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RAÍDO

v.8, n.15

UNIVERSIDADE FEDERAL
DA GRANDE DOURADOS
Coordenadoria Editorial

Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação em Letras


da Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD
Dourados, v.8, n.15, jan./jun. 2014.
UFGD
Reitor: Damião Duque de Farias
Vice-Reitor: Wedson Desidério Fernandes
COED
Coordenador Editorial da UFGD: Edvaldo Cesar Moretti
Técnico de Apoio: Givaldo Ramos da Silva Filho
FACALE
Diretor da Faculdade de Comunicação
Artes e Letras: Rogério Silva Pereira

Conselho Editorial Consultivo


Adair Vieira Gonçalves (UFGD-Brasil)
André Luiz Gomes (UnB-Brasil)
América Lucia César (UFBA-Brasil)
Carmen Mejia Ruiz (Universidad Complutense de Madrid-Madrid)
Edgar Cézar Nolasco dos Santos (UFMS-Brasil)
Eneida Maria de Souza (UFMG-Brasil)
Idelber Avelar (University of Tulane-New Orleans-USA)
Leoné Astride Barzotto (UFGD-Brasil)
Lisa Block de Behar (Universidad de la República-Uruguay)
Luiz Gonzaga Marchezan (UNESP-Brasil)
Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP-Brasil)
Manuel Fernando Medina (University of Louisville-USA)
Marcelo Marinho (Universidade de Quebec-UQAM-Montreal)
Miguel Angel Fernández (UNA-Asunción-PY)
Norma Wimmer (UNESP-Brasil)
Pablo Rocca (Universidad de la Republica – Montevidéu /Uy)
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFGD-Brasil)
Rita de Cássia Aparecida Pacheco Limberti (UFGD-Brasil)
Wander Melo Miranda (UFMG-Brasil)

Raído: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGD / Universidade Federal


da Grande Dourados (v.8, n. 15, jan./ jun. 2014) -. Dourados, MS : UFGD, 2014 -.

Semestral

ISSN 1984-4018

1. Linguística Aplicada. 2. Estágios Supervisionados. 3.Escrita do professor.


RAÍDO
v.8, n.15

UNIVERSIDADE FEDERAL
DA GRANDE DOURADOS
Coordenadoria Editorial

Raído: Revista do PPG em Letras | Dourados, MS | v.8 n. 15 | p. 1 - 296 | jan./jun. 2014


RAÍDO
v.8, n.15, jan./jun. 2014

Editores
Adair Vieira Gonçalves e Wagner Rodrigues Silva

Revisão
A revisão gramatical é de responsabilidade dos(as) autores(as).

Editoração Eletrônica, Produção Gráfica,


Fabrício Trindade Ferreira ME

Correspondências para: UFGD/FACALE


Rua João Rosa Goes n. 1761, Vila Progresso
Caixa Postal 322
CEP 79825-070 - Dourados-MS
Fones: +55 67 3410-2015 / Fax: +55 67 3410-2011
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................7
LETRAMENTO
1. O estágio supervisionado e a voz social do estagiário / Trainees’ social voice in a teaching
internship program........................................................................................................... 13
Marília Curado Valsechi (UNICAMP/CAPES)
Angela Bustos Kleiman (UNICAMP/CNPq)
2. A professora regente disse que aprendeu muito: a voz do outro e o trabalho do professor
iniciante no estágio / The school teacher said she learned a lot: voice of the other and prospective
teacher´s work in the practicum......................................................................................... 33
Carla Lynn Reichmann (UFPB)
3. Projeções como práticas acadêmicas de citação na escrita reflexiva profissional de
relatórios de estágio supervisionado / Projections from academic citation practices in the
professional reflective writing of supervised teacher training reports....................................... 45
Lívia Chaves de Melo (UFT)
Adair Vieira Gonçalves (UFGD/CNPq)
4. Investigação científica na docência universitária: reescrita como uma atividade
sustentável na licenciatura / Scientific research in undergraduate teaching: rewritten as a
sustainable activity in teacher training course...................................................................... 71
Wagner Rodrigues Silva (UFT)
Janete Silva dos Santos (UFT)
Aliny Sousa Mendes (UFT/CAPES)
PRÁTICA ESCOLAR DE LINGUAGEM
5. Mobilizando olhares de estagiários em letras sobre as aulas de português e literatura
na escola / Mobilizing the views of teacher trainees in letras about portuguese and literature
classes in school................................................................................................................. 97
Clara Dornelles (UNIPAMPA)
6. Olhares sobre as práticas de linguagem na aula de língua inglesa em contexto de
estágio supervisionado............................................................................................. 117
Cristiane Carvalho de Paula Brito (UFU)
7. Estágio de docência supervisionado: um caminho para desenvolvimento da
compreensão leitora e da consciência textual / Supervised teaching practice: a way to reading
comprehension and textual consciousnes development......................................................... 135
Vera Wannmacher Pereira (PUC/RS)
Leandro Lemes do Prado (PUC/RS)
POLÍTICA DE FORMAÇÃO INICIAL
8. Diálogo entre teoria e prática: a pesquisa em estágio / Dialogue between theory and
practice: the research in teacher training .......................................................................... 155
Antonio Francisco de Andrade Júnior (UFRJ)
9. Estabelecendo parâmetros enunciativos para a avaliação de Relatórios de Estágio
Supervisionado em Língua Portuguesa / Establishing enunciative parameters to Portuguese
Supervised Stage reports................................................................................................... 175
Silvana Silva (UNIPAMPA)
10. Textos de estagiários e o professor observado: relações entre um ser genérico e um
profissional efetivo / Texts of trainees and the teacher observed: relations between an idealistic
and an effective professional............................................................................................. 191
Luzia Bueno (USF)
11. Estágio supervisionado e ensino de língua portuguesa: reflexões no curso de Letras/
português da UFPB / Supervised practice and portuguese language teaching: Reflections in the
letters/portuguese course in UFPB.................................................................................... 205
Socorro Cláudia Tavares de Sousa (UFPB)
Josete Marinho de Lucena (UFPB)
Daniela Segabinaz (UFPB)
TECNOLOGIA NO ENSINO
12. O mundo lá fora, o da escola: interação em fórum digital no estágio supervisionado
sob a perspectiva da sociossemiótica / The world out there, the school’s one: interaction in
digital forum on supervised internship in the perspective of sociosemiotic............................. 227
Luiza Helena Oliveira da Silva (UFT/CAPES)
13. A formação pré-serviço do professor de língua estrangeira em curso de licenciatura:
crenças e reflexões em experiências de estágio supervisionado em diferentes contextos
(sala de aula e teletandem) / Pre-service education of foreign language teachers: beliefs and
rflections in initial teaching practices in different contexts (classroom and teletandem)......... 249
Marta Lúcia Cabrera Kfouri Kaneoya (UNESP/S.J.Rio Preto)
INCLUSÃO
14. Estágio supervisionado em educação de surdos na perspectiva da educação inclusiva:
relato de experiência / Teacher training in deaf education from the perspective of inclusive
education: experience report............................................................................................. 267
Michelle Nave Valadão (UFV)
Carla Rejane de Paula Barros Caetano (UFV)
Juliana da Silva Paula (UFV)
15. Estágio supervisionado e a docência indígena: um caso Karajá / Supervised traineeship
and the indigenous teaching: a Karajá case....................................................................... 283
Caroline Pereira de Oliveira (UFMS)
Rogério Vicente Ferreira (UFMS)
Universidade Federal da Grande Dourados

APRESENTAÇÃO
ESTÁGIO SUPERVISIONADO NAS LICENCIATURAS
A organização deste volume da Revista Raído, destinado ao Estágio Supervisionado
nas Licenciaturas, mostrou-nos a consolidação deste periódico no domínio acadêmico
nacional e a configuração dos estágios supervisionados como uma área emergente de
estudos científicos em Linguística Aplicada (LA)1. Esses fatos são evidenciados a partir
da quantidade de artigos com os quais trabalhamos na organização do periódico: 47
(quarenta e sete) artigos foram recebidos em resposta à chamada amplamente divul-
gada para o volume temático; 15 (quinze) artigos foram aprovados, aproximadamente
32% dos textos recebidos; 24 (vinte e quatro) artigos não foram selecionados, ou seja,
52% dos trabalhos recebidos; 8 (oito) artigos foram enviados fora da temática, perfa-
zendo 17% de textos não avaliados por nossos pareceristas.
Foram recebidos artigos de todas as regiões do Brasil, o que pode ser ilustrado pe-
las universidades aqui representadas (PUC/RS; UFPB; UFG; UFGD; UFMS; UFT;
UFU; UFV; UNESP; UNICAMP; UNIPAMPA; USF), sendo os autores dos traba-
lhos reunidos em cinco seções intituladas, conforme o enfoque de pesquisa apresenta-
do nos artigos: Letramento; Prática Escolar de Linguagem; Política de Formação Inicial;
Tecnologia no Ensino; Inclusão. Esses títulos evidenciam que os estágios supervisio-
nados funcionam como pontes mais seguras para as pesquisas científicas alcançarem
as salas de aula do Ensino Básico, o que, conforme já revelaram inúmeras pesquisas
acadêmicas (cf. LÜDKE CRUZ, 2005; LÜDKE e BOING, 2012), configura-se como
um enorme desafio para diferentes disciplinas ou campos do conhecimento que lidam
com o ensino e a formação de professores, a exemplo da LA2.
Todos os artigos divulgados neste volume trazem pesquisas desenvolvidas nas Li-
cenciaturas em Letras, envolvendo o ensino e a formação de professores de línguas,
o que nos deixa em débito com o leitor no tocante às pesquisas a respeito de usos
da linguagem em outras licenciaturas, o que fora focalizado em trabalhos recebidos,
mas, lamentavelmente, não selecionado para publicação. Como área de investigação
na LA, as pesquisas a respeito dos estágios das diferentes licenciaturas possibilitam a
construção de objetos de pesquisa diversos, envolvendo a escola e a universidade (cf.
SILVA, 2012; SILVA; BARBOSA, 2011). É nos estágios supervisionados obrigatórios
das licenciaturas que tais instituições de ensino inevitavelmente se encontram, po-
1
Provavelmente, há leitores que apresentarão restrições ao fato de reunirmos todos os trabalhos aqui sob o guarda-chuva da
Linguística Aplicada. Nossa opção se configura como uma resposta à antiga prática de situar as pesquisas em Linguística
Aplicada como uma subárea da Linguística. Nesta situação, por que o inverso não seria uma resposta audível dos linguistas
aplicados aos linguistas que, oportunamente, vislumbram percorrer caminhos não comumente por eles trilhados?
2
Na década de 1990, Moita Lopes (1996, p. 32) já destacava que uma “questão de grande interesse na comunidade brasileira
de LA tem sido a da formação do professor. Acredita-se que os desenvolvimentos teóricos e práticos dos programas de LA
não conseguiram ir além do mundo acadêmico e alcançar o mundo relativamente distante da sala de aula de línguas, onde a
prática de ensinar e aprender línguas se desenvolve”.

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dendo desencadear o encontro demandado por anos entre teoria acadêmica e prática
profissional, tanto do ponto de visto do ensino, como no da pesquisa científica.
De alguma forma, os artigos reunidos neste volume sinalizam o caminho promis-
sor dessa área de investigação emergente na LA, cujo percurso pode ser visualizado em
diferentes fontes de investigação científica, todas geradas no complexo contexto das
disciplinas de estágio, requerendo tratamento teórico e metodológico diversificado (cf.
SILVA, 2013; PEREIRA, 2014).
Em Letramento, são reunidos os seguintes artigos, cujas pesquisas apresentadas
envolvem o letramento do professor em formação inicial: “O estágio supervisionado
e a voz social do estagiário”, de Marília Curado Valsechi (UNICAMP/CAPES) e An-
gela Bustos Kleiman (UNICAMP/CNPq); “A professora regente disse que aprendeu
muito: a voz do outro e o trabalho do professor iniciante no estágio”, de Carla Lynn
Reichmann (UFPB); “Projeções como práticas acadêmicas de citação na escrita refle-
xiva profissional de relatórios de estágio supervisionado”, de Lívia Chaves de Melo
(UFT/CAPES) e Adair Vieira Gonçalves (UFGD/CNPq); e “Investigação científica
na docência universitária: reescrita como uma atividade sustentável na licenciatura”,
de Wagner Rodrigues Silva (UFT), Janete Silva dos Santos (UFT) e Aliny Sousa Men-
des (UFT/CAPES).
Em Prática Escolar de Linguagem, encontram-se os seguintes artigos, cujas pes-
quisas apresentadas focalizam a construção de objetos de ensino por professores em
formação inicial, para regências de aulas de língua do ensino básico: “Mobilizando
olhares de estagiários em letras sobre as aulas de português e literatura na escola”, de
Clara Dornelles (UNIPAMPA); “Olhares sobre as práticas de linguagem na aula de
língua inglesa em contexto de estágio supervisionado”, de Cristiane Carvalho de Paula
Brito (UFU); e “Estágio de docência supervisionado: um caminho para desenvolvi-
mento da compreensão leitora e da consciência textual”, de Vera Wannmacher Pereira
e Leandro Lemes do Prado (PUC/RS).
Em Política de Formação Inicial, os textos tratam de pesquisas que investigam usos
de diferentes instrumentos de mediação na formação inicial do professor na Licenciatura
em Letras, os quais podem contribuir para uma formação teórica estritamente articulada
a demandas da prática de ensino na educação básica: “Diálogo entre teoria e prática: a
pesquisa em estágio”, de Antonio Francisco de Andrade Júnior (UFRJ); “Estabelecendo
parâmetros enunciativos para a avaliação de Relatórios de Estágio Supervisionado em
Língua Portuguesa”, de Silvana Silva (UNIPAMPA); “Textos de estagiários e o professor
observado: relações entre um ser genérico e um profissional efetivo”, de Luzia Bueno
(USF); e “Estágio supervisionado e ensino de língua portuguesa: reflexões no curso de
Letras/português da UFPB”, de Socorro Cláudia Tavares de Sousa et al (UFPB).
Em Tecnologia no Ensino, há artigos cujas pesquisas focalizam usos de tecnologias
como instrumentos de mediação em situações de ensino, instauradas em contextos
Universidade Federal da Grande Dourados

complexos dos estágios das licenciaturas: “O mundo lá fora, o da escola: interação


em fórum digital no estágio supervisionado sob a perspectiva da sociossemiótica”, de
Luiza Helena Oliveira da Silva (UFT/CAPES); e “A formação pré-serviço do professor
de língua estrangeira em curso de licenciatura: crenças e reflexões em experiências de
estágio supervisionado em diferentes contextos (sala de aula e teletandem)”, de Marta
Lúcia Cabrera Kfouri Kaneoya(UNESP).
Em Inclusão, estão dois relatos de experiência de estágio supervisionado realizado
em contextos de ensino de grupos minoritários, os quais são invisibilizados em pes-
quisas da LA a respeito da referida disciplina acadêmica obrigatória nas licenciaturas:
“Estágio supervisionado em educação de surdos na perspectiva da educação inclusiva:
relato de experiência”, de Michelle Nave Valadão et al (UFV); e “Estágio supervisio-
nado e a docência indígena: um caso Karajá” Caroline Pereira de Oliveira (UFMS) e
Rogério Vicente Ferreira (UFMS).
Finalmente, desejamos diálogos produtivos aos leitores deste volume temático
da Raído. Agradecemos a colaboração de todos os autores responsáveis pelas pes-
quisas divulgadas e, inclusive, aos autores que não tiveram seus textos selecionados.
Esperamos novas colaborações dos referidos autores e, inclusive, dos leitores com os
quais iniciamos um novo diálogo a partir deste ponto que, ironicamente, precisamos
identificá-los como final.

REFERÊNCIAS
LÜDKE, Menga; BOING, Luiz A. Do trabalho à formação de professores. In: Cader-
no de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas. v. 42, n. 146, p. 428-451, 2012.
_____; CRUZ, Giseli B. da. Aproximando universidade e escola de educação básica
pela pesquisa. In: Caderno de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas. v. 35,
n.125, p. 81-109, 2005.
MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Oficina de Linguística Aplicada. Campinas: Mercado
de Letras, 1996.
PEREIRA, Bruno G. Professores em formação inicial no gênero relatório de estágio
supervisionado: um estudo em licenciaturas paraenses. Dissertação de Mestrado. Pro-
grama de Pós-Graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura. Araguaína: UFT,
2014 (em andamento).
SILVA, Wagner R. Escrita do gênero relatório de estágio supervisionado na formação
inicial do professor brasileiro. Revista Brasileira de Linguística Aplicada. Belo Horizon-
te: UFMG/ALAB, v. 13, n. 1, p. 171-195, 2013.
_____. (O rg.). Letramento do professor em formação inicial: interdisciplinaridade no
estágio supervisionado da licenciatura. Campinas: Pontes Editores Editores, 2012.

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Universidade Federal da Grande Dourados

_____; BARBOSA, Selma M. A. D. Desafios do estágio numa licenciatura dupla: fla-


grando demandas e conflitos. In: Adair V. Gonçalves; Alexandra S. Pinheiro; Maria E.
Ferro (Orgs.). Estágio supervisionado e práticas educativas: diálogos interdisciplinares.
Dourados: Editora da UEMS, 2011. p. 179-202.
Dourados (MS) / Araguaína (TO), 24 de abril de 2014.
Adair Vieira Gonçalves (UFGD/CNPq)
Wagner Rodrigues Silva (UFT)

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LETRAMENTO
Universidade Federal da Grande Dourados

O ESTÁGIO SUPERVISIONADO E A VOZ


SOCIAL DO ESTAGIÁRIO

THE SUPERVISED TRAINEESHIP’ AND THE SOCIAL VOICE OF


THE TRAINEEIN A TEACHING INTERNSHIP PROGRAM
Marília Curado Valsechi*
Angela Bustos Kleiman**

RESUMO: Neste artigo, analisamos um pequeno recorte de um corpus gerado para


uma pesquisa de doutorado em andamento que tem por objeto o estágio supervisio-
nado do curso noturno de Licenciatura em Letras de uma instituição pública paulista.
Procuramos apresentar uma voz social do estagiário a fim de entendermos a sua con-
cepção do estágio supervisionado e como a organização dos estágios supervisionados
pela instituição de ensino superior forja seu olhar para a prática do estágio. Inserido
no campo transdisciplinar da Linguística Aplicada, nosso estudo fundamenta-se nos
Estudos de Letramento e na teoria sócio-enunciativa do Círculo de Bakhtin. A meto-
dologia utilizada na pesquisa é qualitativo-interpretativista de cunho etnográfico, visto
que busca compreender seu objeto constituído na prática social, a partir da lógica in-
terna dos seus sujeitos: os estagiários. A análise discursiva de dois documentos oficiais,
um dado de interação em sala de aula e uma entrevista mostra que os eixos de sentido
articulados pela palavra enunciada no texto do documento oficial e na fala do sujeito
de pesquisa, atualizada pelas apreciações valorativas dos enunciatários, desvelam a his-
tórica situação de desvalorização dos estágios supervisionados no contexto acadêmico
e de anulação da agência do estagiário.
Palavras-chave: estágio supervisionado; letramento; formação do professor; aprecia-
ções valorativas.
ABSTRACT: In this paper we analyze a small segment of an on-going thesis project that
has as its research object a guided internship program for a language teacher training
night course in a public state university in the State of São Paulo. Our objective is to
present the trainees’ social voice in order to understand his conception of the supervised
traineeship and the manner in which the structure of the internship program determines
how they view the program. The work follows a transdisciplinary approach characte-
ristic of Applied Linguistic studies and is supported theoretically by the New Literacy
Studies and the Bakhtin Circle approach to discourse studies. The methodology used
is qualitative and interpretive, aimed at the construction of ethnographic descriptions
revealing the social practices involved in the traineeship from the trainees’ perspective.
*
Doutoranda em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem (UNICAMP). E-mail: curadovalsechi@uol.com.br
**Professora titular colaboradora do Instituto de Estudos da Linguagem (UNICAMP). Email: akleiman@mpc.com.br

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Universidade Federal da Grande Dourados

We analyze the discourse of two official documents and the oral texts produced by one
trainee in classroom interaction and in an interview with the supervisor of the internship
program. The analysis shows that both the text in the documents and the trainee´s spe-
ech reveal the historical evaluative response to guided internship programs in academic
contexts and the negation of the trainees’ potential for social agency.
Keywords: internship program for language teachers; literacy studies; teacher educa-
tion; evaluative accent.

INTRODUÇÃO
Na área de pesquisas voltadas para a formação do professor, parte-se do pressupos-
to de que o estágio curricular supervisionado é de extrema relevância para a formação
docente, por ser considerado o lugar privilegiado para a almejada articulação teoria e
prática na formação inicial. Em decorrência, é consensual também a ideia de que o
estágio não se constitui como a “parte prática” da licenciatura em detrimento de refle-
xões teóricas, realizadas em disciplinas consideradas “teóricas”; por essa razão também
o estágio não pode mais ser considerado como o único componente responsável pela
formação do docente para a efetiva prática em sala de aula. Na literatura da área da
Educação, alguns pesquisadores o concebem como “atividade teórica instrumenta-
lizadora da práxis” (cf. PIMENTA e LIMA, 2011); outros o definem como “ponto
nevrálgico no processo de formação de nossos futuros professores” (LÜDKE, 2009).
Por muito tempo objeto das pesquisas da Educação, o estágio supervisionado
passou a ser, mais recentemente, objeto de investigação da Linguística Aplicada (cf.
BUENO, 2007; MACHADO, 2007; MELO, 2011; REICHMANN, 2012; SILVA,
2013), campo em que esta pesquisa se insere.
A centralidade na linguagem, a sua relevância social, o compromisso ético com
os participantes, a transdisciplinaridade definem nosso trabalho como uma pesquisa
em Linguística Aplicada. Gostaríamos também de ter um impacto na realidade social
de modo a transformá-la (FABRÍCIO, 2006), porém, considerando as rígidas normas
(quase leis) impostas pela tradição na universidade brasileira, sabemos ser isso ainda
uma utopia, pois, como Kleiman (2013, p. 56) afirma em relação aos complexos
problemas da universidade, todos eles “viram insignificantes, de fácil solução, frente à
questão de mudanças curriculares que não obedeçam ao cânone estabelecido ao longo
de décadas de tradição ‘científica’”.
A transformação da ‘disciplina’ do estágio certamente depende de uma transfor-
mação anterior à organização disciplinar fragmentada, que separa os saberes práticos
dos analíticos e teóricos. Entretanto, como mostraremos neste artigo, essa continua
sendo a concepção dos cursos de licenciatura, mesmo daqueles comprometidos com a
mudança, e de seus alunos, sujeitos históricos responsivos a essa concepção.

14 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

Mesmo com essas limitações, no entanto, as reflexões críticas oriundas de nossa


pesquisa podem fornecer subsídios para as disciplinas de estágio na universidade que
abre suas portas para a pesquisa sobre o assunto, tal como acontece em outras pesqui-
sas que assumem a perspectiva1 dos estudos da linguagem e do letramento em contex-
tos educacionais. Tais reflexões críticas justificam a relevância social do nosso trabalho
no contexto da formação inicial do professor.
Neste artigo, analisaremos um pequeno recorte de um corpus gerado para uma
investigação maior de Doutorado. Serão examinados o Projeto Político Pedagógico e
o Projeto de Estágio do curso de Licenciatura em Letras, a fim de conhecermos o con-
texto institucional em que os estagiários estavam envolvidos, e dados de interação em
sala de aula e de entrevista com um dos sujeitos participantes da pesquisa. Procuramos
apresentar uma voz social do estagiário a fim de entendermos como esse participante
vê o estágio supervisionado a partir da sua vivência e como a organização dos estágios
supervisionados pela instituição de ensino superior forja seu olhar para essa prática.

ESTUDOS DE LETRAMENTO E PERSPECTIVA SÓCIO-


ENUNCIATIVA DA LINGUAGEM NUMA ABORDAGEM
ETNOGRÁFICA DO ESTÁGIO
A pesquisa visa analisar os textos produzidos pelos sujeitos de pesquisa, dentre
outros documentos, com o objetivo geral de entender como se dá a inserção de estagiá-
rios na situação específica do estágio supervisionado do curso noturno de Licenciatura
em Letras de uma instituição de ensino superior pública paulista. A escolha do estágio
supervisionado nesse contexto está relacionada à trajetória profissional de uma das
autoras deste artigo, que atuou, por três anos e meio consecutivos, como professora
substituta na referida instituição, trabalhando com as disciplinas de estágio em língua
materna e que foi, ela mesma, egressa da Licenciatura em Letras da mesma instituição.
Quando aluna de graduação, chamava-lhe atenção e a comovia a intensa atuação
da sua professora de estágio em língua materna na luta por mudanças nos estágios
supervisionados do curso de Letras e das licenciaturas da instituição de modo ge-
ral. Por exemplo, o compromisso dessa docente com a educação no ensino superior
levou-a a reivindicar abertura de concurso específico para um profissional que atuaria
com estágios supervisionados em língua estrangeira, após o argumento das instâncias
superiores da universidade de que qualquer professor do Departamento de Educação
poderia realizar esse trabalho. Atuando como professora substituta alguns anos mais
tarde na mesma instituição, o envolvimento com uma nova realidade dos estágios
supervisionados, em virtude das modificações curriculares realizadas e também do
lugar social que passou a ocupar – de aluna para professora –, despertou na ex-aluna
1
Essa é a perspectiva do Grupo de pesquisa Letramento do Professor, do qual as autoras participam, que investiga práticas
de leitura e escrita do professor e de outros agentes de letramento em uma perspectiva identitária.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 15


Universidade Federal da Grande Dourados

o desejo de transformar a situação dos estágios supervisionados em língua materna da


Licenciatura em Letras, o que a impulsionou para a pesquisa do tema, já mencionada.
O foco da pesquisa é a prática social do estágio, tal qual evidenciada nas diversas
atividades realizadas pelos estagiários e investigada por meio de uma metodologia de
cunho etnográfico, entendida como “perspectiva intelectual que envolve uma forma
de olhar e que busca compreender de dentro a lógica interna dos próprios participan-
tes2” (ZAVALA, 2013).
A escolha metodológica, no paradigma qualitativo-interpretativo, se justifica em
um estudo que tem por objeto a prática social e cujos dados são gerados no seu con-
texto natural de produção. De caráter longitudinal, a pesquisa analisa textos produ-
zidos pelos sujeitos ao longo de quatro semestres em que a pesquisadora ministrou a
disciplina de estágio.
Para alcançarmos a visão holística de uma pesquisa qualitativa, realizamos a trian-
gulação de dados provenientes de diversas fontes: aqueles produzidos pelos sujeitos de
pesquisa no contexto da prática social acadêmica e profissional, tais como relatórios
de estágio, planos de aula, diários reflexivos, questionário de avaliação da disciplina de
estágio; aqueles provenientes de textos de outros enunciadores, tais como os diários
de campo da professora do estágio, produzidos em função das aulas na universidade;
planejamento das disciplinas de estágio; transcrição de aulas áudio gravadas na uni-
versidade; transcrição de reuniões realizadas entre docentes responsáveis pelas discipli-
nas de estágios supervisionados das licenciaturas da instituição3; documentos oficiais,
como o Projeto Político Pedagógico e o Projeto de Estágio. A esse amplo espectro de
dados, acrescentam-se entrevistas semiestruturadas realizadas com alguns alunos for-
mados (“ex-estagiários” atuando como professores de Língua Portuguesa na escola).
A abordagem metodológica etnográfica na geração dos dados é complementada
com uma perspectiva analítica linguístico-enunciativo-discursiva. Para essa análise, a
perspectiva dialógica do Círculo de Bakhtin é teoricamente relevante, pois o dialo-
gismo está diretamente ligado à alteridade: é em função do outro que o enunciado
é formulado, tanto o outro a quem o enunciador fornece a réplica – que, ao mesmo
tempo em que responde, suscita outras respostas –, quanto o outro que lhe fornecerá
a réplica, antecipada pelo enunciador. A duplicidade de orientação do enunciado na
cadeia comunicativa define a natureza da permanente interação com os enunciados
dos outros, nos quais imprimimos nossa apreciação valorativa (VOLOCHINOV/
BAKHTIN, ([1929] 1995).
Para compreendermos como se dá a inserção do estagiário no estágio supervisiona-
do, realizamos uma microanálise dos textos que o estagiário produz e das interações de
que participa a fim de determinar que sentidos e valores são construídos nos seus textos
2
Tradução do espanhol. Esta e as demais traduções pertencem às autoras.
3
Participavam destas reuniões, em média, seis professores de um total de treze docentes do departamento responsáveis pelos
estágios supervisionados de diversas licenciaturas.

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bem como os modos de apropriação dos enunciados do outro, o professor universitário.


Nos dados de interação, o destinatário é a voz da academia e, portanto, para o enun-
ciador, essa voz pode coincidir com a pessoa a quem o estagiário se dirige, a professora
substituta pesquisadora. Também analisamos textos produzidos por outros enunciado-
res, em que a relação intersubjetiva acontece entre o enunciatário autor do documento
– a voz de professor de estágio – e o destinatário – constituído pela voz do corpo docente
da Licenciatura em Letras –, e o objeto da enunciação sendo construído é o estágio. A
análise dos documentos oficiais, para compreendermos a apreciação valorativa do está-
gio da instituição de ensino superior envolvida, deixa, portanto, vislumbrar aquilo que
Blommaert apud Zavala (2013) denomina de “contexto macroscópico”.
Nossa concepção de estágio está atrelada à perspectiva dos Estudos de Letramen-
to, que compreende os usos da língua escrita como práticas sociais situadas, perme-
adas por relações de poder e de identidade (STREET, 1984; KLEIMAN, 1995). O
estágio é uma prática social letrada. As pesquisas sobre letramentos costumam destacar
a centralidade do conceito de “prática” para os estudos de letramento, devido a seu
caráter articulador entre as estruturas abstratas (que seriam os recursos simbólicos, co-
nhecimentos, valores sociais, identidades) e os eventos concretos realizados em lugares
específicos, como a sala de aula na escola, na universidade. Zavala caracteriza adequa-
damente essa concepção quando diz que
nas práticas sociais, as pessoas se comprometem, constroem identidades, desenvolvem
relações sociais com outros membros da comunidade, utilizam artefatos específicos,
reproduzem valores implícitos no marco de um sistema ideológico particular e, desta
maneira, constituem a sociedade e a cultura (ZAVALA, 2011, p. 55).

Para poder participar dessa prática social letrada, o estagiário deve atender a várias
demandas decorrentes do estatuto do estágio como exigência curricular acadêmica
obrigatória: procedimentos burocráticos (como a solicitação de termos de compromis-
so, devidamente assinado por alguns agentes envolvidos), preparo teórico-prático a ser
realizado na instituição de ensino superior, trabalho pedagógico (no tratamento dos
conteúdos que serão ensinados aos alunos, por exemplo), vivência na escola dentro e
fora da sala de aula. No seu desenvolvimento, tanto a universidade quanto a escola es-
tão envolvidas: os estagiários desenvolvem relações sociais com o formador acadêmico,
os professores supervisores do estágio da escola, o coordenador pedagógico, os alunos
da Educação Básica. Em se tratando de uma prática situada, as formas específicas de
interação com os sujeitos envolvidos e os significados que serão construídos nessas in-
terações se dão de maneira particular, de acordo com a forma de inserção do estagiário
nessa prática que é, simultaneamente, acadêmica e profissional e que, como Kleiman e
Reichmann (2012, p. 159) afirmam, “reflete, reforça e transforma os valores culturais
e ideológicos da esfera em que essa prática se desenvolve”.
Entretanto, para que o estágio possa colaborar para o letramento profissional do
professor, que contempla não só os “conteúdos” da disciplina a ser ministrada, mas

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 17


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também “conhecimentos sobre as condições específicas de trabalho, as capacidades e


interesses da turma, a disponibilidade de materiais e o acesso que a comunidade tem
a eles” (KLEIMAN, 2008, p.512), é preciso que as práticas acadêmicas exigidas nesse
espaço estejam bem articuladas às práticas exigidas pelo local de trabalho docente.

DA CONFIGURAÇÃO DO ESTÁGIO NO PROJETO POLÍTICO


PEDAGÓGICO AOS EIXOS DE SENTIDO NO PROJETO DO
ESTÁGIO: DOCENTE RESPONSÁVEL E ALUNO
Para entender o contexto macro dos discursos sobre o estágio na instituição, ini-
ciaremos a análise pelo Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso de Licenciatura em
Letras. Embora o documento tenha 114 páginas, 90 delas correspondem aos progra-
mas de ensino com as ementas das disciplinas que compõem o curso. As 25 páginas
do projeto propriamente dito tratam dos objetivos gerais da Licenciatura em Letras,
do perfil profissional, dos principais pontos da reestruturação curricular, da estrutura
curricular, da transição entre a estrutura curricular vigente e a estrutura curricular pro-
posta, da grade horária e da avaliação. O “estágio supervisionado” é abordado na seção
“A reestruturação curricular proposta: pontos principais”, em um parágrafo, no qual
se descrevem as mudanças relativas à distribuição da carga horária do estágio, havia
tempo reivindicadas pelos alunos do curso:
Na estrutura curricular proposta, adequada à contagem dos créditos, a carga
horária exigida de 400 horas para o estágio supervisionado eleva-se para 420
horas, que corresponde a 28 créditos, igualmente divididos entre as disciplinas de
‘Estágios Curriculares Supervisionados: Língua Materna’ e ‘Estágios Curriculares
Supervisionados: Língua Estrangeira’. Diferentemente da estrutura curricular então
vigente, essa carga horária destinada às atividades de estágio permitiu a sua distribuição
nos dois últimos anos do curso, reivindicação já bastante antiga. Como poderá ser
verificado mais adiante, parte das atividades dessas disciplinas, teórica, por assim
dizer, será desenvolvida em sala de aula e figurará, portanto, na grade horária do
curso. Principalmente para os alunos do período noturno, está garantido espaço
na grade horária para o cumprimento da parte restante, prática, por assim
dizer, que se desenvolverá sob forma de estágio de observação, de regência, de
visita a escolas, minicursos etc. (cf. quadros 8 e 9). [Texto da subseção “O Estágio
Supervisionado”, negrito acrescido]

A nova distribuição dos estágios supervisionados, em atendimento a uma “reivin-


dicação já bastante antiga”, em mais um ano da licenciatura, constitui um avanço real
do estágio no curso de formação de professores.
Entretanto, apesar da mudança, algumas concepções sobre a natureza do fazer
científico são mantidas. A expressão atenuadora do compromisso dos enunciadores
com a justeza da apreciação sobre a teoria e a prática no estágio, “por assim dizer”, em

18 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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“parte das atividades dessas disciplinas, teórica, por assim dizer, será desenvolvida em
sala de aula e figurará, portanto, na grade horária do curso” e, mais adiante, “o cum-
primento da parte restante, prática, por assim dizer” remete a uma antiga concepção
dicotômica da relação teoria e prática, por um lado, e a uma concepção tradicional,
elitista, sobre a produção do saber, por outro: o que se faz no espaço da aula universi-
tária (excetuando a disciplina de estágio, ‘por assim dizer’?) é sempre teórico, ao passo
que a prática é aquilo que se faz nas escolas-campo (“estágio de observação, de regên-
cia, de visita a escolas, minicursos etc.”).
É interessante destacar que, com a reestruturação curricular, houve um acréscimo
no prazo mínimo de integralização do curso noturno da Licenciatura em Letras, que
passou de quatro para cinco anos, justamente para possibilitar mais tempo ao aluno
para cumprir suas atividades acadêmicas fora de sala de aula. Não obstante, mudanças
na grade curricular de modo a ter “espaço garantido na grade horária” do curso no-
turno para o cumprimento da realização dos estágios nas escolas não são previstas no
documento, que parece desconsiderar as condições que impedem sua plena realização.
Obstáculos temporais e locais são ignorados, como a dificuldade em conciliar o horá-
rio disponível na grade horária para ida à escola e o desenvolvimento do estágio com
as demais disciplinas acadêmicas do curso. O escasso tempo (duas horas no total) para
realizar o estágio durante o período de estudo universitário de fato inviabiliza a sua
realização no mesmo período das aulas acadêmicas4.
No documento Projeto de Estágio (PE) é definida a estrutura e organização dos
estágios supervisionados do referido curso de Licenciatura em Letras, inclusive a carga
horária. De autoria da professora responsável pelas disciplinas de Estágio Supervisio-
nado na área de língua materna e assinado por ela e pelo coordenador de curso da
época de produção do documento (2008), o projeto foi apresentado ao Conselho de
Curso para fins de normatização do estágio na Licenciatura em Letras da instituição.
Encontramos dois enunciadores no documento, na voz do corpo docente responsável
pela formação do professor de Letras e naquela dos diretamente responsáveis pela dis-
ciplina do estágio, que coincide com a voz do autor do texto. O documento não tem
como destinatário o estagiário, que desconhece o texto por não ter acesso a ele.
Trata-se de um documento de 14 páginas, dividido em seis seções: uma introdu-
ção, seguida da definição do conceito de estágio, distribuição e organização da carga
horária, coordenação e supervisão dos estágios, distribuição e carga horária dos estágios,
avaliação das atividades e coordenação geral, suporte e apoio às atividades de estágio. O
documento finaliza com as referências bibliográficas, data e local (cidade) de produção
do texto e os nomes e assinaturas da autora do PE e do coordenador do curso.

4
A grande maioria dos universitários do curso noturno de Letras depende de transporte coletivo.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 19


Universidade Federal da Grande Dourados

Há, no documento, reiteradas referências à legislação educacional5, o que indica


atenção às restrições impostas por esta à produção de projetos pedagógicos, como o
PE, mas também sugere uma intencionalidade em destacar a consonância da voz dos
enunciadores com as leis, no que diz respeito ao escopo de possibilidades das ativida-
des de estágio na licenciatura.
Os guias curriculares para a disciplina de Estágio são bastante flexíveis. Aprovei-
tando essa flexibilidade, o PE define que o estagiário deve cumprir 210 horas de está-
gio para cada habilitação. Horas realizadas em sala de aula na Universidade, regências
ministradas a alunos em salas de aula da escola pública, desenvolvimento de projetos
de minicurso ministrado dentro ou fora da Universidade, participação em projetos
escolares6, atividades de reflexão são, todas elas, modalidades de estágio possíveis de
serem vivenciadas.
A palavra “docente” ativa um dos eixos de sentido articulados no documento.
Responsabilidade, acompanhamento, monitoração, coordenação, supervisão estão
entre os significados elaborados na discussão do estágio. Assim, o docente universitá-
rio – um docente do Departamento de Educação – é construído como o agente que
concentra maior poder em relação à atividade:
Caberá ao docente do Departamento de Educação preparar o Estagiário para
essas atividades, dando-lhe embasamento metodológico e didático específicos para
o ensino e aprendizagem de LE e suas literaturas e trabalhando, junto a esse futuro
profissional, técnicas e estratégias de ensino e aprendizagem desses componentes
curriculares, voltadas para a sala de aula do ciclo II do ensino fundamental e para
o ensino médio, monitorando-o em todas as modalidades de Estágio II (regências,
projeto de 20 horas e minicurso) e instruindo-o, pedagogicamente, no planejamento
de atividades para a sala de aula do ensino fundamental e do médio. [Página 11 do
PE, grifos no original, negrito acrescido]

O segundo eixo do sentido é ativado pela palavra estagiário, a mais recorrente


no documento; há 51 referências (incluindo as formas pronominais remissivas), que
constroem noções com pequenas diferenças entre si: o aspecto profissional, o acadê-
mico, o identitário (“estagiário”, “licenciando”, “futuro profissional”, “futuro profes-
sor”, “aluno”). Entretanto, as noções de protagonismo e agência não são construídas
no desenvolvimento do tema. O estagiário é apresentado gramaticalmente na função
de objeto da ação do professor universitário, que o acompanha, monitora, coordena,
orienta, redireciona, prepara, como no trecho abaixo:

5
Parecer CNE/CP nº 1/2002(cinco vezes citado); Parecer CNE/CP nº 2/2002 (4 vezes citado); Parecer CNE/CP nº 27/2001
(4 vezes); Parecer CNE/CP nº 9/2001 (1 vez); Resoluções CNE 1 e 2/ 2002 (1 vez); Resolução da Universidade (2 vezes citada).
6
Consta no PE que, caso haja impossibilidade de o licenciando participar de tais projetos, poderia ser combinado com o
professor de estágio a substituição desta atividade por análise de material didático. Após a proposta de um professor do
Departamento de Estudos Linguísticos e Literários de realização de um trabalho interdisciplinar entre as disciplinas “ECSII:
língua materna” e “Semântica da Língua Portuguesa”, envolvendo análise de material didático e elaboração de planos de aula,
passou-se a utilizar essa carga horária para o desenvolvimento desse trabalho.

20 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Ao docente do Departamento de Educação competirá acompanhar, monitorar,


coordenar e intermediar o contato do estagiário com a escola campo de estágio e
supervisionar o desenvolvimento de todo o processo de Estágio (I e II) da formação
inicial do licenciando em Letras, orientando-o, metodológica e pedagogicamente, e
redirecionando ações específicas nesse campo, sempre que necessário. [Página 13 do
PE, negrito acrescido]

No decorrer do documento, encontramos o uso de agente da passiva para descre-


ver as atividades do estagiário, como em
16 (dezesseis) horas/aula para análise/reflexão, em sala de aula, sob a supervisão direta
de docente do Departamento de Educação, que conduzirá essa “atividade de reflexão”
com base nas três modalidades de ESTÁGIO CURRICULAR SUPERVISIONADO
realizadas pelos estagiários. [Página 8 do PE, ênfase no original, negrito acrescido]

Esses usos, quando são contrapostos à recorrente posição de objeto das ações rea-
lizadas pelos docentes universitários (os agentes, de fato, na tríade estagiário – profes-
sor supervisor – docente universitário) e à seleção lexical usada para construir noções
ao longo desse eixo de sentido (dar embasamento, estabelecer planos, acompanhar
desenvolvimento, efetivar, avaliar, supervisionar, instruir, monitorar, encarregado res-
ponsável) constituem pistas linguísticas claras da voz do estagiário na tríade: poucas
vezes caracterizado como um agente humano (aquele que faz ou causa as ações, e que
segundo a gramática de casos ocuparia o papel de sujeito da frase)7. Logo, a palavra
“estagiário” não ativa os eixos de sentido associados ao conceito de agente social (AR-
CHER, 2000), especificamente, o de um agente de letramento capaz de articular in-
teresses partilhados pelos aprendizes, organizar uma turma na escola para a ação cole-
tiva, auxiliar na tomada de decisões sobre determinados cursos de ação, interagir com
outros agentes (neste caso, o docente universitário e o professor supervisor na escola),
adaptar seus planos de ação segundo as necessidades (KLEIMAN, 2006).
No documento, a descrição das ações do estagiário se limita ao cumprimento da
carga horária dos estágios e à realização e entrega dos instrumentos de avaliação solici-
tados (relatórios, projeto de minicurso, artigo, apresentação de seminários). O concei-
to corresponde àquele de aluno, que tem de cumprir com suas obrigações acadêmicas,
orientado por um professor. Não há referência explícita ou implícita a um agente que,
ao atuar na escola básica, tente experimentar ou levar contribuições para os professores
dessa esfera, com metodologias inovadoras ou com diferentes perspectivas na compre-
ensão de problemas escolares. Nem poderia, porque, como já apontamos, a sua agên-
cia na escola não é cogitada. A relação entre estagiário e professor da escola campo não
é contemplada no documento, nem como parceria nem como relação entre aprendiz
iniciante e experiente mestre do ofício.
Tendo em vista que os leitores do documento são os membros do conselho de
curso, a valoração do papel do professor acadêmico pode ser compreendida como
7
Teoria proposta por Fillmore (1968); ver descrição para fins de formação do professor em Kleiman e Sepulveda (2012).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 21


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uma maneira de projetar a voz do professor da disciplina de estágio, mostrando a


necessidade de maior reconhecimento ao trabalho desse profissional, por parte da
instituição8 e de um maior envolvimento do corpo docente com a disciplina. O apa-
gamento linguístico da voz do enunciador, aqui como em todo o documento, não
implica que seu lugar discursivo privilegiado esteja também apagado, como indicam
as avaliações subjetivas valorativas (“oportuno”), o uso da 3ª pessoa do presente do
indicativo, que marca os dizeres tomados como verdadeiros (“é’, “supõe”, “envolve”)
e as modalizações deônticas (“não pode”, “necessariamente”), recuperadas do texto
legislativo, que modificam a distribuição de poder na instituição:
É oportuno lembrar que, de acordo com as diretrizes do CNE/CP, o Estágio é um
processo formativo que supõe a atuação conjunta de todos os docentes de um curso
de graduação, seja este curso licenciatura ou bacharelado. Sendo assim, o Estágio não
pode ficar sob a responsabilidade de um único professor, mas envolve necessariamente
uma atuação coletiva de formadores (Parecer CNE/CP, 9/2001, homologado em
17/1/2002 e publicado no Diário Oficial da União de 18/1/2002, Seção I, p.31)
[Página 10 do PE, ênfases no original, negrito acrescido]

A articulação do discurso do enunciador autor ao longo de um terceiro eixo de


sentido, o de poder, evidencia os conflitos institucionais na sua esfera de ação: a tenta-
tiva de combater forças ou vontades sociais mais poderosas revela um posicionamento
subordinado do professor da disciplina de estágio em relação às disciplinas ‘acadêmi-
cas’ propriamente ditas9.
O enunciador do documento é um docente da disciplina de estágio tentando
dialogar com seus colegas no coletivo do Conselho. Seu discurso atua como força
centrífuga tentando mitigar o poder regulador do discurso hegemônico, na concepção
discursiva de Bakhtin ( [1934-35/1975] 1988), resistindo à construção de uma ima-
gem depreciadora do trabalho do professor de estágio supervisionado e, consequente-
mente, do próprio estágio.
A compreensão desse jogo de forças que atuam sobre a palavra permite-nos co-
nhecer a apreciação valorativa (VOLOCHINOV/ BAKHTIN, 1995 [1929] inscrita
nos enunciados do documento, quais os sentidos imbricados nos enunciados atri-
buídos pelos próprios interlocutores em relação a si mesmos e ao objeto do discur-
so. A palavra, como bem apontam os teóricos do Círculo “produto da interação do
locutor e do ouvinte” e “expressão a um em relação ao outro” e, “em última análise,
em relação à coletividade”. (VOLOCHINOV/BAKHTIN, ([1929]/1995), p.113) “é
8
Conforme evidencia o relato apresentado na primeira seção do artigo sobre a reivindicação da professora de estágio diante
da negação da universidade em abrir concurso para contratação docente sob a alegação de que o trabalho com os estágios
supervisionados em línguas prescinde de profissionais especializados na área.
9
Ao professor responsável pela disciplina de estágio é exigida mais dedicação, pois, além do preparo das aulas da disciplina,
existe o trabalho de supervisão de estágios, o que inclui desde visitas à escola até atendimento individual (ou em grupos) com
os estagiários sob sua responsabilidade. Pimenta e Lima (2011, p.100) consideram “precárias” as condições institucionais
para o exercício docente no ensino superior. Baseando-se em Alarcão (2003), as autoras mencionam o elevado número de
alunos e dificuldades dos docentes universitários, “que muitas vezes não recebem o devido reconhecimento por essa atividade
[de supervisão]”, comum a diversos países.

22 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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sempre acompanhada por um acento apreciativo determinado”. (VOLOCHINOV/


BAKHTIN, ([1929]/1995).
Qual o efeito desse acento apreciativo no estagiário? Mesmo que o documento
não o contemple como interlocutor, mesmo sem acesso ao texto, a ausência da agên-
cia, por um lado, e o lugar ocupado pelo estágio na grade da licenciatura, por outro,
são históricos. Os sujeitos participantes da pesquisa, os estagiários, necessariamente
carregam marcas de sua situação histórica (KLEIMAN, 2013), como mostraremos na
seção a seguir.

CONDIÇÃO HISTÓRICA E VOZ DO ESTAGIÁRIO


Na disciplina de estágio objeto da pesquisa de doutorado já mencionada foram
introduzidas algumas atividades para ouvir a voz do aluno e engajá-lo na sua própria
formação. Visando a esses objetivos, eram realizadas rodas de discussão dos textos pro-
duzidos pelos estagiários contando suas experiências, eram identificados os temas que
lhes eram relevantes, também para discussão e debate, foi elaborado um blog da turma
para que os estagiários pudessem realizar atividades, compartilhar textos, notícias e
fazer comentários nas postagens dos colegas.
Um dos temas que foi recorrentemente abordado, destacando-se nos textos, dizia
respeito à própria estrutura do estágio da instituição. Ele foi, por isso, um dos objetos
de uma roda de discussão realizada no dia de entrega dos relatórios de regência, no
início do segundo semestre da disciplina de estágio. Sentados em círculo, os estagiários
faziam seus apontamentos à medida que se sentiam à vontade para isso. Em um dado
momento, uma estagiária levanta o problema da insuficiência de tempo para conhe-
cer os alunos da educação básica para quem devem ministrar as aulas e caracteriza o
estágio como um espaço “tumultuado”. Em seguida, outro estagiário (Osmar)10 toma
a palavra e aponta como principal problema do estágio a sua estrutura, incompatível
com a realidade do aluno do curso noturno de Licenciatura em Letras:
1 Osmar: o problema desse estágio é que é no último ano e a gente tem
2 quarenta horas desse estágio, mais quarenta do outro, mais catorze do
3 outro, mais catorze do outro, os professores do quinto ano exigindo da
4 gente uma postura de um aluno do quinto ano, eles não querem mais
5 aqueles textos de qualquer jeito e a maioria trabalha então assim acabam
6 que essas quarenta horas elas é:: transtornam com as nossas vidas,
7 elas acabam com a nossa vida por quê? porque como é que você tira
8 quarenta horas da sua vida, claro, pensando-se numa pessoa que só vive
9 e faz isso nada mais justo do que você se preparar pra isso, sabe? só que
10 essa não é a realidade do curso de letras
11 Professora: uh-hum
12 Osmar: a realidade do curso de letras
13 Clara: ((em voz baixa)) [do noturno]
10
Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos sujeitos.

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14 Osmar: é um pessoal que trabalha bastante, é um pessoal que muitos aqui se não
15 trabalhar não tem o que comer, então como é que você chega no seu serviço e fala
16 assim “olha, eu preciso de QUARENTA HORAS para dar um estágio”, mas aí
17 você resolve uma matéria
18 Profa: uh-hum uh-hum
19 Osmar: e você tem que resolver outra e outra e outra e outra e outra...
20 [Transcrição11 da roda de discussão realizada com a turma de Estágios Curriculares
21 Supervisionados II no dia 13/08/2012]

Osmar critica o acúmulo de atividades acadêmicas no último ano do curso: na sua


fala, o estágio em questão é apenas mais uma obrigação, dentre as muitas exigências a se-
rem cumpridas nessa etapa da formação (“a gente tem quarenta horas desse estágio, mais
quarenta do outro, mais catorze do outro, mais catorze do outro, os professores do quin-
to ano exigindo da gente uma postura de um aluno do quinto ano...”). Cria-se um efeito
de sentido de exasperação do coletivo (construído por Omar pelo uso dos pronomes na
primeira pessoa do plural “nossa(s)”, “a gente”) por meio da reiteração dos advérbios
“mais” e “outro” e da conjunção “e” com a função de operadores argumentativos aditi-
vos (KOCH, 2003) (apesar de os argumentos não serem sempre explicitados): “aí você
resolve uma matéria /.../ e você tem que resolver outra e outra e outra e outra e outra”.
O estágio tem sido considerado um entrelugar (BABHA, 1998) socioprofissional
na fronteira (REICHMANN, 2012, p.108; SILVA, 2012), um espaço híbrido, que
envolve, ao mesmo tempo, a esfera acadêmica e a profissional pelas quais o estagiário
transita. No entanto, o mundo do trabalho não chega a ser abrangido pela disciplina
acadêmica de estágio, ele inexiste para o estagiário e, nesse sentido, a caracterização
de Fontana (2011) do estágio como um não lugar é apta: caberia ao estagiário encon-
trar, ou melhor, conquistar, o seu lugar na escola de acordo com os sentidos que vai
construindo na interação com os atores da escola. Entretanto, o enunciado de Osmar
indica que não há construção de sentidos possível. Em vez de um não lugar passageiro,
temos aqui um não lugar permanente, portanto permanentemente desprovido de sen-
tidos e novas significações. A experiência do estágio não colabora na constituição de
sua identidade profissional. Isso porque apenas a disciplina acadêmica é importante.
Em vez de funcionar como um entrelugar socioprofissional eficaz o estágio acaba
tornando-se algo que transtorna, acaba e tira horas da vida dos estagiários (“transtor-
nam com as nossas vidas, elas acabam com a nossa vida por quê? porque como é que
você tira quarenta horas da sua vida”), como já mostrado em trabalho anterior (VAL-
SECHI, 2014). O eixo de sentido construído pela palavra “transtorno de vida” aponta
para uma valoração muito negativa do estágio, magnificada pela hipérbole da morte
(“acabar com a vida”). Isso porque, na opinião do estagiário, não há espaço suficiente
na grade curricular para a conciliação das práticas de estágio supervisionado com as
exigências das demais disciplinas acadêmicas do curso, ao contrário do que prevê o
11
Adotamos as seguintes convenções de transcrição: / interrupção ou corte brusco da fala; ... pausa de pequena extensão;
/.../ suspensão de trecho da gravação original; :: alongamento da vogal; “ ” discurso reportado; MAIÚSCULA aumento na
entonação da voz com efeito de ênfase; (( )) comentário do analista; negrito dá mais destaque nos dados para fins analíticos.

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texto do PPP, mas que é, de certa forma, esperado nas entrelinhas do texto do PE,
conforme análise na seção anterior.
A fala do estagiário dialoga com as réplicas do texto do PE que denunciam o
jogo de forças em que o estágio supervisionado está envolvido. Da mesma forma que,
no discurso do PE, o movimento de valorização da agência do professor de estágio
evidencia que o componente “acadêmico” era considerado mais relevante pelo des-
tinatário do documento, também a fala do estagiário revela que o estágio também é
posicionado em lugar subordinado na grade curricular tendo que competir por espaço
ou tempo de realização com as demais disciplinas acadêmicas.
Assim, a condição histórica de desvalorização do estágio supervisionado (ou dos
profissionais envolvidos com essa prática) e a ausência de agência do estagiário é rea-
centuada em ambos os textos – PE e fala do estagiário – ainda que de modos diferentes.
A fala de Osmar também parece remeter a algum discurso dos oprimidos, denun-
ciando o conflito social existente entre a realidade do aluno da Licenciatura em Letras,
que precisa trabalhar para se sustentar (linhas 14-15), e a estrutura curricular do curso,
que ignoraria os limites que essa realidade impõe ao estagiário. Entretanto, não há dis-
curso de resistência em construção. O sentido ativado pela palavra “trabalho” no seu
texto está baseado em noções de trabalho como necessidade para uma sobrevivência
mínima: o grupo de alunos trabalhadores “é um pessoal que trabalha bastante, é um
pessoal que muitos aqui se não trabalhar não tem o que comer”. Constrói-se, ainda,
certo distanciamento do grupo de colegas trabalhadores, pelo uso dos pronomes de 3ª
pessoa e do discurso citado “então como é que você chega no seu serviço e fala assim
‘olha, eu preciso de QUARENTA HORAS para dar um estágio’”.
Um semestre após ter cumprido as atividades de estágio e se formado em Letras,
numa entrevista em resposta à pergunta da pesquisadora se o relatório de estágio era
visto como uma atividade propiciadora de reflexão, Osmar pondera:

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 25


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1 Osmar: só que não era o mais importante pra mim então isso tem uma dif/ isso
2 DÁ um contraste muito grande porque quando você enxerga e num quer muito
3 enxergar você tem que ((faz estalo com os dedos indicando pressa)) passar é... você
4 não tem tempo hoje que você é de certa forma obrigado a vivenciar, obrigado
5 a fazer não com obrigação como uma coisa ruim sabe? mas como parte do
6 processo é:: você talvez é, volta aquela conversa, de se posicionar melhor de poder
7 perguntar algumas coisas, sabe assim? porque é:: como é parte do processo você
8 não escapa e não é não é ruim elaborar, você VAI elaborar, só que a elaboração
9 depois pós-form/ depois que a gente tá formado em uma escola, ela não tem
10 pressão COmo a gente tem na matéria que a gente tem prazo na matéria, a gente
11 tem que cumprir e tem que fazer e o prazo é cu::rto e... eu sei lá eu acho que pra
12 mim particularmente foi um PARto dar todas essas aulas porque a minha vida é
13 mu::ito corrida e a gente deixou lá pro finalzinho /.../ então foi tudo de uma vez,
14 é... pensado muito rápido de uma maneira muito assim, vamo cumprir isso aqui,
15 temos que cumprir então às vezes eu acho que a matéria ela tem sido vista com
16 esses olhos sabe assim? ter que cumprir e enquanto que às vezes devi/ deveria ser
17 uma matéria um pouco mais disse::minada ao longo de mais anos assim /.../
18 /.../ por quê? porque aí você dá mais tempo pra fazer eu não sei se ia resolver mas eu
19 acho que ia ser visto como mais:: ((pequena pausa)) com mais nitidez assim ia mais
20 claro na cabeça do aluno por exemplo assim o que que eu tenho de muito claro desse
21 processo pouca coisa percebe por quê? porque eu tinha um milhão de coisas pra
22 fazer
23 /.../ hoje eu posso hoje talvez eu possa falar assim ah eu vou voltar pra graduação, eu
24 vou fazer mais com calma, eu vou per/ pensar... perguntar... sabe? eu vou refletir o
25 processo porque eu eu acho que uma das propostas do do estágio é refletir
26 /.../ ((rindo)) que você menos faz é refletir, e o que você mais faz é cumprir tabela
27 sabe assim? (...)
[Trecho da entrevista, realizada em 3 de julho de 2013]

O enunciado de Osmar ativa dois eixos de sentido contrastantes, passado e pre-


sente. A palavra hoje, o momento da enunciação, mas também o período depois de se
graduar, já atuando como professor, é acentuada pelas noções de vivência na profissão
(“depois que a gente tá formado em uma escola”, “hoje que você é de certa forma obri-
gado a vivenciar, obrigado a fazer não com obrigação como uma coisa ruim”) e de refle-
xão voluntária (“você VAI elaborar, só que a elaboração depois pós-form/ depois que a
gente tá formado em uma escola, ela não tem pressão COmo a gente tem na matéria”).
O uso da expressão “contraste muito grande” reforça a posição axiológica de Osmar
quanto à divergência dos dois momentos sob comparação: o enunciado remete a outro
sentido, antes, um momento anterior ao atual, quando ainda cursava disciplinas, no
qual sua apreciação valorativa do estágio não se baseava na experiência como professor.
Os conceitos que são trazidos nessa construção sobre o passado relativos ao curso, às
disciplinas, ao estágio, às exigências de escrever relatórios reflexivos são todos avaliados
negativamente (“pra mim particularmente foi um PARto dar todas essas aulas”), por
serem atividades impostas e pelos prazos exíguos para poder cumpri-las. A noção de
cumprimento e, a ela associada, de obrigação, é recorrente no texto, com base no verbo
“cumprir” reforçado pelo verbo modalizador deôntico, “ter que”, listando deveres do
estagiário: “tem que cumprir”, “tem que fazer”, “vamos cumprir isso aqui”, “temos que

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cumprir”, “ter que cumprir”. É interessante salientar que a sugestão trazida por Osmar
a fim de modificar a visão que se tem da disciplina de estágio leva em consideração uma
redistribuição do estágio ao longo do curso (“deveria ser uma matéria um pouco mais
disse::minada ao longo de mais anos assim”), que acreditamos ser necessária, mas não
questiona as demais disciplinas acadêmicas, que, numa perspectiva que toma o estágio
supervisionado como o eixo da licenciatura, teriam que sofrer modificações. Esse po-
sicionamento parece ser resultante de uma licenciatura distante das questões de ordem
prática que acabam aparecendo especificamente nos estágios supervisionados.
Por outro lado, a vivência atual, isto é, a experiência como professor, é acentuada
positivamente no discurso do ex-estagiário, e a reflexão nesse período da vida do pro-
fessor é construída positivamente, como “parte do processo”, porque permite “se posi-
cionar melhor”, “perguntar”; “elaborar essa reflexão”. Na modalização avaliativa desse
processo construída pelo enunciador, a experiência “não é ruim” porque “não tem
pressão”. Mesmo a palavra “reflexão” é ressignificada quando é usada para se referir a
atividades no momento atual. Apesar de ter sido tematizada no estágio, para Osmar, a
atividade reflexiva realizada na esfera profissional, quando se assume definitivamente
o papel de professor da sala de aula, é inerente à atividade profissional, faz parte de
uma rotina da qual não se escapa, que é “obrigado a fazer não com obrigação como
uma coisa ruim”.
Um terceiro eixo de ativação de sentidos é o conceito de tempo, desta vez não ao
longo do eixo contrastante passado versus presente, mas como um objeto maleável,
que pode passar lenta ou rapidamente. Essa forma de conceber o tempo (uma metáfo-
ra cognitiva, segundo Lakoff and Jonhson, 1980) traz para o enunciado as noções de
encurtamento do tempo decorrente das exigências das disciplinas do curso, inclusive
da disciplina de estágio: existência de “pressão”, cumprimento de “prazo curto”, di-
ficuldade de dar aulas por causa da “vida muito corrida”, resultado que foi “pensado
muito rápido”, devido à quantidade de trabalho com “milhões de coisas para fazer” e
à procrastinação “a gente deixou lá pro finalzinho”. Também os gestos do enunciador
ajudam a construir a noção de pressa e tempo curto, como os repetidos estalos com
os dedos. Uma vez que o curso de Letras noturno é constituído por alunos que geral-
mente trabalham em período integral, a crítica de Osmar está relacionada novamente
à oposição entre as condições reais do licenciando em Letras do período noturno e a
quantidade de exigências acadêmicas curriculares que devem ser cumpridas.
O objetivo do relatório de estágio era justamente fomentar a reflexão, mas, para
o enunciador, a reflexão só acontece quando se vivencia a situação profissional atual –
quando se é professor. Os sentidos atribuídos à experiência e aos textos produzidos no
contexto do estágio evidenciam que a produção dos relatórios de reflexão ficou “longe
de funcionar como instrumentos mediadores entre as práticas de letramento acadê-
mico e as práticas de letramento profissional” (KLEIMAN; REICHMANN, 2012,
p.161). Não há potencial viabilizador do reposicionamento do estagiário enquanto

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agente do processo em que se encontra inserido, pelo processo de reflexão sobre a sua
visão de mundo, sua concepção de ser professor e os processos de ensino e aprendiza-
gem. O entrelugar que a experiência de estágio propiciaria – lugar privilegiado que per-
mitiria, em princípio, mobilizar, atualizar e participar de práticas letradas acadêmicas
e escolares, não se concretiza na experiência do estagiário, cuja identidade, nessa fase,
continua a de um aluno iniciante, com pouca maturidade, com limitadas possibilida-
des de assumir-se agente de sua própria formação.
Esta observação é corroborada em outro contexto estudado por Bueno (2007,
p.150). Em relação aos gêneros elaborados no estágio, a autora argumenta que en-
quanto os dispositivos utilizados para a formação forem os mesmos de avaliação do
estagiário, o estágio continuará sendo visto como “mais uma disciplina da graduação
em que se atribui uma nota”.
A possibilidade de ampliação dos horizontes de dizer do enunciatário, por meio
da interação com um destinatário real, o docente pesquisador, que traz outras vozes, a
partir de outras posições enunciativas, com outras apreciações valorativas, não se con-
cretiza, pelas razões socio-históricas já discutidas. A alteridade construída na interação
não chega a prevalecer sobre outros significados socioculturais já construídos. Daí que
a identidade socioprofissional do professor, a ser constituída no diálogo e na alterida-
de, não consiga emergir nesses enunciados, que trazem vozes, concepções de mundo
continuamente convocados ao longo dos cinco anos da Licenciatura em Letras. Ela só
será reorganizada quando outras teias de significações são instituídas, ou acentuadas,
mesmo que provisoriamente, como em toda construção identitária, na escola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O recorte de dados da tese aqui analisado sugere um processo de refração dos va-
lores culturais implícitos no sistema ideológico da universidade no discurso do estagiá-
rio, que valoriza as disciplinas da esfera acadêmica em detrimento de outras atividades.
Se, por um lado, o estágio supervisionado contribui para o letramento profissional
do professor, inclusive para o seu desenvolvimento como agente; por outro, a desva-
lorização da prática de estágio, simultaneamente acadêmica e profissional, dificulta a
concretização do potencial reconfigurador de identidades, do ser, sentir e agir aluno
para o ser, sentir e agir professor. Isso é particularmente evidente quando o estagiário
está inserido na cadeia comunicativa do curso universitário, que apaga a sua agência
nas relações sociais com membros envolvidos no estágio.
Por outro lado, há movimentos discursivos que buscam romper com as assime-
trias de poder da instituição, que posicionam desfavoravelmente o trabalho do docen-
te universitário responsável pelo estágio. Essa resistência representa uma importante
luta, na arena discursiva, para melhorar o estágio e reposicionar os profissionais que aí
exercem suas atividades.

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Por isso, para além da mudança na grade curricular, como já efetuada na uni-
versidade que forneceu o contexto da pesquisa, e que não parece, como os dados
parciais sugerem, ter representado mudanças significativas na concepção do estágio
supervisionado, acreditamos ser necessário o redimensionamento da avaliação axio-
lógica do estágio supervisionado e dos agentes envolvidos, principalmente o estagi-
ário, que acaba carregando as marcas históricas de sua situação. Assim, as mudanças
na grade curricular seriam decorrentes dessa mudança maior e, acreditamos, surtiria
efeitos mais positivos nas apreciações valorativas dos estagiários sobre essa atividade
essencial na formação.
Isso não é tarefa fácil. Uma das grandes dificuldades do processo de transformação
dos cursos na universidade brasileira é a rigidez desta para adaptar-se a uma sociedade
em constante mudança e para aceitar formas de construir conhecimentos que não
sejam aquelas validadas por anos de tradição, mesmo quando se constata uma ruptu-
ra de diálogo com o aluno e um defasado ou insuficiente preparo para o mundo do
trabalho. Momentos de subjetividade como os permitidos pela docente pesquisadora
dão acesso a identidades e sistemas de valores e conhecimentos geralmente apagados
na aula universitária.
As pesquisas do grupo a que pertencemos visam melhorar o ensino e a formação
do professor. Pesquisas críticas como esta, em que o objeto de pesquisa não é apenas
objeto de observação e análise, mas é reacentuado por compromissos éticos e políticos
com sujeitos cujas histórias não são ouvidas, constituem um passo importante para
admitir a pluralidade de vozes, romper os arcaicos monopólios do saber, intervir na
realidade social e, talvez, um dia, mudá-la.

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32 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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A PROFESSORA REGENTE DISSE QUE APRENDEU


MUITO: A VOZ DO OUTRO E O TRABALHO DO
PROFESSOR INICIANTE NO ESTÁGIO

THE SCHOOL TEACHER SAID SHE LEARNED A LOT: THE


VOICE OF THE OTHER AND THE PROSPECTIVE TEACHER’S
WORK IN TRAINEESHIP
Carla Lynn Reichmann*

RESUMO: Levando em conta a relevância da escrita situada, este trabalho objetiva


discutir o trabalho do professor estagiário. O estudo focalizará o professor de língua
inglesa, investigando a voz do ‘profissional professor’ que ressoa em textos empíricos
produzidos por cinco acadêmicos atuando no ensino médio (IFPB). A análise per-
mitiu constatar que emergem vozes docentes significativas, convocadas do passado e
do presente, ressaltando-se a importância vital da voz da professora colaboradora na
escola-campo.
Palavras-chave: estágio supervisionado; trabalho docente; letramento acadêmico-pro-
fissional; vozes enunciativas; Letras.
ABSTRACT: Taking into account the relevance of the writing situated, this paper
aims to discuss the work of the trainee teacher. The study will focus on the English te-
acher, investigating the voice of ‘professional teacher’ that resonates in empirical texts
written by five academics acting in high school (IFPB). The analysis enabled to turn
out that significant teachers voices arise from theses texts, convoked from the past and
the present, stressing the vital importance of the voice of the collaborative teacher at
the school-field.
Keywords: supervised traineeship; teacher’s work; academic-professional literacy;
enunciative voices; languages.

*
Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: carlareichmann@hotmail.com

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INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo geral investigar o trabalho do professor iniciante no âmbi-
to do estágio supervisionado em Letras, com foco especial na voz do outro que ressoa em tex-
tos empíricos escritos por professores estagiários. Voltado para a formação inicial do professor
de língua inglesa no ensino superior, cabe frisar que o presente recorte decorre de um projeto
de pesquisa mais amplo situado na Linguística Aplicada, aliando os Estudos do Letramento,
o Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) e as Ciências do Trabalho1.
Levando em conta que o estagiário se encontra literalmente na fronteira, ou seja, em
trânsito entre diversas instâncias vinculadas à universidade e à escola-campo, o estágio é
aqui entendido como um entrelugar socioprofissional que permite letramentos híbridos
(KLEIMAN e REICHMANN, 2012). Considero o estágio supervisionado como “um pon-
to nevrálgico da licenciatura” (LÜDKE, 2009), enfatizando que a perspectiva do “estágio
como campo de conhecimentos e eixo curricular central nos cursos de formação de profes-
sores possibilita que sejam trabalhados aspectos indispensáveis à construção de identida-
de, dos saberes e das posturas específicas ao exercício profissional docente” (PIMENTA e
LIMA, 2009, p.61).
No Curso de Letras Estrangeiras da UFPB, foi a partir da reforma curricular de 2006
que o eixo do estágio curricular obrigatório na licenciatura em Letras-Língua Inglesa passou
a ser responsabilidade dos professores de inglês; desde então, o trabalho docente por mim de-
senvolvido tem se direcionado, principalmente, ao trabalho do professor iniciante no estágio.
Neste recorte, voltado para uma disciplina de estágio que ministrei em 2011 (direcionada ao
ensino médio em uma escola pública federal em João Pessoa), discutirei especificamente a voz
de ‘profissional professor’ que permeia os textos empíricos produzidos pelos estagiários e que
incide na a voz do professor iniciante, visibilizando a suma relevância do professor colabora-
dor na experiência vivida pelo estagiário, como já apontado por Lüdke (2009).
Em relação à identidade socioprofissional, questão que norteou o referido projeto de
pós-doutorado, na contemporaneidade, entende-se a identidade como um construto descen-
trado, instável e situado, como asseveram Hall ([1992] 2011) e Moita Lopes (2006), entre
outros. Adoto a definição de identidade como uma condição transitória e dinâmica, constru-
ída na interação, segundo Kleiman (1998, p.280) e proponho que a identidade social do pro-
fessor estagiário se constitui por meio de um coro de vozes de outros (interiorizadas) e de si
(internas) que ressoam em seus textos empíricos, escritos na esfera do estágio supervisionado.
Nesse sentido, o presente artigo, focalizando a voz do outro, dialogará com a seguinte questão
norteadora: o que revelam as vozes docentes que emergem em textos empíricos escritos por
professores estagiários?

Na próxima seção, apresentarei sucintamente alguns conceitos relevantes advin-


dos do marco teórico embasando este estudo. Posteriormente, descreverei a situação
de produção dos três gêneros em foco e, na seção subsequente, analisarei as vozes do-
centes que emergem nos textos, constituídas como voz de personagem (BRONCKART
1
O presente artigo se vincula ao projeto de pós-doutorado intitulado Práticas de letramento e formação de professores de
língua estrangeira, realizado no IEL/UNICAMP (2011-2013) sob supervisão da Profª. Drª. Angela Bustos Kleiman, vice-
-coordenadora do grupo de pesquisa CNPq Letramento do Professor.

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1999, 2006, 2008). Por fim, tecerei algumas considerações a respeito da voz do outro
e construção identitária do professor iniciante no âmbito do estágio supervisionado.

ANCORAGEM TEÓRICA
Neste estudo, considero a escrita situada como elemento identitário de formação
(KLEIMAN, 2007), a centralidade da linguagem para a ciência do humano e que
as práticas linguageiras situadas (os textos) são os instrumentos principais do desenvolvi-
mento humano (BRONCART, 2006), como também considero o ensino como traba-
lho (MACHADO, 2004).
Em consonância com os Estudos do Letramento, de acordo com Street (2003,
p.79), práticas de letramento “referem-se à ampla concepção cultural sobre as manei-
ras particulares de se pensar sobre e fazer leitura e escrita em contextos culturais”. À
luz dessa perspectiva, Kleiman (1995, p.11), esclarece que há múltiplas formas de usar
a escrita, atreladas a variadas práticas socioculturais e históricas, também ressaltando
(2007, p.5) que “uma situação comunicativa que envolve atitudes que usam ou pres-
supõem uso da língua escrita – um evento de letramento – não se diferencia de outras
situações da vida social”, pois tal evento “envolve uma atividade coletiva, com vários
participantes que têm diferentes saberes e os mobilizam (em geral cooperativamente)
segundo interesses, intenções e objetivos individuais e metas comuns” (KLEIMAN,
2007, p.5). Nessa direção, e alinhando-me a Kleiman e Matêncio (2005), Gonçalves
et. al (2011) e Silva (2012), vale esclarecer que na disciplina de estágio em foco foram
desenvolvidos eventos de letramento específicos que geraram atividades e gêneros situ-
ados no âmbito da formação docente, como será visto na próxima seção.
Em relação ao ensino como trabalho (MACHADO, 2004), apresentarei a seguir
os aspectos mais pertinentes a este estudo. Voltadas para uma análise discursiva do tra-
balho docente, pesquisas nesta linha (CRISTÓVÃO, 2004; MACHADO et. al, 2011;
BUENO et al, 2013, entre outros) têm se debruçado sobre textos na esfera da ativi-
dade educacional a partir do quadro do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) alia-
do às Ciências do Trabalho. Como Machado e Bronckart (2009) asseveram, diversas
vertentes teóricas pertinentes foram envolvidas, tais como a Filosofia da Linguagem,
a Linguística e a Psicologia do Trabalho. Fundadas nessa perspectiva, as investigações
conduzidas pelo grupo de pesquisa GELIT-UFPB (MEDRADO e PÉREZ, 2011;
FREUDENBERGER e PEREIRA, 2012; REICHMANN, 2012, entre outros), foca-
lizam o agir humano em situação de trabalho levando em conta o papel fundador da
linguagem, que se materializa em textos orais ou escritos produzidos pelos próprios
trabalhadores (antes, durante ou após a atividade de trabalho). Em outras palavras, é
de especial interesse o que se revela acerca de textos produzidos no e sobre o trabalho
docente, por meio da investigação linguístico-enunciativa voltando-se, por exemplo,
para a constituição do professor e seu agir profissional.

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No presente artigo, serão investigadas as vozes enunciativas em textos empíricos


escritos por estagiários para dessa forma verificar os pontos de vista docentes inscritos
nos textos, ou seja, o que diz, vê e pensa o professor na escola. Bronckart (1999, p.326)
salienta que as vozes “podem ser definidas como as entidades que assumem (ou às quais
são atribuídas) a responsabilidade do que é enunciado”. As vozes inscrevem as instâncias
enunciativas, assumindo a responsabilidade pelo que é dito (ou pensado), como também
a responsabilidade pela interação entre o produtor do texto e destinatários. Nesta discus-
são, sintonizarei em especial com a voz de personagem (do outro, interiorizada) que se faz
presente nos textos dos estagiários. Cabe esclarecer que vozes de personagens são entendi-
das como as vozes advindas de seres humanos (ou de entidades humanizadas) implicados
nos acontecimentos do conteúdo temático de um segmento do texto (BRONCKART,
1999, p.327). Como ressalta Bronckart (2006, p.149), “essas vozes podem não ser tra-
duzidas por marcas linguísticas específicas, podem também ser explicitadas por formas
pronominais, sintagmas nominais ou, ainda, por frases ou segmentos de frases”.
Ademais, em sintonia com a perspectiva dialógica da linguagem e a partir do
conceito bakhtiniano de gênero discursivo, Clot (2007, p.41), situado nas Ciências do
Trabalho, define outro conceito relevante neste estudo, a saber, gênero profissional. Este
pode ser entendido como “um corpo intermediário entre os sujeitos, um interposto
social situado entre eles, por um lado, e entre eles e o objeto de trabalho, por outro.
De fato, um gênero sempre vincula entre si os que participam de uma situação, como
coatores que conhecem, compreendem e avaliam essa situação da mesma maneira. O
autor esclarece que o gênero profissional se fundamenta em uma memória coletiva da
atividade, em um falar sobre o trabalho docente, podendo “definir-se como o conjun-
to de atividades mobilizadas por uma situação, convocadas por ela” (CLOT, 2007,
p.44). Ou seja, salienta-se a dimensão coletiva e socio-histórica do trabalho, pois como
esclarece Souza-e-Silva (2004, p.97), o gênero profissional
é, de algum modo, a parte subentendida da atividade, aquilo que os trabalhadores
de um dado meio conhecem, esperam, reconhecem, apreciam; o que lhes é comum
e o que os reúne sob condições reais de vida; o que eles sabem dever fazer sem
que seja necessário reespecificar a tarefa cada vez que ela se apresenta. Existem
tipos relativamente estáveis de atividades socialmente organizadas por um meio
profissional, tipos por intermédio dos quais o mundo da atividade pessoal se realiza,
se precisa em formas sociais que não são fortuitas, nem ocasionais, mas que têm uma
razão de ser e uma certa perenidade.

Em consonância com a perspectiva do ensino como trabalho (MACHADO,


2004), é relevante mencionar que “o reconhecimento de que o trabalho docente for-
ma um corpo organizado de atividades, recursos e rotinas próprias, [...] pode levar a
sua caracterização como um gênero profissional (FREUDENBERGER, 2012, p.125).
Nessa linha de raciocínio, procurarei compreender melhor o gênero profissional do
professor estagiário e refletir sobre o papel do professor colaborador no estágio. Na
próxima seção, apresentarei a situação de produção.

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RELATO FOTOBIOGRÁFICO, RELATO PÓS-


OBSERVAÇÃO E RELATÓRIO DE ESTÁGIO
Os textos empíricos produzidos pelos estagiários se vincularam a diferentes even-
tos de letramento, correspondentes às fases vividas na disciplina de estágio em questão,
a saber, a fase de memória educativa, a fase de observação e a fase de regência. Cada
evento de letramento mobilizou atividades e gêneros situados, a saber, o relato foto-
biográfico, o relato pós-observação virtual (em um blog) e o relatório de estágio, como
pode ser vislumbrado a seguir:
(i) Fase da memória educativa: esta fase inicial da disciplina envolveu uma visita
à própria escola (da época do ensino médio), com o objetivo de fotografar o
que captasse a atenção do universitário; seguiu-se a partilha das fotos em for-
ma de seminário e, posteriormente, os estagiários produziram um relato sobre
a experiência vivida, aqui denominado relato fotobiográfico.

(ii) Fase de observação: nesta fase de entrada na escola-campo, devido à dispersão


dos estagiários nas escolas, solicitei à turma que mantivéssemos contato por
meio de um blog. Os estagiários passaram a postar suas reflexões e relatos
pós-observação em um blog especialmente criado para este momento, dessa
forma possibilitando a partilha de experiências.

(iii) Fase de regência: a etapa final envolveu uma série de encontros presenciais
na universidade, antes e depois da regência – tanto para se preparar para a
ministração de aulas, como também para discutir e problematizar o relatório,
promovendo uma análise reflexivo-crítica da prática.

Produzidos em tal contexto, os excertos analisados na próxima seção foram


escritos por cinco professores estagiários: discutirei um fragmento do relato fotobio-
gráfico de João, dois fragmentos dos relatos pós-observação de Pedro e Lina e dois
fragmentos do relatório de estágio de Gabi e Eva (especificamente da seção ‘Análise
da prática de ensino’).2
Como Bronckart (1999, p.93) esclarece, um conjunto de parâmetros pode exercer
uma influência sobre a forma como um texto é organizado, e fundado em Habermas
(1987), aponta para dois grupos de parâmetros que se reúnem, a saber, o mundo físico
e o mundo sociossubjetivo. Os parâmetros do mundo físico situam o comportamento
verbal concreto de um agente-produtor em um espaço-tempo específico; os parâme-
tros do mundo sociossubjetivo, mais complexos, enquadram a produção textual como
uma forma de interação comunicativa, isto é, em relação a lugares e papéis sociais.
De acordo com Machado e Bronckart (2009, p. 49-50), tal situação de produção
envolve os diferentes objetivos e papéis assumidos pelo agente-produtor do texto e

2
Vale dizer que as autorizações para a análise foram devidamente concedidas e que os nomes adotados são fictícios.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 37


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seu(s) destinatário(s). No quadro a seguir, apresento a situação de produção do relato


fotobiográfico, relato pós-observação e relatório de estágio3.
Quadro 1. Situação de produção dos três gêneros em foco

RELATO RELATO PÓS- RELATÓRIO DE


FOTOBIOGRÁFICO OBSERVAÇÃO ESTÁGIO

Pessoa física - acadê- Pessoa física - acadê- Pessoa física - acadê-


AGENTE-
mico na licenciatura mico na licenciatura mico na licenciatura
PRODUTOR em Letras Estrangeiras em Letras Estrangeiras em Letras Estrangeiras

Papel social - acadê- Papel social - acadê- Papel social - acadê-


mico na licenciatura mico na licenciatura mico na licenciatura
ENUNCIADOR em Letras Estrangei- em Letras Estrangei- em Letras Estrangei-
ras/professor em for- ras/professor em for- ras/professor em for-
mação inicial mação inicial mação inicial

Pessoa física – profes- Pessoa física – colegas Pessoa física – profes-


sora da disciplina de e professora da disci- sora da disciplina de
LEITOR
estágio supervisionado plina de estágio super- estágio supervisionado
visionado

Papel social – professo- Papel social – profes- Papel social – professo-


ra orientadora do está- sores em formação ra orientadora do está-
DESTINATÁRIO gio supervisionado inicial e professora gio supervisionado
orientadora do estágio
supervisionado

Após a realização das Após entrada na esco- Após regência na es-


MOMENTO DE fotografias escolares e la-campo e aulas ob- cola-campo e discus-
PRODUÇÃO seminário. servadas sões presenciais na
universidade

Relatar à professora Relatar ao coletivo de Relatar ações realiza-


de estágio a história trabalho do estágio as das durante o estágio
vivida ao fotografar a impressões/reflexões de observação e de re-
própria escola e apre- sobre as aulas obser- gência, no ensino mé-
OBJETIVO
sentar o seminário, vadas. dio; cumprir o regula-
COMUNICATIVO mobilizando um con- mento de estágio.
junto de situações vi-
vidas antes da entrada
na escola campo.

Após esta breve descrição relativa à situação de produção textual, apresentarei a


seguir os resultados e a discussão.

3
A referida numeração das três fases da disciplina é retomada no quadro.

38 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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VESTÍGIOS DE VOZES DOCENTES


Nesta seção, dialogarei com a já mencionada questão norteadora: o que revelam
as vozes docentes que emergem em textos empíricos escritos por professores estagiá-
rios? Durante a disciplina, as vozes de outros professores entrecruzavam as nossas falas
constantemente, tanto vozes advindas do passado, como do presente compartilhado,
como poderemos vislumbrar nos cinco fragmentos adiante. Levando em consideração
o complexo contexto do estágio e as inúmeras questões consideradas pelos estagiários
durante a escrita, vale esclarecer que este recorte focaliza principalmente a voz do ou-
tro, no caso, a voz de personagem ‘profissional professor’ que emerge nos textos4.
Inicio esta discussão com um fragmento do relato fotobiográfico de João, que sob
o impacto da partilha no seminário, discorre sobre a visita à sua caótica escola, como
pode ser verificado a seguir (destaques meus):

1. Quando tirei as fotos na visita à escola na qual estudei durante o ensino médio, tive uma
breve lembrança do tempo que vivi por lá e pouca coisa me veio à cabeça no tocante à
memória escolar, porém no momento em que apresentei à turma, tive uma visão melhor
da minha vida escolar e pude compartilhar o que pareceu um pouco diferente dos demais.
Achei interessante ressaltar detalhadamente como na verdade funciona o ensino nas escolas
públicas, os problemas encontrados nelas, principalmente problemas envolvendo seguran-
ça, falta de professores, falta de compromisso por parte dos diretores, e todos envolvidos
no processo de educação. Uma das memórias mais marcantes desse período está ligada ao
professor H, um ex-aluno dessa mesma escola, que dava a melhor aula de português, sempre
conscientizando a turma de não deixar de estudar, a fim de obter um futuro melhor. (João,
relato fotobiográfico).

No excerto acima, é marcante a voz de personagem ‘professor H’, um ex-aluno


no lugar social de professor de português na própria escola. Configurado como bom
professor, podemos ouvi-lo incentivando os alunos a seguirem lutando, sinalizando a
possibilidade de horizontes mais amplos e de um futuro diferente. Ou seja, emerge
esta voz de personagem de incentivo, uma voz docente contundente e inspiradora que
ressoa em um contexto adverso, pois é retratada uma escola onde tudo falta – falta
segurança, falta professor, falta compromisso. Vale salientar que no fragmento acima
emerge uma voz docente marcante, advinda do passado, que vem à tona a partir da
visita à escola; no próximo trecho, extraído do relato pós-observação de Pedro, pode-se
notar que é a partir da observação das aulas na escola-campo que ecoa a voz de perso-
nagem ‘profissional professor’ da época da escola:

4
Ou seja, esta análise não investiga o olhar crítico do estagiário para a própria prática profissional.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 39


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2. Essa ótima fluência das aulas de inglês na escola me surpreendeu bastante, tendo em
vista que as minhas aulas de inglês no ensino médio se resumiam a 1 hora semanal, onde o
professor dificilmente conseguia realizar alguma atividade e os alunos pouco se importavam
com a aula. E mesmo quando o professor finalmente conseguia fazer algo, a aula já estava
se encaminhando para o final, com isso ele acabava dando as respostas do exercício que
estávamos resolvendo "A número 1 é letra a; a número 2 é letra b..." (trágico). (Pedro, relato
pós-observação no blog).

O trecho informa que a aula de língua inglesa na escola-campo flui, em contraste


com os pré-construídos do estagiário, evidentes neste fragmento – podemos notar
como foi insatisfatória sua experiência escolar no passado, quando era aluno de língua
inglesa. A aula observada e o contexto são avaliados de maneira positiva, respectiva-
mente, por meio dos modalizadores nas frases ótima fluência e me surpreendeu bastante.
Esse fato inesperado - isto é, a aula que funciona - desencadeia uma série de comen-
tários sobre sua própria experiência na época escolar. Pedro aponta alguns problemas
que complicam o trabalho do seu ex-professor, por exemplo, a carga semanal reduzida
e desinteresse dos alunos. Os modalizadores atribuídos ao agir do ex-professor – difi-
cilmente conseguia realizar, finalmente conseguia fazer, além da questão dos dizeres em
aspas (ou seja, o professor adiantava as respostas aos alunos), resulta na seguinte avalia-
ção da aula de inglês: simplesmente trágica. Diante da surpresa de Pedro, ao observar
que a professora observada consegue realizar seu trabalho, fica evidenciada a relevância
da inserção de estagiários em classes que funcionam, dessa forma possibilitando a res-
significação de pré-construídos e desconstrução/renovação do gênero profissional do
professor iniciante.
No próximo fragmento, extraído do relato pós-observação de Lina, também se
pode notar a surpresa da estagiária em relação ao trabalho da professora colaboradora:

3. [A professora] começou a aula falando aos estudantes que ela os chamaria, uma dupla de
cada vez, para mostrar as notas da prova que tinham feito na semana anterior. Ela também
disse que ela daria um retorno a eles durante esse processo. Começou a fazer isso e em um
momento os alunos estavam bagunçando e ela disse em uma voz meio alta “Vocês deveriam
falar baixo, este é um momento importante, é importante para vocês terem esse retorno”.
Achei que essa foi uma estratégia interessante. Fiquei espantada com a maneira que os alu-
nos realmente a ouviram nesse momento. (Lina, relato pós-observação no blog).

Ecoa a voz de personagem ‘profissional professora’ que começou a aula falando aos
estudantes, os chamaria, disse que ela daria um retorno a eles. É perceptível a surpresa
da estagiária ao constatar que há diálogo entre a professora e seus alunos, sugerindo
que os pré-construídos sobre a relação professor-aluno divergem daquilo que observa
na aula de inglês. A estagiária fica espantada com o fato de que os alunos realmente
ouvem, como a avaliação ressalta. Lina avalia positivamente os dizeres da professora
(trecho aspeado), que esclarece aos alunos as razões para seu agir. Em função da voz do
outro configurada neste fragmento, mais uma vez gostaria de ressaltar a importância

40 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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do professor colaborador no estágio: é uma voz que pode contribuir para o trabalho do
professor estagiário, desestabilizando pré-construídos, por exemplo, e suscitando uma
rearticulação do gênero profissional do professor iniciante.
Os próximos dois fragmentos, extraídos dos relatórios de Gabi e de Eva (que
trabalharam em parceria), se referem à mesma professora-colaboradora. A questão das
interações professor-aluno e professor-estagiário é saliente nos excertos e configura-se
a voz de personagem ‘profissional professora’ inscrita como ‘professora regente’, ‘pro-
fessora da turma’ e ‘ela’, por exemplo:

4. A professora regente apreciou tanto nossa aula que decidiu repensar sobre o fato de os
alunos também produzirem, elaborou um trabalho bem parecido com o nosso para aprofun-
dar o gênero com os alunos. A professora regente disse que aprendeu muito, principalmente
em relação à produção e ao fato de observar que o barulho que os alunos às vezes causam
faz parte da produção. (Gabi, Relatório de Estágio).

Ao dizer que aprendeu muito [com os estagiários], a voz de personagem ‘profissional pro-
fessora’ se refere a dois aspectos identitários, a saber, simultaneamente professora regente e
professora colaboradora: é mencionada a questão do barulho dos alunos na sala de aula, que
antes considerava apenas como desinteresse; também é assinalado que sua própria maneira de
trabalhar se transformou, pois resolveu dar continuidade à regência dos estagiários, com foco
na produção textual. A estagiária Gabi frisa que a professora-colaboradora passa a considerar
atividades educacionais que não realizava e que pretende adotar, ou seja, também se renova
o gênero profissional da professora na escola. Dessa forma, podemos perceber a importância
da rede de professores atuando no estágio, engatilhando a transformação em contextos de
formação inicial e continuada. Neste caso, é perceptível a apropriação do entrelugar socio-
profissional por parte do professor iniciante: é criada uma via de mão dupla, dinâmica, onde
todos aprendem e rearticulam conjuntamente o gênero profissional docente.
Por fim, no fragmento a seguir, configura-se a voz de personagem ‘profissional profes-
sora’ que explicou, conversava conosco, mencionou que também aprendeu, como pode ser veri-
ficado a seguir:

5. Uma das coisas que me marcou no trabalho da professora regente, momento que serviu
de aprendizagem para a minha formação, foi a forma de avaliação que ela usou. Após a rea-
lização da prova, como alguns alunos não tinham atingido a nota necessária, ela deu a opor-
tunidade para eles refazerem a prova. Ela explicou que o objetivo principal era a formação
deles e não a nota. Não havia pensado nessa possibilidade antes. Isso pude aprender com
a professora da turma. [...] Outro fato que merece destaque foi o acolhimento da professora
regente. Acredito ser essencial nessa relação entre escola e universidade. Normalmente, ao
final de suas aulas ela conversava conosco a respeito de suas dificuldades e progressos. Das
tentativas de realizar suas atividades e os resultados que produzia. O interessante é que ela
mencionou que também aprendeu com a nossa aula, pois de fora como observadora ela
pode perceber que barulho não significa bagunça, pois o barulho que havia na aula demons-
trava o interesse dos alunos na atividade. (Eva, relatório de estágio).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 41


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Neste excerto, novamente são perceptíveis as diferentes posturas sinalizadas pela


voz de personagem ‘professora regente/professora colaboradora’, constitui-se uma voz
docente que dialoga com todos – com os alunos, com os estagiários, consigo mesma
(pode perceber...). As explicações da professora sobre avaliação formativa marcam a es-
tagiária, que passa a enxergar novas possibilidades; ademais, a professora colaboradora
é avaliada como uma profissional que acolhe, atitude imprescindível para o bom fun-
cionamento do estágio. Por meio da voz do outro que permeia o texto, em consonân-
cia com o excerto anterior, nota-se que uma postura franca e construtiva possibilita o
aprendizado das estagiárias, permitindo o redimensionamento do gênero profissional
do professor iniciante, que, por sua vez, inspira a própria professora colaboradora, que
também pode reconfigurar a dimensão genérica.
Nesta breve análise, cabe ressaltar que a voz do outro entrecruza claramente a voz
do professor estagiário nos textos. Configura-se um diálogo desencadeado por eventos
de letramento escolares e acadêmico-profissionais que contribuem para o processo de
construção identitária docente no âmbito do estágio: em suma, ao discutir o trabalho
e gênero profissional na esfera do estágio, este artigo sublinhou o papel crucial do pro-
fessor colaborador como formador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos textos produzidos por professores iniciantes no complexo entrelugar consti-
tuído pelo estágio, uma miríade de vozes podem se constituir – vozes sociais, vozes de
personagem, voz de autor. Esta pesquisa investigou o trabalho do professor iniciante
no estágio com um foco especial na voz de personagem ‘profissional professor’ que é
configurada em textos empíricos escritos por professores estagiários em uma discipli-
na de estágio voltada para o ensino médio. Ao detectar e analisar os dizeres de vozes
docentes inscritos nos textos, verificou-se a importância do professor colaborador no
processo de constituição identitária e genérica: nesse sentido, vale salientar o papel da
academia na construção de parcerias colaborativas universidade-escola, pois é a partir
do nosso agir como professores formadores que a entrada na escola-campo e a interlo-
cução com o professor colaborador são forjadas.
Arrisco afirmar que os vestígios de vozes docentes constituídos nos textos sinali-
zam “aspectos indispensáveis à construção de identidade, dos saberes e das posturas
específicas ao exercício profissional docente” (PIMENTA e LIMA, 2009, p.61), como
já dito; verificou-se que a voz do outro, permeando os textos e incidindo na voz do
professor estagiário, dinamiza o processo identitário na formação inicial. Em con-
clusão, ressalto a importância da perspectiva do estágio como prática de letramento
acadêmico–profissional, mobilizando atividades e gêneros situados que catalisam a
construção identitária do professor estagiário por meio da escrita situada.

42 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Recebido em 31/03/2014.
Aprovado em 13/04/2014.

44 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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PROJEÇÕES COMO PRÁTICAS ACADÊMICAS DE


CITAÇÃO NA ESCRITA REFLEXIVA PROFISSIONAL DE
RELATÓRIOS DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO

PROJECTIONS AS ACADEMIC CITATION PRACTICES ON


THE PROFESSIONAL REFLECTIVE WRITING OF SUPERVISED
TRAINEESHIP REPORTS
Lívia Chaves de Melo*
Adair Vieira Gonçalves**

RESUMO: No presente trabalho, investigamos o sistema semântico de projeção de


práticas acadêmicas de citação na escrita reflexiva profissional de relatórios de estágio
supervisionado, produzidos por professores em formação inicial, em disciplinas de
estágio em Língua Inglesa e em Língua Portuguesa de uma Licenciatura em Letras,
pertencente a uma universidade pública brasileira. O objetivo do presente trabalho é
analisar as projeções acadêmicas de citação de literaturas científicas e não científicas
nos relatórios de estágio, considerando as funções por elas exercidas nesses documen-
tos. Também analisamos as projeções de outras vozes que perpassam os complexos
oracionais nessa escrita e as implicações das mesmas para o letramento acadêmico do
professor em formação inicial. Assumimos a abordagem da pesquisa qualitativa para
caracterizar o tratamento dado aos documentos pesquisados. Demostramos que os
enunciadores dos documentos investigados utilizam os recursos do sistema de proje-
ção principalmente para: manter imparcialidade com o próprio dizer, abrandar argu-
mentos, introduzir pontos de vista, ou mesmo evitar imposição de pontos de vista,
conferir autoridade a escrita, validar dizeres e pensamentos, apontar descobertas e
crenças, fazer intervenção autoral explícita.
Palavras-chave: escrita; formação do professor; letramento; Linguística Sistêmi-
co-Funcional.
ABSTRACT: In this paper, we investigate the citation’s semantic projection system
of academic practices on the professional reflective writing of supervised traineeship
reports, produced by teachers in initial training in disciplines of training in English
language and in Portuguese of a Licentiate in Languages, belonging a Brazilian public
university.. The aim of this study is to analyze the citation’s academic projections of
scientific and non-scientific literatures on traineeship reports, considering the func-
*
Doutoranda pela Universidade Federal do Tocantins – UFT, Araguaína, Tocantins, Brasil; CAPES;
E-mail: liviachavesmelo@hotmail.com
**
Professor da Universidade Federal da Grande Dourados, - UFGD, Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil; CNPq;
E-mail: adairgoncalves@uol.com.br

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 45


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tions by them outside in these documents. We also analyzed the projections of other
voices that underlie the clausal complexes in this writing and their implications for
academic literacy of the teacher in initial training. We take on the qualitative research
approach to characterize the treatment given to the researched documents. We dem-
onstrate that the enunciators of those investigated documents use the resources of the
projection system primarily for: maintaining impartiality with its own mean, abating
arguments, introducing points of view, or even avoiding imposition of viewpoints,
conferring authority to the writing, validating sayings and thoughts, pointing discov-
eries and beliefs, making explicit authorial intervention.
Keywords: writing; teacher training; literacy; Systemic Functional Linguistics

INTRODUÇÃO
Situado no campo transdisciplinar da Linguística Aplicada, no presente trabalho,
utilizamos perspectivas teórico-metodológicas advindas de outras áreas do conheci-
mento para investigarmos relatórios escritos, elaborados por professores em formação
inicial, aqui denominados alunos-mestre, no contexto de instrução formal do estágio
supervisionado da Licenciatura em Letras, com habilitação dupla em Língua Inglesa e
Língua Portuguesa, pertencente à Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus
Universitário de Araguaína.
Analisamos as projeções de práticas acadêmicas de citação de literaturas científicas
e não científicas nos relatórios de estágio, considerando as funções por elas exercidas
nesses relatórios. Também analisamos as projeções de outras vozes que perpassam os
complexos oracionais nessa escrita e as suas implicações para o letramento acadêmico
do professor em formação inicial.
As discussões teóricas que sustentam este trabalho baseiam-se principalmente
(i) no sistema lógico-semântico de projeção de citação, pertencente à Linguística
Sistêmico-Funcional (doravante LSF), que nos permite compreender as implicações
das vozes alheias na elaboração dos diversos registros escritos; (ii) nos esquemas lin-
guísticos do discurso citado, alicerçados na noção dialógica dos estudos bakhtinia-
nos; por fim, (iii) nos estudos do letramento, por entendermos os relatórios escritos
como eventos de letramento.

46 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Acentuamos que os relatórios de estágios são compreendidos como ferramentas


de transposição didática interna que envolve a passagem dos saberes a ensinar (saber te-
órico/científico) aos objetos ensinados (saber prático)1. Apesar de não apontarmos di-
retamente neste trabalho, nossos dados de pesquisa vêm revelando-nos que os saberes
teóricos empregados nos relatórios orientam as atividades práticas docentes, porque,
a partir das reflexões dos estudos científicos e não científicos, os enunciadores tentam
escapar de ações tradicionais de ensino, ainda que isso, por vezes, não aconteça. Os
autores do registro investigado descrevem as ferramentas utilizadas nas aulas práti-
cas para a transformação dos conhecimentos científicos em situações de ensino. Esse
registro é utilizado na formação inicial para potencializar o aluno-mestre a ampliar,
aperfeiçoar e adaptar seus conhecimentos de forma reflexiva e crítica, contribuindo
para a construção de sua identidade.
Decorrente do exposto, investigamos relatórios escritos elaborados durante as ati-
vidades de observação, ou seja, apenas quando os alunos-mestre observam o trabalho
docente e refletem sobre as aulas ministradas pelos professores-colaboradores. Analisa-
mos as passagens dos relatórios em que os alunos-mestre mobilizam direta ou indire-
tamente as práticas de citação da literatura científica e não científica.
Este artigo está organizado em cinco principais seções, além da Introdução, Consi-
derações finais e Referências. Na primeira, Caracterizando a Escrita Reflexiva Profissional
dos Relatórios, apresentamos considerações a respeito da escrita do aluno-mestre, ca-
racterizando-a como fluida, de natureza descritivo-narrativa, ao mesmo tempo em que
apresentamos efeitos de objetividade típicos dos eventos de letramento científico. Na
segunda seção, intitulada Projeção de Citação na Escrita de Relatórios de Estágio, mos-
tramos/discutimos/observamos categorias da LSF necessárias para o desenvolvimento
da análise das citações do corpus. Na terceira seção, Esquemas Linguísticos do Discurso
Citado na Escrita de Relatórios de Estágios, consideramos os estudos dialógicos bakhti-
nianos sobre o discurso citado, o qual marca a transmissão das enunciações alheias. Na
quarta seção, Práticas de Letramento na Escrita de Relatórios de Estágio, definimos como
compreendemos o termo letramento e o associamos ao gênero investigado, o relatório
de estágio supervisionado. Na última seção, Projeções de Práticas Acadêmica de Citação
de Literaturas Científicas e Não Científicas, analisamos as projeções de citação em duas
passagens textuais reproduzidas dos relatórios.

1
O termo conceitual transposição didática advém da didática do francês, mais especificamente de Chevallard que atua no
campo da didática da matemática. Esse conceito foi reapropriado pela equipe de Didática de Línguas da Universidade de
Genebra, filiada ao Interacionismo Sociodiscursivo, e refere-se a um conjunto de rupturas, deslocamentos, transformações,
adaptações de conhecimentos científicos, descontextualização do saber “sábio” (saber acadêmico), transpostos ao objeto social
de ensino. Em outras palavras, são os conhecimentos didatizados (CHEVALLARD, 1989; GONÇALVES e BARROS, 2010).
O processo de transposição didática é composto por dois níveis: externo e interno. A transposição didática externa refere-se à
passagem dos saberes científicos aos saberes a ensinar. A transposição didática interna envolve a passagem dos saberes a ensinar
aos objetos ensinados, e a criação de ferramentas para mediar a aprendizagem (cf. BARROS, 2012), tais como memória de
aula, handouts, notas feitas no quadro, relatórios de estágios, por exemplo, que, na formação inicial docente, é idealizada
para potencializar a prática crítica reflexiva.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 47


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CARACTERIZANDO A ESCRITA REFLEXIVA


PROFISSIONAL DOS RELATÓRIOS
As atividades das disciplinas de estágios iniciam-se na Licenciatura em Letras, na
instituição focalizada neste trabalho a partir do 5° período, sendo que os alunos-mes-
tre fazem quatro disciplinas de Estágio (Estágio I, II, III e IV). Essas disciplinas acon-
tecem em dois momentos: aulas teóricas no contexto da universidade e aulas práticas
nas escolas-campo de ensino básico. As aulas práticas estão divididas em duas etapas
principais: as observações de aulas ministradas por um professor-colaborador em exer-
cício da profissão, e as atividades de regência a partir das quais os alunos-mestre são
responsáveis por ministrar, sob a supervisão do professor-formador2 e do professor-
-colaborador, algumas horas-aula, tentando articular a teoria estudada na academia, à
prática vivenciada no ambiente real de ensino e aprendizagem.
Para elaborar os relatórios escritos de estágio, consciente ou inconscientemente, os
alunos-mestre voltam-se para si mesmo na tentativa de rememorar3 e reconstruir ações
vivenciadas na prática pedagógica do magistério, ao exercer a função de professor-esta-
giário. Estes mobilizam um conjunto de atividades e histórias de vida como forma de
documentar e ressignificar a experiência vivida, e estabelecem um diálogo com enun-
ciados reconhecidos como saberes de referência, originários de pesquisas científicas, ou
até mesmo com saberes que não são considerados legitimados cientificamente, como:
fragmentos bíblicos, textos literários, textos pertencentes a obras de autoajuda, etc.
Os saberes não científicos, divulgados nos relatórios em forma de citação, ou em
epígrafes, mesmo que façam parte das práticas socioculturais, não são considerados
conhecimentos científicos por evocarem vozes oriundas de diferentes esferas, como o
discurso religioso, pedagógico, de autoajuda, entre outros. Tais vozes oferecem mensa-
gens otimistas, verdadeiras, inquestionáveis, encorajadoras, enfatizando aspectos emo-
cionais e afetivos dos indivíduos. São tipos de leituras com aspectos terapêuticos.
Os saberes científicos e não científicos mobilizados na escrita dos relatórios de
estágios, por meio das práticas de citação, são estratégias argumentativas para sustentar
teoricamente algumas definições e ideias apresentadas pelos alunos-mestre com o ob-
jetivo de fundamentar as afirmações tecidas e introduzir pontos de vista. Esses saberes
são por nós denominados respectivamente de literaturas científicas e de literaturas não
científicas4, os quais são tomados como objeto de análise neste trabalho.
2
Estamos usando as denominações aluno-mestre para nos referirmos aos professores em formação inicial, discentes regularmente
matriculados nas disciplinas de estágio da Licenciatura em Letras. Empregamos professor-formador para nos referirmos aos profes-
sores universitários, responsáveis pelas disciplinas de estágio na universidade. E professor-colaborador, aos professores em exercício
da profissão, responsáveis pelas disciplinas nas escolas de educação básica, onde os estágios supervisionados são desenvolvidos.
3
Outros registros solicitados pelos professores-formadores do estágio para avaliar os alunos-mestre são a elaboração de projeto
de pesquisa, resenhas, resumos, fichamentos, seminários, curtas simulações de aulas, planos de aulas, entre outros. Muitos
alunos-mestre elaboram diários de campo, ou outros tipos de anotações pessoais para os auxiliarem na reconstrução de algumas
ações vivenciadas, os quais aparecem nos anexados dos relatórios.
4
Em trabalhos anteriores, caracterizamos mais detalhadamente o que compreendemos por literatura científica e não científica
(cf. MELO, GONÇALVES e SILVA, 2013; MELO e BRITO, 2014 [no prelo]).

48 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Os relatórios escritos são considerados eventos de letramento dominantes nos


estágios supervisionados por serem as principais formas de avaliação da disciplina. Ao
contrário da escrita acadêmica concebida como mais rigorosa, crítica, objetiva e im-
pessoal, possivelmente, por ser a língua utilizada na produção do conhecimento cien-
tífico, a escrita dos relatórios é entendida como uma escrita mais descritivo-narrativa,
subjetiva, menos rigorosa, com aspecto pessoal e íntimo, na qual a principal referência
para o dizer é o próprio autor – aluno-mestre, com suas percepções dos fatos, de suas
experiências e de formas de (re) significações, envolvidas nos acontecimentos do coti-
diano escolar e sua apreciação (cf. FIAD e SILVA, 2009; SILVA e PEREIRA, 2013).
Embora os alunos-mestre sejam o elemento de referência para seus dizeres, na escrita
dos relatórios, estes dialogam frequentemente com vozes reconhecidas e autorizadas
academicamente, ou mesmo autorizadas em outras práticas sociais não legitimadas
como acadêmica.
Nesse sentido, estamos compreendendo a elaboração dos relatórios de estágios
como uma escrita reflexiva profissional produzida na academia. Nesta escrita, os enun-
ciadores possuem a liberdade de expressar desabafos, sentimentos, questionamentos,
compartilhar descobertas e decisões, tornando-se um espaço de confissão e de reflexão
das ações experienciadas; contribuindo para o fortalecimento da profissionalização
inicial do professor. Ao mesmo tempo, os relatórios produzem efeitos de cientificidade
e objetividade, principalmente quando algumas vozes/saberes das práticas de citação
da literatura científica de referência, estudadas durante a formação profissional, são
reproduzidas para orientar o desenvolvimento de um olhar crítico na atuação docente.
Esses registros são sócio-historicamente construídos nas situações culturais e con-
textuais da academia, a partir de uma mistura, incorporação, ou mesmo em um diálo-
go relacionados a outros registros acadêmicos (projeto de pesquisa, artigo acadêmico,
ensaio, resenha, resumo, fichamento, etc.) ou profissionais (diários pessoais, autobio-
grafias, memorial, carta, etc.).
Em termos de estrutura composicional, não existe na universidade focalizada uma
estrutura composicional rígida para o registro relatório; entretanto, devido às necessi-
dades dos alunos-mestre, os professores-formadores oferecem orientações orais de es-
clarecimento nas aulas de supervisão de estágios e, em algumas situações, roteiros para
a realização dessa escrita. Essas orientações incluem a sugestão de articulação entre as
vivências no campo de estágio e a leitura das literaturas realizadas na disciplina. Desse
modo, diversas estruturas5 composicionais acabam sendo empregadas pelos acadêmicos.
Fazendo coro às muitas vozes que nos compõem, os relatórios escritos são for-
mas discursivas com propósitos comunicativos institucionais, elaborados numa escrita
5
As principais partes ou seções componentes dos documentos são nomeadas de: epígrafe, introdução, fundamentação teórica,
justificativa, objetivos, metodologia, formulação do problema, considerações finais, referências bibliográficas, anexos com alguns
diários de campo, exercícios didáticos aplicados nas aulas observadas, documentos legais que orientam o desenvolvimento
dos estágios, fotografias, dentre outros. Alguns documentos não apresentam seção para a estrutura textual, apenas um texto
corrido sem marcação explícita das seguintes subdivisões: introdução, corpo ou texto principal e conclusões (cf. MELO, 2012).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 49


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aqui caracterizada como reflexiva profissional, considerada inovadora, criativa, mais fle-
xível, maleável, dinâmica, fluida, com estilo individual (cf. BAKHTIN, [1929] 1986;
[1952-1953], BHATIA, 2004). Portanto, a escrita reflexiva profissional configura-se
como uma característica do registro relatório de estágio, ou seja, uma escrita diferen-
ciada da produzida na academia. Essa escrita é bastante comum e cada vez mais uti-
lizada nos cursos universitários de formação docente, por ser uma estratégia didática
que encoraja a prática reflexiva a respeito das ações docentes. Portanto, salientamos a
relevância de uma caracterização mais profunda desta escrita em investigações futuras.

PROJEÇÃO DE CITAÇÃO NA ESCRITA DE


RELATÓRIOS DE ESTÁGIO
Nos pressupostos teórico-metodológicos da LSF, a gramática é considerada a uni-
dade central de processamento da língua. Nesta unidade, os significados da língua são
entendidos a partir de um sistema semiótico identificado por metalinguagens funcio-
nalmente motivadas. O mundo e as relações nele construídas são representados na
linguagem por meio das seguintes metafunções: ideacional, interpessoal e textual, as
quais se relacionam entre si.
A metafunção ideacional é responsável por descrever eventos, estados e entidades
construídas em nossas experiências do mundo ao nosso redor, incluindo o mundo
interno a nossa consciência e realiza-se pelo sistema de Transitividade. A metafunção
interpessoal, na interação pela linguagem, desempenha papéis sociais em geral e papéis
discursivos em particular. Nesta metafunção, a linguagem é utilizada para estabelecer
e manter relações com outras pessoas, influenciar comportamentos, expressar o nosso
próprio ponto de vista sobre as coisas do mundo. Esta metafunção realiza-se pelo sis-
tema de Modo. A metafunção textual, por fim, refere-se à criação textual, concernente
à apresentação dos significados ideacionais e interpessoais como informação que pode
ser compartilhada pelo enunciador e enunciatário no texto. Esta metafunção realiza-se
pelo sistema de Tema (cf. MATTHIESSEN e HALLIDAY, 2004)6.
Na LSF, as práticas de citação, utilizadas nos discursos comuns, como a redação
científica, biografia, narrativas, entre outros, podem ser analisadas pelo sistema de pro-
jeção, um sistema relacional lógico-semântico que projeta sequências de informações
de figuras de segunda ordem da realidade. Ou seja, uma oração sinaliza, ao projetar
outra, que esta possivelmente já tenha sido mencionada em momentos anteriores. Esse
sistema é disperso na léxico-gramática, organizado na metafunção ideacional (compo-
nente experiencial e componente lógico), na metafunção interpessoal, com algumas
incursões na metafunção textual. Refere-se aos recursos linguísticos pelos quais escri-
6
Para investigarmos as representações construídas nas situações interativas dos estágios supervisionados, neste trabalho,
investigamos os relatórios escritos, elaborados em seu contexto de uso. Acentuamos que não temos como propósito realizar
uma revisão exaustiva dos pressupostos da LSF. Sobre a questão, conferir os estudos de Barbara e Macedo (2009); Gouveia
(2009); Vian Jr. (2009); Halliday e Matthiessen (2004, 2006, 2014); Silva e Espindola (2014); Melo (2014).

50 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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tores/falantes introduzem vozes adicionais em um discurso. Constitui-se como um sis-


tema que indica o modo como fatos ocorrem e são interpretados, podem ser relatados
para os outros (HALLIDAY e MATHIESSEN, 2004; 2006).
O sistema de projeção encontra-se na Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) no
estrato semântico, no nível de significados, e no estrato da léxico-gramática, no nível
das palavras. No primeiro nível, a projeção ocorre por meio dos eventos da consciên-
cia e representa ideias, crenças, presunções, pelos processos mentais de cognição e dos
processos mentais desiderativos; no segundo, a projeção ocorre por meio dos eventos
do dizer e refere-se às locuções, por meio dos processos verbais. Em algumas situações,
mas não frequentemente, a projeção ocorre também por meio de orações com os pro-
cessos relacionais. Algumas orações interrogativas, os elementos vocativos, o uso de as-
pas e certas pontuações sinalizam os recursos do sistema de projeção. (cf. HALLIDAY
e MATHIESSEN, 2006; HALLIDAY e MATHIESSEN, 2014).
Esse sistema sinaliza a transmissão das enunciações próprias e alheias. Sua função
é compartilhar valores, crenças e posicionamentos dialógicos, associadas às posições do
conteúdo da mensagem enunciada, dando mais prestígio e credibilidade aos significa-
dos projetados dependendo da fonte que serve de base à citação ou ao relato7.
O sistema de projeção é bastante comum tanto na oralidade, quanto nos regis-
tros acadêmicos escritos. Neste último, o seu propósito é atribuir ao discurso ela-
borado um caráter de escrita científica e dialógica (cf. HALLIDAY e MATTHIES-
SEN, 2014, p. 509). Nesses documentos, por exemplo, quando outras vozes são
divulgadas, entreglosadas ou não às vozes dos alunos-mestre, por meio das práticas
de citação de literaturas científicas e de literaturas não científicas, os enunciadores
idealizam fundamentar seus dizeres.
Quando um escritor/falante anuncia suas atitudes posicionais, por meio dos re-
cursos do sistema de projeção, este não só se autoexpressa, mas dialogicamente con-
vida, convoca, proclama outras vozes/vozes externas tidas pelas vozes autorais como
corretas, válidas, incontestáveis e legítimas para compartilhar pensamentos, gostos,
avaliações e pontos de vista. Nesse sentido, considerando que toda comunicação ver-
bal, falada ou escrita, é influenciada diretamente por algo já dito ou falado anterior-
mente, o sistema de projeção é articulado ao princípio dialógico/heteroglóssico da
teoria bakhtiniana (cf. MARTIN e WHITE, 2005).
Na metafunção ideacional, o sistema de projeção ocorre no componente expe-
riencial, por meio do sistema de Transitividade, via processos mentais, verbais e rela-
cionais, ou mesmo por meio de outros recursos. No componente Lógico, a projeção
7
Na citação, nós sinalizamos que estamos (re) utilizando, mais ou menos exatamente, as formas linguísticas do pensamentos/
dizer alheio em evento original da comunicação. No relato, nós não projetamos apenas formas linguísticas (pensamentos/
dizer) do outro, mas significados de eventos originais. Tanto o citar como o reportar são tipos de projeção. Cabral e Bárbara
(2012, p. 585) afirmam que “na citação, o elemento projetado tem status independente, é mais imediato e real. A citação é
usada para ditos e pensamentos, incluindo pensamentos não só de primeira pessoa como de terceira. No relato, o elemento
projetado é dependente, não funciona como um movimento na interação”.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 51


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acontece a partir do sistema gramatical da Transitividade, realizado na ordem dos


complexos oracionais. Na metafunção interpessoal, o sistema de projeção efetiva-se no
sistema de Modo, na ordem da oração, correlacionando-se à projeção de ideias e locu-
ções, nos modos de citação e relato. Nesta metafunção, o conteúdo de uma projeção
pode ser uma proposição, nos casos de oferta ou demanda de informações; ou uma
proposta, nos casos de oferta ou demanda de bens e serviços. (cf. ARAÚJO, 2007, p.
114). Na metafunção interpessoal, o sistema de projeção acontece ainda no sistema
de Avaliatividade, subárea da LSF, pelo subsistema de engajamento8, com o propósito
de avaliar a validade do conteúdo da mensagem e a expectativa do falante em relação
à ação demandada. Já na metafunção textual, a projeção é mais abstrata, no entanto,
pode ser presumida no sistema de Coesão que estabelece significação a mensagem.
Nesta metafunção, a projeção faz algumas incursões concernentes aos significados ide-
acionais e interpessoais.
Ao investigarmos os recursos de projeção, mobilizados nos relatórios escritos de
estágio, podemos compreender as principais vozes enunciativas que emergem nesses
documentos e como as experiências docentes dos professores em formação inicial
são representadas.

ESQUEMAS LINGUÍSTICOS DO DIRCURSO CITADO NA


ESCRITA DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIOS
Nos estudos dialógicos bakhtinianos, mais especificamente no livro Marxismo
e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochinov esclarecem o funcionamento dos es-
quemas linguísticos do discurso citado, principalmente o discurso indireto livre, ao
comentarem uma publicação intitulada Gertraud Lerch, examinada por Lorck.

Em Lerch, é a “sensibilidade simpatizante” (Einfühlung) que desempenha o papel


que tinha a imaginação em Lorck. O discurso indireto livre dá à sensibilidade sua
expressão mais adequada. As formas dos discursos direto e indireto são condicionados
por um verbo introdutório (disse, pensou, etc.). Dessa maneira, o autor joga sobre o
herói a responsabilidade daquilo que é dito. Pelo contrário, no discurso indireto livre
graças à omissão do verbo introdutório, o autor apresenta a enunciação do herói como
se ele mesmo se encarregasse dela, como se se tratasse de fatos e não simplesmente de
pensamentos ou palavras. Isso só é possível, diz Lerch, se o escritor se associa com
toda a sua sensibilidade aos produtos de sua própria imaginação, se ele se identifica
completamente com eles (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929], p. 185).

Na citação reproduzida, os processos verbais introdutórios disse e pensou, confor-


me mencionados pelos autores, são condicionados no discurso direto e no discurso in-
direto. No discurso indireto livre, esses recursos são omitidos. Por meio dos processos
verbais apontados (disse; pensou), o enunciador responsabiliza o outro pelo dito. Na
8
Sobre como as instâncias do Sistema de Avaliatividade são realizadas em Português brasileiro, conferir o trabalho de Vian Jr (2009).

52 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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LSF, estes mesmos processos são recursos do sistema de projeção, denominados res-
pectivamente de processo verbal de projeção e processo mental cognitivo de projeção.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochinov apresentam o dis-
curso reportado como um dos temas centrais. Para os autores, os esquemas linguísticos
do discurso citado, os quais marcam a transmissão das palavras/enunciações do outro
ocorrem por meio do discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre.
Acreditamos que um fenômeno assim altamente produtivo, “nodal” mesmo, é o
discurso citado, isto é, os esquemas linguísticos (discurso direto, discurso indireto,
discurso indireto livre), as modificações desses esquemas e as variantes dessas
modificações que encontramos na língua, e que servem para a transmissão das
enunciações de outrem e para a integração dessas enunciações, enquanto enunciações
de outrem, num contexto monológico coerente. [...](BAKHTIN/VOLOCHINOV,
[1929] , p. 143).

Considerando as formulações apontadas pelos autores mencionados e dialogando


com os estudos em LSF, compreendemos o discurso direto como um tipo de enun-
ciado com a função idealizada de representar literalmente o que é dito e pensado por
outro. É a forma mais simples de projetar o discurso. O discurso indireto, de outro
modo, possui a função idealizada de representar o sentido, ou a essência do que é
enunciado ou pensado por outro ao representar a consciência, opiniões e crenças dos
sujeitos envolvidos no discurso. Muitas vezes, esse tipo de esquema linguístico avalia
o que é projetado para obter informações. Já no discurso indireto livre9, tido como
uma mistura de discurso direto e discurso indireto, a fala e o pensamento alheios são
incorporados de forma imbricada e ao mesmo tempo velada no enunciado, não sendo
explicitado por marcas visíveis, cabendo ao ouvinte/leitor descobrir quem tem a pa-
lavra. Neste esquema linguístico, a projeção ocorre não só para representar dizeres de
primeira pessoa, mas também para representar pensamentos de terceira pessoa, proje-
tadas natural e oniscientemente.
Esses esquemas linguísticos geralmente são mobilizados na escrita reflexiva pro-
fissional dos relatórios de estágios para assegurar a autoridade e a seriedade dos enun-
ciados apresentados como vozes que dizem a verdade, já que estão fundamentados em
saberes legitimados da academia, ou mesmo reconhecidos nas práticas socioculturais
tidas por inquestionáveis.
Ainda sobre o discurso citado, esclarecemos que “o discurso citado é o discurso
no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso so-
bre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
9
Nas narrativas, o discurso indireto livre possui a função de retratar o fluxo da consciência dos personagens, transportando
o leitor a uma época passada, em uma contínua realização do passado para o presente. Neste tipo de discurso, predominam
as formas verbais do pretérito imperfeito do indicativo, o pretérito mais-que-perfeito do indicativo, futuro do pretérito do
indicativo, e o pretérito imperfeito do subjuntivo, exatamente os tempos verbais em que as primeiras e terceiras pessoas do
singular ficam idênticas, quando conjugados. Por meio dessas formas verbais, o narrador retoma sua própria linguagem para,
oniscientemente, acrescentar novas informações no registro produzido. A respeito de esquemas linguísticos do discurso citado
mencionados, na visão da LSF, conferir o trabalho de Halliday e Matthiessen (2014, p. 512-548).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 53


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[1929] 2002),, p. 144). Em outros termos, quando fazemos referência às palavras dos
outros em nossas palavras, é como se reproduzíssemos as palavras nas palavras. Ao nos
apropriarmos das palavras dos outros, essas palavras tornam-se “minha palavra” alheia,
no “meu discurso”. No discurso citado, no contexto acadêmico especificamente, ao
mobilizarmos a voz do outro, geralmente não se utilizam disfarces, já que o discurso
do outro, no “meu discurso”, em muitas situações, é ressignificado cada vez que for
enunciado e reproduzido em diferentes contextos de uso da linguagem.

PRÁTICAS DE LETRAMENTO NA ESCRITA DE


RELATÓRIOS DE ESTÁGIO
Neste trabalho, estamos compreendendo letramento10 como conjunto de práticas
sociais, historicamente situadas nos contextos específicos de interações humanas que
envolvem os usos das atividades de leitura e escrita, nas várias maneiras culturais da vida
contemporânea, responsável pela construção de identidades. Nos termos de Barton e
Hamilton (2012, p. 8), “letramento é mais bem compreendido como um conjunto de
práticas sociais; essas práticas podem ser inferidas a partir dos eventos que são mediados
por textos escritos” (BARTON e HAMILTON, 2012, p. 8, tradução nossa)11.
Nos diferentes domínios sociais, várias práticas de letramentos são utilizadas dia-
riamente pelos indivíduos para dar sentido aos acontecimentos cotidianos, como: re-
lacionados à saúde, ao local de trabalho, à educação, às instituições religiosas, ao lar,
as atividades relacionadas ao entretenimento, entre outros, muitos dos quais envolvem
conhecimentos especializados. Nesse sentido, os pesquisadores preferem utilizar o ter-
mo letramentos, no plural, já que, essas práticas são inferidas, observáveis e moldadas
a partir dos diversos registros textuais escritos, ou mesmo registros que envolvem a
oralidade (STREET, 2006; BARTON e PAPEN, 2010; BARTON e HAMILTON,
2012; KALMAN e STREET, 2013). Portanto, não existe letramento único, mas mul-
tiplicidade de letramentos.
Apesar de a escola ser considerada a principal agência de letramento, enfatizamos
que os processos de letramentos não podem ser entendidos simplesmente em termos de
escolarização e pedagogia, mas parte de instituições e concepções sociais mais abrangen-
tes12. Vivemos cercados por múltiplas práticas de letramentos, as paisagens linguísticas
10
As práticas de letramento são culturalmente construídas, e, como todos os fenômenos culturais, tais práticas têm suas raízes no
passado, ou seja, são fluidas, dinâmicas e mudam à medida que há transformações na sociedade e novos letramentos são adquiridos.
11
“Literacy is best understood as a set of social practices; these can be inferred from events which are mediated by written
texts”. (BARTON e HAMILTON, 2012, p. 8).
12
A pesquisa de Barton e Hamilton (2012), por exemplo, mostrou que, no próprio lar, uma das primeiras agências de letra-
mento, diversos eventos de letramentos são utilizados diariamente pelas pessoas: a preparação de uma receita qualquer; os
recadinhos colados na porta da geladeira para orientar a distribuição de tarefas, ou mesmo notificar uma saída; os cartões-
-postais escritos para amigos e demais membros da família; a leitura das instruções de uso de como utilizar adequadamente
determinados produtos de limpeza, ou conservar certos alimentos; as memórias familiares (fotos, cartas, vídeos, cartões-postais,
livros, diários, autobiografias, etc..), a leitura de histórias infantis para as crianças; a leitura e meditação da bíblia, as listas de
compras, entre muitas outras práticas que envolvem os usos da leitura e da escrita, empregadas para organizar as atividades
do lar, e influenciar as interações e a comunicação entre os membros do grupo familiar.

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visuais nas cidades são exemplos disso: cartazes, outdoors, placas, sinais de trânsito, gra-
fites, anúncios, etc., são formas de comunicação, com propósitos específicos (cf. BAR-
TON e HAMILTON, 2012). No contexto universitário, mais especificamente nas dis-
ciplinas de estágios supervisionados, não é diferente. Múltiplas práticas de letramentos
que envolvem os usos da leitura e escrita são empregadas como estratégias didáticas para
organizar as ações desse contexto. Os relatórios escritos de estágios, elaborados por uma
mistura de vários outros registros, investigados neste trabalho, são exemplos de prática
de letramento, culturalmente construído e dominante nesse contexto.
Nesses documentos, entendemos os usos das citações como práticas de letramen-
tos comuns na instituição universitária, presente numa escrita que é resultado das
práticas letradas do local do trabalho. A escrita dos relatórios são práticas de letramen-
tos, idealizada para a formação reflexiva do professor e a construção de sua identidade
sócio-profissional. Pelos registros, podemos compreender os diversos aspectos huma-
nos e não humanos que envolvem as atividades de estágios supervisionados e algumas
demandas da formação inicial docente.
Concordando com Bhatia (2004), ao referir-se à importância das práticas de cita-
ção, destacamos que, para se tornar aceitável na comunidade de pesquisadores, o dis-
curso acadêmico escrito deve ser relacionado aos conhecimentos acumulados de outros
pesquisadores, no campo do conhecimento da área de estudo abordada. O diálogo com
outras literaturas por meio das práticas de citação para embasar teoricamente os saberes
enunciados, garantir e justificar dizeres torna-se uma atividade importante no repertó-
rio dos pesquisadores. Nesse sentido, Amsterdamska e Leydesdorff (1989, p. 451 apud
BHATIA, 2004, p. 190), ao discutirem sobre o registro artigo acadêmico, destacam:
Em um artigo científico ‘o novo encontra o velho’ pela primeira vez. Este encontro
possui significado duplo desde artigos que não somente justificam o novo, mostrando
que o resultado é garantido por experimento ou observação, ou teorias prévias, mas
também estabelece e integra inovações em contextos de conhecimento ‘velho’ e
aceito… Referências que aparecem em textos são as formas mais explicitas em que os
argumentos apresentados no artigo são retratados como conexão a outros textos, e,
portanto, como um corpo particular do conhecimento13. (tradução nossa).

13
“In a scientific article ‘the new encounters the old’ for the first time. This encounter has a double significance since articles
not only justify the new by showing that the result is warranted by experiment or observation or previous theory, but also
place and integrate innovations into the context of ‘old’ and accepted knowledge… References which appear in the text are
the most explicit manner in which the arguments presented in the article are portrayed as linked to other texts, and thus also
a particular body of knowledge”.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 55


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Em pesquisa realizada por Araújo e Dieb (2013), os autores mostraram a utiliza-


ção de um fórum virtual como ferramenta catalisadora eficaz para que os alunos, cola-
boradores do estudo, desenvolvessem a aprendizagem acerca da produção de registros
acadêmicos e ampliassem sua consciência dos valores que norteiam a prática deonto-
lógica14 de escrita. Os autores evidenciaram que, ao escreverem os diversos registros
científicos, os estudantes revelaram grande fragilidade e preocupação acerca de como
estabelecer, de acordo com as normas praticadas na comunidade acadêmica, uma co-
municação satisfatória ao fazer uso efetivo de certas práticas de letramentos.
Conforme apontado por Araújo e Dieb (2013), ao produzirem seus textos, os
estudantes/pesquisadores precisam divulgar não apenas os dados gerados de suas in-
vestigações, mas também trazer a voz de discursos de autoridade de outros autores
para o interior de seus próprios textos e fundamentar a investigação pretendida. No
entanto, uma das principais preocupações dos estudantes mencionados centrava-se
em como deveriam fazer referência aos autores em seus trabalhos e efetuar, por escrito,
as citações desses autores, sem que o uso das práticas citações insinuasse apropriação
indevida do pensamento alheio. Outra inquietação dizia respeito a como buscar fontes
confiáveis para a fundamentação teórica de seus textos e fazer uso das informações que
as fontes lhes disponibilizam, uma vez que, ao elaborar um trabalho acadêmico, um
autor deve saber dialogar com as vozes de outros pesquisadores para, a partir delas, pôr
em cena o seu próprio projeto de dizer.
Para o uso significativo dos relatórios escritos na instituição superior aqui focali-
zada, e para o aperfeiçoamento da aprendizagem das práticas de letramentos acadêmi-
cas, é necessário que o professor-formador seja agente de letramento, ao propiciar aos
alunos-mestre o trabalho com a linguagem dos registros elaborados por eles mesmos,
por meio de atividades de reescrita comentadas, o que ainda é uma atividade incipien-
te e desvalorizada. Na escrita dos relatórios, quando são realizadas intervenções dos
docentes no texto dos alunos-mestre, estas são limitadas a aspectos linguísticos formais
envolvendo principalmente questões ortográficas e gramaticais (SILVA e PEREIRA,
2013). É importante que os alunos-mestre compreendam as condições de produção
do discurso acadêmico na escrita reflexiva profissional e as relações de poder envolvi-
das nesses discursos (cf. MARINHO, 2010).
Ressaltamos que a consciência da escrita acadêmica é desenvolvida a depender
da participação do estudante/pesquisador em contextos diversos de práticas de le-
tramentos com fins pragmáticos, sócio-comunicativos específicos e significativos. Na
elaboração de um registro acadêmico, ou mesmo reflexivo profissional, como é o caso
14
Aqui o termo deontologia refere-se ao despertar para a formação de um processo de consciência dos alunos acerca da
dimensão dos deveres éticos que perpassa a atividade de produção da escrita acadêmica, baseada na construção e na vivência
de valores socialmente estabelecidos, aceitos e praticados pelos membros das práticas acadêmicas. Nos relatórios escritos de
estágio supervisionado, essa consciência é perceptível nas reflexões e transformação pessoais reconhecidas pelos próprios
alunos-mestre; nas reflexões sobre assuntos ligados à profissão docente; nos métodos de trabalho adquiridos, nas diversas
vozes citadas que perpassam os seus enunciados (práticas de citação, referência ao livro didático, reprodução de dizeres de
alunos e professores, descrição de aulas), entre outros (cf. ARAÚJO e DIEB, 2013; GONÇALVES e CAMARGO, 2014
[no prelo]). Sobre deontologia em relação à consciência dos deveres relacionados à profissão docente, conferir Sadio (2011).

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dos relatórios, não basta somente buscar fontes confiáveis, é necessário saber citá-las
adequadamente para não se distanciar do ethos acadêmico, dos registros praticados na
universidade. O uso significativo das práticas da linguagem escrita é uma preocupação
frequente não só dos estudantes de graduação, mas também de pós-graduação, educa-
ção básica, e até mesmo, no cotidiano de escritores experientes.

PROJEÇÕES DE PRÁTICAS ACADÊMICAS DE CITAÇÃO


DE LITERATURAS CIENTÍFICAS E NÃO CIENTÍFICAS
Devido à riqueza de informação presentes nos relatórios escritos de estágios, bem
como possíveis contribuições para o letramento do professor em formação inicial, tais
produções são gêneros discursivos, utilizados para o empoderamento docente. Neste
trabalho, essas fontes de pesquisa são extremamente preciosas por nos permitir fazer
algumas inferências para o futuro e reconstruir as vivências do vivido das atividades
humanas nos estágios. A pesquisa apresentada é caracterizada como uma análise de
documento15 (FLICK, 2009).
Os documentos investigados neste trabalho fazem parte do banco de dados do
Centro Interdisciplinar de Memória dos Estágios das Licenciaturas (CIMES), locali-
zado no Campus Universitário de Araguaína, pertencente à Universidade Federal do
Tocantins, os quais estão disponíveis à pesquisa ou mesmo a um uso didático pelos
próprios estudantes das licenciaturas diversas. Analisamos vinte e oito (28) relatórios
elaborados para as disciplinas de Investigação da Prática Pedagógica e Estágio Supervi-
sionado em Língua Inglesa: Língua e Literatura (I) e Investigação da Prática Pedagógica
e Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa: Língua e Literatura (I), vinculadas à
licenciatura em Letras. Esses documentos foram produzidos no primeiro e segundo
semestre letivo do ano de 2012.
Para identificarmos as passagens textuais, selecionadas a partir das várias seções
que compõem os relatórios de estágios supervisionados em que as práticas de citação
são empregadas, utilizamos as seguintes informações: informante, semestre letivo, ano
letivo, estágio em Ensino de Língua Inglesa (LI), ou estágio em Ensino Língua Portu-
guesa (LP), e a seção do relatório em que o extrato reproduzido foi retirado.
Para melhor compreensão e contextualização da passagem textual 01, reproduzida
adiante, antes de destacarmos alguns recursos de projeção analisados à luz das catego-
rias analíticas da LSF, situamos brevemente os parágrafos que a antecedem.

15
Por documentos, estamos compreendendo qualquer suporte que contenha informação registrada em material escrito e não
escrito de natureza iconográfica, sonora e cinematográfica, ou de qualquer outro tipo de testemunho que registre os objetos do
cotidiano, tais como filmes, vídeos, slides, fotografias ou pôsteres, dentre inúmeros outros. Tudo o que é vestígio do passado,
tudo o que serve de testemunho, é considerado como documento ou ‘fonte’ de investigação. Em outras palavras, documentos
são enunciados simbólicos reconhecíveis em gêneros diversos, responsáveis por registrar informações/conhecimentos específicos
em sistemas específicos. (SÁ-SILVA et al, 2009; BAZERMAN, 2012).

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No primeiro parágrafo da introdução do relatório que antecede a passagem textu-


al mencionada (cf. introdução completa no anexo), o aluno-mestre utiliza as seguintes
escolhas lexicais: essencial, grande importância e imprescindível para apreciar positiva-
mente e intensificar a força do valor das atividades de estágios como ferramentas fun-
damentais nos estudos dos docentes em formação inicial, pois, o estágio é uma forma
para os acadêmicos utilizarem os conhecimentos teóricos estudados na universidade,
no campo de atuação profissional.
As reflexões apontadas pelo enunciador sugerem-nos que este dialoga com os
vários discursos provenientes da academia, o que é bastante comum nos documentos
investigados, mostrando-nos certo alinhamento aos discursos que anunciam o estágio
curricular como atividade proposta para a articulação entre teorias acadêmicas e inter-
venção nas práticas escolares.
Para diminuir o grau de comprometimento com o conteúdo de sua própria decla-
ração, elaborada em consonância com muitas outras vozes, o aluno-mestre divulga na
passagem reproduzida uma citação direta da literatura científica. Esta citação discute a
importância das atividades de estágio para a formação do futuro profissional de ensi-
no, crítico e sempre atento para refletir sua prática pedagógica. A citação mencionada
é uma estratégia argumentativa para embasar os dizeres tecidos.
Em seguida, o aluno-mestre afirma no relatório escrito que as orientações para
o desenvolvimento das atividades práticas de estágios que acontecem nas escolas de
educação básica são oferecidas na universidade, durantes as aulas teóricas da disciplina,
e enfatiza que o estágio é uma “exigência” da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. O uso da escolha lexical exigência, reproduzida na oração: O Estágio Supervi-
sionado é uma exigência da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) Lei nú-
mero 9394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB 9394/96), revela-nos que o aluno-mestre
refere-se ao saber de autoridade soberana (lei), possivelmente para enfatizar que, para
obter o título de Licenciado em Letras, cabe a ele cumprir todos os requisitos do curso.
Como o estágio é uma das condições para a obtenção desse título, deve-se cumpri-lo
satisfatoriamente. As próprias alusões ao espaço universitário, às aulas teóricas neste
espaço (As orientações para o estágio são recebidas na universidade por meio de aulas te-
óricas para que em seguida os acadêmicos realizem a parte prática em escolas que devem
pertencer à rede pública), assim também como a lei (LDB), são informações prestadas
que provêm de vozes culturalmente valorizadas nas práticas letradas da academia.
Em seguida, o aluno-mestre destaca as etapas das atividades do estágio (aulas teó-
ricas no contexto universitário; observação e regência nas escolas de educação básica),
carga horária da disciplina, e situa o ambiente de realização das observações que acon-
teceram em sala de aula da Educação de Jovens e Adultos – EJA, ministradas por um
professor-colaborador. Todas as informações dadas podem ser estratégias encontradas
pelo enunciador do relatório para informar ao seu leitor, já no início da produção es-
crita, como o estágio é desenvolvido.

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Adiante, reproduzimos a passagem textual selecionada, a partir da qual reali-


zamos uma breve análise linguística, focando principalmente as implicações dos
recursos de projeção e suas contribuições para o letramento acadêmico do professor
em formação inicial.
Passagem textual 01:
Seguindo as recomendações teóricas que partiram da universidade, durante todas as
observações foram escritos diários que abordavam os acontecimentos da aula, como
o tema, o conteúdo ensinado pela professora, os métodos e recursos utilizados por
ela, as formas de avaliação, o desempenho dos alunos, entre outras peculiaridades.
Os diários são essenciais para uma observação eficaz, é o ponto de partida para a
reflexão a respeito da prática pedagógica observada, além de propiciar um contato
mais próximo entre o acadêmico e o meio educacional, é também uma forma de
refletir sobre o contexto escolar e seus problemas. É importante ressaltar que a prática
de escrever sobre o ambiente escolar não deve necessariamente se restringir ao estágio,
mas também estar presente no decorrer da vida docente do educador, já que isso
pode ajudá-lo a aperfeiçoar seus métodos, a respeito disso, Zabalza, (1994) assume
que “o professor, ao escrever sobre sua prática, aprende e reconstrói, pela reflexão sua
atividade profissional.” (ZABALZA, 1994 apud GALIAZZI e LINDEMANN, 2003,
p. 137). (Informante 01, Estágio I, 2012.1 - LI, Trecho da introdução do relatório).

Na passagem em destaque, há três projeções com diferentes propósitos. A pri-


meira, [os] diários que abordavam (...), a projeção co-ocorre em um grupo nominal,
identificada no processo verbal abordar, com função de relato. Aqui, o aluno-mestre
para não dizer diretamente, [nos] diários abordamos (...), ou mesmo, [eu] abordei
nos diários (...), entre outras possibilidades, prefere utilizar [os] diários abordavam
(...). Nesse sentido, o item lexical diários desempenha metaforicamente o potencial de
dizente, sugerindo-nos que a voz autoral mantém certa imparcialidade com o próprio
dizer. Ou seja, o aluno-mestre não assume diretamente o dito.
Conforme enfatizado neste trecho, os diários foram utilizados durante as ativi-
dades de observação como estratégias para relatar os acontecimentos das aulas: tema
das aulas, conteúdo ensinado, métodos e recursos de ensino empregados pelo profes-
sor-colaborador, formas de avaliação, desempenho dos alunos, etc. São instrumentos
avaliados pelo próprio aluno-mestre como recurso essencial na mediação da formação
inicial docente para se conseguir eficientes observações. As escolhas essencial e eficaz
(Os diários são essenciais para uma observação eficaz) amplificam e intensificam o valor
desse instrumento que orienta e potencializa a reflexão crítica docente, assim também
como as atividades de observação.
A segunda projeção identificada acontece por meio de um processo verbal, no
grupo nominal É importante ressaltar que (...), também com função de relato. Nesta
situação, o processo ressaltar exerce a função da voz do dizente (eu ressalto que [...])
que é implicitamente desempenhado pelo enunciador aluno-mestre. Este enunciador
sugere possuir a consciência da importância da utilização de diários escritos como fer-

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ramentas de mediação, necessárias tanto no processo de formação profissional, poden-


do inclusive auxiliar a escrita do relatório, quanto na qualificação da prática cotidiana
do docente em exercício da profissão. Este instrumento, conforme acentuado pelo
enunciador, permite ao aluno-mestre, assim também como ao docente em exercício,
potencializar e aperfeiçoar métodos de ensino, autoanalisar os acontecimentos aprecia-
dos, entre outras práticas letradas que podem aparecer invisibilizadas. A escolha lexical
importante, presente no grupo nominal É importante ressaltar que (...), intensifica a
força do valor da prática de escrita na profissionalização docente.
Observamos que o aluno-mestre introduz seus pontos de vista, e, ao mesmo tem-
po, atenua o grau de compromisso com suas afirmações, pelo uso do modalizador de
probabilidade pode (a prática de escrever sobre o ambiente escolar não deve necessaria-
mente se restringir ao estágio, mas também estar presente no decorrer da vida docente
do educador, já que isso pode ajudá-lo a aperfeiçoar seus métodos). Esse modalizador
é uma espécie de construção interpessoal, indicador de que o enunciado reportado é
algo provável. É uma forma de o aluno-mestre estabelecer com o leitor idealizado um
diálogo e negociar os possíveis contra-argumentos.
Além do mais, para reforçar e confirmar as afirmações apontadas no trecho em
destaque, as quais são mediadas pelas próprias vozes da academia, e evitar os possíveis
contra-argumentos, uma citação direta da literatura científica é divulgada pelo aluno-
-mestre. Esta citação é percebida na passagem em análise pelo uso do recurso metae-
nunciativo aspas duplas, referência a um autor consolidado na área da educação, além
do uso dos parênteses com ano de publicação da voz sinalizada e o próprio recurso
de projeção com função de citação, que acontece por meio de uma circunstância de
ângulo indicando ponto de vista: Zabalza, (1994) assume que (...). Aqui, o recurso de
projeção é identificado no processo mental de cognição assumir e anuncia um pen-
samento alheio, selecionado e contextualizado em uma nova situação discursiva. Essa
citação ecoa o discurso de que a escrita de diários constitui-se como elemento identitá-
rio da formação sócio-profissional; uma prática de letramento relevante no cotidiano
docente que possibilita a construção de ações reflexivas e críticas.
Ao divulgar a citação mencionada no trecho em foco, o aluno-mestre intensifica
o valor da escrita de diários, justifica que suas afirmações estão fundamentadas em
vozes de referência, e, possivelmente, em eventos vivenciados por ele mesmo, durante
as atividades de observação.
Nesta passagem investigada, observamos que os pontos de vista do aluno-mestre
não são assumidos diretamente por ele, mas cuidadosamente utiliza escolhas lexicais
para manter imparcialidade com o próprio dizer; abrandar seus argumentos, além de
evitar imposição dos seus pontos de vista, característico da escrita reflexiva profissio-
nal. Para isso, nesta escrita, o aluno-mestre negocia com o seu leitor a validade do con-
teúdo expresso ao utilizar a escolha metafórica destacada, com o potencial de dizente;
o modalizador de probabilidade para negociar ideias; e a invocação do pensamento

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alheio pelo sistema de projeção de uma citação direta da literatura científica para con-
ferir autoridade, validar dizeres e pensamentos de um enunciador comum.
Em outro exemplo, reproduzido adiante, na passagem textual 02, retirada da se-
ção conclusão de um dos relatórios de estágios investigados, observamos que o enun-
ciador aluno-mestre interioza a voz de si, situada nas lembranças do passado, dos
tempos da escola, enquanto ex-estudante da educação básica, para salientar aspectos
que não eram identificados por ele como aluno, mas que foram visualizados no pre-
sente, em função das atividades de observação, enquanto profissional do ensino em
formação, tais como: alguns conflitos deste meio; a desmotivação dos docentes; alunos
indisciplinados, entre outros.
Passagem textual 02:
Embora tenhamos passado boa parte de nossas vidas na instituição escolar, não
fomos capazes de perceber quantas questões estão envolvidas nesse meio. Conflitos
intermináveis. Professores desmotivados. Alunos descompromissados e Instituições
movidas por regras estabelecidas por seres que não conhecem a prática da realidade
escolar. Assim, na função de observadores e futuros profissionais da educação, tivemos
a oportunidade de conhecer e avaliar por outro ângulo o que se passa dentro de uma
instituição responsável pela formação de cidadãos.
O Estágio Supervisionado I nos permitiu ter uma visão mais ampla do sistema
educacional, além de nos fazer acreditar que a educação ainda pode, sim, alcançar
o seu melhor. Pois, apesar de todas essas deficiências detectadas, ainda há alunos
comprometidos com o ensino e professores empenhados com a docência. Como
disse Roberto Leão, “a escola pública brasileira se sustenta hoje muito mais pela
solidariedade dos profissionais da educação que atuam nela, do que por conta das
políticas públicas que deveriam fazê-la funcionar direito”.
Entre os fatores que contribuíram para o bom desempenho do referido estágio,
podemos destacar as experiências trocadas com nossos próprios colegas pelo Moodle16
disponibilizado no site da Universidade, uma ferramenta que nos permitiu dialogar
em tempo real e contar nossas experiências durante o período de observações nas
escolas. Foi um instrumento enriquecedor para todos nós.
Enfim, finalizamos o presente relatório com as palavras de Rubem Alves, quando ele
afirma que “Professores há aos milhares. Mas professor é profissão, não é algo que se
define por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é profissão; é vocação. E
toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança.” (Informante 02,
Estágio I, 2012.2 - LP,– Conclusão completa do relatório). Grifos nossos.

Destacamos no primeiro parágrafo o uso do recurso de projeção sinalizado no


processo mental perceptivo perceber, na oração Embora tenhamos passado boa par-
te de nossas vidas na instituição escolar, não fomos capazes de perceber quantas questões
estão envolvidas nesse meio. Nesta oração, a projeção destacada, entendida como: [eu
aluno-mestre] percebi (...), possui a função de relato e aponta as descobertas do expe-
16
Nas disciplinas de estágio, em algumas situações, os alunos-mestre são orientados a participar das discussões e interagir
na Plataforma Moodle - UFT, ou mesmo em interações orais ocorridas nos momentos de supervisão, nos quais há troca de
experiência entre os próprios alunos-mestre e professor-formador, a respeito do que acontece nas escolas-campo, durante as
atividades de observação.

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rienciador aluno-mestre. Esta projeção revela-nos ainda que no Português brasileiro,


o processo mental perceptivo, ao contrário da Língua Inglesa, também pode projetar
ideias de segunda ordem.
No segundo parágrafo da passagem, há mais duas projeções. A primeira ocorre
no grupo nominal nos fazer acreditar que (O estágio supervisionado I nos fez acreditar
que [...]), presente na oração O Estágio Supervisionado I nos permitiu ter uma visão mais
ampla do sistema educacional, além de nos fazer acreditar que a educação ainda pode,
sim, alcançar o seu melhor. Aqui a projeção acontece por meio de um processo men-
tal cognitivo acreditar, com função de relato, sinaliza a própria voz do aluno-mestre
que, mesmo diante das descobertas salientadas, avaliadas negativamente por ele como
deficiências, as atividades de estágio contribuíram para que o mesmo desse crédito à
educação, pois existem alunos, avaliados positivamente pelo próprio enunciador, com-
prometidos e professores empenhados.
Nesta oração, acentuamos que pelo uso do modalizador de probabilidade pode, o
aluno-mestre introduz seus pontos de vista, mas, ao mesmo tempo, atenua o grau de
compromisso com seus dizeres. Como na passagem textual 01, mostrada nos parágra-
fos anteriores, neste exemplo 02, o modalizador pode é uma construção interpessoal
utilizada para estabelecer com o leitor um diálogo e negociar contra-argumentos e
possíveis objeções. É uma maneira de o aluno-mestre evitar impor ao seu leitor seus
próprios pontos de vista, mesmo deixando claro que ele está certo de que a educação
pode alcançar dias melhores, pois, as suas experiências durante as atividades de obser-
vação, fizeram-no crer que esta é uma visão possivelmente correta e válida.
Outra projeção presente também no segundo parágrafo, como disse Roberto Leão,
acontece no processo verbal disse, em uma circunstância de ângulo indicando fonte,
com função de citação. Esta projeção manifesta de modo explícito a recorrência de
uma voz externa que aparece reproduzida entre aspas duplas. No parágrafo introdutó-
rio da seção desenvolvimento deste mesmo relatório (cf. anexo), esta mesma citação é
reproduzida, de modo mais completo e com o atributo de reconhecimento da posição
enunciativa da voz alheia, marcada por suas credenciais, na oração (...) disse Roberto
Leão, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, em entrevista
à IHU17 On-Line, revista produzida mensalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos.
Nesta situação, o emprego do recurso de projeção indica que a opinião do aluno-
-mestre é alinhada a uma voz de confiança e valimento, reconhecida como autoritária,
pois quem fala é o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação,
em uma fonte confiável, numa revista especializada a professores. Ao trazer tal citação
para o texto escrito do relatório, o aluno-mestre a utiliza como fonte para embasar
seus dizeres e, até mesmo, provavelmente, para indicar ao seu leitor que, apesar dos
desafios, está motivado e esperançoso em não desistir de sua futura profissão.

17
A escola pública brasileira: uma realidade dura. Entrevista com Roberto de Leão. Revista semanal do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, 2009.

62 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Muitas outras vozes aparecem perpassadas nestes dois primeiros parágrafos des-
tacados, vozes que podem ser percebidas, dependendo dos gestos de interpretação
dos diferentes sujeitos pesquisadores. Salientamos, por exemplo, as próprias normas
que orientam as ações do espaço escolar, as quais, segundo o aluno-mestre, são esta-
belecidas por sujeitos que não têm noção de como realmente funciona esse ambiente
(Instituições movidas por regras estabelecidas por seres que não conhecem a prática
da realidade escolar), como os políticos, ou mesmo outros indivíduos, os quais esta-
belecem vários projetos e leis para o bom funcionamento das instituições de educação
básica, mas que não funcionam, pois não são dadas aos professores, boas condições de
trabalho. Aqui, possivelmente, o estagiário assume os próprios discursos e desconten-
tamentos dos professores-colaboradores do estágio.
No terceiro parágrafo da passagem reproduzida, encontramos uma projeção ex-
pressa na construção verbal podemos destacar, na oração Entre os fatores que contribuí-
ram para o bom desempenho do referido estágio, podemos destacar as experiências trocadas
com nossos próprios colegas pelo Moodle disponibilizado no site da Universidade18. Nesta
construção, apesar de preservar a força original em termos materiais, a projeção é re-
presentada metaforicamente, em termos de um processo mental cognitivo destacar, o
que é possível em LSF, conforme aponta Thompson (2014, p.121, 252)19. Para o au-
tor, muitos processos mentais de cognição são expressos em processos materiais. Neste
exemplo, a projeção possui função de relato.
Neste mesmo parágrafo, chamamos a atenção para o uso das seguintes projeções
que acontecem por meio dos processos verbais: dialogar ([o] Moodle disponibilizado no
site da Universidade, uma ferramenta que nos permitiu dialogar [...]) e contar ([o] Moo-
dle disponibilizado no site da Universidade, uma ferramenta que nos permitiu contar
[...]). Destacamos ainda o uso de uma projeção que pode ser recuperada na construção
[o] Moodle [é] uma ferramenta que (...). Nesta construção, temos um processo relacio-
nal é, que aparece através de uma elipse ([o] Moodle disponibilizado no site da Univer-
sidade [é] uma ferramenta que [...]). Todas essas projeções possuem a função de relato
e são formas de o aluno-mestre fazer uma intervenção autoral explícita, ao reconhecer
como um software livre, de apoio à aprendizagem, executado num ambiente virtual,
avaliado e intensificado por ele mesmo como instrumento enriquecedor, colaborou para
o sucesso das atividades de observação. A própria expressão o bom desempenho do está-
gio, não é uma escolha aleatória, mas mesmo inconscientemente, o enunciador infor-
ma que o estágio foi um sucesso, sendo assim, o aluno-mestre pode ser bem avaliado.

18
A plataforma Moodle, neste caso, serviu de suporte para a transposição didática interna e de desenvolvimento da deontologia,
nos termos defendidos por Araújo e Dieb (2012), principalmente ao serem os alunos-mestres solidários entre si no momento
de capitalizar e socializar experiências do momento de observação de aulas no contexto escolar.
19
(…) Similarly, many cognitive mental processes are expressed in material terms: for example, ‘grasp’, ‘take in’, ‘a thought
crossed my mind’, ‘reach a decision’, ‘it struck me that’. These are deal metaphors, but in comparison with ‘understand’,
‘think’, or ‘decide’ they still preserve some of their original material force, and allow a speaker to represent cognition as drama
(THOMPSON, 2014, p. 121).

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No último parágrafo da passagem reproduzida, destacamos o uso de uma proje-


ção que acontece numa circunstância de ângulo indicando fonte: as palavras de Rubem
Alves, quando ele afirma que (...). Nesta situação, a projeção é identificada pelo pro-
cesso verbal afirmar e possui função de citação. Aqui o recurso de projeção é utilizado
para projetar uma citação direta da literatura não científica, um enunciado motivador
sinalizado em aspas duplas. Esse enunciado de Rubem Alves ressoa o sentido de que o
autor faz a distinção entre professor e educador. Para ele, o professor é aquele que pos-
sui uma profissão (titulação), mas não necessariamente amor pelo que faz; o educador,
de forma diferente, é aquele que ama o que faz e possui vocação/dom para ensinar,
por possuir esperança. A escolha esperança, possivelmente, refere-se ao potencial dos
aprendizes que devem ser reconhecidas pelo docente ou, até mesmo, o crer em dias
melhores para a educação.
Em síntese, nesta passagem verificamos que o sistema de projeção empregado pelo
aluno-mestre para projetar citações e relatos de vozes de referência, vozes que não são
consideradas de referência, ou mesmo para projetar suas próprias vozes que perpassam
os complexos oracionais, acontecem por meio dos seguintes recursos: processo mental
cognitivo; processo verbal; circunstância de ângulo indicando fonte; processo relacio-
nal. A investigação mostrou ainda que, no Português brasileiro, o processo mental per-
ceptivo, também pode projetar ideias de segunda ordem. Vimos ainda que o processo
mental cognitivo destacado, presente metaforicamente em termos materiais, também
projeta ideias. Compreendemos os recursos do sistema de projeção, apontados nesta
passagem, como: estratégias utilizadas pelo aluno-mestre para apontar suas descober-
tas, crenças, introduzir pontos de vista, fazer intervenção autoral explícita.
Ao contrário da passagem textual 01 exibida anteriormente, nesta passagem tex-
tual 02, o aluno-mestre assume mais diretamente seus dizeres (cf. tenhamos; nossas
vidas; não fomos capazes de perceber; tivemos a oportunidade de conhecer e avaliar;
O Estágio Supervisionado I nos permitiu; nos fazer acreditar que; podemos destacar;
ferramenta que nos permitiu dialogar; contar nossas experiências; instrumento enri-
quecedor para todos nós; finalizamos o presente relatório). No entanto, este estabelece
com o seu leitor um diálogo para atenuar o grau de compromisso com os dizeres e
pensamentos enunciados, evitando impor seus pontos de vista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para o desenvolvimento desta pesquisa, assumimos a perspectiva transdisciplinar
da LA. Buscamos aportes teórico-metodológicos do sistema lógico-semântico de pro-
jeção da LSF, dos estudos bakhtinianos acerca de vozes utilizadas para a elaboração do
relatório de estágio, compreendido por nós como um evento de letramento dominante
para a disciplina de estágio supervisionado na Universidade, além de considerações es-
pecíficas a respeito dos letramentos desenvolvidos pelos estudos dos novos letramentos.

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Problematizamos a escrita utilizada pelos alunos-mestre nos relatórios de está-


gio e caracterizamo-la como de natureza reflexiva profissional, em virtude de esta ser
utilizada para dialogar com a literatura acadêmica, quanto para dialogar com a não
acadêmica e, neste caso, servir para desabafar, compartilhar opiniões, sugestões, etc..
Nas passagens analisadas, em que houve várias projeções com diferentes propó-
sitos, há o discurso do relatório de estágio sendo compreendido como recurso essen-
cial da formação inicial docente. No primeiro fragmento analisado, ocorre projeção
em grupo nominal, identificada no processo verbal abordar; existe ainda projeção que
ocorre por meio de um processo verbal no grupo nominal É importante ressaltar que. A
escolha lexical reforça a prática de escrita como fator importante de profissionalização
do docente, além da presença de uma citação com aspas duplas que vai na mesma dire-
ção das projeções anteriores. Concomitante a essas asserções, noutra passagem, ocorre
ainda a presença do modalizador pode (também frequente no estrato 2) como elemento
que atenua a força da escrita de relatórios para a formação inicial do professor.
No segundo estrato, houve projeção sinalizada no processo mental perceptivo, no
grupo nominal nos fazer acreditar que, no processo mental cognitivo acreditar, servin-
do para avaliar positivamente as experiências vivenciadas pelo aluno-mestre durante as
atividades de estágio. No segundo estrato, ocorrem ainda no processo verbal disse duas
circunstâncias de ângulo indicando fonte, com função de citação: a primeira apenas
citando Roberto Leão; a segunda, atribuindo-se-lhe função atributiva, a partir da qual
o aluno-mestre alinha sua posição à do Presidente da Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação. Além de outras projeções, também encontramos uma
projeção metafórica, no processo mental cognitivo destacar, além de projeções dos
processos verbais dialogar e contar, e um processo relacional é, de forma elíptica, na
expressão [o] Moodle [é] uma ferramenta que (....). Por fim, aparece uma projeção de
circunstância de ângulo ao indicar a fonte: as palavras de Rubem Alves (...).
Nesse sentido é válido acentuar que a projeção é um sistema disperso, operado
em mais de um lugar na GSF,20 sobretudo, não existem padrões definidos de ocor-
rências desse sistema, mas este é algo que para ser identificado depende do contexto
de análise do registro, pois inúmeras possibilidades que adotem os subsídios da LSF
são aceitáveis.

No português brasileiro, apesar de ainda não termos uma GSF, já existem alguns estudos que focam os recursos do siste-
20

ma de projeção, principalmente no nível da metafunção ideacional, especialmente no discurso jornalístico. (cf. ARAÚJO,
2007; OLIVEIRA, 2009; FUZER, 2012a e 2012b; CABRAL e BARBARA, 2012; SOUZA e MENDES, 2012; NININ e
BARBARA, 2013; ).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 65


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REFERÊNCIAS
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brasileiro: uma descrição sistêmico-funcional orientada para os estudos linguísticos da tra-
dução. 2007. 133 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) - Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, 2007.
ARAÚJO, J. C.; DIEB, M. Autoria e deontologia: mediação de princípios éticos e práticas
de letramento na escrita acadêmica em um fórum virtual. Revista Brasileira de Linguística
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Recebido em 15/02/2014.
Aprovado em 20/04/2014.

68 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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ANEXO
Introdução completa do relatório 01:
As atividades de estágio supervisionado são essenciais e de grande importância
para complementar os estudos de profissionais em fase de formação. Na área da edu-
cação, faz se imprescindível a presença de tal etapa para que os futuros educadores
estejam em contato com o lado prático da profissão, na maioria dos casos, é a primeira
oportunidade do acadêmico de aplicar os conhecimentos teóricos adquiridos na uni-
versidade, à realidade apresentada pelo meio social e educacional em que vive. Assim,
(...) é preciso que o estágio propicie ao estudante através de um conhecimento
científico e teórico sólido oportunidades de vivenciar o cotidiano de uma escola
pública e nesse momento buscar uma formação política, através de uma informação
crítica, que o leve a buscar uma articulação com os seus interesses profissionais, que
não permita mais a sua expropriação, nem a sua desvalorização.
(GUERRA, texto digital, [s.d.])

As orientações para o estágio são recebidas na universidade por meio de aulas teó-
ricas para que em seguida os acadêmicos realizem a parte prática em escolas que devem
pertencer à rede pública. O Estágio Supervisionado é uma exigência da LDB (Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional) Lei número 9394, de 20 de dezembro de
1996 (LDB 9394/96).
O Estagio Supervisionado I consiste em observação da prática pedagógica no
ensino fundamental em escolas da rede pública, é uma preparação para a regência e
possui uma carga horária de 15 horas aliadas a aulas teóricas que possuem carga horá-
ria de 30h. Com base nisso, este relatório é fruto de observações realizadas no primeiro
semestre de 2012 em uma escola da rede estadual de Araguaína – TO, que oferece
ensino fundamental (6° a 9° ano) nos turnos matutino e vespertino e a modalidade
EJA (Educação de Jovens e Adultos) no noturno. Foi observada em grande parte da
carga horária, uma turma de 8° ano, e com menor frequência, turmas de 6°, 7°, e 9°
ano, todas no período vespertino. As aulas de língua inglesa nessa escola são oferecidas
duas vezes por semana.
Seguindo as recomendações teóricas que partiram da universidade, durante todas
as observações foram escritos diários que abordavam os acontecimentos da aula, como
o tema, o conteúdo ensinado pela professora, os métodos e recursos utilizados por ela,
as formas de avaliação, o desempenho dos alunos, entre outras peculiaridades. Os di-
ários são essenciais para uma observação eficaz, é o ponto de partida para a reflexão a
respeito da prática pedagógica observada, além de propiciar um contato mais próximo
entre o acadêmico e o meio educacional, é também uma forma de refletir sobre o con-
texto escolar e seus problemas. É importante ressaltar que a prática de escrever sobre o
ambiente escolar não deve necessariamente se restringir ao estágio, mas também estar
presente no decorrer da vida docente do educador, já que isso pode ajudá-lo a aperfei-

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 69


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çoar seus métodos, a respeito disso, “Zabalza, (1994) assume que o professor, ao es-
crever sobre sua prática, aprende e reconstrói, pela reflexão sua atividade profissional.”
(ZABALZA, 1994 apud GALIAZZI e LINDEMANN, 2003, p. 137).
É através do Estágio Supervisionado I que o acadêmico, em muitos casos, tem seu
primeiro contato com as situações do contexto escolar, percebendo-as já com olhar de
educador, é o ponto inicial para aliar o conhecimento teórico à pratica docente e uma
preparação para a regência, onde se tem a oportunidade de fazer de forma diferente o
que foi visto com olhar de reprovação durante as observações. (Informante 01 – Está-
gio em Ensino de Língua inglesa I, 2012.1 – introdução completa do relatório).
Parágrafo introdutório da seção desenvolvimento do relatório 0221:
“– Como você define o perfil da escola pública no Brasil?” “– É uma escola que
passa por enormes dificuldades, e é frequentada, em sua maioria, por pessoas de pou-
cas posses, de classe média baixa, isto é, pessoas que estão em situação econômica
problemática. É a escola que o povo frequenta e que passa hoje por dificuldades de
estrutura, de funcionamento, etc. A escola pública brasileira se sustenta hoje muito
mais pela solidariedade dos profissionais da educação que atuam nela, do que por con-
ta das políticas públicas que deveriam fazê-la funcionar direito”, disse Roberto Leão,
presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, em entrevista
à IHU On-Line, revista produzida mensalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos.
(Parágrafo introdutório da seção desenvolvimento do relatório - Informante 02, Está-
gio I, 2012.2 - LP).

21
Apesar de alguns equívocos linguísticos na transcrição da entrevista, por parte do aluno-mestre, não realizamos correções
no trecho reproduzido. Entrevista completa está disponibilizada em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/23636-a-escola-
-publica-brasileira-uma-realidade-dura-entrevista-com-roberto-de-leao. Último acesso: 14/10/2013.

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INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA NA DOCÊNCIA


UNIVERSITÁRIA: REESCRITA COMO UMA ATIVIDADE
SUSTENTÁVEL NA LICENCIATURA

SCIENTIFIC RESEARCH IN UNIVERSITY TEACHING:


REWRITING AS A SUSTAINABLE ACTIVITY IN THE LICENTIATE
COURSE
Wagner Rodrigues Silva*
Janete Silva dos Santos**
Aliny Sousa Mendes***

RESUMO: Neste artigo, discutimos algumas demandas para o desenvolvimento de


políticas de ensino e de pesquisa sustentáveis para cursos brasileiros de graduação e
de pós-graduação que focalizam a formação do professor de língua. Nessa discussão,
descrevemos uma experiência de reescrita acadêmica numa Licenciatura em Letras,
ofertada no Estado do Tocantins. Alguns pressupostos teórico-metodológicos, origi-
nários de diferentes disciplinas, foram mobilizados e ajustados para desencadear prá-
ticas acadêmicas de ensino e de pesquisa mais significativas para o fortalecimento do
letramento do professor em formação inicial. O olhar crítico da academia sobre as
próprias práticas é caracterizado como uma atitude sustentável para a formação inicial
do professor brasileiro.
Palavras-chave: ensino; letramento; pesquisa; Sustentabilidade.
ABSTRACT: In this paper, we discuss some demands for the development of sus-
tainable teaching and research policies for Brazilian undergraduate and postgraduate
courses that focus on the language teacher training. In this discussion, we describe
an experience of academic rewriting in a Licentiate course in Languages offered in
the state of Tocantins. Some theoretical and methodological assumptions, emerged
from different disciplines, were mobilized and set to unlink more significant academic
teaching and researching practices to strengthen the literacy of the initial training of
the teacher. The critical eye of university on their own practices is characterized as a
sustainable attitude for the initial training of the Brazilian professor
Keywords: teaching; literacy; research; sustainability.

*
Docente da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: wagnerodriguesilva@hotmail.com
**
Docente da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: janetesantos35@yahoo.com.br
***
Mestre em Ensino de Língua e Literatura pela Fundação Universidade Federal do Tocantins.
E-mail: alinymendes.uft@gmail.com

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 71


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“essa Universidade incondicional não existe, de fato. Mas em princípio, e conforme


sua vocação declarativa, em virtude de sua essência professada, ela deveria permane-
cer como um derradeiro lugar de resistência crítica – e mais que crítica – a todos os
poderes de apropriação dogmáticos e injustos” (DERRIDA, 2003, p. 16)

INTRODUÇÃO
A epígrafe deste artigo remete-nos à autonomia universitária ameaçada na socie-
dade contemporânea. Essa autonomia pode ser descrita pela “ideia de um conheci-
mento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto
de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão” (CHAUI, 2003, p.
5). Em oposição à autonomia idealizada, está a fragmentação competitiva das práticas
sociais, em sintonia com demandas mercadológicas que afligem a universidade1.
Quais seriam “os poderes de apropriação dogmáticos e injustos” que, de alguma
forma, estariam desvirtuando a universidade das práticas para ela idealizadas? Uma
resposta possível para o questionamento elaborado pode ser encontrada num outro
questionamento, dessa vez, elaborado pelo próprio Derrida (2003, p. 21): “em que
medida a organização da pesquisa e do ensino deve ser sustentada, ou seja, direta ou
indiretamente controlada, digamos de maneira eufemística ‘patrocinada’, visando a
interesses comerciais e industriais?”.
O enfoque deste artigo recai mais diretamente sobre a prática de pesquisa na
Linguística Aplicada (LA), concebendo o trabalho com a linguagem nos estágios su-
pervisionados obrigatórios das licenciaturas brasileiras como contexto investigativo de
interesse desse campo do conhecimento. Informada pela abordagem transdisciplinar
de pesquisa, a construção de objetos investigativos complexos é apresentada como
“resistência crítica” a pesquisas científicas informadas por práticas do tipo das contra-
postas na epígrafe deste capítulo. O enfoque assumido sobre a pesquisa universitária
alcança as atividades de ensino e extensão, considerando o tripé de atividades acadê-
micas sobre o qual está alicerçada a universidade brasileira.
Nessa lógica do fomento à pesquisa e, também, do reconhecimento pela comu-
nidade acadêmica ou, até mesmo, não acadêmica, da relevância do trabalho científi-
co produzido, inúmeras pesquisas desenvolvidas no âmbito dos estudos linguísticos
parecem ganhar o rótulo de pesquisas aplicadas. A demanda social pela apresentação
de produtos, resultados diretamente aplicáveis a problemas cotidianos, parece alcan-
çar a ciência linguística, que, mais recentemente, vê-se coagida a apresentar respostas
precisas, por exemplo, para os desafios do ensino de língua nas escolas brasileiras de
educação básica.

1
Este artigo contribui para as investigações científicas desenvolvidas dentro dos seguintes grupos de pesquisa: Linguagem,
Educação e Sustentabilidade – LES (UFT/CNPq) e Práticas de Linguagens em Estágios Supervisionados – PLES (UFT/
CNPq), vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura (PPGL), na Universidade
Federal do Tocantins (UFT), Campus de Araguaína.

72 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

Essa demanda pela aplicação dos resultados também se configura como resposta
ao paradigma positivista de pesquisa científica2. Nas humanidades, percebe-se um es-
forço entre os pesquisadores em se distanciar desse paradigma. Ao discutirem a cons-
trução de práticas de ensino e pesquisa interdisciplinares na pós-graduação em Letras,
contexto de produção desta investigação, mais precisamente no Estado do Tocantins,
onde funciona o único programa brasileiro de mestrado e doutorado da área de Le-
tras/Linguística voltado diretamente para pesquisas sobre o ensino e a formação do
professor de língua e literatura, Silva e Pinho (2011, p. 58) pontuam “dois desafios
imbricados nas pesquisas desenvolvidas”: (i) “tensão entre o alcance teórico e a deman-
da da prática pedagógica”; (ii) “distância espacial, não necessariamente física, entre as
instituições de ensino superior e básico”. Tais desafios são caracterizados pelos autores
como respostas à “tradição positivista da prática científica”. Em função desses desafios,
ainda nos termos de Silva e Pinho (2011, p. 58), resta, “quase que exclusivamente, à
universidade, a responsabilidade pela produção do conhecimento científico, esperan-
do-se dessa instituição, portanto, contribuições significativas para o aprimoramento
dos diferentes níveis de ensino”.
Esse cenário brevemente desenhado faz-nos retomar a tese trabalhada por Derrida
(2003, p. 21), ao destacar que “as Humanidades são com frequência reféns dos depar-
tamentos de ciência pura ou aplicada que concentram os investimentos supostamente
rentáveis de capitais estrangeiros no mundo acadêmico”. Nessa perspectiva, inúmeras
perguntas sobre o fazer científico na LA nos sobrevêm, dentre as quais elencamos al-
gumas: o caminho para a libertação das ciências humanas seria a assunção das práticas
de pesquisa dos “departamentos de ciência pura ou aplicada” a que se refere Derrida
(2003)? Haveria outros caminhos para as práticas científicas da LA, os quais não des-
virtuariam esse campo de estudos do conhecimento da Universidade, diferentemente
das “instituições de pesquisa que estão a serviço de finalidades e de interesses econô-
micos de todo tipo”, dispondo-se “da independência de princípio da Universidade”?
Nas próximas seções deste artigo, elaboramos alguma resposta para as perguntas
apresentadas, além de descrever um percurso investigativo sobre a prática de reescri-
ta por professores em formação inicial, aqui denominados de alunos-mestre, numa
Licenciatura em Letras, na Região do Norte do Brasil3. O olhar direcionado sobre
as práticas de linguagem, desenvolvidas na universidade e orientadas pelos próprios
docentes, que também são pesquisadores, configura-se como uma resposta alterna-
2
Em linhas gerais, o paradigma positivista de pesquisa científica, idealizado pelo filósofo francês Auguste Comte, é carac-
terizado pelo aspecto observacional de investigação. Tem a objetividade como referência para análises preferencialmente
quantitativas. Daí sua preocupação com a regularidade de dados estatísticos, anulando ou minimizando o peso de aspectos
subjetivos envolvidos no processo de apreensão da realidade investigada (objeto de pesquisa). Qualquer realidade ou objeto
investigado é visto como sempre o mesmo para qualquer observador-pesquisador. Nesse paradigma, predomina a crença na
ideia de neutralidade por parte do investigador, ao delimitar e/ou ao analisar os fenômenos investigados.
3
Parte desta investigação recebeu a premiação de 1º lugar na grande área de Ciências Humanas, Sociais Aplicadas e Letras,
no VIII Seminário de Iniciação Científica da Universidade Federal do Tocantins (UFT), realizado em dezembro de 2012, em
Palmas – TO. O trabalho foi apresentado por Aliny Sousa Mendes, sob a orientação do Prof. Dr. Wagner Rodrigues Silva. Esta
pesquisa contou com a colaboração do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, a partir
dos seguintes projetos: “Formação Inicial de professores mediada pela escrita” (CNPq/CAPES 400458/2010-1) e “Implicações
dos relatórios de estágio supervisionado para a formação inicial de professores” (CNPq 501123/2009-1).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 73


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tiva ao diligente trabalho realizado na LA para responder às demandas da educação


linguística nas escolas brasileiras, em especial nos contextos desprestigiados. Como
linguistas aplicados, não podemos abrir mão da nossa ‘atividade de casa’, em função
da elaboração das desejadas respostas para as demandas da educação básica. Ou seja,
não podemos ignorar o olhar crítico sobre as práticas pedagógicas desenvolvidas nos
cursos superiores brasileiros de formação de professores, as denominadas licenciaturas,
em função do enfoque, em nossas pesquisas, quase que exclusivo sobre a escola de
educação básica com seus inúmeros atores. Tais práticas pedagógicas não podem ser
ignoradas pelas pesquisas desenvolvidas na pós-graduação.

ESTÁGIO SUPERVISIONADO DA LICENCIATURA COMO


CONTEXTO DE INVESTIGAÇÃO
Na LA, os esforços despendidos nas pesquisas sobre práticas escolares de linguagem
(leitura, escrita e análise linguística), realizadas pelos alunos da educação básica (GON-
ÇALVES, 2010; SILVA, 2012a, só para citar alguns), não podem invisibilizar práticas
de linguagem propostas pelos próprios pesquisadores, docentes universitários, para os
alunos-mestre. Os diversos enfoques e objetos de pesquisas, produzidas nas últimas
décadas na LA, são relevantes para o campo transdisciplinar de estudos linguísticos.
Porém, não podemos nos esquecer de direcionar nosso olhar crítico sobre a própria
universidade, principalmente, quando se torna comum falar do espaço escolar como se
inexistisse alguma conexão entre as ações aí produzidas e as do espaço acadêmico.
O esforço em focalizar essa conexão pode ser conferido em pesquisas a respeito
de questões locais, como a realizada por Santos (2012, p. 146), por exemplo. Ao re-
fletir sobre ensino de leitura, na escola básica, numa perspectiva discursiva, a autora
tece alguns questionamentos sobre como a universidade teria apresentado (ou vem
apresentando), por meio da prática do docente da academia (e não apenas teorica-
mente), referenciais sobre leitura como produção de sentidos aos alunos-mestre. Esses
alunos-mestre, hoje, assumem ou, amanhã, assumirão, efetivamente o trabalho no
ensino básico. Como professores, precisam se esforçar para dar conta das mudanças
de paradigmas, a fim de atender aos desafios no que tange ao ensino de leitura como
produção de sentidos, desvinculado do mero trabalho de decodificação.
Questionamos as práticas acadêmicas nas licenciaturas em função das demandas
de pesquisa científica, instauradas para o fortalecimento do trabalho pedagógico so-
bre/com a linguagem, realizado na escola de educação básica. Nessa perspectiva, as
disciplinas de estágio supervisionado obrigatório, preferencialmente, configuram-se
como um campo fértil para as investigações realizadas na LA. Nesse momento da li-
cenciatura, é inevitável o encontro entre a universidade e a escola de educação básica,
conforme destacam recentes pesquisas que assumem o contexto das referidas disci-
plinas como campo de investigação científica (SILVA, 2008, 2012b, 2013; FIAD e

74 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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SILVA, 2009; CONCEIÇÃO, 2011; MELO, 2011; DINIZ, 2012; GUERRA, 2012;
KLEIMAN e REICHMANN, 2012; TAVARES, 2011; só para citar alguns).
Nosso interesse pelos estágios também se justifica pelos conflitos instaurados
quando a articulação entre teoria e prática se torna inevitável, após alguns anos iniciais
de protelação da articulação desejada pelos alunos-mestre. Ao investigar as operações
linguísticas realizadas por alunos-mestre, no processo de (re)escrita de relatórios de
estágio, Conceição (2011, p. 124), por exemplo, menciona a existência de proposições
de diferentes formas de reflexão sobre a prática pedagógica nas licenciaturas, mesmo
havendo fortes indícios de que “a reflexão tem sido realizada de forma dissociada da
prática, de modo que o ponto de partida e o de chegada tem sido sempre a teoria”.
Ainda nos termos da autora:
quando a interação entre teoria e prática é relegada à responsabilidade dos alunos,
ficando apenas o professor de estágio com toda a responsabilidade de criar as
condições e de garantir a interação entre as duas extremidades que caminham, ao
longo da graduação, paralelamente, o resultado tende a ser problemático.

Nas licenciaturas brasileiras, as disciplinas de estágio supervisionado devem pro-


porcionar maior familiarização dos alunos-mestre com a sala de aula do ensino básico,
em especial com a rede pública de ensino4. Na Licenciatura em Letras, na Universi-
dade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Araguaína, contexto de geração dos
dados desta pesquisa, há quatro disciplinas de estágio supervisionado obrigatório por
habilitação (Língua Portuguesa ou Língua Inglesa).
Além de outras habilidades, assim como destacado por Conceição (2011) e nas
investigações desenvolvidos no âmbito do grupo de pesquisa Práticas de Linguagens
em Estágios Supervisionados – PLES (MELO, 2011; TAVARES, 2011; DINIZ, 2012;
GUERRA, 2012; SILVA, 2012c; 2012d, 2013), em que está inserido o presente tra-
balho científico, os estágios também visam desenvolver nos acadêmicos a capacidade
crítico-reflexiva sobre as práticas pedagógicas experienciadas no local de atuação pro-
fissional, o que precisa se perpetuar ao longo da carreira docente, como defendem
os discursos sobre a sustentabilidade na educação linguística (ARAÚJO; SANTOS;
DIFABIO, 2012, p. 10). Conforme as autoras mencionadas, “uma experiência é sus-
tentável (...) quando as diversas forças que se mobilizaram para concretizá-la (em múl-
tiplos aspectos) continuam ativas (mesmo que modificadas), depois de terminado o
projeto inicial que lhe deu origem”.

4
Nossa ênfase nas escolas públicas se justifica pelo nosso comprometimento político e, também, ético em fortalecer grupos menos
favorecidos da sociedade por meio de ações desenvolvidas na universidade. Lamentavelmente, os alunos das escolas públicas
continuam apresentando menor desempenho, quando comparados à clientela dos estabelecimentos privados de educação básica.
Nessa perspectiva, não compartilhamos do seguinte “consenso tácito”, denunciado por Paiva (2005, p. 46) ao discutir algumas
questões éticas na LA: “quem não ‘paga’ pelos seus estudos teria mais obrigação de aceitar a presença de um pesquisador em sua
escola”. Ainda segundo a autora, “há, também, um preconceito generalizado contra as escolas públicas e um desejo de expor suas
deficiências”. Não duvidamos que “apontar as falhas no ensino público sem trazer nenhum retorno para os pesquisados apenas
contribui para desestabilizar o que já está fragilizado, o que é, no mínimo, irresponsável e não solidário”.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 75


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Em função disso, os alunos-mestre produzem, como trabalho final das disciplinas


de estágio, um relatório escrito, no qual deve constar uma análise crítica das atividades
de observação e regência de aulas, realizadas em escolas de educação básica. Esse docu-
mento deve conter as atividades didáticas desenvolvidas (tanto pelo aluno-mestre, no
período de regência de aulas, quanto pelo professor colaborador do estágio, responsá-
vel pela disciplina na escola pública de educação básica, no período de observação de
aulas), bem como reflexões sobre essas atividades. Tais reflexões devem preferencial-
mente ser justificadas por pressupostos teóricos trabalhados durante as disciplinas de
estágio supervisionado obrigatório na universidade.
Os relatórios da licenciatura mencionada são objeto de investigação neste artigo.
Após avaliação do formador, responsável pela disciplina, esses textos são arquivados
e disponibilizados para pesquisa no Centro Interdisciplinar de Memória dos Estágios
Supervisionados das Licenciaturas (CIMES), no campus universitário focalizado. Por
espelhar o contexto de produção e circulação dos relatórios de estágio supervisiona-
do, a escrita encapsula práticas sociais significativas para serem tomadas como dados
de investigação na LA. A investigação sobre essa escrita contribui para responder os
questionamentos elaborados neste artigo, aos quais acrescentamos mais um, elaborado
por Conceição (2011, p. 135), a saber: “qual tipo de práxis as instituições de ensino
superior estão proporcionando aos profissionais que formam?”5.
Apresentamos os resultados de um estudo de caso sobre atividades de reescrita de
relatórios de estágio supervisionado, produzidos como trabalhos finais das disciplinas
Investigação da Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa: Lín-
gua e Literatura I e II. No primeiro momento desta investigação (SILVA e MENDES,
2012, p. 146), foi analisado o processo de reescrita dos relatórios, mediado pelo forma-
dor, produzidos ao final da primeira disciplina mencionada. Esse estágio se configura
como o primeiro momento de contato dos alunos-mestre com a sala de aula da edu-
cação básica, porém, apenas para observação da prática pedagógica na unidade escolar.
Nesse momento, o aluno-mestre é convidado a fazer uma leitura do trabalho realizado
pelo professor colaborador do estágio, a partir das teorias estudadas na universidade.
Identificamos quatro atividades linguísticas informando a prática de reescrita dos rela-
tórios: (i) apagamento da informação apresentada; (ii) fuga da informação solicitada;
(iii) expansão da informação apresentada; e (iv) reflexão sobre a prática observada.
Neste segundo momento, quando investigamos relatórios que também temati-
zam aulas ministradas pelos próprios alunos-mestre, nas escolas de educação básica,
fundimos as duas últimas categorizações e passamos a utilizar a nomenclatura expansão
reflexiva da informação apresentada. Ao aprofundarmos a análise dos dados, tornou-se
mais evidente que a expansão da informação apresentada ocorre inevitavelmente pela
reflexão dos alunos-mestre sobre as práticas pedagógicas experienciadas nos estágios
supervisionados obrigatórios.
5
Compreendemos por práxis o trabalho contínuo de reflexão sobre a e na ação (ação-reflexão-ação), capaz de oxigenar, deses-
tabilizar e/ou reorientar a rotina docente, ao abrir espaço para transformações necessárias, sonhadas ou, no mínimo, possíveis.

76 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Na avaliação do relatório, realizada pelo formador da disciplina, houve uma ten-


tativa de se evitar a redução do processo avaliativo à mera atribuição de nota. Os
alunos-mestre receberam a primeira versão dos relatórios com comentários escritos
pelo formador, orientando a reescrita do texto, de maneira que o processo vivenciado
pelos alunos-mestre pudesse modelar a prática pedagógica demandada para o futuro
local de trabalho, na escola de educação básica. A reescrita contribuiu para o aprimora-
mento da escrita acadêmica dos alunos-mestre e, até mesmo, para melhor assimilação
do conteúdo disciplinar dos estágios, uma vez que a atividade intensifica a prática de
reflexão sobre a ação orientada por teorias de referência.
Na licenciatura, a avaliação pode desencadear o estreitamento do diálogo entre
formador e aluno-mestre, proporcionado a participação ativa desse último no processo
de construção do conhecimento. Os equívocos pontuados e comentados nos textos
devem ser vistos como ponto de partida para construção do conhecimento, o que
não deveria ser diferente na educação básica. Destacamos a importância de o trabalho
pedagógico nas licenciaturas servirem como modelo de avaliação a serviço da aprendi-
zagem. De acordo com Hadji (2001, p. 20), denominamos essa atividade de avaliação
formativa, a qual
informa os dois principais atores do processo. O professor, que será informado
dos efeitos reais de seu trabalho pedagógico, poderá regular sua ação a partir disso.
O aluno, que não somente saberá onde anda, mas poderá tomar consciência das
dificuldades que encontra e tornar-se-á capaz, na melhor das hipóteses, de reconhecer
e corrigir ele próprio seus erros.

Além do envolvimento dos alunos-mestre, participantes da pesquisa, no processo


de (re)escrita dos relatórios, destacamos o compartilhamento dos resultados gerados
na investigação com os alunos-mestre, durante as disciplinas de estágio supervisionado
obrigatório. Estes demonstraram bastante satisfação com as análises críticas do proces-
so de escrita acadêmica instaurado, configurando, do nosso ponto de vista, a situação
de aprendizagem como um ganho para o letramento do professor em formação inicial.
Ao discutir emancipação como um fim último da pesquisa em LA, Celani (2005, 111)
afirma que os participantes de pesquisa “não podem ser excluídos da etapa final de
apresentação de resultados da pesquisa”6.
Neste momento de nossas reflexões, o leitor pode questionar se não estaríamos
nos contradizendo. Por um lado, questionamos a função da universidade diante da
sedução pelo financiamento ou reconhecimento das pesquisas aplicadas, com repostas
imediatas para problemas sociais. Por outro lado, provocamos essa mesma instituição
por ainda estar enredada numa tradição bacharelesca, caracterizada pela supervalori-
zação das teorias acadêmicas, em detrimento das demandas da prática pedagógica na
6
Ainda segundo a autora “na teoria crítica, a participação de todos não é apenas um meio, mas é respeitada como um fim em
si mesma, pois tem a emancipação como fim último. É a pesquisa entendida como empoderamento (empowerment), sobre
alguma coisa, para algum fim ou para alguém e com alguém. (...) Uma maneira de partilhar conhecimento resultante de um
esforço conjunto poderia ser, por exemplo, a recontextualização dos enunciados nos relatórios ou publicações por meio de
reinterpretações, com a participação dos participantes” (CELANI, 2005, p. 111).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 77


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formação inicial de professores. No tocante ao papel da pesquisa científica na uni-


versidade contemporânea, as demandas da prática de formação inicial de professores
nas licenciaturas não teriam o mesmo peso das demandas das práticas pedagógicas na
educação básica? Não estaríamos apenas reposicionando o enfoque investigativo, mas
permanecendo refém dos mesmos interesses mercadológicos, muitas vezes, desprovi-
dos da criticidade necessária?

LINGUÍSTICA APLICADA NO CONTEXTO DA


UNIVERSIDADE CONTEMPORÂNEA
A LA concebe a linguagem como constituída por um (e num) jogo de forças,
de relação de poder, cujo ator por ela construído e que dela faz uso é social, comple-
xo, com identidade móvel, reconfigurando-se a cada tomada de posição, dependendo
do espaço onde enuncia. Assim, a LA é um campo de investigação com fins de não
apenas compreender problemas que envolvem a linguagem, mas de apontar soluções
para problemas situados de linguagem (SIGNORINI, 1998), vista como ação prático-
-discursiva que implica mais ou menos oportunidades aos atores por ela constituídos.
Isso porque o modo de circulação e de apropriação dos discursos de poder não é dis-
tribuído de maneira equitativa na sociedade, visto que a assimetria na relação de poder
impede tal utopia.
Atores com maior capital simbólico/linguístico, maior mobilidade social poderão
desfrutar nos espaços de prestígio do meio em que vivem (SIGNORINI, 2006), mais
condições terão de se fazer ouvir nos espaços de poder, de reivindicar direitos e deles
usufruir, sendo o contrário, por sua vez, também verdadeiro. Daí a luta travada conti-
nuamente por pesquisadores e professores idôneos, para que, num esforço conjunto,
democratizem-se o acesso e a apropriação, por parte dos cidadãos em maior desvanta-
gens, seja via educação formal, seja via educação popular, aos gêneros discursivos que
circulavam nas esferas de poder, e dos quais aqueles não deveriam ser privados.
A universidade é um espaço privilegiado de discussão a respeito das implicações
de como a linguagem, que nela circula, autoriza ou desautoriza determinados discur-
sos com suas formas linguísticas peculiares, autorizando ou desautorizando, por con-
seguinte, os sujeitos que procuram se estabelecer por meio desses mesmos discursos.
Chauí (2003, p. 5) resume em linhas gerais essas práticas e a legitimidade que constitui
a universidade junto à sociedade, relacionando-as como entidades interdependentes:
A universidade é uma instituição social e como tal exprime de maneira determi-
nada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo. Tanto é as-
sim que vemos no interior da instituição universitária a presença de opiniões, atitudes
e projetos conflitantes que exprimem divisões e contradições da sociedade.

78 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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A filósofa discute ainda as concepções que separam uma instituição social de uma
organização social. Contrapõe as duas perspectivas da seguinte maneira:
A instituição social aspira à universalidade. A organização sabe que sua eficácia e
seu sucesso dependem de sua particularidade. Isso significa que a instituição tem a
sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa, enquanto a
organização tem apenas a si mesma como referência, num processo de competição
com outras que fixaram os mesmos objetivos particulares. Em outras palavras,
a instituição se percebe inserida na divisão social e política e busca definir uma
universalidade (imaginária ou desejável) que lhe permita responder às contradições,
impostas pela divisão. Ao contrário, a organização pretende gerir seu espaço e tempo
particulares aceitando como dado bruto sua inserção num dos pólos da divisão
social, e seu alvo não é responder às contradições, e sim vencer a competição com
seus supostos iguais (CHAUÍ, 2003, p. 6).

A análise de Chauí, porém, vai apontar um quadro adverso ao propósito demo-


crático que deveria dominar a ação universitária, uma vez que a tônica atual do fazer
universitário, imposta pelos parâmetros instáveis das concepções mercadológicas cor-
rentes, configura um caráter organizacional à instituição, em que a competitividade
do mercado impõe um trabalho ofegante aos intelectuais, dificultando a melhor e
mais saudável contribuição destes ao social, pois a graduação está a serviço do mer-
cado transitório e a pesquisa “não é conhecimento de alguma coisa, mas posse de
instrumentos para intervir e controlar alguma coisa” (p.7). Essa forma de organização,
salienta a autora, enfraquece a reflexão e a crítica. Para substanciar sua argumentação,
Chauí aponta as imposições aos pesquisadores de quantitativos abusivos de publica-
ções exigidos pelas agências de fomento à pesquisa; o curto tempo que as organizações
governamentais oferecem aos programas de pós-graduação para se fazer mestrado e
doutorado, ou seja, para se formar de fato um pesquisador crítico etc.
Tais exigências impostas especialmente aos programas de pós-graduação ignoram
situações adversas e particulares enfrentadas pelas universidades localizadas distantes dos
grandes centros de pesquisa, como acontece com as instituições situadas na Região Nor-
te, desprovidas de uma significativa política de sustentabilidade por parte do governo
federal. De acordo com Baumgarten (2002, p. 37), “os centros universitários com me-
lhores condições econômicas e culturais (infraestrutura e massa crítica) obtêm mais fa-
cilmente recursos”. Ainda segundo a autora, “consolidou-se um processo de seletividade
como de regiões e de instituições, de equipes, de pesquisadores e de áreas prioritárias, o
que provocou grande concentração das atividades de pesquisa na Região Sudeste”7.
Como contraproposta a toda essa força que esgota o nobre sentido da universi-
dade como espaço democrático para o pensar e o fazer do trabalho intelectual, Chauí
(2003) aponta alguns caminhos. Dentre eles, estão o resgate da autonomia universitá-
7
Ainda tematizando a ausência de um planejamento sustentável nas políticas públicas de financiamento à pesquisa brasileira,
Baumgarten (2002, p. 38) continua destacando a “concentração de instituições, grupos e recursos em uma região ao lado
do progressivo enfraquecimento de universidades e instituições localizadas fora dos grandes centros e que, entretanto, pela
inserção em suas comunidades, teriam, talvez, melhores para encontrar respostas para problemas locais, desde que fossem
adequadamente qualificadas em termos de infraestrutura e pessoal docente e técnico”.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 79


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ria, a distinção entre democratização da educação superior de massificação, e a revalo-


rização da “docência, que foi desprestigiada e negligenciada com a chamada ‘avaliação
da produtividade’ quantitativa”. (CHAUÍ, 2003, p. 14). O outro ponto, inicialmente
sugerido pela filósofa, na mesma obra, é fundamental para nossa discussão, pois é
também preocupação inerente à perspectiva da LA contemporânea ao pensar o sujeito
da linguagem, sendo função preponderante de quem almeja a democratização efetiva
dos bens públicos. Chauí (2003, p. 12) instiga a comunidade acadêmico-científica a:
Colocar-se claramente contra a exclusão como forma da relação social definida
pelo neoliberalismo e pela globalização: tomar a educação superior como um direito
do cidadão (na qualidade de direito, ela deve ser universal); defesa da universidade
pública tanto pela ampliação de sua capacidade de absorver sobretudo os membros
das classes populares, quanto pela firme recusa da privatização dos conhecimentos,
isto é, impedir que um bem público tenha apropriação privada. Romper, portanto,
com o modelo proposto pelo Banco Mundial e implantado no Brasil com a
pretensão de resolver os problemas da educação superior por meio da privatização
das universidades públicas ou pelos incentivos financeiros dados a grupos privados
para criar estabelecimentos de ensino superior, que provocou não só o desprestígio
das universidades públicas (porque boa parte dos recursos estatais foram dirigidos às
empresas universitárias) como a queda do nível do ensino superior (cuja avaliação era
feita por organismos ligados às próprias empresas).

Desse modo, ao considerarmos as preocupações contemporâneas dos linguistas


aplicados, para a presente época, a saber, de “olhar as relações de poder na formação
do sujeito na linguagem e por meio dela” (DAMIANOVIC, 2005, p. 187). O traba-
lho dentro da universidade é um campo fértil para se investigar essas relações de força,
especialmente em nosso caso específico: cursos de licenciatura.
Nas licenciaturas, promove-se não apenas a formação inicial do futuro docente
do ensino básico, mas também a emergência, mediante os estágios de observação, de
atores críticos ao olhar o outro, à medida que finalizam a formação profissional ini-
cial. Essa formação parece menos eficiente no exercício da criticidade quando olham
para si mesmos, pois são capazes de apontar com certa “facilidade” pontos frágeis do
trabalho do professor colaborador, no ensino básico, pouco dialogando, porém, com
as fragilidades do formador na universidade, quer o de disciplinas referentes ao estágio
supervisionado, quer o das demais disciplinas da licenciatura, chamadas teóricas. Há
de se considerar que apontar problemas é bem mais fácil que sugerir encaminhamen-
tos ou, até mesmo, possíveis soluções para tais. Consequentemente, em relação às suas
próprias fragilidades, os alunos-mestre sugerem uma compreensão pouco crítica ao
tecerem reflexões sobre si, como estagiário, e ao professor colaborador do ensino bási-
co, pois parecerem evitar (ou mesmo parecem não enxergar) contraponto substancial.
Estreitando as críticas feitas por Chauí (2003) à instituição universitária, anco-
rando-nos nas posturas críticas da LA, podemos destacar alguns conflitos (ou mesmo
contradições). A linguagem, a prática e o espaço acadêmicos, em determinados mo-

80 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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mentos, revestem-se, de tal maneira, de autoridade pouco questionável, no imaginário


de muitos que deles participam, que a dificuldade ao realizar o necessário e aprimo-
rador trabalho de autorreflexão reverbera-se naturalmente na relação ofuscada que os
alunos-mestres mantêm com o professor colaborador e com o formador. Semelhante-
mente, o mesmo ocorre em relação ao formador, no que concerne a seu próprio saber e
à sua própria prática. A relação de poder pela qual tais alunos-mestre e tais formadores
transitam favorece a percepção mais aguçada de problemas envolvendo a linguagem
no nível escolar e uma visão mais obscura ao olhar os mesmos problemas no nível (ou
trabalho) universitário.
A desestabilização de tal conjuntura, ao atentarmos para questões éticas nela re-
clamadas, exige do grupo mais favorecido a convicção de que, conforme aponta Moita
Lopes (2011, p. 22) e com o qual concordamos, exatamente por causa desses princí-
pios norteadores do trabalho em LA, devemos “avaliar as vantagens que levamos em
detrimento de outros, assim como nos devem fazer recusar significados que façam
sofrer, um parâmetro do qual não devemos nos afastar”. Parâmetros como esses cor-
roboram a defesa do autor para a assunção de uma LA indisciplinar, não no sentido
de desordenada ou de rebelde pela rebeldia, mas no sentido de caminhar sempre pre-
disposta a ir além de seus próprios limites disciplinares a fim de buscar soluções para
problemas que envolvem a linguagem em toda sua complexidade, visto que não age
no vazio, mas num emaranhado que flutua e ancora a cultura. A linguagem envolve,
alarga o raio de ação, limita ou (des) favorece os sujeitos que por ela se constroem ou
são construídos. Defende-se assim, uma LA predisposta a duvidar de suas próprias
certezas, ainda que certezas momentâneas, como também propõem Santos e Pinto
(2013), ao analisar relatórios de estágio e discurso de estagiários na licenciatura, ge-
rado por entrevistas semiestruturadas. Nessa análise, a voz dos alunos-mestre procura
dividir com o formador as responsabilidades por eventuais dificuldades na sua relação
com o trabalho desenvolvido no ensino básico.
Por conta do desafio desse trabalho indisciplinar em LA, Moita Lopes (2011, p.
22) salienta e questiona:
Atravessar fronteiras no campo do conhecimento, assim como na vida, é expor-se
a riscos. Mas um desafio que se deve encarar com humildade e com a alegria de
quem quer entender o outro em sua perspectiva. A posição na fronteira é sempre
perigosa, já que quem está além da fronteira é aquele que vai se apropriar de nosso
conhecimento, vai falseá-lo ou usá-lo incorretamente. Mas ele pode ser também
aquele que vai nos fazer refletir, pensar de outra forma ou ver o mundo com um outro
olhar. Em sociedades que se constituem cada vez mais de força mestiça, nômade e
híbrida, não seriam as epistemologias de fronteira essenciais para compreender tal
mundo? [itálico nosso]

Afunilando as reflexões do autor para as questões específicas discutidas no presen-


te artigo, fazem-nos pensar a dificuldade que temos em ousar sair de nossas garantias
disciplinares, pois são mais seguras para a comodidade de nossas rotinas/práticas, que

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 81


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sustentam nossas “matrizes fechadas” nas licenciaturas, fomentando, em nosso espaço


específico, dificuldades inclusive de estabelecer diálogos efetivos – e, consequente-
mente, inibindo possibilidades de interação – entre disciplinas teóricas e práticas num
trabalho interdisciplinar ou, até mesmo, transdisciplinar.
A esse respeito, Celani (1998, p. 132) destaca que a transdisciplinaridade “envolve
mais do que a justaposição de ramos do saber”. Justaposição de saberes por si só não
promove a interação, e, como lembra a autora, a interação é “condição essencial para
a transdisciplinaridade” (p. 133). O reconhecimento dessas implicações leva-nos a
contrapor também nossas dificuldades às dos professores do ensino básico local, que
vivem os conflitos entre seus saberes mais assentados e as exigências de novas opções
teóricas e práticas, no seu fazer pedagógico como professor de língua materna (SILVA
e MELO, 2009SANTOS, 2010; SILVA, 2010).
Desse modo, reconhecer a necessidade e a contribuição do outro em nosso tra-
balho é reconhecer também nossas limitações. Entretanto, num mundo em que a
competitividade prioriza o que se projeta como aquele que mais sabe, que mais acerta
e que melhor e mais produz, como realça Chauí (2004), em detrimento do que falha
e produz menos, a “humildade” de que fala Moita Lopes (2011), em excerto supraci-
tado, posta-se como o nosso calcanhar de Aquiles. Todavia, reconhecemos que se nor-
tear por uma postura como a defendida pelo autor é, sem dúvida, fundamental para
o estabelecimento da solidariedade, tão necessária para a busca das soluções almejadas
no trabalho com a linguagem, dentro e fora da universidade, inclusive em práticas de
(re) escrita acadêmica. Tal solidariedade pode se dar mediante a interação de saberes e
de agentes da promoção linguístico-discursiva socialmente mais valorizada.
Nesse sentido, essa solidariedade, se também aplicada a uma divisão mais justa
de recursos financeiros, em relação ao incentivo à pesquisa e ao ensino – cuja boa
qualidade favorece o aparecimento de pesquisadores talentosos – entre os Estados da
Região Norte, seria de grande contribuição ao combate às discrepâncias na produção
e valorização do conhecimento científico entre as cinco Regiões brasileiras. Como
comentado em seção anterior, tais discrepâncias proveem recursos de forma não igua-
litária, mantendo a zona de conforto de centros mais favorecidos no sentido de decidir
inclusive sobre o conhecimento que melhor convém ser pesquisado nas regiões com
menores fatias de recursos.
Neste trabalho, ousamos sair de nossa zona de conforto, que indubitavelmente
impera quando estamos engajados em apenas olhar o outro, mormente em direção a
suas falhas, para flexionarmos nosso olhar sobre nós mesmos, a fim de contribuir para
a reorientação de nossas próprias práticas acadêmicas. Isso poderá ser conferido mais
substancialmente através da experiência na pesquisa apresentada nas próximas seções,
quando o trabalho do formador é objeto de investigação, no empenho de criar con-
dições ao aluno-mestre para se apropriar da escrita reflexiva e acadêmica, significativa
para a atuação profissional sustentável no futuro local de trabalho.

82 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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GERAÇÃO DE DADOS NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO


Assim como realizado na primeira fase da investigação desenvolvida, focalizada
em Silva e Mendes (2012), o formador encaminha a reescrita dos relatórios na disci-
plina Investigação da Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa:
Língua e Literatura II, ministrada no semestre letivo posterior à primeira fase mencio-
nada. Nesse último semestre letivo, a disciplina foi iniciada com o estudo de teorias
linguísticas referentes ao ensino da língua materna. Posteriormente, os alunos-mestre
se reuniram em duplas para realização de atividades na escola campo do estágio: ob-
servação de cinco aulas no Ensino Fundamental II, seguida pela elaboração de planos
de aula para serem utilizados ao longo de 14 aulas ministradas por eles, após aprovação
dos referidos planos pelo formador.
Como avaliação final da disciplina, as duplas produziram relatórios escritos, os
quais são aqui analisados neste segundo momento da investigação científica. Seguindo
as mesmas estratégias do semestre letivo anterior, o formador recebeu e devolveu os
relatórios por e-mail. Os textos foram corrigidos com auxílio da ferramenta de con-
trole de alterações textuais do Word. Por sua vez, os alunos-mestre deveriam reescrever
os relatórios, aceitando ou não as intervenções escritas realizadas pelo formador. Por
fim, as duplas reescreveram os textos e entregaram a versão final do relatório gravado
em CD-ROM.
Analisamos o processo de reescrita dos relatórios, envolvendo a primeira e a se-
gunda versão de 08 (oito) relatórios, totalizando 16 (dezesseis) documentos investiga-
dos. Destacamos um diferencial do segundo estágio supervisionado: os alunos-mestre
ministraram aulas, ou seja, nesta segunda fase, deveriam se posicionar criticamente
diante de suas próprias aulas ministradas, resultando na tematização diferenciada de
conteúdos selecionados.
A escrita reflexiva é concebida como instrumento de mediação na formação do
aluno-mestre. Orientada pelas intervenções do formador, a interação pela escrita con-
tribui para o processo avaliativo desencadeador do fortalecimento dos participantes
da prática de linguagem. Há contribuições para o aluno-mestre, ao refletir sobre ação
pedagógica vivenciada e, até mesmo, sobre o próprio exercício da escrita. Há também
contribuições para o formador, ao avaliar o próprio trabalho realizado a partir do fee-
dback possibilitado pelos textos escritos.

PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Os enunciados produzidos em diferentes modalidades linguísticas são produtos
da interação pela linguagem, são proferidos por alguém e dirigidos a outras pessoas,
numa cadeia enunciativa e dialógica ininterrupta (BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV,
[1929] 2002). Tem-se então, como afirma Brait (1997, p. 98), “o dialogismo como o

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 83


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elemento que instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem, diz respei-


to às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instau-
rados historicamente pelos sujeitos”. As duas versões escritas dos relatórios ilustram de
forma bastante significativa o referido princípio dialógico da linguagem. Os relatórios
investigados apontam para outros enunciados orais e escritos mobilizados em diferen-
tes práticas acadêmicas e, em especial, nas dos estágios supervisionados.
O princípio do dialogismo demanda o posicionamento do formador como lei-
tor interessado na escrita do aluno-mestre, assim como esperado para o tratamento
das produções textuais nas escolas de educação básica. O interesse pela escrita do
aluno resulta respostas ao enunciado escrito do aluno, evitando-se a quebra da ca-
deia enunciativa ‘originária’ do comando da atividade proposta pelo docente. De
acordo com Conceição (2011, p. 140), ao se posicionar como leitor interessado
pela produção escrita do discente, “o professor desempenha papel significativo na
formação do educando, já que aponta caminhos que levam o aluno-autor a decidir
sobre mudanças que podem enriquecer seu conhecimento, sua prática e a reflexão
sobre seu próprio texto”.
Nesta pesquisa, articulamos a perspectiva teórica do dialogismo bakhtiniano a
uma abordagem de análise textual-discursiva, inspirada na proposta da Linguística
Sistêmico-Funcional (LSF). Em outras palavras, a análise linguística dos relatórios
tomados como dados de pesquisa, possibilita a identificação de marcas do contexto de
situação na materialidade textual. As situações enunciativas pontuais estão inseridas
em contextos de cultura, responsáveis por práticas sociais mais amplas produzidas na
interação pela linguagem. O contexto de cultura está relacionado diretamente à ca-
tegoria de gênero textual, o qual é aqui focalizado nos relatórios escritos investigados,
produzidos no contexto acadêmico das licenciaturas brasileiras.
Nessa perspectiva, apresentamos a indissociabilidade na relação texto e contexto
como uma das premissas da LSF. Nas palavras de Eggins (2004, p. 10), “nenhum texto
está ‘livre’ do contexto (registro ou gênero)” (tradução nossa). O discurso se constitui
como resultado das escolhas linguísticas realizadas no sistema da língua e organizadas
na materialidade textual. Nessa mesma perspectiva, a textualidade corresponde ao re-
sultado da interação entre o funcionamento de mecanismos gramaticais e de contextos
enunciativos. Os gêneros, por sua vez, são formas de ação, resultantes da configuração
de atividades construídas socialmente, nas quais os falantes se engajam como mem-
bros de uma dada cultura (MARTIN, 1997).
O gênero pode ser considerado como o caminho percorrido por um usuário da
língua para se atingir objetivos específicos (EGGINS, 2004). As funções desempe-
nhadas pelos relatórios de estágio, na formação inicial dos professores, ilustram esse
caráter instrumental do gênero. Ainda conforme a autora, “os gêneros são sobre as ex-
pectativas, não sobre a determinação. O gênero é aberto, flexível e sensível às necessi-
dades dos usuários”. Sendo os gêneros diferentes formas de usar a língua, encontramos

84 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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usuários que “fazem diferentes escolhas léxico-gramaticais de acordo com os diferentes


propósitos que querem alcançar” (EGGINS, 2004, p. 84; tradução nossa).
Os relatórios de estágio são ainda tomados como gêneros catalisadores, pois têm
uma função significativa na formação inicial de professores8. Nessa perspectiva, utili-
zando-nos das palavras de Assis (2006, p. 14), podemos afirmar que a produtividade
da atividade de reescrita mediada pelo trabalho com relatórios escritos, parece estreita-
mente vinculada “aos procedimentos de correção utilizados pelo professor, o que signi-
fica ver a correção de texto como estratégia metodológica de destaque para o processo
de ensino e de aprendizagem da escrita acadêmica”.
Para fins de análise dos dados, produzimos as seguintes categorizações para des-
crever as atividades linguísticas resultantes das intervenções realizadas pelo formador
na primeira versão dos relatórios aqui focalizados: (i) apagamento da informação apre-
sentada; (ii) fuga da informação solicitada; (iii) expansão reflexiva da informação apre-
sentada. Tais intervenções se configuram como uma estratégia mediadora para con-
tribuir com adequação do texto escrito ao gênero relatório de estágio supervisionado.
O apagamento da informação apresentada corresponde à atividade em que, na se-
gunda versão do texto, o aluno-mestre simplesmente omite a passagem textual da pri-
meira versão, sobre a qual recaem solicitações de esclarecimento por parte do profes-
sor-orientador do estágio supervisionado. Tal tática se configura como a solução mais
fácil encontrada pelo aluno-mestre para responder à indicação da reescrita textual.
Na fuga da informação solicitada, o aluno-mestre parece não compreender o questio-
namento realizado na indicação de reescrita ou simplesmente ignora a orientação dada.
Normalmente, o formador provoca o aluno-mestre para apresentar uma redação mais
crítica ou reflexiva, não se restringindo a descrever ou narrar experiências vivenciadas
nos estágios. Na segunda versão do relatório apresentado, ainda que o questionamento
do formador seja retomado, o texto continua linguisticamente marcado pela narração e
pela descrição. Ou seja, o aluno-mestre continua sem se posicionar criticamente sobre
algo solicitado e a indicação de reescrita continua sem uma resposta esperada.
A expansão reflexiva da informação apresentada corresponde ao resultado produti-
vo da indicação de reescrita. Normalmente, tal indicação demanda explicações adicio-
nais sobre expressões utilizadas pelo aluno-mestre para rotular algum fato vivenciado
durante o período estágio na escola de educação básica. O aluno-mestre reescreve o
texto conforme solicitado nas indicações de reescrita, contribuindo para a formação
do profissional crítico da própria prática profissional. Em outras palavras, a reflexão
crítica sobre o conteúdo relatado se instaura explicitamente na própria materialidade
linguística, configurando-se como resposta possível à intervenção do formador.

8
Segundo Signorini (2006, p. 8), gêneros catalisadores são formas linguístico-discursivas que “favorecem o desencadeamento
e a potencialização de ações e atitudes consideradas mais produtivas para o processo de formação, tanto do professor quanto
de seus aprendizes”.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 85


Universidade Federal da Grande Dourados

Para corroborar a análise qualitativa dos dados, apresentamos adiante (Tabela 1)


o número de ocorrências das intervenções para reescrita, realizadas nos dois semes-
tres letivos consecutivos, focalizados neste artigo. Mesmo considerando a diferença
no número de relatórios investigados por semestre letivo (onze relatórios no primeiro
semestre e oito no segundo, totalizando trinta e oito textos analisados), a tabela indica
redução do número das intervenções realizadas entre os dois semestres, permanecendo
a reflexão crítica pela escrita como desafio para o aluno-mestre.
Ao apresentarmos esse resultado não ignoramos alguns fatores que podem ter
contribuído para o melhor aproveitamento da atividade de reescrita, como, por exem-
plo: (a) maior familiarização desenvolvida entre alunos-mestre e formador; e (b) co-
nhecimento pelos alunos-mestre dos resultados produzidos na primeira fase da inves-
tigação realizada. No segundo semestre da pesquisa, uma aula da disciplina de estágio
supervisionado obrigatório foi separada para socialização dos resultados produzidos,
conforme mencionado na segunda seção deste artigo. Dado o exposto, têm-se indícios
sobre a eficácia do processo de reescrita, como mostra a tabela a seguir:
Tabela 1 - Quantificação das Intervenções para Reescrita

PERÍODO

CATEGORIAS 1º semestre) 2º semestre

Apagamento da Informação apresentada 12 03

Expansão reflexiva da Informação apresentada 37 27

Fuga da informação solicitada 08 00

Correções Linguísticas 55 25

REESCRITA COMO ATIVIDADE MEDIADORA DA


FORMAÇÃO DO PROFESSOR
Inicialmente, os alunos-mestre demonstram alguma resistência às orientações de
reescrita dos relatórios, talvez, por não compreenderem o que lhes era proposto. Isso
nos parece compreensível pela falta de familiaridade dos mesmos com a prática de
reescrita. Conforme falas espontâneas de alguns alunos-mestre, mesmo ao final da Li-
cenciatura em Letras, os acadêmicos escrevem muito pouco e, quando escrevem, difi-
cilmente obtém alguma resposta apreciativa sobre a escrita apresentada. Infelizmente,
a nota da atividade ainda se configura como única resposta para as poucas produções
escritas solicitadas na licenciatura.
Reproduzimos adiante alguns enunciados com intervenções mais gerais feitas pelo
formador sobre as primeiras versões dos relatórios focalizados. A partir do Quadro 1,

86 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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comparamos dados gerados nas duas disciplinas de estágio supervisionado obrigatório.


Assim como as demais passagens textuais, analisadas neste artigo, os textos reproduzi-
dos são exemplares dos dados focalizados na investigação científica realizada.
Quadro 1: Intervenções gerais

1ª FASE DA PESQUISA 2ª FASE DA PESQUISA

1. Não encontrei momentos significativos no Trazer a atividade de leitura do anexo para o


relatório em que vocês discutissem ou ana- corpo do texto e analisar criticamente aqui.
lisassem atividades, materiais didáticos ou
aulas, focalizando conteúdos do ensino de
língua portuguesa. Portanto, retomem as ati-
vidades didáticas, podem analisar inclusive as
questões dos exercícios que aparecem no ane-
xo, levando-os para o corpo do relatório.

2. TRAZER AS QUESTÕES PARA O CORPO DO SEU TEXTO ESTÁ MUITO DESCRITIVO. PRO-
RELATÓRIO E ANALISÁ-LAS CUREM REFLETIR CRITICAMENTE SOBRE AS
SITUAÇÕES VIVENCIADAS NO ESTÁGIO.

3. TRAZER A ATIVIDADE E ANALISAR AQUI. Apresentem exemplos de atividades produ-


LEMBRE DO TEXTO SOBRE ENSINO DE GRAMÁ- zidas pelos alunos e analise-as aqui.
TICA TRABALHADO NO LIVRO DO SEMINÁRIO
E DOS PCN.

4. Vocês precisam apresentar alguma propos- SEJAM MAIS CRÍTICAS SOBRE AS AULAS DE
ta ou exercício didático utilizado em sala de VOCÊS. COMO AS AULAS PODERIAM SER ME-
aula e analisar neste relatório! Quais são as LHORADAS, VOCÊS FARIAM ALGO DIFEREN-
contribuições do estágio para a formação de TE HOJE? QUAIS AS EXPECTATIVAS PARA OS
vocês como professores de língua materna? E PRÓXIMOS ESTÁGIOS?
quais as contribuições da produção deste rela-
tório para a formação de vocês?

No Quadro 1, são recorrentes intervenções demandando a necessidade de mais


elaboração da escrita reflexiva. Tais intervenções se configuram como uma necessidade
de adequação do texto ao gênero relatório de estágio. Nas duas disciplinas, o forma-
dor procura contribuir com a fixação das características do referido gênero. Apesar de
os conteúdos das intervenções serem bastante parecidos nas duas fases da pesquisa,
notamos uma significativa redução desses enunciados. Na segunda fase, o progresso
observado na escrita dos relatórios se torna ainda mais evidente pela recorrência de
enunciados em que o aluno-mestre é provocado a tematizar as expectativas para as
atividades do estágio obrigatório a ser cursado no semestre letivo posterior. Tal provo-
cação evidencia o esforço do formador em contribuir com o aprendizado do aluno-
-mestre, ainda que o relatório escrito responda às expectativas imediatas da disciplina.
Entretanto, pode-se indagar, no exemplo acima, quando o formador solicita aos
alunos-mestre mais criticidade, o que significaria ser crítico para estes sujeitos em for-

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 87


Universidade Federal da Grande Dourados

mação inicial e em estágio de observação. Se considerarmos certos relatórios de alunos-


-mestre em períodos finais de estágio, a criticidade se manifesta, com mais incidência,
na capacidade de apontar as fragilidades do trabalho docente no ensino básico. O que
se almeja, porém, é que o aluno-mestre consiga, mais que identificar falhas, propor
soluções, bem como identificar, na mesma medida se possível, os pontos louváveis no
trabalho do professor do ensino básico, contribuindo, desse modo, para fortalecê-lo
como profissional. Esse exercício compete ao formador fomentar a fim de que, nesse
processo de fortalecimento do letramento do professor, este seja capaz também de
exercitar a salutar crítica a seu próprio trabalho.
Dando prosseguimento à análise dos dados, apresentamos alguns exemplos das
intervenções para reescrita categorizadas nesta pesquisa. Neste artigo, deixamos de
lado os casos de fuga da informação solicitada, pois não houve essa ocorrência na se-
gunda fase da pesquisa. Nos exemplos reproduzidos, os destaques com sublinhados
reproduzem a marcação textual realizada pelo formador, nos relatórios escritos. Os
destaques para auxiliar a análise dos dados foram por nós realizados com itálico.
Quadro 2: Apagamento de informação apresentada

Exemplo Primeira Versão Indicação de Reescrita Segunda Versão

Sendo assim, o estágio Seria bom discutir essas Sendo assim, o estágio
constitui-se em impor- questões de forma situa- constitui-se em impor-
tante instrumento de da no estágio que realiza- tante instrumento de
conhecimento e de inte- ram, não de forma gené- conhecimento e de inte-
Exemplo 1
gração do aluno à reali- rica: teoria pela teoria. gração do estágio à reali-
dade social, econômica e dade social.
do trabalho em sua área
profissional.

A leitura do foi realiza- O que significa isso? No primeiro momento


da de maneira ampla. fizemos uma leitura em
Exemplo 2 Primeiramente, fizemos voz alta, dando ênfase à
uma leitura em voz alta, historia...
dando ênfase à historia...

No Quadro 2, evidenciamos indícios de resistência dos alunos-mestre em relação à


prática de reflexão pela escrita nos relatórios de estágio. No Exemplo 1, o formador pare-
ce provocar os alunos-mestre para evitar afirmações descontextualizadas da experiência
vivenciada nos estágios obrigatórios. Tais afirmações limitam-se, normalmente, a ecoar
discursos da literatura especializada sobre estágio supervisionado, a qual pouco tem
contribuído para as especificidades das diferentes licenciaturas. No Exemplo 2, o forma-
dor provoca os alunos-mestre a esclarecer a forma adverbial de maneira ampla, a qual
evidencia comprometimento dos produtores do texto com o conteúdo tematizado.

88 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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O fenômeno da expansão reflexiva da informação apresentada é exemplificado no


Quadro 3, reproduzido adiante. Nos Exemplos 3 e 4, observamos que as próprias per-
guntas utilizadas pelo formador podem aguçar ainda mais a reflexão dos alunos-mestre
sobre o relato apresentado, levando-os a se posicionarem mais criticamente diante dos
fatos (Por que a reescrita não funcionou?; O que poderia ser feito?). Esse posicionamento
se manifesta na versão reescrita do relatório, o que é perceptível, principalmente, pelas
formas verbais (vimos; pudessem; Entendemos; deve; devem) e pelas formas adverbiais na
função de modalizadores (talvez; provavelmente; bastante) destacadas em itálico. O uso
de algumas formas verbais no pretérito imperfeito do subjuntivo, articuladas às formas
em outros tempos e modo verbais, contribui para a construção de sequências textuais
marcadamente argumentativas.
Quadro 3: Expansão reflexiva da Informação apresentada

Indicação de
Exemplo Primeira Versão Segunda Versão
Reescrita

Nesse texto, apesar da Por que a reescrita Apesar de termos pedido aos
aluna ter faltado no dia não funcionou? alunos que reescrevessem os
da pesquisa sobre o gê- textos, não vimos mudança,
nero musical preferido talvez pelo fato dos alunos não
do aluno, achamos inte- estarem acostumados com esse
ressante a opinião dela tipo de trabalho. Por mais que
em relação ao tema pro- nós os orientássemos e que a
posto. Contudo ela não ideia deles em relação ao assun-
soube conectar as ideias, to fosse boa, eles não fizeram as
Exemplo 3
mesmo utilizando-se de mudanças necessárias para que
alguns conectores, até os textos pudessem ter uma es-
mesmo repetindo-os al- trutura organizada do início ao
gumas vezes em um tex- fim. Talvez se esses alunos pu-
to tão pequeno. Todavia dessem ter a oportunidade ou
podemos compreender então pudessem trabalhar mais
o texto, embora apresen- com produções textuais, prova-
te algumas lacunas. velmente as produções deles
melhorariam bastante.

Depois de analisarmos O que poderia ser Quando analisamos nossa pri-


nossa primeira aula com- feito? meira aula, compreendemos o
preendemos o que pode- que poderia ser feito para me-
ria ser feito para melho- lhorar nas próximas aulas. En-
Exemplo 4
rar nas próximas aulas. tendemos que o texto deve ser
bem explorado, e que pergun-
tas relacionadas ao texto de-
vem ser feitas depois da leitura.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 89


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Essa abordagem de reescrita, mesmo com algumas limitações, por conta dos na-
turais desencontros entre sentidos pretendidos e efetivados nas trocas enunciativas,
mormente a distância como ocorre comumente na comunicação escrita, é uma forma
eficaz de se contribuir para que o futuro professor se exercite em seu processo de es-
crita e aproprie-se de formas textual-discursivas prestigiadas na esfera em que atua. É
também uma forma de vivenciar e de se apropriar de modos pedagógicos de agir, pos-
teriormente efetivando-os, também, em sua atividade de sala de aula, como professor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, discutimos alguns pontos que se configuram como elementares para
o fomento sustentável da pesquisa nas licenciaturas e na pós-graduação desenvolvida
na Região Norte do Brasil, em consonância com o estatuto solidário dos princípios que
norteiam as pesquisas em LA, bem como enfatizamos as reivindicações da perspectiva
atual da LA quanto à conduta democrática e ética reclamada aos pesquisadores, ao li-
darem com problemas situados de linguagem de modo a diminuir o peso da opressão
vivida pelos mais desfavorecidos. Discutimos, outrossim, a relação do trabalho escolar
e do trabalho acadêmico com a linguagem. Em outras palavras, analisamos o esforço
de práticas pedagógicas que possibilitam ao aprendiz, seja o escolar, seja o acadêmico,
apropriar-se de gêneros textuais que integram sua ação pela linguagem na vida social,
visto que também a universidade espelha molduras da sociedade.
Por fim, acreditamos que o caminho percorrido até aqui, iluminado pelas ressal-
vas de Derrida, transcritas na epígrafe deste artigo, possibilitou-nos marcar posição
prático-discursiva em meio aos conflitos por que passa a universidade brasileira, hoje,
quanto ao tripé que a sustenta: ensino, pesquisa e extensão, visto que a exigência
por resultados de pesquisas e quantitativos excessivos de publicações em muito pouco
tempo acaba relegando ao ensino status secundário, invertendo o peso e a ordem das
colunas-base da instituição. Nas licenciaturas precisamos, sem dúvida, avançar nas
pesquisas, mas sem desmerecer o impacto que carecemos de promover também no en-
sino para a formação robusta e sustentável do cidadão-profissional-crítico, apesar das
maléficas imposições mercadológicas que a visão contemporânea vem fazendo sobre o
trabalho intelectual.
Na Região Norte, a sustentabilidade na promoção de pesquisas e no esforço de
um trabalho relevante das licenciaturas, através dos estágios obrigatórios, pede não
apenas o comprometimento dos profissionais com o desenvolvimento da região, mas
a manutenção de políticas afirmativas que agreguem valor não apenas à pesquisa e à
divulgação científica, como também e, com o mesmo impacto, ao ensino de qualida-
de, que se fortalece com a formação consistente de docentes para a atuação ainda na
educação básica.

90 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

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Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 93


PRÁTICA ESCOLAR DE LINGUAGEM
Universidade Federal da Grande Dourados

MOBILIZANDO OLHARES DE ESTAGIÁRIOS EM


LETRAS SOBRE AS AULAS DE PORTUGUÊS E
LITERATURA NA ESCOLA

MOBILIZING THE VIEWS OF TRAINEES IN LANGUAGES ABOUT


PORTUGUESE AND LITERATURE CLASSES AT SCHOOL
Clara Dornelles*

RESUMO: Este artigo traz resultados de uma discussão piloto, ainda em fase inicial
de elaboração, organizada em torno da reflexão sobre as relações entre a abordagem
etnográfica e o letramento profissional, e suas implicações para a formação de profes-
sores de língua portuguesa e de suas literaturas. Ao focalizar o texto de estagiários sobre
a escola, buscamos produzir contextos para analisar um problema que nos tem pre-
ocupado há algum tempo no campo aplicado de estudos da linguagem: o da relação
entre teoria e prática. Interessa-nos, pois, contribuir para a análise dos processos tensos
e contraditórios imbricados nessa relação que consideramos ser chave na formação de
professores. Os dados gerados provêm de artigo sobre a observação da prática docente,
elaborado durante o componente de Estágio supervisionado I, no primeiro semestre
de 2009, por duas estagiárias do curso de Letras de uma universidade pública no in-
terior do Rio Grande do Sul.
Palavras-chave: aulas de língua portuguesa e literatura; letramento profissional; pers-
pectiva etnográfica.
ABSTRACT: This paper brings results of a pilot discussion, still in early stages of
drafting, organized around the reflection about the relations between the ethno-
graphic approach and professional literacy, and its implications for the training of
Portuguese teachers and its literatures. This article presents a pilot study, in its initial
phase of elaboration, about the reflection on the relationship between the ethno-
graphic approach and professional literacy, and its implications for the formation of
Portuguese and literature teachers. When focusing on the text of the trainees about
the school, we seek to produce contexts to analyze a problem that has been concerned
for some time on the field of applied language studies: the relationship between
theory and practice. It interests us, therefore, to contribute for the analysis of tense
and contradictory processes imbricated on this relationship we believe to be the key
in teacher training.As we focalize the text of trainee students about school, we try to
produce contexts to analyze a problem that has worried us for some time in the field
of applied linguistics: that of the relation between theory and practice. It is our inter-
*
Docente da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). E-mail: claradornelles@gmail.com

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 97


Universidade Federal da Grande Dourados

est to contribute for the analysis of contradictory and tense processes articulated in
this relation that we consider central for teacher training. The generated data come
from papers about the observation of teaching practice, drawn up during the Super-
vised traineeship I course component on the first semester of 2009, by two trainees
from the Languages course of a public university in the countryside of Rio Grande
do Sul. The data generated is from a paper written by two students trainee during
a curricular component called Teacher Training I, in 2009. The paper focuses on
teacher’s practice in school and the authors were students of the Letras course in a
public university, in the interior of Rio Grande do Sul.
Keywords: Portuguese and literature classes; professional literacy; ethnographic
perspective.

INTRODUÇÃO
Na esteira das reformas curriculares, desde a década de 1970, o ensino de língua
portuguesa tem sido alvo de críticas de estudiosos da linguagem, sob a alegação de que
as práticas tradicionais dos professores de português não contribuem para a formação
de sujeitos críticos e reflexivos (ANTUNES, 2003), ou para a promoção dos letra-
mentos necessários para o exercício da cidadania (ROJO, 2009). Tratando o “ensino
tradicional” como uma prática descontextualizada e ahistórica (ANGELO, 2005), os
textos de referência sobre o ensino de língua portuguesa, e as próprias diretrizes ofi-
ciais, têm contribuído, nos cursos de Letras, para a produção de avaliações negativas
e generalizantes a respeito do trabalho do professor. As práticas em que esses textos se
inspiram são práticas abstratas, uma vez que a maioria de seus autores não apresenta
dados empíricos para corroborar suas asserções. De caráter fortemente argumentativo,
esses textos convencem o leitor pela ênfase que dão à necessidade de mudança de prá-
ticas “já ultrapassadas” (cf. PIETRI, 2003).
Os estudantes de Letras e seus formadores são os leitores privilegiados dos textos
de referência e das diretrizes oficiais e, não raro, aderem sem muitos questionamentos
aos discursos que, de um lado, criticam práticas de ensino tradicionais e, de outro,
propõem práticas inovadoras legitimadas pelos saberes da ciência (cf. DORNELLES,
2008). Entendemos que a adesão acrítica a esses discursos é prejudicial aos processos
de letramento acadêmico e profissional do futuro professor, uma vez que promove a
constituição de uma atitude prescritivista e cientificista a respeito do que se “deve”
fazer na escola, obscurecendo a complexidade dos processos em andamento em situa-
ções específicas de uso da linguagem.
Por assumirmos uma visão dialógica da linguagem (BAKHTIN, [1952-1953]
1992), discordamos de encaminhamentos metodológicos que subsidiam leituras que
desconsideram os contextos em que as práticas pedagógicas se desenvolvem. Defende-
mos que a reflexão crítica no que tange ao ensino de língua portuguesa deve se dar

98 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

mediante análises de cunho aplicado que busquem apreender de maneira situada os pro-
cessos e práticas constituintes da instituição escolar e, por conseguinte, da sala de aula.
No texto que segue, argumentamos que a orientação etnográfica de pesquisa se
apresenta como uma abordagem relevante para a formação de professores, pois mobi-
liza os olhares na esfera do cotidiano escolar e possibilita aos futuros professores desen-
volver seu letramento profissional, isto é, as capacidades de participação em práticas e
exigências específicas de letramento no local de trabalho (KLEIMAN, 2003; SILVA,
2012). Nossa análise focalizará os efeitos da orientação etnográfica na (re) textualiza-
ção de observações e reflexões de estagiários em Letras acerca da prática docente em
aulas de português e de literatura na educação básica.
Este artigo traz resultados de uma discussão piloto, ainda em fase inicial de elabo-
ração, organizada em torno da reflexão sobre as relações entre a abordagem etnográfica
e o letramento profissional, e suas implicações para a formação de professores. Ao fo-
calizar o texto de estagiários referindo-se à escola, buscamos produzir contextos para
analisar um problema que nos tem preocupado há algum tempo no campo aplicado de
estudos da linguagem: o da relação entre teoria e prática. Interessa-nos, pois, contribuir
para a análise dos processos tensos e contraditórios imbricados nessa relação que consi-
deramos ser chave no processo de formação de professores. Os dados gerados provêm
de artigo elaborado a partir da observação da prática docente em uma escola pública,
e foi produzido em conjunto, no primeiro semestre de 2009, por duas estagiárias do
curso de Letras de uma universidade pública no interior do Rio Grande do Sul1.

ABORDAGEM ETNOGRÁFICA
E LETRAMENTO PROFISSIONAL
A análise do processo de letramento profissional de professores requer a proble-
matização do que se entende por discurso didático. O discurso didático envolve ope-
rações discursivas de reformulação (MATENCIO, 2001), categorização, especificação
ou exemplificação e se distancia, em certa medida, das operações da conversa cotidiana
(KLEIMAN, 2003). Seu principal objetivo seria o de “ajudar o aluno a construir co-
nhecimento” (KLEIMAN, 2003, p. 52). Kleiman adverte que a ausência, na sala de
aula, das operações características do discurso didático torna mais difícil para o aluno
apropriar-se do conhecimento e generalizá-lo para outras situações.

1
O artigo analisado faz parte das produções da primeira turma de estágio supervisionado em língua portuguesa e literatura
na referida universidade e compõe o acervo em organização e análise pelo Grupo de Estudos Linguagem e Currículo (GELC/
CNPq), cujas pesquisas têm sido fomentadas com recursos da própria universidade e da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). Além de agradecer às instituições citadas pela concessão de bolsas a graduandos
que participam do GELC, agradeço profundamente aos graduados do curso de Letras da Unipampa/Bagé, sobretudo às turmas
formadas em 2012 e 2013, que não apenas foram provocadas pelas minhas reflexões, mas me provocaram também com as suas.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 99


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A assunção de uma concepção social da linguagem nos leva a compreender a aula


como prática social coconstruída (JACOBY; OCHS, 1995) por professor e alunos e,
como tal, como espaço que não se restringe à construção de conhecimentos em torno
de um objeto de ensino, mas inclui a negociação de relações interpessoais, papéis e
normas peculiares a esse contexto. As comunidades escolares estabelecem suas próprias
rotinas didáticas e, embora a orientação principal se dê pelos professores, a ação dos
alunos é constitutiva desse processo.
Em conformidade com as políticas oficiais de ensino (BRASIL, 1998; 2006), as
práticas didáticas incluem, idealmente, planejamentos que considerem os interesses
do alunado, avaliações da aprendizagem que sejam processuais, além da condução
dialógica das ações em sala de aula (cf. DORNELLES, 2012). Contudo, a análise
das práticas em muitas escolas nos revela que o professor nem sempre planeja a aula,
a avaliação se dá muitas vezes com foco no produto revelado em provas e, em muitos
casos, a fala do professor se constrói como um discurso monológico que não se afeta
por questionamentos ou dúvidas que os alunos possam expressar.
Kleiman (2003) indica que muitos professores reproduzem em sala de aula estilos
de comunicação cotidiana que poderiam impactar negativamente o discurso didático
e que, justamente por isso, deveriam ser problematizados nos programas de formação
de professores. Para a autora, a pedagogia culturalmente sensível (ERICKSON, 1987)
aponta caminhos para explorar o letramento profissional de professores, porque torna
possível compreender a sala de aula como espaço intercultural, em que se reconhecem
as diferentes experiências de professores e alunos enquanto membros de uma socieda-
de letrada. Na visão de Kleiman (2007, p. 19), a orientação etnográfica possibilita a
compreensão de que os alunos têm diferentes bagagens culturais, torna mais fácil para
o professor permitir que os alunos ajam de forma diversificada e, assim, “criem táticas
diferentes para lidar com suas limitações ou potencialidades”, “aportem compreensões
diferentes”, devido às “suas aprendizagens extremamente variadas” e oriundas de espa-
ços não necessariamente escolares. Como observa a autora:
Fica mais difícil, para o professor que aprende e registra a cultura do outro, negar
a existência de práticas culturais diferentes e rejeitá-las a priori, o que torna menos
conflitiva a interação. Daí a pertinência da proposta de ensinar-se, no curso de
formação inicial ou continuada, princípios e técnicas para fazer observações
participantes e analisar as interações observadas, minimizando os filtros grafocêntricos
que impomos nas nossas interpretações do mundo social (KLEIMAN, 2007, p. 19).

A etnografia pode, assim, ser tomada como orientação aliada para o letramento
profissional dos estudantes nos cursos de Letras. A inserção do graduando no mundo
da escola envolve o reconhecimento das práticas sociais em que se articula o objeto de
ensino das áreas específicas. Nossa trajetória de quinze anos com a formação inicial de
professores2, bem como experiências recentes no Programa de Iniciação à Docência

2
Destes 15 anos, há 12 como orientadora de estágio supervisionado.

100 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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(PIBID) (cf. DORNELLES; IRALA 2013) nos permite afirmar que a tentativa de
vivenciar as práticas sociais da comunidade escolar pode minimizar o distanciamento
entre teoria e prática sobre/na sala de aula, já que, diferentemente das abordagens dis-
ciplinares prescritivistas focalizadas “no que deve ser ensinado”, visa à aproximação de
perspectivas que “teorizam a prática” a partir do ponto de vista de quem a promove.
Isso possibilita ao professor em formação desenvolver as capacidades de letramento
relevantes para o exercício profissional, ou seja, para sua compreensão e participação
das/nas ações levadas a cabo no cotidiano institucional da escola.
Além de poder identificar o que é rotineiro nas práticas escolares, a orientação et-
nográfica permite apreender as ações “submersas”, isto é, aquelas que nem sempre são
evidentes para os próprios atores que as desempenham, ou que não têm legitimidade
para perderem a “invisibilidade” característica das ações marginais. Mas a orientação
etnográfica não pode também ser tomada em uma acepção acrítica, que negligencia
as hierarquias institucionais entre atores, práticas e conhecimentos e toma os achados
etnográficos como “revelações”. É pressuposto básico da etnografia a necessidade de
“triangular” fontes de dados e confrontar pontos de vista, o que faz do texto etnográfi-
co uma construção discursiva e plurivocal. Como afirma Duranti (1997, p. 87):
[…] Escrever etnografia implica a compreensão de muitos pontos de vista, às vezes,
contraditórios, às vezes complementares. Uma etnografia de sucesso, então, não é um
método de escrita em que o observador assume uma perspectiva – seja ela “distante”
ou “próxima” –, mas um estilo em que o pesquisador estabelece um diálogo entre
diferentes pontos de vista e vozes, incluindo aquelas do grupo estudado, do etnógrafo
e das suas preferências disciplinares e teóricas (nossa tradução)3.

Ao trilhar o caminho entre as perspectivas identificadas nas escolas (ponto de vista


“êmico”) e a sua própria, o estagiário mobiliza suas representações a respeito da prática
pedagógica, trazendo à tona seus medos, anseios e experiências, que são verbalizados,
muitas vezes, como “queixas” do distanciamento entre teoria e prática, ou entre o que
se diz (na universidade) e o que se faz (na escola). Não raro, essas dicotomias direcio-
nam o olhar do estagiário, que, muito em função da distância que reconhece entre
as “inovações” universitárias e as “tradições” escolares, avalia negativamente a prática
do professor. O rompimento dessas dicotomizações pode acontecer se as práticas de
letramento do local de trabalho se tornarem objetos de discussão, o que, em nosso
caso específico, remete à busca por novas textualizações acerca da “aula”, que permi-
tam reconhecê-la, a partir de descrições calcadas no uso situado da linguagem, como
gênero multimodal e prática inter/multi/cultural.
Nossa análise focalizará os efeitos da orientação etnográfica na (re)textualização
de observações e reflexões sobre a prática docente em aulas de português e de literatura
na educação básica. Pautando-nos em Matencio (2003), compreendemos a textualiza-
3
[...] Writing ethnography implies the understanding of several, sometimes contradictory, sometimes complementary points
of view. A successful ethnography, then, is not a method of writing in which the observer assumes one perspective – whether
“distant” or “near” –, but a style in which the researcher establishes a dialogue between different viewpoints and voices,
including those of the people studied, of the ethnographer, and of his disciplinary and theoretical preferences.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 101


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ção como o agenciamento de recursos de uso da linguagem em operações linguísticas,


textuais e discursivas e, a retextualização, a produção de um novo texto a partir de
outro texto (ou textos) tomado como base. Nesse processo, “o sujeito trabalha sobre
as estratégias linguísticas, textuais e discursivas identificadas no texto-base para, então,
projetá-las tendo em vista uma nova situação de interação, portanto um novo enqua-
dre e um novo quadro de referência” (MATENCIO, 2003, p. 4).

CONTEXTO DE INVESTIGAÇÃO E DESENHO


DA PESQUISA
Nossos dados de pesquisa são oriundos de artigo produzido, em dupla, no ano de
2009, por duas estudantes de Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa e Res-
pectivas Literaturas I da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), localizada
no interior do RS. Segundo a ementa da disciplina, o Estágio I4 estava centrado em:
“observação de aulas de português e/ou literatura em escolas de ensino fundamental
e/ou médio. Reflexão sobre a prática pedagógica a partir da realidade local”. A disci-
plina voltava-se, especialmente, para a observação de aulas de português no ensino
fundamental e de literatura no ensino médio, e os estagiários não realizavam nenhuma
atividade didática em que se posicionassem como professores5.
Orientamos a observação para os seguintes elementos: estrutura e funcionamento
da escola; proposta pedagógica (concepções vigentes); contexto social em que está
inserida a escola; história de formação da professora; papéis desempenhados, visões e
ações de professoras e alunos. A observação deveria seguir o que chamamos de “traje-
tória etnográfica”, iniciando com o registro, em notas de campo e portfólio, gerados
a partir de análise documental e entrevistas. As alunas também mantinham um diário
de campo, que serviu de espaço para o diálogo com a orientadora de estágio e subsi-
diou a elaboração do produto final da disciplina, um artigo (o qual chamaremos de
artigo final)6, em que os estagiários deveriam apresentar análise das ações observadas,
e deveria organizar-se segundo a estrutura composicional a seguir:
1. Introdução
2. Referencial Teórico
3. Metodologia - 3.1 A escola e os participantes]

4
Essa fora a primeira turma de estágio na área de Letras na universidade em questão. Nessa época, a disciplina introdutória de
estágio fazia parte do 6º semestre. Com a reforma curricular, dois anos depois, o Estágio I foi antecipado para o 5º semestre.
5
Em função de nossa experiência com o estágio de observação, e, juntamente a outros docentes de estágio, ajustamos o currículo
da graduação para que o estágio inicial em língua portuguesa e literatura incluísse o planejamento e desenvolvimento de uma
atividade didática, com o intuito de tornar possível que os estagiários não apenas observassem os professores na escola, mas
também se colocassem em seu lugar. Experiências posteriores nos mostraram o quanto esta vivência é relevante para o ama-
durecimento da identidade, autonomia e autocrítica docente dos professores em formação inicial (cf. DORNELLES, 2012).
6
Para a maioria dos alunos, este foi o primeiro artigo acadêmico produzido, o que talvez explique a dificuldade em expressar o
relato das aulas observadas de uma forma mais analítica. A análise de fato acabou sendo incluída na parte chamada “Discussão”.

102 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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4. As aulas observadas - 4.1 Planejamento didático; 4.2 Ação pedagógica (texto


do diário7); 4.3 Discussão
5. Considerações Finais
6. Referências
7. Anexos
Após os primeiros relatos sobre a prática (em exposição oral e debate sobre o re-
latório parcial8), observamos que os esforços para que as alunas olhassem ao mesmo
tempo crítica e sensivelmente para as aulas parecia não ter muito efeito. Em função
disso, pedimos que iniciassem a produção do artigo final enquanto a disciplina ainda
estava em andamento e desenvolvemos um processo de mediação das reflexões, por
meio da solicitação de explicitação de evidências para suas asserções (o que elas nem
sempre conseguiam fazer). A partir desta orientação, os anexos, por exemplo, se tor-
naram uma parte importante do artigo, pois os alunos passaram a inserir nele imagens
que justificavam muitas das asserções feitas no corpo principal do texto. Além disso,
notamos que os estagiários tornaram-se mais detalhistas e seletivos nas escolhas das
imagens para compor os anexos, que não eram elaborados de forma aleatória ou sem
relação com o texto antecedente.
Os excertos apresentados a seguir, na análise, constituem-se como sequências nar-
rativo-argumentativas, como explicaremos adiante, e ilustram os recursos utilizados pe-
las estagiárias para construírem e justificarem, no artigo final, seu ponto de vista a res-
peito das aulas observadas. Foram selecionados e organizados nas seguintes categorias
(elaboradas por nós): (i) explicitação de ponto de vista (excertos da introdução e das
considerações finais) ; (ii) relato das aulas observadas (excertos do item “Ação pedagó-
gica”); (iii) discussão tematizando a observação ou evidências para as asserções feitas
(excertos dos itens “Discussão” e “Anexos”). Na seleção dos segmentos de explicitação
de pontos de vista, focalizamos excertos em que as estagiárias (des)acomodam as con-
tradições problematizadas no artigo final; em relato das aulas, focalizamos fragmentos
em que eram reportadas ações das professoras e dos alunos, no intuito de identificar
características do discurso didático; na discussão tematizando a observação e evidên-
cias, optamos pela seleção de fragmentos em que eram explicitados os pontos de vista
dos participantes sobre o “outro” (da professora sobre os alunos, dos alunos sobre as
estagiárias, das estagiárias sobre a ação pedagógica) ou dados para subsidiar o relato.
Procuramos registrar o relato das ações dos participantes (excertos da “Ação pe-
dagógica”) em uma estrutura que tornasse mais visível o caráter coconstruído e o
contexto social dessas ações, por isso a sua apresentação em tabelas que as apresentam
7
As alunas incluíram nesta parte o mesmo texto elaborado no diário de campo e que focalizava, essencialmente, o que acon-
tecia na sala de aula, explicitando contexto institucional (por exemplo, mudança de horário da aula) e ações dos participantes.
8
Parece-nos que a intervenção da orientadora e discussão com o grupo de alunos sobre o andamento dos trabalhos foi bastante
relevante para que se tivesse como resultado um processo de letramento profissional crítico, como aconteceu com as autoras
do artigo analisado. Cabe mencionar que, em nota de rodapé no artigo final, as alunas contextualizaram sua produção da
seguinte forma: “Artigo produzido a partir de debates realizados em aula e da análise das observações realizadas em uma
escola pública da rede estadual [...]”.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 103


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ao mesmo tempo sequencial e paralelamente (cf. excertos 03 e 08). As ações são nu-
meradas em ordem sequencial, e aquelas em relação direta de continuidade, isto é,
que ocorreram como respostas a ações anteriores, são apontadas pelo uso do sinal de
“subscrito”. Cabe observar que, embora para nossa análise tenhamos reorganizado a
formatação de algumas partes do artigo final, não houve alteração no conteúdo, nem
na escrita em nenhum dos excertos, permanecendo, em todos, sua forma original9.

MOBILIZANDO OLHARES EM BUSCA DE OUTRAS


VOZES NA FORMAÇÃO INICIAL
Apresento abaixo um excerto da introdução do artigo final, em que as alunas
explicitam o objetivo da observação realizada na escola. O fragmento em sublinhado
reproduz parte da ementa da disciplina, exceto pelo fato de as alunas terem modifica-
do o substantivo que iniciava o sintagma (“reflexão”) por um verbo (“pensar”):

Excerto 1 – Objetivos do artigo final [Introdução]

Nossa intenção foi observar o dia a dia do ambiente escolar, buscando identificar possíveis
falhas, pensando sobre nossa prática futura e refletindo quanto as nossas possíveis colabora-
ções para melhoria desta realidade.

Dessa forma, nosso objetivo é pensar sobre a prática pedagógica a partir da rea-
lidade local, refletindo [sobre] as contradições presentes no conhecimento científico
adquirido nas academias e as práticas pedagógicas desenvolvidas nas escolas locais.
A modificação do item lexical “reflexão” para “pensar” permite retextualizar um
dos itens no ementário da disciplina como um objetivo e estabelece uma relação coe-
siva com o verbo no gerúndio que inicia a oração subsequente (“refletindo”). A coesão
indica uma associação entre as duas ações, mas situa o verbo “refletir” de forma encai-
xada nessa relação, indicando que a segunda oração torna mais específico o objetivo
expresso na primeira: a prática pedagógica será objeto de reflexão, focalizando-se as
“contradições” entre o conhecimento produzido na universidade e “as práticas peda-
gógicas desenvolvidas nas escolas locais”. Nesse mesmo movimento de especificação, a
“realidade local” é retextualizada como “escolas locais”.
Contudo, antes de apresentarem e retextualizarem os objetivos oficiais da dis-
ciplina, as alunas indicam qual foi sua “intenção” com a observação nas escolas.
Os objetivos que aparecem nessa primeira textualização apontam para a busca por
“identificar possíveis falhas” sobre as quais se pensará na relação com sua “prática
futura” e se refletirá quanto a “possíveis colaborações para melhoria” da realidade
vivenciada no ambiente escolar. Os termos sublinhados funcionam como recursos
9
Alguns excertos apresentam problemas de ortografia, pontuação ou correção gramatical, porém optamos por manter a
forma original.

104 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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modalizadores, no primeiro caso, minimizando a carga semântica negativa associada


à prática docente realizada na escola (“possíveis falhas”) e, no segundo, assumindo
que as “colaborações” das enunciadoras não foram ainda levadas a cabo (são “possí-
veis colaborações”) e que, portanto, não saíram da esfera de uma projeção que pode-
rá se tornar realidade quando elas realizarem sua própria prática (“prática futura”).
Comparando a natureza dos três sintagmas nominais que acabamos de focalizar en-
tre parênteses, aquele que, apesar das estratégias de modalização, aparece como mais
concreto é “possíveis falhas”, pois essas falhas puderam ser “identificadas”, enquanto
as “possíveis colaborações” e a “prática futura” somente puderam ser tomadas, no
discurso das alunas, como objetos de reflexão.
Cabe ressaltar que o artigo das alunas se estrutura em associação a tensões já
anunciadas em seu título: “Contradições entre conhecimento científico e prática pe-
dagógica” e na textualização dos seus objetivos, conforme o excerto apresentado an-
teriormente. Ao falarem dos participantes na metodologia, a oposição reemerge no
contraste que fazem entre as professoras de língua portuguesa e de literatura, que,
segundo as estagiárias e seus relatos, planejam e conduzem a aula de maneira diferente
e têm preocupações diferentes com a formação do aluno. A mesma oposição é feita
pelas estagiárias a respeito de suas próprias experiências em sala de aula: a primeira é
apresentada como “formada no curso Normal e por isso tem experiência pedagógica,
fornecida principalmente pelo estágio de 4 meses realizados em uma escola pública da
rede municipal de [...]” e, a segunda, “teve sua primeira experiência em sala de aula du-
rante a observação exigida pela disciplina em Estágio em Língua Portuguesa I, do cur-
so de Letras da [...]”. Essa estratégia de “oposição é estruturante do artigo, perpassando
tanto o relato das aulas observadas (diferentes ações das duas professoras), quanto as
discussões (diferentes implicações das ações de professores e alunos) e as considerações
finais (contradições entre o que se diz e o que se faz). Importante mencionar que o
relato das aulas observadas é feito, quase em sua totalidade, na primeira pessoa do
singular, enquanto as demais partes do artigo foram textualizadas na primeira pessoa
do plural. As alunas haviam realizado a observação conjuntamente e, embora cada
uma tenha produzido seu próprio diário de campo, aparentemente, privilegiaram os
olhares de uma delas, trazendo o seu relato para o corpo do artigo final.
Na escuta da exposição oral e leitura do relatório parcial dessas alunas sobre as
observações, portanto antes de produzirem o excerto 01, que faz parte do artigo final,
notamos que suas análises enfatizavam a enumeração das “falhas” da ação pedagógica,
apresentando uma leitura monológica da prática das professoras, não condizente com
a abordagem etnográfica. Em função disso, orientamos as alunas para que justificas-
sem sempre as suas asserções, através de descrições das ações de professora e alunos
evidenciadas no detalhamento da observação. Na versão final do relato das aulas, cha-
ma nossa atenção a macroestrutura textual construída, predominantemente, pelo que
denominamos de sequências narrativo-argumentativas, isto é, sequências narrativas
que funcionam como argumentos para justificar as conclusões das estagiárias sobre o

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 105


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que aconteceu nas aulas observadas. O caráter argumentativo das sequências é marca-
do pelo uso de operadores argumentativos, conforme terminologia adotada por Koch
(2004), a partir de Ducrot.
As estagiárias argumentam que as aulas das duas professoras observadas são di-
ferentes, o que se evidencia pela identificação das operações discursivas das quais as
docentes lançam mão em situação pedagógica. A professora de língua portuguesa cos-
tuma pedir para uma aluna (sempre a mesma) passar atividades do livro no quadro
para os demais alunos copiarem, assim, a maioria dos alunos participa copiando. Para
evidenciar essas ações, as estagiárias apresentam, no artigo final, imagens do livro e do
caderno de um aluno:

Excerto 2: Livro didático e caderno de aluno [Anexos]

1) Leia estas palavras em voz alta


e[responda] ao que se pede no caderno.
casinha caseiro casebre casa

O trabalho didático, neste caso, privilegia a cópia e o controle da participação dos


alunos, embora eles façam tentativas de ampliar seus modos de ação. Para construir e
evidenciar essa argumentação, as estagiárias utilizam operadores argumentativos que
explicam ou justificam suas asserções (por isso, uma vez que), marcadores temporais
que evidenciam a recorrência dos fatos (mais uma vez), termos modalizadores que de-
monstram a forma como o enunciador interpreta o que observa (simplesmente):

106 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Figura 1: Ações dos participantes na aula de português no ensino fundamental10

Ações da professora Ações dos alunos Contexto


Data
de português de 5ª série Institucional

1 Enquanto uma aluna pas-


sa a atividade no quadro,
2 outros se direcionam até
ele para responderem._
3 _E quando não sabem a
resposta, perguntam a pro- Os alunos en-
fessora_ contravam-se na
semana de recu-
4 _que (mais uma vez) sem perações, por isso
14/05 estavam bastante
exigir uma reflexão dos alu-
(Excerto 3) nos, dá a resposta esponta- alvoroçados, uma
neamente vez que sairiam
mais cedo.
[...] 5 um aluno querendo
interagir com a titular, per-
gunta qual é o antônimo do
antônimo_

6 _e esta simplesmente o
ignora.

[...] 7 Mais uma vez, os alu-


nos praticamente imploram
para participar da aula, _
21/05
(Excerto 4) 8_porém a professora avi-
sa que “só é para opinar,
quem ela designar”

Em poucos momentos a professora dá aos alunos informações complemen-


tares, [...]
DISCUSSÃO No período em que estive observando a aula o objetivo da professora foi
(Excerto 5) apenas retomar os conteúdos já vistos, sendo que em mais de uma vez ela
frisou que todos já sabiam bem tudo aquilo e que por isso deviam fazer os
exercícios sem questionar.

10
Ao chamarem a professora de “titular”, as alunas parecem se orientar para a sua própria identidade profissional, pois apontam
para uma relação hierárquica entre a professora regente e as professoras em formação (elas próprias). Contudo, faltam-nos
elementos para aprofundar a análise desta questão.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 107


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É interessante também pensarmos a respeito das escolhas lexicais, pois há um


leque de opções paradigmáticas, por exemplo, para referir-se à “titular” (por que não
professora?)11 ou à ação da professora ao ser questionada sobre o “antônimo do an-
tônimo” (ao invés de dizerem que a professora ignora o aluno, poderiam ter dito que
ela não o responde ou desconsidera). Em relação ao discurso didático, o que se observa
é que, quando os alunos perguntam, as ações da professora se estruturam como uma
resposta sem desafios (ação 4), como desconsideração da pergunta feita (ação 6) ou
explicitação das hierarquias de sala de aula (ação 8). Na ação 7, o índice de recorrência
(mais uma vez) aparece associado a escolhas lexicais que elevam ao máximo o esforço
dos alunos para participação (“os alunos praticamente imploram para participar”). A
ação seguinte (ação 8) é introduzida por um operador que sinaliza uma ação contrária
à esperada, que é justificada com o uso de discurso citado (embora esteja em terceira
pessoa, há o uso das aspas), o que lhe confere mais poder de verossimilhança. A forma
como o relato da aula se constrói nos apresenta um contexto em que a relação hierár-
quica entre participantes da sala de aula é fortemente marcada.
Na discussão, as estagiárias apresentam informações relevantes no que se refere ao
discurso didático: a professora não costuma apresentar “informações complementares”
e deduz-se que, uma vez dado o conteúdo, ela o considera cumprido (e aprendido) e,
portanto, sem necessidade de ser explicado ou exemplificado novamente. Isso pode
justificar as ações da professora nas duas aulas relatadas (em que ocorreu muita cópia e
pouca reflexão em torno do objeto de ensino), uma vez que, como apontam as estagiá-
rias, era semana de recuperações e os alunos estavam “alvoroçados” por isso. Contudo,
as estagiárias apresentam, no anexo do artigo final, cópia de duas provas: uma de uma
aluno que tirou 8,0, e outra de um aluno que tirou 4,0, o que de certo modo evidencia
que nem todos os alunos haviam compreendido bem a matéria. Abaixo, um fragmen-
to contrastante nas duas provas, conforme recorte feito pelas estagiárias:

Excerto 6: Caderno de aluno [Anexos]

11
Ao chamarem a professora de “titular”, as alunas parecem se orientar para a sua própria identidade profissional, pois apontam
para uma relação hierárquica entre a professora regente e as professoras em formação (elas próprias). Contudo, faltam-nos
elementos para aprofundar a análise desta questão.

108 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Ao tratarem explicitamente dos pontos de vista dos alunos, ainda na discussão, as


estagiárias contam que alguns deles são resistentes às proposições de cópia feitas pela
professora, que para eles “a aula de português é um verdadeiro tormento, eles mesmos
dizem que detestam português”. E para evidenciar o que dizem, as alunas recorrem
ao discurso citado: “me perguntaram inclusive “porque eu resolvi estudar uma coisa tão
chata””. No excerto abaixo, as estagiárias revelam o ponto de vista da professora sobre
os alunos e a aula, além do seu próprio ponto de vista sobre as ações da professora:

Excerto 7: Discussão [Subitem de “As aulas observadas”]

A professora reconhece a capacidade dos alunos, elogia-os seguidamente, porém não apro-
veita essa sede de conhecimento que os discentes possuem. Acredita que sua maneia de dar
aula está sendo realmente útil para os alunos e que o livro didático é fundamental para o
desenvolvimento de suas aulas. É observado, também, que ela assume a visão de que o con-
teúdo da disciplina, pode ser visto como uma forma de punição para os alunos. O que mais
chama a atenção é a premiação com pontos por atividades que não estão relacionadas à
disciplina (como por exemplo levar materiais de limpeza, participação em eventos da escola)
e aquisição de conhecimento.

Quando falam da professora de literatura, as estagiárias produzem uma imagem


antagônica à da professora de português, embora relembrem constantemente que as
duas fazem uso do livro didático. Contudo, esse compartilhamento é parcial, porque
o livro didático de literatura é tomado pelas estagiárias como muito bom (tipo de
observação que não consta acerca do livro de português) e a professora de literatura o
utiliza de forma “contextualizada”, promovendo um ensino “reflexivo”:

Excerto 8: Discussão [Subitem de “As aulas observadas”]

No que se refere a observação no ensino médio, pode-se dizer que embora siga o livro di-
dático, a titular faz sempre uma contextualização do assunto que será abordado, ou seja,
ela traz os conteúdos para o dia a dia dos alunos, é preciso ressaltar que este livro didático é
realmente muito bom e atual (fotos em anexo). Ao trazer os conteúdos para o cotidiano dos
alunos, a professora os incita a compreender as “entrelinhas” presentes nas escolas literárias,
contribuindo assim para a formação crítica e reflexiva dos alunos, atendendo inclusive, as
concepções de ensino apregoadas pelo P.P.P da escola. É notável o entusiasmo da professora
ao ensinar, mais de uma vez ela expressa sua paixão pela profissão [...]

E ao apresentarem o ponto de vista dos alunos que não gostam de literatura, as


estagiárias o fazem pela da voz da professora. É ela quem lhes indica o perfil socioeco-
nômico e a relação desses estudantes com a literatura:

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 109


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Excerto 9: Discussão [Subitem de “As aulas observadas”]

É notável o entusiasmo da professora ao ensinar, mais de uma vez ela expressa sua paixão
pela profissão e a satisfação que sente “ao fazer” com que alunos que não gostam de litera-
tura, mudem de ideia, e ao mesmo tempo expressa aprofunda tristeza que sente ao vivenciar
a dificuldade de mobilizar os alunos, que em sua maioria são adolescentes e estão na escola
porque seus pais ou responsáveis os obrigam e veem literatura como uma disciplina chata,
cansativa e que não terá utilidade futura.

Por meio do quadro de excertos a seguir, podemos observar cenas das ações da
professora de literatura e de seus alunos. Essas cenas se constituem como sequências
narrativo-argumentativas, pois funcionam, no artigo final, como evidências para as
asserções realizadas sobre a aula dessa disciplina na escola.
Figura 2: Ações dos participantes na aula de literatura no ensino médio

Ações da professora \ Ações dos alunos Contexto


Data
de literatura de 3º ano Institucional

1 […] ela começa falando sobre o


que e como estudar literatura, con-
textualizando os períodos literários,
isto é, ela traz para o cotidiano as
características deles: romantismo,
coisas que nos dão prazer, o que eu
gosto de fazer; realismo, coisas que
eu tenho que fazer mesmo sem
gostar e modernismo característi-
cas da atualidade, do agora. Para
isso recorre a ações cotidianas: fil-
mes, festas, novelas, músicas..._

2 _Apesar da empolgação
17/04 da professora os alunos
Excerto 10 estão desmotivados, rea-
lizando outras atividades_

3 _percebendo a situação, ela en-


tão resolve trabalhar com o livro
didático
4 (...) é apresentada (no livro didáti-
co, p.443) uma tela ( “A jangada da
Medusa” – 1819, de Théodore Geri-
cault). Esta imagem foi muito bem
explorada pela professora_

5 _auxiliada pelos alunos,


que a partir de então, to-
dos passam a participar._

110 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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6 _A regente proporciona uma


transposição dos alunos para a jan-
gada e aí sim, a aula fica muito pro-
dutiva, porém_

7 _enquanto ela faz inda-


gações sobre a pirâmide
da esperança, alguns alu-
nos interpretam a música
“I Will Survive”.

8 A professora fez esclarecimentos


a respeito das provas de recupera-
ção e_

9 _logo após do inicio da


aula com a participação
de um aluno começam
as discussões sobre o da-
daísmo, todos opinam
com bastante relevância,
sendo que ele comenta
“não sou ninguém, mas
acho que foi um movi-
mento idiota” e traba-
lham com o livro didático
paginas 447, 448 e 449.

10 [...] Durante a explicação sobre o Os horários fo-


Surrealismo (p.450),_ ram trocados,
08/05
as aulas pas-
Excerto 11 11 _alunos retraem-se em saram para as
participar._ 08h40min.

12 _Para incentivar a participação,


a regente aproxima a relação sen-
timental da arte, com as letras de
músicas tradicionalistas._

13 _Neste momento, um
aluno sugere que tenham,
um dia, aula na praça (que
fica ao lado da escola), na
qual um colega levaria o
violão, outro o chimarrão
e um terceiro cantaria._

14 _A regente conversa com os alu-


nos sobre a ideia sugerida e todos
concordam.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 111


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Cópia escaneada das páginas do livro didático utilizadas nas aulas observadas,
ANEXOS
fotos da professora escrevendo no quadro.

Os segmentos apresentados no quadro anterior demonstram que as estagiárias con-


seguiram mobilizar o olhar para articular as ações da professora com a dos alunos, e
conseguiram identificar efeitos da coconstrução da interação em sala de aula. O relato da
aula de literatura apresenta mais elementos para mostrar a relevância do discurso didáti-
co, que pode calar (como ocorre na aula de português relatada) ou provocar exacerbação
de pontos de vista bastante particulares (tal como acontece na aula de literatura). Nesse
caso, há descrição de ações verbais e não verbais da professora, por meio de verbos que
expressam sua percepção (“percebe”) ou atitude (“recorre”; “incentiva”; “conversa”).
Com a descrição das aulas de literatura como aulas produtivas e motivadoras, as
estagiárias equilibram sua crítica à sala de aula, pois encontram evidências de que há
professores que dão aulas “produtivas” e que “exploram bem” os conteúdos na escola.
E, apesar de terem criatividade, esses professores muitas vezes recorrem ao livro didáti-
co por causa dos alunos e, ao contrário do que parecia ser a expectativa das estagiárias,
dão aulas que promovem a participação efetiva dos alunos. As contradições se acomo-
dam, assim, pela compreensão de que a sala de aula é um espaço complexo (SILVA,
2011), estruturado pelas ações de diferentes agentes, e que a teoria é apoio importante
para a prática. No parágrafo final do artigo (excerto 12), as alunas ecoam a epígrafe
escolhida, de Paulo Freire: “É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o
que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática”. Embora
talvez expressem expectativa um pouco ingênua de que o saber teórico dê conta de tor-
nar a prática “relevante e a aprendizagem dos alunos permanente”, elas se posicionam
como corresponsáveis pela “melhoria do sistema educacional” e demonstram sensibi-
lidade para o diálogo com o outro, o que é essencial na perspectiva etnográfica. Dessa
forma, dão pistas de terem iniciado a constituição de suas próprias identidades profis-
sionais docentes por meio da reflexão provocada pelos tensionamentos entre o que se
diz em documentos, o que se faz nas escolas, o que se queremos enquanto professores,
e não mais, apenas, a partir do que “o professor (um outro tão distante) deve fazer”:

Excerto 12: Considerações Finais

[...] Deste modo, indiscutivelmente para que os objetivos pré-definidos pelos PCN’s e pre-
sentes nos P.P.P’s das escolas, é preciso que todos nós alunos de graduação, professores,
diretores, gestores e etc. paremos para refletir que tipos de profissionais queremos ser, que
tipo de alunos queremos formar e como podemos contribuir significativa e relevantemen-
te para melhoria do sistema educacional, uma vez que para mudar o mundo é necessário
mudar as maneiras de fazer o mundo, a maneira como olhamos o mundo que não se res-
tringe a nós mesmos. Definitivamente, não basta ser “inovador” se o professor não tiver um
bom embasamento teórico como apoio para que a prática seja relevante e a aprendizagem
dos alunos permanente.

112 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente trabalho, buscamos mostrar, a partir de dados gerados por meio de
perspectiva etnográfica em contexto de estágio supervisionado, a relevância de fazer
da prática de estágio um espaço de reflexão crítica e argumentativa. Ao buscarem
evidências para suas asserções a respeito do ensino observado na escola, duas estagi-
árias em Letras mobilizaram seus olhares para as ações dos diferentes atores sociais e
também para os diferentes artefatos socioculturais e práticas relevantes no contexto de
seu mundo de trabalho, neste caso, a escola. Além disso, cruzaram sua experiência de
observação com sua vivência na academia e conseguiram compreender a complexida-
de da sala de aula e o papel fundamental da teoria na visibilização e compreensão do
discurso didático e das práticas de ensino.
Nesse sentido, a perspectiva etnográfica não dialogou apenas com as práticas de
ensino e pesquisa da professora orientadora, mas também foi importante para pro-
mover novas percepções das professoras em formação acerca da “aula”, um espaço
tão conhecido, mas que era preciso estranhar para que o ponto de vista de alunas se
articulasse ao de professoras. Notamos, ainda, o quanto foi importante a intervenção
da orientadora no desafio a visões estereotipadas expressas nos primeiros relatos de
observação de aulas na escola, e a relevância de aliar reflexão à argumentação, no que
chamamos de sequências narrativo-argumentativas, durante o processo de (re)textuali-
zação das observações realizadas. Do mesmo modo, percebemos ser relevante orientar
para a produção de instrumentos de geração de dados multimodais (anotações, foto-
grafias, entrevistas) que não focalizem estritamente a construção do objeto de ensino
disciplinar, mas a compreensão “do que acontece no aqui e agora” da sala de aula.
Pesquisas futuras que visem articular letramento profissional docente e etnogra-
fia poderiam ampliar os instrumentos de geração de dados (incluindo, por exemplo,
filmagens), bem como mobilizar olhares para outros aspectos culturais da sala de aula
(questões de gênero, etnia, formação escolar, entre outras)12. Enquanto docente pesqui-
sadora/orientadora, nosso intuito principal durante o período de supervisão de estágio
foi contribuir para que as estagiárias lessem criticamente generalidades acadêmicas et-
nocêntricas sobre a escola e o professor. Ainda que nesse vai- e- vem entre diferentes
perspectivas novas generalidades sejam construídas, acreditamos que estudos que visem
mobilizar nossas crenças e confrontá-las com outras tragam uma modesta, porém rele-
vante contribuição para a formação inicial e continuada de professores. Como docentes
universitários, também precisamos (re) aprender constantemente o que é a escola, e os
estudos acadêmicos ou produtos finais das disciplinas de estágio não podem ser nossa
única fonte de conhecimento. Se assim for, contribuiremos para aumentar o abismo
entre teoria e prática, entre universidade e escola, e para fazer do estágio supervisionado
um lugar apenas para o cumprimento de uma exigência burocrática. Espero que este
12
Estes não são temas novos e foram já discutidos em etnografias escolares publicadas no Brasil, porém não temos conheci-
mento de estudos em que a perspectiva etnográfica tenha sido tomada como metodologia no desenvolvimento dos estágios
supervisionados da forma como propomos no presente artigo.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 113


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artigo possa dar pistas do que aprendem os docentes universitários com seus alunos
estagiários, quando o estágio se materializa como espaço de construção colaborativa de
conhecimento. E que essas pistas possam de algum modo incentivar a reflexão crítica
sobre os modos de fazer diálogo (com a escola) na universidade.

REFERÊNCIAS
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(Doutorado em Linguística Aplicada) – Programa de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2005.
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Brasília: MEC/SEC, 1998.
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à docência: imaginário e dilemas dos escreventes. In: REICHMANN, C. L. (Org.).
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114 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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_____ . Construção da interdisciplinaridade no espaço complexo de ensino e pesquisa.
Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas. Impresso), v. 41, p. 582-605, 2011.
Recebido em 31/03/ 2014.
Aprovado em 20/04/ 2014

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 115


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OLHARES SOBRE AS PRÁTICAS DE LINGUAGEM


NA AULA DE LÍNGUA INGLESA EM CONTEXTO
DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO

PERSPECTIVES ABOUT LANGUAGE PRACTICES IN THE ENGLISH


CLASS IN THE CONTEXT OF SUPERVISED INTERNSHIP
Cristiane Carvalho de Paula Brito*

RESUMO: À luz do referencial teórico-metodológico da Análise do Discurso fran-


cesa em interface com os estudos da Linguística Aplicada, este artigo visa investigar
representações de linguagem e de ensino-aprendizagem de língua inglesa, construídas
por professores pré-serviço, em planos de aula, no contexto do estágio supervisionado.
Ademais, propomo-nos a discutir o olhar desses professores acerca das atividades pe-
dagógicas, com base nas percepções registradas em seus diários reflexivos. As análises
empreendidas apontam a necessidade de se problematizarem, nos cursos de formação
de professor, as concepções de (língua)gem, de ensino-aprendizagem e de sujeito, sob
perspectivas que assumam sua dimensão social, ideológica, dialógica e política.
Palavras-chave: representações discursivas; ensino-aprendizagem de língua inglesa;
formação de professores; diários reflexivos.
ABSTRACT: Guided by the theoretical and methodological framework of French
Discourse Analysis interfacing with the study of Applied Linguistics, this paper aims
to investigate language representations and English language teaching-learning as well,
built by pre-service teachers, in class plans, in the context of supervised traineeship.
Moreover, we propose to discuss the gaze of these teachers about the pedagogical activ-
ities, based on the perceptions recorded in their reflective diaries. Our analyzes suggest
that langue (guage) is basically delineated sometimes as an abstract system of forms
and vocabulary items, sometimes as a communication tool. The teaching-learning
process is taken as controlled vocabulary and grammar exercises process or activities
that open up more or less space for the construction / production of meanings. The
undertaken analyzes indicate the need of problematizing, on teacher training courses,
the conceptions of (langue)guage, teaching-learning and subject as well, beneath per-
spectives that assume their social, ideological, dialogical and political dimension.
Keywords: discursive representations; English teaching and learning; teacher training;
reflective diaries.

*
Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: ccpbrito@hotmail.com

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 117


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O discurso como que vive na fronteira do seu próprio contexto e daquele de outrem.
(BAKHTIN, [1975] 2010, p. 92).

INTRODUÇÃO
Entendemos que investigar as práticas de linguagem propostas por professores em
formação, em disciplinas de estágio supervisionado, pode permitir-nos repensá-las não
apenas nesse contexto, mas também em outros ambientes de ensino-aprendizagem
de línguas, uma vez que a formação abarca uma pluralidade de saberes, dizeres e me-
mórias constituídas em múltiplos espaços sociais. Nesse sentido, este trabalho visa
delinear representações de linguagem e de ensino-aprendizagem de língua inglesa (LI),
construídas por professores em formação inicial, por meio da análise de atividades di-
dáticas desenvolvidas em seus planos de aula, bem como discutir o olhar do professor
acerca dessas atividades, com base nas percepções registradas em diários reflexivos.
Nossas considerações são fruto dos trabalhos (BRITO, 2012a; 2012b; BRITO et
al, 2012) que temos desenvolvido no grupo de pesquisa PLES (Práticas de Linguagens
em Estágio Supervisionado)1, a partir de um lugar teórico que contempla a Linguís-
tica Aplicada em interface com a Análise do Discurso de linha francesa e em diálogo
com a perspectiva bakhtiniana de linguagem. Esse entremeio nos possibilita pensar a
formação de professores e os processos de ensino-aprendizagem de línguas, ancorados
em uma noção de língua(gem) marcada pela incompletude e heterogeneidade e em
uma visão de sujeito cindido, fragmentado, constituído sempre na relação com o(s)
outro(s)/Outro. Sob esse viés, defendemos que
‘ser professor de línguas’ ou ‘saber uma língua’ é – mais do que um conjunto de
saberes ou competências possuídos por um sujeito – um processo contínuo de (des)
inscrição em discursos sócio-historicamente constituídos, de (des)identificações com
memórias discursivas, na e pela linguagem. Processo esse que se (des)atualiza na
enunciação. Nesse sentido, a AD, por meio de conceitos, tais como os de sujeito,
discurso, sentido, memória discursiva, dialogismo e polifonia – e, enfim, sua
própria noção de linguagem –, pode oferecer suporte às reflexões sobre os processos
de formação docente e de ensino-aprendizagem de línguas, áreas tão caras à LA.
(BRITO e GUILHERME, 2013, p. 25-26).

Salientamos, pois, que concebemos o estágio não como o momento de se colocar


em prática as teorias aprendidas ao longo do curso, mas como espaço que permite
ao professor em formação inicial a ressignificação dos saberes e das memórias que o
constituem enquanto sujeito situado em um dado contexto histórico, político e social.
Apesar da concepção dicotômica entre teoria e prática parecer superada, nos discursos
e dizeres sobre a formação do professor, vê-se que a própria organização curricular
das Licenciaturas em Letras ainda consolida tal relação, haja vista que as disciplinas
de estágio, por uma ‘ordem’ quase naturalizada, tendem a serem ofertadas após as

1
O grupo está cadastrado no CNPq/UFT, sob a coordenação do Prof. Dr. Wagner Rodrigues Silva (UFT).

118 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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disciplinas de metodologia, didática geral, linguística aplicada, entre outras, as quais


supostamente preparariam o aluno para o momento da prática2.
Pressupomos que teoria e prática não estabelecem uma relação de natureza dico-
tômica tampouco de transposição, ou seja, a prática não é tida como momento em que
um suposto conjunto fechado e estático de conhecimentos, adquiridos em um curso,
passa a ser “aplicado”, “transposto” a um contexto de ensino. Antes, partimos da noção
de revezamento (DELEUZE, em FOUCAULT, [1979] 1995) e postulamos que teoria
e prática são duas instâncias distintas que precisam, ambas, ser ressignificadas pelo
sujeito, por meio de relações que se estabelecem entre outros sujeitos, entre discursos,
entre dizeres que dialogam, confrontam-se, sobrepõem-se.
É, pois, na esteira de tais considerações que empreendemos nosso gesto de inter-
pretação em relação às práticas de linguagem propostas em planos de aula de língua
inglesa e às reflexões e relatos presentes nos diários reflexivos. Para isso, faremos, pri-
meiramente, breve contextualização da disciplina de estágio supervisionado, no in-
tuito de explicitarmos o contexto no qual os planos e diários foram elaborados. Em
seguida, descreveremos as atividades didáticas e discutiremos algumas representações3
de linguagem e ensino-aprendizagem que as fundamentam, problematizando o posi-
cionamento do professor estagiário concernente à aula em questão. Posteriormente,
discutiremos o ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras, levando em conta o foco
nas formas linguísticas. Finalmente, teceremos considerações sobre as implicações des-
sas representações na formação do professor e sobre a relevância dos diários reflexivos
nesse processo.

ALGUMAS PALAVRAS ACERCA DO ESTÁGIO


SUPERVISIONADO DE LÍNGUA INGLESA
Os planos de aula analisados foram produzidos na disciplina de Estágio Super-
visionado de Língua Inglesa 2, sob nossa regência, em uma universidade federal no
interior de Minas Gerais, no segundo semestre de 2012. A referida disciplina consti-
tui-se de 90 horas, sendo 30 horas destinadas à parte teórica, em que os alunos têm a
oportunidade de discutir e problematizar textos referentes à formação de professores,
aos processos de ensino-aprendizagem, à produção de material didático, à constituição
identitária dos sujeitos aluno e professor; e 60 horas destinadas à parte prática, em que
os estagiários realizam observação de aulas em escolas públicas e regência.
Como na disciplina anterior, Estágio Supervisionado de Língua Inglesa 1, os pro-
fessores em formação tiveram a oportunidade de observar aulas de língua inglesa na

2
Há de se ressaltar, todavia, que programas como o PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência) tentam
suprir essa lacuna, promovendo a articulação teoria-prática, nas licenciaturas, ainda nos períodos iniciais.
3
Tomadas aqui no sentido de formações imaginárias, tais como formuladas por Pêcheux ([1969] 1997), a saber: como o jogo
de representações que designam o lugar que os interlocutores atribuem a si mesmos e aos outros.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 119


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escola pública, a fim de desenvolver um estudo de caso4 de um tópico previamente


selecionado (como, por exemplo, ensino de leitura, gramática, vocabulário, aspectos
motivacionais, dentre outros). O Estágio 2 destinou-se à parte prática ao desenvolvi-
mento da regência.
As horas de regência, na disciplina em questão, dividiram-se em aulas ministra-
das pelos estagiários na escola pública e supervisionadas pelos professores regentes
dessas instituições, e em aulas ministradas, em um minicurso básico de língua ingle-
sa, aberto à comunidade externa à universidade, e supervisionadas pela professora
orientadora na IES5.
Contamos, no período da pesquisa, com um grupo de 16 estagiários que, orga-
nizados em duplas ou trios, propuseram minicursos de língua inglesa de 20 horas, de
nível básico, a partir de temas e perspectivas por eles selecionados. Como não havia
um livro didático específico, cabia aos professores em formação decidir acerca da orga-
nização e da produção do material do minicurso, sempre em interlocução com a pro-
fessora orientadora. O público desses minicursos é bastante heterogêneo e composto,
em sua maioria, por alunos adolescentes oriundos de escolas públicas, universitários e
pessoas interessadas na aprendizagem da língua inglesa.
A primeira etapa da regência consistiu na definição dos temas e propósitos de
cada minicurso e posterior elaboração de resumos, no intuito de divulgar ao público
alvo. Nosso interesse de pesquisa recai justamente na análise das atividades propostas
nos planos de aula para o ensino de língua inglesa nesse contexto, a fim de investigar
as representações de linguagem e de ensino-aprendizagem aí construídas.
Como nos inscrevemos em uma visão discursiva de linguagem, as discussões
conduzidas em sala visaram problematizar os processos de ensino-aprendizagem de
línguas estrangeiras e de formação de professores, sob esse viés. Dessa forma, duran-
te as aulas teóricas, orientamos os alunos a pensarem em minicursos, tendo em vista
a concepção de linguagem como prática social, em que sujeitos, interpelados pela
ideologia, se engajam para produzirem sentidos. Entendemos que, ao significar, o
sujeito se significa, sendo que sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo, sem
que haja possibilidade de ocupar posição de exterioridade em relação à linguagem
(AUTHIER-REVUZ, 2004).
Questionamentos, tais como: Em que concepção de linguagem fundamento mi-
nha prática pedagógica? Qual meu objetivo em propor determinada atividade na aula
de LI? Que tipo de aluno quero formar com minha prática? Que relação com a língua
estrangeira (LE) permitiu ao meu aluno experienciar na aula? O que significa ensinar
4
O estágio de observação justifica-se pela oportunidade de inserir os professores em formação no contexto público de ensino
e de promover a prática investigativa, já que eles precisam coletar, descrever e analisar dados, produzir um texto acadêmico,
a fim de discutirem o que vivenciaram nesse momento do estágio.
5
Ressaltamos que usaremos os termos ‘professor estagiário’ e ‘professor em formação’ para nos referirmos aos nossos alunos, e o
termo ‘professora orientadora’, em referência ao nosso papel como professora da disciplina de estágio no ensino superior. Normal-
mente, utiliza-se o termo ‘professora supervisora’ para o regente que, na escola básica regular, orienta o trabalho dos estagiários.

120 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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inglês, considerando-se seu status de língua internacional?, balizaram as discussões


teóricas, com vistas a ressaltar a questão das relações de poder que marcam a tomada
da palavra, bem como sua natureza dialógica, polifônica e política. Além disso, foram
trabalhados textos que abordavam aspectos da produção de materiais didáticos, con-
cepções de erro, novas tecnologias e ensino, dentre outros.
No semestre em questão, foram abertos seis minicursos básicos de língua inglesa
à comunidade, com os seguintes nomes6:
(i) Aprendendo inglês através do cinema;
(ii) Curso de inglês com foco na comunicação oral;
(iii) Situações cotidianas;
(iv) Luz, câmera e ação: cinema e literatura no ensino de língua inglesa;
(v) Aprendendo língua inglesa com gêneros orais e escritos;
(vi) Culturas em diálogo.

Os professores estagiários deveriam escrever diários reflexivos baseados em três


aulas, por eles ministradas nos minicursos, levando em consideração aspectos e even-
tos relevantes de suas aulas, seu posicionamento e percepção sobre os fatos ocorridos
na regência, o confronto entre o planejamento e a aula dada e a apresentação de suges-
tões. É importante dizer que trabalhamos um texto de nossa autoria acerca de diários
reflexivos (BRITO, 2012a), com o propósito de chamar a atenção para o caráter do
diário como espaço de problematização da prática pedagógica, e não como mera des-
crição de eventos.
Nosso intento é compreender a forma pela qual esses sujeitos – em sua maioria,
com pouca ou nenhuma experiência de docência – ressignificam, no momento da ela-
boração de seu plano de aula e na escritura dos diários, os saberes a que são expostos
durante a disciplina de estágio supervisionado e das disciplinas do curso de Letras, de
forma geral, a partir da memória de ensino-aprendizagem de LI que os constitui.

PRÁTICAS DE LINGUAGEM NA AULA DE LI


Ressaltamos que nossas análises tomam por base as propostas de atividades des-
critas nos planos e não as aulas, propriamente ditas. Isto é, interessa-nos compreender
as representações de linguagem e de ensino-aprendizagem de LI, mobilizadas pelos
professores em formação inicial, no momento do planejamento da aula e não a forma
como esta de fato ocorreu. Para isso, selecionamos três planos de aula, dando prioridade
àqueles que representassem, no geral, os tipos de atividades propostas pelos estagiários
e que tivessem sido comentados nos diários reflexivos, integrantes do relatório final.

6
As informações referentes ao minicurso (resumo, período de matrícula, número de vagas etc) foram divulgados no site da
Coordenação de Extensão e Educação Continuada em Letras (CECLE - http://www.cecle.ileel.ufu.br/).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 121


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ANÁLISE DO PLANO DE AULA 1


O primeiro plano de aula que apresentamos para análise foi desenvolvido no mi-
nicurso intitulado ‘Aprendendo inglês através do cinema’, cujo objetivo era trabalhar
situações comunicativas abordadas em segmentos de filmes e/ou de séries de televisão.
Para a aula em questão, P17 propôs os seguintes objetivos: utilizar vocabulário de daily
routine; falar da rotina em inglês; e falar da rotina do colega.
P1 planeja iniciar a aula com um brainstorming, em que questiona seus alunos a
respeito da história da Rapunzel. Em seguida, propõe passar um trecho do filme Tan-
gled (releitura da história da Rapunzel) e pedir para que os alunos anotem, mesmo em
língua materna, o que está sendo feito pela personagem do filme. P1, então, checa as
respostas dos alunos, no intuito de estabelecer uma ligação com a ação da personagem
e o tema Daily Routine, por meio da apresentação, no PowerPoint, de vocabulário
específico do tema. Posteriormente, passa-se à explanação do Simple Present, em sua
forma negativa e afirmativa, e os alunos fazem exercícios de fixação. Para finalizar,
pede para que os alunos elaborem sentenças sobre as suas rotinas diárias.
Apesar de ter feito uso do segmento do filme Tangled, pode-se perceber que a
aula, tal como explicitada no plano, é organizada em torno do tópico gramatical, no
caso o Simple Present. Não há, inclusive, menção, nos objetivos, a respeito do uso desse
material. O filme aparece como pretexto para ensinar ou ilustrar uma forma verbal e
seu uso se esvazia, sendo o foco apenas tomar notas de ações realizadas por um per-
sonagem, e não discutir, por exemplo, as implicações de tais ações dentro da trama
da estória. A forma verbal em questão é, após a amostra da cena do filme, explicada e
praticada por meio de exercícios estruturais e controlados.
A solicitação para que os alunos escrevam frases sobre um tema trabalhado na aula
é muito comum na prática de professores de línguas. Não diríamos que se trata de uma
atividade irrelevante, que não possa engajar, motivar ou proporcionar aprendizagem
– uma vez que não se podem controlar os processos de interpelação do sujeito em sua
relação com a língua. Isto é, aprende-se uma LE, apesar dos métodos, dos materiais, da
(falta de) didática dos professores ou de ‘boas estratégias’ etc., já que a aprendizagem é
perpassada por movimentos de identificação que escapam aos sujeitos e aos métodos.
Todavia, por acreditarmos que as representações do ensino-aprendizagem podem
incidir nas práticas pedagógicas, cabe-nos problematizar a concepção de linguagem
que subjaz a tais propostas. No caso do primeiro plano analisado, é justamente uma
noção de língua como conjunto de formas e estruturas abstratas e, consequentemente,
a aprendizagem como automação dessas formas.
Ora, em que situação de prática de linguagem teríamos falantes escrevendo frases
sobre suas rotinas? Na verdade, em várias: em um diário de viagem; em um diário
pessoal, adotado por um aprendiz que quisesse registrar, na língua alvo, as ações de
7
P1, P2 e P3 correspondem, respectivamente, aos professores estagiários responsáveis pelos planos analisados.

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seu dia; em uma publicação em uma rede social, dentre inúmeras outras. De qualquer
forma, o que parece ser escamoteado, na proposta desse tipo de atividade, são as con-
dições de produção de linguagem, as quais são, por sua vez, inevitavelmente marcadas
por um contexto social. Nesse sentido, esvaziada de qualquer propósito de interação
verbal, a atividade torna-se mero exercício escolar, em que o que interessa é mostrar ao
outro (no caso, o professor) que se aprenderam as regras do jogo.
Ao refletir acerca da aula ministrada, P1 aponta, no diário reflexivo presente no
relatório de estágio supervisionado, que
(Ex.1)8: em relação ao conteúdo da aula, acredito que as primeiras aulas fugiram
um pouco do tema, um pouco focada na gramática ao invés do tema do minicurso,
pois este estágio foi uma experiência diferente das outras, sendo que nunca havíamos
trabalhado este tema e confesso que no começo foi muito trabalhoso.

Vem à tona, em seu texto, a dificuldade de articular o conteúdo gramatical sele-


cionado à proposta do minicurso e ao diálogo com a professora orientadora que, no
momento de interlocução sobre o plano de aula, chamou a atenção para a necessidade
de que fosse explorado mais o filme Rapunzel (sua temática, review, outras versões
etc.), evitando, assim, que os excertos se tornassem apenas pretexto para a prática de
exercícios meramente focados na forma. Tenta-se construir perante o interlocutor uma
imagem positiva, justificando-se de supostas falhas que lhe pudessem ser atribuídas
(confesso que no começo foi muito trabalhoso). Justificativa essa que se ‘resolve’ na avalia-
ção da própria aula por P1, ao afirmar que
(Ex. 2) esta atividade foi muito proveitosa porque todos os alunos independentemente
da idade gostaram do filme da Rapunzel “Tangled”, pois acredito que é um clássico.
Dessa forma a aula foi de certa forma proveitosa e acredito que cresci como profissional.

A nosso ver, ainda que o uso de segmento de um filme possa apontar para o desejo
de se distanciar das práticas de ensino meramente estruturais, de modo a abrir espaço
para que olhares outros sobre os textos e dizeres venham à tona, provocando desar-
ranjos subjetivos e arranjos significantes (SERRANI-INFANTE, 1997), entendemos
que P1 parece ter dificuldade de sustentar uma posição – teoricamente fundamen-
tada – acerca de sua própria prática, utilizando-se de argumentos vagos, que pouco
contribuem para problematizar o fazer docente, tais como os expressos nos sintagmas:
atividade muito proveitosa, aula foi de certa forma proveitosa, cresci como profissional, e
na suposta aprovação dos alunos em relação à aula.
Essas expressões assumem o caráter de um discurso pronto – espécie de jargões
pedagógicos – por meio do qual se tenta construir uma imagem positiva perante o
interlocutor, associando o conceito de ‘boa aula’ (ou ‘aula proveitosa’) unicamente à
satisfação pessoal dos alunos, sem consideração, por exemplo, pelo contexto mais am-
plo em que se realizam os complexos processos de ensino-aprendizagem.
8
‘Ex.’ refere-se aos respectivos excertos retirados dos diários.

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ANÁLISE DO PLANO DE AULA 2


O segundo plano foi proposto no minicurso intitulado ‘Curso de Inglês com
foco na comunicação oral’, o qual visava desenvolver a habilidade oral da Língua
Inglesa, através de músicas, vídeos, jogos e diálogos, dentro de contextos variados.
Foram elencados os seguintes objetivos para a aula: (i) construir frases usando too +
adjective; (ii) construir frases usando adjective + enough; (iii) usar adjetivos adequa-
dos em diferentes contextos.
Para atingir os objetivos, P2 propõe: apresentar adjetivos “descontextualizados”
(termo usado na seção dos ‘procedimentos’, em seu plano de aula), a partir de figuras;
fazer repetições, em grupo e individualmente, para auxiliar na memorização do voca-
bulário. Em seguida, de acordo com o plano, apresentam-se slides com o uso de too +
adjective e adjective + enough, com vários exemplos. Para que os alunos pratiquem, P2
propõe um exercício controlado em que os alunos devem completar frases. Propõe-se
também uma atividade de produção, a partir da qual os alunos devem escrever duas
frases a respeito de situações que julguem estar too old e old enough para fazer.
Aprender a língua seria dominar estruturas gramaticais por meio de exercícios de
automação e apresentação de palavras (cujo sentido seria unívoco) que possibilitariam
a interação. Semelhantemente ao plano de P1, analisado anteriormente, a dificuldade
parece recair na adequação do conteúdo a práticas de linguagem mais ‘reais’, ou seja, a
situações em que a linguagem é tida como prática social, o que se pode perceber pela
solicitação para que os alunos escrevam frases com as estruturas ensinadas na aula.
Após o parecer da professora orientadora, chamando a atenção quanto à necessi-
dade de se ater mais ao foco do minicurso (a saber, a comunicação oral), e a sugestão
de que se pensasse em um contexto em que a estrutura gramatical fosse relevante, P2
acrescenta uma última atividade em seu plano. Propõe fazer perguntas em que os alu-
nos devem expressar sua opinião de determinado assunto, utilizando as frases escritas
na atividade anterior (por exemplo, what do you think about driving before 18 years
old?, what’s your opinion on living alone?). Trata-se de uma tentativa de proporcionar
uma dimensão comunicativa para a aula, ainda que seja pela produção controlada.
No diário reflexivo dessa aula, P2 registra:
(Ex. 3) Decidi destacar essa aula justamente pela dificuldade que tive com ela, o
que me surpreendeu bastante. Inicialmente, escolhi esse conteúdo porque achei que
adjetivos era uma matéria fácil e interessante de trabalhar em níveis iniciais, mas
queria contextualizar esse tema com algum outro assunto que me possibilitasse fazer
uma prática e que não fosse o verbo to be, então, foi quando vinculei as estruturas
“too” e “enough”. Porém, quando fui montar a aula tive uma enorme dificuldade de
fazer uma prática interessante para esse assunto, porque não conseguia fazer como
tinha feito na aula anterior, na qual escolhi um contexto de uso para praticar as
estruturas, nesse caso precisava de diferentes contextos e eu sentia que os alunos não
conseguiriam. Foi quando a professora supervisora me deu algumas ideias e consegui
trazer um pouco dessa prática contextualizada para sala de aula, mas mesmo assim,

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senti que não teve o mesmo efeito, os alunos não conseguiram perceber facilmente
que poderiam usar o que tinham aprendido na aula para fazer a discussão proposta.

O excerto acima aponta o embate entre o desejo de P2 – de trabalhar com uma


matéria fácil e que provavelmente lhe traria segurança – e o posicionamento da profes-
sora orientadora do estágio, ao emitir o parecer do plano de aula e tecer comentários
posteriores à aula propriamente dita9, sugerindo-lhe que não esgotasse o conteúdo
com aspectos apenas linguísticos.
O embate é marcado na tentativa de construir, perante o interlocutor (que é
também avaliador), a imagem de ‘boa aula’, justificando as supostas falhas (tive uma
enorme dificuldade, não conseguia fazer como tinha feito na aula anterior), por meio
da recusa de uma prática meramente estruturalista, metaforizada pelo verbo to be.
Imagem essa corroborada pela oração adversativa mas mesmo assim, senti que não teve
o mesmo efeito, que escamoteia o desconforto advindo da dificuldade – inerente ao
fazer docente e provavelmente potencializada pela inexperiência de P2 – de planejar a
aula e conduzi-la de forma a promover aprendizagem relevante. Vê-se que a ‘culpa’ de
não corresponder à expectativa da professora orientadora é expurgada pelo advérbio
facilmente, que atribui às dificuldades dos alunos o caráter de injustificadas (não conse-
guiram perceber facilmente que poderiam usar o que tinham aprendido na aula para fazer
a discussão proposta).
Dessa forma, a adversativa – mas mesmo assim – aponta para um lugar de resis-
tência em relação à voz do outro (provavelmente à voz institucional, representada pela
professora orientadora), fazendo do diário um espaço de negociação de sentidos, em
que aquilo que se diz ou se silencia é determinado, sobretudo, pelas imagens de si e
do(s) outro(s), colocadas em jogo na enunciação. Daí a necessidade de se problemati-
zarem as representações de língua, de ensino-aprendizagem de língua, de professor e
de aluno, na formação de professores, com vistas a possibilitar, mais do que um ‘tom
de frustração’ com a dificuldade linguístico-comunicativa dos alunos, a compreensão
de que a produção de sentidos não é controlada e que o engajamento discursivo do
sujeito, em uma língua estrangeira (ou materna!), não é alcançado, ao final de uma
aula, pelo simples fato de se ter feito uma série de exercícios.

ANÁLISE DO PLANO DE AULA 3


O plano de aula 3 foi proposto no minicurso ‘Aprendendo língua inglesa com gêne-
ros orais e escritos’, cujo objetivo era orientar os alunos na leitura, compreensão e produ-
ção de gêneros orais e escritos, comuns do nosso dia-a-dia e importantes no momento de
se comunicar, a fim de auxiliar o aluno a desenvolver a leitura, escrita, audição e fala, por
meio de assuntos e procedimentos do cotidiano. Como objetivo para esta aula, propôs-se
que os alunos reconhecessem os traços que englobam o gênero cook recipe e o uso do how
much/ how many e de conectivos nesse gênero e em outros contextos.
9
Cumpre ressaltar que estivemos presentes na aula em questão.

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P3 propõe, no plano, iniciar a aula com uma breve revisão do conteúdo passado.
Para introduzir o tema, propõe realizar um brainstorming, por meio das seguintes
perguntas: Do you like food which contains chicken? Do you know any recipe of a food
which has chicken as one of the ingredients? How do you prepare it?. P3 sugere, então:
exibir um vídeo sobre duas receitas que utilizam carne de frango; pedir aos alunos que
respondam perguntas de compreensão; e revisar alguns aspectos do gênero (caracte-
rísticas típicas da receita culinária e verbos no imperativo). Pela descrição do plano,
P3 dá continuidade à aula com a explicação do vocabulário e, posteriormente, entrega
o script das receitas aos alunos para que, em duplas, façam perguntas a respeito dos
ingredientes da receita do colega, utilizando how much e how many. Passa-se à expla-
nação, por meio de exemplos, dos conectivos típicos de uma receita culinária e pede-se
que os alunos repitam uma receita em que tais conectivos são utilizados. Os alunos
deverão fazer leitura da receita de um dos pratos favoritos do cantor Elvis Presley e as-
sociar as ações do texto a imagens. Para finalizar, propõe-se que realizem uma atividade
em que têm de colocar frases em ordem, com base em uma receita de barbecued kebab,
e acrescentar os conectivos correspondentes.
Percebemos, pelo plano, a tentativa de P3 de promover o ensino da língua além
da mera prática de exercícios estruturais, ainda que seja por meio de atividades mais
ou menos diretivas e controladas. A língua aparece, pois, como instrumento de comu-
nicação e o ensino-aprendizagem como processo de interação, no intuito de construir
e produzir sentidos.
Na releitura acerca da referida aula, no diário reflexivo, P3 registra:
(Ex. 4) Na minha própria concepção, a aula 14 do minicurso foi uma das aulas mais
interessantes que planejei durante o mesmo e foi a que mais tive o prazer de ministrar.
(Ex. 5) Outro aspecto importante do meu planejamento foi o fato de que eu preparei
uma aula menos estrutural: sem exposição de conteúdos gramaticais. Eu preparei
mais exercícios práticos relacionados à parte da língua que eu queria explorar, que é
justamente a questão do how much/how many e a questão dos conectivos. Acredito
que essa aula fez parte das primeiras em que passei a mudar minha concepção de
linguagem, deixando um pouco o lado estrutural de lado. Até mesmo nos exercícios
não houve preenchimento de lacunas em frases descontextualizadas e quebradas, tal
como já havia feito em lista de exercícios.
(Ex. 6) Por fim, acredito que foi uma aula crucial para mim, pois apresentou atitudes
minhas mais amadurecidas como professora, pois modifiquei de certa forma meu
modo de dar aulas.

A ideia de trabalhar com gêneros, no minicurso, ofereceu algumas dificuldades


aos professores estagiários do grupo, no que concerne à elaboração de material e ao
planejamento das aulas. Pôde-se perceber, pela supervisão do estágio e pelos dizeres
apresentados no relatório final, que essa proposta apareceu como um desafio, especial-
mente porque os professores não tinham quaisquer experiências como docentes.

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Pelo relato de P3, vê-se o desejo de corresponder às expectativas e orientações fei-


tas durante toda a disciplina (foi uma das aulas mais interessantes, foi uma aula crucial
para mim) e certo ‘amadurecimento’ no que diz respeito à sua concepção de linguagem
(deixando um pouco o lado estrutural de lado).
Abrimos aqui um parêntese para ressaltar que, de forma geral, os professores em
formação, ao proporem o ensino da língua inglesa por meio de gêneros, comumente
se restringem à explanação (às vezes, exaustiva!) dos aspectos característicos destes e
à posterior proposta de atividades de produção escrita ou oral (como se a mera expo-
sição a um modelo pudesse, ao final da aula, levar ao domínio dos gêneros textuais).
Cremos que as dificuldades enfrentadas por esses professores em formação (e
também por muitos professores em serviço) refletem os desafios que a própria pro-
posta de ensino de LEs por meio de gêneros apresenta, tais como: a falta de profici-
ência linguístico-comunicativa dos alunos, a decisão no tocante à seleção dos gêne-
ros relevantes aos diversos contextos pedagógicos, a forma de articular o ensino de
aspectos gramaticais a atividades de compreensão e produção do gênero em questão
etc. Isso acaba resultando na mera transposição da abordagem pautada na estrutura
da língua para uma abordagem ancorada em uma ‘gramática do gênero’, sem que
haja alterações nas concepções de linguagem. Continua-se, pois, corroborando uma
noção homogênea de linguagem e de língua “como sistema gramatical abstrato de
formas normativas, abstraída das percepções ideológicas concretas” dos falantes.
(BAKHTIN, [1975] 2010, p. 96). Noção essa que provavelmente reflete e refrata os
modelos de ensino-aprendizagem vivenciados por tais sujeitos.
Voltemos aos excertos do diário. Sob uma perspectiva discursiva, que refuta a
transparência da linguagem e leva em consideração as formações imaginárias colocadas
em jogo em qualquer acontecimento discursivo, entendemos que P3 enuncia em um
espaço de tensão (entre o que compreende ser, por exemplo, a imagem de um ensino
tradicional de língua e a de um mais pautado por abordagens que levam em conta a
dimensão social da linguagem), capaz de possibilitar ressignificações do fazer docente.
Em outras palavras, vêm à tona, em seus dizeres, a interpelação advinda do encontro-
-confronto com o(s) outro(s), que pode desencadear processos de deslocamentos na/
da prática pedagógica. Assim, não se trata de defender que houve ‘mudança’ ou ‘rup-
tura’ nas concepções de linguagem e de ensino-aprendizagem, mas tão somente que
a constituição do sujeito professor e sua relação com o objeto de ensino extrapolam a
dimensão teórico-metodológica, frequentemente postulada em cursos de formação.
Dito de outro modo, entendemos que a (trans-)formação do professor e de suas
práticas se dá pela mobilização do sujeito por certos discursos – e não por outros; por
meio de processos de identificação a certos sentidos – e não pelo simples ‘conhecimen-
to’ de teorias. Concordamos com Coracini, quando afirma que

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... nada se diz ou por nada nos interessamos que, de alguma maneira, já não esteja lá,
no inconsciente, isto é, que não tenha sido internalizado; assim, só há identificação
possível com um fato, objeto exterior ou com outro sujeito, quando este encontra eco
no inconsciente que o reconhece ou identifica sem necessariamente o consentimento
do consciente. (CORACINI, 2003, p. 253).

A formação de professores precisa, a nosso ver, constituir-se como espaço que


permite a tomada de posição dos sujeitos diante da língua que aprendem-ensinam, por
meio de deslocamentos discursivos advindos da problematização de dizeres, saberes e
práticas naturalizadas nos meios social, acadêmico e institucional.

ENSINO-APRENDIZAGEM DE LES E O FOCO NA(S)


FORMA(S) LINGUÍSTICA(S)
A análise dos planos de aula e dos diários reflexivos que refletem a prática peda-
gógica aponta que prevalece, nas propostas de atividades, o foco na forma da língua, o
que advém, em grande parte, das próprias experiências de tais sujeitos com a aprendi-
zagem de LI, apontando que o estudo do sistema linguístico – sobretudo a ênfase na
gramática e no vocabulário, no ensino de línguas como disciplina escolar –, é prevale-
cente (CELANI, 2010). Assim, ensinar língua equivaleria a tomá-la como objeto, cuja
descrição, sistematização e análise culminariam em seu domínio pelos falantes.
Percebemos que boa parte das atividades propostas por professores em formação,
no contexto de estágio supervisionado, segue o modelo PPP (Presentation – Practice
– Production), amplamente utilizado no ensino de línguas estrangeiras (NASSAJI e
FOTOS, 2011). No primeiro momento – presentation – apresenta-se um tópico ou
regra gramatical, por meio de textos, diálogos, estórias etc., familiarizando os apren-
dizes com o novo conteúdo. No estágio da prática, apresentam-se exercícios mais ou
menos controlados para automatizar, por meio de repetições, reproduções, atividades
abertas, o tópico gramatical ensinado. Finalmente, propõem-se atividades que visam
ao uso das regras apresentadas de forma mais espontânea10.
Não queremos postular que não haja espaços para atividades voltadas às questões
estruturais, mas problematizar a relação que os sujeitos estabelecem com a língua que
aprendem-ensinam. Tampouco se trata de advogar por esse ou aquele método, como
se houvesse um que fosse ideal. Qualquer método não é mais do que uma tentativa de
sistematizar a relação do sujeito com a linguagem, como se esta fosse um objeto pronto
e acabado, passível de ser manipulado, controlado e adquirido pelos falantes.

10
Dentre as inúmeras críticas ao modelo PPP, Ellis (2006 apud NASSAJI e FOTOS, 2011, p. 6) ressalta que há outras formas
– além da apresentação e prática – de se ensinar gramática, tais como: apresentação de regras sem a prática controlada ou a
prática sem a apresentação explícita; exposição dos aprendizes a amostras da língua em que ocorrem as formas gramaticais
em questão; ou o ensino por meio do feedback aos erros cometidos por alunos durante tarefas comunicativas.

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Aliás, cumpre ressaltar que os métodos, longe de serem práticas/propostas neutras


para o ensino-aprendizagem de línguas, constituem-se ideologicamente, podendo, in-
clusive desempenhar o papel de ‘forças colonizadoras’, tal como argumenta Phan Le
Ha (20008). O autor aponta que a força colonizadora das abordagens comunicativas
pode ser vista na forma pela qual elas são naturalizadas e propagadas na pedagogia do
ensino de línguas, sem consideração pelos diferentes contextos sócio-culturais, igno-
rando, por exemplo, os distintos papéis atribuídos ao professor, ao aluno e aos pro-
cessos de ensino-aprendizagem ao redor do mundo. Uma implicação da divulgação
da crença de que apenas os métodos ditos comunicativos podem de fato promover
comunicação é a desvalorização, por parte de muitos alunos e professores, de suas
próprias práticas.
Defendemos que é preciso que noções de linguagem sejam problematizadas, na
formação, no intuito de possibilitar que os (futuros) professores sejam capazes de se
posicionarem teórica e criticamente em relação aos processos de ensino-aprendizagem
de línguas, propondo atividades pedagógicas que promovam um ensino socialmente
relevante (KUMARAVADIVELU, 2003), ancorado na articulação do saber global e do
saber local, tendo em vista o status do inglês como língua internacional (CANAGARA-
JAH, 2002) e a necessidade de se considerar a produção de conhecimentos e as práticas
de linguagem, a partir do híbrido e do marginal (BOHN, 2005, MOITA LOPES,
2006), o que, por sua vez, perpassa pela compreensão de que a tomada da palavra, em
língua materna ou estrangeira, não é jamais transparente ou puramente referencial.
Nesse sentido, ainda que entendamos que atividades com ênfase na estrutura da
língua se configurem como ‘lugar do controle’ ou ‘zona de conforto’ para o professor,
auxiliando-o, por exemplo, a lidar com a insegurança de estar à frente de uma sala de
aula, de não ter ‘todas’ as respostas, enfim de dar conta das representações de si mesmo
enquanto professor de LI; do(s) outro(s) (alunos, professor formador para quem deve
prestar contas de uma ‘boa aula’); de aula de LI etc.; também julgamos fundamental a
compreensão da natureza dialógica e polifônica da linguagem. A compreensão de que
“toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de
alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém” (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
[1929] 2002, p. 113. Grifos do autor).
Em vista disso, aulas com foco nas formas linguísticas podem ser relevantes, se
consideradas dentro da perspectiva de linguagem enquanto prática social (e não como
mero instrumento de comunicação). Prática por meio da qual identidades são (des)
construídas, memórias são evocadas, sentidos são colocados em movimento, enquan-
to relações de poder são inevitavelmente instauradas. Em outras palavras, trata-se de
conceber um ensino relevante ao aluno não apenas como aprendiz, mas como pessoa
(EDGE, 1993), o que implica, dentre outros aspectos, a apresentação da linguagem de
forma significativa, uma vez que “ensinar uma língua estrangeira não pode se limitar a
transmitir conhecimentos sobre a língua, isto é, descrevê-la como sistema de signos e
estruturas” (CORACINI, 2003, p. 155).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso gesto de leitura em relação aos planos de aula, propostos por professores es-
tagiários, permitiu-nos entrever que a língua(gem) é basicamente delineada ora como
sistema abstrato de formas e itens vocabulares, ora como instrumento de comunica-
ção. O ensino-aprendizagem, por sua vez, é tido como processo controlado de exer-
cícios de vocabulário e gramática ou de atividades que abrem mais ou menos espaço
para a construção/produção de sentidos, supostamente culminando no engajamento
do aprendiz em situações comunicativas, por meio da língua alvo.
No que concerne às práticas de linguagem propostas nesse contexto específico de
estágio supervisionado, achamos pertinente salientar dois pontos. O primeiro diz res-
peito à produção de materiais e o segundo se refere à formação do professor. A produ-
ção de materiais configurou-se como experiência nova tanto para os estagiários quanto
para a professora orientadora, visto que, até então, eram adotados livros didáticos de
língua inglesa, nos minicursos oferecidos à comunidade. Pode-se argumentar que os
materiais sejam mais organizados do que os produzidos pelos estagiários, resultando
um aglomerado de atividades ou propostas disponíveis em outras fontes. E nesse senti-
do seria até mais interessante fazer uso dos materiais já prontos e amplamente difundi-
dos e aceitos no mercado de ensino de línguas. Todavia, esse processo de organização/
elaboração/adaptação, o qual demanda tempo significativo, apresenta-se como possi-
bilidade de ressignificação e construção de saberes, representações e concepções acerca
da prática pedagógica de ensino de línguas estrangeiras, abrindo espaços para deslo-
camentos discursivos. É um momento que exige do professor decisões, por exemplo,
quanto ao que fazer ou não, no momento da aula, ou acerca de quanto tempo gastar
em determinada atividade. Escolhas aparentemente banais, mas nem sempre simples
para os que estão no início de sua vida profissional.
Kumaravadivelu (2003), ao postular aquilo que denomina de ‘pedagogia pós-
-método’, argumenta que o conceito de método – entendido como um conjunto de
princípios teóricos (oriundos de diversas disciplinas) e de um conjunto específico de
procedimentos na sala de aula (técnicas de ensino e aprendizado) usados no intento
de alcançar os objetivos do ensino/aprendizagem – parece ser central em cursos de
formação de professores de LE.
Para esse autor, tal conceito esbarra em limitações como a idealização, isto é, o
fato de os métodos serem idealmente concebido para contextos idealizados e de serem
inadequados e limitados para explicar satisfatoriamente a complexidade das operações
de ensino de língua ao redor do mundo (relação entre conhecimento do professor,
percepção do aluno, necessidades sociais, contextos culturais, demandas políticas, res-
trições econômicas e institucionais etc.). O autor propõe, então, que se pense em uma
‘pedagogia pós-método’, que consistiria não em um método alternativo, mas em uma

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alternativa ao método, baseada em três parâmetros básicos (a saber, o parâmetro da


particularidade, da praticalidade e da possibilidade)11.
Fazemos coro às palavras de Kumaravadivelu; todavia, ao mesmo tempo em que
defendemos que não se pode reduzir a formação de professores e os processos de ensi-
no-aprendizagem de línguas a meras questões metodológicas – limitando-os ao treina-
mento/assimilação de métodos e abordagens de ensino já estabelecidos – entendemos
também que, em sua prática pedagógica, o professor se depara com a imperiosa ne-
cessidade de decidir o quê e o como trabalhar a língua. O professor tem, por exemplo,
que tomar decisões a respeito: do princípio organizador de seu curso (se por gêneros,
temas, aspectos gramaticais); da forma pela qual a língua será apresentada ao aluno; da
seleção e produção de material (o tipo de atividades e habilidades a serem enfatizadas,
a sequência de atividades, o uso de textos autênticos), dentre outras (GRAVES, 2000).
E, nesse sentido, ele não pode se esquivar de dar respostas para questões que, inevita-
velmente, tangenciam os aspectos metodológicos do ensino.
Portanto, paradoxalmente, o lugar do professor, para evocar Derrida, é o lugar
da (in)decidibilidade, lugar que demanda de-cisões. No caso do professor de línguas,
diríamos que há de se de-ci(n)dir por uma forma de ensino que se julga mais ade-
quada, pelo modo que se compreende mais plausível para apresentar e explorar a lin-
guagem, o que, inevitavelmente, implica priorizar alguns sentidos e silenciar outros.
Responsabilizar-se, ao mesmo tempo, pelos sentidos que “escolhemos” e pelos que nos
“esquecemos12”, mas que produzem efeitos.
Tal paradoxo nos conduz ao segundo ponto a ser salientado, a saber, a necessidade
de se problematizarem, nos cursos de formação de professor, as concepções de (língua)
gem, de ensino-aprendizagem e de sujeito, sob perspectivas que assumam sua dimen-
são social, ideológica, heterogênea, dialógica, conflitiva e sempre política, o que passa
pela compreensão de que a “linguagem tem de ser referida necessariamente à sua exte-
rioridade, para que se apreenda seu funcionamento, enquanto processo significativo”
(ORLANDI, 2004, p. 24).
É a partir dessa problematização que se podem pensar os diários reflexivos como
espaço de reflexões críticas (e não simples descrições dos eventos de uma aula), fruto de
desestabilizações, ou seja, de deslocamentos frente ao(s) outro(s), que ocorrem de forma
diferente e em momentos distintos para os sujeitos, levando-se em consideração sua sin-
gularidade. Para que se possa dizer ‘na minha própria concepção’13 (‘e não somente na da
11
Em linhas gerais, os parâmetros são assim explicitados: o parâmetro da particularidade preconiza que qualquer pedagogia
de línguas, para ser relevante, precisa ser sensível a um grupo particular de professores e de aprendizes, seguindo um conjunto
particular de objetivos, dentro de um contexto institucional e sociocultural particular. O parâmetro da praticalidade envolve
a produção de teoria, pelo professor, a partir da prática, por meio de contínua reflexão e ação. E, finalmente, o parâmetro da
possibilidade que objetiva desenvolver a consciência sócio-política que os participantes trazem consigo para a sala de aula,
relacionando-se, pois, a identidades individuais e à transformação social.
12
Referimo-nos aqui não ao esquecimento voluntário, mas aos esquecimentos n.1 e n.2, tais como formulados por Pêcheux
([1975] 1997) e que se referem respectivamente à ilusão do sujeito de ser a fonte de seu dizer e à ilusão da naturalidade entre
palavra e coisa.
13
No excerto 4, de P3.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 131


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professora orientadora, na de meus alunos ou na de meus colegas’), é preciso que haja a


‘apropriação’ de um saber que é da ordem do não ensinável e que se dá sempre na relação
de alteridade. É preciso um ‘investimento subjetivo’ que consiste em ser capturado por
outro(s) olhar(es), outro(s) dizer(es), por uma prática outra, resultando na escritura (ins-
crição) de si e na enunciação de uma contrapalavra a outrem (BAKHTIN, [1929] 2002).
Ao analisarmos as reflexões feitas nos diários, vê-se que a mobilização de um olhar
significativo para a própria prática não ocorre como fruto de uma simples exigência
institucional, como a solicitação, pela professora orientadora de estágio, de que sejam
escritos diários reflexivos acerca das aulas ministradas. Ainda que tal exigência aconte-
ça, cremos que ressignificações e deslocamentos passam antes pela relação que o sujeito
estabelece com o(s) outro(s), seja com seu objeto de ensino, com os dizeres e desejos
que o interpelam a constituir-se como professor (sendo ainda aluno), com os movi-
mentos de identificação para com a língua, por exemplo. Relação essa que é da ordem
do não-ensinável, do não controlável.
É justamente o diálogo, no sentido bakhtiniano do termo, que parece faltar nas
reflexões presentes nos diários que aqui analisamos. Os sujeitos, em termos gerais, não
sustentam posições em um plano epistemológico, um discurso profissional docente
(FAIRCHILD, 2010), isto é, um “discurso suficientemente específico para distingui-
-lo de outros profissionais (inclusive, os professores de outras áreas) e intervir sobre um
campo específico (a escrita, o texto, o desempenho linguístico dos alunos) de maneira
a produzir aí efeitos sensíveis” (p. 272). Ao evocarem memórias e dizeres naturalizados
(sobre a prática, sobre representações de professor e aluno), os professores estagiários
abafam os conflitos que se estabelecem pela/na alteridade, possibilitando que vozes
outras venham à tona, que lugares outros sejam ocupados.
Assim, defendemos que a formação e os processos de ensino-aprendizagem sejam
pensados no entremeio, no espaço de contínua (in)decisão, para que os sujeitos tenham
a possibilidade de serem interpelados a tomarem uma posição perante o objeto que
ensinam-aprendem. Entremeio não como lugar no meio, ponto de equilíbrio. Antes
como equívoco, contradição, fronteira, margem. As análises dos planos e dos diários
apontam, a nosso ver, que a formação se dá justamente em um espaço de contradição,
em que diferentes discursos incidem nos processos e práticas de ensino-aprendizagem.
Há, por fim, de se ressaltar que as leituras que empreendemos dizem respeito ao
corpus selecionado para análise. Não tivemos aqui a pretensão de estabelecer generali-
zações; antes defendemos, a partir de nossa experiência como professora orientadora,
em disciplinas de estágio, e das pesquisas que temos desenvolvido nesses contextos,
que a formação, e consequentemente a prática pedagógica, é marcada por vozes dis-
sonantes, por discursos que ora dialogam, ora se contradizem, por posições que se
ressignificam a cada aula, a cada enunciação, apontando que a tomada da palavra (e
seu ensino) se dá sempre na fronteira – fluida, movediça – que se estabelece pelo desejo
sempre adiado da completude dos sentidos, dos sujeitos, da palavra em si.

132 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Recebido em 12/01/2014
Aprovado em 20/04/2014

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ESTÁGIO DE DOCÊNCIA SUPERVISIONADO:


UM CAMINHO PARA DESENVOLVIMENTO DA
COMPREENSÃO LEITORA E DA CONSCIÊNCIA TEXTUAL

SUPERVISED TEACHING PRACTICE: A WAY TO READING


COMPREHENSION AND TEXTUAL CONSCIOUSNESS DEVELOPMENT
Vera Wannmacher Pereira*
Leandro Lemes do Prado**

RESUMO: Neste artigo, apresentamos, a professores, pesquisadores e estagiários de


Letras, uma proposta linguístico-pedagógica para desenvolvimento da compreensão
leitora e da consciência textual de alunos de anos finais do Ensino Fundamental, com
apoio em estudos teóricos da Psicolinguística em interface com a Linguística do Texto,
pesquisas sobre o assunto e experiências desenvolvidas em ambientes escolares e em si-
tuações de Estágio Docente Supervisionado. Nessa perspectiva, são examinadas primei-
ramente a situação do ensino e do aprendizado da leitura dos escolares e as condições
dos acadêmicos na realização do Estágio, posteriormente são expostos os fundamentos
teóricos de apoio e, a seguir, é apresentado um caminho para desenvolvimento, pelos
estagiários e pelos professores, da compreensão leitora e da consciência textual dos seus
alunos. Nas considerações finais, são desenvolvidas reflexões sobre a produtividade do
caminho exposto, considerando a aprendizagem dos alunos da escola, a preparação dos
acadêmicos e o planejamento dos professores da escola e da academia.
Palavras-chave: compreensão leitora; consciência textual; anos finais do Ensino Fun-
damental; Estágio de Docência Supervisionado; interfaces.
ABSTRACT: In this article, we present to teachers, researchers and trainees of Lan-
guages Course, a linguistic and pedagogical path for reading comprehension and
textual consciousness development for junior high school students, supported by
theoretical studies of Psycholinguistics in interface with the Text Linguistic, resear-
ches about the subject and experiences developed in school settings and in Super-
vised Teaching Practice situations. From this perspective, at first it is examined the
junior high school students teaching and reading situation as well as the academics
performance among their practice. Then the authors present the theoretical basis
in which they support their ideas. Hereafter a way to reading comprehension and
textual consciousness development of the high school students is demonstrated in
order to be followed by the trainee students and by the teachers. In the final consi-
derations, reflections about the productivity of the foregoing way, considering the
*
Professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul , Brasil. E-mail: vpereira@pucrs.br.
**
Mestre em Letras Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: professorleoprado@gmail.com

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 135


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school students learning, the academic preparation and the school and academy
teachers planning are developed.
Keywords: reading comprehension; textual consciousness; final years of junior high
school; supervised teaching practice; interfaces.

COMENTÁRIOS INICIAIS
Todos que de alguma forma estão próximos de estudantes do Ensino Fundamental
reconhecem suas dificuldades em compreender textos, até mesmo dos que, frequentes
no ambiente, evidenciam larga função social, portanto relevância nas interações.
Esse reconhecimento, apesar de alguns avanços nas orientações oficiais e nas ca-
pacitações proporcionadas, tem mantido alguns desconfortos: os pais preocupados
com o potencial competitivo dos filhos, aquém do desejável; os alunos com medo
do fracasso; os professores confusos com as incompatibilidades entre alguns livros
didáticos do mercado editorial, as determinações programáticas de algumas escolas, as
orientações teóricas da academia e sua própria história como aprendizes; o poder pú-
blico frustrado pelo insucesso de determinadas iniciativas; a academia perplexa diante
da correlação negativa entre o esforço de ensino realizado e o benefício de aprendizado
alcançado; e os acadêmicos, em seus momentos finais de curso, inseguros diante das
responsabilidades com o Estágio Docente Supervisionado (EDS) que se avizinha.
Com o objetivo de contribuir para o entendimento dessa situação e, se possível,
para a redução desses desconfortos, o presente artigo elege como eixo o desenvolvi-
mento da compreensão leitora e da consciência textual de alunos dos anos finais do
Ensino Fundamental no contexto do EDS de Letras/Língua Portuguesa, na interação
universidade/escola. Nessa escolha, os professores universitários, os professores das
escolas, os acadêmicos de Letras e os alunos desses estagiários estão entrelaçados, de-
sempenhando importantes papéis na construção de paradigmas de interfaces em que
caminhos de ensino possam ser produtivos.
Para isso, no presente artigo, é feita, primeiramente, uma análise dessa situação, a
seguir, são desenvolvidos fundamentos relevantes para a perspectiva assumida, após, é
apresentado um caminho construído no âmbito das relações com os estagiários e as es-
colas (professores e alunos de Língua Portuguesa dos anos finais do Ensino Fundamen-
tal) e, por último, são feitas considerações sobre a produtividade dessas construções.

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A SITUAÇÃO DO ENSINO E DO
APRENDIZADO DA LEITURA
Uma vez que o objetivo deste artigo é disponibilizar um caminho de ensino da
compreensão leitora e da consciência textual, é necessário antes que se observe como
se encontra o panorama de ensino no Brasil. Assim, tem-se que analisar os resultados
de avaliações feitas nos diversos níveis de ensino da Educação Básica com o intuito de
examinar a qualidade da aprendizagem na escola.
É possível observar que há mecanismos medidores da situação da aprendizagem no
Brasil tais como: IDEB, Prova Brasil, PISA entre outros. Esses instrumentos indicam a
necessidade de o ensino brasileiro passar por uma reorganização educacional que reavalie
em todos os níveis de ensino o papel da escola como formadora de cidadãos capacitados.
Não se pode negar que a origem social do estudante afeta o desempenho escolar,
porém as políticas educacionais não podem ser feitas levando-se em conta somente os
problemas sociais, até porque eles também são encargos de outros setores governamen-
tais. Não se nega que a Educação seja o caminho para a libertação do indivíduo, mas,
sozinha, não dá ao indivíduo todas as condições de subsistência.
Hoje, discute-se a universalização do acesso ao ensino como uma forma de ga-
rantir a todos o acesso à escola e, por conseguinte, ao conhecimento. No entanto, há
lacunas na Educação que suscitam discussões sobre os investimentos nessa área. A
Educação precisa ser prioridade ao se pretender melhorar o desempenho na compre-
ensão leitora dos estudantes na Educação Básica.
No final da década de 70, a UNESCO sugeriu a adoção do conceito de alfabe-
tismo funcional, competência atribuída à pessoa capaz de utilizar a leitura e a escrita
para fazer frente às demandas de seu contexto social e de usar essas habilidades para
continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida (RIBEIRO et al., 2002).
No entanto, deve-se levar em conta que, em todo o mundo, a modernização das so-
ciedades, o desenvolvimento tecnológico, a ampliação da participação social e política
colocam demandas cada vez maiores com relação às habilidades de leitura e escrita.
No que diz respeito à leitura, Ribeiro et al. (2002) definem três níveis de alfabe-
tismo além daquele que seria o analfabetismo absoluto. No nível 1 de alfabetismo, o
leitor localiza uma informação simples em enunciados de uma só frase, um anúncio ou
chamada de capa de revista, por exemplo. No nível 2, o leitor consegue localizar uma
informação em textos curtos ou médios (uma carta ou notícia, por exemplo), mesmo
que seja necessário realizar inferências simples. E, finalmente, no nível 3 de alfabetis-
mo, é possível localizar mais de um item de informação em textos mais longos, com-
parar informação contida em diferentes textos, estabelecer relações entre informações
(causa/efeito, regra geral/caso, opinião/fato) e reconhecer a informação textual mesmo
que contradiga o senso comum.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 137


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O desempenho do aluno mediano das escolas públicas revela que os níveis de


alfabetismo acima apresentados necessitam ser objeto de atenção dos professores, pois
a competência leitora fica aquém de habilidades em leitura consideradas como funda-
mentais ao término do primeiro segmento do Ensino Fundamental, e o desempenho
nas redes de ensino organizadas em ciclos é, em média, abaixo das redes de ensino
organizadas em série (FRANCO et al., 2007). Portanto, considerando os níveis de
alfabetismo e o desempenho do Brasil na Educação Básica, é preciso definir priorida-
des, sistematizar programas educacionais que, com avaliação em larga escala, consigam
identificar o problema, propor solução e alterar positivamente essa realidade.
A aposta na capacidade do aluno de aprender ao seu tempo vem mascarando
a avaliação do rendimento dos alunos. Não é surpresa para ninguém um professor
se manifestar dizendo que foi obrigado a aprovar um aluno por pressões de fontes
diversas. Assim, têm-se índices elevados de aprovação e resultados preocupantes nas
avaliações dos Indicadores da Educação Brasileira como o SAEB1.
Os dados do INEP2 (2011) mostram que, apesar de as metas estabelecidas pelo
governo estarem sendo atingidas, o IDEB3 (2011) brasileiro continua baixo e eviden-
cia que, à medida que o aluno avança dos anos iniciais para os finais, a nota tende a
baixar, pois o IDEB dos anos iniciais do Ensino Fundamental é 5,0, dos anos finais é
4,1 e do Ensino Médio é 3,7. Essas notas baixam ainda mais quando analisamos ape-
nas alunos oriundos das escolas públicas.
A Prova Brasil, avaliação feita pelo SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Bá-
sica), tem verificado o desempenho de alunos do 5º e 9º anos do Ensino Fundamental
e do 3º ano do Ensino Médio. Os resultados também revelam índices abaixo dos de-
sejados no desempenho em leitura.
O Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (PISA) desenvolvido pela
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) pesquisa, a
cada três anos, a competência em leitura de estudantes na faixa dos 15 anos de idade.
Os resultados com os estudantes brasileiros colocam o Brasil nas últimas posições nas
edições de 2003, 2006, 2009 e 2012.
Em novembro de 2013, um documento intitulado Relatório de Monitoramento
Global de Educação para Todos, divulgado pela UNESCO (Organização das Nações
Unidas para Educação, Ciência e Cultura), revela que o Brasil ocupa a 72ª posição
entre 127 países. Segundo o documento, falta conteúdo de qualidade ao ensino brasi-
leiro. O Índice de Desenvolvimento Educacional (IDE), criado pela UNESCO, dá ao
Brasil a nota de 0,899, colocando-o em uma posição considerada intermediária.

1
Sistema da Avaliação da Educação Básica. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/web/saeb/aneb-e-anresc>. Acesso em: 30/03/14.
2
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas. Disponível em: http://ideb.inep.gov.br/resultado>. Acesso em: 30/03/14.
3
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Disponível em: <http://ideb.inep.gov.br/resultado>. Acesso em: 30/03/14.

138 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Esse resultado é baseado em um indicador formado por 4 itens: taxa de analfa-


betismo, matrículas no Ensino Fundamental, paridade de gêneros – meninos e me-
ninas – e permanência na escola depois da 4ª série do Ensino Fundamental. O item
permanência na escola compromete a situação do Brasil. Na universalização do Ensino
Fundamental, o Brasil ocupa a 32ª posição, mas em permanência, depois da 4ª série,
ocupa um lugar nada honroso – 87º lugar, assinalando uma repetência muito alta e
dificultando a permanência do aluno na escola. A colocação brasileira no IDE é infe-
rior à do Peru e à do Equador.
De acordo com o relatório, a educação obrigatória inicia-se na maioria dos países
aos 5 e, em alguns, aos 6 anos, com desvantagem para o Brasil. A maior parte dos
demais países da região leva a obrigatoriedade da educação até os 15 anos. No Brasil,
ela termina aos 14 anos. Quanto ao número de horas diárias, segundo a UNESCO,
são necessárias entre 4h e 25min e 5h para que os estudantes realmente aprendam. A
média brasileira é de 4h e 15min e, em muitos Estados, não chega nem mesmo a 4
horas de ensino por dia.
Embora diversas medidas de política educacional tenham potencial para contri-
buir com o aprimoramento da educação brasileira, a magnitude do desafio da quali-
dade está além do potencial das políticas que circulam. O Plano de Desenvolvimento
da Educação (PDE) estabelece prazos e metas a serem cumpridos para melhorar sensi-
velmente o desempenho das escolas brasileiras. Resta-nos, agora, criar meios para que
essas metas e esses prazos sejam cumpridos.
Se, por um lado, temos essa realidade sobre a aprendizagem na escola, por outro,
temos que estender esse olhar para a realidade da prática de ensino nas universidades
e instituições formadoras de profissionais da Educação.
A sociedade moderna tem exigido dos professores desempenhos cada vez mais
qualificados e eficazes para conviver com as contradições e os problemas da sociedade,
dita “globalizada”, que se refletem na escola (LIMA, 2008). Assim, a formação de pro-
fessores para atuar nas redes de ensino tem que abranger, além do conhecimento sobre
a língua propriamente dito, o conhecimento sobre a realidade do ensino.
Um professor iniciante ou um estagiário enfrentam o desafio de ter que colocar
em prática o que aprenderam na academia, mas para tal demanda ainda não têm ex-
periência, considerando também as discrepâncias que a situação lhe apresenta: alunos
em diferentes níveis de aprendizagem, salas de aulas muitas vezes excedendo o número
de alunos desejável, problemas sociais, falta de material, violência de naturezas diver-
sas. Enfim, a tarefa é imensa para esse profissional iniciante e a quem cabe colocar em
prática as medidas acima discutidas para melhorar a qualidade da Educação.
Como se não bastassem esses problemas, o estagiário encontra, muitas vezes, em
sala de aula, um ensino de leitura com sua importância reduzida diante de um ensino
que prioriza ainda o ensino de gramática de frases desconectado do texto. Depara-se

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 139


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também com um trabalho com gêneros textuais com pouca consistência e um certo
abandono do texto literário. Encontra ainda um trabalho em que a leitura está disso-
ciada das reflexões linguísticas e da produção escrita. Situações como essas são encon-
tradas, embora a existência de iniciativas importantes como a do Programa Nacional
do Livro Didático, que disponibiliza diretrizes para elaboração dos livros didáticos
com perspectiva de ensino de língua mais atualizadas nas quais a gramática descontex-
tualizada perde força, a diversidade textual é estimulada, o texto literário é valorizado
e a análise e a reflexão linguística são recomendadas.
O professor recém saído da academia ou em processo de saída se depara com uma
escola desenvolvendo caminhos de ensino da leitura já vistos com reservas por essa aca-
demia. Cabe ressaltar que também os órgãos oficiais não preconizam esses caminhos.
A prova disso é que os instrumentos que avaliam a Educação Básica são norteados por
uma ênfase na compreensão da leitura e nos processos reflexivos sobre a linguagem. Os
dados de insucesso acima descritos estão de certo modo vinculados a essa dissociação
entre as recomendações baseadas na Linguística e as baseadas na prática escolar.
Não é de se estranhar que, nesse quadro, haja uma redução da busca da profissão
de professor, como mostra o relatório de 2006 da Organização para Cooperação e De-
senvolvimento Econômico (OCDE). Nele há um conjunto de dados de realidades de
diferentes países, revelando duas grandes inquietações relacionadas à carreira docente:
a escassez de professores, especialmente em algumas áreas; e o perfil do profissional em
termos de conhecimentos e habilidades (TARTUCE et al., 2010). Além disso, não po-
demos esquecer que a preocupação não é só de atrair as pessoas para a carreira em licen-
ciatura, mas também, e talvez a maior delas, manter os professores na profissão docente.
Como é possível observar, com a discussão feita até este ponto do texto, a reali-
dade do ensino no Brasil ainda demonstra a necessidade de se investir mais na quali-
dade do ensino, colocando a leitura efetivamente como foco, conforme demonstram
pesquisas e instrumentos de avaliação nessa direção. Na próxima sessão, esse tópico é
examinado mais detalhadamente, focalizando a compreensão leitora e seu processa-
mento e a consciência textual.

COMPREENSÃO LEITORA E CONSCIÊNCIA TEXTUAL


Nesta seção do artigo, são analisadas a compreensão leitora e seu processamento
e a consciência textual, dada a relevância desses tópicos para o acesso a todas as áreas
do conhecimento, e mais especificamente para o domínio da Língua Portuguesa, de
interesse central neste artigo, pois a Supervisão do Estágio Docente que o motiva está
circunstanciada na Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa.
A perspectiva teórica aqui assumida é a da Psicolinguística em interface com a
Linguística do Texto e as Neurociências. Nesse entendimento, o texto não deve ser

140 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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visto como um simples conjunto de elementos gramaticais, nem como um repositório


de mensagens e de informações (KLEIMAN, 1996) e a leitura é vista como um pro-
cesso cognitivo que pode ocorrer interativamente de forma ascendente – bottom-up e
de forma descendente – top-down (SCLIAR-CABRAL, 2008). A combinação dessas
formas está baseada num conjunto de variáveis: características do texto (gênero, tipo),
objetivo da leitura, conhecimentos prévios do leitor e estilo cognitivo do mesmo.
O processamento ascendente se realiza das unidades menores para as maiores,
com a atenção do leitor se dirigindo para as pistas visuais do texto. De modo geral, esse
processamento é utilizado em situações nas quais o leitor tem poucos conhecimentos
prévios sobre o conteúdo ou a linguagem do texto, o objetivo da leitura exige uma
abordagem minuciosa e o texto para ler é complexo, exigindo atenção cuidadosa.
O processamento descendente se realiza das unidades maiores para as menores,
com o leitor se apoiando nas informações extratextuais. De modo geral, esse proces-
samento é utilizado quando o leitor tem conhecimentos prévios sobre o assunto e a
linguagem do texto, seu objetivo exige uma leitura geral, e a densidade do texto não
oferece dificuldades grandes de compreensão.
De acordo com Soares (1991), a leitura não é uma atividade apenas de decodifica-
ção, em que o leitor apreende a “mensagem” do autor, mas é processo constitutivo do
texto com base na interação autor-leitor. Ou seja: o texto não preexiste à sua leitura,
pois esta é construção ativa de um leitor que, de certa forma, “reescreve” o texto, de-
terminado por seu repertório de experiências individuais, sociais, culturais.
Durante a leitura, o leitor utiliza estratégias de leitura (PEREIRA, 2010) como:
skimming (leitura geral e rápida para uma aproximação inicial ao texto); scanning (lei-
tura de busca de uma informação específica no texto); leitura detalhada (leitura minu-
ciosa dirigindo a atenção para todos os detalhes); predição (antecipação do conteúdo
do texto, com base nas pistas linguísticas e nos conhecimentos prévios); automonito-
ramento (observação, pelo leitor, do próprio processo de leitura); autoavaliação (ve-
rificação, pelo leitor, da adequação das hipóteses de leitura levantadas); autocorreção
(alteração, pelo leitor, das hipóteses formuladas, caso constate inadequações).
Com essas estratégias tem-se a ativação dos conhecimentos prévios, a seleção de
informações, a realização de inferências, a antecipação e localização de informações no
texto, ocorrem inferências e antecipações, relações textuais e contextuais se articulam,
e também acontecem a construção e a generalização de informações. Nesse sentido, o
uso de estratégias dá ao texto e à leitura a perspectiva da prática social, pois o leitor, ao
estabelecer relações com o texto, interage com a sua própria realidade, ampliando-a,
modificando-a, percebendo-a de maneira mais nítida.
Além disso, a utilização dessas estratégias faz com que o leitor manipule os ele-
mentos linguísticos do texto e os elementos extratextuais. Os elementos linguísticos
abrangem os fônicos (fonemas/letras, ritmo, entonação), os morfossintáticos (limites

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 141


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de palavra e frase, estrutura vocabular, elos gramaticais), os semânticos (léxico, signi-


ficação vocabular, elos lexicais), os pragmáticos (situação de uso), os textuais (supe-
restrutura, coerência, coesão). Os elementos extratextuais estão nos conhecimentos
prévios do leitor, em seus arquivos de memória, e no contexto.
Na reflexão sobre o uso desses elementos, o leitor está acionando a sua consciência
(PEREIRA, 2010), o que contribui para a produtividade desse uso. Conforme Baars
(1993), na teoria do espaço global da consciência (global workspace), os conteúdos
conscientes estão contidos num espaço global: uma espécie de processador central usa-
do para mediar a comunicação com um conjunto de processadores especializados não
conscientes. De acordo com Teixeira (1997), quando esses processadores especializa-
dos precisam transmitir informação para o resto do sistema, eles o fazem mandando-a
para o espaço global que atua como uma espécie de quadro comunitário, acessível a
todos os outros processadores. Segundo Bächler (2006), a consciência é indispensável
para compreender qualquer processo cognitivo, pois ela é o traço central da mente,
é dinâmica, tem um ponto de vista, necessita de uma orientação e tem um foco, cir-
cundado por informações que proporcionam um contexto. De acordo com Dehaene
(2007, 2009), a consciência consiste em componente significativo para a compreen-
são, que, conforme experimento realizado, a partir do tempo de 270-300 milissegun-
dos é possível ver diferença entre o processamento consciente e o inconsciente.
Nessas concepções sobre consciência, está o suporte necessário para tratar da
consciência linguística que ativa, em sincronia, diversas áreas do cérebro, que tem um
contexto linguístico específico e utiliza informações periféricas a esse foco, e, sobretu-
do, é intencional na busca da análise de algum ponto específico. Por essa perspectiva,
podemos entender que a consciência linguística pode focalizar determinado plano
linguístico, donde as denominações de consciência fonológica, morfológica, sintática,
semântica, pragmática e textual emergem (GOMBERT, 1992).
Neste artigo, o foco é o segmento textual, pois o caminho proposto na próxima
seção se concentra na compreensão leitora e na consciência textual, que focaliza as rela-
ções textuais dos elementos linguísticos internamente e deles com o contexto: a coesão,
envolvendo a lexical, que trata da repetição de palavras, da sinonímia, da hiperonímia/
hiponímia e da associação por contiguidade e a gramatical, que envolve a referenciação,
a elipse e a conjunção (HALLIDAY, 1976); a coerência, incluindo a manutenção temá-
tica, a progressão temática e a ausência de contradição interna (CHAROLLES, 1978);
e, por fim, a superestrutura, consistindo no esquema textual (GOMBERT, 1992).
O uso e a reflexão sobre a linguagem do texto (SPINILLO et al., 2010), no que
se refere à superestrutura, à coerência e à coesão, apoiam-se nas pistas linguísticas
deixadas pelo autor no texto e acionam os conhecimentos prévios armazenados na
memória declarativa (uso) e na memória procedural (reflexão), esta supondo a análise
do próprio processo de leitura realizado. Nesses movimentos, estão a construção da
compreensão da leitura e o seu processamento, profundamente vinculados à consciên-
cia textual (PEREIRA e SCLIAR-CABRAL, 2012).

142 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Os conhecimentos prévios armazenados na memória declarativa são acionados


pelo leitor para a compreensão do texto. Isso significa que cabe ao professor, paralela-
mente ao trabalho de ensino da análise linguística, propor atividades que estimulem
o aluno a acionar seus conhecimentos prévios, colocando-o diante de textos que têm
maior ou menor correspondência com eles.
A consciência textual resulta da atenção dirigida para a superestrutura, a coerên-
cia e a coesão do texto, com apoio nos elementos fônicos, morfossintáticos, léxico-
-semânticos, pragmáticos e textuais. Há que se considerar que, ao chegar à escola, os
alunos já possuem muitos conhecimentos intuitivos sobre a língua. Um aprendizado
produtivo exige, no entanto, o desenvolvimento da consciência sobre eles. É o que faz
transformar os conhecimentos espontâneos em conhecimentos científicos, cabendo
salientar que é para isso que as crianças vão para a escola. É, assim, tarefa do professor
propor atividades de ensino da leitura em que a atenção do aluno seja dirigida para
os elementos linguísticos do texto, não apenas no sentido de seu uso, mas no sentido
de sua explicação, da justificação do seu funcionamento, sendo, para isso, de grande
importância os dados já armazenados na memória declarativa.
O processo de leitura prepara o processo de escrita. Desse modo, os estudos psico-
linguísticos recomendam o uso de um mesmo gênero textual no desenvolvimento dos
dois processos, de modo que a consciência textual na leitura encaminhe a consciência
textual na escrita (SMITH, 1983). Daí a importância da ativação dos conhecimentos
prévios, da observação dos traços linguísticos do texto e da reflexão sobre os proce-
dimentos de compreensão utilizados, o que exige o uso da memória declarativa e da
memória procedural.
Para concluir, é importante salientar que o ensino de leitura deve se transformar
em prática pedagógica eficaz que adota uma concepção de leitura que esteja de acordo
com a realidade para a qual se pretende formar o aluno. O trabalho do professor deve
ser pautado por uma concepção de leitura que considera o fato de que um sujeito,
quando lê um texto, realiza uma prática social. Portanto, há nesse processo a comple-
xidade das relações das diferentes esferas da sociedade que são articuladas e materiali-
zadas através da linguagem pelos mais diversos gêneros textuais.
Assim, o processo de ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa pode ser alvo
de reflexão a partir de orientações que valorizem a consciência textual e possibilitem
uma compreensão leitora produtiva. Para isso, há que considerar a importância de
o estagiário e o professor da escola desenvolverem procedimentos nessa direção. Na
próxima seção, é apresentado um caminho linguístico-pedagógico construído pelos
autores do artigo no âmbito das relações do EDS.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 143


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CAMINHO LINGUÍSTICO-PEDAGÓGICO
DE ENSINO DA LEITURA
A perspectiva assumida neste artigo se evidencia já nos autores – um professor
orientador de EDS de Letras/ Língua Portuguesa da PUCRS, e um professor de Lín-
gua Portuguesa de escola de Ensino Fundamental. O primeiro, coordenador de pes-
quisas sobre aprendizado e ensino da leitura e da escrita, e o segundo, participante de
uma dessas pesquisas, como professor de escola, e orientando de doutorado do primei-
ro, desenvolvendo tese sobre as relações entre leitura e escrita. Assim, o texto busca, na
especificidade de ângulos da escola e da universidade, o liame entre essas duas institui-
ções, constituindo-se o EDS em momento privilegiado para esse propósito.
O caminho linguístico-pedagógico é proposto neste tópico com base nessa pers-
pectiva e nos fundamentos expostos, construído na prática dessa disciplina do Currí-
culo de Letras, que se desenvolve sucessivamente nos seguintes momentos:
• debate sobre o plano de trabalho, as normas administrativas e a documenta-
ção comprobatória do estágio;
• aprofundamento dos fundamentos teóricos sobre compreensão e processa-
mento da leitura, produção escrita e suas relações com a leitura, organização
e funcionamento da linguagem e consciência textual;
• discussão do paradigma linguístico-pedagógico;
• demonstração das possibilidades de transposição didática do paradigma;
• definição e busca das escolas;
• orientações para o planejamento das aulas e as relações com as escolas;
• realização e registro de observações das aulas da turma da docência;
• elaboração dos planos de aula (seleção dos textos e organização das atividades
de ensino e avaliação);
• realização da pré-avaliação dos alunos;
• desenvolvimento da docência;
• realização da pós-avaliação dos alunos;
• análise dos dados das avaliações;
• elaboração do relatório das ações de ensino e avaliação;
• elaboração de um ensaio sobre tópico relevante identificado ao logo do EDS;
• apresentação do trabalho desenvolvido em seminário da turma.

O paradigma de ensino da leitura construído no âmbito do EDS, apresentado a


seguir, é constituído de um conjunto de concepções que têm apoio nos fundamentos
anteriormente expostos.

144 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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a. A compreensão textual e o seu processamento cognitivo são marcados pela


situação de leitura. Daí a importância de o estagiário/professor ter critérios
claros para a seleção do texto, considerando suas características como gênero
(BAZERMAN, 2009) e as da situação em que está imerso, os propósitos pe-
dagógicos do ano escolar, considerando a hierarquização definida pela escola,
os objetivos de leitura e os conhecimentos prévios dos alunos.
Considerando essas concepções, se a turma de docência for de 8º/9ºano, pode-
rá ser selecionada uma crônica com sequências argumentativas dominantes (ADAM,
2008). É importante que seja estabelecido claramente o objetivo de leitura (por exem-
plo, resumir o texto), de modo que os alunos possam selecionar procedimentos de lei-
tura adequados, usá-los e explicitá-los, e sejam considerados os conhecimentos prévios
dos alunos no que se refere à linguagem e ao conteúdo do texto.
b. A compreensão do texto tem suporte nos seus elementos linguísticos, isto
é, nos constituintes fônicos (ritmo, rima, aliteração...), morfológicos (limite
e estrutura dos vocábulos, classes gramaticais, flexões...), sintáticos (limite e
estrutura das frases/versos, paralelismo, combinações entre os segmentos...),
léxico-semânticos (vocábulos e seus significados, paralelismo...), pragmáticos
(relações entre o texto e a situação comunicativa) e textuais (superestrutura,
coerência e coesão). Desse modo, cabe ao estagiário/professor propor ativida-
des de análise linguística cuidadosa do texto, pois essa alavanca seu entendi-
mento e alicerça a compreensão. Esse trabalho deve ser simultâneo à compre-
ensão, pois lhe dá condições de acontecer.
Considerando a mesma turma e a mesma situação de leitura, a análise linguís-
tica deve ser constituída de atividades que direcionem a atenção dos alunos para a
organização do texto em seus elementos constitutivos: os elementos coesivos lexicais
relevantes para o sentido do texto - seus significados e estruturas, suas repetições, seus
modos de agrupamentos, suas substituições; os elementos gramaticais – os processos
de retomada linguística, os nexos, as relações entre os vocábulos, as elipses; os traços
da superestrutura – formato, moldura, esquema, suporte, sequências dominantes; os
traços de coerência – tema, tópicos de desenvolvimento, relações entre os tópicos e
entre esses e o tema; as marcas da situação de produção (autor, propósito, fonte, su-
porte) e de recepção do texto (objetivo da leitura, elementos linguísticos e tópicos que
integram e que não integram os conhecimentos prévios dos alunos).
Quanto à compreensão do texto, como já referido, ela é apoiada pela análise lin-
guística, pois assim favorece a compreensão dos fatos e dos argumentos utilizados. Isso
significa ainda que, paralelamente à análise dos elementos linguísticos, cabe a proposi-
ção de atividades sobre conteúdo do texto – o tema e seus tópicos, os fatos e suas rela-
ções e os argumentos e seus vínculos com a tese em desenvolvimento (ADAM, 2008).
Na situação acima referida, considerando a natureza da crônica, a escolaridade
dos alunos e o objetivo de leitura, pode ser muito importante a exploração do tema e

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 145


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de sua progressão, do léxico em suas associações por contiguidade, dos argumentos e


suas relações com a tese e o propósito do autor, das referenciações, dos tempos e pes-
soas verbais e dos conectores.
c. Os conhecimentos prévios armazenados na memória declarativa são aciona-
dos pelo leitor para a compreensão do texto. Isso significa que cabe ao esta-
giário/professor, paralelamente ao trabalho de ensino da análise linguística,
propor atividades que estimulem o aluno a acionar seus conhecimentos pré-
vios, colocando-o diante de textos que têm maior ou menor correspondência
com eles.
Nesse sentido, a seleção dos textos deve apresentar a diversidade necessária de
modo a exigir a ativação de conhecimentos que já possui e a busca de conhecimentos
que não estão ainda armazenados em sua memória declarativa, de modo a contribuir
para o desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem.
Na situação sugerida, caso o tópico central seja conhecido por apenas parte da
turma, cabe oportunizar a leitura prévia de textos que o abordem e estimular o inter-
câmbio de conhecimentos entre os alunos, de modo a fortalecer as condições para a
compreensão da crônica selecionada.
d. A consciência textual resulta da atenção dirigida para a superestrutura, a co-
erência e a coesão do texto, com apoio nos elementos fônicos, morfossintáti-
cos, léxico-semânticos, pragmáticos e textuais. É importante considerar que,
ao chegar à escola, os alunos já possuem muitos conhecimentos intuitivos
sobre a língua. Um aprendizado produtivo exige, no entanto, o desenvolvi-
mento da consciência sobre eles. É o que faz transformar os conhecimentos
espontâneos em conhecimentos científicos, cabendo salientar que é para isso
que as crianças vão para a escola.
É, assim, tarefa do estagiário/professor propor atividades de ensino da leitura em
que a atenção do aluno seja dirigida para os elementos linguísticos do texto, não ape-
nas no sentido de seu uso, mas no sentido de sua explicação, da justificação do seu
funcionamento, sendo, para isso, de grande importância os dados já armazenados na
memória declarativa.
Considerando a situação proposta, é necessário que os alunos observem a crônica
em suas características superestruturais e em suas relações morfossintáticas e semân-
tico-pragmáticas e as explicitem. Estarão assim desenvolvendo a consciência sobre a
organização linguística desse gênero textual, tendo assim favorecidas as condições para
sua compreensão.
e. A consciência textual necessita também, para sua plenitude, do direcio-
namento da atenção para o processo de compreensão desenvolvido pelo
leitor. Nesse sentido, é necessário que o estagiário/professor proponha
atividades que exijam do aluno a observação e a explicitação dos procedi-

146 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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mentos de compreensão por ele utilizados, sendo para isso importante o


uso da memória procedural.
Desse modo, não basta fazer a leitura do texto e responder às questões de compre-
ensão propostas, pois, para desenvolvimento da consciência textual, é necessário que
os alunos reflitam sobre os procedimentos realizados, façam relato desses procedimen-
tos, explicitem as estratégias de leitura utilizadas, avaliem os resultados e redimensio-
nem seus caminhos, se for o caso.
Nesse sentido, no caso da situação prevista, é importante que a cada exploração
linguística da crônica, os alunos sejam estimulados à observação e à verbalização dos
procedimentos por eles realizados. Esse encaminhamento lhes oportunizará o desen-
volvimento da consciência sobre o funcionamento da crônica e sobre o seu próprio
funcionamento cognitivo a esse respeito. Tal processo reflexivo deve ocorrer em todas
as etapas do paradigma aqui apresentado, pois assim haverá compreensão e consciên-
cia textual, com benefícios para ambas.
f. O processo de leitura prepara o processo de escrita. A escrita deve então ser
realizada no mesmo gênero textual lido, uma vez que as atividades de desen-
volvimento da consciência textual, se realizadas no texto do gênero A, devem
encaminhar para a escrita de texto do gênero A (FLÔRES e PEREIRA, 2012).
Cabe então ao estagiário/professor propor atividades de ensino da leitura em que
o exame das marcas linguísticas do texto seja favorecedor do desenvolvimento da cons-
ciência textual do leitor (SMITH, 2003).
No exemplo aqui sugerido, é importante que, após todo o trabalho de leitura da
crônica, os alunos sejam orientados para a elaboração de um resumo dessa crônica e
para a produção de uma outra crônica também com sequências argumentativas domi-
nantes. A seguir, cabe uma reflexão sobre as marcas desse gênero na crônica lida, no
resumo elaborado e na nova crônica produzida.
O paradigma aqui exposto consiste na base de um caminho linguístico-pedagógi-
co para desenvolvimento da compreensão e da consciência textual, definido com apoio
na Psicolinguística e suas interfaces com a Linguística do Texto e as Neurociências e
construído nas experiências que vêm sendo realizadas no âmbito do EDS da FALE/
PUCRS, nas relações desenvolvidas entre a professora da disciplina, os professores
das escolas e os estagiários de Letras/Língua Portuguesa. No tópico a seguir, são feitas
considerações finais sobre essas relações e a produtividade desse caminho construído.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 147


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COMENTÁRIOS FINAIS
Ao fechar este artigo, cabe a realização de alguns comentários sobre o tema que
o norteou – compreensão leitora e consciência textual nos anos finais do Ensino
Fundamental no ambiente das relações entre universidade e escola no ESD de Le-
tras/Língua Portuguesa.
Esses comentários abrangem o contexto pedagógico, a escolha teórica e a perspec-
tiva de ensino proposta, em seus pontos essenciais.
A observação do momento atual do ponto de vista pedagógico, conforme exposto
anteriormente, evidencia a existência de variáveis políticas e econômicas no ensino,
constituindo um corpo de condições pouco favoráveis ao aprendizado dos estudantes.
No caso do desempenho em leitura, especificamente, a análise dos dados decor-
rentes da aplicação das provas oficiais coloca os jovens estudantes de anos finais do En-
sino Fundamental em situação de desvantagem devido à baixa competitividade tanto
na dimensão nacional como na internacional. Essa situação, de complexa influência
no que se refere aos aspectos globais, vem contando para sua alteração com a prepara-
ção dos professores e com a contribuição dos pesquisadores para isso.
Nesse quadro, as relações entre a universidade e a escola ganham importância e
o ESD de Letras/ Língua Portuguesa, com seus estagiários, constitui-se numa porta
aberta promissora, na medida em que paradigmas consistentes criados nesse âmbito
são discutidos e socializados. No caso do aqui exposto, apresenta por si uma possibi-
lidade teórica e metodológica a mais por ter seu nascedouro em áreas da Linguística
vocacionadas para o aprendizado e o ensino – a Psicolinguística em suas interfaces
com a Linguística do Texto e as Neurociências. Os fundamentos desse paradigma
constituem-se numa seleção dos tópicos que explicitam o aprendizado da leitura e
possibilitam a proposição de caminhos para o seu ensino.
Os fundamentos teóricos utilizados indicam a existência de relações entre a com-
preensão da leitura de texto e a consciência textual. A primeira se realiza como proces-
samento cognitivo, que, por sua vez, conta com o uso de estratégias cognitivas e meta-
cognitivas de leitura. A segunda consiste no direcionamento da atenção do leitor para os
constituintes linguísticos do texto e para o processo de compreensão por ele realizado,
com vistas ao sucesso no entendimento e à explicitação dos procedimentos utilizados.
A consciência textual focaliza a superestrutura do texto, a coerência e a coesão. Há
que ressaltar, no entanto, que esse nível de consciência, por ter o texto como objeto de
observação e reflexão, necessita transitar por todos os planos linguísticos e suas corres-
pondentes unidades constituintes.
Isso significa que, para o desenvolvimento da consciência textual e da compreen-
são leitora nos anos finais, é necessário que o estagiário/professor encaminhe ativida-

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des de observação da superestrutura, da coerência e da coesão do texto, considerando


os entrelaçamentos com os elementos constitutivos fonológicos, morfológicos, sintáti-
cos, semânticos, pragmáticos e textuais. Ao mesmo tempo deve propor a observação,
pelos alunos, dos seus próprios processos realizados no trajeto da compreensão textual.
A perspectiva teórica e metodológica assumida como apoio neste artigo consiste
numa contribuição para o desenvolvimento da compreensão leitora e da consciência
textual de alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e, desse modo, para a al-
teração da situação evidenciada pelas provas oficiais de avaliação, no que se refere às
condições de leitura desses estudantes.
Considerando o ESD, os estagiários, os professores das escolas e os professores
universitários supervisores, tais parceiros constituem-se numa relação de oportunidade
positiva, exercendo cada um suas funções específicas e realizando trocas produtivas
– os estagiários, ao buscarem convergências entre a aprendizagem na academia e o
ensino na escola; os professores das turmas, ao dividirem seus conhecimentos com os
estagiários e acolherem os disponibilizados pela universidade; os professores superviso-
res dos estagiários, ao disponibilizarem seus estudos e pesquisas e terem a possibilidade
de redimensioná-los e reconstruírem processos acadêmicos.
Nesse entendimento, o caminho de ensino da leitura construído no âmbito dessas
relações e apresentado neste artigo traz consigo possibilidades de ser produtivo, caben-
do reconhecê-las, valorizá-las e assumi-las como porta preciosa de entrada na escola e
na universidade e, assim, no sistema de ensino.

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Recebido em 31/03/2014.
Aprovado em 20/04/2014.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 151


POLÍTICA DE FORMAÇÃO INICIAL
Universidade Federal da Grande Dourados

DIÁLOGO ENTRE TEORIA E PRÁTICA:


A PESQUISA EM ESTÁGIO

DIALOGUE BETWEEN THEORY AND PRACTICE: THE RESEARCH


IN TRAINEESHIP
Antonio Francisco de Andrade Júnior*

RESUMO: Este artigo pretende descrever e discutir propostas de pesquisa em estágio


desenvolvidas por licenciandos da Prática de Ensino de Português-Espanhol do curso
de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seu objetivo é, a partir da análise
dos aspectos implicados na escolha inicial dos discentes por temas e linhas de inves-
tigação, avaliar a contribuição desse trabalho para a formação inicial do professor de
língua espanhola. Serão explicitados diferentes caminhos de elaboração das pesquisas,
distintas formas de relação que estabeleceram com os campos de estágio, limites e con-
tribuições desse tipo de atividade para os propósitos principais da Prática de Ensino,
quais sejam, o incentivo à formação da identidade profissional docente e a promoção
de um diálogo mais efetivo e consciente entre teoria e prática.
Palavras-chave: formação de professores; relação teoria-prática; pesquisa em estágio.
ABSTRACT: This article aims to describe and discuss research proposals in trainee-
ship developed by licentiate students of the Practice of Teaching of Portuguese-Span-
ish from the course of Languages of the Federal University of Rio de Janeiro. Its goal
is, based on the analysis of the aspects involved in the initial choice of the students by
themes and lines of inquiry, to assess the contribution of this study for initial Span-
ish teacher training. Different ways of preparing the research will be detailed, such as
different forms of relationship established with the training field, also limitations and
contributions of this type of activity for the main purposes of the Teaching Practice,
whatever they be, the encouragement to the formation of the professional identity
of the teacher and, finally, the promotion of a more effective and conscious dialogue
between theory and practice.
Keywords: teacher training; theory-practice relationship; research in traineeship.

ESTÁGIO E PESQUISA
O curso de Letras Português-Espanhol da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) tem se dividido, classicamente, em duas modalidades – bacharelado e licen-
*
Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: antonioandrade.ufrj@gmail.com

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ciatura –, separadas física e administrativamente na medida em que, até a implantação


em 2010 do novo currículo, a formação acadêmico-científica nas áreas de línguas e
literaturas ficava sob a responsabilidade “exclusiva” da Faculdade de Letras, localizada
no campus do Fundão, e a formação de professores com suas disciplinas de funda-
mentação pedagógica, didática e prática de ensino, sob a responsabilidade, igualmente
“exclusiva”, da Faculdade de Educação, localizada no campus da Praia Vermelha1.
Este trabalho não tratará dos novos caminhos a serem adotados a partir da refor-
ma dos cursos de licenciatura da universidade, que pressupõem mais integração peda-
gógica e administrativa entre as unidades de origem dos estudantes e a Faculdade de
Educação, mas sim dos resultados dessa tradição separatista ainda sentidos nas turmas
de Prática de Ensino de Português-Espanhol, bem como dos esforços empreendidos
pelo setor de Didática Especial e Prática de Ensino desta habilitação, nos últimos anos,
no sentido de desfazer tal dicotomia.
Alguns dados relativos às Práticas de Ensino da licenciatura em Letras da UFRJ
precisam ser expostos previamente para que o leitor possa ter um panorama geral
do trabalho que se vem realizando. Até o presente momento, a Prática de Ensino de
Português-Espanhol conta com uma carga horária de 4 tempos semanais de aulas e
2 tempos de orientações, divididos em dois semestres, que devem ser cursados con-
comitantemente às 300 horas de estágio supervisionado (para o currículo antigo) e
400 horas (para o currículo novo), cumpridas em escolas públicas do Rio de Janeiro
e de alguns municípios vizinhos, divididas de maneira equânime entre as disciplinas
Língua Portuguesa e Língua Espanhola, presentes na grade curricular do segundo seg-
mento do ensino fundamental e do ensino médio. Trata-se, assim, de uma matéria de
abrangência teórica e prática cujo papel principal é não apenas inserir os licenciandos
em campos de estágio curricular obrigatório, mas também promover a reflexão crítica
sobre a prática docente a partir da articulação entre saberes relativos aos domínios dos
estudos de linguagem – linguística e línguas materna e estrangeira –, de literatura –
teoria literária, literatura comparada, literaturas de língua portuguesa e espanhola – e
de educação – formação de professores, processos de ensino/aprendizagem, metodo-
logias de ensino, contexto sócio-histórico e diretrizes políticas do ensino de línguas e
literaturas no Brasil.
Tendo em vista a justaposição entre estágio e didática especial de língua materna e
estrangeira, por um lado, e a fragmentação da disciplina em semestres I e II, por outro,
optou-se a partir de 2011 por um processo de avaliação que considerasse, simulta-
neamente, em cada período, o desenvolvimento das discussões teóricas em torno da
docência e a inserção reflexiva e participativa dos licenciandos nas escolas em que eles
realizam os estágios. Obedecendo à organização curricular seguida por todos os seto-
res de didática e prática de ensino de português/línguas estrangeiras da Faculdade de
1
O curso de Letras da UFRJ, na modalidade bacharelado, foi criado em 1931 e reconhecido em 1939. No entanto, a licen-
ciatura desse curso só passou a ser coordenada pela Faculdade de Letras da instituição a partir das reformas, aprovadas pelo
seu Conselho Universitário em 25 de junho de 2009.

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Educação da UFRJ, as aulas teóricas enfatizaram, no primeiro semestre, os conteúdos


relativos à formação do professor de Espanhol/LE e, no segundo, os que concernem à
formação do professor de Português. No entanto, é importante frisar que os estágios
supervisionados e as orientações da prática de ensino de ambas as línguas se desenvol-
vem ao longo de todo o ano. Por isso, juntamente aos trabalhos e exames vinculados
aos textos discutidos em sala, a reflexão a respeito do estágio se dá em cada momento
de uma forma: no 1º semestre, através da elaboração de uma pesquisa em estágio –
processo investigativo individual levado a cabo pelos licenciandos, com a orientação
do professor da Prática de Ensino e, em alguns casos, com a co-orientação dos profes-
sores regentes das escolas onde ocorre o estágio, e cujos resultados foram apresentados
na forma de artigo monográfico ao final do período –; e no 2º semestre, por meio
da preparação das provas de regência de Português e Espanhol, aplicadas pelos licen-
ciandos em turmas acompanhadas por eles ao longo do ano letivo escolar. Veja-se no
quadro abaixo o resumo deste procedimento de organização da Prática de Ensino:

1º semestre 2º semestre

Didática de Espanhol Didática de Português

Estágio Supervisionado de Port./Esp. Estágio Supervisionado de Port./Esp.

Pesquisa em Estágio Regências de Port./Esp.

Como se pôde perceber, a proposta de pesquisa em estágio – foco de interesse


deste capítulo –, trabalho que vem sendo realizado continuamente nos últimos quatro
anos, partiu do intuito de incorporar ao currículo desses licenciandos uma dimensão
teórico-reflexiva fundamental para seu deslocamento dos papéis tradicionais de obser-
vadores passivos da prática docente ou de críticos radicais da instituição escolar e das
atitudes profissionais habitualmente adotadas pelos professores. Evidentemente, tal
proposta não constitui uma novidade no campo de investigação sobre a formação de
professores no Brasil e no exterior. Pimenta e Lima (2008, p. 46-47) apresentam su-
cintamente o histórico do desenvolvimento dessa estratégia de formação, dizendo que
O movimento de valorização da pesquisa no estágio no Brasil tem suas origens no
início dos anos 1990, a partir do questionamento que então se fazia, no campo
da didática e da formação de professores, sobre a indissociabilidade entre teoria e
prática. Assim, a formulação do estágio como atividade teórica instrumentalizadora
da práxis [...], tendo por base a concepção do professor (ou futuro professor) como
intelectual em processo de formação e a educação como um processo dialético de
desenvolvimento do homem historicamente situado, abriu espaço para um início
de compreensão do estágio como uma investigação das práticas pedagógicas nas
instituições educativas.
Essa visão mais abrangente e contextualizada do estágio indica, para além da
instrumentalização técnica da função docente, um profissional pensante, que vive
num determinado espaço e num certo tempo histórico, capaz de vislumbrar o caráter
coletivo e social de sua profissão [...].

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Esse trabalho de pesquisa em estágio baseia-se, portanto, nas concepções do pro-


fessor como pesquisador da sua própria prática (PIMENTA et al., 2006) e da pesquisa
em Ciências Humanas como forma de construção de redes dialógicas (AMORIM,
2004) entre sujeito e alteridade, universidade e escola, licenciando em formação inicial
e professores em formação continuada. Tal proposta consiste na elaboração de um pro-
jeto de pesquisa, a partir de dados empíricos coletados em situação de estágio e com
vistas à redação final de um artigo, centrado em uma das cinco linhas de investigação,
traçadas pelo docente responsável pela disciplina2, como eixos possíveis para o seu
desenvolvimento, a saber: (1) ensino-aprendizagem de língua materna; (2) ensino-
-aprendizagem de língua estrangeira; (3) literatura/cultura e ensino-aprendizagem de
língua materna; (4) literatura/cultura e ensino-aprendizagem de língua estrangeira;
(5) relações entre ensino-aprendizagem de língua materna e estrangeira. Tais eixos,
como se vê, buscam estabelecer uma ponte entre as áreas de interesse dos licenciandos
(estudos linguísticos e literários), classicamente concebidas pela organização curricular
dos cursos de Letras no Brasil, e as problemáticas específicas da prática docente. Essa
relação configura-se fundamental para o bom desenvolvimento da formação de pro-
fessores de línguas e literaturas.
A apresentação de alguns números é importante para o prosseguimento desta aná-
lise. Focaremos este estudo nos dados coletados durante o ano letivo de 2011, quando
a disciplina Prática de Ensino de Português-Espanhol I, após processo de pré-inscrição
dos alunos em vias de conclusão ou que já tivessem concluído o bacharelado no final de
2010, teve inscrição efetiva de 21 estudantes, 1 trancamento e 3 desistências, sob a ale-
gação de impossibilidade de cumprimento da carga horária de estágio supervisionado.
Dos 17 alunos que realmente frequentaram o curso, 2 apenas não apresentaram a versão
final do trabalho de pesquisa em estágio. Dentre os 15 trabalhos desenvolvidos em vá-
rias versões ao longo do período – advirta-se que o processo integral de escrita e reescrita
do texto até sua versão final valia 50% da média do primeiro semestre –, 7 situavam-se
na linha de ensino-aprendizagem de língua estrangeira, 5 na de ensino-aprendizagem
de língua materna, 2 na de relações entre ensino-aprendizagem de língua materna e
estrangeira, 1 na de literatura/cultura e ensino-aprendizagem de língua estrangeira e
nenhum na de literatura/cultura e ensino-aprendizagem de língua materna.
Embora, decerto, esse reduzido universo de sujeitos investigados não sirva como
base para nenhum tipo de generalização sobre os horizontes formativos em nível nacio-
nal, não se pode abrir mão de uma mínima interpretação qualitativa dessas escolhas e
dos rumos de desenvolvimento dessas pesquisas – questões que serão analisadas a seguir.

2
O próprio autor deste texto é o docente responsável pelas disciplinas Didática Especial e Prática de Ensino de Português/
Espanhol da Faculdade de Educação da UFRJ desde o primeiro semestre de 2010.

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O QUE SIGNIFICA FAZER UMA ESCOLHA?


Antes de iniciar a análise, leiam-se abaixo as versões finais dos títulos dados aos
trabalhos para que seja possível ter uma aproximação mais concreta em relação à pro-
dução discente3:
Linha – ensino-aprendizagem de língua estrangeira:
• Trabalho 1: “O ensino de línguas estrangeiras no Brasil”
• Trabalho 2: “O ensino de língua estrangeira além da gramática: aprendizagem
e uso de técnicas de estudo”
• Trabalho 3: “O ‘potunhol’ (sic): erro ou início do processo de aquisição do
Espanhol/LE”
• Trabalho 4: “O uso do pós-método em E/LE no ensino médio”
• Trabalho 5: “La adquisición lexical y la comprensión lectora en lengua es-
pañola en el sistema estadual de enseñanza media”
• Trabalho 6: “La oralidad en las clases de Español/LE”
• Trabalho 7: “Cómo las tecnologías de la información y de la comunicación
(TIC) influencian las clases de E/LE”

Linha – ensino-aprendizagem de língua materna:


• Trabalho 8: “A abordagem da subjetividade nas questões de linguagens, códi-
gos e suas tecnologias do Enem”
• Trabalho 9: “A problemática da evasão escolar no Ensino Médio”
• Trabalho 10: “A posição discursiva do estagiário no CAp-UFRJ”
• Trabalho 11: “As tecnologias da informação e da comunicação (TIC) no pro-
cesso de ensino-aprendizagem”
• Trabalho 12: “Variação linguística no ensino fundamental”

Linha – relações entre ensino-aprendizagem de língua materna e estrangeira:


• Trabalho 13: “Relação entre Língua Materna e Língua Estrangeira: uma aná-
lise da interlíngua gerada pelo contato Português-Espanhol em turmas de
Ensino Médio”
• Trabalho 14: “Relações entre ensino-aprendizagem de língua materna e es-
trangeira: Como a LM participa no ensino-aprendizagem da LE – uma aná-
lise diagnóstica em sala de aula de E/LE”

3
Todos os estudantes que participaram desta atividade autorizaram a utilização de suas produções manuscritas, impressas ou
digitais para fins de pesquisa.

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Linha – literatura/cultura e ensino-aprendizagem de língua estrangeira:


• Trabalho 15: “Lengua, cultura y literatura a partir de cuentos”

A partir dos títulos dos trabalhos, pode-se perceber a complexidade da análise


desses dados. Investigando com mais atenção os artigos cujos títulos apresentavam
questões não específicas ou não vinculadas adequadamente à linha de pesquisa indi-
cada, verificou-se que os trabalhos (9), (10) e (11) realmente constituíam interessan-
tes investigações de problemáticas escolares, de uma maneira geral, ou relacionadas
à inserção dos licenciandos no contexto do colégio de aplicação4, direcionado ao de-
senvolvimento da formação profissional dos futuros docentes. Nada nessas pesquisas
aponta aspectos específicos do ensino/aprendizagem de língua portuguesa – linha em
que se encaixaram –, o que evidencia que o campo de pesquisas em língua materna re-
presentou para alguns estudantes uma espécie de espaço neutro para a investigação de
questões pedagógicas gerais observadas em situação de estágio. E isso, de certo modo,
foi sendo permitido e ratificado pelo processo de orientação ao longo do período.
Essa constatação soma-se ao fato de o trabalho (8), que faz uma análise da pre-
sença de marcas enunciativas de subjetividade em enunciados de questões do ENEM
2009, ter sido apresentado fora do modelo de gênero discursivo científico proposto
em aula para a condução da metodologia de investigação e para a produção dos textos
de apresentação da pesquisa. Tal inadequação ao gênero proposto é notada aí, sobre-
tudo, pela ausência de relação com o campo de estágio no projeto investigativo levado
a cabo pela licencianda. Além disso, os trabalhos (13) e (14), pertencentes à linha de
pesquisa sobre as relações entre ensino-aprendizagem de língua materna e estrangeira,
foram realizados a partir de dados coletados e de observações realizadas pelas estagiá-
rias em turmas de ensino médio da disciplina Espanhol. Portanto, as reflexões desen-
volvidas neles a propósito da interface com a língua materna partiram de diferentes
perspectivas de investigação situadas, prioritariamente, no campo da pesquisa em lín-
gua estrangeira. Sendo assim, apenas um trabalho – o (12) – abordou, apesar de seu
título estar um tanto ou quanto indefinido e de seu desenvolvimento não ter avançado
o quanto poderia, uma problemática de pesquisa em estágio específica e adequada à
linha de investigação sobre o ensino/aprendizagem de língua portuguesa.
Isso representaria, então, falta de estímulo dos estudantes para a reflexão em torno
das questões pertinentes às diferentes correntes de investigação ligadas ao domínio da
língua materna? Ou uma ampla inclinação desses licenciandos para a profissionali-
zação como docentes de Espanhol/LE? Uma e outra hipótese parecem não se sus-
tentar se se contrastarem essas escolhas de investigação com dados extraídos de falas
espontâneas dos estudantes em sala de aula e em locais de estágio a respeito de suas
preferências pelas áreas de Língua Portuguesa ou de Língua Espanhola. Ao final de
4
É preciso ressaltar que o CAp-UFRJ não é o único campo de estágio dos estudantes da Prática de Ensino de Português-
-Espanhol desta universidade e que, até o ano letivo de 2012, o colégio não oferecia a disciplina Língua Espanhola em suas
grades curriculares dos ensinos fundamental e médio.

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um ano de convivência semanal, é possível afirmar que, num total de 17 estudantes,


apenas 3 explicitaram sua inserção no mercado de trabalho – mais precisamente em
curso livres, pré-vestibulares e escolas privadas – como docentes de Espanhol, assim
como seu desejo de permanecerem e continuarem se especializando na área; 1 inte-
gra o mercado de trabalho de cursos livres e já faz parte do curso de mestrado de um
programa de pós-graduação em Língua Espanhola; 3 não se encontram empregados
na área de Espanhol, mas gostariam de integrar esse mercado de trabalho após a licen-
ciatura; 3 já atuam no mercado de trabalho de Português e explicitam vontade de se
manterem e de se especializarem nesta área; 3 não atuam no mercado de trabalho de
Língua Portuguesa, mas afirmaram desejo de ingressar neste campo de docência após a
licenciatura; 2 lecionam majoritariamente Língua Espanhola no mercado de trabalho,
mas já se encontram engajados em pesquisas de iniciação científica em língua materna;
1 leciona majoritariamente Língua Espanhola no mercado de trabalho, mas almeja
ingressar na pós-graduação na área de língua materna; 1 encontra-se temporariamente
fora do mercado de trabalho docente e almeja ingressar na pós-graduação em Litera-
tura Portuguesa.
Nota-se, assim, ao contrário do que ocorreu nas escolhas pelas linhas de pesqui-
sa, uma predominância de estudantes – 9 no total – que se identificam com a área
de estudos de língua materna, embora alguns deles tenham alcançado seus primeiros
postos profissionais no mercado de trabalho de língua estrangeira. Além disso, tanto
no ambiente interno da universidade quanto no contexto nacional da área de Letras
e Linguística, são amplamente reconhecidos o protagonismo, a tradição e a qualidade
acadêmica do setor de ensino de Língua Portuguesa e dos grupos de pesquisa sobre
questões ligadas à língua materna da Faculdade de Letras da UFRJ. Outro fator im-
portante a ser destacado, e que vem a tornar mais intrincada a análise das escolhas de
temas de investigação realizadas pelos licenciandos da Prática de Ensino de Português-
-Espanhol, é o desempenho mais positivo em Língua Portuguesa que a maioria dos
licenciandos que optaram pela realização de suas pesquisas em situações de estágio em
Língua Espanhola obteve nas provas de regência do segundo semestre desse ano letivo.
Desse modo, é preciso buscar outras hipóteses que expliquem essas escolhas e que
principalmente ofereçam uma base para o entendimento da opção majoritária pela
língua estrangeira nos trabalhos de investigação discente. Talvez seja possível elencar
algumas delas, a partir de discussões realizadas em aula a respeito do histórico de
formação dos estudantes nos cursos de bacharelado e licenciatura, bem como a partir
do conhecimento compartilhado pelo docente da disciplina em relação às diferentes
realidades de estágio:
a. inserção dos professores regentes das instituições de estágio no meio aca-
dêmico de língua estrangeira – este fator parece ser numericamente prepon-
derante em relação às demais hipóteses, pois a grande maioria dos estagiários
de língua espanhola estava sob a responsabilidade de um professor regente
que possui doutorado na área de Letras e que está ativa e produtivamente en-

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 161


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gajado em pesquisas relevantes para a formação de professores de Espanhol/


LE – note-se que dos 7 estagiários que acompanharam esse docente em uma
instituição pública federal de ensino do Rio de Janeiro, 3 optaram pela linha
de pesquisa ensino/aprendizagem de língua estrangeira, 1 optou pela linha
relações entre ensino/aprendizagem de língua materna e estrangeira e 1 pela
linha literatura/cultura e ensino/aprendizagem de língua estrangeira;
b. influência da cultura institucional em vigor no campo de estágio – foi
visível o fato de que colégios que valorizam as experimentações e realizações
de práticas investigativas e reflexivas ao longo do processo de estágio e, so-
bretudo, que se mostram abertos ao diálogo com a universidade e assumem
uma posição efetiva de co-orientação dos estagiários, acabaram influenciando
positivamente na escolha das linhas de pesquisa – não à toa, os 3 estagiários
de Português do CAp-UFRJ, instituição tradicionalmente incorporadora de
diferentes propostas de desenvolvimento reflexivo do estágio e institucional-
mente co-responsável pela formação de professores no âmbito universitário,
realizaram pesquisas sobre ensino/aprendizagem de língua materna a partir de
dados coletados nessa instituição;
c. o fato de o primeiro semestre da Prática de Ensino ser dedicado à discus-
são de aspectos teórico-práticos relativos ao ensino de Espanhol/LE – este
aspecto torna-se mais claro a partir de casos como os dos estudantes que re-
alizaram os trabalhos (5) e (14), que apesar de demonstrarem intimidade ou
prévio engajamento com a área de estudos de língua materna, optaram por
desenvolver seus projetos de pesquisa a partir de dados coletados em turmas
de estágio de língua estrangeira, utilizando inclusive bibliografia estudada na
didática especial de Espanhol ou indicada pelo professor da Prática de Ensino
– pesquisador ligado às áreas de pesquisa em Estudos Hispânicos e formação
de professores de Espanhol/LE;
d. falta de autonomia dos estudantes de fim de graduação em tarefas de pes-
quisa em geral – tal hipótese, possivelmente, soma-se às dos itens (a) e (c), na
grande maioria dos casos, e poderia ser entendida como um dos fatores que
aumentaram a motivação para que um grande número de estudantes optasse
por temas de língua estrangeira em suas pesquisas, tendo em vista, logo, que
o auxílio da bibliografia estudada no primeiro semestre e fornecida pelo pro-
fessor da Prática de Ensino lhes pudesse servir como fundamentação teórica
para os trabalhos de investigação – essa insuficiência de base epistemológica,
perceptível pela dificuldade de apropriação do discurso acadêmico e de desen-
volvimento do texto escrito dentro das regras do gênero científico por parte
de alguns estudantes, fica visível nos resultados finais dos trabalhos (2) e (3);
e. pouca relação entre as bases teóricas da formação inicial e a prática docen-
te – vê-se aqui outro fator que pode estar ligado a todos os anteriores como
um dos condicionantes principais para as escolhas não só das linhas como

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também dos temas de investigação definidos ao longo do processo – veja-se


que, entre todos os trabalhos, apenas os de números (5), (6), (8), (12), (13) e
(15) focalizam já em seus títulos tópicos teóricos abordados nas disciplinas da
Faculdade de Letras5, no entanto, após exame atento das referências biblio-
gráficas expostas nessas produções discentes, chegou-se à constatação de que
somente (6), (8) e (12) realmente utilizaram referencial teórico advindo da
formação oferecida nos cursos de línguas e linguística, embora houvesse total
abertura e incentivo para que os licenciandos/pesquisadores realizassem essa
ponte entre as disciplinas do bacharelado e da licenciatura. Todos os outros
trabalhos abordaram tópicos tradicionalmente discutidos pelas disciplinas da
Faculdade de Educação e utilizaram bibliografia indicada pelo professor da
Prática de Ensino e, em alguns casos, pelos professores regentes do estágio.

AINDA A ARTICULAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA


Como se viu acima, a falta de articulação entre os eixos teóricos da formação aca-
dêmica inicial nos campos dos estudos linguísticos, literários e culturais e os contextos
e saberes da prática docente em língua materna e estrangeira parece estar no centro, ao
fim e ao cabo, da maior parte das problemáticas examinadas até aqui, no que concerne
às escolhas e aos caminhos de desenvolvimento das pesquisas em estágio realizadas
pelos licenciandos da disciplina Prática de Ensino de Português-Espanhol da UFRJ.
Não se pode deixar de notar, a título de exemplo, além das questões elencadas acima, a
baixíssima incidência, nesta turma, de trabalhos que trouxessem questões relacionadas
aos estudos de literatura e cultura, que constituíam duas linhas de pesquisa no início
do processo, mas que acabaram contando com a realização de apenas um trabalho. Ao
que parece, tanto a tradição acadêmica quanto a escolar vêm afastando, com muita in-
tensidade, as problemáticas dos estudos literários, sobretudo, das políticas curriculares
para o ensino de línguas materna e estrangeira adotadas no Estado do Rio – situação
esta similar à de muitas outras localidades do país.
Tal inconsistência na articulação entre reflexão teórica sobre linguagem e literatu-
ra e o campo da prática docente revela-se ainda, por um lado, na falta de domínio do
discurso acadêmico já apontada, refletida nos casos mais graves pela incompreensão
de alguns estudantes em relação aos limites e à relevância de itens clássicos do desen-
volvimento de textos monográficos; e, por outro, na falta de resistência, mesmo dos
licenciandos cujo grau de letramento acadêmico e de inserção na pesquisa científica
é mais alto, em relação aos aspectos normativos sugeridos pelo docente da Prática de
Ensino para a elaboração do texto final da pesquisa. Para que se entenda melhor essa
5
Para facilitar a leitura, repito a seguir os títulos dos trabalhos referidos e destaco em negrito palavras-chave que indicam
aí conhecidos tópicos teóricos abordados em disciplinas do curso de Letras: (5) “La adquisición lexical y la comprensión
lectora en lengua española en el sistema estadual de enseñanza media”, (6) “La oralidad en las clases de Español/LE”, (8) “A
abordagem da subjetividade nas questões de linguagens, códigos e suas tecnologias do Enem”, (12) “Variação linguística
no Ensino Fundamental”, (13) “Relação entre Língua Materna e Língua Estrangeira: uma análise da interlíngua gerada
pelo contato do Português-Espanhol em turmas de Ensino Médio” e (15) “Lengua, cultura y literatura a partir de cuentos”.

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colocação, é importante relembrar a vinculação desenvolvida por Marcuschi (2002)


entre gêneros, tipos, esferas e suportes, pois embora tenhamos, neste caso, o suporte
impresso como um fator de equivalência para todos os trabalhos, sabemos que a esfe-
ra (ou o domínio) de circulação dos textos científicos é muito ampla e fragmentada.
Com isso, conceber o “artigo” como gênero possivelmente endereçado a distintas co-
munidades acadêmicas – formadas historicamente dentro das grandes áreas Educação
e Letras, Linguística e Artes – é reconhecer a diferenciação de suas marcas linguísticas e
enunciativas e de suas articulações tipológicas, de acordo com cada tradição discursiva.
Um forte exemplo dessa flexibilidade genérica, que reforça a noção de que os gêneros
“são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos situados
em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos específicos” (ibid., p. 25 –
grifos nossos), é a aceitação do ensaio – gênero que permite mais liberdade de estilo,
expressão subjetiva e recriação/hibridação dos modos de organização textual – como
produto acadêmico legítimo (muitas vezes sinônimo de artigo) para pesquisadores de
diferentes subáreas, tais como literaturas, estudos culturais, políticas educacionais, teo-
ria e análise do currículo, análise do discurso, linguística aplicada etc., muitas das quais
serviram de parâmetro teórico, inclusive, para diversos trabalhos elaborados nas pes-
quisas em estágio. Era de se esperar, portanto, um maior movimento de renegociação
do formato de gênero apresentado à turma devido à influência de distintos domínios
acadêmicos que constituem os horizontes de formação desses estagiários, o que prati-
camente não ocorreu.
Reproduzir-se-á abaixo, a título de esclarecimento, o guia de trabalho distribuído
aos alunos:

Roteiro de trabalho: Pesquisa em Estágio

1- Capa: deve conter cabeçalho (UFRJ / FE / FL), título, aluno, menção ao tipo de avaliação de-
senvolvida como critério parcial de aprovação na disciplina Prática de Ensino de Português/
Espanhol, professor, data (semestre e ano);
2- Introdução: deve conter a delimitação do tema e do problema da pesquisa. É aconselhável
destacar uma pergunta que sirva como guia de desenvolvimento do trabalho;
3- Justificativa: deve explicitar o motivo que levou o estudante/pesquisador a escolher o
tema e o enfoque de investigação;
4- Objetivos: devem delimitar com clareza o objetivo geral e os objetivos específicos da pes-
quisa, lembrando que o geral é o foco da investigação e os específicos constituem questões
adjacentes ao problema principal que não podem ser ignoradas pelo pesquisador ao longo
da sua trajetória de análise. Atenção: tais questões só devem ser formuladas como objetivos
específicos na medida em que auxiliem a reflexão sobre o objetivo geral;
5- Fundamentação teórica: deve desenvolver conceitos teóricos que permitirão o aprofun-
damento da reflexão sobre o(s) objeto(s) de pesquisa. É importante neste ponto demonstrar,
de maneira clara e coerente, a filiação a uma determinada linha teórica ou o modo como o
projeto quer relacionar autores e questões teóricas de bases diferenciadas. Atenção: a funda-
mentação teórica deve ser adequada ao objetivo central da pesquisa;

164 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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6- Metodologia: deve descrever, primeiramente, o método utilizado para a geração e coleta


de dados e o resultado quantitativo desta coleta, evidenciando a adequação deste método
com o marco teórico e com os objetivos da pesquisa. Em seguida, deve indicar os procedi-
mentos utilizados na interpretação qualitativa desses dados. Atenção: os dados devem ser
gerados e coletados em situação de estágio e essa coleta pode estar ligada a alguma propos-
ta de co-participação do estagiário na escola, caso isto seja previamente negociado com o
professor regente;
7- Análise de dados: deve apresentar a análise qualitativa dos dados gerados e coletados em
situação de estágio, a partir da fundamentação teórica e da metodologia escolhidas;
8- Resultados/Considerações finais: deve indicar os principais resultados obtidos com a pes-
quisa, propiciando uma discussão sobre as implicações desses resultados para a reflexão so-
bre a prática docente no ensino de línguas. Atenção: é aconselhável neste fechamento uma
retomada dos pontos positivos e/ou dos limites da teoria escolhida no desenvolvimento da
reflexão. Tente indicar com clareza a contribuição do seu trabalho para o campo da Prática
de Ensino de Português/Espanhol;
9- Referências: lista de bibliografia (dentro das normas da ABNT) utilizada na investigação.
Não deve incluir itens que não estejam claramente referidos no texto;
10- Anexos: materiais utilizados como corpora; se possível e necessário, cópia dos dados obtidos.

OBS 1: O texto deve ter no mínimo 7 laudas. A capa, a bibliografia e os anexos não
entram nesta contagem de laudas. Formatação: Times New Roman, 12, entre linhas
1.5, papel A4, margens (superior/inferior/esquerda/direita) de 2,5 cm. As páginas
devem estar numeradas a partir da introdução.

OBS 2: As referências feitas no corpo do texto devem vir entre parênteses, com o
sobrenome do autor, ano da publicação e página.

É interessante notar que, de todos os trabalhos, o único que apresenta marcas


enunciativas mais visíveis de resistência à incorporação deste modelo genérico foi o da
linha de pesquisa literatura/cultura e ensino-aprendizagem de língua estrangeira, cuja
autora possuía realmente uma prévia inserção no campo da pesquisa literária. Nos ou-
tros trabalhos, em lugar de resistência ao protótipo textual ligado a uma determinada
concepção monográfica de escrita acadêmica, que poderia logicamente ser percebido
como inadequado e renegociado através do processo individual de orientação condu-
zido pelo professor da Prática de Ensino de acordo com os distintos interesses e cami-
nhos encontrados pelos licenciandos/pesquisadores, o que se viu, frequentemente, foi
a ampliação – por vezes exagerada e incoerente – da parte de fundamentação teórica
em detrimento dos itens metodologia, análise de dados e resultados, ou vice-versa.
Isso demonstra graus maiores e menores de intimidade com a leitura teórica ou de
engajamento reflexivo na prática de estágio, qualidades que, quando combinadas, são
capazes de reposicionar o estagiário para o lugar de pesquisador do processo educacio-
nal de que também faz parte, ainda que indiretamente na maior parte do tempo. Nos
casos em que tal combinação não se deu, a escapatória dos alunos foi ora o investi-

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mento na teoria sem considerar sua pertinência para a análise de contextos específicos
vivenciados na sala de aula, ora o estabelecimento de estatísticas ou o alongamento de
relatos das situações de estágio – no intuito de manter a “objetividade” da pesquisa –
desprovidos, contudo, de uma base teórica que os auxiliasse na percepção de aspectos
que fossem além do senso comum.
Por isso, seria interessante destacar aqui os resultados obtidos por alguns trabalhos
desenvolvidos no estágio da licenciatura em Espanhol, os quais demonstraram mais
abertura às questões específicas da língua e da cultura estrangeiras, em suas distintas (e
às vezes problemáticas) inserções no contexto real dos processos de ensino-aprendiza-
gem ocorridos na escola pública, e que assim puderam suscitar, ao longo do processo
de investigação e de (re)escrita, formas produtivas de reposicionamento discursivo de
seus autores: que, não sem atropelos e tensões, se moveram do lugar de espectadores
passivos da prática docente ou de pesquisadores objetivos e distanciados em direção
ao de participantes ativos do cotidiano escolar – professores em formação que, ao
mesmo tempo, estavam aprendendo a ser pesquisadores da atividade pedagógica. Tal
movimento exige, ou deveria exigir, evidentemente, a reapropriação/reconformação
de certas tradições investigativas e, consequentemente, dos modelos genéricos de con-
figuração de pesquisa vigentes.
No trabalho “O ensino de línguas estrangeiras no Brasil”, por exemplo, o proces-
so de desenvolvimento da pesquisa passou por uma nítida evolução qualitativa, obtida
através do esforço de orientação, que respondeu criticamente ao tom prescritivo e
generalizante mantido pelo licenciando nas primeiras versões do trabalho. Veja-se o
seguinte fragmento:
O presente trabalho visa mostrar as diferentes formas de ensino de língua estrangeira
(espanhol) nas escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro [...]. Buscaremos as
diferentes abordagens em relação ao material didático para que possamos incluir ou
excluir opções para um melhor aproveitamento dos mesmos. (Trabalho 1 - 2ª versão)6.

Além de prescritiva, tal colocação se apresenta como problemática por sinalizar


determinada crença dos professores em formação inicial de que as possibilidades de
intervenção docente nos processos educativos se esgotam nos procedimentos de mon-
tagem ou produção de materiais didáticos.
É interessante notar que, no caso desse estagiário, a substituição do tom pres-
critivo pela perspectiva crítico-colaborativa (PIMENTA et al., 2006) foi paralela ao
aprofundamento da base teórica da análise. Ao se aproximar da crítica desenvolvida
por Grigoletto (2002, p. 103) em relação ao “uso que o professor faz, ainda que de
forma inconsciente, de seu papel de sujeito detentor de um saber que lhe é conferido
6
Todos os trabalhos de alunos citados doravante estão identificados apenas pela numeração entre parênteses – com vistas
a manter o anonimato dos colaboradores –, encontram-se inéditos e foram cedidos ao banco de dados do Laboratório de
Ensino, Pesquisa e Extensão em Formação de Professores de Línguas (FORPROLI), da Faculdade de Educação da UFRJ,
o qual o autor do presente artigo integra na qualidade de pesquisador. Devido a isso, os textos não constam da lista de refe-
rências bibliográficas.

166 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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institucionalmente”, atitude esta que cultiva “uma postura passiva no aluno”, visto
como receptor de conhecimentos inquestionáveis, o licenciando começou a problema-
tizar o seu próprio lugar de observador distanciado que não se envolve com os sujeitos
participantes da pesquisa e que aparentemente contém a receita para a melhoria do
trabalho pedagógico. Essa posição assumida pelo pesquisador seria igualmente res-
ponsável pela manutenção da figura do professor da escola num lugar de passividade
em relação às estratégias didáticas renovadoras. Por isso, na última versão do trabalho,
o autor modaliza seu discurso e se reposiciona, entendendo-se agora como o agente
propiciador de uma reflexão cujo coenunciador principal são os profissionais da escola
campo de estágio, ainda que nutra a ambição de pintar um panorama totalizante de
modo a alcançar a figura abstrata de uma certa comunidade acadêmica:
[...] este trabalho tem como objetivos entender como é realizado o processo de
ensino de língua espanhola em turmas do ensino médio de um colégio estadual da
cidade do Rio de Janeiro [...], compreender as dificuldades encontradas e mostrá-las
aqui. A professora e os alunos serão nossa fonte de pesquisa e por intermédio dos
mesmos buscaremos os fatores que influenciam positiva ou negativamente o ensino
do Espanhol como língua estrangeira no Brasil. (Trabalho 1 - 5ª versão)

Já na pesquisa intitulada “La adquisición lexical y la comprensión lectora en len-


gua española en el sistema estadual de enseñanza media”7, a perspectiva etnográfica do
trabalho faz o pesquisador perceber, desde a introdução, a necessidade de investi-
gar questões socioculturais relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem de LE
numa escola pública da rede estadual do Rio de Janeiro: “O sucesso de um processo
de ensino/aprendizagem, de um modo geral, depende de circunstâncias adequadas,
não só no ambiente da sala de aula, mas também na estrutura extraclasse”8 (Trabalho
5 - 2ª versão - tradução livre). Isso o fez reduzir demasiadamente o quadro teórico
do trabalho, sobretudo no que diz respeito às problemáticas linguísticas relativas à
aquisição lexical e à compreensão leitora. A consequência disso é a não problema-
tização do autor em relação à concepção estabilizada de léxico como um conjunto
de formas e significados dotado de “autonomia” perante o contexto linguístico e
discursivo. Tal concepção acompanha a ideia de língua como sistema abstrato, des-
conectado da atividade enunciativa concreta, e tem consequências para a didática de
LE, na medida em que leva o docente a reproduzir métodos tradicionais de ensino
calcados na apresentação de listas de vocabulário que desconsideram, muitas vezes,
a variação linguística, a diferença de sentido que uma palavra pode ter em distintas
construções sintáticas, a mudança pragmática, os diferentes valores ideológicos só-
cio-historicamente construídos, a evolução diacrônica da língua etc. Desse modo, o
critério docente de separação dos padrões de avaliação de leitura e vocabulário – que
pode levar equivocadamente o aluno da escola a conceber a noção de sentido como
7
Os alunos que optaram pelas linhas de pesquisa (2) “ensino-aprendizagem de língua estrangeira”, (4) “literatura/cultura
e ensino-aprendizagem de língua estrangeira” e (5) “relações entre ensino-aprendizagem de língua materna e estrangeira”
puderam escolher o idioma (português ou espanhol) em que desenvolveriam os seus trabalhos.
8
Texto original escrito em espanhol: “El éxito de un proceso de enseñanza/aprendizaje, de un modo general, depende de
adecuadas circunstancias, no sólo en el ambiente de clase, sino también en la estructura extra clase”.

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algo infinitamente repetível nos mais diversos gêneros e textos –, ratificado pela
análise do licenciando, diminui, em parte, a abrangência crítica de sua discussão.9
Apesar disso, os resultados obtidos não deixam de considerar a relação entre os pro-
blemas socioeducacionais e as habilidades linguísticas, o que demonstrou ser um viés de
reflexão profícuo para as discussões empreendidas na turma de Prática de Ensino. Ao
estabelecer, por exemplo, a relação entre os índices de assiduidade e de desempenho,
em questões da avaliação bimestral do colégio relativas à compreensão textual e ao co-
nhecimento dos itens lexicais, de turmas dos turnos da tarde e da noite de uma escola
estadual da zona sul do Rio de Janeiro, o estagiário chegou ao seguinte resultado:
[...] salta à vista a média de frequência muito reduzida no horário noturno, em que
só 1/4 dos aprendizes apresentam mais de 60% de frequência às aulas. Comparando
à média de frequência no horário da tarde, em que 2/3 dos aprendizes frequentaram
mais de 80% das aulas do semestre, e também ao desempenho em ambos os horários,
se vê como algo proporcional a frequência às aulas e o desempenho efetivo nas
habilidades de compreensão leitora e lexical de LE.10 (Ibid. - tradução livre).

Essa experiência foi interessante, sobretudo porque mostrou um avanço e um


limite simultaneamente presentes na pesquisa em situação de estágio, tarefa que, por
um lado, sinaliza questões fundamentais que emergem a partir da observação dos pro-
cessos de ensino-aprendizagem vivenciados no ambiente escolar, mas que, por outro,
não deixa de reiterar/assimilar lugares-comuns e/ou procedimentos metodológicos
pouco significativos. Neste caso específico, isto se deve, sem dúvida, à superficialidade
do diálogo empreendido pelo licenciando com a bibliografia pertinente à sua discus-
são. Entretanto, vale ressaltar que, mesmo em trabalhos com mais aprofundamento
dos quadros teóricos, notou-se que, em geral, os textos das pesquisas em estágio, ainda
que tangenciem o oposto, reafirmam uma crítica já feita por Authier-Revuz (1998, p.
123) em relação à “encarnação” do discurso científico em gêneros textuais responsáveis
pela sua divulgação, os quais não realizam, segundo ela, uma salutar relativização da
Ciência por meio da “consideração da história e das pessoas no processo de produção
de conhecimentos”.
Outra pesquisa significativa intitula-se “La oralidad en las clases de Español/LE”.
O trabalho partiu da comparação de dados empíricos obtidos através da transcrição
9
É interessante recordar aqui uma consideração de Bakhtin ([1929] 2002, p. 94) a respeito do processo de assimilação de
palavras no estudo de línguas estrangeiras: “O essencial desses métodos [de línguas estrangeiras vivas] é familiarizar o aprendiz
com cada forma da língua inserida num contexto e numa situação concretas. [...] Em suma, um método eficaz e correto de
ensino prático exige que a forma seja assimilada não no sistema abstrato da língua, isto é, como uma forma sempre idêntica
a si mesma, mas na estrutura concreta da enunciação, como signo flexível e variável”. Ao refletir sobre a experiência de fazer
um dicionário Espanhol-Português/Português-Espanhol, González (2006, p. 51-52) parte de um ponto de vista teórico que
confirma essa crítica acerca da hipótese de apreensão absoluta dos sentidos por meio da sistematização lexical: “Un diccionario,
cualquiera que sea, siempre será, en la mejor de las hipótesis, una instantánea [...] de algo que no deja nunca de moverse como
la lengua, que funciona en discursos, se concreta en textos y, además, es constitutivamente heterogénea”.
10
Texto original escrito em espanhol: “[...] salta a la vista la media de frecuencia demasiado reducida en el horario noctur-
no, donde sólo 1/4 de los aprendices presentan más que el 60% de frecuencia a las clases. Comparándose esta a la media
de frecuencia en el horario de la tarde, donde 2/3 de los aprendices frecuentaron más del 80% de las clases del semestre, y
también al desempeño en ambos horarios, se ve como algo proporcional la frecuencia a las clases y el desempeño efectivo en
las habilidades de comprensión lectora y léxica de LE.”

168 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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de aulas gravadas em turmas de um conceituado curso livre de espanhol e numa


turma de ensino médio de uma escola técnica federal do Rio de Janeiro (campo de
estágio da autora). Nele, realiza-se uma interessante defesa da incorporação de es-
tratégias didáticas voltadas para a aquisição das habilidades orais, não só em salas de
aula de cursos livres, mas também nas escolas de educação básica. Leia-se o seguinte
fragmento a título de exemplificação:
As atividades de produção oral são possíveis em todos os ambientes de ensino de
língua estrangeira e suas relações com a língua materna são consideradas normais nos
lugares analisados. Pode-se perceber que no ensino médio, embora os alunos possuam
menos fluência na língua espanhola, com apenas 6 meses de aulas de espanhol são
capazes de compreender e argumentar sobre um tema, ainda que seja em sua língua
materna. Algo que em um centro de idiomas demora um pouco mais para ocorrer,
pois estas atividades ocorrerão aí exclusivamente em língua espanhola.11 (Trabalho
6 - 4ª versão - tradução livre).

Embora a reflexão da estudante não chegue a contestar dinâmicas pedagógicas


levadas a cabo em nenhum dos espaços educacionais pesquisados, a produtividade
de sua análise consiste no fato de, nela, a leitura e a utilização da bibliografia teórica
estarem atreladas ao grupo de pesquisa de que a aluna faz parte desde o bacharelado12.
Isso representa uma profícua relação entre distintos níveis de reflexão teórico-prática
que se desenvolvem tanto nos ambientes do bacharelado e da pós-graduação quanto
no do curso de licenciatura da mesma instituição.
Para finalizar esta célere descrição de resultados de pesquisas em estágio, é funda-
mental também destacar a ótima relação entre teoria e análise de dados desenvolvida
pelo trabalho “Relação entre Língua Materna e Língua Estrangeira: uma análise da
interlíngua gerada pelo contato Português-Espanhol em turmas de Ensino Médio”.
A partir do pensamento de Bakhtin ([1929] 2002, p. 87), segundo o qual, na língua
materna, ao contrário do que ocorre na língua estrangeira, “o sinal e o reconhecimento
estão dialeticamente apagados”, a autora desenvolve um estudo que coteja enunciados
– recolhidos através da transcrição de entrevistas orais gravadas com alunos da escola
de estágio – que projetam, de maneira paradigmática, o discurso escolar em torno da
relação entre português e espanhol, com trechos de produções escritas dos estudantes
11
Texto original escrito em espanhol: “Las actividades de producción oral son posibles en todos los ambientes de enseñanza
de lengua extranjera y sus relaciones con la lengua materna son consideradas normales en los lugares analizados. Se puede
percibir que en la enseñanza media, aunque poseen menos fluidez en la lengua española los alumnos con apenas 6 meses de
clases de español son capaces de comprender y argumentar sobre un tema, aunque sea en su lengua materna. Algo que en un
centro de idiomas tarda un poco más para que ocurra, pues estas actividades ocurrirán exclusivamente en lengua española”.
12
Como forma de exemplo, veja-se uma das citações em que a licencianda demonstra empenho de articulação de seu trabalho
para a Prática de Ensino com produções acadêmicas relevantes desenvolvidas por seu grupo de pesquisa: “De acordo com a
proposta apresentada na tese de Pinto (2009) – Transferências prosódicas do PB/LM na aprendizagem do E/LE: enunciados
assertivos e interrogativos totais – a língua materna dos alunos apresenta um importante papel no processo de aprendizagem,
pois se recorre à mesma como estratégia de comunicação, sobretudo se pensarmos na proximidade que existe entre o português
y e espanhol: ‘É a interação entre os interlocutores o que faz com que a informação do entorno interaja com o dispositivo de
aprender línguas, convertendo-se assim na língua que o aprendiz pode chegar a compreender e a assimilar em sua estrutura
cognitiva para ser recuperada e usada, quando necessário, em outra ocasião (PINTO, 2009, p. 8)’” (Trabalho 6 - 4ª versão
- tradução livre). A referida tese utilizada pela estudante (ver referências bibliográficas) foi defendida no Programa de Pós-
-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2009.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 169


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do ensino médio em avaliação bimestral da disciplina Espanhol. Tais elementos ser-


vem de subsídio para a estagiária afirmar que
[...] ao entrar em contato com a LE, o aluno involuntariamente tende a utilizar
sua LM, já que esta se encontra tão fortemente internalizada, constituindo sua
“roupa familiar”, e por isso, por estar tão incorporada à sua consciência, o sinal e o
reconhecimento estão apagados para o indivíduo. Assim, em estágio inicial de LE,
os alunos procuram encontrar para cada palavra uma palavra equivalente na própria
língua. Dessa maneira, geram-se situações [...] em que os alunos, na tentativa de
escreverem na LE, introduzem muitas palavras da LM [...]. (Trabalho 13 - 5ª versão).

Aproveita-se para assinalar, a partir desse trabalho, que uma das marcas dos arti-
gos produzidos no âmbito do curso de Prática de Ensino é a incorporação das políticas
públicas de ensino de Línguas Estrangeiras no Brasil como justificativa fundamental
para a formulação de problemas pertinentes à pesquisa em estágio. Tal inter-relação,
em diversas outras esferas da pesquisa acadêmica em Letras e Linguística, não se faz ne-
cessária devido aos próprios recortes e enquadramentos teóricos adotados pela tradição
científica da área – responsável, em grande parte, pelo silenciamento das discussões
sobre a profissionalização docente:
É sabido que ao entrar em contato com a língua estrangeira, o aluno percorrerá
novamente o processo sociointeracional de construir conhecimento linguístico
e aprender a usá-lo, percurso que já foi experienciado no desafio de aprender sua
língua. De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, a aprendizagem de
uma língua estrangeira proporcionará, em linhas gerais: I) aumento do conhecimento
sobre a linguagem que o aluno construiu sobre sua língua materna, por meio de
comparações com a língua estrangeira em vários níveis; e II) possibilidade de o aluno,
ao se envolver nos processos de construção de significados nessa língua, constituir-se
em um ser discursivo no uso de uma língua estrangeira.
Assim a partir do tema proposto pretende-se analisar como se dá essa relação entre
língua materna e estrangeira, observando até que ponto aquela pode contribuir como
uma experiência enriquecedora no processo de aprendizagem desta, e/ou em que
medida a LM pode “ofuscar” a LE, desde que o papel desta não esteja bem esclarecido/
definido para o aluno, ou seja, se o mesmo ainda a vê como uma mera conversão de
palavras à sua LM [...] ou se já a vê como um sistema linguístico próprio. Entende-se,
dessa forma, a aprendizagem de uma LE como expansão da capacidade discursiva do
aluno [...]. (Ibid.)

Como se percebe neste trabalho, ao que parece, nas melhores produções resultan-
tes da experiência de pesquisa em estágio, nota-se não só uma consistente apropria-
ção do discurso político-pedagógico contemporâneo, mas também o desdobramento
argumentativo desse discurso – o que não deveria excluir, é claro, a possibilidade de
sua relativização crítica – em um trajeto equilibrado de constituição de recortes, pro-
blemas e corpora, de eleição de estratégias metodológicas significativas, de aprofunda-
mento das bases teóricas da reflexão em paralelo ao cuidado com as análises de dados
e à produção de conclusões.

170 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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CONCLUSÃO
Para finalizar a presente reflexão, ressalta-se a importância de se adotar a pesquisa
em estágio, no formato de estudos etnográficos de cunho qualitativo, como uma estra-
tégia simultânea de avaliação e acompanhamento de professores em formação inicial,
pelo fato de a perspectiva etnográfica servir como instrumento para se compreender
práticas escolares rotineiras e, por isso mesmo, já muito naturalizadas, o que pode
indicar com mais clareza para os licenciandos necessidades reais de mudanças no que
diz respeito às atividades docentes e aos processos educacionais. No prefácio ao livro
Etnografia e educação: relatos de pesquisa, Erickson confirma, por exemplo, a produtivi-
dade da leitura de textos resultantes de pesquisas etnográficas realizadas no espaço da
escola, uma forma de, segundo ele, começarmos a desvendar problemas silenciados ou
vistos como um “beco sem saída”, seja por professores, alunos ou gestores:
Por meio da atenção à pesquisa observacional e à descrição os autores são capazes de
nos mostrar as práticas cotidianas que produzem resultados educacionais. Marx, ao
falar sobre a pesquisa acadêmica, afirmou que “o problema não é o de compreender
o mundo, mas mudá-lo.” No entanto, antes que possamos mudar um aspecto
do mundo, primeiro temos de ser capazes de vê-lo. A etnografia em ambientes
educacionais, tornando visível a conduta habitual dos “procedimentos operacionais
padrão”, mostra-nos os pontos estruturais dos processos educacionais que precisam
mudar.13 (ERICKSON, 2009, p. 8 - tradução livre).

Defendem-se aqui as vantagens da pesquisa em estágio por ela constituir uma


importante articulação entre os saberes teóricos e os saberes da prática, trazendo para o
interior do discurso acadêmico dados habitualmente ignorados pela tradição científica
que constitui o currículo de formação inicial em Letras. Esta reflexão coincide com
a crítica de Demo (2007, p. 60) à “má consciência” da instituição universitária, que,
segundo ele,
Esconde sobretudo dois vazios clamorosos: a profissionalização deficiente, já que é
comum aceitar-se a idéia de que, ao sair da universidade e assumir um emprego,
será mister aprender tudo de novo; a alienação da prática, espargindo a expectativa
também comum de que educação superior é um entupimento teórico sistemático.

Por isso, destacam-se como produtivos os exemplos de pesquisa em estágio em


que a articulação entre teoria e prática tenha se dado de uma maneira efetiva ou pelo
menos instigante. Acredita-se que o próprio texto de apresentação da pesquisa seja o
instrumento mais adequado para medir a efetividade de tal articulação. Guardando,
é claro, as devidas ressalvas em relação aos distintos graus de intimidade dos alunos
de final de graduação com os gêneros do domínio acadêmico, concorda-se aqui com

13
Texto original escrito em inglês: “Through close observational research and description the authors are able to show us the
everyday practices that produce educational outcomes. Marx said of scholarly inquiry “the problem is not to understand the
world but to change it”. However, before we can change an aspect of the world we first have to be able to see it. Ethnography
in educational settings, by making visible the habitual conduct of “standard operating procedures”, shows us the structure
points in educational processes that need change”.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 171


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Amorim (2004, p. 93-94), ensaísta que assinala, em “Enunciado científico e texto


polifônico”, capítulo da obra O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas,
que “Uma escrita crítica deve revelar não somente o contexto de enunciação em que
esse texto se produziu, mas também a presença do olhar teórico através do qual fatos
e descrições podem emergir de um determinado contexto”. Tal colocação comprova a
necessidade de aproximação dos estudantes dos cursos de formação de professores não
a uma prática avessa à teoria e à pesquisa, infelizmente, frequente em um grande nú-
mero de escolas públicas de educação básica, e sim a uma proposta de reflexão teórica
sobre a prática (ou paralela à prática) por meio da qual os problemas e os efeitos dos
modos de ensinar línguas e literaturas possam se transformar em objetos de interesse
para o licenciando/pesquisador – experiência esta inicial e amadora, em alguns casos,
mas que talvez possa despertar nas futuras gerações de professores a consciência dos
benefícios que a perspectiva crítico-teórica pode trazer para a prática docente.
Como se pôde perceber, este artigo não se deteve, intencionalmente, na explana-
ção de uma “solução” didática que sirva como modelo para a melhoria dos cursos de
formação de professores em nível nacional. A defesa da pesquisa em estágio, no con-
texto específico do curso de Português-Espanhol da UFRJ, liga-se à necessidade insti-
tucional de enfrentamento da dicotomia entre bacharelado e licenciatura, responsável
aí, em muitos sentidos, pelo esvaziamento da relação entre teoria e prática, ainda pre-
sente na ótica dos licenciandos que chegam aos períodos de Prática de Ensino. Desse
modo, a recontextualização da ideia de pesquisa embutida nesta proposta não escapa
às tensões e problemáticas advindas da falta de tradição de se pensar teoricamente o
exercício da prática profissional docente. Por isso, a “contribuição” sinalizada vem aqui
acompanhada da (auto)crítica. O possível “avanço” caminha ao lado do movimento
inevitável de resistência. Mas aquilo que resiste, é claro, não funciona como um ele-
mento unicamente negativo; ao contrário, fomenta o desenvolvimento de diálogos
mais significativos com o hibridismo curricular que constitui a formação inicial em
Letras. Os resultados positivos e negativos obtidos com essa experiência relatada, por
exemplo, demonstram que as bases epistemológicas, os instrumentos de análise e os
padrões genéricos fetichizados pelo discurso bacharelesco são, amiúde, insuficientes
para o aprofundamento de vários aspectos da reflexão sobre o processo pedagógico,
mas ao mesmo tempo evidenciam que apenas pelo esforço de interpenetração do saber
teórico com o prático é possível desnaturalizar problemas cristalizados no cotidiano
escolar, fazendo com que o professor em formação se perceba paulatinamente como
um profissional capaz de buscar e analisar alternativas relevantes para o seu contexto
de atuação.

172 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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REFERÊNCIAS:
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Paulo: Musa, 2004.
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gação científica. In: ___________. Palavras incertas. Campinas: Ed. Unicamp, 1998,
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São Paulo: Hucitec, [1929] 2002.
DEMO, Pedro. Educar pela pesquisa. Campinas, SP: Autores Associados, 2007.
ERICKSON, Frederick. Foreword. In: MATTOS, Carmen Lúcia Guimarães de e
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NÍSIO, Ângela Paiva et al. (Org.). Gêneros textuais & Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna,
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PIMENTA, Selma Garrido et al. (Org.). Pesquisa em educação: alternativas investigati-
vas com objetos complexos. São Paulo: Loyola, 2006.
_____ .; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência. São Paulo: Cortez, 2008.
PINTO, Maristela da Silva. Transferências prosódicas do Português do Brasil/LM na
aprendizagem do Espanhol/LE: enunciados assertivos e interrogativos totais. 2009. Tese.
(Doutorado em Letras Neolatinas). Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2009.
Recebido em 29/03/2014.
Aprovado em 20/04/2014.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 173


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ESTABELECENDO PARÂMETROS ENUNCIATIVOS


PARA A AVALIAÇÃO DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIO
SUPERVISIONADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

ESTABLISHING ENUNCIATIVE PARAMETERS FOR EVALUATION


OF PORTUGUESE SUPERVISED TRAINEESHIP REPORTS
Silvana Silva*

RESUMO: Constatamos que não há o estabelecimento de critérios de avaliação de


estágios supervisionados em âmbito nacional. Cumpre a nós pensá-los a partir de pes-
quisas situadas em âmbitos regionais (DORNELLES, 2012). Este artigo tem como
objetivo elaborar categorias analíticas para a avaliação de relatórios de Estágio Super-
visionado em Língua Portuguesa. Para realizar tal propósito, valemo-nos do aporte
teórico da Linguística da Enunciação (FLORES e TEIXEIRA, 2005; FLORES et. al.,
2009). Elencamos as categorias enunciativas que permitam demonstrar que o aluno se
apropria do seu próprio planejamento durante a prática docente. Considera-se, por-
tanto, o aspecto operacional da enunciação (ONO, 2007). Tomando os conceitos de
Benveniste de índices essenciais e procedimentos acessórios de indicação de subjetividade
(demonstrados em ARESI, 2011) e os conceitos agenciamento, apropriação, compreen-
são, reconhecimento (FLORES et. al, 2009), elaboramos uma reflexão metodológica.
Apresentamos a análise de excerto da Apresentação de um (1) Relatório de Estágio Su-
pervisionado em Língua Portuguesa, orientado por mim no segundo semestre de 2012
na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Bagé, RS. Temos como resultado
que a Apresentação prima por uma progressiva ampliação do interlocutor, ‘tu-alunos’
para ‘vocês-alunos de EJA’, revelando então uma Apresentação bem-sucedida do Proje-
to de Ensino do Estágio.
Palavras-chave: linguística da enunciação; indicação de subjetividade; estágio super-
visionado em língua portuguesa; avaliação.
ABSTRACT: We verified that there is no establishment of evaluation criteria of su-
pervised traineeships nationwide. It behooves us to think of them departing from re-
searches situated in regional areas (DORNELLES 2012). This paper aims to develop
analytical categories for the evaluation of Portuguese supervised traineeship reports. To
accomplish this purpose, we make use of the theoretical framework from the Enuncia-
tion Linguistics (FLORES and TEIXEIRA, 2005; FLORES et all, 2009.) We listed the
enunciative categories that permit to demonstrate that the student appropriates of its
own planning during the teaching practice. Therefore, it is considered the operational
*
Professora na Universidade Federal do Pampa/UNIPAMPA. E-mail: ssilvana2011@gmail.com

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 175


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aspect of enunciation (ONO, 2007). Taking Benveniste’s concepts of essential indi-


ces and accessories nominating procedures of subjectivity (demonstrated on ARESI,
2011) and the following concepts: agency, appropriation, understanding, recognition
(FLORES et. all, 2009), we developed a methodological reflection. Here is the analysis
of an excerpt from the presentation of one (1) report of Portuguese Supervised Train-
eeship, advised by me on the second semester of 2012 at the Federal University of
Pampa (UNIPAMPA), in Bagé, RS. We have as a result that the presentation excels for
a progressive magnification of the speaker, ‘thou- pupils’ to ‘you-YAE students’, thus
revealing a successful presentation of the Traineeship’s Teaching Project.
Keywords: linguistics of enunciation; indication of subjectivity; supervised traine-
eship in English; evaluation.

CONTEXTUALIZAÇÃO: A NECESSIDADE DE PARÂMETROS


PARA A AVALIAÇÃO EM EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA
Avaliar é, desde sempre, uma das tarefas mais árduas do campo da Educação. Para
agravar mais esse quadro, não encontramos documentos que estabeleçam parâmetros
de avaliação para os discentes em conclusão do Curso Superior, em nosso caso, pa-
râmetros gerais para avaliar o aluno durante a realização dos estágios supervisionados
obrigatórios às licenciaturas1. A questão que nos move é a seguinte: como estabelecer
critérios para avaliar a conversão do aluno-estagiário em professor? Dada a ausência de
critérios gerais para tal questão, valemo-nos de princípios de ordem linguística para
responder a tal questão. Tais princípios serão elaborados a partir da contribuição da
Linguística da Enunciação, em especial o aspecto operacional da Enunciação (ONO,
2007). Por ora, apresentaremos uma revisão bibliográfica de alguns trabalhos sobre
estágio supervisionado em ensino de línguas, procurando entrever neles critérios de
avaliação (DORNELLES, 2012 e outros).

O PROFESSOR EM FORMAÇÃO: AVALIANDO ANÁLISES


DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIO
Silva (2012), organizador da obra ‘Letramento do professor em formação inicial: in-
terdisciplinaridade no Estágio Supervisionado da Licenciatura’, nos apresenta onze (11)
pesquisas sobre as narrativas escritas dos estagiários de diversos cursos de Licenciatura
1
O SINAES/2003 (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior) visa à avaliação das instituições federais cuja
principal política é a aplicação do ENC (Exame Nacional de Cursos). Verifique-se mais detalhes em: <http://portal.mec.gov.
br/arquivos/pdf/sinaes.pdf>. O ENADE (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes), que integra o SINAES, tem o
objetivo de aferir o rendimento dos alunos dos cursos de graduação em relação aos conteúdos programáticos, suas habilidades
e competências. Em um exame do ENADE/LETRAS (2011), não constatamos a presença de nenhuma questão que versasse
sobre a experiência do estágio supervisionado em língua portuguesa. Em linhas gerais, as questões centram-se em aspectos
gerais de didática, teorias linguísticas e teorias literárias, isto é, o ENADE parece restringir a avaliação somente à formação
dos primeiros anos do Curso de Letras. Mais detalhes, podem-se consultar as provas em: < http://portal.inep.gov.br/web/
guest/provas-e-gabaritos-2011>.

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(Letras, língua portuguesa; Letras, literatura; Letras, língua inglesa, Matemática, His-
tória e Geografia) em universidades de diversos Estados do Brasil (Tocantins, Goiás,
Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul). Dentre estes onze trabalhos,
interessa-nos mais detidamente aqueles em que entrevemos critérios de avaliação do
supervisor de estágio e que estejam mais voltados para a área de linguagem/ensino de
língua(s). Selecionamos três artigos: Dornelles (2012); Gonçalves e Ferraz (2012) e
Brito (2012).
Os artigos serão apresentados de forma a que se tente responder às seguinte ques-
tão: 1) como distinguir experiências de estágio bem e mal-sucedidas?; 2) que critérios
de avaliação subjazem a esta distinção?
No capítulo ‘Desafios da Didatização da Escrita e da Gramática no Estágio Su-
pervisionado em Língua Materna’, de Clara Dornelles, pretende-se investigar o modo
como uma estagiária de Língua Portuguesa, na Universidade Federal do Pampa (UNI-
PAMPA) didatiza a escrita e a gramática em aulas do 9º ano do Ensino Fundamental.
Conclui a autora, também supervisora de estágio, que “os resultados indicam que a
principal dificuldade enfrentada pela aluna foi de ordem metodológica e ocorreu no
momento de orientação dos alunos para a reescrita”. (2012, p. 79). Observa, além
disso, que a estagiária reproduziu algumas formas tradicionais de ensino de escrita, tais
como o recurso do sublinhado nos textos, bem como também tentou algumas novas
formas de ensino de gramática e escrita, a saber, valorização dos debates orais previa-
mente às atividades de escrita e percepção de que o conteúdo gramatical estava sendo
aprendido paulatinamente nas atividades de escrita e não somente nas atividades de
análise linguística. Uma citação é importante, pois indica, para nós, claramente, o
método de leitura de Dorneles do relatório de estágio da aluna:
Encontramos, no relatório da estagiária, alguns ‘sinais’ que demonstram que ela
apreende a complexidade da escola; por exemplo, após as aulas de observação que
precederam a regência, percebeu que muito do que planejara, ‘em teorias’, precisaria
ser ‘modificado e adequado às novas realidades’ (p.5) Essas novas realidades se referem
ao (re)conhecimento da sua turma e das dinâmicas desse universo escolar específico:
os alunos têm diferentes níveis de maturidade, interessam-se por diferentes temas
típicos da faixa etária; gostam de falar em situações espontâneas; estão acostumados
com práticas e objetos tradicionais de ensino na aula de Língua Portuguesa; sua maior
dificuldade na escrita é começar a escrever; tem dificuldade na leitura de textos longos;
a leitura de textos com temáticas sociais pode suscitar a emergência de situações
delicadas em sala de aula; (...) Reconhecendo esta complexidade da escola/sala de
aula, a estagiária reconhece também que há outros elementos estruturantes da prática
de ensino além da competência técnica. (DORNELLES, 2012, p. 69, grifos nossos).

Para Dornelles (2012), além do par conceitual tradição/inovação metodológicas, o


par conceitual tecnicidade/complexidade da realidade escolar influenciam sua avaliação
do desempenho da estagiária. Logo, se o estagiário, durante sua prática, procurou mais
inovar do que reproduzir e mais lidar com a complexidade do que se ater a técnicas,
logo está apto a ser aprovado no estágio. Observamos que a capacidade de reconheci-

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 177


Universidade Federal da Grande Dourados

mento e (re) conhecimento de ‘sinais’ por parte do estagiário da realidade escolar bem
como de reconhecimento e (re)conhecimento de ‘sinais’ do supervisor no relatório de
estágio são características que conduzem positivamente à reflexão avaliativa da prática
do estágio. No entanto, não percebemos no texto de Dornelles (2012) critérios lin-
guísticos para o que chama de ‘sinais’.
No capítulo ‘Teoria acadêmica e prática profissional na Licenciatura em Letras’,
de Adair Vieira Gonçalves e Mariolinda Romera Ferraz, é analisada a relação entre o
Estágio Supervisionado e a Grade do Currículo do Curso de Letras da Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD). Constata-se que o ‘ensino’ é muito pouco
abordado na grade teórico-prática do curso. A seguir, analisam relatórios de estágio.
Para analisar os relatórios, os autores partem do referencial teórico do interacionismo
sociodiscursivo postulado por Bronckart (2006). As categorias analíticas fundamentais
do relatório são as seguintes: “1) autor: pessoa física – aluno-mestre da licenciatura em
letras; 2) enunciador: pessoa social – aluno-mestre concludente da licenciatura em le-
tras/professor em formação inicial; 3) destinatário: pessoa física – formador responsá-
vel pela disciplina de estágio supervisionado; 4) interlocutor: pessoa social – formador
responsável pelo estágio supervisionado; 5) objetivo do texto: relatar ações desenvol-
vidas durante o estágio de observação e de regência, na educação básica. Comprovar
o cumprimento do regulamento do estágio para obtenção do título de licenciado em
letras. 6) circulação: esfera acadêmica; 7) conteúdo temático: exposição de aspectos
teórico-metodológicos do estágio”. Observamos que Gonçalves e Ferraz são mais ob-
jetivos do que Dornelles (2012) no reconhecimento de ‘sinais’ que conduzem à avalia-
ção do trabalho estagiário. A seguir, os autores analisam uma atividade de transposição
didática em três (3) relatórios de estágio. Vejamos a forma como os autores analisam
duas atividades práticas de um dos relatórios:
“Encontramos a seguinte situação no relatório de estágio.
Hoje explicamos para eles o que são ‘tipos e gêneros textuais”, e trouxemos de
exemplos um texto informativo. Foi explicado o que é um acróstico e pedimos para
ele produzir um com a Copa do Mundo com Exemplo (relatório 1)
Entendemos que o conhecimento da distinção entre tipos e gêneros textuais nem
sempre seja um conteúdo necessário ao aluno da educação básica. A nosso ver,
enfatizar essa diferença é, na verdade, a manutenção de um ensino tradicional em
que conceitos são mais importantes que o uso em si.
Outra situação destacada no Relatório 1 foi o trabalho realizado com o gênero
Charge. Apresentamos o relato:
Hoje trabalhamos com o gênero Charge, explicamos o que é, o que aborda e para
fazer interpretação de uma. Depois para descontrair, trouxemos uma Cruzadinha
sobre a Copa do Mundo (Relatório 1)
Do relato depreende-se que as atividades realizadas com o gênero Charge enfatizam
o contexto de produção. Elas desenvolvem a capacidade de ação dos alunos; estes
passam a ter domínio de situações comunicativas em que a charge se torna um gênero
producente: contexto de crítica, de sátira, relativas a situações sociopolíticas; por
exemplo, as quais, para produzirem efeito, precisam estar no conhecimento prévio

178 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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do leitor. Logo, pensamos, uma atividade adequada após a leitura de uma charge
seria a produção de um texto do gênero argumentativo (artigo de opinião, carta
argumentativa, por exemplo), em que o aluno pudesse expor sua opinião sobre o
tema da charge. Todavia, os alunos-mestre utilizaram, em seguida, uma cruzadinha,
gênero que, potencialmente, não contribui para a reflexão/argumentação provocada
pelo primeiro gênero. Portanto, revela-se, na transposição didática, uma deficiência
no entendimento dos objetivos do gênero bem como do trabalho nessa perspectiva”.
(GONÇALVES e FERRAZ, 2012, p. 124-125).

Percebemos que, na avaliação do trabalho discente, além do par conceitual tradição/


inovação metodológicas, também presentes em Dornelles (2012), encontramos a díade
coerência/incoerência entre proposta e desenvolvimento da atividade bem como atendimen-
to ou não atendimento das expectativas do supervisor/destinatário do estágio. Entendemos
que este último é de ordem eminentemente enunciativa, uma vez que enfatiza a relação
intersubjetiva entre os interlocutores. É importante lembrar que a dimensão enuncia-
tiva é englobada já na própria teorização de Bronckart. Esta dimensão nos encoraja
a buscar a proposição de critérios de ordem enunciativa para a avaliação de estágios
supervisionados em língua portuguesa. A pergunta que de imediato surge é a seguinte:
como se organizou esta relação de orientação? O supervisor estabeleceu critérios claros
antes da prática de ensino propriamente dita ou esperou que o aluno já os tivesse em
sua caminhada teórico-metodológico como aluno do Curso de Letras? Concluem Gon-
çalves e Ferraz que: “há absorção da teoria de gêneros textuais e dos documentos oficiais
nos relatórios. Entretanto, é frágil a transposição didática”. (2012, p. 135).
No capítulo ‘Diários reflexivos de professores de Língua Inglesa em formação ini-
cial: o outro que (me) confessa’, de Cristiane de Paula Brito, são colocadas as seguintes
questões: “que dizeres/saberes vem à tona no discurso dos estagiários? Como os esta-
giários concebem o ensino/aprendizagem de língua estrangeira? Qual é a imagem de
língua e de professor de língua estrangeira construída pelo sujeito professor de línguas
em formação inicial, ao tomar a palavra para refletir sobre sua própria experiência de
regência?” (2012, p. 139). Baseando-se em teóricos da Análise do Discurso, como
Pêcheux e Orlandi, a autora investiga a(s) memória(s) discursiva(s) que sustenta(m)
a tomada de posição do discurso. Toma um corpus composto de 87 diários reflexivos
de Estágio Supervisionado em Língua Inglesa produzidos por 28 estagiários. Observa
que, em tais diários, o estagiário toma o ‘outro’ como confidente, alguém com que
pode desabafar sentimentos de descobertas e decisões. Nesta posição discursiva, o es-
tagiário pode se eximir de responsabilidades sobre a aula. (2012, p. 148). Além disso,
observa o ‘apego excessivo’ dos estagiários ao plano de aula, esse ‘lugar de completude’.
Vejamos, mais de perto, a avaliação de um dos relatórios:
“Meu gesto de leitura se delineia no sentido de pensar a representação de interlocutor
construída a partir da relação com o imaginário acerca do que considera apropriado,
em termos de linguagem, em um diário reflexivo. Eis alguns recortes:

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 179


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Então chegara o dia de dar aula sozinha.... e ainda dar aula de inglês! E para
completar a professora avaliando. Com certeza não é uma situação tão confortável
né? Os slides ficarão tão lindos! Como uma boa teacher também pensei no
homework! rsrsrs (Diário 2)
Hoje darei minha primeira aula. Tudo certo com a preparação, a unidade é fácil, os
exercícios também. Preparei atividades extras e para casa. Tecnicamente estou pronto
exceto pelo fato de estar super nervoso e ansioso com a situação. Acho que é por que
fica aquela preocupação de ‘será que vão gostar da aula?’, ‘cumpri os objetivos e fui
bem?’ (diário 1).
O outro parece ser representado por alguém próximo, familiar, com quem se teria
intimidade suficiente para não usar uma linguagem formal. Ocorre, portanto, o
apagamento da imagem do outro avaliador, que exerce poder sobre o professor em
formação inicial e o coloca numa situação não ‘tão confortável’, já que, afinal, está
ali para ensinar o que é ser uma boa teacher. Apaga-se o outro avaliador e se projeta
um outro ‘eu’ do sujeito, como se o professor estagiário falasse consigo mesmo (à
semelhança dos diários pessoais, por exemplo). Assim, o interlocutor é o outro do eu”.
(BRITO, 2012, p. 146-147).

Observa-se que as categorias avaliativas são as seguintes: dependência/autonomia


do olhar do supervisor e formalidade/informalidade do relatório de estágio. Para Brito
(2012), um estágio bem-sucedido depende da constituição de um ponto de vista ou
posição discursiva por parte do estagiário de relativo distanciamento em relação ao
supervisor e à universidade ou, de outra, forma, pela constituição de um ‘outro’ que
não seja simplesmente da ordem da ‘confissão’. Conclui: “as análises apontam a neces-
sidade de instigar o professor em formação inicial a tomar uma posição discursiva. (...)
Não nego que o diário possa ser espaço de confissão. Há de haver uma confissão, mas
trata-se daquela que (re) vela (a)o sujeito, que se lhe escapa, que resvala no momento
mesmo do acontecimento, declarando que é sempre o outro que falta em mim”. (p.
162). Constatamos que, assim como no texto de Dornelles (2012), Brito (2012) tam-
bém não explicita objetivamente quais foram os critérios discursivos utilizados para
demarcar, delimitar os diários reflexivos e propor sua análise.
A partir dessa revisão da literatura, podemos elencar os critérios de avaliação dos
quais o supervisor pode se valer em sua avaliação dos estagiários:
1. tradição/inovação metodológicas;
2. percepção técnica/complexa da realidade escolar;
3. coerência/incoerência entre proposta e desenvolvimento da atividade;
4. atendimento ou não atendimento das expectativas do supervisor/destinatário
do estágio;
5. dependência/independência do olhar do supervisor;
6. formalidade/informalidade do relatório.

180 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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No item a seguir, a partir da Linguística da Enunciação, procuramos elaborar cri-


térios de avaliação que incidam diretamente sobre os relatórios de estágio, de forma a
avaliar objetivamente o trabalho do estagiário, isto é, o professor em formação inicial.

APORTE TEÓRICO-ANALÍTICO: A CONTRIBUIÇÃO DA


LINGUÍSTICA DA ENUNCIAÇÃO PARA A AVALIAÇÃO
DOS RELATÓRIOS ESCRITOS DE ESTAGIÁRIOS
A Linguística da Enunciação tem, entre outras possibilidades, no dizer de Flores
e Teixeira (2005, p. 93), “a vocação descritivista das teorias da enunciação, herdada
de Saussure”. Além disso, a leitura elaborada por Ono (2007) para a noção de ‘enun-
ciação’ em Benveniste revela a fertilidade da teoria enunciativa elaborada pelo autor,
uma vez que é possível depreender cinco (5) aspectos dessa complexa noção teórica,
quais sejam, aspecto vocal, aspecto operacional da conversão da língua em discurso,
aspecto dialógico, aspecto da temporalidade, aspecto referencial. Para este trabalho, é
relevante explorar o aspecto operacional, isto é, a passagem de critérios gerais, comuns
aos estagiários (critérios de ordem linguística, do semiótico) à discursivização de tais
critérios nos relatórios particulares de cada um dos professores em formação inicial
(critérios de ordem semântica).
Inicialmente, faremos uma leitura de dois artigos de Benveniste, a saber, ‘A na-
tureza dos pronomes’ (Problemas de Linguística Geral I), onde está posta a noção de
‘operacionalização da língua’, por meio da noção de dêixis ou indicador de subjetividade
e o texto a ‘Forma e sentido na linguagem’ (Problemas de Linguística Geral II), onde
estão explicitadas as relações entre a ordem semiótica e a ordem semântica da língua. Em
seguida, apresentaremos as definições de agenciamento, apropriação, apresentadas no
Dicionário de Linguística da Enunciação (2009), as quais complementam o arcabou-
ço teórico para a constituição da metodologia de análise.
Em ‘A natureza dos pronomes’, Benveniste mostra que a língua apresenta dois
planos: 1) o plano da sintaxe, que contempla os signos nominais, referenciais, e o para-
digma da terceira pessoa, a chamada não pessoa; 2) o plano do discurso, que contem-
pla signos ‘vazios’, auto-referenciais. A este segundo plano, pertencem uma série de
signos cuja ‘realidade’ é algo de muito singular. Nas palavras do autor, “Eu só pode se
definir em termos de ‘locução’, não em termos de objetos, como um signo nominal.”
(PLG I, p. 278). Esta série de signos, que refere exclusiva e unicamente à instância de
discurso, é chamada de ‘indicadores’ e inclui várias classes, tais como pronomes pesso-
ais, advérbios e locuções adverbiais. O Dicionário de Linguística da Enunciação (2009)
assim define os indicadores de subjetividade:
definição. Formas disponíveis na língua utilizadas para convertê-la em discurso, cujo
emprego remete à enunciação. Nota explicativa. Os indicadores de subjetividade
são formulados a partir da discussão de dêixis, redefinida por Benveniste como

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 181


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contemporânea da situação de discurso. Esses indicadores pertencem a várias


classes de palavras – pronomes, verbos, advérbios, etc. – podendo ser divididos, de
acordo com a noção que expressam, em indicadores de pessoa, tempo, lugar, objeto
mostrado, etc. Sua condição de autorreferenciação deve-se ao fato de sua existência
estar ligada à tomada da palavra, cuja realidade é a realidade do discurso” (FLORES
et. al, 2009, p. 140).

Aresi (2011), em estudo sobre a noção de indicador na obra benvenisteana, obser-


va que há ampliação da concepção de indicador de subjetividade, desde o texto ‘A na-
tureza dos pronomes’ (1956), passando por ‘A forma e o sentido da linguagem’ (1967),
e culminando em ‘O aparelho formal da enunciação’ (1970). O autor pergunta-se: a
que se refere a ideia de índices específicos e procedimentos acessórios da conversão da lín-
gua em discurso? Se os índices específicos incluem as clássicas designações de locutor/
interlocutor, tempo e espaço, os procedimentos acesssórios incluem todos os recursos da
língua que passam pela atualização da língua pelo locutor. Conclui:
É o todo da instância de discurso que está em jogo: o ato, com referência aos
interlocutores e à situação em que ele ocorreu, bem como os caracteres formais do
enunciado e seu agenciamento, sua sintagmatização. Nesse todo estão incluídos todos
os níveis da análise linguística (entonação, escolha e formação lexical, organização
sintática etc.), o que revela o perfil radicalmente transversal da enunciação em relação
aos níveis da língua. Perceber isso, portanto, é levar em conta não só os índices
específicos, mas também (e sobretudo) os procedimentos acessórios da enunciação.
É levando todos estes aspectos em consideração na análise que podemos ver o sentido
de cada ato enunciativo. (ARESI, 2011, p. 275).

Oferecendo uma resposta provisória para a questão inicial deste item, qual seja,
como os estagiários singularizam suas escritas dos relatórios de estágio convertendo-se em
professores em formação inicial ou como ‘banalizam’ suas escritas permanecendo na condi-
ção de ‘estagiários’?, é possível dizer que devemos localizar os índices específicos de pessoa,
tempo e lugar e os procedimentos específicos de recursos sintáticos em cada ato enunciativo
que constitui os relatórios de estágio e reconhecer, nesse sistema de indicação, se eles
apontam tal escrita no sentido de um relatório autônomo, coerente, formal, inovador
ou no sentido de um relatório dependente, incoerente, informal e tradicional, ou na
direção da mescla de algumas dessas características.
Com o objetivo de esclarecer a delimitação de unidades de análise e a relação entre
indicação de subjetividade e domínio de aplicação, apresentamos breve retomada do
artigo ‘A forma e o sentido na linguagem’ (Problemas de Linguística Geral I). Como
Benveniste percebe a noção de ‘forma’? Em A forma e o sentido da linguagem (Proble-
mas de Linguística Geral II), atribui um ‘duplo sentido’ ao termo (no sentido mais
literal de ‘duplo sentido’, qual seja, o de indecibilidade de único posicionamento):
1) forma no sistema semiótico; b) forma no sistema semântico. Benveniste (1989, p.
221) faz um alerta: “ a presente exposição é um esboço para situar e organizar estas
noções gêmeas de sentido e forma, e para analisar suas funções fora de qualquer pres-

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suposto filosófico”. Para o autor, ‘forma e sentido são noções gêmeas’, isto é, noções
que nascem juntas mas que percorrem caminhos diferentes.
Em virtude da impossibilidade de enumerar, a priori, as funções da linguagem,
Benveniste parte da noção de signo. Considerando a forma do signo, a saber, o signi-
ficante, Benveniste distingue dois planos: a análise fonêmica (significante) e a análise
semiótica (significante em relação ao significado). Sobre a análise semiótica, atrelada
ao plano do significado, basta dizer que a língua está sujeita a análises da estrutura
formal do significante. Interessa-nos sobretudo o signo no plano do significado, “é no
uso da língua que um signo tem existência; o que não é usado não é signo; e fora do
uso o signo não existe. Não há estágio intermediário; ou está na língua, ou está fora
da língua” (PLG II, 1989, p. 227). Logo, no sistema semiótico, é suficiente dizer que
a ‘forma’ do signo está sujeita à análise de sua estrutura formal e que o ‘sentido’ do
signo é determinado por sua existência ou inexistência no uso feito ou ignorado pela
comunidade falante. Considerando que ‘forma e sentido’ são noções gêmeas, Benve-
niste parece nos informar que uma análise da estrutura formal só tem sentido quando
determinados signos são aceitos pela comunidade falante. Em nosso caso específico,
a relação interlocutiva entre professor e aluno em situação de ensino de escrita, as
‘palavras’ ou ‘signos’ utilizados pelo professor só fazem sentido de serem analisados se
estiverem sendo usados para estabelecer uma alocução com os alunos.
Benveniste, a seguir, afirma que “há para a língua duas formas de ser língua no
sentido e na forma. Acabamos de definir uma delas: a língua como semiótica; é ne-
cessário justificar a segunda, que chamamos de língua como semântica”. (PLG II, p.
229). Essas duas formas indicam as “modalidades fundamentais da função linguística,
aquela de significar para a semiótica, aquela de comunicar para a semântica”. (PLG II,
p. 229). Assim, embora seja impossível definir a priori as funções da linguagem, é pos-
sível dizer que as duas modalidades fundamentais, significar e comunicar, são ambas
imprescindíveis para o emprego da língua. Para o autor, é apenas no nível semântico
que se pode pensar a sociedade, pois “o funcionamento semântico da língua permite a
integração da sociedade e a adequação ao mundo, e por consequência a normalização
do pensamento e o desenvolvimento da consciência”. (PLG II, p. 229). Se é no âmbito
da semiótica que a indicação da subjetividade deve ser analisada, descrita; é somente
no âmbito da semântica que ela pode servir para orientar o desenvolvimento da escrita.
Se a unidade do semiótico é o signo, qual é a unidade da semântica? A frase. Se-
gundo Benveniste (1989, p. 229), trata-se do ‘intencionado, do que o locutor quer
dizer, da atualização linguística do pensamento (...) a semântica resulta da atividade
do locutor que coloca a língua em ação”. (Benveniste, 1989, p. 229-30). Ono (2007,
p. 70), ao fazer um estudo da palavra ‘frase’ em diversos textos de Benveniste, constata
que há três ‘noções associadas’ a ela, a saber, atualização, predicação e realização. Escla-
rece, com base no artigo de 1966, ‘A forma e o sentido na linguagem’, ora em exame,
que sintagmatização, predicação e atualização são operações realizadas ao mesmo tempo

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 183


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pelo locutor (ONO, 2007, p. 70). A realização depende do tempo linguístico, isto é, é
da conversão da língua em discurso; logo, sintagmatização, predicação e atualização são
operações necessárias para a realização da frase. A partir dessas afirmações, é possível
fazer uma reflexão sobre as noções de ‘forma’ e ‘sentido’. A forma da frase é o sintagma;
o sentido da frase é a ideia que exprime, ou seja, “a frase é cada vez um acontecimento
diferente (...) ela não pode, sem contradição de termos, comportar emprego; ao con-
trário, as palavras que estão dispostas na cadeia e cujo sentido resulta precisamente da
maneira em que são combinadas não tem senão empregos”. (BENVENISTE, 1989,
p. 231). Daí constatamos que a ‘forma’ da frase está a serviço do ‘sentido’ da frase, ou,
em outras palavras, que a ‘forma’ da frase é o ‘sentido’ da frase.
Como apreender o ‘sentido’ da frase, esta unidade de análise semântica? É im-
portante explicitar dois conceitos correlatos: agenciamento e apropriação. Após a ex-
plicitação destes dois conceitos, acreditamos ter estabelecido um arcabouço teórico
suficiente para compor a metodologia de análise de relatórios de estágio. Vejamos:
Agenciamento.
Definição: processo de organização sintagmática pelo sujeito.
Nota explicativa: Através do agenciamento, o sujeito organiza as formas da língua
para transmitir a ideia a ser expressa em seu enunciado.
Termos relacionados: apropriação, referência, sintagmatização.
(FLORES et. al, 2009, p. 47)
Apropriação.
Definição: processo de uso da língua pelo sujeito por meio da enunciação.
Nota explicativa: Benveniste ressalta que o processo de apropriação ocorre com a
tomada, por inteiro, da língua. É o estabelecimento pelo sujeito de relações com as
formas da língua, de modo a selecionar aquelas que forem compatíveis com a ideia
a ser expressa. (...)
Termos relacionados: atualização, língua, subjetividade.
(FLORES et. al, 2009, p. 49)

Constatamos que a apropriação do estagiário das orientações do supervisor cul-


mina no agenciamento de ideias marcadas no relatório de estágio. Reconhecer, então,
a relação entre orientação e prática revelada na escrita constitui parte do trabalho para
o estabelecimento de uma avaliação justa do trabalho do professor em formação ini-
cial. No item abaixo, apresentamos as categorias metodológicas para a análise de um
relatório de estágio.

184 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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METODOLOGIA DE ANÁLISE: ELEMENTOS PARA


A ANÁLISE DA ESTRUTURA DO RELATÓRIO E
RELATÓRIO DE ESTÁGIO
Tomando a ideia de ‘signo’ como unidade semiótica e a ideia de ‘frase’ como
unidade semântica, entendemos que tais conceitos se concretizam no relatório de es-
tágio supervisionado, respectivamente, pela estrutura do relatório de estágio, isto é, as
seções exigidas pelo supervisor do trabalho e pelo enunciado efetivamente escrito pelo
estagiário em relação ao universo discursivo da escola (dimensão referencial da frase) e
a seu próprio desempenho (dimensão auto-referencial da frase).
É na ‘frase’ que reconhecemos a indicação de subjetividade por meio dos índices
essenciais de pessoa (eu-tu, em que ‘eu’ designa o estagiário e ‘tu’ a imagem do super-
visor projetada no relatório), tempo e espaço e os procedimentos acessórios de funções
sintáticas, os quais podem se organizar de forma a atender ou não os quatro entre os
seis2 critérios de avaliação do relatório de estágio (a saber, inovação metodológica, per-
cepção da complexidade da escola, coerência entre planejamento e desenvolvimento
das atividades). Em sua plenitude, esses quatro critérios revelam que o ‘eu’ projetam
para além de ‘tu’ que deve ser ‘agradado’, um ‘ele’, isto é, um terceiro ‘eu/tu’ que ava-
liaria o trabalho como inovador, coerente, formal e independente.
Dessa forma, a indicação de subjetividade é o fator que garante precisão linguís-
tica na avaliação da prática do estagiário, marcada no relatório de estágio. A questão
central a ser respondida é a seguinte: a) em que medida o ‘eu’ agencia signos que
atendem às expectativas gerais do supervisor marcadas na estrutura do relatório e que
revelam apropriação plena de inovação metodológica?

ANÁLISE
O relatório de Estágio Supervisionado em análise refere-se ao componente curri-
cular chamado Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa II e pertence à Gabrielli
Dias3, aluna da Universidade Federal do Pampa, campus Bagé, Rio Grande do Sul. A
aluna realizou seu Estágio na cidade de Pinheiro Machado, Rio Grande do Sul, em
turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA) no turno da noite. O relatório contém
93 páginas (incluindo anexos), intitula-se O valor das raízes: gramática, língua e cultura
do Rio Grande do Sul e apresenta a seguinte estrutura: 1) Conteúdo/Assunto; 2) Eixos
articuladores; 3) Apresentação; 4) Objetivos gerais do Projeto de Ensino; 5) Série; 6)
Materiais; 7) Dinâmica; 8) Possibilidades de modificação no plano inicial; 6) Referên-
cias bibliográficas; 7) Diários reflexivos das observações das aulas da professora regen-
te; 8) Descrição da escola com fotos; 9) Planos de aula (contendo data, escola, série,

2
O segundo, terceiro, quarto, quinto e sexto critérios, a saber, percepção da complexidade da escola, formalidade da escrita, coerência
entre plano e aula, independência do supervisor e atendimento das expectativas do supervisor não serão analisados neste texto.
3
A aluna assinou Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. De qualquer forma, o nome apresentado é de caráter fictício.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 185


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nome do estagiário, conteúdo, objetivo geral, objetivos específicos, estratégias, recur-


sos, avaliação, observações, anexos com exercícios e textos); 10) Diários Reflexivos das
Práticas de Sala de Aula; 11) Anexos (documentos comprobatórios do estágio e fotos
das atividades). É necessário informar ainda que por ocasião do término do Estágio
Supervisionado, isto é, em dezembro de 2012, a nota auferida ao trabalho da aluna
Gabrielli foi 9,0. A nota do Estágio Supervisionado é composta de três elementos: 1)
Pertinência teórica e adequação escolar do Projeto de Ensino (4 pontos); 2) Qualidade
de uma atividade de Prática de Sala de aula supervisionada pela professora em visita
técnica à escola (2 pontos); 3) Completude, Pontualidade de Entrega e Adequação do
Relatório de Estágio Supervisionado (4 pontos).
Deste relatório de estágio, selecionamos uma seção. Selecionamos o item ‘Apre-
sentação’ para verificar o critério inovação metodológica. Tal seção foi escolhida em fun-
ção de acreditarmos ser possível nela vislumbrar uma espécie de ‘resumo’ da proposta
global de ensino elaborada pela estagiária. O percurso metodológico será o seguinte:
1º) destaque das frases, no sentido de frase presente em Benveniste (PLG I, referido
acima); 2) identificação e análise dos índices essenciais de pessoa-tempo-espaço e dos
procedimentos acessórios das funções sintáticas (ARESI, 2011, referido acima); 3)
análise global da relação entre frase e texto (considerando a relação entre frase e dis-
curso, presente em ‘A semiologia da língua, Benveniste, PLG II).

A INDICAÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA ‘APRESENTAÇÃO’


DO RELATÓRIO: AVALIANDO A PRESENÇA DA
INOVAÇÃO METODOLÓGICA
Vejamos a ‘Apresentação’ do Relatório. Excluímos trechos de identificação precisa
da escola.
1. Perceber que não é a língua que muda com o tempo é os falantes que em sociedade
que mudam a língua com o passar do tempo. (Marcos Bagno)
2. A língua varia por isso muda. Tanto em relação com a língua falada como
com a língua escrita bem como a língua no regionalismo que será o foco dos
textos a serem explorados durante o Estágio II. Por isso a linguagem terá uma
atenção especial, mas com uma abordagem simples para um maior entendi-
mento da turma.
3. O gênero abordado será música, poesia nas letras das canções nativistas e tchê
music. Introduzir a diferença e a interligação entre o que é: tradição, tradi-
cionalismo, nativismo e regionalismo e a diferença nas músicas também entre
nativistas e tradicionalistas.
4. A proposta do Projeto Cultural é desenvolver a oralidade, a partir da explo-
ração da cultura do Sul, com base em parte do histórico da Califórnia da
Canção Nativa, que ao longo dos anos, desde 1971, envolve a cultura e a

186 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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historia do Sul do Brasil, por temas ao longo dos anos. A sequencia didática
será apresentada aos alunos no primeiro dia de aula.
5. A poesia das letras servirão para explorar os Verbos na Música e poesia e em
contra partida da cultura, as rixas entre nativismo e Tchê Music e observação
na linguagem regional das letras das canções.
6. Ensaiar e apresentar trovas a comunidade escolar do noturno como produto
final da valorização da cultura do sul, desenvolvendo a oralidade do grupo da
turma de EJA.

Neste texto, localizamos 6 frases. Em cada uma delas, localizamos índices especí-
ficos de pessoa-tempo-espaço bem como procedimentos sintáticos específicos.
Na primeira frase, os índices de pessoa são apresentados ‘em ausência’, trazendo
um enquadre da ordem da não pessoa, no caso, o sociolinguista Marcos Bagno. Nesta
frase, há o procedimento sintático da negação (Perceber que não é a língua que muda
com o tempo) seguido da afirmação (é os falantes que em sociedade que mudam a língua
com o passar do tempo). Logo, o sintagma ‘os falantes’ é colocado em destaque.
Na segunda frase, há alguns índices de pessoa-tempo- espaço, ao longo da frase:
‘Estágio II’, ‘atenção especial’, ‘abordagem simples’ e ‘maior entendimento da turma’.
Observamos que há, na linearidade sintagmática da frase, uma progressiva aproxima-
ção do redator do relatório com seu próprio dizer (passagem do ‘ele’ ao ‘eu’). Quanto
aos procedimentos sintáticos, observa-se que os dois primeiros períodos são constituí-
dos de frases asseverativas curtas e o terceiro período é constituído de duas frases com
o conector mas, cuja presença assegura a presença do ‘eu’.
Na terceira frase, há um retorno às formas ‘em ausência’, trazendo enquadre da
ordem da não pessoa. Nessa posição, o estagiário, que já revelara uma preocupação
com ‘a turma’, neste momento, volta sua preocupação para o ‘conteúdo’. Esta pre-
ocupação transparece até o final da ‘Apresentação’, na quarta, quinta e sexta frases.
No final da quarta frase, observamos um movimento de aproximação ao ‘eu-tu’, no
seguinte trecho “A sequência didática será apresentada aos alunos no primeiro dia de
aula”. No final da frase seis, há uma ampliação do ‘tu’, isto é, o interlocutor, pois se
observa a passagem da denominação ‘alunos’/’turma’ para ‘turma de EJA’. Além disso,
há um desdobramento na frase seis da díade eu-tu em duas díades, que passa da relação
professor-alunos da turma para alunos da turma-alunos de outra turma. Neste desdobra-
mento, o ‘tu’ inverte-se em ‘eu’.
Quanto aos procedimentos acessórios, relativos às funções sintáticas, observamos
o uso de frases asseverativas curtas. Em especial nas frases cinco e seis, há um esforço
de concisão e objetividade ainda maior, chegando quase ao uso da frase nominal, por
meio de um sujeito marcado por verbo na forma infinitiva impessoal. Segundo Flores
et. al (2008, p. 98-99, grifos nossos), “diz Benveniste que a frase nominal: 1) liga-se
sempre ao discurso direto; 2) serve sempre a asserções de caráter geral, sentenciosas. A

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 187


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frase nominal quer convencer, propõe uma relação intemporal, por isso permanente,
agindo com um argumento por autoridade; supõe o discurso e o diálogo, mas não
comunica um dado de fato”. Ainda que se tenha como resultado a construção sintática
de ‘frase fragmentada’, o efeito enunciativo gerado é o da preocupação de mostrar que
se está trabalhando com ‘a linguagem regional’ (frase 5) com consequente ‘valoriza-
ção da cultura do sul’ (frase 6), conforme enunciado na frase 1. Assim, a ‘quase’ frase
nominal (frase 6) está vinculada a um ‘suposto’ discurso direto tal como enunciado
na frase 1 (citação do sociolinguista Marcos Bagno). A estagiária coloca sob a forma
de premissa impessoal, inquestionável o aparato teórico da sociolinguística, marca da
qualidade de inovação metodológica.
Os mecanismos de enunciação de não pessoa (‘ele’) marcados de forma alternante
e mais enfática do que os mecanismos de enunciação de pessoa subjetiva (‘eu’) servem
para um duplo propósito: 1º) garantir a presença do elemento ‘terceiro’, qual seja, a
aula, a apresentação, a cultura; 2º) servir de lastro para a ampliação da dimensão do in-
terlocutor, que parte de um ‘tu’ restrito à presença do ‘eu-estagiário’ passando a ‘vocês,
turma do EJA’. Em linhas gerais, a ‘Apresentação do Relatório de Estágio II’ garante a
característica da inovação metodológica, pois, como sabemos, as práticas tradicionais de
ensino de língua são voltadas para uma relação restrita de ‘aprendizagem’ da língua ba-
seada na relação restrita eu-tu. De certa forma, a aluna compreende que trabalhar em
perspectiva sociolinguística também é uma forma de atingir a inovação metodológica.
No entanto, para que se possa ratificar a qualidade de inovação metodológica far-se-ia
necessário analisar outras seções do Relatório de Estágio, em especial os Diários Refle-
xivos das Observações e os Diários Reflexivos das Práticas4.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: CATEGORIAS ANALÍTICAS


DE ORDEM ENUNCIATIVA PERTINENTES AO
RELATÓRIO DE ESTÁGIO
Concluída a análise, é hora de verificar que categoria ou categorias analítico-
-enunciativas são pertinentes para a avaliação do Relatório de Estágio. Como vimos, a
literatura especializada em Letramento do Professor já nos indicara seis (6) característi-
cas de um Relatório de boa qualidade. Nesse sentido, acreditamos que a Linguística da
Enunciação de Émile Benveniste, em especial o conceito de indicação de subjetividade,
possa nos oferecer mais parâmetros avaliativos.
Na análise da ‘Apresentação’, chama-nos atenção o fato da ampliação da instância
do ‘tu’ (interlocutor) de ‘tu-alunos’ para ‘vocês-turma de EJA’. Assim, a ampliação - ou
redução - da presença do tu no Relatório pode se constituir, a nosso ver, em um sétimo
critério de aferição da qualidade do Relatório de Estágio. Este critério diz respeito aos
índices essenciais da indicação de subjetividade. Quanto aos procedimentos acessórios, re-
4
Para a pesquisa sobre os Diários Reflexivos, sugere-se ao leitor a consulta de Zabalza (2004).

188 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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lativos às funções sintáticas, cremos ser prematuro fazer qualquer afirmação de natureza
categórica. Seria necessário analisar outras seções do Relatório de Estágio, tarefa que
deve ser executada posteriormente. De qualquer forma, considerando as grandes fun-
ções sintáticas, a saber: asseveração, injunção e interrogação, percebemos que a forte
presença da asseveração, alternando movimentos de expansão em frases com conectores e
de redução em frases nominais é um indicativo de qualidade do Relatório de Estágio.
Gostaria de encerrar este artigo dizendo que as relações entre as áreas da Linguís-
tica da Enunciação e da Linguística Aplicada/Letramento do Professor estão em fase
de criação. Nossa tese de doutoramento (Silva, em preparação), em fase de finalização,
será, talvez, um dos frutos dessa articulação que, a nosso ver, está apenas começando.

REFERÊNCIAS:
ARESI, F. Os índices específicos e os procedimentos acessórios da enunciação. ReVel,
v. 9, n. 16, 2011, p. 262-275. Disponível em: <http://www.revel.inf.br/files/artigos/
revel_16_os_indices_especificos.pdf>. Acesso em: 01/09/2013.
BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral I. Campinas, SP: Pontes Editores, 1988.
______. Problemas de Linguística Geral II. Campinas, SP: Pontes Editores, 1990.
BRITO, C.C. P. Diários reflexivos de professores de língua inglesa em formação ini-
cial: o outro que me confessa. In: SILVA, W. R. Letramento do professor em formação
inicial: interdisciplinaridade no Estágio Supervisionado da Licenciatura. Campinas, SP:
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DORNELLES, C. Desafios da didatização da escrita e da gramática no estágio super-
visionado em língua materna. In: SILVA, W. R. Letramento do professor em formação
inicial: interdisciplinaridade no Estágio Supervisionado da Licenciatura. Campinas, SP:
Pontes Editores, 2012, p. 53-82.
FLORES, V.; SILVA, S.; LICHTENBERG, S. WEIGERT, T. Enunciação e gramática.
São Paulo: Contexto, 2008.
______.; BARBISAN, L.; FINATTO, M.J.; TEIXEIRA, M. Dicionário de Linguística
da Enunciação. São Paulo: Contexto, 2009.
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GONÇALVES, A.V.; FERRAZ, M. R.R. Teoria acadêmica e prática profissional na
licenciatura em Letras. In: SILVA, W. R. Letramento do professor em formação inicial:
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ONO, A. La notion d’énonciation chez Benveniste. Paris: Limoges, 2007.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 189


Universidade Federal da Grande Dourados

SILVA, S. Língua, homem e cultura: uma visão antropológica da enunciação para o ensino
de escrita. Tese. (Doutorado em Estudos da Linguagem). Instituto de Letras. Programa
de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. UFRGS. (em preparação).
ZABALZA, M. Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissio-
nal. Porto Alegre: Artmed, 2004.
Recebido em 19/11/2014.
Aprovado em 19/04/2014

190 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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TEXTOS DE ESTAGIÁRIOS E O PROFESSOR


OBSERVADO: RELAÇÕES ENTRE UM SER GENÉRICO E
UM PROFISSIONAL EFETIVO

TRAINEES TEXT AND THE TEACHER OBSERVED: RELATIONS


BETWEEN AN IDEALISTIC AND AN EFFECTIVE PROFESSIONAL
Luzia Bueno*

RESUMO: Este artigo tem como objetivo discutir como o professor observado aparece
em diferentes textos produzidos por estagiários e refletir sobre a validade do emprego
de diferentes gêneros no processo de formação do futuro professor. Essas produções
foram coletadas para a pesquisa de doutorado, de 2004 a 2007, e para uma pesquisa
institucional que dava continuação à anterior, realizada no período de 2008 a 2012, em
uma universidade particular do interior do estado de São Paulo. Para a fundamentação
teórica, baseamo-nos no quadro teórico do Interacionismo Sociodiscursivo (BRON-
CKART, 1999, 2004, 2008) e na análise das figuras interpretativas do agir, conforme
Bulea e Fristalon (2004) e também de acordo com pesquisas do Grupo ALTER (MA-
ZZILO, 2006, BUENO, 2009). Como resultados, constatamos que cada gênero apre-
senta um conjunto de figuras, possibilitando ao estagiário construir diferentes represen-
tações do professor que ora aparece de modo idealizado e ora de modo mais próximo
ao observado nas práticas de estágio. Esses resultados permitiram reflexões que geraram
alterações no modo de conduzir o trabalho de formação de professores.
Palavras-chave: figuras interpretativas do agir; trabalho do professor; textos de estagiários.
ABSTRACT: This paper aims to discuss how the observed teacher appears in different
texts produced by trainees and reflect upon the validity of the use of different genres in
the training of future teachers’ process. These productions were collected for doctoral re-
search, from 2004 to 2007, and an institutional research that led to the previous sequel,
conducted from 2008 to 2012, in a private university in the state of São Paulo.. For the
theoretical grounds, we base ourselves on the theoretical framework of sociodiscursive
interactionism (BRONCKART, 1999, 2004, 2008) and on the analysis of acting inter-
pretive figures, according to Bulea and Fristalon (2006) and also according to researches
from ALTER Group (MAZZILO, 2006 BUENO, 2009). As results, we verified that
each genre shows a set of figures, making possible to the trainee to build different repre-
sentations of the teacher who sometimes appears in an idealized mode and sometimes in
a closest mode to the observed in the practices training These results allowed reflections
which generated changes in the mode of conducting the work of teachers training.
*
Docente da Universidade São Francisco.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 191


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Keywords: acting’s interpretative figures; teacher’s work; trainees texts.

INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo discutir alguns resultados de uma pesquisa1 maior
sobre trabalho docente e produção textual em disciplinas de estágios, grupos de for-
mação de professores e atividades do PIBID, no período de 2010 a 2012. Neste arti-
go, nos centraremos nas representações do trabalho docente construídas em textos de
diferentes gêneros empregados na disciplina de Estágio Supervisionado para os cursos
de Letras e Pedagogia em uma faculdade particular do interior de São Paulo.
Essa pesquisa vem sendo realizada a fim de que possamos refletir sobre os diferentes
gêneros empregados na formação docente e sobre como podemos tratá-los para conse-
guirmos contribuir com uma formação cada vez melhor de nossos alunos de licenciatura.
Para isso, em nossa análise, procuramos depreender como o professor aparece, em
textos de estagiários, nas diferentes figuras interpretativas do agir, as quais mobilizam
elementos do agir humano e criam, assim, “cenas” nas quais os profissionais são pos-
tos atuando com elementos diversos ora de modo ativo e ora de modo passivo, como
poderemos observar na exposição que faremos.
Nossa exposição está organizada em três seções: na primeira, explicitamos a con-
cepção de trabalho docente e de estágio que adotamos; na segunda, retomaremos bre-
vemente a nossa fundamentação teórica alicerçada no Interacionismo Sociodiscursivo
(doravante ISD), conforme Bronckart (1999, 2004, 2008) e na discussão das figuras
interpretativas do agir; na terceira, apresentaremos os textos que selecionamos e os re-
sultados da análise realizada; finalizando, com a quarta seção, em que teceremos nossas
considerações finais.

O TRABALHO DOCENTE COMO


UMA ATIVIDADE COMPLEXA
Em nossa pesquisa, adotamos a concepção de trabalho docente de Machado
(2007) que, apoiando-se em Clot (1999), defende que esse trabalho se realiza:
a partir de uma série de prescrições: do sistema educacional, do sistema de ensino,
do sistema didático, da instituição (escola) em que se encontra etc; mobiliza o
uso de inúmeros artefatos disponíveis no coletivo de trabalho que podem ou não
se transformarem em instrumentos para sua ação; é dirigido a “outrem” que não é
apenas o aluno, mas também seus pais, a sociedade e mesmo o próprio professor;
é um trabalho contínuo de reconcepção das prescrições em função do contexto
particular de ensino e se realiza dentro da sala de aula (o que é visível) e fora da sala
de aula, o que muitas vezes é invisível (BUENO e MACHADO, p. 305).
1
Os resultados dessa pesquisa foram apresentados em diferentes eventos científicos e publicados em diferentes anais de Congressos.

192 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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E esse trabalho comporta vários níveis, de acordo com as pesquisas da Ergonomia


da Atividade e da Clínica de Atividade, conforme Clot (2010). Nessa perspectiva, temos
na análise do trabalho a possibilidade de tratar de uma atividade prescrita, uma realizada
e o real da atividade. De acordo com Bueno & Machado, podemos defini-las como:
a) atividade prescrita: é a tarefa, o que deve ser feito;
b) atividade realizada: é a atividade efetivamente feita, realizada, em uma situação,
que pode ser observada;
c) o real da atividade: é tanto o que se faz como aquilo que não se faz, que se procura
fazer sem conseguir, aquilo que tenhamos querido ou podido fazer, aquilo que pensamos
que podemos fazer em outro lugar, ou seja, tudo o que foi feito, mas também tudo o
que ficou impedido de ser realizado.” (BUENO; MACHADO, p. 305).

Partindo dessa visão que contempla a complexidade do trabalho docente e nos


apoiando em Bueno, Grando e Magalhães (2011), defendemos o estágio como um
espaço em que o estagiário possa articular uma postura crítica frente ao trabalho obser-
vado, mas também construa uma relação de parceria para que possa fazer trocas com o
profissional mais experiente e consiga, na convivência com este, ir descobrindo o real
da atividade do professor.
Não será possível ao professor supervisor acompanhar diariamente o estagiário em
suas atividades na escola, no entanto, por meio dos textos que este produz, é possível
encontrar pistas que nos ajudam a compreender melhor como o trabalho docente
está sendo visto por esse futuro profissional. Defendemos que a análise das figuras
interpretativas do agir, que serão apresentadas na próxima seção, podem ser um bom
instrumento para isso.

AS FIGURAS INTERPRETATIVAS DO AGIR


E A SUA DEPREENSÃO
Na análise dos textos dos estagiários, procuramos seguir o modelo de análise de
textos do ISD, conforme Bronckart (1999, 2004, 2008), verificando os parâmetros da
situação de produção do texto e sua arquitetura interna composta pela infraestrutura
textual (plano global do conteúdo temático, tipos de discurso e tipos de sequência),
pelos mecanismos de textualização (coesão nominal, coesão verbal, conexão) e pelos
mecanismos enunciativos (modalização e vozes).
Partindo dessa análise, procuramos verificar os modos empregados pelos estagiá-
rios para representar o trabalho docente em seu texto, construindo, desse modo, dife-
rentes figuras interpretativas do agir. Alguns pesquisadores dos grupos2 LAF (langage,

2
O grupo LAF é um grupo de pesquisa da Universidade de Genebra, coordenado pelo professor Jean-Paul Bronckart. O
grupo ALTER, no período de 2002 a 2012, foi coordenado pela professora Anna Rachel Machado; a partir de 2013, como
o falecimento desta professora, passou a ser coordenado pela professora Eliane Lousada, continuando a atuar em parceria
com o grupo LAF.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 193


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action et formation) e do ALTER (Análise da Linguagem, Trabalho Educacional e


suas Relações) desenvolveram estudos que possibilitaram refinar e classificar as figuras
interpretativas do agir em dois grupos, como foi apresentado por Bueno (2009): as
figuras de ação que indicam modos de dizer o agir construídos em diferentes tipos de
discurso e as figuras do agir que indicam modos de agir evidenciados nos predicados
construídos nas orações produzidas. Os dois grupos de figuras se somam e permitem
uma detecção mais aprofundada do modo e do conteúdo que foi exposto em um texto.
Apresentaremos, a seguir, um breve resumo desses dois grupos de figuras. Bulea e
Fristalon (2004), pesquisadoras do grupo LAF, analisaram entrevistas com enfermeiras
que tematizaram os cuidados adotados para se fazer curativos em pacientes. Na análise da
transcrição destas, as autoras constataram que as enfermeiras constroem quatro tipos de
figuras de ação3 diferentes, as quais foram qualificadas como: “ação ocorrência” (inicial-
mente chamada de ação situada), “ação evento passado”, “ação experiência” e “ação canô-
nica”. Em Bulea (2006 e 2011), procedeu-se à continuação da análise dessas entrevistas
e encontrou-se outra figura: “ação definição”. O estudo dessas figuras permitiu chegar a
modos de dizer o agir no trabalho empregado por enfermeiras. Essas figuras também fo-
ram encontradas nas pesquisas do Grupo ALTER sobre o trabalho educacional em EAD
(ABREU-TARDELLI, 2006), no ensino de língua estrangeira (LOUSADA, 2006), na
análise de diários de leituras sobre o ensino de língua estrangeira (MAZZILLO, 2006)
e na análise de textos de prescrição do trabalho docente e textos de estagiários sobre os
professores (BUENO, 2007). Vejamos essas figuras de ação:
• Ação ocorrência: construída em Discurso Interativo, caracteriza-se por apre-
sentar uma forte contextualização (tal agente, tal situação). Ex.: “Para as 5
aulas, em que aplicarei o projeto de regência, usarei contos de suspense de
diferentes autores” (BUENO, 2007, p.70).
• Ação Evento Passado: constituindo-se na história de um evento, um inciden-
te, é organizada em forma de relato interativo. Ex.: “AR57: Achei meio difícil
no começo. Não engrenava nada!!! É difícil encaminhar discussão se as pes-
soas não leram os textos, vc não acha?” (ABREU-TARDELLI, 2006, p. 63).
• Ação Experiência: apresenta-se na forma de discurso interativo ou teórico
e constitui uma forma de cristalização pessoal das experiências vividas por
um profissional ou por outras pessoas. Ex.: S23: Por que professor tem que
ter tanto papel? Vocês precisam ver minha mesa como está? (ABREU-TAR-
DELLI, 2006, p. 63).
• Ação Canônica: é a figura que expõe a regra, a prescrição, construída por al-
guém externo ao actante, empregando o discurso teórico, com a presença de
modalização deôntica. Ex.: S42: O papel do professor é mostrar que existem
caminhos a serem seguidos. É preciso que o aluno tenha conhecimento do
que é preciso ler, é preciso estar atualizado com o mundo ...”(ABREU-TAR-
DELLI, 2006, p. 62).
3
Nesse texto, essas formas interpretativas foram chamadas de “registros de agir”, mas atualmente se usa o termo “figuras de ação”.

194 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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• Ação Definição (BULEA, 2006): expõe a tentativa de se definir o agir, apare-


cendo em segmentos do discurso teórico, havendo a predominância de verbos
no presente genérico e as frases apresentam a estrutura “É + grupo nominal”.
Ex.: « É o primeiro contato do dia, então é uma aproximação para // como se
passou a noite » (Bulea, 2006)4.

Vejamos as figuras do agir, conforme detectadas por Mazzillo (2006), que ressal-
tou que as figuras interpretativas do agir, além de expor um modo de dizer, podem
mostrar os modos de agir típicos de uma dada categoria profissional. Para verificar
esses modos de agir, é preciso atentar-se aos predicados e, assim, chega-se a três tipos
de agir: um agir linguageiro, um agir com instrumentos e um agir cognitivo.
O agir linguageiro foi identificado nos predicados que apresentavam verbos de
dizer. Ex.: “Solicitou a participação” ou “A professora chamou sua atenção”;
O agir com instrumentos foi verificado quando há o emprego de verbos que
trazem embutidos em si mesmos a ideia de instrumento (projetar, escrever, etc.) e
verbos que implicam o uso de um instrumento simbólico ou material (ler, separar,
etc.). Ex.: “colava no quadro uma foto”; “fez uma transparência de leitura” (grifos
de MAZZILLO, 2006, p. 113);
O agir cognitivo envolve atividade mental ou capacidade das professoras. Exem-
plo de agir cognitivo: “A professora se surpreendeu”; “A Luci se preocupou em trazer
mais explicações”. Exemplo de capacidade: “A professora não cria, não oferece nenhu-
ma atividade interessante”; “Tem mais técnica para ensinar”.
A junção dos dois tipos de figuras, figuras de ação e figuras do agir, pode nos
apontar mais detalhes da análise do trabalho do professor pelo estagiário, já que a
identificação dessas figuras pode nos ajudar a compreender tanto o modo de dizer o
agir utilizado pelo enunciador quanto o modo de agir de um actante de uma dada ca-
tegoria profissional, contribuindo, dessa forma, para que possamos depreender melhor
os modelos de agir, como poderemos ver na análise a seguir que fizemos de quatro
grupos de textos produzidos por estagiários.

OS TEXTOS DE ESTAGIÁRIOS ANALISADOS: PROJETOS,


DIÁRIOS, DECÁLOGOS E RELATÓRIOS
Neste artigo, apresentamos o resultado da análise de quatro grupos de textos. O
grupo I é constituído de projetos de intervenção, ou seja, textos produzidos pelos es-
tagiários, analisando o trabalho de um professor observado no estágio, e com proposta
de um trabalho a ser feito pelo estagiário. Esses projetos seguem uma prescrição oficial
dada pela universidade e recebem nota na disciplina de estágio supervisionado. O
4
Original: “C’est + grupo nominal”. Ex.: « c’est le premier contact de la journée en fait donc heu c’est une approche pour //
comment s’est passée la nuit pour. »

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 195


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grupo II é constituído de diários produzidos por estagiários no decorrer de suas obser-


vações durante o estágio, eles não seguem uma prescrição oficial e não recebem notas.
Os estagiários selecionam as partes que o professor-supervisor pode ler. O grupo III
é formado por decálogos, textos produzidos por grupos de estagiários no decorrer de
suas observações do estágio visando a construir 10 mandamentos que um professor
deveria seguir. Esses textos também não seguem uma prescrição oficial e não recebem
notas. Os estagiários apresentam e discutem o decálogo com os colegas da sala. O
grupo IV é formado por relatórios de estágios, que são construídos a partir de uma
prescrição formal da universidade e recebem uma nota.

GRUPO I: OS PROJETOS
Analisamos 10 projetos de intervenção5 produzidos por estagiários de um curso
de Letras. Nestes, havia um estagiário escrevendo para o seu professor-supervisor com
o objetivo de cumprir a sua tarefa de estágio e, consequentemente, ser bem avaliado.
Os textos tinham em média 8 páginas e constatamos que eles seguiam as prescrições
da universidade, apresentando a formatação pedida (capa, tamanho de letras, seções
internas, etc.) e procurando utilizar-se de uma linguagem científica, predominando
o discurso teórico em quase todos os textos, fato esperado já que estávamos em um
ambiente universitário, produzindo textos que seriam avaliados. Mas um fato que nos
surpreendeu ocorreu ao verificarmos os actantes colocados em cena nos projetos, pois
em vez de encontrarmos o professor observado pelos estagiários, vimo-nos diante de
um professor genérico, retomado de teorias ou discussões de aulas, dominando todos os
projetos de intervenção. Nesses textos, encontramos o professor observado rapidamen-
te em 8 projetos, e o professor genérico, os alunos, os estagiários em todos os textos.
Nos poucos momentos em que se trata do professor observado, não há a recor-
rência a uma das figuras de ação, dessa forma, notamos que nos projetos não há um
modo típico de dizer o agir desse professor. No entanto, fica clara uma crítica ao agir
linguageiro dirigido ao aluno e ao agir com instrumentos, demonstrados nos predi-
cados sobre esse professor, que é visto sempre a partir do que pode causar nos alunos:
Eles só fazem a leitura do que o professor indica e que, conseqüentemente, será
cobrado na prova. Após a leitura de um texto, os alunos não conseguem contar para
alguém de que se trata o material lido e não apresentam argumentos para discutir
sobre o tema.
(projeto 2, Introdução)

O professor genérico aparece nos projetos de duas formas diferentes: em segmen-


tos de figura de ação experiência e em outros de ação canônica. Nos segmentos de ação
experiência, procura-se criticar o agir com instrumentos desse professor:

5
A análise completa dos 10 projetos de intervenção pode ser vista em Bueno (2007), pesquisa de doutorado desenvolvida na
PUC-SP e financiada pela CAPES.

196 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

Deste modo, percebe-se que é o professor que impõe o que todos os alunos lerão e estes
têm que aceitar a visão do professor sobre o texto, concordando ou não com a mesma.
(Projeto 2, Introdução)

Na figura de ação canônica, o professor genérico aparece como o profissional que


será bem sucedido ao seguir as instruções prescritas em relação ao seu agir com instru-
mentos. Esse agir é o mesmo já prefigurado em textos teóricos e documentos oficiais
do governo federal:
Por esse motivo, é necessário que o professor esteja presente para mediar e orientar
a leitura polissêmica, a qual visa valorizar os muitos sentidos que o texto poderá
oferecer ao aluno-leitor.
(Projeto 3, Introdução)

Nota-se, assim, que o professor genérico aparece com dois diferentes estatutos: o
de um professor existente e merecedor de críticas e o de um professor idealizado a ser
imitado. Partindo das críticas e idealizações, ao autoprescrever um conjunto de aulas
a serem desenvolvidas na regência, o estagiário, usando as figuras de ação ocorrência e
ação canônica, evita o agir dos professores observado e genérico existente, preferindo
adotar o agir prefigurado para o genérico idealizado. Com esses resultados, verificamos
que nos projetos, mais que procurar trazer a sua visão sobre o trabalho do professor
observado nas horas práticas do estágio, o estagiário procura reproduzir o que dizem os
teóricos. Essa situação nos obriga, enquanto professores-supervisores de estágio, a re-
pensar que modelos de agir estamos oferecendo aos nossos estagiários, pois, de acordo
com os projetos, parece-nos que nossos alunos estão tomando a disciplina de estágio e
os textos nela produzidos como meros e tradicionais exercícios escolares de avaliação,
nos quais o importante é satisfazer o professor, reproduzindo o que se leu nos teóricos
a fim de ser bem avaliado.
A análise desses projetos realizada durante o nosso doutorado nos levou a inserir
outros gêneros textuais na disciplina de Estágio Supervisionado a fim de que pudésse-
mos ter outras instâncias de diálogos com os estagiários e também mais possibilidades
de contribuir para a sua formação enquanto professor. Para isso, seria necessário trazer
gêneros que exigissem que o estagiário trouxesse mais a sua experiência frente ao está-
gio que a reprodução dos teóricos lidos. Foi com essa expectativa que introduzimos os
diários e os decálogos, dos quais passaremos a tratar nas próximas seções.

GRUPO II: OS DIÁRIOS


Os diários de estágio analisados nesta pesquisa foram produzidos no primeiro se-
mestre de 2007 pelos estagiários e tinham como leitores os próprios autores, além dos
professores-supervisores. Continuamos com os diários, em outros anos, principalmen-
te, no período de 2010 a 2012, durante o qual trabalhamos com os alunos também
no PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência) promovido
pela CAPES. Os resultados no conjunto são muito semelhantes. Aqui vamos tratar

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 197


Universidade Federal da Grande Dourados

dos primeiros diários com que trabalhamos em 2007. No total, foram produzidos 17
diários, em 2007, mas somente 6 alunos permitiram que usássemos os seus textos em
nossa pesquisa, apesar de terem deixado o professor-supervisor de estágios lerem-nos
na íntegra no decorrer da disciplina de Estágio Supervisionado.
Os diários foram escritos em cadernos, em sua maioria, havendo dois deles que
foram digitados. No PIBID, todos fizeram os diários em cadernos. Os textos estavam
organizados por datas e traziam tanto relatos do estágio quanto anotações sobre as lei-
turas feitas na disciplina de estágio, relacionando-as com as observações que estavam
sendo feitas nas aulas na universidade e nas aulas do professor observado. Dessa forma,
verificamos nos diários o emprego das figuras de ação evento passado, tratando do que
foi visto na sala, e ação ocorrência, enfatizando as reflexões do estagiário no tempo
presente. Com ambas as figuras, o foco é o actante principal desses textos: o professor
observado. Em relação ao agir desse professor, há uma ênfase na observação do seu agir
linguageiro e do seu agir com instrumentos:
A professora começou um trabalho com o gênero árvore genealógica, onde ela
propunha a classe uma busca das origens dos seus descendentes estrangeiros
principalmente. (Diário 1, meio do estágio)

Nesses diários, é possível perceber que elementos do trabalho do professor são vis-
tos como mais relevantes pelo estagiário: a relação com o aluno e os materiais empre-
gados no espaço da sala de aula. Não se encontram nos diários registros que busquem
compreender o trabalho do professor fora desse espaço. Logo, esses resultados preci-
sam ser discutidos com os estagiários para que redimensionem a atividade docente.
A leitura e análise cuidadosas dos diários contribuem para que o professor-supervi-
sor possa interferir e tornar mais produtivas as discussões que são feitas com os estagi-
ários sobre as suas observações, além de poder também levantar os medos e ansiedades
pelas quais passa o estagiário, uma vez que os diários funcionam muitas vezes como
espaço de confissões, como se pode observar no seguinte trecho de um dos relatos:
Ufa...Depois desse turbilhão de reclamações fiquei mais ainda preocupada de como
conseguirei fazer uma intervenção. Parece IMPOSSÍVEL! (Diário 5, meio do estágio)

Constata-se, assim, que os diários recuperam um espaço para o professor obser-


vado que os projetos de intervenção não estavam dando, uma vez que as prescrições
direcionavam para uma produção muito centrada em aspectos formais do texto. Veja-
mos como funcionam os decálogos.

GRUPO III: OS DECÁLOGOS


Os três decálogos de nossa análise foram produzidos no segundo semestre de 2008
por grupos de estagiários que, após discussões e trocas de experiências, elencaram um
conjunto de pontos que viam como muito importantes no trabalho docente. A partir

198 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

disso, escreveram os decálogos em que apresentavam 10 regras que os professores de-


veriam seguir e as expuseram para os demais colegas de sala, que puderam discutir as
regras, contestando-as ou corroborando-as.
Na análise dos textos do decálogo, encontramos, como já esperávamos, figura de
ação canônica na apresentação das regras, com as expressões “é preciso que” ou “o pro-
fessor deve”, mas também nos deparamos com a figura de ação experiência, resgatando
um saber do grupo, como observamos nas regras “O professor está sempre alerta para
fazer uma boa explicação” e “O bom professor está sempre disposto a colaborar com
alunos e demais pessoas.”
Nessas regras do decálogo, havia uma predominância de normas sobre o agir
linguageiro em relação aos alunos e sobre o agir cognitivo dos professores (“Buscar
força interior e discernimento para saber lidar com situações problemas”), indicando
que esses grupos constroem uma representação de que o trabalho docente tem como
elementos principais a relação do professor com o aluno e a capacidade cognitiva, des-
prezando outros pontos que os projetos e os diários haviam apontado anteriormente,
como a relação com os instrumentos. Devido a isso, nos últimos anos preferimos não
utilizar os decálogos.

GRUPO IV: OS RELATÓRIOS


Os relatórios aqui analisados foram produzidos no período de 2007 a 2012. No
total, analisamos 12 relatórios de diferentes alunos de Letras e de Pedagogia que gen-
tilmente nos cederam seus textos para a análise. Nesses textos, devido às prescrições
oficiais da universidade, os alunos fazem um texto de formatação bem semelhante en-
tre si, com capa, folha de rosto, texto dividido em seções de Observação, Participação
e Regência.
Nesses textos, notamos, no decorrer dos anos, devido às discussões que fomos
fazendo dos resultados da própria pesquisa, alterações nos textos produzidos pelos
alunos. Inicialmente, de 2007 a 2010, predominavam nos textos, em todas as seções,
a figura de um professor genérico que aparecia em segmentos de ação canônica, ou
seja, da ordem ou ação experiência, como víamos nos projetos de intervenção. Nos
relatórios produzidos, a partir de 2011, o professor genérico continuou a aparecer, mas
dividindo espaço com o professor observado nas salas e como o estagiário que também
passou a aparecer no texto inteiro. Com isso, a figura evento passado, em que se recon-
ta o que aconteceu, passou a predominar no texto, mesmo que ainda continue a haver
momentos, em discurso teórico, em que se olha o trabalho do docente a partir de uma
teoria, mas são bem poucos e parecem indicar a necessidade de o estagiário mostrar ao
professor-supervisor de estágio que domina as teorias estudadas em outra disciplina.
É interessante notar também que passamos de textos escritos quase inteiros em
terceira pessoa para aqueles em que fica claro desde o princípio um “eu” olhando o

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 199


Universidade Federal da Grande Dourados

trabalho do professor. Esse “eu” olha, questiona e conversa com o professor, ora con-
cordando, ora discordando de suas posições, seja em relação à organização da sala para
uma dada atividade, seja em relação aos conteúdos e atividades desenvolvidas. Nessas
ações, o estagiário vai refletindo sobre o seu agir e o do professor que está observando:
Depois disso, na organização da rotina, no primeiro item da pauta, a professora
escolhe, com as crianças, o ajudante do dia. O critério é a ordem alfabética, e quem
mais uma vez, tem a tarefa de descobrir quem é, são os alunos. Kate perguntou
qual a letra do ajudante e as crianças recordaram que era o M, com isso disseram
todos os nomes que começam com M na sala enquanto a professora os escrevia na
lousa (a maioria são Maria, Maria Eduarda, Maria Heloisa, etc), depois solicitou que
definissem, de acordo com a ordem alfabética. Foi bastante demorada a escolha pois
as crianças entravam em conflito sobre qual era a próxima letra e a professora não
dava a resposta imediatamente, deixava-os entrarem em um acordo antes de intervir.
Pra ser sincera, a paciência dela com toda essa espera estava me angustiando, mas
conclui que dessa forma, as crianças raciocinam mais do que simplesmente dar
a resposta. (Como eu estava prestes a fazer).

Nos relatórios iniciais de 2007 a 2010, o professor era posto, predominantemen-


te, em um agir linguageiro voltado aos alunos ou em um agir com instrumentos. Nos
últimos, de 2011 a 2013, ainda que o linguageiro e o com instrumentos continuem
como predominantes, o professor aparece nos diferentes modos de agir como um ser
que pensa, age, reage.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos quatro grupos de textos, produzidos em momentos e por grupos
diferentes, permitiram- nos constatar que cada gênero parece encerrar modos de dizer
diferentes, já que as figuras de ação mudam conforme os gêneros.
Cada um dos gêneros possibilitou a construção de textos que apresentaram di-
ferentes representações sobre o trabalho docente e simultaneamente diferentes vozes
gerenciando o agir do professor que foi apresentado. Assim, nos projetos, houve a
reprodução da voz dos teóricos e/ou documentos oficiais expondo a representação
de professores generalizados ou idealizados; nos diários, decálogos e relatórios mais
recentes, houve a voz dos estagiários e a tematização do que foi observado na prática,
expondo professores ativos com suas singularidades, ou seja, representaram-se nos tex-
tos seres que poderíamos encontrar em uma sala de aula.
A produção de diferentes gêneros textuais no estágio obriga o estagiário a olhar
para o trabalho docente de diferentes ângulos, saindo de uma posição passiva de aluno
que elabora textos apenas para ser avaliado. A diversificação dos textos leva a ver, a
pensar e a registrar o trabalho docente, tendo em vista várias formas e destinatários:
ora, ele próprio; ora, o professor-supervisor; ora, os colegas estagiários. Esse outro,
conforme Vigotski, nos ajuda a nos construir, enquanto seres humanos; no espaço do
estágio, nos ajuda a nos tornarmos professores reais.

200 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

Desse modo, apesar de diferentes, os quatro gêneros têm as suas contribuições no


processo de formação de professores, desde que, é claro, sejam lidos e analisados pelo
professor-supervisor a fim de servirem, prioritariamente, de ponto de partida para no-
vas e constantes discussões sobre as experiências de estágio e sobre o trabalho docente,
em vez de serem tomados apenas como textos a serem avaliados.

REFERÊNCIAS
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Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 201


Universidade Federal da Grande Dourados

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nova formação de professores6: algumas reflexões. Anais da Anpedinha Sudeste, 2011.
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6
O PIBID na USF é realizado a partir de um projeto apresentado à CAPES e financiado por essa instituição.

202 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


TECNOLOGIA NO ENSINO
Universidade Federal da Grande Dourados

ESTÁGIO SUPERVISIONADO E ENSINO DE LÍNGUA


PORTUGUESA: REFLEXÕES NO CURSO DE LETRAS/
PORTUGUÊS DA UFPB

SUPERVISED TRAINEESHIP AND PORTUGUESE LANGUAGE


TEACHING: REFLECTIONS ON UFPB’S PORTUGUESE
LANGUAGE COURSE
Socorro Cláudia Tavares de Sousa*
Josete Marinho de Lucena**
Daniela Segabinaz***

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir a relação entre Estágio Su-
pervisionado e ensino de Língua Portuguesa no curso de Letras/Português da Uni-
versidade Federal da Paraíba. Para a realização deste objetivo, empreendemos uma
análise qualitativa no Projeto Político Pedagógico do curso e em relatórios de estágio.
Constatamos que o estágio supervisionado não é apenas o locus para identificarmos
dificuldades no ensino da Língua Portuguesa, mas tem o potencial de registrar o per-
curso formativo do futuro professor de português.
Palavras-chave: estágio supervisionado; ensino de língua portuguesa; curso de Letras.
ABSTRACT: This paper aims to discuss the relationship between Supervised Trainee-
ship and teaching of Portuguese language in the course of Languages/Portuguese from
the Federal University of Paraíba. To accomplish this goal, we undertook a qualitative
analysis on the Political Pedagogical Project of the course and in traineeship reports.
We verified that the supervised traineeship is not only the locus to identify difficulties
in the teaching of Portuguese, but it also has the potential to register the formative
path of the future teacher of Portuguese
Keywords: supervised traineeship; portuguese language teaching; languages course.

<?>
Professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: sclaudiats@gmail.com.
<?>
Professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: lucenatoc@yahoo.com.br
<?>
Professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: dani.segabinazi@gmail.com

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 205


Universidade Federal da Grande Dourados

Ser professor não é fácil, mas ir às escolas depois de quase dois anos de teoria torna
a missão ainda mais difícil. Os estágios são importantes para uma única função: iden-
tificar (julgar diversas vezes), pois o que vamos fazer em sala é o que nos foi imposto,
porque a escola quer, e se queremos “comer”, obedecemos. (Graduanda de Letras/
Português UFPB, turno manhã)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A epígrafe acima revela algumas das problemáticas vivenciadas pelos graduandos
dos cursos de licenciatura em Letras quando se deparam com a realidade da “prática
de ensino”, dentre elas: ausência de relação entre teoria e prática no currículo do curso,
estágios como espaços apenas para a prática de um “criticismo vazio”, falta de parceria
entre universidade e escola, dentre outros.
Na academia, o estágio supervisionado tem se constituído campo de investiga-
ção para muitas pesquisas. Especificamente em Linguística Aplicada, identificamos
estudos como o de Silva (2012) que descreveu o gênero textual relatório de estágio
supervisionado em diferentes licenciaturas, o de Reichman (2012) que discutiu a rela-
ção entre as práticas de letramento e a formação identitária no estágio supervisionado
em ensino de língua inglesa, o de Silva e Melo (2008) que investigaram o processo de
formação do professor e a construção de objetos de ensino na disciplina de Estágio
Supervisionado em ensino de Língua Portuguesa, dentre outros.
Dando continuidade a esse veio de pesquisas, o presente trabalho tem como obje-
tivo discutir a relação entre Estágio Supervisionado e ensino de Língua Portuguesa no
curso de Letras/Português da Universidade Federal da Paraíba (doravante UFPB), ex-
plorando os limites e possibilidades deste componente curricular em nossa realidade.
Nesse sentido, partimos dos seguintes questionamentos: qual o papel desempenhado
pelos componentes curriculares do Estágio Supervisionado no curso de Letras/Portu-
guês da UFPB e que tipo de relações tem sido estabelecido entre o Estágio Supervisio-
nado e o ensino de Língua Portuguesa?
Para atingirmos o objetivo pretendido, inicialmente, realizamos uma discussão a
respeito das concepções de estágio supervisionado, fundamentando-nos em Leahy-Dios
(2001) e Pimenta e Lima (2012); em seguida, defendemos a tese de que o estágio super-
visionado se constitui em espaço para o conhecimento e transformação da realidade do
ensino de Língua Portuguesa; depois, descrevemos e analisamos como se constituem os
estágios no Projeto Político Pedagógico (doravante PPP) do curso de Letras/Português
na UFPB; por fim, examinamos a relação entre estágio supervisionado e ensino de Lín-
gua Portuguesa a partir de relatórios de estágio supervisionado elaborados no período de
2009 a 2011. Afora as considerações iniciais e finais, a discussão teórica deste trabalho
foi desenvolvida na primeira e segunda seções deste artigo, enquanto as discussões sobre
a prática dos estágios supervisionados foram realizadas na terceira e na quarta seções.

206 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

ESTÁGIO SUPERVISIONADO: O QUE É? PARA QUE SERVE?


O estágio supervisionado nos cursos de licenciatura, ao longo dos anos, tem so-
frido com a posição que ocupa, ora por terem sido ministrados por professores do
Centro de Educação e, portanto, não apresentavam grau de proximidade e experiência
com as disciplinas específicas do curso de origem da formação docente, ora porque
parte dos alunos e dos professores, da própria graduação, parecem não compreender
a importância do estágio para a formação do professor, o que é mais grave, já que são
diretamente interessados e responsáveis pela habilitação que o curso prevê em seu Pro-
jeto Político: a docência.
Não obstante os problemas acima destacados que, parcialmente, já foram sana-
dos com a nova diretriz curricular para a formação de professores da Educação Básica
(Resolução Conselho Nacional de Educação - CNE /Conselho Pleno - CP 01/2002)
e com a resolução que institui a duração e a carga horária dos cursos de licenciatura,
de graduação plena (CNE/CP 02/2002), temos que enfrentar o campo de estágio, a
escola, para construir convênios e, principalmente, constituir laços de estreita ligação
entre a orientação e a supervisão realizada na universidade e o acompanhamento e
necessidades do professor e da instituição de ensino a que ele está atrelado.
Enfim, podemos dizer que ministrar aulas na disciplina de Estágio, na licenciatu-
ra, tem se mostrado um enorme desafio para os professores que atuam nessa área. De
modo geral, encontramos dificuldades que emperram o bom andamento e a qualifi-
cação dos nossos futuros docentes. Acreditamos que pensar no estágio, compreender
seu lugar e sua relevância em cursos que habilitam a profissão docente é vital para essa
formação, pois o estágio é “a espinha dorsal” que ampara, dá suporte e encadeia todas
as disciplinas do currículo do curso, estabelecendo convergências e diálogos entre to-
dos os conhecimentos difundidos e discutidos ao longo da licenciatura. Contudo, por
muito tempo
O estágio sempre foi identificado como a parte prática dos cursos de formação de
profissionais, em contraposição à teoria. Não é raro ouvir, a respeito dos alunos que
concluem seus cursos, referências como “teóricos”, que a profissão se aprende “na
prática”, que certos professores e disciplinas são por demais “teóricos”. Que “na
prática a teoria é outra”. (PIMENTA e LIMA, 2012, p. 33).

Esses e outros discursos têm construído uma imagem negativa dos estágios; por
isso, precisamos entender e estender o conceito desse componente curricular para uma
visão que esteja em convergência com a concepção sociointeracionista do ensino de
Língua Portuguesa. Assim, emprestaremos algumas concepções do que é o campo de
estágio, das autoras Pimenta e Lima (2012, p. 55-56), as quais, após longa discussão e
reflexão, apoiadas em demais teóricos, concluem:

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 207


Universidade Federal da Grande Dourados

Esse conhecimento envolve o estudo, a análise, a problematização, a reflexão e a


proposição de soluções às situações de ensinar e aprender. Envolve experimentar
situações de ensinar, aprender a elaborar, executar e avaliar projetos de ensino não
apenas nas salas de aula, mas também nos diferentes espaços da escola. [...] Envolve o
conhecimento, a utilização e a avaliação de técnicas, métodos e estratégias de ensinar
em situações diversas. Envolve a habilidade de leitura e reconhecimento das teorias
presentes nas práticas pedagógicas das instituições escolares. Ou seja, o estágio assim
realizado permite que se traga a contribuição de pesquisas e o desenvolvimento das
habilidades de pesquisar. Essa postura investigativa favorece a construção de projetos
de pesquisa a partir do estágio.

Considerando a definição acima, na qual as autoras reafirmam a importância e a


abrangência do estágio e, principalmente, mostram todas as atividades que envolvem
esse componente, apresentamos algumas reflexões que permeiam nossa compreensão a
respeito do tema. As questões postas são inúmeras e nos remetem a perceber que o es-
tágio é a congregação de todos os conhecimentos construídos ao longo da graduação; é
a culminância dos conteúdos, conceitos e teorias que foram apresentados, abordados,
debatidos e aplicados ao longo do curso. Neste caso, o aluno deve recobrar os estudos
adquiridos até o momento e propor uma intervenção pedagógica que tenha como
pressuposto a teoria e a pesquisa, logrando uma nova visão do estágio, isto é, campo
de estudo que vai muito além das simples aplicação prática de um plano de aula.
Embora o foco do estágio sejam ações de execução de projetos pedagógicos ou
práticas de ensino em sala de aula, envolvem muitos outros movimentos por parte dos
alunos, professores e escola como um todo. Nas ações de observar e realizar o diag-
nóstico de uma turma, por exemplo, estão implicadas várias questões conceituais da
didática, do planejamento, da avaliação e do ensino de língua específicas ao objetivo
daquela intervenção. Certamente, o discente necessitará retomar estudos anteriores
para analisar a situação-problema a sua frente e refletir sobre as possíveis soluções, o
que, posteriormente, o conduzirá a formular propostas de mediação do ensino-apren-
dizagem de determinado objeto de estudo.
Outro momento importante, durante as atividades do estágio, que evidencia a pos-
tura investigativa do discente, é a proposição da prática pedagógica implementada atra-
vés da elaboração dos projetos de trabalho que conjuguem conhecimentos específicos da
área e do campo da educação. Assim, o aluno precisará apresentar concepções de propos-
tas metodológicas, selecioná-las e utilizá-las no seu projeto, bem como deverá mostrar os
fundamentos a respeito do objeto de estudo e sua familiaridade com a temática.
Nesta perspectiva, o estágio passa a ter uma responsabilidade imensa nos cursos de
formação de professores da educação básica. Certamente, ao absorvermos essa concep-
ção, passamos a compreender que o componente deve propor situações de abordagem
teórico-prática e não somente “prática”, de aplicação de conhecimentos, como vemos
nos discursos correntes de alunos e de colegas professores. No tocante, aos cursos de
Letras, isso não tem sido muito diferente,

208 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

A atual prática de ensino da licenciatura em Letras, estágio final da formação de


docentes de língua e literatura nacionais, é um indicador preciso das lacunas, falhas e
dos dilemas encontrados na precária integração entre teoria e prática, entre o processo
pedagógico e o produto profissional final, entre os objetivos de um curso dirigido à
formação de pesquisadores, de um lado, e a ação político-educacional de uma maioria
de futuros professores de escolas estaduais, de outro. (LEAHY-DIOS, 2001, p. 19).

Em pesquisa mais recente, Segabinazi (2011) destaca que, apesar das alterações
do novo Projeto Político Pedagógico dos cursos de Letras, que ampliou a carga horária
dos estágios para 400 (quatrocentas) horas, subsistem as contradições e falhas nesse
componente curricular. Inclusive, em sua tese, a autora demonstra que os estágios
no curso de Letras da UFPB separam-se, entre teóricos e práticos, ou seja, o próprio
PPP viabiliza a ruptura entre esses conhecimentos que deveriam associar-se. Isso por-
que estão definidos sete estágios, sendo os três primeiros com ementas que preveem
conteúdos teóricos e os quatro últimos de conteúdos práticos. Entretanto, apesar do
descompasso, das lacunas existentes na formação docente de Letras, parece-nos que
estamos em busca de alternativas para encontrar possibilidades de corrigir o proble-
ma; já constatamos em algumas publicações a presença de discussões e sugestões para
equacionar a situação (cf. LEAHY-DIOS, 2001; PAIVA, 2005; FARIA, 2008), o que
indica a preocupação de um processo de formação mais integrado.

ESTÁGIO SUPERVISIONADO E O ENSINO


DE LÍNGUA PORTUGUESA
Como foi apresentado na seção anterior, nos distanciamos de uma visão dicotô-
mica entre teoria e prática na qual teorias são colocadas no início do currículo das li-
cenciaturas em Letras e práticas são apresentadas no final, em geral, materializadas por
meio do componente curricular Estágio Supervisionado. Partindo dessa perspectiva,
é que iremos discutir as relações entre o estágio supervisionado e o ensino de Língua
Portuguesa, advogando a ideia de que o estágio pode se constituir um espaço para o
conhecimento e a transformação da realidade da prática de ensino.
Para desenvolvermos este ponto de vista, é necessário destacar que o estudo do
português como disciplina curricular vem assumindo diferentes denominações e fei-
ções desde sua inserção na instituição escolar. E não é absurdo afirmar que as abor-
dagens dadas à “prática de ensino” também sofreram alterações. Considerando que o
conhecimento desse percurso, é fundamental em nossa discussão, apresentamos sucin-
tamente a história da construção da disciplina de Língua Portuguesa.
Segundo Soares (2004), do império até os anos 40 do século XX, o ensino de por-
tuguês se constituiu da Retórica, Poética e Gramática, já nos anos 50 passa por uma
modificação no conteúdo e essas disciplinas são substituídas por gramática e texto.
Para a autora:

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 209


Universidade Federal da Grande Dourados

A fusão gramática e texto deu-se de forma progressiva, nesse período, como não
poderia deixar de ser, se se considera que ela vinha alterar uma tradição que datava, na
verdade, do sistema jesuítico. É uma progressão que pode ser claramente identificada
nos livros didáticos publicados nos anos 1950 e 1960. Assim, é que, nos anos 1950,
já não se tem mais a conveniência com autonomia de dois manuais, uma gramática
e uma seleta de textos, nas aulas de português: agora, gramática e textos passam a
constituir um só livro. Entretanto, guardam ainda, nesses anos 1950, uma relativa
autonomia: em geral, estão graficamente separados, a gramática apresentada numa
metade do livro, os textos na outra metade [...]. (SOARES, 2004, p. 168).

Soares (2004) ainda destaca que houve uma primazia da gramática em relação
ao texto. Diferentemente, nos anos 70, sob a égide da ideologia do regime militar, o
estudo da Língua Portuguesa é visto como um instrumento de comunicação a serviço
do desenvolvimento. Há, portanto, uma mudança na denominação e no conteúdo da
disciplina que passa a ser chamada de Comunicação e Expressão nas séries iniciais e
Comunicação em Língua Portuguesa nas séries terminais. Essa alteração se explica pela
influência da teoria da comunicação no ensino de língua materna. Para Soares (2004,
p. 169), “já não se trata mais do estudo sobre a língua ou estudo da língua, mas de
desenvolvimento do uso da língua”. Os textos não são mais selecionados pelo critério
literário, mas pela sua presença nas práticas sociais.
Na segunda metade da década de 80, por sua vez, há um retorno à denominação
“Português”, já que houve questionamentos sobre os resultados obtidos no desempe-
nho dos alunos no período anterior e ausência de respaldo da concepção de língua
como instrumento tanto no contexto político e ideológico quanto no contexto cien-
tífico. Nesse período, as teorias desenvolvidas na Linguística começam a adentrar as
salas de aula de Língua Portuguesa da educação básica, embora nos cursos de Letras
essas teorias já tenham sido introduzidas desde os anos 60.
O desenvolvimento de teorias linguísticas promoveu mudanças nas concepções
de ensino de língua e fomentou a necessidade de uma política linguística oficial que
embasasse essa nova visão. A publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em
1997, é um exemplo da presença das teorias linguísticas nesse “discurso de mudança”
sobre o ensino de português. Segundo Marcuschi (2001), é possível identificar con-
teúdos linguísticos nos parâmetros, tais como: o acolhimento da noção de variedade
linguística e de gêneros textuais, a adoção de uma concepção de língua que privilegia
os aspectos sociais e históricos, a definição do texto como unidade básica de ensino,
dentre outros.
Considerando as transformações pelas quais passou a disciplina de português, é
crível supor que as concepções de língua, sujeito, leitura e escrita, por exemplo, vigentes
em cada uma das diferentes etapas acima destacadas interfiram na forma de compre-
ender e intervir na realidade de ensino de língua. Como ilustração, quando houve um
predomínio da perspectiva formalista no ensino de português, a “prática de ensino”
fundamentava-se, por exemplo, nas didáticas e nas metodologias de ensino de língua.

210 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

Essa percepção deixa claro que a realidade do ensino de Língua Portuguesa não é imu-
tável e sofre influências decisivas de fatores macro sociopolíticos e epistemológicos.
Sobre essa questão, Surdi da Luz (2009) dá um passo adiante quando afirma que
há uma conjunção entre os saberes da Linguística e os saberes do ensino ao analisar
a presença da Linguística em um curso de Letras, voltado à formação de professores.
Para a autora:
O contexto sócio-histórico em que é construído o projeto do Curso de Letras é
determinante para que se compreendam suas especificidades, uma vez que ele será
afetado pela constituição do discurso da mudança no ensino de língua (Pietri, 2003)
que emerge nos anos finais da década de 70 e início da década de 80. Nessa época,
tomam corpo os discursos sobre a necessidade de se repensar os rumos do ensino
de língua materna e do papel da Linguística nessa reformulação. E é após essa
emergência que o curso se configura, sendo, pois, afetado e determinado por
tal contexto ou, nos termos da AD1, pelas condições de produção. (SURDI DA
LUZ, 2009, p. 180). (Grifo nosso).

Nessa perspectiva, podemos concluir que o “discurso de mudança” no ensino de


língua materna interfere decisivamente tanto na constituição da disciplina de Língua
Portuguesa quanto nos currículos dos cursos de Letras. Consequentemente, a visão de
estágio supervisionado e a observação e a intervenção dos graduandos na sala de aula
de Língua Portuguesa seguiram o curso dessas transformações. Dessa forma, conside-
rando a “conjunção de saberes” proposta por Surdi da Luz (2009), o acesso dos estu-
dantes a uma visão sócio-histórico discursiva de língua não os possibilitaria o exercício
de uma prática pedagógica que refletisse esta concepção? Em tese, supomos que sim.
Mas a ideia a que nos propomos defender precisa ser destrinçada: o Estágio Su-
pervisionado pode se constituir em espaço de conhecimento e transformação da reali-
dade? Em primeiro lugar, o estágio não pode ser visto em uma perspectiva instrumen-
tal, um empirismo desconexo, sem uma relação dialógica com diferentes teorias (da
Linguística e de outros campos do conhecimento). Anteriormente, fizemos menção à
aproximação entre Linguística e ensino, ilustrações não faltam na literatura discutin-
do as contribuições de diferentes áreas, tais como: a Linguística de Texto (cf. KOCK,
1999), a Sociolinguística (cf. CARVALHO, 2010), a Psicolinguística (cf. MONTEI-
RO, 1997), dentre outras.
Especificamente em relação à Linguística Aplicada ao ensino de línguas são grandes
as contribuições visto que um dos objetivos da área é resolver problemas da prática de uso
da língua, ao mesmo tempo em que dialoga com teorias e métodos de diferentes áreas
disciplinares (cf. MOITA LOPES, 2009). Por outro lado, em relação às outras áreas do
conhecimento, temos consciência de que apenas o conhecimento de teorias e, em especial
de teorias linguísticas, não é suficiente para mudar a realidade do ensino do português,
mas acreditamos que sem esses fundamentos é muito mais difícil pensar a prática.
1
A autora se refere à Análise do Discurso.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 211


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Em segundo lugar, o estágio deve se constituir em espaço de reflexão sobre a prá-


tica, seja a dos professores, seja a dos graduandos. Em relação ao primeiro aspecto, não
importa se o aluno de Estágio Supervisionado observa “boas” aulas, o que interessa é
que saiba abstrair os elementos subjacentes a esta aula e consiga perceber criticamente
os problemas e as experiências positivas que atravessam as práticas pedagógicas. Des-
tacamos, outrossim, que essa reflexão não pode ser compreendida como “criticismo
vazio” que serve apenas para “[...] rotular as escolas e seus profissionais como ‘tradi-
cionais’ e ‘autoritários’ [...]” (PIMENTA e LIMA, 2012, p. 40). Uma atividade mais
produtiva seria o exercício de compreensão e de significação das diferentes práticas
observadas e vivenciadas. Por exemplo, em vez de criticar a aula de produção textual
que foi desenvolvida em uma perspectiva de produto, por que não refletir a respeito
dos significados dessa prática em conexão com o processo de formação do professor,
com as diferentes visões de língua deste, com os materiais didáticos utilizados?
Em relação ao segundo aspecto, nos referimos a uma reflexão sobre a atuação
dos graduandos nas salas de aula de português instaurando o ciclo ação-reflexão-ação.
Várias são as contribuições para o ensino da Língua Portuguesa que podem advir dessa
postura crítica, tais como: conduzir ao aprimoramento da prática, a partir do refa-
zimento do caminho percorrido e da identificação dos pontos positivos e negativos;
permitir novas releituras sobre a sala de aula de português, por meio da ressignificação
de crenças e/ou conhecimentos já adquiridos; e construir ou desconstruir identidades
enquanto professor de português.
Em relação às crenças, fazemos remissão ao que Almeida Filho (2009) denomina
competência implícita do professor de línguas que são as crenças de como ensinar e
aprender línguas advindas de experiências anteriores. Em nossa perspectiva, a reflexão
propiciaria a passagem da prática pedagógica embasada no conhecimento implícito
para a prática pedagógica fundamentada no conhecimento explícito. Como ilustração,
a crença de que o ensino da gramática normativa levará os estudantes a produzirem
textos coerentes e coesos (SOUSA e VAGO, 2008) poderia ser alterada diante do pro-
cesso de ação-reflexão-ação dos estudantes de Letras.
Já em relação à ação-reflexão-ação e a des(construção) de identidades, nós parti-
mos do princípio de que a identidade não é imutável e as práticas reflexivas vivencia-
das no Estágio Supervisionado contribuem para que os graduandos possam construir
novas identidades pedagógicas ancoradas em uma visão de língua sociointeracionista.
Sobre essa questão, Oliveira (2006, p. 109) traz à tona a relação com o currículo do
curso de Letras:
[...] a discussão da relação teoria e prática não pode dispensar uma discussão sobre
a organização curricular dos saberes de referência, os saberes disciplinares, que
subjazem aos cursos de licenciatura em Letras, entendendo os currículos como
instrumentos de viabilização de políticas públicas, lugar onde são processados,
produzidos e transmitidos conhecimentos, construindo subjetividades e identidades,
espaços privilegiados de seleção dos conhecimentos. Em outras palavras, significa

212 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

pensar o currículo de cursos de formação de professores comprometidos com uma


“metaformação”, uma formação consciente, a partir de uma visão de educação que
questione o “fazer” pedagógico, no caso específico dos professores de língua materna,
formando profissionais comprometidos não apenas com o ensino da estrutura
de línguas, mas também com o entendimento do funcionamento da linguagem
como uma prática discursiva de natureza social. (Grifo nosso).

Acatar a afirmação de Oliveira (2006) de que as identidades dos graduandos são


constituídas a partir de saberes curriculares é reafirmar a imbricada relação entre teoria
e prática, visto que alguns conhecimentos que são discutidos nos bancos acadêmicos
não deveriam transformar-se em conhecimento abstrato e sim incorporar-se nos fazeres
pedagógicos. E, por último, o estágio pode se constituir um espaço para a construção de
saberes que permitem alimentar a simbiótica relação teoria e prática. É o que Pimenta
e Lima (2012, p. 48) denominam “epistemologia da prática docente”, e que consiste
[...] na valorização da prática profissional como momento de construção de
conhecimento por meio da reflexão, análise e problematização dessa prática e a
consideração do conhecimento tácito, presente nas soluções que os profissionais
encontram em ato.

Por outro lado, não estamos defendendo a hegemonia de uma “epistemologia da


prática” em detrimento de uma “epistemologia dos conteúdos”, ao contrário, reafirma-
mos a complementariedade desses saberes. A nosso ver, a conjunção dessas epistemolo-
gias pode conduzir a proposição de um “professor pesquisador”, ou seja, de um professor
que seja capaz de analisar a realidade e trazer contribuições para a prática docente. Em
relação ao ensino da Língua Portuguesa, Bagno (2001, p. 66) propõe um ensino crítico
da norma padrão pautado na investigação das manifestações linguísticas materializadas
em diferentes gêneros textuais e de variedades de língua. Ainda, segundo o autor,
[...] é fundamental e indispensável que o estudante de Letras, o futuro professor
de língua, conheça profundamente essa tradição gramatical, bem como as teorias
linguísticas que vêm se desenvolvendo em épocas mais recentes. Afinal, o professor
de língua tem de ser um linguista, um pesquisador, um profissional do seu campo de
interesse, um especialista na sua área de atuação [...]

Embora a identidade do professor de português, proposta por Bagno (2001), não


corresponda ainda ao perfil dos graduandos em Licenciatura em Letras, pelas deficiên-
cias de leitura de escrita que trazem da educação básica, acreditamos na necessidade de
persistir na formação de docentes que apresente essas competências. Afinal, qual seria
o papel da formação inicial se não tentar conjugar conhecimentos do campo da língua
e sua interfaces com a pesquisa e o fazer pedagógico?
Nesta seção, apresentamos três concepções de estágio, enquanto perspectiva não
instrumental, enquanto espaço de reflexão sobre a prática e enquanto espaço de cons-
trução de saberes, que possibilitam o conhecimento e a transformação da realidade da
sala de aula de português. Observamos que essas visões se interconectam visto, que em

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 213


Universidade Federal da Grande Dourados

todas elas está subjacente a concepção de que teoria e prática estão umbilicalmente
ligadas. Nesse sentido, fazemos nossas as palavras de Pimenta e Lima (2012, p. 45)
que afirmam: “[...] o estágio curricular é atividade teórica de conhecimento, funda-
mentação, diálogo e intervenção na realidade, esta, sim, objeto da práxis”. Em outras
palavras, é o contexto da sala de aula de português o locus onde a prática se realiza e
não o Estágio Supervisionado.
Considerando essa discussão teórica entre estágio supervisionado e ensino de
Língua Portuguesa, na seção a seguir, abordaremos tal questão a partir da análise do
Projeto Político Pedagógico do curso de Letras/Português e de relatórios de estágio
elaborados pelos estudantes, buscando responder as seguintes questões: qual o papel
desempenhado pelos componentes curriculares do Estágio Supervisionado no curso
de Letras/Português da UFPB e que tipo de relações os alunos estabelecem entre o
Estágio Supervisionado e o ensino de Língua Portuguesa?

O ESTÁGIO SUPERVISIONADO NO PROJETO POLÍTICO


PEDAGÓGICO DO CURSO DE LETRAS DA UFPB
O Projeto Político Pedagógico do Curso de Licenciatura em Letras da UFPB,
Campus I, foi publicado em maio de 2006, após sete anos de discussões, ajustes às rea-
lidades a que deveria adequar-se o curso de Letras, em suas cinco habilitações, a saber:
em Língua Portuguesa, sob a responsabilidade do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas (doravante DLCV) e as habilitações em línguas estrangeiras modernas (In-
glês, Francês, Espanhol e Alemão), sob a responsabilidade do Departamento de Letras
Estrangerias Modernas (doravante DLEM).
Aliada à necessidade de rever a estrutura do curso, sua elaboração teve início em 1999,
por exigência do Edital do MEC 04/97, que convocava as Instituições de Ensino Superior
a revisarem seus currículos e elaborarem os seus Projetos Políticos Pedagógicos, com a
finalidade de se adequarem à nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB/96), como se encontra
justificado no próprio Projeto Político Pedagógico de maio de 2006 (doravante PPP).
Participaram das primeiras discussões, professores dos dois departamentos (DLCV
e DLEM) que formaram uma comissão responsável pelas discussões e elaborações do
documento que nortearia o trabalho pedagógico nessa instância da UFPB. Nesses
longos sete anos, novas resoluções surgiram e a realidade social a que foi submetido
o Curso de Letras passou por muitas transformações, que levaram a elaboração do
PPP ser prorrogada e sua publicação ser postergada. Uma dessas alterações deu-se
exatamente nos pontos nevrálgicos da então Prática de Ensino, disciplina do currículo
antigo, responsável por formar ou formatar o fazer pedagógico. Essa disciplina, de um
modo geral, era ministrada por docentes dos cursos de Educação, que não tinham for-
mação específica na área de língua e que trabalhavam a visão didático-metodológica.
Nesse modelo, o licenciando ia às escolas de ensino básico apenas para observar aulas,

214 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

fazer algumas intervenções e relatar depois essa prática. Não havia, portanto, de certo
modo, relação dessa prática com as disciplinas teórico-práticas do curso.
Em decorrência das mudanças sociais e das novas perspectivas do ensino básico,
implementadas, sobretudo, pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a ne-
cessidade de uma formação continuada para os professores em exercício, urgia uma
reformulação principalmente no tocante a novas atribuições que o futuro docente
precisa ter para se inserir no contexto escolar. Como afirma Segabinazi (2011, p.183),
[...] o perfil indica que a formação deve proporcionar ao futuro docente, além da
profissionalização, o compromisso com a cidadania e com a ética, exigindo uma
atuação social que se estenda para além dos muros escolares. Ou seja, não podemos
mais constituir currículos que atendam apenas a conteúdos mínimos para a formação
teórica e científica dos nossos professores. São necessárias atitudes e atividades que
desenvolvam ações de crescimento pessoal e social, que conscientizem nosso aluno
a pensar e tomar para si a responsabilidade de participação e compromisso com a
sociedade em que está inserido.

Nesse sentido, abrem-se novas possibilidades de compreender as licenciaturas


também em decorrência do profissional e cidadão que se deve formar para que, tan-
to as disciplinas “teóricas’’ quanto as consideradas “práticas” façam um novo sentido
na formação inicial. Ao lado dessa necessidade de formar o docente capaz de exer-
cer a sua cidadania nas escolas e, consequentemente apto a formar cidadãos éticos e
críticos, é que a elaboração do PPP ajusta-se para cumprir a Lei Federal nº 11.788,
de 25/09/2008, que regulamenta 400 horas para a realização do Estágio Curricular
obrigatório, nos cursos de graduação. Em consonância, o PPP do curso de Letras/ Por-
tuguês determina o cumprimento da carga horária de 420 horas, distribuídas em sete
componentes curriculares de Estágio Supervisionado, todas com carga horária de 60
horas, iniciando a partir do 5º período letivo do curso. Esses componentes curriculares
de Estágio no DLCV encontram-se separados com abordagens literárias e linguísticas,
como podemos ver ilustradas no quadro a seguir.
Quadro 1: Estágio Supervisionado no currículo do Curso de Letras/Português da UFPB.

Língua Literatura Modalidade do Estágio

Estágio Supervisionado III


Estágio Supervisionado I (Para Sem intervenção
o Ensino Fundamental II) (Para o Ensino Fundamental II na sala de aula.
e Médio)

Estágio Supervisionado II Sem intervenção na


(Para o Ensino Médio) sala de aula.

Estágio Supervisionado IV Estágio Supervisionado V (Para Com intervenção


(Para o Ensino Fundamental II) o Ensino Fundamental II) na sala de aula.

Estágio Supervisionado VI Estágio Supervisionado VII Com intervenção na sala de


(Para o Ensino Médio) (Para o Ensino Médio) aula.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 215


Universidade Federal da Grande Dourados

No presente artigo, debruçamo-nos na situação do Estágio Supervisionado IV


que tem em sua ementa a abordagem focada na “aplicação” de conteúdos voltados para
a análise linguística, leitura e produção textual, com foco na intervenção em sala de
aula do Ensino Fundamental II como encontra-se descrita a seguir (PPP, 2006, p. 65).

ESTÁGIO SUPERVISIONADO IV
Ementa: Iniciação à docência e intervenção no cotidiano escolar: aplicação de
conteúdos básicos de Língua Portuguesa em sala de aula do Ensino Fundamental (lei-
tura, produção de texto e análise linguística).
Pela ementa descrita acima, podemos observar o viés prático imputado a esse
componente curricular, descrito, sobretudo, por meio da palavra “aplicação”, o que
significa dizer que o graduando vai à sala de aula como o propósito apenas de levar as
teorias linguísticas para sua prática em sala. Aspecto este já questionado há muito tem-
po pelos estudiosos da Linguística Aplicada (MOITA LOPES, 2006; PAIVA, SILVA
e GOMES, 2009).
Em 2009.2, tivemos as primeiras turmas do novo currículo, o qual trazia em
sua composição os componentes curriculares de Estágio Supervisionado IV e V, que
têm em suas ementas a exigência de realizar a prática em Língua e Literatura na sala
de aula de Ensino Fundamental II, o que não ocorria nos estágios anteriores. Com o
início dessas novas atividades curriculares no DLCV, começam outros desafios, pois
a inserção do graduando nas escolas do ensino básico requer não só o cumprimento
das leis, mas a tarefa de relacionar as teorias vivenciadas à época no curso à realidade
encontrada nas escolas do Ensino Fundamental.
Aliada a essas dificuldades, acrescenta-se a aceitação do graduando nas escolas
municipais que, em sua maioria, já contam com um número expressivo de estagiários
do Apoio Pedagógico às Atividades de Língua Portuguesa (Leitura e Escrita), Mate-
mática, Ciências e Inglês2. Além desse aspecto, aparecem questões relacionadas à con-
cepção desse estágio obrigatório e não remunerado para a comunidade escolar, bem
como para os professores da graduação em Letras/Português e, consequentemente, o
próprio graduando que considera os componentes curriculares de Estágio Supervisio-
nado pouco relevantes para a sua atuação profissional.

2
Projeto de parceria entre a Secretaria Municipal de João Pessoa e a UFPB, através do qual os graduandos de Letras/Português
podiam realizar o estágio remunerado e não obrigatório e atuar como monitores na disciplina de Língua Portuguesa nas
escolas municipais. Esse projeto teve vigência até o ano de 2012.

216 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

ESTÁGIO SUPERVISIONADO: LIMITES E POSSIBILIDADES


Nas salas de aula de Estágio Supervisionado, ouvimos com muita frequência os
graduandos dizerem que são muitas horas de Estágio, que seria mais proveitoso se essas
horas fossem usadas no ensino da gramática normativa. Neste sentido, a concepção de
ensino de Língua Portuguesa restringe-se a ensinar gramática normativa e, por isso, as
disciplinas da licenciatura em Letras/Português, no seu novo currículo, de 2006, segun-
do declarações dos próprios graduandos em relatório de estágio, “não preparam o gra-
duando para enfrentar a sala de aula do Ensino Fundamental, porque a gramática não é
ensinada no curso e por este motivo, vamos para as escolas meio perdidos e com muitas
dificuldades de entrar em sala de aula” (Relatório de Estágio Supervisionado IV, 2009.2).
Apesar das inúmeras discussões e estudos realizados na academia, que enfatizam
o ensino de língua a partir do texto, estes parecem insuficientes para que o estagiário
utilize o texto como objeto de ensino e aprendizagem. Opondo-se à preponderância
do texto no ensino da Língua Portuguesa, temos a realidade vivenciada pelo estagiário
que permite refletirmos sobre o que se efetiva como objeto de ensino. Após as observa-
ções de aulas do professor de português na escola dos Ensinos Fundamental e Médio,
o graduando deverá ministrar sua aula, respeitando o programa do professor e, logo,
deverá seguir o que lhe foi proposto como descrito no excerto do relatório abaixo.
[...] fomos até a professora e ela nos orientou no assunto a ser abordado: tipos de
predicado (verbal e nominal) - que está inserido no tema sintaxe. Ela disse que não
aprofundasse muito o assunto, que ficasse num nível superficial, para que os alunos
não sentissem muitas dificuldades. Em seguida, nos indicou o livro didático utilizado
pela escola: Português linguagens, de Cereja e Magalhães. (Relatório de Estágio
Supervisionado IV, 2009.2).

Observamos, portanto, que a preocupação do ensino de Língua Portuguesa en-


contra-se totalmente voltado para o trabalho com classificações, como prevê Antunes
(2003); contudo, a autora também afirma que dar aulas de português é auxiliar o
educando no aperfeiçoamento do falar, ouvir, ler e escrever textos em Língua Portu-
guesa. Perguntamo-nos então: ensinar Língua Portuguesa é insistir na classificação dos
termos da oração em detrimento de seu uso para realizarmos a fala, a escuta, a leitura
e a escrita ou produção de textos?
Por conseguinte, todas as competências enumeradas no questionamento acima se
realizam por meio do texto. Nessa perspectiva, Antunes (2003, p. 110) considera que o
texto é o objeto de estudo e ensino da língua, portanto, é responsável por “[...] condi-
cionar a escolha dos itens, os objetivos com que os abordamos e as atividades pedagó-
gicas”. Em outras palavras, não deve o texto ser meramente usado para servir ao estudo
gramatical; ao contrário, deve aparecer como objeto que serve para refletir os usos da
gramática e todos os demais aspectos que ajudem a compreendê-lo e produzi-lo.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 217


Universidade Federal da Grande Dourados

As experiências recentes nos mostram que prevalece a gramática normativa como


objeto de ensino nas salas de estágio, por exemplo, nas microaulas propostas nos com-
ponentes curriculares de Estágio Supervisionado. Mesmo mediante das orientações de
alguns professores de estágio que tentam implementar conteúdos de análise linguís-
tica para a realização da leitura e da produção textual, o graduando só consegue, em
sua maioria, trabalhar a gramática normativa. Ou seja, nessa concepção de ensino de
língua materna, para nós, o português, a aula de português parece servir apenas para
ensinar e aprender gramática normativa e essa é o único tipo de gramática existente.
Para alguns graduandos, a sua ida às escolas para a realização do estágio reforça a ne-
cessidade de ter o texto apenas como pretexto para a exploração gramatical. É o que se
confirma nos relatórios:
[...] utilizando exemplos extraídos dos textos apresentados inicialmente, foi explicado
aos alunos noções de predicado verbal e nominal. Com base no texto de Maria
Eugênia Duarte, “Termos da oração’’, realizamos nosso embasamento para ministrar
a aula. Dessa forma, pretendemos evitar incertezas e palavras contraditórias com
a explicação gramatical. Por fim, com base na nossa intervenção, alcançamos um
debate sobre como aplicar as teorias vistas na graduação na realidade escolar. Durante
todo o estudo na universidade, somos advertidos da ineficácia do ensino de gramática
tradicional, contudo, ao chegar à escola, vemos que não há oportunidade para colocar
tais teorias em prática. A escola parece não estar preparada para novos ensinos e
conteúdos. Logo, houve uma certa distância entre aquilo que vimos nas salas de aula
da academia, as teorias de linguística aplicada, e o que vivenciamos na escola, através
da professora titular. (Relatório de Estágio Supervisionado IV, 2009.2).

Esse fato nos faz visualizar o afastamento entre universidade e escola, mesmo
diante da possível parceria que é feita entre essas instituições na formação inicial. Des-
ta forma, a inserção da universidade ainda não é suficiente para favorecer a compreen-
são necessária à visão mais ampla do ensino de Língua Portuguesa. Podemos também
atribuir essa dependência ao ensino de gramática normativa, ao fato de a proposta
sociointeracionista, na educação brasileira, tão presente em geral nos Projetos Políticos
Pedagógicos das escolas, ainda não ter sido realmente entendida. O que observamos é
que parece haver um desencontro entre os discursos da universidade, dos documentos
oficiais e da escola. Nessa perspectiva, até que ponto os componentes curriculares do
curso de Letras/Português, eminentemente teóricos, têm dialogado com a prática na
sala de aula de português e de literatura?
Retomando a questão da supremacia da gramática normativa em detrimento do
ensino voltado ao texto, remetemo-nos ao currículo atual da nossa licenciatura em Le-
tras. Segundo o PPP de 2006, a licenciatura em Letras/Português tem o seu currículo
composto de 2880 horas como está descrito no quadro 02.

218 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Quadro 2: Composição curricular do curso de Letras/Português da UFPB.

Conteúdos curriculares Carga horária Créditos

1 Conteúdos básicos profissionais 1800 120

Conteúdos básicos de língua e literatura 1080 72


Formação pedagógica 300 20
Estágio supervisionado 420 28

2 Conteúdos complementares 1080 72

2.1 Conteúdos complementares obrigatórios 720 48


2.2 Conteúdos complementares optativos
2.2.1 Gerais 120 08
2.2.2 Da formação pedagógica 120 08
2.3 Conteúdos complementares flexíveis 120 08

TOTAL 2880 192

Nos grupos de conteúdos básicos profissionais de língua e literatura, há compo-


nentes curriculares que têm como objetivo preparar o aluno para trabalhar com con-
teúdos relacionados à estrutura da língua, ou seja, conteúdos considerados do núcleo
rígido como é o caso da Morfologia, Sintaxe, Fonética e Fonologia, entre outras, e
componentes curriculares voltados para o estudo e a reflexão sobre leitura e produção
textual. Mesmo com todas essas distinções, todos os componentes curriculares deve-
riam possuir implícita ou explicitamente uma relação com a formação docente por
tratar-se de licenciatura como temos discutido neste artigo.
Perguntamo-nos, no entanto, por que o graduando não consegue fazer essa liga-
ção entre estágio e os demais componentes curriculares do curso? O que o impede de
fazer essa relação? Há duas disciplinas de Leitura e Produção de Texto, com ementas
que se diferenciam apenas pelo fato de a primeira ser voltada para o trabalho com a
leitura e a segunda com a escrita de texto, porém, ambas buscam reunir teoria e prática
para a produção e leitura de textos, permitindo que o graduando tanto realize a refle-
xão e a prática na universidade como no espaço escolar onde fará o estágio. Vejamos a
ementa das disciplinas Leitura e Produção de Texto I e II para discutirmos como seria
possível esse diálogo.

LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO I


Ementa: Concepções de leitura. A relação leitor, texto e autor. Reflexões teórico-
-práticas: abordagem de diferentes gêneros textuais/discursivos.

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LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO II


Ementa: Concepções de escrita. Papel da escrita e o lugar do escritor na socieda-
de. Reflexões teórico-práticas: produção de textos, pertencentes a diferentes gêneros
textuais/discursivos.
Como podemos observar, as ementas contemplam a relação teoria e prática, as-
pecto já legalizado por meio do Parecer do CNE/Câmara de Educação Superior (CES)
492 de 2001 e que não encontramos referendado nas demais ementas dos conteúdos
básicos obrigatórios3 do PPP, o que nos faz constatar que a ausência dessa relação não
contribui para a formação do futuro professor de português. Por outro lado, temos
consciência de que ementas dessa natureza não são suficientes se os docentes do curso
não vivenciarem a imbricada relação teoria e prática.
Ao nos reportarmos precisamente à relação dos demais componentes curriculares
do PPP com o estágio, podemos vislumbrar a frequência de situações em que o gradu-
ando prepara seu projeto de estágio utilizando a teoria e a prática do estágio com base
no que foi trabalhado precisamente nessas disciplinas; porém, em geral, há resistência
por parte das escolas em compreender a proposta que o graduando tem em mãos por
conta do conteúdo que a disciplina de Língua Portuguesa se propõe a cumprir e da
necessidade que tem de “vencer o livro didático”.
Entretanto, em situações em que a escola dá a abertura ao graduando, ao mesmo
tempo em que este se propõe a vivenciar a prática e a teoria, usando a relação com
os demais componentes curriculares do curso, vemos reflexões que o fazem entender
também que é a oportunidade de colocar à prova os conhecimentos apreendidos nas
salas da universidade. Conhecimentos estes construídos nos estágios passados, nas dis-
ciplinas de Didática e da Pesquisa Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa, como
menciona uma graduanda do Estágio Supervisionado IV, ao refletir sobre a relação
teoria e prática em salas de aula.
Muita coisa já foi feita para que o ensino de língua seja uma atividade mais fácil de
ser executada, porém nem sempre o que se diz na teoria é colocado em prática de
forma correta e com os objetivos bem estipulados. Com isso o que percebemos é
que talvez o problema seja na forma como as teorias estão sendo praticadas desse
modo nos levando a pensar se o melhor não é fazer um aprofundamento junto aos
professores [das escolas] dessa disciplina para que os mesmos entendam o “como fazer”
e finalmente os alunos entendam e compreendam o aprender língua portuguesa.
(Relatório 2011.1; Estágio Supervisionado IV).

Por outro lado, mesmo diante das dificuldades, é possível levar o graduando a
perceber elos que integram os componentes curriculares do curso de Letras com a sua
prática em sala de aula. Dessa forma, o licenciando em Letras tem oportunidade du-
rante o curso de vivenciar componentes curriculares que o auxiliam na estruturação do
3
Disciplinas de conteúdos básicos profissionais: Língua Latina I, História da Língua Portuguesa, Fonética e Fonologia da
Língua Portuguesa, Morfologia da Língua Portuguesa, Sintaxe da Língua Portuguesa, Semântica, Leitura e Produção de Texto
I, Leitura e Produção de Texto II e Pragmática.

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estágio, sobretudo, no que se refere ao ensino de Língua Portuguesa, às concepções de


língua, texto, leitura, produção textual, dos componentes curriculares do considerado
“núcleo rígido’’, da análise linguística e de tantos outros aspectos que auxiliam na for-
mação de um docente de Língua Portuguesa, capaz não só de lecionar a disciplina, mas
de ver a sala de aula como um amplo e vasto campo de pesquisa. O excerto a seguir
comprova essa afirmação.
Retomando toda a trajetória realizada desde as disciplinas Estágio Supervisionado I,
Estágio Supervisionado II até chegar ao Estágio Supervisionado IV, observamos que a
junção das referidas disciplinas renderam bons frutos, resultantes de um diálogo entre
as teorias vistas no decorrer de tais disciplinas que abrangem o currículo do Curso de
Letras com as experiências vivenciadas na sala de aula a partir dessa articulação entre
teoria e prática, tornou-se possível uma análise crítica do que significa ser professor
de língua materna. (Relatório 2010.1; Estágio Supervisionado IV).

De posse da reflexão sobre a relação entre os componentes curriculares do curso


Letras/Português, faz-se necessário avançarmos na discussão trazendo um questiona-
mento sobre teoria e prática dentro do Estágio Supervisionado e dentro da própria
escola. Há quem entenda o Estágio Supervisionado como uma disciplina eminente-
mente prática, talvez pela maneira como fora encarada antes da reforma curricular,
quando ainda se chamava Prática de Ensino. Entretanto é plausível observarmos que a
prática deve advir de uma teoria e, indubitavelmente, leva a construção de novas teo-
rias e renovação de outras já existentes. Com o Estágio Supervisionado não é diferente,
principalmente por oportunizar a pesquisa relacionada ao ensino, campo vasto para
detectarmos situações-problema que promovam a constante mudança no fazer peda-
gógico. E, em se tratando do ensino de língua materna isso se torna mais instigante.
Nos componentes curriculares de Estágio Supervisionado da UFPB, é possível
buscar uma realização teórico-prática. Ao cumprir as ementas dos Estágios I e II, o
professor da disciplina na UFPB é impelido a trabalhar com documentos oficiais que
trazem discussões sobre teorias vistas nos demais componentes curriculares do curso
e nas teorias que embasam esses documentos, bem como é impelido a trabalhar com
a avaliação de materiais didáticos. Antes de ir às escolas-campo, professores que mi-
nistram os Estágios IV e VI podem levar o graduando a repensar as concepções de
ensino de língua e suas respectivas metodologias, bem como concepções que norteiam
os materiais didáticos a serem aplicados em situação de ensino. De posse dos conhe-
cimentos teóricos, o graduando elabora material para sua futura intervenção em sala
de aula, quer por meio de sequências ou projetos didáticos de ensino, quer por meio
de atividades a serem realizadas nas escolas (minicursos). Portanto, ao elaborar esses
materiais e ao pensar em sua prática, o licenciando necessita de embasamento teórico,
tanto para refutar os conhecimentos que considera desnecessários à sua prática com o
ensino do português, quanto para justificar a escolha de conhecimentos e métodos a
serem contemplados na prática.

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Dessa forma, teoria e prática no estágio é completamente indissociável por tudo


já aqui colocado e pelas possibilidades de diálogo e reflexão que estão presentes no
fazer pedagógico que esse componente curricular impõe, sobretudo, quando se refere
ao tratamento que precisa ser dado à língua nos dias atuais, não mais de uma língua
desconexa da realidade. Apesar das inúmeras dificuldades pelas quais parecem passar
o licenciando de Letras/Português no tocante ao estágio, observamos também que o
futuro professor consegue atingir objetivos propostos nesses componentes curriculares
que lhes dão a oportunidade de vivenciar o ensino de língua na escola básica, alavan-
cando assim reflexões teóricas do próprio estágio.
Pode ser o estágio também esse momento, tanto para o graduando quanto para
o professor da escola, o momento de refletir sobre sua prática e tomar consciência de
quão pesquisadores esses sujeitos precisam ser. Além desses atores, é fundamental que
o professor formador reflita sobre sua prática e torne-se partícipe no processo de cons-
trução pedagógica nas escolas-campo em que estão envolvidos estagiário e docente.
Isso porque nos parece que o professor formador assume apenas a postura de observa-
dor dessa realidade.
Nessa perspectiva, os componentes curriculares de estágio podem proporcionar
ao graduando o estabelecimento de elos entre a pesquisa e a prática docente como é
possível constatar no excerto a seguir.
Devido à falta de pesquisas como essa que realizamos na disciplina de estágio
supervisionado IV, os professores quando acabam a graduação ficam perdidos
sem saber o que fazer e como agir na sala de aula, essas práticas de pesquisa são
muito relevantes para o aluno/professor de letras, pois faz com que esse aluno tenha
reflexões e experiências em relação ao contexto educacional. (Relatório de Estágio
Supervisionado IV, 2010.2).

Nesse sentido, é importante observar que o trabalho do estágio não é apenas


colocar o graduando na escola-campo e fazê-lo pensar na docência. O papel que
o Estágio desempenha nas licenciaturas vai além da prática em sala de aula, pois
permite que o graduando reflita sobre o papel do docente na sociedade atual e sobre
as competências necessárias para atuar como professor. O excerto a seguir é uma
demonstração do lugar do estágio no processo de formação profissional dos futuros
professores de Língua Portuguesa.
Os momentos de observação, ministração e reflexão da prática docente que cons-
tituem a disciplina de Estágio Supervisionado IV são, enfim, um momento essencial
para o futuro professor, pois é nesse confronto com as peculiaridades da sala de aula
que o professor vai se formando, repensando seus conceitos, elaborando suas ações [...]
Em suma, avaliar uma disciplina tão decisiva para a formação do aluno do curso de
Letras implica realizar uma avaliação maior dos conhecimentos adquiridos ao longo
da graduação. O estágio, na verdade, vem a ser um momento importante e como este
vem dividido em diferentes disciplinas até chegar à prática docente faz com que o

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estagiário consiga aplicar uso e reflexão de tudo o que vem/foi trabalhado ao longo da
graduação. (Relatório de Estágio Supervisionado IV, 2010.1).
Embora tenhamos observado entraves e lacunas que podem obliterar as funções
do Estágio Supervisionado na licenciatura em Letras, a análise ainda nos permitiu
identificar que o papel desempenhado pelo estágio é fundamental para ampliar o diá-
logo, a troca de ideias, informações e experiências entre docentes do ensino superior e
básico e graduandos na perspectiva de criar possibilidades para o desenvolvimento de
um trabalho pedagógico e de pesquisa. Por fim, o Estágio Supervisionado se constitui
em espaço para o fortalecimento da ressignificação das práticas docentes na área de
Língua Portuguesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho se propôs a refletir a relação entre Estágio Supervisionado
e ensino de Língua Portuguesa no curso de Letras/Português da UFPB, explorando
os limites e as possibilidades deste componente curricular em nossa realidade. Para a
realização deste objetivo, inicialmente apresentamos uma concepção de estágio super-
visionado que se caracteriza por possibilitar ao graduando uma formação integral, em
que as discussões teórico-práticas realizadas ao longo do curso estejam em consonância
com a proposta de intervenção pedagógica que se pretende realizar na escola. Essa in-
tervenção, por sua vez, deve ter um cunho investigativo de ação-reflexão-ação, ou seja,
durante a práxis do estágio se retorne a teoria e se revejam novas ações.
Em seguida, defendemos a ideia de que o estágio pode se constituir em espaço
para o conhecimento e transformação da realidade da prática de ensino de Língua
Portuguesa. Fundamentamo-nos nos argumentos de que o estágio supervisionado
deveria apresentar uma relação dialógica com diferentes componentes curriculares,
constituindo-se momento de reflexão sobre a prática pedagógica dos professores da
escola e da universidade e dos graduandos e momento de construção de saberes teóri-
cos e práticos.
A análise do Projeto Político Pedagógico do Curso nos permitiu observar que a
almejada relação entre a teoria e prática na formação docente esbarra na própria estru-
tura curricular do curso, que divide esses campos, conforme a leitura das ementas das
disciplinas. Também foi possível observar os entraves dessa relação nos relatórios dos
graduandos, na crença de que a gramática normativa representa o universo do ensino
de Língua Portuguesa, seja por parte da escola e de seus professores, seja por parte dos
próprios estudantes de Letras.
Com base nas análises realizadas, podemos afirmar que o Estágio Supervisionado
não é apenas o locus para identificarmos dificuldades, seja em relação à desvalorização
desse componente curricular por parte de alunos e de professores da própria gradua-

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ção, seja pela falta de articulação entre o estágio e as outras disciplinas do curso. Por
outro lado, o Estágio Supervisionado tem o potencial de fotografar o percurso for-
mativo do futuro professor de português, avaliando a adequação ou inadequação do
currículo do curso de Letras, indicando percursos teóricos e práticos que precisam ser
abandonados, fortalecidos e/ou construídos. Dentre os limites e desafios identificados,
acreditamos que as discussões teóricas e empíricas realizadas neste artigo fomentaram
as reflexões sobre o currículo dos cursos de Letras, o processo de formação para a do-
cência e a prática pedagógica de Língua Portuguesa.

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Aprovado em 20/04/2014.

226 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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O MUNDO LÁ FORA, O DA ESCOLA: INTERAÇÃO EM


FÓRUM DIGITAL NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO SOB A
PERSPECTIVA DA SOCIOSSEMIÓTICA

THE WORLD OUT THERE, THE SCHOOL’S ONE: INTERACTION


IN DIGITAL FORUM ON SUPERVISED TRAINEESHIP THROUGH
THE PERSPECTIVE OF SOCIOSEMIOTICS
Luiza Helena Oliveira da Silva*

“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a
luta.” Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto,
das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do
amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema
dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais
sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da
vitalidade na influência de um novo clima rigoroso”.
Raul Pompéia, O Ateneu.
RESUMO: Este trabalho tematiza a interação em um gênero da esfera digital, o fó-
rum, empregado em situação de ensino-aprendizagem, como apoio a atividades de
uma turma de estágio supervisionado de uma licenciatura em Letras. Apresenta uma
análise das postagens dos acadêmicos, mobilizando como ferramenta teórica a socios-
semiótica, a partir das questões que suscita com relação aos regimes de interação e de
sentido e, ainda, à noção de prática. A concepção de saber que orientou a atividade é a
de que o saber, mais do que um objeto valor, tal como o concebe a semiótica standard,
pode ser pensando na perspectiva do ajustamento e, desse modo, como resultante
de partilha e construção conjunta. Muitas vezes partindo de imagens idealizadas da
escola, o que o estágio permite aos acadêmicos é o aprendizado por uma vivência que
o obriga a refletir sobre a reorganizar os sentidos anteriormente assentados. Parte-se,
pois, da significação estanque e preestabelecida, para o sentido ainda por ser produzi-
do, movimento que se faz solitária ou dialogicamente.
Palavras-chave: fórum digital; estágio supervisionado; sociossemiótica; ajustamento.
ABSTRACT: This work thematizes the interaction in a genre of digital sphere, the
forum, employed in teaching-learning situation, as a backup to a class of supervised

*
Professora do Programa de Pós-graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura da Universidade Federal do Tocantins
E-mail: luiza.to@uft.edu.br.

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traineeship activities of a Licentiate degree in Languages. It presents an analysis of


academic posts, mobilizing as a theoretical tool the sociosemiotics theory, departing
from the issues it raises with respect to interaction and meaning regimens ,and also,
to the notion of practice. The conception of knowing that guided the activity is that
knowing, more than one value object, such as standard semiotics conceives, can be
thought on the perspective of adjustment and, in this way, as resulting of sharing and
joint construction. Quite often departing from idealized images of the school, what
the traineeship allows to academics is the learning through an experience that forces
them to think about reorganizing the senses previously settled. It departs, therefore,
from the prearranged and sealed significance, to the sense yet to be produced, move-
ment that it makes solitary or dialogically.
Keywords: digital forum; supervised; traineeship; sociosemiotics; adjustment.

INTRODUÇÃO
Nas frases iniciais do romance “O Ateneu”, temos anunciada a narrativa dos mui-
tos dissabores que enfrentará o narrador Sérgio. Afastado bem jovem do convívio da
família para ingressar num colégio interno, o que o personagem anuncia é o sofrimen-
to que se seguiria à despedida do lar, do amor e dos cuidados até então experimenta-
dos. Os mimos maternos só fariam com que a dor da solidão e do abandono diante
do mundo que se abria à sua experiência fosse mais intensamente sentida, tornando-o
mais sensivelmente vulnerável “à impressão do primeiro ensinamento”.
Por estranha que possa parecer a relação, essa preciosa passagem do romance de
Raul Pompéia serve de mote para nossas reflexões sobre as vivências do estágio super-
visionado em uma licenciatura. De certo modo, os acadêmicos que se lançam ao uni-
verso escolar, principiando sua experiência docente, poderiam se aproximar do jovem
Sérgio. Tendo nas mãos (ou nas mentes) um tanto de teorias, advindas de disciplinas
que muitas vezes pouco ou nada dizem respeito diretamente a implicações para o ensi-
no, ou ainda dotados de saberes de ordem prática como a elaboração de planos de aula
do ponto de vista estritamente formal, o que o acadêmico então encontra pela frente
é um universo que amedronta e diante do qual muitas vezes se vê como que a deriva,
no mar revolto das dinâmicas da vida profissional. “Vais encontrar o mundo”, dizemos
aos nossos alunos. “Coragem para a luta”. Se tal realidade angustia os mais experientes
e audazes, esses novos marinheiros parecem impotentes para manusear as bússolas e as
cartas, interpretar as correntes, ler os astros. É sempre pouco, aquém do necessário, o
que a teoria obtida na academia fornece como instrumento. Trata-se de um saber que
é de ordem prática: há antecipações, preparações, cuidados, atenções, mas é necessário,
enfim, lançar-se ao mar, com um aprendizado só possível nesse exercício, com os riscos
de dor e a alegria que isso implica.

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Neste artigo, é essa práxis que é tematizada, esse saber que se adquire na medi-
da em que se vive o fazer docente, no que ele tem de precisão e de acaso. Para isso,
tomamos como objeto de análise postagens de acadêmicos estagiários em um fórum
digital abrigado na plataforma Moodle (Modular Object-Oriented Dynamic Learning
Environment), utilizada como recurso para diferentes atividades num curso de licen-
ciatura em Letras, em regime presencial. No referido curso, atuamos como docente
de disciplinas teóricas da área da linguística, em alguns momentos, dedicando-nos à
orientação de estágios. O fórum em questão relaciona-se a uma das atividades que
propusemos a uma das turmas em 2012, tendo como principal objetivo a criação
de um espaço no qual fossem compartilhadas e problematizadas as experiências dos
acadêmicos na sua primeira etapa de estágio1. Essa fase, conforme previsto no projeto
pedagógico do curso (TOCANTINS, 2009), destina-se à observação de aulas nas
escolas-campo, realização de registros diversos, elaboração de projetos de docência,
além de estudos sobre diferentes aspectos vinculados ao ensino da língua e literatura,
que vão sendo recortados pelos professores orientadores.
Além da criação desse espaço de reflexão, a proposta do fórum orientou-se por
razões como a de buscar garantir que fossem vivenciados usos de recursos digitais em
práticas de ensino, familiarizando os alunos com usos e potencialidades. Como um
dos conteúdos tematizados nas aulas teóricas no âmbito da universidade dizia respeito
ao letramento digital, os usos do fórum forneceriam elementos para pensar o lugar da
interação mediada por computadores na prática pedagógica. A isso se somava nosso
interesse em observar em que sentido nossas hipóteses iniciais a respeito da interação
encontrariam relevantes ou inexpressivos resultados.
Em princípio, as impressões sobre a vivência nas escolas, do ponto de vista de
registros escritos, restringia-se aos diários de campo ou ao relatório final, ambos ser-
vindo para atestar a realização dos estágios e possibilitar a aferição de nota pelo profes-
sor orientador, leitor privilegiado dessas produções. Ainda que disponibilizados para
consulta e pesquisa no CIMES2, trata-se de produções precariamente partilhadas pelos
docentes em formação e, em muitos desses relatos, nem sempre encontram-se elemen-
tos que ultrapassem a descrição. Não há, enfim, resposta ao que ali se diz, a não ser as
considerações do professor orientador. O fórum possibilitaria, assim, que a dinâmica
de ida às escolas fosse sendo acompanhada, que tanto o orientador como os demais
colegas da turma discutissem a prática que ia ganhando forma, negociando sentidos
para o que se percebe e se interpreta. Diferente do efeito de acabamento do relatório
final, o fórum se abriria a reflexões sobre o processo, possibilitando que os sentidos
pudessem ser negociados, que perspectivas pudessem ser revistas, ganhando em den-
sidade na medida em que o dizer se abre a questionamentos advindos dos interlocu-
1
O fórum se organizou em dois momentos, no início das atividades de observação e, posteriormente, ao final. Em função de
uma greve dos professores federais, houve uma interrupção nas discussões, com um intervalo de aproximadamente três meses.
Acreditamos que essa interrupção teve efeito sobre os resultados, caracterizando uma quebra no debate inicialmente proposto.
2
A sigla refere-se ao Centro de Memória dos Estágios Supervisionados, da Universidade Federal do Tocantins, campus de Araguaína.
Pesquisas de iniciação científica, dissertações e teses têm tomado os documentos ali organizados como objeto de investigação.

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tores. A maior informalidade prevista pelo gênero também contribuiria para que não
se reproduzisse ali o efeito de objetividade e distanciamento que podem acentuar uma
certa inexpressividade e alheamento diante do que se diz que, embora possam ser até
previstos pelo gênero relatório, silenciam ou obscurecem outras possibilidades.
Partimos do pressuposto de que há conhecimentos que podem ser coletivamente
produzidos, não estando dados em algum lugar de antemão como um objeto a ser ad-
quirido em sua totalidade. Há certamente conteúdos que vão sendo apreendidos pela
repetição, saberes adquiridos na leitura de um manual, construídos pelo emprego de
processos já considerados irrefutáveis, seguindo o passo a passo como no caso de uma
receita de bolo. Mas há conhecimentos que resistem a certezas, que estão por ser cons-
truídos e, dentre eles, está o saber que se liga à docência, dadas as complexidades que
envolve e a diversidade de perspectivas com que pode ser analisado, compreendido,
atualizado. A sala de aula da licenciatura e os espaços como o de um fórum na Internet
são lugares que favorecem, assim, essa construção coletiva. Não há verdades absolutas
e as verdades provisórias não se edificariam apenas por assumir de modo competente
as referências teóricas e aplicações relativas a aspectos metodológicos do como ensinar,
ainda que muito solidamente alicerçadas.
Como fundamentação teórica para guiar a análise do corpus, mobilizamos as con-
tribuições da semiótica, considerando sobretudo as produções da sociossemiótica, com
os trabalhos de Eric Landowski. Dedicada à problemática geral da significação, não
se limita a uma orientação para leitura de textos, mas, atendendo a uma formulação
primeira da semiótica, indaga-se sobre o “sentido da vida” (GREIMAS, 1971, p.12;
LANDOWSKI, 2012, p 129). Nos últimos anos, a sociossemiótica elegeu como um
de seus principais objetos de investigação as questões relativas aos regimes de intera-
ção e de sentido deles decorrentes. Interessam-nos aqui mais de perto as questões que
o sociossemioticista preconiza em relação às práticas como instâncias produtoras de
sentido, seja o caso dos usos e práticas dos objetos, seja no que diz respeito à relação
intersubjetiva, consideradas as “práticas do outro” (LANDOWSKI, 2005, 2009). A
isso se somam suas reflexões sobre o imaginário (LANDOWSKI, 2011).
Inicialmente, serão discutidas aqui questões relativas aos regimes de interação na
perspectiva da sociossemiótica. Na segunda parte, após as reflexões sobre o conceito de
imaginário, apresentamos nossa análise referente ao fórum com os acadêmicos.

PRÁTICAS DO OUTRO
Em março de 2014, Landowski apresentou uma conferência no seminário inti-
tulado “La représentation de l’autre”, jornada temática realizada na Université de Li-
moges (França). Sua comunicação intitulou-se “Représentations de l’un, pratiques de
l’autre” e, já num primeiro momento, suas discussões se deram no sentido da rejeição
ao termo “representação”, pelo que implica enquanto alusão a um referente encontra-

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do no mundo natural – perspectiva ontologista – e na fixidez que o termo comporta.


Assim, à noção de “representação” e sua singularidade, Landowski propõe o termo
“práticas”, plural.
Conforme anuncia no resumo de sua conferência, “na maioria dos discursos
sociais e políticos, o ‘outro’, enquanto objeto de ‘representação’, aparece como um
simulacro, geralmente de forte componente figurativo, construído sobre estereótipos
que vão servir para estigmatizar a diferença, a alteridade mesma do outro” (LANDO-
WSKI, 2014, p. 12). Caberia, então, ao “sociossemioticista politicamente engajado”
promover modelos dinâmicos que permitam ultrapassar o que o teórico designa como
“representações em espelho” (LANDOWSKI, 2002; 2014), considerando a possibi-
lidade de dar conta de outras relações de sentido com o outro e o mundo em geral,
sendo o outro tomado como um verdadeiro “parceiro” que não se reduz ao “uso”, mas
com o que se empreende uma prática.
Quer se trate de objetos, quer se trate de pessoas, o que se propõe é que o outro
não seja reduzido a sua função, ao seu estereótipo, ou a sua “etiqueta”. É apenas na
medida em que se reconhece a positividade da alteridade que é possível abrir-se a uma
verdadeira e significativa interação, com os riscos que implica.
O que Landowski traz é uma proposição de problemática da interação que ultra-
passa a do modelo sintáxico canônico previsto pela semiótica standard. Não se limita ao
que designa como “seres de papel”, mas remete a sujeitos “encarnados”, que interagem
entre si e com os objetos dotados de qualidades sensíveis e estésicas (LANDOWSKI,
2009). O ponto de partida é o de que os sentidos não se encontram dados nos objetos
(ou nos sujeitos), nem se limitam a grades culturais, mas são resultados do uso, ou de
suas práticas. Um exemplo que fornece para explicar do que trata sua proposição é o
da relação com os objetos num museu. Quando visitamos uma exposição, somos cer-
tamente informados sobre valor das obras lá expostas e a própria eleição do objeto para
ser lá apreciado já nos é suficiente para saber de que se trata de algo que tem um valor
culturalmente (e também economicamente) reconhecido que nossa presença poderia
apenas confirmar, mesmo diante de uma absoluta indiferença, como muitas vezes
testemunhamos em visitações desse tipo. Podemos, então, limitarmo-nos a observá-lo
como quem o consome enquanto produto cultural, necessário ao nosso repertório de
informações, confirmando a sua “artisticidade”. Mas podemos, também, ultrapassar
essa dimensão consumista, abrindo-nos efetivamente à percepção dos objetos a nossa
frente, fruindo-os, interagindo-nos com o que apresentam potencialmente por suas
qualidades sensíveis. A relação, portanto, estaria além de uma atitude pragmática,
orientando-se para aquela que é da ordem da sensibilidade.
Do ponto de vista das interações, Landowski organiza quatro regimes que, ob-
viamente, não se encontram estanques, mas preveem imbricamentos e gradações. O
primeiro deles refere-se ao que designa como regime de “programação”. Neste, como
o nome já anuncia, as relações e os papéis actanciais encontram-se previamente fixa-

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dos, o que resulta num grau de absoluta previsibilidade quanto ao que pode advir na
relação. Os sujeitos, nesse caso, encontram-se a tal modo condicionados que o risco
de que algo perturbe a ordem estabelecida parece praticamente ausente. Remete, as-
sim, a relações expressamente controladas, que podem resultar, em caso extremo, no
esvaziamento do sujeito enquanto tal. Do ponto de vista dos objetos, é o que nos
permite usá-los, certos de seu funcionamento previamente fixado. A programação da
ação, contrária às práticas de sentido, permite que interajamos com as coisas com
conhecimento de causa, indispensável, portanto, na medida em que não podemos
reinventar tudo o tempo todo. O fazer, assim, se equilibra entre o dado e o novo, entre
o estabilizado e o instável, sendo este o criador de novas relações. O dado é o lugar da
segurança e do conforto, enquanto o novo é o chamamento para a experimentação. O
dado permite o planejamento das ações com resultados mais precisos; o novo é o lugar
do risco e da possibilidade do equívoco. É o que prevê uma interação sem surpresas de
qualquer tipo, como lugar da segurança. Pelo grau de previsibilidade, pela noção de
repetição que encerra, a programação age na direção da dessensibilização. Ganhamos
em termos de segurança, de tranquilidade em relação a imprevistos, protegidos pela
previsibilidade, mas perdemos em termos de sentido (LANDOWSKI, 2005).
Por mais estranho que possa ser, uma aula pode ser reduzida a uma programação,
o que poderia acontecer por sua extrema ritualização e pelo controle. É o que prevalece
nos regimes totalitários, nos quais a liberdade ou a divergência não são permitidos e,
por isso mesmo, há mecanismos que os tornariam impensáveis. Não se pode, contudo,
considerá-los quando se trata de interação efetiva, uma vez que o docente, que não
pode se restringir a um pleno programador, necessita do outro, o aluno, abrindo-lhe
espaço para ser, agir, pensar, concordar, divergir. Desse modo, por mais rigoroso que
seja o plano de aula, a interação permite sua deriva.
O regime seguinte seria o da manipulação, privilegiado pela sintaxe narrativa ca-
nônica. Na semiótica standard, as relações entre sujeitos se dão sempre mediante troca
de objetos. Para que um sujeito entre em conjunção com um dado objeto, é necessá-
rio que um outro seja dele despossuído. Essa visão “econômica” das interações reduz
toda intersubjetividade a um dar e a um receber, enquanto a relação com os objetos se
definiria por uma forma de posse (junção). Analisemos esses dois aspectos e os proble-
mas que suscitam. Um primeiro, relativo aos objetos, refere-se à noção de conjunção.
Mesmo no momento anterior ao da conjunção, o da disjunção, sujeito e objeto se
acham relacionados, de algum modo predestinados um ao outro por suas característi-
cas particulares ou desejos mútuos, tendo estabelecidas entre si uma forma de “prise”
(LANDOWSKI, 2009, p. 13). O termo de difícil tradução fala de uma espécie de
abertura para o outro. Sob a perspectiva da “prise”, sujeito e objeto se movem um em
direção ao outro, não estando limitados a uma mera justaposição.
A outra questão, relativa à intersubjetividade, é a redução à mediação pelos obje-
tos, edificada pela sintaxe narrativa tradicional. Para Landowski, as relações entre su-
jeitos devem ser pensadas fora dos quadros da troca, dessa mediação, o que expande a

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noção para outros modos de conceber a intersubjetividade. Na manipulação, estamos


diante de uma assimetria de papéis actanciais: de um lado, encontra-se o sujeito des-
tinador manipulador, que empreende estratégias para levar um outro, o destinatário
manipulado, a fazer algo. Para levá-lo a fazer, não conta com as certezas da progra-
mação, mas com os maiores riscos que implicam seu convencimento, seja pelo querer
(sedução ou tentação), seja pelo dever (intimidação ou provocação). Para convencer,
mudar a disposição do outro, é necessário ao menos considerá-lo como sujeito, ainda
que para assujeitá-lo. O outro, porém, pode resistir, negar-se a desenvolver a perfor-
mance pretendida, o que resultará, de acordo com o que prevê a sintaxe, na sua sanção
negativa. Como nesse regime há brechas, prevista a resistência e a insubordinação,
não há o mesmo nível de previsibilidade da programação. Mas há aqui uma assimetria
de poderes: o destinador, de algum modo, qualifica-se com o poder de manipular,
orientar para uma dada direção e, ao final, avaliar, sancionando o segundo, positiva ou
negativamente, punindo-o ou gratificando-o.
Se pensarmos, sob essa perspectiva, um aula como narrativa, teríamos o professor,
o destinador, que deve levar o aluno a entrar em conjunção com o saber, objeto valor.
Para isso, pode se valer de diferentes estratégias, como a da sedução, apresentando o
conteúdo a ser aprendido de tal forma que o outro, o aluno, se permita seduzir, leva-
do a querer o que lhe é ofertado, um dado saber. Ou, ainda, teríamos a intimidação,
quando o docente ameaça o aluno, com a reprovação, com uma carta aos pais, com
a expulsão da sala etc. De uma ou outra forma, o saber é um bem que se pode doar,
o que pressupõe que o doador, o professor destinador manipulador, o tem em suas
mãos, como um objeto acabado, que possa então ser transmitido, doado.
Landowski (2005), porém, acrescenta um terceiro regime, o do ajustamento, que
nos parece mais promissor, se pensarmos em outro modo de compreender a relação
ensino-aprendizagem. No ajustamento, não há assimetria do regime de manipula-
ção nem o grau de previsibilidade da programação. Para o ajustamento, os sujeitos
encontram-se como parceiros, sem que um defina necessariamente o caminho que o
outro, ou ambos, devam seguir, nem se pode prever de antemão aonde se pode chegar.
Há aí uma maior abertura para o imprevisível, porque tudo está por ser construído,
conjuntamente. Landowski defende, então, que se trata de um regime de co presença,
que implica não apenas uma configuração de natureza cognitiva, mas, principalmente,
aquela da ordem dos afetos ou da sensibilidade. Não se refere a uma relação media-
da por objetos (junção), mas construída pela união sujeito-sujeito ou, ainda, sujeito-
-objeto. Landowski, portanto, recusa que haja uma semiótica subjetal e outra objetal
(2009): o que propõe é que se reconheça no outro, qualquer que seja seu estatuto,
sua efetiva alteridade, sem reduzi-lo a algo que se possa programar ou manipular, não
limitado a um papel ou a uma função.
Esse novo regime nos possibilita pensar que a sala de aula possa ter uma confi-
guração distinta que as apresentadas anteriormente, pressupondo também um outro
modo de conceber o conhecimento. Se não há mais doação de saber, este pode emergir

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como produto das relações entre os sujeitos, que conjuntamente o constroem (SILVA,
2013). Desse modo, há um saber que emerge na prática, nas práticas do outro, com
o outro, o parceiro. É, para nós, o que mais pode produzir sentido para os sujeitos
envolvidos e mais promissor quando se pensa a sala de aula, ou outros espaços de in-
teração, como os da esfera virtual, chat ou fórum, em que podem servir de locus para
uma troca significativa que resulte num saber em processo de construção, não apenas
apreendido, memorizado, repetido e dessubstancializado, nas práticas que, no limite,
esvaziam toda significação e gosto por aprender.
O quarto dos regimes propostos por Landowski é o do acidente, o do risco e da
imprevisibilidade absolutos. Pode tratar-se de uma bem-aventurança, de um aconteci-
mento feliz, como os acidentes estéticos, sobre os quais discorre Greimas (2003), mas
também os relativos a um acaso infeliz, para infortúnio do sujeito que o sofre. Não há,
aqui, possibilidade de controle: diz respeito ao acaso: a interação é imprevista, surpre-
endendo o sujeito a ponto de lhe causar modificações sensíveis que podem alterar seu
modo de ser no mundo. Como uma espécie de ruptura, do encontro com o inusitado
da vida, é rico de sentidos. Remetendo ao máximo de risco, é o que encerra a possibi-
lidade última de relação com o outro, no limite da surpresa do encontro. No âmbito
da escola, diria respeito ao que escapa ao planejamento, ao que pode ser previsto e
que pode ir fazendo com que, na prática da docência, o inusitado nos inquiete e lance
novos desafios. O outro, afinal, resiste, na sua diferença.
Partindo do que vimos apresentando, a proposta do fórum atende ao princípio
do ajustamento. Ainda que a assimetria professor-aluno não se dilua, a pluralidade de
vozes que se somam ao dizer muitas vezes solitário do professor em classe favoreceria
uma construção conjunta, até porque o que estaria em questão seria a experiência de
cada um a ser compartilhada. São os estagiários que partem para o enfrentamento do
mundo, o da escola, enquanto nós, aguardamos seu retorno e suas impressões. Nesse
sentido, nós discutimos as perspectivas que foram sendo assumidas diante do vivido,
problematizando-as conforme discorremos a seguir.

ANTECIPAÇÕES DA SIGNIFICAÇÃO;
A EXPERIÊNCIA DO SENTIDO
Quando o pai se despede do personagem Sérgio à porta de casa, dizendo-lhe que
iria encontrar o mundo, apresentam-se pelo menos dois aspectos a merecer atenção.
Há inicialmente uma objeção que pode ser feita, tendo em vista que o lar se situa
no mundo, participando de sua historicidade, não alheio nem independente a ele.
Ao mesmo tempo, podemos concluir, pelo que anuncia logo em seguida o narrador-
-personagem nessa primeira passagem do romance, que o lar se constituía como um
universo particular, com especificidades que garantiam uma certa configuração capaz
de blindá-lo às ameaças da exterioridade, traduzido como “estufa de carinho que é o
regime do amor doméstico”. Há ainda a segunda questão: a da promessa de sentido.

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O pai adverte que haverá luta, para a qual é necessário munir-se de coragem. O modo
como o sujeito parte, então, para o enfrentamento do mundo é feito mediante adver-
tências, que antecipam a certeza dos riscos, ainda que de modo impreciso.
Se tomarmos a referida passagem do texto literário como uma espécie de metáfora
do momento de estágio, podemos encontrar algumas semelhanças. Assim como a casa
parecia uma estufa a proteger a infância de Sérgio, também a universidade, ainda que
ligada ao mundo e inserida nas suas dinâmicas, configura-se como um sistema que,
como tal, guarda suas especificidades, sua dinâmica de funcionamento, como uma
totalidade que de algum modo a distingue da exterioridade. Dela deve migrar o estu-
dante para o enfrentamento do que está além de seus muros: o mercado de trabalho, a
docência, as exigências da vida profissional. Do mesmo modo ainda, há antecipações
como significações previamente dadas, promessas quanto ao que há de vir, relativas
à “luta” que se anuncia. Estas se constituem como que direções que o estudante leva
consigo, imagens sobre o universo escolar construídas mediante sua experiência como
aluno, atravessadas pelas reflexões teóricas da vida acadêmica e ainda figurativizações
socialmente construídas e partilhadas sobre o que é ser professor. A questão que se
apresenta, pois, é partir da significação para o sentido. A significação prende-se ao pre-
visto, às etiquetas, a uma estabilização, enformada, categorizada, previamente dada.
O sentido, ao contrário, constrói-se nas relações, na experiência do vivido, estando,
pois, em aberto, a ser construído pelo sujeito nas relações com o outro, com o mundo,
nas práticas que não se encerram na realização do já previsto, mas na potência da sua
perpétua reinvenção, como “práxis heurística” (LANDOWSKI, 2009).
Inicialmente, vamos nos ater a essas figurativizações3, que remetem ao plano da
significação, contrapondo-as aos sentidos que vão emergindo.

A) IMAGENS – DA ESTABILIZAÇÃO AO MOVIMENTO


Eni Orlandi (1999), discutindo a concepção de imaginário para a análise do dis-
curso, exemplifica fazendo uso da figura do professor. Para essa teoria, as relações entre
os sujeitos são mediadas pelas imagens que estes constroem sobre o outro, o que não
remete a uma lógica da ordem da subjetividade, mas a uma espécie de aprendizagem
cultural e ideológica. Conforme a analista, há um imaginário socialmente produzido
e partilhado que faz com que todo mundo saiba o que é um professor. No caso da
figura do professor, essa imagem que parece fixar-se como “real” aponta para a noção
semiótica de papel temático que, entre outros aspectos que poderiam ser considerados,
atua na naturalização de uma direção de sentido, estabilizando-o.
3
As figurativizações correspondem a modos de remeter ao mundo natural por meio de figuras. Não se trata de representação, no
sentido de reconhecimento do que existe naturalmente, mas de efeitos de sentido produzidos pela linguagem e que produzem
nos discursos imagens do mundo. Incorpora a dimensão do corpo sensível, as relações do sujeito sensível diante do mundo,
suas impressões, estendendo-se a todas as linguagens, tanto verbais quanto não verbais, para designar a propriedade que as
linguagens possuem de restituir significações análogas às experiências perceptivas: “A figuratividade permite, assim, localizar
no discurso este efeito de sentido particular que consiste em tornar sensível a realidade sensível” (BERTRAND, 2003, p. 154).

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Conforme Greimas e Courtés (2008), o papel temático se produz por uma re-
dução a um único percurso figurativo, relacionado a um agente, o ator, fixando uma
isotopia na qual se inscreve, a despeito de outras possíveis. Analisando as implicações
do papel temático, Landowski exemplifica com as narrativas em que um rei é tão e so-
mente um rei, não fazendo senão governar, não se constituindo jamais como um sujeito
na sua totalidade e complexidade; ou o pescador que, cumprindo sua missão, pesca.
papéis temáticos que não apenas delimitam semanticamente esferas de ação
particulares, mas, ademais, em certos contextos, são também capazes de antecipar
detalhadamente os comportamentos que se podem esperar dos atores (humanos ou
não) que se encontram deles investidos. Assim ocorre em particular no universo do
conto popular, onde a identidade de todo ator, concebida de maneira radicalmente
substancialista, se reduz à definição de um papel temático-funcional do qual, por
construção, quer se trate de uma coisa ou de uma pessoa, não poderá escapar de
modo algum. Se um personagem é definido como “pescador”, apenas pescará; se
outro é “rei”, atuará sempre como rei: cada qual se limita, em suma, a “recitar sua
lição”. (LANDOWSKI, 2005, p. 17)4.

Se essas formas de definir sujeitos se prestam bem aos contos populares, certa-
mente não servem à complexidade dos sujeitos de carne e osso. Há, contudo, por
força do imaginário social, uma orientação para o que é um professor, a ponto de
“todo mundo” parecer já saber, como algo que não se põe em questão, o que cabe a
ele fazer ou ser, como se o sujeito então se reduzisse à realização de um dado papel,
já estabelecido e aceito consensualmente. O professor é então o que ensina, porque
domina o conhecimento (1), figura de autoridade. Por isso mesmo, se considerada a
aula na perspectiva de uma narrativa, impondo-se como uma espécie de destinador,
na medida em que determina, orienta, controla, fazendo com que todos queiram fazer
o que se deve: aprender o que este pretende ensinar, motivando os desinteressados,
comandando o tempo, inovando para atrair os desatentos (2):
(1) Tamara5
É realmente complicado, pois os alunos ficam nos testando o tempo, todo nos
enchendo de perguntas quando a professora sai da sala! Aí fica complicado quando a
gente não tem certeza da resposta. Kkk
Quando essa situação chega a mim e se eu tô confusa, ou não tenho certeza da
resposta, eu falo que não posso ficar dando respostas ainda, só no próximo estágio!
(2) Alana
Observei também vários pontos negativos a começar pelo desperdício de tempo nas
aulas. Todas as aulas que tive a oportunidade de observar tiveram inicio com atraso
muitas vezes pequeno e inúmeras vezes absurdos sem restar quase tempo algum para
o mais importante a aula em si. Falta de controle da turma também era bem freqüente
e a falta de novidades nas atividades propostas. Tudo era bem repetitivo sempre o
texto era trabalhado da mesma maneira seguido de um exercício de interpretação (
coisa que para o aluno é bem chato e cansativo) nada de atrativo para o aluno era
levado para sala.
4
As citações de textos franceses contam com nossa tradução.
5
Utilizamos aqui pseudônimos, preservando a identidade dos acadêmicos envolvidos na pesquisa.

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Compartilhando suas inseguranças, os estagiários falam do medo de não saberem


dar as respostas, como que pressupondo que, para qualificarem-se como docentes,
devem “dominar” o saber, ou, pelo menos, o que diz respeito a um universo, o da
disciplina. Por se verem “testados”, como escreve Tamara (1), depreende-se que tal
modo de conceber a figura do docente é compartilhada pelos alunos, os “testadores”
que, nesse caso, parecem impor-se assimetricamente aos estagiários, sancionando-os
positiva ou negativamente na medida em que reconhecem ou não a imagem esperada.
Enquanto na postagem de Tamara (1), vemos o estagiário fragilizado, na fala de
Alana (2), ao analisar e avaliar a fase da observação concluída, é assumida uma outra
posição, sendo aqui “julgado” o professor. Este não corresponde à imagem que deveria
apresentar: desperdiça o tempo, não controla a turma, não inova, não produz interesse
nos alunos, enfim, não ensina como “deve”. Uma vez não correspondendo, pois, ao
imaginário previsto, os docentes das escolas são avaliados negativamente e, em vez de
parceiros com os quais os estagiários aprenderiam, são os destinatários de uma perfor-
mance que é recusada (LIMA e SILVA, 2014).
Conforme Landowski (2011), o termo imaginário não se encontra no Dicionário
de Semiótica (GREIMAS e COURTÉS, 2008) e, pelos seus múltiplos usos, atenden-
do a uma certa “facilidade de linguagem”, é excessivamente vago quanto ao que desig-
na. Depois de analisar um corpus constituído de textos extraídos de jornais franceses,
o semioticista organiza dois sentidos que englobariam esses múltiplos usos para o
termo: um primeiro, que designa como “imaginário-cultura” (Iq), e um segundo, que
denomina “imaginário-imaginação” (Ii). O primeiro, Iq, se definiria como conjunto
de “macrounidades figurativas fixadas”, “patrimônio icônico” ou “repertório de clichês
e de motivos”, pressupondo uma “instância propriamente semiótica, como uma insti-
tuição difusa a cargo do universo do sentido socialmente aceito, de sua gestão, de seu
formato, e de sua propagação como sentido comum” (LANDOWSKI, 2011, p. 92).
Trata-se, pois, de um repertório que se inscreve na memória social, como um saber co-
letivo, e que remete a figurativizações que se naturalizam, capazes de produzir o efeito
de evidência do real, ou de sua representação. O segundo, Ii, remete à possibilidade de
ruptura com essa memória figurativa, tendo em vista inserir-se como invenção, criação
do novo, de um outro mundo e, pelo modo como se põe à parte, pode sugerir a ideia
de que nasça por força de graça divina ou no interior do próprio sujeito (LANDO-
WSKI, 2011). Como novidade, supõe, então, a capacidade de enriquecer ou subverter
os sentidos já assentados na memória social. Seria esse Ii saudado como a novidade
que areja os sentidos adormecidos, encontrando nos textos analisados uma avaliação
especialmente positiva, euforizante, mesmo que, conforme alerta o sociossemioticista,
tal criação não possa se dar senão como “trabalho” sobre o imaginário cultura, Iq.
Assim, de um lado, evidenciam-se os usos do termo imaginário que encontram
lugar nos textos “realistas” (da esfera da política, da economia etc.), enquanto os outros
circunscrevem-se aos textos que remetem a uma espécie de subversão da realidade, os
da arte, dos poetas, dos utopistas. Não se trata, contudo, de pensar a existência de dois

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mundos em confronto, mas de duas diferentes formas de criar ou recriar o real, haja
vista que, para a semiótica, o real não entra como causa em questão, uma vez que não
se filia a uma perspectiva ontológica. São, portanto, duas formas de falar do mundo,
acolhendo distintas figurativizações que produzem efeitos sentidos distintos. Ao final,
Landowski declara que propor uma semiótica do imaginário seria, certamente, uma
tautologia, a remeter à totalidade da cultura, não se distinguindo o projeto assumido
até aqui pela teoria. O que cabe, enfim, ao trabalho do semioticista está no cuidado de
não tomar as figuras isoladamente,
mas por suas relações, não por sua relação com alguma “realidade” supostamente
unívoca e tomada como critério de avaliação do grau de racionalidade ou de
irracionalidade de construções do espírito, mas pelas relações internas que as unem
e a maneira pela qual essas relações fazem sentido por si mesmas: em poucas palavra,
ele se esforçaria por compreender a lógica que, articulando em profundidade todos
esses elementos, produz uma visão de mundo que tem sua coerência e sua razão
próprias. (LANDOWSKI, 2011, p. 75).

Toda essa discussão visa apontar para o fato de que o acadêmico que parte para
a escola não chega a seu destino desprovido de antecipações, como a de um dado
imaginário (ou figurativização, se rejeitarmos o termo) de professor que o atravessa. A
experiência, o vivível não se aparta de uma grade cultural que se interpõe. Mas entre
a crença e a experiência, há movimentos e possibilidades. Visando atender ao que
orienta Landowski, não nos interessa fazer uma caracterização da figura do professor
espalhada aqui e ali nos textos, mas considerar suas implicações, a lógica na qual se
assenta. Se o imaginário parece congelar os sentidos, a experiência pode ressignificá-
-los. Quando diferentes percepções entram em jogo, a complexidade vai se sucedendo
ao que antes poderia ser apenas simplificação e redução:
(3) Lindinalva
Antes de darmos início às observações, não sei por que, eu tinha uma visão meio
que utópica sobre o ensino público, achando que tudo seria maravilhoso e que
dependeria apenas do meu esforço para que as aulas pudessem render, MAS percebi
que o descaso dos alunos desestimula muito o professor. Se ele não tiver pulso firme
para lidar com eles, torna-se impossível iniciar a aula. Em uma aula de apenas 50
minutos, o professor passa 30 chamando atenção de alunos desordeiros. É por isso
que muitos acadêmicos comentam que o estágio é como uma peneira do curso, pois,
ao se deparar com a realidade do ensino público, muitos acabam desistindo, e só
conclui quem realmente deseja lutar por uma melhoria.
(4) Lívia
Toda vez que as meninas falam das suas experiencias nos estágios, fico pensando nas
minhas alternativas: me deparar com uma excelente profissional, na qual poderei me
inspirar... ou uma pessoa que vou sempre questionar: o que ela esta fazendo lá?...
então, espero.... que seja a primeira... Sei que ninguém é perfeito, mas espero
encontrar alguém que pelo menos se esforce.... Isso é que eu espero... Alguém que
tente, no minimo, se esforçar... afinal, ninguém sabe de tudo. Mas, se esforçar não é
impossível. Esse é o tipo de professor que quero encontrar...

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Em (3), encontramos a fala de Lindinalva, discorrendo acerca do que seria uma


revisão de suas expectativas. Depois das observações, aquelas lhe parecem, então, “utó-
picas”. Essa idealização remete à noção de que dependeria apenas do professor o resul-
tado das aulas, como um destinador, que controla e domina todo o processo. Lindi-
nalva passa a considerar que há fatores que escapam ao “esforço” do professor, como o
da resistência de parte dos alunos, os “desordeiros”. O texto de Lívia (4) também traz
uma expectativa caracterizada por uma forma de idealização. Sem ter dado início às
observações, avalia as postagens dos colegas da turma e, de certo modo, sabe que não
há apenas um modelo de docente a encontrar na sala de aula. Se a universidade se fixa
nos conteúdos e metodologias, parece pouco contribuir para a compreensão de que há
aspectos que não se concentram apenas no docente e que merecem atenção. Ensinar é
ensinar para um outro, que quer aprender ou que deve crer que deve aprender. Mas as
imagens das salas de aula das postagens falam de que ora não há quem queira ensinar,
ora não há quem queira aprender:
(4) Antônia
Eu, Antônia, quando cheguei à escola, pensei que ia encontrar uma turma mais
compreensiva, pois devido ao fato de ser à noite, eu achava que os alunos estariam
todos cansados e seriam mais responsáveis, e outra razão seria a de serem todos de
maior idade. Mas me enganei: os alunos não estão nem aí para a professora, nem
fazem o que ela pede.

As idealizações anteriores à experiência se deparam com as dinâmicas escolares


que são traduzidas muitas vezes disforicamente6. Quando não se colam ao esperado,
há gestos de recusa, mas, ao longo das discussões no fórum, as certezas do julga-
mento vão sendo reorganizadas, mediante as intervenções, umas que confirmam as
impressões expostas, outras que problematizam, apresentando divergências e novas
interpretações. Um dos exemplos das divergências, que apontam para outros sentidos,
dá-se quando dois estagiários falam de aulas em turmas do ensino noturno, no EJA
(Educação de Jovens e Adultos). A primeira acadêmica, Antônia (4), tece comentários
negativos sobre o que lá presenciou. Um outro, porém, Wilson (5), traz diferentes
impressões, o que leva os demais colegas a produzirem algumas conclusões sobre a
necessidade de evitar generalizações (6), (7) e (8):
(5) Wilson
No E.J.A. (Educação de Jovens e Adultos) do 9º ano A, a professora Ana trabalhou
com seus alunos a música Brasil de Cazuza, no intuito de associá-la com Brasil, que
pais é esse?, do Renato Russo. Seu objetivo com essas duas músicas foi relacioná-las
com a realidade do Brasil quando falamos em problemas econômicos e políticos. A
aula foi um sucesso, os educandos entenderam e participaram ativamente da aula.
Os alunos do E.J.A. são mais calmos e sabem que precisam aprender para poder
concluir o ensino básico, por isso são, na maioria, esforçados.

6
O termo relativo à metalinguagem da semiótica remete a uma avaliação negativa. “Disfórico” contrapõe-se a “eufórico” (positivo).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 239


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(6) Laura
Wilson, viu como você e a Aparecida têm visões diferentes do mesmo grupo? Mas é
mais fácil para as pessoas generalizarem tudo e dizer que à noite ninguém quer nada
e deixar por isso mesmo. Pretexto.
(7) Bianca
Exatamente! Tb7 percebi que os dois têm pontos de vista diferentes sobre o mesmo
tipo de turma...daí podemos concluir que cada um tem uma maneira de ver a sala de
aula e de lidar com ela...apesar dessa generalização que vc disse, Laura.
(8) Maura
Gente, é impressionante como cada experiência é única, cada escola, cada turma,
cada professor....Esse desafio é maravilhoso. Adooooro!!!!!

Quando se enriquece com as postagens, o que antes apontava para a existência


de um consenso encontra novas direções de sentido, que ampliam, na medida em
que modificam, as certezas anteriores. Em fóruns de Internet nos que se opina sobre
o conteúdo de matérias de jornal, por exemplo, muitas vezes temos a impressão de
que a “interação” pretendida não se efetiva, como se o que é dito antes fosse ignorado
pelos enunciados que se sucedem. Vistas na sua continuidade de texto polifônico, as
postagens só podem ser pensadas como diálogo pelas reiterações e paráfrases, sendo
comum estarem ausentes outras marcas linguísticas que evidenciem que o dizer alheio
é retomado ou considerado: muitos falam, mas não surgem traços de concordância ou
discordância e apenas a temática do texto inicial, o da matéria, parece ser levada em
conta, expandida por cada novo enunciador (SILVA e REIS, 2013). Há, contudo, no
fórum que aqui analisamos, um esforço comum, que vai se evidenciando quando o
enunciador convoca o outro, interpelando-o, convocando-o para o debate, pondo em
questão o que diz. Essa partilha vai então produzindo os efeitos pretendidos em nome
de um conhecimento que se constrói coletivamente, mediante o que em sociossemi-
ótica se designa como ajustamento (LANDOWSKI, 2005). Não se trata de garantir
novo consenso, mas de construir junto um conhecimento que pressupõe, também, o
lugar da dissidência.

B) REPETIR O JÁ SABIDO
Um risco que poderia esvaziar a proposta do fórum é de que o diálogo fosse des-
qualificado, o que ocorre, por exemplo, quando o estagiário apenas se limita a dizer o
que já seria supostamente tomado como verdade, não se afastando de uma certa obvie-
dade. Isso se dá seja pela citação de autores que falam da docência, mas sem maior cri-
ticidade nessa incorporação, seja pelo grau de generalidade das afirmações. Ocorrên-
cias dessa natureza foram identificadas quando solicitamos que, tendo sido realizadas
as atividades na escola, fossem apresentadas as conclusões, aquelas que levariam para o
relatório final. Assumindo, então, características do outro gênero (o relatório), surgem
citações que produziriam efeitos de autoridade para os argumentos apresentados (9):
7
Mantivemos na transcrição as abreviaturas comuns à escrita em diferentes gêneros da esfera digital.

240 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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(9) Maria
Bom dia a todos. Durante o período de estágio, pude perceber que a interação entre
professor-aluno não foi satisfatória, pois, infelizmente, a turma não permitia esse
contato mais próximo. Pretendo fazer o melhor possível para os meus futuros alunos.
Segundo Simões (2003), a atividade de docente é magnânima. Do professor do
terceiro milênio exige-se muito mais do que em qualquer época: vocação, competência
e aptidões emocionais, habilidade e consciência pessoal e relacional para possibilitar
o desenvolvimento cognitivo de seus alunos.
Espero que eu consiga ser uma boa professora.

A postagem de Maria (9) nos fornece muitos elementos para reflexão, mas nos
ateremos a alguns aspectos. A primeira observação que fazemos é de que há uma quebra
entre os enunciados. O efeito de subjetividade produzido pelas projeções de 1ª pessoa
(pude, pretendo, espero) pela saudação inicial (bom dia a todos) é interrompido pela cita-
ção de um possível teórico da educação, “Simões”. O dizer alheio, nesse sentido, parece
estar apenas justaposto, como uma necessidade de caráter argumentativo, mas pouco
incorporada ao todo do texto, com ausência de elementos que garantiriam a coesão. A
informalidade e o efeito de subjetividade abrem e fecham a postagem, e a afirmação to-
mada como verdadeira (em terceira pessoa e com um vocabulário mais técnico) fica um
tanto à deriva, com suas afirmações que exageram as capacidades que seriam “exigidas”
para o referido “professor do terceiro milênio”. Essa caracterização idealizada e recor-
rente em textos que tematizam educação contemporânea aponta uma direção precisa,
dada pela mudança de paradigma educacional em função de um mundo outro, com
novos paradigmas, à espera de um professor que a ele se adéque. Não vamos aqui discu-
tir as implicações dessa concepção, mas, a despeito de tudo o que as postagens vinham
trazendo de elementos, esse professor se apresenta com uma caracterização alheia a do
vivido durante as observações; ideal, imaginada, ainda que construída como evidente
pelos que a defendem. Assim, ao se buscar aproximação com a noção de relatório, o
dizer, rico com relação a angústias e impressões, vai sendo esvaziado.
Um outro caso desse esvaziamento encontramos em (10), também relativo à fase
final do estágio, quando a acadêmica faz uma espécie de síntese que pouco traz do que
foi discutido anteriormente. O gênero fórum prevê enunciados curtos, mas aqui a sín-
tese pretendida atua no sentido da generalização, em pouco atestando para a riqueza
das experiências anteriormente partilhadas:
(10) Tamara
Observando as aulas, pude perceber o quanto é árdua a carreira do professor. Estive
analisando como as turmas se comportavam e a metodologia usada pela professora.
Os conteúdos ministrados e sua sequência a cada aula. Observei ainda, de uma forma
geral, o comportamento de todos dentro do ambiente escolar.
Para mim, foi uma experiência muito válida, pois tudo que pude ver durante o estágio
serviu muito e ainda vai servir para a carreira docente. Foi o momento das descobertas,
o primeiro contanto direto com uma sala de aula como futura professora. Considero
como o momento crucial do curso. É exatamente neste período que o aluno descobre

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 241


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se realmente quer seguir a carreira de educador, pois as dificuldades são inúmeras e


sempre terão no dia a dia do professor.
Concluindo, as experiências são o que mais nos importa, pois é a partir delas que
poderemos executar um bom trabalho no futuro. O estágio supervisionado é onde
vamos à prática com base nas teorias obtidas durante o nosso aprendizado acadêmico.

Tamara foi uma das mais presentes no fórum, mas, nesse momento, escreve de
um modo que o resultado seria possível mesmo para quem não tivesse vivenciado ex-
periência alguma, apenas repetindo o já pressuposto: que o momento é relevante para
a formação do futuro professor etc. Isso possivelmente se explique pela contaminação
do gênero, pressupondo que um relatório deva necessariamente ter um tom mais ge-
neralizante e impessoal. Essa impessoalidade não sofre danos mesmo pelo emprego
da projeção de 1ª pessoa (pude, estive etc.) a que se somam outras projeções, a de 3ª
pessoa (É exatamente neste período...) ou de 1ª pessoa do plural (vamos), que concorrem
para o efeito de generalização. Afastando-se disso, também nessa fase de finalização das
discussões, encontramos o texto de Luís (11):
(11) Luís
Tive minha experiencia de observação no mesmo colégio em que minha mãe é
professora. Antes de iniciar, ela me avisou sobre o que estava por vir em relação
aos alunos. As reações e fatos ocorridos na sequência não me surpreenderam,
pois eu já esperava aquilo dos alunos que tinham como maiores dificuldades: A
DESMOTIVAÇÃO, A FALTA DE INTERESSE DAS FAMÍLIAS DOS ALUNOS
E A FALTA DE ESTRUTURA DO COLÉGIO. Minha única surpresa foi quanto
à desvalorização dos professores que tinham de se esforçar para planejar e executar as
aulas, lidar com as situações desfavoráveis em termos de estrutura e muitas vezes fazer
o papel dos próprios pais dos alunos.
Algumas vezes tive de tomar a frente das aulas enquanto a professora tinha de subir aula
em outras salas e notei que os alunos não se importavam, principalmente por saberem
que se a professora não os aprovasse eles seriam aprovados pela secretaria de educação
ou algum pedagogo iria até o colégio para reclamar e obrigar o colégio a aprová-los.
Como todos sabem, não tenho intenção de ser professor e não serei, estou aqui
apenas para ter um diploma, mas devo confessar que são totalmente absurdas as
condições de trabalho dos professores que têm de trabalhar na escola e em casa e
muitas vezes exercer funções que não correspondem a suas habilidades.

No exemplo de Luís (11), encontramos as antecipações a que nos referimos. Ou-


tras postagens trazem dados como esse: a universidade tematiza o universo escolar,
“sabe-se” o que é a realidade da sala de aula pelo que se diz aqui e ali. No caso acima, é
a mãe professora que alerta o estagiário, que, portanto não se “surpreende” por já espe-
rar que encontrasse “desmotivação, falta de interesse das famílias dos alunos e falta de
estrutura do colégio”. As antecipações, portanto, preparariam o docente em formação
para aspectos críticos da docência, relativos a problemas diversos. Mas, apesar desse já
sabido e anunciado, a surpresa se dá pela constatação da “desvalorização dos professo-
res” atribuída aos alunos (que saberiam de antemão da aprovação garantida) e a outros

242 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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sujeitos externos à sala de aula, mas cujo poder terminaria por incidir sobre a perda de
autoridade do professor (“secretaria de educação”, “pedagogos”). A isso se acresce a ne-
cessidade de que os docentes realizem ações que ultrapassam o previsto para seu “papel”
profissional, “exercendo funções que não correspondem a suas habilidades”.
Luís aqui toma partido dos docentes, relacionando os problemas inerentes às es-
colas (anunciados pela mãe) e os vividos no momento do estágio (desvalorização).
Outras postagens, no entanto, reduzem-se a concentrar suas críticas na figura do pro-
fessor, ignorando aspectos contextuais que relativizariam a autonomia do docente
frente a sua performance. Nesse caso, a motivação, atendendo a uma lógica interna do
sujeito, seria do âmbito de uma decisão que parte da sua interioridade, de um querer
que não precisa de uma causa exterior, mas nasceria naturalmente, por um esforço
individual. A desvalorização, ao contrário, situa o olhar sob uma dimensão social,
política, observando a existência de outros atores em cena. Para tornar mais clara essa
oposição, vejamos um fragmento das postagens a seguir:
(12) Marisa
Minha experiência com o estágio está sendo bastante proveitosa, mas rodeada de
problemas também. Percebo que colégio em que eu estou estagiando não é diferentes
dos outros. A professora aparenta estar muito cansada e desmotivada. Isso faz com
que os alunos se desmotivem. Mas, para mim ainda existe um motivo a mais para
queremos mudar essa realidade. Se observamos mais os nossos alunos, aguçá-los a
aprender de forma satisfatória eles vão querer sim aprender. (...)
(13) Bianca
Chego em casa triste mesmo, com o coração doendo...pensando em como a realidade
é triste... Fico me lembrando da carinha dos alunos, tentando imaginar algum futuro
para eles... Não sei qual a história da professora, não sei o que ela já enfrentou na
vida, mas, neste momento, ela é completamente ausente, não faz questão alguma de
tentar ao menos dar aula! Acreditem...ela praticamente não dá aula!
(14) Tamara
Tudo isso é reflexo da escolha de uma profissão não desejada.

Marisa (12), Bianca (13) e Tamara (14) analisam aqui o comprometimento dos
docentes na escola. Conforme defendem, os alunos se desmotivam pelo aprendiza-
do por encontrar o docente também desmotivado para ensinar. Marisa reconhece o
cansaço da docente e a consequente desmotivação, mas não problematiza razões que
poderiam tê-la levado a esse estado. Avalia as consequências e declara querer ser dife-
rente, propondo-se a agir para “mudar essa realidade”. Tudo estaria, nesse sentido, nas
mãos do professor, no seu querer: “Se observamos mais os nossos alunos, aguçá-los
a aprender de forma satisfatória eles vão querer sim aprender”. Assume, então, que
quer, o que resultará em bons resultados quando assumir a sala de aula. Bianca reage
com certa indignação e considera que pode haver uma história por trás do quadro
que presencia, mas que também desconhece: “Não sei qual a história da professora,
não sei o que ela já enfrentou na vida, mas, neste momento, ela é completamente

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 243


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ausente”. A história, portanto, não justificaria o presente e as ações empreendidas. Aí


também fica claro que tudo se inscreve na ordem de um querer. A docente em ques-
tão não quer, por isso “não faz questão” de ensinar. Tamara, enfim, acrescenta numa
única frase o que vê como causa primeira: “a escolha de uma profissão indesejada”. O
termo “escolha” também remete às instâncias do querer. A profissão surge no âmbito
de uma vontade, pressupostas outras possibilidades. O equívoco, portanto, estaria na
opção imprudente. Assim, ainda que sejam pensadas razões contextuais, “a história”
do professor, a desmotivação dos alunos, problemas relativos à escolha profissional, a
motivação é da ordem interna do sujeito e fundamental para desencadear o processo
de querer aprender nos alunos. Haveria aqui uma relação por contágio, construída
na interação, não por força de um fazer cognitivo, mas por uma relação de ordem
passional (LANDOWSKI, 2005a)8. Ausente esse desejo inicial (intrínseco, particular,
nascido na subjetividade), o ensino não se efetivaria. Os aspectos exteriores, contextu-
ais, não interessam, afinal, ou poderiam ser combatidos com a resistência individual.
Desvalorização e desmotivação reiteram-se ao longo das postagens e, seriam, en-
fim, faces de uma mesma moeda. A imagem da autoridade do professor, aquela que
corresponderia ao ideal, segundo uma dada figurativização, é esvaziada pela desvalori-
zação, seja ela por questões de ordem da remuneração insuficiente, seja porque o saber
do docente seja desqualificado (não correspondendo ao que se exige do “professor do
terceiro milênio”), seja porque sua autonomia é relativizada ou esgotada por ações
diversas. Há histórias, enfim, que levariam a esse estado de coisas. Do outro lado, está
o docente fragilizado, desmotivado, mas responsabilizado pelos caminhos que deverá
encontrar, para mudar por sua conta e risco, o cenário da educação.
Os acadêmicos, desse modo, falam do lugar de suas certezas, denunciando sua
decepção, mas, ao mesmo tempo, expressando vontade de prosseguir. A exceção é Luís
(11), que declara não querer ser professor, buscar apenas um diploma do ensino supe-
rior, mas é um dos mais atentos a limitações de natureza social e sua indignação não se
resume a culpabilizar o docente, mas em ampliar o horizonte para outras perspectivas.
O fórum, assim, configura-se como lugar de confronto e divergência de perspecti-
vas, que foram sendo levadas para a sala de aula da licenciatura, para que se ampliasse
o debate. O olhar que vê já interpreta, não sendo inocente. São muitos os olhares, mas
talvez poucos os sentidos e alguns já estejam traçados como verdades de antemão. O
diálogo e a experiência poderiam, contudo, pô-los em movimento.

8
A referência a Landowski aqui se dá unicamente pela apropriação do termo “contágio”, não porque esse teórico discuta as
problemáticas da ação pedagógica ou porque a visão aqui comentada fosse justificada.

244 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não discutimos aqui nossas intervenções no fórum, realizadas ainda por um mes-
trando que atuava conosco como um monitor, também tomando como objeto de pes-
quisa de sua dissertação o mesmo fórum (COELHO, 2013). Nossa atuação se dava no
sentido de provocar os estagiários a serem mais específicos, a repensarem suas conclu-
sões e, sobretudo, de um modo mais geral, para que se evitasse a pressa em culpabilizar
os docentes pelos possíveis insucessos considerados. Ressaltamos ainda que não nos
ativemos a considerar aspectos específicos relativos ao ensino que foram tematizados no
fórum (o trabalho com a leitura, os gêneros textuais, as aulas de gramática, etc.), res-
tringindo-nos a questões da interação e suas implicações para o ensino-aprendizagem.
Como já vimos analisando em relatórios em anos anteriores, há fatores na uni-
versidade que parecem favorecer um olhar sancionador, na medida em que a prática
(escola) não atende ao que prevê a teoria (universidade) (LIMA, 2011). Tanto nas au-
las presenciais quanto no fórum, insistimos que entre teoria e prática há intersecções e
lacunas e tanto prática quanto teoria se encontram dos dois lados, ainda que cada uma
das esferas privilegie uma ou outra.
O que temos aqui são, enfim, relatos de um processo de construção de conhe-
cimento que se orienta para a prática. Os sujeitos da pesquisa, então estagiários e
agora licenciados, partem nesse momento efetivamente para o exercício da docência.
Vão certamente assumir outras vozes, outras perspectivas, não estando prontos, na
medida em que o sujeito vai se constituindo como tal ao longo da vida. Nossa in-
tervenção se deu no sentido de que experimentassem a lógica de que o saber se pode
construir mediante diálogo e reflexão, em constante inacabamento, como partilha e
troca. Ao mesmo tempo, reiteramos que universidade e escola não estão apartadas,
que podem e devem seguir juntas, tendo em vista objetivos comuns. Não há uma
instância que sabe tudo e determina o fazer (destinador) sobre uma outra que deve
assumir cegamente o que deve fazer (destinatário). Podem ser parceiros, fazendo
juntas, por negociações e ajustamentos.
Inicialmente resistindo ao interesse pelo fórum, os estagiários aos poucos a ele se
dedicam e, ao final, os relatórios que tivemos em mãos mostraram-se mais ricos do que
os de semestres anteriores, a despeito de se limitarem apenas ao que foi vivenciando
como observação, cumprindo as orientações da referida etapa de estágio. Como um
texto coletivo, aberto, em movimento, o fórum possibilitou que muitos que estariam
silentes nas discussões da sala de aula aí encontrassem lugar de se expor, confirmando,
contestando ou reconfigurando pontos de vistas dos demais. Se acreditamos que há
um aprendizado que se faz com o outro, o recurso do fórum pode, portanto, mostrar-
-se produtivo nesse sentido. Não temos aqui indicadores de uma complexa construção
de natureza cognitiva, mas uma experiência de partilha. Não foram discutidas no
fórum teorias sobre o ensino, não havendo ao final um resultado que se caracterizasse

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 245


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por um sólida ou inédita produção coletiva, mas uma orientação para um modo de
ensinar e aprender.
Finalizando, retomamos uma das questões que aqui mereceram atenção. Longe
de reduzir os docentes a performances encerradas num papel, pensemos que, como
sujeitos, resistem a figurativizações e imagens congeladas, ainda que não desprezemos
seu pertencimento a um grupo profissional, os condicionamentos históricos, as obri-
gações contratuais, as orientações metodológicas. Há muito para considerar do ponto
de vista das associações e semelhanças, mas, como diz o poeta Carlos Drummond de
Andrade, em “Igual-Desigual”, num aparente paradoxo diante de todas as experiên-
cias que relaciona como “igualíssimas”,
o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho
ou coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho
ímpar (DRUMMOND, 1985, p. 537)

É isso que nos permite antever o encontro do inesperado (GREIMAS, 2004), nas
histórias que vão se fazendo.

REFERÊNCIAS
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poesia. v. 2. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.
BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru, SP: EdUSC, 2003.
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beres sobre a prática pedagógica: análise semiótica da interação em ambiente institucional
virtual Moodle. 2014. 95f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Língua e de Literatu-
ra) – Universidade Federal do Tocantins, 2014.
GREIMAS, Algirdas Julien.; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. São Paulo:
Contexto, 2008.
__________., Algirdas Julien. Da imperfeição. São Paulo: Hacker, 2002.
LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica. São Paulo: Perspec-
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_____. Passions sans nom. Paris: PUF, 2004.
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_____. De quoi l’imaginaire est-il le nom? Lexia, nuova serie, n. 7-8, p. 63-89, 2011.
_____. ¿Habría que rehacer la semiótica? Contratexto, n. 20, p. 127-155, 2012.
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LIMA, Geovana Dias.; SILVA, Luiza Helena Oliveira da. O. Imagens da escola na
perspectiva de docentes em formação: uma leitura semiótica. In: SILVA, L. H. O.;
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ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas,
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TOCANTINS. Projeto pedagógico do curso de Letras. Araguaína, TO: UFT, 2009 (mimeo).
Recebido em 31/03/2014.
Aprovado em 20/04/2014.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 247


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A FORMAÇÃO PRÉ-SERVIÇO DO PROFESSOR DE


LÍNGUA ESTRANGEIRA EM CURSO DE LICENCIATURA:
CRENÇAS E REFLEXÕES EM EXPERIÊNCIAS DE
ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM DIFERENTES
CONTEXTOS (SALA DE AULA E TELETANDEM)

PRE-SERVICE TRAINING OF FOREIGN LANGUAGE TEACHERS


IN LICENCIATE COURSE: BELIEFS AND REFLECTIONS ON
EXPERIENCES OF SUPERVISED TRAINEESHIP IN DIFFERENT
CONTEXTS (CLASSROOM AND TELETANDEM)
Marta Lúcia Cabrera Kfouri Kaneoya*

RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar resultados de um projeto de pes-
quisa institucional em Linguística Aplicada, no qual se busca compreender como ocor-
re a prática inicial docente em contextos diversamente configurados de ensino/apren-
dizagem de língua estrangeira (presencial e virtual), bem como de que maneira esses
contextos podem se favorecer mutuamente e favorecer a formação reflexiva e crítica do
professor de línguas, em/para um mundo contemporâneo. É possível perceber a atitu-
de reflexiva de quatro professores brasileiros de língua estrangeira (espanhol, inglês e
italiano) em formação inicial, especialmente quanto a alguns aspectos relacionados ao
processo de ensinar/aprender línguas, tais como papéis dos participantes; relevância
da interação significativa; culturas envolvidas; ensino de uma língua estrangeira e en-
sino da língua materna como estrangeira; ensinar e aprender línguas tipologicamente
próximas; constituição do lugar de aprender/ensinar. Os resultados indicam que a
experiência de vivenciar a dinâmica de um contexto didático convencional de ensino
de línguas (sala de aula), ao lado da experiência de ensinar e aprender em um contexto
de configurações didáticas virtuais (teletandem), foi especialmente importante para
a formação crítica dos futuros professores de línguas e para a conscientização sobre a
prática de ensinar línguas em tempos de inovação tecnológica.
Palavras-chave: formação de professores de línguas; ensino/aprendizagem de línguas;
contextos presencial e virtual.
ABSTRACT: This article aims to show the results of an institutional research in Ap-
plied Linguistics, which tries to comprehend how the initial teaching practice occurs
in diversely figured contexts of foreign language teaching-learning (on-site and vir-

*
Professor Assistente Doutor do Instituto de Biocências Letras e Ciências Exatas/UNESP/São José do Rio Preto.
E-mail: mlkfouri@ibilce.unesp.br.

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tual), as well as how such contexts may mutually favor and encourage reflective and
critical training of the language teacher in/for a contemporary world. It´s possible to
notice a reflective attitude of four Brazilian foreign language (Spanish, English and
Italian) teachers in initial training, especially regarding some aspects related to the
teaching-learning languages process, such as roles of the participants; relevance of
meaningful interaction; engaged cultures; teaching of a foreign language and mother
tongue teaching as foreign one; teaching and learning typologically similar languages;
constitution of the place to learn-teachIt´s possible to notice a reflective attitude of four
Brazilian foreign language (English, Italian and Spanish) teachers in pre-service edu-
cation, especially about some aspects of language teaching and learning process, such
as the role of the participants; the relevance of significant interactions; the involved
cultures; the teaching of a foreign language and the teaching of the mother tongue as
a foreign language; the teaching of similar languages as Portuguese and Spanish; and
the constitution of the place of teaching and learning languages. The results indicate
that the experience of experiencing the dynamics of a conventional didactic context
of language teaching (classroom), alongside to the experience of teaching and learning
in a context of virtual educational settings (teletandem), it was especially important
for the critical training of the future language teachers and to the awareness about the
practice of teaching languages in times of technological innovation.
Keywords: language teacher training; languages teaching-learning; on-site and
virtual contexts.

INTRODUÇÃO
O contexto brasileiro de pesquisas em Linguística Aplicada (LA) tem-se ocupado
de diversos estudos em torno da temática de formação de professores de língua es-
trangeira (LE), enfatizando estudos que analisam as formas de desenvolvimento e as
reflexões envolvendo práticas de ensino em contextos de formação inicial docente em
sala de aula (VIEIRA-ABRAHÃO, 2004; GIL et al., 2005; PIMENTA e GHEDIN,
2002; MAGALHÃES, 2004).
Em relação à formação de docentes em nível superior, Celani (2000) aponta ser
fundamental questionarmos até que ponto a Universidade vem preparando futuros
professores a lidarem com a linguagem enquanto elemento socialmente construído, a
partir de subsídios oferecidos pelo campo da LA. Na visão da autora, tal compreensão
é essencial para o trabalho do professor em sala de aula e, acrescentamos, em qualquer
ambiente de ensino/aprendizagem. É necessário, pois, que o futuro professor comece
a refletir, desde os anos iniciais do curso de licenciatura, sobre questões que envolvam
seu próprio processo de aprendizagem e seu trabalho futuro com a linguagem na cons-
trução de contextos sociais de ensino de línguas. Nesse sentido, poderá assumir posi-
cionamentos críticos e participativos no estabelecimento de políticas sociais relevantes
para o reconhecimento do valor da tarefa de ensinar línguas.

250 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Com vistas a discutir a problemática da formação docente do professor LE a


partir das ações envolvidas no estágio curricular supervisionado, apresentamos, neste
artigo, os resultados do desenvolvimento de um projeto institucional trienal com esse
enfoque1. Nesse sentido, traçamos um perfil de estagiário e de futuro licenciado em
Letras inserido em ambientes distintos de ensino/aprendizagem de línguas, o presen-
cial (sala de aula) e o virtual (teletandem), nos quais se deu o cumprimento de estágios
obrigatórios em LE. Acreditávamos que, nesses espaços, o estagiário poderia vivenciar
não somente a dinâmica dos contextos didáticos convencionais, por meio de regências
de aulas, mas também experimentar um contexto de configurações didáticas distintas
em relação ao processo de ensino/aprendizagem de línguas, em ambiente teletandem,
buscando aproximá-los, de maneira que a experiência do estágio pudesse contribuir
para sua formação e futura atuação como professor de línguas (CELANI, 2004; SA-
CRISTÁN, 2002; PIMENTA, 2002; BRAGA, 2007).
A pesquisa justificou-se, pois, pela busca em estabelecer reflexões críticas a respei-
to da formação e atuação pré-serviço do professor de línguas em uma universidade pú-
blica do interior paulista, desenvolvida em forma de estágio curricular supervisionado,
particularmente na disciplina de Estágio Curricular Supervisionado II: língua estrangei-
ra, oferecida nos últimos anos dos cursos diurno e noturno. Para tanto, tomamos por
base o Projeto de Estágio Curricular Supervisionado para o Curso de Licenciatura em Le-
tras, produzido em 2008, que, por sua vez, apoia-se no Projeto Pedagógico do Curso de
Licenciatura em Letras da Universidade, o qual leva em consideração, ainda, o disposto
no Parecer nº 1, CNE/CP, de 18/02/20022.
Parece-nos oportuno ao aluno-professor poder exercer, em sua formação inicial,
atividades de estágio em contextos distintamente configurados entre si, tal como se
caracterizavam os que aqui se apresentam, especialmente no que diz respeito, entre
outros aspectos, à análise dos papéis dos participantes, à importância atribuída ao
contexto e ao trabalho com a perspectiva cultural no ensino de línguas. Não podemos
deixar de esclarecer que, na proposta investigativa, também levamos em consideração,
como pré-requisito para o trabalho do estagiário, as discussões teórico-práticas desen-
volvidas nas disciplinas de Estágio Curricular Supervisionado I: língua estrangeira e Lin-
guística Aplicada: ensino de língua estrangeira, ambas oferecidas no penúltimo ano dos
cursos diurno e noturno. Tais disciplinas são vistas aqui como fundamentais para um
embasamento crítico do aluno-professor a respeito do papel que a LA vem ocupando
em contextos contemporâneos e desafiadores de formação de professores e de ensino/
aprendizagem de línguas.

1
Este estudo caracterizou-se como projeto de pesquisa de minha autoria, relativo ao triênio 2010-2012, cujo título original
é A formação pré-serviço do professor de língua estrangeira em curso de licenciatura: crenças e reflexões em experiências de estágio
supervisionado em contexto presencial (sala de aula) e mediado pelo computador (teletandem). Agradeço aos participantes da
pesquisa apresentados neste artigo, cujos nomes reais foram preservados, pela disponibilidade em participar do estudo e em
ceder os dados registrados.
2
Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de
licenciatura, de graduação plena.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 251


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A título de esclarecimento, salientamos que as atividades de prática propriamente


dita (observação e regência de aulas) são realizadas em escolas de ensino básico con-
veniadas com a Universidade, sob supervisão do docente responsável pelas disciplinas
de estágio e coma supervisão local dos professores de línguas das escolas-campo de
estágio. Além dessas atividades, prevê-se também o desenvolvimento de um projeto
que atenda às necessidades das escolas de ensino básico onde o aluno estagia, o qual,
caso não seja possível ou viável concretizar-se, por razões apresentadas pelo aluno ou
pela escola, deverá ser substituído por atividade em que o estagiário possa destinar
vinte horas para análise de materiais, instrumentos e programas oficiais de ensino ou,
ainda, outra atividade didática, tal como previsto no Projeto de Estágio Curricular
Supervisionado para o Curso de Licenciatura em Letras (p. 10). Tendo sido o campus
universitário em questão um dos locais de implementação do Projeto Teletandem Bra-
sil: línguas estrangeiras para todos (TELLES, 2006)3, no período em que a pesquisa
se desenvolveu, a atuação dos alunos-estagiários de Letras em tal projeto institucional
parecia-nos relevante para a investigação, no sentido de contemplar outra dimensão
formativa para uma futura prática do ensino de línguas.
Na tentativa de adiantar algumas considerações sobre os resultados da pesquisa,
podemos afirmar que, ao aliar experiências presenciais e virtuais de ensino/aprendizagem
de LE, os alunos-estagiários puderam redimensionar os conceitos por eles construídos
a respeito de ensinar e aprender línguas, especialmente quando se trata da língua e cul-
tura maternas, ao abordá-las a um estrangeiro. Ademais, nessa perspectiva renovada de
cumprimento de estágios, tiveram a possibilidade de refletir sobre e de (re)construir
crenças e expectativas a respeito da constituição do lugar de aprender/ensinar, o que,
como sabemos, já não se restringe à sala de aula de línguas. Por fim, nessa trajetória, os
alunos-estagiários puderam tecer apreciações a respeito de como os contextos de ensino/
aprendizagem estudados, o presencial e o virtual, puderam se favorecer mutuamente, no
intuito de atribuir novas significações ao ensino de uma LE que vão além dos conteúdos
linguísticos, rompendo fronteiras ideológicas, sociopolíticas, geográficas e culturais.

A CARACTERIZAÇÃO TEÓRICA DA PESQUISA


No que tange à fundamentação teórica do estudo, partimos de discussões sobre
a formação reflexivo-crítica do futuro professor no âmbito do estágio supervisionado
(VIEIRA-ABRAHÃO, 2001, 2004, 2005) e sua futura atuação em contextos de en-
sino diversos na era tecnológica (ZEICHNER E LISTON, 1996; NÓVOA, 1997;
PIMENTA, 2002; REAGAN e OSBORN, 2002; GHEDIN, 2002; ZEICHNER,
2003; DAWSON et. al., 2006; BRAGA, 2007). Tomamos, ainda, como referenciais
teóricos, as questões apontadas por diversos autores em torno do estudo de crenças
(re)construídas no discurso e na prática de alunos-professores DEWEY, [1910]1997;
3
O Projeto Institucional Teletandem Brasil: línguas estrangeiras para todos, financiado pela Fapesp, foi desativado em dezembro
de 2010, mas os docentes deram continuidade às atividades de pesquisa e de ensino/aprendizagem de línguas em teletandem,
em nível de graduação e de pós-graduação.

252 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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VYGOTSKY, 1998; VIEIRA-ABRAHÃO, 2004, 2006; BARCELOS, 2006; BORG,


2006). À luz dessas teorias, observamos que a formação inicial pode representar ao fu-
turo professor de línguas uma oportunidade de tomada de consciência crítica a respei-
to de suas crenças, pressupostos e conhecimentos prévios, tendo em vista a construção
de novos conhecimentos sobre teorias e práticas pedagógicas. No caso de a formação
inicial ocorrer em ambiente de teletandem, acreditamos que a reflexão pode assumir
um âmbito mais abrangente, pois experimentamos um novo contexto de aprendiza-
gem de línguas em uma realidade histórica marcada pela mediação tecnológica e pela
ausência do trabalho direto do professor. Portanto, havia muito sobre o que refletir de
maneira crítica, atividade que extrapola a abordagem simplista de reflexão sobre con-
teúdos (o que ensinar), normalmente enfocada na formação inicial acadêmica.
A formação do professor de português língua estrangeira (PLE), ou seja, neste
caso, a daquele que ensina sua própria língua como estrangeira, foi outro alvo teórico
na pesquisa em questão. Os trabalhos em torno da área de PLE têm constituído um
terreno crescente de pesquisas a respeito do ensino/aprendizagem de português para
falantes de outras línguas4. Nesse sentido, o ensino nessa área tem gerado reflexões
sobre aspectos importantes, porém, ainda pouco enfocados no campo da formação de
professores (ALMEIDA FILHO e CUNHA, 2007). O preparo de um professor de
PLE, tal como de um professor de línguas em geral, beneficia-se “dos conhecimentos
sobre o próprio processo de ensino/aprendizagem, sobre a natureza de uma língua
não-materna, sobre a cultura em que se insere a língua-alvo e a sua aprendizagem”
(ALMEIDA FILHO, 2004, p. 36), aspectos estes abarcados pela própria LA. Con-
sideramos igualmente relevante o pensamento do autor sobre a proximidade entre o
português e o espanhol gerar restrições e parâmetros na preparação e implementação
do ensino de português a seus falantes, como é o caso da pesquisa aqui descrita, já que
essas línguas são consideradas as irmãs da mesma família linguística (as neolatinas) que
mais possuem afinidades entre si (ALMEIDA FILHO, 2001, 2007). Complementan-
do essa visão, apoiamo-nos também nas discussões trazidas nas Orientações Curricu-
lares para o Ensino Médio: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (2006), nas quais se
vislumbra “o conhecimento sobre o outro e a reflexão sobre o modo como interagir
ativamente em um mundo plurilíngue, multicultural e heterogêneo, envolvendo-se
questões identitárias e de reflexão nas quais o papel da LM é inegável” (p. 150).

4
O termo língua estrangeira é atribuído ao português ensinado como outra língua, de acordo com a SIPLE – Sociedade
Internacional de Português Língua Estrangeira.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 253


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O TRAÇADO METODOLÓGICO DA INVESTIGAÇÃO E AS


PERGUNTAS DE PESQUISA
A pesquisa delineou-se como um estudo qualitativo de tipo etnográfico (AN-
DRÉ, 2000; RICHARDS, 2003; DUFVA, 2003; SÓL, 2005), permitindo-se um
tratamento interpretativista à análise e triangulação dos dados gerados e garantindo
mais confiabilidade à trajetória analítica (BURNS, 1999).
Os contextos de pesquisa, como já adiantado de início, foram às salas de aulas
presenciais de escolas de educação básica onde quatro licenciandos em Letras, Lorena,
Marcela, Roberto e Silvana, desenvolveram estágios supervisionados obrigatórios, sob
forma de regência de catorze aulas de LE, e, ainda, o ambiente teletandem, no qual
esses estagiários desenvolveram vinte interações de ensino/aprendizagem de línguas,
o português e a língua de proficiência dos parceiros estrangeiros, que deveria ser a
mesma em que os licenciandos concluiriam suas habilitações (espanhol, no caso de
Marcela, inglês, no caso de Lorena, e italiano, no caso de Roberto e Silvana)5. A título
de esclarecimento, o ambiente teletandem envolve pares de falantes nativos de diferen-
tes línguas trabalhando, de forma colaborativa, para aprender o idioma um do outro,
sem a presença de um professor, a partir dos princípios da reciprocidade, bilinguismo
e autonomia na aprendizagem de línguas. As interações se estabeleceram por meio de
programa de mensageria eletrônica (Skype), que permitiu aos interagentes utilizar, em
tempo real (comunicação síncrona), recursos de voz, texto (leitura e escrita) e imagens,
a partir do recurso de uma webcam (para mais detalhamento do ambiente teletandem,
consulte www.teletandembrasil.org).
Assim, consideramos como dados primários as gravações em áudio de duas aulas
de cinquenta minutos de regência e de uma sessão de duas horas de teletandem, de-
senvolvidas por cada um dos participantes. Como dados secundários, foram utilizados
os obtidos por meio de uma sessão de visionamento com cada participante e de uma
sessão reflexiva, em grupo, realizadas com minha mediação enquanto pesquisadora-
-formadora, os registros dos perfis e dos diários de bordo dos licenciandos sobre as
interações e as regências, na plataforma Teleduc, além do relatório de Iniciação Cien-
tífica (IC) de um dos participantes, onde encontramos uma análise do ponto de vista
de uma das alunas-estagiárias, que foi contemplada com uma bolsa de IC (PIBIC-
-Reitoria) para desenvolver esse trabalho como pesquisa6 Reuniões de orientação me-
todológica e de estudo teórico entre estagiários e pesquisadora foram igualmente con-
sideradas como dados secundários.
As perguntas que nortearam a investigação foram duas: a) Como se caracteriza a
formação pré-serviço de alunos-professores de línguas de um curso de Letras de uma
5
Não foi possível que licenciandos em Português-Francês, a outra habilitação oferecida no campus envolvido, fizessem parte da
pesquisa, já que não havia interagentes estrangeiros de francês disponíveis para fazer teletandem com os estudantes brasileiros,
o que inviabilizaria a proposta investigativa.
6
Todos os dados foram registrados e analisados com o devido consentimento dos envolvidos.

254 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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universidade pública, por meio de experiências de ensino de línguas em estágio su-


pervisionado, em contextos presencial (sala de aula) e virtual (teletandem) de ensino/
aprendizagem de LE? b) Em que medida as crenças e expectativas dos alunos-profes-
sores se transformam ao longo da experiência de estágio, no sentido de promover ou
não reflexões a respeito da formação docente em/para diferentes contextos de atuação?

UM RELATO DA ANÁLISE DOS DADOS:


CONTRIBUIÇÕES PARA A FORMAÇÃO CRÍTICA E PARA
A (RE) CONSTRUÇÃO DE CRENÇAS DOS FUTUROS
PROFESSORES DE LÍNGUAS
Os dados analisados sugeriram que a participação na investigação proposta foi
bastante significativa aos quatro alunos-professores em formação inicial para atuar
em suas LEs de habilitação. Já no registro de seus perfis, os participantes indicaram
ter expectativas positivas em relação a interagir em teletandem, tais como praticar a
LE de formação com um falante proficiente e conhecer melhor traços culturais dessa
LE, entender como se dá o ensino de português a um falante de outra língua e buscar
contribuições nessa prática para seus estágios de regência em contexto presencial. De
maneira geral, os alunos-professores avaliaram que as contribuições para sua formação
como futuros docentes deram-se de maneiras distintas, principalmente porque cada
qual vivenciou experiências diversas em suas parcerias de teletandem, tal como apon-
taram nos registros de seus diários de bordo.
É importante esclarecer que todos realizaram seus estágios em escolas públicas,
sendo que Marcela, Roberto e Silvana estagiaram em um centro de estudos de lín-
guas, projeto público voltado a alunos da rede estadual paulista de ensino, enquanto
Lorena realizou as regências em uma escola da rede oficial de ensino. Em relação ao
teletandem, os estagiários faziam suas interações em computador pessoal ou no am-
biente institucional, em laboratório da Universidade. Nas sessões de visionamento,
realizadas com cada participante, os estagiários puderam relatar as particularidades de
cada experiência, bem como refletir sobre a maneira como cada contexto (sala de aula
e ambiente virtual) favoreceu-se mutuamente, ou não. Já na sessão reflexiva, realizada
ao final da pesquisa, os quatro alunos-professores discutiram em conjunto, com minha
mediação, aquilo que foi mais relevante para sua formação inicial docente, em termos
de participação na pesquisa.
Para Lorena, a licencianda em português-inglês, as principais contribuições de-
ram-se em relação a alguns fatores específicos. O primeiro deles diz respeito à sua for-
mação linguístico-comunicativa e cultural, já que a participante se sentiu beneficiada
pelas interações em teletandem com um estadunidense, Alex, que vivia na Virgínia,
onde trabalhava no laboratório de línguas de uma Universidade. Ele era casado com
uma brasileira, tinha um nível avançado de proficiência em PLE, além de ser fluente

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 255


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em alemão, italiano, francês, espanhol, latim e grego. Lorena salientou que, como
interagente de Alex, teve oportunidades para melhorar sua fluência na LE, além de ter
aprendido mais vocabulário e compreendido aspectos culturais do país do interagente,
a partir de uma visão mais crítica e menos idealizada sobre os fatos.
Em relação à motivação e à autonomia para ensinar e aprender LE, Lorena valori-
zou a afetividade (paciência e amizade mútuas) presente nas interações, aspecto que cer-
tamente contribuiu positivamente para o processo de ensino/aprendizagem das línguas
e culturas (inglês e português) em meio virtual. A escolha de conteúdos em parceria e de
estratégias de aprendizagem com as quais ambos mais se identificavam também propor-
cionou maior autonomia em relação às línguas aprendidas. Quanto à contribuição en-
tre contextos diversamente configurados (o presencial e o virtual), Lorena afirmou que,
ao contrário do que ocorria nas interações em teletandem, as aulas de regência tiveram
como ponto de referência os conteúdos dos cadernos da proposta curricular paulista
para o ensino de inglês, material distribuído nas escolas, embora a estagiária pudesse
complementar livremente as atividades, desde que as cumprisse, tal como a orientou
a professora responsável da escola-campo de estágio. Essa diversidade de configuração
de contextos foi analisada pela participante como um aspecto propulsor em relação às
possibilidades de contribuição de um contexto pelo outro, levando-a a agir pedagogica-
mente em busca desse diálogo nos contextos nos quais atuou, e contribuindo, no exer-
cício do estágio curricular supervisionado, para sua formação reflexiva e crítica como
futura professora de línguas. Além disso, a temática das aulas presenciais impulsionava
a interação em teletandem, gerando enriquecimento linguístico-comunicativo e cultu-
ral, tanto para a brasileira quanto para seu interagente estadunidense.
Por fim, Lorena refletiu sobre ter vivenciado um significativo crescimento em sua
formação inicial na universidade, já que a experiência das interações em teletandem
melhorou seu desempenho oral enquanto aluna de língua inglesa, aumentou sua au-
toestima e diminuiu a timidez em relação à prática da LE, além de ter ampliado seus
conhecimentos de mundo para a apresentação de seminários obrigatórios em discipli-
nas. A participante também relatou que as interações tiveram um significado especial
quanto ao fato de ter podido apresentar a Alex alguns poetas brasileiros, alvos de sua
pesquisa de iniciação científica na universidade.
No caso de Marcela, licencianda de português-espanhol, a experiência desenvolvi-
da durante a pesquisa deu-se de forma distinta da de sua colega, pois Marcela estagiou
em ambiente específico de ensino de LE, um centro de estudos de línguas, projeto da
rede estadual paulista direcionado a alunos matriculados a partir do 6º ano do ensino
fundamental, que podem optar pela língua que desejam cursar, gratuitamente, no cen-
tro (neste caso, as línguas oferecidas são o espanhol, o francês e o italiano). Os cursos
têm duração de seis semestres.
Em relação ao teletandem, a estagiária conseguiu interagir com dois parceiros
mexicanos, Juan e Ariel, que já estudavam português e tinham interesses gerais na

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língua e na cultura brasileira. Ambos eram estudantes no curso de “Ciencias de la In-


formación” e trabalhavam em uma emissora de rádio. No caso específico de Marcela, a
estagiária já havia tido a experiência de interagir em teletandem antes, tendo realizado
dois estágios básicos nessa modalidade. Conforme registrado em seu perfil do Teleduc,
Marcela acreditava possuir uma ideia mais clara dos fatores de proximidade e de dis-
tância entre as línguas trabalhadas e das vantagens de se aprender e se ensinar línguas
em meio virtual, especialmente quanto à convergência de aspectos culturais, sociais e
psicológicos (JESUS, 2010). Vale lembrar, ainda, que sua participação nesta pesquisa
rendeu-lhe, simultaneamente, o desenvolvimento de uma investigação de iniciação
científica sobre ensino/aprendizagem de línguas próximas (português-espanhol), da
qual fui orientadora, e que, posteriormente, foi ampliada e transformou-se em investi-
gação de mestrado em andamento sobre a temática da interculturalidade na formação
do professor de PLE.
Nesse sentido, podemos afirmar que os dados obtidos por meio das sessões refle-
xivas e de visionamento7, bem como pelos registros de diários de bordo de Marcela,
sugerem algumas contribuições importantes, primeiramente, quanto ao diálogo es-
tabelecido entre o contexto virtual (teletandem) e o presencial (sala de aula), já que
Marcela conseguiu realizar uma interação em teletandem entre seus parceiros mexica-
nos e os alunos de espanhol de uma turma do centro de línguas, com a qual cumpria a
modalidade de estágio de regência. Para a estagiária, isso possibilitou uma conexão dos
alunos com os estrangeiros, pois os aprendizes de espanhol tiveram a oportunidade de
interagir, no próprio espaço da sala de aula, com dois falantes proficientes e nativos da
língua, o que se constituiu como uma rica oportunidade para que refletissem sobre as
diferenças entre duas pessoas de uma mesma cultura, desmitificando, talvez, um pensamen-
to estereotipado de igualdade entre pessoas de mesma nacionalidade, língua e cultura, tal
como afirma Marcela em seu relatório de iniciação científica. A estagiária também no-
tou nos alunos brasileiros uma preferência por tratar de temas culturais com os intera-
gentes mexicanos, deixando, em segundo plano, questões que envolvessem gramática.
Ficou claro para ela que os alunos valorizaram a oportunidade de trocar informações
e ampliar conhecimentos culturais sobre o Brasil e sobre o México, ora comparando
ora aproximando as duas culturas. Além do mais, Marcela teceu reflexões sobre o fato
de que a inserção do contexto virtual no presencial pareceu ter gerado contribuições
também para a professora da turma, a qual teve a oportunidade de ampliar seus co-
nhecimentos sobre o idioma espanhol pelo ponto de vista de interagentes inseridos
em uma cultura mexicana, de modo que ela também pôde tirar proveito da interação.
Outro ponto que chamou a atenção de Marcela durante as regências envolveu um
olhar reflexivo sobre os motivos para a escolha do espanhol como LE pelos alunos do
centro de línguas. A estagiária notou que os principais fatores que determinavam a es-
7
A sessão de visionamento é aquela em que participante e pesquisador se reúnem, no intuito de que o participante, tendo
assistido ou ouvido sua atuação pedagógica previamente, escolhe trechos que queira comentar ou analisar junto com o pes-
quisador, realizando um visionamento sobre sua prática. Na sessão reflexiva, o grupo todo se reúne com o pesquisador, no
intuito de discutir as práticas de cada participante da pesquisa, fazendo comentários ou sugestões.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 257


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colha da LE estudada revelaram, basicamente: que há uma motivação intrínseca (gosto


pela língua) e uma motivação extrínseca (oportunidades de trabalho) que os move
a essa opção, especialmente nos estágios iniciais e finais do curso, respectivamente;
que o fato de o espanhol e o português serem línguas tipologicamente próximas não
é relevante para os alunos e que estudar uma LE irmã de sua LM não lhes garante a
facilidade do processo de aprendizagem.
Em termos de reflexão sobre o desenvolvimento de suas estratégias e crenças a
respeito de ensinar LE, Marcela afirma que as principais utilizadas por ela em ambos
os contextos de atuação foram a de correção no momento do erro e a de escrever as pa-
lavras e frases desconhecidas dos aprendizes, para facilitar a visualização do vocábulo,
propiciar o contato com a língua escrita e, dessa forma, facilitar a compreensão da LE por
parte dos aprendizes, conforme registrado em diário de bordo. Além disso, essas estraté-
gias facilitaram seu desempenho como tutora da LM nas interações com os mexicanos,
levando-a a refletir quanto às particularidades de se ensinar sua própria língua como
estrangeira, oportunidade que, segundo ela, não havia vivenciado, até então, em sua
formação acadêmica. Isso a levou a desenvolver uma capacidade de mais autonomia
para ensinar, promovida, em sua visão, mais nas interações em teletandem do que na
sala de aula. Para Marcela, a interferência da maneira de trabalhar da professora titular
da turma da regência fez com que sua liberdade metodológica ficasse comprometida,
o que não aconteceu na interação, considerada a própria configuração do contexto
teletandem, no qual os interagentes negociam o que e como desejam aprender, não
havendo, inclusive, a figura centralizadora de um professor.
Finalmente, no caso dos licenciandos de português-italiano, temos uma confi-
guração diferente, já que Roberto e Silvana trabalharam em dupla, mas, tal como as
outras participantes, registraram em seus perfis expectativas muito próximas em rela-
ção ao sucesso que a experiência de atuar em contextos diferentemente configurados
poderia representar para sua formação inicial docente.
Ambos também estagiaram no centro de línguas acima referido, porém, a experi-
ência como o teletandem desenvolveu-se com uma única parceira italiana, Alessandra,
estudante em Firenze, onde residia. Enquanto participante do Projeto Teletandem pela
parceria firmada entre as universidades brasileira e estrangeira, a italiana acabou vindo
para o Brasil e passando alguns dias com seus parceiros brasileiros. Nessa visita, os esta-
giários levaram-na ao centro de línguas, onde realizou com os alunos um tandem pre-
sencial. Dessa experiência, a principal contribuição apontada pela dupla de estagiários
foi quanto à possibilidade de alunos brasileiros conhecerem uma estrangeira falante da
LE. Roberto e Silvana apontaram este aspecto como sendo o mais importante da expe-
riência de estagiar em dois contextos diversamente configurados, já que a presença de
uma estrangeira no ambiente de aprendizagem de LE dos alunos ampliou seu universo
linguístico e cultural, ao mesmo tempo em que encurtou a distância entre as línguas e
diminuiu os mitos em relação ao estrangeiro. Os alunos puderam conhecer melhor os

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hábitos de uma jovem falante de outra língua e reconhecer neles muito de seus próprios
hábitos, criando-se, assim, uma identificação mútua. O trabalho da professora da escola
campo de estágio também foi beneficiado, tal como ocorreu no caso de Marcela, no
que diz respeito ao uso real da língua em sala de aula, a partir de aspectos como entona-
ção, pronúncia, vocabulário, expressões comunicativas e valores culturais.
Por terem tido a companhia da interagente italiana por algum tempo no Brasil, os
estagiários também contaram com a possibilidade de receber uma tutoria em relação
às possíveis dúvidas sobre o conteúdo que tinham de tratar nas regências, vista como
outro benefício nesse contexto. Tal fato colaborou para um ensino da LE mais eficien-
te e atrativo para os alunos, na sala de aula, já que a professora da turma não interferiu
nas escolhas metodológicas feitas pelos estagiários, apenas direcionou-os em relação
aos conteúdos que teriam de cumprir. Nesse sentido, Roberto e Silvana apontaram um
ganho para sua formação linguístico-comunicativa, cultural e acadêmica (sessão de visio-
namento), promovido, especialmente, pelas trocas linguísticas e culturais realizadas
entre estagiários e interagente italiana em teletandem, antes de ela vir ao Brasil, bem
como as possibilidades para que essas trocas se intensificassem em tandem presencial,
durante sua estada no país.
Entretanto, diferentemente das outras participantes, os estagiários de português-
-italiano apontaram um aspecto problemático na interação com a parceira estrangeira,
ocorrido especialmente com Roberto. Tratou-se de um entrave de ordem afetiva, já que,
ao vir para o Brasil e estabelecer um contato mais próximo de seus interagentes brasi-
leiros, Alessandra acabou se declarando interessada afetivamente por Roberto, que não
correspondeu ao sentimento, inclusive para preservar, segundo ele, a relação acadêmica
de ensino/aprendizagem de LE proposta pelo projeto Teletandem Brasil (sessão de visiona-
mento). A partir desse momento, a relação entre a interagente italiana e os interagentes
brasileiros, estagiários e participantes desta pesquisa, foi interrompida, e, da mesma
forma, a possibilidade de irem a Itália, naquela ocasião. Roberto e Silvana acreditam
que esse foi um aspecto negativo da proximidade com a interagente, já que, em sua
opinião, nem todos os interagentes conseguem, talvez por falta de orientação adequada,
ter a mesma percepção dessas experiências, ou seja, a do envolvimento estritamente aca-
dêmico e investigativo proporcionado nas parcerias institucionais, o que acaba gerando
desentendimentos e compreensões equivocadas nesse tipo de relacionamento virtual.
Retomando as perguntas de pesquisa propostas para o estudo, vimos que a pos-
sibilidade de aprimorar, em um ambiente virtual de ensino/aprendizagem de línguas,
conhecimentos sobre a língua e a cultura estrangeiras na qual seriam em breve habili-
tados, atribuiu à formação inicial docente dos quatro licenciandos participantes uma
significação renovada, à medida que promoveu também um aumento de sua autoes-
tima, tanto como futuros professores de línguas quanto como alunos universitários
de LE. As interações igualmente lhes garantiram impulso para o estudo de questões
de língua que puderam ser mais bem compreendidas quando vistas pela ótica de um

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 259


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falante proficiente que está de fato disposto a ensinar sua língua, a partir de sua in-
serção em um contexto linguístico-cultural específico. Apontamos, ainda, um aspecto
comum na experiência dos quatro estagiários participantes, e que se remete ao ensino
do PLE promovido nas interações em teletandem. Todos se sentiram motivados a
favorecer o parceiro a aprender sua língua de proficiência, o que fez a situação de inte-
ração ser uma troca, na qual um ajudava o outro a melhorar suas habilidades na língua
que queriam aprender, ao mesmo tempo em que lhes deu oportunidades de refletir
sobre o ensino de sua própria língua como estrangeira e sobre o ensino das LEs de ha-
bilitação para alunos da rede escolar oficial. Por outro lado, ficou claro para todos que
a habilitação para ensinar PLE não é contemplada no curso de licenciatura, no sentido
de que não há formação adequada para essa atuação, nem mesmo a direcionada aos
interagentes brasileiros em teletandem. Portanto, essa é uma das limitações sobre as
quais nos pusemos a refletir a partir desta pesquisa, em relação a como se caracteriza a
formação pré-serviço desses alunos. A análise dos dados nos mostrou que é necessário
nos encaminhar a r um trabalho de formação docente nesse sentido.
No que se refere às crenças e expectativas dos participantes, notamos, claramente,
que houve um encontro entre o que eles esperavam sobre atuar virtualmente no ensino
de LE e o que de fato ocorreu, no sentido de que as experiências foram muito positivas
e motivadoras para todos. Houve também uma confirmação de expectativas sobre a
contribuição de um contexto para o outro, ao se refletir sobre os ganhos obtidos tanto
ao ensinar em sala de aula quanto ao ensinar em teletandem. Ao aproveitar as expe-
riências trazidas de um contexto para o outro, houve possibilidade de os estagiários
trabalharem de forma mais adequada aspectos gramaticais e de vocabulário, principal-
mente, mas também aspectos culturais das línguas envolvidas. Outras questões impor-
tantes e que foram alvo de reflexão acentuada da parte dos estagiários remeteram às
crenças sobre o ensino da própria língua para um estrangeiro, especialmente quando
se tratou de línguas próximas, como no caso do português-espanhol e à importância
da compreensão do lugar da afetividade nas relações de ensino/aprendizagem, como
nos casos de português-inglês e português-italiano.
Os resultados nos mostraram, ainda, que a inserção de ambientes virtuais de en-
sino/aprendizagem de línguas em espaços convencionais de ensino trazem benefícios
mútuos e atingem positivamente professores em formação e já em atuação e alunos,
que passam a ter a oportunidade de interagir com estrangeiros e a encontrar mais sen-
tido nas relações entre as línguas e culturas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, apresentamos os resultados de uma pesquisa institucional sobre for-
mação inicial de professores de línguas, na perspectiva da LA, tendo como foco a
formação reflexiva de estagiários a respeito de suas crenças e expectativas quanto ao

260 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

processo de ensinar e aprender línguas em contextos diversamente configurados, a sala


de aula (contexto presencial) e o ambiente teletandem (contexto virtual), no cumpri-
mento de estágios curriculares supervisionados.
Podemos considerar que, para os participantes, foi importante vivenciar, em sua
formação inicial docente, a dinâmica dos contextos didáticos convencionais e virtuais
de ensino de LE. Os dados igualmente indicam que houve oportunidades de reflexão
crítica sobre as expectativas e crenças iniciais dos quatro licenciandos a respeito do
papel dos interagentes para o estabelecimento e o sucesso das interações virtuais; da
importância de interagir sobre temas significativos, sobretudo os relativos às culturas
envolvidas, o que pode facilitar o desenvolvimento de ações pedagógicas mais bem
sucedidas em sala de aula; da possibilidade de melhorar o ensino da LE e de praticar
o ensino de LM como estrangeira; da importância da valorização da autoestima na
carreira docente, a partir da conscientização sobre sua importância desde a formação
inicial; da conscientização sobre o diálogo possível entre diferentes lugares de apren-
der/ensinar línguas, já que a sala de aula deixou de ser o único espaço pedagógico na
atualidade; do papel da universidade no oferecimento de oportunidades inovadoras
de formação docente em LE, beneficiando, assim, os demais envolvidos no processo
de ensinar/aprender, como alunos e professores em atuação. Finalmente, podemos
confirmar que houve um aproveitamento mútuo entre sala de aula e teletandem, no
sentido de melhorar a atuação dos participantes em seu duplo papel: o de professor em
formação e o de interagente em um contexto inovador de aprendizagem de línguas.
Concluímos que a investigação realizada permitiu que futuros professores de lín-
guas se conscientizassem da importância do estágio curricular supervisionado em sua
formação, tanto como espaço para reflexão quanto para reconstrução de crenças em
torno do ensino e da aprendizagem de LE. Da mesma maneira, é nessa disciplina que
os estagiários encontram oportunidades para experienciar o ensino de línguas e estu-
dar suas peculiaridades em contextos com configurações diversas, corriqueiramente
constituídos no mundo contemporâneo, porém, nem sempre tomados adequadamen-
te como espaços para a ação pedagógica.

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Recebido em 20/02/2014.
Aprovado em 19/03/2014.

264 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


INCLUSÃO
Universidade Federal da Grande Dourados

ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM EDUCAÇÃO DE


SURDOS NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA:
RELATO DE EXPERIÊNCIA

SUPERVISED TRAINEESHIP IN DEAF EDUCATION


FROM THE PERSPECTIVE OF INCLUSIVE EDUCATION:
AN EXPERIENCE REPORT
Michelle Nave Valadão*
Carla Rejane de Paula Barros Caetano**
Juliana da Silva Paula***

RESUMO: O presente artigo relata uma experiência de estágio supervisionado em


educação de surdos na perspectiva da educação inclusiva, promovido pela área de
Língua Brasileira de Sinais, do Departamento de Letras e Artes da Universidade Fe-
deral de Viçosa, permitindo uma discussão acerca da formação inicial de professores.
A proposta possibilitou experiências referentes ao processo de ensino-aprendizagem
por meio de metodologias de ensino e de práticas didáticas, as quais se mostraram
facilitadoras desse processo. Os resultados apontam para novos significados da Libras
na formação dos professores, para aproximação de uma educação inclusiva e para a im-
portância da disseminação dessa língua a partir de um viés linguístico e educacional.
Palavras-chave: Língua Brasileira de Sinais; surdez; formação de professores.
ABSTRACT: This paper aims to report an experience of supervised traineeship in
deaf education from the perspective of inclusive education, promoted by the area of
the Brazilian Sign Language (BSL), from the Department of Languages and Arts, at
Federal University of Viçosa, allowing a discussion around the initial teacher training.
The proposal allowed experiences related to the teaching-learning process that langua-
ge through teaching methods and teaching practices, which proved to assist this pro-
cess. In this context, the results point for new meanings of BSL in teacher training, for
the approach of an inclusive education and for the importance of the dissemination of
this language departing from a linguistic and educational perspective.
Keywords: Brazilian Signal Language; deafness; teacher training.

*
Professora Adjunta da área de LIBRAS do Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa - UFV.
E-mail: michellenave@yahoo.com
**
Especialista em Psicopedagogia e em LIBRAS. Tradutora-Intérprete LIBRAS/Língua Portuguesa: carlarpbcaetano@gmail.com
***
Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Viçosa - UFV. E-mail: juliana.paula@ufv.br

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 267


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INTRODUÇÃO
A Língua Brasileira de Sinais – Libras ‑ vem sendo alvo de pesquisas em Linguísti-
ca Aplicada, quando se trata de discutir questões e problemas referentes ao seu proces-
so de aquisição como segunda língua por ouvintes e como língua materna por surdos,
alfabetização e letramento de surdos, direitos em relação ao seu uso e formação de
professores. Na perspectiva da linguagem como elemento processual, as investigações
na área de Libras apoiam-se nas concepções de Grabe (2002) ao recomendar estudos
que enfatizem as noções de conscientização linguística envolvidas na aprendizagem de
línguas, os padrões existentes na interação professor-aluno, a aprendizagem a partir de
interações dialógicas e o papel do professor como pesquisador.
No relato aqui apresentado, o foco é ampliado para as questões educacionais no
sentido de refletir acerca dos conflitos comunicativos relacionados à língua de sinais,
interpretando-os de maneira a contribuir para novas possibilidades de atuação que vi-
sem à melhoria da qualidade social da educação ofertada às pessoas surdas. A iniciativa
é consequência das recentes discussões vivenciadas no Brasil, no campo das políticas
públicas voltadas para a surdez. Nessa conjuntura, algumas conquistas foram alcança-
das como a Lei no 10.432, de 24 de abril de 2002 (BRASIL, 2002), que reconheceu
a Libras como meio de comunicação e expressão da comunidade surda brasileira; e
o Decreto no 5.626, de 22 de dezembro de 2005 (BRASIL, 2005), que, entre outras
providências, instituiu a obrigatoriedade do oferecimento da disciplina de Libras aos
cursos de formação de professores.
Ao adentrar os espaços de ensino superior, a disciplina de Libras proporcionou
mudanças no processo de formação inicial dos professores, desencadeando reflexões
acerca da prática docente no contexto da educação das pessoas surdas. Por causa disso,
verificou-se a urgência de se constituírem propostas que estabelecessem uma interlo-
cução entre a formação acadêmica e a atuação profissional sob a orientação das de-
mandas da sociedade. O estágio supervisionado em educação de surdos, na perspectiva
da educação inclusiva, torna-se um importante processo para a formação acadêmica de
licenciandos que visualizam uma atuação nessa perspectiva.
Essa modalidade de estágio amplia as estratégias de formação do futuro professor,
além de aproximar universidade e sociedade com vistas ao desenvolvimento de uma
educação que abarque as diversidades presentes na escola, podendo ser oferecida com
qualidade e equidade. Nessa conjuntura, o professor precisa ser preparado para ofe-
recer, inclusive aos alunos com surdez, um ensino que possibilite o desenvolvimento
pleno e global de todas as suas potencialidades, entendendo as singularidades envol-
vidas nessa condição. O momento histórico atual revela que, para os alunos surdos, a
qualidade social da educação só será possível se for pautada na abordagem bilíngue,
ou seja, abrangendo o uso da Libras como língua de instrução, e metodologias de en-
sino que atendam às especificidades dos alunos surdos para o aprendizado da segunda
língua, a Língua Portuguesa.

268 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

Na região de Viçosa, parte desses futuros educadores hoje é representada pelos


graduandos dos cursos de Licenciatura da Universidade Federal de Viçosa - UFV.
Logo, essa modalidade de estágio supervisionado consolida-se por ser um importan-
te laboratório de professores, colaborando para a melhoria das práticas pedagógicas.
Além disso, inicia uma caminhada em busca de transformações nos contextos educa-
cionais e sociais, principalmente voltadas para aqueles que, por muito tempo, perma-
neceram à margem desses contextos.
O objetivo deste relato é descrever uma iniciativa de estágio supervisionado em edu-
cação de surdos na perspectiva da educação inclusiva e, a partir das experiências didáticas
e metodológicas, melhorar e dinamizar o processo de formação inicial do professor.

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA EDUCAÇÃO DOS SURDOS


Muitos são os desafios enfrentados pelas pessoas surdas no decorrer do processo
educacional. Os aprendizes surdos comumente apresentam um histórico marcado por
dificuldades na escolarização básica e por evasão dos espaços escolares. A esse respeito,
Silva et al. (2006) relatam que, no Brasil, poucos são os alunos surdos que conseguem
concluir o ensino médio de maneira exitosa ou entrar em cursos de graduação. Os
índices de analfabetismo entre os surdos ainda são altos e, apesar de frequentarem a
escola por vários anos, muitos concluem a educação básica sem saber ler nem escrever.
Durante vários anos, acreditou-se que a surdez, no sentido fisiológico de ausên-
cia da audição, era a causa dos fracassos escolares enfrentados pelos surdos. Por esse
motivo, a educação dos surdos focou em métodos clínicos terapêuticos que buscavam
superar o déficit auditivo e adaptar os surdos aos modelos ouvintes. Tais métodos vão
ao encontro do que é denominada abordagem oral. Nesse tipo de abordagem, os obje-
tivos são centrados no treinamento da fala, na leitura orofacial, no uso de dispositivos
de amplificação sonora, no treinamento articulatório e na aprendizagem da leitura e
da escrita a partir dessas técnicas.
A literatura refere que, na abordagem oral, a surdez constitui-se de uma patologia
que necessita de uma cura. Sob a ótica patológica, Gesser (2009) descreve que a sur-
dez restringe-se a uma deficiência que deve ser tratada para (re) habilitar o indivíduo
e para poder aproximá-lo das condições dos ouvintes, consideradas como padrão de
normalidade. Autores como Skliar (1998) e Sánchez (1990) criticam fortemente essa
abordagem argumentando que, na tentativa de alcançar um padrão de normalidade,
muito tempo é despendido aos intensos treinamentos da fala, o que pode limitar a
aquisição de conhecimentos considerados de maior relevância para o desenvolvimento
psíquico, cognitivo e intelectual. Os propósitos desenvolvidos durante o período em
que se fez uso exclusivo da abordagem oral ocasionaram aos surdos importantes res-
trições educacionais. Privados de um ensino de qualidade, ofertado em condição de
igualdade, ficaram impossibilitados de concluírem com êxito todas as etapas da esco-

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 269


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larização básica. Por isso, poucos foram os surdos que ingressaram no ensino superior
e alcançaram melhores postos de trabalho.
O cenário oralista persistiu aproximadamente até meados de 1960 e começou a
mudar a partir dos estudos de Stokoe (1960), linguista americano, que descreveu a
estrutura da Língua Americana de Sinais, comprovando que a língua atendia a todos
os critérios linguísticos de uma língua genuína, no léxico, na sintaxe e na capacidade
de gerar uma quantidade infinita de sentenças. Stokoe observou que os sinais não
eram mímicas, pantomimas ou gestos, mas símbolos abstratos complexos, com uma
estrutura interior.
O reconhecimento do valor linguístico das línguas de sinais permitiu uma nova
maneira de conceber a surdez para além da visão patológica: a visão cultural. A nova
concepção, segundo Gesser (2009), vem quebrar o paradigma da deficiência ao enxer-
gar as restrições e potencialidades de ambos: surdos e ouvintes. A compreensão cul-
tural reconhece a surdez como apenas mais um aspecto das infinitas possibilidades da
diversidade humana, abordando aspectos não limitados e não determinísticos de uma
pessoa ou de outra. É uma visão multicultural do mundo: um jeito ouvinte de ser, com
a cultura da audição, e um jeito surdo de ser, com a cultura da visão. Precursor dessa
visão cultural da surdez, Skliar afirma:
É possível aceitar o conceito de Cultura Surda por meio de uma leitura multicultural,
em sua própria historicidade, em seus próprios processos e produções, pois a Cultura
Surda não é uma imagem velada de uma hipotética Cultura Ouvinte, não é seu revés,
nem uma cultura patológica (SKLIAR, 1998, p. 28).

Pautadas na concepção cultural da surdez, no Brasil, a partir da década de 90,


pesquisadoras como Brito (1993), Moura, Lodi e Harisson (1997), Quadros (1997) e
Lacerda (1998) passaram a defender a abordagem bilíngue como proposta educacional
para as pessoas surdas. As autoras argumentam que a língua de sinais deve ser adquirida
o mais precocemente possível, como primeira língua. Esta será a base linguística para
a aquisição dos demais conhecimentos e da Língua Portuguesa como segunda língua.
No Brasil, as discussões acerca da surdez, da educação de surdos e da língua de
sinais alcançaram o patamar das legislações. Dentre as várias conquistas, destaca-se
a promulgação da Lei n.º 10.436, de 24 de abril de 2002, uma lei que reconheceu
como meio legal de comunicação e expressão a Libras e outros recursos de expres-
são a ela associados (BRASIL, 2002); e o Decreto n.º 5.626, de 22 de dezembro
de 2005, que, entre outras regulamentações, estabeleceu a inclusão da disciplina
de Libras nos cursos de formação de professores como medida promotora de uso e
divulgação dessa língua (BRASIL, 2005).
Para atender ao referido Decreto, as universidades brasileiras foram instruídas a
implantarem, gradativamente, a Libras como disciplina obrigatória para os cursos de
formação de professores. A iniciativa expandiu consideravelmente as reflexões acerca

270 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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da constituição linguística e cultural das pessoas surdas e do atendimento dos seus


direitos enquanto cidadãos brasileiros, utentes de uma língua de modalidade visual e
espacial. Por outro lado, a experiência, embora incipiente, tem mostrado que apenas
uma disciplina, oferecida em um único semestre letivo durante o curso de licenciatura,
não é suficiente para promover a construção de conhecimentos capazes de preparar o
professor para uma atuação que possa proporcionar mais qualidade social para a edu-
cação dos alunos surdos.
O estágio supervisionado em educação de surdos na perspectiva da educação in-
clusiva configura-se como uma iniciativa para ampliar a formação do professor, possi-
bilitando, como preconizam Pimenta e Lima (2004), a integração entre teoria e prática
em um processo de conhecimento, fundamentação, diálogo e intervenção na realidade.

A DISCIPLINA DE LIBRAS E SEU DESDOBRAMENTO NO


ESTÁGIO SUPERVISIONADO
A disciplina de Libras foi implantada na UFV no ano de 2010, em duas propos-
tas. A primeira, denominada LET 290, com carga horária de 45h e oferecida como
obrigatória para todos os cursos de Licenciatura da UFV, no campus de Viçosa, e
optativa para os demais cursos de graduação desse campus. A segunda, LET 491, com
carga horária de 60h e oferecida como obrigatória para o curso de Pedagogia do cam-
pus de Viçosa. As disciplinas são construídas e desenvolvidas com algumas diferenças
e especificidades pertinentes aos cursos que atendem. No entanto, ambas são minis-
tradas por meio de aulas teóricas e práticas que envolvem dinâmicas, apresentações ex-
positivas e atividades dialógicas para o ensino-aprendizagem da Libras. São focados os
aspectos linguísticos e gramaticais da Libras, além de questões relativas às necessidades
educacionais, linguísticas e sociais das pessoas surdas.
A disciplina é complexa e assume um papel articulador entre as necessidades da
comunidade surda e o saber acadêmico. Por causa disso, enfatiza-se o ensino da língua
e busca-se relacionar os conteúdos específicos de cada curso de licenciatura com o
processo de ensino e aprendizagem dos surdos. Trata-se de uma proposta que permi-
te uma projeção de possíveis práticas pedagógicas que poderão ser desenvolvidas na
atuação profissional desses professores junto aos alunos surdos. A complexidade da
disciplina não é tarefa fácil e, por ser uma iniciativa recente, ainda não está claramente
estabelecida na literatura. Uma breve análise das ementas das disciplinas de Libras
ofertadas nas mais diversas instituições de ensino superior do Brasil mostrou que não
há consenso nos conteúdos abarcados, ora envolvendo questões exclusivamente lin-
guísticas, ora exclusivamente educacionais, ora ambas. Em tal conjuntura, acredita-
mos que as dificuldades e as conquistas precisam ser refletidas e partilhadas por todos
os envolvidos nesse processo.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 271


Universidade Federal da Grande Dourados

Diante do exposto, levantamos três questões que consideramos primordiais para


o alcance dos objetivos propostos na disciplina: primeira, as dificuldades no ensino da
Libras quando comparado ao ensino de línguas estrangeiras; segunda, as implicações
políticas e sociais que a implantação da disciplina trouxe para o cenário educacional; ter-
ceira, as necessidades de formação do professor quanto ao uso de metodologias visuais.
Iniciamos nossas reflexões pautadas nas discussões de Moita Lopes (1996) e Gesser
(2012) sobre a natureza social e educacional dos processos de ensino-aprendizagem de
línguas. Esses críticos apontam a existência de algumas questões polêmicas que podem
interferir no processo de aprendizagem de línguas. Tais questões referem-se, principal-
mente, às atitudes dos alunos, marcadas por ideologias preconceituosas, como a ideia
de falta de aptidão e de déficit linguístico. Os autores tecem observações sobre o ensino
da língua inglesa que, no Brasil, conta com uma perspectiva exageradamente positiva,
uma quase adoração pela cultura americana, resultando em grande prestígio no apren-
dizado da mesma pela sociedade. Por sua vez, o ensino da Libras não é visto da mesma
forma e, ao contrário da língua inglesa, é carregado de estigmas e preconceitos.
Corroborando as ponderações supracitados, Lacerda, Caporali e Lodi (2004)
afirmam que, no processo de ensino da Libras, os ouvintes, em geral, se dizem inap-
tos, argumentando que as características visuoespaciais da língua são difíceis de serem
compreendidas e realizadas, dificultando, portanto, a aprendizagem. Para essas pesqui-
sadoras, diferentemente do que ocorre com o inglês, a cultura surda é frequentemente
desvalorizada e a Libras é vista como uma língua menor e desprestigiada. O estabe-
lecimento de um conceito negativo pode interferir intensamente nos processos de
aprendizagem, porque as dificuldades podem ser atribuídas, na opinião das autoras, à
“precariedade” da língua, o que pode afastar o aprendiz de seu objetivo (2004, p. 56).
Trata-se de um fato que necessita ser discutido com os aprendizes a fim de evitar pre-
conceitos que impeçam o processo de aprendizagem. Lacerda, Caporali e Lodi (2004)
enfocam que o trabalho deve abarcar os aspectos culturais da comunidade surda, pois
esses aspectos não são suficientemente conhecidos pela comunidade ouvinte. Por isso,
o ensino de uma língua deve vir associado ao conhecimento cultural dos utentes da
mesma. As referidas autoras ainda enfatizam que
todas as pessoas são capazes e podem adquirir toda e qualquer língua. A questão
é levar em conta as características de cada grupo de aprendizes e as características
intrínsecas de cada língua e pensar em abordagens metodológicas adequadas a cada
tipo de público e de língua (LACERDA, CAPORALI e LODI, 2004, p. 56).

O segundo ponto de discussão aborda as questões políticas e sociais envolvidas


por ocasião da inclusão da Libras como disciplina curricular no ensino superior. A esse
respeito, Martins (2008) faz a seguinte análise:

272 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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(...) como promotora de visibilidade linguística às diferenças surdas, de um lado,


mas de outro, possível agenciadora do discurso de uma hostil inclusão que mascara
politicamente as mudanças que seriam, de fato, necessárias na sala de aula e no
currículo, mantendo e contribuindo com um discurso e apelo de atos “politicamente
corretos” (Grifos da autora). (MARTINS, 2008, p.194).

A pesquisadora tece argumentos que tratam das vantagens e desvantagens da dis-


ciplina de Libras. Quanto às vantagens, trouxe benefícios para a educação de sur-
dos com o reconhecimento de novas estratégias de ensino. A disciplina promoveu a
desconstrução de tradições que sempre privilegiaram as línguas orais em detrimento
daquela, contribuindo para o reconhecimento da língua de sinais como uma língua
natural com uma estrutura gramatical própria. Além disso, possibilitou o acesso dos
surdos aos ambientes acadêmicos, pois professores surdos passaram a lecionar a dis-
ciplina de Libras. Consequentemente, houve um aumento no ingresso de estudantes
surdos no ensino superior, com a respectiva contratação de intérpretes de Libras.
Por outro lado, como desvantagem, instaurou-se uma comercialização da Libras
como instrumento, com fins políticos centralizadores, alimentando a ponte para o en-
sino da oralidade. A autora também descreve uma possível e sutil paralisação das resis-
tências surdas pela ilusão de “trabalho cumprido”, o que define como um movimento
perverso, capaz de, lentamente, provocar o enfraquecimento da cultura e identidade
surdas, se colocado apenas como uma língua memorável, pela qual os sujeitos surdos
não se identificam mais. Alerta ainda para os perigos de transformar a disciplina de
Libras num manual de ensino rápido que facilita e promove, por si só, o acesso à in-
clusão. Por fim, faz ainda uma importante crítica ao que chama de ações politicamente
corretas. Tais ações seriam superficiais e apenas estariam mascarando a situação edu-
cacional historicamente vivenciada pelas pessoas surdas na área da surdez, tratando da
Libras e da cultura surda como um “ritual folclórico” na sociedade majoritária ouvinte
e não provendo transformações nas políticas públicas (MARTINS, 2008, p. 195).
O terceiro ponto diretamente relacionado à disciplina de Libras refere-se à forma-
ção dos professores quanto ao uso de didáticas, metodologias e práticas educativas di-
recionadas aos alunos surdos. A esse respeito, Campos e Santos (2013, p. 33) afirmam
que “tais profissionais devem ter formação específica para atuarem junto a surdos, e
não apenas um conhecimento básico da língua”.
Conscientes das limitações da disciplina quanto à carga horária e à diversidade do
público-alvo, entendemos que ela é apenas o passo inicial na formação dos professo-
res. A partir dela, outras ações devem ser desenvolvidas, contribuindo para ampliar as
discussões no referido contexto. Na UFV, a disciplina de Libras despertou o interesse
de uma acadêmica do curso de Pedagogia, que buscou a possibilidade de estágio su-
pervisionado na área da surdez como estratégia de ampliação da formação. Com base
nos interesses da aluna, foi elaborada uma proposta de estágio supervisionado ampa-
rado nos pressupostos de Santos Filho (2010), na qual a discente deveria assumir uma

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 273


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posição de professora-investigadora. Segundo a proposta, o estágio deveria possibilitar


uma intervenção baseada na elaboração de metodologias que pudessem ser usadas em
sua prática de maneira a valorizar e explorar as diversidades linguísticas e culturais
presentes no contexto da sala de aula.
O referido estágio foi realizado em um estabelecimento de ensino privado da
cidade de Viçosa - MG, em uma turma do 1º ano do ensino fundamental, com 25
(vinte e cinco) alunos, sendo 1 (um) aluno surdo.
O passo inicial consistiu em um período de observação das aulas. Conhecer as
vivências dos alunos foi considerado um elemento necessário para o cumprimento dos
propósitos estabelecidos. Consciente de seu papel investigativo, foi escolhida como
metodologia a observação participante, que, segundo Cicourel (1975), é o “processo
pelo qual se mantém a presença do observador em uma situação social com a fina-
lidade de realizar uma investigação científica. Nesse caso, o observador é parte do
contexto sob observação, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este
contexto” (CICOUREL, 1975, p. 89). O caráter de observador participante garantiu,
por exemplo, informações sobre a cooperação do grupo, que foram importantes para
se compreender e interpretar a situação estudada.
As informações obtidas por meio das observações foram fundamentais para en-
tender a realidade sem que esta fosse influenciada por suposições, interpretações e
preconceitos advindos do senso comum. A observação permitiu ainda a socialização e,
consequentemente, a avaliação do trabalho. Para tanto, ela foi utilizada como instru-
mento para coletar dados acerca do comportamento e da situação ambiental, sendo
possível compreender o processo de aprendizagem da criança surda e suas interações
com os ouvintes. Através da observação, identificaram-se as problemáticas e as variá-
veis que poderiam interferir nas relações entre eles.
Diante das observações, foi percebida a necessidade de propor à comunidade es-
colar conhecimentos acerca da surdez e da aprendizagem da Libras. Para isso, foram
propostas oficinas aos professores, funcionários, pais e alunos. Compreendendo a Li-
bras como a segunda língua oficial do país, tornou-se imprescindível iniciar a inter-
venção com ações promotoras de uso e divulgação da mesma a todos os envolvido
nesse espaço escolar. A esse respeito, Garcia (2012) chama a atenção para a necessidade
de compreender a surdez como uma condição cultural que vai além da questão lin-
guística. Ele ressalta que não basta, aos profissionais da educação, aprender a Libras,
mas é preciso garantir que o ambiente escolar seja um espaço multicultural, onde
surdos e ouvintes reconheçam as particularidades uns dos outros. Ao compreenderem
as condições históricas, culturais e sociais dos alunos surdos, poderão pôr em prática
ações que possibilitem, segundo Garcia (2012), uma interação multicultural, na qual
a Libras não será uma língua secundária, mas um objeto de inclusão cultural.

274 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Além das oficinas, foram propostos momentos de discussões com os docentes da


escola, acerca de metodologias de ensino que pudessem ser usadas na turma com a
criança surda. As discussões indicaram a necessidade de elaboração de metodologias
que compreendessem recursos concretos e visuais, partindo-se da premissa de que os
estudantes surdos vivenciam o mundo de uma maneira diferenciada, a partir das suas
especificidades visuoespaciais. Obviamente, foi levada em consideração a importância
da Libras para a aquisição dos conceitos educacionais.
As metodologias deveriam atender as especificidades da criança surda sem, contu-
do, deixar de promover a interação com os professores e colegas ouvintes. Por esse moti-
vo, era necessário promover interações coletivas entre os alunos, visando ao desenvolvi-
mento de todos os alunos. Acreditamos que os princípios estabelecidos são importantes
para a educação escolar inclusiva no sentido de proporcionar a todos os envolvidos a
oportunidade de desenvolvimento de habilidades para a vida em comunidade.
Importa mencionar que as metodologias não foram elaboradas apenas por meio
das etapas de um método, mas se organizaram conforme as situações relevantes que
emergiram durante os diálogos entre a estagiária, a docente responsável pelo estágio,
docentes da escola e família da criança surda.
As proposições desenvolvidas nessa fase inicial do estágio foram ao encontro dos
anseios de Campos e Santos (2013) quanto à: formação de professores bilíngues, cria-
ção de currículo específico para alunos surdos, de materiais e livros didáticos adapta-
dos e de provas especializadas na língua de sinais; oferta da disciplina de Libras como
primeira língua para alunos surdos e segunda língua para ouvintes e do português
como segunda língua na estrutura curricular. As referidas autoras discutem a respeito
de algumas adversidades e contradições presentes na educação inclusiva na rede regu-
lar de ensino e defendem uma proposta de educação bilíngue, na qual a Libras seja a
base para o aprendizado do aluno e não, como observado cotidianamente, uma língua
relegada ao segundo plano, complementar e acessória.
Campos e Santos (2013) afirmam ainda que, infelizmente, os contextos mais co-
muns, ainda nos dias atuais, são situações nas quais as questões linguísticas, culturais e
socais não são contempladas. As ações se restringem à contratação de um intérprete de
Libras, medida que, obviamente, não considera as necessidades educativas específicas
do aluno surdo. Suas recomendações reforçam que a escola deve atender à pedagogia
da diferença, caso contrário, o surdo continuará excluído pela falta de acessibilidade a
informações em sua língua.
Em relação às práticas pedagógicas, Campello (2007) traz algumas considerações
metodológicas do que denomina Pedagogia Visual para a educação de surdos. O tra-
balho enfatiza o campo visual e insere a cultura surda, a imagem visual dos surdos, os
olhares surdos, os recursos visuais e os recursos didáticos. Campello (2007) esclarece
que o campo visual não é similar a gestos ou mímicas, mas se constitui em um signo

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linguístico que se utiliza dos corpos, das expressões corporais e faciais, dos braços, das
mãos, dos dedos, dos pés e das pernas em uma semiótica imagética.
Para os surdos, os aspectos visuais são fundamentais no processo de aprendizagem.
Concepção também defendida por Viana e Barreto (2011) ao discutirem a importân-
cia do uso de recursos visuais na educação de surdos. Elas propõem o uso de jogos
como ferramenta favorável à construção de conceitos pelos alunos surdos. Pautadas na
Pedagogia Visual, tais autoras se utilizam de diferentes elementos visuais como aliados
ao processo pedagógico.
Ainda acerca da Pedagogia Visual, Campello (2007) afirma que ela se sustenta
sobre os pilares da visualidade, ou seja, tem, no signo visual, seu maior aliado no pro-
cesso de ensinar e aprender. Segundo ela, essa pedagogia desempenha uma função fun-
damental no processo educacional, pois permite ao aluno surdo compreender, intervir
e reagir ao meio. A autora assegura que a percepção desenvolvida através de uma ima-
gem visual permanece mais tempo na cognição do que o discurso oral, proferido em
aulas tradicionais. De maneira similar, encontramos em Singer (1980 apud VIANA
e BARRETO, 2011, p. 20) a afirmação de que “as pistas visuais mantêm a atenção
do aprendiz por mais tempo se comparadas aos elementos verbais, melhorando, por
consequência, o seu aprendizado”.
Após observação e interação com o corpo docente da escola, iniciou-se a fase de
regência. Nessa etapa, em conjunto com a escola, optou-se pelo sistema de bidocência
que, de acordo com Beyer (2005, 2006), tem, como eixo norteador, um trabalho
de parceria entre o professor da classe regular e um professor com conhecimentos
específicos na área. As ações são compartilhadas entre ambos os professores e
disponibilizadas a todos os alunos em sala de aula.

PRÁTICA PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM


DA LÍNGUA PORTUGUESA
A intervenção focou o processo de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa.
O princípio norteador foi o conceito de letramento defendido por Soares (2001), que
envolve duas dimensões, uma individual e outra social. A dimensão individual enfa-
tiza aptidões cognitivas e metacognitivas que são necessárias ao desenvolvimento das
habilidades de leitura e escrita; enquanto a social considera o uso dessas habilidades
em determinados contextos históricos e sociais. Soares (2001) propõe que as práticas
de letramento envolvam, por exemplo, atividades como redigir um bilhete, escrever
uma carta, ler jornais, revistas e livros, entre outras que estão presentes no cotidiano
de uma sociedade grafocêntrica. Para ela, as habilidades de leitura e escrita devem ser
desenvolvidas associadas às transformações sociais que elas acarretam.
O trabalho com a Língua Portuguesa foi proposto segundo as recomendações dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (BRASIL, 1997), que sugerem a utilização

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dos gêneros textuais como objeto de ensino da mesma. Por esse motivo, apoiamo-
-nos nos argumentos de autores que congregam as orientações dos PCNs (BRASIL,
1997), como Schneuwly e Dolz (2004), e defendem que o ensino da língua deve ser
pautado em diferentes gêneros textuais. Esses teóricos argumentam que os gêneros são
importantes por se constituírem a partir de atividades de linguagem desenvolvidas em
contextos históricos e sociais e, por isso, refletirem o funcionamento da língua e da
linguagem em determinada sociedade. Tais concepções corroboram as defendidas por
teóricos como Beaugrande (1997) que tratam os textos como eventos comunicativos
que, para serem compreendidos, necessitam do conhecimento do leitor sobre a socie-
dade e sobre a língua nas quais tais eventos estão inseridos.
Importa lembrar que, geralmente, tais recomendações são voltadas apenas para o
texto oral e para o escrito e não apontam perspectivas para um trabalho que também
inclua o texto em Libras nos processos de aprendizagem vivenciados por alunos sur-
dos. Devido a essa lacuna, foi necessário atribuir novos significados às recomendações
supracitadas para o desenvolvimento de práticas de ensino da Língua Portuguesa na
modalidade escrita a partir de gêneros textuais que abarcassem a Libras e a Língua
Portuguesa nos mais variados contextos comunicativos.
Dentre diversas práticas desenvolvidas, destacaremos uma que enfatizou os do-
mínios sociais de comunicação relacionados à cultura literária ficcional, com objetivo
de priorizar as capacidades de linguagem relacionadas à narrativa. Para tal prática, foi
eleito o gênero conto. O trabalho seguiu as orientações de Schneuwly e Dolz (2004)
no que tange ao desenvolvimento de sequências didáticas. Então, a apresentação do
gênero foi realizada de maneira gradual, por meio de atividades planejadas, ordenadas
e relacionadas entre si a fim de articular os conhecimentos iniciais com novos conheci-
mentos a serem adquiridos. A prática iniciou com um momento de discussão sobre o
gênero eleito, visando a uma análise dos conhecimentos prévios que os alunos traziam
acerca do mesmo. Em seguida, foi realizada a apresentação de um conto em Libras.
Todos os alunos, surdos e ouvintes, foram instigados a observar os aspectos da sua
composição e, em seguida, a responder perguntas como, por exemplo: Quem era o
narrador? De que maneira a história foi narrada? O narrador era personagem da histó-
ria? Quais as personagens? O que aconteceu? Qual foi o conflito? Qual foi o desfecho?
Em que tempo e espaço a história se passou?
Somente após densa discussão acerca do conto em Libras, o texto foi apresenta-
do em Língua Portuguesa na modalidade escrita. Nesse momento, os alunos foram
questionados sobre as diferenças e semelhança entre os contos e levados a refletir sobre
os aspectos que diferenciam as modalidades de língua, sejam elas oral, escrita ou em
sinais. Depois dessas análises, o trabalho foi direcionado aos aspectos morfossintáticos
da Libras e da Língua Portuguesa. Nessa etapa, os alunos realizaram atividades relacio-
nadas, por exemplo, à identificação de substantivos e de verbos em ambas as línguas.
Também elaboraram um glossário Libras/Língua Portuguesa, onde registraram, atra-

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vés de escrita, desenhos e figuras, as correspondências entre o léxico das duas línguas.
Por fim, foi proposta uma produção coletiva de novas versões para o conto. Os alunos
tiveram a flexibilidade de produzi-las em Libras e em Língua Portuguesa. Importa
informar que em todos os momentos, foram priorizadas as interações comunicativas
entre surdos e ouvintes. As interações foram assistidas por meio da mediação de um
profissional intérprete Libras/Língua Portuguesa, funcionário da escola.
Todas as atividades desenvolvidas foram conduzidas com base nos pressupostos
do bilinguismo, ou seja, além da construção dos recursos visuais, enfatizou-se o uso
da Libras como língua de instrução. Nessa proposta, a língua de sinais vem favorecer
o desenvolvimento linguístico e cognitivo do aluno surdo, colaborando para o pro-
cesso de aprendizagem e servindo de apoio para a leitura e compreensão da Língua
Portuguesa. Para Viana e Barreto (2011), a proposta bilíngue apresenta uma ampla
contribuição para o desenvolvimento da criança surda, pois reconhece a Libras como
primeira língua, a língua que dará a base linguística para aquisição da língua majo-
ritária do país como segunda língua. Segundo os pressupostos da abordagem bilín-
gue, os textos foram primeiramente apresentados em Libras, em seus mais diversos
gêneros, como poesias, notícias, receitas e narrativas. Somente depois de reconhecida
a função comunicativa do texto em Libras, o trabalho com o texto em Língua Por-
tuguesa escrita era iniciado. Todo o trabalho foi amparado em paradigmas já bem
estabelecidos na linguística aplicada, nos quais o texto é concebido como objeto de
ensino da Língua Portuguesa, o qual se faz presente a partir das práticas de letramen-
to socialmente estabelecidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, consideramos que a disciplina de Libras, criada via determi-
nação do Decreto no 5.626, de 22 de dezembro de 2005 (BRASIL, 2005), foi con-
cebida como fundamental no despertar do interesse dos licenciandos na busca de
uma formação destinada à atuação na perspectiva da inclusão educacional e social dos
alunos surdos. Embora seu papel seja vital na formação de professores, não deve ser
compreendida como o único espaço de reflexão desses licenciandos. Nesse sentido, o
estágio supervisionado constituiu-se em um elemento essencial na ampliação dos sa-
beres acerca do tema e na continuidade da construção dos conhecimentos a partir de
uma atuação teórica e prática.
Do oferecimento da disciplina originou-se o estágio supervisionado, que, por sua
vez, proporcionou uma gama de ações que ultrapassaram os muros da universidade e
adentraram os espaços da educação básica. Tais ações foram promotoras de uso e di-
vulgação da Libras no contexto escolar, além de proporcionar o (re) pensar pedagógico
de outros professores que, muitas vezes, não foram contemplados com essas discussões
em suas trajetórias acadêmicas. Na posição de professora-pesquisadora, a estagiária

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pode desenvolver reflexões acerca das práticas de formação de professores nas diversas
áreas do conhecimento, em um processo de busca por melhores condições de aprendi-
zagem para alunos surdos. Além disso, suscitou condições de interação comunicativa
em Libras, necessária a todos os envolvidos no ambiente escolar. Os resultados são
satisfatórios para surdos e ouvintes, não só no quesito educacional, mas na articulação
desses alcances em outras esferas sociais.
Em relação à acadêmica, o estágio supervisionado favoreceu à licencianda do cur-
so de Pedagogia uma formação destinada à atuação na perspectiva da inclusão educa-
cional e social dos alunos surdos. Evidenciou-se a necessidade de elaboração de novas
metodologias, bem como de dar novas significações às já existentes, preconizando o
aprendizado significativo para todos os alunos. Ressalta-se, ainda, a construção de
uma reflexão crítica em relação à educação de surdos na perspectiva do bilinguismo,
contemplando a Libras em todo o processo educacional.
Quanto à bidocência, a prática foi considerada um desafio, pois ambos os educa-
dores tiveram que desenvolver um trabalho colaborativo com vistas a possibilitar um
processo educacional inclusivo no atendimento das especificidades do aluno surdo,
sem, contudo, deixar de envolver os alunos ouvintes. Os professores trabalharam na
mediação do desenvolvimento das potencialidades dos alunos, respeitando as diver-
sidades presentes no espaço escolar. A respeito das interações entre surdos e ouvintes,
acreditamos que os processos inclusivos só serão possíveis se pautados nas relações
entre os mesmos. Para isso, as relações precisam ser constantemente mediadas e esti-
muladas pelos profissionais da educação.
Finalizamos pontuando que os aspectos referentes à formação de professores de-
vem ser continuamente contemplados em discussões futuras, já que estão intimamen-
te relacionados às transformações dos processos educacionais dos alunos surdos. A esse
respeito, as universidades brasileiras têm ampliado seus espaços de discussões e o al-
cance de suas ações. Na UFV, a área de Libras do Departamento de Letras estende sua
atuação por meio de projetos de ensino, pesquisa e extensão que são desenvolvidos em
parceria com as instituições da rede básica de ensino do município de Viçosa - MG.
Nessas propostas, os alunos surdos têm sido contemplados de modo significativo. É
inegável, porém, que tais iniciativas ainda são incipientes e os resultados pretendidos
só serão alcançados em longo prazo. Entretanto, propostas como a aqui apresentada
servem de estímulos para o surgimento de outras ações que contribuam para uma
formação inicial e continuada de profissionais da educação atentos à inclusão em di-
ferentes âmbitos.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 279


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Recebido em 31/03/2014.
Aprovado em 19/04/2014.

282 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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ESTÁGIO SUPERVISIONADO E A DOCÊNCIA INDÍGENA:


UM CASO KARAJÁ

SUPERVISED TRAINEESHIP AND THE INDIGENOUS TEACHING:


A KARAJÁ CASE
Caroline Pereira de Oliveira*
Rogério Vicente Ferreira**

RESUMO: Este trabalho trata de um estudo de caso de ações pedagógicas durante


Estágio Supervisionado de um aluno indígena do Curso de Educação Intercultural da
Universidade Federal de Goiás. O estagiário realizou seu trabalho em terra indígena
karajá em 2011, ano da conclusão de seu curso. Algumas questões que envolvem a
Educação Bilíngue Intercultural no Brasil também são discutidas.
Palavras-chave: estágio supervisionado; formação superior indígena; Karajá.
ABSTRACT: This paper discusses a case study of pedagogical actions during Su-
pervised Traineeship of an indigenous student of the Intercultural Education Course
from at the Federal University of Goiás. The trainee executed performed his work in
an indigenous karajá land in 2011, the year of his graduation. Some issues involving
the Intercultural Bilingual Education in Brazil are also discussed.
Keywords: supervised traineeship; indigenous higher education; Karajá.

EDUCAÇÃO BILÍNGUE INTERCULTURAL NO BRASIL


A reflexão sobre o papel da educação bilíngue intercultural em todo o continente
e, de modo particular, na América Latina tem origens e motivações diferentes em diver-
sos contextos, como no Peru, na Argentina, na Bolívia, por exemplo. Essa perspectiva
surge não somente por razões pedagógicas, mas principalmente por motivos sociais,
políticos, ideológicos e culturais. O nascimento desse movimento pedagógico pode ser
situado aproximadamente há trinta anos, nos Estados Unidos, a partir dos movimentos
de pressão e reivindicação de algumas minorias étnico-culturais, principalmente negras.
Na América Latina, a preocupação intercultural nasce a partir de outro horizonte. Essa
abordagem surge no movimento das populações indígenas (LÓPEZ e SICHRA, 2006).

*
E-mail: olivcaroline@gmail.com
**
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: rogmatis@gmail.com

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 283


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No Brasil, conforme os Referenciais para a Formação de Professores Indígenas


(BRASIL, 2002), a crescente reivindicação para a implantação de escolas em áreas indí-
genas deixou de ser uma imposição nacional, passando, assim, a ser uma exigência dos
próprios povos indígenas brasileiros, invocando uma educação intercultural que envol-
va a comunidade e fortaleça o uso das línguas indígenas, bem como a língua portugue-
sa, além de permitir o desenvolvimento de uma metodologia específica que possibilite
a elaboração de materiais didáticos próprios e específicos para as escolas indígenas.
Essa crescente reivindicação indígena a favor de escolas em seus territórios, as
articulações e organizações dos encontros de professores indígenas que interferem nas
deliberações do Estado, por meio do Ministério da Educação – MEC – em relação à
educação nacional, além do respeito aos conhecimentos tradicionais culturais impul-
sionaram o que hoje se denomina Educação Bilíngue Intercultural (doravante EBI).
A EBI resulta dessa forte articulação de movimentos indígenas em toda a América
Latina, cujas reivindicações colocam os indígenas como interlocutores diretos desse
processo, em que as ações articuladas desses movimentos fazem com que os indígenas
surjam como atores sociais de importância no cenário político latino americano (LÓ-
PEZ e SICHRA, 2006).
Dentre os diferentes tipos de EBI, há aquelas que têm como uma de suas premis-
sas a incorporação de visões e os conhecimentos tradicionais de populações indígenas,
sejam elas quais forem, para que assim seja possível a abertura de diálogo entre culturas
e conhecimentos tradicionais e os ditos universais. De forma alguma, nesse tipo de
concepção de educação, os alunos seriam imersos e apresentados a algo que lhes seja
alheio, estranho. Ao contrário, aqui os estudantes se deparam com sua língua, seus
costumes e tradições, além também de se apropriarem de conhecimentos não indíge-
nas (LÓPEZ e SICHRA, 2006).
É válido lembrarmos que as reivindicações indígenas e suas demandas não podem
ser entendidas como movimentos separatistas, ao contrário, a necessidade de um tipo
de educação que abarque sua língua e, por conseguinte, sua cultura tradicional, não
impede aos indígenas o sentimento de pertencimento ao país onde residem e onde fa-
zem parte do todo nacional. Os movimentos indígenas buscam dar voz própria a seus
integrantes, sejam eles de diferentes povos ou não.
No Brasil, de acordo com Grupioni (2006), assim como em outros países que
sofreram com a colonização europeia, houve a tentativa de destruição/esvaziamento da
identidade étnica dos diferentes povos que aqui habitavam. O autor também aponta
que tal tentativa de esvaziamento de pertencimento étnico não ocorreu, ao contrá-
rio, as populações indígenas brasileiras estão se reencontrando e se reorganizando en-
quanto sociedades que apresentam diferentes culturas, tradições e línguas. A educação
escolar é um espaço para defrontar concepções e práticas sobre o lugar dos índios na
sociedade brasileira, lugar este que tem sido ocupado por professores das próprias co-
munidades indígenas.

284 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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A Constituição Federal de 1988 é responsável pelas mudanças referentes aos di-


reitos indígenas e à sua condição de indivíduo pertencente a um grupo étnico e a não
tutela do Estado sobre eles. De acordo com Guimarães (2002, p. 34), o artigo 231
da Constituição introduz uma mudança importante em relação à assimilação dos po-
vos indígenas ao estabelecer que “são reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tra-
dicionalmente ocupam”. O artigo 210 “assegura às comunidades indígenas também a
utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (Ibdem, p.
34). A partir dessas mudanças, as populações indígenas se tornaram melhor amparadas
e passaram a ter reconhecimento enquanto sociedades diferentes entre si, que apresen-
tam suas especificidades.
A Lei de Diretrizes e Bases, n. 9.394, de 1996, também causou impacto sobre
a educação escolar indígena. O Estado passou a ter o dever de ofertar educação bi-
língue e intercultural às populações indígenas com o intuito de salvaguardar práticas
socioculturais e a língua materna dos povos e comunidades indígenas, bem como lhes
assegurar o acesso aos conhecimentos técnico-científicos da sociedade não indígena
(UFG, 2006, p. 28-29).
Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de
fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de
ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos
indígenas, com os seguintes objetivos:
I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas
memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas
línguas e ciências;
II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações,
conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades
indígenas e não-índias (BRASIL, 1996).

Para o movimento indígena, a educação precisa ser concebida como ferramenta


na construção de uma cidadania sem exclusões, de forma democrática e igualitária,
para que na prática haja o exercício da dupla cidadania, com respeito aos direitos co-
letivos e às diferenças culturais (FERREIRA, 2001).
Hoje na América Latina são 16 (dezesseis) países que adotam, mesmo que alguns
ainda de forma incipiente, a EBI voltada para a educação de povos indígenas, sendo
eles Argentina, Belize, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, Equador, Guate-
mala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela.
Esse tipo de educação não permite, de acordo com López e Sichra (2006), que
exista um modelo a ser seguido em cada um desses países, na verdade, nem mesmo
dentro de um mesmo território nacional podemos pensar em uma “única fórmula” de
EBI. Aqui a flexibilidade é fator crucial para as necessidades de cada etnia, e para que
cada comunidade étnica possa ser atendida conforme suas características sociolinguís-

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 285


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ticas e socioculturais, além de, é claro, incorporar em cada comunidade distintas visões
e conhecimentos tradicionais de cada um dos povos envolvidos.
Nesse sentido, podemos inferir ao menos três distintos objetivos da EBI, sendo
eles o objetivo da igualdade, como condição de melhoria de aprendizagens; objetivo
de diversidade, almejando o fortalecimento cultural e linguístico dos povos indígenas
e o objetivo de justiça social, próprio do diálogo cultural em prol da convivência hu-
mana (CASTRO, 2006).
A EBI é, portanto, a concepção que envolve a educação como algo próprio do ser
humano conforme sua realidade. Nesta concepção de ensino, o aluno não permanece
alheio ao que o circunda, ao contrário, ele descobre, questiona, busca. É imprescindí-
vel que tal concepção seja construída com as comunidades indígenas, e não fique so-
mente em esferas governamentais e acadêmicas. Para isso, é preciso que os professores
indígenas também tenham direito à formação superior pautada nessa concepção de
ensino, na qual a universidade e comunidades indígenas sejam parceiras.
Para que seja possível a prática da EBI nas escolas indígenas, é imprescindível que
os professores que ali atuam sejam formados a partir dos princípios básicos desse tipo
de educação. Nesse contexto, há a necessidade de oferta de cursos de Educação Inter-
cultural de Formação Superior de Professores Indígenas, como o da Universidade Fe-
deral de Goiás, reivindicado pelos povos indígenas da região Araguaia-Tocantins. Essa
região abrange os Estados do Tocantins, Goiás, parte de Mato Grosso e o Maranhão,
local onde vivem povos indígenas que falam línguas do Tronco Linguístico Macro-Jê:
Karajá, Karajá/Xambioá, Javaé, Gavião, Xerente, Apinajé, Krahô, Canela e Krikati; e
de línguas do Tronco Tupi: Guajajára, Tapirapé, Guarani, Avá-Canoeiro, e, ainda, os
Tapuio, remanescentes de alguns povos Macro-Jê. De todos esses povos, excetuando-
-se os Avá-Canoeiro, já há alunos indígenas, professores em seus territórios, no Curso
da Universidade Federal de Goiás.

POLÍTICAS DE ESTÁGIO NO CURSO DE EDUCAÇÃO


INTERCULTURAL – UFG
A política de estágio do Curso de Educação Intercultural – UFG aponta para 3
(três) situações que devem ser respeitadas em relação ao trabalho dos estagiários duran-
te suas práticas pedagógicas: a) Realidade sociolinguística das comunidades envolvi-
das; b) Contexto histórico da educação bilíngue/educação intercultural; e c) Educação
e os projetos societários dos povos indígenas.
Essas reflexões servem para fortalecer o planejamento do estágio pensado numa
concepção bilíngue intercultural e transdisciplinar, que rompe a educação do bilin-
guismo de transição, hierarquia, subalternidade etc. As práticas pedagógicas do está-
gio, assim concebido, propõem a descolonização da educação por meio da construção

286 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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de uma educação contextualizada que favoreça um diálogo permanente entre os co-


nhecimentos. Freire (2005) nos fala que o diálogo começa, justamente, no momento
da busca que o educador faz pelo conhecimento, por aquilo que ele pretende dialogar
com seus educandos.
É importante, no entanto, que o estagiário domine certas competências para agir
individual ou coletivamente no fazer da profissão docente, a fim de ser reconhecido
como aquele que conhece as especificidades de seu trabalho em termos didáticos, po-
líticos, teóricos e práticos. Também é indispensável que o professor se ache confiante
e competente para proporcionar momentos para experiências e para buscar novos co-
nhecimentos e definição de novos paradigmas educacionais.
O processo de acompanhamento dos trabalhos dos estagiários é complexo. Os
comitês orientadores também fazem parte do processo desse novo fazer da educação.
Enquanto orientadores e também aprendizes nesse novo contexto, cada professor-
-orientador integrante dos comitês orientadores precisa se ater a importantes situações
que requerem atenção como, por exemplo, uma intensa parceria entre os membros
dos comitês – docentes e alunos – que devem buscar uma metodologia de ensino
compartilhada, em que o processo ensino/aprendizagem/ensino se realize de forma
intercultural e transdisciplinar.
Na seção a seguir apresentamos o desenvolvimento do Estágio Pedagógico de um
aluno do Curso da etnia Karajá. L. L. Karajá desenvolveu seu trabalho em terra indí-
gena sob a supervisão de um comitê orientador.

ESTÁGIO PEDAGÓGICO – APLICAÇÃO OU AMPLIAÇÃO


DE CONHECIMENTOS?
L. L. Karajá foi aluno da matriz específica Ciências da Linguagem e seus trabalhos
de estágio pedagógico aconteceram em duas aldeias distintas e vizinhas: JK – aldeia
onde reside, e Hãwalò/Santa Isabel do Morro – ambas situadas na Ilha do Bananal,
no estado do Tocantins. A decisão de trabalhar ora em JK, ora em Santa Isabel, partiu
do próprio universitário, uma vez que ele se sentiu mais seguro em iniciar sua prática
pedagógica tendo como parceiros seus colegas de curso, já que ele não tinha, até en-
tão, experiência como professor. L. L. Karajá trabalhou como piloto de voadeira1 para
a Secretaria de Educação do Estado do Tocantins, e somente durante o 2º (segundo)
semestre de 2009 foi contratado como professor para atuar em sua comunidade, na
Escola Estadual Indígena Krumarè. Sua primeira experiência como professor se deu ao
iniciar seu estágio pedagógico no Curso.
Para a realização do estágio, cada aluno deveria ter um caderno de estágio. O
caderno de estágio é um instrumento de documentação das experiências praticadas
1
Voadeira é o barco a motor utilizado por aqueles que precisam se locomover ao longo do Rio Araguaia.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 287


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no ensino por meio de temas contextuais. Ou seja, por meio de estudo que permita a
relação das ciências, dos conhecimentos tradicionais dos indígenas, da realidade cul-
tural, da história de vida, do compartilhamento de experiências, da visão de mundo, e
da produção coletiva de saberes.
A escolha dos temas contextuais para os trabalhos de estágio de L. L. Karajá e de
seus colegas universitários residentes em Santa Isabel foi a mesma nas etapas de está-
gios I e II. Os locais de pesquisa, no entanto, foram diferentes, L. L. Karajá pesquisou
em sua comunidade. Vejamos, então, suas ações em seu Estágio I com o tema contex-
tual Pintura Corporal.

TEMA CONTEXTUAL: PINTURA CORPORAL


As ações pedagógicas de L. L. Karajá durante as atividades do Estágio I e II, em-
bora articuladas com as de seus colegas universitários de Santa Isabel do Morro – TO,
foram realizadas na Escola Estadual Indígena Krumarè de sua comunidade, JK – TO,
a partir de uma pesquisa e entrevista feita com a artesã e sábia da cultura Iny e da arte
de fazer artesanatos, a senhora Lawabiru Karajá. Discutiremos aqui 1 (uma) aula que
L. L. Karajá ministrou para uma turma multisseriada – 4º (quarto) e 5º (quinto) anos
do ensino fundamental, totalizando 16 (dezesseis) alunos.
Em seu caderno de estágio, o estagiário registrou tanto sua pesquisa com Lawabiru
quanto a palestra feita por ela na Escola Krumarè. Segundo a artesã, para que a pintura
corporal e de artesanato seja realizada, antes de escolher os tipos de desenho ou mesmo
o tipo de artesanato a ser feito, é necessário produzir a tinta para a pintura. A tinta utili-
zada pelos Iny é natural, ou seja, ela é feita a partir de itens retirados da natureza, como
podemos perceber nos registros do caderno de estágio do universitário expostos a seguir.
Segundo ela (Lawabiru Karajá), existem 3 (três) tipos de tintas usadas pelos Iny:
amarela, vermelha e preta. A tinta amarela é extraída da planta chamada açafrão,
que é tirada da raiz da planta, e geralmente é usada para pintar artesanato feito de
madeira e também era usado para pintar o corpo de crianças. A tinta vermelha é feita
do urucum, seu uso é mais importante, pois é usado para todos os tipos como, por
exemplo, serve para pintar adorno feito de algodão, cerâmica, artesanato de madeira
etc. A tinta preta é a principal porque é usada na pintura corporal e tem dois tipos de
extrair a tinta preta. Para pintar o corpo segundo a pesquisa, é extraído do fruto verde
do jenipapo, outro é da casca de uma árvore chamada wyryraworona, esta utilizada
para pintar os artesanatos (L. L. Karajá, 2011).

L. L. Karajá aponta em seu caderno de estágio, assim como nos disse em comu-
nicação pessoal, que os alunos ficaram bastante entusiasmados em ver na escola os
conhecimentos tradicionais de seu povo sendo tratados como algo de importância,
como algo que merecesse atenção do professor. Tal reconhecimento ainda não havia
sido vivido por eles até então em sua escola.

288 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

As razões para a escolha do tema contextual em questão são diversas, dizemos isso
apoiando-nos nas falas dos próprios universitários que escolheram este conhecimento
para suas ações pedagógicas de estágio, dentre elas o anseio pela valorização dos sa-
beres culturais, a tentativa de envolver os jovens que já não mais querem fazer uso da
pintura ou que até mesmo não a entendem como importante/necessária. Diante disso,
destacamos aqui os objetivos de Leandro para com o trabalho sobre o tema escolhido:
“[...] o objetivo é para os alunos compreenderem a diferença das pinturas e para eles
conhecerem as várias maneiras de usar a pintura no corpo e nos artesanatos”.
Além da palestra proferida por Lawabiru para os alunos na Escola Krumarè, L.
L. Karajá promoveu discussões com eles, debates sobre como manter a arte de pintura
Iny em JK. Outra atividade proposta por ele foi a confecção de cartazes com desenhos
previamente discutidos com os alunos. A documentação da feitura dos cartazes, bem
como do momento em que os alunos foram pintados e alguns, inclusive, aprenderam
a pintar os colegas, não pôde ser realizada por falta de instrumentos de registro, porém
L. L. Karajá registrou em seu caderno de estágio os desenhos utilizados/discutidos nesta
aula. Os desenhos/pinturas foram Txuxonoheraru, Hãru e Ãoti2, como expomos abaixo.

Figura 1: Desenho da pintura Txuxonoheraru


feita por L. L. Karajá.

Figura 2: Desenho da pintura Hãru feita por


L. L. Karajá.

2
Txuxonoheraru, Hãru e Ãoti são tipos de traçados utilizados na pintura corporal ou mesmo no adorno de artesanatos. Esses
traçados são pautados em itens da natureza.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 289


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Figura 3: Desenho da pintura Ãoti feita por


L. L. Karajá.

As atividades produzidas pelos alunos – os cartazes e o momento de pintura de


colegas foi algo que L. L. Karajá considerou de extrema importância. Os alunos, todos
ainda muito jovens e, segundo o universitário, ainda com dificuldades em escrita tanto
em língua portuguesa quanto em Iny Rybè, ampliaram as discussões e descobertas de
sala de aula para outras situações, outros lugares de discussão, como em seus lares, com
outros alunos de outras séries, colegas que não frequentam a escola.
Freire (2005) afirma a necessidade de que os assuntos abordados durante as aulas
pelos professores façam parte da realidade vivida pelos alunos. Segundo este autor
(2005, p. 114), “É importante reenfatizar que o tema gerador não se encontra nos
homens isolados da realidade, nem tampouco na realidade separada dos homens. Só
pode ser compreendido nas relações homens-mundo.” Entendemos que, ao falar so-
bre tema gerador, Freire falava sobre o tema, o assunto, o conhecimento investigado
e fruto da própria realidade. O Curso de Educação Intercultural entende este tema/
assunto/conhecimento como tema contextual, pois é dele (e a partir dele) que as in-
vestigações ganham força e promovem movimentação na escola, na comunidade, nos
professores, nos alunos.
As pesquisas sobre o tema contextual Pintura Corporal continuaram para o pla-
nejamento e atividades de estágio, agora em sua 2ª (segunda) etapa, mas com outra
abordagem. L. L. Karajá pesquisou, nessa fase de estágio, com o sábio Tewahura Ka-
rajá, originalmente da Aldeia Santa Isabel do Morro – TO, mas que atualmente reside
em Fontoura – TO.
A pesquisa com Tewahura se deu em São Félix do Araguaia – MT, cidade próxima
às aldeias de JK e Santa Isabel. De acordo com os registros de Leandro em seu caderno
de estágio, percebemos que a discussão sobre os conhecimentos do tema contextual
seguiram na direção da Pintura Corporal. Por serem do sexo masculino, tanto Leandro
quanto Tewahura conversaram sobre as fases de pintura corporal para o sexo mascu-
lino, os tipos de pintura, suas referências dentro da sociedade Iny de outrora, além de
seu significado social atual.

290 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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Segundo L. L. Karajá, um dos pontos cruciais de sua pesquisa é o nascimento bio-


lógico e o nascimento cultural e social de uma criança Iny. Dentre os Iny, as crianças
dos sexos feminino ou masculino, ao nascerem, são pintadas com urucum, o que para
este povo indica o nascimento de um novo ser humano, uma vida que veio ao mundo.
O senhor Wajurema falou sobre a pintura corporal de dois tipos, que ocorre duas vezes
na vida e com cores diferentes. Primeiro no recém nascido, logo quando nasce ele é
pintado com tinta vermelha que é urucum para ambos os sexos. Segundo Wajurema,
essa pintura indica o nascimento biológico para uma vida (L. L. KARAJÁ, 2011).

A partir daí, há as especificações culturais inerentes à educação formal Iny para


cada sexo. As meninas nascem socialmente após a primeira menstruação, enquanto os
meninos recebem educação diferenciada após se tornarem jyrè, isso com a idade em
torno dos 11 (onze) e 12 (doze) anos.
Outra pintura é com o jenipapo. Isso ocorre no menino com mais ou menos 12 anos
a idade, quando passa pelo ritual de iniciação para a fase adulta. Nesta cerimônia a
criança é pintada toda com tinta preta de jenipapo indicando uma nova fase da vida,
ou seja, segundo nascimento, o social (L. L. KARAJÁ, 2011).

As figuras 4 e 5 abaixo retratam, respectivamente, o momento de pintura de um


jyrè e as fases de pintura corporal vivenciadas por um menino na cultura Iny. É como
jyrè que o menino é iniciado na casa dos homens – Casa de Ijasò, ou Casa de Aruanã,
local onde recebe os ensinamentos para a vida adulta, para a conduta social dentro da
comunidade enquanto homem, para a fase adulta que o espera.

Figure 4: Pintura Corporal Masculina: Jyrè.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 291


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Figure 5: Processo de Pintura Corporal Masculina.

A Casa de Ijasò é um local sagrado para o povo Iny. Lá os segredos masculinos


são guardados, preservados e perpetuados a partir da transmissão de conhecimentos
intergeracionais entre as pessoas do sexo masculino. Essa Casa é local proibido para as
mulheres, sendo elas Iny, indígenas de outras etnias ou mesmo não indígenas.
O processo de reflexões e ações pedagógicas de Estágios I e II desenvolvidas por
L. L. Karajá, e também por seus colegas de Santa Isabel do Morro foi apresentado em
um Seminário de Estágio realizado durante Etapa de Estudos na UFG no 1º (primei-
ro) semestre de 2010, momento em que todos os alunos ingressantes no curso no ano
de 2007 apresentaram suas ações, seus questionamentos, suas dúvidas. Esse seminário
proporcionou reflexões coletivas do trabalho dos estagiários em questão, embora ex-
plorando o mesmo tema, cada um deles trabalhou de forma diferente os conhecimen-
tos deste tema contextual.
As descobertas que L. L. Karajá fez após suas pesquisas sobre o tema contextual em
questão, além de suas próprias observações de mudanças no comportamento dos jovens
de seu povo em relação à manutenção dos saberes culturais são ressaltadas por ele em
seu caderno de estágio. O tema contextual não apresenta limite de conhecimento, ao
contrário, ele se amplia, se expande, a pesquisa transcorre ao passo que a vida se revela
na realidade da comunidade em que o professor atua, onde mora, onde vive.
Em texto de reflexão sobre as 2 (duas) primeiras etapas de estágio, L. L. Karajá
aponta para a necessidade de autonomia dentro da escola, enquanto professor, en-
quanto educador. Vejamos um trecho desta reflexão.
Depois das pesquisas, fiquei observando os alunos na escola, um professor dando a
sua aula, com um livro na mão copiando na lousa, ensinando a história da Europa
e outros, sem nenhuma criatividade. Enquanto isso, muitas histórias do meu povo
Karajá, que podia ser ensinada e há muitas coisas que as crianças não sabem hoje,
tanto crianças quanto adultos não sabem sequer o que está ao redor.

292 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014


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O dia a dia da matemática usada por nós, o meio ambiente que nos envolve, a nossa
geografia, como o limite do nosso território, a história de nosso antepassado, [...]
tudo isso tem que estar na escola, ensinando na sala de aula, enquanto isso o atual
professor se perde com outras culturas, que não tem nada a ver com a realidade dos
alunos (L. L. KARAJÁ, 2011).

Em comunicação pessoal conosco, em fevereiro de 2011, L. L. Karajá nos disse


sobre o entusiasmo em continuar a pesquisar Pintura Corporal, mesmo não sendo
mais esse o tema contextual trabalhado por ele nas etapas seguintes de seu Estágio Pe-
dagógico. Os planejamentos, as ações pedagógicas, as investigações, as descobertas por
meio do trabalho com temas contextuais perpetuam na escola os diversos saberes cul-
turais, o que reforça a luta pela manutenção linguístico-cultural de sua comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste curso, o estágio pedagógico surge como um momento fundamental de dis-
cussão de educação bilíngue intercultural, conjugando-se a isso fatores importantes a
serem considerados na formação e no desenvolvimento do professor, nomeadamente
o contato do estagiário com a proposta de ensino contextualizado, tendo como refe-
rência central a ação educativa transdisciplinar que se sustenta no sistema próprio de
ensino indígena, mas também em estudos em que se apresenta essa concepção como
passaporte de um saber maior.
A autonomia do professor enquanto profissional da educação também tem espaço
no processo vivido por cada um dos alunos indígenas que se encontram em fase de Es-
tágio Pedagógico no Curso. O fazer autônomo de materiais didáticos, o entendimento
da necessidade em se trabalhar assuntos da realidade dos alunos, a percepção política
em torno do ensino e uso da língua portuguesa e língua étnica dentro da escola, a
amplitude de discussões sobre acontecimentos que interferem na vida cotidiana das
comunidades. Todas essas ações levam, por meio da escola e, principalmente, via pro-
fessor e educação, a autonomia que as populações indígenas reivindicam.
Alunos atentos ao seu mundo e ao mundo que os rodeia, professores questio-
nadores e independentes apontam para uma nova realidade de educação em meio às
populações indígenas. O exemplo de ação pedagógica exposto neste trabalho trata
desta libertação.
Os acadêmicos indígenas, em especial neste trabalho L. L. Karajá, apontam para a
percepção de mudança em relação à suas práticas pedagógicas. L. L. Karajá, por exem-
plo, afirmou que depois de sua experiência entende o distanciamento do ensino na es-
cola de sua aldeia para com a realidade vivida dos alunos e dos próprios professores. A
escola ainda se pauta em conhecimentos alheios, nada articulados com as necessidades
da comunidade e isso gera, dentre outros motivos, o afastamento de muitos jovens Iny
(Karajá) da escola. A própria comunidade deixa de ver na escola um lugar de diálogo,

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mas sim de imposição daquilo que seria considerado necessário para a formação esco-
lar de crianças, jovens, jovens adultos e adultos indígenas, como se eles mesmos não
fossem capazes de exercer e criar metodologias que envolvessem seus interesses.
A prática pedagógica é, portanto, o cerne das discussões e preocupações dos uni-
versitários indígenas e suas comunidades, bem como nossa, seus professores e orien-
tadores, uma vez que é por meio dela que será possível a efetiva transformação da
educação escolar em meio a comunidades indígenas visando uma educação bilíngue
intercultural de fato, não apenas aquela resguardada constitucionalmente.
A abertura por parte das escolas indígenas para os conhecimentos das comuni-
dades não pode ser mantida apenas no momento do estágio dos universitários indí-
genas, mas sim durante todo o processo de ensino e aprendizagem dos membros da
comunidade – crianças e adultos. Desta mesma forma, nós, membros da sociedade
majoritária, no ambiente de nossas escolas, precisamos devolver a este espaço a carac-
terística principal de libertadora, de amplificadora de direitos dos alunos a manterem,
valorizarem e vivenciarem no espaço escolar traços de sua cultura.

REFERÊNCIAS
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Recebido em: 31/03/2014.
Aprovado em: 20/04/2014.

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