A objetividade do conhecimento
científico: notas gramscianas
para a construção de uma
concepção de ciência e de ciência
política
Luciana Aliaga
Resumo: Não é possível afirmar que exista uma concepção sistemática e acabada de
ciência e de ciência política nos Quaderni del Carcere de Antonio Gramsci. Contudo, esta
obra nos oferece um profícuo conjunto de notas, especialmente no Caderno 11, que são
escritas a partir do diálogo com um dos principais intelectuais militantes da II
Internacional – Nicolau Bukharin –, mas também com Engels e Lenin, que tornam
possível delimitar conceitos e noções fundamentais para formulação de uma concepção
de ciência, tais como: a objetividade do conhecimento científico, as articulações entre
ciência e história, ciência e política e ciência e ideologia. Este artigo tem como objetivo
apresentar e discutir os parágrafos escritos por Gramsci no cárcere que tornam possível
pensar estes importantes problemas.
Palavras-chave: Antonio Gramsci; ciência, ideologia, filosofia da práxis.
Doutora em Ciência Política pela Universidade de Campinas – IFCH/UNICAMP/ FAPESP. Professora do
Depto. de Ciência Sociais da Universidade Estadual de Londrina – CCH/UEL. lualiaga@uel.br
1
Para simplificação do texto citaremos a notas do Quaderni del Carcere (versão crítica organizada por
Valentino Gerratana, citada na bibliografia por GRAMSCI, 2007) indicados pela letra Q, que indica o caderno,
seguida pelo número do caderno , pelo parágrafo de referência e pela página.
exterior’, está mal colocada” (p. 1411). A discussão acerca da objetividade e realidade do
mundo exterior é, para o público comum, – de acordo com Gramsci – um absurdo porquanto
para o senso comum não há dúvidas quanto à existência concreta e independente da natureza.
Essa crença na realidade objetiva do mundo exterior – adverte o autor – tem, contudo, uma
origem religiosa, “mesmo se quem dela partilha é religiosamente indiferente” porque todas as
religiões pregam a criação do mundo antes da criação do homem, ou seja, este já encontra o
mundo acabado e definido uma vez por todas, de modo que a objetividade do real não
depende do sujeito que a observa. Este “férreo” senso comum vive com a mesma solidez
“ainda quando o sentimento religioso está apagado e adormecido” (idem, p. 1412).
O problema do Ensaio popular, que permanece em 1931, consiste no fato de Bukharin
ter se apoiado neste materialismo místico, religioso, para fundamentar a objetividade do real
e, ao mesmo tempo, ter criticado de forma superficial a concepção subjetivista da realidade
(que se funda na compreensão do mundo como criação do espírito humano) a partir do senso
comum, ou seja, “de ter acolhido a concepção da realidade objetiva do mundo exterior em sua
forma mais trivial e acrítica, sem nem sequer suspeitar que se pode mover contra ela a objeção
de misticismo, como ocorreu de fato” (idem, p. 1415). Neste sentido questiona Gramsci:
pode existir uma objetividade extra-histórica e extra-humana? Mas quem
julgará esta objetividade? Quem poderá colocar-se nesta espécie de “ponto
de vista do cosmo em-si”, e que significaria tal ponto de vista? Pode-se
muito bem sustentar que se trata de um resíduo do conceito de deus (Q. 11,
§ 17, p. 1415).
De acordo com a concepção objetivista – à qual Bukharin adere acriticamente – o
mundo existente torna-se independente do homem, do conhecimento e da ação humana, “mas
é ontologicamente dependente de deus, que o criou antes da criação do homem”
(MARTELLI, 1996, p. 28). Como observa Martelli, a preocupação de Gramsci se concentrava
no temor de que a filosofia marxista, em função da deformação operada pelo materialismo
vulgar, pudesse justificar a acusação – feita primeiramente pelo neoidealismo italiano – “de
configurar-se como e confundir-se com uma metafísica de tipo teológico-religioso”. Se isso
ocorresse, estaria colocada a possibilidade de surgir uma concepção passiva e contemplativa
do conhecimento, “uma ideia do conhecimento como espelhamento mecânico” do real,
caindo, assim, no “materialismo intuitivo”, premarxista. Deste modo, “a marxiana atitude
crítico-prática revolucionária – afirmada nas Teses sobre Feuerbach – e centrada no conceito
de práxis”, isto é, “da possibilidade do conhecimento e da transformação do mundo natural e
social por meio da intervenção e da iniciativa subjetivo-humana, resultaria irremediavelmente
comprometida” (idem, p. 29).
2
A referência a esta obra foi feita provavelmente de citação indireta (ainda que a fonte não tenha sido citada)
uma vez que Gramsci não possuía a obra no cárcere (cf. GERRATANA, 2007, p. 2896).
3
Nos Cadernos filosóficos de Lênin, de acordo com Cospito (2010, p. 305, nota 82) “se encontra uma
gnosiologia menos grosseira e mais próxima da gramsciana, segundo a qual ‘a coincidência do pensamento com
o objeto é um processo: o pensamento (igual ao homem) não deve representar a verdade como morta quietude,
como uma simples imagem (cópia) pálida (inerte)”.
4
Para Cospito (2008, p. 78) a epistemologia gramsciana pode ser mais bem caracterizada como um “monismo”,
que não é materialista e nem idealista, mas, como admite o próprio Gramsci “identidade dos contrários no ato
histórico concreto” (Q. 11, § 64, p. 1492). E não é possível dizer que este autor erra quando afirma que o
marxismo para Gramsci somente pode ser compreendido como materialismo “caso se entenda o termo na sua
significação mais ampla de toda doutrina filosófica que exclua a transcendência do domínio do pensamento ou
de qualquer atitude política inspirada no realismo político” (Q. 11, § 16, p. 1408; cf. também COSPITO, 2010, p.
301). Contudo, deve-se atentar – como adverte Bianchi (2008, p. 84) para não confundir a crítica gramsciana “à
pretensão de objetividade epistemológica, ou seja, a possibilidade acalentada pelo positivismo de um
conhecimento absolutamente objetivo, anistórico e a-humano com uma crítica a objetividade ontológica da
matéria, ou seja, a sua realidade objetiva”. É preciso observar que a crítica de Gramsci se destina ao
materialismo vulgar e ao positivismo, contudo, muitas vezes foi interpretada como um neoidealismo. Como
observa Bianchi (idem), este foi o caso, por exemplo, das leituras de Luciano Gruppi, segundo o qual Gramsci
teria caído “efetivamente no idealismo” e de C. N. Coutinho, para quem Gramsci “nunca superou inteiramente a
concepção neo-hegeliana de Gentile e de Croce”.
circuito” operado por Gramsci na teoria marxiana das ideologias revela que o autor está lendo
o Prefácio à luz das Teses sobre Feuerbach, resultando na formulação do “conceito de
ideologia sobre o fundamento da reformulação da questão da verdade em termos de práxis”
(idem, p. 79).
Com isto Gramsci propõe um novo conceito de ideologia como visão de mundo que
expressa uma determinada forma concreta de vida, ou seja, por ideologia Gramsci
compreende “a verdade das posições políticas das diversas forças, fazendo delas ‘classes’
possuidoras de diferentes graus de ‘potência’ de colocar-se em relação a todas as outras de
modo historicamente ativo” (idem, p. 79-80). Num texto B do Q. 10/II, § 2, escrito alguns
meses antes da nota supracitada sobre o Prefácio (em abril de 1932), Gramsci – no mesmo
contexto da identificação entre história, filosofia e política – explicita sua concepção de
ideologia:
Mas, se é necessário admitir esta identidade, como é possível distinguir
entre as ideologias (iguais, segundo Croce, a instrumentos de ação política)
e a filosofia? Ou seja, a distinção será possível, mas apenas por graus
(quantitativamente) e não qualitativamente. Aliás, as ideologias serão a
“verdadeira” filosofia, já que elas serão as vulgarizações filosóficas que
levam as massas à ação concreta, à transformação da realidade (Q. 10/II,
§2, p. 1242, grifos nossos).
Ainda na Q. 10/I, § 10 (maio de 1932), Gramsci definirá ideologia como
toda concepção particular dos grupos internos da classe que se propõem
ajudar a resolver problemas imediatos e restritos. Mas para as grandes
massas da população governada e dirigida, a filosofia ou religião do grupo
dirigente e dos seus intelectuais apresenta-se sempre como fanatismo e
superstição, como motivo ideológico próprio de uma massa servil (Q. 10/I,
§10, p. 1231).
Como fica evidente nestas notas, a partir do novo conceito de ideologia, Gramsci
diferencia dois modos dissimiles – embora ligados – de conduta das massas. O termo
“religião” ou “fé” se refere a uma ação integrada à filosofia de uma época histórica, isto é, o
modo de proceder do homem comum da massa, seja ele das classes subalternas ou não, que
age conforme uma concepção de mundo generalizada (pela classe hegemônica) e aceita como
norma. Seria, assim, um elemento do senso comum (de qualquer classe) (cf. Q. 10, § 5, p.
1217; Q. 11, § 12, p. 1390).
Outra forma de procedimento é a que foi chamada nesta nota de “fanatismo das
massas passivas”, que parece apontar para o procedimento específico das classes subalternas,
isto é, “das grandes massas da população governada e dirigida”, para as quais “a filosofia ou a
religião do grupo dirigente e dos seus intelectuais apresenta-se sempre como fanatismo e
superstição, como motivo ideológico de uma massa servil” (idem). Em outros termos, a
ideologia do grupo dominante – como concepção de mundo que se universaliza – é imposta às
classes subalternas, que a acolhem passivamente, acriticamente, fanatismo aqui tem, portanto,
a conotação de uma paixão irracional, irrefletida.
Os dois casos, contudo, estão implicados nos processos histórico-políticos de
hegemonia cultural, isto é, a filosofia de uma época histórica corresponde ao conjunto de
elaborações filosóficas, cuja formulação hegemônica se deve a grupos mais influentes, ou
seja, aos intelectuais das classes mais avançadas e importantes política e economicamente, em
outros termos, à capacidade do grupo dirigente em universalizar sua visão de mundo. Neste
sentido, as ideologias, como formas vulgarizadas da filosofia, da visão de mundo adequada à
determinada classe consiste não numa imagem invertida dos processos que se desenvolvem na
estrutura, mas, pelo contrário, revelam as concepções e as crenças fundamentais das classes
sociais inseridas nas relações sociais de forças na disputa pela hegemonia civil.
Considerações finais
Frosini (2010, p. 186) chama atenção para a centralidade das “relações sociais”
atribuída por Gramsci na determinação da objetividade. É precisamente no interior das
relações sociais de forças que se torna possível perceber como as disputas ideológicas
correspondem aos conflitos materiais, “não, porém, no sentido de fotografar na ideologia
qualquer conjunto de dados de fato”, “o valor gnosiológico das ideologias não está na sua
capacidade de ilustrar as coisas efetivamente como são, mas na sua capacidade de modificar
as relações entre as classes, ‘representando’ de modo estrategicamente articulado, as relações
de cada uma com todas as outras” (idem, p. 192). Deste modo, conclui-se que o conhecimento
na presente sociedade de classes onde vige a divisão entre dominantes e dominados é sempre
parcial e provisório e a objetividade, em decorrência, torna-se objeto de disputa no interior
das relações sociais de forças.
Em outros termos, “a verdade para o materialismo histórico é uma questão que pode
somente ser pensada sobre o terreno das relações ideológicas”, de modo que a
“provisoriedade e a parcialidade contaminarão sempre a verdade e o seu portador não poderá
estar ligado a ela por qualquer propriedade essencial”, de modo que a ciência, qualquer
ciência, se inscreve no campo das ideologias, repensada sobre a base da “vontade prático-
política” (FROSINI, 2010, p. 32-33). Neste sentido, tanto o conhecimento quanto a
transformação do mundo passam pela ideologia, de modo que a teoria das ideologias torna-se
um capítulo fundamental da gnosiologia gramsciana da história e da política (cf. MARTELLI,
1996, p. 60-61). O deslocamento operado por Gramsci no conceito de ideologia tem, portanto,
como conseqüência mais geral o fato de não mais ser possível conceber o pensamento como
independente da política, isto é, na medida em que não há pensamento anistórico e que, na
realidade história, política e filosofia se identificam, o homem será sempre “homem-massa”
ou “homem-coletivo”, “conformista de algum conformismo” (Q. 11, § 12, p. 1376) e
necessariamente portador de um senso comum que o liga a um – ou a diversos – grupos
sociais. Sendo assim
se, de fato, o pensamento não será mais independente da trama ideológica
na qual está expresso, e se esta trama se incorpora sempre, necessariamente
em superestruturas (isto é, em relações sociais organizadas em determinado
modo) se seguirá que, para ser concretamente entendida, a questão da
verdade será repensada como momento da análise dos sistemas
hegemônicos e das estruturas de poder a que eles correspondem e que
contribuem de modo decisivo para produzir e reproduzir (FROSINI, 2010,
p. 22, grifos nossos).
Neste sentido, o objeto por excelência da ciência política não pode consistir
meramente nas formas superestruturais, nas disputas parlamentares e na “pequena política”,
ele deve se referir a terrenalidade da política e por esta razão descer ao mundo das relações
sociais de forças, que se constitui no centro concreto de produção do pensamento, já que a
verdade – na perspectiva gramsciana e também na perspectiva mais geral do marxismo – é
sempre uma construção nascida do conflito e das contradições do mundo moderno. Como
ressalta Frosini (2010, p. 25), para Gramsci, impera na sociedade capitalista uma
impossibilidade de totalização, de neutralidade, isto é, de uma representação que se refira à
sociedade em sua completude. Sendo assim, qualquer teoria que se pretenda neutra, completa
e perfeita será necessariamente falsa.
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