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G Ê N E R O P O R E L A S

ORG.

ALICE Nunes

ANA LUÍSA Bussular

DÉBORA Rempel

HONISLAINE Rubik

J AQ U E L I N E C o n t e

KA R I N A A zeve d o
G Ê N E R O P O R E L A S

primeira edição

[ MIL FUTUROS EDITORA ]


Curitiba
2017
ALICE
Nunes

ANA LUÍSA
Bussular

DÉBORA
Rempel
o rg a n i za d o p o r
HONISLAINE
Rubik

J AQ U E L I N E
Conte

KARINA
A zeve d o
[ ORGANIZAÇÃO ]
Alice Nunes
Ana Luísa Bussular
Debora Rempel
Honislaine Rubik
Jaqueline Conte
Karina Azevedo

[ EDIÇÃO ]
Ana Luísa Bussular
Karina Azevedo

[ PREPA RAÇÃO E REVISÃO ]


Alice Nunes
Debora Rempel
Jaqueline Conte

[ PROJETO GRÁFICO ]
Elis Jacques

[ ILUSTRAÇÕES ]
Alice Grosseman Mattosinho
Gabriela Couth
Raquel Thomé

Nun es, Alice , 20 17-


Que m u ndo é e sse ?: G ê ne ro po r e las / o rg . d e A l i ce
Nun es et al. - C ur it ib a: M il F ut uro s Ed i to ra , 2 0 17.
96 p . : 23 c m.

I SBN 978 - 8 5- 9 425 9 - 0 1-1

1. Mi sce lâne a de e sc r ito s b rasile iro s.


A P R E S E N TA Ç Ã O 07

P R E FÁ C I O : O Q U E É S E R M U L H E R ? 11
N i c o l e Ko l l r o s s

F E M I N I S TA ! ? E U ? 15
A n d r e a Ko m i n e k

COMPREI UM TÊNIS COR-DE-ROSA 19


Elena*

S O U M U L H E R , LO G O , P O S S O O Q U E E U Q U I S E R 23
Arabella*

B E L E Z A A I N DA É L U G A R D E M U L H E R ? 27
Anna Vitória Rocha

DEZ HORAS 35
L i s i a n e Pa i x ã o

SOBRE O MEDO DE BRIGAR 41


Amanda Arruda

J U L G A M E N TO E M U M T R I B U N A L S O C I A L 47
Alice Cristina Reis Rodrigues

Q UA N D O O M E D O V I A J O U C O M I G O 51
Ta r y n e Z o t t i n o

POR TRÁS DE UM GRANDE HOMEM, 57


SEMPRE HÁ UMA GRANDE MULHER?
A n a C h r i s t i n a Va n a l i

E U S O U F E M I N I S TA 61
A n a L u í za A l ve s

M U L H E R E S TA M B É M G O S TA M D E F U T E B O L 69
M a r i a E l i s a b et h B u s s u l a r F ra n q u i n i

M U L H E R E S J U N TA S N Ã O E S TÃ O S OZ I N H A S 73
Milena Martins

N Ã O E X I S T E “ N U D E ” PA R A M I M 77
LAURA*

J Á D I Z I A S I M O N E D E B E A U VO I R 83
Pa l o m a E n g e l k e M u n i z

P O S FÁ C I O : “ B E N E F I C I Á R I A S ” 87
DE UM DISCURSO DE GÊNERO
Denise Ratmann Arruda Colin
APR E S E NTAÇ ÃO
“ Não s e n a s c e mu l he r.
Tor n a - s e mu l he r.”

S imon e d e B e a u v oir

A frase clássica, da obra da teoria feminista

O Segundo Sexo, foi escrita em 1949. É estranho, para não

dizer incômodo e assustador, que um livro sobre a condição

da mulher, concebido há mais de seis décadas, ainda se faça

tão necessário e atual.

O problema da desigualdade de gênero está enraizado

na nossa estrutura social desde muito antes de Cristo e

é complicado, à luz da autora, entender o que levou a

humanidade a se estruturar dessa forma. Talvez as condições

biológicas? Se analisarmos quase que metaforicamente,

o espermatozóide vai à luta, enquanto o óvulo o recebe e

aninha. Seria por isso que o homem se tornou o conquistador

e a mulher a dona de casa? Ou, quem sabe, a causa disso

foi a famigerada virilidade? Talvez isso fizesse mesmo algum

sentido na Idade da Pedra, quando a força bruta era muito

necessária ao cotidiano. Mas, aparentemente, a sociedade

se apegou tanto à metáfora biológica quanto à força física

masculina - força que, nos moldes de hoje, nem se faz mais

tão importante.

7
Ao longo da história, as mulheres foram dando seus

passos. Sim, elas votam. Sim, elas podem trabalhar fora de

casa. Sim, elas têm mais liberdade. Mas se 90% da classe


política brasileira é composta por homens1, em quem as

eleitoras estão votando? No mercado de trabalho, o mesmo

cargo confere ao homem um salário até 50% maior do que

a uma mulher2 e 63% dos cargos de direção e gerência são

ocupados por homens3; quando se fala em trabalho doméstico,

a mulher dedica o dobro do seu tempo para esse fim4.

Pesquisamos muito sobre a problemática da questão

de gênero e encontramos textos excelentes, dados e estudos

críticos, muitos artigos embasados na literatura, bem como

bases teóricas aprofundadas, mas, ainda, pouco material

acessível ao público em geral. Nosso objetivo é fazer com que

as pessoas percebam, através de relatos e histórias que possam

gerar empatia, a desigualdade que se criou entre homens e

mulheres por meio de relações socialmente construídas.

Aqui você não vai encontrar muitos dados, nem

muita teoria. Aqui você vai encontrar vozes de mulheres,

de diferentes idades, com diferentes histórias de vida e

formações, que sentem na pele os problemas da segregação

de gênero, da cultura do estupro, das cobranças e expectativas

sociais. Aqui, você vai encontrar, por meio de relatos reais e

de ficção baseada em experiências reais, um pouco desse

8 APRESENTAÇÃO
mundo (“que mundo é esse?”) em que vivemos. Porque, sim,

as mulheres têm voz, e elas querem ser ouvidas por todos

os gêneros. Nosso convite é apenas um: coloque-se no lugar


de cada uma dessas mulheres e permita-se sentir na pele a

realidade do dia a dia vivido por milhares de seres humanos.

1
Ranking de Presença Feminina no Parlamento 2017.
2
Organização Internacional do Trabalho (OIT).
3
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
4
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).

APRESENTAÇÃO 9
10
[ P R E FÁ C I O ]
[ P R E FÁ C I O ]

O QU E É S E R
MU LH E R ?

Mais especificamente,

o que é ser mulher na


sobre contemporaneidade? Talvez seja
a autora essa a questão norteadora, que

inclusive motivou a organização do


Nicole Kollross é docente no
presente livro – quais características
Centro Universitário Uninter
e vivências estão pressupostas na
desde 2016, nos cursos de
feminilidade e como elas estão
Jornalismo e Publicidade e
relacionadas a uma conjuntura
Propaganda. Doutorado em
maior, intrinsecamente perpassada
Comunicação e Linguagens
por relações de poder e disputas.
(2017) pela Universidade
Independente do culto
Tuiuti do Paraná; mestrado
professado, da filiação partidária ou
em Sociologia (2011),
quaisquer outras escolhas de cunho
graduação em Relações
pessoal, as mulheres compartilham
Públicas (2007) e em
entre si uma inescapável condição
Publicidade e Propaganda
de alteridade; ou seja, são sempre
(2009), pela Universidade
postas em relação, em seus
Federal do Paraná.
próprios processos de construção

identitário, sobre como encarnam

– ou não! – os papéis sociais de

P R E FÁ C I O : O Q U E É S E R M U L H E R ? 11
esposa, mãe, filha, irmã etc.

Tal situação já é reconhecida pelos estudos de gênero

há, pelo menos, algumas décadas:

Se quero definir-me, sou obrigada a inicialmente declarar: “Sou uma


mulher”. Essa verdade constitui o fundo sobre o qual se erguerá qualquer
outra afirmação. Um homem não começa nunca por se apresentar como
um indivíduo de determinado sexo: que seja homem é evidente [...]. A
relação dos dois sexos não é a das duas eletricidades, de dois polos.
O homem representa a um tempo o positivo e o neutro [...]. A mulher
aparece como o negativo, de modo que toda a determinação lhe é
imputada como limitação, sem reciprocidade (BEAUVOIR, 2009, p. 15-16).

Quais são, então, as nossas determinações? O que nos é

imputado como limitação? Em geral, o que é esperado de cada

uma de nós, enquanto mulheres? Talvez seja interessante

pontuar que, para um entendimento mais justo de tais

ideias – assim como de suas implicações –, é imprescindível

reconhecer a sua base filosófica, ou seja, o existencialismo,

que tem em Simone de Beauvoir (junto de Jean-Paul Sartre)

um de seus principais expoentes.

Resumidamente, tal corrente da filosofia

contemporânea entende que não temos uma essência a

priori (ou seja, algo anterior e independente da experiência).

Assim, nada nos determinaria ou limitaria e, mais importante,

poderia ser usado como justificativa para as nossas próprias


escolhas – nem mesmo o nosso corpo, em todas as suas

especificidades anatômicas e fisiológicas.

Em última instância, então, o que entendemos

12 P R E FÁ C I O : O Q U E É S E R M U L H E R ?
como “ser mulher” é relativamente arbitrário em relação

ao próprio corpo feminino? Sendo esse o caso, a partir do

que são construídas essas determinações e limitações tão


naturalizadas na vivência do feminino?

Outra ideia interessante do existencialismo é a da

facticidade, que nada mais é que os “fatos” sobre você, sobre

os quais não há a menor possibilidade de negociação: o

local e o ano de seu nascimento, seu pai e mãe biológicos,

dentre outros exemplos; ou seja, tudo aquilo sobre o que não

teríamos escolha ou poder de ação, porque já estaria dado.

É apenas a partir da facticidade que alguém pode,

efetivamente, exercer o livre-arbítrio, já que, sem opções

dentre as quais escolher, não há a possibilidade de escolha.

Se somos seres ontologicamente livres, dependemos de nossa

conjuntura para poder agir e optar. Em outras palavras, se

somos aquilo que fazemos com o que fazem de nós, algo há

de ser feito algo!

A facticidade, em meu entendimento, resguarda

o cunho político do existencialismo, pois, mesmo que

pessoalmente eu não tenha poder sobre as suas ações (já

que as suas escolhas dizem respeito apenas a você), eu devo


ser capaz de traçar um paralelo entre as opções que são

positivamente dadas a mim, dentro de meus privilégios, e as

que me são negadas.

P R E FÁ C I O : O Q U E É S E R M U L H E R ? 13
Em relação a outras mulheres, de outras classes, ou

de outras etnias e raças, quais opções eu tenho, que elas

não têm? Em relação a homens, em geral, quais opções


eles têm, que eu não tenho? A facticidade é conjuntural e,

portanto, passível de ser melhorada apenas por meio de uma

ação coletiva; daí, também, o reconhecimento de que talvez

devamos mudar o enfoque do próprio feminismo – de uma

busca por empoderamento individual para, por exemplo,

elaboração de políticas públicas para mulheres.

Foi a partir de um um alinhamento sensível a essa

proposta que as narrativas a seguir foram reunidas, buscando

tratar sobre diferentes facticidades, ou modos de “ser mulher”.

Espero, sinceramente, que seja a primeira de muitas edições,

já que falar sobre os modos de construção da feminilidade é

imprescindível para, sempre que necessário, a desconstruir.

14 P R E FÁ C I O : O Q U E É S E R M U L H E R ?
FE M I NISTA!?
EU?

Chamaram-me “feminista”!

Não me pareceu que fosse elogio!


sobre Por que me chamaram
a au tora feminista? Sou? Não sou?

Resolvi investigar...
Andrea Kominek é graduada
Conversando com algumas
em Filosofia (UFPR). Mestre
tias, descobri que as “feministas”
em Tecnologia (UTFPR).
são mulheres “tristes”, “sozinhas”
Doutora em Sociologia
e que não conseguem “arrumar
(Universidade de Salamanca
maridos”...
- Espanha). Membro do
(Sou uma pessoa feliz e bem
Núcleo de Estudos
casada, provavelmente não sou
Afro-brasileiro e Indígena
“feminista”)
(NEABI) da UTFPR-CT.
Conversando com intelectuais,
Professora do Departamento
descobri que as feministas
Acadêmico de Estudos
“queimam sutiãs”, “odeiam
Sociais da UTFPR.
homens”, “não gostam de se

arrumar” e “não usam maquiagem”.

(Não odeio homens e tenho

um nécessaire recheada com

vários tons de batom. Pareceu-me

15
mais evidente que eu “não poderia ser feminista”!)

Conversando com amigas, descobri que “feminismo

seria o contrário de machismo”... será? Recorri aos livros...


No dicionário, feminismo é: “doutrina cujos preceitos

defendem a igualdade de direitos entre mulheres e homens em

todos os aspectos (social, político, econômico)”. Machismo é:

“opinião ou atitudes que discriminam a mulher, colocando-a

como inferior ao homem. Recusa a ideia de igualdade dos

direitos entre homens e mulheres”.

As dúvidas não se dissipavam...

Conversando então com uma teórica do feminismo,

descobri que feminismo seria o contrário de machismo

(como alguns querem fazer parecer!) somente se propusesse

a superioridade feminina e combatesse os homens.

O feminismo não combate os homens, mas visa

permitir às mulheres oportunidades, valorização e direitos

iguais aos masculinos.

Descobri ainda que o movimento feminista, além da

histórica luta sufragista pelo direito ao voto feminino, defende

a autonomia jurídica da mulher; o controle sobre seu próprio

corpo e vida; salários iguais entre homens e mulheres com


mesma formação e função; enfrentamento ao machismo e

combate ao feminicídio e à violência de gênero.

Descobri que, com o passar do tempo, o movimento

16 FEMINISTA!? EU?
assumiu diferentes vozes e cores, porém manteve o foco na

igualdade entre homens e mulheres.

Comecei a desconfiar que “ser feminista” significa


lutar por “justiça”.

Feminismo não é uma questão de mulheres, assim

como racismo não é uma questão de negros, homofobia não

é uma questão de homossexuais, nem consciência ecológica

uma questão de biólogos. É uma questão nossa! De seres

humanos! De justiça!

Passei a refletir sobre algumas situações que eu havia

vivido ou presenciado, quase sempre de forma imperceptível,

“natural”.

No mundo coorporativo ou acadêmico, um homem

proativo, firme e decidido, é normalmente visto como

competente; uma mulher, com as mesmas características,

tende a ser vista como autoritária.

Um pai presente, que cumpre bem suas funções

paternas, com carinho, cuidados e atenção, é visto como um

“quase herói”. A mãe, na mesma situação, não mereceria

nenhuma medalha, pois “não faz mais do que sua obrigação”,

afinal, é mãe.
Uma mulher, quando violentada, ao fazer a denúncia,

rapidamente passa de vítima à culpada: O que estava vestindo?

O que fazia lá sozinha? A estas horas? Será que ela realmente

FEMINISTA!? EU? 17
não queria?

Algumas vezes ouvi de professores que meu texto era

“pouco acadêmico”, “passional”, “repleto de raiva”. É claro que


continha raiva, eu escrevia e estudava em um mundo hostil,

mesmo que não me desse conta disso. Meus colegas homens

tinham mais oportunidades, dedicavam-se menos e eram

frequentemente mais reconhecidos.

“Feminista”: sou ou não sou?

Se ser feminista é passar a enxergar as desigualdades,

injustiças e lutar contra isso, não tenho mais dúvidas: SOU

FEMINISTA!

E acredito que, por um futuro melhor, TODOS e TODAS

deveríamos ser.

18 FEMINISTA!? EU?
COM PR E I
U M TÊ NIS
COR-D E-R OSA
Tênis não é coisa de menina.

Nem bermuda. Esse cabelo enorme

e comprido e enrolado, Maria

Madalena. Era sempre assim. Eu,

que nem sabia quem era a tal de

sobre Maria, tinha outras garotas para

a au tora quem olhar, todas elas lindas,

magras, cabelos curtos, loiros,


Elena* ajeitados, lisos: tudo o que eu
*O nome foi trocado queria ser. Eu era tudo, menos isso:
a pedido da autora, gorda, feia, nariguda, espinhenta,
que preferiu não barulhenta e o cabelo de Maria
se identificar. Madalena ali para atrapalhar.

Isto não é roupa que se use

para ir a uma festa, isto não é sapato

para ir à escola, isto não é jeito

de prender o cabelo enorme. Que

cabelo enorme, que jeito de falar.

E não vem com essa de aprender

taekwondo, tocar guitarra, jogar

futebol, o que vão pensar? Por que

19
você não faz que nem ela, a Camila, a Stephanie? Olha que

bonito este colar!

Não pode sair com menino, não pode falar do que


eu não quero ensinar, não pode, não quero, porque não,

não e não. Não pode e ponto final, porque sim, porque não.

Não vai saber sobre nada que eu não queira que você faça,

não importa onde, não importa em que situação. Enquanto

todo mundo sabe e beija e morde e cheira, pouco importa,

ninguém vai querer ficar com alguém como você, olha só que

contradição.

Fala mais baixo, fala menos, fala de outras coisas.

Isso assusta, por que falar? Por que não ele, já que ele te deu

atenção? Por que não outra coisa, já que não te querem? Que

cabelo horrível, curto, minúsculo, cabelo de homem, você faz

isso para me provocar. Isto não é jeito de mulher se comportar.

Vai se rabiscar inteira e ninguém vai te querer. Está mais

para mulher da vida andando na rua, você quer me matar de

desgosto. Meu gosto, meu corpo, você que ainda vai me matar

de desgosto.

Não vou porque não tenho roupa, porque meu peito é

enorme, porque me ensinaram a odiar todos os outros corpos


que me atraem e me fazem chorar. Não vou. Não quero. Quero

tudo e deixo você me segurar. Quero tudo e tenho pena de

quando te deixo para ser o que eu queria ser. Quero tudo e

20 COMPREI UM TÊNIS COR-DE-ROSA


não me permito, porque sei que nunca mais alguém vai me

querer. Quero tudo e te procuro ainda, porque, no fundo, sei

que não quero nada além de me esconder atrás de você.


Comprei um tênis cor-de-rosa.

COMPREI UM TÊNIS COR-DE-ROSA 21


SOU MU LH E R ,
LOGO, POSSO
O QU E EU QU IS E R
Há alguns anos, eu levantava

todos os dias da cama e fazia tudo

o que me mandavam — direta ou

indiretamente. Arrumava o cabelo

como as pessoas achavam bonito,

sobre colocava uma roupa que agradasse

a au tora aos meus colegas e parentes, me

comportava “como uma menina


Arabella* deve se comportar”. Nessa época,
*O nome foi trocado eu não me sentia oprimida, porque
a pedido da autora, eu não era livre — eu nem sabia
que preferiu não o que era “ser”. Então eu cresci,
se identificar. e logo começaram a aparecer as

divergências: eu queria me vestir

de um jeito que a sociedade não

aceitava, queria ter uma profissão

que “não era de menina”, queria

brincar com coisas que “não eram

para mim”. Quase desisti de “ser

menina”, pois isso significava

que eu não podia fazer o que eu

23
realmente queria.

O tempo passou, e eu descobri o feminismo. Conheci

centenas de meninas que sentiam o mesmo que eu. Então eu


me identifiquei, sabe? Foi aí que parei para ter uma conversa

comigo mesma, dei aquele tapa na consciência e percebi

que não estava errada por querer ser diferente. Percebi que

aquilo não me fazia menos mulher. Na verdade, me fazia

completamente mulher. Passei a me aceitar e aceitar melhor

as garotas ao meu redor, independentemente de como elas

fossem.

Com o tempo, entendi que as pessoas podem te

julgar só pelas aparências: se você é animada demais, é

escandalosa; se você é reservada, ninguém gosta, é “sem sal

e sem açúcar”; se você é quieta, aí tem coisa; se você chuta o

balde e não liga para o que os outros dizem, é louca; se tem

filho cedo, é vagabunda; se não quer ter filho, não nasceu

para ser mulher; se não sai com ninguém, é quadrada; se

sai com vários, é puta; se adora uma balada, não serve para

casar; se não casa, não presta, vai ficar sozinha para o resto

da vida; se vai à igreja, é conservadora. São frases como essas

que, diariamente, acabam com a autoestima e felicidade de


milhares de mulheres. Eu já sofri e ainda sofro acusações

terríveis. A diferença é que eu aprendi que tenho direito de

escolha, mesmo que a sociedade me negue isso. “Direito”

24 SOU MULHER, LOGO, POSSO O QUE EU QUISER


e “escolha”: conheci o verdadeiro significado dessas duas

palavras com o feminismo. Não, você não está errada por

querer o que os outros desprezam, você não é menos mulher


por não satisfazer o desejo dos outros. Você precisa ser feliz

por você, e não importa o que os outros pensem, eles vão ter

de aceitar.

Hoje, como todos os dias, acordei e me arrumei como

eu quis, me olhei no espelho e soube que estava preparada

para lutar. Apesar de as mulheres ainda sofrerem grande

discriminação e enfrentarem sérios problemas — ou mesmo

por causa disso — eu sigo acreditando na igualdade de gênero

que elas um dia conquistarão. Eu acredito porque eu sou

mulher, feminista e acima de tudo porque, mesmo que digam

que não, nós podemos tudo neste mundo!

SOU MULHER, LOGO, POSSO O QUE EU QUISER 25


26
B E LE Z A AI NDA
É LU GAR
D E MU LH E R ?
Sou uma mulher branca de

olhos claros. Desde bem nova, essas


sobre características me garantiram um
a au tora mesmo elogio fácil: você é bonita.

Em um país que mata muito mais


Anna Vitória Rocha,
mulheres negras — de acordo
23 anos, jornalista
com o Mapa da Violência de 2015,
mineira, fundadora
o feminicídio dessas mulheres
e editora do site
cresceu 54% no Brasil, enquanto
Valkirias (que discute a
o de mulheres brancas diminuiu
representação feminina
9,8% — e que dificulta a vida de
na cultura pop)
qualquer uma que fuja do padrão
que decidiu estudar
eurocêntrico, magro e branco de
gênero quando percebeu
beleza, sei que ser chamada de
que seus problemas
bonita ainda é mais privilégio do
começaram no dia em
que problema, mas ainda é um
que nasceu mulher.
problema.

Depois que me formei,

meu primeiro emprego também

foi minha primeira experiência

trabalhando em um ambiente

27
majoritariamente masculino, e eu senti a diferença no

primeiro dia. Ninguém se importava com o currículo que

me levara até lá. Às vezes acho que ninguém realmente se


importava com o que eu fazia, porque a suposta beleza era

minha carta de apresentação: — Esta é a jornalista que vai

trabalhar com a gente, olha como ela é bonita. Essa menina

veio pra embelezar nosso time. Agora fiquei feliz, porque

finalmente temos uma moça bonita pra equilibrar esse bando

de homem feio. Eu sorria, agradecia e olhava para o chão,

porque eu tinha acabado de me formar, porque precisava

daquele trabalho e porque sabia que, no fundo, eles estavam

tentando ser gentis comigo. Estava diante de homens de 40,

50, 60 anos que aprenderam que a melhor coisa que se pode

dizer para uma mulher é que ela é bonita.

— Você é muito bonita, deveria sorrir mais. Também

ouvi isso naquele primeiro dia, uma frase que mostra que essa

validação pela beleza, por um ideal socialmente construído

de beleza, é uma forma de manter as mulheres em seu lugar

devido e restrito.

A questão da beleza está atribuída ao gênero feminino

meio que desde sempre. A importância e o significado que


se dão a ela varia de acordo com a época, mas isso não

muda o fato de que o feminino é o belo sexo, como classifica

o sociólogo francês Gilles Lipovetsky no livro A Terceira

28 BELEZA AINDA É LUGAR DE MULHER?


Mulher: Permanência e Revolução do Feminino, publicado

em 2000, onde o autor tece um histórico dos diferentes

valores atribuídos à beleza feminina ao longo do tempo. É


também ele que estabelece a Renascença como o período

em que a sociedade passou a valorizar, e até a cultuar, a

beleza feminina, um movimento crescente que atinge seu

ápice na modernidade, época em que a busca pela beleza se

tornou um imperativo. Se hoje você vê clínicas que oferecem

permanente para os cílios - e por meio segundo questiona se

não deveria fazer permanente nos próprios cílios -, saiba que

essa é uma história que começou há muitos séculos.

Para além de evoluções históricas mais ou menos

interessantes, o que importa é que nem a promoção da mulher

ao patamar de detentora-mor das glórias da beleza fez com

que, na ordem social das coisas, elas (nós) subissem alguns

degraus na escala de prestígio e importância. A desigualdade

de gênero estabelece fronteiras muito rígidas daquilo que

possui ou não valor, daqueles espaços que podemos ou não

ocupar, e o homem continua com o monopólio sobre tudo

aquilo que importa. O poder da beleza não é forte o suficiente

para quebrá-lo, e funciona como mais um mecanismo daquilo


que Simone de Beauvoir chama, em 1949, de dominação

simbólica. Historicamente, o homem é senhor do mundo

público, do trabalho, das antigas guerras, da glória, da política;

BELEZA AINDA É LUGAR DE MULHER? 29


por outro lado, a mulher prevalece no mundo privado das

atividades domésticas, da maternagem, da beleza. A mulher é

a rainha do lar. Por trás de um grande homem, existe sempre


uma grande mulher. Percebem a diferença?

Nós, mulheres, estamos até hoje lutando para ocupar

espaços que nos foram negados, um espaço público pelo qual

lutamos diariamente para que seja nosso por inteiro e não

só por direito - mas também na prática, com oportunidades

iguais. Quando as mulheres começaram a sair de casa

para trabalhar, a elas eram relegados cargos inferiores em

condições precárias e salário de miséria. Mesmo quando o

mercado de trabalho foi se abrindo para a presença feminina,

as carreiras eram restritas e continuavam evocando a divisão

de público versus privado. Mulheres são associadas a cargos

de secretária, professora, enfermeira e não é coincidência que

toda profissão tida como feminina é inferior em remuneração

e prestígio social. Ainda que sejamos maioria no ingresso

nas universidades, a presença feminina na academia cai

drasticamente nos cursos de pós-graduação. Só agora, em

2017, que a produção científica feminina atingiu a mesma

proporção da masculina de acordo com o número de artigos


publicados, segundo o último relatório Gender in the Global

Research Landscape (2017). A quantidade, no entanto, muda

de acordo com a área de pesquisa, e as mulheres continuam

30 BELEZA AINDA É LUGAR DE MULHER?


em menor número quando se trata das chamadas “ciências

duras”, que englobam como computação e matemática. De

acordo com o levantamento, o número de homens nessas


áreas ainda é 75% maior que o de mulheres. Somos minoria

nos cargos de chefia e políticos e ganhamos menos quando

exercemos o mesmo trabalho que um homem.

Essa realidade gritou para mim quando acompanhava

meus chefes – homens que ocupavam um alto cargo em seus

empregos – em reuniões com outras pessoas que ocupavam

um alto cargo e via que a vasta maioria era composta de

homens. Em uma sala com 20 homens, costumava encontrar

duas ou três mulheres: uma delas provavelmente era a

secretária. A outra era eu, a jornalista recém-formada e quase

invisível, que passava despercebida entre aqueles homens de

alto escalão.

Alguns eram capazes de apertar a mão de todos os

homens da minha equipe e passar por mim como se nada

fosse. Alguns acenavam com a cabeça, achando ser suficiente.

Precisava da ajuda de várias pessoas para fazer meu trabalho

e perdi a conta das vezes que precisei pedir para o meu

chefe intervir em algum contato, porque aqueles homens


importantes eram importantes demais para falar comigo.

Muitos deles erravam meu nome. Outros me chamavam

de bonitinha, mocinha, e alguns me tratavam muito bem,

BELEZA AINDA É LUGAR DE MULHER? 31


preciso ser justa. Havia quem me tratasse tão bem que eu me

perguntava se uma mulher que não fosse branca-dos-olhos-

claros-de-acordo-com-um-padrão-socialmente-construído-
de-beleza teria essa mesma recepção. Acho que não.

É por isso que um elogio no ambiente de trabalho

soou mais como um estabelecimento de território. A beleza

faz parte do âmbito privado da nossa vida em sociedade e me

lembra de onde eu — o belo segundo sexo — vim, lembra de

um sistema social que opera de um modo que parece querer

me forçar de volta para esse lugar secundário e submisso.

Posso até ter chegado lá, o primeiro emprego, um diploma

universitário, ainda um privilégio na nossa sociedade que

também é profundamente desigual, mas meus olhos verdes

chegam antes do meu currículo, dos meus feitos, das honras

do meu diploma.

Sei que 98% daqueles homens que me elogiaram

naquele primeiro dia estavam sendo gentis, queriam me

receber bem e fazer com que eu me sentisse lisonjeada e

acolhida. Isso só me deixa mais triste, porque percebo que

eles realmente acreditavam que a melhor coisa que eles

poderiam dizer sobre mim, ou sobre qualquer mulher, é que


ela é bonita: um valor arbitrário, que muda de acordo com

o tempo, e ao mesmo tempo esmaga sem dó quem não o

alcança. O que eu devo fazer com isso?

32 BELEZA AINDA É LUGAR DE MULHER?


Muita gente acredita que o direito ao voto, aos direitos

políticos, ao divórcio, ao anticoncepcional e à carteira de

trabalho são sinônimos de igualdade de direitos, que a batalha


está ganha. Não acredito nisso e acho que o abismo que nos

separa ainda é gigante. Vivemos no país que elegeu uma

mulher para presidente, o cargo executivo mais alto da nação,

uma mulher que chegou mais “lá” do que, hierarquicamente,

qualquer um poderia chegar — e mesmo assim um você é

feia foi sua carta de apresentação. Essa guerra está longe de

acabar.

BELEZA AINDA É LUGAR DE MULHER? 33


34
DEZ
HOR AS

Dez horas, você aperta o

passo. A rua está escura, a lâmpada

sobre do poste de iluminação queimou.

a au tora No fundo do peito, o coração bate

rápido. Você olha para os lados, reza


Lisiane Paixão, 25 anos, para que não tenha ninguém além
mineira morando em de você. Mas tem: o medo. Aquele
São Paulo. Graduada medo de que tenha alguém ali que
em Publicidade possa te fazer mal. Aquele medo de
e Propaganda. não chegar em casa. Aquele medo
Acredita que questões de todos os dias.
de gênero têm que ser Infelizmente, o ponto de
discutidas para que ônibus não é em frente à sua casa.
deixem de ser um tabu, Você ainda tem uma pequena
gerando entendimento caminhada de dez minutos. Os
e aceitação na sociedade. minutos mais assustadores do

seu dia. Você ouve um barulho e

já prende a respiração. Ufa! Foi só

o vento. Ou um carro entrando em

alguma garagem. Ou um cachorro

andando na rua. O bar da rua está

35
fechado hoje, é segunda-feira. Não tem movimento algum, só

você. Torcendo para chegar em casa. Sã. Salva. Inteira. Segura.

Na metade do caminho, você abre o zíper da bolsa bem


rápido e pega a chave do portão. Melhor já estar preparada.

Outro barulho. Dessa vez, ao longe, parece vidro sendo chutado

ou jogado no asfalto. O coração acelera, bate um pânico. A

respiração presa de novo. Você cria coragem para olhar para

trás. Outra vez, foi só o vento. Graças a Deus. Lá no fundo da

sua mente, você reza. Pede a Deus, aos santos, entidades,

deuses do Olimpo ou no que quer que você acredite para te

protegerem.

Só falta mais uma esquina. A segurança agora mais

perto do que nunca. É quando acontece: passos atrás de você.

De novo sua respiração para. Seu corpo todo em alerta, rígido,

gelado. Um rápido giro com o pescoço e seu pior receio se

torna realidade: é um homem. Preferia que fosse o demônio,

honestamente. Parece piada de rede social, não é? Mas é a

mais pura verdade.

É nesse momento, quando você constata que há um

homem andando atrás de você em uma rua escura às dez

da noite, que todas as manchetes de tragédias dos jornais


vêm à sua mente. Tudo que acontece de horrível todos os dias

no Brasil e no mundo e que tem em comum uma coisa: as

vítimas são mulheres. Assassinatos e estupros. Simplesmente

36 DEZ HORAS
porque você é mulher.

Não, nós não nos sentimos seguras. Não, nós não

nos sentimos protegidas. Não, nós não podemos continuar


sofrendo agressões pelo simples fato de sermos mulheres.

Não, nós não podemos continuar vivendo com medo.

Ao mesmo tempo que você pensa assim, não pode se

dar ao luxo de relaxar e continuar seu caminho sem receios.

Você respira fundo, tenta pensar que vai dar tudo certo, o

portão de casa está logo ali.

Os passos se aproximam cada vez mais. Quando você

olha de novo, ele está atravessando a rua. Apertou o passo

mais que você, te ultrapassou. Continuou andando e não

olhou para trás. Não disse uma palavra e sumiu no fim da

rua. Você solta um longo e merecido suspiro a poucos passos

do portão de casa. Está muito menos assustada agora. Coloca

a chave no portão, gira e entra. Finalmente, segura. Sã. Salva.

Inteira.

Até hoje não sei quem era aquele homem, mas me

sinto grata por ele ter atravessado a rua e se distanciado

de mim naquele dia. Tendo ele feito isso de propósito ou

simplesmente porque aquele era o caminho dele mesmo.


Obrigada por me deixar respirar nos últimos minutos até

em casa. Infelizmente, não é o que acontece com todas as

mulheres. Eu tive sorte. Nem todas têm. Choro por elas. Pelas

DEZ HORAS 37
que não tiveram a mesma sorte que eu. Imaginem-se nessa

situação. Imaginem todos os sentimentos e receios que

passam pela cabeça de uma mulher toda vez que ela anda
sozinha na rua. Até quando teremos de viver com medo? Até

quando mulher será sinônimo de vulnerabilidade?

38 DEZ HORAS
40
SO B R E O
MEDO DE
B R I GAR
Ontem eu estava indo

sobre para a academia, com roupas de

a au tora academia, como era de se esperar.

Um short de corrida, uma blusa de


Amanda Arruda, 27, Lycra por cima de um top e tênis.
Recife, formada em Estava lá vivendo a minha vida,
Jornalismo. Interessada despreocupada. Parei na calçada,
em questões de gênero para esperar o momento certo
por ser mulher (“e se de atravessar a rua. Nessa hora,
eu não me interessar, um cara que estava carregando
quem vai, não é?”) e por um carrinho de mão para ao meu
acreditar que conversar lado e solta um: “que corpo bonito,
e entender o outro são as hein, tá de parabéns”. Fiquei tão
chaves para a gente constrangida que me apressei para
ir mudando o nosso atravessar e apertei o passo para sair
mundo, um pouquinho de perto daquele ser humano que
de cada vez. acha correto pontuar comentários

sobre o meu corpo, sendo que ele:

a) não sabe meu nome; b) não sabe

quem eu sou; e c) não sabe que eu

treinava Muay Thai há uns meses

41
atrás. Não que eu fosse fazer qualquer coisa. Eu não faço.

Nunca. Eu desligo meus ouvidos, rezo em silêncio para ser

apenas um otário que gosta de comentar merda na rua e sigo


em frente. Minha mãe me ensinou assim e foi assim que eu

vivi e vivo a minha vida.

Não sei bem dizer quando comecei a ouvir “gracinhas”

na rua. Sempre fui muito mais desenvolvida do que deveria

para a minha idade, então deve ter sido cedo. A situação mais

marcante para mim (na verdade, foi um verdadeiro trauma)

foi quando eu estava indo do colégio para o trabalho de uma

tia minha. Eu tinha uns 14/15 anos, e o trajeto para o escritório

onde ela trabalhava era curto. As ruas pelas quais passei

eram cheias de camelôs, pois o escritório ficava no centro da

cidade. Eles sempre falavam absurdos quando eu passava,

mas teve um que realmente se esmerou. Passei na frente da

barraquinha dele e, claro, ao olhar o meu corpo juvenil com

“roupas sedutoras” (eu vestia a farda do colégio e jeans), ele

soltou um “bucetinha” e o resto eu não escutei mais. Sabem o

instinto de autopreservação? Pois bem, ele falou várias coisas

depois dessa palavrinha aí, mas eu desliguei. Não escutei mais

nada. Fiquei furiosa, olhei com ódio para ele e fui embora.
Nada me revolta mais do que eu não ter partido para cima

daquele velho seboso, mas, pensando friamente, o que iria

adiantar? Eu só iria me expor ainda mais, uma criança, que

42 SOBRE O MEDO DE BRIGAR


não tinha muito como se defender. Eu não teria argumentos

nem a força de espírito que eu tenho hoje (e que, inclusive,

ainda nem é grande coisa). Foi revoltante. Na época, eu nem


namorava. Eu era virgem e foi muito sujo, muito errado, ouvir

um desconhecido comentando coisas que queria fazer com a

minha vagina. Até hoje isso me traz sentimentos ruins e uma

raiva que não cabe dentro de mim.

As gracinhas me perseguiram a vida inteira. O fiu-

fiu até é “educado”, porque quando eles inventam de falar

é muito pior. A sociedade acha que a cultura do estupro está

apenas em estuprar em si, mas ela começa quando alguém

acha que tem o direito de demonstrar publicamente o desejo

pelo seu corpo. Como se ele estivesse disponível, ali, por estar

funcional. Como se para ter acesso a ele não houvesse termos

(os MEUS termos) a serem respeitados. Se um cara acha que

tem direito de falar todas as abobrinhas que ele tem interesse

de fazer com você, ali, no meio da rua, na frente de todo

mundo, não é de se chocar também que muitos acreditem

que têm o direito de passar a mão na sua bunda, nos seus

peitos ou forçar uma relação sexual. Tudo é desrespeito. Tudo

é abuso. Tudo é errado. Tudo é cultura do estupro.


Hoje, com a maturidade, reconheço que a minha

forma de lidar com esse assunto é resultado da maneira

como eu fui criada e como a sociedade se comportava na

SOBRE O MEDO DE BRIGAR 43


época em que eu começava a ser mulher. Se eu vivo em

uma sociedade opressora e machista, imagina a minha mãe.

Como ela poderia me dizer para fazer algo diferente do que


ela viu funcionar? “Pelo menos assim ninguém se machuca”,

ela devia pensar. O que não é necessariamente verdade, mas

mesmo assim temo pelas minhas amigas que respondem às

provocações na rua, xingam, mostram o dedo. Eu queria ter

a coragem delas, mas, ao mesmo tempo, fico preocupada,

porque sei que entre falar e fazer existe uma linha tênue, e eu

não quero ver ninguém sofrendo ainda mais por conta dessa

cultura nojenta e hipócrita.

Engraçado é que ninguém diria, ao me conhecer, que

eu sou assim. Eu brigo pelos meus direitos. Eu não admito,

quando em discussões em meios “seguros”, que menosprezem

as nossas lutas. Brigo porque sinto que é uma semente que

a gente planta na cabeça das pessoas, e essa semente pode

mudar o mundo. Brigo para mostrar que o mundo não é esse

fácil como eles pensam, que as mulheres que eles respeitam

e admiram (sempre melhor exemplificar com alguém que eles

conhecem) estão vivendo em uma verdadeira selva lá fora. Eu

brigo diariamente, mas na rua, eu calo. Eu ando o mais rápido


possível para a minha casa, onde eu estou segura. Eu olho feio

para homens desconhecidos que seguem o mesmo caminho

que o meu. Eu sinto medo, por isso não consigo brigar. Eu sou

44 SOBRE O MEDO DE BRIGAR


covarde, mas também estou viva. E intacta, fisicamente. E o

que é mais importante? Quem pode nos dizer?

Eu escolho as minhas batalhas, mas espero que, um


dia, não haja batalhas para escolhermos. Espero que um dia

possamos andar nas ruas sem medo, com a liberdade que a

nossa constituição, hipoteticamente, nos dá e com o respeito

pela vida que todos deveriam ter.

SOBRE O MEDO DE BRIGAR 45


46
JU LGA M E NTO
E M U M TR I BU NAL
SOCIAL
sobre
a au tora O tédio reinava no saguão

do hospital. De repente a porta


Alice Cristina Reis
central foi aberta, assustando a
Rodrigues, 18 anos,
recepcionista. Certa moça entrou
moradora de Curitiba,
sobre a maca de emergência,
cursa História na
acompanhada por um homem,
Universidade Tuiuti do
demonstrando calma e terror em
Paraná. O interesse pela
seus rostos. Logo atrás vinha uma
discussão de gênero
policial, trazendo algemada outra
vem com o desejo pela
mulher. A dúvida cresceu na mente
equidade entre todos
da recepcionista:
na sociedade, em que por
— O que devo fazer?
meio de debates se tenha
Ao passar o olhar por
a oportunidade de ouvir
todos, percebeu que sussurravam,
história, pensamentos
chamando-lhe:
e refletir sobre tudo,
— Equidade. Equidade.
sem o julgamento ou
Equidade!
preconceito, mas com
A juíza arregalou os olhos
o respeito com todas as
espantada, já que havia cochilado
opiniões e pessoas.
entre uma sessão e outra.

Visivelmente cansada, preparou-se

47
para o caso que logo viria.

O primeiro a falar foi o Mercado de Trabalho.

Argumentava com a Desigualdade a respeito de dinheiro,


focado no salário. Questionava:

— Por que o salário da mulher, no mesmo cargo e

trabalho do homem, ainda permanece inferior?

O silêncio tomou o lugar. Todas as conversas baixas

cessaram, esperando pela resposta da Desigualdade. Nada

mais foi dito. Passaram para outra questão. Quem mais

prestava atenção, não deixando passar sequer uma vírgula,

era a Oportunidade. Estava sozinha, anotando tudo em seu

caderno, como uma boa aluna de Direito. De certa forma,

não saindo muito do contexto, veio à tona a ação contra a

Opressão.

Nesse momento, o caos tomou conta do ambiente e de

todos que seriam julgados e defendidos. As palavras iam de

um lado ao outro, como flechas em batalha antiga. A acusação

da Igualdade era clara:

— Opressão agrediu verbalmente minha cliente.

Cantava e prendia-a contra a parede, ignorando sua negação

e permitindo um rápido estupro verbal.


Sentada em seu canto, a Desigualdade, advogada da acusada,

sorria ironicamente a cada frase dita e assim rebatia, para

defender sua cliente:

48 JULGAMENTO EM UM TRIBUNAL SOCIAL


— As suas palavras contra as minhas, quem irá vencer?

Horas e horas de ataques com lanças verbais e defesas

em escudos argumentativos. A juíza ouvia atentamente e


nada falava. Sábia. Igualdade começou:

— Explica-me, Opressão, utilizar a violência verbal

numa música e entregá-la às crianças? Qual seu objetivo?

O sorriso entregava a malícia da resposta que viria

a seguir. Quando a Opressão ia falar, ouviu a voz de outra

tomando seu lugar. Determinada e cínica, a Desigualdade

interrompeu:

— E qual seria essa violência, madame?

— Exaltar a aparência e a beleza, insinuando a

vantagem de cada cor de cabelo. O poder ao adquirir bens

materiais, um tesouro inatingível. Destacar cargos e títulos,

questionar a autoridade.

Calma e objetiva, a famosa Igualdade desafiou:

— Quer mais?

Retrucou com raiva a Opressão:

— Isso é o que você diz. Sua conclusão e modo de

pensar. Acha que todos terão essa interpretação?

O rosto da Igualdade, outrora calmo e firme, quebrou-se. Com


a voz fraca, ela indagou:

— Quer que vejam a beleza como quesito para julgar,

como ficam os cegos? O surdo pode olhar, mas não ouve frases

JULGAMENTO EM UM TRIBUNAL SOCIAL 49


ditas sem pensar. E o privilégio de ser mulher e ter um braço

ao menos na equação? Qual o resultado da sua deficiência?

Então, antes que mais perguntas ganhassem vida, o


som do martelo ecoou por todo o salão, e a juíza se pronunciou:

— Continuaremos a sessão outro dia, há muitas

dúvidas nos argumentos apresentados, falta coesão e,

fundamentalmente, coerência no que relataram. Em um mês

retornaremos. Próximo caso.

Equidade viu todos saírem. Enquanto novas pessoas

chegavam, algo chamou a sua atenção. A música que causou

parte daquele alvoroço não saía de sua mente. Riu e percebeu

que, de vez em quando, os trechos cantavam sozinhos e no

ritmo. Palavrões e sermões logo vinham, implorando silêncio...

“Loira, morena Careca, cabeluda Rainha, ladra Polícia,

capitã Menina bonita do meu coração”.

50 JULGAMENTO EM UM TRIBUNAL SOCIAL


QUAND O O M E D O
VIA JOU COM I GO

Viajar sozinha pela Europa

sobre foi o maior desafio da minha vida.

a au tora Nunca pensei que seria capaz de

conhecer um pedaço do mundo


Taryne Zottino, 25 anos, sem a companhia de alguém, mas
nascida em Campo eu consegui. O que não significa
Grande - Mato Grosso que não tenha passado por poucas
do Sul, formada em e boas nesse processo. Viajar
Comunicação Social sozinha sendo mulher passa longe
e jornalista freelancer. de ser uma coisa fácil. Eu poderia
Interessada na ter me preocupado apenas com
discussão de gênero as atrações turísticas e diversões,
pela sua capacidade de como aconteceria com qualquer
desconstruir preconceitos garoto da minha idade, mochilando
e contribuir para um por aí. Mas eu me preocupava em
futuro com cada vez me organizar para voltar para a
menos opressão. acomodação antes de escurecer,

me preocupava em olhar para trás

mil vezes para garantir que não

estava sendo seguida. Precisava

lidar com homens me abordando

51
na rua, do nada, porque enxergavam uma oportunidade. É

impressionante como alguns deles não conseguem conceber

a ideia de que estar sozinha não é um convite.


No entanto, nada disso foi pior do que me ver totalmente

vulnerável em um quarto de hostel com 11 homens dormindo

ao meu redor.

Na estação de trem de Amsterdam, minha última

parada, já senti o medo se retorcendo dentro de mim. Tarde

da noite, a primeira coisa que avistei foram alguns rapazes

me olhando com interesse e cochichando entre si. Perdi na

hora a vontade de esperar o transporte público. “Vou pegar

um táxi até o hostel”, decidi. Quando finalmente encontrei

um taxista, tentei abstrair o fato de que ele também era um

homem, mas fiquei alerta durante todo o caminho. Só eu sei

o quanto me recriminei depois de responder que, sim, estava

viajando sozinha. Nada aconteceu. Viver nesse mundo sendo

mulher é ficar aliviada a cada vez que “nada acontece”.

Depois de fazer check-in no hostel, deitei na minha

cama sem mudar de roupa e adormeci. Quando acordei, na

manhã seguinte, descobri que era a única mulher no quarto.

Senti vários olhares pesando em mim. Gelei. Eu sabia que havia


reservado um espaço misto, mas, na minha inexperiência

de viajante de primeira viagem, não havia cogitado essa

possibilidade. Achei que contaria com a presença e o olhar de

52 QUANDO O MEDO VIAJOU COMIGO


compreensão de outras mulheres, mas me enganei.

Respirei fundo, fui tomar café da manhã e aproveitei o

dia o máximo que eu pude; mas quando lembrava que teria de


voltar para aquele lugar, minha alegria se esvaía: o quarto era

sujo, os banheiros eram nojentos, o dono tinha toda a pinta

de ser um tremendo picareta, mas tudo isso eu seria capaz de

relevar por três dias. O que estava me deixando apavorada era

o medo de que algum daqueles caras me machucasse.

Resolvi ir cedo para o hostel, tomei meu banho e me

enfiei na cama quando ainda não havia ninguém no quarto.

Me escondi debaixo das cobertas e tentei não fazer muito

barulho. Eu queria passar despercebida. Queria que eles

esquecessem que tinha uma garota ali. Fiquei abraçada com

o guarda-chuva laranja que havia comprado naquele mesmo

dia, na esperança de que ele pudesse servir como arma, se eu

precisasse.

Naquela noite, os cenários mais horríveis passaram

pela minha cabeça. Eu só conseguia pensar que, se um deles

subisse no meu beliche e tapasse a minha boca enquanto

os outros estivessem dormindo, poderia fazer o que bem

entendesse. Ou que todos poderiam se unir em um estupro


coletivo. Parecia absurdo, mas depois de tudo o que tinha

visto nos noticiários, eu não duvidava de que fosse possível.

Imagens de gritos presos na garganta tomaram conta da

QUANDO O MEDO VIAJOU COMIGO 53


minha mente. Eu imaginava a dor de voltar para a minha

família com as cicatrizes de uma violência. Esses pesadelos

tomavam conta de mim enquanto eu me segurava para não


chorar, pois não queria ser notada.

Passei a noite praticamente em claro, com o coração

batendo forte, enquanto pensava:

Se eu fosse homem, já teria dormido há muito tempo.

Se eu fosse homem, não estaria abraçada a um guarda-

chuva.

Se eu fosse homem, não estaria com medo de ser

estuprada.

Agora, escrevendo isso, eu choro de gratidão por nada

ter acontecido. Mas poderia. E eu tenho a certeza de que, se

eu tivesse sido vítima de um estupro, alguém perguntaria:

“O que ela estava fazendo em um quarto com 11

homens?”

“Por que não se planejou melhor?”

“Por que foi inventar de viajar sozinha sendo mulher?”

Aqui, na segurança do meu quarto, recordando tudo

isso, eu penso em todas as mulheres que não puderam dizer:

“Nada aconteceu”; penso em todas as mulheres que, depois


de passarem por um trauma terrível, ainda tiveram de ouvir

que a culpa era delas.

Na manhã seguinte, eu decidi que não conseguiria

54 QUANDO O MEDO VIAJOU COMIGO


mais passar por aquilo e comecei uma busca desenfreada

por um hostel com quarto feminino. Poucas vezes na vida,

me senti tão em paz como na hora em que a moça da nova


acomodação me disse que tinha uma vaga para mim. Fui

pegar a minha mala naquele lugar horrível, ostentando um

sorriso de orelha a orelha e saí de lá sem olhar para trás. Mais

uma vez, o alívio.

Essa experiência ruim e todas as outras situações

desagradáveis pelas quais passei — apenas por ser mulher

— não tiraram de mim todas as memórias maravilhosas

que criei durante o meu mochilão. Porém, por toda a minha

jornada, o medo viajou comigo. Até quando vai ser assim?

Não sei a resposta, mas uma coisa eu sei: ninguém mais vai

calar a nossa voz. Seguiremos lutando.

QUANDO O MEDO VIAJOU COMIGO 55


56
POR TR ÁS D E U M
G R AND E HOM E M ,
S E M PR E HÁ U M A
sobre
G R AND E MU LH E R ?
a au tora Esse ditado arcaico e

preconceituoso tem suas bases no


Ana Christina Vanali,
patriarcado, uma das causas que
graduada em Ciências
explica as desigualdades de gênero
Sociais (UFPR). Mestre
na sociedade brasileira. Na verdade,
em Antropologia Social
as mulheres estão em todos os
(UFPR). Doutora em
lugares: atrás, ao lado e muitas
Sociologia (UFPR). Membro
vezes na frente dos tradicionais,
do grupo de pesquisa
dos emergentes e dos novos atores
CNPQ-NEP (Núcleo de
econômicos e políticos.
Estudos Paranaenses-
As relações homem-mulher
CAPES). Professora do
são orientadas pelo patriarcado,
Departamento Acadêmico
que, apesar de ser uma forma de
de Estudos Sociais
organização de poder político,
(UTFPR). Professora do
acaba conferindo aos homens
Curso de Especialização
direitos sexuais sobre as mulheres.
em História e Geografia
A configuração desse tipo de
do Paraná do Instituto
hierarquia acaba contaminando
Tecnológico e
todos os espaços da sociedade e
Educacional, ITECNE.
estabelecendo uma estrutura de

poder baseada na violência.

57
Importante é refletirmos sobre o entendimento das

condições de permanência e atualização do patriarcado

em suas manifestações contemporâneas, pois, longe de ser


abolido, ele se atualiza por meio de um processo contínuo

de transformação ao longo da história da formação social

brasileira. É estruturante da opressão e da dominação da

mulher, como um sistema, e para superá-lo são necessárias

transformações radicais para preservar as diferenças e

eliminar as desigualdades.

Temos que nos indagar sobre o que acontece

com o papel e o protagonismo das mulheres diante das

transformações da sociedade brasileira atual e da sociedade

capitalista. Não há apenas o novo e novas rupturas, mas

continuidades e conciliações entre as novas dinâmicas e

as velhas tradições. O papel social, cultural e político das

mulheres na formação e reprodução das alianças entre os

novos atores, novos homens e as velhas famílias é questão

bastante interessante na investigação empírica da história

das famílias de elite e suas genealogias no Brasil. As mulheres

tradicionais e estabelecidas na reprodução da ordem social

desempenham um papel político central.


As construções dos papéis sociais atribuídos às

mulheres as colocam como o centro de afetos, emoções,

sentimentos e alianças dentro das famílias. As estratégias

58 POR TRÁS DE UM GRANDE HOMEM,


SEMPRE HÁ UMA GRANDE MULHER?
familiares e de classe passam em boa parte pelas ações

sociais e políticas das mulheres das grandes famílias, que

acabam exercendo um papel essencial não somente para


a reprodução familiar, mas, sobretudo, para a reprodução

social.

Portanto, a construção de relações e influências por

parte das mulheres, embora muitas vezes suprimida, se mostra

como seu potencial-chave. A mulher foi uma personagem

invisibilizada, ocultada e apagada da história, mas, mesmo

na família patriarcal, tinha muitos poderes. Quando o homem

se ausentava ou falecia, ela assumia a frente da família. As

viúvas eram as famosas matriarcas, as famosas “mandonas”

do período colonial. Hoje, na sociedade contemporânea,

é marcante a presença de famílias com chefia feminina,

nas diferentes condições conjugais e relações culturais

que marcam o atual ambiente familiar, demonstrando a

importância que o papel feminino sempre teve e ainda tem

nas relações de poder.

POR TRÁS DE UM GRANDE HOMEM, 59


SEMPRE HÁ UMA GRANDE MULHER?
60
EU SOU
FE M I NISTA
sobre
a au tora A primeira vez que eu

disse em alto e bom som que


Ana Luíza Alves, 24 anos, era feminista foi recebida com
vive em Brasília e estuda surpresa. “Como assim feminista?”,
Audiovisual. Começou a se eles questionaram. “Feminista, ué”,
interessar por discussões eu respondi, com menos convicção
de gênero ainda na do que gostaria; o suficiente para
adolescência, mas foi iniciar toda uma crise existencial.
só em 2012 que passou Será que eu era mesmo tão
a ter mais contato com feminista quanto acreditava ser?
o movimento feminista, Minha história com o
tanto na internet quanto feminismo começou no final da
na universidade – e desde adolescência, quando entrei na
então não parou mais. faculdade e passei a ter mais
Atualmente, escreve sobre contato com o discurso teórico do
cultura pop e feminismo movimento e com a nova onda
no Valkirias, do qual feminista que ganhava força,
também é editora principalmente, na internet — que
e criadora. foi o espaço que, de certo modo,

me fez ter uma perspectiva mais

ampla sobre o movimento e o que

61
significava, afinal de contas, ser feminista. Mas muito antes

disso, a discrepância de gênero já era um incômodo muito

presente na minha vida, quando, ainda na infância, via meus


primos, mais velhos ou da mesma idade, fazendo coisas que

eu não era permitida fazer. “Você é mulher e mulher não

pode”, respondia minha mãe em cada uma dessas vezes, na

falta de uma resposta melhor que fosse capaz de justificar

o injustificável, enquanto eu reclamava, pela milésima vez,

por não poder brincar na rua até mais tarde. Ou não poder

me sentar no chão quando estava de saia. Ou por não poder

ficar trancada num quarto com vários meninos, mesmo que a

gente só estivesse jogando videogame.

Demorou até que eu finalmente entendesse que todas

essas regras, que limitavam a mim e tantas outras garotas,

não existiam no vácuo: eram o reflexo de toda uma construção

social tão velha quanto o mundo é mundo, a consequência

de uma sociedade que não enxergava — e não enxerga — o

feminino como sujeito. Assim, parecia muito natural tornar-

me feminista, que nada mais é do que alguém que acredita na

igualdade política, econômica e social entre os sexos, em sua

definição mais básica; algo no qual sempre acreditei, direta


ou indiretamente. Eu acreditava, e continuo acreditando, que

o fato de ser mulher não me fazia inferior; que eu merecia ter

minha independência, estar no comando da minha própria

62 EU SOU FEMINISTA
vida, receber um salário justo de acordo com a profissão que

escolhi e o cargo que desempenho, andar na rua sem ter

medo de ser estuprada, poder viver um relacionamento pleno


e livre de situações abusivas e poder gostar do que eu quiser

sem ser questionada por isso, fosse de revistas de moda ou

videogame (ou tudo isso ao mesmo tempo).

O feminismo me ensinou uma porção de coisas; não

apenas deu voz aos meus conflitos e questionamentos que

até então eu não sabia de onde vinham, nem para onde iam,

mas me orientou de forma delicada e honesta, apontando

comportamentos problemáticos (da sociedade, mas também

meus) e detalhes que, sozinha, seriam muito mais difíceis

de serem desvendados e interpretados. Em grupos, blogs, na

faculdade e com minhas amigas que também começavam a

se aventurar por esse universo, aprendi que existiam muito

mais nuances no movimento do que acreditava minha vã

filosofia, e que boa parte dessa luta não se resumia a uma

busca por igualdade salarial e o direito de andar na rua sem

ser assediada em cada esquina, muito embora essas sejam

questões muito importantes também. Se somos, antes de mais

nada, humanas, e como humanas, únicas em nossa própria


complexidade, nada mais natural que nossas lutas também

sejam muito distintas, mesmo que o inimigo continue a ser o

mesmo: o patriarcado.

EU SOU FEMINISTA 63
Contudo, essa mesma humanidade é vista como um

problema, uma espécie de fraqueza, quando vindas das

mesmas mulheres que se dizem... feministas. De um lado, a


sociedade nos diz que somos o sexo frágil e é por isso que somos

tão humanas, é por isso que somos tão fracas, é por isso que

somos tão incoerentes ao ponto de sequer conseguir conduzir

um movimento que busca a igualdade. Do outro, anos e anos

de representações equivocadas, construções rígidas sobre o

movimento e expectativas idealizadas nos dizem que essa

humanidade são conflitos que se impõe entre nós, mulheres,

e o feminismo. Desejamos ser independentes, acreditamos

na igualdade de gênero, queremos oportunidades e salários

mais justos; mas também desejamos ser mães, casar de véu

e grinalda, amamos maquiagem e revistas de moda e rosa

é nossa cor favorita desde que nos entendemos por gente.

Como conciliar tudo isso de uma vez só?

Por muito tempo, acreditei que ser feminista

significava ser uma mulher perfeita, militante em tempo

integral, que nunca vacila, nunca erra, sempre segura de si e

de suas lutas; até descobrir que não era preciso abrir mão das

minhas particularidades para ser, também, todas essas coisas.


Nunca foi preciso ser uma só. O feminismo nunca foi sobre

perfeição, porque essa perfeição irreal e idealizada também

é uma forma de nos limitar, e o feminismo nunca foi sobre

64 EU SOU FEMINISTA
limitações. Trata-se de um movimento sobre liberdade, sobre

sermos quem quisermos num mundo mais justo e igual. Não

faz o menor sentido criar novas caixas e tentar nos enfiar lá


dentro, como se essa fosse, de alguma forma, a solução de

todos os problemas.

O mundo precisa do feminismo porque é com ele e

a partir dele que temos a oportunidade de desconstruir

padrões problemáticos de comportamento e representação

que ainda nos custam tão caro, mas ele não é uma solução

milagrosa, muito pelo contrário. Como mulher e feminista,

eu entendo, hoje, que muitas das questões que possuo — a

baixa autoestima, os problemas de aceitação, a insegurança

etc — não são fruto do acaso, mas reflexos cruéis de todos

os estímulos que recebi ao longo da vida, das pessoas ao

meu redor, dos veículos de comunicação, e entendê-las não

significa que, instantaneamente, eu me tornarei imune a

elas. Não é assim que a banda toca. O feminismo é importante

porque abre nossos olhos e nos mostra que é possível não só

superar cada um desses conflitos, mas construir um mundo

livre deles. São coisas que necessitam de tempo para serem

construídas, e é justamente por isso que continuamos lutando


dia após dia.

Hoje, quando digo que sou feminista, as pessoas

continuam a encarar a afirmativa com surpresa. Eu sou,

EU SOU FEMINISTA 65
afinal de contas, a mulher que gosta de moda e maquiagem,

que sonha em se casar, em ter uma família e dar almoços de

domingo; alguém que cresceu acreditando em contos de fada,


que ama tons pastel e gostaria de viver num grande musical,

porque a vida é sempre mais bonita e romântica neles. Mas, ao

contrário de antes, digo isso com toda a convicção do mundo,

com a certeza de que existe apenas uma resposta possível.

Feminista, feminista, feminista. Eu sou feminista, ainda bem.

66 EU SOU FEMINISTA
68
MU LH E R E S
TA M B É M GOSTA M
D E FUTE BOL
Com meus 19 anos, já perdi
sobre as contas de quantas vezes escutei:
a au tora “Você não pode, porque você é

mulher”. Eu me pergunto: por quê?


Maria Elisabeth
Isso começou relativamente
Bussular Franquini,
cedo. Quando eu tinha 11 anos,
20 anos, Vitória, ES.
adorava jogar futsal, handebol,
Está no cursinho pré-
vôlei, qualquer esporte que me
vestibular e é muito
apresentassem. Em uma aula de
interessada pela
Educação Física, não consegui
discussão de gênero,
formar dois times de futsal
porque não acha certo
feminino, então pedi ao professor
a mulher ter muito mais
para jogar com os meninos e ele
obstáculos a enfrentar
autorizou, embora ficasse meio
para alcançar os mesmos
receoso. Assim que pisei na quadra,
objetivos que um homem,
os meninos da minha turma já
em uma sociedade que
começaram a olhar estranho;
deveria ser igualitária.
quando falei que ia jogar, eles

riram, mas quem diria... quando

comecei a jogar, viram que eu

jogava melhor que muitos deles.

69
Alguns anos depois, chamei meu pai para irmos ao

jogo de futebol do time para o qual torço, mas ele respondeu

que não me levaria porque um estádio não era lugar para


mulher. Indignada, pedi para ele me explicar o porquê.

Ele tentou se justificar: “Lá vai ter muito homem

bebendo...”, mas eu não me conformei: “Não vou engolir essa

desculpa porque para mim não existe isso, mulher vai aonde

quiser e quando quiser”.

Não faz sentido. Olha a “pressão” que a mulher, de

uma maneira geral, sofre. Desde nova os brinquedos de uma

menina são bonecas e utensílios de cozinha; os de menino

são pistas de carrinhos superlegais e bonecos de heróis.

Quando chega a adolescência, as meninas têm de aprender

a se comportar como uma moça: “senta direito, mocinha não

faz isso, tem que aprender a cuidar da casa, a cozinhar...”.

Até que chegam à idade adulta e passam a fazer tudo o que

aprenderam para o marido. Se você der azar, é um daqueles

que quando criança e adolescente ficou brincando de

carrinho e não aprendeu nada do que você aprendeu, porque,

segundo a sociedade, cozinhar, lavar, passar e cuidar de filhos

é trabalho da mulher.
Uma vez minha avó estava fazendo o almoço e quando

foi temperar a carne falou: “Sabe temperar carne? Tem que

aprender para fazer quando casar”. Não quis questionar uma

70 MULHERES TAMBÉM GOSTAM DE FUTEBOL


senhora que foi criada em tempos diferentes do meu, mas

fiquei pensando: “Temperar carne só serve para casar?”

Mesmo com a inserção da mulher no mercado de


trabalho e a luta cada vez maior pela igualdade de gênero,

esse pensamento ainda permeia os dias de hoje, fazendo com

que a mulher seja cobrada pelo cuidado da casa e dos filhos,

enquanto o pai fica sentado assistindo a jogos de futebol.

Por falar em filhos, se você casar e disser que não

quer tê-los, não se incomode se receber umas caras feias,

como se isso fosse obrigação de todas. Muitas pessoas não

sabem o que é querer fazer algo e ser discriminada por ser

mulher. Ainda sou nova, mas luto diariamente pela causa da

igualdade de gênero. Apesar de sermos maioria no Brasil, nós,

mulheres, ainda temos salário menor, menos participação

na política e menor ocupação de cargos de importância em

grandes empresas. A mulher deixou de ser o sexo frágil há

muito tempo e tenta cada vez mais ocupar o seu devido lugar

na sociedade. Para começar, tendo os mesmos direitos de ir

e vir de um homem. Afinal, só os homens podem sentar no

barzinho de esquina para tomar uma cerveja e assistir a um

jogo de futebol?

MULHERES TAMBÉM GOSTAM DE FUTEBOL 71


72
MU LH E R E S
JU NTAS NÃO
E STÃO SOZ I NHAS
Viajar sozinha não foi uma
sobre decisão difícil. Não era sequer
a au tora uma questão. Há algum tempo

eu fazia qualquer atividade sem


Milena Martins
companhia: ir ao cinema, sair
tem 23 anos, nasceu no
para jantar, ir a shows. Partia
Rio de Janeiro e mora
do pressuposto de que, se eu
em São Paulo. É editora
conseguia pagar minhas contas
formada em Letras pela
e me alimentar sem alguém para
Universidade de São
segurar minha mão, as partes boas
Paulo. Acredita que
também deveriam ser fáceis.
a vida é uma grande
Minha primeira parada foi
narrativa que contamos
Santiago. Em uma grande cidade,
por aí; estuda literatura
é muito simples estar só. Você se
e gênero porque quer
mistura às multidões sem que
mudar as narrativas
ninguém questione sua presença.
disponíveis para
A dona da casa onde me hospedei
mulheres.
também era brasileira; ela não só

viajava como havia decidido se

mudar sozinha para o Chile há oito

anos. Conversamos muito, e ela foi

73
minha companhia em alguns cafés pelas calçadas de Santiago;

mas ela também sabia que, na maioria dos momentos, eu

queria mesmo era aproveitar meu próprio silêncio. Santiago,


assim como Paula, aceitou isso. Com exceção de uma ou outra

conversa espontânea com desconhecidos na rua, ninguém

achou estranho uma mulher sem alguém ao seu lado.

Continuava não sendo uma questão.

Porém, chegou o dia em que embarquei para o Deserto

do Atacama — o deserto não polar mais árido do planeta. O

tipo de lugar em que tudo fica à flor da pele, inclusive seus

próprios medos. Já no transfer entre o aeroporto de Calama e

o povoado de San Pedro, alguns homens puxaram conversa e

a pergunta era a mesma:

— Mas você está aqui sozinha?

Chegando ao hostel, meus colegas de quarto eram

homens. Dois jovens jornalistas de Valparaíso atrapalharam

meus planos de ir à cidade na volta do deserto:

— Não vá, Valpo é perigosa, especialmente para

mulheres desacompanhadas.

À noite, saí para um passeio a um observatório

astronômico. Até então não havia sentido medo para valer.


Santiago tem a fama de cidade mais segura da América

do Sul. Mas San Pedro de Atacama é um povoado mal-

iluminado, com ruas de terra, poucos habitantes e muitos

74 MULHERES JUNTAS NÃO ESTÃO SOZINHAS


turistas aventureiros. Meu medo ao andar pelas ruas à 1 hora

da manhã era o mesmo medo primário de quando eu preciso

descer do ônibus perto de casa e caminhar 300 metros no


escuro: eu não quero ser estuprada. Ninguém quer. Ainda

assim esse é um temor constante.

Dividir o quarto com vários homens desconhecidos

também foi assustador. Lá estava novamente o medo primário,

fazendo com que o sono fosse interrompido por qualquer

barulho. Eu relembrava os avisos masculinos me dizendo que

era perigoso andar sozinha por lá, como se me alertassem de

que eles mesmos eram o monstro desconhecido. Era como

se eles me dissessem que eu não podia ocupar os espaços,

porque já estavam ocupados pela presença ameaçadora dos

homens. A mim restava ter cuidado.

No dia seguinte, os colegas de quarto mudaram. Um

grupo de meninas chilenas chegou: Barbara, que veio sozinha

de Pucón; e uma holandesa de 22 anos, como eu. Nenhuma

delas achou estranho eu estar sozinha. A holandesa começou

a conversar comigo e contou que foi ao Chile por causa dos

romances de Isabel Allende. Mostrei meu próprio exemplar

de A casa dos espíritos e sorri, tendo mais uma vez a prova de


que em qualquer lugar do mundo as mulheres acabam por se

proteger. Estávamos todas ali, sem nenhum cuidado. E graças

à presença das outras, sem nenhum medo também.

MULHERES JUNTAS NÃO ESTÃO SOZINHAS 75


76
NÃO E XISTE
“ NU D E ” PAR A M I M

Quando um homem divulga

fotos íntimas de mulheres, não é

vingança, é agressão.

A cara de choro da minha

irmã quando cheguei em casa foi

sobre a confirmação: a minha família

a au tora sabia que as minhas fotos tinham

vazado na internet. Todos os dias,


Laura* entrava na mesma comunidade de
*O nome foi trocado slut-shaming no Orkut para ver se
a pedido da autora, tinha algo sobre mim. Naquele dia,
que preferiu não antes de ir à praia, vi que tinham
se identificar. sido divulgados links para as

minhas fotos.

Sou uma vítima de porn

revenge. Ou, como eu normalmente

falo, fotos minhas vazaram quando

eu era adolescente. Em todas essas

frases, eu escondo o verdadeiro

sujeito. Depois do fim do namoro,

um rapaz compartilhou as fotos

77
que eu tinha confiado a ele.

Falar em pornografia de vingança é deixar a dúvida:

teria ele se vingado de mim? E, na verdade, o que foi que eu


fiz para ele? É uma expressão que reforça que a culpa é da

vítima. Se o ex se vingou foi porque ela fez algo antes. Dez

anos depois, eu ainda me pergunto o que faria ele sofrer como

eu sofri. Vou conseguir a minha vingança algum dia?

Difícil aceitar que uma mulher pode ser marcada para

sempre como “aquela das fotos”, e o homem nunca fica com a

fama ruim, de ser uma pessoa desprezível, capaz de destruir a

vida de outra. Sem contar que compartilhar fotos da ex depois

de uma rejeição é uma tentativa de demonstrar poder sobre o

corpo da mulher: um clássico do machismo.

Ele era meu primeiro namorado, e eu tinha catorze

anos. Ele sempre comentava que outras meninas tinham

tirado fotos sem roupa especialmente para ele, até me mostrou

algumas. Hoje não sei por quê, mas naquele momento eu

confiei nele e tirei as fotos. Meses depois, decidi terminar o

namoro. Ele me ameaçou quando perguntei se ele deletaria

as imagens.

Só faltei um dia de aula. Quando apareci, ninguém


falava do assunto. Se eu não fosse a CDF da escola, meu

caso teria causado menos empatia? E se eu não tivesse sido

influenciada a tirar as fotos?

78 N Ã O E X I S T E “ N U D E ” PA R A M I M
E se eu fosse uma das meninas mais populares de um dos

principais colégios da cidade? E se o meu ex tivesse vazado o

vídeo de uma transa? Foi o que aconteceu com uma menina


de 16 anos poucas semanas antes do meu caso. Era sobre ela

a comunidade de slut-shaming que eu acompanhava para

saber sobre o vazamento das minhas fotos.

A repercussão desse caso foi muito maior. Como tudo

aconteceu mais ou menos ao mesmo tempo, as minhas fotos

chamaram menos atenção. Costumo dizer que isso foi “sorte

minha”. Mas é possível falar sobre sorte depois de tanto

sofrimento?

É até difícil pensar sobre como eu seria se não tivesse

passado por isso. Aceitaria mais o meu corpo? Seria menos

tímida? Teria continuado na minha cidade?

Sofri sozinha. Com medo de ser julgada, ridicularizada. Com

medo de que nunca mais ficasse livre daquelas imagens.

Aceitei quando, anos depois, um outro namorado me disse

que tinha se arrependido de não ter visto as fotos. Nunca veja

essas imagens, pense nas vítimas. Hoje ainda me sinto mal

se meus amigos começam a conversar sobre nudes. Essa é

uma palavra que nem existe para mim. Repare se alguém fica
desconfortável com o assunto.

O compartilhamento não consensual de imagens

íntimas deve ser discutido principalmente na escola. Se falar

N Ã O E X I S T E “ N U D E ” PA R A M I M 79
sobre o meu caso puder evitar que pelo menos uma menina

passe pela mesma situação, não quero que continue em

segredo.
Quando eu já vivia a agonia de saber que, a qualquer

momento, a minha nudez estaria exposta na internet, um

professor comentou o caso daquela outra menina e deu

alguns conselhos. Conselhos que eu repetiria: “Não confie.

Infelizmente, não dá pra confiar”.

80 N Ã O E X I S T E “ N U D E ” PA R A M I M
82
JÁ D I Z IA
S I MON E
D E B E AU VOI R
Eu nasci. Eu não nasci

mulher, eu só nasci. Uma criança,


sobre como qualquer outra — não muito
a au tora bonita, coberta de gosma e toda

enrugada, inchada, com os olhos


Paloma Engelke Muniz
fechados. Aí eu chorei, mas ainda
tem 25 anos e é natural e
não sabia que nascer era a parte
moradora da capital
mais fácil de tudo.
do Rio de Janeiro.
Como consequência de um
Escritora, advogada,
acaso genético de encontro de
mestranda em Sociedade,
gametas, quando eu nasci, meus
Direitos Humanos
pais e os médicos viram que eu
e Arte pela Universidade
tinha uma vagina. Isso também não
Federal do Rio de Janeiro
me fez mulher, mas a circunstância
com ênfase em gênero,
inocente de nascer assim foi o fato
e editora do site
determinante para que ali, naquele
feminista Valkirias.
minuto, antes que eu pudesse ter

qualquer consciência do mundo

à minha volta ou de mim mesma,

eu começasse a me tornar mulher.

Já dizia Simone, “[n]inguém nasce

83
mulher: torna-se mulher.”

Acontece que nascer assim foi um erro. Foi tudo um

grande engano. Espera aí, deixa eu explicar. O médico garantiu


que eu tinha um pênis, então era para eu ser menino. E

agora? Meu quarto era verde, mamãe cortou todos os lacinhos

das minhas roupas porque o papai falou que o filho dele não

podia usar uma roupa cheia de lacinhos — isso não é coisa de

menino.

Nasci e mamãe chorou. Não porque ela não quisesse

uma filha (ou uma boneca, o que basicamente dá na mesma),

ela queria, mas a filha dela chegou bagunçando o coreto,

sem se anunciar, e agora ela não tinha nenhum lacinho. No

dia seguinte, vovó voltou com lacinhos de todas as cores do

círculo cromático, mamãe ficou feliz e agora não tinha mais

problema eu existir. Por muito tempo não passei um dia sem

um lacinho na cabeça. Furaram minhas orelhas.

Eu cresci. De vestidos, penteados, maquiagem,

panelinhas e bonecas. Eu fui para a escola, era perfeita —

como uma menina deve ser. Mas se conformar não quer dizer

que seja fácil, que não seja uma violência.

Existe uma coisa contraditória em crescer como uma


menina de classe média nos dias atuais. Essa coisa se chama

“expectativas conflitantes”. Sempre ouvi que eu tinha de

estudar, que tinha de ter uma boa carreira e não depender

84 JÁ DIZIA SIMONE DE BEAUVOIR


de homem nenhum. Ao mesmo tempo, ainda tinha que ser

bonita, doce, cheirosa e prendada. Prendada, essa palavra

tão antiga, porém tão atual. Basicamente, nós, mulheres,


acumulamos funções. “Vai ajudar a sua mãe a fazer o lanche.”

Ser menina é andar sempre na corda bamba e ser

treinada desde cedo para fazer (pelo menos) o dobro de

qualquer homem. Se você é pobre, tem que trabalhar para

manter a casa, mas também tem que trabalhar dentro de

casa – limpar, lavar, passar, cozinhar para o homem que está

muito cansado porque trabalhou o dia inteiro. Se você é de

classe média para cima, pode ser que explore outra mulher

para fazer a parte do trabalho doméstico, mas ainda tem que

trabalhar fora para não parecer encostada e tem que estar

sempre em dia com a manicure, a depilação, a cabeleireira.

Normalmente, nem uma parte nem outra é levada muito a

sério. O “chefe de família” sempre tem um pênis, a não ser que

a pessoa em questão tenha pego as suas coisas e caído fora –

mas ele pode, você não, você tem que ficar e ser suplente de

um cargo para o qual nunca te deixaram concorrer.

Eles deviam perceber que isso é insustentável, mas

talvez estejam cegos pelo status quo. Não dá para exigir que
uma classe seja pensante e, ao mesmo tempo, cegamente

submissa. Algum dia, daríamos um basta. Estamos acordando.

Eu nasci e eu não era mulher naquela época, mas agora eu

JÁ DIZIA SIMONE DE BEAUVOIR 85


sou – então nós precisamos fazer algo sobre isso. Por nós e

pelas que ainda estão chegando.

86 JÁ DIZIA SIMONE DE BEAUVOIR


[ P O S FÁ C I O ]

“ B E N E FICIÁR IAS”
D E U M D ISCU R SO
DE GÊNERO
sobre
a au tora “ Q ue n ad a no s de f i n a . Q ue n ad a
no s s u j e it e . Q ue a li b e r d ade s ej a
a no s s a pr ó pr i a s ub s t â nc i a .”
Denise Ratmann Arruda S imon e d e B e a u v oir

Colin, assistente social

do Ministério Público A conformação de uma

do Paraná, atualmente sociedade ocorre por meio de

diretora do Departamento uma construção social e cultural,

de Planejamento e Gestão desencadeada em cada conjuntura,

na Subprocuradoria forjada pela história e pelas lutas

de Planejamento sociais. Essa lógica é reproduzida

Institucional. Doutora nas concepções de família e de

em Sociologia pela mulher.

Universidade Federal Losandro Antônio Tedeschi,

do Paraná. Foi secretária autor do livro História das

nacional de assistência Mulheres e as Representações

social no Ministério do Feminino, nos conta que, em

de Desenvolvimento diferentes momentos históricos,

Social de 2011-2014. a sociedade cria representações

para as mulheres com discursos

legitimadores e naturalizantes da

87
“inferioridade feminina”, culminando com a desigualdade de

gênero. Para ele, os discursos recorrentes, seja na filosofia, na

religião, na educação, no direito — códigos, leis e normas de


conduta —, ajudaram a transformar a desigualdade de gênero

em fato de caráter universal, perpetuando-se através dos

tempos.

Quando nos referimos às mulheres em vulnerabilidade

social, essa desigualdade é ainda mais perceptível, e seu

debate é bastante contaminado por mitos e preconceitos.

Tomemos como exemplo a representação social das famílias

que recebem a transferência de renda do Programa Bolsa

Família, que tem como objetivo combater a pobreza e promover

o acesso aos serviços públicos, particularmente à saúde, à

educação, à assistência social e à segurança alimentar.

Sabe-se que os cartões do programa governamental

são emitidos preferencialmente no nome das mulheres.

Segundo dados divulgados pela Caixa Econômica Federal, os

benefícios de 92% das 14 milhões de famílias que recebem

o Bolsa Família são geridos por mulheres. Dados científicos

mostram que essa prática fortalece seu papel na família e na

comunidade e garante o cumprimento das condicionalidades


do programa.

Mesmo assim, quais são os principais discursos

que se ouve dos censuradores do programa? Mensagens

88 “BENEFICIÁRIAS” DE UM DISCURSO DE GÊNERO


preconcebidas constantemente reforçadas pelo imaginário

coletivo e que traduzem compreensões de diversas ordens,

prevalecendo críticas de gênero, tais como: “a mulher vai ter


mais filhos para receber a renda do programa; a mulher vai se

acomodar, viver na preguiça e não buscará emprego porque

o dinheiro já está garantido pelo governo; a mulher não tem

capacidade de cuidar dos filhos e de lhes garantir proteção”,

entre outras tantas colocações.

No entanto, pesquisa que resultou de cinco anos

de entrevistas com beneficiárias do PBF — coordenada por

professores da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), relatada

no livro Vozes do Bolsa Família - autonomia, dinheiro e

cidadania (Ed. Unesp, 2014) — demonstra resultado inverso e

permite rebater ideias errôneas e desfazer mitos.

No caso do “estímulo à vagabundagem”, identificou-se

que das 150 mulheres entrevistadas, apenas duas deixaram

o trabalho que exerciam em funções domésticas, pois

rendia menos de um salário mínimo por mês. Outro aspecto

fundamental concentra-se no fato de que, ao contrário do

que é propalado, a imensa maioria das famílias beneficiárias


exercem atividade laboral, formal ou informalmente, mas,

ainda assim, têm renda familiar bastante reduzida, o que as

expõe a situações de vulnerabilidade pessoal e social.

“BENEFICIÁRIAS” DE UM DISCURSO DE GÊNERO 89


A pesquisa mostrou também que parte considerável

das famílias beneficiárias utiliza parcela do benefício para

compra de material escolar para os filhos. Nesse sentido


vale lembrar a inferência recorrente em falas da professora

doutora Aldaíza Sposati, do Curso de Serviço Social da PUC-SP.

Ao tratar do enfoque da transferência de renda, ela compara a

aceitação generalizada da sociedade ao desconto no imposto

de renda concedido às famílias que possuem seus filhos

em escolas particulares às críticas sofridas pelas famílias

que recebem a transferência de renda, justamente como

incentivo para acesso aos direitos à educação, à saúde e à

assistência social, ainda que ambos os benefícios resultem

em quantitativo financeiro bastante similar.

Anotação essencial da pesquisa faz referência ao

impacto financeiro que a transferência de renda acarreta

junto ao pequeno comércio local, além da consequente

elevação de autoestima e empoderamento da mulher junto

à comunidade e à sua própria família, tradicionalmente

patriarcal, o que também significou maior possibilidade de

interromper ciclos de violência doméstica e de submissão.

A verificação mais significativa assinala que muitas


mulheres passaram a reconhecer o benefício como um direito,

superando a lógica do favor, e que em muitas comunidades

eram realizadas discussões coletivas acerca das condições de

90 “BENEFICIÁRIAS” DE UM DISCURSO DE GÊNERO


vulnerabilidade e violação vivenciadas e das situações que

envolviam o Cadastro Único, o Programa e o próprio benefício.

Observa-se, no entanto, que quando o benefício reverte


para a camada mais frágil da sociedade, por mais ínfimo que

seja o valor, o que pesa é a sua representação no imaginário

coletivo, caracterizando-se, ao fim e ao cabo, em instrumento

de ódio, rancor e profundo preconceito, estando a mulher,

uma vez mais, suscetível às piores críticas.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a

Constituição Federal de 1988 apontam que o padrão de

civilidade de uma determinada sociedade pode ser medido,

em grande parte, pelo nível de participação cidadã e pelo

usufruto de bens, serviços e riquezas produzidas pelo

conjunto da população, tomando como referência o acesso

universal a um padrão ético mínimo que assegure a condição

de dignidade a todos os seres humanos. Nessa perspectiva,

o valor da condição de dignidade humana direciona a

necessidade de estruturação de sistemas nacionais de

proteção social, de caráter universal e coletivo, de modo a

imprimir, taxativamente, obrigações positivas do Estado, a

serem materializadas por meio da oferta de políticas públicas,


com o desafio de garantir a integralidade dos direitos e

promover a equidade no acesso a bens, renda e serviços, e é

aqui que se enquadra o Programa Bolsa Família.

“BENEFICIÁRIAS” DE UM DISCURSO DE GÊNERO 91


pela
Vale lembrar que o modelo de desenvolvimento

adotado pela sociedade moderna, que concentra a riqueza e

foca no mercado de capital, acaba por culpabilizar os próprios


indivíduos em vulnerabilidade social, sem estabelecer a

adequada correlação de causa e efeito que determina a

situação a qual estão expostos.

Nesse contexto, o lugar e a representação assumidos

mulher só podem ser alterados e aprimorados


A
M
mediante a desconstrução de mitos, o estabelecimento de

novos consensos e a assimilação de diferentes referenciais,

particularmente o de assegurar o exercício dos direitos sociais

e individuais e o bem-estar social, na direção da construção

de uma sociedade de iguais, com justiça social, permeada por

espaços democráticos e de maior tolerância, que resgate o

princípio da dignidade humana.

92 “BENEFICIÁRIAS” DE UM DISCURSO DE GÊNERO


ALICE
MATTOSIN
Alice Grosseman Mattosinho é uma artista de Florianópolis

que adora monstros e busca dar um toque de estranheza,

extraordinário e animalesco em tudo o que faz. De criaturas

radioativas a lobisomens, ela busca deixar sua marca

monstruosa nesse mundo. Fundadora do estúdio Rebel

Hound, que fornece serviços de arte 2D, e formada em Design

de Jogos, trabalha com criação de personagens, concept art,

quadrinhos e ilustração para diversas áreas de entretenimento

há mais de 7 anos. Já lançou duas publicações independentes:

o artbook para colorir bilíngue “Radioactive!” e a história em

quadrinhos de ação e terror “Bad Omen”, na temática de

vampiros e lobisomens e cuja continuação será lançada no

final de 2017. A artista também leciona palestras e oficinas em

eventos como Campus Party, Olhares Múltiplos Univali, SENAI,

Bienal de Curitiba e The Developers Conference.

AS ILUSTRADORAS 93
GABRIER
COUTHT
Gabriela Couth tem 27 anos, nasceu em Fortaleza e mora no

Rio de Janeiro com seu marido e sua Boston Terrier chamada

Pipa. É formada em Moda, mas tem pós em Estamparia e

trabalha como designer de estampas e ilustradora. Acredita

que não devemos nos encaixar em nenhum padrão e que

a moda existe para ser divertida e contestada, e não apenas

seguida.

94 AS ILUSTRADORAS
EL
R AQUE
A
THOMÉ
Raquel Thomé tem 32 anos, nasceu e mora em São Paulo.
Formada em Design de Moda e pós-graduada em Arteterapia,

encontrou na formação uma grande paixão, a busca incessante

pelo ser. Através da pesquisa pela história da indumentária,

surgiu a grande questão da disparidade de gênero na infância

e as consequências de uma educação tão discrepante, baseada

no binarismo e na forma de vestir dos indivíduos. Com base na

arte terapia propõe uma maneira de atingir a criança, dentro

de seu universo, fazendo-a questionar os padrões impostos

de identidade, gênero e - futuramente - sexualidade.

AS ILUSTRADORAS 95
ELIS
JACQUES
Elis Jacques é formada em Design Gráfico e Jornalismo. Desde a

infância, entre as palavras dos livros, admirava seu formato, paleta

de cores, acabamento, fontes, ilustrações, texturas e até o cheiro do

tipo de papel. Achou que isso significava que gostava de livros, ou

seja, de textos. Entre textos e mais textos, na faculdade de Jornalismo,

percebeu que palavras poderiam ter um novo significado através de

uma releitura gráfica. Quando descobriu que design era tudo aquilo

que fazia um conteúdo ter vida própria, decidiu estudar como isso

funciona. Hoje é designer freelancer e apaixonada por livros.

[ Em “Que mundo é esse?”, a delicadeza da aquarela representa o


feminino e o natural, em busca de equilíbrio. Cada início de narrativa
é ilustrado pela marca da tinta diluída que, em contato com a
superfície, imprime naturalmente seu formato. Que o feminismo seja
tão natural e belo em cada particularidade quanto essas aquarelas. ]

96 PROJETO GRÁFICO
SS
SETEMBRO, 2017

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