Resumo
Buscando preencher o que percebi como uma lacuna na produção da história e ciência
militares em língua portuguesa, faço uma análise e apresentação inicial da doutrina militar do
Estado cubano, denominada Guerra de Todo o Povo. Portanto, o artigo visa compreender de
que forma o Estado, as forças armadas e a sociedade civil se organizam para uma eventual
agressão e como essa organização se dá nos tempos de paz relativa que foram reservados para
a pequena ilha caribenha.
Palavras-chave: Cuba; História Militar; Ciência Política; Ciência Militar; Teoria da Guerra.
Una introducción a la Guerra de Todo el Pueblo, la doctrina militar del Estado cubano
Resumen
Buscando llenar lo que percibí como una laguna en la historia y ciencia militares en lengua
portuguesa, hago un análisis y presentación inicial de la doctrina militar del Estado cubano,
llamada Guerra de Todo el Pueblo. Por lo tanto, el artículo tiene por objeto comprender de qué
forma el Estado, las fuerzas armadas y la sociedade civil se organizan para una eventual
agressión y cómo esta organización se da en los tiempos de paz relativa que se han reservado
a la pequeña isla caribeña.
Palabras-clabe: Cuba; Historia Militar; Ciencia Política; Ciencia Militar; Teoría de la Guerra
An introduction to the All People's War, the cuban's State military doctrine
Summary
Intending to complete what I realized as a gap in the production of military history and
science in portuguese, I do an initial analysis and presentation of the cuban's State military
doctrine, called as All People's War. So, this article aims to understand how the State, the
armed forces and the civil society organize themselves to an eventual agression and how this
type of organization happens in the times of relative peace that was reserved to the small
caribean island.
Key-words: Cuba; Military History, Political Science, Military Science, Theory of War
1
Ggraduando em licenciatura plena em História pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Tem
interesse em história política, história militar e ciência militar, com foco em Teoria da Guerra e nacionalismo
popular e revolucionário dos países subdesenvolvidos, assim como suas revoluções e guerras de libertação naci-
onal.
Introdução
2
‘’Cuba testa sua defesa para caso de ataque americano’’, UOL Notícias, 14/12/2004. Disponível em:
<noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2004/12/14/ult1808u30030.jhtm>
sociedade civil, no plano teórico, entre outros. Nas palavras do Glossário de termos e
expressões para uso no exército:
Ao definir doutrina, o glossário evoca um caráter que não pode, sob hipótese alguma,
ser ignorado: ela se fundamenta na experiência. Para o que se pretende esse texto, uma análise
do caso cubano, partimos da constatação de que foi a experiência concreta, as agressões
externas e internas, os episódios de resistência, os combates no exterior, a interpretação dos
eventos em escala mundial e o correto balanço da capacidade de suas próprias forças que
desaguou em um novo modo de pensar a guerra e a defesa nacional, assim como uma nova
orientação em termos práticos para a reorganização das instituições militares e do próprio
Estado. Esse novo modo de pensar, essa nova doutrina militar, recebeu o nome de Guerra de
Todo o Povo e é assim definida:
Assim, precisamos compreender em que contexto surge essa nova concepção, por que
motivo ela surge, quais os elementos novos com os quais a ilha precisou lidar, de que forma
ela se materializa historicamente na organização da defesa desde o triunfo da revolução em
1959 até os dias de hoje e como isso se refletiu nos avanços e recuos na política de dissuasão
que busca garantir, por meio do constante melhoramento das técnicas de defesa, que o país
não seja agredido ou, do contrário, que as baixas infligidas ao agressor sejam tamanhas a
ponto de tornar insustentável a manutenção do conflito.
A doutrina: pressupostos, elaboração e fundamentação da ‘’solução de massas’’ para a
defesa
Oficial e institucionalmente, dois são os documentos que dão aporte inicial à questão
da defesa nacional e a organização das massas enquanto cidadãos capacitados para atuar
militarmente se necessário. Primeiro, a constituição da República, estando a atual vigente
desde 1992. Além dela, outro documento norteador é a Ley número 75 de la defensa nacional,
aprovada pela Assembléia Nacional do Poder Popular em 1994. É o resultado da reunião, em
um texto único e com respaldo legal, das orientações para situações emergenciais e/ou
excepcionais. Não é a intenção desse texto destrinchar linha a linha os documentos aqui
citados, mas compreender de maneira o mais ampla possível esse novo modo de pensar - e se
preparar para - a guerra. É verdade que, para que os objetivos sejam atingidos, não basta
analisar tais documentos como verdade absoluta. Por outro lado, é também verdade que uma
análise que os ignore por seu caráter oficial será insuficiente, pois são o resultado (jurídico e
institucional) do acúmulo de experiências de diversas décadas de agressão que desembocaram
na elaboração de uma doutrina de defesa própria.
Cuba nunca fez parte de um Bloco Militar. Nunca se integrou ao Pacto de Varsóvia ou
qualquer outro, seja ele de nações orientais ou ocidentais, de um ou outro lado do espectro
político e ideológico nos tempos da Guerra Fria. Da mesma maneira, nunca participou de
manobras militares com aquele que havia sido o aliado mais próximo da revolução, a URSS.
Esses dois pontos evidenciam uma filosofia política do Estado cubano e de sua doutrina
militar: jamais excluir a possibilidade de negociações (de maior ou menor proximidade) com
outras nações, mas buscar incessantemente garantir a própria soberania e seu direito à
autodeterminação, o que significa não permitir que aliados ou inimigos ditem suas ações.
Compreendendo isso, passemos então aos pressupostos teóricos da doutrina e sua
inovação em relação às concepções dominantes dentro da ciência militar e da organização de
exércitos em escala global.
A esmagadora maioria dos exércitos regulares do planeta tem como norte principal,
como orientador de suas doutrinas militares e, consequentemente, da organização e atuação de
suas forças, a perspectiva do combate regular (também conhecido como simétrico ou
convencional), no clássico modelo Estado versus Estado, exército versus exército. É verdade
que essa mesma maioria possui destacamentos de elite extremamente capazes de combater em
condições variadas, assim como preparam suas tropas para combater com técnicas irregulares,
a guerrilha e a sabotagem, por exemplo, como são capazes de conduzir com maestria
operações de contrainsurgência e combate interno. O manual de contrainsurgência
estadunidense é uma prova disso. É estudado em todo o mundo, por acadêmicos e militares,
assim como muitas vezes é aplicado como o bê-á-bá da contrainsurgência por alguns
exércitos. Ainda assim, essa preparação para o combate irregular ocupa papel secundário na
maioria dos Estados do globo, e não é por acaso. O Coronel do Exército Brasileiro Alessandro
Visacro assim fala ao tratar sobre o combate irregular (ou assimétrico):
Urge esclarecer um ponto que aparece no trecho acima e pode gerar má compreensão,
mas que é melhor explicado em outras partes do livro que não aparecem neste artigo: ao
afirmar que ‘’não existem regras’’, não se fala de regras ou impedimentos morais. A guerra,
por ser guerra, já configura um rompimento de certas convenções morais e éticas (que variam
de acordo com o lugar e época). Um estudo aprofundado sobre qualquer episódio bélico da
história humana mostra que, apesar das inúmeras tentativas (que não podem de forma alguma
ser desconsideradas) de discussões diplomáticas para regular os conflitos, estabelecer regras e
limites, eles são, ainda assim, episódios caóticos (para dizer o mínimo). Ao falar em
inexistência de regras, em ‘’ausência de padrões’’ o autor fala do caráter técnico, cartesiano,
quase matemático e mecânico que a ciência militar oficial carrega. Um conflito regular é a
aplicação de conceitos aprendidos nas academias militares, conceitos sobre movimentação e
posicionamento de tropas, uso de equipamentos, cálculos de suprimentos etc. Se a guerra
irregular se mostra ‘’sem regras’’ é justamente porque não está presa a tais convenções, não
parte de pessoas com o pensamento moldado por tal cientificismo acadêmico que muitas
vezes se vê de mãos atadas frente à característica dinâmica e flexível do combate irregular,
como prova a história. Esse é o caráter excepcional da doutrina cubana, a ênfase dada ao
combate irregular. Vejamos o porquê.
Cuba é um país pequeno em extensão territorial e pobre em recursos naturais, fator
determinante ao pensar defesa e desenvolvimento em um contexto de bloqueio econômico
que já dura mais de meio século, do qual quase três décadas sem a presença do bloco de
países que fora seu principal parceiro comercial. Cerca de 150 km separam a ilha caribenha de
um país de dimensões continentais e que é, indiscutivelmente, a maior potência militar da
história. Um país cuja política de hostilidade para com Cuba nunca fez-se disfarçada. A leitura
correta de suas próprias condições geopolíticas determinou o caráter defensivo e irregular de
sua doutrina. Defensivo porque se orienta pela defesa do seu direito à autodeterminação e só
concebe a guerra em caso de invasão, chegando a reconhecer como delito internacional a
guerra de agressão e de conquista. Irregular pela óbvia constatação de que o inimigo é
infinitamente mais forte e a luta regular é a luta dele, a luta em seus termos, a luta de onde ele
sairia vencedor sem maiores custos. Reconhece-se esse fato e parte-se dele para a formulação
de uma defesa que se apoia não nas forças regulares do Estado (forças existentes e que
possuem enorme importância), mas nas milícias civis, buscando reformular concepções que
remontam aos anos da revolução, quando a guerrilha era a tática central das operações
militares, fato que possibilitou a vitória do Exército Rebelde frente à um exército mais
numeroso, melhor treinado, melhor equipado e com apoio externo. Vejamos:
As milícias são tão antigas como as guerras de agressão, são o recurso por
excelência a que recorrem os povos para as enfrentar, são uma força
especialmente apropriada para a defesa, são os trabalhadores lutando por
suas fábricas, os vizinhos defendendo seu bairro, os cidadãos cuidado de
seus bens, os bens do povo, e fazendo prevalecer suas convicções e seus
ideais’’ (CASTRO, F. apud ALVAREZ, 2014, p. 8, tradução minha)
A doutrina militar que se deriva [...] está determinada por seu caráter
defensivo-territorial, soberano e baseado nas próprias forças do país, não em
alianças militares com outras nações, como por exemplo o Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR). O centro de gravidade
dessa concepção de defesa pode definir-se, portanto, como local, auto
suficiente e combinado (forças regulares e irregulares) e com um agressor
estratégico claramente definido, que é os Estados Unidos. (DIETERICH,
2004, p. 104, tradução minha)
Tal forma particular de organizar o sistema defensivo implica dizer que esse modo de
pensar a guerra, a Guerra de Todo o Povo, equivale ao pensamento estratégico de uma luta
travada por toda a população, ondes forças regulares trabalham em conjunto com as
irregulares, vejamos o motivo disso.
Em caso de um ataque, as Forças Armadas Revolucionárias (FAR) ocupariam o papel
de primeira etapa defensiva no desenrolar do conflito simplesmente porque sua força, em
5
‘’Sistema defensivo territorial’’, Cuba Gob. Tradução minha. Disponível em:
<cubagob.cu/otras_info/minfar/doctrina/sistema_defensivo.htm>
termos técnicos, quando comparado ao poderio bélico estadunidense, é infinitamente inferior.
Soma-se isso ao fato que as FAR, como forças regulares, possuem limites que lhes são
intrínsecos, entre eles o fato de se prepararem principalmente para o conflito formal. Não por
ser essa uma escolha, mas pela própria forma pela qual as forças regulares em qualquer local
do globo se estruturam. Vejamos:
Estamos então diante de um novo tipo de sistema de defesa, que concebe as batalhas
não como o desenrolar de movimentos num campo determinado, como no modelo clássico,
cujas personagens são os exércitos de cada lado. Concebe um modelo de defesa cuja base de
sustentação são verdadeiros microcosmos defensivos, batalhas minúsculas, acontecendo
simultaneamente em todo o país, arrastadas durante todo o tempo em que o inimigo insista em
se manter no solo pátrio. Uma vez que a guerra não se encerrará quando as forças regulares
cubanas forem derrotadas, o conflito se prolongará a perder de vista, graças à organização do
povo em armas. Um tipo de guerra onde pequenos grupos infligem baixas sucessivas a um
exército muito mais poderoso, mas ainda assim invasor e sem o conhecimento do terreno.
Cada município e seu conjunto de Conselhos Populares, através dos moradores, configuram
forças irregulares capazes de combater nas zonas rurais, de pântanos, praias, montanhas,
cidades e até cavernas feitas para isso. Em suma, todo o território se encontra mapeado e
preparado previamente. Percebemos que a metáfora do início desse texto cai como uma luva
nesse cenário. Imaginemos um animal cuja proporção equivalha à dimensão do poderio bélico
estadunidense, imaginemos esse animal importunar um vespeiro, pequeno e, para os
desavisados, inofensivo. Se a grande besta não tombar diante os permanentes ataques das
vespas que se sacrificam em conjunto para proteger seu vespeiro diante de um inimigo maior,
uma hora recuará por não mais aguentar os pequenos ferimentos que, multiplicados milhares
de vezes, se tornam um fator crucial nesse embate.
Estamos lidando então com um objeto de estudo único dentro da área. Embora
apoiado em experiências anteriores, a Guerra de Todo o Povo configura uma doutrina militar
sui generis e precisa ser observada com mais atenção. Observe:
A guerra popular prolongada, segundo a experiência vietnamita, ou a guerra
de todo o povo, conforme a doutrina cubana é, como já dissemos, a estratégia
militar dominante, na qual tropas especiais, unidades irregulares e a
topografia das cidades possuem um papel central, junto com uma alta
mobilidade e o fator tempo, que reflete um padrão de uma guerra de desgaste
prolongado, tal como se observa atualmente nas guerras urbanas do triângulo
sunita no Iraque. ‘’O inimigo é forte em suas posições, mas é débil em seus
movimentos’’, afirma a sabedoria militar de Fidel Castro, que afirma que oito
combatentes bem treinados são um ‘’pequeno exército’’ que pode fazer um
tremendo dano ao inimigo. É esse tipo de guerra que o exército
estadunidense não pode ganhar. (Ibidem, p. 120, tradução minha)
Esse de tipo de guerra, levada a cabo como política de Estado para a defesa, para ser
bem empregada pressupõe inúmeros outros fatores, como uma economia preparada e à prova
de sabotagens, o treinamento de civis, a capacitação destes para se manterem auto suficientes
se as instituições estatais se encontrem neutralizadas pelo inimigo etc. Pressupõe que
efetivamente cada locação se transforme no já citado microcosmo defensivo. Então como
Cuba se prepara, na prática, para essa situação? A concepção inovadora onde quem ocupa o
papel principal na defesa do país é o povo, e não o exército, se reflete na realidade? Se Cuba
fosse invadida hoje, como essas forças estariam posicionadas?
As milícias civis em Cuba existem desde os anos da revolução e não foram extintas
com o triunfo dos revolucionários. Foram esses destacamentos de trabalhadores e camponeses
armados os embriões das milícias que se institucionalizaram e passaram a integrar o corpo
completo das forças estatais. Foram, inclusive, uma necessidade política da revolução, que
contava com amplo apoio popular mas enfrentava duras provas ao lidar com os chefes
militares do antigo regime, como bem aponta Moniz Bandeira, comentando os
acontecimentos de 1960:
Além disso, a existência das milícias significava que as forças regulares não mais
detinham o monopólio do uso da força, o que resultou num novo cenário político.
Já nos anos oitenta e justamente durante a ameaça clara de invasão, enquanto ocorre
processo de reformulação, vemos o seguinte:
Podemos constatar então que, naquele momento (anos 80), meio milhão de civis
organizados nas tropas irregulares estavam prontos para atuar em conjunto com os efetivos
das tropas regulares, contando com uma extensa rede de apoio logística por todo o país,
construída ao longo das duas décadas de governo revolucionário que haviam transcorrido até
então.
Surgidas nesse mesmo momento e como resultado do mesmo processo reorganizativo,
as Brigadas e Produção e Defesa (BPD) passam a integrar o sistema de defesa do país.
Segundo o General de divisão Urbelino Betancourt, a criação das BPD é o ponto final de um
caminho complexo de análise e busca de experiências anteriores na história de Cuba,
principalmente durante as guerras de independência contra o colonialismo espanhol, onde há
um resgate de formas anteriores de organização civil para a defesa, assim como a análise da
importante experiência da revolução vietnamita e sua estrutura logística extremamente
complexa (BETANCOURT apud ABREUT, 2013, p. 49, tradução minha).
Mas o que são as Brigadas de Produção e Defesa? A busca de suas próprias soluções
para o novo contexto de problemas e a necessidade de fortalecer o Sistema Defensivo
Territorial, resultou na criação de tais organismos, responsáveis pela manutenção logística e
também da defesa combativa das zonas, com a produção e manutenção de alimentos e todo o
material necessário para a atuação dos milicianos, como cuidado de animais, ferramentas
domésticas, armamentos etc. Atualmente o número de BPD espalhadas pelo país gira em
torno de 60.000.
Figura 2 - Membros das BPD participam de exercícios conjuntos a níveis provinciais no Dia Nacional da
Defesa.
Além disso, as BPD atuam na defesa civil em caso de desastres naturais, como
enchentes, furacões etc. No caso mais recente, em 2017, quando o furacão Irma devastou
diversas províncias, as BPD estiveram na linha de frente da evacuação da população e de todo
o programa de redução de danos, em conjunto com as tropas estatais.
Atualmente estima-se que o país possua mais de 1.400 Zonas de Defesa espalhadas
por todo o seu território, um efetivo de mais de 1 milhão de milicianos das Milícias de Tropas
Territoriais e 3,5 milhões de membros das Brigadas de Produção e Defesa prontos para
atuarem em conjunto com as forças regulares, cujo efetivo atual é de cerca de 70.000 militares
na ativa. (BANDEIRA, op. cit., p. 710). Diversos depósitos de armamento, combustível e
alimentos, assim como abrigos subterrâneos, se espalham pelo país para, no caso de um
ataque surpresa, abastecer os civis na guerra de grandes proporções que se seguiria. Vemos,
portanto, que as tão referenciadas Zonas de Defesa são a materialização dos pequenos
‘’microcosmos defensivos’’, a aplicação prática dos conceitos formulados teoricamente na
doutrina de Guerra de Todo o Povo. Dali sairão as ‘’vespas’’ prontas para transformar a
pequena ilha num grande vespeiro para o invasor.
Considerações finais
Uma guerra sem frente nem retaguarda, que prioriza pequenas e médias unidades
combativas, onde núcleos localizados, verdadeiros microcosmos defensivos, levariam a cabo
um conflito prolongado, cuja intenção não seria uma vitória no modo clássico, onde uma
força maior se sobrepõe à mais fraca. A intenção é um atrito de pequenas proporções em
diversos locais durante todo o tempo, de forma a provocar baixas permanentemente altas nas
forças de ocupação estrangeira. Uma guerra que, pelo correto balanço das próprias forças e
das do inimigo, não poderia ser travada exclusivamente pelo exército regular, uma vez que
este não seria capaz de sustentar o conflito com perspectivas de vitória diante de um oponente
muito mais forte. Portanto, como resultado de uma solução própria para a defesa, surge a
doutrina de Guerra de Todo o Povo. Essa descentralização das tropas que viriam a atuar na
defesa do país torna impossível para o inimigo a destruição total do exército cubano. Isso só
seria alcançado se cada uma das Zonas de Defesa fosse destruída, as forças regulares
aniquiladas e os mais de 4,5 milhões de paramilitares organizados nas Milícias de Tropas
Territoriais e nas Brigadas de Produção e Defesa fossem eliminados ou feitos prisioneiros,
além da existência de outras organizações mais restritas e que não aparecem neste artigo,
como o Exército Juvenil do Trabalho.
A existência do conflito irregular não se inaugura com a revolução cubana, tampouco
é exclusividade desta o uso tático da guerra de guerrilhas ou de civis armados. Alguns
exemplos de momentos na história onde essas características se fizeram presentes já foram
aqui citados, mas uma infinidade de outros exemplos poderiam ser apontados. Ora, se
nenhuma dessas características é exclusividade do processo cubano, onde reside sua
originalidade e porque considero este um caso sui generis?
Ao analisar o processo cubano não nos deparamos apenas com a guerra irregular ou
com uma doutrina militar de essência defensiva. A sua especificidade é a organização da
população em armas como política de Estado para a defesa. É uma concepção de guerra onde
a população é o centro gravitacional do processo, já que se compreende que as forças
regulares não possuem a capacidade de resistir sozinhas à agressão de um inimigo
militarmente superior.
Como o meu objetivo principal se insere no campo teórico da ciência militar, a análise
da realização prática se deu não como objeto de primeiro plano, mas como uma ferramenta
para entender a concepção teórico-doutrinária da Guerra de Todo o Povo. Se esta é, como
vimos, centrada na população como agente principal na defesa do país, as vezes em que citei
as forças regulares foram todas superficiais. Não porque os membros destas não façam parte
da população, mas porque enquanto instituições do Estado não são o centro de tal concepção
estratégica. Como visto, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, em caso de conflito, seriam os
responsáveis pela primeira onda de resistência.
Isso não significa, entretanto, que as forças regulares cubanas sejam incapacitadas ou
de baixo valor militar, pelo contrário. Dentre as forças armadas da América Latina, as cubanas
são as que possuem mais experiência em combates no exterior, tendo combatido em diversos
países da África quando teve sua ajuda solicitada por movimentos de libertação nacional em
luta contra o colonialismo europeu, assim como combateu com potências militares da época,
como a África do Sul, um dos poucos países do globo com posse de armamento nuclear e que
na época ainda funcionava sob o regime de segregação racial, o apartheid, sendo Cuba
vitoriosa mais de uma vez contra as forças desse país, além da nem um pouco insignificante
confrontação com os Estados Unidos. Em seu auge de poderio, as FAR chegaram a contar em
suas fileiras com mais de 300 mil militares na ativa. Uma verdadeira potência, caráter que
aumenta as proporções quando levamos em consideração que se trata de um país de pequenas
proporções territoriais e população também reduzida, se comparado com a esmagadora
maioria dos países da América Latina. Cuba, cerca de quarenta anos pra cá, passou por um
drástico processo de contenção dos gastos nesse setor, mais um reflexo do bloqueio
econômico que lhe foi imposto pelos EUA e que se estende até os dias de hoje, com o único
objetivo de asfixiar economicamente a ilha. Como estatística básica para pensar a arrecadação
de recursos em Cuba, tenhamos em mente que após o desmoronamento do Bloco Socialista
em 1991, o país perdeu abruptamente 85% da renda obtida através do comércio exterior.
Por fim, recomenda-se que sejam feitos novos estudos na área, de modo a enriquecer a
bibliografia sobre o tema e expandir o horizonte de análise da ciência militar e proporcionar,
para além do campo acadêmico, o contato de todos aqueles que se interessam em entender
como Cuba vem garantindo seu direito a existir.
Referências
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Habana, n. 2, p. 49-51, 2013.
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