No que se refere a figura o homem por trás do mito, trataremos em outro local. O que nos
interessa agora é estabelecer a personagem.
Como citei a princípio o mundo latino, quis dizer que as narrativas giram em torno da existência
de um Feiticeiro que posteriormente se converte ao cristianismo, e mais, que aquelas lendas
serão levadas a outros povos da Europa Ocidental posteriormente.
Sabemos que naquela época não faltavam feiticeiros, eles estavam espalhado por todo o
Império Romano desde sempre, vindos do oriente ou da Grécia, pela figura dos goêtes, ou de
alhures com os mesmos “poderes”.
A personagem de Cypriano tem algo em comum, ela está inserida dentro da Tradição Latina
(pagã), mas seu final inclui elementos cristianizados, como a personagem Justina e o posterior
dos dois.
Cypriano é dito o “mais poderoso dos Feiticeiros” porque tem parte com o Diabo. Este Diabo
também é, ele, um elemento oriental, remanescente em primeira instância de Arimã, a
divindade das Trevas do Culto Zoroástrico.
Cypriano é pois um Feiticeiro pagão que pactua ou vincula-se com este novo-deus cristão, que
aqui não aparece na figura de um tentador mas, na de um Familiar.
Porém, no fim o diabo “falha”, declarando impotência diante de uma figura feminina que
representava a Virtude da Justiça. O que segue é tradição cristã. E isso não nos interessa no
momento.
Esta “falha” do Diabo dentro das contingências da narrativa (o possível dentro do fictício) é
risível, para não dizer patética. Os que se dedicam às artes da Feitiçaria (que dentro desta
perspectiva inclui todas as práticas espirituais não aprovadas pela nova autoridade – a
eclesiástica) concentram sua atenção na possibilidade de compactuar com Espíritos, porém
com a característica nova de que estes Espíritos são Demônios e não mais “deuses” como era
soez chamado qualquer ente invisível ou de um mundo diverso.
Praticas como a Teurgia, Goétia, Taumaturgia sempre foram desempenhadas. Mas sempre se
tratou com deuses, anjos, inteligências entre outros. Existem mesmo feitiços de vingança
oficiado ao deus Horus, outros ao Hermes Negro, mas o que se via eram citações a divindades.
Mencionei que a lenda ou tradição se espalha em outras áreas da Europa e isso é de extrema
importância pois, a uma, permite provar que ela sobrevive, as vezes intacta, e em seguida
porque permite rastrear a origem de outras tradições similares.
No que se refere a Tradição Cypriana como fonte de tradições similares, a lenda de Fausto
fornece a melhor evidência. O Fausto original, uma narrativa utilizada por Goethe para a
construção do seu longo poema homônimo, nada mais é do que a releitura do drama de
Cypriano, com a divergência no fato de que Fausto era movido por sentimentos humanitários
(ele pactua com Mefistófeles porque pretende obter a cura de sua cidade).
De toda forma, é aqui que encontramos a sobrevivência da ideia Faústica, e porque não
Cypriana, onde o homem mostra toda sua grandeza, renegando uma promessa de salvação
futura em nome do gozo de uma vida transitória. É o homem que arrisca, e por isso goza das
maiores recompensas. A questão de ingresso no paraíso passa longe de mentes não niilistas
nem amarguradas pelo ressentimento.
Em Cypriano temos o homem que ousa fazer a troca, vende a própria alma. Se ao fim ele se
arrepende como a narrativa católica, ou conforme a lenda de Goethe, não cabe especular. O
que ele faz inspira toda uma onda de livros após o século XVI (quando Cornelius Agrippa
publica seus “De Occulta Philosophia”), conhecidos como “Grimoires”, ou Gramáticas
Evocatórias.
É assim que aparece dois séculos depois a obra CLAVIS INFERNI, atribuída a figura de Cypriano.
Um grimório um pouco diverso dos que são comumente vistos, que geralmente trazem listas,
cada vez maiores de espíritos, e que se fixam depois nos 72 demônios da goétia.
O CLAVIS INFERNI trata somente com a Evocação dos Reis infernais correspondentes aos 4
arcanjos maiores da Qabalá Luriânica. Um livro um tanto peculiar. Ademais, ele é ricamente
ilustrado e suas pranchas de fac-símile são muito fáceis de encontrar na rede mundial.
Nele podemos apreciar como era a construção de um texto de grimório e porque estes livros
eram tidos como “selados” pelo segredo, implicando a necessidade de transmissão dos códigos
e não apenas a habilidade de saber ler. É uma obra que vale por si mesma e em seu estudo
muito conhecimento pode ser adquirido.
Invocamos aqui o espírito faustico, para que nos conduza pela leitura desta obra e que isso nos
dê grande proveito.