22
BRANCUSI E 0 PROBLEMA DA BASE NA ESCULTURA
Jé afirmamos que o problema dathas8na escultura equivale ao da
‘moldura%na pintura, e que esse problema, tomado em sua verda-
deira importancia, possibilita uma visio nova do desenvolvimento
da linguagem plastico-pictérica moderna. A moldura e a base nao
mantinham com a obra de arte, propriamente, uma relagio mais
intima, enquanto a linguagem dessas obras era figurativa. Mas, &
medida que os elementos figurativos iam sendo eliminados, os
artistas foram intuitivamente percebendo que a sua expressao en-
trava em conflito com aquela heranga. E um novo problema se
manifestou: para criar uma linguagem realmente nova, tal como
exigiam as transformagoes culturais e sociais da época, nao bastaria
transformarem-se os signos da velha linguagem figurativa, desde
que se conservassem, sob eles, o mesmo espago de representacao.
A moldura e a base continuavam a revelar uma ligacao entre a
linguagem nascente e a que se pretendia abandonar.
Base, moldura — questo aparentemente simples. Mas quan-
tos anos se passaram até que esse problema se colocasse em toda a
suia clareza... (e ainda sob a descrenga de quase todos os doutores da
arte que nele agora ouvem falar!). J4 tivemos oportunidade de es-
crever longamente acerca das relagdes entre a moldura, a pintura e
anova linguagem realmente nio-representativa que nasce. Abordo
agora o caso da escultura, e tomando como exemplo o grande revo-
lucionério da escultura moderna — Constantin Brancusi.24
Quando Brancusi, que era romeno, chegou a Paris em 1904,
os grandes nomes da escultura eram Rodin, Bourdelle e Maillo].
Fervoroso admirador de Rodin, tornou-se seu discipulo, mas logo
compreendeu que a sua linguagem nao podia ser a mesma que a
do mestre. Entrou em crise: mal acabava uma obra, destruia-a,
enfurecido. “Tinha a impressio de estar fazendo cadaveres”,
diria mais tarde. Deixou o atelié de Rodin e comegou sozinho a
buscar um novo caminho para a escultura.
Em 1915, Brancusi faz 0 Nouveau-né, escultura em pedra
que é um simples ovéide com um pequeno corte plano, que 0
intensifica. Ja em 1906, expusera a Musa adormecida, que é
uma cabega delicadamente talhada, deitada sobre um de seus
lados. Nessa obra, a forma ovdide comeca a se manifestar, anun-
ciando um tema a que o escultor voltaria intimeras ve:
Nouveau-né, a figura praticamente desapareceu, permanecendo
a alusao ao motiyo apenas nas qualidades abstratas da forma. Ja
afo problema da base se manifesta: 0 Nouveau-né nao esta preso
auma base: ele repousa sobre um cubo de pedra que seria como
uma espécie de campo ideal para a apreens&o daquela forma.
Mas quando o artista escolhe esse campo ideal, especial, neces-
sario, no esté ele ainda realizando a obra?
Se o escultor faz um busto, esse problema é simples. Um
suporte qualquer, roligo, facetado ou uma simples haste é natu-
ralmente apreendido como nao-pertencente a obra..O proprio
contraste eptre o-carater_ figurative da_forma-daohra repele 0
suporte desi,o reduz a suporte mesmo. Mas se a escultura é um
ovdide ou uma outra forma qualquer nao-figurativa? Se, por
ser abstrata, a expressio da escultura exige isolamento, para que
a apreendamos una no espa¢o, quando isso acontece, a forma da
obra confunde-se com a do suporte: so ambas abstratas. E comisso a obra como que transborda de si —_¢ o suporte se inclui
escultura. Esse problema —
nela, transform:
que, sem dificuldade, pode ser rastreado nas obras de todos os
grandes escultores modernos — assume aspecto dramético em
Brancusi, o primeiro a defrontar-se com ele.
E est de tal modo evidente em sua obra, orienta de tal
modo a problemética de sua linguagem, que a gente se sur-
preende de que nenhum critico o tenha percebido ou, pelo
menos, jamais lhe tenha dado importancia. Pierre Guéguen,
numa longa dissertagio “Méditation sur l’oeuvre brancusien”
(Aujourd’hui, n.12), no roca sequer a questo. Carola Giedion-
Welker fala nas relagdes da arte de Brancusi com a civilizagao
egéia. James Johnson Sweeny observa, com agudeza, a intima
relagdo entre a expressio de Brancusi e 0 material que usa, e
chega mesmo a fazer a seguinte observagao: “Uma forma de
marmore chamada Leda nao pretende ser um cisne: é um pe-
dago de marmore que possui certas caracteristicas de um cisne,
principalmente por sua massa que parece flutuar na superficie
da base, como um cisne flutua quase desligado da agua.” Pois
sim, sem essa base polida — que ja nao é apenas uma base mas
um elemento essencial 4 escultura — Brancusi nao teria con-
seguido imprimir a forma que ali se apdia a expressao de leveza
e flutuacao que desejava.
Mas esse nao é um caso isolado na obra de Brancusi, nem 0
mais importante. Vejamos, por exemplo, a tiltima versio em
metal do Nouveau-né. A escultura seria, inicalmente, a forma
ovéide; sob ela, estd um disco circular de metal polido, em que a
forma se reflete, como se estivesse apoiada em seu prdprio
reflexo. Mas, sob esse disco, hé umn bloco de marmore em forma
de crua que o sustenta. Sob o bloco de mérmore hé uma forma
3526
de madeira, também esculpida; e finalmente, um suporte circu-
lar, de pedra, que repousa no chao. E 0 que se constata é essa
estranha coisa: a base do Nouveau-né é uma série de esculturas,
colocadas uma sobre as outras. Houve uma espécie de elefan-
tiase ¢ a base cresceu mais do que a obra que devia sustentar.
O Nouveau-né nao é mais o simples ovéide de 1915 ¢ sim
uma enorme escultura de esculturas — e ninguém nos garante
que Brancusi teria que inevitavelmente parar ali... Eo que é a
célebre Coluna sem fim? Uma série (que o proprio escultor
considera infinita) de formas iguais que se sucedem uma sobre
as outras, como se cada uma fosse ao mesmo tempo base e
escultura. E tanto mais interessante é observar que essas formas
sfo as mesmas que se encontram como base do Péssaro no
espaco. Comparando as duas obras, a impressao que se tem €
que, na Coluna sem fim, nao ha mais escultura, mas apenas
base, ou seja, a forma abstrata da base tomou o lugar da forma
alusiva do passaro — e tornou-se a escultura mesma. Mas essa
Coluna sem fim é apenas uma seriagao de formas que, por ser
infinita, ndo nos transmite uma expressao realizada, acabada,
total. Elas ilustram um problema fundamental da linguagem
plastica moderna, anunciam a crise e, conseqiientemente, a ne-
cessidade de uma expresséio nao-alusiva, nao-metaforica, mas
situada diretamente em seu tempo (em seu espago), eliminando
de vez o problema do suporte. Esta também, em Brancusi, 0
caminho para 0 nao-objeto.ANTOLOGIA CRITICA
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil
Ferreira Gullar
PESQUISA, EBIGAO
FE ORGANIZAGAO
Renato Rodrigwes da Siva
tbrano Meka Monteiro