abrigar atrás da monarquia, no fim
de contas. Após a deserção de Miguel, nem mesmo Miliokov pôde apoiar-se numa
palhinha.

136
O Novo Poder
Desligados do povo, muito mais ligada ao grande capital financeiro estrangeiro do
que com as classes trabalhadoras do seu próprio país, hostil à revolução, que tinha saído
vitoriosa, aparecida tardiamente em cena, a burguesia russa não podia, pela sua própria
iniciativa, encontrar qualquer motivo a favor das suas pretensões de poder. Todavia, uma
base justificativa era indispensável, porque a revolução submete ao controlo implacável
não somente os direitos herdados, mas as novas pretensões. O menos apto a valorizar-se
diante das massas os motivos convincentes era o presidente do comité provisório,
Rodzianko, que, nos primeiros dias após a insurreição, se encontrou à cabeça de um país
em revolução.
Pajem no palácio sob o reino de Alexandre II, oficial de um regimento da Guarda,
chefe da nobreza na sua província, camareiro de Nicolau II, monarquista inveterado, rico
proprietário de terras e membro influente dos zemstvos, membro do partido outubrista,
deputado da Duma do Império, Rodzianko foi seguidamente eleito presidente dessa
Duma. Isso produziu-se após Gotchkov ter sido desembaraçado dos seus plenos
poderes, como “jovem turco”, era detestado na corte: a Duma esperava que por
intermédio do camareiro ela encontraria mais facilmente acesso ao coração do monarca.
Rodzianko fazia o que podia: sem hipocrisia, assegurava o czar da sua dedicação à
dinastia, pedindo como uma esmola para ser apresentado ao czarevitch herdeiro e
gabava-se diante deste último por ser “o maior e o mais gordo homem de toda a Rússia”.
Apesar dessas palhaçadas bizantinas, o camareiro não conquistou o czar para uma
constituição, e a czarina, nas suas cartas, chamava brevemente canalha a Rodzianko.
Durante a guerra, o presidente da Duma deu sem dúvida momentos desagradáveis ao
czar, colando-o à parede em audiências particulares, através de advertências confusas,
desde da crítica patriótica até sombrias profecias. Raspotine considerava Rodzianko
como um inimigo mortal. Korlov, um dos associados da banda do palácio, fala de
“insolência” natural de Rodzianko juntamente a “um espírito indubitavelmente limitado”.
Witte falava do presidente da Duma com mais indulgência, mas pouco melhor: “Um
homem que sem ser besta, bastante compreensivo: no entanto, a principal qualidade de
Rodzianko encontra-se não no seu espírito, mas na sua voz, ele tem um baixo excelente.”
Rodzianko tentou primeiro vencer a revolução por meio de uma lança de bombeiro:
chorou quando soube que o governo do príncipe Golytsine abandonou o seu posto:
recusou com temor o poder que lhe tinham entregue os socialistas, depois aceitou tomá-
lo, mas como sujeito fiel, para o restituir, desde da primeira oportunidade, ao monarca o
objecto perdido. Não é por culpa de Rodzianko se esta possibilidade não se apresentou.
Em contrapartida, a revolução, graças ao apoio desses mesmos socialistas, deu ao
camareiro a grande possibilidade em exercer a sua voz retumbante diante dos regimentos
insurgidos.
Desde do dia 27 de Fevereiro, o chefe dos esquadrões da Guarda Rodzianko
declarou a um regimento de cavalaria que surgiu no palácio de Tauride: “Guerreiros
ortodoxos, escutai o meu conselho. Sou um homem velho, não vos enganarei, escutai os

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oficiais, eles não vos dirão nada de mal e decidirão de acordo com a Duma do Império.
Viva a santa Rússia!” Todos os oficiais da Guarda estavam prontos a aceitar tal revolução.
Mas os soldados foram surpreendidos: porque seria ela necessária? Rodzianko temia que
os soldados e os operários, considerava Tchkheidzé e os outros homens de esquerda
como agentes da Alemanha, etc., e colocado à cabeça da revolução, olhava a todo o
momento à sua volta para ver se o Soviete não o ia prender.
A personagem de Rodzianko é um pouco ridícula, mas não fortuita: o camareiro com
voz de baixo via a aliança das duas classes de dirigentes da Rússia - os proprietários
nobres e a burguesia – aos quais se juntava o clero progressista: o próprio Rodzianko era
muito devoto e ordenou os cantos litúrgicos, enquanto que os burgueses liberais,
independentemente das suas opiniões sobre a ortodoxia, consideravam que uma aliança
com a Igreja era tão necessária para a ordem que uma aliança com a monarquia.
O honrado monárquico que recebeu o poder dos conspiradores, dos amotinados e
dos tiranicidas, nesses dias, dava dó. Os outros membros do comité não se sentiam
melhor. Alguns dentre eles evitavam geralmente apresentarem-se no palácio de Tauride,
julgando que a situação não era suficientemente definida. Os mais sábios andavam de
bicos de pés à volta da fogueira da revolução, tossiam por causa do fumo e diziam: que
acabe de queimar, e então tentaremos de fazer um assado. Tendo consentido em tomar o
poder, o comité não se decidiu logo em constituir um governo. “Na espera do momento de
formar governo”, como se exprime Miliokov, o comité limitou-se a designar comissários,
entre os membros da Duma, para as altas instituições governamentais: deixando-se
assim uma possibilidade de retirada.
No ministério do Interior foi enviado um deputado insignificante, mas talvez menos
cobarde que os outros, Karaolov, que promulgou, no primeiro de Março, um decreto
dando ordem de prisão a todos os funcionários da polícia pública ou secreta e o da
guarda. Esse terrível gesto revolucionário tinha um carácter completamente platónico,
dado que a polícia tinha sido detida antes dos mandatos e que a prisão foi a única forma
de a proteger contra as represálias. Muito mais tarde, a reacção considerou o acto
demonstrativo de Karaolov como o princípio de todas as calamidades.
Como comandante da praça em Petrogrado, designaram o coronel Engelhardt,
oficial de um regimento da Guarda, proprietário de escudarias de cavalos de corrida e
grande latifundiário. Em vez de prenderem o «ditador» Ivanov, chegado da frente para
meter ordem na capital, Engelhardt colocou à sua disposição um oficial reaccionário,
como chefe do estado–maior: no fim de contas, eles estavam do mesmo lado.
Foi enviado ao ministério da Justiça um ás do tribunal liberal de Moscovo, o
eloquente e vazio Maklakov, o qual deu primeiro a entender aos burocratas reaccionários
que ele não esperava ser ministro graças à revolução, e, «deitando um olhar sobre um
camarada expedicionário que entrava» disse em francês: «O perigo está à esquerda».
Todavia, à cabeça do comité, Rodzianko não fez muito ruído. A sua candidatura à
presidencia do governo revolucionário caiu por si própria: o intermediário entre os
proprietários e a monarquia era demasiado inapta em jogar o mesmo papel entre os

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proprietários e a revolução. Mas ele não subiu à cena, tentando animar a Duma, como
contrapeso ao Soviete, e ficando invariavelmente no centro de todas as tentativas de
coligação da contra-revolução dos burgueses e dos proprietários. Ainda ouviremos falar
dele.
No primeiro de Março, o comité provisório ocupou-se da formação de um governo,
avançando personalidades que a Duma, desde 1915, tinha recomendado muitas vezes ao
czar como gozando da confiança do país: os líderes do bloco progressista eram agrários
e industriais, deputados da oposição na Duma. A revolução feita por operários e soldados
não teve qualquer efeito sobre a composição do governo revolucionário, com uma
excepção. A excepção era Kerensky. A amplitude Rodzianko—Kerensky é a amplitude
oficial da Revolução de Fevereiro.
Kerensky entrou no governo como, diga-se, na qualidade de seu embaixador
plenipotenciário. No entanto, a sua atitude para com a revolução foi a de um advogado de
província que advoga em processos políticos. Kerensky não era um revolucionário, ele
roçava-se pela revolução. Eleito pela primeira vez à IV Duma, graças à sua situação legal,
Kerensky tornou-se presidente da pálida e impessoal fracção dos trudoviks (trabalhistas),
fruto anémico de um crescimento político do liberalismo com o populismo. Sem
preparação teórica, nem disciplina política, nem capacidade para as generalizações, nem
vontade como político. Todas as qualidades eram substituidas por uma emotividade
fugitiva, por uma efervescência fácil, e por esta eloquência que age não sobre o seu
pensamento ou vontade, mas sobre os nervos. Os discursos de Kerensky na Duma, num
espírito de radicalismo declamador que não faltava motivos, valeram-lhe senão a
popularidade, pelo menos a celebridade. Durante a guerra, como patriota, considerava
com os liberais que a própria ideia de uma revolução levaria à perdição. Ele reconheceu a
revolução quando a viu e que, agarrando-se à sua aparente popularidade, ela levou-o ao
apogeu. A insurreição identificou-se naturalmente para ele ao novo poder.
O comité executivo tinha entretanto decidido que, numa revolução burguesa, o poder
deve pertence à burguesia. Esta formula parecia falsa para Kerensky pela simples razão
que ela lhe fechava a porta do governo. Ele estava convencido, muito justamente, disto:
que o seu socialismo não lhe impedia a revolução burguesa, mesmo que não causaria
qualquer prejuízo ao seu socialismo. O comité provisório da Duma decidiu tentar arrancar-
lhe o deputado radical ao Soviete e conseguiria sem dificuldade ao lhe propor a pasta da
Justiça que Maklakov já tinha tido o tempo de recusar. Kerensky interceptava nos
corredores os seus amigo e perguntava-lhes: aceito ou não? Os amigos não duvidavam
que Kerensky estivesse decidido em aceitar. Sokhanov, muito favorável a Kerensky neste
período, disse deste último, na verdade, nas suas Memórias publicadas mais tarde, “a
segurança de qualquer missão a cumprir... e a maior acrimonia para com os que não
adivinhavam ainda esta missão”. Finalmente os amigos, entre eles Sokhanov,
aconselharam Kerensky a aceitar a pasta: seria mais seguro, ter-se-ia um homem para
saber o que se fazia entre as forças, os líderes do comité executivo recusar-lhe-iam uma
sanção oficial. Porque o executivo já se tinha pronunciado, como lembrava Sokhanov a
Kerensky e isso não era “sem perigo” de colocar ainda a questão diante do Soviete que
poderia simplesmente responder: “O poder deve pertencer à democracia soviética.”

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Tal foi, literalmente, a narrativa do próprio Sokhanov, verosimilhante combinação de
ingenuidade e de cinismo. O inspirador da sagrada comédia do poder reconhece
abertamente que, desde do 2 de Março, o Soviete de Petrogrado era favorável à tomada
formal do poder que lhe pertencia de facto desde da noite do 27 de Fevereiro, e que era
somente nas costas dos operários e dos soldados, sem que eles soubessem e contra a
sua vontade efectiva, que os líderes socialistas podiam expropriar o Soviete em benefício
da burguesia. O negócio concluido entre os democratas e os liberais ganhou, na narrativa
de Sokhanov, todas as aparências jurídicas necessárias de um crime contra a revolução,
isto é uma conspiração secreta contra o poder e os direitos do povo.
Sobre a impaciência de Kerensky, os dirigentes do comité executivo segredavam
entre eles que não era decente para um socialista em aceitar oficialmente uma parcela do
poder nas mãos dos homens da Duma que tinham acabado de receber a autoridade
completa das mãos dos socialistas. Melhor valia que Kerensky fizesse isso sob a sua
responsabilidade pessoal. Na verdade, esses senhores, por um infalível instinto,
encontraram em cada situação a saída mais confusa e falsa. Mas Kerensky não queria
entrar no governo com um fato de deputado radical: ele necessitava de uma toga de um
plenipotenciário da revolução vitoriosa. Para não encontrar resistência, ele não pedia a
sanção do partido do qual ele se proclamou membro, nem a do comité executivo, onde
ele contava como vice-presidente.
Sem prevenir os dirigentes, na sessão plenária do Soviete que ainda eram nessa
época umas reuniões caóticas, ele pediu a palavra para fazer uma declaração de
urgência e, num discurso que uns caracterizam como confuso, outros como histérico, -
onde aliás não há ponta de contradição, - ele pede que confiem nele, fala da sua
determinação de morrer pela revolução e da sua decisão ainda mais imediata de aceitar a
pasta de ministro da Justiça. Bastou que ele mencionasse a necessidade de um
complemento de amnistia política completa e o julgamento dos altos dignitários do czar
para que ele suscitasse uma tempestade de aplausos numa assembleia inexperiente que
ninguém dirigia. «Esta farsa, disse Chliapnikov nas suas Memórias, provocou em muita
gente uma profunda indignação e a aversão por Kerensky. » Mas ninguém lhe respondeu:
tendo transmitido o poder à burguesia, os socialistas, como sabe o leitor, evitavam
levantar esta questão diante da massa. Não houve voto. Kerensky decidiu interpretar os
aplausos como um mandato de confiança. À sua maneira, ele tinha razão. O Soviete era
indubitavelmente partidário da entrada dos socialistas no governo, vendo nisso a doutrina
oficial do poder, Kerensky aceitou, no dia 2 de Março, o posto de ministro da Justiça da
Rússia». O que Kerensky mostrou efectivamente, alguns meses mais tarde, no processo
contra os bolcheviques.
O menchevique Tchkhéidzé ao qual os liberais, guiando-se por um cálculo
demasiado simplista e sobre a tradição internacional, quiseram, num momento difícil,
impor o ministério do Trabalho, recusou categóricamente e continuou presidente do
Soviete dos deputados. Menos brilhante que Kerensky, Tchkhéidzé era contudo feito de
um matéria mais sólida.

140
O eixo do governo provisório foi, ainda sem ser formalmente o chefe, Miliokov,
incontestavelmente líder do partido cadete.» Miliokov era, geralmente, de outra têmpera
que os seus colegas do governo – escrevia Nabokov após ter rompido com o próprio
Miliokov - como força intelectual, como individuo com conhecimentos sem número, quase
inesgotáveis e de espírito largo. «Sokhanov, que fez cair sobre a personalidade de
Miliokov a responsabilidade da queda do liberalismo russo, escrevia ao mesmo tempo:
«Miliokov era então a figura central, a alma e o cérebro de todos os círculos políticos
burgueses... Sem ele, não haveria nenhuma política burguesa no primeiro período da
revolução.» Por excessivos que sejam esses julgamentos, eles notam a indiscutível
superioridade de Miliokov em relação aos outro políticos da burguesia russa. A sua força
consistia no que também fazia a sua fraqueza: ele exprimia cada vez mais perfeitamente
que outros, na linguagem da política, completamente a sorte desta burguesia, isto é a sua
incapacidade histórica. Se os mencheviques deploravam que Miliokov tivesse arruinado o
liberalismo, poder-se-ia dizer mais justamente que o liberalismo arruinou Miliokov.
A despeito de um neo-eslavismo reaquecido pelos seus anseios imperialistas,
Miliokov continuava sempre a ser um partidário burguês do Ocidente. Ele considerava
como o objectivo do seu partido o triunfo na Rússia da civilização europeia. Mas, cada vez
mais, ele temia as vias revolucionárias pelas quais tinham passado os povos ocidentais. É
por isso que o seu ocidentalismo conduziu a uma impotente ânsia em relação ao
ocidente.
As burguesias inglesas e francesas tinham erguido uma nova sociedade às suas
imagens. A burguesia alemã veio mais tarde e teve muito tempo que se contentar com
uma boa papa de aveia filosófica. Os alemãs inventaram a palavra Weltanschauung
(visão do mundo), que não existe entre os ingleses nem entre os franceses: enquanto que
as nações ocidentais criavam um novo mundo, os Alemães contemplavam-o. Mas a
burguesia alemã, deficiente na acção política, criou a filosofia clássica – e isso não é uma
simples contribuição. A burguesia russa veio ainda mais tarde: é verdade que ela traduziu
a palavra Weltanschauung em russo, mesmo com várias variantes, mas ela não a
demonstrou senão mais claramente, com a sua impotência política, mortal indigência
filosófica. Ela importava ideias assim que a técnica após ter estabelecido para esta última
altas tarifas alfandegárias e para as primeiras a quarentena do medo. Foi com tais traços
de carácter da sua classe que Miliokov foi chamado a dar uma expressão política.
Antigo professor de história em Moscovo, autor de importantes obras científicas,
depois fundador do partido cadete onde se fundiu a união dos proprietários liberais e a
união dos intelectuais de esquerda, Miliokov era absolutamente isento do intolerável
diletantismo político, parcialmente senhorial, parcialmente intelectual, que caracterizou a
maioria dos políticos liberais russos. Miliokov exercia a sua profissão muito a sério e isso
bastava a valorizá-lo.
Os liberais russos, até 1905, sentiam-se habitualmente tímidos por serem liberais.
Uma cor de populismo e, mais tarde, de marxismo, foi durante muito tempo para eles uma
cor indispensável de protecção. Esta capitulação vergonhosa, de facto pouco profunda,
de largos círculos burgueses, dos quais um certo número de jovens industriais, diante do

141
socialismo, exprimia a falta de segurança íntima de uma classe que surgiu a tempo de
para recolher milhões, mas demasiado tarde para tomar a cabeça da nação. Pais
barbudos, mujiques e lojistas enriquecidos, amontoavam riquezas sem pensar ao seu
papel social. Os filhos saíam das universidades num período em ebulição pré-
revolucionária das ideias e, quando tentava encontrar um lugar na sociedade, não se
apressavam em colocarem-se sob a bandeira do liberalismo, já gasto pelos países
avançados, descolorado e remendado. Durante um certo tempo, eles deixaram aos
revolucionários uma parte da sua alma e mesmo um parte dos seus rendimentos. Ainda
mais, isto diz respeito aos representantes das profissões liberais: em número
considerável, eles tinham passado, na sua juventude, por um período de simpatias
socialistas. O professor Miliokov nunca sofreu do sarampo do socialismo. Ele era
organicamente um burguês e não tinha vergonha disso.
Na realidade, no período da primeira revolução, Miliokov ainda não tinha renunciado
completamente à esperança de se apoiar sobre as massas revolucionárias por intermédio
dos partidos socialistas domesticados. Witte conta que no momento quando formou
governo, em Outubro de 1905, como ele pedia aos cadetes de «cortar a cauda à
revolução», estes responderam-lhe que eles não podiam mais renunciar às forças
armadas da revolução como Witte não podia fazê-lo com o exército. No fundo, já era,
desde então, uma chantagem: para se valorizarem, os cadetes procuravam intimidar Witte
com as massas que eles próprios temiam. Precisamente segundo a experiência de 1905,
Miliokov constatou que, muito fortes que fossem as simpatias dos grupos socialistas
intelectuais, as verdadeira forças da revolução – as massas – nunca devolveriam as
armas à burguesia e que elas seriam tanto mais perigosas para esta se elas estivessem
armadas. Tendo abertamente proclamado que a bandeira vermelha é um trapo vermelho,
Miliokov acabava com um evidente alívio de um romance que em suma nunca começou
seriamente.
A separação da denominada intelliguentsia e do povo constituía um dos temas
tradicionais do jornalismo russo, onde os liberais, contrariamente aos socialistas,
compreendiam como intelliguentsia todas as pessoas «instruídas», isto é as classes
possuidoras. Desde que este isolamento se descobriu, total e ameaçador diante dos
liberais durante a primeira revolução, os ideólogos des classes «instruídas» viviam na
espera perpétua do último julgamento. Um dos escritores liberais, um filosofo não ligado
pelas convenções da política, exprimiu a sua apreensão das massas com uma violência
desesperada que lembra o pensamento reaccionário epiléptico de Dostoievsky: «Quem
quer que sejamos, não somente não podemos sonhar de uma fusão com o povo, mas nós
devemos temê-lo mais que todas as execuções do governo e benzer esse poder que só,
por meio das baionetas e das suas prisões, nos protege contra o furor popular.» Com tais
disposições políticas, os liberais podiam sonhar em dirigir um nação revolucionária? Toda
a política de Miliokov está marcada do selo do desespero. No momento da crise nacional,
o partido à cabeça do qual ele se encontra pensa em evitar o golpe e não em o dar.
Como escritor, Miliokov é cansativo, prolixo e fatigante. Mesmo como orador. O
decorativo não é o seu genero. Poderia ser um «mais» se o avarento político de Miliokov
não necessitasse de se marcar, ou então, pelo menos, ele tinha tido o abrigo objectivo de

142
uma grande tradição: mas ele nem tinha uma pequena tradição. A política oficial em
França, quinta-essência do egoísmo e da velhacaria dos burgueses, tem dois potentes
apoios: a tradição e a retórica. Multiplicada uma pela outra, eles envolvem-se por um véu
protector cada político burguês, mesmo um faz-tudo tão prosaico do grande capital como
Poincaré. Não foi por culpa de Miliokov se os predecessores patéticos lhe faltaram e teve
que aplicar a política do egoísmo burguês na fronteira da Europa e da Ásia.
«Ao lado das simpatias por Kerensky – lemos nas Memórias do socialista
revolucionário Sokolov, sobre a Revolução de Fevereiro – desde do início, existe uma
grande simpatia, não dissimulada e estranha no seu género, em relação a Miliokov. Eu
não compreenderia e não compreendo ainda porquê este honrado político foi tão
impopular.» Se os filisteus tinham compreendido a causa do seu entusiasmo por Kerensky
e da sua aversão por Miliokov, eles teriam cessado de serem filisteus. O burguês médio
não gostava de Miliokov porque este exprimia-se num sentido demasiado prosaico e duro,
sem cor, a essência política da burguesia russa. Ao olhar-se num espelho, Miliokov, o
burguês viu que ele era insignificante, cupido, cobarde e, como acontece habitualmente,
se zanga contra o espelho.
Notando por seu lado as caretas de descontentamento do burguês liberal, Miliokov
dizia calmamente, e com segurança: «O homem da rua é besta.» Ele falava assim sem
irritação, com uma pronúncia quase carinhosa, desejando dizer: se o homem da rua não
me compreende hoje, não há infelicidade, ele compreenderá mais tarde. E Miliokov vivia
esta profunda certeza que o burguês não o trairia, e, obedecendo à lógica da situação, se
deixaria arrastar por ele, Miliokov, por falta de outra saída. E com efeito: após a
insurreição de Fevereiro, todos os partidos burgueses, mesmo os da direita, seguiram o
líder cadete, invectivando por vezes e mesmo amaldiçoando-o.
Para Sokhanov, político democrata socialista era outra coisa. Não era simplesmente
um homem da rua, era, ao contrário, o político profissional, suficientemente especialista
no seu pequeno ofício. «Inteligente», este político não poderia parecer, porque ele
saltitava demasiado de modo que um contraste contínuo existia entre o que Sokhanov
queria e ao que ele chegava. Mas ele passava-se por espertalhão, confundia e aborrecia.
Para o levar era preciso enganá-lo, não somente em lhe reconhecendo completa
independência, mas mesmo acusando-o de abuso de poder e de autoritarismo. Isso
lisonjeava-o e acomodava-o no seu papel de condescendent. É precisamente numa
entrevista com um des espertalhões do socialismo que Miliokov lançou a sua frase «o
homem da rua é besta». Foi uma lisonja delicada: «Só vós e eu é que somos
inteligentes.» Na realidade, Miliokov, precisamente nesse momento, meteu o anel no nariz
dos seus amigos democratas. Com esse anel, eles foram rejeitados.
A impopularidade pessoal de Miliokov não lhe permitiu tomar a cabeça do governo:
ele encarregou-se dos Negócios Estrangeiros, que já era a sua especialidade na Duma.
Ministro da Guerra da revolução era o grande industrial de Moscovo que já se
conhece, Gotchkov, liberal desde da sua juventude com disposições de aventureiro e
homem de confiança da alta burguesia do tempo de Stolypine, no período de
esmagamento da primeira revolução. A dissolução das duas primeiras Dumas, onde

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dominavam os cadetes, levou ao golpe de Estado de 3 de Junho de 1907, visando a
modificação do direito eleitoral em proveito do partido de Gotchkov, partido que dirigiu
seguidamente as duas últimas Dumas até à revolução. Quando, em 1911, em Kiev, foi
inaugurado o monumento de Stolypine, que tinha sido morto por um terrorista, Gotchkov,
depondo uma coroa, inclinou-se silenciosamente até ao chão: foi um gesto em nome de
classe.
Na Duma, Gotchkov consagrou-se sobretudo às questões de «potência militar» e, na
preparação da guerra, caminhava ao lado de Miliokov. Na qualidade de presidente do
comité central das indústrias de guerra, Gotchkov reunia os industriais sob a bandeira da
oposição patriótica sem impedir de algum modo os dirigentes do bloco progressista,
incluindo Rodzianko, de fazer dinheiro no fornecimento de material militar. Uma
recomendação de revolucionário era meia legenda ligada ao nome de Gotchkov na
preparação de uma revolução palaciana. O antigo chefe da polícia afirmou além disso que
Gotchkov «permitiu-se, em conversações privadas sobre o monarca, aplicar ao nome
deste um epíteto altamente ultrajante.» É completamente verosimilhante. Mas Gotchkov,
a esse respeito, não era excepção. A piedosa czarina odiava Gotchkov, dispensou a
Gotchkov insultos ordinários nas cartas e esperava que ele fosse enforcado «alto e
curto». Aliás, para esse fim, a czarina tinha mais que um homem debaixo de olho. De
qualquer maneira, este que tinha saudado o carrasco da primeira revolução era o ministra
da Guerra na segunda.
Como ministra da Agricultura foi nomeado o cadete Chingarev, médico na província,
que se tornou depois deputado na Duma. Os seus mais próximos partidários
consideravam-no como uma mediocridade honesta, ou, segundo a expressão de
Nabokov, como um «intelectual russo da província, feito à medida não do Estado mas de
um departamento ou de um distrito». O radicalismo indeterminado dos anos de juventude
de Chingarev pôde deste muito tempo deteriorar-se, e a principal preocupação deste
homem foi mostrar às classes possuidoras a sua maturidade de homem de Estado. Ainda
que o antigo programa cadete falasse de uma «expropriação obrigatória das terras dos
proprietários nobres depois de uma avaliação justa», nenhum proprietário levou esse
programa a sério, sobretudo agora, durante os anos de guerra, e Chingarev via a parte
principal da sua tarefa a diferir a solução do problema agrário dando aos camponeses a
esperança, com a miragem de uma Assembleia constituinte que os cadetes não queriam
convocar. Sobre a questão da terra e sobre a da guerra, a Revolução de Fevereiro devia
partir o pescoço.
Chingarev ajudou-a tanto que pôde.
A pasta das Finanças calhou a um jovem chamado Terechtchenko. Donde o foram
buscar? Perguntava-se com surpresa no palácio de Tauride. As pessoas informadas
explicavam que era um proprietário de refinarias de açucar, de domínios, de florestas e de
outras riquezas incalculáveis avaliadas em oitenta milhões de rublos de ouro, o presidente
do comité das indústrias de guerra de Kiev, pronunciando bem em francês e, além disso,
conhecedor de bailados. Acrescentaram, significativamente, que Terechtchenko, na
qualidade de confidente de Gotchkov, tinha quase participado na grande conspiração que

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devia obter a deposição de Nicolau II. A revolução que estorvou a conspiração ajudou
Terechtchenko.
Durante as cinco jornadas de Fevereiro, enquanto que nas ruas da capital, se
desenrolavam os combates revolucionários, diante de nós passou várias vezes a sombra
de um liberal nascido numa família de dignitários, filho do antigo ministro do czar,
Nabokov, figura quase simbólica da correcção do amor-próprio e no seu egoísmo
endurecido. Os dias decisivos da insurreição, Nabokov passou-os entre os quatro muros
de uma chancelaria ou em família, «numa expectativa ansiosa e desconcertante». Agora,
secretário de Estado do governo provisório, era com efeito ministro sem pasta. Na
emigração, em Berlim, vítima de uma bala insensata de um guarda branco, deixou notas
não desprovidas de interesse sobre o governo provisório. Atribuamos-lhe esse mérito.
Mas esquecemos-nos de nomear o primeiro ministro, que, aliás, todos esquecem
nos momentos mais importantes do seu efémero governo. No dia 2 de Março,
recomendando o novo governo na reunião do palácio Tauride, Miliokov indicou o príncipe
Lvov como «a encarnação dos meio socialistas russos perseguidos pelo regime czarista».
Mais tarde, na sua História da Revolução, Miliokov nota prudentemente que à cabeça do
governo foi colocado o príncipe Lvov «pessoalmente pouco conhecido da maioria dos
membros do comité provisório». O historiador tenta aqui de libertar o político da sua
responsabilidade por essa escolha. Na realidade, o príncipe contava há já muito tempo no
partido cadete, na sua ala direita.
Após a dissolução da primeira Duma, na famosa sessão dos deputados em Vyborg
que dirigiram à população o apelo ritual do liberalismo ofendido - «não pagar impostos» -
o príncipe Lvov, presente, não assinou o manifesto. Nobokov recorda nas suas
Lembranças que, desde da sua chegada a Vyborg, o príncipe caiu doente e que a sua
indisposição foi «atribuida à emoção na qual ele se encontrava». Segundo as aparências,
o príncipe não era feito para tremores revolucionários. Extremamente moderado, o
príncipe Lvov, em virtude de uma diferença política que parecia a vistas largas, apoiava,
em toda as organizações à cabeça das quais ele se encontrou, um grande número de
intelectuais de esquerda, antigos revolucionários, patriotas socialistas emboscados. Eles
não trabalham pior que os outros funcionários, não roubavam e, ao mesmo tempo, davam
ao príncipe a aparência de popularidade. Príncipe, rico e liberal, impunha-se ao burguês
médio. É por isso que o príncipe Lvov era indicado como primeiro ministro logo no tempo
do czar. Se resumirmos o que acabou de ser dito, é necessário reconhecer que o chefe
do governo da Revolução de Fevereiro representava um vazio patente, mesmo
sereníssimo. Rodzianko teria tido, de qualquer modo, mais cor.
A história legendária do Estado russo começa por uma crónica contando que os
enviados das populações eslavas teriam vindo pedir aos príncipes escandinavos e dizer-
lhes: «Vinde possuir-nos e serem os nossos soberanos.» Os miseráveis representantes
da democracia socialista representaram a legenda histórica como gesto, não no século
XIX, mas no século XX, com a diferença que eles dirigiam-se não aos príncipes do
ultramar, mas aos príncipes do país. Assim, como resultado da insurreição dos operários
e soldados, encontraram-se no poder vários proprietários e industriais extremamente

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ricos, que não se distinguiam absolutamente em nada, diletantes da política desprovida
de programa, tendo à cabeça um príncipe que não suportava os sarilhos.
A composição do governo foi agregada com satisfação pelas embaixadas aliadas,
nos salões burgueses e burocráticos e nos meios mais largos da média e parcialmente
pequena burguesia. O príncipe Lvov, o outubrista Gotchkov, o cadete Miliokov – esses
nomes eram de uma sonoridade tranquilizante. Talvez o nome de Kerensky obrigava os
aliados a fazer uma careta, mais ele não os assustava. Os mais perspicazes
compreendiam isto: há mesmo assim uma revolução no país: com um limoeiro tão seguro
como Miliokov, um buliçoso cavalo de envergadura só pode ser útil. Assim devia pensar o
embaixador de França Paléologue, que gostava das metáforas russas.
Entre os operários e os soldados, a composição do governo engendrou
imediatamente sentimentos de hostilidade ou, no melhor dos casos, a surda perplexidade.
Os nomes de Miliokov ou de Gotchkov não podiam suscitar nenhuma aclamação da
fábrica ou da caserna. A esse respeito conservaram-se numerosos testemunhos. O oficial
Mstislavsky exprime a triste ansiedade dos soldados que viam o poder passar do czar a
um príncipe: valaria a pena ter derramado sangue por isso? Stankevitch, que pertencia ao
círculo íntimo de Kerensky, fez, no 3 de Março, uma digressão no batalhão de sapadores,
visitando uma companhia após outra, e recomendava que o novo governo que ele próprio
considerava o melhor de todos os governos possíveis e de quem se falava com grande
entusiasmo. «Mas, no auditório, sentia-se um friozinho.» Foi somente quando o orador
citava Kerensky que os soldados «exaltavam uma verdadeira satisfação». Nesse tempo, a
opinião pública da pequena burguesia na capital já tinha chegado a transformar Kerensky
em herói colocado no centro da revolução. Os soldados, mais que os operários, queriam
ver em Kerensky um contrapeso ao governo burguês e admiravam-se somente que ele
estivesse só nesse lugar. Mas Kerensky, longe de ser um contrapeso, era um
complemento, uma camuflagem, um decor. Ele defendia os mesmos interesses que
Miliokov, mas com reflexos de magnésio.
Qual foi a real constituição do país após a instituição do novo poder?
A reacção monárquica escondia-se nos interstícios. Logo que surgiram as primeiras
águas do degelo, os proprietários de toda a especie e de todas as tendências agruparam-
se sob a bandeira do partido cadete que, em consequência, encontrou-se como o único
partido não socialista e, ao mesmo tempo, a extrema direita na arena aberta.
As massas caminhavam quase na totalidade para os socialistas que se confundiam,
na sua opinião, com os sovietes. Não somente os operários e os soldados das
formidáveis guarnições da retaguarda, mas o povinho colorido das cidades, artesãos,
vendedores ambulantes, pequenos funcionários, cocheiros, rapazes porteiros, domésticos
de todas as especies, afastavam-se do governo provisório e dos seus escritórios,
procuravam um poder mais próximo, mais acessível. Em número cada vez maior,
apresentavam-se no palácio Tauride delegados do campo. As massas afluíam nos
sovietes como sob os arcos do triunfo da revolução. Tudo o que ficava fora dos sovietes
caia de qualquer forma separados da revolução e pareciam pertencer a outro mundo. Era

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bem assim: fora dos sovietes ficava o mundo dos possuidores cujas cores eram
imediatamente fundidas numa só nuança de rosa pardo da protecção.
Não foi toda a massa trabalhadora que elegeu os sovietes, ela não acordou de uma
só vez, não foram todos os meios oprimidos que ousaram logo acreditar que a revolução
lhes dizia respeito também. Numerosos foram os que tinham consciência de uma
esperança indistinta. Para os sovietes se precipitou todo o activo das massas, e, em
tempo de revolução, mais que nunca, a actividade é vitoriosa; e como a actividade das
massas aumentava dia após dia, a base dos sovietes alargava-se constantemente. Foi a
única base real da revolução.
O palácio de Tauride era a sede da Duma e do Soviete. O comité executivo, no início
apertava-se nos estreitos escritórios pelos quais passava a incessante torrente humana.
Os deputados da Duma tentavam sentir-se mestres da situação nas suas salas de
aparato. Mas os muros foram logo levados pela forte torrente das águas da revolução.
Apesar da indecisão dos seus dirigentes, o Soviete alargou-se irresistivelmente, enquanto
que a Duma era rejeitada cada vez mais para as traseiras. A nova relação de forças abria
caminha por todos os lados.
Os deputados do palácio de Tauride, os oficiais nos seus regimentos, os generais
nos estados-maiores, os directores e administradores nas fábricas, os caminhos de ferro,
os telégrafos, os proprietários ou capatazes nas propriedades, todos sentiam-se, logo nos
primeiros dias da revolução, sob a infatigável e malévola vigilância da massa. O Soviete
era aos olhos desta massa a expressão organizada do seu desafío em relação a todos os
que a tinham oprimido. Os tipógrafos vigiavam de forma ciumenta os textos dos artigos
compostos, os ferroviários controlavam com inquietação e vigilância os comboios
militares, os telegrafistas davam uma nova leitura aos telegramas, os soldados
interrogavam-se entre eles com o olhar o mais pequeno gesto suspeito de um oficial, os
operários expulsava da fábrica o contramestre Cem Negro e observavam o director
liberal. A Duma, logo nas primeiras horas da revolução, e o governo provisório, logo nos
primeiros dias, tornaram-se uma reserva onde afluíam as queixas da alta sociedade, seus
protestos contra «os excessos», suas observações entristecidas, seus sombrios
pressentimentos.
«Sem a burguesia nós não poderemos tomar o aparelho de Estado» pensava a
pequena burguesia socialista, deitando um olhar assustado sobre os estabelecimentos do
Estado, donde o esqueleto do antigo regime parecia olhar com as suas órbitas profundas.
A saída encontrada foi que sobre o aparelho decapitado pela revolução colaram pouco
mais ou menos uma cabeça liberal. Novos ministros instalaram-se nos ministérios do czar,
e transformados em mestres de máquinas de escrever, dos telefones, dos estafetas, das
estenografas e dos funcionários, persuadiam-se cada vez mais que a máquina funcionava
no vazio.
Kerensky lembrou-se mais tarde como o governo provisório «tinha tomado o poder
no terceiro dia da anarquia de toda a Rússia, quando, sobre toda a extensão da terra
russa, não somente não subsistia nenhuma autoridade, mas não havia literalmente um só
presidente da câmara». Os sovietes de deputados operários e soldados, que dirigiam

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numerosos milhões, massas, não são considerados: porque enfim, eles não são senão
um elemento de anarquia. O país foi abandonado a si próprio, o que caracteriza o
desaparecimento do agente da polícia. Nessa confissão dos ministros que estavam mais
à esquerda é a chave de toda a política do governo.
Os lugares de governadores de província foram ocupados, por decisão do príncipe
Lvov, pelos presidentes das direcções departamentais de zemstovs, os quais não se
distinguem muito dos seus predecessores! Em mais de um caso, eram esses proprietários
feudais que consideravam mesmo os governadores de província como jacobinos. Na
cabeça dos distritos colocavam-se os presidentes da administração de distrito. Sob a
denominação completamente nova de «comissários», a população reconhecia velhos
inimigos. «Os mesmos velhos papas, mais pomposamente denominados», como outrora
dizia Milton sobre a cobarde Reforma dos presbiterianos. Os comissários de província e
de distrito ampararam-se das máquinas de escrever, das dactilógrafas, dos funcionários
ao serviço dos governadores e chefes da polícia (ispravniks) para melhor constatar que
estes não lhes legava nenhum poder. A vida, nas províncias e nos distritos,
concentravam-se à volta dos sovietes. A dualidade do poder passou assim de alto para
baixo. Mas, nas localidades, os dirigentes dos sovietes, os mesmos socialistas
revolucionários e mencheviques, agiam mais simplesmente e não rejeitavam – longe de
disso – o poder que lhe impunham todas as circunstâncias. Resultado, a actividade dos
comissários de província consistia principalmente em queixas sobre a absoluta
impossibilidade de exercer seus plenos poderes.
No dia seguinte da formação de um governo liberal, a burguesia sentiu que, longe de
ter adquirido o poder, ela tinha-o perdido. Tão fantástico que tenha sido o arbítrio da
clique rasputiniana até à insurreição, o seu poder real tinha uma característica limitada. A
influência da burguesia sobre os negócios do Estado era imensa. A participação da
própria Rússia na guerra foi em grande medida a obra da burguesia mais que da
monarquia. Mas o essencial foi que o poder czarista garantia aos proprietários suas
fábricas, terras, bancos, imóveis, jornais, e, em consequência, na questão mais
importante era o seu poder. A Revolução de Fevereiro modificou a situação em duas
direcções contrárias: ela confiou solenemente à burguesia os atributos exteriores do
poder, mas, ao mesmo tempo, retirou-lhe a porção de real potência que ela dispunha
antes das revolução. Os que, na véspera, tinham servido na União de zemstovos, onde o
príncipe Lvov era patrão, no comité das indústrias de guerra, onde comandava Gotchkov,
tornaram-se desde então, sob a denominação de «socialistas revolucionários» e de
«mencheviques», os mestres da situação no país e sobre a frente, na cidade e na aldeia,
nomearam ministros Lvov e Gotchkov e, por essa ocasião, colocaram-lhe condições como
se eles os admitiam como empregados.
Por outro lado o comité executivo, tendo criado um governo burguês, não podiam de
forma nenhuma decidirem-se, tal Deus da Bíblia, declarar que a sua criação era boa. Ao
contrário, o comité apressou-se logo em aumentar a distância entre ele próprio e a sua
obra, afirmando que dispunha-se a apoiar o novo poder unicamente na medida onde este
serviria fielmente a revolução democrática. O governo provisório concebia perfeitamente
que ele não se aguentaria mesmo uma hora sem o apoio da democracia oficial! Ora, esse

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apoio não lhe era prometido senão como prémio de boa conduta, isto é para a realização
de tarefas às quais ele se sentiria estranho, e cuja democracia ele próprio acabava de
recusar a solução. O governo nunca soube em que limites ele podia manifestar o seu
poder de meio contrabando. Os dirigentes do comité executivo não puderam sempre
informarem-se sobre isso com antecedência, porque lhes era tão difícil adivinhar o limite
onde rebentaria o descontentamento no seu próprio meio, como reflexo do
descontentamento da massa. A burguesia fingia ter sido enganada pelos socialistas. Por
outro lado, os socialistas temiam que, pelas suas pretensões prematuras, os liberais não
só sublevassem as massas, estragando assim uma situação que já não era fácil. «Na
medida que … tanto mais » - esta formula equívoca marcou todo o período que procede
Outubro, tornando-se a formula jurídica de uma mensagem interna ao regime híbrido da
Revolução de Fevereiro.
Para agir sobre o governo, o comité executivo elegeu uma comissão especial que
denominou gentilmente, mas divertida, «comissão de contacto». A organização do poder
revolucionário foi assim oficialmente construida na base dos princípios da exortação
mútua. Um escritor místico de um certo renome, Merejkovsky, encontrou um precedente
para um tal regime, mas somente no Antigo Testamento – perto dos reis de Israel
encontravam-se os profetas. Mas os profetas da Bíblia, da mesma maneira que o profeta
do último Romanov, recebiam pelo menos a inspiração directamente dos céus, e os reis
não ousavam contradizer: assim foi assegurada a unidade do poder. Para os profetas do
Soviete passava-se de outra maneira: eles vaticinavam somente sob a inspiração do seu
próprio pensamento limitado. Todavia, os ministérios liberais consideravam que nada de
bom em geral não podia vir do Soviete. Tchkheidzé, Skobelev, Sokhanov e outros faziam
diligências junto do governo e aconselhavam-o verbosamente a ceder! Os ministros
replicavam: os delegados voltavam ao comité executivo: impuseram-lhe a pressão da
autoridade governamental: remeteram-se em contacto com os ministros e…
recomeçavam o mesmo jogo. Esse moinho complicado não moía farinha.
Na comissão de contacto, todos se queixavam. Gotchkov, particularmente,
lamentava-se diante dos democratas sobre as desordens provocadas na tropa por
benevolência do Soviete. Às vezes, o ministro da Guerra da revolução, «no sentido
literal… lacrimejavam, ou, pelo menos, esfregavam com aplicação os olhos com o lenço».
Ele julgava, com razão, que secar as lágrimas ungidas do Senhor entrava directamente
nas funções dos profetas. No 9 de Março, o general Alexeiev, que se encontrava à
cabeça do G. Q. G., telegrafaria ao ministro da Guerra: «O jugo alemão aproxima-se se
nos mostrar-mos conciliatórios com o Soviete». Gotchkov respondeu-lhe em termos muito
lacrimosos: o governo, infelizmente! não dispõe poder real, o Soviet detém as tropas, o
caminho de ferro, os correios, os telégrafos. «Pode-se dizer nitidamente que o governo
provisório existe na medida que o Soviete lhe deixa.»
Em cada semana, a situação não melhorava. Quando o governo provisório, no início
de Abril, enviou deputados da Duma à frente, intimou-os, rangendo os dentes, a não
manifestar nenhum desacordo com os delegados do Soviete. Os deputados liberais
sentiram-se, durante toda a viagem, sob escorta, mas compreendiam que de outra forma,
quaisquer que fossem os seus altos poderes, eles não teriam podido não somente

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apresentarem-se diante dos soldados, nem mesmo encontrar o seu lugar no vagão. Esse
detalhe prosaico nas Memórias do príncipe Mansyriev completa admiravelmente a
correspondência de Gotchkov com o G.Q.G. Sobre o conteúdo essencial da constituição
de Fevereiro. O homem de espírito reaccionário caracterizava não sem razão a situação
assim: «O antigo poder está fechado na fortaleza Pedro e Paulo, o novo está nas prisões
domiciliárias.»
Mas o governo provisório não tinha outro apoio senão o equívoco apoio dos
dirigentes do Soviete? Onde se tinham metido as classes possuidoras? Uma questão bem
fundada. Ligada pelo seu passado com a monarquia, elas apressaram-se, após as
perturbações, em se agrupar sobre um novo eixo. O conselho da indústria e do comércio,
representando o capital unificado de todo o país, desde do 2 de Março, «inclinou-se
diante do alto facto da Duma do Império» e colocou-se «à inteira disposição» do seu
comité. Os zemstovs e as municipalidades comprometeram-se na mesma via. Já, no 10
de Março, o conselho da nobreza unificada, apoio do trono, apelava, na linguagem
patética da cobardia, todos os homens russos «a reunir fileiras à volta do governo
provisório, actualmente o único poder legal na Rússia». Quase ao mesmo tempo, as
instituições e os órgãos das classes possuidoras começaram a condenar a dualidade do
poder, atribuindo a responsabilidade das desordens aos sovietes, primeiro
prudentemente, seguidamente sempre mais ousadamente.
Por detrás dos patrões colocaram-se os grandes empregados, as uniões das
profissões liberais, os funcionários do Estado. Do exército chegavam telegramas
fabricados nos estado-maiores, manifestos e resoluções do mesmo género. A imprensa
liberal abriu uma campanha «pelo poder único» que, nos meses seguintes, tomou o
carácter de tiro cerrado contra os líderes dos sovietes. O conjunto tinha um ar
extremamente imponente. O grande número de instituições, de nomes conhecidos, de
resoluções, de artigos, de tom resoluto, tudo isso exercia infalivelmente uma acção sobre
os impressionáveis dirigentes do comité executivo. E, contudo, por detrás desta
ameaçadora parada das classes possuidoras, não havia força séria, - «Mas a força da
propriedade?» replicavam aos bolcheviques os socialistas pequeno burgueses. A
propriedade é uma relação entre os homens. Ela representa uma força enorme enquanto
que ela goza de um reconhecimento geral que tem por apoio um sistema de coerção
chamado «o Direito, e o Estado». Mas a situação consistia precisamente nisto que o
antigo Estado tinha-se desmoronado e que todo o direito antigo se encontrava colocado
sob um ponto de interrogação para as massas.
Nas fábricas, os operários viam-se cada vez mais patrões – e o patrão um hóspede
mal-vindo. Havia ainda menos firmeza nos proprietário rurais, face a face com os
mujiques sombrios e hostis, longe de um poder à existência do qual os donos dos
domínios, por causa da distância, tinha primeiro acreditado. Mas os proprietários, tendo
perdido a possibilidade de dispor dos seus bens e mesmo de os salvaguardar, deixavam
de ser verdadeiros proprietários e tornavam-se simples habitantes fortemente abalados
que não podiam, de maneira nenhuma, ajudar o seu governo, porque eles tinham
sobretudo eles próprios necessidade de serem ajudados por ele. Foi muito cedo que

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começaram amaldiçoar o governo pela sua fraqueza. Mas, ao maldiçoar o governo, eles
amaldiçoavam a sua própria sorte.
Durante esse tempo, a acção conjugada do comité executivo e do Conselho de
ministros parecia tomar como tarefa demonstrar que a arte de dirigir em tempo de
revolução consiste em perder tempo em muito palavreado. Entre os liberais, era questão
de um cálculo consciente. Segundo a sua firme convicção, todos os problemas deviam
ser adiados, salvo o do juramento de fidelidade à Entente.
Miliokov deu a conhecer aos seus colegas os tratados secretos. Kerensky fez de
conta de não ter ouvido. Evidentemente, só o grande procurador do Santo Sínodo, um
Lvov cheio de improvistos, homónimo do primeiro ministro, mas não príncipe, indignou-se
violentamente e declarou mesmo os tratados «dignos de bandidos e de vigaristas»,
provocando indubitavelmente um sorriso indulgente de Miliokov («o homem da rua é
besta») e a proposição de passar simplesmente à ordem do dia. A declaração oficial do
governo prometia a convocação da Assembleia constituinte sem demora, a qual, portanto,
não tinha sido intencionalmente fixada.
Estava fora de questão a forma do Estado: o governo esperava ainda restaurar o
paraíso perdido da monarquia. Mas na realidade a declaração consistia na obrigação de
perseguir a guerra até à vitória e «de respeitar absolutamente os acordos assinados com
os Aliados». No que dizia respeito ao mais terrível problema da existência popular, a
revolução tinha tido lugar somente, parecia, para declarar: tudo fica como estava. Como
os democratas davam ao reconhecimento do novo poder pela Entente um significado
místico: - o pequeno comerciante nada é enquanto que um banco não o reconheceu
solvável, - o comité executivo encaixou em silêncio a declaração imperialista do 6 de
Março. «Nem um órgão oficial da democracia – declarava um ano mais tarde Sokhanov,
num tom desolado - … não reagir publicamente diante do acto do governo provisório que
desonra a nossa revolução desde do seu nascimento aos olhos da Europa democrática.»
No 8 de Março saiu enfim do laboratório governamental um decreto de amnistia. Nesse
momento, as portas das prisões já tinham sido abertas em todo o país pelo povo, os
deportados políticos regressavam numa imensa torrente de reuniões, de entusiasmos, de
músicas militares, de discursos e de flores. O decreto ressonou como um eco tardio das
chancelarias. No dia 12 foi proclamada a revogação da pena de morte. Quatro meses
mais tarde, a mesma pena foi restabelecida pelos soldados. Kerensky tinha prometido
subir a Justiça a uma altura desconhecida. Num acesso de zelo, efectivamente, ele fez
admitir uma proposta do comité executivo preconizando a admissão de representantes
dos operários e soldados como membros das justiças de paz. Foi a única medida pela
qual sentia-se o palpitar do coração da revolução, medida que provocou por
consequência o pavor de todos os eunucos da Justiça. Mas aí pararam as despesas. Um
homem que ocupava, junto de Kerensky, um posto elevado no governo, o advogado
Demianov, «socialista» ele também, decidiu, segundo os seus próprios termos, de
manter-se o princípio da manutenção dos lugares de todos os antigos funcionários: «A
política do governo revolucionário não deve vexar ninguém sem necessidade.» Foi
essencialmente a regra de todo o governo provisório, que temia acima de tudo ofender
alguém entre as classes dirigentes, mesmo a burocracia czarista. Não somente os juízes,

151
mas mesmo os procuradores do czar mantiveram seus empregos. Bem entendido, as
massas podiam zangarem-se. Mas isso, era lá com os sovietes: as massas não
apareciam no horizonte do governo.
Uma especie de brisa de ar fresco vinha somente de uma personagem já nomeada,
o alto procurado Lvov, que fazia os relatórios oficiais sobre os «idiotas e os malandros»
instalados no muito Santo Sínodo. Os ministros não ouviam sem se alarmarem estas
saborosas apreciações, mas o Sínodo continuava a ser uma instituição do Estado, como
a ortodoxia uma religião do Estado. A própria composição do Sínodo foi conservada: a
revolução não se deve disputar com ninguém.
E continuaram a manter as sessões, ou, pelo menos, a receber os seus honorários,
os membros do Conselho de Estado, fiés servidores de dois ou três imperadores. Esse
facto tomou logo um significado simbólico. Nas fábricas e nas casernas, protestavam
ruidosamente. O comité executivo agitava-se. O governo discutiu em duas sessões o
destino e honorários dos membros do Conselho de Estado, e não pôde chegar a qualquer
decisão. Sim, como inquietar honráveis personagens, entre elas, aliás, um certo número
de grandes amigos?
Os ministros rasputinianos ainda eram uma fortaleza, mas o governo provisório
apressou-se a fixar-lhes as pensões. Isso dava o tom ou de troça, ou uma voz do outro
mundo. Mas o governo não queria indispor-se com os seus predecessores, mesmo se
estivessem presos.
Os senadores continuaram a dormitar nos seus uniformes extravagantes, e quando
o senador de esquerda Sokolov, recentemente promovido a esta dignidade por Kerensky,
ousou apresentar-se em sobrecasaca negra, foi simplesmente expulso da sessão: os
senadores do czar não tinham medo de se indispor com a Revolução de Fevereiro
quando eles se convenceram que o governo desta revolução era desdentado.
Outrora, em Alemanha, Marx viu a causa do desmoronamento da Revolução de
Março nisto que o movimento tinha «somente reformado a mais alta cimeira política,
enquanto que não tocava de forma nenhuma as camadas sob essa cimeira – a velha
burocracia, o velho exército, os velhos juízes, nascidos, educados e asseados ao serviço
do absolutismo». Os socialistas do tipo Kerensky procuraram a salvação lá onde Marx via
a causa da perdição. Os marxistas mencheviques estavam com Kerensky e não com
Marx.
O único domínio no qual o governo teve iniciativa e tomou um aspecto revolucionário
foi a sua legislação sobre as sociedade por acções: um decreto de reforma foi
promulgado desde do 17 de Março. As restrições nacionais e confessionais não foram
revogadas senão três dias mais tarde. Na composição do governo, havia um bom número
de pessoas que, sob o antigo regime, não tinham de modo nenhum sofrido senão das
imperfeições do sistema de sociedades por acções.
Os operários exigiam impacientemente a jornada de oito horas. O governo fingiu
surdez. Estava-se em tempo de guerra, toda a gente devia sacrificar-se pela pátria. Aliás,
era assunto do Soviete em aclamar os operários.

152
Ainda mais ameaçadora era a questão da terra. Aí, era preciso fazer pelo menos
alguma coisa. Assediado pelos profetas, o ministro da Agricultura, Chingarev, prescreveu
a criação de comités agrários locais, sem determinar, por circunscrição, as suas funções e
sua tarefas. Os camponeses imaginaram que os comités deviam remeter-lhe as terras. Os
proprietários dos domínios consideravam que os mesmos comités deviam proteger as
suas possessões. Foi assim que desde do início, o regime de Fevereiro sentiu-se o
pescoço apertado pelo nó do mujique, mais impiedoso que todos os outros laços.
Segundo a doutrina oficial, todas as questões donde saiu a revolução eram adiadas
até à
Assembleia constituinte. A vontade nacional podia ser avisada por irrepreensíveis
democratas constitucionais que não tinham conseguido, infelizmente! fazê-la cavalgar por
Miguel Romanov? A preparação da futura representação nacional, entretanto, fazia-se
com uma tal seriedade burocrática e com a lentidão tão calculada que a Assembleia
constituinte transformava-se uma miragem. Foi somente no dia 25 de Março, quase um
mês depois da insurreição – um mês de revolução! - que o governo decidiu formar, para a
elaboração da lei eleitoral, um estorvo de Conferência especial. Mas esta assembleia não
teve lugar. Na sua História da Revolução, constantemente falsa, Miliokov declara com um
tom confuso que em resultado das diversas complicações, «sob o primeiro governo, a
obra da conferência especial não foi empreendida». As complicações voltavam na
constituição da comissão e nas suas obrigações. A tarefa era diferenciar a Assembleia
constituinte até tempos melhores: até à vitória, até à paz ou até às calendas kornilovianas.
A burguesia russa, nascendo demasiado tarde, odiava mortalmente a revolução.
Mas ao seu ódio faltava-lhe força. Ela devia ficar na expectativa e manobrar. Não tendo
possibilidade de derrubar e de sufocar a revolução, a burguesia contava tomá-la por via
de extinção.

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A dualidade de poderes
Em que consiste a dualidade de poderes? Não podemos deixar de nos interrogar
sobre esta questão que não foi esclarecida nos trabalhos de história. Portanto, a
dualidade é um estado particular de uma crise social, característica não somente da
Revolução Russa de 1917, embora marcada precisamente por ela. Classes antagonistas
existem sempre na sociedade e a classe desprovida de poder esforça-se inevitavelmente
em fazer pender de um modo ou outro o curso do Estado para o seu lado. Isso não
significa de forma nenhuma que, na sociedade, reine uma dualidade ou pluralidade de
poderes. O carácter de um regime político é directamente determinado pela relação das
classes oprimidas com as classes dirigentes. A unidade de poder, condição absoluta da
estabilidade de um regime, subsiste enquanto que a classe dominante consegue impor a
toda a sociedade as suas formas económicas e política como as únicas possíveis.
O domínio simultâneo dos junkers e da burguesia – que seja segundo a formula dos
Hohenzollern ou da República – não constitui uma dualidade de poderes, mesmo que
sejam violentas em certos momentos dos conflitos entre os dois detentores do poder: eles
têm em comum a base social, uma cisão no aparelho governamental não é de temer nas
suas dissensões. O regime de duplo poder surge a partir de um conflito irredutível das
classes, e só é possível, em consequência, numa época revolucionária e constitui um dos
elementos essenciais desta.
O mecanismo político da revolução consiste na passagem do poder de uma classe a
outra. A própria insurreição violenta realiza-se habitualmente num curto prazo. Mas
nenhuma classe históricamente definida não sobe de uma situação subalterna à de
dominação subitamente, numa noite, mesmo numa noite de revolução. Ela deve já, na
véspera, ocupar uma posição extremamente independente em relação à classe
oficialmente dominante: ainda mais, ela deve concentrar nela as esperanças das classes
e camadas intermediárias descontentes do que existe, mas incapazes de exercer um
papel independente. A preparação histórica de uma insurreição conduz, em período pré-
revolucionário, à situação em que a classe destinada em realizar o novo sistema social,
sem ainda se tornar mestre do país, concentra efectivamente nas suas mãos uma parte
importante do poder do Estado, enquanto que o aparelho oficial continua ainda entre as
mãos dos antigos possuidores. É aí o ponto de partida da dualidade de poderes em toda
a revolução.
Mas não é o seu único aspecto. Se uma nova classe levada ao poder por uma
revolução que ela não queria é, na realidade, uma classe já envelhecida, históricamente
atrasada: se ela teve tempo de gastar-se antes de ser coroada oficialmente: se, chegando
ao poder, ela cai num antagonismo já suficientemente maduro e que procura meter a mão
sobre o leme do Estado – o equilíbrio instável do duplo poder é substituido, na revolução
política, por um outro equilíbrio, por vezes menos estável. A vitória sobre «a anarquia» do
duplo poder constitui, a cada nova etapa, a tarefa da revolução, ou então... da contra-
revolução.

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A dualidade de poderes não somente não supõe mas, geralmente, exclui a partilha
da autoridade em partes iguais e, em suma, todo o equilíbrio formal das autoridades. É
um facto não constitucional, mas revolucionário. Prova que a ruptura do equilíbrio social já
demoliu a superstrutura do Estado. A dualidade de poderes manifesta-se onde as classes
inimigas se apoiam já sobre organizações de Estado profundamente incompatíveis – uma
caduca, a outra formando-se – que, a cada passo, afastam-se entre elas no domínio da
direcção do país. A parte do poder obtida nessas condições para cada uma das classes
em luta é determinada pela relação de força e pelas fases da batalha.
Pela sua própria natureza, uma tal situação não pode ser estável. A sociedade
necessita de uma concentração de poder e, seja na classe dominante, seja, para o caso
presente, nas duas classes que se partilham a potência, procura irresistivelmente esta
concentração. A fragmentação do poder não anuncia outra coisa senão a guerra civil.
Antes, portanto, que as classes e os partidos rivais se decidam a guerrear, sobretudo se
eles temem a intervenção de uma terceira força, eles podem se encontrar obrigados
durante muito tempo em esperar e mesmo sancionar de qualquer forma o sistema de
duplo poder. Contudo, este último explode inevitavelmente. A guerra civil dá ao duplo
poder o seu poder a expressão mais demonstrador, precisamente territorial: cada um dos
poderes, tendo criado a sua praça das armas entrincheirada, luta pela conquista do resto
do território, o qual, muitas vezes, sofre a dualidade de poderes sob a forma de invasões
alternativas das duas potências beligerantes enquanto que uma delas não se fortaleceu
definitivamente.
A revolução inglesa do século XVII, precisamente porque era uma grande revolução
que transtornou a nação profundamente, representa nitidamente as alternativas da
dualidade de poderes com passagens violentas de um a outro, sob o aspecto da guerra
civil.
Primeiro, o poder real, apoiado sobre as classes privilegiadas ou as cimeiras das
classes, aristocratas e bispos, opõem-se a burguesia e as camadas próximas dela dos
fidalgos de província. O governo da burguesia é o Parlamente presbiteriano que se apoia
sobre a City londrina. A luta prolongada desses dois regimes resolveu-se por uma civil
aberta. Dois centros governamentais, Londres e Oxford, criam os seus exércitos, a
dualidade dos poderes toma forma territorial, ainda que, como sempre numa guerra civil,
as limitações territoriais sejam extremamente instáveis. O parlamento ganha. O rei, feito
prisioneiro, espera o seu destino.
Parece que se constituem as condições de poder único da burguesia presbiteriana.
Mas, ainda antes que seja quebrado o poder real, o exército do parlamento transforma-se
numa força política autónoma. Ela junta nas suas fileiras os independentes, os pequenos
burgueses, artesãos, agricultores, devotos e resolutas. O exército intromete-se de forma
autoritária na vida social, não simplesmente como força armada, não como guarda
pretoriana, mas como representação política de uma nova classe oposta à burguesia rica
e abastada. Em consequência, o exército criou um novo órgão de Estado que se ergueu
acima dos chefes militares: um conselho de deputados soldados e oficiais («agitadores»).
Veio então um novo período de duplo poder: aqui, o parlamento presbiteriano, aí, o

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exército independente. A dualidade de poderes conduz ao conflito declarado. A burguesia
torna-se impotente em dirigir contra o «exército modelo» de Cromwell – isto é, a plebe em
armas – as suas próprias tropas. O conflito termina pela depuração do parlamento
presbiteriano com a ajuda do sabre da independência. Do parlamento resta um vestígio, a
ditadura de Cromwell estabelece-se. As camadas inferiores do exército, sob a direcção
dos «levellers» (niveladores), ala extrema esquerda da revolução, tentam opor-se à
dominação da altas esferas militares, dos grandes do exército, lotar o próprio regime,
autenticamente plebeu. Mas o novo duplo poder não consegue desenvolver-se: os
levellers, as camadas mais baixas da pequena burguesia, ainda não têm e não podem ter
a via independente na história, Cromwell resolver logo o problema dos seus adversários.
Um novo equilíbrio político, aliás longe da estabilidade, instaura-se por um certo número
de anos.
Do tempo da grande Revolução francesa, a Assembleia constituinte, cuja espinha
dorsal compunha-se da elite do Terceiro estado, concentrava-se nas suas mãos o poder
sem suprimir portanto, na totalidade, as prerrogativas do rei. O período da Assembleia
constituinte é a de uma crítica dualidade de poderes que acaba-se pela fuga do rei até
Varennes e formalmente terminou com a proclamação da República.
A primeira Constituição francesa (1791), construída sobre a ficção da absoluta
independência dos poderes legislativos e executivos em relação um ao outro, dissimulava
o facto, ou tentava esconder ao povo uma real dualidade de poderes: o da burguesia,
definitivamente entrincheirada na Assembleia national após a tomada da Bastilha pelo
povo, e o da velha monarquia, ainda apoiada pela alta nobreza, o clero, a burocracia e a
casta militar, sem falar das esperanças fundadas numa intervenção estrangeira. Nas
contradições desse regime preparava-se a sua inevitável derrocada. Não havia saída
possível senão no aniquilamento da representação burguesa pelas forças da reacção
europeia, ou então na guilhotina para o rei e a monarquia. Paris e Coblence deviam
disputar-se.
Mas, ainda antes que se chegue à guerra e à guilhotina, entra em cena a Comuna
de Paris, que se apoia sobre as camadas inferiores do Terceiro estado da capital, e que,
cada vez mais corajosamente, disputa o poder aos representantes oficiais da nação
burguesa. Uma nova dualidade de poderes institui-se, cujas primeiras manifestações são
notadas desde 1790, quando a burguesia, grande e média, ainda está solidamente
instalada na administração e nas municipalidades. Que notável quadro – e odiosamente
caluniado – os esforços das camadas plebeias para subir de baixo, das caves sociais e
das catacumbas, e penetrar na arena interdita onde pessoas, com perucas e cuecas,
resolviam o destino da nação. Parecia que as próprias fundações, pisadas pela burguesia
cultivada, se reanimavam e se metiam em movimento, que, da massa compacta, surgiam
cabeças humanas, estendiam mãos calejadas, ouviam-se vozes roucas, mas viris. Os
distritos de Paris, cidadelas da revolução, viveram a sua própria vida. Eles foram
reconhecidos – é impossível não os reconhecer! - e transformarem-se em secções. Mas
eles quebravam invariavelmente as divisórias da legalidade, e recolhiam um afluxo de
sangue fresco vindo de baixo, abrindo, apesar da lei, suas fileiras aos párias, aos pobres,
aos sem cuecas. Ao mesmo tempo as municipalidades rurais tornaram-se o abrigo da

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insurreição camponesa contra a legalidade burguesa que protege a propriedade feudal.
Assim, sob uma segunda nação levanta-se uma terceira.
As secções parisienses ergueram-se primeiro em oposição contra a Comuna que a
honrada burguesia ainda dispunha. Pelo audacioso impulso do 10 de Agosto de 1792, as
secções ampararam-se da Comuna. A partir de então, a Comuna revolucionária opôs-se à
Assembleia legislativa, depois à Convenção, as quais, todas as duas, atrasavam-se na
marcha nas tarefas da revolução, registando os acontecimentos mas não os produzindo,
porque elas não dispunham de energia, da valentia e da unanimidade desta nova classe
que tinha tido tempo de surgir do fundo dos distritos parisienses e tinha encontrado apoio
nas aldeias mas recuadas. Assim como as secções tinham tomado possessão da
Comuna, esta, por uma nova insurreição, meteu a mão sobre a Convenção. Cada uma
destas etapas era caracterizada por uma dualidade de poderes nitidamente desenhada
cujas alas esforçaram-se em estabelece uma autoridade única e forte, a direita pela
defensiva, a esquerda pela ofensiva.
A necessidade de ditadura tão característica para as revoluções como para as
contra-revoluções procede das intoleráveis contradições de um duplo poder. A passagem
de uma dessas formas a outra cumpre-se pela via da guerra civil. As grandes etapas da
revolução, isto é a transferência do poder às novas camadas sociais, não coincidem aliás
de forma nenhuma com os ciclos das instituições parlamentares que dão seguimento à
dinâmica da revolução como uma sombra atrasada. No fim de contas, a ditadura
revolucionária dos sem cuecas fusiona, é verdade, com a da Convenção, mas qual
Convenção? - de uma assembleia desembaraçada, pelo terror, dos Girondinos que na
véspera, aí predominavam ainda, diminuída, adaptada à preponderância de uma nova
força social. Assim, pelos degraus de um duplo poder, a revolução francesa, durante
quatro anos, subiu ao seu ponto culminante. A partir do 9 de Termidor, de novo pelos
graus de um duplo poder, ela começou a descer. E, ainda uma vez, a guerra civil procede
cada recaída, da mesma maneira que ela tinha acompanhado cada ascenso. Desta
maneira, a sociedade nova procura um novo equilíbrio de forças.
A burguesia russa, combatendo a burocracia raspotiniana e colaborando com ela,
tinha, no decurso da guerra, fortificado extraordinariamente as posições políticas.
Explorando as derrotas do czarismo, ela concentrou entre as suas mãos, por intermédio
das uniões de zemstvos e das municipalidades e dos comités das indústrias de guerra,
uma grande potência, ela dispunha à sua vontade grandes fundos do Estado e
representava em suma um governo paralelo. Durante a guerra, os ministros do czar
queixavam-se por ver o príncipe Lvov abastecer o exército, alimentar, cuidar dos soldados
e mesmo criar para eles instalações de barbeiro. «É preciso acabar ou remeter-lhe o
poder», dizia, desde 1915, o ministro Krivochine. Ele não imaginava que Lvov, dezoito
meses mais tarde, obteria «todo o poder», não das mãos de Kerensky, de Tchkheidze e
de Sokhanov. Portanto, no dia seguinte ao dia onde isso se cumpriu, uma nova dualidade
de poderes se manifestou: ao lado do meio governo liberal da velha, desde então
formalmente legalizado, surgiu um governo liberal da véspera, desde então formalmente
legalizado, surgiu um governo não oficial, mas tanto mais eficaz, este das massas

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trabalhadoras, em especie, dos sovietes. A partir desse momento, a revolução russa
começa a subir à altura de um significado histórico mundial.
Em que, todavia, reside a originalidade da dualidade de poderes da Revolução de
Fevereiro? Nos acontecimentos dos séculos XVII e XVIII, a dualidade dos poderes
constitui cada vez uma etapa natural da luta, imposta aos participantes por uma relação
temporária de forças, e então cada partido esforça-se em substituir à dualidade o seu
poder único. Na Revolução de 1917, nós vemos como a democracia oficial, consciente e
com premeditadamente, constitui um duplo poder, defendendo-se com todas as suas
forças em aceitar a autoridade só para ela. A dualidade estabelece-se, à primeira vista,
não no seguimento de uma luta de classes pelo poder mas como resultado de uma
«concessão» benévola de uma classe para a outra. Na medida onde a «democracia»
russa procurava sair da dualidade, ela não via saída senão na sua própria renúncia à
autoridade. É o que nós chamamos «o paradoxo da Revolução de Fevereiro».
Poder-se-ia talvez encontra uma certa analogia no comportamento da burguesia
alemã, em 1848, em relação à monarquia. Mas a analogia não é completa. A burguesia
alemã tentou, na verdade, partilhar custasse o que custasse o poder com a monarquia
sobre as bases de um acordo. Mas a burguesia não tinha autoridade plena entre as suas
mãos e não queria de forma nenhuma ceder totalmente à monarquia. «A burguesia
prussiana possuía nominalmente o poder, nem um minuto ela duvidou que as forças do
antigo regime não se metessem com segundas intenções à sua disposição e não se
transformassem em partidários dedicados à sua própria força» (Marx e Engels). A
democracia russa de 1917, possuindo desde do momento da insurreição o inteiro poder,
esforçou-se não simplesmente em partilhar com a burguesia, mas em ceder a esta
integralmente os assuntos públicos. Isso significa talvez que, no primeiro quarto do século
XX, a oficial democracia russa já tinha chegado a uma decomposição política maior que a
da burguesia liberal alemã do meio do século XIX. É na ordem das coisas, porque é o
reverso do ascenso efectuado em alguns lustros pelo proletariado que tinha tomado o
lugar dos artesãos de Cromwell e dos sem cuecas de Robespierre.
Se considerar-mos um facto mais profundo, o duplo poder do governo provisório e
do comité executivo tinha um nítido carácter de reflexo. O pretendente ao novo poder não
podia ser senão o proletariado. Apoiando-se sem certeza sobre os operários e os
soldados, os conciliadores foram forçados a manterem a contabilidade em parte dupla dos
czares e dos profetas. O duplo poder dos liberais e dos democratas reflectem somente
uma partilha da autoridade ainda não aparente entre a burguesia e o proletariado.
Quando os bolcheviques expulsarão os conciliadores à cabeça dos sovietes – isso em
alguns meses – a dualidade subterrânea dos poderes se manifestará, e será a véspera da
Revolução de Outubro. Até a esse momento, a revolução viverá num mundo de
refracções políticas. Desviando através das racionalizações dos intelectuais socialistas, a
dualidade de poderes, etapa da luta de classe, transforma-se em ideia reguladora. É
precisamente por aí que ela se coloca no centro da discussão teórica. Nada se perde. O
carácter de reflecto do duplo poder de Fevereiro nos permitiu compreender melhor as
etapas da história onde esta dualidade aparece como um episódio de pletora na luta dos

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dois regimes. Foi assim que uma fraca claridade lunar, como reflexo, permite estabelecer
importantes conclusões sobre a luz solar.
Na maturidade infinitamente grande do proletariado russo, em comparação com as
massas urbanas das antigas revoluções, residia particularidade essencial da revolução
russa, que conduziu primeiro ao paradoxo de uma dualidade de poderes meio
fantasmagórica, e seguidamente impediu a real dualidade em resolver-se vantajosamente
para a burguesia. Porque a questão se colocava assim: ou a burguesia ampara-se
efectivamente do velho aparelho de Estado, renovando-o para servir os seus anseios, e
então os sovietes deveram retirar-se: ou os sovietes constituirão a base do novo Estado,
tendo liquidado não somente o antigo aparelho, mas também a dominação das classe que
se servem. Os mencheviques e os socialistas-revolucionários orientavam-se pela primeira
solução. Os bolcheviques pela segunda. As classes oprimidas que, segundo Marat, não
tinham tido, outrora, suficientes conhecimentos, nem experiência, nem direcção política
para levar até ao fim a sua obra, encontraram-se, na revolução do século XX, armadas
dessas três maneiras. Os bolcheviques foram os vencedores.
Um ano após a vitória, a mesma questão, diante de uma outra relação de forças, se
colocou de novo na Alemanha. A social democracia orientava-se para o estabelecimento
de um poder democrático da burguesia e a liquidação dos sovietes. Rosa Luxemburgo e
Karl Liebknecht tomavam pela ditadura dos sovietes. Os sociais democratas ganharam.
Hilferding e Kautsky na Alemanha, Max Adler na Áustria propunham «combinar» a
democracia com o sistema soviete, integrando os sovietes operários na constituição.
Seria transformar a guerra civil, potencial ou declarada, numa componente do regime de
Estado. Não se imaginaria utopia mais curiosa. A sua única justificação sobre os territórios
alemãs estariam talvez na velha tradição: os democratas do Wurtemberg, em 1884,
queriam já uma república presidida por um duque.
O fenómeno do duplo poder, insuficientemente avaliado até agora, estará em
contradição com a teoria marxista do Estado que considera o governo como o comité
executivo da classe dominante? Equivale em dizer: a oscilação dos cursos sob a
influência da procura e da oferta contradiz a teoria do valor baseado sobre o trabalho? A
dedicação da fêmea que defende o filho recusa a teoria da luta pela existência? Não,
nesses fenómenos, não encontramos somente uma combinação mais complexa das
mesmas leis. Se o Estado é a organização de uma supremacia de classe e se a revolução
é un remplacement de la classe dominante, a passagem do poder, das mãos de uma
classe para as mãos de outra, deve necessariamente criar antagonismos na situação do
Estado, antes tudo sob a forma de um dualismo de poderes. A relação de forças de clase
não é uma grandeza matemática que se presta a um cálculo à priori. Quando o velho
regime perdeu o equilíbrio, uma nova relação de forças não se pode estabelecer senão
como resultado da sua verificação recíproca na luta. É aí a revolução.
Pode parecer que esta digressão teórica nos tenha distraído dos acontecimentos de
1917. Na realidade, ela nos fez penetrar no centro do sujeito. É precisamente em volta do
problema da dualidade do poder que evoluía a luta dramática dos partidos e das classes.

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É somente da cimeira da teoria que se pode deslumbrar esta luta e a compreender
exactamente.

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O comité executivo
O que se criou, no 27 de Fevereiro, no palácio Tauride, sob a dominação do «Comité
executivo do Soviete dos deputados operários», tinha essencialmente pouco em comum
com esta denominação. O Soviete dos deputados operários de 1905, primeiro ascendente
do sistema, nasceu da greve geral. Ele representa directamente as massas em luta. Os
dirigentes da greve tornaram-se deputados do Soviete. A selecção dos efectivos produziu-
se debaixo de fogo. O órgão de direcção foi eleito pelo Soviete para dirigira ulteriormente
a luta. É precisamente o comité executivo de 1905 que meteu ordem na insurreição
armada.
A Revolução de Fevereiro, graças ao levantamento dos regimentos, saiu vitoriosa
antes que os operários tivessem constituído os sovietes.
O comité executivo formou-se arbitrariamente, antes do Soviete independentemente
das fábrica e dos regimentos, após a vitória da revolução. Vemos aqui a clássica iniciativa
dos radicais que se mantêm afastados da luta revolucionária, mas dispõem-se a recolher
os frutos. Os verdadeiros dirigentes operários ainda não tinham deixado a rua,
desarmando uns armando outros, consolidavam a vitória. Os mais previdentes foram
imediatamente alarmados pelas informações anunciando que no palácio Tauride criava-se
um certo Soviete de deputados operários. Assim como a burguesa liberal, esperando uma
revolução palaciana que alguém deveria cumprir, tinha preparado, durante o Outono de
1916, um governo de reserva para o impor, em caso de sucesso, ao novo czar - os
intelectuais radicais constituíam o seu governo sombra no momento da vitória de
Fevereiro. E como, pelo menos no passado, eles aderiram ao movimento operário e
estavam inclinados a referir-se às suas tradições, deram ao filho o título de «comité
executivo do Soviete». Foi uma das falsificações meio premeditadas que a história está
cheia, nomeadamente a história dos levantamentos populares.
Quando os elementos tomam uma feição revolucionária e que se quebra a ordem de
sucessão, as camadas «instruídas», chamadas a participar no poder, confiscam
decididamente os nomes e os símbolos que se associam às lembranças heróicas das
massas. As palavras, frequentemente, dissimulam a essência das coisas, sobretudo
quando estão em jogo os interesses das camadas mais influentes. A enorme autoridade
do comité executivo, desde do dia da sua criação, apoiava-se no seu pretendido direito de
sucessão em relação ao Soviete de 1905. O comité, rectificado pela primeira e caótica
assembleia do Soviete, exerceu seguidamente uma influência decisiva, tanto sobre a
composição do Soviete como sobre a sua política. Esta influência foi tanto mais
conservadora que a selecção natural dos representantes revolucionários, habitualmente
assegurado por uma atmosfera incandescente de luta, não se produzia mais. A
insurreição pertencia já ao passado, todos exaltavam-se da vitória, dispunham-se em
organizar a sua existência: as almas amoleciam-se, e certas cabeças também. Era
necessário meses de novos conflitos e de luta nas novas condições, determinando um
reagrupamento de homens, para que os sovietes, órgãos que concretizavam a vitória,
tornaram-se verdadeiros órgãos de luta e de preparação para um novo levantamento.

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Insistimos tanto mais sobre este aspecto do assunto que ele até ao presente ficou
completamente na sombra.
Todavia, não eram somente as condições nas quais se formaram o comité executivo
e o Soviete que determinaram o seu carácter moderado e conciliador: existiam causas
mais profundas e duráveis que agiram no mesmo sentido.
Havia em Petrogrado mais de cem cinquenta mil soldados. Como operários e
operárias de todas as categorias, pelo menos quatro vezes mais. Contudo, contra dois
delegados operários no Soviete, contavam-se cinco delegados soldados. As normas da
representação eram extremamente extensíveis, todas as proveniência eram dos
soldados. Enquanto que os operários elegiam um só representante por mil indivíduos,
pequenos contingentes militares enviavam frequentemente dois delegados. O tecido
cinzento dos uniformes constituiu o principal fundo do quadro do Soviete.
Mas mesmo entre os civis, nem todos foram eleito pelos operários, longe disso! No
Soviete foram admitidos um bom número de indivíduos por convite pessoal, ou por
protecção, ou simplesmente graças às suas próprias maniganças - advogados, e médicos
radicais, estudantes, jornalista - que representavam diversos grupos problemáticos, mas,
muitas vezes, as suas ambições particulares. Esta evidente alteração do carácter do
Soviete era bem tolerada por dirigentes que esperavam diluir a essência demasiado acre
das fábricas e das casernas com a água morna da pequena burguesia instruída. Números
desses novatos ocasionais, aventureiros, impostores, palradores habituados à tribuna,
acotovelando com autoridade, mantiveram durante muito tempo em xeque os operários
silenciosos e os soldados irresolutos.
Se foi assim em Petrogrado, não era difícil imaginar como as coisas se passavam na
província, onde a vitória chegou sem qualquer luta. Todo o país formigava de soldados. As
guarnições de Kiev, de Helsingfors, de Tiflis não cediam em número à de Petrogrado: em
Saratov, Samara, Tambov, Omsk, contavam-se de setenta mil a oitenta mil soldados: em
Iaroslav, Ekaterinjlav, Ekatarinburgo, nos sessenta mil: numa longa serie de outras
cidades, cinquenta, quarenta e trinta mil. A representação soviética era diversamente
organizada segundo os lugares, mas colocava por todo o lado a tropa numa situação
privilegiada. No sentido político, manifestava-se assim o esforço dos próprios operários
para se aproximarem o mais possível dos soldados. Os dirigentes empenhavam-se de
boa vontade em contentar os oficiais. Além de um número considerável de tenentes e
alferes que, nos primeiros tempos, tinham saído das fileiras, davam frequentemente,
sobretudo na província, uma representação particular no comando. Como resultado, os
militares tinham, em numerosos sovietes, a maioria esmagadora. A massa dos soldados,
que não tinham ainda fisionomia política, determinava, por intermediário dos seus
representantes, a fisionomia dos sovietes.
Em toda a representação existe um elemento de desproporção. É um elemento
particularmente considerável após insurreição. Muitas vezes, no início figuram como
deputados soldados politicamente incapazes, gente absolutamente estrangeira à tropa e à
revolução, intelectuais e meio intelectuais de toda a especie, emboscados nas guarnições
da retaguarda e que se mostravam patriotas. Assim se criava uma divergência entre a

162
mentalidade das casernas e a dos sovietes. O oficial Stankevitch, que os homens do seu
batalhão acolhiam, após a insurreição, com um ar deprimido e desconfiado, falou com
sucesso, numa secção de soldados, sobre o tema inflamado da disciplina. «Porquê,
perguntava, as disposições dos espíritos, no Soviete, ainda são suaves, mais agradáveis,
que as dos batalhões?» Esta ingénua incompreensão mostra mais uma vez como é difícil
para os verdadeiros sentimentos da base caminharem para as cimeiras.
Contudo, desde do 3 de Março, as reuniões de soldados e de operários começam a
exigir do Soviete que ele elimine imediatamente o governo provisório da burguesia liberal
e tome ele próprio o poder. A iniciativa, ainda sobre este aspecto, pertence ao bairro de
Vyborg. E, com efeito, qual reivindicação podia ser mais compreensível, mais aferente às
massas? Mas logo esta agitação foi suspendida: não somente porque os partidários da
defesa nacional opuseram-se violentamente, mas, coisa mais grave, porque a direcção
bolchevique, desde da primeira quinzena de Março, inclinava-se de facto diante do regime
do duplo poder. Ora, excepto os bolcheviques, ninguém não podia colocar
descaradamente a questão do poder. Os dirigentes de Vyborg tiveram que bater em
retirada. Os operários de Petrogrado, portanto, nem confiaram por uma hora no novo
governo: não o consideram com o seu. Mas eles davam atenção aos soldados,
esforçando-se para não se oporem a eles demasiado brutalmente. Os soldados que
apenas balbuciavam as primeiras palavras de política, ainda como mujiques não
confiassem em qualquer desses senhores, eles prestavam grande atenção aos seus
representantes, os quais, por outro lado, escutavam respeitosamente os líderes
autorizados do comité executivo: enquanto que estes últimos não faziam outra coisa
senão apalpar o pulso ansiosamente da burguesia liberal. De alto a baixo, tudo assentava
nessas atenções - provisoriamente.
Todavia, o estado de espírito da base surgia no exterior, e a questão do poder,
artificialmente afastada, ressurgia cada vez, ainda que sob uma forma disfarçada. «Os
soldados não sabem quem escutam», declararam os distritos e a província, levando
assim as suas queixas ao executivo, sobre a dualidade de poderes. As delegações das
frotas do Báltico e do mar Negro afirmam, no 16 de Março, que estão dispostas a
considerar o governo provisório na medida onde este agirá em conformidade com o
comité executivo. Noutros termos, esses delegados dispunham-se em não ter em conta o
governo. Mais se avança, mais esta nota se torna insistente: «O exército e a população
devem obedecer unicamente às decisões do Soviete», tal foi a resolução do Regimento
172 de reserva, que formulou ao mesmo tempo esse corolário: «As ordens do governo
provisório que infringem as decisões do Soviete não estão sujeitas à execução.» Foi com
um sentimento complexo de satisfação e inquietação que o executivo sancionou esta
disposição. Foi em rangendo os dentes que o governo a tolerou. Um e outro não tinham
outra coisa que fazer.
Desde do princípio de Março, os sovietes surgem nas principais vilas e centros
industrial. Daí, em algumas semanas, eles estendem-se por todo o país. Foi só em Abril-
Maio que eles começaram a ganhar os campos. Em nome do campesinato,
primitivamente, foi sobretudo o exército que falava.

163
O comité executivo do Soviete de Petrogrado tinha naturalmente tomado a
importância de uma grande instituição do Estado. Os outros sovietes regulavam o passo
sobre o da capital, adoptando, um após outro, as resoluções de apoio condicional ao
governo provisório. Ainda que, nos primeiros meses, as relações entre o Soviete de
Petrogrado e os sovietes provinciais se arranjassem, sem conflitos nem mal-entendidos
graves, a necessidade de uma organização de Estado não deixava de surgir de toda a
situação. Um mês após a queda da autocracia, uma primeira conferência dos sovietes foi
convocada, incompleta e de composição unilateral. Se, dos cento e oitenta e cinco
organizações representadas, os sovietes de localidades constituíam dois terços, eram
portanto sobretudo sovietes de soldados: com os representantes das organizações da
frente, delegados militares, na maior parte oficiais, formavam uma esmagadora maioria.
Os discursos retiniam sobre a guerra até à vitória completa e as inventivas dirigidas aos
bolcheviques, apesar da sua conduta ser mais que moderada. A conferência associou
dezasseis conservadores provinciais ao comité executivo de Petrogrado, legitimando o
seu carácter de instituição de Estado.
A ala direita reforçou-se ainda mais. A partir de então, intimidaram cada vez mais
frequentemente os descontentes, ameaçando-os com a província. Uma decisão sobre a
reorganização da composição do Soviete de Petrogrado, adoptada no 14 de Março, não
foi executada. Pouco importa: não é um soviete local que decide, mas é o comité
executivo pan-russo. Os líderes oficiais tinham ocupado uma posição quase inacessível.
As mais importantes decisões eram tomadas pelo executivo, mais exactamente no seu
núcleo dirigente, com acordo prévio com o núcleo do governo. O Soviete foi afastado.
Tratavam-lhe de reunião: «Não é aí, nas assembleias gerais, que se faz a política, e todos
esses «plenários» não têm absolutamente nenhuma importância prática» (Sokhanov).
Infatuados deles próprios, os mestres do destino consideravam que ao confiarem-lhes a
direcção, os sovietes tinham em suma preenchido o seu papel. O próximo futuro que não
é assim. A massa é muito paciente, mas ela não é desse barro que se pode modular à
vontade. E, nas épocas revolucionárias, ela instruiu-se rápidamente. Aí reside a mais alta
força da revolução.
Para melhor compreender o desenvolvimento ulterior dos acontecimentos, é
necessário analizar a característica dos dois partidos que, no início da revolução,
formaram um bloco compacto, dominaram os sovietes, nas municipalidades
democráticas, nos congressos da democracia dita «revolucionária», e conservaram
mesmo a sua maioria, aliás cada vez mais frágil, até à Assembleia constituinte, que se
tornou o último reflexo da sua potência de outrora, tal como o avermelhar da cimeira de
uma montanha iluminada pelo sol posto!
Se a burguesia russa se mostrou demasiado tarde para ser democrática, a
democracia russa, pela mesma razão, acreditava-se socialista. A ideologia democrática
dispensou até o esgotamento irremediável na corrente do século XIX. No limiar do século
XX, a intelliguentsia radical russa, se ela queria encontrar o acesso junto das massas,
tinha necessidade de uma cor socialista. Tal foi, no conjunto, a causa histórica que levou a
criação de dois partidos intermediários: mencheviques e socialistas-revolucionários. Cada
um deles tinha, no entanto, a sua genealogia e a sua ideologia particular.

164
As concepções dos mencheviques estabeleceram-se na base marxista. Sempre em
consequência do atraso histórico da Rússia, o marxismo aí consistiu no início não uma
crítica da sociedade capitalista como argumento da inevitabilidade do desenvolvimento
burguês do país. Astuta, a história utilizou uma teoria castrada da revolução proletária
para ocidentalizar, por esse meio, num espírito burguês, as largas esferas da
intelliguentsia populista rança. Nesse processo, os mencheviques ocuparam o lugar mais
importante. Constituindo a ala esquerda da intelliguentsia burguesa, eles ligaram-se esta
às camadas intermédias dos operários mais moderados que atraía uma actividade legal à
volta da Duma e nos sindicatos.
Os socialistas-revolucionários, em contrapartida, combatiam teoricamente o
marxismo, sofrendo parcialmente a sua influência. Eles consideravam-se como um partido
realizando a aliança dos intelectuais, operários, e camponeses, bem entendido sob o
controlo da razão crítica. No domínio económico, suas ideias representavam uma mistura
indigesta de diversos sedimentos históricos, reflectindo as condições contraditórias da
existência do campesinato num país onde crescia rápidamente o capitalismo.
A futura revolução deveria ser, para os socialistas-revolucionários não burguesa e
não socialista, mas «democrática»: eles substituíam uma formula política pelo conteúdo
social. Traçavam assim a via entre a burguesia e o proletariado, e, em consequência, o
papel de árbitros entre este últimos. Após Fevereiro, pode parecer que os socialistas-
revolucionários estavam muito próximos desta situação.
Desde da época da primeira revolução, eles já tinham raízes na classe camponesa.
Durante os primeiros meses de 1917, toda a intelliguentsia dos campos assimilou a
formula tradicional dos populistas: «terra e liberdade». Diferentemente dos mencheviques,
sempre ligados a um partido exclusivamente urbano, os socialistas-revolucionários tinham
encontrado, parece, um apoio extremamente forte entre os rurais. Ainda mais, eles
dominavam mesmo nas cidades: nos sovietes, por secções de soldados, e nas primeiras
municipalidades democráticas, onde recolhiam a maioria absoluta dos votos. A potência
desse partido pareciam ilimitada. Na realidade, era somente uma aberração política.
Um partido pelo qual toda a gente vota, fora uma minoria que sabe por quem votar,
não é um partido, assim como a linguagem que se servem as crianças de todos os países
não é uma língua nacional. O partido socialista-revolucionário trazia solenemente uma
denominação completamente prematura, informe e confusa na Revolução de Fevereiro.
Quem quer que fosse não tinha herdade do passado pré-revolucionário motivos
suficientes para votar seja pelos cadetes, seja pelos bolcheviques, votava pelos
socialistas-revolucionários. Mas os cadetes mantinham-se na campo entrincheirado dos
proprietários. Os bolcheviques eram ainda pouco numerosos, incompreensíveis, mesmo
assustadores. Votar pelos socialistas-revolucionários significava votar por uma revolução
no seu conjunto e não comprometia a nada. Nas cidades, os soldados esforçavam-se
para se aproximarem do partido que defendia a causa dos camponeses, um esforço dos
elementos atrasados da classe operária para se manter mais perto dos soldados, um
esforço do povo das cidades para não se afastar dos soldados e dos camponeses. Nesse
período, uma carta de membro do partido socialista-revolucionário dava um direito

165
provisório de entrada nas instituições revolucionárias e mantinha o seu valor até à troca
por um documento de maior valor. Não foi sem razão que se disse do grande partido, que
acolhia uns e outros, que era um «zero grandioso».
A datar da primeira revolução, os mencheviques deduziam a necessidade de uma
aliança com os liberais segundo o carácter burguês da revolução, e situavam esta aliança
acima de uma colaboração com a classe camponesa, considerada como aliada pouco
segura. Os bolchevique, por outro lado, estabeleciam toda a perspectiva da revolução
sobre uma aliança do proletariado com os camponeses contra a burguesia liberal. Como
os socialistas-revolucionários consideravam-se antes de tudo um partido camponês,
convinha, dizia-se, esperar, na revolução, por uma aliança dos mencheviques com a
burguesia liberal. Na realidade nós vemos na Revolução de Fevereiro um grupo inverso.
Os mencheviques e os socialistas-revolucionários agiam na mais estreita colaboração que
completa o seu bloco com a burguesia liberal. Os bolcheviques, sobre o aspecto oficial da
política, estão completamente isolados.
Esse facto inexplicável à primeira vista é, na realidade, completamente lógica. Os
socialistas-revolucionários não eram de forma nenhuma um partido camponês, a despeito
dos inumeráveis simpatias que acolhiam suas palavras de ordem no campo. O núcleo
essencial do partido - aquele que determina a política efectiva e destaca do seu próprio
meio ministros e funcionários - era muito mais ligado aos círculos liberais e radicais da
cidade que com as massas camponesas revoltadas. Esse núcleo dirigente, terrivelmente
inchado pelo afluxo de socialistas-revolucionários carreiristas de Março foi mortalmente
assustado pela amplitude do movimento camponês que desfilava sob as suas palavras de
ordem. Os populistas da última colheita desejavam, certamente, aos camponeses todo o
bem possível, mas não queriam nenhum «galo vermelho», não queriam o incêndio. O
medo dos socialistas-revolucionários diante dos campos revoltados é igual ao dos
mencheviques diante da ofensiva do proletariado: no seu conjunto, o espantalho dos
democratas reflectiu um perigo real que o movimento dos oprimidos suscitava para as
classes possuidoras, agrupando estas últimas num só campo da reacção burguesa e
nobiliário. O bloco dos socialistas-revolucionários com o governo do nobre proprietário
Lvov marcava a sua ruptura com a revolução agrária, e também com o bloco dos
mencheviques com os industriais e banqueiros do genero de Gotchkov, de Terechtchenko
e de Konovalov, equivalia a sua ruptura com o movimento do proletariado. A aliança dos
mencheviques e dos socialistas-revolucionários significou, nessas condições, não uma
colaboração do proletariado com os camponeses, mas uma coligação de partidos que
romperam com o proletariado e o campo para constituírem em comum um bloco com as
classes possuidoras.
Do que é dito acima, vê-se claramente a que ponto era fictício o socialismo dos dois
partidos democráticos: mas isso não significa de forma nenhuma que o seu democratismo
tenha sido real. Ao contrário, é precisamente a anemia do democratismo que precisava de
uma camuflagem socialista. O proletariado russo levava a luta pela democracia num
antagonismo irredutível com a burguesia liberal. Os partidos democráticos, constituindo
bloco com a burguesia liberal, devia inevitavelmente entrar em conflito com o proletariado.

166
Tais são as raízes sociais da luta implacável que se desenrolou seguidamente entre
conciliadores e bolcheviques.
Se levarmos os processos esboçados acima ao seu mecanismo de classe
completamente despojados, que, bem entendido, não tomaram consciência, até ao fim, os
participantes e mesmo os dirigentes dos dois partidos conciliadores, obtemos
aproximadamente esta distribuição da funções históricas. A burguesia liberal não podia
mais amparar-se da massa. Em consequência, ela temia a revolução. Mas a revolução
era necessária para o desenvolvimento da burguesia. Da burguesia censitária
destacaram-se duas classes compostas dos seus mais jovens irmãos e filhos. Um dos
destacamentos dirigiu-se para os operários, outro para os camponeses. Um e outro
tentaram atrair os operários e camponeses, demonstrando com sinceridade o ardor que
eles eram socialistas hostis à burguesia. Por esta via, eles adquirem, efectivamente,
influência considerável sobre o povo. Mas, a curto prazo, o efeito resultando das suas
ideias ultrapassa o seu pensamento. A burguesia sentiu-se em perigo de morte e dá o
sinal de alarme. Os dois clans que se tinham destacado dela, mencheviques e socialista-
revolucionários, responderam em conjunto à chamada do mais velho da família.
Passando sobre as velhas dissensões, eles apoiaram-se e, voltando as costas às
massas, correram ao socorro da sociedade burguesa.
Os socialistas-revolucionários, mesmo comparados aos mencheviques, eram
espantosamente frágeis e tornavam-se débiles. Aos bolcheviques, eles pareciam, em
todos os momentos, cadetes de terceira ordem. Aos cadetes, eles pareciam bolcheviques
de terceira ordem. A segunda qualidade, nos dois casos, era atribuída aos mencheviques.
A sua base móvel e ideologia informe ocasionavam uma selecção individual
correspondente: todos os líderes socialistas-revolucionários traziam a marca do
inacabado, do superficial e de uma ligeireza sentimental. Pode-se dizer sem exagero: o
bolchevique da base mostrava mais perspicácia em política, isto é nas relações entre as
classes, que os mais ilustres líderes socialistas revolucionários.
Não tendo critérios sólidos, os socialistas-revolucionários mostravam-se inclinados
para imperativos morais. Inútil de mostrar que as pretensões moralizadoras não os
impedia de forma alguma manifestar na grande política, as mesquinhas vigarices que
caracterizam tão bem, em geral, os partidos intermediários, desprovidos de base sólida,
de doutrina clara e de fundação moral autentica.
No bloco dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários, o papel dirigente
pertencia aos menchevique, ainda se a maioria fosse incontestavelmente do lado dos
socialistas-revolucionários. Esta distribuição dos papeis traduzia à sua maneira a
hegemonia da cidade sobre o campo, a preponderância da pequena burguesia urbana
sobre a rural, e enfim a predominancia ideológica da intelliguentsia «marxista» sobre essa
outra intelliguentsia que se agarrava a uma sociologia nacionalista de «verdadeiros
russos» e prevalecia-se da indigência da história antiga do país.
Nas primeiras semanas que seguiram a insurreição, nenhum dos partidos de
esquerda, como se sabe, não tinha na capital verdadeiro estado-maior. Os líderes
geralmente reconhecidos dos partidos socialistas viviam na emigração. Os líderes de

167
segunda linha encaminhavam-se para o centro, vindo do longínquo Oriente. Daí resultou,
nos dirigentes provisórios, uma atitude circunspecta na expectativa, que os aproximava
entre eles. Nem um dos grupos dirigentes, nesse tempo não ia até ao fim do seu
pensamento. A luta dos partidos no Soviete tinha um carácter extremamente pacífico:
dizia-se que não se tratava senão de nuanças no interior de uma só e mesma
«democracia revolucionária». À chegada de Tseretelli, vindo da deportação (19 de Março),
a direcção soviética fez uma brusca viragem à direita, num sentido de uma completa
responsabilidade pelo poder e pela guerra. Mas os bolcheviques também, a meados de
Março, sob a influência de Kamenev e de Estaline, que voltavam da deportação,
bifurcaram rápidamente para a direita, de maneira que a distância entre a maioria
soviética e a oposição de esquerda no início de Abril tornou-se, talvez, menor do que tinha
sido no início de Março. A verdadeira diferenciação começou um pouco mais tarde. Poder-
se-ia dar a data precisa: 4 de Abril, no dia seguinte da chegada de Lenine a Petrogrado.
O partido menchevique tinha à cabeça das suas diversas tendências um certo
número de figuras iminentes, mas nem um só guia revolucionário. A extrema direita, onde
dominavam os velhos mestres da social democracia russa, Plekhanov, Zassolitch,
Deutsch, mantinha-se na posição patriótica já sob a aristocracia. Foi mesmo na véspera
da Revolução de Fevereiro que Plekhanov, publicou num jornal americano que as greves
e outros procedimentos da luta dos operários na Rússia seriam agora criminosos. Os
grandes círculos de velhos mencheviques, personificados entre outros por Martov, Dan,
Tseretelli, ligavam ao campo de Zimmerwald e rejeitavam toda responsabilidade sobre a
guerra. Mas o internacionalismo dos mencheviques de esquerda, mesmo o dos
socialistas-revolucionários de esquerda, dissimulavam na maior parte dos casos um
espírito de oposição democrática. A Revolução de Fevereiro reconciliou a maioria desses
«zimmerwaldianos» com a guerra, na qual eles viram desde logo a defesa da revolução.
O mais resoluto nessa via foi Tseretelli, que arrastou consigo Dan e outros.
Martov, que o início da guerra o tinha surpreendido em França e que só voltou do
estrangeiro no dia 9 de Maio, não pôde ver que os seus correlegionários da véspera
tinham chegado, após a insurreição de Fevereiro, a um ponto donde tinham partido
Guesde, Sembat e outros em 1914, quando eles se encarregaram de defender a
república burguesa contra o absolutismo germanico. Tendo tomado a cabeça da ala
esquerda dos mencheviques, que não conseguiram a atribuição de um papel sério na
revolução, mesmo pequeno que fosse, Martov ficou na oposição em relação à política de
Tseretelli—Dan, contrariando ao mesmo tempo a aproximação dos mencheviques de
esquerda para os bolcheviques. Em nome do menchevismo oficial agiu Tseretelli que
seguia uma maioria indubitável: os patriotas de antes da revolução uniram-se sem
dificuldades aos patriotas do apelo de Fevereiro. Plekhanov tinha todavia o seu grupo,
completamente chauvinista, situado fora do partido e mesmo fora do Soviete. A fracção de
Martov, sem ter abandonado o partido, não tinha jornal próprio como não tinha política.
Como sempre nos grandes acontecimentos históricos, Martov tinha irremediavelmente
perdido a cabeça e não se baseava em mais nada. Em 1917 como em 1905, a revolução
apenas se apercebeu da existência desse homem notável.

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À presidência do Soviete de Petrogrado, e seguidamente do comité executivo, foi
quase automaticamente que se encontrou o presidente da fracção menchevique na
Duma, Tchkhedze. Ele esforçava-se por introduzir nos seus deveres tudo o que ele tinha
em reserva de probidade, cobrindo a sua constante incerteza de piadas sem graça. Ele
trazia a indelével marca da sua origem provincial. A Georgia montanhosa, país do sol, das
vinhas, país de camponeses e de fidalgotes, contando um fraca percentagem de
operários, tinha produzido uma larga camada de intelectuais de esquerda, dóceis,
dotados de temperamento, mas, na sua esmagadora maioria, não se elevavam acima do
horizonte pequeno burguês. Em todas as quatro Dumas, a Georgia enviou como
deputados mencheviques, e, nas quatro fracções parlamentares, os seus deputados
interpretaram o papel de líderes. A Georgia tornou-se a Gironda da revolução russa. Se os
Girondionos do século XVII foram acusados de federalismo, os Girondinos da Georgia,
tendo começado pela defesa de uma Rússia una e indivisível, terminaram pelo
separatismo.
A figura mais notável da Gironda georgeana foi, indiscutivelmente, Tseretelli, antigo
deputado na segunda Duma, que, desde do seu regresso da deportação, tomou a cabeça
não somente dos mencheviques, mas de toda a maioria soviética de então. Não teórico,
nem mesmo jornalista, mas notável orador, Tseretelli foi e continuou a ser um radical do
tipo meridional francês. Nas condições da rotina parlamentar, ele ter-se-ia sentido como
um peixe na água. Mas tinha nascido numa época revolucionária e tinha-se intoxicado, na
sua juventude, de uma dose de marxismo. De qualquer modo, de todos os mencheviques,
foi ele quem mostrou, nos acontecimentos da revolução, mais desenvoltura e esforço para
ser consequente. Foi precisamente para isso que, mais que outros, ele contribuiu ao
afundamento do regime de Fevereiro. Tchkheidze subordinou-se totalmente a Tseretelli,
ainda que, por momentos, intimidado diante da sua intransigência de doutrinário que
censurava o revolucionário, na véspera ainda forçado, de representante conservador da
burguesia.
O menchevique Skobelev, que devia toda uma nova popularidade à sua situação de
deputado da última Duma, dava, não somente por causa do ser ar de jovem, a impressão
de um estudante que interpreta numa cena de família, o papel de um homem de Estado.
Skobelev tornou-se um especialista de extintor de «excessos», de eliminador de conflitos
locais, e ocupou-se, em geral, de calafetar as fissuras da dualidade de poderes até ao
momento onde, no papel de desastroso ministro do Trabalho, encontrou-se inserido no
governo de coligação em Maio.
Uma das personalidades das mais influentes entre os mencheviques foi Dan, velho
militante do partido, que tinha sempre sido considerado como o segundo Martov. Se, em
geral, o menchevisme se assimilou, na carne e no sangue, os costumes do espírito da
social democracia alemã em decadência, Dan, simplesmente, parecia ser um membro da
direcção do partido alemão, um Ebert de formato inferior. O Dan alemão realizou com
sucesso, um ano mais tarde, na Alemanha, a política que não tinha conseguido o Erbert
russo. A causa não se devia, todavia aos homens, mas às circunstâncias.

169
Se o primeiro violão na orquestra da maioria soviética era Tseretelli, foi uma
estridente clarinetista que, soprando com os pulmões cheios, os olhos injectados de
sangue, interpretava Liber. Menchevique da União operária israelita (Bund), ele tinha um
passado revolucionário de longa data, muita sinceridade, muito temperamento, muita
eloquência, era limitado e esforçava-se apaixonadamente em colocar-se como inflexível
patriota e em homem rígido de Estado. Liber transbordava literalmente de ódio em relação
aos bolcheviques.
A falange dos líderes mencheviques talvez próxima de Voitinsky, antigo bolchevique
ultra-esquerdista, participante distinguido da primeira revolução, tinha feito o seu tempo
de prisão, rompeu em Março com o partido sobre a questão do patriotismo. Juntando-se
aos mencheviques, Voitinsky, como é preciso, tornou-se um devorador profissional de
bolcheviques. Somente, não tinha bastante temperamento para se igualizar com Liber na
perseguição dos seus antigos camaradas de pensamento.
O estado-maior dos populistas, tão pouco homogéneo, era muito menos importante
e brilhante. Aqueles a que chamavam «socialistas populistas» constituindo o flanco da
extrema direita, tinham à sua cabeça o velho emigrado Tchaikovsky, cujo chauvinismo
militante era igual ao de Plekhanov e que não possuía portanto nem os talentos nem o
passado deste. Ao lado de Tchaikovsky, uma velha mulher, Brechko-Brechkosvskaia, que
os socialistas-revolucionários chamavam «avó da revolução russa», mas que zelava em
tornar-se a madrinha da contra-revolução. O veterano anarquista Kropotkine, que
conservava, desde a sua juventude, uma fraqueza em relação aos populistas, falando da
guerra, negava tudo o que ele tinha ensinado quase meio século: negador do Estado, ele
apoiou a Entente e, se ele se queixava da dualidade de poderes na Rússia, não era para
reclamar a supressão do poder, mas era pelo poder único da burguesia. Todavia, esses
velhos interpretavam um papel decorativo, ainda que Tchaikovsky, mais tarde, na guerra
contra os bolcheviques, tenha tomado a cabeça de um governo de blancos que Churchill
sustentava.
O primeiro lugar entre os socialistas-revolucionários, antes dos outros, mas não no
partido, e acima do partido, foi ocupado por Kerensky, homem desprovido de todo
passado de partido. Teremos ainda, mais de uma vez, a considerar esta figura
providencial cuja força consistia, em período de dualidade de poderes, numa combinação
de fraqueza do liberalismo com as fraquezas da democracia. Ao aderir formalmente ao
partido socialista-revolucionário, Kerensky não modificou a sua opinião desdenhosa em
relação aos partidos em geral: considerava-se como o eleito directo da nação. Mas, na
realidade, o próprio partido socialista-revolucionário não tinha deixado, por essa altura, de
ser um partido, tornando-se uma grandiosa nulidade, verdadeiramente nacional? Em
Kerensky ele encontrou um líder adequado.
Futuro ministro da Agricultura e seguidamente presidente da Assembleia constituinte.
Tchernov era incontestavelmente a figura mais representativa do velho partido socialista-
revolucionário, e não foi por acaso que ele era considerado como o inspirador, o teórico e
guia desse partido. Possuindo conhecimentos consideráveis, mas sem ligação entre eles,
antes de mais um grande leitor que um homem instruido, Tchernov tinha sempre à sua

170
disposição uma escolha ilustrada de citações apropriadas às circunstâncias, que
impressionavam duravelmente a juventude russa sem lhe ensinar grande-coisa. Só havia
uma questão à qual esse prolixo líder não tinha resposta: o que o levava e onde? As
formulas eclécticas de Tchernov, temperadas de moral e de maus versos, faziam por um
certo tempo a unidade de um público disparate que, nas horas críticas, dispersava-se de
um lado e outro. Não é de admirar que Tchernov tinha oposto com presunção o seu
método de formação de um partido ao «sectarismo» de Lenine.
Tchernov regressou do estrangeiro cinco dias depois de Lenine: a Inglaterra,
finalmente, deixou-o passar. Às múltiplas aclamações do Soviete, o líder do maior partido
respondeu pelo mais longo discurso, que Sokhanov, meio socialista-revolucionário, julgou
assim: «Eu não estava só, outros estavam comigo, patriotas do partido socialista-
revolucionário, a fazer caretas e a abanar a cabeça, perguntando-nos porquê ele cantava
tão desagradavelmente, entregando-se a tão estranhas fingimentos, rolava os grandes
olhos, e perorava interminavelmente a propósito de tudo e de nada.» Toda actividade
ulterior de Tchernov na revolução esteve em diapasão com o seu primeiro discurso. Após
ter tentado, várias vezes, opor-se, do lado esquerdo, a Kerensky e a Tsereteli, Tchernov,
bloqueado por todos os lados, rendeu-se sem combate, purifica-se do seu
zimmerwaldismo de emigrado, entrou na Comissão de contacto e, mais tarde, no governo
de coligação. Tudo o que ele fazia caía mal. Decidiu, em consequência, esquivar-se. A
abstenção no momento de votar tornou-se para ele uma forma de existência política. A
sua autoridade, de Abril a Outubro, fundiu ainda mais rápidamente que as fileiras do seu
partido. Qualquer distinção entre Tchernov e Kerensky, que se odiavam reciprocamente,
todos os dois tinham as suas raízes no passado pré-revolucionário, na velha sociedade
russa arruinada, na anemia e pretensiosa intelliguentsia que ardia de desejo de ensinar as
massas populares, de as tutelar e de assegurar-lhes a sua benfeitoria, mas era
absolutamente incapaz de as escutar, de as compreender e de aprender qualquer coisa
delas. Ora, na falta disso, não havia política revolucionária.
Avksentiev, que o seu partido levou aos postos mais altos da revolução - presidente
do comité executivo dos deputados camponeses, ministro do Interior, presidente do pré-
parlamento - representava já a caricatura perfeita de um homem político: delicioso
professor de literatura do liceu de raparigas em Orel, - é tudo que se pode dizer dele. É
verdade que a sua actividade política mostrou-se muito mais noviça que a sua pessoa.
Um papel considerável, sobretudo nos corredores, foi interpretado, no seio da
fracção socialista-revolucionário e do núcleo dirigente do Soviete, por Gotz. Terrorista
saído de uma família revolucionária reputada, Gotz foi menos pretencioso e mais actuante
que os seus próprios amigos políticos. Mas, a título de «praticante» como se dizia,
limitava-se às operações de cozinha, abandonando aos outros as grandes questão. É
preciso, aliás, acrescentar que não era nem um orador, nem um escritor, e que o seu
principal recurso era uma autoridade pessoal paga por anos no degredo.
Temos, em suma, nomeado todos os que se poderia nomear entre o círculo dirigente
dos populistas. À volta seguiam figuras já completamente acidentais, do género de
Philippovky, sobre o qual ninguém sabia explicar verdadeiramente porquê ele tinha

171
atingido o cume do Olimpo de Fevereiro: é preciso pensar que o papel decisivo pertence
ao seu uniforme da marinha.
Ao lado dos líderes oficiais dos dois partidos dominantes no comité executivo, havia
um bom número de «selvagens», de isolados, tendo participado no passado no
movimento em diferentes etapas deste, gente que, há muito tempo antes da insurreição,
tinham-se afastado da luta e, agora, regressados à pressa sob a bandeira da revolução
vitoriosa, não se apressavam de se colocarem sob a dependência de o partido. Sobre
todas as questões fundamentais, os «selvagens» seguiam a linha da maioria soviética.
Nos primeiros tempos, eles detinham mesmo o papel dirigente. Mas à medida que
voltavam da deportação ou da emigração os líderes oficiais, os sem partido eram
empurrados para a segunda fila, a política tomava forma, o espírito de partido
reencontrava os seus direitos.
Os adversários do comité executivo, no campo da reacção, notaram mais de uma
vez, a seguir, a preponderância dos alofilos nesse comité: judeus, georgianos, letões,
polacos e outros. Ainda se, em relação à totalidade dos membros do comité executivo, os
alofilos tenham sido uma ínfima proporção, sem dúvida que eles ocupavam um lugar
muito marcado no gabinete, nas diversas comissões, como ouvidores, etc.. Como os
intelectuais das nacionalidades oprimidas, grupos principalmente nas cidades,
completavam com abundância as fileiras revolucionárias, não é de admirar que, nas
gerações dos mais velhos revolucionários, o número de alofilos tenha sido
particularmente considerável. Suas experiências, ainda sem serem de grande qualidade,
tornava-os indispensáveis para a instituição de novas formas sociais.
Absolutamente estúpidas, todavia, são as tentativas feitas para apresentar a política
dos sovietes e o curso de toda a revolução de uma pretendida preponderância dos
alofilos. O nacionalismo, ainda nesse caso, manifesta desprezo em relação à verdadeira
nação, isto é ao povo, representando este, no período do seu renascimento nacional,
como uma simples vigota entre as mãos estrangeiras e fortuitas. Mas porquê então e
como os alofilos foram tão influentes sobre milhões de autóctones? Na realidade,
precisamente no momento de uma grande reviravolta histórica, a massa da nação toma
frequentemente ao seu serviço e que, em consequência, são os mais apressados em dar
uma expressão aos novos problemas. Não são os alofilos que dirigem a revolução, é a
revolução nacional que se serve dos alofilos. Foi assim mesmo quando das grandes
reformas do alto. A política de Pedro I não deixou de ser nacional quando, afastando-se
dos velhos caminhos, ele incorporou os alofilos e os estrangeiros. Os mestres artesãs do
arrabalde alemão e os capitãs de navios holandeses exprimiam melhor, nesse período, as
necessidades do desenvolvimento nacional da Rússia que os papas russos, outrora
introduzidos pelos gregos ou os boiardos moscovitas que se queixavam também da
invasão estrangeira, ainda que provindo eles próprios dos alofilos que formaram o Estado
russo. De qualquer modo, a intelliguentsia alofila de 1917 estava partilhada entre os
mesmos partidos que a intelliguentsia puramente russa, sofria dos mesmos vícios e
cometia os mesmos erros, e eram justamente os alofilos, entre os mencheviques e os
socialistas-revolucionários que exibiam um zelo particular pela defesa da unidade da
Rússia.

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Assim se apresentava o comité executivo, órgão supremo da democracia. Dois
partidos, tendo perdido suas ilusões mas conservou seus preconceitos, com um estado-
maior de dirigentes incapazes de passar da palavra aos actos, encontraram-se à cabeça
da revolução que era chamada a derrubar os entraves de séculos e a erguer as bases de
uma nova sociedade. Toda a actividade dos conciliadores que debilitavam as massas
populares e preparavam as convulsões da guerra civil.
Os operários, soldados, camponeses levavam os acontecimentos a sério. Eles
consideravam que os sovietes criados por eles deviam imediatamente ocupar-se da
supressão das calamidade que tinha engendrado a revolução. Todos iam aos sovietes.
Cada um levava lá o seu sofrimento particular. Ora, quem é que não tinha a sua maleita?
Exigia-se decisões, esperava-se ajuda, esperava-se justiça, insistia-se pelas represálias.
Lobiistas, queixosos, solicitadores, acusadores contavam que enfim o poder hostil tinha
sido o deles. O povo tem confiança no Soviete, o povo está armado: portanto, o Soviete é
o governo. Assim entendiam as pessoas, - e não tinham razão?
Uma corrente ininterrupta de soldados, de operários, de mulheres de soldados,
pequenos comerciantes, empregados, mães e pais, abria e fechava as portas, procurava,
questionava, chorava, reclamava, impunha medidas, indicando por vezes exactamente as
quais - e transformava o Soviete em verdadeiro poder revolucionário. «Não era de forma
nenhuma nos interesses e não entrava, de qualquer modo, nos planos do próprio
Soviete», gemeu o nosso conhecido Sokhanov, o qual, bem entendido, combatia tanto
que possível o processo. Com sucesso? Infelizmente! Ele é obrigado a confessar logo
que «o aparelho soviético meteu-se, contra a sua vontade, automaticamente, contra a
vontade do Soviete, a repelir a máquina oficial do Estado que trabalhava cada vez mais
no vazio». Que faziam então os doutrinários da capitulação, os mecânicos do
funcionamento no vazio? «Estávamos obrigados a resignarmo-nos e a assumir certas
funções governamentais - confessa melancolicamente Sokhanov - ao mesmo tempo que
apoiava essa ficção que a direcção estava no palácio Maria. «Era disso que se ocupava
essa gente num país arruinado, envolvido nas chamas da guerra e da revolução: com a
mascarada eles cobriam o prestígio de um governo que o posso repelia organicamente.
Morra a revolução, mas viva a ficção! Ora, ao mesmo tempo, o poder que essa gente
expulsava pela porta voltava a entrar pela janela, apanhando-os cada vez desprevenidos
e colocando-os numa situação ou ridícula ou indigna.
A partir da noite de 27 a 28 de Fevereiro, o comité executivo proibiu a imprensa
monárquica e tinha estabelecido para os jornais um regime de autorização. Ouviam-se
protestos. Os que gritavam mais alto eram os que tinham o hábito de amordaçar as
pessoas. Alguns dia após, o comité chocou de novo com o problema da liberdade de
imprensa: autorizar ou não a publicação de jornais reaccionários? Desentendimentos
manifestaram-se.
Os doutrinários do genero Sokhanov eram pela liberdade absoluta da imprensa.
Tchkheidze, no princípio, não estava de acordo: como deixar as armas à disposição sem
controlo do inimigo mortal? Ninguém, diga-se de passagem, não lhe passou pela cabeça
em submeter a questão ao governo.

173
Aliás, foi em vão: os operários tipógrafos só aceitavam as decisões do Soviete. No 5
de Março, o comité executivo deu essa confirmação: proibir as publicações de direita,
subordinando a publicação de novos jornais à autorização do Soviete. Mas, desde do dia
10, esta decisão foi abrogada sob o ataque dos círculos burgueses. «Basta três dias para
que se encontre razão», dizia, triunfante, Sokhanov. Triunfo sem fundamento! A imprensa
não está acima da sociedade. As condições da sua existência em tempo de revolução
reflectem a marcha da própria revolução. Quando esta toma ou ameaça tomar o carácter
de uma guerra civil, nenhum dos lados beligerantes não admitirá a existência de uma
imprensa hostil no seu raio de influência, como ele não abandonará de boa vontade o
controlo dos arsenais, dos caminhos de ferro, das tipografias. Na luta revolucionária, a
imprensa só é um instrumento de luta. O direito de expressão, de qualquer modo, não
está acima do direito à vida. Ora, a revolução atribui-se também esse último direito.
Poder-se estabelecer esta lei: os governos revolucionários são tanto mais liberais, tanto
mais tolerantes, tanto mais «generosos» com a reacção, quanto mais mesquinho é o seu
programa, quanto mais eles estão ligados ao passado mais conservador é o seu papel. E
inversamente: maiores são as tarefas, maior é o número de direitos e de interesses que
elas violam, mais o poder revolucionário está concentrado, mais a sua ditadura se exibe.
Bem ou mal, é precisamente por essas vias que até hoje a humanidade avançou.
O Soviete tinha razão quando quis controlar a imprensa. Porque renunciaria tão
facilmente a isso? Porque ele renunciou geralmente a toda a luta séria. Sobre a guerra
nada dizia, assim como sobre a atribuição das terras, e sobre a questão da república.
Tendo cedido o poder à burguesia conservadora, não tinha motivo para temer a imprensa
de direita, nem possibilidade de a combater. Em contrapartida, pouco depois, o governo,
com o apoio do Soviete, reprimiu impiedosamente a imprensa de esquerda. Os jornais
dos bolcheviques foram proibidos uns após os outros.
No 7 de Março, Kerensky declarava em Moscovo: «Nicolau II está nas minhas
mãos... Nunca serei um Marat da Revolução russa... Nicolau II, sob o meu controlo
pessoal, irá para a Inglaterra...» As damas jogavam flores, os estudantes aplaudiam. Mas
as massas agitavam-se. Nenhuma revolução séria, isto é aquelas que tinham a perder,
nunca tinha deixado um monarca destronado alcançar o estrangeiro. Os operários e os
soldados não paravam de exigir a prisão dos Romanov. O comité executivo sentiu que
não podia brincar com essa questão. Decidiu-se que o Soviete devia apoderar-se do
assunto dos Romanov: assim reconheceu-se abertamente que o governo não era digno
de confiança. O comité executivo deu ordem a todos os caminhos de ferro de não deixar
passar Romanov: daí a razão que o comboio do czar viajava sem destino. Um dos
membros do comité executivo, o operário Gvozdiev, menchevique de direita, foi enviado
para prender Nicolau, Kerensky foi desautorizado, e, com ele, o governo. Mas este, em
vez de se retirar, remeteu-se ao silêncio. A partir do dia 9 de Março, Tchkheidze transmitiu
ao comité executivo que o governo «tinha renunciado» à ideia de expedir Nicolau para a
Inglaterra. O czar e a família tinham sido presos, no palácio de Inverno. Foi assim que o
comité executivo subtilizava o seu próprio poder sob a travesseiro. Ora, da frente, cada
vez mais se faziam insistências: transferir o czar para a fortaleza Pedro e Paulo.

174
As revoluções sempre significaram transtornos da propriedade, não somente na
ordem da legislação, mas nas confiscações executadas pelas massas. Nenhuma
revolução agrária, em suma, não se produziu na história de outra forma: a reforma legal
seguiu sempre o «galo vermelho», o incêndio. Nas cidades, as confiscações
desempenharam um papel menor: as revoluções burguesas não tinham por objectivo
estremecer a propriedade burguesa. Mas não houve ainda revolução onde as massas não
se teriam apoderado, para fins sociais, os edifícios que antes pertenciam aos inimigos do
povo. Logo após a insurreição de Fevereiro os partidos saíram da ilegalidade, nasceram
os sindicatos, inúmeras reuniões tiveram lugar, todos os sovietes entraram em todos os
bairros - todos precisavam de instalações. As organizações amparavam-se dos palacetes
desocupados dos ministros do czar ou dos palácios abandonados pelas suas bailarinas.
As vítimas queixavam-se ou os poderes intervinham por sua própria iniciativa. Mas como
os insurrectos possuíam na realidade o poder, e como o poder oficial era só um fantasma,
os procuradores deviam finalmente dirigir-se ao mesmo comité executivo, com a
requisição de restabelecer os direitos espezinhados de tal bailarina cujas funções pouco
complicada eram altamente pagas pelos membros da dinastia a partir dos fundos do
povo. Como deve ser, a comissão de contacto pôs-se em acção, os ministros reuniram-
se, o secretariado do comité executivo consultou, delegações foram enviadas junto dos
ocupadores - e o negócio arrastou-se durante meses.
Sokhanov declarou que na qualidade de «homem de esquerda» não tinha nada a
opor às mais radicais das intrusões legais nos direitos de propriedade, mas em
contrapartida, ele era «o violento inimigo de todas as apropriações violentas». É por tais
subtilidades que a lamentável esquerda camuflava, habitualmente, a sua incapacidade.
Um governo realmente revolucionário teria sem dúvida podido reduzir ao mínimo as
apropriações caóticas promulgando a tempo um decreto de requisição de locais. Mas os
conciliadores de esquerda tinham entregue o poder aos fanáticos da propriedade para
pregar seguidamente, em vão, às massas, o respeito da legalidade revolucionária... ao
luar. O clima de Petrogrado não é favorável ao platonismo.
As longas filas de espera nas portas das padarias tinham dado o último impulso à
revolução. Essas «filas» também foram a primeira ameaça para o novo regime. Já na
sessão constitutiva do Soviete, tinha sido decidido criar uma comissão de abastecimento.
O governo nem se questionou como alimentaria a capital. Ele não teve qualquer problema
em reduzi-la à fome. O problema, também foi enviado para o Soviete. Ele tinha à sua
disposição economistas e estatísticos dotados de uma certa experiência prática, tendo
antes servido nos órgãos económicos e administrativos burgueses. Eram na maior parte
mencheviques da ala direita, como Gromann e Tcherevanine, ou antigos bolcheviques
muito afastados no sentido da direita como Bazarov e Avilov. Mas apenas encontraram-se
frente a frente com o problema do abastecimento da capital que se sentiram obrigados
pelo conjunto das circunstâncias em propor medidas muito radicais para jugular a
especulação e organizar o mercado.
Numa serie de sessões do Soviete foi ratificado um conjunto de sistemas de medida
de «socialismo de guerra», compreendendo a proclamação como bens do Estado de
todos os estoques de sementes, estabelecendo medida obrigatórias para o pão em

175
ligação com as mesmas medidas forçadas para os produtos industriais, o controlo do
Estado sobre a produção, a regularização das trocas de mercadorias com a aldeia. Os
líderes do comité executivo olhavam-se ansiosos: só sabendo propor, eles acediam às
resoluções radicais. Os membros da comissão de contacto transmitiam timidamente
essas resoluções ao governo. Este prometiam estudá-las. Mas nem o príncipe Lvov, nem
Gotchkov, nem Konalov não tinha vontade de controlar, de requisitar e de se limitar de
qualquer maneira, eles e os seus amigos. Todas as decisões económicas do Soviete
esbatiam-se à resistência passiva do aparelho governamental, na medida onde elas não
eram executadas, com autoridade, pelos sovietes locais. A única medida prática que o
Soviete de Petrogrado obteve a execução no domínio do abastecimento foi reduzir o
consumidor a uma ração fixa: uma libra e meia de pão para os trabalhadores manuais,
uma libra para os outros. Na verdade este limite não trouxe quase nenhuma mudança no
orçamento real alimentar à população da capital: com uma libra ou uma libra e meia,
pode-se viver. As calamidades da fome diária viriam mais tarde.
A revolução terá durante anos, não meses, mas anos, a apertar o cinto cada vez
mais. Ela ultrapassará essa dificuldade. O que a tormenta, pelo momento, não é a fome,
mas o desconhecido, a indeterminação do curso dos acontecimentos, a falta de certezas
para o futuro. As dificuldades económicas, agravadas por trinta e dois meses de guerra,
atingem as portas e janelas do novo regime. O desespero dos transportes, a falta de
diversas matérias-primas, o desgaste de uma parte considerável das ferramentas, a
inflação ameaçadora, a desordem da circulação das mercadorias -tudo isso exige
medidas audaciosas e urgentes. Chegando à linha económica, os conciliadores tornavam
essas medidas impossíveis sobre o aspecto político. Todo o problema económico sobre o
qual caíam se transformava em condenação da dualidade de poderes, e toda a decisão
que tinham que assinar escaldava-os intoleravelmente os dedos.
Houve uma importante verificação das forças e das relações sobre a questão do dia
de oito horas. A insurreição venceu, mas a greve geral continua. Os operários consideram
seriamente que a mudança de regime deve trazer também mudanças à sua própria sorte.
Daí provém a ansiedade entre os novos dirigentes, tanto liberais como socialistas. Os
partidos e os jornais patriotas lançam a palavra de ordem: «Soldados, para os quartéis!
Operários, para máquinas!» Assim, portanto, tudo fica como era? Perguntam os operários.
Pelo momento, sim, respondem, confusos, os mencheviques. Mas os operários
compreendem: se não há mudança imediata, eles serão novamente enganados. A
burguesia deixa aos socialistas o cuidado de resolver o assunto com os operários.
Alegando que a vitória alcançada «assegurou suficientemente a posição da classe
operária, na sua luta revolucionária» - com efeito, não temos agora os proprietários
liberais no poder? - o comité executivo decide, no cinco de Março, que o trabalho será
retomado na região de Petrogrado. Operários, às máquinas!
Tal é a força do egoísmo blindado das classes instruídas, dos liberais como dos
socialistas. Essa gente imaginava que os milhões de operários e de soldados, insurgidos
por um irresistível desenvolvimento do descontentamento e de esperanças, se
resignavam dócilmente depois da vitória com as antigas condições de vida. Segundo os
livros de história, os líderes estavam persuadidos que as coisas se tinham assim

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produzido nas antigas revoluções. Não, mesmo no passado, isso nunca aconteceu. Se os
trabalhadores foram impelidos para os antigos estábulos, foi por por desvios, por uma
serie de derrotas e enganos.
O reverso social cruel das revoluções políticas foi fortemente ressentido por Marat.
Por isso, se ele foi tão caluniado pelos historiadores oficiais. «A revolução - escreveu, um
mês antes do 10 de Agosto 1792 - foi realizada e apoiada unicamente pelas baixas
classes da população, por todos esses seres lesados que a insolente riqueza trata por
canalhas e que os Romanos, com o seu cinismo habitual, chamaram outrora
«proletários». Que dá portanto a revolução aos seres lesados? «Após certos sucesso de
início, o movimento foi finalmente vencido: falta-lhe sempre conhecimentos, habilidade,
recursos, armas, chefes, um plano de acção: fica sem defesa contra os conspiradores,
que têm a seu favor a experiência, a habilidade e a manha.» É de admirar que Kerensky
não tenha querido ser o Marat da revolução russa?
Um dos antigos capitãs da indústria russa, V. Auerbach, conta com um tom
indignado que «a canalha do povo compreendia a revolução como uma especie de
carnaval: os domésticos, por exemplo, desapareciam durante dias inteiros, passeavam
com fitas vermelhas, andavam de automóvel, e só voltavam pela manhã, para se lavarem,
e voltavam a sair em passeio.» É notável que se esforçando em mostrar o efeito
desmoralizador da revolução, o acusador caracteriza a conduta dos domésticos pelos
próprios traços que - excepção feita talvez da fita vermelha - reconstituíam bem a vida
habitual de uma patrícia burguesa. Sim, a revolução é considerada pelos oprimidos como
uma festa ou como uma véspera de festa, e o primeiro movimento dos servos-escravos
acordados por ela é de relaxar o jugo da servidão diária, humilhante, morna e sem saída.
A classe operária, no seu conjunto, não podia e não queria consolar-se unicamente
com as fitas vermelhas, símbolos de uma vitória ao proveito do outro. Nas fábricas de
Petrogrado, reinava a agitação. Bastantes empresas recusaram abertamente de se
submeter às decisões do Soviete. Os operários estão, bem entendido, dispostos a voltar
para as máquinas, porque são forçados a isso, mas em que condições? Eles reclamavam
o dia de oito horas. Os mencheviques alegavam que em 1905, os trabalhadores, tendo
tentado impor as oito horas, tinham sofrido uma derrota: «A luta sobre duas frente - contra
a reacção e os capitalistas - estava acima das forças do proletariado.» Tal era a ideia
central. Os mencheviques, de maneira geral, admitiam que uma ruptura com a burguesia
seria, no futuro, inevitável. Mas essa confissão puramente teórica não os obrigava a nada.
Eles consideravam que não se podia precipitar a ruptura. E como a burguesia era lançada
no campo da reacção não por frases incendiárias dos oradores e dos jornalistas mas pelo
movimento espontâneo das classes trabalhadoras, os mencheviques contrariavam com
todas as suas forças a luta económica dos operários e dos camponeses. «Para a classe
operária - professavam - as questões sociais, actualmente, não se colocam no primeiro
plano. Nesse momento, ela conquista a sua liberdade política.»
Mas em que consiste esta liberdade conceptual? Os operários não a podiam realizar.
Eles queriam antes de tudo um pouco de liberdade para os músculos e nervos. E eles
faziam pressões sobre os patrões. Que ironia: só no 10 de Março, como o jornal

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menchevique declarava que o dia de oito horas ainda não estava na ordem do dia, a
associação dos fabricantes, que, desde da véspera, viu-se obrigada a implicar-se em
relações oficiais com o Soviete, declarou que aceitava as oito horas e a organização de
comités de fábrica e de oficina. Os industriais mostraram mais perspicácia que os
estrategas democratas do Soviete. Nada de admirar: nas fábricas, os patrões
encontraram-se frente a operários que, pelo menos uma boa metade das empresas de
Petrogrado, na maioria as maiores, abandonavam unanimemente as máquinas após oito
horas de trabalho. Eles tomavam por eles próprios o que lhes recusavam o governo e o
Soviete.
Quando a imprensa comparou com ternura o gesto dos industriais russos, do 10 de
Março de 1917, ao da nobreza francesa, do 4 de Agosto 1789, ela estava muito mais
próxima da verdade histórica que ela própria pensava: tal como os feudais do fim do
século XVIII, os capitalistas russos cediam à necessidade e, por uma concessão
temporária, esperavam assegurar-se no futuro de uma restituição. Um dos publicistas
cadetes, transgredindo a mentira oficial, confessava claramente: «Para a infelicidade dos
mencheviques, os bolcheviques já tinham obrigado, pelo terror, a associação dos
fabricantes a aceitar a instauração imediata das oito horas.» Em que consistia o terror, já
sabemos. Os operários bolcheviques, indubitavelmente, ocupavam no movimento o
primeiro lugar. E, de novo, como nos dias decisivos de Fevereiro, a esmagadora maioria
dos operários alinhava com eles.
Foi com uma mistura de sentimentos que o Soviete, dirigido pelos mencheviques,
registou a formidável vitória, ganha, em suma contra ele próprio. Esmorecidos, os líderes
tiveram ainda que dar um passo em frente e convidar o governo provisório a decretar,
antes da Assembleia constituinte, o dia das oito horas para toda a Rússia. Mas o governo,
concordando com os patrões, esbarrou, e, na espera de melhores dias, recusou ceder à
reivindicação que lhe foi apresentada sem insistência.
Na região moscovita aconteceu a mesma luta, mas arrastou-se por muito tempo. Aí
também, o Soviete, apesar da resistência dos operários, exigiu a retoma do trabalho.
Numa da maiores fábricas, uma resolução contra a paragem da greve agrupou sete mil
votos contra seis mil. Foi pouco mais ou menos assim que reagiram as outras empresas.
No 10 de Março, o Soviete confirmou ainda uma vez a obrigação de voltar para as
máquinas. Se, na maioria das fábricas, depois disso, o trabalho recomeçou, em
contrapartida, quase por todo o lado, desencadeou-se uma luta pela redução do dia de
trabalho. Os trabalhadores corrigiam os seus dirigentes por actos. Após uma longa
resistência, o Soviete de Moscovo teve, enfim, no dia 21 de Março, que estabelecer o dia
de oito horas pela sua própria iniciativa. Os industriais submeteram-se imediatamente. Na
província, a luta prolongou-se até Abril. Quase por todo o lado, os sovietes travaram e
contrariavam, primeiro o movimento, depois, sob pressão do operários, reuniam-se com
os patrões: onde estes últimos recusavam consentir, os operários viam-se forçados a
decretar o dia de oito horas. Que racha no sistema!
O governo, premeditadamente, mantinha-se afastado. Entrementes, sob a direcção
dos líderes liberais, abriu-se uma furiosa campanha contra os operários. Para minimizar

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estes últimos, decidiram dirigir contra os soldados. A diminuição da horas de trabalho não
significava um enfraquecimento da frente? Tinham o direito de só pensar em si em tempo
de guerra? Nas trincheiras contam-se as horas? Quando as classes possuidoras se
comprometem na caminho da demagogia, elas não param diante de nada. A agitação
tomou um carácter enraivecido e, logo, foi levado até às trincheiras. O soldado Pireiko,
nas suas Memórias da frente, reconhece que a agitação, principalmente levada a cabo
pelos oficiais novamente promulgados socialistas, não foi eficaz. «Mas toda a infelicidade
da oficialidade que tentou dirigir os soldados contra os operários consistiu no facto que se
compunha de oficiais. Continuava demasiado fresca na memória de cada soldado, a
lembrança do que tinha sido para ele, há pouco, o oficial.»
Foi todavia na capital que os operários foram perseguidos da maneira mais intensa.
Os industriais, conjuntamente com o estado-maior cadete, encontraram os meios e forças
ilimitadas para a agitação na guarnição. «Cerca do dia 20 e nos dias seguintes, conta
Sokhanov, em todos os cruzamentos, nos tróleis, em qualquer lugar público, podia-se ver
os operários e soldados que entravam numa furiosa batalha oratória.» Davam-se assim
zaragatas. Os operários compreenderam o perigo e preveniram-no hábilmente. Para isso,
bastou-lhes contar a verdade, de citar os números dos lucros da guerra, mostrar aos
soldados as fábricas e oficinas, o ruído das máquinas, a chama infernal dos fornos - frente
permanente sobre o qual os trabalhadores sofriam inumeráveis percas. Sob iniciativa dos
operários, começaram as visitas regulares, por destacamentos da guarnição, de fábricas,
sobretudo das que trabalhavam para a defesa. O soldado olhava e escutava, o operário
mostrava e explicava. As visitas terminavam pela confraternização solene. Os jornais
socialistas publicavam numerosas resoluções de contingentes militares, afirmando a sua
indefectível solidariedade com os operários. Cerca de meados de Abril, o próprio objecto
do conflito desapareceu das colunas dos jornais. A imprensa burguesa calou-se. Assim,
após a vitória económica, os operários ganhavam uma outra, política e moral.
Os acontecimentos que levaram à luta pelo dia das oito horas tiveram uma grande
importância para todo o desenvolvimento ulterior da revolução. Os operários
conquistaram algumas horas de liberdade na semana para a leitura, as reuniões,e
também para o exercício de tiro que se tornou regular no momento da criação de uma
milícia operária. Após uma lição tão clara, os trabalhadores começaram a observar de
perto os dirigentes do Soviete. A autoridade dos mencheviques sofreu sérios prejuízos. Os
bolcheviques reforçaram-se nas fábricas e, parcialmente nos quartéis. O soldado tornou-
se mais atento, mais reflectido, mais circunspecto: ele compreendeu que alguém o
vigiava. A intenção perfídia da demagogia voltou-se contra os seus instigadores. Em vez
do afastamento e da hostilidade, houve coesão mais estreita entre os operários e os
soldados.
O governo, apesar do idílio do «contacto», detestava o Soviete, os seus dirigentes e
a sua tutela. Ele demonstrou desde da primeira possibilidade. Como o Soviete preenchia
as funções puramente governamentais, e a pedido do próprio governo, quando se tratava
de pacificar as massas, o comité executivo pediu um modesto subsídio para as suas
despesas. O governo recusou e, apesar dos pedidos repetidos do Soviete, continuou
firme na sua negação: o governo não pode dispensar fundos do Estado a uma

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«organização privada». O Soviete calou-se. O orçamento do Soviete caiu sobre os
operários que não deixaram de organizar subscrições para as necessidades da revolução.
Ao mesmo tempo, os dois partidos, liberais e socialistas, mantinham o decoro de
uma amizade completa mútua. A conferência pan-russa dos sovietes, a existência de uma
dualidade de poderes foi qualificada de invenção. Kerensky assegurou aos delegados do
exército que entre o governo e o Soviete havia unidade completa nas tarefas e nos
objectivos. Zelosamente, a dualidade de poderes foi negada por Tseretelli, Dan e outros
dirigentes do Soviete. Pela mentira, eles esforçaram-se a consolidar um regime fundado
na mentira. Todavia, o regime vacilava logo nas primeiras semanas. Os líderes
mostravam-se inesgotáveis em combinações organizativas: eles tentavam apoiar-se
sobre representantes do acaso contra a massa, sobre os soldados contra os operários,
sobre as novas dumas, os zemstvos e as cooperativas contra os sovietes, sobre a
província contra a capital, e, finalmente, sobre a oficialidade contra o povo.
A forma soviética não contém em si nenhuma força mística. Ela não está de forma
nenhuma exempta dos vícios inerentes a toda a forma de representação inevitável
enquanto esta for indispensável. Mas a força do sovietismo reside nisto: ele reduz esses
vícios ao mínimo. Pode-se dizer com segurança e a experiência o confirmará brevemente,
que qualquer outra representação, atomizando a massa, teria exprimido, na revolução, a
vontade real desta última incomparavelmente mal e com muito mais atraso. De todas as
formas de representação revolucionária, o soviete é a mais ágil, a mais directa e
transparente. Mas isso não é portanto senão uma forma. Ela não pode dar mais do que as
massas são capazes de dar a um dado momento. Em contrapartida, ela pode facilitar às
massas a compreensão das faltas cometidas e a sua reparação. Nisso residia mesmo um
das apostas mais importantes do desenvolvimento da revolução.
Quais eram portanto as perspectivas políticas do comité executivo? É duvidoso que
nenhum líder tenha tido perspectivas profundamente meditadas. Sokhanov afirmou, no
seguimento que, segundo o seu plano o poder não era cedido à burguesia senão por um
curto prazo, afim que a democracia tendo-se fortalecida retomaria o poder. Contudo, esta
construção dos factos ingénua em si, tinha um carácter evidentemente retrospectivo. De
qualquer modo, nessa época, ela não foi formulada por ninguém. Sob a direcção de
Tseretelli, as oscilações do comité executivo, se elas não pararam, forma pelo menos
erigidas em sistema. Tseretelli proclamou abertamente que falta de um sólido poder
burguês a revolução perder-se-ia inevitavelmente. A democracia deve limitar-se a fazer
pressão sobre a burguesia liberal, evitando de a empurrar para uma solução imprudente
no campo da reacção, apoiando-a ao contrário na medida onde ela consolidará as
conquistas da revolução. No fim dos fins, esse regime intermediário devia concretizar-se
por uma república burguesa, com socialistas na situação de oposição parlamentar.
O obstáculo para os líderes era menos na perspectiva que no programa corrente da
acção. Os conciliadores tinham prometido às massas obter da burguesia uma política
democrática interior e exterior por «pressão». Indiscutivelmente, sob a pressão das
massas populares, as classes dirigentes fizeram concessões mais de uma vez na história.
Mas a «pressão» significa no fim de contas que se ameaça de afastar do poder a classe

180
dominante e de tomar o seu lugar. É precisamente uma arma que faltava mesmo assim à
democracia. Ela própria tinha, pela sua própria vontade, confiado o poder à burguesia. No
momento da erupção dos conflitos, não era a democracia que ameaçava suprimir o poder,
era, pelo contrário, a burguesia que ameaçava de o recusar. Assim, a principal alavanca,
nos mecanismos de pressão, encontrava-se entre as mãos da burguesia. Por aí se
explica que o governo, apesar de toda a sua impotência,tenha podido resistir com
sucesso a todas as intimidações pouco sérias dos dirigentes do Soviete.
A meados de Abril, o próprio comité executivo encontrou-se no meio de um órgão
demasiado grande para misteriosas manobras políticas do núcleo dirigente que se tornara
definitivamente para os liberais. Um gabinete foi constituído, exclusivamente composto de
gente de direita, partidários da defesa nacional. Desde então, a alta política fez-se num
círculo íntimo. Tudo parecia se arranjar e consolidar. Tseretelli dominava nos sovietes de
uma maneira ilimitada. Kerensky subia e subia. Então precisamente manifestaram-se
nitidamente os primeiros sintomas alarmantes na base, nas massas. «É notável -
escreveu Stankevitch, próximo do círculo de Kerensky - que mesmo no momento onde o
comité se organizava, quando a responsabilidade do trabalho foi tomada por um gabinete
exclusivamente escolhido entre os partidos da defesa nacional, até a esse momento,
escapara-lhe a direcção da massa, que se afastou dele.» Impressionante? Não. Somente
normal.

181
O exército e a guerra
Já, no decurso dos meses que precederam a revolução, a disciplina no exército tinha
sido fortemente abalada. Pode-se notar bastantes queixas de oficiais na época: os
soldados faltam de respeito aos oficiais, o tratamento dos cavalos, do equipamento e
mesmo da armas estava abaixo de toda a crítica, a desordem reinava nos comboios
militares. A situação não era ruim sob todos os aspectos. Mas por todo o lado ela ia na
mesma direcção: a caminho da decomposição.
Agora juntava-se o tremor da revolução. O levantamento da guarnição de
Petrogrado produziu-se não somente sem a adesão dos oficiais, mas contra eles. Nas
horas críticas, os comandantes furtaram-se simplesmente. Chidlovsky, deputado
outubrista, encontrou-se, no dia 27 de Fevereiro, com oficiais do regimento Preobrajensky,
evidentemente com o objectivo de conhecer a atitude deles em relação à Duma, mas,
entre os aristocratas da Guarda, ele deparou-se com a incompreensão completa do que
se passava, talvez, mesmo assim, meio simulada: todos os homens eram monarquistas
assustados. «Qual foi o meu espanto – conta Chidlovsky – quando, na manhã seguinte, vi
todo o regimento Preobranjensky desfilar em ordem na rua, com a banda de música, sem
um oficial...» Na verdade, alguns contingentes vieram ao palácio Tauride com os seus
chefes, ou, mais exactamente, levaram os chefes com eles. Os oficiais, no cortejo triunfal,
sentiam-se de certa forma prisioneiros. A condessa Kleinmichel, que como detida
observou a cena, exprimiu-se com mais clareza: os oficiais pareciam carneiros levados
para o matadouro.
A Revolução de Fevereiro não criou divisão entre soldados e oficiais, ela
simplesmente mostrou-a à luz do dia. No espírito dos soldados, a insurreição contra a
monarquia era antes de tudo um levantamento contra os oficiais. «Desde da manhã do 28
de Fevereiro – escreveu nas suas Memórias o cadete Nabokov, que trajava nesse tempo
o uniforme de oficial – era perigoso sair de casa, porque já arrancavam os galões dos
oficiais.» Assim se apresentava na guarnição o primeiro dia do novo regime!
A primeira preocupação do comité executivo foi reconciliar os soldados com os
oficiais. Isso significava em resumo simplesmente que se substituía a tropa sob o antigo
comando. O regresso dos oficiais nos seus regimentos devia, segundo Sokhanov,
preservar o exército «da anarquia geral ou da ditadura da soldadesca sombria e
incoerente». Esses revolucionários, assim como os liberais, temiam não os oficiais mas os
soldados. Todavia, os operários, de acordo com «a sombria soldadesca», apreendiam
toda as desgraças precisamente do lado dos brilhantes oficiais. A reconciliação obtida não
era, por consequência, sólida.
Stankevitch descreveu da maneira seguinte a atitude dos soldados em relação aos
oficiais que voltaram após a insurreição: «Os soldados, ao violarem a disciplina e saindo
dos quartéis sem os oficiais, mas sobretudo em muitos casos contra a vontade destes
últimos, matando mesmo alguns deles que faziam o seu dever, pensaram ter cumprido
uma grande façanha emancipatória. Se isso foi uma façanha, e se os próprios oficiais
agora o afirmam, porquê os chefes não os fizeram sair para a rua? Enfim, para eles teria

182
sido mais fácil e menos perigoso. Agora, a vitória adquirida, eles juntaram-se aos
corajosos vencedores. Mas é sincera e duradoura?» Essas palavras são tanto mais
instrutivas que o seu autor pertence ele próprio a esses oficiais «de esquerda» que não
tiveram a mínima ideia de os levar para a rua.
Na manhã do dia 28, na Perspectiva Sampsonievsky, um oficial de engenharia
explicou aos seus soldados que «o governo detestado de todos tinha sido derrubado»,
que um novo tinha sido formado, com o príncipe Lvov à cabeça, e que, seguidamente, era
preciso obedecer aos oficiais. «E agora, peço a cada um de voltar ao seu posto no
quartel.» Alguns soldados gritaram a formula usual: «Feliz de estar às suas ordens!» Mas
a maioria parecia desorientada: então, é tudo? Por acaso, Kaiorov presenciou a cena. Ele
ficou impressionado. «Permita-me de dizer uma palavra, senhor comandante»... E, sem
esperar pela autorização, Kaiorov colocou a seguinte questão: «Foi para substituir um
proprietário por outro, nas ruas de Petrogrado, durante três dias, que o sangue dos
operários foi derramado?» Kaiorov, mais uma vez, agarrava o boi pelos cornos. A questão
que ele colocava foi objecto da luta nos meses seguintes. O antagonismo entre o soldado
e o oficial era o reflexo da hostilidade entre o camponês e o proprietário nobre.
Na província, os chefes da tropa, tendo evidentemente recebido a tempo as
instruções, expunham os acontecimentos de uma maneira uniforme: o soberano tinha,
diziam eles, esgotado as suas forças na preocupação da defesa do país e foi forçado a
transmitir a pesada responsabilidade do governo ao irmão. Via-se, ao olhar os soldados –
declara lamentando-se, um oficial num lugarejo da Crimeia. Via-se que, para eles, Nicolau
ou Miguel, era um só. Portanto, quando, o mesmo chefe é forçado, na manhã seguinte, a
anunciar ao batalhão a vitória da revolução, os soldados, segundo as suas próprias
palavras, transfiguraram-se. Suas questões, gestos, olhares, testemunhavam claramente
um «longo e perseverante trabalho realizado com insistência por alguém sobre os
cerebros escuros, cinzentos, não acostumados a pensar». Que abismo entre o oficial cujo
cerebro se adapta sem dificuldades ao último telegrama de Petrogrado e esses soldados
que, ainda que penosamente, determinam honestamente a sua atitude diante dos
elementos, avaliando-as eles próprios.
O alto comando, tendo reconhecido, formalmente, a insurreição, decidiu geralmente
não deixar a revolução ganhar a frente. O chefe do estado-maior do Grande Quartel
General ordenou aos comandantes da frente, no caso que se apresentassem no seu
sector delegações revolucionárias, que o general Alexeiev chamava «bandas», de os
prender imediatamente e de os levar ao tribunal marcial logo ali. No dia seguinte, o
mesmo general, em nome da sua alteza «o grão-duque Nicolau Nicolaievitch, exigia do
governo «que ele meta fim a tudo o que se produzia na retaguarda do exército, isto é à
revolução.
O comandante diferia tanto que possível informar o exército da frente sobre a
insurreição, não por fidelidade à monarquia mas por temer a revolução. Sobre certas
frentes foi estabelecida uma verdadeira quarentena: as cartas de Petrogrado eram
interceptadas, os mensageiros presos – o antigo regime queria assim algumas horas de
eternidade. A notícia da revolução não atingiu a linha de fogo senão cerca do 5 ou 6 de

183
Março, mas sob qual forma? Ouvimos pouco mais ou menos isto: o grão-duque foi
nomeado generalíssimo, o czar abdicou em nome da pátria e foi tudo. Em muitas
trincheiras, talvez mesmo na maior parte, as informações sobre a revolução vieram do
lado alemão em vez de Petrogrado. Haveria ainda dúvidas, entre os soldados, que todo o
comando não foi conjurado para dissimular a verdade? E os soldados podia dar o menor
crédito a esses mesmos oficiais que, no dia seguinte ou depois, trajavam fitas vermelhas?
O chefe do estado-maior da frota do mar Negro conta que a notícia dos
acontecimentos de Petrogrado não teria tido influência sobre os marinheiros. Mas desde
que chegaram da capital os primeiros jornais socialistas, «num piscar de olhos, o estado
de espírito das tripulações modificou-se, as reuniões política começaram e, das rachas,
saíram rastejando os agitadores criminosos». O almirante não compreendeu o que se
passava sob os seus olhos. Não foram os jornais que provocara a mudança nos espíritos.
Eles dissiparam somente as dúvidas dos marinheiros sobre a profundidade da insurreição
e permitiram às tripulações de se manifestar abertamente seus verdadeiros sentimentos,
o temor das represálias do lado do comando tendo desaparecido. A fisionomia política dos
oficiais do mar Negro, e a sua própria são caracterizadas pelo mesmo autor numa só
frase: «A maioria dos oficiais considerava que sem o czar a pátria perder-se-ia.» Os
democratas pensavam que a pátria se perderia se tais luzes não fossem devolvidas aos
obscuros marinheiros.
O comando do exército e da frota partilhavam duas alas distintas: uns tentavam
manter-se nos seus postos, compunham com a revolução, inscreviam-se no partido
socialista-revolucionários, e, mais tarde, alguns deles tentaram mesmo infiltrar-se entre os
bolcheviques. Os outros, em contrapartida, tentavam opor-se à nova ordem, mas logo
perdiam o pé num conflito e eram levados pela corrente dos soldados que subia. Tais
grupos são tão naturais que eles se reproduzem em todas as revoluções. Os oficiais
intransigentes da monarquia francesa, os que, segundo os termos de um deles, «lutaram
até ao fim», sofreram menos da insubordinação dos soldados que o servilismo de certos
colegas nobres. No fim de contas, a maioria do antigo comando era eliminada, esmagada,
e foi somente uma pequena parte que se reeducou e se adaptou. Os oficiais partilhavam
somente, mas de uma forma dramática, a sorte das classes nas quais eles tinham sido
recrutados.
O exército representa em geral uma imagem da sociedade que ele serve,
distinguindo-se no facto que ele dá às relações sociais um carácter concentrado, levando
até ao extremo os seus traços negativos e positivos. Não é por acaso que a guerra, do
lado russo, não valorizou nenhum nome de grande capitão. O alto comando é
caracterizado de uma maneira suficientemente brilhante por um dos seus: «Muito
aventureirismo, muita ignorância, muito egoísmo, intrigas, carreirismo, cupidez,
incapacidade, falta de perspicácia – escreveu o general Zalessky – e muito pouca ciência,
talentos, preparação, pouca vontade de se arriscar, mesmo de arriscar o conforto e a
saúde». Nicolau Nicolaievitch, que foi o primeiro generalíssimo, distinguia-se somente
pela sua altura e a sua obscenidade de muita augusta personagem. O general Alexeiev,
mediocridade cinzenta, decano de qualquer modo dos escrivões do exército, ganhava
pela assiduidade. Kornilov, capitão decidido, era considerado, mesmo pelos seus

184
admiradores como um simples de espírito. Verkhovsky, ministro da Guerra de Kerensky,
declarou mais tarde sobre Kornilov que era um coração de leão com uma cabeça de
ovelha. Brossilov e o almirante Koltchak eram em certa medida, admitamos, superiores
aos outros pela sua intelectualidade, e era tudo; a Denikine não lhe faltava carácter, mas,
para o resto, era um vulgar general do exército, que tinha talvez lido cinco ou seis livros.
Vinha a seguir os Iudenith, os Dragomirov, os Lokomsdy, sabendo ou não francês,
simplesmente bebedores, grandes bebedores, mas perfeitas nulidades.
Na oficialidade foram, na verdade, largamente representados não somente a Rússia
dos nobres, mas a da burguesia e da democracia. A guerra lançou nas fileiras do exército
dezenas de milhares de oficiais, jovens da pequena burguesia – oficiais, funcionários da
administração militar, médicos, engenheiros. Esses círculos, partidários da guerra até à
vitória, ressentiam a necessidade de algumas grandes medidas, mas submetiam-se, no
fim de contas, às altas esferas reaccionárias – por medo, do tempo do czarismo, e por
convicção após a revolução – assim como a democracia, na retaguarda, subordinavam-se
à burguesia. Os elementos conciliadores da oficialidade partilhavam a funesta sorte dos
partidos conciliadores com a diferença, que, sobre a frente, a situação se desenhava
desmesuradamente mais grave. No comité executivo mantinham-se por equívocos, mas,
diante dos soldados, era mais difícil.
Os ciúmes e os conflitos entre oficiais democratas e aristocratas, sem conseguir
renovar o exército, introduziram aí somente um novo elemento de decomposição. A
fisionomia do exército estava determinada pela velha Rússia e ela estava marcada pela
servidão. Tal como outrora, os oficiais consideravam como o melhor soldado o jovem
camponês que obedecia sem pensar e em quem ainda não tinha despertado a
consciência da sua personalidade humana. Tal era a tradição «nacional», sovoroviana, do
exército russo, que se tinha apoiado sobre uma agricultura primitiva, sobre o direito da
servidão e a comunidade agrária. No século XVIII, Sovorov obtinha ainda prodígios com
esse material.
Leão Tolstoi idealizou com uma predilecção de grande senhor, no seu Platão
Karataiev, antigo tipo de soldado russo que se submete sem vacilar à natureza, ao arbítrio
e à morte («A guerra e a paz»). A Revolução francesa, tendo aberto uma maravilhosavia
de penetração do individualismo, em todos os domínios da actividade humana, anulou a
arte militar de Sovorov. No decorrer do século XIX assim como no século XX, durante o
lapso de tempo que separa a Revolução francesa da revolução russa, o exército czarista,
como exército feudal, foi invariavelmente batido. O comando que se tinha constituido
sobre esse terreno «nacional» distinguia-se pelo desprezo da personalidade do soldado,
por um espírito de mandarinismo passivo, pela ignorância do ofício, pela completa falta de
heroísmo e por um notável dom de vigarice. A autoridade da oficialidade assentava sobre
os sinais exteriores da distinção, sobre o ritual das marcas de respeito, sobre o sistema
das repressões e mesmo sobre uma certa linguagem convencional, ignóbil dialecto de
escravos «incluindo, ignoro» - língua que o soldado devia manter ao dirigir-se ao oficial.
Ao aceitar verbalmente a revolução e prestando juramento ao governo provisório, os
marechais do czar faziam simplesmente cair sobre a dinastia derrubada as suas próprias

185
faltas. Eles aceitavam graciosamente que Nicolau II fosse declarado o bode expiatório de
todo o passado. Mas, quanto a ir mais longe, alto lá! Como teriam eles compreendido que
a essência moral da revolução fosse animar a massa humana sobre a imobilidade
espiritual sobre a qual foi construido todo o seu bem estar? Designado para comandar a
frente, Denikine declarou em Minsk: «Admito a revolução totalmente e sem restrições.
Mas considero perigoso para o país revolucionar o exército e de aí introduzir a
demagogia.» Formula clássica do pensamento obtuso de um general! No que diz respeito
aos generais subalternos, eles sóreclamavam, segundo os termos de Zalessky, uma
coisa: «Não nos toquem, e, pelo resto, nada nos importa?» Todavia, a revolução não
podia dispensar de os tocar. Saídos das classes privilegiadas, nada podiam ganhar, mas
muito a perder. Estavam ameaçados de ter de abandonar não somente seus privilégios de
comandantes, mas também as sua grandes propriedades. Ao mesmo tempo que fingiam
uma atitude lealista em relação ao governo provisório, a oficialidade reaccionária travou
uma luta tanto mais encarniçada contra os sovietes. E quando ela se convenceu que a
revolução penetrava irresistivelmente nas massas dos soldados e nas suas terras, o
comando considerou esse facto como uma traição nunca vista da parte de Kerensky, de
Miliokov, e de Rodzianko. Dos bolcheviques também, é preciso dizer?
As condições de existência da frota de guerra, mais que as do exército,
comportavam os germes vivos e permanentes da guerra civil. A vida dos marinheiros em
caixas de ferro onde são empilhados à força por vários anos, continua a não se distinguir,
mesmo sob o ponto de vista alimentar, da existência de presídios. Além disso, os oficiais,
pertencendo na maior parte aos círculos privilegiados, tendo escolhido a vocação e de
sua plena vontade o serviço da marinha, identificavam a pátria ao czar, o czar a eles
próprios, e no marujo viam a parte menos preciosa de um navio de guerra. Dois mundos
estranhos um ao outro e fechados vivem em contacto estreito, não deixando de ter olho
um no outro. As embarcações tinham as suas bases nas cidades marítimas industriais,
contando um grande número de operários indispensáveis para a construção e a
reparação de navios. Além disso, as equipagens das máquinas e dos serviços técnicos,
nos navios, eram compostas por um bom número de operários qualificados. Eis as
condições que transformavam a frota de guerra numa mina revolucionária. Nas
insurreições elevantamentos militares de todos os países, os marinheiros constituem o
elemento mais explosivo: quase sempre, desde da primeira possibilidade, eles exerciam
rigorosas represálias sobre os oficiais. Os marinheiros russos não foram excepção.
Em Cronstadt, a insurreição acompanhou-se de uma explosão desangrenta
vingança contra os chefes que, assustados pelo seu próprio passado, tentaram dissimular
a revolução aos marinheiros. Uma das primeiras vítimas foi o comandante da frota, o
almirante Viren, que gozava de um ódio bem merecido. Uma parte dos oficiais fora presa
pelos marujos. Os que foram deixados em liberdade foram desarmados.
Em Helsingfors e em Sveaborg, o almirante Nepenine não deixou chegar nenhuma
notícia de Petrogrado insurgido até à noite do 4 de Março, intimidando os marinheiros e
os soldados ameaçando-os de repressão. O levantamento, desse lado, rebentou com
mais violência e durou uma noite e um dia. Numerosos oficiais foram presos. Entre eles,
os mais detestados foram jogados para debaixo do gelo. Considerando o que conta

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Skobelev sobre o comportamento das autoridades de Helsingfors e da frota – escreveu
Sokhanov, portanto pouco indulgente em relação «à obscura soldadesca» - só nos
devemos admirar que esses excessos tenham sido significantes.»
Mas, no exército igualmente, não faltaram as represálias sangrentas que se
produziram por vagas sucessivas. No início, vingavam-se do passado, dos infames
tratamentos infligidos aos soldados. As más lembranças, ardentes como úlceras, não
faltavam. A partir de 1915, onde se tinha oficialmente estabelecido no exército czarista o
castigo disciplinar das vergastadas, os oficiais faziam, segundo as suas conveniências,
fustigar os soldados, muitas vezes pais de família. Mas não se tratava sempre e somente
do passado. Na conferência pan-russa dos sovietes, o relator sobre a questão do exército
comunicou que, entre o 15 e o 17 de Março, tinham ainda ordenado, no exército da frente,
castigos corporais aos soldados. Um deputado da Duma regressado da frente contava
que os Cossacos, na ausência dos oficiais, lhe tinham declarado o seguinte: «Olhe, você
fala da ordem dada (trata-se, ao que parece da famosa «ordem Nº 1», sobre a qual
falaremos mais tarde). Recebemos ontem, e portanto, hoje, o comandante bateu-me na
cara.» Os bolcheviques tal como os conciliadores preveniam os excessos entre os
soldados. Mas as vinganças sangrentas também eram tão inevitáveis como o coice de
uma arma após um tiro. De qualquer modo, ao dizer da Revolução de Fevereiro que ela
não foi sangrenta, os liberais fundavam-se no facto de terem recebido o poder.
Certos oficiais encontraram meio de provocar violentos conflitos a propósito das fitas
vermelhas que, aos olhos dos soldados, eram o símbolo da ruptura com o passado. Assim
teve lugar o assassinato do comandante do regimente de Somy. Um comandante tendo
exigidos de um efectivo de complemento chegado de novo, que retirassem a fita
vermelha, foi detido pelos soldados. Houve também um bom número de choques sobre os
retratos do czar que não foram retirados dos locais oficiais. Seria a fidelidade da
monarquia? Na maioria dos casos, não era senão suspeita sobre a solidez da revolução e
precaução pessoal para o futuro. Mas os soldados não estavam errados ao discernir por
detrás dos retratos, o espectro emboscado do antigo regime.
Medida irreflectidas vindas do alto, sobresaltos em baixo estabeleciam o novo
regime no exército. A autoridade disciplinar dos oficiais não foi abolida nem limitada: ela
caiu simplesmente durante as primeiras semanas de Março. «Era claro – disse o chefe do
estado-maior do mar do Norte – que se um oficial tentasse aplicar uma pena disciplinar a
um marinheiro, não havia força para obter a execução.» Aí vê-se um dos sintomas de
uma verdadeira revolução popular.
Desde da queda do poder disciplinar, a incapacidade prática da oficialidade não foi
dissimulada por acaso. Stankevitch, a quem não se pode recusar nem o dom da
observação, nem o interesse pela coisa militar, exprime-se em termos perturbadores
sobre o comando, mesmo desse lado: a instrução fazia-se ainda segundo os antigos
regulamentos que não respondiam mais às exigências da guerra. «Tais exercícios eram
provas de resistência e de submissão dos soldados.» A oficialidade esforçava-se, bem
entendido, em deitar a culpa da sua incapacidade sobre a revolução.

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Diligentes com os ajustamentos de contas impiedosos com o punho, os soldados
também inclinavam-se à credulidade infantil e a uma gratitude cheia de abnegação.
Durante um curto momento, o deputado Filonenko, padre e liberal, parecia aos soldados
da frente ser o portador das ideias de emancipação, o pastor da revolução. As velhas
concepções eclesiásticas aliaram-se estranhamente à nova fé. Os soldados traziam o
padre em triunfo, levantavam-no acima das cabeças, instalavam-no com muitas
amabilidades no seu trenó, e sufocando-o de entusiasmo, reportava na Duma: «Não
podemos acabar com os nossos adeus. Eles beijam-nos as mãos e os pés.» Parecia a
esse deputado que a Duma teve no exército uma formidável autoridade. Na realidade, a
autoridade pertencia à revolução e era ela que jogava o seu reflexo embaciado sobre
certas figuras aparecidas por acaso.
A erupção simbólica à qual procedeu Gotchkov no alto comando, demitindo algumas
dezenas de generais, não dava qualquer satisfação aos soldados, e, ao mesmo tempo,
criava nos oficiais superiores um estado de incerteza. Cada um temia não poder mostrar
serviço, a maioria deixava andar, adulava e apertava os punhos nos bolsos. Pior ainda,
deve dizer-se dos oficiais intermediários e subalternos, que afrontavam os soldados.
Desse lado, o governo não fez qualquer saneamento. Procurando as vias legais, os
artilheiros de uma bateria da frente escreviam ao comité executivo e à Duma de Estado,
sobre o seu comandante: «Irmãos...pedimos-lhes humildemente que afastem o nosso
inimigo interno Vantchekhasa.» Como não recebiam resposta, os soldados começavam a
agir pelos seus próprios meios: insubordinação, expulsões e mesmo prisões. Foi somente
após isso que o comando, despertando, fazia desaparecer da circulação oficiais que
tinham sido presos ou maltratados, procurando por vezes punir os soldados, ainda mais,
muitas vezes, deixando-os sem castigo, temendo complicar as coisas ainda mais. Assim
se criou uma situação intolerável para a oficialidade, a qual, não esclarecia de forma
nenhuma a situação dos soldados.
Foram numerosos os oficiais combatentes que, levando a sério a sorte da tropa
insistiam na necessidade de um saneamento geral do comando: senão, afiançavam, não
se poderia pensar à regeneração das capacidades combativas da tropa. Os soldados
submetiam aos deputados da Duma os argumentos não menos convincentes. Mais tarde,
quando eles eram vexados, eles deviam se queixar diante dos seus chefes, os quais,
habitualmente, não faziam atenção às queixas. Agora, como agir? Pois como o comando
era o mesmo, as queixas apresentadas teriam a mesma sorte. «A esta questão, era difícil
responder», reconhecia um deputado. Portanto, esta simples questão dizia respeito ao
destino e futuro do exército.
Não imaginemos que as relações no exército tenham sido idênticas em todo o país,
nas diferentes formações e nas tropas. Não, os contrastes eram consideráveis. Se os
marinheiros da frota do mar Báltico reagiram às primeiras notícias da revolução pelas
represálias sobre os oficiais, logo ali ao lado, na guarnição de Helsingfors, os oficiais
ocupavam ainda no início de Abril dirigiam os sovietes dos soldados e, nos momentos
solenes, aparecia, em nome dos socialistas-revolucionários, um imponente general. Tais
contrastes de ódio e de confiança não eram raros. Contudo, o exército apresentava um

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sistema de vasos comunicantes, e as disposições políticas dos soldados e marinheiros
tendiam a juntar-se num e mesmo nível.
A disciplina mantinha-se pouco mais ou menos enquanto que os soldados
esperavam mudanças rápidas e decisivas. Mas quando viram – declara um delegado da
frente – que tudo continuava na mesma, mesma opressão, mesma escravatura, mesmas
trevas, mesmas vexações, os sarilhos começaram. A natureza que não tinha premunido
todos os humanos, considerou, por infelicidade dar aos soldados um sistema nervoso. As
revoluções servem para lembrar de tempos a tempos esta dupla asneira.
Na retaguarda como na frente, as causas acidentais provocariam facilmente
conflitos. Tinham cedido aos soldados o direito de frequentar livremente, «em igualdade
com todos os cidadãos», os teatros, as reuniões, os concertos, etc.. Numerosos soldados
compreenderam que tinham direito à entrada gratuita nos teatros. O ministro explicou-lhes
que era necessário compreender «a liberdade» num sentido transcendental. Mas as
massas populares insurgidas nunca se mostraram inclinadas ao platonismo nem ao
kantismo.
O tecido gasto da disciplina rasgava-se num lado e noutro, em diferentes momentos,
nas diferentes guarnições e diversos corpos da tropa. Tal comando, frequentemente,
imaginava que, no seu regimento ou na sua divisão, tudo corria bem até à chegada dos
jornais ou de um agitador do exterior. Na realidade cumpriam-se o trabalho das forças
mais profundas e mais irresistíveis.
O deputado liberal Ianochkevitch relatou da frente esta ideia geral que a
desorganização se manifestava sobretudo nas tropas chamadas «verdes», tropas de
mujiques. «Nos contingentes mais revolucionários, entendiamo-nos bem com os oficiais.»
De facto, a disciplina mantém-se há muito tempo nos dois polos: na cavalaria privilegiada,
composta de camponeses abastados, e na artilharia: em geral, nos efectivos técnicos
apresentam uma percentagem elevada de operários e de intelectuais. A resistência mais
duradoura foi a dos cosacos-proprietários, que temiam uma revolução agrária na qual a
maior parte deles tinham somente a perder e nada a ganhar. Certos elementos das tropas
cossacas, mais de uma vez, mesmo após a insurreição, executaram tarefas de repressão.
Mas para o conjunto, a diferença não consistia nada nos graus de rapidez e os prazos da
decomposição.
Na luta surda, houve fluxos e refluxos. Os oficiais tentaram adaptar-se. Os soldados
recomeçaram a esperar. Mas, após acalmias temporárias, após dias e semanas de
tréguas, o ódio social, que decompunha o exército do antigo regime, a tensão crescia
cada vez mais. Cada vez mais vezes ela brilhava com reflexos trágicos. Em Moscovo,
num circo, foi convocada uma reunião de inválidos, soldados e oficiais. Um orador,
mutilado, do alto da tribuna, falou com vigor para os oficiais. Uma barulheira de protestos
surgiu: um ruído de pés, bengalas, muletas. «Há muito tempo, senhores oficiais, que
vocês ofendem os soldados à vergastada, a soco?» Feridos, estropiados, homens
erguiam-se como muralhas, uns diante dos outros, os soldados mutilados diante dos
oficiais mutilados, maioria contra maioria, muletas contra muletas. Nesta cena de
pesadelo na arena de um circo, anunciava-se já os furores da guerra civil.

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Em todas as relações e contradições, no exército como no país, persistia uma
questão que definia uma breve palavra: a guerra. Do Báltico ao mar Negro, do mar do
Norte ao Cáspio, mais longe, até à Pérsia, uma imensa frente, mantinham-se sessenta e
oito corpos de infantaria e nove de cavalaria. Qual era o seu futuro? E a guerra?
Do ponto de vista do abastecimento da guerra, o exército, no começo da revolução,
tinha sido reforçada. A produção interior para as necessidades da frente tinha aumentado:
ao mesmo tempo aumentavam as produções de material de guerra, sobretudo da
artilharia, vindo dos aliados por Mormansk e Arkhangel. Espingardas, canhões, munições,
havia tudo isso numa quantidade infinitamente grande principalmente nos primeiros anos
da guerra. Procedia-se à formação de novas divisões de infantaria. Desenvolviam-se as
tropas de engenharia. Na base disso, alguns dos infelizes grandes capitães tentaram mais
tarde demonstrar que a Rússia encontrava-se na véspera da vitória e que o único
impedimento tinha sido a revolução. Doze anos antes, Koropatkine e Linevitch afirmavam,
com razão, que Witte os tinha impedido de esmagar os japoneses. Na realidade, a
Rússia, no início de 1917, estava mais longe que nunca de vencer. Enquanto que as
munições da guerra aumentava, constatou-se no exército, cerca do fim de 1916, uma
grande insuficiência de produtos alimentares: a tifus e o escorbuto causavam mais vítimas
que os combates. O desespero dos transportes estorvava cada vez mais os movimentos
da tropa, o que reduzia a zero as combinações estratégicas ligadas aos importantes
deslocações da massas militares. Para cúmulo, uma grande insuficiência da recuperação
de cavalos condenava frequentemente a artilharia à imobilidade.
Mas o essencial não estava aí: não se podia contar sobre a moral da tropa. O que se
pode formular assim: o exército, como tal, já não existia. As derrotas, as retiradas, as
ignomínias cometidas pelos dirigentes tinham completamente abalado o espírito da tropa.
Não se podia remediar isso por medida administrativas, tal como não se podia modificar o
sistema nervoso do país. O soldado considerava agora uma pilha de projecteis com tanto
desgosto que um monte de carne podre: tudo isso parecia-lhe superfluo, inutilizável, era
um engano, uma vigarice. E o oficial não podia dizer-lhe nada de convincente e já não
ousava partir-lhe a cara. O oficial considerava-se ele próprio enganado pelo alto comando
e, ao mesmo tempo, acontecia-lhe muitas vezes sentir-se responsável dos seus
superiores diante do soldado. O exército estava irremediavelmente doente. Ele ainda
tinha a sua palavra a dizer na revolução. Mas, para a guerra, ele já não existia. Ninguém
acreditava na vitória, nem oficiais nem soldados. Ninguém aceitava mais as hostilidades –
nem o exército, nem o povo.
Na verdade, as altas chancelarias onde se vivia à parte de si, falava-se ainda, por
inércia, das grandes operações, de uma ofensiva na Primavera, da tomada dos estreitos
da Turquia. Preparava-se mesmo, na Crimeia, para esse fim, um grande contingente. Os
boletins anunciavam que para desencadear uma operação, designava-se os melhores
elementos do exército. Foram enviados de Petrogrado homens da Guarda. Todavia,
segundo a narração de um oficial que tinha começado a mandar fazer o exercício no 25
de Fevereiro, isto é dois dias antes da insurreição, os efectivos do complemento
encontravam-se abaixo de toda a crítica. Não se via vontade de guerrear nos indiferentes

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olhos azuis, castanhos, cinzentos... «Todos os pensamentos, todos os desejos tendiam
somente e exclusivamente para a paz.»
Este tipo de testemunhas não são numerosas. A revolução só manifestou o que se
tinha preparado antes dela. A palavra de ordem: «Abaixo a guerra» tornou-se por
consequência um dos principais gritos de unidade nos dias de Fevereiro. Ela vinha das
manifestações de mulheres, dos operários do bairro de Vyborg e dos quartéis da Guarda.
Quando os deputados percorreram a frente no início de Março, os soldados,
sobretudo os mais idosos, perguntavam invariavelmente: «E sobre a terra?» Os
deputados respondiam evasivamente que a questão agrária seria resolvida pela
Assembleia constituinte. Então elevou-se uma voz que traía o pensamento secreto de
todos: «Para que serve a terra? Quando eu morrer, já não precisarei mais dela.» Tal é o
ponto de partida do programa revolucionário dos soldados: primeiro a paz, a seguir a
terra.
Na conferência pan-russa dos sovietes, no fim de Março, onde se ouvia bastante
palavreado patriota, um dos delegados, representante directo dos soldados das
trincheiras, expunha com muita exactidão como a frente se tinha comportado em relação
à nova revolução: «Todos os soldados disseram: graças a Deus, talvez a paz seja para
breve.» As trincheiras tinham encarregado esse delegado de dizer à conferência:
«Estamos prontos a sacrificar a nossa vida pela liberdade, mas, todavia, camaradas, nós
queremos que termine a guerra.» Era a voz viva da realidade, sobretudo na segunda
parte desta reivindicação. Se for necessário aguentar, nós aguentamos, mas apressem-
se, lá em cima, a fazer a paz.
As tropas do czar em França, isto é, num meio que lhes era completamente
estrangeiro, eram animadas pelos mesmos sentimentos e passavam pelas mesmas
etapas de decomposição que o exército que tinha ficado no país. «Quando ouvimos dizer
que o czar tinha abdicado – explicava, em terra estrangeira, a um oficial, um soldado de
idade madura, camponês iletrado – pensámos aqui que então a guerra ia acabar... Porque
é o czar que nos enviou para a guerra... E o que é que faço com a liberdade se devo
apodrecer nas trincheiras?» Tal é a autêntica filosofia do soldado, que foi dictada pelo
exterior: palavras simples e persuasivas não poderiam ser inventadas por nenhum
agitador.
Os liberais e os socialistas meio liberais tentaram logo representar a revolução como
um levantamento patriótico. No 11 de Março, Miliokov explicou assim diante dos
jornalistas franceses: «A revolução russa foi feita para afastar os obstáculos que se
erguiam no caminho da Rússia para a vitória.» Aqui a hipocrisia combina-se com a ilusão,
ainda se, devemos pensar, a hipocrisia vence o resto. Francos reaccionários viam isso
com mais clareza. Von Struve, paneslavista de raça alemã, ortodoxo de origem luterana e
monárquico de formação marxista, definia, ainda se na linguagem do ódio reaccionário,
mais exactamente as fontes reais da insurreição. «Na medida que tomaram parte na
revolução as massas populares, e particularmente as massas de soldados – escrevia – o
movimento não foi uma explosão de patriotismo, foi uma desmobilização espontanea e

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desastrosa, expressamente dirigida contra a continuidade da guerra, isto é feita para
parar as hostilidades.»
Ao mesmo tempo que uma ideia justa, essas palavras inseriam também uma
calúnia. A desmobilização desastrosa provinha na realidade da guerra. Não foi uma
revolução que a criou – pelo contrário, ela parou-a por um momento. As deserções,
extremamente numerosas na véspera da revolução, diminuíram nas primeiras semanas
que seguiram a insurreição. O exército mantinha a perspectiva. Esperando que a
revolução daria a paz, o soldado não recusa apoiar a frente: de outro modo, o novo
governo não poderia portanto concluir a paz.
«Os soldados exprimem esta opinião clara – declarou, no seu relatório do 23 de
Março, o chefe de uma divisão de granadeiros – a qual mantemos a defensiva, e não
tomar a ofensiva.» Os relatórios militares e as relações políticas reproduzem de diversas
maneiras o mesmo pensamento. O alferes Krylenko, velho revolucionário e futuro
comandante em chefe dos exércitos bolcheviques, testemunha que, para os soldados, a
questão da guerra resolvia-se, nesse tempo, pela formula: «manter a frente, não marchar
para a ofensiva». Numa linguagem mais solene e portanto sincera, isso significava
defender a liberdade.
«Não plantar as baionetas na terra!» sob a influência de opiniões turvas e
contraditórias, os soldados, nesse tempo, recusavam muitas vezes ouvir os bolcheviques.
Parecia-lhes talvez, sob a impressão de certos discursos desajeitados, que os
bolcheviques não se preocupavam com a defesa da revolução e podiam impedir o
governo de concluir a paz. Mais se avançava, mais os soldados estavam convencidos
pelos jornais e os agitadores sociais patriotas. Mas, sem permitir por vezes aos
bolcheviques falar, os soldados, desde dos primeiros dias da revolução, recusavam
firmemente a ideia de uma ofensiva. Os políticos da capital viam aí uma especie de
malentendido que se podia afastar se convenientemente pressões fossem exercidas
sobre os soldados.
A agitação para a continuidade da guerra aumentou até ao último grau. A imprensa
burguesa, com milhões de exemplares, apresentava as tarefas da revolução à luz da
guerra até à vitória. Os conciliadores apoiavam esta agitação, primeiro em voz baixa,
depois ousadamente. A influência dos bolcheviques, muito fraca no momento da
insurreição, diminuiu ainda mais quando os milhares de operários, expedidos para a
frente para actos de greve, deixaram as fileiras do exército. A tendência para a paz não
encontrava por assim dizer expressão franca e clara precisamente aí onde ela era mais
intensa. Os comandantes e comissários que procuravam ilusões consoladoras,
encontravam nesta situação a possibilidade de exagerar sobre a realidade das coisas.
Nos artigos e discursos dessa época, não é raro afirmar que os soldados teriam recusado
tomar a ofensiva unicamente porque eles não compreendiam exactamente a formula
«sem anexações nem contribuições». Os conciliadores não se pouparam em explicar que
uma guerra defensiva podia comportar também a ofensiva, e mesmo muitas vezes exigi-
la. Como se se tratasse de escolástica! Uma ofensiva, era a retoma da guerra. A
expectativa sobre a frente, era uma trégua. A teoria e a prática da guerra defensiva, entre

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os soldados, constituía uma forma de acordo tácito primeiro, mais tarde confessada, com
os alemãs: «Não nos toquem e nós não vos tocaremos.» O exército não dá mais à guerra.
Os soldados cediam tanto menos às exortações bélicas que, sob o pretexto de
preparar a ofensiva, a oficialidade reaccionária tentava evidentemente retomar as rédeas.
Umprovérbio habitual entre os soldados: «A baioneta contra os alemãs, a coronha contra
o inimigo interno.» A baioneta de qualquer modo estava destinada à defensiva. Os
soldados das trincheiras não pensavam de forma nenhuma na conquista de territórios. O
desejo de paz formava uma poderosa corrente subterrânea que devia brevemente surgir
na superficie.
Sem negar que, antes da revolução, «notava-se» no exército fenómenos negativos,
Miliokovesforçou-se portanto, muito após esta insurreição, provar que o exército teria sido
capaz de realizar as tarefas que lhe atribuíam a Entente. «A propaganda bolchevique –
escreveu na qualidade de historiador – esteve longe de penetrar o conjunto da frente.
Durante um mês ou seis semanas após o início da revolução, o exército continuou são.»
Toda a questão é vista aqui sobre o plano da propaganda, como se esgotasse assim o
processo histórico. Sob a aparência de combater, com atraso, os bolcheviques aos quais
ele atribui uma força mística, Miliokov lutou contra os factos. Já vimos como o exército se
apresentou na realidade. Vejamos agora como os próprios chefes avaliavam a sua
capacidade combativa nas primeiras semanas e mesmo os primeiros dias que seguiram a
insurreição.
A 6 de Março, o general Roussky, comandante da frente Norte, informou o comité
executivo que os soldados recusam completamente obedecer à autoridade: é necessário
que venham da frente homens populares para restabelecer pelo menos alguma calma no
exército.
O chefe do estado-maior da frota do mar Negro conta nas suas Memórias: «Desde
dos primeiros dias da revolução, era claro para mim que não se podia continuar a guerra
e que a partida está perdida.» Tal foi também a opinião de Koltchak segundo os seus
próprios termos, e se ele continuou no seu posto de comandante em chefe da frota, era
unicamente para proteger a oficialidade contra os actos de violência.
O conde Ignatiev, que ocupava um posto elevado no comando da Guarda, escrevia,
em Março, a Nabokov: «É preciso tomar nota disto que a guerra acabou, que nós não
podemos continuar e não a continuaremos. Os homens inteligentes devem imaginar um
meio de liquidar a guerra sem dor: ou então produzir-se-à uma catástrofe.» Gotchkov, na
mesma época, dizia a Nobokov que recebia tais cartas em grandes quantidades.
Certos julgamentos, aparentemente mais favoráveis, extremamente raros, são
habitualmente aniquilados pelos comentários que os acompanham. «Nas tropas, o desejo
de vitória subsiste – relata Danilov, comandante do segundo exército – e mesmo, em
certos efectivos, aumentou.» Mas, logo depois, esta nota: «A disciplina caiu...É desejável
que se adie as operações ofensivas até ao momento de acalmia da situação crítica se
acalme (de um a três meses).» Seguidamente este acréscimo inesperado: «Os reforços

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chegam na proporção de 50%: se continuam a fundir da mesma maneira e se mostram
sempre tão indisciplinados não se pode contar sobre o sucesso de uma ofensiva.»
«A divisão é inteiramente capaz de agir pela defensiva», relata o valoroso
comandante da 51ª divisão de infantaria. E logo acrescenta: «É indispensável afastar o
exército da influência dos deputados soldados e operários.» Portanto, não era assim tão
simples!
O chefe da 182ª divisão relata ao comandante do exército: «Cada dia, cada vez
mais, manifestavam-se mal-entendidos sobre as coisas que, no fundo, eram bagatelas,
mas com um carácter perigoso: os soldados, cada vez mais, enervavam-se assim como
os oficiais.»
Até agora, trata-se de testemunhos dispersos, ainda se numerosos. Mas eis que, no
18 de Março, teve lugar, no Grande Quartel General, uma conferência das autoridades
supremas sobre a situação do exército. As conclusões das direcções centrais são
unanimes.» Nos meses que seguirão, é impossível enviar para a frente efectivos
complementares na medida das necessidades, porque se produz a fermentação em todos
os contingentes da reserva. O exército está doente. Não se conseguirá
provavelmenteacomodar os relatórios entre oficiais e soldados senão em dois ou três
meses. (Os generais não compreendiam que a doença só poderia progredir.) Pelo
momento, nota-se o desencorajamento na oficialidade, a fermentação nas tropas, um
considerável movimento de deserção. A combatividade do exército baixou e é muito difícil
contar com ela, presentemente, para caminhar em frente. Conclusão: «É inadmissível
executar actualmente operações activas projectadas para a Primavera.»
Nas semanas que seguiram, a situação continuou a piorar rápidamente, e os
testemunhos multiplicaram-se interminavelmente.
No fim de Março, o comandante da 5º exército, o general Dragomirov, escreveu ao
general Rossky: «O espírito combativo caiu. Não somente os soldados não têm vontade
de retomar a ofensiva, mas mesmo a simples perseverança na ofensiva é minimizada a
um ponto perigoso para a conclusão da guerra...A política, que se amparou largamente de
todas as camadas do exército... determinou toda a massa da tropa adesejar só uma coisa
– o fim das hostilidades e o regresso ao lar.»
O general Lukomsky, um dos pilares do Grande Quartel General reaccionário,
descontente com os novos costumes, trocou no início da revolução para o comando de
um corpo do exército e constatou, segunda a sua narração, que a disciplina não subsistia
senão na artilharia e em engenharia, onde se contava muitos oficiais do quadro e
soldados readmitidos. «No que respeita as divisões de infantaria, todas as três estavam
na via de uma completa decomposição.»
A deserção que tinha diminuído após a insurreição por razões de esperanças
suscitadas, retomou com força no seguimento de decepções. Numa semana, do primeiro
ao 7 de Abril, desertaram, segundo um comunicado do general Alexeiev, cerca de 8 000
soldados das frentes Norte e Oeste. «É com grande espanto – escrevia ele a Gotchkov –

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que li os relatórios irresponsáveis sobre a «excelente» moral do exército. Para quê? Nós
não enganaremos os alemãs e, para nós, é uma fanfarronada fatal.»
Convém notar que, até aí, quase nunca se faz alusão aos bolcheviques: a maior
parte dos oficiais apenas tinha assimilado esta estranha denominação. Se, nos relatórios,
trata-se das causas da decomposição do exército, alega-se os jornais, os agitadores, os
sovietes, sobretudo a «política», numa palavras, a Revolução de Fevereiro.
Ainda se encontravam alguns chefes optimistas que esperavam que tudo se
arranjaria. Mais numerosos eram os que, intencionalmente, fechavam os olhos sobre os
factos, temendo causar inconvenientes ao novo poder. E, em contrapartida, um número
considerável de oficiais, sobretudo no alto comando, exageravam conscientemente os
sintomas de decomposição para obter do governo medidas decisivas que eles próprios,
todavia, não se atreviam a dar nome. Mas, no essencial, o quadro é indiscutível.
Encontrando diante dela um exército doente, a revolução envolveu o processo com a sua
irresistível dissolução nas formas políticas que, em cada semana, era de uma nitidez cada
vez mais implacável. A revolução levava até ao fim não somente o ardente desejo da paz,
mas também a hostilidade da massa dos soldados em relação ao comando e às classes
dirigentes em geral.
Em meados de Abril, Alexeiev fez um relatório pessoal ao governo sobre a moral da
tropa, e sem poupar nas cores. «Lembro-me muito bem – escreveu Nabokov – do
sentimento de angústia e de desespero que me tomou.» Admita-se que na leitura desse
relatório, o qual não dizer respeito senão às primeiras seis semanas da revolução, assistia
também Miliokov: é provável que ele fizesse aceitar a Alexeiev na intenção de alarmar os
seus colegas e, por seu intermédio, os amigos socialistas. Gotchkov teve efectivamente,
após esse relatório, uma entrevista com os representantes do comité executivo. «Não
chegamos a catastróficas fraternizações, - gemia. Registou-se casos de completa
insubordinação. As ordens dadas são previamentediscutidas nas organizações do
exército e nas reuniões políticas. Em tal ou tal contingente, nem se quis ouvir falar de
operações activas... Quando homens esperam que a paz será amanhã – observava não
somente sem razões Gotchkov – não se pode forçar hoje a sacrificar a vida.»
Seguidamente, o ministro da Guerra concluía: «É necessário deixar de falar da paz em
voz alta». Mas, como precisamente a revolução tinha aprendido às pessoas a falar em
voz alta de tudo que antes guardavam para si, isso significava: é preciso acabar com a
revolução.
O soldado, com certeza, desde do primeiro dia da guerra, não tinha vontade
nenhuma de morrer, nem de combater. Mas repugnava-o da mesma maneira que um
cavalo da artilharia deseja muito de puxar um pesada peça na lama. Tal como o cavalo, o
soldado não acreditava poder desembaraçar-se do fardo que lhe tinha caído em cima.
Entre a sua vontade e os acontecimentos da guerra, não havia nenhuma relação. Para
milhões de soldados, significava o direito a uma melhor existência, antes de tudo, mais
geralmente, o direito à vida, o direito de se proteger das balas e dos obuses, como
também de preservar o rosto dos socos que aplicavam os oficiais. Nesse sentido, já
dissemos que o processo psicológico essencial no exército consistia num despertar da

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personalidade. Na erupção vulcânica do individualismo que tomava frequentemente as
formas anárquicas, as classes cultivadas viam uma tradição em relação à nação. Ora, na
realidade, nas tumultuosas manifestações de soldados, nos seus protestos desenfreados,
mesmo nos seus excessos sanguinários, era somente a nação que se formava com
materiais brutos, impessoais, pré-históricos. O transbordamento, tão detestável para a
burguesia, do individualismo das massas, era provocado pelo carácter da Revolução de
Fevereiro, precisamente porque era uma revolução burguesa.
Mas aí não era o seu único conteúdo. Porque, independente do camponês e do seu
filho soldado, o operário participava na revolução. Há muito tempo o operário tinha a sua
dignidade pessoal, tinha entrado na guerra não somente com ódio por esta, mas com a
ideia de a combater, e a revolução significava para ele não somente o simples facto de
uma vitória, mas também um triunfo parcial das suas ideias. O derrube da monarquia foi
para ele a primeira etapa, e não parava aí, apressando-se para outros objectivos. Toda a
questão era para ele saber em que medida seria apoiado pelo soldado e camponês.
«Para que serve a terra, quando eu abalar?» perguntava o soldado. «Para que me serve
a liberdade, dizia ele como o operário, diante das portas do teatro inacessíveis para ele –
se as chaves da liberdade estão nas mãos dos mestres?» Assim, através do caos
indescritível da Revolução de Fevereiro, brilhava já os contornos de aço de Outubro.

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Os dirigentes e a guerra

Que pensava tirar desta guerra e deste exército o governo provisório e o comité
executivo?
Antes de mais, é necessário compreender a política da burguesia liberal, dado que
ela tocava o primeiro violão. Aparentemente, a política de guerra do liberalismo
continuava a ser a da ofensiva patriótica, uma política de presa, e sem piedade. Na
realidade, esta política era contraditória, cobarde e tornava-se rápidamente derrotista.
«Se não houvesse revolução, a guerra teria sido perdida na mesma, e, segundo toda
a probabilidade, uma paz separada teria sido concluida», escrevia Rodzianko, cujos
julgamentos não se distinguiam pela sua originalidade, mas exprimiam tanto melhor a
opinião média dos círculos liberais-conservadores. O levantamento dos batalhões da
Guarda era para as classes possuidoras um presságio não de vitória exterior, mas de
derrota no interior. A esse respeito, os liberais não se iludiam, tanto mais que tinham
previsto o perigo e tinham-no combatido tanto quanto puderam. O inesperado optimismo
revolucionário de Miliokov, declarando que a revolução era um passo para a vitória,
representava em suma o último recurso do desespero. A questão da guerra e da paz
deixou de ser para três quartos os liberais uma questão independente. Eles sentiam que
não lhes seria dada oportunidade de utilizar a revolução para a guerra. Tanto mais
imperiosamente impunha-se-lhes uma tarefa: utilizar a guerra contra a revolução.
O encontro da hipnose bélica e da moral chauvinista abria à burguesia a única e
última possibilidade de ligação política com as massas, antes de tudo com o exército,
contra o que se chama «os aprofundadores» da revolução. A tarefa era de apresentar ao
povo a guerra herdada do czarismo, com os precedentes aliados e os mesmos objectivos,
como uma nova guerra, como a defesa das conquistas e das esperanças revolucionárias.
Se chegássemos aí – mas como? - o liberalismo contava firmemente dirigir contra a
revolução toda esta organização da opinião pública patriota que, na véspera, lhe tinha
servido contra a clique de Raspotine. Se não conseguiram salvar a monarquia, como
instância suprema contra o povo, era preciso ainda mais se agarrar aos aliados: durante a
guerra, de qualquer modo, a Entente constituía um tribunal supremo incomparavelmente
mais potente que não poderia ter sido a monarquia do país.
A continuação da guerra devia justificar a conservação do antigo aparelho militar e
burocrático, o adiantamento da Assembleia constituinte, a subordinação do país
revolucionário à frente, isto é aos generais nas suas ligações com a burguesia liberal.
Todas as questões interiores, antes de tudo o problema agrário, e toda a legislação social
estavam relegadas até ao fim da guerra e este mesmo fim, por sua vez, era adiado até à
vitória na qual os liberais não acreditavam. A guerra por esgotamento do inimigo
transformava-se em guerra pelo esgotamento da revolução. Talvez não fosse um plano
acabado, discutido e ponderado antecipadamente por sessões oficiais. Mas não era

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necessário. O plano decorria de toda a política anterior do liberalismo e da situação criada
pela revolução.
Obrigado a caminhar pela via da guerra, Miliokov não tinha, bem entendido, motivos
de renunciar antecipadamente à partilha do espólio. Porque, enfim, as esperanças da
vitória dos Aliados continuavam presentes e, com a entrada da América na guerra, tinham
extraordinariamente aumentado. Na verdade a Entente é uma coisa e a revolução outra.
Os líderes da burguesia russa tinham aprendido no decorrer dos anos que por razões de
fraqueza económica e militar da Rússia, a qual todas as variantes possíveis eram
examinadas, sairia necessariamente da guerra quebrada e enfraquecida. Mas os
imperialistas liberais decidiram conscientemente fechar os olhos sobre esta perspectiva.
Eles não tinham mais nada a fazer. Gotchkov declarava no seu círculo que a Rússia não
poderia ser salva senão pelo milagre e que a esperança de um milagre constituía o seu
programa de ministro da Guerra.
Miliokov, para a política interior, necessitava do mito da vitória. Em que medida ele
próprio acreditava nisso, não tem importância. Mas obstinava-se em afirmar que
Constantinopla devia ser nossa. E aí, agia com o cinismo que o caracterizou. No dia 20 de
Março, o ministro russo dos Assuntos estrangeiros exortava os embaixadores aliados a
trair a Sérvia para comprar, por esse meio, a traição da Bulgária em relação aos impérios
centrais. O embaixador da França franzia o sobrolho. Miliokov, contudo, insistia sobre «a
necessidade de renunciar, nesta questão, às considerações sentimentais», e, assim, ao
neo-eslavismo que tinha pregado desde do esmagamento da primeira revolução. Não foi
erradamente que Engels escreveu a Bernstein já em 1882: «Ao que se resume todo o
charlatanismo dos paneslavistas russos? À tomada de Constantinopla – e é tudo.»
As acusações de germanofilia e mesmo a compra pela Alemanha, ainda ontem
dirigida contra a camarilha do palácio, eram hoje voltadas, com uma ponta envenenada,
contra a revolução. Mais se avançava, cada vez mais ousadamente, ruidosamente,
insolentemente, ouvia-se esta nota no discurso e os artigos do partido cadete. Antes de se
apoderar das águas turcas, o liberalismo turvava as fontes e envenenava os poços da
revolução.
Não foram todos os líderes liberais, longe disso, ou pelo menos logo, que adoptaram
após a insurreição uma atitude intransigente sobre a questão da guerra. Muitos deles
encontravam-se ainda na atmosfera moral pré-revolucionária que se ligava à perspectiva
de uma paz separada. Certos cadetes dirigentes contaram isso seguidamente com uma
grande franqueza. Nabokov, confessou que, logo no 7 de Março, conspirava com
numerosos membros do governo sobre uma paz separada. Vários membros do centro
cadete tentavam colectivamente demonstrar ao líder a impossibilidade do prolongamento
da guerra. Miliokov, com a nítida frieza que o caracteriza expunha – conta o barão Nolde
– que os objectivos da guerra devia ser atingidos. «O general Alexeiev que, entretanto se
tinha aproximado dos cadetes, apoiava Miliokov, afirmando que «o exército podia ser
substituído». Para essa substituição foi designado esse homem do estado-maior,
organizador de catástrofes.

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Alguns, mais ingénuos, entre os liberais e os democratas, não compreendiam o
curso seguido por Miliokov e considerava-o como o próprio cavaleiro da fidelidade aos
aliados, o Dom Quixote da Entente. Que absurdidade! Quando os bolcheviques tomaram
o poder, Miliokov não hesitou um instante em partir para Kiev, ocupada pelos alemãs, e a
propor os seus serviços ao governo do Hohenzollern, o qual, na verdade, não se
apressou em aceitá-lo. O objectivo imediato de Miliokov, nesse assunto, era obter, para a
luta contra os bolcheviques, o mesmo ouro alemão que ele tinha procurado utilizar o
fantasma para sujar a revolução. O apelo de Miliokov à Alemanha pareceu, em 1918, a
muitos liberais tão incompreensível como tinha sido, nos primeiros meses de 1917, o seu
programa de esmagamento da Alemanha. Mas aí estava o verso e reverso da mesma
medalha. Preparando-se a trair os aliados como, precedentemente a Sérvia, Miliokov não
se traiu nem a sua classe. Ele seguia uma só e mesma política, e não foi por sua culpa se
ela tinha má aparência. Procurando às apalpadelas, sob o czarismo, as vias de uma paz
separada com o objectivo de evitar a revolução: reclamando a guerra até ao fim para
esmagar a revolução de Fevereiro: tentando mais tarde uma aliança com os
Hohenzollern, para derrubar a Revolução de Outubro – Miliokov continuava
invariavelmente fiel aos interesses dos possuidores. Se ele não consegui ajudá-los,
chocando cada vez contra um novo muro, foi porque os seus patrocinadores
encontravam-se num impasse.
O que faltou particularmente a Miliokov nos primeiros tempos que seguiram a
insurreição, foi uma ofensiva do inimigo, uma boa tareia alemã no crânio da revolução.
Por infelicidade, Março e Abril, pelas suas condições climáticas, eram pouco propícias, na
frente russa, às operações de grande envergadura. E sobretudo, os alemãs, cuja situação
se tornava cada vez mais penosa, resolveram, após grandes hesitações, deixar a
revolução russa seguir o seu processo interno. Só, o general Linsingen deu provas de
uma iniciativa privada, nos dias 20 e 21 de Março em Stokhod. Seu sucesso assustou o
governo alemão, e contentou o governo russo. O Grande Quartel General, com a
impudência que metia, no tempo do czar, em exagerar os mais pequenos sucessos, dava
importância excessiva à derrota de Sokhod. A imprensa liberal seguia-o. Os casos de
instabilidade, de pânico e as percas do exército russo eram descritos com mais gosto que
antes as capturas de prisioneiros e dos troféus. A burguesia e os generais evidentemente
concluíam no derrotismo. Mas Linsingen recebeu do alto a ordem de parar e a frente
parou de novo nas lamas primaveris e na expectativa.
A ideia de utilizar a guerra contra a revolução podia ter possibilidades de sucesso
somente na condição que os partidos intermediários, que seguiam as massas populares,
consentissem em encarregar-se do papel de mecanismo de transmissão para a política
liberal. Ligar a ideia da guerra à da revolução ultrapassava as forças do liberalismo: ainda
na véspera, tinham pregado a ideia que a revolução seria desastrosa para a guerra. Era
preciso passar esta tarefa à democracia. Mas, bem entendido, sem revelar-lhe «o
segredo». Não para iniciar um plano, mas para pescar. Era preciso apanhá-lo pelos seus
preconceitos, pelas suas pretensões à sabedoria política, pelas apreensões diante da
anarquia, pela sua obsequiosidade supersticiosa diante da burguesia.

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Nos primeiros dias, os socialistas – somos obrigados a chamar assim brevemente os
mencheviques e os socialistas-revolucionários – não sabiam que fazer com a guerra.
Tchkheidze suspirava: «Falámos sempre contra a guerra, como posso eu agora incitar à
continuação da guerra?» No 10 de Março, o comité executivo decidiu enviar um telegrama
para saudar Franz Mehring. Por essa pequena manifestação, a ala esquerda tentava
acalmar a sua consciência socialista que não era muito exigente. Sobre a guerra em si, o
Soviete continuava calado. Os líderes temiam provocar, sobre esta questão, um conflito
com o governo provisório e obscurecer a lua-de-mel do «contacto». Eles não deixavam de
temer a discórdia no seu próprio meio. Havia entre eles partidários da defesa nacional e
zimmerwaldianos. Uns e outros sobrevalorizavam as suas diferenças.
Largos círculos intelectuais revolucionários tinham sofrido, durante a guerra, uma
importante metamorfose burguesa. O patriotismo confessado ou disfarçado, tinha ligado
os intelectuais com as classes dirigentes desligando-os das massas. A bandeira de
Zimmerwald com a qual se cobria a ala esquerda não impunha grandes obrigações e, ao
mesmo tempo, permitia não mostrar uma solidariedade patriótica com a clique de
Raspotine. Mas, agora, o regime do Romanov tinha sido derrubado. A Rússia tornou-se
um país democrático. Sua liberdade, iridiscente com todas as nuanças, destacava-se
brilhantemente sobre um fundo policial da Europa tomada nas tenazes de uma ditadura
militar. Não íamos defender a nossa revolução contra o Hohenzollern? Perguntavam os
antigos e novos patriotas colocados à cabeça do comité executivo. Os zimmerwaldianos,
do tipo de Sokhanov e de Stieklov, alegavam sem certezas que a guerra continuava
imperialista: porque enfim os liberais afirmavam que a revolução deve assegurar as
anexações projectadas no tempo do czar. «Como poderei agora incitar ao prolongamento
da guerra?» perguntava Tchkheidze assustado. Mas como os próprios zimmerwaldianos
eram os iniciadores da transmissão do poder aos liberais, seus objectivos ficavam
suspendidos. Após algumas semanas de hesitações e de resistência, a primeira parte do
plano de Miliokov foi, com a ajuda de Tseretelli, resolvida de forma satisfatória: os maus
democratas que se consideravam como socialistas atrelaram-se aos arreios da guerra e,
sob o chicote dos liberais, empregavam todas as suas fracas forças para segurar a
vitória... da Entente sobre a Rússia, da América sobre a Europa.
A função principal dos conciliadores consistia em ligar a energia revolucionária das
massas à corrente patriótica. Tentaram, por um lado, despertar a combatividade do
exército – o que era difícil: tentaram, por outro, incitar os governos da Entente a renunciar
à pilhagem – e era ridículo. Nas duas direcções, iam das ilusões às decepções e dos
erros às humilhações. Notemos os primeiros marcos desse caminho.
Nos momentos da sua curta grandeza, Rodzianko tinha tido tempo de promulgar o
regresso imediato dos soldados nas casernas, substituindo-os por ordem dos oficiais. A
efervescência da guarnição causada por esta ordem obrigou o Soviete a consagrar uma
das suas primeiras sessões à questão da sorte ulterior do soldado. Na atmosfera ardente
dessa hora, no caos de uma sessão parecida a uma reunião política, sob a direcção dos
soldados que os líderes ausentes não poderiam ter parado, nasceu o famoso «Prikaz Nº
1» (Ordem nº1) o único documento respeitável da Revolução de Fevereiro, a carta das
liberdades do exército revolucionário. Os seus parágrafos audazes dando aos soldados

200
uma saída organizada sob uma nova via, decidiam: criar em todos os contingentes da
tropa comités eleitos: eleição dos representantes dos soldados no Soviete e nos seus
comités: manter as armas sob controlo dos comités de companhia ou de batalhão e «em
nenhum caso remetê-las aos oficiais»: no serviço, a mais severa disciplina militar: fora do
serviço, a saudação militar e os títulos hierárquicos são suprimidos: é proibido aos oficiais
maltratar os soldados, em particular de os tratar por tu, etc..
Tais eram as deduções feitas pelos soldados de Petrogrado da sua participação na
insurreição. Poderiam ser diferentes? Ninguém ousou resistir. No momento da elaboração
do «Prikaz», os líderes do Soviete estavam distraídos pelas preocupações mais
importantes: eles mantinham conversações com os liberais. Isso possibilitou a evocação
de um alibi quando tiveram que se justificar diante da burguesia e do comando.
Ao mesmo tempo que o «Prikaz nº1», o comité executivo, tendo tido tempo de se
dominar, tinha expedido à tipografia, como antídoto, um apelo aos soldados, o qual, ao
mesmo tempo que parecia condenar a linchagem dos oficiais, exigia submissão diante do
antigo comando. Os tipógrafos recusaram simplesmente de compor o documento. Os
autores, democratas, indignaram-se: onde iremos? Não seria correcto imaginar que os
tipógrafos exerceriam represálias sangrentas contra os oficiais. Mas, quando se exortava
a tropa a obedecer à oficialidade do czar, no dia seguinte à insurreição, os operários
tipógrafos viam aí a porta aberta à contra-revolução. Certamente, os tipógrafos tinham
cometido um abuso de poder. Mas não se sentiam somente tipógrafos. Tratava-se, no
espírito deles, da cabeça da revolução.
Nos primeiros dias, quando a sorte dos oficiais que voltavam aos seus regimentos
irritava demasiado os soldados como os operários, a organização social democrata inter-
distritos, próximo dos bolcheviques, colocou a questão irritante com ousadia
revolucionária. «Para que os nobres e os oficiais não vos enganem – diz-se no apelo
dirigido aos soldados – elegeis vós próprios vossos chefes de pelotão, de companhia, e
de regimento. Não aceiteis entre vós senão os oficiais que vocês conhecem como sendo
amigos do povo.» Mas o que aconteceu? A proclamação que respondia completamente à
situação foi imediatamente confiscada pelo comité executivo, e Tchkheidze, no seu
discurso, indicou como uma provocação. Os democratas, vêmo-los, não se incomodavam
para limitar a liberdade da imprensa quando se tratava de golpear a esquerda.
Felizmente, a sua própria liberdade era suficientemente limitada. Ao apoiar o comité
executivo como o seu órgão supremo, os operários e soldados, em todos os momentos
graves, corrigiam a politica dos dirigentes por uma intervenção directa.
Alguns dias mais tarde, o comité executivo tentava, por um «Prikaz nº2» abolir a
primeira ordem dada, limitando o seu alcance ao corpo do exército de Petrogrado. Em
vão! O «Prikaz nº2» era indestrutível, porque não inventava nada, mas só consolidava o
que rebentava por todo o lado, na retaguarda como na frente, e exigia ser reconhecido.
Frente a frente com os soldados, mesmo os deputados liberais esquivavam as questões e
as censuras sobre o «Prikaz nº1». Mas na grande política, a ordem audaciosa tornou-se o
principal argumento da burguesia contra os sovietes. Vencidos, os generais descobriram
desde então, no «Prikaz nº1», o principal obstáculo que lhes impedia de esmagar os

201
exércitos alemãs. Atribuía-se à origem alemã o «Prikaz». Os conciliadores não paravam
de justificar a sua cumplicidade e enervavam os soldados procurando retomar com a mão
direita o que tinham largado com a mão esquerda.
Entrementes, no Soviete, a maioria dos deputados exigia já a eleição dos chefes. Os
democratas ficaram transtornados. Não encontravam melhores motivos, Sokhanov tentou
intimidar, dizendo que a burguesia, a qual tinha o poder, não admitiria a eleição. Os
democratas escondiam-se por detrás de Gotchkov. No seu jogo, os liberais ocupavam o
lugar que a monarquia teria tomado no jogo do liberalismo. «Voltando da tribuna para o
meu lugar – conta Sokhanov tropecei num soldado que me impedia de passar e,
mostrando-me o punho sob os olhos, gritava enraivecido sobre os senhores que nunca
apoiaram o soldado.» Após este «excesso», correu procurando Kerensky, e foi somente
com o auxílio deste último que «o assunto se resolveu de um modo qualquer». Esses
homens só se ocupavam em arranjar assuntos.
Durante quinze dias, conseguiram fingir nada querer saber da guerra. Enfim, tornou-
se impossível adiá-lo mais. No 14 de Março, o comité executivo apresentou ao Soviete
um projecto de manifesto redigido pelo Sokhanov: «Aos povos do mundo inteiro».
A imprensa liberal declarou logo, sobre esse documento que unia os conciliadores
da direita e da esquerda, que era um «Prikaz nº1» no domínio da política exterior. Mas
esta apreciação elogiosa era tão falsa como o documento que fazia referência. O «Prikaz
nº1» constituía uma resposta honesta, directa, da base às questões colocadas pela
revolução diante do exército. O manifesto do 14 de Março era uma resposta falaciosa do
alto às questões postas honestamente pelos soldados e operários.
O manifesto, bem entendido, exprimia um desejo de paz, e mesmo de paz
democrática, sem anexações nem contribuições. Mas os imperialistas do Ocidente tinham
aprendido a servirem-se desta fraseologia muito antes da insurreição de Fevereiro. Foi
precisamente em nome de uma paz sólida, honesta, «democrática», que Wilson se
dispôs, nesse tempo, a entrar na guerra. O devoto Asquith apresentou no parlamento uma
classificação científica das anexações segundo a qual resultaria indubitavelmente que se
devia condenar como imorais todas as anexações que seriam contrárias aos interesses
da Grande-Bretanha. No que diz respeito à diplomacia francesa, ela consistia a dar à
cupidez do lojista e do usurário a expressão mais libertadora.
O documento expedido pelo Soviete, que não poderemos negar uma certa
sinceridade simplista, caía fatalmente na difícil situação da hipocrisia oficial francesa. O
manifesto prometia «defender resolutamente a nossa própria liberdade» contra o
militarismo estrangeiro. Isso implicava precisamente na indústria dos sociais patriotas
franceses desde Agosto 1914. «O tempo chegou para os povos de encontrarem uma
solução à guerra ou a paz», declarava o manifesto cujos autores, em nome do povo
russo, tinham acabado de deixar esta questão à discrição da alta burguesia. O manifesto
lançava este apelo aos operários alemãs e austro-húngaros: «Renunciai a servir de
instrumento de conquista e de violência nas mãos dos reis, dos proprietários e
banqueiros!» Esses termos continham a quinta-essência da mentira, porque os líderes do
Soviete não pensavam de forma nenhuma romper sua aliança com os reis da Grande-

202
Bretanha e da Bélgica, com o imperador do Japão, com os proprietários e os banqueiros,
os do país russo e os de todos os países da Entente. Tendo transmitido a direcção da
política exterior à Miliokov que, ainda recentemente, dispunha-se a transformar a Prússia
Oriental em província russa. Condenar teatralmente a carnificina, isso não mudava nada a
nada, o papa também ocupava-se disso. Com frases patéticas, dirigidas contra as
sombras do banqueiro, do proprietário nobre e do rei, os conciliadores faziam da
Revolução de Fevereiro a arma dos verdadeiros reis, proprietários e banqueiros.
Já no seu telegrama de felicitações ao governo provisório, Lloyd George apreciava a
revolução russa como provando que «a guerra actual, essencialmente, é uma luta pelo
governo popular e pela paz». O manifesto do 14 de Março, «essencialmente», se
solidarizava com Lloyd George e dava um apoio precioso à propaganda militarista na
América. Ele tinha três vezes razão, o jornal de Miliokov, quando ele escrevia que «o
apelo, começou com tons pacifistas, desenvolve-se no fundo em ideologia que temos em
comum com todos os nossos aliados». Se os liberais russos, contudo, atacaram-se mais
uma vez, e furiosamente, no manifesto, recusou-se em geral a deixá-lo passar, isso vinha
do medo da interpretação dada a esse documento pelas massas revolucionárias, mas
ainda confiantes.
Redigido por um zimmerwaldiano, o manifesto marcava a vitória de princípio da ala
patriótica. Na província, os sovietes tomaram em consideração o sinal. A palavra de
ordem «guerra à guerra» foi declarada inadmissível. Mesmo no Ural e em Kostroma, onde
os bolcheviques eram fortes, o manifesto patriota obteve a aprovação unânime. Não é de
admirar: porque, mesmo no Soviete de Petrogrado, os bolcheviques não opuseram nada
a esse documento mentiroso.
Algumas semanas mais tarde, era preciso efectuar um pagamento parcial sobre a
despesa. O governo provisório contraiu um empréstimo de guerra que, bem entendido, foi
chamado «empréstimo da liberdade». Tseretelli demonstrava que o governo cumpriria «no
conjunto e integralmente» as suas obrigações, a democracia devia apoiar o empréstimo.
No comité executivo, a ala opositora reuniu mais do que o terço dos votos. Mas, no
plenário do Soviete (22 Abril), votaram contra o empréstimo só cento e doze delegados
sobre quase dois mil. Daí, chegava-se à seguinte conclusão: o comité executivo está mais
à esquerda que o Soviete. Mas não é exacto. O Soviete era mais honesto que o comité
executivo. Se a guerra é a defesa da revolução, é preciso dar dinheiro para a guerra, é
preciso apoiar o empréstimo. O comité executivo não era mais revolucionário nem mais
evasivo. Vivia de equívocos e de subterfúgios. Apoiava o governo estabelecido por ele,
«no conjunto e totalmente» na medida onde e tanto que...» Essas pequenas astúcias
eram alheias às massas. Os soldados não podiam nem combater «na medida que» nem
morrer «no conjunto e totalmente».
Para consolidar a vitória da concepção governamental das divagações, o general
Alexeiev, que se dispunha no 5 de Março a mandar fusilar os bandos propagandistas, foi
oficialmente colocado, no primeiro de Abril, à cabeça das forças armadas. Doravante, tudo
entrava na ordem. O inspirador da política exterior do czarismo, Miliokov, era ministro dos

203
Assuntos exteriores. O comandante em chefe do exército do czar, Alexeiev, tornou-se o
generalíssimo da revolução. O princípio da sucessão estava integralmente restituído.
Ao mesmo tempo, os líderes do Soviete foram obrigados pela lógica da situação a
alargar as malhas da rede que eles próprios tricotaram. A democracia oficial temia
extremamente os chefes do exército que ela tolerava e apoiava. Ela não podia dispensar-
se de lhe opor um controlo, tentando ao mesmo tempo apoiar esse controlo sobre os
soldados e também de lhe restituir, tanto que possível, independentemente destes
últimos. Na sessão do 6 de Março, o comité executivo reconheceu que era desejável
instalar os seus comissários em todos os contingentes da tropa e nas administrações
militares. Assim se constituía uma tripla ligação: as tropas delegavam os seus
representantes ao Soviete: o comité executivo enviava os seus comissários às tropas:
enfim, à cabeça da cada contingente colocava-se um comité recrutado por eleição que
representava de certa forma uma célula de base do Soviete.
Uma das mais importantes obrigações dos comissários era vigiar a integridade
política dos estados-maiores e da oficialidade. «O regime democrático talvez ultrapassou
o da da autocracia», exclamou com indignação Denikinie, e, sobre isso, ele gabava-se da
habilidade do seu estado-maior que interceptava e lhe transmitia a correspondência
codificada dos comissários com Petrogrado. Vigiar os monarquistas e os partidários da
servidão – o que há mais ultrajante? Mas é um outro assunto se se rouba o correio
dirigido pelos comissários ao governo. Qualquer que fosse a moral, as relações interiores
do aparelho dirigente do exército manifestavam-se claramente: as duas partes têm medo
uma da outra e observam-se com hostilidade. O que os une, é somente o medo que elas
têm dos soldados. Os próprios generais e almirantes, quaisquer que fossem as suas
esperanças e planos para o futuro, viam claramente que falta do véu da democracia o
assunto deles não funcionava bem. O estatuto dos comités da frota foi elaborado por
Koltchak. Contava assim abafá-los mais tarde. Mas como, por enquanto, não se podia dar
um passo sem os comités, Koltchak intervinha junto do Grande Quartel General para
obter a sua autorização. De mesma maneira, o general Markov, um dos futuros capitães
do exército branco, enviou, no início de Abril, ao ministério, um projecto de instauração de
comissários para a vigilância da lealdade do comando. Foi assim que «as leis seculares
do exército», isto é as tradições da burocracia militar, quebraram-se como palhas, sob a
pressão da revolução.
Os soldados vinham aos comités de um ponto oposto e agrupavam-se à volta deles
contra o comando. E se os comités protegiam os chefes contra os soldados, era somente
em certa medida. A situação do oficial que tinha entrado em conflito com um comité
tornava-se intolerável. Assim constituía-se o direito não escrito dos soldados em destituir
seus chefes. Sobre a frente Oeste, segundo Denikine, em Julho, tinham despedido perto
de sessenta oficiais, desde de um comandante do corpo do exército até um chefe de
regimente. Mutações do mesmo género tinha lugar no interior dos regimentos.
Entretanto, cumpria-se com minúcia no ministério da Guerra, no comité executivo,
nas reuniões da comissão de contacto, trabalho tendo por fim criar formas «razoáveis» de
relações no exército e retirar a autoridade dos chefes, reduzindo os comités do exército a

204
um papel secundário, principalmente administrativo. Mais tarde, enquanto que os grandes
chefes limpavam com um simulacro de vassoura um simulacro de revolução, os comités
desenvolveram-se num poderoso sistema centralizado, que ia até ao comité executivo de
Petrogrado e consolidando pela organização a autoridade deste sobre o exército. Desta
autoridade, todavia, o comité executivo utilizava-a para levar de novo, por intermédio dos
comissários e dos comités, o exército à guerra. Os soldados tinham cada vez mais
frequentemente razão para se questionarem porquê os comités eleitos por eles
exprimissem muitas vezes não o que eles pensavam, eles soldados, mas o que os chefes
queriam deles.
As trincheiras enviam à capital deputados cada vez mais numerosos para saber o
que se passa. No início de Abril, o movimento dos homens da frente tornou-se incessante,
cada dia têm lugar no palácio Tauride conversações colectivas: os soldados enviados têm
dificuldades em compreender os mistérios da política do comité executivo, o qual não é
capaz de responder claramente a uma só questão. O exército transfere-se lentamente
para a posição soviética para se convencer tanto mais claramente da inconsistência da
direcção soviética.
Os liberais, não se atrevendo a opor-se abertamente ao Soviete, ainda tentam levar
o exército à luta. Como laço político com ele, o chauvinismo deve ser, evidentemente,
mantido. O ministro cadete Chingarev, numa entrevista com os delegados das trincheiras,
defendia a ordem de Gotchkov contra «a indulgência excessiva» em relação aos
prisioneiros, alegando «os actos de selvajaria dos alemãs». O ministro não obteve a
menor expressão de simpatia. A assembleia pronunciou-se resolutamente pela melhoria
da sorte dos prisioneiros. E eram os homens que os liberais acusavam em todas as
ocasiões de excessos e de ferocidade. Mas os obscuros homens da frente tinham seus
critérios próprios. Para eles era inadmissível de se vingar de um oficial pelas humilhações
infligidas aos soldados: mas parecia-lhes cobarde vingar-se de um soldado alemão
prisioneiro por actos de selvajaria reais ou fictícios de um Ludendorff. As normas eternas
da moral, infelizmente! Continuavam estranhos a esses mujiques ásperos e sórdidos.
Tentativas da burguesia para se apoderar do exército resultou no congresso de
delegados da frente Oeste (7-10 de Abril) uma competição entre liberais e conciliadores
que aliás não se desenvolveu. O primeiro congresso de uma das frentes devia ser
decisivo para verificar a política do exército, e os dois partidos enviaram a Minsk os seus
melhores representantes. Para o Soviete: Tseretelli, Tchkheidze, Skobelev, Gvozdiev;
para a burguesia, Rodzianko e outros. A agitação era extrema no teatro de Minsk, cheio
de assistentes, e espalhavam-se por ondas em toda a cidade. Segundo testemunhos dos
delegados, descobriu-se o quadro da situação real. Sobre toda a frente, confraterniza-se:
os soldados tomam a iniciativa cada vez mais ousadamente, o comando nem mesmo
pensa nas medidas de repressão. Que poderiam dizer os liberais? Diante deste auditório
apaixonado, logo renunciaram à ideia de opor as suas resoluções às do Soviete. Eles
limitavam-se às notas patrióticas nos discursos de inauguração e foram logo nitidamente
dominados. A batalha foi ganha pelos democratas sem dar um tiro. Eles não precisavam
de levar as massas contra a burguesia, eles tinham que as conter. A palavra de ordem da
paz, inserida de maneira equivoca com a palavra de ordem da defesa da revolução, no

205
espírito do Manifesto do 14 de Março, dominava o congresso. A resolução do Soviete
sobre a guerra foi adaptada por seiscentos e dez votos contra oito e quarenta e seis
abstenções. A última esperança dos liberais em opor a frente à retaguarda, o exército ao
Soviete, desfazia-se. Mesmo os líderes democratas regressavam do Congresso mais
assustados da sua vitória do que entusiasmados por ela. Tinham visto quais eram os
espíritos despertados pela revolução, e tinham sentido que esses espíritos estavam acima
das suas forças.

206
Os bolcheviques e Lenine

No 3 de Abril, Lenine chegava a Petrogrado, vindo da emigração. É somente a partir


desse momento que o partido bolchevique assume toda sua força e, o que é mais
importante, a sua própria voz.
O primeiro mês da revolução tinha sido, para o bolchevismo, em tempos perturbados
e de hesitações. No «Manifesto» do Comité central dos bolcheviques, redigido logo após
a vitória da insurreição, dizia-se que «os operários das oficinas e das fábricas, assim
como as tropas revoltadas, devem imediatamente eleger seus representantes no governo
revolucionário provisório». O manifesto foi imprimido no órgão oficial do Soviete sem
comentários nem objectivos, como se não se tratasse senão de uma questão académica.
Mas mesmo os dirigentes bolcheviques davam à sua palavra de ordem um significado
puramente demonstrativo. Eles agiam não tanto como representantes de um partido
proletário que se prepara a abrir por sua própria iniciativa a luta pelo poder, mas como ala
esquerda da democracia que, ao proclamar os seus princípios, dispôs-se, por um tempo
indeterminado, a interpretar o papel de uma oposição leal.
Sokhanov afirma que na sessão do comité executivo do primeiro de Março o centro
da discussão versa somente sobre as condições da transmissão do poder: contra o
próprio facto da formação de um governo burguês, nem uma só voz se ouve, ainda se
houvesse então no comité executivo, sobre trinta e nove membros, onze bolcheviques e
simpatizantes cujos três membros do centro, Zalotsky, Chliapnikov, e Molotov, estavam
presentes na sessão.
No dia seguinte, no Soviete, segundo a própria narração de Chliapnikov, sobre
quatrocentos deputados, votaram contra a transmissão do poder à burguesia somente
dezanove delegados, enquanto que a fracção bolchevique contava já quarenta delegados.
Esse voto passou completamente despercebido, num procedimento formalmente
parlamentar, sem claras contra-proposições do lado dos bolcheviques, sem luta e sem
agitação qualquer na imprensa bolchevique.
No 4 de Março, o Bureau do comité central adoptou uma resolução sobre o carácter
contra-revolucionário do governo provisório e sobre a necessidade de se orientar para a
ditadura democrática do proletariado e dos camponeses. O comité de Petrogrado,
reconhecendo não sem razão que esta resolução era puramente académica, dado que
ela não indicava de forma nenhuma o que era necessário fazer no próprio dia, abordou o
problema do lado oposto. Tendo conta da resolução sobre o governo provisório adaptada
pelo Soviete, declarou que «não se opunha ao poder do governo provisório na medida
que...» No fundo, era a posição dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários,
relatada somente na segunda linha das trincheiras. A resolução abertamente oportunista
do comité de Petrogrado contradizia só na forma a posição do comité central cujo carácter

207
académico não significava outra coisa senão a resignação política diante do facto
consumado.
A disposição a inclinar-se, tácitamente ou com reservas, diante do governo da
burguesia não obtinha de forma nenhuma um consentimento indiviso no partido. Os
operários bolcheviques chocaram com o governo provisório, como uma fortaleza inimiga
surgida de repente no caminho. O comité de Vyborg juntou numa reunião política milhares
de operários e de soldados que, quase unanimemente, adoptaram uma resolução sobre a
necessidade da tomada do poder pelo Soviete. Participando activamente nesta agitação,
Dingelstedt testemunha o seguinte: «Não houve uma só reunião, uma só reunião operária
que tivesse rejeitado a nossa resolução nesse sentido, no momento que se encontrava
alguém para a propor.» Os mencheviques e os socialistas-revolucionários, não ousavam,
nos primeiros tempos, declarar francamente como eles colocavam a questão do poder
diante dos auditórios de operários e de soldados. A resolução de Vyborg, por causa do
seu sucesso, foi imprimida e colada em cartazes. Mas o comité de Petrogrado proibiu
essa resolução e Vyborg foi obrigada a ceder.
Sobre o conteúdo social da revolução e das perspectivas do seu desenvolvimento, a
posição dos dirigentes bolcheviques não deixava de ser confusa. Chliapnikov conta que:
«Nós estávamos de acordo com os mencheviques sobre a questão da fase da demolição
revolucionária das relações feudalistas e de servidão, às quais se substituiriam todas as
especies de «liberdades», particulares aos regimes burgueses.» A Pravda escrevia no seu
primeiro número: «A tarefa essencial é... de instituir um reino republicano democrático.»
Nas suas instruções aos deputados operários, o comité de Moscovo declarava: «O
proletariado visa obter a liberdade afim de lutar pelo socialismo que é o seu objectivo
final.» A alegação tradicional de um «objectivo final» sublinha suficientemente a distância
histórica em relação ao socialismo. Ninguém passava esse ponto. O temor de passar as
fronteiras da revolução democrática ditava uma política de temporização, de adaptação e
recuo efectivo diante dos conciliadores.
Não é difícil compreender a penosa influência da sua política que a falta de carácter
do centro tinha sobre a província. Limitemo-nos ao testemunho de um dos dirigentes da
organização de Saratov: «O nosso partido, que tinha activamente participado na
insurreição, deixa visivelmente escapar a sua influência sobre a massa, e esta influência
foi interceptada pelos mencheviques e os socialistas-revolucionários. Quais eram as
palavras de ordem dos bolcheviques, ninguém sabia nada... O quadro era muito
desagradável.»
Os bolcheviques de esquerda, antes de mais os operários, esforçavam-se em
romper a quarentena. Mas eles também não sabiam como fazer frente aos argumentos
sobre o carácter burguês da revolução e os perigos do isolamento do proletariado. A
contra-luz, eles submetiam-se às instruções dos dirigentes. Diversos correntes no
bolchevismo, desde do primeiro dia, chocaram violentamente entre si, mas nem um deles
não desenvolvia as suas ideias até ao fim. A Pravda reflectia este estado confuso e
instável das ideias do partido sem contribuir para a unidade. A situação complicou-se mais

208
em meados de Março, quando regressaram da deportação Kamenev e Estaline que
deram uma brusca guinada à direita na política oficial do partido.»
Bolchevique desde do nascimento do bolchevismo, Kamenev manteve-se sempre na
ala direita do partido. Não desprovido de preparação teórica e de faro político, possuía
uma grande experiência da luta de fracções na Rússia e uma provisão de observações
políticas feitas no Ocidente, Kamenev, melhor que muitos outros bolcheviques,
compreendia as ideias gerais de Lenine, mas somente para lhe dar na prática uma
interpretação tão pacífica que possível. Não se podia esperar dele nem independência na
decisão, nem de iniciativa na acção. Notável propagandista, orador, jornalista, pouco
brilhante mas reflectido, Kamenev era particularmente precioso nas conversações com os
outros partidos e também como iniciador nos outros meios sociais, onde, de tais
excursões, ele trazia sempre, à sua conta, algumas parcelas da mentalidade dos
diferentes partidos. Esses traços de Kamenev eram de tal forma evidentes que quase
ninguém se enganava sobre a sua fisionomia política. Sokhanov nota nele a ausência de
«ângulos agudos»: é preciso «sempre rebocá-lo e se ele resiste um pouco, é de pouca
duração.» No mesmo sentido pronunciou-se também Stankevitch: as atitudes de
Kamenev em relação aos adversários «eram tão moles que, parece, ele próprio tinha
vergonha da intransigência da sua posição; no comité ele era, indubitavelmente, não um
inimigo, mas somente uma oposição». A isso não há nada a acrescentar.
Estaline representava um outro tipo de bolchevique, tanto pela sua formação mental,
como pelo carácter do seu trabalho no partido: sólido organizador primitivo para a teoria e
política. Se Kamenev, na qualidade de publicista, viveu um certo número de anos com
Lenine na emigração onde se encontrava o foco do trabalho teórico do partido, Estaline,
na qualidade do que se chama um activista, sem largos conhecimentos teóricos, sem
grandes interesses políticos e sem conhecimento das línguas estrangeiras, era
inseparável do chão russo. Tais militantes não iam ao estrangeiro senão em curtas
viagens, para receber instruções, combinar tarefas a encetar e voltar à Rússia. Estaline
distingui-se entre os activistas pela sua energia, sua teimosia e sua ingenuidade nas
manobras nos bastidores. Se Kamenev, por natureza, «intimidava-se» diante das
deduções práticas do bolchevismo, Estaline, em contrapartida, tendia a manter deduções
práticas que ele assimilava sem qualquer moderação, combinando obstinação e rudeza.
Qualquer que seja a oposição de seus caracteres, não é por acaso que Kamenev e
Estaline tomaram, no início da revolução, uma oposição comum: eles completavam-se
mutuamente. Uma concepção revolucionária sem vontade revolucionária vale tanto como
um relógio cuja mola está quebrada: a agulha política de Kamenev estava sempre
atrasada nos problemas revolucionários. Mas a ausência de uma grande concepção
política condena o político mais dotado de vontade a irresolução quando surgem
acontecimentos grandes e complicados. O empirismo de Estaline está aberto às
influências do exterior não do lado da vontade mas do lado do pensamento. É assim que
um publicista sem volição e um organizador sem horizonte levaram, em Março, o seu
bolchevismo até aos limites do menchevismo. Estaline, nas circunstâncias, encontrou-se
ainda menos que Kamenev capaz de ocupar uma posição deliberada no comité executivo
onde ele entrou como representante do partido. Não subsiste nos processos verbais ou

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na imprensa nenhuma proposição, declaração, protesto, pelos quais Estaline teria
exprimido o ponto de vista bolchevique em contrapartida da atitude rastejante da
«democracia» diante do liberalismo.
Sokhanov disse nas suas Memórias: «Entre os bolcheviques nessa época, além de
Kamenev, surgiu, no comité executivo, Estaline... Durante todo o tempo da sua modesta
actividade no comité executivo, (ele) produzia – não somente sobre mim – a impressão de
uma mancha cinzenta que, por vezes, saltitava, terno e rápidamente apagado. Na
verdade, não há nada a acrescentar sobre ele.» Se Sokhanov subestima evidentemente
Estaline no conjunto, pelo menos caracteriza exactamente a sua impersonalidade política
no comité executivo conciliador.
No 14 de Março, o manifesto «Aos povos do mundo inteiro», que interpretava a
vitória da Revolução de Fevereiro segundo os interesses da Entente e significava o triunfo
de um novo social patriotismo republicano de marca francesa, foi adoptado
unanimemente pelo Soviete. Isso marcava um sucesso indubitável para Kamenev—
Estaline, sucesso obtido, aparentemente, sem grande luta. A Pravda escrevia sobre isso
que tinha um «compromisso consciente entre as diversas tendências representadas no
Soviete». Convinha acrescentar que o compromisso marcava um nítida ruptura com a
corrente de Lenine que, no Soviete, não se encontrava de forma nenhuma representado.
O membro da redacção do órgão central no estrangeiro Kamenev, o membro do
comité central Estaline e o deputado na Duma, Moranov, igualmente regressado da
Sibéria, afastaram a antiga redacção da Pravda demasiado «à esquerda» e, apoiando-se
sobre os seus direitos problemáticos, meteram a mão no jornal a partir do 15 de Março.
No artigo/programa da nova redacção, declararam que os bolcheviques apoiavam o
governo provisório, «na medida onde este combate a reacção e a contra-revolução».
Sobre a questão da guerra, os novos dirigentes não se pronunciavam categóricamente:
enquanto que o exército alemão obedecesse ao imperador, o soldado russo devia «ficar
no seu posto, ripostar a todas as balas e aos obuses». «Nós não adoptamos a palavra de
ordem inconsistente «Abaixo a guerra!» Nossa palavra de ordem consiste em exercer
uma pressão sobre o governo provisório para o obrigar... a fazer uma tentativa com o
objectivo de dispor todos os países beligerantes a abrir imediatamente conversações...
Mas, até lá, cada um fica no seu posto de combate!»
As ideias, tal como as formulas, vão totalmente no sentido da defesa nacional. O
programa de pressão sobre o governo imperialista com o objectivo de o «dispor» a
procedimentos de acção pacífica era o programa de Kautsky na Alemanha, de Jean
Longuet em França, de MacDonald na Inglaterra, mas não era de forma nenhuma o
programa de Lenine que incitava ao derrube da dominação imperialista. Ao ripostar à
imprensa patriótica, a Pravda ia ainda mais longe: «Todo «derrotismo» - escrevia-se nela,
ou mais exactamente o que uma imprensa pouco delicada, sob a vigilância da censura
czarista, estigmatizava desse nome, morreu no momento onde, nas ruas de Petrogrado,
se mostrou o primeiro regimento revolucionário.» Era separar-se nitidamente de Lenine. O
«derrotismo» não tinha sido inventado pela imprensa inimiga sob a vigilância da censura,
era Lenine que a tinha formulado assim: «A derrota da Rússia, é o mal menor.» A aparição

210
do primeiro regimento revolucionário e mesmo a queda da monarquia não mudava em
nada o carácter imperialista da guerra. «No dia da saída do primeiro número da Pravda
transformada, no 15 de Março – conta Chliapnikov – foi um dia de jubilação entre os
partidários da defesa nacional. Todo o palácio Tauride, desde de gente de negócios do
comité da Duma do Estado, até ao próprio centro da democracia revolucionária – o comité
executivo retinia uma notícia: a vitória dos bolcheviques moderados, razoáveis, sobre os
extremistas. No próprio comité executivo, receberam-nos com sorrisos venenosos...
Quando esse número da Pravda chegou nas fábricas, causou uma profunda estupefacção
entre os membros do nosso partido e nos simpatizantes, assim que a satisfação
sarcástica entre os nossos adversários... A indignação nos bairros foi enorme, e quando
os proletários souberam que a Pravda tinha caído nas mãos de três dos seus antigos
dirigentes, regressados da Sibéria, exigiram a sua exclusão do partido.»
A Pravda logo foi obrigada a imprimir um veemente protesto dos militantes de
Vyborg: «Se o jornal não quer perder a confiança dos bairros operários, ele deve trazer e
trará a luz da consciência revolucionária, qualquer que seja a dor para as corujas da
burguesia.» Os protestos da base obrigaram a redacção a tornar-se mais circunspecta
nas suas expressões, mas a não mudar de política. Mesmo o primeiro artigo de Lenine
que pôde intervir do estrangeiro não mudou a consciência da redacção. A orientação ia
completamente para a direita. «Na nossa agitação – conta Dingelstedt, representante da
ala esquerda – é necessário contar sobre o princípio do duplo poder... e demonstrar a o
carácter inelutável desta via contornada a essa massa de operários e de soldados que,
durante quinze dias de vida política intensa, era educada na compreensão completamente
diferente das suas tarefas.»
A política do partido em todo o país regulava-se naturalmente sobre a Pravda. Nos
numerosos sovietes, resoluções sobre questões essenciais eram agora adoptadas
unanimemente: os bolcheviques inclinavam-se muito simplesmente diante da maioria
soviética. Na conferência de Moscovo, os bolcheviques juntaram-se à resolução dos
sociais patriotas sobre a guerra. Enfim, na Conferência pan-russa dos representantes de
oitenta e dois sovietes que teve lugar em Petrogrado, no fim de Março e no princípio de
Abril, os bolcheviques votaram pela resolução oficial sobre o poder defendida por Dan.
Essa aproximação política extremamente pronunciado com os mencheviques situava-se
na base das tendências unitárias que se tinham largamente desenvolvidas. Na província,
os bolcheviques e os mencheviques unificavam-se nas organizações comuns. A fracção
Kamenev—Estaline transformava-se cada vez mais numa ala esquerda da dita
democracia revolucionária e incorporava-se no mecanismo de «pressão», nos bastidores
parlamentares, sobre a burguesia, que ela completava por uma pressão, nos bastidores,
sobre a democracia.
Os membros do comité central que residiam no estrangeiro e a redacção do órgão
central, o Social-democrata, constituía o centro espiritual do partido. Lenine, com Zinoviev
na qualidade de auxiliar, fazia todo o trabalho de direcção. As obrigações do secretariado,
extremamente cheias de responsabilidades, eram cumpridas pela mulher de Lenine,
Krupskaia. Nesse trabalho prático, esse pequeno centro apoiava-se na ajuda de algumas
dezenas de bolcheviques emigrados. O afastamento da Rússia tornava-se, no decurso da

211
guerra, tanto mais insuportável que a polícia da Entente apertava cada vez mais os
entraves. A explosão da revolução, há muito esperada, foi imprevista. A Inglaterra recusou
categóricamente aos imigrados internacionalistas, dos quais ela mantinha metódicamente
em dia as listas, de os deixar passar para a Rússia. Lenine exasperava-se, numa gaiola
de Zurique, a procurar um saída. Numa centena de planos elaborados um após outro,
teve que atravessar com o passaporte de um escandinavo surdo-mudo.
Ao mesmo tempo, Lenine não perde uma ocasião de ouvir, da Suíça, a sua voz.
Desde do 6 de Março, telegrafou, por Estocolmo, para Petrogrado: «Nossa táctica:
desafio completo, nenhum apoio ao novo governo: desconfiemos de Kerensky:
armamento do proletariado – única garantia: eleições imediatas à Duma de Petrogrado:
nenhuma aproximação com outros partidos.» Só a exigência de eleições à Duma, e não
ao Soviete, tinha nesta primeira directiva um carácter episódico e foi logo rejeitada: os
outros pontos, formulados nos temos categóricos de um telegrama, desenham já
inteiramente a direcção geral da política. Além disso, Lenine começa a enviar à Pravda as
suas Cartas de longe que, continham uma análise inacabada da situação revolucionária.
Os notícias dadas pelos jornais do estrangeiro permitiram-lhe logo concluir que o governo
provisório, com a assistência directa não somente de Kerensky, mas também de
Tschkheidze, engana não sem sucesso os operários, ao apresentar a guerra imperialista
como uma guerra de defesa nacional. No 17 de Março, ele expediu por intermediário de
amigos em Estocolmo uma carta cheia de apreensões. «O nosso partido se desonraria
para sempre, se suicidaria políticamente, se ele admitisse semelhante impostura... Eu
preferia mesmo uma cisão imediata com qualquer um do nosso partido em vez de ceder
ao social-patriotismo...» Após esta ameaça, aparentemente impessoal, portanto calculada
para atingir certas pessoas, Lenine esconjura: «Kamenev deve compreender que em cima
dele cai uma responsabilidade histórica de importância mundial.» Kamenev é designado
porque se trata de questões de princípio da política. Se Lenine tivesse como perspectiva
uma tarefa prática de combate, ele ter-se-ia lembrado logo de Estaline. Mas justamente
no momento onde Lenine se esforçava de transmitir, através da Europa fumegante, para
Petrogrado, a tensão da sua vontade, Kamenev, com o concurso de Estaline, voltava
bruscamente para o social-patriotismo.
Diversos planos – perucas, maquilhagem, passaportes falsos ou emprestados –
caiam uns após outros, irrealizáveis. Ao mesmo tempo afirmava-se cada vez mais
concretamente a ideia da passagem pela Alemanha. Esse plano assustava a maior parte
dos emigrados e não somente os patriotas. Martov e os outros mencheviques não
ousaram juntar-se à audaciosa iniciativa de Lenine e continuaram a bater inutilmente às
portas da Entente. Recriminações sobre a passagem pela Alemanha foram feitas por
numerosos bolcheviques, por causa das dificuldades que o «vagão blindado» suscitou no
domínio da agitação. Lenine, desde do início não tinha esquecido as dificuldades futuras.
Krupskaia escrevia ao mesmo tempo antes da partida de Zurique: «Bem entendido, na
Rússia, os patriotas irão gritar, mas somos forçados a estar preparados.» A questão
colocava-se assim: ou ficar em Suíça, ou passar pela Alemanha. Nenhuma outra via não
estava aberta. Lenine poderia hesitar mais um minuto? Exactamente um mês mais tarde,
Martov, Axelrod e outro tiveram que se comprometer a seguir Lenine.

212
Na organização dessa viagem insólita através de um país inimigo em tempo de
guerra afirmava-se os traços essenciais de Lenine como homem político: a ousadia do
projecto e uma meticulosa circunspecção no exercício. Nesse grande revolucionário vivia
um notário pretencioso que, portanto, conhecia o seu lugar e empreendia a redacção do
seu acto no momento onde isso podia ajudar à destruição de todos os actos notariais. As
condições da passagem através da Alemanha, elaboradas com o máximo cuidado, deram
lugar a um tratado original internacional entre a redacção de um jornal de emigrados e o
império do Hohenzollern. Lenine exigia para o transito um direito absoluto de
extraterritorialidade: nenhum controlo sobre o contingente dos viajantes, seus passaportes
e sua bagagens, ninguém tem o direito de entrar no meio do percurso no vagão (daí a
legenda do vagão «blindado»). Pelo seu lado, o grupo de emigrados comprometia-se a
reclamar que se libertasse da Rússia um número correspondente de prisioneiros civis,
alemãs e austro-húngaros.
Em colaboração com alguns revolucionários estrangeiros uma declaração foi
elaborada: «Os internacionalistas russos que... regressam agora à Rússia para servir a
revolução ajudar-nos-ão ao levantamento dos proletários dos outros países, em particular
os proletários da Alemanha e da Áustria, contra seus governos.» Assim falava o processo
verbal assinado por Loriot e Guilbeaux pela França, por Paul Lévy pela Alemanha, por
Patten pela Suíça, pelos deputados suecos de esquerda, etc.. Nessas condições e com
essas precauções, partiram da Suíça, no fim do mês de Março, trinta emigrados russos,
no meio de vagões de munições – eles próprios sendo um cargamento explosivo de
extraordinária potência.
Na sua Carta de adeus aos operários suíços, Lenine lembrava a declaração feita
pelo órgão central dos bolcheviques durante o Outono de 1915: se a revolução leva na
Rússia ao poder um governo republicano desejando continuar a guerra imperialista, os
bolcheviques opor-se-ão à defesa da pátria republicana. Actualmente, apresenta-se esta
situação. «A nossa palavra de ordem: nenhum apoio ao governo Gotchkov—Miliokov.»
Falando assim, Lenine colocava o pé no território da revolução.
Os membros do governo provisório não se aperceberam portanto de qualquer motivo
para se alarmarem. Nabokov conta isto: «Numa sessão do governo provisório, em Março,
durante uma suspensão, então que se continuava a discutir a propaganda bolchevique
que se desenvolvia cada vez mais, Kerensky declarou com um riso histérico que lhe era
habitual: «Esperai um pouco, o próprio Lenine vem aí, e então isso vai tornar-se sério...»
Kerensky tinha razão: esperava-se ainda que isso se tornasse sério. Todavia, os ministro,
segundo Nabokov, não viam razão de se inquietar: «O facto que Lenine se tenha dirigido
à Alemanha enfraquecerá a sua autoridade que não há razão a temer.» Como era do seu
género, os ministros eram bastante perspicazes.
Os amigos e disciplos foram ao encontro de Lenine na Finlandia. «Logo após ter
entrado no compartimento e de se ter assentado no banco – conta Raskolnikov, jovem
oficial da marinha e bolchevique – Vladimir Illitch caiu logo sobre Kamenev: - O que é que
você escreve na Pravda? Nós vimos alguns números e injuriámos você...» Tal foi o
reencontro após vários anos de separação. O que não impediu que ele fosse cordial.

213
O comité de Petrogrado, com a ajuda da organização militar, tinha mobilizado vários
milhares de operários e soldados para receber solenemente Lenine. Uma divisão
amigável disposta, a dos autos blindados, tinha enviado para a ocasião todas as suas
máquinas. O comité decidiu ir à gare com as tripulações de guerra: a revolução tinha já
despertado uma paixão por esses monstros obtuses que é tão vantajoso ter do seu lado
nas ruas de uma cidade.
A descrição do encontro oficial que teve lugar na sala dita «imperial» da gare da
Finlandia constitui uma página muito viva nas Memórias de numerosos tomos espessos
de Sokhanov. «Na sala imperial entrou, ou melhor, acorreu Lenine, trajando um chapéu
melão, de rosto imóvel, tendo na mão um magnífico ramo de flores. Parando sua marcha
no meio da sala, colocou-se diante de Tchkheidze como se tivesse chocado com um
obstáculo inesperado. E aí, Tchkheidze, sem abandonar o seu ar triste, pronunciou o
«saudação» seguinte, mantendo não somente no espírito, não somente à redacção, mas
ao tom de uma lição de moral: «Camarada Lenine, em nome do Soviete de Petrogrado e
de toda a Revolução, saudamos a sua chegada à Rússia... Mas consideramos que a
tarefa principal da democracia revolucionária é agora defender a nossa revolução de
todos os atentados que poderiam lhe ser feitos contra ela, tanto do interior como do
exterior... Nós esperamos que com nós você continuará esses objectivos.» Tchkheidze
calou-se. Diante deste discurso inesperado, eu fiquei desconcertado... Mas Lenine,
evidentemente, sabia muito bem como se comportar diante de tudo isso. A sua atitude era
a de um homem que nada toca do que se passa à volta dele: ele olha de um lado e de
outro, examinou os rostos, levou o olhar até ao tecto da sala «imperial», compondo o seu
ramo (que não concordava nada com o conjunto da sua pessoa, e, seguidamente,
voltando as costas à delegação do comité executivo, «respondeu» assim: «Caros
camaradas, soldados, marinheiros e operários, estou feliz ao saudar em vocês a
revolução russa vitoriosa, saudá-los como a vanguarda do exército proletário mundial... A
hora não estará longe onde, ao apelo do nosso camarada Karl Liebknecht, os povos
voltarão as armas contra os capitalistas exploradores... A revolução russa realizado por
vós abriu uma nova época. Viva a revolução socialista mundial!...»
Sokhanov tem razão, - o ramo de flores concordava mal com o conjunto da
fisionomia de Lenine, estorva-o indubitavelmente e incomodava-o como um objecto sem
sentido no ambiente severo. E, além disso, Lenine não gostava de flores em ramo. Mas
devia ser de estar ainda mais incomodado por esta recepção oficial e hipocritamente
moralizadora num sala de aparato da gare. Tchkheidze valia melhor que o seu discurso de
recepção. Ele tinha um pouco medo de Lenine. Mas tinha-no persuadido que era preciso
metê-lo na ordem logo à chegada, «o sectário». Para completar o discurso de Tchkheidze,
que provava o nível lamentável da direcção, um jovem oficial das tripulações da frota,
falando em nome dos marinheiros, teve essa boa ideia de desejar que Lenine se tornasse
membro do governo provisório. Foi assim que a Revolução de Fevereiro, frouxa, prolixa e
ainda ingénua, recebia um homem que tinha vindo com a firme intenção de lhe impor
pensamento e vontade. Já, essas primeiras impressões de Lenine, aumentando muito a
inquietude que ele tinha ao chegar, provocaria um sentimento de protesto dificilmente
contida. Mais valia arregaçar as mangas depressa. Ao apelar a Tchkheidze, aos

214
marinheiros e aos soldados, à defesa da pátria, à revolução internacional, do governo
provisório a Liebknecht, Lenine só fazia, na gare, uma pequena repetição de toda a sua
política ulterior.
E, portanto, esta revolução pacóvia adoptou no primeiro momento e sólidamente o
líder no seu seio. Os soldados exigiram que Lenine tomasse lugar sobre um dos autos
blindados e ele obedeceu. A noite que caía deu ao cortejo um carácter particularmente
imponente. As luzes dos outros auto blindados estando apagadas, as trevas eram furadas
pela luz clara dos faróis da viatura na qual viajava Lenine. A luz projectada destacava na
escuridão das ruas grupos agitados de operários, de marinheiros, desses mesmos que
tinham realizado a maior das insurreições, mas que tinham deixado o poder escapar-se
entre seus dedos. A fanfara militar deixou de tocar, várias vezes, durante o percurso, para
dar a Lenine a possibilidade de repetir, com variantes, o discurso pronunciado na gare
diante de novos auditores. «O triunfo foi espantoso – dise Sokhanov – e mesmo bastante
simbólico.»
No palácio de Kszesinka, quartel general bolchevique no ninho sedoso da bailarina
da Corte - esta justaposição devia divertir a ironia de Lenine sempre desperta –
recomeçaram os cumprimentos. Era demasiado. Lenine aguentou chuvas de elogios de
forma que um peão impaciente suporta a chuva debaixo do limiar de um portão de
garagem. Ele sentia que se alegravam com a sua chegada, mas irritava-o esta alegre
grande eloquência. O próprio tom das felicitações oficiais parecia imitado, fingido, numa
palavra emprestada à democracia pequeno-burguesa, declamadora, sentimental e
falaciosa. Ele via que a revolução, não tendo ainda determinado as suas tarefas e o seu
caminho, tinha já instituido a sua etiqueta aborrecida. Ele sorria com uma bonomia
zangada, consultando seu relógio, e por instantes, não se incomodava provavelmente de
bocejar. As palavras do último arengo tinham apenas deixado de entoar quando o insólito
aconteceu vazando sobre o auditório uma cascata de ideias apaixonantes que ressoavam
demasiadas vezes como chicotadas.
Nesse tempo, a arte da estenografia ainda não tinha sido descoberta pelos
bolcheviques. Ninguém tomava notas, todos estavam absorvidos por aquilo que se
passava. O discurso não subsistia, só ficou uma impressão geral nas lembranças dos
auditores, mas esta mesma impressão geral foi modificada pelo tempo: o entusiasmo foi
crescendo, o pavor diminui. Portanto, a impressão principal, mesmo entre os mais
próximos de Lenine, era precisamente este terror. Toda as formulas habituais que,
parecia, tinha adquirido num mês uma solidez inquebrável graças aos inumeráveis
repetições, caíam uns após outros diante do auditório. A curta réplica de Lenine, na gare,
enviada por cima da cabeça de Tchkhedze embaraçado, foi aqui desenvolvida num
discurso de duas horas dirigido directamente aos quadros bolcheviques de Petrogrado.
Por acaso, a título de convidado, admitido graças à boa vontade de Kamenev –
Lenine tinha horror dessas indulgencias – assistia a essa sessão o sem partido Sokhanov.
Foi assim que nós temos uma descrição, feita por um observador do lado, meio hostil,
meio entusiasta, do primeiro encontro de Lenine com os bolcheviques de Petrogrado.

215
«Nunca mais esquecerei esse discurso trovejante, que fez tremer e deixou
estupefactos não só a mim, herético chegado lá por acaso, mas também todos os
ortodoxos. Afirmo que ninguém não esperava nada igual. Parecia que, das suas tocas, se
levantassem todos os elementos e que o espírito da destruição universal, não conhecia
limites, nem dúvidas, nem dificuldades humanas, nem cálculos humanos, planava no
salão de Kszesinska sobre as cabeças dos disciples embruxados.»
Dificuldades e cálculos humanos, para Sokhanov, são principalmente as hesitações
do pequeno círculo da redacção da Novaia Jisn, ao tomar o chá na casa de Máximo
Gorki. Os cálculos de Lenine eram mais profundos. Não eram elementos que rondavam
sala, era um pensamento humano que não intimidavam os elementos que se esforçavam
por os compreender para os dominar. Mas, pouco importa: a impressão está dada de
forma viva.
«Quando meus camaradas e eu chegámos aqui – dizia Lenine, segundo Sokhanov –
pensei que nos conduzissem directamente da gare à fortaleza de Pedro e Paulo. Como se
vê, estamos longe disso. Mas nós não perdemos esperança de escapar a isso ainda e de
a evitar.» No momento onde, para outros, o desenvolvimento da revolução equivalia à
consolidação da democracia, para Lenine a perspectiva mais imediata era de voltar para a
fortaleza de Pedro e Paulo. Disseram que era uma sinistra piada. Mas Lenine não se
dispunha de forma nenhuma a brincar, e a revolução menos que ele.
Sokhanov queixou-se: «Ele rejeitou a reforma agrária pela via legislativa assim como
o resto da política do Soviete. Ele proclama a confiscação organizada da terra pelos
camponeses, sem demora... qualquer que fosse o poder do Estado.»
«Nós não necessitamos de uma república parlamentar, nós não precisamos de uma
democracia burguesa, nem de nenhum governo fora dos sovietes de deputados
operários, soldados e operários agrícolas!»
Ao mesmo tempo, Lenine afastava-se claramente da maioria soviética, rejeitando-a
no campo dos adversários. «Nesse período, não era necessário muito para o auditor ter
vertigem!»
«Só, a esquerda de Zimmerwald preside a defesa dos interesses proletários e da
revolução mundial – exclamava Sokhanov, traduzindo com indignação as ideias de
Lenine. Os outros, são sempre os mesmos oportunistas que pronunciam belos discursos,
mas, na realidade,... atraiçoam a causa do socialismo e das massas operárias.»
«Ele cai resolutamente sobre a táctica precedente aplicada pelos grupos dirigentes
do partido e certos camaradas antes da sua chegada», acrescenta Rskolnikov às palavras
de Sokhanov. «Aqui estavam presentes o maiores militantes responsáveis do partido.
Mas, para eles também, o discurso de Illitch era uma verdadeira revelação. Ele traçou o
Rubicão entre a táctica da véspera e a do dia.» O Rubicão, como veremos, não foi
traçado de uma só vez.
Não houve debates sobre o relatório: todos estavam demasiado atordoados e cada
um tinha vontade de juntar pelo menos os seus pensamentos. «Saí para a rua – termina

216
Sokhanov: a minha sensação era de ter recebido, nessa noite, pancadas na cabeça. Uma
só coisa era clara: não, eu, selvagem, não caminharei com Lenine!» Acreditamos!
No dia seguinte, Lenine apresentou ao partido uma breve exposição escrita das suas
ideias que se tornaram um dos mais importantes documentos da revolução, sob a
denominação de «Teses de Abril». As teses exprimiam pensamentos simples, em termos
simples e acessíveis a todos. «A república que saiu da insurreição de Fevereiro não é a
nossa república, e a guerra que trava não é a nossa guerra. A tarefa para os bolcheviques
é de derrubar o governo imperialista. Mas este mantém-se graças ao apoio dos
socialistas-revolucionários e dos mencheviques, os quais se apoiam na confiança das
massas populares. Estamos em minoria. Nessa condições, está fora de questão um acto
de força da nossa parte. É necessário ensinar às massas a não se fiar nos conciliadores e
nos partidários da defesa nacional. «É preciso dar pacientemente explicações.» O
sucesso de uma tal política, imposta pelo conjunto das circunstâncias, é garantido e nos
levará à ditadura do proletariado, consequentemente nos conduzirá para além do regime
burguês. Nós queremos romper totalmente com o capital, publicar seus tratados secretos
e incitar os operários do mundo inteiro a quebrar com a burguesia e a liquidar a guerra.
Nós começamos a revolução internacional. Só o sucesso desta revolução consolidará a
nossa, e assegurará a passagem ao regime socialista.
As teses de Lenine foram publicadas em seu nome, e somente em seu próprio
nome. As instituições centrais do partido acolheram-as com um hostilidade que misturava
estupefacção. Ninguém – nem organização nem grupo, nem nenhum militante – não
juntou a sua assinatura. Mesmo Zinoviev, que tinha chegado com Lenine do estrangeiro
onde o seu pensamento se tinha formado, durante dez anos sob a influência directa e
diária de Lenine, afastou-se em silêncio. E esse afastamento não foi surpreendente para o
mestre que conhecia demasiado bem o seu próximo disciple. Se Kamenev era um
propagandista divulgador, Zinoviev era um agitador, e mesmo, segundo a expressão de
Lenine, era só isso. Par era um líder, faltava-lhe demasiado sentimento da
responsabilidade. Mas não era só isso que lhe faltava. Desprovido de disciplina interior,
seu pensamento era completamente incapaz d trabalho teórico e dissolveu-se na
instituição informe do agitador. Graças à um faro excepcionalmente subtil, ele apanhava
tudo no ar, as formulas que ele necessitava, isto é as que lhe ajudavam a mais efectiva
acção sobre as massas. E como jornalista, e como orador, era invariavelmente um
agitador, com a diferença que, nos seus artigos, mostra-se sobretudo pelos seus lados
fracos, enquanto que nos seus discursos os lados fortes ganham. Muito mais audacioso e
desenfreado na agitação que qualquer outro bolchevique, Zinoviev é ainda menos capaz
que Kamenev de uma iniciativa revolucionária. É irresoluto, como todos os demagogos.
Tendo trocado a arena dos conflitos de fracções pelas lutas de classes imediatas,
Zinoviev separava-se quase involuntariamente do seu mestre.
Nesses últimos anos, as tentativas não foram numerosas para demonstra que a crise
de Abril do partido tinha sido um deslize passageiro e quase acidental. Tudo isso afundou-
se no primeiro contacto com os factosi.

217
Já, o que nós sabemos da actividade do partido no decurso de Março, nos mostra
uma contradição muito profunda entre Lenine, a contradição tinha atingido a sua mais alta
tensão. Ao mesmo tempo que a conferência pan-russa dos representantes dos oitenta e
dois sovietes, onde Kamenev e Estaline votavam por uma resolução sobre o poder
deposta pelos socialistas-revolucionários e mencheviques, teve lugar em Petrogrado a
conferência do Partido, composta de bolcheviques vindos de todos os pontos da Rússia.
Para caracterizar as tendências e as opiniões do partido, ou mais exactamente da sua
camada superior, tal como ela saiu da guerra, a conferência à qual compareceu Lenine
como ela terminava, apresentando um interesse completamente excepcional. A leitura dos
processos verbais, não publicados até a esse dia, suscita mais que uma vez a admiração:
era o partido representado por esses delegados que em sete meses mais tarde deveria
tomar o poder com mão de ferro?
Desde da insurreição, um mês tinha passado – um longo período para uma
revolução como para uma guerra, todavia, no partido, as opiniões não se tinham ainda
clarificado sobre as questões mais essenciais da revolução. De patriotas extremos, tais
que Voitinsky, Eliav, e outro participavam na conferência ao lado dos que se
consideravam como internacionalistas. A percentagem de patriotas declarados
incomparavelmente menor que entre os mencheviques, era contudo importante. A
conferência, no seu conjunto, não resolveu a questão: cisões com os seus próprios
patriotas ou união com os patriotas do menchevismo. No decurso de uma interrupção de
sessão da conferência bolchevique, teve lugar uma reunião comum de bolcheviques e de
mencheviques, delegados da conferência dos sovietes, para discutir a questão da guerra.
O mais fogoso menchevique patriota, Liber, declarou nessa assembleia: «A distinção feita
há pouco entre bolcheviques e mencheviques deve ser afastada e é preciso somente falar
da nossa atitude em relação à guerra.» O bolchevique Voitinsky não tardou a proclamar
que ele estava pronto a apoia as palavras de Liver. Todos juntos, bolcheviques e
mencheviques, patriotas e internacionalistas, procuravam uma formula comum exprimindo
a sua atitude em relação à guerra.
As opiniões da conferência bolchevique encontraram indubitavelmente a sua
expressão mais adequada no relatório de Estaline sobre a atitude em relação do governo
provisório. É indispensável citar aqui a ideia central do relatório que, até ao presente, não
tinha sido publicado em parte alguma, nem mais que os processos verbais no seu
conjunto. «O poder é partilhado ente dois órgãos cujo todo o poder ninguém possui.
Fricções e uma luta entre eles existem e devem ser. Os papeis são partilhados. O Soviete
tomou a iniciativa das transformações revolucionárias: o Soviete é o líder revolucionário
do povo rebelado, órgão controlando o governo provisório. Mas o governo provisório
tomou de facto o papel de consolidar as conquistas do povo revolucionário. O Soviete
mobiliza as forças, exerce um controlo. O governo provisório, resistente, atrapalhado,
pretende consolidar as conquistas que o povo efectivamente fez. Esta situação tem lados
negativos, mas ela também tem positivos: nós não temos mais por agora que forçar a
marcha dos acontecimentos ao acelerar o processo de expulsão das camadas burguesas
que inevitavelmente, deverão se desligar de nós.»

218
As relações entre a burguesia e o proletariado desenham-se pelo relator, que se
situou acima das classes, como uma simples divisão de trabalho. Os operários e os
soldados realizam a revolução, Gotchkov e Miliokov «consolidam-na». Nós reconhecemos
aqui a concepção tradicional do menchevismo, inexactamente copiada nos
acontecimentos de 1789. São precisamente os líderes do menchevismo que caracterizam
esta atitude de inspectores diante do proceso histórico, esta maneira de distribuir as
tarefas às classes diversas e de criticar com um tom protector a sua execução. Esta ideia
que seria desvantajoso de levar à disjunção entre a burguesia e a revolução foi sempre o
critério mais elevado de toda a política dos mencheviques. Na realidade, isso significava:
embotar e enfraquecer o movimento de massas para não assustar os liberais aliados.
Enfim, a conclusão de Estaline sobre o governo provisório liga-se inteiramente à formula
equívoca dos conciliadores: «Na mediada onde o governo provisório consolide os
progressos da revolução, é necessário apoiá-lo: na medida onde esse governo é contra-
revolucionário, é inadmissível que seja apoiado.»
O relatório de Estaline foi lido no dia 29 de Março. No dia seguinte, o relator oficial
da conferência soviética, os social democrata sem partido Stieklov, preconizava a mesma
assistência condicional ao governo provisório, traçou, no calor do entusiasmo, um tal
quadro da actividade dos que «consolidam» a revolução – resistência às reformas sociais,
objectivos monárquicos, protecção cedida às forças contra-revolucionárias, apetites de
anexação – que a conferência bolchevique, alarmada, rejeitou a formula de apoio. O
bolchevique de direita Noguine declarou: O relatório de Stieklov trouxe uma ideia nova: é
claro que presentemente deve-se falar não do apoio mas da oposição.» Skrynik concluiu
igualmente que segundo o relatório de Stieklov «muito tinha mudado: impossível falar de
um apoio ao governo. Há conspiração do governo provisório contra o povo e a
revolução.» Estaline que, na véspera esboçava um quadro idílico da «divisão do trabalho»
entre o governo e o Soviete, considerou-se obrigado a suprimir o artigo relativo ao apoio.
Debates curtos e pouco profundos continuaram à volta da questão de saber se
apoiava o governo provisório «na medida onde...» ou somente os actos revolucionários do
governo provisório. Um delegado de Saratov, Vassiliev, declarava não sem razão: «A
atitude em relação ao governo provisório é a mesma em todos.» Kerensky formulou a
situação ainda mais cruamente: «Não há desacordos sobre as acções práticas de
Estaline e Voitinsky.» Ainda que Voitinsky tivesse, logo após a conferência, passado para
os mencheviques, Krestinsky não estava errado completamente: ao retirar a menção
explicita de apoio, Estaline não suprimia o próprio apoio. Tentou colocar a questão de
princípio a Krassikov, um desses velhos bolcheviques que se tinham afastado do partido
durante numerosos anos e que, agora, cheio de experiências da vida, tentava voltar às
suas fileiras. Krassikov não tinha medo de tomar o boi pelos cornos: vocês não têm
intenção de estabelecer a ditadura do proletariado? Perguntava ironicamente. Mas a
conferência deixou a ironia de lado, e a questão ao mesmo tempo, como não merecendo
atenção. A resolução da conferência pedia à democracia revolucionária de exortar o
governo provisório «à luta mais enérgica pela completa liquidação do antigo regime», isto
é reservava ao partido proletário um papel de dama de companhia junto da burguesia.

219
No dia seguinte foi discutida uma proposição de Tsertelli sobre a fusão dos
bolcheviques e mencheviques. Estaline considerou este convite com inteira simpatia:
«Devemos marchar. É indispensável fixar as nossas proposições sobre a linha de
unificação. A unificação é possível sobre a linha Zimmerwald-Kienthal.» Molotov, que tinha
sido expulso por Kamenev e Estaline da redacção da Pravda por ter dado uma direcção
demasiado radical ao jornal, formulou objecções: Tseretelli deseja unificar elementos de
toda a especie, ele próprio também se diz Zimmerwaldiano, a fusão sobre esta linha é um
erro mas Estaline teimava na sua ideia: «Não convém, dizia, antecipar e de prevenir os
diferendos. Sem acordo, não há vida de partido. No interior do partido, nós eliminaremos
os pequenos desacordos.»
Toda a luta que Lenine tinha travado, durante os anos de guerra, conta o social
patriotismo e a sua camuflagem pacifista, era reduzida a nada. Em Setembro de 1916,
Lenine escrevia com particular insistência por intermediário de Chliapnikov, em
Petrogrado: «O espírito de conciliação e de unificação que é o que existe de mais nocivo
para um partido operário na Rússia: não somente é uma idiotia, mas é a perca do
partido... Nós não podemos contar senão sobre os que compreenderam o engodo da
ideia de unidade e toda a necessidade de uma cisão com essa confraria (os Tchkheidze e
companhia) na Rússia.» Este aviso não tinha sido compreendido. As dissensões com
Tseretelli líder do bloc soviético dirigente, eram apresentados por Estaline como pequenos
desacordos que se poderiam «eliminar» do interior de um partido comum. Esse critério
deu a melhor avaliação das opiniões de então do próprio Estaline.
No 4 de Abril, no Congresso do partido, apareceu Lenine. O seu discurso,
comentando as «teses», passa sobre os trabalhos da Conferência como a esponja
húmida do mestre que apaga o quadro o que escreve o aluno embaraçado.
«Porque não se tomou o poder? Pergunta Lenine.
Na Conferência dos sovietes, Stieklov, um pouco antes, tinha explicado em termos
confusos os motivos evocados para se abster do poder: a revolução burguesa é uma
primeira etapa, - há a guerra, etc.. «São imbecilidades, declarou Lenine. O assunto reside
nisto que o proletariado não é suficientemente consciente nem suficientemente
organizado. É necessário reconhecer. A potência material está nas mãos do proletariado,
mas a burguesia encontrava-se lá, consciente e preparada. É um facto monstruoso, mas
é indispensável reconhecê-lo abertamente e francamente e declarar ao povo que não
tomámos o poder porque não estávamos organizados, nem conscientes.»
O plano da objectividade mentirosa, atrás da qual escondiam-se os cobardes da
política, Lenine transpunha todas as questões sobre o plano subjectivo. O proletariado
não tomou o poder em Fevereiro porque o partido dos bolcheviques não esteve à altura
das tarefas objectivas e não tinha podido impedir os conciliadores de expropriar
politicamente as massas populares em proveito da burguesia.
Na véspera, o advogado Krassikov lançava o desafío: «Se estimamos que o
momento chegou para realizar a ditadura do proletariado, é portanto assim que é
necessários meter a questão. A força física, no sentido da tomada do poder, nós a temos

220
indubitavelmente.» O presidente retirou então a palavra a Krassilov, alegando que se
ocupariam das tarefas práticas e que a questão da ditadura não tinha lugar nesse debate.
Mas Lenine considerando que a única tarefa prática era precisamente a questão de
preparar a ditadura do proletariado. «A particularidade do momento actual na Rússia-
dizia ele nas teses – é marcar uma transição entre a primeira etapa da revolução que deu
o poder à burguesia no seguimento da insuficiência de pensamento consciente e de
organização do proletariado, e a sua segunda etapa que deve trazer o poder às mãos do
proletariado e das camadas mais pobres do campesinato.»
A Conferência, seguindo a Pravda, limitava as tarefas da revolução às reformas
democráticas, realizáveis pela Assembleia constituinte. Em contrapartida, Lenine
declarou: «A vida e a revolução rejeitam a Assembleia constituinte para último lugar. A
ditadura do proletariado existe, mas não sabem o que fazer com isso.»
Os delegados interrogavam-se, se olhando. Eles diziam entre eles que Illitch,
eternizando-se no estrangeiro, não tinha visto as coisas bastante de perto, não as tinha
discernido. Mas o relatório de Estaline sobre uma sábia decisão do trabalho entre o
governo e o Soviete caiu logo e para sempre no insondável passado. O próprio Estaline
calou-se. Doravante ele deveria calar-se por muito tempo. Só Kamenev continuará a
defender-se.
Já, de Genebra, Lenine avisava por carta que ele estava pronto a romper com
qualquer um que aceitasse as concessões sobre as questões da guerra, do chauvinismo
e de uma conciliação com a burguesia. Agora, frente a frente com a camada dirigente do
partido, ele desencadeia o ataque sobre toda a linha. Mas, inicialmente, ele não nomeia
ninguém entre os bolcheviques. Se for necessário um exemplo vivo de falsidade e de
equívoco, ele indica com o dedo os sem partido, Stieklov ou Tchkheidze. É o
procedimento habitual de Lenine: nunca colar ninguém prematuramente à sua posição
para lhe dar a possibilidade aos mais prudentes de se retirarem antes da batalha e,
assim, enfraquecer os futuros adversários declarados. Kamenev e Estaline consideravam
que participando na guerra após a revolução de Fevereiro, o soldado e o operário
defendiam a revolução. Lenine considera que o soldado e o operário, como antes,
participam na guerra como escravos submetidos ao capital. «Mesmo os nossos
bolcheviques – diz ele, restringindo o círculo à volta dos adversários – manifestam
confiança ao governo. Isso só se pode explicar pelo delírio da revolução. É correr para a
perca do socialismo... Se assim é não caminharemos juntamente. Gosto mais ficar em
minoria.» Não é uma simples ameaça do orador. É uma diligência claramente meditada
até às suas consequência.
Sem nomear Kamenev nem Estaline, Lenine é portanto forçado a nomear o jornal:
«A Pravda exige do governo que ele renuncie às anexações, é uma inépcia, uma gritante
derisão...» Uma indignação contida trai-se aqui por uma nota alta. Mas o orador reprende-
se logo: ele quer dizer nada mais do que o mínimo indispensável, nada de mais. De
passagem, deslizando, Lenine dá inigualáveis regras de política revolucionária: «Quando
as massas declaram que elas não querem conquistas, acredito-as. Quando Gotchkov e
Lvov declaram que não querem conquista, eles mentem. Quando o operário diz que quer

221
a defesa do país, o que fala nele, é o instinto do oprimido.» Esse critério, para o designar
pelo seu nome, parece simples como a própria vida. Mas a dificuldade é designá-lo no
proprio tempo pelo seu nome.
A propósito do Manifesto do Soviete «Aos povos do mundo inteiro», que forneceu o
pretexto à Rietch liberal de declarar no seu tempo que o tema do pacifismo se
desenvolvia entre nós numa ideologia comum com a dos nossos aliados, Lenine exprimiu-
se com mais precisão e vivacidade: «O que é particular à Rússia, é uma transição a
passo de gigante de uma opressão selvagem a mais subtil impostura.»
«Este apelo – escrevia Estaline sobre o Manifesto – se ele atinge as largas massas
(do Ocidente), trazer-à sem dúvida centenas e milhares de operários à palavra de ordem
esquecida: «Proletários de todos os países, uni-vos.»
«O apelo do Soviete – respondeu Lenine: não há uma só palavra com sentido da
consciência de classe. Só há lá fraseologia.» O documento do qual estavam muito
orgulhosos os zimmerwaldianos que nunca tinham saído de casa era aos olhos de Lenine
um dos instrumentos da «mais subtil impostura».
Antes da chegada de Lenine, a Pravda não mencionava geralmente a esquerda de
Zimmerwald. Falando da internacional, ela não indicava qual. É o que Lenine chamava o
«kautskysmo» da Pravda. «Em Zimmerwald e Kienthal declara na conferência do partido
– o centro obteve a preponderância... Existe uma corrente da esquerda de Zimmerwald
em todos os países do mundo. As massas devem discernir que o socialismo está dividida
no mundo inteiro...»
Três dias antes, Estaline proclamava-se, nessa mesma conferência, completamente
disposto a eliminar os desacordos com Tseretelli, na base de Zimmerwald-Kienthal, isto é
sobre as bases do kautskysmo. «Soube que na Rússia manifesta-se uma tendência
unificadora – dizia Lenine: unir-se com os partidários da defesa nacional, é trair o
socialismo. Penso que é melhor ficar só como Liebknecht. Só contra cento e dez». A
acusação de trair o socialismo, por enquanto ainda sem designação de pessoas, não é
simplesmente uma palavra dura: ela exprime integralmente a atitude de Lenine em
relação aos bolcheviques que estendem um dedo aos sociais-patriotas. Em oposição a
Estaline, que julga possível fusionar com os mencheviques, Lenine considera intolerável
que se mantenha em comum com eles o nome de social-democracia. «Falando em meu
nome pessoal - declara – proponho mudar a denominação do partido, de nos nomearmos
Partido comunista.» «Em meu nome pessoal», isso significa que ninguém, nem um
membro da Conferência, não consentia a esse gesto simbólico de uma ruptura com a II
internacional.
«Temem trair as vossas lembranças?» Diz o orador aos delegados desconcertados,
embaraçados, parcialmente indignados. Mas chegou o momento «de mudar de linha, é
preciso retirar a camisa suja e meter uma lavada». E insiste de novo: «Não vos agarreis a
uma velha palavra de ordem que está completamente podre. Se vós quereis edificar um
novo partido... todos os oprimidos virão a vós.»

222
Diante da grandiosa tarefa a iniciar, diante dos problemas das ideias nas suas
próprias fileiras, o pensamento do tempo estúpidamente perdido em recepções, em
felicitações, em resoluções rituais arranca ao orador esta queixa: «Basta de felicitações,
de resoluções, é tempo de se meter ao trabalho, de empreender um trabalho eficaz e
reflectido.»
Uma hora depois, Lenine foi obrigado a repetir o seu discurso numa reunião geral,
fixada previamente, dos bolcheviques e dos mencheviques, e o seu arengo pareceu à
maioria dos auditores ser qualquer coisa entre o delírio e a zombaria. Os mais indulgentes
encolhiam os ombros. Este homem tinha evidentemente caído da Lua: após a ausência
de dez anos, apenas desceu os degraus do patamar da gare de Finlandia, eis que prega
a tomada do poder pelo proletariado. Os menos complacentes dos patriotas lembravam o
vagão blindado. Stankenvitch testemunha que o discurso de Lenine contenta muito os
seus adversários: «Um homem que diz tais asneiras não é perigoso. Ainda bem que ele
chegou: agora, só temos que o ver:... agora, é ele próprio que se refuta.»
E portanto, com toda a ousadia da sua empresa revolucionária, inflexivelmente
decidido em romper mesmo com os antigos partidários do seu pensamento e camarada
de combate se eles fossem incapazes de acertar o passo com a revolução, o discurso de
Lenine, cujas partes são equilibradas entre elas, é penetrado de um profundo realismo e
de um infalível sentimento de massa. Mas é precisamente por isso que ele parecia
fantasioso aos democratas que patinavam à superficie.
Os bolchevique são uma pequena minoria nos sovietes, e Lenine medita na tomada
do poder. Não é espírito de aventura? Não há sombra na maneira que Lenine colocava a
questão. Nem um minuto ele fechou os olhos sobre a existência de uma «honesta»
mentalidade de defesa nacional nas largas massas. Sem se absorver por elas, ele não se
dispõe portanto a agir nas suas costas. «Nos não somos charlatães, - dirige-se em
direcção às futuras objecções e acusações, - nós devemos nos basear somente na
consciência da massas. Mesmo se devemos ficar em minoria, é bom. Vale a pena
renunciar por um tempo a uma situação dirigente, não tememos ficar em minoria.» Não
temer ficar em minoria, um só, como Liebknecht contra cento e dez! Tal é o motivo
condutor do discurso.
«O verdadeiro governo é o Soviete dos deputados operários... No Soviete, nosso
partido está em minoria... Nada a fazer! Só nos resta explicar pacientemente,
perseverantemente, sistemáticamente, a aberração da sua táctica. Enquanto estamos em
minoria realizamos um trabalho de crítica para libertar as massas da impostura. Nós não
queremos que as massas nos acreditem cegamente. Não somos charlatães. Nós
queremos que as massas se libertem pela experiência dos seus erros.» Não temer ficar
em minoria, não para sempre, mas temporariamente. A hora do bolchevismo soará.
«Nossa linha mostrar-se-à justa... Todo o oprimido virá connosco porque a guerra o trará.
Não outra saída há para ele.»
«A Conferência de unificação – conta Sokhanov – Lenine mostrou-se como a
incarnação própria da cisão... Lembro-me de Bogdanov (menchevique notável), sentado a
dois passos da tribuna dos oradores. Mas enfim é delirante, - gritou, interrompendo

223
Lenine, - é o delírio de um louco. É vergonhoso aplaudir essa trapalhada – grita ele,
voltando-se para o auditório, vermelho de cólera e de desprezo – você desonra-se?
Marxista?»
Um antigo membro do Comité central bolchevique, Goldenberg, que se mantinha
nessa época fora do partido, apreciou nos debates as teses de Lenine nestes termes
desprezíveis: «Durante muitos anos, o lugar de Bakunine na revolução russa ficou livre:
agora, ela foi tomada por Lenine.»
«O seu programa – contou mais tarde o socialista-revolucionário Zenzinov –
levantou então mais zombaria que indignação, tanto ele parecia a todos estúpido e
quimérico.»
Na noite do mesmo dia, numa conversa entre dois socialistas, e Miliokov,
antecedente à Comissão de contacto, falaram de Lenine. Skobeliev considerou-o como
«um homem absolutamente acabado, situado fora, situado fora do movimento».
Sokhanov deu a seu apoio ao julgamento de Skobelev e acrescentou que Lenine «era até
tal ponto indesejável para todos que nesse momento que era inofensivo para o
interlocutor Miliokov». A distribuição das tarefas, nessa conversa, apareceu todavia tal
como Lenine tinha previsto: os socialistas queriam preservar a tranquilidade do liberal
contra as preocupações que lhe podia dar o bolchevismo.
Mesmo o embaixador da Inglaterra ouvi rumor das histórias segundo as quais Lenine
era reconhecido mau marxista. «Entre os anarquistas recém chegados – notou Buchanan
– se encontrava Lenine, vindo da Alemanha em vagão blindado. Mostrou-se publicamente
pela primeira vez numa reunião do partido social-democrata e foi mal recebido.»
Mais indulgente que os outros para Lenine foi talvez nesses dias Kerensky, o qual
declara inesperadamente, num círculo dos membros do governo provisório, que tinha a
intenção de visitar Lenine, e explicou, em resposta às questões surpreendentes, assim:
«Mas ele vive verdadeiramente numa atmosfera completamente isolada, ele não sabe
nada, ele vê tudo através de lentes deformada pelo seu fanatismo, ele não tem perto dele
ninguém que o ajude um pouco a orientar-se no que se passa.» Tal é o testemunho de
Nabokov. Mas Kerensky mesmo assim não teve um momento livre para orientar Lenine
do que se passava.
As teses de Abril de Lenine não provocaram somente a indignação estupefacta dos
inimigos e adversários. Eles rejeitaram um certo número de velhos bolcheviques no
campo do menchevismo ou no grupo intermediário que se agregava à volta do jornal de
Gorki. Esta evasão não teve importância política séria. Infinitamente mais grave foi a
impressão que produziu a atitude de Lenine sobre toda a camada dirigente do partido».
Nos primeiros dias seguintes à sua chegada, escreve Sokhanov – seu isolamento
completo no meio de todos os camaradas do partido conscientes não faz a menor
dúvida.» «Mesmo os seus camaradas de partido – confirma o socialista-revolucionário
Zenzinov – os bolcheviques pasmados, desviaram-se dele.» Os autores dessas opiniões
encontravam-se todos os dias com os dirigentes bolcheviques, no comité executivo, e
tinham informações de primeira mão.

224
Mas idênticos testemunhos não faltam, mesmo nas fileiras bolcheviques. «Quando
apareceram as teses de Lenine – lembrava mais tarde Tsikhon, atenuando muito as cores
como a maioria dos velhos bolcheviques que tropeçaram na Revolução de Fevereiro –
sentia-se no nosso partido certas oscilações. Vários camaradas indicaram que Lenine
tinha um desvio sindicalista, que se tinha afastado da Rússia, que não considerava o
momento presente, etc..» Um dos militantes bolchevique notáveis na província, Lebediev,
escreveu: «Após a chegada de Lenine à Rússia, a sua agitação – no início não era
completamente compreensível para nós, bolcheviques – que parecia utópico e explicava-
se pelo seu longo afastamento da vida russa, foi pouco a pouco assimilada por nós e
entra por assim dizer no nossa carne e nosso sangue. Zalejsky, membro do Comité de
Petrogrado e um dos organizadores da recepção, exprimiu-se mais claramente: «As teses
de Lenine não encontrou partidário declarado, mesmo nas nossas fileiras.»
Mais importante é todavia o testemunho do Pravda. No dia 8 de Abril, quatro dias
após a publicação das teses, quando se podia já explicar e compreender entre si de uma
maneira suficiente, a redacção da Pravda escrevia: «No que diz respeito ao esquema
geral do camarada Lenine, parece-nos inaceitável na medida onde ele apresenta como
acabada a revolução democrática burguesa e conta sobre a transformação imediata desta
revolução em revolução socialista.» O órgão central do partido declarava assim,
abertamente, diante da classe operária e dos seus inimigos, seu desacordo com o líder
unanimemente reconhecido sobre a questão crucial da revolução a qual os quadros
bolcheviques se tinham preparado durante longos anos. Esta divergência foi suficiente
para apreciar toda a profundidade da crise do partido em Abril proveniente de um conflito
entre duas linhas inconciliáveis. Se esta crise não fosse ultrapassada, a revolução não
podia fazer um passo em frente.

225
O rearmamento do partido
Como se explica o isolamento excepcional de Lenine no início de Abril? Como se
pôde criar tal situação? E como foi obtido o rearmamento dos quadros bolcheviques?
Desde 1905, o partido bolchevique travava a luta contra a autocracia sob a palavra
de ordem de uma «ditadura democrática do proletariado e dos camponeses». Essa
palavra de ordem, assim que a sua argumentação teórica, provinha de Lenine. Ao avesso
dos mencheviques, cujo teórico, Plekhanov, combatia irredutivelmente «a ideia falsa da
possibilidade de realizar uma revolução socialista sem a burguesia» - Lenine considerava
que a burguesia russa era incapaz de dirigir a sua própria revolução. Para realizar a
revolução democrática contra a monarquia e os proprietários de terras, só o podia fazer o
proletariado e o campesinato estreitamente unidos. A vitória desta união devia, segundo
Lenine estabelecer uma ditadura democrática, que não somente se identificava a ela,
mas, pelo contrário, opunha-se-lhe, porque se atribuía a tarefa não para estabelecer uma
sociedade socialista, nem mesmo criar formas transitórias a caminho dessa sociedade,
mas somente limpar sem cuidados os estábulos de Aúgias da Idade Média.
O começo da luta revolucionária era completamente determinado por três palavras
de ordem – república democrática, confiscação das terras dos proprietários nobres, dia de
trabalho de oito horas – o que se chamava familiarmente as «três baleias» do
bolchevismo, em alusão às baleias sobre as quais, segundo uma velha crença popular,
repousa o globo terrestre.
A questão de saber se a ditadura democrática do proletariado e dos camponeses era
realizável resolvia-se em função de outra questão, a da capacidade do campesinato em
cumprir a sua própria revolução, isto é constituir um novo poder apto a liquidar a
monarquia e a propriedade latifundiária dos nobres. É verdade que a palavra de ordem da
ditadura democrática supunha também a participação no governo revolucionário dos
representantes operários. Mas esta participação era antecipadamente limitada pelo papel
do proletariado, como aliado de esquerda, na solução dos problemas da revolução
camponesa.
A ideia popular e mesmo oficialmente reconhecida da hegemonia do proletariado na
revolução democrática, não podia, em consequência, significar outra coisa senão que o
partido operário ajudaria os camponeses com as armas políticas dos seus próprios
arsenais, sugerindo-lhes os melhores procedimentos e métodos de liquidação da
sociedade feudal e mostrar-lhes-ia como aplicar esses meios. De qualquer modo, o que
se dizia do papel dirigente do proletariado na revolução burguesa não significava de forma
alguma que o proletariado utilizaria a insurreição camponesa para actualizar, ao se apoiar
sobre ela, as suas próprias tarefas históricas, isto é, a passagem directa a uma sociedade
socialista. A hegemonia do proletariado na revolução democrática distinguia-se
nitidamente da ditadura do proletariado e opunha-se a ela nas suas polémicas. Sobre
estas ideias que o partido bolchevique se tinha educado desde da Primavera de 1905.

226
A caminhada efectiva da Revolução de Fevereiro ultrapassou o esquema habitual do
bolchevismo. A revolução era, na verdade, realizada por uma aliança dos operários e dos
camponeses. O facto que os camponeses agiam principalmente sob o aspecto de
soldados não mudava ao assunto. A conduta do exército camponês do czarismo teria tido
uma importância decisiva mesmo se a revolução tivesse acontecido em tempo de paz.
Tanto mais natural que, nas condições da guerra, um exército de vários milhões de
homens tenha, nos primeiros tempos, escondido o campesinato. Após a vitória da
insurreição, os operários e os soldados encontraram-se mestres da situação. Nesse
sentido, poder-se-ia dizer, parece, que uma ditadura democrática dos operários e
camponeses se tinha estabelecido.
Portanto, na realidade, a Revolução de Fevereiro tinha trazido um governo burguês,
no qual o poder das classes possuidoras era limitado por um poder dos sovietes de
operários e de camponeses não realizado até ao fim. Todas as cartas encontraram-se
embaralhadas. No lugar de uma ditadura revolucionária, isto é da autoridade mais
concentrada, estabeleceu-se o regime de uma frouxa dualidade de poderes, onde a fraca
energia dos círculos governantes se despendia infrutuosamente a ultrapassar as
contrariedades interiores. Ninguém não tinha previsto esse regime. Além disso, não se
pode exigir que um prognóstico indique não somente as tendências essenciais de um
desenvolvimento, mas também as suas combinações episódicas. «Quem pôde fazer uma
grande revolução sabendo previamente como a fazer até ao fim? - perguntava Lenine.
Onde se poderia tomar tal ciência? Não se aprende nos livros. Não há livros para isso. É
precisamente da experiência das massas que pôde nascer a nossa decisão.»
Mas o pensamento humano é conservador, e a dos revolucionários, por vezes, mais
particularmente. Os quadros bolcheviques na Rússia continuavam a manter o velho
esquema e não consideravam a Revolução de Fevereiro – ainda se ele comportava
evidentemente nele dois regimes incompatíveis – que como uma primeira etapa de uma
revolução burguesa. No fim de Março, Rykov enviou da Sibéria à Pravda, em nome dos
sociais-democratas, um telegrama de felicitações sobre a vitória da «revolução nacional»
cuja tarefa era «a conquista da liberdade política». Todos os bolcheviques dirigentes, sem
nenhuma excepção – nós não conhecemos alguma – consideravam que a ditadura
democrática estava ainda no futuro. Quando o governo provisório da burguesia «se
esgotará», uma ditadura democrática dos operários e dos camponeses se estabelecerá,
preliminar a um regime parlamentar burguês.
Era uma perspectiva completamente errada. O regime saído da Revolução de
Fevereiro, longe de preparar uma ditadura democrática, foi a demonstração viva e integral
da impossibilidade desta ditadura em geral. Que a democracia conciliadora, não por
acaso, não pela leviandade de Kerensky e a inteligência limitada de Tchkheidze, tenha
transmitido o poder aos liberais, ela demonstrou por esse facto que, nos oito meses que
seguiram, ela lutou com todas as suas forças para manter o governo burguês, esmagar os
operários, os camponeses, os soldados. E caiu, no 25 de Outubro, no seu posto de aliado
e de advogado da burguesia. Mas, mesmo desde do princípio, era claro que se a
democracia, tendo diante dela tarefas gigantescas e o apoio ilimitado das massas, tinha
renunciado de sua própria vontade ao poder, isso era provocado não por princípios ou

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preconceitos políticos, mas pela situação desesperada da pequena burguesia na
sociedade capitalista, particularmente em período de guerra e de revolução, quando se
decidem as questões fundamentais da existência dos países, dos povos e das classes. Ao
remeter o ceptro à Miliukov, a pequena burguesia dizia: não, essas tarefas estão acima
das minhas forças.
O campesinato tendo erigido sobre ela própria a democracia conciliadora, contem,
numa forma primitiva, toda as classes de uma sociedade burguesa. Com a pequena
burguesia urbana que, na Rússia, não desempenha portanto nunca um papel sério, o
campesinato é o protoplasma onde novas classes se diferenciaram no passado, e
continuam a se diferenciar no presente. O campesinato tem sempre duas caras: uma
virada para o proletariado, a outra para a burguesia. A posição intermediária, mediadora,
conciliadora dos partidos «camponeses», do género do partido socialista-revolucionário,
não pode manter-se senão nas condições de um relativo marasmo político; numa época
revolucionária, o momento acontece inevitavelmente onde a pequena burguesia é
obrigada a escolher. Os socialistas-revolucionários e os mencheviques fixam a sua
escolha desde da primeira hora. Eles liquidaram no ovo a «ditadura democrática» para a
impedir de se tornar um ponto de passagem para a ditadura do proletariado. Mas mesmo
por aí, eles abriram caminho a esta última, somente do outro lado: não através deles, mas
contra eles.
O desenvolvimento ulterior da revolução não podia proceder, evidentemente, senão
a partir de factos novos e não de velhos esquemas. Pelos seus representantes, as
massas, meio contra vontade, meio inconscientemente, foram arrastadas no mecanismo
do duplo poder. Elas tiveram desde então que passar por aí para constatar por
experiência que esse mecanismo não podia dar-lhe nem paz, nem a terra. Afastar o
regime do duplo poder significa doravante, para as massas, romper com os socialistas-
revolucionários e os mencheviques. Mas é absolutamente evidente que a conversação
política dos operários e dos soldados para o bolchevismo, derrubando todo o edifício do
duplo poder, já não podia significar nada senão o estabelecimento de uma ditadura do
proletariado, apoiada na aliança dos operários e camponeses. No caso de uma derrota
das massas populares, sobre as ruínas do partido bolchevique não podia estabelecer-se
senão uma ditadura do capital. A «ditadura democrática» nos dois casos era excluída. Ao
dirigir a sua atenção para ela, os bolcheviques voltavam-se de facto para um fantasma do
passado. É sob este aspecto que os encontrou Lenine, chegado com a inflexível intenção
de meter um partido numa nova via.
O próprio Lenine, na verdade, não tinha substituído a formula da ditadura
democrática por outra, mesmo condicionalmente, mesmo hipotéticamente, até ao início da
Revolução de Fevereiro. Era justo? Pensamos que não. O que se passou no partido após
a insurreição mostrava de maneira demasiado ameaçadora o atraso do rearmamento
teórico que, aliás, nas condições dadas, só Lenine podia operar. Ele preparou-se para
isso. Ele levou ao rubro o aço e temperou no fogo da guerra. Aos seus olhos tinha-se
modificado a perspectiva geral do processo histórico. As perturbações da guerra tinham
bruscamente aproximado os prazos possíveis de uma revolução socialista no Ocidente.
Aliás, para Lenine, a revolução russa, ainda democrática, devia dar um impulso à

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insurreição socialista na Europa, que, seguidamente, devia arrastar também a Rússia
atrasada nesse turbilhão. Tal era a concepção geral de Lenine quando deixou Zurique. A
carta ao operários suíços, que já citámos, diz isto:
«A Rússia é um país de camponeses, um dos países mais atrasados da Europa. O
socialismo aí não pode sair directamente e imediatamente vencedor. Mas o carácter rural
do país, onde se conservaram enormes edifícios de proprietários nobres, pode, na base
da experiência de 1905, contribuir para o desenvolvimento da revolução democrático-
burguesa na Rússia e fazer da nossa revolução o prólogo de uma revolução socialista
mundial, um degrau de acesso a esta.»
Nesse sentido, Lenine escrevia então pela primeira vez que o proletariado russo
começaria a revolução socialista.
Tal era o ponto de junção entre a antiga posição do bolchevismo que limitava a
revolução aos objectivos democráticos, e a nova posição que Lenine expôs pela primeira
vez diante do partido nas suas teses de 4 de Abril. A perspectiva da passagem imediata à
ditadura do proletariado parecia absolutamente inesperada, contrária à tradição, e, enfim,
simplesmente falando, não entrava nos cerebros. Aqui, é indispensável lembrar que, até à
explosão da Revolução de Fevereiro e nos primeiros tempos depois dela, o que se
chamava trotskismo não era a ideia que, nas fronteiras nacionais da Rússia, não se pôde
erguer uma sociedade socialista (ideia de tal «possibilidade» não foi exprimida por
ninguém até 1924, e é duvidoso que ela tenha vindo ao espírito de alguém – o que se
chamava trotskismo, era esta ideia que o proletariado da Rússia pode se encontrar no
poder mais cedo que o do Ocidente, e que nesse caso ele não poderia manter-se no
quadro da ditadura democrática, mas devia se atacar às primeiras medidas socialista.
Não é de admirar que as teses de Abril de Lenine tenham sido reprovadas como sendo
trotskistas.
Os objecções dos «velhos bolcheviques» desenvolviam-se em várias linhas. O
debate principal consistia em saber se a revolução democrática burguesa estava
completamente terminada. Dado que a revolução agrária não tinha ainda sido realizada,
os adversários de Lenine podiam afirmar com razão que a revolução democrática não
tinha sido levada até ao fim e, seguidamente, concluíam, não há lugar para uma ditadura
do proletariado, mesmo se as condições sociais da Rússia permitiam em geral essa
ditadura num período mais ou menos próximo. Foi assim que a redacção da Pravda
colocava a questão numa passagem que nós citámos. Mais tarde, na Conferência de
Abril, Kamenev repetia:
«Lenine está errado quando diz que a revolução democrática-burguesa está
terminada… Sobrevivência clássica do feudalismo - a propriedade latifundiária dos nobres
– ainda não está liquidada… O Estado não se transformou em sociedade democrática…
É muito cedo para dizer que a democracia burguesa esgotou todas as suas
possibilidades.»

229
«A ditadura democrática – respondia Tomsky – eis a nossa base… Nós devemos
organizar o poder do proletariado e do campesinato e devemos separar a Comuna, dado
que lá não existe senão o poder do proletariado.»
«Diante de nós colocam-se imensas tarefas revolucionárias retomava Rykov. Mas a
realização dessas tarefas não nos conduz ainda para além dos quadros do regime
burguês»
Lenine via, certamente, tão bem como os seus detractores, que a revolução
democrática não estava terminada, ou, mais exactamente, que apenas iniciada ela
recuava já na traseira. Mas daí precisamente resultava que não seria possível levá-la até
ao fim sob o domínio de uma nova classe e não se podia chegar lá senão em arrancando
as massas à influência dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários, isto é à
influência indirecta da burguesia liberal. A ligação desses partidos com os operários e
particularmente com os soldados alimentava-se da ideia de defesa - «defesa do país» ou
melhor «defesa da revolução». Lenine exigia, por consequência, uma política
intransigente em relação de todas as nuanças do social-patriotismo. Afastar o partido das
massas atrasadas para seguidamente libertar essas massas do seu estado atrasado.
«O velho bolchevismo deve ser abandonado – repetia ele. É indispensável separar a
linha pequena-burguesa da do proletariado assalariado.»
Do ponto de vista superficial, poderia parecer que os adversários perpétuos tinham
mudado as suas armas. Os mencheviques e os socialistas-revolucionários representavam
agora a maioria dos operários e dos soldados, como se eles realizavam de facto a aliança
política do proletariado e do campesinato que tinham sempre pregado os bolcheviques
contra os mencheviques. Ora, Lenine exigia que a vanguarda proletária saísse dessa
aliança. Na realidade, cada um dos partidos continuava fiel a ele próprio. Os
mencheviques, como sempre, julgavam que a sua missão era de apoiar a burguesia
liberal. Sua aliança com os socialistas-revolucionários era somente um meio de alargar e
de consolidar esse apoio. Em contrapartida, a ruptura da vanguarda proletária com o
bloco pequeno-burguês significava a preparação de uma aliança dos operários e dos
camponeses sob a direcção do partido bolchevique, isto é a ditadura do proletariado.
Objecções de outro tipo estavam baseadas sobre o estado atrasado da Rússia. O
poder da classe operária significa inevitavelmente a passagem para o socialismo. Mas a
economia e a cultura da Rússia não estão maduras para isso. Nós devemos levar até ao
fim a revolução democrática. Só a revolução socialista no Ocidente pode justificar entre
nós a ditadura do proletariado. Tais eram as objecções de Rykov na conferência de Abril.
As condições culturais e económicas da Rússia eram em si insuficientes para a edificação
de uma sociedade socialista - era para Lenine o ABC. Mas a sociedade não está de forma
nenhuma estruturada tão racionalmente que os prazos para uma ditadura do proletariado
caiam no momento onde as condições económicas e culturais amadureçam para o
socialismo. Se a humanidade se desenvolvesse tão regularmente, não seria necessário
ditadura, nem tão pouco revoluções em geral. Uma sociedade histórica viva é pouco
harmoniosa, tanto mais que o seu desenvolvimento é mais tardio. A expressão da
inarmonia encontra-se no facto que, num país atrasado como a Rússia, a burguesia

230
decompôs-se antes da vitória completa do regime burguês e que, para a substituir, na
qualidade de dirigente da nação, só havia o proletariado. O estado económico atrasado
da Rússia não dispensa a classe operária da obrigação de concretizar a tarefa que ela
própria se impôs, mas condiciona somente esta realização por dificuldades extremas.
Rykov, que repetia que o socialismo deve vir de países onde a indústria está mais
desenvolvida, Lenine dava uma resposta simples, mas suficiente:
«Não se pode dizer quem começará ou, nem quem acabará.»
Em 1921, quando o partido, ainda longe de se anquilosar burocraticamente, metia
tanta liberdade a apreciar o seu passado como a preparar o seu futuro, um dos mais
antigos bolcheviques, Olminsky, que tinha colaborado como dirigente na imprensa do
partido em todas as etapas do seu desenvolvimento, questionava-se como explicar que
no momento da Revolução de Fevereiro, o partido encontrou-se numa via oportunista. E o
que permitiu ao partido bifurcar bruscamente para o caminho de Outubro? A fonte dos
erros de Março aparece ao dito autor, justamente, no facto que o partido tinha
«exageradamente prologando» a sua orientação a caminho de uma ditadura democrática.
«A revolução que se anuncia não pode ser uma revolução burguesa … Era, disse
Olminsky – um julgamento obrigatório para todo o membro do partido, era a opinião oficial
do partido, sua palavra de ordem constante e invariável, até à Revolução de Fevereiro de
1917 e mesmo algum tempo depois.»
Para ilustrar a afirmação, Olminsky teria podido mencionar que a Pravda, ainda
antes de Estaline e Kamenev, isto é com uma redacção «de esquerda» que incluía o
próprio Olminsky, escrevia (7 de Março) como qualquer coisa evidente:
«Bem entendido, entre nós não se põe ainda a questão da queda da dominação do
capital, trata-se somente da queda da autocracia e do feudalismo… »
A falta de visão se deve que em Março o partido estava preso à democracia
burguesa. «Donde veio então a Revolução de Outubro? - pergunta mais longe o mesmo
autor. Porquê o partido, desde dos seus dirigentes até aos militantes de base, «tão
repentinamente» tenha renunciado ao que que ele considerava como uma verdade
inabalável durante quase vinte anos?
Sokhanov, como adversário, colocou a mesma questão de outra maneira.
«Como e por quais meios Lenine se desenvencilhou para ganhar aos
bolcheviques?»
Efectivamente, a vitória de Lenine no interior do partido não só foi integral, mas
alcançada num breve prazo. Os adversários dispensaram bastante ironia sobre a
questão, falando do regime pessoal do partido bolchevique. À questão posta por ele, o
próprio Sokhanov deu uma resposta completamente no espírito do seu heróico princípio:
«O genial Lenine era uma autoridade histórica – é um lado do assunto. Por outro
lado, à excepção de Lenine, não havia, no partido, ninguém nem nada. Alguns grandes

231
generais, sem Lenine, não são nada, tal como alguns enormes planetas sem o sol (deixo
de lado Trotsky, que estava nessa altura ainda fora das fileiras da Ordem).»
Essas linhas curiosas tentam explicar a influência de Lenine pela sua influência, tal
que o poder que tem o ópio em dar sono explica-se pelas suas faculdades em adormecer.
Tal explicação, todavia, não nos leva muito longe.
A influência efectiva de Lenine no partido era indubitavelmente muito grande, mas
não era de forma nenhuma ilimitada. Ela não era irrevogável mesmo mais tarde, depois
de Outubro, quando a autoridade de Lenine aumentou extraordinariamente, porque o
partido tinha medido a sua força à luz dos acontecimentos mundiais. Tanto mais
insuficientes são as alegações gratuitas sobre a autoridade pessoal de Lenine, referindo-
se a Abril 1917, quando toda a camada dirigente do partido já tinha chegado a ocupar
uma posição contrária à de Lenine.
Olminsky aproxima-se muito mais da solução do problema quando ele demonstra
que, apesar da sua formula de revolução democrática-burguesa, o partido, por toda a sua
política contra a burguesia e a democracia, preparava-se efectivamente há já muito tempo
a tomar o poder.
«Nós (ou muitos de nós) diz Olminsky – orientámo-nos inconscientemente para a
revolução proletária, acreditando dirigir-nos para a revolução democrática-burguesa.
Noutros termos, preparamos a Revolução de Outubro imaginando que preparamos a de
Fevereiro.»
Generalização altamente preciosa, que é ao mesmo tempo a confissão
irrepreensível de uma testemunha. A educação teórica do partido revolucionário tinha um
elemento de contradição que encontrava a sua expressão na formula equivoca da
«ditadura democrática» do proletariado e a do campesinato. Uma delegada que tomou a
palavra na Conferência sobre o relatório de Lenine, exprimiu o pensamento de Olminsky
ainda mais simplesmente:
«O prognóstico estabelecido pelos bolcheviques mostrou-se errado, mas a táctica
era justa.»
Nas teses de Abril que pareciam paradoxais, Lenine apoiava-se, contra a velha
formula, sobre a tradição viva do partido; irreconciliável em relação às classes dirigentes,
hostil a todas as hesitações, enquanto que os «velhos bolcheviques» opunham
recordações – ainda se frescas, mas já arquivadas – ao desenvolvimento concreto da luta
de classes. Lenine tinha um apoio sólido, preparado para toda a história da luta entre
bolcheviques e mencheviques.
Convém lembra aqui que o programa oficial da social democracia continuava ainda,
nessa época, comum aos bolcheviques e aos mencheviques, e que as tarefas práticas da
revolução democrática apresentava-se no papel idênticas para os dois partidos. Mas elas
não eram de forma nenhuma as mesmas nos factos. Os operários bolcheviques, logo
após a insurreição, tinham tomado por iniciativa sua a luta pelo dia de oito horas; os
mencheviques declaravam prematura esta reivindicação. Os bolcheviques dirigiam as

232
detenções dos funcionários czaristas, os mencheviques opunham-se aos «excessos». Os
bolcheviques energicamente criaram uma milícia armada, os mencheviques encravavam
o armamento dos operários, desejando manter-se em paz com a burguesia. Sem
ultrapassar ainda o limite da democracia burguesa, os bolcheviques agiam ou
esforçavam-se em agir com intransigência revolucionária, ainda se distraídos pela sua
direcção; em contrapartida os mencheviques, a cada passo, sacrificavam o programa
democrático aos interesses de uma aliança com os liberais. Faltando-lhes completamente
aliados democratas, Kerensky e Estaline não tinham inevitavelmente mais chão debaixo
dos pés.
O conflito de Lenine, em Abril, com o estado-maior general do partido não foi o
único. Em toda a história do bolchevismo, excepção feita de alguns episódios que, em
suma, confirmam somente a regra, todos os líderes do partido, em todos os momentos
principais do desenvolvimento, encontraram-se à direita de Lenine. Fortuitamente? Não!
Lenine tornou-se o chefe incontestável do partido o mais revolucionário na história
mundial, precisamente porque o seu pensamento e a sua vontade estiveram finalmente à
altura das grandes possibilidades revolucionárias do país e da época. Aos outros faltava-
lhes alguns centímetros, o dobro, e muitas vezes mais.
Quase toda a camada dirigente do partido bolchevique, durante meses e mesmo os
anos que tinham precedido a insurreição, tinha-se encontrado fora do trabalho activo.
Muitos tinham levado com eles nas prisões e a deportação as impressões pesadas dos
primeiros meses da guerra e tinham ressentido o desmoronar da Internacional no
isolamento e em pequenos grupos. Se, nas fileiras do partido, eles manifestavam uma
receptividade suficiente em relação às ideias da revolução – o que os ligava ao
bolchevismo – uma vez isolados, eles não estavam mais em condições de resistir à
pressão do meio ambiente e de dar por eles próprios uma avaliação marxista dos
acontecimentos. Os formidáveis movimentos que se produziram nas massas em dois
anos e meio de guerra tinham ficado quase fora do seu campo de observação. Ora, a
insurreição não os arrancou somente ao seu isolamento, mas colocou-os, por causa da
autoridade adquirida, nos postos supremos do partido. Pela sua mentalidade, esses
elementos encontravam-se frequentemente mais próximos da intelliguentsia «de
Zimmerwald» que dos operários revolucionários das fábricas.
Os «velhos bolcheviques», que sublinharam com enfase, em Abril de 1917, a sua
qualidade de antigos militantes, estavam condenados à derrota, porque defendiam
justamente esse elemento da tradição do partido que não tinha resistido à verificação da
história. «Eu pertenço aos velhos bolcheviques-leninistas – dizia, por exemplo, Kalinine na
conferência de Petrogrado de 14 de Abril – e considero que o velho leninismo não se
mostrou inaplicável para o singular momento actual, e admiro-me que Lenine declare que
os velhos bolcheviques estorvam no presente momento.» Lenine ouviu, nesses dias,
bastantes recriminações assim. Todavia, ao romper com a formula tradicional do partido, o
próprio Lenine não deixava de ser «leninista»: rejeitava a casca gasta do bolchevismo
para apelar o seu núcleo a uma vida nova.

233
Contra os velhos bolcheviques, Lenine encontrou apoio numa outra camada do
partido, já temperada, mas mais fresca e mais ligada às massas. Na insurreição de
Fevereiro, os operários bolcheviques como sabemos, tiveram um papel decisivo. Eles
consideravam que era evidente que o poder fosse tomado pela classe que tinha saído
vitoriosa. Esses mesmos operários protestavam veementemente contra a orientação
Kamenev—Estaline, e o núcleo de Vyborg ameaçou mesmo expulsar os «líderes» do
partido. Observava-se a mesma coisa na província. Havia quase por todo o lado
bolcheviques de esquerda que acusavam de maximalismo, ou mesmo de anarquismo. O
que faltou aos operários revolucionários, era só os recursos teóricos para defender suas
posições. Mas eles estavam prontos a responder à primeira chamada inteligível.
Para esta camada de operários que se tinham definitivamente erguido durante o
ascenso dos anos 1912-1914, orientava-se Lenine. Já, no início da guerra, quando o
governo tinha dado um rude golpe ao esmagar a fracção bolchevique na Duma, Lenine,
falando do trabalho revolucionário ulterior, chamava os que o partido tinha educado
«milhares de operários conscientes entre os quais, apesar das dificuldades, se recrutará
um novo quadro de dirigentes». Separado deles por duas frentes, quase sem ligação,
Lenine, todavia nunca se desligou deles. «Que eles sejam mesmo cinco e dez vezes mais
quebrados pela guerra, a prisão, a Sibéria, o degredo! Não se pode destruir essa camada.
Ela está viva. Ela está impregnada do espírito revolucionário e de anti-chauvinismo.»
Lenine compartilhava à distância os acontecimentos conjuntamente com esses operários
bolcheviques, encontrava com eles as deduções indispensáveis, mas mais largamente e
ousadamente que eles. Para combater a irresolução do estado-maior e a oficialidade do
partido, Lenine apoiou-se com certeza sobre os subalternos desse mesmo partido que
melhor representava o operário bolchevique de base.
A força temporária dos sociais-patriotas e a fraqueza dissimulada da ala oportunista
dos bolcheviques residia nisto que os primeiros apoiavam-se nos preconceitos e ilusões
actuais das massas, enquanto que os segundos acomodavam-se a isso. A principal força
de Lenine consistia que ele compreendia a lógica interna do movimento e regulava por ela
a sua política. Ele não impunha o seu plano às massas. Ele ajudava as massas a
conceber e a realizar os seus próprios planos. Quando Lenine trazia todos os problemas
da revolução a um só - «explicar pacientemente» - isso significava levar à consciência das
massas de acordo com a situação à qual elas foram levadas pelo processo histórico. O
operário ou o soldado, ao se desilusionando da política dos conciliadores, devia passar
para a posição de Lenine sem se demorar na etapa intermediária de Kamenev—Estaline.
Quando as formulas de Lenine foram dadas, elas iluminaram com uma nova luz,
diante dos bolcheviques, a experiência do mês decorrido e a experiência de cada novo
dia. Na larga massa do partido começou uma rápida diferenciação: à esquerda! à
esquerda! Para as teses de Lenine.
«Os distritos, uns após outros – diz Zalejsky – aderiram, e para a conferência pan-
russa do partido que se reuniu no 24 de Abril, a organização petersburguesa completa
pronunciou-se pelas teses.»

234
A luta pela reorientação política dos quadros bolcheviques, começou na noite do 3
de Abril, terminou em suma no fim do mês. ii
A conferência do partido, que teve lugar em Petrogrado do 24 ao 29 de Abril,
chegava às conclusões de Março, mês de hesitações oportunistas, e Abril, mês de crise
aguda. O partido, nessa época, tinha crescido consideravelmente tanto em quantidade
como em valor político. Cento e quarenta e nove delegados representavam setenta e
nove mil membros do partido, cujos quinze mil em Petrogrado. Para um partido ontem
ainda ilegal e hoje antipatriota, era um número imponente, e Lenine repetiu-o várias vezes
com satisfação. A fisionomia política da conferência esboçou-se desde da eleição dos
cinco membros do secretariado: não se encontraram aí nem Kamenev nem Estaline,
principais causadores dos equívocos de Abril.
Ainda se, para o conjunto do partido, as questões litigiosas estivessem resolvidas
definitivamente, o número de dirigentes, ligados pela sua acção da véspera, continuavam
ainda nesta conferência, e oposição ou meia oposição em relação a Lenine. Estaline
reservava-se em silêncio, ficava na expectativa. Dzerjinski, em nome «de um grande
número», que «não estão de acordo em princípio com as teses do relator», pedia que se
ouvisse um relatório conjunto de «camaradas que viveram connosco a revolução
praticamente». Era uma evidente alusão à proveniência da emigração das teses de
Lenine. Kamenev, efectivamente, apresentou à conferência um relatório conjunto
preconizando a ditadura democrática-burguesa. Rykov, Tomsky, Kalinine tentaram
manter-se mais ou menos nas suas posições de Março. Kalinine continuava a apostar
pela união com os mencheviques, no interesse da luta contra o liberalismo. Um destacado
militante de Moscovo, Smidovitch, queixava-se no seu discurso:
«Em todo o lado onde nós nos apresentamos, dirigem contra nós um espantalho, as
teses do camarada Lenine.»
Antes, enquanto que os moscovitas votavam as resoluções dos mencheviques,
tinham uma existência mais tranquila.
Como discípulo de Rosa Luxemburgo, Dzerjinski pronunciou-se contra o direito das
nações a dispor delas próprias, acusando Lenine de proteger as tendências separatistas
que enfraqueciam o proletariado russo. Como ele tinha sido acusado, em resposta, de
apoiar o chauvinismo grão-russo, Dzerjinski respondeu:
«Posso censurá-lo (a Lenine) de manter o ponto de vista dos chauvinistas polacos,
ucranianos e outros.»
Esse diálogo, do ponto de vista político, não deixa de ter piada: o grão-russo Lenine
acusa o polaco Dzerjinski de chauvinismo grão-russo dirigido contra os polacos, e é
acusado por este último de chauvinismo polaco. A ideia política justa era ainda, nesse
debate, inteiramente do lado de Lenine. A sua política das nacionalidades tornou-se um
dos elementos dos mais essenciais da Revolução de Outubro.
A oposição extingui-se completamente. Sobre as questões litigiosas, ela reunia mais
de sete votos. Houve portanto uma excepção curiosa e notável no que diz respeito às

235
relações internacionais do partido. Completamente no fim dos trabalhos, na noite da
sessão de 29 de Abril, Zinoviev entregou, em nome da Comissão, um projecto de
resolução: «Tomará parte na conferência internacional dos zimmerwaldianos marcada
para 18 de Maio» (em Estocolmo). O processo verbal diz isto: «adoptado à unanimidade
menos um voto». Este único voto era o de Lenine. Ele exigia a ruptura com Zimmerwald,
onde a maioria afirmou-se definitivamente como a dos independentes alemãs e de
pacifistas neutros do género do suíço Grimm. Mas, para os quadros russos do partido,
Zimmerwald, durante a guerra, identificava-se quase ao bolchevismo. Os delegados não
concordavam ainda romper com Zimmerwald, que aliás continuava, a seus olhos, a
manter um laço com as massas da IIª Internacional. Lenine tentou limitar, pelo menos, a
participação na futura conferência ao fixar somente os objectivos de informação. Zinoviev
pronunciou-se contra ele. A proposição de Lenine não foi adoptada. Então ele votou
contra a o conjunto da resolução. Ninguém o apoiou. Foi a última ressaca dos
sentimentos de «Março», agarravam-se às posições da véspera, temiam ficar «isolados».
Todavia, a conferência não teve lugar em razão desses mesmos conflitos íntimos de
Zimmerwald que tinham levado Lenine a romper com este. A política de boicote, afastada
unanimemente menos um voto, realizou-se assim de facto.
O carácter brusco da conversão operada na política do partido era evidente para
todos. Schmidt, operário bolchevique, futuro comissário do povo do Trabalho, dizia na
conferência de Abril:
«Lenine deu uma nova orientação ao carácter da actividade do partido.»
Segundo a expressão de Raskolnikov, que escreveu, alguns anos mais tarde,
Lenine, em Abril 1917,
«realizou a Revolução de Outubro na consciência dos dirigentes do partido… A
táctica do nosso partido não se esboçou por uma simples linha direita; após a chegada de
Lenine, ela marca um brusco zigzag para a esquerda».
Mais directamente e também mais exactamente, a mudança surgida foi apreciada
por uma velha bolchevique, Ludmila Stahl:
«Todos os camaradas, até à chegada de Lenine, vagabundeavam pelas trevas –
dizia ela em 14 de Abril, na conferência petersburguesa. Só havia as formulas de 1905.
vendo o povo criar espontaneamente, nós não podíamos dar-lhe lições… Os nossos
camaradas tiveram que se limitar à preparação da Assembleia constituinte pelo
procedimento parlamentar e não contavam de forma nenhuma avançar. Tendo adoptado
as palavras de ordem de Lenine, fazemos o que a própria vida nos sugere. Não tememos
a Comuna pois, apesar de tudo, é já um governo operário. A Comuna de Paris não era
somente operária, ela era igualmente pequeno burguesa.»
Podemos concordar com Sokhanov, a reorientação do partido
«foi a principal e a vitória essencial de Lenine, terminada nos primeiros dias de
Maio».

236
Na verdade, Sokhanov considerava que Lenine tinha substituido, no decurso desta
operação, a arma do marxismo pela do anarquismo.
Fica por perguntar, e a questão tem a sua importância, ainda se é mais fácil de a
colocar do que responder: como teria seguido o desenvolvimento da revolução se Lenine
não pudesse ter chegado à Rússia em Abril de 1917? Se a nossa exposição mostra e
demonstra em geral alguma coisa, é, esperemos, que Lenine não foi o demiurgo do
processo revolucionário, que se inseriu somente na cadeia de forças históricas objectiva.
Mas, nessa cadeia, ele foi um grande elo. A ditadura do proletariado decorria de toda a
situação. Mais ainda era necessário erguê-la. Não se podia instaurá-la sem um partido.
Ora, o partido não podia realizar a sua missão senão a ter compreendido. Para isso
justamente, Lenine era indispensável. Até à sua chegada, nem um dos líderes
bolcheviques não soube estabelecer o diagnóstico da Revolução. A direcção Kamenev—
Estaline era empurrada, pela marcha das coisas, para a direita, para os sociais-patriotas:
entre Lenine e o menchevismo, a revolução não deixou lugar para posições
intermediárias. Uma luta interna no partido bolchevique era absolutamente inevitável.
A chegada de Lenine acelerou somente o processo. Sua influência pessoal abreviou
a crise. Pode-se, todavia, dizer com certeza que o partido, mesmo sem ele, teria
encontrado o seu caminho? Não ousaríamos afirmá-lo em qualquer caso. O tempo é aqui
o factor decisivo, e, após o golpe, é difícil de consultar o relógio da história. O
materialismo dialéctico não tem, de qualquer modo, nada em comum com o fatalismo. A
crise que devia inevitavelmente provocar a direcção oportunista teria tomado, sem Lenine,
um carácter excepcionalmente agudo e prologando. Ora, as condições da guerra e da
revolução não deixavam ao partido um grande prazo para cumprir a sua missão. Assim,
não é de forma nenhuma admissível pensar que o partido desorientado e dividido
pudesse deixar escapar a situação revolucionária por numerosos anos. O papel da
individualidade manifesta-se-nos aqui em proporções verdadeiramente gigantescas. É
preciso somente compreender exactamente esse papel, ao considerar a individualidade
como um elo da cadeia histórica.
A chegada «inesperada» de Lenine, regresso do estrangeiro após uma ausência
prolongada, os clamores exasperados levantados na imprensa à volta do seu nome, o
conflito de Lenine com todos os dirigentes do seu próprio partido e a sua rápida vitória
sobre eles – numa palavra, o envelope exterior dos acontecimentos contribuiu muito
nesse caso a uma evolução dos acontecimentos contribuía muito nesse caso a uma
evolução mecânica opondo o indivíduo, o herói, o génio, às condições objectivas, à
massa, ao partido. Na realidade, esta antítese só apresenta um lado das coisas.
Lenine era não um elemento fortuito da evolução histórica, mas um produto de todo
o passado da história russa. Ele tinha nela pelas suas raízes mais profundas.
Conjuntamente com os operários avançados, ele tinha participado em toda a luta durante
o quarto de século precedente. «Efeito do acaso» não interviu nos acontecimentos, foi
antes de mais a pequena palha com a qual Lloyd George tentou barrar-lhe o caminho.
Lenine não se opôs ao partido a partir do exterior, mas era a expressão mais acabada
dele. Educando o partido, ele educava-se a si próprio. O seu desacordo com a camada

237
dirigente dos bolcheviques significava uma luta do partido entre o seu ontem e o seu
amanhã. Se Lenine não tivesse sido artificialmente afastado do partido pelas condições
da emigração e da guerra, o mecanismo exterior da crise não tivesse sido tão dramático e
não tivesse disfarçado a tal ponto a continuidade interna do desenvolvimento do partido. A
importância excepcional que tomou a chegada de Lenine, resulta do facto que os líderes
não se formam por acaso, que a sua selecção e a educação exigem dezenas de anos,
que não se pode suplantá-los arbitrariamente, senão excluindo-os mecanicamente da luta
inflige-se ao partido um ferida viva e que, em certos casos, pode paralizá-lo por muito
tempo.

238
As «Jornadas de Abril»
No dia 23 de Março, os Estados-Unidos entravam na guerra. Nesse dia, Petrogrado
celebrava as obséquias das vítimas da Revolução de Fevereiro. A manifestação de luto,
portanto animada por uma solene alegria, foi o poderoso acordo final da sinfonia dos
cinco dias. Todos vieram aos funerais: e os que tinham combatido lado a lado com os
mortos, e esses que tinham pregado a moderação, e provavelmente os que tinham
abatido as vítimas, e, mais numerosos ainda, os que se mantiveram à distância da luta.
Ao lado dos operários encontravam-se os estudantes, os ministros, os embaixadores, os
burgueses abastados, os jornalistas, oradores, líderes de todos os partidos.
Os caixões vermelhos, transportados a braço pelos operários e soldados, chegaram
em filas de todos os bairros ao Campo de Março. Quando começaram a descer os
caixões na fossa, a fortaleza de Pedro e Paulo, transtornando as inumeráveis massas
populares troou uma primeiro adeus. Os canhões estrondavam de outra maneira: nossos
canhões, nossa saudação. O bairro de Vyborg trazia cinquenta e um caixões vermelhos.
Era somente uma parte das vítimas que ele estava orgulhoso. No seu cortejo, de todos o
mais compacto, distinguiam-se numerosas bandeiras bolcheviques. Mas ele flutuavam
pacificamente ao lado de outras. No próprio Campo de Março só ficaram os membros do
governo, do Soviete e da Duma do Império – já defunta, mas que teimava em fugir ao seu
próprio funeral.
Diante das sepulturas desfilaram, no dia, com as suas bandeiras e suas orquestras,
oito centos mil pessoas, pelo menos. Ainda se, segundo os cálculos prévios das altas
autoridades militares, tal massa humana não devia em nenhum caso conseguir passar
nos prazos fixados sem provocar o maior caos e rebuliços desastrosos – a manifestação
desenrolou-se contudo numa perfeita ordem, significativo para essas marchas
revolucionárias onde domina a consciência satisfeita de ter realizado pela primeira vez
grandes obras, com a esperança que a seguir tudo irá melhor. É somente este estado de
espírito que mantinha a ordem, porque a organização ainda era fraca, inexperiente e
pouco segura dela própria.
De facto, esses funerais bastavam, parece, para refutar a legenda de uma revolução
sem derrame de sangue. E, portanto, o estado de espírito que reinou nas obsequias
reproduzia parcialmente a atmosfera dos primeiros dias onde esta legenda nasceu.
Vinte e cinco dias mais tarde – nesse lapso de tempo, os sovietes tinham adquirido
muita experiência e confiança neles próprios – festejou-se o Primeiro de Maio, segundo o
calendário ocidental (18 de Abril, segundo o velho estilo). Todas as cidades do país
organizaram reuniões políticas e manifestações. Não somente as empresas industriais,
mas as instituições do Estado, os serviços municipais, os zemstvos feriaram. Em Mohilev,
onde se localizava o Grande Quartel General, à cabeça da manifestação marcharem os
cavaleiros de São Jorge. A coluna do estado-maior, que não tinha destituído os generais
do czar, avançava com o seu cartaz do Primeiro de Maio. A festa do antimilitarismo
proletariano confundia-se com uma manifestação de patriotismo maquilhado com a cor
revolucionária. Diversas camadas da população traziam à solenidade o seu espírito

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particular, mas o conjunto confundia-se ainda numa especie de conjunto extremamente
inconsciente, particularmente enganador, e portanto, na totalidade, majestuoso.
Nas duas capitais e nos centros industriais, para esta festa, os operários
predominaram e, nas suas massas, distinguiam-se já nitidamente – pelas suas bandeiras,
cartazes, discursos, exclamações – as formações sólidas do bolchevismo. Na imensa
fachada do palácio Maria, refúgio do governo provisório, uma enorme bandeirola
pendurada tinha a seguinte inscrição: «Viva a Terceira Internacional!» As autoridades,
ainda não se tinham desembaraçado da sua timidez administrativa, não ousavam retirar a
bandeirola desagradável e alarmante. Todos, parecia, estavam em festa. Aí os homens da
frente participavam como podiam. Recebia-se notícias das novas reuniões, de discursos,
de bandeiras agitadas e de cantos revolucionários nas trincheiras. Tiveram eco no lado
alemão.
A guerra estava longe de terminar; pelo contrário, ela alargava a sua esfera de
acção. Todo um contingente, recentemente, mesmo no dia das obséquias das vítimas da
revolução, tinha entrado na guerra para lhe dar um novo impulso. Todavia, em todas as
regiões da Rússia, com os soldados, participavam igualmente nos desfiles prisioneiros de
guerra, sob as bandeiras comuns, por vezes com o mesmo hino cantado em diferentes
línguas. Nesta solenidade monumental, igual a um transbordamento de águas vernais que
apagavam os contornos das classes, dos partidos e das ideias, a manifestação comum
dos soldados russos e dos prisioneiros austríacos e alemãs era facto brilhante, cheio de
esperanças, permitindo pensar que a revolução, apesar de tudo, trazia nela um certo
melhor mundo.
Tal como os funerais de Março, a festa do Primeiro de Maio passou-se na ordem
absoluta, sem sarilhos nem vítimas, como uma solenidade «nacional». Todavia, alguém
atento teria já podido surpreender sem dificuldade nas fileiras dos operários e soldados
uma nota de impaciência e mesmo de ameaça. A vida torna-se cada vez mais difícil. Com
efeito: os preços subiam de maneira alarmante, os operários reivindicavam o salário
mínimo, os patrões resistiam, o número de conflitos nas fábricas aumentava sem parar.
Os abastecimentos tornavam-se cada vez menos regulares, a ração de pão foi reduzida,
era preciso ter cartões de racionamento mesmo para a sémola.
O descontentamento aumentava também na guarnição. O estado-maior da região
militar, preparando a repressão contra os soldados afastava de Petrogrado as tropas mais
revolucionárias. A Assembleia geral da guarnição, no 17 de Abril, os soldados,
adivinhando as intenções hostis, levantaram a questão de acabar com os envios de
soldados: esta reclamação, no seguimento, ergueu-se sob uma forma cada vez mais
resoluta em cada nova crise da revolução. Mas a raíz de todos os males, é a guerra que
não se via o fim. Quando a revolução trará a paz? Em que pensam Kerensky e Tseretelli?
As massas ouviam com atenção os bolcheviques, vigiavam-os, esperando que com uma
certa hostilidade, depois com confiança. Sob a disciplina da solenidade escondia-se um
estado de espírito tenso, a fermentação tinha lugar nas massas.
Ninguém, portanto, nem mesmo os autores da inscrição pregada no palácio Maria,
não supunha que já os dois ou três dias que seguiriam rasgariam sem piedade o envelope

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da unidade nacional da revolução. Terríveis acontecimentos, previsto por muitos como
inevitáveis, mas que ninguém os esperava tão depressa, surgiram de repente. O impulso
foi-lhe dado pela política exterior do governo provisório, isto é pelo problema da guerra.
Foi Miliokov que aproximou o fósforo do pavio.
Eis a história do fósforo e do pavio: no dia que a América entrava em guerra, o
ministro dos Assuntos estrangeiros do governo provisório, reconfortado, desenvolveu
diante dos jornalistas o seu programa: anexação de Constantinopla, da Arménia,
desmembramento da Áustria e da Turquia, anexação da Pérsia setentrional e, além disso,
bem entendido, o direito das nações a disporem delas próprias.
«Em todos os actos públicos – foi assim que o historiador Miliokov explica o ministro
Miliokov – sublinha resolutamente os objectivos pacíficos da guerra libertadora, mas
metia-os sempre em relação estreita com os problemas e os interesses nacionais da
Rússia.»
A entrevista alarmou os conciliadores. «Então quando é que a política exterior do
governo provisório se desembaraça de toda a hipocrisia?» - perguntava, indignado, o
jornal dos mencheviques. Porquê o governo provisório não exigiria dos governos aliados
que renunciassem abertamente e decisivamente às anexações? «Essa gente via
hipocrisia na linguagem sincera do rapace. No disfarce pacifista dos apetites, eles
estavam prontos a ver a eliminação da mentira. Assustado pela sobre-exitação dos
democratas, Kerensky apressou-se a declarar por intermediário do secretariado da
imprensa: o programa de Miliokov representa a sua opinião pessoal. Se o autor da opinião
pessoal era ministro dos Assuntos estrangeiros, isso foi evidentemente considerado como
puro acaso.
Tseretelli, que possuía o talento de transformar qualquer questão num lugar comum,
meteu-se a insistir na necessidade de uma declaração governamental, como se a guerra
fosse, para a Rússia, exclusivamente defensiva. A resistência de Miliokov e parcialmente
de Gotchkov foi quebrada, e, no dia 27 de Março, o governo pariu uma declaração
afirmando que «o objectivo da Rússia livre não é de dominar os outros povos, nem de
lhes retirar o seu património nacional, nem de se amparar violentamente dos territórios
alheios». É assim que os reis e os profetas do duplo poder proclamavam a intenção de
entrar no reino dos céus conjuntamente com os parricidas e os desavergonhados. A esses
senhores, sem contar o resto, faltava-lhes o sentido do ridículo.
A declaração do 27 de Março foi recebida favoravelmente não somente por toda a
imprensa conciliadora, mas mesmo pelo Pravda de Kamenev—Estaline, que escrevia
num editorial, quatro dias após a chegada de Lenine:
«Clara e nitidamente, o governo provisório… declarou diante de todo o povo que o
objectivo da Rússia livre não é de dominar os outros povos», etc..
A imprensa inglesa, imediatamente e com satisfação, interpretou a renúncia da
Rússia em relação às anexações como a renúncia a Constantinopla, sem, bem entendido,
dispor-se a adoptar para ela a formula de abstinência. O embaixador da Rússia em
Londres deu o alarme e exigiu de Petrogrado explicações nesse sentido que o princípio

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«da paz sem anexações seria adoptado pela Rússia não incondicionalmente, mas na
medida onde não se contradizia aos nossos interesses vitais.» Mas portanto era bem a
formula de Miliokov: prometer não pilhar o que não precisamos. Paris, contrariamente a
Londres, não somente apoiava Miliokov, mas estimulava-o, sugerindo-lhe, por intermédio
de Paléologue, a necessidade de uma política mais resoluta em relação ao Soviete.
O presidente do Conselho, que era então Ribot, exasperado pelas lamentáveis
hesitações de Petrogrado, pediu a Londres e a Roma
«se eles não acreditam que é necessário convidar o governo provisório a acabar
com os equívocos».
Londres respondeu que era mais razoável
«deixar os socialistas franceses e ingleses enviados à Rússia agir directamente
sobre os seus companheiros de ideias».
O envio à Rússia de socialistas aliados tinha sido feito por iniciativa do Grande
Quartel General russo, isto é dos antigos generais do czar. «Nós contamos com ele –
escreveu Ribot sobre Alberto Thomas – para lhe dar uma certa firmeza às decisões do
governo provisório.» Miliokov queixava-se portanto do que Thomas se mantinha
demasiado em contacto com os líderes do Soviet. Ribot respondia a isso que Thomas
«esforçava-se sinceramente» em apoiar o ponto de vista de Miliokov, mas que tinha
prometido, contudo, exortar o seu embaixador a um ajuda mais activa.
A declaração absolutamente vazia de sentido do 27 de Março inquietava mesmo
assim os Aliados que viram nisso uma concessão ao Soviete. De Londres, ameaçavam
perder fé «na potência combativa da Rússia». Paléologue queixava-se da «timidez e da
ambiguidade» da Declaração. Era justamente o que faltava a Miliokov. Na esperança de
ser ajudado pelos Aliados, lançou-se num grande jogo que era muito superior aos seus
recursos. A sua ideia essencial era voltar a guerra contra a revolução, seu objectivo mais
próximo nesta via era desmoralizar a democracia. Mas os conciliadores começaram,
justamente em Abril, a manifestar uma nervosidade e tergiversações cada vez maiores
nas questões de política exterior, porque a pressão crescente da base exercia-se sobre
eles. O governo precisava de um empréstimo. Ora as massas, apesar de todas as suas
intenções de defesa nacional, não estavam dispostas a apoiar senão um empréstimo de
paz, não um empréstimo de guerra. Era preciso fazer ver-lhes pelo menos a aparência de
uma perspectiva de paz.
Devolvendo a política segura dos lugares comuns, Tseretelli propôs exigir ao
governo provisório que fosse entregue aos Aliados uma nota análoga à Declaração
interior do 27 de Março. Em troca, o comité executivo comprometia-se a obter do Soviete
um voto para «o empréstimo da Liberdade». Miliokov consentiu nessa troca: o
empréstimo em troca de uma nota – mas decidiu tirar proveito duplo desse negócio. Sob
pretexto de interpretar a «Declaração», a nota desautorizava-o. Ela exigia que a
fraseologia pacífica no novo poder não desse» o mínimo pretexto de pensar que a
revolução realizada teria ocasionado o enfraquecimento do papel da Rússia na luta

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comum dos Aliados. Ao contrário – a determinação de todo o povo a levar a guerra
mundial até à vitória definitiva reforçou-se... »
A nota exprimia mais longe esta certeza que os vencedores «encontrariam o meio de
obter as garantias e as sanções indispensáveis para prevenir, no futuro, novos conflitos
sangrentos». Inserir nas exigências de Thomas, as palavras «garantias» e «sanções», na
linguagem fraudulenta da diplomacia, particularmente da diplomacia francesa, não
significavam nada senão que as anexações e as contribuições. No dia de festa do
Primeiro de Maio, Miliokov transmitiu por telegrafo a nota, ditada pelos diplomatas aliados,
aos governos da Entente, e foi somente depois que ela foi enviada ao comité executivo e,
simultaneamente, aos jornais. O governo dispensou-se de passar pela comissão de
contacto, e os líderes do comité executivo encontraram-se na situação de simples
cidadãos.
Se os conciliadores não encontraram na nota nada que não tivessem ouvido de
Miliokov antes, pelo menos não puderam dispensar-se de ver aí um acto de hostilidade
premeditada. A nota deixava-os desarmados diante das massas e exigia deles uma
escolha directa entre o bolchevismo e o imperialismo. As ambições de Miliokov não
consistiam nisso? Tudo leva a pensar que não era o seu objectivo único: as suas
intenções iam mais longe.
Já desde de Março, Miliokov esforçava-se muito para ressuscitar o projecto abortado
de uma tomada das Dardanelas para uma incursão russa e levava numerosas
conversações com Alexeiev, persuadindo-o a levar energicamente uma operação que
devia, na sua opinião, colocar a democracia, hostil às anexações, diante do facto
consumado. A nota de Miliokov, datando do 18 de Abril, era uma incursão paralela sobre a
margem mal defendida da democracia. Duas acções – um militar, outra política –
completava-se entre elas e, em caso de sucesso, se justificavam uma pela outra. Os
vencedores, em geral, não levavam a julgamento. Para uma incursão, era preciso um
exército de duzentos a trezentos mil homens. Ora o caso malogrou-se por uma bagatela:
os soldados recusaram. Eles consentiam a defender a revolução, mas não a tomar a
iniciativa. O atentado de Miliokov sobre as Dardanelas falhou. E todas as suas iniciativas
ulteriores foram arruinadas antecipadamente. Mas confessemos que elas não estavam
demasiado calculadas… em condições de êxito.
No 17 de Abril, em Petrogrado, teve lugar – visão de pesadelo – uma manifestação
patriótica de inválidos: uma imensa multidão de feridos, saídos do hospital da capital,
amputados das pernas, dos braços, envolvidos em pensos, avançava para o palácio
Tauride. Os que não podiam caminhar eram transportados em camiões. Lia-se nas
bandeiras: «A guerra até ao fim.» Era a manifestação de desespero dos restos humanos
da guerra imperialista que queriam que a revolução não reconhecesse a absurdidade dos
seus sacrifícios. Mas, por detrás dos manifestantes, mantinha-se o partido cadete mais
precisamente Miliokov, que se preparava a executar no dia seguinte um grande golpe.
Em sessão extraordinária, no dia 19 à noite, o comité executivo discutiu a nota
expedida na véspera aos governos aliados. «Segundo uma primeira leitura – conta
Stankevitch – todos, unanimemente e sem contestações, reconheceram que não era o

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que esperava o comité.» Mas esta nota comprometia a totalidade do governo, incluindo
Kerensky. Era preciso, em consequência, antes de tudo, salvar o governo. Tseretelli
meteu-se a «decifrar» a nota não codificada e a descobrir aí qualidades cada vez mais
numerosas, Skobelev, com um ar convencido, atardava-se a demonstrar que em geral
não se podia exigir «um acordo completo» de intenções entre a democracia e o governo.
Esses grandes sábios extenuaram-se até à madrugada, mas não encontraram solução.
Cedo pela manhã, separaram-se, tendo combinado reunir-se novamente algumas horas
mais tarde. Eles contavam, evidentemente, sobre a faculdade que teria o tempo de
cicatrizar todas as feridas.
Na manhã, a nota pareceu em todos os jornais. A Rietch comentou-a num sentido
provocador maduramente premeditado. A imprensa socialista pronunciou-se com extrema
sobre-excitação. A Rabotchaia Gazeta (Jornal operário), menchevique, não tendo ainda
tido tempo, após Tseretelli e Skobelev, de digerir a sua indignação nocturna, escrevia que
o governo provisório tinha publicado «um acto que espezinha as intenções da
democracia», e exigia do Soviete medidas firmes «para prevenir as terríveis
consequências». A pressão crescia: bolcheviques sentiam-se completamente nessas
frases.
O comité executivo reabriu a sessão, mas somente para se convencer mais uma vez
da sua incapacidade em chegar a uma resolução qualquer. Decidiu-se convocar um
plenário extraordinário do Soviete «para informação» - na realidade para sondar o grau de
descontentamento da base, afim de ganhar tempo para resolver a perplexidade onde se
encontrava. Previa-se no intervalo todas as especies de sessões de contacto que
deveriam reduzir a questão a nada.
Mas essa agitação ritual do duplo poder misturou-se inesperadamente uma terceira
força. À rua saíram as massas, de armas na mão. Entre as baionetas os soldados
escreviam nas pancartas: «Abaixo Miliokov» Noutras figuravam também com vantagem
Gotchkov. Nessas colunas exasperadas, era difícil reconhecer os manifestantes do
Primeiro de Maio.
Os historiadores caracterizam esse movimento como sendo o das «forças
elementares» no sentido convencional que nem um partido reclamou a iniciativa da
manifestação. O apelo directo a manifestar-se na rua veio de um certo Linde que inscrevia
assim o seu nome na história da revolução. «Sábio, matemático, filósofo», Linde
mantinha-se fora dos partidos, era um grande partidário da revolução e desejava
ardentemente que ela realizasse o que prometia. A nota de Miliokov e os Comentários da
Rietch indignaram-no. «Sem os conselhos de ninguém... conta o seu biografo – ele tomou
logo a iniciativa... e foi ao regimento de Finlândia, convocou o comité e propos que o
regimento marchasse imediatamente para o palácio Maria...
«A proposição de Linde foi adoptada e, às três horas, avançava já uma imponente
manifestação «dos finlandeses» pelas ruas de Petrogrado com pancartas provocantes.» A
seguir ao regimento de Finlândia marcharam os soldados do 180 de reserva, regimentos
moscovitas, Pavlovky, Kekholmsky, os marinheiros da segunda divisão das tripulações da
frota báltica, um total de vinte e cinco a trinta mil homens, todos armados. Nos bairros

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operários, a agitação começou, o trabalho parou e por grupos de fábricas, desceram à rua
seguindo os regimentos.
«A maior parte dos soldados não sabiam porquê eles tinham vindo», assegurou
Miliokov, como se ele tivesse tempo de os questionar. «Para além das tropas participava
na manifestação operários adolescente que declaravam em voz alta (!) que lhes tinham
pago para isso de dez a quinze rublos.» A proveniência dos fundos é clara: «A tarefa de
eliminar os dois ministros (Miliokov e Gotchkov) era directamente indicada pela Alemanha.
«Miliokov deu esta penetrante explicação não no calor da luta de Abril, mas três anos
depois dos acontecimentos de Outubro que mostraram suficientemente que ninguém não
precisava pagar caro e diariamente o ódio que as massas populares sentiam por Miliokov.
A violência inesperada da manifestação de Abril explica-se pela reacção imediata da
massa diante da falsidade vinda de cima.«Enquanto que o governo não obtiver a paz, é
preciso defender-se.» Isso dizia-se sem entusiasmo, mas por persuasão. Supunha-se que
em cima tudo era feito para aproximar a paz. É verdade que, do lado dos bolcheviques,
afirmava-se que o governo queria a continuação da guerra, para fins de pilhagem. Mas é
possível? E Kerensky? - «Nós conhecemos os líderes dos sovietes desde Fevereiro, eles
vieram-nos primeiro nas casernas, são pela paz. Além disso, Lenine chegou de Berlim e
Tseretelli estava no presídio. É preciso ter paciência...» Ao mesmo tempo, as fábricas e os
regimentos mais avançados afirmavam cada vez mais resolutamente as palavras de
ordem dos bolcheviques por uma política de paz: publicação dos tratados secretos e
ruptura com os planos da conquista da Entente, proposição aberta de paz imediata a
todos os países beligerantes.
Foi neste ambiente complexo e indeciso que surgiu a nota do 18 de Abril. Como?
Quê?... Lá em cima, ninguém é pela paz, mantêm-se pelos antigos objectivos da guerra?
Então é em vão que esperamos? Abaixo! ...Mas o quê, abaixo? É possível que os
bolcheviques tenham razão? Não é possível. Sim, mas a nota? Há alguém, mesmo assim,
que quer vender a nossa pele aos aliados do czar? Uma simples confrontação entre a
imprensa cadete e a dos conciliadores mostrava que Miliokov, tendo traído a confiança
geral, dispunha-se a desenvolver uma política de conquista, de acordo com Lloyd George
e Ribot. Portanto, Kerensky declarou que a ideia de agressão sobre Constantinopla era
uma «opinião pessoal» de Miliokov. Foi assim que explodiu esse movimento.
Mas ele não foi homogéneo. Diversos elementos escaldantes dos meios
revolucionários sobrestimaram a amplitude e a maturidade política do movimento tanto
mais que ele desencadeou-se repentinamente e vivamente. Os bolcheviques, entre as
tropas e nas fábricas, empregaram uma enérgica actividade. A reivindicação «Fora
Miliokov» que era uma sorte de programa mínimo do movimento, acrescentaram cartazes
contra o governo provisório no seu conjunto, e, além disso, os elementos diversos
incluíam isso de diversas maneiras: uns como uma palavra de ordem de propaganda,
outros como tarefa do próprio dia. Lançada na rua pelos soldados e marinheiros armados,
a palavra de ordem «Abaixo o governo provisório!» introduzia fatalmente na manifestação
uma corrente insurreccional. Grupos consideráveis de operários e soldados estavam
bastante dispostos a expulsar logo ali o governo provisório. Foi a partir deles que

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procederam as tentativas para penetrar no palácio Maria, ocupar as saídas, prender os
ministros. Ao socorro destes foi expedido Skobelev que preencheu a missão com tanto
sucesso que o palácio Maria estava vazio.
Gotchkov estava doente, o governo reunia-se em casa própria desta vez, num
apartamento privado. Mas não é esta circunstância fortuita que poupou ao ministros a
prisão da qual eles não estavam de forma nenhuma ameaçados. Um exército de vinte e
cinco a trinta mil homens, que descera à rua para combater os que prolongavam a guerra,
era perfeitamente suficientemente para derrubar um governo mesmo mais sólido que
aquele onde se encontrava à cabeça o príncipe Lvov. Mas os manifestantes não tinham
isso como objectivo. Na realidade, eles só queriam mostrar um punho ameaçador de
modo que esses senhores lá no alto da janela deixem de afiar os dentes com a sua
Constantinopla e se ocupem como deve ser com a questão da paz. Desta maneira, os
soldados contavam ajudar Kerensky e Tseretelli contra Miliokov.
O general Kornilov apresentou-se na sessão governamental, que deu notícias das
manifestações armadas nesse momento e declarou que na qualidade de comandante das
tropas da região militar de Petrogrado, dispunha de forças suficientes para esmagar a
sedição armada: para marchar, só lhe faltava a ordem. Presente por acaso na sessão do
governador, Koltchak contou mais tarde, no decurso do processo que procedeu a sua
execução, que o príncipe Lvov e Kerensky pronunciaram-se contra uma tentativa de
repressão militar contra os manifestantes. Miliokov não se exprimiu claramente, mas
resumiu a situação no sentindo que os senhores ministros podiam, bem entendido, levar à
razão quem quisessem, o que não lhes impediria de serem detidos. Sem dúvida que
Kornilov agia de acordo com o centro cadete.
Os líderes conciliadores conseguiram sem dificuldades convencer os soldados
manifestantes em abandonar a praça do palácio Maria e mesmo fazer-lhes voltar aos
quartéis. A emoção suscitada na cidade não parava de crescer. Multidões juntavam-se, as
assembleias políticas continuavam, discutia-se nos cruzamentos de ruas, nos tróleis os
partidários e adversários de Miliokov. Na Nevsky e nas ruas vizinhas, oradores burgueses
faziam agitação contra Lenine enviado da Alemanha para derrubar o grande patriota
Miliokov. Nos arredores, nos bairros operários, os bolcheviques esforçavam-se,
propagando a indignação suscitada pela nota e pelo seu autor, de responsabilizar o
conjunto do governo.
Às sete horas da noite reuniu-se o plenário do Soviete. Os líderes não sabiam o que
dizer a um auditório em efervescência. Tchkheidze, verbosamente, relatava que após a
sessão teria lugar uma entrevista com o governo provisório. Tchernov agitava o
espantalho da guerra civil iminente. Federov, operário metalúrgico, membro do comité
central dos bolcheviques, respondia que a guerra civil estava rebentara e que o Soviete
só deveria apoiá-la e tomar o poder. «Essas eram palavras novas e então terríveis –
escreveu Sokhanov. Elas caíam no meio da mentalidade geral e encontraram desta vez
eco tal como nunca antes, nem muito tempo após, nos Sovietes, os bolcheviques.»
A surpresa da sessão foi, todavia, para surpresa geral, o discurso de um confidente
de Kerensky, o socialista-liberal Stankevitc: «Ao que nos serve, camaradas,

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«manifestar»? - perguntava. Contra quem empregar a força? Porque enfim, toda a força,
sois vós e as massas que se mantêm por detrás de vós ...Olhem, é neste momento sete
horas e menos cinco. (Stankevitch estende o braço para o relógio, toda a sala se volta do
mesmo lado.) Decidam que o governo provisório não existirá mais, que ele se demita. Nós
telefonamos e em cinco minutos, ele abandonará os seus poderes. Para que serve essa
violência, manifestações, uma guerra civil?» Na sala, a tempestade de aplausos,
exclamações entusiastas. O orador queria assustar o Soviete, tirando da nova situação a
dedução mais extrema, mas ele próprio se assustou com o efeito obtido pelo seu
discurso. A verdade que lhe tinha escapado sobre a potência do Soviete ergueu a
assembleia acima das manigâncias dos dirigentes, que se preocupavam antes de tudo
em impedir o Soviete de tomar uma resolução qualquer. «Quem substituirá o governo?»
replicaram aos aplausos um dos oradores. «Nós? Mas as nossas mãos tremem...» Era
um característica incomparável dos conciliadores, líderes enfáticos com as mãos
trementes.
O ministro-presidente Lvov juntando-se a Stankenvitch, fez, no dia seguinte, a
seguinte declaração:
«Até agora, o governo provisório encontrava invariavelmente apoio do lado do órgão
dirigente do Soviete. Desde há quinze dias... o governo é alvo de desconfiança. Nessas
condições... é melhor que o governo provisório se demita.»
Nós vemos aqui ainda qual era a real constituição da Rússia de Fevereiro!
No palácio Maria teve lugar um encontro do comité executivo com o governo
provisório. O príncipe Lvov, num discurso introdutivo, queixava-se da campanha
desenvolvida pelos círculos socialistas contra o governo, e, num tom meio vexado, meio
ameaçador, falou da demissão. Os ministros, por sua vez, descreveram as dificuldades
em acumular, que eles tinham contribuído com todas as suas energias. Miliokov, voltando
as costas a esse palavreado de contacto, discursou do alto da varanda diante das
manifestações dos cadetes. «Vejamos esses cartazes onde se pode ler: «Abaixo
Miliokov!»... eu não receava por Miliokov. Mas pela Rússia!» É assim que o historiador
Miliokov relata as modestas palavras que o ministro Miliokov pronunciava diante da
multidão reunida na praça.
Tseretelli exigia do governo uma nova nota. Tchernov encontrou um saída genial ao
propor a Miliokov que ele passasse para o ministério da instrução pública: Constantinopla,
como objecto de estudos geográficos, era, de qualquer modo, menos perigoso como
objectivo diplomático. Miliokov, todavia, recusou redondamente em voltar à carreira das
ciências e redigir uma nova nota. Os líderes dos sovietes não se fizeram rogar e
aceitaram uma «explicação» da velha nota. Faltava encontrar algumas frases onde o falso
seria suficientemente camuflado de forma democrática – e poder-se-ia considerar que a
situação seria salva, assim como a pasta de Miliokov!
Mas o terceiro poder inquieto não se queria acalmar. O dia 21 de Abril trouxe uma
nova vaga do movimento, mais potente que o da véspera. Nesse dia, a manifestação foi
provocada pelo comité bolchevique de Petrogrado. Apesar da contra-agitação dos

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mencheviques e dos socialistas-revolucionários, massas enormes de operários dirigiram-
se para o centro, vindo dos bairros de Vyborg, e seguimento de outros bairros. O comité
executivo enviou ao encontro dos manifestantes pacifistas autorizados, tendo à cabeça
Tchkheidze. Mas os operários teimavam firmemente em opinar, e eles tinham algo a dizer.
Um jornalista liberal bem conhecido descrevia, na Rietch, a manifestação dos operários
sobre a Nevsky:
«À frente, cerca de uma centena de homens armados; na retaguarda filas regulares
de homens e de mulheres desarmadas, milhares de pessoas. Cadeias vivas nos dois
flancos. Cantos. Fui impressionado pela expressão dos rostos. Milhares de indivíduos só
tinham uma cara, extasiada, o rosto monacal dos primeiros séculos do cristianismo,
irredutível, implacavelmente pronto ao assassinato, à inquisição e à morte.»
O jornalista liberal tinha visto a revolução operária nos olhos e sentiu um instante a
sua resolução concentrada. Com esses operários pareciam pouco aos adolescentes que
Miliokov dizia contratados por Lunderdorff por quinze rublos por dia!
Nesse dia, como na véspera, os manifestantes não iam derrubar o governo, ainda
que, certamente, a sua maioria tinha já pensado seriamente no problema; uma parte
deles estava pronta desde desse dia a levar a manifestação para além dos limites fixados
pelo estado de espírito da maioria. Tchkheidze propôs aos manifestantes que voltassem
para casa, para os seus bairros. Mas os dirigentes responderam severamente que os
operários sabiam o que tinham a fazer. Era uma nota nova e Tchkheidze tinha que se
acostumar no decorrer das próximas semanas.
Enquanto que os conciliadores exortavam e se eclipsavam, os cadetes provocavam
e abanavam o fogo. Mesmo se Kornilov não tivesse recebido, na véspera, a autorização
de empregar as armas, não somente ele não abandonava o seu plano, mas, pelo
contrário, precisamente nessa manhã, tomava medidas para se opor aos manifestantes
da cavalaria e da artilharia. Contando firmemente com a intrepidez do general, os
cadetes, por panfleto, chamaram os seus partidários à rua, esforçando-se nitidamente em
levar o assunto até ao conflito decisivo. Mesmo não tendo conseguido desembarcar sobre
as margens das Dardanelas, Miliokov continuava a desenvolver a sua ofensiva, com
Kornilov como vanguarda, com a Entente esta como reserva pesada. A nota, enviado sem
que o Soviete saiba e o editorial da Rietch devia desempenhar um papel de um despacho
de Ems dirigido pelo chanceler liberal da revolução de Fevereiro. «Todos os que querem a
Rússia livre devem cerrar fileiras à volta do governo provisório e apoiá-lo» - assim
exortava o comité central dos cadetes, convidando todos os bravos cidadãos a descer à
rua para lutar contra os partidários de uma paz imediata.
A Nevsky, artéria principal da burguesia, transformou-se numa imensa assembleia
dos cadetes. Uma manifestação considerável, à cabeça da qual se encontravam os
membros do comité central cadete, dirigiu-se para o palácio Maria. Em todo o lado viam-
se cartazes acabados de fazer. «Inteira confiança provisório!» «Viva Miliokov!» Os
ministros estavam encantados: tinham encontrado o seu «povo», tanto mais visível que
emissários do Soviete esgotavam-se a dispersar as reuniões políticas revolucionárias,

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afastando as manifestações de operários e de soldados do centro para os arredores e
dissuadindo os quartéis e as fábricas de agir.
Sob o pretexto de defender o governo teve lugar uma primeira mobilização
francamente e largamente declarada das forças contra-revolucionárias. Na baixa da
cidade apareceram camiões carregados de oficiais, de junkers, estudantes armados.
Também saíram os cavaleiros de São Jorge. A juventude dourada organizou sobre a
Nevsky um tribunal público incriminando ali mesmo os leninistas e «os espiões alemãs».
Houve zaragatas e vítimas. O primeiro afrontamento sangrento, segundo contaram,
começou por uma tentativa que fizeram os oficiais para arrancar aos operários uma
bandeira com uma inscrição contra o governo provisório. Afrontavam-se cada vez mais
com afinco, o tiroteio deu-se à tarde e quase se tornou incessante. Ninguém sabia
exactamente quem disparava e com qual objectivo. Mas já havia vítimas deste tiroteio
desordenado, causado em parte pela malvadez, em parte pelo pânico. A temperatura
tornava-se incandescente.
Não, esse dia não se parecia em nada com uma manifestação de unidade nacional.
Dois mundos erguiam-se um face ao outro. As colunas de patriotas, chamados à rua pelo
partido cadete contra os operários e os soldados, compunham-se exclusivamente de
elementos burgueses da população, oficiais, funcionários, intelectuais. Duas torrentes
humanas, uma por Constantinopla, outra pela paz, desciam das diferentes partes da
cidade; diferentes pela sua composição social, absolutamente diferentes pelo seu aspecto
exterior, afirmando sua hostilidade sobre cartazes, e, chocando-se, iam com o punho
fechado, de cacete, mesmo com armas de fogo.
Ao comité executivo chegou a notícia inesperada que Kornilov avançava com
canhões para a praça do Palácio. Iniciativa independente do comandante do corpo do
exército? Não, o carácter e a carreira ulterior de Kornilov demonstram que o bravo general
tinha sempre alguém para o levar pela ponta do nariz – função que, desta vez,
preenchiam os líderes cadetes. Foi somente ao contar com a intervenção de Kornilov,
afim de tornar esta intervenção indispensável, que eles tinham chamado as massas à rua.
Um dos jovens historiadores nota justamente que a tentativa feita por Kornilov para juntar
as escolas militares na praça do Palácio coincidiu não com uma necessidade real ou
imaginária de defender o palácio Maria contra um multidão hostil, mas com o forte
desenvolvimento da manifestação dos cadetes.
O plano de Miliokov-Kornilov falhou todavia, e de forma vergonhosa. Tão ingénuos
que fossem os líderes do comité executivo, não podiam compreender que suas cabeças
já estavam em jogo. Logo desde das primeiras informações respeitante os encontros
sangrentos na Nevsky, o comité executivo enviou a todos os contingentes militares de
Petrogrado e dos arredores uma ordem telegrafada: não enviar, sem imposição do
Soviete, nenhum destacamento nas ruas da capital. Agora que as intenções de Kornilov
se tinham declarado, o comité executivo, a despeito de todas essas declarações solenes,
meteu as duas mãos sobre o leme, não somente ao exigir do comando do exército que
ele retirasse as tropas imediatamente, mas encarregando Skobelev e Filippovski de enviar
os soldados para casa, ordem do Soviete. «Salvo chamada do comité executivo, nesses

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dias turbulentos, não saíam à rua armados. Só o comité executivo detém o direito de
dispor de vós.» Doravante, toda a ordem de saída das tropas, excepção feita do serviço
normal, deve ser dada sobre um documento oficial do Soviete e assinado pelo menos por
dois membros com esse poder.
O Soviete tinha, parece, interpretado de maneira inequívoca os actos de Kornilov,
como uma tentativa da contra-revolução para provocar a guerra civil. Mas, ao reduzir a
nada pela sua ordem o comandante do corpo do exército, o comité executivo nem
sonhava em destituir Kornilov em pessoa: pode-se atentar contra as prerrogativas do
poder? «As mãos tremem.» O jovem regime estava envolvido por ficções, - como um
doente, de almofadas e de ligaduras. Do ponto de vista das relações de forças, o que é
todavia o mais edificante, é que não somente a tropa, mas as escolas de oficiais, mesmo
antes de ter recebido ordem de Tchkheidze, recusaram marchar sem uma autorização do
Soviete. Imprevistos pelos cadetes, os incómodos que caíam sobre eles, um após outro
eram as inevitáveis consequências do facto que a burguesia russa, no período da
revolução nacional, mostrou-se uma classe anti-nacional – o que podia ser, durante um
curto lapso de tempo, mascarado pela dualidade de poderes, mas não podia ser
reparado.
A crise de Abril, aparentemente, prometia terminar em parte nula. O comité executivo
tinha conseguido reter das massas sobre o limiar do duplo poder. Pelo seu lado, o
governo reconhecido explicou que, por «garantias» e «sanções», convinha ouvir os
tribunais internacionais, a limitação dos armamentos e outras coisas magníficas. O comité
executivo apressou-se a agarrar essas concessões terminológicas, e, por trinta e quatro
votos contra dezanove, declarou que o incidente estava encerrado. Para tranquilizar a sua
base inquieta, a maioria votou ainda decisões desse género: reforçar o controlo sobre a
actividade do governo provisório; sem aviso prévio do comité executivo, nenhum acto
político de importância não deve ser promulgado; a composição do corpo diplomático
deve ser radicalmente modificada. A dualidade de poderes, existindo de facto, era
traduzida nessa linguagem jurídica de uma constituição. Mas nada, nestas circunstâncias,
não mudara a natureza das coisas. A ala esquerda não pôde obter da própria maioria
conciliadora a demissão de Miliokov. Tudo devia continuar como antes. Acima do governo
provisório erguia-se o controlo muito mais eficaz da Entente que o comité executivo nem
sonhava atacar.
Na noite do 21, o Soviete de Petrogrado resumia a situação. Tseretelli, no seu
relatório, mencionava a nova vitória dos sábios dirigentes que metia fim a todas as falsas
interpretações da nota do 27 de Março. Kamenev, em nome dos bolcheviques, propunha
a formação de um governo puramente soviético. Kollontai, revolucionária popular, que,
durante a guerra, passou dos mencheviques para os bolcheviques, propunha organizar
um referendo nos distritos de Petrogrado e dos arredores sobre a preferência a dar a tal
ou tal governo provisório. Mas as suas proposições passaram quase imperceptíveis pelo
Soviete: a questão parecia resolvida. A uma enorme maioria, contra treze votos, foi
adoptada a resolução reconfortante do comité executivo. É verdade que a maior parte dos
deputados bolcheviques ainda se encontravam nas fábricas, nas ruas, nas manifestações.

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Contudo, não há dúvida que na grande massa do Soviete, não houve mudança de opinião
no sentido dos bolcheviques.
O Soviete ordenou abster-se durante dois dias de qualquer manifestação de rua. A
decisão foi tomada unanimemente. Não houve sombra de dúvida que todos se submetiam
a esta resolução. Com efeito: operários, soldados, jovem burguesia, o bairro de Vyborg e
a Perspectiva Nevsky, ninguém ousava desobedecer à ordem do Soviete. A calma foi
obtida sem nenhuma medida coercitiva. Bastou ao Soviete sentir-se mestre da situação
para se tornar eficaz.
Às redacções dos jornais de esquerda afluíam, durante esse tempo, dezenas e
dezenas de resoluções de fábricas e de regimentos, exigindo a demissão imediata de
Miliokov, mesmo às vezes de todo o governo provisório. Petrogrado não foi a única a
tremer. Em Moscovo, os operários abandonavam as máquinas, os soldados saíam dos
quartéis, enchiam as ruas com protestos tumultuosos. Ao comité executivo afluíam nos
dias seguintes telegramas de dezenas de sovietes locais contra a política de Miliokov,
prometendo apoio completo ao Soviete. As mesmas vozes vinham da frente. Mas tudo
devia continuar como antes.
«No dia 21 de Abril, - afirmava mais tarde Miliokov – um estado de espírito favorável
ao governo provisório predominava nas ruas.» Ele fala evidentemente das ruas que pôde
observar do alto da varanda, quando a maior parte dos operários e soldados voltaram
para casa. Na realidade, o governo encontrava-se completamente isolado. Não tinha a
seu favor nenhum apoio sério. Acabámos de ouvir dizer por Stankevitch e pelo próprio
príncipe Lvov. Que significava portanto as certezas de Kornilov afirmando que dispunha
de forças suficientes para dominar os sediciosos? Nada, salvo a extrema tontaria do
honroso general. A sua vaidade se desenvolverá toda em Agosto, quando o conspirador
Kornivov fará marchar contra Petrogrado tropas inexistentes. Kornilov tentou ainda julgar
contingentes militares segundo a composição do comando. A oficialidade, na sua maioria,
estava sem dúvida com ele, isto é estava pronta, sob pretexto de defender o governo
provisório, a partir a espinha aos sovietes. Os soldados apoiava o Soviete, ao mesmo
tempo que tinham uma opinião infinitamente mais à esquerda que a do Soviete. Mas
como o próprio Soviete apoiava o governo provisório, acontecia que Kornilov podia, para
defender esse governo, fazer marchar os soldados soviéticos tendo à sua cabeça oficiais
reaccionários. Graças ao regime do duplo poder, todos jogavam à cabra-cega. Todavia,
apenas os líderes do Soviete ordenaram às tropas para não sair dos quartéis logo
Kornilov hesitou, e com ele todo o governo provisório.
E, todavia, o governo não caiu. As massas que tinham começado o ataque não
estavam prontas de forma nenhuma a levá-lo até ao fim. Os líderes conciliadores podiam,
a seguir, tentar ainda de retrogradar o regime de Fevereiro até ao ponto de partida. Tendo
esquecido, ou desejando obrigar os outros a esquecer que o comité executivo tinha sido
forçado a meter, abertamente e contra as autoridades «legais», a mão no exército, as
Izvestia do Soviete queixavam-se no 22 de Abril: «Os sovietes pouco se esforçavam para
se amparar do poder. Ora, nas numerosas bandeiras dos partidários do Soviete, havia
inscrições exigindo o derrube do governo e a transmissão de todo o poder ao Soviete... »

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não é abominável, com efeito, que os operários e os soldados tenham querido seduzir os
conciliadores ao oferecer-lhes o poder, isto é tinham considerado seriamente esses
senhores como capazes de fazer do poder uma utilização revolucionária?
Não, os socialistas-revolucionários e os menchevique não queriam o poder. A
resolução bolchevique pedindo a passagem do poder aos sovietes juntou, no Soviete de
Petrogrado, como vimos, um número insignificante de votes. Em Moscovo, a resolução de
desconfiança em relação ao governo provisório, proposta pelos bolcheviques no 22 de
Abril, reuniu setenta e quatro votos sobre numerosas centenas. Na verdade o Soviete de
Helsingfors, onde dominavam portanto os socialistas-revolucionários e os mencheviques,
votou, nesse mesmo dia, uma resolução excepcionalmente ousada nesse tempo,
oferecendo ao Soviete de Petrogrado as forças armadas para o ajudar a eliminar «o
governo provisório imperialista». Mas essa resolução, adoptada sob a pressão directa dos
marinheiros da frota de guerra, constituía uma excepção. Na sua esmagadora maioria, a
representação soviética das massas que, na véspera, estavam prontas à insurreição
contra o governo provisório continuava inteiramente no terreno do duplo poder. Que
significava isso?
A contradição espantosa entre a ousadia da ofensiva das massas e as hesitações da
sua representação política não é acidental. As massas oprimidas, em período
revolucionário, são levadas à acção directa mais facilmente e rapidamente do que elas
não aprendem a dar aos seus anseios e reivindicações uma expressão nos bons termos
pela sua própria forma representação, mas este atrasa-se no ritmo dos acontecimentos
determinados pela acção da massas. A representação soviética, a menos abstracta de
todas, tem, nas condições de uma revolução, as vantagens incomportáveis: basta lembra
que as dumas democráticas, eleitas na base do regulamento interior do 17 de Abril, não
eram incomodadas por ninguém nem por nada, acharam-se absolutamente impotentes
em concorrer com os sovietes. Mas, com todas as vantagens da sua ligação orgânica
com as fábricas e os regimentos, isto é com as massas activas, os sovietes não deixam
por isso de representar e, em consequência, não estão excluídos das convenções e das
deformações do parlamentarismo.
A contradição, numa representação soviética, consiste nisto, por um lado, ela é
necessária para a acção das massas, e que, por outro, ela torna-se facilmente para esta
acção um estorvo conservador. A questão prática da contradição é, em cada ocasião,
renovar a representação. Mas esta operação, que não é assim tão simples, é, sobretudo
na revolução, uma dedução da acção directa sobre a qual, em consequência, ela se
atrasa. De qualquer modo, no dia seguinte à meia insurreição de Abril, mais exactamente
do quarto de insurreição, porque a meia insurreição se produzirá em Julho, - via-se na
sessão do Soviete os mesmos deputados que na véspera, os quais, se encontram aí no
ambiente do costume, votavam as proposições dos dirigentes habituais.
Mas isso não significa de modo nenhum que a tempestade de Abril tenha passado
sem deixar traços no Soviete no sistema de Fevereiro em geral e, tanto mais, sobre as
próprias massas. A grande intervenção dos operários e dos soldados nos acontecimentos
políticos, ainda se não levada até ao fim, modificou a situação política, dá um impulso ao

252
movimento geral da revolução, acelera os agrupamentos inevitáveis e obriga os políticos
de gabinete e de corredor a esquecer os seus planos da véspera e adaptar os seus actos
às novas circonstancias.
Após os conciliadores terem liquidado a explosão da guerra civil, imaginando-se que
tudo voltava ao mesmo, a crise governamental apenas se iniciava. Os liberais não
queriam mais governar sem a participação directa dos socialistas no poder. Estes últimos,
forçados pela lógica da dualidade de poder em aceitar esta condição, exigiram, pelo seu
lado, a prova da liquidação do programa das Dardanelas, o que levou inelutavelmente a
liquidação de Miliokov. No 2 de Maio, este se encontrou na obrigação de abandonar as
cadeiras do governo. A palavra de ordem da manifestação do 20 de Abril realizou-se
assim com um atraso de doze dias e contra a vontade dos líderes do Soviete.
Mas os contratempos e subterfúgios não sublinharam senão mais vivamente a
impotência dos dirigentes. Miliokov, que se dispunha a fazer, com a assistência do seu
general, uma brusca guinada nas relações de força, foi projectado ruidosamente para fora
do governo, como uma rolha. O bravo general viu-se obrigado a demitir-se. Os ministros
não pareciam mais festivos. O governo suplicou ao Soviete que autorizasse uma
coligação. Tudo isso porque as massas tinham apoiado na alavanca.
Isso não significa portanto que os partidos conciliadores não se aproximassem dos
operários e dos soldados. Ao contrário, os acontecimentos de Abril, tendo revelado as
possibilidades imprevistas que eram latentes nas massas, levaram os líderes democratas
ainda mais para a direita, no sentido do mais estreita aproximação com a burguesia. A
partir desse momento, a linha patriótica predomina. A maioria do comité executivo torna-
se mais concentrada. Os radicais amorfos tais como Sokhanov, Stieklov e outros, que
ainda recentemente inspiravam a política do soviete e tentavam salvaguardar alguma
coisa das tradições do socialismo, são afastados. Tseretelli estabeleceu uma corrente
firmemente conservadora e patriótica, constituindo uma adaptação da política de Miliokov
à representação das massas trabalhadoras.
A conduta do partido bolchevique durante as Jornadas de Abril não foi homogénea.
Os acontecimentos tinham surpreendido o partido sem aviso. A crise interior apenas
terminara, preparava-se activamente a conferência do partido. Sob o impacto da extrema
sobre-excitação nos distritos, certos bolchevique pronunciavam-se pela queda do governo
provisório. O comité de Petrogrado que, ainda no 5 de Março tinha votado uma resolução
de confiança condicional em favor do governo, ficou perplexo. Decidiu-se organizar para o
dia 21 uma manifestação, mas o objectivo não foi definido de forma clara. Uma parte do
comité de Petrogrado convocou os operários e os soldados para a rua com a intenção,
pouco clara, de tentar derrubar à passagem o governo provisório. No mesmo sentido
agiam certos elementos da esquerda, fora do partido. Verosimilmente misturaram-se
também anarquistas, pouco numerosos mas activos. Diversos indivíduos se dirigiam às
tropas, reclamando auto blindados ou reforços em geral, seja para proceder à prisão do
governo provisório, seja para combater o inimigo na rua. A divisão dos auto blindados,
próxima dos bolcheviques, declarou, contudo, que ela não meteria as suas máquinas à
disposição de ninguém sem uma ordem do comité executivo.

253
Os cadetes tentavam por todos os meios de atribuir aos bolcheviques os conflitos
sangrentos que se tinham produzido. Mas uma comissão especial do Soviete estabeleceu
irrecusavelmente que o tiroteio tinha partido primeiro não da rua, mas das portas de
garagem e das janelas. Nos jornais apareceu um comunicado do procurador:
«O tiroteio foi cometido por gente pertencendo à ralé, com intenção de provocar
desordens e sarilhos sempre vantajosos para os vadios.»
A hostilidade em relação aos bolcheviques, do lado dos partidos soviéticos
dirigentes, estava ainda longe de atingir a violência que, dois meses mais tarde, em Julho,
obscureceu definitivamente toda razão e consciência. A magistratura, ainda subsistindo
nos seus antigos quadros, ergueu-se diante da revolução e, em Abril, não se permitia
ainda empregar contra a extrema esquerda os métodos da Okhrana (Segurança) czarista.
O ataque de Miliokov foi, sob este aspecto também, afastado sem dificuldade.
O comité central repreendeu à ala esquerda dos bolcheviques e declarou, no dia 21
de Abril, que o Soviete tinha tido, segundo ele, perfeitamente razão de proibir as
manifestações, e que era preciso obedecer sem condições. «A palavra de ordem: «A
baixo o governo provisório!» não é correcto presentemente – dizia a resolução do comité
central – porque falta de uma maioria popular sólida (isto é consciente e organizada)
dirigida pelo proletariado revolucionário, essa palavra de ordem ou é uma frase ou leva a
tentativas aventureiras.» Como tarefa do momento, a resolução indica a crítica, a
propaganda e a conquista da maioria nos sovietes, como premissa da conquista do poder.
Esta declaração, aos olhos dos adversários, parecia ser qualquer coisa como um
recuo dos dirigentes assustados, ou como uma subtil manobra. Mas nós já conhecemos
já a posição fundamental de Lenine sobre a questão do poder; agora, ele ensinava ao
partido a aplicação das «teses de Abril» segundo a experiência dos acontecimentos.
Três semanas antes, Kamenev declarava-se «feliz» por votar com os mencheviques
e os socialistas-revolucionários por uma única e mesma resolução sobre o governo
provisório, e Estaline desenvolvia a teoria da divisão do trabalho entre cadetes e
bolcheviques. Como já estão longe, essas jornadas e essas teorias! Após a lição dos dias
de Abril, Estaline, pela primeira vez, pronunciou-se, enfim, contra a teoria de um
«controlo» benevolente sobre o governo provisório, abandonando com circunspecção as
própria opinião da véspera. Mas esta manobra passou despercebida.
Em que consistia o espírito aventuroso da política de certos elementos do partido
perguntava Lenine à conferência que se abria imediatamente após os dias de pânico.
Este espírito identificava-se nas tentativas de acção violenta onde, pela violência
revolucionária, ainda não havia ou não havia mais lugar.» Pode-se derrubar aquele que o
povo conhece como um opressor. Ora, actualmente, não há opressores, os canhões e as
espingardas estão entre as mãos dos soldados e não dos capitalistas; os capitalistas
vencem neste momento não pela violência, mas pelo engano, e não se poderia gritar
presentemente pela violência: não tem sentido... Nós desejamos somente operar um
reconhecimento pacífico, ver as forças do inimigo, sem entrar em confronto; ora, o comité
de Petrogrado voltou-se demasiado à esquerda... Com uma palavra de ordem justa: «Viva

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os sovietes » deu-se uma que não é justa: «Abaixo o governo provisório!» No momento
da acção, ir «um pouco demasiado à esquerda» não é oportuno. Nós consideramos isso
como um crime muito grave, como sendo a desorganização.»
O que existe na base dos acontecimentos dramáticos da revolução? Deslocações
nas relações de força. Porquê elas são provocadas? Principalmente pelas oscilações das
classes intermediárias, do campesinato, da pequena burguesia, do exército. A amplitude é
formidável entre o imperialismo dos cadetes é o bolchevismo. Essas oscilações
produzem-se simultaneamente em dois sentidos contrários. A representação política da
pequena burguesia, suas cimeiras, os líderes conciliadores, todos tendem antes de mais
para a direita, do lado da burguesia. As massas oprimidas, em contrapartida, terão um
impulso cada vez mais marcado e resoluto cada vez para a esquerda. Ao pronunciar-se
contra a mentalidade aventurosa manifestada pelos dirigentes da organização de
Petrogrado, Lenine faz uma reserva: se as classes intermediárias pendem do nosso lado
seriamente, profundamente, inflexivelmente nós não hesitaremos um minuto em deslocar
o governo do palácio Maria. Mas ainda não chegamos lá. A crise de Abril que se mostrou
na rua «não é a primeira, nem a última oscilação da massa pequena-burguesa e meio
proletária». A nossa tarefa é ainda pelo momento «explicar pacientemente», preparar o
movimento seguinte, mais profundo, mais consciente, das massas na nossa direcção.
No que diz respeito ao proletariado, a sua conversão no sentido dos bolcheviques
tomou, no decorrer de Abril, um carácter nitidamente marcado. Operários apresentavam-
se aos comités do partido e perguntavam como obter a sua transferência do partido
menchevique para o partido bolchevique. Nas fábricas, começaram a questionar com
insistência os seus deputados sobre a política exterior, a guerra, o duplo poder, o
abastecimento, e, o resultado desses exames, os deputados socialistas-revolucionários
ou mencheviques eram cada vez mais suplantados pelos bolcheviques. A viragem brusca
começou pelos sovietes do bairro, como os mais próximos das fábricas. Nos sovietes do
bairro de Vyborg, de Vassilievsyk-Ostrov, de Narva, os bolcheviques encontraram-se, de
uma só vez, cerca do fim de Abril, em maioria. É um facto de alto significado, mas os
líderes do comité executivo, absorvidos pela alta política, consideravam com arrogância a
confusão dos bolcheviques nos bairros operários.
Todavia, os distritos começavam a fazer cada vez mais pressão sobre o centro. Nas
fábricas, independentemente do comité de Petrogrado, iniciou-se uma campanha
enérgica e fructuosa pela renovação da representação no Soviete dos deputados
operários da capital. Sokhanov considera que no início de Maio, os bolcheviques tinham a
seu favor um terço do proletariado de Petrogrado. De qualquer modo, pelo menos e era o
terço mais activo. As linhas amorfas de Março apagavam-se, as direcções políticas
desenhavam-se, as teses «fantasistas» de Lenine tomavam forma nos bairros de
Petrogrado.
Cada passo em frente da revolução é provocada ou forçada por uma intervenção
directa das massas, completamente inesperada, na maioria dos casos, pelos partidos
soviéticos. Após a insurreição de Fevereiro, quando os operários e soldados derrubaram a
monarquia sem pedir licença a ninguém, os líderes do comité executivo consideraram que

255
o papel das massas estava preenchido. Mas eles cometeram um erro fatal. As massas
não se dispunham de modo algum a deixar a cena. Já, no princípio de Março, no
momento da campanha pelo dia das oito horas, os operários tinham arrancado uma
concessão ao capital, ainda que tivessem sido sob o peso dos mencheviques e dos
socialistas-revolucionários. O Soviete teve que registar uma vitória obtida sem ele e
contra ele. A manifestação de Abril trouxe um segundo reajustamento do mesmo género.
Cada uma das manifestações de massa, independentemente do seu objectivo directo, é
um aviso à direcção. A admoestação é primeiro moderada, mas torna-se seguidamente
cada vez mais ousada. Em Julho, ela torna-se ameaçadora. Em Outubro, é a conclusão.
Em todos os momentos críticos, as massas intervêm como «forças elementares» -
obedecendo, noutros termos, às suas próprias deduções de experiência política e aos
seus líderes ainda não reconhecidos oficialmente. Ao assimilar tal ou tais elementos de
agitação, as massas, espontaneamente, ao traduzem as deduções em linguagem de
acção. Os bolcheviques, como partido, ainda não dirigem a campanha das oito horas. Os
bolcheviques não tinham chamado as massas armadas a descer à rua no início de Julho.
Foi somente em Outubro que o partido conseguirá definitivamente a acertar o passo e
caminhará à cabeça da massa, não para uma manifestação mas para a insurreição.

256
A primeira coligação
A despeito de todas as teorias, declarações e marcas oficiais, o poder só pertence
ao governo provisório no papel. A revolução, apesar da resistência da pretendida
democracia, avançava, levantava novas massas, consolidava os sovietes, armava, ainda
se de forma limitada, os operários. Os comissários provinciais do governo e «os comités
de acção social» que se encontravam junto deles e nas quais predominavam, como
habitualmente, representantes das organizações burguesas, eram expulsas naturalmente
e sem esforço pelos sovietes. Em certos casos, quando os agentes do poder central
teimavam, graves conflitos surgiam. Os comissários acusavam os sovietes provinciais de
desconhecer o poder central. A imprensa burguesa metia-se a gritar, dizendo que
Cronstadt, Schlusselburgo ou Tsaritsyne se tinham separado da Rússia e transformaram-
se em repúblicas independentes. Os sovietes locais protestavam contra esta absurdidade.
Os ministros agitavam-se. Os socialistas do governo partiam em passeios pelo país
exortando, ameaçando, justificando-se diante da burguesia. Mas nada de tudo isso não
modificou a relação de forças. A inevitabilidade do processo que sapava o duplo poder
exprimia-se já pelo facto que em ritmos, na verdade desiguais, desenvolviam-se em todo
o país.
Primeiro órgãos de controlo, os sovietes transformavam-se em órgãos
administrativos. Eles não se resignavam a qualquer teoria de divisão dos poderes e
intervinham na direcção do abastecimento e de transporte mesmo nos assuntos
judiciários. Os sovietes decretavam, sob a pressão dos operários, o dia de oito horas de
trabalho, eliminando os administradores demasiado reaccionários, destituíam os mais
insuportáveis dos comissários do governo provisório, procediam a detenções e a buscas,
proibiam os jornais hostis. Sob a influência das dificuldades de abastecimento
constantemente agravadas e de penúria de mercadorias, os sovietes provinciais
comprometiam-se na via das taxações, nas proibições de saída das reservas
departamentais e das requisições. Portanto, à cabeça dos sovietes, em todo o lado,
encontravam-se socialistas-revolucionários e mencheviques que afastavam com
indignação a palavra de ordem bolchevique: «todo o poder aos sovietes».
Extremamente edificante, sob esse aspecto, aparece a actividade do Soviete de
Tiflis, no próprio centro da Gironde menchevique, que deu à Revolução de Fevereiro
líderes tais que Tseretelli e Tchkheidze, e seguidamente abrigou-os quando dispensaram
em vão os últimos recursos em Petrogrado. O Soviete de Tiflis, dirigido por Jordania,
futuro chefe da Georgia independente encontrava-se, a cada instante, obrigado a
caminhar segundo os princípios do partido menchevique que aí dominava e agia como um
poder. O Soviete confiscava para as suas necessidades uma tipografia privada, procedia
a prisões, concentrava entre as suas mãos a instrução judiciária e os tribunais em
questões políticas, racionava o pão, taxava os produtos alimentares e os objectos de
primeira necessidade. A discordância entre a doctrina oficial e os factos vitais, que
estabeleceram-se logo nos primeiros dias, aumentaram no decorrer de Março e Abril.

257
Em Petrogrado, respeitava-se, pelo menos, o decoro, ainda se, nós vimo-lo, nem
sempre. As jornadas de Abril, todavia, mostraram de maneira pouco equívoca a
impotência do governo provisório, o qual não encontrou, mesmo na capital, sérios apoios.
Nos primeiros dias de Abril, o governo definhava e apagava-se. «Kerensky declarava com
angústia que o governo já não existia, que em vez de trabalhar deliberava somente sobre
a sua própria situação» (Stankevitch). Desse governo que se pode dizer, em suma, que,
até às jornadas de Outubro, passou por crises nos momentos difíceis, e que, nos
intervalos das crises... existia. Continuamente deliberando «sobre a sua situação», não
tinha tempo de se ocupar dos assuntos.
Da crise provocada em Abril pela repetição geral das batalhas futuras, podia-se
conceber teoricamente três saídas. Ou o poder devia voltar integralmente à burguesia: o
que só era possível através da guerra civil; Miliokov tentou, mas falhou. Ou seria preciso
remeter todo o poder aos sovietes: poder-se-ia aí chegar sem qualquer guerra civil,
levantando somente o braço – bastava querer. Mas os conciliadores não queriam e as
massas mantinham os conciliadores na sua sua estima, mesmo se enfraquecida. Assim,
as duas saídas principais – na linha burguesa como na linha proletária – encontraram-se
fechadas. Havia uma terceira possibilidade: a meia saída confusa, híbrida, traidora de um
compromisso. O que se nomeia: coligação.
Pelo fim das jornadas de Abril, os socialistas nem mesmo pensaram numa coligação:
esses homens, em geral, nunca previram nada. Pela resolução do 21 de Abril, o comité
executivo tinha oficialmente transformado o duplo poder de facto em princípio
constitucional. Mas a coruja da sabedoria, ainda desta vez, voou muito mais tarde: a
consagração jurídica do dualismo instituido em Março – os reis e os profetas – teve lugar
no momento onde esta forma acabara de explodir sob a pressão das massas. Os
socialista tentaram fechar os olhos sobre a questão. Miliokov conta que, o governo tendo
colocado a questão da coligação, Tseretelli declarou isto: «Qua vantagem vocês tiram da
nossa entrada no governo? Porque enfim... no caso que vocês não sejam conciliantes,
seremos forçados a sair ruidosamente do governo.» Tseretelli tentava fazer medo aos
liberais ao prometer-lhes «ruído».
Como sempre, para motivar a sua política, os mencheviques apelaram aos
interesses da própria burguesia. Mas a água subia-lhes até às barbas. Kerensky esforçou-
se em intimidar o comité executivo: «O governo encontra-se hoje numa posição
insustentável; os rumores da demissão que correm não correspondem a qualquer
manobra política.» Ao mesmo tempo, exercia-se a pressão do lado das esferas
burguesas. A duma municipal de Moscovo votou uma resolução em favor da coligação.
No 26 de Abril, quando o terreno estava preparado, o governo provisório, num manifesto
especial, proclamou a necessidade de juntar aos trabalhos do Estado «as forças criadoras
activas do país que ainda não participavam nele.» A questão estava claramente colocada.
Contudo, a opinião resistia energicamente à coligação. No fim de Abril
pronunciaram-se contra a entrada dos socialistas no governo os sovietes de Moscovo, de
Tiflis, de Odessa, de Ekatarinburgo, de Nijni-Novgorod, de Tver e outros. Os seus motivos
foram nitidamente exprimidos por um dos líderes mencheviques em Moscovo: se os

258
socialistas entram no governo, não haverá ninguém para guiar o movimento de massas
«para uma determinada direcção». Mas era difícil fazer com que se admitisse esta
consideração aos operários e aos soldados contra os quais ela era dirigida. As massas,
na medida que elas ainda não seguiam os bolcheviques, eram todas pela entrada dos
socialistas no governo. Se é bom que Kerensky seja ministro, seis Kerensky ainda melhor.
As massas não sabiam que isso se chama uma coligação burguesa, e que esta queria
dissimular-se por detrás dos socialistas para agir contra o povo. A caserna, entreviam a
coligação de forma diferente que no palácio Maria. As massas queriam, por intermédio
dos socialistas, expulsar a burguesia do governo. Foi assim que duas pressões indo no
sentido contrário combinaram-se por um momento numa só.
Em Petrogrado, um certo número de contingentes militares, cuja divisão de autos
blindados simpatizava com os bolchevique, se pronunciaram por um governo de
coligação. No mesmo sentido votou, uma esmagadora maioria, a província. As ideias da
coligação predominavam entre os socialistas; eles temiam ter de entrar no governo sem
os mencheviques. Pela coligação declarou-se enfim o exército. Um dos seus delegados
exprimiu, mais tarde, em Junho, no Congresso dos sovietes, a atitude da frente em
relação ao poder:
«Nós pensamos que a queixa que escapa ao exército, quando ele soube que os
socialistas não queria entrar no governo, trabalhar em comum com os homens nos quais
não confiavam, enquanto que todo o exército era forçado em continuar a morrer com
homens em quem ele não confiava – nós pensamos que esta queixa não tinha sido
ouvida em Petrogrado.»
Nesta questão como em todas as outras, a guerra tinha uma importância decisiva.
Os socialistas dispunham-se primeiro a suspender diante da guerra, como diante do
poder, em ganhar tempo. Mas a guerra não esperava. Os Aliados também não. A frente
não queria esperar mais. Até ao momento da crise governamental chegavam ao comité
executivo delegados da frente que colocavam aos seus líderes esta questão: fazemos a
guerra ou não? O que significava: tomais a responsabilidade da guerra ou não? Era
impossível de escapar-lhe pelo silêncio. A mesma questão era posta pela Entente numa
linguagem meio ameaçadora.
A ofensiva de Abril sobre a frente Oeste da Europa custou muito caro aos Aliados e
não deu resultados. No exército francês, algo foi abanado sob a influência da Revolução
russa e o fracasso da própria ofensiva sobre a qual se tinham planeado tantas
esperanças. O exército, segundo o marechal Pétain, «dobrava à mão». Para afastar esse
processo ameaçador, o governo francês necessitava de uma ofensiva russa e, esperando,
pelo menos, uma firme promessa ofensiva. Além do alívio material que devia resultar daí,
era preciso, o mais cedo possível, arrancar a aureola de paz à Revolução russa, extirpar
toda esperança do coração dos soldados franceses. Comprometer a revolução tornando-a
cúmplice dos crimes da Entente, pisar a bandeira insurreccional dos operários e soldados
russo no sangue e na lama da carnificina imperialista.
Para atingir esse objectivo elevado, todas as alavancas foram utilizadas. Entre elas,
os sociais-patriotas da Entente não foram metidos na última fila. Os mais experientes

259
dentre ele foram enviados em missão na Rússia revolucionária. Chegaram preparados, a
consciência ligeira e a língua solta. «Os sociais-patriotas do estrangeiro – escreveu
Sokhanov – foram recebidos de braços abertos no palácio Maria... Branting, Cachin, O'
Grady, de Bruckere e outros, sentiam-se como em casa e constituíam com os nossos
ministros uma frente única contra o Soviete.» É preciso reconhecer que mesmo o Soviete
conciliador nem sempre à vontade com esses senhores.
Os socialistas aliados percorreram as frentes. «O general Alexeiev – escreveu
Vandervelde – fazia tudo para que os nossos esforços se juntassem aos que um pouco
mais cedo tinham feito das delegações de marinheiros do mar Negro, Kerensky, Albert
Thomas, com o objectivo de completar o que ele chamava a preparação moral da
ofensiva. «O presidente da IIª Internacional e antigo chefe do estado-maior de Nicolau II
encontraram assim uma linguagem comum na luta pelos claros ideais da democracia.
Renaudel, um dos líderes do socialismo francês pôde exclamar com alívio: «Agora, nós
podemos falar sem corar da guerra do direito.» Com um atraso de três anos, a
humanidade aprendeu que essa gente tinha motivo para corar. No primeiro de Maio, o
comité executivo, tendo passado por todas as fases de hesitação imagináveis, por uma
maioria de quarenta e um votos contra dezoito, e três abstenções, decidiu, enfim,
participar no governo de coligação. Votaram contra somente os bolchevique e um
pequeno grupo de mencheviques internacionalistas. Não deixa de ter interesse notar que,
como vítima de uma aproximação mais estreita entre a democracia e a burguesia, caiu o
líder confesso desta última, Miliokov. «Não fui eu quem saiu, meteram-me na rua», dizia
ele a seguir. Gotchkov, eliminou-se ele próprio desde do 30 de Abril, ao recusar assinar a
«Declaração dos direitos do soldado». A que ponto, desde desses dias, os liberais tinha
ideias negras, via-se assim que o comité central do partido cadete, para salvar a
coligação decidiu não insistir sobre a manutenção de Miliokov no antigo governo. «O
partido traiu o seu líder», escreveu o cadete de direita Izgoiev. Aliás, esse partido não
tinha muita escolha. O mesmo Izgoiev declara com toda a razão: «No fim de Abril, o
partido cadete foi batido em toda a linha. Moralmente, recebeu um golpe do qual ele não
se levantará mais.» Mas mesmo na questão de Miliokov, a última palavra pertencia à
Entente. A Inglaterra estava completamente de acordo para aceitar a substituição dos
patriotas das Dardanelas por um «democrata» mais ponderado. Henderson, que tinha
chegado a Petrogrado com todos os poder para substituir Buchanan em caso de
necessidade, como embaixador, após ter tomado conhecimento da situação, reconheceu
que esta medida seria superflua. Com efeito, Buchanan estava no lugar certo, porque se
mostrou o adversário resoluto das anexações, na medida que estas não respondiam aos
apetites da Grande-Bretanha: «Do momento que a Rússia não necessita de
Constantinopla – sussurrava meigosamente na orelha de Terechtchenko – mais depressa
ela o dirá, melhor será.» A França tinha começado por apoiar Miliokov. Mas aqui Thomas
jogou o seu papel que, segundo Buchanan e os líderes soviéticos, se pronunciou contra
Miliokov. Foi assim que o político odioso das massas foi abandonado pelos Aliados, pelos
democratas e, finalmente, pelo seu próprio partido.
Miliokov não merecia, em resumo, um castigo tão cruel, pelo menos vindo de tais
mãos. Mas a coligação reclamava uma vítima expiatória. Miliokov foi representado às

260
massas como um espírito malicioso que obscurecia a grande marcha triunfal para a paz
democrática. Destacando-se de Miliokov, a coligação, do mesmo gesto, lavava-se dos
pecados do imperialismo. A composição do governo de coligação e o seu programa foram
aprovados pelo Soviete de Petrogrado, no 5 de Maio. Os bolcheviques só reuniram cem
votos contra a coligação. «A assembleia saudava calorosamente os oradores ministros, -
nota ironicamente Miliokov, contando esta sessão. Uma tempestade de aplausos acolheu
todavia Trotsky, chegado da velha América, «velho líder da primeira revolução», que se
queixava claramente da entrada dos socialistas no governo, afirmando que, logo, o «duplo
poder» não seria suprimido, mas «somente transferido nos próprios ministérios», e que o
verdadeiro poder único que «salvaria» a Rússia apareceria somente quando seria feito «o
passo seguinte – a transmissão do poder às mãos dos deputados operários e soldados».
Então abrir-se-ia «uma nova época – uma época de sangue e de ferro, não só na luta das
nações contra nações, mas na luta da classe sofredora, oprimida, contra as classes
dirigentes». É assim que Miliokov representa as coisas. Em conclusão do seu discurso,
Trotsky formulava três regras de política das massas - «três mandamentos
revolucionários: não confiar na burguesia; controlar os dirigentes; contar unicamente
sobre as suas próprias forças.»
Sobre esse discurso, Sokhanov nota isto: «Evidentemente, ele não podia contar
sobre a aprovação. «E efectivamente: a conduta estabelecida pelo orador foi mais fria que
o acolhimento. Sokhanov, extremamente sensível aos rumores de corredor entre os
intelectuais, acrescenta isto: «Dele, que ainda não tinha aderido ao partido bolchevique, o
rumor já corria que ele era «pior que Lenine».
Os socialistas tomaram seis pastas sobre quinze. Eles queriam ser minoritários.
Mesmo após se decidirem em participar abertamente no poder, continuavam a jogar ao
quem perde ganha. O príncipe Lvov continuava primeiro-ministro. Kerensky tornava-se
ministro da Guerra e da Marinha. Tchernov ministro da Agricultura. Miliokov, no posto de
ministro dos Assuntos estrangeiros, foi substituído por especialista dos bailados de opera,
Terechtchenko, tornava-se ao mesmo tempo homem de confiança de Kerensky e de
Buchanan. Todos os três estavam de acordo sobre o ponto que Rússia podia
perfeitamente passar-se de Constantinopla. À cabeça da Justiça foi colocado o
insignificante advogado Pereversev, que obteve a seguir a efémera celebridade, em
Julho, por ocasião do processo dos bolcheviques. Tseretelli contentou-se com a pasta do
Correios e Telégrafos, afim de guardar o seu tempo para o comité executivo. Skobelev,
ministro do Trabalho, prometeu, num momento caloroso, reduzir os lucros dos capitalistas
a cem por cento integralmente – esta frase voou de boca em boca. Para fazer simetria, foi
nomeado como ministro do Comércio e da Indústria um grande capitalista moscovita,
Konovalov. Levou com ele algumas personagens da Bolsa de Moscovo, a quem foram
confiados os postos muito importantes no Estado. Aliás, nos quinze dias, Konovalov
demitiu-se, protestando por esse meio contra a «anarquia» na economia geral, enquanto
que Skobelev, mesmo antes dele, tinha renunciado a atacar os lucros e ocupava-se da
luta contra a anarquia: abafava as greves, convidando os operários a limitarem-se eles
próprios.

261
A declaração do governo consistia, como é preciso, vindo de uma coligação, em
lugares comuns. Ela mencionava uma política activa exterior em favor da paz, a procura
de solução de abastecimento, e o exame preparatório da questão agrária. Eram frases
redondantes. O único ponto sério, pelo menos nas intenções, precisava que o exército
estaria preparado «para as operações defensivas e ofensivas para evitar a derrota
possível da Rússia e das nações aliadas». Essa tarefa resume-se, em suma, o interesse
capital da coligação que se constituía como o último motivo da Entente e a Rússia. «Um
governo de coligação escrevia Buchanan – representa para nós a última e quase
esperança de salvação, para a situação militar na frente.»
Foi assim que, por detrás das plataformas, os discursos, as conciliações e os votos
dos líderes liberais e democratas da Revolução de Fevereiro, mantinha-se o gerente
imperialista, na pessoa da Entente. Mostrando-se forçados a entrar tão apressadamente
na composição do governo, em nome dos interesses da frente da Entente hostil à
revolução, os socialistas tomaram para eles cerca de um terço do poder e a totalidade da
guerra.
No novo ministro dos Assuntos estrangeiros teve que, durante quinze dias, diferir a
publicação das respostas dos governos aliados à declaração do governo de coligação. «A
actividade política exterior em favor da paz» consistia doravante nisto que Terechtchenko
corrigia com aplicação os telegramas diplomáticas que redigiam para ele os velhos
serviços da chancelaria e que apagando «reivindicações», escrevia « justas exigências»,
ou então em vez de garantir dos interesses», escrevia «o bem dos povos». Miliokov,
rangendo os dentes, disse do seu sucessor «Os diplomatas aliados sabem que a
terminologia «democrática» dos seus despachos era uma concessão involuntária às
exigências do momento, e consideravam-a com indulgência.»
Thomas e Vandervelde recentemente chegados, não ficavam de braços cruzados:
eles aplicavam-se com zelo a interpretar «o bem dos povos» num sentido conforme às
necessidade da Entente e trabalhavam não sem sucesso os ingénuos do comité
executivo. «Skobelev e Tchernov – comunicava Vandervelde – protestam energicamente
contra qualquer ideia de paz prematura.» não era de admirar que Ribot, apoiando-se
sobre tais colaboradores, tenha podido declarar, desde do dia 9 de Maio, ao parlamento
francês, que se dispunha a dar uma resposta satisfatória a Terechtchenko, «sem
renunciar ao que quer que seja.»
Sim, os verdadeiros mestres da situação não tinham de forma alguma intenção de
deixar perder-se o que estava para colher. Justamente, nesses dias, a Itália proclamava a
independência da Albania e, ao mesmo momento, colocava esta sob a sua protecção.
Não era uma má lição das coisas. O governo provisório dispunha-se a protestar, não tanto
em nome da democracia mas em razão da ruptura do «equilíbrio» nos Balcãs, mas a sua
impotência reduzia-o logo a morder a língua.
Nada de novo na política exterior da coligação senão a sua aproximação apressada
com a América. Esta nova amizade oferecia três vantagens não desprovidas de
importância: os Estados-Unidos não estavam tão comprometidas pelas ignomínias da
guerra como a França e a Inglaterra; a república transoceânica abria à Rússia grandes

262
perspectivas em matéria de empréstimos e de produtos de guerra; enfim, a diplomacia de
Wilson – combinação de hipocrisia democrática com a vigarice – correspondia melhor ao
mundo das necessidades estilistas do governo provisório. Tendo enviado à Rússia a
missão do senador Root, Wilson dirigiu ao governo provisório um dos seus mandamentos
de pastor no qual dizia: «Nenhum povo não deve ser submetido pela força a uma
soberania sob a qual ele não quer viver.» O objectivo da guerra estava definido pelo
presidente americano de uma maneira pouco clara mas sedutora: «Assegurar a paz futura
do mundo e, no futuro, o bem-estar e a felicidade dos povos.» Que poderia haver de
melhor? Terechtchenko e Tseretelli só esperavam isso; novos créditos e os lugares
comuns do pacifismo. Com a ajuda dos primeiros e sob a cobertura dos segundos, podia-
se proceder aos preparativos da ofensiva que exigia o Shylock das margens do Sena
sacudindo furiosamente no ar todas as letras vencidas.
Desde do 11 de Maio, Kerensky partia para a frente, abrindo uma campanha de
agitação para a ofensiva. «A vaga de entusiasmo no exército aumentou e alargou-se»,
escrevia ao governo provisório o novo ministro da Guerra ofegante na exaltação do seu
próprio discurso. No 14 de Maio, Kerensky editou uma ordem aos exércitos: «Vocês irão
onde vos conduzirão vossos chefes», e para enfeitar esta perspectiva bem conhecida e
pouco sedutora para os soldados, acrescentou: «Vocês levarão a paz na ponta das
vossas baionetas.» No 22 de Maio foi destituído o prudente general Alexeiev que era aliás
bastante desprovido de talento, e foi substituído, como generalíssimo, por um homem
mais flexível e entreprenante, Brussilov. O democrata preparava com todas as forças a
ofensiva, isto é a grande catástrofe da Revolução de Fevereiro.
O Soviete era o órgão dos operários e soldados, isto é dos camponeses. O governo
provisório era o órgão da burguesia. A comissão de contacto era o órgão da conciliação. A
coligação simplificou o mecanismo ao transformar o próprio governo provisório numa
comissão de contacto. Mas a dualidade de poderes não era de forma alguma eliminada
assim. Que Tseretelli fosse membro da comissão de contacto ou ministro dos Correios,
não era solução. No país existiam duas organizações de Estado incompatíveis: uma
hierárquica de antigos e de novos funcionários, nomeados do alto, tendo à cabeça o
governo provisório, e um sistema de sovietes eleitos cujas ramificações desciam até à
mais longínqua das companhias na frente.
Esses dois sistemas governamentais apoiavam-se em classes diferentes que ainda
só estavam preparando os seus ajustamentos de contas históricas. Ao se coligando, os
conciliadores esperavam a abolição pacífica e gradual do sistema soviético. Parecia-lhes
que a força dos sovietes, concentrada em suas pessoas, se transmitiam desde então ao
governo oficial. Kerensky afirmou categóricamente a Buchanan que «os sovietes morriam
de morte natural». Esta esperança tornar-se-ia logo a doutrina oficial dos chefes
conciliadores. No seu pensamento, o centro de gravidade da vida em todos os pontos do
país devia passar dos sovietes a novos órgãos democráticos de administração autónoma.
O lugar do comité executivo centra devia ser ocupada pela Assembleia constituinte. O
governo de coligação dispunha-se assim a fazer a ligação para um regime de república
burguesa parlamentar.

263
Mas a revolução não queria e não podia enveredar por esse caminho. A sorte das
novas dumas municipais, era, nesse sentido, um presságio inequívoco. As dumas tinham
sido eleitas sobre a base do direito eleitoral mais largo. Os soldados tinham votado
igualmente com a população civil, a mulheres em igualdade com os homens. Quatro
partidos participavam na luta. O Novoie Vremia, antigo órgão oficioso do governo czarista,
um dos jornais mais desonestos do mundo – e o que não é pouco! - exortava a gente de
direita, os nacionalistas, os outubristas, em votar nos cadetes. Mas quando a impotência
política das classes proprietárias se revelou inteiramente, a maior parte dos jornais
burgueses lançaram esta palavra de ordem: «Votai por quem quiserem, salvo nos
bolcheviques!» Em todas as dumas e os zemstvos, os cadetes constituíram a ala direita,
os bolcheviques eram uma minoria de esquerda que se reforçava. A maioria,
habitualmente esmagadora, pertencia aos socialistas-revolucionários e aos
mencheviques.
As novas dumas, parecia, distinguiam-se dos sovietes por uma representação mais
completa, deveriam ter gozado de uma maior autoridade. Além disso, como instituições
sociais juridicamente estabelecidas, as dumas tinham a enorme vantagem de ser
oficialmente apoiadas pelo Estado. A milicia, o abastecimento, os transportes urbanos, a
instrução pública pertenciam oficialmente às dumas. Os sovietes, como instituições
«privadas», não tinham nem orçamento, nem direitos. E, contudo, o poder continuava
entre as mãos dos sovietes. As dumas representavam em suma comissões municipais
perto dos sovietes. A competição entre o sistema soviete e a democracia de forma pura
era, pelos seus resultados, tanto mais impressionante que ela se manifestava sob a
direcção dos mesmos partidos, socialistas-revolucionários e mencheviques, os quais,
dominado nas dumas como nos sovietes, estavam profundamente persuadidos que os
sovietes deviam ceder o lugar às dumas, e elas próprias faziam nesse sentido tudo o que
podiam.
A explicação desse fenómeno notável, ao qual reflectiam-se relativamente pouco no
turbilhão dos acontecimentos, é simples: as municipalidades, como em geral todas as
outras instituições da democracia, não podem agir senão na base das relações sociais
perfeitamente estáveis, isto é de um sistema determinado de propriedade. Ora, a
revolução consiste essencialmente nisto que ela mete em questão esta base das bases e
que a resposta não pode ser dada senão por uma verificação revolucionária das relações
entre as forças de classes. Os sovietes, apesar da política de seus dirigentes, eram a
organização combativa das classes oprimidas que, em parte meio conscientemente, se
agrupavam estreitamente para modificar as bases da estrutura social.
As municipalidade davam por outro lado uma representação igual a todas as classes
da população trazidas sob a denominação abstracta de cidadãos, e pareciam muito,
nessas circunstâncias revolucionárias, a uma conferência diplomática que se explica
numa linguagem convencional e hipócrita, no mesmo momento onde os campos hostis
que ela representa se preparam febrilmente para a batalha. Na marcha diária da
revolução, as municipalidades arrastam ainda uma existência meio fictícia. Mas nos
momentos decisivos, quando a intervenção das massas determinava a direcção ulterior
dos acontecimentos, as municipalidades saltavam, os seus elementos constitutivos

264
encontravam-se situados nos lados opostos da barricada. Bastava confrontar os papéis
paralelos dos sovietes e das municipalidades no decorrer do mês de Maio a Outubro para
prever longamente com antecipação a sorte da Assembleia constituinte.
O governo de coligação não se apressava em convocar esta última. Os liberais que,
no governo, a despeito da aritmética democrática, estavam em maioria, não tinham de
jeito nenhum pressa em ver, numa Assembleia constituinte, a impotente ala direita que
eles eram nas novas dumas. A conferência especial instituida pela convocação da
Assembleia constituinte só se meteu ao trabalho no fim de Maio, três meses após a
insurreição. Os juristas liberais cortavam cada cabelo em seis, agitavam nas provetas
todos os resíduos democráticos, querelavam interminavelmente sobre os direitos
eleitorais do exército, perguntando-se se era preciso ou não dar o direito de voto aos
desertores que se contavam por milhões e aos membros da antiga família reinante que se
contavam por dezenas. Tanto que possível, não se dizia uma palavra da data da
convocação. Levantar esta questão na conferência era geralmente considerado como
uma falta de tacto que só os bolcheviques eram capazes.
As semanas passavam, mas, apesar das esperanças e predições dos conciliadores,
os sovietes não agonizavam. De tempos em tempos, adormecidos e desconcertados
pelos seus chefes, eles caíam, na verdade, numa certa prostração, mas o primeiro sinal
de perigo os remetia de pé e manifestavam incontestavelmente para todos que os
sovietes eram os mestres da situação. Ao tentar sabotá-los os socialistas-revolucionários
e os mencheviques eram forçados, em todos os casos importantes, em reconhecer a sua
prioridade. Isso exprimia-se nomeadamente no facto que as melhores forças dos dois
partidos estavam concentradas nos sovietes. Para as municipalidade e os zemstvos,
reservava-se gente de segunda ordem, técnicos, administradores. Observava-se também
a mesma coisa entre os bolcheviques. Só os cadetes que não tinham acesso nos
sovietes, concentravam suas melhores forças nos órgãos municipais. Mas a impotente
minoria burguesa não podia fazer deles um apoio.
Assim, ninguém acreditava ter as municipalidades como os seus próprios órgãos. Os
antagonismos constantemente agravados entre operários e proprietários de fábricas,
entre soldados e oficiais, entre camponeses e proprietários nobres, não podiam ser
abertamente debatidos na municipalidade ou num zemstvo, como se discutia entre si, no
Soviete, por um lado, nas reuniões «particulares» da Duma do Estado e em geral em
todas as conferências dos políticos censitários, por outro. Pode-se entender com o
adversário sobre bagatelas, mas não concordar com ele sobre questões de vida ou de
morte.
Se adaptamos a formula de Marx dizendo que o governo é o comité da classe
dominante, seria preciso dizer que os verdadeiros «comités» das classes em luta pelo
poder se encontravam fora do governo de coligação. Em relação ao Soviete,
representado no seio do governo como uma minoria, era absolutamente evidente. Mas
não deixava de ser verdade em relação à maioria burguesa. Os liberais não tinham
qualquer possibilidade de se entender de forma séria e eficaz, na presença dos
socialistas, sobre as questões que tocavam mais a burguesia. A expulsão de Miliokov,

265
líder bem conhecido e incontestável da burguesia, à volta do qual se juntava o estado-
maior dos proprietários, tinha um carácter simbólico, revelando completamente, em todos
os sentidos, a posição excêntrica do governo. A vida evoluía à volta de dois focos onde
um era dirigido para a esquerda e outro para a direita do palácio Maria.
Sem ousar dizer o que pensavam no seio do governo, os ministros viviam numa
atmosfera de convenção que eles próprios criavam. A dualidade de poderes, dissimulada
pela coligação, tornou-se uma escola de equívocos, de astúcia, e, em geral, de toda a
duplicidade. O governo de coligação passou, nos meses seguintes, por uma serie de
crises, de consertos e de remodelações, mas conservou os seus aspectos essenciais de
impotência e de falsidade até ao próprio dia da sua morte.

266
A ofensiva
No exército, como no país, tinha lugar um interrupto agrupamento político das forças:
as camadas inferiores evoluíam para a esquerda, as cimeiras para a direita. Ao mesmo
tempo que o comité executivo se tornava um instrumento da Entente para dominar a
revolução, os comités do exército que se tinham criado na qualidade de representação
dos soldados contra a oficialidade tornavam-se os apoios da oficialidade contra os
soldados.
A composição dos comités era muito diferenciada. Havia um bom número de
elementos patrióticos que identificavam sinceramente a guerra e a revolução,
caminhavam corajosamente para a ofensiva imposta do alto e davam vida por uma causa
que não era a sua. Ao lado deles se encontravam heróis da frase, Kerensky de divisão e
de regimento. Enfim, um bom número de medíocres espertos e desenrascados que
procurando privilégios, emboscavam-se nos comités para escapar às trincheiras. Todo o
movimento de massas, sobretudo na sua primeira fase, leva inevitavelmente à superficie
todas essas variedades humanas. Só o período dos conciliadores foi particularmente rico
em babosos e camaleões. Se as gentes formam um programa, o programa forma também
as gentes. A escola da política de contacto torna-se, na revolução, a escola da briga e das
intrigas.
O regime da dualidade de poderes excluía a possibilidade de criar uma força militar.
Os cadetes, sendo alvo do ódio das massa populares, eram obrigadas, no exército, a
tomar o falso nome de socialistas-revolucionários. Quanto à democracia, ela não podia
regenerar o exército pela própria razão que o impedia de agarrar o poder: isto é
inseparável de isso. Como facto curioso que, todavia, esclarece bastante a situação,
Sokhanov nota que o governo provisório não organizou em Petrogrado uma só revista das
tropas: os liberais e os generais não queriam a participação do Soviete numa revista, mas
compreendiam bem que, sem o Soviete, uma revista seria irrealizável.
Os oficiais superiores ligavam-se cada vez mais aos cadetes – esperando que os
partidos mais reaccionários tivessem levantado a cabeça. Os intelectuais pequeno-
burgueses podiam dar ao exército os efectivos consideráveis de oficiais subalternos, tal
como eles tinham dado tempo no czarismo. Mas não eram capazes de criar um corpo de
comando à sua própria imagem, porque eles próprios não tinham figura própria. Como
mostrou toda a marcha ulterior da revolução, o comando não podia ser recolhido senão tal
que o dava a nobreza e a burguesia (assim fizeram os Brancos), ou recrutado e educado
na base da selecção proletária, como fizeram os bolcheviques. Para os democratas
pequeno-burgueses, nem isto nem aquilo era praticável. Eles deviam persuadir, solicitar,
enganar toda a gente, e quando não chegavam a qualquer resultado, remetiam, em
desespero de causa, o poder aos oficiais reaccionários para inspirar o povo das ideias
justas revolucionárias.

267
Um após outro revelavam as úlceras da velha sociedade, arruinando o organismo do
exército. A questão das nacionalidades, sob todos os seus aspectos – e a Rússia tinha
abundância disso – penetrava cada vez mais profundamente a massa dos soldados, que,
em mais de metade, não se compunha de Grã-Russos. O antagonismos nacionais se
conjugavam e intercalavam-se, sobre diversos planos, com os antagonismos de classe. A
política do governo no domínio nacional como em todos os outros hesitava, confuso e,
seguidamente, parecia duplamente mentirosa. Certos generais namoricavam com
formações nacionais do género do «corpo muçulmano disciplinado à francesa», sobre a
frente romena. Os novos contingentes nacionais mostravam-se habitualmente mais
resistentes que os do antigo exército, porque estavam reunidos à volta de novas ideias,
sob uma nova bandeira. Esta união nacional, todavia, não se aguentou por muito tempo:
ela rebentou logo pelo desenvolvimento ulterior da luta de classes. Mas, já, o próprio
processo das formações de efectivos nacionais, ameaçando estender-se a metade do
exército, metia esta num estado de liquefacção, decompondo os antigos contingentes,
enquanto que os novos ainda não se tinham constituídos. Assim, as calamidades surgiam
de todas as partes.
Miliokov escreveu na sua História que o exército foi devastado «pelo conflito entre as
ideias de disciplina revolucionária e a disciplina militar normal, entre «a democratização»
do exército e a manutenção da sua capacidade combativa», e aí, pela disciplina
«normal», é preciso compreender a que existia no tempo do czarismo. O historiador teria
sabido, parece, que toda grande revolução causou a perca do antigo exército, resultado
de uma coligação não entre os principios abstractos da disciplina, mas entre as classes
vivas. A revolução não admite somente uma severa disciplina no exército, ela cria-a.
Todavia, esta disciplina não pode ser estabelecida por representantes da classe que
derruba a revolução.
«É evidente – escrevia a 26 de Setembro de 1851 um sábio alemão a um outro –
que a desorganização dos exércitos e o relaxamento total da disciplina é tanto a condição
como o resultado de todas as revoluções vitoriosas.» Mas, seguindo os liberais, os
socialistas russos, que tinham atrás deles 1905, não compreenderam nada, mesmo se
reconheceram mais de uma vez que os seus dois mestres alemãs, um era Frederico
Engels e o outro Karl Marx. Os mencheviques acreditavam a sério que o exército que
tinha feito a insurreição continuaria sob o seus antigos chefes da antiga guerra. E essa
gente denunciava os bolcheviques como utopistas.
O general Brussilov caracterizou muito nitidamente, no início de Maio, numa
conferência no Grande Quartel General, o estado da opinião do comando: de quinze a
vinte por cento tinham-se adaptado à nova ordem das coisas por convicção; uma parte
dos oficiais começou a lisonjear os soldados e a incitá-los contra o comando; quanto à
maioria, cerca de setenta e cinco por cento, ela não sabia o que fazer. A esmagadora
maior da oficialidade não valia aliás absolutamente nada do ponto de vista estritamente
militar.
Em conferência com os generais, Kerensky e Skobelev levavam todas as suas
desculpas pela revolução que, infelizmente! «continuava» e que era preciso ter em conta.

268
Sobre isso, um general Cem Negro, Gurko, respondeu como um moralizador: «Vocês
dizem que a «revolução continua». Entendamo-nos bem... Parai a revolução e deixai-nos,
nós militares, fazer o nosso dever até ao fim.» Kerensky, com todo o seu ser, correu
diante dos generais até ao momento onde um deles, o valente Kornilov, por pouco o
estrangulou com abraços.
A política de conciliação em tempos de revolução é uma política de oscilações febris
entre classes. Kerensky era a oscilação em pessoa. Colocado à cabeça do exército que
não se podia geralmente conceber desprovido de um regime claro, Kerensky tornou-se o
instrumento directo da sua decomposição. Denikine dá uma curiosa lista de personagens
do alto comando que foram revocados por não terem sabido se colocar na linha, ainda se
na verdade ninguém soubesse, e Kerensky menos que qualquer um, onde se encontrava
a linha, Alexeiev destituiu o comandante em chefe da frente Rossky e o comandante do
exército Radko-Dmitriev por fraqueza e grande tolerância em relação aos comités.
Brussilov, por motivos identiques, afastou o medroso Iodenitch. Kerensky despediu o
próprio Alexeiev e os comandantes da frente Gurko e Dragomirov por se oporem a
democratização do exército. Pela mesma razão, Brussilov afastou o general Kaledine e, a
seguir, foi ele próprio afastado por ter tido complacências excessivas em relação aos
comités. Kornilov abandonou o comando da região militar de Petrogrado por incapacidade
em entender-se com a democracia. Isso não o impediu de ser nomeado comandante da
frente e, no seguimento, generalíssimo. Denikine foi libertado das suas funções de chefe
do estado-maior de Alexeiev por tendências nitidamente esclavagistas, mas logo foi
nomeado comandante em chefe da frente Oeste. Esse jogo do eixo, que provava que em
cima não sabiam o que queriam, descia por degraus até em baixo, até às companhias
regimentares, e acelerava a decomposição do exército.
Ao mesmo tempo que exigia dos soldados obediência aos oficiais, os próprio
comissários não tinham confiança nestes últimos. No mais alto da ofensiva, numa sessão
do Soviete em Mohilev, do Grande Quartel General, em presença de Kerensky e de
Brussilov, um dos membros do Soviete declarou: «Noventa por cento dos oficiais do
Grande Quartel General criavam, pelos seus actos, um perigo de manifestação dos
contra-revolucionários». Não era um segredo para os soldados. Eles tinham tido
suficientemente tempo de conhecer os seus oficiais antes da insurreição.
No decurso de todo o mês de Maio, quando as tropas tomavam já suas posições
para a ofensiva, o comissário ligado ao 7º exército telegrafava a Kerensky; «Na 12ª
divisão, o 48º regimento avançou completo, os 45º e 46º regimentos avançaram em
metade das suas companhias de linha; o 47º recusou avançar. Entre os regimentos da
13ª divisão, o 50º regimento avançou completamente. O 51º prometeu avançar amanhã; o
49º não avançou, não estando de serviço; o 52º recusou marchar e prendeu todos os
oficiais.» O mesmo quadro se encontrava quase por todo o lado. Em relatório do
comissário, o governo respondeu: «Dissolver o 45º, 46º, 47º e 52º regimentos, levar a
julgamento os oficiais e soldados instigadores da insubordinação.» O tom era ameaçador,
mas isso não fazia medo. Os soldados que não tinham vontade de se bater ne temiam
nem a dissolução de seus regimentos nem o tribunal. Para desdobrar a frente, era preciso
frequentemente alinhar efectivos contra outros. Na maior parte das vezes, eram os

269
cossacos que serviam de instrumentos da repressão, como do tempo do czar, mas agora
eles eram dirigidos por socialistas: não se tratava, com efeito, de defender a revolução?
No 4 de Junho, menos quinze dias antes do início da ofensiva, o chefe do estado-
maior do Grande Quartel General enviou esse relatório: «A frente Norte encontra-se ainda
em estado de fermentação, a confraternização com o inimigo continua, a atitude da
infantaria em relação à ofensiva é negativa... Sobre a frente Oeste, a situação é
indeterminada. Sobre a frente Sudoeste, nota-se um certo melhoramento do estado de
espírito... Sobre a frente romena, não se observa melhoramentos particulares, a infantaria
não quer avançar... »
No 11 de Junho 1917, o coronel comandando o 61º regimento escreve: «Só nos
resta, a mim e aos oficiais, salvar-nos, dado que de Petrogrado, chegou um soldado da 5ª
companhia, um leninista... Muitos dos meus melhores soldados e oficiais já fugiram.» O
aparecimento de um só leninista num regimento era o suficiente para que os oficiais se
metessem em fuga. É evidente que o soldado recém-chegado desempenhava o papel de
primeiro cristal numa solução saturadas. Não se pense, aliás, que se trata aqui
obrigatoriamente de um bolchevique. Nesta época, o comando chamava leninista a todo o
soldado que, mais ousadamente que outros, levantava a voz contra a ofensiva.
Numerosos eram, entre esses «leninistas», os que acreditavam sinceramente que Lenine
tinha sido enviado por Guilherme. O comando do 61º regimento tentou intimidar os seus
soldados ameaçando-os com a repressão governamental. Um desses homens
respondeu: «Derrubámos o antigo governo, faremos o mesmo com Kerensky.» Aí estava
uma nova linguagem. Os soldados alimentavam-se da agitação dos bolcheviques,
procedendo-a de longe.
A frota do mar Negro, que se encontrava sob a direcção dos socialistas-
revolucionários e era considerada, ao contrários das tripulações de Cronstadt, como uma
cidadela do patriotismo, desde do fim de Abril foi enviada através do país uma delegação
especial de trezentos homens, tendo à cabeça o expeditivo estudante Batkine, que se
disfarçou em marinheiro. Esta delegação tinha o aspecto de uma mascarada; mas via-se
aí também um entusiasmo sincero. Ela circulava pelo país a ideia da guerra até à vitória,
mas, semana a semana, os auditores tornavam-se cada vez mais hostis. Enquanto que
os do mar Negro baixavam cada vez mais o tom na sua pregação ofensiva, uma
delegação do Báltico chegou a Sebastopol para pregar a paz. Os homens do Norte
tiveram mais sucesso que os do Sul não tiveram no Norte. Sob a influência dos
marinheiros de Cronstadt, os de Sebastopol tomaram a iniciativa, no 8 de Junho, de
desarmar o comando e prender os oficiais mais detestados.
Na sessão do Congresso dos sovietes, no 9 de Junho, Trotsky perguntava como era
possível que, «na frota-modelo do mar do Norte tinha sido enviada a todo o país
delegações patrióticas, nesse ninho de patriotismo organizado, uma tal explosão ter-se-ia
podido dar num momento tão crítico. O que é que isso demonstrava?» Ele não obteve
resposta. No exército, a falta de autoridade e confusão era um suplício para todos,
soldados, oficiais, membros dos comités. Todos sentiam a necessidade imediata de
encontrar uma saída. Parecia aos de cima que a ofensiva teria venceria a incoerência e

270
esclarecia a situação. Num sentido, era justo. Se Tseretelli e Tchernov se pronunciavam
em Petrogrado pela ofensiva, conformando-se a todas as modulações da retórica
democrática, por outro lado, na frente, os membros dos comités deviam, de acordo com
os oficiais, iniciar a luta contra o novo regime no exército sem a qual a revolução era
inconcebível, mas que era incompatível com a guerra. Os resultados da evolução
manifestavam-se rapidamente. «Cada dia os membros dos comités orientava-se para a
direita conta um oficial da marinha – mas, ao mesmo tempo, perdiam claramente a
autoridade entre os marinheiros e os soldados. » Todavia, para a guerra, eram
necessários soldados e marinheiros.
Brussilov, com o acordo de Kerensky, comprometeu-se na formação de batalhões de
choque, formados por voluntários, reconhecendo assim, abertamente a incapacidade
combativa do exército. Neste empreendimento juntaram-se imediatamente os elementos
mais diversos, na maior parte das vezes aventureiros do género do capitão Moraviev que
após a insurreição de Outubro, deitou-se ao lado dos socialistas-revolucionários de
esquerda, para enfim, após certas proezas brilhantes do seu género, trair o povo soviético
e cair com uma bala, seja executado pelos bolcheviques, seja por ele próprio. Inútil de
dizer que os oficiais contra-revolucionários apoderaram-se avidamente dos batalhões de
choque que eram para eles a forma legal de reunião de suas forças. A ideia na encontrou,
todavia, quase nenhum eco na massa dos soldados. As aventureiras criaram batalhões de
mulher, «as hussardas negras da Morte». Acontece que um desses batalhões, em
Outubro, foi a última força armada de Kerensky para defender o palácio de Inverno. Mas
tudo isso não foi de grande ajuda para abater o militarismo alemão. Ora, estava aqui
precisamente o problema.
A ofensiva, prometida pelo Grande Quartel General aos Aliados para o principio da
Primavera, foi adiada de semana a semana. Mas agora a Entente recusava
categóricamente em consentir novos prazos. Ao exigir pela força uma ofensiva imediata,
os Aliados não hesitaram na escolha dos meios. Ao lado das adjurações patéticas de
Vandervelde, ameaçavam interromper o abastecimento de munições. O consulado geral
da Itália em Moscovo declarou à imprensa, não à italiana mas à russa, que em caso de
uma paz separada do lado da Rússia, os Aliados cederiam ao Japão toda liberdade de
acção na Sibéria. Os jornais liberais, não os de Roma, mas de Moscovo, imprimiam com
um entusiasmo patriótico essas insolentes ameaças, fazendo-as não sobre a paz
separada mas sobre o adiamento da ofensiva. Os Aliados não se embaraçavam com
cerimónias sobre outras relações: enviavam, por exemplo, material de artilharia que
mereciam ir para a sucata: trinta e cinco por cento das peças de campanha recebidas de
estrangeiro não resistiram a quinze dias de tiro moderado. A Inglaterra metia obstáculos
aos empréstimos. Em contrapartida, a América, nova protectora, cedeu, sem que a
Inglaterra soubesse, ao governo provisório, como adiantamento sobre a próxima ofensiva,
um crédito de setenta e cinco milhões de dolares.
Dando o seu apoio aos ultimatos dos Aliados e desenvolvendo uma agitação furiosa
pela ofensiva, a burguesia russa não dava ela própria qualquer confiança a esta ofensiva,
recusando apoiar o empréstimo da liberdade. A monarquia derrubada aproveitou da
ocasião para se remeter em acção: numa declaração dirigida ao governo provisório, os

271
Romanov exprimiram a intenção de subscrever o empréstimo, mas acrescentaram que «a
importância da subscrição dependeria do facto de saber se o Tesouro daria o dinheiro
para a manutenção da família imperial». Tudo isso era lido no exército, que sabia que a
maioria do governo provisório, tal como a maioria dos oficiais superiores, continuaria a
esperar a restauração da monarquia.
Deve-se notar que, no campo dos Aliados, toda a gente não estava de acordo com
os Vandervelde, os Thomas, e os Cachin, que empurravam o exército russo para o
abismo. Avisos faziam-se ouvir. «O exército russo só é uma fachada – dizia o general
Pétain – ele se desmoronará se mexer.» No mesmo sentido exprimia-se, por exemplo, a
missão americana. Mas outras considerações levaram a melhor. Era preciso extirpar a
própria alma da revolução. «A fraternização germano-russa – explicava mais tarde
Painlevé – fazia tais desgastes, que deixando o exército russo imóvel arriscar-se-ia da o
ver decompor-se rapidamente.»
A preparação da ofensiva sobre o plano político foi conduzida por Kerensky e
Tseretelli que, no início, escondiam-se mesmo dos seus próprios partidários. Enquanto
que os líderes meio informados continuavam a perorar sobre a defesa da revolução,
Tseretelli insistia cada vez mais resolutamente na necessidade para o exército de estar
pronto a agir. Tchernov, mais demoradamente que todos, resistiu, isto é fingia. Na sessão
do governo provisório do 17 de Maio, o «ministro dos camponeses», como ele próprio se
nomeava, foi pressionado por uma serie de questões; perguntavam-lhe se era verdade
que, numa reunião política, sem o assentimento necessário, ele se pronunciara sobre a
ofensiva. Acontece que Tchernov falou assim: «A ofensiva não lhe dizia respeito, a ele,
como homem político; era um assunto dos estrategas da frente.» Essa gente brincava às
escondidas com a guerra como com a revolução. Mas isso durou pouco tempo.
A preparação da ofensiva era acompanhada, bem entendido, de um reforço da luta
contra os bolcheviques. Acusavam cada vez mais estes últimos de querer uma paz
separada. A possibilidade de uma paz separada devia ser a única saída existente naquela
situação, isto é, na fraqueza e no esgotamento da Rússia, em comparação com os outros
países beligerantes. Mas ninguém ainda não tinha medido as forças do novo factor: a
revolução. Os bolcheviques consideravam que se escaparia às perspectivas de uma paz
separada na condição de opor ousadamente e até ao fim à guerra a força e a autoridade
da revolução. Para isso, era preciso antes de tudo romper a aliança com a própria
burguesia do país. No 9 de Junho, Lenine declarou ao Congresso dos sovietes:
«Quando se diz que nós tendemos a uma paz separada, não é verdade. Nós
dizemos: nenhuma paz separada, com nenhum dos capitalistas, antes de tudo com os
capitalistas russos. Ora, o governo provisório está em paz separada com os capitalistas
russos. Abaixo esta paz separada!»
O processo-verbal nota «aplausos». Eram aplausos da pequena minoria do
Congresso, e eram calorosos.
No comité executivo, a uns faltava-lhes resolução, outros queriam meter-se debaixo
da cobertura de um órgão mais autorizado. No último momento, decidiu-se dizer a

272
Kerensky que a ordem da ofensiva seria indesejável antes de uma decisão do Congresso
dos sovietes. A declaração entregue na primeira sessão do Congresso dizia: «A ofensiva
só pode desorganizar definitivamente o exército opondo alguns dos seus efectivos a
outros»; e também: «O Congresso deve opor uma resistência imediata ao avanço contra-
revolucionário, ou tomar a responsabilidade desta política, integralmente e abertamente.»
A decisão do Congresso dos sovietes em favor da ofensiva não era uma formalidade
democrática. Tudo já estava pronto. Os artilheiros já há muito que estavam prontos a
disparar sobre as posições inimigas. No 16 de Junho, numa ordem ao exército e a frota,
Kerensky referindo-se ao generalíssimo, «com a aura das vitórias de um grande capitão»,
demonstrava a necessidade de dar «um golpe imediato e decisivo» e terminava assim:
«Ordeno-vos – em frente!»
Num artigo redigido na véspera da ofensiva e comentando a declaração da fracção
bolchevique no Congresso dos sovietes, Trotsky escrevia: «A política do governo arruína
radicalmente as possibilidades de sucesso de uma acção militar... As premissas materiais
da ofensiva são extremamente desfavoráveis. A organização do abastecimento do
exército reflecte a desorientação económica geral, contra a qual o governo, na sua
decomposição actual, não pode tomar nenhuma medida radical. As premissas morais da
ofensiva são ainda mais desfavoráveis. O governo... viu diante do exército... a sua
incapacidade em determinar a política da Rússia independentemente da vontade dos
Aliados imperialistas. O resultado não podia ser senão a decomposição progressiva do
exército... As deserções em massa... deixam, nas presentes condições, de ser o resultado
simples de uma vontade viciosa individual, mas tornam-se a expansão de uma completa
incapacidade do governo a ligar o exército revolucionário numa íntima unidade de pontos
de vista ...» Indicando mais que o governo não se decidisse «em abolir imediatamente a
propriedade fundiária dos nobres, isto é a única medida que provaria ao camponês mais
atrasado que esta revolução era a sua revolução», o artigo conclui assim: «Em tais
condições materiais e morais, a ofensiva deve inevitavelmente ter o carácter de uma
aventura.»
Quase todo o comando considerava que a ofensiva, sem esperança do ponto de
vista militar, era provocada exclusivamente por um cálculo político. Denikine, após ter
percorrido a frente, declarou ao Brussilov: «Não creio que haja qualquer sucesso na
ofensiva.» Além disso, aos elementos de dúvida, era necessário acrescentar a
incompetência do próprio comando. Stankevitch, oficial e patriota, testemunha que a
preparação técnica do assunto excluía a vitória, independentemente do estado moral das
tropas: «A ofensiva foi organizada acima de toda a crítica.» Os líderes do partido cadete
receberam a visita de uma delegação de oficiais, à cabeça da qual se encontrava o
presidente da União dos oficiais, o cadete Novosiltsev, avisando-os que a ofensiva estava
condenada ao fracasso e conduziria somente à exterminação das melhores tropas. Diante
desses avisos, as altas autoridades safaram-se por frases: «Resta uma pequena
esperança, disse o chefe do estado-maior do Grande Quartel General, o general
reaccionário Lukomsky: um feliz princípio dos combates modificaria a psicologia da massa
e os chefes teriam a possibilidade de retomar as rédeas que lhe caíam nas mãos.» Tal era
o objectivo essencial: retomar as rédeas.

273
Contavam dar um grande golpe, segundo um plano elaborado há muito tempo, com
as forças da frente Sudoeste, na direcção de Lvov (Lemberg); as frentes Norte e Oeste
tinham que preencher as tarefas de apoio. A ofensiva devia começar em todas as frentes.
Tornou-se claro logo que esse plano ultrapassava em muito as forças do comando.
Decidiu-se fazer avançar as frentes uma após outra, começando pelas menos
importantes. Mas isso também isso não era realizável. «Então, o alto comando, diz
Denikine, decidiu renunciar a toda a estratégia sistemática, foi forçado a deixar às frentes
a iniciativa da operação na medida onde elas estavam prontas.» Remetiam-se à
Providência. E não faltavam ícones da czarina. Tentaram substituí-los por ícones da
democracia. Kerensky fazia passeios, exortava, benzia. A ofensiva começou: no 16 de
Junho, na frente Sudoeste, no 7 Julho, na frente Oeste; no dia 8 no Norte, no 9 na frente
romena. O avanço das três frentes, em resumo fictícia, coincidiu com o início do
esmagamento da frente principal, a do Sudoeste.
Kerensky comunicou ao governo provisório: «Hoje marca um grande triunfo da
revolução. O 18 Junho, o exército revolucionário russo, um imenso entusiasmo, tomou a
ofensiva.» «O acontecimento há muito esperado realizou-se – escreveu a Rietch dos
cadetes – acontecimento que de uma vez trouxe a revolução russa de volta aos seus
melhores dias.» No dia 19 de Junho, o velho Plekhanov declamava diante de uma
manifestação patriótica: «Cidadãos! Se vos pedir que dia estamos, vocês dirão-me que é
segunda-feira. Mas é um erro: hoje é domingo, dia da ressurreição para o nosso país e
para a democracia no mundo inteiro. A Rússia, após ter rejeitado o jugo do czarismo,
decidiu rejeitar o jugo do inimigo.» Tseretelli dizia, no mesmo dia, no congresso dos
sovietes: «Uma nova página abre-se na história da grande Revolução russa... Os
sucessos do nosso exército revolucionário devem ser saudados não somente pela
democracia russa, mas também... por todos os que se esforçam efectivamente de
combater o imperialismo.» A democracia patriótica tinha aberto todas as válvulas.
Os jornais trouxeram durante esse tempo uma alegre notícia: «A Bolsa de Paris festa
a ofensiva russa pelo aumento de todos os valores russos.» Os socialistas tentavam
determinar a solidez da revolução segundo a cota de valores. Mas a história ensina que a
Bolsa sente-se tanto melhor que a revolução vai mal.
Os operários e a guarnição da capital não se deixaram levar nem um só minuto pela
vaga de patriotismo artificialmente aquecida. O seu terreno continuava na perspectiva
Nevsky. «Saímos à Nevsky – conta nas suas lembranças o soldado Tchinenov – e
tentámos de fazer a agitação contra a ofensiva. Logo, os burgueses caíram sobre nós
com pancadas de guarda-chuva... Nós apanhávamos e levávamos para as casernas... e
dizíamos-lhes que seriam, logo no dia seguinte, expedidos para a frente.» Eram já os
síntomas da guerra civil: as jornadas de Julho aproximavam-se.
No 21 de Junho, o regimento de metralhadoras, em Petrogrado, tomou, em
assembleia geral, esta decisão: «Doravante, não enviaremos contingentes à frentes só no
caso onde a guerra terá um carácter revolucionário... » Como ameaçavam dissolver o
regimento, ele respondeu que não hesitava em dissolver «o governo provisório e os

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outras organizações que o apoiam». De novo, ouvimos aí notas ameaçadoras que
procediam muito a agitação dos bolcheviques.
A crónica dos acontecimentos marca no 23 de Junho: «Efectivos do 11º exército
ampararam-se da primeira e da segunda linha das trincheiras do adversário... » E logo ao
lado: «A fábrica Baranovsky (seis mil operários) tiveram lugar novas eleições no Soviete
de Petrogrado. Em substituição de três socialistas-revolucionários, três bolcheviques
foram eleitos.»
No fim do mês, a fisionomia do Soviete de Petrogrado modificou-se
consideravelmente. Na verdade, no 29 de Junho, o Soviete ainda tinha adoptado uma
resolução saudando o exército na sua ofensiva. Mas com que maioria? É uma relação de
forças completamente nova, que ainda não contámos. Os bolcheviques com os pequenos
grupos de esquerda mencheviques e socialistas-revolucionários constituem já dois
quintos do Soviete. Isso significa que, nas fábricas e nos quartéis, os adversários da
ofensiva formam uma maioria incontestável.
O Soviete do bairro de Vyborg adoptou, no 24 de Junho, uma resolução em que
cada palavra parece ser metida por uma grande martelada: «Nós... protestamos contra a
aventura do governo provisório que leva a ofensiva em nome de velhos tratados de
pilhagem... e rejeitamos toda a responsabilidade desta política de ofensiva do governo
provisório assim como sobre os partidos que o apoiam, mencheviques e socialistas-
revolucionários.» Retrogradados para o segundo plano, o grupo de Vyborg tomava agora
a certeza do primeiro lugar. No Soviete de Vyborg, os bolcheviques predominavam
completamente.
Doravante, tudo dependia da sorte da ofensiva, e dos soldados nas trincheiras.
Quais modificações resultavam da ofensiva na consciência dos que deviam realizá-la?
Eles tendiam irresistivelmente para a paz. Mas é precisamente esta tendência que os
dirigentes conseguiram, numa certa medida, pelo menos num certo número de soldados,
e para um curto período, transformar em vontade de ofensiva.
Desde da insurreição, os soldados esperavam do novo poder uma rápida conclusão
da paz, e, no entanto, estavam dispostos a aguentar a frente. Mas a paz não vinha. Os
soldados ao chegar a tentativas de confraternização com os alemãs e os austríacos,
parcialmente sob a influência da agitação dos bolcheviques, mas sobretudo procurando
por eles próprios a sua via para a paz. Todavia, contra a confraternização, começavam as
perseguições por todo o lado. Além disso, descobriu-se que os soldados alemãs ainda
estavam longe de se subtrair às ordens dos seus oficiais. A confraternização não tendo
levado à paz, diminuía muito.
Na frente reinava, nesse tempo, um trégua de facto. Os alemãs aproveitaram para
transferir enormes contingentes para a frente Oeste. Os soldados russos observavam
como se despovoavam as trincheiras inimigas, como se retiravam as metralhadoras,
como se retiravam os canhões. Sobre isso era construído um plano de preparação moral
da ofensiva. Sistematicamente, tratavam de convencer os soldados que o inimigo estava
completamente enfraquecido, que ele não tinha forças suficientes , que, do lado

275
Ocidental, a América tinha a sua influência e que bastava, pelo nosso lado, exercer uma
ligeira pressão para que a frente do adversário caia, depois disso teríamos a paz. Os
dirigentes não acreditaram nisso mesmo uma só hora. Mas eles esperavam que o
exército, no momento que teria metido a mão na engrenagem da guerra, não podia mais
pará-la.
Não chegando ao fim, nem pela via diplomática do governo provisório, nem pela
confraternização, um parte dos soldados tendeu sem dúvida para a terceira via; exercer
um movimento que levaria ao fim da guerra. Foi assim precisamente que um dos
delegados da frente no Congresso dos sovietes exprimia o estado de espírito dos
soldados: «Nós temos, presentemente, diante de nós, uma frente alemã menos densa,
não temos canhões diante de nós, e, se avançarmos empurramos o inimigo,
aproximaremos-nos da paz desejada.»
O adversário, no princípio, encontrou-se extremamente fraco e recuou sem aceitar
combater, aliás os atacantes não podiam travá-lo. Mas o adversário, em vez de se
deslocar, reagrupou e voltoua a concentrar as suas forças. Tendo avançado uma vintena
ou trintena de quilómetros de profundidade, os soldados russos descobriram um quadro
que eles já conheciam suficientemente bem segundo as experiências dos anos
precedentes: o adversário esperava-os em novas posições fortificadas. Aí, tornava-se
evidente que, se os soldados consentiam ainda em avançar e favor da paz, eles
rejeitavam a guerra. Levados às hostilidades por uma combinação de violência, de
pressão moral e, sobretudo pelo engano, voltaram atrás bastante indignados.
«Segundo uma preparação da artilharia do lado russo, nunca vista pela sua potência
e violência – disse um historiador russo da guerra mundial, o general Zaionczkowski – as
tropas ocuparam quase sem percas a posição inimiga e não quiseram ir mais longe.
Deserções começaram sobre todos os pontos e as posições foram abandonadas pelos
contingentes inteiros.
Um homem político ucraniano, Dorochenko, antigo comissário do governo provisório
em Galícia, conta que após a tomada das cidades de Halicz e de Kalusz, «houve
imediatamente em Kalusz, um pavoroso progrom que atingiu exclusivamente os
ucranianos e judeus – os polacos não foram atingidos. O progrom foi dirigido por não se
sabe que mão experiente que indicou especialmente os estabelecimentos locais de
cultura e de instrução ucranianos.» Participaram no progrom «os melhores efectivos, os
menos pervertidos pela revolução», cuidadosamente seleccionados para a ofensiva. Mas,
neste assunto, mostraram-se ainda mais claramente a sua verdadeira cara os dirigentes
da ofensiva, os oficiais do czar, cheios de experiência para a organização de progroms.
No dia 9 de Julho, os comités e os comissários da 11º exército telegrafaram ao
governo: a ofensiva alemã, iniciada a 16 de Julho, na frente do 11º exército tornou-se uma
catástrofe incalculável... No estado de espírito das tropas que recentemente avançaram
graças aos esforços heróicos da minoria, uma reviravolta brusca e desastrosa afirmou-se.
O impulso da ofensiva foi rapidamente reduzida a nada. A maior parte dos efectivos
encontram-se num estado crescente de decomposição. Não se trata já de falar de

276
autoridade e de subordinação, as admoestações e a persuasão perderam força –
responde-se pelas ameaças e por vezes mesmo por fuzilamentos.»
O comandante em chefe da frente Sudoeste, com o consentimento dos comissários
e dos comités, publicou a ordem de disparar sobre os fugitivos.
No 12 de Julho, o comandante em chefe da frente Oeste, Denikine, voltava ao seu
estado-maior «com a morte na alma e cheio de consciência da queda completa da última
esperança... do milagre que ainda brilhava».
Os soldados não queriam bater-se. As tropas da retaguarda, às quais se dirigiram
para a substituição dos contingentes enfraquecidos após a ocupação das trincheiras
inimigas, responderam: «Porquê tomaram a ofensiva? Quem vos ordenou? É preciso
terminar a guerra e não atacar.» O comandante do primeiro corpo siberiano, que era
considerado como um dos melhores, comunicou que ao cair da noite os soldados, em
multidão, companhias inteiras, afastaram-se da primeira linha que ainda não tinha sido
atacada. «Compreendi que nós, chefes éramos impotentes em modificar a psicologia
elementar das massas de soldados – e, amargamente, amargamente, por muito tempo,
eu chorava.»
Uma das companhias recusou mesmo de passar um panfleto ao adversário sobre a
tomada de Halicz enquanto que não se encontrasse um soldado que traduzisse em russo
o texto alemão. Esse facto marca toda a desconfiança da massa dos soldados em relação
ao dirigentes, antigos como novos, os de Fevereiro. Séculos de ultrajes e de violências
faziam uma erupção vulcânica.
Os soldados sentiam-se de novo enganados. A ofensiva não levava à paz mas à
guerra. Os patriotas emboscados na retaguarda perseguiam e maltratavam os soldados
como cobardes. Mas os soldados tinham razão. O que os guiava, era um justo instinto
nacional, reflectido através da consciência das pessoas oprimidas, enganadas, torturadas,
insurgidas pela esperança revolucionária e de novo mergulhadas no sangrento
desperdício. Os soldados tinham razão. A continuação da guerra não podia dar ao povo
russo nada senão novas vítimas, humilhações, calamidades, nada senão o reforço da
servidão interior e exterior.
A imprensa patriótica de 1917, não somente a dos cadetes, mas a dos socialistas,
não deixou de assinalar o contraste entre os soldados russo, desertores e cobardes, e os
heroicos batalhões da grande Revolução francesa. Essas confrontações testemunham
não somente a incompreensão da dialéctica do processo revolucionário, mas da total
ignorância da história.
Os notáveis grandes capitãs da Revolução do Império francês começavam, quase
constantemente, em infringir a disciplina, como desorganizadores; Miliokov diria: como
bolcheviques. O futuro marechal Davout, quando era tenente de Avout, durante longos
meses, em 1789-1790, dissolvia a disciplina «normal» na guarnição de Aisdenne,
expulsando os comandantes. Em toda a França teve lugar, até meados de 1790, um
processo de total decomposição do velho exército. Os soldados do regimento de
Vincennes obrigava os seus oficiais a tomar as refeições em comum com eles. A frota

277
expulsava os seus oficiais. Uma vintena de regimentos submeteram os seus
comandantes a violências de vários tipos. Em Nancy, três regimentos meteram na prisão
os oficiais. A partir de 1790, os tribunos da Revolução francesa não pararam de repetir, a
propósito dos excessos do exército: «É o poder executivo que é culpado de não ter
destituído oficiais hostis à Revolução.» É notável que, para a dissolução do antigo corpo
dos oficiais, se tenham pronunciado tão bem Mirabeau como Robespierre. O primeiro
sonhava restabelecer o mais cedo possível uma forte disciplina. O segundo queria
desarmar a contra-revolução. Mas todos os dois compreendiam que o antigo exército não
podia mais durar.
Na verdade a Revolução russa, diferente disso da francesa, produzia-se em tempo
de guerra. Mas não era razão para fazer uma excepção à lei histórica assinalada por
Engels. Ao contrário, as condições de uma guerra prolongada e infeliz não podiam senão
acelerar e agravar o processo da decomposição revolucionária do exército. A ofensiva
falhada e criminosa da democracia fez o resto. Doravante, os soldados diziam todos:
«Basta de efusão de sangue! Para que serve a liberdade e a terra se não existimos
mais?» Quando os pacifistas cultivados tentavam suprimir a guerra com argumentos
racionalistas, eles são simplesmente ridículos. Mas quando as massas armadas avançam
contra a guerra com argumentos de razão, isso significa que a guerra está a chegar ao
fim.

278
O campesinato
As bases profundas da revolução estavam na questão agrária. No regime arcaico da
possessão do chão, directamente saído do direito de servidão, na autoridade tradicional
do proprietário nobre, nos laços estreitos entre esse proprietário, a administração local e o
zemstvo de casta, tinham na raíz os fenómenos da barbarie os mais visíveis da existência
russa que coroava a monarquia raspotiniana. O mujike, que servia de apoio ao asiatismo
secular, era ao mesmo tempo uma das suas primeiras vítimas.
Nas primeiras semanas que seguiram a insurreição de Fevereiro, o campo ficou
quase inerte. As gerações mais activas encontravam-se na frente. Os mais velhos que
ficaram nos lares, lembravam-se demasiado bem que um revolução termina-se por
expedições punitivas. A aldeia calava-se, a cidade calava-se sobre a aldeia. Mas o
espectro da guerra camponesa, desde do mês de Março, planava sobre os ninhos dos
proprietários nobres. As províncias mais populosas de nobres, isto é as mais atrasadas e
reaccionárias, uma chamada de socorro fez-se ouvir mesmo antes que um perigo real se
manifestasse. Os liberais reflectiam perfeitamente as apreensões dos proprietários; os
conciliadores o estado de espírito dos liberais. «Levar até ao fim o problema agrário nas
próximas semanas – dizia, após a insurreição, o demagogo de «gauche» Sokhanov –
seria prejudicial levar demasiado depressa a questão da paz e a do dia de oito horas.
Esquivar as dificuldades, era mais simples. Além disso, os proprietários nobres
procuravam intimidar, dizendo que uma mudança das relações agrárias teria um efeito
nocivo sobre as sementeiras e sobre o abastecimento das cidades. O comité executivo
expediu às províncias telegramas recomendando «não se deixar levar pelos assuntos
agrários em detrimento do abastecimento das cidades».
Em numerosas localidades, os proprietários, assustados pela revolução, absteram-
se de semear na Primavera. Dada a grave situação do país do ponto de vista do
aprovisionamento, as terras em repouso pareciam elas próprias chamar um novo dono. O
campesinato movimentava-se sem ouvir. Não contando com o novo poder, os
proprietários nobres iniciaram a liquidação apressada dos seus domínios. Os kulaques
começaram a comprar cada vez mais as terras dos nobres, calculando que a
expropriação forçada não os tocaria, como camponeses. Numerosos desses mercados
tiveram um carácter visivelmente fictício. Supunha-se que as propriedades privadas, em
baixo de uma certa norma, seriam poupadas: em consequência, os proprietários nobres
dividiam artificialmente os seus domínios em pequenos lotes, recorrendo a nomes
emprestados. Frequentemente, terras eram registadas em nome de estrangeiros,
cidadãos de países aliados ou neutros. A especulação dos kulaques e as vigarices dos
proprietários nobres ameaçavam abandonar o fundo agrário no momento da convocação
da Assembleia constituinte.
A aldeia via essas manobras. Donde esta reivindicação: suspender por um decreto
todas as vendas de terras. Os vendedores camponeses dirigiram-se às cidades, para
novos mestres, para reclamar terra e justiça. Acontece mais de uma vez aos ministros,
após debates e ovações, caírem à saída sobre personagens modestas, deputados

279
camponeses. Sokhanov conta que um desses vendedores, de lágrimas nos olhos,
suplicava os cidadãos ministros de publicarem um lei protegendo os bens de raíz contra
as vendas, ele foi interrompido com impaciência por Kerensky agitado e pálido: «Eu disse
que seria feito, portanto será feito... E não vale a pena olhar-me com ar desconfiado.»
Sokhanov, que assistia à cena, acrescentou: «Eu relato literalmente o facto – e Kerensky
tinha razão: os mujiques olhavam com ar desconfiado para o famoso ministro e líder do
povo.» Nesse breve diálogo entre esse camponês que solicita ainda, mas já não tem
confiança, e o ministro radical que afasta com um gesto a desconfiança do camponês,
aparece inevitável a queda do regime de Fevereiro.
A ordem aos comités agrários, como órgãos de preparação da reforma, foi publicada
pelo primeiro ministro da Agricultura, o cadete Chingarev. O comité agrário supremo, à
cabeça do qual se encontra um burocrata liberal, o professor Postnikov, compunha-se
sobretudo de populistas que temiam, acima de tudo, mostrarem-se menos moderados
que o seu presidente. Os comités agrários locais foram instituídos pelos departamentos
(governamentais), os distritos e os cantões. Enquanto que os sovietes, ligando-se muito
dificilmente aos meios rurais, eram considerados como órgãos privados, os comités
agrários tinham um carácter governamentais. Menos as suas funções eram determinadas
pela sua situação, mais era difícil resistir ao desenvolvimento dos camponeses. Mais
baixo estava o grau de hierarquia do comité, mais ele estava próximo da terra, mais
rápidamente ele se tornava o instrumento do movimento camponês.
Lá para o fim de Março começam a chegar à capital as primeiras informações
alarmantes sobre a entrada em cena dos camponeses. O comissário de Novgorod
anunciou telegraficamente as desordens fomentadas por um certo tenente Panassiok,
«prisões injustificadas de proprietários nobres», etc. No governo de Tambov, um bando de
camponeses, à cabeça do qual se encontravam alguns soldados de licença, pilhou uma
mansão. Os primeiros comunicados são sem dúvida exagerados, os proprietários,
queixando-se aumentaram evidentemente os conflitos e antecipam. Mas o que está
excluído, é a acção directora, no movimento camponês, dos soldados que tragam da
frente e dos quartéis o espírito de iniciativa.
Um dos comités do cantão do governo de Kharkov decidiu, a cinco de Abril, de
proceder, entre os proprietários, a buscas para apreender armas. Há já um nítido
pressentimento de guerra civil. A aparição de problemas no distrito de Skopine do governo
de Riazan explica-se para o comissário por uma decisão do comité executivo do distrito
vizinho, sobre a consolidação obrigatória pelos camponeses das terras dos proprietários
nobres. «A agitação dos estudantes para apaziguar até a Assembleia constituinte, não
tem sucesso. » Assim sabemos que «os estudantes» que, na época da primeira
revolução, tinham chamado os camponeses ao terror agrário – tal era, nesse tempo, a
táctica dos socialistas-revolucionários pregando em contrapartida, em 1917, a calma e a
legalidade, mas na realidade sem sucesso.
Um comissário do governo de Simbirsk esboça o quadro de um movimento
camponês mais desenvolvido: comités de cantão e de aldeia, - falaremos disso mais à
frente, - prendem os proprietários, expulsam-os da província, retiram aos campos dos

280
proprietários os operários agrícolas, tomam as terras, estabelecem um preço de renda
obrigatória. «Os delegados enviados pelo comité executivo tomam o partido dos
camponeses.» Ao mesmo tempo começa um movimento de «comunitários» contra os
«novos proprietários» isto é contra os camponeses ricos que se tinham separado das
comunidades, tomando os lotes independentes, na base da lei Stolypine de 9 de
Novembro de 1906. «A situação na província ameaça as sementeiras». O comissário do
governo de Simbirsk, desde de Abril, não via outra saída senão declarar imediatamente a
terra propriedade nacional, de forma que as modalidades de exploração agrícola sejam
seguidamente reguladas pela Assembleia constituinte.
Do distrito de Kachira, perto de Moscovo, queixas foram apresentadas contra o
comité executivo que incita a população a apoderar-se, sem indemnizações, das terras
das igrejas, dos mosteiros e dos proprietários nobres. No governo de Kursk, camponeses
expulsam dos domínios os prisioneiros de guerra que aí trabalham e prendem-nos na
prisão local. Após os feriados camponeses, os rurais do governo de Penza, tendem a
seguir literalmente as resoluções dos socialistas-revolucionários sobre a a terra e a
liberdade, começaram a violar os contratos recentemente concluídos com os proprietários
de bens de raíz. Ao mesmo tempo, eles lançaram uma ofensiva contra os novos órgãos
do poder. «Quando da formação dos comités executivos de cantões e de distritos, em
Março, os intelectuais eram aí em maioria; mas, seguidamente – relata o comissário de
Penza – vozes insurgiram-se contra a intelliguentsia, e, a partir de meados de Abril, em
todo o lado, os comités compunham-se exclusivamente de camponeses cuja tendência,
no que diz respeito à terra, conduzia claramente à ilegalidade.»
Um grupo de proprietários de uma província vizinha, o governo de Kazan, queixava-
se ao governo provisório de estar na impossibilidade de avançar as explorações, visto que
os camponeses expulsava os operários agrícolas, apanhavam as sementes, e em
diversos locais todos os bens móveis das mansões, proibindo aos proprietários de colher
madeira nas florestas, proferindo ameaças de violência e de morte. «Não há justiça, todos
fazem o que querem, os elementos razoáveis estão aterrorizados.» Os proprietários do
governo de Kazan sabem já quem é o culpado da anarquia: «As decisões do governo
provisório são ignorados nas aldeias mas os panfletos bolcheviques estão dispersos por
todo o lado.»
Portanto, não eram as instruções do governo que faltavam. Por um telegrama do 20
de Março, o príncipe Lvov convidava os comissários a criar comités de cantão como
órgãos da autoridade local, recomendando além disso de ligar à obra desses comités «os
proprietários do lugar e todas as forças intelectuais do campo». Supunha-se organizar
toda a estrutura do Estado segundo o sistema de câmaras de conciliação. Os comissários
lamentaram-se, vendo que se afastavam as «forças intelectuais»: evidentemente, o
mujique não confiava nos Kerensky de distrito e de cantão.
No 3 de Abril, um adjunto da presidência do príncipe Lvov, o príncipe Orussov – o
ministério do Interior, como se vê, contava títulos nobres – prescrito por não tolerar
nenhum arbitrário e sobretudo proteger «a liberdade de cada um em possuir na
administração da sua terra», isto é a mais requintada de todas as liberdades. Dez dias

281
mais tarde, o próprio príncipe Lvov julga indispensável meter mãos à obra, ordenando aos
comissários «de refrear por todos os meios que lhe dá a lei todos os actos de violência e
pilhagem». Dois dias mais tarde, o príncipe Orussov prescreveu a um comissário
provincial «de tomar as medidas de protecção das coudelarias as empresas arbitrárias
explicando aos camponeses»..., etc.
No 18 de Abril, o príncipe Orussov preocupava-se que os prisioneiros de guerra que
trabalhavam para os proprietários nobres comecem a formular reivindicações exageradas
e ordenou aos comissários de aplicar a esses atrevidos penalidades na base dos direitos
precedentemente cedidos ao governadores czaristas. Circulares, instruções, ordens
telegrafadas caem do alto em cascata ininterrupta. No 12 de Maio, o príncipe Lvov
enumera num novo telegrama os actos ilegais que «não param de se produzir em todo o
país»: prisões arbitrárias, buscas, despedimentos de funcionários, expulsão de
administradores de domínios, de directores de fábricas e oficinas; destruições de bens,
pilhagens, desordens; violências exercidas sobre pessoas; contribuições impostas à
população; excitação de uma parte da população contra outra, etc., etc.. «Todos os actos
desse género devem ser consideradas como absolutamente ilegais, e mesmo, em certos
casos, como anárquicos... » A qualificação não é clara, mas a conclusão é nítida: «Tomar
as medidas mais resolutas.» Os comissários provinciais distribuíam resolutamente a
circular aos distritos, os comissários de distrito exerciam pressão sobre os comités de
cantão, e todos juntamente descobriam a sua impotência diante do mujique.
Quase em todo o lado intervêm no assunto as formações militares vizinhas. Na
maior parte das vezes, são elas que têm a iniciativa. O movimento toma formas
extremamente variadas, em função das condições locais e do grau de agudização da luta.
Em Sibéria, onde não há proprietários nobres, os camponeses apropriam-se das terras
das igrejas e dos mosteiros. Aliás, o clero está em má posição noutros pontos do país. No
governo devoto de Smolensk, os papas e os monges, sob a influência dos soldados
regressados da frente, são presos. As autoridades locais são forçadas a ir mais longe do
que elas queriam, com o fim de impedir os camponeses de tomar medidas infinitamente
mais radicais. O comité executivo de um distrito do governo de Samara, no início de Maio,
designou uma tutela pública sobre a propriedade do conde Orlov-Davydov, protegendo-o
assim contra os camponeses.
Como o decreto prometido por Kerensky, proibindo as vendas de terras não
aparecia, os camponeses começaram a utilizar os punhos para impedir essas operações,
opondo-se à arpentagem das terras. Cada vez mais frequentemente confisca-se as armas
dos proprietários, mesmo as armas de caça. Os mujiques do governo de Minsk, segundo
um queixa de um comissário, «consideram as resoluções do congresso camponês como
um lei.» Aliás, como compreender essas resoluções de outra forma? Porque enfim, esses
congresso constituem a única autoridade real nas províncias. Assim se revela o grande
mal-entendido entre a intelliguentsia socialista-revolucionária que se contenta de palavras,
e o campesinato que reclama actos.
Cerca do fim de Maio, a grande estepe asiática começou a agitar-se. Os
quirguistaneses, a quem o czar tinha retirado as suas melhores terras a favor dos seus

282
servidores, revoltaram-se agora contra os proprietários, convidando-os a liquidar o mais
cedo possível as suas possessões usurpadas. «Esse ponto de vista afirma-se cada vez
mais na estepe», relata o comissário de Akmolinsk.
No outro lado do país, no governo de Livónia, um comité executivo do distrito enviou
uma comissão de inquérito sobre o saque do domínio do barão Sthal von Holstein. A
comissão reconheceu que as desordens eram insignificantes, que a presença do barão no
distrito era nociva à tranquilidade e tomou a decisão de expedir o barão e a baronesa para
Petrogrado, à disposição do governo provisório. Assim surgiu um dos inumeráveis
conflitos entre a autoridade local e o poder central, entre socialistas-revolucionários da
base e os de cima.
Um relatório de 27 de Maio, recebido do distrito de Pavlogrado (governo de
Ekaterinoslav) esboça um quadro quase idílico: os membros do comité agrário
esclarecem diante da população todos os mal-entendidos e, assim, «evitam todos os
excessos». Infelizmente! Este idílio só durou algumas semanas.
O abade de um dos mosteiros de Kostroma queixou-se, amargurado, no fim de
Maio, junto do governo provisório, dos camponeses que requereram um terço do gado do
mosteiro. O venerado monge poder-se-ia mostrar mais discreto: em breve deverá dizer
adeus aos outros dois terços.
No governo de Kursk, começaram a perseguir os camponeses que adquiriram os
lotes que recusaram de entrar na comuna. Diante da grande revolução agrária, antes de
uma perequação geral das terras, o campesinato quer apresentar-se como um conjunto.
As divisões no interior podem criar obstáculos. O grupo deve caminhar como uma só
pessoa. A luta pela conquista das terras nobres é acompanhada, em consequência, por
violências nas quintas, isto é sobre os cultivadores individualistas.
O último dia de Maio, prenderam, no governo Perm, o soldado Samoilov que
exortava as pessoas a recusarem o pagamento do imposto. Em breve, será o próprio
soldado Samoilov que procederá às detenções. No decurso de uma procissão numa
aldeia do governo de Kharkov, o camponês Gritsenko partiu, à machadada, sob os olhos
de toda a população, um ícone venerado de São Nicolau. Assim se manifestam todos os
géneros de protesto que se transformam em actos.
Um oficial da marinha, ele próprio nobre proprietário, deu em memórias anónimas,
Notas de um Guarda Branco, um quadro interessante da evolução da aldeia nos primeiros
meses que seguiram a insurreição. Em todos os postos, «elegeram quase por todo o lado
homens dos meios burgueses. A tendência de todos era somente manter a ordem». Os
camponeses, na verdade, reivindicavam a terra, mas, nos dois ou três primeiros meses,
sem violências. Ao contrário, podia-se constantemente ouvir: «Não queremos pilhar,
desejamos tratar amigavelmente», etc.. Nessas afirmações tranquilizadoras, o tenente via
portanto «uma ameaça escondida». Com efeito, se o campesinato, num primeiro tempo,
não recorreu à violência, «ele mostrou-se logo ameaçador» em relação ao que se
chamam as forças intelectuais. O estado de espírito de meia expectativa subsistiu,
segundo o guarda branco, até Maio-Junho, «depois disso notou-se uma conversão

283
brusca, viu-se aparecer uma tendência a contestar as instruções das autoridades
provinciais, a resolver os assuntos arbitrariamente»... Noutro termos, o campesinato tinha
deixado à Revolução de Fevereiro cerca de três meses de prazo para pagar os traidores
socialistas; depois disso ela começou a proceder a confiscações.
O soldado Tchinenov, que tinha aderido aos bolcheviques, foi por duas vezes de
Moscovo à sua terra, no governo de Orel, após a insurreição. Em Maio, num cantão,
dominavam os socialistas-revolucionários. Os mujiques, em numerosos lugares, pagavam
ainda aos proprietários a renda. Tchinenov organizou um célula bolchevique de soldados,
de operários agrícolas e de camponeses pobres. A célula pregava a supressão do
pagamento das rendas e a repartição da terra entre os que não tinham. Imediatamente,
foram tomados em conta os prados dos proprietários, foram partilhados entre as aldeias.
«Os socialistas-revolucionários que presidiam ao comité de cantão denunciaram a
ilegalidade dos nossos actos mas não recusaram de tomar a parte deles do feno.» Como
representantes das aldeias, por temor das responsabilidades se demitiam dos seus
encargos, os camponeses elegiam outros, mais resolutos. Não eram sempre os
bolcheviques, longe disso.
Pela pressão directa, os camponeses introduziam a divisão no partido socialista-
revolucionário, separando os elementos animados de um espírito revolucionário, dos
funcionários e de carreiristas. Após terem ceifado a erva dos senhores, os mujiques
apoderaram-se e partilharam os terrenos em repouso para semear no Inverno. A célula
bolchevique decidiu fazer buscas nas granjas dos proprietários e expedir as reservas de
grão ao centro esfomeado. As decisões da célula foram executadas porque
correspondiam ao estado de espírito dos camponeses. Tchinenov tinha trazido com ele
para a terra natal publicações bolcheviques que, antes dele, não havia ideia. «Os
intelectuais e os socialistas-revolucionários da terra espalharam o rumor que eu tinha
trazido ouro alemão e que eu subornava os camponeses.» Processos desenvolveram-se
com mais ou menos amplitude. Cada cantão tinha o seus Miliokov, seus Kerensky e os
seus Lenine.
No governo de Smolensk, a influência dos socialistas-revolucionários começou a
reforçar-se após o congresso dos deputados camponeses que se pronunciou, pela
devolução da terra ao povo. Os camponeses tomaram esta decisão integralmente, mas,
distinguiam-se nisso dos dirigentes, tomaram-na a sério. Desde de então, o número de
socialistas-revolucionários nos campos aumentou constantemente. «Alguém que tivesse
assistido pelo menos a um congresso qualquer numa fracção dos socialistas-
revolucionários – conta um dos militantes da terra – considerando-se como socialista-
revolucionário ou como qualquer coisas do género»... Havia na guarnição, na cidade do
distrito dois regimentos que se encontravam também sob a influência dos socialistas-
revolucionários. Os comités agrários dos cantões começavam a trabalhar as terras dos
proprietários nobres, a ceifar os prados. O comissário da província, o socialista-
revolucionário Efimov, enviou ordens cominatórias. A aldeia estava desorientada: esse
mesmo comissário não tinha dito ao congresso da província que os camponeses
constituíam agora o próprio poder, e que só podia aproveitar da terra aquele que a
trabalhava? Mas era preciso contar com os factos. Sob ordem do comissário socialista-

284
revolucionário Efimov, só no distrito de Elnino, 16 comités agrários de cantão sobre 17
foram, no decorrer do meses seguintes, levados a tribuna por se terem apoderado das
terras dos proprietários. É desta maneira original que se desenrolava o romance da
intelliguentsia populista com o povo. Havia no máximo três ou quatro bolcheviques em
todo o distrito. A sua influência, todavia, crescia rapidamente, eliminando cindindo os
socialistas-revolucionários.
No início de Maio foi convocado, em Petrogrado, o congresso camponês pan-russo.
As delegações representavam as cimeiras e tinham um carácter muitas vezes fortuito. Se
os congressos de operários e de soldados atrasavam invariavelmente o desenrolar dos
acontecimentos e a evolução política da massas, é inútil dizer quanto a representação do
campesinato disseminado estava atrasada sobre o verdadeiro estado de espírito dos
campos. Como delegados apresentavam-se, por um lado, os intelectuais populistas da
extrema direita, gente ligada ao campesinato principalmente pela cooperação comerciante
ou por lembranças de juventude. O verdadeiro «povo» estava representado pelos rurais
mais ricos, kulaques, pequenos lojistas, camponeses cooperantes. Os socialistas-
revolucionários dominavam sem partilha o congreso, e sob a capa da extrema-direita. Por
momentos, todavia, eles próprios paravam, assustados diante da estupenda combinação
da cupidez para a terra e o espírito cem-negro na política entre outros deputados. Em
frente da propriedade da terra dos nobres, nesse congresso, determinou-se uma posição
comum, extremamente radical: «Todas as terras tornam-se públicas, para uso igualitário
por todos os trabalhadores, sem compra.» Bem entendido, os kulaques compreendiam a
igualização somente no sentido da sua igualdade com os nobres, mas de forma nenhuma
no sentido da sua igualdade com os operários agrícolas. Todavia, esse pequeno mal
entendido entre um socialismo fictício populista e o democratismo agrário dos mujiques
revelar-se-iam a seguir.
O ministro da Agricultura, Tchernov, que desejava oferecer um ovo de Pascoa ao
congresso dos camponeses, passeava em vão um projecto de decreto sobre a proibição
da venda das terras. O ministro da Justiça, Pereverzev que no seu género passava, ele
também por socialista-revolucionário, vinha, durante os dias do congresso, ordenar às
autoridades locais de não colocar qualquer obstáculo às vendas de terras. Os deputados
camponeses, sobre isso, fizeram pouco barulho. Mas o assunto não avançou. O governo
provisório do príncipe Lvov não consentia que se metesse a mão sobre as terras dos
proprietários nobres. Os socialistas não queriam meter a mão sobre o governo provisório.
Ora, pela sua composição, o Congresso incapaz de encontrar uma saída à contradição
entre o seu apetite de terra e o seu espírito reaccionário.
No 20 de Maio, Lenine falou no congresso dos camponeses. Parecia, disse
Sokhanov – que Lenine caiu numa fossa de crocodilos. «Todavia, os mujiques escutaram-
no com atenção, e na verdade não sem uma simpatia que, somente, não ousaram
manifestar.» O mesmo resultado na secção dos soldados, extremamente hostis aos
bolcheviques. Seguindo os socialistas-revolucionários e os mencheviques, Sokhanov
tentou atribuir à táctica leninista na questão agrária uma nuança anarquista. Não era
assim tão longe do príncipe, que tendia a considerar os atentados aos direitos dos
proprietários como actos de anarquia. Segundo esta lógica, a revolução no seu conjunto

285
equivalia à anarquia. Na realidade, a maneira que Lenine tinha de colocar a questão era
mais profunda do que podiam constatar os seus críticos. Como órgãos da revolução
agrária, e, em primeiro lugar, da liquidação da propriedade da terra dos nobres, deviam
colocar-se os sovietes dos deputados camponeses aos quais seriam submetidos os
comités agrários. Aos olhos de Lenine, os sovietes eram órgãos do poder de Estado que
se tornariam órgãos da ditadura revolucionária. Isso, de qualquer forma, está muito mais
longe do anarquismo, isto é a teoria e a prática da ausência de poder.
«Nós pronunciamo-nos – dizia Lenine no 28 de Abril – pela transmissão imediata da
terra aos camponeses com mais organização possível. Nós opomo-nos absolutamente às
confiscações anárquicas. «Porquê não queremos esperar pela Assembleia constituinte?»
Para nós, o que importa, é a iniciativa revolucionária, cuja lei deve ser o resultado. Se
esperam que a lei seja redigida e se vocês próprios não desenvolvem uma energia
revolucionária, não terão nem lei, nem terra.»
Estas palavras simples não são a linguagem de todas as revoluções?
Após uma sessão de um mês, o congresso camponês eleito, na qualidade de
instituição permanente, um comité executivo composto de cerca de duzentos pequenos
burgueses robustos dos campos e os populistas da especie professoral ou comerciante,
sob a cortina de personagens decorativos tais que Brechkovskaia, Tchaikovsky, Vera
Figner e Kerensky. Elegeram presidente o socialista-revolucionário Avksentiev, que foi
feito para os banquetes de província, mas não para a guerra camponesa.
Desde então, as questões mais importantes foram debatidas e sessões comuns dos
dois comités executivos: o dos operários e soldados e o dos camponeses. A esta
montagem faltava um extremo reforço da ala direita, directamente apoiada nos cadetes.
Todas as vezes que necessitava pressionar os operários, de cair sobre os bolcheviques,
de ameaçar «a república independente de Cronstadt» de todos os males imagináveis,
duzentas mãos ou mais exactamente, duzentos punhos (kulaques), os do executivo
camponês, erguiam-se como um muro. Essa gente estava de acordo com Miliokov para
«acabar» com os bolcheviques. Mas, sobre a terra dos nobres, eles tinham os pontos de
vista de mujiques e não teorias liberais, e isso opunha-os à burguesia e ao governo
provisório.
Logo após a dissolução do congresso camponês começaram a surgir queixas; as
resoluções do congresso eram levadas a sério na província e provocavam a confiscação
e o inventário, nos proprietários nobres, da terra e dos bens móveis. Era impossível
implantar nas cabeças teimosas dos mujiques a ideia da diferença entre a palavra e o
acto.
Os socialistas-revolucionários, assustados, bateram em retirada. No início de Junho,
no seu congresso de Moscovo, eles condenaram solenemente toda as confiscações
arbitrárias da terra: era preciso esperar a Assembleia constituinte. Mas esta resolução
mostrou-se impotente não somente em fazer desaparecer, mas também em enfraquecer o
movimento agrário. O assunto se complicava extraordinariamente pelo facto que no
próprio partido socialista-revolucionário, existia um grande número de elementos

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realmente dispostos em ir até ao fim com os mujiques contra os proprietários, e que além
dos socialistas-revolucionários de esquerda, sem ousar ainda romper abertamente com o
partido, ajudavam os mujiques a voltar as costas ou a interpretá-los à sua maneira.
No governo de Kazan, onde o movimento camponês tomou dimensões
particularmente violentas, os socialistas-revolucionários de esquerda determinaram eles
próprios mais cedo que nas outras províncias. À cabeça deles encontrava-se Kalegaiev,
futuro comissário do povo da Agricultura no governo soviético, durante o período do bloco
dos bolcheviques com os socialistas-revolucionários de esquerda. A partir de meados de
Maio começou, no governo de Kazam, a transferência de terras sistemático posta à
disposição dos comités de cantão. Mais ousadamente que em qualquer outro lugar esta
medida aplicou-se no distrito de Spassky, onde se encontrava um bolchevique à cabeça
das organizações camponesas. As autoridades do distrito se queixavam à autoridade
central da agitação agrária desenvolvida pelos bolcheviques vindos de Cronstadt, os
quais, além disso, teriam prendido uma religiosa chamada Tamara «por ter feito
objecções.»
Do governo de Voroneje, um comissário comunicou em 2 de Junho: «No caso de
infracções diversas à lei e de actos ilegais na província tornam-se cada vez mais
frequentes, sobretudo nas terras agrárias.» As confiscações de terras no governo de
Penza prosseguem-se obstinadamente. Um dos comités de cantão do governo de Kaluga
confiscou metade do feno de um mosteiro; à queixa do abade, o comité agrário do distrito
tomou esta resolução: apreender a totalidade dos fenos. Não é frequente que a instância
superior seja mais radical que a inferior. A religiosa Maria, do governo de Penza, lamenta
a confiscação dos domínios do mosteiro. «As autoridades locais são impotentes.» No
governo de Viatka, os camponeses sequestraram o domínio dos Skoropadsky, família do
futuro chefe dos cossacos de Ucrânia, e, «esperando a solução à questão da propriedade
agrária», decretaram isto: não tocar à floresta e entregar os rendimentos ao Tesouro.
Em muitos outros lugares, os comités agrários não somente reduziram de cinco a
seis vezes os preços do aluguel das terras, mas decidiram que os pagamentos, em vez
de serem feitos aos proprietários, seriam postos à disposição dos comités, esperando a
solução da Assembleia constituinte. Não foi como advogados mas como mujiques, isto é
seriamente, que se respondeu assim à questão de não ter uma opinião prévia da reforma
agrária antes da Assembleia constituinte. No governo de Saratov, os camponeses que,
ainda na véspera, proibiam aos proprietários de cortar madeira na floresta, começaram
eles próprios a fazê-lo. Cada vez mais frequentemente, os camponeses apoderaram-se
das terras das igrejas e dos mosteiros, sobretudo nos lugares onde os proprietários
nobres são raros. Em Livónia, os operários agrícolas letões, com os soldados do batalhão
letão, confiscaram sistemáticamente os domínios dos barões.
Do governo de Vitebsk, os exploradores de serrações esganiçavam-se a gritar que
as medidas tomadas pelos comités agrários liquidavam a indústria da madeira e
impediam de responder às necessidades da frente. Patriotas não menos desinteressados,
os proprietários do governo de Poltava, afligiam-se de não mais ter, no seguimento dos
sarilhos agrários, a possibilidade de abastecer o exército. Enfim, o congresso dos

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proprietários de coudelarias em Moscovo deu esse aviso que as confiscações praticadas
pelos camponeses ameaçavam de provocar as piores calamidades à nação.
Entrementes, a procuradoria do Sínodo, o mesmo que dizia dos membros da muito santa
instituição que eram «idiotas e malandros», queixava-se ao governo de que, na província
de Kazan, os camponeses tomavam aos monjes não somente a terra e o gado, mas
também a farinha necessária para as ostias. No governo de Petrogrado, a dois passos da
capital, os camponeses expulsaram de um domínio o capataz e começaram eles próprios
a administrar. O vigilante príncipe Orusov, no 2 de Junho, telegrafou em todas as
direcções: «Apesar das minhas instruções, etc., etc.. Rogo-vos para tomarem novamente
as medidas mais firmes.» O príncipe esqueceu somente de indicar algumas medidas.
Enquanto que, em todo o país, se desenvolvia o trabalho gigantesco de liquidação
das raízes profundas da Idade média e da servidão, o ministro da Agricultura, Tchernov
reunia nos seus escritórios os materiais para a Assembleia constituinte. Ele tinha intenção
de promover a reforma através de base de dados mais exactos da estatística agrária e de
todas as outras, daí a razão da sua voz mais doce, ele exortava os camponeses a esperar
o fim dos exercícios. O que não o impedia, aliás, os proprietários de expulsar o «ministro
dos camponeses» antes que ele não tivesse tempo de preencher as suas tábuas
sagradas.
Segundo os arquivos do governo provisório, jovens sábios calcularam que em Março
o movimento agrário manifestou-se com mais ou menos força do que nos trinta e quatro
distritos, que se estendia de Abril a cento e setenta e quatro distritos, em Maio a duzentos
e trinta e seis, em Junho a duzentos e oitenta, em Julho a trezentos e vinte cinco. Esses
números, todavia, não dão a representação completa do crescimento real do movimento,
visto que, em cada distrito, a luta toma, cada mês, um carácter de massa mais amplo e
mais obstinada.
Nesse primeiro período, de Março a Julho, os camponeses, a esmagadora maioria,
ainda se abstêm em exercer violências directas sobre os proprietários e de confiscar
abertamente as terras. Iakovlev, que dirigiu os estudos acima mencionados, actualmente
comissário do povo da Agricultura da União soviética, explica a táctica relativamente
plácida dos camponeses pela sua confiança na burguesia. Esta explicação deve ser
julgada inconsistente.
O governo do príncipe Lvov na podia de forma nenhuma dispor os camponeses em
confiança, dada a contínua desconfiança do mujique em relação à cidade, ao poder, à
sociedade cultivada. Se os camponeses, no período inicial, quase não recorreram às
medidas de violência aberta, no entanto esforçaram-se em dar aos seus actos a forma de
uma pressão legal ou meio legal, isso explica-se precisamente pela sua desconfiança em
relação ao governo e pela sua insuficiente segurança nas suas próprias forças. Os
camponeses só agem, apalpam o terreno, calculam a resistência do inimigo, e,
empurrando o proprietário, acrescentam: «Nós não queremos pilhar, nós queremos que
tudo se faça convenientemente.» Eles não se atribuem a propriedade das pastagens, mas
aí ceifam a erva. Tomam pela força a terra arrendada, estabelecendo eles próprios as
rendas, ou então, igualmente pela força, «compram» a terra a preços que eles próprios

288
estabelecem. Todos esses artimanhas legais, pouco convincentes que sejam tanto para o
proprietário como para o jurista liberal, são ditadas, na realidade, pela desconfiança
profunda mas dissimulada, em relação ao governo: não tomamos isso sem dificuldades,
diz o mujique; pela força, é perigoso, tentemos a astúcia. Ele preferia expropriar o
proprietário com o consentimento deste.
«Durante todos esses meses – insiste Iakovlev – predominam as procedimentos
originais, desconhecidos na história, da luta «pacífica» contra os proprietários, que
procedem da confiança do camponês para com a burguesia e o seu governo. «Os
procedimentos que se declaram aqui desconhecidos na história são na realidades típicos,
inevitáveis, históricamente obrigatória para a fase inicial de uma guerra camponesa sob
todos os meridianos. A tendência em dissimular os primeiros actos de revolta sob as
aparência da legalidade, clerical ou laica, sempre tem sido característica da luta de classe
revolucionária até ao momento onde ela teve que reunir bastante força e segurança para
cortar o cordão umbilical que a ligava à antiga sociedade. Isto diz respeito à classe
camponesa mais que qualquer outra classe, porque mesmo nos seus melhores períodos,
esta classe avança na escuridão e considera os seus amigos da cidade com um olhar
desconfiado. Ela tem boas razões para isso. Os amigos do movimento agrário, nos seus
primeiros passos, são os agentes da burguesia liberal e radical. Ao mesmo tempo que
apoia uma parte das reivindicações camponesas, esses amigos inquietam-se com a sorte
da propriedade burguesa, e daí eles tentam fazer entrar à força a insurreição camponesa
na cama da legalidade burguesa.
Na mesma direcção, muito antes da revolução, agiam outros factores. Mesmo no
seio da classe nobre surgiam pregadores da reconciliação. Leão Tolstoi penetrava na
alma do mujique mais fundo do que ninguém. A sua filosofia da não resistência ao mal
pela violência era uma generalização das primeiras etapas da revolução dos mujiques.
Tolstoi sonhava que tudo poderia produzir-se «sem desperdício» sem pilhagem, por
consentimento recíproco». Sob esta táctica, ele desenvolvia uma base religiosa, sob
forma de um cristianismo purificado. O mahatma Gandhi preenche actualmente na Índia a
mesma missão, mas de forma mais prática. Se na época contemporânea, voltamos longe
do passado, descobrimos sem dificuldade os mesmos fenómenos que pretendem
«desconhecidos na história», sob diferentes capas, religiosas, nacionais, filosóficas e
políticas, desde dos tempos bíblicos e anteriores.
A originalidade da insurreição camponesa de 1917 exprimia-se sobretudo na
qualidade de agentes da legalidade burguesa que se mostravam homens, pretensamente
socialistas, e revolucionários acima de tudo. Mas não eram eles que determinavam o
carácter do movimento camponês e o seu ritmos. Os camponeses seguiam os socialistas-
revolucionários na medida que eles utilizavam as formulas concebidas previamente
destes últimos para se vingarem dos proprietários. Ao mesmo tempo, os socialistas-
revolucionários serviam de cortina jurídica. Porque, enfim, era o partido de Kerensky,
ministro da Justiça, mais tarde da Guerra, e de Tchernov, ministro da Agricultura. Os
adiamentos da promulgação de decretos indispensáveis – os socialistas-revolucionários
dos distritos e dos cantões explicavam-lhes pela resistência dos proprietários e dos
liberais, e atestavam diante dos camponeses que «os nossos» no governo faziam todo o

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possível. A isso, o mujique, bem entendido, não podia responder. Mas não sofrendo de
forma nenhuma de credulidade beata, ele julgava necessário ajudar «os nossos», por
baixo e os «nossos» lá em cima, começaram logo a inquietarem-se.
A fraqueza dos bolcheviques em relação ao campesinato era temporária e provinha
do facto que os bolcheviques não partilhavam as ilusões dos rurais. O campo só podia vir
ao bolchevismo pela experiência e decepções. A força dos bolcheviques era, na questão
agrária como nas outras, de ficarem livres de contradições entre a palavra e os actos.
As considerações sociológicas gerais não podiam decidir à priori se o campesinato
no seu conjunto era ainda capaz de se erguer contra os proprietários. O reforço das
tendências capitalistas na economia agrícola no período intermédio entre as duas
revoluções; a disjunção de uma forte camada de agricultores abandonando a comuna
primitiva; o extraordinário crescimento da cooperação rural, dirigida por camponeses ricos
– tudo isso proibia de prever com certeza qual das duas tendências ganharia na
revolução: o antagonismo das castas entre o campesinato e a nobreza, ou o antagonismo
de classe no interior do próprio campesinato.
Lenine, à chegada, tomou uma posição muito circunspecta nessa matéria. «O
movimento agrário – dizia a 14 de Abril – é só uma previsão, mas não um facto... É
preciso contar com a possibilidade de ver o campesinato unir-se à burguesia.» Não era
um pensamento pronunciado ao acaso. Pelo contrário, Lenine voltava a isso com
insistência em ocasiões diversas. Na conferência do partido, ele declarou, a 24 de Abril,
pronunciando-se contra os «velhos bolcheviques» que o acusavam de subestimar o
campesinato: «Não é admissível que o partido proletário coloque actualmente as suas
esperanças numa comunidade de interesses com o campesinato. Nós militamos para que
o campesinato passe para o nosso lado, mas ele mantém-se, conscientemente, até um
certo grau, do lado dos capitalistas.» Isso mostra, entre outras coisas, como Lenine
estava longe da teoria que mais tarde os epígonos lhe atribuíram uma perpétua harmonia
de interesses do proletariado e do campesinato. Admitindo que o campesinato, en tant
que casta, pôde agir como factor de qualidade revolucionária, Lenine preparava-se
todavia, em Abril, à pior variante, a saber a um bloco resistente dos proprietários nobres,
da burguesia e das largas camadas do campesinato. «Querer ganhar o mujique nesse
momento – dizia – é meter-se à mercê de Miliokov.» Daí a conclusão: «Levar o centro da
gravidade aos sovietes de operários agrícolas.»
Mas foi a melhor variante que se realizou. O movimento agrários passava de uma
previsão a um facto, descobrindo, por um curto momento, mas com uma força
extraordinária, a preponderância dos laços internos ao campesinato sobre os
antagonismos capitalistas. Os sovietes de operários agrícolas só ganharam importância
nalguns lugares, principalmente nas províncias bálticas. Em contrapartida, os comités
agrários tornavam-se órgãos de todo o campesinato que, pela sua enorme pressão,
transformavam-os, de câmaras de conciliação, em instrumentos da revolução agrária.
Aconteceu que o campesinato no seu conjunto obteve ainda mais uma vez la
possibilidade, a última na sua história, a agir como factor revolucionário, prova ao mesmo
tempo a fraqueza das relações capitalistas na aldeia e a sua força. A economia burguesa

290
está ainda longe de ter absorvido as relações agrárias fundadas na servidão medieval.
Todavia, o desenvolvimento capitalista foi levado tão longe que tornou as velhas formas
da propriedade agrária igualmente intoleráveis para todas as camadas rurais. A
interpenetração dos domínios dos nobres e dos proprietários camponeses, muita vezes
calculada conscientemente de maneira a transformar os direitos do proprietário nobre em
armadilha para toda a comunidade camponesa; a dispersão inverossímil das terras da
aldeia; enfim, o recente antagonismo entre a comuna agrícola e os lavradores
individualistas – tudo isso constituía, no conjunto, uma confusão intolerável das relações
agrárias, donde não se podia sair-se por medidas legislativas parciais. E os camponeses
sentiam isso melhor que os teóricos da questão agrária. A experiência da vida,
modificando-se no seguimento de gerações, levava-os sempre a uma e só conclusão: era
preciso meter uma cruz sobre os direitos herdados e adquiridos, no que respeita a terra,
jogar a baixo todos os marcos, e remeter esta terra, desembaraçada dos sedimentos
históricos, a quem a trabalha.
Tal era o sentido dos aforismos do mujique: «A terra não é de ninguém», «a terra é
de Deus», - e é no mesmo sentido que o campesinato interpretava o programa socialista-
revolucionário da socialização da terra. A despeito das teorias populistas, não havia aí
uma grama de socialismo. A mais ousada revolução agrária não passava ainda, em si e
para si, os quadros do regime burguês. A dita socialização que devia assegurar a cada
trabalhador «o direito à terra», representava – as relações do mercado sendo mantidas
sem limite – uma utopia evidente. O menchevismo criticava esta utopia de um ponto de
vista liberal-burguês. O bolchevismo, em contrapartida, actualizava essa tendência
democrática progressista que, na teoria dos socialistas-revolucionários, encontrava a sua
expressão utópica. A revelação do verdadeiro sentido histórico do problema agrário na
Rússia foi um dos grandes méritos de Lenine.
Miliokov escreveu que, para ele, «sociólogo e analista da evolução histórica da
Rússia», isto é para um homem que contempla o que se passa nas altas cimeiras,
«Lenine e Trotsky incarnam um movimento muito mas próximo de Pugatchev, de Razine,
de Bolotnikov – séculos XVII e XVIII da nossa história – que as últimas perspectivas do
anarco-sindicalismo europeu». O grão de verdade contido nessa afirmação do sociólogo
liberal – se metemos de lado «o anarco-sindicalismo» que surge aí não se sabe porquê –
não atinge os bolcheviques, mas antes de mais a burguesia russa, a sua chegada tardia e
a sua insignificância política. Não são os bolcheviques que são culpados dos grandiosos
movimentos camponeses que os séculos passados não tenham trazido a democratização
das relações sociais em Rússia – falta de uma direcção vinda das cidades, era
irrealizável! Tal como os bolcheviques não são culpados que a pretendida emancipação
dos camponeses em 1861 fosse feita por meio da espoliação da terras comunais, da
submissão dos camponeses ao Estado e da completa manutenção do regime social. Uma
coisa é verdade: os bolcheviques tiveram, no primeiro quarto do século XX, que completar
o que não foi acabado ou nunca feito nos séculos XVII, XVIII e XIX. Antes de poder
abordar a grande tarefa que lhe era própria, os bolcheviques foram obrigados a limpar o
terreno do estrume histórico das velhas classes dirigentes e dos séculos passados, e

291
essa tarefa foi para além disso preenchida de qualquer modo pelos bolcheviques muito
conscientemente. O próprio Miliokov não se atreverá agora a negá-lo

292
Reagrupamentos nas massas
No quarto mês da sua existência, o regime de Fevereiro já sufocava nas suas
próprias contradições. Junho começou pelo Congresso panrusso dos sovietes que tinha
por tarefa dar uma cobertura política à ofensiva na frente. O início da ofensiva coincidiu,
em Petrogrado, com uma grandiosa manifestação dos operários e dos soldados,
organizada pelos conciliadores contra os bolcheviques, mas que se transformou em
manifestação bolchevique contra os conciliadores. A indignação crescente das massas
trouxe, quinze dias mais tarde, uma nova manifestação que rebentou sem qualquer apelo
de cima, conduziu a encontros sangrentos e inscreveu-se na história sob o nome de
«Jornadas de Julho». Inserindo-se exactamente entre a Revolução de Fevereiro e a de
Outubro, a meia-insurreição de Julho fechou a primeira e é de certa forma um ensaio
geral da segunda. No meio das «Jornadas de Julho» terminaremos este volume. Mas
antes de voltar aos acontecimentos cujo Petrogrado foi o palco em Junho, é indispensável
de considerar mais perto os processos que tiveram lugar nas massas.
A um liberal que afirmava, no início de Maio, que mais o governo ia à esquerda, mais
o país ia para a direita, Lenine respondeu:
«O «país» dos operários e dos camponeses pobres, asseguro-lhe, cidadão, está mil
vezes mais à esquerda que os Tchernov e os Tseretelli, e cem vezes mais à esquerda que
nós próprios. Quem viverá verá.»
Lenine considerava que os operários e os camponeses estavam «cem vezes» mais
à esquerda que os bolcheviques. Isso podia parecer para o menos motivado: porque
enfim os operários e os soldados apoiavam ainda os conciliadores e, em maioria,
mantinham-se reservados em relação em relação aos bolcheviques. Mas Lenine cavava
mais fundo. Os interesses sociais das massas, seu ódio e suas esperanças ainda
procuram a sua própria definição. A conciliação era para elas uma primeira etapa. As
massas eram infinitamente mais à esquerda que os Tchernov e os Tseretelli mas não se
davam conta do seu próprio radicalismo. Lenine tinha também razão em dizer que as
massas estavam mais à esquerda que os bolcheviques, porque o partido, na sua
esmagadora maioria, ainda não tinha consciência da potência das paixões revolucionárias
que ferviam nas entranhas do povo despertado. A revolta das massas era alimentada pela
prolongação da guerra, por desespero económico e pela inacção perniciosa do governo.
A imensa planície euro-asiática tornou-se um país graças ao caminho de ferro. A
guerra batia mais fortemente as vias férreas. Os transportes estavam cada vez mais
desorganizados. O número de locomotivas em mau estado atingia, em certas linhas, até
50%. No Grande Quartel General, sábios engenheiros liam relatórios prevendo que dentro
de seis meses os transportes por via férrea estariam completamente paralizados. Esses
cálculos eram, conscientemente por uma boa parte, destinados a semear o pânico. Mas o
desespero dos transportes tomava efectivamente proporções ameaçadoras, criando nas
linhas engarrafamentos, desorganizando a circulação de mercadorias e mantendo a vida
cara.

293
O abastecimento das cidades tornava-se cada vez mais difícil. O movimento agrários
já tinha podido criar focos nas quarenta e três províncias. O afluxo de trigo ao exército e
às cidades diminuía de maneira alarmante. Nas regiões mais férteis do país existiam
ainda, na verdade, dezenas e centenas de milhões de libras de trigo excedente. Mas as
operações de armazenamento aos preços com taxa incluída davam resultados
completamente insuficientes; além disso, mesmo o grão armazenado chegava dificilmente
aos centros, por causa das perturbações no serviço de transportes. A partir de Outono de
1916, a frente recebia em média cerca da metade do abastecimento previsto. A ração de
Petrogrado, de Moscovo e de outros centros industriais não ultrapassava 10% do
indispensável. Quase que não havia reservas. O nível da vida das massas urbanas
oscilava entre a subalimentação e a fome. A formação do governo de coligação foi
marcada pela proibição democrática de fazer pão branco. Desde então, passaram vários
anos antes que o «pão francês» aparecesse de novo na capital. Faltava a manteiga. Em
Junho, o consumo de açúcar foi limitado por normas determinas para todo o país.
O mecanismo do mercado, quebrado pela guerra, não foi substituído pela
regulamentação do Estado à qual foram obrigados a recorrer os países capitalistas
avançados e que permitiu à Alemanha de se manter durante os quatro anos da guerra.
Sintomas catastróficos de deterioração económica manifestaram-se a cada passo. A
queda da produção das fábricas foi provocada independentemente do mau estado dos
transportes, pelo desgaste extremo das ferramentas, pela insuficiência das matérias
primas e dos materiais complementares, pela instabilidade da mão-de-obra, pelo
financiamento irregular, enfim, pela incerteza geral. As maiores empresas continuaram a
trabalhar para a guerra. As encomendas eram repartidas em dois ou três anos com
antecedência. Então os operários recusavam-se a acreditar que a guerra tivesse que se
prolongar. Os jornais comunicavam os números vertiginosos dos lucros da guerra. A vida
encarecia. Os operários esperavam mudanças. O pessoa técnico e administrativo das
fábricas agrupava-se em sindicatos e formulou as suas reivindicações; nesse meio
predominavam os mencheviques e os socialistas-revolucionários. O regime das fábricas
deslocava-se. Todos alicerces cediam.
As perspectivas da guerra e da economia geral escureciam, os direitos de
propriedade tornavam-se incertos, os lucros baixavam, os perigos cresciam, os patrões
perdiam gosto de produzir em condições de revolução. A burguesia no seu conjunto
comprometia-se na via do derrotismo económico. As percas e prejuízos temporariamente
sofridos, pelo facto da paralisia económica, eram, aos seus olhos, as falsas despesas da
luta contra a revolução que ameaçava as bases da «cultura». Ao mesmo tempo a
imprensa bem falante, a cada dia, acusava os operários de sabotar insidiosamente a
indústria, de furtar os materiais, de queimar inconsideradamente o combustível para fazer
obstrução. A falsidade das acusações ultrapassava todos os limites. E como era a
imprensa de um partido que se encontrava à cabeça do governo de coligação, a
indignação dos operários transpunha-se naturalmente sobre o governo provisório.
Os industriais não tinham esquecido a experiência da Revolução de 1905, na qual
um lock-out bem organizado, com apoio activo do governo tinha não só quebrado a luta

294
dos operários pelo dia de oito horas, mas prestou à monarquia um serviço inestimável
pelo esmagamento da revolução. A questão do lock-out foi, ainda mais esta vez,
examinada pelo Conselho dos congressos da indústria e do comércio, assim se chamava
inocentemente o órgão de combate do cartel capital e sindicalizado. Um dos dirigentes da
indústria, o engenheiro Auerbach, explicou mais tarde, nas suas memórias, porquê a ideia
do lock-out tinha sido rejeitada: «Isso teria sido a punhalada nas costas do exército … As
consequências de tal atitude, dado a falta de apoio do lado do governo, pareciam
extremamente sombrias à maioria.» A infelicidade vinha da ausência de um «verdadeiro»
poder. O governo provisório estava paralizado pelos sovietes; os líderes razoáveis dos
sovietes pelas massas; os operários, em cada fábrica, estavam armados; além disso,
quase cada fábrica contava na vizinhança um regimento ou um batalhão amigo. Nessas
condições, o lock-out parecia a esses senhores industriais «odioso do ponto de vista
nacional». Mas sem renunciar completamente à ofensiva, eles adaptaram-no às
circunstâncias, dando-lhe um carácter larvado e não simultâneo. Segundo a expressão
diplomática de Auerbach, os industriais «chegaram à conclusão que a lição das coisas
seria dada pela própria via: pelo inevitável e progressivo encerramento das fábricas, cada
um agindo de certa forma isoladamente – o que, logo se pôde observar». Por outras
palavras, rejeitando o lock-out demonstrativo, como comportando «uma enorme
responsabilidade», o conselho da indústria unificada convidou os seus membros a
fecharem as companhias isoladamente, procurando pretextos plausíveis.
O plano do lock-out larvado foi aplicado com uma metodologia notável. Os líderes do
capital, tais que o cadete Kutler, antigo ministro do governo Witte, faziam grandes
conferências sobre a ruína da indústria, que aliás eles metiam na conta não de três anos
de guerra, mas de três meses de revolução. «Ainda duas ou três semanas – previa o
impaciente Rietch – e os fabricantes e fábricas começarão a fechar uma após outra.» Sob
a forma de predição se cobria aqui a ameaça. Engenheiros, professores, jornalistas
abriram na imprensa técnica e na imprensa corrente uma campanha demostrando que
derrotar os operários era a condição essencial da salvação. O ministro Konovalov,
industrial, declarou no 17 de Maio, na véspera de sair do governo
: «Se, muito brevemente, não voltam à razão os espíritos perturbados, …
testemunharemos o encerramento de dezenas e de centenas de empresas.»
Em meados de Junho, o congresso do comércio e da indústria exige do governo
provisório «um corte radical com o sistema de desenvolvimento da revolução». Já
ouvimos a mesma reclamação do lado dos generais: «Parai a revolução.» Mas os
industriais são mais precisos: «A fonte do mal está não somente nos bolcheviques, mas
também nos partidos socialistas. A Rússia não pode ser salva senão por um punho sólido,
uma mão de ferro.»
Depois de ter preparado a situação política, os industriais passaram da palavra à
acção. No decorrer de Março e de Abril, cento e vinte e nove pequenas empresas
encerraram; no decorrer de Maio, cento e oito empresas com o mesmo número de
operários; em Junho, fecharam já cento e vinte e cinco empresas trinta e oito mil
operários; em Julho, duzentas e seis empresa meteram na rua quarenta e oito mil

295
operários. O lock-out estendeu-se progredindo geometricamente. Mas era só o principio.
Moscovo textil agita-se após Petrogrado, a província após Moscovo. Os patrões alegavam
falta de combustível, de matérias primas, materiais auxiliares, crédito. Os comités de
fábrica intervieram e, em muitos casos assinalaram, de maneira absolutamente
incontestável, uma desorganização pérfida da produção, visando pressionar os operários
ou a extorquir subsídios ao governo. Particularmente impudentes mostraram-se os
capitalistas estrangeiros que agiam por intermédio das suas embaixadas. Em certos
casos, a sabotagem era de tal forma evidente que daí resultou revelações feitas pelos
comités de fábrica, os industriais viram-se forçados a reabrir as companhias. Assim, ao
revelar as contradições sociais, uma após outra, a revolução logo se encontrou na
presença da principal dentre elas; entre o carácter social da produção e a propriedade
privada dos meios de produção. Para vencer os operários, o empresário fecha a fábrica
como se tratasse somente da sua janela e não de um estabelecimento indispensável à
vida de toda a nação.
Os bancos, tendo boicotado com sucesso o empréstimo da liberdade, tomaram uma
atitude combativa em relação aos atentados do fisco dirigidos contra o grande capital. Na
carta dirigida ao ministro das Finanças, os banqueiros «previam» a evasão de capitais
para o estrangeiro e a transferência de títulos do tesouro para os cofres fortes em caso de
reformas financeiras radicais. Por outras palavras, os patriotas da banca ameaçavam com
o lock-out financeiro completando o da indústria. O governo apressou-se: os
organizadores da sabotagem não eram pessoas sólidas que arriscaram, por causa da
guerra e da revolução, seus capitais, e não esses marinheiros de Cronstadt que não
arriscavam nada senão a sua própria vida?
O comité executivo não podia dispensar-se de compreender que a responsabilidade
dos destinos económicos do país, sobretudo após a adesão aberta dos socialistas ao
poder, recaíam aos olhos das massas sobre a maioria soviética dirigente. A secção
económica do comité executivo elaborou um grande programa de regulação pelo Estado
da vida económica. Sob a pressão de uma situação ameaçadora, as proposições de
economistas muito moderados mostraram-se mais radicais que os seus autores. «Em
muitos domínios da indústria dizia o programa – os tempos são bons para um monopólio
do Estado do comércio do pão, metais, açúcar, papel) e, enfim, para quase todas os
ramos da indústria, as condições actuais exigem uma participação reguladora do Estado
na repartição das matérias-primas, na elaboração dos produtos, assim como o
estabelecimento de preços … Ao mesmo tempo, convém estabelecer um controlo de
todos os estabelecimentos de crédito.»
No 16 de Maio, o comité executivo, os líderes políticos perdendo a cabeça, adoptou
as proposições destes economistas quase sem debate e reforçou com um aviso original
ao governo: este deve tomar «tarefa de uma organização racional da economia pública e
do trabalho», lembrando-se bem que, sem ter preenchido essa tarefa, «o antigo regime
derrubado» e que o «governo provisório teve que se transformar». Para se encorajarem,
os conciliadores metiam-se medo a eles próprios.

296
«Programa magnifico – escrevia Lenine – e um controlo, e trustes estatizados, e a
luta contra a especulação, e o serviço obrigatório do trabalho… Somos obrigados a
reconhecer o programa do «medonho» bolchevismo, porque não pode haver outro
programa, outra saída diante do desastre espantoso que ameaça efectivamente…»
Toda a questão é, porém, saber quem realizará esse magnifico programa. Seria a
coligação? A resposta vem imediatamente. Um dia após a adopção pelo comité executivo
do programa económico, o ministro do Comércio e da Indústria Konovalov demitiu-se e
saiu batendo com porta. Foi provisoriamente substituído pelo engenheiro Paltchinsky, não
menos fiel mas mais enérgico representante do grande capital. Os ministros socialista
nem mesmo ousaram propor o programa do comité executivo aos seus colegas liberais.
Porque Tchernov tinha em vão tentado admitir ao governo a proibição da venda de terras!
Respondendo às dificuldades crescentes, o governo apresentou, pelo seu lado, um
programa de desanuviamento de Petrogrado, isto é transferir as fábricas e oficinas para o
interior do país. O projecto era motivado por considerações militares – perigo de ver a
capital tomada pelos alemãs – assim como por considerações económicas: Petrogrado
estava demasiado afastado das fontes de combustível e de matérias-primas. O
desanuviamento teria significado a liquidação da indústria da capital por meses e anos. O
objectivo político era dispersar pelo país a vanguarda da classe operária. Paralelamente a
isso, as autoridades militares encontravam pretextos, um após outro, para afastar de
Petrogrado as tropas do espírito revolucionário.
Paltchinsky esforçou-se bastante para persuadir a secção operária do Soviet das
vantagens do desanuviamento. Era impossível proceder à evacuação contra a vontade
operária e os operários portanto não consentiam. O desanuviamento da capital avançava
tão pouco que as regulamentação da indústria. O desespero agravava-se, os preços
subiam, o lock-out larvado aumentava e o desemprego crescia. O governo marcava
passo. Miliokov escreveu mais tarde:
«O ministério deixa-se ir simplesmente, e a corrente conduz ao bolchevismo.» Sim, a
corrente levava ao bolchevismo.
O proletariado era a principal força motriz da revolução. Ao mesmo tempo, a
revolução formava o proletariado. O que ele bem precisava.
Vimos qual foi o papel decisivo dos operários de Petrogrado nas jornadas de
Fevereiro. No ponto mais alto do combate encontravam-se os bolcheviques. Após a
insurreição, porém, eles retiraram-se subitamente para qualquer lugar atrás. O proscénio
político é ocupado pelos partidos conciliadores. Eles transmitem o poder à burguesia
liberal. A bandeira do bloco é o do patriotismo. O assalto que ele dá é tão violento que a
direcção do partido bolchevique, pelo menos a metade, capitula diante do ataque. À
chegada de Lenine, o curso do partido modificou-se bruscamente e, ao mesmo tempo, a
sua influência aumentou rapidamente. Na manifestação armada de Abril, a vanguarda dos
operários e dos soldados tenta quebrar as cadeias da conciliação. Mas, após o primeiro
esforço, ela bate em retirada. Os conciliadores continuam ao leme.

297
Mais tarde, após as insurreição de Outubro, escreveu-se bastante sobre, que os
bolcheviques deviam a vitória ao exército camponês, cansado da guerra. É uma
explicação muito superficial. Uma afirmação contrária seria mais próxima da verdade: se
os conciliadores obtiveram na Revolução de Fevereiro uma situação dominante, é, antes
de mais, em virtude do lugar exceptional que o exército camponês ocupava na vida do
país. Se a revolução tinha eclodido em tempo de paz, o papel dirigente do proletariado
teria tido, desde do início, um carácter mais marcante.
Sem guerra, a vitória revolucionária teria vindo mais tarde, e, abstracção feita das
vítimas da guerra, teria tido um preço mais elevado. Mas ela não teria deixado lugar a
uma profusão de opiniões conciliadoras e patrióticas. De qualquer modo, os marxistas
russos que tinham prognosticado, muito antes os acontecimentos, a conquista do poder
pelo proletariado no decurso da revolução burguesa, baseavam-se não sobre o estado da
opinião passageira do exército camponês, mas sobre a estrutura de classes da sociedade
russa. Esta previsão foi totalmente confirmada. Mas as relações essenciais entre classes
reflectiram-se através da guerra, e pour um tempo, transpuseram-se sob a pressão do
exército, isto é de uma organização de camponeses sem ligações de classe e armados. É
precisamente esta formação social artificial que consolida extremamente as posições da
pequena-burguesia conciliadora e criou para ela a possibilidade de fazer, durante oito
meses, experiências que enfraqueceram o país e a revolução.
Todavia, a questão da política conciliadora não tem todas as suas raízes no exército
camponês. No próprio proletariado, na sua composição, no seu nível político, é preciso
procurar as causas complementares da preponderância passageira dos mencheviques e
dos socialistas-revolucionários. A guerra tinha trazido formidáveis mudanças na
composição e no estado de espírito da classe operária. Se os anos precedentes tinha sido
um período de ascenso do fluxo revolucionário, a guerra tinha bruscamente interrompido
esse processo. A mobilização tinha sido concebida e aplicada não somente num sentido
militar, mas antes de mais, de um ponto de vista policial. O governo apressou-se a limpar
as regiões industriais de seus elementos operários mais activos e os mais turbulentos.
Pode-se considerar como perfeitamente estabelecido que a mobilização, nos primeiros
meses da guerra, retirou à indústria cerca de 40% dos operários, na maior parte
qualificados. A sua ausência, muito dolorosamente ressentida na produção, apelou ao
protesto dos industriais, tanto mais vivas que os lucros das indústrias da guerra eram
elevados. Seguidamente, a destruição dos quadros operários foi interrompida. Os
operários indispensáveis à indústria continuaram na qualidade de mobilizados nas
fábricas. As rachas abertas pela mobilização eram preenchidas pelos recém-chegados
dos campos, pela gente das cidades, por operários pouco qualificados, por mulheres e
adolescentes. A percentagem de mulheres na indústria subiu de trinta a quarenta.
O processo de transformação e de dissolução do proletariado tomou proporções
excepcionais precisamente na capital. Durante a guerra, de 1914 a 1917, o número de
grandes companhias que ocupavam mais de quinhentos operários quase que dobrou no
governo de Petrogrado. No seguimento da liquidação de fábricas e de oficinas na Polónia
e sobretudo nas províncias do Báltico, em consequência do aumento geral das indústrias
da guerra, houve, em Petrogrado, por volta de 1917, uma concentração de cerca de

298
quatrocentos mil operários nas fábricas e oficinas. Desse número, trezentos e cinco mil
estavam ligados a cento e quarenta fábrica gigantes. Os elementos mais combativos do
proletariado de Petrogrado desempenharam na frente um papel não negligente na
formação da mentalidade revolucionária do exército. Mas os que os tinham substituído na
véspera, recém-chegados do campo, frequentemente camponeses ricos e logistas,
disfarçados nas fábricas para escapar à frente, mulheres e adolescentes, eram muito
mais dóceis que os operários do quadro. A isso é preciso acrescentar que os operários
qualificados, encontrando-se na situação de mobilizados nas fábricas – que se contavam
por centenas de milhar – conduziram-se com extrema prudência, temendo serem
enviados para a frente. Tal é a base social da mentalidade patriótica que ganhou uma
parte dos operários já no tempo do czar.
Mas esse patriotismo não era estável. A implacável opressão militar e policial, a
exploração duplicada, as derrotas na frente e o desespero económico levavam os
operários à luta. As greves, durante a guerra, tiveram portanto um carácter principalmente
económico e diferenciaram-se muito por mais moderação das de antes da guerra. O
enfraquecimento da classe agravava-se pelo enfraquecimento do seu partido. Após a
prisão e a deportação dos deputados bolcheviques, procedeu-se com ajuda de agentes
provocadores hierarquicamente organizados antecipadamente, à destruição geral das
organizações bolcheviques e o partido não pode levantar-se até à insurreição de
Fevereiro. Durante os anos 1915 e 1916, a classe operária desagregada teve que passar
por uma escola elementar de luta, isso até Fevereiro 1917, onde as greves económicas
parciais e manifestações de mulheres esfomeadas puderam fundir numa greve geral e
arrastar o exército na insurreição.
Assim, na Revolução de Fevereiro, o proletariado de Petrogrado entrou não somente
com efectivos extremamente hetereogenes que não tinham podido ainda amalgamar-se,
além de terem um nível político diminuído mesmo nas suas camadas as mais avançadas.
Na província, a coisa era pior. Foi somente esta recaída, causada pela guerra, na
ignorância ou na meia ignorância política do proletariado, que criou uma segunda
condição para a dominação provisória dos partidos conciliadores.
Aterrorizados pelo trovão da revolução que bateu em cheio no bacanal dos lucros da
guerra, os industriais, nas primeiras semanas, fizeram concessões aos operários. Os
fabricantes de Petrogrado consentiram mesmo, com reservas e restrições, ao dia de oito
horas. Mas isso não trouxe a calma, visto que o nível das condições de vida baixava
constantemente. Em Maio, o comité executivo foi forçado a constatar que, a vida
tornando-se cada vez mais cara, a situação dos operários «estava, para muitas categorias
no limite da fome crónica». Nos bairros operários, a nervosidade e a tensão dos espíritos
tornava-se cada vez maiores. Era a falta de perspectivas que pesava mais. As massas
são capazes de suportar as mais penosas privações quando elas compreendem a causa.
Mas o novo regime desmascarava-se cada vez mais diante delas como uma camuflagem
das antigas relações sociais contra as quais elas tinham se erguido em Fevereiro. Elas
não podiam tolerar isso.

299
As greves tomam um carácter particularmente violento nas camadas operárias mais
atrasadas e as mais exploradas. As lavadeiras, os operários das tinturarias, os tanoeiros,
os empregados do comércio e da indústria, da construção, operários da bronzagem,
pintores, trolhas, sapateiros, artesãos do cartão, operários da charcutaria, marceneiros,
fazem greve, sucessivamente, durante todo o mês de Junho. Os metalúrgicos,
contrariamente, começam a desempenhar o papel moderador. Para os operários
avançados, torna-se cada vez mais claro que as greves económicas parciais, nas
condições de guerra, de desespero e de inflação, não podiam trazer melhoramentos
importantes, que era necessário modificar de qualquer maneira as próprias bases. O lock-
out não abria somente o espírito dos operários à reivindicação do controlo da indústria,
mas levava-os à ideia da necessidade de colocar as fábricas à disposição do Estado. Esta
dedução parecia tanto mais natural que a maior parte das fábricas privadas trabalhavam
para a guerra e que ao lado delas existiam empresas do Estado do mesmo tipo. A partir
do verão de 1917 chegaram à capital vindas de diferentes lugares da Rússia, delegações
de operários e de empregados que pediam que as fábricas fossem colocadas à
disposição do Tesouro, visto que os accionarios deixaram de cotizar. Mas o governo nem
queria ouvir falar nisso. Era preciso, em consequência, mudar de governo. Os
conciliadores opuseram-se a isso. Os operários voltaram-se contra os conciliadores.
A fábrica Potilov, contando quarenta mil operários, pareceu, nos primeiros meses da
revolução, ser a cidadela dos socialistas-revolucionários. Mas a sua guarnição não
resistiu muito tempo aos bolcheviques. À cabeça dos assaltantes, podia-se ver muitas
vezes Volodarsky. Judeu, alfaiate de profissão, tendo vivido vários anos na América e
falando bem inglês, Volodarsky era um excelente orador para as massas, lógico, inventivo
e corajoso. Certo acento americano dava uma impressão particular à sua voz sonora que
soava nitidamente nas reuniões de milhares de homens.
«A partir do momento onde ele se mostra no distrito de Narva – conta o operário
Mintchev – na fábrica Potilov, o chão começou a tremer debaixo dos pés dos senhores
socialistas-revolucionários, e, em apenas dois meses, os operários de Potilov seguiram os
bolcheviques.»
O crescimento das greves e, em geral, da luta de classes aumentava quase
autenticamente a influência dos bolcheviques. Todas as vezes que se tratava dos seus
interesses vitais, os operários compreendiam bem que os bolcheviques não tinham
segundas intenções, que eles não escondiam nada e que se podia contar com eles. Nas
horas de conflitos, todos os operários, sem partido, socialistas-revolucionários,
mencheviques, dirigiam-se aos bolcheviques. Assim se explica o facto que os comités de
fábrica e de oficinas que conduziam a luta pela sobrevivência de seus lugares de trabalho
contra a sabotagem da administração e os proprietários, passaram para o lado dos
bolcheviques mais cedo que o Soviete. Na conferência dos comités de fábrica e de oficina
de Petrogrado e dos arredores, no principio de Junho, trezentos e trinta e cinco votos
sobre quatrocentos e vinte e um pronunciaram-se pela resolução bolchevique. Esse facto
passou completamente despercebido da grande imprensa. Portanto, significava que, nas
questões essenciais da vida económica, o proletariado de Petrogrado, sem ter ainda tido
tempo de romper com os conciliadores alinhou efectivamente do lado dos bolcheviques.

300
Na conferência dos sindicatos, em Junho, aconteceu que existia em Petrogrado mais
de cinquenta sindicatos, contando pelo menos duzentos e cinquenta mil membros. O
sindicato dos metalúrgicos reunia cerca de cem mil operários. Somente no mês de Maio,
o número dos seus membros tinha duplicado. A influência dos bolcheviques nos
sindicatos aumentava ainda mais rapidamente.
Todas as eleições parciais nos sovietes davam a vitória aos bolcheviques. No
primeiro de Junho, no soviete de Moscovo, havia já duzentos e seis bolcheviques contra
cento e setenta e dois mencheviques e cento e dez socialistas-revolucionários. Os
mesmos avanços produziam-se na província, ainda se mais lentamente. O número de
membros do partido aumentava constantemente. No fim de Abril, a organização de
Petrogrado contava cerca de quinze mil membros, no fim de Junho mais de trinta e dois
mil.
A secção operária do Soviete de Petrogrado tinha já nesse momento uma maioria
bolchevique. Mas, nessas sessões onde se juntavam duas secções, os bolcheviques
eram esmagados pelos delegados soldados. A Pravda reclamava, com cada vez maior
insistência, novas eleições:
«Os quinhentos mil operários de Petrogrado têm no Soviete quatro vezes menos
delegados que os cento e cinquenta mil homens de guarnição.»
No Congresso dos sovietes, em Junho, Lenine reclamava medidas sérias de luta
contra os loock-out a pilhagem e os disturbios da vida económica organizados pelos
industriais e os banqueiros.
«Publiquem os lucros dos senhores capitalistas, prendam cinquenta ou cem dos
maiores milionários. Basta prendê-los durante algumas semanas, mesmo com um regime
de favor como o que é feito a Nicolau Romanov, com o objectivo de os obrigar a descobrir
os subterfúgios, armadilhas, a canalha, o mercantilismo que, mesmo sob o novo governo,
custam milhões ao nosso país.»
Os líderes do Soviete consideravam a proposição de Lenine como monstruosa. «É
possível, ao exercer violências sobre tal ou tais capitalistas, modificar as leis da vida
económica?» Acontece que os industriais ditam suas leis ao conspirarem contra a nação
era aceite como estando na ordem das coisas. Kerensky, projectando sobre Lenine as
iras da sua indignação, não hesitou, um mês mais tarde, em prender numerosos milhares
de operários que não concordavam com os industriais no que diz respeito às «leis da vida
económica.»
A ligação entre o económico e a política desvendava-se. O Estado, sendo habituado
a agir como príncipio místico, utilizava agora cada vez com mais frequência sob a forma
mais primitiva, os destacamentos armados. Os operários, em diversos pontos do país,
levavam à força ao Soviete ou prendiam no domicílio o capitalista que recusava fazer
concessões ou mesmo de estabelecer negociações. Não era de admirar que a milícia
operária se tornasse alvo de aversão particular das classes possuidoras.

301
A decisão do comité executivo, de ordenar primitivamente o armamento de 10% dos
operários, não foi executada. Mas os operários não foram impedidos de se armar
parcialmente, e nas fileiras da milícia, infiltraram-se os elementos mais activos. A direcção
da milícia operária concentrava-se nas mãos dos comités de fábrica, e a direcção desses
comités passava cada vez mais para as mãos dos bolcheviques. Um operário da fábrica
Postavchtchik, em Moscovo, conta o seguinte:
«No primeiro de Junho, logo que foi eleito o novo comité de fábrica, composto em
maioria por bolcheviques, formou-se um destacamento de cerca de oitenta homens, o
qual, por falta de armas, fazia o exercício com paus sob a direcção de velho soldado, o
camarada Levakov.»
A imprensa acusava a milícia de violências, de requisições e prisões ilegais. Sem
dúvida, empregava a violência: ela era precisamente para isso. O seu crime era, porém,
de usar a violência em relação aos representantes da classe que não estava habituada a
sofrer e não queria acostumar-se a isso.
A fábrica Potilov, que desempenhava um papel dirigente na luta pela subida dos
salários, uma conferência reuniu-se no dia 23 de Junho, com a participação dos
representantes do Soviete central dos comités de fábricas e oficinas, do comité central
dos sindicatos e de setenta e três fábricas. Sob a influência dos bolcheviques, a
conferência reconheceu que a greve de fábrica, nas condições presentes, podia trazer
«uma luta política desorganizada dos operários de Petrogrado», e, por consequência,
propôs aos operários de Potilov «de conter a sua legítima indignação» e de preparar suas
forças para uma acção geral.
Na véspera desta importante conferência, a fracção dos bolcheviques avisava o
comité executivo: «Uma massa de quarenta mil pessoas … pode de um dia ao outro
meter-se em greve e descer à rua. Ela seria já em movimento se ele não fosse retida pelo
nosso partido, mas nada garante que possamos ainda retê-la. Ora, o desencadeamento
dos operários de Potilov – sobre isso, não pode haver dúvida – provocará inevitavelmente
a entrada em acção da maioria dos operários e soldados.»
Os líderes do comité executivo viam tais avisos como sendo demagogia, ou então,
simplesmente, fingiam que não ouviam, salvaguardando a tranquilidade. Eles próprios
quase que tinham completamente parado de frequentar as fábricas e os quartéis,
tornando-se já personalidades odiadas pelos soldados e operários. Só, os bolcheviques
gozavam de uma autoridade que lhes permitia prevenir uma acção dispersa. Mas já a
impaciência das massas, por vezes, voltava-se mesmo contra os bolcheviques.
Nas fábricas e na frota apareceram os anarquistas. Como sempre, na presença de
grandes acontecimentos e de grandes massas, eles manifestavam sua inconsistência
orgânica. Negavam tanto mais facilmente o poder de Estado que não compreendiam de
forma nenhuma a importância do Soviete como órgão do novo Estado. Eles manifestavam
sua economia, principalmente, no domínio de um medíocre golpismo. O impasse
económico e a exasperação crescente dos operários de Petrogrado criavam para os
anarquistas certas posições de apoio. Incapazes de avaliar seriamente a relação de

302
forças sobre a escala nacional, prontos a considerar cada avanço de baixo como o último
golpe de libertação, acusavam por vezes os bolcheviques de pusilanimidade e mesmo de
conciliação. Mas como habitualmente, limitavam-se a rosnar. A reacção das massas
diante das manifestações dos anarquistas permitia por vezes aos bolcheviques medir o
grau de pressão do vapor revolucionário.
Os marinheiros que tinham festejado a chegada de Lenine na gare da Finlandia
declararam, quinze dias mais tarde, sob o desenvolvimento do patriotismo vindo de todo o
lado:
«Se soubéssemos … por quais caminhos ele nos chegaria, teríamos ouvido, em vez
dos hurras de entusiasmo, os nossos gritos de indignação: «Abaixo! Volta para o país
pelo qual tu voltás-te! … »
Os sovietes de soldados, na Crimeia, uns após outros, ameaçavam opor-se pelas
armas à entrada de Lenine na quase ilha patriota que aliás ele não tinha qualquer
intenção de visitar. O regimento volhyniano, corifeu do 27 de Fevereiro, decidiu mesmo,
na sua efervescência, prender Lenine, ainda se o comité executivo julgou-se forçado a
tomar medidas de salvaguarda. Tais estados de espírito não se dissiparam
definitivamente até à ofensiva de Junho e eles tiveram reacções vivas após as Jornadas
de Julho. Nesse mesmo tempo, nas guarnições mais isoladas, nos longínquos sectores
da frente, os soldados falavam cada vez mais ousadamente a linguagem do bolchevismo,
na maior parte das vezes sem se duvidarem.
Os bolcheviques, nos regimentos, contavam-se por unidades, mas as palavras de
ordem do bolchevismo penetravam cada vez mais profundamente. Eles nasciam de certa
forma espontaneamente sobre todos os pontos do país. Os observadores liberais não
viam nisso senão ignorância e caos. A Rietch escrevia:
«A nossa pátria transforma-se positivamente numa especie de casa de loucos onde
agem e comandam enraivecidos, enquanto que os ainda não perderam o tino afastam-se
assustados e encostam-se contra as paredes.»
É exactamente nestes termos que «os moderados» aliviavam a alma em todas as
revoluções. A imprensa conciliadora consolava-se a dizer que os soldados, apesar de
todos os desentendidos, não queriam saber dos bolcheviques. Ora, o bolchevismo
inconsciente da massa, reflectindo a lógica do desenvolvimento, constituía a força
irresistível do partido de Lenine.
O soldado Pireiko conta que nas eleições da frente para o congresso dos sovietes,
não houve eleitos, após três dias de debates, senão os socialistas-revolucionários, mas
imediatamente, apesar dos protestos dos líderes, os deputados soldados adoptaram uma
resolução sobre a necessidade de confiscar as terras dos nobres sem esperar a
Assembleia constituinte.
«Em geral, nas questões acessíveis aos soldados, eles estavam mais à esquerda
que os mais extremistas dos extremos bolcheviques.»

303
É precisamente o que Lenine tinha em perspectiva quando dizia que as massas
estavam «cem vezes mais à esquerda que nós».
Um empregado da escritura numa oficina de motocicletas, num lugar do governo de
Tauride, conta que, frequentemente, após ter lido um jornal burguês, os soldados
invectivam os bolcheviques desconhecidos e começam a conversar sobre a necessidade
de terminar a guerra e de confiscar as terras dos nobres. E são esses mesmos patriotas
que juravam não deixar Lenine penetrar em Crimeia.
Os soldados das formidáveis guarnições de retaguarda elanguesciam. Uma imensa
aglomeração de homens desocupados, esperando com impaciência que a sorte mudasse,
mostravam um nervosismo que se manifestava numa constante predisposição em dar a
conhecer o seu descontentamento, em idas e voltas sem limite em trólei, mastigando
sementes de girasol como se fossem atingidos por uma epidemia. O soldado, com o seu
capote negligentemente pelas costas, uma casca colada ao lábio, tornou-se, pela
imprensa burguesa, a personagem detestada de todos. É ele que durante a guerra,
tinham-no lisonjeado grosseiramente, tratando-o como herói – o que não impedia que na
frente lhe fizessem sofrer a esse herói o suplício das vergastadas; àquele que após a
insurreição de Fevereiro o tinham louvado como um emancipador tornou-se de repente
um traidor, um medroso, um zaragateiro e um vendido à Alemanha. Na verdade, não
houve qualquer infâmia que a imprensa patriótica não tivesse atribuído aos soldados e
aos marinheiros russos.
O comité executivo não fazia outra coisa senão justificar-se, de combater a anarquia,
de abafar os excessos, de expedir, no seu sobressalto, folhas de inquérito e de
advertências. O presidente do Soviete de Tsaritsyne – esta cidade era considerada como
o ninho do «anarco-bolchevismo» - a uma questão do centro sobre a situação, respondeu
pela frase lapidária: « Mais a guarnição vai para a esquerda, mais o burguês vai para a
direita.» A formula de Tsaritsybe pode ser estendida a todo o país. O soldado para a
esquerda, o burguês para a direita.
Alguém, entre os soldados, que ousasse mais que qualquer outro exprimir o que
todos sentiam, era inflexivelmente invectivado como bolchevique pelos superiores que
acabava por acreditar nisso. Entre a paz e a guerra, o pensamento do soldado levava-o à
questão do poder. O eco de tais ou tais palavras de ordem do bolchevismo transformava-
se numa simpatia consciente pelo partido bolchevique. No regimento volhyniano que, em
Abril, dispunha-se a prender Lenine, o estado de espírito, em dois meses, tinha tido tempo
de se modificar em favor dos bolcheviques. O mesmo acontecia no regimento dos
Caçadores (Jagersky) e no regimento lituano. Os caçadores letões tinham sido formados
pela autocracia com o intuito de utilizar na guerra o ódio dos pequenos camponeses e dos
operários agrícolas contra os barões da Livónia. Os regimentos batiam-se muito bem.
Mas o espírito de hostilidade entre classes sobre o qual queria apoiar-se a monarquia
tinha traçado a sua própria via. Os caçadores letões foram entre os primeiros a romper
com a monarquia e a seguir com os conciliadores. A partir do 17 de Maio, os
representantes de oito regimentos letões adoptaram quase à unanimidade a palavra de

304
ordem bolchevique: «todo o poder aos sovietes». No caminho ulterior da revolução, eles
desempenharam um papel considerável.
Um soldado desconhecido escreveu da frente:
«Hoje, 13 de Junho, houve no nosso destacamento uma pequena reunião e falou-se
de Lenine e de Kerensky; os soldados estão, na maioria com Lenine, mas os oficiais
dizem que Lenine é um burguês enfeudado.»
Após o falhanço catastrófico da ofensiva, o nome de Kerensky, no exército, tornou-
se absolutamente odioso.
No 21 de Junho, os junkeres percorreram as ruas de Peterhof com bandeiras e
cartazes dizendo: «Abaixo os espiões!» «Viva Kerensky e Brossilov!» Os junkers, bem
entendido, tiravam por Brossilov. Os soldados do 4º batalhão lançaram-se sobre os
junkers, empurrando-os, dispersando a manifestação. A irritação forte provocada pelo
cartaz em honra de Kerensky.
A ofensiva de Junho acelerou extremamente a evolução política do ano. A
popularidade dos bolcheviques, o único partido que tinha a antecipadamente levantado a
voz contra a ofensiva, começou a aumentar com extraordinária rapidez. Na verdade, os
jornais bolcheviques dificilmente tinha acesso ao exército. A tiragem do seu jornal
continuava extremamente limitada, comparativamente ao da imprensa liberal e patriota
em geral. « … Mesmo que em parte nenhuma se encontre um só jornal vosso – escreve
com destino a Moscovo a mão calosa de um soldado – e nós aproveitamos o vosso jornal
somente pelo ouvi dizer. Aqui, inundam-nos com os jornais burgueses gratuitos,
distribuem-nos sobre a frente por pacotes inteiros.» Mas é precisamente a imprensa
patriótica que cria aos bolcheviques uma popularidade incomparável. Cada protesto dos
oprimidos, cada confiscação de terras, cada caso de represália sobre um oficial odiado,
eram atribuidos pelos jornais aos bolcheviques. Os soldados concluíam que os
bolcheviques falavam como homens justos.
O comissário da 12º exército enviava a Kerensky, no principio de Julho, um relatório
sobre o estado de espírito dos soldados: «Tudo, no fim de contas, é atribuído aos
ministros burgueses e ao Soviete vendido aos burgueses. Em resumo, a imensa massa,
são as trevas impenetráveis; infelizmente, devo constatar que mesmo os jornais, nestes
últimos tempos, são pouco lidos, que se desconfie completamente da palavra imprimida:
«são os bem falantes», «eles procuram encher-nos a cabeça» … Nos primeiros meses,
os relatórios dos comissários patriotas eram, habitualmente, ditirâmbicos em honra do
exército revolucionário, da sua alta consciência e da sua disciplina. Mas quando, depois
de quatro meses de decepções sem fim, o exército retirou a sua confiança aos oradores e
publicistas governamentais, os mesmos comissários descobriram nela «trevas
impenetráveis».
Mais a guarnição vai para a esquerda, mais o burguês volta à direita. Sob a impulsão
da ofensiva, as uniões contra-revolucionárias cresciam em Petrogrado como cogumelos
depois de uma chuvada. Elas tinham nomes sonantes, todas, umas mais que outras:
União para a honra da pátria, União do dever militar, Batalhão da liberdade, Organização

305
dos valentes, etc.. Sob esses magníficos nomes dissimulavam-se as ambições e as
pretensões da nobreza, dos oficiais, da burocracia, da burguesia. Algumas dessas
organizações, como a Liga militar, a União dos cavaleiros de Santo Jorge ou a Divisão
dos voluntários, estavam prontas a toda a conjura militar. Agiam com ardentes patriotas,
os cavaleiros da «honra» e da «valentia» não somente abriam-lhes as portas facilmente,
mas recebiam de tempos em tempos um subsídio governamental que outrora recusariam
ao Soviete, considerado como «organização privada».
Um dos rebentos da família de Sovorine, um magnata do jornalismo, iniciou então a
publicação da Malenkaia Gazeta (Pequeno Jornal) que, na qualidade de órgão do
«socialismo independente» pregava uma ditadura de ferro, preconizando como candidato
o almirante Koltchak. A imprensa mais séria, sem ainda ter metido os pontos nos i,
utilizava tudo para dar popularidade a Koltchak. O que, a seguir, se tornou o almirante
prova que, desde do início do verão de 1917, tratava-se de um enorme plano ao qual se
ligava o seu nome e que por detrás de Sovarine mantinham-se círculos influentes.
Obedecendo a um simples cálculo de táctica, a reacção, excepção feita de alguns
ataques bruscos, fingiam não atacar os leninistas. O nome de «bolchevique» tornou-se
sinónimo de um elemento infernal. Tal como antes da revolução, os chefes do exército do
czar rejeitavam a responsabilidade de todas as infelicidades, e nomeadamente das suas
próprias asneiras, sobre os espiões alemãs, particularmente sobre os judeus – assim,
após o fiasco da ofensiva de Junho, os insucessos e as derrota foram invariavelmente
imputadas aos bolcheviques. Nesse domínio, os democratas, do tipo de Kerensky e de
Tseretelli quase que não se distinguiam em nada dos liberais tais que Miliokov, nem
mesmo dos partidários confessos da servidão tais como o general Denekine.
Como acontecia sempre, quando os antagonismos atingem o seu ponto mais alto,
mas que o momento de explosão ainda não chegou, os agrupamentos de forças políticas
manifestam-se mais abertamente e nitidamente, não sobre questões essenciais, mas
sobre questões acidentais e acessórias. Um dos pára-raios designados às paixões
políticas, nessas semanas, foi Cronstadt. A velha fortaleza que devia servir de sentinela
fiel aos portos marítimos da capital imperial, tinha levantado mais de uma vez, outrora, a
bandeira da insurreição. Apesar das repressões implacáveis, a chama da revolução nunca
se apagou em Cronstadt. Ela flama ameaçadora após a insurreição. O nome da fortaleza
marítima tornou-se logo, nas páginas da imprensa patriótica, o sinónimo dos piores
aspectos da revolução, isto é do bolchevismo. Na realidade, o Soviete de Cronstadt ainda
não era bolchevique: contava-se aí, em Maio, cento e sete bolcheviques, cento e douze
socialistas-revolucionários, trinta mencheviques e noventa e sete sem partido. Mas eram
os socialistas-revolucionários e os sem partido de Cronstadt, vivendo sob alta pressão: a
maioria dentre eles, por questões importantes, seguiam os bolcheviques.
No domínio da política, os marinheiros de Cronstadt não se inclinavam nem às
manobras, nem à diplomacia. Eles tinham como único princípio: logo dito, logo feito. Não
era de espantar que em relação ao governo fantasma eles eram levados a métodos de
acção extremamente simplificados. No 13 de Maio, o Soviete tomou essa decisão: «O
único poder em Cronstadt é o Soviete dos deputados operários e soldados.»

306
A expulsão do comissário do governo, o cadete Pepeliaev, cujo papel era o da quinta
roda numa carrossa passou na fortaleza completamente despercebido. Uma ordem
exemplar foi mantida. Na cidade, foi proibido jogo de cartas, fecharam todas as tascas,
evacuando-as. Sob ameaça de «confiscação dos bens e do envio imediato para a frente»,
o Soviete proibiu a circulação nas ruas em estado de embriaguez. A ameaça foi
executada mais de uma vez.
Endurecidos pelo terrível regime da frota czarista e da fortaleza marítima,
acostumados a um trabalho rude, aos sacrifícios assim como às sevícias, os marinheiros,
agora que se descortinava uma vida nova na qual sentiam que se tornariam os mestres,
exercitaram os músculos para se mostrarem dignos da revolução. Jogaram-se
avidamente, em Petrogrado, sobre os amigos e os inimigos, e levaram-nos quase à força
até a Cronstadt para lhes mostrar o que eram os marinheiros revolucionários na realidade.
Uma tal tensão moral não podia, bem entendido, subsistir perpetuamente, mas persistiu
por muito tempo. Os marinheiros de Cronstadt constituíram uma especie de Ordem militar
da revolução. Mas que revolução? Não qualquer uma, em todo o caso não era a do
ministro Tseretelli com o seu comissário Pepeliaev. Cronstadt erguia-se como o
anunciador de uma segunda revolução iminente. Foi por isso ela era profundamente
detestada por todos os que estavam fartos e demasiado da primeira.
A expulsão pacífica e imperceptível de Pepeliaev foi apresentada na imprensa da
ordem quase como um levantamento armado contra a unidade do Estado. O governo
queixou-se ao soviete. Este designou imediatamente uma delegação para influenciar os
marinheiros. A máquina do duplo poder meteu-se em movimento, rangendo. No 24 de
Maio, o Soviete de Cronstadt, com a participação de Tseretelli e de Skobelev consentiu,
sobre indicação dos bolcheviques, em reconhecer que ao continuar a luta pelo poder dos
sovietes, era praticamente obrigado de subornar-se ao governo provisório tanto que o
poder dos sovietes não seria estabelecido em todo o país. Todavia, no segundo dia
depois, sob a pressão dos marinheiros indignados desta capitulação, o Soviete declarou
que os ministros tinham somente recebido uma «explicação» do ponto de vista de
Cronstadt que continuava invariável. Era uma falta evidente de táctica por detrás da qual,
porém, não escondia nada de outro senão um ponto de honra revolucionário.
Entre os altos dirigentes, foi decidido aproveitar a ocasião para dar uma lição aos
tipos de Cronstadt, forçando-os ao mesmo tempo a expiar as faltas cometidas por eles
precedentemente. Foi, bem entendido, Tseretelli que fez de procurador. Evocando em
termos patéticos as suas próprias prisões, incriminou particularmente os homens de
Cronstadt do facto que eles guardavam nas casernas da fortaleza oitenta oficiais. Toda a
imprensa bem pensante apoiou-o. Porém, os jornais conciliadores, isto é ministeriais,
tiveram que eles próprios reconhecer que se tratava «de autênticos ladrões de
tesourarias» e «pessoas que tinham exercido a um grau espantoso direito do punho» …
Os marinheiros testemunhas – segundo Izvestia, folha oficial do próprio Tseretelli –
declararam sobre o esmagamento (pelos oficiais agora presos) do levantamento de 1906,
sobre os fuzilamentos de massa, dos botes cheios de cadáveres de suplicados que
imergiam no mar, e sobre outros horrores …; eles contaram isso simplesmente, como
coisas correntes».

307
Os homens de Cronstadt recusavam obstinadamente entregar os presos ao governo
para o qual os carrascos e os concussionários da casta nobre eram infinitamente mais
próximos que os marinheiros executados em 1906 e noutros anos. Não é por acaso, com
efeito, que o ministro da Justiça Pereverzev, do qual Sokhanov dizia com indulgência que
era «um dos personagens duvidosos do governo de coligação», libertava
sistematicamente da fortaleza Pedro e Paulo os mais infames representantes da guarda
czarista. Os novo-ricos da democracia esforçaram-se antes de tudo de provar à
burocracia reaccionária sua magnanimidade.
Às acusações de Tseretelli, os homens de Cronstadt respondiam no seu manifesto:
«Os oficiais, os guardas e os polícias que nós prendemos durante os dias revolucionários
declararam eles próprios aos representantes do governo que nada têm a se queixar do
tratamento que lhe fazem pelos guardas da prisão. É verdade de os edifícios da prisão de
Cronstadt são terríveis. Mas são edifícios que foram justamente construidos pelo czarismo
para nos fechar dentro. Não temos outros. E se guardamos nessas prisões os inimigos do
povo, não é por vingança, é por motivos de salvaguarda revolucionária.»
No 27 de Maio, os homens de Cronstadt foram julgados pelo Soviete de Petrogrado.
Tomando sua defesa, Trosky avisava Tseretelli que, em caso de perigo, isto é, «se um
general contra-revolucionário tentasse passar a corda pelo pescoço da revolução, e então
os marinheiros de Cronstadt viriam lutar e morrer connosco». Este aviso justificou-se três
meses mais tarde com uma exactidão imprevista; quando o general Kornilov se revoltou e
levou as tropas contra a capital, Kerensky, Tseretelli e Skobelev fizeram apelo aos
marinheiros de Cronstadt para defenderem o palácio de Inverno. Mas então? Em Junho,
os senhores democratas protegiam a ordem contra a anarquia, sem nenhum argumento,
nenhuma predição não tinha efeito sobre eles. Com uma maioria de quinhentos e oitenta
votos contra cento e sessenta e dois, com setenta e quatro abstenções, Tseretelli fez
adoptar pelo Soviete de Petrogrado uma resolução declarando «a anárquico» Cronstadt
desiludiu a democracia revolucionária.
Desde que o palácio Maria, que esperava com impaciência, soube que a bula da ex-
comunicação tinha sido votada, o governo cortou imediatamente as comunicações
telefónicas dos particulares entre a capital e a fortaleza, para impedir ao centro
bolchevique de agir sobre os homens de Cronstadt, ordenou o afastamento imediato das
águas da fortaleza de todos as embarcações escola e exigiu do Soviete «uma submissão
incondicional». O Congresso dos deputados camponeses que se reunia nesses dias
ameaçou «recusar aos homens de Cronstadt todos os produtos de consumo». A reacção
que se mantinha atrás dos conciliadores procurava uma conclusão definitiva e, se
possível, sangrenta.
«O acto inconsiderado do Soviete de Cronstadt – escreve Iogov, um dos jovens
historiadores – podia ter consequências indesejáveis. Era preciso encontrar um meio
conveniente de sair da situação criada. É precisamente com esse objectivo que Trotsky foi
a Cronstadt, tomou a palavra no Soviete, e redigiu uma declaração que foi adoptada pelo
Soviete, e seguidamente por unanimidade, ratificada, pelos cuidados de Trotsky num

308
comício na praça da Tinta.» Conservando a sua posição de princípio, os homens de
Cronstadt faziam concessões na prática.
O acordo amigável do conflito exasperou definitivamente a imprensa burguesa: a
anarquia reina na fortaleza, imprime-se aí dinheiro especial – cujas cópias eram
reproduzida nos jornais – os bens do Estado são pilhados, as mulheres em socialização,
entregam-se ao banditismo e a orgias de bêbados. Os marinheiros, que estavam
orgulhosos de ter instaurado em sua casa uma ordem severa, apertavam os punhos
sólidos ao lerem os jornais que propagavam por milhões de exemplares, a calúnia sobre
eles em toda a Rússia.
Tendo obtido a entrega dos oficiais de Cronstadt, as autoridades judiciárias de
Pereverzev libertava-os uns a seguir de outros. Seria extremamente edificante
estabelecer quais foram, entre os libertados, os que mais tarde participaram na guerra
civil, e quantos marinheiros, soldados, operários e camponeses foram fusilados e
enforcados por eles. Infelizmente, nós não temos possibilidade de nos entregar aqui a
esses cálculos instrutivos.
A autoridade do governo estava salva. Mas os marinheiros obtiveram também
satisfação pelos vexames sofridos. Em todos os pontos do país começaram a chegar
resoluções felicitando Cronstadt vermelho: de diversos sovietes entre os mais à esquerda,
de fábricas, de regimentos, de comícios. O primeiro regimento de metralhadoras,
manifestou nas ruas de Petrogrado a sua estima para com os homens de Cronstadt «pela
firme atitude de desconfiança em relação ao governo provisório.»
Cronstadt preparava-se porém a vingar-se ainda com mais significado. As
humilhações da imprensa burguesa fizeram disso um factor de uma importância política
geral . «Entricheirando-se em Cronstadt – escreve Miliokov – o bolchevismo lançava
sobre a Rússia uma grande rede de propaganda, por intermédio de agitadores
convenientemente instruídos. Os emissários de Cronstadt eram enviados e na frente,
onde eles sapavam a disciplina, e na retaguarda, nos campos, onde eles provocavam a
pilhagem de propriedades. O Soviete de Cronstadt munia os emissários de atestados
especiais: «Um tal é enviado à província de … para tomar lugar, com voto deliberativo,
nos comités de distrito, de cantão e de aldeia, como também para falar nos comícios e
convocar reuniões, que lhes eram convenientes, em qualquer lugar», com «o direito de
porte de arma, de passagem livre e gratuita sobre todas as linhas férreas e barcos». Além
disso, «a inviolabilidade da pessoa dos agitadores designado é garantida pelo Soviete da
cidade de Cronstadt».
Ao denunciar a obra subversiva dos marinheiros do Báltico, Miliokov esquece-se de
explicar como e porquê, apesar da existência de autoridades, de instituições e de jornais
de uma grande sabedoria, marinheiros isolados, armados do estranho mandato do
Soviete de Cronstadt, percorriam todo o país sem obstáculos, encontravam por todo o
lado cama e mesa, eram admitidos em toda as assembleias populares, em todo o lado
atenciosamente escutados, e deixavam marca da sua rude mão sobre os acontecimentos
históricos. O historiador ao serviço da política liberal nem sequer coloca esta questão
simples. Ora, o milagre de Cronstadt era concebível unicamente porque os marinheiros

309
exprimiam as exigências do desenvolvimentos histórico muito mais profundamente que os
muito inteligentes professores. O mandato desprovido de ortografia encontrou-se, se
empregarmos a linguagem de Hegel, real porque racional. Enquanto que os planos
subjectivos mais perspicazes se tornaram ilusórios, porque não havia mesmo traço da
razão histórica neles.
Os sovietes deixavam-se ultrapassar pelos comités de fábrica. Estes – pelas
massas. Os soldados – pelos operários. Ainda em maior medida, a província estava
atrasada em relação à capital. Tal era a inevitável dinâmica do processo revolucionário
que engendra milhares de contradições para, a seguir, como por acaso, e de passagem,
lançando-se, ultrapassa-os e logo criar outras. Sobre a dinâmica revolucionária atrasava-
se também o partido, isto é a organização que, menos que qualquer outra, tem o direito
de se deixar ultrapassar, sobretudo em tempo de revolução. Nos centros operários tais
que Ekatarinburgo, Perm, Tula, Nijni-Novgorod, Sormovo, Kolomna, Iozovka, os
bolcheviques só se separaram dos mencheviques no fim de Maio. Em Odessa, Nikolaiev,
Elisavetgrad, Poltava e noutros pontos da Ucrânia, os bolcheviques, no meio de Junho,
ainda não tinham organizações autónomas. Em Baku, Zlatoust, Bejtesk, Kostroma, eles
só separaram dos mencheviques definitivamente no fim de Junho. Esses factos parecem
muito surpreendentes se considerarmos que, já, nos quatro meses, os bolcheviques iam
tomar o poder. Como se atrasou o partido, durante a guerra, no processo molecular das
massas, e como a direcção Kamenev—Estaline em Março continuaram afastada das
grandes tarefas históricas! O partido mais revolucionário que se conheceu até a esse dia
na história humana foi contudo tomado de imprevisto pelos acontecimentos da revolução.
Ele reconstituía-se sob o fogo e alinhava-se por força do desenvolvimento dos
acontecimentos. As massas se encontraram, no momento da viragem, «cem vezes» mais
à esquerda que o partido de extrema esquerda.
O progresso da influência dos bolcheviques, que se produziu com o vigour de um
processo histórico natura, se examinarmos de perto, revela as suas contradições e os
seus zigzagues, seus fluxos e refluxos. As massas não são homogéneas e, aliás,
aprendem a atiçar o fogo da revolução queimando os dedos e recuando. Os bolcheviques
podiam somente acelerar o processo de aprendizagem das massas. Eles explicavam
pacientemente. Além disso, desta vez, a história não abusou da sua paciência.
Enquanto que os bolcheviques, irresistivelmente, tomavam as fábricas e os
regimentos, as eleições às dumas democráticas davam um enorme e aparente
crescimento aos conciliadores. Tal foi uma das contradições mais agudas e as mais
enigmáticas da revolução. É verdade que a Duma do bairro de Vyborg, puramente
proletário, prevalecia-se da sua maioria bolchevique. Mas era uma excepção. Nas
eleições municipais de Moscovo, em Junho, os socialistas-revolucionários recolheram
mais de 60% dos votos. Esse número admirou-os: eles não se impediam de sentir que a
sua influência declinava rapidamente. Para compreender as relações entre o
desenvolvimento real da revolução e os seus reflexos nos espelhos da democracia, as
eleições de Moscovo apresentam um interesse extraordinário. As camadas avançadas
dos operários e dos soldados apressavam-se já a libertar-se das ilusões conciliadoras.
Durante esse tempo, as largas camadas da populaça começava a agitar-se. Para essas

310
massas dispersas, as eleições democráticas abriam talvez uma primeira possibilidade e,
de qualquer modo, uma das raras ocasiões de se pronunciar politicamente.
Enquanto que o operário, ainda ontem menchevique ou socialista-revolucionário,
votava para o partido bolchevique, trazendo consigo o soldado – o cocheiro, o carregador,
o moço de recados, o comerciante, o logista, o seu empregado, o mestre-escola, por um
acto tão heróico como dar um voto aos socialistas-revolucionários, saíam pela primeira
vez da sua insignificância política. As camadas pequeno-burguesas votavam atrasadas
por Kerensky, porque ele encarnava a seus olhos a Revolução de Fevereiro que acabava,
nesse dia, de chegar a elas. Com os seus 60% da maioria socialista-revolucionária, a
Duma de Moscovo tinha o brilho de uma tocha que se extinguía. E foi assim o que
aconteceu a todos os órgãos da administração autónoma da democracia. Mal surgiram,
eles eram logo atingidos de impotência em virtude do atraso. Isso significava que a
caminhadas da revolução depende dos operários e dos soldados e não da poeira humana
que levantavam e faziam agitar as rabanadas de vento da revolução.
Tal é a dialéctica profunda e, ao mesmo tempo, simples despertar revolucionário das
classes oprimidas. A mais perigosa das aberrações de uma revolução assenta no facto
que o contador automático da democracia faz uma simples adição dos factos da véspera,
do dia ao outro, e incita assim as democracias de pura forma a procurarem a cabeça da
revolução lá onde se encontra na realidade o seu pesado rabo. Lenine instruía o seu
partido a distinguir a cabeça do rabo.

311
O Congresso dos Sovietes e a manifestação de Junho
O primeiro Congresso dos sovietes, que deu a Kerensky a sanção para a ofensiva,
reuniu-se a 3 de Junho, em Petrogrado, no edifício do Corpo dos Cadetes, (alunos
oficiais). Assistiram no total 820 delegados com voz deliberativa e 268 com voz consultiva.
Representavam 305 sovietes locais, 53 sovietes regionais e provinciais, as organizações
da frente, as instituições militares da retaguarda e centenas de organizações
camponesas. O direito de sufrágio deliberativo pertencia aos do soviete que juntavam
pelo menos 25 mil membros. Os que agrupavam de 10 mil a 25 mil membros que, aliás,
não eram rigorosamente observados, pode-se supor que o Congresso representava mais
de 20 milhões de homens. Sobre 777 delegados tendo dado a conhecer a sua ligação a
um partido, havia 285 socialistas-revolucionários, 248 mencheviques, 105 bolcheviques;
vinham a seguir os grupos menos consideráveis. A ala esquerda, isto é os bolcheviques
com os internacionalista que se ligavam estreitamente a eles, constituía menos menos do
quinto dos delegados. O congresso compunha-se maioritariamente de gente que em
Março, se tinha inscrito como socialistas e que, em Junho, sentiam-se já cansados da
revolução. Petrogrado devia lhes parecer uma cidade de endiabrados.
O congresso começou por aprovar a expulsão de Grimm, lamentável socialista suíço
que tinha tentado salvar a Revolução russa e a social-democracia alemã por meio de
conversações de bastidores com os diplomatas do Hohenzollern. A aula esquerda tendo
pedido um debate imediato sobre a ofensiva que se preparava, esta proposição foi
afastada por uma esmagadora maioria. Os bolcheviques tinham o aspecto de um grupo
insignificante. Mas nesse dia, e talvez à mesma hora, a conferência dos comités de
fábrica e de oficina de Petrogrado adoptava, com uma maioria igualmente esmagadora,
uma resolução dizendo que o país só poderia ser salvo pelo poder dos sovietes.
Os conciliadores, tão míopes que fossem, não podiam impedir-se de ver o que se
passava diariamente à volta. O inimigo confesso dos bolcheviques, Liber, evidentemente
sob a influência dos provinciais, denunciava na sessão do 4 de Junho, os comissários
incapazes do governo a quem, nas localidades, não queriam ceder o poder. «Um grande
número de funções dos órgão governamentais, no seguimento de tais circunstância,
passavam pelas mãos dos sovietes, mesmo quando estes não o desejavam.» Os
conciliadores queixavam-se contra eles próprios.
Um dos delegados, um pedagogo, contou ao Congresso que em quatro meses de
revolução não se tinha produzido a menor modificação no domínio da instrução pública.
Todos os professores, inspectores, directores, reitores de academia, muitos deles antigos
membros das organizações dos Cem Negros, todos os precedentes programas escolares,
os manuais reaccionários, e mesmo antigos adjuntos do ministro, ficaram
imperturbavelmente nos lugares. Só os retratos do czar foram armazenados, mas pode-se
recuperá-los à primeira ocasião.
O Congresso não ousava levantar a mão à Duma do Império. E sobre o Conselho de
Estado. O orador menchevique Bogdanov dissimulava a sua timidez diante da reacção
dizendo que a Duma e o Conselho de Estado «eram sobretudo instituições mortas,

312
inexistentes». Martov, com a sua causticidade de polemista, respondeu: «Bogdanov
prepõe considerar Rússia a Duma inexistente, mas de não atentar contra a sua
existência.»
O Congresso, apesar da sólida maioria governamental, desenrolou-se numa
atmosfera de ansiedade e de incerteza. O patriotismo arrefeceu, dando fracas faíscas.
Via-se claramente que as massas estavam descontentes e que os bolcheviques, no país,
principalmente na capital, eram infinitamente mais fortes que no Congresso. Levado à sua
base essencial, o debate entre bolcheviques e conciliadores andava à volta desta
questão: com quem a democracia deve ela caminhar, com os imperialistas ou com os
operários? A sombra da Entente pairava sobre o Congresso. A questão da ofensiva estava
resolvida antecipadamente, só restava aos democratas inclinarem-se.
«Neste momento crítico – pregava Tseretelli – nenhuma uma força social poderá ser
rejeitada da balança enquanto servir a causa do povo.» Assim se motivava a coligação
com a burguesia. Como o proletariado, o exército e o campesinato contrariavam a cada
paso os planos dos democratas, eram obrigados a abrir as hostilidade contra o povo, sob
a aparência de fazer guerra aos bolcheviques. Foi assim que Tseretelli entregava à
excomunhão os marinheiros de Cronstadt para não rejeitar da sua balança o cadete
Pepeliaev. A coligação foi aprovada por uma maioria de 543 votos contra 126, com 52
abstenções.
Os trabalhos da imensa e inconsistente assembleia, ao Corpo dos Cadetes,
distinguiam-se pela grandiloquência das declarações e a parcimónia conservadora diante
dos problemas práticos. Isso dava a todas as resoluções um toque de desânimo e de
hipocrisia. O Congresso reconheceu a todas as nações da Rússia o direito de disporem
delas próprias, reservando contudo a chave desse direito problemático não às nações
oprimidas, mas à futura Assembleia constituinte na qual os conciliadores esperavam estar
em maioria e dispunham-se a capitular diante dos imperialistas assim como eles faziam
agora no governo.
O Congresso recusou adaptar um decreto sobre a jornada de oito horas. Tseretelli
explicou o marcar passo da coligação pela dificuldade em conciliar os interesses das
diferentes camadas da população. Como se alguma vez na história uma grande obra
tivesse sido realizada pela «harmonia dos interesses» e não pela vitória dos interesses
progressistas sobre os interesses reaccionários!
Gromann, economista soviético, apresentou no fim a sua inevitável resolução: sobre
a catástrofe económica eminente e sobre a necessidade da regulamentação pelo Estado.
O Congresso adoptou esta resolução ritual, mas somente para que tudo ficasse como no
antes.
«Grimm foi expulso – escrevia Trotsky no 7 de Junho – o Congresso passou à ordem
do dia. Mas os lucros capitalistas continuam sempre intangíveis para Skobelev e os seus
colegas. A crise dos abastecimentos agrava-se de hora a hora. No domínio diplomático, o
governo é constantemente derrotado. Enfim, a ofensiva tão histericamente proclamada
deve ao que parece abater-se em breve sobre o povo como uma aventura monstruosa.

313
«Nós somos pacientes e estaríamos dispostos a observar ainda com calma a
actividade esclarecida do ministério Lvov—Terechtchebko—Tseretelli durante alguns
meses. Necessitamos de tempo para nos preparar-mos. Mas a toupeira cava demasiado
rápido debaixo do chão. E, com a ajuda dos ministros «socialistas», o problema do poder
pode abater-se sobre os membros deste congresso muito mais cedo que nós pensamos.»
Tentando cobrir-se diante das massas da mais alta autoridade, os líderes
comprometiam o Congresso em todos os conflitos do dia, comprometendo-o
impiedosamente diante dos olhos dos operários e soldados de Petrogrado. O mais
impressionante episódio desse género foi o caso da mansão de Dornovo, antigo alto
dignitário do czar que, como ministro do Interior, ganhou reputação ao esmagar a
Revolução de 1905. A cidade deserta do burocrata odiado, além disso especulador, foi
ocupada pelas organizações operárias do bairro de Vyborg, principalmente por causa do
seu imenso parque que se tornou favorito das crianças. A imprensa burguesa
representava a cidade como um coi de ladrões e de vagabundos, como o Cronstadt do
bairro de Vyborg. Ninguém se deu ao trabalho de ir verificar o que era na realidade. O
governo, que iludia cuidadosamente todas as grandes questões, dedicou-se com grande
paixão a salvar a cidade. Exigiu-se do comité executivo a sanção de medidas heróicas, e
Tseretelli, bem entendido, não recusou. O procurador deu ordem de expulsar, em 24
horas, o grupo de anarquistas. Tendo tido conhecimento da acção militar que se
preparava, os operários alertaram-se. Os anarquistas, pelo seu lado ameaçavam resistir
pelas armas, 28 fábricas declararam greve de protesto. O comité executivo publicou um
manifesto denunciando os operários do bairro de Vyborg como auxiliares da contra-
revolução. Após tal preparação, os representantes da justiça e da milícia penetraram na
caverna do leão. Acontece, porém que, na cidade, onde se abrigavam várias
organizações operárias culturais, reinava a ordem perfeita. A autoridade teve que recuar
envergonhada. Esta história teve portanto seguimento.
No 9 de Junho, no Congresso, rebentou uma bomba: a Pravda da manhã tinha
publicado um apelo a uma manifestação para o dia seguinte. Tchkeidzé, que sabia ter
medo e estava disposto a assustar os outros, declarou com uma voz fúnebre: «Se o
Congresso não toma medidas, o dia de amanhã será fatal.» Os delegados, assustados,
levantaram a cabeça.
A ideia de uma confrontação dos operários e dos soldados de Petrogrado com o
Congresso foi imposta pela situação. As massas faziam pressão sobre os bolcheviques. A
efervescência, era grande sobretudo na guarnição que temia, por ocasião da ofensiva,
ser deslocada à força e dispersada sobre as frentes. A isso juntou-se um vivo
descontentamento: a Declaração dos direitos dos soldados marcava um grande recuo em
comparação com o Prikaz nº 1 e com o regime de facto que se tinha estabelecido no
exército. A iniciativa da manifestação vinha da organização militar dos bolcheviques. Os
seus dirigentes afirmavam, e cheios de razão, como mostraram os acontecimentos, que
se o partido não tomava a direcção, os soldados, por eles próprios, sairiam à rua. A
brusca reviravolta da opinião nas massas não podia, porém, ser apreciada a meio
caminho, e daí resultavam certas hesitações entre os próprios bolcheviques. Volodarsky

314
não estava convencido que os operários manifestar-se-iam na rua. Havia também
apreensões sobre o carácter que tomaria a manifestação.
Os representantes da organização militar afirmavam que os soldados, temendo uma
agressão e represálias, não saíram sem armas. «Como se passará esta manifestação?»
perguntava o prudente Tomsky, e reclamava um novo debate. Estaline considerava que
«a fermentação entre os soldados é um facto; entre os operários, o estado de espírito não
estava muito animado»; mas ele achava mesmo assim que era necessário opor
resistência ao governo. Kalinine, sempre tendendo a esquiver-se ao combate em vez de
o aceitar, pronunciou-se resolutamente contra a manifestação, alegando a ausência de
uma maior razão importante, sobretudo entre os operários: «A manifestação, será sempre
falsa.» No dia 8 de Junho, numa reunião com os representantes dos distritos, após vários
votos prévios, cento e trinta e uma mãos ergueram-se finalmente pela manifestação o
comité inter-distritos decidiu juntar-se à manifestação que foi fixada para o domingo 10 de
Junho.
O trabalho preparatório foi levado até ao último momento clandestinamente para não
dar aos socialistas-revolucionários e aos mencheviques a possibilidade de empreender
uma contra-agitação. Esta medida legítima de prudência foi, mais tarde, interpretada
como a prova de uma conjuração militar. A decisão de organizar a manifestação, o
Soviete central dos comités de fábrica e de oficinas aderiu. «Sob a pressão de Trotsky e
contra as objecções de Lunatcharsky – escreveu Iugov – o comité inter-distritos decidiu
juntar-se à manifestação.» A preparação foi feita com estrema energia.
A manifestação devia içar a bandeira do poder dos sovietes. A palavra de ordem de
combate era: «Abaixo os dez ministros capitalistas!» Era a expressão mais simples da
reivindicação de uma ruptura da coligação com a burguesia. O desfile devia dirigir-se para
o Corpo dos Cadetes onde tinha lugar o Congresso. Assim, sublinhavam que se tratava
não de derrubar o governo, mas de pressionar os líderes soviéticos.
Na verdade, nas conferências preliminares dos bolcheviques, fizeram-se ouvir outras
vozes. Foi assim que Smilga, então jovem membro do Comité central, propôs «em não se
renunciar à ocupação os correios, o telégrafo e o arsenal, se os acontecimentos se
desenvolvessem até à formação de uma coligação». Um outro participante na
conferência, Latzis, membro do Comité de Petrogrado, notou no seu caderno, quando a
proposição de Smilga foi rejeitada: «Não posso aceitar isso … Discutirei com os
camaradas Semachko e Rakhia para que sejamos, em caso de necessidade, armados e
que nos tomemos posse das gares, dos arsenais, dos bancos, dos correios e do telégrafo,
com o apoio do regimento de metralhadoras.» Semachko, era um oficial do regimento de
metralhadoras, Rakhia um operários, um dos bolcheviques mais combativos.
A existência de tais estados de espírito compreende-se facilmente. O curso do
partido estava completamente dirigido para a conquista do poder, e não se tratava de
avaliar a situação. Em Petrogrado produzia-se uma reviravolta evidente a favor dos
bolcheviques; mas na província, o mesmo processo desenvolvia-se mais lentamente;
enfim, a frente ainda necessitava da lição da ofensiva para abandonar a desconfiança em

315
relação aos bolcheviques. Lenine mantinha por consequência a sua posição de Abril:
«explicar pacientemente».
Sukhanov, nas suas Memórias, desenha o plano da manifestação do 10 de Junho
como uma verdadeira maquinação de Lenine tendo por objectivo tomar o poder «se as
circunstância são favoráveis». Na realidade, não houve, para tentar de colocar a questão
assim, senão alguns bolcheviques que Lenine dizia maliciosamente que eles tomavam «
um pouco mais à esquerda» do que convinha. É notável que Sukhanov nem tentou
mesmo de confrontar as suas hipóteses arbitrárias com a linha política de Lenine,
exprimida em numerosos discursos e artigos iii.
O Secretariado do Comité executivo intimou imediatamente os bolcheviques a anular
a manifestação. Com que direito? Formalmente, a manifestação não podia,
evidentemente, ser proibida senão pelo poder do Estado. Mas este nem ousava pensar
nisso. Como é que o Soviete, «organização privada», dirigida por um bloco de dois
partidos políticos, podia proibir a manifestação de um terceiro partido? O comité central
dos bolcheviques recusou ceder, mas decidiu de sublinhar ainda mais claramente o
carácter pacífico da manifestação. Nos bairros operários, no 9 de Junho, foi fixada uma
proclamação dos bolcheviques. «Nós somos cidadãos livres, temos o direito de protestar,
e devemos servir-nos desse direito enquanto não é muito tarde. O direito a uma
manifestação pacífica é um direito adquirido.»
A questão foi evocada pelos conciliadores diante do congresso. Foi nesse momento
que Tchkheidzé pronunciou o seu famoso discurso sobre uma saída fatal, acrescentando
que era necessário manter a reunião toda a noite. Um membro do secretariado,
Gueguetchkori, ele também um rebento da Gironde, terminou o seu discurso por uma
grosseira apostrofe dirigida aos bolcheviques: «Abaixo as vossas mãos sujas diante da
grande causa!» Os bolcheviques, apesar de reclamarem, não obtiveram tempo de discutir
a questão no seu grupo. O Congresso resolveu proibir por três dias todas as
manifestações. Essa demonstração de força em relação aos bolcheviques era ao mesmo
tempo um acto de usurpação em relação ao governo: os sovietes continuaram a
escamotear o poder debaixo do seu travesseiro.
Miliokov, ao mesmo tempo, falava ao congresso dos cossacos e designava os
bolcheviques como «os piores inimigos da revolução russa». O melhor amigo desta
revolução, pela lógica das coisas, era agora o próprio Miliokov, o qual, na véspera de
Fevereiro, aceitava sobretudo dos alemãs a derrota da revolução do povo russo. Os
cossacos tinham-lhe perguntado como se deveriam comportar em relação aos leninistas,
Miliokov respondeu: «É tempo de acabar com esses senhores.» O líder da burguesia
estava demasiado apressado. Aliás, ele não tinha tempo a perder.
Porém, nas fábricas e nos regimentos tinham lugar comícios que decidiam, para o
dia seguinte, sair para a rua com a palavra de ordem: «Todo o poder aos sovietes!» Na
barulheira do Congresso dos sovietes e dos cossacos, passou despercebido o facto que
na Duma municipal do bairro de Vyborg tinham sido eleitos: trinta e sete conselheiros
bolcheviques, do bloco dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques vinte e dois,
quatro cadetes.

316
Colocados diante da decisão categórica do Congresso, que fazia alusão a um
misterioso golpe ameaçador da direita, os bolcheviques decidiram rever a questão. Eles
queriam uma manifestação pacífica e não uma insurreição, e não podiam ter motivo em
transformar em meio levantamento a manifestação proibida. O secretariado do Congresso
tinha decidido, pelo seu lado, de tomar medidas. Várias centenas de delegados foram
agrupados por dezenas e enviados nos bairros operários e aos quartéis para prevenir a
manifestação, entendendo-se que, no dia seguinte pela manhã, eles se apresentariam ao
palácio Tauride para comunicar os resultados. O comité executivo dos deputados
camponeses se juntariam a esta expedição, designando para isso setenta dos seus.
Ainda se por vias imprevistas, os bolcheviques chegaram aos seus fins: os
delegados do Congresso viram-se forçados a travar conhecimento com os operários e os
soldados da capital. Não permitiram à montanha de se aproximar dos profetas, mas en
contrapartida os profetas tiveram que ir à montanha. O encontro foi altamente edificante.
Nas Izvestia do Soviete de Moscovo, um correspondente menchevique esboçou o quadro
seguinte: «Durante toda a noite, a maioria do Congresso, mais de quinhentos dos seus
membros, sem pregar olho, por equipas de dez, percorreram as fábricas, as oficinas e os
quartéis de Petrogrado, exortando os homens a absterem-se de manifestar. O Congresso,
num bom número de fábricas e de oficinas e também numa certa parte da guarnição, não
gozou de qualquer autoridade … Os membros do Congresso foram acolhidos muitas
vezes de maneira pouco amistosa, por vezes mesmo com hostilidade, e frequentemente
foram repelidos colericamente. «O órgão oficial do Soviete não exagerou de forma
nenhuma: pelo contrário, traçou um quadro extremamente atenuado do encontro nocturno
de dois mundos.
As massas de Petrogrado, de qualquer modo, não deixaram aos delegados qualquer
sombra de dúvida sobre os que, doravante, podiam decidir uma manifestação ou anulá-la.
Os operários da fábrica Putilov não consentiram colar o cartaz do apelo do Congresso
contra a manifestação senão depois de a ter contestado, lendo a Pravda, que este apelo
não ia contra a decisão dos bolcheviques. O 1º regimento de metralhadoras que eram os
primeiros violões na guarnição, tal como a fábrica Putilov nos meios operários, votou,
após ter ouvido ouvido os relatórios de Tchkheidzé e de Avksentiev, presidentes dos dois
comités executivos, a seguinte resolução: «De acordo com o comité central dos
bolcheviques e a sua organização militar, o regimento adiou a sua saída … »
As brigadas de pacificadores chegaram, após uma noite em branco, ao palácio de
Tauride num estado de completa desmoralização. Elas tinham contado com a autoridade
irrecusável do Congresso, mas tinham-se chocado com uma muralha de desconfiança e
de hostilidade. «As massas são dominadas pelos bolcheviques.» «Mostram-se hostis em
relação aos mencheviques e aos socialistas-revolucionários.» «Só acreditam na Pravda.»
Aqui e ali, gritam: «Nós não somos camaradas para vocês.» Um após outro, os delegados
diziam que, apesar da contra-ordem para a batalha, eles tinham sofrido a maior das
derrotas.
As massas tinham obedecido à decisão dos bolcheviques. Mas esta docilidade não
ia, longe disso, sem protestos, nem mesmo sem indignação. Em certas empresas foram

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votadas resoluções de queixa contra o comité central. As mais desesperadas entre os
membros do partido, nos bairros, acabavam por rasgar as suas cartas de membros. Era
um aviso sério.
Ao proibir as manifestações durante três dias, os conciliadores alegavam uma
conspiração monárquica que queria tirar partido da acção dos bolcheviques; eles
mencionavam a conivência de uma parte do Congresso dos cossacos e a marcha sobre
Petrogrado das tropas contra-revolucionárias. Não era de admirar que após ter
desconvocado a manifestação, os bolcheviques tinham pedido explicações sobre a
conspiração. Em vez de responder, os líderes do Congresso acusaram os próprios
bolcheviques de ter conspirado. Foi assim que felizmente eles saíram da situação.
É necessário reconhecer que, na noite do 9 ao 10 de Junho, os conciliadores tinham
efectivamente descoberto uma conspiração que os tinha abalado bastante: a conspiração
das massas unidas aos bolcheviques contra eles próprios conspiradores. Todavia, os
bolcheviques tendo-se inclinado diante da conclusão do Soviete, os conciliadores
retomaram coragem, o que lhes permitiu, após o pânico, de rebentar de fúria. Os
mencheviques e os socialistas-revolucionários resolveram mostrar punho de ferro. No 10
de Junho, o jornal dos mencheviques escrevia: «É tempo de estigmatizar os leninistas
como cobardes e traidores à revolução. «O presidente do comité executivo, no congresso
dos cossacos, pediu-lhes apoio para o Soviete contra os bolcheviques. O presidente do
congresso Dutov, ataman do Ural, respondeu-lhe: «Nós, cossacos, não querelamos
nunca com os sovietes.» Contra os bolcheviques, os reaccionários estavam prontos a
marchar mesmo com o Soviete para melhor o abafar a seguir.
No 11 de Junho reuniu-se um areópago ameaçador: o comité executivo, os membros
do executivo do Congresso, o dirigentes das fracções, um total de cerca de cem pessoas.
O procurador, como sempre, é Tseretelli. Sofocando de raiva, pediu uma rigorosa
repressão e afastou com um gesto de desprezo Dan, que está sempre disposto a
perseguir os bolcheviques, mas não se decide ainda a atacá-los. «O que fazem agora os
bolcheviques, já não é propaganda de ideias, é uma conspiração … Queiram nos
desculpar os bolcheviques! Nós vamos agora iniciar outros métodos de luta … É
necessário desarmar os bolcheviques. Não se pode deixar entre as sua mãos os grandes
meios técnicos que dispõem até agora. Não se pode deixar entre as suas mãos as
metralhadoras e outras armas. Não toleramos conspirações.» Aí estão novas notas. Que
significa na verdade: desarmar os bolcheviques? Sokhanov escreve sobre isso: «Enfim,
os bolcheviques não têm depósitos de armas particulares. Na verdade, todas as armas
estão entre os soldados e os operários que, massa formidável, seguem os bolcheviques.
O desarmamento dos bolcheviques não pode significar senão o desarmamento do
proletariado. Ainda mais, o desarmamento da tropa.»
Noutros termos chegava o momento clássico da revolução onde a democracia
burguesa, sob exigência da reacção, quer desarmar os operários que asseguraram a
vitória da insurreição. Os senhores democratas, entre os alguns são cultos, simpatizavam
invariavelmente com os que eram desarmados, não a quem desarmava, tanto mais que
se tratava da velha história. Mas quando a mesma questão se colocou diante deles na

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realidade, eles não a reconheceram. Foi esta única circunstância que um Tseretelli se
encarregava de desarmar os operários, ele, revolucionário que tinha passado anos no
degredo, ele zimmerwaldiano na véspera, não era simplesmente concebível. A sala
congelou de estupor. Os delegados da província sentiram mesmo assim, verosimilmente,
que os empurravam para o abismo. Um dos oficiais teve uma crise de histeria.
Tão pálido como Tseretelli, Kamenev levantou-se do seu lugar e afirmou com um tom
digno cuja força foi sentida pelo auditório: «Senhor ministro, se você não fala por falar,
você não tem o direito de se limitar a um discurso. Prenda-me e julgue-me por
conspiração contra a revolução.» Os bolcheviques protestando abandonam a sessão,
recusando participar à repressão contra o seu partido. A tensão na sala tornou-se
intolerável.
Impressionável como sempre, Lunatcharsky tentou imediatamente palavra: ainda
que os bolcheviques lhe tenha assegurado que eles só tinham como perspectiva uma
manifestação pacífica, contudo, a sua própria exigência convenceu-o que seria «errado
organizar uma manifestação». Todavia, não convém agravar os conflitos. Sem acalmar os
adversários, Lunatcharsky irritou os amigos.
«Nós não combatemos a corrente de esquerda – disse Dan, como um jesuíta, o mais
experiente, mas também o mais estéril dos líder do Pântano – nós combatemos a contra-
revolução. Não da nossa culpa se vocês têm por detrás de vós os dóceis agentes da
Alemanha.» Esta alegação substituía simplesmente uma argumentação. Esses senhores,
bem entendido, não podiam indicar qualquer agente da Alemanha.
Tseretelli queria dar um grande golpe. Dan propunha que se limitasse a levantar o
punho. Na sua impotência, o comité executivo concordou com Dan. A resolução proposta
no dia seguinte ao congreso tinha o carácter de uma lei de excepção contra os
bolcheviques, mas sem deduções práticas directas.
«Para vós, depois que os delegados visitaram as fábricas e os regimentos – dizia
uma declaração escrita dos bolcheviques no Congresso – não pode haver dúvida que se
a manifestação não se realiza, não é por causa da vossa proibição, é porque o nosso
partido anulou-a … A ficção de um golpe militar não foi lançada por um membro do
governo provisório senão para proceder ao desarmamento do proletariado de Petrogrado
e à deslocação da guarnição. Mesmo se o poder governamental tivesse passado
inteiramente para o Soviete – esperamos – e se o Soviete tentasse perturbar a nossa
agitação, isso poderia obrigar-nos a não a submeter passivamente, mas a afrontar a
detenção e todas as outras penas em nome das ideias do socialismo internacional que
nos separam de vós.»
A maioria e a minoria do Soviete aproximaram-se nesses dias, peito contra peito,
como se tratasse de uma batalha decisiva. Mas as duas pertes, no último momento,
recuaram um passo. Os bolcheviques renunciaram à manifestação; os conciliadores a
desarmar os operários.
Tseretelli continuava em minoria entre os seus. E portanto ele tinha razão à sua
maneira. A política da união tinha chegado ao ponto onde se tornava indispensável

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enfranquecer completamente as massas que não se resignavam aceitar a coligação.
Levar a política de conciliação até ao sucesso, quer dizer até ao estabelecimento do
domínio parlamentar da burguesia, não era possível senão pelo desarmamento dos
soldados e operários. Mas se Tseretelli tinha razão à sua maneira, ele era, aliás,
impotente. Nem os operários, nem os soldados teriam cedido de boa vontade suas armas.
Assim, era preciso empregar a força contra eles. Mas a força já tinha abandonado
Tseretelli. Ele não a podia obtê-la, se pelo menos ele pudesse fazer qualquer coisa, que
no caso onde se teria conseguido esmagar os bolcheviques, ter-se-ia imediatamente
empreendido a liquidação dos conciliadores nos sovietes, não deixaria de lembrar que
Tseretelli foi um antigo forçado, nada mais. Porém, o seguimento dos factos mostrará que
tais forças também não existem no seio da reacção.
Tseretelli, afirmando a necessidade de combater os bolcheviques, dava como
argumento político que eles destacavam o proletariado do campesinato. Martov
respondeu-lhe: «Não é do fundo do campesinato que Tseretelli vai buscar as ideias que o
guiam; o grupo de cadetes de direita, o grupo de capitalistas, o grupo dos proprietários
nobres, o grupo dos imperialistas, os burgueses do Ocidente – são esses que exigem o
desarmamento dos operários e dos soldados». Martov tinha razão: as classes
possuidoras têm mais de uma vez na história metido suas pretensões sob a cobertura do
campesinato.
A partir da publicação das teses de Abril de Lenine, alegaram o perigo do isolamento
do proletariado do campesinato, e foi o principal argumento de todos os que procuravam
fazer recuar a revolução. Não era um acaso que Lenine chamava Tseretelli «velho
bolchevique».
Num dos seus estudos de 1917, Trotsky escrevia sobre isso: «O isolamento do
nosso partido em relação aos socialistas-revolucionários e aos mencheviques, mesmo os
mais extremos, mesmo pela prisão, não significa ainda de forma nenhuma o isolamento
do proletariado em relação das massas oprimidas no campo e nas cidades. Ao contrário,
o proletariado revolucionário opõe claramente a sua política às falsas renegações dos
actuais líderes dos sovietes, só pode trazer uma diferenciação política saudável entre os
milhões de rurais, arrancar os pobres dos campos à traição dos sólidos mujiques
socialistas-revolucionários e transformar o proletariado socialista num autêntica condutor
da revolução popular, plebeia.»
Mas o argumento profundamente falso de Tseretelli mostrou-se vivo. Na véspera da
insurreição de Outubro, ele ressuscita com redobrada energia como argumento de muitos
dos «velhos bolcheviques» contra o levantamento. Alguns amos mais tarde, quando
começou a reacção ideológica contra Outubro, a formula de Tseretelli tornou-se o principal
teórico da escola dos epígonos.
Na mesma sessão do Congresso que julgava os bolcheviques à revelia, um
representante dos menchevique propôs imediatamente de fixar no seguinte domingo, 18
de Junho, em Petrogrado e nas grandes cidades, uma manifestação de operários e de
soldados para demonstrar aos adversários a unidade e a força da democracia. A
proposição foi aceite, mas com alguma estupefacção. Um pouco mais de um mês mais

320
tarde, Miliokov explicava bastante judiciosamente a inesperada reviravolta dos
conciliadores: «Pronunciando discursos de cadetes no Congresso dos sovietes, tendo
conseguido impedir a manifestação armada do 10 de Junho, … os ministros socialistas
sentiram que se tinha ido demasiado longe na sua aproximação a nós, que o terreno fugia
sob seus pés. Assustados, voltaram-se bruscamente para os bolcheviques.» Decidindo
uma manifestação para o 18 de Junho, não se voltavam, bem entendido, para os
bolcheviques, mas tentavam voltar-se para as massas, contra os bolcheviques. A
confrontação nocturna com os operários e soldados tinha em geral dado um certo tremor
aos dirigentes: foi assim que, diferentemente do que se tinha projectado no início do
Congresso, apressaram-se a promulgar, em nomo do governo, a supressão da Duma do
Império e a convocação da Assembleia constituinte marcada para o 30 de Setembro. As
palavras de ordem da manifestação foram escolhidas e calculadas de maneira a não
provocar a irritação das massas: «Paz separada», «Convocação mais cedo possível da
Assembleia constituinte», «República democrática». Sobre a ofensiva como sobre a
coligação – nem uma palavra. Lenine pedia na Pravda: «Onde foi parar a inteira confiança
no governo provisório, senhores? … Têm um cabelo na língua?» Esta ironia atingia o seu
objectivo: os conciliadores não ousaram reclamar das massas confiança aos governo do
qual eles faziam parte.
Os delegados soviéticos, tendo percorrido mais uma vez os bairros operários e os
quartéis, fizeram, na véspera da manifestação, relatórios assegurando o comité executivo.
Tseretelli, a quem essas informações tinham permitido o gosto das reprimendas
presunções, dirigiu-se aos bolcheviques: «Nós veremos diante de nós uma revisão
actualizada das forças revolucionárias … Agora, veremos todos quem marcha atrás da
maioria: atrás de nós ou de vós.» Os bolchevique tinham aceite o desafio antes mesmo
que ele fosse imprudentemente formulado. «Nós iremos à manifestação do 18 de Junho –
escrevia a Pravda– com o objectivo de combater por objectivos pelos quais nós queremos
fazer uma demonstração no dia 10.»
Evidentemente, é em lembrança dos funerais de Março que tinham sido, pelo menos
aparentemente, a grande manifestação de unidade da democracia, que o itinerário, ainda
desta vez, levou ao Campo de Março, às sepulturas das vítimas de Fevereiro. Mas,
exceptuando o itinerário, nada fazia lembrar mais as longínquas jornadas de Março.
Cerca de quatrocentas mil pessoas participaram no cortejo, isto é muito mais que as que
participaram nas obséquias: nesta manifestação soviética absteram-se não somente a
burguesia, com a qual os sovietes estavam coligados, mas também a intelliguentsia
radical, que tinha ocupado um lugar tão notável nas paradas precedentes da democracia.
Nem só de fábricas e quartés era composto o cortejo.
Os delegados do congresso, reunidos no Campo de Março, liam e contavam os
cartazes. As primeiras palavras de ordem bolcheviques foram acolhidas com troça.
Tseretelli, na véspera, não tinha tão ousadamente lançado o seu desafío? Mas os as
mesmas palavras de ordem repetiam sem parar: « Abaixo os dez ministros capitalistas!»
«Abaixo a ofensiva!» «Todo o poder aos sovietes!» Os sorrisos irónicos paravam nos
rostos e, a seguir, lentamente, desapareciam. As bandeiras bolcheviques flutuavam a
perca de vista. Os delegados renunciaram às suas especulações ingratas. A vitória dos

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bolcheviques era demasiado evidente. «Por aqui por ali – escreveu Sokhanov – a cadeia
das bandeiras e de colunas de bolcheviques era interceptada pelas palavras de ordem
especificamente socialistas-revolucionárias e pelas do sovietismo oficial. Mas elas eram
afogadas pela massa.» Órgão oficioso do Soviete conta, no dia seguinte, com qual «raiva
tinham rasgado, aqui e ali, bandeiras com palavras de ordem de confiança ao governo
provisório». Essas palavras tinham marcas evidentes de exagero. Cartazes em honra do
governo provisório foram levadas por três pequenos grupos: o círculo de Plekhanov, um
contingente de cossacos, e um punhado de intelectuais judeus ligados ao Bund. Esta
combinação ternária, que dava pela sua combinação a impressão de uma anomalia
política, parecia ter-se dado como objectivo mostrar a impotência do regime. Os
plekanovistas e o Bund tiveram, sob os gritos hostis da multidão, que enrolar suas
pancartas. Quanto aos cossacos, como eles mostravam teimosia, suas bandeiras foram-
lhe efectivamente arrancadas pelos manifestantes e destruídas.
«A torrente que rolava até aí – tal como descreviam as Izvestia – transformou-se
num rio de águas vernais que, de um momento para outro, vai transbordar.» É o bairro de
Vyborg, completamente coberto de bandeiras bolcheviques. «Abaixo os dez ministros
capitalistas!» Uma das fábricas tinha saído este cartaz: «O direito de viver está acima do
direito da propriedade privada!» Essa palavra de ordem não tinha sido sugerida por
qualquer partido.
Os provinciais aterrorizados procuravam com o olhar os líderes. Estes baixavam os
olhos ou simplesmente esquivavam-se. Os bolcheviques pressionavam os provinciais.
Juntar-se-iam a um pequeno bando de conspiradores? Os delegados concordavam, o que
não era a mesma coisa. « Em Petrogrado, vocês são fortes – confessavam com outro
tom, diferente da sessão oficial – mas não é a mesma coisa na província e na frente.
Petrogrado não pode marchar só contra todo o país. - Alto lá, responderam os
bolcheviques, a vossa vez virá; em breve, entre vocês instalaremos os nossos cartazes.»
«Durante esta manifestação – escrevia o velho Plekhanov «encontrava-me no
Campo de Março ao lado de Tchkheidzé. Na sua cara eu via que não se enganara de
modo nenhum sobre o significado que tinha a prodigiosa afluência de cartazes
reclamando a queda dos ministros capitalistas. Esse significado era de certa maneira
sublinhada fortemente pelas imposições que lhe dirigiam, como verdadeiros chefes,
certos representantes leninistas que desfilavam diante de nós como se tivesse sido a sua
festa.»
Os bolchevique, de qualquer modo, tinham motivos de se sentirem assim. « A julgar
pelos cartazes e as palavras de ordem dos manifestantes – escrevia o jornal de Gorki – a
manifestação do domingo mostrou o triunfo completo do bolchevismo no proletariado
peterburguês.» Foi uma grande vitória, e ganha no terreno e com as armas que tinha
escolhido o adversário. Tendo aprovado a ofensiva, admitido a coligação e condenado os
bolcheviques, o Congresso dos sovietes, pela sua própria iniciativa, tinha feito sair à rua
as massas. Estas tinham-lhe declarado: nós não queremos nem ofensiva, nem coligação,
nós estamos com os bolcheviques. Tal era em resumo o resultado político da

322
manifestação. É de admirar que o jornal dos mencheviques, iniciadores da manifestação,
tenham pedido melancólicamente no dia seguinte: quem é que teve essa ideia infeliz?
Bem entendido, os operários e os soldados da capital não tinham todos participado
na demonstração, e os manifestantes não eram todos bolcheviques. Mas nenhum deles
não queriam mais a coligação. Os operários que continuavam hostis ao bolchevismo não
sabiam o que lhes opor. A seguir, a sua hostilidade se transformou numa neutralidade na
expectativa. Sob as palavras de ordem bolcheviques tinham caminhado um bom número
de mencheviques e de socialista-revolucionários que ainda não tinham rompido com os
seus partidos mas tinham já perdido a fé nas suas palavras de ordem.
A manifestação de 18 de Junho tinha produzido uma impressão enorme sobre os
próprios participantes. As massas tinham visto que o bolchevismo se tinha tornado uma
força, e os que hesitavam voltavam-se para ele. Em Moscovo, em Kiev, em Kharkov, em
Ekaterinoslav e muitas outras cidades da província, as manifestações mostraram o
formidável crescimento da influência dos bolcheviques. Em toda a parte avançavam-se as
palavras de ordem idênticas e que iam direitas ao coração do próprio regime de
Fevereiro. Era necessários tirar conclusões. Parecia que os conciliadores não tinham
saída possível. Mas, no último momento, a ofensiva livrou-os do embaraço.
No 19 de Junho, sobre o Nevsky, tiveram lugar manifestações patrióticas sob a
direcção dos cadetes e com os retratos de Kerensky. Segundo Miliokov: «Isso parecia tão
pouco a tudo o que se tinha passado nas mesmas ruas, na véspera, que ao sentimento
de triunfo se misturou involuntariamente um sentimento de incredulidade.» Sentimento
legítimo! Mas os conciliadores tiveram um suspiro de alívio. Seu pensamento,
imediatamente, subiu acima das duas manifestações da qual ela se fez uma síntese
democrática. Esses homens, tinham ainda que vazar completamente o cálice das ilusões
e das humilhações.
Durante as jornadas de Abril, duas manifestações, uma revolucionária e outra
patriótica, tinham-se encontrado e o choque tinha causado logo vítimas. As manifestações
inimigas dos dias 18 e 19 de Junho tinham sido sucessivas. Desta vez, não houve choque
directo. Mas o choque já não era evitável. Acontece que foi somente adiado por uns
quinze dias.
Os anarquistas, sem saberem como provar a sua autonomia, tinham aproveitado da
manifestação do 18 de Junho para atacar a prisão de Vyborg. Os detidos, na sua maioria
criminosos de direito comum, foram libertados sem dificuldades, não de uma só prisão
mas de várias. Verosimilmente, o ataque não tinha sido uma surpresa para a
administração penitenciária, porque ela tinha de boa vontade desaparecido diante dos
anarquistas autênticos ou pretendidos. Esse episódio misterioso não teve qualquer
relação, em resumo, com a manifestação. Mas a imprensa patriótica fez um e mesmo
assunto. Os bolcheviques pediram aos Congresso dos sovietes para abrir um inquérito
severo sobre a maneira como quatro centos e sessenta criminosos tinham sido libertados
das diversas prisões. Todavia, os conciliadores não podiam permitir-se um tal luxo, porque
eles temiam cair sobre os representantes da alta administração ou seus aliados no bloco.

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Além disso, eles não tinham qualquer vontade de impedir as calúnias perfídias contra os
manifestantes que eles proprios tinham organizado.
O ministro da Justiça, Pereverzev, que se tinha desconsiderado alguns dias antes
com o caso da mansão de Donorvo, resolveu vingar-se e, sob pretexto de procurar os
fugitivos, mandou proceder a uma nova incursão na mansão. Os anarquistas resistiram,
um deles foi morto no decurso do tiroteio, a mansão foi invadida. Os operários do bairro
de Vyborg, que consideravam a mansão como lhes pertencendo, deram o alarme. Várias
fábricas fizeram greve. O alarme foi transmitido a outros distritos assim como nos
quartéis.
Os últimos dias de Junho passaram-se numa agitação sem fim. O regimento de
metralhadoras está pronta a agir imediatamente contra o governo provisório. Os operários
das fábricas em greve fizeram o passeio pelo regimentos, convidando-os a manifestarem-
se. Camponeses barbudos, muitos de barba branca, sob o capote de soldados, desfilaram
em cortejo de protesto nas calçadas: são os homens de quarenta anos que reclamam
licença para os trabalhos nos campos. Os bolcheviques conduzem uma campanha contra
a saída: a manifestação do 18 de Junho disse tudo que se podia dizer; para obter
mudanças, uma manifestação não basta mais, mas a hora da insurreição ainda não soou.
No 22 de Junho, os bolchevique, imprimem em direcção da guarnição: «Não pensem
manifestar na rua ao apelo lançado em nome da organização militar.» Da frente chegam
delegados, queixando-se dos actos de violência e de castigos. As ameaças repetidas de
dissolver certos corpos da tropa lançam óleo no fogo. «Em muitos regimentos, os
soldados dormem de armas na mão», diz a declaração dos bolcheviques ao comité
executivo.
Manifestações patrióticas, muitas vezes armadas, provocam choques na rua. São as
pequenas descargas de uma electricidade acumulada. Nenhum lado se dispõe a atacar
directamente: a reacção é demasiado fraca; a revolução ainda não está segura das suas
forças. Mas as ruas da cidade parecem calcetadas de explosivos. O conflito está no ar. A
imprensa bolchevique explica e modera. A imprensa patriota trai a sua ansiedade por uma
campanha desvairada contra os bolcheviques. No dia 25 de Junho, Lenine escreve: «Os
gritos de cólera e raiva que se ouvem em todo o lado contra os bolcheviques traduzem a
lamentação comum dos cadetes, dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques
sobre a sua própria debilidade. Eles são maioritários. Eles estão no poder. Eles formam
juntamente um bloco, e vêm que não têm qualquer sucesso! Como não vazariam eles sua
cólera sobre os bolcheviques?»

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Conclusão
Nas primeiras páginas desta obra, tentámos mostrar como eram profundas as bases
da Revolução de Outubro nas relações sociais da Rússia. Nossa análise, que não foi de
forma nenhuma arranjada em função dos acontecimentos, foi dada, ao contrário, bem
antes da revolução, e mesmo antes do seu prólogo de 1905.
Nas páginas que se seguiram, tentámos descobrir como as forças sociais da Rússia
se manifestaram nos acontecimentos da revolução. Registámos a actividade dos partidos
políticos nas suas relações recíprocas com as classes. As simpatias e as antipatias do
autor podem ser deixadas de lado. Uma exposição histórica tem direito a pretender que
se lhe reconheça a objectividade se, apoiando-se sobre factos exactamente
estabelecidos, produz a ligação interna sobre a base do desenvolvimento real das
relações sociais. A razão íntima de ser do processo, ao se revelar, é em si a melhor
verificação da objectividade da exposição.
Os acontecimentos da Revolução de Fevereiro que se desenrolaram diante do leitor
confirmaram o prognóstico teórico, até, pelo menos, a meio, pelo método das eliminações
sucessivas: antes mesmo que o proletariado chegasse ao poder, todas as outras
variantes de desenvolvimento político eram submetidas à experiência da vida e rejeitadas
como inaplicáveis.
O governo da burguesia liberal, com o seu refém democrata Kerensky, chegou ao
fiasco total. As «Jornadas de Abril» foram o primeiro aviso abertamente dado pela
Revolução de Outubro à de Fevereiro. O governo provisório burguês é substituído depois
disso por uma coligação cuja esterilidade se revela a cada dia da sua existência. Na
manifestação de Junho, marcada pelo comité executivo, pela sua própria iniciativa, ainda,
que na realidade, e não completamente de boa vontade, tentou medir forças com as de
Outubro e sofreu a mais cruel das derrotas. A sua derrota foi tanto mais fatal que ela teve
lugar no terreno de Petrogrado e foi infligida pelos mesmos operários e soldados que
tinham realizado a insurreição de Fevereiro, ratificada entusiasticamente em todo o país.
A manifestação de Junho mostrou que os operários e os soldados de Petrogrado
caminhavam para uma segunda revolução cujos objectivos estavam inscritos nas suas
bandeiras. Indubitáveis indícios provavam que o resto do país – ainda se com um atraso
forçado – alinhavam completamente com Petrogrado. Assim, cerca do fim do quarto mês
a Revolução de Fevereiro, politicamente falando, já se tinha esgotado. Os conciliadores
tinham perdido a confiança dos operários e soldados. O conflito entre os partidos
dirigentes dos soviete e as massas soviéticas tornou-se desde então inevitável. Após o
desfile do 18 de Junho, que era uma verificação pacífica das relações de forças entre as
duas revoluções, o seu antagonismo devia inevitavelmente tomar um carácter
violentamente declarado.
Foi assim que surgiram as «Jornadas de Julho». Quinze dias depois a manifestação
organizada pelo alto, os mesmos operários e soldados saíram à rua, mas já pela sua
própria iniciativa, e exigiram do comité central executivo central que ele tomasse o poder.
Os conciliadores recusaram redondamente. As Jornadas de Julho trouxeram choques nas

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ruas, causaram vítimas e terminaram pelo esmagamento dos bolcheviques que foram
declarados responsáveis da incapacidade do regime de Fevereiro. A proposição que
Tseretelli tinha feito, no 17 de Junho, de declarar os bolcheviques fora da lei e de os
desarmar – proposição que tinha sido recusada – encontrou-se inteiramente levada a
efeito no início de Julho. Os jornais bolcheviques foram proibidos. Os líderes do partido
foram declarados mercenários do estado-maior alemão. Uns deviam esconder-se, outros
presos.
Mas é precisamente na «vitória» ganha em Julho pelos conciliadores sobre os
bolcheviques que a impotência da democracia se manifestou completamente. Contra os
operários e os soldados, os democratas tiveram que jogar tropas abertamente contra-
revolucionárias, hostis não somente aos bolcheviques, mas aos sovietes: o comité
executivo já não dispunha das suas próprias tropas.
Os liberais chegaram aí à conclusão justa que Miliokov formulou por esta alternativa:
Kornilov ou Lenine? A revolução, efectivamente, não deixa mais lugar ao reino do meio. A
contra-revolução considerou: agora ou nunca. O generalíssimo Kornilov fez um
levantamento contra a revolução sob as aparências de uma campanha contra os
bolcheviques. Assim que todas as variedades de oposição legal, antes da insurreição,
colocavam a máscara do patriotismo, alegando as necessidade da luta contra os alemãs
– toda as variedades da contra-revolução legal, após a insurreição, alegavam as
necessidade da luta contra os bolcheviques. Kornilov tinha o apoio das classes
possuidoras e do seu partido, o dos cadetes. Isso não impedia – pelo contrário facilitava –
as tropas dirigidas por Kornilov contra Petrogrado de serem vencidas sem combate, de
capitular antes do início da luta, de se evaporar como uma gota de água sobre uma
superficie em brasa. Assim a experiência de uma insurreição de direita foi igualmente
feita, e por uma personagem que se encontrava à cabeça do exército; as relações de
força entre as classes possuidoras e o povo foram verificadas pela acção e, na
alternativa: Kornilov ou Lenine, Kornilov caiu como um fruto maduro, mesmo se Lenine
ainda se viu forçado a esconder-se numa grande retirada.
Que variante não utilizada, não experimentada, não verificada restava ainda depois
disso? A variante do bolchevisme. Com efeito, após a tentativa de Kornilov e da sua
derrota vergonhosa, as massas voltavam-se tumultuosamente e definitivamente para os
bolcheviques. A Revolução de Outubro aproxima-se, tornando-se uma necessidade física.
Diferente da insurreição de Fevereiro, que se dizia não sangrenta, ainda se custou a
Petrogrado muitas vítimas, a insurreição de Outubro realizou-se na capital efectivamente
sem efusão de sangue. Não temos o direito de pedir quais provas poderiam-se ainda dar
da razão profunda de ser da Revolução de Outubro? E não está claro que ela não pode
parecer o fruto da aventura ou da demagogia senão àqueles que ela bateu no ponto mais
sensível: no bolso? A luta sangrenta não começa senão depois depois da conquista do
poder pelos sovietes bolcheviques, quando as classes derrubadas, com o apoio material
dos governos da Entente, esforçam-se desesperadamente para capturar o que lhes
escapara. Então abrem-se os anos da guerra civil. O Ano vermelho se constitui. O país
esfomeado foi colocado em regime de comunismo de guerra e transformado em campo
de Espartiatas. A revolução de Outubro, passo a passo, abre caminho, afasta todos os

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seus inimigos, ocupa-se a resolver os seus problemas económicos, cuida dos feridos da
guerra imperialista e da guerra civil e consegue as mais consideráveis realizações no
domínio industrial. Diante dela surgem, porém, novas dificuldades que procedem do seu
isolamento num ambient rodeando de nações potentes capitalistas. A condição atrasada
de desenvolvimento que trouxe o proletariado russo ao poder colocou diante desse poder
problemas que, essencialmente, não podem ser inteiramente resolvidos no quadro de um
Estado isolado. A sorte deste está inteiramente ligada à marcha ulterior da história
mundial.
Esse primeiro volume, consagrado à Revolução de Fevereiro, mostra como e porquê
ela devia reduzir-se a nada. O volume seguinte mostrará como a Revolução de Outubro
venceu.

327
Tomo II
Prefácio
Durante os dois primeiros meses de 1917, a Rússia ainda era a monarquia dos
Romanov. Oito anos mais tarde, os bolcheviques já estavam ao leme do governo, eles
que eram desconhecidos no início do ano e cujos líderes, no momento do ascenso ao
poder, ainda eram acusados de alta traição. Na história não se encontraria outro exemplo
de uma reviravolta tão brusca, sobretudo lembrando-nos que se trata de uma nação de
cento e cinquenta milhões de almas. É claro que os acontecimentos de 1917 – qualquer
que seja a maneira considerada – merecem ser estudados.
A história de uma revolução, como toda história, deve, antes de tudo, relatar o que
se passou e dizer como. Mas isso não é suficiente. Segundo a própria narração, é
necessário que se veja nitidamente porquê as coisas se passaram assim e não de outra
forma. Os acontecimentos não poderiam ser considerados como um encandeamento de
aventuras, nem baseados, uns após outros, numa moral pré-concebida. Eles devem
conformar-se com a sua própria lei racional. É na descoberta desta lei íntima que o autor
vê a sua tarefa.
O traço mais incontestável da Revolução é a intervenção directa das massas nos
acontecimentos históricos. Habitualmente, o Estado, monárquico ou democrático, domina
a nação; a história é feita pelos especialistas do ofício: monarcas, ministros, burocratas,
deputados, jornalistas. Mas, nos momentos decisivos, quando um velho regime se torna
intolerável para as massas, estas quebram as muralhas que os separam da arena
política, derrubam os seus representantes tradicionais, e, intervindo assim, criam o ponto
de partida para um novo regime. Que seja bem ou mal, os moralistas que julguem.
Quanto a nós, tomamos os factos tal como eles se apresentam, no seu desenvolvimento
objectivo. A história da revolução é para nós, antes de mais, a narração de uma irrupção
violenta das massas no domínio onde se regulam os seus próprios destinos.
Numa sociedade em revolução, as classes estão em luta. É evidente que as
transformações que se produzem entre o princípio e o fim de uma revolução, nas bases
económicas da sociedade e no substrato social das classes, é insuficiente para explicar a
marcha da própria revolução, a qual, num breve lapso de tempo, deita abaixo as
instituições seculares, criando novas e derrubando-as novamente. A dinâmica dos
acontecimentos revolucionários é determinada directamente pelas conversões
psicológicas rápidas, intensivas e apaixonadas das classes constituídas antes da
revolução.
Uma sociedade não modifica as suas instituições à medida das necessidades, como
um artesão renova as suas ferramentas. Pelo contrário: praticamente considera as
instituições que a dominam como uma coisa para sempre estabelecida. Durante dezenas
de anos, a crítica da oposição serve de válvula de escape ao descontentamento das
massas e ela é a condição à estabilização do regime social: tal é, por exemplo, em

328
princípio, o valor adquirido pela social-democracia. São necessárias circunstâncias
absolutamente excepcionais, independentes da vontade dos indivíduos ou dos partidos,
para libertar os descontentes dos genes do espírito conservador e levar as massas à
insurreição.
As rápidas mudanças de opinião e de humor das massas, em tempos de revolução,
provêm, por consequência, não da maleabilidade e da mobilidade do psiquismo humano
mas do seu profundo conservadorismo. As ideias e as relações sociais continuam em
permanência atrasadas sobre as novas circunstâncias objectivas, até ao momento que
estas caem em cataclismo, e resulta em tempo de revolução, sobressaltos de ideias e de
paixões que os cérebros de polícias as representam simplesmente como obra de
“demagogos”.
As massas metem-se em revolução não como tendo um plano prévio de
transformação social, mas com o sentimento amargo de não poder tolerar por mais tempo
o antigo regime. É somente o meio dirigente da sua classe que possui um programa
político, o qual tem no entanto necessidade de ser verificado pelos acontecimentos e
aprovado pelas massas. O processo político essencial de uma revolução é precisamente
aquele em que a classe toma consciência dos problemas postos pela crise social, e que
as massas orientam-se activamente segundo o método das aproximações sucessivas. As
diversas etapas do processo revolucionário, consolidadas pela substituição a tais partidos
por outros sempre mais extremistas, traduzem a pressão constante reforçada das massas
sobre a esquerda, enquanto este impulso não se quebre contra obstáculos objectivos.
Então começa a reacção: desilusão em certos meios da classe revolucionária,
multiplicação dos indiferentes, e, seguidamente, consolidação das forças contra-
revolucionárias. Tal é pelo menos o esquema das antigas revoluções.
É somente pelo estudo dos processos políticos nas massas que se pode
compreender o papel dos partidos e dos líderes que nós não poderemos de forma
nenhuma ignorar. Eles constituem um elemento não autónomo, mas muito importante do
processo. Sem organização dirigente, a energia das massas se volatilizaria como o vapor
não fechado num cilindro de pistão. Todavia, o movimento não vem nem do cilindro nem
do pistão, mas do vapor.
As dificuldades que reencontramos no estudo das modificações da consciência das
massas em tempos de revolução são absolutamente evidentes. As classes oprimidas
fazem a história nas fábricas, nos quartéis e nos campos, nas cidades, nas ruas. Mas elas
não têm o hábito de notar por escrito o que fazem. Os períodos onde as paixões sociais
atingem a sua mais alta tensão não deixam em geral pouco lugar à contemplação e às
descrições. Todas as musas, mesmo a musa plebeia do jornalismo, ainda que ela tenha
os flancos sólidos, têm dificuldades em viver em tempos de revolução. Todavia, a situação
do historiador não é de forma nenhuma desesperada. As notas tomadas são incompletas,
discordantes, fortuitas. Mas, à luz dos acontecimentos, esses fragmentos permitem
muitas vezes adivinhar a direcção e o ritmo do processo subjacente. Bem ou mal, é ao
apreciar as modificações da consciência das massas que um partido revolucionário
baseia a sua táctica. A via histórica do bolchevismo testemunha que esta avaliação, de

329
certa forma, era realizável. Porquê então o que é acessível a uma política revolucionária,
no turbilhão da luta, não seria acessível ao historiador retrospectivamente?
No entanto, os processos que se produzem na consciência das massas não são
nem autónomos nem independentes. Que os idealistas e os eclécticos não levem a mal, a
consciência é todavia determinada pelas condições gerais de existência. Nas
circunstâncias históricas da formação da Rússia, com a sua economia, as suas classes, o
seu poder de Estado, na influência exercida sobre ela pelas potências estrangeiras,
deveriam ser incluídas as premissas da Revolução de Fevereiro e da sua substituta – a
de Outubro. À medida onde parece particularmente enigmático que um país atrasado
tenha sido o primeiro a levar o proletariado ao poder, é necessário previamente procurar a
palavra do enigma no carácter original do dito país, isto é, no que o diferencia dos outros
países.
As particularidades históricas da Rússia e do seu peso específico são caracterizadas
nos primeiros capítulos deste livro que contêm uma exposição sucinta do
desenvolvimento da sociedade russa e das suas forças internas. Esperemos que o
inevitável esquematizar desses capítulos não desencoraje o leitor. No seguimento da
obra, encontrar-se-á as mesmas forças sociais em plena acção.
Esta obra não é de forma nenhuma baseada em lembranças pessoais. A
circunstância que o autor participou nos acontecimentos não a dispensa do dever de
estabelecer a narração sobre documentos rigorosamente controlados. O autor fala de si
na “terceira pessoa”. Isso não é uma simples forma literária: o tom subjectivo, inevitável
numa autobiografia ou memórias, seria inadmissível num estudo histórico.
No entanto, pelo facto que o autor participou na luta, é-lhe naturalmente mais fácil
compreender não somente a psicologia dos actores, indivíduos e colectividades, mas
também a correlação interna dos acontecimentos. Esta vantagem pode dar resultados
positivos, contudo com uma condição: a de não se relacionar aos testemunhos da sua
memória nas pequenas como nas grandes coisas, na exposição dos factos como em
consideração dos mobiles e dos estados de opinião. O autor considera que tanto que
dependa dele, teve em conta esta condição.
Resta uma questão – a da posição política do autor que, na sua qualidade de
historiador limita-se ao ponto de vista que era o seu como actor nos acontecimentos. O
leitor não está obrigado, bem entendido, a partilhar os pontos de vista do autor, o que este
último não tem motivo para dissimular. Mas o leitor tem o direito de exigir que uma obra
de história constitua não a apologia de uma posição política, mas uma representação
intimamente fundada do processo real da revolução. Uma obra de história só responde
plenamente ao seu destino se os acontecimentos se desenvolvem de página a página, no
todo natural da sua necessidade.
É para isso indispensável que intervenha o que se chama a “imparcialidade” do
historiador? Ninguém explicou ainda claramente no que isso deve considerar. Muitas
vezes cita-se um certo aforismo de Clemenceau, dizendo que a revolução deve ser
tomada “em bloco”; o que não é mais do que um subterfúgio espiritual: como se declararia

330
um partidário de um todo que trás em si a divisão? A palavra de Clemenceau foi-lhe
ditada, parcialmente, por uma certa vergonha de antepassados demasiados resolutos,
parcialmente também pelo mal-estar do descendente diante das suas sombras.
Um dos historiadores reaccionários, e, por consequência, bem cotados, da França
contemporânea, Sr. Louis Madelin, que caluniou tanto, como homem de salão, a grande
Revolução – quer dizer o nascimento da nação francesa – afirma que um historiador deve
subir sobre a muralha da cidade ameaçada e, daí, considerar os cercadores como os
cercados. É somente assim, segundo ele, que se chegaria à “justiça que reconcilia”.
Porém, as obras do sr. Madelin provam que, se ele sobe à muralha que separa os dois
campos, é somente na condição de batedor da reacção. Felizmente, aqui trata-se de
campos de outrora: em tempos de revolução, é extremamente perigoso de se manter nas
muralhas. Aliás, no momento de perigo, os pontífices duma “justiça que reconcilia”
continuam normalmente fechados em casa, esperando para ver que qual lado se decidirá
a vitória.
O leitor sério e dotado de sentido crítico não precisa de uma imparcialidade falaciosa
que lhe estenderia a taça do espírito conciliador, saturada por uma boa dose de veneno,
com sedimento de ódio reaccionário, mas falta-lhe a boa-fé científica que, para exprimir
as sua simpatias, francas, sem mascaras, procura apoiar-se sobre um honesto estudo
dos factos, sobre a demonstração das relações reais entre os factos, sobre a
manifestação de o que tem de racional no desenrolamento dos factos. Aí somente é
possível a objectividade histórica, e ela é então suficiente, porque é verificada e
certificada de outra forma que vai além das boas intenções do historiador – que aliás
garante – mas pela revelação da lei íntima do processo histórico.
As fontes desta obra consistem em numerosas publicações periódicas, jornais e
revistas, memórias, processos verbais e outros documentos, alguns manuscritos, mas a
maior parte publicados pelo Instituto de História da Revolução, em Moscovo e
Leninegrado. Julgámos inútil dar no texto referências que estorvariam o leitor. Entre os
livros de história que têm carácter de estudo de conjunto, utilizámos os dois volumes de
Ensaio sobre a História da Revolução de Outubro (Moscovo-Leninegrado, 1927). Esses
ensaios redigidos por diversos autores não têm todos o mesmo valor, mas contêm, de
qualquer forma, uma documentação abundante sobre os factos.
As datas referidas nesta obra são as do antigo estilo, isto é, elas atrasam 13 dias no
calendário universal, actualmente adoptado pelos sovietes. O autor foi forçado a seguir o
calendário utilizado na época da Revolução. Não seria difícil, na verdade, transpor as
datas no estilo moderno. Mas esta operação, que eliminaria certas dificuldades, criaria
outras mais graves. A queda da monarquia inscreveu-se na História sob o nome de
Revolução de Fevereiro. Porém, segundo o calendário ocidental, o acontecimento teve
lugar em Março. Certa manifestação armada contra a política imperialista do governo
provisório foi marcada na história como “jornadas de Abril”, enquanto, segundo o
calendário ocidental, ela teve lugar em Maio. Não nos detenhamos sobre outros
acontecimentos e datas intermediárias, notemos ainda que a Revolução de Outubro
produziu-se, para a Europa, em Novembro. Como se vê, o próprio calendário tomou a cor

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dos acontecimentos e o historiador não pode desembaraçar-se das efemérides
revolucionárias pela simples operação de aritmética. Queira o leitor lembrar-se que antes
de suprimir o calendário bizantino, a Revolução teve que abolir as instituições o temiam
conservar.
Léon Trotsky
Prinkipo, 14 Novembro 1930

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As «Jornadas de Julho»: a preparação e o início
Em 1915, a guerra tinha custado à Rússia 10 biliões de rublos; em 1916, 19 biliões;
no primeiro semestre de 1917, custava já 10 biliões e 500 milhões. A dívida pública subia,
no início de 1918, a 60 biliões, isto é igualava quase a totalidade da fortuna fortuna
nacional que era avaliada a 70 biliões. O comité executivo central elaborou um projecto de
apelo para um empréstimo de guerra com o nome sedutor de «empréstimo da liberdade»,
enquanto que o governo concluía esta dedução simplista pelo meio de um novo e
formidável empréstimo exterior, não somente ele não podia pagar as encomendas feitas
no estrangeiro, como não podia enfrentar as suas obrigações interiores. O passivo da
balança comercial crescia constantemente. A Entente, evidentemente, dispunha-se a
abandonar definitivamente o rublo à sua própria sorte. No mesmo dia onde o apelo ao
Empréstimo da Liberdade preencheu a primeira página das Izvestia soviéticas, o Vestnik
Pravitelstva (Mensageiro do Governo) anunciou uma brusca queda do curso do rublo. A
impressora das notas de banco já não era suficiente para seguir o ritmo da inflação.
Segundo as velhas e sólidas devisas que tinham guardado algum brilho do antigo poder
de compra, preparavam-se para adoptar as etiquetas ruivas, boas para colar sobre as
garrafas que o público passaria a chamar «Kerensky». E o burguês como o operário, cada
um à sua maneira, davam a esta denominação um nome desdenhoso.
Nas palavras o governo aceitava o programa de uma regulação étatica da economia
geral e criou mesmo com esse fim, nos últimos dias de Junho, órgãos que estorvavam.
Mas a palavra e a acção sob o Regime de Fevereiro, tal como o espírito e a carne de um
cristão devoto, encontravam-se em conflito incessante. Os órgãos de regulação,
seleccionados ao extremo, se preocupavam em proteger os empreendedores contra os
caprichos de um poder governamental vacilante em vez de refrear os interesses privados.
O pessoal administrativo e técnico da indústria diferenciavam-se; as cimeiras, assustadas
pelas tendências igualitárias dos operários, passavam resolutamente para o lado dos
empreendedores. Os operários consideravam com repulsa as encomendas da guerra
cujas fábricas, em desespero, eram asseguradas por um ou dois anos.
Mas os empreendedores, também eles, perdiam gosto por um trabalho produtivo
que prometia mais problems que lucros. A paragem, premeditada pelos patrões, do
funcionamento da empresas tomou um carácter sistemático. A produção metalúrgica foi
reduzida de 40%, o têxtil de 20%. Tudo que era necessário à existência começava a faltar.
Os preços subiam à medida da inflação e da decadência económica. Os operários
batalhavam para estabelecer um controlo sobre o mecanismo administrativo e comercial
que lhe dissimulavam e do qual dependia a sua sorte. O ministro do Trabalho, Skobelev,
em manifestos prolixos pregava aos operários a inadmissibilidade de uma intervenção na
direcção das empresas. No 24 de Junho, as Izvestia anunciaram que se projectava ainda
em fechar um certo número de fábricas. Notícias idênticas vinham da província.
O tráfego dos caminhos de ferro tinha sido mais atingida que a indústria. Metade das
locomotivas tinham necessidade de grandes reparações, uma parte do material rolante
encontrava-se na frente, o combustível faltava. O ministério das Vias e Comunicações

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não conseguia sair dos conflitos com os operários e os empregados dos caminhos de
ferro. O abastecimento tornava-se cada vez mais deficiente. Só restava a Petrogrado
estoques de trigo para quinze ou dez dias; nos outros centros, a coisa não era melhor.
Dado a meia paralisia do material rolante e a ameaça premente de uma greve dos
caminhos de ferro, isso significava que o perigo da fome era constante. Não havia
qualquer perspectiva de abertura. Não era isso que os operários esperavam da revolução.
Na esfera política era ainda pior. A irresolução é o estado mais doloroso da vida dos
governos, das nações, das classes, como na dos indivíduos. A revolução é o meio mais
implacável que há para resolver as questões históricas. As escapatórias, numa revolução,
são políticas ruinosas entre todas.
Um partido revolucionário não deve hesitar como um cirurgião que acaba de meter o
escapelo num corpo doente. Ora, o regime de duplo poder que tinha saído da insurreição
de Fevereiro era a irresolução organizada. Tudo se voltava contra o governo. Os amigos
sob condições tornavam-se adversários, os adversários inimigos, os inimigos armavam-
se. A contra-revolução mobilizava-se abertamente, inspirada pelo comité central do
partido cadete, pelo estado-maior político de todos os que tinham qualquer coisa a perder.
O comité principal da união dos oficiais, no Grande Quartel General, em Mohilev,
representando cerca de mil oficiais descontentes e o soviete da união das tropas
cossacos em Petrogrado constituíam as duas principais alavancas militares da contra-
revolução. A Duma do Estado, apesar da decisão tomada em Junho pelo congresso dos
sovietes, decidiu continuar as suas «sessões privadas». O seu comité provisório cobria
legalmente a actividade contra-revolucionária que financiavam largamente os bancos e as
embaixadas da Entente. Os conciliadores eram ameaçados à direita e à esquerda.
Olhando de um lado e de outro com preocupação, o governo decidiu secretamente atribuir
fundos para a organização de uma contra-espionagem social, isto é, para uma polícia
política secreta.
É pouco mais ou menos na mesma época, no meio de Junho, que o governo fixou
para o dia 27 de Setembro as eleições à assembleia constituinte. A imprensa liberal,
apesar da participação dos cadetes no governo, desenvolvia uma campanha agressiva
contra a data oficialmente fixada, data limite que ninguém defendia seriamente. A própria
imagem de uma assembleia constituinte, tão brilhante nos primeiros dias de Março,
escurecia e cobria-se. Tudo se voltava contra o governo, mesmo as suas raras e
anémicas boas intenções. Foi somente a 30 de Junho que se encontrou a coragem de
suprimir os tutores nobres da aldeia, os zemskie natchalniki (vigilantes chefes das terras)
cujo próprio nome era odiado no país desde do dia onde os tinha instituído Alexandre III.
E esta reforma parcial, forçada e tardia, jogava sobre o governo provisório a marca de
uma humilhante cobardia.
A nobreza, entretanto, remetia-se desses terrores, os proprietários dos bens de raíz
agrupavam-se e tomavam a ofensiva. O comité provisório da Duma reclamou do governo,
no fin de Junho, que tomasse medidas decisivas para proteger os proprietários contra os
camponeses excitados por «elementos criminosos». No primeiro de Julho, teve lugar em
Moscovo o congresso pan-russo dos proprietários latifundiários, maioritariamente

334
composta de nobres. O governo batalhava, esforçando-se hipnotizar por frases ora os
mujiques, ora os proprietários. Mas era sobretudo na frente que as coisas iam mal. A
ofensiva sobre a qual apostava definitivamente o próprio Kerensky pela luta no interior só
acusava os movimentos convulsivos. O soldado não queria continuar a guerra. Os
diplomatas do príncipe Lvov não ousavam mais olhar de frente os diplomatas da Entente.
Havia grande necessidade de empréstimos. Para mostrar força, o governo, impotente e
condenado antecipadamente, liderava a ofensiva contra a Finlândia, realizando-a, como
todos os assuntos mais sujos, pelas mãos dos socialistas.
Ao mesmo tempo, o conflito com a Ucrânia agravava-se e levava à ruptura
declarada. Já longe iam os dias onde Albert Thomas cantava hinos à radiosa revolução e
de Kerensky. No início de Julho, o embaixador da França Paléologue, demasiado
impregnado dos cheiros dos salões rasputinianos, foi substituído pelo «radical» Noulens.
O jornalista Claude Anet fez um relato introdutivo ao novo embaixador sobre Petrogrado.
Em frente da embaixada de França, do outro lado do Neva, encontra-se o bairro de
Vyborg. «É o distrito das grandes fábricas que pertencem inteiramente aos bolcheviques,
Lenine e Trotsky e aí reinam como mestres.» No mesmo distrito encontram-se as
casernas do regimento de metralhadoras, contando cerca de dez mil homens e mais de
mil metralhadoras; nem socialistas-revolucionários, nem os mencheviques não têm
acesso nas casernas do regimento. Os outros regimentos são ou bolcheviques, ou
neutros. «Se Lenine e Trotsky querem tomar Petrogrado, quem os impedirá?» Noulens
escutava com espanto. «Como é que o governo tolera essa situação?» «Mas o que é que
ele pode fazer?» respondeu o jornalista. «É preciso compreender que o governo só tem
força moral, e ainda, parece-me, muito fraca …»
Não encontrando saída, a energia despertada das massas fraccionava-se em
movimentos espontâneos, em actos de partidários, em confiscações arbitrárias. Os
operários, os soldados, os camponeses tentavam resolver parcialmente o que lhes
recusava o poder que eles próprios tinham criado. A irresolução dos dirigentes é o que
debilita mais as massas. Uma espera estéril empurra-os a bater cada vez mais
obstinadamente às portas que não lhes querem abrir, ou leva-os a verdadeiras explosões
de desespero. Já, durante o congresso dos sovietes, quando os provinciais tinham
apenas retido a mão dos seus líderes levantada sobre Petrogrado, os operários e os
soldados tinham suficientemente podido constatar quais eram os sentimentos que lhes
eram dirigidos e as intenções dos dirigentes dos sovietes. Tseretelli depois de Kerensky,
tornou-se o personagem não somente estrangeiro, mas odioso para com a maioria dos
operários e os soldados de Petrogrado. Na periferia da revolução aumentava a influência
dos anarquistas, que desempenhavam o papel principal no seio do comité revolucionário
arbitrariamente criada na mansão de Durnovo. Mas mesmo as camadas mais
disciplinadas da classe operária, mesmo as largas esferas do partido bolchevique,
começavam a perder paciência ou então a dar ouvidos aos impacientes. A manifestação
do 18 de Junho mostrou a todos que o governo não tinha nenhum apoio. «O que é que
eles esperam, esses de cima?» perguntavam os soldados e os operários pensando não
somente nos líderes conciliadores, mas também às instituições dirigentes bolcheviques.

335
A luta pelos salários, por causa da inflação dos preços, enervava e extenuava os
operários, no decurso de Junho, na fábrica gigante de Potilov, onde trabalhavam trinta e
seis mil homens. No dia 21 de Junho, em várias oficinas da fábrica, rebentou uma greve.
A esterilidade dessas explosões parciais era demasiado clara para o partido. No dia
seguinte, a reunião dirigida pelos bolcheviques, representantes das principais
organizações operárias e de setenta fábricas, declarou que «o assunto dos trabalhadores
de Potilov era a causa de todo o proletariado de Petrogrado» e convidou os trabalhadores
de Potilov a «conterem a sua legítima indignação». A greve foi adiada. Todavia os doze
dias seguintes não trouxeram qualquer mudança. A massa operária das fábricas estava
em ebulição profunda, procurando uma saída. Em cada companhia, havia um conflito, e
todos esses conflitos dirigiam para cima, para o governo. Um relatório do sindicato dos
mecânicos ferroviários (brigadas ligadas às locomotivas), dirigido ao ministro das Vias e
Comunicações, dizendo: «Pela última vez, declaramos que toda a paciência tem limites.
Não temos mais força para viver numa situação como esta … » Era uma queixa sobre
não somente a miséria e a fome, mas também sobre a duplicidade, a falta de carácter, a
impostura. A memória protestava com uma particular indignação contra «os incessantes
apelos ao dever cívico e à abstinência das barrigas vazias».
Em Março, o poder tinha sido entregue ao governo provisório pelo comité executivo
sob a condition que as tropas revolucionárias não seriam evacuadas da capital. Mas
nesses dias já estavam longe. A guarnição tinha evoluído para a esquerda – os círculos
dirigentes do soviete para a direita. A luta contra a guarnição estava constantemente na
ordem do dia. Se os contingentes não estavam na sua totalidade afastados da capital, os
mais revolucionários, sob pretexto de necessidade estratégica, estavam sistematicamente
enfraquecidos pelas extracções de companhias destinadas à frente. Rumores constantes
de mudanças as unidades na frente, por insubmissão, pela recusa de executar as ordens
de combate, chegavam à capital. Duas divisões da Sibéria – outrora ainda consideradas
os caçadores siberianos não eram considerados como os melhores? - foram dissolvidas,
com o emprego da força armada. Só no caso da 5º exército, o mais próximo da capital,
que tinha recusado em massa em obedecer às ordens de combate, foram acusados 87
oficiais e 12.725 soldados. A guarnição de Petrogrado, acumulador do descontentamento
da frente, da aldeia, bairros operários e das casernas, não parava de se agitar.
Os quarentões barbudos pediam com insistência extrema para regressar a casa
para os trabalhos do campo. Os regimentos aquartelados no bairro de Vyborg, o 1º de
metralhadora, o 1º de granadeiros, o regimente moscovita, o 180º de infantaria e outros,
se encontravam constantemente sob a pressão escaldante do meio proletário. Milhares
de operários, passavam diante das casernas, entre os quais um grande número de
agitadores infatigáveis do bolchevismo. Sob as muralhas sujas, que se tornaram odiosas,
improvisavam comícios quase continuamente. No 22 de Junho, quando as manifestações
patrióticas provocadas pela ofensiva ainda não se tinham esgotado, um automóvel do
comité central teve a imprudência de atravessar a avenida Sampsonievsky, exibindo
cartazes: «Avante com Kerensky!» O regimento moscovita prendeu os agitadores, rasgou
seus cartazes e enviou o carro dos patriotas ao regimento dos metralhadores.

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Os soldados eram em geral mais impacientes que os operários; primeiro porque eles
estavam sob a ameaça directa de serem enviados para a frente, depois porque eles
tinham mais dificuldades em assimilar os motivos da estratégia política. Além disso, cada
um deles tinha uma espingarda à mão, e, depois de Fevereiro, o soldado tendia a
sobrestimar o poder específico desta arma. Um velho operário bolchevique, Lizdine,
contou mais tarde como os soldaos do 180º regimento de reserva lhe tinha falado:
«Então? Eles adormecem, os nossos, lá em baixo no palácio de Kczensinska? Vamos
expulsar Kerensky! … »
Nas reuniões dos regimentos, moções eram constantemente votadas sobre a
necessidade de agir enfim contra o governo. Delegações de certas fábricas apresentava-
se nas casernas perguntando aos soldados se eles saíam à rua. Os metralhadores
enviavam seus representantes a outras unidades da guarnição, convidando-os a se
insurgirem contra o prolongamento da guerra. Certos delegados, mais impacientes,
acrescentavam: o regimento Pavlovsky, o regimento moscovita e quarenta mil operários
de Potilov caminharão «amanhã». As repreensões oficiais do comité executivo não
tiveram efeito. Cada vez mais precisa-se o perigo de ver Petrogrado, não apoiado pela
frente e a província a ser derrotada aos poucos.
No dia 21 de Junho, Lenine, na Pravda, convidava os operários e os soldados de
Petrogrado a esperarem pelo dia onde os acontecimentos levariam à causa da capital as
grandes reservas. «Nós compreendemos a amargura, compreendemos a efervescência
dos operários de Petersburgo. Mas dizemos-lhes: camaradas, uma acção directa não
seria racional por agora.» No dia seguinte, uma conferência privada de bolcheviques
dirigentes, que se mantinham aparentemente «mais à esquerda» que Lenine, concluíram
que, apesar do estado de espírito dos soldados e das massas operárias, ainda não se
poderia aceitar a batalha: «Melhor vale esperar que os partidos governantes sejam
definitivamente cobertos de vergonha por um principio de ofensiva. Teremos então ganho
a aposta.» É o que diz Latzis, organizador de distrito, um dos mais impacientes nesses
dias. O comité vê-se cada vez mais forçado a enviar agitadores às casernas e às
empresas para evitar uma acção prematura.
Agitando a cabeça, confusos, os bolcheviques de Vyborg queixavam-se entre eles:
«Nós devemos servir de lanças de bombeiros.» Todavia, os apelos para sair à rua não
param, cada dia ouve quem provocasse. A organização militar dos bolcheviques viu-se
obrigada a dirigir aos soldados e aos operários um manifesto: «Não acreditem em
nenhum apelo para sair à rua lançado em nome da organização militar. A organização
militar não os chama para manifestar.» E mais longe, com maior insistência: «Peçam a
todo agitador ou orador que vos convidem a agir em nome da organização militar um
certificado assinado pelo presidente e o secretário.»
Na famosa praça da Tinta, em Cronstadt, onde os anarquistas levantam cada vez
mais ousadamente a voz, preparam ultimato atrás de ultimato. No 23 de Junho,
delegados da praça da Tinta, sem o acordo do soviete de Cronstadt, exigiam do ministério
da Justiça o alargamento de um grupo de anarquistas peterburgueses, sob a ameaça de
uma acção dos marinheiros que atacariam a prisão. No dia seguinte, representantes de

337
Oranienbaum declararam ao ministro da Justiça que a guarnição estava, ela também,
emocionada pelas prisões efectuadas e agitou-as sob o nariz dos seus aliados
conciliadores. No 26 de Junho chegaram da frente ao respectivo batalhão de reserva
delegados do regimento de granadeiros da Guarda, com esta declaração; o regimento
está contra o governo provisório e exige que o poder passe aos sovietes; o regimento
recusa participar na ofensiva iniciada por Kerensky; ele questiona-se com inquietação se
o comité executivo, com os ministros socialistas, não tomou partido pelos burgueses. O
órgão do comité executivo publicou nesta visita, um relatório de críticas.
A ebulição era grande, não somente em Cronstadt, mas em toda a frota do mar
Báltico cuja principal base era em Helsingfors. O agente mais activo dos bolcheviques na
frota era incontestavelmente Antonov-Ovseenko que, já como jovem oficial, tinha
participado no levantamento de Sebastopol em 1905; menchevique durante os anos da
reacção, emigrado internacionalista durante os anos da guerra, colaborador de Trotsky na
publicação em Paris do jornal Nache Slovo (Nossa Palavra), juntou-se aos bolcheviques
após o seu regresso da emigração. Pouco firme na política, mas pessoalmente corajoso,
impulsivo, desordenado, mas com capacidade de iniciativa e de improvisação, Antonov-
Ovseenko, ainda pouco conhecido nesse período, tomou no seguimento dos
acontecimentos da revolução um lugar que estava longe de ser o último. «Em Helsingfors,
no comité do partido – conta ele nas suas Memórias – compreendíamos a necessidade de
ter paciência e de nos preparar seriamente. Tínhamos também instruções nesse sentido
do comité central. Mas tínhamos perfeita consciência da inevitabilidade de uma explosão
e olhávamos com ansiedade do lado de Petersburgo.»
Ora, desse lado, os elementos explosivos acumularam-se dia a dia. No segundo
regimento de metralhadoras, mais atrasado que o primeiro, votou uma resolução sobre a
transmissão do poder aos sovietes. O terceiro regimento de infantaria recusou deixar
partir para a frente quatorze companhias designadas. As reuniões nos quartéis tomava
uma feição cada vez mais tempestiva. Um comício no regimento dos granadeiros, no
primeiro de Julho, deu lugar à prisão do presidente do comité e à obstrução em relação
aos oradores mencheviques: Abaixo a ofensiva! Abaixo Kerensky! No próprio centro da
guarnição estavam os metralhadoras que abriam as comportas da torrente de Julho.
O nome do primeiro regimento de metralhadoras já nos caiu sob os olhos no decurso
dos acontecimentos dos primeiros meses da revolução. Chegado logo após a insurreição,
por sua própria iniciativa, de Oranienbaum em Petrogrado, «para a defesa da revolução»,
esse regimento tornou a encontrar imediatamente a resistência do comité executivo, o
qual tomou a seguinte decisão: agradecer o regimento e enviá-lo a Oranienbaum. Os
metralhadores recusaram redondamente abandonar a capital: «Os contra-revolucionários
podem cair em cima do soviete e restabelecer o antigo regime.» O comité executivo
cedeu e vários milhares de metralhadores ficaram em Petrogrado com as metralhadoras.
Tendo-se instalados na Casa do Povo, eles sabiam o que viria deles. No seu meio, porém,
havia um bom número de operários de Petrogrado, e não é por acaso que o comité dos
bolcheviques se encarregou de ocupar-se das metralhadoras. A sua intervenção
assegurou-lhes um abastecimento colhido na fortaleza Pedro e Paulo. A amizade estava
selada. Brevemente ela tornou-se indefectível.

338
No 21 de Junho, os metralhadores tomaram, em assembleia geral, a decisão
seguinte: «No seguimento, não enviar efectivos para a frente só no caso onde a guerra
teria um carácter revolucionário.» No dia 2 de Julho, o regimento organizou na Casa do
Povo um comício de adeus para a «última» companhia enviada para a frente. Lutcharsky
e Trotsky aí tomaram a palavra: as autoridades tentaram mais tarde atribuir a este
incidente uma importância excepcional. Em nome do regimento responderam o soldado
Jiline e um velho bolchevique, o sargento Lachevitch. A sobreexcitação era grande,
estigmatizaram Kerensky, juraram fidelidade à revolução, mas ninguém não propôs
resoluções práticas para o futuro mais próximo. Todavia, depois de vários dias, na cidade,
esperavam com tenacidade os acontecimentos. As «Jornadas de Julho»
antecipadamente, projectavam a sua sombra. «De todas as partes, de todo o sítio –
escreve Sokhanov nas suas Memórias – no soviete, no palácio Maria, na casa do
habitante, nas praças e avenidas, nos quartéis e nas fábricas, falava-se de certas
manifestações a prever de um dia ao outro … Ninguém sabia exactamente quem devia
manifestar, como e onde. Mas a cidade sentia-se na véspera de qualquer explosão.» E a
manifestação efectivamente rebentou. O impulso veio de cima, das esferas dirigentes.
No mesmo dia onde Trotsky e Lunatcharsky falavam, entre os metralhadores, da
incapacidade da coligação, quatro ministros cadetes, faziam saltar esta coligação,
deixaram o governo. Como pretexto, eles escolheram o facto inaceitável, para eles, pela
razão das suas pretensões em jogar um papel de grande força, de compromisso pelo qual
seus colegas conciliadores tinham tratado com a Ucrânia. A verdadeira causa desta
ruptura demonstrativa era nisto que os conciliadores tardavam a refrear as massas. A
escolha do momento foi sugerida pelo fracasso da ofensiva, ainda não confessada
oficialmente, mas já não fazia dúvida para os iniciados. Os liberais julgaram oportuno
deixar seus aliados de esquerda frente a frente com a derrota e com os bolcheviques. O
rumor da demissão dos cadetes propagou-se imediatamente na capital e favoreceu a
generalização política de todos os conflitos em curso numa palavra de ordem, mais
exactamente num grito de desespero: era preciso acabar com todas as chinesices da
coligação!
Os soldados e os operários consideravam que a solução dada ao problema do
poder, segundo que o país seria governado pela burguesia ou pelos seus próprios
sovietes, todas as outras questões dependiam: salários, preço de pão, obrigação de se
matar na frente para os fins ignorados, havia nessas expectativas uma certa dose de
ilusão, na medida onde as massas esperavam vir, para uma mudança de poder, à solução
imediata de todos os problemas angustiantes. Mas, no fim de contas, elas tinham razão: a
questão do poder determinava a direcção de toda a revolução e a seguir, fixava a sorte de
cada um em particular. Supor que os cadetes não podiam prever as repercussões dos
seus actos de sabotagem declarada em relação aos sovietes, seria resolutamente
subestimar Miliokov. O líder do liberalismo esforçava-se evidentemente em arrastar os
conciliadores para uma situação crítica que não teria saída senão através pelo emprego
das baionetas: nesses dias, ele acreditava firmemente que por uma ousada sangria,
podia-se salvar a situação.

339
No 3 de Julho, logo pela manhã, vários milhares de metralhadores, interrompendo
bruscamente uma reunião dos comités das suas companhias e do regimento, elegeram
um presidente entre os seus e exigiram que se discutisse imediatamente uma
manifestação armada. O comício tomou logo uma direcção tumultuosa. A questão da
partida para a frente cruzava-se com a crise governamental. O presidente da assembleia,
o bolchevique Golovine, tentou travar, propondo um acordo prévio com as outras
unidades do exército e com a organização militar. Mas toda alusão a um adiamento
enfurecia os soldados. Na reunião surgiu o anarquista Bleichmann, pequena personagem,
mas muito colorido no ambiente de 1917. Possuindo uma modesta bagagem de ideias,
mas um faro certo diante das massas, sincero no seu espírito limitado, mas sempre
inflamado, a camisa desabotoada no peito, a cabeleira hirsuta e de caracóis, Bleichmann
encontrava nos comícios um bom número de simpatias meio irónicas. Os operários
consideravam-no, na verdade, com reserva, com uma certa impaciência – sobretudo os
metalúrgicos. Mas os soldados sorriam alegremente com os seus discursos, trocando
entre eles cotoveladas e distraindo o orador com palavras picantes: eles estavam
evidentemente dispostos em seu favor pela aparência excêntrica, pelo seu tom resoluto
de homem que pensa pouco, pelo seu acento judeu-americano, mordente como o
vinagre.
No fim de Junho, Bleichmann nadava em toda a especie de comícios improvisados
como um peixe na água. Ele tomava sempre a mesma decisão: sair, com as armas na
mão. A organização? «é a rua que nos organizará». A tarefa? «Derrubar o governo
provisório como se derrubou o czar», ainda se nem um só partido tenha apelado nesse
sentido. Discursos desse género correspondiam no melhor dos casos, pelo momento, às
disposições dos metralhadores e não somente a estes últimos. Numerosos eram os
bolcheviques que não escondiam a sua satisfação em ver a base passar para além das
advertências oficiais. Os operários da vanguarda lembravam-se que em Fevereiro os
dirigentes tinham-se preparado para dar o sinal de retirada logo na véspera da vitória; que
em Março, o dia de oito horas tinha sido conquistada pela iniciativa da base; que em Abril,
Miliokov tinha sido derrubado pelos regimentos espontâneos saídos à rua. A lembrança
desses factos ia diante da opinião das massas, tensa e impaciente.
A organização militar dos bolcheviques, imediatamente informada da efervescência
que reinava no comício dos metralhadores, enviou à reunião, uns depois de outros,
agitadores. Logo chegou Nevsky em pessoa, dirigente da organização militar, que os
soldados estimavam muito. Parece que ele foi ouvido. Mas, como o comício se
prolongava interminavelmente, as disposições do auditório mudavam, tal como a sua
composição. «Foi par nós uma grande surpresa – conta Podvoisky, outro dirigente da
organização militar – quando, às sete horas da noite, chegou a galope um estafeta para
nos anunciar que … os metralhadores tinham de novo decidido manifestarem-se.» No
lugar do antigo comité do regimento, eles tinham elegido um comité revolucionário
provisório contando dois homens por companhia, sob a presidência do alferes Semachko.
Delegados especialmente designados faziam já a volta dos regimentos e das fábricas
para pedir-lhes apoio. Os metralhadores não esqueceram, bem entendido, enviar também
emissários a Cronstadt.

340
Assim, por baixo das organizações oficiais, parcialmente sob a sua cobertura,
tendiam-se novos laços temporarios entre os regimentos e as fábricas mais exasperados.
As massas não tinham a intenção de romper com os sovietes, pelo contrários elas
queriam dar uma ajuda, ameaçar o comité executivo, empurrar para a frente os
bolcheviques. Improvisaram-se delegações, criaram-se novos pontos de ligação e centros
de acção, não permanentes, mas adaptados ao caso presente. As circunstâncias e os
estados de opinião modificavam-se rápidamente e bruscamente que mesmo uma
organização das mais ligeiras, tal como os sovietes, atrasa inevitavelmente e que as
massas são cada vez obrigadas a criar órgãos auxiliares para as necessidades do
momento.
Tais improvisações surgem por surpresa, bastantes vezes, elementos de acaso e
nem sempre muito seguros. Os anarquistas deitam óleo sobre o fogo, mas muitos novos
aderentes do bolchevismo, igualmente impacientes, fazem como eles. Sem dúvida
incorporam-se no assunto provocadores, talvez agentes da Alemanha, mas, seguramente
agentes da contra-espionagem da reacção russa. Como resolver o tecido complexo dos
movimentos de massa, fio por fio? O carácter geral dos acontecimentos determina-se no
entanto com toda a clareza. Petrogrado sentia a sua força, tomava o seu jeito sem olhar
para trás nem para a província, nem sobre a frente, e o próprio partido bolchevique era
incapaz de moderar a capital. Aqui, só a experiência podia ajudar.
Ao apelar aos regimentos e aos operários a descer à rua, os delegados dos
metralhadores não esqueceram de acrescentar que a manifestação devia ser armada.
Sim, e como fazer de outra forma? Mesmo assim não nos expomos sem armas aos
golpes dos adversários. Além disso, e isto é provavelmente o essencial, é preciso mostrar
força; ora, um soldado que não tem a sua arma não é uma força. Mas, sob este aspecto
ainda, todos os regimentos e todas as fábricas eram da mesma opinião: se
manifestamos, só podia ser com uma provisão de chumbo.
Os metralhadores não perdiam tempo: tendo comprometido uma grande parte, eles
deviam levá-la até ao fim o mais depressa possível. Os processos verbais da instrução
caracterizavam mais tarde os actos do alferes Semachko, um dos principais dirigentes do
regimento, nestes termos: « … Ele pediu automóveis às fábricas, armou as viaturas com
metralhadoras, enviou-as ao palácio Tauride e noutros sítios, fixando os itinerários; fez
sair pessoalmente o regimento do quartel para o levar à cidade, foi ao batalhão de reserva
do regimento moscovita com o objectivo de determinar a manifestação, ao que ele
consegui; prometeu aos soldados do regimento de metralhadores o apoio dos regimentos
da organização militar, e continuou em constante contacto com esta organização, situada
na casa de Kczensinska, e com o líder dos bolcheviques, Lenine: enviou esquadras para
guardar a sede da dita organização. «A insinuação formulada aqui contra Lenine é
destinada a completar o quadro: Lenine, nem nesse dia nem nos dias precedentes não se
encontrava em Petrogrado: desde do dia 29 de Junho, sofrendo, residia numa mansão em
Finlândia. Mas de resto, o estilo conciso do funcionário da justiça militar traduziu bastante
bem a febre que se tinha apoderado dos metralhadores nos seus preparativos. No pátio
do quartel trabalhava-se com ardor. Aos soldados não armados distribuíram-se
espingardas, a outros granadas, e em cada camião fornecido pelas fábricas, instalou-se

341
três metralhadoras com os seus servidores. O regimento devia sair à rua em ordem de
batalha.
Nas fábricas, passava-se pouco mais ou menos a mesma coisa: os delegados
chegavam, seja do quartel dos metralhadores, seja de qualquer fábrica vizinha, e
chamavam à manifestação. Disseram que esperavam há muito tempo: faziam greve
imediatamente. Um operário da fábrica Renault conta: «Depois do pequeno-almoço,
vários metralhadores ocorreram junto de nós e pediram para lhes entregar camiões.
Apesar do protesto da nossa colectividade (bolcheviques), foi preciso dar as viaturas … À
pressa carregaram os camiões com «Maxims» (metralhadoras) e partiram em direcção de
Nevsky. Então, tornou-se impossível reter os nossos operários … Todos, com roupas de
trabalho, abandonaram as máquinas, saíram das oficinas … » Os protestos dos
bolcheviques nas fábricas nem sempre eram, dever-se-ia pensar, muito insistentes. Onde
a luta se prolongava mais, foi nas fábricas Potilov. Cerca das duas da tarde, correu o
rumor nas oficinas que uma delegação de metralhadoras tinha chegado e convocava um
comício. Cerca de dois mil operários juntaram-se diante dos locais da administração.
Aclamados, os metralhadores contaram que tinham recebido ordem de partir no 4 de
Julho para a frente, mas que tinham resolvido «marchar não do lado da frente alemã,
contra o proletariado alemão, mas contra os seus próprios ministros capitalistas». O
estado de espírito aumentou. «Em frente! En frente!» gritavam os operários. O secretário
do comité de fábrica, um bolchevique, levantava objecções, propondo pedir a opinião do
partido. Protestos de todos os lados: «Abaixo! Abaixo!» vocês querem fazer arrastar o
assunto! … Não podemos continuar a viver assim! … » Cerca da seis horas chegaram os
representantes do comité executivo, mas eles não conseguiram influenciar os operários.
O comício continuava, interminável, nervoso, obstinado comício de uma massa de
milhares de homens que procuram uma saída e não admitindo que lhes seja sugerido que
essa saída não exista. Propõem enviar uma delegação ao comité executivo: ainda uma
hesitação. A assembleia continuava em permanência. Entretanto um grupo de operários e
de soldados vem anunciar que o bairro de Vyborg avançou para o palácio de Tauride.
Torna-se impossível obstruir por mais tempo. Decide-ce de avançar. Um certo Efimov
correu para o comité de bairro do partido para perguntar «o que se ia fazer».
Responderam-lhe: «Nós não manifestamos, mas não podemos abandonar os operários à
sua sorte, é por isso que marchamos com eles.» Nesse momento apareceu Tchudine,
membro do comité de bairro, anunciando que, em todos os bairros, os operários metiam-
se em marcha e que os militantes do partido deveriam «manter a ordem». É assim que os
bolcheviques eram levados pelo movimento, ao mesmo tempo que procuram justificar os
seus actos que iam contra a decisão oficial do partido.
A vida industrial da capital, cerca das sete horas da tarde, tinha completamente
parado. Uma após outra, as fábricas sublevavam-se, formavam fileiras, destacamentos de
guardas vermelhos armavam-se. «Numa massa de milhares de operários – conta
Metelev, militante de Vyborg – iam e vinham, batendo com as culatras de suas
espingardas, centenas de jovens guardas. Uns introduziam carregadores nas suas armas,
outros apertavam as correias, outros ainda penduravam aos seus cinturões, sacos a
tiracolo e cartucheiras, ou então metiam as baionetas na ponta da arma, e os operários

342
que não tinham armas ajudando os guardas a equipar-se … » A perspectiva
Sampsonievsky, principal artéria do bairro de Vyborg, estava apinhada de gente. Sobre a
direita e sobre a esquerda, as colunas compactas de trabalhadores. No meio da calçada
desfila o regimento de metralhadores, espinha dorsal do cortejo. À cabeça de cada
companhia, os camiões com as «Maxims». Por detrás do regimento dos metralhadores,
os operários; na retaguarda, cobrindo a manifestação, as unidades do regimento
moscovita. Em cima de cada destacamento, uma bandeira: «Todo o poder aos sovietes!»
O cortejo de funerais de Março ou a manifestação do Primeiro de Maio tinha sido
provavelmente o mais numeroso. Mas o desfile de Julho é incomparavelmente mais
impetuoso, mais ameaçador e … de composição mais homogénea. «Sob as bandeiras
vermelhas marcham os operários e os soldados, escreve um dos participantes. Não se
vêm nem laços de funcionários, nem os brilhantes botões dos estudantes, nem os
chapéus de «senhoras simpáticas» - tudo isso via-se quatro meses antes, em Fevereiro –
mas, no movimento desse dia, nada de igual, hoje marcham somente as sombras do
capital.»
Pelas ruas iam em diversas direcções as viaturas carregadas de operários e de
soldados armados: delegados, agitadores, batedores, homens de ligação, efectivos
encarregados de aliciar os operários e os regimentos. Todos cruzavam a espingarda. Os
camiões, eriçados de baionetas, reproduziam o quadro dos dias de Fevereiro,
electrizavam uns aos outros, aterrorizando os outros. O cadete Nabokov escreve: «São os
mesmos rostos dementes, embrutecidos, bestas, que nós lembramos todos desde dos
dias de Fevereiro», isto é desde dos dias dessa mesma revolução que os liberais tinham
oficialmente chamado gloriosa e não sangrenta. Cerca das nove horas, sete regimentos
dirigiam-se para o palácio de Tauride. A caminho juntaram-se colunas vindas das fábricas
e das novas unidades militares. O movimento do regimento dos metralhadores revelava
uma força formidavelmente contagiosa. As «Jornadas de Julho» abriam-se.
Aqui e ali improvisaram-se comícios. Num lado e outro ouviam-se tiros. Segundo o
operário Korotkov, «sobre a Liteiny, saíram da cave uma metralhadora e um oficial que foi
abatido ali mesmo». Rumors de toda especie iam à frente da manifestação, ela difunde à
volta dela o terror em todas as direcções. Não transmitem somente os telefones dos
bairros do centro, amedrontados! Comunicam que certa das oito horas da noite, uma
viatura chegou a toda a velocidade na gare de Varsóvia procurando, para o prender,
Kerensky que partia justamente nesse dia para a frente; mas era demasiado tarde, o
comboio tinha abalado e a prisão não aconteceu. Este episódio foi mencionado
seguidamente mais de uma vez como prova da conspiração. Quem precisamente se
encontrava no automóvel e que tinha descoberto as misteriosas intenções dos seus
ocupantes? Nunca se soube. Nessa noite, viaturas carregadas de homens armados
corriam em todas as direcções, provavelmente também nos arredores da gare de
Varsóvia. Invectivas cruas em direcção de Kerensky soavam em numerosos sítios. Foi
verosimilmente, a origem da legenda, supondo que ela não tivesse sido totalmente
inventada de uma ponta à outra.
As Izvestia concebiam o esquema seguinte dos acontecimentos do 3 de Julho: «Às
cinco horas da tarde saíram em armas: o primeiro de metralhadoras, um contingente do

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regimento moscovita, um contingente de granadeiros, um contingente também do
regimento Pavlovsky. Eles juntaram-se às massas operárias … Cercadas oito horas da
noite começaram a juntar-se, à volta do palácio Kczesinka, diferentes unidades de
regimentos, armados dos pés à cabeça, com bandeiras vermelhas e cartazes exigindo a
transmissão do poder aos sovietes. Do alto da varanda, discursos foram pronunciados …
Às dez horas e meia, na praça diante do palácio Tauride, teve lugar um comício … As
unidades elegeram uma delegação ao conselho executivo central pan-russo, a qual
formulou em seu nome as reivindicações seguintes: «Abaixo os dez ministros burgueses!
Todo o poder ao soviete! Parai a ofensiva! Confiscação das tipografias dos jornais
burgueses! A nacionalização da terra! Controlo sobre a produção!» Se meter-mos de lado
alguns retoques de interesse secundário: «unidades de regimentos» em vez de massas
de operárias» em vez de «fábricas inteiras», pode-se dizer que o órgão oficioso de
Tseretelli-Dan, no conjunto, não altera em nada o que se passou e, em particular,
assinala exactamente os dois focos da manifestação: o hotel privado de Kczesinska e o
palácio de Tauride. Moralmente e materialmente, o movimento andava à volta desses dois
centros antagónicos: em Kczesinska vêm chercher as indicações, uma direcção, a palavra
inspiradora; no palácio de Tauride vêm formular as reivindicações e mesmo ameaçar a
força que representam.
Às três horas da tarde, diante da conferência geral dos bolcheviques da capital,
reunida nesse dia no hotel de Kczesinka, dois delegados dos metralhadores vieram
comunicar a decisão tomada pelo regimento de manifestar. Ninguém não esperava isso,
ninguém queria isso. Tomsky declarou: «Os regimentos que se meteram em movimento
não agiram como bons camaradas, não tendo convidado o comité do partido a discutir a
questão. O comité central propôs à conferência: 1º publicar um manifesto para contera as
massas; 2º elaborar um carta ao comité executivo, propondo-lhe tomar o poder. Não se
pode falar nesse momento de uma manifestação sem desejar uma nova revolução.»
Tomsky, velho operário bolchevique, tendo marcado a sua fidelidade ao partido pelos
anos de cativeiro, conhecido a seguir como dirigente dos sindicatos, era, pelo seu
carácter, tendia geralmente mais a impedir as manifestações do que a provocá-las. Mas,
desta vez, ele desenvolveu somente o pensamento de Lenine: não se poderia falar por
agora de uma manifestação se desejamos uma nova revolução. Porque, enfim, mesmo a
tentativa de manifestação pacífica do 10 de Junho tinha sido reputada pelos conciliadores
como uma conspiração!
A esmagadora maioria da conferência estava solidária com Tomsky. É preciso a
qualquer preço atrasar a conclusão. A ofensiva sobre a frente mantém em suspenso todo
o país. A derrota também é tão prevista como a intenção do governo em rejeitar a
responsabilidade da derrota sobre os bolcheviques. É preciso dar aos conciliadores o
tempo de se comprometerem definitivamente. Volodarsky respondeu aos metralhadores,
em nome da conferência, no sentido que o regimento devia submeter-se à decisão do
partido. Os metralhadores saíram protestando. Às quatro horas, o comité central confirma
a decisão da conferência. Os seus membros dispersam-se nos distritos e nas fábricas
para impedir a manifestação das massas. Um manifesto no mesmo sentido foi expedido à
Pravda para que ela o imprimisse na primeira página na manhã do dia seguinte. Estaline

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encarregou-se de informar da decisão do partido a assembleia unificada dos comités
executivos. As intenções dos bolcheviques não deixam assim lugar a qualquer dúvida. O
comité executivo dirigiu aos operários e aos soldados um manifesto: «Desconhecidos …
apelam a pegar em armas e descer à rua», certificando assim que o apelo não provinha
de qualquer dos partidos soviéticos. Mas os comités centrais, de partidos e de sovietes,
propunham, enquanto que as massas dispunham.
Cerca das oito horas da noite, o regimento de metralhadores e a seguir o regimento
moscovita aproximaram-se do palácio de Kczesinska. Os bolcheviques populares,
Nevsky, Lachevitch, Podvoisky, tentaram do alto da varanda, mandar os regimentos a
voltar para os quartéis. Responderam-lhe de baixo: «Abaixo!» Da varanda bolcheviques
ainda não tinham ouvido tais gritos vindos dos soldados, e era um sintoma inquietante. Na
retaguarda dos regimentos surgiram diante das fábricas: «Todo o Poder aos sovietes!»
«Abaixo os dez ministros capitalistas!» Eram as palavras de ordem do 18 de Junho. Mas
agora, eles estavam enquadrados por baionetas. A manifestação tornara-se um facto
imponente. Que fazer? Podia-se conceber que os bolcheviques ficariam à parte? Os
membros do comité de Petrogrado, com os delegados da conferência e os representantes
dos regimentos e das fábricas, decidem isto: rever a questão, acabar com as divisões
estéreis, dirigir o movimento que eclodiu no sentido que a crise governamental seria
resolvida no interesse do povo; nesse sentido, convidar os soldados e os operários a
marchar pacificamente para o palácio Tauride, eleger delegados e, por intermédio deles,
formular as suas reivindicações diante do comité executivo. Os membros do comité
central que estão presentes sancionam a modificação da táctica.
A nova decisão, anunciada do alto da varanda, foi acolhida com aclamações e pelo
canto da Marselhesa. O movimento está legalizado pelo partido: os metralhadores podem
respirar aliviados. Uma parte do regimento entra logo na fortaleza Pedro e Paulo para agir
sobre a guarnição e em caso de necessidade, proteger contra uma acção negativa o
palácio Kczesinska que estava separado da fortaleza pelo canal estreito de Kronwerk.
Os destacamentos que estavam à cabeça da manifestação penetraram na Nevsky,
artéria da burguesia, da burocracia e do corpo dos oficiais, como num país estrangeiro.
Os passeios, as janelas, as varandas, milhares de olhares mal-intencionados
espreitavam-os com circunspecção. Tal regimento dirige-se a uma fábrica, tal fábrica para
um regimento. Sem parar chegam novas massas. Todas as bandeiras, ouro sobre fundo
vermelho, clamam pelo mesmo: «Todo o poder aos sovietes!» O desfile ocupa a Nevsky
e, essa corrente irresistível, vaza sobre o palácio de Tauride. Os cartazes: «Abaixo a
guerra!» provocam grande hostilidade entre os oficiais, entre os quais a um grande
número de inválidos. Gesticulam, esgotam-se, o estudante, a estudante, o funcionário
tentam persuadir os soldados que os agentes da Alemanha, que se mantêm detrás das
suas costas, querem dar acesso às tropas de Guilherme para abafar a liberdade. Os
oradores julgam os seus próprios argumentos irresistíveis. «Eles foram enganados pelos
espiões!» dizem os funcionários sobre os operários que respondem com um tom brusco.
«Arrastados por fanáticos!» retomam os mais indulgentes. «Ignorantes!», e sobre esse
ponto, uns e outros estão de acordo.

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Mas os operários têm a sua maneira de medir as coisas, não é entre os espiões
alemãs que eles aprenderam as ideias que os empurram hoje para a rua. As
manifestações afastam sem urbanidade os pregadores importunos e avançam. Isso
exaspera os patriotas da Nevsky. Grupos de choque, comandados maioritariamente por
inválidos e cavaleiros de São Jorge, jogam-se sobre certos destacamentos de
manifestantes para lhes arrancar suas bandeiras. Zaragatas têm lugar aqui e ali. A
atmosfera aquece. Tiros são disparados de um lado e de outro. De uma janela ? Do
palácio Anitchkine? A calçada responde com uma salva para o ar, sem destino. Durante
um certo tempo, toda a rua se agita. Cerca da meia-noite, conta um operário da fábrica
Vulkan, no momento onde passava pela Nevsky o regimento de granadeiros, nas
redondezas da biblioteca pública, um tiroteio começou não se sabe de onde, que durou
alguns minutos. O pânico rebenta. Os operários espalham-se nas ruas adjacentes. Os
soldaos, sob o fogo, deitam-se no chão: não é em vão que um certo número deles tinha
passado pela escola da guerra. Esta Nevsky da meia-noite, onde os granadeiros da
Guarda se tinham deitado de barriga sobre a calçada, sob o tiroteio, dava um espectáculo
fantástico. Nem Puchkine nem Gogol, que celebraram a Nevsky, não a tinham imaginado
assim! Portanto, esta fantasmagoria era uma realidade: sobre a calçada, ficaram mortos e
feridos.
O palácio de Tauride nesse dia vivia particularmente. Os cadetes tendo dado sua
demissão do governo, os dois comités executivos, o dos operários e soldados e o dos
camponeses, discutiam juntos o relatório de Tseretelli sobre a questão de saber como
limpar a pele da coligação sem molhar um pêlo. O segredo desta operação tinha sido
provavelmente descoberto enfim se não houvesse impedimentos do lado dos turbulentos
arrabaldes. As comunicações telefónicas, anunciando o início da marcha do regimento
dos metralhadores, que se prepara, suscitam as caretas de cólera de contrariedade dos
dirigentes. É possível que os soldados e os operários na sejam capazes de esperar que
os jornais lhes traga uma decisão saudável? A maioria olha os bolcheviques de soslaio.
Mas a manifestação era, desta vez, igualmente imprevista para estes últimos. Kamenev e
outros representantes do partido, que estão lá, concordam em ir, depois da sessão do dia,
nas fábricas e nos quartéis para conter as massas. Mais tarde, esse gesto foi interpretado
pelos conciliadores como um estratagema. Os comités executivos adoptam urgentemente
um manifesto declarando como habitualmente que todas as manifestações traíam a
revolução. Mas, portanto, como sair da crise do poder? A saída é encontrada: manter o
governo troncado tal que ele é, adiando o exame da questão no conjunto até à
convocação dos membros provinciais do comité executivo. Adiar, ganhar tempo, para sair
da hesitação, não é a mais douta de todas as políticas?
É somente na luta contra as massas que os conciliadores julgavam inadmissível
perder tempo. O aparelho oficial preparou-se imediatamente contra a insurreição – porque
é assim que a manifestação foi nomeada desde do início. Os líderes procuravam por todo
o lado uma força armada para a protecção do governo e do comité executivo. Sob as
assinaturas de Tchkheidze e de outros membros do órgão máximo foram enviados, a
diversas instituições militares, advertências de enviar ao palácio Tauride viaturas
blindadas, canhões de três polegadas, munições. Ao mesmo tempo, quase todos os

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regimentos receberam ordem de enviar destacamentos armados para a defesa do
palácio. Mas não ficaram por aí. O gabinete apressou-se, no próprio dia, em telegrafar à
frente, ao Vº exército, o mais próximo da capital, a imposição de «enviar a Petrogrado
uma divisão de cavalaria, uma brigada de infantaria e carros blindados». O menchevique
Voitinsky, que tinha sido encarregado de segurança do comité executivo, declarou
redondamente, mais tarde, numa declaração retrospectiva: «Todo o dia do 3 de Julho foi
empregue a juntar a tropa para fortificar o palácio Tauride … Nossa tarefa era reunir pelo
menos algumas companhias … Durante um momento as forças nos faltaram
completamente. À entrada do palácio Tauride, havia um posto de seis homens que não
estavam em condições de conter a multidão … » Depois retoma: «No primeiro dia da
manifestação, tínhamos à nossa disposição somente cem homens, não tínhamos outras
forças. Expedimos comissários a todos os regimentos, rogando-lhes para nos darem
soldados para fazerem a guarda … Mas cada regimento voltava a cara para um lado e
outro para ver como ele se comportava. Era preciso a todo o preço acabar com esse
escândalo, e nós chamámos tropas da frente.» Seria difícil, mesmo intencionalmente,
inventar uma sátira maldosa contra os conciliadores. Centenas de milhares de
manifestantes exigem que o poder passe para os sovietes. Tchkheidze, colocado à
cabeça dos sovietes e, seguidamente candidato ao papel de primeiro-ministro, procura
uma força armada contra os manifestantes. O movimento grandioso para o poder da
democracia declarou pelos seus líderes um ataque de bandos armados contra
democracia.
No mesmo palácio de Tauride juntou-se após uma longa inter-sessão, a secção
operária do soviete que, durante os dois últimos meses, por eleições parciais nas fábricas,
tinha podido renovar o seu efectivo que o comité executivo, com razão, teimava ver aí a
predominancia dos bolcheviques. Artificialmente atrasada, a reunião da secção, fixada
enfim pelos próprios conciliadores alguns dias antes, coincidia por acaso com a
manifestação armada: os jornais viram aí a mão dos bolcheviques. Zinoviev desenvolveu
de uma maneira convincente no seu relatório à secção esta ideia que os conciliadores,
aliados da burguesia, não queriam e não podiam lutar com a contra-revolução, porque,
sob esse nome, eles incluíam diversas manifestações da brutalidade dos Cem Negros,
mas não o reforço político das classes possuidoras visando esmagar os sovietes como
centro de resistência dos trabalhadores.
O relatório caía mesmo bem. Os mencheviques, sentindo-se pela primeira vez, sobre
o terreno soviético, em minoria, propunham não tomar qualquer decisão, mas repartir nos
bairros para manter a ordem. Portanto, é demasiado tarde! O anúncio da chegada diante
do palácio de Tauride de operários armados e de metralhadores causa a maior
sobreexcitação na sala. Na tribuna levantou-se Kamenev. « Não apelámos a qualquer
manifestação, disse ele, mas as massas populares saíram por sua própria iniciativa … E
no momento que as massas saíram, nosso lugar é no meio delas … Nossa tarefa, agora,
é dar ao movimento um carácter organizado.»
Kamenev termina em propondo a eleição de uma comissão de vinte e cinco pessoas
para dirigir o movimento. Trotsky apoiou esta proposição. Tchkheidze teme a comissão
bolchevique e insiste em vão para que a questão seja transmitida ao comité executivo. Os

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debates ganham um carácter tumultuoso. Tendo-se definitivamente convencido que não
constituíam a maioria da assembleia, os mencheviques e os socialistas-revolucionários
abandonam a sala.
Isso torna-se, em geral, a táctica favorita dos democratas: eles começam a boicotar
os sovietes a partir do momento onde eles perdem aí a maioria. A resolução apelando o
comité executivo central a tomar o poder é adoptada por duzentos e setenta e seis votos,
na ausência da oposição. Por instante, procede-ce à eleição de quinze membros da
comissão: dez lugares são deixados à minoria; eles ficarão desocupados. O facto da
eleição da comissão bolchevique significou para os amigos e inimigos que a secção
operária do soviete de Petrogrado tornou-se então a base do bolchevismo. Um grande
passo em frente! Em Abril, a influência dos bolcheviques estendia-se pouco mais ou
menos sobre um terço dos operários de Petrogrado; no soviete, eles ocupavam nesses
dias um sector completamente insignificante. Agora, no início de Julho, os bolcheviques
davam à secção operária cerca de dois terços dos delegados: isso significa que, nas
massas, a influência deles tornara-se decisiva.
Nas ruas perto do palácio de Tauride, com bandeiras, cantos, música, convergem
colunas de operários, operárias, soldados. E chega a artilharia ligeira cujo comandante
suscita o entusiasmo ao anunciar que todas as baterias da sua divisão estão com a causa
dos operários. A grande rua e a praça diante do palácio de Tauride estão cheias de gente.
Todos tentam chegar junto da tribuna, diante da entrada principal do palácio. Tchkheidze
apresenta-se aos manifestantes, com um ar deprimido de um homem que acabam de
incomodar inutilmente das suas ocupações. O popular presidente do soviete é acolhido
por um silêncio malevolente. A voz cansada e rouca de Tchkheidze repte lugares comuns,
velhas lengalengas. Voitinsky, que vem ajudar-lhe, também é mal recebido. «Por sua vez
Trotsky – segundo Miliokov – tendo declarado que o momento tinha chegado para que o
poder passasse para os sovietes, foi acolhido por ruidosos aplausos …» Esta frase é,
intencionalmente, equivoca. Nenhum bolchevique não tinha dito que o «momento tinha
chegado». Um serralheiro da pequena fábrica Duflon, do bairro dito de Petrogrado, contou
que o que se passou no comício junto às paredes do palácio de Tauride: «Lembro-me do
discurso de Trotsky que dizia que o tempo ainda não tinha chegado para tomar o poder.»
O serralheiro reproduz o sentido do discurso mais exactamente que o professor de
História. Dos lábios dos oradores bolcheviques, os manifestantes souberam que a vitória
obtida recentemente na secção operária, e isso lhes dava uma satisfação palpável, como
uma introdução na época do poder soviético.
A sessão comum dos comités executivos reabriu pouco antes da meia-noite:
entretanto, os granadeiros colavam-se em posição de combate sobre a Nevsky. Sob
proposição de Dan, decidiu-se que só podem ficar na assembleia os que comprometem
antecipadamente defender e executar as decisões adoptadas. Nova maneira de falar!
Nesse parlamento de operários e de soldados, como os mencheviques designavam o
soviete, eles tentavam transformar num órgão administrativo da maioria conciliadora.
Quando ficarem em minoria – só há dois messes de espera – os conciliadores defenderão
apaixonadamente a democracia soviética. Mas hoje, como em geral, a democracia foi
banida. Um certo número de delegados inter-distritos deixaram a sessão protestando; os

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bolcheviques estavam ausentes: eles discutiam no palácio Kczensinska a conduta a
adoptar no dia seguinte. A sessão perseguindo-se, os delegados inter-distritos
apresentam-se na sala para declarar que ninguém não pode retirar-lhes um mandato que
eles obtiveram dos eleitores. A maioria mantém-se calada e a moção de Dan é esquecida
sem que alguém se dê conta. A sessão arrasta-se como uma agonia. Uma voz
discordante, os conciliadores procuram provar uns aos outros que têm razão. Tseretelli,
como ministro dos Correios, queixa-se do pessoal: «Só agora acabei de saber sobre a
greve dos correios … No que diz respeito às reivindicações políticas, a palavra de ordem
deles é a mesma: todo o poder aos sovietes!» …
Os delegados dos manifestantes que cercavam o palácio de Tauride por todos os
lados exigiram a sua demissão na sessão. Deixaram-nos entrar com preocupação e
hostilidade. Ora, os delegados acreditavam sinceramente que os conciliadores não
poderiam, desta vez, evitar de ir ao seu encontro. Porque, nesse dia, os jornais dos
mencheviques e dos socialistas-revolucionários, excitados pela demissão dos cadetes,
denunciam eles próprios as intrigas e a sabotagem dos seus aliados burgueses. Além
disso, a secção operária tinha-se pronunciado pelo poder dos sovietes. Que esperar
ainda? Mas os apelos entusiasmados, nos quais a indignação mantém ainda um sopro
de esperança, caem, impotentes e impertinentes, no marasmo do parlamento conciliador.
Os líderes estão preocupados só com uma coisa: como eliminar os intrusos?
Convidam estes últimos a subir às galerias: mandá-los para a rua, para os manifestantes,
seria de uma grande imprudência. Da varanda, os metralhadores ouviram com
estupefacção os debates que se desenvolviam, cujo objectivo era ganhar tempo: os
conciliadores esperavam dos regimentos de confiança. «Nas ruas, há um povo
revolucionário – declarou Dan – mas esse povo entrega-se à acção contra-revolucionária
… » Dan é apoiado por Abromovitch, um dos líderes do Bund judeu, igualmente
conservador, cujos instintos são ofendidos pela revolução. «Somos testemunhas de uma
conspiração», afirma ele, contra qualquer prova; e convida os bolcheviques a declarar
francamente que «é a obra deles». Tseretelli aprofundou o problema: «Descer à rua com
esta reivindicação: todo o poder aos sovietes, significa isso apoiar os sovietes? Se os
sovietes o desejam o poder poderia ser-lhe transmitido, não há qualquer obstáculo de
qualquer lado, à vontade dos sovietes … Tais manifestações não vão no sentido da
revolução, mas no sentido da contra-revolução.» Os delegados operários não
compreendem esse raciocínio. Parecia-lhes que os grandes líderes desesperavam. No
fim de contas, a assembleia, mais uma vez, confirma, à quase unanimidade, contre onze
votos, que a manifestação armada é um golpe dado nas costas do exército revolucionário,
etc. A sessão terminou às cinco horas da manhã.
As massas, pouco a pouco, voltavam para os seus bairros. As viaturas armadas
corriam toda a noite, agora a ligação entre os regimentos, as fábrica, os centros de
distrito. Assim como no fim de Fevereiro, as massas faziam, à noite, o balanço da batalha
desenrolada durante o dia. Mas agora elas fazem isso com a participação de um sistema
complexo de organizações: as das fábricas, do partido, das tropas, que conferiam em
permanência. Nos distritos julgava-se coisa adquirida que o movimento não podia parar a
meio do caminho. O comité executivo tinha adiado a sua decisão sobre o poder. As

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massas interpretaram isso como hesitações. A dedução era clara; era preciso ainda
pressionar. A sessão da noite dos bolcheviques e dos delegados inter-distritos, que teve
lugar no palácio de Tauride paralelamente com a sessão dos comités executivos, resumia
assim os resultados do dia e tentava prever o que aconteceria no dia seguinte. Os
relatórios dos distritos testemunhavam que a manifestação do dia tinha somente agitado
as massas, colocando diante delas pela primeira vez com toda intensidade a questão do
poder. Amanhã, as fábricas e os regimentos exigem uma resposta, e nenhuma força não
os limitará aos arrabaldes. Os debates tratarão não sobre a questão de saber se se
chamará ou não à tomada do poder, como afirmaram mais tarde os adversários, mas se
tentassem liquidar a manifestação ou se tomassem a cabeça no dia seguinte pela manhã.
Já tarde, à noite, cerca das quatro horas, diante do palácio de Tauride se juntou a
fábrica de Potilov, uma massa de trinta mil pessoas, entre as quais estavam numerosas
mulheres e crianças. O cortejo iniciou sua marcha cerca das onze da noite, e, a caminho,
juntaram-se outras fábricas. Às portas da Narva, já em hora avançada, havia tanta gente
que ninguém parecia ficar no bairro. Mulheres gritavam: «Todos devem ir … Nós
guardamos as casas … » Após o toque do sino da igreja do Salvador (Spass), tiros foram
ouvidos, como sendo de metralhadores. Em baixo, uma salva fois dirigida ao sino.
«Diante de Gostiny Dvor (Galeria dos comerciantes), uma banda de junkeres e
estudantes caiu sobre os manifestantes e arrancou-lhes um cartaz. Os operários
resistiram, houve empurrões, alguém disparou, o autor destas linhas foi agredido na
cabeça e brutalmente pisado nas costelas e peito.» É o que conta o operário Efimov.
Tendo atravessado toda a cidade, já muda, os operários de Potilov chegaram enfim ao
palácio de Tauride. Graças à rápida intervenção de Riazanov, que estava, nesse
momento lá, estreitamente ligado aos sindicatos, uma delegação de fábrica foi admitida
nos comités executivos. A massa operária, esfomeada e extenuada, estendeu-se na rua e
no jardim, a maior parte dos manifestantes estenderam-se logo ali esperando uma
resposta. A fábrica Potilov, deitada no chão às três horas da manhã à volta do palácio de
Tauride, no qual os líderes democratas esperavam a chegada das tropas da frente – eis
um dos quadros dos mais emotivos da revolução no ponto de demarcação entre Fevereiro
e Outubro. Douze anos antes, um bom número desses operários tinham participado ne
procissão de Janeiro, em direcção do palácio de Inverno, com ícones e bandeiras da
igreja. Séculos passaram após esse domingo. Novos séculos passarão nos quatro meses
que vão seguir.
Sobre a conferência dos líderes e organizadores bolcheviques que discutem no dia
seguinte pesa fortemente a sombra da fábrica Potilov deitada lá fora. Amanhã, os
trabalhadores de Potilov não irão ao trabalho; e com efeito, que trabalho seria possível
após esta vigília? Zinoviev, entretanto, é chamado ao telefone; de Cronstadt, é
Raskolnikov que diz que amanhã, cedo, a guarnição da fortaleza marchará sobre
Petrogrado: ninguém e nada podem retê-la. O segundo tenente da marinha ficará
agarrado ao outro lado do telefone: é possível que o comité central lhe ordene de se
libertar dos marinheiros e de se afastar? A esta imagem da fábrica Potilov que se mantém
lá em grupo juntou-se outro, não menos imponente, o da ilha dos marinheiros que, nessas
horas nocturnas de insónia, prepara-se para apoiar os operários e soldados de

350
Petrogrado. Não, a situação é demasiado evidente. Já não há lugar a hesitações. Trotsky
pede pela última vez: talvez se tente obter desta manifestação que ela não seja armada?
Não, isso está fora de questão. Uma esquadra de junkers é suficiente para expulsar
dezenas de milhares de homens desarmados, como um rebanho de ovelhas. Os soldados
e os operários também vão considerar com indignação um tal convite como uma
armadilha. A resposta é categórica e convincente. Todos unanimemente decidem chamar
no dia seguinte as massas a continuar a manifestação em nome do partido. Zinoviev
liberta da sua ansiedade Raskonikov, que está agarrado ao telefone. Logo ali redige-se
um apelo aos operários e aos soldados: na rua!
O apelo do comité central para parar a manifestação é redigido; mas é demasiado
tarde para o substituir por outro texto. A página em branco da Pravda tornar-se-á amanhã
uma prova pesada contra os bolcheviques: evidentemente, assustados no último
momento, retiraram o apelo à insurreição; ou então talvez, ao contrário, teriam renunciado
ao primeiro apelo para um manifestação pacífica a fim de empurrar o caso até à
insurreição? Portanto, a autêntica resolução dos bolcheviques apareceu em panfleto. Este
convidava os operários e soldados «a dar a conhecer sua vontade, por uma manifestação
pacífica e organizada, aos comités executivos actualmente em sessão.» Não, não é um
apelo à insurreição!

351
As «Jornadas de Julho»: o ponto culminante e esmagamento
A direcção imediata do movimento passa definitivamente, a partir desse instante,
para as mãos do comité peterburguês do partido, cujo principal agitador era Volodarsky. A
mobilização da guarnição é confiada à organização militar. Ela tinha à cabeça dois velhos
bolcheviques aos quais ele deve muito pelo seu desenvolvimento ulterior. Podvoisky –
brilhante e original figura nas fileiras do bolchevismo, com traços de revolucionário russo
de tipo antigo, saído do semanário, homem de grande envergadura, ainda se de uma
energia indisciplinada, dotado de uma imaginação criadora que, na realidade, perdia-se
facilmente em fantasia. «Isso é de Podvoisky», dizia logo Lenine com uma bonomia
irónica e circunspecta. Mas os lados fracos desta natureza efervescente devia resaltar
sobretudo após a conquista do poder, quando a abundância das possibilidades e dos
meios deu demasiados impulsos à prodigiosa energia de Podvoisky e à sua paixão pelas
empresas decorativas. Nas condições da luta revolucionária pela conquista do poder, a
sua resolução optimista, a sua abnegação, a sua infatigabilidade fazia dele um dirigente
insubstituível da massa desperta dos soldados.
Nevsky, no seu passado de docente, de uma constituição mais prosaica que
Podvoisky, mas não menos que ele devotado ao partido, de forma nenhuma organizador
e, somente por um acaso infeliz, caído um ano depois, por pouco tempo, no posto de
ministro soviético das Vias e Comunicações, atraía a si os soldados pela sua
simplicidade, sociabilidade e intenções delicadas. À volta destes dirigentes juntou-se um
grupo de assistentes muito próximos, soldados e jovens oficiais, entre os quais vários
deviam em breve desempenhar um papel importante. Na noite do 3 ao 4 de Julho, a
organização militar passa bruscamente ao primeiro plano. Junto de Podvoisky, que, sem
dificuldades, tomou as funções de comando, se criou um Estado-maior improvisado. A
todos os efectivos da guarnição foram enviados breves apelos e instruções. Para proteger
os manifestantes contra os ataques, ordenaram a disposição, junto dos pontos que levam
dos arrabaldes ao centro e aos principais cruzamentos das grandes artérias, viaturas
blindadas. Os metralhadores, logo na noite, tinham já colocado o corpo da guarda diante
da fortaleza Pedro e Paulo. Por telefone e por estafetas, informaram a manifestação no
dia seguinte as guarnições de Oranienbaum, de Peterhof, de Krasnoie-Selo e outros
pontos próximos da capital. A direcção política geral continua, bem entendido, nas mãos
do comité central.
Os metralhadores só voltaram para os quartéis pela manhã, fatigados e a tremer de
frio, mesmo se ainda era Julho. Dado que tinha chovido durante a noite, os operários de
Potilov estavam encharcados até aos ossos. Os manifestantes juntaram-se pelas onze
horas da manhã. A tropa sai ainda mais tarde. O primeiro regimento de metralhadoras
ainda está hoje na rua. Mas ele não desempenha como na véspera o papel de instigador.
O primeiro lugar foi tomado pelas fábricas. No movimento não são comprometidas a
empresas que, na véspera, continuavam à parte. Lá onde os dirigentes hesitam ou se
opõem-se, a juventude operária obriga o membro do comité de fábrica que está ao
serviço a dar o sinal para parar o trabalho. A fábrica do Báltico, onde predominam os
mencheviques e os socialistas-revolucionários, sobre cinco mil operários, cerca de quatro

352
mil meteram-se em marcha. Na fábrica de calçado Skorokhod, que tinha sido considerada
há muito tempo como a cidadela dos socialistas-revolucionários, a opinião tinha-se
bruscamente modificado, um socialista-revolucionário, teve que renunciar durante alguns
dias a mostrar-se.
Todas as fábricas estavam em greve, comícios tinham lugar. Elegeram os dirigentes
para a manifestação e delegados que apresentaram reivindicações ao comité executivo.
Novamente centenas de milhares de homens alinhara-se, convergiam em direcção do
palácio de Kczesinska. O movimento nesse dia é mais imponente e melhor organizado
que aquele da véspera: apercebem a mão do partido que o guia. Mas a atmosfera é hoje
mais quente: os soldados e os operários procuram obter uma conclusão à crise. O
governo está em transe, visto que, no segundo dia da manifestação, a sua impotência é
ainda mais evidente que na véspera. O comité executivo espera tropas seguras e recebe
de todo o lado relatórios anunciando que contingentes hostis marcham para a capital. De
Cronstadt, de Novy-Peterhof, de Krasnoie-Selo, do forte de Krasnaia Gorka, de toda a
periferia, pelo mar e por terra avançam marinheiros e soldados, com música à cabeça,
armados, e ainda pior, com cartazes bolcheviques. Certos regimentos, como durante os
dias de Fevereiro, trazem com eles seus oficiais fazendo conta que manifestam sob o seu
comando.
«O conselho de ministros ainda não tinha terminado – conta Miliokov – quando
disseram do Estado-maior que, sobre a Nevsky, tinha tido lugar um tiroteio. Decidiram
transferir a sessão para o Estado-maior. Lá se encontrara o principe Lvov, Tseretelli, o
ministro da Justiça Pereverzev, dois secretários de Estado do ministério da Guerra. Houve
um momento onde a situação do governo pareceu desesperada. Os regimentos
Preobrajensky, Semenovsky, Ismailovsky que não se juntaram aos bolcheviques,
declararam ao governo que eles também se mantinham-se «neutros». Na praça do
Palácio, para defender o Estado-maior, só havia inválidos e algumas centenas de
cossacos.» O general Polovtsev, na manhã do 4 de Julho, fixou um aviso, anunciando
que Petrogrado se desembaraçaria dos bandos armados: os habitantes estavam
severamente avisados para fecharem as portas e de não sair, salvo em caso de extrema
necessidade.
Esta ordem ameaçadora mostrou-se como um tiro sem chumbo. O comandante do
corpo do exército só conseguia lançar sobre os manifestantes pequenos destacamentos
de cossacos e de junkers. Durante o dia, eles provocaram tiroteio sem sentido e
escaramuças sangrentas. Um comandante do primeiro regimento do Don, que guardava o
palácio de Inverno, fez um relato à comissão de instrução: «A ordem tinha sido dada para
desarmar os pequenos grupos de pessoas que passavam diante de nós, qualquer que
fosse a sua composição, tal como os automóveis armados. Executando esta ordem, nós
saímos de tempos a tempos, a passo de corrida, do palácio, em ordem de batalha, e
ocupámo-nos do desarmamento... A narração ingénua do comandante de cossacos
desenha sem erros as relações de forças e o quadro da luta. As tropas «amotinadas»
saem do quartel por companhias e batalhões, ocupam as ruas e as praças. As tropas do
governo agem por emboscadas, por incursões, por pequenos destacamentos, isto é
precisamente da maneira que utilizam os franco-atiradores. A mudança de papeis explica-

353
se pelo facto que quase toda a força armada do governo lhe é hostil, ou, no melhor dos
casos, continua neutra. O governo vive sobre a confiança do comité executivo, o qual se
mantém ele próprio com essa esperança das massas que ele raciocinará afim de tomar o
poder.
A manifestação tomou uma grande magnitude quando apareceram em Petrogrado
os marinheiros de Cronstadt. Já na véspera, na guarnição da fortaleza marítima,
delegados dos metralhadores tinham agido. Na praça da Tinta, de maneira inesperada
para as organizações locais, um comício formou-se, sob a iniciativa de anarquistas
chegados de Petrogrado. Rochal, estudante de medicina, um dos jovens heróis de
Cronstadt e favorito da praça da Tinta, tentou pronunciar um discurso apaziguador.
Milhares de vozes cortaram-lhe a palavra. Rochal, habituado a ser recebido de outra
forma, teve que abandonar a tribuna. Foi só na noite que se soube que os bolcheviques,
em Petrogrado, apelavam a descer à rua. Isso decidia a questão. Os socialistas-
revolucionários de esquerda – não havia e não podia haver direita em Cronstadt! -
declararam que eles também tinham intenção de participar na manifestação. Esses
homens, pertencendo ao mesmo Partido que Kerensky que, entretanto, agrupavam tropas
sobre a frente para esmagar os manifestantes.
O estado de espírito na sessão da noite dos organizadores de Cronstadt foi tal que
mesmo o tímido comissários do governo provisório Partchevsky votou pela marcha sobre
Petrogrado. Um plano foi estabelecido, mobilizou-se uma frota, para as necessidades de
uma intervenção de ordem política; o arsenal entregou mais de uma tonelada de
munições. Sobre os reboques e os vapores para os passageiros, cerca de dez mil
marinheiros, soldados e operários armados entraram no estuário do Neva ao meio-dia.
Desembarcando sobre as duas margens do rio, eles uniram-se num só cortejo, de
espingarda ao ombro, música à cabeça. Atrás dos destacamentos de marinheiros e de
soldados, colunas de operários dos distritos de Petrogrado e de Vassili-Ostrov, misturados
às companhias de combate da Guarda vermelha. Nos lados, viaturas blindadas; acima
das cabeças, numerosos cartazes e bandeiras.
O palácio de Kczesinska está a dois passos. Pequenino, enfezado, negro, como
alcatrão, Sverdlov, um dos principais organizadores do partido, introduziu, na conferência
de Abril, no comité central, mantinha-se na varanda, e como homem atarefado, como
sempre, dava ordens lá do alto, com uma potente voz de baixo: «Fazer avançar a cabeça
da manifestação, apertar as filas, juntar os atrasados.» Os manifestantes foram saudados
do alto da varanda por Lunatcharsky, sempre pronto a se deixar contaminar pelo
ambiente sabendo impor-se pela sua maneira de estar e sua voz, eloquente orador, nem
sempre muito certo, mas muitas vezes insubstituível. Foi acolhido em baixo por uma
tempestade de aplausos. Mas os manifestantes desejavam ouvir o próprio Lenine – que,
justamente, nessa manhã tinham feito vir do seu asilo provisório em Finlândia — e os
marinheiros insistiram de tal forma que, apesar do seu mau estado de saúde, Lenine não
se pode furtar. Uma corrente irresistível, simplesmente a corrente de Cronstadt,
entusiasta, encontrou, em baixo, a aparecimento do chefe à varanda.

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Impacientemente e, como sempre, um pouco confuso, esperando o fim dos
aplausos, Lenine começou a falar antes que as vozes se acalmassem. O seu discurso
que, a seguir, durante semanas e semanas, sob todas as formas, a imprensa adversa viu
e reviu, consistiu em algumas frases simples: saudação aos manifestantes; expressão de
segurança que a palavra de ordem «todo o poder aos sovietes» finalmente seria
vencedor; apelo à perseverança e à firmeza. Com novos gritos, a manifestação
desenrolou-se ao som da música. Entre essa abertura de festa e a etapa mais próxima
onde sangue foi vertido, introduziu-se um episódio curioso. Os dirigentes dos socialistas-
revolucionários de Cronstadt, apenas notaram no Campo de Março, à cabeça da
manifestação, o imenso cartaz do Comité central dos bolcheviques, que apareceu após a
paragem diante da casa de Kczesinska, fervendo de ciúme de partido, exigiram que esse
cartaz desaparecesse. Os bolcheviques recusaram. Então os socialistas-revolucionários
declararam que iam embora. Nenhum dos marinheiros nem soldados não seguiu todavia
os líderes. Toda a política dos socialistas-revolucionários de esquerda consistia nessas
hesitações caprichosas, ora cómicas, ora trágicas.
Na esquina da Nevsky e da Liteiny, a retaguarda dos manifestantes foi alvo de um
tiroteio, houve várias vítimas. Um tiroteio mais violento produziu-se na esquina da Liteiny
e da rua Panteleimonovska. Aquele que guiava os homens de Cronstadt, Raskolnikov,
lembra-se qual foi a violenta impressão dos manifestantes diante «do desconhecido: onde
estava o inimigo? Donde disparava?» Os marinheiros pegaram nas suas espingardas, um
tiro desordenado começou em todas as direcções, várias pessoas foram mortas ou
feridas. Foi com grande dificuldade que se conseguiu restabelecer um faz de conta de
ordem. O cortejo continuou a avançar ao som da música, mas já não havia traço do seu
entusiasmo de festa. «Em todo o lado pensava-se ter visto o inimigo dissimulado. Os fuzis
já não eram pacificamente levados no ombro esquerdo, mas estavam cruzados.»
Durante o dia, sobre diversos pontos da cidade, não houve escaramuças
sangrentas. Em parte, não se pode dispensar de acusar de malentendidos, de confusões,
os tiros disparados de uma maneira ou de outra, o pânico. Esses acasos trágicos entram
nos custos falsos inevitáveis de uma revolução que é ela própria um falso custo no
desenvolvimento histórico. Mas também o elemento de provocação mortífero nos
acontecimentos de Julho, absolutamente incontestável, foi revelado nos próprios dias e
confirmado logo a seguir. «Quando os soldados manifestantes – conta Podvoisky –
começaram a passar pela Nevsky e pelas ruas adjacentes, habitadas sobretudos por
burgueses, sintomas sinistros de choques manifestaram-se: estranhos tiros que partiam
não se sabe donde nem de quem... As colunas sentiram-se logo perturbadas, a seguir os
menos firmes e os menos moderados abriram um tiroteio desordenado.»
Nas Izvestia oficiais, o menchevique Kantorovitch descrevia o tiroteio dirigido sobre
uma das colunas operárias nos termos seguintes: «Na rua Sadovaia caminhava uma
multidão de sessenta mil operários vindos de numerosas fábricas. No momento que
passavam diante da igreja, os sinos começaram a tocar e, como um sinal, do alto dos
telhados começou o tiroteio dos fuzis e de metralhadoras. Quando a multidão de
operários avançou do outro lado da rua, do alto dos telhados da frente começaram a
disparar.«Dos telhados e sótãos onde, em Fevereiro, se tinham instalado os faraós de

355
Protopopov armados de metralhadoras, agora agiam os membros das organizações dos
oficiais. Ao disparar sobre os manifestantes, eles tentavam, não sem sucesso, espalhar o
pânico e provocar choques entre as unidades do exército. Perseguições feitas nas casas
donde tinham disparado levaram à descoberta de ninhos de metralhadoras, às vezes
mesmo metralhadores.
Os principais causadores da infusão de sangue eram, porém, tropas do governo,
impotentes em dominar o movimento, mas suficientes para provocar. Cerca das oito horas
da noite, como a manifestação estava no auge, dois grupos de cossacos, com artilharia
ligeira, estavam a caminho para irem proteger o palácio de Tauride. Recusando
obstinadamente, a caminho, de travar conversa com os manifestantes, o que já era de
mau presságio, os cossacos confiscaram, onde foi possível, viaturas armadas e
desarmavam os pequenos grupos. As peças de artilharia dos cossacos, nas ruas
ocupadas pelos operários e soldados, pareciam uma intolerável provocação. Tudo fazia
prever um choque. Perto da ponte Liteiny, cossacos chegavam junto das massas
compactas do adversário que teve tempo de construir aqui, no caminho levando ao
palácio de Tauride, algumas barragens. Um minuto de silêncio sinistro, rasgado por tiros
vindos das casas vizinhas. «Os cossacos vazam carregadores inteiros, escreve o operário
Metelev; os operários e os soldados, dispersos atrás dos seus abrigos ou simplesmente
deitados sobre os passeios, respondem, sob o tiroteio, da mesma maneira. O tiroteio
dirigido pelos soldados obriga os cossacos a recuar. Tendo penetrado no cais da Neva,
estes últimos abrem fogo de artilharia, três salvas que foram assinaladas pelas Izvestia.
Mas, atingidos pelo tiroteio, batem em retirada na direcção do palácio de Tauride. Uma
coluna de operários que eles encontram dá-lhe o golpe decisivo. Abandonando seus
canhões, seus cavalos, e carabinas, os cossacos escondem-se nos vestíbulos da casas
burguesas ou dispersam-se.
O choque sobre a Liteiny, verdadeira pequena batalha, foi o maior episódio da guerra
dos dias de Julho e há narrações nas lembranças de numerosos participantes da
manifestação. Bourssine, operário da fábrica Erickson, tinha marchado com os
metralhadores, conta que, encontrando-se frente a frente com eles «os cossacos abriram
fogo imediatamente. Numerosos operários jaziam mortos no chão. Eu também, nesse
sítio, recebi uma bala que me atravessou a perna e penetrou na outra... Guardo como
lembrança viva dos dias de Julho uma perna inválida e uma muleta»... No choque na
Liteiny, sete cossacos foram mortos, dezanove feridos. Entre os manifestantes, houve
seis mortos e cerca de vinte feridos. Aqui e ali, jaziam cadáveres de cavalos.
Nós possuímos um testemunho interessante do campo oposto. Averine, o
comandante que, logo na manhã, se entregara aos ataques dos partidários sobre os
insurrectos regulares, conta isto: «Às oito horas da noite, recebemos do general Polovtsev
ordem de avançar junto com dois grupos, com dois canhões de tiro rápido, para o palácio
de Tauride... Atingimos a ponte Liteiny, sobre o qual vi operários, soldados e marinheiros
armados... Com o meu destacamento à cabeça, aproximei-me deles e pedi-lhes para
devolver as armas. Mas não consideraram o meu conselho e todo este grupo fugiu pela
ponte em direcção ao bairro de Vyborg. Não tive tempo de os perseguir quando um
soldado de baixa estatura, sem galões, voltam-se para mim e dispara, mas falhou o alvo.

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Esse tiro serviu de certa forma como sinal, e, por todo o lado dispararam de forma
desordenada. Gritos vieram da multidão: «Os cossacos disparam sobre nós!» Na
realidade, era isso que se passava: os cossacos desceram das montadas e meteram-se a
disparar, houve mesmo tentativas de disparar canhões, mas os soldados abriram fogo em
rajada que obrigou os cossacos a recuar e a dispersarem-se pela cidade».
Nada de impossível para que um soldado tenha disparado sobre os comandantes:
um oficial dos cossacos devia esperar mais por uma bala que por cumprimentos na
multidão de Julho. Mas muito mais verdadeiro são os testemunhos numerosos dizendo
que os primeiros tiros tinham partido não da rua mas de certas emboscadas. Um cossaco
das fileiras, pertencendo ao mesmo grupo que o comandante, disse convencido que os
cossacos tinham recebido tiros disparados do palácio da Justiça e a seguir dos edifícios,
na rua Samursky e na Liteiny. Na gazeta oficial do soviete, foi mencionado que os
cossacos, antes de chegar à ponte Liteiny, tinham estado debaixo do fogo das
metralhadoras disparado de uma casa de pedra. O operário Metelev afirma que, quando
esses soldados revistaram essa casa, encontraram, no apartamento de um general,
munições, nomeadamente duas metralhadoras com fitas de cartuchos.
Não há nada aí de inverosímil. O comandante, por todos os meios lícitos e ilícitos,
coleccionava, em tempo de guerra, muitas armas de toda a especie. A tentação de regar
com chumbo a «canalha« era demasiado grande. Na verdade os tiros atingiram os
cossacos. Mas, na multidão dos dias de Junho, estavam certos que os contra-
revolucionários disparavam conscientemente sobre as tropas governamentais para
provocar represálias impiedosas. O corpo de oficiais que, ainda na véspera, gozava de
uma autoridade ilimitada, não conhecia, na guerra civil, limites à perfídia e à crueldade.
Em Petrogrado abundavam um grande número de organizações secretas e meio secretas
de oficiais que gozavam de apoios generosos. Numa informação confidencial que deu o
menchevique Liber quase um mês antes das Jornadas de Julho, notou-se que os oficiais
conspiradores tinham acesso a Buchanan. Com efeito, os diplomatas da Entente não
podiam preocupar-se da instauração mais rápida possível de poder forte?
Os liberais e os conciliadores procuravam, em todos os excessos, a mão dos
«anarco-bolcheviques» e dos agentes da Alemanha. Os operários e os soldados
atribuíam com toda a certeza a responsabilidade das escaramuças de Julho que tinham
causado vítimas aos provocadores patriotas. De qual lado está a verdade? Os
julgamentos da massa, bem entendido, não são exemplos de erros. Mas comete-se uma
grande falta se se pensar que a massa é cega e crédula. Aí onde é atingida, é nos
milhares de olhos e ouvidos que ela regista os factos e as suposições, que ela verifica
pelo teste dos rumores, adoptando uns, eliminando outros. Aí, onde as versões no que diz
respeito os movimentos de massa são contraditórios – mais próximo da verdade será a
interpretação que a própria massa assimilou. É por isso que são tão estéreis para a
ciência os sicofantas internacionais do tipo de Hipólito Taine que, estudando os grandes
movimentos populares, ignoram as vozes da rua, recolhendo com cuidado os mexericos
dos salões, engendrados pelo isolamento e o medo.

357
Os manifestantes cercavam de novo o palácio de Tauride e exigiam uma resposta.
No momento que surgiram os homens de Cronstadt, um certo grupo pediu a Tchernov
para os encontrar. Sentindo o estado de espírito da multidão, o ministro pronunciou um
curto discurso, escamoteando a crise do poder e mostrando desprezo pelos cadetes que
tinham abandonado o governo: «Boa viagem!» Foi interrompido pelas exclamações: «Mas
porquê não nos disse isso mais cedo?» Miliokov assegura mesmo que um operário alto,
estendendo o punho na cara do ministro gritou, furioso: « Quando te derem o poder toma
então, filho de uma cadela,!» Se não há nada mais que uma anedota, ela não exprime
com menos precisão um pouco rudemente o essencial da situação de Julho. As respostas
de Tchernov são sem interesse: de qualquer modo, elas não lhe conquistaram os
corações de Cronstadt...
Dois ou três minutos depois, alguém irrompeu na sala de sessões do comité
executivo, gritando que Tchernov tinha sido preso pelos marinheiros que tinham a
intenção de lhe pregar uma partida. Na agitação indescritível, o comité executivo expediu,
para tirar o ministro de sarilhos, alguns dos seus membros mais conhecidos,
exclusivamente internacionalistas e bolcheviques. Tchernov logo depôs na comissão
governamental que, descendo da tribuna, tinha notado por detrás das colunas, perto da
entrada, o movimento hostil de alguns individuos.
«Uns rodearam-me, impedindo-me de alcançar a porta... Um individuo estranho,
comandando os marinheiros que me tinham preso, indicava constantemente a viatura,
que se encontrava nas proximidade... Nesse momento aproximou-se do automóvel saindo
do palácio de Tauride, Trotsky que, subindo sobre o capô no automóvel onde me
encontrava, pronunciou um breve discurso.» Propondo libertar Tchernov, Trotsky pediu
aos que não estavam de acordo para levantarem a mão. «Nem uma mão se levantou:
então o grupo que me tinha conduzido ao automóvel afastou-se com ar descontente.
Trotsky, tanto que me parece, tinha dito: Ninguém, cidadão Tchernov, não vos impede de
voltar livremente para casa... O quadro geral que se apresenta não me permite duvidar
que uma tentativa foi feita, preparada com antecedência, por sombrios individuos, agindo
fora da massa dos operários e dos marinheiros, para me fazer sair e me prender.»
Uma semana antes de ser preso, Trotsky dizia na sessão unificada dos comités
executivos: «Esses factos entrarão na história e nós tentaremos de restabelecê-los tais
como eles foram... Vi que perto da entrada, mantinha-se um pequeno grupo de suspeitos.
Disse a Lunatcharsky e a Riazanov que eram gente da Okhrana que tentavam de
penetrar no palácio de Tauride. (Lunatcharsky, do seu lugar: «É verdade!»... Teria podido
distingui-los numa multidão de dez mil pessoas.» Nas suas deposições do 24 de Julho,
estando já preso na sua célula na prisão de Kresty, Trotsky escrevia: «... Eu tinha primeiro
decidido de sair da multidão com Tchernov e os que queriam prendê-lo, no mesmo
automóvel, para evitar os conflitos e o pânico na multidão. Mas é impossível... Se vocês
vão de carro com Tchernov, amanhã dirão que os marinheiros de Cronstadt queriam
prendê-lo. É preciso entregar Tchernov imediatamente.» Logo que um clarim convidou a
multidão ao silêncio e me deu a possibilidade de pronunciar um breve discurso
terminando por esta questão: «Aquele que é pela violência que levante a mão!» -
Tchernov teve logo a possibilidade de voltar para o palácio sem obstáculos.»

358
As deposições de duas testemunhas, que foram ao mesmo tempo os principais
actores – no incidente, relatam integralmente o que é aqui a realidade. Mas isso não
impede de forma nenhuma a imprensa hostil aos bolcheviques de expor o caso Tchernov
e a «tentativa» de prisão de Kerensky como as provas mais convincentes da organização
pelos bolcheviques de uma insurreição armada. Não deixaram de alegar, sobretudo na
agitação verbal, que a prisão de Tchernov teria sido dirigida por Trotsky. Esta versão
chegou mesmo ao palácio de Tauride. O próprio Tchernov, quem conta de uma maneira
aproximadamente verdadeira as circunstâncias da sua prisão de meia-hora, num
documento secreto de instrução, abstendo-se todavia de qualquer manifestação pública
sobre o assunto para não impedir o seu partido de fomentar a indignação conta os
bolcheviques. Além disso, Tchernov fazia parte do governo que tinha encarcerado Trotsky
na prisão de Kresty. Os conciliadores teriam podido, na verdade fazer observar que um
bando de tipos esquisitos conspiradores não ousou chegar-se a tão temível projecto de
prender um ministro na multidão em pleno dia, sem esperança que a hostilidade da
multidão em relação à «vítima» seria um disfarce suficiente. Foi assim até um certo ponto.
Ninguém, à volta da viatura, não fez, pela sua própria iniciativa, a tentativa de obter a
liberdade de Tchernov. Se, para cumulo, Kerensky tinha sido preso nalgum sítio, nem os
operários nem os soldados não se teriam preocupado. Nesse sentido, a participação
moral das massas aos atentados reais e imaginários sobre os ministros socialistas era
adquirida e era motivo para acusar os homens de Cronstadt. Mas, para sair francamente
este argumento, os conciliadores ficaram incomodados pelo cuidado que eles tiveram em
salvar qualquer coisa do seu prestígio democrático: evitando hostilmente os
manifestantes, eles não deixaram de resistir ao sistema dos sovietes operários, soldados
e camponeses no palácio de Tauride cercado.
Cerca das oito horas da noite, o general Polovtsev, pelo telefone,deu algumas
esperanças ao comité executivo: dois grupos de cossacos, com canhões, dirigiam-se para
o palácio Tauride. Enfim, enfim! Mas as esperanças, ainda desta vez, foram ludibriadas.
Os telefonemas à direita e à esquerda agravavam o pânico: os cossacos tinham
desaparecido sem deixar traço, com se tivessem evaporado com os seus cavalos, e seus
canhões de tiro rápido. Miliokov escreveu que, pela noite, começaram a se revelar «os
primeiros resultados das chamadas dirigidas pelo governo às tropas»; foi assim que, para
libertar o palácio de Tauride, o 176º regimento teria partido à pressa. Esta alegação,
aparentemente tão preciosa, caráteriza de uma maneira curiosa os mal-entendidos que se
produzem inevitavelmente no primeiro período de uma guerra civil quando os campos
começam a diferenciar-se.
Na realidade, um regimento chegou ao palácio de Tauride em farda de campanha:
mochila, capote enrolado à bandoleira, marmita e cantil. Os soldados, a caminho, tinham
ficado molhados até aos ossos e estavam extenuados: chegaram a Krasnoie-Selo. Era o
176º. Mas ele não estava disposto a ajudar o governo: em ligação com os delegados
inter-distritos, o regimento meteu-se em marcha sob a direcção de dois soldados
bolcheviques, Levinson e Medvedev para exigir o poder para os sovietes. Os dirigentes do
comité executivo, que estavam alertados, foram imediatamente avisados que por debaixo
das janelas estava, para descansar, um regimento vindo de longe, em perfeita ordem,

359
com os seus oficiais. Dan, que trajava uniforme de médico major, pediu ao comandante
para estabelecer postos da guarda para a protecção do palácio. Sentinelas foram com
efeito logo colocadas. Dan, acredite-se, referiu com satisfação ao presidente, et, daí, o
facto foi inserido nos relatos dos jornais. Sukhanov afirma nas sua memórias a docilidade
com a qual o regimento bolchevique aceitou a execução da ordem do líder menchevique:
mais uma prova da «absurdidade»da manifestação de Julho!
Na realidade, o caso era e mais simples e mais complexo. Convidado a colocar
sentinelas, o chefe do regimento dirigiu-se a um ajudante de serviço, o jovem tenente
Prigorovsky. Infelizmente, Prigorovsky era bolchevique, membro da organização inter-
distritos, e veio logo pedir conselho a Trotsky, o qual, com um pequeno grupo de
bolcheviques, ocupava um posto de observação numa das salas laterais do palácio.
Aconselharam, bem entendido, a Prigorovsky a colocar imediatamente, onde era preciso,
sentinelas: é mais vantajoso ter, nas entradas e nas saídas, amigos que inimigos. Foi
assim que o 176º, vindo para manifestar contra o poder protegia esse poder contra os
manifestantes. Se tivesse sido efectivamente questão de uma insurreição, o tenente
Progorovsky, com somente quatro soldados, teria sem dificuldades prendido todo o comité
executivo. Mas ninguém não pensava prender ninguém, os soldados do regimento
bolchevique montaram a guarda conscientemente.
Quando os grupos de cossacos, único obstáculo no caminho do palácio de Tauride,
foram varridos, muitos manifestantes imaginaram que a vitória estava assegurada. Na
realidade, o principal obstáculo residia no interior do palácio. A sessão unificada dos
comités executivos, que começou cerca das seis horas da tarde, estavam presentes
noventa representantes das cinquenta e quatro fábricas e oficinas. Cinco oradores, aos
quais foi combinado dar a palavra, começaram por protestar contre esse facto que os
manifestantes foram caluniados nos apelos do comité executivo, como contra-
revolucionários. «Vocês vêm o que se lê sobre os cartazes, declara um. Tais são as
decisões tomadas pelos operários... Nós exigimos a partida dos dez ministros capitalistas.
Nós temos confiança no soviete, mas não naqueles que o soviete coloca suas
esperanças... Nós exigimos que a terra seja confiscada imediatamente, que um controlo
da produção seja imediatamente estabelecido, nós exigimos que se lute contra a fome
que nos ameaça...» Outro acrescentou: «Vocês têm diante de vós não um motim, mas
uma manifestação perfeitamente organizada. Exigimos que se abroge as ordens dirigidas
contra o exército revolucionário... Agora que os cadetes recusaram trabalhar convosco,
nós perguntamos com quem vocês terão ainda negociações. Nós exigimos que o poder
passe para as mãos dos sovietes.»
As palavras de ordem de propaganda da manifestação do 18 de Junho tinham-se
tornado um ultimato de combate das massas. Mas os conciliadores já estavam fortemente
amarrados à carroça dos ricos. O poder dos sovietes? Isso significa antes de mais uma
política ousada de paz, a ruptura com os Aliados, a ruptura com a burguesia do país, um
completo isolamento, a catástrofe em algumas semanas. Não, a democracia consciente
do seu dever não se comprometerá na via das aventuras! «As circunstâncias presentes –
dizia Tseretelli – não permitia que, no ambiente de Petrogrado, se encontrem novas
soluções.» Fica isto: «Reconhecer o governo tal que ele se constituiu... Convocar um

360
congresso extraordinário dos sovietes em quinze dias num lugar onde se possa trabalhar
sem obstáculos, e o melhor seria em Moscovo.»
Mas a sessão é constantemente interrompida. A porta do palácio de Tauride batem
os operários de Potilov: eles só se meteram em movimento à noite, cansados,
sobreexcitados, enfurecidos. Tseretelli! Traz para aqui Tseretelli!» Uma massa de trinta mil
homens envia ao palácio os seus delegados, alguém grita atrás que se Tseretelli não quer
sair de boa vontade, sairá à força. Da ameaça à acção há uma distância, mas o caso já
se mostra ruim, e os bolcheviques apressam-se a intervir. Zinoviev, logo, conta isto: «Os
nossos camaradas convidaram-me a ir diante dos operários de Potilov... Um mar de
cabeças tal como nunca vi. Várias dezenas de milhar de homens. Os gritos: « Tseretelli!»
continuavam... Eu começava: «Em vez de Tseretelli, sou eu quem sai.» (Risadas.) Isso
fez uma reviravolta dos espíritos. Posso pronunciar um discurso bastante longo...
Concluindo, peço a este auditório de se dispersar logo, pacificamente, mantendo uma
ordem perfeita e não deixando, em qualquer caso provocar gestos agressivos.
(Tempestade de aplausos.) Os homens reunidos metem-se em filas e começam a se
dispersar.» Este episódio ilustra melhor, e o descontentamento das massas, e a ausência
de um plano ofensivo, e o papel real do partido nos acontecimentos de Julho.
Enquanto que Zinoviev explicava-se no exterior com os operários de Potilov, na sala
das sessões interveio um grupo muito numeroso dos seus delegados de forma veemente,
alguns com carabinas. Os membros dos comités executivos sobressaltaram dos seus
lugares. «Alguns não mostraram suficiente bravura e seguros deles próprios», escreveu
Sokhanov que deixou uma viva descrição desse momento dramático. Um dos operários,
«o sem cueca clássico, de boné e de camisa azul curta sem cintura, de arma na mão»
saltou sobre a tribuna, tremendo de emoção e de cólera... «Camaradas! Iremos tolerar,
nós, operários, a traição? Vocês entendem-se com a burguesia e os proprietários das
terras... Nós, os de Potilov, nós somos aqui trinta mil... Obteremos o que quisermos!...»
Tchkheidze, que tinha debaixo do nariz uma arma, soube conter-se. Debruçando-se
tranquilamente do seu estrado, deslizava na mão que tremia um apelo imprimido: «Tome,
camarada, pegue isso, faça favor, e leia. Dizem aí o que devem fazer os camaradas da
fábrica Potilov...» O apelo nada dizia a não ser que os manifestantes deviam voltar para
casa senão seriam tratados como traidores à revolução. E que poderiam dizer ainda os
mencheviques?
Na agitação junto das paredes do palácio de Tauride, tal como em geral no turbilhão
da agitação deste período, um grande lugar foi ocupado por Zinoviev, orador de uma força
excepcional. A sua voz alta de tenor ecoava no primeiro momento e logo conquistaria pela
sua musicalidade original. Zinoviev era um agitador nato. Sabia ceder ao contágio da
massa, comover-se das suas emoções e encontrar pelos sentimentos e pensamentos
uma expressão talvez um pouco difusa, mas impressionante. Os adversários diziam de
Zinoviev que ele era o maior demagogo entre os bolcheviques. Assim, eles prestavam
homenagem ao mais forte dos seus traços, isto é a sua capacidade de penetrar a alma do
Demos e de brincar com as suas cordas. Não se pode portanto negar que sendo somente
um agitador, sem ser um teórico, um estratega revolucionário, Zinoviev, quando não era
retido por uma disciplina exterior, deslizava facilmente, na via da demagogia, não no

361
sentido vulgar, mas no sentido científico da palavra, isto é mostrava inclinação a sacrificar
interesses longínquos aos sucessos do momento. O faro de agitador de Zinoviev fazia
dele um conselheiro extremamente precioso na medida onde se tratava de avaliação
política por uma circunstância, mas não profundamente. Nas reuniões do partido, ele
sabia convencer, conquistar, enfeitiçar, quando chegava com uma ideia política já
confeccionada, verificada num dos comícios de massas e, diria, completamente saturada
das esperanças e de ódios dos operários e dos soldados. Zinoviev era incapaz, por outro
lado, numa assembleia hostil, mesmo no comité executivo de então, dar aos
pensamentos mais extremos e os mais explosivos uma forma envolvente, insinuante,
penetrando os cerebros dos que o consideravam com uma desconfiança antecipada.
Para chegar a esses resultados inapreciáveis, não lhe bastava sentir-se somente no
seu direito; para se consolar, ele precisava de saber com toda a certeza que estava
exempto da responsabilidade política por uma força resistente e sólida. Esta segurança
vinha-lhe de Lenine. Armado de uma formula de estratégia já feita, revelando o próprio
fundo da questão, Zinoviev, engenhosamente e com faro, preenchia-a de exclamações
novas, de protestos, de reivindicações, colhidas na hora mesmo na rua, na fábrica ou no
quartel. Em tais momentos, ele era um mecanismo ideal de transmissão entre Lenine e a
massa, parcialmente entre a massa e Lenine. Zinoviev seguia sempre o seu mestre,
excepção feita de casos pouco numerosos; mas a hora das dissensões chegava logo no
momento ou se decidia da sorte do partido, da classe, do país. A agitador da revolução
não tinha suficientemente carácter revolucionário. Tanto que não se tratava de conquistar
as cabeças e as almas, Zinoviev era um militante infatigável. Mas perdia logo a sua
convicção combativa quando se encontrava diante da necessidade de agir. Então recuava
bruscamente diante da massa, como diante de Lenine, ele tinha reacções somente diante
das vozes indecisas, recolhia dúvidas, só via os obstáculos, e a sua voz insinuante, quase
feminina, deixava de ser persuasiva, traindo a sua fraqueza íntima. Sob as paredes do
palácio de Tauride, durante as jornadas de Julho, Zinoviev era extremamente activo,
inventivo e forte. Ele produzia nas mais altas notas a excitação das massas – não para as
chamar para os actos decisivos, mas, pelo contrário, para as impedir. Isso respondia às
circunstâncias e à política do partido. Zinoviev estava plenamente no seu elemento.
O combate na Liteiny ocasionou no seguimento da manifestação uma brusca
quebra. Ninguém já olhava o cortejo do alto das janelas ou das varandas. As pessoas
importantes, ocupando as gares, desertavam a cidade. A luta nas ruas transformava-se
em escaramuças, aqui e ali, sem fim determinado. Durante as horas nocturnas, houve
lutas de corpo a corpo entre manifestantes e patriotas, desarmava-se as pessoas ao
acaso, as armas passavam de uma mão para a outra. Grupos de soldados dos
regimentos que tinham destroçado as fileiras agiam de um lado e outro. «Elementos
esquisitos e provocadores que se tinham inserido entre eles incitáva-os a cometer actos
anárquicos», acrescenta Podvoisky. A procura de culpados do tiroteio feito a partir das
casas, grupos de marinheiros e de soldados procediam a rigorosas rusgas. Sob o pretexto
de revistar, as pilhagens tinham lugar aqui e ali. Por outro lado, os progroms começaram.
Comerciantes, nos bairros da cidade onde eles se sentiam em força, jogavam-se com
furor sobre os operários e golpeavam-os sem piedade. «Aos gritos de «batam nesses

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judeus e nos bolcheviques, joguem-nos à água!» conta Afanassiev, operários da fábrica
Novy-Lessnerl – a multidão cai sobre nós e bateu duro.» Uma das vítimas morreu no
hospital. O próprio Afanassiev, martirizado e sangrando, foi retirado do canal Ekarininsky
pelos marinheiros...
Choques, vítimas, uma luta sem resultados, cujo objectivo prático não era palpável, e
isso limitava o movimento. O comité central dos bolcheviques decidiu convidar os
operários e os soldados a parar a manifestação. Agora esse apelo, imediatamente levado
ao conhecimento do comité executivo, não teve quase qualquer resistência nos meios da
base. As massas voltaram para os arrabaldes e não se dispuseram a recomeçar a luta no
dia seguinte. Elas tinham sentido que a questão do poder do soviete apresentava-se de
uma maneira muito mais complicada do que tinham pensado.
O cerco do palácio de Tauride foi definitivamente levantado, as ruas vizinhas ficaram
desertas. Mas os comités executivos continuavam vigilantes, com suspensões das
sessões, des discursos entusiastas, sem significado e alcance. Descobriu-se somente
mais tarde que os conciliadores ficavam à espera de qualquer coisa. Nos lugares do lado,
os delegados das fábricas e dos regimentos fartava-se de esperar. «Meia-noite já passou
– conta Metelev – e continuamos à espera de uma «solução»... Martirizados pela fatiga e
fome, esperávamos na sala Alexandrovsky... Às quatro horas da madrugada, no dia 5 de
Julho, as nossas esperanças chegaram ao fim... Pela grande porta aberta da entrada
principal do palácio irromperam ruidosamente oficiais e soldados armados.» Por todo o
edifício ecoava o som dos instrumentos de cobre da Marselhesa. O bater das botas e a
barulheira dos instrumentos nessa hora matinal provocam na sala das sessões uma
emoção extraordinária. Os deputados levantaram-se bruscamente dos seus lugares. Um
novo perigo? Mas, na tribuna, Dan...: «Camaradas, anunciou, acalmem-se! Não há
qualquer perigo! São os regimentos fiéis à revolução que chegam.»
Sim, eles chegavam enfim, as tropas seguras, há muito esperadas. Elas ocupam as
passagens, jogando-se raivosamente sobre alguns operários que se encontram ainda no
palácio, retiram suas armas aos que têm, prendem-nos, levam-nos. À tribuna sobe o
tenente Kutchine, menchevique bem conhecido, em traje de campanha. Dan que preside
dá-lhe um abraço com acentos de vitória de orquestra. Ofegantes de entusiasmo e
esmagando as esquerdas com olhares triunfantes, os conciliadores apertavam-se as
mãos, e, de goela aberta, misturam seu entusiasmo ao som da Marselhesa. «É a cena
clássica de um início de contra-revolução!» exclamou Martov, que sabia observar e
compreender bem as coisas. O sentido político da cena relatada por Sokhanov se tornará
ainda mais significativo se nos lembrarmos que Martov era do mesmo partido que Dan,
pelo qual esta cena marcava um triunfo supremo da revolução.
Foi somente então, ao notar a alegria transbordante da maioria, que a ala esquerda
começou a compreender exactamente a que ponto o órgão supremo da democracia oficial
se encontrava isolada quando a autêntica democracia desceu à rua. Essa gente, durante
trinta e seis horas, tinha cada um por sua vez desaparecido dos corredores para se meter,
pela cabine telefónica, em contacto com o Estado-maior, com Kerensky na frente, para
reclamar tropas, chamar, convencer, suplicar, enviar ainda e ainda agitadores, e esperar

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de novo. O perigo tinha passado, mas o medo subsistia por inércia. E o ruído das botas
dos «fiéis» por volta das cinco horas da manhã soou nas orelhas como um sinfonia de
libertação. Da tribuna partiram enfim os discursos francos sobre o feliz esmagamento do
motim armado e sobre a necessidade de acabar com ele, desta vez, com os
bolcheviques.
O destacamento que tinha entrado no palácio de Tauride não tinha chegado da
frente como muitos acreditaram na primeira ocasião: ele tinha sido recolhido na guarnição
de Petrogrado, principalmente sobre três batalhões da Guarda, os mais atrasados: os do
regimento Preobrajensky, Seirtenovsky e Ismailovsky. No 3 de Julho, eles tinham-se
declarado neutros. Foi em vão que se tentou de lhe impor com a autoridade do governo e
do comité executivo: os soldados ficaram aborrecidos, fechados nas suas casernas, na
expectativa. Foi somente na tarde do dia 4 de Julho que as autoridades descobriram,
enfim, um potente meio de acção: mostraram aos homens do regimento Preobrajensky
documentos que provavam como dois e dois são quatro que Lenine era um espião da
Alemanha. Isso resultou. A notícia espalhou-se nos regimentos. Os oficiais, os membros
dos comités de regimentos, os agitadores do comité executivo dobraram de ardor no
trabalho. A opinião dos batalhões neutro foi bruscamente modificada. Pela madrugada,
quando não havia necessidade nenhuma deles, conseguiram reuni-los e a fazê-los
marchar nas ruas desertas em direcção ao palácio de Tauride que se tinha esvaziado. A
Marselhesa foi tocada pela orquestra do regimento Ismailovsky, esse mesmo que, sendo
o mais reaccionário, tinha sido encarregado, no 3 de Dezembro de 1905, de prender o
primeiro soviete de deputados operários de Petrogrado, cujo presidente era Trotsky. O
encenador cego da história obtém a cada passo surpreendentes golpes de teatro sem os
ter procurado: ele larga simplesmente a rédea à lógica das coisas.
Quando as ruas ficaram desembaraçadas das massas, o jovem governo da
revolução aliviou os seus membros de impotência: representantes de operários foram
presos, armas confiscadas, bairros da cidade cortados uns dos outros. Cerca das seis
horas da manhã, diante da redacção da Pravda, parou um automóvel carregado de
junkers e de soldados, com uma metralhadora que foi imediatamente apontada à janela.
Após a partida dos intrusos, a redacção apresentava um espectáculo de demolição: as
gavetas das mesas tinham sido forçadas, o soalho cheio de manuscritos rasgados, os fios
dos telefones cortados. Os homens da guarda e os empregados da redacção e da
administração tinham levado uma sova de socos e presos. O saque tinha sido ainda maior
na tipografia pela qual os operários nos três últimos meses tinham colectado fundos:
destruídas as rotativas, estragados os monotipos, demolidos os linótipos. Foi erradamente
que os bolcheviques acusavam a falta de energia o governo de Kerensky!
«As ruas, no conjunto, voltaram ao normal, escreve Sokhanov. Não há quase
reuniões e comícios no exterior. Os armazéns estão quase todos abertos.» Logo pela
manhã se propagou o apelo dos bolcheviques, convidando a cessar de manifestar, a a
última produção da tipografia demolida. Os cossacos e os junkers prendem nas ruas os
marinheiros, soldados, operários, e mandam-nos ou para as prisões, ou para as salas da
polícia. Nas lojas e nos passeios, fala-se do dinheiro alemão. Prendem qualquer um que
ouse dizer uma palavra a favor dos bolcheviques. «Não se pode mais declarar que Lenine

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é um homem honesto: senão, conduzem ao comissariado.» Sokhanov, como sempre,
mostra-se atento observador do que se passa nas ruas da burguesia, da intelligentsia,
dos pequeno-burgueses.
Mas trata-se de outra coisa nos bairros operários. As fábricas e as oficinas ainda não
trabalham. Os estado de espírito está ansioso. Segundo os rumores, tropas teriam
chegado da frente. As ruas do bairro de Vyborg estão cheias de grupos que discutem a
conduta a tomar em caso de ataque. «Os guardas vermelhos e, em geral, a juventude das
fábricas – conta Metelev preparam-se a penetrar a fortaleza de Pedro e Paulo para apoiar
os destacamentos que estão cercados. Dissimulando granadas nos bolsos, nas botas e
no peito, eles passam o rio em barcas, alguns pelas pontes.» O operário compositor
Smirnov, do bairro de Kolomna, conta nas suas Lembranças:«Vi chegar pelo Neva
reboques cheios de guardas marinheiros, vindo de Duderhof e de Oranienbaum. Cerca
das duas horas, a situação começou a desenhar-se num mau sentido... Vi como,
isoladamente, por caminhos afastados, marinheiros voltavam a Cronstadt... Espalhou-se
esta versão que todos os bolcheviques eram espiões da Alemanha. Perseguições infames
foram empreendidas...» O historiador Miliokov resume com satisfação: «O estado da
opinião e a composição do público nas ruas tinham-se completamente modificado. Pela
noite, Petrogrado estava absolutamente calma.»
Enquanto que as tropas não tinham tempo de chegar, o Estado-maior da região, com
a ajuda política dos conciliadores, conseguiu disfarçar as suas intenções. No dia tinham-
se apresentado no palácio Kczesinska, para conferenciar com os líderes dos
bolcheviques, membros do comité executivo, Liber à cabeça: só esta visita testemunhava
os sentimentos mais pacíficos. O acordo obtido obrigava os bolcheviques a enviar os
marinheiros de Cronstadt, a retirar da fortaleza de Pedro e Paulo a companhia de
metralhadoras, a substituir dos seus postos os carros blindados e os destacamentos da
guarda. O governo prometia pelo seu lado em não tolerar nenhuma perseguição, qualquer
represália em relação aos bolcheviques e a libertação dos que tinham sido presos,
excepto os criminosos de direito comum. Mas o acordo não foi mantido por muito tempo.
À medida que se propagava o rumor sobre o dinheiro alemão e a chegada para breve das
tropas da frente. Descobri-se na guarnição cada vez mais contingentes grandes e
pequenos que se lembravam da sua fidelidade à democracia e a Kerensky. Eles
enviavam delegados ao palácio de Tauride ou ao Estado-maior da região. Enfim, as
camadas da frente começaram a chegar efectivamente.
O estado de espírito entre os conciliadores tornava-se cada vez mais feroz a cada
hora que passava. As tropas chegadas da frente preparavam-se a libertar a capital, numa
luta sangrenta, dos agentes do Kaiser. Agora que já não havia necessidade das tropas,
era preciso se justificar o facto de os ter chamado. Com medo de cair eles próprios na
suspeição, os conciliadores esforçavam-se para demonstrar aos chefes militares que os
mencheviques e os socialistas-revolucionários estavam com eles num só e mesmo lado e
que os bolcheviques eram o inimigo comum. Quando Kamenev tentou de lembrar aos
membros do secretariado do comité executivo o acordo concluído algumas horas antes,
Liber respondeu com um tom inflexível de um homem de Estado: «Agora, a relação de

365
forças está modificada.» Segundo os discursos e vulgarização de Lassalle, Liber sabia
que um canhão é um elemento importante para uma Constituição.
A delegação dos marinheiros de Cronstadt, tendo à cabeça Raskolnikov, foi várias
vezes chamado à comissão militar do comité executivo, onde as exigências, a cada hora
mais elevadas, chegaram ao ultimato de Liber: consentir imediatamente ao
desarmamento dos homens de Cronstadt. «Ao sair da sessão da Comissão militar – conta
Raskolnikov nós retomámos o nosso conciliábulo com Trotsky e Kamenev. Lev
Davidovitch (Trotsky) aconselhou a enviar imediatamente para suas casas e em segrego
os marinheiros de Cronstadt. Foi tomada a decisão de enviar os camaradas nos quartéis
e de prevenir os marinheiros do desarmamento pela força que se preparava.» A maior
parte dos homens de Cronstadt tinham partido em tempo útil, só restavam alguns
pequenos destacamentos na casa Kczesinska e na fortaleza Pedro e Paulo. Com o
conhecimento dos ministros socialistas, o príncipe Lvov, desde de 4 de Julho, tinha dado
ao general Polovtsev a ordem escrita «de prender os bolcheviques que ocupavam a casa
Kczesinska, de evacuar esta casa e de colocar aí as tropas.»
Agora, após o saque da redacção e da tipografia, a questão da sorte do quartel-geral
dos bolcheviques colocava-se com grande acuidade. Era preciso meter o hotel particular
em estado de defesa. Como comandante dos locais, a organização militar designou
Raskolnikov. Ele compreendeu a sua tarefa, à maneira de Cronstadt, reclamou o envio de
canhões e mesmo a presença na foz do Neva de um pequeno navio de guerra.
Raskolnikov explicou mais tarde este esforço da maneira seguinte: «Bem entendido, do
meu lado, os preparativos militares foram feitos, mas somente para que no caso onde nós
tivéssemos que nos defender, visto que, no ar, havia um odor não somente de pólvora
mas assim de perseguições... Eu considerava, não sem razão, me parece, que bastaria
fazer chegar no estuário do Neva um bom barco para que o governo provisório perdesse
consideravelmente a sua energia.» Tudo isso é bastante imprevisto e pouco sério.
Convém antes de mais supor que, no dia 5 de Julho, os dirigentes da organização militar,
e Roskolnikov com eles, não tinham ainda apreciado completamente a reviravolta da
situação e, no momento onde a manifestação armada devia se apressar de bater em
retirada para não se transformar num levantamento armado imposto pelo adversário,
certos dirigentes militares deram alguns passos em frente ao acaso e irreflectidos.
Não era a primeira vez que os jovens líderes da Cronstadt passavam da medida.
Mas pode-se fazer uma revolução sem a participação de homens que passam a medida?
E não haverá necessariamente uma certa percentagem de leviandade em todas as
grandes empresas humanas? Desta vez, tudo se limitou a ordens que, aliás, foram logo
anuladas pelo próprio Raskolnikov. No hotel particular afluíam todavia notícias cada vez
mais inquietantes: um tinha visto, à janela de uma casa situada na margem da frente,
metralhadoras apontadas para a casa Kczesinska; outro tinha observado uma coluna de
carros blindados avançando na mesma direcção; um terceiro anunciava a aproximação de
patrulhas de cosaques. Dois membros da organização militar foram enviados para
conversações ao comandante do bairro. Polovtsev assegurou aos parlamentares que o
saque da Pravda tinha sido feito sem que ele soubesse e que ele não preparava de forma

366
nenhuma as represálias contra a organização militar. Na realidade, ele esperava receber
somente da frente os reforços suficientes.
Enquanto que Cronstadt batia em retirada, a frota do Báltico, no conjunto, ainda
preparava a sua ofensiva. Era nas águas finlandesas que se mantinha a grande parte da
frota, contando no total até setenta mil marinheiros; além disso, na Finlândia, estava
aquartelado um corpo do exército, e a fábrica do porto de Helsingfors ocupava cerca de
dez mil operários russos. Era impressionante, o punho da revolução. A pressão dos
marinheiros e dos soldados era de tal maneira irresistível que em mesmo em Helsingfors
o comité dos socialistas-revolucionários se pronunciou contra a coligação, no seguimento
disso todos os órgãos soviéticos da frota e do exército, na Finlândia, exigiram
unanimemente que o comité executivo central tomou o poder na mão. Para apoiar a sua
reivindicação, os homens do Báltico estavam prontos a avançar, a qualquer momento,
para o estuário do Neva; o que os fazia esperar, porém, era o temor de enfraquecer a
linha de defesa marítima e de facilitar à frota alemã um ataque sobre Cronstadt e
Petrogrado.
Mas aí produziu-se qualquer coisa de absolutamente imprevisto. O comité central da
frota do Báltico – chamado Tsentrobalt – convocou no dia 4 de Julho, os comités dos
navios a uma sessão extraordinária, na qual o presidente Dybenko revelou publicamente
duas ordens secretas recentemente recebidas pelo comandante da frota, sob a assinatura
de Dodarev, ministro-adjunto da Marinha: o primeiro aconselhava o almirante Verderevsky
a enviar a Petrogrado quatro torpedeiros para impedir pela força uma descida dos
revoltados vindo de Cronstadt: o segundo exigia do comandante da frota que, sob
nenhum pretexto, não permitia aos navios a ida de Helsingfors para Cronstadt e que não
hesitaria em afundar, com a ajuda de submarinos, os barcos insubmissos. Encontrando-
se entre dois fogos, o almirante tomou a iniciativa e transmitiu os telegramas ao
Tsentrobalt declarando que não executaria as ordens, mesmo se Tsentrobalt os
confirmasse com o seu carimbo.
A leitura dos telegramas transtornou os marinheiros. Na realidade, em qualquer
ocasião, eles invectivavam impiedosamente Kerensky e os conciliadores. Mas era aí, a
seus olhos, uma luta íntima nos sovietes. Porque enfim, no comité executivo central, a
maioria pertencendo aos mesmos partidos que no comité regional de Finlândia que
acabava de se pronunciar pelo poder dos sovietes. É claro: nem os mencheviques, nem
os socialistas-revolucionários não podem aprovar que se afunde navios que se
pronunciam pelo poder do comité executivo. Então como é que o velho oficial da marinha
Dodarev tenha podido intrometer-se numa discussão de família nos sovietes para a
transformar em batalha naval? Ainda na véspera, os grandes navios estavam oficialmente
considerados como o apoio da revolução, ao contrário dos torpedeiros de espírito mais
atrasado e dos submarinos apenas sensibilizados pela propaganda. É possível que as
autoridades se dispusessem agora, seriamente, com a ajuda dos submarinos, afundar os
barcos! Tais factos não se podiam manter nos espíritos teimosos dos marinheiros.
A ordem que lhe parecia por boas razões vinda de um sonho era portanto, em Julho,
o rebento legítimo das sementes de Março. Desde de Abril, os mencheviques e os

367
socialistas-revolucionários tinham começado a mobilizar a província contra Petrogrado,
aos soldados contra os operários, à cavalaria contra os metralhadores. Eles tinham dado
às companhias uma representação nos sovietes mais vantajosa que a das fábricas; eles
tinham patrocinado as pequenas empresas espalhadas em vez das fábricas gigantes da
metalurgia. Representando o passado de ontem, eles procuravam um apoio entre os
atrasados de toda a especie. Perdendo equilíbrio, eles excitavam os recuados contra os
avançados. A política tem a sua lógica, sobretudo em tempo de revolução. Pressionados
de todos os lados, os conciliadores viram-se forçados a impor ao almirante Verderevsky o
cuidado de afundar os barcos onde reinava um espírito mais avançado. Infelizmente para
os conciliadores, os espíritos atrasados sobre os quais eles queriam se apoiar
esforçavam-se cada vez mais e alinhar-se com os espíritos avançados; as tripulações dos
submarinos não deixaram de se indignar com a ordem de Dodarev tal como as tripulações
dos couraçados.
À cabeça do Tsentrobalt encontravam-se homens cujo temperamento não era de
forma nenhuma o de um Hamlet: de acordo com os membros dos comités de vasos, sem
perder tempo, eles tomaram a seguinte resolução: o torpedeiro da esquadra Orfeu,
designado para enviar para o fundo os homens de Cronstadt seria expedido com urgência
para Petrogrado, em primeiro lugar para obter as informações sobre o que se passava,
em segundo lugar «para prender o adjunto do ministro da Marinha Dodarev». Imprevista
que possa parecer esta resolução, ela prova com uma força particular até que ponto os
marinheiros do Báltico ainda consideravam os conciliadores como o adversário interior,
pensando diferentemente de Dodarev que eles julgavam como inimigo comum. O Orfeu
entrou no estuário do Neva vinte e quatro horas após terem abordado nesse sítio dez mil
marinheiros armados de Cronstadt. Mas «a relação de forças tinha-se modificado.» Todo
o dia, foi proibida à tripulação de desembarcar. Foi somente à noite que uma delegação
composta de setenta e sete marinheiros do Tsentrobalt e das tripulações da frota, foi
admitida na sessão unificada dos comités executivos, onde se fazia o balanço dos
primeiros resultados dos dias de Julho. Os vencedores banhavam-se na alegria da sua
recente vitória. O relator Voitinsky descreveu, com satisfação, as horas de fraqueza e de
humilhação para dar relevo ao triunfo que tinha seguido. « A primeira unidade que veio ao
nosso socorro – dizia ele – foram os carros blindados. Tomámos a firme resolução, para
que no caso que um bando armado nos assaltasse, de abrir fogo... Vendo todo o perigo
que ameaçava a revolução, demos ordem a certos contingentes (da frente) de subir nos
comboios e de vir ajudar-nos...» A maioria da alta assembleia respirava ódio em relação
aos bolcheviques, particularmente aos marinheiros.
Foi neste ambiente que caíram os delegados do Báltico, munidos de um mandato de
prisão contra Dodarev. Foi por gritos selvagens, por uma barulheira de murros nas mesas,
por batidas de pés, que os vencedores acolheram a leitura da resolução da frota báltica.
Prender Dodarev? Mas o valente capitão de navio tinha simplesmente preenchido um
dever sagrado em relação à revolução, à qual estes, esses marinheiros, amotinados,
contra-revolucionários, atraiçoavam pelas costas. Pour uma resolução especial, a
assembleia unificada solidarizou-se solenemente com Dodarev. Os marinheiros
escancaravam os olhos ao olharem os oradores e a se entre-olhar. Agora somente

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começavam a compreender o que se passava diante deles. Toda a delegação foi presa no
dia seguinte e acabou a sua educação política na prisão. A seguir prenderam o presidente
do Tsentrobalt, que tinha chegado ao socorro, o cabo de marinheiros Dybenko, e também
o almirante Verderevsky convocado para a capital para explicações.
Na manhã do dia 6, os operários voltaram para o trabalho. Nas ruas, como
manifestantes só há tropas vindas da frente. Os agentes da contra-espionagem verificam
os passaportes e procedem às prisões à direita e à esquerda. Um jovem operário, Voinov,
que distribuia o Listok Pravda (panfleto da Pravda) publicado no lugar do jornal
bolchevique que foi saqueado na véspera, foi assassinado na rua por um bando, talvez os
mesmos agentes da contra-espionagem. Os elementos da reacção, os Cem Negros,
tomam gosto a esmagar o motim. Pilhagens, violências, aqui e acolá tiroteio continuam
nas diferentes partes da cidade. No decorrer do dia chegam, uns após outros, uma
divisão da cavalaria, o regimento dos cossacos do Don, uma divisão de lanceiros, o
regimento Izborsky, o regimento Pequeno Russo, um regimento de dragões, e outros. «Os
contingentes cossacos que chegaram em grande número – escreve o jornal de Gorki –
estão muito agressives.» Sobre o regimento Izborsky, que acabara de chegar, abriram
fogo de metralhadoras em dois lugares da cidade. Nos dois casos, descobriu-se que os
metralhadoras tinham sido instaladas nos celeiros, os culpados não foram descobertos.
Dispararam sobre os contingentes que desembarcavam ainda noutros lugares. A loucura
calculada deste tiroteio transtornou profundamente os operários. Era claro que
provocadores experientes recebiam os soldados com chumbo com o objectivo de os
vacinar contra o bolchevismo. 148 operários esforçavam-se para explicar isso aos
soldados que chegavam, mas não os deixavam aproximar: pela primeira vez, desde dos
dias de Fevereiro, entre o operário e o soldado se colocava o junker e o oficial.
Os conciliadores acolhiam com alegria os regimentos que chegavam. A assembleia
dos representantes das tropas, em presença de um grande número de oficiais e de
junkers, o mesmo Voitinsky exclamou pateticamente: «Agora pela rua Millionnaia desfilam
as tropas e os carros blindados em direcção da praça do palácio, para se colocarem à
disposição do general Polovtsev. Aqui está a força real sobre a qual nos apoiamos.»
Como cobertura política, colocaram ao serviço do comandante da região quatro
socialistas: Avksentiev e Gotz do comité executivo, Skobelev e Tchernov do governo
provisório. Mas isso não salvou o comandante. Kerensky, logo, se vangloriou diante dos
guardas brancos de ter, no seu regresso da frente, no decurso das jornadas de Julho,
despedido o general Polovstev «por falta de decisão.»
Agora podia-se enfim resolver o problema há muito adiado: destruir o ninho de
vespas dos bolcheviques na casa de Kczensiska. Na vida social em geral, em tempo de
revolução em particular, tomam às vezes uma grande importância factos de segunda
ordem que agem sobre a imaginação pelo seu sentido simbólico. Foi assim que se
atribuiu uma importância desproporcionada, na luta contra os bolcheviques, à
«confiscação» por Lenine do palácio de Kczesinska, bailarina da corte, menos famosa
pela sua arte do que pelas suas relações com os representantes masculinos da dinastia
dos Romanov. Seu hotel particular era o benefício de tais relações, inauguradas
verosimilmente por Nicolau II quando ele ainda era o czar herdeiro. Antes da guerra, os

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pequenos burgueses bisbilhotavam no covil situado em frente do palácio de Inverno, lugar
de encontros de luxo, de botas com esporas, de diamantes, com uma nuança de respeito
invejoso; durante a guerra, dizia-se bastantes vezes: «É roubo»; os soldados falavam
ainda com mais azedume. Aproximando-se da idade limite, a bailarina refugiou-se na
carreira patriótica. O cândido Rodzianko conta a esse propósito: «O generalíssimo (o
grão-duque Nicolau Nicolaievitch) mencionou que conhecia a acção e a influência, nos
assuntos da artilharia, da bailarina Kczesinska por entremedio da qual diversas firmas
obtinham encomendas. «Não é de surpreender que após a insurreição o palácio vazio de
Kczesinska não despertava no povo grandes simpatias. Quando a revolução precisava de
instalações, o governo não ousava tomar qualquer casa particular. Requisitar os cavalos
dos camponeses para a guerra – é uma coisa. Requisitar para a revolução os hotéis
particulares que estão vazios é um outro assunto. Mas as massas populares raciocinavam
de outra forma.
A procura de um local que lhe convinha, a divisão da reserva dos carros blindados
caiu, nos primeiros dias de Março, no hotel de Kczsinska e ocupou-o: a bailarina tinha
uma boa garagem. A divisão cedeu de boa vontade ao comité dos bolcheviques de
Petrogrado o andar superior do edifício. A amizade feita entre os bolcheviques e as
equipas de carros blindados completou a sua amizade com os metralhadores. A ocupação
do palácio, afectada algumas semanas antes da chegada de Lenine, passou primeiro
pouco mais ou menos despercebida. A indignação contra os ocupantes aumentava à
medida que crescia a influência dos bolcheviques. Os boatos dos jornais afirmando que
Lenine estaria alojado no quarto da bailarina e que toda a mobília do hotel teria sido
saqueado, eram simplesmente mentiras. Lenine vivia num modesto apartamento da sua
irmã, e, no que respeita à mobília da bailarina, o comandante do lugar tinha-o feito
arrumar à parte. Sokhanov, que visitou o palácio no dia da chegada de Lenine, fez uma
descrição do lugar que não deixa de ter interesse. «Os apartamentos da famosa bailarina
tinham um aspecto estranho e extravagante. Os tectos e as paredes, feéricas, não se
harmonizavam com a mobília rudimentar, com mesas, cadeiras e bancos primitivos,
dispostos de qualquer maneira tendo por só fim a sua utilidade. As divisões da casa
estavam pouco guarnecidas. O mobiliário de Kczesinska tinha sido retirado...»
Iludindo prudentemente o caso da divisão dos carros blindados, a imprensa
representava Lenine como o responsável da confiscação, à mão armada, de uma casa
pertencendo a uma inofensiva sacerdotisa da arte. Esse tema alimentava os editoriais e
os folhetins. Operários e soldados sujos entre os veludos, as sedas e as tapeçarias!
Todos os salões da capital ferviam de indignação. Tal como outrora os girondinos tinham
atribuído aos jacobinos a responsabilidade dos massacres de Setembro, o
desaparecimento dos colchões num quartel e a propaganda a favor da lei agrária – agora,
os cadetes e os democratas acusavam os bolcheviques de sapar as bases da moral
humana e de cuspir no chão do hotel de Kczesinska. A bailarina da dinastia tornou-se o
símbolo de uma cultura espezinhada pelas botas cardadas da barbarie. Esta apoteose
deu asas à proprietária, que se queixou à justiça, e o tribunal decidiu que os bolcheviques
seriam expulsos do lugar.

370
Mas não era tão simples assim. «Os carros blindados que vigiavam no pátio
pareciam suficientemente imponentes», nota nas suas lembranças Zalejsky, membro do
Comité de Petrogrado nessa época. Além disso, o regimento dos metralhadores, assim
como outras unidades, estava pronto, em caso de necessidade, a apoiar as equipas dos
carros blindados. No 25 de Maio, o secretariado do comité executivo, por causa da queixa
da bailarina, reconheceu que «os interesses da revolução exigiam o respeito das decisões
dos tribunais». Os conciliadores não iam para além desse aforismo platónico, apesar da
mágoa da bailarina que não tinha tendência para o platonismo.
No hotel particular continuavam a trabalhar lado a lado com o Comité central, o
Comité de Petrogrado e a Organização militar. «Na casa Kczesinska – conta Raskolnikov
– não havia constantemente multidão. Uns visitava para tratar assuntos, outros iam ao
depósito da livraria... outros iam à redacção da Soldatskaia Pravda (Pravda dos
Soldados), outros enfim a uma sessão qualquer. Reuniões tinham lugar muitas vezes, por
vezes em permanência – seja na vasta sala de baixo, seja no andar superior, à volta de
uma grande mesa, numa sala que tinha sido aparentemente a sala das refeições da
bailarina.» Do alto da varanda do hotel particular, acima do qual flutuava a imponente
bandeira do comité central, oradores improvisavam sem parar comícios, não somente
durante o dia, mas mesmo à noite. Muitas vezes, na obscuridade completa, avançava
para o edifício, um contingente de soldados, ou então uma multidão de operários
reclamavam um orador. Diante da varanda paravam também, ocasionalmente, grupos de
pequenos burgueses cuja curiosidade era periodicamente despertada pelos boatos
lançados pelos jornais. Durante os dias críticos aproximaram-se do edifício das
manifestações, hostis entretanto, exigiam a prisão de Lenine e a expulsão dos
bolcheviques. Sob a torrente de homens que chegavam junto do palácio, sentia-se
fervilhar as profundezas da revolução. O assunto da casa Kczesinska atingiu o apogeu
durante os dias de Julho. «O grande Estado-maior do movimento – diz Miliokov – não se
encontra no palácio de Tauride, mas da cidadela de Lenine, a casa Kczesinska, na
varanda clássica.» O esmagamento da manifestação levava fatalmente à destruição do
quartel-general dos bolcheviques.
A três horas da manhã, marcharam, separados por uma fita branca para a casa
Kczesinska e a fortaleza de Pedro e Paulo, o batalhão de reserva do regimento de
Petrogrado, um efectivo de metralhadores, uma companhia do regimento Semenovsky,
uma companhia do regimento Preobrajensky, o efectivo dos alunos oficiais do regimento
Volhynia, duas peças de canhão e um destacamento de oito carros blindados. Às sete
horas da manhã, o ajudante do comandante das tropas do distrito de Kozmina, socialista-
revolucionário, exigiu a evacuação do hotel particular. Não querendo entregar as armas,
os marinheiros de Cronstadt, que não eram mais do que cento e vinte no palácio,
voltaram rapidamente para a fortaleza Pedro e Paulo. Quando as tropas do governo
ocuparam o hotel, não encontraram lá ninguém, excepção feita de alguns empregados...
Restava a questão da fortaleza. Do bairro de Vyborg, como nos lembramos, jovens
guardas vermelhos tinham ido para a fortaleza para ajudar em caso de necessidade.
«Sobre as muralhas da fortaleza — conta um deles — algumas peças de canhão foram
apontadas, verosimilmente para os marinheiros, no caso... Isso começa a cheirar a

371
sangue...» Mas conversações diplomáticas encontraram uma solução pacífica. Sobre
ordem do comité central, Estaline propôs aos líderes conciliadores tomar medidas comuns
para liquidar sem efusão de sangue as manifestações dos homens de Cronstadt. A dois,
com o menchevique Bogdanov, convenceram sem grandes dificuldades os marinheiros de
se submeter ao ultimato lançado na véspera por Liber. Quando os automóveis blindados
do governo se aproximaram da fortaleza, uma delegação saiu pela porta principal para
declarar que a guarnição se submetia ao comité executivo. As armas devolvidas pelos
marinheiros e soldados foram levadas em camiões. Os marinheiros desarmados tinham
embarcações para voltar para Cronstadt. A rendição da fortaleza pode ser considerada
como o episódio final do movimento de Julho. As equipas de carros blindados chegadas
da frente ocuparam o palácio Kczesinska e o forte, evacuados pelos bolcheviques, e elas
deviam passar pela sua vez, na véspera da insurreição de Outubro, para o lado destes
últimos.

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Os bolcheviques podiam tomar o poder em Julho?
Proibida pelo governo e pelo comité executivo, a manifestação teve um carácter
grandioso; na segunda jornada, ela contou pelo menos quinhentas mil pessoas.
Sokhanov, que não encontra bastantes palavras para condenar «o sangue e a lama» das
jornadas de Julho, escreve portanto: «independentemente dos resultados políticos, só se
podia considerar com admiração esse espantoso movimento das massas populares. Não
se podiam, mesmo julgando nefasto, entusiasmar diante da amplitude gigantesca dos
elementos desencadeados.» Segundo os cálculos da comissão de inquérito, houve vinte
e nove mortos, cento e quatorze feridos, aproximadamente a igualdade dum lado e de
outro.
Que o movimento tenha começado a partir de baixo, independentemente dos
bolcheviques, numa certa medida contra eles, foi, nas primeiras horas, confessado pelos
próprios conciliadores. Mas já pela noite do 3 de Julho, e mais particularmente no dia
seguinte, a apreciação oficial modificou-se. Declarou-se que o movimento é uma
insurreição onde os bolcheviques são os organizadores. «Sob a palavra de ordem: «Todo
o poder aos sovietes» — escrevia logo Stankevitch, próximo de Kerensky — produzia-se
formalmente uma insurreição dos bolcheviques contra a maioria soviética de então,
composta dos partidos da defesa nacional.» A acusação de ter fomentado um
levantamento não é somente um procedimento de luta política: essa gente, no corrente de
Junho, convencera-se demasiado da força da influência dos bolcheviques sobre as
massas e, agora, recusavam simplesmente em acreditar que o movimento dos operários
e dos soldados tivesse podido cair sobre a cabeça dos bolcheviques. Trotsky tentou dar
uma explicação na sessão do comité executivo: «Acusam-nos de criar a opinião das
massas; não é verdade, tentamos somente formulá-la.»
Nos livros que foram publicados pelos adversários após a insurreição de Outubro,
nomeadamente por Sokhanov, pode-se encontrar esta afirmação segundo a qual os
bolcheviques teriam, unicamente no seguimento da derrota do levantamento de Julho,
dissimulado o seu verdadeiro objectivo, alegando o movimento espontâneo das massas.
Mas pode-se esconder, como um tesouro, um plano de insurreição armada arrastando do
seu remoinho centenas de milhar de homens? Será que na véspera de Outubro, os
bolcheviques não se encontraram forçados em chamar abertamente à insurreição e de se
preparar para isso à vista de toda a gente? Se alguém não descobriu um plano em Julho,
é porque simplesmente ele não existia.
A irrupção das metralhadoras e dos marinheiros de Cronstadt na fortaleza de Pedro
e Paulo, com o consentimento da guarnição permanente (sobretudo sobre esta
«incursão» que se acalmariam os conciliadores!), não foi de forma nenhuma o acto de
insurreição armada. O edifício situado numa pequena ilha – mais prisão do que posição
militar – podia ainda na realidade servir de refúgio a gente recuando, mas não dava nada
para uma ofensiva. Procurando ganhar o palácio de Tauride, os manifestantes desfilavam
com indiferença diante dos mais importantes edifícios governamentais, para a ocupação
dos quais bastava um destacamento dos guardas vermelho de Potilov. A fortaleza Pedro e

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Paulo foi tomada pelos manifestantes logo que eles se apoderaram das ruas, de diversos
posto, das praças. Houve um estímulo a mais no facto que o palácio Kczesinska,
encontrando-se na vizinhança, podia ser socorrido pela fortaleza em caso de perigo.
Os bolcheviques fizeram tudo para reduzir o movimento de Julho a uma
manifestação. Mas, mesmo assim, pela lógica das coisas, o movimento não passou os
limites? É mais difícil responder a esta questão de política que a uma acusação sobre
matéria criminal. Apreciando as jornadas de Julho logo após terem terminado, Lenine
escrevia:
«Uma manifestação antigovernamental, tal seria formalmente a mais exacta
descrição dos acontecimentos. Mas o fundo do assunto é que nós não temos uma
manifestação vulgar, é qualquer coisa de muito mais que uma manifestação e é menos
que uma revolução.»
Quando as massas assimilam qualquer ideia, elas querem realizá-la. Fiando-se ao
partido dos bolcheviques, os operários e, tanto mais, os soldados não tinham ainda tido
tempo, todavia, para elaborar esta convicção que não se devia caminhar de outra forma
senão após o apelo do partido e sob a sua direcção. A experiência de Fevereiro e de Abril
ensinava sobretudo outra coisa.
Quando Lenine dizia, em Maio, que os operários e os camponeses eram cem vezes
mais revolucionários que o nosso partido, ele generalizava sem dúvida a experiência de
Fevereiro e de Abril. Mas as massas também generalizavam esta experiência à sua
maneira. Elas pensavam: mesmo os bolcheviques arrastam-se e hesitam. As
manifestações estavam dispostas nos dias de Julho – se o andar das coisas não tinha
necessidade de liquidar o poder oficial. Em caso de resistência da burguesia, eles
estavam prontos a empregar as armas. Nesse sentido, havia aqui um elemento de
insurreição armada. Se, porém, o movimento não fosse levado até ao meio, longe de ir
até ao fim, é porque os conciliadores obscureciam o quadro...
No primeiro volume desta obra, caráterizamos em detalho o paradoxo do regime de
Fevereiro. O poder foi obtido das mãos do povo revolucionário pelos democratas
pequeno-burgueses, os mencheviques e os socialistas-revolucionários. Eles não tinham
considerado essa tarefa. Eles não tinham conquistado o poder. Para sua defesa, eles
encontraram-se aí colocados. Apesar da vontade das massas, eles fizeram tudo para
transmitir o poder à burguesia imperialista. O povo não tinha confiança nos liberais, mas
fiava-se nos conciliadores que, todavia, não se fiava neles. E estes últimos tinham razão à
sua maneira. Mesmo após ter totalmente cedido o poder à burguesia, os democratas
ficaram por qualquer coisa. Tendo tomado o poder na mão, eles deviam ser reduzidos a
nada. Das mãos dos democratas, o poder deslizou quase automaticamente para as mãos
dos bolcheviques. A infelicidade era irreparável, porque residia na nulidade orgânica da
democracia russa...
Os manifestantes de Julho queriam remeter o poder aos cadetes. Para isso era
indispensável que o sovietes consentissem a tomá-lo. Ora, mesmo na capital, onde a
maior parte dos operários e dos elementos activos da guarnição seguiam já os

374
bolcheviques, a maioria no soviete, em virtude da lei da inércia, especifica que toda a
assembleia de representantes, pertencia ainda aos partidos pequeno-burgueses que
consideravam um atentado ao poder da burguesia como um atentado contra eles
mesmos. Os operários e os soldaos ressentiam fortemente a contradição entre o seu
estado de espírito e a política do Soviete, isto é entre o que eles tinham sido ontem e o
que eles eram hoje. Ao se sublevarem pelo poder dos sovietes eles não davam de forma
nenhuma a sua confiança à maioria conciliadora. Mas eles não sabiam como se
desembaraçar. Derrubá-la pela violência, teria sido dissolver os sovietes no lugar de lhes
transmitir o poder. Antes de encontrar a via para a renovação dos sovietes, os operários e
os soldados tentaram submetê-los à sua vontade pelo método da acção directa.
Numa proclamação emitida pelos dois comités executivos sobre as jornadas de
Julho, os conciliadores apelaram com indignação aos operários e aos soldados contra os
manifestantes que, pretendiam eles, «tentara impor pela força das armas a sua vontade
aos vossos eleitos». Como se os manifestantes e eleitores não eram, sob denominações
diferentes, os mesmos operários e soldados! Como se os eleitores não tivessem o direito
de impor sua vontade aos eleitos! E como se esta vontade consistisse em outra coisa do
que reclamar a execução dos compromissos: tomar o poder no interesse do povo. Ao se
concentrar à volta do palácio de Tauride, as massas gritavam aos ouvidos do comité
executivo a mesma frase que um operário anónimo tinha servido a Tchernov ao lhe
estender um punho rude: «Toma o poder quando lho te dão.» Como resposta, os
conciliadores chamaram os cossacos. Senhores democratas preferiam iniciar a guerra
civil contra o povo em vez de tomar o poder sem efusão de sangue. Os guardas brancos
foram os primeiros a disparar. Mas a atmosfera política da guerra fria foi criada pelos
mencheviques e os socialistas-revolucionários.
Chocando com a resistência armada do próprio órgão ao qual eles queriam remeter
o poder, os operários e os soldados perderam consciência do seu objectivo. O eixo
político do potente movimento das massas viu-se destronado. A campanha de Julho
reduziu-se a uma manifestação parcialmente afectada pelos meios de uma insurreição
armada. Pode-se dizer também que foi uma meia insurreição por um objectivo que não
admitia outros métodos senão uma manifestação.
Ao renunciar ao poder, os conciliadores não o entregavam completamente aos
liberais: primeiro porque eles temiam estes últimos – pequeno burguês tem medo do
grande – e porque eles temiam por estes últimos: um ministério puramente cadete não
teria sido imediatamente derrubado pelas massas. Ainda mais! Como indica justamente
Miliokov, «na luta contra as manifestações armadas espontaneas, o comité executivo do
soviete consolida o seu direito, declarado durante os dias sarilhos dos dias 20 e 21 de
Abril, em dispor à sua vontade das forças armadas da guarnição de Petrogrado». Os
conciliadores continuam como outrora a se furtarem a eles próprios o poder que eles têm
à mão. Para opor uma resistência armada aos que reclamam nos seus cartazes o poder
dos sovietes, o soviete vê-se forçado a concentrar de facto o poder entre as suas mãos.
O comité executivo vai ainda mais longe: ele proclama formalmente, nesses dias a
sua soberania. «Se a democracia revolucionária reconhecia indispensável que todo o

375
poder passasse para as mãos dos sovietes – dizia a resolução do 4 de Julho – é
seguramente à assembleia plenária dos comités executivos que pode pertencer a solução
desta questão.» Tendo declarado que a manifestação pelo poder dos sovietes era um
levantamento contra-revolucionário, o comité executivo constituía ao mesmo tempo poder
supremo e decidia da sorte do governo.
Quando, na madrugada do 5 de Julho, as tropas «fiéis» penetraram no edifício do
palácio de Tauride, o seu comandante deu a conhecer que o seu destacamento
subordinava-se integralmente e sem reserva ao comité executivo central. Nem uma
palavra sobre o governo! Mas os rebeldes, eles também, consentiam a submeter-se ao
comité executivo como poder. Quando a fortaleza Pedro e Paulo se rendeu, a guarnição
não teve que declarar que ela obedecia ao comité executivo. Ninguém exigiu que ela se
submetesse às autoridades oficiais. Mas mesmo as tropas chamadas da frente meteram-
se inteiramente à disposição do comité executivo. De qual utilidade, nesse caso, o sangue
tinha sido derramado?
Se a luta tivesse lugar no fim da Idade Média, as duas partes, ao se massacrarem
mutuamente, teria citado os mesmos provérbios bíblicos. Os historiadores formalistas
teriam logo vindo concluir que a luta tinha tido lugar por questões de exegese: os artesãos
e os camponeses analfabetos da Idade Média metiam, como se sabe, uma estranha
paixão a matarem-se por subtilidades filológicas nas revelações de João Evangelista, tal
como os dissidentes da Igreja russa eram exterminados a propósito de saber se se devia
fazer o sinal da cruz com dois ou três dedos. Na realidade, na Idade Média ainda menos
que no presente, sob as formulas simbólicas dissimulava-se uma luta de interesses vitais
que convém discernir, um só e mesmo verso do Evangelho significava para uns a
escravidão e para os outros a liberdade.
Mas existe analogias muito mais recentes, mais próximas. Durante as jornadas de
Junho de 1848, em França, dos dois lados das barricadas ouvia-se um só e mesmo grito:
«Viva a República!» Os idealistas pequeno-burgueses imaginavam por consequência os
combates de Junho como um mal-entendido provocado pela asneira de uns, pela
exaltação de outros. Na realidade, os burgueses queriam a república para eles, os
operários queriam a república para todos. As palavras de ordem política servem mais para
disfarçar os interesses do que para designar o seu verdadeiro nome.
Tão paradoxal que seja o regime de Fevereiro, que os conciliadores decoravam aliás
com hieróglifos marxistas e populistas, as verdadeiras relações de classe são
suficientemente transparentes. É necessário não perder de vista a natureza híbrida dos
partidos conciliadores. Os pequenos burgueses instruídos apoiam-se sobre os operários e
os burgueses, mas confraternizavam com os proprietários da nobre condição e os
grandes fabricantes de açúcar. Ao se inserir no sistema soviético, através do qual as
reivindicações da base elevavam-se até ao Estado oficial, o comité executivo servia
também de pára-vento político à burguesia. As classes possuidoras «submetiam-se» ao
comité executivo na medida onde ele puxava o poder para o seu lado. As massas
submetiam-se ao comité executivo na medida onde elas esperavam que ele se tornasse o
órgão da dominação dos operários e dos camponeses. No palácio de Tauride cruzavam-

376
se as tendências de classes contrárias, onde uma e outra se cobriam com o nome de
comité executivo: uma pela falta de compreensão e por credulidade, a outra por cálculo
frio. Ora, na luta, se tratava sobretudo de saber quem governava o país: a burguesia ou o
proletariado?
Mas, se os conciliadores não queriam tomar o poder, e se a burguesia não tinha
força suficiente para o deter, talvez, em Julho, os bolcheviques poderiam tomar o poder?
Durante os dois dias críticos, o poder em Petrogrado tinha completamente caído nas mão
das instituições governamentais. O comité executivo tinha sentido pela primeira vez a sua
impotência completa. Tomar o poder nessas condições não teria apresentado para os
bolcheviques nenhuma dificuldade. Poderia-se amparar da autoridade mesmo em certos
pontos da província. Nesse caso, o partido bolchevique tinha razão de renunciar à tomada
do poder? Não poderia, tendo-se fortificado na capital e noutras regiões industriais,
estender a seguir o seu domínio a todo o país? A questão é importante.
Nada contribuiu, no fim da guerra, para o triunfo do imperialismo e da reacção na
Europa tanto como os meses tão curtos do kerenskismo que extenuara a Rússia
revolucionária e causaram um prejuízo incalculável à sua autoridade moral aos olhos dos
exércitos beligerantes e das massas trabalhadoras da Europa, que esperavam da
revolução uma palavra nova. Se os bolcheviques tivessem reduzido de quatro meses —
formidável lapso de tempo! — as dores de parto da insurreição proletária, eles ter-se-iam
encontrado diante de um país menos esgotado, a autoridade da revolução na Europa teria
sido menos comprometida. Isso teria dado não somente aos sovietes enormes vantagens
na condução das conversações com a Alemanha, isso teria exercido uma enorme
influência sobre a marcha da guerra e da paz na Europa. A perspectiva era demasiado
sedutora! E, todavia, a direcção do partido tinha absolutamente razão em não se
comprometer na via da insurreição armada.
Tomar o poder não bastava. Era preciso guardá-lo. Quando, em Outubro, os
bolcheviques consideraram que a sua hora tinha soado, o período mais difícil para eles
surgiu após a tomada do poder. Foi preciso a mais alta tensão de forças da classe
operária para resistir aos numerosos ataques dos inimigos. Em Julho esta disposição à
luta intrépida ainda não existia, mesmo entre os operários de Petrogrado. Tendo a
possibilidade de tomar o poder, eles o propunham, porém ao comité executivo. O
proletariado da capital que, na sua esmagadora maioria, já se tinha entregue aos
bolcheviques, ainda não tinha cortado o cordão umbilical que o ligava aos conciliadores.
Havia ainda bastantes ilusões nesse sentido que, pela palavra e por uma manifestação,
podia-se chegar a tudo; que intimidando os mencheviques e os socialistas-
revolucionários, poder-se-ia estimular a seguir uma política comum com os bolcheviques.
Mesmo a vanguarda da classe não compreendia claramente as vias pelas quais se
pode chegar ao poder. Lenine logo escrevia:
«A real falta do nosso partido, durante as jornadas dos dias 3 e 4 de Julho, revelada
agora pelos acontecimentos, era somente isto... que o partido acreditava ainda possível o
desenvolvimento pacífico das transformações políticas por intermédio de uma mudança
de política nos sovietes, enquanto que na realidade os mencheviques e os socialistas-

377
revolucionários já se tinham de tal forma extraviado e ligados por um entendimento com a
burguesia, e esta tinha-se tornado de tal forma contra-revolucionária que estava fora de
questão um desenvolvimento pacífico qualquer.»
Se o proletariado não era políticamente homogéneo nem suficientemente resoluto, o
mesmo se passava e tanto mais com o exército camponês. Pela sua conduta durante as
jornadas do 3 e 4 de Julho, a guarnição tinha criado absoluta possibilidade para os
bolcheviques de tomar o poder. Mas havia portanto nos efectivos da guarnição
contingentes neutros que, cerca da noite do 4 de Julho, inclinaram-se resolutamente para
os partidos patriotas. No 5 de Julho, os regimentos neutros alinharam-se do lado do
comité executivo, enquanto que os regimentos inclinadas para o bolchevismo esforçaram-
se por tomar uma cor de neutralidade. Isso dava mãos livres às autoridade muito mais
que a chegada tardia de tropas da frente. Se os bolcheviques, por um excesso de ardor,
agarrassem o poder no 4 de Julho, a guarnição de Petrogrado não somente não o teria
conservado, mas ela teriam impedido os operários de o manter no caso inevitável de uma
reacção externa.
Menos favorável ainda se apresentava a situação no exército da frente. A luta pela
paz e a terra, sobretudo depois da ofensiva de Junho, tornara-a extremamente acessível
às palavras de ordem dos bolcheviques. Mas o que se chama bolchevismo «elementar»
entre os soldados não se identificava de forma nenhuma na sua confiança com um partido
determinado, com o seu comité central e os seus líderes. As cartas dos soldados dessa
época traduzem muito claramente esse estado de espírito do exército. «Lembrem-se
disso, Senhores ministros e todos os principais dirigentes – escreve da frente a mão
rugosa de um soldado – nós, compreendemos mal os partidos, somente o futuro e o
passado estão próximos; o czar envia-vos para a Sibéria e vos prendia, mas nós, faremos
espeto de vós com as baionetas. «Um extremo grau de irritação contra os meios
superiores que enganam junta-se nestas linhas a uma confissão de impotência: «Nós
compreendemos mal os partidos.»
Contra a guerra e o corpo dos oficiais, o exército estava em revolta contínua,
utilizando para esse fim palavras de ordem do vocabulário bolchevique. Mas no que
respeita à questão de tomar o caminho da insurreição para transmitir o poder ao partido
bolchevique, o exército ainda não estava pronto, longe disso. Os contingentes seguros,
destinados a esmagar Petrogrado, foram recolhidos pelo governo a partir de tropas mais
próximas da capital, sem resistência activa dos outros efectivos, e foram transportados
por grupos sem qualquer resistência dos ferroviários. O descontentamento, rebelde,
facilmente inflamável, o exército continuava amorfo; na sua composição, havia muito
poucos núcleos sólidos bolcheviques capazes de dar uma direcção uniforme aos
pensamentos e aos actos da inconsistente massa dos soldados.
Por outro lado, os conciliadores, para oporem a frente a Petrogrado e aos rurais da
retaguarda, utilizavam não sem sucesso, a arma envenenada que a reacção, em Março,
tinha em vão tentado servir-se contra os sovietes. Os socialistas-revolucionários e os
mencheviques diziam aos soldados da frente: a guarnição de Petrogrado, sob influência
dos bolcheviques, não vos vem substituir; os operários não querem trabalhar para as

378
necessidades da frente; se o camponeses escutam os bolcheviques e se amparam logo
da terra, não resta nada para os combatentes. Os soldados tinham ainda necessidade de
uma experiência suplementar para compreender se o governo preservava a terra em
benefício dos combatentes ou dos proprietários.
Entre Petrogrado e o exército da frente estava a província. A sua reacção diante dos
acontecimentos de Julho pode ela própria servir de critério importante à posteriori na
questão de saber se os bolcheviques tinham razão em Julho de eludir a luta imediata pela
conquista do poder. Já em Moscovo, o pulso da revolução era mais fraco que em
Petrogrado. Na sessão do comité moscovita dos bolcheviques, houve debates
tumultuosos: alguns, pertencendo à extrema esquerda do partido, como por exemplo,
Bobnov, propunham ocupar os correios, o telégrafo, a central telefónica, a redacção do
Russkoie Slovo, isto é, tomar o caminho da insurreição. O comité, muito moderado no seu
estado de espírito geral, afastava resolutamente tais proposições considerando que as
massas moscovitas ainda não estavam prontas a agir desse modo. Apesar da proibição
do soviete, foi decidido organizar uma manifestação. A caminho da praça Skobelev
avançaram multidões consideráveis de operários, tendo as mesmas palavras de ordem
que em Petrogrado, mas longe de ter o mesmo entusiasmo. A guarnição não respondeu
com o conjunto, certos contingentes aderiram, um só veio armado. Um soldado de
artilharia, Davydovsky, que devia tomar parte importante nos combates de Outubro,
certificou nas suas Lembranças que Moscovo não estava pronta nos dia de Julho e que,
entre os dirigentes da manifestação, continuava, em razão do insucesso, «um fedor».
A Ivanovo-Voznesssensk, capital do textil, onde o soviete se encontrava já sob a
direcção dos bolcheviques, a notícia dos acontecimentos de Petrogrado chega ao mesmo
tempo que um boato segundo o qual o governo provisório teria caído. Na sessão da noite
do comité executivo, decidiu-se, como medida preparatória, estabelecer controlo sobre o
telefone e o telégrafo. No 6 de Julho, os trabalhos foram suspendidos nas fábricas; na
manifestação participaram cerca de quarenta mil pessoas, muitas estavam armadas.
Quando se tomou conhecimento que a manifestação de Petrogrado não tinha levado à
vitória, o Soviete de Ivanovo-Voznessensk apressou-se a bater em retirada.
Em Riga, sob a influência das notícias respeitante aos acontecimentos de
Petrogrado, houve, na noite do 5 a 6 de Julho uma zaragata entre os caçadores letões,
animados pelo espírito bolchevique, e o «batalhão da Morte» — e este, batalhão de
patriotas, foi forçado a recuar. O Soviete de Riga adoptou na mesma noite uma resolução
a favor do poder dos sovietes. Dois dias mais tarde, uma idêntica resolução foi votada em
Ekaterinburgo, capital do Ural. Esse facto que a palavra de ordem do poder dos sovietes,
lançado nos primeiros meses somente em nome do partido, tornava-se doravante o
programa dos diferentes sovietes locais, marcava incontestavelmente um grande passo
em frente. Mas, uma resolução pelo poder dos sovietes até à insurreição sob a bandeira
dos bolcheviques, o caminho a fazer era ainda considerável.
Em certos pontos do país, os acontecimentos de Petrogrado provocaram a descarga
de violentos conflitos particulares. Em Nijni-Novgorod, onde soldados evacuados tinham
há muito tempo resistido contra o seu envio para a frente, junkers enviados de Moscovo

379
provocaram pelos seus actos de violência a revolta de dois regimentos. Como resultado
do tiroteio, onde houve mortos e feridos, os junkers renderam-se e foram desarmados. As
autoridade eclipsaram-se. De Moscovo partiu uma expedição punitiva, composta de três
armas diferentes. À cabeça encontrava-se: o comandante das tropas da região de
Moscovo, o impulsivo coronel Verkhovsky, futuro ministro da Guerra de Kerensky;
Khintchuk, homem de temperamento pouco belicoso, futuro dirigente das cooperativas e
depois embaixador dos sovietes em Berlim. Todavia eles não encontraram ninguém para
castigar, porque um comité eleito pelos soldados revoltados já tinha tido tempo de
restabelecer completamente a ordem.
Pouco mais ou menos as mesmas horas da noite e no mesmo terreno, recusando
partir para a frente, amotinaram-se em Kiev, os cinco mil soldados do regimento do
hetman Polubotko; tomaram o arsenal, ocuparam a fortaleza, o estado-maior do distrito,
prenderam o comandante e o chefe da milícia. O pânico na cidade durou várias horas até
ao momento onde, por esforços combinados das autoridade militares, do comité das
organizações sociais e dos órgão das personagens presas foram libertados, enquanto
que a maior parte dos revoltados foram desarmados.
Na longínqua Krasnoiarsk, os bolcheviques, graças ao estado da guarnição,
sentiam-se tão sólidos que, apesar da vaga que começava já a passar sobre o país,
organizaram no 9 de Julho uma manifestação na qual tomaram parte oito a dez mil
pessoas, soldados na maior parte. Contra Krasnoiarsk foi enviado de Irkurst um
destacamento de quatrocentos homens de artilharia, sob a direcção do comissários do
distrito militar, o socialista-revolucionário Krakovetsky. Durante os dois dias que duraram
as conferências e as conversações inevitáveis para um regime de duplo poder, a
expedição punitiva foi de tal maneira contaminada pela agitação dos soldados que o
comissário apressou-se a levá-los para Irkutsk. Mas Krasnoiarsk constituía sobretudo uma
excepção.
Na maioria das cidades de governo e de distrito, a situação era infinitamente menos
favorável. Em Samara, por exemplo, a organização bolchevique local, a notícia dos
combates tidos na capital, «esperavam um sinal, ainda que não se possa contar com
ninguém». Um dos membros do partido do sítio conta que «os operários começavam a
simpatizar com os bolchevique», mas que era impossível esperar que se lançassem na
batalha; ainda menos podia-se contar com os soldados; no que diz respeito à organização
dos bolcheviques, «os efectivos eram muito fracos, éramos só uma punhado de homens;
no soviete de deputados operários havia alguns bolcheviques, e, no soviete dos soldados,
nem havia um só, ao que parece; aliás, esse soviete compunha-se exclusivamente de
oficiais». A causa principal da fraqueza e incoerente reacção do país era que a província,
tendo aceite sem alarde a revolução de Fevereiro das mãos de Petrogrado, digeria muito
mais lentamente que a capital os novos factos e as ideias novas. Era preciso um prazo
suplementar para que a vanguarda tivesse tempo de levar a ela, politicamente, as
grandes reservas.
O estado de consciência das massas populares, como instância decisiva da política
revolucionária, excluía assim a possibilidade para os bolcheviques de tomar o poder em

380
Julho. Ao mesmo tempo, a ofensiva sobre a frente incitava o partido a opor-se às
manifestações. O fiasco da ofensiva era inevitável. De facto, ele já tinha começado. Mas o
país ainda não sabia disso. O perigo residia que por uma imprudência do partido, o
governo pôde fazer cair sobre os bolcheviques a responsabilidade das consequências das
suas próprias loucuras. Era preciso dar à ofensiva tempo de chegar a esgotar-se. Os
bolcheviques não duvidavam que a reviravolta nas massas seria muito violenta. Ver-se-ia
então o que se devia empreender. O cálculo era absolutamente justo. Todavia, os
acontecimentos têm a sua própria lógica que não tem conta dos cálculos políticos, e,
nesta vez, a lógica caiu estrondosamente sobre a cabeça dos bolcheviques.
O insucesso da ofensiva sobre a frente tomou um carácter de catástrofe no 6 de
Julho, quando as tropas alemãs romperam a frente russa sobre uma extensão de doze
kilómetros de largura e dez de profundidade. Na capital, a ruptura da frente foi conhecida
a 7 de Julho, no momento onde a repressão, acompanhada de expedições punitivas,
atingia o auge. Muitos meses depois, quando as paixões acalmaram-se um pouco, pelo
menos, tomar um carácter mais sensato, Stankevitch, que não era o mais encarniçado
dos adversários do bolchevismo, escrevia sobre «um misterioso encandeamento dos
factos» tal como a ruptura da frente em Tamopol, imediatamente a seguir às jornadas de
Julho em Petrogrado. Essa gente não via ou não queria ver o encandeamento real dos
acontecimentos, residindo no facto que a ofensiva desesperada realizada sob a férula da
Entente não podia senão conduzir a uma catástrofe militar e, ao mesmo tempo, só podia
fazer explodir a indignação das massas enganadas pela revolução.
Mas é importante saber o que aconteceu na realidade? Seria fácil estabelecer uma
relação entre a manifestação de Petrogrado e a derrota na frente. A imprensa patriota,
longe de dissimular a derrota, exagerava-a tanto como pôde, sem hesitar em desvendar
os segredos militares: ela nomeava as divisões e os regimentos, indicava a sua
localização. «A partir do 8 de Julho – confessa Miliokov – os jornais começam a imprimir à
vontade os telegramas verídicos da frente, que foram um golpe fatal para a opinião
russa.» O começo estava aí: transtornar, assustar, desorientar, para associar tanto quanto
mais facilmente os bolcheviques aos alemãs.
A provocação jogou sem dúvida um certo papel nos acontecimentos da frente como
nas ruas de Petrogrado. Após a insurreição de Fevereiro, o governo tinha lançado sobre a
linha de fogo um grande número de antigos guardas e presidentes de câmara. Nem um
deles, bem entendido, não queria combater. Eles tinham mais medo dos soldados russos
que dos alemãs. Para fazer esquecer o seu passado, fingiam ter as opiniões mais
extremistas do exército, excitavam em segredo os soldados contra os oficiais, eram mais
que ninguém contra a disciplina e a ofensiva e, frequentemente, entregavam-se
totalmente aos bolcheviques. Mantendo entre eles uma ligação natural de cúmplices,
continuavam a manter uma camaradagem original de cobardia e de traição. Por
intermediário deles penetravam nas tropas e propagava-se rapidamente os boatos mais
fantásticos, nos quais os termos ultra-revolucionários combinavam-se com o espírito
reaccionário dos Cem Negros. Nas horas críticas, esses individuos eram os primeiros a
dar sinal de pânico.

381
A obra de desmoralização dos polícias e guardas foi mais de uma vez mencionada
pela imprensa. Não menos vezes encontram-se indicações desta ordem nos documentos
secretos do próprio exército. Mas o alto comando mantinha-se silencioso, preferindo
assimilar os provocadores Cem Negros aos bolcheviques. Agora, depois do fiasco da
ofensiva, esse procedimento era legalizado e o jornal dos mencheviques rivalizava em
zelo com as mais ignóbeis folhas chauvinistas. Gritando pelo «anarco-bolchevismo», aos
agentes da Alemanha e aos antigos guardas, os patriotas, não sem sucesso, abafaram
por um certo tempo a questão do estado geral do exército e de uma política de paz. «A
vitória sobre a frente de Lenine – declarava com franca vaidade o príncipe Lvov – tem,
segundo a minha profunda convicção, uma importância infinitamente maior para a Rússia
que a vitória dos alemãs sobre a frente sudoeste...» O honroso chefe do governo parecia
o cavalheiro Rodzianko nisto que ele na discernia quando devia calar-se.
Se, nos dias 3 e 4 de Julho, não tivessem conseguido reter as massas de uma
manifestação, esta teria inevitavelmente rebentado, em resultado da vitória de Tamopol.
Um detalhe de alguns dias somente teria no entanto trazido importantes modificações na
situação política. O movimento, de uma vez, tendo conhecido um grande
desenvolvimento, ganhando não somente a província, mas, de forma considerável, a
frente também. A política do governo foi revelada e foi infinitamente mais difícil de lançar a
culpa sobre os «traidores» da retaguarda. A situação do partido bolchevique teria sido
mais vantajosa sob todos os aspectos. Todavia, mesmo nesse caso, estava fora de
questão a conquista imediata do poder. Só se pode afirmar com certeza uma coisa: se o
movimento tivesse rebentado oito dias mais tarde, a reacção não teria conseguido
manifestar-se vitoriosamente em Julho. É precisamente «o misterioso encandeamento»
das datas da manifestação e da ruptura da frente que foi inteiramente explorada contra os
bolcheviques. A corrente de indignação e de desespero que vazou sobre a frente chocou
com a corrente de esperanças quebradas vindo de Petrogrado. A lição recebida pelas
massas na capital era demasiado severa para que fosse possível pensar a uma retomada
imediata da luta. Todavia, a viva irritação provocada pela derrota estúpida procurava uma
saída. E os patriotas conseguiram numa certa medida dirigi-la contra os bolcheviques.
Em Abril, em Junho e em Julho, os principais personagens em cena eram sempre os
mesmos: liberais, conciliadores, bolcheviques. As massas esforçavam-se, em todas essas
etapas, em afastar a burguesia do poder. Mas a diferença entre as consequências
políticas da intervenção das massas nos acontecimentos era enorme. Como resultado
das «jornadas de Abril», é a burguesia que tinha sofrido: a política de anexações tinha
sido condenada, pelo menos em palavras, o partido cadete tinha sido humilhado, tinham-
lhe retirado a pasta dos Assuntos estrangeiros. Em Junho, o movimento deu parte nula:
só levantaram o punho sobre os bolcheviques, mas o golpe não foi dado. Em Julho, o
partido dos bolcheviques foi acusado de traição, deslocado, proibiram-no a água e o fogo.
Se, em Abril, Miliokov tinha saltado do governo, Lenine, em Julho, teve que procurar
refúgio clandestino.
O que é que tinha determinado tão brusca mudança em dez semanas? É evidente
que, nos círculos dirigentes, uma séria evolução se tinha produzido no sentido da
burguesia liberal. Ora, é precisamente durante este período de Abril-Julho que a opinião

382
das massas se modificou bruscamente no sentido dos bolcheviques. Esses dois
processos opostos desenvolviam-se numa estreita dependência entre eles. Mais os
operários e os soldados se aproximavam dos bolcheviques, mais os conciliadores eram
obrigados de apoiar resolutamente a burguesia. Em Abril, os líderes do comité executivo,
preocupando-se sobre a sua influência, ainda podiam dar um passo na direcção das
massas e lançar borda fora Miliokov, munido, na verdade, de uma sólida bóia de
salvação. Em Julho, os conciliadores de acordo com a burguesia e o corpo dos oficiais
batiam sobre os bolcheviques. A modificação das relações de força foi provocada, em
consequência, ainda desta vez, por uma reviravolta do menos estável dos elementos
políticos, a democracia pequeno-burguesa, pela sua brusca evolução no sentido da
contra-revolução burguesa.
Mas, se é assim, os bolcheviques agiram justamente ao se juntar à manifestação e
tomando a responsabilidade dela? No 3 de Julho, Tomsky comentava a opinião de Lenine:
«Falar neste momento de uma manifestação armada sem querer uma nova revolução,
não se pode.» Como, portanto, nesse caso, o partido, algumas horas mais tarde, se metia
à cabeça da manifestação armada sem apelar para qualquer nova revolução? Um
doutrinário via aí inconsequência ou, pior ainda, ligeireza política. Foi assim que
considerava o assunto, por exemplo Sokhanov que, nas suas Memórias, consagrou um
bom número de linhas irónicas às oscilações da direcção bolchevique. Ora, as massas
intervêm nos acontecimentos, não segundo as instruções doutrinárias, mas quando isso
procede do seu próprio desenvolvimento político.
A direcção bolchevique compreendia que a situação política não podia ser
modificada senão por uma nova revolução. Todavia, os operários e os soldados não
compreendiam ainda isso. A direcção bolchevique via claramente que era preciso dar às
grandes reservas tempo de chegar às suas conclusões da aventura da ofensiva. Mas as
camadas avançadas corriam para a rua precisamente pelo efeito desta aventura. Um
radicalismo dos mais profundos nos anseios combinavam-se aliás entre elas com as
ilusões sobre os métodos. Os avisos dos bolcheviques não agiam. Os operários e os
soldados de Petrogrado não podiam verificar a situação senão após a sua própria
experiência. A manifestação armada foi justamente essa verificação. Mas,
independentemente da vontade das massas, a experiência podia transformar-se numa
batalha decisiva e, logo a seguir, numa derrota decisiva. Diante de uma tal situação, o
partido não podia ficar à parte. Lavar as mãos na bacia de um predicado estratégico teria
simplesmente significado que se abandonavam os operários e os soldados aos seus
inimigos. O partido das massas devia meter-se no terreno onde se tinham colocado as
massas afim de ajudá-las, sem partilhar de forma nenhuma as suas ilusões, a assimilar as
deduções indispensáveis com as menores percas possíveis. Trotsky respondia na
imprensa aos numerosas críticas desses dias: «Nós não consideramos necessário de nos
justificar diante de quem quer que seja para nos mantermos à distância, na perspectiva,
deixando ao general Polovstsev a possibilidade de «falar» com os manifestantes. Em
qualquer caso, a nossa intervenção não podia de qualquer maneira aumentar o número
de vítimas, nem transformar uma manifestação armada caótica numa insurreição
política.»

383
Nós encontramos a amostra das «jornadas de Julho» em todas as antigas
revoluções, com diversas saídas, em regra geral desfavoráveis, frequentemente
catastróficas. Uma etapa desse genero é inerente ao mecanismo de uma revolução
burguesa na media onde a classe que se sacrifica mais pela sua vitória e coloca aí mais
esperanças, beneficia menos. A lógica do processo é absolutamente clara. A classe
possuidora, infeudada ao poder pela insurreição, tende a pensar que desde então a
revolução preencheu totalmente a sua missão, e ela preocupa-se sobretudo provar a sua
boa-fé às forças da reacção. A burguesia «revolucionária» suscita a indignação das
massas populares pelas próprias medidas com as quais ela tenta conquistar a
condescendência das classes derrotas por ela. A desilusão das massas aparece logo,
muito antes que a sua vanguarda não tenha tempo de retomar o fôlego após os combates
revolucionários. O povo acredita que ele pode, com um novo golpe, terminar ou corrigir o
que ele realizou antes com insuficiente firmeza. Daí um novo impulso para uma nova
revolução, sem preparação, sem programa, sem olhar às reservas, sem reflexão sobre as
consequências. Por outro lado, a camada burguesa chegada ao poder parece somente
espreitar um impulso tumultuoso vindo de baixo para tentar ajustar contas definitivamente
com o povo. Tal é a base social e psicológica da meia revolução complementar que, mais
de uma vez na história, tornou-se o ponto de partida de uma contra-revolução vitoriosa.
Em 17 de Julho de 1791, Lafayette fez disparar, no Campo de Março sobre uma
manifestação pacífica de republicanos que vinham tentar apresentar uma petição à
assembleia nacional, esta dissimulando a traição do poder real, tal como os conciliadores
russos, cento e vinte e seis anos mais tarde, disfarçaram a traição dos liberais. A
burguesia monárquica esperava, por meio de um banho de sangue em tempo oportuno,
acabar de vez com o partido da revolução. Os republicanos, ainda não se sentido
suficientemente fortes para ganhar, esquivaram o combate, o que era razoável. Eles
apressaram-se mesmo a dessolidarizar com os peticionários, o que era, de qualquer
forma, uma indignidade e um erro. O regime do terror burguês obrigou os jacobinos a se
calarem durante alguns meses. Robespierre encontrou refúgio na casa do carpinteiro
Duplay, Desmoulins escondeu-se, Danton passou várias semanas em Inglaterra. Mas a
provocação monárquica, contudo, não sucedeu: a repressão no Campo de Março não
impediu o movimento republicano de vencer. A grande revolução francesa teve assim as
suas «jornadas de Julho» tanto sobre o sentido político como no calendário.
Cinquenta anos mais tarde, as «jornadas de Julho» caíram em França em Junho e
tomaram um carácter incalculavelmente maior e trágico. As jornadas ditas «de Junho de
1848» procederam com uma força irresistível da insurreição de Fevereiro. A burguesia
francesa proclamou, no tempo da sua vitória, «o direito ao trabalho», tal como tinha
anunciado, desde 1789, muitas coisas magníficas, tal como em 1914 ela jurou que a sua
guerra era a última. Do direito ao trabalho pomposamente proclamado saíram as
miseráveis oficinas nacionais, onde cem mil operários, tendo conquistado o poder para os
seus patrões, ganhavam apenas trinta e três centavos por dia. Algumas semanas depois,
a burguesia republicana, generosa em palavras mas avarenta em moeda, não encontrava
já bastantes expressões insultantes para os «malandros» que viviam da ração nacional da
fome.

384
Na profusão das promessas de Fevereiro e nas provocações conscientes que
precediam Junho mostram-se os traços nacionais da burguesia francesa. Mas, mesmo
por falta disso, os operários parisienses, que traziam fuzil desde Fevereiro, não teriam
podido dispensar-se de reagir diante da contradição entre o programa pomposo e a
lamentável realidade, diante do intolerável contraste que, diariamente, os atingiam no
estômago como na consciência. Com aquela maldade tranquila e apenas dissimulada,
com o conhecimento de toda a sociedade dirigente, Cavignac deixou crescer o
levantamento, para o esmagar de uma forma tanto mais definitiva! Houve pelo menos
doze mil operários massacrados pela burguesia republicana, pelo menos vinte mil presos,
afim de afastar os outros das suas crenças no «direito ao trabalho» que ela tinha
proclamado.
Desprovida de plano, de programa, de direcção, as jornadas de Junho de 1848
parecem um reflexo, potente e inevitável, do proletariado entalado nas suas necessidades
mais elementares e ofendido nas suas mais altas esperanças. Os operários insurgidos
foram não somente esmagados, mas também caluniados. Um democrata de esquerda,
Flocon, camarada de ideias de Ledru-Rolin (este precursor de Tseretelli) assegurava à
assembleia nacional que os insurrectos tinham sido comprados pelos monarquistas e
pelos governos estrangeiros. Os conciliadores de 1848 nem tinham mesmo necessidade
da atmosfera da guerra para descobrir nos bolsos dos amotinados o ouro da Inglaterra e
da Rússia. É assim que os democratas abrem caminho ao bonapartismo.
A formidável explosão da Comuna tinha, com o golpe de estado de Setembro de
1870, uma relação análoga à das jornadas de Junho em relação à revolução de Fevereiro
de 1848. A insurreição de Março do proletariado parisiense não deixava assim de ser o
resultado de um cálculo estratégico. Ela saiu de uma combinação trágica de
circunstâncias, completada por uma dessas provocações pelas quais a burguesia
francesa é tão engenhosa quando o medo aguça a sua vontade perfidia. Contra os planos
da clique dirigente que se esforçava antes de tudo em desarmar o povo, os operários
queriam assegurar a defesa de Paris que eles tentavam pela primeira vez em transformar
na «sua» Paris. A guarda nacional deu-lhes uma organização armada, muito próxima do
tipo soviético, e uma direcção política, sob a forma do seu comité central. No seguimento
das condições objectivas desfavoráveis e de erros políticos, Paris opôs-se à França; nem
compreendida, nem apoiada, parcialmente traída directamente pela província, ela caiu
nas mãos dos Versalhenses exasperados que apoiavam por trás Bismarck e Moltke. Os
oficiais corrompidos e derrotados de Napoleão foram os carrascos sem par ao serviço da
terna Mariana que os prussianos de botas pesadas vinham livrar dos braços do pseudo-
Bonaparte. Na Comuna de Paris, o protesto por reflexo do proletariado contra a impostura
da revolução burguesa atingiu pela primeira vez o nível de uma insurreição proletária,
mas só se levantou para logo cair.
A semana espartaquista, em Janeiro de 1919, em Berlim, pertence ao tipo das meias
revoluções intermediárias tal como as jornadas de Julho em Petrogrado. Logo a situação
predominante do proletariado na composição da nação alemã, principalmente na sua
economia, a insurreição de Novembro entregou automaticamente a um conselho de
operários e de soldados a soberania do Estado. Mas o proletariado politicamente

385
identificou-se à social-democracia que, ela própria, se identificava ao regime burguês. O
partido independente ocupava, na revolução alemã, o lugar que pertencia, na Rússia, aos
socialistas-revolucionários e aos mencheviques. O que faltava, era um partido
bolchevique.
Cada dia, após o 9 de Novembro, despertava nos operários alemãs a viva sensação
que qualquer coisa escapava das suas mãos, se furtando, escapando entre seus dedos.
O esforço para manter as posições conquistadas, aí se fortificava, opor resistência,
crescia de dia a dia. Esta tendência para a defensiva era a base dos combates de Janeiro
de 1919. A semana espartaquista começou não segundo um cálculo estratégico do
partido, mas sob a pressão da base revoltada. Ela desencadeou-se a propósito de uma
questão de terceira ordem, sobre a manutenção no seu posto do chefe da polícia, mesmo
se, pelas suas tendências, ela representava o início de uma nova insurreição. As duas
organizações que participavam na direcção, os espartaquistas e os independentes de
esquerda, foram apanhados de improvisto, iam mais longe do que queriam e, porém, não
foram até ao fim. Os espartaquistas ainda não eram muito fracos para tomarem eles
próprios a direcção. Os independentes de esquerda pararam diante dos únicos métodos
que podia levar para a frente, hesitavam e jogavam com a insurreição, combinando-a com
as conversações diplomáticas.
A derrota de Janeiro, quando o número das vítimas estava longe de atingir os
números formidáveis das «jornadas de Julho» em França. Todavia, a significação política
de uma derrota não se mede somente pela estatística dos homens mortos e fusilados.
Basta ver que o jovem partido comunista se encontra fisicamente decapitado, e que o
partido independente se mostra, pela sua própria natureza dos seus métodos, incapaz de
levar o proletariado à vitória. De um ponto de vista histórico, mais largo, as «jornadas de
Julho» desenrolaram na Alemanha em várias fases: a semana de Janeiro 1919, as
jornadas de Março 1921, a retirada de Outubro de 1923. Toda a história ulterior da
Alemanha decorre desses acontecimentos. A revolução inacabada ligou-se ao fascismo.
No momento que estas linhas se escrevem – início de Maio de 1931 – a revolução
não sangrenta, pacífica, gloriosa (a lista desses adjectivos é sempre a mesma), em
Espanha, prepara-se sob os nossos olhos as suas «jornadas de Junho» se tomamos o
calendários francês, ou as suas «jornadas de Julho», segundo o calendário russo. O
governo provisório de Madrid, nadando em frases que parecem muitas vezes traduzidas
do russo, promete tomar grandes medidas contra o desemprego e a miséria camponesa,
mas não ousa tocar a nenhuma das velhas feridas sociais. Os socialistas da coligação
ajudam os republicanos a sabotar os problemas da revolução. É difícil prever um
crescimento febril da exasperação dos operários e camponeses? A falta de concordância
entre a revolução das massas e a política das novas classes dirigentes, aí está a fonte o
conflito irredutível que, no seu desenvolvimento, ou enterrará a primeira revolução, a de
Abril, ou levará à segunda.
Ainda se a grande parte das forças bolcheviques russas sentiu em Julho de 1917
que era impossível ir além de um certo ponto, o estado de espírito não era porém
homogénea. Muitos operários e soldados tendiam a apreciar os actos quando se

386
desenvolviam como um desenlaço decisivo. Metelev, nas suas Lembranças redigidas
cinco anos mais tarde, exprime-se sobre o sentido dos acontecimentos nos termos
seguintes: «Nesse levantamento o nosso grande erro foi propor ao comité executivo dos
conciliadores de tomar o poder... Em vez de o oferecer, nós devíamos ter tomado o poder
nós próprios. A nossa segunda falta foi, pode dizer-se, que quase durante quarenta oito
horas, desfilámos nas ruas, em vez de ocupar de uma vez todas as instituições, os
palácios, os bancos, as gares, o telégrafo, prender todo o governo provisório», etc. Em
consideração de uma insurreição, isso seria incontestável. Mas transformar o movimento
de Julho em insurreição, teria sido seguramente enterrar a revolução.
Os anarquistas que apelavam para a batalha alegavam que a «insurreição de
Fevereiro, também ela, tinha-se produzido independentemente da direcção dos partidos».
Mas a insurreição de Fevereiro tinha tarefas já feitas, elaboradas pela luta de gerações, e,
além desse levantamento, erguia-se a sociedade liberal de oposição e a democracia
patriótica, herdeiros designados do poder. O movimento de Julho, em contrapartida, devia
traçar um caminho histórico completamente novo. Toda a sociedade burguesa, incluindo a
democracia soviética, era-lhe irredutível hostil. Esta diferença radical entre as condições
de uma revolução burguesa e as de uma revolução operária, os anarquistas não a viam
ou não a compreendiam.
Se o partido bolchevique, teimando a julgar como doutrinário o movimento de Julho
como «inoportuno», tinha voltado as costas às massas, a meia insurreição teria
inevitavelmente caído sob a direcção dispersada e não concentrada dos anarquistas, dos
aventureiros, de interpretes ocasionais da indignação das massas, e teria extravasado
todo o seu sangue em convulsões estéreis. Mas também, em contrapartida, se o partido,
tendo-se colocado à cabeça dos metralhadores e dos operários de Potilov, teria
renunciado ao seu julgamento sobre a situação no conjunto e tinha entrado na via dos
combates decisivos, a insurreição teria sem dúvida tomado a direcção dos bolcheviques,
ter-se-iam amparado do poder, somente para preparar o desabar da revolução. A questão
do poder à escala nacional não teria sido como em Fevereiro resolvida por uma vitória em
Petrogrado. A província não teria seguido a capital. A frente não teria compreendido e não
teria aceitado a mudança de regime. Os caminhos de ferro e o telégrafo teriam servido os
conciliadores contra os bolcheviques. Kerensky e o Grande Quartel General teriam criado
um poder para a frente e a província. Petrogrado teria sido bloqueada. Nos muros teria
começado a desagregação. O governo teria tido a possibilidade de lançar sobre
Petrogrado massas consideráveis de soldados. A insurreição teria conseguido, nessas
condições, a tragédia de uma Comuna de Petrogrado.
Em Julho, na bifurcação das veias históricas, é somente a intervenção do partido
dos bolcheviques que eliminou as duas variantes de um perigo fatal: seja o género de
Jornadas de 1848, seja no género da Comuna de Paris de 1871. Foi em tomando
ousadamente a cabeça do movimento que o partido obteve a possibilidade de parar as
massas no momento onde a manifestação começou a transformar-se num confronto geral
das forças armadas. O golpe dado às massas e ao partido em Julho foi muito grave. Mas
não foi um golpe decisivo. As vítimas contaram-se por dezenas de milhar. A classe
operária não saiu decapitada nem esgotada, e os seus quadros tinham aprendido muito.

387
No decurso das jornadas de Fevereiro, revelou-se todo um trabalho realizado
durante os longos anos pelos bolcheviques e os operários avançados, educados pelo
partido, encontraram o seu lugar na luta; mas ainda não havia uma direcção imediata
vinda do partido. Nos acontecimentos de Abril, as palavras de ordem do partido
descobriram a sua força dinâmica, mas o próprio movimento desenrolou-se
espontâneamente. Em Junho exteriorizou-se a enorme influência do partido, mas as
massas caminhavam ainda nos quadros de uma manifestação oficialmente organizada
pelos adversários. Foi somente em Julho que tendo sentido sobre ele próprio a força da
pressão das massas, o partido bolchevique desceu à rua, contra todos os outros partidos,
e determinou o carácter essencial do movimento não somente pelas suas palavras de
ordem mas pela sua direcção organizadora. A importância de uma vanguarda de fileiras
coesas aparece pela primeira vez com toda a sua força no decurso das jornadas de Julho,
quando o partido pagou muito caro – preserva o proletariado do esmagamento, assegurou
o futuro da revolução de o seu próprio.
«A título de prova técnica – escrevia Miliokov sobre a importância das jornadas de
Julho para os bolcheviques – a experiência foi para eles, sem dúvida, extremamente útil.
Ela mostrou-lhes com quais elementos eles deviam contar; como eles deviam organizar
os seus elementos; enfim qual resistência o governo lhes podia opor, o soviete e as
tropas... Era evidente que, no momento de repetir a experiência, eles efectuariam-no mais
sistematicamente e mais conscientemente.»
Esses termos dão uma justa apreciação da importância da prova de Julho para o
desenvolvimento ulterior da política dos bolcheviques. Mas antes de utilizar os
ensinamentos de Julho, o partido devia passar algumas semanas extremamente penosas
no decurso das quais os adversários míopes imaginavam que a força dos bolcheviques
estava definitivamente quebrada.

388
O mês da grande calúnia
A 4 de Julho, à noite, quando cerca de duzentos membros dos dois comités
executivos, o dos operários, dos soldados e o dos camponeses, se aborreciam entre duas
sessões igualmente infrutíferas, um misterioso boato circulava entre eles; teriam
descoberto indicações sobre a ligação de Lenine ao Estado-maior general alemão;
amanhã os jornais publicarão os documentos denunciadores. Os sombrios agoiros do
secretariado, atravessando a sala para alcançar os corredores onde têm lugar
conciliábulos sem parar, respondem de má vontade e evasivamente às questões, mesmo
às dos mais próximos. No palácio de Tauride, já quase abandonado pelo público exterior,
é a emoção. Lenine ao serviço do Estado-maior alemão? A estupefacção, o assombro, a
hostilidade aproximam os pequenos grupos sobreexcitados. «Bem entendido – nota
Sokhanov, muito hostil aos bolcheviques durante as jornadas de Julho – ninguém, entre
os homens efectivamente ligados à revolução, não duvidou um só minuto da absurdidade
desses boatos.» Mas os homens tendo um passado revolucionário constituíam entre os
membros do comité executivo uma ínfima minoria. Os revolucionários de Março,
elementos acidentais, arrastados pela primeira vaga, predominavam mesmo nos órgãos
dirigentes do soviete. Entre os provinciais, escriturário de cantão, lojistas, mandatários,
encontravam-se os deputados que afloravam os espírito dos Cem Negros. Estes últimos,
logo, desabafaram: eles tinham previsto a coisa, era bem isso que era preciso esperar!
Assustados pela reviravolta imprevista dos acontecimentos e demasiado brusca do
assunto, os líderes tinham tentado ganhar tempo. Tchkheidze e Tseretelli convidaram por
telefone as redacções dos jornais a se abster de imprimir as revelações sensacionais,
como «não verificadas». Nenhuma redacção não ousou contrariar o «convite» do palácio
de Tauride, com a excepção de uma só: o pequeno jornal de papel amarelo de um filho de
Suvarine, o potente editor do Novoie Vremia (Tempo Novo) servia no dia seguinte aos
seus leitores um documento com uma tonalidade oficial afirmando que Lenine recebia
directivas e dinheiro do governo alemão. A racha estava feita e, apesar da proibição, toda
a imprensa, um dia depois, estava cheia da informação sensacional. Foi assim que se
abriu o episódio mais inverosímil de um ano fértil em acontecimentos: os líderes de um
partido revolucionário que, durante dezenas de anos, tinham consagrado a sua vida a
lutar contra as potências deste mundo, coroadas ou não, apresentavam-se ao país e ao
mundo como agentes designados do Hohenzollern. A calúnia de uma envergadura nunca
vista foi lançada profundamente nas massas populares cuja esmagadora maioria ouviu
pela primeira vez a insurreição de Fevereiro os nomes dos líderes bolcheviques. A
difamação tornou-se um factor político de primeira grandeza. É por isso que é
indispensável estudar mais atentamente o mecanismo.
O documento sensacional tinha como primeira fonte as confissões de um certo
Ermolenko. A figura desse herói foi completamente desenhada pelos serviços secretos
oficiais: no período que vai da guerra russo-japonesa em 1913 – agente da contra-
espionagem; em 1913 – colocado em disponibilidade, por motivos desconhecidos, com o
posto de alferes; em 1914, mobilizado para a frente; valentemente, foi feito prisioneiro e
ocupou-se da vigilância policial dos seus camaradas. O regime do campo de

389
concentração não respondendo portanto aos seus gostos de bufo e, «sob a insistência
dos seus camaradas» — tal foram as suas declarações – entrou ao serviço dos alemãs,
com intenções, bem entendido, patrióticas. Um novo capítulo se abriu na sua vida. No 25
de Abril, o alferes foi «enviado» pelas autoridade militares alemãs através da fronteira
russa, com a missão de dinamitar as pontes, de enviar relatórios de espião, de militar pela
independência da Ucrânia e de fazer agitação em favor de uma paz separada. Os oficiais
alemãs, os capitães Schidizki, e Libers, que tinham comprado os serviços de Ermolenko,
ensinaram-lhe além disso como um acaso, sem qualquer utilidade prática, simplesmente,
de toda evidência para o entusiasmar, que para além dele, alferes, havia também a
trabalhar na Rússia no mesmo sentido... Lenine. Tal é a base de todo o assunto.
O quê e quem sugeriu a Ermolenko a sua deposição sobre Lenine? Não foram de
qualquer forma os oficiais alemãs. Uma simples aproximação de datas e de factos
introduzidos no laboratório mental do alferes. No 4 de Abril, Lenine publicou as suas
famosas teses que significaram uma declaração de guerra ao regime de Fevereiro. No 20
e 21 houve uma manifestação armada contra o prolongamento da guerra. A perseguição
contra Lenine desenvolveu-se sem parar. No 25, Ermolenko foi «enviado» do outro lado
da frente e, na primeira quinzena de Maio, ligou-se ao serviço de espionagem russo do
Grande Quartel General. Nos jornais, artigos equívocos, demonstrando que a política de
Lenine era vantajosa ao Kaiser, davam a entender que Lenine era um agente da
Alemanha. Na frente, os oficiais e os comissários, lutando contra o insustentável
«bolchevismo» dos soldados, fazia ainda menos cerimónias na escolha das suas
expressões quando falavam de Lenine. Ermolenko mergulhou logo nessa corrente. Que
ele próprio tenha inventado uma frase puxada pelos cabelos sobre Lenine, que um
instigador qualquer a tenha soprado na orelha ou que ela tivesse sido confeccionada,
segundo Ermolenko, por agentes da contra-espionagem, isso não tem importância.
A queixa por difamação no que diz respeito aos bolcheviques reforçou-se de tal
forma que a oferta não podia deixar de se produzir. O chefe do estado-maior do Grande
Quartel General, o general Denikine, futuro generalíssimo dos Brancos na guerra civil,
que não era superior, pela largueza da sua visão, aos agentes da contra-espionagem
czarista, atribuiu ou fingiu atribuir às alegações de Ermolenko uma grande importância e
comunicou-as com uma carta apropriada, no 16 de Maio, ao ministro da Guerra Kerensky,
pensa-se, teve uma troca de pontos de vista com Tseretelli e Tchkheidze, os quais não
puderam dispensar-se de conter a sua nobre fuga: assim se explica, evidentemente, que
o assunto não tivesse seguido o seu curso. Kerensky escreveu mais tarde que, se
Ermolenko tivesse assinalado a ligação de Lenine com o estado-maior alemão, era «sem
provas suficientemente convincentes». O relatório de Ermolenko—Denikine, durante seis
semanas, ficou à espera. A contra-espionagem despediu Ermolenko como queimado e o
alferes partiu sem demora para o Extremo-Oriente, onde devia beber o dinheiro ganho em
duas fontes diferentes.
Os acontecimentos das jornadas de Julho, tendo mostrado com toda a sua
amplitude o formidável perigo do bolchevismo, suscitaram as lembranças das denúncias
de Ermolenko. Ele foi convocado urgentemente por Blagovechtchensk, mas, falta de
imaginação, não pôde, apesar de todas as denunciações, acrescentar uma só palavra às

390
suas deposições iniciais. Entretanto, a justiça e a contra-espionagem estavam já, porém,
em pleno trabalho. Sobre as possíveis relações criminais dos bolcheviques, interrogaram
os políticos, generais, guardas, comerciantes, uma multitude de gente de diversas
profissões. Os agentes prevenidos da Segurança czarista comportaram-se, no decurso
desta instrução, muito mais prudentemente que os novos representantes da justiça
democrática! «Informações escrevia o antigo chefe da Okhrana de Petrogrado, o
imponente general Globatchev – segundo as quais Lenine teria trabalhado na Rússia para
prejudicar o país e com ajuda do dinheiro alemão, não se encontraram nos serviços da
Okhrana, pelo menos durante o tempo que aí trabalhei.» Outro alto funcionário da polícia,
Iakubov, chefe da secção da contra-espionagem do distrito militar de Petrogrado afirmou:
«Nada sei da ligação de Lenine e dos seus laços com o estado-maior alemão, tal como
nada sei dos recursos com os quais trabalhava Lenine.» Serviços de delação do czar, que
tinham vigiado o bolchevismo desde do nascimento, nada de útil se obteve.
Todavia, quando os homens, sobretudo armados do poder, teimam em procurar, eles
encontram sempre qualquer coisa no fim dos fins. Um certo Z. Burstein, oficialmente
classificado como comerciante, abriu os olhos ao governo provisório sobre «uma
organização alemã de espionagem em Estocolmo, à cabeça da qual se encontrava
Parvus», social-democrata alemão bem conhecido, de origem russa. A acreditar as
deposições de Burstein, Lenine encontrava-se em relação com esta organização por
intermediário dos revolucionários polacos Ganetzki e Koslowski. Kerensky escrevia no
seguimento: «Dados extremamente sérios que, por infelicidade, não eram de carácter
judiciário, mas provinham de agências de espionagem, deviam obter uma confirmação
absolutamente incontestável quando Ganetsk, chegou à Rússia alvo de um mandato de
captura na fronteira, e transformar num dossier judiciário suficientemente convincente
contra o estado-maior bolchevique.» Kerensky sabia antecipadamente no que é que isto
devia se transformar.
As deposição do comerciante Burstein diziam respeito às operações comerciais de
Ganetzki e Koslowski entre Petrogrado e Estocolmo. Esse negócio do tempo da guerra,
que recorria verosimilmente a uma correspondência convencional, não tinha qualquer
relação com a política. O partido bolchevique não tinha qualquer relação com esse
comércio. Lenine e Trotsky denunciavam na imprensa Parvus que se ouvia combinar bons
negócios com uma má política, e convidavam os revolucionários a romper todas as
relações com ele. Quem portanto, porém, tinha a possibilidade de se desvendar tudo isso
no turbilhão dos acontecimentos. Uma organização de espionagem em Estocolmo,
parecia claro. E a luz, mal acesa pelo alferes Ermolenko, reanima-se por outro lado. Na
verdade, ainda aí, caíram sobre dificuldades. O chefe da secção da contra-espionagem
do Estado-maior general, o príncipe Turkestanov, interrogado pelo juiz de instrução
Alexandrov, empregado nos assuntos de importância especial respondeu que Z. Burstein
era um individuo que não merecia qualquer confiança. Burstein é o tipo de homem de
negócios desonesto a quem não repugna qualquer tipo de trabalho.» Mas a má reputação
de Burstein podia impedir que se tentasse sujar a reputação de Lenine? Não, Kerensky
não hesitou a declarar as deposições de Burstein «extremamente sérias». A instrução
orientou-se desde então sobre a pista de Estocolmo. As denúncia do alferes que serviam

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os dois estados-maiores ao mesmo tempo e do homem de negócios duvidoso «que não
merecia qualquer confiança» serviram de base à mais fantástica das acusações contra
um partido revolucionário que um povo de cento e sessenta milhões se preparava a levar
ao poder.
Como, porém, os materiais da instrução prévia caíram na imprensa, e mesmo no
momento onde a ofensiva falhada de Kerensky começava a tornar-se uma catástrofe,
enquanto que a manifestação de Julho em Petrogrado revelava a irresistível subida dos
bolcheviques? Um dos iniciadores da empresa, o procurador Bessarabov, contou mais
tarde abertamente à imprensa que, a ausência completa de forças militares seguras tendo
evidenciada do lado do governo provisório em Petrogrado, tinham decidido no estado-
maior da região provocar se possível uma reviravolta psicológica nos regimentos
empregando os grandes meios. «Os representantes do regimento Preobrajensky, que era
o mais ligado ao estado-maior, receberam a comunicação do essencial dos documentos:
os assistentes puderam convencer-se da impressão formidável produzida por esta
divulgação. A partir desse momento viu-se claramente que arma potente dispunha o
governo.»
Após uma verificação experimental com tanto sucesso, os conspiradores da Justiça,
do Estado-maior e da contra-espionagem apressaram-se a meter o ministro da Justiça ao
corrente da descoberta. Pereverzev respondeu que não se podia fazer comunicado oficial,
mas que, do lado dos membros actuais do governo provisório, «não se colocariam
obstáculos à iniciativa privada». Os nomes dos oficiais do estado-maior ou dos
funcionários da Justiça foram não sem razão, reconhecidos pouco compatíveis com os
interesses da causa: para meter em circulação uma calúnia sensacional, era preciso «um
homem político». Na ordem da iniciativa privada, os conspiradores descobriram sem
dificuldades justamente o homem que precisavam.
Antigo revolucionário, deputado na segunda Duma, orador excitado e caluniador
apaixonado, Alexinsky tinha estado durante um certo tempo na extrema esquerda dos
bolcheviques. Lenine era aos seus olhos um incorrigível oportunista. Durante os anos da
reacção, Alexinsky tinha criado um pequeno grupo particularmente ultra-esquerda à
cabeça do qual ele manteve-se na emigração até à guerra, para tomar a seguir, desde do
início das hostilidades, uma posição ultra-patriótica e tornar-se logo um especialista na
denúncia de toda a gente e de qualquer um como vendidos ao Kaiser. Sobre esse
aspecto, ele entregara-se em Paris a uma grande actividade de bufo, em conveniência
com os patriotas russos e franceses da mesma especie. A associação parisiense dos
jornalistas estrangeiros, isto é dos correspondentes dos países aliados e neutros, muito
patriotas e de forma nenhuma rigorosos, viu-se forçada a declarar, por uma moção
especial, Alexinsky «desonesto caluniador» e de o excluir do meio.
Regressado com este atestado a Petrogrado após a insurreição de Fevereiro,
Alexinsky tendo tentado, na qualidade de antigo homem de esquerda, introduzir-se no
comité executivo. Apesar de toda a sua indulgência, os mencheviques e os socialistas-
revolucionários decidiram, no 11 de Abril, fechar-lhe a porta no nariz, convidando-o a
tentar reabilitar-se. Era fácil dizer! Tendo concluído que era muito mais fácil de difamar

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outro que se reabilitar a si mesmo, Alexinsky ligou-se com a contra-espionagem e
assegurou aos seus instintos caluniadores a expansão sobre o plano do Estado. Desde
da segunda quinzena de Julho, ele começou a fechar nos laços da sua calúnia os
mencheviques igualmente. O líder destes últimos, Dan, saindo da expectativa, imprimiu,
nas Izvestia oficiais do Soviete (22 de Julho) uma carta de protesto: «... É tempo de
acabar com os acções de um homem que foi oficialmente declarado caluniador
desonesto». Não é claro que Themis, inspirada por Ermolenko e Burstein, não podia
encontrar entre ela e a opinião pública melhor intermediário que Alexinsky? A assinatura
deste último decora portanto o documento denunciador.
Nos corredores, os ministros socialistas protestavam contra a comunicação dos
documentos à imprensa, tal como, aliás, aos dois ministros burgueses: Nekrassov e
Terechtchenko. No próprio dia da publicação, no 5 de Julho, Pereverzev, cujo governo
estava já há um certo tempo largamente disposto a abandoná-lo, viu-se forçado em dar a
sua demissão. Os mencheviques davam a entender que era a sua vitória. Kerensky
afirmou a seguir que o ministro tinha sido despedido por ter feito demasiadas revelações
que tinham perturbado as diligencias da instrução. Se não foi a sua permanência no
poder, Pereverzev deu, de qualquer forma pela sua partida, satisfação a toda a gente.
No mesmo dia, a sessão do secretariado do comité executivo, apresentou-se
Zinoviev e, em nome do comité central dos bolcheviques, exigiu que se tomasse
imediatamente medidas para reabilitar Lenine e para prevenir as consequências possíveis
da calúnia. O secretariado não pode recusar constituir uma comissão de inquérito.
Soukhanov escreve: «A comissão compreendia que se tratava de saber não se Lenine
tinha vendido a Rússia, mas saber qual era a fonte da calúnia.» Mas a comissão chocou à
rivalidade ciumenta dos órgãos da Justiça e da contra-espionagem que tinham razões em
não desejar intrusões no seu ofício. Na verdade, os órgãos soviéticos, até a esse
momento, regulavam sem dificuldade as contas com os órgãos governamentais quando
eles se viam obrigados a isso. Mas as jornadas de Julho tinham produzido uma mudança
séria no poder para a direita; além disso, a comissão soviética não se apressava de forma
nenhuma em resolver uma tarefa evidentemente contrária aos interesses políticos dos ses
mandatários.
Os mais sérios líderes conciliadores, na realidade somente os mencheviques,
preocupavam-se em demonstrar que eles nada tinham a ver formalmente com a calúnia,
mas não iam além disso. Todas as vezes que era impossível esquivar uma resposta
franca, eles declinavam em algumas palavras qualquer responsabilidade da acusação;
mas não se esforçaram para desviar a lâmina envenenada que ameaçava a cabeça dos
bolcheviques. Uma imagem universal conhecida desta política, foi, outrora, a conduta do
consul romano Ponce Pilatos. Sim, e poderiam agir de outra forma sem se traírem a eles
próprios? É somente a calúnia lançada contra Lenine que, nas jornadas de Julho,
destacou os bolcheviques uma parte da guarnição. Se os conciliadores tivessem
desenvolvido a luta contra a calúnia, o batalhão do regimento Ismailovsky tivesse parado,
pensa-se, em executar a Marselhesa em honra do comité executivo et tivesse regressado
ao quartel, a menos que tivesse indo ao palácio Kczesinska.

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Conforme à linha geral dos mencheviques, o ministro do Interior Tseretelli, tendo
tomado a responsabilidade das detenções dos bolcheviques que tiveram logo lugar,
considerou necessário, na verdade sob a pressão da fracção bolchevique, em declarar, na
sessão do comité executivo, que pessoalmente ele não suspeitava de espionagem os
líderes bolcheviques, mas que ele acusava-os de conspiração e de insurreição armada.
No 13 de Julho, Liber, depositando uma moção que metia o partido bolchevique fora da
lei, julgou indispensável fazer uma reserva: «Considero pessoalmente que acusação
lançada contra Lenine e Zinoviev não assenta sobre nada». Tais declarações eram
acolhidas por todos num aborrecido silêncio: aos bolcheviques elas pareciam
indignamente evasivas, para os patriotas elas eram superfluas, porque desvantajosas.
No dia 17, falando na sessão unificada dos dois comités executivos, Trotsky dizia:
«Cria-se uma atmosfera insuportável na qual vocês serão sufocados como nós. Lançaram
acusações imundas contra Lenine e Zinoviev. (Uma voz: «É verdade.» Ruído. Trotsky
continua). Acontece que há na sala homes que aprovam as acusações. Há aqui homens
que se ingeriram na revolução. (Ruído. A campainha do presidente tem dificuldades a
impor a calma)... Lenine combateu pela revolução durante trinta anos. Eu luto contra a
opressão das massas populares há vinte anos. E não podemos ter só ódio pelo
militarismo alemão... uma desconfiança em relação a nós nesse domínio pode ser
somente proferido por aquele que ignora o que é um revolucionários. Fui condenado por
um tribunal alemão a oito meses de prisão por ter combatido o militarismo alemão... e
isso, todos sabem. Não permitam a ninguém nesta sala dizer que somos mercenários da
Alemanha, porque não é a voz dos revolucionários convencidos, a a voz da cobardia.
(Aplausos).»
Foi assim que este episódio foi apresentado nas publicações anti-bolcheviques da
época – as publicações bolcheviques eram já proibidas. É necessário, todavia, explicar
que os aplausos vinham somente de um pequeno sector de esquerda; um certo número
de deputados vociferavam a sua animosidade, a maioria mantinha-se silenciosa.
Ninguém, portanto, mesmo entre os agentes directos de Kerensky, não subiu à tribuna
para apoiar a versão oficial da acusação ou, pelo menos, para a apoiar indirectamente.
Em Moscovo, onde a luta entre bolcheviques e conciliadores tinha em geral um
carácter mais temperado que devia tomar formas mais ferozes em Outubro, a sessão
unificada dos dois Sovietes, o dos operários e o dos soldados, decidiu no 10 de Julho
«publicar e de manifesto no qual se indicaria que a acusação de espionagem levantada
contra a fracção dos bolcheviques era um calúnia e provinha de uma cabala da contra-
revolução». O soviete de Petrogrado, mais imediatamente dependente das combinações
governamentais, não empreendiam nenhum diligência, esperando pelas conclusões da
comissão de inquérito, a qual, porém, não se meteu ao trabalho.
No 5 de Julho, Lenine, numa conversa com Trotsky, colocava a questão: «Não nos
irão fuzilar todos?» Só, uma intenção desse género podia em suma explicar a contra-
assinatura oficiosa sobre a monstruosa calúnia. Lenine julgava os inimigos capazes de
irem até ao fim em assuntos iniciados por eles e chegava a esta conclusão: nós não nos
rendemos a eles. No dia 6 à noite, Kerensky chegou da frente, cheio de sugestões dadas

394
pelos generais, e exigiu medidas decisivas contra os bolcheviques. Cerca das duas horas
da manhã, o governo ordenou que se apresentem diante da justiça todos os dirigentes da
«insurreição armada» e a dissolução dos regimentos que tinham participado no motim. O
destacamento das tropas enviadas à casa de Lenine para fazerem uma rusga e para o
prender teve que se limitar a uma busca, visto que o inquilino já não estava em casa.
Lenine residia ainda em Petrogrado, mas escondia-se num alojamento operário e exigia
que a comissão de inquérito do soviete o escutasse, assim como Zinoviev, em condições
excluindo toda armadilha do lado da contra-revolução. Nas declarações enviadas à
comissão, Lenine e Zinoviev escreviam: «Nesta manhã (sexta-feira 7 de Julho) a Duma
deu a conhecer a Kamenev que a comissão viria no apartamento combinado hoje mesmo
à tarde. Escrevemos essas linhas às seis horas e meia da noite, 7 de Julho, e
constatamos que, até agora, a comissão ainda não se apresentou e não deu nada a
conhecer... A responsabilidade para o atraso do interrogatório não cai sobre nós.» A
abstenção da comissão soviética após promessa de inquérito convenceu definitivamente
Lenine que os conciliadores metiam-se de lado, deixando aos guardas brancos o cuidado
da repressão. Os oficiais e os junkeres que entretanto tinham já roubado a tipografia do
partido, brutalizava e prendiam na rua qualquer um que protestasse contra as actividades
de espionagem atribuídas aos bolcheviques. Então Lenine decidiu definitivamente furtar-
se não à instrução, mas às sevícias possíveis.
No dia 15, Lenine e Zinoviev explicavam no jornal bolchevique de Cronstadt, que as
autoridade não tinham ousado proibir, porque eles não julgavam possível colocar-se entre
as mãos do poder: «Segundo uma carta do ex-ministro da Justiça Pereverzev, publicada
domingo no jornal Novoie Vremia, tornou-se perfeitamente claro que o «assunto» de
espionagem atribuido a Lenine e a outros foi construído conscientemente, pelo partido da
contra-revolução. Pereverzev confessou abertamente que avançou as acusações não
verificas com o objectivo de provocar furor (é literalmente a sua expressão) dos soldados
contra o nosso partido. É a confissão daquele que era ontem ministro da Justiça!... não há
uma garantia de justiça na Rússia no presente momento. Entregar-se nas mãos das de
Miliokov, dos Alexinsky, dos Pereverzev, nas mãos da contra-revolucionários para quem
todas as acusações lançadas contra nós são um simples episódio na guerra civil.» Para
esclarecer o sentido da frase sobre «um episódio» na guerra civil, basta lembrar-nos da
sorte de Karl Liebknecht e de Rosa Luxemburgo. Lenine sabia prever.
Enquanto que os agitadores do campo inimigo contavam com muitas variantes que
Lenine tinha fugido para a Alemanha, seja num barco ou num submarino, a maioria do
comité executivo apressou-se a condenar Lenine por se ter furtado à instrução. Deixando
de lado a questão do conteúdo político essencial da acusação e das circunstâncias do
progrom nas quais e pelas quais esta acusação foi formulada, os conciliadores
pronunciavam-se como advogados de pura justiça. Era, de todas as posições que lhes
restava a considerar, a menos desvantajosa. A resolução do comité executivo do 13 de
Julho não somente declarava a conduta de Lenine e de Zinoviev «absolutamente
inadmissível», mas exigia da fracção bolchevique uma condenação imediata, categórica e
clara» dos seus líderes. A fracção recusou unanimemente o ultimato do comité executivo.
Todavia, entre os bolcheviques, pelo menos na cimeira, houve flutuações do facto que

395
Lenine se tinha substraído à instrução. Por outro lado, entre os conciliadores, mesmo os
que eram mais à esquerda, o desaparecimento de Lenine provocou a indignação geral,
nem sempre hipócrita, como se vê pelo exemplo de Sokhanov. O carácter calunioso dos
documentos da contra-espionagem não faziam para ele, como se sabe, nenhuma dúvida
logo no início. «A acusação absurda – escrevia, dissipou-se como o fumo. Ninguém a
confirmou e ousou acreditar nisso.» Mas, para Sokhanov, continuava um enigma: como
Lenine pôde decidir-se a esquivar o inquérito?» Era qualquer coisa de particular, nunca
vista, incompreensível. Qualquer mortal não teria podido tornar-se alvo de ódio
enraivecido da classes dirigentes. Lenine não era qualquer mortal e não esquecia um
minuto a responsabilidade que tinha assumido. Ele sabia tirar de uma situação todas as
deduções, ele sabia ignorar as oscilações da «opinião pública» por razões das tarefas às
quais estava subordinada a sua vida. O dom-quixotismo e a sua pose eram-lhe
igualmente estranhas.
Com Zinoviev, Lenine passou algumas semanas nos arredores de Petrogrado, ao pé
de Sestroretsk, numa floresta; necessitavam de abrigo à noite e abrigarem-se da chuva.
Camuflado em condutor de locomotiva, Lenine passou a fronteira da Finlândia numa
máquina e escondeu-se no alojamento do chefe da polícia de Helsingfors, antigo operário
de Petrogrado; logo, aproximou-se da fronteira russa, instalando-se em Vyborg. A partir do
fim de Setembro, viveu clandestinamente em Petrogrado, onde devia, no dia da
insurreição, após uma ausência de quase quatro meses, surge na arena, a céu aberto.
Julho tornou-se o mês da calúnia vergonhosa e vitoriosa; em Agosto, começava já a
perder o fôlego. Exactamente um mês depois que a difamação foi lançada, Tseretelli, fiel a
ele próprio, julgou necessário repetir na sessão do comité executivo: «No dia seguinte das
prisões, dei uma resposta aberta à questão dos bolchevique, e disse: os líderes dos
bolcheviques, acusados de serem os instigadores do levantamento dos dias 3 a 5 de
Julho, não os suspeito da ligação ao Estado-maior alemão.» Ele não podia dizer menos.
Dizer mais teria sido desvantajoso. A imprensa dos partidos conciliadores não foi para
além das palavras de Tseretelli. Mas dado que ao mesmo tempo ela denunciava com
ferocidade os bolcheviques como auxiliares do militarismo alemão, a voz dos jornais
conciliadores confundiam-se do ponto de vista político com a gritaria do resto da impressa
que tratava os bolcheviques não como «auxiliares» mas como mercenários de Ludendorff.
As notas mais elevadas do coro eram dadas pelos cadetes. As Russkia Vedomosti
(Informações russas), jornal dos professores liberais de Moscovo, comunicaram que no
decurso da buscas à redacção da Pravda, ter-se-ia encontrado uma carta alemã, recebida
de Haparanda, na qual um barão «felicitava os bolcheviques pela sua acção e «previa» a
alegria que haveria em Berlim». O barão alemão da fronteira finlandesa sabia bem de
quais cartas tinham necessidade os patriotas russos. Informações desse género
preenchiam a imprensa da sociedade cultivada que se defendia contra a barbarie
bolchevique.
Os professores e os advogados acreditavam naquilo que afirmavam? Admitir isso,
pelo menos no que diz respeito aos líderes da capital, seria subestimar infinitamente
demasiado o seu julgamento político. Apesar das considerações de princípio e de
psicologia, simples motivos práticos deviam revelar a absurdidade da acusação, e, antes

396
de tudo, considerações financeiras. Certamente, o governo alemão teria podido ajudar os
bolcheviques, não com ideias, mas com dinheiro. Ora, precisamente, era o dinheiro que
faltava aos bolcheviques. O centro do partido no estrangeiro, durante a guerra, debatia-se
numa cruel indulgência, uma centena de francos pareciam-lhe uma grande soma, o órgão
central manifestava-se uma vez em cada mês ou dois, e Lenine contava com cuidado as
linhas para não ultrapassar o orçamento. As despesas da organização de Petrogrado
durante os anos da guerra calculavam-se em alguns milhares de rublos gastos sobretudo
na impressão de folhas ilegais: em dois anos e meio, só foram publicados em Petrogrado
trezentos mil exemplares. Após a insurreição, o afluxo das adesões e de recursos, bem
entendido, aumentou extraordinariamente. Os operários subscreviam com muito
entusiasmo em proveito do soviete e dos partidos soviéticos. «Dons, pagamentos de toda
a especie, colectas e cotizações em proveito do soviete – dizia num relatório no primeiro
congresso dos sovietes, o advogado Bramson, trabalhista – afluíam no dia seguinte da
eclosão da revolução... Podia-se observar o quadro extremamente impressionante de
uma peregrinação em nossa direcção, no palácio de Tauride, desde do primeiro momento
até tarde na noite para efectuar esses pagamentos.» Mais se avançava, mais os
operários mostravam-se entusiasmados em cotizar para os bolcheviques. Todavia, apesar
do crescimento rápido do partido e das suas receitas, a Pravda era, de todos jornais dos
partidos, aquele que tinha o mais pequeno formato. Pouco após a sua chegada à Rússia,
Lenine escrevia a Radek, em Estocolmo: «Escreva artigos para a Pravda sobre a política
exterior, muito curto e no espírito da Pravda (temos muito pouco lugar, lutamos para
crescer).» A despeito do regime esparciata da economia aplicada por Lenine, o partido
não saía da penúria. Quando se tratava de atribuir dois ou três mil rublos do tempo da
guerra em proveito da organização local, era cada vez um sério problema para o comité
centra. Para enviar os jornais para a frente, era preciso abrir constantemente novas
colectas entre os operários. E, contudo, os jornais bolcheviques atingiam as trincheiras
em quantidade infinitamente menores do que as gazetas dos conciliadores e dos liberais.
O resultado eram as queixas contínuas. «Viu-se somente o ruído que se fazia sobre o
vosso jornal», escreviam os soldados.
Em Abril, a conferência local do partido em Petrogrado apelou aos operários da
capital a colectar em três dias os setenta e cinco mil roubles que faltavam para a compra
de uma impressora. Esta soma foi largamente atingida e o partido adquiriu enfim uma
impressora para si, essa mesma que os junkers destruíram completamente em Julho. A
influência das palavras de ordem bolcheviques tomava uma extensão como um incendio
na estepe. Mas os recursos materiais da propaganda continuavam medíocres.
Individualmente, o género de vida dos bolchevique dava ainda menos espaço à calúnia. O
que ficava? Nada, no fim de contas, salvo a passagem de Lenine pela Alemanha. Mas
justamente esse facto que foi o mais vezes levantado diante de auditórios pouco
esclarecidos, como uma prova das relações de Lenine com o governo alemão,
demonstrava na realidade o contrário: um agente da Alemanha atravessou o país inimigo
escondido e em plena segurança; para se decidir e pisar abertamente as leis do
patriotismo em tempo de guerra, ele não podia ser senão um revolucionário
absolutamente seguro dele.

397
O ministério da Justiça não parou portanto diante da execução da tarefa ingrata: não
era em vão que ele tinha herdado do passado os quadros educados pelo último período
da autocracia, quando os assassinatos cometidos sobre os deputados liberais pelos Cem
Negros que o país conhecia os nomes, não eram sistematicamente divulgados e que em
contrapartida, em Kiev, um judeu, empregado do comércio, foi acusado de ter bebido
sangue de uma criança cristã. Sob a assinatura do juiz instrutor Alexandrov, encarregado
dos assuntos de importância especial, e de Karinsky, procurador no palácio da Justiça, no
dia 21 de Julho, foi publicado uma convocação para comparecer, sob a acusação de alta
traição, visando Lenine, Zinoviev, Kollontai, e um certo número de outras pessoas entre
as quais o social democrata alemão Helphand Parvus. Os mesmos artigos 51, 100 e 108
do código criminal fora logo aplicadas também a Trotsky e Lunatcharsky, presos pelos
destacamentos da tropa no dia 23 de Julho.
Segundo o texto da convocação, os líderes dos bolcheviques, «sendo cidadãos
russos, por acordo prévio entre os acima mencionados e outras pessoas, para fins da
cooperação com os Estados estando com a Rússia em hostilidade aberta contra esta
última, entraram com agentes dos Estados mencionados com o fim de contribuir para a
desorganização do exército russo e a retaguarda para enfraquecer a capacidade
combativa do exército. Para isso, com os recursos financeiros recebidos desses Estados,
organizaram a propaganda junto da população e das tropas, convidando-os a recusar
imediatamente as operações militares contra o inimigo, e, igualmente com os mesmos
objectivos, no período de 3 a 5 de Julho, organizaram em Petrogrado uma insurreição
armada...» Qualquer pessoa sabendo ler, pelo menos na capital, conheceu, nesses dias,
as condições nas quais Trotsky tinha chegado de Nova York, pelo Christiania e
Estocolmo, a Petrogrado, o juiz de instrução metia na conta deste último o crime de ter
atravessado a Alemanha. A justiça não querendo evidentemente deixar subsistir nenhuma
dúvida sobre o valor dos documentos que a contra-espionagem tinha colocado à sua
disposição.
A instituição da contra-espionagem não é em lado algum um viveiro de moralidade.
Mas na Rússia, ela era lixeira do regime rasputiniano. O lixo do corpo dos oficiais, da
polícia, da guarda, dos agentes metidos de parte da Okhrana constituíam os quadros
desta instituição infame e poderosa. Coronéis, capitães, tenentes, inaptos como
combatentes, tinham colocado nas suas atribuições todos os domínios da vida social e
política, criando em todo o país uma feudalidade da contra-espionagem. «A situação
tornou-se catastrófica – declarou, lamentando-se, o antigo director da polícia de Kurlov –
quando, na direcção dos assuntos civis começou a intervir a famosa contra-espionagem.»
O próprio Kurlov tinha no seu activo um bom número de de assuntos tenebrosos,
nomeadamente uma participação indirecta no assassinato do primeiro-ministro Stolypine;
contudo, a actividade da contra-espionagem fazia-o tremer, mesmo com a sua imagem de
especialista. Enquanto que «a luta contra a espionagem inimiga... era levada pouco a
sério», escrevia ele, suscitavam constantemente assuntos inventados conscientemente,
que recaíam sobre individuos perfeitamente inocentes com um simples fim de chantagem.
Kurlov caiu sobre um desses assuntos: «Aterrorizado, dizia ele, ouvi o pseudónimo de um
agente secreto que eu conhecia, despedido por chantagem desde do tempo onde eu

398
exerci no departamento da polícia.» Um dos chefes da contra-espionagem na província,
um certo Ustinov, notário antes da guerra, nota nas sua Memórias os costumes da contra-
espionagem pouco mais ou menos nesses termos idênticos aos do Kurlov: «Os agentes,
nos seus inquéritos, fabricavam eles próprios a documentação.» É edificante verificar o
nível da instituição segundo o próprio denunciante. «A Rússia está perdida – escreve
Ustinov sobre Fevereiro – tendo sido vítima da revolução provocada pelos agentes da
Alemanha com o ouro alemão».
A atitude do notário patriota em relação aos bolcheviques não precisa explicações.
«Os relatórios da contra-espionagem sobre a actividade de Lenine, sobre a sua ligação
com o estado-maior alemão, sobre o facto que ele tinha ganho ouro alemão eram tão
convincentes que deviam enforcá-lo logo.» Kerensky não se decidia, somente porque ele
próprio, acontece, era um traidor. «Em particular, estávamos estupefactos e mesmo
simplesmente indignados de ver governar um pequeno mau advogado, o pequeno judeu
Sacha Kerensky.» Ustinov testemunha que Kerensky «era bem conhecido como
provocador que traía os seus camaradas». O general francês Anselme, como se explica
mais longe, evacuou Odessa em Março de 1918 não sobre a pressão dos bolcheviques,
mas porque ele tinha recebido um suborno considerável. De quem? Dos bolcheviques?
Não, «os bolcheviques nada têm a ver com isso. São os franco-maçons que entram em
cena.» Tal é o mundo.
Brevemente após a insurreição de Fevereiro, a mesma instituição, composta de
canalhas, de falsificadores e de chantagistas, foi colocada sob a vigilância de um
socialista-revolucionário patriota, regressado da emigração, chamado Mironov, que o sub-
secretários de Estado Demianov, «socialista-populista», caráteriza nestes termos:
«Exteriormente, Mironov produzia boa impressão... mas eu não me espantaria se
soubesse que esse homem não era completamente normal.» Pode-se confiar neste este
testemunho; é duvidoso que um homem normal consentisse tomar a direcção de uma
instituição que era simplesmente necessário dissolver, regando as paredes com
sublimado corrosivo.
No seguimento dos danos administrativos provocados pela insurreição, a contra-
espionagem tornou-se subordinada ao ministro da Justiça, Pereverzev, homem de uma
imprudência inconcebível e pouco incomodado com a escolha dos meios. O mesmo
Demianov diz nas sua Memórias que o seu ministro «não gozava no soviete de qualquer
prestígio». Sob a égide de Mironov e de Pereverzev, os agentes da contra-espionagem,
assustados pela revolução, acordaram e adaptaram a sua antiga actividade à nova
situação política. Em Junho, a ala esquerda da imprensa governamental começou a
publicar informações sobre a corrupção e outros crimes cometidos pelos altos
funcionários da contra-espionagem, incluindo os dois directores da instituição, Chtchukine
e Broi, adjuntos directos do infortunado Mironov. Oito dias antes da crise de Julho, o
comité executivo, sob a pressão dos bolcheviques, exigiu do governo que ele procedesse
a uma imediata revisão da contra-espionagem, com a participação dos representantes do
soviete. Os agentes da contra-espionagem tinham portanto razões de serviço, mais
exactamente de cobardia, para bater rápido e o mais forte possível sobre os

399
bolcheviques. O príncipe Lvov acabava de assinar um decreto dando à contra-
espionagem o direito de deter qualquer pessoa durante três meses.
O carácter da acusação e dos próprios acusadores levanta inevitavelmente esta
questão: como é que em geral homens com uma mentalidade normal podiam concordar
ou pelo menos fazer de conta de acreditar numa patente mentira e totalmente absurda? O
sucesso da contra-espionage teria sido, efectivamente, inconcebível fora do ambiente
geral criado pela guerra, as derrotas, o desespero, a revolução e a exasperação da luta
social. Nada tinha sucesso com as classes dirigentes russas desde Outono de 1914, o
chão abria-se debaixo dos seus pés, tudo lhes caía das mãos, as calamidades abatiam-se
de todos os lados: como se passar sem procurar um culpado?
O ex-procurador do palácio da Justiça, Zavadzky, menciona nas suas Memórias que
«pessoas completamente sãs de espírito durante os alarmantes anos da guerra, tinham
tendência a desconfiar da traição onde, verosimilmente ou sem qualquer dúvida, ela não
existia. A maior parte dos assuntos desse género foram levantados no tempo quando eu
era procurador, tornaram-se exageradamente aumentadas.» A iniciativa de tais assuntos,
independentemente do espião maléfico, vinha do pequeno-burguês que tinha perdido a
cabeça. Mas já, cedo, a psicose da guerra combinava-se com a febre política pré-
revolucionária e começou a dar resultados tanto mais patéticos. Os liberais, de acordo
com os generais azarentos, procuravam por todo o lado e em tudo a mão da Alemanha. A
camarilha era julgada germanofilia. A clique da Rasputine, na sua totalidade, era
considerada, ou pelo menos declarada, pelos liberais, como agindo sobre as instruções
de Potsdam. A czarina era frequentemente e abertamente acusada de espionagem:
atribuíam-lhe, mesmo nos meios da Corte, a responsabilidade de ter feito afundar pelos
alemãs o navio sobre o qual o general Kitchner ia à Rússia.
Os homens de direita, bem entendido, não ficavam por aí. Zavadsky conta como o
subsecretário de Estado do Interior Bieletsky tentou, no princípio de 1916, criar um caso
contra o industrial nacional-liberal Gutchkov, acusando-o «de actos que, em tempo de
guerra, atingiam de perto a alta traição...» Denunciando as acções de Bieletsky, Kurlov,
ele também antigo secretário de Estado do Interior, perguntou por sua vez a Miliokov:
«Porque qual trabalho honesto ao serviço da pátria ele recebeu duzentos mil rublos em
dinheiro «finlandês», por correio dirigido ao seu porteiro?» As aspas que enquadram a
palavra «finlandês» a propósito do dinheiro devem mostrar que se trata de dinheiro
alemão. Ora, Miliokov também tinha fama bem merecida de germanófobo!
Nos círculos governamentais, estimava-se geralmente provado que todos os
partidos da oposição agiam com o dinheiro da Alemanha. Em Agosto de 1915, como se
esperavam sarilhos por ocasião da projectada dissolução da Duma, o ministro da Marinha
Grigorovitch, considerado como um quase liberal, dizia em conselho de ministros: «Os
alemãs propagam e pagam as organizações anti-governamentais.» Os outubristas e os
cadetes, indignados face às insinuações desse género, não hesitavam em atribuí-los à
esquerda. Sobre um discurso meio patriótico do menchevique Tchkheidze no início da
guerra, o presidente da Duma Rodzianko escrevia: «Os acontecimentos mostraram as

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ligações de Tchkheidze com as esferas alemãs.» Esperava-se em vão uma sombra de
prova!
Na sua História da segunda revolução Russa, Miliokov diz isto: «O papel das «fontes
obscuras» na insurreição do 27 de Fevereiro não de forma completamente clara, mas a
julgar por tudo o que seguiu, é difícil negar.» Mais resolutamente exprime-se um ex-
marxista, actualmente eslávico reaccionário, de origem alemã, Peter von Struve: «Quando
a revolução russa, conspirada e meditada pela Alemanha, conseguir, a Rússia em suma
saída da guerra.» Para Struve como para Miliokov, tratava-se não da revolução de
Outubro, mas da revolução de Fevereiro. Sobre o famoso Prikaz nº1, a grande Carta das
liberdades do soldado, elaborada pelos delegados da guarnição de Petrogrado,
Rodzianko, escrevia: «Não duvido um só instante da origem alemã do Prikaz nº1.» O chfe
de uma das divisões, o general Barkovsky, contava a Rodzianko que o Prikaz nº1 «tinha
sido distribuído, em quantidades formidáveis, às suas tropas por homens das trincheiras
alemãs». Quando se tornou ministro da Guerra, Gotchkov, que tentaram, no tempo do
czar, de incriminar por alta traição, apressou-se a lançar para a esquerda esta acusação.
O Prikaz de Abril de Gotchkov ao exército dizia: «Gente que detestam a Rússia e que sem
dúvida estão ao serviço dos nossos inimigos, insinuaram no exército da frente com uma
perseverança que caráteriza os nossos adversários, e, verosimilmente, obtemperando às
exigências destes últimos, pregam a necessidade de terminar a guerra mais cedo
possível.» Sobre a manifestação de Abril, dirigida contra a política imperialista, Miliokov
escreve: «A tarefa de eliminar os dois ministros [Miliokov e Gotchkov] foi nitidamente
colocada na Alemanha. «Os operários, para participar à manifestação, teriam ganho, dos
bolcheviques, quinze rublos por dia. A fonte de ouro alemã explicava ao historiador liberal
todos os enigmas sobre os quais ele partia os dentes como político.
Os socialistas patriotas que perseguiam os bolcheviques como aliados involuntários,
senão agentes da Alemanha dirigente encontravam-se eles próprios sob a acção de tais
acusações vindas da direita. Viu-se o julgamento de Rodzianko sobre Tchkheidze. O
mesmo Rodzianko não poupou Kerensky: «É ele, sem dúvida, que, por simpatia secreta
pelos bolcheviques, mas talvez também em virtude de outras considerações,
comprometeu o governo provisório a admitir os bolchevique na Rússia.» As «outras
considerações«não podem significar nada senão a predilecção pelo ouro da Alemanha.
Em curiosas Memórias que foram traduzidas em várias línguas estrangeiras, um general
da guarda, Spiridovitch, assinala o grande número de judeus nos círculos dirigentes dos
socialistas-revolucionários, acrescenta: «Entre eles brilhavam também nomes russos, tais
como o do futuro ministro da aldeia, espião alemão, Victor Tchernov.» O líder do partido
socialista-revolucionário não era somente suspeito pelo guarda, longe disso. Após o
progrom contra os bolcheviques em Julho, os cadetes não perdendo tempo, lançaram
uma forte campanha contra o ministro da Agricultura Tchernov, como suspeito por manter
relações com Berlim, e o infeliz patriota teve que dar durante um certo tempo a demissão
com o fim de lavar as acusações que pesavam sobre ele.
Pronunciando-se, durante o outono de 1917, sobre o mandato entregue pelo comité
executivo patriota ao menchevique Skobelev pela sua participação na conferência
socialista internacional, Miliokov, do alto da sua tribuna do pré-parlamento, demonstrava,

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com uma análise escrupulosamente sitáxica do texto, «a origem» evidentemente «alemã»
do documento. O estilo do mandato, como aliás o de toda a literatura dos conciliadores,
era efectivamente má. A democracia atrasada, desprovida de ideias, de vontades,
olhando com temor à direita e à esquerda, apertava nos seus escritos reservas sobre
reservas, das quais ela fazia má tradução de uma outra língua, assim como ela própria
não era senão a sombra de um passado estrangeiro, Ludendorff, todavia, nesse assunto,
nada tem a ver.
A passagem de Lenine pela Alemanha abriu à demagogia chauvinista possibilidades
inesgotáveis. Mas como para mostrar mais claramente o papel dócil do patriotismo na sua
política, a imprensa burguesa, que tinha acolhido com fingida benevolência Lenine nos
primeiros tempos, não levanta contra a sua «germanofilia» uma campanha desenfreada
senão após ter esclarecido o seu programa social. «A terra, o pão e a paz?» Ele não
podia trazer tais palavras de ordem senão da Alemanha. Nesta época, não se falava
ainda das revelações de Ermolenko.
Quando Trotsky e vários outros emigrados que regressavam da América foram
presos pelo controlo militar do rei George, perto de Halifax, o embaixador da Grande-
Bretanha em Petrogrado deu à imprensa um comunicado oficial numa inimitável
linguagem anglo-russa: «Esses cidadãos russos a bordo do vapor Chrisianiafjord foram
retidos em Halifax, porque foi comunicado ao governo inglês que eles tinham um relatório
sobre um plano subsidiado pelo governo alemão para derrubar o governo provisório
russo...» O comunicado do sir George Buchanan era datado de 14 de Abril: nesse
momento, não somente Burstein, mas mesmo Ermolenko não tinham ainda surgido no
horizonte. Miliokov, como ministro dos Assuntos estrangeiros, viu-se forçado a pedir ao
governo inglês, por intermédio de Nabokov, embaixador da Rússia, a libertação de Trotsky
e a autorização para regressar à Rússia. «Conhecendo Trotsky segundo a sua actividade
na América – escreve Nabokov – o governo inglês estava estupefacto: O que era isso?
Cegueira ou animosidade? Os ingleses levantavam os ombros, compreendiam o perigo,
preveniam-nos.» Lloyd George teve portanto que ceder. Em resposta à questão colocada
ao embaixador da Grande-Bretanha por Trotsky na imprensa de Petrogrado, Buchanan
retirou lastimosamente a sua primeira explicação, declarando desta vez:«O meu governo
reteve um grupo de emigrados em Halifax somente com o fim e na espera de um
reconhecimento das suas personalidades pelo governo russo... A isso se reduz todo o
assunto da prisão dos emigrados russos.» Buchanan não era simplesmente um
cavalheiro, era também um diplomata.
Na conferência dos membros da Duma do Estado, no início de Junho, Miliokov,
expulso do governo pelas manifestações de Abril, reclamava a prisão de Lenine e de
Trotsky, indicando em termos inequívocos suas ligações com a Alemanha. Trotsky
declarou, no dia seguinte, no congresso dos sovietes: «Enquanto que Miliokov não tiver
retirado essa acusação, trará sobre a testa o estigma de um infâme caluniador.» Miliokov
respondeu na Rietch que ele «estava descontente em ver os srs. Lenine e Trotsky
passearem em liberdade, mas que ele tinha sido motivado pela necessidade da prisão
deles» não por esse facto que eles seriam agentes da Alemanha, mas porque eles tinham
suficientemente pecado contra o código criminal». Miliokov era diplomata sem ser

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cavalheiro. A necessidade de prender Lenine e Trotsky era para ele absolutamente claro
antes das revelações de Ermolenko; como apresentar juridicamente a prisão – era uma
questão técnica. O líder dos liberais jogava-se na política com uma acusação grave muito
antes que ela fosse elaborada sob a sua forma «jurídica».
O papel da legenda sobre o ouro alemão pareceu mais evidente num episódio
singular contado pelo secretário geral do governo provisório, o cadete Nabokov (não se
confunda com o embaixador da Rússia em Londres mencionado mais acima). Numa das
sessões do governo, Miliokov, aproveitando a ocasião, notou: «Não é segredo para
ninguém que o dinheiro alemão jogou um papel no número de factores que contribuíram
para a revolução...» Trata-se efectivamente de Miliokov, mesmo se a sua forma é
evidente atenuada. Kerensky – conta Nabokov – ficou vermelho de raiva. Pegou na sua
pasta e, jogando-a violentamente sobre a mesa, gritou: «Desde então que o sr. Miliokov
ousou, na minha presença, caluniar a causa sagrada da grande revolução russa, não
quero ficar aqui um só minuto.» Isso parece muito com Kerensky, ainda se os gestos são
relatados de uma maneira exagerada. Um provérbio russo aconselha a não cuspir no
poço onde iremos beber. Quando foi ameaçado pela revolução de Outubro, Kerensky não
encontrou melhor do que articular contra o mito do ouro alemão. O que da parte de
Miliokov, era «uma calúnia lançada contra uma causa sagrada«tornou-se para Burstein-
Kerensky a causa sagrada da calúnia contra os bolcheviques.
A cadeia interrompida das prevenções de germanofilia e de espionagem que se
prolongava desde da czarina, Rasputine, os círculos da Corte, passando pelos
ministérios, os estados-maiores, a Duma, as redacções liberais, até Kerensky e uma parte
da cimeira soviética, surpreende pela sua uniformidade. Os adversários políticos pareciam
ter firmemente resolvido não fazer esforços de imaginação: eles fazem simplesmente
passar e repassar uma só e mesma acusação de um ponto para outro, de preferência da
direita para a esquerda. A calúnia de Julho lançada contra os bolcheviques, menos que
qualquer outra, não caía do céu sereno; ela era o resultado natural do pânico e do ódio, o
último anel da vergonhosa cadeia, a transmissão de uma formula caluniadora acabada,
que reconciliava os acusadores e acusados da véspera. Todas as vexações sofridas pelos
dirigentes, todas as suas apreensões, todas as suas exasperações voltaram-se contra o
partido que se situava mais à esquerda e incarnava mais integralmente a força
esmagadora da revolução. As classes possuidoras podiam ceder o lugar aos
bolcheviques sem ter feito uma última tentativa desesperada para esmagar no sangue e
na lama? A bola da calúnia, bem apertada à força de ser utilizada, devia fatalmente cair
sobre a cabeça dos bolcheviques. As revelações de um alferes da contra-espionagem não
eram senão a materialização do delírio das classes possuidoras quando se viram
encalacradas num impasse. Foi por isso que a calúnia tomou tanta virulência.
A espionagem alemã não era, bem entendido, um devaneio. Ela estava infinitamente
melhor organizada na Rússia que a espionagem russa na Alemanha. Basta lembrar que o
ministro da Guerra Sukhomlinov já tinha sido, sob o antigo regime, preso como cúmplice
de Berlim. Sem dúvida igualmente que os agentes da Alemanha se infiltraram não
somente nos meios da Corte, e entre o Cem Negros, mas também nos meios da
esquerda. As autoridades austríacas e alemãs, desde dos primeiros dias da guerra,

403
esganavam-se a construir tendências separatistas, começando pelos emigrados da
Ucrânia e do Cáucaso. É curioso notar que Ermolenko, alistado por elas em Abril de 1917,
tinha por missão militar pela emancipação da Ucrânia. Desde do outono de 1914, Lenine
tal como Trotsky, na Suíça, convidavam publicamente em romper com os revolucionários
que se deixavam levar no início do militarismo autro-alemão. No princípio de 1917,
Trotsky renovou na imprensa, em Nova Iorque, este aviso aos sociais-democratas alemãs
de esquerda, partidários de Liebknecht com os quais agentes da embaixada britânica
tentavam ligar-se.
Mas ao mesmo tempo que se pavoneavam com os separatistas com o objectivo de
enfraquecer a Rússia e de intimidar o czar, o governo alemão estava longe de pensar
derrubar o czarismo. O melhor testemunho disso está numa proclamação propagada
pelos alemãs após a insurreição de Fevereiro, nas trincheiras russas, em que foi lida
publicamente, a 11 de Março, na sessão do soviete de Petrogrado: «No início, os ingleses
iam com o vosso czar, porque ele não concordava com as suas exigências interessadas.
Derrubaram o vosso czar. Por que é que isso aconteceu? Porque ele compreendeu e
revelou a intriga mentirosa e perfídia da Inglaterra.» Tanto na forma como no fundo, esse
documento dá uma garantia de autenticidade. Da mesma maneira que não se saberia
falsear um tenente prussiano, é impossível falsificar a sua filosofia histórica. Holfmann,
tenente prussiano promovido ao posto de general, considerava que a revolução russa
tinha sido combinada e orquestrada pela Inglaterra. Há contudo nisso menos absurdidade
que na teoria dos Miliokov—Struve, porque Potsdam continuou até ao fim esperando uma
paz separada com Tsarkoie-Selo, enquanto que em Londres temiam sobre tudo esta paz
separada. Foi somente quando a impossibilidade de uma restauração do czar se tornou
patente que o estado-alemão mudou as suas esperanças para uma acção corrupta do
processo revolucionário. Mas mesmo sobre a questão da passagem de Lenine pela
Alemanha, a iniciativa vinha não dos círculos alemãs, mas do próprio Lenine, e, na sua
forma primitiva, do menchevique Martov. O estado-maior alemão foi somente ao seu
encontro, provavelmente não sem hesitações. Ludendorff ter-se-ia dito: será somente um
alívio desse lado.
Durante o acontecimentos de Julho, os próprios bolcheviques procuravam discernir,
por detrás de excessos inesperados e provocados com uma evidente premeditação, a
obra de uma mão estrangeira e criminosa. Trotsky escrevia nesses dias: «Que papel
jogou aqui a provocação contra-revolucionária, ou o serviço de espionagem alemão? É
difícil presentemente dizer sobre isso qualquer coisa de certo... resta esperar os
resultados de uma verdadeira instrução... Mas, a partir de agora, já se pode declarar com
certeza: os resultados de tal inquérito pode lançar novos esclarecimentos sobre as acções
dos bandos de Cem Negros e sobre o papel clandestino do ouro, que seja alemão, inglês
ou da reacção russa, ou que seja enfim a primeira, a segunda e a terceira fonte ao
mesmo tempo: mas o sentido político dos acontecimentos não pode ser alterado por
qualquer instrução judiciária. As massas operárias e as tropas de Petrogrado não foram e
não podiam ser compradas. Elas não estão ao serviço nem de Guilherme II, nem de
Buchanan, nem de Miliokov... O movimento foi preparado pela guerra, pela fome iminente,
pela reacção que levanta a cabeça, pelo governo que não tem cabeça, por uma ofensiva

404
aventureira, pelo desafio político e as preocupações revolucionárias dos operários e dos
soldados...» Todos os dossiers dos arquivos, os documentos, as memórias que se
conheceram depois da guerra e as duas insurreições demonstram sem sombra de dúvida
que a ingerência da espionagem alemã nos processos revolucionários da Rússia não se
levantou um só momento acima da esfera militar e policial no domínio da alta política. É
necessário insistir sobre isso após a revolução que se produziu na própria Alemanha?
Como lamentável e impotente se mostrou o serviço de espionagem pretensamente todo
poderoso do Hohenzollern, durante o outono de 1918, face aos operários e os soldados
alemãs! «O cálculo dos nossos inimigos que tinham expedido Lenine para a Rússia era
perfeitamente justo» declara Miliokov. Foi de outro modo que o próprio Ludendorff julgou
os resultados da empresa: «Eu não podia supor – disse ele da revolução russa, para se
justificar – que ela se tornasse a sepultura da nossa potência.» Isso só significa, que os
estrategas: Ludendorff autorizando a passagem de Lenine, era Lenine que via melhor e
mais longe.
«A propaganda inimiga e o bolchevismo – escreveu lamentavelmente Ludendoff nas
suas Memórias – visavam, nos limites do Estado alemão um e só objectivo. A Inglaterra
deu o ópio à China, os nossos inimigos deram-nos a revolução...» Ludendorff atribui à
Entente o que Miliokov e Kerensky acusavam a Alemanha. Foi assim que se vingou
cruelmente o sentido deformado da história! Mas Ludendorff não ficou por aí. Em
Fevereiro de 1931, ele revelou ao mundo que, nas costas dos bolcheviques, se erguia o
capital financeiro mundial, principalmente judeu, unificado na luta contra a Rússia czarista
e a Alemanha imperialista. «Trotsky chega da América, pela Suécia, em Petersburgo, com
grandes somas fornecidas pelo capital mundial. Outros fundos foram transmitidos da
Alemanha para os bolcheviques pelo judeu Solmssen.» (Ludendorffs Volkswarte, 15 de
Fevereiro de 1931.) Tão contraditórios que sejam os testemunhos de Ludendorff e os de
Ermolenko, eles coincidiam todavia sobre um ponto: uma parte do dinheiro, acontece,
vinha efectivamente da Alemanha, não de Ludendorff, é verdade, mas do seu inimigo
mortal Solmssen. Só faltava esse testemunho para dar a todo o assunto um certo fim
estético.
Mas nem Ludendorff, nem Miliokov, nem Kerensky não inventaram a pólvora, ainda
se o primeiro a tivesse utilizado bastante, «Solmssen» teve percursores na História, tanto
como judeu que como agente alemão. O conde de Fersen, embaixador da Suécia em
França durante a grande Revolução, partidário zeloso do poder real, do rei e sobretudo da
rainha, mandou mais de uma vez ao seu governo, em Estocolmo, relatórios deste género:
«O judeu Efraim, emissário do sr. Herzberg, de Berlim (ministro prussiano dos Assuntos
estrangeiros), enviou (aos jacobinos) dinheiro; não há muito tempo, recebeu seiscentos
mil libras.» Um jornal moderado, As Revoluções de Paris, exprimia esta hipótese que,
durante a insurreição republicana, «emissários da diplomacia europeia, tais como o judeu
Efraim, agente do rei da Prussia, penetravam na multidão móvel e versátil...» O mesmo
Fersen dizia num relatório: «Os jacobinos... seriam perdidos sem ajuda da plebe que eles
compram.» Se os bolcheviques atribuíram subsídios diários aos participantes nas
manifestações, eles seguiam o exemplo dos jacobinos, e, nos dois casos, o dinheiro
destinado a compra «a plebe» era igualmente a fonte berlinense. A semelhança na

405
maneira de agir dos revolucionários do século XX e do século XVIII seria espantosa se ela
não se revestisse de uma identidade ainda mais impressionante da calúnia vinda dos
inimigos. Mas não é necessário de se limitar somente aos jacobinos.
A história de todas as revoluções e das guerras civis prova invariavelmente que uma
classe ameaçada ou derrubada tem tendência a procurar a cauda das suas desgraças
não nela própria, mas nos agentes e emissários do estrangeiro. Não somente Miliokov,
como douto historiador, mas mesmo Kerensky, na sua qualidade de leitor superficial, não
podem ignorar. Todavia, como políticos, eles são as vítimas da sua própria função contra-
revolucionária.
Por debaixo das teorias sobre o papel revolucionário dos agentes estrangeiros, há
portanto, como sob todos os erros típicos das massas, um base histórica indirecta.
Conscientemente ou não, todo o povo faz, em períodos críticos da sua existência,
empréstimos particularmente grandes e ousados do tesouro de outros povos. Não é raro,
além disso, que o papel dirigente seja interpretado num movimento progressista por
pessoas que viveram no estrangeiro ou então por emigrados regressados à pátria. As
ideias e as instituições novas apresentam-se logo às camadas conservadoras antes de
tudo como produtos exóticos, estrangeiros. A aldeia ergue-se contra a cidade, o buraco da
província contra a capital, o pequeno burguês contra o operário, defendendo-se na
qualidade de forças nacionais contra as influências estrangeiras. O movimento dos
bolcheviques era apresentado como «um movimento alemão», por Miliokov, no fim de
contas pelas mesmas razões que teve o mujique russo, durante séculos em chamar
alemão qualquer homem vestido como um citadino. Com a diferença que, nesse caso, o
mujique era de boa-fé.
Em 1918, portanto após a insurreição de Outubro, o Gabinete da Imprensa do
governo americano publicou solenemente uma compilação de documentos sobre a
ligação dos bolcheviques com os alemãs. Esta falsificação, que não resiste nem a um
sopro da crítica, foi admitido por muitas pessoas instruídas e perspicazes mesmo no
momento onde se descobriu que os originais dos documentos, proveniente, pretendia-se,
de diversos países tinham sido dactilografados sobre uma e mesma máquina. Os
falsificadores não o faziam gratuitamente: eles estavam convencidos que a necessidade
política de denunciar os bolcheviques era mais importante que a voz da crítica. E não se
enganaram, porque os documentos foram-lhes pagos. Portanto, o governo americano,
afastado do teatro da luta pelo oceano, não estava interessado senão em terceiro ou
segundo grau.
Mas porquê, então, a calúnia política é em si tão indigente e monótona? Porque o
psíquico social é poupado e conservador. Ele não despensa mais esforços do que é
necessários para chegar aos seus fins, ele prefere emprestar do velho quando não é
forçado em construir novo, mesmo no último caso, ele aglomera elementos do velho.
Cada religião nova que surgiu, em vez de refazer uma mitologia nova, plagia as
superstições do passado. É segundo o mesmo tipo que se constituíram os sistemas
filosóficos, as doutrinas do direito e da moral. Os indivíduos, mesmo engenhosos, não se
desenvolvem mais harmoniosamente do que a sociedade que os educa. A fantasia

406
ousada acomoda-se num mesmo cerebro de uma fidelidade servil aos modelos acabados.
Temerários discurso combinam-se com julgamentos grosseiros; Shakespeare alimentava
as suas criações de sujeitos que lhe vinham da profundidade dos séculos. Pascal
demonstrava a existência de um deus por meio da teoria das probabilidades. Newton
descobriu as leis da atracção e tinha fé no Apocalipse. Desde que Marconi instalou um
poste de TSF no Vaticano, o vigário de Cristo difunde pela rádio a graça mística. Em
tempo normal, essas contradições não saem do estado de torpor. Mas, em tempos de
catástrofe, elas adquirem uma violência explosiva. Quando se trata de interesses
materiais ameaçados, as classes instruídas movimentam todos os preconceitos e os erros
que a humanidade arrasta atrás de si. Podemos queixar-nos dos patrões derrubados da
antiga Rússia que ergueram a mitologia da sua queda ao emprestar sem discernimento
às classes que foram derrotadas antes deles? Na verdade, o facto que Kerensky, muitos
anos após os acontecimentos, reproduz nas suas Memórias a versão de Ermolenko,
aparece de qualquer modo superflua.
A calúnia dos anos da guerra e de revolução, dissemos, é impressionante pela sua
uniformidade. Todavia há aí uma diferença. De uma quantidade acumulada resulta uma
nova qualidade. A luta dos outros partidos entre eles parecia quase uma querela de
família, comparativamente à perseguição que levavam em comum contra os
bolcheviques. Nos seus conflitos entre eles, pareciam simplesmente treinarem-se para
uma luta decisiva. Mesmo acusando-se gravemente um ao outro de estarem em ligação
com os alemãs, eles não levaram o assunto até ao fim. Julho deu outro quadro. No
avanço contra os bolcheviques, há todas as forças dominantes: o governo, a Justiça, a
contra-espionagem, os estado-maiores, os funcionários, as municipalidades, os partidos
da maioria soviética, sua imprensa, seus oradores constituem um conjunto grandioso.
Mesmo as suas divisões, assim como os instrumentos diferentes num orquestra, reforçam
somente o efeito geral. A absurda impostura de dois individuos desprezíveis é elevada ao
nível de factor histórico. A calúnia joga-se como um Niagara. Se tomarmos em
consideração as circunstâncias – a guerra e a revolução – e o carácter dos acusados – os
líderes revolucionários de milhões de homens que levavam o seu partido ao poder –
pode-se dizer sem exagero que Julho de 1917 foi o mês da maior calúnia conhecida da
história mundial.

407
A contra-revolução levanta a cabeça
Durante os dois primeiros meses, enquanto que, formalmente, o poder estava sob a
responsabilidade do governo Gotchkov—Miliokov, ele estava de facto concentrado
inteiramente nas mãos do soviete. Durante os dois meses seguintes, o soviete
enfraqueceu: uma parte da influência sobre as passou para as mãos dos bolcheviques,
uma parcela do poder foi transferida, das pastas dos ministros socialistas para o governo
de coligação. Desde do início dos preparativos da ofensiva se reforçou automaticamente
a importância do comando militar, dos órgãos do capital financeiro e do partido cadete.
Antes de verter o sangue dos soldados, o comité executivo procedeu a uma considerável
transfusão do seu próprio sangue para as veias da burguesia. Nos corredores, os fios
eram recolhidos pelas mãos das embaixadas e dos governos da Entente.
Na conferência inter-aliada que teve lugar em Londres, os amigos do Ocidente
«esqueceram» de convidar o embaixador da Rússia; foi somente quando se lembraram
que o chamaram, dez minutos antes da abertura da sessão, e já não havia lugar para ele
à volta da mesa, de maneira que ele foi obrigado a colocar-se entre os franceses. Esta
humilhação afligiu o embaixador do governo provisório e a demissão demonstradora dos
cadetes do ministério produziu-se no 2 de Julho: os dois acontecimentos tinham um e só
objectivo: obrigar os conciliadores a retirarem-se. A manifestação armada que se
desenrolou a seguir devia tanto mais exasperar os líderes soviéticos que, sobe um duplo
golpe, eles concentravam toda a sua atenção num sentido oposto. Desde então era
preciso trazer a submissão sangrenta no seguimento da Entente, não encontraram os
melhores intercessores senão os cadetes. Tchaikovsky, um dos mais antigos
revolucionários russos, que se transformou no decurso dos longos anos da emigração,
num liberal moderado de tipo britânico, moralizava assim: «É preciso dinheiro para a
guerra, ora os Aliados não darão dinheiro aos socialistas.» Os conciliadores estavam
incomodados por este argumento, mas compreendiam todo o peso.
A relação de forças tinha-se nitidamente modificado em desvantagem do povo, mas
ninguém não podia dizer em que medida. Os apetites da burguesia tinham aumentado
muito mais que as suas possibilidades. Nesta indeterminação encontrava-se a fonte dos
conflitos, porque as forças das classes verificavam-se pela acção e os acontecimentos de
uma revolução eram trazidas a tais verificações renovadas. Tal foi todavia, na sua
extensão, a deslocação do poder da esquerda para a direita, ela atingia pouco o governo
provisório que continuava nulo. Pode-se contar pelos dedos de uma mão os homens que,
nos dias críticos de Julho, se interessavam o governo do príncipe Lvov. O general
Krymov, o mesmo que outrora tinha conduzido as conversações com Gotchov sobre a
deposição de Nicolau II – nós veremos brevemente esse general pela última vez – enviou
ao príncipe um telegrama que terminava por este conselho: «É tempo de passar das
palavras aos actos.» O conselho teve um ressonância de piada e sublinhava mais
nitidamente a impotência do governo.
«No princípio de Julho – escrevia o liberal Nabokov – houve um breve momento
onde o poder parecia retomar autoridade; foi após o esmagamento da primeira ofensiva

408
bolchevique. Mas o governo provisório não soube aproveitar o momento, e as condições
favoráveis de então não foram utilizadas. Elas não voltaram a repetir-se. «É nesse mesmo
espírito que se exprimem outros representantes do campo da direita. Na realidade,
durante as jornadas de Julho, tal que em geral em todos os momentos críticos, as
componentes da coligação perseguiam fins diferentes. Os conciliadores estariam
dispostos a permitir o esmagamento definitivo dos bolchevique, se não fosse evidente que
tendo resolvido o caso destes últimos, os oficiais, os cossacos, os cavaleiros de São
Jorge e os batalhões de choque esmagariam os próprios conciliadores. Os cadetes
queriam ir até ao fim para varrer não somente os bolcheviques, mas os sovietes. Todavia,
não é por acaso que os cadetes se encontravam, em todos os momentos graves, fora do
governo. No fim de contas, eles foram expulsos pela pressão das massas, irresistível, a
despeito de todos os tampões conciliadores. Mesmo se os liberais tivessem conseguido
apoderar-se do poder, eles não teriam podido guardá-lo. Os acontecimentos
demonstraram a seguir com grande clareza. A ideia da possibilidade que teriam deixado
escapar em Julho é uma ilusão retrospectiva. De qualquer modo, a vitória de Julho, longe
de consolidar o poder, abriu ao contrário um período de crise governamental prolongado
que não encontrou formalmente saída senão no 24 de Julho e foi em resumo uma lenta
agonia, durante quatro meses, do regime de Fevereiro.
Os conciliadores estavam divididos entre a necessidade de restabelecer uma meia
amizade com a burguesia e a necessidade de moderar a hostilidade das massas. O
zigzag tornou-se para eles uma forma de existência, que se transformaram em oscilações
febris, mas a linha essencialmente virou bruscamente para a direita. No 7 de Julho, o
governo decidiu toda uma serie de medidas repressivas. Mas, na mesma sessão, em
segredo, aproveitando da ausência dos «antigos», isto é dos cadetes, os ministros
socialistas propuseram ao governo de empreender a realização do programa estabelecido
em Junho pelo congresso dos Sovietes. Isso levou imediatamente um novo deslocamento
do governo. O príncipe Lvov, grande proprietário de terras, antigo presidente da união dos
zemstvos, acusou o governo de «sapar» pela sua política agrária «a consciência jurídica
do povo». Os proprietários nobres inquietaram-se não por ter talvez de perder seus
patrimónios, mas de ver os conciliadores «esforçarem-se de colocar a assembleia
constituinte diante do facto consumado». Todos os pilares da reacção monárquica
tornaram-se desde logo partidários entusiastas da democracia pura! O governo decidiu
confiar o posto de ministro presidente a Kerensky, mantendo a possessão das pastas da
Guerra e da Marinha. Tseretelli, novo ministro do Interior, teve que responder diante do
comité executivo sobre as prisões dos bolcheviques. A interpelação vinha de Martov, e
Tseretelli respondeu, sem cerimónia, ao seu antigo camarada de partido, que preferia
resolver o assunto com Lenine em vez de Martov: com o primeiro ele sabia como se
conduzir, enquanto que o outro amarrava-lhe as mãos... «Tomo a responsabilidade
dessas prisões!» - tal foi o desafio do ministro diante de um auditório que arrebitava as
orelhas. Ao mesmo tempo que golpeava a esquerda, os conciliadores alegavam o perigo
da direita. «A Rússia encontra-se diante de uma ditadura militar – declara Dan no seu
relatório na sessão do 9 de Julho. Nós temos a obrigação de arrancar a baioneta das
mãos da dictadura militar. E não o podemos fazer senão em reconhecendo o governo

409
provisório como o comité de salvação nacional. Devemos dar ao governo poderes
ilimitados para que ele possa extirper a anarquia de esquerda e a contra-revolução da
direita... » Como se o próprio governo, que lutava contra os operários, os soldados, os
camponeses, tinha podido ter nas mãos uma outra baioneta senão aquela da contra-
revolução! Por duzentos e cinquenta e dois votos, diante quarenta e sete abstenções, a
Assembleia unificada tomou esta resolução: « 1º O país e a revolução estão em perigo. 2º
O governo provisório declara-se governo de salvação da revolução. 3º Reconhecesse-lhe
poderes ilimitados.» Esta decisão soava como um barril vazio. Os bolcheviques que
assistiam à sessão abstiveram-se de votar, o que testemunha uma indiscutível
perplexidade nas cimeiras do partido nessa época.
Os movimentos de massa, mesmo esmagados, nunca passam sem deixar rasto. O
lugar do grande senhor foi ocupado, à cabeça do governo, por um advogado radical; o
ministérios do Interior teve à cabeça um forçado. Constata-se uma remodelação plebeia
do poder. Kerensky, Tseretelli, Tchernov, Skobolev, líderes do comité executivo,
determinavam desde de então a fisionomia do governo. Não está aí a realização da
palavra de ordem das jornadas de Junho: «Abaixo os ministros capitalistas» ? Não, é
somente a revelação da inconsistência dessa palavra de ordem. Os ministros democratas
não tomaram o poder senão para o restituir aos capitalistas. «A coligação está morta, viva
a coligação!»
Desempenha-se a vergonhosa comédia do desarmamento dos metralhadores na
praça do palácio. Vários regimentos são dissolvidos. Soldados são enviados, por
pequenos destacamentos, como reforços para a frente. Os quarentões são levados à
disciplina e expulsos para as trincheiras. São todos agitadores contra o regime do
kerenskysmo. São algumas dezenas de milhar e realizarão até o outono um grande
trabalho. Paralelamente, desarma-se os operários, mesmo com sucesso menor. Sob a
pressão dos generais – veremos em breve quais formas ela toma – a pena de morte é
restabelecida na frente. Mas, no mesmo dia, no 12 de Julho, é promulgado um decreto
limitando as compras e vendas de terras. A meia medida tardia, sob a ameaça do
machado do mujique, provocou sarcasmos à esquerda, à direita, ranger de dentes. Tendo
proibido todo e qualquer desfile pelas ruas – ameaça para a esquerda – Tseretelli
levantou a mão contra as prisões arbitrárias, tentativa para intimidar a direita. Kerensky,
tendo revocado o comandante chefe da região militar, deu como motivo à esquerda que
este oficial tinha destruído organizações operárias, à direita que este homem era pouco
resoluto.
Os cossacos tornaram-se os autênticos heróis de Petrogrado burguês. «Acontece às
vezes – conta o oficial cossaco Grekov – que um dos nossos, em uniforme, entrando num
lugar público, num restaurante onde há muita gente, todos se levantam e acolhem o
recém-chegado com aplausos.» Os teatros, os cinemas e os jardins de divertimento
organizaram várias noites de beneficência em proveito dos cossacos feridos e das
famílias dos cossacos mortos. O secretariado do comité executivo viu-se forçado a eleger
uma comissão, tendo à cabeça Tchkheidze, para participar na direcção dos funerais «dos
guerreiros caídos no cumprimento do seu dever revolucionário durante os dias de 3 a 5 de
Julho.» Os conciliadores tiveram que beber até às borras o copo da humilhação. O

410
ceremonial começou por um serviço religioso na catedral São Isac. Os caixões foram
transportados por Rodzianko, Miliokov, o príncipe Lvov e Kerensky, e em procissão foram
levados para enterro no mosteiro Alexandre-Nevsky. Na passagem do cortejo, a milícia
estava ausente, os cossacos tinham-se encarregado de manter a ordem: o dia das
obséquias foi a do seu inteiro domínio sobre Petrogrado. Os operários e os soldados que
os cossacos tinham massacrado, irmão de sangue das vítimas, foram sepultados às
ocultas, da mesma maneira que, no tempo do czar, tinham enterrado as vítimas do 9 de
Janeiro de 1905.
O comité executivo de Cronstadt recebeu do governo o aviso para imediatamente
colocar aos dispor das autoridades judiciárias Raskolnikov, Rochal e o alferes Remnev,
sob ameaça de um bloqueio da ilha de Cronstadt. Em Helsingfors foram também presos,
com os bolcheviques, pela primeira vez, socialistas-revolucionários de esquerda. O
príncipe Lvov, que se tinha demitido, queixava-se nos jornais do que «os sovietes,
inferiores à moral geral da alta política, não se desembaraçaram dos leninistas, esses
agentes da Alemanha». Foi um caso de honra para os conciliadores em demonstrar a sua
moral de Estado! No 13 de Julho, os comités executivos adoptaram na sessão unificada
uma moção apresentada por Dan: «Todas as pessoas acusadas pelo poder judiciário são
afastadas dos comités executivos até ao julgamento do tribunal.» Os bolcheviques eram
assim colocados efectivamente fora da lei. Kerensky proibiu toda a imprensa bolchevique.
Na província procedia-se a prisões dos comités agrários. As Izvestia lamentavam-se na
impotência: «Há alguns dias, testemunhámos os excessos da anarquia nas ruas de
Petrogrado. Hoje nas mesmas ruas, vazam-se sem limites discursos contra-
revolucionários, discursos dos Cem Negros.»
Os regimentos mais revolucionários tendo sido dissolvidos e os operários
desarmados, o centro de gravidade deslocou-se mais ainda para a direita. Nas mão de
alguns altos dirigentes militares, grupos industriais, banqueiros e cadetes, concentrara-se
uma importante parte do poder real. A outra parte ficava nas mãos dos sovietes. A
dualidade dos poderes legalizada, baseada num contrato ou coligação, dos meses
precedentes, era a dualidade de poderes explosivo de duas cliques: a dos militares e
burgueses e a dos conciliadores que se temiam entre elas, mas ao mesmo tempo
necessitavam uma da outra. Que havia a fazer ? Ressuscitar a coligação. «Após a
insurreição dos 3, 4 e 5 de Julho – escreve com justeza Miliokov – a ideia da coligação
não somente foi abandonada, mas, pelo contrários, adquiriu durante um certo tempo mais
força e significado que ela não tinha antes.»
O comité provisório da Duma de Estado despertou inopinadamente e adoptou uma
violenta resolução contra o governo de salvação. Foi o último golpe. Todos os ministros
remeteram as suas pastas a Kerensky, fazendo assim dele o centro da soberania
nacional. No destino ulterior da revolução de Fevereiro, tal como a sorte pessoal de
Kerensky, esse momento ganhou uma importância considerável: no caos dos
agrupamentos, demissões, nomeações, esboçou-se qualquer coisa no género de um
ponto sólido à volta do qual giravam todos os outros. A demissão dos ministros serviu de
introdução a conversações com os cadetes e os industriais. Os cadetes meteram suas
condições: responsabilidade dos membros do governo «exclusivamente face à sua

411
consciência»; acordo absoluto com os Aliados; restabelecimento da disciplina no exército;
nenhuma reforma social antes da assembleia constituinte. Um artigo que não estava
escrito, era a exigência de diferir as eleições para a assembleia constituinte. Isso
chamava-se «um programa independente dos partidos e nacional».
No mesmo sentido responderam os representantes do comércio e da indústria que o
conciliadores tentavam em vão de opor aos cadetes. O comité executivo confirmou ainda
a sua resolução de dar ao governo de salvação «plenos poderes»; isso significava que se
consentia na independência do governo em relação ao soviete. No mesmo dia, Tseretelli,
como ministro do Interior, lançou um circular convidando a tomar «medidas urgentes e
resolutas para meter fim aos actos de arbítrio no domínio das relações agrárias. «O
ministro dos abastecimentos, Pechekhonov, reclamava pelo seu lado que se metesse fim
«às violências e aos actos criminais contra os proprietários de terras». O governo de
salvação da revolução recomendava-se, antes de tudo, como um governo de salvação
para os proprietários de terras. Mas não era somente isso. Um homem de negócios, o
engenheiro Paltchinsky, que acumulava as funções de director no ministério do Comércio
e da Indústria, funcionário principal dos combustíveis e do metal e o chefe da comissão da
defesa nacional, aplicava energicamente a política do capital monopolista. O economista
menchevique Tcherevanine queixava-se à comissão económica do soviete de que as
felizes iniciativas da democracia quebrava-se diante da sabotagem de Paltchinsky. O
ministro da Agricultura, Tchernov, sobre o quem os cadetes tinham acusado de estar
ligado aos alemãs, se viu obrigado «para fins de reabilitação» a demitir-se.
No 18 de Julho, o governo, no qual predominavam os socialistas, promulgou um
manifesto de dissolução da indócil Dieta finlandesa onde os sociais-democratas estavam
em maioria. Numa nota solenemente dirigida aos Aliados por ocasião do terceiro
aniversário da declaração de guerra mondial, o governo, não contente de renovar a sua
fidelidade ritual, anunciou que teve a felicidade de esmagar o motim provocado pelos
agentes inimigos. Documento de vulgaridade nunca visto! Ao mesmo tempo foi publicado
uma lei draconiana contra as infracções à disciplina entre os ferroviários. Depois do
governo demonstrar a sua maturidade política, Kerensky decidiu enfim responder ao
ultimato do partido cadete no sentido que as exigências formuladas por este «não podiam
constituir obstáculo à entrada no governo provisório». Esta capitulação disfarçada já não
era suficiente para os liberais. Era preciso obrigar os conciliadores a ajoelharem-se. O
comité central do partido cadete precisou que a declaração governamental do 8 de Julho,
publicada depois as ruptura da coligação – união de lugares comuns democráticos – não
era aceitável para ele e... abandonou as conversações.
O ataque era convergente. Os líderes agiam em estreita ligação não somente com
os industriais e os diplomatas aliados, mas também com os generais. O comité central da
união dos oficiais no Grande Quartel General encontrava-se sob a direcção efectiva do
partido cadete. Para intermédio do alto comando, os cadetes pesavam sobre os
conciliadores pelo lado mais sensível. No 8 de Julho, o general Kornilov, comandante em
chefe da frente sudoeste, deu ordem de disparar sobre soldados que protelavam o fogo
das metralhadoras e da artilharia. Apoiado por Savinkov, comissário na frente, antigo
chefe da organização terrorista dos socialistas-revolucionários, Kornilov já

412
precedentemente exigido o restabelecimento da pena de morte na frente, ameaçando em
caso contrário abandonar por vontade própria o comando. O telegrama secreto surgiu
imediatamente na imprensa: Kornilov tinha diligenciado para que fosse conhecido. O
generalíssimo Brussilov, o mais circunspecto e evasivo, moralista ao escrever a Kerensky:
«As lições da grande revolução francesa que nós esquecemos particularmente lembram-
nos portanto imperiosamente... » Essas lições consistiam que os revolucionários
franceses, tendo em vão tentado reconstituir o exército «sobre bases humanitárias»,
associaram-se logo à pena de morte, e que «as suas bandeiras vitoriosas tinham dado
meia volta ao mundo». Além disso, os generais não tinham lido nada do livro da
revolução. No 12 de Julho, o governo restabeleceu a pena de morte, «em tempo de
guerra, para os militares culpados de certos crimes mais graves». Porém, o general
Klembovsky, comandante em chefe da frente do norte, escrevia três dias mais tarde:«A
experiência mostrou que os contingentes aos quais estavam pertenciam numerosas
forças do complemento tornaram-se absolutamente incapazes de combater. O exército
não pode ser saudável se a fonte dos seus reforços está podre.» A fonte corrompida dos
reforços, era o povo russo.
No 16 de Julho, Kerensky convocou para o Grand Quartel General uma conferência
dos grandes chefes de guerra com a participação de Terechtchenko e de Savinkov.
Kornilov estava ausente: o recuo na sua frente atingia o auge e não parou senão alguns
dias depois, quando os próprios alemãs suspenderam o avanço na antiga fronteira da
Rússia. Os nomes dos participantes na conferência: Brussilov, Alexeiev, Russky,
Klembovsky, Denikine, Romanovsky, soaram como um eco numa época precipitada num
abismo. Durante quatro meses, os grandes generais sentiram-se meio mortos. Agora
ressuscitavam e, considerando o ministro presidente como a incarnação da revolução que
os tinha molestados, infligiram-lhe impunemente severas humilhações.
Segundo os dados do Grande Quartel General, os exércitos da frente Sudoeste,
entre o 18 de Junho e o o 6 de Julho, tinham perdido cerca de cinquenta e seis mil
homens. Insignificantes sacrifícios na escala da guerra! Mas duas insurreições, as de
Fevereiro e a de Outubro, custaram muito menos caro. O que deu a ofensiva dos liberais
e dos conciliadores, senão mortos, devastações e calamidades ? Os transtornos sociais
de 1917 modificaram a face da sexta parte do mundo e abriram à humanidade novas
possibilidades. As crueldades e os horrores da revolução, que não queremos nem negar
nem atenuar, não caem do céu: elas são inseparáveis de todo o desenvolvimento
histórico.
Brussilov, relatando os resultados da ofensiva empreendida um mês antes,
declarava: «derrota completa». A causa era que «os chefes, desde do simples capitão até
ao generalíssimo, não tinham autoridade». Como e porquê a tinham perdido, ele não diz.
No que diz respeito às operações ulteriores, «não podemos prepará-las antes da
primavera». Insistindo com os outros sobre as medidas de repressão, Klembovsky
exprimia logo as suas dúvidas sobre a sua eficácia. «Pena de morte ? - Poder-se-à
executar divisões inteiras ? Levá-las a julgamento ? - Então metade do exército encontrar-
se-à na Sibéria... » O chefe do estado-maior general relatava: «Cinco regimentos da
guarnição de Petrogrado foram dissolvidos. Os instigadores levados à justiça... No total

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cerca de noventa mil homens serão evacuados de Petrogrado.» Esta medida foi adoptada
com satisfação. Ninguém pensava em perguntar que consequências teria a evacuação da
guarnição de Petrogrado.
Os comités ? Dizia Alexeiev. «É indispensável suprimi-los... A história militar, que
conta milhares de anos estabeleceu as suas leis. Nós quisemos violá-las e sofremos um
fiasco.» Este homem entendia por «leis da história» o regulamento do serviço de
campanha. «Por detrás das antigas bandeiras – dizia Russky, com um tom de vaidade –
os homens caminhavam atrás de uma coisa sagrada sabiam morrer. Mas o que nos
trouxeram as bandeiras vermelhas ? Isto, que as tropas, desde então, se rendiam
inteiramente por corpos do exército.» O obsoleto general tinha esquecido como ele
próprio, em Agosto de 1915, tinha feito um relatório ao conselho de ministros: «As
exigências contemporâneas da técnica militar estão acima das nossas forças; em todo o
caso, nós não nos podemos medir com os alemãs.» Klembovsky sublinhava
malignamente que o exército tinha sido destruído na verdade não pelos bolcheviques mas
«por outros» que tinham instituído uma nefasta legislação militar, «por homens que não
compreendiam o género de vida e as condições de existência de um exército». Era uma
alusão directa a Kerensky. Denikine atacava os ministros ainda mais resolutamente:
«Vocês lançaram na lama as nossas gloriosas bandeiras de combate, serão vós quem as
recolherão se tiverem uma consciência... » Mas Kerensky ? Suspeito de falta de
consciência, agradece humildemente o guerreiro bruto de ter «exprimido abertamente e e
sinceramente a sua opinião». A declaração dos direitos do soldado ? «Se eu tivesse sido
ministro no momento da elaboração , a declaração não teria sido promulgada. Quem
primeiro puniu os caçadores siberianos ? Quem primeiro verteu o seu sangue para
castigar os rebeldes ? Um homem que eu tinha colocado, um meu comissário.» O
ministro dos Assuntos estrangeiros Terechtchenko requebrou-se como forma de
consolação: «A nossa ofensiva, mesmo falhada, revelou a confiança dos aliados em nós.»
A confiança dos aliados! É por isso que a guerra anda à volta deles ?
«No presente momento, os oficiais são a única defesa da revolução e da liberdade»,
prega Klembovsky. «Um oficial não é um burguês – explica Brossilov – ele é o verdadeiro
proletário.» O general Russky acrescenta: «Os generais também são proletários.»
Suprimir os comités, restabelecer o poder dos velhos chefes, expulsar do exército a
política, quer dizer a revolução – tal é o programa dos proletários com galões de general.
Kerensky nada opõe ao próprio programa; o que o perturba, é somente a questão dos
prazos. «No que diz respeito às medidas propostas, - diz ele – penso que o próprio
general Denikine não insistirá sobre a sua aplicação imediata... » Os generais eram todos
perfeitas mediocridades. Mas eles não podiam impedir-se de dizer: «Aqui está a
linguagem que é preciso ter para esses senhores!»
O resultado da conferência foi a mudança no alto comando. O condescendente e
mole Brossilov, nomeado no lugar do circunspecto oficial de gabinete Alexeiev, que tinha
apresentado objecções à ofensiva, era agora destituído e substituído pelo general
Kornilov. A mudança era justificada de diversas maneiras: aos cadetes, prometia-se que
Kornilov estabelecesse a disciplina de ferro; aos conciliadores, afirmava-se que Kornilov
era amigo dos comités e dos comissários ; o próprio Savinkov garantia os sentimentos

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republicanos do general. Em resposta a esta alta nominação, Kornilov enviou ao governo
um novo ultimato: ele aceitaria o seu posto com as seguintes condições:
«Responsabilidade diante da sua própria consciência e diante do povo; proibição de
intervir nas nomeações a postos elevados do comando; restabelecimento da pena de
morte na retaguarda.»
O primeiro ponto suscitou dificuldades: «responder diante da sua consciência e
diante do povo», Kerensky já se tinha encarregado e é um assunto que não tem
concorrência. O telegrama de Kornilov foi publicado no jornal liberal o mais difundido. Os
políticos prudentes da reacção faziam carretas. O ultimato de Kornilov era o do partido
cadete, traduzido somente em linguagem imoderada de um general cossaco. Mas o
cálculo de Kornilov era justo: pelo exagero das pretensões e insolência de tom, o ultimato
provocou o entusiasmo de todos os inimigos da revolução, e, antes de mais, dos oficiais
do quadro. Kerensky ficou transtornado e quis imediatamente destituir Kornilov, mas não
encontrou apoio no seu governo. No fim dos fins, a conselho dos seus inspiradores,
Kornilov consentiu, numa explicação verbal, reconhecer que entendia por
responsabilidade diante do povo a responsabilidade diante do governo provisório. Pelo
resto, o ultimato, salvo algumas pequenas reservas, foi aceite. Kornilov tornou-se
generalíssimo. Ao mesmo tempo um oficial de engenharia, Filonenko, foi-lhe atribuído
como adjunto comissário, e o ex-comissário da frente sudoeste Savinkov foi colocado à
cabeça do ministério da Guerra. Um, personagem acidental, arrivista; outro, tendo um
grande passado revolucionário; todos os dois, aventureiros realizados, prontos a tudo
como Filonenko ou pelo menos a muito como Savinkov. Sua ligação estreita com Kornilov,
contribuiu à rápida carreira do general, jogou, como veremos, o seu papel no
desenvolvimento ulterior dos acontecimentos.
Os conciliadores cediam sobre toda a linha. Tseretelli repetia: «A coligação, é uma
união de salvação.» Nos corredores, as conversações, a despeito da ruptura formal,
perseguia o seu caminho. Par acelerar a conclusão, Kerensky, num evidente acordo com
os cadetes, recorreu a uma medida puramente teatral, isto é, completamente no espírito
da sua política, mas ao mesmo tempo muito eficaz para os objectivos que ele procurava:
demitiu-se e abandonou a cidade, abandonando os conciliadores ao desespero. Miliokov
disse sobre isso: «Pela sua saída demonstrativa... demonstrou tanto aos seus adversários
como aos seus rivais, e aos seus partidários que, não obstante a sua apreciação sobre as
suas qualidades pessoais, ele mostrava-se indispensável no momento presente,
simplesmente pela situação política que ocupava no meio de dois campos em luta.» A
partida tinha sido levada pela lógica do quem-perde-ganha. Os conciliadores precipitaram-
se para o «camarada Kerensky», abafando as suas maldições, com francas suplicações.
Dos dois lados, cadetes e socialistas, sem dificuldades, impuseram ao gabinete
decapitado a resolução de desistir, ao confiar a Kerensky a tarefa de reconstituir um
governo à sua vontade.
Para intimidar definitivamente os membros dos comités executivos já
suficientemente amedrontados, enviaram-lhes as últimas informações sobre a situação
que piora na frente. Os alemãs empurram as tropas russas, os liberais empurram
Kerensky, este empurra os conciliadores. As fracções dos mencheviques e dos

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socialistas-revolucionários esperam toda a noite do 23 ao 24 de Julho, aborrecendo-se na
sua impotência. No fim dos fins, os comités executivos, por uma maioria de cento e
quarenta e sete votos contra quarenta e seis, diante de quarenta e duas abstenções –
oposição nunca vista! - aprovam que o poder seja remetido a Kerensky sem condições e
sem limites. No congresso dos cadetes, que teve lugar ao mesmo tempo, vozes surgiram
para derrubar Kerensky, mas Miliokov meteu no seu lugar os impacientes, propondo
limitar-se por momento a uma simples pressão. Isso não significa que Miliokov tivesse
ilusões sobre Kerensky. Mas ele via nele um ponto de aplicação para as forças das
classes possuidoras. O governo tinha-se desembaraçado dos sovietes, ele não teria
qualquer dificuldade a se desembaraçar de Kerensky.
Entretanto, os deuses da coligação continuavam a ter sede. A ordem de prender
Lenine precedeu a formação do governo transitório do 7 de Julho. Agora era necessário
assinalar com um acto de firmeza o renascimento da coligação. Desde do 13 de Julho
apareceu no jornal de Gorki – a imprensa bolchevique já não existia – uma carta aberta
de Trotsky ao governo provisório. A carta dizia: «Vocês não podem ter nenhum motivo
lógico de me excluir do decreto em virtude do qual os camaradas Lenine, Zinoviev e
Kamenev são alvo de um mandato de captura. No que diz respeito ao lado político do
assunto, vocês não podem ter motivos em duvidar que eu sou um adversário da política
geral do governo provisório tão irreconciliável como os camaradas acima nomeados.» Na
noite onde se constituía o novo governo, Trotsky e Lunatcharsky foram presos em
Petrogrado, enquanto que na frente prendiam o alferes Krylenko, futuro comandante em
chefe dos bolchevique.
O governo que nasceu após uma crise de três semanas tinha um ar esquelético.
Compunha-se de personalidades de segunda e terceira ordem, seleccionadas segundo o
principio do mal menor. O vice-presidente era o engenheiro Nekrassov, cadete de
esquerda, que, no 27 de Julho, tinha proposto, para o esmagamento da revolução, confiar
o poder a um dos generais do czar. O escritor Prokopovitch, sem partido e sem
personalidade, domiciliado numa faixa entre os cadetes e os mencheviques, tornou-se
ministro da Indústria e do comércio. O antigo procurador, depois advogado radical,
Zarudny, filho do ministro «liberal» de Alexandre II, foi chamado para a Justiça. O
presidente do comité executivo camponês, Avksentiev, obteve a pasta de ministro do
Interior. O menchevique Skobelev continuou ministro do Trabalho, o socialista populista
Pechekhonov ministro dos Abastecimentos.
Do lado dos liberais entraram no governo figuras tão secundárias, não tendo
desempenhado nem antes nem depois papéis dirigentes. No posto de ministro da
Agricultura voltou inesperadamente a Tchernov: nos quatro dias que decorreram entre a
sua demissão ea nova nominação, ele teve tempo de se reabilitar. Na sua História,
Miliokov notou impassivelmente que o carácter das relações de Tchernov com as
autoridade alemãs «não tinham sido esclarecidas; é possível – acrescenta ele que as
indicações do contra-espionagem russa assim como as suspeitas de Kerensky, de
Terechtchenko e de outros em relação a isto tivessem ido demasiado longe». A
reintegração de Tchernov nas funções de ministro da agricultura não era mais do que um
tributo ao prestígio do partido dirigente dos socialistas-revolucionários no qual Tchernov,

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aliás, pedia cada vez mais influência. Em contrapartida, Tseretelli teve a cautela de ficar
fora do governo : em Maio, consideravam que ele seria útil à revolução no seio do
governo; agora ele estava disposto a ser útil ao governo no seio do soviete. A partir daí,
Tseretelli preencheu eficazmente as obrigações de um comissário da burguesia no
sistema dos sovietes. «Se os interesses do país eram contrariados pela coligação – dizia-
se na sessão do soviete de Petrogrado – o nosso dever seria convidar os nossos
camaradas a sair do governo.» Já não se tratava de eliminar, depois de esgotamento, os
liberais, como Dan tinha prometido outrora, mas, sentido-se no fim, de abandonar em
tempo devido o leme. Tseretelli preparava a entrega do poder total à burguesia.
Na primeira coligação, formada a 6 de Maio, os socialistas estavam em minoria; mas
eram de facto os mestres da situação; no governo do 24 de Julho, os socialistas estavam
em maioria, mas eram a sombra dos liberais... «Apesar da pequena preponderância dos
socialistas – confessa Miliokov – a predominância efectiva no governo pertencia
incontestavelmente aos partidários convencidos da democracia burguesa.» Seria mais
exacto dizer: da propriedade burguesa. Quanto à democracia, o assunto apresentava-se
menos claramente. No mesmo espírito, ainda se com um argumento inesperado, o
ministro Pechekhonov comparava a coligação de Julho à de Maio: em Maio, a burguesia
tinha necessidade do apoio da esquerda; agora, sob a ameaça de uma contra-revolução,
o apoio da direita nos é indispensável; «mais atraímos as forças de direita, menos restam
dessas forças para atacar o poder». Formula incomparável de estratégia política: para
levantar o cerco da fortaleza, melhor será abrir a grande porta. Tal era a formula da nova
coligação.
A reacção tomava a ofensiva, a democracia batia em retirada. As classes e os
grupos que a revolução tinham afugentado, nos primeiros tempos, levantavam a cabeça.
Os interesses que, na véspera, se dissimulavam ainda, declarava-se abertamente hoje.
Os negociantes e os especuladores reclamavam a exterminação dos bolcheviques e a
liberdade do comércio; levantavam a voz contra todas as limitações do tráfico, mesmo
contra as que tinham sido estabelecidas no tempo do czar. Os serviços de abastecimento
que tinham tentado lutar contra a especulação eram declaradas culpadas da falta de
produtos alimentares. Desses serviços, o ódio projectava-se contra os sovietes. O
economista menchevique Gromann declarava que a campanha dos comerciantes «se
tinha particularmente intensificada após os acontecimentos dos 3-4 de Julho». Os
sovietes eram tidos como responsáveis das derrotas, da vida cara e dos assaltos
nocturnos.
Preocupado pelas maquinações monárquicas e temendo uma explosão pelo choque
do regresso da esquerda, o governo expediu, no primeiro de Julho, Nicolau Romanov,
com a sua família, para Tobolsk. No dia seguinte foi proibido o novo jornal dos
bolcheviques Rabotchi I Soldat (Operário e soldado). Por todo o lado tomava-se
conhecimento da prisões em massa dos comités do exército. Os bolcheviques não
puderam, no fim de Julho reunir o seu congresso senão parcialmente de forma
clandestina. Os congressos do exército eram proibidos. E começaram a juntarem-se os
que, antes, tinham-se refugiado em suas casas: proprietários de terras, comerciantes e
industriais, chefes dos cossacos, o clero, cavaleiros de São Jorge. Suas vozes eram

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formavam-se numa só, e se diferenciavam pelo grau de insolência. O concerto era dirigido
indiscutivelmente, embora nem sempre abertamente, pelo partido cadete.
No congresso do comércio e da indústria que reuniu, no principio do mês de Agosto,
cerca de trezentos representantes das mais importantes organizações da Bolsa e das
empresas, o discurso/programa foi pronunciado pelo rei do textil, Riabuchinsky, que não
se escondia. «O governo provisório só tinha uma aparência de poder... De facto instalou-
se aí uma banda de charlatães da política... O governo aumenta os impostos, em primeiro
lugar, e rigorosamente, a classe dos industriais e comerciantes... É racional dar dinheiro
ao gastador ? Não seria melhor, para a salvação da pátria, tutelar os que desperdiçam ?...
» E, enfim, para concluir, esta ameaça: «A mão esquelética da fome e da miséria popular
apertará as goelas aos amigos do povo!» A frase sobre a mão esquelética da fome, dava
o sentido geral à política dos lock-out, inseria-se desde então no vocabulário político da
revolução. Ela custou caro aos capitalistas.
Em Petrogrado teve lugar o congresso dos comissários provinciais. Os agentes do
governo provisório que, segundo a primeira concepção, deviam-se erguer à volta dele
como uma muralha, juntaram-se, na realidade contra ele e, sob a direcção do centro
cadete, passaram pela espada o infeliz ministro do Interior Avksentiev. «Não se pode
sentar entre duas cadeiras: o governo deve governar e não ser uma marioneta.» Os
conciliadores procuravam justificar-se e protestavam em voz baixa, temendo que a sua
querela com os aliados fosse ouvida pelos bolcheviques. O ministro socialista saiu
escaldado do congresso.
A imprensa dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques tomou pouco a
pouco a linguagem das lamentações e das recriminações. Nas suas colunas começaram
ser publicadas revelações inesperadas. No 6 de Agosto, o jornal socialista-revolucionário
Dielo Naroda (A causa do povo) publicou uma carta de um grupo de socialistas-
revolucionários de esquerda, enviada para a frente: signatários «foram impressionados
pelo papel interpretado pelos junkers... Prática regular de sevícias, participação dos
junkers nas expedições punitivas, acompanhadas de envio diante do pelotão de
fuzilamento sem julgamento nem instrução, sob simples ordem de um comandante de
batalhão... Os soldados exasperados começaram a disparar, emboscados, sobre certos
junkers... » Foi assim que se apresentava a obra de saneamento do exército.
A reacção progressista, o governo recuava. No 7 de Agosto foram libertados os Cem
Negros mais famosos, complices dos círculos rasputinos e dos progroms antisemitas. Os
bolcheviques continuavam na prisão de Kresty, onde se anunciava a greve de fome dos
operários, soldados e marinheiros detidos. A secção operária do soviete de Petrogrado
enviou, nesse dia, uma mensagem de felicitações a Trotsky, a Lunatcharsky, a Kollontai e
aos outros prisioneiros.
Industriais, comissários provinciais, o congresso dos cossacos de Novotcherkask, a
imprensa patriota, generais, liberais – todos consideravam que era absolutamente
impossível proceder às eleições para a assembleia constituinte em Setembro; melhor
seria diferi-las até ao fim da guerra. Porém, quanto a isso, o governo não podia decidir.
Mas o compromisso foi encontrado: a convocação da assembleia constituinte foi marcada

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para o 28 de Setembro. Não foi sem aborrecimento que os cadetes aceitaram o prazo:
eles contavam firmemente que, nos três meses que restavam, deviam produzir-se
acontecimentos decisivos que transpunham a questão da própria assembleia constituinte
sobre um outro plano. Essas esperanças ligavam-se cada vez mais abertamente ao nome
de Kornilov.
O reclame feito à volta do novo «generalíssimo» situou-se doravante no centro da
política burguesa. A biografia do «primeiro generalíssimo popular» foi propagada por um
número formidável de exemplares, com a ajuda activa do Grande Quartel General.
Quando Savinkov, como ministro da Guerra, dizia aos jornalistas: «Nós consideramos», o
«nós» significava não Savinkov e Kerensky, mas Savinkov e Kornilov. O rumor levantado
à volta de Kornilov obrigou Kerensky a manter-se vigilante. Circulavam boatos ainda mais
persistentes sobre uma conspiração no centro da qual se mantinha o comité da união dos
oficiais junto do Grande Quartel General. Uma entrevista pessoal do chefe do governo e
do chefe do exército, no início do mês de Agosto, relançou as suas antipatias recíprocas.
«Este leviano, esse baboso quer comandar-me ?» perguntava-se Kornilov, «Esse cossaco
inculto e limitado dispõe-se a salvar a Rússia ? Pensaria forçosamente Kerensky. Cada
um deles tinha razão à sua maneira. O programa de Kornilov, compreendendo a
militarização das fábricas e dos caminhos de ferro, a extensão da pena de morte na
retaguarda, e a subordinação do Grande Quartel General da região militar de Petrogrado
com a guarnição da capital, tinha sido entretanto conhecido dos círculos conciliadores.
Por detrás do programa oficial, adivinhava-se sem dificuldades outro, não dito mas tanto
mais eficaz. A imprensa de esquerda deu o alarme. O comité executivo propunha um nova
candidatura ao posto de generalíssimo na pessoa do general Tcheremissov. Começaram
a falar abertamente da próxima demissão de Kornilov. A reacção foi emocionante.
No 6 de Agosto, o soviete da união das doze formações cossacas, a do Don, do
Koban, do Terek, etc., decidiu, não sem a participação de Savinkov, de trazer «alta e
firmemente» ao conhecimento do governo e do povo que declinou qualquer
responsabilidade pela conduta das tropas cossacas na frente e na retaguarda no caso
onde o general Kornilov, «herói e chefe», fosse destituído. A conferência da união dos
cavaleiros de São Jorge foi ainda mais ameaçadora para o governo: se Kornilov é
destituído, a união dará imediatamente «como grito de guerra a todos os cavaleiros de
São Jorge ordem de agir em comum com os cossacos». Nem um general protestou
contra esta infracção à disciplina, e a imprensa da ordem exprimiu com entusiasmo as
decisões que faltavam a uma ameaça de guerra civil. O comité principal da união dos
oficiais do exército e da frota mandou um telegrama no qual dizia colocar todas as suas
esperanças «no muito amado chefe, o general Kornilov», pedindo «a todas as pessoas
honestas» para manifestarem a este a sua confiança. A conferência dos «homens
públicos» da direita, reunido-se nesses dias em Moscovo, enviou a Kornilov um telegrama
no qual ela juntava a sua voz a dos oficiais, dos cavaleiros de São Jorge e dos cossacos:
«Toda a Rússia pensante olha-os com esperança e fé.» Não se podia falar mais
claramente.
Na conferência tomavam lugar os industriais e os banqueiros como Riabochinsky e
Tretiakov, os generais Alexieiev, e Brossilov, representantes do clero e dos professores, os

419
líderes do partido cadete, Miliokov à cabeça. Figuravam os representantes de uma «união
camponesa» meio fictícia que devia assegurar aos cadetes com o apoio na esferas
superiores do campesinato. Na cadeira do presidente erguia-se a figura monumental de
Rodzianko, que agradeceu a delegação de um regimento cossaco por ter reprimido o
movimento bolchevique. A candidatura de Kornilov no papel de salvador do país tinha sido
abertamente colocada pelos representantes mais autorizados das classes possuidoras e
instruidas da Rússia. Após tal preparação, o generalíssimo apresentou-se mais uma vez
no gabinete do ministro da Guerra, para conversações sobre o programa que ele
apresentou para a salvação do país. « Desde da sua chegada a Petrogrado – diz o
general Lumomsky, chefe do estado-maior de Kornilov, relatando esta visita – o
generalíssimo foi ao palácio de Inverno, acompanhado de cossacos de Tek, com duas
metralhadoras. Logo que o general Kornilov entrou no palácio, essas metralhadoras foram
descarregadas do automóvel, e os cossacos do Tek montaram a guarda diante da porta
para vir, em caso de necessidade, em socorro do generalíssimo. «Supunha-se que ele
poderia necessitar desta ajuda contra o ministro presidente.» As metralhadores do Tek
eram as armas da burguesia apontadas aos conciliadores que se jogavam às suas
pernas. Assim se apresentava o governo de salvação, independente dos sovietes!
Imediatamente após a visita de Kornilov, Kokochkine, membro do governo provisório,
declarou a Kerensky que os cadetes se demitiam «se o programa de Kornivov não fosse
aceite nesse mesmo dia». Mesmo sem metralhadoras, os cadetes mantinham sobre o
governo a linguagem peremptória de Kornilov. E isso dava resultado. O governo provisório
apressou-se a examinar o relatório do generalíssimo e admitiu em principio a
possibilidade de aplicar as medidas propostas por ele, «inclusivamente a pena de morte
na retaguarda».
Na mobilização das forças da reacção inseriu-se naturalmente o concilio pan-russo
da Igreja que, oficialmente, tinha por objectivo concretizar a emancipação da Igreja
ortodoxa até aí captiva da burocracia, mas no fundo devia proteger a Igreja contra a
revolução. Depois da abolição da monarquia, a Igreja tinha perdido o seu chefe oficial.
Suas relações com o Estado, multi-secular defensor e protector, continuavam em
suspense. Na realidade, o São Sínodo, num mandamento do 9 de Março, apressou-se a
benzer a revolução realizada e tinha convidado o povo «a confiar no governo provisório».
Porém, o futuro estava cheio de ameaças. O governo mantinha-se silencioso sobre a
questão da Igreja como sobre outros problemas. O clero tinha completamente perdido a
cabeça. De tempos em tempos, num ponto qualquer da periferia, da cidade de Verny na
fronteira com a China, de uma paróquia local, chegou um telegrama assegurando ao
príncipe Lvov que a sua política respondia inteiramente aos mandamentos do Evangelho.
Acomodando-se da insurreição, a Igreja não ousava se imiscuir nos acontecimentos, isso
sentia-se mais nitidamente que na frente, onde a influência da Igreja caiu ao mesmo
tempo que a disciplina do medo. Denikine confessou-o:
«Se o corpo de oficiais luta pelos seus direitos de comando e sua autoridade militar,
a voz dos pastores calou-se desde dos primeiros dias da revolução e cessaram de
participar de qualquer modo na vida activa das tropas.» Os congressos do clero no

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Grande Quartel General e nos estados-maiores dos exércitos passaram completamente
despercebidos.
O concílio, que foi antes de tudo um assunto de casta para o próprio clero, sobretudo
pelo seu andar superior, não ficou todavia fechado nos quadros da burocracia
eclesiástica: a sociedade liberal agarrou-se aí com todas as suas forças. O partido cadete,
não tendo encontrado no povo nenhuma raíz política, sonhou que a Igreja, após a
reforma, serviria de intermediário junto das massas. Na preparação do concílio, um papel
activo foi desempenhado ao lado e diante dos príncipes da Igreja, pelos políticos laicos de
diversas tendências, tais como o príncipe Trubetskoi, o conte Olsufiev, Rodzianko,
Samarine, professores e escritores liberais. O partido cadete tentou em vão criar à volta
do concílio um ambiente de reforma eclesiástica, temendo, ao mesmo tempo, abalar, por
um movimento imprudente, o edifício carunchoso. Não se tratava de separar a Igreja do
Estado, nem entre o clero, nem entre os reformadores laicos. Os príncipes da Igreja
estavam naturalmente inclinados em enfraquecer o controlo do Estado sobre os assuntos
interiores, mas na condition que o Estado continuasse não somente a proteger a sua
situação privilegiada, sua terras e rendimentos mas continuasse também a cobrir a parte
do leão de suas despesas. Pelo seu lado, a burguesia liberal estava disposta a garantir à
ortodoxia a manutenção da sua situação de Igreja dominante, mas na condição que ela se
prestasse a servir de uma nova maneira os interesses das classes dominantes no seio
das massas.
Mas aqui começavam as grandes dificuldade. O mesmo Denikine nota com
consternação que a revolução russa «não cria um só movimento religioso popular mais ou
menos perceptível». Seria mais exacto dizer que à medida que as novas camadas
populares fossem levada pela revolução, elas voltariam quase automaticamente as costas
à Igreja, mesmo se antes elas tinham estado ligadas a esta. Nos campos, certos padres
podiam ainda ter uma influência pessoa dependente da sua atitude em relação à questão
agrária. Nas cidades, ninguém, não somente nos meios operários, mas também na
pequena burguesia, não tinha ideia de se dirigir ao clero para obter solução dos
problemas levantados pela revolução. A preparação do concílio encontrou a inteira
indiferença do povo. Os interesses e as paixões das massas exprimiam-se na linguagem
das palavras de ordem socialistas, e não nos textos dos teólogos. A Rússia atrasada
seguia a sua história queimando etapas: ela se viu forçada a saltar não somente a época
da Reforma, mas também a do parlamentarismo burguês.
Concebido durante os meses de flux da revolução, o concílio coincidiu com as
semanas do seu refluxo. Isso acentuou ainda mais a sua cor reaccionária. A composição
do concílio, o círculo dos problemas abordados por ele, assim como a cerimónia da sua
abertura – tudo testemunhava modificações radicais na atitude das diferentes classes em
relação à Igreja. O ofício divino, na catedral da Assunção, ao lado de Rodzianko e dos
cadetes, encontravam-se presentes Kerensky e Avksentiev. O presidente da câmara de
Moscovo, Rodnev, socialista-revolucionário, declarou no seu discurso de abertura: «Tanto
que o povo russo viverá, a fé cristã estará na sua alma.» Ainda na véspera, essa gente
considerava-se como descendentes directos do educador russo Tchemychevsky.

421
O concílio enviou em todas as direcções apelos impressos, reclamava um poder
forte, denunciava os bolcheviques e, com o mesmo tom que o ministro do Trabalho
Skobelev, suplicava «os operários a trabalhar sem poupar forças e de subordinar as suas
reivindicações pelo bem da pátria.» Mas o concílio reservou uma atenção particular à
questão agrária. Os metropolitas e os bispos estavam tão assustados e exasperados
como os proprietários nobres pelo alcance do movimento agrário, e suas apreensões
sobre as terras da Igreja e dos mosteiros que lhes ocupava o espírito mais violentamente
que os problemas da democratização da paróquias. Sob ameaça da cólera divina e da
excomunhão, um mandamento do concílio exige «a restituição às igrejas, aos conventos,
às paróquias e aos particulares das terras, dos bosques e das colheitas que foram
pilhadas». Foi assim que convinha chamar a voz clamando do deserto! O concílio arrasta
de semana em semana e não chega ao apogeu da sua obra, o restabelecimento do
patriarcado, abolido por Pedro o Grande duzentos anos antes, senão após a revolução de
Outubro.
No fim de Julho, o governo decidiu convocar para o 13 de Agosto, em Moscovo, uma
conferência de Estado, compreendendo todas as classes e instituições públicas do país. A
composição da conferência foi marcada pelo próprio governo. Em completa contradição
com os resultados de todas as eleições democráticas que tinham tido lugar no país,
nenhuma foi exceptuada, o governo tomou as medias para assegurar antecipadamente à
assembleia um número igual de representantes das classes possuidoras e do povo. Foi
somente na base deste equilíbrio artificial que o governo de salvação da revolução
esperava ainda salvar-se a sim próprio. Esses estados-gerais não tinham definido
qualquer direito. «La conferência..., não obtinha – segundo Miliokov – mais que uma voz
consultiva»: as classes possuidoras queriam dar à democracia um exemplo de
abnegação, para logo se amparar, tanto mais seguramente, da totalidade do poder.
Apresentaram como objectivo oficial da conferência «a união do poder do Estado com
todas as forças organizadas do país». A imprensa falava da necessidade de estreitar, de
reconciliar, de estimular, de exortar os espíritos. Noutros termos uns não desejavam dizer
claramente com qual objectivo, na verdade, reunia-se a conferência. Dar às coisas o seu
nome tornou-se ainda aqui uma tarefa dos bolcheviques.

422
Kerensky e Kornilov
Os elementos de bonapartismo na revolução russa.
Escreveu-se bastante para dizer que as infelicidades que seguiram, incluindo o
aparecimento dos bolchevique, tivessem podido ser evitados, se, no lugar de Kerensky,
se encontrasse à cabeça do poder um homem dotado de um pensamento claro e de um
carácter firme. É incontestável que a Kerensky faltava-lhe um e outro. Mas porquê então
certas classes sociais viram-se forçadas a levar precisamente Kerensky ao poder?
Como para refrescar as nossas lembranças da história, os acontecimentos da
Espanha nos mostram uma vez mais como uma revolução, enfraquecendo os limites
habituais da política, obnubilando por uma névoa nos primeiros tempos todos e tudo.
Mesmo os seus inimigos esforçaram-se, nesta fase, a tomar a sua cor: nesse mimetismo
exprime-se a tendência meio instintiva das classes conservadoras a adoptar
transmutações ameaçadoras, para sofrer o menos possível. A solidariedade da nação,
baseada numa fraseologia inconsistente, transforma a actividade conciliadora numa
função política indispensável. Os idealistas pequeno burgueses, que olharam por cima
das classes, que pensam em frases feitas, que não sabem o que querem e dirigem a toda
a gente seus melhores votos, são, nessa ocasião, os únicos líderes intendidos da maioria.
Se Kerensky tivesse um pensamento claro e uma vontade firme, teria sido absolutamente
inutilizável no seu papel histórico. Isto não é uma apreciação retrospectiva. É assim que
julgavam os bolcheviques no calor dos acontecimentos. «Advogado de negócios políticos,
social-revolucionário que se encontrava à cabeça dos trabalhistas, radical desprovido da
menor doutrina socialista, Kerensky reflectia completamente a primeira época da
revolução, sua apatia «nacional», o idealismo resplandecente das suas esperanças e das
suas expectativas, escrevia o autor destas linhas, na prisão de Kerensky, após as
jornadas de Julho. Kerensky falava da terra e da liberdade, da ordem, da paz dos povos,
da defesa da pátria, do heroísmo de Liebknecht, dizia que a revolução russa devia
surpreender o mundo pela sua magnanimidade e agitava, nesta ocasião, um lenço de
seda vermelho. O pequeno burguês, meio despertado escutava com entusiasmo tais
discurso: parecia-lhe que era ele próprio que falava do alto da tribuna. O exército acolhia
Kerensky como aquele que o libertaria de Gotchkov. Os camponeses ouviram falar dele
como um trabalhistas, um deputado dos mujiques. Os liberais eram seduzidos pela
extrema moderação das ideias sob o informe radicalismo das frases...»
Mas o período dos abraços gerais não dura muito tempo. A luta das classes não se
acalma ao princípio de uma revolução senão para despertar sob a forma da guerra civil.
No ascenso feérico do movimento conciliador está antecipadamente incluído o seu
inevitável desabar. Que Kerensky tenha rapidamente perdido a sua popularidade, um
jornalista francês, personagem oficioso, Claude Anet, explicava pelo facto que a falta de
tacto levava o político socialista a cometer acções que «se harmonizavam pouco» com o
seu papel.
«Ele frequenta os lugares imperiais. Habita o palácio de Inverno ou o de Tsarkoie.
Deita-se na cama dos imperadores da Rússia. Um pouco demasiado de vaidade, e que se

423
mostra; isso choca neste país o mais simples do mundo.» (Claude Anet, La Révolution
russe, juin-novembre 1917, p.15-16).
O tacto nas pequenas como nas grandes coisas supõe a inteligência da situação e
do lugar que aí se ocupa. Aparentemente Kerensky não tinha nada disso. Ele era
estranho à confiança das massas, não as compreendia e nem queria saber como elas
recebiam a revolução e que deduções elas tiravam. As massas esperavam dele actos
audaciosos, mas ele pedia às massas para não o estorvarem a sua magnanimidade e a
sua eloquência. Na época quando Kerensky visitava de forma teatral a família do czar
detida, os soldados que guardavam o Palácio, diziam ao comandante: «Nós, dormimos
sobre as pranchas, somos mal alimentados, mas Nicolachka, mesmo se preso, tem carne,
que deita no lixo.» Essas palavras não eram «magnânimas», mas elas exprimiam o que
sentiam os soldados.
Tendo-se arrancado aos seus obstáculos seculares, o povo, a cada passo, passava
o limite que lhe tinham indicado os líderes cultivados. Kerensky vomitava sobre isso, no
fim de Abril:
«É possível que o livre Estado russo seja um Estado de escravos revoltados?...
Lamento não estar morto há dois meses: eu seria morto com um grande sonho», etc.
Por esta má retórica, ele esperava influenciar os operários, os soldados, os
marinheiros, os camponeses. O almirante Koltchak conta a seguir, diante do tribunal
soviético, como o ministro radical da Guerra tinha feito em Maio a volta dos navios da
frota do mar Negro, para reconciliar os marujos com os oficiais. O orador, após cada
discurso acreditava ter atingido o seu objectivo: «Bem, vê, senhor almirante, tudo está
resolvido...» Mas nada estava resolvido: a derrota da frota apenas se iniciava.
Mais se avançava, mais Kerensky irritava as massas pelas suas fantasias,
fanfarronices. No decurso de uma viagem à frente, gritavam com paixão na sua
carruagem, ao seu ajudante, calculando talvez que seria ouvido pelos generais:
«Expulsem-me daqui para fora esses malditos comités!» Apresentando-se à frota do
Báltico, Kerensky ordenou ao comité central dos marinheiros de se apresentar diante dele
no navio almirante. O Tsentrobalt, como órgão soviético, não estava subordinado ao
ministro e considerou esta ordem como um ultraje. O presidente do comité, o marujo
Dybenko, respondeu: «Se Kerensky quer conversar com o Tsentrobalt, ele que venha até
nós.» Não é uma intolerável insolência?
Nos navios onde Kerensky iniciou conversa política com os marinheiros, o assunto
não foi mais fácil, particularmente no navio Respublika, animado por sentimentos
bolcheviques, onde o ministro foi interrompido ponto por ponto. Porquê, na Duma do
Império, ele votou pela guerra? Porquê assinou a nota imperialista de Miliokov no 21 de
Abril? Porquê autorizou aos senadores do czar seis mil rublos de pensão por ano?
Kerensky recusou responder a essas questões perfídias que lhe metiam os homens «que
não eram seus amigos». A tripulação declarou que as explicações do ministro não eram
satisfatórias...» Foi num silêncio sepulcral que Kerensky desembarcou. «Escravos

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revoltados!» Dizia o advogado radical que rangia os dentes. Mas os marinheiros tinham
um sentimento de orgulho: «Sim, nós éramos escravos, mas revoltámo-nos!»
Sem o incómodo da sua atitude em relação à opinião democrática, Kerensky
provocava a cada momento meios conflitos com os líderes soviéticos que caminhavam no
mesmo trilho que ele, mas ao se voltando mais vezes para as massas. Desde do 8 de
Março, o comité executivo assustado pelos protestos da base, declarou a Kerensky que a
libertação dos polícias detidos era inadmissível. Alguns dias depois, os conciliadores
viram-se obrigados a protestar contra a intenção que vinha o ministro da Justiça em
mandar a família real para a Inglaterra. Duas semanas ou três mais tarde, o comité
executivo metia a questão geral de um «regulamento das relações» com Kerensky. Mas
essas relações não foram e não podia ser regularizadas.
Assim também inoportunamente se apresentou o assunto sobre a linha do partido.
No congresso socialista-revolucionário do início de Junho, Kerensky foi submetido à
eleição para o comité central, tendo obtido cento e trinta e cinco votos sobre duzentos e
setenta. Como se debatiam os líderes, explicando à direita e à esquerda que «muitos
votos tinham sido recusados ao camarada Kerensky porque ele já estava
sobrecarregado.» Na realidade, se os socialistas-revolucionários do estado-maior e dos
departamentos ministeriais adoravam Kerensky, como fonte lucros, os velhos socialistas-
revolucionários ligados às massas consideravam-no com desconfiança e sem estima.
Mas nem o comité executivo nem o partido socialista-revolucionário não podia se passar
de Kerensky: ele era indispensável como elo de ligação com a coligação.
No bloco soviético, o papel dirigente pertencia aos mencheviques: eles imaginavam
as decisões, isto é, os meio de esquivar os actos. Mas, no aparelho governamental, os
populistas eram preponderantes sobre os mencheviques que se traduzia claramente pela
situação dominante de Kerensky. Meio cadete, meio socialista-revolucionário, Kerensky
era no governo não um representante dos sovietes como Tseretelli ou Tchernov, mas um
laço vivo entre a burguesia e a democracia. Tseretelli—Tchernov representavam um dos
aspectos da coligação. Kerensky era a incarnação pessoal da própria coligação. Tseretelli
queixava-se da predominância em Kerensky dos «motivos individuais», não
compreendendo que eles eram inseparáveis da sua função política. O próprio Tseretelli,
como ministro do Interior, lançou uma circular sobre o tema do comissário provincial que
deve apoiar-se sobre todas «as forças vivas» locais, isto é sobre a burguesia e os
sovietes, e aplicar a política do governo provisório sem ceder «às influências dos
partidos». Esse comissário ideal, colocando-se acima das classes e dos partidos hostis
para se inspirar nele próprio e na circular a sua própria vocação – era com efeito um
Kerensky à medida de uma província ou de um distrito. Para coroar o sistema, havia
necessidade absoluta do comissário pan-russo independente no palácio de Inverno.
Faltando Kerensky, o sistema conciliador teria sido como um campanário sem cruz.
A história da ascensão de Kerensky está cheia de lições. Ele tornou-se ministro da
Justiça graças à insurreição de Fevereiro que ele temia. A manifestação de Abril dos
«escravos revoltados» fê-lo ministro da Guerra e da Marinha. Os combates de Julho,
provocados por «agentes da Alemanha», colocaram-no à cabeça do governo. No princípio

425
de Setembro, o movimento das massas ainda fez do chefe do governo um generalíssimo.
A dialéctica do regime conciliador e, ao mesmo tempo, a sua ironia malvada consistiam
nisto que, pela sua pressão, as massas deviam levar Kerensky à cimeira antes de o
derrubar.
Afastando com desprezo o povo que lhe tinha dado o poder, Kerensky procurava
avidamente os sinais aprovadores da sociedade cultivada. Desde dos primeiros dias da
revolução, o doutor Kichkine, líder dos cadetes de Moscovo, conta, no seu regresso de
Petrogrado: «Se não fosse Kerensky nós não tínhamos o que temos. Seu nome será
inscrito em letras de ouro sobre as tábuas da história.» Os elogios dos liberais tornaram-
se um dos mais importantes critérios políticos de Kerensky. Mas ele não podia e não
queria colocar simplesmente a sua popularidade nos pés da burguesia. Pelo contrario,
gostava cada vez mais ver todas as classes aos seus pés. «A ideia em opor e de
equilibrar entre elas a representação da burguesia e a da democracia – testemunha
Miliokov – não era estranha a Kerensky desde do princípio da revolução. Esta orientação
procedia naturalmente de todo o decurso da sua existência que se tinha passado entre os
círculos clandestinos e a advocacia. Assegurando obsequiosamente a Buchanan que «o
soviete morreria de morte natural», Kerensky, a cada momento, fazia temer aos seus
colegas burgueses a cólera do soviete. Mas, em frequentes casos, onde os líderes do
comité executivo estavam em desacordo com Kerensky, ele ameaçava-os com a mais
terrível catástrofe: a demissão dos liberais.
Quando Kerensky repetia que não queria mais ser o Marat da revolução russa, isso
significava que recusava tomar medidas rigorosas contra a reacção, mas não contra a
«anarquia». Tal é em geral a moral dos adversários da violência na política; afastam-na
quando se trata de modificar o que existe; mas, para defender a ordem, eles não recuam
diante da repressão mais implacável.
No período da preparação da ofensiva sobre a frente, Kerensky tornou-se o
personagem particularmente favorito das classes possuidoras. Terechtchenko contava
para quem quisesse ouvi-lo como os aliados apreciavam altamente «os esforços de
Kerensky»; muito severo para os conciliadores, a Rietch dos cadete sublinhava
invariavelmente a sua predilecção pelo ministro da Guerra; o próprio Rodzianko
reconhecia que «esse jovem... ressuscitava cada dia com duplo vigor, para bem da pátria
e para o trabalho construtor». Por tais julgamentos, os liberais queriam afagar Kerensky.
Mas em resumo, eles não podiam deixar de ver que Kerensky trabalhava para eles. «...
Pensai um pouco, dizia Lenine – o que aconteceria a Gotchkov se ele começasse a dar
ordens de ofensiva, a dissolver os regimentos, a prender os soldados, a proibir os
congressos, a gritar atrás dos militares, tratando-os por tu e tratando-os de «cobardes»
etc. Mas Kerensky pode ainda oferecer-se esse «luxo», enquanto que não esgotar a
confiança, na verdade vertiginosamente decrescente, que o povo lhe deu...»
A ofensiva, que tinha aumentado a reputação de Kerensky nas fileiras da burguesia,
minou definitivamente a sua fama no povo. O fiasco da ofensiva foi em suma o fiasco de
Kerensky nos dois campos. Mas, coisa impressionante: o que o tornou «insubstituível»
doravante, era que ele se comprometia pelos dois lados. Sobre o papel de Kerensky na

426
criação da segunda coligação, Miliokov exprime-se assim : «O único homem que era
possível», mas, infelizmente! «não aquele que tínhamos necessidade...» Os dirigentes da
política liberal não tinham aliás nunca tomado Kerensky muito a sério. E muitos círculos
da burguesia faziam cair cada vez mais sobre ele a responsabilidade de todos os azares.
«A impaciência dos grupos animados pelo espírito patriótico» incitava-os, segundo o
testemunho de Miliokov, a procurar um homem forte. Durante um certo tempo, o almirante
Koltchak foi apontado para esse papel. A instalação de um homem forte ao leme
«concebia-se segundo outros procedimentos que as conversações e acordos». Pode-se
acreditar sem dificuldades. «Sobre um regime democrático, sobre a vontade popular,
sobre a Assembleia constituinte – escreve Stankevitch sobre o partido cadete – as
esperanças já tinham sido abandonadas; as eleições municipais em toda a Rússia já não
tinham dado uma esmagadora maioria aos socialistas?... E então começaram a procurar
um poder que seria capaz não de persuadir, mas somente ordenar.» Mais exactamente
falando: um poder que seria capaz de tomar a revolução pelas goelas.
Na biografia de Kornilov e das particularidades do seu carácter, não é fácil destacar
os traços que teriam justificado a sua candidatura ao posto de salvador. O general
Martynov que, em tempo de paz, tinha sido um chefe de serviço de Kornilov, e, durante a
guerra, o seu companheiro de cela numa fortaleza austríaca, caracteriza Kornilov nos
seguintes termos: «Distinguindo-se pela sua perseverança laboriosa e pela sua grande
presunção, ele era, pelas suas capacidades intelectuais, um homem da média vulgar sem
grandes vistas.» Martynov inscreveu no activo de Kornilov dois traços: a bravura pessoal
e o desinteresse. Num meio onde se preocupam antes de tudo da segurança pessoal e
onde se roubava sem vergonha, tais qualidades saltavam aos olhos. Quanto às
capacidades estratégicas, sobretudo a de apreciar uma situação no seu conjunto, nos
seus elementos materiais e morais, Kornilov não tinha sobra disso. «Tanto mais, faltava-
lhe o talento organizador, diz Martynov – e o seu carácter tão irascível como
desequilibrado tornava-o pouco apto para actos racionais.» Brossilov, que tinha
observado toda a actividade militar do seu subordinado no decurso da guerra mundial,
falava dele com absoluto desdém: «Chefe de um destacamento intrépido de partidários, e
nada mais...»
A legenda oficial que foi criada à volta da divisão de Kornilov era ditada pela
necessidade que tinha a opinião patriótica em descobrir as tarefas claras sobre um fundo
sombrio. «A 48ª divisão, escreve Martynov, foi liquidada unicamente no seguimento da
detestável direcção... do próprio Kornilov, que..., não soube organizar a retirada e que,
sobretudo, modificou várias vezes as suas decisões e perdeu tempo...» No último
momento, Kornilov abandonou à mercê da sorte a divisão que ele tinha lançado na luta,
para tentar ele próprio à captura. Todavia, após ter errado durante quatro dias, o general
de má sorte rendeu-se aos austríacos e só mais tarde se evadiu.» Regressado à Rússia,
nas entrevistas dadas a diversos correspondentes de jornais, Kornilov embelezou a
história da sua evasão com as flores vivas da fantasia. «Sobre as prosaicas rectificações
feitas à legenda pelos testemunhos bem informados, não temos motivo de parar.
Aparentemente desde então, Kornilov tomou gosto pela publicidade jornalística.

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Antes da revolução, Kornilov era um monárquico da nuança reaccionária Cem
Negro. Prisioneiro, lendo as gazetas, repetiu várias vezes que teria «pendurado com
prazer esses Gotchkov e Miliokov». Mas as ideias políticas não ocupavam, como em geral
os homens desta espécie, senão na medida onde elas o tocavam directamente. Após a
revolução de Fevereiro, Kornilov declarou-se facilmente republicano. «Ele discernia muito
mal – diz ainda o mesmo Martynov – os interesses interligados das diferentes camadas
da sociedade russa, não conhecendo nem os grupos de partidos, nem as
personalidades.» mencheviques, socialistas-revolucionários e bolcheviques confundiam-
se para ele numa só massa hostil que impedia os comandantes de comandar, os
proprietários de gozar das suas propriedades, os fabricantes de continuar a sua produção,
os comerciantes de comercializar.
O comité da Duma do Estado, desde do 2 de Março, chocou com o general Kornilov,
e, sob a assinatura de Rodzianko, insistia junto do Grande Quartel General que este o
nomeasse «o nobre herói, ilustre em toda a Rússia» comandante em chefe das tropas da
região militar de Petrogrado. Sobre o telegrama de Rodzianko, o czar, que tinha já
deixado de ser czar, escreve: «Aprovado.» Foi assim que a capital revolucionária foi
dotada do seu primeiro general vermelho. Nos processos verbais do comité executivo do
10 de Março está registada esta frase de Kornilov: «General da velha formação, que quer
pôr fim à revolução.» Nos primeiros dias, o general tentou aliás mostrar o seu bom lado e,
ainda com algum alarde, cumpriu o rito da prisão da czarina: ganhou pontos com isso.
Segundo as lembranças do coronel Kobylinsky, que ele nomeou comandante de Tsarkoie-
Selo, foi descoberto que Kornilov jogava duas cartas diferentes. Depois de ter sido
apresentado à czarina, conta Kobylinsky, em termos discretos, «Kornilov disse-
me:«Coronel, deixe-nos sós. Vá se meter no outro lado da porta.» Saí. Cinco minutos
depois, Kornilov chamou-me. Voltei. A soberana estendeu-me a mão...» É claro; Kornilov
tinha recomendado o coronel como um amigo. Logo, conhecemos cenas de abraços entre
o czar e o seu «carrasco» Kobylinsky. Como administrador; Kornilov mostrou-se no seu
novo posto o último dos medíocres. «Os seus colaboradores imediatos em Petrogrado –
escreve Stankevitch queixava-se constantemente da sua incapacidade para o trabalho e a
resolução dos assuntos correntes.»
Kornilov não se manteve muito tempo na capital. Durante as jornadas de Abril,
tentou, sob incitação da parte de Miliokov, efectuar uma primeira sangria na revolução,
mas embateu na resistência do comité executivo, e demitiu-se, obtendo o comando de um
exército, e logo, na frente Sudoeste. Sem esperar a instituição legal da pena de morte,
Kornilov deu ordem de fuzilar os desertores e de expor os cadáveres com cartazes nas
estradas, ameaçando com penas severas os camponeses que atacassem os direitos da
propriedade dos domínios, formou batalhões de choque e, nas ocasiões propícias,
ameaçou Petrogrado. Assim se esboçou à volta do seu nome uma aura aos olhos do
corpo dos oficiais e das classes possuidoras. Mas também comissários de Kerensky
pensaram que a sua esperança era Kornilov. Algumas semanas mais tarde, o combativo
general, com a sua triste experiência de comandante de divisão, tornava-se o
generalíssimo de muitos milhões de homens, de um exército em decomposição que a
Entente queria forçar a combater até à vitória total.

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Por isso Kornilov perdeu a cabeça. A sua ignorância política e a estreiteza das suas
perspectivas faziam dele uma presa fácil para os aventureiros. Defendendo
obstinadamente as suas prerrogativas pessoais, «o homem com coração de leão e com
cérebro de ovelha», como foi caracterizado pelo general Alexeiev e, também por
Verkhovsky, cedia facilmente à influência de outrem, no momento que convinha à sua
ambição particular. Amigavelmente disposto para Kornilov, Miliokov nota nele «uma
confiança infantil nas gente que sabe lisonjear». O mais próximo inspirador do
generalíssimo, tendo o modesto título de ordenança foi um certo Zavoiko, personagem
esquisito, antigo proprietário, especulador de petróleo e aventureiro, cuja pluma impunha-
se particularmente a Kornilov: Zavoiko possuía o estilo alegre do larápio que nada pode
parar. O ordenança era o empresário do reclame, o autor de uma biografia «popular» de
Kornilov, o redactor do relatório, do ultimato e, em geral, de todos os documentos que,
segundo a expressão do general, exigiam «um estilo vigoroso, artístico».
A Zavoiko juntou-se um outro aventureiro, Nadine, antigo deputado da primeira
Duma, tendo passado vários anos na emigração, que tinha sempre o seu cachimbo inglês
na boca e que, por isso se considerava como um especialista de questões internacionais.
Um e outro eram a mão direita de Kornilov, assegurando a sua ligação com os focos da
contra-revolução. O seu flanco esquerdo era coberto por Savinkov e Filonenko: apoiado
por todos os meios a opinião exagerada que o general fazia dele próprio, eles
preocupavam-se em o impedir de se render prematuramente à democracia. «Juntavam-se
a ele gente honesta e desonesta, sincera e intrigantes, políticos, militares e aventureiros –
escreve na sua ênfase patética o general Denikine – e todos diziam em coro: «Sê o
salvador!» Qual era a proporção dos honestos e desonestos, não era fácil concluir. De
qualquer modo, Kornilov considerava-se seriamente como chamado para a «salvação» e
se encontrou logo concorrente directo de Kerensky.
Os rivais detestavam-se sinceramente um ao outro. «Kerensky – segundo Martynov
– tinha-se assimilado um tom altivo nas suas relações com os velho generais. O modesto
e laborioso Alexeiev, e Brossilov o diplomata, deixavam-se tratar de alto a baixo, mas esta
táctica não se aplicava ao vaidoso e susceptível Kornilov que..., pelo seu lado, olhava do
alto o advogado Kerensky.» O mais fraco dos dois estava disposto a fazer concessões e
fazia ofertas sérias. Pelo menos, no fim de Julho, Kornilov declarou a Denikine que, das
esferas governamentais, convites foram-lhe feitos para entrar no governo. «Ah! Não!
Esses senhores estão demasiado ligados aos sovietes... Digo-lhes: dê-me o poder e
travarei a luta decisiva.»
Sob os pés de Kerensky, o chão era movediço como jazigos de turfa. Ele procurava
uma saída, assim como sempre, no domínio das improvisações oratórias: reunir,
proclamar, declarar. O sucesso pessoal do 21 de Julho, quando se ergueu acima dos
campos hostis da democracia e da burguesia na qualidade de homem insubstituível,
sugeriu a Kerensky a ideia de uma conferência de Estado em Moscovo. O que se passou
à porta fechada no palácio de Inverno devia ser relatada numa cena aberta. Que o país
veja com os seus próprios olhos que tudo se rompe pelas costuras se Kerensky não toma
nas mãos as rédeas e o chicote!

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Foram convidados para participar na conferência de Estado, segundo a lista oficial,
«os representantes das organizações políticas, sociais, democráticas, nacionais,
comerciais e industriais, cooperativas, os dirigentes dos órgãos da democracia, os altos
representantes do exército, das instituições científicas, as universidades, os membros da
Duma do Estado das quatro legislaturas». Previa-se cerca de cento e cinquenta
participantes; juntaram-se duzentos e cinquenta pessoas, e a vantagem ia para a ala
direita. O jornal moscovita dos socialistas-revolucionários escrevia com admoestação ao
seu governo: «Contra cento e cinquenta representantes da classe comerciante e
industrial. Contra cem deputados camponeses são convidados cem representantes de
proprietários de terras. Contra cem representantes do soviete haverá trezentos membros
da Duma do Estado...» O jornal do partido de Kerensky duvidava que tal conferência
desse ao governo «o apoio que ele procurava».
Os conciliadores foram à conferência de má vontade: é preciso, diziam para se
convencerem entre eles, tentar honestamente chegar a um acordo. Mas como fazer com
os bolcheviques? Era indispensável impedi-los a todo o custo de intervir no diálogo entre
a democracia e as classes possuidoras. Pela decisão especial do comité executivo, as
fracções dos partidos estavam privadas do direito de se pronunciarem sem o acordo do
seu secretariado. Os bolcheviques decidiram ler, em nome do partido, uma declaração e
de abandonar a conferência. O secretariado que vigiava de perto cada um dos seus
movimentos exigiu deles que renunciassem à intenção criminosa. Então os bolcheviques,
sem hesitarem, devolveram os seus cartões de entrada. Prepararam uma diferente
resposta, mais convincente: a palavra pertencia a proletariado moscovita.
Logo a partir dos primeiros dias da revolução, os partidários da ordem opunham, no
momento oportuno, o «país» calmo ao turbulento Petrogrado. A convocação da
assembleia constituinte em Moscovo era uma das palavras de ordem da burguesia. O
«marxista» Potressov, nacional-liberal, proferia maldições sobre Petrogrado, que se
imaginavam ser «um novo Paris». Como se os Girondinos não tivessem ameaçado com
as suas iras a velho Paris e não lhe tivessem proposto de reduzir o seu papel a 1/3! Um
menchevique da província dizia, em Junho, no congresso dos sovietes: «Qualquer
Novotcherkask reflecte muito mais justamente as condições de existência em toda a
Rússia que Petrogrado.» No fundo, os conciliadores, como a burguesia, procuravam o
apoio não nas verdadeiras disposições do espírito do «país», mas na ilusão consoladora
que eles próprios acreditavam. Agora que iam ter de tomar o pulso da opinião política de
Moscovo, os organizadores da conferência estavam destinados a uma desilusão cruel.
As conferências contra-revolucionárias que se sucediam desde os primeiros dias do
mês de Agosto, a começar pelo congresso dos proprietários de terras e acabando pelo
concílio eclesiástico, não mobilizam somente os sectores possuidores de Moscovo, mas
igualmente os operários e soldados. As ameaças de Riabochinsky, os apelos de
Rodzianko, a fraternização dos cadetes com os generais cossacos – tudo isso tinha lugar
sob os olhos das camadas baixas moscovitas, tudo isso era interpretado pelos agitadores
bolcheviques no calor dos resumos dos jornais. O perigo de uma contra-revolução tomou,
desta vez, formas tangíveis, e mesmo pessoais. Nas fábricas e oficinas passou uma vaga
de indignação. «Se os sovietes são impotentes – escrevia o jornal moscovita dos

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bolchevique – o proletariado deve juntar-se à volta das suas organizações viáveis.» Na
primeira fila avançaram os sindicatos que já se encontravam, na sua maioria, sob a
direcção bolchevique. O estado de espírito nas fábricas era de tal forma hostil à
conferência de Estado que a ideia, vinda de baixo, de uma greve geral, foi adoptada
quase sem oposição à reunião dos representantes de todas as células da organização
moscovita dos bolcheviques.
Os sindicatos tomaram a iniciativa. O soviete moscovita, por uma maioria de
trezentos e sessenta e quatro votos contra trezentos e quatro, pronunciou-se contra a
greve. Mas como, nas sessões das fracções, os operários mencheviques e socialistas-
revolucionários votavam pelas greves e só se submetiam à disciplina do partido, na
decisão do soviete na composição não tinha sido renovada havia já bastante tempo,
decisão tomada contra a vontade da sua verdadeira maioria, não era feita para prender os
operários de Moscovo. A assembleia das direcções de quarenta e um sindicatos decidiu
chamar os operários a uma greve de um dia por protesto. Os sovietes dos bairros se
encontraram em maioria do lado do partido e dos sindicatos, as fábricas reclamaram
imediatamente novas eleições para o soviete de Moscovo, que se tinha não somente
deixado distanciar pelas massas, mas tinha caído num grande antagonismo com elas. No
soviete do distrito de Zamoskvorietchi (arredores de Moscovo ao sul de Moscova), de
acordo com os comités de fábrica, exigia-se que os deputados que tinham funcionado
«contra a vontade da classe operária» fossem substituídos, isso por cento e setenta e
cinco votos contra quarto, e dezanove abstenções!
A noite que procedeu a greve foi mesmo assim cheia de alarmes para os
bolcheviques de Moscovo. O país caminhava nas pegadas de Petrogrado, mas com
atraso. A manifestação de Julho tinha falhado em Moscovo: não somente a maioria da
guarnição, mas a dos operários tinha decidido não sair à rua, contra a vontade do soviete.
Que aconteceria desta vez? A manhã trouxe a resposta. A oposição dos conciliadores não
impediu a greve de se tornar uma potente manifestação de hostilidade em relação à
coligação e ao governo. Dois dias antes, o jornal dos industriais de Moscovo escrevia
presunçosamente: «Que o governo de Petrogrado venha depressa a Moscovo, que dê
atenção às vozes dos lugares sagrados, aos sinos, às santas torres do Kremlin.» Hoje, a
voz dos lugares sagrados se encontra abafada pelo silêncio que precede o vendaval.
Um membro do comité moscovita dos bolcheviques, Piatnitsky, escreveu a seguir:
«A greve..., passa-se magnificamente. Nem luz, nem eléctricos; as fábricas, as oficinas, e
os depósitos do caminho de ferro não trabalham, e mesmo os empregados dos
restaurantes estavam em greve.» Miliokov acrescentou a esse quadro uma imagem viva:
«Os delegados que se tinham juntado para a conferência, não podiam viajar num eléctrico
ou tomar o pequeno-almoço num restaurante»: isso permitiu-lhe, como confissão de
historiador liberal, apreciar tanto mais a força dos bolcheviques que não foram admitidos
na conferência. As Izvestia do soviete de Moscovo definiram integralmente a importância
da manifestação do 12 de Agosto: «Apesar da decisão dos sovietes..., as massas
seguiram os bolcheviques». Quatro mil operários fizeram greve em Moscovo e nos
arrabaldes a convite do partido e cujos líderes ainda estavam retido pela vida clandestina
ou presos. O novo órgão do partido em Petrogrado, o Proletarii, antes de ser proibido,

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tinha tido tempo de colocar aos conciliadores esta questão: «De Petrogrado a Moscovo,
mas de Moscovo, onde vai?» Os mestres da situação deviam questionarem-se. Em Kiev,
em Kostroma, em Tsaritsyne, tiveram lugar greves de protesto de um dia, gerais ou
parciais. A agitação amparou-se de todo o país. Por todo o lado, nos lugares mais
longínquos, os bolcheviques avisavam que a conferência de Estado tinha um carácter
muito acentuado de conspiração contra-revolucionária: cerca do fim do mês de Agosto, o
conteúdo desta formula desvendou-se integralmente diante dos olhos de todo o povo.
Os delegados na conferência, assim como a burguesia moscovita, esperavam uma
manifestação armada das massas, escaramuças, combates, «jornadas de Agosto». Mas
para os operários, descer à rua, seria expor-se aos golpes dos cavaleiros de São Jorge,
destacamentos de oficiais, junkers, certos contingentes da cavalaria que ardentemente
desejam vingar-se sobre a greve. Chamar a guarnição para a rua, seria introduzir aí uma
cisão e facilitar a obra da contra-revolução que se levantava, com o dedo no gatilho. O
partido não pedia que se saísse à rua, e os próprios operários, justamente guiados pelo
seu instinto, evitavam o choque aberto. A greve de um dia respondia melhor à situação:
não se podia dissimulá-la como a conferência tinha jogado para o cesto dos papéis a
declaração dos bolcheviques. Quando a cidade mergulhou nas trevas, toda a Rússia viu a
mão dos bolcheviques sobre o interruptor. Não, Petrogrado não está isolada! « Em
Moscovo, sobre o espírito patriarcal e a resignação do qual estavam colocadas muitas
esperanças, os bairros operários mostraram logo os dentes»; foi assim que Sokhanov
determinou a importância desse dia. Foi na ausência dos bolcheviques, mas diante da
revolução proletária mostrando os dentes, que a conferência da coligação foi obrigada a
tomar lugar.
Os moscovitas criticavam Kerensky vindo «coroar-se» entre eles. Mas, no dia
seguinte, chegou do Grande Quartel General, com o mesmo objectivo, Kornilov, que foi
recebido por numerosas delegações, entre elas do concílio eclesiástico. Sobre o cais
diante do qual o combóio parou saltaram os cossacos do Tek, em cáftens de vermelho
vivo, sabres curvos fora dos coldres, que formaram um corredor. As senhoras
entusiasmadas cobriram com flores o herói que passou em revista a guarda e os
representantes. O cadete Roditchev terminou o seu discurso de acolhimento por esta
exclamação: «Salvai a Rússia, e o povo reconhecido vos coroará.» Soluços patrióticos
rebentaram. Morozova, negociante milionário, meteu-se de joelhos. Oficiais levaram aos
ombros Kornilov em direcção ao povo.
Enquanto que o generalíssimo passava em revista os cavaleiros de São Jorge, os
junkers, a escola dos alferes, a sotnia dos cossacos que se tinham alinhado na praça
diante da gare, Kerensky, como ministro da Guerra e de rival, passava em revista as
tropas a guarnição de Moscovo. Da gare, Kornilov dirigiu-se, no caminho tradicional dos
czares, para a capela da Virgem Iverskaia, onde ouve um serviço religioso na presença
da escolta de muçulmanos do Tek com uns enormes barretes de pêlo. «Esta circunstância
– escreveu o cossaco Grekov sobre o ofício religioso – dispunha ainda melhor a favor de
Kornilov todos os crentes de Moscovo.» A contra-revolução, entretanto, esforçava-se em
apoderar-se da rua. Os automóveis propagavam uma biografia de Kornilov com o seu
retrato. As paredes eram cobertas de cartazes convidando o povo a ajudar o herói. Como

432
se fosse investido de um poder, Kornilov recebia na sua carruagem políticos, industriais,
financeiros. Os representantes dos bancos fizeram-lhe um relato sobre a situação
financeira do país. «Entre todos os membros da Duma – escreveu o outubrista Chidlovsky
– que visitou Kornilov, só Miliokov teve com ele uma conversa cujo teor me é
desconhecido.» Sobre esta entrevista, saberemos mais tarde do próprio Miliokov o que
ele julgará útil contar-nos.
A preparação de um golpe de Estado militar atingia o auge. Alguns dias antes da
conferência, Kornilov tinha ordenado sob pretexto de apoiar Riga, de preparar quatro
divisões de cavalaria para marchar sobre Petrogrado. O regimento de cossacos de
Orenburgo foi enviado pelo Grande Quartel General sobre Moscovo para «manter a
ordem», mas, sobre injunção de Kerensky, parou a meio do caminho. Nas suas
deposições ulteriores à comissão de inquérito sobre o caso Kornilov, Kerensky declarou:
«Nós tínhamos sido avisados que, durante a conferência de Moscovo, a ditadura seria
proclamada.» Assim, durante os dias solenes da união nacional, o ministro da Guerra e o
generalíssimo ocupavam-se de se contrabalançar estrategicamente. Mas o decoro
mantinha-se na medida do possível. As relações dos dois campos oscilavam entre as
garantias oficialmente amigáveis e a guerra civil.
Em Petrogrado, apesar da reserva das massas – a experiência de Julho não passou
sem deixar traços – do alto, dos estados-maiores e das redacções, com uma persistência
enraivecida, se propagavam rumores sobre o levantamento próximo dos bolcheviques. As
organizações do partido em Petrogrado, por um manifesto público, preveniram as massas
da possibilidade de apelos provocadores vindo dos inimigos. O soviete de Moscovo
tomou, entretanto, as suas medidas. Criou-se um comité revolucionário não declarado
publicamente, de seis pessoas, compreendendo dois delegados de cada um dos partidos
soviéticos, incluindo os bolcheviques. Uma ordem secreta proibiu fazer alas aos
cavaleiros de São Jorge, aos oficiais e aos junkers nas ruas onde passava Kornilov. Aos
bolcheviques que, depois das jornadas de Julho, não tinham mais oficialmente acesso
aos quartéis, distribuíam agora apressadamente entradas livres: sem os bolcheviques, era
impossível conquistar os soldados.
Enquanto que, na cena, os mencheviques e os socialistas-revolucionários animavam
as conversações com a burguesia sobre a criação de um poder forte contra as massas
dirigidas pelos bolcheviques, os mesmos mencheviques e socialistas-revolucionários, nos
bastidores, de acordo como os bolcheviques que não tinham deixado entrar na
conferência, preparam as massas para a luta contra a conspiração da burguesia. Tendo-
se oposto na véspera a uma greve demonstrativa, os conciliadores apelavam hoje aos
operários e aos soldados para os preparativos de luta. A indignação desprezível da
massas não impedia estas de responder ao apelo nas disposições combativas que
assustavam os conciliadores pois elas não os contentavam. Uma flagrante duplicidade,
tendo tomado o carácter de traição quase aberta em relação às duas partes, teria sido
inconcebível se os conciliadores tivessem continuado conscientemente a avançar a sua
política; na realidade, eles somente sofriam as consequências.

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Os grandes acontecimentos estavam, evidentemente, suspendidas no ar. Mas
durante os dias da conferência, ninguém, aparentemente, não visava um golpe de Estado.
De qualquer modo, não existia qualquer confirmação dos rumores alegados mais tarde
por Kerensky, nem nos documentos, nem na literatura dos conciliadores, nem nas
memórias da ala direita. Tratava-se só de preparativos. Segundo Miliokov – e o seu
testemunho é conforme ao desenvolvimento ulterior dos acontecimentos – o próprio
Kornilov tinha fixado antes da conferência uma data para agir: 27 de Agosto. Esta data
era, bem entendido, conhecida por poucas pessoas. Os amadores, como sempre em tais
casos, antecipavam o dia do grande acontecimento e os rumores que o antecipavam o dia
do grande acontecimento e os rumores que o avançavam por todos os lados confluíam
para as autoridades: parecia que o golpe devia ser dado de uma hora para a outra.
Mas, precisamente, a mentalidade exaltada das esferas burguesas e do corpo dos
oficiais podia facilmente levar a Moscovo, senão uma tentativa de golpe de Estado, pelo
menos uma manifestação contra-revolucionária com o objectivo de experimentar forças.
Ainda mais provável era a tentativa de destacar elementos da conferência de algum
centro de salvação da pátria que tivesse feito concorrência aos sovietes: disso a imprensa
de direita falava abertamente. Mas não se chegou a esse ponto: as massas
incomodavam. Se alguém tivesse a ideia de associar a hora dos actos decisivos, era
preciso dizer, sob a força da greve: não conseguimos tomar a revolução de improviso, os
operários e os soldados estão prevenidos, é preciso deferir. E mesmo uma procissão
popular para o ícone Iverskaia, organizada pelos religiosos e os liberais de acordo com
Kornilov, foi desconvocada.
Logo que se tornou evidente que um perigo directo já não existia, os socialistas-
revolucionários e os mencheviques apressaram-se em pretender que nada de
particularmente grave não se tinha produzido. Eles recusaram mesmo em renovar aos
bolcheviques acesso livre para os quartéis, ainda se, daí, continuavam a reclamar com
insistência oradores bolcheviques. «O Mouro fez o seu trabalho», deviam dizer entre eles
com um ar esperto Tseretelli, Dan e Khintchuk que era então presidente do soviete de
Moscovo. Mas os bolcheviques não se dispunham de forma nenhuma em ocupar a
posição do Mouro. Eles só estavam ainda a preparar a realização da sua própria tarefa.
Toda a sociedade de classes necessita de uma unidade governamental. A dualidade
de poderes é essencialmente um regime de crise social: marcando um extremo
fraccionamento da nação, ela comporta, em potência ou abertamente, a guerra civil.
Ninguém queria mais a dualidade de poderes. Pelo contrário, todos desejavam
avidamente um poder sólido, unanime, uma autoridade «de ferro». Em Julho, o governo
Kerensky foi investido de poderes ilimitados. A concepção era colocar, acima da
democracia e da burguesia que se paralisavam entre elas, segundo um acordo mútuo,
uma «verdadeira» autoridade. A ideia de um mestre do destino colocando-se acima das
classes não é outra coisa senão a ideia do bonapartismo.
Se se plantar simétricamente dois garfos numa rolha, esta, após ter fortemente
oscilado, acabará por se manter em equilíbrio sobre uma mesma cabeça de alfinete:
temos aí um modelo mecânico do árbitro supremo bonapartista. O grau de solidez de um

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tal poder, se se fizer abstracção das condições internacionais, é determinada pela
estabilidade do equilíbrio das classes antagonistas no interior do país. No meio de Maio,
Trotsky designou Kerensky, em sessão do soviete de Petrogrado, como «o ponto
matemático do bonapartismo russo». A imaterialidade da definição mostra que se tratava
não do indivíduo, mas da função. No princípio de Julho, lembramos-nos, todos os
ministros, sob orientação dos seus partidos, demitiram-se, deixando a Kerensky o cuidado
de constituir governo. No 21 de Julho, esta experiência renovou-se sob uma forma mais
demonstrativa. As partes hostis entre elas apelaram a Kerensky, cada um via nele
qualquer coisa delas próprias, todas as duas juraram-lhe fidelidade. Trotsky escrevia da
prisão: «Dirigido pelos políticos que temiam tudo, o soviete não ousou tomar o poder.
Representando todas as cliques da propriedade, o partido cadete ainda não podia
apoderar-se do poder. Restava procurar um grande conciliador, um intermediário, um
árbitro.»
No manifesto que Kerensky publicou sob o seu próprio sob o seu próprio nome,
proclamou diante do povo:
«Eu, como chefe do governo..., não creio poder parar diante desse facto que as
modificações (na estrutura do poder)... aumentarão a minha responsabilidade nos
assuntos do direcção suprema.»
É aí, sem misturas, a fraseologia do bonapartismo. E portanto, apesar do apoio da
direita e da esquerda, o assunto não foi além da fraseologia. Onde está a causa? Para
que um pequeno corso pudesse erguer-se acima da jovem nação burguesa, teria sido
preciso que a revolução resolvesse previamente o seu problema essencial: a repartição
das terras entre os camponeses, e que, sobre a base social, constitui um exército
vitorioso. No século XVIII, a revolução não podia ir mais longe: ela podia somente resurgir.
Nos seus recuos, porém, as suas conquistas essenciais eram postas em perigo. Era
preciso mantê-las a qualquer preço. O antagonismo aprofundado, mas ainda muito longe
da sua maturidade entre a burguesia e o proletariado, mantinha a nação, enfraquecida
nas suas bases, numa extrema tensão. Um «árbitro» nacional nessas condições era
indispensável. Napoleão garantia aos grandes burgueses a possibilidade de concretizar
lucros, aos camponeses a possessão das suas terras, aos filhos dos camponeses e aos
pobres a possibilidade da pilhagem durante a guerra. O juiz tinha a espada na mão e
preenchia ele próprio as obrigações do oficial de diligências. O bonapartismo do primeiro
Bonaparte estava solidamente baseada.
O golpe de Estado de 1848 não deu nada e não podia dar terras aos camponeses:
não era uma grande revolução substituindo um regime social ao outro, era uma mudança
política sobre as bases de um mesmo regime social. Napoleão III não tinha por detrás
dele um exército vitorioso. Os dois elementos principais do bonapartismo clássico eram
inexistentes. Mas havia outras condições propícias, não menos eficazes. O proletariado
que, em cinquenta anos, tinha crescido, mostrou em Junho a sua força ameaçadora;
porém, ele era ainda incapaz de tomar o poder. A burguesa temia o proletariado e a vitória
sangrenta que ela tinha obtido sobre ele. O camponês proprietário teve medo diante da
insurreição de Junho e queria que o Estado o protegesse contra os socialistas. Enfim, o

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grande desenvolvimento industrial que durou, com curtas interrupções durante duas
dezenas de anos, abria à burguesia fontes desiguais de enriquecimento. Essas condições
eram suficientes para um bonapartismo de epígono.
Na política de Bismarck, que se elevava também «acima das classes», havia, como
se indicou mais de uma vez, traços marcantes de bonapartismo, mesmo sob a aparência
do legitimismo. A estabilidade do regime de Bismarck era assegurada por esse facto que,
nascido após a revolução impotente, tinha dado solução ou meia solução a um tão grande
problema nacional como o da unidade alemã, que tinha trazido a vitória nas três guerras,
indemnizações e um forte florescimento capitalista. Isso bastou por dezenas de anos.
A infelicidade dos russos que se candidatavam a Bonaparte não era de forma
nenhuma no que eles não se pareciam nem ao primeiro Napoleão, nem mesmo a
Bismarck: a história sabia servir-se de sucedâneos. Mas tinham contra eles uma grande
revolução que não tinha ainda resolvido os seus próprios problemas nem esgotado as
suas forças. O camponês que ainda não tinha obtido a terra era obrigado pela burguesia a
fazer guerra pelo domínio dos nobres. A guerra só trazia derrotas. Nem se discutia o
desenvolvimento industrial: pelo contrário, o desespero causava constantemente novas
devastações. Se o proletariado recuou, nem sempre foi para consolidar as suas fileiras. A
classe camponesa só se metia em movimento pelo último avanço contra os senhores. As
nacionalidades oprimidas passavam à ofensiva contra o despotismo russificador. Na
busca da paz, o exército ligava-se cada vez mais estreitamente com os operários e o seu
partido. Em baixo juntava-se, em cima enfraqueciam-se. Não havia equilíbrio. A revolução
ficava no azedume. Não de admirar que o bonapartismo tornou-se anémico.
Marx e Engels comparavam o papel do regime bonapartista na luta entre a
burguesia e o proletariado ao da antiga monarquia absoluta na luta entre os feudais e a
burguesia. Os traços da parecença são indiscutíveis, mas eles não se substituíam mais,
precisamente, lá onde se manifesta o conteúdo social do poder. O papel de árbitro entre
os elementos da antiga e da nova sociedade era, num certo período, realizável na medida
onde os dois regimes de exploração tinha necessidade de se defender contra os
explorados. Mas, já, entre os feudais e os servos, não podia haver intermediário
«imparcial». Ao conciliar os interesses dos proprietários nobres de domínios e os do
jovem capitalismo, a autocracia czarista agia em relação aos camponeses não como um
intermediário, mas como uma base de poder das classes exploradoras.
E o bonapartismo não era um árbitro entre o proletariado e a burguesia; era na
realidade o poder mais concentrado da burguesia sobre o proletariado. Tendo posto a
bota sobre a cabeça da nação, Bonaparte que veio a seguir não pode desenvolver uma
política de protecção da propriedade da renda, do lucro. As particularidades do regime
não vão além dos meio de protecção. A guarda não se mantém diante da porta, ele
assenta-se sobre o pináculo; mas a sua função é a mesma. A independência do
bonapartismo é portanto, num alto grau, toda a aparência, do simulacro, do decoro: ela
tem por símbolo o manto imperial.
Explorando sem jeito o terror do burguês diante do operário, Bismarck, em todas as
suas reformas políticas e sociais, fundou-se invariavelmente no poder das classes

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possuidoras que ele nunca traiu. Em contrapartida, a pressão crescente do proletariado
permitiu-lhe sem dúvida elevar-se acima do corpo dos junkers, acima dos capitalistas,
como um arbitro burocrático: nisso consistia a sua função.
O regime soviético admite uma considerável independência do poder em relação ao
proletariado e ao campesinato, em consequência também «a arbitragem» entre um e
outro, na medida onde os seus interesses, ainda se eles engendram confrontos e
conflitos, não são portanto inconciliáveis no fundo. Mas não seria fácil encontrar um
árbitro «imparcial» entre o Estado soviético e o Estado burguês, pelo menos na esfera
dos interesses essenciais das duas partes. O que impede a União Soviética de aderir à
Sociedade das Nações são, no campo internacional, as mesmas causas sociais que, no
quadro nacional, excluem a possibilidade de uma «imparcialidade» efectiva e não fingida
do poder entre a burguesia e o proletariado...
Sem ter as forças do bonapartismo, o kerenskismo tinha todos os vícios disso. Ele
não se colocava acima da nação para a corromper pela sua própria impotência. Se, em
palavras, os líderes da burguesia e da democracia tivessem prometido «obedecer» a
Kerensky, na realidade o todo-poderoso árbitro obedecia a Miliokov, e sobretudo a
Buchanan. Kerensky perseguia a guerra imperialista, protegia os domínios dos nobres
contra os atentados, diferia as reformas sociais até a tempos melhores. Se o seu governo
era fraco, foi por esta mesma razão que a burguesia não podia de forma nenhuma colocar
o poder gente como ela. Porém, qual foi a nulidade do «governo de salvação», o seu
carácter conservador-capitalista aumentava evidentemente à medida que aumentava a
sua «independência».
Compreender que o regime de Kerensky foi, por um dado período, uma forma
inevitável da dominação burguesa, não excluía, do lado dos políticos burgueses, um
descontentamento extremo em relação a Kerensky, nem dos preparativos para se
desembaraçar dele o mais rapidamente possível. No seio das classes dominantes não
havia mais desacordo sobre a necessidade de opor o árbitro nacional, disponibilizado pela
democracia pequeno-burguesa, um personagem escolhido nas suas próprias fileiras.
Porquê precisamente Kornilov? O candidato a Bonaparte devia corresponder ao carácter
da burguesia russa atrasada, isolada do povo, decadente, inapto. No exército que não
tinha conhecido senão derrotas humilhantes, não era fácil encontrar um general popular.
Kornilov foi preconizado por selecção entre outros candidatos ainda menos válidos.
Assim, os conciliadores não podia unir-se na coligação com os liberais, nem
concordar com eles sobre um candidato a papel de salvador: o que lhes impedia, eram os
problemas da revolução por resolver. Os liberais não confiavam nos democratas. Os
democratas não confiavam nos liberais. Kerensky, na verdade, abria os braços à
burguesia; mas Kornilov dava a entender sem equívoco que, desde da primeira
possibilidade, ele torcia o pescoço à democracia. Decorrendo inelutavelmente da
evolução precedente, o conflito entre Kornilov e Kerensky era a tradução das
incompatibilidades do duplo poder na linguagem explosiva das ambições pessoais.
Assim como no meio do proletariado e na guarnição de Petrogrado se tinha formado,
no início de Julho, uma ala impaciente, descontente da política demasiado circunspecta

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dos bolcheviques, acumulou-se, entre as classes possuidoras, no início do mês de
Agosto, impaciências em relação à política temporizadora da direcção cadete. Este
estado de espírito traduziu-se por exemplo no congresso dos cadetes, onde alguns
reclamaram a queda de Kerensky. Ainda de forma mais violenta, a impaciência política se
manifestou fora dos quadros do partido cadete, nos estados-maiores militares, onde se
ressentia um temor contínuo diante dos soldados, nos bancos submergidos pela inflação,
nas propriedades onde o teto queimava sobre a cabeça do mestre. «Viva Kornilov!»
tornou-se a palavra de ordem da esperança, do desespero, da sede de vingança.
De acordo em tudo sobre o programa de Kornilov, Kerensky discutia os prazos:
«Não se pode fazer tudo isso de uma só vez.» Reconhecendo a necessidade de se
separar de Kerensky, Miliokov respondia aos impacientes: «Talvez seja ainda demasiado
cedo.» Tal como o impulso das massas de Petrogrado saiu da meia insurreição de Julho,
a impaciência dos proprietários suscitou o levantamento de Kornilov em Agosto. Tal como
os bolcheviques se tinham visto obrigados a colocarem-se sobre o terreno de uma
manifestação armada para garantir, se possível, o sucesso, e, de qualquer modo, para a
proteger contra o esmagamento, os cadetes viram-se forçados, nos mesmos fins, a
meterem-se no terreno da insurreição de Kornilov. Nesses limites, observou-se uma
espantosa simetria. Mas no quadro desta simetria havia uma completa oposição dos
objectivos, dos métodos e dos resultados. Ela mostrou-se-nos logo no seguimento dos
acontecimentos.

438
A conferência de Estado em Moscovo
Se um símbolo é uma imagem condensada, a revolução é a maior criadora de
símbolos, porque ela apresenta todos os fenómenos e as relações sob um aspecto
concentrado. É preciso somente observar que o simbolismo de uma revolução é
demasiado grandioso e encaixa mal nos quadros da criação individual. Daí resulta uma
tão pobre reprodução artística dos dramas mais maciços da humanidade.
A conferência de Estado de Moscovo terminou por um fiasco já anunciado. Ela não
criou nada, não resolveu nada. Em contrapartida, ela deixou à história uma imagem
inestimável, ainda se negativa, da revolução, onde a luz aparecia como uma sombra,
onde a fraqueza mostra-se como uma força, a cupidez como um desinteresse, a traição
como a mais alta virtude. O mais poderoso partido da revolução, que já em dez semanas
devia chegar ao poder, viu-se relegado ao limiar da conferência como uma quantidade
negligente. Em contrapartida, levava-se a sério o partido do «socialismo de evolução» que
ninguém conhecia. Kerensky apresentava-se como a encarnação da força e da vontade.
Sobre a coligação, que se tinha totalmente esvaziado do seu conteúdo no passado,
falava-se como um meio de salvação para o futuro. Kornilov que era odiado por milhões
de soldados, foi saudado como chefe amado do exército e do povo. Os monárquicos e os
Cem Negros assinavam declarações de amor pela assembleia constituinte. Todos os que
deviam em breve desaparecer da arena política pareciam ter combinado em interpretar
pela última vez os seus melhores papéis no palco. Eles esforçaram-se em dizer: aqui está
o que queremos ser, o que poderemos ser se não nos incomodassem.
Mas incomodaram-os: os operários, soldados, camponeses, as nacionalidades
oprimidas. Dezenas de milhões de «escravos revoltados» impedia-os de manifestar a sua
fidelidade à revolução. Em Moscovo, onde eles procuraram refúgio, tinham perseguido a
greve. Perseguidos pela «desinteligência», a «ignorância», «a demagogia», os dois mil e
quinhentas pessoas que enchiam o teatro comprometeram-se tácitamente entre elas a
não dissipar a ilusão cénica. Não se falou da greve. Tomaram cuidado em não designar
os bolcheviques pelo seu nome. Plekhanov mencionou somente, de passagem, «o Lenine
de triste memória», como se se tratasse de um adversário definitivamente liquidado. As
características do negativo eram assim mantidas até ao fim: no reino das sombras meio
sepulcrais, que se davam por «forças vivas do país», o verdadeiro líder popular não podia
figurar de outra forma senão na qualidade de defunto político.
«A brilhante sala de espectáculos – escreve Sukhanov – partilha muito nitidamente
em duas metades: à direita a burguesia e, à esquerda, a democracia. À direita, a
orquestra e nos camarotes, via-se um grande número de uniformes de generais, mas, à
esquerda, eram uniformes de alferes, sargentes, soldados. Em frente do palco, no antigo
camarote imperial, tinham-se instalado os altos representantes diplomáticos das potências
aliadas e amigas... O nosso grupo, extrema esquerda, ocupava um pequeno canto da
orquestra.» A extrema esquerda, na ausência dos bolchevique, foi constituída pelos
partidários de Martov.

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Entre três e quatro horas, a cortina foi levantada, apareceu Kerensky acompanhado
de dois jovens oficiais, um do exército e outro da marinha. Figurando a potência
revolucionário, mantiveram-se sempre lá, como se estivessem pregados, por detrás do
presidente. Para não incomodar os homens de direita ao nomear a república – foi
combinado antecipadamente – Kerensky saudou «os representantes da terra russa» em
nome do governo do «Estado russo». «O tom geral do discurso – escreve um historiador
liberal – em vez de ser o da dignidade e da certeza, sob a influência dos últimos dias
traem um medo mas disfarçado que o orador parecia querer abafar nele próprio ao tomar
as notas da ameaça. «Sem designar directamente os bolcheviques, Kerensky começou
porém por tentar intimidá-los: novas tentativas contra o poder «serão reprimidas pelo ferro
e no sangue». Uma tempestade de aplausos rebentou nas duas alas da conferência. Uma
ameaça acrescentada em direcção de Kornilov que ainda não tinha chegado. «Qualquer
que sejam os ultimatos que me cheguem, saberei submeter esse homem à vontade do
poder supremo e a mim que sou o chefe» - provocou muitos aplausos entusiastas, mas
somente na metade esquerda da conferência. Kerensky volta sem descanso a ele próprio,
«chefe supremo»: ele precisa de se avisos. «Vocês que vieram da frente aqui, digo-vos,
eu, vosso ministro da Guerra e vosso chefe supremo... não há vontade e poder no
exército acima da vontade e do poder do governo provisório.» A democracia está no
entusiasmo dessas ameaças ocas, porque ela se imagina que, desta maneira, esquivar-
se-á a necessidade de recorrer ao chumbo.
«Todas as melhores forças do povo e do exército, assegura o chefe do governo,
associaram o triunfo da revolução russa à causa da nossa vitória sobre a frente. Mas as
nossas esperanças foram espezinhadas e cuspiram sobre a nossa fé.» Tal foi a conclusão
lírica da ofensiva de Junho. Ele, Kerensky, dispos-se de qualquer forma a fazer guerra até
à vitória. Sobre o perigo de uma paz à custa da Rússia – esta via foi indicada pela
proposição da paz do papa, datada do 4 de Agosto – Kerensky elogia a nobre fidelidade
dos Aliados. «E eu, em nome do grande povo russo, direi o seguinte: nós não esperamos
e não podemos esperar outra coisa.» Um ovação dirigida em direcção dos camarotes dos
diplomatas aliados meteu toda a gente de pé, exceptuando alguns internacionalistas e
raros bolcheviques presentes como delegados de sindicatos. De um camarote ocupado
por oficiais, um grito: «Martov, de pé!» Martov, é preciso dizer com justiça, foi bastante
firme para não se ajoelhar diante do desinteresse da Entente.
Dirigindo-se às nacionalidade oprimidas da Rússia que procuravam refazer os seus
destinos, Kerensky formulou lições de moral misturadas com ameaças. «Torturados e
exterminados nas cadeias da autocracia czarista – dizia, se gabam de ter utilizado as
correntes dos outros – não poupámos o nosso sangue em nome da felicidade de todos os
povos.» Num sentimento de gratidão para com as nacionalidades oprimidas,
recomendava a paciência sob um regime que negava todos os direitos.
Onde está a saída? «... Senteis este grande ardor... senteis a força e a vontade de
ordem, de sacrifício e de trabalho?... Darão aqui o espectáculo de uma grande força
nacional solidamente ligada? ...» Estas palavras foram pronunciadas no dia da greve de
protesto em Moscovo, e nas no momentos em que a cavalaria de Kornilov procedia a

440
mudanças misteriosas. «Nós morreremos mas salvaremos o Estado.» Era tudo que podia
declarar ao povo o governo da revolução.
«Muitos provincianos – escreve Miliokov – viam, nesta sala, Kerensky pela primeira
vez, e saíram parcialmente desiludidos, parcialmente indignados. Diante deles se erguia
um jovem de cara atormentada, pálido, numa posição de actor... Este homem parecia
querer fazer medo a alguém e produzir sobre todos a impressão de força e de poder no
antigo estilo. Na realidade, ele só suscitou a piedade.»
As declarações dos outros membros do governo não manifestaram muito a sua
incapacidade pessoal senão a falência do sistema de reconciliação. A grande ideia que o
ministro do Interior, Avksentiev propôs à apreciação do país foi a de uma instituição de
comissários inspectores em circuito. O ministro da Indústria exortou os empreendedores a
se contentarem com modestos lucros. O ministro das Finanças prometia baixar os
impostos das classes dominantes aumentando as contribuições indirectas. A ala direita
teve a imprudência de cobrir as suas palavras com um tempestade de aplausos na qual
Tseretelli, não sem algum incomodo, atribuiu pouca interesse em fazer sacrifícios. O
ministro da Agricultura, Tchernov, recebeu ordem de se calar para não irritar os aliados de
direita agitando diante deles a ameaça da expropriação de terras. No interesse da união
nacional tinha sido decidido de fingir que a questão agrícola não existia. Os conciliadores
só incomodavam. A verdadeira voz do mujique não se ouviu na tribuna. Ora, justamente
nessas semanas de Agosto, o movimento agrário desencadeou-se em todo o país para se
transformar, no Outono, numa irresistível guerra camponesa.
Após uma suspensão de um dia empregada a fazer reconhecimentos e a mobilizar
forças dos dois lados, a sessão do dia 14 abriu numa atmosfera de extrema tensão. O
aparecimento de Kornilov num camarote, à direita da Conferência deu-lhe um acolhimento
tumultuoso. A metade da assembleia, a esquerda, continuou sentada quase toda sentada.
Os gritos: «De pé!» foram acompanhados de ofensas grosseiras vindas de um camarote
ocupado por oficiais. Quando se apresentou o governo, a esquerda fez a Kerensky uma
longa ovação à qual, como testemunha Miliokov, «desta vez, também de forma explicita,
não participou a direita, que continuou sentada». Nessas correntes contrárias de aplausos
ouviam-se os próximos confrontos da guerra civil. Porém, no estrado, sob o nome do
governo, continuavam a tomar lugar os representantes das duas metades de uma sala
dividida, e o presidente, que tomava em segredo medidas militares contra o
generalíssimo, não esquecendo nem um minuto de incarnar no seu personagem «a
unidade do povo russo». Nesse papel estilizado, Kerensky exclamou: «Proponho a todos
que saudemos na pessoa do generalíssimo aqui presente o exército que morre
valentemente pela liberdade e a pátria.» Em direcção deste mesmo exército, ele disse
durante a primeira sessão: «As nossas esperanças foram espezinhadas e cuspiram sobre
a nossa fé.» Mas que importa! A frase salutar foi encontrada: o auditório levantou-se e
aplaudiu tumultuosamente Kornilov e Kerensky. A unidade da nação foi mais uma vez
salvaguardada!
Apanhados pelas goelas por irremissível fatalidade da história, as classes dirigentes
tinham resolvido recorrer à mascarada histórica. Parecia-lhes evidente que se elas se

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apresentassem mais uma vez ao povo em todas as suas metamorfoses, elas tornar-se-
iam mais consideráveis e mais fortes. Como especialistas da consciência nacional,
trouxeram à cena representantes de todas as quatro Dumas do Império. As divisões
internas, tão graves outrora, desapareceram, todos os partidos da burguesia uniram-se
sem dificuldades sobre «o programa à margem dos partidos e das classes» de homens
públicos que tinham, alguns dias antes, expedido um telegrama de felicitações a Kornilov.
Em nome da 1ª Duma – a de 1906! - o cadete Nabokov afastava a «hipótese mesmo da
possibilidade de uma paz separada». Isso não impedia o político liberal em contar nas
suas Memórias que ele assim com outros numerosos líderes cadetes tinham visto na paz
separada a única via de salvação. Do mesmo modo, os representantes das outras Dumas
czaristas reclamavam também, antes de tudo, da revolução, o tributo do sangue.
«A palavra é vossa, general!» A sessão aproxima-se do momento crítico. Que dirá o
generalíssimo que Kerensky insistiu mas em vão exortado a contentar-se em fazer uma
exposição da situação militar? Miliokov escreve como testemunha ocular: «Um
personagem de baixa estatura, sólido, com aspecto de kalmuk, com um olhar incisivo,
penetrante, surgiu no estrado. A sala trepidou com aplausos. Toda a gente estava de pé,
exceptuando os soldados.» Em direcção dos delegados que não se levantaram, a direita
lançou gritos de indignação, «Mal-educados! De pé! Dos bancos donde ninguém se
levanta, parte um clamor:«Lacaios!» A barulheira tornou-se uma tempestade. Kerensky
propôs que se ouvisse calmamente «o primeiro soldado do governo provisório». Hirto, de
forma autoritária, como convém a um general que se dispõe a salvar o país Kornilov leu
uma nota escrita para ele pelo aventureiro Zavoiko ditada pelo aventureiro Filonenko. Pelo
programa exposto, a nota era porém mais moderada que a intenção do seu preâmbulo.
Kornilov não se intimidou para descrever o estado do exército e a situação na frente
com as cores mais escuras, com a intenção evidente de inspirar medo. A passagem
essencial do discurso foi o prognóstico de ordem militar: «... O inimigo já está à porta de
Riga e, se somente a instabilidade do nosso exército não nos dá possibilidades de nos
manter-mos sobre a margem do golfe de Riga, a estrada de Petrogrado abrir-se-á»
Kornilov dá aqui o golpe ao governo: «Por toda uma serie de medidas legislativas
aplicadas após a insurreição pelos estrangeiros com compreensão do exército, este
transformou-se numa horda demente que só cuida da sua vida». É claro: para Riga, não
há salvação e o generalíssimo declara-o abertamente, com um tom provocador, à face do
mundo inteiro, como se convidasse os alemãs a ocupar a cidade sem defesa. Mas
Petrogrado? Eis o raciocínio de Kornilov: se eu obtenho a possibilidade de preencher o
meu programa, Petrogrado talvez seja salva, mas despachem-se! O jornal moscovita dos
bolcheviques escrevia: «O que é isso? Um aviso ou uma ameaça? A derrota de Tamopol
fez de... Kornilov um generalíssimo. A rendição de Riga pode fazer um ditador». Esta ideia
correspondia muito mais completamente aos objectivos dos conspiradores do que podia
imaginar o mais desconfiado dos bolcheviques.
O concílio eclesiástico, que tinha participado na pomposa recepção a Kornilov,
enviou então para apoiar o generalíssimo um dos seus membros mais reaccionários, o
arcebispo Platon. «Vocês acabaram de ver o desolador quadro do exército, disse esse
representante das «forças vivas». Subi aqui para dizer, deste lugar, à Rússia: não teimas,

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minha querida, não tenhas medo, a nossa fiel. Se for necessário um milagre para a
salvação da Rússia, Deus, graças às rezas da Igreja, cumprir-se-à o milagre ...» Para a
protecção do domínio do clero, os altos dignitários ortodoxos preferiam contingentes de
cossacos. O ponto forte do discurso não estava portanto lá. O arcebispo queixava-se de
não ter ouvido, nos relatórios dos membros do governo, «nomear uma só vez Deus,
mesmo incidentalmente.» Tal como Kornilov atribuía ao governo da revolução a
decomposição do exército, Platon acusava «os que estão presentemente à cabeça do
nosso povo religioso com fervor» de serem criminosos incrédulos. Clérigos que se tinham
enrolado na poeira diante de Rasputine ousavam agora até confessar publicamente o
governo da revolução.
Em nome de vinte e um contingentes de cossacos, uma declaração foi lida pelo
general Kaledine, cujo nome era repetido com insistência, neste período, como o de um
dos mais firmes no partido militar. «Não desejando, não sabendo lisonjear a multidão,
Kaledine – após os termos de um dos seus panegiristas – separou-se no terreno, do
general Brussilov e, como sendo incompatível com o espírito da época foi destituído do
seu comando do exército.» Tendo voltado no início de Maio na província do Don, o
general cossaco foi logo eleito ataman das tropas da região. Foi ele, colocado à cabeça
da mais antiga e da mais forte das tropas cossacas, que foi encarregue de apresentar o
programa das altas esferas privilegiadas da cossacaria. Afastando toda a desconfiança de
espírito contra-revolucionário, a sua declaração lembrava impertinentemente aos
ministros socialistas como, no momento de perigo, eles tinham solicitado a ajuda dos
cossacos contra os bolcheviques. O triste general conquistou inesperadamente os
corações dos democratas ao proferir com energia uma palavra que Kerensky não ousava
dizer abertamente: a república. A maioria do auditório, e o ministro Tchernov com
particular empenho, aplaudiu o general cossaco que reclamava seriamente da república o
que a autocracia não estava em condições de oferecer.
Napoleão outrora tinha previsto que a Europa tornar-se-ia cossaca ou repúblicana.
Kaledine consentia em ver a Rússia republican, com a condição que ela não deixasse de
ser cossaca. Tendo lido estas palavras: «Os derrotistas não devem ter lugar no governo»,
o ingrato general tornou-se insolentemente para o infeliz Tchernov. Um relato de um jornal
liberal notou isto: «Todos os olhares voltam-se para Tchernov, que baixa muito a cabeça
debaixo da mesa.» não estando associado a uma situação oficial, Kaledine desenvolveu
até ao fim o programa da reacção: suprimir os comités, restabelecer a autoridade dos
chefes militares, meter ao mesmo nível a retaguarda e a frente, rever os direitos dos
soldados, dito de outro jeito, reduzi-los a nada. Os aplausos da direita misturam-se aos
protestos e mesmo aos apitos da esquerda. A assembleia constituinte, «no interesse de
um trabalho calmo e metódico», deve ser convocada para Moscovo!
Esse discurso elaborado antes da Conferência foi lido por Kaledine no dia seguinte
da greve geral, e a frase sobre «um trabalho calmo» em Moscovo tinha o acento de uma
zombaria. O discurso do cossaco republicano levou a temperatura da sala até à fervura e
levou Kerensky a dar mostras de autoridade: «Não convém a quem quer que seja, na
presente assembleia, de intimidar as ordens do governo.» Mas, neste caso, porquê
convocaram a conferência? Purichkevitch, reaccionário na moda, gritou do seu lugar:

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«Nós jogamos o papel de figurantes do governo!» Dois meses antes, esse organizador de
pogromes nem sequer ousava exibir-se.
A declaração oficial da democracia, documento interminável onde se tentava dar
respostas a todas as questões sem resolver uma só, foi lida pelo presidente do comité
executivo central, Tchkeidze, acolhido por calorosas felicitações das esquerdas.
Aclamações como «Viva o chefe da revolução russa!» fizeram tremer esse modesto
caucasiano que se sentia tudo menos um chefe. Sobre um tom de defesa a favor, a
democracia declarava que ela «não tendia para o poder, não desejava o seu monopólio».
Ela está pronta a apoiar todo o poder capaz de salvaguardar os interesses do país e
da revolução. Mas não se pode abolir os sovietes: sozinhos eles salvaram o país da
anarquia. Não se pode suprimir os comités do exército: só eles são capazes de assegurar
a continuação da guerra. As classes privilegiadas devem fazer algumas concessões no
interesse do conjunto. Porém, os interesses dos proprietários de terras devem ser
protegidos contra as expropriações. A solução das questões nacionais deve ser adiada
até à assembleia constituinte. É preciso portanto proceder às reformas mais urgentes.
Sobre uma política de paz activa, a declaração nada dizia. Em suma, esse documento era
especialmente estudado para não dar satisfação à burguesia ao mesmo tempo que
provocava a indignação das massas.
Num discurso evasivo e sem cor, o representante do comité executivo camponês
lembrou que a palavra de ordem «Terra e liberdade», sob a qual «morreram os nossos
melhores militantes». Um relato de um jornal de Moscovo nota um episódio encurtado
pelo estenograma oficial: «Todo auditório ergue-se e faz uma ovação tumultuosa aos
antigos prisioneiros da fortaleza de Schlusselburg, que estão sentados num camarote.»
Espantosa careta da revolução!» Todo o auditório «festeja os antigos presos políticos que
a monarquia de Alexieiev, de Kornilov, de Kaledine, do arcebispo Platon, de Rodzianko,
Gutchkov e, no fundo, também de Miliokov, não teve tempo de abafar completamente
nas suas prisões. Os carrascos ou seus cúmplices querem dotar-se da auréola do mártir
das suas próprias vítimas.
Quinze anos antes, os líderes da metade direita da sala celebravam o segundo
centenário da tomada da fortaleza de Schlusselburg por Pedro Iº. A Iskra (A Faísca), jornal
da ala revolucionária da social democracia, escrevia nesses dias: «Como se suscitou a
indignação diante desta cerimónia patriótica sobre a ilha maldita que foi o lugar de
execução de Minakov, de Mychkine, de Rogatchev, de Stromberg, de Oulianov, de
Gueneralov, de Ossipanov, de Andriuchkine e de Chevyrev; diante esses sacos de pedra,
onde Klitnenko se estrangulou com uma corda, onde Gratchevsky se imolou, onde Sofia
Ginsburg mortificou o corpo com golpes de tesoura; sob essas muralhas nas quais
Chtchedrine, Iuvatche, Konachevitch, Pokhitonov, Ignatti, Ivano, Arontchik e Tikhonovitch
morreram sem regresso nas trevas da demência, enquanto que dezenas de outros
morreram de esgotamento, de escorbuto e de tísica. Entreguem-se aos seus bacanais
patrióticos, porque hoje, vocês ainda são traidores a Schlusselburgo!» Em epígrafe, A
Iskra levava esses três extractos de uma carta dirigida pelos dezembristas condenados à
Puchkine: da faísca surgirá a chama. Ela surgiu. Ela reduziu em cinzas a monarquia e o

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seu degredo de Schlusselburg. E hoje, na sala da conferência de Estado, os carrascos da
véspera ovacionaram as vítimas arrancadas às suas garras pela revolução. Mas o mais
paradoxal foi que os antigos carrascos e os antigos presos juntaram-se num ódio comum
em relação aos bolcheviques, de Lenine que tinha sido o inspirador da Iskra, de Trostky,
autor das linhas citadas acima, dos operários revoltados, dos soldados insubordinados
que encheram as prisões da república.
O nacional-liberal Gutchkov, presidente da IIIª Duma, que não tinha admitido, no seu
tempo deputados de esquerda na comissão da defesa nacional e que, por essa razão
tinha sido nomeado pelos conciliadores o primeiro dos ministros da Guerra da revolução,
pronunciou o discurso mais interessante, onde, porém a ironia combatia debalde o
desespero: «Mas porquê, porquê – dizia ele aludindo às palavras de Kerensky – os
representantes do poder juntaram-se a nós «numa agonia mortal», «numa mortalidade
espantosa», gritando histéricos, de desespero, e porquê esta agonia, este temor, esses
gritos, encontram nas nossas almas a dor pungente das aflições da agonia?» Sem o
conhecimento dos que, precedentemente, tinham sido os traidores soberanos, tinham
comandado, agraciado e punido, o comerciante moscovita confessava publicamente as
suas sensações das «aflições das agonias». «Esse poder – dizia – é uma sombra de
poder.» Gotchkov tinha razão. Mas também ele, antigo parceiro de Stolpyne, não era
senão a sombra de si próprio.
No próprio dia de abertura da conferência foi publicado no jornal de Gorki uma
informação mostrando como Rodzianko lucrava com o fornecimento das culatras das
espingardas inutilizáveis. Esta revelação inoportuna, feita por Karakhan, futuro diplomata
dos sovietes, então desconhecido de todos, não impediu Rodzianko de falar com
dignidade da conferência a favor do programa patriótico dos fornecedores do exército.
Todas as desgraças vinham do facto que o governo provisório não tinha caminhado de
mão dada com a Duma de Estado, «a única representação integralmente legal de todo o
povo da Rússia.» Isso já parecia demais. Nos bancos da esquerda começaram a rir.
Ouviram-se gritos: «O 3 de Junho!». Outrora, esta data, 3 de Junho de 1907 – no dia
quando o constituição outorgada tinha sido espezinhada – tinha sido marcada a ferro
sobre a frente da monarquia e dos partidos que a apoiavam. Agora, era somente uma
longínqua lembrança. Mas o próprio Rodzianko, que trovejante com uma voz de baixo,
enorme e imponente, parecia estar na tribuna um vestígio vivo do passado em vez de
uma figura política.
O governo opôs aos ataques do interior os encorajamentos que lhe eram trazidos do
exterior, Kerensky deu a ler um telegrama de felicitações do presidente Wilson,
prometendo «todo o apoio materia e moral ao governo russo pelo sucesso da causa
comum aos dois povos, e no qual não havia qualquer objectivo egoísta». Novamente os
aplausos diante do camarote diplomático não podem abafar a ansiedade provocada na
meia direita pelo telegrama de Washington: elogio do desinteresse significava muito
nitidamente para os imperialistas russos a receita de se meterem à dieta.
Em nome da democracia conciliadora, o líder comum, Tseretelli, defendia os sovietes
e os comités do exército como se defendo a honra numa causa perdida antecipadamente.

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«Não se pode ainda retirar os andaimes, o edifício da Rússia livre e revolucionária não
está ainda construido». Após a insurreição, «as massas populares, propriamente dito, não
tinham confiança em ninguém senão nelas próprias»: só os esforços dos sovietes
conciliadores deram às classes conciliadoras a possibilidade de se manter na cimeira,
pelo menos nos primeiros tempos, sem o conforto habitual. Tseretelli dava um mérito
particular aos sovietes «de ter remetido ao governo de coligação todas as funções do
Estado»: esse sacrifício «tinha sido arrancado à democracia pela força?» O orador
parecia um comandante de uma fortaleza que se vangloria publicamente de ter dado sem
combate a praça que lhe tinha sido confiada... E, durante as jornadas de Julho, «quem
tinha dado o peito para defender o país contra a anarquia?» Da direita ouviu-se uma voz:
«os cosaques e os junkers!» Como um golpe de chicote, essas duas palavras açoitaram o
fluxo dos lugares-comuns democráticos. A ala burguesa da conferência compreendia
perfeitamente o efeito saudável dos serviços dados pelos conciliadores. Mas a gratidão
não é um sentimento político. A burguesia apresou-se a tirar as suas conclusões dos bons
ofícios que ela devia à democracia: o capítulo dos socialistas-revolucionários e dos
mencheviques estava em via de se realizar; na ordem do dia colocou-se o capítulo dos
cossacos e dos junkers.
Foi com uma prudência particular que Tseretelli abordou o problema do poder. Nos
últimos meses tinha tido lugar eleições para as dumas municipais e, parcialmente, para os
zemstvos, sobre a base do direito de sufrágio universal. E o que daí resultou? As
delegações das municipalidades democráticas encontraram-se, na conferência de Estado,
num grupo de esquerda, com os sovietes, sob a direcção dos mesmos partidos,
socialistas-revolucionários e mencheviques. Se os cadetes têm a intenção de insistir
sobre a sua reivindicação: acabar com toda a dependência do governo, em relação à
democracia, para que serve uma assembleia constituinte? Teseretelli indicou somente os
contornos deste argumento; porque, levado até ao fim, ele condenou a política da
coligação com os cadetes como sendo contrária à democracia formal. Acusaram a
revolução de abusar do discurso sobre a paz? Mas as classes possuidoras não
compreendem que a palavra de ordem é actualmente o único meio de continuar a guerra?
A burguesia compreendia-a: ela quis somente, com o poder, tomar também esse meio nas
suas próprias mãos. Tseretelli terminou por um hino em honra da coligação. Na
assembleia dividida que não se apercebia uma saída, os lugares comuns dos
conciliadores tilintaram pela última vez com uma nuança de esperança. Mas Tseretelli
também já não era senão um espectro dele próprio.
Em nome da meia direita da sala, Miliokov, representante irremediavelmente
ressequido das classes às quais a história cortou as vias de uma política velha,
respondeu à democracia. Na sua história, o líder do liberalismo relatou de uma maneira
suficientemente expressiva o seu próprio discurso na conferência de Estado. «Miliokov
fez... um relatório resumido, baseado em factos, erros cometidos pela «democracia
revolucionária» e daí tirou conclusões: capitulação na questão da «democratização do
exército», acompanhada pela partida de Gotchkov; capitulação sobre a questão da
política exterior «zimmerwaldiana», acompanhada da partida do ministro dos Assuntos
estrangeiros (Miliokov); capitulação diante das reivindicações utópicas da classe operária,

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acompanhada da partida de Konovalov (ministro do Comércio e da Indústria); capitulação
diante das exigências excessivas das nacionalidades, acompanhada da partida dos
restantes cadetes. A quinta capitulação diante das tendências espoliadoras das massas,
na questão agrária... provocou a partida do príncipe Lvov, primeiro presidente do governo
provisório.»
A história da doença não estava mal escrita. Quanto ao tratamento, Miliokov não ia
para além das medidas policiais: era preciso abafar os bolcheviques. «Na presença dos
factos evidentes ele censurava aos conciliadores – esses grupos mais moderados foram
forçados em admitir que, entre os bolcheviques, há criminosos e traidores. Mas eles não
admitem até agora que a própria ideia fundamental que une esses partidários dos actos
combativos de anarco-sindicalistas, é criminal.» (Aplausos)
O muito humilde Tchernov parecia estar ainda ser o elo de união entre a coligação e
a revolução. Quase todos os oradores da ala direita: Kaledine, os cadetes Maklokov e
Astrov, golpeavam Tchernov que tinha recebido ordem de se calar e que ninguém o
defendia; Miliokov, pelo seu lado, lembrou que o ministro da Agricultura «tinha estado em
pessoa em Zimmerwald e em Kienthal e aí apresentou moções dolentes» . Foi um golpe
directo, na cabeça: antes de se tornar ministro da guerra imperialista, Tchernov tinha
efectivamente assinado certos documentos da esquerda de Zimmerwald, isto é a fracção
de Lenine.
Miliokov não escondeu à conferência que, logo no princípio, ele tinha sido adversário
da coligação, considerando que ela «não seria mais forte, mas mais fraca que o governo
saído da revolução», a saber: o governo Gotchkov-Miliokov. E, presentemente, ele «teme
que a composição actual do poder executivo... não garanta a segurança da pessoas e da
propriedade». De qualquer forma, Miliokov promete o seu apoio ao governo «de boa
vontade se sem obstrução». A traição incluída nessa promessa magnânima rebentará
quinze dias mais tarde. O discurso, no momento onde foi pronunciado, não suscita
qualquer entusiasmo, mas também não motivou protestos veementes. O orador foi
acolhido por poucos aplausos.
O segundo discurso de Tseretelli em assegurar, com juras e lamentos: portanto tudo
isso é bem para vocês; os sovietes, os comités, os programas democráticos, as palavras
de ordem do pacifismo, tudo isso vos protege: «Para quem será mais fácil encaminhar as
tropas do Estado russo revolucionário, ao ministro da Guerra Gotchkov ou ao ministro da
Guerra Kerensky?» Tseretelli repetiu quase palavra por palavra Lenine, mas somente o
líder dos conciliadores via mérito onde o líder da revolução estigmatizava a traição. O
orador justifica-se mais longe por ter demasiado poupado os bolcheviques: «Digo-vos, a
revolução era inexperiente na luta contra a anarquia vinda da esquerda» (Tempestade de
aplausos à direita). Mas, depois que «as primeiras lições foram dadas», a revolução
corrigiu o seu erro: «Já aplicámos uma lei de excepção.» Ao mesmo tempo, Moscovo era
clandestinamente governada por um comité de seis membros – dois mencheviques, dois
socialistas-revolucionários, dois bolcheviques – protegendo a cidade contra o perigo de
um golpe de Estado da parte daqueles que os conciliadores comprometiam-se em
esmagar os bolcheviques.

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O prego do último dia foi o discurso do general Aleixeiev cuja autoridade incarnava a
falta de talento dos velho burocratas militares. Sob os vivas desenfreados da direita, o
antigo chefe do estado-maior de Nicolau II, organizador das derrotas do exército russo,
falou desses destruidores «nos bolsos de quem tilintavam melodiosamente os marcos
alemãs». Para reconstituir o exército, é preciso uma disciplina; por disciplina, é preciso
que os chefes tenham autoridade; por isso é ainda necessário a disciplina. «Falai de uma
disciplina de ferro, ou chamai consciência, ou digam a verdadeira... as base dessas
disciplinas são as mesmas. «A história delimitava-se para Aleixeiev nos estatutos do
serviço interior. «Senhores, é tão difícil sacrificar uma prerrogativa ilusória, a existência
das organizações (risos à esquerda) por um certo tempo? (ruídos e gritos à esquerda). O
general sugeria que lhe remetessem a tutela da revolução desarmada, não para sempre,
não, graças a Deus ! Mas somente «por um certo tempo»: terminada a guerra, ele
prometia restituir o objecto em bom estado de conservação. Mas terminou por um
aforismo muito bem vindo: «É preciso medidas e não meias medidas.» Essas palavras
atingiram a declaração de Tchkheidze, o governo provisório, a coligação e todo o regime
de Fevereiro. Medidas e não meias medidas! Sobre isso, os bolcheviques estavam de
acordo.
Ao general Alexieiev logo se opuseram os oficiais de esquerda, delegados de
Petrogrado e de Moscovo, que apoiaram «o nosso chefe supremo, o ministro da Guerra.»
Depois deles o tenente Kutchine, velho menchevique, orador do «grupo da frente na
conferência de Estado«, falou em nome de milhões de soldados que, todavia, não deviam
de forma nenhuma se reconhecer no espelho da conciliação. «Nós lemos a entrevista do
general Lukomsky, em todos os jornais, onde ele diz: se os Aliados não nos ajudam, Riga
será entregue...» Porquê então o alto comando, que dissimulava sempre os insucessos e
os revés, tinha sentido a necessidade de escurecer as cores? Os gritos: «É uma
vergonha», partindo da esquerda, dirigiam-se a Kornilov que, na véspera, tinha
desenvolvido o mesmo raciocínio em plena conferência.
Kutchine tocava no ponto mais sensível das classes possuidoras: as cimeiras da
burguesia, o comando, toda a metade da direita do auditório estavam profundamente
impregnados de tendências derrotistas no domínio económico, político e militar. A devisa
desses patriotas sólidos e equilibrados era desde então: «Tanto pior, melhor é!» Mas o
orador apressou-se a esquivar um tema que era para ele próprio um terreno escorregadio.
«Salvamos o exército? Não sabemos, mas se não o salvarmos, não é o comando que o
salvará...» «Ele salvará !» exclama-se sobre os bancos dos oficiais. Kutchine: «Não, ele
não o salvará !» Aplausos irromperam à esquerda. Assim se interpelavam hostilmente os
comandantes e os comités sobre a solidariedade imaginária dos quais se edificou o
programa de saneamento do exército. Assim se interpelavam as duas metades da
conferência que constituíam a base de uma «coligação honesta». Esses conflitos eram só
o fraco eco, abafado, parlamentarista, dos antagonistas que sacudiam o país.
Conforme à encenação do bonapartismo, os oradores da direita e da esquerda
alternavam, equilibrando-se entre eles tanto quanto possível. Se os primatas do concílio
ortodoxo apoiavam Kornilov, os monitores dos cristãos evangélicos iam para o lado do
governo provisório. Os delegados dos zemstvos e das municipalidades saíam aos pares:

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um, para a maioria, juntavam-se à declaração de Tchkheidze; o outro, pela minoria, à
declaração da Duma do Estado.
Os representantes das nacionalidades oprimidas, um após outro, asseguravam o
governo do seu patriotismo, mas suplicavam-os de não os enganar mais: nas suas
regiões, mesmos os funcionários, mesmas leis, a mesma opressão. «Nao se pode diferir.
Nenhum povo não pode viver somente de promessas. «La Rússia revolucionária deve
mostrar que ela é a «mãe e não a madrasta de todos os povos». As tímidas censuras e as
adjurações resignadas não encontravam quase qualquer eco da simpatia mesmo na
metade esquerda do auditório. O espírito da guerra imperialista é tudo menos compatível
com uma política honesta na questão nacional.
«Até agora, as nacionalidades da Transcaucásia não fizeram qualquer manifestação
separatista – declarou, em nome dos Georgianos, o menchevique Tchkenkeli – e elas não
farão ulteriormente.» Esse compromisso, coberto de aplausos, logo se tornará caduco: a
partir da insurreição de Outubro, Tchkenkeli sera um dos líderes do separatismo. Não há
portanto aí contradição: o patriotismo da democracia não ultrapassará os quadros do
regime burguês.
Entretanto, novos espectros do passado, os mais trágicos, surgem em cena. Os
mutilados de guerra fazem ouvir as suas vozes. Eles também não são unanimes. Os
manetas, os amputados da perna, os cegos têm a sua aristocracia e a sua plebe. Em
nome «da imensa e potente associação dos cavaleiros de São Jorge, das suas vinte e
oito secções disseminada por toda a Rússia», um oficial, ofendido no seu patriotismo,
apoiou Kornilov (aprovação à direita). A União pan-russa dos mutilados de guerra junta-se
por intermediário do seu delegado, à declaração de Tchkheidze (aprovação da esquerda).
O comité executivo da União dos ferroviários que acabara de se organizar e que
devia, sob a denominação abreviada de Vikjel, desempenhar nos próximos meses um
papel considerável, juntou a sua voz à declaração dos conciliadores. O presidente do
Vikjel, democrata moderado e patriota extremo, traçou um quadro vivo de maniganças
contra-revolucionárias sobre a rede, derrogações arbitrárias ao dia de oito horas, queixas
diante dos tribunais. Forças clandestinas, dirigidas por centros escondidos mas influentes,
tentam evidentemente provocar à batalha dos ferroviários alertados. O inimigo é
inapreensível. A contra-espionagem acomodou-se, a vigilância do ministério público
adormeceu.» E esse moderado entre todos os moderados terminou por uma ameaça: «Se
a hidra contra-revolucionária levanta a cabeça, faremos de maneira a abafá-la com as
nossas próprias mãos.».
Imediatamente se apresenta, formulando acusações contrárias, um ás dos
ferroviários: «A fonte pura da revolução foi envenenada. Porquê? Porque os objectivos
idealistas da revolução foram substituídos pelos fins materiais (aplausos da direita).» No
mesmo espírito, Roditchev, cadete e latifundiário, acusa os operários de terem assimilado
a ignóbil palavra de ordem recebida de França: «Enriquecei-vos!» Os bolcheviques
asseguram em breve a formula de Roditchev um sucesso exceptional, embora não
aquele sobre quem contava o orador. O professor Ozerov, homem de ciência pura e
delegado dos bancos agrários, exclamou: «O soldado nas trincheiras deve pensar na

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guerra e não na partilha da terra.» Não é espantoso: a confiscação dos proprietários de
terras individuais significaria a confiscação de capitais bancários: no primeiro de Janeiro
de 1915, a dívida da propriedade privada das terras era avaliada em três biliões
quinhentos milhões de rublos!
Da direita falava-se em nome dos altos estados-maiores, de uniões industriais, de
câmaras de comércio e de bancos, da sociedades de coudelaria e outras organizações
que reagrupam centenas de personagens reputados. Da esquerda, falava-se em nome
dos sovietes, dos comités armados, dos sindicatos, das municipalidades democráticas,
cooperativas, por detrás das quais, entreviam-se sobre um fundo longínquo, milhões e
dezenas de milhões de anónimos. Em tempo normal, a preponderância estava
invariavelmente sobre o segmento curto da alavanca. «Não se pode negar – moralizava
Tseretelli – sobretudo em tal momento, a densidade e a importância dos que são fortes
pelo seu peso de possuidores.» Mas todo o assunto é este que este mal-estar tornava-se
cada vez mais imponderável. Tal como o peso não é uma qualidade interna a tal ou tal
objecto, mas somente uma relação recíproca entre eles, a densidade social não é uma
qualidade inata de um individuo, mas somente o valor de classe que as outras classes
são forçadas em lhe reconhecer. A revolução, todavia, chegava perto do limite mesmo
onde se começa a não reconhecer mais as «qualidades» as mais essenciais das classes
dominantes. Daí se torna incómodo a situação da minoria renomeada no segmento da
alavanca.
Os conciliadores faziam os possíveis para manter o equilíbrio. Mas eles já não
tinham forças: as massas pressionavam irresistivelmente sobre a outra parte, mais longa.
Os grandes agrários, os banqueiros, os industriais defendiam os seus interesses
prudentemente! E defendiam em geral? Nem por isso. Eles defendiam os direitos do
idealismo, o interesses da cultura, as prerrogativas da futura assembleia constituinte. Um
capitão de indústria pesada, Von Ditmar, terminou mesmo por um discurso em honra da
«liberdade, fraternidade, igualdade». Onde se tinham metido os barítonos metálicos do
lucro, os baixos roucos da renda? Na cena surgiam somente os mais doces tenores do
desinteresse. Mas um minuto de atenção: quanto vinagre sobre o melaço! De que
maneira inesperada, as cambalhotas líricas quebravam-se num falsete colérico. O
representante da câmara de agricultura pan-russa, Kapatsinsky, que aposta na próxima
reforma agrária, não esquece de agradecer «ao nosso puro Tseretelli» pela sua circular
defendendo o direito contra a anarquia.» E os comités agrários? Porque enfim eles
enviam directamente o poder ao mujique! Ele, «um ser obscuro, quase analfabeto, louco
de felicidade com a ideia que enfim... lhe dêem a terra, esse homem encarregado de
instituir o direito em todo o país.» Se, na luta contra o obscuro mujique, os proprietários do
domínios defendem a propriedade, não é para eles, não, mas somente para a sacrificar
logo sobre o altar da liberdade.
O símbolo social parecia quase esgotado. Mas aqui Kerensky é iluminado por uma
feliz inspiração. Ele propõe dar a palavra a um grupo ainda - «um grupo histórico na
Rússia, o de Brechkovskaia, de Kropotkine e de Plekhanov». O populismo russo, o
anarquismo russo e a social-democracia russa aparecem personificados pela geração dos
idosos; o anarquismo e o marxismo dos seus eminentes fundadores.

450
Kropotkine pediu que se juntem a ele « aos que convidaram todo o povo russo a
romper uma vez por todas com o zimmerwaldismo» O apóstolo negador da autoridade
liga-se à ala direita da conferência. A derrota ameaça comportar não somente a perca de
grandes territórios e das contribuições: «Saibam, camaradas, que há qualquer coisa de
pior que tudo isso: é a psicologia de um país vencido». O velho internacionalista prefere a
psicologia de um país vencido... situado do outro lado da fronteira. Lembrando-se como a
França vencida se humilhou diante dos czares da Rússia – ele não tinha previsto como a
França vitoriosa se humilhava diante dos banqueiros americanos – Kropotkine exclamou:
«É possível que possamos passar por isso? Nunca na vida! A resposta foram os plausos
de toda a sala.
Em contrapartida, que radiosas perspectiva abrem a guerra! «Todos começam a
compreender que é preciso erguer uma vida nova sobre os novos princípios socialistas...
Lloyd George pronuncia discursos penetrados de espírito socialista... Em Inglaterra, em
França, e Itália, forma-se uma nova inteligência da vida, penetrada de socialismo,
infelizmente estadista.» Se Lloyd George e Poincaré ainda não tinham renunciado,
«infelizmente» ao princípio estadista, Kropotkine aproximava-se abertamente disso.
«Penso, dizia ele, que nós não nos chocamos com os direitos da assembleia constituinte
– reconhecendo perfeitamente que ela deve ter uma decisão soberana sobre tais
questões – se nós, Assembleia da terra russa, exprimimos fortemente o desejo que a
Rússia seja proclamada república.» Kropotkine, insiste sobre uma república federativa:
«Necessitamos de uma federação tal como nos Estados-Unidos.» Aí está ao que chegaria
a «federação das comunas livres» de Bakunine! «Prometamos entre nós – termina
Kropotkine, esconjurando a assembleia – que nós não nos dividiremos mais em partidos
de direita e de esquerda neste teatro... Porque enfim todos temos uma e mesma pátria, e,
para ela, devemos ter ou necessitar, nós todos, os da direita e da esquerda.»
Proprietários de terras, industriais, generais, cavaleiros de São Jorge – que todos
recusavam reconhecer Zimmerwald – ovacionaram o apóstolo da anarquia.
Os princípios do liberalismo vivem na realidade de acordo com a actividade policial.
O anarquismo é uma tentativa para apurar o liberalismo da influência policial. Mas, tal
como o oxigénio em estado puro é irrespirável, os princípios do liberalismo
desembaraçados do elemento policial significam a morte da sociedade. Como sombra
caricatural do liberalismo, a anarquia, no conjunto, partilha o destino deste último. Tendo
matado o liberalismo, o desenvolvimento dos antagonismos de classes mata também a
anarquia. Como qualquer seita que funda a sua doutrina absurda não sobre o
desenvolvimento real da sociedade humana, mas sobre o exagero até ao absurdo de um
dos traços desta sociedade, o anarquismo rebenta como uma bola de sabão no momento
quando os antagonismos sociais chegam a uma guerra ou a uma revolução. A anarquia
representada por Kroptkine talvez seja o mais fantasmático de todos os espectros da
conferência de Estado.
Em Espanha, país clássico do bakunismo, os anarco-sindicalistas e os que se
chamam anarquistas «específicos» ou puros, recusam-se à política, renovam na realidade
a política dos mencheviques russos. Os enfáticos negadores do Estado inclinam-se
respeitosamente diante dele desde que ele se transforme um pouco. Prevenindo o

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proletariado contra as seduções do poder, eles apoiam com abnegação o poder da
burguesia de «esquerda». Amaldiçoando a gangrena do parlamentarismo, eles passam,
em segredo, aos seus apoiantes, o boletim de voto de vulgares republicanos. Qualquer
que seja a solução da revolução espanhola, ela acabará de qualquer forma com o
anarquismo.
Pela boca de Plekhanov, acolhido com tumultuosos aplausos de todo o auditório –
as esquerdas festejavam o velho mestre, as direitas o novo aliado – falou de marxismo
russo da primeira colheita, cuja perspectiva tinha parado durante dezenas de anos à
liberdade política. Aí onde a revolução começava somente para os bolcheviques, ela
tinha-se acabado para Plekhanov. Aconselhando aos industriais a «procurarem
aproximar-se da classe operária», Plekhanov advertia assim os democratas: «sem dúvida
é indispensável que vocês se Ententem com os representantes da classe dos
comerciantes e industriais.» A título de exemplo cominatório, Plekhanov citou «o Lenine
de triste memória» que caiu ao ponto de chamar o proletariado «a tomar imediatamente o
poder político.» Precisamente em vista de prevenir a luta pela conquista do poder, a
conferência tinha necessidade de Plekhanov, que entregou os restos da sua armadura de
revolucionário à porta da revolução.
Na mesma noite onde se pronunciavam os delegados «históricos» da Rússia,
Kerensky deu a palavra ao representante da câmara da agricultura e da união dos
proprietários de coudelarias, outro Kropotkine, igualmente membro da antiga familia real
que, se acreditarmos na genealogia, tinha mais direito ao trono da Rússia que os
Romanov. «Não sou socialista – declarou o aristocrata feudal – mas respeito o verdadeiro
socialismo. Portanto quando vejo as espoliações, as pilhagens, as violências, devo dizer
que... o governo tem o dever de obrigar os homens que se intrometeram no socialismo a
abandonar a obra de edificação do país.» Esse segundo Kropotkine, que lançava
evidentemente a sua flecha contra Tchernov, não objectava nada aos socialistas género
Lloyd George ou Poincaré. Em concorrência com o seu antípoda familial, o Kropotkine
monárquico condenava Zimmerwald, a luta de classes, as expropriações de terras:
infelizmente ele estava habituado a chamar isso «anarquia», e exigia igualmente a
unidade e a vitória. Os processos verbais não constatam infelizmente se os dois
Kropotkine aplaudiram-se reciprocamente.
Nessa conferência roída pelo ódio, falava-se de tal forma de unidade que esta não
podia, pelo menos pelo momento, materializar-se num inevitável aperto de mãos
simbólico. Este acontecimento foi contado em termos inspirações pelo jornal dos
mencheviques: «No momento quando Bublikov toma a palavra, produziu-se um incidente
cujo efeito é grande sobre todos os membros da conferência...» Se, ontem – declarava
Bublikov – o nobre líder da revolução, Tseretelli, estendeu a mão ao mundo industrial, que
ele saiba que esta mão não ficará suspendida!» Quando Bublikov termina, Tseretelli
aproximou-se dele e apertou-lhe a mão. Tempestade de ovações.»
Que ovações! Demasiadas ovações! Oito dias antes da cena aqui descrita, o mesmo
Bublikov, considerável personagem nos caminhos de ferro, gritava, no congresso dos
industriais, dirigindo-se aos líderes dos sovietes: «Longe de nós os desonestos, os

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ignorantes, os que... foram levados à perdição!» - e as suas palavras ainda não tinham
qualquer eco no ambiente de Moscovo. O velho marxistas Riazanov, que assistia à
conferência, fazendo parte da delegação dos sindicatos, lembrou muito a propósito os
beijos de Lamourette, os beijos do bispo de Lyon: «o beijo que trocaram duas partes da
assembleia legislativa – não os operários e a burguesia, mas duas partes da burguesia, e
vocês sabem que nunca a luta não foi tão ardente e furiosa depois desse beijo.» Com a
franqueza rara, Miliokov também reconheceu que a união, da parte dos industriais não era
sincera, mas praticamente indispensável para a classe que tinha demasiado a perder. É
justamente por esta resignação sobre os cálculos que se tornou famosa o aperto de mão
de Bublikov».
A maioria dos participantes acreditava na força dos apertos de mão e nos abraços
políticos? Essa gente acreditava nela própria? Seus sentimentos eram contrários como os
seus planos. Na verdade, em certos discursos, sobretudo vindos da periferia, viam-se
ainda os primeiros entusiasmos, esperanças, ilusões. Mas numa assembleia onde a
maioria de esquerda foi desiludida e desmoralizada, a direita irritada, os ecos dos dias de
Março tinham o tom da correspondência de namorados lida no momento do divórcio.
Retirando-se para o reino dos fantasmas, os políticos procuravam, por meios
fantasmáticos, salvar um regime espectral. O frio mortal do desespero soprava sobre a
assembleia das «forças vivas», sobre a revista dos condenados.
Pouco antes do fim da conferência produziu-se um incidente que manifesta uma
profunda cisão no próprio grupo considerado como um modelo de unidade e de espírito
estadista: o dos cossacos. Nagaiev, um jovem oficial desse corpo, membro de uma
delegação soviética, declarou que os trabalhadores cossacos não seguiam Kaledine: os
homens da frente não tinham nenhuma confiança no seu comando superior. Era verdade
e o golpe foi desferido onde mais doía. Um relatório da imprensa descreveu logo a mais
tumultuosa de todas as cenas da conferência. A esquerda aplaudiu Nagaiev com
entusiasmo. Ouviram-se gritos: «Glória aos cossacos revolucionários!» Protestos
indignados da direita: «Vocês responderão por isso!» Uma voz do camarote dos oficiais:
«Os marcos alemãs!» Ainda se inevitáveis como último argumento patriótico, essas
palavras produziram o efeito de uma bomba. Foi na sala um vacarme infernal. Os
delegados dos sovietes saltaram dos seus lugares, ameaçando com o punho o camarote
dos oficiais. Gritaram: «Provocadores!»... A campainha presidencial tocou sem parara.
«Dir-se-ia que, pouco falta para começar a zaragata.»
Depois de tudo o que foi dito, Kerensky, no seu discurso de encerramento, deu este
aviso: « Creio que sei... que nós chegámos a nos compreender perfeitamente entre nós,
que chegámos a estimarmos reciprocamente... Nunca a duplicidade do regime de
Fevereiro tinha atingido um grau de falsidade abominável e vão. Não conseguindo
manter-se sobre o mesmo tom, o orador, nos seus últimos periodos, dá bruscamente num
grito de desespero e de ameaça.» Com uma voz descontínua que ia da gritaria histérica
ao sussurro trágico, Kerensky ameaçava – segundo a descrição de Miliokov – um
adversário imaginário, procurando-o insidiosamente no auditório, com um olhar
inflamado...» Na realidade, Miliokov sabia melhor que ninguém que o adversário não era
imaginário. «Hoje, cidadãos da terra russa, não me entregarei mais a devaneios... Que o

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coração petrifica... - exclamava nas suas divagações Kerensky – que secava todas as
flores e devaneios sobre a natureza humana (voz femenina do alto: «Não é preciso!») que
hoje, do alto desta tribuna, que espezinharam. Esmagarei-os em próprio! Não haverá
mais ! (Voz feminina do alto: «Você não pode fazer isso, o seu coração não lhe
permitirá.«) Lançarei longe de mim as chaves de um coração que ama a humanidade,
pensarei somente ao Estado.»
Na sala, as pessoas estavam desconcertadas e, desta vez, os da direita como os da
esquerda. O símbolo social da conferência de Estado acabava-se sobre um intolerável
monólogo de melodrama. A voz feminina que se tinha ouvido na defesa das flores do
coração retiniu como um apelo aos socorro, como um S.O.S. da pacífica, solar, não
sangrenta revolução de Fevereiro. E enfim sobre o teatro da conferência de Estado caiu a
cortina.

454
A conspiração de Kerensky
A conferência de Moscovo tinha agravado a situação do governo, tendo desvendado,
segundo a justa avaliação de Miliokov, que «o país foi dividido em dois campos entre os
quais ele não podia existir nem conciliação, nem acordo de fundo». A conferência
enalteceu o estado de espírito da burguesia e aguçado a sua impaciência. Por um lado,
ela deu um novo impulso ao movimento de massas. A greve moscovita abre um período
de reagrupamento acelerado dos operários e dos soldados para a esquerda. Os
bolcheviques crescem então irresistivelmente. Entre as massas não se mantêm senão os
socialistas-revolucionários de esquerda e, parcialmente, os mencheviques de esquerda. A
organização menchevique de Petrogrado assinala a sua evolução política excluindo
Tseretelli da lista de candidatos à Duma municipal. No 16 de Agosto a conferência dos
socialistas-revolucionários de Petrogrado por vinte e dois votos contra um exigiu a
dissolução da União dos oficiais associados ao Grande Quartel General e exigiu outras
medidas decisivas para prevenir a contra-revolução. No 18 de Agosto, o Soviete de
Petrogrado, apesar das objecções ao seu presidente Tchkheidze, colocou na ordem do
dia a questão da supressão da pena de morte. Antes do voto da resolução, Tseretelli
pediu com um tom provocador: «Se, após a vossa decisão, a pena de morte não é
abolida, então chamai a multidão à rua para exigir a demissão do governo?» - «Sim»,
gritaram-lhe em resposta os bolcheviques, sim, apelaremos à multidão e procuraremos
obter a queda do governo.» «Vocês levantaram bem alto a cabeça», disse Tseretelli. Os
bolcheviques levantavam a cabeça com as massas. Os conciliadores baixam a cabeça
quando a massa a levantava. A reivindicação da abolição da pena de morte é adoptada
quase unanimemente, cerca de novecentos votos contra quatro. Esses quatro: Tseretelli,
Tchkheidze, Dan, Liber! Quatro dias depois, no Congresso de unificação dos
mencheviques e dos grupos vizinhos, onde, sobre as questões essenciais, adaptava-se
as resoluções de Tseretelli contra a oposição de Martov, admitia-se sem discussão a
exigência da abolição imediata da pena de morte: Tseretelli calava-se, não estando mais
em condições de resistir à pressão
Na atmosfera política que se acentuava cada vez mais intervieram os
acontecimentos da frente. No 19 de Agosto, os alemãs romperam a linha das tropas
russas perto de Ikskul e, no dia 21, ocuparam Riga. A realização da profecia de Kornilov
foi, como tinha sido antecipadamente combinado, o sinal da ofensiva política da
burguesia. A imprensa aumentou a sua campanha contra os «operários que não
trabalham» e os «soldados que já não combatem». A revolução era responsabilizada por
tudo: ela tinha entregue Riga, ela dispunha-se a entregar Petrogrado. A campanha contra
o exército, tão enraivecida como seis semanas ou dois meses antes, não tinha desta vez
sombra de justificação. Em Junho, os soldados tinha efectivamente recusado tomar a
ofensiva: eles não queriam atormentar a frente, tirar os alemãs da sua passividade,
recomeçar as batalhas. Mas, sob Riga, a iniciativa da ofensiva pertencia ao inimigo e ao
estado de espírito dos soldados tornava-se diferente. Foram justamente os efectivos do
12º exército, os mais atingidos pela propaganda, que se mostraram os menos
susceptíveis de pânico.

455
Um comandante do exército, o general Parsky, congratulava-se, e não sem razão, de
ver a retirada acontecer «exemplarmente», de uma maneira incomparável às retiradas da
Galícia e da Prússia oriental. O comissário Voitinsky dizia num relatório:
«Nossas tropas, no sector da ruptura da frente, realizam sem réplica e valentemente
as tarefas que lhes incumbiam, mas elas não estão em estado de resistir muito tempo à
pressão do inimigo, e recuam lentamente, passo a passo, sofrendo formidáveis percas.
Considero indispensável notar o grande valor dos caçadores letões cujos sobreviventes,
mesmo se completamente esgotados, voltaram ao combate...»
Mais elevado foi ainda o ton do relatório do presidente do Comité do exército, o
menchevique Kutchine:
«O estado de espírito dos soldados é surpreendente. Após o testemunho dos
membros do comité e dos oficiais, a capacidade de resistência é tal que nunca se tinha
visto igual.»
Outro representante do mesmo exército trazia, alguns dias mais tarde, esse relatório
em sessão do secretariado do comité executivo:
«A retaguarda da frente que se rompera se encontra somente uma brigada de
letões, composta quase exclusivamente de bolcheviques. Tendo recebido ordem de
avançar [a brigada], com as suas bandeiras vermelhas e fanfaras, avançou e se bateu-se
corajosamente.»
Com o mesmo espírito, mesmo se em termos mais reservados, Stankevitch escrevia
mais tarde:
«Mesmo no estado-maior do exército, onde se encontravam personagens que, como
todos sabiam, procuravam a possibilidade de rejeitar a culpa sobre os soldados, só uma
pude ter a comunicação de um só facto concreto, mostrando não executado não somente
uma ordem de combate mas, em geral, qualquer ordem.»
As tripulações da frota no operação de descida em Mondsund, mostraram, como
resultados documentos oficiais, uma firmeza considerável.
Para levantar a moral das tropas, particularmente dos caçadores letões e os
marinheiros do Báltico, não era indiferente longe disso - que se tratasse desta vez
imediatamente da defesa de dois centro da revolução: Riga e Petrogrado. Os
contingentes mais avançados já tinham integrado essa ideia bolchevique que «espetar a
baioneta em terra», não era resolver a questão da guerra; que a luta pela paz é
inseparável da luta pela conquista do poder, isto é de uma nova revolução.
Mesmo se certos comissários, intimidados pela pressão dos generais, exageravam a
resistência do exército, não impedia que os soldados e marinheiros executavam as
ordens e eram mortos. Eles não podiam fazer mais. Mas a defesa, em suma, já não
existiam mais. Mesmo se é inverossímil, o 12º exército foi completamente surpreendido.
Tudo faltava: homens, canhões, munições, máscaras de gaz. O serviço de contacto
revelou-se desastradamente organizado. Os ataques deviam ser diferidos pelo facto que,

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para os fuzis russos, recebiam munições de modelo japonês. Ora, não se tratava de
ocasionalmente de um só sector da frente.
O significado da perta de Riga não era um segredo para o alto comando. Como
explicar portanto a situação excepcionalmente miserável das forças e recursos de defesa
do 12º exército?
«... Os bolcheviques - escreveu Stankevitch - logo começaram a propagar o rumor
que a cidade teria sido entregue aos alemãs à vontade, porque o comando queria
desembaraçar-se desse ninho, desse viveiro do bolchevismo. Esses ruídos só podiam
favorecer a credibilidade no exército onde se sabia que em suma não tinha tido nem
defesa nem resistência.»
«Efectivamente, desde de Dezembro de 1916, os generais Russky e Brussilov
queixaram-se que Riga era a ferida da frente Norte», um «ninho ganho pela propaganda»,
contra a qual só se podia combater por execuções. Abandonar os operários e os soldados
de Riga à severa escola da ocupação militar alemã devia ser o sonho secreto de muitos
generais da frente Norte.
Ninguém pensou, bem entendido, que o generalíssimo tivesse dado a ordem de
entregar Riga. Mas todos os altos comandos tinham lido o discurso de Kornilov e a
entrevista do seu chefe do estado-maior, Lukomsky. Isso era visto como uma ordem. O
general chefe das tropas da frente norte, Klembovsky, pertenceu à clique restricta dos
conspiradores e, em consequência, esperava a rendição de Riga como o sinal dos actos
de salvação. E, nas condições mais normais, os generais russo preferiam abrir os lugares
e bater em retirada. Agora que se tinham libertado antecipadamente das sua
responsabilidades pelo Grande Quartel General, e como o interesse político empurrava-os
para o derrotismo, eles nem tentaram a defesa. Que tal ou tal general tenha acrescentado
à sabotagem passiva da defesa uma actividade nociva, é uma questão acessória,
dificilmente solúvel pela sua própria essência. Seria porém ingénuo admitir que os
generais se abstenham de ajudar o destino em todas as ocasiões onde os seus actos de
traição podiam passar impunemente.
O jornalista americano John Reed, que sabia ver e escutar, e que deixou um livro
imortal de crónicas sobre os dias da revolução de Outubro, declarou sem rodeios que
uma parte considerável das classes dominantes da Rússia preferia a vitória dos alemãs
em vez do triunfo da revolução e não se incomodava em falar abertamente disso.
«No decurso de uma noite que passei em casa de um comerciante de Moscovo -
conta John Reed, entre outros exemplos - pediram durante o chá às onze pessoas
presentes se preferiam Guilherme ou os bolcheviques. Dez votos contra um
pronunciaram-se por Guilherme.» («Dez dias que abalaram o mundo», edição francesa, p.
33)
O mesmo escritor americano entrevistou na frente Norte oficiais «que preferiam
francamente o desastre militar a ter que cooperar com os comités de soldados». (p.33)

457
Como a acusação política formulada pelos bolcheviques, e não por só por eles,
bastou perfeitamente que a rendição de Riga entrou nos planos dos conspiradores e fixou
a sua data no calendário. Isso lia-se claramente entre as linhas do discurso de Kornilov
em Moscovo. Os acontecimentos que seguiram esclareceram completamente esse lado
do assunto. Mas temos também o testemunho directo à qual o autor, pela sua
personalidade, comunica, no presente caso, uma autenticidade irrecusável. Miliokov conta
na sua História:
«Em Moscovo, Kornilov tinha indicado no seu discurso o momento para lá do qual
ele não queria mais adiar as resoluções resolvidas» para salvar o país da perdição e o
exército da derrota».
Esse momento foi a queda de Riga prevista por ele. Esse facto, segundo a sua
opinião, devia provocar uma reacção patriótica... Segundo o que Kornilov me declarou
pessoalmente, na nossa entrevista do 13 de Agosto em Moscovo, ele não queria faltar
esta ocasião, e no momento do conflito aberto com o governo de Kerensky apresentou-se
no seu espírito como completamente determinado incluindo uma data marcada
antecipadamente para o 27 de Agosto.»
Pode alguém exprimir-se mais claramente? Para realizar a sua marcha sobre
Petrogrado, Kornilov necessitava da rendição de Riga alguns dias antes da data prevista.
Reforçar as posições de Riga, tomar medias sérias de defesa, teria sido anular o plano de
outra campanha, infinitamente mais importante para Kornilov. Se Paris vale uma missa, o
poder bem vale Riga.
Durante a semana que se passou entre a rendição de Riga e o levantamento de
Kornilov, o Grande Quartel General tornou-se o reservatório central das calúnias contra o
exército. As informações do estado-maior russo e a imprensa russa encontraram eco
imediatamente na imprensa da Entente. Os jornais patriotas russos, por sua vez,
reproduziram com contentamento as queixas do Times, do Temps ou do Matin, dirigidas
ao exército russo. A frente dos soldados tremeu vexada, de indignação e de cólera. Os
comissários e os comités, quase todos os conciliadores e patriotas, sentiram-se atingidos
em cheio. De todos os lados protestaram. Entre as mais impressionantes foi a carta do
comité executivo da frente da Roménia, da região militar de Odessa e da frota do mar
Negro, grupo designado pela abreviação som o nome de Romtcherod, que exigia do
comité executivo centra «que estabelecesse diante de toda a Rússia a dignidade e a
bravura sem exemplo dos soldados da frente romana: que se parasse na imprensa a
campanha contra os soldados que caiam diariamente aos milhares, em combates
encarniçados, defendendo a Rússia revolucionária...». Sob a influência dos protestos
vindos de baixo, as cúpulas conciliadoras saíram da passividade. «Parecia que não houve
lama que os jornais burgueses não lançassem sobre o exército revolucionário ...»
escreviam as Izvestia sobre os seus aliados no bloco. Mas nada se agitava. Apertar o
cerco ao exército era uma parte indispensável da conspiração no centro da qual se
colocava o Grande Quartel General.
Imediatamente após o abandono de Riga, Kornilov deu por telegrama a ordem de
fuzilar no caminho para o exemplo vários soldados, sob o olhar dos outros. O comissário

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Voitinsky e o general Parsky responderam que na opinião deles tais medidas não eram
justificadas de modo algum pela conduta dos soldados. Kornilov, fora de si, declarou,
numa reunião dos representantes dos comités que se encontrava no Grande Quartel
General, que ele levaria a julgamento Voitinsky e Parsky por terem produzido relatórios
inexactos sobre a situação no exército, isto é, como explica Stankevitch, por «não terem
culpado os soldados». Para completar esse quadro, é preciso acrescentar que, no mesmo
dia, Kornilov ordenou aos estados-maiores do exército de comunicar as listas de oficiais
bolcheviques ao comité central da União dos oficiais, a saber à organização contra-
revolucionária à cabeça da qual se encontrava o cadete Novosiltsev e que era a mais
importante alavanca da conspiração. Tal era o generalíssimo, o «primeiro soldado da
revolução!»
Decidindo levantar uma parte do véu, as Izvestia escreviam:
«Uma misteriosa clique, extraordinariamente próxima das altas esferas do comando,
realiza uma obra monstruosa de provocação...»
Só o nome de «misteriosa clique», ouvia-se Kornilov e o seu estado-maior. As
fulgurações da guerra civil iminente esclareciam não somente hoje, mas o ontem. Para a
sua própria defesa, os conciliadores começaram a denunciar o comportamento suspeito
do comandante durante a ofensiva de Junho. Na imprensa penetravam informações de
detalhe cada vez mais numerosas sobre as divisões e os regimentos caluniados
perfidamente pelos estados-maiores.
«A Rússia tem o direito de exigir - escreviam as Izvestia - que lhe revelem toda a
verdade sobre a nossa retirada de Julho.»
Essas linhas eram avidamente lidas pelos soldados, marinheiros e os operários,
particularmente os que, pretendidos culpados da catástrofe na frente, continuavam a
encher as prisões. Dois dias mais tarde, as Izvestia se viram obrigada a declarar, já mais
abertamente, que
«o Grande Quartel Genera, pelos seus comunicados, jogava uma parte determinada
contra o governo provisório e a democracia revolucionária».
O governo considerava-se assim como a vítima inocente dos planos do Grande
Quartel General. Mas, poder-se-ia pensar, o governo tinha todas as possibilidades de
meter os generais no seu lugar. Se não o fez, foi porque ele não o quis.
Nos protestos mencionados acima contra as perseguições que atingiam de forma
cobarde os soldados, o «Romtcherod» indicava com particular indignação que «as
informações do estado-maior..., sublinhando a nobre conduta do corpo de oficiais, parecia
diminuir conscientemente a dedicação dos soldaos à causa da revolução». O protesto do
«Romtcherod» apareceu na imprensa no dia 22 de Agosto, e, no dia seguinte, foi
publicado uma ordem de Kerensky, consagrada à gloria do corpo de oficiais que «desde
dos primeiros dias da revolução teve que sofrer a diminuição dos seus direitos», e o
ultraje não merecido da parte da massa dos soldados» que dissimulava a traição sob
palavras de ordem ideológicas.»

459
Enquanto que os mais próximos ajudantes, Stankevitch, Voitinsky e outros,
protestavam contra a campanha de difamação em relação aos soldados, Kerensky
juntava-se e exibia-se nesta campanha, coronando-a pela sua ordem provocadora de
ministro da Guerra e de chefe do governo. Logo, Kerensky reconheceu que, desde do fim
de Julho, possuía «informações precisas» sobre a conspiração de oficiais agrupados ao
torno fo Grande Quartel General. «O comité principal da União dos oficiais - segundo
Kerensky - destacava-se no seio dos conspiradores activos; os seus próprios membros
eram os agentes da conspiração nas localidades; eram eles igualmente que davam aos
manifestações legais da União o tom que era preciso. «Isto é absolutamente justo.
Convém somente acrescentar que «o tom que era preciso» era o da calúnia em relação
ao exército, aos comités e à revolução, o mesmo tom que penetrado da ordem de
Kerensky do 23 de Agosto.
Como explicar este enigma? Que Kerensky não tenha desenvolvido uma política
reflectida e consequente, é absolutamente indiscutível. Mas foi preciso que fosse demente
para que, conhecendo a conspiração dos oficiais, ele ia expor a cabeça debaixo do sabre
dos conspiradores e ajudá-los, ao mesmo tempo a dissimular. A explicação da conduta
tão inconveniente à primeira vista de Kerensky é na realidade muito simples: ele próprio
era nesse momento complice da conspiração contra o regime sem saída da Revolução de
Fevereiro.
Quando chegou o momento das confissões, Kerensky declarou ele próprio que,
círculos de cossacos, do corpo de oficiais e dos meios dos políticos burgueses,
propuseram-lhe mais de uma vez uma ditadura pessoal.«Mas isso caía em cesto roto...»
A posição de Kerensky era de tal que os líderes da contra-revolução tinha a possibilidade,
sem arriscar nada, de trocar pontos de vista sobre um golpe de Estado. «As primeiras
conversações sobre a ditadura, sob forma de uma breve sondagem», começaram,
segundo Denikine, no início de Junho, isto é no momento quando se preparava a ofensiva
da frente. Nessas conversações assistia frequentemente também Kerensky, e nesses
casos, era entendido, antes de mais para o próprio Kerensky, que era precisamente ele
que se colocaria no centro da ditadura. Sokhanov disse muito justamente dele: «Ele era
kornoloviano sob a condição de estar à cabeça do kornolovismo.» Durante os dias do
falhanço da ofensiva, Kerensky tinha prometido a Kornilov e a outros generais muito mais
do que podia dar. «Nesses passeios à frente - conta o general Lukomsky - Kerensky
gabava-se de valentia e, com os seus companheiros de estrada, discutia mais de uma vez
da criação de um poder firme, da formação de um directório ou da transmissão do Poder
a um ditador.» Conforme ao se carácter, Kerensky levava a essas conversações um
elemento informe de negligência e de diletantismo. Os generais, em contrapartida, eram
levados às ideias elaboradas do estado-maior.
A participação não forçada de Kerensky aos encontros de generais legalizava por
assim dizer a ideia de uma ditadura militar à qual, por prudência diante da revolução ainda
não abafada, dava-se na maior parte das vezes o nome de directório. Em que medida
jogavam aqui um papel as reminiscências históricas sobre o governo da França após o
Termidor? É dificil dizer. Mas, independentemente de um disfarce puramente verbal, o
directório apresentava inicialmente a incontestável comodidade de admitir a subordinação

460
conjunta de ambições pessoais. No directório, devia encontrar-se um lugar não somente
para Kerensky e Kornilov, mas também para Savinkov, mesmo para Filonenko: em geral,
para os homens «de vontade de ferro», como exprimiam os próprios candidatos ao
directório. Cada um deles sonhava com a ideia de passar logo de uma ditadura colectiva
a uma ditadura pessoal.
Para tratar como conspirador com o Grande Quartel General, Kerensky não tinham
necessidade, em consequência, em operar qualquer reviravolta brusca: bastava
desenvolver e continuar o que já estava começado. Ele considerava além disso que
poderia dar à conspiração dos generais a orientação conveniente, fazendo-a cair não
somente sobre os bolcheviques, mas, dentro de certos limites, sobre a cabeça dos seus
aliados e tutores fastidiosos do meio dos conciliadores. Kerensky manobrava assim afim,
ao mesmo tempo que evitava denunciar a fundo os conspiradores, de lhes fazer medo e
de os introduzir na sua artimanha. Ele atingia mesmo, nisto, o limite para além da qual o
chefe do governo se transformaria num conspirador ilegal. «Kerensky necessitava de uma
pressão enérgica da direita sobre ele, das cliques capitalistas, das embaixadas aliadas e,
particularmente, do Grande Quartel General - escrevia Trotsky no princípio de Setembro -
para ajudá-lo a tomar definitivamente a iniciativa. Kerensky queria utilizar a revolta dos
generais para consolidar a sua dictadura.» O momento da reviravolta foi o da conferência
de Estado. Trazendo de Moscovo, com a ilusão de possibilidades ilimitadas, o sentimento
humilhante de uma derrota pessoal, Kerensky resolveu enfim rejeitar as dúvidas e
mostrar-lhes todo o seu esplendor. A eles? Então a quem? A todos. Antes de tudo aos
bolcheviques que, sob a pomposa encenação nacional, tinha colocado o aspecto de uma
greve geral. Por aí mesmo, meter no seu lugar, uma vez por todas, as direitas, todos os
Gotchkov e Miliokov, que não o levam a sério, queixam-se dos seus gestos, consideram o
seu poder como a sombra do poder. Enfim dar uma grande lição a «esses» preceptores
da conciliação, do genero do detestado Tseretelli, que tinha ousado corrigi-lo e admoestá-
lo, ele, eleito da nação, mesmo na Conferência de Estado. Kerensky resolveu firmemente
e definitivamente provar ao mundo inteiro que ele não era de forma alguma o «histérico»
o «fingido», a «bailarina» que designava a sua pessoa, cada vez mais abertamente, os
oficiais da Guarda e os cossacos, mas que era um homem de ferro, tendo fechado o
coração à fechadura e jogado a chave ao mar, apesar das súplicas de uma bela
desconhecida num camarote do teatro.
Stankevitch nota em Kerensky, nesses dias, «um esforço para pronunciar qualquer
palavra nova compatível com a ansiedade e a perturbação do país. Kerensky... decidiu
estabelecer no exército sanções disciplinares. Provavelmente dispunha-se a propor ao
governo outras medidas firmes.» Stankenvitch conhecia somente das intenções do chefe
o que este julgava oportuno dizer-lhe. Na realidade, os desejos de Kerensky iam já nessa
época já muito mais longe. Ele decidiu minar de uma só vez o terreno sob os pés de
Kornilov, realizando o programa deste último e ligar-se assim à burguesia. Gotchkov não
tinha podido desencadear a ofensiva das tropas: ele, Kerensky, poderá. A greve de
Moscovo lembrou, na verdade, que, nesta via, os obstáculos surgirão. Mas os dias de
Julho mostraram que, nesse ponto, pode-se também dar a volta por cima. Só é preciso,
desta vez, levar o trabalho até ao fim, sem se deixar enganar pelos amigos de esquerda.

461
Antes de tudo, é indispensável modificar totalmente a guarnição de Petrogrado:
substituir os regimentos revolucionários por contingentes «saudáveis» que não se
voltariam para os sovietes. Sobre esse aspecto, não a possibilidade de tratar com o
comité executivo, e é aliás inútil: o governo é reconhecido independentemente, e sob este
aspecto, foi coroado em Moscovo. Na verdade, os conciliadores compreendem a
independência como uma formalidade, como um meio de acalmar os liberais. Mas ele,
Kerensky, transformará o formal em realidade: não é em vão que em Moscovo ele
declarou não estar nem com as direitas, nem com as esquerdas, e que aí está a sua
força. Agora, ele vai prová-lo de facto! As linhas de conduta do comité executivo e de
Kerensky, nos dias que se seguiram à conferência, continuaram a divergir: os
conciliadores tinham-se assustado diante das massas possuidoras. As massas populares
exigiam a abolição da pena de morte sobre a frente. Kornilov, os cadetes, as embaixadas
da Entente, reclamavam a instituição desta pena na retaguarda.
No 19 de Agosto Kornilov telegrafava ao ministro-presidente: «Insisto sobre a
necessidade urgente de submeter às minhas ordens a região de Petrogrado.» O Grande
Quartel General prolongava abertamente a mão para a capital. No 24 de Agosto, o comité
executivo resolveu exigir publicamente do governo que metesse fim «aos procedimentos
contra-revolucionários» e empreendesse sem demora e energicamente «a realização de
reformas democráticas. Era uma nova linguagem. Kerensky viu-se forçado a escolher
entre a adaptação à plataforma democrática que, apesar de toda a sua fraqueza, podia
levar à ruptura com os liberais e os generais, e o programa de Kornilov que devia levar
inevitavelmente ao conflito com os soviets. Kerensky decidiu estender a mão a Kornilov,
aos cadetes, à Entente. Ele queria a todo o custo evitar uma luta aberta do lado da direita.
Era verdade que, no 21 de Agosto, foram presos em suas casas os grão-duques
Miguel Alexandrovitch e Paulo Alexandrovitch. Outros personagens foram pela mesma
ocasião presos. Mas tudo isso era demasiado pouco sério e era logo preciso alargar os
prisioneiros: «... acontece - declarou mais tarde Kerensky nos seus testemunhos sobre o
caso Kornilov - que nos tinham levado por maus caminhos.» Seria necessário
acrescentar: com a ajuda do próprio Kerensky. Porque enfim ele era evidente que para os
conspiradores sérios, isto é para toda a metade direita da conferência de Moscovo, não
se tratava de forma nenhuma do restabelecimento da monarquia, mas do estabelecimento
da ditadura da burguesia sobre o povo. Nesse sentido, Kornilov e todos os seus
seguidores rejeitavam não sem rir as incriminações no que diz respeito aos projectos
«contra-revolucionários», isto é monárquicos.
É verdade que nalgum lugar, nas traseiras, murmuravam entre eles antigos
dignitários, ajudantes, damas de companhia, Cem Negros ligados à Corte, bruxos,
monjes, bailarinas. Mas era uma grandeza absolutamente insignificante. A vitória da
burguesia não podia vir senão sob a forma de uma ditadura militar. A questão da
monarquia não poderia colocar-se senão numa das etapas ulteriores, mas, mesmo assim,
sobre a base da contra-revolução rasputina. Para o período considerado, a realidade, era
a luta da burguesia contra o povo, sob a bandeira de Kornilov. Procurando uma aliança
com esse campo, Kerensky estava tanto mais disposto a disfarçar-se diante das

462
esquerdas suspeitas fingindo prender os grão-duques. O mecanismo era tão claro que o
jornal moscovita dos bolcheviques escrevia então:
«Prender um par de bonecos sem cérebro da clique Romanov, e deixar em
liberdade... a clique militar dos comandantes, Kornilov à cabeça, é enganar o povo.»
Assim se tornavam odiosos os bolcheviques, porque eles viam tudo e falavam em
voz alta.
O animador e guia de Kerensky nesses dias críticos, foi Savinkov, aventureiro de
grande envergadura, revolucionário do género desportivo que, da escola do terrorismo
individual, reteve o desprezo da massa; homem dotado e voluntário, o que não o impediu,
aliás, de ser durante vários anos um instrumento entre as mãos do famoso agente
provocador Azef: céptico e cínico, considerando-se e não sem razão, como tendo o direito
de olhar Kerensky de alto a baixo, e, ao mesmo tempo tendo na mão direita na viseira, de
o levar respeitosamente pela ponta do nariz. Savinkov impunha a Kerensky como homem
de acção e Kornilov como autêntico revolucionário cujo nome era histórico.
Miliokov relata uma história curiosa do primeiro encontro do comissário e do general,
segundo o próprio Savinkov: «General - dizia Savinkov - sei que se as circunstâncias se
apresentarem que você tenha que me fuzilar, você fá-lo-á.» Depois, após uma pausa, ele
acrescentou: «Mas se as circunstâncias se apresentarem que eu tenha que o fuzilar, fá-lo-
ei igualmente.» Savinkov era um apaixonado de literatura, conhecia Corneille e Hugo,
inclinava-se pelo grande género. Kornilov dispunha-se a acabar com a revolução sem se
preocupar das formulas pseudo-clássicas e do romantismo. Mas em geral, ele também
não era de forma nenhuma estranho aos encantos de um «potente estilo artístico»: as
palavras do antigo terrorista deviam agradavelmente provocar cócegas o que subsistia de
um fundo heróico no antigo Cem Negro.
Num artigo de jornal escrito muito mais tarde, evidentemente inspirado e talvez
redigido por Savinkov, os seus próprios planos explicavam-se por uma maneira
transparente. «Do seu tempo de comissário - dizia o artigo - Savinkov adquiriu a
convicção que o governo provisório não estaria em condições de tirar o país da sua
condição difícil. Aqui deviam agir outras forças. Todavia, todo o trabalho nesse sentido
não podia efectuar-se senão sob o signo do governo provisório, em particular de
Kerensky. Era uma ditadura revolucionária realizada por uma mão de ferro. Esta mão,
Savinkov via ..., a do general Kornilov.» Kerensky como camuflagem «revolucionária»,
Kornilov como mão de ferro.
Sobre o papel do terceiro, o artigo era silencioso. Mas sem dúvida que Savinkov
procurava reconciliar o general chefe e o primeiro-ministro, não sem a intenção de os
eliminar todos os dois. Durante um certo tempo, esta segunda intenção tornou-se de tal
forma clara que Kerensky, sob os protestos de Kornilov, mesmo na véspera da
conferência de Estado, forçou Savinkov a demitir-se. Todavia, como tudo o que se passou
geralmente neste campo, a demissão não tinha carácter definitivo. «No 17 de Agosto,
verificou-se - declarou Filonenko - que Savinkov e eu conservávamos os nossos lugares e
que o ministro-presidente aceitaria em princípio o programa desenvolvido pelo relatório

463
apresentado pelo general Kornilov, Savinkov e eu próprio.» Savinkov, a quem Kerensky,
no 17 de Agosto, tinha «ordenado a preparação de um projecto de lei sobre as medidas a
tomar na retaguarda», criou com esse fim uma comissão sob a presidência do general
Apochkine. Deveras assustado por Savinkov, Kerensky, porém, acabou por resolver
utilizar para o seu grande plano, não somente lhe conservou o ministério da Guerra, mas
deu-lhe, além disso, o da Marinha. Isso significava, segundo Miliokov, que para o governo
«era tempo de agir, mesmo correndo o risco de fazer os bolcheviques descer à rua.»
Savinkov, nesta circunstâncias, «dizia abertamente que com dois regimentos seria fácil
esmagar a rebelião dos bolcheviques e dissolver suas organizações.»
Kerensky tal como Savinkov compreendia perfeitamente, sobretudo após a
conferência de Moscovo, que o programa de Kornilov não seria, em qualquer caso, aceite
pelos sovietes conciliadores. O Soviete de Petrogrado que, na véspera ainda, exigiu a
abolição da pena de morte na frente, ergueu-se mais com duas vezes mais de energia,
amanhã, contra o estabelecimento da pena de morte na retaguarda! O perigo era, por
consequência, que o movimento contra o golpe de Estado mediado por Kerensky teria à
cabeça não os bolcheviques, mas os sovietes. Portanto não se podia parar diante disso:
porque enfim tratava-se da salvação do país! «No 22 de Agosto - escreve Kerensky -
Savinkov foi ao Grande Quartel General, entre outras coisas (!) para exigir, mandatado
por mim, do general Kornilov que ele colocasse à disposição do governo um corpo de
cavalaria.» O próprio Savinkov definia da maneira seguinte esta missão como se fosse
obrigado de justificar diante da opinião pública: «Solicitar ao general Kornilov um corpo de
cavalaria para a verdadeira realização do estado de sítio em Petrogrado e para a
protecção do governo provisório contra todos os atentados, particularmente (!) contra os
dos bolcheviques, de quem o ataque... segundo os dados da contra-espionagem no
estrangeiro, se preparava de novo em ligação com uma incursão alemã e um
levantamento em Finlândia...» Os dados fantasistas da contra-espionagem deviam
simplesmente dissimular o facto que o próprio governo, segundo os termos de Miliokov,
assumia «o risco de chamar os bolchevique para a rua», isto é estava pronto a provocar
um levantamento. E como a promulgação dos decretos sobre a ditadura militar estava
marcada para os últimos dias de Agosto, foi por volta dos mesmos prazos que Savinkov
fixou o motim esperado.
No 25 de Agosto foi proibido, sem qualquer motivo aparente, o órgão dos
bolcheviques, Proletarii (O Proletário). Publicado para substituir o Rabotchii (O Operário)
escrevia que o seu predecessor «tinha sido proibido no dia seguinte no dia onde, por
ocasião da ruptura da frente de Riga, tinha chamado os operários e os soldados a
aguentar, a acalmarem-se. Qual é a mão que se preocupa assim de impedir os operários
de saber que o partido os previne contra a provocação?» Esta questão visava em cheio o
peito. A sorte da imprensa bolchevique encontrava-se nas mãos de Savinkov. A proibição
do jornal oferecia duas vantagens: ela irritava as massas e impedia o partido de as
proteger contra uma provocação que vinha, desta vez, directamente, da cúpula do
governo. Segundo os processos verbais do Grande Quartel General, talvez ligeiramente
estilizados, mas, no conjunto, correspondendo perfeitamente ao carácter da situação e
dos personagens em cena, Savinkov declarou a Kornilov: «Dar-se-á satisfação às suas

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exigências, Lavr Gueorguievitch, daqui a alguns dias. Mas, nesse caso, o governo teme
que em Petrogrado não resulte daí sérias complicações... A publicação das vossas
exigências... levará os bolcheviques a agirem... Ignora-se como se comportarão os
sovietes em relação à nova lei. Estes últimos podem igualmente oporem-se ao governo...
É por isso que vos peço que dêem ordens para que o terceiro corpo de cavalaria seja, lá
para o fim de Agosto, estacionado sob Petrogrado e colocado à disposição do governo
provisório. No caso que, com os bolcheviques, os membros dos soviete também se
intrometam, seremos obrigados a agir contra eles.» O emissário de Kerensky acrescentou
que as medidas deviam ser as mais resolutas e mais impiedosas - ao que Kerensky
respondeu que «não incluía outras medidas». Mais tarde, quando teve que se justificar,
Savinkov acrescentou: «Se, no momento da insurreição dos bolcheviques, os sovietes
tinham sido bolcheviques...» Mas isso era uma astúcia grosseira: os decretos anunciando
o golpe de Estado de Kerensky deviam seguir em três ou quatro dias. Tratava-se, em
consequência, não dos sovietes do futuro, mas dos que existiam no fim de Agosto.
Para prevenir os mal-entendidos e evitar de provocar a acção dos bolcheviques
«antes do tempo», entenderam-se sobre o dispositivo seguinte: previamente concentrar
em Petrogrado um corpo de cavalaria, a seguir declarar a cidade em estado de sítio e,
somente depois, promulgar as novas leis que deviam provocar o levantamento dos
bolcheviques. No processo verbal do Grande Quartel General esse plano está escrito
preto no branco: «Afim que o governo provisório saiba exactamente quando será
necessário promulgar a nova lei, é preciso que o general Kornilov lhe telegrafe, Savinkov,
a data precisa onde o corpo de cavalaria se aproximará de Petrogrado. «Os generais
conspiradores tinham compreendido, segundo os termos de Stankevitch», que Savinkov
tinha vindo com um mandato de Kerensky nitidamente formulado? O próprio Kerensky
escreveu: «No 25 de Agosto, Savinkov voltou do Grande Quartel General e relatou-me
que as tropas serão colocadas à disposição do governo provisório, conforme à
convenção.» É fixado para o 26 de Agosto a adopção pelo governo do projecto de lei
sobre as medidas para a retaguarda que devia tornar-se o prologo dos actos decisivos do
corpo de cavalaria. Tudo está pronto. Basta apoiar no botão.
Os acontecimentos, os documentos, os testemunhos dos participantes, enfim as
confissões do próprio Kerensky, demonstram claramente que o ministro presidente, sem
que uma parte do seu próprio governo soubesse, nas costas dos sovietes que lhe tinham
passado o poder, escondendo-se do partido ao qual ele se dizia aderente, meteu-se de
acordo com a hierarquia militar para modificar radicalmente o regime do Estado com a
ajuda da força armada. Na linguagem da legislação criminal, esta maneira de agir tem um
nome consagrado, pelo menos para o caso onde a empresa não conduza à vitória. A
contradição entre o carácter «democrático» da política de Kerensky e o plano de salvação
do país pelo sabre não pode parecer insolúvel senão de um ponto de vista superficial. Na
realidade, o plano de uma acção da cavalaria deriva inteiramente da política conciliadora.
Ao descobrir esta causalidade, pode-se, em boa medida, fazer abstracção não somente
da personalidade de Kerensky, mas também das particularidades do meio nacional: trata-
se da lógica objectiva do movimento conciliador nas condições da revolução.

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Friedrich Ebert, mandatário do povo na Alemanha, conciliador e democrata, não
somente agia sob a direcção dos generais do Hohenzollen, nas costas do seu próprio
partido, mas encontrou-se, logo no inicio de Dezembro de 1918, cúmplice directo de uma
conspiração militar tendo por objectivo a prisão do órgão supremo dos conselhos e a
proclamação do próprio Ebert presidente da República. Não foi por acaso que Kerensky
apresentou mais tarde Ebert como o ideal de homem de Estado.
Quando as intenções, as de Kerensky, as de Savinkov, as de Kornilov, se
desvaneceram, Kerensky, que tinha a tarefa difícil de apagar os traços, certificou o
seguinte: «Após a conferência de Moscovo, tornou-se claro para mim que a próxima
tentativa de golpe de Estado viria da direita, e não da esquerda.» É incontestável que
Kerensky tinha medo do Grande Quartel General, Kerensky julgava necessário lutar, não
por intermediário de um corpo de cavalaria, mas aplicando pelo seu próprio lado o
programa de Kornilov. O equívoco cúmplice do primeiro ministro não realizou
simplesmente uma missão pela qual bastava um telegrama codificado do palácio de
Inverno a Mohilev - não, ele apresentava-se para reconciliar Kornilov com Kerensky, isto é
acertar seus planos e, por aí, assegurar ao golpe de Estado, na medida do possível, um
curso legal. Kerensky parecia dizer, por intermédio de Savinkov: «Ajam, mas nos limites
dos meus desejos. Vocês evitarão assim o risco e obterão quase tudo que desejam.»
Savinkov dava pela sua parte esta indicação: «Não ultrapassem prematuramente os
limites dos planos de Kerensky.» Tal era o equação original com três desconhecidas. É
somente sob essa relação que o apelo de Kerensky pedindo ao Grande Quartel General,
por intermediário de Savinkov, um corpo de cavalaria, é incompreensível. Os
conspiradores foram solicitados por um cúmplice altamente colocado, que se mantinha na
sua própria legalidade e esforçava-se por se sujeitar à própria conspiração.
Entre as ordens dadas a Savinkov, só uma parecia ser uma medida eficazmente
dirigida contra a conspiração de direita: ela dizia respeito ao comité principal dos oficiais
cuja supressão era exigida pela conferência peterburguesa do partido de Kerensky. Mas a
própria formula da comissão é notável: «na medida do possível, liquidar a União dos
oficiais». É ainda mais notável que Savinkov, longe de encontrar esta possibilidade, nem
a procurava. A questão foi simplesmente enterrada, como inoportuna. À própria comissão
nem foi dada uma justificação diante das esquerdas: as palavras «na medida do possível»
significavam que a execução não era exigida. Para sublinhar mais cruamente o carácter
decorativo da comissão, ela estava estava citada logo na primeira linha.
Tentando atenuar de qualquer modo o sentido esmagador do facto que, esperando
um golpe de direita, ele tinha desembaraçado a capital dos regimentos revolucionários e
tinha ao mesmo tempo dirigido a Kornilov para obter tropas «seguras», Kerensky alegou
mais tarde as três condições sacramentais postas por ele para chamar um corpo de
cavalaria. Foi assim que, consentindo em submeter a Kornilov a região militar de
Petrogrado, Kerensky colocava esta condição que se destacaria da região da capital e
dos arrabaldes, para que o governo não se encontrasse completamente nas mãos do
Grande Quarte General, porque, como se exprimia Kerensky no seu meio, «aí, seremos
comidos». Esta condição prova que, sonhando subornar os generais ao seu próprio

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desejo, Kerensky não tinha à sua disposição nada senão a impotentes manhas. Que
Kerensky não tivesse querido se deixar devorar, podemos acreditá-lo sem provas.
As duas outras condições estavam ao mesmo nível: Kornilov não devia incluir no
corpo expedicionário a divisão dita «selvagem», composta de montanheses do Cáucaso,
nem colocar o general Krymov à cabeça do corpo. Do ponto de vista da protecção dos
interesses da democracia, equivalia engolir o camelo e passar pela rede dos mosquitos.
Mas, em contrapartida, do ponto de vista do disfarce do golpe dado à revolução, as
condições de Kerensky tinham um sentido incomparavelmente mais profundo. Dirigir
contra os operários de Petrogrado os montanheses caucasianos que não falavam russo
teria sido demasiado imprudente: o próprio czar nem ousou fazê-lo! O incómodo da
nomeação do general Krymov, sobre o qual o comité executivo possuía informações
suficientemente precisas, era motivada por Savinkov alegando ao Grande Quartel
General os interesses da causa comum: «Seria aborrecido, dizia, - no caso de um
levantamento de Petrogrado, que esse movimento fosse esmagado justamente pelo
general Krymov. A opinião pública associava o seu nome talvez às inspirações às quais
não se guia ...» Enfim, o facto que o chefe do governo chame um destacamento de tropas
na capital, toma a dianteira com uma estranha oração: não enviar a divisão «selvagem» e
não designar Krymov, denuncia claramente que Kerensky possa ter conhecido
previamente não somente o esquema geral da conspiração, mas também a composição
projectada da expedição punitiva e as candidaturas dos principais executantes.
De qualquer forma, porém, dessas circunstâncias secundárias, é evidente que o
corpo de cavalaria de Kornilov não podia de forma nenhuma ser utilizado para a defesa
da «democracia». Em contrapartida, Kerensky não podia duvidar que, de todas as partes
do exército, esse corpo seria o instrumento mais seguro contra a revolução. Na verdade,
teria sido mais vantajoso ter em Petrogrado um destacamento mais dedicado
pessoalmente a Kerensky treinado acima das esquerdas e direitas. Todavia, como
mostrarão os acontecimentos ulteriores, esses tropas não existiam na realidade. Para
combater a revolução não havia ninguém a não ser os partidários de Kornilov: foi a eles
que Kerensky recorreu. As medidas militares completaram somente a política. O curso
geral do governo provisório, durante pouco mais ou menos uma quinzena, separando a
conferência de Moscovo do levantamento de Kornilov, seria em suma suficiente para ele
próprio provar que Kerensky se dispunha não a lutar contra as direitas, mas em fazer uma
frente única com elas contra o povo. Negligenciando os protestos do comité executivo em
relação à sua política contra-revolucionária, o governo iniciou, no 26 de Agosto, uma
acção ousada a favor dos proprietários de terras ao decidir de improvisto o aumento a
dobrar dos preços do pão. O carácter odioso desta medida, tomada aliás sobre as
exigências abertas de Rodzianko, provocava conscientemente as massas esfomeadas.
Kerensky tentava evidentemente comprar o flanco extremo direito da conferência de
Moscovo por uma grande desconto .«Sou vosso!» dizia à União dos oficiais, na sua
ordem lisonjeira assinada no próprio dia onde Savinkov ia iniciar conversações no Grande
Quartel General. «Sou vosso!» apressava-se a gritar Kerensky aos proprietários nobres
na véspera das represálias de uma cavalaria sobre tudo o que restava da Revolução de
Fevereiro.

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As deposições de Kerensky diante da comissão de inquérito nomeada por ele
próprio foram indignas. Comparecendo como testemunha, o chefe do governo sentia-se
em suma o principal acusado e, além disso, apanhado em flagrante delito. Experientes
funcionários, que compreendiam perfeitamente o mecanismo dos acontecimentos,
fingiram acreditar seriamente nas explicações do chefe do governo. Mas os outros
mortais, incluindo os membros do partido de Kerensky, questionavam-se com franca
estupefacção como o mesmo corpo podia ser útil à realização do golpe de Estado e à sua
repressão. Havia demasiada inadvertência, do lado de um «socialista-revolucionário», em
introduzir na capital uma tropa destinada a estrangular. Na verdade que os Troianos
tinham outrora introduzido nas paredes da sua própria cidade um destacamento inimigo;
mas eles não sabiam, pelo menos, o que continha a carcaça do cavalo de madeira. E,
ainda, um historiador da antiguidade contesta a versão do poeta; segundo Pausanias, não
se poderia acreditar em Homero se considerasse que os troianos eram «uns imbecis,
privados de uma sombra de razão». Que diria o antigo dos testemunhos de Kerensky?

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O Levantamento de Kornilov
Desde do principio do mês de Agosto, Kornilov ordenou transferir a divisão
«selvagem» e o terceiro corpo de cavalaria da frente Sudoeste para raio compreendido no
triângulo ferroviário: Nevel-Novosokoloniki-Velikie Loki apresentando uma base cómoda
para a marcha sobre Petrogrado, sob a justificação de uma reserva para a defesa de
Riga. Então, o generalíssimo decidiu que uma divisão de cossacos seria concentrada num
raio compreendido entre Vyborg e Bieloostrov: no ponto exacto sobre a cabeça da capital
- a distância de Bieloostrov à Petrogrado, é só de trinta quilómetros! - dando a aparência
de uma reserva para eventuais operações em Finlândia. Assim, mesmo antes da
conferência de Moscovo, tinha sido posto em movimento para atingir de uma só vez
Petrogrado as quatro divisões de cavalaria consideradas como as mais utilizadas contra
os bolcheviques. No que diz respeito à divisão caucasiana, falava-se, nos meios de
Kornilov, muito simplesmente: «Os montanheses, pouco lhes importa quem massacram.»
O plano estratégico era simples. Três divisões vindas do sul deviam ser transportadas
pelo caminho de ferro até Tsarkoie-Selo, Gatchina e Krasnoie-Selo, donde, «logo
informadas das desordens iniciadas em Petrogrado e sem tardar na manhã do 1 de
Setembro», elas avançariam em ordem de batalha para a ocupação da parte sul da
capital, sobre a margem esquerda do Neva. A divisão estacionada em Finlândia devia, ao
mesmo tempo, ocupar a parte norte de Petrogrado.
Por intermédio da União dos oficiais, Kornilov entrou em ligação com as sociedades
patrióticas da capital que dispunham, segundo os seus próprios termos, de dois mil
homens perfeitamente armados; mas tendo necessidade de oficiais experimentados para
a instrução, Kornilov prometeu fornecer chefes recrutados na frente sobre o pretexto de
gozar feriados. Para controlar o estado de espírito dos operários e dos soldados de
Petrogrado e a actividade dos revolucionários, um serviço de contra-espionagem foi
instituído, à cabeça do qual foi colocado o coronel de divisão «selvagem» Heimann. O
assunto tinha sido tratado no quadro dos regulamentos militares, a conspiração dispunha
do aparelho do Grande Quartel General.
A conferência de Moscovo só tinha fortalecido Kornilov nos seus planos. Na verdade,
Miliokov, segundo sua própria narrativa, recomendava adiá-lo, porque Kerensky, dizia,
gozava ainda de popularidade na província. Mas um conselho desse género não tinha
influência sobre um general exaltado; tratava-se afinal, não de Kerensky, mas dos
Sovietes; além disso, Miliokov não era um homem de acção: um civil, e mais, um
professor. Os banqueiros, os industriais, os generais cossacos tinham pressa, os
metropolitas benziam. O oficial de ordenança Zavoiko oferecia-se como garantia do
sucesso. De todas as partes chegavam telegramas de felicitações.
A diplomacia aliada participava activamente na mobilização das forças contra-
revolucionárias. Sir George Buchanan tinha entre as mãos muitos dos fios da
conspiração. Os adidos militares dos Aliados perto do Grande Quartel General davam a
sua bênção. «Em particular – testemunha Denikine – o representante da Grande-
Bretanha fazia-o em termos muito sensíveis.» Por detrás das embaixadas mantinham-se

469
seus governos. Por um telegrama do 23 de Agosto, o comissário do governo provisório no
estrangeiro, Svatikov, comunicava de Paris que no decurso de adeus, o ministro dos
Assuntos estrangeiros Ribot «interessava-se com extrema curiosidade em saber qual era
no círculo de Kerensky o homem firme e enérgico, e o presidente Poincaré colocava
muitas questões sobre... Kornilov». Tudo isso era conhecido do Grande Quartel General:
Kornilov não via qualquer motivo de adiar e esperar. Lá para o 20, duas divisões de
cavalaria avançadas em direcção de Petrogrado. O dia da queda de Riga, foram
convocados ao Grande Quartel General quatro oficiais de cada regimento, no total quatro
mil graduados, para «o estudo dos morteiros ingleses». Foi explicado logo aos oficiais
mais seguros que se tratava de esmagar para sempre «o Petrogrado bolchevique». No
mesmo dia, o Grande Quartel General ordenou remeter de urgência às divisões de
cavalaria várias caixas de granadas: esses projecteis eram o que havia de melhor para os
combates de rua. «Foi acordado – escreveu o chefe do estado-maior Lokomsky – que
tudo devia estar pronto para o dia 26 de Agosto.»
Logo que as tropas de Kornilov se aproximaram de Petrogrado, a organização
interior «deve agir na capital, ocupar o Instituto Smolny e esforçar-se por prender os
líderes bolcheviques». É verdade que esses líderes não se mostravam no Instituto
Smolny senão durante as sessões; em contrapartida, aí tinham lugar em permanência o
Comité executivo que fornecia ministros e continuava a considerar Kerensky como vice-
presidente. Mas, num grande caso, não havia possibilidade, nem necessidade de salvar
as nuanças. Kornilov, de qualquer modo, não se ocupava disso. «É tempo – dizia ele a
Lokomsky, de enforcar os agentes e espiões da Alemanha, Lenine em primeiro, e de
expulsar os Soviete dos deputados operários e soldados, mas de expulsar de tal modo
que ele não possa mais se reunir em parte alguma.»
Kornilov tinha decidido firmemente confiar a direcção da operação a Krymov, que,
nesses meios, gozava da reputação de um general ousado e resoluto. «Krymov estava
então contente, jovial, escreveu sobre ele Denikine – e tinha fé no futuro.» No Grande
Quartel General tinham fé em Krymov. «Estou convencido – escrevia dele Kornilov – que
ele não hesitará, em caso de necessidade, em enforcar todos os membros do Soviete dos
deputados operários e soldados.» Essa escolha de um general «alegre, jovial», era uma
das mais conseguidas.
No decurso desses trabalhos que distraem um pouco a frente alemã, Savinkov
chegou ao Grande Quartel General para precisar o velho acordo acrescentando
rectificações de importância secundária. Para bater no inimigo comum, Savinkov lembrou
mesmo a data que Kornilov tinha escolhido já há muito tempo para agir contra Kerensky:
passados seis meses depois da Revolução. Mesmo se o plano do golpe de Estado foi
dividido em duas correntes, as partes, uma e outra, tentavam operar sobre os elementos
comuns do plano: Kornilov por uma camuflagem, Kerensky para manter as suas próprias
ilusões. A proposição de Savinkov convinha melhor ao Grande Quartel General: o próprio
governo estendia o pescoço, Savinkov preparava-se a apertar o nó. Os generais do
Grande Quartel General esfregavam as mãos. «Está a picar!» diziam eles como
pescadores felizes.

470
Kornilov aceitou de boa vontade as concessões tanto mais que não lhe custavam
nada. Que importância tem em subtrair a guarnição de Petrogrado às ordens do Grande
Quartel General quando as tropas de Kornilov entram na capital? Tendo aceite as duas
outras condições, Kornilov violou-as imediatamente: a divisão «selvagem» foi designada
como vanguarda e Krymov foi colocado à cabeça de toda a operação. Kornilov nem
julgava necessário salvar as aparências.
Os bolcheviques discutiam abertamente as condições essenciais da sua táctica: um
partido de massas não saberia agir de outra forma. O governo e o Grande Quartel
General não podiam ignorar que os bolcheviques se opunham aos manifestantes, longe
de os provocar. Mas, tal como o desejo é às vezes o pai do pensamento, a necessidade
política torna-se também a mãe dos prognósticos. Todas as classes dirigentes falavam da
insurreição iminente porque elas tinham necessidade disso a qualquer preço. Tanto a
davam para breve, como atrasada de alguns dias a data da insurreição.
No ministério da Guerra, em casa de Savinkov – comunicava a imprensa –
considerava-se a próxima manifestação «muito a sério». A Rietch declarou que a iniciativa
do movimento foi tomada pela fracção bolchevique do Soviete de Petrogrado. Como
político, Miliokov esteve de tal modo comprometido na questão do levantamento
imaginário dos bolcheviques que julgou ser seu dever manter esta versão como
historiador. «Nos documentos da contra-espionagem publicados mais tarde – escreveu –
é precisamente nesse momento que se revela novas atribuições de dinheiro alemão para
as «empresas de Trotsky». Com a contra-espionagem russa, o douto historiador esquece
que Trotsky, que o estado-maior russo, designava pelo seu nome para comodidade dos
patriotas russos, «precisamente nesse momento» - do 23 de Julho ao 4 de Setembro se
encontrava preso. Se o eixo da terra é uma linha imaginária, isso não impede, como se
sabe, a terra de girar. É igualmente assim que o plano kornoloviano da operação rodava à
volta de um movimento imaginário dos bolcheviques, tomados como eixo. Isso podia
perfeitamente bastar para o período preparatório. Mas, para concluir, era preciso mesmo
assim qualquer coisa de mais palpável.
Um dos dirigentes da conspiração militar, o oficial Winberg, em notas interessantes
que revelam o que se passa nos bastidores, confirma completamente as indicações dos
bolcheviques sobre o trabalho realizado pela provocação militar. Miliokov viu-se forçado,
sob a pressão dos factos e de documentos, em reconhecer que «as suspeitas dos meio
de extrema-esquerda eram justas». Mas isso não ajudava muito: os bolcheviques, como
se queixa o mesmo historiador, decidiram em «não deixar andar», as massas não
decidiam caminhar sem os bolcheviques. Todavia, teve-se conta também, no plano, deste
obstáculo que foi, para dizer assim, paralizado antecipadamente. O «Centro republicano»,
como se chamava o órgão dirigente dos conspiradores em Petrogrado, decidiu muito
simplesmente de se substituir aos bolcheviques: o esquema do levantamento
revolucionário foi confiado ao coronel dos cossacos Dotov. Em Janeiro de 1918, como os
seus amigos políticos lhe pediam «o que tinha que se passar, no 28 de Agosto 1917»,
respondeu literalmente isto: «Entre o 28 e o 2 de Setembro, sob a aparência de
bolchevique, era eu que devia agir.» Tudo tinha sido previsto. Não era em vão que o plano
tinha sido elaborado pelos oficiais do estado-maior general.

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Kerensky, por sua vez, quando Savinkov voltou de Mohilev, tinha tendência a pensar
que os mal-entendidos eram eliminados e que o Grande Quartel General tinha totalmente
entrado no seu plano. « Houve momentos – escreveu Stankevitch – onde todas as
personagens não somente acreditaram agir numa só direcção, mas imaginaram
igualmente o método de acção.» Esses felizes momentos não duraram muito tempo. Ao
assunto misturou-se o acaso que, como todos os acasos históricos, abriu o válvula da
necessidade. Kerensky recebeu a visita de Lvov, outubrista, membro do primeiro governo
provisório, o mesmo que, como alto procurador do muito santo sínodo, tinha relatado que
nesse lugar tinham lugar «idiotas e malandros». A sorte de Lvov era revelar que, sob a
aparência de um plano único, havia dois planos onde um era dirigido contra o outro.
Como político desempregado mas falador, Lvov tomava parte nas intermináveis
conversações sobre a transformação do poder e na salvação do país, tanto no Grande
Quartel General, tanto no palácio de Inverno. Desta vez ele veio oferecer a sua
colaboração para uma remodelação do governo sobre bases nacionais, intimidando com
condescendência Kerensky ameaçando-o das iras do Grande Quartel General
descontente. Inquieto, o ministro presidente decidiu utilizar Lvov para controlar o Grande
Quartel General e, ao mesmo momento, aparentemente, o seu cúmplice Savinkov.
Kerensky declarou-se favorável a uma ditadura, o que não era hipócrita, e encorajava
Lvov a continuar os seus esforços, mas isso era uma astúcia de guerra.
Quando Lvov voltou ao Grande Quartel General, já investido dos plenos poderes de
Kerensky, os generais consideraram a missão como uma prova que o governo estava
maduro para a capitulação. Ainda na véspera, Kerensky, por intermediário de Savinkov,
viu-se obrigado a aplicar o programa de Kornilov sob a protecção de um corpo de
cossacos; hoje, Kerensky propunha já ao Grande Quartel General reconstituir
conjuntamente o poder. É preciso empurrar a carroça – decidiram justamente os generais.
Kornilov explicou a Lvov que o levantamento previsto dos bolcheviques tendo por
objectivo «derrubar a autoridade do governo provisório e a conclusão da paz com a
Alemanha, à qual os bolcheviques entregariam a frota do mar Báltico», não haveria outra
saída senão a «imediata transmissão do poder pelo governo para as mãos do
generalíssimo». Kornilov acrescentou: «Qualquer que seja o generalíssimo.» Mas ele não
se dispunha de forma nenhuma ceder o seu lugar a outro. A sua inamovibilidade foi
antecipadamente garantida pelo juramento dos cavaleiros de São Jorge, pela União dos
oficiais e do Soviete da tropa dos cossacos. Para assegurar a «segurança» de Kerensky e
de Savinkov em relação dos bolcheviques, Kornilov pediu a esses dois homens para
virem ao Grande Quartel General e colocarem-se sob a sua protecção pessoal. O oficial
ordenança Zavoiko indicou a Lvov, sem margem para engano, em que consistia essa
protecção.
De regresso a Moscovo, Lvov, como «amigo», convenceu Kerensky a aceitar a
proposição de Kornilov «para salvar a vida dos membros do governo provisório e,
principalmente, a sua própria». Kerensky não podia compreender, enfim, que o jogo
político com a ditadura ganhava contornos sérios e podia acabar muito mal para ele.
Tendo decidido agir, chamou Kornilov ao telefone para verificação: Lvov tinha dado conta
do recado? Kerensky colocava as questões não somente pelo seu próprio lado, mas em

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nome de Lvov, mesmo se esteve ausente das conversações. «Igual procedimento – nota
Martynov – conveniente a um detective, era, bem entendido, inconveniente da parte do
chefe do governo.» Kerensky falava, no dia seguinte, da sua partida para o Grande
Quartel General na companhia de Savinkov, como de uma coisa decidida. Toda a
conversa pelo telefone parecia em suma coisa inverossímil: o chefe democrata do
governo e o general «republicano» discutem em ceder um ao outro o poder como se
tratasse de um lugar num comboio!
Miliokov tem perfeitamente razão quando, na exigência de Kornilov pedindo que lhe
passem o poder, ele vê somente «a continuação de todas as conversações iniciadas há
muito tempo sobre a ditadura, a organização do poder, etc.» Miliokov vai demasiado longe
quando, sobre essa base, tenta apresentar o assunto de tal maneira que ele não teria
havido, em suma, conspiração do Grande Quartel General. Kornilov, sem dúvida não teria
podido formular as suas exigências, por intermediário de Lvov, se ele não fosse primeiro
cúmplice de Kerensky. O que não o impedia que, sob uma conspiração comum, Kornilov
dissimulava outra no seu seio. No momento onde Kerensky e Savinkov se dispunham a
liquidar os bolcheviques – e particularmente o sovietes – Kornilov tinha a intenção de
liquidar também o governo provisório. É precisamente o que não queria Kerensky.
Na noite do 26, o Grande Quartel General pôde efectivamente pensar, durante
algumas horas, que o governo capitulava sem combate. Isso significava não que não
houvesse conspiração, mas que esta parecia triunfar em breve. Uma conspiração
vitoriosa encontra sempre os meios de se legalizar. «Vi o general Kornilov após esta
conversa», testemunhou o príncipe Trubletskoi, diplomata, que representava junto do
Grande Quartel General o ministério dos Assuntos estrangeiros. «Um suspiro de alívio
escapou-se-lhe e, como lhe perguntava se o governo se mostrava bem disposto em tudo,
respondeu sim.» Kornilov enganava-se. Mesmo a partir desse momento, o governo na
pessoa de Kerensky, deixava de se mostrar bem disposto para ele.
Assim, Grande Quartel General tem os seus planos? A Kerensky, como por gozo,
propõem o posto de ministro da Justiça? Kornilov, efectivamente tinha sido bastante
imprudente para fazer disso alusão a Lvov. Identificando-se à revolução, Kerensky gritava
ao ministro das Finanças Nekrassov: «Não lhe entregarei a revolução!» Amigo
desinteressado, Lvov, foi logo preso e passou uma noite de insónia no palácio de Inverno,
com dois sentinelas aos seus pés, escutando, rangendo os dentes. «Kerensky triunfante
que do outro lado da parede, num quarto contínuo, o de Alexandre II, estando satisfeito do
encaminhar do seu caso, vocalizava sem fim cantos de óperas». Nessas horas, Kerensky
sentia um extraordinário afluxo de energia.
Petrogrado, nesses mesmos dias, vivia uma dupla ansiedade. A tensão política,
exagerada até mais não pela imprensa, comportava uma explosão. A queda de Riga
aproximava a frente. A questão da evacuação da capital, posta pelas circunstâncias da
guerra muito tempo antes da queda da monarquia, tomava nova acuidade. As
personagens ricas abandonavam a cidade. A fuga da burguesia vinha das suas
apreensões diante de uma nova insurreição, muito mais que diante da invasão do inimigo.
No 26 de Agosto, o Comité central do partido bolchevique voltava à carga: «Personagens

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estranhas... levam uma agitação provocadora, dita em nome do nosso partido.» Os
órgãos dirigentes do Soviete de Petrogrado, dos sindicatos, dos comités de fábrica e
oficinas, declaravam no mesmo dia: que nem uma organização operária, nem um partido
político chame para qualquer manifestação. Mesmo assim, os boatos corriam sobre a
queda, para o dia seguinte, do governo, e não paravam. «Nos círculos governamentais –
dizia a imprensa – indicava-se a decisão tomada unanimemente em esmagar qualquer
tentativa de manifestar.» As medidas eram tomadas mesmo para provocar a manifestação
antes de esmagá-la.
Na manhã do 27, não somente os jornais não comunicavam qualquer das intenções
de motim do Grande Quartel General, mas, ao contrário, uma entrevista de Savinkov
assegurava que «o general Kornilov gozava da confiança absoluta do governo
provisório». O dia do aniversário semestral passava numa rara acalmia. Os operários e os
soldados evitavam tudo o que poderia parecer uma manifestação. A burguesia, temendo a
desordem, ficava fechada em casa. As ruas estavam desertas. As sepulturas das vítimas
de Fevereiro sobre o Campo de Março pareciam esquecidas.
Na manhã do dia mais esperado que devia trazer a salvação do país, o
generalíssimo recebeu do ministro presidente uma ordem telegrafada: resignar das suas
funções e depositá-las entre as mãos do chefe do estado-maior e regressar
imediatamente a Petrogrado. O assunto tomava assim uma volta absolutamente
imprevista. O general compreendeu, segundo os seus próprios termos, «que havia duplo
jogo». Justamente, ele poderia ter dito que o seu duplo jogo tinha sido descoberto.
Kornilov decidiu não ceder. As exortações de Savinkov pelo telefone não serviram de
nada. «Obrigado a agir abertamente – dizia o generalíssimo no seu manifesto ao povo –
eu, general Kornilov, declaro que o governo provisório, sob a pressão da maioria
bolchevique dos sovietes, age totalmente de acordo com os planos do estado-maior
general alemão, no momento onde se vai produzir o desembarque do inimigo sobres as
margens de Riga, destruiu o exército e transtornou o interior do país.» Não desejando
ceder o poder aos traidores, ele, Kornilov, «prefere morrer heroicamente». Sobre o autor
desse manifesto, Miliokov escreveu mais tarde, com uma nuança de admiração:
«Homem resoluto, não reconhecendo nenhuma subtilidade jurídica e indo direito ao
fim desde do momento que o reconheceu como justo.» Um generalíssimo que recruta as
tropas na frente com o intuito de derrubar o seu próprio governo não pode, efectivamente,
ser acusado de predilecção por «subtilezas jurídicas».
Kerensky destituiu Kornilov por acto de autoridade pessoal. O governo provisório,
nessa época, já não existia mais: na noite do 26, os senhores ministros deram a demissão
que, por um feliz concurso de circunstâncias, respondia aos desejos de todos os partidos.
Já, alguns dias antes da ruptura do Grande Quartel General como o governo, o general
Lokomsky tinha advertido Lvov por intermediário de Aladyne: «Não seria mau prevenir os
cadetes que eles tinham, no 27 de Agosto, que deixar o governo provisório para colocar
este numa situação difícil, e por isso, poupar-se às dificuldades.» Os cadetes não
deixaram de tomar nota desta recomendação. Por outro lado, o próprio Kerensky declarou
ao governo que julgava possível combater a rebeldia de Kornilov «somente sob condições

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que o poder lhe fosse entregue completamente». Os outros ministros pareciam esperar
por este feliz motivo para se demitirem por sua vez. Foi assim que a coligação foi
submetida a mais uma verificação. Os ministros do partido cadete – escreve Miliokov –
declararam que, por agora, eles demitiam-se sem comprometerem, no entanto, a sua
participação futura no governo provisório.» Fiés à sua tradição, os cadetes queriam
esperar à parte os resultados dos dias de luta para tomar uma decisão segundo os
resultados. Eles não duvidavam que os conciliadores lhes manteriam sem prejuízo nos
seus lugares. Ao se libertarem da responsabilidade, os cadetes, com todos os outros
ministro demitidos, tomaram parte a seguir às várias conferências governamentais, «de
carácter privado». Os dois campos, preparando-se para a guerra civil, agruparam-se, na
ordem «privada», em torno do chefe do governo, munidos de todos os poderes
imagináveis, mas não de uma real autoridade.
O telegrama de Kerensky recebido no Grande Quartel General: «Todos os escalões
dirigidos sobre Petrogrado e os arrabaldes devem ser levados de volta aos seus postos
anteriores», Kornilov notou: «Não executar esta ordem, dirigir as tropas sobre
Petrogrado.» O assunto do levantamento armado estava assim solidamente instalado.
Isto deve ser compreendido literalmente: três divisões de cavalaria, por caminho de ferro,
avançavam para a capital.
A proclamação de Kerensky às tropas de Petrogrado dizia: «O general Kornilov,
após ter declarado o seu patriotismo e a sua fidelidade ao povo... recrutou regimentos na
frente e... expediu-os contra Petrogrado.» Kerensky omitia, prudentemente que os
regimentos da frente não tinham somente sido recrutados, com o seu acordo, mas sobre
seu pedido directo, para reprimir a guarnição mesmo diante da qual ele denunciava agora
a traição de Kornilov.
O generalíssimo rebelde não tinha a papas na língua: «... Os traidores não estão
entre nós – dizia ele num telegrama – mas lá em Petrogrado onde, pelo dinheiro alemão,
com a cumplicidade do governo, a Rússia foi vendida e vende-se». É assim que a calúnia
lançada contra os bolcheviques fazia caminho.
O estado de excitação nocturna na qual o presidente do Conselho de ministros
demitido cantava, logo lhe passou. A luta contra Kornilov, qualquer que tenha sido a
reviravolta que tomasse, ameaçava com fortes consequências. «Na primeira noite do
levantamento do Grande Quartel General – escreveu Kerensky – nos meios soviéticos de
soldados e operários em Petrogrado, o rumor começou a propagar-se obstinadamente do
conluio de Savinkov com o movimento do general Kornilov.» O rumor designava Kerensky
imediatamente após Savinkov, e o rumor não se enganou. Havia que temer para breve as
mais terríveis revelações.
«Tarde não noite do 25 para 26 de Agosto» - conta Kerensky – entrou no seu
escritório, muito comovido, o director do ministério da Guerra. - «Senhor ministro,
declarou-me Savinkov, rectificando a posição, imploro-vos de me prender imediatamente
como cúmplice do general Kornilov. Mas se você tem confiança em mim, peço-vos que
me dê a oportunidade de provar efectivamente ao povo que não tenho nada em comum
com os revoltados...» Em resposta a esta declaração, persegue Kerensky, nomeei logo

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Savinkov general governador provisório de Petrogrado, atribuindo-lhe os mais largo
poderes para a defesa de Petrogrado contra as tropas do general Kornilov». Ainda mais: a
pedido de Savinkov, Kerensky deu-lhe como suplente Filonenko. O caso do motim, tal
como o da repressão, esta circunscrito no meio do «directório».
Uma tão apressada nomeação de Savinkov ao posto de general governador foi
dictada a Kerensky pela sua luta para salvaguarda da sua situação política: se Kerensky
tinha denunciado Savinkov aos sovietes, Savinkov tivesse imediatamente denunciado
Kerensky. Em contrapartida, tendo obtido de Kerensky, não sem chantagem, a
possibilidade de se legalizar por uma ostensiva participação nas manobras contra
Kornilov, Savinkov devia fazer todo o possível para ilibar Kerensky. «O general
governador» era necessário não para combater a contra-revolução mas para apagar os
traços da conspiração. O trabalho bem orquestrado dos cúmplices começou
imediatamente nesse sentido.
«Às quatro horas da manhã, no 28 de Agosto – testemunha Savinkov – eu
regressava, chamado por Kerensky, ao palácio de Inverno e encontrei lá o general
Alexeiev e Terechtchenko. Concordámos sobre o ponto que ultimato de Lvov não era mais
do que um desentendimento.» O papel de intermediário nesse conciliábulo de antes da
madrugada pertenceu ao novo general governador. O dirigente nos bastidores era
Miliokov: no decurso do dia, ele mostrou-se abertamente em cena. Alexeiev, mesmo se
ele chamava Kornilov «cabeça de ovelha», estava com ele no mesmo campo. Os
conspiradores e os seus assistentes fizeram uma última tentativa para apresentar como
«um mal-entendido» tudo o que se tinha passado, isto é para enganar o conjunto da
opinião pública afim de salvar o que se podia do plano comum. A divisão selvagem, o
general Krymov, os escalões de Cossacos, Kornilov recusando demitir-se, a marcha
sobre a capital, tudo isso não é nada de mais do que os detalhes de um «mal-entendido»!
Assustado pelo sinistro encadeamento das circunstâncias, Kerensky já não gritava: «Não
lhes entregarei a revolução!» Logo após ter-se entendido com Alexeiev, ele entrou na sala
de recepção dos jornalistas no palácio de Inverno e pediu-lhes para cortar de todos os
jornais o seu manifesto declarando Kornilov traidor. Quando, segundo as respostas dos
jornalistas, revelou-se que essa tarefa era técnicamente inexequível, Kerensky exclamou:
«Eu lamento-o muito!» Esse pequeno episódio, registado nos jornais do dia seguinte,
esclarece com vivacidade singular o personagem do super-árbitro da nação,
definitivamente entalado. Kerensky incarnava tão perfeitamente a democracia e a
burguesia que se encontrava agora, ao mesmo tempo, o mais alto representante da
autoridade do Estado e um conspirador criminal diante dela.
Na manhã do 28, a ruptura entre o governo e o generalíssimo tornou-se um facto
consumado ao olhos de todo o país. Ao assunto misturou-se imediatamente a Bolsa. Se o
discurso pronunciado em Moscovo por Kornilov, ameaçando a queda de Riga, ela tinha
marcado nos bolsistas por uma queda dos valores russos, a notícia da revolta aberta dos
generais teve como reacção um aumento geral. Pela sua cota desastrosa do Regime de
Fevereiro, a Bolsa deu a imagem irrepreensível dos estado de opinião e as esperanças
das classes possuidoras, que não duvidavam da vitória de Kornilov.

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O chefe do estado-maior Lukomsky a quem Kerensky tinha ordenado na véspera de
se responsabilizar, provisoriamente, do comando, respondeu: «Não considero que seja
possível assumir a função do general Kornilov, porque sucederia no exército uma
explosão que perderia a Rússia.» Relato feito pelo comandante chefe do Cáucaso, que
confirmou logo a sua fidelidade ao governo provisório, os outros grandes chefes, em tons
variados, apoiavam as exigências de Kornilov. Inspirado pelos cadetes, o comité principal
da União dos oficiais enviou a todos o estado-maiores do exército e da frota o seguinte
telegrama: «O governo provisório nos tende demonstrado mais de uma vez a impotência
do Estado, agora desonrou o seu nome por uma provocação e não pode ficar por muito
tempo à cabeça da Rússia...» O presidente de honra da União dos oficiais era o mesmo
Lukomsky! Ao general Krasnov, nomeado chefe do 3º corpo de cavalaria, declarou no
Grande Quartel General: «Ninguém tomará a defesa de Kerensky. É somente um
passeio. Tudo está preparado.»
Sobre os cálculos optimistas dos dirigentes e inspiradores da conspiração, tem-se
uma ideia bastante justa segundo um telegrama codificado do príncipe Trubetskoi no
ministério dos Assuntos estrangeiros: «Julgando amadurecida a situação – escreve –
deve-se confessar que todo o comandante, a esmagadora maioria do corpo dos oficiais e
os melhores efectivos combatentes seguirá Kornilov. Do seu lado alinharão na retaguarda
todos os cossacos, a maioria das Escolas militare e igualmente as melhores tropas. À
força física convém acrescentar... o consentimento de todas as camadas da população
não socialista e, nas classes baixas... uma indiferença que se submeterá ao primeiro
golpe de sabre. Não se duvide que uma imensa quantidade de socialistas de Março não
tardará a alinhar ao lado de Kornilov, no caso que ele vença.» Trubetskoi representava
não somente as esperanças do Grande Quartel General, mas também as disposições das
missões aliadas. No destacamento de Kornilov que marchava à conquista de Petrogrado
encontravam-se carros blindados ingleses com pessoal inglês: e era, pode-se pensar, o
efectivo mais seguro. O chefe da missão militar inglesa na Rússia, o general Knox,
censurava o coronel americano Robbins de não apoiar Kornilov. «Não me interessa o
governo Kerensky dizia o general britânico – ele é demasiado fraco; é preciso uma
ditadura militar, são precisos os cossacos, esse povo precisa do knout! A ditadura é
exactamente o que é preciso.»
Todas essas vozes, de diversas partes, atingiram o palácio de Inverno e agiam de
maneira perturbadora sobre os seus habitantes. O sucesso de Kornilov parecia
irrepreensível. O ministro Nekrassov disse aos seus amigo que a partida estava
definitivamente perdida e que nada mais restava senão morrer honestamente. «Certos
dirigentes conhecidos do Soviete - afirma Miliokov – pressentindo a sorte que os esperava
no caso que Kornilov vencesse, logo se apressaram a preparar passaportes para o
estrangeiro.»
De «hora a hora chegavam informações, cada vez mais ameaçadoras, sobre a
aproximação das tropas de Kornilov. A imprensa burguesa acolhi-as com avidez,
exagerava-as, amplificava-as, criando uma atmosfera de pânico.

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Ao meio-dia e meia, no dia 28: «Um destacamento enviado pelo general Kornilov
concentrou-se próximo de Luga.» Às duas horas e meia: «Pela gare de Oredej passaram
nove novos comboios com tropas de Kornilov. Na carruagem da frente encontra-se um
batalhão de ferroviários.» Às três horas da tarde: «A guarnição de Luga rendeu-se às
tropas do general Kornilov e entregou todas as suas armas. A gare e todos os edifícios
governamentais estão ocupados pelas tropas de Kornilov.» Às seis horas da tarde: «Dois
escalões de tropas de Kornilov avançaram, vindos de Narva, e encontram-se e alguns
quilómetros de Gatchina. Outros dois escalões estão caminhando para Gatchina.» Às
duas horas da manhã, no 29 de Agosto: «Na estação de Antropchino (a trinta e três
quilómetros de Petrogrado) um combate começou entre as tropas do governo e as de
Kornilov. Dos dois lados houve mortos e feridos.» Na mesma noite, soube-se que
Kaledine ameaçava cortar as comunicações de Petrogrado e Moscovo com o Sul, celeiro
da Rússia.
O Grande Quartel General, os comandantes em chefe das frentes, a missão
britânica, o corpo de oficiais, os escalões, os batalhões da via férrea, os cossacos,
Kaledine, tudo isso é ouvido na sala de malaquite do palácio de Inverno como os sons
das trompetas do Julgamento final.
Com as inevitáveis atenuações, o próprio Kerensky faz uma confissão:
«O dia 28 de Agosto foi precisamente o das grandes incertezas – escreve ele – das
grandes dúvidas sobre força dos adversários de Kornilov, a grande nervosidade nos
meios da própria democracia».
Não é difícil de imaginar o que se esconde sob estas palavras. O chefe do governo
amargurava-se ao se questionar não somente qual era dos dois campos o mais forte, mas
também qual era o mais temível para ele pessoalmente. «Nós não estamos consigo, a
direita, nem convosco, a esquerda» - tais palavras pareciam ter um belo efeito sobre o
palco do teatro de Moscovo. Traduzidas na linguagem da guerra civil pronta a rebentar,
elas significavam que o pequeno círculo de Kerensky podia mostra-se inútil tanto às
direitas como às esquerdas. «Todos – escreveu Stankevitch – estávamos atordoados de
desespero diante da realização de um drama que arruinava tudo. O grau do nosso
desespero pode-se julgar pelo facto que, mesmo após a ruptura pública entre o Grande
Quartel General e o governo, as tentativas eram feitas para chegar a uma reconciliação
qualquer...
«A ideia de uma mediação... nessas circunstâncias, nascia por ela própria», declarou
Miliokov, que preferia agir como terceira pessoa. Na noite do 28, ele apresentou-se no
palácio de Inverno para «aconselhar a Kerensky a renunciar ao ponto de vista
rigorosamente formal de uma violação da lei». O líder liberal, compreendendo que se
sabia distinguir na semente o fruto sob a casca, era ao mesmo tempo o homem melhor
apto como mediador leal. No 13 de Agosto, Miliokov soube directamente de Kornilov que
este fixava o seu levantamento para o dia 27. No dia seguinte, 14, Miliokov reclamou, num
discurso à conferência, que «a tomada imediata das medidas indicadas pelo
generalíssimo não foi alvo de desconfianças, de palavras cominatórias, mesmo de
revogações». Até ao 27, Kornilov devia ficar de fora das desconfianças! Ao mesmo tempo,

478
Miliokov prometia a Kerensky o seu apoio «de boa vontade e sem contestação.» Eis
quando é a propósito de se lembrar a corda da forca que sustem, ela também, «sem
contestação».
Do seu lado, Kerensky confessa que Miliokov, apresentando-se-lhe com uma oferta
de mediação, «tinha escolhido um momento muito cómodo para lhe demonstrar que a
força real estava do lado de Kornilov». A entrevista terminou-se tão feliz que ao sair de lá,
Miliokov indicou aos seus amigos políticos o general Alexeiev como um sucessor de
Kerensky contra o qual Kornilov não faria obstrução. Aleixeiev magnânimo consentiu.
Atrás de Miliokov vinha aquele que era maior que ele. Tarde na noite, o embaixador
britânico Buchanan remeteu ao ministro dos Assuntos estrangeiros uma nota pela qual os
representantes das potência aliadas propunham unanimemente os seus bons serviços
«no interesse da humanidade e no desejo de evitar uma catástrofe irreparável». A
mediação oficial entre o governo e o general amotinado não era outra coisa senão um
apoio e um prémio de seguro à revolta. Em resposta, Terechtchenko exprimia, em nome
do governo provisório, «um admiração extrema» sobre o levantamento de Kornilov cujo
programa tinha sido em grande parte adoptado pelo governo.
Num estado de abandono e de prostração, Kerensky não encontrou nada melhor do
que organizar ainda uma interminável conferência com os seus ministros demitidos. Até
ao momento onde ele se entregava a esta ocupação desinteressada, receberam
informações particularmente alarmantes sobre o avanço dos escalões inimigos.
Nekrassov considerava que «em algumas hora, as tropas de Kerensky seriam
provavelmente já em Petrogrado...» Os antigos ministros meteram-se a conjunturar:
«Como conviria erguer, em tais circunstâncias, o poder governamental?» A ideia de um
directório veio acima. A direita e a esquerda consideram com simpatia a ideia de incluir na
composição do «directório» o general Alexeiev. O cadete Kokochkine considerava que
Alexeiev devia ser colocado à cabeça do governo. Segundo certos testemunhos, a oferta
em oferecer o poder a qualquer outro feita pelo próprio Kerensky, que mencionou
nitidamente o seu encontro com Miliokov. Ninguém se opôs. A candidatura de Alexeiev
reconciliava toda a gente. O plano de Miliokov parecia perto de se realizar. Mas aí, como
convinha no momento de grande tensão, uma pancada foi dada à porta: na sala vizinha
esperavam uma delegação do comité para combater a contra-revolução. Ela chegava a
tempo: um dos ninhos mais perigosos da contra-revolução estava na conferência
miserável, traidora e desleal dos partidários de Kornilov, os mediadores e os traidores
numa sala do palácio de Inverno.
Obrigados a procurar o apoio das massas contra o general, os conciliadores
apressavam-se em meter o ombro esquerdo em frente. Logo esqueceram os discursos
afirmando que todas as questões de princípio deviam ser reservadas até à Assembleia
constituinte. Os mencheviques declararam que exigiriam do governo a proclamação
imediata da república democrática, a dissolução da Duma de Estado e a aplicação das
reformas agrárias: foi por esta razão que o nome de «república» apareceu pela primeira
vez na declaração do governo no que diz respeito à traição do generalíssimo.

479
Sobre a questão do poder, os comités executivos reconheceram indispensável
deixar então o governo tal como estava, substituindo os cadetes por elementos
democráticos; e, para a solução definitiva da questão, convocar muito em breve um
Congresso de toda as organizações que se tinham unido em Moscovo sobre a plata-
forma de Tchkheidze. Após as conversações nocturnas acontece que, porém, Kerensky
adiava resolutamente um controlo democrático sobre o governo. Sentindo o chão abrir-se
sob os seus pés, tanto à esquerda como à direita, agarrou-se com todas as suas forças à
ideia de um «directório», na qual se colocaram para ele os sonhos ainda mornos de um
poder forte. Após novos debates, cansativos e estéreis, no Instituto Smolny, decidiram-se
ainda uma vez ao único e insubstituível Kerensky, rogando-o de consentir ao projecto
inicial dos comités executivos. Às sete horas e meia da manhã, Tseretelli voltou a
anunciar que Kerensky recusa fazer concessões, exige «um apoio sem reservas», mas
consente em combater com «todas as forças do Estado» a contra-revolução. Extenuados
por uma noite em branco, os comités executivos renderam-se enfim à ideia inconsistente
de um «directório».
O compromisso solene tomado por Kerensky em lançar as «forças do Estado» na
luta contra Kornilov não o impediu, como se sabe, de levar com Miliokov, Alexeiev e os
ministros demitidos, conversações sobre uma capitulação pacífica diante do Grande
Quartel General que foram interrompidas, na noite, por um toque-toque na porta. Alguns
dias mais tarde, o menchevique Bogdanov, um dos membros activos do comité de defesa,
expunha, em termos circunspectos, mas sem equívocos, ao Soviete de Petrogrado, a
prevaricação de Kerensky. «Quando o governo provisório hesitava e que não se sabia lá
muito bem como se terminaria a aventura de Kornilov, os mediadores apresentaram-se,
tais com Miliokov e o general Alexeiev ...» O comité de defesa interveio e «com toda a sua
energia» exigiu a luta aberta. «Sob a nossa influência – continuou Bogdanov – o governo
parou todas as negociações e afastou todas as proposições de Kornilov...»
Desde logo que o chefe do governo, ontem como conspirador contra o campo da
esquerda, se deu por prisioneiro político, os ministros cadetes que se tinham demitido no
26 somente para dar tempo para pensar, declararam que eles abandonavam
definitivamente o governo, não desejando apoiar a responsabilidade dos actos de
Kerensky na repressão de uma revolta tão patriótica, tão leal, abandonaram um após
outro o palácio de Inverno». Os ares de bravura não surgiam no espírito. «A
responsabilidade que estava sobre mim nesses dias terrivelmente longos era
verdadeiramente desumana.» Era principalmente uma responsabilidade pela sorte do
próprio Kerensky: o resto já se realizaria independentemente dele.

480
A burguesia mede-se com a democracia
No 28 de Agosto, enquanto que o palácio de Inverno era sacudido por uma febre de
medo, o príncipe Bagration, comandante da divisão «selvagem», relatava por telegrama a
Kornilov que «os alógenos preencheram os seus deveres para com a pátria e, sob ordem
do seu herói supremo... vertiam a sua última gota de sangue». Algumas horas depois, o
movimento da divisão interrompeu-se, e, no 31 de Agosto, uma delegação especial, à
cabeça da qual era o mesmo Bagration, assegurava a Kerensky que a divisão se
submetia inteiramente ao governo provisório. Tudo isso se produziu não somente sem
combate, mas mesmo sem um tiro. O assunto não ia até à última gota de sangue, nem
mesmo até à primeira. Os soldados de Kornilov nem mesmo tentaram utilizar as armas
para abrir o caminho de Petrogrado. Os chefes não ousaram comandá-las. Em parte
alguma, as tropas do governo não tiveram que recorrer à força para parar o impulso dos
destacamentos de Kornilov. A conspiração decompôs-se, pulverizou-se, volatilizou-se.
Para explicar isso, basta examinar de perto as forças que entraram na luta. Antes de
tudo, somos forçados em estabelecer – e esta descoberta não será para nós inesperada –
que o estado-maior dos conspiradores foi sempre o antigo estado-maior czarista, uma
chancelaria de gente sem cabeça, incapazes de meditar antecipadamente, no grande
jogo que se iniciava, dois ou três acções seguidas. Mesmo que Kornilov tivesse fixado
algumas semanas antes a data do golpe de Estado, nada tinha sido previsto e calculado
como convém. A preparação puramente militar do levantamento tinha sido efectuada
atabalhoadamente, negligentemente, à toa. Modificações complicadas na organização e o
comando foram empreendidas na véspera do seu início, e já a caminho. A divisão
«selvagem» que devia desferir o primeiro golpe à revolução contava ao total mil trezentos
e cinquenta combatentes aos quais faltavam seiscentos fuzis, mil lanças e quinhentos
sabres. Cinco dias antes da abertura das hostilidades, Kornilov deu ordem de transformar
a divisão em corpo do exército. Tal medida, já condenada pelos manuais de instrução, era
evidentemente considerada como indispensável para levar os oficiais aumentando os
seus salários. «O telegrama anunciando as armas que faltavam seriam fornecidas em
Pskov – escreve Martynov – só foi recebido por Bagration no 31 de Agosto, após o fiasco
definitivo de toda a empresa.»
Quanto a mandatar os instrutores da frente a Petrogrado, o Grande Quartel General,
só se ocupou no último minuto. Os oficiais que aceitavam a missão tinham bastante
dinheiro e viajavam em carruagens especiais. Mas o herói do patriotismo não se apressou
muito, acredita-se, em salvar o país. Dois dias mais tarde, a comunicação ferroviária entre
o Grande Quartel General e a capital foi cortada e a maior parte dos mandatários não
chegaram, em suma, aos lugares das suas façanhas projectadas.
Na capital, existia todavia uma organização cúmplice dos kornilovianos, contando
até dois mil membros. Os conspiradores estavam divididos em grupos encarregados de
tarefas especiais: capturar os autos blindados, prender e assassinar os membros mais
destacados do Soviete, prisão do governo provisório, tomada dos estabelecimentos mais
importantes. Segundo Winberg, presidente da União do dever militar, «à chegada das

481
tropas de Krymov, as principais forças da revolução deviam já estar quebradas, liquidadas
ou sem capacidade de agir, de maneira que Krymov não tivesse restabelecer a ordem na
cidade». Na verdade, em Mohilev, considerava-se exagerado esse programa de acção e
colocava-se a tarefa principal a cargo de Krymov. Mas também o Grande Quartel General
esperava que os destacamentos do Centro republicano uma grande ajuda.
Ora, os conspiradores de Petrogrado não se manifestaram em nada, não levantaram
a voz, não mexeram um dedo, com se não tivessem existido. Winberg explica este
enigma muito simplesmente. Aconteceu que o coronel Heimann, que dirigia a contra-
espionagem, tinha passado horas decisivas num restaurante dos arredores e que o
coronel Sidorine, directamente encarregado por Kornilov em unificar a actividade de todas
as Sociedades patrióticas da capital, assim como o coronel Ducimetière, agregado à
secção militar, «tinha desaparecido e desconhecia-se o seu paradeiro». O coronel
cossaco Dutov, que devia marchar «sob as aparências do bolchevismo» lamentou-se
mais tarde: «Eu corria... chamá-los mas ninguém não me seguiu». Os fundos destinados
à organização foram, segundo Winberg, confiscados e delapidados pelos principais
participantes. O coronel Sidorine, afirmou Denikine, «fugiu para a Finlândia, levando com
ele os últimos recursos da organização, qualquer coisa como cento e cinquenta mil
rublos». Lvov, cuja detenção no palácio de Inverno já mencionámos, contou mais tarde
que um dos donadores secretos que tinha remetido aos oficiais uma soma importante, foi
ao sítio combinado, mas encontrou os conspiradores num tal estado de embriaguez que
decidiu em não lhes entregar o dinheiro. O próprio Winberg considera que, se não
tivessem sido esses casos «imprevistos» verdadeiramente aborrecidos, o plano poderia
ter sido um verdadeiro sucesso. Mas há uma questão: porquê, à volta da empresa
patriótica, se juntaram principalmente bêbados, dilapidadores e os seus traidores? Não é
porque toda essa tarefa histórica mobiliza os seus quadros adequados?
A própria composição dos efectivos da conspiração não era famosa, a começar
pelos altos dirigentes. «O general Kornilov – declara o cadet Izgoiev – era um dos mais
populares... entre a população pacífica, mas não entre as tropas, pelo menos as da
retaguarda que eu observei.» Sob a denominação de população pacífica, Izgoiev
compreende o público da Perspectiva Nevsky. Quanto às massas populares da frente e
da retaguarda, Kornilov era-lhes estranho, odiado, detestado.
Nomeado comandante do 3º corpo de cavalaria, o general Krasnov, monárquico, que
logo tentou prestar vassalagem a Guilherme II, admirou-se em ver que «Kornilov, tendo
concebido uma grande intenção, ele próprio ficou em Mohilev, num palácio rodeado de
turcomanos e de brigadas de choque, como se ele próprio não acreditasse no sucesso».
Como o jornalista francês Claude Anet perguntou a Kornilov porquê, no momento
decisivo, ele próprio não tinha marchado sobre Petrogrado, o chefe da conspiração
respondeu: «Estava doente, tive um grande surto de malária e a minha habitual energia
faltou-me.»
Demasiados acidentes infelizes: é sempre assim quando um assunto é condenado
ao fiasco antecipadamente. No seu estado de espírito os conspiradores hesitavam entre
uma bebedeira de bazófia que não conhece limites e uma prostração completa diante do

482
primeiro real obstáculo. O assunto consistia não na malária de Kornilov, mas numa
doença muito mais íntima, fatal, incurável, que paralisia da vontade das classes
possuidoras.
Os quadros negavam fortemente que Kornilov tivesse intenções contra-
revolucionárias, compreendendo por isso a restauração da monarquia dos Romanov.
Como se tratava disso! O «republicanismo» de Kornilov não impedia de forma nenhuma o
monárquico Lukomosky de caminhar com ele como companheiro, nem o presidente da
União do povo russo, Rimsky-Korsakov, de telegrafar a Kornilov, no dia do levantamento:
«Peço ardentemente a Deus de vous ajudar a salvar a Rússia, coloco-me inteiramente à
sua disposição.» Os adeptos dos Cem Negros do czarismo não eram repelidos pela
bandeira republicana barata. Eles compreendiam que o programa de Kornilov consistia
ele próprio, no seu passado, nos seus adornos cossacos, nas suas ligações e recursos
financeiros e sobretudo na sua disposição sincera em degolar a revolução.
Auto-proclamando-se nos seus manifestos «filho de camponês», Kornilov apoiava o
plano do golpe de Estado inteiramente nos cossacos e nos montanheses. Nas tropas
lançadas contra Petrogrado ele não podia encontrar um só efectivo da infantaria. O
general não tinha qualquer acesso junto aos mujiques e não tentava mesmo tê-lo. Ele
encontrou, na verdade, no Grande Quartel General na pessoa de um certo «professor»,
um reformador agrário, disposto a prometer a qualquer soldado uma quantidade fantástica
de hectares de terra. Mas o manifesto preparado sobre isso nem foi publicado: o que
reteve o generais em fazer demagogia agrária, foi o temor inteiramente fundado em
enfurecer e afastar os proprietários nobres.
Um camponês de Mohilev, Tadeusz que tinha observado de perto as redondezas do
Grande Quartel General durante esses dias, conta que, entre os soldados e nos campos,
ninguém acreditava nos manifestos do general: «Ele quer o poder, mas, sobre a questão
da terra, nem uma palavra, e sobre a guerra, nem por isso.» Sobre as questões mais
importantes, as massas tinham aprendido de uma maneira ou de outra a se
desenrascarem em seis meses de revolução. Kornilov levava a guerra ao povo, a defesa
dos privilégio dos generais e da propriedade dos nobres. Ele nada podia dar-lhes mais, e
o povo não esperava nada melhor. Nessa impossibilidade de avanço evidente para os
próprios conspiradores em se apoiar sobre os soldados camponeses, sem falar dos
operários, exprimia-se a condenação social da clique kornoloviana.
O quadro das forças públicas que tinham desenhado o diplomata do Grande Quartel
General, o príncipe Trubetskoi, era justo em muitas coisas, mas errado num ponto: no
povo, não existia traço desta indiferença que dispõe «a encaixar qualquer chicotada»: ao
contrário, as massas pareciam esperar somente a ameaça da chicotada para mostrar qual
fonte de energia e de abnegação se dissimulava nas suas profundidades. O erro cometido
na apreciação do estado de espírito das massas reduzia a pó todos os outros cálculos.
A conspiração foi levada pelos círculos que são habitualmente a nada fazer, que não
sabem nada fazer sem os elementos de base, sem a força operária, sem a carne para
canhão, sem receitas, domesticidade, escrivões, motoristas, porteiros. Ora, todos esses
carretes humanos, imperceptíveis, inumeráveis, indispensáveis, eram pelos sovietes,

483
contra Kornilov. A revolução estava omnipresente. Ela penetrava por todo o lado,
envolvendo a conspiração. Por todo o lado ela vigiava, ouvia e agia.
O ideal da educação militar, é que o soldado aja fora da vigilância dos seus chefes
como se ele estivesse debaixo dos seus olhos. Ora, os soldados e os marujos russos de
1917, que não executavam as ordens oficiais mesmo sob o olhar dos comandantes,
recolhiam, evidentemente, as ordens da revolução e, mais ainda, executavam-nas pela
sua própria iniciativa, mesmo antes de as terem recebido. Os numerosos servidores da
revolução, os seus agentes, batedores e militantes não precisavam nem de exortações
nem de vigilância.
Formalmente, a liquidação da conspiração encontrava-se entre as mãos do governo.
O comité executivo concorreu aí. Mas na realidade, a luta desenvolvia-se por vias
diferentes. Enquanto que Kerensky, vergado sob o peso do fardo da «responsabilidade
sobre-humana», fazendo os passos perdidos no chão do palácio de Inverno, o comité de
defesa, que se chamava também «comité militar revolucionário», estava bastante activo.
Logo na manhã, as instruções telegráficas eram expedidas aos empregados do caminho
de ferro, dos correios e aos soldados. «Todos os movimentos de tropas – relatava Dan
nesse mesmo dia – realizam-se sob as ordens do governo provisório e são contra-
assinadas pelo comité da defesa pública». Se rejeitarmos os termos convencionais, isso
significa que o comité de defesa dispunha das tropas sob a forma do governo provisório.
Ao mesmo tempo, tomam a iniciativa em destruir os ninhos kornilovianos mesmo em
Petrogrado, procede-se a rusgas e prisões nas escolas militares e nas organizações de
oficiais. A mão do comité sentia-se por todo o lado. Ninguém se inquietava do governador-
geral.
As organizações soviéticas de baixo, pelo seu lado, não esperavam os apelos do
alto. O trabalho principal era concentrado nos bairros. Nas horas de maior hesitação do
governo e das fastidiosas conversações do comité executivo com Kerensky, os sovietes
de bairro consolidavam os seus laços e decidiram declarar a conferência inter-distritos
permanentemente aberta; em introduzir os seus representantes no estado-maior formado
pelo comité executivo; criar uma milícia operária; estabelecer o controlo dos sovietes de
bairro sobre os comissários do governo; organizar equipas ambulantes para prender os
agitadores contra-revolucionários. No seu conjunto, essas medidas significavam que se
atribuíam não somente funções governamentais consideráveis, os mais elevados órgãos
soviéticos tiveram que se limitar bastante para ceder lugar aos da base. A entrada dos
bairros de Petrogrado na arena da luta modificou assim a direcção dos conciliadores, ela
reanimava-se, no momento crítico, em baixo, sob o impulso das massas.
Para os bolcheviques que inspiravam os bairros, o levantamento de Kornilov não era
inesperada. Elas tinha previsto, prevenido, e tinham-se encontrado os primeiros nos seus
postos. Logo na sessão unificada dos comités executivos do 27 de Agosto, Sokolnikov
tinha comunicado que o partido bolchevique tinha tomado todas as medidas que
dependiam dele para avisar o povo do perigo e para preparar a defesa; os bolcheviques
declaravam-se dispostos a combinar a sua acção combativa com a dos órgãos do comité
executivo. Numa sessão da noite da organização militar dos bolcheviques, na qual

484
participaram os delegados de numerosos contingentes de tropas, decidiu-se exigir a
prisão de todos os conspiradores, armar os operários, dar-lhes instrutores escolhidos
entre os soldados, assegurar a defesa da capital com elementos da base e, ao mesmo
tempo, preparar a criação de um poder revolucionário de operários e de soldados. A
organização militar convocou comícios em toda a guarnição. Os soldados foram
convidados a estarem vigilantes, de espingarda na mão, em condições de intervir ao
primeiro sinal de alarme.
«Ainda se os bolcheviques estavam em minoria – escreveu Sukhanov – é claro que
no comité militar revolucionário a hegemonia pertencia-lhes.» Ele dá-lhes razão: «Se o
comité quisesse agir seriamente, ele devia agir revolucionariamente» e por actos
revolucionários «só os bolcheviques tinha meios reais», porque as massas os seguiam. A
tensão da luta em todos os lugares e por todo o lado empurrava para a frente os
elementos mais activos e os mais ousados. Esta selecção automática levantava
inevitavelmente os bolcheviques, consolidava a sua influência, concentrava entre suas
mãos a iniciativa, transmitia-lhe de facto a direcção, mesmo das organizações onde eles
se encontravam em minoria. Mais nos aproximamos do bairro, da fábrica, do quartel, mais
incontestável e completa é o domínio dos bolcheviques. Todas as células do partido são
mobilizadas. Em todos os grupos corporativos das grandes fábricas, as sedes dos
bolcheviques são organizadas. No comité de bairro do partido têm lugar reuniões das
pequenas empresas. A ligação prolonga-se, vinda de baixo, da oficina, dos bairros, até ao
comité central do partido.
Sob a pressão imediata dos bolcheviques e das organizações que eles dirigiam, o
comité de defesa reconheceu desejar armar grupos de operário para a protecção dos
seus bairros, fábricas, oficinas. As massas esperavam esta sanção. Nos bairros, segundo
a imprensa operária, formaram-se logo «filas impressionantes de homens desejosos de
fazer parte da Guarda vermelha». Iniciaram-se cursos para o manejo de espingardas e de
tiro. Como instrutores trouxeram soldados experientes. Desde do 29, companhias
formaram-se em quase todos os bairros. A Guarda vermelha declarou-se pronta em
avançar imediatamente um efectivo contando quarenta mil espingardas. Os operários que
não as possuíam formaram companhias para cavar trincheiras, construir blindagens,
estender arame farpado. O novo general governador Paltchinsky, que tinha substituído
Savinkov - Kerensky não conseguiu guardar o seu cúmplice mais que três dias – não
pôde deixar de reconhecer, num comunicado especial, que, logo que foi necessário
proceder a trabalhos de sapa para a defesa da capital, «milhares de operários... dando do
seu sem reclamar pagamento, executaram em algumas horas um imenso trabalho que,
sem a sua ajuda, teria exigido vários dias». Isso não impedia Paltchinsky, como o
exemplo de Savinkov, de proibir o jornal bolchevique, o único que os operários
consideravam seu.
A empresa gigante de Potilov tornou-se o centro da resistência no distrito de
Peterhof. Criaram à pressa companhias de combate. O trabalho na fábrica continuou noite
e dia: ocuparam-se da montagem de novos canhões para formar divisões proletárias de
artilharia. O operário Minitchev conta: «Trabalhámos, nesses dias, cerca de 16 horas por
dia... Montámos cerca de cem canhões.»

485
Le Vikjel (comité executivo pan-russo dos ferroviários), recentemente criado, recebeu
imediatamente o baptismo de fogo. Os ferroviários tinham motivos particulares de temer a
vitória de Kornilov, que tinha inscrito no seu programa de estado de sítio sobre as vias
ferroviárias. A base, ainda aqui, iam longe à frente dos seus dirigentes. Os ferroviários
desmontavam e obstruíam as vias para parar as tropas de Kornilov: a experiência da
guerra servia a qualquer coisa. Eles tomaram também medias para isolar o foco da
conspiração, Mohilev, parando a circulação tanto no sentido do Grande Quartel General,
como no outro sentido. Os empregados dos correios e telegramas começaram a
interceptar e a expedir ao comité os telegramas e as ordens do Grande Quartel General,
ou suas cópias. Os generais tinham-se acostumado durante os anos de guerra a acreditar
que os transportes e os serviços de ligação eram questões técnicas. Eles deviam agora
constatar que eram questões de política.
Os sindicatos, menos que todos tendendo à neutralidade política, não esperavam
convites especiais para ocupar posições de combate. O sindicato dos operários da via
férrea armavam os seus membros, enviava-os para as linhas par vigiar e destruir a via,
para guardar as pontes, etc.; pelo seu ardor e sua resolução, os operários empurravam
Vikjel, mais burocrático e moderado. O sindicato dos metalúrgicos colocou à disposição
do comité de defesa numerosos empregados e entregou uma grande soma para cobrir as
suas despesas. O sindicato dos motoristas meteu à disposição do comité meios de
transporte, e seus recursos técnicos. O sindicato dos tipógrafos, nalgumas horas,
organizou a publicação dos jornais para a segunda-feira, afim de manter a população ao
corrente dos acontecimentos e realizou, ao mesmo tempo, o mais eficaz dos controlos
possíveis sobre a imprensa. O general rebelde tinha batido com o pé no chão, as legiões
tinham saído da terra; somente eram legiões inimigas.
À volta de Petrogrado, nas guarnições vizinhas, nas grandes gares, na frota, o
trabalho continuou dia e noite: verificavam os contingentes que se formavam, os operários
armavam-se, destacamentos eram enviados para montar guarda ao longo da via férrea, a
ligação estabelecia-se também com os pontos vizinhos e com Smolny. O comité de
defesa não teve que exortar e a lançar apelos mas a registar e dirigir. Os seus planos
estavam sempre ultrapassados. A resistência ao motim do general se transformava num
golpe popular contra os conspiradores.
Em Helsingfors, a assembleia geral de todas as organizações soviéticas criou um
comité revolucionário que delegava à casa do general-governador, ao Comando, à contra-
espionagem, e a outras muito importantes instituições os seus comissários. Desde então,
sem a assinatura destes, nenhuma ordem era válida. Os telegramas e os telefonemas
passam a ser controlados. Os representantes oficiais do regimento de cossacos
estacionado em Helsingfors, principalmente os oficiais, tentam proclamar a neutralidade:
são kornilovianos disfarçados. No dia seguinte, no comité, apresentaram-se cossacos das
fileiras, eles declararam que todo o regimento é contra Kornilov. Representantes dos
cossacos são pela primeira vez introduzidos no Soviete. Nesse caso como noutros, um
agudo conflito de classes rejeita os oficiais à direita e os homens das fileiras à esquerda.

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O soviete de Cronstadt, tendo tido tempo de se remeter das feridas de Julho, disse
por telegrama que «a guarnição de Cronstadt estava pronta, como um só homem, a tomar
a defesa da revolução ao primeiro apelo do comité executivo». Os homens de Cronstadt
não sabiam ainda, nesses dias, a que ponto a defesa da revolução os protegeriam eles
próprios contra as medias de extermínio: eles só podiam adivinhar.
Na verdade, logo após as Jornadas de Julho, no seio do governo provisório, tinha
decidido desmantelar a fortaleza de Cronstadt, como ninho de bolcheviques. Esta medida,
segundo um acordo de Kornilov, era explicada oficialmente por «motivos estratégicos».
Sentindo que as coisas corriam mal, os marinheiros opuseram a resistência. «A legenda
de uma traição do Grande Quartel General – escrevia Kerensky após ter ele próprio
acusado Kornilov de traição – enraizou-se de tal forma em Cronstadt que toda tentativa
para retirar as peças de artilharia provocava aí um verdadeiro furor da multidão.» Foi o
governo que encarregou Kornilov de procurar nos meios de liquidar Cronstadt. O general
encontrou esse meio: logo após esmagar a capital, Krymov devia fazer encaminhar uma
brigada com artilharia sobre Oranienbaum, e sob a ameaça das baterias costeiras, exigir
da guarnição de Cronstadt o desarmamento da fortaleza e o regresso do pessoal ao
continente, onde seria reprimido em massa. Mas no mesmo momento onde Kornilov
empreendia a execução do projecto do governo, este viu-se forçado a pedir aos homens
de Cronstadt a protecção contra Krymov.
O comité executivo, por telefone para Cronstadt e Vyborg, pediu o envio para
Petrogrado de importantes efectivos de tropas. Logo na manhã do 29, os contingentes
começaram a chegar. Eram, principalmente, destacamentos bolcheviques: para que o
apelo do comité executivo fosse eficaz, teria sido preciso a confirmação do comité central
dos bolcheviques. Um pouco antes, cerca do meio do dia 28, por ordem de Kerensky, que
parecia mais um pedido obsequioso, a guarda do palácio de Inverno tinha sido tomada
pelos marinheiros do cruzador Aurora, cuja parte da tripulação tinha sido encarcerada na
prisão de Kresty por ter participado na manifestação de Julho. Durante as suas horas de
liberdade, os marinheiros vinham visitar os homens de Cronstadt detidos, tal como
Trotsky, Raskolnikov e outros. «Não é já tempo de prender o governo?» perguntavam os
visitantes. «Não, ainda não», foi a resposta: «Metam a espingarda ao ombro de Kerensky,
disparai sobre Kornilov. Logo, trataremos das contas de Kerensky.» Em Junho e Julho,
esses marinheiros ainda não estavam dispostos a dar atenção aos argumentos de
estratégia revolucionária. Nesses dois meses ainda não passados, eles tinham aprendido
muito. Se eles colocam a questão da prisão do governo, é mais por autocrítica e para ter
a consciência clara. Ele próprios compreendiam a continuidade inevitável dos
acontecimentos. Na primeira quinzena de Julho: derrotados, condenados, caluniados;
eles abrirão no fim de Outubro, sobre o palácio de Inverno, o fogo dos canhões de Aurora.
Mas se os marinheiros consentem ainda e diferir até um certo ponto o ajuste de
contas geral com o regime de Fevereiro, eles não querem sofrer um dia a mais a
autoridade dos oficiais kornilovianos. O comando que lhes tinha sido imposto pelo
governo após as jornadas de Julho tinha-se mostrado por todo o lado e em todos os
lugares partidários dos conspiradores. O Soviete de Cronstadt revogou imediatamente o
comando designado pelo governo e nomeou outro da sua escolha. Os conciliadores não

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denunciavam mais a sucessão da República de Cronstadt. Porém, o assunto não se
limitou a simples destituições: em vários sítios, isso foi levado até às represálias
sangrentas.
«Isso começou em Vyborg – disse Sokhanov – por sevícias sobre os generais e os
oficiais exercidas por multidões de marinheiros e soldados que se enfureceram e foram
tomados de pânico.» Não, essas multidões não se tornaram ferozes e não se poderia
falar no presente caso de pânico. Na manhã do 29, o Tsentroflot (comité central da frota)
tinha enviado ao general Oranovsky, comandante em Vyborg, para comunicação à
guarnição, um telegrama sobre a revolta do Grande Quartel General. O comandante
guardou por pendor o telegrama durante todo o dia e, quando lhe perguntaram o que se
passava, respondeu que não tinha recebido qualquer informação. Quando os marinheiros
fizeram buscas, encontraram em sua casa o telegrama. Apanhado em flagrante delito, o
general declarou-se partidário de Kornilov. Os marinheiros fuzilaram-o, tal como dois outro
oficiais que tinham declarado partilhar as suas ideias. Aos oficiais da frota do Báltico, os
marinheiros reclamavam a assinatura de declarações de fidelidade à revolução e, como
quatro oficiais recusaram assinar, declarando-se kornilovianos, foram, por decisão da
tripulação, fuzilados logo ali.
Os soldados e os marinheiros estavam em perigo de morte. O apuramento
sangrento estava previsto não somente para Petrogrado e Cronstadt, mas para todas as
guarnições do país. Segundo a conduta dos seus oficiais que tinha retomado coragem,
segundo o seu tom, segundo os seus olhares oblíquos, os soldados e marinheiros podiam
adivinhar com certeza a sorte que os esperava em caso de vitória do Grande Quartel
General. Aí onde a atmosfera estava particularmente quente, eles apressavam-se a cortar
o caminho aos inimigos opondo ao apuramento previsto pelo corpo de oficiais o seu
próprio apuramento, marinheiros e soldados. A guerra civil tem, como se sabe, as suas
leis, e estas nunca foram consideradas como leis humanitárias.
Tchkheidze enviou imediatamente a Vyborg e a Helsingfors um telegrama
condenando os linchamentos, considerados como um «golpe mortal para a revolução».
Kerensky, pelo seu lado, telegrafou a Helsingfors: «Exijo que se meta fim imediatamente
às terríveis violências.» Se se procurar a responsabilidade política de certos linchamentos
– sem esquecer que a revolução é no conjunto um género de linchamento – a
responsabilidade no caso dado caía totalmente sobre o governo e os conciliadores que,
no momento de perigo, recorriam às massas revolucionárias para os entregar logo ao
corpo de oficiais contra-revolucionários.
Assim como durante a Conferência de Moscovo, quando se esperava de hora em
hora por um golpe de Estado, ainda agora, tendo rompido com o Grande Quartel General,
Kerensky dirigiu-se aos bolcheviques, pedindo-lhes «para exercer a sua influência sobre
os soldados, para tomar a defesa da revolução». Ao mesmo tempo chamando os
marinheiros bolcheviques para proteger o palácio de Inverno, Kerensky não soltava,
todavia, os seus prisioneiros de Julho. Sokhanov escreveu sobre o sujeito: «A situação
no momento onde Alexeiev seduzia para agradar com Kerensky, enquanto que Trotsky
continuava preso, era absolutamente intolerável.» Não é difícil imaginar a emoção que

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reinava nas prisões superlotadas. «Nós fervíamos de indignação – conta o oficial da
marinha Raskolnikov – contra o governo provisório que, em dias tão angustiantes...
continuava a deixar apodrecer em Kresty revolucionários como Trotsky...» Ah, como eles
são cobardes! - dizia Trotsky no recreio, andando às voltas connosco – ele deveriam
declarar imediatamente Kornilov fora da lei para qualquer soldado devotado à revolução
sinta o direito de acabar com ele.»
A entrada das tropas de Kornilov em Petrogrado teria significado antes de tudo o
extermínio dos bolcheviques presos. Numa ordem do general Bagration que devia com a
vanguarda entrar na capital, Krymov não tinha esquecido isto especialmente: «Colocar
sob grande protecção as prisões e presídios, mas em nenhum caso soltar as pessoas que
se encontram aí presas.» Era um programa completo cujo inspirador tinha sido tinha sido
Miliokov desde das jornadas de Abril: «Não abandonar em qualquer caso.» Não houve
nesses dias, em Petrogrado um único comício onde não se formulasse a exigência da
libertação dos prisioneiros de Julho. Delegações, uma após outra, visitavam o comité
executivo, o qual, por seu lado, enviavam ao palácio de Inverno os seus líderes para
conversações. Mas em vão! A teimosia de Kerensky nesta questão era tanto mais notável
que, durante um dia ou dois, ele tinha considerado a situação governamental como
desesperada e que, em consequência, ele estava condenado ao papel de carcereiro
principal, guardando os bolcheviques condenados a forca do general.
Não é de estranhar que as massas dirigidas pelos bolcheviques, lutando contra
Kornilov não tivessem confiança absolutamente nenhuma em Kerensky. Tratava-se para
elas não de proteger o governo, mas de defender a revolução. Tanto mais resoluta e
intrépida era a sua luta. A resistência ao motim arrancava os carris, as pedras, o próprio
ar. Os ferroviários da gare de Loga, à qual tinha chegado Krymov, recusavam-se
obstinadamente em avançar com os comboios, e alegavam a falta de locomotivas. Os
escalões de cossacos ficaram assim cercados por soldados do exército que compunham
a guarnição de Loga que contava 20.000 homens. Não houve afrontamentos; o que se
passou foi mais perigoso, houve contacto, espionagem, compreensão mútua. O Soviete
de Luga tinha tido tempo de imprimir a declaração do governo destituindo Kornilov, e esse
documento foi bastante difundido logo entre os escalões. Os oficiais dissuadiam os
cossacos em ajudar os agitadores. Mas a a própria necessidade de dissuadir foi um
sinistro agoiro.
Logo recebida a ordem de Kornilov: avançar, Krimov, sob a ameaça das baionetas,
exigiu que as locomotivas estivessem prontas em meia-hora. A ameaça pareceu eficaz.
As locomotivas, mesmo com alguns obstáculos, avançaram; mas não podiam, porém,
marchar, porque uma via tinha sido demolida e bloqueada por mais de um dia.
Procurando escapar à propaganda corrupta, Krymov retirou, na noite do 28, as suas
tropas para alguns kilómetros de Loga. Mas os agitadores penetraram imediatamente nas
aldeias: eram soldados, operários, ferroviários – não podiam escapar-lhes, eles estavam
em todo o lado. Os cossacos começaram mesmo a reunirem-se em comícios. Debaixo da
propaganda e amaldiçoando a sua impotência, Krymov esperava Bagration debalde: os
ferroviários tinham parado os escalões da divisão «selvagem», os quais deviam também
sofrer, nas próximas horas, um ataque moral.

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Fraca, mesmo cobarde como foi em si a democracia dos conciliadores, as forças das
massas sobre as quais, de novo, ela se apoiou em metade contra Kornilov, abriam diante
dela recursos inesgotáveis de acção. Os socialistas-revolucionários e os bolcheviques
consideravam que a tarefa deles não era vencer as tropas de Kornilov em linha, mas de
os atrair. Era ver com justeza. Contra a «conciliação» sobre esta linha, os bolcheviques,
também eles, não nada objectavam, bem entendido: pelo contrário, isso era o método
deles principalmente; os bolcheviques pediam somente que, por detrás dos agitadores e
os parlamentares, se mantivessem prontos, armados, os operários e os soldados. Para
influenciar moralmente os efectivos de Kornilov, encontrou-se logo uma escolha ilimitada
de meios e vias. Foi assim que no encontro da divisão «selvagem» foi enviado uma
delegação musulmana à qual se integrou das autoridades indígenas que logo se
manifestaram, começando pelo neto do ilustre Chamil, que tinha heroicamente defendido
o Cáucaso contra o czarismo. Os oficiais montanheses não permitiram aos seus oficiais
de deter a delegação: foi em contradição com os costumes seculares de hospitalidade. As
conversações começaram e tornaram-se, logo, o início do fim. Os comandantes enviados
por Kornilov para explicar toda essa campanha, alegaram os motins de agentes da
Alemanha que teria rebentado em Petrogrado. Ora, os delegados que tinham chegado
directamente da capital, não somente negavam o facto do motim, mas, com documentos
nas mãos, provavam que Krymov era um rebelde e conduzia as suas tropas contra o
governo. Que podiam responder a isso os oficiais de Krymov?
Na carruagem do estado-maior da divisão «selvagem», os soldados ergueram a
bandeira vermelha com a seguinte inscrição: «A Terra e a Liberdade.» O comandante do
estado-maior mandou enrolar a bandeira: «simplesmente para evitar de se confundir com
um sinal da via férrea», explicou o senhor coronel. A equipa do estado-maior não ficou
satisfeita com esta explicação cobarde e prendeu o coronel. Não se enganaria o Grande
Quartel General quando se dizia que seria indiferente aos montanheses do Cáucaso
degolar qualquer um?
No dia seguinte, um coronel trouxe, da parte de Kornilov, esta ordem a Krymov:
concentrar o corpo do exército, marchar rapidamente para Petrogrado e ocupá-la «sem
aviso». No Grande Quartel General, evidentemente, tentavam ainda fechar os olhos sobre
a realidade. Krymov respondeu que os contingentes estavam dispersos sobre diferentes
vias férreas e que em certos sítios os efectivos desciam dos comboios; que só tinha por
enquanto seis regimentos de cossacos; que as vias férreas estavam deterioradas,
bloqueadas, barricadas, e que não se podia avançar senão por uma marcha pelo campo;
enfim, que não podia se organizar a ocupação imprevista de Petrogrado agora que os
operários e os soldados estavam preparados para defender a capital e os arredores. O
assunto ainda se complicava mais, dado que a possibilidade estava definitivamente
perdida para efectuar a operação de uma forma inesperada «para as tropas do próprio
Krymov: sentindo que as coisas iam se passar mal, as tropas reclamavam explicações.
Tiveram que lhes revelar o conflito existente entre Kornilov e Kerensky, isto é meter na
ordem do dia oficialmente a prática de comícios.
A ordem ao exército publicada por Krymov nesse momento dizia: «Esta noite, recebi
do Grande Quartel General e de Petrogrado a informação dizendo que, na capital, os

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motins começaram...» Esta impostura devia justificar uma campanha desde então
completamente aberta contra o governo. Uma ordem do próprio Kornilov, datada do 29 de
Agosto dizia: «O serviço de contra-espionagem holandês relata-nos que: a) nestes dias
prevê-se um ataque simultâneo na frente com o objectivo de desalojar e de obrigar o
nosso exército desmembrado à fuga; b) um levantamento está em preparação na
Finlândia; c) propõe-se fazer explodir as pontes sobre o Dnieper e sobre o Volga; d) uma
insurreição de bolcheviques organiza-se em Petrogrado.» É esse mesmo «relatório» que
Savinkov alegou ainda no dia 23: a Holanda não era mencionada senão para deitar poeira
para os olhos, o documento, segundo todos os dados, tinha sido fabricado pela missão
militar francesa ou com a sua colaboração.
Kerensky telegrafou no mesmo dia a Krymov: «Em Petrogrado, calma completa. Não
se espera qualquer manifestação. Não temos qualquer necessidade do vosso exército.» A
manifestação devia ser provocada pelo decretos do estado de sítio do próprio Kerensky.
Como o governo teve que diferir a sua provocação, Kerensky tinha todas as razões para
considerar que «não se esperava nenhuma manifestação».
Sem ver qualquer saída, Krymov fez a tentativa absurda de marchar sobre
Petrogrado com os seus oito regimentos. Foi antes de mais um gesto ditado pela
consciência e, bem entendido, daí não resultou nada. Tendo encontrado a alguns
kilómetros de Loga postos avançados, Krymov voltou para trás, sem mesmo tentar a luta.
Sobre esta «operação» única, absolutamente fictícia, Krasnov, chefe do 3º corpo de
cavalaria, escreveu mais tarde: «Era preciso bater Petrogrado com uma força de oitenta e
seis esquadrões e regimentos, e batemos só com uma brigada contando oito fracos
regimentos, cuja metade faltava-lhe chefes. Em lugar de bater com o punho, batemos
com o dedo: isto fez mal ao dedo e a quem batíamos nada sentiram.» No fundo, nem
ouve mesmo batida com o dedo. Ninguém deu por isso.
Os ferroviários, entretanto, faziam o que tinham a fazer. De modo misterioso, os
escalões eram dirigidos por outras vias que aquelas do seu destino. Os regimentos caíam
sobre divisões que não eram as deles, os efectivos da artilharia eram metidos num
impasse, os estados-maiores perdiam o contacto com os seus contingentes. Todas as
grandes estações tinham os seus sovietes, seus comités de ferroviários e de soldados.
Os telegrafistas mantinha-os ao corrente de todos os acontecimentos, de todas as
deslocações, de todas as modificações. Os mesmos telegrafistas interceptavam as
ordens de Kornilov. As informações desfavoráveis para os kornolovianos eram
imediatamente transcritas em muitos exemplares, transmitidas, colocadas em cartaz,
comunicadas de boca em boca. O mecânico, o agulheiro, o lubrificador tornavam-se
agitadores. Foi neste ambiente que avançavam, pior ainda, ficavam os escalões de
Kornilov. O comandante, tendo logo sentido que a situação era desesperada, não se
apressou evidentemente em avançar e, pela sua atitude passiva, facilitou o trabalho dos
contra-conspiradores do transporte. Os elementos do exército de Krymov espalharam-se
assim pelas estações, as bifurcações e os impasses de oito vias férreas. Quando se
estuda de perto a carta qual foi a sorte dos escalões de Kornilov, pode-se ter a impressão
que os conspiradores teriam brincado, sobre a rede ferroviária, à cabra-cega.

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«Quase por todo o lado – diz o general Krasnov, notando nas suas observações da
noite de 29 ao 30 de Agosto – nós vimos só um quadro. Aqui sobre a via, ali num vagão,
ou ainda sentados sobre as selas, perto dos cavalos que tendiam para eles a cabeça para
eles, agachado ou de pé dragões e, entre eles, qualquer figura gesticulando, com o
capote de soldado.» O nome desta «figura gesticulando» logo se tornou maioria. De
Petrogrado continuavam a chegar numerosas delegações de regimentos, enviadas ao
encontro dos kornilovianos: antes de se baterem, todos queriam explicar. As tropas
revolucionárias tinham a forte esperança que o assunto arranjava-se sem batalha. Isso
confirmou-se: os cossacos acediam de boa vontade. A equipa de contacto do corpo do
exército, tendo-se amparado de uma locomotiva, enviou delegados sobre toda a linha.
Explicaram a cada escalão a situação que se tinha criado. Houve incessantes comícios no
decurso dos quais surgia um grito: enganámos eles!
«Não somente os chefes de divisão – declarou o mesmo Krasnov – mas mesmo os
chefes de regimento não sabiam onde se encontravam os seus esquadrões e seus
regimentos... A falta de alimentos para homens e montadas, naturalmente, irritava ainda
mais os homens. Os homens... viam toda a incoerência do que se passava à volta deles e
começaram a prender oficiais e superiores.» A delegação do soviete, tendo organizado o
seu estado-maior, comunicava: «Constantemente, há confraternização... Estamos
absolutamente seguros que se pode considerar o conflito como terminado. De todos os
lados chegam delegações...» A direcção dos contingentes era tomada pelos comités que
se substituíam aos chefes. Muito rapidamente foi criado um soviete de deputados do
corpo armado, e destacou-se uma delegação de uma quarentena de homens para enviar
ao governo provisório. Os cossacos começaram a declarar que só esperavam uma ordem
de Petrogrado para prender Krymov e os outros oficiais.
Stankevitch traçou o quadro que ele encontrou na estrada, tendo partido no dia 30
com Voltinsky em direcção de Pskov. Em Petrogrado, acreditava-se que Tsarskoie-Selo
tinha sido ocupado pelos kornilovianos, mas não se encontrou ninguém aí. «Em Gatchina,
ninguém... Na estrada, até Loga, ninguém. Em Loga, calma e tranquilidade... Chegámos
até à aldeia onde devia se encontrar o estado-maior do exército. Deserto... Acontece que,
cedo na manhã, os cossacos tinha abandonado o lugar, indo em direcção oposta à de
Petrogrado.» A revolta desfazia-se, faccionava-se, era absorvida pelo chão.
Mas, no palácio de Inverno, apreendia-se ainda um pouco o adversário. Kerensky
fez uma tentativa para entrar em conversações com o comando dos rebeldes: esta via
parecia-lhe mais segura que a iniciativa «anárquica» da base. Enviou a Krymov
delegados e, «para a salvação da Rússia», pediu-lhe para vir a Petrogrado, garantindo-
lhe, sob jura, toda a segurança. Pressionado de todos os lados e tendo completamente
perdido a cabeça, o general apressou-se, bem entendido, a aceitar o convite. Atrás de
Krymov, partiu para Petrogrado uma delegação de cossacos.
As frentes não apoiaram o Grande Quartel General. Uma tentativa mais séria foi feita
somente pela frente do Sudoeste. O estado-maior de Denikine tinha empreendido no
momento oportuno medidas preliminares. Os efectivos ligados à guarda do estado-maior
sobre os quais não se podia contar tinham sido substituídos pelo cossacos. Na noite do

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26 a 27, a tipografia tinha sido ocupada. O estado-maior tentava desempenhar o papel do
dono da situação e tinha mesmo proibido ao comité da frente de se servir do telegrafo.
Mas as ilusões não subsistiram mesmo algumas horas. Os delegados de diferentes
contingentes apresentaram-se ao comité com ofertas de apoio. Surgiram carros
blindados, metralhadoras, canhões. O comité colocou logo sob seu controlo a actividade
do estado-maior, ao qual a iniciativa não foi deixada senão no domínio das operações de
guerra. Cerca das três horas, no dia 28, a autoridade sobre a frente Sudoeste foi
inteiramente concentrada entre as mãos do comité. «Nunca – lamentava-se Denikine – o
futuro do país não se apresentou tão sombrio, a nossa impotência é tão vexatória e
esmagadora.»
Sobre as outras frentes, o assunto tornou-se ainda mais dramático: bastou aos
chefes do exército olhar à volta deles para sentir o afluxo de sentimentos amigáveis em
relação aos comissários do governo provisório. Pela manhã do 29, no palácio de Inverno,
já havia telegramas trazendo declarações de fidelidade do general Chtcherbatchev, da
frente romena, do general Valuiev, da frente Oeste, e de Prjwalski, da frente do Cáucaso.
Sobre a frente Norte, onde o comandante em chefe era um korniloviano confesso,
Klembovsky, Stankevitch tinha nomeado por telegrama no momento do conflito – escreve
o próprio Stankevitch – podia seguramente dirigir-se a qualquer grupo de soldados –
infantaria, cossacos, ordenanças e mesmo a junkers – com qualquer ordem, mesmo
assim ele poderia prender o comandante em chefe - e a ordem era executada sem
discussão...» Foi sem a menor complicação que Klembovsky foi substituído pelo general
Bontch-Broieitch que, por intermédio do seu irmão, um conhecido bolchevique, foi um dos
primeiros chamados no seguimento ao serviço do governo bolchevique.
Os assuntos não iam melhor para o pilar do partido militar no sul, o ataman das
tropas do Don, Kaledine. Em Petrogrado dizia-se que Kaledine mobilizava os contingentes
cossacos e que os escalões da frente vinham juntar-se no Don. Ora, «o ataman –
segundo um dos seus biógrafos – percorria as aldeias cossacas distantes do caminho de
ferro... conversando descontraidamente com os habitantes». Kaledine, efectivamente,
manobrava com mais circunspecção do que se pretendia nos círculos revolucionários. Ele
tinha escolhido o momento do levantamento declarado, cuja hora lhe era conhecida
antecipadamente, para percorrer «pacificamente» as aldeias cossacas, para se encontrar,
durante os dias críticos, afastado do telégrafo e de qualquer outro controlo de auscultar ao
mesmo tempo a opinião da população cossaca. No 27, ele telegrafou no caminho ao seu
suplente Bogaievsky: «É preciso apoiar Kornilov por todos os meios.» Todavia, essas
relações directas com a população cossaca provaram justamente que os recursos e as
forças não existiam: os cossacos cultivadores de trigo nem pensavam de forma nenhuma
em apoiar Kornilov. Quando o fracasso do levantamento se tornou evidente, o que se
chamava «o governo militar» do Don decidiu diferir a expressão da sua opinião «até ao
esclarecimento da verdadeira relação de forças». Graças a esta manobra, as cimeiras dos
cossacos do Don conseguiram meter-se de parte no momento oportuno.
Em Petrogrado, em Moscovo, no Don, sobre a frente, nas vias que seguiam os
escalões, por toda a parte e todos os lugares Kornilov tinha simpatizantes, partidários,
amigos. Seu número parecia grande se ao avaliar os telegramas, as felicitações e os

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artigos dos jornais. Mas, coisa estranha: agora que hora tinha chegado para eles de se
mostrarem, tinham desaparecido. Em muitos casos, a causa não residia de forma
nenhuma nas cobardias individuais. Entre os oficiais kornilovianos, havia um bom número
de bravos. Mas a sua bravura não tinha ponto de apoio. A partir do momento que as
massas começaram-se a agitar, os individuos isolados não tiveram mais acesso aos
acontecimentos. Não somente os grandes industriais, banqueiros, professores,
engenheiros, mas também os estudantes, mesmo os oficiais experientes viram-se
afastados, apagados, rejeitados. Eles observavam os acontecimentos que se
desenrolavam diante deles como do alto da varanda. Com o general Denikine não lhes
ficava mais nada senão amaldiçoar a sua impotência vexante e esmagadora.»
No 30 de Agosto, o comité executivo enviou a todos os sovietes um alegre notícia:
«As tropas de Kornilov estão em plena decomposição.» Durante um certo tempo
esqueceram-se que Kornilov tinha escolhido para a sua empresa os contingentes mais
patrióticos, os mais aptos para o combate, os melhores conservados da influência
bolchevique. O processo de decomposição consistia nisto que os soldados paravam
definitivamente em confiar nos oficiais, descobrindo neles inimigos. A luta pela revolução
contra Kornilov marcava o aprofundamento da decomposição do exército, isto é,
precisamente, o que acusavam aos bolcheviques.
Os senhores generais tiveram enfim a possibilidade de verificar a força da
resistência da revolução que lhes parecia frágil, tão acidentalmente vitoriosa do antigo
regime. Desde das Jornadas de Fevereiro, repetia-se a propósito de tudo a formula
fanfarrona da soldadesca: dêem-me um regimento sólido e mostrar-lhes-ei como é. A
experiência do general Khabaloav e do general Ivanov, no fim de Fevereiro, nada tinha
ensinado aos grandes capitães da raça dos que mostraram o punho após a batalha. Era
frequentemente segundo as suas vozes que os estrategas civis resolviam os cantos. O
outubrista Chidlovsky afirmava que se, em Fevereiro, se tinham mostrado na capital
«contingentes não particularmente consideráveis, solidamente unidos pela disciplina e
espírito militar, a Revolução de Fevereiro teria sido esmagada em alguns dias». O famoso
Bubliokov, agitador entre os ferroviários, escreveu: «Bastou uma só divisão disciplinada
vinda da frente para que a insurreição fosse radicalmente esmagada.» Vários oficiais que
participaram aos acontecimentos afirmavam a Denikine que «um só batalhão sólido tendo
à cabeça um chefe que compreendesse o que ele queria, podia meter de pés para o ar
toda a situação.» Do tempo onde Gotchkov era ministro da Guerra, o general Krymov veio
da frente e ofereceu-se para «limpar Petrogrado com uma só divisão, bem entendido, não
sem efusão de sangue». O assunto não teve lugar unicamente porque «Gotchkov não
consentiu». Enfim, Savinkov, preparando para o futuro directório o seu próprio «27 de
Agosto», afirmava que dois regimentos bastavam perfeitamente para reduzir os
bolcheviques em cinzas e em poeira. Agora, o destino dava a todos esses senhores, na
pessoa do general «alegre», a inteira possibilidade de verificar a que ponto os seus
cálculos heróicos eram fundados. Sem resistência, de cabeça baixa, mortificado, metendo
dó, Krymov chegou ao palácio de Inverno. Kerensky não deixou escapar a ocasião para
interpretar com ele uma cena patética na qual os efeitos baratos estavam previamente
garantidos. Regressado do encontro com o primeiro-ministro no ministério da Guerra,

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Krymov meteu uma bala na cabeça. Foi assim que se desenrolou a tentativa feita para
reprimir a revolução «não sem efusão de sangue».
No palácio de Inverno, houve um suspiro de alívio ao pensar que um caso tão difícil
e complicado terminou como se desejava, e apressaram-se a voltar à ordem do dia, isto
é, à retoma dos assuntos pendentes. Como o generalíssimo, Kerensky auto-nomeou-se:
para guardar a sua aliança política com o corpo dos velhos generais, foi-lhe
excessivamente difícil encontrar uma personagem mais conveniente. Como chefe do
estado-maior do Grande Quartel General, escolheu Alexeiev que por pouco, dois dias
antes, não foi escolhido primeiro-ministro. Após consultações e hesitações, o general, não
sem uma carreta de desdém, aceitou a nominação com o objectivo, explicaria ele aos
amigos, em liquidar pacificamente o conflito. O antigo chefe do estado-maior do
generalíssimo Nicolau Romanov via-se nas mesmas funções sob Kerensky. Havia razões
para espanto! «Só, Alexeiev, graças às suas amizades com o Grande Quartel General e à
sua enorme influência nas esferas superiores dos militares – é assim que mais tarde
Kerensky tentou explicar a extravagante nominação – podia cumprir com sucesso a
transmissão sem dor do comando das mãos de Kornilov». Completamente ao contrário! A
designação de Alexeiev, isto é cúmplice, que só podia inspirar aos conspiradores a ideia
de prolongar a resistência se lhes restava a menor possibilidade. Na realidade, Alexeiev
viu-se colocado por Kerensky, após a liquidação do levantamento, pela mesma razão que
tinha feito chamar Savinkov no início da rebelião: era preciso a todo o custo manter as
pontes do lado da direita. O novo generalíssimo considerava agora particularmente
indispensável refazer a amizade com os generais: depois da forte sacudidela, ele devia
com efeito restabelecer solidamente a ordem e, em consequência teria necessidade de
um poder duplamente forte.
No Grande Quartel General, já nada havia de optimismo que tinha reinado dois dias
antes. Os conspiradores procuravam as vias de retirada. Um telegrama enviado a
Kerensky dizia que Kornilov, «considerava a situação estratégica», estava disposto a se
demitir em paz do comando se ele fosse declarado que «se criaria um governo forte».
Após esse grande ultimato daquele que capitulava, vinha outro mais pequeno: ele,
Kornilov, considerava «em suma inadmissível as prisões de generais e de outras pessoas
antes de tudo indispensáveis ao exército». Kerensky, feliz, deu logo um passo em
direcção do seu adversário ao anunciar pela rádio que as ordens de Kornilov no que
respeita as operações de guerra eram obrigatórias para todos. O próprio Kornilov
escreveu sobre o assunto a Krymov no mesmo dia: «Eis um episódio único na história
mundial: um generalíssimo acusado de traição e de prevaricação para com a pátria, e
traduzindo isso diante do tribunal, recebeu ordem de continuar a dirigir os exércitos...»
Esta nova manifestação de pusilanimidade de Kerensky deu imediatamente coragem aos
conspiradores que temiam ainda fazer um mau negócio. Apesar do telegrama enviado
algumas horas antes declarando inadmissível uma luta interior «nesse momento terrível»,
Kornilov, meio restabelecido nos seus direitos, enviou dois homens a Kaledine para pedir
«para pressionarem» e, ao mesmo tempo, fez esta proposição a Krymov: «Se a situação
o permite, aja independentemente no espírito da instrução que lhe dei.» o espírito da
instrução era este: derrubar o governo e enforcar todos os membros do Soviete.

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O general Alexeiev, novo chefe do estado-maior, partiu ocupar o Grande Quartel
General. No palácio de Inverno, considerava-se ainda esta operação como séria. Na
realidade, Kornilov tinha directamente à sua disposição: um batalhão de cavaleiros de
São Jorge, um regimento de infantaria «korniloviano» e um regimento de cavalaria Tek. O
batalhão dos cavaleiros de São Jorge, logo no início, meteu-se do lado do governo. O
regimento «korniloviano» e o de Tek eram considerados fiéis; mas uma parte deles
também tinha abandonado. O Grande Quartel General não tinha artilharia à sua
disposição. Em tais condições não se podia falar de resistência. Alexeiev começou a sua
missão visitando cerimoniosamente Kornilov e Lokomsky no decurso das quais, pode-se
pensar, de um lado e de outro, utilizaram um vocabulário da soldadesca em relação a
Kerensky, novo generalíssimo. Para Kornilov como para Alexeiev era claro que se devia,
de qualquer modo, remeter a mais tarde a salvação do país.
Enquanto que no Grande Quartel General arranjava-se a paz sem vencedores nem
vencidos, a atmosfera em Petrogrado aquecia a extremo e esperava-se impacientemente
no palácio de Inverno notícias de um momento para o outro. O coronel Baranovsky,
homem de confiança de Kerensky, queixava-se pelo telefone: «Os sovietes estão a ferver,
só se pode descargar a atmosfera pela manifestação da autoridade e prendendo Kornilov
e os outros...» Isso não respondia de forma nenhuma às intenções de Alexeiev. «Vejo
com muita pena – respondeu o general – que as minhas apreensões de nos ver
definitivamente caídos agora nas garras tenazes dos sovietes correspondem a um facto
incontestável.» Com o prenome «nós», subentendeu-se o grupo de Kerensky no qual
Alexeiev, se inclui também. O coronel Baranovsky respondeu-lhe com o mesmo tem:
«Com a ajuda de deus, escaparemos das garras tenazes do Soviete nas quais estamos.»
Apenas as massas tinham salvo Kerensky das garras de Kornilov, o líder da
democracia apressava-se já em meter-se de acordo com Alexeiev contra as massas:
«Escaparemos às garras tenazes do Soviete.» Alexeiev teve mesmo assim que submeter-
se à necessidade e proceder à prisão ritual dos principais conspiradores. Kornilov, sem
opor resistência, ficou preso no domicílio durante quatro dias após ter declarado ao povo:
«Prefiro a morte a ser destituído das minhas funções de generalíssimo.» A comissão
extraordinária de inquérito que chegou a Mohilev prendeu por seu lado o ministro adjunto
da Vias e comunicações, vários oficiais do estado-maior general, o infeliz diplomata
Aladyine, assim como todos os membros presentes do Comité principal da união dos
oficiais.
Nas primeiras horas que seguiram a vitória, os conciliadores gesticulavam. O próprio
Avksentiev lançava relâmpagos. Durante três dias, os rebeldes tinham deixado as frentes
sem instruções! «Morte aos traidores!» gritavam os membros do comité executivo.
Avkesentiev fazia eco a essas vozes: sim, a pena de morte tinha sido restabelecida a
pedido de Kornilov e dos seus amigos, «ela seria tanto mais resolutamente aplicada a
estes últimos». (Tempestade prolongada de aplausos.)
O Concílio eclesiástico de Moscovo, que se tinha inclinado duas semanas antes
diante de Kornilov, como restaurador da pena de morte, suplicava agora por telegrama ao
governo, «em nome de deus e do amor de Cristo pelo próximo», salvaguardar a vida do

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infeliz general. Outras alavancas foram accionadas. Mas o governo não pensava de forma
nenhuma numa repressão sangrenta. Quando a delegação da divisão «selvagem» se
apresentou a Kerensky no palácio de Inverno, como um dos soldados em resposta às
frases vagas do novo generalíssimo, dizia que «os comandantes traidores deviam ser
impiedosamente batidos», Kerensky interrompeu-o por estas palavras: «O vosso trabalho
agora é de obedecer aos seus chefes e, quanto a nós, faremos tudo o que é necessário.»
Positivamente, este homem considerava que as massas deviam subir à cena que ele
batia com o pé direito direito!
«Faremos nós próprio tudo o que for necessário.» Mas tudo o que fizeram parecia às
massas inútil, senão suspeito e perigoso. As massas não se enganavam; na cimeira,
preocupavam-se sobretudo em restabelecer a situação de onde tinha saído a campanha
de Kornilov. «Desde dos primeiros interrogatórios aos quais procederam so membros da
comissão de inquérito – conta Lokomsky – viu-se que todos nós tratavam com a maior
consideração.» Eram, em suma, cúmplices e fingidos. O procurador militar, Chablovsky,
dava aos acusados uma consulta para lhes ensinar a enganar a justiça. As organizações
da frente enviavam protestos. «Os generais e os seus cúmplices são tratados de modo
diferente do que criminosos diante do Estado e do povo... Os rebeldes têm inteira
liberdade de comunicação com o mundo exterior.» Lokomovsky confirma: «O estado-
maior do generalíssimo nos informava de todas as questões que nos interessavam.» Os
soldados indignados tentaram mais de uma vez de levar os generais diante da sua própria
justiça, e os detidos escaparam às represálias graças a uma divisão polaca contra-
revolucionária instalada em Bykhov, lugar onde eles estavam presos.
No 12 de Setembro, o general Alexeiev escreveu a Miliokov, do Grande Quartel
General, uma carta traduzindo a indignação legítima dos conspiradores diante da conduta
da grande burguesia que, primeiro, tinha-os empurrado para a frente e, após a derrota,
tinha-os abandonado à sua sorte. «Você sabe até um certo ponto – escrevia,
causticamente, o general – que certos círculos da nossa sociedade não somente estavam
ao corrente de tudo, não somente simpatizavam ideologicamente, mas ajudavam como
podiam Kornilov...» Em nome da União dos oficiais, Alexeiev exigia de Vychnegradsky,
Potilov e outros capitalistas consideráveis que tinha voltado as costas aos vencidos, uma
subscrição imediata de trezentos mil rublos a proveito «das família esfomeadas dos quais
eles estavam ligados por uma comunidade de ideias e de preparação!» A carta terminava
por uma verdadeira ameaça: «Si a imprensa honesta não empreender imediatamente a
explicação do assunto... o general Kornilov será obrigado em revelar diante do tribunal
toda a preparação, todas as conversações com personalidade e círculos, a sua
participação», etc. Sobre os resultados práticos desse lamentável ultimato, Denikine
comunica: «É somente no fim de Outubro que Kornilov recebeu de Moscovo cerca de
quarenta mil rublos.» Miliokov, entretanto, tinha-se ausentado da arena política: segundo
a versão oficial dos cadetes, ele tinha partido, «repousar-se em Crimeia». Após tantas
preocupações, o líder liberal tinha efectivamente necessidade de repouso.
A comédia do inquérito arrastou-se até à insurreição bolchevique, depois de Kornilov
e os seus cúmplices foram libertados e munidos pelo Grande Quartel General de
Kerensky de todos os documentos indispensáveis. Foram os generais fugitivos que

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desencadearam a guerra civil. Por razões dos laços sagrados que ligavam Kornilov ao
liberal Miliokov e o Cem Negro Rimsky-Korsakov, centenas de milhares de homens
caíram, o Sul e o Este da Rússia foram pilhados e devastados, a economia do país foi
deveras abalada, a revolução viu-se sujeita ao terror vermelho. Kornilov, tendo escapado
sem obstáculos à justiça de Kerensky, logo caiu sobre a frente da guerra civil, batido por
um obus bolchevique. A sorte de Kaledine não foi diferente. O «governo militar» do Don
exigiu não somente que a ordem de prender Kaledine foi adiada, mas este foi
restabelecido nas suas funções de ataman. Kerensky, ainda aí, não perdeu uma ocasião
de recuar. Skobelev chegou a Novotcherkassk, levou as desculpas ao «círculo militar
cossaco». O ministro democrata foi alvo de sarcasmos refinados e, aí, o próprio Kaledine
foi o primeiro a ralhar. O triunfo do general cossaco não foi portanto durável. Cercado por
todos os lados pela revolução bolchevique, em casa, no Don, Kaledine suicidou-se alguns
meses mais tarde.
A bandeira de Kornilov passou logo para as mãos do general Denikine e do
almirante Koltchak, cujos nomes se associam ao principal período da guerra civil. Mas
tudo isso diz respeito já a 1918 e aos anos seguintes.

498
As massas expostas aos golpes
As causas imediatas dos acontecimentos de uma revolução são as modificações na
consciência da classes em luta. As relações materiais de uma sociedade determinam
somente a corrente seguida por esses processos. Pela sua natureza, as modificações da
consciência colectiva têm um carácter meio oculto; apenas chegados a uma tensão
determinada, os novos estados de espírito e de ideias se exprimem no exterior sob a
forma de acções de massas que estabelecem um novo equilíbrio social, aliás muito
instável. A marcha da revolução a cada nova etapa desnuda o problema do poder para o
cobrir ainda, imediatamente após, com uma máscara – esperando despojá-lo de novo. Tal
é o mecanismo de uma contra-revolução com a diferença que o filme se desenrola aqui
às avessas.
O que se passa nas cimeiras governamentais e soviéticas não é de forma nenhuma
indiferente para o desenrolar dos acontecimentos. Mas não se pode compreender o
sentido real da política de um partido e decifrar as manobras dos líderes senão sob a
condição de descobrir os profundos processos moleculares na consciência da massas.
Em Julho, os operários e os soldados tinham sofrido uma derrota, mas, em Outubro, por
um assalto irresistível, eles ampararam-se do poder. Que se passou nos seus espíritos
durante esses quatro meses? Como reagiram sob os golpes que caíam de cima? Com
tais ideias, quais sentimentos, tinham eles considerado a tentativa feita pela burguesia
para se apoderar do poder? O leitor deverá voltar a trás, para a derrota de Julho.
Frequentemente, estamos obrigados em recuar para melhor saltar. Ora, diante de nós
anuncia-se o salto de Outubro.
Na historiografia soviética oficial, uma opinião estabeleceu-se, e tornou-se uma
especie de lugar comum, segundo o qual o assalto dado ao partido em Julho –
repressões combinadas com a calúnia – teria passado sem deixar quase nenhum traço
sobre as organizações operárias. É absolutamente inexacto. Na verdade, a fraqueza nas
fileiras do partido e o refluxo a seu respeito dos operários e dos soldados durou pouco
tempo, algumas semanas. O renovamento surgiu tão depressa e, sobretudo tão
tempestuoso que apagou metade mesmo da lembrança dos dias de prostração e de
abatimento: as vitórias projectam em geral uma luz diferente sobre as derrotas que as
prepararam. Mas, à medida que se publicou os processos-verbais das organizações
locais do partido, viu-se aparecer com nitidez cada vez maior o declínio da revolução de
Julho, que se ressentiu, nesses dias, tanto mais dolorosamente que o ascenso
precedente tinha um carácter mais incessante.
Toda a derrota, procedida de uma relação de forças determinada, modifica por sua
vez essa relação em desvantagem da parte vencida, porque o vencedor toma confiança;
enquanto que o vencido perde confiança nele próprio. Ora, tal ou tal apreciação da força
que se tem constitui um elemento extremamente importante da relação objectiva das
forças. Uma derrota directa foi sofrida pelos operários e soldados de Petrogrado que, no
seu impulso em frente, tinham chocado , por um lado, à falta de clareza e às contradições
das suas próprios intenções, por outro, ao estado atrasado da província e da frente. Foi

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por isso, na capital, as consequências da derrota manifestaram-se antes de mais, com
maior violência. Todavia, absolutamente inexactas foram as afirmações tão frequentes na
mesma literatura oficial, segundo as quais a derrota de Julho teria passado quase
despercebida na província. É teoricamente inverossímil e é desmentido pelo testemunho
dos factos e dos documentos. Quando as grandes questões se colocavam, todo o país,
espontaneamente, voltava cada vez a cabeça para Petrogrado. A derrota dos operários e
os soldados da capital devia justamente produzir uma enorme impressão sobre as
camadas mais avançadas da província. O pavor, a desilusão, a apatia produziam em
diversas partes do país sob aspectos diferentes, mas observavam-se por todo o lado.
O abatimento da revolução traduziu-se antes de tudo num extremo enfraquecimento
da resistência da massas aos adversários. Enquanto que as tropas introduzidas em
Petrogrado procediam oficialmente aos actos punitivos, desarmando os soldados e os
operários, bandas meio voluntárias, encobertos, cometiam impunemente atentados sobre
as organizações operárias. Após a destruição da redacção do Pravda e da tipografia dos
bolcheviques, saquearam as instalações do sindicato dos metalúrgicos. A seguir, tiros
foram dados em direcção dos sovietes de bairro. Os conciliadores não foram poupados:
no dia 10 , um ataque deu-se contra uma das sedes do partido à cabeça do qual se
encontrava o ministro do Interior Tseretelli. Dan necessitou de uma boa dose de
abnegação para escrever sobre a chegada das tropas: «Em vez de ver morrer a
revolução, agora testemunhamos o seu novo triunfo.» Esse triunfo ia tão longe que,
segundo o menchevique Prochitsky, os transeuntes, nas ruas, se tinham ares de
operários e eram alvo de desconfiança de bolchevismo, corriam perigo de sofrer cruéis
sevícias. Que sintoma de uma brusca mudança de toda a situação!
Lazis, membro do comité bolchevique de Petrogrado, depois conhecido como agente
da Tcheka, notava no seu diário: «9 de Julho. Na cidade, saquearam todas as nossas
tipografias. Ninguém ousou imprimir os nossos jornais e panfletos. Nós recorremos à
montagem de uma tipografia clandestina. O bairro de Vyborg tornou-se um refúgio para
todos. Para aqui vieram o Comité de Petrogrado e os membros do Comité central que são
perseguidos. Nas instalações da vigia da fábrica Renault o comité está em conferência
com Lenine. Colocou-se a questão de uma greve geral. Entre nós, no comité, as opiniões
são partilhadas. Votei pelo apelo à greve. Lenine, após ter explicado a situação, propôs
que se renuncie a esta solução... 12 de Julho. A contra-revolução é vencedora. Os
sovietes são impotentes. Os junkers enraivecidos caem sobre os mencheviques. Alguns
elementos do partido hesitam. O afluxo dos membros interrompeu-se... Mas, nas nossas
fileiras, ainda não há fugas.» Após as Jornadas de Julho, «a influência dos socialistas-
revolucionários sobre as fábricas de Petrogrado foi forte» escreve o operário Sisko. O
isolamento dos bolcheviques suscitava automaticamente o peso específico e o sentimento
íntimo dos conciliadores. No 16 de Julho, um delegado de Vassili-Ostrov relata na
conferência bolchevique da cidade que o estado de espírito no distrito é no conjunto»
cheio de entusiasmo, com a excepção de algumas fábricas. Na fábrica Báltica, os
socialistas-revolucionários e os mencheviques nos esmagam.» Nesse sítio, o assunto foi
levado longe: o comité de fábrica decidiu que os bolcheviques seguiriam as obséquias
dos cossacos mortos, e a ordem foi executada... Os abandonos oficiais de membros do

500
partido são, na verdade, insignificantes: em todo o distrito, sobre quatro mil membros, não
houve mais de cem a retirarem-se abertamente. Mas um maior número, nos primeiros
dias, afastou-se sem nada dizer.» As jornadas de Julho – disse então o operário Minitchev
nas suas lembranças – nos mostram que havia também nas nossas fileiras individuos
que, temendo pela sua pele», tinham «as suas cartas do partido e renegavam este. Mas
eles não eram numerosos...», acrescentou ele com um tom confiante. «Os
acontecimentos de Julho – escreve Chliapnikov – e toda a campanha de violencias e de
calúnias que estavam associadas conta as nossas organizações interromperam esse
ascenso da nossa influência que, no início de Julho, tinha atingido um vigor formidável...
O nosso próprio partido estava em meia legalidade e desenvolvia uma luta defensiva,
apoiando-se principalmente nos sindicatos e nos comités de fábrica ou de oficina.»
A acusação lançada contra os bolcheviques de estar ao serviço da Alemanha não
podia deixar de produzir uma impressão mesmo sobre os operários de Petrogrado, pelo
menos sobre uma parte considerável deles. Aquele que hesitava retirou-se. O que estava
pronto a aderir hesitou. Mesmo entre os que tinham já aderido, um bom número recuou. A
manifestação de Julho, além dos bolcheviques, participaram bastante operários
pertencendo aos socialistas-revolucionários e aos mencheviques. Sob o impacto do golpe
recebido, eles foram os primeiros a recuar sob a cobertura das bandeiras dos seus
partidos: parecia-lhes agora que tento infringido a disciplina, ele tinha verdadeiramente
cometido uma falta. Uma grande parte dos operários sem partido, seguidores do partido,
afastou-se igualmente dele sob influência da calúnia oficial propagada e juridicamente
apresentada.
Nesta atmosfera política modificada, os golpes da repressão tinham um efeito mais
forte. Olga Ravitch, uma das antigas e activas militantes do partido, membro do Comité de
Petrogrado, dizia mais tarde no seu relatório: «As jornadas de Julho causaram na
organização um tal alvoroço que, durante as três primeiras semanas, nem sequer se
considerava qualquer actividade.» Ravitch tem aqui em consideração principalmente a
actividade aberta do partido. Durante muito tempo, foi impossível de estruturar a
publicação do jornal do partido: não se encontrava tipografia que quisesse servir os
bolcheviques. E a resistência nem sempre vinha dos patrões: houve uma tipografia onde
os operários ameaçaram de parar o trabalho no caso onde que se imprimisse um jornal
bolchevique, e o patrão anulou o negócio já concluído. Durante um certo tempo,
Petrogrado foi abastecido pelo jornal de Cronstadt.
O flanco de extrema-esquerda sobre a arena aberta mostrou ser, em duas semanas,
o grupo dos mencheviques internacionalistas. Os operários iam de boa vontade ouvir a
conferência de Martov, em quem o instinto de militante tinha despertado no período de
recuo, quando a revolução tinha sido obrigada não a tomar novas vias, mas a lutar para
conservar os restos das suas conquistas. «A coragem de Martov era a do pessimismo.»
Sobre a revolução – dizia ele em sessão do comité executivo – metemos, aparentemente,
o ponto final... Se chegámos isto... a voz do campesinato e dos operários não tem lugar
na revolução russa, nós sairemos da cena honestamente, tomaremos esse desafio não
por renúncia silenciosa, mas por uma batalha franca.» Martov propunha sair da cena
combatendo francamente os camaradas do seu partido que, como Dan e Tseretelli,

501
apreciavam a vitória alcançada pelo generais e cossacos sobre os operários e os
soldados como uma vitória da revolução sobre a anarquia. Sobre o fundo da campanha
desenfreada levada contra os bolcheviques e da atitude rastejante dos conciliadores
diante dos cossacos com galões, a conduta de Martov tornava-se muito visível, nessas
difíceis semanas, aos olhos dos operários.
Mais particularmente difícil foi a crise de Julho para a guarnição de Petrogrado. Os
soldados, no sentido político, estava de longe em atraso sobre os operários. A secção dos
soldados, no Soviete, continuava a apoiar os conciliadores enquanto que, já, a secção
dos operários seguia os bolcheviques. Nisso não se contradizia de forma nenhuma o facto
que os soldados se mostravam particularmente dispostos a ameaçar com as suas armas.
Na manifestação, eles desempenharam um papel mais agressivo que os operários, mas,
debaixo dos golpes, refluíam mais longe na retaguarda. O fluxo de hostilidade contra os
bolcheviques elevava-se bastante contra os bolcheviques na guarnição de Petrogrado.
«Após a derrota – conta o antigo soldado Mitrevitch – não apareço mais na minha
companhia, porque poderiam matar-me, enquanto o vendaval não passar.» É justamente
nos regimentos mais revolucionários, que tinham alinhado nas primeiras fileiras durante
as Jornadas de Julho e que tinham por consequência aparado os golpes mais duros, que
a influência do partido caiu a tal ponto que foi impossível reconstituir aí a organização,
mesmo três meses mais tarde: sob o tremor demasiado violento, os efectivos foram
reduzidos em migalhas. A organização militar teve que recuar bastante.» Após a derrota
de Julho – escreve o antigo soldado Minitchev – considerava-se a organização não muito
amigavelmente, não somente entre os camaradas da cúpula do nosso partido, mas
mesmo em certos comités de bairro.»
Em Cronstadt, o partido perdeu duzentos e cinquenta membros. O estado de espírito
da guarnição na fortaleza bolchevique tinha-se consideravelmente reduzido. A reacção
tinha desferido mesmo até Helsingfors. Avksentiev, Bonakov, o advogado Sokolov tinham
chegado para levar os barcos bolcheviques à resipiscência. Eles obtiveram certos
resultados. Prendendo os dirigentes bolcheviques, utilizando a calúnia oficial, ameaçando,
conseguiram obter declarações de lealdade mesmo do couraçado bolchevique
Petropavlosk. De qualquer modo, sobre a exigência formulada de entregar «os
instigadores», todos o barcos recusaram.
Em Moscovo não foi diferente. «A campanha odiosa da imprensa burguesa – disse
Piatnitsky – produziu pânico mesmo entre certos membros do Comité de Moscovo.» A
organização, após as Jornadas de Julho, enfraqueceu-se. «Nunca esqueceremos –
escreveu o operário moscovita Ratekhine – um momento penoso. O plenário reuniu-se (o
do soviete de Zamoskvoretchié)... Os nossos camaradas bolcheviques, como vejo, não
são numerosos... Stieklov vem direito a mim, um dos camaradas enérgicos, e, proferindo
apenas as palavras, pede-me se é verdade que Lenine foi levado com Zinoviev num
vagão blindado; se é verdade que eles ganharam dinheiro alemão? O meu coração
apertou-se dolorosamente ao ouvir tais questões. Outro camarada aproximou-se,
Konstatinov: Onde está Lenine? Desapareceu, diz-se... O que é que se vai passar agora?
Etc., etc.» Esta cena em directo nos apresenta sem erro os estados de alma nos quais
passaram então os operários avançados. «A publicação de documentos publicados por

502
Alexinsky – escreve Davydovsky, artilheiro de Moscovo – provocou um transtorno terrível
na brigada. A nossa bateria, a mais bolchevique, foi abalada pela mentira infame...
Parecia que tínhamos perdido toda a confiança.»
«Após as Jornadas de Julho – escreve V. Iakovleva, que era então membro do
Comité central e dirigia o trabalho na vasta província de Moscovo – todos os relatórios
das localidades eram unanimes em assinalar não somente uma brusca desmoralização
nas massas, mas também uma certa hostilidade em relação ao nosso partido. Em muitos
casos, agrediram os nossos oradores. O número de membros diminuir bastante, e certas
organizações deixaram mesmo completamente de existir, sobretudo no Sul.» Por meados
de Agosto, nenhuma modificação sensível ainda não se tinha produzido. O trabalho se faz
nas massas para a conservação da influência, não se observou qualquer crescimento das
organizações. Nos governos de Riazan e de Tambov, não se criaram novas ligações, não
surgiram células bolcheviques; no conjunto, foram os patrimónios dos socialistas-
revolucionários e dos mencheviques.
Évreinov, que militava nas proletária Kinechma, lembra-se como penosa se tornou a
situação após os acontecimentos de Julho, quando, na sua grande conferência de todas
as organizações públicas, foi colocada a questão de excluir os bolcheviques do Soviete.
Os abandonos no partido tomavam proporções tão consideráveis por vezes que foi
somente após uma nova revisão das listas dos membros que a organização começou a
viver uma vida normal. Em Tula, graças a uma séria selecção preliminar dos operários, a
organização não sofreu qualquer forma abandono, mas as suas ligações com as massas
enfraqueceu. Em Nijni-Novgorod, após uma campanha de repressão conduzida sob a
direcção do coronel Verkhovsky e do menchevique Khintchuk, uma depressão marcada
deu-se: nas eleições da duma municipal, o partido não conseguiu passar o número de
quatro deputados. Em Kaluga, a fracção bolchevique tinha em consideração a
possibilidade para ela de ser eliminada do Soviete. Em certos pontos da região moscovita,
os bolcheviques viram-se forçados a sair não somente dos sovietes, mas também dos
sindicatos.
Em Saratov, onde os bolcheviques mantinham relações muito pacíficas com os
conciliadores e dispunham-se ainda, no fim de Junho, a se apresentar às eleições, para a
duma municipal, uma lista comum com eles, os soldados, após o vendaval de Julho,
foram a tal ponto erigidos contra os bolcheviques que eles invadiram as assembleias
eleitorais, arrancavam aos bolcheviques seus boletins e maltratavam os agitadores.
«Tornou-se difícil para nós – escreve Lebedev – de nos mostrar nas assembleias
eleitorais. Frequentemente gritavam-nos: espiões da Alemanha, provocadores!...» Nas
fileiras dos bolcheviques de Saatov, encontrou-se um bom número de pusilâmines:
«Muitos deles declaravam que abandonavam o partido, outros esconderam-se.»
Em Kiev, que gozávamos há muito tempo da reputação de um centro Cem Negros, a
campanha de perseguição contra os bolcheviques desencadeou-se com uma violência
particular e logo continuou com os mencheviques e socialistas-revolucionários. A
depressão do movimento revolucionário ressentia-se fortemente sobretudo aqui: nas
eleições à Duma municipal, os bolcheviques só obtiveram um total de 6% dos votos. Na

503
conferência geral da cidade, os relatores queixavam-se «de notarem por todo o lado a
apatia e a inacção». O jornal do partido viu-se forçado a tornar-se semanário em vez de
ser diário.
A dissolução e a deslocação dos regimentos mais revolucionários já deviam, por eles
próprios, não somente baixar o nível político das guarnições, mas agir também de uma
forma tão intolerável sobre os operários das localidade que se sentiam mais firmes quanto
sentiam por detrás deles as costas das tropas amigas. Foi assim que a transferência do
57º Regimento de Tver modificou bruscamente a situação política, tanto entre os soldados
como sobre os operários: mesmo nos sindicatos, a influência dos bolcheviques tornou-se
significante. Isso manifestou-se ainda em maiores proporções em Tiflis, onde os
mencheviques, de mão dada com o estado-maior, substituíram os contingentes
bolcheviques por regimentos completamente atrasados.
Em certos sítios, segundo a composição da guarnição, o nível dos operários da
localidade e as causas acidentais, a reacção política tomava uma expressão paradoxal.
Em Iaroslav, por exemplo, os bolcheviques, em Julho, viram-se quase totalmente
excluídos do soviet operários, mas conservaram uma influência preponderante nos
sovietes de deputados soldados. Em certas localidades, os acontecimentos de Julho
pareciam passar efectivamente sem deixar traços, sem ter parado o crescimento do
partido. Tanto se possa julgar, isso foi observado em todos os caso onde a retirada geral
coincidia com a entrada na arena revolucionária de camadas novas atrasadas. Foi assim
que, em Julho, em certos distritos têxteis, começaram por observar um afluxo sensível de
operários para as organizações. Mas o quadro de conjunto do refluxo não se modificou.
O inegável cuidado, mesmo exagerado, da reacção diante da derrota parcial foi, no
seu género, o resgate pago pelos operários e sobretudo pelos soldados por ter
demasiado facilmente, demasiado rapidamente, aderido aos bolcheviques nos meses
precedentes. A brusca reviravolta do estado de espírito das massas produziu uma
selecção automática e, além disso, sem erro nos quadros do partido. Os que se
mantiveram firmes, não se podia contar a seguir. Eles constituíam um núcleo na oficina,
na fábrica, no bairro. Na véspera de Outubro os organizadores lançaram mais de uma vez
à volta deles olhares escrutadores quando se tratava de nomear ou de enviar em missão,
lembrando-se como fulano tal se tinha comportado durante as Jornadas de Julho.
Na frente, onde todas as relações se apresentaram mais desenvolvidas, a reacção
de Julho tomou um carácter particularmente violente. O Grande Quartel General utilizou
os acontecimentos antes de tudo para criar efectivos especiais, os «do dever diante da
pátria livre». Nos regimentos, as brigadas de choque organizavam-se. «Vi muitas vezes
os udarniki (membros das brigadas de choque) – conta Denikine – e e sempre as vi
concentrados neles próprios, pensativos. Nos regimentos, era considerados com reserva
ou com hostilidade.» Os soldados viam, com razão, nesses «contingentes do dever», os
núcleos de uma guarda pretoriana. «A reacção não era ronceira – conta, sobre a frente
romena que se atrasava em relação às outras, o socialista-revolucionário Degtiarev, que
aderiu depois aos bolcheviques. Vários soldados foram presos como desertores. Os
oficiais levantaram a cabeça e mostraram desdém pelos comités do exército; aqui e acolá,

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os chefes tentaram impor de novo a saudação militar.» Os comissários procediam ao
saneamento do exército. «Em quase toda as divisões – escreve Stankevitch – tinham o
seu bolchevique cujo nome era mais conhecido na tropa que o do chefe da divisão... Nós
eliminamos progressivamente um notoriedade após outra.» Ao mesmo tempo, sobre toda
a frente, ocupavam-se em desarmar os contingentes insubordinados. Comandantes e
comissários apoiavam-se para isso sobre os cossacos e sobre as brigadas especiais que
os soldados odiavam.
No dia da queda de Riga, a conferência dos comissários da frente Norte e
representantes das organizações do exército reconheceu como indispensável a aplicação
mais sistemática das medidas de repressão rigorosas. Homens foram fuzilados por terem
confraternizado como os alemãs. Muitos comissários, entusiasmando-se com a evocação
de vagas imagens da Revolução francesa, tentaram provar que tinham punho de ferro.
Eles não compreendiam que os comissários jacobinos tinham-se apoiado na base, não
tinham poupado aristocratas e os burgueses e que, só, a autoridade plebeia os armava
implacavelmente par implantar nas tropas uma rigorosa disciplina. Os comissários de
Kerensky não tinham qualquer base popular sob os seus pés, nenhuma aureola moral na
cabeça. Eles eram, aos olhos dos soldados, agentes da burguesia, furrieles da Entente,
simplesmente. Eles podiam, durante um certo tempo, intimidar o exército – efectivamente
eles conseguiam, até um certo ponto – mas eram impotentes a dar-lhe uma nova vida.
No gabinete do comité executivo, em Petrogrado, um relatório, no início do mês de
Agosto, dizia que, no estado de espírito do exército, tinha-se produzido uma reviravolta
favorável, que tinham recomeçado a fazer exercício; mas que, por outro lado, observava-
se um agravamento das recusas de justiça, de arbítrio, da opressão. Foi com acuidade
particular que veio a se colocar a questão do corpo dos oficiais: este «está
completamente isolado, forma as suas próprias organizações, muito fechadas». Outros
dados provam que aparentemente, na frente, houve mais ordem, que os soldados
deixaram de se amotinar por motivos insignificantes e acidentais. Mas mais concentrado
se tornava o descontentamento diante da situação no seu conjunto. No discurso prudente
e diplomático do menchevique Kutchine na Conferência de Estado, sob notas
apaziguadoras, passava em surdina um aviso inquietante. «Há sem dúvida uma
reviravolta; incontestavelmente a calma existe, mas, cidadãos, há também outra coisa, há
um certo sentimento de desilusão, e nós apreendemos com atenção esse sentimento...»
A vitória temporariamente obtida sobre os bolcheviques era antes de tudo uma vitória
sobre as novas esperanças dos soldados, sobre a fé deles num futuro melhor. As massas
tinham-se tornado mais circunspectas, a disciplina parecia ter aumentado. Mas, entre os
dirigentes e os soldados, o abismo tinha-se aprofundado. O quê e quem engoliria ele
amanhã?
A reacção de Julho traça de certa forma uma linha definitiva de partilha de águas
entre a Revolução de Fevereiro e a de Outubro. Os operários, as guarnições da
retaguarda, a frente, mesmo parcialmente, como se verá mais longe, os camponeses
recuaram, saltaram para trás, como se tivessem levado um coice no peito. O golpe tinha
na realidade um carácter mais moral que físico, mas não deixava de ser eficaz. Durante
os quatro primeiros meses todos os processos de massas tinham uma só direcção: à

505
esquerda. O bolchevismo crescia, solidificava-se, tornava-se ousado. Mas eis que o
movimento chocou contra uma parede. De facto, ele descobriu que, nas vias da
Revolução de Fevereiro, não se podia avançar mais. Ainda se houve quem acreditasse
que a revolução tinha em suma chegado ao seu ponto morto. Na realidade, era a
Revolução de Fevereiro que tinha dado tudo dela. Esta crise interior da consciência das
massas, combinada com a repressão e a calúnia, levou à perturbação e a recuos, ao
pânico, em certos casos. Os adversários ousaram. Na própria massa subiu à superfície
tudo o que havia atrás, de inércia, de descontentamento, por causa das comoções e
privações. Esses golpes de ressaca, na torrente da revolução são de uma violência
irresistível: dizer-se-ia que eles se conformam às leis de uma hidrodinâmica social. É
impossível subir tal fluxo de volta – só resta a não se deixar levar, a não se deixar
submerger, a manter-se, esperando que o fluxo da reacção se esgote, e a preparar-se
durante esse tempo, pontos de apoio para uma nova ofensiva. Ao observar certos
regimentos que, no 3 de Julho, tinham marchado sob as bandeiras bolcheviques e que,
uma semana depois, reclamaram o castigo rigoroso contra os agentes do Kaiser, os
susceptíveis esclarecidos podiam, ao que parecia, cantar vitória: aí estão elas, as vossas
massas, aqui está como elas são e capazes de compreender! Mas é cepticismo barato.
Se as massas, efectivamente, modificavam os seus sentimentos e pensamentos sob a
influência das circunstâncias acidentais, não se poderia explicar a potente causalidade
que caracteriza o desenvolvimento das grandes revoluções. Mais profunda é a empresa
sobre milhões de gente no povo, mais o desenvolvimento da revolução é regular, e é com
uma maior certeza que se pode predizer o encandeamento das etapas seguintes. É
preciso não esquecer que o desenvolvimento político das massas tem lugar não em linha
direita, mas seguindo uma curva complexa: tal é, em suma, a órbita de todo o processo
material.
As condições objectivas levavam imperiosamente os operários, os soldados e os
camponeses a alinharem sob a bandeira dos bolcheviques. Mas as massas, penetrando
nessa via, entraram em luta com o seu próprio passado, com as suas crenças de ontem,
e particularmente de hoje. Num momento difícil, da derrota e da desilusão, os velhos
preconceitos, que não foram ultrapassados, subiram à superfície, e os adversários
agarraram-se naturalmente como uma prancha de salvação. Tudo o que havia nos
bolcheviques de pouco claro, de raro, de enigmático – novidade de ideias, de audácia,
desdém de todas as autoridades antigas e novas – tudo isso tinha agora encontrado uma
explicação simples, persuasiva na sua absurdidade: espiões da Alemanha! A acusação
lançada contra os bolcheviques apostava em suma sobre o passado de escravatura do
povo, sobre uma herança de trevas, de barbarie, de superstição – e esta aposta não
estava mal feita. A grande impostura patriótica na corrente de Julho e de Agosto era um
factor político de primeira importância, formando acompanhamentos a todas as questões
da actualidade. As esferas da calúnia alargaram-se ao país com a imprensa dos cadetes,
ganhando a província, os territórios limítrofes do estrangeiro, penetrando nos sítios
perdidos. No fim de Julho, a Organização bolchevique de Ivanovo-Voznessensk exigiu
ainda a abertura de uma campanha mais enérgica contra a perseguição! A questão do

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peso específico da calúnia na luta política de uma sociedade civilizada espera ainda o seu
sociólogo.
E, porém, a reacção, entre os operários e soldados, nervosa e fervescente, não era
nem profunda nem sólida. As fábricas da vanguarda, em Petrogrado, ergueram-se poucos
dias depois da derrota, protestaram contra as prisões e a calúnia, bateram às portas do
comité executivo, restabeleceram as ligações. A fábrica de armas de Sestrorestk, os
operários retomaram logo o leme nas mãos: a assembleia geral do 20 de Julho decidiu
pagar aos operários os dias de manifestação, na condição que o montante dos salários
fosse totalmente empregada em publicações para a frente. O trabalho de agitação aberta
dos bolcheviques em Petrogrado retomou, após o testemunho de Olga Ravitch, no 20 de
Julho. Nos comícios que não reunissem mais de duzentas a trezentas pessoas, em
diferentes partes da cidade, tomaram a palavra três homens: Slutsky, que foi morto mais
tarde pelos Brancos na Crimeia, Volodarsky, morto pelos socialistas-revolucionários em
Petrogrado, e Evdokimov, metalúrgico de Petrogrado, um dos oradores mais talentosos
da revolução. Em Agosto, a agitação feita pelo partido adquiriu grande amplitude.
Segundo uma nota de Raskolnikov, Trotsky, preso no 23 de Julho, deu na prisão o
seguinte quadro da situação na cidade: «Os mencheviques e os socialistas-
revolucionários... continuam a perseguir raivosamente os bolcheviques. Não param de
prender os nossos camaradas. Mas, nos círculos do partido, não há desmoralização. Pelo
contrário, todos olham o futuro com esperança, considerando que as medidas de
repressão consolidarão somente a popularidade do partido... Nos bairros operários,
também não se nota desmoralização.» Efectivamente, em breve, uma assembleia de
operários de vinte e sete empresas do distrito de Peterhof votou uma resolução
protestando contra o governo irresponsável e a sua política contra-revolucionaria. Os
distritos proletários reanimam-se.
Enquanto que na cimeira, no palácio de Inverno e no palácio de Tauride, erigiu-se
uma nova coligação, reuniam-se quebrando e consertando – mesmo nesses dias e
mesmas horas, nos 21 e 22 de Julho, produzia-se em Petrogrado um acontecimento de
grande importância, sem dúvida apenas notado num mundo oficial, mas que assinalou a
formação de uma coligação mais sólida: a dos operários de Petrogrado e dos soldados do
exército da frente. À capital vieram os delegados armados em campanha, que
protestavam, em nome dos seus contingentes, contra a sufocação da revolução na frente.
Durante alguns dias, eles bateram debalde às portas do comité executivo. Não os
receberam, expulsaram-os, procuravam desembaraçar-se deles. Entretanto, chegaram
novos delegados que deviam passar pela mesma roda, repelidos, chocavam uns sobre os
outros nos corredores, lamentavam-se, injuriavam, procuravam conjuntamente uma saída.
Eram ajudados pelos bolcheviques. Os delegados decidiram trocar pontos de vista com
os operários, os soldados, os marinheiros da capital, que os acolheram de braços abertos,
abrigaram-os. Numa conferência que ninguém do alto tinha convocado, que tinha surgido
de baixo, teve, como participantes, delegados de vinte e nove regimentos da frente,
noventa fábricas de Petrogrado, marinheiros de Cronstadt e guarnições dos arrabaldes.
No centro da conferência encontraram-se delegados vindos das trincheiras; entre
eles, havia também alguns jovens oficiais. Os operários de Petrogrado escutavam os

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homens da frente com avidez, procurando não perder uma palavra do que eles diziam.
Estes contavam como a ofensiva e as sua consequências devoravam a revolução.
Obscuros soldados, que não eram agitadores, descreviam nas conversas simples o dia-a-
dia da vida da frente. Esses detalhes eram consternadores, porque eles mostravam
claramente o que havia de mais detestável no antigo regime. O contraste entre as
esperanças de outrora e a realidade de hoje impressionou os corações e uniu os
pensamentos numa só voz. Ainda se entre os delegados da frente, os socialistas-
revolucionários estivessem verosimilmente em maioria, uma violenta resolução
bolchevique foi adoptada quase unanimemente: só houve quatro abstenções. A resolução
adoptada não ficou letra morta: separados, os delegados contaram a verdade, dirão eles
como foram afastados os líderes conciliadores e como eles foram recebidos pelos
operários. As trincheiras confiaram nos seus relatores, estes não enganaram.
Mesmo na guarnição de Petrogrado, o início da reviravolta esboçou-se no fim do
mês, sobretudo após os comícios aos quais tinham participado representantes da frente.
Na verdade os regimentos que tinham mais sofrido não podiam ainda libertar-se da sua
apatia. Em contra-partida, nos contingentes que tinham ficado mais tempo agarrados a
uma posição patriótica e que tinham mantido a disciplina durante os primeiros meses da
revolução, a influência do partido crescia sensivelmente. A Organização militar, que tinha
particularmente sofrido do esmagamento, começou a recuperar. Como sempre após as
derrotas, nos círculos do partido, considerava-se com hostilidade os dirigentes do trabalho
no exército, queixando-se das faltas reais ou imaginárias e do treino. O Comité central
associou-se de perto à Organização militar, efectuando sobre ela, por intermediário de
Sverdlov e de Dzerjinski um controlo mais directo, e o trabalho retomou, mais lentamente
que antes, mas mais seguramente.
Lá para o fim de Julho, a situação dos bolcheviques nas fábricas de Petrogrado já
estava restabelecida; os operários tinham-se unido sob a mesma bandeira; portanto eram
já outros homens, mais maduros, isto é mais prudentes, mas também mais resolutos.
«Nas fábricas, nós gozávamos de uma formidável influência, ilimitada, relatava
Volodarsky, no 27 de Julho, no congresso dos bolcheviques. O trabalho do partido está
cheio principalmente de operários... A organização subiu a partir de baixo, e é por isso
que temos toda a razão de pensar que ela não se deslocará.» A União da Juventude
contava nessa época cerca de cinquenta mil membros e a influência dos bolcheviques
fazia-se sentir cada vez mais. No 7 de Agosto, a secção operária do Soviete adoptou uma
resolução visando a abolição da pena de morte. Em sinal de protesto contra a
Conferência de Estado, os trabalhadores de Potilov descontaram o salário de um dia
como subscrição para a imprensa operária. A Conferência dos comités de fábricas e
oficinas, uma resolução foi unanimemente adoptada, declarando que a Conferência de
Moscovo é «uma tentativa de organização das forças contra-revolucionárias»...
Cronstadt cicatrizava também as suas feridas. No 20 de Julho, um comício sobre a
praça da Âncora exigiu a entrega do poder aos sovietes, o envio para a frente dos
cossacos assim como guardas e polícias, a abolição da pena de morte, a admissão em
Tsarkoie-Selo de delegados de Cronstadt para verificar se Nicolau II, em detenção, é
suficientemente e rigorosamente vigiado, a deslocação dos «batalhões da Morte», a

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confiscação dos jornais burgueses, etc. Ao mesmo tempo, um novo almirante, Tyrkov,
tendo tomado o comando da fortaleza, ordenou o envio de barcos de guerra da bandeira
vermelha e de hastear a bandeira com a cruz de Santo André. Os oficiais e uma parte dos
soldados voltaram a mostrar os seus galões. Os marinheiros de Cronstadt protestaram. A
comissão governamental de inquérito sobre os acontecimentos dos dias 3 a 5 foi obrigada
a deixar Cronstadt sem resultados para voltar para Petrogrado: ela foi recebida por vaias,
protestos e ameaças.
O movimento de opinião produziu-se em toda a frota. «No fim de Julho e no início de
Agosto – escreve um dos dirigentes na Finlândia, Zalejsky – sentia-se nitidamente que
não somente a reacção exterior não tinha conseguido quebrar as forças revolucionárias
de Helsingfors, mas, pelo contrário, aqui, notava-se um movimento muito nítido para a
esquerda e um grande crescimento das simpatias para os bolcheviques.» Os marinheiros
tinham sido, em certa medida, os instigadores da manifestação de Julho,
independentemente e parcialmente contra a vontade do partido que suspeitavam de
moderação e quase de espírito conciliador. A experiência da manifestação armada
mostrou-lhes que a questão do poder não se resolvia tão simplesmente. Um estado de
opinião anarquista cedia lugar à confiança em relação ao partido. Muito interessante,
sobre esse aspecto, é o relatório do delegado de Helsingfors no fim de Julho: «Sobre as
pequenas unidades navais, é a influência dos socialistas-revolucionários que predomina;
mas sobre os grandes barcos de guerra, cruzadores e couraçados, todos os marinheiros
ou são bolcheviques ou seus simpatizantes. Tal era (e precedentemente também) o
estado de espírito dos marinheiros sobre o Petropavlovsky e sobre o República, e após os
dias 3 a 5 de Julho, vieram juntar-se a nós o Gangut, o Sebastapol, o Rurik, o Andrei
Pervozvanny, o Diana, o Gromoboi, o Índia. Assim, temos nas mãos uma força formidável
de combate... Os acontecimentos do 3 a 5 de Julho ensinaram muito aos marinheiros,
mostrando-lhes que não bastava estar num certo estado de espírito para atingir o
objectivo.»
Em atraso em relação a Petrogrado, Moscovo seguiu o mesmo caminho. «Pouco a
pouco, a atmosfera asfixiante começou a dissipar-se – conta o artilheiro Davydovsky – a
massa dos soldados começou a voltar a ela e retomámos a ofensiva sobre toda a frente.
Esta impostura que parou por um momento a massa para a esquerda reforçou logo a
seguir o seu afluxo em direcção a nós.» Sob o impacto, a amizade das fábricas e dos
quartéis estreitava-se. Um operários de Moscovo, Strelkov, conta como as relações
estreitas estabeleceram-se progressivamente entre a fábrica Michelsohn e o regimento
vizinho. Os comités de operários e soldados decidiram frequentemente, em sessões
unificadas, as questões práticas da vida e da fábrica e do regimento. Os operários
organizavam para os soldados sessões de educação e de instrução, compravam-lhes
jornais bolcheviques e empregavam-se por todos os meios em ajudar-lhes. «Se algum de
nós é punido – conta Strelkov – acodem-nos logo para se queixarem... Durante os
comícios de rua, se alguém brutaliza um operário de Michelsohn, basta que um soldado
tenha conhecimento do facto, e logo chegam por grupos inteiros para o libertar. Ora, as
vexações eram então numerosas. Envenenavam-nos com legendas do ouro alemão, da
traição e todas as mentiras cobardes dos conciliadores.»

509
A conferência moscovita dos comités de fábrica e de oficinas, no fim de Julho, tomou
primeiro um tom moderado, mas evolui muito para a esquerda numa semana de trabalhos
e, cerca do fim, adoptou uma resolução nitidamente tingida de bolchevismo. Nesses
mesmos dias, um delegado de Moscovo, Podbielsky, relatava isto do Congresso do
partido: «Seis sovietes de bairro sobre dez encontra-se nas nossas mãos... Diante da
perseguição actualmente organizada, só nos salvamos na classe operária, que apoia
fortemente o bolchevismo.» No início do mês de Agosto, quando das eleições nas
fábricas de Moscovo, foram, em vez dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários,
os bolcheviques que passavam. O crescimento da influência do partido manifestou-se
com fuga na greve geral na véspera da Conferência. As Izvestia oficiais de Moscovo
escreviam: «Enfim é tempo de compreender que os bolcheviques não constituem grupos
irresponsáveis, que são um destacamento da democracia revolucionária organizada, por
detrás da qual estão largas massas, nem sempre disciplinadas, mas em contra-partida
totalmente devotadas à revolução.»
O enfraquecimento, em Julho, das posições do proletariado encorajou os industriais.
Um congresso dos treze mais importantes organizações de empresa, e nesse número dos
estabelecimentos bancários, criou um comité de defesa da indústria que se encarregou da
direcção dos lock-out e em geral de toda a política de ofensiva contra a revolução. Os
operários replicaram pela resistência. Sobre todo o país desferiu uma vaga de grandes
greves e outros conflitos. Se os destacamentos mais experientes do proletariado
mostraram-se prudentes, as novas camadas, recentemente formadas, comprometeram-se
resolutamente na luta. Se o metalúrgicos ficaram na expectativa e se preparavam, os
operários do têxtil irrompiam no terreno, assim como os da indústria da borracha, do
papel, do couro. Houve um sobresalto das camadas mais atrasadas e submetidas de
trabalhadores. Kiev foi perturbada por uma violenta greve de vigilantes nocturnos e de
porteiros: percorrendo os prédios, os grevistas apagavam os lampadários, retiravam as
chaves dos elevadores, abrias as portas que davam para a rua, etc.. Cada conflito,
qualquer que fosse o motivo, tinha tendência a se estender sobre todo o ramo da indústria
e adquirir um carácter de princípio. Com o apoio dos operários de todo o país, os
trabalhadores de peles de Moscovo abriram, em Agosto, uma longa e opiniático luta para
conquistar aos comités de fábrica o direito de decidir do emprego e do despedimento dos
trabalhadores.
Em muitos casos, sobretudo na província, as greves tomaram um carácter
dramático, indo até à prisão pelos grevistas de empreendedores e administradores. O
governo pregava aos operários a abnegação, entrava em coligação com os industriais,
enviava os cossacos na bacia do Donetz e aumentava para o dobro as tarifas sobre o
trigo e sobre os abastecimentos de guerra. Enquanto aumentava a indignação dos
operários, esta política não acomodava os empreendedores. «Com a clarividência de
Skobelev – declara lastimando-se Auerbach, um dos capitães da indústria pesada – os
comissários do Trabalho nas localidades ainda não tinham conseguido aí ver com
clareza... No próprio ministério... não tinham confiança nos agentes que tinham na
província... Os representantes dos operários foram convocados em Petrogrado e, no
palácio de Mármore, exortavam-nos, injuriando-os, reconciliavam-os com os industriais,

510
os engenheiros.» Mas tudo isso não conduzia a nada: «As massas operárias, nessa
época, caíam cada vez mais sobre a influência de agitadores mais resolutos e decididos
na sua demagogia.»
O derrotismo económico constituía o principal instrumento dos empreendedores
contra a dualidade de poderes nas fábricas. Na conferência dos comités de fábricas e de
oficinas, na primeira quinzena de Agosto, denunciava-se com detalhes a política nociva
dos industriais, tendendo a desorganizar e parar a produção. Além da manigâncias
financeiras, aplicavam muito a recepção de materiais, o encerramento das oficinas de
fabrico de instrumentos ou de reparações, etc.. Sobre a sabotagem desenvolvida pelo
empreendedores, testemunhos foram dados por John Reed que, como correspondente
americano, tinha acesso aos círculos mais diversos, obtinha informações confidenciais
dos agentes diplomáticos da Entente e podia escutar as confissões francas dos políticos
burgueses russos. «O secretário da secção peterburguesa do partido cadete – escreve
Reed – dizia-me que a decomposição da economia fazia parte da campanha lançada para
desacreditar a revolução. Um diplomata aliado a quem prometi em não revelar o nome,
confirmou o facto sobre a base das suas informações pessoais. Conheço minas de
carvão perto de Kharkov que foram incendiadas ou inundadas pelos proprietários.
Conheço fábricas de têxteis da região moscovita onde os engenheiros, ao abandonar o
trabalho, avariavam as máquinas. Conheço empregados dos caminhos de ferro que os
operários surpreenderam a avariar as locomotivas.» Tal era a atroz realidade económica.
Ela respondia não às ilusões dos conciliadores, não à politica da coligação, mas à
preparação do levantamento korniloviano.
Na frente, a união sagrada associava-se mal na retaguarda. A prisão de certos
bolcheviques – declara Stankevitch lamentando-se – não resolvia a questão. «A
criminalidade estava na atmosfera, seus contornos não eram bastante nítidos porque ela
tinha contaminado toda a massa.» Se os soldados se tornaram mais moderados, foi
unicamente porque eles tinham aprendido, em certa medida, a disciplinar o seu ódio. Mas
quando eles se excediam, seus verdadeiros sentimentos manifestavam-se ainda mais
claramente. Uma das companhias do regimento do Dobno, a quem tinham ordenado a
dissolução por recusar aceitar o capitão recentemente nomeado, sublevou algumas
companhias, logo todo o regimento, e quando o coronel tentou restabelecer a ordem
pelas armas, foi morto com uma coronhada. Isso passou-se no 31 de Julho. Se, nos
outros regimentos, o caso não chegou lá, podia, segundo o sentimento íntimo dos oficiais,
acontecer.
Em meados de Agosto, o general Cfhtcherbatchev comunicou ao Grande Quartel
General: «O estado de espírito dos contingentes de infantaria, exceptuando os batalhões
da Morte, é extremamente instável; às vezes, durante vários dias, as disposições de
certos elementos da infantaria modificaram-se bruscamente num sentido diametralmente
oposto.» Muitos comissários começaram a compreender que os métodos de Julho não
resolviam nada. «A prática dos tribunais militares revolucionários na frente Oeste –
comunica no 22 de Agosto o comissário Jamandt – introduziu terríveis divisões entre o
comando e a massa da população, desacreditando a ideia desses tribunais...» O

511
programa de salvação de Kornilov, antes da rebelião do Grande Quartel General, tinha
sido suficientemente posto à prova e tinha conduzido ao impasse.
O que mais assustou as classes possuidoras, eram os sintomas de decomposição
da cossacaria: aí havia a ameaça do desmoronamento da última muralha. Os regimentos
de cossacos em Petrogrado, em Fevereiro, tinham abandonado a monarquia sem
resistência. Na verdade, entre elas, em Novotcherkassk, as autoridades cossacas tinham
tentado dissimular o telegrama anunciando a insurreição e tinham celebrado com a
solenidade habitual, o primeiro de Março, no fim de contas, a cossacaria esteve pronta a
dispensar o czar e tinha mesmo descoberto, no seu passado, tradições republicas. Mas
ela não queria ir para além disso. Os cossacos, desde o princípio, recusaram enviar seus
deputados ao Soviete de Petrogrado, para não se meterem ao mesmo nível que os
soldados e operários, e constituírem um Soviete de tropas cossacas, agrupando as doze
formações da sua casta, na pessoa de seus dirigentes da retaguarda. A burguesia
esforçava-se, e não sem sucesso, em se apoiar sobre os cossacos contra os operários e
os camponeses.
O papel político da cossacaria era determinado pela sua situação particular no
Estado. Ela representava desde dos séculos uma original casta inferior privilegiada. O
cossaco não pagava qualquer imposto e dispunha de um lote de terra muito mais
considerável que o de um camponês. Nas três regiões vizinhas, as do Don, do Koban e
do Terk, três milhões de déciatines (1 déciatine = 2.70 acres) de terras, enquanto que,
para quatro milhões e trezentas mil almas da população camponesa, só cabia a essas
regiões seis milhões de déciatines: cada cossaco possuía em média cinco vezes mais
que um camponês. Entre os próprios cossacos, a terra era distribuida bem intendido muito
desigualmente. Havia grandes proprietários e kulaques mais importantes no Norte;
também havia pobres. Todo cossaco era obrigado a responder à primeira chamada do
Estado, com o seu cavalo e equipamento. Os cossacos ricos podiam bem pagar esta
despesa, graças à isenção de imposto. Os da base viam-se constringidos a obedecer às
obrigações da casta. Esses dados essenciais explicam suficientemente a situação
contraditória da cossacaria. Pelas suas camadas inferiores, ela tocava de perto ao
campesinato, pelas cúpulas – aos proprietários nobres. Ao mesmo tempo, as altas e
baixas camadas uniam-se pela consciência das suas particularidades, pelo seu estado de
eleição, e estavam acostumadas a considerar de alto não somente o operários, mas
mesmo o camponês. Foi o que tornava o cossaco médio tão apto a exercer a repressão.
Durante os anos de guerra, quando as jovens gerações se encontravam na frente,
as aldeias cossacas eram regimentadas pelos velhos, conservadores das tradições,
estreitamente ligados ao corpo de oficiais. Sob a aparência de ressuscitar a democracia
cossaca, os grandes proprietários, entre eles, durante os primeiros meses da revolução,
convocaram o que se chamaria os círculos militares, os quais elegeram atamans,
presidentes no seu género, e, junto deles, «governos militares». Os comissários oficiais e
os sovietes da população não cossaca não tinham poder nessas regiões, porque os
cossacos eram mais sólidos, mais ricos e melhor armados. Os socialistas-revolucionários
tentaram criar sovietes comuns de deputados camponeses e cossacos, mas estes últimos
não concordaram, temendo, não sem razão, que a revolução agrária lhes tirasse parte

512
das terras. Não foi em vão que Tchernov, como ministro da Agricultura, disse: «Os
cossacos deverão apertar-se um pouco nas suas terras.» Mais importante ainda foi o
facto que os camponeses da região e os soldados dos regimentos de infantaria diziam,
cada vez com maior frequência em relação aos cossacos: «Deitaremos a mão sobre as
vossas terras, vocês já reinaram bastante.» Foi assim que se apresentava o assunto na
retaguarda, na aldeia cossaca, parcialmente também na guarnição de Petrogrado, mesmo
no centro da vida política. Assim se explica também a conduta dos regimentos cossacos
na manifestação de Julho
Na frente, a situação era essencialmente diferente. No total, durante o verão de
1917, as tropas cossacas comprometidas na acção compunham-se de cento e sessenta e
dois regimentos e de cento e setenta e uma sotnias. Afastados das suas aldeias, os
cossacos da frente partilhavam com todo o exército as sacrifícios da guerra e, mesmo se
com um considerável atraso, passavam pela evolução da infantaria, perdiam fé na vitória,
exasperavam-se diante do estrago, murmuravam contra os chefes, viviam na angústia da
paz e do regresso ao lar. Para a polícia da frente e da retaguarda, destacou-se pouco a
pouco quarenta e cinco regimentos e até sessenta e cinco sotnias! Os cossacos eram
novamente transformados em guardas. Os soldados, os operários, os camponeses
resmungavam contra eles, lembrando-lhes o trabalho de verdugos que eles tinham
realizado em 1905. Muitos cossacos que, primeiro, eram orgulhosos da sua conduta em
Fevereiro, agora estavam desiludidos. O cossaco começou por amaldiçoar a sua nagaika
e recusou mais de uma vez de participar no serviço voluntário. Os desertores, entre os
homens do Don e do Koban, eram poucos: eles tinham medo dos velhos na aldeia. No
conjunto, os contingentes cossacos ficaram muito mais tempo entre as mãos do comando
que a infantaria.
Do Don, do Koban, soube-se na frente que as cúpulas da cossacaria, ajudados
pelos antigos, tinham estabelecido o seu próprio poder, sem pedir opinião do cossaco da
frente. Isso despertava os antagonismos sociais adormecidos: «Quando voltarmos para
casa, lhes mostraremos», disseram mais de uma vez os homens da frente. Krasnov,
general cossaco, um dos chefes da contra-revolução sobre o Don, descreveu de forma
pitoresca como os sólidos contingentes cossacos se desagregavam na frente:
«Começámos a realizar comícios onde se adoptou as resoluções mais extravagantes. Os
cossacos deixaram de se ocuparem dos seus cavalos. Era inútil pensar em fazer-lhes
exercício. Meteram faixas vermelhas e, deixaram de respeitar os oficiais, nem queriam
saber deles.» Portanto, antes de chegar definitivamente a este estado de espírito, o
cossaco hesitou muito tempo, coçando a cabeça, procurando de qual lado se voltaria.
Num momento crítico, não era fácil adivinhar antecipadamente como se conduziria tal ou
tal contingente cossaco.
No 8 de Agosto, o Círculo militar do Don uniu-se com os cadetes par as eleições
para a Assembleia constituinte. O rumor propagou-se imediatamente no exército. «Entre
os cossacos – escreveu um deles, o oficial Ianov – o bloco foi desacreditado. O partido
cadete não tinha raízes no exército.» Na verdade, o exército detestava os cadetes,
identificando-os a todos os que amordaçavam as massas populares. «Os velhos
venderam-vos aos cadetes!» diziam os soldados gozando. «Mostraremos-lhes!»

513
replicavam os cossacos. Na frente Sudoeste, os contingentes de cossacos numa
resolução especial, declararam os cadetes «inimigos confessados e opressores do povo
trabalhador» e exigiam que fossem excluídos do Círculo militar todos os que tinham
ousado fazer um acordo com os cadetes.
Kornilov, ele próprio cossaco, contava bastante com a ajuda da cossacaria,
sobretudo a do Don, e tinha completado com efectivos cossacos o destacamento
destinado a dar o golpe de Estado. Mas os cossacos não se mexeram para ajudar» o filho
do camponês». Nas suas aldeias, eles estavam prontos a defender com firmeza, no lugar,
suas terras, mas não tinham qualquer propensão a comprometerem-se numa rixa entre
terceiros. O terceiro corpo de cavalaria também não justificou mais as esperanças. Se os
cossacos viam com maus olhos a confraternização com os alemãs, na frente de
Petrogrado eles satisfaziam de boa vontade os desejos dos soldados e marinheiros: por
esta confraternização, o plano de Kornilov falhou sem efusão de sangue. Assim, se
enfraquecia e desabava o último apoio da velha Rússia.
Entretanto, muito longe das fronteiras do país, no território francês, procediam, à
escala de um laboratório, a uma tentativa de «ressurreição» da tropas russas, fora do
alcance dos bolcheviques, e, por consequência, tanto mais eficaz. Durante o verão e
outono, na imprensa russa, penetraram, mas ficaram no turbilhão dos acontecimentos
quase despercebidos, informações sobre a revolta armada que tinha rebentado nas
tropas russas em França. Os soldados das duas brigadas russas que se encontravam
nesse país estavam, segundo o oficial Lissovsky, desde Janeiro de 1917, portanto antes
da revolução, «fortemente convencidos de terem sido todos vendidos aos franceses, em
troca de munições. «Os soldados não se enganavam tanto. Em relação aos patrões
aliados, eles não alimentavam a «menor simpatia», e em relação aos seus oficiais – a
menor confiança.
A notícia da revolução encontrou brigadas de exportação por assim dizer
politicamente preparadas – e contudo tomou-os de improvisto. Não esperavam dos
oficiais explicações da insurreição: a irritação mostrou-se tanto maior que o oficial tinha
um grau mais elevado. Nos campos surgiram patriotas democratas vindos do meio da
emigração. «Pôde-se observar mais de uma vez – escreveu Lissovsky – como certos
diplomatas e oficiais do regimento da Guarda... avançavam amavelmente os lugares aos
antigos emigrados.» Nos regimentos surgiram instituições electivas, e, à cabeça do
Comité, foi colocado um soldado letão que logo se distinguiria. Ainda aí, portanto, tinham
encontrado o seu «alógeno». O primeiro regimento, que tinha sido formado em Moscovo e
compunha-se quase inteiramente de operários, de empregados de armazéns, em geral
elementos proletários e meio proletários, tinha chegado primeiro sobre as terras de
França, um ano antes e, durante o inverno, tinha combatido na frente champanhesa. Mas,
«a doença da decomposição atingiu sobretudo esse mesmo regimento». O segundo
regimento, que tinha nas suas fileiras uma forte percentagem de camponeses, manteve a
calma durante mais tempo. A segunda brigada, quase inteiramente composta de
camponeses siberianos, parecia completamente segura. Muito pouco tempo após a
insurreição de Fevereiro, a primeira brigada tinha saído da insubordinação. Ela não queria
combater nem pela Alsácia nem por Lorena. Ela não queria morrer pela bela França. Ele

514
queria tentar viver na Rússia nova. A brigada foi levada para a retaguarda e estacionada
no centro da França no campo de La Courtine.
«No meio de aldeias burguesas – conta Lissovsky – num imenso campo, começaram
a viver em condições completamente particulares, insólitas, cerca de dez mil soldados
russos amotinados e armados, não tendo perto deles oficiais não aceitando,
resolutamente, de se submeter a qualquer um.» Kornilov encontrou uma ocasião
excepcional para aplicar os seus métodos de saneamento com a ajuda de Poincaré e de
Ribot, que tinham tanta simpatia por ele. O generalíssimo russo ordenou, por telegrama,
de levar «os homens de La Courtine a obedecer» e de os enviar para Salónica. Mas os
amotinados não cediam. Cerca do primeiro de Setembro, fizeram avançar a artilharia
pesada e, no interior do campo, colaram cartazes reproduzindo o telegrama cominatório
de Kornilov. Mas, então, no desenrolar dos acontecimentos, introduziu-se outra
complicação: os jornais franceses publicara a notícia que o próprio Kornilov tinha sido
declarado traidor e contra-revolucionários. Os soldados amotinados decidiram
definitivamente que não havia qualquer razão para eles de ir morrer em Salónica, e que
além disso por ordem de um general traidor. Vendidos em troca de munições, os
operários e camponeses resolveram manter a sua posição. Recusaram conversar com
qualquer pessoa do exterior. Nem um soldado saiu mais do campo.
A segunda brigada russa foi ultrapassada pela primeira. A artilharia ocupou posições
sobres as encostas das colinas vizinhas; a infantaria, segundo as regras da arte da
engenharia, cavou trincheiras e postos avançados em direcção de La Courtine. Nos
arredores foram fortemente cercados pelos caçadores alpinos, afim que nem um só
francês não penetrasse no teatro da guerra entre duas brigadas russas. Foi assim que as
autoridades militares da França realizaram sobre o seu território uma guerra civil entre
russos, após ter cercado com cautela com uma barreira de baionetas.
Era uma repetição geral. Logo, a França governante organizou a guerra civil sobre o
território da própria Rússia cercando com arame farpado o bloco.
«Um bombardeio em regra, metódico, sobre o campo, foi iniciado.» Do campo
saíram algumas dezenas de soldados dispostos a se renderem. Receberam-nos, e a
artilharia logo abriu fogo. Isso durou quatro dias. Os homens de La Courtine renderam-se
por pequenos destacamentos. No 6 de Setembro, só restavam duas centenas de homens
que tinham decidido não se render. À cabeça estava um ucraniano chamado Globa, um
batista, um fanático: na Rússia, ter-lhe-iam chamado bolchevique. Sob o tiro de barragem
dos canhões, metralhadoras e espingardas, que se confundiam num só ruído, um
verdadeiro assalto foi dado. No final, os amotinados foram esmagados. O número de
víctimas foi desconhecido. A ordem, de qualquer modo, foi restabelecida. Mas, algumas
semanas depois, já, a segunda brigada, que tinha disparado sobre a primeira, sofreu da
mesma doença...
Os soldados russos tinham contagiado através dos mares, nas suas gaitas de foles
de tecido, nas dobras dos seus capotes e no segredo das suas almas. Por aí, é notável
esse dramático episódio da La Courtine, que representa de qualquer modo uma especie
de experiência ideal, conscientemente realizada, quase sob a tampa de uma máquina

515
pneumática, para o estudo dos processos interiores preparados no exército russo por todo
o passado do país.

516
A maré enchente
O enérgico meio da calúnia mostrou-se uma arma com dois gumes. Se os
bolcheviques são espiões da Alemanha, porquê então a notícia vem principalmente de
homens que são odiados pelo povo? Porquê a imprensa cadete que, a propósito de tudo,
atribui aos operários e aos soldados os motivos mais baixos, acusando ruidosamente e
resolutamente os bolcheviques? Porquê tal engenheiro ou tal chefe de oficina
reaccionário, que se tendo escondido desde da insurreição, tem agora a coragem e
amaldiçoa abertamente os bolcheviques? Porquê, nos regimentos os oficiais mais
reaccionários tornaram-se ousados e porquê, acusando Lenine e companhia, erguem o
punho até ao nariz do soldado, como se os traidores fossem precisamente os soldados?
Cada fábrica tinha os seus bolcheviques. «Sou parecido com um espião alemão,
hein?, perguntava o serralheiro ou o torneiro cuja vida intíma era conhecida dos operários.
Frequentemente, os próprios conciliadores, combatendo o assalto da contra-revolução,
iam mais longe do que queriam e, sem quererem, abriam o caminho aos bolcheviques. O
soldado Pireiko conta como o médico-major Markovitch, partidário de Plekhanov, refutou,
num comício de soldados, a acusação lançada contra Lenine, de ser um espião, para
demolir tanto mais decisivamente as ideias políticas de Lenine como inconsistentes e
perigosas. Debalde! «A partir do momento que Lenine é inteligente e não é um espião,
nem um traidor e que ele quer concluir a paz, nós o seguiremos», diziam os soldados
após a assembleia.
Temporariamente preso no seu crescimento, o bolchevismo recomeçava com
segurança a estender as asas. «O castigo não tarda, escrevia Trotsky em meados de
Agosto. Perseguido, caluniado, o nosso partido nunca tinha crescido tão rapidamente
como nos últimos tempos. E esse processo não tardará a passar das capitais às
provincias, das cidades às vilas e ao exército... Todas as massas trabalhadores do país
aprenderão, nas novas situações, a ligar a sua sorte à do nosso partido.» Petrogrado
continuava a caminhar à cabeça. Parecia que uma vassoura toda-poderosa trabalhava
nas fábricas, expulsando de todos os cantos a influência do conciliadores. «As últimas
fortalezas da defesa nacional caiem... - comunicava o jornal bolchevique. Há muito tempo
que esses senhores da defesa nacional reinavam sem partilha na imensa fábrica de
Obokhovsky?... Agora, eles não nem se podem mostrar.» Nas eleições da Duma
municipal de Petrogrado, a 20 de Agosto, o número dos sufrágios exprimidos foi de cerca
de 550 000, muito menos que nas eleições de Julho para a Duma de bairro. Tendo
perdido mais de 375 000, os socialistas-revolucionários tinham porém recolhido ainda
mais de 200 000 votos, seja 37% do total. Os cadetes só obtiveram um quinto. «Nossa
lista menchevique – escreveu Sokhanov – só obteve 23 000 pobres votos.» De forma
inesperada para todos, os bolcheviques tiveram quase 200 000, cerca um terço do total.
A conferência regional dos sindicatos de Ural que teve lugar a meados de Agosto e
que reuniu 150 000 operários, sobre todas as questões as decisões adoptadas eram de
carácter bolchevique. Em Kiev, na conferência dos comités de fábrica e de oficinas, no 20
de Agosto, a resolução dos bolcheviques foi adoptada por uma maioria de 161 votos

517
contra 35, com 13 abstenções. Nas eleições democráticas para a Duma municipal de
Ivanovo-Voznessensk, até ao momento do levantamento de Kornilov, os bolcheviques,
sobre 102 lugares, obtiveram 58, os socialistas-revolucionários 24, os mencheviques 4.
Em Cronstadt foi eleito presidente do Soviete o bolchevique Brekman, e o bolchevique
Pokrovsky tornou-se presidente da câmara. Se a progressão esteve longe de ser
generalizada, houve aqui e ali atraso, o bolchevismo subiu, no decorrer do mês de
Agosto, em quase todo o país.
O levantamento de Kornilov deu à radicalização das massas um potente impulso.
Slotsky lembrou sobre isso as palavras de Marx: a revolução precisa, por momentos, de
ser aguçada pela contra-revolução. O perigo suscitava não somente a energia, mas
também a perspicácia. O pensamento colectivo começou a trabalhar sob alta tensão. Os
materiais úteis às deduções não faltavam. Tinham declarado que a coligação era
indispensável à defesa da revolução; ora acontece que o aliado na coligação era
partidário da contra-revolução. A conferência de Moscovo tinha sido anunciada como uma
demonstração de unidade nacional. Só o Comité central dos bolcheviques tinha dado este
aviso: «A conferência... se transformará inevitavelmente num órgão da conspiração da
contra-revolução.» Os acontecimentos tinha trazido a verificação. Agora, o próprio
Kerensky declarou: «A conferência de Moscovo... é o prólogo do 27 de Agosto... Aqui,
contam-se as forças... Aqui, pela primeira vez, foi apresentado à Rússia o seu futuro
ditador, Kornilov...» Como se não fosse o próprio Kornilov que tinha sido o iniciador, o
organizador e o presidente desta conferência, como se não fosse ele que tivesse
apresentado Kornilov como o «primeiro soldado» da revolução! Como se não fosse o
governo provisório que tinha armado Kornilov, dando-lhe os recursos da pena de morte
contra os soldados, e como se os avisos dos bolcheviques não tivessem sido
proclamados como demagógicos! A guarnição de Petrogrado lembrava-se além disso,
que, dois dias antes do levantamento de Kornilov, os bolcheviques tinham exprimido,
numa sessão da secção dos soldados, a desconfiança, perguntando se os regimentos de
vanguarda não tinham sido evacuados da capital nas intenções contra-revolucionárias. A
isso, os representantes dos menchevique e dos socialistas-revolucionários respondiam
com uma exigência cominatória: não discutir as ordens de combate do general Kornilov.
Nesse sentido, uma resolução tinha sido adoptada. «Vê-se que os bolcheviques não
falam por acaso!» - era o que agora se devia dizer agora o operário ou o soldado sem
partido.
Se os generais conspiradores, após a acusação tardia dos próprios conciliadores,
eram culpados não somente da rendição de Riga, mas do avanço de Julho, porquê então
perseguiam os bolcheviques e fuzilavam os soldados? Se os provocadores militares tinha
tentado descer à rua os operários e os soldados, no 27 de Agosto, não tinham
desempenhado um papel nos conflitos sangrentos do 4 de Julho? Qual foi, então, o lugar
de Kerensky em toda esta história? Contra que apelou ele o terceiro corpo de cavalaria?
Porquê nomeou ele Savinkov general-governador, e Filonenko vice-governador? E quem
é esse Filonenko, candidato ao directório? De modo inesperado ouviu-se a resposta da
divisão dos carros blindados: Filonenko que aí tinha servido como tenente infligia aos
soldados as piores humilhações e vexações. Donde tinha ele saído esse esquisito homem

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de negócios Zavoiko? Que significa em geral esta selecção de aventureiros na extrema
cimeira?
Os factos eram simples, claros, memoráveis para muitos, acessíveis para todos,
irrecusáveis e esmagadores. Os escalões da divisão «selvagem», os carris que tinham
feito explodir, as acusações recíprocas do palácio de Inverno e do Grande Quartel
General, as deposições de Savinkov e de Kerensky, tudo isso falava por si próprio. Qual
acto de acusação irrefutável contra os conciliadores e o seu regime! O sentido da
perseguição dirigida contra os bolcheviques tornou-se definitivamente claro: havia aí um
elemento indispensável na preparação do golpe de Estado.
Os soldados e operários, cujos olhos estavam abertos, foram tomados de um vivo
sentimento de vergonha por eles próprios. Assim, Lenine escondia-se unicamente porque
ele tinha sido caluniado de forma cobarde? Assim, outros tinham sido encarcerados para
agradar aos cadetes, aos generais, aos banqueiros, aos diplomatas de Entente? Assim,
os bolcheviques não correm atrás de lugares e sinecuras, e eles são detestados lá em
cima precisamente porque eles não querem aderir à sociedade por acções que se chama
a coligação! Era o que tinham compreendido os trabalhadores, as simples pessoas, os
oprimidos. E, dessas disposições de espírito, com o sentimento de uma falta cometida em
relação aos bolcheviques, procediam uma devoção incoercível ao partido e à fé nos seus
líderes.
Até aos últimos dias, os velhos soldados, os elementos do quadro do ano, os
artilheiros, o corpo de sargentos tentavam aguentar na medida do possível. Eles não
queriam meter uma cruz no seu trabalho, nas suas realizações, nos seus sacrifícios de
combatentes: era impossível que tudo isso tivesse sido despendido em pura perca? Mas
quando o último apoio foi destruído sob os seus pés, eles voltaram-se bruscamente – à
esquerda, à esquerda! - face aos bolcheviques. Agora eles tinham entrado completamente
na revolução, com os seus galões de sargentos, com a sua experiência de velhos
soldados e cerrando os dentes: eles tinha perdido a parte da guerra, mas desta vez eles
iam levar o trabalho até ao fim.
Nos relatórios das autoridades locais, militares e civis, o bolchevismo tornou-se,
entretanto, sinónimo de toda a acção de massas em geral, de reivindicações audaciosas,
de resistência à exploração, de movimento em frente; numa palavra é outro nome da
revolução. Assim, é então isso, o bolchevismo? Diziam os grevistas, os marinheiros que
protestavam, as mulheres dos soldados descontentes, os mujiques revoltados. As massas
estavam obrigadas do alto a identificar os seus pensamentos íntimos e suas
reivindicações com as palavras de ordem do bolchevismo. Foi assim que a revolução
tomava ao seu serviço a arma dirigida contra ela. Na história, não somente o racional se
tornou absurdo mas, quando isso é necessários para a marcha da evolução, o absurdo
torna-se racional.
A modificação da atmosfera política se manifesta muito claramente na sessão
unificada dos Comités executivos, no 30 de Agosto, quando os delegados de Cronstadt
exigiram que lhes fizessem lugar nesta instituição. É admissível? Aqui, onde os homens
condenados de Cronstadt não tinham conhecido senão culpas e ex comunicações,

519
tomarão lugar a partir de agora os seus representantes? Mas, como recusar? Ontem
ainda tinham vindo defender Petrogrado os soldados e marinheiros de Cronstadt. Os
marinheiros do Aurora guardam o palácio de Inverno. Após se terem metido de acordo
entre eles, os líderes propuseram aos homens de Cronstadt quatro lugares com voz
consultiva. A concessão foi adoptada secamente, sem efusões de gratidão.
«Após o levantamento de Kornilov – conta Tchinenov, soldado da guarnição de
Moscovo – todos os efectivos já tinham aderido ao bolchevismo... Todos ficaram
impressionado ao ver como se tinham realizado a previsões (dos bolcheviques)...
anunciando que o general Kornilov seria em breve sob os muros de Petrogrado.»
Mitrevitsch, soldado da divisão de blindados, lembra as heróicas legendas que passam de
boca em boca após a vitória alcançada pelos generais rebeldes: «Ele foi morto de bravura
e proezas e dizia-se que, se tal foi a sua valentia, poderíamos bater-nos contra o mundo
inteiro. Aí, as bolcheviques retomaram força.» Saído da prisão durante os dias da
campanha de Kornilov, Antonov-Ovseenko abalou imediatamente para Helsingfors. «Uma
formidável reviravolta realizou-se nas massas.» No Congresso regional dos sovietes em
Finlândia, os socialistas-revolucionários de direita encontraram-se em quantidade
insignificante, a direcção vinha dos bolcheviques coligados com os socialistas-
revolucionários de esquerda. Como presidente do Comité regional dos sovietes, elegeram
Smilga que, apesar da sua extrema juventude, era membro do Comité central dos
bolcheviques, pendia bastante para a esquerda, e tinha manifestado, desde das Jornadas
de Abril, tendência em sacudir o governo provisório. Como presidente do Soviete de
Helsingfors, apoiando-se na guarnição e no operários russos, foi eleito o bolchevique
Scheinmann, nesse tempo, em igualdade com os outros dirigentes. O governo provisório
proibiu aos finlandeses de convocar o Seim (a Dieta) dissolvida por ele. O comité regional
convidou o Seim a reunir-se, ocupando-se da sua protecção. Quanto às ordens do
governo provisório chamando da Finlândia diversos contingentes militares, o comité
recusou executá-las. Na realidade, os bolcheviques tinham estabelecido a ditadura dos
sovietes em Finlândia.
No princípio de Setembro, um jornal bolchevique escreveu: «De um grande número
de cidades russas, sabemos que as organizações do nosso partido, neste último período,
cresceram bastante. Mas, o que é ainda mais importante, é a subida da nossa influência
nas mais largas massas democráticas de operários e soldados.» «Mesmo nas empresas
onde não nos queriam ouvir, no princípio – escreveu Averine, bolchevique de
Ekaterinoslav – durante os dias kornilovianos, os operários estavam ao nosso lado.»
«Quando se propagou o rumor que Kaledine mobilizava os cossacos contra Tsaritsyne e
Saratov – escreve Antonov, um dos dirigentes bolcheviques de Saratov – quando os
rumores se confirmaram e reforçados pelo levantamento do general Kornilov, a massa,
em alguns dias, eliminou os seus antigos preconceitos.»
O jornal bolchevique de Kiev comunicou, no 19 de Setembro: «Nas novas eleições
dos representantes do arsenal para o Soviete, doze camaradas foram eleitos, todos
bolcheviques. Todos os candidatos mencheviques foram rejeitados; a mesma coisa se
passou num grande número de outras fábricas. Informações do mesmo género
encontram-se desde então diariamente nas páginas da imprensa operária; os jornais

520
hostis esforçaram-se debalde por passar em silêncio ou por minimizar o crescimento do
bolchevismo. As massas despertas parecem esforçarem-se por ganhar o tempo perdido
pelas hesitações, obstáculos e recuos temporários. Um fluxo geral subiu, obstinado,
irresistível.
Membro do comité central dos bolcheviques, Varvara Isakovleva, disse-nos, em
Julho-Agosto, o enfraquecimento extremo dos bolcheviques em toda a região de
Moscovo, testemunha agora um brusca reviravolta. «Na segunda quinzena de Setembro –
ela reporta na Conferência – que militantes do bureau regional percorreram a região... As
impressões deles foram absolutamente idênticas: em todo o lado, em todos os
departamentos, teve lugar processos de bolchevização integral das massas. E todos
notavam igualmente que a aldeia reclamava o bolchevismo...» Nos lugares onde, após as
jornadas de Julho as organizações do partido se tinha afundado, elas voltaram à
actividade e cresciam rapidamente. Nos distritos onde não se admitiam os bolcheviques,
surgiam espontaneamente células bolcheviques. Mesmo nas províncias atrasadas de
Tambov e de Riazan, nas cidadelas dos socialista-revolucionários e dos mencheviques,
onde os bolcheviques, no decurso dos suas precedentes passagens, se mostravam
raramente, nada esperando, se realizava agora uma verdadeira reviravolta: a influência
dos bolcheviques reforçava-se de dia para dia, as organizações dos conciliadores
afundavam-se.
Os relatórios dos delegados na conferência bolchevique da região de Moscovo, um
mês após o levantamento de Kornilov, um mês antes da insurreição dos bolcheviques,
respiraram com segurança e entusiasmo. Em Nijni-Novgorod, após dois meses de
enfraquecimento, o partido recomeçou a viver a vida. Os operários socialistas-
revolucionários passam por centenas para as fileiras dos bolcheviques. Em Tver, uma
grande agitação do partido só se desencadeou após as jornadas kornilovianas. Ninguém
escuta os conciliadores, expulsam-nos. No governo de Vladimir, os bolcheviques
fortificaram-se de tal modo que no congresso regional dos sovietes que só se se viram
cinco mencheviques e três socialistas-revolucionários. Em Ivanovo-Voznessensk, a
Manchester russa, os bolcheviques, como mestres em gozo de plenos poderes,
assumiram todos o trabalho no soviete, na Duma, e no zemstvo.
As organizações do partido crescem, mas o aumento da sua força de atracção é
infinitamente mais rápida. A falta de correlação entre os recurso técnicos dos
bolcheviques e o seu coeficiente de densidade política encontra a sua expressão no
número relativamente fraco dos membros do partido diante do aumento grandioso da sua
influência. Os acontecimentos arrastam tão rapidamente e imperiosamente as massas no
seu turbilhão que os operários e os soldados não têm tempo de se organizar em partido.
Eles nem têm tempo de compreender a necessidade de uma organização especial de
partido. Eles impregnam-se de palavras de ordem do bolchevismo tão naturalmente como
respiram. Que o partido seja um laboratório complicado onde as palavras de ordem são
elaboradas pela experiência colectiva, isso para eles não é claro. Por detrás dos sovietes
há mais de vinte milhões de pessoas. O partido que, mesmo na véspera da insurreição de
Outubro, só contava nas suas fileiras no máximo duzentos e quarenta mil membros,

521
arrasta, por intermediário dos sindicatos, comités de fábrica, sovietes, sempre com mais
segurança, milhões de homens.
No incomensurável país transtornado até ao fundo, com a sua inesgotável
diversidade de condições locais e de níveis políticos, tem lugar, diariamente, eleições: nas
Dumas, nos zemstvos, nos sovietes, nos comités de fábrica, nos sindicatos, nos comités
militares ou agrários. E, por todas essas eleições, afirma-se constantemente um mesmo
facto invariável: a subida dos bolcheviques. As eleições para as Dumas de bairro de
Moscovo impressionaram particularmente o país pela brusca reviravolta do estado de
espírito das massas. O «grande» partido dos socialistas-revolucionários, sobre 375 000
votos que ele tinha recolhido em Junho, só obteve 54 000 no fim de Setembro. Os
mencheviques, que tinham tido 76 000 votos, caíram para cerca de 16 000. Os cadetes
que tinham conservado 101 000 votos, perderam cerca de 8 000. Em contrapartida, os
bolcheviques, partindo de 75 000 votos subiram até 198 000. Se em Junho os socialistas-
revolucionários tinham juntado cerca de 58% dos votos, em Setembro os bolcheviques
obtiveram cerca de 52%. A guarnição votou, a 90%, para os bolcheviques, em certos
efectivos mais de 95%; nas oficinas de artilharia pesada, sobre 2 347 votos, os
bolcheviques obtiveram 2 286.
O número notável de abstenções dos eleitores era gesto das pequenas populações
das cidades que, na bebedeira das primeiras ilusões, tinham aderido aos conciliadores
para logo se encontrarem de mãos vazias. Os mencheviques tinham desaparecido. Os
socialistas-revolucionários tinham reunido duas vezes menos de votos que os cadetes. Os
cadetes, duas vezes menos que os bolcheviques. Os votos obtidos em Setembro pelos
bolcheviques, tinham sido conquistados em luta renhida com os outros partidos. Eram
votos sólidos. Podia se contar com eles. O desgaste dos grupos intermediários, a
estabilidade considerável do campo burguês e o crescimento gigantesco do partido
proletário o mais detestado e perseguido, tudo isso apresentava sintomas infalíveis da
crise revolucionária. «Sim, os bolcheviques trabalhavam com zelo e sem descanso –
escreve Sokhanov, que pertence ele próprio ao partido dos mencheviques – eles estavam
nas massas, diante da profissões, diariamente, constantemente... Eles tornaram-se deles,
porque eles sempre lá estiveram, dirigindo em todos os pequenos detalhes, como nas
coisas importantes, toda a vida da fábrica e do quartel... A massa vivia e respirava com os
bolcheviques. Ela estava nas mãos do partido de Lenine e de Trotsky.»
A carta política da frente distinguia-se por grandes diferenças. Havia regimentos e
divisões que não tinham ainda ouvido nem visto um bolchevique; muitos destes estavam
sinceramente admirados quando lhes acusavam de bolchevismo. Por outro lado, havia
contingentes que tomavam as suas próprias disposições anárquicas, com uma vaga
nuança de espírito Cem Negro, para o mais puro bolchevismo. O estado da opinião da
frente regulava-se numa só direcção. Mas, na grande torrente política que tinha por cama
as trincheiras, intervinham frequentemente correntes contrárias, remoinhos e bastantes
sarilhos.
Em Setembro, os bolcheviques quebraram o cordão e obtiveram acesso à frente
donde eles tinham sido afastados, e sem graça, durante dois meses. Oficialmente, a

522
proibição ainda não tinha sido levantada. Os comités conciliadores faziam todo o seu
possível para impedir os bolcheviques de penetrar nos seus destacamentos; mas todos
os esforços foram inúteis. Os soldados tinham de tal forma ouvido falar do seu próprio
bolchevismo que todos, sem excepção, estavam ávidos em ouvir e ver um bolchevique
em carne e osso. Os obstáculos de pura forma, atrasos e impedimentos, suscitados pelos
membros dos comités foram varridos pela pressão dos soldados logo que ouviram falar
da chegada de um bolchevique. Um velha revolucionária, Evgénia Boch, que tinha feito
um grande trabalho em Ucrânia, deixou vivas lembranças sobre as suas audaciosas
excursões no aldeia primitiva dos soldados. Os avisos alarmistas dos amigos, falsos ou
sinceros, eram rejeitados a cada vez. Numa divisão que se caracterizava como
furiosamente hostil aos bolcheviques, a oradora, abordando prudentemente o seu sujeito,
constatava logo que os auditores estavam com ela. «Nem um escarrar, nem tossir,
ninguém se assoava – que são os primeiros sinais de cansaço de um auditório de
soldados – silêncio completo e de ordem.» A assembleia terminou por uma ruidosa
ovação em honra da audaciosa agitadora. Em geral, toda a volta de Evgénia Boch na
retaguarda da frente foi no seu género uma marcha triunfal. Menos heróica, com menos
efeito, mas com um fundo idêntico, o assunto foi levado pelos agitadores de calibre
menor.
Ideias, palavras de ordem, generalizações, novos ou convincentes de um novo
modo, irromperam na vida estagnante das trincheiras. Milhões de cabeças de soldados
remoíam os acontecimentos, estabelecendo o balanço da sua experiência politica. «...
Caros camaradas, operários e soldados – escreve um homem da frente à redacção do
jornal – não deixem que esta maldita letra K, que entregou o mundo inteiro ao carnificina
sangrento. Houve o primeiro massacrante, Kolka (Nicolau II), Kerensky, Kornilov,
Kaledine, os cadetes, e eles têm todos a letra K. Os cosaques também, são gente
perigosa para nós... (assinado): Sidor Nikolaiev. «Não se procure aqui qualquer
superstição: há somente um procedimento de mnemónica política.
O levantamento iniciado pelo Grande Quartel General não podia fazer vibrar cada
fibra nos soldados. A disciplina exterior, para o restabelecimento da qual se tinha
dispensado tantos esforços e feito tantas vítimas, abrandava novamente sobre todos os
aspectos. O comissário militar da frente Oeste, Jdanov, comunica: «O estado de espírito é
em geral o do nervosismo... da suspeição em relação aos oficiais, de expectativa; a
recusa em obedecer às ordens é explicada pelo facto que se transmite aos soldados as
ordens de Kornilov que não devem ser executadas.» Nesse mesmo espírito, Stankevitch,
que substituiu Filonenko no posto de alto-comissário, escreve: «A massa dos soldados...
sentia-se rodeada pela traição... Aquele que procurava a dissuadi-lo parecia igualmente
traidor.»
Para os oficiais do quadro, o desmoronamento da aventura korniloviana significava o
desaparecimento das últimas esperanças. No seu íntimo, o comandante, mesmo antes
disso, não se sentia nada brilhante. Nós observámos, no fim de Agosto, os militares
conspiradores em Petrogrado, bêbados, fanfarões, fracos. Agora, o corpo dos oficiais
sentia-se definitivamente desonrado e condenado.» Este ódio, esta perseguição –
escreve um deles – a absoluta desocupação e a perpétua espera de ser preso ou de uma

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morte ignóbil levavam os oficiais para os restaurantes, os gabinetes particulares, os hotéis
de passagem... É neste ambiente de bebedeira asfixiante que caíram os oficiais. «Em
contra-partida, os soldados e os marinheiros viviam numa sobriedade maior que ela
alguma vez tivesse sido: eles tinham sido tomados por uma nova esperança. Os
bolcheviques, segundo Stankevitch, levantavam a cabeça e sentiram-se mestres no
exército... Os comités de base começaram a se transformar em células bolcheviques.
Todas as eleições no exército davam um aumento espantoso dos sufrágios bolchevique.
Além disso, não nos podemos dispensar de notar que o melhor exército, o mais
disciplinado, não somente sobre a frente Norte, mas, talvez, sobre toda a frente russa, o
5º, foi o primeiro a dar um comité bolchevique do exército». De maneira ainda mais
espantosa, mais nítida, mais colorida, a frota bolchevizava-se. Os marinheiros do Báltico
ergueram, no 8 de Setembro, sobre todos os barcos, as bandeiras de combate, para
mostrar que eles estavam prontos a lutar para a transmissão do poder para as mãos do
proletariado e do campesinato. A frota reclamava uma trégua imediata sobre todas as
frentes, a entrega das terras à descrição dos comités camponeses e o estabelecimento de
um controlo operário sobre a produção. Três dias depois, o Comité central da frota do mar
Negro, mais atrasado e moderado, apoiou os homens do Báltico, formulando a palavra de
ordem da entrega do poder aos sovietes. Pela mesma palavra de ordem, no meio de
Setembro, levantaram a voz vinte e três regimentos de infantaria siberianos e letões da
12º exército. Por detrás deles alinhavam-se constantemente novos efectivos. A
reivindicação do poder para os sovietes não desapareceu mais das ordens do dia do
exército e da frota.
«As assembleias de marinheiros – conta Stankevitch – compunham-se unicamente
de nove décimos de bolcheviques.» O novo comissário junto do Grande Quartel General
teve que defender, em Reval, diante dos marinheiros, o governo provisório. A partir das
primeiras palavras, ele sentiu toda a incapacidade das suas tentativas. Pela palavra
«governo», o auditório fechou-se sobre si mesmo: «Vagas de indignação, de ódio e de
desconfiança caiu sobre a multidão. Era forte, apaixonante, irresistível, e isso fundia-se
numa gritaria unanime: «Abaixo!» Só podemos homenagear o contador que não
esqueceu de notar a beleza da pressão das massas que lhe eram mortalmente hostis.
A questão da paz, enterrada por dois meses, volta agora à superfície com uma força
duplicada. Numa sessão do Soviete de Petrogrado, um oficial chegou da frente,
Dubassov, declarou: «O que possam dizer aqui, os soldados não combaterão mais.»
Houve exclamações: «Os próprios bolcheviques não dizem isso!...» Mas o oficial, que não
era bolchevique, aguentou: «Transmito-os o que eu sei e o que os soldados me
encarregaram de vos dizer.» Outro homem da frente, um soldado, trajando um capote
cinzento todo sujo e cheirando a trincheiras, declarou, nessas mesmas jornadas de
Setembro, no Soviete de Petrogrado, que os soldados precisavam de paz, não interessa
qual «mesmo se fosse uma paz podre». Essas palavras amargas de um soldado
lançaram a confusão no Soviete. Não se tinha chegado tão longe! Os soldados na frente
não eram rapazinhos, eles compreendiam perfeitamente que, com «o mapa da guerra»
que tinham diante deles, a paz não podia ser senão um acto de violência. E, para traduzir
essa opinião, o delegado das trincheiras tinha expressamente escolhido a palavra mais

524
ordinária, que expressava toda a violência da sua aversão em relação à paz do
Hohenzollern. Mas é precisamente em exprimindo assim o seu julgamento que o soldado
contradisse os seus auditores a compreender que não havia outro caminho, que a guerra
tinha desfeito o exército, que a paz era imediatamente indispensável e a qualquer preço.
As palavras do orador vindo das trincheiras foram reproduzidas com sarcasmos pela
imprensa burguesa que as atribuiu aos bolcheviques. A frase sobre a paz «nojenta» não
saia mais da ordem do dia, como sendo a expressão mais extrema da barbarie e da
dissolução do povo!
Regra geral, os conciliadores não estavam de forma nenhuma dispostos, tal como o
diletante político Stankevitch, a admirar a magnificência da maré enchente que ameaçava
de os varrer da arena revolucionária. Com estupefacção e medo, eles constatavam, cada
dia, que não dispunham de qualquer força de resistência. Em soma, sob a confiança das
massas em relação aos conciliadores, desde das primeiras horas da revolução, se
escondia um mal-entendido, historicamente inevitável, mas não durável: para o perceber,
foi preciso alguns meses. Os conciliadores foram forçados a conversar com os operários
e os soldados com um tom completamente diferente daquele que eles tinha tido no comité
executivo e particularmente no palácio de Inverno. Os líderes responsáveis dos
socialistas-revolucionários e dos mencheviques, de semana a semana, ousavam menos
mostrarem-se na praça pública. Os agitadores de segunda e terceira linha adaptavam-se
ao radicalismo social do povo com a ajuda de formulas equivocas, ou, sinceramente,
deixavam-se ganhar pelos estados de espírito das fábricas, dos poços das minas e dos
quartéis, falavam a sua linguagem e destacavam-se dos seus próprios partidos.
O marinheiro Khovrine mostra, nas suas Memórias, como os marinheiros que
declaravam ligarem-se aos socialistas-revolucionários lutavam na realidade pela
plataforma bolchevique. A mesma coisa era observada em todo o lado. O povo sabia o
que queria, mas não sabia qual era o nome a dar a isso. O «mal-entendido» inherente à
Revolução de Fevereiro afectava a massa, todo o povo, sobretudo no campo, onde
persiste por mais tempo que na cidade. Não se podia introduzir a ordem no caos senão
pela experiência. Os acontecimentos, grandes e pequenos, sacudiam sem parar os
partidos de massas, levando-os a concordarem com a sua política, não com o seu
emblema.
Há um notável exemplo de confusão entre os conciliadores e as massas na jura que
foi feita, no princípio de Julho, por dois mil mineiros do Donetz ajoelhados, cabeça
descoberta, na presença de uma multidão de cerca de cinco mil pessoas que
participavam. «Nós juramos sobre a cabeça dos nossos filho, diante deus, o céu e a terra,
com tudo o que há de sagrado para nós sobre a terra, que nunca abandonaremos a
liberdade obtida por nós no 28 de Fevereiro de 1917; acreditando nos socialistas-
revolucionários, nos mencheviques, nós juramos nunca escutar os leninistas, porque
estes, bolcheviques-leninistas, conduzem pela agitação a Rússia à sua perca, enquanto
que os socialistas-revolucionários e os mencheviques, em conjunto como um só, dizem: a
terra ao povo, a terra sem indemnização, o regime capitalista deve desabar após a guerra
e, no lugar do capitalismo, deve haver um sistema socialista... Nós juramos seguir esses
partidos, avançando, sem recuar diante da morte.» O juramento dos mineiros, dirigido

525
contra os bolcheviques, levava na realidade directamente para a insurreição bolchevista.
A casca de Fevereiro e o núcleo de Outubro apareciam nessa carta ingénua e inflamada
com uma tal evidência que eles esgotaram à sua maneira o problema da revolução
permanente.
Em Setembro, os mineiros do Donetz, sem se desdizerem e sem faltar ao seu
juramento, tinham voltado as costas aos conciliadores. Daí resultou que mesmo nos
contingentes mais atrasados dos mineiros do Ural. Um membro do comité executivo, o
socialista-revolucionario Ojegov, representante do Ural, visitou no início de Agosto, a sua
fábrica de Ijevsky. «Fiquei estupefacto – escreve ele no seu relatório cheio de aflições –
das bruscas modificações que se produziram na minha ausência: a organização do
partido dos socialistas-revolucionários que, pelo número (oito mil pessoas) e pela sua
actividade, era conhecida em toda a região de Ural... estava decomposta, enfraquecida e
reduzida a quinhentas pessoas, a seguir à intervenção de agitadores irresponsáveis.»
O relatório de Ojegov não apresentou nada de imprevisto para o comité executivo: o
mesmo quadro se observava em Petrogrado. Se, depois do esmagamento de Julho, os
socialistas-revolucionários nas fábricas, durante um certo tempo subiram e mesmo, aqui
ou acolá, alargaram a sua influência, o seu declínio foi um seguimento irresistível. «Na
verdade, o governo de Kerensky foi então o vencedor – escrevia mais tarde o socialista-
revolucionário V. Zenzinov – as manifestações bolcheviques tinha sido dispersadas e os
seus líderes presos, mas foi uma vitória de Pyrrhus.» É absolutamente justo: tal como o
rei de Épire, os conciliadores tinham alcançado a vitória pagando-a com o seu exército.»
Se antes, até 3 a 5 de Julho – escreveu um operário de Petrogrado chamado Skorinko –
os mencheviques e os socialistas-revolucionários podiam se mostrar em certos lugares
entre os operários sem riscarem de ser vaiados, eles não tinham mais esta garantia...»
Garantias, em geral, já não lhes restava mais nada.
O partido dos socialistas-revolucionários não somente perdiam a sua influência, mas
mudava também a sua composição social. Os operários revolucionários ou tinha já
encontrado tempo de passar para os bolcheviques, ou então, afastando-se, passavam por
uma crise íntima. Em contrapartida, emboscados nas fábricas durante a guerra, filhos de
comerciantes, os kulaques e os pequenos funcionários tinham-se convencido que o seu
lugar era exactamente no partido socialista-revolucionário. Mas, em Setembro, eles
também não ousavam mais chamarem-se «socialistas-revolucionários», pelo menos em
Petrogrado. O partido foi abandonado pelos operários e soldados, em certas província
mesmo já os camponeses; restava-lhe os funcionários conservadores e as camadas da
pequena burguesia.
Enquanto as massas despertadas pela insurreição derem o seu apoio aos
socialistas-revolucionários e aos mencheviques, os dois partidos não deixam de celebrar
a alta consciência do povo. Mas quando as massas, passando pela escola dos
acontecimentos começarem a se voltar bruscamente para os bolcheviques, os
conciliadores atribuirão a responsabilidade do seu próprio naufrágio à ignorância do povo.
Todavia, as massas não consentiriam acreditar que elas tinham-se tornado mais

526
ignorantes; pelo contrário, parecia-lhes que elas compreendiam o que não tinham
percebido antes.
Amuado e enfraquecido, o partido socialista-revolucionário rasga-se aliás nas suas
costuras sociais, e os seus membros foram rejeitados entre eles em campos hostis. Nos
regimentos, nos campos, subsistem os socialistas-revolucionários que, de acordo com os
bolcheviques e, normalmente, sob a sua direcção, defendiam-se dos golpes dados pelos
socialistas-revolucionários governamentais. A agravamento da luta dos flancos opostos
apela à existência de um pequeno grupo intermediário. Sob a direcção de Tchernov, esse
grupo tentou salvar a unidade entre os perseguidores e os perseguidos, confundiam-se,
caía em contradições inextricáveis, frequentemente ridículas e comprometia ainda mais o
partido. Para abrir a possibilidade de falar diante de um auditório de massas, os oradores
socialistas-revolucionários deviam, com insistência, apresentarem-se como «esquerda»,
como internacionalistas, não tendo nada de comum com a clique dos «socialistas-
revolucionários de Março».
Após as jornadas de Julho, os socialistas-revolucionários de esquerda passaram à
oposição declarada, sem romperem ainda formalmente com o partido, mas utilizando
tardiamente os argumentos e as palavras de ordem dos bolcheviques. No 21 de
Setembro, Trotsky, tendo uma ideia pedagógica em mente, declarou na sessão do Soviete
de Petrogrado que, para os bolcheviques, ele tornava-se «cada ves mais fácil de se
entender com os socialistas-revolucionários de esquerda». No final, estes últimos
formaram um partido independente para inscrever no livro da revolução uma das suas
páginas mais extravagantes. Foi a última deflagração do radicalismo intelectual
independente, e disso restou, alguns meses depois de Outubro, um pequeno monte de
cinzas.
A diferenciação atingiu profundamente também os mencheviques. A sua organização
em Petrogrado se encontrou claramente em oposição em relação ao comité central. O
núcleo principal, dirigido por Tseretelli, não tendo como os socialistas-revolucionários
reservas de camponeses, desintegraram-se mas rápidamente que estes últimos. Os
grupos sociais democratas intermediários que não tinham aderido aos dois principais
campos tentavam ainda obter a unificação dos bolcheviques e mencheviques: eles
guardavam ainda qualquer coisa das ilusões de Março, quando o próprio Staline
considerava que era desejável a união com Tseretelli e esperava que «no interior do
partido, nos nos desembaraçaremos dos pequenos desacordos». Cerca do 20 de Agosto
teve lugar a fusão com os próprios unificadores, foi a sorte da ala direita, e a resolução de
Tseretelli para a guerra e para a coligação com a burguesia foi votada por cento e
dezassete votos contra setenta e nove votos.
A vitória de Tseretelli no partido assombrava a derrota desse mesmo partido na
classe operária. A organização dos operários mencheviques de Petrogrado,
extremamente pequena, seguia Martov, empurrando-o para a frente, irritando-se pela sua
indecisão e preparando-se a passar para os bolcheviques. A meados de Setembro, a
organização de Vassili-Ostrov passou quase inteiramente para o partido bolchevique. Isso
acelerou a fermentação nos outros bairros e na província. Os líderes das diferentes

527
correntes do menchevismo, numa das sessões comuns, acusavam-se raivosamente o
outro do afundamento do partido. O jornal de Gorki, ligado ao flanco de esquerda dos
mencheviques, comunicava no fim de Setembro que a organização do partido em
Petrogrado, que contava ainda recentemente cerca de dez mil membros, «tinha deixado
de existir de facto... A última conferência da capital não tinha podido reunir-se falta de
quorum.»
Plekhanov atacava pela direita os mencheviques: «Tseretelli, e os seus amigos, sem
o desejar e o conceber eles próprios, abriam o caminho a Lenine.» As disposições
políticas do próprio Tseretelli durante as jornadas da maré enchente de Setembro estão
muito marcadas nas Lembranças do cadete Nabokov: «O traço mais característico do seu
estado de espírito de então era o medo diante da força crescente do bolchevismo.
Lembro-me como, num encontro comigo, ele dizia que os bolcheviques poderiam
apoderar-se do poder. «Certamente – dizia ele – eles não aguentarão mais de duas ou
três semanas, mas imagine somente quais serão os estragos. É o que é preciso evitar a
todo o custo.» A sua voz tinha tom de ansiedade, pânico sem dúvida...» Diante de
Outubro, Tseretelli passava pelos mesmos estados de alma que Nabokov conhecia bem
desde das jornadas de Fevereiro.
O terreno onde os bolcheviques agiam lado a lado com os socialistas-revolucionários
e os mencheviques, ainda que constantemente em luta com eles, eram os sovietes. As
modificações nas forças relativas dos partidos soviéticos, na realidade não à primeira,
com atrasos inevitáveis e com adiamentos artificiais, tinham a sua expressão na
composição dos sovietes e na sua função pública.
Muitos sovietes de província eram já antes das jornadas de Julho órgãos do poder –
em Ivanov-Voznessenko, em Lugansk, em Tsaritsyne, em Khersone, em Tomsk, em
Vladivostok, - senão formalmente, pelo menos em facto, senão constantemente, pelo
menos episodicamente. O soviete de Krasnoiarsk impôs completamente de sua própria
iniciativa o regime das cartas de distribuição para os objectos de consumo individual. O
soviete conciliador de Saratov foi obrigado a intervir nos conflitos económicos, proceder a
prisões de certos empreendedores, confiscar o trólei pertencendo a uma companhia
belga, estabelecer o contrôle operário e organizar a produção nas fábricas abandonadas.
No Ural onde, desde 1905, predominava a influência política do bolchevismo, os sovietes
exerciam frequentemente a justiça e a repressão em relação aos cidadãos, criaram em
algumas fábricas a sua milícia, cotizando a caixa da companhia para pagar os fundos,
organizaram o controlo operário que abastecia as empresas em matérias-primas e em
combustível, controlando a saída de artigos fabricados e estabelecendo os preços. Em
certas regiões, os sovietes confiscaram as terras dos proprietários nobres para as remeter
às colectividades de cultivadores.
Nas empresas mineiras de Simsk, os sovietes organizaram uma direcção regional de
fábrica que se subordinou toda a administração, a caixa, a contabilidade e a recepção das
encomendas. Por esse acto, a nacionalização da região mineira de Simsk fora iniciada.
«A partir do mês de Julho – escreveu B. Eltsin, a quem nós emprestamos esses dados –
nas fábricas do Ural, não somente tudo estava nas mãos dos bolcheviques, mas estes

528
davam já lições práticas para a solução dos problemas políticos, agrários e económicos.»
Essas lições eram primitivas, não conduziam a um sistema, não eram guiadas por uma
teoria, mas, em muitos pontos, elas pré-determinavam as vias futuras. A reviravolta de
Julho atingiu muito mais imediatamente os sovietes que o partido ou os sindicatos,
porque, na luta dessa época, tratava-se antes de tudo da vida ou da morte dos sovietes.
O partido e os sindicatos conservavam a sua importância durante os períodos «calmos»
como durante uma dura reacção: as tarefas e os métodos mudam, mas não as funções
essenciais. Mas os sovietes não podem aguentar senão sobre a base de uma situação
revolucionária e desapareciam com ela. Unificando a maioria da classe operária, eles
colocavam-na face a face diante de uma tarefa que se erguia acima de toas as
necessidades dos particulares, dos grupos e das corporações, acima de um programa de
remendos, de emendas e de reformas em geral porque é o problema da conquista do
poder. A palavra de ordem: «Todo o poder aos sovietes!» pareciam todavia liquidada com
a manifestação dos operários e dos soldados em Julho. A derrota tendo enfraquecido os
bolcheviques nos sovietes, tinha infinitamente enfraquecido mais os sovietes no Estado.
O «governo de salvação» significava a renovação da independência da burocracia. Os
sovietes recusando tomar o poder, foi para eles um enfraquecimento diante dos
comissários, uma atrofia, o definhamento.
O declínio da importância do comité executivo central encontrou a sua viva
expressão exterior: o governo convidou os conciliadores a evacuar o palácio de Tauride,
que exigia reparações, parece, para a Assembleia constituinte. Reservou-se para os
bolcheviques, na segunda quinzena de Julho, o edifício do Instituto Smolny, onde até
então recebiam a sua educação as raparigas da alta nobreza. A imprensa burguesa
escrevia então, sobre a transferência para os sovietes da casa dos «pequenos gansos
brancos», quase com o mesmo tom que antes quando ela falava da requisição do palácio
de Kczesinska pelos bolcheviques. Diversas organizações revolucionárias, e desse
número os sindicatos, que se tinham instalado por requisição em edifícios sofreram ao
mesmo tempo um ataque sobre a ocupação dos prédios. Não se tratava de outra coisa
senão de expulsar a revolução operária dos alojamentos demasiado grandes que ela se
tinha apoderado às custas da sociedade burguesa. A imprensa dos cadetes não
reconhecia limites à sua indignação, na realidade tardia, diante da intrusão de um povo de
vândalos nos direitos da propriedade particular e do Estado.
Mas, no fim de Julho, um facto inesperado foi descoberto, por intermediário dos
tipógrafos: os partidos que se juntavam à volta do famoso comité da Duma do Estado, ao
que parece há muito tempo, apoderaram-se para as suas necessidades da riquíssima
tipografia do Império, dos seus serviços de expedição e dos seus direitos à difusão do
material impresso. Os folhetos de agitação do partido cadete eram não somente
impressos gratuitamente, mas gratuitamente distribuidos, por toneladas, e rapidamente
em todo o país. O comité executivo, vendo-se na obrigação de verificar a acusação, viu-
se assim forçado a confirmar. O partido cadete descobriu, na verdade, um novo motivo
para se indignar; pode-se, de facto, um só instante, colocar sobre o mesmo pé a
confiscação dos estabelecimentos do Estado com o objectivo de destruir e a utilização do
material do Estado para a defesa de valores superiores? Numa palavra, se esses

529
senhores roubavam um pouco o Estado, era no seu próprio interesse. Mas este
argumento não parecia convencer toda a gente. Os operários da construção civil
obstinavam-se em acreditar que eles tinham mais direito a um espaço para o seu
sindicato que os cadetes tinham sobre a tipografia nacional. O diferendo não se produzia
por acaso: ele levava, com efeito, à segunda revolução. Os cadetes tiveram, de qualquer
modo, que morder a lingua.
Um dos instrutores do comité executivo, tendo percorrido na segunda quinzena de
Agosto os sovietes do Sul da Rússia, onde os bolcheviques eram consideravelmente mais
fracos que no Norte, anotou assim as suas observações pouco reconfortantes: «O estado
de espírito político modifica-se consideravelmente... Nas cimeiras das massas aumentam
as disposições revolucionárias provocadas pela conversão da política do governo
provisório... Na massa, ressente-se o cansaço e a indiferença em relação à revolução.
Observa-se uma sensível perca de entusiasmo em relação aos sovietes... As funções dos
sovietes são pouco a pouco reduzidas.» Que as massas se cansassem de ver as
oscilações dos intermediários democratas, é absolutamente indiscutível. Todavia, elas
arrefeciam não em relação à revolução, mas sim em relação aos socialistas-
revolucionários e aos mencheviques. A situação tornava-se particularmente intolerável em
lugares onde o poder, apesar de todos os programas, se concentrava nas mãos dos
sovietes conciliadores: ligados pela capitulação definitiva do comité executivo diante da
burocracia, eles não ousavam mais utilizar o seu poder e comprometiam somente os
sovietes aos olhos das massas. Uma parte considerável do trabalho diário, rotineiro, era
aliás desviado dos sovietes para as municipalidades democráticas. Uma parte ainda
maior ia para os sindicatos e comités de fábrica e oficinas. Tornava-se cada vez menos
claro saber se os sovietes sobreviviam e o que os esperava no dia seguinte.
Durante os primeiros meses da sua existência, os sovietes, tendo ultrapassado de
longe todas as organizações, tinham-se encarregado da edificação dos sindicatos, dos
comités de fábrica, dos clubes e da direcção do seu trabalho. Mas as organizações
operárias, tendo tido tempo de se construir, passavam cada vez mais para o controlo dos
bolcheviques. «Os comités de fábricas e de oficinas... escrevia Trotsky em Agosto – não
se criaram nos comícios improvisados. A massa compõe-se dos que, nesse lugar, na vida
diária da empresa, provaram a sua firmeza, a sua diligência e a dedicação aos interesses
dos operários. E eis que esses comités de fábrica... são, na sua maioria, compostos de
bolcheviques.» Estava fora de questão uma tutela sobre os comités de fábrica e dos
sindicatos exercida pelos sovietes conciliadores: pelo contrário, aqui abria-se o campo de
uma luta desenfreada. Sobre as questões que tocavam as massas, os sovietes
encontravam-se cada vez menos capazes de se oporem aos sindicatos e aos comités de
fábrica. Foi assim que os sindicatos de Moscovo realizaram a greve geral apesar da
decisão do Soviete. Sobe uma forma menos espectacular, conflitos idênticos produziram-
se em todos os lugares, e não eram os sovietes que eram os vencedores.
Levados pela sua própria conduta para o impasse, os conciliadores viram-se
forçados a «imaginar» para os sovietes ocupações acessórias, levá-los para vias de
empresas culturais, em resumo, para os distrair. Debalde: os sovietes foram criados para
conquistar o poder; para os outros problemas, existiam outras organizações, melhor

530
adaptadas. «Todo o trabalho que passava pelo canal menchevique e socialista-
revolucionário – escreve o bolchevique de Saratov, Antonov – perdeu sentido... Numa
sessão do comité executivo, bocejávamos de forma escandalosa, por aborrecimento: ela
era mesquinha e vazia, este falatório de socialistas-revolucionários e de mencheviques.»
Os sovietes anémicos podiam cada vez menos apoiar o seu centro de Petrogrado. A
correspondência entre Smolny e as localidades decrescia: nada a escrever, nada a
propor; não havia perspectivas nem tarefas. O isolamento em relação às massas tomou
uma forma extremamente sensível de crise financeira. Os sovietes de conciliadores nas
localidades estavam eles próprios sem recursos e não podiam subvencionar o seu
estado-maior de Smolny: os sovietes de esquerda recusavam de maneira evidente a sua
ajuda financeira ao comité executivo, esgotado pela sua participação no trabalho da
contra-revolução.
O processo de esgotamento dos sovietes todavia cruzava-se com processos de
ordem diferente, parcialmente contrário. Longínquas regiões limítrofes, distritos atrasados,
sítios perdidos despertavam e formavam sovietes que, nos primeiros tempos, mostravam
frescura revolucionária, tanto que eles não caíram sob a influência da corrupção do centro
ou sob a repressão governamental. O número total dos sovietes aumentava rapidamente.
Lá para o fim de Agosto, o serviço de registo do comité executivo contava até seiscentos
sovietes, por detrás dos quais se agrupavam vinte e três milhões de eleitores. O sistema
soviete oficial ia acima do oceanos humano que ondulava potentemente e levava as sua
vagas para a esquerda.
O renovamento político dos sovietes, coincidia com a sua bolchevização, começava
por baixo. Em Petrogrado, os bairros foram os primeiros a levantar a voz. No 21 de Julho,
a delegação da conferência inter-distritos dos sovietes apresentou ao comité executivo
uma lista de reivindicações: dissolução da Duma do Império, confirmar a imunidade das
organizações do exército por um decreto governamental, restituir a imprensa de
esquerda, suspender o desarmamento dos operários, acabar com as prisões massivas,
jugular a imprensa de direita, acabar com as deslocações de regimes de pena de morte
na frente. O alívio das exigências políticas, comparativamente às da manifestação de
Julho, é absolutamente evidente; mas era só o primeiro passo da convalescença. Ao
restringir as palavras de ordem, os distritos esforçavam-se em alargar a base. Os
dirigentes do comité executivo felicitaram diplomaticamente os sovietes de bairro pelo
«seu tacto», mas levaram o discurso a que todos o males provinham da insurreição de
Julho. Os partido separaram-se de forma cortês, mas friamente.
No programa dos sovietes de bairro abriu uma campanha enorme. Os Izvestia, cada
vez mais publicavam as resoluções dos sovietes, dos sindicatos, dos navios de guerra,
das tropas, exigindo a dissolução da Duma do Império, a suspensão das medidas
tomadas contra os bolcheviques e a eliminação dos que favoreciam a contra-revolução.
Sobre esse fundo essencial levantavam-se vozes mais radicais. No 22 de Julho, o Soviete
da província de Moscovo, ultrapassando sensivelmente o próprio Soviete de Moscovo,
votou uma resolução reclamando a entrega do poder aos sovietes. No 26 de Julho, os
soviete de Ivanovo-Voznessensk «estigmatiza pelo seu desprezo» o meio de luta

531
empregada contra o partido dos bolcheviques e enviou saudações a Lenine, «glorioso
líder do proletariado revolucionário».
As novas eleições, que tiveram lugar no fim de Julho e na primeira quinzena de
Agosto, em muitos lugares, levaram, regra geral, o reforço das fracções bolcheviques nos
sovietes. Em Cronstadt esmagada e vilipendiada em toda a Rússia, o novo soviete
contava cem bolcheviques, setenta e cinco socialistas-revolucionários de esquerda, doze
mencheviques internacionalistas, sete anarquistas, mais de noventa sem partido, onde
um não se decidiu em confessar as simpatias pelos conciliadores. No congresso regional
dos sovietes de Ural, que abriu no 18 de Agosto, houve oitenta e seis bolcheviques,
quarenta socialistas-revolucionários, vinte e três mencheviques. O objecto do ódio
particular da imprensa burguesa tornou-se Tsaritsyne, onde não somente o soviete se
tornou bolchevique, mas onde elegeram como presidente da câmara o líder dos
bolcheviques do lugar, Minine. Contra Tsaritsyne, o ataman do Don, Kaledine, cego pelos
preconceitos, Kerensky enviou, sem qualquer pretexto sério, uma expedição punitiva com
o único objectivo: destruir o ninho revolucionário. Em Petrogrado, em Moscovo, em todos
os distritos industriais, as mãos ergueram-se cada vez mais numerosas pelas moções dos
bolcheviques.
O fim de Agosto levou os sovietes a uma verificação. Sob o perigo, o reagrupamento
interior se produziu muito rápidamente, geralmente, e com conflitos relativamente pouco
importantes. Na província como em Petrogrado, no primeiro plano colocaram-se os
bolcheviques, herdeiros presumidos do sistema soviético oficial. Mas, mesmo na própria
composição oficial dos partidos conciliadores, os socialistas de «Março», os políticos das
ante-câmaras dos ministérios e dos gabinetes foram temporariamente afastados por
elementos mais combativos, temperados na luta clandestina. Para um novo agrupamento
de forças, era preciso uma nova forma de organização. Em lado nenhum a direcção da
defesa revolucionária não se concentrou entre as mãos dos comités executivos: tais como
se encontraram a insurreição, eles eram pouco aptos a combater. Por todo o lado criaram-
se comités especiais de defesa, os comités revolucionários, os estados-maiores. Eles
apoiavam-se nos sovietes, davam conta, mas apresentavam uma nova selecção de
elementos e novos métodos de acção em correlação com o carácter revolucionário das
tarefas.
O soviete de Moscovo, tal como durante as jornadas da Conferência de Estado,
constituiu um grupo de combate de seis homens que sós tinham o direito de proceder a
prisões. Tendo-se aberto no fim de Agosto, o comité regional de Kiev propôs aos sovietes
locais para não hesitar em destituir os representantes pouco seguros do poder, mas
também os militares como os civis, a tomarem medidas para a prisão imediata dos contra-
revolucionários assim como o armamento dos operários. Em Viatka, o comité do soviete
atribuiu-se plenos poderes excepcionais, incluindo a disposição da força armada. Em
Tsaritsyne, todo o poder passou ao estado-maior do soviete. Em Nijni-Novgorod, o comité
revolucionário colocou os seus homens de guarda nos correios e no telégrafo. O soviete
de Krasnoiarsk concentrou nas suas mãos o poder civil e militar.

532
Com estes ou aqueles desvios, às vezes essenciais, esse quadro reproduziu-se
quase por todo o lado. E não era de forma alguma uma simples imitação de Petrogrado: o
carácter dos sovietes, representantes de massas, fixava o determinismo extremo da sua
evolução interior, provocou uma reacção homogénea da sua parte diante dos grandes
acontecimentos. Enquanto que, entre os dois elementos da coligação, passava a frente
da guerra civil, os sovietes reuniram-se efectivamente à volta deles todas as forças vivas
da nação. Quebrando-se contra esta muralha, a ofensiva dos generais caiu em pedaços.
Não se podia pedir uma lição mais clara. «Apesar de todos os esforços feitos pelo poder
para afastar e privar da força os sovietes – dizia a esse respeito uma declaração dos
bolcheviques – os sovietes manifestaram toda a invencibilidade... da potência e da
iniciativa das massas populares num período da repressão exercida contra o
levantamento kornoloviano... Após esta tentativa que nada apagará da consciência dos
operários, dos soldados e camponeses, o grito unificador lançado logo no início da
revolução pelo nosso partido – tornou-se a voz de todo o país revolucionário.»
As dumas municipais, que tinham tentado rivalizar com os sovietes, eclipsaram-se
durante os dias de perigo e apagaram-se. A Duma de Petrogrado enviou
obsequiosamente uma delegação ao Soviete «para esclarecer a situação geral e
estabelecer um contacto» Pareceu que os sovietes, elegidos por uma parte da população
da cidade, deviam ter menos influência e força que as Dumas eleitas por toda a
população. Mas a dialéctica do processo revolucionário mostra que, em certas condições
históricas, a parte é infinita maior que o todo. Tal como no governo, os conciliadores da
Duma constituíam um bloco com os cadetes contra os bolcheviques, e esse bloco
paralisava a Duma, assim como o governo. Em contra-partida, o Soviete mostrou ser a
forma natural de uma colaboração defensiva dos conciliadores com os bolcheviques
contra a ofensiva da burguesia.
Após as jornadas kornilovianas abriu-se, para os sovietes, um novo capítulo. Ainda
se restava aos conciliadores um bom número de «burgos podres», sobretudo na
guarnição, o Soviete de Petrogrado apoiou com tal força os bolcheviques que
surpreendeu os dois campos: o da direita e o da esquerda. Na noite do 31 de Agosto ao 1
de Setembro, sempre sobre a presidência do próprio Tchkheidze, o Soviete votou pelo
poder dos operários dos camponeses e dos operários. Os membros da base das facções
conciliadores extorquíram quase todas as resoluções dos bolcheviques. A moção
concurrente de Tseretelli recolheu uma quinzena de votos. A mesa conciliadora não
acreditava no que via. Da direita, exigia-se um voto nominal que durou até às três da
manhã. Para não votar abertamente contra os seus partidos, muitos delegados saíram de
lá. Portanto, apesar de todos os meios de pressão, a resolução dos bolcheviques obteve,
279 votos contra 115. Foi um grande acontecimento. Foi o início do fim. Na mesa,
atordoada, declarou que entregava os seus poderes.
No 2 de Setembro, na sessão conjunta dos órgãos soviéticos russos em Finlândia,
foi adoptada por 700 votos contra 13, com 36 abstenções, uma resolução pelo poder dos
sovietes. No dia 5, o Soviete de Moscovo tomou a mesma via que Petrogrado: por 355
votos contra 254, não somente ele exprimia a sua desconfiança em relação ao governo
provisório, considerado como instrumento da contra-revolução, mas ele condenou a

533
política da coligação do comité executivo. A mesa à cabeça do qual se encontrava
Khintchuk declarou que se demitia. O Congresso dos sovietes da Sibéria central que se
iniciou no 5 de Setembro em Krasnoiarsk desenrolou-se completamente sob a bandeira
do bolchevismo.
No dia 8, a resolução dos bolcheviques foi adoptada pelo soviete dos deputados
operários de Kiev por uma maioria de 130 votes contres 66, mesmo se a fracção
bolchevique oficial só contava 95 membros. No Congresso dos sovietes da Finlândia que
se iniciou no 10, 150 mil marinheiros, soldados e operários russos estavam representados
por 65 bolcheviques, 48 socialistas-revolucionários de esquerda e alguns sem partido. O
soviete dos deputados camponeses da província de Petrogrado eleito como delegado à
Conferência democrática o bolchevique Sergueiev. Era claro, mais uma vez, que no caso
onde o partido conseguiu, por intermediário dos operários ou dos soldados, a ligar-se
directamente com a aldeia, a classe camponesa se colocou de boa vontade sob a sua
bandeira.
A preponderância do partido bolchevique no Soviete de Petrogrado confirma-se
dramáticamente na sessão histórica do 9 de Setembro. Todas as fracções tinha
convocado todos os seus membros: «Trata-se da sorte do Soviete.» A reunião foi cerca de
um milhar de deputados operários e soldados. O voto do 1 de Setembro tinha sido um
simples episódio, engendrado pela composição acidental da assembleia, ou significaria
uma mudança completa da política do Soviete? Foi assim que foi colocada a questão.
Temendo não poder reunir a maioria dos votos contra a mesa na qual estavam todos os
líderes conciliadores: Tchkheidze, Tseretelli, Tchernov, Gotz, Dan, Skobelev, a fracção
bolchevique propôs eleger uma mesa sobre uma base proporcional; esta proposição que,
até um certo ponto, diluía a gravidade do conflito de princípio e que provocou, por
consequência, um violente protesto de Lenine, teve a vantagem táctica que ela garantiu
um apoio aos elementos hesitantes. Mas Tseretelli afastou os compromissos. A mesa que
saber se o Soviete mudou efectivamente de direcção: «Nós não podemos aplicar a táctica
dos bolcheviques.»
O projecto de resolução trazida pela direita dizia que o voto do 1 de Setembro não
correspondia de forma nenhuma à linha política do Soviete que continuava a confiar na
mesa. Só faltava aos bolcheviques a tomar o desafio, e iniciaram com homens prontos.
Trotsky, que apareceu no Soviete pela primeira vez após a sua libertação, e que foi
acolhido com entusiasmo por uma parte considerável da assembleia (as duas partes
pesavam, no seu íntimo, os aplausos: maioria ou não maioria?) pediu antes do voto uma
explicação: Kerensky fazia sempre parte da mesa? Após um minuto de hesitação, a mesa
tendo respondido afirmativamente, ela que estava carregada de hesitações, amarrava-se
ela própria um pesado fardo. O adversário não necessitava disso. «Estávamos
profundamente convencidos – declarou Trotsky -... que Kerensky não podia fazer parte da
mesa. Estávamos enganados. Actualmente, entre Dan e Tchkheidze, se ergue o fantasma
de Kerensky... Quando vos convidam a aprovar a linha política do presidium, não
esqueçam que, por aí mesmo, propõem-vos de concordar com a política de Kerensky.»

534
A sessão teve lugar numa tensão que atingiu o limite. A ordem manteve-se graças ao
esforço de todos e de cada um para não chegar a uma explosão. Todos queriam resolver
mais rapidamente as contas com os amigos e adversários. Todos compreendiam que se
decidia a questão do poder, da guerra, da sorte da revolução. Decidiu-se que se votaria
saindo pela porta. Convidaram a sair os que aceitavam a demissão da mesa: era mais
fácil sair à minoria que à maioria. Todos os extremos da sala, uma agitação apaixonada,
mas a voz baixa. A velha mesa ou uma nova mesa? A coligação ou o poder soviético?
Diante das portas, muito povo se tinha juntado, demasiado, nas contas da mesa. Os
líderes dos bolcheviques contavam, pelo seu lado, que lhes faltava cerca de uma centena
de votos para ter a maioria: «Seria maravilhoso!» diziam eles, consolando-se
antecipadamente. Os operários e soldados, em longas filas, alinhavam-se diante das
portas. Um rumor contido de voz, palavras soltas. De um lado, um grito furou:
«kornilovianos! E por outro lado: «Heróis de Julho!» O procedimento prolongou-se cerca
de uma hora. Os pratos da balança invisível oscilavam. A mesa, numa emoção
dificilmente contida, ficou todo o tempo no estrado. Enfim, o escrutínio foi controlado e
anunciado, 414 votos contra 519, e 67 abstenções! A nova maioria aplaudiu
ruidosamente, com exaltação e furor. Ela tem o direito: a vitória custou caro. Uma boa
parte da estrada tinha sido percorrida.
Sem ter podido ainda remeter-se do golpe sofrido, os líderes despossuidos descem
do estrado, com cara de enterro. Tseretelli não pode reter-se de formular uma profecia
ameaçadora. «Nós descemos desta tribuna – exclamou, voltando-se a meio do caminho –
consciente de ter possuído dignamente a bandeira da revolução. Agora, essa bandeira
passou para as vossas mãos. Nós podemos somente exprimir o desejo que vocês a
mantenham pelo menos metade de esse tempo!» Tseretelli enganou-se cruelmente sobre
os prazos como sobre tudo o resto.
O Soviete de Petrogrado, antepassado de todos os outros sovietes, viu-se a partir de
então sob a direcção dos bolcheviques que ainda ontem eram um «insignificante punhado
de demagogos.» Trotski lembrou, do alto da tribuna da mesa, que os bolcheviques ainda
não tinham sido lavados da acusação de ter estado aos serviço do estado-maior alemão.
«Que os Miliokov e os Gotchkov contam dia a dia a sua existência. Eles não o farão, mas
nós, por cada dia, prontos a tomar conta de nossos actos, não temos nada a esconder ao
povo russo...» O soviete de Petrogrado adoptou uma resolução especial, estigmatizando
pelo seu desprezo os autores, os propagadores e os auxiliares da calúnia.»
Os bolcheviques encontravam os seus direitos de sucessão. Sua herança
encontrou-se ao mesmo tempo grandiosa e extremamente estreita. O comité executivo
central suprimiu no devido momento ao Soviete de Petrogrado os dois jornais que ele
tinha criado, todos os serviços de direcção, todos os recursos financeiros e técnicos,
incluindo as máquinas de escrever e os tinteiros. Numerosos automóveis que, desde das
jornadas de Fevereiro, tinham sido colocadas à disposição do Soviete, foram entregues
sem excepção ao Olimpo conciliador. Os novos dirigentes não tinham nem caixa, nem
jornal, nem canetas nem lápis. Somente os muros nus e a ardente confiança dos
operários e dos soldados. Isso era perfeitamente suficiente.

535
Após a reviravolta radical da política do Soviete, as fileiras dos conciliadores
começaram a fundir ainda mais rápido. O 11 de Setembro, quando Dan defendia diante
do Soviete de Petrogrado a coligação, enquanto que Trotsky se pronunciava pelo poder
dos sovietes, a coligação foi adiada por todos os votos contra dez, com sete abstenções!
No mesmo dia, o Soviete de Moscovo condenou à unanimidade as medidas de repressão
contra os bolcheviques. Os conciliadores logo se viram rejeitados no «muito estreito
sector da direita, igual àquele que os bolcheviques tinham ocupado, no início da
revolução, à esquerda. Mas que diferença! Os bolcheviques sempre tinham sido mais
fortes nas massas que nos sovietes. Os conciliadores, em contra-partida, conservavam
ainda nos sovietes mais lugar que nas massas. Os bolcheviques, no período da sua
fraqueza, tinham por eles o futuro. Aos conciliadores só lhes restava um passado do qual
não havia lugar para estarem orgulhosos.
Ao modificar a sua corrente, o Soviete de Petrogrado mudava também de aspecto.
Os líderes conciliadores desapareceram completamente do horizonte, entrincheirando-se
no comité executivo; foram substituídos no Soviete pelas estrelas de segunda e terceira
grandeza. Com Tseretelli, Tchernov, Avksentiev, Skobelev, deixaram de se mostrar os
amigos e admiradores dos ministros democratas, os oficiais radicais e as senhoras, os
escritores meio socialistas, as pessoas instruídas e reputadas. Os soviete tornou-se
homogéneos, mais cinzentos, mais sombrios, mais sério

536
Os bolcheviques e os sovietes
Os recursos e os meios da agitação bolchevique se apresentaram, se se examina de
perto, não somente como não correspondendo de forma nenhuma à influência política do
bolchevismo, mas, simplesmente, impressionante pela insignificância. Até às jornadas de
Julho, o partido tinha 41 órgãos de imprensa, contando os semanários e os mensais, com
uma tiragem total de 330 mil exemplares; após o esmagamento de Julho, a tiragem foi
reduzida a metade. No fim de Agosto, o órgão central do partido tinha imprimido 50 mil
exemplares. Durante os dias onde o partido tomou conta dos sovietes de Petrogrado e de
Moscovo, os fundos na caixa do Comité central aumentou a cerca de 30 mil rublos papel.
Os intelectuais não afluíam ao partido. Uma larga camada de ditos «velhos
bolcheviques», o número de estudantes que tinham aderido à revolução em 1905, se
transformou em engenheiros que tinham sucesso na carreira, como médicos,
funcionários, e que mostravam sem cerimónia hostilidade. Mesmo em Petrogrado,
faltavam jornalistas, oradores, agitadores. A província via-se completamente desprovida.
Não havia dirigentes, homens possuindo uma educação política que poderiam explicar ao
povo o que queriam os bolcheviques! Tal é o lamento que se ouve em centenas de
lugares perdidos e sobretudo na frente. No campo, as células bolcheviques quase que
não existem. As comunicações postais estão completamente perturbadas: abandonadas à
sua sorte, as organizações locais, muitas vezes, reprovam, não sem razão, ao Comité
central de só dirigir Petrogrado.
Então como, com um aparelho tão fraco e uma tiragem de imprensa tão
insignificante, as ideias e as palavras de ordem do bolchevismo puderam amparar-se do
povo? O segredo do enigma é muito simples: as palavras de ordem que respondem à
necessidade aguda de uma classe e de uma época criam milhares de canais. O meio
revolucionário, levando a um estado incandescente, distingue-se pela alta condutibilidade
das ideias. Os jornais bolcheviques eram lidos em voz alta, relidos até ficarem em tiras, os
artigos mais importantes aprendiam-se por cor, eram contados, recopiados, etc. lá onde
era possível, reimprimidos.
«A tipografia do estado-maior – conta Pireiko – deu um grande serviço à causa da
revolução: quantos na nossa tipografia, se reproduzem diversos artigos da Pravda e
pequenos opúsculos, muito próximos e acessíveis aos soldados! E tudo isso era
rapidamente encaminhado para a frente, por via aérea, pelos motoristas de autos e por
motocicletas...»
Ao mesmo tempo, a imprensa burguesa, expedida gratuitamente na frente em
milhões de exemplares, não encontrava um leitor. Os pesados pacotes nem eram
desfeitos. O boicote da imprensa «patriótica» tomava frequentemente formas
demonstrativas. Os representantes da 18ª divisão siberiana decidiram convidar os
partidos burgueses a suprimir o envio da sua literatura, dado que nem servia para fazer
ferver a água para o chá» A imprensa bolchevique tinha outra utilidade. É por isso que o
coeficiente da sua utilidade, ou melhor, se quisermos, da sua nocividade, era infinitamente
mais elevada.

537
A explicação habitual dos sucessos do bolchevismo é levada a evocar a
«simplicidade» das suas palavras de ordem que iam a favor dos desejos das massas. Há
aí uma parte de verdade. A consistência da política dos bolcheviques foi determinada por
esse facto que, contrariamente aos partidos «democráticos», eles não dependiam de
comandos tácticos ou meio formulados, traduzindo-se no fim de contas na protecção da
propriedade privada. Todavia, esta diferença não esgota por ele própria a questão. Se, à
direita dos bolcheviques, se mantinha a «democracia», do lado esquerdo tentavam repelir
seja os anarquistas, seja os maximalistas, seja os socialistas-revolucionários de
esquerda. Portanto, todos esses grupos não tinham saído do estado de impotência. O
bolchevismo distinguia-se nisto que ele tinha subornado o seu princípio objectivo – a
defesa dos interesses das massas populares – às leis da revolução considerada como um
processo objectivamente objectivamente condicionado. A dedução científica dessas leis,
antes de tudo as que governam o movimento de massas populares, constituía a base da
estratégia bolchevique. Na sua luta, os trabalhadores guiam-se não somente pelas suas
necessidade, mas pela sua experiência da vida. O bolchevismo era absolutamente
estranho ao desprezo aristocrático da experiência espontânea das massas. Ao contrário
dos bolcheviques partiam desta experiência e construiam sobre essa base. Nisso era uma
das suas grandes vantagens.
As revoluções são sempre prolixas, e os bolcheviques não escaparam a esta lei.
Mas, enquanto que a agitação dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários tinha
um carácter disperso, contraditório, na maior parte das vezes evasivo, a agitação dos
bolcheviques distinguia-se pela sua natureza responsável e concentrada. Os
conciliadores tagarelavam para afastar as dificuldades, os bolcheviques caminhavam
diante delas. A análise constante da situação, a verificação das palavras de ordem
segundo os factos, uma atitude séria, davam uma força particular, um vigor persuasivo à
agitação bolchevique.
A imprensa do partido não exagerava os sucesso, não adulterava as relações de
força, não tentava da ganhar pela gritaria. A escola de Lenine era a do realismo
revolucionário. Os dados fornecidos pela imprensa bolchevique em 1917 era, à luz dos
documentos da época e da crítica histórica, infinitamente mais verídica que as
informações de todos os outros jornais. A veracidade provinha da força revolucionária dos
bolcheviques, mas, ao mesmo tempo, consolidava a sua potência. O abandono desta
tradição tornou-se, a seguir, um dos traços mais perniciosos da conduta dos epígonos.
«Nós não somos charlatães – dizia Lenine imediatamente após a sua chegada – nós
devemos nos basear unicamente sobre a consciência das massas. Mesmo se devemos
ficar minoritários – sim... não tenhamos medo de estar em minoria... Nós fazemos um
trabalho crítico para livrar as massas do engano... A nossa linha mostrar-se-à verdadeira.
A nós virão todos os oprimidos. Não haverá outra saída para eles.»
Completamente compreendida, a política bolchevique apresentou-se a nós como o
contrário da demagogia e do espírito aventureiro!
Lenine leva uma vida clandestina. Ele segue com extrema atenção os jornais, lê
como sempre entre as linhas e, nas entrevistas pessoais pouco numerosas, surpreende

538
os ecos dos pensamentos inacabados e as intenções não exprimidas. Nas massas,
refluxo. Martov, defendendo os bolcheviques contra a calúnia, aflito, ironiza em direcção
do partido que encontrou o meio de se infligir a si próprio uma derrota. Lenine adivinhou, -
logo ele recebeu sobre isso informações nítidas – que, para tal ou tal bolchevique, os
traços do arrependimento não são estranhos e que o impressionável Lunatcharsky não
era o único nesse caso. Lenine escreveu sobre as jeremiadas dos pequenos burgueses e
da conduta de «renegados» de certos bolcheviques que se mostraram tolerantes às
jeremiadas. Os bolcheviques, nos distritos e na província, subscreveram essas palavras
severas. A sua persuasão tornou-se ainda maior: «o velho» não perderá a cabeça, não
perderá a coragem, não sucumbirá aos movimentos de humor ocasionais.
Um membro do Comité central dos bolcheviques – não é Sverdlov? - escreveu,
dirigindo-se à província:
«Por um tempo, nós não temos jornais próprios... A organização não está destruida...
O Congresso não é adiado.»
Lenine segui atentamente, tanto que lhe permitiu o seu isolamento forçado, a
preparação do Congresso do partido e esboçou as resoluções essenciais; trata-se do
plano da ofensiva ulterior. O Congresso é nomeado antecipadamente unificador, porque
se previa que se incluísse no partido certos grupos revolucionários autónomos, antes de
tudo os da organização inter-distritos de Petrogrado à qual pertencem Trotsky, Ioffé,
Oritsky, Riazanov, Lunatcharsky, Pokrovsky, Manoilsky, Karakhan, Ioreniev e vários outros
revolucionários conhecidos pelo seu passado ou que estavam ainda somente a serem
conhecidos.
No 2 de Julho, mesmo na véspera da manifestação, tinha lugar um conferência inter-
distritos, representando cerca de de quatro mil operários.
«Em maioria – escreve Sokhanov, que assistia entre o público, - eram para mim
desconhecidos, operários e soldados... O trabalho foi feito febrilmente e todos sentiram
que ele era frutuoso. Uma só coisa incomodava: no quê vocês se diferenciam dos
bolchevique e porquê vocês não estão com eles?»
Para apressar a unificação que se esforçavam de adiar certos dirigentes da
organização, Trotsky publicou na Pravda esta declaração:
«Não existe actualmente, na minha opinião, diferenças de princípio ou de táctica
entre a organização inter-distritos e a dos bolcheviques. Por consequência, não há
motivos que justificariam a existência distinta dessas organizações.»
No 26 de Julho abriu-se o Congresso de unificação, na realidade o VIº Congresso do
partido bolchevique que se desenrolava meio legalmente, se dissimulando
alternativamente em dois bairros operários, 175 delegados, desse número 157 delegados
com voz deliberativa, representavam 112 organizações agrupando 176 750 membros. Em
Petrogrado, contava-se 41 000 membros: 36 000 na organização bolchevique, 4 000 nos
inter-distritos, cerca de 1 000 na organização militar. Na região industrial de Moscovo, o
partido contava 42 000 membros, no Ural, 25 000, na bacia do Donetz cerca de 15 000.

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No Cáucaso, existiam grandes organizações bolcheviques, em Baku, em Grosny, em
Tíflis: as duas primeiras compunham-se quase exclusivamente de operários; em Tíflis
predominavam os soldados.
A composição do Congresso representava o passado pré-revolucionário do partido.
Sobre cento e setenta e um delgados que preencheram as folhas de inquérito, cento e
dez tinham passado pela prisão, no total duzentos e quarenta e cinco anos, dez tinham
feito, no conjunto, quarenta e um anos de presídio, vinte e quatro totalizavam setenta e
três anos de deportação, no total havia cinquenta e cinco banidos por uma duração de
vinte e sete anos no conjunto; vinte e sete homens tinham passado na emigração uma
duração total de noventa e nove anos; cento e cinquenta tinha sido alvo de prisão acima
de quinhentos e quarenta e nove anos.
«Nesse congresso – dizia mais tarde, nas suas Memórias, Piatnitsky, um dos
secretários actuais da Internacional comunista – não assistiram nem Lenine, nem Trotsky,
nem Zinoviev, nem Kamenev... Ainda que a questão do programa do partido tivesse sido
retirada da ordem do dia, o congresso se desenrolou sem os líderes, com actividade e
muito bem...»
Na base dos trabalhos se colocaram as teses de Lenine. Teoricamente pouco seguro
dele, mas resoluto politicamente, Estaline tentou enumerar os traços que determinam «o
carácter profundo da revolução socialista, operária». A unanimidade do Congresso,
comparativamente à conferência de Abril, saltou aos olhos.
Sobre as eleições do Comité central, o processo-verbal do Congresso comunicou:
Lê-se os nomes dos quatro membros do Comité central que obtiveram o maior número de
votos : Lenine – 133 votos sobre 134; Zinoviev – 132; Kamenev – 131; Trotsky – 131.
Além disso são eleitos para o Comité central: Noguine, Kollontai, Estaline, Sverdlov,
Rykov, Bukarine, Artem, Ioffé, Uritsky, Miliotine, Lomov» Note-se esta composição do
Comité central: sob a sua direcção se cumprirá a insurreição de Outubro.
Martov saudou o congresso com uma carta na qual ele exprime de novo «a sua
profunda indignação diante da campanha de calúnias», mas, sobre as questões
essenciais, parou no limiar da acção,
«não se deve admitir – escreveu - que se substitua ao problema da conquista do
poder pela maioria da democracia revolucionária o problema da conquista do poder numa
luta com esta maioria e contra ela...»
Por maioria da democracia revolucionária, Martov continuava a compreender a
representação soviética oficial que se desequilibrava» Martov está ligado aos sociais
patriotas não por uma vã tradição fraccional – escrevia então Trotsky – mas por uma
atitude profundamente oportunista em relação à revolução social considerada como um
objectivo longínquo que não pode determinar a maneira de colocar as tarefas de hoje. E é
isso mesmo que o separa de nós.»
Houve somente um pequeno número de mencheviques de esquerda, Larine à
cabeça, para se aproximar definitivamente neste período dos bolcheviques; Iurenive,

540
futuro diplomata soviético, como relator do Congresso sobre a questão da unificação dos
internacionalistas, chegou a esta conclusão que era preciso unificar-se com «a minoria da
minoria dos mencheviques»... O grande afluxo dos antigos mencheviques ao partido só
começou após a insurreição de Outubro: juntaram-se não ao levantamento proletário, mas
ao poder que daí tinha saído, os mencheviques manifestavam o traço essencial do
oportunismo: a obsequiosidade diante do poder do dia. Lenine, que se mantinha
extremamente cauteloso sobre a composição do partido, logo reclamou a exclusão de
99% dos mencheviques que tinham entrado após a insurreição de Outubro. Ele esteve
longe de chegar a esse resultado. Logo a seguir, as portas escancararam-se para os
mencheviques e socialistas-revolucionários, e os antigos conciliadores tornaram-se um
dos apoios do regime estalinista no partido. Mas isso tudo se relaciona já com a época
ulterior.
Sverdlov, que praticamente tinha organizado o congresso no seu relatório: «Trotsky,
antes do congresso, entrou na redacção do nosso órgão, mas a sua encarceração
impediu de aí participar efectivamente.» Foi somente no congresso de Julho que Trotsky
entrou formalmente no partido bolchevique. O balanço dos anos de desentendimento e de
luta fraccional foi encerrado. Trotsky chegou-se a Lenine como a um mestre cuja força e
importância ele tinha compreendido mais tarde que outros, mas talvez mais
completamente. Raskolnikov, que tinha frequentado de perto Trotsky desde da sua
chegada do Canadá e que tinha logo passado com ele, lado a lado, algumas semanas na
prisão, escreveu nas suas Memória:
«Trotsky tinha um imenso respeito por Vladimir Ilitch (Lenine). Ele colocou-o acima
de todos os contemporâneos que teve ocasião de encontrar na Rússia e no estrangeiro.
No tom de Trotsky, falando de Lenine, sentia-se a devoção de um discípulo: nessa época,
Lenine contava um estágio de trinta anos ao serviço do proletariado, e Trotsky estava no
seu vigésimo ano. Os ecos dos antigos desentendimentos do período de antes da guerra
tinham-se completamente apagado. Entre a linha de táctica de Lenine e a de Trotsky, não
existia diferença. Essa aproximação, já esboçada durante a guerra, foi completamente
determinada no momento de Léon Davidovitch (Trotsky) à Rússia; segundo as suas
primeiras manifestações de actividade nós sentimos todos, velhos leninistas, que ele era
dos nossos.»
Já, o único número de votos dados a Trotsky quando ele foi eleito para o Comité
central mostrou que ninguém no meio bolchevique não o considerava, mesmo no
momento da sua entrada na partido, como um intruso.
Invisivelmente presente no congresso, Lenine inspirava nos trabalhos da assembleia
o espírito de responsabilidade e de audácia. O criador e o educador do partido não
tolerava nem a negligência na teoria nem na política. Ele sabia que uma fórmula
económica inexacta, tal como uma observação política desatenta ganham cruéis
vinganças na hora da acção. Defendendo o seu procedimento em relação a cada texto do
partido, mesmo um texto de importância secundária, Lenine repetiu mais de uma vez:
«Não são bagatelas, é necessário precisão: o nosso agitador aprenderá isso por cor
e não será derrotado...» «O nosso partido é bom – acrescentava, tendo em vista

541
precisamente essa atitude séria, exigente, do agitador de base, sobre o que era preciso
dizer e a maneira de o dizer.
A ousadia das palavras de ordem bolchevique deu mais de uma vez a impressão de
ser fantasista: foi assim que foram acolhidas as teses de Abril de Lenine. Na realidade,
numa época revolucionária, o que há de mais fantasista, são as lutas mesquinhas; em
contra-partida, o realismo é inconcebível fora de uma política de longínquos objectivos.
Não basta dizer que a fantasia era estranha ao bolchevique: o partido de Lenine era o
único partido de realismo político na revolução.
Em Junho e no início de Julho, os bolcheviques operários declararam mais de uma
vez que eles eram muitas vezes obrigados a desempenhar o papel de lança de bombeiros
em relação às massas, e que isso não lhe assentava bem. Julho, com a derrota, tinha
trazido uma experiência que foi paga caro. As massas tornaram-se muito mais atentas
aos avisos do partido, aprendendo os seus cálculos de táctica. O congresso do partido de
Julho confirmou isto: «O proletariado não se deve deixar levar pelas provocações da
burguesia que deseja, neste momento, apelar a uma batalha prematura.» Todo o mês de
Agosto, sobretudo a segunda quinzena, é marcada por constantes avisos do partido
dirigidos aos operários e soldados: não descer à rua. Os próprios líderes bolcheviques
brincavam frequentemente em voz baixa sobre a semelhança dos seus avisos com o
leitmotivo político da velha social-democracia alemã que retinha as massas de toda a luta
séria, alegando invariavelmente o perigo da provocação e a necessidade de acumular
forças. Na realidade, a semelhança não era aparente. Os bolcheviques compreendiam
perfeitamente que as forças acumulam na luta e não numa abstenção passiva. O estudo
da realidade era para Lenine simplesmente uma exploração teórica no interesse da
acção. Quando ele avaliava a situação, ele via sempre no seu próprio centro o partido
como força activa. Ele considerava com particular hostilidade, mais exactamente
desgosto, o austro-marxisme (Otto Bauer, Hilferding, e outros) pelo qual a análise teórica
é somente um comentário científico da passividade. A prudência em um travão, e não um
motor. Ninguém ainda viajou sobre um travão, tal como ninguém construiu nada sobre a
prudência. Mas os bolcheviques sabiam ao mesmo tempo que a luta reclama um cálculo
de forças; é preciso ser prudente para ter o direito de ser temerário.
A resolução do VI Congresso, ao mesmo tempo que prevenia os conflitos
prematuros, indicava que era preciso aceitar o combate «quando a crise comum a toda a
nação e um profundo desenvolvimento das massas criariam as condições favoráveis para
a passagem de elementos pobres da cidade e do campo ao lado dos operários». Ao ritmo
da revolução, não se tratava de dezenas de anos, nem mesmo de anos mas de alguns
meses.
Tendo actualizado a explicação para as massas da necessidade de se preparar para
uma insurreição armada, o Congresso decidiu ao mesmo tempo de suprimir a palavra de
ordem central do período precedente: a devolução do poder aos sovietes. Uma coisa ia
com a outra. Lenine tinha preparado a modificação das palavras de ordem pelos seus
artigos, suas cartas e as suas entrevistas particulares.

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A passagem do poder para os sovietes teria marcado directamente a passagem do
poder aos conciliadores. Isso podia realizar-se pacificamente, simplesmente ao retirar o
governo burguês que repousava sobre a boa vontade dos conciliadores e sobre os restos
da confiança nas massas. A ditadura dos operários e dos soldados era um facto, a datar
do 27 de Fevereiro. Mas os operários e os soldados não se davam conta do facto como
convinha. Eles tinham confiado o poder aos conciliadores que, por sua vez, o tinham
transmitido à burguesia. O cálculo dos bolcheviques visando um desenvolvimento pacífico
da revolução repousava não sobre a esperança que a burguesia remeteria de boa
vontade o poder aos operários e soldados, mas que os operários e os soldados
impediriam no momento adequado os conciliadores a ceder o poder à burguesia.
A concentração do poder nos sovietes, sob o regime da democracia soviética, teria
aberto aos bolcheviques a completa possibilidade de se tornar uma maioria nos sovietes
e, por consequência, criar um governo sobre as bases do seu programa. Para atingir esse
objectivo, não haveria necessidade de insurreição armada. A substituição dos partidos ao
poder teria podido realizar-se pacificamente. Todos os esforços do partido, desde Abril até
Julho, teriam por objectivos assegurar o desenvolvimento pacífico da revolução por
intermédio dos sovietes. «Explicar pacientemente» - tal era a chave da política
bolchevique.
As jornadas de Julho modificaram radicalmente a situação. Dos sovietes, o poder
passou entre as mãos das cliques militares que estavam ligadas aos cadetes e às
embaixadas e que tinham apoiado Kerensky por um certo tempo, na qualidade de
democrata firme. Se o Comité executivo tinha pensado agora em decidir que o poder
passaria entre as suas mãos, o resultado teria sido completamente diferente do que
poderia ter sido três dias antes: no palácio de Tauride teria entrado, provavelmente um
regimento de cossacos com as escolas de junkeres, e teria tentado simplesmente prender
os «usurpadores». A palavra de ordem «o poder para os sovietes» supunha então uma
insurreição armada contra o governo e as cliques militares que se mantinham por detrás
deles. Mas o levantamento em nome do poder dos sovietes que não queriam esse poder
teria sido uma evidente absurdidade. Por outro lado, tornar-se-ia duvidoso então – alguns
pensavam inverosimilhantemente – que os bolcheviques pudessem conquistar a maioria
nos sovietes sem autoridade, por meio de novas eleições pacíficas: ligados pelo
esmagamento, em Julho, os operários e os camponeses, os mencheviques e os
socialistas-revolucionários apoiarão bem entendido no seguimento das violências
exercidas contra os bolcheviques. Continuando conciliadores, os sovietes transformarão-
se numa só oposição sob um poder contra-revolucionário para logo deixar de existir.
Nessas condições, estava fora de questão a passagem pacífica do poder para as
mãos do proletariado e os camponeses pobres. Para o partido bolchevique, isso
significava: é preciso preparar a insurreição armada.
Sob qual palavra de ordem? Sob a palavra de ordem declarada da conquista do
poder pelo proletariado e os camponeses pobres. É preciso colocar o problema
revolucionário na sua forma nua. Sob a forma equívoca dos sovietes, é necessários
sobressair o conteúdo de classe. Isso não era renunciar aos sovietes como tais. Tendo-se

543
amparado do poder, o proletariado deverá organizar o Estado de tipo soviético. Mas serão
outros sovietes que preenchem a tarefa histórica absolutamente contrária à função
preservadora dos sovietes conciliadores.
«A palavras de ordem da passagem do poder para os sovietes – escrevia Lenine no
seguimento da perseguição e calúnia – agora teria um ar de dom quixotismo ou de gozo.
Essa palavra de ordem, objectivamente, seria um engano para o povo, lhe sugerindo
ilusões como se bastasse agora aos sovietes desejar tomar o poder ou então decidir
assim tê-lo – como se houvesse ainda no Soviete partidos que não seriam ainda
contaminados por ter ajudado os carrascos, como se se pudesse fazer do passado o que
não tinha sido.»
Renunciar a exigir a passagem do poder aos sovietes? No primeiro momento, esta
ideia chocou o partido, mais exactamente os seus quadros agitadores que, durante os
meses precedentes, tinham tomado de tal forma a palavra de ordem popular que eles a
associavam a quase todo o conteúdo da revolução. Nos círculos do partido iniciou-se uma
discussão. Muitos militantes conhecidos do partido, tais com Manuilsky, Iureniev e outros,
demonstraram que em retirando a palavra de ordem «todo o poder para os sovietes»,
criar-se-ia um perigo de isolamento do proletariado em relação ao campesinato. Esta
objecção substituía as classes pelas instituições. O fetichismo da forma de organização
representa, tão estranha que pareça à primeira vista, uma doença muito frequente
precisamente nos meios revolucionários. «Na media onde nós continuamos parte
integrante desses sovietes – escrevia Trotsky - nós nos esforçamos em obter que os
sovietes que reflectem a jornada de ontem da revolução cheguem a se erguer à altura da
tarefas de amanhã. Mas, tão importante que seja a questão do papel e da sorte dos
sovietes, ela é subordinada para nós à questão da luta do proletariado e das massas meio
proletarias da cidade, do exército e da aldeia para o poder político, para a ditadura
revolucionária.»
A questão de saber qual organização de massas deveria servir ao partido para a
direcção da insurreição não admitia solução à priori, e ainda menos solução categórica.
Os órgãos devendo servir para a insurreição podiam ser os comités de fábrica e os
sindicatos que se encontravam já sob a direcção dos bolcheviques, tal como os sovietes,
em certos casos, na medida onde eles escapavam ao jugo dos conciliadores. Lenine
citava o exemplo de Ordjnonikidze:
«É indispensável para nós transferir o centro de gravidade sobre os comités de
fábrica e de oficina. Os órgão da insurreição devem ser os comités de fábrica e de
oficina.»
Depois que as massas foram atingidas, em Julho, os sovietes, primeiro como a um
adversário passivo, a seguir como um inimigo activo, a mudança de palavras de ordem
encontrou na sua consciência um terreno completamente preparado. Aí estava a
preocupação constante de Lenine: exprimir com a última das simplicidades o que, por um
lado, decorre das condições objectivas e, por outro, a forma da experiência subjectiva das
massas. Não serve mais agora oferecer o poder aos sovietes de Tseretelli – assim

544
sentiam os operários e os soldados avançados – é necessário somente que nós próprios
o tomemos!
A manifestação de grevistas em Moscovo contra a conferência de Estado não
somente se de desenrolou contra a vontade do Soviete, mas não formulou a reivindicação
do poder dos sovietes. As massas já tinham compreendido a lição dada pelos
acontecimentos comentados por Lenine. Ao mesmo tempo, os bolcheviques de Moscovo
não hesitaram um minuto em ocupar posições de combate, desde que o perigo se
manifestou de uma contra-revolução tentando esmagar os sovietes conciliadores. A
política bolchevique combinava sempre a intransigência revolucionária com a mais
extrema flexibilidade e encontrava precisamente, nesta combinação, a sua força.
Os acontecimentos sobre o teatro da guerra submeteram logo a um teste muito
grave a política do partido do ponto de vista do seu internacionalismo. Após a queda de
Riga, a questão da sorte de Petrogrado apanhou os operários e os soldados. A reunião
dos comités de fábrica e de oficina em Smolny, o menchevique Mazorenko, oficial que
tinha recentemente dirigido o desarmamento dos operários de Petrogrado, fez um relato
sobre o perigo que ameaçava a capital e colocou questões práticas de defesa.
«A que propósito vocês querem falar connosco? - exclamou um dos oradores
bolcheviques... - Os nossos líderes estão presos e você nos chama para discutir questões
que dizem respeito à defesa da capital.»
Como operários da indústria e cidadãos da república burguesa, os proletários do
bairro de Vyborg não estão dispostos a sabotar a defesa da capital revolucionária. Mas,
como bolcheviques, membros do partido, eles não querem nem um segundo partilhar com
os dirigentes a responsabilidade da guerra diante do povo russo e diante dos povos dos
outros países.
Temendo que o espírito de defensiva não se transformasse numa política de defesa
nacional, Lenine escrevia:
«Nós não seremos partidários da defesa nacional senão após a passagem do poder
para o proletariado... Nem a tomada de Riga nem a de Piter (Petrogrado) não farão de
nós partidários da defesa nacional: até a esse momento, nós somos pela revolução
proletária, nós somos contra a guerra, nós não somos partidários da defesa nacional».
«A queda de Riga – escrevia Trotsky da prisão – é um golpe duro. A queda de
Petrogrado seria uma calamidade. Mas a queda da política internacional do proletariado
russo seria uma catástrofe.» Doutrina de fanáticos? Mas nesses mesmos dias onde os
caçadores bolcheviques e os marinheiros caíam sob as paredes de Riga, o governo
retirava as tropas para esmagar os bolcheviques, e o generalíssimo preparava-se para
fazer a guerra ao governo. Por esta política na frente como na retaguarda, para a
defensiva como para a ofensiva, os bolcheviques não podiam e não queriam tomar a
sombra de uma responsabilidade. Se eles se tivessem conduzido de outro modo, eles não
seriam bolcheviques.

545
Kerensky e Kornilov constituíam duas variantes de um e mesmo perigo; mas essas
variantes, a insinuante e a aguda, encontraram-se no fim de Agosto em oposição
irredutível entre elas. Era preciso antes de tudo afastar o perigo agudo para a seguir
acabar com o perigo insinuante. Não somente os bolcheviques entraram no comité de
defesa, ainda que tivessem sido condenados a ocupar a situação de uma pequena
minoria, mas eles declararam que, na luta contra Kornilov, eles estavam prontos a
concluir «uma aliança militarmente técnica» mesmo com o Directório. Sobre isso,
Sokhanov escreve:
«Os bolcheviques mostraram um tacto extremo e sabedoria política... É verdade que,
caminhando para um compromisso que não estava na sua natureza, eles perseguiam
certos fins particulares imprevisíveis para os seus aliados. Mas a sua sabedoria era
bastante grande neste assunto.»
Não havia nada não específico para os bolcheviques nesta política: pelo contrário,
ela respondia perfeitamente ao carácter do partido. Os bolcheviques eram revolucionários
de acção e não de gestos, de essência e não de forma. Sua política era determinada pelo
reagrupamento real de forças e não por simpatias ou antipatias. Perseguido pelos
socialistas-revolucionários e os mencheviques, Lenine escrevia:
«Seria um grande erro acreditar que o proletariado revolucionário, procurando por
assim dizer «vingar-se» dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques que
apoiaram o esmagamento dos bolcheviques, as execuções na frente e o desarmamento
dos operários, seria capaz de recusar «apoiá-los» face à contra-revolução.»
Dar um apoio técnico, mas não político. Contra o apoio político, Lenine prevenia
resolutamente numa das suas cartas ao Comité central:
«Nós não devemos apoiar, mesmo no momento, o governo de Kerensky. Isso seria
faltar aos princípios. Perguntar-se-à: não é preciso bater-se contra Kornilov? Com certeza!
Mas não é a mesma coisa, há aqui um limite; ele é ultrapassado por certos bolcheviques
que caiem no «espírito conciliador», deixando-se arrastar pela torrente dos
acontecimentos.»
Lenine sabia interpretar de longe as nuanças nos movimentos de opinião política. No
29 de Agosto, na sessão da Duma municipal de Kiev, um dos dirigentes bolcheviques do
lugar, G. Piatakov, declara:
«Nesta hora de perigo, nós devemos esquecer as velhas querelas... para nos unir
com todos os partidos revolucionários que querem levar adiante uma batalha à contra-
revolução. Apelo à unidade», etc.
Era justamente o tom político falso contra o qual Lenine prevenia. «Esquecer as
velhas querelas», era abri novos créditos aos candidatos à bancarrota.
«Nós faremos, nós faremos a guerra a Kornilov – escrevia Lenine – mas não
apoiaremos Kerensky, nós denunciamos a sua fraqueza. Há uma diferença... As frases...
sobre o apoio a dar ao governo provisório, etc., etc., devem ser combatidas
implacavelmente, precisamente como frases.»

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Os operários não faziam qualquer ilusão sobre o carácter do seu «bloco» com o
palácio de Inverno. «Ao lutar contra Kornilov, o proletariado combaterá não a ditadura de
Kerensky, mas por todas as conquistas da revolução» - assim se exprimiam as fábricas,
uma após outra, em Petrogrado, em Moscovo, na província. Não fazendo a menor
concessão política aos conciliadores, não confundindo nem as organizações nem as
bandeiras, os bolcheviques estavam, como sempre, prontos a coordenar os seus actos
com um adversários e inimigo se isso desse a possibilidade de golpear outro inimigo mais
perigoso no momento presente.
Na luta contra Kornilov, os bolcheviques perseguiam «fins particulares». Sokhanov
indica por aí que eles davam-se por tarefa transformar o Comité de defesa num
instrumento para a insurreição proletária. Que os comités revolucionários das jornadas
kornilovianas se tornassem até um certo grau a pré-figuração de órgãos que dirigem a
seguir o levantamento do proletariado, é indiscutível, mas Sokhanov atribui mesmo assim
aos bolcheviques uma excessiva perspicacia quando ele pensa que tinham previsto esse
ponto na organização. Os «objectivos particulares» consistiam em esmagar a contra-
revolução, a desligar se fosse conseguido os cadetes dos conciliadores, em agrupar o
mais possível as massas sob a direcção bolchevique, em armar o maior número possível
de operários revolucionários. Os bolcheviques não escondiam esses objectivos. O partido
perseguido socorria o governo da repressão e da calúnia; mas salvava-o da derrota militar
para o mais seguramente o matar politicamente.
As últimas jornadas de Agosto produziram novamente uma brusca deslocação nas
relações de força, desta vez da direita para a esquerda. As massas chamadas à luta
restabeleceram sem esforço a situação que os sovietes tinham tido antes da crise de
Julho. A partir de então, a sorte dos sovietes está de novo nas suas próprias mãos. O
poder pode ser tomado pelos sovietes sem combate. Para isso, os conciliadores só
necessitam consolidar o que se formou já na realidade. Toda a questão é de saber se eles
o quererão... Num momento de entusiasmo, os conciliadores declararam que a coligação
com os cadetes não se pode mais considerar. Se é assim, ela é inconcebível em geral. A
mudança de atitude da coligação não pode significar outra coisa senão a passagem do
poder aos conciliadores.
Lenine compreendeu imediatamente o essencial da nova situação para daí tira as
deduções indispensáveis. No 3 de Setembro, ele redige o seu notável artigo Sobre os
compromissos. O papel dos sovietes modificou-se de novo, constatou: no início de Julho,
eles eram os órgãos da luta contra o proletariado; no fim de Agosto, eles tinham-se
tornado os órgãos da luta contra a burguesia. Os sovietes reencontraram as tropas à sua
disposição. A história reabriu de novo a possibilidade de um desenvolvimento pacífico da
revolução. É uma possibilidade excepcionalmente rara e preciosa: é preciso tentar realizá-
la. Lenine troça de passagem daqueles que julgam inadmissível os compromissos,
quaisquer que sejam : o problema consiste «através de todos os compromissos na
medida onde eles são inevitáveis», em realizar os próprios objectivos e tarefas.
«O compromisso, do nosso lado – diz, é o nosso regresso à reivindicação de antes
de Julho: todo o poder aos sovietes, um governo de socialistas-revolucionários e de

547
mencheviques responsáveis diante dos sovietes. Agora, e somente agora, talvez no total
durante alguns dias, ou então uma ou duas semanas, um tal governo poderia constituir-se
e consolidar-se pacificamente.»
A brevidade do prazo fixado devia caracterizar toda a gravidade da situação: os
conciliadores têm os seus dias contados para escolher entre a burguesia e o proletariado.
Os conciliadores apressaram-se a afastar a proposição leninista como uma
armadilha perfídia. Na realidade, a proposição não tinha ponta de malícia: persuadidos
que o seu partido tinha sido chamado a tomar a cabeça da nação. Lenine fez uma
tentativa franca para atenuar a luta, enfraquecendo a resistência dos adversários que ele
colocava diante do inevitável.
As audaciosas evoluções de Lenine que provinham sempre de uma modificação da
própria situação e conservam invariavelmente nelas a unidade da concepção estratégica,
constituem uma escola considerável de estratégia revolucionária. A proposição do
compromisso tinha o sentido de uma lição das coisas, antes de tudo para o próprio partido
bolchevique. Ela mostrava que, apesar da experiência feita com Kornilov, não restava
mais aos conciliadores senão a via da revolução. O partido dos bolcheviques sentiu-se
definitivamente, após isso, o único partido da revolução.
Os conciliadores recusaram desempenhar o papel de transmissão, passando o
poder das mãos da burguesia para as do proletariado, como, em Março, eles tinham
jogado um papel de transmissão, ganhando o poder das mãos do proletariado para as da
burguesia. Mas, mesmo por aí, a palavra de ordem do «poder para os sovietes»
continuava suspendida, não por muito tempo, todavia: alguns dias depois, os
bolcheviques obtiveram a maioria no Soviete de Petrogrado, e depois um bom número de
outros. A palavra de ordem do «poder para os sovietes» não foi, por consequência,
retirada uma segunda vez da ordem do dia, mas tomou um novo sentido: todo o poder
para os sovietes bolcheviques. Sob este aspecto, a palavra de ordem deixava
definitivamente de ser a de uma evolução pacífica. O partido comprometeu-se na via da
insurreição armada, através dos sovietes e em nome dos sovietes.
Para compreender o desenvolvimento ulterior, é indispensável colocar uma questão:
de qual maneira os sovietes conciliadores tinha recuperado no início de Setembro o poder
que eles tinham perdido em Julho? Através das resoluções do VIº Congresso afirmou-se
claramente esta ideia constante que pelos resultados dos acontecimentos de Julho, a
dualidade de poderes se viu liquidada, tendo sido substituida pela ditadura da burguesia.
Os últimos historiadores soviéticos reproduziram de um livro para outro a mesma ideia,
nem mesmo tentando fazer disso uma nova apreciação à luz dos acontecimentos que se
seguiram. Além disso, eles não se colocaram esta questão: se, em Julho, o poder tinha
sido inteiramente passado para as mãos da clique militar, porquê então esta mesma
clique teve que recorrer à insurreição em Agosto? Compromete-se na via arriscada de
uma conspiração não aquele que possui o poder, mas aquele que quer apoderar-se dele.
A formula do VIº Congresso era, pelo menos, inexacta. Se denominarmos
«dualidade de poderes» o regime sob o qual havia uma ficção de poder entre as mãos do

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governo oficial, enquanto que a força real estava entre as mãos do Soviete, não há
qualquer motivo para afirmar que a dualidade de poderes está terminada a partir do
momento onde uma porção real poder passou do Soviete à burguesia. Do ponto de vista
das tarefas de combate do momento, devia-se e podia-se sobrestimar a concentração nas
mãos da contra-revolução. A política não é uma matemática. Praticamente, era
infinitamente mais perigoso em subestimar o significado da mudança ocorrida que de a
exagerar. Mas a análise histórica não necessita dos exageros da agitação. Simplificando o
pensamento de Lenine, Estaline dizia ao Congresso:
«A situação é clara. Agora, ninguém não fala da dualidade de poderes. Se, antes, os
sovietes representavam uma força real, agora são somente os órgãos de agrupamentos
de massas, não possuindo qualquer poder.»
Certos delegados replicavam nesse sentido que em Julho era a reacção que tinha
triunfado, mas não a contra-revolução que tinha vencido. Estaline respondia a isso por um
aforismo inesperado: «Na realidade, a revolução não ganha senão através de uma série
de reacções alternadas: ela faz sempre um passo atrás após dois em frente. O relatório
da reacção em relação à contra-revolução é o de uma reforma em relação a uma
insurreição. Pode-se chamar «vitórias da reacção» as modificações no regime que
aproximam este das necessidades da classe contra-revolucionária, sem mudar portanto o
detentor do poder. Mas a vitória da contra-revolução é inconcebível sem a passagem do
poder para as mãos de outra classe. Essa passagem decisiva não foi o produto de Julho.
«Se o levantamento de Julho era uma meia insurreição – escreveu muito
justamente, alguns meses mais tarde, Bukharine, que não soube, portanto tirar das suas
próprias palavras as deduções necessárias - vitória da contra-revolução foi a um certo
grau um meia vitória.» Mas uma semi-vitória não podia dar à burguesia o poder. A
dualidade de poderes reconstruiu sobre outras bases, se transformou, mas não
desapareceu. Nas fábricas, como antes, não havia nada a fazer contra a vontade dos
operários. Os camponeses conservavam o poder ao ponto de recusar aos proprietários
nobres o uso dos seus direitos de propriedade. Os chefes dos exércitos sentiam-se
intranquilos diante dos soldados. Mas o que é o poder, se não a possibilidade material de
dispor da força militar e da propriedade? No 13 de Agosto, Trotsky escrevia, sobre os
movimentos que se tinham produzido: «O assunto não se limita ao facto que ao lado do
governo se mantinha o Soviete que preencheu um grande número de funções
governamentais, se erguiam dois regimes diferentes que se apoiavam sobre classes
diferentes... Implantado lá no alto, o regime da República capitalista e, formado em baixo
o regime da democracia operária se paralisavam um ao outro.»
É absolutamente indiscutível que o Comité executivo central tinha perdido a sua
grande importância. Mas é errado acreditar que a burguesia tinha obtido tudo o que as
cúpulas conciliadoras tinham perdido. Estes últimos perdiam não somente à direita, mas à
esquerda, não somente em proveito das cliques militares, mas em proveito dos comités
de fábrica e de regimentos. O poder se descentralizava, se quebrava, desaparecia
parcialmente debaixo da terra como as armas que os operários tinham escondidas após a
derrota de Julho. A dualidade de poderes deixou de ser «pacífica», em guardar o seu

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contacto e a sua regra. Ela tornou-se mais clandestina, descentralizada, mais polarizada e
explosiva. No fim de Agosto, a dualidade de poderes dissimulada se transformou de novo
em dualidade activa. Veremos qual importância esse facto adquiriu em Outubro.

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A última coligação
Fiel à sua tradição: não resistir a nenhum choque sério, o governo provisório
afundou-se, como se pode lembrar, na noite do 26 de Agosto. Os cadetes saíram para
facilitar o trabalho de Kornilov. Os socialistas saíram para facilitar o trabalho de Kerensky.
Uma nova crise governamental iniciou-se. Antes de tudo se colocou a questão do próprio
Kerensky: o chefe do governo era cúmplice da conspiração. A indignação contra ele era
tão grande que ao ouvir somente mencionar o seu nome, os líderes conciliadores
recorreram mesmo ao vocabulário bolchevique. Tchernov, que acabava de saltar do
comboio ministerial em movimento, escrevia no órgão central do seu partido sobre a
«confusão na qual não se chegava a compreender onde acabava Kornilov e onde
começava Filonenko com Savinkov, onde acabava Savinkov e onde começava o governo
provisório, como tal». A ilusão era suficientemente clara: «O governo provisório como tal»,
- era exactamente Kerensky que pertencia ao mesmo partido que Tchernov.
Mas, ao aliviar a alma com palavrões, os conciliadores decidiram que não podiam
passar sem Kerensky. Se eles impediam Kerensky de amnistiar Kornilov, apressaram-se
eles próprios a amnistiar Kerensky. À laia de compensação este último aceitou fazer uma
concessão sobre o modo de governo da Rússia. Ainda na véspera, considerava-se que
esta questão não podia ser decidida senão pela Assembleia constituinte. Agora, os
obstáculos jurídicos eram afastados de uma vez. A destituição de Kornilov na declaração
do governo explica-se pela necessidade «de salvar a pátria, a liberdade e o regime
republicano.» Esta esmola puramente verbal e aliás tardia à esquerda não consolava de
forma nenhuma, bem entendido, a autoridade do governo, tanto mais que Kornilov
também se declarava republicano.
No 30 de Agosto, Kerensky teve que despedir Savinkov que, alguns dias depois, foi
excluído do mesmo partido socialista-revolucionário tão acolhedor para todos. Mas
nomearam-no logo para o posto de governador geral alguém que valia politicamente tanto
mais que Savinkov, Paltchinsky, o qual começou por proibir o jornal dos bolcheviques. Os
comités executivos protestaram. As Izvestia denominaram este acto «uma grosseira
provocação». Paltchinsky foi varrido nos três dias seguintes. Kerensky estava pouco
disposto em geral a mudar o curso da sua política, viu-se pelo facto que, desde do 31, ele
formava um novo governo com a participação dos cadetes. Mesmo os socialistas-
revolucionários não puderam aceitar isso: eles ameaçaram chamar os seus
representantes. A nova receita governamental foi encontrada por Tseretelli: «Conservar a
ideia da coligação e se desembaraçar de todos os elementos que pesam muito sobre o
governo.» «A ideia da coligação fortalece-se – cantava ao acompanhar Skobelev – mas,
na composição do governo, não há lugar para o partido que está ligado à conspiração de
Kornilov.» Kerensky não estava de acordo com esta limitação e, não seu género, ele tinha
razão.
A coligação com a burguesia, mas excluindo o partido burguês dirigente, era uma
evidente absurdidade. Era o que indicava Kamenev que, numa sessão unificada dos
Comités executivos, com o tom que lhe é próprio de dar sermões, tirava conclusões dos

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acontecimentos recentes: «Vocês querem nos lançar sobre o caminho mais perigoso de
uma coligação com os grupos irresponsáveis. Mas vocês esqueceram a coligação
formada e consolidada pelos perigosos acontecimentos dos últimos dias, a coligação
entre o proletariado revolucionário, o campesinato e o exército revolucionário.» O orador
bolchevique lembra as palavras pronunciadas por Trotsky, no 25 de Maio, defendendo os
marinheiros de Cronstadt contra as acusações de Tseretelli: «Quando um general contra-
revolucionário tentará passar o nó escorregadio ao pescoço da revolução, os cadetes
lubrificam a corda, mas o marinheiros de Cronstadt surgirão para lutar e morrer
connosco.» Esse aviso caía no centro da situação. Diante do palavreado sobre a
«unidade da democracia» e sobre a «coligação honesta», Kamenev respondia: «A
unidade da democracia depende de saber se vocês irão ou não numa coligação com o
distrito de Vyborg... Qualquer outra coligação é desonesta.» O discurso de Kamenev
produzia sem dúvida uma impressão que Sokhanov registou nestes termos: «Kamenev
falou com muita inteligência e tacto.» Mas o assunto não foi para além de uma impressão.
As vias das duas partes eram determinadas antecipadamente.
A ruptura dos conciliadores com os soldados tinha em suma, logo no início, um
carácter completamente demonstrativo. Os liberais kornolovianos compreendiam eles
próprios que, daí a pouco, seria melhor para eles ficarem na sombra. Nos bastidores,
tinham decidido, segundo um acordo evidente com os cadetes, em criar um governo a tal
ponto elevado acima de todas as forças reais da nação que o seu carácter provisório não
colocava qualquer dúvida para ninguém. Além de Kerensky, o directório, composto de
cinco membros, compreendia o ministro dos Assuntos estrangeiros Terechtchenko, que já
se tornara inamovível graças à sua ligação com a diplomacia da Entenda; o comandante
do corpo do exército de Moscovo, Verkhovsky, promovido de urgência para este fim, de
coronel que estava no posto de general; o almirante Verderevsky, libertado de urgência,
para esse fim, da prisão; enfim, o duvidoso menchevique Nikitine que o seu próprio
partido logo reconheceu pronto para ser excluído.
Após ter vencido Kornilov pelas mãos de outro, Kerensky, parecia, só se preocupava
em aplicar o programa Korniloviano. Kornilov queria unir o poder de generalíssimo ao de
chefe de governo. Kerensky realizou isso. Kornilov tinha a intenção de dissimular uma
ditadura pessoal sob as aparências de um Directório de cinco membros. Kerensky
realizou isso. Tchernov, cuja demissão era exigida pela burguesia, foi expulso por
Kerensky do palácio de Inverno. O general Alexeiev, herói do partido cadete e candidato
deste último ao posto de ministro presidente, foi nomeado por Kerensky chefe do estado-
maior do Grande Quartel General, isto é, de facto, chefe do exército. Numa ordem do dia
ao exército e a frota, Kerensky intimava de parar a luta política nas tropas, isto é de voltar
ao ponto de partida. No fundo do seu refúgio, Lenine caracterizava a situação na cimeira
com extrema simplicidade que lhe era própria: «Kerensky é um Korniloviano que se
zangou com Kornilov por acaso e que continua a estar em ligação estreita com os outros
Kornilovianos.» Uma só infelicidade: a vitória obtida sobre a contra-revolução é muito
mais profunda do que era preciso para os planos pessoais de Kerensky.
O Directório apressou-se a libertar da prisão o antigo ministro da Guerra Gotchkov,
considerado como um dos instigadores da conspiração. Sobre os instigadores cadetes, a

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justiça, em geral, não levantou o braço. Nessas condições, tornava-se cada vez mais
difícil reter por mais tempo os bolcheviques presos. O governo encontrou uma saída: sem
libertar os bolcheviques da acusação, libertá-los sob caução. O Soviete sindical de
Petrogrado encarregou-se de tomar a responsabilidade «a honra de pagar a caução para
o digno representante do proletariado revolucionário»: a 4 de Setembro, Trotsky foi
libertado com uma modesta caução, fictícia na realidade, de três mil rublos. Na sua
História dos sarilhos em Rússia, o general Denikine escreve pateticamente: «No primeiro
de Setembro, o general Kornilov foi preso, mas no 4 de Setembro, o mesmo governo
provisório libertou Bronstein-Trotsky. A Rússia deve lembrar-se dessas datas.» A
libertação condicional dos bolcheviques continuou por vários dias. Os libertados das
prisões não perdiam tempo: as massas esperavam e chamavam, o partido tinha
necessidade de homens.
No dia da libertação de Trotsky, Kerensky publicou uma ordem do dia na qual,
reconhecendo que «os Comités tinham assegurado um apoio essencial ao poder
governamental», ordenava-lhe que parasse. Mesmo as Izvestia reconheceram que o
autor desta ordem tinha mostrado «uma muito fraca compreensão» das circunstâncias. A
conferência inter-distritos dos sovietes em Petrogrado decidiu: «não dissolver as
organizações revolucionárias pela luta em relação à contra-revolução». A pressão vinda
de baixo era tão forte que o Comité militar revolucionário, conciliador, resolveu não aceitar
as ordens de Kerensky e apelou aos seus órgãos locais, «em razão da situação
alarmante que subsistia, a trabalhar com energia e resistência como no passado».
Kerensky calou-se: não lhe restava outra coisa a fazer.
O todo poderosos chefe do Directório devia, a cada passo, constatar que a situação
tinha mudado, que a resistência tinha aumentado e que era preciso modificar qualquer
coisa, pelo menos em palavras. No 7 de Setembro, Verkhovsky declarou à imprensa que
o programa de regeneração do exército, elaborado antes do levantamento de Kornilov,
devia ser, pelo momento, rejeitado, porque «no estado psicológico actua do exército», só
contribuiria para uma maior decomposição deste. Para marcar a nova era, o ministro da
Guerra apareceu diante do Comité executivo. Não há razão para preocupações: o general
Alexeiev partirá e, ao mesmo tempo, partirão os que, de uma maneira ou outra, tiveram
ligações aos levantamento dos kornilovianos. É preciso inculcar no exército princípios
sãos «não pelas metralhadoras e nagaikas, mas em propagando as ideias do direito, da
justiça e de uma severa disciplina». Isso cheirava completamente os dias primaveris da
revolução. Mas, por fora, era Setembro, o outono vinha aí. Alexeiev foi efectivamente
destituído alguns dias depois, e foi substituído pelo general Dokhonine: a vantagem
desse general era que ele era desconhecido.
Em contra-partida pelas concessões, os ministros da Guerra e da Marinha exigiam
do Comité executivo uma ajuda imediata: os oficiais estavam sob a espada de Damocles,
isso vai mal sobretudo na frota do Báltico, é preciso obter a calma dos marinheiros. Após
longos debates, decidiu-se, como sempre, enviar à frota uma delegação, e os
conciliadores insistiram para que ela incluísse bolcheviques, e, antes de tudo, Trotsky: é
somente nesse caso que a delegação pode ter sucesso. «Nós repudiamos resolutamente
– replicou Trotsky – a forma de colaboração com o governo que defendeu Tseretelli... O

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governo leva uma política radicalmente falsa, antipopular e incontrolada; e quando essa
política cai num impasse ou desemboca numa catástrofe, as organizações revolucionárias
têm o ingrato dever de remediar às consequências inevitáveis... Uma das tarefas desta
delegação, como vocês a formulam, é de desenvolver um inquérito nas guarnições sobre
«as forças obscuras», isto é sobre os provocadores e os espiões... Esqueceram que eu
próprio sou citado pela justiça segundo o artigo 108 do código?... Na luta contra os
linchamentos, nós iremos pelo nosso próprio caminho... não de mão dada com o
procurador e a contra-espionagem, mas como partido revolucionário que convence,
organiza e educa.»
A convocação da Conferência democrática tinha sido decidida durante os dias do
levantamento Korniloviano. Ela devia, mais uma vez, mostrar a força da democracia,
inspirar o respeito por ela aos adversários da direita e da esquerda, e – não era o menor
dos males – refrear Kerensky, tomado por novos ardores. Os conciliadores contavam
seriamente submeter o governo a um representação qualquer improvisada até à
convocação da Assembleia constituinte. A burguesia, antecipadamente, era hostil à
Conferência, vendo nela uma tentativa para consolidar as posições que a democracia
tinha conquistada após a vitória sobre Kornilov. «A manigância de Tseretelli – escreve
Miliokov na sua História – era em suma uma completa capitulação diante dos planos de
Lenine e de Trotsky.» Pelo contrário: a manigância de Tseretelli visava paralizar a luta dos
bolcheviques pelo poder dos sovietes. A Conferência democrática opunha-se ao
congresso dos sovietes. Os conciliadores queriam criar par eles uma nova base, tentando
esmagar os sovietes por uma combinação artificial de toda a especie de organizações. Os
democratas repartiam os votos segundo sua vontade, guiando-se por uma só
preocupação: assegurar-se uma maioria incontestável. As organizações da cimeira viram-
se representadas de modo incomparavelmente mais completo que as da base. Os órgãos
da administração autónoma, nesse número os zemstvos não democratizados, obtiveram
uma preponderância formidável sobre os sovietes. Os cooperantes viram-se num papel
de indicadores de destinos.
Os cooperantes que, antes, não tinham ocupado qualquer lugar na política,
comprometiam-se pela primeira vez sobre esse terreno durante os dias da Conferência de
Moscovo e, desde então, começaram a fazer figura de representantes de vinte milhões
dos seus membros, ou então, mais simplesmente, em nome da «metade da população da
Rússia». Pelas suas raízes, a cooperação implantava-se no campo por intermédio das
suas camadas superiores que aprovavam a «justa» expropriação dos proprietários nobres
sob a condição que os seus próprios lotes, frequentemente muito importantes, seriam
objecto não somente de protecção, mas de um aumento. Os líderes da cooperação eram
recrutados entre os intelectuais liberalo-populistas, parcialmente liberalo-marxistas, que
estabeleciam uma ponte natural entre os cadetes e os conciliadores. Em relação aos
bolcheviques, os cooperantes manifestavam um ódio análogo ao do kulak pelos
jornaleiros insubmissos. Para se fortificar contra os bolcheviques, os conciliadores
agarraram-se avidamente aos cooperantes que tinham lançado a máscara da
neutralidade. Lenine estigmatizava cruelmente os cozinheiros da oficina democrática.
«Dez soldados ou operários convencidos de uma fábrica atrasada – escrevia – valem mil

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vezes mais que centenas de delegados... adulterados.» Trotsky demonstrava no Soviete
de Petrogrado que os funcionários da cooperação exprimiam a vontade política dos
camponeses como um médico exprime as intenções políticas dos seus pacientes ou que
um empregado dos correios exprime as opiniões dos expedidores ou dos destinatários
das cartas. «Os cooperantes devem ser bons organizadores, comerciantes, contabilistas,
mas, quanto à defesa dos direitos de classe, os camponeses como os operários remetem-
na aos seus sovietes.» Isso não impedia que os cooperantes obtivessem cento e
cinquenta lugares e, com os zemstvos reformados e todas as outras organizações que
eram de puxar pelos cabelos, alterar completamente o carácter da representação de
classe.
O Soviete de Petrogrado colocou na lista dos seus delegados à Conferência Lenine
e Zinoviev. O governo deu ordem de os prender à entrada do edifício do teatro, mas não
na sala das sessões: tal era, evidentemente, o compromisso entre os conciliadores e
Kerensky. Mas o assunto limitou-se a uma manifestação política do Soviete: nem Lenine
nem Zinoviev se dispuseram a se mostrar na Conferência. Lenine considerava que os
bolcheviques não tinham nada a fazer aí.
A Conferência iniciou-se no dia 14 de Setembro, exactamente um mês depois da
Conferência de Estado, na sala de espectáculo do teatro Alexandrina. O número de
representantes válidos subiu a mil setecentos e setenta e cinco. Cerca de mil e duzentos
assistiram à abertura. Os bolcheviques, bem entendido, estavam em minoria. Mas, apesar
de todos os subterfúgios do sistema eleitoral, eles representavam um grupo muito
importante que, sobre certas questões, juntava à volta dele mais de um terço da
assistência.
É digno de um governo forte aparecer diante de qualquer conferência «particular»?
Esta questão foi objecto de grandes hesitações no palácio de Inverno e, por repercussão,
emoções profundas no teatro Alexandrina. No fim, o chefe do governo decidiu surgir
diante da democracia. «Recebido por aplausos – diz Chliapnikov, contando o
aparecimento de Kerensky – dirigiu-se para a mesa para apertar a mão dos presentes.
Veio a nossa vez (bolcheviques) que estávamos sentados perto uns dos outros. Trocámos
um olhar e combinámos em não lhe apertar a mão. Um gesto teatral por cima da mesa –
desviei a mão que me estendia, e Kerensky, de braço estendido, não encontrando as
nossas mãos, afastou-se.» O chefe do governo recebeu o mesmo acolho no lado oposto,
entre os kornolovianos. Ora, excepção feita dos bolcheviques e dos kornolovianos, já não
restava mais forças reais.
Obrigado pelas circunstâncias em apresentar explicações sobre o seu papel na
conspiração, Kerensky, ainda desta vez, contou demasiado sobre as suas capacidade de
improvisação. «Eu sei o que eles queriam, - essas palavras escaparam-lhe, - porque
antes de procurar Kornilov eles vieram me procurar e me propuseram este caminho.» Da
esquerda, gritaram: «Quem vinha? Quem oferecia? Assustado pela ressonância das suas
próprias palavras, Kerensky já se tinha fechado sobre ele próprio. Mas o lado obscuro da
conspiração desvendava-se mesmo para os menos advertidos. Um conciliador ucraniano,
Porch, declarava, de regresso à Rada de Kiev: «Kerensky não conseguiu demonstrar que

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ele estava alheio à insurreição Korniloviana.» Mas o chefe do governo infligiu a ele próprio
um outro golpe, no seu discurso. Quando, em resposta às frases que toda a gente estava
farta: «No momento de perigo, todos virão e se explicarão», etc., gritaram-lhe: «E a pena
de morte?», o orador, tendo perdido o equilíbrio de uma maneira inesperada para todos,
como provavelmente para ele próprio, exclamou: «Esperem primeiro pelo menos uma
sentença de morte tinha sido assinada por mim, generalíssimo, e então permitirei que me
amaldiçoem.» Um soldado avançou para o estrado e gritou-lhe à queima-roupa: «Você é
a maldição do país!» Olha, olha! Ele, Kerensky, estava pronto a esquecer o alto posto que
ocupava para explicar-se com a Conferência simplesmente como homem. «Mas todos
não compreendem aqui o homem». Logo a seguir, empregou a linguagem do poder:
«Qualquer um que se atreva...» Infelizmente! Já se tinha ouvido isso em Moscovo, e
Kornilov tinha portanto ousado.
«Se a pena de morte era indispensável, - perguntava Trotsky no seu discurso, -
então como é que ele, Kerensky, se decidiu dizer que não fará uso? E se, por outro lado,
ele acredita na possibilidade de se comprometer diante da democracia em não aplicar a
pena de morte... ele transforma o restabelecimento desta pena num acto de leviandade
que ultrapassa os limites da criminalidade.» Toda a sala estava de acordo sobre isso, uns
em silêncio, outros ruidosamente. «Kerensky, pela sua confissão, desacreditou-se a ele
próprio e o governo provisório nesse momento, declarou o colega e admirador, Demianov,
adjunto do ministro da Justiça.
Nem um ministro pôde contar o que o governo tinha feito na realidade, senão
resolver os problemas da sua própria existência. Medidas económicas? Não se pode
apontar uma única. Uma política de paz? «Não sei – dizia o antigo ministro da Justiça,
Zarodny, o mais franco de todos se o governo provisório fez qualquer coisa a esse
respeito, nada vi.» Zarodny queixava-se estupefacto ao constatar que «todo o poder se
encontrava entre as mãos de um só homem» que com um sinal, convocava ou despedia
ministros». Tseretelli, imprudentemente, retomou esse tema: «Que a democracia se
queixe dela própria se, no alto, o seu representante tem vertigens.» Mas justamente
Tseretelli encarnava nele próprio mais que todos os outros esses traços da democracia
que produz as tendências bonapartistas do poder. «Porquê Kerensky ocupou o lugar que
tem hoje? - replicou Trotsky; o ascenso de Kerensky deve-se à fraqueza e à indecisão da
democracia... não ouvi aqui um único orador que teria tomado a responsabilidade da
honra pouco desejável de defender o Directório ou o seu presidente...» Após uma
explosão de protestos, o orador continua: «Lamento muito que esse ponto de vista, que
encontra na sala uma expressão tão veemente, não tenha traduzido de uma maneira
nítida nesta tribuna. Nem um orador subir aqui para nos dizer: «Para que serve discutir
com essa a antiga coligação, porquê vocês pensam na futura coligação? Nós temos
Kerensky e isso basta-nos...» Mas a maneira bolchevique de colocar a questão junta
quase automaticamente Tseretelli a Zarodny, e eles dois a Kerensky. Miliokov escrevia
sobre isso muito justamente: Zarodny podia queixar-se do autoritarismo de Kerensky.
Tseretelli podia indicar que o chefe do governo tinha vertigens - «eram as suas palavras»;
mas quando Trotsky constatava na Conferência ninguém não se tinha encarregado de

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defender abertamente Kerensky «a assembleia logo sentiu que aquele que falava era o
inimigo comum».
Sobre o poder, os que o representavam nem falavam de outra coisa senão de um
fardo e de uma calamidade. A luta pelo poder? O ministro Pechekhonov pregava: «O
poder apresenta-se agora tal que todos se desviam benzendo-se.» Verdadeiramente?
Kornilov não se desviava benzendo-se. Mas a lição recente já estava quase esquecida.
Tseretelli indignava-se contra os bolcheviques que não tomavam eles próprios o poder e
que empurravam o poder para os sovietes. O pensamento de Tseretelli foi retomado por
outros. Sim, os bolcheviques devem tomar o poder, dizia-se a meia voz no gabinete da
mesa. Avksentiev voltou-se para Chliapnikov, que estava sentado perto dele: «Tomai o
poder, as massas vos seguirão.» Respondendo ao seu vizinho no mesmo tom,
Chliapnikov propôs que o poder fosse primeiro colocado no gabinete da mesa. Os
desafios meio irónicos que se dirigiam aos bolcheviques, seja nos discursos na tribuna,
seja nas entrevistas nos corredores, eram parcialmente queixumes, parcialmente
instigações. Que pensam fazer a seguir esses homens que chegaram à cabeça dos
sovietes de Petrogrado, de Moscovo e de numerosos sovietes provinciais? É possível que
eles ousem realmente ampararem-se do poder? Ninguém acreditava. Dois dias antes do
discurso provocante de Tseretelli, a Rietch escrevia que o melhor meio de se
desembaraçar do bolchevismo por muitos anos seria confiar aos seus líderes os destinos
do país; mas «esses tristes heróis do dia não se apressam de forma nenhuma a tomar o
poder na sua integridade... praticamente a sua posição não pode ser tomada em
consideração de qualquer ponto de vista.» Esta arrogante conclusão era, pelo menos,
apressada.
A imensa vantagem dos bolcheviques, até agora talvez ainda não apreciada como
convém, constatava nisto que eles compreendiam perfeitamente os seus adversários,
poder-se-ia dizer que eles viam neles por transparência, eles aí eram ajudados pelo
método materialista, e pela escola leninista da clareza e da simplicidade, e pela viva
circunspecção de homens que resolveram caminhar até ao fim. Pelo centro, os liberais e
os conciliadores viam os bolcheviques seguindo as necessidades do momento. Não podia
ser de outro modo: os partido aos quais o seu desenvolvimento não deixou qualquer
saída nunca mostraram a capacidade de olhar a realidade em frente, tal como um doente
incurável não é capaz de encarar de frente a sua doença.
Mas, sem acreditar no levantamento dos bolcheviques, os conciliadores temiam-no.
É o que Kerensky exprimiu melhor que todos. «Não se enganem – exclamava ele de
repente no seu discurso – não pensem que, se sou ameaçado pelos bolcheviques, não
esteja por detrás de mim as forças da democracia. Não pensem que me faltam pontos de
apoio. Saibam que se vocês empreendem qualquer coisa, os caminhos de ferro serão
paralizados, os telegramas não serão transmitidos...» Uma parte da sala aplaudiu, uma
parte, perturbada, calou-se, o grupo bolchevique riu às gargalhadas. Mal vai a ditadura
que é obrigada a demonstrar que não lhe falta pontos de apoio!
Aos desafíos irónicos, às acusações de cobardia e às ameaças absurdas, os
bolcheviques responderam na sua declaração: «Lutando pela conquista do poder em vias

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de realizar o programa, o nosso partido nunca pensou e não pensa amparar-se do poder
contra a vontade organizada da massa laboriosa do país.» Isso significa: nós tomaremos
o poder como partido da maioria soviética. Os termos respeitante «a vontade organizada
dos trabalhadores» relacionava-se ao próximo congresso dos sovietes. «Entre as
decisões e proposições da Conferência presente... - dizia a declaração, - podem
encontrar a sua via de realização somente as que serão admitidas pelo Congresso pan-
russo dos sovietes...»
No momento que Trotsky lia a declaração dos bolcheviques, mencionando a
necessidade de armar imediatamente o operários, exclamações persistentes rebentaram
nos bancos da maioria: «Para quê, para quê?» Era sempre a mesma nota de alarme e de
provocação. Para quê? «Para constituir efectivamente uma cidadela oposta à contra-
revolução» responde o orador. Mas não somente para isso. «Digo-vos, em nome do
partido e das massas proletárias que o seguem, que os operários armados... defenderão
o país da revolução contra as tropas imperialistas com um heroísmo tal que a história da
Rússia nunca conheceu igual...» Tseretelli caracterizou esta promessa que dividiu
nitidamente a sala como uma frase vazia de sentido. A história do exército vermelho, a
seguir, refutou o que ele dizia.
As horas difíceis onde os líderes conciliadores afastavam a coligação com os
cadetes tinham ficado para trás: sem os cadetes, a coligação tornou-se impossível. Não
se ia, na verdade, tomar o poder por si próprio! «Nós poderíamos tomar o poder logo no
27 de Fevereiro – raciocinava Skobelev mas... empregámos toda a virtude da nossa
influência para ajudar os elementos burgueses a se restabelecerem dos seus problemas...
para que eles voltassem ao poder.» Porquê esses senhores tinham impedido os
Kornilovianos, restabelecidos das suas dificuldades, de se ampararem do poder? Um
poder puramente burguês, explicava Tseretelli, é ainda impossível: isso provocaria uma
guerra civil. Era preciso bater Kornilov para que, pela sua empresa de aventureiro, ele não
impediria a burguesia de tomar o poder por etapas. «Agora que a democracia
revolucionária é vitoriosa, o momento é particularmente favorável para uma coligação.»
A filosofia política da coligação foi exprimida pelo seu líder Berkenheim: «Queiramos
ou não, a burguesia é a classe a quem pertencerá o poder.» O velho revolucionário
populista Minor suplicava a Conferência para se pronunciar unanimemente pela
coligação. De outra forma, «inútil de se fazer ilusões: nós degolaremos.» - Quem?
Gritavam dos lugares de esquerda. «Nós nos degolaremos entre nós», terminou Minor
num silêncio sinistro. Portanto, segundo a ideia dos cadetes, o bloco governamental era
necessário para luta contra «os bandidos anarquistas» dos bolchevique: «Nisso residia
verdadeiramente a ideia da coligação», explicou Miliokov com uma grande franqueza.
Então Minor esperava que a coligação permitiria de não nos degolarmos entre nós,
Miliokov, em contra-partida, esperava, firmemente que a coligação daria a possibilidade,
às forças juntas, de degolar os bolcheviques.
Durante os debates sobre a coligação, Riazanov leu um editorial da Rietch do 29 de
Agosto que Miliokov tinha retirado no último minuto, deixando no jornal uma coluna
branca: «Sim, nós não temos medo de dizer que o general Kornilov tinha as mesmas

558
intenções que o que nos consideremos indispensáveis para a salvação da pátria.» A
citação foi impressionante. «Oh! Sim, os salvadores!» - essas palavras partem da
esquerda da assembleia. Mas os cadetes têm defensores: porque enfim o editorial não foi
imprimido! Além disso, os cadetes não eram todos a favor de Kornilov, é preciso fazer a
diferença entre os pecadores e os justos.
«Dizem que não se pode acusar o partido cadete de ter participado inteiramente ao
levantamento Korniloviano, - respondeu Trotsky. Aqui, Znamensky nos disse, não pela
primeira vez, a nós bolcheviques: vocês protestaram porque acusamos todo o vosso
partido pelo movimento dos dias 3 a 5 de Julho; não voltem aos mesmos erros, não
culpem todos os cadetes pelo levantamento de Kornilov. Mas, nessa comparação, há,
penso, um pequeno lapso: quando acusavam os bolcheviques de ter provocado o
movimento de 3 e 5 de Julho, tratava-se de convidá-los a tomar lugar não no ministério,
mas antes na prisão de Kresty. Esta distinção, espero, não será contestada pelo (ministro
da Justiça) Zarodny. Nós também dizemos: se vocês querem levar os cadetes para a
prisão pelo movimento korniloviano, não façam a coisa de uma só vez, mas examinem
separadamente cada cadete sobre todos os seus aspectos. (Risos; vozes: Bravo!) Mas
trata-se de fazer entrar o partido cadete no ministério, o ponto decisivo não é de saber se
tal ou tal cadete se encontrou nos bastidores de acordo com Kornilov; de saber que
Maklakov estava na mesa de escuta quando Savinkov conversava pelo telégrafo com
Kornilov; de saber que Roditchev foi à província do Don e tinha tido conversações
políticas com Kaledine; não, o assunto não está aí; ele consiste nisto que toda a imprensa
burguesa ou saudou abertamente a acção de Kornilov, ou manteve-se silenciosa e
prudente, esperando a vitória deste... Eis porquê digo que vocês não têm associados para
a coligação!»
No dia seguinte, um representante de Helsingfors e de Sveaborg, o marinheiro
Chichkine, dizia, sobre o mesmo tema, mais breve e persuasivo: «O ministério da
coligação não gozará entre os marinheiros da frota báltica e da guarnição da Finlândia
nem da confiança, nem de um apoio... contra a criação de um ministério da coligação, os
marinheiros içaram as bandeiras de combate.» Os argumentos da razão não agiam. O
marinheiro Chichkine empregava o argumento das peças de artilharia naval. Ele foi
completamente apoiado por outros marinheiros que estavam de guarda nas saídas da
sala de sessões. Bukharine contou mais tarde como «os marinheiros colocados em
sentinela por Kerensky para proteger a Conferência democrática contra os bolcheviques,
dirigiam-se a Trotsky e pediram-lhe ao fazer estalar as baionetas: «Vamos em breve
poder trabalhar com esta coisa?» Era uma repetição da questão que os marinheiros do
Aurora tinham colocado na sua entrevista com os prisioneiros de Kresty. Mas agora os
tempos aproximavam.
Se se negligênciar as nuanças, é fácil de estabelecer na Conferência três grupos:
um centro vasto mas extremamente instável, que não ousa tomar o poder, aceita a
coligação mas não quer cadetes; uma ala direita, fraca, que apoia Kerensky e a coligação
com a burguesia sem qualquer limitação; uma ala esquerda, duas vezes mais forte, que
apoia o poder dos sovietes, ou são por um governo socialista. Na reunião dos delegados
soviéticos da Conferência democrática, Trotsky pronunciou-se pela passagem do poder

559
para os sovietes. Martov por um governo socialista homogéneo. A primeira formula reuniu
oitenta e seis votos, a segunda, noventa e sete. Formalmente só havia metade dos
sovietes operários e soldados que tivessem nesse momento bolcheviques à cabeça, a
outra metade hesitava entre os bolcheviques e os conciliadores. Mas os bolcheviques
falavam em nome dos potentes sovietes dos centros mais industriais e os mais instruidos
do país; nos sovietes, eles eram infinitamente mais fortes que na Conferência e, no
proletariado e no exército, infinitamente mais fortes que nos sovietes. Os sovietes
atrasados não deixavam de procurar a se juntarem aos mais avançados.
Pela coligação votaram na Conferência 766 deputados contra 688, com 38
abstenções. Os dois campos estavam quase equilibrados! Uma emenda excluindo os
cadetes da coligação reuniu uma maioria: 595 votos contra 493 com 72 abstenções. Mas
a eliminação dos cadetes tornava a coligação inoperante. Logo, a resolução no conjunto
foi rejeitada por uma maioria de 813 votos, isto é por um bloco dos flanco extremos,
partidários convencidos e adversários irreconciliáveis da coligação, contra o centro que
tinha fundido até 183 votos, com 80 abstenções. Foi o melhor classificação de todos os
votos; mas foi tão estéril como a ideia da própria coligação com os cadetes que ele
afastava. «Sobre a questão radicalmente essencial – escrevia justamente Miliokov – a
Conferência ficou assim sem a opinião e sem formula.» Que restava fazer aos líderes?
Negar a vontade de democracia», que tinha rejeitado a sua própria vontade. Convocaram
uma mesa de representantes dos partidos e dos grupos para revisar a questão já
resolvida por um plenário. Resultado: 50 votos pela coligação, 60 contra. Agora, parece, é
claro. A questão da responsabilidade do governo diante do órgão permanente da
Conferência democrática é aprovada igualmente, à unanimidade, pela mesma mesa
alargada. Para a adjunção desse órgão de representantes da burguesia, 56 mãos
ergueram-se contra 48 com 10 abstenções. Aparece Kerensky para declarar que a um
governo puramente socialista ele recusa de participar. Depois disso, o problema traduz-se
em enviar para casa os membros desta infeliz Conferência, substituído-a por uma
instituição na qual os partidos de uma coligação incondicionada seriam em maioria. Para
chegar ao resultado desejado, bastaria conhecer as regras elementares da aritmética. Em
nome da mesa, Tseretelli submete à Conferência uma moção dizendo que o órgão
representativo é chamado «a colaborar na criação do poder» e que o governo deve
«sancionar este órgão»: os sonhos de advertências a Kerensky são assim enviadas para
os arquivos. Completada na proporção conveniente com os representantes da burguesia,
o futuro Soviete da República, ou pré-parlamento,terá a tarefa de sancionar um governo
de coligação contando cadetes. A resolução de Tseretelli significa exactamente o contrário
do que queria a Conferência e do que acabava de decidir a mesa. Mas a decomposição, o
afundamento, a desmoralização são tais que a assembleia adopta a capitulação que lhe
propôs sob uma forma ligeiramente disfarçada por 829 votos contra 106, com 69
abstenções. «Bem! Vocês ganharam por agora, senhores conciliadores e senhores
cadetes – escreve o jornal dos bolcheviques. Façam o vosso jogo. Façam uma nova
experiência. Será a última, garantimos-lhes.»
«A Conferência democrática – Stankenvitch – impressionou mesmo aqueles que
tinham tomado a iniciativa par uma extraordinária dispersão do pensamento.» Nos

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partidos conciliadores, «discórdia completa»; de direita nos meios burgueses, «resmungar
surdo, calúnias ditas a meia-voz, lento mastigar dos últimos restes da autoridade
governamental... E somente à esquerda, consolidação das forças e do estado de
espírito». É o que diz um adversário, como testemunha um inimigo que, em Outubro
disparará sobre os bolcheviques. A parada da democracia em Petrogrado foi para os
conciliadores o que era para Kerensky tinha sido, em Moscovo, a parada da unidade
nacional: uma confissão pública de incapacidade, uma revista do marasmo político.
Se a Conferência de Estado tinha dado um impulso ao levantamento de Kornilov, a
Conferência democrática desbloqueou definitivamente o caminho para a insurreição dos
bolcheviques.
Antes de se separar, a Conferência constituiu um órgão permanente, aí enviando
15% do efectivo de cada grupo, num total cerca de 350 delegados. As instituições das
classes possuidoras deviam obter além disso 120 lugares. O governo acrescentou pelo
seu lado 20 lugares para os cossacos. O todo devia constituir o Soviete da República, ou
pré-parlamento, que devia representar a nação até à convocação da Assembleia
constituinte.
A atitude a tomar em relação ao Soviete da República pôs imediatamente aos
bolcheviques um grande problema de táctica: iríamos ou não? O boicote das instituições
parlamentares do lado dos anarquistas e dos meio anarquistas é ditado pelo desejo de
não submeter a sua impotência à verificação das massas e de conservar assim o seu
direito a uma atitude passivamente altiva que não aquece ou arrefece os inimigos ou
amigos. Um partido revolucionário não tem o direito de voltar as costas ao parlamento a
não ser que ele se dê como objectivo imediato de derrubar o regime existente; durante os
anos que decorreram entre as duas revoluções, Lenine estudou de uma maneira profunda
os problemas do parlamentarismo revolucionário.
Mesmo um parlamento censitário pode mostrar-se, e viu-se mais de uma vez na
história, como uma expressão de uma relação efectiva das classes: tais foram, por
exemplo, as Dumas do Império após a derrota da Revolução de 1905-1907. Boicotar tais
parlamentos, é boicotar a relação efectiva das forças em vez de o modificar no sentido da
revolução. Mas o pré-parlamento de Tseretelli—Kerensky não respondia de forma
nenhuma à relação de forças. Ele tinha sido engendrado pela impotência e a malícia das
cimeiras, pela crença numa mística das instituições, pelo fetichismo num inimigo
infinitamente mais forte e discipliná-lo assim.
Para forçar a revolução a passar, dobrando as costas e baixando a cabeça, sob o
jugo do pré-parlamento, era preciso previamente esmagar a revolução ou pelo menos
infligir-lhe uma derrota séria. Na realidade, a derrota tinha sido consumida três semanas
antes pela vanguarda da burguesia. A revolução, em contra-partida, encontrava um afluxo
de forças. Ela dava-se por objectivo não uma república burguesa, mas uma república de
operários e de camponeses, e ela não tinha qualquer motivo para passar rastejando sob o
jugo do pré-parlamento, quando ela se desenvolvia cada vez mais fortemente nos
sovietes.

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No 20 de Setembro, o Comité central dos bolcheviques convocou uma conferência
do partido, composta dos delegados bolcheviques da Conferência democrática, dos
membros do Comité central e do Comité de Petrogrado. Como relator em nome do
Comité central, Trotsky propôs a palavra de ordem do boicote em relação ao pré-
parlamento. Esta proposição teve a oposição de uns (Kamenev, Rykov, Riazanov) e o
consentimento de outros (Sverdlov, Ioffé, Estaline). O comité central, dividido em partes
iguais sobre a questão litigiosa, viu-se forçado, a despeito dos estatutos e da tradição do
partido, em submeter a questão à decisão da Conferência. Dois relatores: Trotsky e
Rykov, apresentaram-se para exprimir pontos de vista opostos. Podia parecer, e isso
parecia à maioria, que os ardentes debates tinham um carácter de pura táctica. Na
realidade, a discussão renovava as diferenças de Abril e preparava as de Outubro. A
questão estava em saber se o partido adaptava as suas tarefas ou se, na verdade, dava-
se por objectivo conquistar o poder. Por uma maioria de setenta e sete votos contra
cinquenta, a conferência do partido afastou a ideia da palavra de ordem do boicote. No 22
de Setembro, Riazanov encontrou a possibilidade em declarar à Conferência democrática,
em nome do partido, que os bolcheviques enviavam os seus delegados ao pré-
parlamento para «denunciar, nesta nova fortaleza dos conciliadores, todas as tentativas
de uma nova coligação com a burguesia». Isso tinha um tom radical. Mas, no fundo, isso
significava que se substituía a política da acção revolucionária por uma política de
acusação.
As teses de Abril de Lenine tinham sido formalmente assimiladas por todo o partido ;
mas, em cada grande questão, sob elas, emergiam os estados de espírito de Março,
ainda muito fortes na camada superior do partido que, em muitos lugares do país, apenas
começavam a separarem-se dos mencheviques. Lenine se meteu na discussão com
atraso. No 23 de Setembro, escrevia:
«É preciso boicotar o pré-parlamento. É preciso voltar para os sovietes de operários
e soldados e camponeses, voltar aos sindicatos, voltar em geral para as massas. É
preciso chamá-los à luta. É preciso dar-lhes a palavras de ordem correcta e clara:
expulsar o bando bonapartista de Kerensky com o seu falacioso pré-parlamento... Os
menchevique e os socialistas-revolucionários não aceitaram, mesmo depois da aventura
Korniloviana, o nosso compromisso... A luta implacável contra eles. Implacável a sua
exclusão de todas as organizações revolucionárias... Trotsky era pelo boicote. Bravo,
camarada Trotsky! A palavra de ordem do boicote é batido pela fracção dos bolcheviques
que se reuniram na Conferência democrática. Mas viva o boicote!»
Mais a questão penetrava profundamente o partido, mais definitivamente se
modificava a relação de forças a favor do boicote. Em quase todas as organizações locais
se constituíam uma maioria e uma minoria. No comité de Kiev, por exemplo, os partidários
do boicote, tendo à cabeça Evguénia Boch, constituíam uma fraca maioria, mas já, alguns
dias depois, a conferência da cidade, uma esmagadora maioria votava uma resolução de
boicote do pré-parlamento: «Não se deve perder tempo a conversar e a semear ilusões.»
O partido apressava-se a corrigir os seus dirigentes.

562
Entretanto, debatendo-se contra as moles pretensões da democracia, Kerensky fazia
tudo o que ele podia para mostrar aos cadetes que ele tinha o punho sólido. No 18 de
Setembro, ele estabeleceu a ordem inesperada de dissolver o Comité central da frota
naval. Os marinheiros responderam: «Considerar a ordem de dissolução do Tsentroflot
como ilegal, portanto não aplicável e exigir que ela seja imediatamente adiada.» Ao
assunto se intrometeu o Comité executivo; ele deu a Kerensky um pretexto de forma a
retirar, três dias depois, a sua ordem. A Tachkent, o Soviete, composto na maioria de
socialistas-revolucionários, tinha tomado nas suas mãos o poder, destituindo os velhos
funcionários. Kerensky enviou ao general designado para reprimir o levantamento de
Tachkent um telegrama: «Não entrem em negociações com os amotinados... As medidas
mais importantes são necessárias.» As tropas chegaram, ocuparam a cidade e prenderam
os representantes do poder soviético. Imediatamente rebentou uma greve geral, com a
participação de quarenta sindicatos; durante oito dias os jornais não foram publicados, a
guarnição começou a agitar-se. É assim que, perseguindo o fantasma da ordem, o
governo semeava a anarquia burocrática.
No mesmo dia onde a Conferência tinha aprovado uma resolução contra a coligação
com os cadetes, o comité central do partido cadete convidou Konovalov e Kichkine a
aceitarem a oferta feita por Kerensky para entrarem no governo. A varinha do chefe de
orquestra era, dizia-se, a de Buchanan. Não é preciso, provavelmente, levar isso muito a
sério; senão o próprio Buchanan, era a sua sombra que conduzia o concerto: era preciso
formar um governo aceitável para o Aliados. Os industriais e os financeiros de Moscovo
teimavam, procuravam valorizar-se, punham ultimatos. A Conferência democrática
esgotava-se em votos sucessivos, imaginavam-se que tinham um significado real. Na
realidade, a questão decidia-se no palácio de Inverno, nas sessões plenárias dos pedaços
do governo com os representantes dos partidos da coligação. Os cadetes enviavam aí os
seus kornilovianos os mais abertamente declarados. Todos tentavam persuadir-se
mutuamente da necessidade da unidade. Tseretelli, inesgotável poço de lugares comuns,
descobriu que o obstáculo principal a um acordo «se encontrava até agora na
desconfiança reciproca... Esta desconfiança deve ser eliminada». O ministro dos Assunto
estrangeiros Terechtchenko calculou que sobre cento e noventa e sete dias de existência
do governo revolucionário, cinquenta e seis tinha sido ocupados pela crise. E ele não
explica em que tinham sido empregados os outros dias.
Antes mesmo que a Conferência democrática não tivesse adoptado a resolução de
Tseretelli, contrária às suas ambições, os correspondentes dos jornais ingleses e
americanos comunicavam por telégrafo que a coligação com os cadetes eram a garantia
e davam com segurança os nomes dos novos ministros. Pelo seu lado, o Conselho
moscovita das personalidade mais notados, sob a presidência do sempre ele próprio
Rodzianko, felicitava um dos seus membros, Tretiakov, de ter sido convidado a participar
no governo. No dia 9 de Agosto, esses senhores tinham enviado um telegrama a Kornilov:
«Nesta hora difícil, toda a Rússia consciente olha para você com esperança e fé.»
Kerensky aceitou com condescendência a existência de um pré-parlamento, sob a
condição que «se reconhecerá que a organização do poder e o recrutamento dos
membros do governo pertenceriam unicamente ao governo provisório». Esta condição

563
humilhante foi ditada pelos cadetes. A burguesia não podia, bem entendido, compreender
que a composição da Assembleia constituinte seriam para ela muito menos favorável que
a do pré-parlamento: «As eleições para a Assembleia constituinte devem – segundo
Milikov – dar um resultado completamente acidental e, talvez, desastroso.» Se, todavia, o
partido cadete, que tinha recentemente ainda tentado subornar o governo à Duma
czarista, recusava categóricamente reconhecer ao pré-parlamento direitos legislativos, era
somente e exclusivamente porque ele não perdia esperança de liquidar a Assembleia
constituinte.
«Ou Kornilov ou Lenine» - era assim que Miliokov colocava a alternativa. Lenine,
pelo seu lado, escrevia; «Ou o poder dos sovietes, ou o kornilovismo. Não há meio
termo.» Foi sobre este aspecto que o julgamento de Miliokov e Lenine coincidia sobre a
situação, e não por acaso: como contrapeso aos heróis da frase conciliadora eram dois
representantes sérios das classes fundamentais da sociedade. Já a Conferência de
Estado de Moscovo tinha mostrado claramente, segundo os próprios termos de Milikov,
que «o país partilha-se em dois campos entre os quais não podia haver conciliação nem
acordo de fundo». Mas aí, entre dois campos da sociedade, não podia haver acordo, o
assunto se resolveu pela guerra civil.
Nem os cadetes, nem os bolcheviques não retiraram, todavia, a palavra de ordem da
Assembleia constituinte. Para os cadetes ela era necessária como a mais alta instância
de apelo contra as reformas sociais imediatas, contra os sovietes, contra a revolução. A
sombra que a democracia projectava diante dela, sob a aparência da Assembleia
constituinte – a burguesia servia-se disso para se opor à democracia viva. A burguesia
não teria podido abertamente rejeitar a Assembleia constituinte senão após ter esmagado
os bolcheviques. Ela estava ainda longe disso. Na etapa indicada, os cadetes
esforçavam-se por garantir a independência do governo contra as organizações ligadas
às massas afim de se submeter logo tanto mais seguramente e integralmente.
Mas os bolcheviques também, que não viam saída nas vias da democracia formal,
não renunciavam ainda à ideia de uma Assembleia constituinte. E eles não podiam fazer
de outro modo sem quebrar com o realismo revolucionário. A marcha ulterior dos
acontecimentos criaria as condições para a vitória completa do proletariado? Isso não
podia ser previsto com absoluta certeza. Mas, fora da ditadura dos sovietes e até a esta
ditadura, a Assembleia constituinte devia mostrar-se como a mais elevada conquista da
revolução. Exactamente como os bolcheviques defendiam os sovietes de conciliadores e
as municipalidades democráticas contra Kornilov, eles estavam prontos a defender a
Assembleia constituinte contra os atentados da burguesia.
A crise de trinta dias terminou enfim pela formação de um novo governo. O principal
papel segundo Kerensky cabia a um dos mais ricos industriais de Moscovo Konovalov,
que, no princípio da revolução, financiava o jornal de Gorki, tinha sido a seguir membro do
primeiro governo da coligação, demitiu-se protestando após o primeiro Congresso dos
sovietes, tinha entrado no partido cadete quando este estava maduro para o assunto
Korniloviano, e voltava agora para o governo, como vice-presidente e ministro do
Comércio e Indústria. Além de Konovalov, os postos ministeriais foram ocupados por:

564
Tretiakov, presidente do Comité da Bolsa de Moscovo e Smirnov, presidente do Comité
dos industriais da guerra de Moscovo. O açucareiro de Kiev, Terechtschenko, continuava
ministro dos Assuntos estrangeiros. Os outros ministros, nesse número os socialistas, não
se distinguiam nada por sinais particulares, mas estavam todos dispostos a não romper a
harmonia. A Entente podia estar tanto mais satisfeita do governo, que em Londres
deixavam com embaixador perpétuo o velho diplomata Nabokov, que enviavam a Paris o
cadete Maklakov, aliado de Kornilov e de Savinkov, a Berna o «progressista» Efremov: a
luta pela paz democrática estava em mãos seguras.
A declaração do novo governo dava uma paródia perfídia da declaração da
democracia em Moscovo. O sentido da coligação não estava todavia incluído no
programa das transformações; tinha que tentar acabar a obra dos dias de Julho: decapitar
a revolução esmagando os bolcheviques. Mas aí, o Rabotchi Pout (a Via operária), uma
das metamorfoses da Pravda, lembrava insolentemente aos Aliados isto: «Você esqueceu
que os bolcheviques são agora os sovietes de deputados operários e soldados!» Essa
lembrança caía mesmo sobre o ponto doloroso. «Por si próprio – reconhecia Miliokov
colocava a questão fatal: Não é demasiado tarde? Não é demasiado tarde para declarar
guerra aos bolcheviques?
Sim, provavelmente, verdadeiramente demasiado tarde. O dia onde se formava o
novo governo com seis ministros burgueses e dez meio-socialistas, finalizava-se a
formação do novo Comité executivo do Soviete de Petrogrado, que incluía treze
bolcheviques, seis socialistas-revolucionários e três mencheviques. A coligação
governamental foi acolhida pelo Soviete numa resolução proposta por Trotsky, seu novo
presidente. «O novo governo... entrará na história da revolução como um governo de
guerra civil... A notícia da formação de um novo poder encontrará do lado da toda a
democracia revolucionária uma só resposta: Demissão!... Apoiando-se nesta voz
unanime da verdadeira democracia, o congresso pan-russo dos sovietes criará um poder
verdadeiramente revolucionário.» Os adversários tinham vontade de ver nesta resolução
um vulgar voto de desafio. Na realidade, era um programa de insurreição. Para que o
programa fosse preenchido, era preciso só um mês.
A curva económica continuava a declinar brutalmente. O governo, o Comité
executivo central, o pré-parlamento logo reconstituído registava os factos e os síntomas
de declínio como motivos contra a anarquia, os bolcheviques, a revolução. Mas eles não
tinham nem a sombra de um plano económico. O serviço que existia junto do governo
para um só esforço sério. Os industriais fechavam as empresas. O movimento ferroviários
restringia-se por falta de carvão. Nas cidades apagavam-se as centrais eléctricas. A
imprensa gritava por catástrofe. Os preços subiam. Os operários faziam greve, uma
categoria após outra, apesar dos avisos do partido, dos sovietes, dos sindicatos. Não
evitavam os conflitos que as camadas da classe operário que caminhava já toda para a
insurreição. E, parecia, era Petrogrado que continuava mais calma.
Pela sua distracção diante das massas, pela sua indiferença assombrosa diante das
suas necessidades, pelas frases provocadoras em resposta aos protestos e aos gritos de
desespero, o governo levantava toda a gente contra ele. Pensar-se-ia que ele procurava

565
de propósito os conflitos. Os operários e os empregados do caminho de ferro, quase
depois da insurreição de Fevereiro, reclamavam um aumento de salários. As comissões
sucediam-se, ninguém respondia, os ferroviários estavam cada vez mais irritados. Os
conciliadores acalmavam-os. O Vikjel (Comité executivo pan-russo dos ferroviários)
impunha a moderação. Mas, no 24 de Setembro, houve uma explosão. Foi somente então
que o governo tomou consciência, algumas concessões foram feitas aos ferroviários, e a
greve, que já tinha se estendido a uma grande parte da rede, cessou no 27 de Setembro.
Agosto e Setembro tornaram-se os meses da rápida deterioração da situação
económica. Já, durante as jornadas kornilovianas, a ração de pão tinha sido reduzida, em
Moscovo como em Petrogrado, a 250 gramas por dia. No distrito de Moscovo, começaram
a só entregar um kilo por semana. Nas regiões do Volga, no Sul, na frente e na
retaguarda próxima, todas as regiões do país sofrem uma terrível crise de abastecimento.
Na região textil vizinha de Moscovo, certas fábricas começaram a ficar esfomeadas no
sentido literal da palavra. Os operários e operárias da fábrica Smirnov – o proprietário
tinha sido mobilizado como controlador na nova coligação ministerial – manifestavam na
localidade vizinha de Orekhovo-Zuevo com cartazes: «Temos fome.» «Nossos filhos têm
fome.» «Os que não estão connosco estão contra nós.» O operários de Orekhovo-Zuevo
e os soldados do hospital militar do lugar partilhavam com os manifestantes suas
miseráveis rações: era uma nova coligação que se manifestava contra a do governo.
Os jornais, cada dia, registavam novos focos de conflitos e de revoltas. Os protestos
vinham dos operários, dos soldados, do povinho das cidades. As mulheres dos soldados
exigiam um aumento dos subsídios, alojamento e lenha para o inverno. A agitação dos
Cem Negros procurava sustento junto da fome das massas. O jornal cadete de Moscovo,
as Ruskie Viedomosti (Informações russas) que, outrora, combinava o liberalismo com o
populismo, considerava agora com ódio e desprezo o verdadeiro povo. «Em toda a
Rússia surgiu uma grande vaga de desordem, escreviam os professores liberais. A
violência dos elementos soltos e perseguições estúpidas... estorvam mais que tudo a luta
contra a corrente... Recorrer às medidas de repressão, à colaboração da força armada...
mas, é precisamente esta força armada, na pessoa dos soldados das guarnições locais,
que joga o principal papel nas perseguições... A multidão... desce à rua e começa a se
sentir dona da situação.»
O procurador de Saratov disse ao ministro da Justiça Maliantvitch, que, na época da
primeira revolução, tinha-se contado entre os bolcheviques: «A principal desgraça, contra
a qual na há qualquer possibilidade de lutar, são os soldados ... As linchagens, as prisões
e perseguições arbitrárias, todas as requisições possíveis – tudo isso, na maioria dos
casos, fez-se ou exclusivamente por soldados, ou então com a sua participação directa.»
Mesmo em Saratov, nas capitais dos distritos, nas localidades» completa deficiência de
qualquer ajuda dos serviços judiciários». O tribunal não chega a registar os crimes que
lhes são comunicados pelo povo.
Os bolcheviques não tinham ilusões sobre as dificuldades que deviam assaltar-lhes
com o poder. «Proclamando a palavra de ordem: «Todo o poder aos sovietes!» - dizia o
novo presidente do Soviete de Petrogrado – nós sabemos que essa palavra de ordem não

566
nos causará instantaneamente úlceras. Nós temos necessidade de um poder constituido
pelo modelo da direcção de um sindicato que dá aos grevistas tudo o que ele pode, não
esconda nada, e quando ele não pode dar, que diga francamente...»
Uma das primeiras sessões do governo foi consagrada à «anarquia» nas províncias,
sobretudo no campo. Foi de novo reconhecido indispensável «em não parar diante das
medidas mais resolutas». Entretanto, o governo descobria que a causa dos insucessos na
luta contra as desordens estava na «insuficiente popularidade» dos comissários do
governo entre as massas da população camponesa. Para remediar à situação, foi
decidido organizar urgentemente em todas as províncias que tinham sido ganhas pela
desordem «comités extraordinários do governo provisório». Desde então, o campesinato
deveria acolher as expedições punitivas por aclamações.
Irresistíveis forças históricas arrastavam os dirigentes para a queda. Ninguém
acreditava no sucesso do novo governo. O isolamento de Kerensky era irreparável. As
classes possuidoras não podiam esquecer que ele tinha traído Kornilov. «Qualquer um
que estava disposto a bater-se contra os bolcheviques – escreveu o oficial cossaco
Kaklioguine – não o queria fazê-lo em nome e para a defesa do governo provisório.» Ao
mesmo tempo que se agarrava ao poder, o próprio Kerensky não ousava utilizá-lo de
qualquer maneira. A força crescente da resistência paralisava profundamente a sua
vontade. Ele escondia todas as decisões e evitava o palácio de Inverno, onde a situação o
obrigava a agir. Quase imediatamente após a formação do novo governo, ele entregava
subrepticiamente a presidência a Konovalov e ele próprio partiu para o Grande Quartel
General, onde ninguém precisava dele. Ele só voltou a Petrogrado que para abrir o pré-
parlamento. Retido pelos ministros, mesmo assim ele não deixou de partir, no dia 14, para
a frente. Kerensky fugia um destino que o perseguia.
Konovalov, o mais próximo colaborador de Kerensky e seu substituto, caía, segundo
Nabokov, no desespero em vendo a inconstância de Kerensky e a absoluta
impossibilidade de contar sobre a sua palavra. Mas o humor dos outros membros do
governo tornavam-se pouco a pouco diferentes do seu chefe. Os ministros perscrutavam
ansiosamente, estendiam a orelha, esperavam, desenrascavam-se e safavam-se pelos
papéis e ocupavam-se de bagatelas. O ministro da Justiça Maliantovitch estava, conta
Nabokov, extremamente preocupado quando ele soube que os senadores não tinham
querido receber o seu novo colega Sokolov em sobrecasaca negra. «Que pensa? Que
será preciso fazer? Perguntava Maliantovitch angustiado. Segundo um rito estabelecido
por Kerensky e que era rigorosamente observado, os ministros interpelavam-se entre
eles, não segundo o uso russo, mas pelo prenome e o patronímico, como simples mortais,
mas segundo a função - «Senhor ministro disto ou daquilo» - como convinha aos
representantes de um poder forte. As lembranças dos que foram do governo têm um ar
satírico. Sobre o ministro da Guerra, o próprio Kerensky escrevia logo: «Foi por a mais
infeliz das nomeações: Verkhovsky trouxe para a sua actividade qualquer coisa de
imperceptivelmente cómico.» Mas a infelicidade está nisto que uma nuança de cómico
involuntário estendia-se sobre toda a actividade do governo provisório: essa gente não
sabia o que eles tinham que fazer nem para onde se voltar. Eles não governavam mais,

567
mas brincavam aos governantes como crianças que brincam aos soldados – somente era
menos divertido.
Falando como testemunha, Miliokov caracteriza em traços muito nítidos o estado de
espírito do chefe do governo neste período: «Tendo perdendo chão sob os seus pés, mais
isso durava, mais Kerensky manifestava todos os síntomas de um estado patológico que
poderia chamar-se, na linguagem da medicina, «uma neurastenia psíquica». O círculo dos
amigos próximos sabiam há muito tempo que segundo os momentos de extrema declínio
de energia, na manhã, Kerensky passava, na segunda parte do dia, a uma extrema
excitação sob a influência de produtos farmacêuticos que ele absorvia.» Miliokov explica a
influência particular do ministro cadete Kichkine, psiquiatra de formação, pela sua maneira
hábil de tratar o paciente. Deixamos inteiramente essas informações sob a
responsabilidade do historiador liberal que tinha, na verdade, todas as possibilidades de
saber a verdade, mas que estava longe de escolher sempre a verdade como o seu mais
alto critério.
Os testemunhos de um Stankevitch, tão próximo de Kerensky, confirmam a
característica pelo menos psiquiátrica, dada por Miliokov. «Kerensky produziu sobre mim
– escreve Stankevitch – a impressão de qualquer coisa de desértico em toda a situação
de uma calma estranha, nunca vista. Junto dele encontravam-se somente os seus
inevitáveis pequenos «ajudantes de campo». Mas não havia mais multidão que o rodeava
antes, nem as delegações, nem os projectores... Houve estranhos passatempos e tive a
rara possibilidade de conversar com ele durante horas inteiras, no decurso das quais ele
mostrava uma indiferença estranha.»
Toda nova transformação do governo realizava-se em nome de um poder forte, e
cada novo gabinete ministerial começava por um tom maior para cair poucos dias depois
na prostração. Ele esperava logo uma impulsão exterior para cair. A impulsão era cada
vez dada pelo movimento de massas. A transformação do governo, se rejeitam as
aparência enganadoras, produz-se cada vez numa direcção oposta ao movimento de
massas. A passagem de um governo a outro estava cheio pela crise que, cada vez,
tomava um carácter cada vez mais persistente e mórbido. Cada nova crise estragava uma
parte do poder do Estado, enfraquecia a revolução, desmoralizava os dirigentes. O
Comité executivo dos dois primeiros meses tinha podido fazer tudo, mesmo chamar
nominalmente ao poder a burguesia. Nos dois meses seguintes que seguiram, o governo
provisório, junto ao Comité executivo, ainda podia muito, mesmo abrir uma ofensiva na
frente. O terceiro governo, com um Comité executivo enfraquecido, era capaz de
empreender o esmagamento dos bolcheviques, mas não era capaz de o levar até ao fim.
O quarto governo, que surgiu após a longa crise, já não era capaz de nada. Apenas
nascido, ele morria e, de olhos abertos, esperava o coveiro.

568
O campesinato diante de Outubro
A civilização fez do camponês um burro que carrega a albarda. A burguesia, no fim
de contas, somente modificou a forma da albarda. Apenas suportada no limiar da vida
nacional, o campesinato ficou em suma parado diante do limiar da ciência. O historiador
interessa-se habitualmente a ele tão pouco que um crítico de teatro pode interessar-se
aos obscuros personagens que varrem o soalho, carregam às costas o céu e a terra e
limpam o vestuário dos artistas. A participação dos camponeses nas revoluções do
passado fica até ao presente apenas elucidada.
«A burguesia francesa começou a emancipar os camponeses - escreve Marx em
1848. Com a ajuda dos camponeses, ela conquistou a Europa. A burguesia prussiana
estava limitada aos seus interesses estreitos, imediatos, que ela perdeu mesmo esse
aliado e de facto um instrumento nas mãos da contra-revolução feudal.»
Nessa contradição, é verdade o que se relaciona à burguesia alemã; mas afirmar
que a «burguesia francesa teria começado por emancipar os camponeses», é dar eco à
legenda oficial francesa, que exerceu no seu tempo uma influência, mesmo sobre Marx.
Na realidade, a burguesia, no sentido próprio da palavra, opunha-se à revolução
camponesa com todas as sua forças. Já, nos cadernos de queixas de 1789, os líderes
provinciais do Terceiro estado rejeitavam, sob a aparência de uma melhor redacção, as
reivindicações mais violentas e as mais audaciosas. As famosas decisões da noite do 4
de Agosto, adoptadas pela Assembleia nacional sob o céu vermelho das aldeias que
queimavam, ficaram durante muito tempo uma formula patética sem conteúdo. Os
camponeses que não queriam resignarem-se a serem enganados, a Assembleia
constituinte chamava-os a «voltar a realizar os seus deveres e a considera a propriedade
(feudal!) com o conveniente respeito. A guarda nacional marchou mais de uma vez para
reprimir os movimentos nos campos. Os operários das cidades tomando o partido dos
camponeses insurrectos, acolhiam a repressão burguesa à pedrada e cacos de telhas.
Durante cinco anos, os camponeses franceses revoltavam-se a todos os momentos
críticos da revolução, opondo-se aos acordos entre os proprietários feudais e os
proprietários burgueses. Os sem-calções de Paris, vertendo os seu sangue pela
República, libertaram os camponeses do feudalismo. A República francesa de 1792
marcava um novo regime social, diferente daquele da República alemã de 1918 ou da
República espanhola de 1931 que representam o velho regime com a dinastia a menos. A
base desta distinção, não é difícil reconhecer a questão agrária.
O camponês francês não pensava de um modo directo na república: ele queria
meter para fora o fidalgo. Os republicanos de Paris esqueceram como habitualmente a
aldeia. Mas foi somente o empurrão dos camponeses contra os proprietários que
garantira a criação da república, limpando para ela o terreno da tralha feudal. Uma
república com uma nobreza não é uma república. Isso tinha sido perfeitamente
compreendido pelo velho Maquiavel que, quatrocentos anos antes da presidência de
Ebert, estando exilado em Florença, entre a caça aos merlos e o jogo do das cartas com
um carniceiro, generalizava a experiência das revoluções democráticas:

569
«Alguém que queira fundar uma república num país onde há muitos nobres não
poderá fazê-lo senão depois de os ter exterminados todos.»
Os mujiques russos tinham em suma a mesma opinião, e eles mostram-no bem
abertamente sem qualquer «maquiavelismo».
Se Petrogrado e Moscovo desempenhavam o papel dirigente no movimento dos
operários e dos soldados, o primeiro lugar no movimento camponês deve ser atribuído ao
centro agrícola atrasado da Grande Rússia e à região central do Volga. Aí, as
sobrevivências do regime de servidão mantinham as raízes particularmente profundas, a
propriedade agrária dos nobres tinha o seu carácter mais parasitário, a diferenciação da
classe camponesa estava atrasada, mostrando ainda mais a miséria da aldeia. Tendo
rebentado nesta região desde de Março, o movimento transforma-se logo em terror. Pelos
esforços dos partidos dirigentes, logo se canaliza no leito da política conciliadora.
Na Ucrânia industrialmente atrasada, a agricultura que trabalhava para a exportação
tomou um carácter muito mais progressista, por consequência mais capitalista. A
segregação no campesinato foi aqui levado mais longe que na Grande Rússia. A luta pela
emancipação nacional fazia desaparecer, pelo menos por um certo tempo, as outras
formas de luta social. Mas as diferenças de condições regionais e mesmo nacionais
traduziam-se, no fim de contas, somente pela diversidade dos prazos. Lá pelo outono, o
território do levantamento dos rurais estende-se quase por todo o país. Sobre 624 distritos
compondo a antiga Rússia, o movimento ganhou 482, seja 77%; e, excepção feita dos
regimes limítrofes que se distinguem pelas condições especiais: a região do Norte, a
Transcaucásia, a região das estepes e a Sibéria, sobre 481 distritos a insurreição
camponesa engloba 439 distritos, seja 91%.
As modalidades da luta são diversas, seguindo se se trata de lavoura, de florestas,
pastagens, de quintas ou de trabalho salariado. A luta muda de forma e de métodos nas
diversas etapas da revolução. Mas, no o movimento nos campos desenrola-se, com um
atraso inevitável, passando mesmo por duas grandes fases que tinham sido as do
movimento das cidades. Na primeira etapa, o campesinato adapta-se ainda ao novo
regime e esforça-se em resolver os seus problemas por meio das novas instituições.
Todavia, ainda aqui, trata-se mais da forma que do conteúdo. Um jornal liberal de
Moscovo que, até à revolução exprimia com uma louvável espontaneidade o sentimento
íntimo dos círculos de proprietários durante o verão de 1917:
«O mujique olha à volta dele, por agora ele não empreende nada, mas vejam bem
nos seus olhos, e os seus olhos dizem que toda a terra que se estende à volta dele lhe
pertence.»
Têm-se a chave insubstituível da política «pacífica» do campesinato num telegrama
enviado em Abril por um dos burgos da província de Tambov ao governo provisório:
«Nós desejamos manter a calma no interesse das liberdades conquistadas, e é por
isso proibimos de alugar as terras até à Assembleia constituinte, doutro modo nós
verteremos sangue e não permitimos a ninguém de a trabalhar.»

570
Era tanto mais cómodo ao mujique de manter o tom de ameaça respeitosa do que a
pressão dos direitos adquiridos, ele quase que não teve ocasião de afrontar directamente
o Estado. Nas localidades, não existia órgãos do poder governamental. As juntas de
freguesia dispunham da milícia. Os tribunais estavam perturbados. Os comissários locais
eram impotentes. «Fomos nós que te elegemos - gritavam os camponeses - seremos nós
que te expulsaremos.»
Desenvolvendo a luta nos meses precedentes, o campesinato durante o verão
aproxima-se cada vez mais da guerra civil e a sua ala esquerda passa o limiar disso. Após
uma comunicação dos proprietário de terras do distrito de Taganrong, os camponeses
apoderam-se arbitrariamente dos fenos, da terras, opõem-se ao amanho das terras, fixam
à sua vontade os preços da renda, expulsam os proprietários e os gerentes. Segundo o
relatório do comissário de Nijni-Novgorod, as violências e as confiscações de terras e
madeiras na província tornaram-se mais frequentes. Os comissários de distritos têm medo
de se mostrar aos olhos dos camponeses como os protectores dos grandes proprietários.
A milícia rural é pouco segura: «Houve casos onde os membros da milícia participaram
com a multidão às violências.» No distrito de Schlusselborg, o comité de canton proibiu
aos proprietários de cortar madeira nos seus próprios domínios. A ideia dos camponeses
era simples: nenhuma Assembleia constituinte não poderá reconstituir com os tocos as
árvores abatidas. O comissário do ministério da Corte queixava-se da confiscação das
pastagens: eram obrigados a comprar feno para os cavalos do palácio! Na província de
Kursk, os camponeses partilharam entre eles os baldios multado de Terechtchenko: o
proprietário é ministro dos Assuntos estrangeiros. A Schneider, proprietário das
coudelarias na província de Orel, os camponeses declararam que não somente eles iriam
ceifar no seu domínio o trifoliado, mas que le próprio seria enviado para o quartel, como
soldado. O regente do domínio de Rodzianko recebeu do comité do cantão a ordem de
ceder as pastagens aos camponeses: «Se vocês não obedecem ao comité agrário, fazer-
se-à com vocês de outra forma, serão presos.» Assinatura e carimbo.
De todos os cantos do país afluíam queixas e lamentações: dos proprietários
vítimas, das autoridades locais, de honrosos testemunhos. Os telegramas dos
proprietários de terras constituem a mais clara refutação das grosseiras teorias da luta de
classes. Personagens com títulos e mestres de latifúndios, esclavagistas, clérigos e
laicos, preocupam-se exclusivamente do bem comum. O inimigo, não é o camponês, são
os bolcheviques, às vezes os anarquistas. Os seus próprios domínios interessam os
senhores da terra exclusivamente do ponto de vista da prosperidade da pátria.
Trezentos membros do partido cadete da província de Tchernigov, declararam que os
camponeses, excitados pelos bolcheviques, desencaminham os prisioneiros de guerra e
procedem arbitrariamente à colheita do trigo: resultado, esta ameaça: «a impossibilidade
de pagar os impostos». Os proprietários liberais viam o sentido da existência no apoio ao
Tesouro! A sucursal do Banco de Estado de Podolsk queixa-se do comportamento
arbitrário dos comités de cantão, «cujos presidentes são muitas vezes prisioneiros
austríacos». Aqui fala o patriotismo ofendido. Na província de Vladimir, no domínio do
notário Odintsov, retiraram os materiais de construção «preparados para as obras de
caridade». Os notários só vivem para as obras humanitárias! O bispo de Podolski deu a

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saber que se apoderaram arbitrariamente de uma floresta pertencendo ao bispo. O Alto
procurador do Sínodo queixa-se que se tenham apoderado das pastagens de Laura
Alexandra-Nevsky. A abadia do mosteiro de Kizliar atraiu a ira sobre os membros do
soviete local: eles intrometem-se dos assuntos do mosteiro, confiscam para si as rendas,
«excitam as religiosas contra as autoridades».
Em tais casos eram atingidos directamente os dirigentes da Igreja. O conte Tolstoi,
um dos filhos de Leão Tolstoi, comunica em nome da União dos proprietários rurais da
província de Oufim que a transmissão da terra aos distritos locais, «sem esperar a
decisão da Assembleia constituinte... provocará uma explosão de descontentamento...
entre os camponeses proprietários que são, na província, cerca de duzentos mil». Esse
proprietário de grande descendência preocupa-se exclusivamente de seu irmão mais
fraco. O senador Belhart, proprietário na província de Tver, está pronto a consolar-se com
os cortes feitos na madeira, mas aflige-se ao ver que os camponeses «não querem
submeter-se ao governo burguês.» Veliaminov, proprietário na província de Tambov, pediu
que se salvaguarde duas propriedades que «servem às necessidades do exército».
Completamente por acaso, acontece que esses domínios pertencem-lhe. Para os filósofos
do idealismo, os telegramas dos proprietários em 1917 são um verdadeiro tesouro. O
materialismo verá aí sobretudo uma exposição de exemplos de cinismo. Ele acrescentará,
talvez, que as grandes revoluções tiram aos possuidores mesmo a possibilidade de uma
hipocrisia decente.
As petições das vítimas enviadas às autoridades do distrito e da província, ao
ministro do Interior, ao presidente do conselho de ministros, ficam sem consequências. A
quem pedir ajuda? A Rodzianko, presidente da Duma de Estado. Entre as jornadas de
Julho e o levantamento korniloviano, o gentil-homem sente ter-se tornado uma
personagem influente: muitas coisas acontecem depois da sua chamada telefónica.
Os funcionários do ministério do Interior expedem para as províncias circulares
incitando para que se levem a tribunal os culpados. Rústicos, os proprietários da província
de Samara, telegrafavam respondendo: «As circulares não assinadas pelos ministros
socialistas não têm efeito.» Assim se manifesta a utilidade do socialismo. Tseretelli teve
que ultrapassar a sua modestia: no 18 de Julho, ele enviou uma instrução difusa, ditando
«medidas rápidas e resolutas». Tal como os proprietários, Tseretelli só se preocupa com o
exército e o Estado. Parece portanto aos camponeses que Tseretelli protegem os
proprietários.
Nos métodos de repressão do governo há uma reviravolta. Até Julho eram os belos
discursos que prevaleciam. Se os destacamentos de tropas eram enviados para as
províncias, era somente para fazer a cobertura do orador governamental. Após a vitória
sobre os operários e os soldados de Petrogrado, as equipas de cavalaria, sem já sem
discursos, são colocadas directamente à disposição dos proprietários. Na província de
Kazan, uma das mais perturbadas, só se pode - segundo o jovem historiador Iogov - «por
detenções, pela introdução de destacamentos do exército nas aldeias, e mesmo pelo
restabelecimento do castigo das vergastadas... obrigar os camponeses a se resignarem
por algum tempo». Noutros lugares, a repressão não é eficaz. O número de propriedades

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dos nobres baixou em Julho de 516 para 503. Em Agosto, o governo conseguiu obter
outros sucessos: o número de distritos perturbados caiu de 325 288, isto é 11%; o número
de propriedades atingidas pelo movimento reduziu-se a 33%.
Certas regiões, as mais agitadas até então, acalmam-se ou passam para segundo
plano. Em contra-partida, as regiões que, ainda ontem eram seguras, entram hoje na via
da luta. Ainda não tem um mês, o comissário de Penza esboçava um quadro consolador:
«O campo ocupa-se da colheita... Preparam-se as eleições para os zemstvos de cantão.
O período de crise governamental esgotou-se na calma. A formação do novo governo foi
acolhida com uma grande satisfação.» Em Agosto, deste idílio já não restam marcas:
«Vêm em massa pilhar os pomares e cortar lenha... Para a liquidação das desordens, é
preciso recorrer à força armada.» Segundo o seu carácter geral, o movimento estival
relaciona-se ainda ao período «pacífico». Todavia, observa-se aí já os síntomas, na
verdade fracos, mas indiscutíveis , de radicalização: se durante os quatro primeiros
meses, os ataques directos contra as mansões diminuíram, desde Julho eles voltaram a
aumentar. Os pesquisadores estabelecem no conjunto na ordem de uma curva
descendente: confiscações dos pastagens, das colheitas, dos abastecimentos e dos
fenos, da lavoura, do material agrícola: a luta pelos salários de arrendamento; assalto das
propriedades. Em Agosto: confiscação das colheitas, das reservas de abastecimentos e
dos fenos, das pastagens e dos prados, de terras e de madeiras; o terror agrário.
No inicio de Setembro, Kerensky, na qualidade de generalíssimo, reproduziu numa
ordem especial as ameaças recentes do seu predecessor Kornilov contra «os actos de
violência» vindos dos camponeses. Alguns dias depois, Lenine escrevia:
«Ou então... toda a terra para os camponeses imediatamente... ou os proprietários e
os capitalistas levam o assunto até uma formidável insurreição camponesa.»
No decorrer do mês seguinte, isso tornou-se um facto.
O número de propriedades nas quais os conflitos agrários se estenderam, em
Setembro, subiu, comparativamente ao mês de Agosto, de trinta por cento; em Outubro,
em comparação com Setembro, de quarenta e três por cento. Para Setembro e as três
primeiras semanas de Outubro, é preciso contar mais do terço de todos os conflitos
agrários registados desde Março. Sua ousadia cresceu todavia infinitamente mais que o
seu número. Nos primeiros meses, mesmo depois das confiscações directas de diversos
bens de raíz tomavam a aparência de negociações atenuadas e dissimuladas pelos
órgãos conciliadores. Agora, a máscara da legalidade cai. Cada um dos ramos do
movimento toma um carácter mais intrépido. Abandonando diversos aspectos e graus de
pressão, os camponeses confiscam pela violência partes essenciais dos domínios,
assaltam os ninhos dos proprietários nobres, incendeiam as mansões, mesmo o
assassinato de proprietários e gerentes.
A luta pela modificação das condições de arrendamento que, em Julho, era superior
para o número dos caos no movimento de destruição, constitue em Outubro menos de
cinquenta porcento dos saques, e o próprio movimento dos agricultores muda de carácter,
tornando-se unicamente um meio de expulsar os proprietários. A proibição de comprar ou

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vender terras ou madeiras é substituída pela confiscação directa. As razias nas florestas,
o gado deixado nas terras, tais medidas toma o carácter da destruição intencional dos
bens de raíz. Registou-se em Setembro duzentos e setenta e nove casos de assaltos de
propriedades; eles constituem já mais que a oitava parte de todos os conflitos. Outubro
produziu mais de 42% de todos os casos de destruição registadas pela milícia entre a
insurreição de Fevereiro e a de Outubro.
A luta tomou um carácter particularmente renhido sobre as madeiras. As aldeias
eram frequentemente consumidas pelos incendios. As madeiras de construção eram
rigorosamente guardadas e vendiam-se caras. Houve entre os mujiques fome de madeira.
Além disso, o tinha chegado o tempo de fazer provisões para o aquecimento no inverno.
Das províncias de Moscovo, de Nijni-Novgorod, de Petrogrado, de Orel, da Volhynia, de
todos os pontos do país chegam queixas sobre a destruição das florestas e a confiscação
das reservas de madeira. «Os camponeses procedem de sua própria vontade e
impiedosamente ao corte de árvores.» «Os camponeses queimaram duzentos acres de
floresta pertencendo aos proprietários nobres». «Os camponeses dos distritos de Klimov
e de Tcheridov destroem as madeiras e devastam as culturas de outono...» Os guardas
florestais fogem. Um gemido se levanta nas florestas da nobreza, as lascas voam por
todo o país. Durante o outono o machado do mujique bate ao ritmo febril da revolução.
Nas regiões importadoras de trigo, a situação do abastecimento é ainda mais grave
que nas cidades. Faltavam não somente meios de subsistência, mas mesmo sementes.
Nas regiões que exportavam, a situação não era melhor, os recursos alimentares eram
bombeados sem parar. O aumento dos preços obrigatórios dos cereais atingiu duramente
os pobres. Num bom número de províncias desencadearam-se numerosos motins
relacionados com a fome, pilham-se celeiros, atacam os empregados dos
abastecimentos. A população arranjava sucedâneos do pão. Notícias propagavam-se,
anunciando casos de escorbuto e de febre tifóide, suicídios causados pelas situações
sem saída. A fome ou o seu espectro tornavam particularmente intolerável a vizinhança de
bem estar e do luxo. As camadas mais necesitadas do campo tomavam lugar nas
primeiras filas.
As vagas de irritação levantavam do fundo bastante lodo. Na província de Kostroma
«observa-se a agitação dos Cem Negros e dos antisemitas. A criminalidade aumenta...
Nota-se uma diminuição do interesse em relação à vida política do país». Esta última
fase, no relatório do comissário, significa que as classes educadas voltam as costas à
revolução. De repente rebenta, na província de Podolsk, a voz dos monárquicos dos Cem
Negros: o comité da localidade de Demidovka não reconhece o governo provisório e
considera «como o mais fiel do povo russo» o imperador Nicolau Alexandrovitch: se o
governo provisório não se vai, «nós nos juntaremos aos alemãs». Confissões tão ousadas
eram todavia coisa rara: os monárquicos entre os camponeses tinham há muito tempo
mudado de cor como os proprietários. Em certos lugares, e nesta mesma província de
Podolsk, as tropas, com os camponeses, devastam as fábricas dos destiladores. O
comissário faz um relatório sobre a anarquia. «As aldeias e as pessoas estão em
perdição; a revolução perde-se.» Não, a revolução está longe de se perder. Ela cava uma
cova profunda. As suas águas turbulentas aproximam-se do estuário.

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Na noite do 7 ao 8 de Setembro, os camponeses da localidade de Sytchevka, na
província de Tambov, com cacetes e chicotes, indo de casa em casa, convocam toda a
gente, do mais pequeno ao maior, a demolir a propriedade do Romanov. Na assembleia
comunitária, um grupo propõe a confiscação da propriedade de forma ordeira, de partilhar
os bens entre a população, de conservar os edifícios para fins culturais. Os pobres
exigem que se incendie a mansão, e que tudo seja demolido. Os pobres são os mais
numerosos. Na mesma noite um mar de fogo estende-se às propriedades de todo o
cantão. Queima-se tudo o que era susceptível de queimar. Mesmo uma plantação
modelo, degola-se o gado de raça, «embebedam-se loucamente». O fogo passa de um
cantão a outro. O exército de chinelos de cânhamo não se limita a empregar às forquilhas.
O comissário da província telegrafa: «Os camponeses e desconhecidos, armados de
revolveres e de granadas, roubam as propriedades nos distritos de Ranenburgo e de
Riajsk.» A guerra tinha trazido uma rica técnica à insurreição camponesa. A União dos
proprietários assinalou que em três dias queimaram vinte e quatro propriedades. «As
autoridades locais são impotentes em estabelecer a ordem.» Com atraso chegou um
destacamento enviado pelo comandante das tropas, o estado de sítio foi declarado, as
reuniões proibidas; prenderam os instigadores. Os barrancos estavam cheios de bens dos
proprietários, as ribeiras engoliram muito do que foi pilhado.
Um camponês de Penza, Beguichev, conta: «Em Setembro, todos iam demolir a
propriedade de Logvine (tinham-na sacado em 1905). Na ida e volta, alongava-se uma fila
de carroças, centenas de mujiques e outra coisa...» Um destacamento pedida pela
direcção do zemstvo tentou recuperar uma parte do que tinha sido confiscado, mas cerca
de quinhentos mujiques tinham-se reunido à volta da capital do cantão, e o destacamento
dispersou-se. Os soldados, evidentemente, não faziam qualquer zelo em restabelecer os
direitos espezinhados dos proprietários.
A partir dos últimos dias de Setembro, na província de Tauride, segundo as
memórias do camponês Gaponenko, «os camponeses meteram-se a devastar as
explorações, a expulsar os gerentes, a confiscar o trigo nos celeiros, as bestas de carga,
o material... Mesmo as persianas, as portas, os soalhos e o zinco dos telhados foram
arrancados e levados...». «No princípio, vinham somente a pé, tomavam e levavam -
conta um camponês de Minsk, Grunko - mas logo atrelaram os cavalos, os que tinham, e
levaram tudo isso em carroças inteiras. Sem descanso... transportaram, levaram, a partir
do meio dia, durante dois dias inteiros, noite e dia, sem interrupção. Em quarenta e oito
horas, limparam tudo.» A confiscação de bens, segundo Kozmitchev, camponês da
província de Moscovo, justifica-se assim: «O proprietário era nosso, trabalhávamos para
ele, e a fortuna que ele tinha devia voltar para nós somente». Outrora, o nobre dizia aos
servos: «Vocês pertencem-me e todo o que é vosso é meu.» Agora os camponeses
respondem: «O fidalgo pertence-nos e todo o seu bem é nosso.»
«Em certos lugares começaram a inquietar os proprietários à noite, diz um outro
camponês de Minsk, Novikov. Cada vez mais incendeiam as mansões dos proprietários
nobres». E a vez coube à propriedade do grande-duque Nicolau Nicolaievitch, antigo
generalíssimo.» Quando levaram tudo o que podia ser levado, começaram a demolir os
fogões e a retirar os fornos, os soalhos e a levar tudo isso para casa...» Por detrás desses

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actos de destruição, havia o cálculo multi-secular, milenário, de todas as guerras de
camponeses: sapar até à base as posições fortificadas do inimigo, não lhe deixar lugar
onde ele poderia reposar a cabeça. «O mais razoáveis - escreve nas suas lembranças
Tsygankov, camponês da província de Kursk - diziam: não é necessário destruir os
edifícios, teremos necessidade deles... para escolas e hospitais, mas a maioria dos que
gritavam de se devia destruir tudo para que os nossos inimigos, de qualquer modo, não
saibam onde se esconder...» «Os camponeses confiscavam todos os bens dos
proprietários - conta Savtchenko, camponês da província de Orel - expulsavam os
proprietários dos domínios, quebravam as janelas das casas, as portas, o soalho, os
tectos... Os soldados diziam que se destruíam o covil dos lobos, era também preciso
estrangular os lobos. No seguimento de tais ameaças, os mais importantes e os mais
consideráveis dos proprietários escondiam-se uns após os outros, é por isso que não
houve assassinatos de proprietários.»
Na aldeia de Zalessie, na província de Vitebsk, queimaram celeiros cheios de grão e
de feno, numa propriedade pertencendo ao francês Bernard. Os mujiques estavam tanto
menos dispostos a distinguir entre nacionalidades que muitos proprietários apressavam-
se a passar as suas terras a estrangeiros privilegiados.» A embaixada de França pediu
que se tomassem medidas. «Na zona da frente, em pleno Outubro, era difícil tomar
«medidas», mesmo para agradar à embaixada de França.
O saccage de uma grande propriedade próxima de Rizan persegui-se durante quatro
dias; «na pilhagem participaram mesmo crianças». A União dos proprietários de terras
disse aos ministros que se não se tomassem medidas, «haveria linchagens, a fome e a
guerra civil». Não se compreende porquê os proprietários nobres falam ainda de guerra
civil no tempo futuro.
No congresso da cooperação, Berhenheim, um dos líderes do sólido campesinato
comerciante, dizia, no princípio de Setembro: «Estou convencido que a Rússia ainda não
se transformou completamente num manicómio, que, por momento, a demência ganhou
sobretudo a população das grandes cidades.» Esta voz presunçosa de uma parte
sólidamente estabelecida e conservadora do campesinato atrasava sem recurso;
precisamente durante esse mês, o campo arranca definitivamente todos os controlos da
sabedoria, e por exaspero na luta deixa longe atrás dela «os manicómios» das cidades.
Em Abril, Lenine considerava ainda possível que os cooperantes patriotas e os
kolaques trouxessem com eles a grande massa dos camponeses na via de um acordo
com a burguesia e os proprietários. Ele insistia incansavelmente sobre a criação de
sovietes particulares de operários agrícolas (batraks) e sobre uma organização
independente de camponeses mais pobres. Cada vez menos descobriu-se, todavia, que
esta parte da política bolchevique não tinha raízes. Excepção feita das províncias bálticas,
não existia de forma nenhuma sovietes operários agrícolas. Os camponeses pobres não
encontraram igualmente formas independentes de organização. Explicar isso unicamente
pelo estado atrasado dos operários agrícolas e das camadas mais pobres da aldeia, seria
passar ao lado do essencial. A causa principal residia na própria natureza do problema
histórico: o da revolução agrária democrática.

576
Sobre as duas questões mais importantes - as da renda e do trabalho assalariado -
descobriu-se de maneira mais convincente como os interesses gerais da luta contras as
sobrevivências da servidão interceptaram as vias de uma política independente não
somente dos camponeses pobres, mas dos operários agrícolas. Os camponeses
tomavam as quintas aos proprietários nobres, na parte europeia da Rússia, vinte e sete
milhões de acres, cerca de sessenta porcento de todas as propriedades particulares, e
pagavam cada ano um tributo de renda elevando-se a quatro centos milhões de rublos. A
luta contra as condições espoliadores da renda tornou-se, depois da insurreição de
Fevereiro, o elemento mais essencial do movimento camponês. Um lugar menor, portanto
muito considerável, foi ocupado pela luta dos operários agrícolas que, opunha-os não
somente à exploração dos proprietários nobres, mas à dos camponeses. O agricultor
lutava por alívio das condições de arrendamento, o operário pela melhoramento das
condições de trabalho. Um e outro, cada um à sua maneira, partiam desse ponto que eles
reconheciam o fidalgo como proprietário e patrão. Mas a partir do momento onde se abriu
a possibilidade de levar o assunto até ao fim, isto é confiscar as terras e de se instalar aí,
o campesinato pobre deixou de se interessar às questões do arrendamento, e o sindicato
começou a perder a sua força de atracção para os operários agrícolas. São precisamente
estes últimos e os agricultores pobres que, pela sua associação ao movimento geral,
deram à guerra camponesa o seu carácter extremo de resolução e de intransigência.
O campo contra os proprietários nobres não ocasionou plenamente o pole oposto da
aldeia. Como o assunto não ia até ao levantamento declarado, as cimeiras do
campesinato desempenhavam no movimento um papel evidente, por vezes dirigente. No
período outonal, os mujiques ricos consideravam com uma desconfiança crescente o
transbordar da guerra camponesa: eles não sabiam como isso se terminaria, eles tinham
qualquer coisa a perder -. eles afastavam-se. Mas não conseguiram, mesmo assim, a se
meterem de lado: a aldeia não lhes permitiu.
Mais fechados e mais hostis que «os do meio», kulaques pertencendo à comuna,
mantinham-se os pequenos proprietários de terras, camponeses afastados da comuna.
Os agricultores que possuíam lotes que iam até aos cinquenta hectares eram, em todo o
país, seis centos mil. Eles constituíam em muitos lugares a espinha dorsal das
cooperativas e, em política, eram levados, particularmente no Sul, para a União
camponesa conservadora que constituía já uma ponte para os cadetes. «Os camponeses
afastados da comuna, e os rurais ricos - segundo Gulis, cultivador da província de Minsk -
apoiavam os proprietários nobres, esforçando-se de conter o campesinato por
advertências.» Aqui e acolá, sob a influência das condições locais, a luta no interior do
campesinato tomava um carácter furioso mesmo antes da insurreição de Outubro. Os
camponeses afastados das comunas sofreram particularmente disso. «Quase todas as
explorações particulares - conta Kusmitchev, camponês na província de Nijni-Novgorod -
foram queimadas, o material foi em parte destruído, em parte confiscado pelos
camponeses». O camponês afastado da comuna era «o criado do proprietário nobre,
homem de confiança vigiando as várias reservas florestais; ele era o favorito da polícia,
da guarda e dos seus mestres». Os camponeses e os comerciantes mais ricos de certos

577
cantões do distrito de Nijni-Novgorod desapareceram durante ou outono e não voltaram
para casa senão dois ou três anos depois.
Mas, na maior parte do país, os relatórios internos da aldeia estavam longe de atingir
esse grau de gravidade . Os kolaques comportam-se diplomaticamente, acautelavam-se e
resistiam, mas esforçavam-se para não se colocarem demasiado em oposição com o mir
(comuna rural). O camponês pelo seu lado, vigiavam o kolaque, não lhe permitindo unir-
se ao proprietário nobre. A luta entre os nobres e os camponeses pela influência sobre o
kolaque perseguiu-se durante todo o ano de 1917, sob formas variadas, indo de uma
acção «amigável» até ao terror furioso.
Enquanto que os proprietários dos latifúndios abriam obsequiosamente diante dos
camponeses proprietários a porta de honra da Assembleia da nobreza, os pequenos
proprietários de terras afastavam-se claramente dos nobres para não desaparecem como
eles. Na linguagem da política, isso significava que os proprietários nobres que tinham
pertencido até à revolução aos partidos da extrema direita revestiam-se agora da cor do
liberalismo, tomando, segundo as velhas recordações, a cor protectora; então os
proprietários entre os camponeses que, frequentemente, tinham antes apoiado os
cadetes, evoluíam agora para a esquerda.
O congresso dos pequenos proprietários da província de Perm, em Setembro,
desolidarizavam-se veemente do congresso moscovita dos proprietários de terras à
cabeça do qual encontravam-se «condes, príncipes, barões». Um proprietário de
cinquenta acres dizia: «Os cadetes nunca transportaram o burel e chinelos de cânhamo e
por isso eles nunca defenderão os nossos interesses.» Afastando-se dos liberais, os
proprietários trabalhadores procuravam «socialistas» que apostavam na propriedade. Um
dos delegados pronunciava-se pela social-democracia «... O operário? Dêm-lhe terra, ele
virá à aldeia e deixará de cuspir sangue. Os sociais-democratas não nos tirarão as
terras.» Trata-se, bem entendido, dos mencheviques. «Nós não cederemos a nossa terra
a ninguém. É fácil de se separar dela a favor de quem a obteve sem dificuldades, por
exemplo para o proprietário nobre. Para o camponês, a terra foi uma aquisição penosa.»
Nesse período de Outono, a aldeia lutava contra os kolaques sem os rejeitar, ao
contrário obrigando-os a se juntarem ao movimento geral e a protegê-lo contra as
camadas de direita. Houve mesmo casos onde a recusa de participar a uma pilhagem foi
castigada pela execução do indócil. O kolaque serpenteavam tanto quanto podia, mas, no
último minuto, depois de ter coçado a cabeça mais uma vez, atrelava os cavalos bem
alimentados à sua telega, montada sobre sólidas rodas, e partia para tomar a sua parte.
Era frequentemente a parte do leão. «Os que aproveitaram eram sobretudo gente rica -
conta Baguichev, camponês da província de Penza que tinham os cavalos e as pessoas à
sua disposição.» É quase nos mesmos termos que se exprime Savtchenko, da província
de Orel: «O lucro volta a maioria dos kolaques que eram bem alimentados e tinham os
meios de transportar madeira...» Segundo o cálculo de Vermenitchev, sobre quatro mil
novecentos e cinquenta e quatro conflitos agrários com os proprietários nobres, de
Fevereiro a Outubro, houve na totalidade trezentos e vinte e quatro com a burguesia
camponesa. Relatório evidentemente notável! A ele só, demonstra indiscutivelmente que o

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movimento camponês de 1917, na sua base social, era dirigido não somente contra o
capitalismo, mas contra as sobrevivências da servidão. A luta contra os kolaques só se
desenvolveu mais tarde, desde 1918, após a liquidação definitiva dos proprietários
nobres.
O carácter puramente democrático do movimento camponês que devia, ao que
parecia, dar à democracia uma força irresistível, demonstrou de facto e mais que tudo
quanto ela estava podre. Se considerarmos as coisas de alto, o campesinato no seu
conjunto tinha a cabeça dos socialistas-revolucionários, dava-lhes os seus votos, seguia-
os, confundia-se quase com eles. No congresso dos sovietes camponeses, em Maio,
Tchernov obteve, nas eleições para o Comité executivo, oitocentos e dez votos, Kerensky
oitocentos e quatro, enquanto que Lenine só obteve vinte. Não foi por engano que
Tchernov se nomeava «ministro do campo». Mas também não era por engano que a
estratégia dos campos se afastava violentamente da de Tchernov.
A dispersão económica faz dos camponeses, tão resolutos na luta contra um
proprietário determinado, impotentes contra o proprietário generalizado na pessoa do
Estado. Daí a necessidade orgânica do mujique em se apoiar num reino fabuloso contra o
Estado real. Nos velhos tempos, o mujique avançava os impostores, agrupava-se em
torno de um falso pergaminho dourado do czar ou à volta de uma legenda sobre a terra
dos justos. Após a Revolução de Fevereiro, os camponeses uniam-se à volta da bandeira
socialista-revolucionária, «Terra e Liberdade», procurando nela ajuda contra o proprietário
nobre e liberal que se tornou comissário. O programa populista relacionava-se ao governo
real de Kerensky como o pergaminho dourado apócrifo do czar ao autocrata real.
No programa dos socialistas-revolucionários, houve sempre muita utopia: eles
dispunham-se a construir o socialismo sobre a base de uma pequena economia mercantil.
Mas no fundo o programa era democrata revolucionário: retomar as terras dos
proprietários nobres. Encontrando-se na obrigação de preencher o seu programa, o
partido atrapalhava-se na coligação. Contra a confiscação de terras erguiam-se
irredutivelmente os proprietários nobres, mas também os banqueiros cadetes: os bens-de
raíz terrenos tinham sido hipotecados pelos bancos por pelo menos quatro biliões de
rublos. Dispunham-se a negociar, na Assembleia constituinte, com os proprietários nobres
sobre o preço, mas finalizar amigavelmente, os socialistas-revolucionários metiam todo o
zelo em impedir o mujique de tomar a terra. Eles perdiam assim influência junto dos
camponeses, não por causa do carácter utópico do seu socialismo, mas pela sua
inconsistência democrática. A verificação do seu utopismo agrário tornou-se evidente em
alguns meses: sob o governo dos socialistas-revolucionários, os camponeses deviam se
comprometer na via da insurreição para realizar o programa desses mesmos socialistas-
revolucionários.
Em Julho, quando o governo reprimiu a aldeia, os camponeses lançaram-se felizes
sob a protecção desses mesmos socialistas-revolucionários: no Ponce cadete, eles
procuravam a defesa contra o Pilatos mais velho. O mês onde os bolcheviques são mais
fracos nas cidades torna-se o mês da maior expansão dos socialistas-revolucionários nos
campos. Como acontece habitualmente, sobretudo numa época de revolução, o máximo

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da empresa organizacional coincidiu com o início de uma decadência política. Escudando-
se atrás dos socialistas-revolucionários para escapar aos golpes de um governo
socialista-revolucionário, os camponeses perdiam cada vez mais confiança nesse
governo e nesse partido. Foi assim que o inchaço das organizações socialistas-
revolucionárias no campo tornou-se mortal para esse partido universal que, por baixo,
rebelava-se e, pelo alto, reprimia.
Em Moscovo numa reunião da Organização militar, no 30 de Julho, um delegado da
frente, ele próprio socialista-revolucionário, dizia: ainda que os camponeses se
considerem como socialistas-revolucionários, há uma fenda ente eles e o partido. Os
soldados concordam: sob a influência da agitação socialista-revolucionária, os
camponeses ainda são hostis aos bolcheviques, mas eles resolvem os problemas da terra
e do poder à maneira dos bolcheviques. Povoijky, bolchevique que militava sobre o Volga,
testemunha que os mais distinguidos socialistas-revolucionários, tendo participado ao
movimento de 1905, sentiam-se cada vez mais eliminados: «Os mujiques chamavam-os
«os velhos», tratavam-os com as aparências de respeito, e votavam como eles
entendiam» Eram os operários e os soldados que ensinavam aos camponeses a votar e a
agir «e faziam como entendiam».
É impossível avaliar a influência revolucionária dos operários sobre o campesinato:
ele tinha um carácter permanente, molecular, omnipresente, e por consequência pouco
susceptível de ser calculado. A reciprocidade da penetração era facilitada pelo facto que
um número considerável de empresas industriais eram repartidas no campo. Mas mesmo
os operários de Petrogrado, a mais europeia das cidades, conservavam laços imediatos
com a aldeia natal. O desemprego, que tinha aumentado durante os meses de verão, e os
lock-out dos capitalistas enviavam para a aldeia numerosos milhares de operários: ele
tornavam-se a maioria dos agitadores e dos líderes.
Em Maio-Junho, em Petrogrado, criam-se organizações operárias regionais
(zemliatchestva) reagrupando os originários de tal província, de distritos, mesmo de
cantões. Colunas inteiras na imprensa operária são consagradas aos anúncios de
reuniões de zemliatchestva, nas quais liam-se relatórios sobre os percursos feitos nas
aldeias, estabeleciam-se instruções para os delegados, procuravam-se recursos
financeiros para a agitação. Pouco antes da insurreição, os zemliatchetva fusionaram-se
em volta de um Burô central especial, sob a direcção dos bolcheviques. O movimento dos
zemliatchestva logo se estendeu a Moscovo, a Tver, provavelmente também a um bom
número de outras cidades industriais.
Todavia, do ponto de vista da acção directa sobre a aldeia, os soldados tinham uma
importância ainda maior. Foi somente nas condições artificiais da frente ou do quartel na
cidade que os jovens camponeses, ultrapassando até um certo ponto os efeitos da sua
dispersão, encontraram-se frente a frente com os problemas de envergadura nacional. A
falta de autonomia política ainda se fazia sentir. Caindo invariavelmente sob a direcção
dos intelectuais patriotas e conservadores, e esforçando-se de lhes escapar, os
camponeses tentavam fazer bloco no exército, à parte dos outros grupos sociais. As
autoridades mostravam-se desfavoráveis a tais tendências, o ministro da Guerra opunha-

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se a isso, os socialistas-revolucionários não vinham ao ponto de os ajudar - os sovietes
de deputados camponeses só se ligavam fracamente ao exército. Mesmo nas condições
mais favoráveis, o camponês não está em estado de transformar a sua esmagadora
quantidade numa qualidade política.
É somente nos grandes centros revolucionários, sob a acção directa dos operários,
que os sovietes de camponeses-soldados chegaram a desenvolver um trabalho
considerável. Foi assim que o Soviete camponês de Petrogrado, de Abril de 1917 ao 1 de
Janeiro de 1918, enviou para o campo mil trezentos e noventa e cinco agitadores munidos
de mandatos especiais; outros, também tão numerosos, partiram sem mandato. Os
delegados percorreram sessenta e cinco províncias (governos). Em Cronstadt, entre os
marinheiros e os soldados, constituíam-se, segundo o exemplo dos operários,
zemliatchestva que entregavam aos delegados certificados atestando o seu «direito» de
viajar gratuitamente no caminho de ferro e em barco. Os caminhos de ferro das
sociedades privadas aceitavam tais certificados sem hesitar, mas nos caminhos de ferro
do Estado produziam-se conflitos.
Delegados oficiais das organizações eram mesmo assim gotas de água num oceano
de camponeses. Um trabalho infinitamente mais importante era realizado pelas centenas
de milhares e os milhões de soldados que desertavam a frente e as guarnições da
retaguarda, guardando nas suas orelhas as consistentes palavras de ordem, discursos
nos comícios. Os mudos da frente tornavam-se em casa, na aldeia, faladores. E as
pessoas ávidas em ouvir não faltavam. «Entre os camponeses que rodeavam Moscovo,
conta Moralov, um dos bolcheviques do lugar - produzia-se um formidável movimento
para a esquerda... As vilas e aldeias da região abundavam de desertores. Lá também
penetrava o proletariado da capital que não tinha ainda rompido com a Aldeia.» O campo
adormecido da província de Kaluga, segundo o camponês Naumtchenkov, «foi acordada
pelos soldaos que chegavam da frente por uma razão ou outra no período de Junho a
Julho». O comissário de Nijni-Novgorod relatava que «todas as infracções ao direito e à
lei são causadas pelo aparecimento nos limites da província de desertores, de soldados
em licença ou de delegados dos comités de regimentos». O capataz principal das
propriedade da princesa Bariatinskaia, do distrito de Zolotonochsky, queixava-se em
Agosto dos actos de arbítrio do comité agrário que preside o marinheiro de Cronstadt,
Gatran. «Os soldados e os marinheiros vindos de folga - segundo o relatório do
comissário do distrito Bogolminsky - fazem agitação com o objectivo de criar anarquia e
de provocar perseguições». «No distrito de Mglinsk, na localidade de Belogoch, um
marinheiro proibiu com a sua própria autoridade de cortar e enviar madeira da floresta.»
Se não eram os soldados que começavam a luta, eram eles que a terminavam. No distrito
de Nijni-Novgorod, os mujiques atormentavam o convento de mulheres, cortavam seus
pastos, quebravam as vedações, não deixavam as freiras tranquilas. A abadia não cedia,
os milicianos levavam os mujiques para os reprimir.» «Isso durou - escreve o camponês
Arbeko - até à chegada dos soldados. Os homens da frente seguraram o boi pelos
cornos»: o convento foi evacuado. Na província de Mohilev, segundo o camponês Bobkov,
«os soldados que tinham regressado da frente para os seus lares eram os primeiros
agitadores nos comités e dirigiam a expulsão dos proprietários nobres».

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Os homens da frente metiam no assunto a grave resolução dos que tomaram o
hábito de se servir da espingarda e da baioneta contra o homem. Mesmo as mulheres dos
soldados tomavam dos seus maridos o espírito combativo deles. «Em Setembro - conta
Beguichev, camponês da província de Penza - houve um forte movimento dos soldados
mulheres, que se pronunciavam nas assembleias pelo saque. «Observava-se a mesma
coisa nas outras províncias. As «soldadas», mesmo nas cidades, activavam
frequentemente a fermentação.
Os casos onde aconteceram sarilhos rurais causados por soldados contaram,
segundo o cálculo de Vermenitchev, em Março, eram 1%, em Abril 8%, em Outubro 17%.
Tal cálculo não pode pretender ser exacto; mas indica sem erro a tendência geral. A
direcção moderadora dos mestres escola, escrivões e funcionários socialistas-
revolucionários era substituída pela direcção dos soldados que não recuavam diante de
nada.
Um escritor alemão, bom marxista no seu tempo, Parvus, que soube enriquecer
durante a guerra, mas perdendo os seus princípios e a sua perspicácia, comparava os
soldados russos aos lansquenetes da Idade Média, ladrões e violadores. Para falar assim,
era preciso não ver que os soldados russos, apesar de todos os seus excessos,
continuavam a ser simplesmente o órgão executivo da maior revolução agrária da história.
Enquanto que o movimento não rompesse definitivamente com a legalidade, o envio
de tropas para o campo mantinha um carácter simbólico. Só se podia empregar os
cossacos efectivamente para reprimir. «Expedimos nos distritos de Serdobsky
quatrocentos cossacos... esta média trouxe a calma. Os camponeses declararam que
eles esperarão a Assembleia constituinte.» - escreveu a 11 de Outubro, o jornal liberal
Russokoie Slovo (A palavra russa). Quatrocentos cossacos, é um argumento
incontestável para a Assembleia constituinte! Mas faltavam cossacos e os que existiam
hesitavam. Entretanto, o governo era forçado a tomar cada vez mais «medidas
decisivas». Durante os primeiros meses, Vermenitchev contou dezassete casos de envios
da força armada contra os camponeses; em Julho e em Agosto, trinta e nove casos; em
Setembro e Outubro, cento e cinco.
Reprimir o movimento camponês pela força armada, era deitar óleo sobre o fogo. Os
soldados, na maior parte dos casos, passavam para lado dos camponeses. Um
comissário de distrito da província de Podoslk relata isto: «As organizações militares e
mesmo certos contingentes resolvem as questões sociais e económicas, forçam (?) os
camponeses a confiscar e cortar lenha e, às vezes, em certos sítios, participam eles
próprios às pilhagens... As tropas locais recusam tomar parte na repressão contra essas
violências...» Foi assim que a insurreição na aldeia destruiu os últimos vestígios da
disciplina. Estava fora de questão, nas condições da guerra camponesa à cabeça da qual
se encontravam os operários, que o exército se deixasse levar contra a insurreição nas
cidades.
Operários e soldados, os camponeses souberam pela primeira vez algo de novo,
não o que os socialistas-revolucionários lhes tinham contado sobre os bolcheviques. As
palavras de ordem de Lenine e o seu nome penetraram na aldeia. As queixas cada vez

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mais frequentes contra os bolcheviques tiveram, todavia, em muitos casos, um carácter
de invenção ou de exagero: os proprietários nobres esperavam assim obter ajuda mais
seguramente. «No distrito de Ostrovsky, é a anarquia completa no seguimento da
propaganda do bolchevismo.» Na província de Ofim: «O membro do comité de cantão
Vassilev propaga o programa dos bolchevique e declara abertamente os proprietários
nobres sejam enforcados. «Um proprietário da província de Novgorod, Polonnik,
procurando «protecção contra a pilhagem», não esquece de acrescentar: «Os comités
executivos estão todos cheios de bolcheviques»; o que quer dizer: má gente para os
proprietários. «Em Agosto - escreve nas suas Lembranças Zomornie, camponês da
província de Simbirsk - operários percorreram as aldeias, fazendo agitação para o partido
dos bolcheviques, expondo o seu programa.» O juiz de instrução do distrito de Sebeje
abriu um inquérito sobre uma operária do têxtil chegada de Petrogrado, Tatiana
Mikhailova, vinte e seis anos, que, na sua aldeia, apelava «ao derrube do governo
provisório e vangloriava a táctica de Lenine». Na província de Smolensk, cerca do fim de
Agosto, como testemunha o camponês Kotov, «começaram-se a interessar-se sobre
Lenine, escutavam a voz de Lenine»... Portanto, nos zemstvos dos cantões os que se
elegem são para a maioria imensa socialistas-revolucionários.
O partido bolchevique esforça-se por se aproximar do camponês. No 10 de
Setembro, Nevsky reclama do Comité de Petrogrado que se empreenda a publicação de
um jornal camponês: «É preciso resolver o assunto de tal maneira que não se passe
pelas dificuldades que conheceu a Comuna de Paris, quando o campesinato não
compreendeu a capital e Paris não compreendeu o campesinato». O jornal Bednota
(Jornal dos Pobres) logo começou a ser publicado. Mas o trabalho do partido no
campesinato no sentido próprio continuava insignificante. A força do partido bolchevique
não estava nos meios técnicos, nem no aparelho, ela estava na sua justeza política. Tal
como as baforadas de ar espalham as sementes, os turbilhões da revolução propagavam
as ideias de Lenine.
«Cerca do Setembro - escreve nas suas Lembranças Vorobiev, camponês da
província de Tver - nas reuniões, cada vez mais frequentemente e ousadamente se
pronunciam já pela defesa dos bolcheviques, não somente os soldados da frente, mas
mesmo os camponeses pobres...» «Entre os pobres e certos camponeses médios - como
confirma Zomorine, camponês da província de Simbirsk - o nome de Lenine estava em
todas as bocas, só se falava de Lenine. «Um camponês de Novgorod, Grigoriev, conta
que um socialista-revolucionário, no cantão, tratou os bolcheviques de «ladrões» e de
«traidores». Os mujiques gritavam: «Abaixo o cão, apedrejemos-o! Não nos contem
histórias! Onde está a terra? Basta! Que nos tragam um bolchevique!» É possível aliás
que este episódio - e houve mais que um do mesmo género - se relacione já ao período
depois de Outubro: nessas lembranças de camponeses, os factos são fortemente
marcados, mas o sentido da cronologia é fraco.
Um soldado, Tchinenov, que tinha trazido de casa, na província de Orel, uma mala
cheia de literatura bolchevique, foi mal acolhido na aldeia natal: ouro alemão, pensava-se.
Mas em Outubro, «a célula do cantão tinha até setecentos membros, muitos fuzis e
marchava sempre na defesa do poder soviético». O bolchevique Vratchev conta como os

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camponeses da província exclusivamente agrícola de Voroneje, «tinham voltado da asfixia
socialista-revolucionária, começaram a se interessar ao nosso partido, graças a isso nós
já tivemos um bom número de células de aldeia e de cantão, assinantes dos nossos
jornais, e recebemos numerosos mujiques no pequeno local do nosso Comité». Na
província de Smolensk, segundo as lembranças de Ivanov. «os bolcheviques eram muito
raros nas aldeias, havia muito poucos nos distritos, os jornais bolcheviques não existiam,
panfletos foram distribuidos muito raramente... E todavia, mais se aproximava de Outubro,
mais a aldeia se voltava para os bolcheviques...»
«Nos distritos onde, até Outubro, havia uma influência bolchevique nos sovietes -
escreve o mesmo Ivanov - a ira do vandalismo contra as propriedades dos nobres ou não
se manifestavam, ou davam provas de um fraco grau.» O caso, todavia, não se
apresentava a esse respeito por todo o lado da mesma maneira. «As reivindicações dos
bolcheviques exigiam a devolução de terras aos camponeses - conta, por exemplo
Tadeusz - eram particularmente logo adaptadas pela massa dos camponeses do distrito
de Mohilev que assaltavam as propriedades, incendiavam algumas, apoderavam-se dos
prados, das madeiras.» Não há, em suma, contradição entre estes testemunhos. A
agitação geral dos bolcheviques alimentava incontestavelmente a guerra civil nos
campos. Mas, onde os bolcheviques conseguiam enraizar-se mais solidamente, eles
esforçavam-se, naturalmente sem enfraquecer o avanço camponês, em ordenar e limitar
os estragos.
A questão agrária não se colocava isoladamente. O camponês estava esgotado,
sobretudo no último período da guerra, como vendedor mas também como comprador:
tomavam-lhe o trigo e os preços fixados pelo Estado, os produtos da indústria tornavam-
se cada vez menos acessíveis. O problema das relações económicas entre o campo e a
cidade que deve tornar-se a seguir, sob a denominação das «tesouras», o problema
central da economia soviética, apresentava-se já sob um aspecto ameaçador. Os
bolcheviques diziam ao camponês: os sovietes devem tomar o poder, e devolver a terra,
acabar com a guerra, desmobilizar a indústria, estabelecer o controlo operário sobre a
produção, regularizar as relações dos preços entre os produtos industriais e os produtos
agrícolas. Mesmo se a resposta era sumária, ela marcava a via. «A barreira entre nós e o
campesinato - dizia Trotsky, no 10 de Outubro, na conferência dos comités de fábrica -
são os sovietistas do género Avksentiev. É necessário quebrar esta barreira. É preciso
explicar no campo que todos os esforços do operário para ajudar o camponês fornecendo
à aldeia as máquinas agrícolas deixam de ter resultado enquanto não for estabelecido o
controlo operário sobre a produção organizada.» Foi neste espírito que a conferência
publicou um manifesto dirigido aos Camponeses.
Os operários de Petrogrado tinham criado entretanto nas fábricas comissões
especiais que colectavam metais, artigos de sucata e limalhas de ferro para as colocar à
disposição de um centro especial: do operário ao camponês. Os restos serviam para o
fabrico de muito simples instrumentos agrícolas e peças sobressalentes. Esta primeira
intervenção operária segundo um plano de produção, ainda pouco considerável pelo seu
volume, onde predominavam as intenções de agitação sobre os fins económicos,
deslumbrava, todavia, a perspectiva de um futuro próximo. Assustado pela intrusão dos

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bolcheviques no domínio sagrado da aldeia, o Comité executivo camponês tentou de
captar a nova iniciativa. Mas, no terreno da cidade, rivalizar com os bolcheviques estava
já acima das forças dos conciliadores cansados que, mesmo no campo, perdiam pé.
O eco da agitação dos bolcheviques «acordou a tal ponto os camponeses pobres -
escrevia Vorobiev, camponês da província de Tver - que se pode dizer nitidamente: se
Outubro não se produziu em Outubro, ele teria lugar em Novembro.» Esta característica
muito colorida da força política do bolchevismo não está de forma nenhuma em
contradição com o facto da fraqueza da sua organização. Foi somente através de tão
vivas desproporções que a revolução fez caminho. Foi precisamente por isso, diga-se de
passagem, que o seu movimento não se pode inserir nos quadros de uma democracia
formal. Para que a revolução agrária pudesse realizar-se, em Outubro ou em Novembro,
só restava ao campesinato nada mais que utilizar o tecido cada vez mais gasto do mesmo
partido socialista-revolucionário. Os seus elementos de esquerda agrupavam-se
apressados e em desordem sob a pressão do levantamento camponês, tomando por trás
os bolcheviques e rivalizavam com eles. No decorrer dos meses que seguiram, a
mudança política do campesinato produziu-se principalmente sob a bandeira remendada
dos socialistas-revolucionários de esquerda: esse partido efémero tornou-se uma forma
reflectida, uma forma instável do bolchevismo rural, uma ponte provisória entre a guerra
camponesa e a insurreição proletária.
A revolução agrária tinha necessidade dos seus próprios órgãos locais. Como se
apresentavam eles? Nas aldeias haviam organizações de diferentes tipos: organizações
do Estado como os comités executivos de cantão, comités agrários e os de
abastecimento; organizações sociais tails como os sovietes; organizações puramente
políticas, tais como os partidos; enfim órgãos de administração autónomos, representados
pelos zemstvos de cantão. Os sovietes dos camponeses ainda não se tinham
desenvolvido senão nos limites administrativos das províncias, parcialmente nos distritos;
existiam poucos sovietes de cantão. Os zemstvos de cantão eram dificilmente
assimilados. Em contra-partida, os comités agrários e os comités executivos, que tinham
sido concebidos como órgãos do Estado, tornavam-se, estranho que isso possa parecer à
primeira vista, órgãos da revolução camponesa.
O comité agrário principal compunha-se de funcionários, de proprietários, de
professores, de agrónomos diplomados, de políticos socialistas-revolucionários, aos quais
se misturavam camponeses duvidosos, era em suma um travão central para a revolução
agrária. Os Comités de província não deixavam de aplicar a política governamental. Os
comités de distrito oscilavam entre os camponeses e as autoridades. Em contra-partida,
os comités de cantão, eleitos pelos camponeses e trabalhadores do lugar, sob os olhos da
aldeia, tornavam-se os instrumentos do movimento agrário. Esta circunstância que os
membros dos comités pretendiam habitualmente pertencer aos socialistas-revolucionários
não mudava nada ao assunto: eles alinhavam-se sobre a cabana do mujique, mas não
acertavam com a mansão do nobre. Os camponeses apreciavam particularmente o
carácter público de seus comités agrários, vendo aí uma sorte de autorização para a
guerra civil.

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«Os camponeses diziam que fora do comité de cantão, eles não reconheciam
ninguém - declarou desde de Maio um dos chefes da milícia do distrito de Saransk - mas
todos os comités de distrito e das cidades trabalhavam para servir os proprietários de
terras.» Segundo o comissário de Nijni-Novgorod, «as tentativas faites por certos comité
de cantão para lutar contra o arbítrio dos camponeses nos seus actos se terminavam
quase sempre por fiascos e ocasionava a destituição de toda a equipa...» «Os comités
eram sempre - segundo Denissov, camponês da província de Pskov - do lado do
movimento de camponeses contra os proprietários, visto que seus eleito representavam a
parte mais revolucionária do campesinato e os soldados da frente.»
Nos comités de distrito e sobretudo nas capitais de província, era a intelliguentsia
dos funcionários que dirigia, esforçavam-se em manter as relações pacíficas com os
proprietários nobres. «Os camponeses viram - escreveu Iorkov, camponês da província de
Moscovo - que era sempre a mesma pele, mas voltada pelo avesso, o mesmo poder, mas
sob outro nome.» «Observou-se - escreve o comissário de Kursk - uma tendência... a
fazer novas eleições para os comités de distrito que aplicavam com intransigência as
decisões do governo provisório.» Todavia, era difícil para o camponês em alcançar o
comité de distrito: a ligação política das aldeias e dos cantões era assegurada pelos
socialistas-revolucionários, de forma que os camponeses eram obrigados em agir por
intermediário do partido cuja principal missão era meter de avesso a velha pele.
A frieza estupidificante à primeira vista do campesinato diante dos sovietes de Março
tinha na realidade causas profundas. Um soviete representa não uma organização
especial como um comité agrário, mas uma organização universal da revolução. Mas, no
domínio da política geral, o camponês não podia fazer um passo sem direcção. Toda a
questão era saber donde viria a direcção. Os sovietes camponeses de província e distrito
se constituíam sobre a iniciativa e, numa medida considerável, com os recursos da
cooperação, não como órgãos da revolução camponesa, mas como instrumentos de uma
tutela conservadora sobre o campesinato. A aldeia suportava sobre ela própria os sovietes
dos socialistas-revolucionários de direita como um escudo contra o poder. Mas, em casa,
ela preferia os comités agrários.
Para impedir a aldeia de se fechar no mesmo círculo «de interesses puramente
rurais», o governo apressava-se a criar zemstvos democráticos. Isso já devia forçar o
mujique a prevenir-se. Eram frequentemente obrigados a impor eleições. «Houve casos
de ilegalidade - relata o comissário de Penza - no seguimento as eleições foram
anuladas.» Na província de Minsk, os camponeses prenderam o presidente da comissão
eleitoral de cantão, o príncipe Droutsky-Kiogbestsky, acusando-o de ter falsificado as
listas: os mujiques tinham dificuldades em se entenderem com o príncipe sobre a solução
democrática de um desacordo secular. O comissário do distrito Bugulminsky relata: «As
eleições aos zemstvos de cantão no distrito não foram regulares... A composição dos
eleitos é exclusivamente camponesa, nota-se o afastamento dos intelectuais do lugar,
sobretudo dos proprietários de terras.» Sob este aspecto, os zemstovos não se
distinguiam nada dos comités. «Por consideração dos intelectuais e particularmente dos
proprietários de terras - escreve e lamenta-se, o comissário da província de Minsk - a
atitude da massa camponesa é negativa». Num jornal de Mohilev, datado do 23 de

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Setembro, pode ler-se: «O trabalho dos intelectuais nos campos comporta riscos se não
se promete em ajudar categóricamente a devolução imediata de terras aos camponeses.»
Aí onde um acordo, e mesmo um entendimento entre as principais classes se torna
impossível, o chão desliza para as instituições da democracia. O estado nado-morto dos
zemstvos de cantão fazia prever sem erro o afundamento da Assembleia constituinte.
«Entre campesinato daqui - declarava o comissário de Nijni-Novgorod - a convicção
fez-se que todas as leis civis perderam a força e que todas as relações de direito devem
ser agora resolvidas pelas organizações camponesas.» Dispondo da milícia no lugar, os
comités de cantão proclamavam leis locais, estabelecendo os preços do aluguel,
resolviam os salários, colocavam nos domínios dos gerentes, controlavam a terra, os
terrenos de pasto, os bosques, o materia, confiscavam as armas nas casas dos
proprietários, procediam a buscas e prisões. A voz dos séculos e a experiência nova da
revolução diziam igualmente ao mujique que a questão da terra era uma questão de força.
Para uma revolução agrária, era preciso ter os órgãos de uma ditadura camponesa. O
mujique não conhecia ainda essa palavra de origem latina. Mas o mujique sabia o que
queria. A «anarquia» que se queixavam os proprietários, os comissários liberais e os
políticos conciliadores, era na realidade a primeira etapa de uma ditadura revolucionária
nos cantões.
A necessidade em criar órgãos particulares, puramente camponeses, para a
revolução agrária, tinha sido apoiada por Lenine desde dos acontecimentos de 1905-
1906: «Os comités revolucionários camponeses - ele demonstrava no congresso do
partido em Estocolmo - dão a via única pela qual pode caminhar o movimento
camponês.» O mujique não lia Lenine. Mas, em contra-partida, Lenine lia bem no
pensamento do mujique.
A aldeia muda de atitude em relação dos sovietes somente próximo do outono,
quando os próprios sovietes modificam o seu curso político. Os sovietes bolchevistas e
socialistas-revolucionários de esquerda nas capitais de distrito ou de província não retêm
mais os camponeses - ao contrário, eles empurram-os para a frente. Se, nos primeiros
meses, a aldeia tinha procurado nos sovietes dos conciliadores um disfarce legal para
chegar logo ao conflito aberto com eles, agora ele começava a encontrar pela primeira
vez nos sovietes revolucionários uma verdadeira direcção. Camponeses da província de
Saratov escreviam em Setembro: «O poder deve passar em toda a Rússia para as
mãos... dos sovietes de deputados operários, camponeses e soldados. Será mais
seguro.» É somente próximo do outono que o campesinato começa a ligar-se o seu
próprio programa agrário à palavra de ordem do poder para os sovietes. Mas aqui ainda
ele não sabe quem dirigirá esses sovietes e como.
Os sarilhos agrários tinham na Rússia a sua grande tradição, o seu programa
simples mas claro, seus mártires e seus heróis em diversos lugares. A experiência
grandiosa de 1905 não passou sem deixar traços mesmo na aldeia. A isso é preciso
acrescentar a acção das seitas religiosas que uniam milhões de camponeses. Conheci -
escreve um autor bem informado - muitos camponeses que acolheram... A Revolução de
Outubro como a absoluta realização de suas esperanças religiosas.» De todos os

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levantamentos camponeses conhecidos na história, o movimento do campesinato russo
em 1917 foi sem dúvida o mais fecundado pelas ideias políticas. Se, todavia, ele se
mostra incapaz de criar uma direcção autónoma e de tomar o poder nas suas mãos, as
causas deviam-se à natureza orgânica de uma economia isolada, mesquinha e rotineira:
esgotando toda a seiva do mujique, esta economia não o indemnizava em lhe
assegurando a capacidade de generalizar.
A liberdade política do camponês significa, na prática, a liberdade de escolher entre
os diversos partidos das cidades. Mas essa escolha não se faz à priori. Pelo seu
levantamento, o campesinato levou os bolcheviques para o poder. Mas é somente após
ter conquistado o poder que os bolcheviques poderão conquistar o campesinato,
transformando a revolução agrária numa lei do Estado operário.
Um grupo de eruditos, sob a direcção de Iakovlev, estabeleceu uma classificação
extremamente preciosa de documentos que caracterizam a evolução do movimento
agrário de Fevereiro a Outubro. Adoptando como base a cifra 100 para exprimir o número
dos manifestantes desorganizados para cada mês, esses eruditos calcularam que os
conflitos «organizados» tinham subido em Abril a 33, em Junho a 86, em Julho a 120. Isso
foi o o momento de maior desenvolvimento das organizações socialistas-revolucionárias
no campo. Em Agosto, sobre 100 conflitos não organizados, só 62 foram organizados e,
em Outubro, um total de 14. Desse número, extremamente instrutivo mesmo se muito
convencional, Iakovlev deduziu o inesperado todavia: se, antes de Agosto, o movimento
tornou-se cada vez mais «organizado», ele tomou no outono, cada vez mais, o carácter
de uma «força elementar». Um outro pesquisador, Vernenitchev, chegou à mesma
conclusão: «A redução da percentagem do movimento organizado no período onde subiu
a corrente na véspera de Outubro testemunha a natureza elementar do movimento no
decurso desses meses. «Se opormos o elementar ao consciente, como a cegueira à vista
- e isso representa a única anti-tese científica - era preciso chegar à conclusão que o
estado de consciência do movimento camponês até Agosto subiu, mas logo começou a
cair, para desaparecer completamente no momento da insurreição de Outubro. É o que os
nossos eruditos não queriam evidentemente dizer. Se se pensar na questão, não é difícil
compreender que, por exemplo, as eleições rurais para a Assembleia constituinte, apesar
da sua aparente «organização», tinham um carácter infinitamente mais «elementar» - isto
é não ponderado, gregário, cego - que a marcha «não organizada» dos camponeses
contra os proprietários nobres, na qual cada um dos rurais sabia exactamente o que
queria.
No início do outono, o campesinato rompia não com a sua opinião consciente para
se lançar na força elementar, mas com a direcção dos conciliadores para chegar à guerra
civil. A decadência do estado de organização teve em suma um carácter superficial: as
organizações de conciliadores caíam; mas o que elas deixavam atrás delas ajudava a
partida para uma via nova que se efectuava sob a direcção imediata dos elementos mais
revolucionários: soldados, marinheiros, operários. Chegando a actos decisivos, os
camponeses convocavam frequentemente uma assembleia geral e mesmo cuidavam de
fazer assinar a sua decisão tomada por todos os habitantes da aldeia. «Durante o período
de outono do movimento camponês, por vezes devastador - escreve Chestakov, terceiro

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erudito - muitas vezes aparece sobre a cena a velha assembleia comunal (skhod) dos
camponeses. É pelo skod que o campesinato partilha os bens apreendidos, pelo skod que
ela leva a negociações com os proprietários e os mestres da propriedade, com os
comissários de distrito e diferentes pacificadores...»
Porquê desapareciam da cena os comités de cantão que conduziram directamente
os camponeses à guerra civil? Sobre isso, não temos indicações claramente
documentadas. Mas a explicação surge por ela própria. A revolução desgasta muito
rapidamente os seus órgãos e as suas armas. Já pelo facto que os comités agrários
dirigiam por medidas meio pacíficas, eles deviam encontrar-se pouco susceptíveis em
assaltar directamente. A causa geral é completada pelas causas particulares, mas que
não deixam por isso de ter menos peso. Comprometendo-se na via de uma guerra aberta
com os proprietários, os camponeses sabiam muito bem o que os ameaçava em caso de
derrota. Mais que um comité agrário, já sob Kerensky, tinha sido preso. Descentralizar as
responsabilidades tornava-se uma exigência absoluta da táctica. Para isso a forma mais
utilizável, era o mir (comuna rural). No mesmo sentido agia, sem dúvida, a habitual
desconfiança dos camponeses em relação uns aos outros: tratava-se agora de confiscar e
de partilhar os bens dos proprietários, cada um queria participar pessoalmente à
operação, não confiando a ninguém os seus direitos. É assim que a crescente gravação
da luta levava à eliminação temporária dos órgãos representativos da democracia
camponesa primitiva, sob os aspectos do skod e das sentenças do mir.
Grandes aberrações na definição do carácter do movimento camponês devem
parecer particularmente inesperadas sob a pluma dos eruditos bolchevistas. Mas não se
pode esquecer que se trata de bolcheviques de nova formação. A burocratização do
pensamento leva inevitavelmente a uma sobre-estimação das formas que o campesinato
dava de si próprio. O funcionário instruido, a seguir ao professor liberal, considera os
processos sociais do ponto de vista administrativo. Na qualidade de comissário do povo
para a Agricultura, Iakovlev manifestou mais tarde a mesma atitude sumária de burocrata
em relação ao campesinato, mas, já num domínio infinitamente mais largo e carregado de
responsabilidades, precisamente na aplicação da «colectivização generalizada». O
superficial na teoria se vinga terrivelmente quando se trata de uma prática de grande
envergadura!
Mas, antes os erros da colectivização generalizada, resta ainda treze anos. Por
enquanto, não se trata senão da expropriação de terras dos proprietários. Há cento e
trinta e quatro mil proprietários que tremem ainda sobre os seus oitenta milhões de acres.
Os mais ameaçados são os da cimeira, os trinta mil mestres da antiga Rússia que
possuem setenta milhões de acres, mais de dois mil acres em média por cabeça. Um
membro da nobreza, Boborykine, escreva a Rodzianko: «Sou proprietários e não posso
meter na cabeça que sou privado da minha terra, sobretudo com o objectivo o mais
inverossímil: por uma experiência das doctrinas socialistas». Mas a revolução tem
justamente por tarefa de realizar o que não entra na cabeça dos dirigentes.
Os proprietários mais perspicazes não podem, todavia, dispensar-se de ver que eles
não manterão as suas propriedades. Eles já não se esforçam mais em conservá-las: mais

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depressa eles se desembaraçam delas, melhor. A Assembleia constituinte parece-lhes
antes de tudo como um grande Tribunal de Contas, onde o Estado os indemnizará não
somente pela terra, mas também pelas suas tribulações.
Os camponeses proprietários aderiam a esse programa do lado esquerda. Eles
estavam bastante inclinados em acabar com a nobreza parasitária, mas temiam fazer
estremecer a concepção da própria propriedade da terra. O Estado é bastante rico -
declaravam eles no seu congresso — para pagar aos proprietários alguns doze biliões de
rublos. Na qualidade de «camponeses», eles contavam tirar proveito das condições
vantajosas da terra dos proprietários nobres que teria sido paga por conta do povo.
Os proprietários compreendiam que a importância das indemnizações era um valor
político que seria determinado pela relação de forças no momento de resolver as contas.
Até ao fim de Agosto, restava a esperança que a Assembleia constituinte, convocada à
maneira de Kornilov, faria passar a linha de reforma agrária entre Rodzianko e Miliokov.
A queda de Kornilov significava que as classes possuidoras tinham perdido o jogo.
No decorrer de Setembro e Outubro, os proprietários esperam a solução, como um
doente incurável espera a morte. Outono é a época da política dos mujiques. As colheitas
estão feitas, as ilusões dissipadas, a paciência perdida. É preciso acabar com isso! O
movimento transborda, estende-se a todas as regiões, apaga as particularidades locais,
arrasta as camadas da aldeia, barre todas as considerações de legalidade de de
prudência, torna-se ofensivo, exasperado, feroz, enraivecido, toma como arma o ferro e o
fogo, o revolver e a granada, queima e destrói as mansões, expulsa os proprietários,
limpa a terra, aqui e ali, rega de sangue.
Eles morrem, os ninhos de senhores cantados por Puchkine, por Turguenieve e por
Tolstoi. A velha Rússia evapora-se em fumo. A imprensa liberal junta as lamentações, os
gemidos, sobre as destruições de jardins à inglesa, quadros pintados na época da
servidão, bibliotecas patrimoniais, Panteões de Tambov, cavalos de corrida, velhas
gravuras, bois de raça. Os historiadores burgueses tentam lançar sobre os bolcheviques a
responsabilidade do «vandalismo» dos camponeses exercendo suas represálias contra a
«cultura dos nobres». Na realidade, o mujique russo acabava uma obra empreendida
muitos séculos antes da aparição dos bolcheviques. Ele preenchia a sua tarefa histórica
de progresso com os únicos meios que estavam à sua disposição: pela barbarie
revolucionária ele desenraizava a barbarie medieval. Aliás, nem ele próprio, nem os seus
avós nunca tinham conhecido a clemência ou a indulgência.
Quando os feudais ganharam às revoltas camponesas, quatro séculos e meio antes
da libertação dos camponeses franceses, um velho monje escrevia na sua crónica: «Eles
fizeram tanto mal ao país que não havia necessidade da chegada dos ingleses para
devastar o reino; os ingleses não teriam podido fazer o que fizeram os nobres da França.»
Só a burguesia, em Maio de 1871, ultrapassou e atrocidades a nobreza francesa. Os
camponeses russos, graças à direcção dos operários, os operários russos, graças ao
apoio dos camponeses, escaparam a esta dupla lição dos defensores da cultura e da
humanidade.

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As relações recíprocas entre as classes essenciais da Rússia encontraram sua
reprodução nos campos. Tal como os operários e os soldados se tinham batido contra a
monarquia, a despeito dos planos da burguesia, os camponeses pobres foram os mais
ousados a levantarem-se contra os proprietários, sem dar ouvidos aos avisos do kulaque.
Tal como os conciliadores acreditavam que na revolução não se instalaria senão a partir
do momento onde Miliokov a reconheceria, o camponês de condição média, olhando à
direita e à esquerda, imaginava-se que a assinatura do kulaque legalizava as
confiscações. Tal como enfim a burguesia hostil à revolução não hesitou a atribuir o poder,
os kulaques que se tinham oposto às devastações, não renunciaram a tirar proveito. O
poder entre as mãos do burguês, tal como os bens do proprietário entre as mãos do
kulaque, não foi retido muito tempo: nos dois caos, em virtude de causas análogas.
A potência da revolução democrático-agrária, essencialmente burguesa, exprimiu-se
pelo feito que ela ultrapassou por um certo tempo os antagonismos de classe na aldeia: o
operário agrícola pilhava o proprietário, ajudado nisso pelo kulaque. Os séculos XVII,
XVIII e XIX da história russa tinham subido sobre os ombros do século XX e tinham-lhe
feito tocar terra. A fraqueza da revolução burguesa atrasada se traduziu nisto que a guerra
camponesa não levava os revolucionários burgueses para a frente, mas, pelo contrário,
os enviou definitivamente para o campo da reacção: Tseretelli, prisioneiro ainda na
véspera, protegia as terras dos proprietários nobres contra a anarquia! Rejeitada pela
burguesia, a revolução camponesa juntava-se ao proletariado industrial. Por aí mesmo, o
século XX não somente se libertava dos séculos precedentes que se tinham abatido
sobre ele, mas, sobre os seus ombros, levantava-se a uma nova altura histórica. Para que
os camponês pudesse limpar a terra e retirar as barreiras, o operário devia colocar-se à
cabeça do Estado: tal é a mais simples formula da Revolução de Outubro.

591
Saída do parlamento e a luta pelo congresso dos sovietes
Cada dia de guerra fazia tremer a frente, enfraquecia o governo, agravava a situação
internacional do país. No princípio de Outubro, a frota alemã, marítima e aérea, opera
activamente no golfo da Finlândia. Os marinheiros do Báltico combateram corajosamente,
esforçando-se de cobrir o caminho de Petrogrado. Mas eles compreendiam melhor e mais
intimamente que todos os outros contingentes da frente a profunda contradição do seu
estado, a vanguarda da revolução e participantes forçados da guerra imperialista e, pela
rádio dos seus barcos, lançaram um apelo à ajuda revolucionária internacional a todos os
cantos do horizonte. «Atacada pelas forças alemãs superiores, a nossa frota morre uma
luta desigual. Nem um dos nossos barcos esquivará o combate. A frota caluniada,
estigmatizada, cumprirá o seu dever... não sobre a ordem de um miserável Bonaparte
russo qualquer reinando graças à longa paciência da revolução... nem em nome dos
tratados dos nossos dirigentes com os aliados que passam as algemas nas mãos da
Liberdade russa. Não, mas em nome da defesa dos focos da revolução, Petrogrado. A
hora onde as águas do Báltico são vermelhas de sangue do nossos irmãos, quando as
águas cobrem os seus cadáveres, nós levantamos a voz: Oprimidos do mundo inteiro,
levantai o estandarte da revolta!».
Sobre as batalhas e as vítimas, essas palavras não eram frases. A esquadra tinha
perdido o navio Slava e tinha batido em retirada após o combate. Os alemãs tinham-se
apoderado do arquipélago de Monsund. Uma nova página sombria tinha-se aberto no livro
da guerra. O governo decidiu utilizar esse novo revés para deslocar a capital: o antigo
plano voltava à superficie em cada ocorrência favorável. Os círculos dirigentes não tinham
qualquer simpatia por Moscovo, mas detestavam Petrogrado. A reacção monárquica, o
liberalismo, a democracia esforçava-se, uns após outros, em degradar a capital, obrigá-la
a meter-se de joelhos, a esmagá-la. Os patriotas mais extremos odiavam agora
Petrogrado com uma aversão muito mais ardente que eles não tinham por Berlim.
A questão da evacuação foi examinada com extrema urgência. Para a transferência
do governo com o pré-parlamento, foram dadas duas semanas. Foi igualmente decidido
evacuar no mais curto prazo as fábricas que trabalhavam para a defesa nacional. O
Comité executivo central, como «instituição privada», deve ele próprio ocupar-se do seu
caso. Os cadetes instigadores da evacuação compreendiam que a simples transferência
do governo não resolvia a questão. Mas eles contavam assim liquidar o centro da
infecção revolucionária pela fome, pela via de extinção, por esgotamento. O blocus
interior de Petrogrado já estava em pleno funcionamento. Desencomendavam-se os
trabalhos nas fábricas, os abastecimentos de combustível foram reduzidos ao quarto, o
ministério dos Abastecimentos impediam as expedições de gado para a capital, pelos
canais Maria os carregamentos pararam.
O belicoso Rodzianko, presidente da Duma de Estado que o governo tinha-se
decidido, enfim, a dissolver no princípio de Outubro, se pronunciava com toda a franqueza
no jornal liberal moscovita Outra Rossi (A Manhã russa) sobre o perigo que a guerra fazia
pairar sobre a capital. «O raio que o parta, Petrogrado, é isso que eu penso... Teme-se

592
que em Piter as instituições morrem porque elas não trouxeram à Rússia senão males. «É
verdade que, com a tomada de Petrogrado, a frota do Báltico deve morrer. Mas não
devemos de forma nenhuma nos entristecer: Há navios absolutamente pervertidos.»
Graças a isso o gentil-homem não tinha o hábito de estar calado, o povo sabia quais eram
os pensamentos mais íntimos da Rússia aristocrática e burguesa.
O encarregado de negócios da Rússia em Londres comunicou que o Estado-maior
naval da Grande-Bretanha, apesar de todos os pedidos insistentes, não considerava
possível aliviar a situação do seu aliado no mar Báltico. Os bolcheviques não eram os
únicos a interpretar esta resposta no sentido que os Aliados, se associando às esferas
superiores dos patriotas da Rússia, não esperavam que as vantagens para a causa
comum de uma ofensiva sobre Petrogrado. Os operários e os soldados não duvidavam
sobretudo após as confissões de Rodzianko, que o governo se preparasse
conscientemente a lhes entregar à férula de Lundendorff e de Hoffmann.
No 6 de Outubro, a Secção dos soldados adoptou, com uma unanimidade
desconhecida até aí, a resolução de Trotsky: «Se o governo provisório é incapaz de
defender Petrogrado, ele tem a obrigação de assinar a paz, ou então ceder o lugar a outro
governo.» Os operários pronunciavam-se de uma maneira não menos intransigente. Eles
consideravam Petrogrado uma cidadela, eles ligavam a isso as suas esperanças
revolucionárias, não queriam render Petrogrado. Assustado pelos perigos da guerra, pela
evacuação, pela indignação dos soldados e operários, pela sobreexcitação de todos os
habitantes, os conciliadores, pelo seu lado, deram o sinal de alarme: não se pode
abandonar Petrogrado aos caprichos da sorte. Tendo constatado que a tentativa de
evacuação encontrava oposição de todos os lados, o governo começou a bater em
retirada: ele estava preocupado, pretensamente, não tanto pela sua segurança particular
mas em escolher um lugar para a futura Assembleia constituinte. Mas não soube manter
essa posição. Em menos de oito dias, o governo viu-se forçado em declarar que não
somente ele tinha a intenção de continuar no palácio de Inverno, mas que projectava
como no passado de convocar a Assembleia constituinte para o palácio Tauride. A
situação militar e política não mudava nada a esta declaração. Mas ela manifestava de
novo a força política de Petrogrado, que considerava como a sua missão de terminar com
o governo de Kerensky e não o deixava sair do seu reduto. Só os bolcheviques ousaram
então transferir a capital para Moscovo. Eles resolveram o assunto sem dificuldades,
porque, para eles, a tarefa era efectivamente estratégica: não podia haver aí motivos
políticos determinando a fuga de Petrogrado.
A declaração repetida sobre a defesa da capital foi feita pelo governo segundo as
exigências da maioria conciliadora da comissão do Conselho da República da Rússia, isto
é do pré-parlamento. Esta extravagante instituição nasceu enfim. Plekhanov, que gostava
de gracejar, chamou com insolência o Conselho impotente e efémero da República «uma
pequena isba montada sobre patas de galinha». Do ponto de vista político, esta definição
não deixava de ser justa. É preciso somente acrescentar que como «pequena isba», o
pré-parlamento tinha muito boa aparência: tinham-lhe reservado o magnífico palácio
Maria que tinha serviço antes de asilo ao Conselho de Estado. O contraste entre o
luxuoso palácio e o Instituto Smolny, sujo e impregnado de odores dos soldados,

593
impressionou Sukhanov: «No meio de todas essas maravilhas – confessa – tinham
vontade de repousar, de esquecer os trabalhos e a luta, a fome e a guerra, o desespero e
a anarquia, o país e a revolução.» Mas para o repouso e o esquecimento, faltava pouco
tempo.
O que se chama a maioria «democrática» do pré-parlamento compunha-se de 308
pessoas: 120 socialistas-revolucionários (desse número cerca de 20 socialistas-
revolucionários de esquerda), 60 mencheviques de diferentes nuanças, 66 bolcheviques;
além dos cooperantes, dos delegados do Comité executivo dos camponeses, etc. As
classes possuidoras tinham obtido 156 lugares, a metade ocupada por cadetes. Com os
cooperantes, os cossacos e os membros bastante conservadores do Comité executivo
dos camponeses, a ala direita, sobre um bom número de questões, aproximava-se da
maioria. A repartição dos lugares na pequena isba confortável, montada sobre as patas de
galinha, encontrava-se assim em contradição absoluta e gritante com todas as
manifestações da vontade da cidade e da aldeia. Em contra-partida, contrariamente às
representações incolores soviéticas, o palácio Maria tinha juntado no seu interior a «flor
da nação». Dado que os membros do pré-parlamento não dependiam das vicissitudes de
uma concorrência eleitoral, as influências locais e das preferência provinciais, cada grupo
social, cada partido enviou os seus líderes mais conhecidos. A composição do pré-
parlamento, segundo o testemunho de Sukhanov, era «excepcionalmente brilhante».
Quando o pré-parlamento se reuniu pela primeira vez, muitos cépticos, segundo Miliokov,
sentiram o coração aliviado: «Será bom se a Assembleia constituinte não é assim tão má
como isso.» «A flor da nação» olhou-se com satisfação nos espelhos do palácio, não
notando que ela era uma flor estéril.
Abrindo, no 7 de Outubro, o Conselho da República, Kerensky não deixou escapar a
ocasião de lembrar que se o governo detinha «integralmente o poder», todavia ele estava
pronto a escutar «todas as críticas válidas»; ainda se governo absoluto, restava-lhe ainda
um poder esclarecido. No gabinete de cinco membros, presidido por Avksentiev, um lugar
estava reservado aos bolcheviques: ele devia continuar desocupado. Os realizadores da
comédia miserável e triste sentiam-se confusos. Todo o interesse de uma abertura triste
num dia triste e chuvoso concentrava-se antecipadamente sobre a manifestação
esperada dos bolcheviques. Nos corredores do palácio Maria propagava-se, segundo
Sukhanov, «um rumor sensacional: Trotsky tinha vencido com a maioria de dois ou três
votos... e os bolcheviques iam sair logo do pré-parlamento». Na realidade a decisão de
sair de forma demonstrativa do palácio Maria tinha sido tomada no dia 5, na sessão da
fracção bolchevique por todos os votos contra só um: o movimento para a esquerda era
de tal forma grande nas duas semanas decorridas! Só, Kamenev continuou fiel à sua
primeira posição, ou mais exactamente atrevia-se a defendê-la abertamente. Numa
declaração especial dirigida ao Comité central, Kamenev caracterizava sem subterfugios
o curso adoptado como «muito perigoso para o partido». As intenções incertas dos
bolcheviques provocava uma certa preocupação no pré-parlamento: havia medo, na
verdade, não da queda do regime, mas de um verdadeiro «escândalo» diante dos
diplomatas aliados que a maioria acabava justamente de saudar por uma salva de
aplausos patrióticos. Sukhanov conta como se destaca para os bolcheviques uma

594
personalidade oficial – o próprio Avksentiev – para lhe colocar uma questão preliminar: o
que ia se passar? «Uma bagatela – respondeu Trotsky – uma bagatela, um ligeiro tiro de
revólver.»
Após abertura da sessão, foi acordado a Trotsky, segundo o regulamento herdado da
Duma de Estado, dez minutos para fazer uma declaração de urgência em nome da
fracção bolchevique. Na sala estabeleceu-se um silêncio absoluto. A declaração
começava por demonstrar que o governo, por agora, era tão pouco responsável que antes
da Conferência democrática, convocada diz-se para controlar Kerensky, e que os
representantes da classes possuidoras tinham entrado no Conselho provisório num
número tal que eles não tinham certamente o direito. Se a burguesia se preparava
eficazmente para a Assembleia constituinte nas seis semanas, os líderes não tinham
razão de defender agora com tal encarniçadamente a irresponsabilidade do poder,
mesmo diante de uma representação alterada.» Tudo reside em suma nisto que as
classes burguesas deram-se como objectivo de explodir a Assembleia constituinte.» A ala
direita protesta energicamente. Não se afastando do texto da declaração, o orador ataca a
política industrial, agrária e alimentar do governo: não se podia tomar outra direcção
mesmo se tivessem como objectivo de levar as massas na via da insurreição. «A ideia de
uma rendição da capital revolucionária às mãos das tropas alemãs... é considerada como
um elo natural de uma política geral que deve facilitar... a conspiração contra-
revolucionária.» O protesto torna-se uma tempestade. Gritos sobre Berlim, o ouro alemão,
o vagão blindado, e, sobre esse ambiente de fundo, como um caco de garrafa na lama –
injúrias de vagabundos. Nunca nada de igual se tinha produzido durante os debates mais
apaixonados no sórdido Instituto Smolny, sujo, cheio de cuspe dos soldados. «Bastava-
nos cair na boa sociedade do palácio Maria – escreve Sukhanov – para reencontrar
imediatamente a atmosfera de cabaret que reinava na Duma censitária do Império.»
Abrindo caminho através das explosões de ódio que alternam com os movimentos
de calma, o orador termina assim: «Nós, fracção dos bolcheviques, declaramos: com esse
governo que atraiciona o povo e com esse Conselho defeituoso diante da contra-
revolução, não temos nada em comum... Em deixando o Conselho provisório, apelamos à
vigilância e à coragem os operários, os soldados e os camponeses de toda a Rússia.
Petrogrado está em perigo! A revolução está em perigo! O povo está em perigo!...
Dirigimo-nos ao povo. Todo o poder aos sovietes!»
O orador desce da tribuna. Várias dezenas de bolcheviques deixam a sala,
acompanhados de injúrias. Após minutos de ansiedade a maioria está pronta a largar um
suspiro de alívio. Só os bolcheviques saem – a flor da nação continua no seu posto. Só o
flanco esquerdo dos conciliadores que se dobraram ao golpe dirigido, ao que parece, não
contra ele. «Nós, que estamos mais perto dos bolcheviques – confessa Sukhanov –
ficámos postrados diante de tudo que se passou.» Os puros cavaleiros da palavra
sentiram que o tempo das frases tinha passado.
O ministro dos Assuntos exteriores Terechtchenko, num telegrama secreto aos
embaixadores russos, informava-os da abertura do pré-parlamento: «A primeira sessão foi
muito neutra, excepção feita de um escândalo suscitado pelos bolcheviques.» A ruptura

595
histórica do proletariado com o mecanismo do Estado burguês era considerado por essa
gente como simples «escândalo». À imprensa burguesa não lhe faltou ocasião em
estimular o governo ao lhe assinalar a audácia dos bolcheviques: senhores ministros não
sairão o país da anarquia senão depois de ter conquistado resolutamente e com vontade
para a acção como se encontra em Trotsky». Como se tratava da resolução e da vontade
de indivíduos, e não do destino histórico das classes. E como se a selecção dos homens
e dos caracteres tivesse lugar independentemente das tarefas históricas. «Eles falavam e
agiam – escreve Miliokov sobre a saída dos bolcheviques do pré-parlamento – como
homens que sentem por detrás deles uma força, que sabem que o futuro lhes pertence».
A perca das ilhas Monsud, o perigo crescente para Petrogrado e a saída dos
bolcheviques do pré-parlamento forçaram os conciliadores a se questionarem qual atitude
tomar em relação à guerra. Após três dias de debates, com a participação dos ministros
da Guerra e da Marinha, os comissários e os delegados das organizações do exército, o
Comité executivo central encontrou enfim uma solução de saída: «Insistir sobre a
participação dos representantes da democracia russa na conferência dos Aliados em
Paris. «Após ter trabalhado bastante, os representantes designaram Skobelev. Uma
instrução detalhada foi elaborada: a paz sem anexações nem contribuições, a
neutralidade dos estreitos, assim como os canais do Suez e de Panamá – as perspectivas
geográficas dos conciliadores eram maiores que suas perspectivas políticas – a abolição
da diplomacia secreta, o desarmamento progressivo. O Comité executivo centra explicava
que a participação do seu delegado às conferências de Paris «teria por objectivo de
exercer a pressão sobre os Aliados». A pressão de Skobelev sobre a França, a Grande
Bretanha e os Estados-Unidos! Um jornal cadete pôs uma questão cáustica: que fará
Skobelev se os Aliados afastassem as suas condições sem cerimónia?» Ameaçaria-os
com o lançamento de um novo apelo aos povos do mundo inteiro?» Infelizmente! Os
conciliadores eram há já bastante tempo incomodados pelo seu próprio apelo de outrora.
Preparando-se para impor aos Estados-Unidos a neutralização do canal de Panamá,
o Comité executivo central estava na realidade incapaz de pressionar o palácio de
Inverno. A 12 de Outubro, Kerensky enviou a Lloyd George uma carta cheia de
reprimendas, de queixas tristes e de ardentes promessas. A frente encontra-se «numa
situação melhor do que na primavera passada». Bem entendido, a propaganda derrotista
– o primeiro-ministro da Rússia apresentou queixa diante do primeiro-ministro da Grande-
Bretanha contra os bolcheviques russos – impediu de realizar todas as tarefas que se
tinham dado. Mas não podia tratar-se de paz. O governo só conhece uma questão:
«Como continuar a guerra?» Bem entendido, contra o enrequecimento do seu patriotismo,
Kerensky pedia apoios financeiros.
Livre dos bolcheviques, o pré-parlamento também não perdia tempo: no dia 19,
abriram-se os debates sobre as capacidades combativas do exército. O colóquio que
preencheu três sessões fastidiosas desenvolveu-se sobre um esquema invariável. É
preciso convencer o exército que ele combate pela paz e a democracia, dizia-se à
esquerda. Impossível de convencer, é preciso obrigar, respondiam à direita. Não há meios
de obrigar: para obrigar é preciso primeiro persuadir, os bolcheviques são mais fortes que

596
vocês, respondiam os cadetes. Dos dois lados tinham razão. Mas o homem que se afoga
tem razão também quando grita antes de se afundar.
No dia 18 veio a hora de uma decisão que não podia mudar nada à natureza das
coisas. A formula dos socialistas-revolucionários reuniu 95 votos contra 127 e 50
abstenções. A formula das direitas reuniu 135 votos contra 139. É espantoso, não há
maioria! Na sala, segundo os relatos dos jornais, «movimentos diversos e perturbação».
Apesar da unidade de perspectivas, a flor da nação viu-se incapaz de votar uma
resolução platónica sobre a questão mais grave da vida nacional. Não era um acidente:
isso repetia-se, de dia a dia, sobre todas as questões, nas comissões como nas
assembleias. Os fragmentos de opinião não se adicionavam. Todos os grupos viviam
nuanças de um pensamento político difíceis de capturar: o próprio pensamento estava
ausente. Talvez tivesse abalado com os bolcheviques?... O impasse do pré-parlamento
era o impasse do regime.
Era difícil modificar as convicções do exército, mas era impossível forçá-la. Sobre um
novo apelo estridente de Kerensky dirigido à frota do Báltico, que tinha lutado e com
vítimas, o congresso dos marinheiros dirigiu-se aos Comité executivo central, pedindo-lhe
que elimine das fileiras do governo provisório «um personagem que desonrava e
arruinava pela sua chantagem política desavergonhada a grande revolução». Kerensky
ainda não tinha ouvido tal linguagem, mesmo dos marinheiros. O comité regional do
exército, da frota, e os operários russo em Finlândia, agiam como um poder, embargaram
sobre os cargamentos governamentais. Kerensky ameaçou prender os comissários dos
sovietes. A resposta dizia: «O comité regional aceita com calma o desafio do governo
provisório.» Kerensky calou-se. No fundo, a frota do Báltico já se encontrava em estado
insurreccional.
Na terra firme, na frente, o assunto ainda não tinha sido levado tão longe, mas
desenvolvia-se no mesmo sentido. A situação dos abastecimentos no decorrer do mês de
Outubro piorava rapidamente. O comandante em chefe da frente Norte declarava que a
penúria «era a causa principal da decomposição moral do exército». Enquanto que, sobre
a frente, os dirigentes conciliadores continuavam a afirmar – na verdade já por detrás das
costas dos soldados – que as capacidades combativas do exército se restabeleciam, em
baixo um regimento após o outro reclamava a publicação dos tratados secretos e uma
proposição de paz imediata. Jdanov, comissário da frente Oeste, escrevia nos primeiros
dias de Outubro: «O estado de espírito é extremamente ansioso por cauda da
aproximação dos frios e da alimentação que é cada vez pior... Os bolcheviques gozam de
um notável sucesso.»
As instituições governamentais sobre a frente estavam suspensas. O comissários do
segundo exército relata que os tribunais militares não podem agir, dado que os soldados
citados como testemunhos recusam em comparecer. «Os relatórios do comando e dos
soldados agravaram-se. Considera-se que os oficiais como os culpados da continuação
da guerra.» A hostilidade dos soldados em relação ao governo e ao comando tinham-se
transmitido à muito tempo aos comités do exército, que não se renovaram desde do
princípio da revolução. Passando por cima das suas cabeças, os regimentos enviavam

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delegados a Petrogrado, ao Soviete, queixando-se da situação intolerável nas trincheiras,
sem pão, sem equipamento, sem fé na guerra. Na frente romena, onde os bolcheviques
são muito fracos, regimentos inteiros recusam disparar. «Em duas ou três semanas, os
próprios soldados declararão o armistício e baixarão as armas.» Os delegados de uma
das divisões comunicam: «Os soldados decidiram que quando surgirem as primeiras
neves, eles voltarão para casa.» Uma delegação do 33º corpo do exército ameaçava
assim a assembleia do Soviete de Petrogrado: se não houver verdadeiramente luta pela
paz, «os próprios soldados tomarão o poder e encontrarão um armistício». O comissário
do segundo exército relata so ministro da Guerra: «Fala-se muito em abandonar as
trincheiras quando vierem os frios.»
A confraternização que tinha sido quase interrompida após as Jornadas de Julho
recomeçaram e estenderam-se rápidamente. De novo, após um período de calma,
multiplicara-se não somente as prisões de oficiais pelos soldaos, mas os assassinatos
dos chefes mais odiados. Essas represálias aconteciam quase abertamente, sob os olhos
dos soldados. Ninguém intervinha: a maioria não queria, uma pequena maioria não
ousava. O assassino tinha sempre tempo de se esconder, como se ele se tivesse afogado
sem deixar traços na massa dos soldados. Um dos generais escrevia: «Nós agarramo-
nos convulsivamente a qualquer coisa, nós invocamos um milagre, mas a maioria
compreende que já não há salvação.»
Combinando a perfídia com a inépcia, os jornais patriotas continuavam a escrever
sobre o prolongamento da guerra, da ofensiva e da vitória. Os generais acenavam a
cabeça, davam o tom de acompanhamento de uma maneira «Só os verdadeiros loucos é
que podem sonhar com a ofensiva actual», escrevia, no dia 7, o barão Budberg,
comandante do corpo que se encontrava perto de Dvinsk. Um dia depois, ele foi obrigado
a notar no seu próprio diário: «Estou consternado e aturdido de receber directiva sobre
uma ofensiva para o dia 20 de Outubro o mais tardar.» Os estados-maiores que tinham
perdido a fé em tudo e baixavam os braços, elaboravam planos de novas operações.
Havia grande número de generais que só viam a salvação na renovação da experiência
de Kornilov com Riga sobre um plano grandioso: arrastar o exército na batalha e tentar
fazer cair a derrota sobre a cabeça da revolução.
Sobre iniciativa do ministro da Guerra, Verkhovsky, foi decidido disponibilizar na
reserva homens das velhas classes. As vias férreas partiam-se sob o peso dos soldados
que regressavam. Nos vagões sobrecarregados, as molas partiam-se, os soalhos
abatiam-se. Os estado de espírito dos que continuavam na frente não era melhor. «As
trincheiras desfazem-se – escreve Budberg – as passagens de comunicação abatem-se e
se fecham; por todo o lado lixo e excrementos... Os soldados recusam categóricamente
limpar as trincheiras... Terrível pensar ao que tudo isso levará quando vier a primavera e
quando tudo começar a apodrecer e a se decompor.» No seu estado de passividade
furiosa, os soldados recusariam todos mesmo as injecções profilácticas: isso torna-se
também uma forma de luta contra a guerra.
Após inúteis tentativas para levantar a moral combativa do exército reduzindo os
efectivos, Verkhovsky chegou repentinamente à conclusão que o país não podia ser salvo

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senão pela paz. Numa conferência particular com os líderes cadetes que o jovem e
ingénuo ministro esperava trazer para o seu lado, Verkhovsky descreveu o quadro de
desespero material e moral do exército: «Todas as tentativas para continuar a guerra só
se aproximam da catástrofe.» Os cadetes não podiam compreender, mas, diante do
silêncio dos outros, Miliokov levantava com desprezo os ombros: «dignidade da Rússia»,
«fidelidade aos Aliados»... Sem acreditar uma só palavra, o líder da burguesia esforçava-
se obstinadamente a enterrar a revolução sob as ruínas e cadáveres da guerra.
Verkhovsky mostrou audácia política: sem que o governo soubesse, ele fez, no dia 20, à
comissão do pré-parlamento, uma declaração sobre a necessidade de concluir
imediatamente a paz, independentemente do consentimento ou do não consentimento
dos Aliados. Contra ele insurgiram-se furiosamente todos os que, nas entrevistas
particulares, estavam de acordo com ele a imprensa patriótica escrevia que o ministro da
Guerra «tinha saltado para a traseira do carro do camarada Trotsky». Bortsev fazia alusão
ao ouro alemão. Verkhovsky foi despedido. Frente a frente, os patriotas repetiam: no
fundo ele tem razão. Budberg, no seu diário, mostrava-se prudente: «Do ponto de vista da
fidelidade à palavra dada – escrevia – a proposição de Verkhovsky é perfídia, mas, a
única que dá esperança de salvação.» De passagem, o barão confessava o ciúme que
ele tinha dos generais alemãs aos quais «a sorte dava a felicidade de vencer». Ele não
tinha previsto que brevemente o tempo dos revés viria também para os generais alemãs.
Essa gente em suma nada tinha previsto, mesmo os mais inteligentes deles. Os
bolcheviques tinham muito previsto e era a sua força.
A sorte do pré-parlamento fazia saltar aos olhos do povo os últimos pontos que
ligava ainda o partido da insurreição à sociedade oficial. Com uma nova energia – quando
o objectivo se aproxima, as forças são duplas – os bolcheviques agitaram de forma que
os adversários chamavam de demagogia porque ela trazia à praça pública o que eles
escondiam nos gabinetes ministeriais e nos escritórios. A força persuasora desta
infatigável propaganda provinha do que os bolcheviques compreendiam a marcha da
evolução, aí submetendo a sua política, não temendo as massas, tinha uma fé
inquebrável na vitória. O povo não se cansava de ouvi-los. As massas sentiam a
necessidade de se manterem unidas, cada um queria controlar-se a si próprio a través
dos outros, e todos, de um espírito atentivo e tenso, procuravam ver como um só e
mesmo pensamento se desenvolvia na sua consciência com as suas diversas nuanças e
características. Multidões sem conta mantinham-se nos circos e outros grandes edifícios
onde os bolcheviques mais populares, trazendo as últimas deduções e os últimos apelos.
O número de agitadores diminuía bastante lá para Outubro. Antes de tudo faltava
Lenine como agitador e, ainda mais, como inspirador directo e diário. Faltavam as suas
simples e profundas generalizações que mergulhavam solidamente na consciência das
massas, dos sues vivos impulsos tomados pelo povo e enviados a Este. Faltava um
agitador de primeira ordem, Zinoviev: perseguido e escondendo-se, como acusado no
«levantamento» de Julho, ele tinha-se voltado resolutamente contra a insurreição de
Outubro, e, mesmo por aí, todo o período crítico, tinha desaparecido do campo de acção.
Kamenev, propagandista insubstituível, instrutor experiente pela política do partido,
condenava a direcção tomada em direcção à insurreição, não acreditando na vitória,

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vendo diante dele uma catástrofe e retirou-se, triste, no esquecimento. Sverdlov, mais
organizador por natureza do que agitador, falava muitas vezes nas reuniões de massas, e
a sua voz de baixo, potente, incansável, propagava a certeza. Estaline não era nem
agitador nem orador. Tinha figurado mais de uma vez como relator nas conferências do
partido. Mas tinha-se mostrado uma só vez nas assembleias de massas da revolução?
Nos documentos e nas memórias não ficou rasto disso.
Uma viva agitação era desenvolvida por Volodarsky, Lachevitc, Kollontai,
Tchoudnovsky. Atrás deles vinham dezenas de agitadores de calibre menor. Com um
interesse e uma simpatia à qual se juntava, entre os mais educados, a indulgência,
escutavam Lunatcharsky, orador experiente que sabia apresentar convenientemente um
facto, uma generalização, e pathos, uma piada, mas que não pretendia conduzir ninguém:
ele próprio tinha necessidade de ser conduzido. À medida que nos aproximávamos da
insurreição, Lunatcharsky empalidecia rapidamente.
Sokhanov conta isto sobre o presidente do Soviete de Petrogrado (Trotsky): «Saía
do trabalho no estado-maior revolucionário e voava da fábrica de Obokhovsky à fábrica
Trubotchny, da fábrica Potilov à fábrica Báltico aos quartéis, e, parecia, falava
simultaneamente em todos os lugares. Ele era conhecido pessoalmente e era escutado
por cada operário e soldado de Petrogrado. Sua influência, nas massas, e no estado-
maior, era enorme. Era a figura central nesses dias e o herói principal dessa página
notável da história.»
Mas, incomparavelmente mais eficaz neste último período antes da insurreição era a
agitação molecular que levava os anónimos, operários, marinheiros, soldados,
conquistando um após outro simpatias, destruindo as últimas dúvidas, vencendo as
últimas hesitações. Meses de vida política febril tinham criado numerosos quadros de
base, tinham educado centenas de milhares de autodidactas que se habituaram a
observar a política de baixo e que, consequentemente, apreciavam os factos e as gentes
com justeza nem sempre acessíveis aos oradores do genero académico. Em primeiro
lugar estavam os operários de Petrogrado, proletários hereditários, que tinham destacado
um efectivo de agitadores e de organizadores de uma qualidade revolucionária
excepcional, de uma grande cultura política, independentes de pensamento, na palavra,
na acção. Torneiros, serralheiros, ferreiros, instrutores das corporações e das fábricas
tinham já à volta deles as suas escolas, os seus alunos, futuros construtores da República
dos sovietes. Os marinheiros do Báltico, os mais próximos companheiros de armas dos
operários de Petrogrado, provenientes em boa parte destes, enviaram brigadas de
agitadores que conquistariam com muita luta os regimentos atrasados, as capitais de
distrito, os cantões mujiques. A formula generalizadora lançada ao Circo Moderno pelos
líderes revolucionários tomavam forma e corpo em centenas de cabeças pensantes e
abanavam todo o país.
Das províncias bálticas, da Polónia e da Lituânia, milhares de operários e de
soldados revolucionários foram evacuados, os exércitos russos batendo em retirada, com
as empresas industriais, ou individualmente: e todos eram agitadores contra a guerra e os
seus responsáveis. Os bolcheviques letões, arrancados ao chão natal e inteiramente

600
colocados desde então no terreno da revolução, convencidos, obstinados, decisivos,
levavam dia após dia um trabalho de sapa em todas as partes do país. Caras de traços
duros, com acento rouco e, em russo, frases muitas vezes incorrectas davam uma
impressão particular aos seus indomáveis apelos à insurreição.
A massa já não tolerava mais no seu meio os hesitantes que duvidavam, os neutros.
Eles esforçavam-se por se apoderar de todos, de os atrair, de os convencer, de os
conquistar. As fábricas com os regimentos enviavam delegados à frente. As trincheiras
ligavam-se aos operários e ao camponeses da frente-retaguarda mais próxima. Nas
cidades desta zona tinham lugar numerosos comícios, conciliábulos, conferências, nas
quais os soldados e marinheiros combinavam a sua acção com a dos operários e dos
camponeses: uma região atrasada próxima da frente, a Rússia Branca, foi assim
conquistada pelo bolchevismo.
Lá onde a direcção locale do partido era hesitante, continuava na expectativa, como,
por exemplo, em Kiev, em Voroneje e noutros lugares, as massas caíam frequentemente
na passividade. Para justificar a sua política, os dirigentes alegavam o enfraquecimento
da opinião que eles próprios tinham provocado. Em contra-partida: «O mais audacioso e o
mais ousado era o apelo à insurreição – escreveu Povoljsky, um dos agitadores de Kazan
– mais a massa dos soldados se mostrava confiante e ligados ao orador.»
As fábricas e os regimentos de Petrogrado e de Moscovo batiam cada vez com mais
insistência às portas de madeira da aldeia. Cotizavam-se, os operários enviavam
delegados nas províncias donde eles eram originários. Os regimentos decidiam chamar
os camponeses a apoiar os bolcheviques. Os operários das empresas estabelecidas fora
das cidades peregrinavam nos campos à volta, distribuíam os jornais, fundavam células
bolcheviques. Desses passeios, ficavam-lhes, no regresso, no olhar, o reflexo dos
incendios postos pela guerra camponesa.
O bolchevismo conquistava o país. Os bolcheviques tornavam-se uma força
irresistível. Atrás deles vinha o povo. As dumas municipais de Cronstadt, de Tsaritsyne, de
Kostsroma, de Chula, eleitas no sufrágio universal, estavam entre as mãos dos
bolcheviques. Estes obtiveram 52% dos votos nas eleições das dumas de distrito em
Moscovo. Na longínqua e pacífica cidade de Tomsk, como em Samara, nada industrial,
eles encontravam-se no primeiro lugar na duma. Sobre quatro mandatários do zemstvo do
distrito de Ligovsky, os bolcheviques reuniram 50% dos votos. Não ia bem por todo o lado.
Mas, em todo o lado, havia uma modificação no mesmo sentido: o peso específico do
partido bolchevique subia rapidamente.
A bolchevização das massas se manifestava todavia muito mais claramente nas
organizações de classe. Os sindicatos juntavam na capital mais de meio milhão de
operários. Os mencheviques que conservavam ainda entre as suas mãos a direcção de
certos sindicatos sentiam-se eles próprios tornarem-se sobrevivências da véspera. Qual
foi a parte do proletariado que se juntou e qualquer que fossem as suas tarefas imediatas,
ela chegava inevitavelmente às conclusões bolchevistas. E não por acaso: os sindicatos,
os comités de fábrica, os grupos económicos e culturais da classe operária, permanentes

601
e temporários, eram obrigados pela situação de colocar, a propósito de cada problema,
uma única questão: quem é que manda em casa?
Os operários das fábricas de artilharia, convocados a uma conferência para
regularizar suas relações com a administração, respondem sobre a maneira de aí chegar:
pelo poder dos sovietes. Já não é uma formula sem sentido, é um programa de salvação
económica. Aproximando-se do poder, os operários chegam cada vez mais
concretamente às questões da indústria: a conferência da artilharia criou mesmo um
centro especial para elaborar métodos de transformação das fábricas de guerra tendo em
vista uma produção pacífica.
A conferência moscovita dos comités de fábrica e de oficina reconheceu a
necessidade do Soviete local, sob o regime dos decretos, em consentir todas as greves,
reabriu a autoridade da empresas fechada pelos partidários do lock-out e, ao enviar os
seus delegados em Sibéria e na bacia do Donetz, assegurou às fábricas o trigo e o
carvão. A conferência dos comités de fábrica e oficina de Petrogrado consagrou a sua
atenção à questão agrária e elaborou, num relatório de Trotsky, um manifesto aos
camponeses: o proletariado tem consciência dele próprio não somente como de uma
classe particular, mas como de dirigente do povo.
A conferência pan-russa dos comités de fábrica e oficina, na segunda quinzena de
Outubro, elevou a questão do controlo operário ao estatuto de problema de ordem
nacional. «Os operários estão mais interessados que os patrões no trabalho regular e
contínuo das empresas.» O controlo operário «é do interesse do país inteiro e deve ser
apoiado pelo campesinato como pelo exército revolucionário». A resolução que abre a
porta à nova ordem económica é votada pelos representantes de toda as empresas
industriais da Rússia, contra cinco votos, nove abstenções. Algumas unidades que se
abstiveram eram esses velhos bolcheviques que já não podia caminhar com o partido,
mas que não se decidiam ainda a levantar francamente a mão pela insurreição
bolchevique. O que farão amanhã.
As municipalidades democráticas recentemente criadas morrem, paralelamente com
os órgãos do poder governamental. Os problemas mais importantes tais como o
abastecimento das cidades em água, em electricidade, em combustíveis, em alimentação,
caiem cada vez mais a cargo dos sovietes e das outras organizações operárias. O comité
de fábrica da estação eléctrica de Petrogrado percorria a cidade e os arredores,
procurando seja carvão, seja óleo para as turbinas, e obtinha um ou outro por intermédio
dos comités de outras empresas, numa luta contra os patrões e a administração.
Não, o poder dos sovietes não era uma quimera, uma construção arbitrária, a
invenção de teóricos de partido. Ele subia irresistivelmente a partir de baixo, o desespero
económico, impotência dos possuidores, a necessidade das massas; os sovietes
tornavam-se o poder na realidade – para os operários, os soldados, os camponeses, não
havia outra via. Sobre o poder dos sovietes, o tempo não era já de procurar razões ou
objecções: era preciso realizá-lo.

602
No 1º Congresso dos sovietes, em Junho, tinha sido decidido convocar congressos
todos os três meses. O Comité executivo central, todavia, longe de convocar o 2º
Congresso com data fixa, tinha manifestado intenção em não convocar de forma
nenhuma para não se encontrar face a face com uma maioria hostil. A conferência
democrática tinha tido por objectivo principal afastar os sovietes, substituindo-os por
órgãos da «democracia». Mas não era assim tão simples. Os sovietes não tinham
intenção nenhuma de ceder a quem que quer que fosse.
No 21 de Setembro, um pouco antes do encerramento da conferência democrática,
o Soviete de Petrogrado levantou a voz para reclamar urgentemente o congresso dos
sovietes. Nesse sentido foi votado, sobre os relatórios de Trotsky e de Bukarine,
convidado de Moscovo, uma resolução que partia formalmente da necessidade de se
preparar para «uma nova vaga de contra-revolução». O programa da defesa que abria o
caminho à próxima ofensiva apoiava-se sobre os sovietes como sobre as únicas
organizações capazes de lutar. A resolução exigia que os sovietes consolidassem as suas
posições nas massas. Lá onde eles tinham efectivamente o poder na mão, eles não
deviam em nenhum caso ceder. Os comités revolucionários criados durante as jornadas
kornilovianas devem estar prontos a agir. «Para a unificação e a coordenação dos actos
de todos os sovietes na sua luta contra o perigo iminente e para a solução dos problemas
de organização do poder revolucionário, é indispensável convocar imediatamente um
congresso dos sovietes.» Assim, a resolução de defesa chega ao ponto de derrubar o
governo. Sobre esta diapasão política se desenvolverá doravante a agitação até ao
momento da insurreição.
Os delegados dos sovietes que se tinham reunido na conferência colocaram logo no
dia seguinte a questão do congresso diante do comité executivo central. Os bolcheviques
exigiam a convocação do Congreso nos quinze dias e ofereciam, mais exactamente
ameaçavam, criar com esse objectivo um órgão especial apoiando-se sobre os sovietes
de Petrogrado e de Moscovo. Na realidade, eles preferiam que o congresso fosse
convocado pelo velho comité executivo central: isso afastava antecipadamente os
debates sobre a legitimidade do congresso e permitia derrubar os conciliadores com a sua
própria ajuda. A ameaça apenas disfarçada dos bolcheviques teve o seu efeito: sem se
arriscar ainda a romper com a legalidade soviética, os líderes do comité executivo central
declararam que eles não delegavam a ninguém o direito de cumprir as suas obrigações.
O congresso foi marcado para o 20 de Outubro, em menos de um mês.
Mal os delegados provinciais se tinham dispersado, todavia, os líderes do comité
executivo central abriram os olhos, descobrindo que o congresso não era oportuno, que
eles desviavam para as localidades os militantes da campanha eleitoral e prejudicaria a
Assembleia constituinte. A verdadeira apreensão era encontrar no congresso um potente
pretendente ao poder; mas mantinham-se diplomaticamente silenciosos sobre isso. No 26
de Setembro, Dan apressava-se já em apresentar ao Bureau do Comité executivo central,
que não se ocupava dos preparativos necessários, a proposição de diferir o Congresso.
Quanto aos princípios elementares da democracia, os democratas patentados nem
faziam caso de forma nenhuma. Eles tinham acabado de rejeitar a resolução tomada pela

603
Conferência democrata, convocada por eles próprios, desautorizando a coligação com os
cadetes. Agora eles manifestavam o seu soberano despreso pelos sovietes, a começar
por aquele de Petrogrado, que os tinha levado ao poder. Sim, e que poderiam eles de
facto, sem romper a sua aliança com a burguesia, tomar em consideração as esperanças
e as reivindicações de dezenas de milhões de operários, de soldados e de camponeses
que eram pelos sovietes?
Trotsky respondeu à proposição de Dan no sentido que o Congresso seria mesmo
assim convocado, senão pela via constitucional, pelo menos pela via revolucionária. O
Burô, geralmente tão servil, recusou, desta vez, de se comprometer no caminho de um
golpe de Estado soviético. Mas a pequena derrota não o obrigou de forma nenhuma os
conspiradores a depor as armas, ela foi pelo contrário como um excitante para eles. Dan
encontrou apoio influente na Secção militar do Comité executivo central, que decidiu de
abrir um «inquérito» entre as organizações da frente para saber se se convocaria o
Congresso, isto é, se se executaria uma decisão tomada duas vezes pelo mais alto órgão
soviético. Entretanto, a imprensa dos conciliadores iniciou uma campanha contra o
Congresso. Os socialistas-revolucionários mostraram-se particularmente exasperados.
«Que o Congresso seja ou não convocado – escreve o Delo Naroda (A causa do povo) –
isso não pode ter qualquer importância no que diz respeito à questão do poder... O
governo de Kerensky não se submeterá em qualquer caso.» Ao quê que ele não se
submeteria? Perguntava Lenine. «Ao poder dos sovietes – explicou ele – ao poder dos
operários e dos camponeses que o Delo Naroda, para não ficar de parte com os
fazedores de progromes e os antisemitas, os monárquicos e os cadetes, chama o poder
de Trotsky e de Lenine.»
O congresso executivo camponês julgou, pelo seu lado, a convocação do congresso
«perigosa e indesejável». Nos círculos dirigentes sovietes instaurou-se uma confusão
voluntariamente perniciosa. Os delegados dos partidos conciliadores que circulavam no
país mobilizavam as organizações locais contra o congresso oficialmente convocado pelo
órgão soviete supremo. A gazeta oficiosa do Comité executivo central imprimia, a cada
dia, as resoluções provenientes dos fantasmas de Março, trazendo, na realidade, os
nomes imponentes. As Izvestia enterravam os sovietes num editorial, declarando que
eram barracas provisórias que deviam ser demolidas logo que a Assembleia constituinte
«tivesse coroado o edifício do novo regime».
A agitação contra o Congresso era o menos que seria feito para tomar os
bolcheviques de surpresa. Desde do dia 24 de Setembro, o Comité central do partido, não
se fiando à decisão do Comité executivo central, decidiu levantar na base, por
intermediário dos sovietes locais e das organizações da frente, uma campanha para o
Congresso. À comissão oficial do Comité executivo central que se ocupava de convocar,
mais exactamente de sabotar o congresso, os bolcheviques delegaram Sverdlov. Sob a
sua direcção foram mobilizadas as organizações locais do partido, e, por intermediário
seu, os sovietes também. No 27, todas as instituições revolucionárias de Reval exigiram a
dissolução imediata do pré-parlamento e a convocação, para criar um poder, de um
congresso dos sovietes, e elas comprometiam-se a solenemente a apoiar «com todas as
forças e recursos que dispunha a fortaleza». Muitos sovietes locais, a começar pelos

604
distritos de Moscovo, propuseram desconvocar o congresso ao desleal comité executivo
central. No sentido oposto às resoluções dos comités do exército contra o Congresso,
vindo dos batalhões, regimentos, corpos do exército, das guarnições.«O congresso dos
sovietes deve tomar o poder sem parar diante de nada», declarou a assembleia geral dos
soldados em Klychtym, no Oural. Os soldados da província de Novgorod convidam os
camponeses a participar no Congresso, sem terem em conta a decisão do comité
executivo camponês. Os sovietes de província, de distrito, mesmo os dos lugares mais
recuados, das fábricas e das minas, os regimentos, os barcos de guerra, os hospitais
militares, comícios, a companhia de carros blindados de Petrogrado e os serviços de
ambulância de Moscovo, todos exigiam a eliminação do governo e a entrega do poder aos
sovietes.
Não se limitando à campanha de agitação, os bolcheviques criaram para eles
próprios uma importante base de organização, ao convocarem um congresso dos
sovietes da região Norte, contando cento cinquenta delegados vindos de vinte e três
pontos diferentes. A acção foi bem feita! O comité executivo central, sob a direcção
desses grandes mestres dos pequenos assuntos, declarou que o congresso do Norte era
uma conferência particular. Um punhado de delegados mencheviques não participou nos
trabalhos do congresso, assistindo somente a «título de informação». Como se isso
pudesse diminuir o significado de um congresso ao qual estavam representados os
sovietes de Petrogrado e da periferia, de Moscovo, de Cronstadt, de Helsingfors e de
Reval, isto é das duas capitais, das fortalezas marítimas, da frota do Báltico e das
guarnições dos arredores de Petrogrado.
Aberto por Antonov, o Congresso, ao qual tinham dado a intenção de uma nuança
militar, teve lugar sob a presidência do alferes Krylenko, o melhor agitador do partido
sobre a frente, futuro comandante em chefe das tropas bolcheviques. O relatório político
de Trotsky tratava essencialmente sobre a nova tentativa feita pelo governo para afastar
de Petrogrado os regimentos revolucionários: o Congresso não permitirá «desarmar
Petrogrado e de abafar o Soviete». A questão da guarnição de Petrogrado é um elemento
do problema fundamental do poder. «Todo o povo vota pelos bolcheviques. O povo confia
em nós e encarrega-nos de tomar o poder.» A resolução proposta por Trotsky diz: «A hora
chegou onde somente uma marcha audaciosa e unanime de todos os sovietes que pode
ser resolvida a questão do poder central.» Este apelo apenas disfarçado à insurreição é
adoptado unanimemente salvo três abstenções.
Lachevitch chamava os sovietes a assegurar-se, segundo o exemplo de Petrogrado,
das guarnições locais. O delegado letão Peterson prometeu para a defesa do Congresso
dos sovietes quarenta mil caçadores letões. A declaração de Peterson, acolhida com
entusiasmo, não deixava de ter peso. Alguns dias mais tarde, o soviete dos regimentos
letões proclamou isto: «É somente uma insurreição popular... que tornará possível a
passagem do poder para as mãos dos sovietes». A rádio dos barcos de guerra propagou,
no dia 13, em todo o país, o apelo do Congresso do Norte à preparação do Congresso
Pan-russo dos sovietes. «Soldados, marinheiros, camponeses, operários! O vosso dever
é de ultrapassar todos os obstáculos...»

605
Aos delegados bolcheviques do Congresso do Norte, o Comité central do partido
propôs que não se abandonasse Petrogrado, esperando o próximo Congresso dos
sovietes. Alguns delegados, sob mandato do Burô eleito do Congresso, foram às
organizações do exército e dos sovietes das localidades para fazer relatórios, isto é, para
preparar a província para a insurreição. O comité executivo central viu então ao seu lado
um potente aparelho que se apoiava sobre Petrogrado e Moscovo, que se mantinham em
contacto com o país através das estações de emissão dos couraçados e que estava
pronto a se substituir, no momento oportuno, ao órgão supremo já antiquado dos sovietes,
para convocar o Congresso. As pequenas manhas na organização não podiam ser de
qualquer utilidade para os conciliadores.
A luta para e contra o Congresso deu nas províncias a última impulsão à
bolchevização dos sovietes. Num grande número de províncias atrasadas, por exemplo
na de Smolensk, os bolcheviques, sós, ou acompanhados pelos socialistas-
revolucionários de esquerda, obtiveram pela primeira vez a maioria depois da campanha
para o Congresso ou as eleições de delegados. Mesmo no Congresso siberiano dos
sovietes, os bolcheviques conseguiram, no meio de Outubro, a criar com os socialistas-
revolucionários de esquerda, uma sólida maioria que meteu facilmente a sua marca sobre
todos os sovietes locais. No 15, o Soviete de Kiev, por 159 votos contra 28, com 3
abstenções, reconheceu o futuro Congresso dos sovietes «órgão soberano do poder». A
16, o Congresso dos sovietes da região do Noroeste, em Minsk, isto é no centro da frente
Oeste, reconheceu a urgência da convocação do Congresso. A 18, o Soviete de
Petrogrado procedeu às eleições para o próximo Congresso: a lista bolchevique (Trotsky,
Kamenev, Voldarsky, Ioreniev e Lachevitch) obteve 443 votos; os socialistas-
revolucionários tiveram 162; eram todos socialistas-revolucionários de esquerda que
tendiam para os bolcheviques; os mencheviques obtiveram 44 votos. O Congresso dos
sovietes do Ural, ao qual presidia Krestirisky, onde se contava, sobre 110 delegados, 80
bolcheviques, exigiu, em nome de 223 900 operários e soldados organizados, a
convocação do Congresso dos sovietes a uma data fixa. No mesmo dia, 19, a
Conferência dos comités de fábrica e de oficina, a mais directa e incontestável
representação do proletariado de todo o país, pronunciou-se pela transmissão imediata do
poder para os soviets. No 20, Ivanovo-Vomessensk declarou todos os sovietes da
província «em estado de luta aberta e implacável com o governo provisório», e os
convidou a resolver com a sua autoridade as questões económicas e administrativas.
Contra a resolução que significou o derrube das autoridades governamentais nas
localidades, houve somente um voto e uma abstenção. No 22, a imprensa bolchevique
publicou um nova lista de 56 organizações que exigiam a passagem do poder para os
soviets: são inteiramente as verdadeiras massas, em grande medida armadas.
O potente apelo lançado pelos contingentes da próxima insurreição não impediu Dan
de relatar ao Burô do Comité executivo central que sobre novecentas e dezassete
organizações soviéticas existentes, somente cinquenta tinham consentido em enviar
delegados, e isso «sem qualquer entusiasmo». Pode-se compreender sem dificuldades
que os poucos sovietes que pensavam que era indispensável confessar os seus
sentimentos ao Comité executivo central consideravam o Congresso sem entusiasmo.

606
Todavia, na sua esmagadora maioria, os sovietes locais e os comités ignoravam
puramente e simplesmente o Comité executivo central.
Traídos e comprometidos pela sua acção visando fazer do Congresso um malogro,
os conciliadores não se atreveram a levar o assunto até ao fim. Quando se tornou
evidente que não se conseguiria evitar o Congresso, converteram-se bruscamente,
chamando todas as organizações locais a eleger delegados ao Congresso, para não
cederem a maioria aos bolcheviques. Mas, tendo reagido demasiado tarde, o Comité
executivo central viu-se forçado, três dias antes da data fixada, a diferir o Congresso para
o 25 de Outubro.
O regime de Fevereiro e, com ele, a sociedade burguesa obtiveram, graças à última
manobra dos conciliadores, um prazo imprevisto ao qual eles não podiam portanto tirar o
essencial. Em contra-partida, os bolcheviques utilizaram os cinco dias suplementares com
grande sucesso. Mais tarde, isso foi reconhecido mesmo pelos inimigos. «O atraso da
manifestação – conta Miliokov foi utilizado pelos bolcheviques antes de tudo para
consolidar as suas posições entre os operários e os soldaos de Petrogrado. Trotsky
mostrava-se nos comícios, em diversas partes da guarnição da capital. O estado de
espírito que ele criou se caracteriza assim, por exemplo, que, no regimento Semenovsky,
os membros do Comité executivo que queriam falar depois dele, Skobolev e Gotz, não
puderam dizer uma palavra.»
A conversão do regimento Semenovsky, cujo nome estava inscrito na história da
revolução em caracteres sinistros, tinha um sentido simbólico: em Dezembro 1905, os
Semenovsky tinham feito a maior parte do trabalho para esmagar a insurreição em
Moscovo. O chefe do regimento, o general Min, tinha dado esta ordem: «Não fazer
prisioneiros.» No sector ferroviário de Moscovo-Golotvine, os Semenovsky fuzilaram cento
e cinquenta operários e empregados. Felicitado por essas proezas pelo tsar, o general
Min foi, no outono de 1906, morto pela socialista-revolucionária Konopliannikova.
Completamente comprometido nas redes das velhas tradições, o regimento Semenovsky
tinha resistido mais tempo que a maioria dos outros efectivos da Guarda. A sua fama de
contingente «seguro» era tão sólida que, apesar do lamentável fiasco de Skobelev e de
Gotz, o governo teimou em contar com os Samenovsky até ao dia da insurreição e
mesmo depois.
A questão do Congresso dos sovietes continuou a ser a questão política central
durante as cinco semanas que separam a Conferência democrática da insurreição de
Outubro. Já, a declaração dos bolcheviques na conferência democrática proclamava o
próximo Congresso dos sovietes «órgão soberano do país». «Essas somente decisões e
proposições da presente conferência... podem encontrar uma via de realização, que terão
sido aprovadas pelo Congresso pan-russo dos deputados operários, camponeses e
soldados.» A resolução de boicotar o pré-parlamento, apoiada por uma maioria dos
membros do Comité central contra a outra metade, dizia: «A questão da participação do
nosso partido ao pré-parlamento, nós metêmo-la actualmente em dependência directa
das medidas que tomará o Congresso pan-russo dos sovietes para criar um poder

607
revolucionário.» O apelo ao Congresso dos sovietes apareceu em todos os documentos
bolcheviques desse período quase sem excepção.
Diante do tumulto da guerra camponesa, a agravamento do movimento nacional,
diante do crescente desespero, a queda da frente, diante um governo que se afunda, os
sovietes tornam-se o único apoio das forças criadoras. Toda a questão torna-se uma
questão de poder, e o problema do poder leva ao Congresso dos sovietes. Ele deverá dar
uma resposta a todas as questões, incluindo a da Assembleia constituinte.
Nenhum dos partidos não suprimia ainda a palavra de ordem da Assembleia
constituinte, nem mesmo o partido bolchevique. Mas quase insensivelmente, no decurso
dos acontecimentos da revolução, a principal palavra de ordem democrática, que, desde
de uma quinzena de anos, dava cor à luta heróica das massas, tinha empalidecido,
mesmo murchado, e, de certa forma, tinha sido moída, deixando somente a casca, uma
forma vazia, sem conteúdo, uma tradição e não uma perspectiva. Nesse processo, não
havia nada de enigmático. O desenvolvimento da revolução concluía-se num corpo a
corpo imediato pelo poder entre as duas classes principais da sociedade: a burguesia e o
proletariado. Nem a uma, nem a outra, a Assembleia constituinte não podia dar mais
nada. A pequena burguesia das cidades e dos campos não podia, nesse conflito, senão
jogar um papel auxiliar e secundário. Tomar nas mãos o poder, em todos os casos, ela era
incapaz: se os meses precedentes tinham demonstrado qualquer coisa, foi exactamente
isso. Ora, na Assembleia constituinte, a pequena burguesia podia ainda obter – e obteve
efectivamente – a maioria. Para que serviria? Somente para ignorar que uso ela poderia
fazer disso. Nisso se traduzia a inconsistência da democracia formal numa profunda
reviravolta histórica. A força da tradição se mostra nisto que, mesmo na véspera da última
batalha, nem um dos campos tinha ainda renunciado ao nome da Assembleia constituinte.
Mas, de facto, a burguesia apelava de Assembleia constituinte a Kornilov, e os
bolcheviques ao Congresso dos sovietes.
Pode-se avançar com segurança esta hipótese que as camadas largas do povo,
mesmo certas camadas intermediárias do partido bolchevique, mantinham, em relação ao
Congresso dos sovietes, ilusões de certa forma constitucionais, isto é ligavam ao
Congresso a ideia de uma transmissão automática e sem dor do poder das mãos da
coligação para a dos sovietes. Na realidade, o poder deveria ser arrancado pela força,
isso não se podia fazer pelo voto: só, a insurreição armada podia resolver a questão.
Todavia, de todas as ilusões que acompanham – inevitável mistura – todo o
movimento popular, mesmo o mais realista, a ilusão de um «parlamentarismo» soviético
era, no conjunto as condições, a menos perigosa. Os sovietes lutavam efectivamente pela
conquista do poder, apoiavam-se cada vez mais sobre as forças militares, tornavam-se
eles próprios poderes nas localidades, conquistavam com grande esforço e luta o seu
próprio congresso. Para as ilusões constitucionais já não restava mais lugar, e o que
restava disso era varrido no processo da luta.
Coordenando os esforços revolucionários dos operários e dos soldados de todo o
país, dando-lhes unidade com o objectivo e fixando um só prazo, a palavra de ordem do
Congresso dos sovietes cobria ao mesmo tempo a preparação meio conspiradora, meio

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aberta da insurreição por um apelo constante a uma representação legal dos operários,
dos soldados e dos camponeses. Facilitando a unidade das forças para a insurreição, o
Congresso dos sovietes devia em seguida sancionar os seus resultados e formar um novo
poder incontestável para o povo.

609
A questão nacional
A língua é o instrumento mais importante da ligação do homem ao homem, e, por
consequência, de ligação na economia. Ela torna-se uma língua nacional com a vitória da
circulação mercantil que une uma nação. Sobre esta base estabelece-se o Estado
nacional, como terreno mais cómodo, mais vantajoso e normal das relações capitalistas.
Na Europa ocidental, na época da formação da nações burguesas, se deixarmos de lado
a luta dos Países-Baixos pela independência e a sorte da Inglaterra insular, começou pela
grande Revolução francesa e no essencial terminou, pouco mais ou menos num século,
pela constituição do Império alemão.
Mas, no período onde o Estado nacional na Europa já tinha cessado de absorver as
forças de produção e se desenvolvia o Estado imperialista, no Oriente – na Pérsia, nos
Balcãs, em China, na Índia – ainda estavam na era das revoluções nacionais-
democráticas cujo impulso foi dado pela Revolução Russa de 1905. A guerra nos Balcãs
em 1912 representou a realização da formação dos Estados nacionais ao sudeste da
Europa. A guerra imperialista que seguiu concretizou, entretanto, na Europa, a obra
incompleta das revoluções nacionais levando ao desmembramento da Austria-Hungria, a
criação de uma Polónia independente e de Estado limítrofes que se separaram do Império
dos czares.
A Rússia constitui-se não como um Estado nacional, mas como um Estado de
nacionalidades, isso respondia ao seu carácter atrasado, sobre a base da agricultura
extensiva e do artesanato aldeão, o capital mercantil desenvolvia-se não em
profundidade, não em transformando a produção, mas em largura, aumentando o raio das
suas operações. O comerciante, o proprietário e o funcionário deslocavam-se do centro
para a periferia, no seguimento dos camponeses que se dispersavam, e, à procura de
novas terras e excepções fiscais, penetravam em novos territórios onde se encontravam
populações ainda mais atrasadas. A expansão do Estado era essencialmente a extensão
de uma economia agrícola que, apesar de todo o seu primitivismo, revelava uma
superioridade sobre os nómadas do Sul e do Oriente. O Estado das castas e da
burocracia que se formou sobre esse imensa base e constantemente alargada tornou-se
bastante potente para assujeitar, no Ocidente, certas nações de uma cultura superior mas
incapaz, em razão da sua pouca população ou de uma crise interior, de defender a sua
independência (Polónia, Lituânia, províncias bálticas, Finlândia).
Aos setenta milhões de Gran-Russos que constituíam o massivo central do país
acrescentaram-se gradualmente cerca de noventa milhões de «alógenos» que se dividiam
nitidamente em dois grupos: os Ocidentais, superiores aos Gran-Russos pela sua cultura,
e os Orientais, de um nível inferior. Assim se constituiu um império no qual a
nacionalidade dominante só representava 43% da população, enquanto que 57% (cujos
17% de ucranianos, 6% de polacos, 4,5% de russos brancos) se relacionavam a
nacionalidades diversas pelo seu grau de cultura e desigualdade de direitos.
As ávidas exigências do Estado e a indigência da base camponesa sob as classes
dominantes engendravam as formas mais ferozes de exploração. A opressão nacional na

610
Rússia era infinitamente mais brutal que nos Estados vizinhos, não somente da fronteira
ocidental, mas mesmo sobre a fronteira oriental. O grande número das nações lesadas
em direito, e a gravidade da sua situação jurídica davam ao problema nacional na Rússia
czarista uma força explosiva enorme.
Se, nos Estados de nacionalidade homogénea, a revolução burguesa desenvolvia
potentes tendências centrípetas, passando sob o signo de uma luta contra o
particularismo como em França, ou então um divisão nacional como em Itália e na
Alemanha – nos Estados heterogéneos tais como a Turquia, a Rússia, a Áustria-Hungria,
a revolução atrasada da burguesia desencadeava, pelo contrário, as forças centrífugas.
Apesar da evidente oposição desses processus, exprimida em termos de mecânica, a sua
função histórica é a mesma na medida onde, nos dois casos, tratava-se de utilizar a
unidade nacional como um reservatório económico importante: era preciso para isso fazer
a unidade da Alemanha, era preciso pelo contrário desmembrar a Áustria-Hungria.
Lenine tinha calculado no devido tempo o carácter inevitável dos movimentos
nacionais centrífugas na Rússia e, durante anos, tinha lutado obstinadamente,
nomeadamente contra Rosa Luxemburgo pelo famoso parágrafo 9 do velho programa do
partido, formulando o direito das nações a disporem delas próprias, isto é, a se separarem
completamente do Estado. Por aí, o partido bolchevique não se encarregava de forma
nenhuma em fazer uma propaganda separatista, ele obrigava-se somente a resistir com
intransigência a todas as formas de opressão nacional e, desse número, à retenção pela
força de tal ou tal nacionalidade nos limites de um Estado comum. Foi somente por esta
via que o proletariado russo pôde gradualmente conquistar a confiança das nações
oprimidas.
Mas isso era só um dos lados do assunto. A política do bolchevismo no domínio
nacional tinha um outro aspecto, aparentemente em contradição com o primeiro, e que o
completava na realidade. Nos cadres do partido e, em geral, as organizações operárias, o
bolchevismo aplicava o mais rigoroso centralismo, lutando implacavelmente contra todo o
contágio nacionalizado susceptível de opor os operários uns aos outro ou de os dividir.
Negando nitidamente ao Estado burguês o direito de impor a uma minoria nacional uma
residência forçada ou mesmo uma língua oficial, o bolchevismo considerava ao mesmo
tempo que a sua tarefa verdadeiramente sagrada era de ligar, o mais estreitamente
possível, por meio de uma disciplina de classe voluntária, os trabalhadores de diferentes
nacionalidades, num todo. Assim, ele afastava pura e simplesmente o princípio nacionalo-
federativo da estrutura do partido. Uma organização revolucionária não é o prototipo de
Estado futuro, ela é somente um instrumento para o criar. O instrumento deve ser
adecuado para a fabricação de um produto, mas não deve de forma nenhuma assimilá-lo.
É somente uma organização centralista que pode assegurar o sucesso da luta
revolucionária – mesmo quando ele se trata de destruir a opressão centralista sobre as
nações.
A queda da monarquia devia, para as nações oprimidas da Rússia, de toda a
necessidade, significar também a sua revolução nacional. Aqui se manifesta, entretanto o
que se tinha produzido em todos os outro domínios do regime de Fevereiro: a democracia

611
oficial, ligada pela sua dependência política em relação à burguesia imperialista,
encontrou-se absolutamente incapaz de destruir os velhos obstáculos. Considerando
incontestável o seu direito de regularizar a sorte de todas as outras nações, ela continuou
a salvaguardar com zelo as fontes de riqueza, de força, de influência que davam à
burguesia gran-russa a sua situação dominante. A democracia conciliadora interpreta
somente as tradições da política nacional do czarismo na linguagem uma retórica
emancipadora: trata-se agora de defender a unidade da revolução. Mas a coligação
dirigente tinha um outro argumento, mais grave: considerações motivadas pelo tempo de
guerra. Isso significa que os esforços de emancipação de diversas nacionalidades eram
representadas contra a obra do Estado-maior austro-alemão. Aí também, os cadetes
tocavam os primeiros violões, os conciliadores os acompanhavam.
O novo poder não podia, bem entendido, deixar intacta a abominável profusão de
ultrajes medievais infligidos aos alógenos. Mas ele esperava limitar-se, e procurava fazê-
lo, simplesmente à abolição das leis de excepção contra as diversas nações, isto é ao
estabelecimento de uma igualdade aparente de todos os elementos da população diante
da burocracia do Estado gran-russo.
A igualdade formal dos direitos jurídico era sobretudo vantajoso para os judeus: o
número de leis que limitavam seus direitos atingia o número de seiscentos e cinquenta.
Além disso, como nacionalidade exclusivamente urbana e das mais dispersas, os judeus
não podiam pretender não somente a uma independência no Estado, mas mesmo a uma
autonomia territorial. No que diz respeito ao projecto dito de uma «autonomia nacional-
cultural», que devia unir os judeus sobe a extensão de todo o país à volta das escolas e
de outras instituições, esta utopia reaccionária, copiada por diversos grupos judeus ao
teórico Otto Bauer, fundiu-se logo com os primeiros dias da liberdade como a cera sob os
raios do sol.
Mas a revolução é precisamente uma revolução porque ela não se satisfaz com
esmolas, nem com pagamentos a crédito. A anulação de restrições as mais vergonhosas
estabelecem com forma de igualdade de direitos dos cidadãos, independentemente da
nacionalidade; mas tanto mais que se manifestava a desigualdade dos direitos jurídicos
das próprias nações, deixando-as em maior parte na situação de crianças ilegítimas ou
adoptada pelo Estado gran-russo.
A igualdade dos direitos civis não dava nada aos Finlandeses que procuravam não a
igualdade com os russos, mas a sua independência em relação à Rússia. Ela não trazia
nada aos ucranianos que, antes, não tinham conhecido qualquer restrição, porque tinham-
os declarado russos à força. Ela não mudava nada à situação dos letões e estonianos,
esmagados pela propriedade das terras alemãs e pela cidade russo-alemã. Ela não
aliviava em nada nos seus destinos os povos e populações atrasadas da Ásia, mantidos
nas profundezas da falta de direitos jurídicos não pelas restrições, mas pelas correntes de
uma servidão económica e cultural. Todas essas questões, a coligação liberalo-
conciliadora não queria mesmo a colocar. O Estado democrático era sempre o mesmo
Estado do funcionário gran-russo que não se dispunha a ceder seu lugar a ninguém.

612
À medida que a revolução ganhava das massas mais profundas da periferia, mais se
tornava manifesto que a língua oficial era a das classes possuidora. O regime da
democracia pela forma, com a liberdade da imprensa e de reunião, obrigava as
nacionalidades atrasadas e oprimidas a sentir ainda mais dolorosamente quanto elas
estavam privadas de meios culturais os mais elementares de um desenvolvimento
cultural: escolas próprias, tribunais, e os seus funcionários. Os envios à futura Assembleia
constituinte eram somente irritantes: porque enfim, na Assembleia, deviam dominar os
mesmos partidos que tinham criado o governo provisório e continuavam a manter as
tradições dos russificadores, marcando com brutalidade o limite para lá do qual as classes
dirigentes não queriam ir.
A Finlândia tornou-se repentinamente um espinho no corpo do regime de Fevereiro.
Logo pela gravidade da questão agrária que levava na Finlândia sobre os torpari, isto é
sobre os pequenos agricultores oprimidos, os operários industriais, representando ao total
quatorze por cento da população, arrastavam atrás deles a aldeia. O Seim finlandês (o
parlamento) é no mundo o único parlamento onde os sociais-democratas obtiveram a
maioria; cento e três sobre duzentos lugares de deputado. Tendo proclamando a lei de
cinco de Junho o Seim soberano, excepção feita das questões sobre o exército e a
política exterior, a social-democracia finlandesa dirigiu-se «aos partidos irmãos da
Rússia» para ter o apoio deles, acontece que o pedido foi mal dirigido. O governo
colocou-se primeiro de lado deixando a liberdade agir «os partidos irmãos». Uma
delegação veio para dar sermão, com Tchkeidze à cabeça, voltou de Hensingfors sem ter
obtido resultado. Então os ministros socialistas de Petrogrado: Kerensky, Tchernov,
Skobolev, Tseretelli, decidiram liquidar pela violência o governo socialista de Helsingfors.
O chefe do Estado-maior do Grande Quartel General, o monárquico Lukomsky, advertiu
as autoridades civis e a população que em caso de qualquer manifestação contra o
exército russo, «suas cidades e em primeiro lugar, Helsingfors, seriam devastadas». Após
ter assim preparado o terreno, o governo, numa manifestação solene, cujo estilo parecia
um plagiado da monarquia, pronunciou a dissolução do Seim e, no dia onde começava
uma ofensiva na frente, colocou nas portas do parlamento finlandês soldados russos
recolhidos da frente. Foi assim que as massas revolucionárias da Rússia receberam, no
caminho para Outubro, uma muito boa lição ensinando-lhes qual lugar convencional têm
os princípios da democracia na luta das forças de classe.
Diante do desencadeamento nacionalista dos dirigentes, as tropas revolucionárias
em Finlândia tomaram uma posição digna. O congresso regional dos sovietes que teve
lugar em Helsingfors na primeira quinzena de Setembro declarou: «Se a democracia
finlandesa julga necessário retomar as sessões do Seim, todas as tentativas para se opor
a esta medida serão consideradas pelo congresso como um acto contra-revolucionário.»
Era uma oferta directa de assistência militar. Mas a social-democracia finlandesa, na qual
predominavam as tendências conciliadoras, não estava pronta a comprometer-se na via
da insurreição. As novas eleições, que tiveram lugar sob a ameaça de uma nova
dissolução, asseguraram aos partidos burgueses, de acordo com os quais o governo tinha
dissolvido o Seim, uma pequena maioria: cento e oito sobre duzentos.

613
Mas agora se colocam em primeira linha questões interiores que, nesta Suíça do
Norte, nesse país de montanhas de granito e de proprietários avarentos, levam
inevitavelmente à guerra civil, a burguesia finlandesa prepara meio abertamente os seus
quadros militares. Ao mesmo tempo se constituem as células secretas da Guarda
vermelha. A burguesia, para ter as armas e instrutores, dirige-se à Suécia e à Alemanha.
Os operários encontram apoio entre os soldados russos. Ao mesmo tempo, nos círculos
burgueses que, ainda na véspera, estavam dispostos a se entenderam com Petrogrado,
reforça-se o movimento por uma completa separação com a Rússia. O jornal dirigente
Huvttdstatsbladet escrevia: «O povo russo está à beira da anarquia... Não deveríamos
nessas condições..., nos destacar tanto que possível desse caos?» O governo provisório
viu-se forçado em fazer concessões sem esperar a Assembleia constituinte: no 23 de
Outubro foi adoptada uma lei de «princípio» sobre a independência da Finlândia,
excepção feita dos assuntos militares e das relações exteriores. Mas a «independência»,
vinda das mãos de Kerensky, já não valia grande coisa: só lhe faltavam dois dias para a
sua queda.
Houve outro espinho, muito mais profundamente espetada, foi a Ucrânia. Desde do
princípio de Junho, Kerensky tinha proibido o congresso das tropas da Ucrânia convocado
pela Rada. Os ucranianos não cederam. Para salvar a cara do governo, Kerensky
legalizou o congresso com atraso enviando um telegrama pomposo que os congressistas
escutaram com risos pouco respeitosos. A amarga lição não impediu Kerensky de proibir,
três semas mais tarde, o congresso dos militares muçulmanos em Moscovo. O governo
democrático parecia apressar-se em sugerir às nações descontentes: vocês só receberão
o que arrancaram.
No primeiro número do Universal, publicado no 10 de Junho, a Rada acusava
Petrogrado de se opor à autonomia nacional, proclamava: «Doravante, nós faremos nós
próprios a nossa vida.» Os cadetes tratavam os dirigentes ucranianos como agentes da
Alemanha. Os conciliadores dirigiam aos ucranianos exortações sentimentais. O governo
provisório enviou a Kiev uma delegação. Na atmosfera superaquecida da Ucrânia,
Kerensky, Tseretelli e Terechtchenko viram-se forçados a dar alguns passos em direcção
da Rada. Mas após o esmagamento, em Julho, dos operários e dos soldados, o governo
virou à direita sobre a questão ucraniana. No 5 de Agosto, a Rada, pela maioria
esmagadora, acusou o governo de ter sido, «penetrado pelas tendências imperialistas da
burguesia russa», violado a convenção do 3 de Julho.» Quando o governo teve que
honrar um acordo – escrevia o chefe do poder ucraniano, Vinnitchenko – acontece que
esse governo provisório... era um pequeno vigarista que, pelas sua vigarices, pretendia
resolveu um grande problema histórico.» Essa linguagem pouco equívoca mostra
bastante qual era a autoridade do governo mesmo nos círculos que deveriam
politicamente lhe ser próximas, porque, no fim de contas, o conciliador Vinnitchenko não
se diferenciava de Kerensky que como um romancista negligente difere de um advogado
medíocre.
Na verdade, em Setembro, o governo publicou, enfim, um acto que reconhecia às
nacionalidades da Rússia – num quadro que seria ditado pela Assembleia constituinte – o
direito de «dispor de elas próprias». Mas esta carta sem qualquer garantia para o futuro e

614
comportando contradições, extremamente imprecisa em tudo, salvo nas reservas que aí
se encontravam, não inspirava confiança a ninguém: os actos do governo provisório
gritavam alto contra ele.
No 2 de Setembro, o senado, o mesmo que tinha recusado receber nas suas
sessões de novos membros não revestidos do antigo uniforme, decidiu rejeitar a
promulgação de uma instrução confirmada pelo governo, dirigida ao secretário geral da
Ucrânia, isto é ao gabinete dos ministros de Kiev. Motivo: não existe lei sobre o
secretariado e, portanto não se pode enviar instruções a uma instituição ilegal. Os
iminentes juristas não escondiam que o próprio acordo do governo com a Rada constituía
uma usurpação sobre os direitos da Assembleia constituinte: os partidários mais
inflexíveis da pura democracia se encontravam agora do lado dos senadores do czar.
Mostrando tanta valentia, os opositores de direita não arriscavam absolutamente nada:
eles sabiam que a sua oposição seria completamente ao gosto dos dirigentes. Se a
burguesia russa se resignava ainda em reconhecer uma certa independência à Finlândia,
que tinha com a Rússia fracos laços económicos, ela não podia de maneira nenhuma
consentir na «autonomia» dos trigos da Ucrânia, do carvão do Donetz e do minério de
Krivol-Rog.
No 19 de Outubro, Kerensky recomendou por telegrama aos secretários gerais de
Ucrânia «de virem urgentemente a Petrogrado para explicações pessoais» sobre a sua
agitação criminal em favor de uma Assembleia constituinte ucraniana. Ao mesmo tempo,
tribunal de Kiev foi convidado a abrir um processo contra a Rada. Mas as iras lançadas
contra a Ucrânia assustavam tão pouco como as gentilezas em relação à Finlândia não
contentava.
Os conciliadores ucranianos sentiam-se, entretanto, ainda infinitamente mais instável
que os seus primos mais velhos de Petrogrado. Independentemente da atmosfera
favorável que rodeava a sua luta para os direitos nacionais, a estabilidade relativa dos
partidos pequeno-burgueses da Ucrânia, assim como as outras nações oprimidas, tinha
raízes económicas e sociais que se pode qualificar numa só palavra: atrasadas. Apesar
do rápido desenvolvimento industrial da região de Donetz e de Krivoi-Rog, a Ucrânia no
conjunto continuava a andar a reboque da Grande Rússia, o proletariado ucraniano era
menos homogéneo e experiente, o partido bolchevique continuava, tanto em qualidade
como em quantidade, fraco, se destacava lentamente dos mencheviques, via mal as
coisas da política, e sobretudo no domínio nacional. Mesmo na Ucrânia oriental, industrial,
a conferência regional dos sovietes, a meados de Outubro, dava ainda uma pequena
maioria aos conciliadores.
A burguesia ucraniana era ainda relativamente mais fraca. Uma das causas da
instabilidade social da burguesia russa tomada no seu conjunto era, como nos podemos
lembrar, que para a parte a mais potente, ela compunha-se de estrangeiros que nem
viviam na Rússia. Na periferia, esse facto complicava-se com um outro que não era de
menor importância: a burguesia do país, do interior, pertencia a outra nação que a massa
principal do povo.

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A população das cidades na periferia distinguia-se totalmente pela sua composição
nacional da população das aldeias. Em Ucrânia e na Rússia Branca, o proprietário das
terras, o capitalista, o advogado, o jornalista são gran-russos, polacos, judeus,
estrangeiro: ora, a população dos campos é inteiramente ucraniana e russo-branca. Nas
províncias bálticas, as cidades eram focos da burguesia alemã, russa e judia; a aldeia era
completamente letã e estoniana. Nas cidades da Geórgia predominava a população russa
e arménia, mesmo essencialmente os costumes, mas não a língua, exactamente como os
ingleses na Índia; diante da defesa de seus domínios e de seus rendimentos ligados ao
aparelho burocrático; ligados inseparavelmente às classes dominantes de todo o país, os
proprietários nobres, os industriais e os comerciantes da periferia agrupavam-se à volta
deles um círculo estreito de advogados, jornalistas, parcialmente também de operários,
todos russos, transformando as cidades em focos de russificação e de colonização.
A aldeia não era notada enquanto ela se mantinha calada. Todavia, mesmo quando
ela começava a levantar a voz com impaciência crescente, a cidade teimou na
resistência, defendendo a sua situação privilegiada. O funcionário, o comerciante, o
advogado aprenderam rapidamente a camuflar a sua luta pela conservação das posições
estratégicas da economia e a cultura sob uma altiva condenação do «chauvinismo»
desperto. Os esforço da nação dominante para manter o statu quo é frequentemente
colorido de um supra-nacionalismo, tal como o esforço de um país vencedor para
conservar o que ele pilhou toma a forma do pacifismo. Foi assim que MacDonald, diante
de Ghandi, se sente internacionalista. É assim que o avanço dos austríacos para a
Alemanha aparece a Poincaré como um insulto para o pacifismo francês.
«As pessoas que vivem nas cidades da Ucrânia – escreve em Maio a delegação da
Rada de Kiev ao governo provisório – vêm diante deles as ruas russificas dessas
cidades..., esquecem completamente que essas cidade são somente vagas no mar de
todo o povo ucraniano.» Quando Rosa Luxemburgo, na sua polémica póstuma sobre o
programa da Revolução de Outubro, afirmava que o nacionalismo ucraniano, que tinha
sido antes o simples «divertimento» de uma dezena de intelectuais pequeno-burgueses,
tinha sido artificialmente inchado pelo fermento da formula bolchevique do direito das
nações a disporem delas próprias, ela cai, ainda se tivesse lucida de espírito, num erro
histórico muito grave: o campesinato da Ucrânia não tinha formulado no passado
reivindicações nacionais pela razão que em geral ela não se tinha elevado até à política.
O principal mérito da insurreição de Fevereiro, digamos único, mas suficiente, consistiu
precisamente que ela deu, enfim, a possibilidade de falar alto às clases e às nações mais
oprimidas da Rússia. O despertar político do campesinato todavia não podia ter lugar de
outra forma senão com o regresso à linguagem natal e todas as consequências que daí
decorriam, em relação à escola, aos tribunais, às administrações autónomas. Opor-se a
isso, teria sido uma tentativa para fazer entrar o campesinato no vazio.
A heterogeneidade nacional entra a cidade e a aldeia fazia-se sentir dolorosamente
também pelos sovietes como organizações principalmente urbanas. Sob a direcção dos
partidos conciliadores, os sovietes fingiam constantemente ignorar os interesses
nacionais da população autóctone. Era isso uma das causas da fraqueza dos sovietes em
Ucrânia. Os sovietes de Riga e de Reval esqueciam os interesses dos letões e dos

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estonios. O soviete conciliador de Baku negligenciava os interesses da uma população
principalmente turquestana. Sob uma falsa representação de internacionalismo, os
sovietes levavam a cabo frequentemente a luta contra a defensiva nacionalista ucraniana
ou musulmana, camuflando a russificação opressiva exercida pelas cidades. Muito tempo
passará, mesmo sob o domínio dos bolcheviques, antes que os sovietes da periferia
tenham aprendido a falar a língua da aldeia.
Os alógenos siberianos esmagados pelas condições naturais e de exploração, o seu
estado primitivo, económico e cultural não permitia em geral elevar-se ao nível onde
começam as reivindicações nacionais. A vodka, o fisco e a ortodoxia forçada eram desde
há séculos as principais alavancas do poder de Estado. A doença que os italianos
chamavam a «doença francesa» e que os franceses chamavam o «mal napolitano»
chamava-se entre o povos siberianos o «mal russo»: isso indica de qual fonte vinham as
sementes da civilização. A Revolução de Fevereiro não chegou até lá. Era preciso esperar
muito tempo ainda a aurora para os caçadores e os condutores de reinas da imensidão
polar.
As populações e os povos sobre o Volga, no Cáucaso septentrional, na Ásia central,
despertadas pela primeira vez pela insurreição de Fevereiro de uma existência pré-
histórica, não conheciam ainda a burguesia nacional nem o proletariado. Acima da massa
camponesa ou pastoral se destacavam as camadas superiores um ligeiro tegumento de
intelectuais. Antes de se elevar até a um programa de administração nacional autónoma,
a luta era levada à volta das questões de um alfabeto que queriam ter para si, seu próprio
mestre – por vezes... o seu próprio padre. Esses seres oprimidos deviam constatar pela
amarga experiência que os patrões instruídos do Estado não lhes permitiam de boa
vontade elevar-se. Atrasados entre todos, eles viram-se forçados em procurar um aliado
na classe mais revolucionária. Foi assim que, por elementos de esquerda da sua jovem
intelectualidade, os votiaks, os tchuvaches, os zyrianos, as populações do Daguestão e
do Turquestão começavam a abrir caminho para os bolcheviques.
O destino das possessões coloniais, principalmente na Ásia central, modificou-se
com a evolução económica do centro que, após a pilhagem directa e declarada,
nomeadamente a pilhagem comercial, chegando a métodos bem dissimulados,
transformando os camponeses da Ásia em fornecedores de matérias primas industriais,
principalmente algodão. A exploração hierarquicamente organizada, combinando a
barbarie do capitalismo com a dos costumes patriarcais, mantinha com sucesso os povos
da Ásia num estado de pobreza nacional. O regime de Fevereiro tinha aqui deixado todas
as coisas no seu antigo estado.
As melhores terras que tinham sido confiscadas, sob o regime czarista, entre os
bachkirs, os buriates, os quirguiz e outros nómadas, continuavam a ficar entre as mão dos
proprietários nobres e dos camponeses russos ricos, disperso nos oásis de colonização
entre a população indígena. O despertar do espírito independente nacional significava
aqui antes de tudo a luta contra os colonizadores que tinham criado a parcialização
artificial e tinham condenado os nómadas à fome e ao definhamente. Por outro lado, os
intrusos defendia encarniçadamente contra o «separatismo» dos asiáticos a unidade da

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Rússia, isto é das suas pilhagens. O ódio dos colonos em relação aos indígenas tomava
formas zoológicas. Na Transbaikália preparavam à pressa progroms buriates, a direcção
socialista-revolucionária de Março, representada polos escrivões do cantão e dos
sargentes vindos da frente.
Esforçando-se para manter o mais tempo possível a velha ordem estabelecida,
todos os exploradores e os fazedores de violência nas regiões colonizadas apelavam
agora aos direitos soberanos da Assembleia constituinte: esta fraseologia era-lhes
fornecida pelo governo provisório que achava neles o seu melhor apoio. Por outro lado, as
cimeiras privilegiadas dos povos oprimidos invocavam cada vez mais o nome da
Assembleia constituinte. Mesmo os imãs da religião musulmana que tinham levado às
populações da montanha e os povos despertados do Cáucaso septentrional a bandeira
verde o Corão, em todos os casos onde a repressão de baixo os colocava em situação
difícil, insistiam na necessidade de diferir «até à Assembleia constituinte». Isso tornou-se
a palavra de ordem dos conservadores, da reacção, dos interesses e privilégios cúpidos
em todas as partes do país. O apelo à Assembleia constituinte significava: diferir e
temporizar. A temporização significava: reunir forças e abafar a revolução.
A direcção caía todavia nas mãos das autoridades religiosas ou da nobreza feudal
somente nos primeiros tempos, somente entre os povos atrasados, quase exclusivamente
entre os muçulmanos. De maneira geral, o movimento nacional nas campanhas tinha à
cabeça naturalmente os mestre-escola, os escrivões de cantão, os pequenos funcionários
e oficiais, parcialmente os comerciantes. Ao lado da intelligentsia russa ou russificada,
entre os elementos mais vigorosos e os mais ricos, nas cidades da periferia consegue
constituir outra camada mais jovem, estreitamente ligada à aldeia pela suas origens, não
tendo encontrado acesso à mesa do capital, e tendo tomado naturalmente a seu cargo a
representação política dos interesses nacionais, parcialmente também sociais, das
massas profundas do campesinato.
Opondo-se com hostilidade aos conciliadores russos sobre a linha das
reivindicações nacionais, os conciliadores da periferia pertenciam ao mesmo tipo
essencial e mesmo transportavam muitas vezes as mesmas denominações. Os
socialistas-revolucionários e os sociais-democratas da Ucrânia, os mencheviques da
Geórgia e da Letónia, os «trabalhistas» da Lituânia esforçavam-se, tal como os seus
homónimos gran-russos, em manter a revolução no quadro do regime burguês. Mas a
extrema fraqueza da burguesia indígena forçava aqui os mencheviques e o socialistas-
revolucionários a recusar a coligação e a tomar nas suas mãos o poder de Estado,
obrigados no domínio da questão agrária e operária a ir além do poder centra, os
conciliadores a periferia ganhavam muito em mostrando no exército e no país os
adversários do governo provisório de coligação. Bastava isso para engendrar destinos
diferentes entre os conciliadores gran-russos e os da periferia, pelo menos para
determinar a diferença de ritmos da sua ascensão e declínio.
A social-democracia georgiana não somente arrastava atrás de si o campesinato
indigente da pequena Geórgia, mas pretendia também, não sem um certo sucesso, dirigir
o movimento da «democracia revolucionária» de toda a Rússia. Nos primeiros meses da

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revolução, as cimeiras da intelligentsia georgiana consideravam a Geórgia não como uma
pátria nacional, mas como uma Gironda, uma província bendita do Sul escolhida para dar
os chefes para o país inteiro. A conferência de Estado de Moscovo, um dos mencheviques
georgianos mais em destaque, Tchkenkeli, prezava-se em afirmar que os georgianos,
mesmo sob o regime czarista, na prosperidade como nos contratempos, tinham
proclamado: «A única pátria, é a Rússia.» «Que dizer da nação georgiana? - perguntava o
mesmo Tchkenkeli um mês depois, à Conferência democrática – ela está completamente
ao serviço da grande Revolução russa. «E efectivamente: os conciliadores georgianos
como os judeus estavam sempre» ao serviço «da burocracia gran-russa quando era
preciso mostrar ou afastar as reivindicações nacionais de diferentes regiões.
Isso continuou, todavia, enquanto os sociais-democratas georgianos conservaram a
esperança em manter a revolução no quadro da democracia burguesa. A medida que
surgia o perigo de uma vitória das massas dirigidas pela social-democracia georgiana
afrouxava os seus laços com os conciliadores russos, ligando-se mais estreitamente aos
elementos reaccionários da própria Geórgia. No momento da vitória dos sovietes, os
partidários georgianos da Rússia una e indivisível tornaram-se os oráculos do
separatismo e mostraram às outras populações da Transcaucásia os incisivos amarelos
do chauvinismo.
O inevitável disfarce nacional dos antagonismos sociais, aliás já menos
desenvolvidos em regra geral na periferia, explica suficientemente porquê a Revolução de
Outubro devia, na maior parte das nações oprimidas, encontrar uma distância cada vez
maior que na Rússia central. Mas, em contra-partida, a luta nacional, por ela própria,
estremecia cruelmente o regime de Fevereiro, criando para a revolução no centro uma
periferia política suficientemente favorável.
Nos casos onde eles coincidiam com as contradições de classe, os antagonistas
nacionais tornavam-se particularmente graves. A luta secular entre o campesinato letão e
os barões alemãs levou, no início da guerra, milhares de trabalhadores letões a se
comprometer voluntariamente no exército. Os regimentos de caçadores compostos de
jornaleiros e de camponeses letões contavam entre os melhores na frente. Todavia, em
Maio, eles pronunciavam-se já pelo poder dos sovietes. O nacionalismo não era mais
senão o envelope de um bolchevismo pouco maduro. Um processo análogo teve lugar
também em Estónia.
Na Rússia Branca – onde se encontravam os proprietários polacos, uma população
judia na cidades e localidades, assim que os funcionários russos – o campesinato
duplamente ou triplamente oprimido, sob a influência da proximidade da frente, dirigia
antes de Outubro a sua revolta nacional e social na corrente o bolchevismo. Nas eleições
para a Assembleia constituinte, a esmagadora massa de camponeses da Rússia Branca
votará para os bolcheviques.
Todos esses processos nos quais a dignidade nacional desperta se combinava com
a indignação social, tanto a retinha como a desenvolvia, encontravam um grau elevado da
sua expressão viva no exército onde se criavam febrilmente regimentos nacionais, tanto
patricionados como tolerados, como perseguidos pelo poder central, seguindo a sua

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atitude em relação da guerra e dos bolcheviques, mas que, no conjunto, se voltavam com
hostilidade cada vez maior contra Petrogrado.
Lenine apalpava com confiança o pulso «nacional» da revolução. No seu famoso
artigo A crise está madura, no fim de Setembro, ele insistia que a cúria nacional da
conferência democrática «pelo seu radicalismo se colocava em segundo lugar, cedendo
aos sindicatos e elevando-se acima da cúria dos sovietes pela percentagem de votos
exprimidos contra a coligação (quarenta sobre quarenta e cinco)». Isso significava que, da
burguesia gran-russa, as nações oprimidas não esperavam já nada de bom. Elas
concluíam cada vez mais seus direitos pela sua própria vontade, por bocados, segundo
os métodos das confiscações revolucionárias.
Em Outubro, no congresso dos buriates, na longínqua Verkhneudisk, um relator
testemunhava: na situação dos alógenos «a Revolução de Fevereiro não trouxe nada de
novo». Igual balanço forçava a se colocar do lado dos bolcheviques ou pelo menos a
observar em sua consideração uma neutralidade mais amigável.
O congresso das tropas pan-ucranianas, que tinha lugar já durante as jornadas da
insurreição de Petrogrado, decidiu combater a reivindicação da passagem do poder para
os sovietes na Ucrânia, mas, ao mesmo tempo, recusou-se a considerar a insurreição dos
bolcheviques gran-russos «como uma acção anti-democrática», e prometeu empregar
todos os meios para que as tropas não fossem enviadas para esmagar a insurreição. Esta
ambiguidade que caracteriza melhor a fase pequeno-burguesa da luta nacional, facilitou a
revolução do proletariado decidida a acabar com todo o equívoco.
Por outro lado, os círculos burgueses da periferia, sempre e invariavelmente levados
para o poder central, lançavam-se agora num separatismo sob o qual, em muitos casos,
não havia sombra de uma base nacional. Ainda na véspera, a burguesia ultra-patriótica
das províncias bálticas, a seguir aos barões alemãs, o melhor apoio dos Romanov,
metiam-se, na luta contra a Rússia bolchevique e as massas do seu próprio país, sob a
bandeira do separatismo. Nessa via produziram-se os fenómenos ainda mais estranhos.
No 20 de Outubro surgiu uma nova formação governamental, nomeada «União Sudoeste
das tropas cossacas, montanheses e e dos povos livres das estepes». Os altos dirigentes
dos cossacos do Don, do Koban, do Ter e de Astrakan, o mais potente apoio do
centralismo imperial, tornaram-se em alguns meses os partidários apaixonados da
federação e fundiram nesse terreno com os chefes dos muçulmanos montanheses e
homens das estepes. As barreiras do regime federativo deviam servir de divisão contra o
perigo bolchevique que vinha do Norte. Portanto, antes de criar as principais praças fortes
de armas de guerra civil contra os bolcheviques, o separatismo contra-revolucionário
visava directamente a coligação dirigente, a democratização e o enfraquecimento.
Assim, o problema nacional, segundo os outros, mostrava ao governo provisório
uma cabeça de Medusa cuja cabeleira, esperanças de Março e de Abril, já não era feita
de serpentes do ódio e da revolta.
O partido bolchevique esteve longe de ocupar imediatamente após a insurreição a
posição na questão nacional que lhe assegurou finalmente a vitória. Isto diz respeito não

620
somente a periferia com as suas organizações de partido fracos e inexperientes, mas o
centro de Petrogrado. Durante os anos de guerra, o partido enfraqueceu de tal forma, o
nível teórico e político de quadros tinha diminuído de tal forma, que a direcção oficial
tomou também na questão nacional, até a chegada de Lenine, uma posição
extremamente confusa e hesitante.
Na verdade, conforme a tradição, os bolcheviques continuavam a defender o direito
das nações a disporem delas próprias. Mas esta fórmula foi admitida e palavras pelos
próprios mencheviques também: o texto do programa continuava a ser comum. Todavia, a
questão do poder tinha uma importância decisiva enquanto que os dirigentes temporários
do partido revelavam-se absolutamente incapazes de compreender o antagonismo
irredutível entre as palavras de ordem bolcheviques na questão nacional como a questão
na questão agrária de um lado, e do outro, a manutenção do regime burguês imperialista,
mesmo camuflado sob formas democráticas.
A posição democrática teve a sua expressão mais vulgar sob a pluma de Estaline.
No 25 de Março, num artigo a propósito do decreto governamental abolindo as restrições
dos direitos nacionais, Estaline tentou colocar a questão nacional na sua amplitude
histórica. «A base social da opressão nacional – escreveu – a força que a inspira, é a
aristocracia terrena em declínio.» Quanto ao facto importante que a opressão nacional
tomou um desenvolvimento nunca visto na época do capitalismo e encontrou a sua
expressão mais bárbara na política colonial, o autor não parece de forma nenhuma
duvidar. «Em Inglaterra – continuou – onde a aristocracia terrena partilha o poder com a
burguesia, onde já há muito tempo não existe mais dominação ilimitada desta aristocracia,
a opressão nacional é mais suave, menos desumana, mesmo, bem entendido, não se
toma em consideração (?) esta circunstância que, no decurso da guerra, quando o poder
passou para as mãos dos senhores da terra (!), a opressão nacional reforçou-se
consideravelmente (perseguições contra os irlandeses, os Hindus os senhores da terra
que, evidentemente, na pessoa de Lloyd George, tomaram o poder, graças à guerra. «...
Na Suíça, na América do Norte – continua Estaline – onde onde não há e nunca houve
senhores da terra (?), onde o poder pertencia indivisivelmente à burguesia, as
nacionalidades desenvolvem-se livremente, não há lugar em geral para a opressão
nacional...» O autor esquece completamente a questão dos negros e a questão colonial
nos Estados-Unidos.
Desta análise desesperadamente provinciana, que consiste unicamente a
estabelecer um vago contraste entre o feudalismo e a democracia, decorrem as
conclusões políticas puramente liberais. «Fazer desaparecer da cena política a
aristocracia feudal, arrancar-lhe o poder – isso precisamente significa liquidar a opressão
nacional, criar as condições de facto necessárias para a libertação nacional. Na medida
onde a revolução russa venceu – escreve Estaline – ela já criou essas condições de
facto...» Temos aqui, parece, uma apologia da «democracia» imperialista mais
nitidamente baseada sobre um princípio que tudo o que foi escrito, sobre esse tema,
nesses mesmos dias, pelos mencheviques. Tal como, na política exterior, Estaline, a
seguir a Kamenev, esperava, pela divisão do trabalho com o governo provisório, chegar a

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uma paz democrática, assim, na política interior, ele achava na democracia de príncipe
Lvov «as condições de facto» da liberdade nacional.
Na realidade, a queda da monarquia revelava completamente pela primeira vez que
não somente os proprietários reaccionários, mas também toda a burguesia liberal e, por
detrás dela, toda democracia pequeno-burguesa, com alguns líderes patriotas da classe
operária, se mostravam os adversários irredutíveis de uma verdadeira igualdade dos
direitos nacionais, isto é a supressão dos privilégios da nação dominante: todo o seu
programa se traduzia ao alívio, ao polimento cultural e ao disfarce democrático da
dominação gran-russa.
Na Conferência de Abril, defendendo a resolução de Lenine sobre a questão
nacional, Estaline parte formalmente desse ponto que «a opressão nacional, é o
sistema... são as medidas... que são aplicadas pelos círculos imperialistas», mas ele cai
logo inevitavelmente na sua posição de Março. «Mais o país é democrático, mais fraco é
a opressão nacional, e inversamente», tal é a conversa abstracta do relator, que lhe é
própria e não emprestada de Lenine. O facto que a Inglaterra democrática oprime a Índia
feudal com as suas castas, continua a escapar ao seu campo de vista limitado.
Diferentemente da Rússia, onde dominava «uma velha aristocracia terrena» - continua
Estaline – em Inglaterra e na Áustria-Hungria, a opressão nacional nunca tomou a forma
de um progrom.» Como se em Inglaterra nunca existisse aristocracia terrena, ou como se,
em Hungria, esta aristocracia não dominasse até hoje! O carácter do desenvolvimento
histórico, combinando a «democracia» com o amordaçar das nações fracas, continuava
para Estaline um livro fechado a sete chaves.
Que a Rússia se tenha constituído como um Estado de nacionalidades, é o resultado
do seu atraso histórico. Mas o atraso é um conceito complexo, inevitavelmente
contraditório. Um país atrasado não caminha nos passos de um país avançado mantendo
sempre a mesma distância. Na época da economia mundial, as nações atrasadas,
inserindo-se sob a pressão das nações avançadas na cadeia geral do desenvolvimento,
saltam por cima de um certo número de escalas intermediárias. Ainda mais, a ausência de
formas sociais e de tradições estabilizadas faz com que um país atrasado – pelo menos
em certos limites é extremamente acessível à última palavra da técnica mundial e do
pensamento mundial. Mas o atraso é sempre o atraso. O desenvolvimento no conjunto
toma um carácter contraditório e combinado. O que caracteriza a estrutura social de uma
nação atrasada, é o predomínio de polos históricos extremos, de camponeses atrasado e
de proletários avançados, sobre as formações médias, sobre a burguesia. As tarefas de
uma classe caem sobre os ombros de outra. O extermínio dos restos medievais torna-se
também, no domínio nacional, o assunto do proletariado.
Nada caracteriza tão claramente o atraso histórico da Rússia, se a considerarmos
como um país europeu, isto: no século XX, ela teve que liquidar o aluguel forçado e as
zonas de residência dos judeus, isto é a barbárie da servidão e do gueto. Mas, para
resolver essas tarefas, a Rússia, precisamente no seguimento do seu desenvolvimento
atrasado, possuía novas classes, novos partidos e programas modernos no mais alto

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grau. Para acabar com as ideias e métodos de Rasputine, a Rússia necessitou das ideias
e dos métodos de Marx.
A prática política continuava, na verdade, muito mais primitiva que a teoria, porque
as coisas modificam-se mais dificilmente que as ideias. A teoria contudo não estava aí
para empurrar até às extremas deduções as necessidades da prática. Para obter a
emancipação e um progresso cultural, as nacionalidades oprimidas viam-se forçadas em
ligar a sua sorte à da classe operária. E isso era-lhes indispensável de se desembaraçar
da direcção dos seus partidos burgueses e pequeno-burgueses, isto é de precipitar a
caminhada da sua evolução histórica.
A subordinação dos movimentos nacionais no processo essencial da revolução, à
luta do proletariado pelo poder, realiza-se não de uma só vez, mas em várias fases, e
diferentemente segundo as diversas regiões do país. Os operários, os camponeses e os
soldados ucranianos, russos brancos ou tartares, hostis a Kerensky, à guerra e à
russificação, tornavam-se mesmo por aí, apesar da direcção de conciliadores, os aliados
da insurreição proletária. Após ter objectivamente apoiado os bolcheviques, eles viram-se
forçados, na etapa seguinte, a se comprometer subjectivamente na via do bolchevismo.
Em Finlândia, em Letónia, em Estónia, mais fracamente em Ucrânia, a dissociação do
movimento nacional toma já em Outubro uma acuidade que só a intervenção das tropas
estrangeiras pode impedir o sucesso da insurreição proletária. No Oriente asiático, onde o
despertar nacional se realizava nas formas mais primitivas, caía gradualmente, e com um
atraso considerável sob a direcção do proletariado, após a conquista do poder por aquele.
Se se considerar no seu conjunto o processo complexo e contraditório, a dedução é
evidente: a corrente nacional, tal como a corrente agrária, vazava-se no leito da
Revolução de Outubro.
A passagem inelutável e irresistível das massas indo dos mais elementares
problemas da emancipação política, agrária, nacional, a caminho do proletariado,
procedia não a uma agitação «demagógica», nem com esquemas preconcebidos, nem
com a teoria da revolução permanente, como pensavam os liberais e os conciliadores,
mas a estructura social da Rússia e as circunstâncias da situação mundial. A teoria da
revolução permanente formulava somente o processo combinado do desenvolvimento.
Não se tratava aqui somente da Rússia. A subordinação das revoluções nacionais
atrasadas à revolução do proletariado tem o seu determinismo sobre o plano mundial.
Enquanto que no século XIX a tarefa essencial das guerras e das revoluções consistia
ainda em assegurar às forças produtoras um mercado nacional, a tarefa do nosso século
consiste em libertar as forças produtoras das fronteira nacionais que se tornaram estorvos
para elas. Num sentido histórico largo, as revoluções do Oriente são graus da revolução
mundial do proletariado, tal como os movimentos nacionais da Rússia voltaram-se a graus
diverso para a ditadura soviética.
Lenine tinha apreciado com notável profundidade a força revolucionária inerente à
sorte das nacionalidades oprimidas, tanto na Rússia czarista como no mundo inteiro. A
seus olhos não merecia senão desprezo esse «pacifismo» hipócrita que «condena»
igualmente a guerra do Japão contra a China para escravizar esta, e a guerra da China

623
contra o Japão para se emancipar. Para Lenine, uma guerra de emancipação, oposta a
uma guerra de opressão imperialista, era somente uma outra forma de revolução nacional
que, por sua vez, inseria-se como um anel indispensável, na luta emancipadora da classe
operária no mundo inteiro.
Desse julgamento sobre as revoluções e as guerras nacionais não decorre de forma
nenhuma o reconhecimento de qualquer missão revolucionária da burguesia das nações
coloniais e semi-coloniais. Pelo contrário, precisamente, a burguesia dos países
atrasados, logo desde da sua tenra idade, desenvolve-se como uma agência do capital
estrangeiro e, ainda se ela tenha em relação e este último uma hostilidade ciumenta,
encontra-se e encontrar-se-à em todos os casos decisivo unida a ele no mesmo campo. O
sistema chinês de compradores é a forma clássica da burguesia colonial, tal como o
Komintang é o partido clássico dos compradores. As cimeiras da pequena-burguesia,
nesse número os intelectuais, podem tomar parte activa, às vezes ruidosamente, na luta
nacional, mas não são de forma nenhuma capazes de desempenhar um papel
independente. Só a classe operária, tendo tomado a cabeça da nação, pode levar até ao
fim uma revolução nacional ou agrária.
O erro fatal dos epígonos, antes de tudo Estaline, consiste em que a doctrina de
Lenine sobre o significado histórico progressista da luta das nações oprimidas, ele
concluíram numa missão revolucionária da burguesia dos países coloniais. A
incompreensão do carácter permanente da revolução na época imperialista; a
esquematização pedantesca do desenvolvimento; a desarticulação do processo vivo
combinado em frases mortas separadas inevitavelmente uma da outra no tempo, tudo
isso levou Estaline a uma idealização vulgar da democracia, ou então da «ditadura
democrática» que, na realidade, pode ser um uma ditadura imperialista, ou uma ditadura
do proletariado. De degrau em degrau, o grupo de Estaline veio, por esta via, a romper
completamente com a posição de Lenine na questão nacional e a fazer uma política
catastrófica em China.
Em Agosto de 1927, na luta contra a oposição (Trotsky, Rakovky e outros), Estaline
dizia em plenário do comité central dos bolcheviques: «A revolução nos países
imperialistas – é uma coisa: aí, a burguesia... é contra-revolucionária em toas as fases da
revolução... A revolução nos países coloniais e submetidos, é outra coisa... Aí, a
burguesia nacional, numa certa fase e por um certo tempo, pode apoiar o movimento
revolucionário do seus país contra o imperialismo». Com reticências e atenuações que
caracterizam somente a sua auto-confiança, Estaline reporta aqui sobre a burguesia
colonial os mesmos traços que ele atribuía em Março à burguesia russa. Conformando-se
ao seu carácter profundamente orgânico, o oportunismo estalinista, como a acção das leis
da gravidade, abre caminho por diversos canais. A escolha dos argumentos teóricos é,
nesse caso, uma assunto puramente fortuito.
O julgamento de Março no que diz respeito ao governo provisório reportado sobre o
governo «nacional» em China, conduzia a uma colaboração durante três anos de Estaline
com o Komintang que constitui um dos factos mais espantosos da história moderna: na
qualidade de fiel escudeiro, o bolchevismo dos epígonos acompanhou a burguesia

624
chinesa até ao 11 de Abril de 1927, isto é até à repressão sangrenta que ela exerceu
sobre o proletariado de Shangai. «O erro essencial da oposição – dizia Estaline, para
justificar a sua fraternidade de armas com Tchang Kaichek – consiste nisto que ele
identifica a revolução de 1905 na Rússia, num país imperialista, que oprimiu outros povos,
com a revolução em China, num país oprimido...» É surpreendente que o próprio Estaline
não tenha tido a ideia de tomar a revolução na Rússia, não do ponto de vista de uma
nação «tendo oprimido outros povos», mas do ponto de vista da experiência «dos outros
povos» desta mesma Rússia que tinha sofrido uma opressão e não menor que aquela
imposta aos chineses.
Sobre o imenso campo de experiências que a Rússia representou no decurso de
três revoluções, pode-se encontrar todas as variantes da luta das nacionalidades e das
classes, salvo uma: não se viu que a burguesia de uma nação oprimida tenha jogado um
papel emancipador em relação do seu próprio povo. Em todas as etapas do seu
desenvolvimento, a burguesia da periferia, qualquer que seja a cor com a qual ela se
veste, dependia invariavelmente dos bancos centrais, dos trusts, das firmas comerciais,
estando em suma a agência do capital de toda a Rússia, se submetendo às suas
tendências russificadoras e submetendo a essas tendências mesmo as largas esferas da
intelligentsia liberal e democrática. Mais a burguesia da periferia se mostrava «madura»,
mais ela se encontrava estreitamente ligada ao aparelho geral do Estado. Tomada no seu
conjunto, a burguesia das nações oprimidas jogava em relação à burguesia dirigente do
mesmo papel de compradores que esta preenchesse em relação ao capital financeiro
mundial. A hierarquia complexa das dependências e dos antagonismos não afastava um
só dia a solidariedade fundamental na luta contra as massas insurrectas. FASA
No período da contra-revolução (de 1907 a 1917), quando a direcção do movimento
nacional concentrada nas mãos da burguesia alógena, esta, mais precisamente ainda que
os liberais russos, procura entender-se com a monarquia. Os burgueses polacos, bálticos,
tatares, ucranianos, judeus rivalizavam de patriotismo imperialista. Após a insurreição de
Fevereiro, eles se esconderam por detrás dos cadetes, ou então, segundo o exemplo dos
cadetes, por detrás dos conciliadores nacionais. Na via do separatismo, a burguesia das
nações da periferia compromete-se, em outono de 1917, não nas lutas contra a opressão
nacional, mas na luta contra a revolução proletária que se aproxima. No total, a burguesia
das nações oprimidas mostra tanto hostilidade em relação à revolução como a burguesia
gran-russa.
A formidável lição histórica de três revoluções não tinha portanto deixado traços para
os numerosos actores dos acontecimentos – sobretudo para Estaline. A concepção
conciliadora, isto é a pequena-burguesia, das relações recíprocas das classes no interior
das nações coloniais, que perdeu a revolução chinesa de 1925-1927, inscrevia-se nos
epígonos mesmo no programa da Internacional comunista, transformando este, nesta
parte, uma verdadeira armadilha para os povos oprimidos do Oriente.
Para compreender o verdadeiro carácter da política nacional de Lenine, o melhor é –
segundo o método de contrastes – confrontá-la com a política da social-democracia
austríaca. Enquanto que o bolchevismo se orienta para um explosão de revoluções

625
nacionais desde de dezenas de anos, educando esta vista os operários avançados, a
social-democracia austríaca acomodava-se dócilmente da política de classes falava como
advogado da co-habitação forçada de dez na monarquia austro-húngara e, ao mesmo
tempo, absolutamente incapaz de realizar a unidade revolucionária dos operários das
diferentes nacionalidades, as compartimentava no partido e nos sindicatos no sentido
vertical. Karl Renner, funcionário instruído dos Habsburgo, procurava infatigavelmente no
tinteiro do austro-marxismo os meios de rejuvenescer o Estado dos Habsburgo, até ao
momento quando ele viu o teórico em viuvez da monarquia austro-húngara. Quando os
Impérios da Europa central foram batidos, a dinastia dos Habsburgo tentaram ainda
erguer, sob o seu ceptro, a bandeira de uma federação de nações autónomas: o
programa oficial da social-democracia austríaca, tornou-se por um momento o programa
da própria monarquia, coberta de sangue e de lama de quatro anos de guerra.
O círculo de ferro ferrugento que ligava numa só peça dez nações rebentou em
bocados. A Áustria-Hungria afundou-se, deslocada pelas tendências centrífugas íntimas
que corroborava a cirurgia de Versalhes. Novos Estados se formavam, os antigos se
recriavam. Os alemãs da Áustria encontraram-se debruçados sobre o abismo. A questão
para eles era não de conservar a sua soberania sobre outras nações, mas evitar o perigo
deles próprios caírem sob outro poder. Otto Bauer, representante da ala «esquerda» da
social-democracia austríaca, considerou que esse momento era favorável para que se
avançasse a fórmula do direito das nacionalidades a disporem de elas próprias. O
programa que deveria, durante as dezenas de anos precedentes, inspirar a luta do
proletariado contra os Habsburgo e a burguesia dirigente, se encontra transformada num
momento de defesa da própria nação que, ainda na véspera, era dominante e que estava
ameaçada hoje do lado dos povos eslavos emancipados. Tal como o programa reformista
da social-democracia austríaca se tornou um instante a palha que a monarquia náufraga
tentou de se agarrar – a fórmula gasta do austro-marxismo devia tornar-se a bóia de
salvação da burguesia alemã.
No 3 de Outubro de 1918, quando a questão já não dependia deles, os deputados
sociais-democratas do Reichrat «reconheceram» generosamente o direito dos povos do
antigo império à independência. No 4 de Outubro, o programa do direito das nações a
disporem de elas próprias foi adoptado também pelos partidos burgueses. Tendo
ultrapassado assim os imperialistas austro-alemãs por um dia completo, a social-
democracia continuava portanto a agarrar-se à expectativa: não se sabia como as coisas
se passariam e o que diria Wilson. Foi somente no 13 de Outubro, quando a derrota
definitiva das tropas da monarquia criou «a situação revolucionária pela qual – pretendia
Bauer – o nosso program nacional tinha sido concebido», foi somente então que os
austro-marxistas colocaram praticamente a questão do direito das nações a disporem de
elas próprias: na verdade, eles já não tinham nada a perder. «Com o afundamento da sua
potência sobre as nações – explica Bauer com toda a franqueza – a burguesia de
nacionalidade alemã considerou como terminada a missão histórica em nome da qual ela
tinha aceite voluntariamente em se separar da pátria alemã.» O novo programa circulou
não porque ele era necessário aos oprimidos, mais porque ele tinha deixado de ser
perigoso para os opressores. As classes possuidoras, entaladas numa greta histórica,

626
viram-se obrigados a reconhecer de facto a revolução nacional; o austro-marxismo julgou
oportuno de a legalizar teóricamente. É uma revolução madura, oportuna, históricamente
preparada: e aliás ela já está realizada! A alma da social-democracia, têmo-la lá diante de
nós ao alcance da mão.
Era outra coisa para a revolução social, que não contava de forma nenhuma sobre o
reconhecimento das classes possuidoras. Era preciso afastá-la, comprometê-la. Dado que
o Império se rasgava naturalmente nas costuras mais fracas, as costuras nacionais, Otto
Bauer faz esta dedução sobre o carácter da revolução: «Não foi de forma nenhuma uma
revolução social, era uma revolução nacional.» Na realidade, o movimento, desde do
princípio, tinha um conteúdo profundamente social-democrata. O carácter «puramente»
nacional da revolução não estava mal ilustrado ora esse facto que as classes possuidoras
do Áustria propunham abertamente à Entenda prender todo o exército. A burguesia alemã
suplicava um general italiano de ocupar Viena com as suas tropas!
Uma dissociação vulgarmente pedantesca da forma nacional e do conteúdo social
de um processo revolucionário, considerados como duas pretensas fases históricas
independentes – nós vemos como Otto Bauer se aproxima aqui de Estaline! - tinha uma
forte destinação utilitária: ela devia justificar a colaboração da social-democracia com a
burguesia na luta contra os perigos de uma revolução social.
Se admitirmos, segundo Marx, que a revolução seja uma locomotiva da história, o
austro-marxismo deve ter o lugar de travão. Já, após a queda de facto da monarquia, a
social-democracia, chamada a participar no poder, não se decidia ainda separar-se dos
velhos ministros dos Habsburgo: a revolução «nacional» limitava-se a consolidá-los em
lhes juntando os secretários de Estado. Foi somente após o 9 de Novembro, quando a
revolução alemã derrubou os Hohenzollern, que a social-democracia austríaca propôs ao
Conselho de Estado (Staatrat) proclamar a república, assustando os parceiros burgueses
por um movimento de massa que ela própria temia tanto. «Os cristãos-sociais, - disse
Otto Bauer com uma ironia imprudente, - que, no 9 e o 19 de Novembro, eram pela
monarquia, decidira-se, no 11 de Novembro, deixar de resistir...» Dos dois dias inteiros, a
social-democracia tinha ultrapassado o partido dos monárquicos Cem-Negros! Todas as
heróicas legendas da humanidade coravam diante de tal discurso revolucionário.
Mesmo assim, a social-democracia, desde do princípio da revolução, se encontra
automaticamente à cabeça da nação, como tinha acontecido aos mencheviques e aos
socialistas-revolucionários russos. Tal como estes últimos, ela tinha sobretudo medo da
sua própria força. No governo de coligação, ela esforçava-se em ocupar o mais pequeno
canto possível. Otto Bauer explica-o: «O carácter puramente nacional da revolução
respondia em primeiro lugar o facto que os sociais-democratas reclamavam somente uma
participação muito modesta no governo. A questão de poder resolveu-se para essa gente
não por uma relação de forças, não por uma força do movimento revolucionário, não pela
bancarrota das classes dominantes, não pela influência política do partido, mas pela
etiqueta pedante de uma «revolução nacional» colada aos acontecimentos por doutos
classificadores.

627
Karl Renner esperou que a tempestade passasse como chefe da chancelaria do
Conselho de Estado. Os outro líderes sociais-democratas se transformaram em adjuntos
dos ministros burgueses. Por outros termos, os sociais-democratas esconderam-se
debaixo das secretárias. As massas, todavia, não consentiam a se alimentar da concha
nacional que os austro-marxistas mantinham a multa social para a burguesia. Os
operários e os soldados obrigaram os sociais-democratas a sair dos seus esconderijos. O
insubstituível teórico Otto Bauer explica: «Foram somente os acontecimentos dos dias
seguintes que, empurrando a revolução nacional no sentido de uma revolução social,
aumentaram o nosso peso no governo.» Tradução em linguagem clara: sob a pressão das
massas, os sociais-democratas viram-se forçados a sair debaixo das mesas.
Mas, não faltava nada à sua vocação, eles tomaram o poder somente para levar a
guerra contra o romantismo e o espírito de aventura: sob esses termos figura entre os
sicofantes a mesma revolução social que aumentou o seu «peso no governo». Se os
austro-marxistas preencheram com sucesso em 1918 a sua missão histórica de anjos da
guarda da Kreditanstalt de Viena contra o romantismo revolucionário do proletariado, foi
somente porque eles não encontraram obstáculos do lado de um verdadeiro partido
revolucionário.
Dois Estados formados de diversas nacionalidades, a Rússia e a Áustria-Hungria,
marcaram pelos seus recentes destinos a oposição do bolchevismo e do austro-
marxismo. Durante cerca de quinze anos, Lenine proclama, na luta implacável contra
todas as nuanças do chauvinismo gran-russo, o direito de todas as nações oprimidas a se
destacar do Império dos czares. Acusavam os bolcheviques de querer o
desmembramento da Rússia. Ora, uma ousada definição revolucionária da questão
nacional criou o inquebrável confiança dos povos oprimidos, pequenos e atrasados, da
Rússia czarista para com o partido bolchevique. Em Abril de 1917, Lenine dizia: «Se os
ucranianos vêm que nós temos uma república de sovietes, eles não se separarão; mas se
nós temos uma república de Miliokov, eles se separarão.» Ainda nesse caso ele tinha
razão. A história verificou as duas políticas da questão nacional. Enquanto que a Áustria-
Hungria, cujo proletariado foi educado num espírito de hesitações cobardes, caía aos
bocados, enquanto que a iniciativa do afundamento era tomada sobretudo pelos
elementos nacionais da social-democracia, sobre as ruínas da Rússia czarista criava-se
um novo Estado formado de nacionalidades economicamente e politicamente ligadas de
uma maneira estreita pelo partido bolchevique.
Qualquer que sejam os destinos ulteriores da União soviética – e ela ainda está
longe de acabar – a política nacional de Lenine entrará para sempre no sólido material da
humanidade.

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O comité militar revolucionário
Apesar reviravolta que tinha começado cerca do fim de Julho na guarnição renovada
de Petrogrado, no decorrer de Agosto, predominavam ainda os socialistas-revolucionários
e os mencheviques. Certos efectivos militares continuavam impregnados de uma grande
desconfiança em relação aos bolcheviques. O proletariado não tinha armas: a Guarda
vermelha só tinha conservado alguns milhares de espingardas. A insurreição, nestas
condições, teria podido terminar por uma cruel derrota, ainda se as massas, de novo
voltassem aos bolcheviques.
A situação modificava-se constantemente no decorrer de Setembro. Após a revolta
dos generais, os conciliadores perderam rapidamente o seu apoio na guarnição. À
desconfiança em relação aos bolcheviques sucederam as simpatias, no pior dos casos
uma neutralidade de expectativa. Mas a simpatia não era activa. A guarnição continuava,
do ponto de vista político, extremamente pouco claro e, à moda dos mujiques,
desconfiada: os bolcheviques não enganariam? Dariam efectivamente a paz e a terra?
Lutar por tais tarefas sob a bandeira dos bolcheviques, a maioria dos soldados ainda não
se dispunha a isso. E como na composição da guarnição restava uma minoria pouco mais
ou menos irredutível, hostil aos bolcheviques (de cinco a seis mil junkeres, três
regimentos de cossacos, um batalhão de blindados), a conclusão do conflito apresentava-
se mesmo em Setembro como duvidosa. Ajudando, a marcha dos acontecimentos deu
ainda uma lição de coisas na qual a sorte de Petrogrado encontrou-se indissoluvelmente
ligada à sorte da revolução e dos bolcheviques.
O direito de dispor de contingentes de homens armados é o direito fundamental de
um poder de Estado. O primeiro governo provisório, imposto ao povo pelo Comité
executivo, tinha-se comprometido em não desarmar e nem evacuar de Petrogrado as
tropas que tinham participado à insurreição de Fevereiro. Tal é o princípio formal de uma
dualidade militar inseparável no fundo da dualidade de poderes. Os grandes terramotos
políticos dos meses seguintes – demonstração de Abril, jornadas de Julho, preparação do
motim korniloviano e a sua liquidação – concluíam inevitavelmente cada vez à questão de
submeter a guarnição de Petrogrado. Mas os conflitos sobre esse terreno entre o governo
e os conciliadores tinham, finalmente, um carácter familiar e se terminavam
amigavelmente. Com a bolchevização da guarnição, o assunto tomava outro aspecto.
Agora os próprios soldados lembravam o compromisso concluído em Março pelo governo
ao Comité executivo central e violado traiçoeiramente pelas duas partes. A 8 de
Setembro, a secção dos soldados do soviete reclama o regresso a Petrogrado dos
regimentos expedidos para a frente no seguimento dos acontecimentos de Julho. Ora, os
participantes da coligação questionavam-se como expulsar os outros regimentos.
Em grande número de cidades provinciais, a situação era pouco mais ou menos a
mesma que na capital. No decorrer de Julho e Agosto, as guarnições locais sofreram a
reforma patriótica; no decorrer do mês de Agosto e Setembro, as guarnições renovadas
cederam à bolchevização. Era preciso recomeçar, isto é, renová-las. Preparando um
golpe em Petrogrado, o governo começou pela província. Os motivos políticos eram

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cuidadosamente dissimulados sob motivos estratégicos. No 27 de Setembro, a
assembleia unificada dos sovietes de Reval, da cidade e da fortaleza, sobre a questão da
expulsão das tropas, decidiu: não admitir como possível um reagrupamento dos efectivos
só com o consentimento prévio dos sovietes respectivos. Os dirigentes do soviete de
Vladimir perguntaram a Moscovo se eles deviam se submeter à ordem de Kerensky
ordenando a partida de toda a guarnição. O Burô regional moscovita dos bolcheviques
constatou que «as ordens deste tipo tornam-se sistemáticas em relação às guarnições
animadas de um espírito revolucionário». Antes de ceder todos os seus direitos, o
governo provisório tentava utilizar o direito essencial de todo o regime – o de dispor das
forças armadas.
A deslocação da guarnição de Petrogrado tornava-se de tal forma urgente que o
próximo congresso dos sovietes devia, de uma maneira ou outra, levar a luta pela
conquista do poder até à sua conclusão. A imprensa burguesa, governada pela Rietch dos
cadetes, repetia cada dia que não se podia deixar aos bolcheviques a possibilidade «de
escolher o seu momento para declarar a guerra civil». Isso significava: ataquemos nós
próprios no melhor momento os próprios bolcheviques. A tentativa de modificação prévia
das relações de força na guarnição decorria daí inevitavelmente. Os argumentos de
ordem estratégica tinham um ar convincente após a queda de Riga e da perca das ilhas
Monsund. O estado-maior do bairro enviou instruções ordenando mudanças dos efectivos
de Petrogrado tendo em vista expedi-los para a frente. Ao mesmo tempo, a questão era,
sobre a iniciativa dos conciliadores, levada à secção dos soldados. O plano dos
adversários não era mau: após ter apresentado um ultimatum estratégico ao soviete,
arrancar aos bolcheviques de um só golpe o apoio militar que eles tinham, ou então, em
caso de resistência do soviete, provocar um conflito grave entre a guarnição de
Petrogrado e a frente que necessitava de reforços e de revezamento.
Os dirigentes do Soviete, que se davam conta da armadilha preparada, tinham a
intenção de apalpar primeiro o terreno antes de dar um passo irremediável. Recusar a
execução de uma ordem só era possível com a condição de estar seguro que os motivos
da recusa seriam exactamente compreendidos pela frente. No caso contrários, podia ser
mais vantajoso efectuar, de acordo com as trincheiras, uma troca de contingentes da
guarnição contra as tropas revolucionárias da frente que necessitavam repouso. É
precisamente nesse espírito, como já se viu mais acima, que o soviete de Reval já se
tinha pronunciado.
Os soldados abordavam a questão de uma maneira mais directa. Ir à frente agora,
no fim de outono, resignar-se a uma nova campanha de inverno – não, essa ideia não
lhes entrava na cabeça. A imprensa patriótica abriu imediatamente fogo sobre a
guarnição: os regimentos de Petrogrado, que engordaram na ociosidade, traíam mais
uma vez a frente. Os operários interpuseram-se a favor dos soldados. Os das fábricas de
Potilov foram os primeiros a protestar contra a evacuação dos regimentos. A questão não
deixava de estar na ordem do dia não somente nas casernas, mas também nas fábricas.
Isso ligou mais estreitamente as duas secções do Soviete. Os regimentos apoiaram então
com diligência particularmente a reivindicação do armamento dos operários.

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Esforçando-se em aquecer o patriotismo das massas com a ameaça da perca de
Petrogrado, os conciliadores introduziram, no dia 9 de Outubro, no soviete, a proposição
de criar «um comité de defesa revolucionário», que teria como tarefa participar na defesa
da capital com o concurso activo dos operários. Recusando tomar a responsabilidade «da
pretensa estratégia do governo provisório, e, em particular, da evacuação das tropas de
Petrogrado», o soviete, todavia, não se apressava em se pronunciar sobre a ordem, mas
decidiu verificar os motivos e as razões. Os mencheviques tentaram protestar: não é
admissível que se intrometam nas ordem dadas pelo comando para as suas operações.
Mas, seis semanas antes, eles tinham dito o mesmo das ordens do conspirador Kornilov –
e lembram-lhes disso. Para verificar se a evacuação dos regimentos era ditada por
considerações militares ou políticas, acharam que tinham necessidade de um órgão
competente. Para estupefacção dos conciliadores, os bolcheviques adoptaram a ideia de
um «Comité de defesa»: precisamente era ele que deveria concentrar nas suas mãos
todos os dados sobre a defesa da capital. Foi um passo importante. Ao arrancar uma
arma perigosa das mãos do adversário, o soviete guardava para ele a possibilidade,
segundo as circunstâncias, de voltar a decisão sobre o envio para a frente das tropas num
sentido ou outro, mas, de qualquer forma, contra o governo e os conciliadores.
Os bolcheviques apoderaram-se naturalmente do projecto menchevique de um
Comité militar que, nas suas próprias fileiras, tinham-se entendido mais de uma vez sobre
a necessidade de formar um órgão soviético autorizado que dirigia a futura insurreição.
Na Organização militar do partido elaboravam mesmo um projecto com esse objectivo. A
dificuldade que, até então, não se podia ultrapassar, foi de combinar o órgão da
insurreição com o soviete eleito e agindo abertamente, onde se encontravam aliás
representantes dos partidos hostis. A iniciativa patriótica dos mencheviques veio a
propósito facilitar a criação de um Estado-maior revolucionário, que logo tomou o nome de
«Comité militar revolucionário» e tornou-se a principal alavanca da insurreição.
Dois anos depois dos acontecimentos relatados aqui, o autor desse livro, num artigo
consagrado à insurreição de Outubro, escrevia: «Logo que a ordem de evacuar os
efectivos foi transmitido do estado-maior de bairro ao Comité executivo do Soviete de
Petrogrado. Tornou-se claro que esta questão, no seu desenvolvimento ulterior, podia
tomar importancia política decisiva. «A ideia da insurreição começou logo a tomar corpo.
Não havia necessidade de se inventar mais um órgão soviético. O destino efectivo do
futuro Comité foi sublinhado de forma inequívoca pelo facto que a relação sobre a saída
dos bolcheviques do pré-parlamento terminou, por Trotsky, na mesma sessão, com esta
exclamação: «Viva a luta directa e aberta pelo poder revolucionário no país!» Era traduzir
na linguagem da legalidade soviética a palavra de ordem: «Viva a insurreição armada!».
Mesmo no dia seguinte, a 10, o Comité central dos bolcheviques adoptou em sessão
secreta a moção de Lenine, fazendo da insurreição armada a tarefa prática dos próximos
dias. O partido adoptava desde então uma posição de combate clara e imperativa. O
comité de defesa inseria-se na perspectiva da luta imediata pela conquista do poder.
O governo e os seus aliados rodeavam a guarnição com círculos concêntricos. No
dia 11, o general Tcheremissov, comandante da frente Norte, comunicou ao ministro da

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Guerra uma reclamação dos comités do exército, exigindo a substituição dos efectivos
cansados da frente pelos da retaguarda, os de Piter. O estado-maior da frente não era,
nesse caso, senão uma instância de transmissão entre os conciliadores do exército e
seus dirigentes de Petrogrado que se esforçavam em criar um extenso disfarce para os
planos de Kerensky. A imprensa da coligação acompanhava a operação de cerco por uma
sinfonia de patriotismo enraivecido. As reuniões diárias de regimentos e de fábricas
provavam, todavia, que a música dos dirigentes não produzia sobre a base a menor
impressão. No dia 12, a assembleia geral dos operários de uma das mais revolucionárias
fábricas da capital (Stary-Parvyeinen) respondeu aos ataques incessantes da imprensa
burguesia: «Nós afirmamos com firmeza que manifestaremos na rua quando julgarmos
indispensável. Não temos medo da luta que se anuncia em breve e acreditamos
firmemente que sairemos vencedores.»
Criando uma comissão para elaborar os estatutos do «Comité de defesa», o Comité
executivo de Petrogrado fixou ao futuro órgão militar as tarefas seguintes: ligar-se com a
frente Norte e com o Estado-maior do bairro de Petrogrado, com a organização central do
Báltico (Tsentrobalt) e o soviete regional da Finlândia para elucidar a situação de guerra e
tomar as medidas indispensáveis; fazer o recenseamento do pessoal da guarnição de
Petrogrado e arredores, assim como o inventário das munições e do abastecimento;
tomar medidas para manter a disciplina nas massas dos soldados e dos operários. As
formas eram muito gerais e, ao mesmo tempo, equívocas: elas estavam quase todas nos
limites entre a defesa da capital e a insurreição armada. Todavia, esses dois problemas,
que se excluíam até então um ao outro, aproximavam-se agora de facto: tendo tomado o
poder, o soviete deverá encarregar-se também da defesa militar de Petrogrado. O
elemento de disfarce da defesa não era de forma a introduzir pela força exterior, mas
procedia até um certo grau das condições de véspera de insurreição.
Com o objectivo de proceder aos mesmos disfarces, colocaram à cabeça da
comissão encarregada de elaborar os estatutos do Comité um socialista-revolucionário
em vez de um bolchevique, um jovem e modesto funcionário da intendência, Lasimir, um
desses socialistas-revolucionários de esquerda que, antes da insurreição, marchavam
completamente com os bolcheviques, sem prever, na verdade, onde isso lhes levaria. O
projecto primitivo de Lasimir foi submetido à redacção de Trotsky em dois sentidos: as
tarefas práticas da conquista da guarnição foram precisadas, o objectivo geral
revolucionário foi ainda mais esbatido. Aprovado pelo Comité executivo, apesar dos
protestos de dois mencheviques, o projecto introduzia no Comité militar revolucionário os
escritórios do soviete e da secção dos soldados, da frota, do Comité regional da Finlândia,
do sindicato dos ferroviários, dos comités de fábrica, dos sindicatos em geral, das
organizações militares do partido, da Guarda vermelha, etc. A base organizativa era a
mesma em muitos outros casos. Mas a composição do Comité era pré-determinada pelas
suas novas tarefas. Supunha-se que as organizações enviariam representantes
competentes nos assuntos militares ou familiarizados com a guarnição. A função devia
determinar o órgão.
Não menos importante foi outra nova formação; junto do Comité militar
revolucionário, criaram uma Conferência permanente da guarnição. A secção dos

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soldados representava a guarnição do ponto de vista político: os deputados foram eleitos
sob as bandeiras dos partidos. Mas a Conferência da guarnição devia compor-se de
comités de regimentos que, dirigindo a vida diária das tropas, eram a sua representação
«corporativa», prática, a mais imediata. A analogia entre os comités de regimento e os de
fábrica impunha-se por ela própria. Por intermediário da secção operária do soviete, os
bolcheviques podiam apoiar-se com segurança, nas grandes questões políticas, sobre os
operários. Mas, para se tornarem mestres nas fábricas era indispensável arrastar os
comités de fábrica. Pela sua composição, a Secção dos soldados garantia aos
bolcheviques as simpatias políticas da maioria da guarnição. Todavia, para dispor
praticamente das tropas, era preciso apoiar-se directamente sobre os comités de
regimento. Assim se explica como, no período que precedeu a insurreição, a conferência
da guarnição tomou um lugar de primeiro plano, retrogradando naturalmente a Secção
dos soldados. Os delegados que mais se destacavam na Secção faziam aliás parte da
Conferência.
Num artigo escrito poucos dias antes, A crise amadureceu, Lenine advertia:
«Que fez o partido para estudar as posições das tropas? etc.»
Apesar do trabalho cheio de abnegação da Organização militar, as queixas de
Lenine eram justas. O estudo, de um ponto de vista puramente militar, das forças e dos
meios conseguia dificilmente ter êxito no partido: não havia o hábito, não se sabia como
fazer. A situação se modificou de uma vez a partir do momento que surgiu a Conferência
da guarnição: desde então, sob os olhos dos dirigentes decorreu, cada dia, o panorama
das guarnições, não somente da capital, mas também nos arrabaldes militares.
No dia 12, o Comité executivo examinou as disposições elaboradas pela comissão
de Lasimir. À porta fechada, os debates terão, em grande medida, um carácter equívoco:
«Diziam uma coisa e ouvia-se outra», escreveu com razão Sokhanov. As disposições
tomadas previam junto do Comité das secções da defesa, do abastecimento, da ligação,
da informação, etc.: era um estado-maior ou um contra-estado-maior. O fim confesso da
Conferência era de saber quais eram as capacidades combativas da guarnição. Não
havia aí nada de falso. Mas a capacidade combativa podia ser aplicada de forma diversa.
Os mencheviques, com uma indignação impotente, constatavam que a ideia lançada por
eles com fins patrióticos, se transformava em disfarce de insurreição que se preparava. A
dissimulação era menos que impenetrável: toda a gente compreendia o que se passava;
mas, ao mesmo tempo, ela continuava insuperável: era exactamente assim, com efeito,
que tinham agido antes os próprios conciliadores, agrupando à volta deles, nos momentos
críticos, a guarnição e criando os órgãos de poder paralelo aos órgãos governamentais.
Os bolcheviques pareciam continuar somente as tradições da dualidade de poderes. Mas,
nos velhos moldes, eles davam-lhe um novo conteúdo. O que tinha servido antes à
conciliação servia agora à guerra civil. Os mencheviques exigiram que se inscrevesse no
processo-verbal que eles se opunham ao empreendimento no seu conjunto. Tiveram
conta deste pedido platónico.
No dia seguinte, na secção dos soldados, que muito recentemente ainda constituía a
Guarda dos conciliadores, debatia-se a questão do Comité militar revolucionário e da

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Conferência da guarnição. O lugar principal nesta sessão extremamente notável foi
ocupada pelo presidente do Tsentrobalt o marinheiro Dybenko, um gigante de barba negra
que não tinha papas na língua. O discurso do convidado de Helsingfors passou como uma
corrente de ar marítimo, fresco e picante, na atmosfera pesada da guarnição. Dybenko
falou da ruptura definitiva da frota com o governo e das novas relações com o comando.
Antes de iniciar as últimas operações navais, o almirante tinha pedido ao Congresso dos
marinheiros que tinha lugar nesses dias, se eles executariam as ordens de combate.
«Nós respondemos: executaremos, sob a condição que haja um controlo da nossa parte.
Mas… se nós vemos que a frota está em perigo de se perder, o almirante será o primeiro
enforcado na grande verga.» Para a guarnição de Petrogrado era uma nova linguagem.
Era aliás adaptada na frota somente há alguns dias. Era uma linguagem da insurreição. O
pequeno grupo dos mencheviques, estupefacto, resmungava no seu canto. O Burô
considerava ansioso a massa compacta dos capotes cinzentos. Nem uma só voz de
protesto nas suas fileiras! Os olhos queimam nos rostos exaltados. Um espírito de
coragem plana sobre a assembleia.
Em conclusão, Dybenko, aquecido pelo assentimento geral, declarou com firmeza:
«Fala-se da necessidade de encaminhar a guarnição de Petrogrado pela defesa dos
proximidades da capital e, em parte, de Reval. Não acreditem nisso. Nós próprios
defenderemos Reval. Fiquem aqui e defendam os interesses da revolução… Quando
necessitarmos do vosso apoio, nós próprios diremos e estou certo que vocês nos
apoiarão».
Este apelo, que era feito para entrar na cabeça dos soldados, levantou uma
tempestade de verdadeiro entusiasmo na qual se afogaram definitivamente os protestos
de alguns mencheviques. A questão da evacuação das tropas podia desde então ser
considerada como resolvida.
O projecto de disposições apresentada por Lasimir foi adoptado por uma maioria de
duzentos e oitenta e três votos contra um, com vinte abstenções… Esses números,
inesperados para os próprios bolcheviques, davam a medida do progresso da pressão
revolucionária das massas. O voto significava que a secção dos soldados transmitia
abertamente e oficialmente a direcção da guarnição, retirada ao estado-maior
governamental, às mãos do Comité revolucionário. Logo devia ser provado que não era
uma simples demonstração.
Nesse mesmo dia, o Comité executivo dos sovietes de Petrogrado publicou uma
informação anunciando a criação a seu lado de uma secção especial da Guarda
vermelha. O assunto do armamento dos operários que, sob os conciliadores, foi
derrotada, e tornou-se alvo de uma perseguição, apresentou-se como um dos problemas
mais importantes do soviete bolchevista. A atitude desconfiada dos soldados em relação à
Guarda vermelha foi desde há muito esquecida. Pelo contrários, em quase todas as
resoluções dos regimentos, reclamaram o armamento dos operários. A Guarda vermelha
e a guarnição alinham-se desde então conjuntamente. Logo elas estarão ainda mais
ligadas pela sua subordinação comum ao Comité militar revolucionário.

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O governo inquietou-se. Na manhã do dia 14 teve lugar, em casa de Kerensky, uma
conferência dos ministros no decurso da qual foram aprovadas as medidas tomadas pelo
estado-maior contra «a manifestação» que se preparava. Os mestres do poder
conjecturavam: desta vez, o assunto se limitaria a uma manifestação armada ou tornar-
se-ia uma insurreição? O comandante do distrito militar declarava aos representantes da
imprensa: «Em todos os casos, estamos prontos.» Os condenados sentem
frequentemente um afluxo de forças na véspera da sua execução.
Na sessão unificada dos Comités executivos, Dan, retomando as entoações que
tinha tido em Junho Tseretelli, que se tinha refugiado no Cáucaso, exigia dos
bolcheviques uma resposta a esta questão: teriam eles ideia de marchar e, se tinham,
quando? Da resposta de Riazanov, o menchevique Bogdanov deduziu, não desprovida de
fundamento, que os bolcheviques preparavam a insurreição e seriam à cabeça dos
insurrectos. O jornal dos mencheviques escrevia: «É evidente sobre a não evacuação da
guarnição que são baseados os cálculos dos bolcheviques para a próxima tomada do
poder.» Mas a tomada do poder era aqui colocada entre aspas: os conciliadores não
acreditavam ainda seriamente sobre o perigo. Eles apreendiam menos a vitória dos
bolcheviques que o triunfo da contra-revolução em resultado dos novos afrontamentos da
guerra civil.
Tendo-se encarregado de armar os operários, o soviete devia abrir o caminha para
os depósitos de armas. Isso não se fez de uma só vez. Cada diligência prática em frente
tinha sido aqui ainda sugerida pela massa. Era preciso somente considerar atentamente
as suas proposições. Quatro anos após os acontecimentos, Trotsky contava numa noite
dedicada às lembranças sobre a Revolução de Outubro: «Quando surge uma delegação
dos operários para nos dizer que nós precisávamos de armas, eu respondi: «Mas o
arsenal não está entre as nossas mãos.» Eles replicavam: «Fomos à fábrica de armas de
Sestroretsk.» - «Bem, e então?«: «Lá nos disseram-nos: se o soviete ordena, nós vos
daremos isso.» «Dei ordem de entregar cinco mil espingardas, e os operários receberam-
nas no mesmo dia. Era uma primeira experiência.» A imprensa do inimigo gritou
imediatamente, a propósito da entrega das armas por uma fábrica do Estado, por ordem
de um indivíduo que foi acusado de alta traição e libertado sob caução. O governo calou-
se. Mas então entrou em cena o órgão supremo da democracia, lançando uma ordem
severa: não entregar armas a ninguém sem a autorização do Comité executivo central.
Parecia que, na questão da entrega de armas, Dan ou então Gotz eram pouco
qualificados para proibir, como Trotsky para autorizar ou ordenar: as fábricas e os
arsenais eram da responsabilidade do governo. Mas o desdém em relação aos poderes
oficiais no momentos importantes constituiu a tradição do Comité executivo central e
estava fortemente consolidado nos hábitos do próprio governo, porque isso respondia a
natureza das coisas. A infracção cometida em relação aos usos e costumes veio portanto
de um outro lado: tendo deixado de distinguir entre os trovões do Comité executivo central
e os relâmpagos de Kerensky, os operários e os soldados não se lembravam nem duns
nem dos outros.
Era mais cómodo exigir a evacuação dos regimentos de Petrogrado em nome da
frente, do que em nome dos gabinetes da retaguarda. Partindo dessas considerações,

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Kerensky subornou a guarnição de Petrogrado ao comandante chefe da frente Norte,
Tcheremissov. Desistindo do ponto de vista militar da sua autoridade sobre a capital,
como chefe do governo, Kerensky lisonjeava-se de submetê-la melhor como
generalíssimo. Pelo seu lado, o general Tcheremissov, que deveria assumir uma pesada
tarefa, procurava a ajuda dos comissários e membros dos comités. Diante de tais
esforços, elaboraram o plano das próximas operações. Para o dia 17, o estado-maior da
frente, conjuntamente com as organizações do exército, convocou, em Pskov, os
representantes do Soviete de Petrogrado para lhes dizer, diante das trincheiras, a sua
vontade.
Não restou ao soviete de Petrogrado nada senão aceitar o desafio. A delegação de
algumas dezenas de homens, pouco mais ou menos metade dos membros do Soviete,
metade representantes dos regimentos, constituida no decurso da sessão do 16, tinha à
cabeça: o presidente da secção operária Federov e os dirigentes da secção dos soldados
e a Organização militar dos bolcheviques, Lachevitch, Sadovsky, Mekhonochine,
Dachkevitch e outros. Um certo número de socialistas-revolucionários de esquerda e de
mencheviques internacionalistas, incluidos na delegação, tinham-se comprometido em
defender em Pskov a política do soviete. Em conferência da delegação, antes da partida,
adaptaram um projecto de declaração preparado por Sverdlov.
No decurso da mesma sessão do soviete, houve um debate sobre o estatuto do
Comité militar revolucionário. Apenas formada, esta instituição tomava, cada vez mais,
aos olhos dos adversários, uma aparência cada vez mais detestável. «Os bolcheviques
não deram resposta – exclamou um orador da oposição – a esta questão directa:
preparam um levantamento? É cobardia ou um sinal de firmeza das suas próprias
forças.» Na assembleia rebenta a risada unanime: o representante do partido do governo
pede que o partido da insurreição abra o seu coração. «O novo Comité, continua o orador,
não é outra coisa senão um «estado-maior revolucionário para a tomada do poder». Eles,
mencheviques, não entrarão aí.» Quantos vocês são?» Gritam-lhes na sala. No soviete,
os mencheviques são, na verdade, pouco numerosos, no máximo cinquenta, mas eles
sabem seguramente que «as massas não aprovam de forma nenhuma o levantamento».
Na sua réplica, Trotsky não nega que os bolcheviques dispõem-se a tomar o poder: «Não
fazemos disso um segredo.» Mas, pelo momento, não se trata disso. O governo formulou
a exigência da evacuação das tropas revolucionárias de Petrogrado, «e nós
responderemos sim ou não». O projecto de Lasimir é adoptado por uma esmagadora
maioria de votos. O presidente convida o Comité militar revolucionário a meter-se ao
trabalho logo no dia seguinte. Assim, um passo foi assim dado.
O comandante do distrito militar, Polkovnikov, faz um novo relatório ao governo,
nesse dia, sobre o levantamento preparado pelos bolcheviques. O relatório redigido com
um tom corajoso: a guarnição no conjunto está ao lado do governo, as escolas dos
junkers receberam ordem para estarem prontos. Num manifesto à população, Polkovnikov
prometia aplicar, em caso de necessidade, «as medidas mais rigorosas». O presidente da
câmara municipal, Schreider, socialista-revolucionário, suplicava, pelo seu lado, «para que
não se façam desordens, riscando provocar certamente a fome na capital». Ameaçando e
conjurando, fanfarronando e assustando, a imprensa alarmava-se.

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Para agir sobre as imaginações dos delegados do soviete de Petrogrado em Pskov,
prepararam uma recepção militar de tipo teatral. No local do Estado-maior, à volta das
mesas de grandes mapas, sentaram-se os senhores generais, os altos-comissários, com
Voitinsky à cabeça, e os representantes dos comités do exército. Os chefes das secções
do estado-maior leram os relatórios sobre a situação das forças armadas sobre terra e
mar. As conclusões dos relatores concordavam num ponto: é indispensável avançar
imediatamente a guarnição de Petrogrado para defender as imediações da capital. Os
comissários e os membros de comités afastavam com indignação as desconfianças sobre
uma política de corredor: toda a operação era ditada pela necessidade estratégica. Os
delegados não tinham provas directas do contrários: em tais assuntos, as provas não
andam pelas ruas. Mas toda a situação desmentia os argumentos de estratégia. Não
eram homens que faziam falta à frente, mas os homens não queriam combater mais. O
estado de espírito da guarnição de Petrogrado não estava de forma nenhuma disposta a
consolidar a frente quebrada. Além disso, as lições dos dias kornilovianos ainda estavam
frescas nas memórias de todos. Profundamente convencida de ter razão, a delegação
manteve facilmente frente ao ataque do Estado-maior e voltou a Petrogrado mais
unanime que no momento quando tinha partido.
As provas formais que faltavam então aos participantes, os historiador têm-as agora
à sua disposição. A correspondência militar secreta demonstra que não era a frente que
reclamava os regimentos de Petrogrado, que era Kerensky que as impunha à frente. A um
telegrama do ministro da Guerra, o comandante em chefe da frente Norte respondia:
«secreto, 17, X. A iniciativa de envio de tropas da guarnição de Petrogrado para a frente
veio de você e não de mim… Quando foi claro que os contingentes da guarnição de
Petrogrado não queriam ir para a frente, quer dizer que eles não estavam em condições
de combater, eu, num entrevista particular com o vosso representante, um oficial, disse
que… nós tínhamos já bastantes contingentes iguais na frente; mas, visto o seu desejo de
os expedir para a frente, não recusei e não recuso de os receber se você continua em
pensar indispensável que eles evacuem Petrogrado.» O tom do telegrama, que é meio
polémico, explica-se pelo facto que Tcheremissov, general tendente à alta política, que era
considerado no exército czarista como «um vermelho» e que tornou-se mais tarde,
segundo a expressão de Miliokov, «o favorito da democracia revolucionária», tinha
chegado, visivelmente, a esta conclusão que seria melhor se afastar a tempo do governo
no seu conflito com os bolcheviques. A conduta de Tcheremissov durante os dias da
insurreição confirma completamente este esclarecimento.
A luta pela guarnição se complicava-se com outra, a luta pelo Congresso dos
sovietes. Até à data anteriormente fixada, só restava quatro ou cinco dias. O
«levantamento» foi esperado por ocasião do Congresso. Supunha-se que, como durante
as jornadas de Julho, o movimento devia desenvolver-se segundo o tipo de uma
manifestação armada de massas com combates de rua. O menchevique de direita
Potressov, apoiando-se inverosimilhante sobre as informações da contra-espionagem ou
da missão militar francesa, que fabricava ousadamente falsos, expunha na imprensa
burguesa o plano do levantamento bolchevique que devia ter lugar na noite do 16 ao 17
de Outubro. Os inventivos autores do plano não esqueceram de prever que os

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bolcheviques arrastariam com eles «elementos do crime organizado». Os soldados dos
regimentos da Guarda sabem rir como os deus de Homero. As próprias colunas brancas e
os lustros do Instituto Smirnov pareciam agitar-se sob as gargalhadas que rebentavam
quando se leu o artigo de Potressov em sessão do soviete. Mas o douto governo, que não
sabia ver o que se passava sob os seus olhos, assustou-se seriamente pelo falso absurdo
e se reuniu de urgência, às duas horas da manhã, para afastar «os elementos do crime
organizado». Após novas consultas de Kerensky com as autoridades militares, as
medidas indispensáveis foram tomadas: reforçaram a guarda do palácio de Inverno e do
Banco de Estado; chamaram duas escolas de tenentes de Oranienbaum e mesmo um
comboio blindado da frente romena. «No última hora, os bolcheviques – segundo Miliokov
– contramandavam seus preparativos. Porquê eles agiram assim, não é muito claro.»
Alguns anos após os acontecimentos, o douto historiador preferia acreditar ainda a uma
invenção que se desmentia por ela própria.
As autoridades encarregaram a milícia de explorar as redondezas da cidade para
encontrar traços dos preparativos do levantamento. Os relatos da milícia apresentaram
uma combinação de observações vivas com estupidez policial. No bairro de Alexandre
Nevsky, onde se encontra as grandes fábricas, os observadores constataram uma calma
completa. No distrito de Vyborg, a necessidade de derrubar o governo era abertamente
proclamada, mas «exteriormente reinava a calma». No distrito de Vassili Ostrov, havia
exaltação, mas, também aí, não se observava qualquer sinal exterior de um levantamento
próximo». No bairro de Narva, uma propaganda intensa era feita pelo levantamento; mas
não se podia obter de ninguém uma resposta a esta questão: quando precisamente? Ou
então o dia e a hora estavam guardadas a sete chaves, ou ninguém sabia de nada.
Decidiram reforçar as patrulhas às portas dos bairros, os comissários da milícia deverão
mais frequentemente inspectar os postos.
O relato do correspondente de um jornal liberal moscovita completa bastante bem o
relatório da milícia: «Nos bairros, nas fábricas de Petrogrado, Nevsky, Obokhov e Potilov,
a agitação bolchevique pelo levantamento atinge o ponto culminante. O estado de espírito
dos operários é tal que eles estão prontos a meterem-se a caminho a qualquer momento.
Nesses últimos dias, em Petrogrado, observou-se um fluxo de desertores nunca visto
antes… Na gare de Varsóvia, está cheia de soldados de aspecto duvidoso, de olhos
inflamados, com ares excitados… Há informações sobre a chegada a Petrogrado de
verdadeiros bandos de malfeitores que pressentem a ocasião de dar um bom golpe. O
banditismo organiza-se, as casas de chá e as tascas estão cheias deles…». Os terrores
da pequena burguesia e os boatos de polícia ligam-se aqui à crua realidade, aproximando
da conclusão, a crise revolucionária atingia os abismos sociais até ao fundo. E os
desertores, e os bandos de ladrões tinham-se efectivamente revoltado ao trovar do sismo
que se aproximava. As cimeiras da sociedade consideravam com um terror físico as
forças enfurecidas do seu regime, seus vícios e suas úlceras. A revolução não os tinha
criado, ela somente tinha-as mostrado.
Nesses dias, em Dvinsk, no Estado-maior do corpo do exército, o barão Budbersg,
que nós já conhecemos, reaccionário detestável, provido de capacidade de observação e
de uma original perspicácia, escrevia: «Os cadetes, os cadetóides, os outubristas e os

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revolucionários de toda a especie, das antigas formações e das de Março, sentem
aproximar-se o seu fim e vaticinam tanto quanto podem, lembrando os muçulmanos que
tentam impedir uma eclipse da lua com matracas.
No dia 18, pela primeira vez, foi convocada a Conferência da guarnição. Um
telegrama enviado aos efectivos convidava os homens a se absterem de cometer actos
irreflectidos e só executar as decisões do Estado-maior que teria sido contra-assinadas
pela secção dos soldados. O soviete tentava assim resolutamente tomar abertamente o
controlo da guarnição. O telegrama não era outra coisa senão um apelo ao derrube das
autoridades existentes. Mas podia-se, se se quisesse, interpretá-lo como um acto pacífico
de substituição dos bolcheviques ao conciliadores no mecanismo de dualidade de poder.
Praticamente, isso significava a mesma coisa, mas uma interpretação mais suave dava
lugar às ilusões. O burô do Comité executivo central, que se considerava como o mestre
de Smolny, tentou suspender a expedição do telegrama. Assim ele consegui somente,
ainda uma vez, ele próprio a comprometer-se. A assembleia dos representantes dos
comités de regimento e de companhia de Petrogrado e dos arredores teve lugar na hora
marcada e foi extremamente numerosa.
Graças à atmosfera criada pelos adversários, os relatórios dos participantes na
Conferência da guarnição concentraram-se eles próprios sobre a questão do próximo
«levantamento». Houve um memorável recenseamento que os dirigentes não teriam
ousado fazer de sua própria iniciativa. Contra o levantamento pronunciaram-se: a escola
dos tenentes de Peterhof e o 9º regimento de cavalaria. Os esquadrões de marcha da
cavalaria da Guarda inclinaram-se para a neutralidade. A escola dos tenentes de
Oranienbaum submeter-se-ia à decisão do Comité executivo central. Mas a isso se
limitaram as declarações hostis ou neutras. Declararam-se prontos a marchar à primeira
chamada do soviete de Petrogrado: os regimentos Eguersky (caçadores), moscovita,
volyniano, Pavlovsky, Keksholmsky, Semenovsky, Ismailovsky, o 1º de atiradores e o 3º de
reserva, o 2º das tripulações do Báltico, o batalhão de engenharia (electricistas), a divisão
de artilharia da Guarda. O regimento dos Granadeiros só sairá à chamada do Congresso
dos sovietes: isso basta. Efectivos menos importantes seguem a maioria. Os
representantes do Comité executivo central que considerava ainda recentemente, e com
razão, como a fonte da sua força a guarnição de Petrogrado, viram desta vez recusar
quase unanimemente a palavra. Num estado de irritação impotente, eles abandonaram a
assembleia « desprovida de poderes jurídicos» que, por proposição do presidente,
confirmou imediatamente isto: nenhuma ordem não é válida sem a assinatura do Soviete.
O que estava preparado pela consciência da guarnição no decurso dos últimos
meses, sobretudo nas últimas semanas, se cristalizava agora. O governo encontrava-se
mais incompetente do que se pensava. Enquanto que na véspera corriam na cidade
bastantes rumores sobre o levantamento e os combates sangrentos, a Conferência dos
comités de regimento, onde se manifestou a preponderancia esmagadora dos
bolcheviques, tornou no fim de contas inúteis as manifestações e os combates de
massas. A guarnição marchava com segurança para a insurreição, considerando-a não
como um levantamento, mas como a realização do direito incontestável dos sovietes em
dispor do destino do país. Nesse movimento, havia uma força irresistível, mas, ao mesmo

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tempo, a lentidão. O partido necessitava de coordenar correctamente os seus actos com
as diligencias política dos regimentos cuja maioria esperava um apelo do lado do Soviete,
e alguns do lado do Congresso dos sovietes.
Para afastar o perigo de uma perturbação mesmo temporária no desenvolvimento da
ofensiva, era necessários responder à questão que agitava não somente os inimigos, mas
mesmos os amigos: o levantamento iria dar-se efectivamente hoje ou amanhã? Em trólei,
na rua, nas boutiques, só se falava do próximo levantamento. Na praça do Palácio, diante
do palácio de Inverno e diante do estado-maior, longas filas de oficiais propõem ao
governo seus serviços e recebem em troca revólveres: no momento de perigo, nem os
revólveres nem os seus possuidores se mostram. Os editoriais de todos os diários do dia
são consagrados à questão do levantamento. Gorki exige dos bolcheviques, se eles não
são «o brinquedo sem defesa da multidão de selvagens», que eles desmintam os
rumores. A ansiedade diante do desconhecido penetrou também nos bairros populares, e
sobretudo nos regimentos. Aí, começavam a acreditar que o levantamento se preparava
sem eles. Por quem? Porquê Smolny se calava? A posição contraditória do soviete, como
parlamento aberto e estado-maior revolucionário, criava, no último momento, grandes
dificuldades. Tornava-se impossível calar-se mais tempo.
«Desde alguns dias – disse Trotsky no fim da sessão da noite do soviete – a
imprensa é cheia de informações, de ruidos, de artigos sobre o próximo levantamento…
As resoluções do soviete de Petrogrado são dados ao conhecimento de todos. O soviete
é uma instituição electiva e… não pode tomar resoluções que não seriam conhecidas dos
operários e dos soldados. Declaro, em nome do Soviete: nenhuma manifestação armada
não foi macada por nós. Mas se o Soviete, segundo a marcha das coisas, foi forçado a
apelar a uma manifestação, os operários e os soldados marchariam sob sinal dele como
um só homem… Diz-se que assinei a ordem de entregar cinco mil espingardas… Sim,
assinei… O Soviete continuará a organizar e a armar a Guarda operária.» Os delegados
compreendiam: a batalha está próxima, mas, sem eles, fora deles, o sinal não será dado.
Todavia, independentemente das explicações tranquilizadoras, as massas
necessitam de uma clara perspectiva revolucionária. O relator liga entre elas duas
questões: a evacuação da guarnição e o próximo Congresso dos sovietes. «Temos com o
governo um conflito que pode tomar um carácter extremamente grave… Não
permitiremos…, que se enfraqueça Petrogrado da sua sua guarnição revolucionária.»
Esse conflito está subordinado, aliás, a outro que se anuncia.» A burguesia sabe que o
Soviete de Petrogrado proposerá ao Congresso dos sovietes a tomar o poder nas suas
mãos… Prevendo a batalha inevitável, as classes burguesas esforçam-se em desarmar
Petrogrado. «A insurreição está ligada politicamente pela primeira vez a esse discurso
com uma total nitidez: dispomo-nos a tomar o poder, necessitamos da guarnição, nós não
a deixaremos partir.» A primeira tentativa da contra-revolução para suprimir o Congresso,
nós responderemos por uma contra-ofensiva que será implacável e que nós levaremos
até aos fim.» A proclamação de uma ofensiva política resoluta concretiza-se, ainda desta
vez, por uma fórmula de defesa armada.

640
Sokhanov, que se tinha mostrado na sessão com o projecto estéril de comprometer o
Soviete a festejar o jubileu de Gorki, comentava bem a seguir o que a revolução tinha
atado um nó sólido nesse dia. Para Smolny, a questão da guarnição é a da insurreição.
Para os soldados, trata-se da sua sorte. «É difícil imaginar um ponto de partida mais
conseguido da política nesses dias.» Isso não impedia Sokhanov de considerar como
perigosa a política dos bolcheviques no conjunto. Com Gorki e milhares de intelectuais
radicais, o que ele tem mais é esta multidão que pretendem «selvagens», que, com
notável regularidade, desenvolve cada dia a sua ofensiva.
O soviete é bastante impotente para proclamar abertamente um programa de
insurreição no Estado e mesmo fixar a data. Ao mesmo tempo – mesmo incluindo o
próprio dia marcado por ele para uma vitória completa – o Soviete é impotente em
numerosas questões, pequenas ou grandes. Kerensky, já reduzido a nada em política,
promulga ainda decretos no palácio de Inverno. Lenine, inspirador do irresistível
movimento de massas, leva uma vida clandestina, e o ministro da Justiça, Maliantovich,
prescreveu de novo nesses dias ao procurador de lançar contra ele um mandato de
captura. Mesmo no Smolny, sobre o seu próprio território, o poderoso Soviete de
Petrogrado parece viver por favor. A administração do Instituto, da caixa, da expedição,
dos automóveis, dos telefones encontra-se ainda nas mãos do Comité executivo central
que, ele próprio, se mantêm graças aos finos fios do direito de sucessão.
Sokhanov conta como, após a sessão, tarde na noite, ele foi ao largo do Instituto
Smolny, nas trevas profundas, sob uma forte chuva. Toda uma multidão de delegados
marcava passo desesperadamente diante dois automóveis fumarentos e mal-cheirosos
que foram concedidos ao Soviete bolchevique pelas ricas garagens do Comité executivo
central. «Para essas viaturas – conta o observador omnipresente – tinha avançado
também o presidente Trotsky. Mas, tendo parado e olhado um instante, ele troçou, a
seguir afasta-se pelas poças de água e desapareceu na obscuridade.» Sobre a
plataforma de um trólei, Sokhanov encontra-se em presença de um pequeno homem de
aparência modesta, de barba negra aparada em ponta. O desconhecido tentou de
reconfortar Sokhanov a propósito dos inconveniente de uma locomotiva lenta. «Quem é?»
perguntou Sokhanov a uma viajante bolchevique que o acompanhava. «Um velho
militante do partido, Sverdlov.» Menos de quinze dias depois, esse pequeno homem de
barbicha negra era o presidente do Comité executivo centra, órgão supremo da República
dos Sovietes. Inverosimilhante, Sverdlov tinha reconfortado o seu companheiro de viagem
num sentimento de gratidão: oito dias antes, no apartamento de Sokhanov, na verdade
sem que ele soubesse, tinha tido lugar a sessão do Comité central dos bolcheviques que
tinha metido na ordem do dia a insurreição armada.
No dia seguinte pela manhã, o Comité executivo central tentou dar aos
acontecimentos uma guinada no sentido contrário. O burô convocou um assembleia
«legal» da guarnição, convocando mesmo os comités atrasados, não renovados pela
eleição havia já bastante tempo, que não estiveram presentes na véspera. A verificação
complementar da guarnição, dando qualquer coisa de novo, confirmou claramente o
quadro da véspera. Contra o levantamento se pronunciaram desta vez: a maioria dos
comités dos efectivos que se mantinham na fortaleza Pedro e Paulo, e os comités de

641
divisão dos carros blindados; uns e outros declararam que se subordinavam ao Comité
executivo central. É impossível de não ter isso em consideração.
Edificada sobre uma pequena ilha que rodeia o Neva com o seu canal, entre o
centro da cidade e dois distritos, a fortaleza domina as pontes mais próximas e cobre, ou
melhor, pelo contrário, esvazia do lado do rio os acessos ao palácio de Inverno, onde está
instalado o governo. Desprovida de qualquer importância militar nas operações de grande
envergadura, a fortaleza pode ter algum significado nos combates de rua. Além disso, e
isso talvez é o mais importante, a fortaleza tem ligação ao arsenal de Kronwerk: os
operários necessitam de espingardas, e aliás os regimentos mais revolucionários estão
quase desarmados. A importância dos carros blindados nos combates de rua não
necessita explicações: do lado do governo, eles pode causar um grande número de
vítimas inúteis; do lado da insurreição, eles encurtarão o caminho da vitória. Os
bolcheviques terão de ter uma atenção particular nos próximos dias sobre a fortaleza e
sobra a divisão dos carros blindados. Pelo resto, a relação de forças na Conferência
continuava a ser a mesma que na véspera. A tentativa do Comité executivo central para
fazer adoptar a sua decisão muito circunspecta encontrou uma resistência fria da maioria
esmagadora: não tendo sido convocada pelo Soviete de Petrogrado, a Conferência não
se via legitimizada a votar resoluções. Os líderes conciliadores tinham vindo por eles
próprios diante desse último golpe.
Encontrando o acesso aos regimentos barricado por baixo, o Comité executivo
central tentou apoderar-se da guarnição tomando-a por cima. De acordo com o estado-
maior, ele designou como comissário principar para todo o distrito militar o capitão
Malevsky, socialista-revolucionário, declarou que consentia em reconhecer os comissários
do Soviete sob condição que eles se subordinariam ao comissário principal. A tentativa
feita para se apoiar sobre a guarnição bolchevique, com os meios de um capitão que
ninguém tinha ouvido falar, era evidentemente desesperada. Afastando-a, o Soviete
suspendeu as conversações.
Denunciado por Potressov, o levantamento não teve lugar no dia 17. Agora, os
adversários davam com segurança uma nova data: o 20 de Outubro. Nesse dia, como se
sabe, se ligava primitivamente a abertura do Congresso dos sovietes, e a insurreição
seguia o Congresso como a sua sombra. Na verdade já tinham adiado o Congresso a
cinco dias mais tarde; mas pouco importava: o objecto tinha sido mudado, a sombra
ficava. O governo toma ainda desta vez todas as medidas necessárias para impedir «o
levantamento». Nos bairros os postos são reforçados. Patrulhas de cossacos percorriam
os bairros operários toda a noite. Em diversos pontos de Petrogrado foram emboscados
pelas reservas da cavalaria. A milícia está sobre pé de guerra, e, metade, alerta constante
nos comissariados. Diante do palácio de Inverno foram colocados carros blindados, a
artilharia ligeira, metralhadoras. As redondezas do palácio são guardadas por piquetes da
tropa.
A insurreição que ninguém preparava e a qual ninguém fazia apelo, não teve lugar
ainda desta vez. O dia passava mais tranquilo que muitos outros, o trabalho nas fábricas
não parou. Dirigias por Dan, as Izvestia celebravam la vitória ganha contra os

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bolcheviques: «A sua aventura sobre uma manifestação armada em Petrogrado é um
assunto terminado.» Os bolcheviques viram-se esmagados pela indignação da
democracia unificada: «Eles já se rendem.» Literalmente pode-se pensar que os
adversários, tendo perdido a cabeça, tinham-se dado como objectivo, em suscitando os
temores antes do tempo e lançando de uma maneira ainda mais oportuna os golpes de
corneta da vitória, em desorientar a sua própria «opinião pública» e de dissimular os
planos dos bolcheviques.
A decisão de criar um Comité militar revolucionário, tomada pela primeira vez no dia
9, não passou pelo plenários do Soviete senão uma semana mais tarde: o Soviete não é o
partido, a sua máquina é pesada no arranque. Era preciso ainda quatro dias para formar o
Comité. Esta dezena de dias, todavia, não foi perdida: ocupava-se activamente em
conquistar a guarnição, a conferência dos comités de regimento teve tempo de provar a
sua vitalidade, o armamento dos operários se perseguiu, de maneira que o Comité militar
revolucionário, iniciando o trabalho somente no dia 20, cinco dias antes da insurreição,
teve imediatamente nas mão os meios de agir. Diante do boicote dos conciliadores, o
Comité compôs-se de bolcheviques e socialista-revolucionários de esquerda: isso facilitou
e simplificou a tarefa. De todos os socialistas-revolucionários só Lasimir militava aí. Ele foi
mesmo colocado à cabeça do Burô para melhor sublinhar o carácter de origem soviética e
não de partido da instituição. Na realidade, o Comité, cujo presidente foi Trotsky, com,
como principais militantes, Podvoisky, Antonov-Ovseenko, Lachevitch, Sadovsky,
Mekhonochine, apoiava-se exclusivamente sobre os bolcheviques. O Comité não se
reunia nunca, mesmo uma só vez na sua totalidade, com a participação dos
representantes de todas as instituições enumeradas nos estatutos. Os assuntos correntes
eram resolvido pelo Burô sob a direcção do presidente, e, em todos os casos importantes,
chamavam Sverdlov. Estava aí o estado-maior da insurreição.
O Boletim do Comité regista modestamente as suas primeiras diligências: nos
efectivos de combate da guarnição, em certas instituições e certos depósitos, «para a
vigilância e direcção», foram nomeados comissários. Isso significou que, conquistando a
guarnição do ponto de vista político, o Soviete submetia-se agora ao ponto de vista da
organização. Na selecção dos comissários, a Organização militar dos bolcheviques jogou
um grande papel. Entre o cerca de milhar de membros que faziam parte em Petrogrado,
havia um bom número de homens resolvidos e absolutamente devotados à revolução,
soldados e jovens oficiais que tinham recebido, após as Jornadas de Julho, a têmpera
necessária nas prisões de Kerensky. Os comissários escolhidos no seu meio
encontravam nos contingentes da guarnição um terreno suficientemente preparado:
consideravam-os como gente em si e obedeciam-lhes prontamente.
A iniciativa para meter a mão sobre os estabelecimentos públicos provinha muitas
vezes de baixo. Os operários e os empregados do arsenal ligados à fortaleza Pedro e
Paulo levantaram a questão da necessidade do controlo sobre a entrega de armas. O
comissário que foi aí enviado conseguiu impedir o armamento complementar dos
junkeres, sequestro dez mil espingardas destinadas à região do Don, e estoques menos
importantes que iam entregar a um certo número de organizações e personagens
duvidosas. O controlo estendia-se logo a outros depósitos, mesmo aos armazéns

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privados dos armeiros. Bastava dirigir-se a um comité de soldados, operários ou de
empregados de um estabelecimento ou de uma boutique para que a resistência da
administração fosse imediatamente quebrada. As armas só eram entregues sobre ordem
dos comissários.
Os operários tipógrafos, por intermediário dos seus sindicatos, chamaram a atenção
do Comité sobre a multiplicação de panfletos e de brochuras ultra-reaccionárias (Cem
Negros). Decidiu-se que, nos casos duvidosos, o Sindicato dos tipógrafos se dirigissem,
para ter uma solução, ao Comité militar revolucionário. O controlo, por intermediários dos
operários tipógrafos, era o meio mais eficaz de todos os meios possíveis de vigilância
sobre a imprensa de agitação dos contra-revolucionários.
Não se limitando a desmentir formalmente os boatos de insurreição, o Soviete fixou
abertamente, para domingo 22, uma revista pacífica das suas forças, não sob o aspecto
de manifestação de rua, mas por comícios nas fábricas, nos quartéis e todos os grandes
lugares da capital. Com o objectivo evidente de suscitar as desordens sangrentas,
misteriosos beatos fixaram para o mesmo dia uma procissão religiosa nas ruas da cidade.
Um apelo lançado por cossacos desconhecidos convidava os cidadãos a tomar parte na
procissão «em lembrança da libertação de Moscovo em 1812». O motivo escolhido não
era de actualidade; mas os ordenadores propunham além disso ao Todo-poderoso de
benzer as armas dos cossacos «para a defesa contra os inimigos da terra russa», o que
se relacionava evidentemente já a 1917.
Não havia nenhuma razão em recear um manifestação séria contra-revolucionária: o
clérigo era, em Petrogrado, impotente; sob as bandeiras da Igreja não se podia levantar-
se contra o Soviete senão os miseráveis restos dos bandos dos Cem Negros. Mas com a
ajuda dos provocadores experientes da contra-espionagem e dos oficiais cossacos,
encontros sangrentas não eram impossíveis. Na ordem das medidas preventivas, o
Comité militar revolucionário começou por reforçar a sua acção sobre os regimentos de
cossacos. Na residência do estado-maior o mais revolucionário, um regime mais severo
foi instituído. «Tornou-se desde então pouco fácil entrar no Instituto Smolny – escreve
John Reed – o sistema do livre-acesso foi modificado com intervalos de algumas horas,
porque os espiões penetravam constantemente no interior.»
Na Conferência da guarnição do 21, consagrado à «jornada do Soviete» do dia
seguinte, o relator propunha uma serie de medida preventivas contra possíveis
afrontamentos na rua. No 4º regimento de cossacos, o mais à esquerda, declarou pelo
seu delegado que não tomaria parte na procissão. O 14º regimento de cossacos
assegurou que ele combateria com todas as suas forças os atentados da contra-
revolução, mas, que ao mesmo tempo ele consideraria como «não oportuno» um
levantamento pelo tomada do poder. Sobre os três regimentos de cossacos, só um
ausentou-se, o de Ural, o mais atrasado, que tinha sido levado a Petrogrado em Julho
para esmagar os bolcheviques.
A Conferência tomou, sobre o relatório de Trotsky, três breves resoluções: 1º «A
guarnição de Petrogrado e dos arrabaldes prometeu ao Comité militar revolucionário de
apoiar inteiramente em todas as suas demarches…» 2º «A jornada do 22 de Outubro será

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a de um recenseamento pacífico da forças… A guarnição dirige-se aos cossacos:… Nós
convidamos às nossas reuniões de amanhã. Bem-vindos, irmãos cossacos!»; 3º «O
Congresso pan-russo dos sovietes deve tomar o poder e assegurar ao povo a paz, a terra
e o pão.» A guarnição promete solenemente de colocar todas as suas forças à disposição
do Congresso. «Contem connosco, representantes do poder dos soldados, operários e
camponeses. Nós estamos todos a postos, prontos a vencer ou a morrer.» Centenas de
mãos levantaram-se por essas resoluções que confirmam o programa da insurreição.
Houve cento e cinquenta abstenções: eram os «neutros», isto é os adversários
hesitantes. Nem uma mão não se levantou contra. O nó se apertava ao pescoço do
regime de Fevereiro.
No decorrer do dia soube-se já que os iniciadores misteriosos da procissão tinham
renunciado a manifestar assim «sobre a proposição do comandante em chefe do distrito».
Esse sério sucesso moral, que considerava melhor que toda a força da pressão da
Conferência da guarnição, permitia esperar firmemente que os inimigos, em geral, não
ousariam mostrar-se no dia seguinte na rua.
O Comité militar revolucionário indicou ao estado-maior do distrito três comissários:
Sadovsky, Mekhonochine e Lasimir. As ordens do comandante só são válidas após a
assinatura de um dos três. Sobre o apelo telefónico de Smolny, o estado-maior envia para
a delegação um auto: os hábitos da dualidade de poderes subsistem ainda. Mas,
inesperadamente, a amabilidade do estado-maior não significava que ele estivesse
disposto a fazer concessões.
Tendo ouvido a declaração de Sadovsky, Polkovnikov respondeu que ele não
reconhecia nenhum comissário e não precisava de tutela. A delegação tendo insinuado
que o estado-maior riscava, nessa via, encontrar resistência do lado da tropa, Polkovnikov
respondeu secamente que ele tinha a guarnição na mão e que a submissão desta estava
assegurada. «A sua firmeza era sincera – escreve nas suas Memórias Mekhonochen –
não era nada de artificial.» Para voltar ao Instituto Smolny, os delegados não tiveram mais
automóveis do estado-maior.
A Conferência extraordinária, à qual foram chamados Trotsky e Sverdlov, tomou uma
decisão: reconhecer que a ruptura com o estado maior é um facto consumido e a
considerar como um ponto de partida para uma ofensiva ulterior. Primeira condição de
sucesso: os bairros devem estar ao corrente de todas as etapas e dos episódios da luta.
Não se pode permitir ao adversário tomar as massas de improvisto. Por intermediário dos
sovietes e dos comités de bairro do partido, uma informação é expedida para todos os
lados da cidade. Os regimentos são imediatamente advertidos do que se passou. Nova
confirmação: só executar as ordens que terão sido contra-assinada pelos comissários.
Convidam a designar aos postos de guarda os soldados mais seguros.
Mas o estado-maior também tinha decidido de tomar medidas. Instigados,
aparentemente, pelos conciliadores que aconselhavam, Polkovnikov convocou para uma
hora da tarde uma conferência da guarnição, com a participação dos representantes do
Comité executivo central. Antecipando o adversário, o Comité militar revolucionário
convocou para as onze horas da manhã uma conferência extraordinária dos comités de

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regimento na qual foi decidido regular formalmente a ruptura com o estado-maior. O
manifesto, logo redigido, às tropas de Petrogrado e dos arredores falava a linguagem de
uma declaração de guerra. «Tendo rompido com a guarnição organizada da capital, o
estado-maior torna-se o instrumento directo das forças contra-revolucionárias.» O Comité
militar revolucionário declinou toda responsabilidade pelos actos do estado-maior e,
colocando-se à cabeça da guarnição, toma a responsabilidade da «manutenção da ordem
revolucionária contra os atentados da contra-revolução».
Foi um passo decisivo na via da insurreição. Ou, talvez, somente mais um conflito no
mecanismo gerador de conflitos de dualidade de poderes? Foi assim que se esforçava,
para se assegurar a si próprio, em interpretar o que se tinha passado, o Estado-maior,
após ter consultado os representantes dos efectivos que não tinham ainda recebido a
tempo o apelo do Comité militar revolucionário. Uma delegação enviada de Smolny, sob a
direcção do tenete e bolchevique Dachkevitsch, comunicou brevemente ao estado-maior
a decisão da Conferência da guarnição. Os poucos representantes das tropas
confirmaram a sua fidelidade ao Soviete e, recusando formular uma moção, dispersaram-
se. «Após uma breve troca de ideias – comunicou logo a imprensa inspirada pelo estado-
maior – nenhuma decisão definitiva não foi tomada; reconheceu-se indispensável esperar
a solução do conflito entre o Comité executivo centra e o Soviete de Petrogrado». O
estado-maior imaginava a sua destituição como um assunto de rivalidade entre as
instâncias soviéticas disputando-se o direito de controlar os seus actos. A política de
cegueira voluntária tinha a vantagem que ela dispensava de declarar a Smolny uma
guerra pela qual os dirigentes não tinham forças suficientes. Assim, o conflito
revolucionário, já pronto a rebentar, tinha trazido, com a ajuda dos órgãos
governamentais, no quadro legal da dualidade de poderes: temendo olhar a realidade em
frente, o estado-maior colaborava firmemente na camuflagem da insurreição.
A conduta atordoada das autoridade não era, todavia, uma simples maneira de
dissimular as suas verdadeiras intenções? O estado-maior não dispunha, em tomando as
aparências ingenuidade burocrática, em levar ao Comité militar revolucionário um golpe
improvisto? Tal atentado vindo da parte dos órgãos exaltados e desmoralizados do
governo provisório era considerado em Smolny como pouco provável. Mas o Comité
militar revolucionário tomou contudo as medidas de precaução mais simples: nos quartéis
mais próximos montaram a guarda, dia e noite, companhias, armadas, prontas, ao
primeiro sinal, de correr ao socorro de Smolny.
Mesmo se a procissão foi desconvocada, a imprensa burguesa anunciava para
domingo uma efusão de sangue. Um jornal conciliador declarava logo pela manhã: «Hoje,
as autoridades esperam uma manifestação com maior probabilidade do que no 20 de
Outubro último». Foi assim que, pela terceira vez, numa semana, no 17, 20 e 22, o rapaz
vicioso enganava o povo gritando «olha o lobo, olha o lobo!» Na quarta vez, se
acreditamos na velha fábula, o rapaz devia cair sob os colmilhos do lobo.
A imprensa dos bolchevique, ao chamar as massas a reunir, falava de um
recenseamento pacífico das forças revolucionárias na véspera do Congresso dos
sovietes. Isso respondia completamente à concepção do Comité militar revolucionário:

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fazer uma revista gigantesca, sem afrontamentos, sem empregar as armas e mesmo sem
as mostrar. Era preciso mostrar à base o que ela própria era, e o seu número, a sua força,
a sua resolução. Pela unanimidade da multidão, era preciso forçar os inimigos a se
esconderem, a desaparecer, a não se mostrarem. Pela demonstração de impotência da
burguesia diante das formações de massa dos operários e dos soldados, era preciso
apagar nas consciências destes as últimas lembranças redentoras da Jornadas de Julho.
Era preciso chegar ao ponto que as massas, vendo-se a si próprias, digam: ninguém e
nada nos poderá resistir.
«A população assustada – escrevia, cinco anos mais tarde, Miliokov – manteve-se
afastada.» A burguesia ficava em casa: ela estava na verdade assustada pela sua
imprensa. O resto da população foi logo pela manhã às reuniões: jovens e velhos,
homens e mulheres, adolescentes e mães com o seus filhos nos braços. Tais comícios
nunca tinham tido lugar durante todo o período revolucionário. Petrogrado inteira,
excepção feita das cimeiras, era um imenso comício. Nas salas completas, o auditório
renovava-se durante horas e horas. Vaga a vaga, os operários, soldados, marinheiros
invadiam os edifícios e enchiam-os. Houve um tremor no povo da citadino, despertado
pelos gemidos e aviso que lhe deviam faze medo. Dezenas de milhares de pessoas
submergiam o enorme edifício da Casa do Povo, ocorriam nos corredores e, em massas
compactas, exaltados, mas ao mesmo tempo disciplinados, preenchendo as salas do
teatro, os corredores, refeitórios e lares, sobre candeeiros de ferro fundido, e às janelas,
estavam suspensas grinaldas, cachos de cabeças humanas, pernas e braços. Havia no ar
esta carga de electricidade que anuncia uma próxima explosão. Abaixo Kerensky! Abaixo
a guerra! O poder aos sovietes! Nem um conciliador não se atreveu a mostrar-se diante
das multidões ardentes para lhes opor objecções ou avisos. A palavra pertencia aos
bolcheviques. Todos os oradores do partido, incluindo os delegados de província que
tinham vindo para o Congresso, tinham sido estavam mobilizados. Aqui e ali, raramente,
tomavam a palavra socialistas-revolucionários de esquerda, às vezes os anarquistas. Mas
uns e outros esforçavam-se por distinguir-se o menos possível dos bolcheviques.
Durante horas mantinham-se lá gente dos bairros, das caves e das mansões, de
casacos remendados, de bonés guarnecidos e com grandes lenços, de calçado inchados
da lama das ruas, tossindo, apertados de ombro contra ombro, apertando-se cada vez
mais para dar lugar aos outros, para dar lugar a todos, e escutavam sem cansaço,
avidamente, apaixonadamente, reclamando, temendo deixar escapar o que eram
necessário compreender, de assimilar e fazer. Parecia que, nos últimos meses, nas
últimas semanas, nos últimos dias, todas as palavras tivessem sido ditas. Mas não, elas
têm hoje outro son. As massas sentem-nas de uma forma nova, não como uma pregação,
mas como uma obrigação de agir. A experiência da revolução, da guerra, da dura luta, de
toda uma vida amargurada, sobe das profundezas da memória de todo o homem
esmagado pela necessidade e se fixa nessas palavras de ordem simples e imperiosas.
Isso não pode continuar assim, é preciso abrir uma brecha para o futuro.
Nesse dia simples e espantoso que se destacava nitidamente sobre o fundo pálido
da revolução, os olhares de cada um dos militantes voltaram-se a seguir. A imagem de
uma lava humana inspirada e contida no seu movimento indomável gravou-se para

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sempre na lembrança das testemunhas oculares. «O dia do soviete de Petrogrado –
escreve o socialista-revolucionário de esquerda Mstislavsky – passou-se em numerosos
comícios onde o entusiasmo era formidável.» O bolchevique Pestkovsky, que tinha
tomado a palavra nas duas fábricas de Vassilievsky-Ostrov, testemunha: «Nós falávamos
claramente às massas da nossa próxima tomada do poder e só ouvimos aprovações.» «À
volta de mim – conta Sokhanov, sobre o comício na Casa do Povo – o ambiente estava
próximo da extase… Trotsky formulou uma breve resolução geral… Quem vota a favor?…
Uma multidão de milhares de pessoas, como um só homem, levantou os braços. Vi
braços levantados e os olhos inflamados dos homens e mulheres, jovens, operários,
soldados, mujiques e personagens tipicamente pequeno-burguesas… Trotsky continuava
a falar. Numerosa multidão continuava a manter os braços no ar. Trotsky cadenciava as
palavras: o vosso voto, que seja o vosso juramento… A numerosa multidão mantinha os
braços no ar. Ela estava de acordo, ela jurava.» O bolchevique Popov relata qual
juramento entusiasta foi levado às massas: «Avançar ao primeiro apelo do soviete.»
Mstillavsky fala de uma multidão electrizada que jurava fidelidade aos sovietes. O mesmo
quadro, ainda se em proporções mais pequenas, se reproduzia em todas as partes da
cidade, no centro e nos bairros. Centenas de milhares de pessoas, simultaneamente e
nas mesmas horas, levantavam a mão e juravam levar a luta até ao fim.
Se as sessões diárias do Soviete, da Secção dos soldados, da Conferência da
guarnição, dos comités de fábrica e de oficina faziam a soldadura interna de uma larga
camada de dirigentes; se certas assembleias de massas agrupavam as fábricas e os
regimentos, a jornada do 22 de Outubro fundiu a alta temperatura, numa única caldeira
gigante, as autênticas massas populares. As massas elas próprias reconheceram-se e
viram os seus chefes, os líderes vierem e ouviram as massas. Dos dois lados, ficaram
reciprocamente satisfeitos. Os líderes estavam convencidos: não se pode adiar para mais
tarde! As massas disseram: desta vez, faz-se!
O êxito da revista das forças bolcheviques, no domingo, diminui a presunção de
Polnikov e do seu alto comando. De acordo com o governo e com o Comité executivo
central, o Estado-maior tentou entender-se com Smolny. Então porquê, não restabelecer
os bons velhos hábitos amigáveis do contacto e da conciliação? O Comité militar
revolucionário não recusou delegar representantes para uma troca de ideias: não se podia
desejar melhor meio de reconhecimento. «As conversações foram breves – escreve
Sadovsky nas suas Memórias. Os representantes do bairro militar aceitavam todas as
condições formuladas antes pelo soviete… , em troca da anulação da ordem do Comité
militar revolucionário do 22 de Outubro.» Tratava-se de um documento que declarava o
Estado-maior instrumento das forças contra-revolucionárias. Os mesmos delegados do
Comité que Polkovnikov tinha devolvido para eles dois dias antes, exigiram e receberam
em mão própria, para um relatório a Smolny, um projecto de convenção assinado pelo
Estado-maior. No sábado, essas clausulas de capitulação foram aceites. Mas hoje,
segunda-feira, elas vinham demasiado tarde. O estado-maior esperava uma resposta,
mas não a recebeu.
O Comité militar revolucionário dirigiu-se à população de Petrogrado, informando-a
da nominação de comissários junto das tropas e para os pontos mais importantes da

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capital e dos arrabaldes. «Os comissários, como representantes do soviete, gozavam de
imunidade. Toda a resistência aos comissários é uma resistência ao soviete dos
deputados operários e soldados.» Os cidadãos são convidados a dirigirem-se, em caso
de desordens, aos mais próximos comissariados para chamar as forças armadas. É a
linguagem do poder. Mas o Comité ainda não deu sinal de insurreição aberta, Sokhanov
pergunta: «Smolny faz asneiras, ou então jogará com o palácio de Inverno como o gato e
o rato, provocando um ataque?» Nem um nem outro. Pela pressão das massas, com o
peso da guarnição, o Comité expulsa o governo. Ele toma sem aviso o que pode tomar.
Avança as suas posições sem dar um tiro, juntando e consolidando em marcha o seu
exército; ele mede pela sua pressão a força de resistência do inimigo que não perde um
só instante de vista. Cada novo passo em frente modifica as disposições em favor de
Smolny. Os operários e a guarnição elevam-se na insurreição. O primeiro que chamará às
armas se encontrará na marcha da ofensiva e do recuo. Agora, é já uma questão de
horas. Se, no último minuto, o governo tem a audácia ou o desespero em dar o sinal da
batalha, a responsabilidade cairá no palácio de Inverno, mas a iniciativa cabe na mesma a
Smolny. O acto do 23 de Outubro significa a queda das autoridades antes mesmo que
seja derrubado o próprio governo. O Comité militar revolucionário ligava o regime inimigo
pelas extremidades antes de lhe bater na cabeça. A aplicação desta táctica «de
penetração pacífica», consistindo em quebrar legalmente o esqueleto do inimigo e a
paralizar por hipnose o que subsistia como vontade nele, só se podia com a
preponderancia das forças que dispunha o Comité e que continua a crescer de hora em
hora.
O Comité consultava diariamente a carta toda aberta diante dele da guarnição,
tomava a temperatura de cada regimento, seguia as flutuações de opinião e de simpatia
que se manifestavam nas casernas. Nada de inesperado não podia produzir-se desse
lado. Na carta, continuava, todavia algumas manchas negras. Era preciso tentar eliminá-
las ou, pelo menos, reduzi-las. Desde do dia 19, acontece que a maioria dos comités da
fortaleza Pedro e Paulo estava nas disposições maldosas ou equívocas. Agora que toda a
guarnição está com o Comité e que a fortaleza está cercada, pelo menos do ponto de
vista político, é tempo de a tomar resolutamente. O tenente Blagonravov, nomeado
comissário, encontrou resistência: o comandante da fortaleza, proposto pelo governo,
recusava em reconhecer a tutela bolchevique, e mesmo – segundo certos rumores –
gabava-se de prender o jovem tutor. Era preciso agir, e imediatamente. Antonov propôs
introduzir na fortaleza um batalhão seguro do regimento Pavlovsky e de desarmar os
efectivos hostis. Mas seria uma operação muito grave cujos oficiais teriam podido
aproveitar para provocar uma efusão de sangue e destruir a unanimidade da guarnição. É
efectivamente necessário chegar a uma medida extrema? «Para discutir esta questão,
chamaram Trotsky… - conta Antonov nas suas Memórias. Trotsky jogou então um papel
decisivo; com o seu instinto revolucionário, ele compreendeu o que tinha a nos
aconselhar: propôs que se tomasse esta fortaleza a partir do interior. Isso só se pode
fazer se as tropas, lá, simpatizem connosco», - e acontece que ele tinha razão. Trotsky e
Lachevitch foram ao comício na fortaleza. «Em Smolny, esperavam com uma grande
emoção os resultados de uma empresa que parecia arriscada. Trotsky evocou essas

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coisas a seguir: «No dia 23, fui à fortaleza cerca das duas horas da tarde. Havia um
comício no pátio. Os oradores da ala direita estavam altamente circunspectos e
evasivos… Escutaram-nos e seguiam-nos». No terceiro andar de Smolny, suspiraram de
alívio quando o telefone anunciou a alegre notícia: a guarnição pedropaulina tinha-se
solenemente comprometido a partir de então ao Comité militar revolucionário.
A mudança na consciência dos efectivos da fortaleza não era, compreende-se, o
resultado de um ou dois discursos. Ela foi solidamente preparada pelo passado. Os
soldados encontraram-se mais à esquerda que os seus comités. Só restava a casca
rachada da velha disciplina, que tinha subsistido por detrás das muralhas mais tempo que
nas casernas da cidade. Mas bastava um tremor para que ela caisse em bocados.
Blagonravov podia agora instalar-se com segurança na fortaleza, dispor do seu
pequeno estado-maior, estabelecer a ligação com o Soviete bolchevique do distrito
vizinho e com os comités das casernas mais próximos. Entretanto, as delegações das
fábricas e das formações militares vêm pedir que lhes entregue armas. Na fortaleza reina
então uma animação indescritível. «O telefone toca sem parar e traz notícias dos nosso
novos sucessos nas reuniões e comícios». Às vezes, uma voz desconhecida informa a
chegada na estação de destacamentos punitivos da frente. Verificação feita
imediatamente demonstra que são mentiras metidas a circular pelo inimigo.
A sessão da noite, no Soviete, distingue-se, nesse dia, por uma afluência
excepcional e por um certo ardor particular. A ocupação da fortaleza Pedro e Paulo e a
tomada definitiva do arsenal de Kronwerk, onde estão depositados cem mil espingardas, é
uma garantia séria de sucesso. Em nome do Comité militar revolucionário, Antonov faz
um relatório. Com traços largos, ele desenha o quadro da expulsão dos órgãos
governamentais pelos agentes do Comité militar revolucionário: estes são acolhidos por
todo o lado como homens de confiança; obedecem-lhes não por medo, mas
conscientemente. «De todos os lados reclamam a nomeação de comissários.» Os
contingentes atrasados apressam-se a colocarem-se ao lado dos mais avançados. O
regimento Preobrajensky que, em Julho, foi o primeiro a ouvir a calúnia acerca do ouro
alemão, formulava agora, por intermediário do seu comissários Tchodnovsky, um violento
protesto contra os rumores segundo os quais o regimento estava ao lado dos
governantes: tal ideia é considerada como a última injúria!… É verdade que a guarda
subiu como habitualmente – conta Antonov – mas com o consentimento do Comité. As
ordens do estado-maior sobre a entrega de armas e automóveis não foram executadas. O
estado-maior teve assim a inteira responsabilidade de ver quem era o mestre da capital.
Pediram ao relator se o Comité está informado do movimento das tropas
governamentais da frente e dos arredores e quais são as medidas tomada para fazer
frente; o relator responde: da frente romena enviaram contingentes da cavalaria, mas eles
foram retidos em Pskov; a 17ª divisão de infantaria, tendo sabido a caminho qual era o
seu destino e com qual objectivo recuaram, recusando ir mais longe; em Wanden, dois
regimentos recusaram a marchar sobre Petrogrado; resta ainda a sorte desconhecida dos
cossacos e dos junkeres que teriam sido enviados de Kiev, ao que parece, e tropas de

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choque chamadas de Tsarskoie-Selo. «Não ousam e não ousarão tomar no Comité militar
revolucionário». Esta palavras não soam mal na sala branca de Smolny.
O relatório de Antonov dá à leitura esta impressão que o estado-maior da insurreição
teria trabalhado com todas as portas abertas. Efectivamente: Smolny tem pouco a
esconder. A conjuntura política da insurreição é tão favorável que mesmo a franqueza
torna-se uma especie de camuflagem: é assim que se faz um levantamento? A palavra
«levantamento», todavia, não é pronunciada por qualquer dos dirigentes. Não somente
por prudência, mas porque o termo não corresponde à situação real: dir-se-ia que o
governo de Kerensky deveria rebelar-se. Num relatório de Izvestia diz-se, é verdade, que
Trotsky, na sessão do dia 23, tinha pela primeira vez reconhecido abertamente, como
objectivo do Comité militar revolucionário, a tomada do poder. Sem dúvida, do ponto de
vista de partida onde se declarava como tarefa do Comité a verificação dos argumentos
estratégicos de Tcheremissov, todos já se tinham afastado. A evacuação dos regimentos
quase que já se tinham esquecido. Mas no dia 23, tratava-se, mesmo assim, não de um
levantamento, mas da «defesa» do próximo Congresso dos sovietes, se necessário com
as armas na mão. Foi precisamente nesse espírito que foi formulada a resolução sobre o
relatórios de Antonov.
Como apreciariam os acontecimentos em curso nas altas esferas governamentais?
Fazendo conhecer por telefone, na noite do 21 ao 22, o chefe do estado-maior do Grande
Quartel General, Dokhonine, as tentativas do Comité militar revolucionário para destacar
os regimentos do comando, Kerensky acrescentou: «Penso que arranjaremos isso
facilmente.» A sua chegada, generalíssimo, no Grande Quartel General, não se atrasou
com apreensões diante de qualquer levantamento: «Passar-se-iam mesmo sem mim,
visto que tudo está organizado.» Kerensky declarou aos ministros alarmados de uma
maneira segura que ele, pessoalmente, está pelo contrário muito feliz de ver chegar o
levantamento, dado que isso dará a possibilidade «de acabar de uma vez por toda com os
bolcheviques». «Serei completamente disposto a um serviço religioso de acção de graças
– responde o chefe do governo ao cadete Nabokov que frequentava o palácio de Inverno
– se esta manifestação tivesse lugar.» - «Mas você está seguro de poder reprimi-la?»
«Tenho mais forças do que necessito – eles serão esmagados definitivamente.»
Escarnecendo sobre o optimismo atordoado de Kerensky, os cadetes caiam
evidentemente na amnésia: na realidade, Kerensky considerava os acontecimentos
segundo o seu próprio ponto de vista. No dia 21, o jornal de Miliokov escrevia que, se os
bolcheviques, ruídos por uma profunda crise inteiro, ousavam manifestar, eles seriam
esmagados logo ali e sem piedade. Outro jornal cadete acrescentava: «Há trovoada no ar,
mas talvez purificará a atmosfera.» Dan testemunha que, nos corredores do pré-
parlamento, os cadetes e os grupos que lhes eram próximos sonhavam em voz alta de
verem os bolcheviques manifestar mais cedo possível: «Em campo aberto serão
completamente eliminados.» Notáveis cadetes diziam a John Reed: esmagados no
levantamento, os bolcheviques já não poderão levantar a cabeça na Assembleia
constituinte.

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No decorrer dos dias 22 e 23, Kerensky consultava tanto os líderes do Comité
executivo central, como o seu estado-maior: seria conveniente mandar prender o Comité
militar revolucionário? Os conciliadores não eram dessa opinião: eles próprios tentaram
resolver a questão dos comissários. Polkovnikov considerava também que não havia
razão de apressar as prisões: forças militares, em caso de necessidade, havia «mais que
o necessário». Kerensky dava atenção a Polkovnikov, mas ainda mais aos amigos
conciliadores. Ele esperava firmemente que em caso de perigo, o Comité executivo
central, apesar dos desentendimentos de familia, veriam ajudar no momento propício:
tinha sido assim em Julho e Agosto; porquê não seria de novo assim?
Mas já não estávamos em Julho, nem em Agosto. Estávamos em Outubro. Nas
praças e nos cais de Petrogrado sopravam, do lado de Cronstadt, os ventos frios e
húmidos do mar Báltico. Nas ruas desfilava, cantando ares de bravura que abafavam a
ansiedade, os junkeres com os seus capotes caindo sobre os tacões. Os milicianos a
cavalo exibiam-se, com revólveres em estojos novos. Não, o poder tinha ainda um ar
bastante imponente! Ou não seria uma ilusão óptica? Na esquina da Perspectiva Nevsky,
John Reed, americano de olhos ingénuos e perspicazes, comprava uma brochura de
Lenine: Os bolcheviques manterão o poder? Pagando-a com selos de correio que
circulavam então como trocos

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Lenine apela à insurreição
Ao lado das fábricas, das casernas, das aldeias, da frente, dos sovietes, a revolução
tinha ainda um laboratório: a cabeça de Lenine. Obrigado à vida clandestina, ele viu-se
forçado durante cento e onze dias, do 6 de Julho até ao 25 de Outubro, a limitar as suas
entrevistas, mesmo até com os membros do Comité central. Sem comunicação directa
com as massas, sem contacto com as organizações, ele concentra o seu pensamento nas
questões essenciais da revolução, elevando-as – o que era nele ao mesmo tempo uma
necessidade e uma regra – aos problemas fundamentais do marxismo.
O argumento principal dos democratas, e, nesse número, dos que estavam mais à
esquerda, contra a tomada do poder, assenta nisto que os trabalhadores viam-se
incapazes de manobrar o aparelho de Estado. Tais eram, no fundo, as apreensões dos
elementos oportunistas mesmo no interior do bolchevismo. «O aparelho de Estado!» Todo
o pequeno burguês é educado na submissão diante esse princípio místico que se levanta
acima das pessoas e das classes. O filistino cultivado guarda na pele o mesmo tremor
que tinha possuído o seu pai ou o seu avô, comerciante ou camponês rico, diante de
todas as instituições poderosas onde se decidem as questões da guerra e da paz, onde
se entregam as patentes comerciais, onde caem os flagelos das contribuições, onde se
castigam, mas às vezes, raramente, agradecem, onde legitimam os casamentos e os
nascimentos, onde a própria morte deve respeitosamente meter-se na fila antes de ser
reconhecida. O aparelho de Estado! Tirando respeitosamente o chapéu, mesmo se
descalçando, é sobre a ponta dos pés que, no santuário do ídolo, penetra o pequeno
burguês – que se chame Kerensky, Laval, MacDonald ou Hilferding – quando a sua sorte
pessoal ou então a força das circunstâncias fazem dele um ministro. Ele não pode
justificar esta prerrogativa de outro jeito sem se submeter humildemente ao «aparelho de
Estado». Os intelectuais russos radicais que não ousam, mesmo em tempo de revolução,
aderir ao poder de outra forma do que pelas costas dos proprietários nobres e dos
detentores do capital, consideravam com medo e indignação os bolcheviques: esses
agitadores de rua, esses demagogos pensam apoderar-se do aparelho de Estado!
Depois da luta contra Kornilov, os sovietes, apesar da cobardia e impotência da
democracia oficial, tivessem salvo a revolução, Lenine escrevia:
«Que se instruam, segundo este exemplo, todos os homens de pouca fé. Que
tenham vergonha aqueles que dizem: «Não temos aparelho para substituir o antigo, o que
inevitavelmente tende na defesa da burguesia.» Porque esse aparelho existe. São os
sovietes. Não tenham medo da iniciativa e da espontaneidade das massas, confiem nas
organizações revolucionárias de massas – e verão manifestar-se em todos os domínios
da vida do Estado, a mesma potência, a mesma grandeza, a invencibilidade dos operários
e dos camponeses que eles mostraram na sua união e no seu elã contra o movimentos
de Kornilov.»
Nos primeiros meses da sua vida clandestina, Lenine escreve o seu livro O Estado e
a Revolução, no qual ele tinha recolhido a documentação quando ele ainda estava na
emigração, durante a guerra. Com o mesmo cuidado que ele dava à meditação das

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tarefas práticas do dia, ele agora elabora os problemas teóricos do Estado. Não podia
fazer de outra maneira: para ele a teoria é efectivamente um guia para a acção. Lenine
não pretende dar à teoria uma nova palavra nova. Pelo contrário, ele dá ao seu livro um
carácter extremamente modesto, sublinhando que ele fala com disciplina. A sua tarefa é
de construir a verdadeira «doutrina do marxismo sobre o Estado».
Pela selecção minuciosa das citações e pela sua interpretação polémica do detalhe,
o livro pode parecer pedante aos verdadeiros pedantes que, sob a análise dos textos, não
são capazes de sentir as potentes pulsões do pensamento e da vontade. Já, unicamente
ao reconstituir a teoria de classe do Estado sobre uma nova base, historicamente mais
elevada, Lenine dá às ideias de Marx um novo carácter concreto, e, em consequência um
novo significado. Mas o escrito sobre o Estado toma uma importância considerável pelo
facto primeiro porque se trata de uma introdução científica à insurreição a maior que a
história conheceu. O «comentador» de Marx preparava o seu partido para a conquista
revolucionária da sexta parte do mundo.
Se o Estado pudesse simplesmente ser adaptado às necessidades de um novo
regime, não haveria revoluções. Ora, a própria burguesia não chegou ao poder até ao
presente de outra forma senão por insurreições. Agora chegou a vez dos operários.
Lenine, também nesta questão, deu ao marxismo todo o seu significado, como
instrumento teórico da revolução proletária.
Os operários não poderão apoderar-se do aparelho de Estado? Mas não se trata de
forma alguma -ensina Lenine – de se amparar da velha máquina para novos objectivos: é
uma teoria reaccionária. A escolha que foi feita por gente no velho aparelho, sua
educação, suas relações recíprocas – tudo contradiz as tarefas históricas do proletariado.
Quando se conquista o poder, não se trata de reeducar o velho aparelho, é preciso
demolí-lo completamente. Substituí-lo por quê? Pelos sovietes. Dirigente das massas
revolucionárias, órgãos da insurreição, eles tornar-se-ão os órgãos de uma nova ordem
de Estado.
Nos turbilhões da revolução, a obra encontrará poucos leitores; aliás ela só será
editada após a insurreição. Lenine estuda o problema do Estado antes de tudo para a sua
íntima convicção e, a seguir, para o futuro. A conservação da herança ideológica era uma
das suas constantes preocupações. Em Julho, ele escreveu a Kamenev: «Entre nós, se
me matam peço-vos de publicar o meu caderno O Marxismo sobre o Estado (que ficou
em Estocolmo). A camisa azul está agrafada. Todas as citações estão reunidas, de Marx e
de Engels, assim com de Kautsky e Pannekoek. Há um bom número de notas e
observações a reformatar. Penso que em oito dias de trabalho se pode publicar.
Considero que é importante, porque Plekhanov e Kautsky não foram os únicos a
confundir. Uma condição: tudo isso absolutamente entre nós.» O chef da revolução,
perseguido como um agente de um Estado inimigo, tendo que tomar em conta a
possibilidade de um atentado do lado adversário, ocupa-se da publicação de um caderno
«azul», com citações de Marx e de Engels: tal é o seu testamento secreto. A palavra
familiar «matará-me-ão» deve servir de antídoto ao patético que ele temia: o mandado
dado tinha no fundo um carácter patético.

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Mas, esperando receber um golpe nas costas, Lenine preparava-se ele próprio a dar
um em pleno peito. Enquanto que, lendo os jornais, envia instruções, ele metia em ordem
o precioso caderno recebido de Estocolmo, a vida não parava. A hora se aproximava onde
a questão do Estado deveria ser resolvida praticamente.
Na Suíça, logo após a queda da monarquia, Lenine escrevia:
«… não somos blanquistas, nem partidários da tomada do poder por uma minoria…»
Ele desenvolveu a mesma ideia quando chegou à Rússia:
«Actualmente somos minoritários – as massas por agora não confiam em nós.
Saberemos esperar… Elas passarão para o nosso lado e, calculando as relações de
forças, então diremos: o nosso tempo chegou.»
A questão da conquista do poder se colocava nesses primeiros meses como a da
conquista da maioria nos sovietes.
Após o esmagamento de Julho, Lenine proclamou isto: o poder doravante só poderá
ser tomado por via da insurreição armada; e aí, necessitará inverosimilmente, apoiar-se
não sobre os sovietes, desmoralizados pelos conciliadores, mas sobre os comités de
fábrica; os sovietes, como órgãos do poder, deverão ser reconstituídos após a vitória. De
facto, os bolcheviques, dois meses mais tarde, retiravam os sovietes aos conciliadores. A
natureza do erro de Lenine nesta questão é fortemente característico do seu génio
estratégico: nas suas intenções mais audaciosas, ele calcula segundo as premissas
menos favoráveis. Mesmo que, partindo de Abril, pela Alemanha, para a Rússia, ele
contava que da gare ele iria direito à prisão; assim, no 5 de Julho, dizia; «Talvez nos
fuzilem todos.» E agora ele pensava: os conciliadores não nos deixarão tomar a maioria
nos sovietes.
«Não há homem mais pusilâmine do que eu quando elaboro um plano de guerra,
escrevia Napoleão ao general Berthier; não exagero todos os perigos e todas as
catástrofes possíveis… Quando a minha decisão é tomada, tudo é esquecido, excepto o
que pode fazer o sucesso.» Se deixarmos de lado uma certa posição exprimida numa
palavra pouco adequada, «pusilâmine», o fundo do pensamento pode ser inteiramente
relacionada a Lenine. Resolvendo um problema de estratégia, ele dotava o inimigo da sua
própria resolução e da sua perspicácia. Os erros de táctica de Lenine eram na maior parte
das vezes os produtos secundários da sua força estratégica. No caso presente, não há
lugar para falar de um erro; quando um diagnóstico determina uma doença por meio de
eliminações sucessivas, as suas conjecturas hipotéticas, a começar pelos piores,
aparecem não como erros, mas como um método de análise.
Desde que os bolcheviques tomaram posse dos Sovietes das duas capitais, Lenine
disse: «A nossa vez chegou.» Em Abril e em Julho, ele procurava moderar; em Agosto,
ele preparava teoricamente a nova etapa; a partir de meados de Setembro, ele empurra
com todas as suas forças. O perigo agora não é de ir mais demasiado muito depressa, é
de se atrasar. «Não pode haver agora nada de prematuro sob essa relação.»

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Nos artigos e cartas enviadas ao Comité central, Lenine analiza a situação,
destacando cada vez em primeiro lugar as condições internacionais. Os síntomas e os
factos do despertar do proletariado europeu são para ele, sobre o pano de fundo dos
acontecimentos da guerra, uma prova incontestável que a ameaça directa à revolução
russa do lado do imperialismo estrangeiro se reduzirá cada vez mais. As prisões de
socialistas em Itália e particularmente a revolta na frota alemã obrigam a proclamar uma
reviravolta formidável no mundo inteiro: «Estamos no limiar de uma revolução proletária
mundial.»
Sobre esta posição de partida de Lenine, historiografia dos epígonos prefere calar-
se: porque o cálculo de Lenine parece desmentido pelos acontecimentos e, também
porque, segundo teorias vindas mais tarde, a revolução russa deve, em todas as
condições, vencer. Ora o julgamento feito por Lenine sobre a situação internacional era
dos menos ilusórios. Os síntomas que ele observa a través da peneira da censura militar
todos os países manifestavam efectivamente a chegada da tempestade revolucionária.
Nos Impérios da Europa central, ela faz tremer, um ano depois, o velho edifício até aos
alicerces. Mas, mesmo nos países vencedores, em Inglaterra e em França, sem falar da
Itália, ela priva por muito tempo as classes dirigentes da sua liberdade de acção. Contra
uma Europa capitalista, sólida, conservadora, segura dela própria, a revolução proletária
na Rússia, isolada e não tendo tido tempo de se consolidar, não teria podido aguentar
mesmo por alguns meses. Mas essa Europa já não existia. A revolução no Ocidente, na
verdade, não levou mais o proletariado ao poder – os reformistas salvaram o regime
burguês mas ela se encontrou mesmo assim bastante potente para proteger a República
soviética no primeiro período, o mais perigoso da sua existência.
O profundo internacionalismo de Lenine exprimia-se não somente no que ele metia
invariavelmente na primeira linha a avaliação da situação internacional: a conquista
mesmo do poder na Rússia era considerada por ele, antes de tudo, como uma propulsão
para a revolução europeia que, ele repetiu várias vezes, deve ter para os destinos da
humanidade uma importância incomparavelmente maior que a revolução da Rússia
atrasada. Alguns sarcasmos não abatem os bolcheviques que não compreendem o seu
dever de internacionalistas. «Adoptemos uma resolução de simpatia para com os
insurrectos alemãs – ele adverte – e rejeitemos a insurreição na Rússia. Seria
verdadeiramente internacionalismo razoável!»
No decurso dos dias da Conferência democrática, Lenine escreveu ao Comité
central: «Tendo obtido a maioria no Soviete das duas capitais…, os bolcheviques podem e
devem tomar posse do poder de Estado…» Acontece que a maioria dos delegados
camponeses da Conferência democrática falsificada votavam contra a coligação com os
cadetes tinha a seus olhos uma importância decisiva: o mujique que não quer alianças
com a burguesia só terá que apoiar os bolcheviques.» O povo está cansado das querelas
entre os mencheviques e os socialistas-revolucionários. Só a nossa vitória nas capitais
trará os camponeses connosco.» A tarefa do partido: «Meter na ordem do dia a
insurreição armada em Piter e em Moscovo, a conquista do poder, a subversão do
governo…» Ninguém até aí não tinha colocado tão imperiosamente e abertamente o
problema da insurreição.

656
Lenine consulta muito atentamente todas as eleições no país, recolhendo
cuidadosamente os números que podem iluminar a real relação de forças. A indiferença
meio anárquica em relação à estatística eleitoral só tinha da sua parte desprezo. Ao
mesmo tempo, Lenine nunca identificava os indícios do parlamentarismo com as reais
relações de forças: ele acrescentava sempre uma correcção para a acção directa. «... A
força do proletariado revolucionários, do ponto de vista da acção sobre as massas e o seu
treino na luta – lembra – é infinitamente maior numa luta extra-parlamentar do que numa
luta parlamentar. É uma observação muito importante na questão da guerra civil.»
Num olhar penetrante, Lenine foi o primeiro a notar que o movimento agrários tinha
entrado numa fase decisiva e retirou todas as deduções. O mujique não quer esperar
mais, tal como o soldado. «Diante dum facto como o levantamento do campesinato –
escreve Lenine, no fim de Setembro – todos os outros síntomas políticos, mesmo se eram
contrários a este amadurecimento da crise geral da nação, não teriam absolutamente
qualquer importância.» A questão agrária é a própria base da revolução. A vitória do
governo sobre o levantamento camponês seria «o enterro da revolução…» Não se pode
esperar condições mais favoráveis. Eis que chegou a hora da acção. A crise amadureceu.
Todo o futuro da revolução operária internacional pelo socialismo está na mesa. A crise
amadureceu.»
Lenine apela à insurreição. Em cada linha simples, prosaica, por vezes angulosa,
ressoa a maior impetuosidade da paixão.
«A revolução está perdida – escreve no princípio de Outubro na Conferência do
partido, em Petrogrado – se o governo de Kerensky não é derrubado próximamente pelos
proletários e soldados… É preciso mobilizar todas as forças para inculcar aos operários e
aos soldados a ideia da absoluta necessidade de uma luta desesperada, última, decisiva,
para o derrube do governo de Kerensky.»
Lenine tinha dito mais de uma vez que as massas estão mais à esquerda que o
partido. Ele sabia que o partido está mais à esquerda que a cimeira, a camada dos
«velhos bolcheviques». Ele imaginava demasiado bem os grupos interiores e as
tendências no Comité central para esperar dele as diligências audaciosas; em contra-
partida, ele apreendia muito uma circunspecção excessiva, o espírito da temporização, a
negligência de uma dessas situações históricas que são preparadas em dezenas de anos.
Lenine não confia no Comité central… sem Lenine: aí está o segredo das suas missivas
escritas a partir do seu esconderijo clandestino. E Lenine não está enganado ao não ter
confiança.
Obrigado a pronunciar-se na maior parte dos casos após uma decisão já tomada em
Petrogrado, Lenine crítica invariavelmente, do ponto de vista da esquerda, a política do
Comité central. A sua oposição desenvolve-se tendo por fundo o problema da insurreição,
mas não se limita aí. Lenine considera que o Comité central acorda demasiada atenção
ao Comité executivo conciliador, à Conferência democrática, em geral à confusão
parlamentar nas cimeiras soviéticas. Ele pronúncia-se veemente contra os bolcheviques
propondo um cabinete de coligação no Soviete de Petrogrado. Ele estigmatiza como
«desonra» a decisão de participar no pré-parlamento. Ele indignou-se na publicação no

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fim de Setembro da lista dos candidatos bolcheviques à Assembleia constituinte:
demasiados intelectuais, demasiados poucos operários. «Preencher a Assembleia
constituinte com oradores e literários, é caminhar nos caminhos gastos do oportunismo e
do chauvinismo. Isso é indigno da IIIª Internacional.» Além disso, entre os candidatos há
demasiados novos membros do partido sem experiência de luta! Lenine considera
necessário ter uma reserva: «É evidente que… ninguém, por exemplo não contestaria,
uma candidatura como a de L. D. Trotsky, porque, em primeiro lugar, Trotsky, desde da
sua chegada, ocupou uma posição internacionalista; em segundo lugar, ele lutou na
organização inter-distritos pela fusão; em terceiro lugar, durante as duras Jornadas de
Julho, ele mostrou estar à altura da tarefa e devotado aos partidários do partido do
proletariado revolucionário. É claro que não se pode dizer o mesmo de uma multitude de
membros do partido inscritos ontem…»
Pode parece que as Jornadas de Abril pertencem ao passado: Lenine está de novo
em oposição ao Comité central. As questões colocam-se de outro jeito, mas o espírito
geral da sua oposição é o mesmo: o Comité central é demasiado passivo, cede
demasiado à opinião pública das esferas intelectuais, é demasiado conciliante em relação
aos conciliadores; e, sobretudo, considera com demasiada indiferença, fatalista, não
como bolchevique, o problema da insurreição armada.
Da palavra é tempo de chegar aos actos: «O nosso partido, agora, na Conferência
democrática, tem de facto o seu Congresso, e esse Congresso deve resolver (que queira
ou não) a questão da revolução». Não se pode conceber que uma só solução: a
insurreição armada. Nessa primeira carta sobre o levantamento, Lenine tem ainda uma
reserva: «A questão coloca-se não sobre o sujeito do «dia» do levantamento, mas sobre o
«momento» no sentido restricto da palavra. Isso será decidido pala voz de todos os que já
estão em contacto com os operários e os soldados, com as massas.» Mas já, dois ou três
dias depois (as cartas desse tempo habitualmente não são datadas: não por
esquecimento, mas por razões conspirativas), Lenine, sob a evidente impressão da
decomposição da Conferência democrática, insiste sobre a passagem imediata à acção e
formula logo um plano prático.
«Nós devemos na Conferência assegurar logo a fracção dos bolcheviques, sem
procurar o número… Nós devemos redigir uma breve declaração dos bolcheviques… Nós
devemos dirigir toda a nossa fracção para as fábricas e quartéis. Devemos, ao mesmo
tempo, sem perder um minuto, organizar o Estado-maior dos destacamentos insurrectos,
repartir as forças, avançar os regimentos fiéis para os pontos mais importantes, cercar
Alexandrina [o teatro onde tem lugar a Conferência democrática], ocupar a Petropaulina,
prender o Estado-maior general e o governo, enviar aos junkeres e à divisão selvagem
dos destacamentos capazes de morrer, mas impedir o inimigo de avançar para os centros
da cidade. Devemos mobilizar os operários armados, chamá-los para a última batalha
encarniçada, ocupar imediatamente os telégrafos e os telefones, instalar o nosso Estado-
maior de insurreição na Central telefónica, ligar a todas as fábricas, todos os regimentos,
todos os pontos da luta armada, etc.» A questão da data não é mais colocada na
dependência da voz comum dos que têm contacto com as massas». Lenine propõe agir
imediatamente: sair com um ultimato do teatro Alexandra para aí voltar à cabeça das

658
massas armadas. O golpe de força deve ser dirigida não somente contra o governo, mas
também, simultaneamente, contra o órgão supremo dos conciliadores.
«… Lenine, que, nas cartas privadas, reclamava a prisão da Conferência
democrática, - assim denúncia Sokhanov – propunha na imprensa, como sabemos, um
«compromisso»: que todo o poder seja para os mencheviques e os socialistas-
revolucionários e, aí, ver-se-à o que dirá o Congresso dos sovietes… A mesma ideia era
obstinadamente preconizada por Trotsky na Conferência democrática e à volta dela.»
Sokhanov vê um duplo jogo aí onde não havia nem mesmo sombra. Lenine propunha aos
conciliadores um compromisso imediatamente após a vitória obtida sobre Kornilov, nos
primeiros dias de Setembro. Encolhendo os ombros, os conciliadores deixaram-no cair. A
Conferência democrática foi transformada por eles num disfarce de uma nova coligação
dos cadetes entre os bolcheviques. A possibilidade de um acordo desaparecia por aí
definitivamente. A questão do poder não podia ser doravante resolvida senão por uma luta
aberta. Sokhanov confonde duas fases cuja primeira ultrapassava a outra de quinze dias
e condicionava-a do ponto de vista político.
Mas, se a insurreição procedia irresistivelmente a nova coligação, Lenine, pela
vivacidade do seu empenho, tomou de improvisto mesmo a cimeira do seu próprio
partido. Agrupar segundo a sua carta a fracção bolchevique na Conferência , mesmo
«sem procurar o número», era evidentemente impossível. O estado de espírito da fracção
era tal que, por setenta votos contra cinquenta, ele afastou o boicote do pré-parlamento,
isto é o primeiro passo para a insurreição. Mesmo no Comité central, o plano de Lenine
não encontrou qualquer apoio. Quatro anos mais tarde, numa noite consagrada às
lembranças, Bukarine, com os exageros e as graças que o caracterizavam, conta de uma
maneira bastante justa o fundo deste episódio: «A carta (de Lenine) foi escrita com uma
violência extrema e nos ameaçava com toda a especie de castigos (?). Ficamos atónitos.
Ninguém tinha colocado a questão assim tão violentamente… Primeiro todos duvidaram.
Depois, de conversados, decidimos. Foi talvez o único caso na história do nosso partido
onde o Comité centra resolveu unanimemente queimar a carta de Lenine… Nós
pensámos que sem dúvida, em Piter e em Moscovo, conseguiríamos tomar o poder nas
mãos, mas considerávamos que na província não poderíamos detê-lo, senão tomar o
poder e expulsar os membros da Conferência democrática, nós não poderíamos nos
consolidar no resto da Rússia.»
Provocada por certas considerações conspirativas, a incineração de várias cópias da
carta perigosa foi decidida realmente não por unanimidade, mas por seis votos contra
quatro, com seis abstenções. Um exemplar foi felizmente conservado para a história. Mas
o que é verdade na narrativa de Bukarine, é que todos os membros do Comité central,
mesmo se por motivos diversos, afastaram a proposição: uns opunham-se à insurreição
em geral, os outros consideravam que o momento onde tinha lugar a Conferência era o
menos favorável de todos; a terceira parte hesitava simplesmente e continuava na
expectativa.
Tendo encontrado resistência directas, Lenine entra numa especie de conjuração
com Smilga, que se encontra também em Finlândia e que, como presidente do Comité

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regional dos sovietes, tem nas mãos pelo momento uma autoridade realmente
considerável. Smilga encontrava-se em 1917 no flanco extremo da esquerda do partido e,
já em Julho, estava inclinado a empurrar a luta até às suas conclusões últimas: nas
reviravoltas da política, Lenine tinha sempre onde se apoiar. No 27 de Setembro, Lenine
escreve a Smilga uma longa carta: «… Que faremos? Adoptamos somente as moções?
Perdemos tempo, fixemos «datas» (o 20 de Outubro – o Congresso dos sovietes – não é
ridículo diferir assim? Não é ridículo contar sobre isso?) Os bolcheviques não seguem um
trabalho sistemático para preparar as suas forças militares tendo em vista derrubar
Kerensky… É preciso agitar no partido para que se considere seriamente a insurreição
armada… A seguir, sobre o vosso papel… criar um Comité clandestino, formado por
militares seguros, examinar com eles a situação sob todos os aspectos, recolher (e
verificar por você próprio) as informações mais preciosas sobre a composição e
localização das tropas em Piter e sob Piter, sobre os transportes das tropas finlandesas
para Piter, sobre o movimento da frota, etc.» Lenine reclama «uma propaganda
sistemática entre os cosacos que se encontram aqui na Finlândia… É preciso consultar
todas as informações sobre a localização dos cosacos e organizar o envío para para eles
de destacamentos de agitadores escolhidos entre as melhores forças de marinheiros e
soldados da Finlândia». Enfim: « Para preparar convenientemente os espíritos, é preciso
imediatamente meter a circular essa palavra de ordem: o poder deve imediatamente
passar para as mãos do Soviete de Petrogrado que o transmitirá ao Congresso dos
sovietes. Para que serve tolerar ainda três semanas de guerra e de preparativos
kornilovianos de Kerensky?»
Temos diante de nós um novo plano de insurreição: «um comité clandestino dos
principais militares» em Helsingfors, como Estado-maior de combate; as tropas russas
estacionadas em Finlândia como forças de combate: «o único recurso que podemos ter,
parece, completamente na mão, e que joga um papel militar sério, são as tropas da
Finlândia e a frota do Báltico.» Lenine conta assim dar um golpe duro ao governo a partir
do exterior de Petrogrado. Ao mesmo tempo é indispensável « uma preparação
conveniente dos espíritos», para que o derrube do governo pelas forças armadas da
Finlândia não caia como se fosse de improviso sobre o Soviete de Petrogrado: este, até
ao Congresso dos sovietes, deverá mostrar-se o herdeiro do poder.
O novo esboço do plano, tal como os precedentes, não teve aplicação. Mas ele não
foi inutilizado. A agitação nas divisões cosacas deu logo resultados: disse-nos Dybenko. O
apelo feito para a participação dos marinheiros do Báltico para dar o principal golpe ao
governo entrou igualmente no plano que foi mais tarde adoptado. Mas o essencial não
está aí: uma questão que se tornou bastante grave, Lenine não permitia a ninguém de o
iludir e de utilizar subterfúgios. O que se mostrava inoportuno como proposição directa de
táctica tornava-se racional como verificação dos estados de espírito no Comité central,
como um apoio dos resolutos diante dos hesitantes, como um impulso suplementar em
direcção da esquerda.
Por todos os meios que ele podia dispor no isolamento do seu esconderijo, Lenine
esforçava-se de obrigar os quadros do partido a sentir a gravidade da situação e a força
da pressão das massas. Do seu refúgio chamava diversos bolcheviques, submetendo-os

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a interrogatórios apaixonantes, controlava as palavras e os actos dos dirigentes, enviava
por vias clandestinas as suas palavras de ordem ao partido, em baixo, em profundidade,
para colocar o Comité central diante da necessidade de agir e de ir até ao fim.
Um dia após ter escrito uma carta a Smilga, Lenine redige logo o documento citado
mais acima, A crise amadureceu, terminando por uma especie de declaração de guerra
ao Comité central. «É preciso… reconhecer a verdade: entre nós, no Comité central e na
cimeira do partido, existe uma tendência ou uma opinião preconizando a espera do
Congresso dos sovietes, opondo-se à tomada imediata do poder, à insurreição imediata.
«Esta tendência deve ser ultrapassada custe o que custar.» Obter primeiro a vitória sobre
Kerensky, a seguir convocar o Congresso. Perder tempo a esperar pelo Congresso dos
Sovietes, é «uma completa idiotice ou uma traição completa…». Até ao Congresso,
marcado para o dia 20, sobram mais de vinte dias: «As semanas e mesmo os dias
decidem agora de tudo.» Diferir a conclusão, é renunciar cobardemente à insurreição,
porque, durante o Congresso, a tomada do poder tornar-se-à impossível: «Levarão os
cossacos ao dia «marcado» de uma maneira tola para a insurreição.»
O tom da carta já mostrava como parece fatal a Lenine a política de temporização
dos dirigentes de Petrogrado. Mas ele não se limita, desta vez, à crítica cerrada e, a título
de protesto, ele demite-se do Comité central. Motivos: o Comité central não respondeu
logo no princípio da Conferência aos seus avisos no que diz respeito à tomada do poder;
a redacção do órgão do partido (Estaline) imprime os seus artigos com atrasos
intencionais, cortando certas intenções sobre «os faltas dos bolcheviques tão evidentes
como a vergonhosa em participar no pré-parlamento», etc. Lenine não considera possível
cobrir esta política diante do partido.«Sou obrigado a pedir a saída do Comité central, o
que eu faço, e de manter a minha liberdade de agitação na base do partido e no
Congresso do partido.»
Segundo os documentos, não se vê como, a seguir, este assunto foi resolvido
formalmente. De qualquer modo, Lenine não saiu do Comité central. A demissão não
podia ser senão o resultado de um instante de irritação, Lenine mantinha evidentemente
por dever a possibilidade de se libertar, em caso de necessidade, da disciplina interior do
Comité central: não havia dúvida que, tal como em Abril, um apelo directo à base
garantia-lhe a vitória. Mas o caminho de uma revolta aberta contra o Comité central
supunha a preparação de um Congresso extraordinário, e, logo, exigia tempo; ora, era
precisamente o tempo que faltava. Mantendo em reserva a sua carta de demissão, mas
não saindo inteiramente dos limites da legalidade do partido, Lenine continua com uma
liberdade maior para desenvolver a ofensiva sobre as linhas das operações no interior.
Não somente as suas cartas ao Comité central são enviadas por ele aos Comités de
Petrogrado e de Moscovo, mas ele toma medidas para que as cópias cheguem aos
militantes mais seguros dos bairros. No início de Outubro, passando já sobre o Comité
central, Lenine escreve directamente aos Comités de Petrogrado e de Moscovo: «Os
bolcheviques não têm o direito de esperar pelo Congresso dos Sovietes, eles devem
tomar o poder já… Esperar é um crime. Esperar pelo Congresso dos sovietes, é um jogo
puéril pela formalidade, é um jogo infame de formalismo, é trair a revolução.» Do ponto de

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vista das relações hierárquicas, os actos de Lenine não eram censuráveis. Mas tratava-se
de qualquer coisa maior que as considerações de disciplina formal.
Um dos membros do Comité do distrito de Vyborg, Svechnikov, diz nas suas
Memórias: «E Illitch no seu esconderijo escrevia e escrevia infatigavelmente, e Nadejda
Konstantinovna (Kroupskaia) nos lia muitas vezes os manuscritos ao Comité… As
palavras do chefe juntavam à nossa força… Lembro-me como fosse ontem Nadejda
Konstantinovna debruçada, numa das salas da direcção do distrito onde trabalhavam as
dactilógrafas, comparando cuidadosamente a reprodução com os originais e, logo ao lado
dela, «Diadia» e «Génia» pedindo uma cópia. «Diadia» (tio) e Génia (Eugénia), eram, na
conspiração, os nomes de guerra de dois dirigentes. «Não há muito tempo – conta um
militante do distrito, Naomov – recebemos de Illitch uma carta a transmitir ao Comité
central… Lemos a carta e fizemos «Oh!» Acontece que Lenine põe já há muito tempo
diante do Comité central a questão da insurreição. Nós protestámos, começámos a fazer
pressão sobre o centro.» Era precisamente o que era preciso.
Nos primeiros dias de Outubro, Lenine convida a Conferência do partido em
Petrogrado a dizer firmemente uma palavra a favor da insurreição. Por sua iniciativa, a
Conferência «pede ao Comité central de tomar todas as medidas para a direcção do
inevitável levantamento dos operários, dos soldados e camponeses». Nesta fase única,
há dois disfarces, um jurídico, outro diplomático: na direcção de um «levantamento
inevitável», em vez de uma preparação directa da insurreição, isso diz para não dar
demasiados trunfos ao Procurador; a Conferência «pede ao Comité central» ela não exige
e não protesta – é um tributo evidente ao prestígio da mais alta instituição do partido.
Mas, numa outra resolução, igualmente redigida por Lenine, diz-se com maior franqueza:
«... Na cimeira do partido, uma tendência a substituir a esta luta de resoluções, de
protestos e de congressos.» É já dirigir o partido quase abertamente contra o Comité
central. Lenine não se decidia sem mais nem menos em fazer tais passos. Mas tratava-se
da sorte da revolução e todas as outras considerações passavam para um plano
secundário.
No dia 8 de Outubro, Lenine dirige aos delegados bolcheviques do próximo
Congresso regional do Norte: «Não se pode esperar o Congresso pan-russo dos sovietes,
se o Comité executivo é capaz de diferir até Novembro, não se pode adiar, ao mesmo
tempo permitir a Kerensky de trazer mais tropas kornilovianas.» O Congresso regional,
onde estão representados a Finlândia, a frota e Reval, deve tomar a iniciativa» de um
movimento imediato sobre Piter». O apelo directo a uma insurreição imediata é dirigido
desta vez aos representantes de dezenas de sovietes. O apelo vem de Lenine em
pessoa: não há decisão do partido, a mais alta instância do partido ainda não se
pronunciou.
Era preciso ter uma muito grande desconfiança em relação ao Comité central para
levantar, independentemente deste, sob uma responsabilidade pessoal, do fundo do seu
esconderijo, por intermédio de pequenas folhas de papel com cartas cobertas de uma fina
escritura, a agitação para a insurreição armada. Como pôde ser que Lenine, que vimos
isolado nas cimeiras do seu próprio partido no princípio de Abril, parecia encontrar-se de

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novo isolado no mesmo meio em Setembro e no início de Outubro? Isso não se pode
compreender se acrescentar-mos fé à legenda estúpida que representa a história do
bolchevismo como a emancipação pura e simples de uma ideia revolucionária. Na
realidade, o bolchevismo desenvolveu-se num meio social determinado, onde ele foi
submetido a reacções diversas, entre as quais a influência de um cerco pequeno-burguês
e de um Estado de cultura atrasado. A cada nova situação, o partido só se adaptava por
uma crise interna.
A luta aguda, que precede Outubro, nas cimeiras do bolchevismo, apresenta-se a
nós sob o seu verdadeiro aspecto. É preciso ainda deitar um olhar retrospectivo sobre o
processo no partido o qual trata no primeiro volume da presente obra. Isso é tanto mais
indispensável que, mesmo neste momento, a fracção de Estaline faz enormes esforços,
mesmo à escala internacional, para apagar da história toda a memória do que
efectivamente foi preparado e realizado pela revolução de Outubro.
Durante os anos que precederam a guerra, os bolcheviques davam-se o título, na
imprensa legal, de «democratas consequentes». Esse pseudónimo não tinha sido
escolhido por acaso. O bolchevique, e ele somente, teve a ousadia de empurrar até ao fim
as palavras de ordem da democracia revolucionária. Mas, no prognóstico da revolução,
ele não os ultrapassava. Ora, a guerra, tendo ligado indissoluvelmente a democracia
burguesa com o imperialismo, mostra definitivamente que o programa da «democracia
consequente» não podia ser preenchido de outra forma senão por uma revolução
proletária. O dos bolcheviques que não tinha encontrado esta explicação na guerra devia
ser tomado fatalmente de improviso pela revolução e transformado num companheiro de
caminho à esquerda da democracia burguesa.
Ora, um estudo cuidadoso dos documentos que caracterizam a vida do partido
durante a guerra e no início da revolução, apesar das suas lacunas extremas e não
fortuitas, e, a partir de 1923, apesar do crescimento do espírito tendencioso, mostra cada
vez mais o enorme deslize ideológico iniciado operado pela camada superior dos
bolcheviques durante a guerra, quando a vida regular do partido tinha, de facto, parado. A
causa do deslize é dupla: ruptura com as massas, ruptura com a emigração, isto é, antes
de tudo, com Lenine, e como resultado: atrapalhar-se no isolamento e no provincianismo.
Nem um dos velhos bolcheviques na Rússia, cada um entregue a si próprio, não
reagiu durante toda a guerra um só documento que poderia ser considerado pelo menos
como um marco na via da IIª Internacional à IIIª Internacional. «As questões de paz, da
natureza da revolução crescente, o papel do partido no futuro governo provisório, etc. -
escrevia, há alguns anos, um dos velhos membros do partido, Antonov-Saratovsky – se
desenhavam diante de nós de uma maneira bastante confusa ou então não entravam de
forma nenhuma no campo das nossas reflexões.» Até ao presente não se publicaram na
Rússia uma só obra, uma só página de caderno, uma única carta onde Estaline, Molotov
ou outros dirigentes actuais teriam formulado, mesmo de passagem, mesmo de fugida, as
suas opiniões sobre as perspectivas de guerra e de revolução. Isso não significa, bem
entendido, que «os velhos bolcheviques» não tenha escrito nada sobre essas questões
durante os anos de guerra, de afundamento da social democracia e de preparação da

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revolução russa; os acontecimentos históricos exigiam demasiado imperiosamente uma
resposta, e a prisão como a deportação davam tempo suficiente para as reflexões e a
correspondência. Mas, em tudo o que foi escrito sobre esses temas, nada se encontrou
que se possa interpretar, mesmo abusivamente, como um avance para as ideias da
Revolução de Outubro. Basta mencionar que o Instituto de História do partido privou-se
da possibilidade de imprimir uma só linha saída da pluma de Estaline entre 1914 e 1917,
e é obrigado a dissimular cuidadosamente os mais importantes documentos que dizem
respeito a Março de 1917. Nas biografias políticas oficiais da maioria da camada
actualmente dirigente, os anos de guerra são marcados como uma página branca. Tal é a
verdade simples.
Um dos novos jovens historiadores, Baievsky, que tinha especialmente encarregado
de demonstrar como as cimeiras do partido se desenvolveram durante a guerra no
sentido da revolução proletária, apesar da flexibilidade da consciência científica que ele
manifestou, nada pode tirar dos materiais, salvo esta magra declaração: «Nao se pode
seguir o desenrolar desse processo, mas certos documentos e lembranças provam sem
dúvida que o pensamento do partido levou subterraneamente pesquisas na direcção das
Teses de Abril de Lenine.» Como se tratava de pesquisas subterrâneas e não de
apreciações científicas e de prognósticos políticas!
A Pravda de Petrogrado tentou, no princípio da revolução, tomar uma posição
internacionalista, na verdade extremamente contraditória, porque ela não saía dos
quadros da democracia burguesa. Os bolcheviques autorizados que voltavam da
deportação deram logo ao órgão central uma direcção democrática-patriótica. Kalinine,
para afastar as acusações de oportunismo das quais ele era alvo, lembrou, a 30 de Maio,
que era preciso «tomar o exemplo da Pravda. No início, a Pravda tinha uma certa política.
Estaline, Moranov, Kamenev chegaram e voltaram o leme da Pravda noutro sentido».
«É preciso dizer claramente – escrevia, já há alguns anos, Molotov – o partido não
tinha uma visão clara e a decisão que exigia o momento revolucionário… A agitação,
como todo o trabalho revolucionário do partido no conjunto, não tinha base sólida, porque
o pensamento não tinha ainda chegado à audaciosa dedução sobre a necessidade da luta
directa pelo socialismo e a revolução socialista.» «A reviravolta só começou no decurso
do segundo mês da revolução.» «A partir da chegada de Lenine à Rússia, em Abril de
1917 – testemunha Molotov – o nosso partido sentia ter os pés bem assentes no chão…
Até a esse momento, o partido apalpava ainda fracamente e sem segurança para
encontrar o seu caminho.»
Chegar à priori às ideias da Revolução de Outubro, isso não se podia nem na
Sibéria, nem em Moscovo, nem mesmo em Petrogrado, mas somente na encruzilhada
dos caminhos históricos mundiais. Os Problemas da revolução proletária burguesa
atrasada deviam se encontrar com as perspectivas do movimento proletários mundial
para que fosse possível formular, tocando a Rússia, um programa de ditadura do
proletariado. Tínhamos necessidade de um posto de observação mais elevado, uma vista
não nacional mas internacional, sem falar de um armamento Mais sério do que aquele
que dispunham os que se chamavam os «práticos russos do partido».

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O derrube da monarquia abria, aos seus olhos, a era de uma Rússia republicana
«livre» na qual eles se dispunham, segundo o exemplo dos países ocidentais, a iniciar a
luta pelo socialismo. Três velhos bolcheviques, Rykov, Skvortsov e Begman, «sobre
mandado dos sociais democratas da região de Narin entregues pela revolução»,
telegrafavam em Março de Tomsk: «Nós saudamos a Pravda ressuscitada que, com tanto
sucesso, preparou os quadros revolucionários para a conquista da liberdade política. Nós
exprimimos a profunda convicção que ela conseguirá a juntá-los à volta da sua bandeira
para continuar a luta em nome da revolução nacional.» Desse telegrama colectivo se
destaca toda uma concepção de conjunto: um abismo separa-a da Teses de Abril de
Lenine. A insurreição de Fevereiro tinha duma só vez transformado a camada dirigente do
partido, com, à sua cabeça, Kamenev, Rykov, Estaline, como democratas da defesa
nacional, e que evoluíam para a direita, no sentido duma aproximação com os
mencheviques. O futuro historiador do partido, Iaroslavsky, o futuro chefe da Comissão
central de controlo, Ordjonikidzé, o futuro presidente do Comité executivo central da
Ucrânia, Petrovsky, publicavam em Março, em estreita aliança com os mencheviques, em
Iakutsk, uma revista, O social-democrata que se mantinha nos limites do reformismo
patriótico e do liberalismo: nos anos que seguiram, esta publicação foi cuidadosamente
reunida para ser entregue à destruição.
«É preciso reconhecer abertamente – escrevia Angarsky, homem desse meio,
quando ainda era permitido escrever tais coisas – que um número considerável de velhos
bolcheviques», até à conferência de Abril do partido, sobre a questão do carácter da
revolução de 1917, mantinha os velhos pontos de vista bolcheviques de 1905 e que era
bastante dificil renunciar a esses pontos de vista, eliminá-los. «Convém acrescentar que
as ideias já ultrapassadas de 1905 deixavam de ser em 1917 os pontos de vista dos
bolchevismo» e tornavam-se as ideias de um reformismo patriótico.
«As Teses de Abril de Lenine – declara uma publicação histórica oficial – não tiveram
verdadeiramente oportunidade no Comité de Petrogrado. Em favor dessas teses que
marcaram a época, só duas vozes se pronunciaram, contra treze, com uma abstenção.»
«Demasiado audaciosas pareciam as conclusões de Lenine, mesmo para os seus
discípulos mais entusiastas» - escreveu Podvoisky. As declarações de Lenine – segundo
a opinião do Comité de Petrogrado e da Organização militar - «colocaram… , o partido
dos bolcheviques no isolamento e, por aí, bem entendido, agravaram a situação do
proletariado e do partido profundamente.»
Estaline, no fim de Março, pronunciava-se pela defesa nacional, por um apoio
condicional ao governo provisório, pelo manifesto pacífico de Sokhanov, pela fusão com o
partido de Tseretelli. «Partilhei já essa posição errada – escreveu ele próprio,
retrospectivamente, Estaline, em 1924 – com outros camaradas do partido e nunca aí
renunciou inteiramente senão a meados de Abril, ao aderir às teses de Lenine. Era
preciso uma nova orientação. Esta nova orientação foi dada ao partido por Lenine nas
suas célebres Teses de Abril…»
Kalinine, mesmo no fim de Abril, mantinha ainda um bloco eleitoral com os
menchevique. Na Conferência do partido, Lenine disse: «Oponho-me fortemente a

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Kalinine, porque um bloco com… os chauvinistas é inconcebível… É trair o socialismo.»
Era o estado de espírito de Kalinine não era excepção, mesmo em Petrogrado. Na
Conferência, dizia-se: «O ambiente asfixiante da união, sob a influência de Lenine,
começa a dissipar-se.»
Na província, a resistência às teses de Lenine durou mais tempo, num certo número
de regiões, quase até Outubro. Segundo a narrativa de operário de Kiev, Sivtsov, «as
ideias expostas nas teses (de Lenine) não foram logo assimiladas por toda organização
bolchevique de Kiev. Um certo número de camaradas, incluindo G. Piatakov, estavam em
desacordo com as teses…» Um ferroviário de Kharkov, Morgonov, conta o seguinte: «Os
velhos bolcheviques gozavam de grande influência entre toda a massa dos ferroviários…
Numerosos eram entre os velhos bolcheviques os que não pertenciam à nossa fracção…
Depois da Revolução de Fevereiro, alguns, por erro, aderiram aos mencheviques,
depois disso riram-se deles próprios, questionando-se como é que a coisa pôde
acontecer.» Os testemunhos deste tipo e deste género não faltam.
Apesar disso, uma simples menção de rearmamento do partido feito por Lenine em
Abril é agora considerada pela historiografia oficial como um sacrilégio. Como critério
histórico os últimos historiadores substituíram o prestígio do uniforme do partido. Eles
nem têm o direito de citar sobre isso Estaline que, ainda em 1924, viu-se forçado em
reconhecer a profundidade da reviravolta de Abril. «Foram precisas as famosas Teses de
Abril de Lenine para que o partido pudesse de uma vez tomar um novo caminho.» «Nova
orientação» e «novo caminho», é isso o rearmamento do partido. Mas já, seis anos mais
tarde, Iarolavsky, tendo lembrado, como historiador, que Estaline, no princípio da
revolução, tinha tomado «uma posição errada nas questões essenciais», foi atacado
ferozmente por todos os lados. O ídolo do prestígio é, entre todos os monstros, o mais
devorador!
A tradição revolucionária do partido, a pressão dos operários de base, a crítica de
Lenine à cimeira, forçaram a camada superior do partido, no decorrer de Abril-Maio,
segundo os próprios termos de Estaline, «a se comprometer numa nova via». Mas era
preciso ignorar totalmente a psicologia política para admitir que um simples voto de
adesão às teses de Lenine significava uma a renúncia efectiva e completa à «posição
errada sobre as questões essenciais». Na realidade, os pontos de vista vulgarmente
democráticos que se tinham organicamente reforçados durante os anos de guerra,
mesmo se eles se adaptassem a um novo programa, continuavam em oposição surda
com ele.
No 6 de Agosto, Kamenev, apesar da resolução da Conferência de Abril dos
bolcheviques, pronunciou-se no Comité executivo pela participação na conferência dos
sociais-patriotas que se prepara em Estocolmo. Lenine escreveu um artigo fulminante que
só apareceu, todavia, dez dias após o discurso do Comité central, para obter da reacção,
à cabeça da qual se encontrava Estaline, a impressão do protesto.
Movimentos convulsivos de indecisão se propagaram no Partido após as Jornadas
de Julho: o isolamento da vanguarda operária assustava bastantes dirigentes, sobretudo

666
na província. Durante as jornadas kornilovianas, esses amedrontados tentavam
aproximar-se dos conciliadores, o que teve como consequência um novo grito de aviso de
Lenine.
No 30 de Agosto, Estaline, como chefe da redacção, imprimiu sem reservas um
artigo de Zinoviev. O que não se pode fazer, dirigido contra a preparação da insurreição -
«é preciso olhar a verdade de frente: em Petrogrado temos diante de nós numerosas
circunstâncias que favorecem um levantamento do tipo da Comuna de Paris em 1871 ...»
No 3 de Setembro, Lenine, no seguimento das suas ideias e sem designar Zinoviev, mas
batendo-o por ricochete, escreve: «A alusão à Comuna é muito superficial, mesmo besta.
Porque, em primeiro lugar, os bolcheviques mesmo assim aprenderam qualquer coisa
desde 1871, eles não teriam deixado um banco fora do seu controlo, eles não teriam
renunciado a uma ofensiva sobre Versalhes; e, se as condições tivessem sido tais,
mesmo a Comuna poderia podido ter vencido. Além disso, a Comuna não podia propor ao
povo logo à primeira o que poderão propor os bolcheviques se eles detêm o poder,
precisamente: a terra aos camponeses, a imediata proposição de paz.» Era um aviso
anónimo, mas inequívoco, não somente a Zinoviev, mas ao redactor da Pravda, Estaline.
A questão do pré-parlamento dividiu em dois o Comité central. A decisão da fracção
da Conferência no sentido da participação no pré-parlamento foi confirmada por
numerosos comités locais, senão pela maioria. Foi assim, por exemplo, em Kiev. «Sobre a
questão da… entrada no pré-parlamento – escreveu nas suas Lembranças E. Boch – a
maioria do Comité pronunciou-se pela participação e elegeu como seu representante
Piatakov.» Em muitos casos, como por exemple aqueles de Kamenev, Rykov, de Piatakov
e outros, pode discernir-se uma sucessão de incertezas: contra as teses de Lenine em
Abril, contra o boicote do pré-parlamento em Setembro, contra o levantamento em
Outubro. Em contra-partida, a camada seguinte de quadros bolcheviques, mais próxima
das massas e politicamente mais nova, adoptou facilmente a palavra de ordem do boicote
e obrigou a voltar-se bruscamente os comités, nomeadamente o Comité central. Sob a
influência das cartas de Lenine, a Conferência da cidade de Kiev, por exemplo,
pronunciou-se por uma esmagadora maioria contra o seu comité. Foi assim que, em
quase todas as duras viragens políticas, Lenine apoiava-se sobre as camadas inferiores
do aparelho contra as mais altas, ou então sobre a massa do partido contra o aparelho no
seu conjunto.
As hesitações que precederam Outubro eram, nessas condições, as menos
adequadas por tomar Lenine de improviso. Acontece que ele se tinha armado de uma
desconfiança perspicaz, cuidado dos síntomas alarmantes, ele presumiu o pior e
considerou como oportuno exercer pressão ainda uma vez em lugar de mostrar-se
indulgente.
Sem sombra de dúvida, é sobre a inspiração de Lenine que o gabinete regional de
Moscovo adoptou, no fim de Setembro, uma resolução severa contra o comité central,
acusando-o de irresolução, de hesitação, de introduzir a confusão nas fileiras do partido e
exigiu que ele «tomasse uma linha clara e determinada em direcção à insurreição». Em
nome do gabinete de Moscovo, Lomov comunicou, no 3 de Outubro, esta decisão ao

667
Comité central. No processo-verbal, ler-se isto: «Foi decidido não abrir debates sobre o
relatório.» O Comité central continuava ainda a escamotear a questão: que fazer? Mas a
pressão de Lenine por intermédio de Moscovo não ficou sem efeito: dois dias depois, o
Comité central decidiu abandonar o pré-parlamento.
Que esta diligência fosse a adopção da via insurreccional, era claro para todos,
inimigos e adversários. «Trotsky, fazendo evacuar o pré-parlamento pelo seu exército –
escreve Sokhanov – orientava-se nitidamente no sentido de uma insurreição violenta.» O
relatório do Soviete de Petrogrado, sobre a saída do pré-parlamento acabava-se pelo
grito: «Viva a luta directa e aberta pelo poder revolucionário no país!» Era 9 de Outubro.
No dia seguinte teve lugar, a pedido de Lenine, a famosa sessão do Comité central,
onde a questão da insurreição foi colocada com toda a sua gravidade. Da conclusão
desta sessão Lenine fazia depender a sua política ulterior: pelo Comité central ou contra
ele. Novos gracejos da alegre musa da História! - escreveu Sokhanov. Esta sessão
decisiva dos altos dirigentes teve lugar na minha casa, sempre na mesma rua Karpovka
32, alojamento 31. Mas tudo isso passava-se sem que eu soubesse. A mulher do
menchevique Sokhanov era bolchevique. «Nessa vez, as medidas particulares foram
tomadas para me fazer passar a noite noutro lado: pelo menos, a minha mulher informou-
se exactamente das minhas intenções e deu-me o conselho amigável e desinteressado, o
de não me fatigar demasiado após uma longa viagem. De qualquer modo, a alta
assembleia estava completamente garantida contra uma incursão minha. «A reunião viu-
se – coisa muito mais importante, garantida contra uma incursão da polícia de Kerensky.
Em vinte e um membros do Comité central, doze estavam presentes. Lenine chegou
disfarçado com uma peruca, de óculos e barba feita. A sessão durou cerca de dez horas
sem interrupção, pela noite adentro. Durante uma suspensão, bebemos chá com pão e
chouriço para retomar forças. E tínhamos necessidade disso: tratava-se de apoderar-se
do poder no antigo Império dos czares. Como sempre, a sessão começou com um
relatório sobre a organização de Sverdlov. Desta vez, as informações que ele deu foram
consagradas à frente e, evidentemente, previamente de acordo com Lenine afim de lhe
dar um apoio para as deduções necessárias: isso respondia completamente aos
procedimentos habituais de Lenine. Os representantes dos exércitos da frente Norte
davam a saber, por intermediário de Sverdlov, que o comando contra-revolucionário
preparava «um assunto esquisito trazendo as tropas para a retaguarda». De Minsk, do
estado-maior da frente Oeste, comunicavam que se preparava aí uma nova aventura
korniloviana. Por causa do estado de espírito revolucionário da guarnição local, o estado-
maior tinha cercado a cidade por contingentes de cossacos. «Tiveram conversações de
carácter duvidoso entre os estados-maiores e o Grande Quartel General. É possível jogar
a mão ao estado-maior de Minsk: a guarnição local está pronta a desarmar os cossacos
que o cercam. Pode-se igualmente expedir de Minsk um corpo do exército revolucionário
para Petrogrado. Na frente, são favoráveis aos bolcheviques, marcham contra Kerensky.
Tal é a situação: ela não é suficientemente nítida no seu conjunto, mas ela tem um
carácter completamente reconfortante.

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Lenine passa logo à ofensiva: «Desde do princípio de Setembro, observa-se uma
sorte de indiferença em relação à insurreição». Alega-se um arrefecimento e uma
desilusão das massas. Não é de admirar: «as massas estão fartas de palavras e de
resoluções». É preciso tomar a situação no seu conjunto. Os acontecimentos, nas
cidades, realizam-se agora sobre o fundo de um gigantesco movimento de camponeses.
Para abafar o levantamento, o governo teria necessidade de forças colossais. «A situação
politica está assim pronta. É preciso falar do lado técnico. Tudo vai nesse sentido. Ora,
nós, após os partidários da defesa nacional, estamos inclinados a considerar a
preparação sistemática da insurreição como uma especie de pecado político.» O relator
modera evidentemente os seus termos: ele tem muito a dizer.» É preciso aproveitar o
Congresso regional dos Sovietes do Norte e da proposição de Minsk para se
comprometer numa acção resoluta.»
O Congresso do Norte iniciou-se no mesmo dia da sessão do Comité central e devia
terminar em dois ou três dias. Lenine considerava como tarefa dos próximos dias «o
compromisso de uma acção resoluta». Não se pode esperar. Não se pode diferir. Na
frente – ouvimos de Sverdlov – prepara-se um golpe de Estado. Haveria um congresso
dos sovietes? Não se sabe. É preciso tomar o poder imediatamente, sem esperar
qualquer congresso. «Intraduzível, inexprimível – escrevia Trotsky alguns anos depois –
resta o espírito geral dessas improvisações obstinadas e apaixonadas, penetradas do
desejo de transmitir aos objectores, aos hesitantes, aos incertos, o seu pensamento, a
sua vontade, a sua segurança, a sua coragem…»
Lenine esperava uma grande resistência. Mas as suas apreensões logo se
dissiparam. A unanimidade com a qual o Comité central tinha afastado em Setembro a
proposição de um levantamento imediato tinha um carácter episódico: a ala esquerda
tinha-se pronunciado contra o «cerco do teatro Alexandra» tendo em conta a conjuntura; a
ala direita, por motivos de estratégia geral, que, portanto, não tinham ainda sido pensados
a fundo nesse momento. Durante as três semanas decorridas, o Comité central tinha
consideravelmente evoluído para a esquerda. Dez votos contra dois pronunciaram-se pela
insurreição. Era uma verdadeira vitória!
Pouco depois da insurreição, a uma nova etapa da luta no interior do partido, Lenine
lembrou, no decurso dos debates no Comité de Petrogrado, como, na sessão do Comité
central, ele «tinha tido medo do oportunismo da parte dos internacionalistas unificadores,
mas isso tinha-se dissipado; no nosso partido, certos membros (do Comité central) não
estavam de acordo – isso entristeceu-me muito». Entre os «internacionalistas», excepção
feita de Trotsky, que Lenine não podia ter em vista, o «Comité central compunha-se de:
Ioffe, futuro embaixador em Berlim; Oritsky, futuro chefe da Tcheka em Petrogrado; e
Sokolnikov, futuro criador do tchervonetz: todos os três colocaram-se ao lado de Lenine.
Como adversários, pronunciaram-se dois velhos bolcheviques que, pelas suas acções
passadas, tinham sido os aliados mais próximos de Lenine: Zinoviev e Kamenev. É deles
que se trata quando Lenine disse: «Isso entristeceu-me muito». A sessão do dia 10
consistiu quase inteiramente numa polémica apaixonante com Zinoviev e Kamenev:
Lenine liderava a ofensiva, os outros juntavam-se a ele sucessivamente.

669
A resolução redigida à pressa por Lenine, com um pequeno lápis sobre uma folha de
papel quadricular de estudante, era uma arquitectura muito imperfeita, mas em contra-
partida dava um apoio sólido no sentido da insurreição. «O Comité central reconhece que,
tal como a situação internacional da revolução russa (o levantamento da frota na
Alemanha como extrema manifestação do crescimento em toda a Europa da revolução
socialista mundial, no seguimento da ameaça à paz dos imperialistas com o objectivo de
abafar a revolução na Rússia), assim a situação militar (indiscutível decisão da burguesia
russa, de Kerensky e companhia de entregar Piter aos alemãs) – tudo isso em ligação
com o levantamento camponês e com a reviravolta da confiança popular a favor do nosso
partido (eleições em Moscovo), enfim a evidente preparação de uma segunda aventura
korniloviana (evacuação da tropas de Piter, expedição a Piter dos cossacos, cerco de
Minsk pelos cossacos, etc.) - tudo isso mete na ordem do dia a insurreição armada.
Reconhecendo assim que a insurreição armada é inevitável, e que ela é completamente
madura, o Comité central convida todas as organizações do partido a se guiar sobre isso,
a discutir e a resolver desse ponto de vista toda as questões práticas (cortadas dos
Sovietes da região do Norte, evacuação das tropas de Piter, movimentos das tropas de
Moscovo e de Minsk, etc.)
O que é notável, tanto pela apreciação do momento como pela característica do
autor, é a própria ordem das condições da insurreição: em primeiro lugar, a revolução
mundial amadureceu; a insurreição na Rússia não é considerada senão como um elo da
corrente geral. É posição invariável de partida de Lenine, são as suas grandes premissas:
ele não poderia fazer de outra maneira. A tarefa da insurreição é colocada directamente
como a do partido: a questão difícil de um acordo com os Sovietes sobre a preparação do
levantamento não é abordada pelo momento. Nem uma palavra para evocar o Congresso
pan-russo dos sovietes. Na qualidade dos pontos de apoio para a insurreição, no
Congresso regional do Norte, e «no movimento das tropas de Moscovo e de Minsk», são
acrescentadas, sobre a insistência de Trotsky, as palavras: «a evacuação das tropas de
Piter». Era a única alusão ao plano da insurreição que se impunha na capital pela própria
marcha dos acontecimentos. Ninguém propôs emenda do ponto de vista táctico à
resolução que determinava o ponto de partida estratégico da insurreição contra Zinoviev e
Kamenev, os quais negavam a necessidade do próprio levantamento.
As tentativas feitas mais tarde pela historiografia oficiosa para apresentar as coisas
de tal maneira que todos os dirigentes do partido, salvo Zinoviev e Kamenev, ter-se-iam
pronunciado pela insurreição, são demolidas pelos factos e documentos. Sem esquecer
em dizer que os que votavam pela insurreição estavam frequentemente dispostos a adiar
até uma data indeterminada, os adversários confessos da insurreição, Zinoviev e
Kamenev, não estavam isolados, mesmo no seio do Comité central: seu ponto de vista foi
inteiramente partilhado por Rykov e Noguine, ausentes na sessão do dia 10, e Miliotine
era-lhes próximo. «Nas cimeiras do partido, observa-se as flutuações, uma especie de
medo da luta pelo poder» - tal é o testemunho do próprio Lenine. Segundo Antonov-
Saratovsky, Miliotine, que chegou depois do dia 10 a Saratov, «falava de uma carta de
Illitch exigindo «que se comprometam», falando das hesitações do Comité central, do
«fiasco» primitivo da proposição de Lenine, da sua indignação, e, enfim, de tudo que se

670
orientava para a insurreição». O bolchevique Sadovsky escreveu mais tarde acerca do
assunto «de uma certa falta de segurança e de determinação que reinava nesse tempo.
Mesmo no seio do nosso Comité central, nesse período, tinha, como se sabe, fricções,
conflitos, perguntava-se como começar e se era preciso começar».
Sadovsky era, ele próprio, nesse período, um dos dirigentes da Secção militar do
Soviete e da Organização militar, como se vê por um certo número de Memórias,
considerava com uma extrema prevenção em Outubro a ideia de uma insurreição: o
carácter específico da Organização levava os dirigentes a subestimar as condições
técnicas. No dia 16 de Outubro, Krilenko dizia num relatório: «A maioria do gabinete (da
Organização militar) considera que não é necessário levar a questão muito a fundo, mas a
minoria pensa que se pode tomar em si a iniciativa.» No dia 18, outro membro eminente
da Organização militar, Lachevitch, dizia,: «Toma-se o poder já? Considero que não se
deve forçar os acontecimentos… Nada garante que possamos manter o poder… O plano
estratégico proposto por Lenine está cocho nos quatro pés.» Antonov-Ovseenko conta na
entrevista dos principais militantes da Organização militar com Lenine: «Podvoisky
exprimia dúvidas, Nevsky logo o apoiava, logo cedia ao tom seguro de Illitch: expunha a
situação na Finlândia… A segurança e firmeza de Illitch têm uma acção fortificante sobre
mim e encoraja Nevsky, mas Podvoisky obstina-se nas suas dúvidas.» Não se pode
perder de vista que, que em todas as suas Lembranças desta especie, as dúvidas são
desenhadas em cores aguarela, as seguranças com fortes toques de cores a óleo.
Contra a insurreição se pronunciou resolutamente Tchodnovsky. Céptico, Manuilsky
repetia, sob forma de aviso, que «a frente não estava connosco». Contra o levantamento
levantou-se Tornsky. Volodarsky apoiava Zinoviev e Kamenev. Os adversários da
insurreição estavam longe de se pronunciar todos abertamente. Em sessão do Comité de
Petrogrado, no 15, Kalinine dizia: «A resolução do Comité central é uma das melhores
que jamais fora adaptada… Chegámos praticamente à insurreição armada. Mas, quando
isso será possível? Talvez dentro de um ano – não se sabe.» Um «acordo» desse tipo
com o Comité central dos mais característicos para Kalinine, não era portanto um ponto
particular em si. Numerosos foram os que aderiram à resolução para tomar assim a
segurança na sua luta contra o levantamento.
Em Moscovo, foi nos círculos dirigentes que ouve menos unanimidade. O gabinete
regional apoiava Lenine. No Comité de Moscovo, as flutuações eram muito consideráveis,
a opinião predominante era de diferir. O Comité provincial tomava uma atitude
indeterminada, e, além disso, no gabinete regional, segundo os termos de Iakovleva,
considerava-se que no momento decisivo o Comité provincial iria para o lado os
adversários do levantamento.
Um militante de Saratov, Lebedev, conta como, visitando Moscovo, pouco tempo
antes da insurreição, ele passeava com Rikov, e este, apontando com o dedo os edifícios
de pedra, as lojas de luxo, a animação das ruas dos negócios, lamentava-se sobre as
dificuldades da tarefa a realizar. «Aqui, mesmo no centro de Moscovo burguês, sentimos-
nos efectivamente como pigmeus que teriam meditado derrubar uma montanha.»

671
Em cada organização do partido, em cada um dos seus Comités provinciais, havia
membros nas mesmas disposições que as de Zinoviev e Kamenev; em numerosos
Comités, eles constituíam a maioria. Mesmo no lar proletário de Ivanovo-Voznessensk,
onde os bolchevique dominavam sem partilha, as divisões entre os altos dirigentes
tomaram uma gravidade extrema. Em 1925, quando as reminiscências se adaptavam já
às necessidades do novo curso, Kisselev, velho militante bolchevique, escrevia: «Os
elementos operários do partido, salvo algumas excepções individuais, seguiam Lenine;
contra Lenine se pronunciavam um grupo pouco numeroso de intelectuais do partido e
alguns operários isolados.» Nas discussões públicas, os adversários da insurreição
retomavam os argumentos idênticos aos de Zinoviev e de Kamenev. «Mas, nas
discussões particulares – escreve Kisselev – a polémica tomava formas agudas e mais
francas, e chegavam a dizer que «Lenine estava amalucado, que ele empurrava
certamente a classe operária à sua perca, que não resultava nada desse levantamento
armado, que nós seriamos batidos, que esmagavam a classe operária e o partido, e que
isso faria recuar a revolução por muitos anos, etc.»
Tal era em particular o Estado de espírito de Fronze, pessoalmente muito corajoso,
mas que não se distinguia em nada pelas suas vistas largas.
A própria vitória da insurreição em Petrogrado estava ainda longe de quebrar em
todo o lado a inércia da expectativa e a resistência da ala direita. A indecisão da direcção
por pouco quase que falhava por conduzir a insurreição em Moscovo ao fiasco. Em Kiev,
o Comité dirigido por Piatakov, que desenvolvia uma política puramente defensiva,
transmitiu, no fim de contas, a iniciativa e, logo, o poder mesmo à Rada. «A organização
do nosso partido em Voroneje – contra Vratchev – hesitou bastante. O golpe de Estado,
mesmo em Voroneje… foi realizado não pelo Comité do partido, mas pela sua minoria
activa à cabeça da qual estava Moisseev.» Muitos distritos da província, os bolchevique
formaram bloco em Outubro com os conciliadores «para combater a contra-revolução»,
como se os conciliadores não tivessem nesse momento um dos mais importantes apoios
desta. Quase em todo o lado, era preciso muitas vezes um impulso simultaneo e do alto e
de baixo para quebrar as últimas hesitações do Comité local, obriga-lo romper com os
conciliadores a a tomar a cabeça do movimento.» No fim de Outubro e no início de
Novembro foram verdadeiramente dias «de sarilhos profundos» nos meios do nosso
partido. Numerosos foram os que se deixaram rapidamente ganhar pelo ambiente» -
lembra Chliapnikov, que pagou ele próprio um largo tributo às hesitações.
Todos esses elementos que, como por exemplo os bolchevique de Kharkov, viram-se
no princípio da revolução no campo dos mencheviques, e, logo, questionavam-se com
estupefacção «como isso pôde acontecer», não encontraram, durante as Jornadas de
Outubro, onde se meterem em regra geral, hesitaram, temporizaram. Com muito mais
segurança, reivindicaram os seus direitos de «velhos bolcheviques» no período de
reacção ideológica. Muito considerável que tenha sido, nesses últimos anos, o trabalho
destinado a dissimilar tais factos, independentemente mesmo dos arquivos secretos,
inacessíveis por enquanto ao erudito, subsiste, nos jornais desse tempo, nas Memórias,
nas revistas históricas, um bom número de testemunhos provando que mesmo o aparelho
mais revolucionário opôs, na véspera da insurreição, uma grande força de resistência. Na

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burocracia instala-se, inevitavelmente, o espírito conservador que continuou a ser um
instrumento ao serviço do partido, isto é subordinado a uma ideia e controlado pela
massa.
O resultado do 10 de Outubro teve uma importância considerável. Ela assegurou
assim aos verdadeiros partidários da insurreição o terreno sólido do direito no partido. Em
todas as organizações do partido, em todas as células, começaram a tomar o primeiro
lugar os elementos mais resolutos. As organizações do partido, começaram por aquelas
de Petrogrado, juntaram-se, calcularam as suas forças e os seus recursos, consolidaram
os seus laços e deram à campanha pela insurreição um carácter mais concentrado.
Mas a resolução não acabou com as dissensões no Comité central. Pelo contrário,
ela deu forma e exterioriza-as. Zinoviev e Kamenev que recentemente, se sentiam, numa
certa parte das esferas dirigentes, rodeados de uma atmosfera de simpatia, observaram
com temor quanto foi rápido o movimento para a esquerda. Eles resolveram não mais
perder tempo e difundiram no dia depois o longo apelo aos membros do partido. «Diante
da História, diante do proletariado internacional, diante da revolução russa e a classe
operária da Rússia – escreviam – nós não temos o direito agora de jogar todo o futuro na
carta da insurreição armada.»
A perspectiva deles era entrar, como forte oposição do partido, na Assembleia
constituinte, a qual «não poderia apoiar-se senão sobre os Sovietes no seu trabalho
revolucionário». Daí a formula: «A Assembleia constituinte e os Sovietes, aí está o tipo
combinado das instituições do Estado para as quais nós caminhamos.» A Assembleia
constituinte onde se supunha que os bolchevique seriam em minoria, e os Sovietes onde
os bolcheviques estavam em maioria, isto é, o órgão da burguesia e o órgão do
proletariado, devem estar «combinados» num sistema pacífico de dualidade de poderes.
Isso não tinha sido conseguido mesmo sob o domínio dos conciliadores. Como é que isso
teria podido ter êxito com os sovietes bolchevistas?
«Seria um profundo erro histórico, diziam para terminar Zinoviev e Kamenev, se lhes
colocassem a questão da passagem do poder ao partido proletário desta maneira: ou
agora ou nunca. Não. O partido do proletariado crescerá, o seu programa será mais claro
para as massas cada vez mais numerosas.» A esperança de um permanente crescimento
do bolchevismo, independentemente da marcha real dos conflitos de classe, contradiziam
irredutivelmente o leitmotivo de Lenine nessa época: «O sucesso da revolução russa e
mundial depende de dois ou três dias de luta».
Não necessita acrescentar que, nesse diálogo dramático, era Lenine que tinha
inteiramente razão. É impossível dispor à sua vontade de uma situação revolucionária. Se
os bolcheviques não tinham tomado o poder em Outubro-Novembro, eles não teriam
nunca verosimilmente tomado. Em vez de uma direcção firme, as massas teriam
encontrado nos bolcheviques sempre as mesmas divergências fastidiosas entre a palavra
e a acção e ter-se-iam dissociado do partido que teria desiludido as suas esperanças
durante dois ou três meses, assim como elas se tinham desviado dos socialistas-
revolucionários e dos menchevique. Uma parte dos trabalhadores teria caído na
indiferença, uma outra teria consumido as suas forças nos momentos convulsivos, nas

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explosões anarquistas, nas escaramuças de partidários, no terror da vingança e do
desespero. Retomando assim o sopro, a burguesia teria aproveitado para concluir uma
paz separada com o Hohenzollern e para esmagar as organizações revolucionárias. A
Rússia teria sido de novo inserida no círculo dos Estado capitalistas, a título de país meio
imperialista, meio colonial. A insurreição proletária teria sido ganha num longínquo
indeterminado. A viva compreensão desta perspectiva inspirava a Lenine o seu grito de
alarme: «O sucesso da revolução russa e mundial depende de dois ou três dias de luta».
Mas agora, após o 10, a situação no partido tinha-se radicalmente modificado.
Lenine não era mais um «oposicionista» isolado cujas proposições eram afastadas pelo
Comité central. Foi a ala direita que se viu isolada. Lenine não necessitava de adquirir a
sua liberdade de agitador pelo preço da sua demissão. A legalidade estava do seu lado.
Em contra-partida, Zinoviev e Kamenev, tendo metido em circulação o seu documento
dirigido contra a resolução adoptada pela maioria do Comité centra, viram-se na condição
de ter violado a disciplina. Ora, Lenine, na luta, não deixou impune a mais pequena
asneira do adversário!
Na sessão do dia 10, foi eleito, por proposição de Dzerjinski, um gabinete político de
sete pessoas: Lenine, Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Estaline, Sololnikov, Bobnov. A nova
instituição mostrou-se todavia inviável: Lenine e Zinoviev ainda se encontravam
escondidos; além disso, Zinoviev continuava a dirigir a luta contra a insurreição, tal como
Kamenev. O gabinete político constituído em Outubro não se reuniu uma só vez e logo foi
esquecido, tal como as outras organizações que tinham sido formadas ad hod no
remoinho dos acontecimentos.
Nenhum plano prático da insurreição, mesmo aproximativo, não foi esboçado na
sessão do dia 10. mas, sem o mencionar na resolução, ficou combinado que a insurreição
devia preceder o Congresso dos sovietes e começar se possível no 15 de Outubro no
mais tardar. Esta data não foi aceite por todos de boa vontade: ela era demasiado
próxima, evidentemente, para permitir tomar balanço em Petrogrado. Mas insistir sobre
um prazo, seria apoiar as direitas e embaralhar as cartas. Além disso, nunca é demasiado
tarde para adiar!
Então a data foi primitivamente marcada para o dia 15 foi revelada pela primeira vez
nas Memórias de Trotsky sobre Lenine em 1924, sete anos depois dos acontecimentos.
Esta comunicação logo foi contestada por Estaline e a questão tomou uma gravidade na
literatura histórica russa. Como se sabe, a insurreição só teve lugar na realidade no dia
25, e em consequência, a data marcada não foi retida. A historiografia dos epígonos
considera que, na política do Comité central, não podia haver aí erros, nem mesmo
atrasos. «Resultaria – escreve a esse propósito Estaline – que o Comité central teria
marcado a insurreição para o dia 15 de Outubro e logo ela teria sido infringida (!) esta
decisão, adiando o levantamento para o dia 25 de Outubro. É verdade? Não, é falso.»
Estaline conclui que «Trotsky teria sido traído pela sua memória». Como prova, ele evoca
a resolução do 10 de Outubro que não menciona qualquer data.
A questão contestada da cronologia da insurreição é muito importante para a
compreensão do ritmo dos acontecimentos e necessita de ser elucidada. Que a resolução

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do dia 10 não tenha data, é justo. Mas esta resolução de conjunto se relacionava com o
levantamento em todo o país e era destinada a centenas e a milhares de dirigentes entre
os militantes do partido. Aí inserir a data fixada pela conspiração para a insurreição
prevista para um dia muito próximo a Petrogrado teria sido o máximo da leviandade;
lembremos que Lenine, por prudência, não datava as suas cartas nesse período. Tratava-
se, no caso presente, de uma decisão ao mesmo tempo tão importante e simples que
todos os participantes podiam sem dificuldades guardá-la na memória, tanto mais que era
somente por alguns dias. Quando Estaline alega o texto da resolução, há assim um
perfeito desentendimento.
Estamos dispostos, todavia, a reconhecer que, se um dos participantes apoia-se
sobre a sua memória e, particularmente, se a sua comunicação é contestada por outro
participante, isso não basta para um estudo histórico. Felizmente, a questão é resolvida
de forma irrecusável sobre o plano da análise das circunstâncias e dos documentos.
A abertura do Congresso dos sovietes estava prevista para o dia 20 de Outubro.
Entre o dia quando se reunia o Comité central e a data do Congresso, havia um intervalo
de 10 dias. O Congresso não devia fazer agitação pelo poder dos sovietes, mas tomá-lo.
Mas, por eles próprios, algumas centenas de delegados eram impotentes para se
apoderarem do poder; era preciso arrancá-lo para o Congresso e antes do Congresso.
«Obtenham primeiro a vitória sobre Kerensky, logo a seguir convoquem o Congresso –
esta ideia estava no centro de toda a agitação de Lenine, a partir da segunda quinzena de
Setembro. Em princípio, todos os que eram em geral pela tomada do poder estavam de
acordo sobre isso. O Comité central não podia, logo, dispensar-se de dar como tarefa
uma tentativa de insurreição entre os dias 10 e o 20 de Outubro. Mas como não se podia
prever quantos dias duraria a luta, o princípio da insurreição foi marcado para o dia 15.
«Sobre a própria data – escreve Trotsky nas suas Memórias sobre Lenine, quase que não
houve, lembro-me, contestações. Todos compreendiam que a data só tinha um carácter
aproximativo, digamos de orientação, e que, segundo os acontecimentos, poder-se-ia seja
aproximá-lo um pouco, seja adiá-lo. Mas era só de questão dias, nem mais. A
necessidade mesmo de uma data, e além disso próxima, era absolutamente evidente.»
Em resumo, o testemunho da lógica fechou a questão. Mas não faltam provas
complementares. Lenine propôs com insistência, e várias vezes, utilizar o Congresso
regional dos Sovietes do Norte para iniciar as operações militares. A resolução do Comité
central adoptou esta ideia. Mas o Congresso regional, que abriu no 10, devia fechar antes
do 15.
Na conferência do 16, Zinoviev, insistindo para fazer adiar a resolução tomada seis
dias antes, declarava: «Nós devemos dizer claramente que, nos próximos cinco dias que
seguirão, nós não organizaremos levantamento»; tratava-se dos cinco dias que restavam
ainda atá ao Congresso dos sovietes. Kamenev que, na mesma Conferência,
demonstrava que «marcar a data da insurreição, era ir atrás da aventura», lembrava
ainda: «Outrora, dizia-se que a insurreição deve ter lugar antes do 20.» Ninguém se opõe
sobre isso e não podia responder. É o adiamento da insurreição que Kamenev
interpretava precisamente como a ruína da resolução de Lenine. Para a insurreição,

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segundo os seus próprios termos, «nesta última semana, ninguém fez nada». Há aí um
evidente exagero: a data marcada, todos viram-se obrigados a meter nos seus planos
maior rigor e acelerar o ritmo do trabalho. Mas está fora de dúvida que o prazo dos cinco
dias marcado na sessão do dia 10 mostrou-se muito curto. Um prazo impunha-se
claramente. É somente no dia 17 que o Comité executivo reporta a abertura do
Congresso dos sovietes para o dia 25 de Outubro. Este adiamento caiu mesmo a
propósito.
Alarmado pelas hesitações, Lenine, a quem, no seu isolamento as fricções interiores
deviam inevitavelmente surgir sob aspectos exagerados, insistiu para que se convocasse
uma nova assembleia do Comité central com representantes das principais moções de
militantes na capital. É precisamente nesta conferência, no dia 16, nos arredores da
cidade, em Lessny, que Zinoviev e Kamenev formularam os motivos citados acima para
contrariar a data precedentemente marcada, opondo-se a uma nova marcação.
As dissensões recomeçaram, duas vezes mais vivas. Miliutine considerava que «nós
não estávamos prontos para dar o primeiro golpe… Outra perspectiva surgiu: um conflito
armado… Cresceu, a possibilidade se aproxima. E nós devemos estar prontos para esse
confronto. Mas esta perspectiva é diferente de uma insurreição». Miliutine colocava-se
sobre uma posição defensiva que preconizavam mais claramente Zinoviev e Kamenev.
Schotmann, velho operário de Petrogrado, tendo passado por toda a história do partido,
afirmava que na conferência da cidade e no Comité de Petrogrado, e na Organização
militar, o estado de espírito era menos combativo que no Comité central. «Não podemos
caminhar ainda, mas devemos preparar-nos.» Lenine atacava Miliutine e Schotmann pela
sua apreciação pessimista da relação de forças: «Não se trata de uma luta contra o
exército, mas de uma luta de uma parte do exército contra a outra… Os factos provam
que nós temos a preponderancia sobre o inimigo. Porquê o Comité central não pode
começar?»
Trotsky estava ausente da sessão: nessas mesmas horas, ele fazia adoptar pelo
Soviete o estatuto do Comité militar revolucionário. Mas o ponto de vista que foi
definitivamente estabelecido em Smolny durante os últimos dias era defendido por
Krylenko, que acabava de conduzir, lado a lado com Trotsky e Antonov-Ovseenko, o
Congresso regional dos sovietes do Norte. Krylenko pensava que, sem qualquer dúvida,
«a água já tinha fervido o suficiente»; relatar a resolução sobre o levantamento «seria o
mais grave erro». Está todavia em desacordo com Lenine « sobre a questão de saber
quem começará e como começar». Ainda não é racional pelo momento marcar
claramente o dia da insurreição. «Mas a questão da evacuação das tropas é justamente o
motivo que provocará a batalha… Não é inútil de se inquietar em saber quem começará,
porque já começou.» Krylenko expunha e preconizava a política que servia de base ao
Comité militar revolucionário e à Conferência da guarnição. A insurreição se desenvolveu
a seguir precisamente nessa via.
Lenine não respondia a Krylenko: o quadro vivo dos seis últimos dias em Petrogrado
não se tinham desenrolado sob os seus olhos. Lenine temia as hesitações. A sua intenção
era dirigida sobre os adversários directos da insurreição. Todas as reservas, todas as

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formulas convencionais, todas as respostas insuficientemente categóricas, ele estava
disposto a interpretá-las como um apoio indirecto a Zinoviev e a Kamenev, que se
pronunciavam contra ele com coragem de homens tendo queimado as suas próprias
embarcações. «Os resultados da semana – argumentava Kamenev – demonstram que
não há neste memento dados favoráveis à insurreição. Nós não temos aparelho para o
levantamento; nos nossos inimigos, o aparelho é muito mais forte e, provavelmente,
cresceu durante esta semana… Aqui se combatem suas tácticas: a da conspiração e a da
confiança dada às forças activas da revolução russa.» Os oportunistas confiam sempre
nas «forças activas» no momento onde é preciso combater.
Lenine respondeu: «Se consideram que a insurreição amadureceu, inútil de falar de
conspiração. Se, politicamente, a insurreição é inevitável, é preciso considerar a
insurreição como uma arte.» É precisamente sobre esta linha que se desenvolvia no
partido o debate essencial, efectivamente de princípio, cuja solução, tal ou tal sentido,
determinava o destino da revolução. Todavia, no quadro geral do raciocínio de Lenine que
juntava a maioria do Comité central, surgiam questões subsidiárias, mas extremamente
importantes: como, na base de uma situação política chegada à madurez, chegar à
insurreição? Que passagem escolher da política à técnica do levantamento? E como guiar
as massas sobre essa passagem?
Ioffe, que pertencia à ala esquerda, apoiava a resolução do dia 10. Mas ele
apresentou a Lenine uma objecção sobre um ponto: «Não é exacto que a questão seja
presentemente puramente técnicas; mesmo agora, a questão do levantamento deve ser
considerada do ponto de vista político.» Justamente, a última semana tinha mostrado que,
para o partido, para o Soviete, para as massas, a insurreição ainda não tinha se tornado
uma questão de técnica. É precisamente por isso que não se pôde reter a data que se
tinha fixado no dia 10.
A nova resolução de Lenine, apelando a «todas as organizações e todos os
operários e soldados a uma preparação multilateral e reforçada da insurreição armada «é
adoptada por vinte votos contra dois, as de Zinoviev e Kamenev, com três abstenções. Os
historiadores oficiais alegam esses números para provar a completa insignificancia da
oposição. Mas eles simplificam a questão. O empurrão para a esquerda nas profundas
massas do partido era já tão pronunciada que os adversários da insurreição, não se
decidindo a falar abertamente, sentiam-se interessados a apagar a linha de divisão de
princípio entre os dois campos. Se a insurreição, apesar da data antes marcada, não se
realizou antes do 16, não se pode obter, no seguimento, que se se limite a seguir
platonicamente «o curso para a insurreição»? Que Kalinine não estivesse isolado, isso
manifesta-se muito claramente na mesma sessão. A resolução de Zinoviev: «As
manifestações antes de ter conferido com a fracção bolchevista do Congresso dos
sovietes são inadmissíveis», é afastada por quinze votos contra seis com três abstenções.
Aí está onde se produziu a efectiva verificação dos estados de opinião; um certo número
de «partidários» da resolução do Comité central queriam na realidade diferir a decisão até
ao Congresso dos sovietes e até uma nova conferência com os bolcheviques da
província, na maior parte moderados. Esses últimos, tendo em conta as abstenções, eram
nove sobre vinte e quatro, isto é o terço. É ainda, bem entendido, uma minoria, mas, para

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o estado-maior, ela é bastante considerável. A irremediável fraqueza deste estado-maior
foi determinada por isto que não tinha qualquer apoio da base do partido e na classe
operária.
No dia seguinte, Kamenev, de acordo com Zinoviev, entregou ao jornal de Gorki uma
declaração contra a resolução que tinha sido adoptada na véspera. «Não somente eu e
Zinoviev, mas um certo número de camaradas – assim se exprimia Kamenev – achamos
que tomar a iniciativa de uma insurreição armada no momento presente, dado que as
relações de forças sociais, independentemente e alguns dias antes do Congresso dos
sovietes, seriam uma diligência inadmissível, perigosa para o proletariado e a revolução…
Jogar tudo… sobre a carta do levantamento nos próximos dias, seria um acto de
desespero. Ora, o nosso partido é demasiado forte, ele tem diante dele um futuro
demasiado grande para dar tais passos ...» Os oportunistas sentem-se sempre «muito
fortes» para se comprometer na luta.
A carta de Kamenev era uma verdadeira declaração de guerra ao Comité central, e
sobre uma questão a propósito da qual ninguém tinha a intenção de brincar. A situação
tornou-se extremamente grave. Ela complicou-se com vários outros episódios individuais
que tinham uma fonte política comum. A sessão do Soviete de Petrogrado, do dia 18,
Trotsky, em resposta à questão colocada pelos adversários, declarou que o Soviete não
marcava o ponto de levantamento nos próximos dias, mas que, se ele fosse obrigado de o
marcar, os operários e os soldados marchariam como um só homem. Kamenev, vizinho
do gabinete de Trotsky, levantou-se imediatamente para fazer uma curta declaração: ele
subscreveu cada palavra de Trotsky. Era um jogo pérfido: então Trotsky, por uma formula
de defensiva aparentemente, disfarçava jurídicamente a política da ofensiva, Kamenev
tentou utilizar a formula de Trotsky, com quem ele estava em desacordo completo, para
camuflar uma política directamente oposta.
Para paralizar o efeito da manobra de Kamenev, Trotsky, no mesmo dia, dizia num
relatório à Conferência pan-russa dos Comités de fábrica e oficina: «A guerra civil é
inevitável. Basta somente organizá-la de maneira a menos sangrenta, a menos dolorosa.
Pode-se chegar aí não por hesitações, mas somente por uma luta obstinada e corajosa
pela conquista do poder.» Sobre as hesitações, era claros para todos que isso visava
Zinoviev, Kamenev e os que partilhavam a sua opinião.
A declaração de Kamenev no Soviete é, além disso, submetida a um exame por
Trotsky na próxima sessão do Comité central. Entretanto, Kamenev, desejando ter as
mãos livres para a agitação contra o levantamento, demitiu-se do Comité central. A
questão foi discutida na sua ausência. Trotsky insistia em dizer que «a situação tinha-se
tornado absolutamente intolerável» e propunha aceitar a demissão de Kamenev.iv
Sverdlov, tendo apoiado a proposição de Trotsky, leu publicamente uma carta de
Lenine que estigmatizava Zinoviev e Kamenev por se terem pronunciado num jornal de
Gorki e «Streikbrecher» (fura-greves) e exigia a sua expulsão do partido. «A vigarice de
Kamenev na sessão do Soviete de Petrogrado escrevia Lenine – tem qualquer coisa de
vil; vejamos isso, ele está completamente de acordo com Trotsky. Mas é difícil
compreender que… a resolução sobre a necessidade de uma insurreição armada, sobre a

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sua inteira maturação, sobre a sua preparação de todos os lados, etc. obriga, nas
declarações públicas, a rejeitar não somente o seu erro, mas mesmo a iniciativa sobre o
adversário… o subterfúgio de Kamenev é simplesmente intrujice.»
Ao expedir o seu protesto indignado por intermediário de Sverdlov, Lenine ainda não
podia saber que Zinoviev, por uma carta à redacção do órgão central, tinha declarado:
ele, Zinoviev, tinha opiniões «muito afastadas daquelas que discutia Lenine», ele,
Zinoviev, «juntava-se à declaração feita ontem por Trotsky no Soviete de Petrogrado». É
com o mesmo espírito que se pronunciou na imprensa um terceiro adversário da
insurreição, Lunatcharsky. Além de um confusionismo perfídia, a carta de Zinoviev,
imprimida no órgão central mesmo na véspera da sessão do Comité central, no dia 20,
estava acompanhada de uma nota exprimindo a simpatia da redacção: «Por nossa vez,
nós exprimimos a esperança que, graças à declaração feita por Zinoviev (como aquela
feita por Kamenev no Soviete), a questão pode ser considerada como liquidada. A
violência de tom no artigo de Lenine não muda nada ao que no essencial, nós mantemos
a nossa opinião.» Era uma nova facada nas costas, e por um lado onde não se esperava.
Enquanto Zinoviev e Kamenev faziam, na imprensa inimiga, uma agitação aberta contra a
decisão do Comité central sobre a insurreição, o órgão central lamenta a «violência» do
tom de Lenine e constata a sua concordância de vista com Zinoviev e Kamenev «no
essencial». Como se houvesse, nesse momento, uma questão mais essencial que a da
insurreição! Segundo um breve processo-verbal, Trotsky declarou, na sessão do Comité
central, «inadmissível as cartas de Zinoviev e de Lunatcharsky ao órgão central. Assim
como a nota da redacção». Sverdlov apoiou o protesto.
Estaline e Sokolnikov faziam parte da redacção. O processo-verbal diz: «Sokolnikov
dá a saber que ele nada tem a ver com a declaração da redacção sobre a carta de
Zinoviev e que ele considera esta declaração como errada.» descobriu-se que Estaline
pessoalmente – contra outro membro da redacção e a maioria do Comité central – tinha
apoiado Kameneve e Zinoviev no momento mais crítico, quatro dias antes do início da
insurreição, por uma declaração de simpatia. A irritação foi grande.
Estaline pronunciou-se contra a aceitação da demissão de Kamenev, demonstrando
que «toda a nossa situação era contraditória», isto é que se encarrega de defender o
confusionismo que se propagava nos espíritos dos membros do Comité central que se
declaravam opostos à insurreição. Por cinco votos contra três, a demissão de Kamenev
foi aceite. Por seis votos, de novo contra Estaline, uma decisão foi adoptada, proibindo a
Kamenev e Zinoviev de levar a luta contra o Comité central. O processo-verbal
diz:«Estaline declara que ele sai da redacção . «Para não agravar uma situação que não
era já fácil, o Comité central recusa a demissão de Estaline.
A conduta de Estaline pode parecer inexplicável à luz da legenda criada à volta dele;
na realidade, ela corresponde inteiramente à sua formação espiritual e aos seus métodos
políticos. Diante dos problemas, Estaline recua sempre, não por falta de carácter, como
Kamenev, mas porque ele tem uma visão estreita e que falta-lhe imaginação criadora.
Uma prudência desconfiada força-o quase organicamente, nos momentos de grave
decisão e de profunda dissensão, a retirar-se para sombra, à espera e, se é possível, a

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assegurar-se por dois casos eventuais. Estaline votava com Lenine pela insurreição.
Zinoviev e Kamenev lutavam abertamente contra a insurreição. Mas, se se rejeita «a
violência do tom» da crítica leninista, «ficamos, pelo essencial, com a mesma opinião».
Não é de forma nenhuma por leviandade que Estaline colocou a sua nota: pelo contrário,
ele pesava cuidadosamente as circunstâncias e as palavras. Mas, no 20 de Outubro, ele
não acreditava na possibilidade de cortar sem regresso as pontes para o campo dos
adversários da insurreição.
Os textos dos processos-verbais que somos forçados de citar não segundo o
original, mas segundo os texto oficial, elaborado na chancelaria estalinista, não somente
mostram as atitudes reais das personagens no Comité central bolchevista, mas também,
apesar da brevidade e a secura, desenrolam diante de nós o verdadeiro panorama da
direcção do partido, tal que como ela era: com todas as suas contradições internas e
inevitáveis hesitações individuais. Não somente a História no conjunto, mas também as
insurreições mais audaciosas se realizam por homens a quem nada de humano é
estranho. É possível que isso diminua a importância do que é realizado?
Se se projetasse sobre o ecrã a mais brilhante das vitórias de Napoleão, o filme nos
mostraria, com génio, a envergadura, as descobertas, o heroísmo, a irresolução de certos
marechais, as asneiras de generais que não sabem ler um mapa, a estupidez dos oficiais,
o pânico de destacamentos inteiros e até as cólicas do medo. Esse documento realista
proveria somente que o exército de Napoleão compunha-se não de autómatos da
legenda, mas de franceses bem vivos, educados no cruzamento de dois séculos. E o
quadro das fraquezas humanas sublinharia somente mais eloquentemente a grandeza do
conjunto.
É mais fácil de estabelecer após o facto consumado a teoria sobre a insurreição que
de assimilar integralmente antes que ela se realize. A aproximação da insurreição
provocou inevitavelmente e provocará crises nos partidos insurreccionais. Isso
testemunha a experiência do partido mais experiente e o mais revolucionário que a
História tenha conhecido até hoje. Basta notar que, alguns dias antes da batalha, Lenine
viu-se obrigado a exigir que se exclua do partido dois dos seus disciples mais próximos e
os mais notáveis. As tentativas feitas mais tarde para levar o conflito «a circunstâncias
fortuitas» de carácter pessoal são inspiradas de uma idealização de qualquer modo
puramente eclesial do passado do partido. «Tal como Lenine, mais completamente e
resolutamente que os outros, exprimia durante os meses de outono de 1917, a
necessidade objectiva da insurreição e a vontade das massas dirigidas para o
levantamento, assim Zinoviev e Kamenev, mais francamente que os outros, incarnavam
as tendências restrictivas do partido, o espírito de indecisão, a influência das relações
com os pequenos burgueses e a pressão das classes dirigentes.
Se todas as conferências, controversas, discussões particulares que tiveram lugar no
seio da direcção do partido bolchevique somente em Outubro tinha sido estenografádas,
as gerações futuras poderiam constatar por qual luta interna intensiva se formou nas
cimeiras do partido, a intrepidez necessária para a insurreição. O estenograma mostraria
ao mesmo tempo como um partido revolucionário necessita de uma democracia interior: a

680
vontade de luta não se mete em formulas frias e não é ditada pelo alto, é preciso a cada
vez renová-la e retemperá-la
Alegando uma afirmação do autor da presente obra, dizendo que «o instrumento
essencial de uma revolução proletaria é o partido», Estaline perguntava, em 1924: «Como
é que a nossa revolução pôde vencer se o «seu instrumento essencial» mostrou-se sem
valor?» A ironia não esconde a falsidade primitiva desta réplica. Entre os santos tais como
os mostra a Igreja, e os diabos tais como os representam os candidatos à santidade,
situam-se homens vivos: são eles que fazem a História. A índole forte do partido
bolchevista se manifestava não na sua ausência de desentendimentos, de hesitações e
mesmo de abalos, mas no que, nas circunstâncias mais difíceis, surgiam em tempo
determinado crises interiores e assegurava-se da possibilidade de uma intervenção
decisiva nos acontecimentos. Isso significa também que o partido, no seu conjunto, era
um instrumento completamente adequado para a revolução.
Um partido reformista considera praticamente inabalável as bases do regime que ele
dispõe a reformar. Por aí, inevitavelmente, ele suborna-se às ideias e à moral da classe
dirigente. Tendo-se elevado sobre a espinha do proletariado, a social-democracia tornou-
se somente um partido burguês de segunda qualidade. O bolchevismo criou o tipo de
verdadeiro revolucionário que, com objectivos históricos incompatíveis com a sociedade
contemporânea, soborna as condições da sua existência individual, suas ideias e
julgamentos morais. As distâncias indispensáveis em relação à ideologia burguesa eram
mantidas no partido por uma vigilância intransigente cujo inspirador era Lenine. Ele não
parava de trabalhar com o escapelo, cortando os laços que a companhia pequena-
burguesa criava entre o partido e a opinião pública oficial. Ao mesmo tempo, Lenine
ensinava ao partido a formar a sua própria opinião pública, apoiando-se sobre o
pensamento e os sentimentos da classe que subia. Assim, por selecção e educação,
numa luta contínua, o partido bolchevista criou o seu meio não somente político mas
também moral, independente da opinião burguesa e irredutivelmente oposta a esta. É
somente isso que permite aos bolcheviques ultrapassar as hesitações nas suas próprias
fileiras e de manifestar a resolução viril sem a qual a vitória de Outubro teria sido
impossível.

681
A arte da insurreição
Tal como numa guerra, as pessoas não fazem um revolução de boa vontade. A
diferença está, todavia, no que numa guerra o papel decisivo é o da obrigação; numa
revolução, não há obrigação, a não ser a das circunstâncias. A revolução produz-se
quando não há outra solução. A insurreição, colocando-se acima da revolução como uma
cimeira na montanha dos seus acontecimentos, não pode ser provocada arbitrariamente,
como a revolução no seu conjunto. As massas, por várias vezes, atacam e recuam antes
de decidir dar o último assalto.
A conspiração é facilmente oposta à insurreição como a empresa concertada de uma
minoria diante do movimento elementar da maioria. E portanto: uma insurreição vitoriosa,
que não pode ser senão a obra de uma massa destinada a tomar a cabeça da nação,
pelo seu significado histórico e pelos seus métodos, é profundamente distinta de um golpe
de Estado de conspiradores agindo por detrás das costas das massas.
Portanto, em toda a sociedade de classes, há bastantes contradições para que, nos
interstícios, se possa construir uma conspiração. A experiência histórica prova, todavia,
que é preciso que a sociedade esteja doente com uma certa gravidade – como em
Espanha, em Portugal, na América do Sul – para que a política das conspirações tenha
que se alimentar constantemente. No estado puro, a conspiração, mesmo em caso de
vitória, só pode substituir no poder diferentes cliques da mesma classe dirigente, ou
então, menos ainda: substituições de homens de Estado. A vitória de um regime social
sobre outro na história só teve sucesso por uma insurreição de massas. Enquanto que as
conspirações periódicas são muitas vezes a expressão do marasmo e da estagnação da
sociedade, a insurreição popular, em contra-partida, surge como o resultado de uma
rápida evolução precedente, que rompe o velho equilíbrio da nação. As «revoluções»
crónicas das repúblicas sul-americanas nada têm em comum com a revolução
permanente; pelo contrário, num certo sentido, elas são completamente opostas.
O que acaba de ser dito não significa portanto de forma alguma que a insurreição
popular e a conspiração se excluem uma à outra em todas as circunstâncias. Um
elemento da conspiração, em tal ou tal medida, entra quase sempre na insurreição. A
etapa históricamente condicionada da revolução, a insurreição das massas nunca é
puramente elementar. Mesmo tendo eclodido de improvisto para a maioria dos seus
participantes, ela é fecundada pelas ideias nas quais os insurrectos vêm uma saída às
dificuldades da existência. Mas uma insurreição das massas pode ser prevista e
preparada. Ela pode ser organizada antecipadamente. Nesse caso, a conspiração é
subordinada à insurreição, ela serve-a, facilita a sua marcha, acelera a sua vitória. Mais
elevado é o nível político de um movimento revolucionário, mais séria é a sua direcção,
maior é o lugar ocupado pela conspiração na insurreição popular.
É indispensável compreender exactamente a relação entre a insurreição e a
conspiração, tanto no que as opõe como no que as completa reciprocamente, e tanto
mais que o emprego da palavra «conspiração» tem na literatura marxista um aspecto

682
contraditório, que se trate da empresa independente de uma minoria tomando a iniciativa,
ou então da preparação por uma minoria do levantamento da maioria.
A história prova, na verdade, que uma insurreição popular pode vencer, em certas
condições, mesmo sem conspiração. Surgindo por um empurrão «elementar» de uma
revolta geral, os diversos protestos, manifestações, greves, afrontamentos de rua, a
insurreição pode arrastar uma parte do exército, paralizar as forças do inimigo e derrubar
o velho poder. Foi assim que aconteceu, até a um certo grau, em Fevereiro de 1917, na
Rússia. Houve mais ou menos o mesmo quadro no desenvolvimento das revoluções
alemãs e austro-húngaras durante o outono de 1918. Na medida, nesses dois casos,
onde, à cabeça dos insurrectos, não havia partido profundamente penetrado dos
interesses e desejos da insurreição, a vitória desta devia inevitavelmente transmitir o
poder para as mãos desses partidos que, até ao último momento, tinham-se oposto à
insurreição.
Derrubar o antigo poder é uma coisa. Tomar o poder nas mãos, é outra. A burguesia,
numa revolução, pode amparar-se do poder não porque ela é revolucionária, mas porque
ela é a burguesia: ela tem na mão a propriedade, a instrução, a imprensa, uma rede de
pontos de apoio, uma hierarquia de instituições. Para o proletariado é outra coisa:
desprovido de privilégios sociais que existiriam fora dele próprio, o proletariado insurrecto
só pode contar com a sua sombra, a sua coesão, sobre os seus quadros, sobre o seu
Estado-maior.
Tal como um ferreiro que não pode segurar com a mão nua um ferro em brasa, o
proletários não pode, com as mãos nuas, apoderar-se do poder: ele precisa de uma
organização apropriada para essa tarefa. Na combinação da insurreição de massas com
a conspiração, na subordinação desta última à insurreição, na organização da insurreição
através da conspiração, reside o domínio complicado e pesado da responsabilidade da
política revolucionária que Marx e Engels chamavam a «arte da insurreição». Isso
pressupõe uma justa direcção geral das massas, uma orientação flexível diante de
circunstâncias que mudam, um plano pensado da ofensiva, prudência na preparação
técnica e ousadia e dar o golpe.
Os historiadores e os homens políticos chamavam habitualmente insurreição das
forças elementares um movimento de massas que, ligado pela sua hostilidade em relação
ao antigo regime, não tem visão clara, nem métodos de luta elaborados, nem direcção
conduzindo conscientemente à vitória. A insurreição das forças elementares é de boa
vontade reconhecida pelos historiadores oficiais, pelo menos pelos democratas, como
uma calamidade inevitável cuja responsabilidade recai sobre o antigo regime. A
verdadeira causa desta indulgência, é o que as insurreições das forças «elementares»
não podem sair do quadro do regime burguês.
Na mesma via circula também a social-democracia: ela não nega a revolução em
geral, como catástrofe social, tal como ela não nega os tremores de terra, as erupções
vulcânicas, as eclipses do sol e as epidemias de peste. O que ela nega, como
«blanquismo» ou, pior ainda, como bolchevismo, é a preparação consciente da
insurreição, o plano, a conspiração. Noutros termos, a social-democracia está pronta a

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sancionar, em atraso, os golpes de Estado que transmitem o poder para as mãos da
burguesia, condenando com intransigência ao mesmo tempo os métodos que podem
transmitir o poder para o proletariado. Sob uma falsa objectividade se esconde uma
política de defesa da sociedade capitalista.
Segundo as suas observações e as sua meditações sobre os fiascos de numerosos
levantamentos aos quais ele tomou parte ou testemunhou, Augusto Blanqui deduziu um
certo número de regras tácticas sem as quais a vitória da insurreição se torna
extremamente difícil, mesmo impossível. Blanqui reclamava a criação a dado momento de
destacamentos revolucionários regulares, sua direcção centralizada, um bom
abastecimento em munições, uma repartição bem calculada das barricadas, cuja
construção seria prevista, e que se defenderia sistematicamente e não episodicamente.
Todas essas regras, procedendo dos problemas militares da insurreição, deve, bem
entendido, ser inevitavelmente modificadas, ao mesmo tempo que as condições sociais e
a técnica militar; mas, elas próprias, não são blanquistas no sentido que se entende
pouco mais ou menos entre os alemãs o «golpismo» ou «o aventureirismo»
revolucionário.
A insurreição é uma arte e, como toda a arte, ela tem as suas leis. As regras de
Blanqui eram as exigências de um realismo de guerra revolucionária. O erro de Blanqui
consistia não no seu teorema directo, mas na sua reciprocidade. Do facto que a
incapacidade táctica condenava a insurreição ao fiasco, Blanqui deduzia que a
observação das regras da táctica insurreccional era capaz, por ela própria, de assegurar a
vitória. Foi somente a partir daí que é legítimo opor o blanquismo ao marxismo. A
conspiração não substitui a insurreição. A minoria activa do proletariado, mesmo bem
organizada que seja, não pode amparar-se do poder independentemente da situação
geral do país: nisso, o blanquismo é condenado pela história. Mas somente por isso. O
teorema directo conserva a sua força. Na conquista do poder, ao proletariado não lhe
basta uma insurreição das forças elementares. É preciso uma organização
correspondente, falta-lhe um plano, precisa de uma conspiração. É assim que Lenine
coloca a questão.
A crítica de Engels, dirigida contra o fetichismo da barricada, apoia-se sobre a
evolução da técnica geral e da técnica militar. A táctica insurreccional do blanquismo
respondia ao carácter do velho Paris, de um proletariado a meio composto de artesãos,
de ruas estreitas e ao sistema militar de Luis-Filipe. Em princípio, o erro do blanquismo
consistia a identificar a revolução com a insurreição. O erro técnico do blanquismo
consistia a identificar a insurreição com a barricada. A crítica do marxismo foi dirigida
contra os dois erros. Considerando, de acordo com o blanquismo, que a insurreição é
uma arte, Engels descobria não somente o lugar secundário da insurreição na revolução,
mas o papel declinante da barricada na insurreição. A crítica de Engels nada tinha de
comum com uma renuncia aos métodos revolucionários em proveito do puro
parlamentarismo, como tentaram de mostrar no seu tempo os filistinos da social-
democracia alemã, com o concurso das censura do Hohenzollern. Para Engels, a questão
das barricadas continuava a ser dos elementos técnicos da insurreição. Ora, os
reformistas tentavam, diante da negação do valor decisivo da barricada, de concluir à

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negação da violência revolucionária em geral. Era pouco mais ou menos como se,
raciocinando sobra a diminuição provável da importância da trincheira na próxima guerra,
concluía-se ao derrube do militarismo.
A organização com a ajuda da qual o proletariado pode não somente derrubar o
antigo regime, mas substituir-se a ele, são os sovietes. O que mais tarde se torna um
assunto de experiência histórica não era, até à insurreição de Outubro, senão um
prognóstico teórico, apoiando-se, na verdade, sobre a experiência prévia de 1905. Os
sovietes são os órgãos de preparação das massas para a insurreição e, depois da vitória,
os órgãos do poder.
Todavia, os sovietes, por eles próprios, não resolvem a questão. Segundo o
programa e a direcção, eles podem servir a fins diversos. Um programa é dado aos
sovietes pelo partido. Se os sovietes, nas circunstâncias de uma revolução – e, fora da
revolução, eles são geralmente impossíveis – apoderando-se de toda a classe, com a
excepção das camadas completamente atrasadas, passivas ou desmoralizadas, o partido
revolucionário está à cabeça da classe. O problema da conquista do poder não pode ser
resolvido senão pela combinação do partido com os sovietes ou com outras organizações
de massas equivalendo mais ou menos aos sovietes.
O soviete, tendo à cabeça um partido revolucionário, tende conscientemente e em
tempo útil a apoderar-se do poder. Regulando-se pelas variações da situação política e
sobre o estado de espírito das massas, ele prepara os pontos de apoio da insurreição,
liga os destacamentos de choque pela unidade dos objectivos, elabora antecipadamente
o plano da ofensiva e do último assalto: isso significa precisamente introduzir a
conspiração organizada na insurreição de massas.
Os bolcheviques, mais de uma vez, muito tempo ainda antes da insurreição de
Outubro, tiveram que recusar as acusações dirigidas contra eles pelos seus adversários,
que lhes imputavam maquinações conspiratórias e do blanquismo. Ora, ninguém mais
que Lenine não levou a luta de forma tão intransigente contra o sistema da pura
conspiração. Os oportunistas da social-democracia internacional tomaram mais de uma
vez sob sua protecção a velha táctica socialista-revolucionária do terror individual contra
os agentes do czarismo, resistindo à crítica implacável dos bolcheviques que opunham à
aventura individualista da inteligência o curso para a insurreição das massas. Mas em
afastando todas as variedades do blanquismo e da anarquia, Lenine não se inclinava nem
um instante diante da força elementar «sagrada» das massas. Ele tinha meditado mais
cedo e mais profundamente que outros a relação entre os factores objectivos e
subjectivos da revolução, entre o movimento das forças elementares e a política do
partido, entre as massas populares e a classe avançada, entre o proletariado e sua
vanguarda, entre os sovietes e o partido, entre a insurreição e a conspiração.
Mas se é justo que não se possa convocar à sua vontade um levantamento e que,
para a vitória, seja necessário tempo, em tempo útil, organizar a insurreição, mesmo por
aí, diante da direcção revolucionária, põe-se o problema de um diagnóstico exacto: é
preciso, no momento oportuno, surpreender a insurreição que sobe para completar por
uma conspiração. A intervenção obstétrica num parto, ainda se abusaram muito desta

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imagem, resta ainda a ilustração mais viva de uma intrusão consciente num processo
elementar. Herzen acusava outrora o seu amigo Bakunine de ter, em todas as suas
iniciativas revolucionárias, invariavelmente tomado o segundo mês de gravidez pelo nono.
Quanto a Herzen, ele estava antes de mais disposto a negar a própria gravidez mesmo no
nono mês. Em Fevereiro, a questão da data do parto quase que não se colocava, mas na
medida onde a insurreição tinha rebentado de «forma inesperada», sem direcção
centralizada. Mas é precisamente por isso que o poder passou não para aqueles que
realizaram a insurreição, mas para os que a tinha parado. Para a nova insurreição era
outra coisa: ela foi conscientemente preparada pelo partido bolchevique. O problema:
utilizar o momento propício para dar o sinal da ofensiva, caía por aí sobre o Estado-maior
bolchevista.
A palavra «momento» não deve ser levada à letra, como um dia e uma hora
determinadas: mesmo para os partos, a natureza concede diferenças de tempo
consideráveis cujos limites não interessam somente a arte de parir, mas também a causa
do direito de sucessão. Entre o momento onde a tentativa de provocar um levantamento
deve ainda inevitavelmente mostrar-se prematuro e levar a um aborto revolucionário, e o
momento onde a situação favorável deve já ser considerada como irremediavelmente
perdia, um certo período da revolução decorre – ele pode medir-se em algumas semanas,
por vezes em alguns meses – no decorrer do qual a insurreição pode realizar-se com
maior ou menor grande possibilidade de sucesso. Discernir este período relativamente
curto e escolher a seguir um momento determinado, no sentido preciso do dia e da hora,
para dar o golpe final, é para a direcção revolucionária a tarefa de pesada
responsabilidade. Pode-se chamar um problema nodal porque ele associa a política
revolucionária à técnica da insurreição: é preciso lembrar que a insurreição, tal como a
guerra, é o prolongamento da política por outros meios?
A intuição e a experiência são necessárias à direcção revolucionária, tal como em
todos os outros domínios da arte criadora. Mas isso não basta. A arte do mágico pode
também, com sucesso, repousar sobra a intuição e a experiência. A arte do curador
político não basta todavia senão para as épocas e períodos onde predomina a rotina.
Numa época de grandes reviravoltas históricas não tolera as obras dos mágicos. A
experiência, mesmo inspirada pela intuição, não basta. É preciso um método materialista
permitindo descobrir, por detrás das sombras chinesas dos programas e das palavras de
ordem, o momento real dos corpos da sociedade.
As premissas essenciais duma revolução residem no que o regime social existente
se encontra incapaz de resolver os problemas fundamentais do desenvolvimento da
nação. A revolução só se torna todavia possível no caso onde, na composição da
sociedade, se encontra uma nova classe capaz de tomar a cabeça da nação para resolver
os problemas colocados pela história. O processo de preparação da revolução consiste
em tarefas objectivas, marcadas pelas contradições da economia e das classes, abrindo
caminho nas consciências vivas das massas humanas, modificando os aspectos e
criando novas relações de força política.

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As classes dirigentes, resultando da sua incapacidade manifesta a tirar o país do
beco sem saída, perdem a fé nelas próprias, os velhos partidos decompõem-se, uma luta
de morte desenvolve-se entre os grupos e cliques, as esperanças são transferidas para o
milagre ou o taumaturgo. Tudo isso constitui uma das premissas política da insurreição,
extremamente importante, embora passiva.
Uma hostilidade furiosa em relação à ordem estabelecida e a intenção de arriscar
esforços heróicos, em abandonar as vítimas, para arrastar o país numa via de renovação
tal é a nova consciência política das classe revolucionária que constitui a principal
premissa táctica da insurreição.
Os dois campos principais – os grandes proprietários e o proletariado – não
representam portanto, no total, toda a nação. Entre eles instalaram-se largas camadas da
pequena burguesia, utilizando todas as cores do prisma económico e político. O
descontentamento das camadas intermediárias, suas desilusões frente à política da
classe dirigente, sua impaciência e sua revolta, sua disposição a apoiar a iniciativa
ousadamente revolucionária do proletariado constituem a terceira condição política da
insurreição, em parte passiva na medida onde neutraliza as cimeiras da pequena
burguesia, em parte activa na medida onde ela leva as bases a lutar directamente, lado a
lado com os operários.
A reciprocidade condicional dessas premissas é évidente: mais o proletariado age
determinado e com segurança, e mais ele tem a possibilidade de arrastar as camadas
intermediárias, mais a classe dominante é isolada, mais a desmoralização se agrava nela.
E, em contrapartida, a desagregação dos dirigentes vai a favor dos interesses da classe
revolucionária.
O proletariado não pode, para a insurreição, impregnar-se da certeza indispensável
das suas próprias forças senão no caso que, diante dele, se descobre uma clara
perspectiva, que se ele tem a possibilidade de verificar activamente as relações de forças
que mudam a seu proveito, se ele se sente acima dele uma direcção perspicaz, firme e
audaciosa. Isto nos leva à condição da conquista do poder: ao partido revolucionário,
como vanguarda estreita unida e temperada da classe.
Graças à combinação favorável das condições históricas, tanto interiores como
internacionais, o proletariado russo encontra à sua cabeça um partido excepcionalmente
dotado de clareza política e de uma temperamento revolucionário sem exemplo: é isso
somente que permite a uma classe jovem e pouco numerosa em realizar uma tarefa
histórica de envergadura nunca vista. Em geral, como testemunha a história – a da
Comuna de Paris, das revoluções alemãs e austríacas de 1918, os sovietes da Hungria e
da Baviera, da revolução italiana de 1919, da crise alemã de 1923, a revolução chinesa
dos anos 1925-1927, da revolução espanhola de 1931 – o elo mais fraco da cadeia das
condições tem sido até ao presente o do partido: o mais difícil para a classe operária é de
criar uma organização revolucionária que esteja à altura das suas tarefas históricas. Nos
países mais velhos e mais civilizados, forças consideráveis trabalham para enfraquecer e
decompor a vanguarda revolucionária. Uma parte importante desse trabalho vê-se na luta

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da social-democracia contra o «blanquismo», denominação sob a qual fazem aparecer a
essência revolucionária do marxismo.
Se numerosas têm sido as grandes crises sociais e políticas, a coincidência de todas
as condições indispensáveis para uma insurreição proletária vitoriosa e estável só está à
vista até ao presente na história uma só vez: em Outubro de 1917, na Rússia. Uma
situação revolucionária não é eterna. De todas as premissas de uma insurreição, a menos
estável é o estado de espírito da pequena burguesia. Em tempo de crises nacionais, esta
marcha atrás da classe que, não somente pela palavra, mas pela acção, lhe inspira
confiança. Capaz de elãs impulsivos, mesmo de delírios revolucionários, a pequena
burguesia não tem resistência, ele perde facilmente coragem em caso de insucesso e, as
suas ardentes esperanças, cai na desilusão. São precisamente as mudanças violentas e
rápidas dos seus estados de espírito que dão uma tal instabilidade a cada situação
revolucionária. Se o partido proletário não é suficientemente resoluto para transformar em
tempo útil a espera e as esperanças das massas populares numa acção revolucionária, o
fluxo é logo substituido pelo refluxo: as camadas intermediárias voltam os seus olhares da
revolução e procuram um salvador no campo oposto. Tal como a maré cheia o
proletariado arrasta atrás de si a pequena burguesia, no momento de refluxo a pequena
burguesia arrasta camadas importantes do proletariado. Tal é a dialéctica das vagas
comunistas e fascistas na evolução política da Europa do pós-guerra.
Tentando apoiar-se sobre o aforismo de Marx: nenhum regime desaparece da cena
antes de ter esgotado todas as suas possibilidades, os mencheviques negavam que se
admitisse lutar pela ditadura do proletariado na Rússia atrasada onde o capitalismo ainda
estava longe de se esgotar completamente. Nesse raciocino, havia dois erros, e cada um
era fatal. O capitalismo não é um sistema nacional, ele é mundial. A guerra imperialista e
as suas consequências mostraram que o regime capitalista vazou-se sobre o sistema
mundial. A revolução na Rússia foi a quebra do elo mais fraco no sistema capitalista
mundial.
Mas a falsidade da concepção menchevique também se revelou do ponto de vista
nacional. Manter-se numa abstracção económica, pode-se, admitamos, afirmar que o
capitalismo na Rússia não tinha esgotado as suas possibilidades. Mas os processos
económicos têm lugar noutro lado para além das esferas etéreo, eles produzem-se num
meio histórico concreto. O capitalismo não é uma abstracção: é um sistema vivo das
relações de classes que necessita de todo um poder de Estado. Que a monarquia, sob a
protecção da quase formou o capitalismo russo, tendo esgotado as suas possibilidades,
os mencheviques não as negavam. A revolução de Fevereiro tentou instituir um regime de
Estado intermediário. Seguimos passo a passo a história: nalguns oito meses, esse
regime estava completamente esgotado. Qual ordem governamental podia, nessas
condições, assegurar o desenvolvimento ulterior do capitalismo russo?
«A república burguesa, defendida somente pelos socialistas de tendências
moderadas, que não encontravam mais o apoio das massas … não podia manter-se.
Todo o essencial nela estava corroído, só lhe ficou a casca.» Esta apreciação justa
pertence a Miliokov. A sorte do sistema corroído devia ser segundo ele a mesmo que a da

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monarquia czarista: «Um e o outro tinham preparado o terreno para a revolução, e outro,
no dia da revolução, não tinham encontrado um só defensor.» Desde Julho-Agosto,
Miliokov caracterizava a situação por uma alternativa entre dois nomes: Kornilov ou
Lenine. Mas Kornilov já tinha tentado o seu golpe, se terminando numa lamentável
derrota. Para o regime de Kerensky, de qualquer forma, não lhe restava mais lugar. Se
diversos foram os estados de espírito, testemunha Sokhanov, «só havia unidade no ódio
contra o kerenskysmo». Tal como o monarquia czarista se tinha tornado finalmente
impossível diante das cimeiras da nobreza e mesmo dos grandes-duques, o governo de
Kerensky tornou-se odiado mesmo pelos inspiradores directos do regime. Nesse
descontentamento geral, nesse mal-estar político de todas as classes reside um dos mais
importantes síntomas de uma situação revolucionária chegada à maturidade. Foi assim
que cada músculo, cada nervo, cada fibra do organismo são intoleravelmente tensos na
véspera do grande abcesso que vai ser exprimido.
A resolução do Congresso bolchevique de Julho, que prevenia os operários contra
os conflitos prematuros, indicava ao mesmo tempo que era preciso aceitar a batalha
«quando a crise de toda a nação e o grande levantamento das massas criariam as
condições favoráveis para a vinda dos elementos pobres das cidades e do campo para a
causa dos operários». Esse momento chegou em Setembro-Outubro.
A insurreição estava no direito de contar a partir de então com o sucesso, porque ela
podia apoiar-se sobre uma autêntica maioria popular. Não era necessário bem entendido,
compreender isso formalmente. Se, sobre a questão da insurreição se abriu previamente
um referendo, teria dado resultados extremamente contraditórios e indecisos. A
disposição íntima em apoiar a insurreição não se identifica com a capacidade de se dar
claramente conta do avanço da necessidade da insurreição. Além disso, as respostas
dependeriam, em grande parte, da maneira de como colocar a questão, do órgão que
dirigiria o inquérito, ou, mais simplesmente falando, da classe que se encontrasse no
poder.
Os métodos da democracia têm os seus limites. Pode-se questionar todos os
viajantes de um comboio para saber qual é o tipo de vagão que lhes convém mais, mas
não se pode questioná-los todos para saber se é preciso travar em pleno movimento do
comboio que está em vias de descarrilar. Ou, se a operação de segurança é realizada
correctamente e num dado tempo, estaríamos certos da aprovação dos viajantes.
As consultas parlamentares do povo têm todas lugar ao mesmo tempo; todavia, as
diferentes camadas populares, no tempo da revolução, chegam a uma e só conclusão
com o inevitável atraso, por vezes muito pequeno, um sobre o outro. Enquanto que a
vanguarda ardia de impaciência revolucionária, as camadas atrasadas começavam
apenas a se levantar. Em Petrogrado e em Moscovo, todas as organizações de massas
estavam sob a direcção dos bolcheviques; na província de Tambov, que contavam mais
de três milhões de habitantes, isto é um pouco menos que as duas capitais juntas, uma
fracção bolchevique no Soviete só surgiu pela primeira vez um pouco antes da insurreição
de Outubro.

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Os silogismos do desenvolvimento objectivo não coincidiam de forma nenhuma – dia
a dia – com os silogismos da reflexão das massas. E quando uma grande decisão prática,
pelo caminhar das coisas, se torna urgente, ela permite menos de que um referendo. As
diferenças de nível e de estado de espírito das diferentes camadas populares são
reduzidas pela acção: os elementos da vanguarda arrastam os hesitantes e isolam os
resistentes. A maioria não se conta, ela conquista-se. A insurreição surge precisamente
quando a questão das contradições só se mostram pela via da acção directa.
A impotência em tirar da sua guerra contra os proprietários nobres as deduções
políticas necessárias, o campesinato, todavia, pelo facto mesmo do seu levantamento
agrário, se juntou previamente à insurreição das cidades, chamava-o e exigia-o. Ela
exprimia a sua vontade não por um boletim branco, mas pelo incêndio: era um referendo
mais sério. Nos limites onde o apoio do campesinato era indispensável para estabelecer a
ditadura soviética, ele estava lá. «Esta ditadura – respondia Lenine aos indecisos – daria
a terra aos camponeses e todos os poderes aos comités de camponeses nas localidades:
como se pode a menos de ser louco, duvidar que os camponeses apoiariam esta
ditadura? » Para que os soldados, os camponeses, as nacionalidades oprimidas,
vagueando na tormenta dos boletins eleitorais, conhecessem os bolcheviques em acção,
era preciso que os bolcheviques tomassem o poder.
Qual devia ser portanto a relação de forças permitindo ao proletário apoderar-se do
poder? «No momento decisivo, sobre uma questão decisiva, é preciso ter uma
esmagadora preponderância das forças, escrevia Lenine mais tarde, explicando a
insurreição de Outubro; esta lei dos sucessos militares é também a lei do êxito político,
sobretudo nesta guerra escarnecida das classes que se chama a revolução. As capitais
ou melhor os grandes centros comerciais e industriais … decidem em grande parte dos
destinos políticos do povo, bem entendido com a condição que os centros sejam apoiados
pelas forças locais, rurais, suficientes, mesmo se o apoio não chega logo.» Nesse sentido
dinâmico, Lenine falava da maioria do povo e indicava o único sentido real do conceito de
maioria.
Os adversários democratas se consolavam pensando que o povo que seguia os
bolcheviques eram somente a matéria-prima, o barro maleável da história: os moldes
seriam democratas, em colaboração com os burgueses instruídos. «Essa gente não vêm
– perguntava o jornal dos mencheviques que nunca o proletariado e a guarnição de
Petrogrado não tinham sido tão isolados de todas as outras camadas sociais?» A
infelicidade do proletariado e da guarnição consistia em que eles estavam «isolados» das
classes as quais eles estavam dispostos a retirar o poder.
Podia-se, na realidade, contar seriamente com a simpatia e o apoio das massas
ignorantes da província e da frente? O bolchevismo deles, escrevia Sukhanov, com
desdém, «não era outra coisa senão ódio pela coligação e o desejo de obter a terra e a
paz». Como se isso não fosse suficiente! O ódio da coligação indicava um esforço para
retirar o poder à burguesia. A cobiça da terra e da paz era um programa grandioso que os
camponeses e soldados se dispunham a realizar sob a direcção dos operários. A nulidade
dos democratas, mesmo daqueles que estavam mais à esquerda, partia da falta de

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confiança dos cépticos «instruídos» em relação às massas obscuras que tomavam os
fenómenos sem entrar em detalhes e nuanças. Uma atitude intelectual, falsamente
aristocrata, desdenhosa em relação ao povo , era estranha ao bolchevismo, contrário à
sua natureza. Os bolcheviques não eram homens de mãos brancas, dos amigos do povo
trabalham em escritórios, pedantes. Eles não tinham medo das camadas atrasadas que,
pela primeira vez, levantavam-se da escumalha. Os bolcheviques tomavam o povo tal que
tinha feito a história, tal que ele estava destinado a realizar a revolução. Os bolcheviques
consideravam que a sua missão era de se colocar à cabeça desse povo. Contra a
insurreição, «todos» se pronunciavam, com a excepção dos bolcheviques. Mas, os
bolcheviques, eram o povo.
A força política essencial da insurreição de Outubro residia no proletariado, na
composição do qual o primeiro lugar estava ocupado pelos operários de Petrogrado. Na
vanguarda da capital se mantinha, por outro lado, o distrito de Vyborg. O plano de
insurreição tinha escolhido esse bairro essencialmente proletário como base de partida
para o desenvolvimento da ofensiva.
Os conciliadores de todas as nuanças, a começar por Martov, tentaram, depois da
insurreição, de representar o bolchevismo como uma tendência de simples soldados. A
social democracia europeia apoderou-se alegremente desta teoria. E aí, fechavam os
olhos aos factos históricos fundamentais, a saber: que o proletariado tinha sido o primeiro
a passar do lado dos bolcheviques; que os operários de Petrogrado mostrariam o
caminho aos operários de todo o país; que as guarnições e a frente continuariam muito
mais tempo a apoiar os conciliadores; que os socialistas-revolucionários e os
mencheviques instituiriam no sistema dos sovietes toda a especie de privilégios para os
soldados, em detrimento dos operários, lutavam contra o armamento destes, excitavam
contra eles os soldados; que somente sob a influência dos operários se produziria uma
reviravolta nas tropas; que a direcção dos soldados no momento decisivo se encontrou
nas mãos dos operários; enfim um ano mais tarde, a social-democracia na Alemanha,
segundo o exemplo dos seus correlegionários russos, apoiavam-se sobre os soldados na
luta contra os operários.
Perto do outono, os conciliadores de direita tinham já definitivamente perdido a
possibilidade de falar nas fábricas e quartéis. Mas os da esquerda tentavam ainda
convencer as massas que a insurreição era uma loucura. Martov que combatia a ofensiva
da contra-revolução em Julho, tinha encontrado um caminho para a consciência das
massas, voltou a uma obra sem esperança. «Nós não podemos prometer – reconhecia
ele próprio, no 14 de Outubro, em sessão do comité executivo central – que os
bolchevique nos ouvirão». Contudo, ele considerava que era seu dever advertir as
«massas». Ora, as massas queriam acção e não lições de moral. Mesmo no caso onde
eles escutavam com uma paciência relativa o aviso bem conhecido, elas continuavam,
segundo a confissão de Mstislavsky, «a pensar da mesma maneira como antes».
Sukhanov conta que, sob um céu chuvoso, procurou convencer os operários das fábricas
Putilov da possibilidade de arranjar a coisa sem insurreição. Ele foi interrompido por vozes
impacientes. Escutavam-no dois ou três minutos e interrompiam-no outra vez. «Após
várias tentativas, abandonei. A coisa não funcionava … e a chuva nos molhava cada vez

691
mais.» Sob o céu pouco clemente de Outubro, o pobres democratas de esquerda,
segundo as suas próprias descrições, tinham ar de frangos molhados.
A palavra política favorita dos adversários «de esquerda» da insurreição, e havia
igualmente nos meios bolcheviques, consistia em notar a ausência na base de élan
combativo. «O estado de espírito dos trabalhadores e das massas de soldados –
escreviam Zinoviev e Kamenev, no 11 de Outubro – não lembra de forma alguma mesmo
os estados de espírito que existia antes do 3 de Julho.» Isto não era desprovido de
motivos; existia, no proletariado de Petrogrado, um certo desânimo no seguimento de
uma longa espera. Começavam, mesmo os bolcheviques, desesperar: eles também iriam
decepcioná-los? No 16 de Outubro, Rakhia, um dos mais combativos bolcheviques de
Petrogrado, de origem finlandesa, dizia na conferência do comité central:
«Evidentemente, a nossa palavra de ordem começa já a atrasar-se, porque duvidam que
nós realizemos o que prometemos.» Mas a lassitude da espera, que se parecia com a
lentidão, só durou até ao primeiro sinal de combate.
A primeira tarefa de toda a insurreição é de levar a ela as tropas. Para isso servem,
principalmente, a greve geral, as demonstrações de massas, os afrontamentos de rua, os
combates de barricadas. A exclusiva originalidade da insurreição de Outubro, em lado
nenhum observado com um grau assim elaborado, é por isso que, graças a um feliz
concurso de circunstâncias, a vanguarda proletária consegui levar consigo a guarnição da
Capital mesmo antes do início do levantamento; não somente a levar consigo mas a
consolidar pela organização a sua conquista, graças à conferência da guarnição. Não se
pode compreender o mecanismo da insurreição de Outubro sem estar inteiramente ao
corrente do problema mais importante, que se prestava dificilmente a um cálculo prévio,
tinha sido, essencialmente, resolvido em Petrogrado antes do início da luta armada.
Isso não significa, todavia, que a insurreição fosse superflua. Do lado dos operários
alinhavam, na verdade, a esmagadora maioria da guarnição; mas a minoria estava contra
os operários, contra a insurreição, contra os bolcheviques. Esta pequena minoria
compunha-se de elementos os mais qualificados do exército: o corpo dos oficiais, os
junkers, os batalhões de choque, talvez mesmo os cossacos. Não se podiam conquistar
politicamente esses elementos: era preciso vencê-los. Na sua última parte, o problema da
insurreição que entrou na história sob o signo de Outubro tinha, assim, um carácter
puramente militar. A solução devia vir, na última etapa, das espingardas, das baionetas,
das metralhadoras, talvez mesmo dos canhões. Foi nessa via que conduzia o partido dos
bolcheviques.
Quais eram as forças militares do conflito que se preparava? Boris Sokolov, que
dirigia o trabalho militar do partido socialista-revolucionário, conta que, no período que
procedeu a insurreição, «todas as organizações de partidos nos regimentos, com a
excepção dos bolcheviques, tinham-se deslocado e as circunstâncias não era de forma
alguma favoráveis à formação de novas. A opinião dos soldados era de uma maneira
bastante nítida bolchevizante, mas o seu bolchevismo era passivo e eles estavam
desprovidos de qualquer propensão a agir activamente pelas armas». Sokolov não
esquece de acrescentar: «Bastaria um ou dois regimentos absolutamente devotados e

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susceptíveis de combater para manter em respeito toda a guarnição.» Decididamente,
todos, desde de generais da monarquia até aos intelectuais «socialistas», a todos
faltavam, contra a revolução proletária, «de um ou dois regimentos». Mas, o que é
verdade, é que a guarnição, na sua imensa maioria profundamente hostil ao governo, não
estava portanto em situação susceptível de combater e não alinhavam ao lado dos
bolcheviques. A causa estava na ruptura definitiva entre a antiga estrutura militar das
tropas e a nova estrutura política. A espinha dorsal de um elemento da de tropas
combativas é constituida pelo comando. Este estava contra os bolcheviques. Todavia, não
somente eles não sabiam comandar, mas, na maior parte dos casos, eles não sabiam
servir-se das armas. A massa dos soldados na era homogénea. Os elementos activos,
combativo, formavam, como sempre, a minoria. A maioria dos soldados simpatizantes aos
bolcheviques, votavam por eles, elegiam-os, mas não esperavam deles uma solução. Os
elementos hostis aos bolcheviques nas tropas eram demasiado insignificantes para
ousarem qualquer iniciativa. A opinião política da guarnição era assim excepcionalmente
favorável a uma insurreição. Mas, no ponto de vista combativo, ela não era muito
importante, já se sabia.
Todavia, não convinha de forma alguma deduzir a guarnição dos cálculos das
operações militares. Milhares de soldados prontos a lutarem do lado da revolução
estavam disseminados por uma massa mais passiva e, precisamente assim, a arrastavam
em certa medida. Diversos contingentes, de uma composição com mais êxito, mantinham
a disciplina e a sua capacidade de combate. Acontece que sólidas redes de
revolucionários em todas as formações. No sexto batalhão de reserva que contava cerca
de dez mil homens, sobre cinco companhias, a primeira distingua-se sempre, e tendo
adquirido desde do inicio da revolução, a reputação de ser bolchevista, e ela se mostrou
digna durante as Jornadas de Outubro. Em média, na verdade, os regimentos da
guarnição não existiam como regimentos, o mecanismo da sua direcção estava avariado,
eles não eram capazes de grande esforço militar; mas mesmo assim eram aglomerações
de homens armados, cuja maioria já tinha recebido o baptismo do fogo. Todos os
contingentes estavam ligados por um e só e mesmo estado de espirito: derrubar o mais
cedo possível Kerensky, voltar para casa e proceder às reformas agrárias. Assim, a
guarnição, completamente desagregada, teve mais uma vez de unir fileiras durante as
Jornadas de Outubro e desencadear um imponente ruído de armas antes de se dissolver
definitivamente.
Que força constituíam, do ponto de vista militar, os operários de Petrogrado? Esta
questão diz respeito a Guarda vermelha. Chegou o momento de falar mais em detalhe:
ela é destinada pelas próximas jornadas a comprometer-se na grande arena da história.
Voltando às suas tradições de 1905, a Guarda renasceu com a revolução de
Fevereiro e partilhou logo as vicissitudes da sorte desta. Kornilov, então comandante em
chefe da região militar de Petrogrado, afirmava que os depósitos da artilharia tinham
deixado escapar, durante os dias do derrube da monarquia, trinta mil revolveres e
quarenta mil espingardas. Além disso, uma quantidade considerável de armas caiu nas
mãos do povo no seguimento do desarmamento da polícia e graças aos regimentos
simpatizantes. Quando se exigiu a restituição das armas, ninguém respondeu. A

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revolução ensina que é preciso fazer atenção à espingarda. Os operários organizados só
puderam todavia procurar uma pequena parte desta pechincha.
Durante os quatro primeiros meses, a questão da insurreição não se colocava de
nenhuma forma para operários. O regime democrático da dualidade de poderes abria aos
bolcheviques a possibilidade de conquistar a maioria dos sovietes. As companhias
(drujiny) operárias de franco-atiradores constituíam um dos elementos da milícia
democrática. Mas tudo isso era antes de mais na forma em vez do conteúdo. Um fuzil nas
mãos de um operário significava um outro princípio histórico diferente daquele nas mãos
de um estudante.
O facto que os operários detinham armas perturbava as classes possuidoras logo no
início, dado que assim as relações de forças eram bruscamente viradas para as fábricas.
Em Petrogrado, onde o aparelho de Estado, apoiado pelo comité central executivo,
representava no princípio uma força indubitável, a milícia operária ainda não parecia
ameaçadora. Mas, nas regiões industriais da província, o reforço da guarda operária
indicava um transtorno de todas as relações, não somente no interior da empresa, mas
também nos arredores. Os operários armados destituíam o contra-mestres, os
engenheiros, e faziam prisões. Na base de uma decisão das assembleias de fábrica, os
guardas vermelhos eram muitas vezes pagos pelos fundos das empresas. No Ural, onde
as ricas tradições da luta dos partidários de 1905, as companhias de franco-atiradores
operários estabeleciam a ordem sob a direcção de velhos militantes. Os operários
armados liquidaram quase imperceptivelmente o poder oficial, substituindo-lhe os órgãos
dos sovietes. A sabotagem praticado pelos proprietários e os administradores impunha
aos operários o cargo de proteger as empresas: máquinas, armazéns, reservas de carvão
e de matérias primas. Os papéis estavam trocados. O operários cerrava os punhos sobre
a sua espingarda para defender a fábrica na qual ele via a fonte da sua força. Assim, os
elementos da ditadura operária, nas empresas e nos distritos se fixavam antes mesmo
que o proletariado no seu conjunto tomasse o poder de Estado.
Reflectindo como sempre as apreensões dos proprietários, os conciliadores
opunham-se com todas as suas forças ao armamento dos operários da capital, reduzindo-
o ao mínimo. Segundo Minitchev, todo o armamento do distrito de Narva se compunha
«de uma quinzena de espingardas e alguns revólveres». Na cidade, entretanto,
multiplicavam-se os assaltos e os actos de violência. De todas as partes vinham rumores
alarmantes anunciadores de novas perturbações. Na véspera da manifestação de Julho,
esperava-se ver o distrito incendiado. Os operários procuravam armas, batendo a todas
as portas e, às vezes, arrombando-as.
Da manifestação do dia 3 de Julho, os operários de Putilov trouxeram um troféu:
uma metralhadoras com cinco caixas de fitas cargadores. «Nós estávamos felizes como
crianças» - conta Minitchev. Algumas fábricas estavam melhor armadas. Segundo
Litchkov, os operários da sua fábrica possuíam oitenta espingardas e vinte grandes
revólveres. Toda uma riqueza! Pelo Estado-maior da Guarda vermelha eles obtiveram
duas metralhadoras; uma foi instalada num refeitório, outra no celeiro.«Nosso chefe –
conta Litchkov - era Kotcherovsky, e os seus próximos colaboradores eram Tomtchak,

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morto pelos Guardas brancos durante durante as Jornadas de Outubro sob Tsarkoie-Selo
e Efimov, fusilado pelas bandas dos Brancos. «Essas linhas parcimoniosas permitiam
lançar um golpe de vista no interior do laboratório das fábricas onde se formavam os
quadros da insurreição de Outubro e o futuro Exército vermelho, onde se seleccionavam,
se habituavam a comandar, se temperavam os Tomtchak, os Efimov, centenas e milhares
de operários anónimos que, tendo conquistado o poder, defenderam corajosamente
contra o inimigo e caiam, a seguir, sobre todos os campos de batalha.
Os acontecimentos de Julho modificavam imediatamente a situação da Guarda
vermelha. O desarmamento dos operários efectuou-se já abertamente, não por
persuasão, mas pelo emprego da força. Com a promessa de entregar as armas, os
operários só entregaram sucata. Tudo o que é valioso é cuidadosamente escondido. As
espingardas são distribuidas aos membros seguros do partido. As metralhadoras, untadas
de gordura, são enterradas. Os destacamentos da Guarda passam à clandestinidade,
ligando-se mais ainda aos bolcheviques.
A tarefa do armamento operário era primitivamente concentrada nas mãos dos
comités de fábrica e dos comités do distrito do partido. Restabelecendo-se depois do
esmagamento de Julho, a organização militar dos bolcheviques, que antes só tinham
trabalhado na guarnição e na frente, ocupou-se pela primeira vez de instruir a Guarda
vermelha dando-lhes instrutores e, em certos casos, armas. A perspectiva da insurreição
armada indicada pelo partido dispõe imperceptivelmente os operários avançados a um
novo destino da Guarda vermelha. Já não é mais a milícia das fábricas e dos bairros
operários, são os quadros do futuro exército da insurreição.
Em Agosto, os incêndios, nas fábricas e oficinas, tornaram-se frequentes. Na
sucessão das crises, cada uma é precedida de uma convulsão da consciência colectiva
que envia para a frente dela uma onda alarmante. Os comités de fábrica trabalhavam
intensamente na protecção das empresas contra os atentados. Os fuzis que tinham sido
escondidos saem. O levantamento de Kornilov legaliza definitivamente a Guarda
vermelha. As companhias operárias inscrevem cerca de vinte e cinco mil homens que na
realidade não se podem, longe disso, armar com todos os fuzis, parcialmente também
metralhadoras. Da fábrica de munições de Schlusselburg, os operários trouxeram, pelo
Neva, uma barca cheia de granadas e de explosivos: contra Kornilov! O Comité executivo
central dos conciliadores afasta esse dom dos «gregos». Os homens da Guarda vermelha
de Vyburgo distribuíram, durante a noite, essas prendas perigosas nos bairros.
«A instrução no que respeita a arte de se servir de uma espingarda, que teve lugar
antes nas barracas e nos alojamentos – conta o operário Skorinko – fazia-se agora a céu
aberto, nos jardins, nas avenidas». «A oficina transforma-se em lugar de armas - diz o
operário Rakitov, nas suas Memórias. Diante dos tornos, os fresadores têm a sacola à
bandoleira, a espingarda sobre a máquina.» Logo, na oficina onde se fabricam as
bombas, todos inscreviam-se na Guarda, salvo os velhos socialistas-revolucionários e os
mencheviques. Segundo o sinal da sirene, todos se alinham no pátio para o exercício.
«Lado a lado, o operário barbudo e o pequeno aprendiz, todos os dois escutam

695
atenciosamente o instrutor … » Então se deslocavam definitivamente as antigas tropas do
czar, nas fábricas lançavam-se as bases do futuro Exército vermelho.
Desde do perigo representado por Kornilov foi ultrapassado, os conciliadores
meteram-se a diminuir a execução dos seus compromissos: para trinta mil operários de
Putilov, entregaram um total de trezentas espingardas. Logo pararam completamente o
fornecimento de armas: o perigo deixava de ser da direita, mas da esquerda; devia-se
procurar protecção não no proletariado mas nos junkers.
A falta de objectivo prático imediato e a insuficiência do armamento provocaram um
refluxo de operários deixando a Guarda vermelha. Mas isso só foi uma curta pausa. Os
quadros essenciais tinham tido o tempo de se ajustar em cada empresa. Entre os
diferentes companhias operárias se estabeleceram sólidas ligações. Os quadros sabem
por experiência que eles têm sérias reservas, as quais, na hora do perigo, podem ser
erguidas.
A passagem do Soviete para as mãos dos bolcheviques modificou radicalmente a
situação da Guarda vermelha. Anteriormente perseguida ou tolerada, ela torna-se um
órgão oficial do Soviete que prolonga já o braço em direcção do poder. Os operários
procuram constantemente armas e só pedem ao Soviete uma autorização. Desde do fim
de Setembro, sobretudo desde do 10 de Outubro, os preparativos da insurreição são
abertamente actualizados. Um mês antes do levantamento, em várias dezenas de
fábricas e oficinas de Petrogrado, entregam-se intensamente ao exercício militar,
principalmente ao tiro. Cerca de meados de Outubro, aumenta o interesse pelo manejar
das armas. Em centenas de empresas, quase todos se inscrevem nas companhias.
Os operários reclamam cada vez mais impacientemente armas ao soviete, mas há
infinitamente menos espingardas que as mãos estendidas para as receber. «Eu vinha
todos os dias a Smolny – conta o engenheiro Kozmine – eu via como, antes e depois da
sessão do Soviete, os operários e os marinheiros aproximavam-se de Trotsky, oferecendo
ou pedindo armas, dando conta da distribuição dessas armas e colocando questões:
Quando começam então? A impaciência era enorme ...»
Formalmente, a Guarda vermelha continua independente dos partidos. Mas, mais se
caminha para a solução, mais os bolcheviques são levados para o primeiro plano; eles
constituem o núcleo de cada companhia, eles têm entre as mãos o aparelho de comando,
a ligação como as outras empresas e distritos. Os operários sem partido e os socialistas-
revolucionários de esquerda seguem os bolcheviques.
Todavia, ainda agora, na véspera da insurreição, as fileiras da Guarda vermelha
ainda são pouco numerosas. No 16, Uritsky, membro do Comité central bolchevique,
considerava que o exército operário de Petrogrado tinha quarenta mil baionetas. Esse
número é sobretudo exagerado. Os recursos de armamento continuavam ainda muito
limitados: qualquer que fosse a fraqueza do governo, não se podia apoderar dos arsenais
de outra forma senão pela via da insurreição.
No 22, teve lugar a conferência da Guarda vermelha de toda a cidade: uma centena
de delegado representavam cerca vinte mil combatentes. O número não deve ser tomado

696
muito a sério: os inscritos não se mostram todos activos; em contra-partida, nos
momentos de perigo, os voluntários afluíam em grande número nos destacamentos. Os
estatutos adoptados no dia depois pela conferência definiam a Guarda vermelha como «a
organização das forças armadas do proletariado para combater a contra-revolução e
defender as conquistas da revolução». Notemos isso: vinte e quatro horas antes da
insurreição, o problema é definido nos termos de uma defensiva e não de uma ofensiva.
A formação de base é um pelotão; quatro pelotões constituem um piquete; três
piquetes formam uma companhia; três companhias – um batalhão. Com o comando e os
contingentes especiais, o batalhão conta mais de quinhentos homens. Os batalhões de
distrito constituem um destacamento. Nas grandes fábricas como as de Putilov, criaram-
se destacamentos autónomos. As equipas especiais de técnicos – sapadores,
automobilistas, telegrafistas, metralhadores, artilheiros, são alistados nas empresas
respectivas e adjuntas aos destacamentos de infantaria, ou então operam
independentemente, seguindo o carácter da tarefa apresentada. Todo o comando é
electivo. Ainda não há nenhum risco: todos aqui são voluntários e todos se conhecem uns
aos outros.
Os operários criam destacamentos de ambulâncias. A fábrica de material para os
hospitais militares, anuncia-se cursos de enfermagem. «Em quase todas as fábricas –
escreve Tatiana Graf – já há serviços regulares de operárias, trabalhando nas
ambulâncias, com material enfermeiro indispensável. «A organização é extremamente
pobre em recursos pecuniários e técnicos. Pouco a pouco, os comités de fábrica enviam
materia para as ambulâncias e os corpos francos. Durante as horas da insurreição, as
fracas células se desenvolvem rápidamente; elas encontram logo à sua disposição
consideráveis recursos técnicos. No dia 4, o soviete de bairro de Vyborg prescreve o
seguinte: «Requisitar imediatamente todos os automóveis … Fazer o inventários de todo
o material de cuidados médicos para as ambulâncias e estabelecer serviços de guarda
nestas últimas».
Um número cada vez maior de operários sem partido vinha fazer o exercício de tiro e
manobra. O número de corpos da guarda aumentava. Nas fábricas, a facção era
assegurada dia e noite. Os estados-maiores da Guarda vermelha se instalava nos locais
mais espaciosos. Na fábrica de munições, no 23, procedeu-se ao exame dos
conhecimentos dos guardas vermelhos. Um menchevique tendo tentado falar contra o
levantamento, a sua tentativa foi afogada numa tempestade de indignação: basta, o
tempo de discussão passou! O movimento é irresistível, ele apodera-se mesmo dos
mencheviques. Eles «alistam-se na Guarda vermelha – conta Tatiana Graf – fazem parte
de todos os serviços encomendados e mostram mesmo iniciativa». Skorinko descreve
como, no dia 23, fraternizaram no destacamento, com os bolcheviques, os socialistas-
revolucionários e os mencheviques, os jovens e os velhos, e como ele próprio, Skorninko,
beijou com alegria o seu pai, operário na mesma fábrica. O operário Peskovoi conta: no
destacamento armado «havia jovens operários, de cerca de dezasseis anos, e velhos
indo para a cinquentena». A diferença das idades acrescentava «ardor e espírito
combativo».

697
O bairro de Vyborg preparava-se para a batalha com um ardor particular.
Capturaram os pontos moveis lançados sobre o bairro, estudou-se os pontos vulneráveis
do bairro, elegeu-se o seu Comité militar revolucionário, os comités de fábrica
restabeleceram permanentes. Com um legítimo orgulho, Kaiorov escreveu sobre os
operários de Vyborg: «Eles foram os primeiros a entrar na luta com a autocracia, os
primeiros a instituir no seu distrito o dia de oito horas, os primeiros a sair armados para
protestar contra os dez ministros capitalistas, os primeiros a protestar, no 7 de Julho,
contra as perseguições infligidas ao nosso partido, e não foram os últimos no dia decisivo
do 25 de Outubro». O que é verdade é verdade!
A história da Guarda vermelha é em grande medida a história da dualidade de
poderes: esta, pelas suas contradições interiores e os seus conflitos, dava aos operários
uma grande facilidade de criar, logo antes da insurreição, uma imponente força armada.
Estabelecer o total dos destacamentos operários em todo o país no momento da
insurreição – é uma tarefa pouco mais ou menos irrealizável, pelo menos no momento
presente. De qualquer modo, dezenas e dezenas de milhares de operários armados
constituíam os quadros da insurreição. As reservas eram quase inesgotáveis.
A organização da Guarda vermelha continuava, evidentemente, muito longe da
perfeição. Tudo se fazia à pressa, na verdade, nem sempre com destreza. Os guardas
vermelhos estavam na maior parte mal preparados, os serviços de ligação regulavam-se
mal, o abastecimento não era forte, o serviço de ambulâncias estava atrasado. Mas,
completada por operários capazes de grandes sacrifícios, a Guarda vermelha fervia de
desejo de levar desta vez a luta até ao fim. E foi o que resolveu o assunto.
A diferença entre os destacamentos operários e os regimentos camponeses não era
somente determinado pela composição social daqueles e destes. Um grande número
destes soldados pacóvios, regressados às suas aldeias e tendo partilhado as terras dos
proprietários, combaterão desesperadamente contra os guardas brancos, primeiro nos
destacamentos de partidários, a seguir no Exército vermelho. Independentemente da
diferença social, não existe outra, mais imediata: enquanto que a guarnição constitui um
aglomerado forçado de velhos soldados refractários à guerra, os destacamentos da
Guarda vermelha são construídos novos, por uma selecção individual, sobre uma nova
base, com novas ambições.
O Comité militar revolucionário dispõe ainda de uma terceira arma: os marinheiros
do mar Báltico. Pela sua composição social, seu meio é muito mais próximo dos operários
do que a infantaria. Há entre eles, um grande número de operários de Petrogrado. O nível
político dos marinheiros é infinitamente mais elevado que o dos soldados. Diferenciando-
se dos reservistas pouco combativos, que tinham esquecido como utilizar uma
espingarda, os marinheiros não interromperam o serviço efectivo.
Para as operações activas, podia-se com firmeza contar com os comunistas armas,
em destacamentos da Guarda, sobre a vanguarda dos marinheiros e sobre os regimentos
melhores conservados. Os elementos desta conglomeração militar se completavam entre
eles. A numerosa guarnição não tinha bastante vontade de lutar. Os destacamentos de
marinheiros não era muito numerosa. À Guarda vermelha faltava-lhe experiência. Os

698
operários, com os marinheiros, traziam energia, ousadia, elã. Os regimentos da guarnição
constituíam uma reserva pouco móvel que impunha o número e era esmagadora pela
massa.
Frequentando diariamente os operários, os soldados e marinheiros, os bolcheviques
constatavam as profundas diferenças qualitativas entre os elementos do exército que eles
teriam que levar para o combate. Na base do cálculo dessas diferenças, foi construída
uma boa parte do próprio plano da insurreição.
A força social do outro campo era constituída pelas classes possuidoras. Isso
significa que elas determinavam a sua fraqueza militar. As importantes personagens do
capital, da imprensa, dos postos universitários, onde e quando se tinham batidos? Para os
resultados dos combates que determinavam a sua própria sorte, eles tinham o hábito de
se informar por telefone ou telégrafo. A jovem geração, os filhos, os estudantes? Eles
eram quase todos hostis à insurreição de Outubro. Mas a maior parte deles, com os pais,
esperavam afastados a conclusão dos combates. Uma parte aderiu mais tarde aos oficiais
e aos junkers que, já antes, eram recrutados em grande medida entre os estudantes. Os
proprietários não tinham o povo contra eles. Os operários, os soldados, os camponeses
tinham-se voltado contra eles. O desmoronamento dos partidos conciliadores mostrava
que as classes possuidoras tinham ficado sem exército.
Se, na vida dos Estados modernos, os caminhos de ferro têm a sua importância, a
questão dos ferroviários tomava, nos cálculos políticos dos dois campos, um grande lugar.
A composição hierárquica do pessoal ferroviário abria possibilidades a uma extrema
diferenciação política, criando assim as condições favoráveis para os diplomatas
conciliadores. Os Vikjel (Comité executivo pan-russo dos ferroviários) que se tinha
tardiamente formado, conservava raízes muito mais sólidas nos meios dos empregados e
mesmo dos operários que, por exemplo, os comités do exército na frente. Os
bolcheviques, nos caminhos de ferro, só eram seguidos por uma minoria, principalmente
pelo depósitos e oficinas. Segundo o relatório de Schmidt, um dos dirigentes bolchevique
do movimento sindical, os ferroviários os mais próximos do partido eram os das redes de
Petrogrado e de Moscovo.
Mas, mesmo na massa dos empregados e operários conciliadores, uma brusca
reviravolta para a esquerda se produziu a partir do momento da greve dos ferroviários, no
fim de Setembro. O descontentamento provocado pelo Vikjel, que se tinha comprometido
com rodeios, mostrava-se cada vez mais resoluto. Lenine notava que «os exércitos de
ferroviários e empregados dos correios continuam a estar em conflito aberto com o
governo». Do ponto de vista dos problemas imediatos da insurreição, isso era quase
suficiente.
A situação era menos favorável na administração dos Correios e Telégrafos.
Segundo o bolchevique Boki, «perto dos aparelhos telegráficos estão em facção,
sobretudo os cadetes». Mas, ainda aí, o pessoal opunha-se com hostilidade às cimeiras.
Entre os factores, havia um grupo disposto a se apoderar, no momento propício, do
correio.

699
Convencer todos os ferroviários e os empregados dos Correios pela palavra
somente, era inútil pensar nisso. Se os bolcheviques tinham hesitado, os quadros e as
cimeiras conciliadoras teriam vencido. Se a direcção revolucionária fosse resoluta, a base
devia inevitavelmente arrastar atrás as camadas intermediárias e isolar os dirigentes do
Vikjel. Nos cálculos da revolução, a estatística não basta por si só: é preciso o coeficiente
da acção viva.
Os adversários da insurreição, mas nas fileiras do próprio Partido bolchevique,
encontraram todavia bastantes motivos para deduções pessimistas. Zinoviev e Kamenev
avisavam para não subestimar as forças do adversário. «Petrogrado decide, mas em
Petrogrado, os inimigos dispõem de forças importantes: cinco mil junkers, perfeitamente
armados e sabendo bater-se, mais um Estado-maior, mais os batalhões de choque, mais
os cossacos, mais uma importante parte da guarnição. Mais uma muito considerável
artilharia disposta em semi-círculo à volta de Petrogrado. Além disso, os adversários, com
a ajuda do Comité executivo central, tentarão quase de certeza de trazer as tropas da
frente … ». Esta enumeração é imponente, mas é somente uma discrição. Se, no
conjunto, o exército é uma aglomeração social, quando ele se divide abertamente, os dois
exércitos são aglomerações de campos opostos. O exército dos poderosos traz nele o
verme do isolamento e da desagregação.
Os hotéis, os restaurantes e as espelucas, depois da ruptura de Kerensky com
Kornilov, estavam cheios de oficiais hostis ao governo. Todavia, o ódio deles em relação
aos bolcheviques era infinitamente mais vivo. Segundo a regra geral, a maior actividade
em proveito do governo se manifestava do lado dos oficiais monárquicos. «Caros Kornilov
e Krymov, o que vocês não puderam fazer, talvez nós consigamos, com a ajuda de
Deus ...» Tal é a evocação do oficial Sinegoub, um dos mais valiosos defensores do
palácio de Inverno no dia da insurreição. Mas só houve contudo raras unidades que se
mostraram efectivamente dispostas a lutar, mesmo se o corpo de oficiais era mais
numeroso. Já a conspiração de Kornilov tinha mostrado que o corpo de oficiais,
profundamente desmoralizados, não constituía uma força combativa.
A composição social dos junkers é heterogénea, não há unanimidade entre eles. Ao
lado dos militares por hereditariedade, filhos e netos de oficiais, há um grande número de
elementos de ocasião, recrutados para as necessidades da guerra ainda do tempo da
monarquia. O chefe da escola de engenharia disse a um oficial: «Tu e eu, estamos
condenados … não somos nobres e podemos raciocinar de outro modo?» Sobre os
junkers de origem democrática, esses senhores fanfarões, que tinham escapado com
sucesso a uma nobre morte, falam deles como rudes, mujiques», grosseiros e obtusos.
Uma linha foi traçada entre eles e os homens de sangue vermelho e os de sangue azul no
interior das escolas de junkers, e aí, para a defesa do poder republicano, os mais zelosos
são justamente o que lamentam mais a monarquia. Os junkers democratas declararam
que eles não são por Kerensky, mas pelo Comité executivo central. A revolução tinha,
pela primeira vez, aberto as portas das escolas de junkers ao judeus. Esforçando-se por
manter à altura diante dos privilegiados, os filhos de família da burguesia judia
manifestam um espírito extremamente belicoso contra os bolcheviques. Infelizmente! Isso
não basta, não somente para salvar o regime, nem mesmo para salvar o palácio de

700
Inverno. A composição heterogénea das escolas militares e o seu completo isolamento
em relação ao exército davam esse resultado que, nos momentos críticos, os junkers
começavam eles também a organizar comícios: como iam se conduzir os cossacos?
Haveria alguém mais a marchar para além de nós? Valia a pena em geral bater-se por um
governo provisório?
Segundo o relatório de Podvoisky, no princípio de Outubro, nas escolas militares de
Petrogrado, contavam-se cerca de cento e vinte junkers socialistas, cujo quarenta e dois
ou quarenta e três bolcheviques. «Os junkers dizem que todo o comando das escolas são
de espírito contra-revolucionário. Preparam-os ostensivamente para o caso de
manifestações, para esmagar o levantamento … » O número de socialistas, e sobretudo
dos bolcheviques, como se vê, é completamente insignificante. Mas estes dão a Smolny a
possibilidade de conhecer todo o essencial do que se produz no meio dos junkers. Além
disso, toda a topografia das escolas militares lhes é extremamente desvantajosa: os
junkers são disseminados no meio das casernas e, mesmo se eles falam com desdém
dos soldados, eles consideram-nos com grandes apreensões.
Seus temores são suficientemente motivados. Das casernas vizinhas e dos bairros
operários, os milhares de olhares hostis observam os junkers. A vigilância é sobretudo
tanto mais eficaz que, em cada escola, há um destacamento de soldados que, em
palavras, conservam a neutralidade, mas que, de facto, pendem pelos insurrectos. Os
arsenais das escolas estão entre as mãos dos soldados saídos das fileiras. «Esses
canalhas – escreve um oficial da escola de engenharia – não somente perderam as
chaves do depósito, de maneira que fui obrigado a arrobar a porta, mas as culatras das
metralhadoras tinham sido retiradas e escondidas não se sabe onde.» Em tais
circunstâncias, é difícil esperar dos junkers milagres de heroísmo.
A insurreição de Petrogrado não foi ameaçada por uma acção exterior, das
guarnições vizinhas? Durante os primeiros dias da sua existência, a monarquia não tinha
parado de contar sobre o pequeno círculo de tropas que cercavam a capital. A monarquia
tinha calculado mal. Mas que aconteceria desta vez? Assegurar-se das condições que
excluiriam todo o perigo, seria tornar inútil qualquer insurreição: o objectivo desta é
precisamente de quebrar os obstáculos que não se podem eliminar pela política. Não se
pode calcular tudo antecipadamente. Mas tudo o que se podia prever foi calculado.
No inicio de Outubro, em Cronstadt, tinha tido lugar a Conferência dos sovietes da
província de Petrogrado. Os delegados das guarnições dos arredores – de Gatchina, de
Tsarkoie-Selo, de Krasnoie-Selo, d´Oranienbaum, mesmo de Cronstadt – ocuparam um
lugar de destaque os marinheiros do Báltico. À sua resolução se juntou o soviete dos
deputados camponeses da província de Petrogrado: os mujiques, ultrapassando os
socialistas-revolucionários de esquerda, pendiam fortemente para os bolcheviques.
A conferência do Comité central do 16, o operário Stapanov esboçava um quadro
bastante variado do estado das forças na província, mas onde predominavam todavia
nitidamente as cores do bolchevismo. Em Sestroretsk e em Kolpino, os operários armam-
se, os estado de espírito é favorável à batalha. Em Novy-Peterhof, o trabalho parou no
regimento que está desorganizado. Em Krasnoie-Selo, o 176º regimento (o mesmo que

701
tinha montado a guarda diante do palácio Tauride no 4 de Julho) e o 172º estão do lado
dos bolcheviques: «mas, além disso, há a cavalaria». Em Lova, uma guarnição de trinta
mil homens voltou-se para o lado dos bolcheviques, uma parte hesita; o soviete ainda
está em modo de defesa nacional. Em Gdova, o regimento é bolchevique. Em Cronstadt,
o estado de espírito caiu, a agitação das guarnições tinha sido muito forte durante os
meses precedentes, os melhores elementos entre os marinheiros encontravam-se na frota
em operações de guerra. Em Schlusselburgo, a sessenta verstas de Petrogrado, o
Soviete tinha-se desde há muito tempo tornado o único poder; os operários da fábrica de
pólvora estavam prontos, a todo o momento, a apoiar a capital.
Combinando com os resultados da conferência dos sovietes em Cronstadt, os dados
sobre as reservas de primeira linha podem ser considerados como encorajantes. As
ondas provenientes da insurreição de Fevereiro foram suficientes para dissolver a
disciplina à volta. Foi com bastante confiança que se pode considerar agora as
guarnições mais próximas da capital quando as suas disposições são previamente
conhecidas.
As tropas da frente da Finlandia e do Norte ligam-se às reservas da segunda linha.
Aí, o assunto apresenta-se de uma maneira ainda mais favorável. O trabalho de Smilga,
de Antonov, de Dybenko deu resultados preciosos. Com a guarnição de Helsingfors, a
frota se transformou, no território da Finlandia, num poder soberano. O governo não
dispunha mais de autoridade. Duas divisões de cossacos introduzidas em Helsingfors –
Kornilov tinha-as destinado a golpear Petrogrado – tinham tido tempo de se aproximar
estreitamente dos marinheiros e apoiavam os bolcheviques ou os socialistas-
revolucionários de esquerda que, na frota do Báltico, se distinguiam pouco dos
bolcheviques.
Helsingfors estendeu a mão aos marinheiros da base de Reval, até então menos
determinados. O Congresso regional dos sovietes do Norte, cuja iniciativa pertencia
também, verosimilmente à frota do Báltico, agrupou os sovietes das guarnições mais
próximas de Petrogrado num círculo tão largo que engloba por um lado Moscovo e por
outro Arkhangelsk. «Por esse meio, escreve Antonov – se realizou a ideia de blindar a
capital da revolução contra os ataques possíveis das tropas de Kerensky.» Smilga, do
Congresso, regressou a Helsingfors para preparar um destacamento especial da marinha,
de infantaria, de artilharia, destinado a ser enviado para Petrogrado ao primeiro sinal. A
ala finlandesa da insurreição de Petrogrado era a melhor garantida. Daí, podia-se esperar,
não um golpe, mas uma ajuda séria.
Mas noutros sectores da frente também, o assunto caminhava verdadeiramente
bem, de qualquer modo melhor que pressupunham os mais optimistas dos bolcheviques.
No decorrer de Outubro, houve no exército novas eleições de comités, por todo o lado
com uma mudança marcada no sentido dos bolcheviques. No corpo cantonado sob
Dvinsk, «os velhos soldados razoáveis», encontravam-se todos reprovados nas eleições
para os comités de regimento e de companhia; seus lugares foram ocupados por
«sujeitos sombrios e ignorantes … de olhos irritados, brilhantes, com focinhos de lobo».
Noutros sectores, foi a mesma coisa. «Em todo o lado houve novas eleições de comités e

702
foram eleitos somente bolcheviques e os derrotistas.» Os comissários do governo
começavam a evitar as missões nos regimentos: «Neste momento, sua situação não é a
melhor que a nossa.» Citemos aqui o barão Budberg. Dois regimentos de cavalaria do
seu grupo, hussardos e cossacos do Ural, que tinham ficado mais tempo que os outros
entre as mãos de seus chefes e não se recusaram a esmagar os motins, fraquejaram de
uma vez e exigiram «que os dispensassem do papel de carrascos e de polícias.» O
sentido ameaçador desse aviso era, para o barão, mais claro que qualquer outro. «Não se
pode enfrentar um bando de hienas, de chacais e de ovelhas tocando violão – escrevia -
… a salvação só está na possibilidade de uma aplicação muito larga do ferro em brasa.»
E aqui, uma confissão trágica: «Esse ferro falta e não se sabe onde ir buscá-lo.»
Se não mencionamos testemunhas análogas, sobre outros corpos e divisões, é
porque os seus chefes não eram tão observadores como Budberg, ou então não
redigiram diários íntimos, ou simplesmente porque esses diários ainda não surgiram à luz
do dia. Mas o corpo do exército aquartelado em Dvinsk não se distinguia em nada de
essencial, senão pelo estilo folclórico do seu chefe, e outros corpos do 5º exército, o qual,
tinha apenas um fraco avanço sobre os outros contingentes.
O Comité conciliador do 5º exército, já há muito tempo em suspense, continuava a
enviar para Petrogrado telegramas, ameaçando restabelecer a ordem à força de
baionetas. «Tudo isso são fanfarronices, é só vento», escreveu Budberg. O Comité estaria
a viver os seus últimos dias. No 23, ele foi reeleito. O presidente do novo Comité
bolchevique foi o doutor Skliansky, jovem organizador excelente que logo deu toda a
liberdade aos seus talentos no domínio da formação do Exército vermelho.
O adjunto do comissário governamental da frente Norte comunicava, no dia 22 de
Outubro, ao ministério da Guerra que as ideias do bolchevismo tinham no exército um
sucesso cada vez maior, que a massa queria a paz e que mesmo a artilharia, que tinha
resistido até ao último momento, tinha se tornado «acessível à propaganda derrotista».
Era também um síntoma de importância. «O governo provisório não gozava de qualquer
autoridade», assim se exprime num relatório do governo um dos seus agentes directos no
exército, três dias antes da insurreição.
O Comité militar revolucionário, na verdade, não conhecia então todos os
documentos. Mas o que sabia era já suficiente. No 23, os representantes dos diferentes
contingentes da frente desfilaram diante do Soviete de Petrogrado reclamando paz; no
caso contrário, as tropas lançariam-se para a retaguarda e «exterminariam todos os
parasitas que se dispunham a fazer guerra ainda uma dúzia de anos». Tomai o poder,
diriam ao Soviete os homens da frente: «As trincheiras vos apoiarão.»
Nas frentes mais afastadas e atrasadas, sud-oeste, e romena, os bolcheviques eram
ainda uma raridade, seres estrangeiros. Mas, aí, as disposições dos soldados eram as
mesmas. Eugenia Boch conta que, no 2º corpo da Guarda, aquartelado nas redondezas
de Jmerinka, sobre sessenta mil soldados, havia somente um jovem comunista e dois
simpatizantes; o que não impediu o corpo, durante as jornadas de Outubro, de caminhar
em apoio da insurreição.

703
Os meios governamentais colocaram suas esperanças nos cossacos até à última
hora. Mas, menos cegos, os políticos do campo da direita compreendiam que o assunto,
desse lado ainda, se apresentava muito mal. Os oficiais cossacos eram quase todos
Kornilovianos. Os cossacos das fileiras tendiam sempre para a esquerda. No governo,
durante muito tempo, não se compreendeu isso, considerando que a frieza dos
regimentos cossacos em relação ao palácio de Inverno provinha de uma vexação infligida
a Kaledine. Mas, afinal, tornou-se claro, mesmo para o ministro da Justiça, Maliantovitch,
que Kaledine «só tinha por apoio os oficiais cossacos enquanto que os cossacos das
fileiras, tal como todos os soldados, eram simplesmente a favor do bolchevismo».
Dessa frente que, nos primeiros dias de Março, beijava a mão e o pé do sacrificador
liberal, levava em ombros os ministros cadetes, embeveciam-se com os discursos de
Kerensky e acreditava que os bolcheviques eram agentes da Alemanha, disso nada ficou.
As ilusões cor de rosa eram pisadas no lodo das trincheiras que os soldados se recusava
a amassar mais tempo com as suas botas rotas. «A conclusão final aproxima-se –
escrevia, no mesmo dia da insurreição de Petrogrado, Budberg – e ele não pode haver aí
qualquer dúvida sobre a questão; na nossa frente, já não há nem um só contingente …
que não seja aos bolcheviques.»

704
A tomada da capital
Tudo tinha mudado e tudo tinha ficado na mesma. A revolução tinha feito tremer o
país, aprofundado a decomposição, assustando uns, exasperando os outros, mas até
então ela não tinha ousado levar o que quer que fosse até ao fim, ela não tinha nada
substituído. São Petersburgo imperial parecia mergulhado num sono letárgico antes da
morte. Sobre as estátuas de ferro fundido da monarquia, a revolução tinha colocado
bandeiras vermelhas. As grandes telas carmesim flutuavam nas fachadas dos edifícios
governamentais. Mas os palácios, os ministérios, os Estados-maiores viviam
completamente independente das suas bandeiras vermelhas que, aliás, sob as chuvas de
outono, tinham perdido as cores. As águias bicéfalas com o ceptro e o globo foram
arrancadas onde isso era possível, mas na maior parte das vezes cobertas de um véu ou
à pressa cobertas de cor. Elas pareciam estar escondidas. Toda a velha Rússia
dissimulou-se, rangendo os dentes de cólera.
As personagens grotescos dos milicianos nas encruzilhadas lembram muitas vezes a
insurreição que varreu os «faraós». Iguais a monumentos vivos. Além disso, a Rússia, há
já dois meses, chama-se «República». A família imperial encontra-se em Tobolsk. Não, o
turbilhão de Fevereiro não passou sem deixar marcas. Mas os generais do czar
continuam a ser generais, os senadores senadorizam, os conselheiros secretos
conservam sua alta dignidade, a escala hierárquica burocrática e os botões amarelos com
a marca da águia designam os estudantes. Mas o essencial é que os proprietários
continuam proprietários, que, para a guerra, não se vê o fim, que os diplomatas aliados,
mais insolentemente que nunca, puxam os fios da Rússia oficial.
Tudo fica como no passado e, todavia, ninguém se reconhece aí. Os bairros
aristocráticos sentem-se empurrados para segundo plano. Os bairros da burguesia liberal
aproximam-se estreitamente da aristocracia. De mito patriótico, o povo tornou-se uma
terrível realidade. Sob os pés tudo treme e desagrega-se. O misticismo rebenta com uma
força muito viva nos meios que, há pouco tempo ainda, juntava as superstições da
monarquia.
Os bolseiros, os advogados, as bailarinas amaldiçoam o novo entenebrecer dos
costumes. A fé na Assembleia constituinte se volatiliza dia após dia. Gorki, no seu jornal,
profetiza o afundamento da civilização. Reforçada desde das Jornadas de Julho, a
deserção de Petrogrado enraivecida e esfomeada para ganhar a província mais pacífica e
bem alimentada se generaliza agora. Famílias de boa condição, que não conseguiram
abandonar a capital, esforçam-se em vão de se proteger da realidade por paredes de
pedra e tectos de folha. Os ecos da tempestade penetram por todo o lado: pelo mercado,
onde tudo se torna mais caro e onde há falta de tudo; pela imprensa bem pensante que
não passa de um gemido de ódio e de terror; pela rua efervescente onde falam por vezes
o tiros sob as janelas; enfim, pela escada de serviço, pelos criados que não querem mais
obedecer com resignação. Aqui, a revolução bate talvez no lugar mais sensível: a
resistência dos escravos da casa destrói definitivamente a estabilidade do lar familiar.

705
E todavia, a rotina diária se defende com todas as suas forças. Os estudantes
estudam nos estabelecimentos segundo os velhos manuais, os funcionários escrevem
papéis que ninguém precisa, os poetas destilam versos que ninguém lê, as amas contam
lendas de Ivan Tsarevitch, as raparigas da nobreza e da classe dos comerciantes que
chegam da província aprendem a música ou então procuram namorados. O velho canhão,
sobre o muro da fortaleza Pedro e Paulo, anuncia o meio-dia, no teatro Maria dão um
novo ballet, e o ministro dos Assuntos externos Terechtchenko, mais forte em coreografia
que em diplomacia, encontra, deveria pensar-se, o tempo para admirar as pontas de uma
bailarina e demonstrar assim a solidez do regime.
Os relevos dos antigos festins são ainda muito abundantes e, por elevadas somas,
pode-se encontrar tudo. Os oficiais da Guarda fazem soar as suas esporas ao juntar os
tacões e procuram aventuras nos gabinetes particulares dos restaurantes de luxo, é o
deboche sem limites. A iluminação eléctrica termina à meia noite, mas isso não impede a
prosperidade das casas mal afamadas onde, à luz de velas, borbulha o champanhe, onde
sereníssimos concussionários despojam às cartas as não menos sereníssimos espiões
alemãs, onde os conspiradores monárquicos dizem «passo» diante dos contrabandistas
semitas, onde as cifras astronómicas das apostas marcam ao mesmo tempo a extensão
da pouca-vergonha e da inflação.
É possível que um simples «eléctrico», mal mantido, sórdido, lento, ao qual estão
suspensos cachos de homens, ir desse Santo-Petersburgo agonizante até aos bairros
populares que vivem da paixão intensa de uma nova esperança? As cúpulas azuis e
doiradas do Instituto Smolny indicam de longe o Estado-maior da insurreição: no limite da
cidade velha, aí onde para a linha do “eléctrico» e onde o rio Neva descreve uma brusca
curva para o sul, separando os arredores do centro da capital. Um grande edifício
acinzentado de três andares, a caserna da educação das filhas da nobreza - eis agora a
fortaleza dos sovietes. Intermináveis e sonoros corredores parecem feitos para o ensino
das leis da perspectiva. Sobre as portas de um grande número de salas subsistem ainda
as inscrições sobre o esmalte: «Sala dos professores», «IIIª Classe», «Senhoras de
classe». Mas, ao lado dos velhos letreiros, ou cobrindo-os, aqui e acolá folhas de papel
que têm os hieróglifos misteriosos da revolução: TKS, PSR, SD, mencheviques, SD
bolcheviques, SR de esquerda, anarco-comunistas, expedição do Tsik (Comité executivo
central), etc.. O olho atento de John Reed notou nessas paredes as inscrições:
«Camaradas, no interesse da vossa saúde, sejam asseados!» Infelizmente, ninguém
manteve o asseio, a começar pela própria natureza. Petrogrado de Outubro vive sobe
uma abóbada de chuva. As ruas, que não são limpas há muito tempo, estão sujas. No
pátio de Smolny, poças imensas. Nas solas dos soldados, a lama é transportada nos
corredores e salas. Mas ninguém não olha nesse momento para baixo, debaixo dos pés:
todos os olhares aponta para a frente.
Smolny comanda cada vez mais firmemente e autoritariamente, a simpatia
apaixonada das massas no levantamento. A direcção central não se estende directamente
aos sectores superiores do sistema revolucionário que, no seu conjunto, deve acabar a
insurreição. A tarefa mais importante realiza-se na base e por ela própria. As fábricas e os
quartéis - eis os focos da história nesses dias, nessas noites. Os arredores de Vyborg, tal

706
como em Fevereiro, tem agora uma potente organização, abertamente declarada e
reconhecida por todos. Bairros, refeitórios de fábricas, clubes, quartéis, os fios estão
todos estendidos para o 33 da Perspectiva Sarnpsonievsky, onde estão instalados o
Comité de bairro dos bolcheviques, o Soviete de Viborg e o Estado-maior de combate. A
milícia do distrito funde-se com a Guarda vermelha. Os arredores está inteiramente sob o
poder dos operários. Se o governo esmagasse Smolny, o distrito de Vyborg, por si só,
poderia restabelecer o centro e assegurar a continuação da ofensiva.
O desfeche estava próximo, mas o dirigentes consideravam ou então faziam de
contas em acreditar que eles não tinham motivos particulares para se preocuparem. A
embaixada da Grande Bretanha, que tinha razões de seguir com atenção os
acontecimentos de Petrogrado, recebeu, segundo o que conta o embaixador da Rússia,
que se encontrava então em Londres, certas informações sobre a insurreição prevista. As
questões preocupantes de Buchanan, Terchtchenko, no decurso de um inevitável
pequeno almoço diplomático, respondeu por vivas certezas: «nada de igual» pode se
produzir; o governo tem firmemente as rédeas nas mãos. O embaixador da Rússia em
Londres foi informado da insurreição por um despacho da agência de notícias britânica.
Um industrial das minas, Auerbach, que tinha visitado, um desses dias, o secretário de
Estado Paltchinsky, perguntou-lhe como nada fosse, após uma entrevista sobre assunto
mais sérios, o que ele pensava: mais uma trovoada, que passará, e a luz voltará: «Durma
bem.» O próprio Paltchinsky só tinha que passar mais uma ou duas noites de insónia
antes de ser preso.
Menos Kerensky se mostrava cerimonioso na sua maneira de tratar os líderes
conciliadores, menos ele duvidava que no momento de perigo, estes apareciam em tempo
útil para o tirar do sarilho. Mais os conciliadores enfraqueciam, mais eles mantinham à
volta deles uma atmosfera de ilusões! Trocando do alto dos seus postos de Petrogrado,
encorajamentos recíprocos com as organizações superiores da província e da frente, os
mencheviques e os socialistas-revolucionários criavam uma falsidade de opinião pública
e, mascaravam a sua impotência, enganando não o inimigo mas eles próprios. O aparelho
de Estado, estorvando e ineficaz, combinação do socialismo de Março com o
funcionalismo do czar, era o melhor adaptado para se iludir a ele próprio. O socialismo
promovido de fresco temia mostrar-se muito pouco respeitador de ideias novas. Assim se
criou um tecido de mentiras oficiais, no qual os generais, os procuradores, os jornalistas,
os comissários e os seus ajudantes de campo mentiam tanto mais que eles estavam
próximos da fonte do poder. O comandante da região militar de Petrogrado fazia relatórios
encorajantes porque Kerensky tinha grande necessidade diante das realidades pouco
encorajantes.
As tradições da dualidade de poderes agiam no mesmo sentido. Com efeito, as
ordens correntes do Estado-maior regional, contra-ordenadas pelo Comité militar
revolucionário, eram executadas sem réplica. Os postos da guarda na cidade eram
ocupados, como habitualmente, pelos efectivos da guarnição, e é preciso dizer que, há já
muito tempo, os regimentos não tinham preenchido o serviço de guarda com tanto zelo
até então. O descontentamento das massas? «Escravos revoltados» estão sempre
descontentes. Às tentativas de motim não pode tomar parte senão o banditismo da

707
população da capital. A secção dos soldados contra o Estado-maior? Mas, em
contrapartida, a secção militar do Comité executivo central é por Kerensky. Toda a
democracia organizada, excepção feita dos bolcheviques, apoia o governo. É assim que a
auréola rosa de Março se transforma num vapor azulado que cobre os contornos reais
das coisas.
É somente quando se produziu a ruptura de Smonly com o Estado-maior que o
governo tentou abordar o conflito de forma séria: não há perigo imediato, mas é preciso
desta vez aproveitar a ocasião para acabar com os bolcheviques. Além disso, os aliados
burgueses faziam pressão com todas as suas forças sobre o palácio de Inverno. Na noite
do 23 para o 24, o governo, juntando toda a sua coragem, decidiu o seguinte: proibir os
jornais bolcheviques que apelam à insurreição; chamar os contingentes seguros das
redondezas e da frente. A proposição de prender todo o Comité militar revolucionário,
adoptada em princípio, foi adiada na sua execução: por uma grande empresa, é preciso é
preciso previamente assegurar-se do apoio do pré-parlamento.
O boato das decisões tomadas pelo governo propagou-se imediatamente na cidade.
Nas sedes do Estado-maior general, ao lado do palácio de Inverno, durante a noite do 23
para o 24, o corpo da guarda estava ocupado pelos soldados do regimento Pavlovsky, um
dos contingentes mais fiéis ao Comité militar revolucionário. Na presença dos soldados,
tratava-se de apelar aos junkers, de cortar as pontes, de proceder a prisões. Tudo o que
os soldados do regimento podiam ouvir e lembrar, eles transmitiam imediatamente nos
distritos e em Smolny. No centro revolucionário, não sabiam sempre tiram partido das
informações dessa contra-espionagem espontânea. Mas não deixava de se cumprir uma
acção inadiável. Os operários e os soldados de toda a cidade estavam informados das
intenções do inimigo e se fortificavam na sua disposição à resistência.
Pela manhã, cedo, as autoridades começavam os preparativos das hostilidades. As
escolas de junkers da capital recebiam a ordem de tomar seus dispositivos de batalha. O
cruzador Aurora que se mantém no rio Neva, tendo uma tripulação bolchevique, deverá
sair para o mar para se juntar às operações da frota. Contingentes são chamados dos
arredores: um batalhão de choque de Tsarkoie, junkers de Oranienbaum, da artilharia de
Pavlovsk. O Estado-maior da frente Norte foi convidada a marchar imediatamente para a
capital com tropas de confiança. Como medida imediata de precaução militar, esta ordem:
reforçar os corpos da guarda do palácio de Inverno; cortar as pontes do rio Neva; os
junkers vigiarão os automóveis; as comunicações telefónicas de Smolny serão cortadas.
O ministro da Justiça, Maliantovitch, prescreveu a prisão dos bolcheviques, libertos sob
caução, que tinham dado prova de nova actividade antigovernamental; o golpe era
dirigido antes de tudo contra Trotsky. As vicissitudes dos tempos são bastante bem
ilustradas pelo facto que Maliantovitch, tal como o seu predecessor Zaudny, tinha sido o
advogado de Trotsky no processo de 1905: tratava-se já então da direcção do Soviete de
Petrogrado. O carácter das acusações formulada era o mesmo num e noutro caso;
tornados acusadores, os antigos defensores encareciam ainda acrescentado a acusação
de ter recebido dinheiro alemão.

708
O Estado-maior da região militar manifestou uma actividade particularmente febril no
domínio da tipografia. As ordens chegavam umas após outras: nenhuma manifestação
não será tolerada; os delinquentes estão sujeitos a graves responsabilidade; os efectivos
da guarnição, salvo ordem do Estado-maior, continuam consignados aos quartéis; «todos
os comissários do Soviete de Petrogrado deve ser despedidos»; na base da ilegalidade
dos seus actos, abrir um inquérito «para levá-los a conselho de guerra». Essas ordens
ameaçadoras não indicam todavia por quem e como a execução será feita. Por sua conta
e risco da responsabilidade pessoal, o comandante regional exigia dos proprietários de
automóveis que eles colocassem suas viaturas, «para prevenir confiscações arbitrárias»,
à disposição do Estado-maior; mas ninguém deu ouvidos a isso.
O Comité executivo central, também ele, não deixou de fazer ameaças. Seguiam
suas pegadas o comité executivo camponês, a Duma municipal, os Comités centrais
mencheviques e dos socialistas-revolucionários. Toda as instituições eram bastante ricas
em recursos literários. Nos manifestos que se colaram nas paredes e nas vedações,
tratava-se invariavelmente de um certo bando de loucos, do perigo de batalhas
sangrentas e de uma contra-revolução inevitável.
Às cinco e meia da manhã, apresenta-se na tipografia dos bolcheviques um
comissário do governo com um destacamento de junkers, e, cercando as saídas,
apresentou um mandato do Estado-maior ordenando o encerramento imediato do órgão
central e do jornal O Soldado. O quê? Como? O Estado-maior? Ainda existe isso? Aqui,
não se recebem ordens que não sejam sancionadas pelo Comité militar revolucionário.
Mas isso não serviu de nada: os clichés são quebrados, o escritório é fechado. O governo
pôde registar um primeiro sucesso.
Um operário e uma operária da tipografia bolchevique correram arquejando para
Smolny e encontraram aí Podvoisky e Trotsky: se o comité lhes der um piquete de guarda
contra os junkers, os operários publicarão o jornal. A maneira de responder, para começar,
à ofensiva governamental foi encontrada. Redigiram uma ordem ao regimento lituano:
expedir imediatamente uma companhia para proteger a tipografia operária. Os emissários
da tipografia insistem para que se meta igualmente em acção o 6º batalhão de sapadores;
são os vizinhos próximos e amigos fiéis. O telegrama é imediatamente transmitido às
duas moradas. Os lituanos e os sapadores agem imediatamente. Os selos colocadas nas
portas são arrancados, as matrizes fundidas, o trabalho arranca em grande. Com um
atraso de algumas horas, o jornal proibido pelo governo surge sob a protecção das tropas
do Comité, o qual é ele próprio objecto de um mandato de prisão. É já a insurreição. É
assim que ela se desenvolve.
Entretanto, sobre o cruzador Aurora colocam esta questão em Smolny: é preciso sair
para o mar ou ficar nas águas do Neva? Os mesmos marujos que, em Agosto, protegiam
o palácio de Inverno contra Kornilov ardem agora de desejo de resolver o caso de
Kerensky. O ordenança governamental é imediatamente invalidado pelo comité, e a
tripulação recebe o Prikaz nº 1218: «No caso que a guarnição de Petrogrado fosse
atacada pelas forças contra-revolucionárias, o cruzador Aurora assegurará o reboque de

709
navios, e vedetas a vapor.» O cruzador preencheu entusiasmado uma missão que
justamente esperava.
Esses dois actos de resistência sugeridos pelos operários e marinheiros, e
realizados, graças ao consentimento da guarnição, imponentemente, tornaram-se os
acontecimentos políticos de primeira importância. As últimas provas do fetichismo do
poder caíam em pó. «Torna-se claro logo - diz um participante - que o assunto já estava
resolvido.» Se ele não tivesse sido resolvido, ele surgiu de qualquer das formas mais
simples do que parecia na véspera.
A tentativa de proibir os jornais, a inutilidade de levar a tribunal o Comité militar
revolucionário, a ordem de despedir os comissários, a interrupção das comunicações
telefónicas de Smolny - essas picadas de agulha são suficientes para que se acuse o
governo de preparar um golpe de Estado contra-revolucionário. Ainda se a insurreição
não possa vencer senão sob a forma de ofensiva, ela se desenvolve tanto mais com
sucesso que ela se parece mais a uma ofensiva. Um pouco de cera de lacrar do governo
sobre a porta da redacção bolchevista - como medida de guerra, não é grande coisa. Mas
que excelente sinal para a batalha! Um telegrama a todos os distritos e aos efectivos da
guarnição faz conhecer o que se passou. «Os inimigos do povo tomaram a ofensiva
durante a noite … O comité militar revolucionário dirige a resistência contra o ataque dos
conspiradores. » Os conspiradores, são os órgãos do poder oficial. Sob a pluma dos
conspiradores revolucionários, esta definição tem uma ressonância inesperada. Mas ela
responde plenamente às circunstâncias e ao estado de opinião das massas.
Desmascarado de todas as suas posições, forçado de se manter na via de uma ofensiva
atrasada, incapaz de mobilizar as forças indispensáveis para esse efeito, nem mesmo de
verificar se elas estão disponíveis, o governo entrega-se a actos esporádicos, irreflectidos
e não combinados que, aos olhos das massas, têm fatalmente ar de pérfidos atentados. O
telegrama do comité prescrevia isto: «Meter o regimento em estado de combate e esperar
instruções». É uma voz de autoridade. Os comissários do comité passíveis de eliminação
continuam com ainda mais segurança a despedir os que são considerados indesejáveis.
O Aurora fundeado no Neva não era somente uma excelente unidade de combate ao
serviço da insurreição, mas era uma estação de emissão de rádio pronta. Vantagem
inapreciável. O marinheiro Korkov diz numa das suas lembranças: Trotsky nos informou
que era preciso transmitir pela rádio ... Que a contra-revolução tinha tomado a ofensiva."
Os termos da defensiva, ainda aqui, marcavam a chamada para a ofensiva, dirigida desta
vez a todo o país. As guarnições que defendem os arredores de Petrogrado, é
recomendado, pela rádio do Aurora, de parar o movimento dos escalões contra-
revolucionários, e, no caso onde as exortações não são suficientes, de empregar a força.
A todas as organizações revolucionárias é imposta a obrigação de "manter-se
permanentemente, colectando todas as informações sobre os planos dos conspiradores".
Os manifestos não faltavam, como se vê, mesmo do lado do Comité militar revolucionário.
Mas, nele próprio, a palavra não se diferenciava dos actos, elas comentavam somente.
Não é sem atraso que se empreende a fortificação do próprio Smolny. Deixando o
Instituto cerca das três horas, na noite do 23 para o 24, John Reed, a sua atenção foi

710
atraída pelas metralhadores nas entradas e por fortes patrulhas que guardavam a grande
porta e as encruzilhadas vizinhas: os postos da guarda tinham sido desde da véspera
reforçados por uma companhia de metralhadores, com 24 metralhadoras. Durante o dia, a
guarda não parou de aumentar. "No bairro de Smolny - escreve Chliapnikov -
observavam-se cenas que eu reconhecia, que lembravam os primeiros dias da Revolução
de Fevereiro à volta do palácio Tauride ": mesma multidão de soldados, de operários
armados de todas as espécies.
Numerosos montes de lenha, no pátio, podem tanto que possível servir de protecção
contra o tiroteio. Camiões, automóveis trazem abastecimentos e munições. "Smolny ao
completo - conta Raskolnikov - foi transformado num campo de guerra. Lá fora, diante do
grupo de canhões, canhões apontados. Perto deles, metralhadores ... Quase sobre cada
degrau, os mesmos "Maxims", iguais a canhões brinquedos, e, em todos os corredores ...
De gestos rápidos, barulhentos, alegres soldados e operários, marinheiros e agitadores".
Sokhanov, que acusa não sem razão as organizações da insurreição de falta de
organização militar, escreve: "Foi somente durante o dia e a noite do 24 que começaram a
se reunir à volta de Smolny os destacamentos armados dos guardas vermelhos e dos
soldados para a defesa do Estado-maior da insurreição... Pela noite do 24, a guarda de
Smolny já tinha consistência".
Esta questão não deixa de ser importante. Em Smolny, de onde o Comité executivo
conciliador se tinha mudado em segredo para ganhar as instalações do Estado-maior do
governo, juntam-se agora as cabeças de todas as organizações revolucionárias dirigidas
pelos bolcheviques. Aí também tem lugar, nesse dia, a sessão do Comité central do
partido para tomar as últimas decisões antes de dar o assalto final. Onze membros estão
presentes. Lénine ainda não saiu do seu esconderijo do bairro de Vyborg. Zinoviev está
ausente; segundo a expressão um pouco viva de Dzerjinsky, "ele esconde-se e não
participa no trabalho do partido". Em contrapartida, Kamenev, que partilha as ideias de
Zinoviev, é muito activo no Estado-maior da insurreição. Estaline está ausente; em geral,
ele não se mostra em Smolny, passando o seu tempo na redacção do órgão central. A
sessão, como habitualmente, tem lugar sob a presidência de Sverdlov. O relatório oficial
pouco fala; mas nota o essencial. Para caracterizar os dirigentes da insurreição e repartir
entre eles as funções, ele é insubstituível.
Trata-se disto que em vinte e quatro horas deve-se definitivamente apoderar-se de
Petrogrado. Isso significa: ocupar as instituições políticas e técnicas que continuam ainda
nas mãos do governo. O Congresso dos sovietes deve tomar lugar sob um poder
soviético. As medidas práticas do assalto nocturno foram elaboradas ou são elaboradas
pelo Comité militar revolucionário e pela organização militar bolchevique. O Comité central
deve dar o retoque final.
Adopta-se antes de tudo a proposição de Kamenev: "Hoje, sem decisão especial,
por um membro do Comité central não pode ser autorizado a sair de Smolny." Decide-se
além disso de reforçar, em Smolny, os serviços permanente dos membro do Comité de
Petrogrado do partido. O relatório diz mais longe: "Trotsky propõe meter à disposição do
Comité militar revolucionário dois membros do Comité central para estabelecer a ligação

711
com os Correios e os ferroviários: um terceiro membro para vigiar o governo provisório.
"Decisão tomada: delegar para os Correios Dzerjinsky, - para os Caminhos de ferro,
Bobnov. Primeiro, provavelmente sob iniciativa de Sverdlov, havia o projecto de confiar a
vigilância do governo provisório a Podvoisky. O relatório nota o seguinte: "objecções
contra Podvoisky; o assunto é confiado a Sverdlov". Miliotine, que é considerado como
um economista, é encarregado do abastecimento. As conversações com os socialistas-
revolucionários de esquerda são confiadas a Kamenev, que tem a reputação de um
parlamentar hábil, ainda se demasiado conciliante: conciliante, isso compreende-se, à
medida do bolchevismo." Trotsky propõe - lemos mais longe - de estabelecer um Estado-
maior de reserva na fortaleza Pedro-e-Paulo e aí designar um com esse objectivo um
membro do Comité central". Decisão: "Encarregar da vigilância geral Lachevitch e
Blagonravov; o cuidado em manter uma constante ligação com a fortaleza foi confiada a
Sverdlov. "Além disso: "Todos os membros do Comité central serão detentores de um livre
acesso à fortaleza."
Na linha do partido, todos os fios estavam nas mãos de Sverdlov, que conhecia os
quadros bolcheviques como ninguém. Ele ligava Smolny ao aparelho do partido, obtia os
militantes indispensáveis ao Comité militar revolucionário e aí era chamado para
conferenciar nos momentos críticos. Dado que a composição do Comité era demasiado
grande, parcialmente mouvante, as medidas mais secretas eram aplicadas pela cimeira
da Organização militar dos bolcheviques, ou pessoalmente por Sverdlov, que foi, não
oficialmente, mas tanto mais efectivamente, o "secretário geral" da insurreição de
Outubro.
Os delegados bolcheviques que tinham chegado ao Congresso dos sovietes caíam
antes de mais entre as mãos de Sverdlov, e não ficavam mais de uma hora sem
ocupação. No 24, em Petrogrado, já se contavam duas ou três centenas de provinciais, e
uma maioria deles, de uma maneira ou outra, inseriu-se nos mecanismos da insurreição.
Cerca das duas horas da tarde, eles reuniram-se em Smolny, em sessão de fracção, para
ouvir o relator do Comité central do partido. Entre eles, havia hesitantes que teriam
preferido, como Zinoviev e Kamenev, uma política de expectativa: havia também,
simplesmente, recrutas sobre os quais não se podia contar. Estava fora de questão expor
diante da fracção o plano da insurreição: o que se diz diante de uma assembleia
numerosa, mesmo à porta fechada, se propaga sempre para o exterior. Ainda não se
pode rasgar o envelope da defensiva que se cobre a ofensiva sem riscar de provocar um
certo sarilho na consciência de diversos efectivos da guarnição. Mas é indispensável, ao
mesmo tempo, dar a entender que a luta decisiva já começou e que o Congresso só terá
que a acabar.
Lembrando recentes artigos de Lénine, Trotsky demonstra que "a conspiração nada
contradiz os princípios do marxismo" se as relações objectivas tornam possível e
inevitável a insurreição. " A barreira material na via do poder deve ser ultrapassada por
um golpe violento ..."
Todavia, até ao presente, a política do Comité militar revolucionário não ultrapassou
os quadros da defensiva. Bem entendido, é preciso compreender esta defensiva de uma

712
maneira bastante larga. Que a imprensa bolchevique tenha a segurança de aparecer com
a ajuda das forças armadas, ou bem que o Aurora possa ficar no Neva - "é a defensiva,
camaradas? É a defensiva!" Se o governo projectou em nos prender, desta vez, as
metralhadoras são instaladas no teto de Smolny." É também uma defensiva,
camaradas!" E que fazer então do governo provisório? diz um bilhete enviado ao orador.
Se Kerensky tentou não se submeter ao Congresso dos sovietes - responde o relator - a
resistência do governo criaria "uma questão de polícia e não política." No fundo, foi quase
assim.
Nesse momento, Trotsky é chamado para se explicar com uma deputação da Duma
municipal que acabou de chegar. Na capital, na verdade, tudo é calmo pelo momento,
mas rumores alarmistas se propagam. O presidente da Câmara põe questões. O Soviete
se dispõe em organizar uma insurreição? E como manter a ordem na cidade? E que
aconteceria à Duma se ela não reconhece a insurreição? Estes honrosas personagens
queriam saber muito. A questão do poder - diz a resposta - depende da decisão do
Congresso dos sovietes. E chegar-se-ia por aí a uma luta armada, " isso depende não
tanto dos sovietes mas daqueles que, apesar da vontade unanime do povo, guarda entre
suas mãos o poder de Estado."
Se o Congresso recusa o poder, o Soviete de Petrogrado se submeterá. Mas o
próprio governo procura evidentemente um conflito. A ordem foi dada para prender o
Comité militar revolucionário. A isso, os operários e os soldados não podem responder
senão pela resistência implacável. Os assaltos e as violências das bandas criminosas?
Uma ordem do Comité, publicada hoje mesmo, diz o seguinte: "A primeira tentativa dos
criminosos para provocar nas ruas de Petrogrado sarilhos, pilhagens, rixas com facas ou
a tiro, os criminosos serão suprimidos". Em relação à Duma municipal, poder-se-á, em
caso de conflito, aplicar o método constitucional: dissolução e novas eleições. A
delegação partiu descontente. Mas sobre o que, na verdade, contava ela?
A visita oficial dos vereadores ao campo dos revoltados era uma manifestação
demasiado fraca da impotência dos dirigentes." Não esqueçam, camaradas, dizia Trotsky,
regressado à fracção dos bolcheviques - que, há algumas semanas, quando nós
conquistamos a maioria, nós éramos somente uma empresa - sem tipografia, sem caixa,
sem sucursal - e agora , um grupo de deputados da Duma municipal vem encontrar o
Comité militar revolucionário, decretada a prisão, para questionar "sobre a sorte da cidade
e do Estado".
A fortaleza Pedro-e-Paulo, conquistada na véspera somente do ponto de vista
político, reforça-se hoje. A equipa dos metralhadores, que é o contingente o mais
revolucionário, se mete em ordem de batalha. Puxar lustre com entusiasmo às
metralhadoras Colt: há oitenta. Para vigiar os cais e o ponto da Trindade as metralhadoras
são instaladas sobre as muralhas da fortaleza. Na grande porta, a guarda é reforçada.
Patrulhas são enviadas para os bairros circundantes. Mas, na febre das horas matinais,
descobre-se que no próprio interior da fortaleza, a situação ainda não pode ser
considerada como completamente segura. A incerteza vem do batalhão dos motociclistas.
Como os cavaleiros, os motociclistas, originários de famílias camponesas ricas, ou da

713
pequena burguesia das cidades, constituem os elementos os mais conservadores do
exército. Tema para os psicólogos idealistas: basta a um homem, diferentemente dos
outros, de sentir-se montado sobre duas rodas a motor, pelo menos num país pobre como
a Rússia, e a sua enfatuação começa a inchar como os seus pneus. Em América, para
obter tal efeito, já é preciso um automóvel.
Chamado para esmagar o movimento de Julho, o batalhão apoderou-se com zelo, a
um certo momento, do palácio Kczecinska, e tinha sido a seguir, como contigente
particularmente seguro, instalado na fortaleza Pedro-e-Paulo. No comício da véspera que
tinha decidido da sorte da fortaleza, os motociclistas, como se soube a seguir, não tinham
tomado parte: a disciplina entre eles tinha-se mantido de tal forma que o corpo de oficiais
tinha conseguido impedir os soldados de se mostrarem no pátio da cidadela contando
com os motociclistas, o comandante da fortaleza levanta alto a cabeça, comunica
frequentemente por telefone com o Estado-maior de Kerensky e, ao que parece, estava
disposto a prender o comissário bolchevique. A situação indecisa não pode ser tolerada
nem mais um minuto! Sob ordem de Smolny, Blagonravov veio cortar o caminho ao
adversário: o comandante da fortaleza foi preso em casa, as comunicações telefónicas
foram cortadas em todos as casas dos oficiais. O Estado-maior governamental perguntou
num tom alarmado porque o comandante não responde e o que se passa em geral na
fortaleza, doravante, só executa as ordens do Comité militar revolucionário, com o qual o
governo terá que se manter em relação a seguir.
Todos os efectivos da guarnição da fortaleza admitem a prisão do comandante com
inteira satisfação. Mas os motociclistas tem uma atitude evasiva. Que se esconde por
detrás do seu silencio impertinente: uma hostilidade dissimulada ou a última das
hesitações? "Nós decidimos organizar um comício especial para os motociclistas -
escreveu Blagonravov - e de convidar os nossos melhores agitadores, em primeiro lugar
Trotsky, que goza de uma imensa autoridade e influencia entre a massa dos soldados. "
Cerca das quatro da tarde, todo o batalhão se reuniu nas instalações vizinhas do Circo
Moderno. A título de defensor, da parte do governo, falou o general Parodelov, que era
considerado como um socialista-revolucionário. As suas objecções eram de tal forma
circunspectas que elas pareciam equívocos. Tanto mais intolerável era a ofensiva dos
representantes do Comité. O que se seguiu, como batalha oratória, para a conquista da
fortaleza Pedro-e-Paulo, se terminou assim que era preciso prever: unanimemente menos
trinta votos, o batalhão aprovou a resolução de Trotsky. Ainda um dos conflitos armados
possíveis foi resolvido antes da batalha e sem derrame de sangue. Tal foi a insurreição de
Outubro. Tal foi o seu estilo. Podia-se doravante contar com a fortaleza tranquilamente.
Armas do arsenal eram entregues sem dificuldade. Em Smolny, na sala dos Comités de
fábrica e oficina, os delegados faziam bicha: agora, pela primeira vez, faziam-na para ter
espingardas. De todos os distritos vieram por camião. "Não se podia reconhecer a
fortaleza Pedro-e-Paulo - escreveu o operário Skorinko." Seu famoso silêncio foi rompido
pelo ruído dos automóveis, pelo ranger dos carros, pela gritaria. Diante dos depósitos
havia empurrões ... Aqui mesmo, diante de nós, trouxeram os primeiros prisioneiros -
oficiais e junkers. " Nesse dia, o 180º regimento de infantaria recebeu espingardas, tinha
sido desarmado por ter participado activamente no levantamento de Julho.

714
Os resultados do comício no Circo Moderno se manifestaram aliás ainda: os
motociclistas que, desde Julho, foram promovidos no palácio de Inverno, abandonaram
por sua própria vontade o serviço, declarando que eles não consentiam mais em proteger
o governo. Foi um golpe sério. Foi preciso substituir os motociclistas pelos junkers. O
apoio militar do governo reduzia-se cada vez mais às escolas de oficiais, e assim não
somente ele era limitado ao último grau, mas revelava definitivamente a sua composição
social.
Os operários dos apontamentos de Potilov, e não somente eles, pediam a Smolny
para que se desarme os junkers. Se esta medida, convenientemente preparada, de
acordo com as equipas não combatentes das escolas, tinha sido aplicada na noite de 24
para o 25, a tomada do palácio de Inverno não teria apresentado nenhuma dificuldade. Se
os junkers tivessem sido desarmados, mesmo na noite de 25 para 26, após a tomada do
palácio de Inverno, não haveria tentativa de contra-revolução no 29 de Novembro. Mas
os dirigentes manifestavam em muitos aspectos "magnanimidade", na realidade um
excesso de optimismo, e não prestavam sempre bastante atenção à voz razoável da
base: a ausência de Lénine também foi sensível a esse ponto. As consequências das
omissões cometidas tiveram que ser corrigidas pelas massas, houve vítimas inutilmente
dos dois lados. Numa luta séria, não pior crueldade que uma "magnanimidade"
inoportuna.
Na sessão do dia do pré-parlamento, Kerensky pronunciou o seu canto de cisne. Já
algum tempo, a população da Rússia, particularmente da capital, foi alarmada: "apelos à
insurreição são diariamente publicados nos jornais bolcheviques". O orador citava artigos
de um criminoso rebelde procurado pelas autoridades do Estado, de um certo Vladimir
Oulianov-Lénine. As citações eram estrondosas e demonstravam sem contestação que a
personagem designada apelava à insurreição. E a qual momento? Enquanto que o
governo discutia a questão da transmissão das terras aos comités camponeses e de
tomar medidas para terminar a guerra. As autoridades, até a esse dia, não se tinham
apresentado para bater nos conspiradores para lhes dar a possibilidade de se corrigirem
eles próprios. "Eis que é mau", gritam do clã dirigido por Miliokov. Mas Kerensky não ficou
desorientado: "Prefiro em geral que o poder aja mais lentamente mas em contrapartida
mais seguramente, e, no momento útil, mais resolutamente." Tais palavras tem um som
estranho na sua boca! De qualquer modo, "actualmente, todos os prazos estão
ultrapassados", não somente os bolcheviques não se arrependeram, mas chamaram
duas companhias de soldados e entregaram-se arbitrariamente a distribuir armas e
munições. O governo tem a intenção, desta vez, de acabar com as desordens da
população. "Falo de uma maneira consciente: digo a população. " Da direita uma
tempestade de aplausos acolhe esta injuria dirigida ao povo. Ele, Kerensky, já deu ordem
de proceder às prisões indispensáveis. " É particularmente necessário notar os discursos
pronunciados pelo presidente do Soviete de Petrogrado, Bronstein-Trotsky." Sim, que se
saiba: o governo tem mais forças do que necessita; da frente reclamam constantemente
medidas firmes contra os bolcheviques.
Nesse momento, Konovalov transmite ao orador um telefonema ao Comité militar
revolucionário, dirigido aos efectivos da guarnição: "Kerensky concluiu solenemente: "Na

715
linguagem da lei e do poder judiciário, isso chama-se um Estado de insurreição." Miliukov
é testemunha: "Kerensky pronunciou essas palavras do tom satisfeito de um advogado
que consegui enfim a surpreender seu adversário." Os grupos e os partidos que ousaram
levantar a mão sobre o Estado" estão sujeitos a uma liquidação imediata, resoluta e
definitiva". Toda a sala, com a excepção da esquerda, aplaudiu demonstrativamente. O
discurso terminou por uma exigência: hoje, nesta mesma sessão que se diga se o
governo "pode cumprir o seu dever com a certeza de ser apoiado por esta alta
assembleia."
Sem esperar os resultados do escrutínio, Kerensky regressou ao Estado-maior,
certo, admite ele próprio que antes de uma hora ele recebia a decisão reclamada por ele -
não se sabe bem porque. Portanto, passou-se de outro modo. De 2 a 6 horas da noite,
houve no palácio Maria conferências de fracções e entre fracções para elaborar formulas
de transição: os partidários pareciam não compreender que se tratava para eles, como
transição, de passar para o nada. Nenhum dos grupos de conciliadores não se decidia a
se identificar ao governo. Dan dizia: "Nós, mencheviques, estamos prontos a defender até
à última gota do nosso sangue o governo provisório; mas que este dê à democracia a
possibilidade de se agrupar à volta dele." Cerca da noite, as fracções de esquerda, tendo-
se extenuado na procura de uma saída, fusionaram sobre uma formula tomada por Dan a
Martov, adiando a responsabilidade da insurreição não somente sobre os bolcheviques,
mas também sobre o governo, exigindo a "disponibilidade imediata das terras para os
Comités agrários, reclamando uma acção em relação aos Aliados a favor de
conversações de paz, etc. Foi assim que os apóstolos da mediocridade se esforçavam, no
último minuto, de se acomodar às palavras de ordem que eles tinham, ainda na véspera,
injuriar como da demagogia aventureira. Um apoio sem reservas foi prometido ao governo
pelos cooperantes, e, além disso, somente pelos cadetes e os cossacos, dois grupos que
se dispunham a derrubar Kerensky logo na primeira oportunidade. Mas ficaram em
minoria. O apoio do pré-parlamento não teria de forma nenhuma podido juntar às
vantagens do governo. Mas Miliokov tem razão: a recusa e apoiar retirava ao governo os
últimos restos de autoridade. Porque, enfim, a composição, do pré-parlamento tinha
determinado pelo próprio governo algumas semanas antes.
Enquanto que, no palácio Maria, procurava-se uma fórmula de salvação, o Soviete
de Petrogrado parecia-se a Smolny para se informar dos acontecimentos. O relator
considera indispensável lembrar, ainda aqui, que o Comité militar revolucionário formou-
se, não como órgão de insurreição, mas no campo da defesa da Revolução". O comité
não permite a Kerensky fazer sair de Petrogrado as tropas revolucionárias e tomou a
defesa da imprensa operárias. "Isso é uma insurreição? O Aurora está lá onde ela se
encontrava na noite passada." É uma insurreição?" "Nós temos um meio poder no qual o
próprio povo não acredita e que não acredita ele próprio, porque ele é morto por dentro.
Esse meio poder espera uma vassourada histórica para preparar o lugar do autêntico
poder do povo revolucionário". Amanhã abrirá o Congresso dos Sovietes. A obrigação da
guarnição e dos operários é meter à disposição do Congresso todas as suas forças. "
Esta ameaça declarada ao mesmo tempo a camuflagem política do golpe que devia ser
dado durante a noite. Trotsky comunica em conclusão que a fracção dos socialistas-

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revolucionários de esquerda do pré-parlamento após o discurso pronunciado hoje por
Kerensky e a perturbação dos ratos das fracções conciliadoras, enviou a Smolny uma
delegação e declarou-se pronta a entrar oficialmente no Comité militar revolucionário. Na
reviravolta dos socialistas-revolucionários de esquerda, o Soviete saudou alegremente o
reflexo de processos mais profundos: a amplitude crescente da guerra camponesa e o
avanço do levantamento de Petrogrado.
Como as relações do presidente do Soviete de Petrogrado, Miliokov escreveu:
"Provavelmente, tal era o plano primeiro de Trotsky: tendo-se preparado para a luta, meter
o governo face "à vontade unanime do povo", exprimida no Congresso dos sovietes, e
dar, de tal maneira, ao novo poder um ar de legitimidade. Mas o governo encontrou-se
mais fraco do que ele previa. E o próprio poder caiu nas suas mãos antes que o
Congresso tivesse tempo de se reunir e de se pronunciar". Nesses termos é justo que a
fraqueza do governo ultrapassasse todas as previsões. Mas o plano, desde do início,
consistia a tomar o poder antes da abertura do Congresso. Miliokov, como ele próprio
reconheceu isso a propósito de outra coisa. "As intenções efectivas dos dirigentes da
insurreição - escreve ele - iam muito mais longe que essas declarações oficiais de
Trotsky. O Congresso devia ser colocado diante do facto consumado.
Do ponto de vista estritamente militar, o plano consistia primitivamente assegurar a
ligação dos marinheiros do Báltico com os operário armados de Vyborg: os marinheiros
deviam chegar pelo caminho de ferro e descer na gare de Finlândia; esta está próxima do
bairro de Vyborg. Já, desta praça de armas, a insurreição devia, juntando os
destacamentos da Guarda vermelha e dos efectivos da guarnição, estender-se a outros
distritos e, apoderando-se das pontes, penetrar no centro para dar o golpe definitivo. Esse
ensejo, que provinha naturalmente das circunstancias e que formulou, inverosimilmente
Antonov, procedia da hipótese que o adversário poderia ainda opor uma resistência
considerável. É precisamente esta premissa que foi rejeitada: não havia necessidade de
se apoiar sobre uma praça de armas limitada: o governo encontrava-se nu para o ataque
em toda a parte onde os insurrectos julgassem útil de o atacar. O plano estratégico sofreu
modificações igualmente do ponto de vista das datas, e em dois sentidos diferentes: a
insurreição começou mais cedo e se terminou mais tarde do que tinha sido fixado. Os
atentados matinais do governo provocaram, a título de defensiva, uma resistência
imediata do Comité militar revolucionário. A impotência dos poderes que se manifestou
nesse caso levou Smolny, no decorrer do dia, a actos de ofensiva que conservavam, na
verdade, um carácter inconstante, meio camuflado, preparatório. O golpe principal, como
antes, foi preparado durante a noite: nesse relatório, o plano continuava em vigor. A
execução foi, no entanto, contrariada, mas já no sentido oposto. Pensava-se ocupar
durante a noite todas as posições dominantes, e, antes de mais, o palácio de Inverno
onde se concentrava o poder central. Mas o cálculo do tempo, numa insurreição, é ainda
mais difícil que numa guerra regular. Os dirigentes atrasaram-se por várias horas na
concentração das forças, e as operações contra o palácio de Inverno, que nem mesmo
tinha sido conseguido iniciar-se durante a noite, constituíram um capítulo particular da
insurreição, que se terminou na noite do 26, isto é, com um atraso de 24 horas. As mais
estrondosas vitórias não foram ganhas sem algumas falhas sérias!

717
Após as declarações de Kerensky no pré-parlamento as autoridades tentaram
alargar a sua ofensiva. Destacamentos de junkers ocupam as gares. Nas esquinas das
grandes artérias onde os piquetes tem ordem de requisitar os automóveis particulares não
entregues ao Estado-maior. Cerca de 3 horas da tarde, as pontes giratórias são cortadas,
salvo a ponte do palácio que continuava aberta à circulação sob guarda reforçada de
junkers. Esta medida, que tinha sido aplicada pela monarquia em todos os momentos de
insegurança e, pela última vez, durante as Jornadas de Fevereiro, era ditada pela
apreensão que inspiravam os bairros operários. O levantamento dos tabuleiros das
pontes, era aos olhos do povo, uma confirmação oficial do facto que a insurreição tinha
começado. Os estados maiores dos interessados responderam à operação de guerra do
governo de uma maneira que lhes era própria, enviando para as pontes destacamentos
armados. Smolny só tinha a desenvolver esta iniciativa. A luta pela possessão das pontes
tinha o carácter de uma prova de força dos dois lados. Os destacamentos de operários
armados e de soldados pressionavam os junkers e os cossacos, usando tanto a
persuasão, ou as ameaças. Os guardiões da ordem acabavam por ceder, não ousando
arriscar um conflito directo. Algumas pontes foram cortadas e restabelecidas várias vezes.
O Aurora recebeu directamente uma ordem do Comité militares revolucionário:
"Restabeleçam por todos os meios que disponham a circulação sobre a ponte Nicolas." O
comandante do cruzador tentou ignorar esta ordem, mas após uma prisão simbólica
atingindo ele e todos os oficiais, ele conduziu calmamente o vaso. Nas duas margens
caminhavam filas de marinheiros. O Aurora não tinha tido tempo de lançar a ancora diante
da ponte, conta Korbov que já não havia sombra de junkers. Os próprios marinheiros
estabeleceram a passagem sobre a ponte e colocaram um só guarda, a ponte do palácio
ficou ainda algumas horas entre as mãos dos corpos da guarda governamental
Apesar o evidente fiasco das primeiras tentativas, alguns órgãos do poder tentaram
a seguir alguma acção. Um destacamento de milicianos apresentou-se à noite numa
tipografia privada para proibir a publicação de um jornal de Petrogrado, O operário e
soldado. Doze hora antes, operários da tipografia bolchevique tinham corrido num caso
parecido, pedir ajuda a Smolny. Agora, isso já não era necessário. Os operários
tipógrafos, com dois marinheiros que se encontravam lá, entregaram imediatamente o
automóvel cheio de jornais; a eles se juntavam logo um certo número de milicianos; o
inspector da milícia fugiu. O Comité militar revolucionário enviou para proteger as edições
dois grupos do regimento Preobranjensky. A administração, assustada, transmitiu logo no
momento a direcção da tipografia ao Soviete dos sindicatos operários.
As autoridades judiciárias nem pensaram em entrar em Smolny para efectuar
prisões: era ainda muito claro fosse o sinal da guerra civil com a derrota garantida
antecipadamente do governo. Em contrapartida, num espasmo administrativo, foi feita
uma tentativa no bairro de Vyborg onde as autoridades, mesmo nos melhores dias,
evitavam aí procurar Lénine. Um coronel, com uma dezena de junkers, penetrou, tarde na
noite, por erro, num clube operário, em vez de ir à redacção bolchevique que se
encontrava no mesmo prédio: esses guerreiros supunham, não se sabe porque, que
Lénine os esperava na redacção. Do clube avisaram imediatamente o Estado-maior da
Guarda vermelha. Enquanto que o coronel se perdia nos diversos andares, caindo mesmo

718
nos mencheviques, os guardas vermelhos chegaram a tempo para prender os junkers,
que eles entregaram ao Estado-maior do distrito de Vyborg e, daí, para a fortaleza Pedro
e Paulo. Foi assim que a marcha ruidosamente anunciada contra os bolcheviques,
deparando-se a cada passo a dificuldades intransponíveis, se transformava em incursões
desordenadas e em pequenos factos anedóticos, se volatilizavam e se reduzia-se a nada.
O Comité militar revolucionário trabalhava entretanto em permanência. Junto dos
contigentes, comissões continuavam em serviço. A população conhece pelos avisos
especiais dos lugares onde se deve dirigir em caso de atentados contra-revolucionários e
de progroms: "O socorro será dado imediatamente." Basta uma visita imponente do
comissário do regimento Kekshholmsky à central telefónica para que as comunicações de
Smolny fossem restabelecidas. A ligação por telefone, a mais rápida de todas, dava às
operações que se desenvolviam a segurança e uma regularidade metodológica.
Continuando a inserir comissários nas instituições que ainda não tinham caído sob o
seu controlo, o Comité militar revolucionário alargava e consolidava as posições de
partida para a próxima ofensiva. Dzerjinsky remeteu no dia a Pestkovsky, velho
revolucionário, um pedaço de papel que devia ter lugar como nomeação enquanto
comissário da central dos telégrafos?" perguntou estupefacto o novo comissário. A central
está guardada pelo regimento Keksholmsky que é dos nossos! "Pestkovsky não tinha
nenhuma necessidade de grandes explicações. Basta que dois soldados do regimento, de
espingarda nas mãos, junto de um comutador, para obter um compromisso provisório com
os funcionários hostis do telégrafo entre os quais não havia um só bolchevique.
Às nove da noite, outro comissário do Comité militar revolucionário, Stark, com um
pequeno destacamento de marinheiros, sob o comando do antigo emigrado Savine,
também ele marinheiro, ocupa a agencia telegráfica governamental e, assim, pré
determina não somente a sorte desta instituição, mas, em certa medida também, a sua
própria: Stark foi o primeiro director da agencia antes de se ver como ministro dos
sovietes em Afeganistão.
Essas duas modestas operações eram ataques insurreccionais ou então somente
episódios da dualidade de poderes, na verdade desviadas dos caminhos da conciliação
para passar para os do bolchevismo? A questão pode ser , não sem razão, ser casuísta.
Mas, para mascarar a insurreição, ela guardava mesmo assim ainda a sua importância. O
facto é que mesmo a invasão do local da agencia para os marinheiros armados havia
ainda um carácter hesitante: formalmente, tratava-se não de se apoderar da instituição,
mas de estabelecer uma censura sobre os telegramas. Foi assim que, até à noite do 24, o
cordão umbilical da "legalidade" não estando ainda definitivamente cortada, o movimento
continuava a se dissimular sob os restes da tradição da dualidade de poderes.
Na elaboração dos planos insurreccionais, Smolny colocava grandes esperanças
sobre os marinheiros do mar Báltico, como destacamento de combate que combinavam a
resolução proletária com uma forte instrução militar. A vinda dos marinheiros a Petrogrado
tinha sido prevista para o Congresso dos sovietes. Chamar os homens do Báltico mais
cedo, era comprometer-se abertamente na via da insurreição. Daí provinha um
impedimento que se traduzia por um atraso.

719
Em Smolny, na jornada do 24, chegaram delegados do soviete de Cronstadt ao
Congresso: o bolchevique Flerovsky e o anarquista Iartchuk que acompanhava os
bolcheviques. Numa das salas de Smolny, eles encontraram-se com Tchudnovsky que
acabava de regressar da frente e que, alegando o estado de espírito dos soldados,
colocava objecções a um levantamento no próximo período. "Em plena discussão - conta
Flerovsky - Trotsky entrou na sala ... Falando-me à parte, convidou-me a regressar
imediatamente a Cronstadt: " Os acontecimentos amadureciam tão depressa que cada
um deve estar no seu posto ... " Nessa instrução breve, eu senti logo a disciplina da
insurreição que aí vinha. A discussão parou. " O impressionante e ardente Tchudnovsky
diferiu as suas dúvidas para tomar parte à elaboração dos planos de guerra. Flerovsky e
Iartchuk receberam um telegrama: "As forças armadas de Cronstadt devem marchar pela
madrugada para defender o Congresso dos sovietes."
Por intermédio de Sverdlov, o Comité militar revolucionário enviou, pela noite, a
Helsingfors, um telegrama para Smilga, presidente do Comité regional dos sovietes:
"Envia estatutos." Isso significava: "Envia imediatamente mil quinhentos marinheiros
seleccionados do Báltico, bem armados". Mesmo se os marinheiros do Báltico não
podessem chegar senão no decorrer do dia depois, não havia razão para remeter para
mais tarde as hostilidades: as forças interiores são suficientes, e não há possibilidade: as
operações já começaram. Se, da frente, reforços chegam para o governo, os marinheiros
chegarão bastante cedo para os bater, seja sobre o flanco, seja pela retaguarda.
A elaboração táctica do esquema da tomada de posse da capital foi principalmente
obra da organização militar dos bolcheviques. Oficiais do Grande Estado Maior teriam
descoberto um plano estabelecido por profanos. Mas os oficiais das altas academias de
guerra não participam habitualmente à preparação de uma insurreição proletária. O mais
indispensável tinha sido, de qualquer modo, previsto. A cidade está dividida em bairros de
combate, subordinada aos Estados-maiores mais próximos. Nos pontos mais importantes
estão concentradas as companhias da Guarda vermelha, ligadas aos contingentes
armados vizinhos, onde estão em alerta, prontas, todas as companhias de serviço. Os
objectivos de cada operação particular e os contingentes afectados são fixados
previamente. Todos os participantes da insurreição de alto a baixo - aí está a sua
potência, mas aí também, por momentos, o seu calcanhar de Aquiles - são convencidos
que a vitória será adquirida sem vítimas.
As principais operações começaram cerca de duas horas da manhã. Por pequenos
grupos militares, habitualmente com um núcleo de operários armados ou de marinheiros,
sob a direcção de comissários, ocupam simultaneamente ou consecutivamente as gares,
a central eléctrica, os arsenais e os armazéns de abastecimento, o serviço das águas, a
ponte do Palácio, a central dos telefones, o banco do Estado, as grandes tipografias, e
asseguram-se dos correios e telégrafos. Em todo o lado, é colocado uma guarda segura.
Os relatos no que diz respeito aos episódios da noite são magros e sem cor: eles
parecem processos verbais da polícia. Todos os participante são toados por uma febre
nervosa. Ninguém tem tempo de observar e de registar. As informações que chegam aos
Estados-maiores não são de forma alguma consignadas em papel, ou então são redigidas

720
distraídamente, e os papeis perdem-se. As lembranças imprimidas mais tarde são secos e
nem sempre exacta, dão que provem, na maior parte, de testemunhos de ocasião. Os
operários, marinheiros e soldados, que eram os inspiradores efectivos e dirigentes das
operações, tomaram logo a cabeça dos primeiros destacamentos do Exército vermelho e,
em maioria caíram nos diferentes campos de batalha da guerra civil. Para determinar o
carácter e a ordem dos diversos episódios, o historiador enfrenta uma grande confusão
acentuada ainda pelos relatórios dos jornais. Por vezes parece que foi mais fácil
apoderar-se de Petrogrado durante o outono de 1917que de repetir o mesmo golpe
quinze anos mais tarde!
A primeira companhia, a mais sólida e a mais revolucionária do batalhão de
sapadores, foi encarregada de apoderar-se da gare vizinha, a gare Nicolas. Um quarto de
hora depois, o lugar foi ocupado sem dar um tiro pelos destacamentos fortes: as forças
governamentais desapareceram nas trevas. Há muitos rumores duvidosos e movimentos
misteriosos, na noite fria e penetrante. Dominante uma ansiedade profunda, os soldados,
conscientemente, parando os peões e as pessoas que passavam em carro, verificando
com cuidado os papeis. Eles não sabem ainda como agir, hesitam, muitas vezes libertam
gente. Mas a cada hora, eles sentem-se mais seguros. Cerca das seis horas da manhã,
os sapadores param dois camiões carregados de junkers, cerca de sessenta homens,
desarmam-nos e enviam-os para Smolny.
O mesmo batalhão recebe a ordem de enviar cinquenta homens para montar a
guarda nos depósitos de abastecimento e vinte e um homens para guardar a central
eléctrica. Os destacamentos vem uns após outros, de Smolny, do distrito. Ninguém se
objecta nem murmura. Segundo o relatório dum comissário, as ordens são executadas
"imediatamente e exactamente". As deslocações dos soldados tornam-se nítidos como
nunca foram desde há muito tempo. Mesmo se perturbada e desorganizada que tivesse
sido a guarnição, boa para enviar para o lixo, nessa noite, a velha disciplina militar
revelou-se e, pela última vez, estende cada músculo ao serviço de um novo objectivo.
O comissário Oralov recebeu dois mandatos: um para ocupar a tipografia do jornal
reaccionário Russkaia Voli (A Liberdade russa), fundado por Protopopov pouco antes de
se tornar ministro do Interior de Nicolau II; o outro para obter um contingente de soldados
do regimento da Guarda Semenovsky que o governo, segundo velhas lembranças,
continuava a considerar como seus. Os soldados do regimento Semenovsk eram
indispensáveis para a ocupação da tipografia: a tipografia, tinham necessidade para a
publicação do jornal bolchevista em grande formato e com grandes tiragens. Os soldados
faziam já seus preparativos para se deitarem. O comissário expôs-lhes brevemente o
objectivo da missão: "Nem tive tempo de acabar que os urras ouviam-se por todo o lado.
Os soldados ergueram-se e rodearam-me de perto." Um camião sobrecarregado de
homens do regimento Semenovsky chegou à tipografia. Na sala das rotativas juntou-se a
equipa da noite. O comissário expôs porque ele tinha vindo. "Aqui ainda, como na
caserna, os operários responderam com urras e gritos de: "Vivam os sovietes!" A tarefa foi
cumprida. Foi pouco mais ou menos assim que outras ocupações tiveram lugar em
outros estabelecimentos. Não foi preciso utilizar a violência, porque não havia resistência.
As massas insurrectas empurravam e rejeitavam para fora os donos da cidade.

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O comandante da região militar comunicou, durante a noite ao Grande Quartel
General e ao Estado-maior da frente Norte: "A situação de Petrogrado é espantosa. Não
há manifestações nem desordens nas ruas. Mas apoderam-se metodicamente dos
estabelecimentos, das gares, há gente presa ... Os junkers abandonam seus postos sem
resistência ... Nada não garante que não haja uma tentativa para lançar mão sobre o
governo provisório. "Polkovnikov tem razão: não há efectivamente nenhuma garantia.
Nas esferas militares, pretende-se que os agentes do Comité militar revolucionário
teriam roubado ao comando de Petrogrado, sobre a sua mesa, as "palavras" e as
respostas dos sentinelas da guarnição. Não haveria nada de inverosímil nisso: entre o
pessoal de todas as instituições, a insurreição tinha amigos suficientemente. Todavia, a
versão respeitante o roubo de "palavras" de consigna foi criada verosimilmente para
explicar a passividade demasiado vergonhosa com a qual os postos da guarda
bolchevista se apoderavam da cidade
Na guarnição foi distribuída, de Smolny, no decorrer da noite, uma ordem: os oficiais
que não reconhecessem o poder do Comité militar revolucionário serão presos. Muitos
chefes tinham já conseguido desaparecer de numerosos regimentos para esperar em
lugar seguro o fim desses dias inquietantes. Noutros contingentes, os oficiais fora
expulsos ou feitos prisioneiros. Em todo o lado formaram-se comités revolucionários ou
Estados-maiores que agiam em completo acordo com os comissários. Que o comando
improvisado não tenha estado completamente à altura da sua tarefa, é claro. Mas, em
contrapartida, era seguro. E a questão decidiu-se antes de mais sobre o plano político.
Todavia, apesar de toda a sua inexperiência, os Estados-maiores de diversos
efectivos manifestavam uma iniciativa considerável. O comité do regimento Pavlovsky
enviou da sua parte batedores ao Estado-maior da região para saber o que se passava aí.
O "batalhão químico" de reserva seguia atentivamente os seus vizinhos turbulentos: os
junkers das escolas Pavlovsky e Vladimirovsky e os alunos do corpo dos Cadetes. Os
químicos muitas vezes desarmavam na rua os junkers, e, assim, impunha-se lhes. Tendo-
se ligado ao contingente dos soldados da escola Pavlovsky, o Estado-maior do batalhão
dos químicos consegui que os chefes do armamento se encontrassem nas mãos desse
contingente.
A quantidade das forças que participaram directamente na tomada da capital na
noite é difícil de determinar: não somente porque ninguém não as conta e não as
inscreveu, mas porque causa do carácter das próprias operações. As reservas de 2ª e de
3ª linha confundiam quase toda a guarnição. Mas não se podia recorrer aos reservistas
senão episodicamente. Vários milhares de guardas vermelhos, dois a três milhares de
marinheiros - no dia seguinte, com a chegada dos homens de Cronstadt e de Helsingfors,
seu número será pouco mais ou menos triplicado - uma vintena de companhias e de
destacamentos de infantaria, cedeu forças de 1ª e de 2ª linha, com a ajuda dos quais os
insurrectos ocuparam a capital.
Às 3 h 20 da manhã, o director do departamento político do ministério da Guerra, o
menchevique Scherr, transmitia por telefone directamente do Cáucaso: "Há sessão do
Comité executivo dos sovietes e com uma esmagadora maioria de bolcheviques.

722
Ovacionaram Trotsky. Ele declarou que esperava uma saída sem sangue da insurreição,
dado que a força estava nas suas mãos. Os bolcheviques chegaram directamente à
acção directa. Eles capturaram a ponte Nicolas, e aí colocaram carros blindados. O
regimento Pavlovsky, na rua Millionnaia, perto do palácio de Inverno, colocou piquetes de
sentinelas, barreiras, procede a prisões, envia pessoas presas a Smolny. Prenderam o
ministro Kartachev e o secretário geral do governo provisório Halperine. A gare do Báltico
está igualmente nas mãos dos bolcheviques. Se não há intervenção da frente, o governo
não terá força para resistir com as tropas que dispõe."
A sessão unificada do Comité executivo que fala o comunicado do tenente Scherr
abriu-se em Smolny depois da meia-noite. Os delegados do Congresso enchem a sala
como convidados. Os corredores estavam ocupados por postos da guarda reforçados.
Capotes cinzentos, espingardas, metralhadoras nas janelas. Os membros dos Comités
executivos foram afogados numa massa de provinciais, com numerosas caras hostis. O
órgão supremo da "democracia" parecia já prisioneiro da insurreição. Na tribuna, não se
via a figura habitual do presidente Tchkheidze. O inevitável relator Tseretelli estava
ausente. Um e outro, assustados pela desenrolar dos acontecimentos, tinham entregue,
algumas semanas antes da batalha, os postos que eles eram os responsáveis e, faziam
um gesto de desistência sobre Petrogrado, tinham partido para a sua Geórgia natal.
Como líder do bloco conciliador ficara Dan. Ele não tinha a bonomia maliciosa de
Tchkheidze; em contrapartida, ele ultrapassava todos os dois par uma miopia obstinada.
Sozinho, no gabinete presidencial, o socialista-revolucionário Gotz abriu a sessão. Dan
tomou a palavra num grande silencio que pareceu a Sokhanov atónito, mas a John Reed
"quase ameaçador." O argumento do relator era a recente resolução do pré-parlamento,
que se esforçava em opor à insurreição o fraco eco das suas próprias palavras de ordem.
"Será demasiado tarde se vocês não tomarem em consideração desta decisão, " dizia
Dan, agitando a ameaça da inevitável fome e da desmoralização das massas. "Nunca a
contraRevolução tinha sido tão forte que no momento presente", isto é na noite do 24
para o 25 de Outubro 1917! O pequeno burguês, assustado frente aos grandes
acontecimentos, só se dá conta dos perigos e obstáculos. Seu único recurso é a
linguagem patética do medo. "Nas fábricas e nos quartéis, a imprensa dos Cem Negros a
muito mais sucesso que a dos socialistas." Loucos levam avante a Revolução à sua perca
, como em 1905," quando à cabeça do Soviete de Petrogrado, se encontrava o mesmo
Trotsky". Mas não. O Comité executivo central não tolerará que se vá até à insurreição: "É
somente sobre o seu cadáver que se cruzarão as baionetas das partes beligerantes."
Soam gritos: "Mas é já um cadáver!" A justeza desta exclamação é ressentida em todo o
auditório: sobre o cadáver dos conciliadores se cruzavam já as baionetas da burguesia e
do proletariado. A voz do relator cai num barulho tumultuoso de vozes hostis. Os golpes
dados sobre as mesas não agem, as exortações não toca ninguém, as ameaças não
assustam nada. Demasiado tarde, demasiado tarde...
Sim, é a insurreição! Respondem em nome do Comité militar revolucionário, do
partido bolchevique, dos operários e soldados de Petrogrado. Trotsky rejeita, enfim, as
últimas formulas convencionais. Sim, as massas estão connosco e nós dirigimos o
assalto! "Sem vocês não tremem - diz ele aos delegados do Congresso, passando por

723
cima da cabeça do Comité executivo central - não haverá guerra civil, os inimigos
capitularão imediatamente, e vocês ocuparão o lugar ao qual tem direito, a dos mestres
da terra russa." Abalados, os membros o Comité executivo central nem tiveram força para
protestar. Até ao presente a fraseologia defensiva de Smolny mantinha neles, apesar de
todos os factos, uma pequena chama vacilante de esperança. E agora, esse fogo apagou-
se. Nessas horas da noite sombria, a insurreição levanta muito alto a cabeça.
A sessão, rica em incidentes, terminou cerca das quatro horas da manhã. Oradores
bolchevistas subiam à tribuna para logo voltar ao Comité militar revolucionário, onde
chegavam, de todos os pontos da cidade, informações inteiramente favoráveis: os posto
de guarda nas ruas estão vigilantes; as instituições são ocupada uma após outra; o
adversário não oferece resistência.
Tinha-se suposto que a central telefónica estava fortificada muito seriamente. Mas,
cerca das sete horas da manhã, foi ocupada sem um tiro por uma equipa do regimento
Keksholmsky. Os insurrectos, desde então, não tinham razão para se preocuparem de
sua ligação entre eles, mas além disso obtinham a possibilidade de controlar as
chamadas telefónicas dos adversários. Os aparelhos de comunicação do palácio de
Inverno e do grande Estado-maior foram aliás interrompidas.
Quase ao mesmo tempo, um destacamento de marinheiros das tripulações da
Guarda, cerca de quarenta homens, apoderavam-se dos escritórios do Banco do Estado,
no canal Catarina. Um dos empregados do Banco, Raltsevitch, diz nas suas Memórias
que "o destacamento de marinheiros agiu impetuosamente", em colocando logo
sentinelas nos postos telefónicos para impedir todo socorro possível do exterior. A
tomada do estabelecimento teve lugares "sem qualquer resistência, apesar a presença de
uma patrulha do regimento Semenovsky." Atribuía-se, em certos casos, à tomada do
Banco um sentido simbólico. Os quadros do partido tinham-se educado sobre a crítica
marxista da Comuna de Paris de 1871, cujos dirigentes não tinham ousado, como se
sabe, levantar a mão sobre a Banca de França. "Não, nós não repetiremos tal erro",
diziam muitos bolcheviques, muito antes do 25 de Outubro. A notícia da tomada do mais
sagrado estabelecimento do Estado burguesia voou imediatamente pelos distritos,
suscitando uma efervescência triunfal.
Muito cedo na manhã, ocupou-se a gare de Varsóvia, a tipografia dos Birjevye
Vedomosti (Informações da Bolsa), a ponte do Palácio, sob as janelas de Kerensky. O
comissário do Comité apresentou aos soldados do regimento de Volhynia, que estava de
guarda, a ordem de libertar um certo número de detidos, segundo uma lista estabelecida
pelo Soviete. Foi em vão que a administração penitenciária tentou obter instruções do
ministro da Justiça: este tinha outras coisas para fazer. Os bolcheviques libertos, desse
número o jovem líder de Cronstadt, Rochal, foram imediatamente, designados para
postos de combate.
Na manhã, levara para Smolny um grupo de junkers presos pelos sapadores na gare
Nicolas; esses junkers tinham partido de camião do palácio de Inverno para
abastecimento. Podvoisky conta o seguinte: "Trotsky declarou-lhes que eles seriam
libertados sob condição de prometerem que não agiriam mais contra o poder soviético;

724
além disso, eles podiam voltar às suas ocupações escolares. Esses moços, que
esperavam represálias sangrentas, ficaram estupefactos." Em que medida um
alargamento imediato era justo, isso continua a ser duvidoso. A vitória ainda não tinha
sido obtida até ao fim, os junkers constituiriam a força principal do adversário. Além disso,
por causa das hesitações que existiam nas escolas militares, era importante mostrar de
facto que uma rendição a favor dos vencedores não anunciava para os junkers qualquer
castigo. Os motivos, num ou outro sentido, pareciam equilibrar-se.
Do ministério da Guerra, ainda não ocupado pelos insurrectos, o general Levitsky
comunicava, pela manhã, por telefone, ao Grande Quartel-general, ao general Dukhonie:
"Elementos da guarnição de Petrogrado ... Passarem para o lado dos bolchevistas. De
Cronstadt chegaram marinheiros e um cruzador ligeiro. As pontes que tinham sido
cortadas foram restabelecias por eles. Toda a cidade está coberta de postos da guarda da
guarnição, mas não há nenhuma manifestação (!) . A central telefónica está entre as mãos
da guarnição. Os contigentes que se encontram no palácio de Inverno só o guardam pela
forma, porque eles decidiram não agir praticamente. No conjunto, a impressão é que o
governo provisório se encontra na capital de um estado inimigo, tendo acabado a
mobilização mas não abriu as hostilidades." Precioso testemunho militar e político! O
general, na verdade, antecipa sobre os acontecimentos quando ele diz que, de Cronstadt,
marinheiros chegaram: eles só chegaram algumas horas. A passagem da ponte foi
efectivamente restabelecido pelo cruzador Aurora. Ingénuo é o fim do relatório que
exprime a esperança que os bolcheviques "tendo há já muito tempo, de facto, a
possibilidade de acabar com todos nós ... Não ousaram romper com a opinião do exército
da frente". Ilusões sobre a frente, era tudo o que restava aos generais democratas da
retaguarda. Em contrapartida, a imagem do governo provisório se encontrava "na capital
de um Estado inimigo" entrará para sempre na história como a melhor explicação da
insurreição de Outubro.
Em Smolny reúnem-se permanentemente. Agitadores, organizadores, dirigentes de
fábrica, de regimento, de distrito, se mostravam por uma hora ou duas, por vezes para
alguns minutos, com o objectivo de saber notícias, verificar a sua própria acção e de
voltar aos seus postos. Diante da sala n.º 18, onde se mantinha a fracção bolchevique do
soviete, havia um ajuntamente indescritível. Os visitantes, extenuados, dormiam
frequentemente na sala das sessões, apoiando a cabeça pesada contra uma coluna
branca, ou então contra a parede do corredor, a espingarda apertada entre os braços, por
vezes deitados no pavimento molhado e sujo. Lachevitch recebia os comissários militares
e dava-lhes as últimas instruções. Nas instalações do Comité militar revolucionário, no
terceiro andar, os relatórios que vinham de todos os lados se transformavam em decisões:
aí batia o coração da insurreição.
Os centros dos distritos reproduziam o quadro de Smolny, somente a uma escala
reduzida. No distrito de Vyborg, frente ao Estado-maior da Guarda vermelha, na
perspectiva Sampsonievsky, forma-se um campo: a calçada ficou sobrecarregada por
carros, camiões. As instituições dos arredores estavam cheias de operários armados.
Soviete, a Duma, os sindicatos, os Comités de fábrica, tudo, nesse distrito, servia a
insurreição. Nas fábricas, nas casernas, nas instituições reproduziam-se, em escala

725
reduzida, a mesma coisa que em toda a capital: empurravam-se, uns elegiam outros,
rompia-se o que restava dos velhos lugares, consolidavam-se os novos. Os atrasados
eram as resoluções de submissão ao Comité militar revolucionário. Os mencheviques e
os socialistas-revolucionários encostavam-se uns aos outros amedrontados à parte com a
administração das fábricas e o corpo dos oficiais. Nos comícios sem fim davam-se
informações frescas, mantinha-se a convicção combativa, fortificava-se a ligação. As
massas humanas agrupavam-se sobre novos eixos. A insurreição concretizava-se.
Passo a passo, tentámos instruir, nesse livro, a preparação do levantamento de
Outubro: descontentamento crescente das massas operárias, os sovietes colocando-se
sob as bandeiras do bolchevismo, irritação no exército, marcha dos camponeses contra
os proprietários nobres, sobrecarregamento do movimento nacional, apreensão e sarilhos
crescentes entre os possuidores e os dirigentes, enfim a luta no interior do partido
bolchevique pelo levantamento. A insurreição que concretiza o todo, parece, depois disso
demasiado curto, demasiado seco, demasiado prático, como se ela não respondesse à
envergadura histórica dos acontecimentos. O leitor sente uma espécie de desilusão.
Parece um turista na montanha que, esperando encontrar ainda grandes dificuldades
diante dele, descobre logo que já chegou à cimeira ou pouco mais ou menos. Onde está a
insurreição? O quadro não está feito. Os acontecimentos não fazem o quadro. Pequenas
operações, calculadas e preparadas antecipadamente, continuam distintas entre elas no
espaço e no tempo. Elas são ligadas pela unidade do objectivo e da concepção, mas de
forma nenhuma pela fusão da própria luta. As grandes massas não estão em acção. Não
há ponta de confrontaçao dramática com as tropas. Nada senão uma imaginação
educada segundo os factos da História liga ao conceito de uma insurreição.
O carácter geral da insurreição na capital dá mais tarde o motivo a Masaryk,
segundo vários outros, de escrever, "O levantamento de Outubro não foi de forma
nenhuma um movimento popular de massas. Foi a obra de líderes que trabalhavam do
alto, nos bastidores." Na realidade, foi o maior levantamento de massas da História. Os
operários não precisavam de sair na praça para fusionar: eles constituíam sem isso
politicamente e moralmente, um conjunto. Foi proibido aos soldados sair dos quartéis sem
autorização: em relação a isso, a ordem do Comité militar revolucionário coincidia com o
de Polkovnikov. Mas essas massas invisíveis marchavam mais que nunca ao mesmo
passo dos acontecimentos. As fábricas e as casernas não perdem um minuto a ligação
com os Estados-maiores de distrito, os distritos com Smolny. Os destacamentos de
guardas vermelhos se sentem apoiados pelas fábricas. As equipas de soldados, ao
voltarem para as casernas, encontram substitutos prontos. Tendo grandes reservas
apoiando-os, os contingentes revolucionários podiam marchar tendo confiança para
atingir seus objectivos. Em contrapartida, postos governamentais disseminados, vencidos
antecipadamente pelo seu próprio isolamento, renunciavam mesmo à ideia em opor
qualquer resistência. As classes burguesas esperavam barricadas, incêndios, cenas de
pilhagem, rios de sangue. Na realidade, reinava uma calma mais assustadora que todos
os trovões do mundo. Sem ruído movimentava-se o terreno social, como uma cena
giratória, levando as massas populares para a primeira fila e arrastando os mestres da
véspera num outro mundo.

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Desde das dez da manhã do dia 25, Smolny julgou possível difundir na capital e no
país um boletim de vitória: "O governo provisório foi deposto. O poder do Estado passou
para as mãos do Comité militar revolucionário." Num certo sentido, esta declaração
antecipava bastante. O governo existia ainda, pelo menos no território do palácio de
Inverno. O Grande Quartel General ainda existia. A província não se tinha pronunciado. O
Congresso dos sovietes ainda não tinha sido aberto. Mas os dirigentes da insurreição não
são historiadores: para preparar aos historiadores acontecimentos para contar, eles são
forçados de antecipar. Na capital, o Comité militar revolucionário já estava absolutamente
mestre da situação. Não poderia aí haver dúvida sobre a sanção do Congresso. A
província esperava a iniciativa de Petrogrado. Para se apoderar totalmente do poder, era
preciso começar a agir como um poder. No seu manifesto às organizações militares da
frente e da retaguarda, o Comité militar revolucionário convidava os soldados a vigiar a
conduta do comando, prender os oficiais que não aderiam à Revolução e não hesitar
diante do emprego da força no caso onde tentassem enviar sobre Petrogrado
contingentes hostis.
Chegado da frente na véspera, Stankevitch, principal comissário do Grande Quartel
General, para não ficar sem trabalho num reino da passividade e de estagnação,
empreendeu, pela manhã, à cabeça de uma meia companhia de junkers de engenharia,
tentar evacuar a central telefónica ocupada pelos bolcheviques. Os junkers, nesta
ocasião, tiveram pela primeira vez nas mãos a central. " Eis portanto os que, dir-se-ia, de
quem se pode aprender - exclamava, rangendo os dentes, o oficial Sinegub - e onde eles
encontram tal direcção?" Os marinheiros que ocupavam a central telefónica teriam
podido, sem dificuldades, exterminar os junkers disparando pelas janelas. Mas os
insurrectos esforçam-se por evitar uma efusão de sangue. Por seu lado, Stankevitch
ordenou severamente para não abrirem fogo: de outro modo, os junkers serão acusados
de ter tirado sobre o povo. O oficial que comanda lhe diz: "Mas, a partir do momento que
nós restabelecemos a ordem, quem poderá dizer uma palavra? " Ele termina as suas
reflexões exclamando:" Malditos comediantes! " É a forma caracterizando a atitude do
corpo de oficiais em relação ao governo. Pela sua própria iniciativa, Sinegub pede ao
palácio de Inverno granadas, e munições. Entretanto, o tenente monarquista inicia, diante
da grande porta da central, um debate político com um alferes bolchevique: como o herói
de Homero, eles fustigam-se entre eles de insultos antes do combate. Tomado entre dois
fogos, que são por momentos somente os da eloquência, as meninas do telefone
enervam-se. Os marinheiros mandam-as para casa. " O quê? Mulheres!..." Elas precipita-
se para fora lançando gritos histéricos". A rua Morskaia, deserta, conta Sinegub - foi de
repente matizada de fugitivos, de penduricalhos saltitantes e de chapeuzinhos". Os
marinheiros arranjaram-se para fazer bom uso dos aparelhos telefónicos. No pátio da
central logo apareceu um carro blindado montado por Vermelhos, que não fez qualquer
mal aos junkers assustados. Estes, pelo seu lado, apoderaram-se de dois camiões e
barricaram a porta da central. Do lado de Nevsky aparece um segundo blindado, depois
um terceiro. Tudo se reduziu a manobras e a tentativas recíprocas de intimidação. A luta
pela posse da central resolveu-se sem utilizar as granadas: Stankevitch levantou o cerco,
sob a condição de facilitar a livre passagem para os seus junkers.

727
As armas senão um sinal exterior de força: elas quase que não são utilizadas. A
caminho para o palácio de Inverno, a meia companhia de Stankevitch choca com um
destacamento de marinheiros prontos a disparar. Os adversários medem-se pelo olhar.
Nem um lado nem outro não tem vontade lutar: de um lado porque sentem a sua força,
pelo outro, porque se sente a fraqueza. Mas onde a ocasião se apresenta, os insurrectos,
sobretudo os operários, apressam-se a desarmar os inimigos. A segunda meia companhia
dos mesmos junkers de engenharia, cercados pelos guardas vermelhos e os soldados, é
desarmada por eles com a assistência dos carros blindados, e é feita prisioneira. Todavia,
ainda aí, não houve combate: os junkers não opuseram resistência. "Assim se termina -
segundo o testemunho do iniciador a única tentativa de resistência activa aos
bolcheviques que eu saiba." Stankevitch tinha em vista operações fora do raio do palácio
de Inverno.
Cerca do meio-dia, as ruas perto do palácio Maria, são ocupadas pelas tropas do
Comité militar revolucionário. Os membros do pré-parlamento tinham apenas iniciado a
sessão. O Buro tentou obter as últimas informações: houve uma brusca depressão
quando se soube que as comunicações telefónicas estavam cortadas. O conselho dos
decanos questionava-se como agir. Os deputados sussurravam nos cantos Avksentiev
consolava-os: Kerensky partiu para a frente, voltará em breve e arranjará isso tudo.
Diante da grande porta parou um carro blindado. Soldados dos regimentos lituanos e
Keksholmsky e marinheiros das tripulações da Guarda entraram no edifício, e alinharam-
se pela escadaria, ocuparam a primeira sala. O chefe do destacamento convidou os
deputados a abandonar imediatamente o palácio. " A impressão foi consternante" conta
Nabokov. Os membros do pré-parlamento decidiram separar-se, "interrompendo
provisoriamente a sua actividade". Contra a submissão à violência, houve quarenta e oito
votos de direita; estes sabiam que ficariam em minoria. Os deputados desciam
pacificamente a magnifica escadaria "entre duas alas de fuzis. Testemunhos oculares
afirmaram: "Não houve nada de dramático nisso". "Sempre as mesmas fisionomias
estúpidas, obtusas, más", escreveu o patriota liberal Nabokov, falando dos soldados e dos
marinheiros. Em baixo, à saída, os chefes dos destacamentos examinavam os papéis e
deixaram sair toda a gente." Esperava-se uma triagem dos membros do pré-parlamento e
a prisões - testemunha Miliokov que foi libertado entre os últimos - mas o Estado-maior
revolucionário tinha pouca experiência. A ordem dada dizia: prender, se for o caso, os
membros do governo. Mas não foi o caso. Os membros do governo foram libertos sem
dificuldades e, entre eles, os que se tornaram logo as organizações da guerra civil.
O pré-parlamento híbrido, cuja existência terminou doze horas antes do governo
provisório, tinha existido durante dezoito dias: o intervalo entre o momento onde os
bolcheviques saíram do palácio Maria na rua e a invasão desse palácio pela rua armada.
De todas as paródias de representação cuja História é tão rica, o Conselho da República
de Rússia foi talvez o mais extravagante.
Abandonando o nefasto edifício, o outubrista Chidlovsky foi rondar pela cidade para
observar os combates: esses senhores consideravam que o povo se levantaria em sua
defesa. Mas nenhuma escaramuça teve lugar. Em contrapartida, segundo Chidlovsky, o
público nas ruas - o público selecto da perspectiva Nevsky - ria à gargalhada. "Você

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ouviu: os bolcheviques tomaram o poder? Eles tê-lo-ão no máximo por três dias. Ah! Ah!
Ah!" decidiu de ficar na capital " durante o tempo que o rumor público atribuía ao reino dos
bolcheviques". Sabe-se que os três dias se prolongaram bastante tempo.
O público da Nevsky só à noite é que começou se apagar. Na manhã, o alarme foi
tão grande que, nos bairros burgueses, pouca gente ousava mostrar-se na rua. Às nove
horas da manhã, o jornalista Knijnik correu procurar os seus jornais na perspectiva
Kamenno-Ostrovsky, mas não encontrou nenhum ardina. Num pequeno ajuntamento de
gente comum, contava-se que durante a noite, os bolcheviques tinham ocupado os
telefones, os telégrafos e o Banco. Uma patrulha de soldados escutou e pediu às pessoas
para não fazerem barulho. " Mas mesmo sem isso, todos estavam extraordinariamente
calmos." Destacamentos de operários armados desfilaram. Os tróleis circulavam como
habitualmente, isto é, lentamente. "Sentia-me confuso ao constatar a raridade de
transeuntes" - escreveu Knijnik sobre a Nevsky. Serviam nos restaurantes, mas, de
preferência, nas salas da retaguarda. Ao meio-dia, o canhão que anunciou a hora soando
nem mais nem menos como habitualmente do alto da muralha da fortaleza Pedro-e-
Paulo, solidamente ocupada pelos bolcheviques. Os muros e as paliçadas estavam
cobertos de aviso à população contra todas as manifestações. Mas já apareciam outros
cartazes anunciando a vitória da insurreição. Não havia tido tempo mesmo para colar e os
automobilistas os distribuíam. As folhas, apenas saídas da tipografia, cheiravam a tinta
fresca como os próprios acontecimentos.
Destacamentos da Guarda vermelha saíram dos seus distritos. O operário com a sua
espingarda, a baioneta acima do seu boné, o cinturão sobre o seu fato de civil, esta
imagem é inseparável da data do 25 de Outubro. É com circunspecção e ainda inseguro
que o operário metia em ordem a capital que ele tinha conquistado por sua própria conta.
A calma nas ruas tranquilizava os corações. Os habitantes começaram a sair à rua.
Pela noite, entre eles, observava-se menos a inquietude que durante os dias precedentes.
Na verdade, nos estabelecimentos governamentais e nos serviços públicos, o trabalho
tinha parado. Mas numerosas lojas continuavam abertas; certas fechavam, mas mais por
prudência que por necessidade. A insurreição? É assim quem? É simplesmente a guarda
de Fevereiro que é substituída pela de Outubro.
À noite, a Nevsky estava mais que nunca cheia de público que indicava aos
bolcheviques três dias de existência. Os soldados do regimento Pavlovsky, mesmo se os
seus redutos estivessem fortificados por carros blindados e mesmo por um canhão
antiaéreo, já não inspiravam qualquer temor. Na verdade que alguma coisa séria se passa
à volta do palácio de Inverno e que não há acesso a esse lado. Mas, mesmo assim, a
insurreição não pode estar toda concentrada na praça do Palácio. Um jornalista
americano apercebeu-se de idosos, vestidos com opulentas peles, que tentavam
ameaçavam com o punho os soldados do regimento Pavlovsky, e mulheres elegantes que
lhes lançavam injurias. "Os soldados respondiam fracamente com risos confusos". Eles
sentiam-se evidentemente perdidos na luxuosa perspectiva Nevsky que devia mais tarde
chamar-se a "perspectiva 25 de Outubro".

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Claude Anet, oficioso jornalista francês em Petrogrado, admirava-se sinceramente:
esses russos incoerentes fazem uma Revolução diferente daquelas que se contam nos
velhos livros. "A cidade está calma!" Anet informava-se pelo telefone, recebe visitas, sai
de casa. Os soldados que lhe cortam a passagem sobre a Moika marcham de forma
ordeira, " como sob o antigo regime". Sobre a Millienaia, numerosas patrulhas. Nem um
só tiro. A imensa praça do palácio de Inverno, nesta hora do meio-dia, ainda está quase
deserta. Patrulhas na Morskaia e a Nevsky. Os soldados são ordeiros, fardados a rigor.
No primeiro golpe de vista, parece que são tropas do governo. Na praça do palácio Maria,
por onde Anet pensava penetrar no pré-parlamento, ele foi preso por soldados e
marinheiros, "na verdade muito simpáticos". Duas ruas dando sobre o Palácio são
barricadas por automóveis e carroças. Também ocupa esse lugar carros blindados. Tudo
isso às ordens de Smolny. O Comité militar revolucionário enviou em toda a cidade
patrulhas, colocou postos de guarda, dissolveu o pré-parlamento, é o mestre da capital e
aí estabeleceu uma ordem "que nunca se tinha visto desde do início da Revolução". À
noite, a porteira vem dizer aos inquilinos franceses que o Estado-maior dos sovietes
comunicou os números de telefone que podem servir, a qualquer hora, para pedir socorro
à força armada em caso de ataque ou de busca duvidosa. "Na verdade, nós nunca fomos
tão bem guardados."
Às 2h 35 da tarde - os jornalistas estrangeiros olhavam seus relógios, os russos não
tinham tempo - a sessão extraordinária do Soviete de Petrogrado foi aberta por um
relatório de Trotsky que, em nome do Comité militar revolucionário, declarou que o
governo provisório já não existia. "Tinham nos dito que a insurreição afogaria a Revolução
em poças de sangue ... Nos não conhecemos um só vítima." Nós não temos exemplo na
história de um movimento revolucionário ao qual se teriam misturado tantas massas e que
teria sido pouco sangrento. "O palácio de Inverno ainda não foi tomado, mas a sua sorte
será resolvida em alguns momentos". As doze horas que seguirão mostrarão que esta
predição era demasiado optimista.
Trotsky comunica: da frente mandaram tropas contra Petrogrado; é indispensável
enviar imediatamente comissários do Soviete para a frente e em todo o país para informar
sobre a insurreição realizada.
Da direita pouco numerosa partem exclamações: "Vocês antecipam sobre a vontade
do Congresso dos sovietes. "O relator responde: "A vontade do Congresso é determinada
previamente pelo facto formidável do levantamento dos operários e dos soldados de
Petrogrado. Agora só nos resta estender a nossa vitória".
Lénine, que aparecia aí pela primeira vez em público desde que saiu do seu
esconderijo, traçou brevemente o programa da Revolução: quebrar o antigo aparelho de
Estado; criar um novo sistema de governo por meio dos sovietes; tomar medidas para
terminar imediatamente a guerra, apoiando-se sobre o movimento revolucionário nos
outros países; abolir a propriedade dos nobres e conquistar assim a confiança dos
camponeses; instituir o controlo operários sobre a produção." A terceira Revolução russa
deve, finalmente, levar à vitória do socialismo."

730
A Tomada do Palácio de Inverno
Kerensky acolheu Stankevtch, chegando da frente com relatórios, num estado de
exaltação: ele tinha acabado de deixar o Conselho da República, onde ele tinha
denunciado definitivamente a insurreição dos bolcheviques. - Uma insurreição? - Mas
como, vocês não sabem que temos cá uma insurreição armada? Stankevitch começou a
rir: então, as ruas estão absolutamente calmas; e assim que se apresenta uma verdadeira
insurreição? - Mas é preciso acabar com esses perpétuos tremores. Sobre isso, Kerensky
esta completamente de acordo: ele somente espera a resolução do pré-parlamento.
As nove horas da noite, o governo reuniu-se na sala dos Malachites do palácio de
Inverno para elaborar os meios de uma "liquidação resoluta e definitiva" dos bolcheviques.
Enviado ao palácio Maria para precipitar o assunto, Stankevitch deu a conhecer com
indignação que uma formula de confiança mitigada acabava de ser votada. Mesmo a luta
contra a insurreição, segundo a resolução do pré-parlamento, devia ser confiada não ao
governo mas a um comité especial de salvação publica. Kerensky, com o seu primeiro
movimento, declarou que, nessas condições, "não ficaria um só minuto a cabeça do
governo". Os líderes conciliadores foram imediatamente chamados por telefone ao
palácio. A possibilidade da demissão de Kerensky deixou-os estupefactos ainda mais que
Kerensky ficou estupefacto da resolução que eles tomaram. Avksentiev procurava
justificar-se: eles consideravam em suma a resolução como "puramente teórica e fortuita,
e não pensavam que ela pudesse levar a efeitos práticos". Sim, ele viam agora por eles
próprios que a resolução, "talvez, não fosse completamente bem redigida". Essa gente
não perdiam uma ocasião de mostrar o que valiam.
A entrevista nocturna dos líderes democratas com o chefe do Estado parece
completamente inverosímil sobre o fundo da insurreição que se desenvolve. Dan, um dos
principais coveiros do regime de Fevereiro, exigia que o governo, imediatamente, na
noite, mandasse colar na cidade cartazes anunciando que ele tinha proposto aos Aliados
de começar conversações de paz. Kerensky respondia que o governo não precisava de
tais conselhos. Pode-se acreditar que o governo tivesse preferido uma boa e solida
decisão. Mas Dan não estava em condições de a oferecer. Kerensky esforçava-se, bem
entendido, em rejeitar a responsabilidade da insurreição sobre os seus interlocutores. Dan
respondia que o governo exagerava os acontecimentos sob a influencia do seu "Estado
maior reaccionário". Não havia nenhuma necessidade de se demitir: a resolução
desagradável era necessária para mudar o estado de espírito das massas. Os
bolcheviques, "a partir de amanhã" serão forçados a dissolver o seu Estado-maior se o
governo toma as sugestões de Dan. "No mesmo momento - explica Kerensky com uma
ironia legítima - a Guarda vermelha ocupava um após outro os edifícios governamentais."
A explicação tão rica de conteúdo com os amigos de esquerda ainda não estava
terminada quando Kerensky, na pessoa de uma delegação do Soviete das tropas
cossacas aquarteladas em Petrogrado e propunham a Kerensky condições
diametralmente opostas as de Dan: não fazer concessões aos sovietes, a repressão
contra os bolcheviques deve ser desta vez levada até ao fim, não como em Julho, onde

731
cossacos foram inutilmente vítimas. Kerensky que, ele próprio, não desejava outra coisa,
prometeu tudo o que queriam dele e desculpou-se diante dos seus interlocutores de não
ter ainda ter preso Trotsky, como presidente do Soviete de Petrogrado. Os delegados
deixaram-no assegurando-o que os cossacos cumpririam o seu dever. Imediatamente,
enviaram do Estado-maior uma ordem aos regimentos cossacos:"Em nome da liberdade,
da honra e da gloria da terra mãe, marchai com a ajuda do Comité executivo central, e
forcado em todas as ocasiões de se dissimular vergonhosamente por detrás daquele no
momento de perigo. Ordens suplicantes são expedidas igualmente as escolas de junkers,
em Petrogrado e nos arredores. Aos caminhos de ferro, esta recomendação: "Os
escalões de tropas vindo da frente sobre Petrogrado serão dirigidas sem demoras e por
necessidade, suspender-se-á o movimento dos combóis de passageiros."
Depois que o governo, tendo realizado tudo o que estava nas suas possibilidades,
foi separado entre uma e duas horas da manha, nãos restava no palácio , com Kerensky,
que o seu adjunto, Konovalov, comerciante liberal de Moscovo. O comandante da região,
Polkovnikov, veio propor-lhe organizar imediatamente, com a ajuda de tropas fieis, uma
expedição para a tomada de Smolny. Kerensky, sem hesitar, adoptou esse plano
maravilhoso. Mas, segundo as afirmações do chefe da região, não se compreendia sobre
quais forças ele contava apoiar-se. Foi então somente que Kerensky, como afirmou ele
próprio, viu que os relatórios de Polkovnikov, afirmando depois dez ou doze dias que ele
estava completamente pronto a iniciar a luta contra os bolcheviques, "não estavam
completamente baseados em nada". Como se na realidade, para apreciar a situação
política e militar, Kerensky não tinha tido outras fontes senão os relatórios do escritório de
um medíocre coronel colocado a cabeça da região não se sabia muito bem porque.
Enquanto que o chefe do governo se entregava a reflexões melancólicas, o comissário do
gradonatchalsto (prefeitura da policia da cidade), Rogovsky, trouxe uma serie de
informações: vários navio da frota do Baltico, preparados para o combate, entraram no
Neva; alguns entre ele subiram o rio até a ponte Nicolas que cortaram , os destacamentos
de insurrectos avançam para o ponto do palácio. Rogovsky chama particularmente
atenção de Kerensky sobre esse facto que os "bolchevique realizavam todo o seu plano
em perfeita ordem, não encontrando qualquer resistência do lado das tropas
governamentais. Quais eram as tropas que convinha considerar como 'governamentais"?
A conversação, de qualquer modo, não indica claramente.
Kerensky e Konovalov saíram do palácio, precipitadamente, para alcançar o Estado-
maior: "Não ha nem um minuto a perder." O imponente edifício vermelho do Estado-maior
viu-se cheio de oficiais. Eles vinham não para assuntos sobre as suas tropas, mas para
se esconderem delas. "Entre esta multidão de militares rondavam por todos os lados civis
que ninguém conhecia". Um novo relatório de Polkovnikov convenceu definitivamente
Kerensky da impossibilidade de contar sobre o comandante da região e sobre esses
oficiais. O chefe do governo decide de agrupar pessoalmente a volta dele "todos os que
são fieis ao seu dever". Lembrando-se que ele e um homem de partido - foi assim que
certos, nas horas de agonia, se lembram da Igreja - Kerensky pede por telefone que lhe
enviem imediatamente companhias de combate socialistas-revolucionários. Antes mesmo,
todavia, que esta chamada inesperada aos forças armadas do partido socialista-

732
revolucionário pudesse - se o podia verdadeiramente - dar resultados, era preciso,
segundo os termos de Miliokov, "afastar de Kerensky todos os elementos mais a direita
que, já, o consideravam com animosidade". O isolamento de Kerensky, que se tinha já
suficientemente manifestado durante as jornadas do levantamento de Kornilov, tomava
agora um carácter ainda mais fatal. "As longas horas desta noite se prolongavam
dolorosamente", diz Kerensky, retomando uma frase pronunciada em Agosto.
Os reforços não chegavam de lado nenhum. Os cossacos tinham sessões, os
representantes dos regimentos dizia que, na realidade, poder-se-ia marchar - porque
não? - mas para isso era preciso metralhadoras, carros blindados, e a infantaria que não
havia. Em resposta, foi dito que os regimentos iam brevemente discutir todas essas
questões e "começariam a selar os cavalos". As forças de combate dos socialistas-
revolucionários não davam sinal de vida. Existiam ainda? Os oficiais que se tinham
reunido no Estado-maior tomavam em relação ao generalíssimo e chefe do governo uma
atitude cada vez mais provocante. Kerensky afirma mesmo que, entre os oficiais, fala-se
da necessidade em meter na prisão. O edifício do Estado-maior, não era, como antes,
guardado por ninguém. As conversações oficiais eram levadas na presença de terceiros e
entremeadas de afirmações veementes. Um sentimento de prostração e de
decomposição infiltrava-se, vindo do Estado-maior, no palácio de Inverno. Os junkers
enervavam-se, a equipa dos carros blindados agitavam-se. De baixo nenhum apoio, do
aloto os cérebros estão avariados. Nessas condições, pode-se escapar a sua perdição?
As cinco horas da manha, Kerensky chama o Estado-maior o director do ministério
da Guerra. Perto da ponte Troistky, o general Manikovsky foi preso pelas patrulhas,
enviado ao quartel do regimento Pavlovsky, mas, ai, libertado depois de breves
explicações: o general, deve-se pensar, tinha demonstrado que a sua prisão podia demolir
todo o mecanismo administrativo e ocasionar problemas para os soldados na frente.
Pouco mais ou menos a mesma hora foi preso, diante do palácio de Inverno, o automóvel
de Stankevitch, e note-se que o comité do regimento o liberta também. "Eram insurrectos
- conta o detido - que portanto agiam com pouca segurança. Da minha casa, telefonei,
sobre o incidente no palácio de Inverno, mas recebi a resposta tranquilizante que tinha
havido um mal-entendido." De facto, o mal-entendido consistia nisto que tinham libertado
Stankevitch: algumas horas mais tarde ele tentava, como já sabe o leitor, de retirar aos
bolcheviques a central telefónica.
Kerensky reclamava do Grande Quartel General de Mohilev e do Estado-maior da
frente Norte instalado em Pskov o envio imediato de regimentos fiéis. Do Grande Quartel
General, Dokhonine assegurava por telefone que todas as medidas tinham sido tomadas
para fazer marchar as tropas sobre Petrogrado e certos contigentes não chegavam. Os
cossacos ainda estavam a "selar os cavalos". A situação na cidade piorava de hora em
hora. Quando Kerensky e Konovalov regressaram ao palácio para respirar um pouco, um
estafeta trouxe uma notícia urgente: as comunicações telefónicas do palácio estavam
cortadas. A ponte do palácio, debaixo das janelas de Kerensky, estava ocupada por
piquetes de marinheiros. A praça, diante do palácio de Inverno, continuava sempre
deserta; "não havia sombra de cossaco". Kerensky parte a pressa para o Estado-maior.
Mas, também ai, as notícias não eram reconfortantes. Os junkers receberam dos

733
bolcheviques o ultimato de abandonar o palácio e eles estão muito agitados. Os carros
blindados já não estão em situação de funcionar, descobriram de forma intempestiva "a
perca" de peças essenciais. E ainda não tem ainda a informação sobre os escalões que
devem vir da frente. A volta do palácio e do Estado-maior não há guardas: se os
bolcheviques, até ao momento presente, não surgiram, e simplesmente porque eles estão
mal informados. O edifício que, na noite, tinha estado cheia de oficiais, esvaziava-se
rapidamente: era um salvem-se quem puder. Surgiu uma delegação de junkers: eles
estão prontos a cumprir o seu dever até ao fim" se ainda resta a esperança de receber
reforços". Mas eram justamente os reforços que faltavam.
Kerensky convocou de urgência os ministros para o Estado-maior. A maior parte
deles não tinham automóvel: esses meios importantes de comunicação, que dão um novo
ritmo a insurreição moderna, tinham sido ou confiscados pelos bolcheviques, ou
colocados fora do alcance dos ministros pelos insurrectos. Primeiro só chegou Kichkine,
que se juntou mais tarde a Maliantovitch. Que poderia compreender o chefe do governo?
Ir imediatamente ao encontro dos escalões para lhe fazer passar todos os obstáculos:
ninguém pode propor outra coisa.
Kerensky ordena que lhe tragam "esse maravilhoso automóvel de estrada
descapotável". Mas aqui, no seguimento dos factos, introduziu-se um novo factor, sob o
aspecto da insolúvel solidariedade que liga os governos aliados no sucesso como nas
derrotas. "Não sei como a notícia da minha partida foi conhecida pelos embaixadores
aliados." Os representantes do Reino Unido e dos Estados-Unidos exprimiram
imediatamente o voto que o chefe do governo que fugia da capital "tivesse no seu
automóvel a bandeira americana". O próprio Kerensky considerava esta proposição como
inútil e mesmo incomoda, mas aceitou-a como a expressão da solidariedade dos aliados.
O embaixador dos Estados-Unidos, David Francis, deu outra versão que se parece
menos a um conto de Natal. Por detrás do automóvel americano teria, ao que parece,
seguido até a embaixada um automóvel conduzido por um oficial russo que pediu para
ceder a Kerensky a viatura diplomática para que ele fosse até a frente. Após terem sido
consultados, os funcionários da embaixada chegaram a conclusão que, do momento que
o automóvel já estava "sequestrado" de facto - e não era verdade de forma nenhuma - só
lhe restava submeter-se a forca. O oficial russo, apesar, do dito, os protestos dos
senhores diplomatas, teria recusado de retirar a bandeira americana. E não e de
espantar: ela assegurava a imunidade ao carro. Francis aprovou a conduta dos
funcionários da embaixada, mas disse-lhe 'de não falar disso a ninguém".
Ao confrontar duas testemunhas que, com inclinações diferentes, cruzando-se sobre
a linha da verdade, o quadro torna-se bastante claro: não só os aliados, bem entendido,
que impuseram o carro a Kerensky, foi ele próprio que o pediu; mas, como os diplomatas
deviam pagar tributo a hipocrisia da não-intervenção nos assuntos interiores, foi
combinado que o automóvel tinha sido "sequestrado", e que a embaixada 'tinha
protestado" contra um emprego abusivo da bandeira. Quando o assunto delicado foi
combinado, Kerensky tomou lugar no seu próprio carro; a viatura americana parti logo
atrás, como reserva. Inútil dizer - conta mais tarde Kerensky - "toda rua, os transeuntes e

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os soldados, reconheceram-me logo. Saudei-os como sempre, com uma certa apatia e
sorrindo ligeiramente". Imagem incomparável: com indiferença e sorrindo, o regime de
Fevereiro abalava assim no reino das sombras. Nas portas da cidade, havia por todo o
lado corpos de guarda e patrulhas de operários armados. Vendo os automobilistas
lançados a grande velocidade, os guardas vermelhos precipitaram-se sobre a calçada,
mas não se decidiram a disparar. Em geral, evitava-se ainda de disparar. Talvez também
a bandeira americana fizesse efeito. Os automóveis seguiam sem problemas.
"Então, em Petrogrado, não há tropas prontas em defender o governo provisório?
Perguntava com estupefacção Maliantovitch, que tinha vivido até a esse momento sob o
império das eternas verdades jurídicas. - Não sei. Kotovalov levantou os braços para o
céu. - Vai mal, acrescentou. - E quais são as tropas que vem? Perguntou insidiosamente
Maliantovitch? - Parece-me, um batalhão de motociclistas. "Os ministros suspiravam. Em
Petrogrado e nas redondezas contavam cerca de duzentos mil soldados. Vão mal, os
assuntos do regime, se o chefe do governo é obrigado a fugir a toda a velocidade, ao
encontro de um batalhão de motociclistas, com uma bandeira americana nas costas!
Os ministros teriam suspirado do fundo do coração se soubessem que o terceiro
batalhão de motociclistas, enviados da frente, tinha parado ele próprio na estação
Peredolskaiae tinha perguntado por telegrama ao Soviete de Petrogrado com qual
objectivo precisamente chamavam. O Comité militar revolucionário enviou ao batalhão as
suas saudações fraternais e convidou a enviar imediatamente representantes. As
autoridades procuravam mas não encontravam os motociclistas cujos delegados tinham
chegado, no mesmo dia, a Smolny.
Contavam, segundo os cálculos prévio, ocupar o palácio de Inverno na noite do 24 a
25, ao mesmo tempo que todos os outros posto de comando da capital. Desde do 23
tinha sido fora, pela direcção da tomada do palácio, um triumviriato cujás principas figuras
eram Podvoisky e Antonov. Um oficial de engenharia, Sadovsky, foi o terceiro, mas
abandonou logo, estado ocupado pelos assuntos da guarnição. Foi substituído pelo
Tchodnovsky, que tinha chegado com Trotsky dum campo de concentração no Canada, e
tinha passado como soldado, três meses na frente. A participacao a mais directa nas
operacoes foi assumida por Lachevitch, veho bolchevique que tinha atingido o grau de
sargento. Três anos mais tarde, Sadovsky lembrava-se como no seu pequeno quarto, em
Smolny Podvoisky e Tchodnovsky discutiam furiosamente sobre o mapa de Petrogrado
sobre o melhor meio de acção contra o palácio. Finalmente, foi decidido de rodear o
perímetro do palácio de Inverno com uma solida linha elíptica cujo principal eixo seria a
margem do Neva. Do lado do rio, o cerco devia ser fechado pela fortaleza Pedro-e-Paulo,
pelo Aurora e por outros vasos chamados de Cronstadt e da frota de guerra em acção.
Para prevenir ou paralisar tentativas dos cossacos ou dos junkers pela retaguarda,
decidiu-se colocar imponentes forças de cobertura, compostas de destacamentos
revolucionários.
O plano, no seu conjunto, era demasiado sobrecarregado e complicado para o fim
para o qual devia responder. O prazo fixado para os preparativos mostrou-se insuficiente.
Pequenos desvios e maus cálculos manifestaram-se, como hábito, a cada passo, aqui, a

735
direcção indicada e inexacta; ali, o dirigente atrasou-se, tendo mal decifrado as
instruções; noutro lado, esperava-se a salvação de um carro blindado. Fazer sair os
contingentes da tropa, os combinar com os guardas vermelhos, ocupar os sectores de
combate, assegurar a ligação entre eles e com o Estado-maior para tudo isso era preciso
muito mais tempo que não tinham imaginado os militares que discutiam sobre a carta de
Petrogrado.
Quando o Comité militar revolucionário declarou, cerca das 10 horas da manha, que
o governo tinha caído, a extensão do atraso ainda não era claro, mesmo para os
dirigentes imediatos da operação. Podavoisky tinha prometido a queda do palácio de
Inverno "o mais tardar para o meio-dia". Até a esse momento, na linha das operações
militares, tudo ia tão bem que ninguém tinha motivos em duvidar deste prazo. Mas, pelo
meio-dia, aconteceu que as posições dos cercados ainda não tinham sido ocupadas
completamente, quando os homens de Cronstadt ainda não tinham chegado e, entretanto,
a defesa do palácio reforçada. A perca de tempo, como acontece quase sempre, tornava
necessário novas esperas. Sob a forte pressão do Comité, a tomada do palácio foi fixada
para as 3 horas e, desta vez, "definitivamente", se baseando sobre a nova hora fixada, o
relator do Comité militar revolucionário exprimiu, na sua sessão matinal do Soviete, a
esperança que a queda do palácio de Inverno teria lugar nos próximos minutos. Mas a
hora passou e ainda não havia solução. Podvoisky que, ele próprio, queimava no
braseiro, assegurou por um telefonema que as 6 horas o palácio seria tomado, custasse o
que custasse. A primeira convicção, portanto, já não existia. E, com efeito, seis horas
bateram , mas a conclusão não chegava. Exasperadas pelas admoestações de Smolny,
Podvosky e Antonov recusaram-se a fixar a partir de então qualquer prazo, isso causa
uma certa inquietação. Do ponto de vista político considerava-se indispensável que no
momento de abertura do Congresso dos sovietes toda a capital se encontrasse entre as
mãos do Comité militar revolucionário: isso deveria simplificar a tarefa em relação a
oposição no Congresso colocando-a diante do caso consumado. Todavia, a hora marcada
para abertura do Congresso fora adiada e o palácio de Inverno resistia ainda. O cerco do
palácio, arrastando-se, tornou-se, por uma dúzia de horas pelo menos, o problema capital
da insurreição.
O grande Estado-maior das operações continuava em Smolny, onde os fios estavam
entre as mãos de Lachevitch. O Estado-maior de campanha encontrava-se na fortaleza
Pedro-e-Paulo, onde o responsável era Blagonravov. Contava três estados-maiores
subornados: um sobre o Aurora, outro nas casernas do regimento Pavlovsky, o terceiro
nos quartéis das tripulações da frota. No campo de acção, os dirigentes eram Podvoisky e
Antonov que, aparentemente, não tinham uma noção clara de subordinação reciproca.
Nas instalações do grande Estado-maior, havia também três homens debruçados
sobre o mapa: o coronel Polkovnikov, comandante da região, o general Bagrotoni, chefe
do Estado-maior, e o general Alexeiev, que tinha sido convidado à Conferencia como a
mais alta autoridade. Apesar da qualidade da direcção, os planos da defesa eram
infinitamente menos claros que dos insurrectos. Os marechais sem experiência de
insurreição não sabiam, na verdade, concentrar rapidamente suas tropas e dar o
necessário golpe no momento oportuno. Mas as tropas estavam lá. Os marechais da

736
defesa, no lugar de tropas, tinham vagas esperanças: talvez os cossacos se decidissem;
talvez se encontraria fiéis contingentes nas guarnições vizinhas; talvez Kerensky traria
tropas da frente. O estado de espírito de Polkovnikov revelou-se no telegrama que enviou
durante a noite ao Grande Quartel General: ele considerava o jogo perdido. Alexeiev,
ainda menos inclinado a optimismos, logo abandonou o navio a afundar-se
Os delegados as escolas de junkers foram chamados a contactarem com o Estado-
maior onde tentaram de levantar-lhes a moral em assegurando-os que muito brevemente
tropas chegaria de Gatchina, de Tsarkoie-Selo e da frente. Não se acreditava nada
todavia nessas promessas confusas. Nas escolas militares se propagavam rumores
desencorajantes: "O pânico reina no Estado-maior, ninguém fala de nada." E estava bem
assim. Oficiais cossacos que vieram ao Estado-maior, propondo apoderar-se dos carros
blindados que estavam estacionados no manege Mikhailovsky, encontraram Polkovnikov
sentado sobre o rebordo uma janela, num estado de completa prostração. Ocupar o
manege? " Ocupai-o, eu não tenho ninguém, nada posso fazer sozinho."
Enquanto que tinha lugar uma mobilização preguiçosa das escolas para a defesa do
palácio de Inverno, os ministros chegavam de automóvel para uma sessão. A praça diante
do palácio e as ruas adjacentes não estavam ainda ocupadas pelos insurrectos. Na
esquina de Morskais e da Nevsky, soldados armados paravam os automobilistas que
passavam e faziam descer os ocupantes. A multidão perguntava se os soldados obedecia
ao governo ou ao Comité militar revolucionário. Os ministros tinham, desta vez, todas as
vantagens da sua impopularidade: ninguém se interessava neles, talvez ninguém os
reconhecia na rua. Todos chegavam, com a excepção de Prokopovitch, que foi por acaso
preso na sua carroça, mas por outro lado posto em liberdade no decorrer do dia.
No palácio, ainda estavam os velhos servidores que tinham bem visto as coisas, que
se não espantavam de mais nada, mas que nunca se recompuseram do susto. Com
Estilo, vestidos de azul com colarinho vermelho, galões de ouro, esses restos do velho
tempo mantinha no sumptuoso edifício uma atmosfera de ordem e solidez. Nessa manha
de desassossego, eles eram talvez, os únicos a dar ainda aos ministros a ilusão do poder.
Não foi antes das onze horas que o governo decidiu enfim meter a cabeça da defesa
de um dos seus membros. O general Manikivsky, ainda na madrugada, tinha afastado a
tarefa honrosa que lhe oferecia Kerensky. Outro militar fazendo parte do governo, o
almirante Verderevsky, estava num estado de espírito ainda menos belicoso. Foi um civil
que teve que se colocar a cabeça da defesa: Kichdine, ministro da Assistência pública; a
sua nomeação e assinada por todos, sob a forma de um rescrito ao Senado: essa gente
achava ainda tempo de jogar com brinquedos burocráticos. Em contrapartida, ninguém
não pensava ao facto que Kichkine, como membro do partido cadete era duplamente
odiado pelos soldados, tanto na retaguarda como na frente. Kichkine, por outro lado,
escolheu como ajudantes Paltchinsky e Rutenberg. Mandatário dos industriais e
protectores das coligações patronais, Paltchinsky era alvo do ódio dos operários. O
engenheiro Rutenberg era o ajudante de Savinkov que mesmo o universal dos partidos
socialistas-revolucionários tinha excluído do seu seio, como partidário de Kornilov. Sob
desconfiança de traição, Polkovnikov fui destituído. No seu lugar foi nomeado o general

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Bagrotoni, que não se distinguia em nada dele. Se bem que para a cidade as
comunicações telefónicas do palácio de Inverno e do Estado-maior fossem cortadas, o
palácio continuava em ligação com os mais importantes instituições par telefone especial,
em particular com o ministério da Guerra, donde partia a comunicação directa com o
Grande Quartel General . verosimilmente, na pressa, certos aparelhos na cidade não
tinham sido isolados. do ponto de vista militar, a ligação telefónica não reservava todavia
nada ao governo e, do lado moral, estragava sobretudo a situação, porque ela arruinava
as ilusões.
Os dirigentes da defesa, logo pela manha, reclamavam reforços da praça,
esperando os da frente. Houve na cidade alguns indivíduos para tentar ajudar. O doutor
Feit, membro do Comité central do partido socialista-revolucionário, que participou de
muito perto neste assunto, expôs, alguns anos mais tarde, no decurso de um processo, "a
espantosa, fulgurante modificação do estado de espírito nos contigentes militares". Fontes
mais seguras, afirmava-se que tal ou tal regimento estava pronto a tomar a defesa do
governo, mas bastou dirigir-se, por telefone, para que todo o efectivo, um após o outro,
recusasse de marchar. " O resultado você conhece-o - dizia o velho populista - ninguém
marchou e o palácio de Inverno foi tomado." Na realidade, não tinha havido nada de
fulgurante nas modificações do estado de espírito da guarnição. Mas o que subsistia das
ilusões nos partidos governamentais caiu de maneira estrondosa.
Os carros blindados sobre os quais contavam particularmente no palácio de Inverno
e no Estado-maior tinham-se dividido em dois grupos: o dos bolcheviques e o dos
pacifistas; do lado do governo não se encontrou nem um só. A caminho do palácio de
Inverno, uma meia companhia de junkers de engenharia, tomada pela esperança e
apreensão, caiu sobre dois carros blindados: amigos ou inimigos? Acontece que esses
últimos mantinham-se neutros e tinham saído com o objectivo de se opor ao confronto
entre adversários. Sobre seis carros de combate que se encontravam no palácio de
Inverno, só um continuou a guardar os bens e valores do palácio; os outros partiram. A
medida que se asseguravam os sucessos da insurreição, o número dos carros blindados
bolchevistas crescia, o exército dos neutros diminuía: tal é, em geral, a sorte do pacifismo
nas lutas sérias.
Meio-dia aproximava-se. A imensa praça diante do palácio de Inverno continua ainda
deserta. O governo não tem ninguém para a encher. As tropas do Comité não a ocupam,
estando absorvidas pela execução de um programa muito complicado. Sobre o conjunto
continuam a se reunir as tropas, os destacamentos operários, os carros blindados. Nos
arredores do palácio começa a parecer a um lugar pestilento cuja periferia é encerrada,
tão longe como possível do próprio foco do contágio
O pátio do palácio de Inverno, que dá sobre a praça está ocupada por montes de
lenha, tal como o pátio de Smolny. Da esquerda a direita, notam-se as silhueta de
canhões de 75. Em certos lugares, as espingardas são colocadas em fachos. A guarda
pouco numerosa do palácio encosta-se ao edifício. No pátio e no rez-do-chão estão
situadas duas escolas de tenentes de Oranienbaum e de Peterhof, aliás longe de estar

738
completas, assim que uma bateria da escola de artilharia Constantino, com seis peças de
canhão.
A tarde chega um batalhão de junkers de engenharia que encontrou meio de perder
a metade de uma companhia pelo caminho. O quadro que se apresentava no lugar não
podia de forma nenhuma revelar a combatividade dos junkers, a qual, segundo o
testemunho de Stankevitch, era insuficiente logo de inicio. No palácio constatou-se a
penúria de abastecimento: não se preocupavam com esta questão no momento oportuno.
Um camião carregado de pão foi interceptado pelas patrulhas do Comité. Uma parte dos
junkers estavam de guarda, os outros aborreciam-se na inactividade. A incerteza, a
fome ...nenhuma direcção se fazia sentir. No lugar, diante do palácio e do lado do cais,
apareceram pequenos grupos de transeuntes, de aparência pacífica, que, a medida que
caminhavam iam arrancando as espingardas aos sentinelas sob ameaça de revolver.
Entre os junkers se descobriram "agitadores". Tinham penetrado vindo de fora? Não,
são evidentemente agitadores do interior. Eles conseguiram provocar a fermentação entre
os alunos oficiais de Orenienbaum e de Peterhof. Os Comités dessas escolas
organizaram na sala Branca uma reunião e reclamaram um representante do governo
para explicações. Todos os ministros chegaram. Konovalov a cabeça. As conversações
duraram uma hora. Konovalov foi interrompido e acabou por se calar. O ministro da
Agricultura, Maslov, falava na qualidade de velho revolucionário. Kichkine explicava ao
junkers que o governo tinha decidido de aguentar até a ultima possibilidade. Um dos
junkers tentou, segundo um testemunho de Stankevicht, exprimir a resolução de morrer
pelo governo, mas "a frieza evidente dos camaradas parou-o no seu fervor". Os discursos
dos outros ministros provocaram desde logo uma verdadeira irritação; os junkers
cortavam-lhes a palavra, gritavam e teriam mesmo vaiado. O sangue azul explicava o
comportamento da maioria dos junkers pelas sua baixas origens sociais: "Tudo isso vem
da charrua, são quase analfabetos, bestas ignorantes ...labregos."
O comício no palácio cercado terminou contudo por um tom conciliador: os junkers
consentiram em ficar quando lhes prometeram uma direcção activa e informações exactas
sobre os acontecimentos. O director da escola de Engenharia, nomeado comandante da
defesa, rabiscou a lápis sobre um plano do palácio, inscrevendo os nomes dos
contingentes designados. As forças que dispõem são repartidas por sectores. A maior
parte dos junkers foi colocada no rés-do-chão com a missão de tirar sobre a praça através
das janelas. Mas proibiram-lhes de serem os primeiros a abrir fogo. O batalhão da escola
de Engenharia e conduzida ao pátio para cobrir a artilharia. Esquadras são formadas para
os trabalhos de barricadas. Criaram uma equipa de ligação, contando quatro homens de
cada contingente. A bateria de artilharia é encarregada de defender a porta principal em
caso de avanço. No pátio e diante desta porta, retiraram, para a defesa, fortificações
feitas com a lenha. Um faz de conta de ordem estabeleceu-se. Os postos da guarda
sentiram seguros.
A guerra civil, nas suas primeiras fases, até a formação de exércitos regulares e até
a que eles sejam temperados, e uma guerra de nervos a vivo. Desde que se manifestou
uma ligeira progressão de actividade do lado dos junkers que, abrindo o fogo por detrás

739
das suas barricadas, tinham varrido a praça, o campo dos assaltantes sobrestimou
extremamente as forças e os meios da defesa. Apesar do descontentamento dos guardas
vermelho e dos soldados, os dirigentes decidiram de diferir o assalto até a concentração
de reservas; esperavam sobretudo a chegada dos marinheiros de Cronstadt.
O atraso de algumas horas que se produzia deu aos estrategas alguns pequenos
reforços. Quando Kerensky prometeu a uma delegação de cossacos em lhes dar a
infantaria, houve uma sessão do soviete das tropas cossacas, sessão dos Comités de
regimento, sessão das assembleias gerais de regimento. Decisão: dois sotnias e um
contingente de metralhadores do regimento de Ural, chegados da frete em Julho para
esmagar os bolcheviques, foram imediatamente ao palácio de Inverno; os outros não
marcharam antes da realização efectiva das promessas feitas, isto e somente após terem
chegado os reforços da infantaria. Mas mesmo com os dois sotnias, isso não ia sem
problemas. Os jovens, entre os cossacos, opunham resistência; os "velhos" fechavam
mesmo os jovens no estábulo para que estes não os impedissem de tomar o equipamento
de combate. Foi somente pelo crepúsculo, quando tinham parado de esperar, que se
apresentaram no palácios uralianos barbudos. Acolheram-nos como salvadores. Mas eles
tinham ar de cansaço. Não tinham o habito de guerrear nos palácios. Além disso, não
viam muito claramente onde estava a verdade.
Algum tempo depois surgiram de modo inesperado, quatro cavaleiros de São Jorge,
sob o comando de um chefe de esquadrão, que tinha uma perna de pau. Os inválidos
patriotas na qualidade de última reserva da democracia ... Mas mesmo assim sentiam-se
rejuvenescidos. Logo vieram-se juntar ainda uma companhia de choque do batalhão
feminino. O que era sobretudo encorajante, e que os reforços passavam sem ter de
combater. As linhas dos sitiados não podia ou não ousavam lhes proibir o acesso ao
palácio de Inverno. O assunto e claro: o adversário e fraco. "Graças a deus, isso começa
a colar", diziam os oficiais para se reconfortarem eles próprios com os junkers. Os recém-
chegados foram designados aos postos de combate para substituir os contigentes
cansados. Todavia, os homens do Ural olhavam de lado os babas munidos de
espingardas. Mas onde esta a verdadeira infantaria?
Os sitiados perdiam tempo. Os homens de Cronstadt estavam atrasados, não por
sua culpa: não os chamaram a tempo. Depois das reuniões nocturnas muito animadas,
eles embarcavam na madrugada nos navios: colocar minas Amor e o transporte lastreb
(Gavião) partem directamente para Petrogrado. O velho couraçado Zaria Svobody
(Aurora da Liberdade) , tendo efectuado uma incursão em Oranienbaum, onde se
propunha desarmar os junkers, deve amarrar à entrada do canal Morskoi para tomar, em
caso de necessidade, sob o fogo o caminho de ferro do Báltico. Cinco mil marinheiros e
soldados começaram da ilha de Kotline para ir fundear junto da Revolução social. No
grupo dos oficiais, silêncio: leva-se esses tipos para o combate por uma causa que eles
detestam. O comissário do destacamento, o bolchevique Flerovsky, declara-lhes: "Não
contamos com a vossa simpatia, mas exigimos que vocês estejam nos vossos postos ...
Nos vos pouparemos a sacrifícios inúteis. " Como resposta, uma breve palavra de
marinheiro:"Compreendido!" Todos tomaram os seus postos, o capitão subiu para a ponte.

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No estuário do Neva, os urras de alegria: os marinheiros foram acolhidos pelos seus
camaradas. Sobre o Aurora, que evoluía no meio do rio, a orquestra fazia-se ouvir.
Antonov pronuncia para os que chegam um breve discurso de bem-vinda: "Aí está o
palácio de Inverno ... E preciso tomá-lo." No destacamento de Cronstadt entraram por
eles próprios os homens mais resolutos, os mais corajosos. Esses marinheiros vestidos
de negro, com seus fuzis e cartucheiras, marcharam sem vacilar. A descida acaba-se
rapidamente sobre o bulevar dito "da Guarda a cavalo". Só resta no navio uma equipa de
reserva para o combate.
Mantém-se forças mais que suficientes. Sobre a Nevsky, cordões sólidos; na ponte
do canal Ekatérininsky e sobre a de Moika, um carro blindado e canhões de tiro contra
avião apontados para o palácio de Inverno. Do outro lado da Moika os operários
estabeleceram, por detrás dos abrigos, metralhadoras. Um carro de combate vigia a
Morskaia. O Neva e todas as passagens sobre o rio estão ocupadas pelos assaltantes.
Tchodnovsky e o alferes Dachkevitch recebem ordem de enviar regimentos da Guarda,
cordões de tropas para o Campo de Março. Blagonravov, da fortaleza, deve vir, pela
ponte, tomar contacto com o cordão do regimento Pavlovsky. Os homens de Cronstad
chegados colocam-se em ligação com a fortaleza e com a primeira tripulação da frota.
Após um tiro de artilharia, ordenar-se-á o assalto.
Da frota combatente do Báltico chegam entretanto cinco navios de guerra: um
cruzador, dois grandes torpedeiros, dois pequenos. " Seguros que nós venceremos com
as nossas próprias forças - escreve Flerovsky - uma prenda da frota combatente deu a
todos um formidável impulso." o almirante Verderevsky podia, provavelmente, do alto das
janelas da sala dos Malachites, considerar a imponente frota dos insurrectos que
dominava não somente o palácio e os seus arredores, mas os mais importantes pontos de
aproximação de Petrogrado.
Cerca das três horas da tarde, Konovalov convocava para o palácio por telefone os
homens políticos próximos do governo: os ministro sitiados necessitavam pelo menos de
um apoio moral. De todos os personagens convocados, só veio Nabokov; os outros
preferiram exprimir suas simpatias por telefone. O ministro Tretiakov queixava-se de
Kerensky e da sorte: o chefe do governo fugiu, deixando os seus colegas sem defesa.
Mas talvez receberão reforços? Talvez, todavia, porque ainda não chegaram? Nabokov
exprimia as suas condolências, olhava furtivamente o relógio e apressou-se a despedir-
se. Ele saiu no melhor momento. Logo após as seis horas, o palácio estava enfim
estreitamente cercado pelas tropas do Comité militar revolucionário: já não havia
passagem não somente para os reforços, nem mesmo para os particulares.
Do lado do bulevar dito "da Guarda a cavalo", do cais do Almirantado, da rua
Morskaia, da perspectiva Nevsky, do Campo de Março, da rua Millionaia, do cais do
palácio, a elipse do cerco apertava-se. Linhas imponentes estendiam-se desde da
vedação do jardim do palácio de Inverno, que já se encontrava nas mãos dos sitiadores,
desde do Arco de Triunfo, entre a praça do palácio e a rua Morskaia, desde dos canais
vizinhos do Ermitage, desde das cantos do rio, a fortaleza Pedro-e-Paulo, ameaçadora,
franzia os sobrolhos. No Neva, o Aurora apontava os canhões de seis polegadas. Os

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torpedeiros patrulhavam, descendo e subindo o rio. A insurreição, nessas horas, apareceu
como uma manobra militar de grande estilo.
Na praça do palácio que os junkers tinham feito evacuar três horas antes, surgiram
carros blindados que ocuparam as entradas e as saídas. Os nomes patriotas dos carros
liam-se ainda sobre a blindagem por baixo das novas denominações escritas à pressa a
vermelho. Abrigados nos monstros metálicos, os assaltantes sentiam-se cada vez mais
seguros. Um dos carros blindados aproximou-se da porta principal do palácio e, após ter
desarmado os junkers que a guardavam, afastou-se sem obstáculos.
Ainda se o bloqueio completo foi estabelecido, os sitiados continuavam ainda em
ligação com o mundo exterior por telefone. E` verdade que, desde das cinco horas, um
efectivo do regimento Keksholrnsky tinha ocupado as instalações do ministério da Guerra
que ligavam o palácio de Inverno ao Grande Quartel General. Mas, mesmo depois disso,
um oficia continuou, verosimilmente, ainda algumas horas, diante do aparelho Hughes,
numa mansão do ministério onde os vencedores não tinham tido a ideia de dar uma vista.
Todavia a ligação, como precedentemente, não dava qualquer resultado. As respostas da
frente Norte tornavam-se cada vez mais evasivas. Os reforços não chegavam. O
misterioso batalhão de motociclistas não revelava a sua existência. O próprio Kerensky
parecia ter mergulhado. Seus amigos na cidade limitavam-se a expressões de simpatia
cada vez mais lacónicas.
Os ministros aborreciam-se. Eles não tinham nada a dizer, nada a esperar. Entre
eles, apanhavam gripe e cada um deles se irritava consigo próprio. Uns continuava
sentados numa espécie de torpor, os outros iam e vinham com um passo automático. Os
que tendiam para as generalizações deitavam um olhar para trás, para o passado,
procurando culpados. Não era difícil de encontrar: a democracia! Foi ela que os tinha
enviado para o governo, que lhes tinha imposto o enorme fardo e que, no momento de
perigo, os tinha deixado sem apoio. Desta vez, os cadetes estavam solidários com os
socialistas: sim, a democracia era a culpada. Na verdade que formando uma coligação, os
dois grupos tinham voltado as costas a Conferencia democrática que lhes era tão
próxima. Porque, enfim, a independência em relação a democracia constituía a principal
ideia da coligação. Mas pouco importa: para que serve a democracia, senão para salvar
um governo burguês desesperado? O ministro da Agricultura, Maslov, socialista-
revolucionário de direita, redigiu uma nota que ele próprio qualificou de póstuma: ele se
comprometia solenemente a não morrer de outra forma senão com as maldições dirigidas
a democracia. Esta intenção fúnebre foi fortemente comunicada pelos seus colegas na
Duma, por telefone. A sua morte, na verdade, continuou em estado de projecto, mas as
maldições não faltaram.
No andar superior, perto da sala dos oficiais, encontrava-se um refeitórios onde os
lacaios da Corte servia a esses senhores "um jantar requintado e vinhos". Podia-se assim
esquecer por momentos os contratempos. Os oficiais faziam cálculos de antiguidade,
ocupavam-se de ciumentas comparações, recriminavam contra o novo poder pela
lentidão do avanço. Viravam-se contra Kerensky: ontem, no pre-parlamento ele tinha
jurado morrer no seu posto, e hoje, disfarçado de enfermeiro, tinha ido embora. Certos

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oficiais esforçavam-se em demonstrar aos membros do governo a absurdidade de uma
resistência ulterior. O energético Paltchinsky dizia deles que eram bolcheviques e tentou
mesmo de os prender.
Os junkers desejavam saber o que ia acontecer e reclamavam do governo respostas
que este era incapaz de dar. No decurso de uma nova conferência de junkers com os
ministros chegou, do Estado-maior principal, Kichkine, trazendo um ultimato recebido da
fortaleza de Pedro-e-Paulo por automóvel e entregue ao general mestre de campo,
Poradelov; o documento assinado por Antonov dizia: " rendam-se e desarmem a
guarnição do palácio de Inverno; em caso contrario, a fortaleza e os navios de guerra
abrirão fogo; vinte minutos para reflectir". Esse prazo pareceu muito curto. Poradelov
pediu ainda dez minutos. Os militares membros do governo, Manikovsy e Verderevsky,
consideravam o assunto muito simples: do momento que não havia possibilidade de se
bater, era preciso pensar na rendição, isto é aceitar o ultimato. Mas os ministros civis
continuavam inquebráveis. Finalmente, foi decidido em não responder ao ultimato, mas
em recorrer a Duma municipal, como o único órgão legal na capita. O apelo a Duma foi a
ultima tentativa para revelar a consciência adormecida da democracia.
Poradelov, considerava necessário parar de resistir, apresentou um relatório
pedindo a sua demissão: "Não é seguro que a via escolhida pelo governo provisório seja
a boa. "As incertezas do general tiveram uma solução mesmo antes que a sua demissão
pudesse ser aceite. Meia hora mais tarde, um destacamento de guardas vermelhos, de
marinheiros e soldados, sob o comando de um alferes do regimento Pavlovsky, ocupava,
sem encontrar resistência, o Estado-maior principal e prendia o general mestre de campo,
completamente desmoralizado. A tomada do Estado-maior poderia ter sido efectuada, na
verdade, há muito tempo; o edifício não estava de forma nenhuma defendida do interior.
Mas, até ao aparecimento no lugar dos carros blindados, os sitiantes temiam que, do
palácio, uma saída dos junkers não viesse lhes cortar as comunicações.
O Estado-maior perdido, o palácio de Inverno sentia-se ainda mais abandonado. Da
sala dos Malachites, cujas janelas dão sobre o Neva e que tinham ar de chamar um obus
do Aurora, os ministros transportaram-se noutras numerosas salas do palácio, cujas
janelas davam sobre o pátio. As luzes foram apagadas. Só havia uma lâmpada acesa e
ainda protegida do lado das janelas por um jornal.
Como é que o palácio está ameaçado se o Aurora abre fogo? Perguntavam os
ministros a seus colegas da marinha.
Ele será reduzida a ruínas, explicava o almirante com ardor e não sem um certo
sentimento de orgulho para a artilharia naval.
Verderevsky preferia a rendição e estava muito disposto a terrificar os pekins que
fanfarronavam a despropósito. Mas o Aurora não disparava. A fortaleza também se
calava. Talvez os bolcheviques não se resolvessem em executar a sua ameaça?
O general Bagratoni, nomeado no lugar da insuficiente energia de Polkovnikov,
julgou precisamente oportuno declarar que renunciaria em assumir por mais tempo as
obrigações de comandante da região militar. Por ordem de Kichkin, o general é

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destituído, "como indigno", e convidaram-no a abandonar imediatamente o palácio. Mal
acabou de sair, o ex-comandante caiu entre as mãos dos marinheiros e foi enviado para
os quartéis das tripulações do Báltico. O assunto podia ter-se tornado mal para ele se
Podvoisky, que inspectava os sectores da frente antes da última ofensiva, não tivesse
tomado o infeliz general sob a sua protecção.
Nas ruas vizinhas e nos cais, numerosos foram os que notavam que no palácio,
ainda recentemente todo iluminado por centenas de lâmpadas eléctricas, mergulhou
bruscamente nas trevas. Entre os observadores havia também os amigos do governo. Um
dos companheiros de luta de Kerensky, Redemeister, notou: "A obscuridade na qual
mergulhou o palácio de Inverno apresentava uma ameaça enigmática." Os amigos nada
iniciaram para desvendar o segredo do enigma. É necessário reconhecer também que as
suas possibilidades não eram grandes.
Abrigando-se por detrás dos montes de lenha, os junkers observavam com grande
atenção as linhas que evoluíam na praça, acolhendo cada movimento do inimigo a tiro de
espingarda e metralhadora. Respondiam-lhe do mesmo modo. O tiroteio pela noite
tornavam-se cada vez mais animado. Houve os primeiros mortos e feridos. As vítimas
contavam-se por unidades. Na praça, no cais, na Millionnaia, os sitiantes se adaptavam
aos lugares, se dissimulando por detrás dos edifícios, abrigavam-se nas depressões,
colavam-se às paredes. Nos contingentes de reserva, os soldados e os guardas
vermelhos aqueciam-se à volta de fogueiras cujo fumo se levantava com a noite caída, e
injuriavam contra a lentidão dos dirigentes.
No palácio, os junkers ocupavam os postos nos corredores, sobre a escadaria,
diante das portas de entrada, no pátio; os postos exteriores colavam-se aos muros e às
paredes. O edifício poderia receber milhares de homens, e continha algumas centenas.
As imensas instalações para lá da zona de defesa pareciam mortas. A maior parte dos
domésticos do palácio tinham-se escondido ou fugido. Numerosos oficiais tinham-se
refugiado na cantina, onde obrigavam os lacaios que não tiveram tempo de se
esconderem a trazer-lhes caixas de garrafas. A bebedeira dos oficiais no palácio
agonizante não podia ficar no segredo para os junkers, os cossacos , os inválidos, as
mulheres do batalhão de choque. A conclusão preparava-se não somente lá fora, mas
também no interior.
Um oficial da bateria relatou ao comandante da defesa que os canhões tinham sido
atrelados e que os junkers voltavam para casa, conforme à ordem recebida do chefe da
escola Constantin. Foi um golpe traiçoeiro! O comandante tentou responder: "ninguém
para além de mim, não pode dar ordens aqui". Os junkers compreendiam bem, mas
preferiam, mesmo assim, obedecer ao chefe da escola que, pelo seu lado, agia sob a
pressão do comissário do Comité militar revolucionário. A maior parte dos artilheiros, com
quatro peças sobre dez, abandonaram o palácio. Presos diante da Nevsky por patrulhas
de soldados, tentaram resistir, mas um posto do regimento Pavlovsky, que ocorreu aí com
um carro blindado, desarmou-os e enviou-os com dois canhões para os seus quartéis; as
duas outras peças de campanha foram estabelecidas na perspectiva Nevsky e sobre a
ponte do Moika, de bocas escancaradas para o palácio de Inverno.

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Os duzentos uralianos esperavam em vão a chegada dos seus. Savirikov,
estreitamente ligado ao soviete das tropas cossacas e mesmo apresentado por ele no
pré-parlamento, tentou, com a ajuda do general Alexeiev, de fazer marchar os cossacos.
Mas os altos dirigentes do soviete cossaco segundo uma observação de Miliokov,
"podiam também pouco dispor dos regimentos cossacos que o Estado-maior não
dispunha de tropas da guarnição." Tendo discutido o assunto sob todos os pontos de
vista, os regimentos cossacos declararam finalmente que, sem a infantaria, eles não
marchariam e ofereceriam ao Comité militar revolucionário seus serviços para a protecção
dos bens públicos. Ao mesmo tempo, o regimento de Ural decidiu enviar delegados ao
palácio de Inverno para lembrar ao quartel as duas sotnias que aí se encontravam. Esta
proposição respondia melhor às disposições de espírito que eram definitivamente
concebidas entre os "velhos" do Ural. Tudo à volta são somente elementos estrangeiros:
junkers entre os quais numerosos judeus, oficiais inválidos, e acrescentai ainda as
mulheres do batalhão de choque. De má cara, sobrancelhas escuras, os cossacos
colhiam seus sacos. As admoestações já não tinham efeito. O que é que restava para
defender Kerensky? "Judeus e babas ... Mas o povo russo, ele, está com Lénine" .
Acontece que os cossacos tinhas informadores entre os sitiantes, e estes abriram
caminho para uma saída que a defesa ignorava até aí. Cerca das nove da noite, os
uralianos abandoaram o palácio de Inverno. Eles consentiram somente em abandonar
suas metralhadora aos defensores da causa perdida.
Pelo mesmo caminho, do lado da Millionnaia, os bolcheviques tinham ainda antes
encontrado o acesso no palácio para contaminar o adversário. Cada vez mais apareciam
nos corredores misteriosos personagens, lado a lado com os junkers. Inútil resistir, os
insurrectos não se apoderaram da idade e dos guardas, nenhum reforço virá ao palácio,
simplesmente". Que fazer ainda? Perguntavam os junkers. O governo recusou-se em da
ordens formais: os ministros, por sua parte, ficam-se na decisão precedente; quanto aos
outros, que eles se desenrasquem. Isso significava que cada um era livre de sair do
palácio se quisesse. Na condução do governo, não restava nem pensamento nem
vontade. Os ministros esperavam passivamente seu destino. Maliantovitch contou mais
tarde isto: "Na imensa ratoeira rondavam, às vezes se juntando todos ou por grupos, para
breves conversas, homens condenados, isolados, abandonados de todos ... À volta de
nós, era o vazio, e o vazio estava em nós. E nesse vazio, surgiam de forma irreflectida
resolução de se manter na completa indiferença."
Antonov-Ovseenko tinha combinado com Blagnravov isto: logo que o cerco do
palácio de Inverno seria concretizado, uma lanterna vermelha seria içada sobre o mastro
da fortaleza. Ao sinal, o Aurora dispara um tiro de canhão em branco para fazer medo. No
caso de obstinação dos sitiados, a fortaleza começará a disparar sobre o palácio com
projécteis de peças ligeiras. Se o palácio de Inverno não se rende, o Aurora abrirá fogo
efectivo com canhões de seis polegadas. Esta gradação foi estabelecida com o objectivo
de levar ao mínimo as vítimas e os prejuízos se não se pudesse evitá-los. Mas a solução
demasiada complicada de um simples problema ameaçava dar resultados contrários. As
dificuldades de execução devem inevitavelmente manifestar-se. Elas começam já pela
lanterna vermelha: não há uma à mão. Procura-se, perde-se tempo, e enfim não se

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encontra. Todavia, não é assim tão fácil fixar ao mastro para que ela seja visível de todos
os lados. As tentativas multiplicam-se com resultados duvidosos, e é um tempo precioso
que se perde.
As grandes dificuldades se descobrem contudo quando se mete em jogo a artilharia.
Segundo o relatório de Blagonravov, o tiro sobre o palácio teria podido abrir-se logo ao
meio-dia, ao primeiro sinal. Aconteceu de outro modo. Dado que não havia artilharia
permanente na fortaleza, com a excepção de um canhão que era carregado pela boca
com uma gargousse e que anunciava no meio-dia, foi preciso subir os canhões sobre as
muralhas. Esta parte do programa foi efectivamente preenchida cerca do meio-dia. Mas
isso não funcionava do lado dos ajudantes de bateria. Sabia-se antecipadamente que a
companhia de artilharia, que não tinha funcionado em Julho do lado dos bolcheviques, era
pouco segura. Ainda na véspera, ela tinha guardado uma ponte, sobre ordem do Estado-
maior. Não se esperava dela uma facada nas costas, mas ela não se dispunha a entrar no
lume pelos sovietes. Quando veio o momento de agir, um alferes fez este relatório: os
canhões estão enferrujados, os compressores não tem óleo, impossível de disparar. É
verosímil que as peças de artilharia estejam efectivamente em mau estado, mas o
fundamental do assunto não está aí: os artilheiros esquivavam-se simplesmente às
responsabilidade e enganava muito facilmente o comissário sem experiência. Antonov foi
à pressa sobre um barco vedeta, - ele estava furioso. O que é que faz falhar o plano?
Blagonravov contou-lhe a história da lanterna, do óleo que faltava e do alferes. Os dois
vão inspeccionar os canhões. Noite, escuridão, poças de água no pátio depois das
recentes chuvas. Do outro lado do rio ouve-se forte tiroteio e o taque-taque das
metralhadoras. Na escuridão, Blagonravov afasta-se. Marulhando nas poças, impaciente,
tropeçando e caindo na lama, Antonov vagueia atrás do comissário no pátio sombrio.
"Diante de uma das lanternas que brilham fracamente - conta Blagonravov - Antonov
parou de repente e lança sobre mim, sobre os óculos, quase à queima-roupa, um olhar
inquisidor. Nos seus olhos leio uma inquietação apenas dissimulada." Antonov, um
instante, tinha desconfiado de traição onde existia somente leviandade.
A localização dos canhões foi enfim encontrada. Os artilheiros teimavam:
ferrugem, ... Os compressores ... O óleo ... Antonov mandou vir junto das peças os
servidores do polígono da marinha, e além disso dar imediatamente o sinal com o canhão
arcaico que anuncia habitualmente o meio-dia. Mas os artilheiros andavam às voltas do
canhão sinalizador de forma suspeita. Eles sentem evidentemente que o comandante,
quando não está longe, ao telefone, mas ao lado deles, não tem a firme intenção de
empregar a artilharia pesada. O programa excessivo de um bombardeamento sugere uma
só única ideia: talvez poder-se-á passar sem ela?
Alguém se precipita através da escuridão do pátio, aproxima-se, tropeça, cai na
lama, lança uma palavrão, mas sem cólera, com alegria, e, uma voz que se esgana, grita:
"O palácio rendeu-se e os nossos estão lá dentro!" Abraços entusiastas. É o formidável
que tinha havido esta contratempo!" Nós, pensava-se bem ..." Os compressores são
imediatamente esquecidos. Porque, todavia, o tiroteio não para do outro lado do rio?
Talvez hajam grupos de junkers que se obstinam após a rendição? Talvez haja um mal-
entendido? É a boa notícia esse mal-entendido: não foi o palácio de Inverno que tinha

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sido tomado, foi somente o Estado-maior principal. O cerco do palácio continua. Após um
acordo secreto com um grupo de junkers da escola de Oranienbaum, o indomável
Tchodnovsky penetrou na palácio para conversações: este adversário da insurreição
nunca perde a ocasião de se lançar ao fogo. Paltchinsky manda prender o temerário,
mas, sob a pressão da escola de Oranienbaum, é forçado a libertar Tchodnovsky e uma
parte dos junkers. Eles arrastam com eles um certo número de cavaleiros de São Jorge.
O aparecimento imprevisto dos junkers na praça lança o sarilho nas linhas dos sitiantes.
Em contrapartida, os gritos de alegria não param quando estes últimos sabem que tem
diante deles homens que se rendem. Portanto os que cedem são somente uma minoria.
Os outros continuam a resistir por detrás dos seus abrigos. O tiroteio dos assaltantes faz
cada vez mais intenso. Uma viva luz eléctrica no pátio permite visar os junkers. Estes tem
dificuldades em apagar a luz. Uma mão invisível torna a acendê-la. Os junkers disparam
sobre as lâmpadas, e descobrem a seguir o electricista e o obrigam a cortar a corrente.
O batalhão de choque das mulheres declara subitamente a sua intenção de efectuar
uma saída. No Estado-maior principal, segundo as informações que elas receberam, os
queixosos meteram-se do lado de Lénine e, tendo desarmado uma parte dos oficiais,
prenderam o general Alexeiev, o único homens que podia salvar a Rússia: é preciso
libertá-lo custe o que custar. O comandante não tem força para as reter nesse élan
histérico. No momento que elas vão sair, de repente, a luz acende novamente nos altos
candeeiros eléctricos dos dois lados da porta. Para descobrir o montador electricista, um
oficial lança-se furioso sobre os domésticos: ele considera os antigos lacaios do czar
como agentes da revolução. Ele ainda tem menos confiança em relação ao electricista do
palácio: "Já ter-te-ia enviado para o outro mundo se não tivéssemos necessidade de ti."
Ainda que sob a ameaça de um revólver, o montador não encontrou os meio de remediar:
o seu quadro de comutadores é cortado, a central é ocupada pelos marinheiros que
dispõem de luz. Os combatentes não resistem ao fogo e a maior parte rende-se. O chefe
da defesa envia um tenente ao governo para lhe dar a saber que a saída das mulheres
do batalhão de choque "leva-os à perdição" e que o palácio está cheio de agitadores. O
insucesso da saída dá um momento de repouso, pouco mais ou menos às onze horas. Os
sitiantes ocupam-se a preparar o tiro da artilharia. Esse interregno inesperado suscita
alguma esperança nos sitiados. Os ministros tentam ainda de reconfortar os seus
partidários na cidade e no país: " O governo no seu conjunto excepto Prokopovitch, está
no seu posto. A situação é tida como favorável ... Disparam sobre o palácio, mas somente
com espingardas, sem qualquer resultado. É claro que o adversário é fraco. "Na
realidades, o adversário é todo poderoso, mas ele não se decide ainda a empregar a
força de forma indispensável. O governo expedia no país um comunicado sobre o
ultimato, sobre o Aurora, dizendo também que ele, governo, não pode dar o poder senão
à Assembleia constituinte, e também que o primeiro ataque contra o palácio de Inverno
foi afastado. "Que o exército e o povo respondam!" Os ministros não indicam como
responder.
Lachevitch, entretanto, tinha enviado à fortaleza dois artilheiros da marinha. Na
verdade, nem por isso muito experientes, mas eram bolcheviques, prontos a tirar com
canhões ferrugentos , sem óleo nos compressores. Era somente o que lhes pediam: o

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ruído da artilharia é por enquanto mais importante que a justeza da acção. Antonov
mandou abrir fogo. A gradação prevista antes é cumprida integralmente. "Após o tiro de
sinal da fortaleza - conta Flerovsky - estrondeou o Aurora. O trovão e a chama de um tiro
branco são mais imponentes que os de um tiro de combate. Os curiosos afastaram-se do
parapeito de granito do cais, caíam, rastejavam ..." Tchodnovsky apressou-se a perguntar:
não se propunha a rendição aos sitiados? Antonov no imediato está de acordo com ele.
Nova trégua. Um grupo de mulheres do batalhão de choque e um grupo de junkers se
rendem. Tchodnovsky quer deixar-lhes as armas, mas Antonov, oportunamente, se opõe a
esta magnanimidade. Tendo deposto suas espingardas no passeio, os que se renderam
vão-se sob escorta pela rua Millionnaia.
O palácio de Inverno ainda se mantém. É preciso acabar com ele? A ordem foi dada.
Abrem o fogo, pouco frequente e menos eficaz. Sobre trinta e cinco tiros disparados em
hora e meia ou duas horas, só dois atingem o alvo, mesmo assim foi somente o
revestimento de alvaneria que sofreu; os outro projécteis passaram muito alto, não
ocasionando felizmente qualquer prejuízo na cidade. A causa disso era efectivamente
falta de habilidade? Porque enfim, através do Neva, disparavam directamente sobre um
alvo tão massiço como o palácio: isso não exigia muita arte. Não é mais justo supor que
mesmo os artilheiros de Lachevitch levantavam à vontade o alcance do tiro com a
esperança que o assunto se terminaria sem prejuízo nem vítimas? É difícil determinar os
motivos que guiaram os dois marinheiro anónimos. Eles próprios não deram sinal de vida:
foram absorvidos pela imensidão do campo russo, ou então, como numerosos
combatentes de Outubro, caíram na guerra civil dos meses e anos que se seguiram?
Pouco depois dos primeiros tiros de canhão, Paltchinsky levou aos ministros um
estilhaço de canhão. O almirante Verderevsky reconheceu que o metal provinha da sua
marinha: do Aurora. Mas o cruzador tinha disparado em branco. Tinha sido combinado
assim, tal é o testemunho de Flerovsky, tal foi a deposição de um marinheiro, mais tarde o
Congresso dos sovietes. O almirante ter-se-ia enganado? Quem é que esclareceria o
assunto de um tiro de canhão disparado, em plena noite, de um navio rebelde, sobre o
palácio do czar onde se apagava o último governo dos possuidores?
O número da guarnição do palácio tinha diminuído bastante. Se, no momento da
chegada dos uralianos, dos inválidos e das mulheres do batalhão de choque, ela tinha
atingido o milhar, talvez mesmo muito menos a salvação não vem de um milagre. E, de
repente, no ambiente de desespero do palácio emerge não um verdadeiro milagre, mas o
anúncio da sua vinda. Paltchinsky comunica: recebemos um telefonema da Duma
municipal, cidadãos dispõem-se a partir daí para entregar o governo". Comuniquem a
todos - ordenam em Sinegoub - que o povo vem aqui." O oficial transporta pelos
corredores e escadarias a alegre notícia. No caminho, ele choca com oficiais embriagados
que se batem em duelo de espada, aliás sem derrame de sangue. Os junkers levantam a
cabeça. Passam de boca em boca, a notícia torna-se cada vez mais colorida e mais
importante. Os homens políticos, os comerciantes, o povo, o clérigo à cabeça, marcharam
para fazer levantar o cerco ao palácio. O povo com o clérigo: "Será de uma grande
beleza!" Urra, viva a Rússia!" Os junkers de Oranienbaum que se dispunham já em
desertar mudaram de ideia e ficaram.

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Mas o povo com o clérigo aproxima-se muito lentamente. O número de agitadores
cresce no palácio. A Aurora vai abrir o fogo logo, murmuram no corredor, e esses
murmúrios passam de boca em boca. Logo, duas explosões. Marinheiros entraram no
palácio e lançaram ou deixaram cair duma galeria duas granadas, ferem ligeiramente dois
junkers. Os marinheiros foram presos, Kichkine, médico de profissão, fazia pensos aos
feridos.
Intimamente, a tenacidade dos operários e dos marinheiros é grande, mas ela ainda
não se transformou em obstinação. Para não provocar seus furores, os sitiados, sendo a
parte infinitamente mais fraca, não ousa tomar medidas rigorosas em relação aos agentes
do inimigo que penetraram no palácio. Não fuzilam ninguém. Os intrusos começam a
mostrarem-se não um a um mas por grupos. Quando os junkers se lançam sobre os
invasores, estes deixam-se desarmar. "Que abutres! Que cobardes!" disse Paltchinsky,
com um tom desprezível. Não, estes homens não são cobardes. Para penetrar no palácio
cheio de oficiais e de junkers, é preciso uma grande coragem. No labirinto de um edifício
desconhecido, por corredores sombrios, diante de um sem número de portas que levam
não se sabe onde e ameaçam não se sabe o quê, os temerários não tem outra coisa a
fazer senão se render. O número de prisioneiros aumenta. Novos grupos surgem. Nem
sempre é fácil compreender quais são os que se rendem e quais são os que são
desarmados. O canhão dispara sem parar.
Com a excepção do raio imediatamente adjacente ao palácio de Inverno, a vida da
rua não pára até noite dentro. Os teatros e os cinemas estavam abertos. Os meios ricos e
instruídos da capital preocupavam-se, parece, muito pouco em saber que o seu governo
estava a ser bombardeado. Redemeister observou, perto da ponte Troistky, transeuntes
estacionando tranquilamente, os marinheiros não os tendo deixado ir mais longe. "Não
havia nada de anormal para ver." Redemeister encontrou do lado da Casa do Povo
conhecidos que lhe informaram, sob o ruído dos canhões, que Chaliapine tinha sido
incomparável em Dom Carlos. Os ministros continuavam a agitar-se na ratoeira.
"É claro agora que os assaltantes são fracos." Talvez, se aguentar-mos mais uma
hora, os reforços chegarão mesmo assim? Kichkine chama pelo telefone, em plena noite,
os secretário de Estado ao ministério das Finanças, Khrochtchev, também ele cadete, e
pediu-lhe para comunicar ao dirigentes do partido que o governo necessitava pelo menos
de uma ajudinha até amanhã, até às horas onde deviria chegar Kerensky com as tropas.
"Que partido é este, exclamava Kichkine indignado - que nem sequer pode enviar
trezentos homens armados!" Com efeito: que partido é esse? Os cadetes que tinham
reunido em Petrogrado, nas eleições, dezenas de milhares de sufrágios, não podiam, no
momento de perigo de morte que ameaçava o regime burguês, avançar trezentos
combatentes. Se os ministros pelo menos tivessem tido a ideia de procurar, nas
bibliotecas do palácio, o materialista Hobbes, eles teriam lido, nos seus diálogos sobre a
guerra civil, que não se deve esperar nem exigir coragem aos comerciantes ricos", que
não vem nada a não ser os seus lucros do momento ... E que perdem completamente a
cabeça com a ideia que poderiam ser espoliados." Mas é duvidoso que, na biblioteca do
czar, se pudesse encontrar Hobbes. Além disso, os ministros não se ocupavam de
filosofia da História. O telefonema de Kichkine foi o último que deu o palácio de Inverno.

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Smolny reclamava categoricamente uma conclusão. Não se pode prolongar o cerco
até amanhã, manter a cidade nesta tensão, enervar o Congresso, meter todos os
sucessos sob um ponto de interrogação. Lénine enviou notas irritadas. Do Comité militar
revolucionário partem telefonemas uns após outros. Podvoisky grita e resmunga. Pode-se
enviar massas para o assalto, os voluntários são em número suficiente. Mas quantas
vítimas haveria? E que aconteceria aos ministros e aos junkers? Todavia, a necessidade
de levar o assunto até ao fim é demasiado imperioso. Só falta dar voz aos canhões da
marinha. Da fortaleza Pedro-e-Paulo, um marinheiro leva ao Aurora um papel: abrir fogo
imediatamente sobre o palácio. Agora, parece, tudo torna-se claro! Não são os artilheiros
do Aurora que vão parar o assunto. Mas os dirigentes ainda não possuem bastante
resolução. Uma nova tentativa é feita para se esquivar. "Nós decidimos esperar ainda um
quarto de hora - escreve Flerovsky - sentido instintivamente a possibilidade de uma
mudança de situação." Por instinto, compreenda-se que se esperava obstinadamente ver
o assunto se terminar por simples meios demonstrativos. E, desta vez, "o instinto" não
enganou: ao fim de um quarto de hora um novo emissário chegou directamente do palácio
de Inverno: o palácio foi tomado!
O palácio não se tinha rendido, ele tinha sido tomado de assalto, mas a um
momento onde a força da resistência dos sitiados tinha tido tempo de se esgotar
definitivamente. Num corredor introduziu-se, não por uma entrada secreta, mas por um
pátio fechado, uma centena de inimigos que a guarda desmoralizada tomou por um grupo
de deputados da Duma. Tiveram no entanto ainda tempo de os desarmar. Numa grande
desordem, um grupo de junkers abandonou o lugar. Os outros, pelo menos uma parte,
continuavam de guarda. Mas a parede de baionetas e do tiro entre os sitiantes e sitiados
foi definitivamente quebrada.
Uma parte do palácio, vizinho do Ermitage, já está cheia de inimigos. Os junkers
tentam tomá-la pelas traseiras. Nos corredores tem lugar encontros e conflitos fantásticos.
Todos estão armados: nas mãos, revólveres, nos cintos, granadas. Mas ninguém dispara,
ninguém utilizas as suas granadas, porque todos, aqui, fazem uma tal barafunda que não
se podem distinguir uns dos outros. Que importa! A sorte do palácio de Inverno já está
decidida.
Os operários, os marinheiros, os soldados empurram por fora, por linhas, por
grupos, expulsam os junkers das barricadas, introduzem-se no pátio, chocam-se com os
junkers nas escadarias, empurram-os, derrubam-os, expulsam-os diante deles. Da
retaguarda surge, apressado, um novo flux. A praça inunda o pátio, o pátio inunda o
palácio e vaza-se nas escadarias e os corredores. No soalho, cobertos de colchões e de
crostas de pão, homens estendem-se, guardando junto deles as espingardas, granadas.
Os vencedores sabem que Kerensky não está lá e, para a sua alegria tumultuosa, se
mistura uma amargura e a decepção. Antonov e Tchodnovskys estão no palácio. Onde
está o governo? Eis a porta diante da qual os junkers tinham parado na última atitude da
resistência. O chefe do posto da guarda se precipita junto dos ministros para lhes
perguntar se eles ordenam que se defendam até ao fim. Não, não, os ministros não
ordem isso. Mas de qualquer maneira o palácio está ocupado. Não há derrame de
sangue. É preciso ceder à força. Os ministros querem render-se de maneira digna e eles

750
sentam-se diante de uma mesa para que isso tenha ar de uma sessão. O comandante da
defesa já encontrou tempo de devolver o palácio perguntando, nas suas cláusulas,
salvaguarda para a vida dos junkers, à qual ninguém queria atentar. Sobre a sorte do
governo, Antonov recusa qualquer conversação.
Os junkers, diante das últimas portas guardadas, estão desarmados. Os vencedores
invadem a sala dos ministros. "À cabeça da multidão marchava, tentando manter as filas
que se pressionavam sobre ele, um homem pequeno de aparência miserável; vestuário
em desordem; chapéu de largas bandas debruçao sobre o lado. Sobre o nariz, uma luneta
de mola que apenas se aguentava. Mas com pequenos olhos brilhantes do triunfo da
vitória e do ódio contra os vencidos. "É nesses termos indelicados que os vencidos
desenharam Antonov. Não é acreditar difícil acreditar que o seu vestuário e o seu chapéu
se apresentaria mal: basta lembrar como ele tinha caminhado à noite nas poças de água
da fortaleza de Pedro-e-Paulo. Indubitavelmente, o triunfo devia ler-se no seu olhar; mas
é duvidoso que ele tenha exprimido o ódio em relação aos vencidos. "Declaro-vos,
membros do governo provisório, que vocês estão sob prisão", proclamou Antonov em
nome do Comité militar revolucionário. O relógio marcava 2 h 10 na noite do 25 para 26
de Outubro. "Os membros do governo provisório se submetem a um acto de violência e
se rendem para evitar derrame de sangue", responde Konovalov. O inevitável rito foi
escrupulosamente observado.
Antonov chamou vinte e cinco homens armados, eleitos pelos primeiros
destacamentos que tinham invadido o palácio, e encarrega-os de guardar os ministros. Os
detidos, após o estabelecimento de um relatório, foram conduzidos para fora do palácio,
para a praça. Na multidão que conta as vítimas, mortos ou feridos, rebenta uma
verdadeira raiva contra os vencidos. "Fusilem-os! Morte!" Certos soldados tentam bater
nos ministros. Os guardas vermelhos dissuadem esses homens enraivecidos: não
manchem a vitória proletária! Os operários armados cercam estreitamente os prisioneiros
e a sua escolta. "Em frente, marcha!". Não há muito onde ir: passar somente a rua
Millionnaia e a ponte Troistky. Mas a excitação da multidão torna esse curto percurso
longe e cheio de perigos. O ministro Nikitine escreveu mais tarde, e não sem razão, que,
sem a intervenção enérgica de Antonov, as consequências poderiam ser "muito penosas".
Para cumulo da desventura, o grupo sofreu ainda sobre a ponte um tiroteio acidental: os
detidos e a sua guarda tiveram que se colarem ao chão. Mas, ainda aí, não houve
vítimas: disparavam para o ar, para meter medo.
Na fortaleza, nas instalações estreitas do clube da guarnição, iluminada por uma luz
a petróleo - a electricidade, nesse dia recusava servir – apertam-se algumas dezenas de
homens. Antonov procede, na presença do comissário da fortaleza, à chamada dos
ministros. Eles são dezoito, contando os subsecretários de Estado. As últimas
formalidades são feitas, os prisioneiros são conduzidos nas células do histórico bastião
Trubletskoi. Da defesa, ninguém é feito prisioneiro: os oficiais e os junkers são libertados
sob a promessa que não agirão contra o poder soviético. Pouco numerosos, entre eles,
foram os que mantiveram suas promessas.

751
Logo após a tomada do palácio de Inverno, boatos se propagaram nos círculos
burgueses sobre execuções de junkers, violação de combatentes dos batalhões de
choque, de pilhagem das riquezas do palácio. Todos esses boatos foram há muito
desmentidos quando Miliokov escrevia na sua História: "As mulheres do batalhão de
choque que não morreram sob as balas e que fora tomadas pelos bolcheviques sofreram,
nessa noite, espantosos ultrajes dos soldados, violação e as execuções." Na realidade,
não houve qualquer execução e, segundo o estado das duas partes, nesse período, não
poderia ter lugar. Ainda menos concebíveis eram as violências, particularmente no palácio
onde, ao lado de certos elementos fortuitamente chegados da rua, eram introduzidos, por
centenas, operários revolucionários, de espingarda na mão.
Tentativas de pilhagem tiveram efectivamente lugar, mas elas manifestavam
precisamente a disciplina dos vencedores. John Reed, que não deixou escapar um só dos
episódios dramáticos da revolução e que entrou no palácio de Inverno conta como, na
cave, um grupo de soldados demolia à cronhada das tampas das caixas e tirava de lá
tapetes, lençóis, porcelanas, vidraças. É impossível que, sob o aspecto de soldados,
tenham aqui manobrado verdadeiros ladrões que, no último ano da guerra, se
disfarçassem sempre sob o capote cinzento de soldado e o boné de pelo. A pilhagem
tinha apenas começado quando alguém gritou: "Camaradas, não toquem em nada, é a
propriedade do povo." Diante de uma mesa, à saída, sentou-se um soldado, com uma
pluma e um papel; dois guardas vermelhos, de revólver na mão, se colocaram junto dele.
Alguém que saísse sofria uma busca, e todo o objecto roubado era retomado e anotado.
Foi assim que se recuperaram estatuetas, garrafas de tinta, velas, punhais, pedaços de
sabão e penas de avestruz. Uma busca cuidadosa foi feita também sobre os junkers cujos
bolsos estavam cheios de pequenos objectos roubados. Do lado dos soldados ouviam-se
dirigidos aos junkers invectivas e ameaças, mas isso não foi mais longe. Entretanto, se
constituía uma guarda do palácio, tendo à cabeça o marinheiro Prikliodko. Em todo o lado
foram colocadas sentinelas. Os intrusos são evacuados. Algumas horas após
Tchodnovsky é nomeado comandante do palácio.
Mas onde estava o povo que, tendo à cabeça o clérigo, marchava para libertar o
palácio? É indispensável falar desta tentativa heróica cuja notícia tinha comovido
bastante, um instante, o coração dos junkers. O centro das forças anti-bolchevistas era a
Duma municipal. A sede da municipalidade, sobre a Nevsky, estava em grande
efervescência. Os partidos, as fracções, as sub-fracções, os grupos, os elementos
destacados e, simplesmente, as personalidades influentes discutiam sobre a aventura
criminosa dos bolcheviques. Comunicaram aos ministros que se aborreciam no palácio de
Inverno, de vez em quando, por telefone, que, sob a reprovação esmagadora de todos, a
insurreição devia inevitavelmente abafar. Horas foram empregues a isolar moralmente os
bolcheviques. Entretanto, a artilharia tomava a palavra. O ministro Prokopovitch, preso na
manhã e logo posto em liberdade, queixava-se com um tom choroso na Duma de ter
perdido a possibilidade de partilhar a sorte dos seus camaradas. Exprimiram-lhe
sentimentos de simpatia calorosa, mas tais expressões pedem tempo.
De uma acumulação de ideias e de discursos surgiu, enfim, sob uma tempestade de
aplausos de toda a sala, um plano prático: a Duma deve dirigir-se na sua totalidade ao

752
palácio de Inverno para morrer aí, se for necessário, em companhia do governo
provisório. Os socialistas-revolucionários, os mencheviques e os cooperantes estão
igualmente dispostos ou a salvar os ministros, ou a cair com eles. Os cadetes, que não
se inclinam geralmente a empreendimentos arriscados, tem intenção, desta vez, a se
sacrificar com os outros. Os provinciais que se encontravam por acaso na sala, jornalistas
da Duma, algumas pessoas do público pedem, em palavras mais ou menos eloquentes,
a autorização de partilhar a sorte da Duma. São autorizadas.
A fracção bolchevique tentou dar um conselho prosaico: em vez de errar na
escuridão das ruas à procura da morte, mais valia convencer os ministros por telefone a
se renderem, sem ir até ao derrame de sangue. Mas os democratas estão indignados: os
agentes da insurreição querem arrancar-lhes não somente o poder, mas o direito de
morrer heroicamente. Ao mesmo tempo, os conselheiros municipais decidem, no
interesse da História, de proceder ao escrutínio pela chamada dos nomes. No fim de
contas, nunca é demasiado tarde para morrer, mesmo de uma morte gloriosa. Sessenta e
dois conselheiros da Duma iam começar a marchar para o sacrifício final quando um
telefonema lhes anuncia que o Comité executivo dos deputados camponeses, no seu
conjunto, vinha juntar-se a eles. Aplausos intermináveis. Agora, o quadro é claro e
completo: os representantes de um campesinato que conta cem milhões de homens com
os representantes de todas as classes das populações urbanas irão matar-se sob as
balas de um insignificante punhado de fomentadores de violências. Os discursos não
faltam nem os aplausos.
Quando os deputados camponeses chegaram, a coluna meteu-se finalmente a
caminho pela perspectiva Nevsky. À cabeça avançavam: o presidente da Câmara da
cidade, Schreider, e o ministro Prokopovitch. No cortejo, John Reed notou que o
socialista-revolucionário Avksentiev, presidente do Comité executivo camponês, e os
líderes mencheviques Khintchok e Abramovitch, onde um era considerado como de direita
e o segundo como de esquerda. Prokopovitch e Schreider transportavam cada um uma
lanterna: assim tinha sido combinado com os ministros afim que os junkers não tomassem
os amigos por inimigos. Prokopovitch, além disso, levava um chapéu de chuva, assim
como outros, aliás. O clérigo estava ausente. O clérigo foi imaginado segundo vagos
fragmentos da História nacional fabricada pela indigente fantasia dos junkers. Mas
também não havia povo. A ausência deste último determinou o caracter de toda a
empresa: trezentos ou quatro centos "delegados", e nem um só daqueles que
representavam. "Foi uma noite sombria - conta nas suas lembranças o socialista-
revolucionário Zenzinov - e as luzes sobre a Nevsky não estavam acesas. Nós
caminhamos em cortejo bem ordeiro, e só se ouvia o nosso canto da Marselhesa. Longe,
ecoavam os tiros de canhão: eram os bolcheviques que continuavam a disparar sobre o
palácio de Inverno."
Diante do canal Catarina, através da Nevsky, estendia-se uma linha de marinheiros
armados, cortando o caminho à coluna da democracia. "Nós avançaremos - declararam
os que se tinham condenado eles próprios - que poderão fazer de nós?" Os marinheiros
responderam sem papas na língua que empregariam a força: "Voltem para casa e
deixem-nos em paz!" Um dos membros do cortejo propôs cair como vítima aqui mesmo.

753
Mas, na decisão tomada por voto aberto da Duma, esta variante não tinha sida prevista. O
ministro Prokopovitch subir sobre não se sabe qual base e, "agitando o seu chapéu de
chuva", - chove muitas vezes em Petrogrado no outono - dirigiu-se aos manifestantes,
convidando-os a não levar à tentação esses homens pouco instruídos e enganados que
eram efectivamente capazes de se servir de suas armas. "Regressemos à Duma e
examinaremos os meios de salvar o país e a revolução."
Tendo-se apoderado do palácio de Inverno, o Comité militar revolucionário tornou-se
mestre da capital. Mas tal como as ondas e os cabelos de um morto continuam a crescer,
as aparências da vida manifestaram-se, para o governo derrubado, através da imprensa
oficial. O Vestnik Vrénwnnovo Pravitelstva (o Mensageiro do Governo provisório), que
anunciava ainda no 24 a reforma dos conselheiros secretos, com o direito de vestir o
uniforme e com pensão, se calou de repente o 25, ele reapareceu de novo, como se nada
fosse. Na primeira página dizia-se: "No seguimento de uma avaria eléctrica, o número do
25 de Outubro não saiu." Pelo resto, excepção feita da corrente cortada, a vida do Estado
continuava o seu ritmo e o Mensageiro do Governo - o qual estava fechado já no bastião
de Trubetskoi - anunciava a nomeação de uma dezena de novos senadores. Na rubrica
das informações administrativas, uma circular do ministro do Interior, Nikitine,
recomendava aos comissários provinciais "de não se deixar influenciar pelas falsas
notícias sobre os acontecimentos de Petrogrado, onde tudo estava tranquilo". O ministro
não estava totalmente errado: esses dias de insurreição passaram-se numa calma
suficiente, se não se tiver em conta os tiros de canhão que, aliás, se limitou aos efeitos
acústicos. E portanto o historiador não se enganará se ele diz que, durante o dia 25 de
Outubro, não somente a corrente eléctrica foi cortada na tipografia governamental, mas
que também se abriu uma página importante na história da humanidade.

754
A insurreição de Outubro
As analogias tiradas da história natural, aplicadas à revolução, impõem-se de tal
forma que algumas dentre delas tornaram-se metáforas usadas: «erupção vulcânica»,
«parto de uma nova sociedade», «momento de efervescência»... Sob o aspecto de uma
simples imagem literária dissimulam-se aqui as leis intuitivamente da dialéctica, isto é a
lógica do desenvolvimento.
O que a revolução no seu conjunto é em relação à evolução, a insurreição armada é
em relação à própria revolução: o ponto crítico onde a quantidade reunida torna-se por
explosão uma qualidade. Mas a própria insurreição não é um acto homogéneo e
indivisível: ela tem pontos críticos, crises e élans interiores.
Extremamente importante, nos pontos de vista teóricos e políticos, é o curto período
que procede imediatamente «o ponto de efervescência», isto é a véspera da insurreição.
Ensinam em física que se um aquecimento regular pára subitamente, o líquido conserva
durante um certo tempo uma temperatura invariável e começa a ferver após ter absorvido
uma quantidade complementar de calor. A linguagem corrente vem mais uma vez ao
nosso socorro, definindo o estado de falsa tranquilidade e de recolhimento antes da
explosão como «a calma antes da tempestade».
Quando a maioria dos operários e soldados de Petrogrado passou indiscutivelmente
para o lado dos bolcheviques, a temperatura da fervura tinha, parece, sido alcançada. É
precisamente nesse momento que Lénine proclamou a necessidade de uma insurreição
imediata. Mas o que é impressionante, é que ainda faltava ainda qualquer coisa para a
insurreição. Os operários e sobretudo os soldados deviam ainda absorver uma certa
quantidade de energia revolucionária.
Nas massas, não há nenhuma contradição entre a palavra e o acto. Mas, para
passar da palavra ao acto, mesmo a uma simples gréve, ainda mais a uma insurreição, há
inevitáveis fricções íntimas e reagrupamentos moléculares: uns vão à frente, os outros
devem se manter na retaguarda. Nos seus primeiros passos, a guerra civil, em geral, se
assinala por uma falta extrema de resolução. Os dois campos atarascam-se de certa
forma no mesmo chão nacional, não se podem arrancar à sua própria periferia, com as
suas camadas intermediárias e as suas disposições conciliadoras.
A calma antes da tempestade, nas massas, indicou um grave embaraço nas
camadas dirigentes. Os órgãos e as instituições que se tinham formado no período
relativamente pacífico dos preparativos — a revolução tem os seus períodos de repouso
como a guerra tem os seus dias de calma — se mostram, mesmo no partido o mais
experiente, não adequados ou não completamente adequados aos problemas da
insurreição: um certo deslocamento, uma certa mudança torna-se inevitável no momento
mais crítico. Os delegados do Soviete de Petrogrado, que tinham votado pelo poder dos
sovietes, estavam longe de serem todos penetrados tanto que necessário da ideia que a
insurreição armada tinha-se tornado a tarefa do dia. Era preciso, com menos
perturbações possíveis, fazê-las passar por uma nova via para transformar o Soviete num

755
aparelho de insurreição. No estado de amadurecimento da crise, não eram necessário
meses, nem mesmo numerosas semanas. Mas, precisamente nos últimos dias, o mais
perigoso era não cair sobre os seus pés, dar a ordem do grande salto alguns dias antes
que o Soviete estivesse pronto a fazê-lo, de provocar uma perturbação nas suas fileiras,
de afastar o partido do Soviete mesmo por 24 horas.
Lénine repetiu mais de uma vez que as massas estão infinitamente mais à esquerda
que o partido, tal como o partido está mais à esquerda que o seu comité central. Por
consideração à revolução no seu conjunto, era absolutamente justo. Mas, mesmo nessas
relações recíprocas, há profundas oscilações íntimas. Em Abril, em Junho,
particularmente no início de Julho, os operários e os soldados empurravam
impacientemente o partido na via dos actos decisivos. Após a derrota de Julho, as massas
tinham-se tornado mais prudentes. Como antes e mais cedo, elas queriam a insurreição.
Mas, tendo queimado os dedos, elas temiam um novo insucesso. Durante o mês de
Julho, de Agosto e de Setembro, o partido, de um dia ao outro, retinha os operários e
soldados que os adeptos de Kornilov, ao contrário, provocavam de todas as maneiras a
sair à rua. A experiência política dos últimos meses tinha bastante desenvolvido os
centros moderadores, não somente entre os dirigentes, mas também entre os dirigidos.
Os incessantes sucessos da agitação mantinham, por outro lado, a inércia das pessoas
dispostas à expectativa. Para as massas, não bastava mais uma nova orientação política:
elas necessitavam de se refazerem psicologicamente. Mais os dirigentes do partido
revolucionário comandam os acontecimentos, mais a insurreição engloba as massas.
O problema difícil da passagem da política preparatória à técnica da insurreição se
colocava em todo o país, sob diversas formas, mas em suma da mesma maneira. Moralov
conta que, na organização militar moscovita dos bolcheviques, a opinião foi unanime
sobre a necessidade de tomar o poder; portanto «quando se tenta resolver concretamente
a questão de saber como se apoderar do poder, não houve solução». O último elo ainda
faltava.
Nos dias onde Petrogrado se encontrava ameaçada pela evacuação da guarnição,
Moscovo vivia na atmosfera de greves sem fim. Sob iniciativa dos comités de fábrica, a
fracção bolchevista do Soviete apresentou um plano: resolver os conflitos económicos por
decretos. As iniciativas prévias tomaram bastante tempo. Foi somente a 23 de Outubro
que os órgãos do Soviete de Moscovo adoptaram o «decreto revolucionário nº 1»: os
operários e os empregados nas fábricas e oficinas não podem doravante ser empregados
ou despedidos sem o consentimento dos comités de fábrica. Isso significava que
começavam a agir como um poder de Estado. A inevitável resistência do governo devia,
no espírito dos iniciadores, agrupar mais estreitamente as massas à volta do Soviete e
conduzir a um conflito aberto. Esse desígnio não foi metido à prova, visto que a
insurreição de Petrogrado deu o sinal a Moscovo, como a todo o país, um motivo muito
mais imperioso de se insurgir: era preciso apoiar imediatamente o governo soviético que
acabava de se formar.
A parte que toma a iniciativa tem quase sempre interesse em se apresentar como
estando sob a defensiva. Um partido revolucionário está interessado numa camuflagem

756
legal. O Congresso iminente dos sovietes, de facto um congresso de insurreição, era ao
mesmo tempo o detentor, aos olhos das massas populares, senão de toda a soberania,
pelo menos de uma boa metade desta. Trata-se do levantamento de um dos elementos
de duplo poder contra o outro. Ao apelar ao Congresso como a fonte do poder, o Comité
militar revolucionário acusava antecipadamente o governo de preparar um atentado
contra os Sovietes. Esta acusação derivava da própria situação. Na medida onde o
governo não tinha intenção de capitular sem combate, ele não podia dispensar-se dos
preparativos para a sua própria defesa. Mas, mesmo por aí, ele estava sujeito a ser
acusado de ter conspirado contra o órgão supremo dos operários, dos soldados e dos
camponeses. Na luta contra o Congresso dos sovietes que devia derrubar Kerensky, o
governo levantava a mão sobre a própria fonte do poder donde tinha saído Kerensky.
Seria um grande erro em não ver aí que as subtilidades jurídicas, indiferentes ao
povo: pelo contrário, é precisamente sob este aspecto que os factos essenciais da
revolução se reflectiam na consciência das massas. Era preciso utilizar até ao fim esta
ligação excepcionalmente vantajosa. Ao dar ao desejo natural dos soldados em não trocar
os quartéis pelas trincheiras um grande sentido político e em mobilizando a guarnição
pela defesa do Congresso dos sovietes, a direcção revolucionária não atava as mãos em
relação à data da insurreição. A escolha do dia e da hora dependia da marcha ulterior do
conflito. A liberdade de manobra estava do lado do mais forte.
«Vencer primeiro Kerensky, a seguir convocar o Congresso» repetia Lénine,
temendo que se substituísse à insurreição um jogo constitucional. Lénine, evidentemente,
ainda não tinha tido tempo de apreciar um novo factor que se introduzia na preparação do
levantamento e mudava todo o carácter, a saber: um grave conflito entre a guarnição de
Petrogado e o governo. Se o Congresso dos sovietes deve resolver a questão do poder,
se o governo quer dividir a guarnição para impedir o Congresso de se tornar poder; se a
guarnição, sem esperar o Congresso dos sovietes, embora sob a cobertura da sua
autoridade. Seria por consequencia errado distinguir entre os preparativos da insurreiçao
e os do Congresso dos sovietes.
O melhor seria compreender as particularidades da insurreição de Outubro
comparando-a com a de Fevereiro. Ao recorrer a esta comparação, não há lugar, como
noutros casos, em admitir a identidade convencional de todas as espécies de condições;
elas são idênticas na realidade, porque trata-se nos dois casos de Petrogrado: mesmo
terreno de luta, os mesmos grupos sociais, o mesmo proletariado e a mesma guarnição. A
vitória, nos dois casos, obtém-se pelo facto que a maioria dos regimentos de reserva
passa para os operários. Mas no quadro desses traços gerais essenciais, que grande
diferença! Se complementar historicamente entre eles durante oito meses, os dois
levantamentos de Petrogrado, pelos seus contrastes, parecem feitos antecipadamente
para ajudar a compreender melhor a natureza de uma insurreição em geral.
Diz-se da insurreição de Fevereiro que foi um levantamento de forças elementares.
Nós fizemos, no bom sítio, todas as reservas indispensáveis sobre esta definição. Mas é
exacto, de qualquer modo, que em Fevereiro ninguém indicava antecipadamente as vias
da insurreição; ninguém votava nas fábricas e quartéis sobre a questão da revolução;

757
ninguém, do alto, não apelava à insurreição. A irritação que se tinha acumulado durante
anos rebentou como inesperada em grande medida pela própria massa.
Em Outubro foi de outro modo. Durante oito meses, as massas tinham passado por
uma via política intensa. Não somente elas suscitavam os acontecimentos, mas elas
aprendiam a compreender a ligação; após cada acção, elas avaliavam criticamente os
resultados. O parlamentarismo soviético tornou-se o mecanismo diário da vida política do
povo. Enquanto que se resolvia por voto as questões de greve, manifestações de rua, o
envio de regimentos para a frente, as massas podia renunciar a resolver elas próprias a
questão da insurreição?
Desta conquista inapreciável e em suma única da Revolução de Fevereiro
provinham, todavia, novas dificuldades. Não se podia apelar as massas à batalha em
nome do Soviete sem ter colocado categoricamente a questão diante do Soviete, isto é
sem ter feito do problema da insurreição o objecto de debates abertos, e ainda com a
participação dos representantes do campo inimigo. A necessidade de criar um órgão
soviético especial, mascarado tanto que possível, para dirigir a insurreição, era evidente.
Mas isso também impunha as vias democráticas com todos as suas vantagens e todos os
seus atrasos. A decisão tomada pelo comité militar revolucionário, datada de 9 de
Outubro, só é definitivamente executada no dia 20. A principal dificuldade, todavia, não
está aí. Utilizar a maioria no Soviete e criar um comité composto unicamente de
bolcheviques, seria provocar o descontentamento dos sem partido, sem contar o dos
socialistas-revolucionários de esquerda e certos grupos anarquistas. Os bolcheviques do
Comité militar revolucionário se submetiam à decisão do seu partido, mas não sem
resistência. Mas não se podia reclamar qualquer disciplina dos sem partido e dos
socialistas-revolucionário de esquerda. Obter deles uma decisão à priori para a
insurreição num dia fixo teria sido inconcebível, e mesmo simplesmente colocar diante
deles a questão teria sido extremamente imprudente. Por intermédio do Comité militar
revolucionário, podia-se somente arrastar as massas para a insurreição, agravando a
situação de um dia ao outro e tornando o conflito inelutável.
Não teria sido mais simples, em tal caso, de chamar à insurreição directamente em
nome do partido? As sérias vantagens de uma tal forma de agir são indubitáveis. Mas
talvez as desvantagens são mais que evidentes. Os milhões de homens sobre os quais o
partido contava apoiar-se, é necessário distinguir três camadas: uma que alinhava já com
os bolcheviques em todas as condições; outra, a mais numerosa, que apoiava os
bolcheviques onde estes agiam pelos sovietes; a terceira que seguia os sovietes, ainda
se, nestes, os bolcheviques fossem a maioria.
Estas três camadas distinguiam-se não somente pelo seu nível político, mas, uma
boa parte também, pela sua composição social. Atrás dos bolchevistas, como partido,
marchavam na primeira fila os operários industriais — proletários hereditários de
Petrogrado. Atrás dos bolcheviques, na medida onde eles tinham garantia soviética legal,
marchava a maioria dos soldados. Atrás os soviets, independentemente ou a despeito do
facto que aí se tinha instaurado a forte pressão dos bolcheviques, marchavam as
formações mais conservadoras da classe operária, os ex-mencheviques e os socialistas-

758
revolucionários, que temiam destacar-se do resto da massa; os elementos mais
conservadores do exército, incluindo os cossacos; os camponeses que se tinham
libertado da direcção do partido socialista-revolucionário e que se tinham ligado ao seu
flanco esquerdo.
Seria um erro evidente identificar a força do partido bolchevique à dos sovietes que
ele dirigia: esta última força era infinitamente maior que a primeira; todavia, à falta da
primeira, ela se transformava em impotência. Não há aí nada de misterioso. A relação
entre o partido e o Soviete procedia de uma incompatibilidade inevitável numa época
revolucionária entre a formidável influência política do bolchevismo e a estreiteza da sua
empresa organizacional. Uma alavanca exactamente adaptada dá a mão à possibilidade
de levantar um peso que ultrapassa muito a força viva. Mas, faltando a mão que age, a
alavanca é somente um instrumente inanimado.
Na Conferência regional de Moscovo dos bolcheviques, no fim de Setembro, um dos
delegados demonstrava isto: «Em Egorievsk, a influência dos bolcheviques não é
contestada. Mas a organização do partido, por ela própria, é fraca. Ela está ao abandono;
não há inscrições regulares nem cotizações dos membros.» A desproporção entre a
influência e a organização, que não era por toda a parte tão marcada, era um fenómeno
geral. As largas massas conheciam as palavras de ordem bolcheviques e a organização
soviética. Essas palavras de ordem e organização soldaram-se por elas definitivamente
no fim de Setembro-Outubro. O povo esperava para saber o que precisamente os
sovietes indicariam, quando e como realizar o programa dos bolcheviques.
O próprio partido educava metodicamente as massas nesse espírito. Quando em
Kiev se propagava o boato dos preparativos da insurreição, o Comité executivo
bolchevique desmentiu imediatamente: «Nenhuma manifestação deve ser feita sem
convocação dos sovietes... Não marchar sem o Soviete!» Desmentindo, no 18 de
Outubro, os boatos que corriam sobre uma insurreição fixada, dizia-se para o 22, Trotsky
dizia:«O Soviete é uma instituição eleita e... não pode tomar resoluções que não seriam
conhecidas dos operários e soldados...» Formulas desse género, repetidas diariamente e
confirmadas pela prática implantavam-se solidamente.
Segundo a narrativa do alferes Berzine, na Conferência militar dos bolcheviques, em
Outubro, em Moscovo, os delegados declaravam: «É difícil dizer se as tropas marcharão
à chamada do Comité moscovita dos bolcheviques. Ao apelo do Soviete, é provável que
todos marcharão.» Ora, a guarnição de Moscovo, desde Setembro, tinha votado a 90%
pelos bolcheviques. Na Conferência do 16 de Outubro, em Petrogrado, Bokii, em nome do
Comité do partido, relatava que no distrito de Moscovo, «marchavam ao apelo do Soviete,
mas não do partido«; no bairro Nevsky, «todos marcharão atrás do Soviete». Volodarsky
resumia imediatamente o estado de espírito de Petrogrado nos seguintes termos: «A
impressão geral é que ninguém se apressa em descer à rua, mas que ao apelo do
Soviete, todos estarão presentes. Olga Ravitch corrige: «Certos indicaram que seria
também ao apelo do partido.» Na Conferência da guarnição de Petrogrado, no dia 18, os
delegados relataram que os seus regimentos esperavam, para marchar, um apelo do
Soviete; ninguém falava do partido, ainda se os bolcheviques estivessem à cabeça de

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numerosos contingentes: não se podia manter a unidade nas casernas que estabeleciam
uma ligação entre os simpatizantes, os hesitantes e os elementos meio hostis, pela
disciplina do Soviete. O regimento dos granadeiros declarou mesmo que só marcharia
sob ordem do Congresso dos sovietes. Já, o próprio facto que os agitadores e os
organizadores, na sua avaliação do estado das massas, fazem cada vez diferença entre o
Soviete e o partido, mostra a grande importância que tinha esta questão do ponto de vista
do apelo à insurreição.
O motorista Mitrevitch conta como, numa equipa de camiões, onde os bolcheviques
fizeram adoptar uma proposição de compromisso: «Nós não marcharemos nem pelos
bolcheviques nem pelos mencheviques, mas ... sem atraso algum, nós executaremos
todas as ordens do IIº Congresso dos Sovietes». Os bolcheviques da equipa dos camiões
aplicavam moderadamente a mesma táctica de encobrimento à qual recorria o Comité
militar revolucionário. Mitrevitc não demonstra, ele conta, e o seu testemunho não deixa
de ser convincente.
As tentativas feitas para levar a insurreição directamente por intermediário do partido
não dava em parte alguma resultado. Conservou-se um testemunho altamente
interessante, sobre a preparação da insurreição do levantamento em Kinechma, parte
importante da indústria textil. Quando a insurreição na região moscovita foi colocada na
ordem do dia, o Comité do partido em Kinechma teve, para recensear as forças militares,
os meios e a preparação da insurreição armada, um triunvirato especial que foi chamado,
não se sabe lá muito porquê, de Directório. «É preciso dizer, todavia — escreve um dos
membros do Directório — que os três eleitos não fizeram grande coisa, parece. Os
acontecimentos marcharam numa via um pouco diferente... A greve regional nos absorveu
totalmente, e, na hora dos acontecimentos decisivos, o centro de organização foi
transferido para o Comité de greve e para o Soviete...» Nas modestas dimensões de um
movimento provincial, se repetia a mesma coisa que em Petrogrado.
O partido metia em movimento o Soviete. O Soviete metia em movimento os
operários; os soldados, parcialmente, os camponeses. O que se ganhava na massa,
perdia-se na velocidade. Se imaginamos esse aparelho de transmissão como um sistema
de rodas dentadas — comparação que, noutra ocasião e noutro período, tinha recorrido
Lénine — pode-se dizer que uma tentativa impaciente para ajustar a roda do partido
directamente à roda gigante das massas, comportava o perigo de quebrar os dentes da
roda do partido e portanto não meter em movimento as massas suficientes.
Não menos real era, todavia, o perigo contrário, o de deixar escapar uma situação
favorável em função do resultado de fricções no interior mesmo do sistema soviético.
Teoricamente falando, o momento mais vantajoso para a insurreição se precisa num certo
ponto no tempo. Estava fora de questão, bem entendido, de surpreender na prática esse
ponto ideal. A insurreição pode com sucesso desenvolver-se por uma curva crescente,
aproximando-se de um ideal ascendente; mas também por uma curva descendente se a
relação de forças ainda não pôde modificar-se radicalmente. No lugar de «um momento»,
resulta um espaço de tempo que se possa medir em semanas, mesmo em meses. Os
bolcheviques podiam tomar o poder em Petrogrado logo no início de Julho. Mas, nesse

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caso, eles não o teriam mantido. A datar do meio de Setembro, eles podia já esperar que
não somente eles tomariam o poder, mas o manteriam nas mãos. Se os bolcheviques se
atrasassem a fazer a insurreição no fim de Outubro, eles teriam tido, provavelmente, não
de forma segura, longe disso, durante um certo tempo, a possibilidade ainda de voltar a
ganhar o terreno perdido. Pode-se admitir sob reserva que durante três ou quatro meses,
por exemplo de Setembro a Dezembro, as premissas políticas de uma insurreição
existiam: elas já estavam maduras e ainda não tinham caído. Nesses quadros é mais fácil
estabelecer depois que no momento da acção, o partido tinha uma certa liberdade de
escolha engendrando inevitáveis, mesmo graves, diferendos de carácter prático.
Lénine propunha desencadear a insurreição logo nas jornadas da Conferência
democrática. No fim de Setembro, ele considerava qualquer hesitação como não somente
arriscado, mas perigoso. «Esperar o Congresso dos sovietes — escrevia ele no princípio
de Outubro — é um jogo puéril, vergonhoso, é, com formalidades, trair a revolução.» É
duvidoso, todavia, que, entre os dirigentes bolcheviques, alguém se guiasse, nesta
questão, sobre considerações de pura forma. Quando Zinoviev, por exemplo, reclamava
uma conferência preparatória com a fracção bolchevique do Congresso dos Sovietes, ele
não procurava uma sanção na forma, mas contava simplesmente com o apoio político dos
delegados da província contra o Comité central. Mas o facto é que a dependência do
partido em relação ao Soviete que, por seu lado, apelava ao Congresso dos Sovietes,
trazia, nesta questão da data do levantamento, um elemento de imprecisão que alarmava
bastante, e não sem risco, Lénine.
A questão de saber quando se lançará o apelo está estreitamente ligada à de saber
quem o lançará. Para Lénine, as vantagens de um apelo em nome do Soviete não eram
demasiado claras; mas ele via antes das outras todas as dificuldades que surgiriam nessa
via. Ele não podia não temer, sobretudo à distância, que os elementos interceptores
seriam, entre os dirigentes do Soviete, ainda mais fortes que no Comité central o qual ele
considerava já a política como demasiado irresoluta. Sobre a questão de saber quem do
Soviete ou do partido começaria, Lénine tinha soluções alternativas, mas, nas primeiras
semanas, inclinava resolutamente para uma iniciativa independente do partido. Não havia
aí sombra de uma oposição de princípio: tratava-se de abordar a questão da insurreição
sobre uma só e mesma base, nas circunstâncias idênticas, num só e mesmo desejo. Mas
as maneiras de considerar a questão eram mesmo assim diferentes.
A proposição feita por Lénine de cercar o teatro Alexandra e de prender a
Conferência democrática procedia do facto que a insurreição devia ter à cabeça não o
Soviete, mas o partido que apelaria directamente às fábricas e quartéis. Não podia ser de
outra forma: tinha sido absolutamente inconcebível adoptar um tal plano pelo Soviete.
Lénine sabia que, mesmo nas cimeiras do partido, a sua concepção encontraria
obstáculos; ele recomendou previamente à fracção bolchevique da Conferência «de não ir
atrás do número»: agindo resolutamente a partir de cima, o número será garantido pela
base. O plano audacioso de Lénine apresentava as vantagens incontestáveis da rapidez e
do imprevisto. Mas ele metia demasiado a descoberto o partido, ariscando, dentro de
certos limites, de o opor às massas. Mesmo o Soviete de Petrogrado, desprevenido, teria

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podido, no primeiro insucesso, deixar perder a sua maioria bolchevista ainda pouco
estável.
A resolução do 10 de Outubro propôs aos organismos locais do partido de resolver
praticamente todas as questões do ponto de vista da insurreição: quanto aos sovietes,
como órgãos do levantamento, estavam fora de questão na resolução do Comité central.
Na conferência do 16, Lénine dizia: «Os factos demonstram que nós temos a
preponderância sobre o inimigo. Porquê o Comité central não pode começar?» Nos lábios
de Lénine, esta questão não tinha de forma nenhuma um carácter de retórica; ela queria
dizer: porquê perder tempo, acomodando-se à transmissão complicada do Soviete se o
Comité central pode dar o sinal imediatamente? Todavia, a resolução proposta por Lénine
terminava, desta vez, pela expressão «da sua certeza que o Comité central e o Soviete
indicariam no devido tempo o momento favorável e os meios racionais da acção». A
menção dada do Soviete, ao lado do partido, e a formula mais ligeira sobre a data do
levantamento eram o resultado da resistência das massas que Lénine tinha sentido o
contacto por intermediário dos dirigentes do partido.
No dia seguinte, numa polémica com Zinoviev e Kamenev, Lénine resumia os
debates da véspera: «Todos estão de acordo sobre esse ponto que o apelo dos Sovietes
e para a sua defesa, os operários marcharão como um só homem». Isso significava: se
todos não estão de acordo para dizer com Lénine, que se pode lançar o apelo em nome
do partido, todos concordam que o apelo pode ser lançado em nome dos sovietes.
«Quem deve tomar o poder?» — escreve Lénine na noite do 24. Isso não tem
importância pelo momento: que ele seja tomado pelo Comité militar revolucionário ou por
«outra instituição», que declarou que ela dará o poder somente aos verdadeiros
representantes dos interesses do povo...» Uma «outra instituição», essas palavras
colocadas entre enigmáticos guillemets, designam em linguagem de conspirador o Comité
central dos bolcheviques.
Lénine renova aqui a sua proposição de Setembro: agir directamente em nome do
Comité central no caso onde a legalidade soviética impediria o Comité militar
revolucionário em colocar o Congresso diante do facto consumado da insurreição.
Ainda se esta luta à volta dos prazos e dos métodos da insurreição tivesse durado
semanas, os que aí participaram não deram conta do seu significado e da sua
importância. «Lénine propunha a tomada do poder pelos Sovietes, o de Leninegrado ou
de Moscovo, e não por detrás das costas do Sovietes, escrevia Estaline em 1924. Porquê
Trotsky precisa desta legenda mais que estranha sobre Lénine?» E ainda: «O partido
conhecia Lénine como o maior marxista do nosso tempo... estrangeiro a qualquer sombra
de blanquismo.» Enquanto que Trotsky representava «não o gigante Lénine, mas uma
espécie de anão blanquista...» Não somente blanquista, mas mesmo anão! Na realidade,
a questão de saber em nome de quem se fará a insurreição e às mãos de qual instituição
será remetido o poder, isso não é de forma nenhuma decidido previamente por qualquer
doutrina. Diante das condições gerais de uma insurreição, o levantamento apresenta-se
como um problema de arte prática que pode ser resolvido por diferentes meios. Nesta
parte, os diferendos no Comité central eram análogos às controversas dos oficiais do

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Estado-maior general, educados por uma só e mesma doutrina militar e portanto
julgamentos idênticos sobre o conjunto da situação estratégica, mas propondo, para a
solução mais próxima do problema, diversas variantes excepcionalmente importantes na
verdade, mas mesmo assim parciais. Misturar a isso a questão do marxismo e do
blanquismo, é mostrar que não se compreende nem um nem outro.
O professor Pokrovsky nega o significado mesmo do dilema: o Soviete ou o partido?
Os soldados não são de forma alguma formalistas, declara ele com ironia: eles não
precisavam do Congresso dos Sovietes para derrubar Kerensky. Muito espiritual que seja
esta maneira de colocar a questão, ela deixa um ponto não esclarecido: porquê, em
suma, criar sovietes se o partido basta? É curioso, continua o professor, que deste
esforço para fazer tudo legalmente, nada resulta legalmente do ponto de vista soviético —
e o poder, no último momento, foi tomado não pelo Soviete, mas por uma organização
manifestamente «ilegal», constituida ad hoc.» Pokrovsky alega que Trotsky foi forçado,
«em nome do Comité militar revolucionário», e não em nome do Soviete, a declarar o
governo de Kerensky inexistente. Argumento completamente inesperado! O Comité militar
revolucionário era um órgão electivo do Soviete. O papel dirigente do Comité na
insurreição não infringia em qualquer sentido a legalidade soviética escarnecida pelo
professor, a qual era portanto olhada pelas massas com muito ciúme. O Conselho dos
Comissários do Povo foi igualmente constituido ad hoc, o que não o impediu de ser e de
ficar o órgão do poder soviético, incluindo o própio Pokrovsky, na qualidade de adjunto do
comissário da Instrução Pública.
A insurreição pode manter-se sobre o terreno da legalidade soviética e mesmo, por
uma boa parte, nos quadros das tradições da dualidade de poderes, sobretudo graças ao
facto que a guarnição de Petrogrado tinha-se subordinado ao Soviete logo antes do
levantamento. Em numerosas Memórias, artigos de aniversário, nos primeiros ensaios
históricos, esse facto, confirmado por numerosos documentos, foi considerado como
incontestável. «O conflito em Petrogrado se desenvolve sobre a questão da sorte da
organização» — diz uma primeira brochura sobre Outubro, escrita pelo autor da presente
obra, em momentos de folga entre as sessões de conversações de Brest-Litovsk,
segundo as memórias mais recentes, brochura que, no partido, durante vários anos, foi
apresentada como um manual de História. «A questão essencial, à volta da qual se erigiu
e se organizou todo o movimento de Outubro — declara ainda claramente Sadovsky, um
dos imediatos organizadores da insurreição — era de fazer marchar os regimentos da
guarnição de Petrogrado sobre a frente do Norte.» Nem um dos dirigentes imediatos da
insurreição, que participavam à entrevista colectiva tendo por objecto directo reconstruir a
marcha dos acontecimentos, nem tiveram a ideia de opôr à Sadovsky um objecção ou
uma correcção. Foi somente a partir de 1924 que se descubriu inesperadamente, que
Trotsky sobrestimava a importância da guarnição camponesa em detrimento dos
operários de Petrogrado; descoberta científica que completava a acusação de ter
subestimado a classe camponesa.
Dezenas de jovens historiadores, com, o professor Pokrovsky à cabeça, nos
explicaram, nestes últimos anos, a importância do proletariado numa revolução proletária.
Eles indignaram-se de ver que nós não falamos dos operários nas linhas onde nós

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falamos dos soldados, e ele convenceram-nos de ter analizado o desenvolvimento real
dos acontecimentos em vez de ter repetido as lições de aluno. Os resultados desta crítica
são assinados por Pokrovsky na seguinte conclusão: «Ainda se Trotsky sabe
perfeitamente que a acção armada tinha sido decidida pelo partido...ainda que, muito
evidentemente, todo o pretexto que se encontrava para agir teve que ser de importância
secundária, contudo, no centro de tudo o quadro, para ele, se encontra a guarnição de
Petrogrado... — como se, sem ela, não se poderia pensar numa insurreição; mas como a
insurreição se produziu efectivamente, é «uma questão secundária»: encontra-se sempre
um pretexto «o meio de conquistar as tropas, isto é, de resolver precisamente a questão
na qual se resume a sorte de toda a insurreição. A revolução proletária ter-se-ia produzido
sem dúvida mesmo na ausência do conflito sobre a evacuação da guarnição; aí, o
professor tem razão. Mas teria sido outra insurreição e ela teria exigido uma exposição
histórica diferente. Ora, nós temos em vista os acontecimentos que se produziram na
realidade.
Um dos organizadores, que se tornou mais tarde historiador da Guarda vermelha,
Malakhovsky, insiste pelo seu lado sobre esse ponto que são precisamente os operários
armados, se distinguindo da guarnição meio passiva, que mostraram iniciativa, resolução
e resistência no levantamento. «Os destacamentos da Guarda vermelha — escreve —
ocupam, durante a insurreição de Outubro, as instituições governamentais, os postos e os
telégrafos, são também eles que estão à frente no momento do combate..., etc.» Tudo
isso é discutível. Mas não é difícil, todavia, de compreender que se os guardas vermelhos
puderam simplesmente «ocupar» as instituições, foi somente porque a guarnição estava
de acordo com ela, apoiando-os, ou então, pelo menos, não se opunham a ela. Foi o que
decidiu a sorte da insurreição.
Quando se pergunta quem era mais importante, para a insurreição, os soldados ou
os operários — se mostram a um nível teórico tão lamentável que não resta quase lugar
para a discussão. A Revolução de Outubro era a luta do proletariado contra a burguesia
pelo poder. Mas é o mujique que no fim de contas decidiu da conclusão da luta. O
esquema geral, propagado por todo o país, encontrou em Petrogrado a sua expressão
mais acabada. O que deu, na capital, à insurreição o carácter de um golpe rapidamente
dado com um mínimo de vítimas, foi a combinação da conspiração revolucionária, da
insurreição proletária e a luta da guarnição camponesa pela sua própria salvaguarda. O
partido dirigia a insurreição; a principal força motriz era o proletariado; os destacamentos
operários armados constituíam o punho de choque; mas a conclusão da luta se decidiu
pela guarnição camponesa, difícil a sublevar.
É justamente esta questão que o paralelo entre as insurreições de Fevereiro e de
Outubro aparecia particularmente insubstituível. Na véspera do derrube da monarquia, a
guarnição representava para as duas partes uma grande desconhecia. Os próprios
soldados ainda não sabiam como reagiriam diante do levantamento dos operários. Foi
somente a greve geral que pôde estabelecer o terreno necessário para os encontros de
massas entre operários e soldados, para a verificação dos soldados em acção, para a
passagem dos soldados para as fileiras dos operários. Tal foi o conteúdo dramático das
cinco Jornadas de Fevereiro.

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Na véspera do derrube do governo provisório, a esmagadora maioria da guarnição
se mantinha abertamente ao lado dos operários. Em parte alguma, em todo o país, o
governo não se sentia tão isolado como na sua residência: não foi erradamente que ele
tentou fugir. Em vão: a capital hostil não o deixava partir. Tentando sem sucesso expulsar
os regimentos revolucionários, o governo encontrou definitivamente a sua perca.
Explicar a política passiva de Kerensky diante da insurreição só pelas suas
qualidades pessoais, é tomar a má atitude. Kerensky não estava só. No seio do governo
havia homens como Paltchinsky, a quem não faltava energia. Os líderes do Comité
executivo sabiam bem que a vitória dos bolcheviques fixaram como o seu trépas político.
Todos, todavia, separadamente ou em grupo, encontraram-se paralizados, ficaram, tal
como Kerensky, numa espécie de entorpecimento, a do homem que, apesar do perigo
iminente, se sente incapaz de levantar o braço pela sua salvação.
A fraternização dos operários e dos soldados não procedeu em Outubro de um
conflito aberto nas ruas como teve lugar em Fevereiro, mas procedeu a insurreição. Se os
bolcheviques não apelavam para ela, desta vez, a greve geral, não que eles se
encontravam impedidos para isso, mas eles não sentiam a sua necessidade. O Comité
militar revolucionário, logo antes da insurreição, sentia-se mestre da situação: ele
conhecia cada contingente da guarnição, seu estado de espírito, seus grupos no interior;
ele recebia diariamente relatórios, verdadeiros, exprimindo o que se passava; ele não
podia, no momento desejado, a qualquer regimento, enviar um comissário
plenipotenciário, um motociclista levando uma ordem, ele podia chamar pelo telefone o
Comité de um efectivo ou então enviar uma ordem de serviço a uma companhia. O
Comité militar revolucionário ocupava, em relação às tropas, a situação de um Estado-
maior governamental e não a um Estado-maior de conspiradores.
Na verdade, os postos de comando do Estado continuavam a ficar entre as mãos do
governo. Mas suas bases materiais lhes tinham sido arrancadas. Os ministérios e os
estados-maiores levantavam-se no vazio. O telefone e o telégrafo continuavam a servir ao
governo, tal como o Banco do Estado. Mas o governo já não tinha as forças militares
indispensáveis para reter nas suas mãos esses instituições. O palácio de Inverno e o
Instituto Smolny pareciam ter mudado de localização. O Comité militar revolucionário
metia o governo fantasma numa situação tal que esse último não podia empreender nada
sem ter previamente quebrado a guarnição. Ora, toda a tentativa de Kerensky para bater
sobre as tropas só faziam acelerar a conclusão final.
Todavia, o problema da insurreição continuava ainda sem solução. A mola e todo o
mecanismo do relógio estavam entre as mãos do Comité militar revolucionário. Mas
faltava o mostrador e as agulhas. E apesar desses detalhes, um relógio não pode ter
qualquer utilidade. Não dispondo nem de telégrafo nem de telefone, nem de um Banco,
nem de Estado-maior, o Comité militar revolucionário não podia governar. Ele dispunha de
quase todas as premissas reais e dos elementos do poder, mas não do próprio poder.
Em Fevereiro, os operários pensavam não a se apoderar do Banco e do palácio de
Inverno, mas a quebrar a resistência do exército. Eles lutavam não para conquistar certos
postos de comando, mas para ter para eles a alma do soldado. Quando a vitória sobre

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esse terreno foi obtida, todos os outros problemas foram resolvidos por eles próprios ;
tendo abandonado os seus batalhões da Guarda, a monarquia nem tentou mais defender
os seus palácios nem os seus Estados-maiores.
Em Outubro, o governo de Kerensky, tendo deixado escapar a alma do soldado,
agarrava-se ainda aos postos de comando. Entre as suas mãos, os Estado-maiores, os
bancos, os telefones, não constituíam senão a fachada do poder. Passando para as mãos
dos sovietes, esses estabelecimentos deviam assegurar a posse integral do poder. Tal era
a situação na véspera da insurreição: ela determinava as modalidades da acção nas
últimas vinte e quatro horas.
Quase que não houve manifestações, combates de rua, barricadas, de tudo o que se
compreende habitualmente por «insurreição»; a revolução não necessitava resolver um
problema já resolvido. A tomada do aparelho governamental podia ser efectuado segundo
um plano, com a ajuda de destacamentos armados relativamente pouco numerosos,
partindo de um centro único. As casernas, a fortaleza, os depósitos, todos os
estabelecimentos onde agiam os operários e os soldados, podiam ser confiscados pelas
suas próprias forças interiores. Mas nem o palácio de Inverno, nem o pré-parlamento,
nem o estado-maior da região, nem os ministérios, nem as escolas, o Banco de Estado;
os empregados desses estabelecimentos, que tinham pouco peso na combinação geral
das forças, eram portanto os mestres entre as suas quatro paredes, os quais estavam
fortemente guardados. Foi a partir de fora que era preciso penetrar até às cimeiras da
burocracia. A tomada por meios da política foi aqui substituída pela violência. Mas como a
expulsão recente do governo das suas bases militares tinha tornado quase impossível
resistir, a tomada dos últimos postos de comando teve lugar em geral sem confrontos.
Na verdade, mesmo assim, o assunto não teve lugar sem alguns combates: era
preciso assaltar o palácio de Inverno. Mas precisamente o facto que a resistência do
governo se limita a defender o Palácio determina nitidamente o lugar do 25 de Outubro no
desenvolvimento da luta. O palácio de Inverno foi a última trincheira de um regime
politicamente quebrado em oito meses de existência e definitivamente desarmado durante
a última quinzena.
Os elementos da conspiração, compreendendo por isso o plano e uma direcção
centralizada, ocupavam na Revolução de Fevereiro um lugar insignificante. Isso provinha
já da fraqueza e da segregação dos grupos revolucionários sob a pesada acusação do
czarismo e da guerra. A tarefa era muito grande para as massas. Os insurrectos tinha a
sua experiência política, suas tradições, suas palavras de ordem, seus líderes anónimos.
Mas se os elementos da direcção disseminados no levantamento eram suficientes para
derrubar a monarquia, eles estavam longe de ser bastante numerosos para dar aos
vencedores os frutos da sua própria vitória.
A calma nas ruas, em Outubro, a ausência da multidão, a inexistência de combates
davam aos adversários motivos para falar de conspiração de uma minoria insignificante,
de aventura de um punhado de bolcheviques. Esta formula foi retomada muitas nas
Jornadas, os meses e mesmo os anos que seguiram a insurreição. Evidentemente, para
restabelecer o bom nome da insurreição proletária, Iaroslavsky escreve sobre o 25 de

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Outubro: «As grandes massas do proletariado de Petrogrado, ao apelo do Comité militar
revolucionário, colocaram-se sob as suas bandeiras e invadiram as ruas de Petrogrado.»
O historiador oficial esqueceu de explicar com qual objectivo o Comité militar
revolucionário tinha chamado as massas à rua e o que estas aí tinham feito precisamente.
De uma combinação da potência e da fraqueza na Revolução de Fevereiro veio a
sua idealização oficial, representando-a como a obra de toda a nação, opondo-a à
insurreição de Outubro considerada como uma conspiração. Na realidade, os
bolcheviques podiam levar ao último momento a luta pelo poder a «uma conspiração»,
não porque eles eram uma minoria, mas pelo contrário porque eles tinham atrás deles,
nos bairros populares e nos quartéis, uma esmagadora maioria, coesa, organizada,
disciplinada.
Só se pode compreender exactamente a insurreição de Outubro na condição de não
limitar a perspectiva ao ponto final. No fim de Fevereiro, a partida de xadrez da
insurreição foi jogada desde da primeira parte até à última, isto é até ao abandono do
adversário; no fim de Outubro, a parte principal pertencia já ao passado e, o dia da
insurreição, tratava-se de resolver um problema bastante restrito: mate em dois
movimentos. É, por consequência, indispensável datar o período da insurreição do 9 de
Outubro, quando começou o conflito sobre a guarnição, ou do 12, quando foi decidida a
criação do Comité militar revolucionário. A manobra de envolvimento durou mais de
quinze dias. A parte mais decisiva se prolonga de cinco a seis dias, desde do momento
onde foi criado o Comité militar revolucionário. Durante todo este período agiram
directamente centenas de milhares de soldados e operários, pela defensiva pela forma,
tomando a ofensiva no fundo. A etapa final, no decurso da qual os insurrectos rejeitaram
definitivamente as formas convencionais da dualidade de poderes, com a sua legalidade
duvidosa e a sua fraseologia defensiva, ocupou exactamente 24 horas: do 25, 2 horas da
manhã, ao 26, 2 horas da manhã. Nesse lapso de tempo, o Comité militar revolucionário
empregou abertamente as armas para se apoderar da cidade e prender o governo: nas
operações participaram, no conjunto, as forças que eram necessárias para realizar uma
tarefa limitada, em qualquer caso não mais de vinte e cinco a trinta mil homens.
Um autor italiano que escreveu livros não somente sobre As Noites dos Eunucos,
mas também sobre os mais altos problemas do Estado, visitou, em 1929, Moscovo
soviético, confundiu um pouco as coisas que ele tinha podido ouvir à direita e à esquerda,
e, nesta base, construiu um livro tratando da Técnica do Golpe de Estado. O nome desse
escritor, Malaparte, permite distinguir facilmente um outro especialista de golpes de
Estado, que se chamava Bonaparte.
Contrariamente à «estratégia de Lénine», que se ligava às condições sociais e
políticas da Rússia de 1917, «a táctica de Trotsky, segundo Malaparte, não está ligada às
condições gerais do país.» Às condições gerais de Lénine sobre as premissas políticas da
insurreição, o autor quer que Trotsky responda assim: «A sua estratégia exige
demasiadas circunstâncias favoráveis: a insurreição não necessita de nada. Ela basta-se
a ela própria.» Apenas poderia-se conceber uma absurdidade mais segura dela própria
que esta. Malaparte repete várias vezes que em Outubro a vitória não veio da estratégia

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de Lénine, mas da táctica de Trotsky. Esta táctica, mesmo presentemente, ameaçaria a
tranquilidade dos Estados europeus. «A estratégia de Lénine não constitui portanto um
perigo imediato para os governos da Europa. O perigo actual — e permanente — para
eles, é a táctica de Trotsky.» Ainda mais concretamente: «Metam Poincaré no lugar de
Kerensky e o golpe de Estado bolchevista de Outubro 1917 teria sido um sucesso.» É em
vão que nós tentamos distinguir em que poderia servir em geral a estratégia de Lénine,
que dependia das condições históricas, se a táctica de Trotsky resolvia o mesmo
problema em todas as circunstâncias, resta acrescentar que esse notável livro foi já
publicado em várias línguas. Homens de Estado aí aprendem, ao que parece, a afastar
golpes de Estado. Desejamos-lhes muito sucesso.
A crítica das operações puramente militares do 25 de Outubro não foi feita até hoje.
O que existe sobre isso na literatura soviética tem um carácter acrítico, puramente
apologético. Ao lado dos escritos dos epígonos, mesmo a crítica de Sokhanov, apesar de
todas as contradições, distingue-se com vantagem por uma observação atenta dos factos.
No seu juízo sobre a organização do levantamento de Outubro, Sokhanov deu, em
dois anos, duas opiniões que parecem diametralmente opostas. No tomo consagrado à
Revolução de Fevereiro, ele diz: «Eu descreveria, no momento oportuno, segundo minhas
lembranças pessoais, a insurreição de Outubro jogada segundo uma partição.»
Iaroslovsky reproduziu esse juízo de Sokhanov literalmente. «A insurreição em Petrogrado
— escreve — foi bem preparada e foi jogada pelo partido como sobre um caderno de
música.» Mais resolutamente ainda, parece, exprime-se Claude Anet, observador hostil,
mas atento, mesmo sem profundidade: «O golpe de Estado do 7 de Novembro — diz ele
— só inspira admiração. Nem uma quebra, nem uma racha, o governo foi derrubado sem
ter tempo de gritar «Uf!» Contrariamente, no tomo consagrado à Revolução de Outubro,
Sokhanov conta como Smolny, «em segredo, às apalpadelas, prudentemente e em
desordem» empreendeu liquidar o governo provisório.
Há exageros no primeiro julgamento como no segundo. Mas de um ponto de vista
mais largo, pode-se admitir que dois julgamentos tão opostos que sejam, se apoiem sobre
factos. O carácter racional da insurreição de Outubro procedeu sobretudo de relações
objectivas, da maturidade da revolução no seu conjunto, do lugar ocupado por Petrogrado
no país, do lugar ocupado pelo governo em Petrogrado, de todo o trabalho prévio do
partido, enfim, da política justa da insurreição. Mas resta ainda um problema de técnica
militar. Nesse aspecto, houve um grande número de asneiras parciais, e no conjunto,
pode-se ter a impressão de um trabalho feito às cegas.
Sokhanov menciona várias vezes a impotência, do ponto de vista militar, de Smolny,
mesmo nos últimos dias que precederam a insurreição. Na verdade, ainda no dia 23, o
estado-maior da revolução não foi nada melhor defendido que o palácio de Inverno. O
Comité militar revolucionário assegurou a sua imunidade antes de tudo em fortificando as
suas ligações com a guarnição e obtendo por esta a possibilidade de vigiar todos os
movimentos estratégicos do adversário. Medidas mais sérias, do ponto de vista da técnica
de guerra, foram tomadas pelo comité cerca de 24 horas mais cedo que as do governo.
Sokhanov declara com segurança que, no decorrer do dia 23 e na noite do 23 ao 24, o

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governo, se ele tivesse mostrado iniciativa, teria podido apanhar o Comité: «Um bom
destacamento de quinhentos homens teria sido suficiente para liquidar Smolny com todo o
seu conteúdo.» Possível. Mas, primeiramente, o governo necessitava para isso de
resolução, de audácia, isto é de uma qualidade absolutamente contrária à sua natureza.
Segundo, necessitavam «de um bom destacamento de quinhentos homens». Onde os
recrutar? Recrutar os oficiais? Nós vimos, no fim de Agosto, no seu papel de
conspiradores: estavam obrigados ir procurá-los nos clubes nocturnos. As companhias
(drujiny) de combate dos conciliadores tinham-se desagregado. Nas escolas de junkers
toda questão grave dava lugar a grupos novos. Isso ia ainda pior entre os cossacos.
Constituir um destacamento para uma selecção nos diversos contingentes, era trair-se a
si próprio dez vezes antes que a empresa tivesse sido levada até ao fim.
Todavia, a própria existência de um destacamento não teria sido decisiva. O primeiro
tiro dado diante de Smolny teria tido, nos bairros operários e nos quartéis, um eco
espantoso. Para o centro ameaçado da revolução, a qualquer hora do dia ou da noite,
teriam ocorrido para socorrer dezenas de milhar de homens armados ou meio armados.
Enfim, a tomada do Comité militar revolucionário não teria salvo o governo. Fora das
paredes de Smolny se encontrava Lénine e, com ele, o Comité central e o Comité de
Petrogrado. Na fortaleza de Pedro e Paulo existia um segundo estado-maior, sobre o
Aurora um terceiro, e ainda outros nos bairros. As massas não teriam ficado sem
direcção. Ora, os operários e os soldados, apesar da lentidão, queriam vencer a qualquer
preço.
Está fora de dúvida, todavia, que medidas complementares de prudência estratégica
podiam e teriam sido tomadas alguns dias antes. A crítica de Sokhanov é justa nesse
ponto. O aparelho militar da revolução agiu de modo atrapalhado, com atrasos e
omissões, e a direcção geral estava demasiado inclinada a substituir a política pela
técnica. O olho de Lénine faltou muito em Smolny. Os outros não tinham ainda aprendido
bem.
Sukhanov tem razão em dizer que a tomada do palácio de Inverno, na noite de 24
para 25 ou na manhã deste dia, foi incomparavelmente mais fácil que na segunda parte
do dia e até à noite. O Palácio, tal como o edifício vizinho do estado-maior, estava
guardado pelas grupos habituais de junkers: um ataque de improvisto teria quase de
certeza triunfado. Na manhã, Kerensky partiu de automóvel sem obstáculos: esse facto
basta para provar que em relação ao palácio de Inverno nenhuma vigilância séria não foi
exercida. Era uma evidente lacuna !
A vigilância do governo provisório tinha sido confiada — na verdade demasiado
tarde, no 24! — a Sverdlov, assistido por Lachevitch e Blagonravov. É duvidoso que
Sverdlov, já ocupadíssimo, se tenha preocupado deste assunto. É mesmo possível que a
resolução, portanto inscrita no processo verbal, tenha sido esquecida na febre dessas
horas.
No Comité militar revolucionário, apesar de tudo, subestimava-se os recursos
militares do governo, em particular da guarda do palácio de Inverno. Se os dirigentes
imediatos do cerco conhecessem as forças interiores do Palácio, eles podiam temer que,

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no primeiro sinal de alarme, não chegavam reforços: junkers, cossacos, tropas de choque.
O plano da tomada do palácio de Inverno tinha sido elaborado no estilo de uma vasta
operação: quando os civis e meio civis procuram resolver um problema puramente militar,
eles tendem aos ardis estratégicos. Para além de um pedantismo excessivo, eles não
podem passar sem mostrar nesse caso uma impotência notável.
A incoerência, quando da tomada do Palácio, explica-se, em certa medida, pelas
qualidades pessoais dos principais dirigentes. Podvoisky, Antonov-Ovseenko,
Tchodnovsky são homens de uma têmpera heróica. Mas talvez seja preciso dizer que eles
não são homens de método e de pensamento disciplinado. Podvoisky que, durante as
Jornadas de Julho, tinha sido de uma grande paixão, tornou-se mais circunspecto, mesmo
mais céptico diante das perspectivas de um futuro imediato. Mas, no fundo, ele continuou
fiel a ele próprio: colocado frente a qualquer tarefa prática, ele tende organicamente a
escapar aos quadros fixados, a alargar o plano, a arrastar toda a gente, a dar o máximo
onde um mínimo bastaria. Sobre o carácter hiperbólico do plano, pode-se reencontrar
sem dificuldades a marca do seu espírito. Antonov-Ovseenko, por carácter, em um
optimista impulsivo, muito mais capaz de improvisação que de cálculo. Na qualidade de
antigo oficial subalterno, ele possuía alguns conhecimentos da arte militar. Durante a
Grande Guerra, como imigrado, ele manteve no jornal Nache Slovo (Nossa Palavra), que
se publicava em Paris, a rubrica militar, e mais de uma vez mostrou-se perspicaz em
estratégia. O seu diletantismo impressionável não podia fazer contrapeso às excessivas
envolées de Podvoisky. O terceiro dos chefes militares, Tchodnovsky, tinha vivido vários
meses sobre uma frente passiva, na qualidade de agitador: a isso se limitava-se o seu
estágio de homem de guerra. Tendendo à direita, Tchodnovsky, todavia, foi o primeiro a se
comprometer na batalha e procurava sempre o lugar onde isso aquecia mais. A bravura
pessoal e a ousadia política, como se sabe, nem sempre se encontra em equilíbrio.
Alguns dias depois da insurreição, Tchodnovsky foi ferido em Petrogrado, numa
escaramuça com os cossacos de Kerensky, e alguns meses depois foi morto na Ucrânia.
É claro que o expansivo e impulsivo Tchodnovsky não podia manter o que faltava aos
outros dois dirigentes. Nenhum deles não tendiam a considerar os detalhes, já pelo
simples facto que eles não tinham sido iniciados aos segredos do ofício, sentido sua
fraqueza no que diz respeito aos serviços dos batedores, a ligação, a manobra, os
marechais vermelhos sentiam a necessidade de encher o palácio de Inverno de forças, de
tal forma superiores que mesmo a questão de uma direcção prática não se colocava: as
dimensões desmedidas, grandiosas, do plano equivaliam quase à sua ausência. O que é
dito acima não significa que, na composição do Comité militar revolucionário, ou à volta
dele, se podia encontrar militares duros, mais experientes; de qualquer modo, não se
podia encontrar quem fosse mais abnegado e dedicado.
A luta pela tomada do palácio de Inverno começou pela ocupação de todo o raio
numa larga periferia. Dada a inexperiência dos chefes, das hesitações da ligação, a
inaptidão dos destacamentos dos guardas vermelhos, a falta de vigor das forças
regulares, a operação complicada se desenvolvia com uma lentidão excessiva. No
momento onde os destacamentos vermelhos apertavam pouco a pouco o cerco e
acumulavam atrás deles reservas, as companhias de junkers, sotnias de cossacos,

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cavaleiros de São Jorge, um batalhão de mulheres, abria-se passagem para o Palácio. O
punho da defesa formava-se ao mesmo tempo que o círculo dos atacantes. Pode dizer-se
que o próprio problema resulta do meio demasiado desviado que foi empregado para o
resolver. Ora, uma audaciosa incursão nocturna ou então um assalto intrépido no dia não
teria custado mais vítimas que uma operação que se arrastava na demora. O efeito moral
da artilharia do Aurora podia, de qualquer forma, ser verificado antecipadamente doze ou
mesmo vinte e quatro horas: o cruzador estava pronto para o combate no rio Neva e os
marinheiros não se queixavam de forma nenhuma de não ter com que olear suas peças.
Mas os dirigentes da operação esperavam que o assunto seria resolvido sem combate,
enviavam parlamentares, colocavam ultimatos e não tinham em conta os prazos fixados.
Eles não tiveram a ideia de inspectar no momento oportuno a artilharia da fortaleza Pedro
e Paulo, precisamente porque eles contavam poder passar sem isso.
A falta de preparação da direcção militar manifestou-se de uma maneira ainda mais
evidente em Moscovo, onde as relações de forças era considerada de tal forma favorável
que Lénine recomendava com insistência para que se começasse por Moscovo: «A vitória
é garantida, não há ninguém para lutar.» Na realidade, é precisamente em Moscovo que a
insurreição tomou o carácter de combates prolongados que duraram, com suspensões de
armas, uns oito dias. «No ardor desse trabalho – escreveu Moralov, um dos principais
dirigentes da insurreição moscovita – nós nem sempre estávamos firmes e resolvidos em
todos os pontos. Dispondo de uma superioridade numérica esmagadora – dez vezes o
número do adversário – arrastámos os combates durante uma semana …, no seguimento
da nossa pouca habilidade em dirigir as massas combatentes, por falta de disciplina
destes últimos e da ignorância completa da táctica dos combates de rua, tanto do lado
dos chefes como do lado dos soldados.» Moralov tem o hábito de chamar as coisas pelo
seu nome: é o que lhe vale de estar actualmente deportado na Sibéria. Mas, evitando
rejeitar sua responsabilidade sobre outro, Moralov relata no presente caso sobre o
comando militar a maior parte da falta da direcção política que em Moscovo, se distinguia
pela sua inconsistência e deixava-se facilmente influenciar pelos elementos conciliadores.
Também não se pode perder de vista que os operários do velho Moscovo, do textil e da
indústria das peles, estavam muito atrasados sobre o proletariado de Petrogrado. Em
Fevereiro, Moscovo não tinha que se sublevar: o derrube da monarquia tinha sido
inteiramente assunto de Petrogrado. Em Julho, Moscovo tinha de novo mantido a calma.
Sentiu-se em Outubro: os operários e os soldados não tinham a experiência dos
combates.
A técnica da insurreição concretiza o que a política não fez. O crescimento
gigantesco do bolchevismo enfraquecia indubitavelmente a atenção em relação ao lado
militar mostrou-se incomparavelmente mais fraco que a direcção política. E podia ser de
outro modo? Durante meses e meses, o novo poder revolucionário manifestara uma
extrema inaptidão sempre que era indispensável recorrer às armas.
Contudo, as autoridades militares do campo governamental dava, em Petrogrado,
uma apreciação extremamente lisonjeira da direcção militar da insurreição. «Os
insurrectos mantêm a ordem e a disciplina – declarava por telefone o ministério da Guerra
ao Grande Quartel General logo após a queda do palácio – não pilhagem, nem

771
progromes; pelo contrário, patrulhas de insurrectos que titubeavam … O plano da
insurreição estava indubitavelmente elaborado previamente e foi aplicado com
persistência e na boa ordem … não estava completamente coordenado com a «pauta»,
tal como escreviam Sokhanov e Iaroslavsky, mas não havia assim tanta «desordem»
como afirmou mais tarde o primeiro desses autores. Além disso, diante do julgamento
crítico o mais severo, é ainda o sucesso que coroa a empresa

772
O congresso da ditadura soviética
No 25 de Outubro devia iniciar-se em Smolny o parlamento mais democrático de
todos os que existiram na história mundial. Quem sabe? Talvez o mais importante.
Livres da influência da intelectualidade conciliadora, os sovietes da província
enviaram principalmente operários e soldados. Eles eram na maior parte sem grande
notoriedade, mas, em contrapartida, eram homens experientes e que tinham conquistado
uma confiança sólida nas suas localidades. Do exército e da frente, através dos blocos
dos comités do exército e dos estados-maiores, eram quase unicamente soldados das
fileiras que abriam caminho como delegados. Na sua maioria, eles tinham acedido à vida
política só depois da revolução. Eles tinham sido formados pela experiência de oito
meses. O que sabiam era pouca coisa, mas o que sabiam era sólido. A aparência exterior
do congresso demonstrava a composição. Os galões de oficial, os óculos e as gravatas
dos intelectuais do primeiro congresso quase que tinham desaparecido. O que dominava
sem partilha, era a cor cinzenta, vestuários e caras. Todos se tinham gasto durante a
guerra. Numerosos operários das cidades tinham vestido os capotes de soldado. Os
delegados das trincheiras não tinham ar muito apresentável: barba por fazer há muito
tempo, cobertos de velhos capotes rasgados, barretos de pêlo cujo algodão atravessava
por orifícios, sobre cabeleiras desgregadas. Rostos rudes mordidos pelas intempéries,
pesadas mãos cobertas de frieiras, dedos amarelados pelo tabaco, botões meios
arrancados, suspensórios pendurados, botas rugosas, gastas, que não tinham recebido
pomada há muito tempo. A nação plebeia não tinha enviado pela primeira vez uma
representação honesta, não fardada, feita à sua imagem.
A estatística do congresso que se reuniu nas horas da insurreição é extremamente
incompleta. No momento de abertura, contavam-se seiscentos e cinquenta participantes
tendo voto deliberativo. Cabia aos bolcheviques trezentos e noventa delegados; longe de
serem todos membros do partido, eles eram em contrapartida a própria substância das
massas; ora, não restava a estas outras vias senão a do bolchevismo. Numerosos eram
os delegados que, tendo chegados com dúvidas, acabavam rapidamente por amadurecer
na atmosfera sobreaquecida de Petrogrado.
Com qual sucesso os mencheviques e os socialistas-revolucionários tinham
conseguido delapidar o capital político da Revolução de Fevereiro? No congresso dos
sovietes de Junho, os conciliadores dispunham de uma maioria de 600 votos sobre uma
totalidade de 832 delegados. Agora, a oposição conciliadora de todas as nuanças
constituía menos do quarto do congresso. Os mencheviques com os grupos nacionais
que aí se ligavam não contavam mais de 80 delegados cuja metade era «de esquerda».
Sobre 159 socialistas-revolucionários – segundo outros dados, 190 – as esquerdas
constituíam cerca de três quintos e, além disso, as direitas continuavam a se disolver
rapidamente no processo do próprio congresso. Cerca do fim dos trabalhos, o número de
delegados aumentou, segundo certos relatórios, até 900 pessoas; mas esse número,
compreendendo um certo número de votos consultativos, não englobava, por outro lado,
todos os votos deliberativos. O controlo dos mandatos sofria interrupções, papéis

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perdidos, as informações sobre a pertença a tal ou tal partido não são completas. De
qualquer modo, a situação dominante dos bolcheviques no congresso era incontestável.
Um inquérito feito entre os delegados demonstrou que 505 sovietes queriam a
passagem de todo o poder para a mão dos sovietes; 86 – para o poder da «democracia»;
55 – pela coligação; 21 - para a coligação sem cadetes. Esses números eloquentes,
mesmo sob este aspecto, dão todavia, uma ideia exagerada do que era a influência dos
conciliadores: para a democracia e a coligação se declaravam os sovietes das regiões
mais atrasadas e as localidades menos importantes.
No 25, cedo, teve lugar em Smolny sessões de frações. Quanto aos bolcheviques,
só estavam presentes os que estavam exemptos das missões de combate. A abertura do
congreso estava atrasada: a direcção bolchevique queria primeiro resolver a situação no
Palácio. Mas as fracções hostis, elas também não estavam apressadas: elas próprias
tinham necessidade de decidir o que iam fazer, e não era fácil. As horas passavam. Nas
fracções, as sub-fracções entravam em conflito. A cisão dos socialistas-revolucionários se
produziu depois da resolução deixar o congresso foi afastada por 92 votos contra 60. Foi
mais tarde na noite que os socialistas-revolucionários de direita e de esquerda tiveram
sessão em salas diferentes. Os mencheviques, às oito horas, reclamaram um novo prazo:
entre eles, as opiniões eram demasiado diferentes. A noite caiu. A operação em curso
diante do Palácio arrastava-se. Tornava-se impossível esperar mais: era preciso falar
claramente diante do país que acordava.
A revolução ensinava a arte da compressão. Os delegados, os visitantes, os guardas
apertavam-se na sala das festas das raparigas da nobreza para deixar entrar sem
interrupção os que chegavam. Os avisos dados sobre um possível afundamento do
soalho não tinha qualquer efeito tal como o aviso de não fumar. Todos se empurravam e
fartavam-se de fumar. Foi com dificuldade que John Reed fez caminho através da
multidão que levantava a voz diante da porta. A sala não era aquecida, mas o ar estava
pesado e ardente.
Apertados nos tambores das portas, nas passagens laterais, ou sentados sobre os
rebordos das janelas, os delegados esperavam pacientemente a campainha do
presidente. Na tribuna não se encontravam nem Tseretelli, nem Tchkheidzé, nem
Tchernov. Só os líderes de segunda ordem se tinham mostrado para assistir aos seus
próprios funerais. Um pequeno homem, em uniforme de médico-major, abriu, em nome do
Comité executivo, a sessão às 10 horas e 40. O congresso reuniu-se nas «circonstancias
tão excepcionais» que ele, Dan, cumprindo a missão que lhe foi confiada pelo Comité
executivo central, absteve-se de um discurso político: porque, enfim, os seus amigos do
partido se encontram actualmente no palácio de Inverno, expostos ao tiroteio,
«preenchendo com abnegação o seu dever de ministros». Os delegados não esperavam
menos do que a bênção do comité executivo central. Eles olhavam com aversão a tribuna:
se essa gente ainda têm uma existência política, que relação têm eles connosco e com a
nossa causa?
Em nome dos bolcheviques, Avanessov, delegado de Moscovo, propôs um
secretariado sobre a base proporcional: quatro bolcheviques, sete socialistas-

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revolucionários, três mencheviques, um internacionalista. Os homens de direita
recusaram imediatamente em fazer parte do secretariado. O grupo de Martov absteve-se
pelo momento: ele ainda não se tinha decidido. Sete votos passam para os socialistas-
revolucionários de esquerda. O congresso, rabugento, observa essas contestações
prévias.
Avanessov lê a lista dos candidatos bolcheviques para o secretariado: Lénine,
Trotsky, Zinoviev, Rykov, Noguine, Skliansky, Krylenko, Antonov-Ovssenko, Riazanov,
Moranov, Lunatcharsky, Kollontai, e Stotchka. «O secretariado compõe-se – escreve
Sokhanov – dos principais líderes bolcheviques e de um grupo de seis (na realidade de
sete) socialistas-revolucionários de esquerda.» Como nomes fazendo autoridade no
partido, Zinoviev e Kamenev são incluídos no secretariado, mesmo se eles se opuseram à
insurreição; Rykov e Noguine estão lá como representantes do Soviete de Moscovo;
Lunatcharsky e Kollontai como agitadores populares nesse período; Riazanov como
representante dos sindicatos; Moranov como velho operário bolchevique que se conduziu
corajosamente durante o processo dos deputados da Duma do Império; Stotchka como
líder da organização letã; Krilenko e Skliansky como representantes do exército; Antonov-
Ovssenko como dirigente nos combates em Petrogrado. A ausência do nome de Sverdlov
explica-se aparentemente pelo facto que ele próprio tinha estabelecido a lista e que na
confusão, ninguém a tinha rectificado. É característico para os costumes do partido que o
secretariado incluisse todo o estado-maior dos adversários da insurreição: Zinoviev,
Kamenev, Rykov, Lunatcharsky, Riazanov. Entre os socialistas-revolucionários de
esquerda o único a gozar de celebridade extensa em toda a Rússia era a pequena e
influente Spiridonova, que tinha passado longos anos nas masmorras por ter morto um
dos torcionários dos camponeses de Tambov. Não havia outros «nomes» entre os
socialistas-revolucionários de esquerda. Em contrapartida, entre os da direita, à parte dos
nomes, quase que não restava nada.
O Congresso acolheu com entusiasmo o seu secretariado. Lénine não se encontrava
na tribuna. Enquanto que se reuniam e conferenciavam as fracções, Lénine, ainda
maquilhado, de cabeleira postiça e de grandes óculos, encontrava-se na companhia de
dois ou três bolcheviques numa sala lateral. A caminho da sala da sua fracção, Dan e
Skobelev pararam diante da sala dos conspiradores olharam atentamente Lénine e
reconheceram-no. Isso significava que era tempo de deixar cair a máscara!
Lénine não se apressava, todavia, de aparecer em público. Ele preferia observar as
coisas de perto e juntar nas suas mãos os fios ao mesmo tempo que ficava nos
bastidores. Nas suas lembranças publicadas em 1924, Trotsky escreveu: «Em Smolny
teve lugar a primeira sessão do segundo Congresso dos Sovietes. Lénine não apareceu
lá. Ele continuava numa das salas de Smolny, onde, como me lembro, não havia quase
por assim dizer móveis. Logo alguém veio colocar sobre o soalho coberturas e
travesseiros. Vladimir Illitch e eu descansávamos, deitados lado a lado. Alguns minutos
depois, chamaram-me: «Dan tomou a palavra, é preciso responder.» Regressado depois
da minha réplica, deitava-me novamente ao lado de Vladimir Illitch que, bem entendido,
nem pensava dormir. Tratava-se disso? Todos os cinco minutos ou dez minutos, vinha
alguém da sala das sessões para comunicar o que aí se passava.»

775
A campainha presidencial passa para as mãos de Kamenev, um desses seres
fleumáticos que são designados pela própria natureza para presidir. A ordem do dia –
anuncia – tem três questões: a organização do poder; a guerra e a paz; a convocação da
Assembleia constituinte. Um estrondo insólito, surdo e alarmante, salienta do exterior o
ruído da assembleia: é a fortaleza Pedro e Paulo que sublinha a ordem do dia com um tiro
de artilharia. Uma corrente de alta tensão passou através do congresso que, logo, sentiu
ser o que ele era na realidade: a Convenção da guerra civil.
Losovsky, adversário da insurreição, reclama um relatório do Soviete de Petrogrado.
Mas o Comité militar revolucionário está atrasado: as réplicas do tiro de canhão
testemunham que o relatório ainda não está pronto. A insurreição está em pleno
movimento. Os líderes dos bolcheviques ausentam-se a qualquer momento, ganhando o
local ocupado pelo Comité militar revolucionário, para receber comunicações ou para dar
ordens. Os ecos dos combates mergulham na sala de sessões como línguas de fogo.
Quando se vota, os braços levantam-se no meio do eriçar de baionetas. O fumo azulado
picante, da makharka (tabaco grosseiro) dissimula as belas colunas brancas e os lustres.
As escaramuças oratórias dos dois campos tomam, sobre o fundo dos tiros de
canhão, um significado nunca visto. Martov pede a palavra. O momento onde os pratos da
balança oscilam ainda é um momento dele, esse muito inventivo homem político das
perpétuas hesitações. Com a sua voz rouca de tuberculoso, Martov respondeu
imediatamente à voz metálica dos canhões: «É indispensável parar as hostilidades dos
dois lados … Todos partidos revolucionários são colocados diante do facto consumado …
A guerra civil ameaça fazer explodir a contra-revolução. Uma solução pacífica da crise
pode ser obtida pela criação de um poder que seria reconhecido de toda a democracia.»
Uma parte importante do congresso aplaudiu. Sokhanov nota ironicamente: «Visivelmente
muitos bolchevique que não assimilaram o espírito da doutrina de Lénine e de Trotsky
seriam felizes de se comprometerem precisamente nesta via.»
A proposição de iniciar conversações pacíficas liga os socialistas-revolucionários de
esquerda e um grupo de internacionalistas unificados. A ala direita e talvez também os
mais próximos companheiros de pensamento de Martov, são certos que os bolcheviques
vão rejeitar a proposição. Eles enganam-se. Os bolcheviques enviam à tribuna
Lunatcharsky, o mais pacífico, o mais aveludado dos seus oradores. «A fracção dos
bolcheviques nada têm a objectar à proposição de Martov.» Os adversários estão
estupefactos. Lénine e Trotsky, indo diante das massas que lhes pertencem – comenta
Sokhanov – fazem deslizar o chão sob os pés da gente de direita. A proposição de Martov
é adoptada unanimemente.» Se os mencheviques e os socialistas-revolucionários partem
imediatamente, eles condenam-se eles próprios. «— assim se raciocina no grupo de
Martov. Pode-se, em consequência, esperar que o congresso «se comprometa na justa
via da criação de uma frente única democrática.» Vã esperança! A revolução nunca toma
o caminho mais fácil.
A ala direita passa imediatamente além da iniciativa de conversações de paz que
acabou de ser aprovada. O menchevique Kharach, delegado do 12º exército, tendo sobre
os ombros as estrelas de capitão, faz uma declaração: «Políticos hipócritas propõe

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resolver a questão do poder. Ora esta questão decide-se nas nossas costas … Os golpes
dados sobre o palácio de Inverno enfiam os pregos no caixão do partido que se
comprometeu em tal aventura …» Ao apelo do capitão, o congresso responde por
murmúrios indignados.
O tenente Kotchine, que tinha falado na Conferência de Estado de Moscovo em
nome da frente tenta ainda aqui agir pela autoridade das organizações do exército: «Este
congresso é importante e mesmo irregularmente constituido». Em nome de quem você
fala?» — gritam os capotes rasgados sobre os quais o mandato é marcado com a lama
das trincheiras. Kotchine numera cuidadosamente onze exércitos. Mas aqui, isso não
engana ninguém. Na frente como na retaguarda, os generais da conciliação não tinham
mais soldados. O grupo da frente, persegue o tenente menchevique, «rejeita toda a
responsabilidade pelas consequências desta aventura»; isso significa: união com a
contra-revolução contra os sovietes. E, em conclusão: «O grupo da frente … abandona
esse congresso».
Um após outro, os representantes da direita sobem à tribuna. Eles perderam suas
paróquias e sua igrejas, mas guardaram os sinos; eles apressam-se pela última vez em
tocar os sinos rachados. Os socialistas e os democratas que, por todos os meios
honestos ou desonestos, concordaram com a burguesia imperialista, recusam hoje
nitidamente em se entenderem com o povo insurgido. Seus cálculos políticos são
revelados: os bolcheviques serão derrubados dentro de alguns dias; é preciso, o mais
cedo possível separar-se deles, mesmo ajudar a derrubá-los e, por aí, resguardar tanto
que possível um futuro para si próprio.
Em nome da fracção dos mencheviques de direita, uma declaração é avançada por
Khintchuk, antigo presidente do soviete de Moscovo e futuro embaixador em Berlin. «A
conspiração militar dos bolcheviques … , lança o país na guerra intestina, mina a
Assembleia constituinte, ameaça com uma catástrofe na frente e leva ao triunfo da contra
revolução.» A única saída «está nas conversações com o governo provisório sobre a
formação dum poder apoiando-se sobre todas as camadas da democracia». Não tendo
aprendido nada, essa gente propunha ao congresso de acabar com a insurreição e o
regresso de Kerensky. A travers da barafunda, os mugidos, mesmo os assobios,
distingue-se com dificuldades as palavras do representante dos socialistas-
revolucionários de direita. A declaração do seu partido proclama «a impossibilidade de um
trabalho comum» com os bolcheviques, e afirma que o próprio congresso dos sovietes,
convocado e aberto pelo Comité executivo central conciliador, não está regularmente
constituído.
A manifestação das direitas não intimida, mas inquieta e agaça. A maioria dos
delegados foram demasiado excedidos pelos líderes pretenciosos e limitados que
primeiro lhes encheram de frases e logo os reprimiram. É possível que os Dan, os
Khintchuk e os Kotchine se disponham ainda em dar lições e a comandar? Um soldado
letão, Peterson, que tem as maças do rosto vermelhas dum tuberculoso e os olhos
vermelhos de paixão, acusa Kharach e Kotchine de serem impostores. «Basta de
resoluções e de conversa vazia. Queremos actos! O Poder deve estar entre nossas mãos.

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Os impostores que deixem o congresso – o exército não está com eles!» A voz veemente
da paixão alivia os espíritos nesse congresso que até então só recolhia injúrias. Outros
homens da frente logo apoiaram Peterson. «Os Kotchine representam opiniões de
pequenos grupos que se instalaram em Abril nos comités.» «Os habitantes das trincheiras
esperam com impaciência que o poder seja remetido nas mãos dos sovietes.»
Mas a gente de direita ocupam ainda certos redutos. O representante do Bund
declara que «tudo o que se passa em Petrogrado é uma desgraça» e convida os
delegados a se juntarem aos conselheiros da Duma municipal que se dispunha a se
render sem armas ao palácio de Inverno para aí morrer com o governo. «Nessa
barafunda – escreve Sokhanov – distingue-se as troças, umas grosseiras outras
venenosas.». O patético orador visivelmente enganou-se de auditório. «Basta!
Desertores!» gritam, por detrás dos que saem, os delegados, os convidados, os guardas
vermelhos, os soldados que estão de guarda. «Vão para o Kornilov! Inimigos do povo!»
A saída dos homens de direita não cria o vazio. Os delegados da fila recusam
evidentemente de se juntar aos oficiais e aos junkeres pela luta contra os operários e os
soldados. As diversas fracções da ala direita desertaram, aparentemente, cerca de
setenta delegados, isto é um pouco mais que metade. As hesitações tomavam lugar aos
lados dos grupos intermediários que tinham resolvido abandonar o congresso. Se, antes
da abertura da sessão , os socialistas-revolucionários de todas as tendências não eram
mais de cento e noventa – o número dos únicos socialistas- revolucionários de esquerda,
nas primeiras horas que seguiram, subiu até a cento e oitenta: a eles juntaram-se todos
os que ainda não se tinham decidido a aderir aos bolcheviques, mesmo se eles já
estivessem prontos a apoiá-los.
No governo provisório ou em qualquer outro pré-parlamento, os mencheviques e os
socialistas-revolucionários continuavam em causa. Pode-se, na realidade, romper com a
sociedade cultivada? Mas, os sovietes, são sobretudo o povo. Os sovietes são bons para
qualquer coisa mesmo para se apoiarem sobre eles para se entenderem com a
burguesia. Mas concebe-se que se tolera os sovietes que têm a pretensão de se tornarem
mestres do país? «Os bolcheviques continuaram sós – escrevia no seguimento o
socialista-revolucionário Zenzinov – e, a partir desse momento, eles começaram a apoiar-
se unicamente sobre a força física brutal.» Sem dúvida, o princípio moral partiu batendo a
porta, ao mesmo tempo que Dan e Gotz. O princípio moral se irá, em procissão de
trezentas pessoas, tendo duas lanternas, ao palácio de Inverno, para cair ainda sobre a
força física brutal dos bolcheviques – e bater em retirada.
A proposição de conversações de paz aprovada pelo congresso continuava
suspensa. Se as direitas tinham admitido a ideia de um acordo com o proletariado
vitorioso, elas nas estariam apressadas em romper com o congresso. Martov não pode
dispensar-se de os compreender. Mas agarra-se à ideia de um compromisso sobre a qual
se baseia e cai toda a sua política. «É indispensável parar a efusão de sangue …»,
retoma ele. «São somente rumores!» gritam-lhe. «Aqui não se ouve somente os ruídos,
responde; se você se aproxima da janela, ouvireis também tiros de canhão?» Argumento

778
irrefutável: quando o congresso silenciou, os tiros ouviram-se, e não somente junto das
janelas.
A declaração lida por Martov, inteiramente hostil aos bolcheviques e estéril nas suas
deduções, condena a insurreição como «sendo realizada somente pelo partido
bolchevique por meio de uma conspiração puramente militar, e exige a suspensão dos
trabalhos do congresso até um acordo com «todos os partidos socialistas». Correr numa
revolução atrás do resultado, é pior que procurar apanhar a sua sombra!
Nesse momento aparece na sessão Ioffe, futuro primeiro embaixador dos Sovietes
em Berlim, à cabeça da fracção bolchevista da Duma municipal, que recusou procurar
uma morte problemática debaixo dos murros do palácio de Inverno. O congresso ainda se
apertou, acolhendo os amigos com as felicitações cheias de alegria.
Mas é preciso responder qualquer coisa a Martov. Esta tarefa é confiada a Trotsky.
«Imediatamente após a saída das direitas, a sua posição – reconhece Sokhanov – é tão
sólida como a de Martov é fraca.» Os adversários metem-se de cada lado da tribuna,
empurrados por todos os lados por um círculo estreito de delegados sobre-excitados. «O
que aconteceu, diz Trotsky, foi uma insurreição, e não de forma nenhuma uma
conspiração. O levantamento das massas populares não necessita de justificação. Nós
guiámos a energia revolucionária das massas operárias e dos soldados de Petrogrado.
Nós abertamente forjámos a vontade das massas pela insurreição e não por uma
conspiração … A nossa insurreição venceu e agora fazem-nos uma proposição: renunciai
à vossa vitória, façam um acordo. Com quem? Peço: com quem deveríamos concluir um
acordo? Com os miseráveis pequenos grupos que saíram daqui? … Mas nós os vimos
inteiros. Não há mais ninguém atrás deles na Rússia. Com eles deveriam concluir um
acordo, de igual a igual, milhões de operários e camponeses, representados nesse
congresso, esses, sempre dispostos a entregar à burguesia? Não, aqui o congresso não
vale nada! Aos que saíram daqui como os que apresentam tais proposições, devemos
dizer: vocês estão lamentavelmente isolados, vocês estão de bancarrota, vosso papel
está jogado, o vosso lugar é na lixeira da história! …
«Então, nós saímos!» grita Martov, sem esperar o voto do congresso.» Martov,
furioso e agitado – escreve Sokhanov – começou a abrir caminho da tribuna até à saída.
Comecei a convocar com urgência uma reunião extraordinária da minha fracção...» De
maneira nenhuma se tratava de um acesso. O Hamlet do socialismo democrático, Martov,
tinha avançado um passo quando a revolução emergia, como em Julho; agora que a
revolução se prestava a saltar como uma fera, Martov recuava. A saída das direitas
tinham-lhe retirado a possibilidade de uma manobra parlamentar. Logo, ele não se sentia
à vontade. Ele apressava-se a abandonar o congresso para se destacar da insurreição.
Sokhanov respondeu como pôde. A fracção dividiu-se em metades quase iguais: por
catorze votos contra doze, Martov ganhou.
Trotsky propôs ao congresso uma resolução – um acto de acusação contra os
conciliadores: foram eles que prepararam a ofensiva desastrosa do 18 de Junho; foram
eles que apoiaram o governo que traía o povo; foram eles que esconderam aos
camponeses a vigarice na questão agrária; foram eles que asseguraram o desarmamento

779
dos operários; foram eles que permitiram à burguesia agravar a situação económica;
foram eles que, tendo perdido a confiança das massas, opuseram-se à convocação do
congresso dos sovietes; enfim, tendo-se encontrado em minoria, romperam com os
sovietes.
Novamente, uma moção de ordem: na verdade, a paciência do secretariado
bolchevique não tem limites. Um representante do Comité executivo dos sovietes
camponeses chegou, encarregado de convidar os rurais a abandonar o congresso
«inoportuno» e a se apresentarem no palácio de Inverno, «para morrer com os que foram
enviados para lá com o fim de realizar as nossas vontades». Os convites a morrer sob as
ruínas do palácio de Inverno tornaram-se bastantes maçadoras pela sua monotonia. Um
marinheiro do Aurora que se apresentou ao congresso declarou ironicamente que não há
ruínas, visto que o cruzador dispara em branco. «Continuai tranquilamente as vossas
ocupações.» O congresso retoma o fôlego diante desse magnifico marinheiro de barba
negra que incarna a simples e imperiosa vontade da insurreição. Martov, com as suas
ideias e sentimentos em mosaico, pertence a outro mundo: é por isso que ele rompe
também com o congresso.
Ainda uma moção de ordem, desta vez meio amigável. «Os socialistas-
revolucionários de direita – dita Kamkov – partiram, mas nós, de esquerda, ficámos.» O
congresso saúda os que ficaram. Todavia, esses últimos tambem consideram
indispensável realizar uma frente única revolucionária e pronunciam-se contra a violenta
resolução de Trotsky que fecha as portas a um acordo com a democracia moderada.
Os bolcheviques, ainda aí, tomam a dianteira. Parece que nunca ninguém os viu
assim dispostos a fazer concessões. Não é de admirar: eles são mestres da situação e
não necessitam de insistir sobre os termos. Na tribuna se levanta de novo Lunatcharsky.
«O peso da tarefa que nos ocupa não faz qualquer dúvida.» A unificação de todos os
elementos efectivamente revolucionários da democracia é indispensável. Mas será que
nós, bolcheviques, demos um só passo que afastaria os outros grupos? Será que nós não
adaptámos unanimemente a proposição de Martov? A isso responderam-nos por
acusações e ameaças. Não é evidente que os que abandonaram o congresso
«suspendem sua actividade conciliadora e passam abertamente para o campo dos
kornilovianos»?
Os bolcheviques não insistem sobre a necessidade de votar imediatamente a
resolução de Trotsky: eles não querem perturbar as tentativas feitas para obter um acordo
sobra a base soviética. O método das lições de coisas é aplicada com sucesso, mesmo
acompanhada de tiros de canhão! Mesmo como antes, a adopção da proposição de
Martov, agora a concessão feita a Kamkov, revela somente a impotência dos esforços de
conciliação. Todavia, distinguindo-se dos mencheviques de esquerda, os socialistas-
revolucionários de esquerda não abandonam o congresso: eles sentem sobre eles
demasiado directamente a pressão da aldeia insurrecta.
Sondaram-se reciprocamente. As posições à partida são ocupadas. No
desenvolvimento do congresso dá-se uma pausa. Adoptar os decretos fundamentais e
criar um governo soviético? Impossível: o velho governo ainda ocupa o palácio de

780
Inverno, numa sala meio escura, onde a única lâmpada, sobre a mesa, é coberta por um
jornal. Após duas horas da manhã, o secretariado declara a sessão suspensa por meia
hora.
Os marechais vermelhos utilizaram com grande sucesso o curto prazo que lhes tinha
sido acordado. Houve qualquer coisa de novo no ambiente do congresso quando a
sessão foi retomada. Kamenev leu na tribuna um telegrama que acabou de receber de
Antonov: o palácio de Inverno tinha sido tomado pelas tropas do Comité militar
revolucionário; com a excepção de Kerensky, todo o governo provisório foi preso, o
ditador Kichkine à cabeça. Mesmo se a notícia voou de boca em boca, o comunicado
oficial caiu mais estrondosamente que uma salva de artilharia. O salto por cima do abismo
separando do poder da classe revolucionária foi feito. Os bolcheviques que tinham sido
expulsos em Julho do hotel particular de Kczesinska tinham agora entrado como mestres
no palácio de Inverno. Na Rússia, não há outro poder senão o desse congresso. Uma
embrulhada confusa de sentimentos surge nos aplausos e gritos: triunfo, esperança, mas
também alarmes. Novas rajadas, cada vez mais fogosas, de aplausos. O caso está
resolvido? A relação de forças mesmo a mais propícia está cheia de improvistos. A vitória
torna-se incontestável quando o estado-maior do inimigo foi preso.
Kamenev descreve com uma voz imponente as personagens presas. Os nomes
mais conhecidos arrancam ao congresso exclamações hostis ou irónicas. É com uma
exasperação particular que se escuta o nome de Terechtchenko, que presidia ao destino
exterior da Rússia. Mas Kerensky? Kerensky? Sabe-se que às dez horas da manhã
exercia-se na arte oratória, sem grande sucesso, diante da guarnição de Gatchina. «Onde
teria ele ido a seguir? Não se sabe exactamente: segundo os rumores, ele teria partido
para a frente.»
Os companheiros de estrada da insurreição não se sentem à vontade. Pressentem
que, doravante, o comportamento dos bolcheviques era mais firme. Alguém dos
socialistas-revolucionários de esquerda protesta contra a prisão dos ministros socialistas.
O representante dos internacionalistas unificados lança este aviso: é preciso evitar que o
ministro da Agricultura, Maslov se encontrasse na mesma célula que ele esteve durante o
regime monárquico. «Uma prisão política – responde Trotsky, que foi detido do tempo do
ministro Maslov na prisão de Kresty, tal como no tempo de Nicolau – não é um caso de
vingança: ela é ditada … por considerações racionais. O governo..., deve ser julgado por
um tribunal, antes de mais pela sua ligação incontestável com Kornilov … Os ministros
socialistas serão somente mantidos à vista nos seus domicilios.» Teria sido mais simples
e mais exacto dizer que a captura do velho governo era simplesmente ditada pelas
necessidades de uma luta inacabada. Tratava-se de decapitar politicamente o campo
inimigo e não de punir as más acções precedentes.
Mas a interpelação parlamentar sobre as prisões é imediatamente eliminada por
outro episódio de importância infinitamente mais considerável: o 3º batalhão de
motociclistas, que Kerensky fez encaminhar sobre Petrogrado, se colocou ao lado do
povo revolucionário! Esta notícia demasiado favorável parece faltar de veracidade;
portanto é assim: um contingente seleccionado, o primeiro que foi destacado da frente,

781
antes mesmo de chegar à capital, juntou-se à insurreição. Se o congresso, na sua alegria
de saber os ministros presos, tinha colocado uma nuança de moderação, agora é colhido
por um entusiasmo sem mistura e sem limites.
Na tribuna, o comissário bolchevique de Tsarkoie-Selo junto do delegado do batalhão
de motociclistas: todos dois acabados de chegar para fazer seus relatórios ao congresso.
«A guarnição de Tsarkoie-Selo guarda os arredores de Petrogrado.» Os partidários da
defesa nacional deixaram o soviete. «Todo o trabalho tinha caído sobre nós somente.»
Tendo sabido da próxima chegada dos motociclistas, o soviete de Tsarkoie-Selo
preparava-se par resistir. Mas o alarme dado mostrou ser, felizmente, vã: «Entre os
motociclistas, não há inimigos do congresso dos soviets.» Logo chegará a Tsarkoie-Selo
outro batalhão: preparamo-nos já a recebê-lo amigavelmente. O congresso bebe esse
relatório como leite.
O representante dos motociclistas é acolhido por uma tempestade, um turbilhão , um
ciclone de aplausos. Da frente Sudeste, a 3º batalhão foi subitamente expedido para o
Norte por ordem telegráfica: «Defender Petrogrado.» Os motociclistas seguiram, «os
olhos vedados», não adivinhando vagamente do que se tratava. Em Paredolskaia, eles
caíram sobre um escalão do 5º batalhão de motociclistas que tinha sido igualmente
enviado contra a capital. Num comício comum que teve lugar na gare, demonstrou-se que
«todos os seus motociclistas, não se encontrou um só pronto a consentir ir contra os seus
irmãos.» Decisão tomada em comum: não se submeter ao governo. «Declaro-vos
concretamente – diz o motociclista – nós não daremos o poder a um governo à cabeça do
qual se encontram burgueses e proprietários nobres!» A palavra «concretamente»
introduzida no uso popular pela revolução, soava bem nesse momento.
Havia já bastante tempo que, na mesma tribuna, o congresso era ameaçado de
sofrer os castigos da frente? Agora, a própria frente tinha dito «concretamente» a sua
palavra. Que os comités sabotem o congresso; que a massa de soldados tenha
conseguido sobretudo excepcionalmente enviar os seus delegados; que numerosos
regimentos e divisões, ainda não se tivesse aprendido a distinguir um bolchevique de um
socialista-revolucionário, pouco importa! A voz que vem de Peredolskaia é uma voz
autêntica, infalível, irrefutável, do exército. Contra esse veredicto, não há apelo. Os
bolcheviques, e só eles, tinham compreendido no momento oportuno que o cozinheiro do
batalhão dos motociclistas representava infinitamente melhor a frente do que todos os
Kharach e os Kutchine com seus mandatos super utilizados. No estado de espírito dos
delegados se produziu uma brusca modificação, muito significativa. «Começa-se a sentir
– escreve Sokhanov – que o assunto marcha sózinho e de forma favorável, que os
perigos anunciados pela direita não parecem tão terríveis que isso, e que os líderes
podem ter razão no resto.»
É o momento que escolheram os lamentáveis mencheviques de esquerda para
lembrar sua existência. Acontece que eles ainda não tinham saído. Discutiam na sua
fracção a questão de saber como se comportar. Esforçando-se de arrastar o grupo de
hesitantes, Kapelinsky, que se encarregou de anunciar ao congresso a decisão tomada,
indica enfim o motivo o mais franco de uma ruptura com os bolcheviques: «Lembrem-se

782
que tropas avançam para Petrogrado. Estamos sob ameaça de uma catástrofe. — Como?
E vocês ainda estão aqui?» Esses gritos partem de diferentes pontos da sala. «Mas vocês
já saíram uma vez!» Os mencheviques, em pequenos grupos, se dirigem para a porta,
acompanhados por exclamações desprezíveis. «Nós saímos declara Sokhanov com um
tom aflito – tendo completamente libertado as mãos dos bolcheviques, tendo-lhes cedido
todo o terreno da revolução.» Pouco teria ficado se os que fala Sokhanov não tivessem
abalado. De qualquer modo, eles foram derrotados. O curso dos acontecimentos se
fechou implacavelmente sobre suas cabeças.
Era tempo para o congresso de dirigir um apelo ao povo. Mas a sessão continua a
desenrolar-se em simples moções de ordem. Os acontecimentos não entram de forma
nenhuma na ordem do dia. As 5h 17 da manhã, Krylenko, titubiando de cansaço, subiu à
tribuna, com um telegrama na mão: o 12º exército saúda o congresso e informa sobre a
criação de um comité militar revolucionário que se encarregou de vigiar a frente Norte. As
tentativas feita pelo governo para obter uma ajuda armada se tinham quebrado na
resistência das tropas. O general Tcheremissov, comandante chefe da frente Norte, tinha-
se submetido ao comité. O comissário do governo provisório Voitinsky, tinha-se demitido e
esperava um substituto. Delegações dos escalões que tinham sido enviados sobre
Petrogrado declararam, uma após outra, ao Comité militar revolucionário, que elas se
juntavam à guarnição de Petrogrado. «Aconteceu qualquer coisa inimaginável, escreveu
John Reed: as pessoas choravam e abraçavam-se.»
Lunatcharsky encontrou enfim a possibilidade de ler em voz alta um apelo aos
operários, aos soldados, aos camponeses. Mas não é simplesmente um apelo: pela
simples exposição do que se passou e do que se previa, o documento, redigido à pressa,
pressupõe o início de um novo regime de Estado. «Os plenos poderes do Comité
executivo central conciliador expiraram. O governo provisório foi deposto. O congresso
toma o poder.» O governo soviético proporá uma paz imediata, entregará aos
camponeses a terra, dará o estatuto democrático ao exército, estabelecerá um controle
sobre a produção, convocará no momento oportuno a assembleia constituinte, assegurará
o direito das nações da Rússia a disporem de elas próprias.» O congresso decide que
todo o poder, em todas as localidades, é entregue aos sovietes. Cada frase lida levanta
uma salva de aplausos. «Soldados mantenham-se vigilantes! Ferroviários, parai todos os
trens dirigidos por Kerensky sobre Petrogrado! … Entre as vossas mãos se encontra a
sorte da revolução e da paz democrática!»
Ouvindo falar da terra, os camponeses agitaram-se. O congreso representa,
segundo o regulamento, somente os operários e soldados; mas há também como
participantes delegados de diferentes sovietes camponeses: agora, estes exigem que
sejam mencionados também nos documentos. Acordam-lhe imediatamente o direito de
voto deliberativo. O representante do soviete camponês de Petrogrado assina o apelo
«com os pés e as mãos». Um membro do comité executivo de Avksentiev, Berezine, que
esteve calado até então, comunica que, sobre sessenta e oito sovietes camponeses que
responderam ao inquérito telegráfico, a metade pronunciou-se pelo poder dos sovietes, a
outra metade pela transmissão do poder à Assembleia constituinte. Se tal é o estado de

783
espírito dos sovietes da província, meio composto de funcionários, pode-se duvidar que o
futuro congresso camponês apoie o poder soviético?
Agrupando mais estreitamente os delegados da fila, o apelo assusta e mesmo afasta
certos companheiros de estrada pelo seu carácter inelutável. De novo desfilam na tribuna
as pequenas fracções, a limalha. Pela terceira vez produz-se a ruptura com o congresso,
a de um pequeno grupo de mencheviques, provavelmente os que estão mais à esquerda.
Eles saem, mas somente para guardar a possibilidade de salvar os bolcheviques: «De
outra forma vós vos perdeis também, vós perdereis a revolução.» O representante do
partido socialista polaco, Lapinsky, ainda que tenha ficado no congresso para «defender o
seu ponto de vista atá ao fim» junta-se em suma à declaração de Martov:» Os
bolcheviques não poderão tirar partido do poder que eles toma sobre eles.» O partido
judeu unificado abstém-se de votar. Os internacionalistas unificados fazem o mesmo.
Quantos votos, todavia, todos esses «unificados» representam no conjunto? O apelo é
adoptado por todos os votos contra dois, com duas abstenções! Os delegados quase que
já não têm força para aplaudir.
A sessão é enfim levantada perto das 6 horas. Na cidade se descobre uma manhã
de outono cinzenta e fria. Nas ruas que amanhecem pouco a pouco brilhas as manchas
ardentes das brasas dos vigilantes. As caras ternes dos soldados e operários armados de
fuzis estão fechadas e como não era hábito. Se houvessem astrólogos em Petrogrado,
eles deviam observar importantes presságio no mapa mundo celeste.
A capital acordou sob um novo poder. O cidadão comum, os funcionários, os
intelectuais, vivendo afastados da cena dos acontecimentos, lançaram-se logo pela
manhã sobre os jornais para saber qual margem a maré da noite os tinham lançado. Mas
não é fácil elucidar o que se passou. Na verdade, os jornais falam da tomada do palácio
de Inverno pelos conspiradores e a prisão dos ministros, mas somente como um episódio
passageiro. Kerensky partiu para o Grande Quartel General, a sorte do poder será
decidida pela frente. Os relatórios do congresso reproduzem somente as declarações das
direitas, enumeram os que saíram e denunciam a impotência dos que ficaram. Os artigos
políticos escritos antes da tomada do palácio de Inverno transpiram um optimismo sem
nuvens.
Os rumores da rua não correspondem ao tom dos jornais. No fim de contas, os
ministros mesmo assim estão presos na fortaleza. Do lado de Kerensky, não se vê
reforços pelo momento. Os funcionários e os oficiais comovem-se e têm conciliábulos. Os
jornalistas e os advogados trocam telefonemas. As redacções tratam de juntar suas
ideias. Os oráculos dos salões dizem: é preciso cercar os usurpadores por um bloco de
desprezo público. Os comerciantes não sabem se devem continuar a comercializar ou se
privarem. Os poderes novos ordenam que se comercialize. Os restaurantes abrem. Os
tróleis funcionam, os banco aborrecem-se nos maus pressentimentos. Os sismógrafos da
Bolsa descrevem uma curva compulsiva. Bem entendido, os bolcheviques não se
manterão por muito tempo, mas antes de caírem, eles podem causar infelicidade.
O jornalista reaccionário français Claude Anet escrevia nesse dia: «Os vencedores
cantam o hino da vitória. E têm perfeitamente razão. No meio de todos esses faladores,

784
eles agiram … Hoje, colhem o que semearam. Bravo! Foi um belo trabalho!» A situação
foi apreciada de outro modo pelos mencheviques. «Vinte e quatro horas decorreram
desde da «vitória» dos bolcheviques – escrevia o jornal de Dan – e a fatalidade histórica
começa já a tirar deles uma cruel vingança … à volta deles, é o vazio que eles próprios
criaram … eles todos se isolaram... todo o aparelho dos funcionários e técnicos recusa
meter-se ao serviço deles... eles...afundam-se no mesmo momento do seu triunfo num
abismo...»
Encorajados pela sabotagem dos funcionários e pela sua própria ligeireza, os
círculos liberais e conciliadores acreditam estranhamente na sua impunidade. Sobre os
bolcheviques, eles falavam e escreviam na linguagem das Jornadas de Julho:
«mercenários de Guilherme», «os bolsos dos homens da guarda vermelha estão cheios
de marks alemãs», «são os oficiais alemãs que comandam a insurreição» … O novo
poder devia mostrar a essa gente um forte punho antes mesmo que eles comecem a
acreditar nisso. Os jornais mais enfurecidos foram proibidos logo na noite do 25 a 26. um
certo número de outros foram confiscados no decorrer do dia. A imprensa socialista foi
poupada pelo momento: era preciso dar aos socialistas-revolucionários de esquerda, e
também a certos elementos do partido bolchevique, a possibilidade de se convencer da
inconsistência das esperanças de uma coligação com a democracia oficial.
No meio da sabotagem e do caos, os bolcheviques desenvolviam sua vitória.
Organizado na noite, um Estado-maior provisório ocupou-se da defesa de Petrogrado em
caso de ofensiva de Kerensky. Na central telefónica, onde a greve começou, foram
enviados telefonistas militares. Os exércitos foram convidados a criarem os seus comités
revolucionários. Na frente e na província grupos de agitadores e de organizadores foram
enviados após a vitória. O orgão central do partido escrevia: «O Soviete de Petrogrado
pronunciou-se – é a vez dos outros sovietes.»
No decorrer do dia chegou a notícia que lançou o sarilho entre os soldados: Kornilov
fugiu. Na realidade, esse distinto prisioneiro, que residia em Bykhov sob a guarda dos
homens fiéis de Tek e que era tido pelo Grande Quartel General de Kerensky ao corrente
de todos os acontecimentos, tinha decidido, no 25, que o assunto tomava um aspecto
sério e, sem a mais pequena dificuldade, tinha abandonado a sua prisão imaginária. A
ligação entre Kerensky e Kornilov confirmou-se de novo com toda evidência ao olhos das
massas. O comité militar revolucionário apelava por telegrama aos soldados e oficiais
revolucionários a prender e entregar a Petrogrado os dois antigos generalíssimos.
Como em Fevereiro, o palácio de Tauride, agora Smolny tinha-se tornado o centro de
todas as funções da capital e do Estado. Aí era a sede de todas as instituições dirigentes.
Daí partiam as decisões, ou era aí que as vinham procurar. Era aí que se reclamavam as
armas, e que se entregavam os fuzis e os revólveres confiscados ao inimigo. De
diferentes pontos da cidade traziam as personagens sob prisão. Já se juntavam os que
tinham sido ofendidos, procurando justiça. O público burguês e os cocheiros de
carruagens assustados cercavam Smolny formando um largo círculo.
O automóvel é um símbolo do poder muito mais eficaz que o espectro e o globo. Sob
o regime da dualidade de poderes, os automóveis eram partilhados entre o governo, o

785
comité executivo central e os particulares. Pelo momento, todas as máquinas confiscadas
eram entregues ao campo da insurreição. O parque de Smolny parecia um gigantesca
garagem de campanha. Os melhores automobilistas exalavam mau cheiro de um
carburante detestável. Os motociclistas trepidavam impacientes e ameaçantes na
penumbra. Os carros blindados faziam tocar os suas buzinas. Smolny parecia uma
fábrica, uma gare e uma estação de energia da insurreição.
Nos passeios das ruas adjacentes se prolongava uma torrente apertada de gente.
Diante das portas interiors e exteriores queimavam os cavacos. À luz vacilante, os
operários armados e soldados vigiavam atentamente os salvo-condutos. Alguns carros
blindados eram sacudidos no pátio pelo funcionamento dos seus motores. Ninguém
queria parar, nem as máquinas, nem as pessoas. A cada entrada encontravam-se
metralhadoras fornecidas em abundância por fitas de cartuchos. Os intermináveis e ternos
corredores, fracamente iluminados, zumbido os ruídos de passos, exclamações, apelos.
Os que chegavam e saíam tomavam a larga escadaria, uns para cima, os outros para
baixo. Esta massa de lava humana era cortada por individuos impacientes e autoritários,
militantes de Smolny, estafetas, levando o fuzil às costas, amarrado por um cordel, ou
então por uma toalha debaixo do braço.
O comité militar revolucionário não se interrompeu nem por um minuto o trabalho,
recebia delegados, estafetas, informadores voluntários, amigos cheios de abnegação e
malandros, enviou para todos os cantos da capital comissários, colocou numerosos
carimbos nas ordens e certificados de poderes – tudo isso através de pedidos de
informação que se entrecruzavam, comunicados urgentes, chamadas telefónicas e os
ruídos de armas. Extenuados, os homens, que não tinham nem dormido nem comido
desde muito tempo, barba por fazer, vestidos ,... de roupa suja, com os olhos inflamados,
gritavam com voz rouca, gesticulando de forma exagerada e, se na caíam inanimados no
soalho, era, parece, somente graças ao caos do ambiente que os fazia viravoltar e os
levava sobre as suas asas irresistíveis.
Aventureiros, devassos, os piores detritos dos velhos regimes procuravam introduzir-
se em Smolny. Alguns deles encontravam. Eles conheciam alguns pequenos segredos da
direcção: que possui as chaves da correspondência diplomática, como se redige os
cheques para obter fundos, onde se obtêm a gasolina ou uma máquina de escrever, e,
particularmente, onde se conservam os melhores vinhos do palácio. Não é à primeira que
eles se encontravam na prisão ou sob a bala de um revólver.
Desde da criação do mundo, nunca tantas ordens tinham sido lançadas, oralmente,
em lápis, à máquina, por telefone, um procurando apanhar o outro, — grande numero de
ordens – nem sempre enviadas por aqueles que tinham o direito de comandar e
raramente recebidos por aqueles que estavam em situação de executar, que as pessoas
se arranjavam para se compreender entre elas, que o mais importante e o mais
indispensável era mesmo assim executado, que, para substituir o velho aparelho de
direcção, os primeiros fios de uma direcção nova estavam estendidos: a revolução se
reforçava.

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Durante o dia trabalhou em Smolny o Comité central dos bolcheviques: tratava-se de
decidir sobre o novo governo da Rússia. Nenhum processo verbal não foi estabelecido, ou
então não foi conservado. Ninguém se preocupava com os historiadores do futuro,
mesmo se estivesse em vias de lhes preparar bastantes preocupações. Na sessão da
noite do congresso, a assembleia deve criar um gabinete ministerial. Ministros? Eis uma
palavra bastante comprometida! Isso cheira a carreirismo burocrático ou então ao coroar
de uma ambição parlamentar. Decide-se que se chamará o governo: «Conselho dos
Comissários do Povo»; Isso mesmo assim tem um ar novo. Dado que as conversações
sobre a coligação de «toda a democracia» dado nada até então, o problema da
composição do governo, tanto em relação ao partido como às personalidades, era
simplificado. Os socialistas-revolucionários de esquerda fazem denguices e se fecham:
acabado de romper com o partido de Kerensky, eles ainda não sabem bem eles próprios
o que têm a fazer. O Comité central adopta a proposição de Lénine como a única
admissível: formar um governo composto unicamente de bolcheviques.
No decurso desta sessão, Martov veio apresentar a causa dos ministros socialistas
que tinham sido presos. Pouco tempo antes, ele tinha tido ocasião de intervir junto dos
ministros socialistas para a libertação dos bolcheviques. A roda tinha feito uma volta
famosa. Por intermediário de um dos seus membros, destacado para se encontrar com
Martov, de Kamenev sem dúvida, o Comité centra confirmou que os ministros socialistas
seriam presos em domicílio: aparentemente, tinham esquecido de pensar neles, entre
outros assuntos, ou então eles próprios tinham renunciado aos seus previlégios,
respeitando, mesmo no bastião Trobetskoi, o príncipio da solidariedade ministerial.
A sessão do congresso abriu-se às 9 horas da noite. «O quadro diferia muito pouco
do da véspera. Menos armas, menos ajuntamentos.» Sokhanov, já não na qualidade de
delegado, mas misturado ao público, encontrou lugar. Nesta sessão, devia-se decidir da
questão da paz, da terra e do governo. Pelo menos três questões: acabar com a guerra,
dar a terra ao povo, estabelecer a ditadura socialista. Kamenev começa por um relatório
sobre os trabalhos aos quais se dedicou o secretariado durante o dia: aboliu-se a pena de
morte que Kerensky tinha restabelecido na frente; restitui-se toda a liberdade de agitação;
a ordem tinha sido dada de libertar os soldados presos por delitos de opinião e os
membros dos comités agrários; são evocados todos os comissários do governo
provisório; ordem é dada para prender e entregar Kerensky e Kornilov. O congreso aprova
e confirma.
Novamente dão prova de existência, diante de uma sala impaciente e desconfiada,
toda especie de restos: uns dão a saber que abandonam — «no momento da vitória da
insurreição e não no momento da derrota» — outros, em contra partida, se vangloriam por
ficar. O representante dos mineiros de Donetz pede que se tome medidas urgentes para
que Kalenie não corte o envio de carvão para o Norte. Passará bastante tempo antes que
a revolução tenha aprendido a tomar medidas desta envergadura. Enfim, pode-se passar
ao primeiro parágrafo da ordem do dia.
Lenine, que o congresso ainda não viu, recebe e palavra para tratar da paz. A sua
aparição na tribuna levanta aplausos intermináveis. Os delegados das trincheiras abrem

787
grande olhos par ver o homem misterioso que lhes ensinaram a detestar e que eles
aprenderam, sem o conhecer, a amar. Agarrando-se solidamente, sem se interessar
visivelmente, às ovações incessantes que duraram vários minutos. Quando a
manifestação terminou, ele disse simplesmente: «Agora, vamos nos ocupar da edificação
da ordem socialista.»
Não ficou do processo-verbal do congres. As estenógrafas parlamentares,
convidadas a tomar nota dos debates tinham abandonado Smolny com os menchevique e
os socialistas-revolucionários; é um dos primeiros episódios da sabotagem. As notas
tomadas pelas secretárias perderam-se irremediavelmente no abismo dos
acontecimentos. Só ficaram os relatórios apressados e tendenciosos dos jornais que
tinham sido redigidos sob o ruído dos tiros de canhão ou então através do ranger de
dentes da luta política. Os relatórios de Lénine sofreram particularmente da situação: pela
rapidez do seu débito e da complexa construção dos períodos, os relatórios, mesmo nas
circunstâncias mais favoráveis, não se prestavam facilmente a tomar notas. A frase de
introdução que John Reed mete nos lábios de Lénine não se encontra em qualquer relato
dos jornais. Mas ela é completamente no espírito do orador. Reed não podia inventar. É
precisamente assim que Lénine devia começar a sua intervenção no congresso dos
sovietes, simplesmente, sem pathos, com uma segurança irresistível: «Agora, vamos nos
ocupar da construção da ordem socialista.»
Mas, para isso, é preciso antes de tudo acabar com a guerra. No tempo de sua vida
de emigrado na Suíça, Lénine tinha lançado a palavra de ordem: «transformar a guerra
imperialista em guerra civil». Agora, era preciso transformar a guerra civil vitoriosa em
paz. O relator começa directamente por ler um projecto de declaração que o governo
eleito terá que publicar. O texto não é distribuído: a técnica é ainda fraca. O congresso dá
toda a sua atenção à leitura da cada palavra do documento.
«O governo operário e camponês, criado pela resolução dos 24-25 de Outubro e
apoiando-se sobre os sovietes de deputados operários, soldados e camponeses, propõe
a todos os povos beligerantes e a seus governos o início imediato de conversações por
uma paz justa e democrática.» Clásulas rejeitam toda as anexações e contribuições. Sob
o termo de «anexação», convém entender a associação forçada de populações
estrangeiras ou então a sua manutenção na servidão contra sua vontade, na Europa ou
além dos oceanos. «Ao mesmo tempo, o governo declara que ele não considera as
condições de paz acima indicadas como ultimatos, isto é que está de acordo para
examinar todas outras condições», exigindo somente que se venha o mais cedo possível
às conversações e que todo o segredo seja eliminado no decurso dessas conversações.
Pelo seu lado, o governo soviético aboliu a diplomacia secreta e iniciou a publicação
dos tratados secretos assinados até ao 25 de Outubro 1917. Tudo que nesses tratados
tem por objecto atribuir vantagens e privilégios aos proprietários e aos capitalistas russos,
de assegurar a opressão pelos Grã-Russos das outras populações — «o governo declara
tudo isso sem valor e imediatamente». Para a abertura das conversações, propõe-se
imediatamente uma trégua que seria tanto quanto possível de pelo menos três meses. O
governo operário e camponês dirige essas proposições simultaneamente «aos governos e

788
aos povos de todos os países beligerantes, em particular aos operários conscientes das
três nações mais avançadas», a Inglaterra, a França e a Alemanha, na certeza que serão
precisamente elas que «nos ajudarão a levar a termo a obra da paz e, ao mesmo tempo,
libertar as massas trabalhadoras e exploradas de qualquer servidão e exploração.»
Lénine limita-se a breves comentários sobre o texto da declaração. «Não podemos
ignorar os governos, porque isso atrasaria a possibilidade de concluir a paz … , mas não
temos o direito, ao mesmo tempo, de nos dispensar de nos dirigirmos aos povos. Em todo
o lado, os governos e os povos estão em desacordo entre eles, nós devemos ajudar os
povos a intervir nas questões de guerra e da paz.» «Certamente, nós defenderemos por
todos os meios nosso programa de paz sem anexações nem contribuições», mas nós não
devemos colocar nossas condições como ultimatos, tomando cuidado em dar aos
governos um pretexto cómodo de afastar as conversações. Nós examinaremos todas
outras proposições. «Nós examinaremos todas outras proposições – isso ainda não quer
dizer que nós as aceitaremos.»
O manifesto publicado pelos conciliadores, 14 de Março, convidava os operários dos
outros países a derrubar os banqueiros em nome da paz; todavia, os próprios
conciliadores, longe de apelar ao derrube dos seus próprios banqueiros, aliavam-se a
eles. «Agora, nós derrubámos o governo dos banqueiros.» Isso nos dá o direito de apelar
aos outros povos a fazer o mesmo. Nós temos esperança na vitória: «É preciso lembrar-
mo-nos que nós vivemos não nas profundidades de África, mas na Europa, onde tudo
pode se tornar rapidamente de notoriedade pública.» Lénine vê como sempre, a aposta
da vitória na transformação da revolução nacional numa vitória internacional. «O
movimento operário tomará a iniciativa e abrirá a via para a paz e o socialismo.»
Os socialistas-revolucionários de esquerda enviaram seus representantes para
aderirem à declaração que acabava de ser lida: «No espírito e sentido , ela lhes era
próxima e compreensiva.» Os internacionalista unificados pronunciam-se pela declaração,
mas na condição que ela seja feita em nome do governo de toda a democracia. Lapinsky,
em nome dos mencheviques polacos de esquerda, aprova fortemente «o realismo são
proletário» do documento. Dzerjinsky em nome da social-democracia da Polónia e da
Lituânia, Stotchka em nome da social-democracia da Letónia, Kapsukas, em nome da
social-democracia da Lituânia, aderem à declaração sem reserva. Só houve objecções do
lado do bolchevique Emereiev, que reclamou que as condições de paz tomassem um
carácter de ultimato: de outra forma «poder-se-ia pensar que nós somos fracos, que
temos medo».
Lénine argumenta resolutamente, e mesmo com veemência, contra a proposição de
apresentar as cláusulas da paz em forma de ultimato: para aí, nós «daremos somente a
possibilidade aos nossos adversários de dissimular toda a verdade ao povo, de esconder
atrás da nossa intransigência.» Diz-se que «a nossa renúncia a colocar um ultimato
demonstra nossa impotência». É tempo de renunciar à falsidade das concepções
burguesas em política.» Nós não temos nada a temer dizendo a verdade sobre a nossa
lassitude...» Os futuros desentendimentos sobre Brest-Litovsk surgem, através deste
episódio.

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Kamenev convida todos os que são partidários do manifesto a mostrarem suas
cartas de delegados. «Um dos delegados – escreve Reed – tinha levantado o braço em
sinal de oposição, mas à volta dele a indignação foi tal que ele teve que baixar a mão.» O
manifesto aos povos e aos governos foi adaptado unanimemente. A coisa está feita! E
esse acto engloba todos os participantes pela sua grandeza imediata e muito próxima.
Sokhanov, observador atento mesmo se prevenido, tinha notado mais de uma vez,
na primeira sessão, a lassitude do congresso. Sem qualquer dúvida, os delegados, tal
como todo o povo, estavam cansados de reuniões, congressos, discursos, resoluções, e
em geral de tudo esse marcar passo. Eles não tinham a certeza que esse congresso
saberia e poderia levar até ao fim essa obra. Eles não tinham a certeza que esse
congresso saberia e poderia levar o trabalho até ao fim. A grandeza das tarefas e a força
insuperável das resistências não os forçaria a se retirarem ainda desta vez? Houve um
afluxo de certeza quando se conheceu a tomada do palácio de Inverno, e logo a adesão
dos motociclistas à insurreição. Mas estavam aí dois factos que se relacionavam ainda
com o mecanismo da insurreição. Foi só agora que se descobriu efectivamente o seu
sentido histórico. A insurreição vitoriosa tinha colocado sob o congresso dos operários e
dos soldados a base inquebrável do poder. Os delegados votavam desta vez não pela
revolução, mas por um acto de governo de um significado infinitamente maior.
Escutai, povos! A revolução vos convida à paz. Ela será acusada de ter violado os
tratados. Mas ela orgulha-se disso. Romper com as sangrentas alianças de rapina – é um
grande mérito na História. Os bolcheviques ousaram. Eles foram os únicos a ousar. O
orgulho rebenta nos nossos corações. Os olhos inflamam. Todos de pé. Ninguém fuma.
Parece que ninguém respira. O secretariado, os delegados, os convidados, os homens da
guarda unem-se num hino de insurreição – nós encontrámo-nos todos de pé, retomando
os acentos arrebatantes da Internacional. Um velho soldado de cabelos cinzentos chorava
como uma criança. Alexandra Kollontai pestanejava rapidamente os olhos para não
chorar. A potente harmonia se espalhava na sala, furando vidros e portas, e subia para o
céu.»
Era para o céu? Ou antes para as trincheiras de outono que delimitavam a velha
Europa crucificada, para as cidades e aldeias devastadas, para as mulheres e mães de
luto. «De pé, condenados da terra; de pé, forçados da fome! …» As palavras confundiam-
se com o acto governamental. É aí que lhes vinha o som da acção directa. Cada um se
sentia maior e mais significante nesse momento. O coração da revolução alargava-se ao
mundo inteiro. «Obteremos a libertação...» O espírito de independência, de iniciativa, de
ousadia, os felizes sentimentos dos quais os oprimidos são desprovidos nas
circunstâncias habituai – tudo isso era trazido agora pela revolução … «Pela sua própria
mão!» Com uma mão potente, milhões de homens que derrubaram a monarquia e a
burguesia vão agora abafar a guerra. A guarda vermelha do bairro de Vyborg, o obscuro
soldado cicatrizado que veio da frente, o velho revolucionário que passou anos nas
masmorras, o jovem marinheiro de barba negra do Aurora todos juravam levar até ao fim
a luta final e decisiva. «Nós construiremos um mundo para nós, um mundo novo!» Nós
construiremos? Nessa palavra escapando aos nossos peitos humanos estavam já
incluidos os futuros anos da guerra civil e os próximos planos quinquenais de trabalho e

790
de privações. «Aquele que não era nada será tudo! Tudo? Se a realidade do passado se
transformou mais de uma vez num hino, porquê o hino não se tornará a realidade de
amanhã? Os capotes das trincheiras já não têm ar de vestuário do homem dos trabalhos
forçados. Os barretes de pêlo, o tecido rasgado, se erguem de outra maneira sobre os
olhos brilhantes. «Acordai género humano!» Era inconcebível que ele não se revelasse
nas calamidades e nas humilhações, da lama e do sangue da guerra?
«Todo o secretariado, Lénine à cabeça, estava de pé e cantava, rostos exaltados,
inspirados, e olhares brilhantes.» Assim testemunha um céptico que contemplava com um
sentimento penoso o triunfo do outro.» Gostaria tanto de me juntar aí – confessa
Sokhanov – me confundir num só e mesmo sentimento, num mesmo estado de ânimo,
com esta massa e os seus chefes. Mas eu não podia.»
Os últimos acentos do refrão tinham desaparecido, mas o congresso continuava
ainda de pé, massa humana em fusão, levantada pela grandeza do que ela vivia. E
numerosos foram os olhares que se fixaram sobre o homem atarracado, pequeno, de pé
na tribuna, cabeça extraordinária, de traços simples, de maçãs do rosto salientes, rosto
mudado pelo momento por causa do queixo barbeado, cujos olhos pequenos de
aparência ligeiramente mongol tinham um olhar penetrante. Não era visto desde há quatro
meses, mesmo o seu nome teve tempo de se destacar do seu personagem vivo. Mas
não, ele não é um mito, aí está no meio dos seus – e quantos dos «seus» agora! — tendo
entre suas mãos as folhas de uma mensagem, de paz aos povos. Mesmo os que eram os
mais próximos dele, os que conheciam bem seu lugar no partido, sentiram pela primeira
vez completamente o que ele significava para a revolução, para o povo, para os povos.
Era ele que tinha feito a educação. Era ele que tinha ensinado. Uma voz saiu do fundo da
assembleia gritou algumas palavras de saudação dirigidas ao chefe. A sala parecia
esperar esse sinal. Viva Lénine! As emoções pelas quais tinham passado, as dúvidas
ultrapassadas, o orgulho da iniciativa, o triunfo, as grandes esperanças, tudo se confundia
numa erupção vulcanica de reconhecimento e entusiasmo. O testemunho céptico nota
secamente: «Produz-se uma incontestável subida dos espíritos … Saudavam Lénine,
gritavam hurra, lançavam os bonés pelo ar. Cantou-se a Marcha Fúnebre em memória
das vítimas da revolução. E, novamente, aplausos, gritos, bonés lançados pelo ar.»
O que o congresso tinha vivido nesses minutos, o povo inteiro devia viver no dia
seguinte, mesmo com menos intensidade. «É preciso dizer – escreve, nas suas
memórias, Stankevitch que o gesto audacioso dos bolcheviques, sua aptitude atravessar
o arame farpado, os quatro anos que nos tinham separado dos povos vizinhos produziam
por eles próprios uma imensa impressão.» Mais brutalmente, mas não menos
nitidamente, se exprime o barão Budberg no seu jornal íntimo: «O novo governo do
camarada Lénine começa por decretar a paz imediata … Actualmente, é um golpe de
mestre para atrair a si a massa dos soldados; constatei segundo o estado de espírito de
vários regimentos que visitei hoje; o telegrama de Lénine sobre uma trégua imediata de
três meses e sobre a paz consecutiva, produziu por todo o lado explosões de alegria.
Agora nós perdemos as nossas últimas oportunidades de salvar a frente.» O que essa
gente compreendia por aí ao falar de salvar a frente que eles próprios tinham perdido – e
já há bastante tempo, unicamente, a salvação das suas próprias posições sociais.

791
Se a revolução tinha encontrado nela a sua audácia de atravessar o arame farpado
em Março e Abril, ela teria podido ainda operar, por um certo tempo, uma união do
exército, com a condição de reduzir ao mesmo tempo a metade ou um terço dos seus
efectivo e de constituir assim, pela sua política exterior, uma posição de força excepcional.
Mas a hora dos actos corajosos só suou em Outubro, quando já não se podia sonhar em
salvar uma parte qualquer do exército, mesmo por pouco tempo. O novo regime devia
tomar em consideração os gastos não somente da guerra czarista, mas também o
desperdício feito pelo governo provisório. Em tão terríveis circunstâncias, sem saída para
todos os outros partidos, o bolchevismo era o único capaz de remeter o país no bom
caminho, abrindo, pela Revolução de Outubro, fontes inesgotáveis de energia popular.
Lénine está de novo na tribuna, desta vez com algumas páginas do decreto sobre a
propriedade agrária. Ele começa por acusar o governo derrubado e os partidos
conciliadores que, ao arrastarem a questão da terra, levaram o país à insurreição
camponesa. «Há mentira e imposturas cobardes no que eles dizem das pilhagens e da
anarquia nos campos. Onde e quando as pilhagens e a anarquia foram provocadas pelas
medidas razoáveis?» O projecto de decreto não foi recopiado em múltiplos exemplares
para serem distribuídos: o relator tem entre mãos o único rascunho, e está escrito,
segundo as lembranças de Sukhanov, «tão mal que Lénine se confunde e finalmente
ficou empanado. Alguém na multidão que se apertava contra a tribuna, veio ao seu
socorro. Lénine cede voluntariamente o seu lugar e o papel indecifrável.» Essas
pequenas dificuldades não menorizam de forma alguma, aos olhos do parlamento da
plebe, a grandeza do que se realizava.
O teor do decreto encontra-se em duas linhas do primeiro artigo: «A propriedade da
terra dos nobres é abolida imediatamente sem qualquer direito de compra.» As terras do
nobres, os domínios da Coroa, as propriedades dos mosteiros e das igrejas, com o seus
animais e equipamento, são colocados à disposição dos comités agrários do cantão e dos
sovietes de deputados camponeses do distrito, esperando a Assembleia constituinte. Os
bens confiscados, como propriedade pública, são colocados sob controlo dos sovietes
locais. As terras dos camponeses pobres e dos cossacos das bases escapam à
confiscação. O decreto não conta mais que uma trintena de linhas: é uma machadada no
nó górdio.
Ao texto essencial acrescenta-se uma instrução mais extensa, inteiramente
emprestada aos próprios camponeses. Nas Izvestia dos Sovietes camponeses, tinha sido
imprimido, a 19 de Agosto, o resumo de duzentos e quarenta e dois cadernos dados pelos
eleitores a seus representantes no primeiro congresso dos deputados camponeses. Ainda
que esse resumo dos cadernos tivesse sido elaborado pelos socialistas-revolucionários,
Lénine não hesitou a incorporar esse documento, totalmente e integralmente, ao decreto
«a título de direcção geral para a realização das grandes reformas agrárias». A carta diz
em substância: «O direito de propriedade privada sobre a terra e anulada para sempre.»
«O direito de utilizar a terra é outorgada a todos os cidadãos … que desejam trabalhá-la
com as suas próprias mãos.» «

792
O trabalho salariado não é tolerado.» «A exploração da terra deve ser igualitária, isto
é, o chão é distribuído entre os trabalhadores, tendo em conta as condições locais,
segundo uma norma de trabalho ou de consumo».
Se o regime burguês tinha sido mantido, sem falar duma coligação com os
proprietários nobres, o resumo redigido pelos socialistas-revolucionários teria ficado como
uma utopia inviável, ou então transformar-se em mentira consciente. Não teria sido
realizável em todas as suas partes, mesmo sobre o domínio do proletariado. Mas a sorte
desse formulário modificou-se radicalmente no momento que o poder o considerava de
nova maneira. O governo operário dava à classe camponesa um prazo para fazer
verificações efectivas sobre o seu programa contraditório.
«Os camponeses querem guardar para eles a pequena propriedade, fixar uma
norma igualitária … proceder periodicamente a novas igualizações … escrevia Lénine, em
Agosto. Então que seja assim! Sobre esse ponto, nem um socialista razoável será em
desacordo com os camponeses pobres. Se as terras são confiscadas, o domínio dos
bancos é minado; se o material é confiscado, o domínio do capital também é minado, e o
poder político passando ao proletariado, o resto … será sugerido pela própria prática.»
Numerosos foram, não somente inimigos mas amigos, os que não compreenderam
esta atitude perspicaz, pedagógica numa grande medida, do partido bolchevique em
relação à classe camponesa e do seu programa agrário. A repartição igualitária das terras
– replicava por exemplo Rosa Luxemburg – não tem nada em comum com o socialismo.
Mas, sobre esse assunto, os bolcheviques, eles também, não tinham, bem entendido,
ilusões. Pelo contrário, a estrutura mesmo do decreto testemunha a vigilância crítica do
legislador. Enquanto que o resumo dos cadernos declara que toda a terra, a dos
proprietários nobres como a dos camponeses, «torna-se o bem de toda a nação», a lei
fundamental silencia a nova forma de propriedade agrária. Mesmo um jurista de grandes
vistas deve parar com horror diante desse facto que a nacionalização da terra, novo
princípio social de uma importância histórica mondial, é instituída sob forma de instrução
acrescentada à lei fundamental. Portanto, não há aí negligência de redacção. Lénine
queria sobretudo não ligar à priori o partido e o poder soviético, no domínio histórico ainda
inexplorado. Aí, também, ele unia a um atrevimento sem exemplo a maior circunspecção.
Ficava ainda por determinar pela experiência como os próprios camponeses
compreendiam que a terra se tornaria «o bem de toda a nação». depois de ter dado um
salto em frente, era preciso fortificar as posições no caso onde seriam obrigados de
recuar: a repartição das terras dos proprietários nobres entre os camponeses, não sendo
por ela própria uma garantia em relação à contra-revolução burguesa, excluía em
qualquer caso uma restauração da monarquia feudal.
Não se podia falar de «perspectivas socialistas» senão na condição de estabelecer e
de manter o poder do proletariado; ora, manter esse poder, isso não se podia de outro
modo senão dar apoio resoluto ao camponês no seu empreendimento revolucionário. Se
a repartição das terras consolidava politicamente o governo socialista, ela era
inteiramente justificada como medida imediata. Era preciso tomar o camponês tal como a
revolução o tinha encontrado. Ele não podia ser reeducado senão por um novo regime,

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não de uma só vez, mas durante vários anos, no decurso de várias gerações, com a
assistência de uma nova técnica e uma nova organização económica. O decreto,
combinado com o resumo dos cadernos, significou para a ditadura do proletariado a
obrigação não somente em considerar atentamente os interesses do trabalhador agrícola,
mas também tolerar as suas ilusões de pequeno proprietário. Era claro antecipadamente
que, na revolução agrária, não haveria etapas e viravoltas. A instrução anexa não era de
forma alguma a última palavra. Ela representava somente um ponto de partida que os
operários consentiam ocupar ao ajudar os camponeses a realizar as suas reivindicações
progressistas e acautelando os seus passos falsos.
«Não podemos ignorar – dizia Lénine no seu relatório – a decisão da base popular,
mesmo quando não estamos de acordo com ela … Nós devemos dar às massas
populares inteira liberdade de acção criadora … Em resumo, e tudo está aí, a classe
camponesa deve obter a firme certeza que os nobres não existem mais nos campos, e é
preciso que os próprios camponeses decidam de tudo e organizem a sua existência.»
Oportunismo? Não, realismo revolucionário.
Antes que as ovações terminassem, o socialista-revolucionário de direita Piianykh,
que se apresenta em nome do comité camponês, levantou um protesto furioso a propósito
da detenção à qual foram submetidos os ministros socialistas. «Nestes últimos dias,
realizou-se qualquer coisa – grita o orador, batendo sobre a mesa num acesso de raiva –
qualquer coisa que nunca se viu em qualquer revolução. Nossos camaradas, membros do
Comité executivo – Maslov e Salazkine, foram presos. Exigimos a sua libertação
imediata!» «Se um só cabelo cai de suas cabeças!» — exclama um outro emissário, com
capote de soldado, de tom ameaçador. Um e outro têm pelo congresso a aparência de
fantasmas.
No momento da insurreição, havia, na prisão de Dvinsk acusados de bolchevismo,
cerca de oito centos individuos; em Minsk, cerca de seis mil; em Kiev, quinhentos e trinta
e cinco, sobretudo soldados. E quantos havia noutros lugares do país, atrás das grades,
membros dos comités de camponeses! Enfim, um bom número de delegados mesmo do
congresso, a começar pelo secretariado, tinham passado depois de Julho pelas prisões
de Kerensky. Não é de admirar que a indignação dos amigos do governo provisório não
tenha suscitado nesta assembleia uma grande emoção. Para cumulo da desgraça
levantou-se do seu lugar um delegado desconhecido de todos, um camponês da província
de Tver, de cabelo grande, vestido com uma pele fina de cordeiro, e, tendo saudade com
cortesia os quatro cantos da assembleia, conjura o congresso em nome dos seus
eleitores, em não hesitar a prender o comité executivo de Avksentiev inteiro: «não são
representantes camponeses, são cadetes … O lugar deles é na prisão.» Assim se erguia
em frente do outro duas personagens: o socialista-revolucionário Piianykh, parlamentar
experiente, com poder de ministro, que odiava os bolcheviques; e, de outro, um
desconhecido camponês de Tver que trazia a Lénine, em nome dos seus eleitores,
calorosas felicitações. Duas camadas sociais, duas revoluções: Piianykh falava em nome
da de Fevereiro, o camponês de Tver militava por Outubro. O congresso fez ao delegado
em pele de carneiro uma verdadeira ovação. Os emissários do comité executivo saem
proferindo invectivas.

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«A fracção dos socialistas-revolucionários de esquerda acolhem o projecto de Lénine
como o triunfo da sua própria ideia», declara Kalegaiev. Mas, por causa da extrema
importância da questão, é indispensável debatê-la nas diferentes fracções. Um
maximalista, representante da extrema-esquerda do partido socialista-revolucionário que
se decompôs, exige um voto imediatamente. «Nós deveríamos homenagear o partido
que, desde do primeiro dia, sem grandes conversas, aplica uma tal medida.» Lénine
insiste para a suspensão da sessão seja de qualquer modo a mais curta possível.
«Notícias tão importantes para a Rússia devem ser impressas logo pela manhã. Sem
atrasos!» Porque enfim o decreto sobre a questão agrária não é somente a base do novo
regime, mas é o instrumento duma insurreição que ainda tem que conquistar o país. Não
é em vão que John Reed nota nesse momento uma exclamação imperiosa que fura o
tumulto das vozes na sala: «Quinze agitadores na sala nº 17. Imediatamente! Partida para
a frente!»
À uma da manhã, um delegado das tropas russas na Macedónia vem se queixar que
estas tenha sido esquecidas pelos dois governos que se sucederam em Petrogrado. O
apoio à paz e pela terra está assegurado do lado dos soldados que se encontram em
Macedónia! Tal é a nova verificação do estado de espírito de um exército que, desta vez,
se encontra num canto recuado do Sudeste europeu. Kamenev comunica logo depois: o
10º batalhão de motociclistas, chamado da frente pelo governo, entra nessa manhã em
Petrogrado e, de igualmente como os que lhe precederam, deu a sua adesão ao
congresso dos sovietes. Vivos aplausos provam que as provas renovadas sem parar da
força que se possui não parecerão nunca inúteis.
Após uma resolução adaptada unanimemente e sem debate, declarando que é um
dever honroso para os sovietes das localidades em não tolerar os progromes que seriam
exercidos contra os judeus e qualquer outra pessoa por individuos tarados, submete-se
ao voto o projecto de lei agrária. Contra um voto diante de oito abstenções, o congresso
adopta com uma nova explosão de entusiasmo o decreto que mete fim ao regime de
servidão, base das bases da velha sociedade russa. Doravante, a revolução agrária é
legalizada. Por aí mesmo a revolução do proletariado adquire um sólido apoio.
Resta um último problema: a criação de um governo. Kamenev lê o projecto
elaborado pelo Comité central dos bolcheviques. A administração dos diversos domínios
da vida do Estado foi confiada às comissões que devem trabalhar na realização do
programa anunciado pelo congresso — «em estreita união com as organizações de
massa dos operários, das operárias, dos marinheiros, dos soldados, dos camponeses e
dos empregados.» O poder governamental é concentrado entre as mãos de um colégio
formado pelos presidentes dessas comissões, sob o nome de «Soviete dos Comissários
do Povo». O controlo sobre a actividade do governo pertence ao congresso dos sovietes
e ao seu comité executivo central.
Para compor o primeiro Soviete dos Comissários do Povo, sete membros do comité
central do partido bolchevique foram designados: Lénine, como chefe do governo, sem
pasta; Rykov, como comissário do Interior; Miliutine, como dirigente da Agricultura;
Noguine, na cabeça do Comércio e Indústria; Trotsky, nos Assuntos Exteriores; Lomov, na

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Justiça, Estaline, como presidente da comissão das nacionalidade. A Guerra e a Marinha
são confiadas a um comité que se compõe de Antonov-Ovssenko, Krylenko e Dybenko;
na cabeça do comissariado do Trabalho foi colocado Chliapnikov; a Instrução será dirigida
por Lunatcharsky; a tarefa penosa e ingrata do aprovisionamento foi confiada a
Teodorocitch; os Correios e os Telegráfos ao operário Glebov. Ninguém foi instalado no
posto das Vias de comunicação: a porta continua aberta para um entendimento com as
organizações dos ferroviários.
Esses quinze candidatos, quatro operários e onze intelectuais, tinha no seu passado
anos de prisão, de deportação e de emigração; cinco deles tinha sido presos sob o regime
da república democrática; o futuro Primeiro só saiu na véspera de uma saída clandestina
sob a democracia. Kamenev e Zinoviev não entraram no Conselho dos Comissários do
Povo: o primeiro foi designado como presidente do novo Comité central, o segundo como
redactor do órgão oficial dos sovietes. «Quando Kamenev leu a lista dos Comissários do
Povo – escreveu Reed – aplausos explodiram após cada nome, particularmente após os
de Lénine e de Trotsky.» Sukhov acrescentou a esses nomes o de Lunatcharsky.
Contra a proposição do governo que se opuseram, se pronunciou, num grande
discurso, o representante dos internacionalistas unificados, Avilov, outrora bolchevique,
redactor do jornal de Gorki. Ele enumerou conscienciosamente as dificuldades que se
levantavam diante da revolução nos domínios da política interior e exterior. É preciso
«dar-se claramente conta de uma coisa: onde iremos? … Diante do novo governo se
colocam sempre as mesmas velhas questões: a do pão e a da paz. Se o governo não
pode resolver essas duas questões, ele será derrubado». O pão falta no país. Ele está
entre as mãos dos camponeses ricos. Nada a dar para substituir o pão: a indústria
afunda-se, faltam os combustíveis e as matérias-primas. Estocar trigo por medidas
obrigatórias, é difícil, é lento e é perigoso. É preciso, por consequência criar um governo
tal que não somente os camponeses pobres, mas os mais ricos tenham simpatia por ele.
Para isso é preciso uma coligação.
«É ainda mais difícil obter a paz.» À proposição do congresso concernante uma
trégua imediata, os governos da Aliança não darão resposta. Os embaixadores aliados
aprontam-se já a partir. O novo poder se encontrará isolado, a sua iniciativa pacífica ficará
em suspenso. As massas populares dos países beligerantes estão ainda, pelo momento,
muito longe duma revolução. Duas consequências podem se apresentar: ou o
esmagamento da revolução pelas tropas de Hohenzollern, ou uma paz separada. As
condições da paz, nos dois casos, mostrar-se-ão terríveis para a Rússia. Para acabar
com todas as dificuldades, só poderá haver «a maioria do povo». A infelicidade encontra
todavia na cisão da democracia, onde a esquerda quer criar em Smolny um governo
puramente bolchevique enquanto que a direita organiza na Duma municipal o Comité de
salvação público. Para a salvação da revolução é necessário criar um poder comporto dos
dois grupos.
É no mesmo espírito que se exprime o representante dos socialistas-revolucionários
de esquerda, Kareline. Não se pode realizar o programa adaptado sem os partidos que
abandonaram o congresso. Na verdade, «os bolcheviques não são responsáveis pela

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saída deles». O programa do congresso deveria unificar toda a democracia. «Nós não
queremos caminhar na via do isolamento dos bolcheviques, porque nós compreendemos
que ao destino destes últimos se liga o de toda a revolução: a sua perca é da própria
revolução.» Se eles, socialistas-revolucionários de esquerda, afastavam contudo a
proposição de entrar no governo, o desejo deles provinha da boa intenção: manter as
mãos livres para intervir entre os bolcheviques e os partidos que tinham abandonado o
congresso. Nesta intervenção, os socialistas-revolucionários de esquerda viam pelo
momento a sua tarefa principal. Eles apoiarão a actividade do novo poder no seu esforço
para resolver as questões urgentes. «Ao mesmo tempo, eles votam contra o governo
proposto. Numa palavra, o jovem partido confundia tanto que podia.
«Para a defesa dos bolcheviques – conta Sukhanov, cuja inteira simpatia ia para
Avilov e que inspirava nos bastidores Kareline – Trotsky apresentou-se. Ele foi brilhante,
veemente, e, em muitos pontos, ele tinha razão. Mas ele não queria compreender no que
assentava o centro do argumento dos seus adversários...» O centro do argumento residia
numa diagonale ideal. Em Março tinham tentado traçar entre a burguesia e os sovietes
conciliadores. Agora, os Sukhanov sonhavam com uma diagonal entre a democracia
conciliadora e a ditadura do proletariado. Mas as revoluções não se desenvolvem em
diagonal.
«Nós nos inquietámos várias vezes – diz Trotsky – dum eventual isolamento da ala
esquerda. Há alguns dias, quando a questão da insurreição tinha sido levantada
abertamente, disseram-nos que nós corriam à perdição. E, se se julga segundo a
imprensa política, os grupos de forças que existiam, a insurreição comportava para nós a
ameaça de uma inevitável catástrofe. Contra nós se erguiam não somente bandas de
contra-revolucionários, mas os partidários da defesa nacional de todas as corres; não
havia somente os socialistas-revolucionários de esquerda, de uma das suas alas, para
trabalhar corajosamente connosco no comité militar revolucionário: a outra ala ocupava
uma posição de neutralidade expectativa. E todavia, mesmo nessas condições
desfavoráveis, quando, parece, nos abandonaram, a insurreição foi vitoriosa …
«Se as forças reais eram efectivamente contra nós, como foi que nós obtemos a
vitória quase sem efusão de sangue? Não, os isolados, não éramos nós, eram o governo
e os pretensos democratas. Pelas suas hesitações , pelos seus procedimentos
conciliadores, eles próprios tinham-se apagados das fileiras da verdadeira democracia.
Nossa grande vantagem, como partido, consiste no que nós concluímos uma coligação
com as forças de classe, criando a união dos operários, dos soldados e dos camponeses
mais pobres.
«Os grupos políticos desapareciam, mas os interesses essenciais da classes
continuam. É vencedor o partido que é capaz de ver e satisfazer as exigências essenciais
da classe … Nós podemos nos orgulhar da coligação da nossa guarnição, principalmente
do elemento camponês, com a classe operária. Ela sofre, esta coligação, a prova do fogo.
A guarnição de Petrogrado e o proletariado entraram ao mesmo tempo numa grande luta
que se tornará um exemplo clássico na história da revolução de todos os povos.

797
«Avilov falou das imensas dificuldades que nos esperam. Para eliminar essas
dificuldades, ele propôs a conclusão de uma coligação. Mas aí, ele não tenta de forma
alguma dar o sentido dessa fórmula e dizer: qual coligação, — de grupos, de classes ou
simplesmente de jornais? …
«Diz-se que a cisão da democracia provém de um mal entendido. Quando Kerensky
enviou contra nós batalhões de choque, quando, com o apoio do comité executivo central,
nós tivemos as nossas comunicações telefónicas cortadas no momento mais grave da
nossa luta contra a burguesia, quando nos golpeiam sucessivamente – ainda se pode
falar de mal-entendido? …
«Avilov diz-nos: nós temos pouco pão, é preciso uma coligação com os partidários
da defesa nacional. Mas será que esta coligação aumentará a quantidade de pão? A
questão do pão é a de um programa de acção. A luta contra a perturbação exige o
emprego de um método determinado em baixo e não de agrupamentos políticos do alto.
«Avilov falou de uma aliança com a classe camponesa: mas, mais uma vez, qual
classe camponesa se trata? Hoje, aqui mesmo, o representante dos camponeses da
província de Tver reclamava a prisão de Avksentiev. É preciso escolher entre o camponês
de Tver e Avksentiev, que encheu as prisões com os membros dos comités rurais. Nós
afastamos resolutamente a coligação com os elementos ricos ( kulaks ) da classe
camponesa em nome da coligação da classe operária com os camponeses mais pobres.
Nós estamos com os camponeses de Tver contra Avksentiev, estamos com eles até ao
fim e indissoluvelmente.
«Aquele que persegue a sombra de uma coligação isola-se definitivamente da vida.
Os socialistas-revolucionários de esquerda perderão seu apoio nas massas enquanto
julgarão dever opor-se ao nosso partido. Cada grupo opondo-se ao partido do
proletariado, ao qual se juntaram os elementos pobres do campo, se isola da revolução.
«Abertamente, diante de todo o povo, levantámos o estandarte da insurreição. A
fórmula política desse levantamento é: todo o poder aos sovietes – por intermédio do
Congresso dos sovietes. Dizem-nos: vocês não esperaram o congresso para fazer o
vosso golpe de Estado. Nós bem esperámos, mas foi Kerensky que não quis esperar: os
contra-revolucionários não dormiam. Nós, como partido, considerámos como nossa tarefa
criar a possibilidade real para o congresso dos sovietes tomar o poder. Se o congresso
tinha sido cercado pelos junkers, de qual maneira teriam-mos tomado o poder? Para
realizar essa tarefa, era preciso um partido que arrancasse o poder à contra-revolução e
que vocês dizem: «Aí está, o poder, e vosso dever é tomá-lo?» ( Tempestade de
aplausos.)
«Mesmo se os partidários da defesa nacional de todas as matizes, na sua luta contra
nós, não tenham parado diante de nada, nós não os rejeitámos, propusemos ao
congresso inteiro para que tomasse o poder. Como é preciso deformar a perspectiva para
falar, depois de tudo o que se passou, do alto desta tribuna, a nossa «intransigência»?
Quando o partido, negro de pólvora, avança sobre eles e lhes diz: «Tomemos o poder

798
juntos! — eles correm para a Duma municipal e, aí, aliam-se com autênticos contra-
revolucionários. São os traidores à revolução com os quais jamais faremos aliança!
«A fim de lutar pela paz – diz Avilov – é preciso uma coligação de conciliadores. Ao
mesmo tempo admite que os Aliados não querem concluir a paz … Os imperialistas
aliados – declara Avilov – troçaram de Skobelev, democrata de margarina. Mas se vocês
fazem bloco com os democratas em margarina, a causa da paz será assegurada.
«Há duas vias na luta pela paz. Uma: opor aos governos dos países aliados e
inimigos da força mora e material da revolução. A outra: um bloco com Skobelev, o que
significa um bloc com Terchtchenko e uma completa subordinação ao imperialismo dos
Aliados. Na nossa declaração sobre a paz, nós dirigimo-nos simultaneamente aos
governos e aos povos. Mas está aí uma simetria puramente formal. Bem entendido, nós
não esperamos influenciar os governos imperialistas pelos nossos manifestos; todavia,
enquanto que existirem esses governos, não os podemos ignorar. Mas colocamos todas
as nossas esperanças que a nossa revolução desencadeará a revolução europeia. Se os
povos insurgidos da Europa não esmagam o imperialismo, nós seremos esmagados –
sem dúvida. Ou então a Revolução russa levantará um turbilhão de luta no Ocidente, ou
os capitalistas de todos os países abafarão a nossa revolução.»
«Há um terceiro caminho», lança um a voz na sala. «O terceiro caminho – responde
Trotsky- é o do comité executivo central que, por um lado, envia delegações aos operários
da Europa ocidental e que, por outro lado, alia-se com os Kichkine e os Konovalov. É o
caminho da mentira e da hipocrisia na qual nós não iremos nunca!
«Bem entendido, não dizemos que será somente o dia do levantamento dos
operários europeus que fixará a data da assinatura do tratado de paz. É possível também
que a burguesia, assustada pela insurreição iminente dos oprimidos, se apresse a
concluir a paz. Os prazos aqui não estão fixados. É impossível prever como isso se
presentará de forma concreta. Importa e é indispensável fixar o método de luta, idêntico
no seu princípio tanto na política exterior como na política interior. A união dos oprimidos
em todo o lado e todos os lugares – eis a nossa via.»
«Os delegados do congresso – escreve Reed – saudaram esse discurso com longas
salvas de aplausos, vibrando com a ideia audaciosa de uma defesa da humanidade.» De
qualquer modo, nenhum bolchevique não teria podido então ter a ideia de protestar contra
o facto que a sorte da República soviética, num discurso oficial em nome do partido
bolchevique, fosse colocado sob a dependência directa do desenvolvimento da revolução
internacional.
A lei dramática desse congresso consistia em que todo acto se realizasse ou mesmo
fosse interrompido por um breve intermédio no decurso do qual apareciam de repente
sobre a cena um personagem de outro campo, para formular um protesto, para ameaçar,
ou então para dar um ultimato. O representante do Vikjel (Comité executivo da União dos
Ferroviários ) pediu a palavra agora e sem demora: ele necessita de largar uma bomba na
assembleia antes que o voto sobre a questão do poder seja feito. O orador, sobre o rosto
do qual Reed pôde ler uma hostilidade intransigente, começa por lançar uma acusação: a

799
sua organização, «a mais potente em Rússia» não foi convidada ao congresso. — É o
comité executivo central que não os convidou, lhe gritam de todos os lados. — Que se
saiba bem: a decisão primitiva do Vikjel para o apoio do congresso dos sovietes foi
adiada! O orador apressou-se a ler o ultimato que já tinha sido enviado por telegrama a
todos os países: o Vikjel condena a tomada do poder por um só partido; o governo deve
ser responsável diante «toda a democracia revolucionária»; esperando a criação de um
poder democrático, o Vikjel é o único mestre da rede ferroviária. O orador acrescentou
que as tropas contra-revolucionárias não obterão acesso a Petrogrado; em geral, as
deslocações das tropas não se farão doravante senão sobre uma ordem do comité central
executivo tal que tinha sido precedentemente combinado. Em caso de repressão em
relação aos ferroviários, o Vikjel pára o abastecimento de Petrogrado!
O congresso saltou logo. Os dirigentes do sindicato dos ferroviários tentavam tratar
com o governo no mesmo pé de igualdade, de potência a potência. Enquanto que os
operários, os soldados e os camponeses tomam em mão a direcção do Estado, o Vikjel
quer ditar a lei aos operários, aos soldados e aos camponeses. Ele tenta converter o
sistema do dualismo do poder já derrubado em moeda de troca. Tentando tomar apoio
não sobre os seus efectivos, mas sobre a importância exclusiva dos caminhos de ferro na
vida económica e cultural do país, os democratas do Vikjel desvendam toda a caducidade
dos critérios da democracia formal nas questões essenciais da luta social. Na verdade, a
revolução não é avarenta de grandes ensinamentos!
O momento escolhido pelos conciliadores para dar o golpe é em todo o caso
propício. Os membros do secretariado estão preocupados. Felizmente, o Vikjel não é de
forma alguma o mestre absoluto sobre as vias de comunicação. Em diferentes
localidades, os ferroviários fazem parte dos sovietes municipais. Aqui mesmo, no
congresso, o ultimato de Vikjel encontra uma resistência. «Toda a massa de ferroviários
da nossa região – declara o delegado de Tachkent – se pronunciam pela entrega do poder
aos sovietes.» Um outro representante dos operários da via dit do Vikjel que é «um
quadro político». Admitamos que seja um exagero. Apoiando-se sobre uma camada
superior bastante numerosa de empregados do caminho de ferro, o Vikjel conservou mais
forças vivas que as outras organizações superiores dos conciliadores. Mas pertence, sem
dúvida, ao mesmo tipo que os comités do exército ou o Comité executivo central. A sua
órbita leva-o a uma queda rápida. Os operários, em todo o lado, se destacam dos
empregados. Os empregados subalternos opõem-se aos superiores. Insolente ultimato do
Vikjel vai obrigatoriamente acelerar esse processo.
«Não pode ser de forma alguma questão de dizer que o congresso não seria regular
– declara Kamenev com autoridade. O quorum do congresso foi estabelecido não por nós,
mas pelo antigo Comité executivo central... O congresso é o órgão supremo das massas
operárias e dos soldados.» E passa-se à ordem do dia simplesmente!
O Soviete dos Comissários do Povo é validado por esmagadora maioria. A resolução
de Avilov reúne, segundo uma avaliação demasiado generosa de Sukhanov, cerca de
cento e cinquenta votos, pela maior parte socialistas-revolucionários de esquerda. O
congresso aprova a seguir unanimemente a composição do novo Comité executivo

800
central; sobre cento e um membros – sessenta e dois bolcheviques, vinte e nove
socialistas-revolucionários de esquerda. O Comité executivo centra deve em seguida
completar-se com representantes dos sovietes camponeses e das organizações do
exército eleitas de novo. As fracções que abandonaram o congresso gozam do direito de
enviar ao Comité executivo central seus delegados sobre a base de uma representação
proporcional.
A ordem do dia do congresso está esgotada. O poder dos Sovietes foi criado. Tem o
seu programa. O trabalho pode começar, e as tarefas não faltam. Às cinco e um quarto da
manhã, Kamenev fecha o congresso constitutivo do regime soviético. Quem corre à gare!
Quem volta para casa! E quem na frente, nas fábricas, nos quartéis, nas minas e nas
aldeia longínquas! Com os decretos do congresso, os delegados vão levar e fermento da
insurreição proletária a todas as extremidades do país.
Nessa manhã, o órgão central do partido bolchevique, que tinha retomado o velho
nome de Pravda ( A Verdade ), escrevia:
«Eles querem que nós sejamos os únicos a tomar o poder, para que sejam sós a
resolver as terríveis dificuldades que se colocam ao país … Então, tomamos o poder sós,
mas nos apoiando sobre os votos do país e contando com a ajuda amigável do
proletariado europeu. Mas, tendo tomado o poder, aplicaremos aos inimigos da revolução
e aos que a sabotam, uma luva de ferro. Eles sonharam com a ditadura de Kornilov …
Nós lhes daremos a ditadura do proletariado …»

801
Conclusão
No desenvolvimento da Revolução russa, precisamente porque é uma verdadeira
resolução popular que meteu em movimento dezenas de milhões de homens, observa-se
uma notável continuidade das etapas. Os acontecimentos sucedem-se como se eles
obedecessem às leis da atração. O relatório mutual das forças é verificado a cada etapa
de duas maneiras: primeiro as massas mostram a potência do seu impulso; a seguir, as
classes possuidoras, esforçam-se em se vingar, mostrando melhor o seu isolamento.
Em Fevereiro, os operários e os soldados de Petrogrado tinham-se insurgido não
somente apesar da vontade patriótica de todas as classes cultivadas, mas também a
despeito dos cálculos das organizações revolucionárias. As massas se mostraram
irresistíveis. Se por elas próprias se tivessem dado conta, elas teriam-se tornado o poder.
Mas ainda não havia à sua cabeça o partido revolucionário potente e consagrado. O
poder caiu nas mãos da democracia pequeno-burguesa, camuflada sob as cores do
socialismo. Os mencheviques e os socialistas-revolucionários eram incapazes de usar a
confiança das massas de outra forma do que chamar a burguesia liberal para o leme, a
qual, por sua vez, não podia se dispensar de meter o poder que investiam os
conciliadores ao serviço dos interesse da Entente.
Durante as Jornadas de Abril, os regimentos e as fábricas insurrectas – ainda sem o
apelo de qualquer partido – descem nas ruas de Petrogrado para opor resistência à
política imperialista do governo que os conciliadores lhes impõem. A manifestação armada
obtém um sensível sucesso. Miliokov, líder do imperialismo russo, foi afastado do poder.
Os conciliadores entram no governo, sob a aparência de representantes do poder do
povo, mas na realidade como serventes da burguesia.
Não tendo resolvido qualquer dos problemas que provocaram a revolução, o
governo de coligação viola em Junho a trégua estabelecida de facto na frente,
desencadeando uma ofensiva das tropas. Por esse acto, o regime de Fevereiro, que
caracteriza já um decrescimento da confiança das massas em relação aos conciliadores,
é levado ele próprio a dar-se um golpe fatal. Então inicia-se o período da preparação
imediata de uma segunda revolução.
No princípio de Julho, o governo, tendo atrás de si todas as classes dominantes e
instruídas, denunciava toda a manifestação revolucionária como uma traição à pátria e
uma ajuda dada ao inimigo. As organizações oficiais de massas – sovietes, partidos
sociais-patriótas – lutavam contra a ofensiva operária com todas as suas forças. Os
bolcheviques, por motivos de táctica, retinham os operários e os soldados de irem para a
rua. Todavia, as massas meteram-se em movimento. O movimento mostrou-se irresistível
e geral. Não se via o governo. Os conciliadores escondiam-se. Os operários e os
soldados encontraram-se, na capital, mestres da situação. A ofensiva se quebrou todavia,
diante da preparação insuficiente da província e da frente.
No fim do mês de Agosto, todos os órgãos e instituições das classe dominantes
apostavam num golpe de Estado contra-revolucionários: a diplomacia da Entente, os

802
bancos, as uniões de proprietários latifundiários e industriais, o partido cadete, os
Estados-maiores, o corpo dos oficiais, a grande imprensa. O organizador do golpe de
Estado não foi outro que o generalíssimo que se apoiava sobre o alto comando de um
exército composto de vários milhões de homens. Os efectivos especialmente escolhidos
sobre todas as frentes foram transferidos, segundo um acordo secreto com o chefe do
governo, na direcção de Petrogrado, sob a aparência de considerações estratégicas.
Na capital tudo, parece, estava preparado para o suceso da empresa: os operários
foram desarmados pelas autoridade com a ajuda dos conciliadores; os bolcheviques não
pararam de serem golpeados; os regimentos mais revolucionários foram afastados da
cidade; centenas de oficiais seleccionados foram concentrados para formar uma tropa de
choque; com as escolas de junkers e de cossacos, eles devem constituir uma força
potente. E que mais ainda? A conspiração que, parece, os próprios deuses protegia,
apenas em confronto com o povo revolucionários, caiu imediatamente em poeira.
Esses dois movimentos, no princípio de Julho e no fim de Agosto, tinham entre eles
uma relação que pode ter um teorema no seu corolários. As jornadas de Julho tinham
demonstrado a potência de um movimento espontâneo das massas. As jornadas de
Agosto descobriram a completa impotência dos dirigentes. Essa relação de forças
indicava que um novo conflito era inevitável. A província e a frente, entretanto, se juntaram
mais estreitamente à capital. Isso predeterminava a vitória de Outubro.
«A facilidade com a qual Lénine e Trotsky conseguiram derrubar o último governo de
coligação de Kerensky – escrevia o cadete Nabokov – demonstrou a impotência interna
desse último. O grau desta impotência causa a estupefacção mesmo entre as pessoas
então bem informadas.»
Nabokov, ele próprio parece não adivinhar o que se tratava da sua própria
impotência, da impotência da sua classe, do seu regime social.
Tal quando da manifestação armada de Julho, a curva sobe para a insurreição de
Outubro, assim o movimento de Kornilov parece uma repetição da campanha contra-
revolucionária empreendida por Kerensky nos últimos dias de Outubro. A única força
militar que encontrou, fugindo sob a protecção da bandeira americana, o generalíssimo da
democracia, refugiando-se na frente para escapar aos bolcheviques, foi ainda o mesmo
terceiro corpo de cavalaria que, dois meses antes, foi destinado por Kornilov a derrubar o
próprio Kerensky. À cabeça desse corpo, se encontrava sempre o general cossaco
Krasnov, monárquico militante, que tinha sido colocado nesse posto por Kornilov: não se
encontrou homem de guerra mais apto na defesa da democracia.
Desse corpo, não restava nada senão o nome: tinha-se reduzido a alguns cossacos
que, segundo um ensaio falhou a ofensiva contra os Vermelhos sob Petrogrado, tinham
fraternizado com os marinheiros revolucionários e tinha entregue Krasnov aos
bolcheviques. Kerensky viu-se forçado a fugir dos cossacos e dos marinheiros. Foi assim
que oito meses após o derrube da monarquia, os operários se encontravam à cabeça do
país. E aí mantiveram-se solidamente.

803
«Todavia, quem acreditará – escrevia sobre isso, com um tom indignado, o general
russo Zalesk – que um moço de recados ou um guarda do Palácio de Justiça tivesse
podido se tornar de uma vez presidente do congresso dos juízes? Ou então que um
enfermeiro se tornasse director de ambulância? Um barbeiro um alto funcionário? Aquele
que ontem lubrificava as rodas dos vagões torna-se chefe de uma secção da rede ou
chefe de gare … Um serralheiro é colocado à cabeça de uma oficina!»
«Quem acreditaria?» Foi preciso acreditar. Não se podia dispensar de acreditar
nisso, pois os alferes tinham batido os generais; o presidente da câmara, o antigo
manobra, tinha deslocado os mestres da véspera; os lubrificadores de rodas de vagões
tinham administrado os transportes; os serralheiro, como directores, tinham desenvolvido
a indústria.
A tarefa principal do regime político, segundo o aforismo inglês, é meter the right
man in the right place. Como parece, deste ponto de vista, a experiência de 1917? Nos
primeiros meses, a Rússia estava ainda sob as ordens do direito da monarquia
hereditária, de um homem em desvantagem pela natureza, que acreditava nas relíquias e
obedecia a Rasputine. No decorrer dos oito meses que seguiram, os liberais e os
democratas tentaram, do alto das suas posições governamentais, demonstrar ao povo
que as revoluções se realizavam para que tudo ficasse na mesma. Não é de admirar que
essa gente tenha passado sobre o país como sombras flutuantes, sem deixar traços. A
dater do 25 de Outubro colocou-se à cabeça da Rússia Lénine, a maior figura da história
política do país. Ele estava rodeado de um estado-maior de colaboradores que, segundo
os seus inimigos, sabiam o que queriam e eram capazes de combater para atingir os seus
objectivos. Qual dos três sistemas se encontra, nas condições concretas dadas, capaz de
colocar the right men in the right places?
A ascensão histórica da humanidade, tomada no seu conjunto, pode ser resumida
como um encandeamento de vitórias da consciência sobre as forças cegas – na natureza,
na sociedade, no próprio homem. O pensamento crítico e criador pode-se orgulhar dos
maiores sucesso até agora na luta contra a natureza. As ciências físico-químicas já
chegaram ao ponto onde o homem se dispõe evidentemente em tornar-se o mestre da
matéria. Mas as relações sociais continuam a se parecer aos atoles. O parlamentarismo
só esclareceu a superficie da sociedade, e ainda com uma luz bastante artificial.
Comparada com a monarquia e a outras heranças do canibalismo e da selvajaria das
cavernas, a democracia representa, bem entendido, uma grande conquista. Mas ela não
atinge de forma alguma o jogo cego das forças nas relações mútuas da sociedade. É
precisamente sobre esse domínio mais profundo do inconsciente que a insurreição de
Outubro tem pela primeira vez levantado a mão. O sistema soviético quer introduzir um
fim e um plano nas próprias fundações de uma sociedade onde só reinaria até aqui as
simples consequências acumuladas.
Os adversários maldizem em fazendo notar que o país dos sovietes, quinze anos
depois da insurreição, não parece de forma alguma ainda o paraíso do bem-estar
universal. Este argumento só poderia ser ditado por uma excessiva deferência diante da
potência mágica dos métodos socialistas, se eles não se explicassem na realidade pela

804
cegueira do ódio. O capitalismo necessitou séculos inteiros para chegar, criando a ciência
e a técnica, a lançar a humanidade no inferno da guerra e das crises. Os adversários não
acordam ao socialismo senão uma quinzena de anos para edificar e instalar o paraíso
sobre a terra. Não tomámos sobre nós tais compromissos. Não nos demos tais prazos.
Os processus das grandes transformações devem ser avaliados com medidas
adequadas.
Mas as calamidade que se abateram sobre os vivos? Mas o fogo e o sangue da
guerra civil? As consequências da revolução justificam em resumo as vítimas que ela
causou? A questão é teleológica e em consequência estéril. Com o mesmo direito se
poderia dizer, face às dificuldades e aflições de uma existência pessoal: valeu a pena
nascer? As meditações melancólicas não têm, todavia impedido até ao presente as
pessoas de engendrar e nem de nascer. Mesmo na época actual de intolerantes
calamidades, só uma fraca percentagem da população do nosso planeta recorre ao
suicídio. Ora, os povos procuram na revolução uma saída aos intoleráveis tormentos.
Não é notável que sobre as vítimas das revoluções sociais, os que se indignam
muitas vezes são os mesmos que, se eles não foram os fazedores directos da guerra
mundial, têm pelo menos arranjado e glorificado as vítimas, ou ainda se resignaram a vê-
las cair. É a nossa vez de perguntar: a guerra justifica-se? O que é que deu? O que nos
ensinou?
Vale a pena de parar as afirmações dos proprietários russos lesados, segundo os
quais a revolução teria causado um aviltamento cultural do país. Derrubado pela
insurreição de Outubro, a cultura da nobreza não representava em suma senão uma
imitação superficial dos modelos mais elevados da cultura ocidental. Inacessível ao povo
russo, ela não trazia nada de essencial ao tesouro da humanidade.
A Revolução de Outubro lançou as base de uma nova cultura concebida para servir
todos, e é precisamente porquê ela tomou logo uma importância internacional. Mesmo se,
por efeito das circunstâncias desfavoráveis e sob os golpes do inimigo, o regime soviético
– admitamos por um instante – se encontrava provisoriamente derrubado, a durável
marca da insurreição de Outubro ficará mesmo assim sobre toda a evolução ulterior da
humanidade.
A linguagem das nações civilizadas marcou nitidamente duas épocas no
desenvolvimento da Rússia. Se a cultura instituída pela nobreza introduziu a linguagem
universal dos barbarismos tais que o czar, progrome, nagaika, Outubro internacionalizou
palavras como bolchevique, soviete e piatiletka. Isso basta para justificar a Revolução
Proletária, se aliás, se se considera que ela necessita de justificação.

805
Apêndices
1 Particularidade do desenvolvimento da Rússia
A questão das particularidades do desenvolvimento histórico da Rússia e, em função
desse problema, dos destinos futuros do país, colocava-se na base de todos os debates
que tiveram lugar, de todos os grupos que se formaram entre os intelectuais russos
durante quase todo o século XIX. «Eslavófilos» e «Zapadniki» (partidários das influências
ocidentais) davam ao problema soluções opostas, mas igualmente categóricas. Depois se
substituíram a eles os «narodniki» (populistas) e os marxistas. O «populismo» antes de
ser definitivamente descolorido sob a influência do liberalismo burguês, defendeu muito
tempo e obstinadamente a ideia de uma Rússia evoluindo numa via completamente
original, evitando por um caminho desviado o capitalismo. Nesse sentido, o «populismo»
continuou a tradição dos eslavófilos, tendo mesmo excluindo o que comportava de
espírito monárquico, clerical e pan-eslavista, para lhe dar um carácter revolucionário-
democrático.
No fundo, a concepção eslavófila, a despeito das suas fricções reaccionárias, e a
concepção populista, apesar de tudo o que ele tinha de ilusório nas suas tendências
democráticas, não eram de forma alguma vãs especulações; elas apoiavam-se sobre
indubitáveis e, além disso, profundas particularidade da evolução da Rússia,
compreendidas somente de uma maneira unilateral e inexactamente apreciadas. Na sua
luta contra o populismo, o marxismo russo, que demonstrou a identidade das leis da
evolução para todos os países, caiu frequentemente nos lugares comuns dogmáticos,
como se ele tivesse vontade de lançar a criança com a água do banho. Esta inclinação se
manifestou particularmente em numerosas obras do conhecido professor Pokrovsky.
Em 1922, Pokrovsky atacou-se ao conceitos históricos do autor do presente livro,
conceitos que formavam a base da teoria da revolução permanente. Julgamos útil, pelo
menos para os leitores que se interessam não somente à marcha dramática dos
acontecimentos, mas também à doctrina da revolução, de citar aqui algumas passagens
essenciais da nossa réplica ao professor Pokrovsky, réplica publicada em dois número da
Pravda, órgão central do partido, no 1 e 2 de Julho de 1922.

Sobre as Particularidades ou Desenvolvimento Histórico da Rússia


Pokrovsky publicou, sobre o meu livro «1905» um artigo – infelizmente! —
mostrando como é complexo aplicar os métodos do materialismo histórico à história da
humanidade e quais banalidade a História é frequentemente trazida por homens tão
profundamente informados como Pokrovsky.
O livro que Pokrovsky criticou tinha por objecto imediato de pesquisa as bases
teóricas e a justificação teórica da palavra de ordem: «conquista do poder pelo
proletariado»; essa palavra de ordem sendo oposta tanto à fórmula de uma república
democrática burguesa que a de um governo democrático operário e camponês … Esta

806
forma de pensamento suscitou a maior indignação, do ponto de vista teórico, entre um
bom número de marxistas, ou então, mais exactamente, na sua grande maioria. Esta
indignação foi traduzida não somente pelos mencheviques, mas por Kamenev e o
historiador Rojkov. Eis qual era, no conjunto, o ponto de vista deles: o domínio político da
burguesia de preceder o domínio político do proletariado; a república democrática
burguesa deve, historicamente, ser uma longa escola para o proletariado; se se tenta
saltar essa fase, é na aventura que nos lançamos; do momento que a classe operária, no
Ocidente, não tenha sido capaz de conquistar o poder, como o proletariado russo se
atribuiria uma tal tarefa? Etc, etc. Do ponto de vista de um certo pseudo-marxismo que se
limita às banais constatações históricas, a analogias de pura forma, quem, nas épocas,
não consente ver que a sucessão lógica das categorias rígidas sociais (feudalidade,
capitalismo, socialismo, autocracia, república burguesa, ditadura do proletariado), —
desse ponto de vista, a palavra de ordem de uma conquista do poder pela classe operária
na Rússia devia parecer uma renúncia monstruosa do marxismo. Ora, uma análise
empírica, mas séria, das forças socialistas que se tinham manifestado de 1903 a 1905
sugeria imperiosamente que havia toda vitalidade na luta pela conquista do poder pela
classe operária. Estava aí uma particularidade, ou não era uma? Era preciso ter em conta
as profundas singularidade de toda uma evolução histórica, ou então negligenciá-las? Era
assim que o problema se colocava ao proletariado da Rússia, isto é (não desagrade a
Pokrovsky) para o proletariado do país mais atrasado da toda a Europa?
E no quê a Rússia era atrasada? Seria porque, tardiamente, ela reproduzia a história
dos países da Europa Ocidental? Nesse caso, poder-se ia falar de uma conquista do
poder pelo proletariado russo? Portanto, esse poder (permitam nos lembrar), o
proletariado russo conquistou-o. Como, portanto, se apresenta a questão? Ela põe-se
assim: indubitavelmente, o incontestável atraso da evolução russa, sob a influência e a
pressão de uma cultura ocidental mais elevada, não chegou a uma simples repetição do
processo histórico da Europa ocidental, mas determina profundas particularidade que
devem ser isoladamente um sujeito de estudo …
A profunda originalidade da nossa situação política, que levou à vitoriosa revolução
de Outubro antes do início de qualquer revolução na Europa, procedia das
particularidades das relações de força que existiam então entre diversas classes e o
poder de Estado. Quando Pokrovsky e Rojkov discutiam com os populistas ou os liberais
demostrando-lhes que a organização e a política do czarismo eram determinadas pela
evolução económica e pelos interesses das classes possuidoras, eles tinham razão no
essencial. Mas quando Pokrovsky tenta impôr-me esta mesma tese, ele visa
simplesmente muito mal.
O resultado do nosso tardio desenvolvimento histórico, no cerco dos imperialismos,
acontece que a nossa burguesia não teve tempo de derrubar o czarismo antes que o
proletariado se tornasse uma força revolucionária autónoma.
Ora, para Pokrovsky não se coloca a mesma questão que é para nós o tema central
deste estudo.
Pokrovsky escreve isto:

807
«É extremamente sedutor desenhar a Moscóvia do século XVI sobre o fundo geral
das relações que existiam na Europa nessa época. Deveríamos recusar o preconceito
dominante até hoje, mesmo nos meios marxistas, da ideia de uma base económica
pretensamente «primitiva» sobre a qual ter-se-ia instaurado autoridade russa.»
Lê-se mais longe:
«Mostrar esta autocracia nas suas verdadeiras relações históricas como um dos
aspectos do regime comercial-capitalista da Europa … — mostra ser uma tarefa
extremamente interessante para o historiador, mas de uma alta importância par a
educação dos leitores: não há meio mais radical para acabar com a legenda do processo
histórico russo duma «originalidade particular».
Pokrovsky, como se vê, nega absolutamente o carácter primitivo e atrasado do
nosso desenvolvimento económico e, para tal, reduz a ideia de um original processo
histórico russo ao domínio das legendas. Ora, o ponto a marcar aqui é que Pokrovsky
encontra-se completamente hipnotizado pelo desenvolvimento relativamente importante
do comércio na Rússia do século XVI, cuja demonstração ele dá, tal como Rojkov. É difícil
compreender como Pokrovsky se deixou levar por tal erro. Segundo ele, poder-se-ia
acreditar, com efeito, que o comércio é a base da vida económica e fixa inegavelmente a
medida.
O economista alemão Karl Bucher, há uma vintena de anos, tentou encontrar no
comércio (via intermediária entre o produtor e o consumidor) o critério de todo o
desenvolvimento económico. Strouve, bem entendido, apressou-se a introduzir esta
«descoberta» na «ciência» económica russa. Do lado dos marxistas, a teoria de Bucher
encontra, desde então, uma resistência completamente natural. Nós procuramos os
critérios do desenvolvimento económico na produção – técnica e organização social do
trabalho -, mas o caminho que percorre um produto entre o produtor e o consumidor é
considerado por nós como um facto de ordem secundária cujas origens é preciso
compreender nas próprias condições de produção.
A grande expansão, pelo menos na superfície, do comércio russo do século XVI,
explica-se – tão paradoxal que possa parecer esta explicação com o critério dos Bucher e
dos Strouve – precisamente pelo carácter extremamente primitivo e atrasado da
economia russa. Na Europa ocidental, a cidade foi ocupada pelas corporações de
artesãos e grémios de comerciantes. Ora, as cidades russas eram antes de tudo centros
administrativos e militares, em consequência, centros de consumo e não de produção. As
constituições corporativas do artesanado no Ocidente elaboraram-se a um nível
relativamente elevado de evolução económica, enquanto que todos os processos
essenciais da indústria transformadora tinham-se dissociado da agricultura, tinha
encontrado sua autonomia de ofícios, tinham criado suas organizações, fixado seu centro,
a cidade, mercado (provincial, regional) limitado no início, mas estável.
Na bas da cidade medieval europeia, existia todavia uma diferenciação económica
relativamente elevada que determinou justas relações entre o centro-cidade e a sua
periferia agrícola. Ora, o nosso atraso económico se manifestou antes de tudo nisto, que

808
o artesanato não se desligava da agricultura, continuava no estádio dos pequenos oficios
rurais (kustari). Aqui, aproximamos-nos mais da Índia que da Europa, do mesmo modo
que as nossas cidades da Idade-Média deviam mais à Ásia que à Europa, assim como a
nossa autocracia, colocada entre o absolutismo das monarquias europeias e os déspotas
asiático, se aproximavam sob variados aspecto destes últimos.
Considerando a imensidade dos espaços que ocupamos e a baixa densidade
populacional (não é também uma marca suficientemente objectiva do nosso estado
atrasado?), a troca de produtos era subordinada ao papel intermediário dum capital
comercial de maior envergadura. A expansão do nosso comércio era possível
precisamente porque o Ocidente, se encontrando num maior grau de evolução, tendo
necessidades complexas, enviava os seus intermediários, expedia suas mercadorias e,
de tal maneira, dava um impulso ao movimento comercial entre nós, sobre bases
económica bastante primitivas e mesmo consideradas bárbaras. Qualquer um não se
apercebia desta particularidade muito importante do nosso desenvolvimento histórico não
teria compreendido nada ao conjunto da nossa história.
Tive um patrão na Sibéria. Durante dois meses, coloquei nos seus livros de
contabilidade pouds e archines de mercadorias. O homem chamava-se Iakov Andreiivitch
Tchernykh. Isso não se passava no século XVI. Meu patrão gozava de uma autoridade
quase ilimitada no distrito de Kirensk, graças à importância das suas operações
comerciais. Ele comprava peles aos Tunguses, recolhia rendas sobre os religiosos dos
cantões afastados e trazia das feiras de Ibit ou de Nijni-Novgorod algodão; mas o seu
comércio principal era o do vodka (nessa época, o monopólio de Estado ainda não existia
no governo de Irustsk). Iakov Andreievitch não sabia ler, mas era milionário (as filas de
«zeros» de então eram dum peso diferente dos de hoje). A «ditadura» que ele exercia,
como representante do capital mercantil, era incontestável. Quando ele falava dos
Tunguses, não podia dizer de outro modo senão «os meus pequenos Tunguses». As
cidades de Kirnsk, de Verkholensk, de Nijne-Ifimsk eram somente lugares de residência
das autoridade policiais, de ricos comerciantes vivendo entre eles numa dependência
hierárquica, de pequenos funcionários de toda a ordem, e enfim dum certo número de
pobres artesãos. Quanto às organizações de ofícios constituindo as bases vivas de uma
economia urbana, não encontrei nenhuma: nem corporações, nem festas corporativas,
nem grémios, ainda se Iakov Andreievitch estava oficialmente inscrito no «2º grémio».
Na verdade, esta fatia de vida tomada da realidade da Sibéria nos induz a
compreender as particularidades históricas do desenvolvimento da Rússia, muito mais
profundamente que as explicações de Pokrovsky: as operações comerciais do meu Iakov
Andreievitch se estendiam desde do curso médio do Lena com os seus afluentes do lado
oriental até Nijni-Novgorod e mesmo até Moscovo. Pouco numerosas são as firmas
comerciais do continente europeu que poderiam indicar sobra a carta um tal expansão
dos seus negócios. Todavia, esse ditador do negócio, que fazia figura de potentado ao
olhos dos camponeses siberianos, era a personificação mais acabada, a mais
convincente da nossa economia atrasada, bárbara, primitiva, no meio de uma população
pouco densa, numa região onde as urbes e aldeias se espalhavam, apenas ligadas por
caminhos impraticáveis que, na primavera e em outono, com a fusão das neves ou com

809
as chuvas, se transformavam em pântanos, bloqueando, durante dois meses, distritos,
cantões e comunas; numa região enfim onde a grande ignorância era universal, sem
contar com outras inferioridades. Se Tchernykh, como comerciante, pôde subir tal alto,
apoiando-se na barbárie que reinava nessa região do Lena, foi graças ao
desenvolvimento do Ocidente em ocurência da velha Rússia, da Moscóvia -que arrastava
atrás de si a Sibéria: uma economia completamente primitiva de nómados acomodando-
se dos despertadores fabricados em Varsóvia.
As corporações de artesãos constituem na Idade-Média a base da cultura urbana, e
esta influenciava os campos. A ciência medieval, a escolástica, a Reforma influenciaram o
terreno das corporações de artesãos. Não houve nada de igual entre nós. Certo que as
formações embrionárias, síntomas, indícios podem ser assinalados; mas, no Ocidente, os
indícios estavam fora de questão: existia aí uma potente formação económica e cultural
cuja base estava nas corporações. Era sobre isso que se erguia, na Idade-Média, a
cidade europeia, era sobre isso que, crescente, ela entrava em luta com a Igreja e os
grandes feudais e, contra estes últimos, prestou a sua ajuda à monarquia. É ainda a
cidade que criou uma técnica, as das armas de fogo, condição primeira da formação dos
exércitos permanentes.
Onde se encontrava entre nós cidades cujo artesanato corporativamente organizado
lembraria, mesmo de longe, o que existia na Europa ocidental? Onde se vê então que,
entre nós, a cidade teria combatido o regime feudal? Era lutando contra esse regime que
a cidade industrial e comercial teria lançado as bases favoráveis ao desenvolvimento da
autocracia russa? Nenhuma luta desse género não se produziu entre nós, pelo carácter
mesmo das nossas cidades, tal como não houve no nosso país Reforma religiosa. Será
sim ou não isso uma particularidade?
O artesanato, entre nós, ficou no estado de ofícios aldeões (kustari), quer dizer que
não se diferenciou da classe agrícola. A Reforma religiosa ficou no estado de seitas
camponesas, não tendo encontrado direcção do lado das cidades. Tudo isso é primitivo,
atrasado: são verdades gritantes.
Se o czarismo se ergueu em organização de Estado independente (relativamente
independente, repitamos, nos limites da luta das forças históricas vivas sobre o terreno da
economia) não foi com o concurso de potências citadas opondo-se aos potentes feudais;
foi – apesar da completa penúria industrial das nossas cidades – graças a fraqueza da
senhoria feudal no nosso país.
A Polónia, pela sua estrutura social marcava uma transição entre a Rússia e o
Ocidente, tal como a Rússia ocupava um lugar intermediário entre a Europa e a Ásia. Nas
cidade polacas, a organização corporativa dos ofícios era já muito mais propagado que
entre nós. Mas as cidades polacas não se ergueram ao ponto de conseguir substituir o
poder real para quebrar com ele os feudais. O poder de Estado ficou directamente sob o
controlo da nobreza. Resultado: completa impotência do Estado e sua desagregação.
O que acabou de ser dito do czarismo concerne também o capital e o proletariado:
não se compreende porquê Pokrovsky fulmina as suas cóleras unicamente num primeiro

810
capítulo que trata do czarismo. O capitalismo russo não se desenvolveu partindo do
artesanato para passar da manufactura à fábrica e é desse facto que o capital europeu,
primeiro sob a forma de capital comercial, depois sob a forma de capital financeiro e
industrial, caiu sobre nós num período onde o artesanato russo, na sua massa, ainda não
se tinha dissociado da agricultura. Surge entre nós uma indústria capitalista, moderna no
ambiente de economia primitiva: tal fábrica belga ou americana, mas, nos arredores,
cabanas, aldeia erguidas em madeira, cobertas de colmo, que se consumia, cada ano,
incendios, e outras misérias … Os elementos mais obsoletos ao lado das últimas
realizações europeias. Daí o papel enorme que jogou o capital da Europa ocidental na
economia russa. Daí a fraqueza política da burguesia russa. Daí a facilidade com a qual
nós derrotámos a nossa burguesia. Daí as dificuldade que surgiram quando a burguesia
europeia interveio nos nossos assuntos …
Que dizer do nosso proletariado ? Passou pela escola medieval das irmandades de
aprendizagem? Existe entre eles tradições corporativas seculares? Nada disso. Deitaram-
no direitinho no forno desde que lhe retiram o seu arado primitivo … Daí a ausência de
tradições conservadoras, a ausência de castas no interior do mesmo proletariado, a
frescura do espírito revolucionário; daí, com outras causas eficientes. Outubro e o
primeiro governo operário que alguma vez existiu no mundo. Mas daí também o
analfabetismo, uma mentalidade atrasada, a deficiência dos hábitos de organização,
incapacidade de trabalhar sistematicamente, a falta de educação cultural e técnica. Nós
ressentimos-nos a cada passo dessas inferioridades na nossa economia e na nossa
edificação cultural.
O estado russo chocava com as organizações militares das nações ocidentais cujas
bases económicas, políticas e culturais eram mais elevadas. Da mesma maneira, o capital
russo, desde dos seus primeiros passos, chocou com o capitalismo muito mais
desenvolvido e mais potente do Ocidente e foi assujeitado por este último. Da mesma
maneira, a classe operária russa, desde dos seus primeiros passos, encontrou os
instrumentos prontos, devido à experiência do proletariado da Europa ocidental: teoria
marxista, sindicatos, partido político. Alguém explique a natureza e a política da autocracia
unicamente em função dos interesses das classes possuidoras russas, esse esquece
que, metendo de lado os exploradores atrasados, menos ricos e mais ignorantes, que
existiam na Rússia, o país sofria a exploração de europeus mais ricos e mais potentes. As
classes possuidoras na Rússia tinham conflitos com as classes possuidoras da Europa
que lhes eram completamente ou meio hostis. Os conflitos rebentavam através das
intervenções do Estado. Or, o Estado, era autocrático. Toda a estrutura e toda a história
da autocracia teriam sido diferentes se as cidades europeias não tivessem existido, se a
Europa não tivesse «inventado a pólvora» (porque esta invenção não é nossa), se a Bolsa
europeia não tivesse agido.
No seu último período de existência, a autocracia não era somente o órgão das
classes possuidoras da Rússia; ela servia também de Bolsa europeia para a exploração
do nosso país. Esse duplo papel lhe assegurava ainda uma independência muito
apreciável, que se manifestou nitidamente, em 1903, quando a Bolsa de Paris, para

811
apoiar a autocracia lhe concedeu um empréstimo apesar dos protestos dos partidos da
burguesia russa.
O czarismo se encontrou batido na guerra imperialista. Porquê? Porque o nível de
produção que lhe servia de base era demasiado inferior («estado primitivo»). Sob a
relação da técnica militar, o czarismo esforçava-se de se manter à altura dos últimos
aperfeiçoamentos. Era ajudado, de todas as maneiras, pelos aliados mais ricos e
instruidos. Graças a esta assistência, a czarismo dispôs, durante a guerra, de engenhos
mais perfeitos. Mas ele não tinha e não podia ter a possibilidade de reproduzir em
copiando esses engenhos, nem mesmo os transportar (tal como não chegava a enviar
tropas) por via férrea ou por via marítima, com toda a rapidez desejável. Noutros termos,
o czarismo defendia os interesses das classes possuidoras de Rússia na luta
internacional em se apoiando sobre uma base económica mais primitiva que a dos seus
inimigos e seus aliados.
Esta base económica foi explorada pelo czarismo, durante a guerra, sem precaução,
isto é, o regime absorveu os fundos e o rendimento nacional numa proporção muito maior
do que os recursos mobilizados pelos seus inimigos e aliados. O facto foi provado, por um
lado, pelo sistema das «dívidas de guerra», e por outro, pela ruína completa da Rússia …
Todas as circunstâncias, que, antecipadamente, deviam determinar a revolução de
Outubro, a vitória do proletariado e as dificuldades nas quais este se encontrava a seguir
não podem de forma alguma ser explicadas pelos lugares comuns de Pokrovsky.

2 «O rearmamento do partido»
No diário nova-iorquino Novy Mir, destinado aos operários russos na América, o
autor do presente livro tentava da uma análise e um prognóstico do desenvolvimento da
Revolução, sobre a base das magras informações da imprensa americana. «A história
íntima dos acontecimentos que se desenrolaram – escrevia o autor, 6 de Março (estilo
antigo) – só nos é conhecida por fragmentos e alusões que deslizam nos telegramas
oficiais.» A serie de artigos consagrados à Revolução começa no 27 de Fevereiro e pára
no 14 de Março, do facto que o autor abandonava Nova York. Citamos abaixo, desta
serie, na ordem cronológica, estratos que podem dar uma ideia das vistas sobre a
revolução que tinha o autor ao chegar, no 4 de Maio, em Rússia.
27 de Fevereiro:
«Um governo desorganizado, comprometido, desarticulado, no alto; um exército
definitivamente degradado; o descontentamento, a incerteza e o medo entre as classes
possuidoras; uma profunda exasperação nas massas populares; um proletariado
numericamente maior, temperado no fogo dos acontecimentos, — tudo isso nos dá o
direito de dizer que somos testemunhos da segunda revolução russa. Esperemos que
muitos entre nós sejam partidários.»
3 de Março

812
«É demasiado cedo e os Rodzianko e os Miliokov começaram a falar, e não é ainda
amanhã que a calma se restabelecerá na Rússia desmontada. Camada após camada, o
país se insurgirá agora – todos os oprimidos, os deserdados, espoliado pelo czarismo e
as classes dirigentes – sobre toda imensidão das terras russas, prisão dos povos. Os
acontecimentos de Petrogrado são somente o princípio. À cabeça da massas populares
da Rússia, o proletariado revolucionário realizará a sua obra histórica: ele expulsará a
reacção monarquica e aristocrática e dará a mão aos proletários da Alemanha e de toda a
Europa. Porque é preciso liquidar não somente o czarismo mas também a guerra.»
«Já a segunda vaga da revolução vai passar por cima das cabeças dos Roziankos e
dos Miliokov, preocupados em restabelecer a ordem e meterem-se de acordo com a
monarquia. É do fundo dela própria que a revolução fará surgir o seu poder – órgão
revolucionário do povo caminhando para a vitória. E as principais batalhas, e os mais
pesados sacrifícios serão no futuro. E é somente após que virá a vitória completa e
verdadeira.»
4 de Março:
«O descontentamento muito tempo contido das massas explodiu tão tarde, no 32º
mês da guerra, não porque se opunham às massas um dique policial, fortemente
perturbado no decurso da guerra, mais porque todas as instituições, todos os órgãos dos
liberais, incluindo a sua criadagem, os sociais-patriotas, exerciam uma formidável pressão
política sobre as camadas operárias as menos conscientes, persuadindo-os da
necessidade da «disciplina patriótica e da ordem».
«Foi somente então (após a vitória da insurreição) que veio a vez da Duma. O czar
tentou, no último minuto, dissolvê-la. E ela ter-se-ia dócilmente dispersado, «seguindo o
exemplo dos anos precedentes», se ela tivesse tido a possibilidade. Mas na capital
dominava já o povo revolucionário, o mesmo que, contra a vontade da burguesia liberal,
descia à rua para combater. Com o povo armado estava o exército. E se a burguesia não
tinha tentado organizar o seu poder, um governo revolucionário teria saído das massas
operárias insurrectas. A Duma do 3 de Junho não se teria jamais resolvido a arrancar o
poder ao czarismo. Mas ela não podia se dispensar de utilizar o interregno que se tinha
estabelecido; a monarquia foi temporariamente varrida da superfície da terra e o poder
revolucionário ainda não se tinha estabelecido.»
6 de Março:
«Um conflito declarado entre as forças da revolução à cabeça da qual se ergue o
proletariado das cidades, e a burguesia liberal anti-revolucionária que provisoriamente
tomou o poder, é absolutamente inevitável. Pode-se, bem entendido – e disto se ocuparão
com zelo os burgueses liberais como os lastimáveis socialistas do tipo vulgar – juntar bem
frases carinhosas sobra a grande superioridade da unidade nacional em relação da cisão
das classes. Mas nunca ninguém conseguiu por tais exorcismos eliminar os antagonismos
sociais e parar o desenvolvimento da luta revolucionária.»
«A partir de agora, imediatamente, o proletariado revolucionário deverá opor seus
órgãos revolucionários, os sovietes de deputados operários, soldados e camponeses, aos

813
órgãos executivos do governo provisório. Nessa luta, o proletariado, unificando à volta
dele as massas populares se erguem, deve atribuir-se como fim directo a conquista do
poder. Só, um governo operários revolucionários possuirá a vontade e a capacidade,
desde do tempo da preparação da assembleia constituinte, de proceder à purificação
democrática radical no país, de reorganizar de alto a baixo o exército, de transformar
numa milícia revolucionária e de demonstrar de facto às camadas inferiores do campo
que a sua salvação está unicamente no apoio ao regime operário-revolucionário.»
7 Março:
«Enquanto se encontrasse no poder a clique de Nicolau II, a preponderância da
política exterior estava dada aos interesses da dinastia e da nobreza reaccionária. É
precisamente por isso que em Berlim e em Viena esperou-se constantemente concluir
uma paz separada com a Rússia. Mas, agora, sobre a bandeira governamental, são os
interesses do puro imperialismo que se inscrevem. «O governo czarista não existe mais,
dizem ao povo os Gotchkov e os Miliokov; agora vocês devem verter o vosso sangue
pelos interesses de toda a nação.» Ora, pelos interesses nacionais, os imperialistas
russos compreendem o retomada da Polónia, a conquista da Galícia, de Constantinopla,
da Arménia, da Pérsia. Noutros termos, a Rússia, actualmente, se perfila na linha geral
dos imperialismos com os outros Estados europeus e, antes de tudo, com seus aliados: a
Inglaterra e a França.»
«A passagem do imperialismo dinástico-aristocrático a um imperialismo puramente
burguês não pode de forma alguma reconciliar com a guerra o proletariado da Rússia. A
luta internacional contra a matança mundial e o imperialismo é actualmente, mais que
nunca, a nossa tarefa.»
«A fanfarronice imperialista de Miliokov – que se gaba de esmagar a Alemanha,
Áustria-Hungria e a Turquia – serve neste momento o Hohenzollern e le Habsburg.
Miliokov jogará o papel de espantalho de quinta. O novo governo liberal-imperialismo,
muito antes de ter empreendido as reformas no exército, ajuda o Hohenzollern a levantar
o espírito patriótico e a reconstituir a «unidade nacional» do povo alemão, que se rasga
em todas as suas costuras. Se o proletariado alemão pensasse que, por detrás do novo
governo burguês da Rússia, se erguesse todo o povo e nesse número, a principal força
da revolução, o proletariado russo – seria um golpe terrível para os nosso camaradas, os
revolucionários sociais-democratas da Alemanha.»
«A primeira obrigação do proletário revolucionários da Rússia é de mostrar que as
perfidias intenções imperialistas da burguesia liberal não têm força atrás dela, porque elas
não são apoiadas pelas massas operárias. A revolução russa dever revelar ao mundo
inteiro a sua verdadeira face, insto é a sua intransigência hostilidade e relação não
somente da reacção dinástica aristocrática mas também do imperialismo liberal.»
8 de Março:
«Inscrevendo na sua bandeira 'a salvação do país', os burgueses liberais tentam
reter entre suas mãos a direcção do povo revolucionário, e, com esse fim, rebocam não

814
somente o trabalhista patriota Kerensky, mas, verosimilmente também, Tchkheidze,
representante dos elementos oportunistas da social-democracia.»
«A questão agrária abrirá uma racha profunda no bloco actual dos nobres,
burgueses e sociais-patriotas. Kerensky terá que escolher entre os «liberais» do 3 de
Junhov, que querem frustrar toda a revolução nos planos capitalistas, e o proletariado
revolucionário que dará todo o seu ampleur ao programa da revolução agrária, a saber a
confiscação, em proveito do povo, das terras do czar, dos proprietários nobres,
apanágios, dos bens de raíz dos mosteiros e das igrejas. Qualquer que possa ser a
escolha pessoal de Kerensky, isso não tem importância … Para as massas camponesas,
para as camadas inferiores do campo isso é outro assunto. Levá-los à causa do
proletariado constitui a tarefa mais urgente, a mais essencial.»
«Seria um crime tentar resolver esta tarefa (a conquista do campesinato) adaptando
nossa política ao espírito limitado, nacional-patriota, da aldeia: o operários russo se
suicidaria se ele pagasse a sua aliança com o camponês a ruptura com o proletariado
europeu. Mas para isso, não há também nenhuma necessidade política. Temos nas mãos
uma arma mais forte: enquanto que o governo provisório actual e o ministro Lvov—
Gotchkov—Miliokov—Kerenskyvi são forçados – para conservar a sua unidade escamotar
a questão agrária, nós podemos e devemos colocar em toda a sua amplitude diante das
massas camponesas da Rússia.»
«— Do momento que a reforma agrária é impossível, nós somos pela guerra
imperialista! — disse a burguesia russa após a experiência de 1905-1917.»
«Voltai as costas à guerra imperialista, oponham-lhe a revolução agrária! Diremos
nós às massas camponesas mencionando a experiência de 1914-1917.»
«Esta mesma questão, a da terra, jogará um papel formidável na obra de unificação
dos quadros proletários do exército com o grosso dos contingentes camponeses.» A terra
do nobre, e não de Constantinopla!» dirá o soldado proletario ao soldado camponês,
explicando-lhe em quê e a quem serve a guerra imperialista. E, do sucesso da nossa
agitação e da nossa luta contra a guerra – antes de tudo nas massas operárias e, em
segundo lugar, nas massas de camponeses e dos soldados – dependerá em breve que o
governo liberal-imperialista possa ser substituido por um governo operários-
revolucionário, apoiando-se directamente sobre o proletariado e sobre as camadas
inferiores do campo que aí se ligam-»
«Os Rodzianko, os Gotchkov, Miliokov aplicarão todos os seus esforços para criar
uma assembleia constituinte modelada à sua imagem. O mais forte trunfo que eles terão
na mão será a palavra de ordem de uma guerra nacional contra o inimigo exterior. Agora,
eles vão falar , bem entendido, da necessidade de defesa «as conquistas da revolução»
contra um esmagamento vindo do Hohenzollern. E os sociais-patriotas em coro com
eles.»
«Se houvesse qualquer coisa para defender! — nós respondemos-lhes. Em primeiro
lugar, é preciso garantir a revolução contra o inimigo interior. É preciso, sem esperar a
assembleia constituinte, varrer os vestígios da monarquia e da servidão. É preciso ensinar

815
ao camponês russo a não se deixar levar pelas promessas de Rodzianko e e mentiras
patrióticas de Miliokov. É preciso agrupar estreitamente milhões de camponeses contra os
imperialistas liberais sob a bandeira da revolução agrária e da república. Para realizar
essa tarefa integralmente, não pode ter aí, apoiando-so sobre o proletariado, que um
governo revolucionário qua afastará do poder os Gotchkov e os Miliokov. Esse governo
operário meterá todos os recursos do poder de Estado para erguer, esclarecer, agrupar as
camadas mais atrasadas, as mais ignorantes, das massas laboriosas da cidade e do
campo.»
«— Mas se o proletariado alemão não se insurgirá? Que faremos então?»
«— Você supõe que a revolução russa pode passar despercebida na Alemanha,
mesmo quando, entre nós, esta revolução levará ao poder um governo operário? Então, é
completamente inverossímil.»
«Ah! E se, todavia? …
«— … Se o inverossímil chegasse, se a organização social-patriota conservadora
impedisse a classe operária alemã, no período que vem, de se erguer contra as classes
dirigentes; — então, bem entendido, a classe operária russa defenderia a revolução pelas
armas. O governo operário revolucionários levaria à guerra contra o Hohenzollern,
apelando o proletariado irmão alemão a se dirigir contra o inimigo comum. Tal como o
proletariado alemão, se ele se encontrasse, num próximo período, no poder, teria não
somente «o direito», mas a obrigação de fazer guerra contra Gotchkov—Miliokov, para
ajudar os operários russo a se desfazerem do seu inimigo imperialista. Nesses dois
casos, a guerra levada por um governo proletário não seria senão uma revolução armada.
Tratar-se-ia não somente de «defender a pátria», mas de defender a revolução e de a
propagar por outros países.»
«Não é de forma alguma indispensável demonstrr que, nas grandes citações feitas
acima tiradas de artigos populares destinados aos operários, o ponto de vista exposto
sobre o desenvolvimento da revolução é aquele que se exprimiu nas teses de Lénine,
data do 4 de Abril.
Sobre a crise pela qual passava o partido bolchevique nos dois primeiros meses da
revolução de Fevereiro, não é inútil de citar um artigo escrito pelo autor do presente livro,
em 1909, para a revista polaca de Rosa Luxemburgo:
«Se os mencheviques, partindo de um conceito abstracto: «nossa revolução é
burguesa» chegam à ideia duma adaptação de toda a táctica do proletariado à conduta da
burguesia liberal, incluindo a conquista para ela do poder de Estado, os bolcheviques,
partindo dum ponto de vista também abstracto, «ditadura democrática e não socialista»,
chegam à ideia dum proletariado que detém o poder e se dá a ele próprio um limite
burguês-democrático. É verdade que a diferença entre eles nesta questão é muito
considerável: enquanto que os lados anti-revolucionários do menchevique se manifestam
em toda sua força desde logo, os traços anti-revolucionários do bolchevismo não
ameaçam com um formidável perigo senão no caso de uma vitória revolucionária.»

816
Essas palavras foram, após 1923, bastante utilizadas pelos epígonos na luta contra
o ´trotskismo´. Ora, elas – oito anos antes dos acontecimentos – uma característica
completamente exacta do comportamento dos epígonos actuais «no caso de uma vitória
revolucionária».
O partido saiu da crise de Abril com honra, tendo-se libertado dos «traços anti-
revolucionários da sua camada dirigente.» Foi por isso que autor acrescentou, em 1922,
no texto acima citado a nata seguinte:
«Isto, como se sabe, não chega, dado que, sob a direcção de Lénine, o bolchevismo
realizou (não sem luta interna) o seu rearmamento ideológico na questão extremamente
importante, na primavera de 1917, isto é antes da conquista do poder.»
Lénine, na luta contra as tendências oportunistas da camada dirigente dos
bolcheviques, escrevia em Abril de 1917:
«A palavra de ordem e as ideias bolcheviques no conjunto estão completamente
confirmadas, mas concretamente as coisas não se apresentaram de outra forma que não
se pudesse prever (o que foi feito), de uma maneira mais original, mais singular, mais
variada. Ignorar, esquecer esse facto significaria que se assimilasse a esses «velhos
bolcheviques», que já jogaram mais de uma vez um papel triste na história do nosso
partido em repetindo uma fórmula desadaptada aprendida em vez de ter estudado a
originalidade da nova e vivida realidade. Qualquer um fala agora do que «a ditadura
revolucionária democrática do proletariado e dos camponeses», esse está atrasado na
vida, esse aí, por consequência, rendeu-se efectivamente à pequena burguesia, está
contra a luta da classe proletária, esse aí deve ser entregue aos arquivos das raridade
«bolcheviques» de antes da revolução (pode-se dizer: aos arquivos «dos velhos
bolcheviques»)».

3 O congresso dos sovietes e a manifestação de Junho


Carta ao professor A. Kahum, Universidade da Califórnia
É do seu interesse de saber em que medida Sokhanov contou exactamente o meu
encontro, em Maio de 1917, com a redacção da Novaia Jizn (Vida Nova), à cabeça da
qual se encontrava, pela forma, Maximo Gorki. Para que o seguimento seja
compreensível, devo dizer algumas palavras sobre o carácter geral das Memórias sobre a
Revolução, em sete volumes, de Sokhanov. Apesar de todas as imperfeições dessa obra
(prolixidade, impressionismo, miopia política) que tornam por momentos a leitura
insuportável, não nos podemos impedir de reconhecer a sinceridade do autor que faz da
sua obra uma fonte preciosa para a História. Os homens de lei sabem, todavia, que a
sinceridade de um testemunho não garante de forma nenhuma a veracidade das suas
deposições: é preciso ainda tomar em consideração o nível intelectual da testemunha,
sua faculdade oculares, auditivas, a sua memória, o seu estado de espírito no momento
de tais incidentes, etc. Sokhanov é um impressionista do tipo intelectual e, como a maior
parte desse tipo de pessoas, incapaz de compreender a psicologia política de homens de
outra formação. Mesmo se ele próprio se tenha posicionado na extrema esquerda do

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campo dos conciliadores, por consequência completamente vizinho com os bolcheviques,
pela sua mentalidade de Hamlet ele era e continuou a opor-se ao bolchevismo. Nele vive
sempre o sentimento de hostilidade, de repulsão em relação aos homens inteiros,
sabendo bem o que eles querem e para onde vão. Daí resulta que Sokhanov, nas suas
Memórias, acumula conscientemente falta sobre falta, desde que ele tenta compreender
os motivos da acção dos bolcheviques ou de desvendar suas intenções nos bastidores.
Ele por vezes parece que confunde conscientemente questões simples e claras. Na
realidade, ele é organicamente incapaz, pelo menos em política, de descobrir o caminho
mais curto de um ponto a outro.
Sokhanov despensa bastantes esforços em opor a minha linha à de Lénine. Muito
sensível à opinião dos corredores e aos rumores dos círculos intelectuais – nisto, seja dito
a propósito, uma das qualidades das Memórias é de dar uma abondante documentação
sobre a psicologia dos dirigentes liberais, radicais e socialistas – Sokhanov vivia
naturalmente da esperança no nascimento de divergências entre Lénine e Trotsky, tanto
mais que isso devia, pelo menos parcialmente, aliviar a sorte pouco invejável da Novaia
Jizn entalada entre os sociais-patriotas e os bolcheviques. Nas suas Memórias, Sokhanov
vive ainda na atmosfera dessas esperanças irrealizáveis, apresentadas sob o aspecto de
lembranças políticas e de hipóteses à pós-facto. Ele esforça-se em interpretar as
particulares do indivíduo, do temperamento, do estilo como um curso político particular.
Sobre a manifestação bolchevique prevista para o 10 de Junho, pois anulada,
sobretudo das manifestação armadas dos dias de Julho, Sokhanov tenta, num certo
número de páginas, demonstrar que Lénine tendia nesses dias a tomar imediatamente o
poder, por meio de uma conspiração e de uma insurreição, que Trotsky, em contrapartida,
teria procurado obter o poder efectivo dos sovietes na pessoa dos partidos que
predominam então, a saber os socialistas-revolucionários e dos mencheviques. Sob isso,
não há sombra de verdade. No 1º congreso dos sovietes, no 4 de Junho, Tseretelli, na
sua arenga, tinha lançado esta frase: «Na Rússia, por momento, não há um partido
político que diria: dêem-nos o poder.» Logo saiu do auditório uma exclamação: «Há um!»
Lénine não gostava de interromper os oradores e não gostava de ser interrompido. Eram
somente motivos sérios que, desta vez, podiam incitar a se desembaraçar da sua
descrição habitual. Logicamente, segundo Tseretelli, resultava que, se um povo cai num
conjunto complexo de grandes dificuldades, é necessário tentar antes de tudo passar o
poder aos outros. Nisto, no fundo, estava toda a sabedoria dos conciliadores russos que,
após a insurreição de Fevereiro, passaram o poder aos liberais. O pouco atraente medo
das responsabilidades, Tseretelli dava a cor do desinteresse político e duma extrema
providência. Para um revolucionário que acredita na missão do seu partido, uma tão
cobarde fanfarronice é absolutamente intolerável. Um partido revolucionário capaz de, em
circunstâncias difíceis, esquivar o poder só merece desprezo.
Num discurso pronunciado na mesma sessão, Lénine explicou a sua exclamação:
«O cidadão ministro dos Correios e Telégrafos (Tseretelli) … disse que em Rússia não há
partido político que se declarou pronto a se encarregar totalmente do poder. Eu respondo
que há um; nenhum partido não pode renunciar a isso e o nosso partido não renunciará; a
qualquer momento ele está pronto a tomar completamente o poder. (Aplausos e risos.)

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Vocês poder rir tanto quanto queiram, mas se o cidadão ministro nos põe esta questão …
ele terá resposta como convém.» Pretende-se que o pensamento de Lénine não era
transparente?
No mesmo congresso dos sovietes, falando depois o ministro da Agricultura,
Pechekhonov, eu dizia o seguinte: «não pertenço ao mesmo partido que Pechekhonov,
mas se me dizem que o ministério se compõe de doze Pechekhonov, eu responderia que
é um formidável passo em frente …»
Não penso que então, no calor dos acontecimentos, as minhas palavras sobre um
ministério composto de Pechekhonov tenha podido ser entendidas como a anti-tese da
disposição de Lénine a tomar o poder. Como teórico desta anti-tese imaginária se
apresenta com atraso Sokhanov. Comentando a preparação pelos bolcheviques da
manifestação do 10 de Junho em proveito da autoridade dos sovietes como uma
preparação da tomada do poder, Sokhanov escreve: «Lénine, dois ou três dias antes da
«manifestação», dizia publicamente que estava pronto a tomar o poder. Mas Trotsky dizia
então mesmo que ele queria encontrar no poder uma dúzia de Pechekhonov. Isso faz
uma diferença. Portanto, suponho que Trotsky estava ligado ao assunto do 10 de Junho
… Lénine, desde então, não estava disposto a lançar uma acção decisiva sem um
duvidoso «interdistrital»vii. Porque Trotsky era o seu igual como colega monumental num
jogo monumental, e, no seu próprio partido, após o próprio Lénine, não houve nada, muito
tempo, muito tempo.»
Toda essa passagem está cheia de contradições. Segundo Sokhanov, Lénine teria
efectivamente meditado no que Tseretelli o acusava: «a tomada imediata do poder pela
minoria proletária». Inverossímil que isso pareça, Sokhanov vê a prova desse blanquismo
nas palavras de Lénine anunciando que os bolcheviques estão prontos a tomar o poder,
no 10 de Junho, conspirando, não era provável que, no 4 de Junho, em sessão plenária
do Soviete, ele tivesse advertido os inimigos. É preciso recordar que, desde do primeiro
dia da sua chegada a Petrogrado, Lénine inculcava no partido esta ideia que os
bolcheviques não poderiam atribuir se atribuírem a tarefa de derrubar o governo provisório
depois de ter conquistado a maioria nos sovietes? Durante as jornadas de Abril, Lénine se
pronunciou resolutamente contra os que entre os bolcheviques lançavam a palavra de
ordem: «Abaixo o governo provisório!» como o problema do dia. A réplica de Lénine, no 4
de Junho, tinha um significado muito preciso: nós, bolcheviques, estamos prontos a tomar
o poder, mesmo hoje se necessário, se os operários e os soldados nos acordam a sua
confiança; por aí, nós nos distinguimos dos conciliadores que, dispondo da confiança dos
operários e dos soldados, não ousam tomar o poder.
Sokhanov opõe Trotsky a Lenine como um realista a um blanquista. «Não aceitando
Lénine, poder-se-ia se ligar à maneira como Trotsky colocava a questão.» Ao mesmo
tempo Sokhanov declara que «Trotsky esteve implicado no caso do 10 de Junho, isto é na
conspiração para a tomada do poder». descobrindo duas linhas numa só para ter a
possibilidade de me acusar, a mim também, de espírito aventureiro. É, no seu género,
uma vingança bastante platónica para as esperanças desiludidas dos intelectuais de
esquerda concernente uma cisão entre Lénine e Trotsky.

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Nos cartazes que tinham sido preparado pelos bolcheviques para a manifestação
anulada do 10 de Junho e que erguiam os manifestantes do 18, o principal motivo era:
«Abaixo os ministros capitalistas!» Sokhanov admire como esteta a simplicidade
expressiva dessa palavra de ordem, mas, como político, mostra que não compreendeu
nada. O governo compreendia, além dos «dez ministros capitalista», seis ministros
conciliadores. Os cartazes dos bolcheviques não atacavam estes últimos. Pelo contrário,
os ministros capitalistas deviam ser, segundo o sentido da palavra de ordem, substituídos
pelos ministros socialistas, representantes da maioria soviética. Foi precisamente esta
ideia exprimida pelos cartazes bolcheviques que formulai diante do Congresso dos
Sovietes: terminem o bloco com os liberais, eliminem os ministros burgueses e substituam
eles pelos vossos Pechekhonov. Ao convidar a maioria soviética a tomar o poder, os
bolcheviques, bem entendido, não atavam as mãos em relação aos Pechekhonov; pelo
contrário, eles não escondiam que, no quadro da democracia soviética, eles lançavam
contra estes últimos, uma luta sem descanso – pela maioria nos sovietes e pela tomada
do poder. Tudo isso é, no fim de contas o A. B. C. Somente os traços indicados acima de
Sokhanov, considerado não tanto como personalidade mas como tipo, explicam como
esse participante e observador dos acontecimentos pode lançar uma irremediável
confusão numa questão tão séria e ao mesmo tempo simples.
À luz do episódio político analizado aqui, é mais fácil compreender como é falsa a
explicação que dá Sokhanov do meu encontre, interessante para vocês, com a redacção
do Novaia Jizn. A moral do meu contacto com o círculo de Maximo Gorki exprimiu-se por
Sokhanov numa frase de conclusão que ele me atribui: «Vejo agora que não me resta
senão fundar um jornal com Lénine.» Resultaria daí que, não julgando possível entender-
me com Gorki e Sokhanov, isto é com homens com os quais nunca considerei nem como
políticos nem como revolucionários, eu teria sido forçado a encontrar a minha via até
Lénine. Basta formular claramente este pensamento para mostrar a inconsistência disso.
Como característica, notava eu de passagem, esta frase de Sokhanov: «fundar um
jornal com Lenine» — como se os problemas da política revolucionária se reduzissem à
fundação de um jornal! Qualquer um dotado de um mínimo de imaginação criadora deve
ver claramente que eu não podia pensar nem definir assim as minhas tarefas.
Para explicar que visitei o círculo jornalístico de Gorki, é preciso se lembrar que
cheguei a Petrogrado no início de Maio, mais de dois meses depois da insurreição, um
mês depois da chegada de Lénine. Entretanto, muitas coisas tiveram tempo de se arranjar
e precisar. Eu necessitava uma orientação directa e por assim dizer empírica não
somente sobre as forças essenciais da revolução, sobre o estado de espírito dos
operários e dos soldados, mas sobre todos os grupos e nuanças políticas da sociedade
´cultivada`. Visitando a redacção da Novaia Jizn, eu realizava um pequeno
reconhecimento político com a finalidade de esclarecer as forças de atracção e repulsa
desse grupo de «esquerda», as oportunidade de separação de tais ou tais elementos. Um
breve encontro me convenceu da completa impotência desse pequeno círculo de literários
para os quais a revolução levaria a um editorial. E como eles acusavam, a propósito, os
bolcheviques de «se terem eles próprios isolado», em lançando a culpa sobre Lénine e
sobre as suas teses de Abril, eu não podia indubitavelmente não lhes dizer que, por todos

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os seus discursos, eles tinham-me, uma vez mais, demonstrado que Lénine tinha
absolutamente razão em isolar deles o partido ou, mais exactamente, em os isolando do
partido. Esta conclusão que tive de sublinhar com particular energia para impressionar os
que participavam na entrevista, Riazanov e Lunatcharsky, adversários de uma união com
Lénine, deu provavelmente pretexto à versão de Sokhanov.
Vocês têm, bem entendido, razão de exprimir esta hipótese que em nenhum caso eu
não teria, durante o outono de 1917, consentido em falar no jubileu de Gorki, do alto da
tribuna do soviete de Petrogrado. Sokhanov fez bem, dessa vez, em renunciando a uma
das suas fantasias: arrastar-me, na véspera da revolução de Outubro, em festejar Gorki,
que se mantinha no outro lado da barricada.

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i Numa grande obra colectiva que foi publicada sob a direcção do professor Pokrovsky, Ensaios sobre a
História da Revolução de Outubro (t. II, Moscovo, 1927), «a dispersão» de Abril é alvo de um estudo
apologético de uma certa Baevsly, a qual, pela sua função de tratar sem cerimónia os factos e os
documentos, deveria ser dita «cínica», se ela não fosse de uma inconsistente criancice.

ii No mesmo dia que Lenine chegou a Petrogrado, do outro lado do Atlântico, em Halifax, a polícia
marítima canadiana raptava, no vapor norueguês Christiania-Fjord, seis emigrados que regressavam à
Rússia, partidos de Nova Iorque: Trotsky, Tchudnovsky, Melnitchansky, Mukhine, Fichelev,
Romantchenko. Essas pessoas não tiveram oportunidade de chegar a Petrogrado senão no dia 5 de
Maio, quando a reorientação política do partido bolchevique estava, em grande medida, terminada. Nós
não pensamos, por consequência, possível introduzir na nossa narração uma exposição das ideias da
revolução que Trotsky tinha desenvolvido num diário russo que se publicava em Nova Iorque. Mas
como, por outro lado, o conhecimento dessas ideias ajudará o leitor a compreender os agrupamentos
ulteriores no nosso partido e sobretudo a luta ideológica na véspera de Outubro, consideramos racional
de colcoar à parte a referência que se relaciona a essa passagem e de a colocar em apendice no fim do
livro. O leitor que não se interessar por um estudo mais detalhado da preparação teórica de Outubro
pode tranquilamente deixar de lado esse apêndice.

iii Sobre esta questão, ver detalhes no Apêndice, nº 3, no fim do 2º volume.

iv Nos processos verbais do Comité central de 1917, que foram publicados em 1929, é dito que Trotsky
teria explicado a sua declaração ao Soviete por isto: «que teria sido forçado por Kamenev». Há aí um
erro evidente no registo da palavras ou então, mais tarde, uma redacção inexacta. A declaração de
Trotsky não necessitava de ser particularmente esclarecida: ela derivava mesmo das circunstâncias. Por
um curioso acaso, o Comité regional moscovita, que apoiava inteiramente Lenine, viu-se forçado, no
mesmo dia 18 a publicar num jornal de Moscovo uma declaração que reproduzia quase palavra por
palavra a fórmula de Trotsky: «Nós não somos um partido de pequenos conspiradores e nós não
marcamos às escondidas as datas das nossas manifestações… Quando decidirmos avançar, nós o
diremos na nossa imprensa ...» Não se podia responder de outro jeito às questões directas dos
inimigos. Mas se a declaração de Trotsky não foi e não podia ser levada pela obrigação de Kamenev,
ela foi conscientemente comprometida pela falsa solidariedade, e nas condições onde Trotsky não tinha
a possibilidade de meter o indispensável ponto no i.

v Quer dizer os membros da Duma saída do golpe do 3 de Junho de 1907.

vi Pelo governo provisório, a imprensa americana compreendia designar o Comité provisório da Duma.

vii Sokhanov me disigna como um «duvidoso interdistrital» (membro da organização interdistritos) com a
evidente intenção de indicar que na realidade eu era bolchevique. Esse último ponto, de qualquer modo,
é justo. Só fiquei na organização interdistrital para o levar ao partido bolchevique, o que se realizou em
Agosto.

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