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Uma introdução à Guerra de Todo o Povo, a doutrina militar do Estado cubano

Jefferson Euclides Vasconcelos1

Resumo

Buscando preencher o que percebi como uma lacuna na produção da história e ciência
militares em língua portuguesa, faço uma análise e apresentação inicial da doutrina militar do
Estado cubano, denominada Guerra de Todo o Povo. Portanto, o artigo visa compreender de
que forma o Estado, as forças armadas e a sociedade civil se organizam para uma eventual
agressão e como essa organização se dá nos tempos de paz relativa que foram reservados para
a pequena ilha caribenha.

Palavras-chave: Cuba; História Militar; Ciência Política; Ciência Militar; Teoria da Guerra.

Una introducción a la Guerra de Todo el Pueblo, la doctrina militar del Estado cubano

Resumen

Buscando llenar lo que percibí como una laguna en la historia y ciencia militares en lengua
portuguesa, hago un análisis y presentación inicial de la doctrina militar del Estado cubano,
llamada Guerra de Todo el Pueblo. Por lo tanto, el artículo tiene por objeto comprender de qué
forma el Estado, las fuerzas armadas y la sociedade civil se organizan para una eventual
agressión y cómo esta organización se da en los tiempos de paz relativa que se han reservado
a la pequeña isla caribeña.

Palabras-clabe: Cuba; Historia Militar; Ciencia Política; Ciencia Militar; Teoría de la Guerra

An introduction to the All People's War, the cuban's State military doctrine

Summary

Intending to complete what I realized as a gap in the production of military history and
science in portuguese, I do an initial analysis and presentation of the cuban's State military
doctrine, called as All People's War. So, this article aims to understand how the State, the
armed forces and the civil society organize themselves to an eventual agression and how this
type of organization happens in the times of relative peace that was reserved to the small
caribean island.

Key-words: Cuba; Military History, Political Science, Military Science, Theory of War

1
Ggraduando em licenciatura plena em História pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Tem
interesse em história política, história militar e ciência militar, com foco em Teoria da Guerra e nacionalismo
popular e revolucionário dos países subdesenvolvidos, assim como suas revoluções e guerras de libertação naci-
onal.
Introdução

Em 2004 o então Ministro de las Fuerzas Armadas Revolucionarias de Cuba, Raúl


Castro, por ocasião da realização do Ejercicio Estratégico Bastión, declarou: ‘’A única forma
de impedir a agressão é mostrando que, nesse caso, Cuba se transformará, de uma ponta a
outra, em um enorme vespeiro ao qual nenhum agressor poderá resistir por mais poderoso que
seja.’’2. Declaração icônica, essa. E não por acaso. Resume em poucas palavras a essência da
concepção de Guerra de Todo o Povo. Tampouco é por acaso que é chamada Avispas Negras
(Vespas Negras) a principal tropa de elite das Forças Armadas Revolucionárias (FAR). Em
concordância com a metáfora da vespa, animal que só ataca quando ameaçado, a doutrina
militar cubana possui um caráter estritamente defensivo, de garantia da soberania e defesa
nacionais.
Neste artigo me proponho a fazer uma apresentação inicial de um novo pensamento
dentro da ciência militar, ramo da ciência estudado principalmente em academias militares de
todo o mundo, que engloba desde aspectos puramente técnicos a aspectos teóricos e
doutrinários da própria forma de pensar a guerra. Aqui mesclam-se, para tratar desse tema, a
história militar, a ciência militar e a ciência política, três fios condutores que, nesse caso, se
unem visando uma análise completa do objeto de estudo.
Sobre a doutrina militar cubana a bibliografia em língua portuguesa é inexistente. Foi
esse o motivo que me levou a uma pesquisa aprofundada do material produzido nas
academias militares de Cuba, em conjunto com a análise de documentos primários (como a
constituição do país e a lei número 75) e uma bibliografia de recorte bem mais amplo, de onde
retiro referências à aplicação prática dessa doutrina. O enfoque deste artigo não é analisar o
poderio militar cubano nem a capacidade e extensão de suas tropas regulares, as Forças
Armadas Revolucionárias (o Exército, a Marinha e a Aeronáutica) No caso de Cuba, a defesa
nacional não é tarefa exclusiva dessas três forças, pois conta com a participação de tropas
irregulares, as milícias civis (ou tropas paramilitares) que se espalham por todo o país, e é
principalmente este o objeto de análise deste trabalho.
Compreende-se por doutrina militar o conjunto de princípios que orientam a ação do
Estado e de suas forças militares para a eventualidade de um conflito armado. Apesar de
orientar-se para a ação em tempos de guerra, uma doutrina militar não se esgota no plano
puramente técnico, pelo contrário. Estende-se no plano psicológico e moral dos militares e da

2
‘’Cuba testa sua defesa para caso de ataque americano’’, UOL Notícias, 14/12/2004. Disponível em:
<noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2004/12/14/ult1808u30030.jhtm>
sociedade civil, no plano teórico, entre outros. Nas palavras do Glossário de termos e
expressões para uso no exército:

DOUTRINA – Conjunto de princípios, conceitos, normas e procedimentos,


fundamentadas principalmente na experiência, destinado a estabelecer linhas
de pensamentos e a orientar ações, expostos de forma integrada e harmônica.
[...] DOUTRINA MILITAR – Conjunto harmônico de idéias e de
entendimentos que define, ordena, distingue e qualifica as atividades de
organização, preparo e emprego das Forças Armadas. Englobam, ainda, a
administração, a organização e o funcionamento das instituições militares.
(EXÉRCITO, 2009, p. 99)

Ao definir doutrina, o glossário evoca um caráter que não pode, sob hipótese alguma,
ser ignorado: ela se fundamenta na experiência. Para o que se pretende esse texto, uma análise
do caso cubano, partimos da constatação de que foi a experiência concreta, as agressões
externas e internas, os episódios de resistência, os combates no exterior, a interpretação dos
eventos em escala mundial e o correto balanço da capacidade de suas próprias forças que
desaguou em um novo modo de pensar a guerra e a defesa nacional, assim como uma nova
orientação em termos práticos para a reorganização das instituições militares e do próprio
Estado. Esse novo modo de pensar, essa nova doutrina militar, recebeu o nome de Guerra de
Todo o Povo e é assim definida:

É a concepção estratégica para a Defesa Nacional, que resume a experiência


histórica da nação no que toca ao enfrentamento contra inimigos numérica e
tecnologicamente superiores. Se baseia no emprego mais variado e eficiente
de todos os recursos materiais e morais da sociedade, organizados no
Sistema Defensivo Territorial, como sustentáculo da capacidade defensiva do
Estado. [...] É resumida na afirmação: em caso de uma agressão militar em
grande escala contra Cuba, cada cidadão terá um meio, um lugar e uma
forma de enfrentar o inimigo até alcançar a vitória.3

E ainda: ‘’É defensiva por essência e se baseia na dissuasão, entendida como a


evidência que o custo político, material e humano de uma agressão militar contra Cuba seria
excessivo e sem perspectiva de triunfo.’’4
Comentando o início da década de 80 e a política da administração Reagan para Cuba,
momento em que uma agressão direta passou a ser, mais que uma opção, uma possibilidade
cada vez mais próxima de se efetivar, um Tenente-coronel do exército cubano salienta que
‘’Precisamente nesse perigoso momento, o governo da extinta URSS tornou público que Cuba
não receberia sua ajuda direta no caso de ser agredida militarmente por parte dos Estados
3
‘’Guerra de Todo el Pueblo’’, Cuba Gob. Tradução minha. Disponível em:
<cubagob.cu/otras_info/minfar/guerra_pueblo.htm>
4
‘’Doctrina Militar Cubana’’, Cuba Gob. Tradução minha. Disponível em:
<cubagob.cu/otras_info/minfar/doctrina/doctrina_militar.htm>
Unidos’’ (RIVERA, 2006, p. 48, tradução minha). Eis, então, uma nova realidade que exigiu
uma imediata rearticulação de grandes proporções na política de defesa da nação: Cuba
passava a estar, agora oficialmente, sem apoio externo frente a maior potência militar do
planeta, que da pequena ilha se separa apenas por cerca de 150 km de mar.
Esse cenário não era de todo inédito. Na verdade, com o passar dos anos da Guerra
Fria, a polarização dos blocos vai cada vez mais se afastando da perspectiva de um confronto
direto. É inegável, claro, o apoio dado pela URSS ao desenvolvimento militar cubano desde a
vitória da revolução. Para além do famoso episódio conhecido como a Crise dos Mísseis, que
configurou mais uma necessidade de equilibrar a balança estratégica da Guerra Fria que uma
preocupação com a segurança de Cuba, o Bloco Soviético foi um importante bastião para que
Cuba se tornasse uma potência militar regional e mundial, com uma atuação no exterior a qual
nenhuma das forças armadas latinoamericanas se iguala até os dias de hoje.
Porém, a disposição soviética para entrar efetivamente em um conflito com os Estados
Unidos por causa de Cuba sempre foi baixíssima. Não pretendo discutir os pormenores do
xadrez geopolítico daquele momento, mas para entender a complexidade da situação e a
dimensão da reformulação do novo modo do Estado cubano pensar a própria defesa,
precisamos entender que em dado momento a URSS deixa claro não estar disposta a intervir
em defesa de Cuba no caso de um ataque estadunidense. Vejamos:

De fato, a União Soviética não se dispunha a empreender nenhuma iniciativa


para apoiar os cubanos militarmente, o que Brejnev deixara bem claro a Raúl
Castro, vice-presidente e ministro das Forças Armadas de Cuba. ‘’Nós não
podemos combater em Cuba’’, afirmou textualmente, ‘’porque ela está a
11.000km de distância da União Soviética’’. E acrescentou: ‘’Vamos lá para
que nos partam a cara?’’ Sem dúvida, a União Soviética nunca pretendera,
seriamente, entrar em guerra com os Estados Unidos por causa de Cuba,
mas, naquelas circunstâncias, o abandono foi total. Brejnev disse a Raúl
Castro que a União Soviética não se dispunha sequer a fazer qualquer tipo de
advertência aos Estados Unidos, nem mesmo recordar o compromisso de
Kennedy de outubro de 1962. O contexto obviamente mudara desde os anos
1960. (BANDEIRA, 2009, p. 626)

Assim, precisamos compreender em que contexto surge essa nova concepção, por que
motivo ela surge, quais os elementos novos com os quais a ilha precisou lidar, de que forma
ela se materializa historicamente na organização da defesa desde o triunfo da revolução em
1959 até os dias de hoje e como isso se refletiu nos avanços e recuos na política de dissuasão
que busca garantir, por meio do constante melhoramento das técnicas de defesa, que o país
não seja agredido ou, do contrário, que as baixas infligidas ao agressor sejam tamanhas a
ponto de tornar insustentável a manutenção do conflito.
A doutrina: pressupostos, elaboração e fundamentação da ‘’solução de massas’’ para a
defesa

Oficial e institucionalmente, dois são os documentos que dão aporte inicial à questão
da defesa nacional e a organização das massas enquanto cidadãos capacitados para atuar
militarmente se necessário. Primeiro, a constituição da República, estando a atual vigente
desde 1992. Além dela, outro documento norteador é a Ley número 75 de la defensa nacional,
aprovada pela Assembléia Nacional do Poder Popular em 1994. É o resultado da reunião, em
um texto único e com respaldo legal, das orientações para situações emergenciais e/ou
excepcionais. Não é a intenção desse texto destrinchar linha a linha os documentos aqui
citados, mas compreender de maneira o mais ampla possível esse novo modo de pensar - e se
preparar para - a guerra. É verdade que, para que os objetivos sejam atingidos, não basta
analisar tais documentos como verdade absoluta. Por outro lado, é também verdade que uma
análise que os ignore por seu caráter oficial será insuficiente, pois são o resultado (jurídico e
institucional) do acúmulo de experiências de diversas décadas de agressão que desembocaram
na elaboração de uma doutrina de defesa própria.
Cuba nunca fez parte de um Bloco Militar. Nunca se integrou ao Pacto de Varsóvia ou
qualquer outro, seja ele de nações orientais ou ocidentais, de um ou outro lado do espectro
político e ideológico nos tempos da Guerra Fria. Da mesma maneira, nunca participou de
manobras militares com aquele que havia sido o aliado mais próximo da revolução, a URSS.
Esses dois pontos evidenciam uma filosofia política do Estado cubano e de sua doutrina
militar: jamais excluir a possibilidade de negociações (de maior ou menor proximidade) com
outras nações, mas buscar incessantemente garantir a própria soberania e seu direito à
autodeterminação, o que significa não permitir que aliados ou inimigos ditem suas ações.
Compreendendo isso, passemos então aos pressupostos teóricos da doutrina e sua
inovação em relação às concepções dominantes dentro da ciência militar e da organização de
exércitos em escala global.
A esmagadora maioria dos exércitos regulares do planeta tem como norte principal,
como orientador de suas doutrinas militares e, consequentemente, da organização e atuação de
suas forças, a perspectiva do combate regular (também conhecido como simétrico ou
convencional), no clássico modelo Estado versus Estado, exército versus exército. É verdade
que essa mesma maioria possui destacamentos de elite extremamente capazes de combater em
condições variadas, assim como preparam suas tropas para combater com técnicas irregulares,
a guerrilha e a sabotagem, por exemplo, como são capazes de conduzir com maestria
operações de contrainsurgência e combate interno. O manual de contrainsurgência
estadunidense é uma prova disso. É estudado em todo o mundo, por acadêmicos e militares,
assim como muitas vezes é aplicado como o bê-á-bá da contrainsurgência por alguns
exércitos. Ainda assim, essa preparação para o combate irregular ocupa papel secundário na
maioria dos Estados do globo, e não é por acaso. O Coronel do Exército Brasileiro Alessandro
Visacro assim fala ao tratar sobre o combate irregular (ou assimétrico):

Para compreender a guerra irregular há que se partir da premissa de que,


nesse tipo de beligerância, não existem regras. Sem regras, torna-se mais
difícil a tarefa de delinear um conjunto rígido e definido de princípios
teóricos que fundamentem a sua aplicação em circunstâncias muito
diversificadas. Contudo, o vigor da guerra irregular encontra-se, justamente
nessa importante característica: a ausência de padrões rígidos que lhe permite
adequar-se e moldar-se a ambientes políticos, sociais e militares
diferenciados. (VISACRO, 2009, p. 222)

Urge esclarecer um ponto que aparece no trecho acima e pode gerar má compreensão,
mas que é melhor explicado em outras partes do livro que não aparecem neste artigo: ao
afirmar que ‘’não existem regras’’, não se fala de regras ou impedimentos morais. A guerra,
por ser guerra, já configura um rompimento de certas convenções morais e éticas (que variam
de acordo com o lugar e época). Um estudo aprofundado sobre qualquer episódio bélico da
história humana mostra que, apesar das inúmeras tentativas (que não podem de forma alguma
ser desconsideradas) de discussões diplomáticas para regular os conflitos, estabelecer regras e
limites, eles são, ainda assim, episódios caóticos (para dizer o mínimo). Ao falar em
inexistência de regras, em ‘’ausência de padrões’’ o autor fala do caráter técnico, cartesiano,
quase matemático e mecânico que a ciência militar oficial carrega. Um conflito regular é a
aplicação de conceitos aprendidos nas academias militares, conceitos sobre movimentação e
posicionamento de tropas, uso de equipamentos, cálculos de suprimentos etc. Se a guerra
irregular se mostra ‘’sem regras’’ é justamente porque não está presa a tais convenções, não
parte de pessoas com o pensamento moldado por tal cientificismo acadêmico que muitas
vezes se vê de mãos atadas frente à característica dinâmica e flexível do combate irregular,
como prova a história. Esse é o caráter excepcional da doutrina cubana, a ênfase dada ao
combate irregular. Vejamos o porquê.
Cuba é um país pequeno em extensão territorial e pobre em recursos naturais, fator
determinante ao pensar defesa e desenvolvimento em um contexto de bloqueio econômico
que já dura mais de meio século, do qual quase três décadas sem a presença do bloco de
países que fora seu principal parceiro comercial. Cerca de 150 km separam a ilha caribenha de
um país de dimensões continentais e que é, indiscutivelmente, a maior potência militar da
história. Um país cuja política de hostilidade para com Cuba nunca fez-se disfarçada. A leitura
correta de suas próprias condições geopolíticas determinou o caráter defensivo e irregular de
sua doutrina. Defensivo porque se orienta pela defesa do seu direito à autodeterminação e só
concebe a guerra em caso de invasão, chegando a reconhecer como delito internacional a
guerra de agressão e de conquista. Irregular pela óbvia constatação de que o inimigo é
infinitamente mais forte e a luta regular é a luta dele, a luta em seus termos, a luta de onde ele
sairia vencedor sem maiores custos. Reconhece-se esse fato e parte-se dele para a formulação
de uma defesa que se apoia não nas forças regulares do Estado (forças existentes e que
possuem enorme importância), mas nas milícias civis, buscando reformular concepções que
remontam aos anos da revolução, quando a guerrilha era a tática central das operações
militares, fato que possibilitou a vitória do Exército Rebelde frente à um exército mais
numeroso, melhor treinado, melhor equipado e com apoio externo. Vejamos:

As milícias são tão antigas como as guerras de agressão, são o recurso por
excelência a que recorrem os povos para as enfrentar, são uma força
especialmente apropriada para a defesa, são os trabalhadores lutando por
suas fábricas, os vizinhos defendendo seu bairro, os cidadãos cuidado de
seus bens, os bens do povo, e fazendo prevalecer suas convicções e seus
ideais’’ (CASTRO, F. apud ALVAREZ, 2014, p. 8, tradução minha)

O pesquisador alemão Heinz Dieterich evidencia três características básicas dessa


concepção de defesa, como o trecho a seguir mostra:

A doutrina militar que se deriva [...] está determinada por seu caráter
defensivo-territorial, soberano e baseado nas próprias forças do país, não em
alianças militares com outras nações, como por exemplo o Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR). O centro de gravidade
dessa concepção de defesa pode definir-se, portanto, como local, auto
suficiente e combinado (forças regulares e irregulares) e com um agressor
estratégico claramente definido, que é os Estados Unidos. (DIETERICH,
2004, p. 104, tradução minha)

Pensa-se então em uma guerra de resistência à ocupação estrangeira de novo tipo, e


nesse processo de formulação volta-se os olhos não só para os anos da Revolução, mas
também para experiências externas, como a revolução boliviana e a vietnamita, que foi objeto
de estudo e inspiração, na medida em que representa uma epopeia de proporções inigualáveis.
Da mesma maneira, com o passar dos anos, na medida em que novos conflitos se desenrolam
no globo a doutrina passa por adaptações, modificações e melhoramentos a partir da análise
desses novos cenários. A guerra contra o Iraque, por exemplo, foi e é fonte riquíssima de
aprendizado para os militares cubanos, que analisam o conflito, as deficiências na defesa do
país, os padrões de ataque estadunidenses, as limitações de sua máquina bélica, o desenrolar
do processo de ocupação e recolonização do país e, a partir dessa análise, formulam novas
diretrizes para a sua própria defesa. O já referido estudo do pesquisador alemão aponta alguns
desses episódios, vejamos um deles:

Esse procedimento [análise dos episódios] se aplicou, por exemplo, às


guerras de Kosovo e do Iraque e foram tomadas as medidas adequadas para
responder às modificações e modernizações bélicas do imperialismo
estadunidense que também aprende rapidamente com seus erros. Depois da
guerra de Kosovo, por exemplo, foi convidado um alto funcionário sérvio
para estudar minuciosamente com ele as táticas de guerra das forças sérvias e
dos agressores, a fim de encontrar os pontos débeis de cada um. (Ibidem, p.
115, tradução minha)

Compreendido o caráter defensivo da doutrina de Guerra de Todo o Povo, partimos


para a definição de o que é territorial, uma vez que muitos documentos falam num Sistema
Defensivo Territorial e que Heinz Dieterich chamou de ‘’local’’. O território cubano se divide
em províncias, sendo quinze no total, mais a Isla de la Juventud, que é considerada um
município especial. As quinze províncias se dividem, por sua vez, em 168 municípios. Assim,
modelo defensivo se estrutura de baixo para cima, partindo de núcleos ainda menores que os
municípios, os Conselhos Populares. Vejamos uma das definições oficiais do que é o Sistema
Defensivo Territorial:

É o conjunto de medidas e atividades políticas, econômicas, militares,


diplomáticas, jurídicas, de segurança, ordem interior e defesa civil, que se
organiza e realiza desde tempos de paz pelos órgãos e organismos estatais, as
entidades econômicas, instituições sociais e de massas e os cidadãos, nos
diferentes níveis da divisão político-administrativa, com o objetivos de
garantir a defesa do país. [...] Em situações excepcionais se ativam nos
territórios dos municípios mais de 1400 zonas de defesa.5

Tal forma particular de organizar o sistema defensivo implica dizer que esse modo de
pensar a guerra, a Guerra de Todo o Povo, equivale ao pensamento estratégico de uma luta
travada por toda a população, ondes forças regulares trabalham em conjunto com as
irregulares, vejamos o motivo disso.
Em caso de um ataque, as Forças Armadas Revolucionárias (FAR) ocupariam o papel
de primeira etapa defensiva no desenrolar do conflito simplesmente porque sua força, em

5
‘’Sistema defensivo territorial’’, Cuba Gob. Tradução minha. Disponível em:
<cubagob.cu/otras_info/minfar/doctrina/sistema_defensivo.htm>
termos técnicos, quando comparado ao poderio bélico estadunidense, é infinitamente inferior.
Soma-se isso ao fato que as FAR, como forças regulares, possuem limites que lhes são
intrínsecos, entre eles o fato de se prepararem principalmente para o conflito formal. Não por
ser essa uma escolha, mas pela própria forma pela qual as forças regulares em qualquer local
do globo se estruturam. Vejamos:

[...] a força aérea, a marinha de guerra e as forças blindadas do país poderiam


resistir apenas por um curto tempo à superioridade numérica e tecnológica
estadunidense [...] As forças regulares serviriam para enfrentar a primeira
onda de ataques, mas, em seguida, a guerra se converteria em uma guerra de
guerrilhas que seria insustentável para o invasor. Não apenas está organizada
a população em milícias, mas também existe um grande número de franco
atiradores treinados e com fuzis especiais. Ainda que somente vinte por cento
deles conseguisse disparar uma bala contra os invasores, as baixas
estadunidenses seriam insustentáveis. (Ibidem, p. 122, tradução minha)

Estamos então diante de um novo tipo de sistema de defesa, que concebe as batalhas
não como o desenrolar de movimentos num campo determinado, como no modelo clássico,
cujas personagens são os exércitos de cada lado. Concebe um modelo de defesa cuja base de
sustentação são verdadeiros microcosmos defensivos, batalhas minúsculas, acontecendo
simultaneamente em todo o país, arrastadas durante todo o tempo em que o inimigo insista em
se manter no solo pátrio. Uma vez que a guerra não se encerrará quando as forças regulares
cubanas forem derrotadas, o conflito se prolongará a perder de vista, graças à organização do
povo em armas. Um tipo de guerra onde pequenos grupos infligem baixas sucessivas a um
exército muito mais poderoso, mas ainda assim invasor e sem o conhecimento do terreno.
Cada município e seu conjunto de Conselhos Populares, através dos moradores, configuram
forças irregulares capazes de combater nas zonas rurais, de pântanos, praias, montanhas,
cidades e até cavernas feitas para isso. Em suma, todo o território se encontra mapeado e
preparado previamente. Percebemos que a metáfora do início desse texto cai como uma luva
nesse cenário. Imaginemos um animal cuja proporção equivalha à dimensão do poderio bélico
estadunidense, imaginemos esse animal importunar um vespeiro, pequeno e, para os
desavisados, inofensivo. Se a grande besta não tombar diante os permanentes ataques das
vespas que se sacrificam em conjunto para proteger seu vespeiro diante de um inimigo maior,
uma hora recuará por não mais aguentar os pequenos ferimentos que, multiplicados milhares
de vezes, se tornam um fator crucial nesse embate.
Estamos lidando então com um objeto de estudo único dentro da área. Embora
apoiado em experiências anteriores, a Guerra de Todo o Povo configura uma doutrina militar
sui generis e precisa ser observada com mais atenção. Observe:
A guerra popular prolongada, segundo a experiência vietnamita, ou a guerra
de todo o povo, conforme a doutrina cubana é, como já dissemos, a estratégia
militar dominante, na qual tropas especiais, unidades irregulares e a
topografia das cidades possuem um papel central, junto com uma alta
mobilidade e o fator tempo, que reflete um padrão de uma guerra de desgaste
prolongado, tal como se observa atualmente nas guerras urbanas do triângulo
sunita no Iraque. ‘’O inimigo é forte em suas posições, mas é débil em seus
movimentos’’, afirma a sabedoria militar de Fidel Castro, que afirma que oito
combatentes bem treinados são um ‘’pequeno exército’’ que pode fazer um
tremendo dano ao inimigo. É esse tipo de guerra que o exército
estadunidense não pode ganhar. (Ibidem, p. 120, tradução minha)

Esse de tipo de guerra, levada a cabo como política de Estado para a defesa, para ser
bem empregada pressupõe inúmeros outros fatores, como uma economia preparada e à prova
de sabotagens, o treinamento de civis, a capacitação destes para se manterem auto suficientes
se as instituições estatais se encontrem neutralizadas pelo inimigo etc. Pressupõe que
efetivamente cada locação se transforme no já citado microcosmo defensivo. Então como
Cuba se prepara, na prática, para essa situação? A concepção inovadora onde quem ocupa o
papel principal na defesa do país é o povo, e não o exército, se reflete na realidade? Se Cuba
fosse invadida hoje, como essas forças estariam posicionadas?

A realidade concreta: a Guerra de Todo o Povo e sua aplicação prática

As milícias civis em Cuba existem desde os anos da revolução e não foram extintas
com o triunfo dos revolucionários. Foram esses destacamentos de trabalhadores e camponeses
armados os embriões das milícias que se institucionalizaram e passaram a integrar o corpo
completo das forças estatais. Foram, inclusive, uma necessidade política da revolução, que
contava com amplo apoio popular mas enfrentava duras provas ao lidar com os chefes
militares do antigo regime, como bem aponta Moniz Bandeira, comentando os
acontecimentos de 1960:

[...] ele [Castro] anunciou em 26 de outubro a criação das Milícias Nacionais


Revolucionárias, o ‘’povo armado’’, conforme desejo de Che Guevara,
inspirado no exemplo da Bolívia, e seus contingentes, que chegaram a somar
cerca de 250.000, suplantaram os do Exército Rebelde. Este reordenamento
das Forças Armadas obedeceu a motivos tanto militares quanto políticos.
Castro sabia que Cuba não tinha condições de repelir um ataque direto dos
Estados Unidos, mas com a formação das milícias podia torná-lo o mais caro
possível, uma vez que a elas caberia preparar a resistência civil e os meios
para continuar a luta através de guerrilhas. (BANDEIRA, op. cit, p. 236)

Além disso, a existência das milícias significava que as forças regulares não mais
detinham o monopólio do uso da força, o que resultou num novo cenário político.

A transformar-se em força regular e permanente, o Exército Rebelde então


ficaria como reserva móvel, a ser utilizado apenas quando e onde necessário se
tornasse, e perderia a força política, uma vez que a existência das milícias o
neutralizaria, afastando qualquer possibilidade de que algum comandante
dissidente, a exemplo de Hubert Matos, tentasse um golpe de Estado. Desse
modo, Castro contrabalançou os fatores de poder [...] (Idem)

Pois é justamente onde reside o poder político das instituições militares: na


exclusividade do uso legítimo da força, enquanto braço armado do Estado. Com a emergência
desse novo fator e o surgimento de um novo personagem, o povo em armas, abre-se a
possibilidade de um reordenamento do exército, agora enfraquecido politicamente e
desprovido do seu poder dissuasivo que é a ameaça de violência. São então as Milícias
Nacionais Revolucionárias (MNR) a primeira experiência de institucionalização das milícias
populares em Cuba, nos primeiros anos pós-revolução, onde a interferência estadunidense na
ilha escalava a passos largos.
É necessário esclarecer que no momento de criação das MNR Cuba ainda não havia
reatado as relações diplomáticas com os países do Bloco Socialista, rompidas pelo governo de
Fulgêncio Batista em 1952. Com a escalada da contrarrevolução, grupos armados atuavam
dentro do país com a intenção de gerar terror na população, sabotar setores estratégicos da
economia nacional e enfraquecer a legitimidade do novo regime para tornar propícia a
intervenção externa. O episódio mais conhecido da atuação interna dessas forças são as
guerrilhas na Serra de Escambray, uma cadeia de montanhas na região central, ao sul da ilha,
onde mais de mil rebeldes atuavam pela derrubada da revolução recebendo cargas de
armamento, munição e suprimentos que eram despejadas por aviões partidos de bases da CIA
estabelecidas em outros países da América Central, que violavam o espaço aéreo cubano para
abastecer os contra-revolucionários (Idem, p. 273). Tais grupos foram eliminados pelas
milícias populares, que atuaram como verdadeiros consolidadores da revolução, impedindo
que na serra se estabelecesse uma base central, que seria usada para receber apoio militar
direto dos Estados Unidos. O mesmo aconteceu com a famosa invasão da Baía dos Porcos,
onde as milícias derrotaram e fizeram render-se os mercenários cubanos vindos da Flórida.
Esse tipo de organização armada já configurava uma situação única no continente,
apesar do exemplo boliviano, mas ainda não fazia parte de uma concepção mais ampla de
defesa, não configurava a doutrina militar cubana como a concebemos hoje. Foi somente no
início dos anos oitenta, diante do citado novo cenário internacional, que o Estado passa a
implementar a concepção estratégica de Guerra de Todo o Povo. As MNR e sua experiência
serviram então como embrião e esse modelo lançou as bases de um maior e mais amplo. Em
1980 o comandante em chefe das FAR, Fidel Castro, em um discurso na Praça da Revolução,
anuncia oficialmente a fundação das Milícias de Tropas Territoriais (MTT), uma nova forma
de organizar os civis militarmente e que persiste até os dias atuais.
As MTT nascem como grupos responsáveis pela tutela, proteção e administração das
Zonas de Defesa, as divisões do território nacional em espaços menores que os municípios.
São as partes menores de uma cadeia organizativa de nível nacional, o já citado Sistema
Defensivo Territorial. Integram as fileiras das MTT cubanos de ambos os sexos com mais de
17 anos que não fazem parte das forças regulares e possuem as capacidades físicas e mentais
exigidas. Estão organizadas em divisões, regimentos, batalhões e companhias independentes
entre si, assim como em grupos especiais, uma espécie de tropa de elite dessas forças
paramilitares, e são equipadas com armamentos de infantaria, artilharia e, especialmente,
artilharia antiaérea. Esses meios de combate se encontram em locais, dentro das Zonas de
Defesa, próximos das residências e locais de trabalho dos combatentes, o que garante estarem
prontos para o rápido acesso quando necessário. A manutenção de uniformes e equipamentos
é feita nas próprias Zonas de Defesa, pelos milicianos e moradores capacitados, que garantem
financiamento próprio por meio da doação voluntária de um dia de trabalho anual para esse
fim.
Figura 1 - Milicianas das MTT desfilam na Praça da Revolução.

Fonte: ALVAREZ, 2014.


Uma perfeita explicação desse cenário nos é dada por Moniz Bandeira quando
discorre sobre os acontecimentos dos anos iniciais da revolução, décadas antes do processo de
reformulação no sistema de defesa:

Na segunda metade de 1959, o governo Castro começara, na Ilha de los


Pinos, a construção de um hospital subterrâneo, à prova de ataques aéreos e
de tal maneira encravado na montanha, que um avião ou helicóptero não
conseguia localizá-lo. A Ilha de los Pinos, onde 35.000 homens viviam em
permanente estado de alerta, convertera-se em uma verdadeira fortaleza, com
vários subterrâneos e túneis escavados nas montanhas. [...] Só na província
de Havana, segundo diversas informações, havia, no mínimo, cinco abrigos
antiaéreos, servindo como depósitos de armas e alimentos, e um deles,
construído debaixo do Jardim Zoológico, guardava material bélico
procedente da Europa Oriental (Idem, p. 372-373).

Já nos anos oitenta e justamente durante a ameaça clara de invasão, enquanto ocorre
processo de reformulação, vemos o seguinte:

[...] Castro, informado de que Haig pressionava em favor de uma ação


armada contra Cuba, não se intimidou. Mobilizou 500.000 efetivos das
Milícias Populares e declarou que estava pronto para enfrentar qualquer
ataque contra o regime revolucionário. Desde que percebera, aliás, que
Reagan, com um programa de governo beligerante, ganharia a eleição para a
presidência dos Estados Unidos, Castro começara a preparar-se para o
enfrentamento, modificando sua doutrina militar, com o conceito de Guerra
de Todo el Pueblo, em que Cuba teria de defender-se sozinha, com seus
próprios meios, em uma luta sem frente nem retaguarda, empregando as
Milícias de Tropas Territoriais e as Brigadas de Produção e Defesa,
organizadas em cada província e em seus 169 municípios (Idem, p. 626).

Podemos constatar então que, naquele momento (anos 80), meio milhão de civis
organizados nas tropas irregulares estavam prontos para atuar em conjunto com os efetivos
das tropas regulares, contando com uma extensa rede de apoio logística por todo o país,
construída ao longo das duas décadas de governo revolucionário que haviam transcorrido até
então.
Surgidas nesse mesmo momento e como resultado do mesmo processo reorganizativo,
as Brigadas e Produção e Defesa (BPD) passam a integrar o sistema de defesa do país.
Segundo o General de divisão Urbelino Betancourt, a criação das BPD é o ponto final de um
caminho complexo de análise e busca de experiências anteriores na história de Cuba,
principalmente durante as guerras de independência contra o colonialismo espanhol, onde há
um resgate de formas anteriores de organização civil para a defesa, assim como a análise da
importante experiência da revolução vietnamita e sua estrutura logística extremamente
complexa (BETANCOURT apud ABREUT, 2013, p. 49, tradução minha).
Mas o que são as Brigadas de Produção e Defesa? A busca de suas próprias soluções
para o novo contexto de problemas e a necessidade de fortalecer o Sistema Defensivo
Territorial, resultou na criação de tais organismos, responsáveis pela manutenção logística e
também da defesa combativa das zonas, com a produção e manutenção de alimentos e todo o
material necessário para a atuação dos milicianos, como cuidado de animais, ferramentas
domésticas, armamentos etc. Atualmente o número de BPD espalhadas pelo país gira em
torno de 60.000.

Figura 2 - Membros das BPD participam de exercícios conjuntos a níveis provinciais no Dia Nacional da
Defesa.

Fonte: Jornal Vanguardia, Villa Clara (Cuba).

O artigo 61 da Ley de Defensa Nacional assim as define:

As Brigadas de Produção e Defesa constituem a organização armada de que


dispõe o Conselho de Defesa da Zona [de Defesa] para desenvolver a
participação massiva dos cidadãos na Guerra de Todo o Povo e suas duas
tarefas básicas, durante as situações excepcionais, são a produção e a defesa,
além de cumprirem medidas de defesa civil e de ordem interior.
Os membros das Brigadas de Produção e Defesa, quando são mobilizados
para cumprir missões combativas, são considerados militares e estão sujeitos
à legislação militar. (CUBA, 1994, tradução minha)

Além disso, as BPD atuam na defesa civil em caso de desastres naturais, como
enchentes, furacões etc. No caso mais recente, em 2017, quando o furacão Irma devastou
diversas províncias, as BPD estiveram na linha de frente da evacuação da população e de todo
o programa de redução de danos, em conjunto com as tropas estatais.
Atualmente estima-se que o país possua mais de 1.400 Zonas de Defesa espalhadas
por todo o seu território, um efetivo de mais de 1 milhão de milicianos das Milícias de Tropas
Territoriais e 3,5 milhões de membros das Brigadas de Produção e Defesa prontos para
atuarem em conjunto com as forças regulares, cujo efetivo atual é de cerca de 70.000 militares
na ativa. (BANDEIRA, op. cit., p. 710). Diversos depósitos de armamento, combustível e
alimentos, assim como abrigos subterrâneos, se espalham pelo país para, no caso de um
ataque surpresa, abastecer os civis na guerra de grandes proporções que se seguiria. Vemos,
portanto, que as tão referenciadas Zonas de Defesa são a materialização dos pequenos
‘’microcosmos defensivos’’, a aplicação prática dos conceitos formulados teoricamente na
doutrina de Guerra de Todo o Povo. Dali sairão as ‘’vespas’’ prontas para transformar a
pequena ilha num grande vespeiro para o invasor.

Figura 3 - Milicianos das MTT e membros das BPD exibem os armamentos.

Fonte: ABREUT, 2013, p. 51.

Considerações finais

A investigação que aqui se encerra visou uma apresentação e compreensão inicial


daquilo que se configura um caso de envergadura única na história militar latinoamericana
apesar de suas semelhanças com experiências anteriores dentro e fora do continente. O caso
cubano e da doutrina militar de Guerra de Todo o Povo se mostra fonte de aprendizado para
todos aqueles que, independente de simpatia ou ojeriza ao regime político ali instalado, estão
dispostos a se aprofundar na complexa estrutura de defesa que a ilha possui.
Como apontado na introdução deste artigo, a bibliografia sobre o tema em língua
portuguesa é nula. Uma menção ao assunto, que se esgota em meia página, aparece na obra
citada do importante historiador e cientista político brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira,
obra essencial para qualquer análise sobre Cuba pré e pós-revolução, assim como para a
análise da política externa estadunidense para os países ao sul de suas fronteiras. Essa
completa ausência do tema em nossa língua me levou a um levantamento bibliográfico dos
trabalhos publicados pelos militares cubanos na Revista Verde Olivo, veículo de comunicação
das Fuerzas Armadas Revolucionárias, fonte riquíssima para o objeto aqui estudado e minha
principal referência de pesquisa. Assim, este trabalho se configura, até o momento, o único
estudo específico sobre o assunto e o seu caráter introdutório pretende garantir um satisfatório
primeiro contato com o tema.
Imaginar um Estado que não concebe a sua defesa como exclusividade das Forças
Armadas parece novidade para a ciência militar, área principal onde este estudo se insere, mas
precisamos ter em mente que é um fenômeno que precisa ser estudado e que, até o presente
momento, tem se mostrado uma política acertada e extremamente efetiva, uma vez que
funcionou e funciona como elemento dissuasivo que garante a não intervenção militar direta
por parte dos Estados Unidos. E essa dissuasão não é, como alguns podem pensar, algo
relativizado ou inconsciente. Pelo contrário, é a constatação real de que um ataque à ilha seria
por demais custoso, como nos mostra os acontecimentos de abril de 1982. Vejamos:

O Departamento de Defesa [dos EUA], no final do mês, iniciou no Caribe


outras manobras militares, como a Operation Ocean Venture 82, que
envolveu 45.000 efetivos, 350 aviões, 60 navios e incluiu a invasão simulada
de Porto Rico, bem como a evacuação dos não combatentes em Guantánamo.
A pretensão de invasão de Cuba só não se efetivou porque o Departamento
de Estado calculou que o custo em vidas de soldados americanos seria
elevadíssimo, praticamente insustentável. O poderio militar de Cuba
funcionou assim como fator dissuasivo. (BANDEIRA, op. cit, p. 627)

Uma guerra sem frente nem retaguarda, que prioriza pequenas e médias unidades
combativas, onde núcleos localizados, verdadeiros microcosmos defensivos, levariam a cabo
um conflito prolongado, cuja intenção não seria uma vitória no modo clássico, onde uma
força maior se sobrepõe à mais fraca. A intenção é um atrito de pequenas proporções em
diversos locais durante todo o tempo, de forma a provocar baixas permanentemente altas nas
forças de ocupação estrangeira. Uma guerra que, pelo correto balanço das próprias forças e
das do inimigo, não poderia ser travada exclusivamente pelo exército regular, uma vez que
este não seria capaz de sustentar o conflito com perspectivas de vitória diante de um oponente
muito mais forte. Portanto, como resultado de uma solução própria para a defesa, surge a
doutrina de Guerra de Todo o Povo. Essa descentralização das tropas que viriam a atuar na
defesa do país torna impossível para o inimigo a destruição total do exército cubano. Isso só
seria alcançado se cada uma das Zonas de Defesa fosse destruída, as forças regulares
aniquiladas e os mais de 4,5 milhões de paramilitares organizados nas Milícias de Tropas
Territoriais e nas Brigadas de Produção e Defesa fossem eliminados ou feitos prisioneiros,
além da existência de outras organizações mais restritas e que não aparecem neste artigo,
como o Exército Juvenil do Trabalho.
A existência do conflito irregular não se inaugura com a revolução cubana, tampouco
é exclusividade desta o uso tático da guerra de guerrilhas ou de civis armados. Alguns
exemplos de momentos na história onde essas características se fizeram presentes já foram
aqui citados, mas uma infinidade de outros exemplos poderiam ser apontados. Ora, se
nenhuma dessas características é exclusividade do processo cubano, onde reside sua
originalidade e porque considero este um caso sui generis?
Ao analisar o processo cubano não nos deparamos apenas com a guerra irregular ou
com uma doutrina militar de essência defensiva. A sua especificidade é a organização da
população em armas como política de Estado para a defesa. É uma concepção de guerra onde
a população é o centro gravitacional do processo, já que se compreende que as forças
regulares não possuem a capacidade de resistir sozinhas à agressão de um inimigo
militarmente superior.
Como o meu objetivo principal se insere no campo teórico da ciência militar, a análise
da realização prática se deu não como objeto de primeiro plano, mas como uma ferramenta
para entender a concepção teórico-doutrinária da Guerra de Todo o Povo. Se esta é, como
vimos, centrada na população como agente principal na defesa do país, as vezes em que citei
as forças regulares foram todas superficiais. Não porque os membros destas não façam parte
da população, mas porque enquanto instituições do Estado não são o centro de tal concepção
estratégica. Como visto, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, em caso de conflito, seriam os
responsáveis pela primeira onda de resistência.
Isso não significa, entretanto, que as forças regulares cubanas sejam incapacitadas ou
de baixo valor militar, pelo contrário. Dentre as forças armadas da América Latina, as cubanas
são as que possuem mais experiência em combates no exterior, tendo combatido em diversos
países da África quando teve sua ajuda solicitada por movimentos de libertação nacional em
luta contra o colonialismo europeu, assim como combateu com potências militares da época,
como a África do Sul, um dos poucos países do globo com posse de armamento nuclear e que
na época ainda funcionava sob o regime de segregação racial, o apartheid, sendo Cuba
vitoriosa mais de uma vez contra as forças desse país, além da nem um pouco insignificante
confrontação com os Estados Unidos. Em seu auge de poderio, as FAR chegaram a contar em
suas fileiras com mais de 300 mil militares na ativa. Uma verdadeira potência, caráter que
aumenta as proporções quando levamos em consideração que se trata de um país de pequenas
proporções territoriais e população também reduzida, se comparado com a esmagadora
maioria dos países da América Latina. Cuba, cerca de quarenta anos pra cá, passou por um
drástico processo de contenção dos gastos nesse setor, mais um reflexo do bloqueio
econômico que lhe foi imposto pelos EUA e que se estende até os dias de hoje, com o único
objetivo de asfixiar economicamente a ilha. Como estatística básica para pensar a arrecadação
de recursos em Cuba, tenhamos em mente que após o desmoronamento do Bloco Socialista
em 1991, o país perdeu abruptamente 85% da renda obtida através do comércio exterior.
Por fim, recomenda-se que sejam feitos novos estudos na área, de modo a enriquecer a
bibliografia sobre o tema e expandir o horizonte de análise da ciência militar e proporcionar,
para além do campo acadêmico, o contato de todos aqueles que se interessam em entender
como Cuba vem garantindo seu direito a existir.

Referências

ABREUT, 1° Ten Boris E. González. Fuerza popular. Revista Verde Olivo, Ciudad de La
Habana, n. 2, p. 49-51, 2013.

ALVAREZ, Olivia Marin. Milicias de Tropas Territoriales: el gran ejército popular de nuestra
revolución. Revista Verde Olivo, Ciudad de La Habana, n. 1, p. 4-9, 2014.

BANDEIRA, Moniz. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina. 2. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira (Editora Record), 2009.

CLAUSEWITZ, Carl von. Da guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

CUBA. Constituição (1992). Constitución de la República de Cuba. Disponível em:


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DIETERICH, Heinz. La doctrina militar cubana y las lecciones de Irak y Kosovo. In: ______.
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EXÉRCITO, Estado- Maior do. Glossário de termos e expressões para uso no Exército. 4.
ed. Brasília (DF): EGGCF, 2009.

RIVERA, Ten Cel Martín Irián Barrios. La guerra de todo el pueblo: nuestra concepción de
lucha invulnerable. Revista Verde Olivo, Ciudad de La Habana, Edición especial, p. 47-51,
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VISACRO, Alessandro. Guerra Irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência


ao longo da história. São Paulo: Editora Contexto, 2009.

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