Sobre a obra: Este livro reúne ensaios de um autor cujo nome já se confunde com seu
próprio objeto de investigação, as escritas do eu. A coletânea de ensaios de Philippe
Lejeune aqui apresentada cobre mais de 30 anos de reflexão, pesquisa e defesa de um
gênero cuja proliferação atual e o interesse acadêmico crescente não significam de fato
que haja consenso em torno dele.
O PACTO AUTOBIOGRÁFICO
DEFINIÇÃO: narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria
existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua
personalidade. (p.14)
Para que haja autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso
que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem. Mas essa
identidade levanta numerosos problemas. (p.15)
- não haveria confusão, na maior parte dos raciocínios relativos à autobiografia, entre a
noção de identidade e a de semelhança? (Cópia autenticada) (p.15)
Esses empregos da terceira pessoa e da segunda pessoa são raros na autobiografia, mas
nos proíbem de confundir os problemas gramaticais da pessoa com os problemas da
identidade. (p.18)
EU ABAIXO ASSINADO
Suponhamos então que todas as autobiografias sejam escritas em primeira pessoa (...)
mesmo nesse caso fica a seguinte pergunta: como se manifesta a identidade do autor e do
narrador? Para um autobiógrafo, é natural se perguntar simplesmente: quem sou eu? Mas,
uma vez que sou leitor, não é menos natural que eu faça primeiro a pergunta de outro
modo: quem é “eu?” (Ou seja, quem diz “quem sou eu?’). (p.19)
A autobiografia (narrativa que conta a vida do autor) pressupõe que haja identidade de
nome entre o autor (cujo nome está estampado na capa), o narrador e a pessoa de quem
se fala. Esse é um critério muito simples, que define, além da autobiografia, todos os
outros gêneros da literatura íntima (diário, autorretrato, auto ensaio). Uma objeção vem
logo à mente: e os pseudônimos? Objeção fácil de ser descartada, a partir do momento
em que o pseudônimo é definido e diferenciado do nome do personagem fictício. (p.24)
No caso do nome fictício (isto é, diferente do nome do autor) dado a uma personagem
que conta sua vida, o leitor pode ter razões de pensar que a história vivida pelo
personagem é exatamente a do autor: seja por comparação com outros textos, seja por
informações externas, ou até mesmo pela própria leitura da narrativa que não parece ser
de ficção (como quando alguém diz: “Eu tinha um grande amigo a quem aconteceu...”, e
começa a contar a história desse amigo com uma convicção inteiramente pessoal). Ainda
que se tenha todas as razões do mundo para pensar que a história é exatamente a mesma,
esse texto não é uma autobiografia, já que esta pressupõe, em primeiro lugar, uma
identidade assumida na enunciação, sendo a semelhança produzida pelo enunciado
totalmente secundária. (p.25)
Esses textos entrariam na categoria do “romance autobiográfico”. Chamo assim todos os
textos de ficção em que o leitor pode ter razões de suspeitar, a partir das semelhanças que
acredita ver, que haja identidade entre autor e personagem, mas que o autor escolheu
negar essa identidade ou, pelo menos, não afirma-la. (p.25)
A identidade de nome entre autor, narrador e personagem pode ser estabelecida de duas
maneiras:
Explicação: o autor expõe através de explicações detalhadas a forma como o leitor deve
conceber um texto autobiográfico. Lejeune argumenta que autor-narrador-personagem
idênticos são peças chave para a compreensão das obras autobiográficas. Ele ressalta
ainda que a identidade não é uma semelhança e que a autobiografia não é um jogo de
adivinhações.
O PACTO AUTOBIOGRÁFICO (BIS)
DEFINIÇÃO: Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria
existência, quando focaliza especialmente sua história individual, em particular a história
de sua personalidade. (p.49)
Mas não me arrependo de nada. Afinal de contas, se essa definição passou a ser uma
referência, é porque corresponde a uma necessidade. (p.50)
O que me deteve foi uma certa tendência ao “nominalismo” e, de modo mais geral, uma
atitude dogmática quanto ao problema da identidade. Isso fica claro quando chego na
autobiografia anônima. Ao invés de proceder de uma análise mais ampla dos diferentes
casos possíveis (e das diferentes reações possíveis do leitor), fico bloqueado – e sentindo
que estou equivocado, tento me safar, perdendo a paciência com meus leitores: ‘ é certo
que, ao declarar impossível uma autobiografia anônima, estou apenas enunciando um
corolário de minha definição e não tentando “prová-la”. Dou inteira liberdade a quem
quiser declarar a coisa possível, mas seria preciso então partir de uma outra definição”.
Ou seja, me eximo de toda e qualquer responsabilidade, lavo minhas mãos... (p.52)
Ao fazer um acordo com o narratário cuja imagem constrói, o autobiográfo incita o leitor
real a entrar no jogo dando a impressão de um acordo assinado pelas duas partes. Mas
sabe-se que o leitor real pode adotar modos de leitura diferentes do que é sugerido e que,
sobretudo, muitos textos publicados não comportam nenhum contrato explícito. (p.57)
O que chamo autobiografia pode pertencer a dois sistemas diferentes: um sistema
referencial “real” (em que o compromisso autobiográfico, mesmo passando pelo livro e
pela escrita, tem valor de ato) e um sistema literário, no qual a escrita não tem pretensões
à transparência, mas pode perfeitamente imitar, mobilizar as crenças do primeiro sistema.
(p.57)
Em relação ao autor, pode haver defasagem entre sua intenção inicial e a intenção que lhe
será atribuída pelo leitor, seja porque o autor desconhece os efeitos induzidos pelo modo
de apresentação que escolheu, seja porque entre ele e o leitor existem outras instâncias:
muitos elementos que condicionam a leitura (subtítulo, classificação genérica,
publicidade, adendo) podem ter sido escolhidos pelo editor e já interpretados pelos meios
de comunicação. (p.57)
Enfim, é preciso admitir que podem coexistir leituras diferentes do mesmo texto,
interpretações diferentes do mesmo “contrato” proposto. O público não é homogêneo.
(p.57)
A CASA CEGA: (p.28). Esse quadro mostra os efeitos da combinação do pacto com o
emprego do nome próprio (relação entre o nome do autor e o nome do personagem
principal): em cada casa inscrevi o efeito produzido. Há duas casas “cegas” que
correspondem a casos “excluídos por definição”. Cego estava eu. Salta aos olhos que o
quadro está mal feito (palavras do autor). (p.58)
Esse quadro teve a sorte de cair nas mãos e inspirar um romancista (que também é
professor universitário), Serge Doubrovsky que decidiu preencher uma das casas vazias,
combinando o pacto romanesco e o emprego do próprio nome. Seu romance Fils (1977)
se apresenta como uma “autoficção” que, por sua vez, me inspirou. (p.59)
Desse modo, pude observar um fenômeno mais amplo: nos últimos 10 anos, da “mentira
verdadeira” à “autoficção”, o romance autobiográfico literário aproximou-se da
autobiografia a ponto de tornar mais indecisa do que nunca a fronteira entre esses dois
campos. (p.59)
O ESTILO: Minha análise foi desenvolvida a partir de uma evidência: “como distinguir
autobiografia e romance autobiográfico? Tenho que confessar que, se nos ativermos à
análise interna do texto, não há nenhuma diferença”. Consequentemente, concentrei-me
nos elementos que, à margem do texto, fazem a diferença: o nome próprio e o contrato.
(p.60)
É óbvio que os problemas levantados pelo contrato podem ser analisados a partir de outras
disciplinas e por outros métodos: a psicologia e a psicanálise e também a sociologia e o
estudo da ideologia. (p.64)
Dizer a verdade sobre si, se constituir em sujeito pleno, trata-se de um imaginário. Mas,
por mais que a autobiografia seja impossível, isso não a impede de existir. (p.66)
Talvez, ao descrevê-la, tomei, por minha vez, meu desejo pela realidade: mas o que quis
fazer foi descrever esse desejo em sua realidade, que é ser compartilhado por um grande
número de autores e leitores. (p.66)
IDOLATRIA: Fiquei impressionado com uma frase de George May, no início de seu
livro sobre a autobiografia, em que ele se vangloria por não ser “afligido por nenhuma
forma aberrante de idolatria por esse gênero de literatura”. Devo confessar o inverso; a
forma aberrante que assumiu minha idolatria é o desejo de escrever. Escolhi trabalhar,
academicamente, com autobiografia, porque, paralelamente, queria trabalhar em minha
própria autobiografia. (p.66)
Este título comemorativo, que surgiu durante uma conversa entre Anna Caballé e eu está
me deixando, hoje, um pouco constrangido. Li alguns tratados de boas maneiras. A
baronesa Staffe, por exemplo diz claramente, em 1893: “É por generosidade que se deve
evitar falar de si, ainda que seja para falar mal. Deve-se impedir o máximo possível a
intervenção de seu eu, pois este é quase sempre um assunto que incomoda ou entendia os
outros”. Mas, na verdade, o que vou contar aqui é uma aventura teórica na qual minha
importância é apenas circunstancial. (p.70)
Recuo no tempo e olho para “30 anos atrás”. L’autobiographie en France é um pequeno
livro muito simples, composto de três capítulos: definição (defino a autobiografia em
relação a outros gêneros), “História” (tento responder às seguintes perguntas: quando
começa a história da autobiografia e como escrevê-la, forneço, em seguida, uma série de
pontos de referência) e “Problemas” (analiso o pacto e o discurso autobiográfico, evoco
os argumentos “a favor” e “contra” e situo a autobiografia em relação à psicanálise).
(p.70-71)
Porque escrevi esse livro? Para satisfazer uma paixão e preencher uma lacuna. (...) folheio
o livro e fico bastante espantado. A definição não é realmente objeto de nenhuma análise
aprofundada, mas é utilizada, sobretudo, para constituir um corpus baseado em um
modelo estritamente rousseauniano. O propósito é claramente normativo. (p.71)
De fato se eu tivesse sido mais aberto, teria reunido um corpus imenso e confuso. Todo
erro tem sua verdade. A identidade, aqui como em toda parte, é uma escolha. (p.71-72)
Quando você lê uma autobiografia, não se deixa simplesmente levar pelo texto como no
caso de um contrato de ficção ou de uma leitura simplesmente documentária, você se
envolve no processo: alguém pede para ser amado, para ser julgado, e é você quem deverá
fazê-lo. (p.73)
Forneci uma definição e estou contente que tenha agradado. (...)trinta páginas depois, faço
um pequeno balanço, dizendo em que pontos pareço ter avançado e o que continua
confuso, e proponho examinar o problema de outro ângulo, o da recepção. (p.79)
A palavra “autobiografia”, aliás, que muitos suspeitam de ser sectária, vem sofrendo a
concorrência de algumas expressões mais abrangentes, mais flexíveis. No fim dos anos
de 1970, começou-se a falar de “relatos de vida” (...) a expressão tem virtudes
interdisciplinares, designa um terreno comum aos literários e aos especialistas de ciências
humanas: engloba a narrativa oral (que-“grafia” exclui) e a hetero – (que “auto” exclui)
sem deixar de respeitar o contrato de verdade. No inicio dos anos de 1980, e até hoje,
outras expressões, como “escrita do eu” ou “ escrita de si’, surgiram com uma função um
pouco diferente, às vezes em programas de provas e concursos. Tratava-se, dessa vez, de
ampliar o campo, incluindo a “verdadeira” literatura, isto é, ficção, fazendo do pacto de
verdade uma especificação secundária. (p.82)
Acredito simplesmente que é difícil pensar o passado. Que nem tudo sempre existiu. Que
certos elementos formalmente idênticos podem ter tido funções diferentes. Que as
relações com o tempo, a identidade, o grupo, a escrita variaram. (p.84-85)
AUTOBIOGRAFIA E FICÇÃO
Tenho duas categorias de adversários: os primeiros são os que não acreditam na verdade.
Eles me olham com piedade. Os outros, os que acreditam na literatura. Eles me olham
com indignação. (p.103)
O fato de a identidade individual, na escrita como na vida, passar pela narrativa não
significa de modo algum que ela seja uma ficção. (p.104)
Minha explicação: Após uma avaliação do seu percurso teórico Lejeune faz diversas
observações acerca da compreensão por parte dos leitores do que ele chamou de pacto ou
contrato de leitura. A teoria do gênero autobiográfico, segundo o autor, passou uma
impressão de algo dogmático consequentemente, um dos grandes problemas. Para ele
persistem as tentativas de definir o termo autobiografia em relação as narrativas
ficcionais. Nesse sentido observa-se, por parte do autor, uma posição de defesa ao pacto
autobiográfico.