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A Causa Secreta – Machado de Assis confusas, a luz pouca.

confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um
Um Homem Célebre – Machado de Assis médico.
O Homem Cuja Orelha Cresceu. - Ignácio de Loyola Brandão — Já aí vem um, acudiu alguém.
Um Apólogo – Machado de Assis
Uma Vela para Dário – Dalton Trevisan Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou
O Homem que Sabia Javanês – Lima Barreto amigo do ferido; mas, rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família
ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às
A Causa Secreta pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens.
Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o
Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que médico. Em seguida contou o que se passara.
nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente — de Catumbi, onde
morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três — Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo,
personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram
rebuço. também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este
senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe
Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave que não lhes o punhal. Não caiu logo; disse onde morava, e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.
deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este
respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao — Conhecia-o antes? perguntou Garcia.
passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em
verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender, é preciso remontar à — Não, nunca o vi. Quem é?
origem da situação.
— É um bom homem, empregado no Arsenal de Guerra. Chama-se Gouveia.
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na
Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando — Não sei quem é.
o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o
segundo encontro, poucos dias depois. Morava na Rua de D. Manuel. Uma de suas raras Médico e subdelegado vieram daí a pouco, fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O
distrações era ir ao Teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro,
duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo, ajudado pelo
estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada,
Fortunato, e sentou-se ao pé dele. olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o
médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar
A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.
Fortunato ouviu-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os
olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as
peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo,
esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo Beco do Cotovelo, Rua de S. moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira
José, até o Largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria
em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No Largo da Carioca entrou quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa
num tílburi, e seguiu para os lados da Praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A
mais nada. sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia
negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia,
Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.
rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia
um empregado do Arsenal de Guerra. Era este, que alguns homens conduziam, escada acima, Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa,
ensangüentado. O preto que o servia, acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que
lhe deu as indicações do nome, rua e número. segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca
ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que
— Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente. transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos,
perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o
Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as marido.
palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do
chambre no joelho. Gouveia, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, — Não, respondeu a moça.
levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez
minutos, pediu licença para sair, e saiu. — Vai ouvir uma ação bonita.

— Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se. — Não vale a pena, interrompeu Fortunato.

O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por — A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.
esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício;
mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o Contou o caso da Rua de D. Manuel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a
benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o
como uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele
da ingratidão. próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das
palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da
Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em germe, a faculdade de decifrar os dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.
homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser
supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado — Singular homem! pensou Garcia.
de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera
dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a
nenhum. satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro;
tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.
Tempos depois, estando já formado, e morando na Rua de Mata-cavalos, perto da do Conde,
encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a — Valeu? perguntou Fortunato.
familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.
— Valeu o quê?
— Sabe que estou casado?
— Vamos fundar uma casa de saúde?
— Não sabia.
— Não valeu nada; estou brincando.
— Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.
— Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom.
— Domingo? Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.

— Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo. Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não
foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom
Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa.
companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as Criatura nervosa e ágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contacto
mesmas chapas de estanho, duras e írias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e
Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois.
pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava
meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à tudo, compras e caldos, drogas e contas.
momento em que Maria Luísa saía aflita.
Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da Rua de D. Manuel não era um caso
fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos — Que é? perguntou-lhe.
fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava
sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. — O rato! o rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.
Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos.
Garcia lembrou-se que, na véspera, ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara
— Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele. um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que
havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido
A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta
ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia
moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até à chama,
alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a
da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no primeira. Garcia estacou horrorizado.
coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo, para que entre ele e Fortunato não houvesse outro
laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas — Mate-o logo! disse-lhe.
as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.
— Já vai.
No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a
situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima
vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o
doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado,
dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos depois voltou-os novamente, e
alcançasse do marido a cessação de tais experiências. estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o
diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava
— Mas a senhora mesma... cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos;
a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a
Maria Luísa acudiu, sorrindo: chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.

— Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem.
dissesse que isso me faz mal; e creia que faz... Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a
audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura
Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido.
parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia
como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para
perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada. cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no
prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.
— Deixe ver o pulso.
Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o
— Não tenho nada. animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.

Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter — Castiga sem raiva, pensou o médico, pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que
alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo. só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem.

Dois dias depois — exatamente o dia em que os vemos agora — Garcia foi lá jantar. Na sala Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas
disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito.
Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da
troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula. amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza
compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é
Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços.
nas mãos e falou-lhe mansamente:
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver, mas então não pôde mais.
— Fracalhona! O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em
borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara,
E voltando-se para o médico: saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente
longa.
— Há de crer que quase desmaiou?

Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela Um homem célebre.
com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. — Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto
Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: — Desculpe meu modo, mas... é mesmo
marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; o senhor?
mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se
ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa
o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar. com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau
íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, Rua do
Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o
tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois
recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou
ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi
todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal. preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha,
mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um
Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou obséquio mui particular.
qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta
e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, — Diga, minha senhora.
devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe
perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só — É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô.
quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.
Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o
De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria
Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da
o médico disse-lhe que repousasse um pouco. moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse
conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.
— Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.
Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos
acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando
Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu
estacou assombrado. aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais
modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que,
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as alegando dor de cabeça, pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou
feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e
saiu. moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A
moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca
Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou, depois que nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos,
dobrou a esquina da Rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?
uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia,
sopradas em clarineta. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao
caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras
da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na Rua do vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam
Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens: um deles, passando rentezinho deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se
com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça
tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava
desesperado, corria a meter-se em casa. abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com
os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.
Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se
ele queria cear. Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto;
tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.
— Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.
— Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que
Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes.
sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede.
Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, — A bengala.
segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela
casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, — Mas parece que hoje chove.
era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu
no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, — Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
como ides ver.
— Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.
Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Glück, Bach,
Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:
diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho
da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven. — Espera aí.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a
Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como
grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas,
janelas. Tomou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana
modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café. esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva,
esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou
Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem
entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma
soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele como de uma fonte perene.
voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no
céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar:
mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o
trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas
adormecia, pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.
gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, de onde lhe não manava nada.
— Vai fazer grande efeito. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um — Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.
título poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos
deviam ser, já de si, destinados à popularidade, ou por alusão a algum sucesso do dia — ou pela — Vai casar com uma viúva.
graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de setembro, ou Candongas não fazem festa.
— Velha?
— Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor.
— Vinte e sete anos.
— Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.
— Bonita?
Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não
tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os — Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na
títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo última festa de S. Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é
adiante. rara, mas vale menos: está tísica.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia Os escrivães não deviam ter espírito — mau espírito, quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim
um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou
e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio. daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa
espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia
— E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor. ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por
aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas,
Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; inspiradas e trabalhadas.
mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se
depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do
da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no
alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a tumulto dos dias.
executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por
um vulto que descia a Rua do Aterrado. Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave,
Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à
Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava
os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos.
arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um
arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno;
nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.
página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão
estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as — Acaba, disse Maria; não é Chopin?
assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da
música fácil... Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria
assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A
— As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da
deitar-se. memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da
ponte, caminho de S. Cristóvão.
Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos,
irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, — Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas... Viva a polca!
Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia — Nada.
andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação... Passou o velho
matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o — Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato: vinte
primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tomou a casa. polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois,
acabando o ano, podemos renovar.
Poucos dias depois — uma clara e fresca manhã de maio de 1876 — eram seis horas, Pestana
sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as
Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.
abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um
pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia — Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao
tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de
desesperado. chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a
em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo,
composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao
adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições: piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia
tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de
noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas-da-colônia coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio
e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível. de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava
algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.
Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor
um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o
emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a
e surda. este César que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha
ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos
Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum
como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se prazer e certo fastio.
semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora
achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já
elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da
estava concluído. Redobrou de esforços; esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta de
a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que
aniversário veio achá-lo trabalhando. instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que — Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
lhe vieram sorrateiramente aos olhos, foram do marido, ou se algumas eram do compositor.
Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem. — Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

— Para quê? dizia ele a si mesmo. Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarineta foi pé ante pé preparar o remédio; o editor
levantou-se e despediu-se.
Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.
— Adeus.
— Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o
senhor perdeu o talento. Que tem feito? — Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas
polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais. chamaram outras cidades. Vieram novos açougueiros. E a orelha crescia, era cortada e crescia, e
os açougueiros trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam. E a cidade
Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o prefeito ao
seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo. governador. E o governador ao presidente.

O homem cuja orelha cresceu E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a um
policial: "Por que o senhor não mata o dono da orelha?"
Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram 11 da noite, estava
fazendo hora-extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava pouco,
reforçava com extras. Mas o peso foi aumentando e ele percebeu que as orelhas cresciam. O texto acima foi extraído do livro "Os melhores contos de Ignácio de Loyola Brandão",
Apavorado, passou a mão. Deviam ter uns dez centímetros. Eram moles, como de cachorro. seleção de Deonísio da Silva, Global Editora — São Paulo, 1993, pág. 135.
Correu ao banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam crescendo. Ficou só
olhando. Elas cresciam, chegavam a cintura. Finas, compridas, como fitas de carne, enrugadas. Um Apólogo
Procurou uma tesoura, ia cortar a orelha, não importava que doesse. Mas não encontrou, as
gavetas das moças estavam fechadas. O armário de material também. O melhor era correr para a Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
pensão, se fechar, antes que não pudesse mais andar na rua. Se tivesse um amigo, ou namorada,
iria mostrar o que estava acontecendo. Mas o escriturário não conhecia ninguém a não ser os — Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma
colegas de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa, enfiou as orelhas para dentro. coisa neste mundo?
Enrolou uma toalha na cabeça, como se estivesse machucado.
— Deixe-me, senhora.
Quando chegou na pensão, a orelha saia pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa.
Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um otorrinolaringologista. A — Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável?
esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz de pensar, dormiu de desespero. Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha crescera e — Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe
se enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas enroladas. importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a
Pesavam. Ficou na cama. E sentia a orelha crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo dos outros.
para lá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido. Às quatro da tarde, toda a cama tinha
sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite, sua barriga roncava. — Mas você é orgulhosa.
A orelha tinha caído para fora da cama. Dormiu.
— Decerto que sou.
Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e quando
acordou na manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em cima do guarda- — Mas por quê?
roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta. Ao meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu
pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a casa. Os hospedes fugiram — É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão
para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a rua. eu?

Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia inteiro — Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e
cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram os favelados, as muito eu?
organizações de assistência social, irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de
churrasquinho na porta do estádio, donas-de-casa. Vinham com cestas, carrinhos, carroças, — Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos
camionetas. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador, trouxe babados...
sacos de plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição racional.
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás,
E quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a estocar. obedecendo ao que eu faço e mando...
Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar a carne de orelha,
— Também os batedores vão adiante do imperador. diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda
úmida de chuva. Descansa na pedra o cachimbo.
— Você imperador? Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move
os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de
mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto... bigode pede aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata
e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se da boca.
passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da rua
Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, conversam de uma porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete
e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das que Dario sentou-se na calçada, soprando a fumaça do cachimbo, encostava o guarda-chuva na
sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor parede. Ma não se vê guarda-chuva ou cachimbo a seu lado.
poética. E dizia a agulha: A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o
táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida?
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta Concordam chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede – não tem os
costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
abaixo e acima... Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a
farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma peixaria.
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, Enxame de moscas lhe cobrem o rosto, sem que façam um gesto para espantá-las.
silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora, comendo e
vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na bebendo, gozam as delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da peixaria, sem o
saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a relógio de pulso.
costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados – com vários objetos – de seus
quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficam sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O
endereço na carteira é de outra cidade.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as
agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido calçadas: é a polícia. O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de
da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, Dario, pisoteado dezessete vezes.
acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe: O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo – os bolsos vazios. Resta na
mão esquerda a aliança de ouro, que ele próprio – quando vivo – só destacava molhando no
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido sabonete. A polícia decide chamar o rabecão.
e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a A última boca repete – Ele morreu, ele morreu. A gente começa a se dispersar. Dario
caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. levou duas horas para morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam
vê-lo, todo o ar de um defunto.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no
experiência, murmurou à pobre agulha: — Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho peito. Não consegue fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem morto e a
para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, multidão se espalha, as mesas do café ficam vazias. Na janela alguns moradores com almofadas
que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Parece morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária! Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão.
Publicado originalmente em Gazeta de Notícias 1885 A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às
primeiras gotas da chuva, que volta a cair.
Uma Vela para Dário
Conto publicado no livro 33 Contos Escolhidos, Ed. Record
Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina,
O Homem Que Sabia Javanês não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:
- Senhor Castelo, quando salda a sua conta?
Respondi-lhe então eu, com a mais encantadora esperança:
EM UMA confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que - Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês,
havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver. e...
Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a Por aí o homem interrompeu-me:
esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam - Que diabo vem a ser isso, Senhor Castelo?
ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso. Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem:
O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, - É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor. Sabe onde é?
até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo: Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida e disse-me com aquele falar
- Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo ! forte dos portugueses:
- Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, - Eu cá por mim, não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os
voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado ! lados de Macau. E o senhor sabe isso, Senhor Castelo?
- Cansa-se; mas, não é disso que me admiro. O que me admira, é que tenhas corrido Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá
tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático. estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a
- Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os
Imagina tu que eu já fui professor de javanês! meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto
- Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado? javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou se por ter me empenhado
- Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso. mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar.
- Conta lá como foi. Bebes mais cerveja? Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano
- Bebo. Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que
Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei: numero. E preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é,
- Eu tinha chegado havia pouco ao Rio estava literalmente na miséria. Vivia fugido de o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e
casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal responder "como está o senhor?" - e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber
do Comércio o anuncio seguinte: com vinte palavras do léxico.
"Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc." Ora, disse cá comigo, está Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei, para arranjar os quatrocentos réis
ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia da viagem! É mais fácil - podes ficar certo - aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo;
apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, e, Com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa
ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os "cadáveres". do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único
Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas, momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...
entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava mal tratada, mas não sei porque
Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e a língua javanesa. me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo
Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam e os beirais do telhado,
arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo maleo- daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras
polinésico, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho decadentes ou mal cuidadas.
alfabeto hindu. Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho
A Encyclopédie dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua
dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano,
pelas ruas, perambulando e mastigando letras. Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice,
quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na doçura e sofrimento.
areia para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los. Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se
À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós,
encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu "a-b-c" malaio, e, com tanto afinco levei com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão;
o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente. mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que
gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela
Convenci-me que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar,
diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos
dos olhos fatigados dos velhos desiludidos... dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro, que preciso entender
Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço o javanês. Eis aí.
de alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os
vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um olhos e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe
crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha
augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei. casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e
- Eu sou, avancei, o professor de javanês, que o senhor disse precisar. oscilante.
- Sente-se, respondeu-me o velho. O senhor é daqui, do Rio? Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em couro,
- Não, sou de Canavieiras. impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso
- Como? fez ele. Fale um pouco alto, que sou surdo, - Sou de Canavieiras, na Bahia, não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês,
insisti eu. - Onde fez os seus estudos? onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.
- Em São Salvador. Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo
- Em onde aprendeu o javanês? indagou ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos. inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o
Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal
que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o
proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi tal alfarrábio antes de um ano.
javanês. Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto
- E ele acreditou? E o físico? perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado. eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com
- Não sou, objetei, lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, metade do alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor
duros e grossos e a minha pele basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de da matéria: aprendia e desaprendia.
malaio...Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias
guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro. do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo.
- Bem, fez o meu amigo, continua. Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o
- O velho, emendei eu, ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa Única! Ele não se cansava de repetir: “É
físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e perguntou-me com doçura: um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava !”
- Então está disposto a ensinar-me javanês? O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão), era
- A resposta saiu-me sem querer: - Pois não. desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo o
- O senhor há de ficar admirado, aduziu o Barão de Jacuecanga, que eu, nesta idade, mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim
ainda queira aprender qualquer coisa, mas... de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não,
- Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos... ? . um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o
- O que eu quero, meu caro senhor.... traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.
- Castelo, adiantei eu. Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e
- O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Não impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens !...
sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus
quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que olhos !
tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava,
a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: enfim, uma vida regalada.
"Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente
e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu javanês; e eu estive
queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, quase a crê-lo também.
para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou muito Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que me aparecesse
na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o
prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na
fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto
passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me 1embrei tagalo. - "Qual! retrucava ele. Vá, menino; você sabe javanês!" Fui. Mandou-me o visconde
para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso. pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi.
O diretor chamou os chefes de secção: "Vejam só, um homem que sabe javanês - que Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bâle, em Berlim,
portento!" em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo
Os chefes de secção levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido,
olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: "Então sabe javanês? É cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.
difícil? Não há quem o saiba aqui!" Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no
O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais e o presidente da república, dias
O senhor sabe?" Disse-lhe que não e fui à presença do ministro. depois, convidava-me para almoçar em sua companhia.
A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, concertou o pince-nez no nariz e Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para
perguntou: "Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e
aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. "Bem, disse-me o ministro, o senhor não Polinésia.
deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou - É fantástico, observou Castro, agarrando o copo de cerveja.
Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em - Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser ?
diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai - Que?
representar o Brasil no Congresso de Lingüística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller, e - Bacteriologista eminente. V amos?
outros!" - Vamos.
Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Gazeta da Tarde, Rio.28-4-1911.
Brasil em um congresso de sábios.
O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto,
quando tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa no testamento.
Pus-me com afã no estudo das línguas maleo-polinésicas; mas não havia meio!
Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar
na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et
Linguistique, Proceedings of the English-Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o
diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos
outros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês." Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre
a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do
interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de
entenderem o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Comércio um artigo de
quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...
- Como, se tu nada sabias? interrompeu-me o atento Castro.
- Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de
dicionários e umas poucas de geografias, e depois citei a mais não poder.
- E nunca duvidaram? perguntou-me ainda o meu amigo.
- Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo,
um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém
o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia,
naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção
do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o
tal marujo era javanês - uf!
Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à
inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na secção do tupi-guarani e eu abalei
para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bâle o meu retrato, notas biográficas e
bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela secção;
não conhecia os meus trabalhos e julgara que, por ser eu americano brasileiro, me estava
naturalmente indicada a secção do tupi- guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não

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