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PREFÁCIO

À PRIMEIRA EDIÇÃO (1947)[*]


Gilberto Freyre

Já uma vez me afoitei a sugerir essa ideia: a necessidade de reconhecer-se um movimento


distintamente nordestino de renovação das letras, das artes, da cultura brasileira –
movimento dos nossos dias que, tendo se confundido com a expansão do muito mais
opulento “modernismo” paulista-carioca, teve, entretanto, condições próprias –
“ecológicas”, poderia dizer-se com algum pedantismo – de formação, aparecimento e vida.
Desse “movimento do Nordeste” pode-se acrescentar que foi uma espécie de parente
pobre, capaz de dar ao rico valores já quase despercebidos de outras partes do Brasil e
necessitados apenas dos novos estímulos vindos do Sul e do estrangeiro para se integrarem
no conjunto de riqueza circulante e viva constituída por elementos genuinamente
brasileiros, essenciais ao desenvolvimento da nossa cultura em expressão honesta do nosso
éthos, da nossa história e da nossa paisagem e em instrumento de nossas aspirações e
tendências sociais como povo tanto quanto possível autônomo e criador.

Dentre aqueles valores, nenhum mais cheio de substância particularmente brasileira, ao


mesmo tempo que humana em sua essência, que as tradições amadurecidas, nas terras de
massapé do Nordeste à sombra das casas-grandes, das igrejas, dos sobrados, das senzalas,
dos mocambos, das palhoças, das mangueiras, dos coqueiros, dos cajueiros desta região; e
resultado do contato de europeus com índios e, principalmente, com africanos. Com
malungos, mucamas, babás, cunhãs, columins. Contato democratizante dos brancos e
degradante dos pretos.
Foi esse principalmente o mundo em que Jorge de Lima, em 1922-23, poeta já
precocemente feito, mas de modo nenhum estratificado em cinzelador milnovecentista de
sonetos elegantes recolhidos com avidez pelos pedagogos organizadores de antologias,
tornou-se, sob novos estímulos vindos do Sul, da Europa e dos Estados Unidos, o grande
poeta, o poeta por excelência. O poeta d’“O mundo do menino impossível”. Opoeta de
“Essa negra Fulô”. O poeta de uma série de poemas que reunidos aos de outros brasileiros
do passado e de hoje talvez deem ao Brasil o primeiro lugar na produção de uma literatura
poética que, intencionalmente ou não, leva sem nenhum rancor nem ranger de dentes o
cristianismo para o campo específico das relações fraternais dos brancos com os povos de
cor. Daí me parecer que precisamente nessa zona de expressão literária e ética é que o Brasil
merece receber um desses dias o Prêmio Nobel, pela mão de algum dos seus poetas ou
romancistas. Pois não nos faltam hoje romancistas e poetas novos que encarnam com
esplendor tendência já tão brasileira e socialmente significativa como nenhuma outra para o
futuro do resto da América: para o futuro de todos os países na fase atual de desejo de
democratização inteira, e não apenas política, das relações entre os homens e entre os
povos.
Há quem fale em “gulodice de pitoresco” para procurar diminuir, com essa generalização
de desprezo, aqueles artistas e escritores do Nordeste que, não sendo de origem
rigorosamente popular nem principalmente ameríndia ou africana, têm se dedicado ao
estudo, à interpretação e até à expressão dos complexos mais característicos da região,
ferindo nessa interpretação a nota de revolta contra os últimos preconceitos de cor
confundidos com os de classe que mantêm na miséria tantos descendentes brasileiros de
africanos. Entre tais “gulosos de pitoresco” estaria Jorge de Lima: sua poesia afro-
nordestina; poesia que não é a de um indivíduo pessoalmente oprimido pela condição de
descendente de africano ou de escravo – a única que para os inimigos do “pitoresco”
justificaria uma poesia, uma literatura, uma música, ou uma pintura brasileira, voltada com
simpatia para o negro, o índio ou o mestiço.
O curioso é que semelhante crítica, sonora mas prejudicada por intenções que não
devem ser no caso as principais, vem quase sempre de indivíduos menos autorizados para
fazê-la, tal a sua proeza de experiência genuinamente brasileira; pois são cosmopolitas
pouco sensíveis aos característicos mais profundos da vida, do passado e da paisagem das
nossas várias regiões; geômetras que desconhecem as intimidades de nossa paisagem
humana.
Experiência brasileira não falta a Jorge de Lima: ele é bem do Nordeste. Não lhe falta o
contato com a realidade afro-nordestina. E há poemas seus em que os nossos olhos, os
nossos ouvidos, o nosso olfato, o nosso paladar se juntam para saborear gostos e cheiros de
carne de mulata, de massapé, de resina, de moqueca, de maresia, de sargaço; para sentir
cores e formas regionais que dão presença e vida, e não apenas encanto literário, às
sugestões das palavras: que parecem lhes dar outras condições de vida além da tecnicamente
literária.
Esse poeta alagoano, em quem hoje a América inteira sente um poeta largamente seu
pela cordialidade crioula e pelo lirismo cristão, franciscano, fraternal, dispõe de recursos, de
técnica, dos quais poderia viver vida fácil de glória literária, admirado e festejado por seus
feitos e talentos de artífice; alheio às raízes regionais de sua experiência de homem por
muito tempo menino e às necessidades e aspirações de gente cuja pobreza conheceu
pequeno e mesmo depois de grande; médico de província, cuja miséria observou, cujo
sofrimento sentiu com o poder da empatia que o anima com relação à sua gente, do mesmo
modo que sentiu suas alegrias, suas esperanças, seus deleites doentios de comedores de
barro, seus medos das almas do outro mundo. De tudo isso lhe ficou uma base de terra, de
natureza e, ao mesmo tempo, de fé no sobrenatural, para defendê-lo da arte literária só de
composição e de efeitos verbais e estéticos – na qual às vezes se extremou na mocidade – e
fixá-lo naquela literatura que Van Wyck Brooks chama “primária” no sentido bom de
“básica”, de presa à terra e aos outros homens – ao comum dos homens –, e incapaz de
dissolver-se na “secundária” dos esotéricos, dos cosmopolitas, dos estetas de coterie. Estetas
aos quais tudo o que é popular, regional, folclórico repugna ou dá a ideia de simples
“pitoresco”; de estreito “regionalismo” ou “nacionalismo”; de “folclorismo” ou
“africanismo” apenas curioso. Aliás, falar-se com relação ao Brasil de “africanismo” como
expressão à parte da vida brasileira é revelar desconhecimento da simbiose Brasil-África.
James Weldon Johnson, a propósito da poesia afro-americana, fala no poder do
descendente de africano onde quer que se fixe, em grande ou pequeno número, revelar-se
“transfusivo”; identificar-se com o que os antigos chamavam “gênio do lugar”. Assim, o
negroide Pushkin teria se tornado o intérprete de tendências particularmente russas; outro
negroide, Dumas, o intérprete de coisas de um passado particularmente francês; Coleridge-
Taylor, também negroide, o intérprete, em música, de característicos intimamente
britânicos ou ingleses. Em nenhum país, porém, o descendente de africano tornou-se tão da
terra como no Brasil. Aqui sangue africano e seiva americana cedo se confundiriam na
transfusão, a ponto de haver observadores argutos – desde Bates e Wallace a Waldo Frank
– a quem os descendentes de africanos dão a impressão de mais filhos da terra do que os
indígenas; de mais harmonizados com a natureza do Norte do Brasil do que os próprios
caboclos entristecidos pelos grandes dias de sol como se ainda não se tivessem acostumado
ao calor da terra tropical.
Das expressões populares ou das tradições regionais da vida brasileira impregnadas de
África de que Jorge de Lima se tornou o maior intérprete poético na língua portuguesa,
quem ousará dizer que, em vez de virem do centro da cultura mais harmoniosa e
caracteristicamente nossa, vêm daquelas margens remotas da cultura de um povo onde vida
e paisagem humanas adquirem o tristonho de curiosidades etnográficas? Ou de indecisões
sociológicas que constituem os fenômenos de “marginalidade” incaracterística?
No Sul dos Estados Unidos o descendente de africanos é figura à parte da literatura
como da vida nacional. Mas não no Norte do Brasil – embora também aqui existam
preconceitos de cor confundidos com os de classe. Existem, mas sem força para distanciar
decisivamente os descendentes de africanos dos de europeus, a ponto dos primeiros só se
exprimirem em folclores, excluídos sistematicamente do banquete literário. Gonçalves Dias
tinha sangue de negro e, entretanto, é pela sua palavra de “Canção do exílio” que todo
brasileiro, mesmo o mais rigorosamente branco e erudito, se exprime e ainda hoje, quando
longe do Brasil dói-lhe a saudade das palmeiras tropicais, dos cajueiros caboclos, dos
canaviais dos velhos engenhos do Norte.
Em Jorge de Lima o verbo fez-se carne neste sentido: no de sua poesia afro-nordestina
ser realmente a expressão carnal do Brasil mais adoçado pela influência do africano. Jorge
de Lima não nos fala dos seus irmãos, descendentes de escravos, com resguardos
profiláticos de poeta arrogantemente branco, erudito, acadêmico, a explorar o pitoresco do
assunto com olhos distantes de turista ou de curioso. De modo nenhum. Seu verbo se faz
carne: carne mestiça. Seu verbo de poeta se torna carnalmente mestiço quando fala de
“democracia”, de “comidas”, de “Nosso Senhor do Bonfim”, embora a metade aristocrática
desse nordestino total, de corpo colorido por jenipapo e marcado por catapora, não esqueça
que a “bisavó dançou uma valsa com D. Pedro II”, nem que “o avô teve banguê”.
É essa totalidade de experiência, essa variedade de passado, sem o domínio exclusivo de
uma tradição étnica, social ou de cultura sobre as outras, que dá a poetas brasileiros como
Jorge de Lima, Simões Lopes Neto, Castro Alves, Gonçalves Dias, José Lins do Rego,
Jorge Amado, Jaime Ovale, Ascenso Ferreira, Mário de Andrade, Cícero Dias, tremenda
superioridade sobre os norte-americanos em exprimir sem revolta acre nem violência o que
há de africano em nossa vida e em nosso caráter. O que há de africano se confunde, se
mistura quase fraternalmente, com o que existe de europeu e de indígena. Na experiência
plebeia do brasileiro total se estende à aristocracia, sem que a aristocracia seja
invariavelmente a europeia.
Não há felizmente no Brasil uma “poesia africana” como aquela, nos Estados Unidos, de
que falam James Weldon Johnson e outros críticos: poesia crispada quase sempre em atitude
de defesa ou de agressão; poesia quase sempre em dialeto meio cômico para os brancos, para
os ouvidos dos brancos, mesmo quando mais amargos ou tristes os assuntos. O que há no
Brasil é uma zona de poesia mais colorida pela influência do africano: um africano já muito
dissolvido em brasileiro. Uma zona a que estão ligados, pela sua formação regional, alguns
dos nossos escritores e poetas mais rigorosamente brancos e aristocráticos: os
pernambucanos Joaquim Nabuco e Manuel Bandeira, por exemplo. O que mostra que não é o
sangue que aguça sozinho nos poetas ou escritores a sensibilidade a assuntos com os quais
eles podem identificar-se só pelo poder de empatia, só por transfusão de cultura. Ao
contrário: o sangue às vezes faz que os mestiços se afastem dos assuntos africanos com
excessos felinos de dissimulação e pudor. O caso de Machado de Assis.
Jorge de Lima, um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, enriquece o
brasileiro das áreas menos coloridas pela influência africana, com a expressão poética de sua
experiência de nordestino de banguê nascido e criado perto dos últimos “pombais negros”
de que falou Nabuco. Ao mesmo tempo ele põe o estrangeiro que se aproxima da poesia
brasileira em contato com uma das nossas maiores riquezas: a interpenetração de culturas,
entre nós tão livre, ao lado do cruzamento de raças. Dois processos através dos quais o
Brasil vai-se adoçando numa das comunidades mais genuinamente democráticas e cristãs do
nosso tempo.

* Transcrito posteriormente em O Jornal, Rio de Janeiro, 22/11/1953, sob o título “Jorge de Lima e os seus Poemas
negros”.
POEMAS NEGROS
NORDESTE

Nordeste, terra de São Sol!


Irmã enchente, vamos dar graças a Nosso Senhor, que a minha madrasta Seca torrou seus
anjinhos para os comer.
São Tomé passou por aqui?
Passou, sim senhor!
Pajeú! Pajeú!
Vamos lavar Pedra Bonita, meus irmãos, com o sangue de mil meninos, amém!
D. Sebastião ressuscitou!
S. Tomé passou por aqui?
Passou, sim senhor.
Terra de Deus! Terra de minha bisavó que dançou uma valsa com D. Pedro II. São Tomé
passou por aqui?
Tranca a porta, gente, Cabeleira aí vem!
Sertão! Pedra Bonita!
Tragam uma virgem para D. Lampião!
DIABO BRASILEIRO

Enxofre, botija, galinha preta!


Credo em cruz, capeta, pé-de-pato!
Diabo brasileiro, dente-de-ouro, botija, onde está?
Credo, capeta, pé-de-pato!

Diabo brasileiro quero saber quando dá


a dezena do carneiro?
Enxofre, botija, galinha preta!
Credo em cruz, capeta, pé-de-pato!

Capeta, dente-de-ouro, tome galinha preta,


quero dormir com a Zefa!
Capeta, bode preto, quero dormir com a Zefa!

Capeta, diabo brasileiro, só lhe dou galinha preta!


Capeta, quero casar com a Zefa, quero que Sêo Vigário
me case logo com a Zefa!

Capeta tome galinha preta!


Capeta, diabo brasileiro, quando dá
a centena do macaco?
Quero quebrar banqueiro, capeta danado, pé-de-pato,
dente-de-ouro, cheiro de enxofre, tome galinha preta!
Capeta, pé-de-pato, quero acertar com o bicho,
quero comprar gravata, botina de bico fino,
terno de casimira pra quando a Zefa me ver!
Capeta, pé-de-pato, tome galinha preta!

Capeta, pé-de-pato, dente-de-ouro, quero dente de ouro,


quero capa de borracha, punho engomado, camisa,
bengala castão de ouro, capeta, pé-de-pato,
tome galinha preta!
Quero saber suas partes, suas sabedorias,
quero saber mandingas,
capeta, pé-de-pato, tome galinha preta,
que eu quero quebrar banqueiro, que eu quero tirar botija,
que eu não quero trabalhar, que eu também sou brasileiro!

Capeta, tome galinha preta,


que eu quero saber embolada,
quero saber martelo, quero ser um cantador,
capeta, quero dizer à Zefa essa quentura de amor!
Capeta, tome galinha preta, que eu quero casar com a Zefa.
Por Deus, que eu quero, capeta, pé-de-pato!
Tome galinha preta!
BICHO ENCANTADO

Este bicho é encantado:


não tem barriga,
não tem tripas,
não tem bofes,
não é maribondo,
não é mangangá,
não é caranguejeira.
Que é que é Janjão?

É a Estrela-do-mar que quer me levar.

Só tem olhos,
só tem sombra.
Babau!
Não é jimbo,
não é muçum,
não é sariema.
Que é que é Janjão?
É a Estrela-do-mar que quer me afogar.

Este bicho é encantado:


não quer de-comer,
não quer munguzá,
não quer caruru,
não quer quigombô.
Só quer te comer.
Que é que é Janjão?
É a Estrela-do-mar que quer me esconder.
Babau!
ESSA NEGRA FULÔ

Ora, se deu que chegou


(isso já faz muito tempo)
no banguê dum meu avô
uma negra bonitinha
chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
– Vai forrar a minha cama,
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô


ficou logo pra mucama,
para vigiar a Sinhá
pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

“Era um dia uma princesa


que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco.”

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
“Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou.”

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

Fulô? Ó Fulô?
(Era a fala da Sinhá
chamando a Negra Fulô.)
Cadê meu frasco de cheiro
que teu Sinhô me mandou?

– Ah! foi você que roubou!


Ah! foi você que roubou!

O Sinhô foi ver a negra


levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa.
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô.)

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê meu lenço de rendas
cadê meu cinto, meu broche,
cadê meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou.
Ah! foi você que roubou.

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar


sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dele pulou
nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê, cadê teu Sinhô
que nosso Senhor me mandou?
Ah! foi você que roubou,
foi você, negra Fulô?

Essa negra Fulô!


BANGUŠ

Cadê você meu país do Nordeste


que eu não vi nessa Usina Central Leão de minha terra?
Ah! Usina, você enguliu os banguezinhos do país das Alagoas!
Você é grande, Usina Leão!
Você é forte, Usina Leão!
As suas turbinas têm o diabo no corpo!
Você uiva!
Você geme!
Você grita!
Você está dizendo que U.S.A. é grande!
Você está dizendo que U.S.A. é forte!
Você está dizendo que U.S.A. é única!
Mas eu estou dizendo que V. é triste
como uma igreja sem sino,
que você é mesmo como um templo evangélico!
Onde é que está a alegria das bagaceiras?
O cheiro bom do mel borbulhando nas tachas?
A tropa dos pães de açúcar atraindo arapuás?
Onde é que mugem os meus bois trabalhadores?
Onde é que cantam meus caboclos lambanceiros?
Onde é que dormem de papos para o ar os bebedores de resto
[de alambique?
E os senhores de espora?
E as sinhás-donas de cocó?
E os cambiteiros, purgadores, negros queimados na fornalha?
O seu cozinhador, Usina Leão, é esse tal Mister Cox que tira da
[cana o que a cana não pode dar
e que não deixa nem bagaço
com um tiquinho de caldo
para as abelhas chupar!
O meu banguezinho era tão diferente,
vestidinho de branco, o chapeuzinho do telhado sobre os olhos,
fumando o cigarro do boeiro pra namorar a mata virgem.
Nos domingos tinha missa na capela
e depois da missa uma feira danada:
a zabumba tirando esmola para as almas;
e os cabras de faca de ponta na cintura,
a camisa por fora das calças:
“Mão de milho a pataca!”
“Carretel marca Alexandre a doistões!”
Cadê você meu país de banguês
com as cantigas da boca da moenda:
“Tomba cana João que eu já tombei!”
E o eixo de maçaranduba chorando
talvez os estragos que a cachaça ia fazer!
E a casa dos cobres com o seu mestre de açúcar potoqueiro,
com seu banqueiro avinhado
e as tachas de mel escumando,
escumando como cachorro danado.
E o banguê que só sabia trabalhar cantando,
cantava em cima das tachas:
“Tempera o caldo mulher que a escuma assobe…”
Cadê a sua casa-grande, banguê,
com as suas Dondons,
com as suas Têtês,
com as suas Benbens,
com as suas Donanas alcoviteiras?
Com seus Tôtôs e seus Pipius corredores de cavalhada?
E as suas molecas catadoras de piolho,
e as suas negras Calus, que sabiam fazer munguzás,
manuês,
cuscuz,
e suas sinhás dengosas amantes dos banhos
de rio e de redes de franja larga!
Cadê os nomes de você, banguê?
Maravalha,
Corredor,
Cipó branco,
Fazendinha,
Burrego-d’água,
Menino Deus!
Ah! Usina Leão, você enguliu
os banguezinhos do país das Alagoas!
Cadê seus quilombos com seus índios armados de flecha,
com seus negros mucufas que sempre acabavam vendidos,
tirando esmola para enterrar o rei do Congo?
“Folga negro
Branco não vem cá!
Si vinhé,
Pau há de levá!”
Você vai morrer, banguê!
Ainda ontem sêo Major Totonho do Sanharó
esticou a canela.
De noite se tomou uma caninha
pra se ter força de chorar.
E se fez sentinela.
E você, banguezinho que faz tudo cantando
foi cantar nos ouvidos do defunto:
“Totonho! Totonho!
Ouve a voz de quem te chama
vem buscar aquela alma
que há treis dias te reclama!”
Banguê! E eu pensei que estavam
cantando nos ouvidos de você:
“Banguê! Banguê!
Ouve a voz de quem te chama!”
MŠS DE MAIO

Mês de maio!
Ai! mês bem feito
que tem o dia primeiro
pra ser Dia do Trabalho.

Comemorando este dia


vamos todos descansar!

Mês de maio, mês de maio,


ai, mesinho brasileiro!
O Brasil quis fazer anos
escolheu seu dia três. –

Comemorando este dia


vamos, meu bem, descansar!

Mês de maio, fora os domingos,


fora os dias emprensados
que a gente deve guardar,
tem dia santo de guarda
que é o dia nove de maio,
tem o maior dia santo
dia do Corpo de Deus.
Comemorando esses dias
o brasileiro só deve
pensar mesmo em descansar!
Quem trabalhou mais que Pai João
cavando a terra com a enxada?
Dia 13 de Pai João!

Meu bem… vamos nos deitar?

Mês de maio, mês santinho!


Nossa Senhora escolheu
este mês pra ser mês dela…

Nossa Senhora não deixe


este mesinho acabar.
HISTÓRIA

Era princesa.
Um libata a adquiriu por um caco de espelho.
Veio encangada para o litoral,
arrastada pelos comboieiros.
Peça muito boa: não faltava um dente
e era mais bonita que qualquer inglesa.
No tombadilho o capitão deflorou-a.
Em nagô elevou a voz para Oxalá.
Pôs-se a coçar-se porque ele não ouviu.
Navio guerreiro? não; navio tumbeiro.
Depois foi ferrada com uma âncora nas ancas,
depois foi possuída pelos marinheiros,
depois passou pela alfândega,
depois saiu do Valongo,
entrou no amor do feitor,
apaixonou o Sinhô,
enciumou a Sinhá,
apanhou, apanhou, apanhou.
Fugiu para o mato.
Capitão do campo a levou.
Pegou-se com os orixás:
fez bobó de inhame
para Sinhô comer,
fez aluá para ele beber,
fez mandinga para o Sinhô a amar.
A Sinhá mandou arrebentar-lhe os dentes:
Fute, Cafute, Pé-de-pato, Não-sei-que-diga,
avança na branca e me vinga.
Exu escangalha ela, amofina ela,
amuxila ela que eu não tenho defesa de homem,
sou só uma mulher perdida neste mundão.
Neste mundão.
Louvado seja Oxalá.
Para sempre seja louvado.
O MEDO

O bicho Carrapatu,
o negro velho do surrão
– foi o medo que passou.

Mas depois chegou o medo,


o medo maior que houve
que as negras velhas contavam:
era a mula sem cabeça,
era a cabra cabriola,
lobisomens, bestas-feras.

A gente sabia quem era a mula sem cabeça.


O lobisomem era o Zuza-fogueteiro.

Pelo sinal da Santa Cruz…

E a vovozinha: Reze a oração de


Nossa Senhora do Desterro.

A gente rezava.
O medo tremia o queixo da gente,
mas lá ia…

O engenho de minha avó


era cheio de almas penadas
que vagavam nas senzalas abandonadas.

O engenho de minha avó era tão triste!

No tempo do cólera,
morreu gente como bala.
Na seca de 77 não ficou raiz de imbu…
As pedras do rio tinham letreiros de botijas
que ninguém descobriu.

Quando a vózinha morreu


o resto da gente partiu para o Juazeiro.

Pelo sinal da Santa Cruz…


DEMOCRACIA

Punhos de redes embalaram o meu canto


para adoçar o meu país, ó Whitman.
Jenipapo coloriu o meu corpo contra os maus-olhados,
catecismo me ensinou a abraçar os hóspedes,
carumã me alimentou quando eu era criança,
Mãe-negra me contou histórias de bicho,
moleque me ensinou safadezas,
massoca, tapioca, pipoca, tudo comi,
bebi cachaça com caju para limpar-me,
tive maleita, catapora e ínguas,
bicho-de-pé, saudade, poesia;
fiquei aluado, mal-assombrado, tocando maracá,
dizendo coisas, brincando com as crioulas,
vendo espíritos, abusões, mães-d’água,
conversando com os malucos, conversando sozinho,
emprenhando tudo que encontrava,
abraçando as cobras pelos matos,
me misturando, me sumindo, me acabando,
para salvar a minha alma benzida
e meu corpo pintado de urucu,
tatuado de cruzes, de corações, de mãos-ligadas,
de nomes de amor em todas as línguas de branco, de mouro
[ou de pagão.
RETRETA DO VINTE

O cabo mulato balança a batuta,


meneia a cabeça, acorda com a vista
os bombos, as caixas, os baixos e as trompas.

(No centro da Praça o busto de D. Pedro escuta.) –


Batuta pra esquerda: relincham clarins,
requintas, tintins e as vozes meninas da banda do 20.

Batuta à direita: de novo os trombones


e as trompas soluçam. E os bombos e as caixas: ban-ban!
Vêm logo operários, meninas, cafuzas,
mulatos, portugas, vem tudo pra ali.
Vem tudo, parecem formigas de asas
rodando, rodando em torno da luz.

Nos bancos da Praça conversas acesas,


apertos, beijocas, talvezes.

D. Pedro II espia do alto.


(As barbas tão alvas
tão alvas nem sei!)

E os pares passeiam,
parece que dançam,
que dançam ciranda,
em torno do Rei.
QUICHIMBI SEREIA NEGRA

Quichimbi sereia negra


bonita como os amores
que tem partes de chigonga
não tem cabelos no corpo,
é lisa que nem muçum,
é ligeira que nem buru
não tem matungo e é donzela,
ao mesmo tempo pariu
jurará sem urucaia.
Quichimbi vive nas ondas
coberta de espuma branca,
dormindo com o boto azul,
conservando a virgindade
tão difícil de sofrer.
Quichimbi segue nas ondas
dez mil anos caminhando,
dez mil anos assistindo
as terras mudar de dono,
o mar servindo de escravo
ao homem branco das terras.
Quichimbi sereia negra
bonita como os amores
dormindo com o boto azul,
não sabe de nada, não.
ZEFA LAVADEIRA
(Trecho de A mulher obscura)

Uma trouxa de roupa é um mundo animado de anáguas, de corpinhos, de fronhas, de lençóis


e toalhas servis; em resumo: dos homens e suas preocupações.
E qual é a maior força desse mundo? Onde o segredo das suas atividades?
– Olha o amor, Zefa – olha os lençóis –, torna-nos semelhantes aos deuses, faz vibrar em
nós o poema dos plasmas que neles se geraram. Por eles, retrocedendo pelo caminho de
certas memórias obscuras, voltamos às Formas primeiras, às Energias inteligentes.
E desfazendo aquela trouxa de roupa com o desembaraço de Jeová, compondo e
recompondo um caos, mostra-me peça por peça, todas aquelas forças mencionadas, lodos
genésicos, ou salivas do Espírito que adejou sobre as águas.
Mas Zefa deu um muxoxo, arrepanhando as fraldas, arrastando os pés. Zefa não tinha
antenas para a torrente declamatória interior de minha juventude em dias de convalescença.
Pela vereda que vinha do rio, surgiu cantarolando uma cafuza nova, com o pote à
cabeça, o braço direito erguido, segurando a rodilha.
E senti-a em tudo – na algazarra dos ramos, na toada das águas despenhadas, nos
vegetais variegados como arraiais, no tumulto dos seres que sofrem, amam e se perpetuam
correndo a vida.
Josefa – lavadeira, porque se julga a sós, vai despindo as belezas selvagens de ninfa
cafuza.
No remanso em que bate a roupa, há bambus e ingazeiros pelas margens. Josefa entra o
caudal até as coxas morenas, a camisa arregaçada, o cabeção de crochê impelido pelos seios
duros, tostados de soalheiras.
O braço valente arroja o pano contra a pedra de bater, e a axila cobre-se e descobre-se,
piscando a tentação de arrochos e rendições cheias de saciedades. Aqui, toda lavadeira de
roupa é boa cantadeira. A cantiga é uma corruptela de velhas toadas num tom langoroso,
alimentado de sofreguidões, de desejos incontidos, e de lamentações incorrespondidas.
Depois de lavar a roupa dos outros, Zefa lava a roupa que a cobre no momento. Depois,
deixa-a corando sobre o capim. Então Zefa lavadeira ensaboa o seu próprio corpo, vestido
do manto de pele negra com que nasceu. Outras Zefas, outras negras vêm lavar-se no rio. Eu
estou ouvindo tudo, eu estou enxergando tudo. Eu estou relembrando a minha infância.
A água, levada nas cuias, começa o ensaboamento; desce em regatos de espuma pelo dorso, e
some-se entre as nádegas rijas. As negras aparam a espuma grossa, com as mãos em concha,
esmagam-na contra os seios pontudos, transportam-na, com agilidade de símios, para os
sovacos, para os flancos; quando a pasta branca de sabão se despenha pelas coxas, as mãos
côncavas esperam a fugidia espuma nas pernas, para conduzi-la aos sexos em que a África
parece dormir o sono temeroso de Cam.
BENEDITO CALUNGA

Benedito Calunga
calunga-ê
não pertence ao papa-fumo,
nem ao quibungo,
nem ao pé de garrafa,
nem ao minhocão.

Benedito Calunga
calunga-ê
não pertence a nenhuma ocaia nem a nenhum tati,
nem mesmo a Iemanjá,
nem mesmo a Iemanjá.

Benedito Calunga
calunga-ê
não pertence ao Senhor
que o lanhou de surra
e o marcou com ferro de gado
e o prendeu com lubambo nos pés.

Benedito Calunga
pertence ao banzo
que o libertou,
pertence ao banzo
que o amuxilou,
que o alforriou
para sempre
em Xangô.
Hum-Hum.
LADEIRA DA GAMBOA

Há uma rua que eu conheço


Rua Barão da Gamboa
tem uma ladeira de lado
com o mesmo nome da rua
nenhum barão mora lá
mas porém gente que sua
gente que sobe gente que desce
gente que vai para a vida
gente que dela vem
não há meio de dizer-se
na ladeira ninguém vem
você mesmo não se aguenta
pois a ladeira é um vaivém
parece mesmo com a vida
tem subida tem descida
Barão não
Poesia mesmo à toa
tem lama poeira buracos
tudo o que a vida possui
mas polícia não tem não
polícia lá não influi
que a vida não tem polícia
a vida é mesmo um vaivém
igualmente esta ladeira
dá na gente uma canseira
tem subida tem descida
tem mais que tudo canseira
igualmente esta ladeira
da Rua Barão da Gamboa.
Que boa.
Ladeira. Vida. Canseira. Gamboa.
PASSARINHO CANTANDO

Congos, cabindas, angolas,


também de Cacheo e de Bissao,
Maranhão, Pernambuco, Pará,
Fernando Pó, São Tomé, Ano Bom,
Serra Leoa, Serra Leoa, Serra Leoa!
Cabo Verde, Moçambique,
duas cozinheiras, três belas mucamas, óleo de coco,
(o boto também gosta de teu sangue Sudão).
Senhor Manuel Teixeira dos Santos
vem de redingote, suíças e procuração.
Ana Maria doceira de meu pai
amancebou-se com o alferes;
na segunda geração:
nem culatronas, nem pés apalhetados,
nem panos da costa, nem figas, nem aluá.
Na terceira nasceu Maricota, filha de santo,
checheré, rainha suicidou-se com fogo.
Deixou uma filha sagrada com água benta,
fechada com mandinga, branca, casada, com chácara.
Há na sua pele três estrelas marinhas, duas estrelas-d’alva,
a Lua, a Água-viva, a Fome de abraços.
Há no seu sangue:
três moças fugidas, dois cangaceiros,
um pai de terreiro, dois malandros, um maquinista,
dois estourados.
Nasceu uma índia,
uma brasileira,
uma de olhos azuis,
uma primeira comunhão,
uma que deu seus cachos ao Senhor da Paixão,
uma que tinha ataques,
uma que foi ser freira,
uma que nasceu em Londres e é parenta do Rei.
O passarinho ficou órfão
cantando, catando penas só.
EXU COMEU TARUBÁ

O ar estava duro, gordo, oleoso:


a negra dentro da madorna;
e dentro da madorna – bruxas desenterradas.
No chão uma urupema com os cabelos da moça.
Foi então que Exu comeu tarubá
e meteu a figa na mixira de peixe-boi.
Aí na distância sem-fim, moças foram roubadas,
e sóror Adelaide veio viajando de rede,
era alva ficou negra, era santa ficou lesa:
caiu na madorna, o ar duro, gordo, oleoso.
Exu começou a babar a mixira de peixe-boi,
o professor tirou o pincenê: estava traído pelo donatário,
sem barregãs, sem ginetes, sem escravos.
Aí na distância sem-fim, viajando de rede
D. Diogo de Holanda veio parar na madorna, o ar duro, gordo,
[oleoso.
Exu começou a lamber a mixira de peixe-boi:
Isabel Lopo de Sampaio desvirginou o moleque,
jogou-se no rio, virou ingazeira, pariu três macacos.
Viajando de rede vieram três macacos parar na madorna, o ar
[duro, gordo, oleoso.
Eis aí três cirurgiões cosendo retrós,
a bela adormecida no século vindouro
que esquecerá por certo a magia
contra tudo que não for loucura
ou poesia.
ANCILA NEGRA

Há ainda muita coisa a recalcar,


Celidônia, ó linda moleca ioruba
que embalou minha rede,
me acompanhou para a escola,
me contou histórias de bichos
quando eu era pequeno,
muito pequeno mesmo.

Há muita coisa ainda a recalcar:


As tuas mãos negras me alisando,
os teus lábios roxos me bubuiando,
quando eu era pequeno,
muito pequeno mesmo.

Há muita coisa ainda a recalcar


ó linda mucama negra,
carne perdida,
noite estancada,
rosa trigueira,
maga primeira.

Há muita coisa a recalcar e esquecer:


o dia em que te afogaste,
sem me avisar que ias morrer,
negra fugida na morte,
contadeira de histórias do teu reino,
anjo negro degredado para sempre,
Celidônia, Celidônia, Celidônia!

Depois: nunca mais os signos do regresso.


Para sempre: tudo ficou como um sino ressoando.
E eu parado em pequeno,
mandingando e dormindo,
muito dormindo mesmo.
BAHIA DE TODOS OS SANTOS

Bahia,
eu te olho e te ouço
de bordo do meu itazinho pulador,
e sob a mesma noite que nos cobre,
eu sinto o contato de teus membros morenos
e procuro com as mãos, com os lábios,
tudo o que é bom de cingir e beijar!

Para me ver chegar,


os sobrados e as igrejas
subiram nos teus montes e me espiam
de cima com os olhos das janelas acesas.

É o amante que chega!


E as virgens loucas já o esperam
com as lamparinas da Parábola.
E que noite gostosa, que colcha macia,
nos cobre a nós ambos Bahia!
Teu amigo vem saudoso de ti e estende as mãos
aos pedaços melhores de teu corpo:
– tuas ladeiras, teus montes,
as curvas gostosas da cidade mais bonita do Brasil!

És tão cheia de altos e baixos,


Bahia, gostosa dos dendês, jilós, acaçás e pimentas-de-cheiro.
Lamento o mau gosto dos teus turistas
que te conhecem de oitiva,
e não vão além de tua Rua Chile asfaltada, de tuas avenidas
que o Seabra alargou.
Tu, como toda mulher, tens os lugares sombrios mais gostosos:
Baixa do Sapateiro!
Beco do Guindaste dos Padres!
Barroquinha!
Tabuão!
Bahia de Todos os Santos,
por que os teus santos
não quiseram mudar o curso inglório
de meus 17 anos, nos quais
os teus professores retóricos,
os teus médicos literatos,
injetaram a empola de água suja
de doutrinas sem fé?
E depois de tanto tempo perdido,
de tanto caminho errado,
teu amigo voltou para os teus braços abertos.
Perdoa! Perdoa! Bahia!

Eu vim rezar nos teus santuários,


eu já sou um homem que tem
afetos por quem pedir e rezar.
E tu que me ensinaste a crer quando eu era criança,
e depois a descrer,
e hoje a crer outra vez… eu sou um
rio torto e tu és a Bahia do Salvador!
Cobre-me com o lençol de tua noite esburacada
de estrelas, em que a lua abriu um rombo maior
Bahia,
para olhar as nossas núpcias,
cobre-me com o teu perdão Bahia!
Tu és a católica, tu és a fé, tu és a âncora do
Nordeste, tu és a sempre nova,
tu és a rainha, tu és a cidade que mostra ao que chega
ao invés de arranha-céus, cruzes e cruzes
de braços estendidos para os céus,
e na entrada do porto,
antes do farol da barra,
o primeiro cristo redentor do Brasil!

Bahia de ruas santas de Santo Antônio da Mouraria,


da Verônica, da Oração, da Cruz do Cosme, dos Perdões,
de fortes bem-aventurados, de São Marcelo, de
Santa Ana, de Santo Antônio da Barra,
Bahia do Teatro São João e do Cinema São Jerônimo.
Bahia que tocaste a minha boca,
que acendeste os meus pecados,
que ressuscitaste a minha fé,
que iluminaste os meus olhos de treva,
Bahia do arroz a uçá,
do acarajé de feijão branco,
dos aberéns de milho,
e dos carurus de quiabos,
cadê o teu poeta Artur de Sales
que não faz um poema a tua carne de brasas,
a teus vatapás,
e a teus efós que ardem como beijos chupados,
a tuas casas sombrias que ardem em incêndios danados?
Quando o médico do porto visitar este itazinho andarilho,
eu vou doidinho no caminho do Bonfim rever:
a feira de Água de Meninos,
os portões e bicas coloniais,
os teus molequinhos nus que jogam carrapetas,
o serviço do porto com dragas enferrujadas,
pior que a Great Western,
nichos,
mangues,
campeões negros de regatas,
e depois disso tudo,
o Bonfim.
Senhor do Bonfim, é preciso que vos diga:
eu vim rezar e recordar
com a mais pura das atenções piedosas,
toda a história dos vossos milagres e da vossa glória,
e vim também agradecer
todo o bem que tendes feito a minha gente.
Os meus olhos querem ver tudo:
aqueles quadros da “Morte do Justo e do Pecador”, e no
chão:
Aqui jaz o Cap. de Mar e Guerra
Teodosio Roiz de Faria
Iº. benfeitor desta igreja.
Um padre-nosso e 2 ave-marias por alma dele.
Senhor,
não se entende comigo aquele aviso da escada:

É vedada a subida em virtude


de abusos repetidos por parte
de frequentadores do coro.

Não, meu Senhor do Bonfim, eu tenho


três amores por quem rezar e pedir.
Vós sois toda a originalidade do mundo, que distribuís graças
miraculosas e ganhais presentes de cera, de curas extraordinárias
[que haveis
efetuado de panarícios e escarros de sangue,
Vós praticais o moderno milagre,
e como outrora recebíeis âncoras de barcaças,
recebeis hoje salva-vidas da tripulação
do Pedro II, e milhares de muletas
de aleijados curados, de filhos agradecidos,
de mães de quem vós curastes os filhinhos
desenganados pelos médicos.
Senhor,
perdoai qualquer irreverência
que meus sentidos hajam cometido
involuntariamente contra vós,
perdoai.
Eu tenho três amores por quem rezar e pedir! –
O BANHO DAS NEGRAS
(Início de A mulher obscura)

Em casa de Laécio não havia álbuns. A família de meu companheiro de infância parecia não
ter tradição nem história. Lembro-me que um dia, perguntando-lhe como se chamava seu
avô, ele me disse:
– Morreu há muito tempo. Não me lembro como era, mas papai deve saber. Um dia
pergunto.
Recordo, porém, que era, de todos os meus amigos, o que mais me atraía.
Talvez não fosse o companheiro em si, em quem, já por aquele tempo, percebia uma
capacidade de mentir maior que a de todos os meus outros camaradas, e uma grande
habilidade de surrupiar nossos objetos escolares, selos, estampas e brinquedos. Talvez o que
me atraía para Laécio fosse a sua chácara, a sua grande chácara onde devia existir a Árvore
do Bem e do Mal, chácara tão tentadora para mim.
Os fundos davam para o rio. Um dia, Laécio me chamou para assistir o banho de umas
negras. O espetáculo que se me oferecia não me deixou nenhuma impressão menos pura.
As negras estavam ali tomando banho, negras novas do Caípe que se lavavam debaixo
dos ramos das ingazeiras arriadas sobre as águas. Abriam bandós com os cacos de pente de
chifre, e como não dispunham de espelhos, ajudavam-se na toalete.
As molecas eram bonitas, ágeis e puras. Eu estava, apenas, encantado de ver corpos
negros, tão diferentes dos brancos, embelezando-se ligeiros, antes de entrar nágua.
Reparava que aquele banho era diferente do banho de umas parentas, que me deixaram uma
vez esperando por elas, na beira do rio. As brancarronas se penteavam depois do banho,
cuidadosas, com a toalha sobre os ombros, debaixo dos cabelos soltos. Mas as molecas
podiam, com uma ligeireza espantosa, se coçar, espenujar, separar com os cacos de pente o
cabelo lanzudo, mergulhar na água transparente e sair outra vez sem que o cabelo se
desmanchasse; a água não lhes alterava a beleza. O contraste daqueles corpos pretos e
luzidios sobre a areia das margens ou sob a espuma do sabão me impressionou bastante.
Nunca tinha visto espuma sobressair tanto, correndo ligeira nas costas escuras ou descendo
entre os seios espigados pelo ventre abaixo. Mais ligeiros que a espuma, eram os seus braços
harmoniosos. Algumas com a cara ensaboada, sem abrir os olhos para evitar a espuma,
aparavam-na antes que ela se perdesse no chão. A espuma grossa voltava outra vez para
debaixo das axilas ou dos ombros, esmagada de novo pelas esguias mãos. Outras se
ajudavam no ensaboamento esfregando as costas das companheiras ou os lugares que os
braços não atingiam. Achei lindas as negras. Achei-as ágeis, diferentes. Mas Laécio me
advertira que era proibido vê-las assim nuas; e se elas soubessem que nós as espreitávamos
no banho, contariam a nossos pais e estes ralhariam conosco e seríamos castigados.
CACHIMBO DO SERTÃO

Aqui é assim mesmo.


Não se empresta mulher,
não se empresta quartau
mas se empresta cachimbo
para se maginar.
Cachimbo de barro
massado com as mãos,
canudo comprido, que bom!
– Me dá uma fumaçada!

– Que coisa gostosa só é maginar!


Sertão vira brejo,
a seca é fartura,
desgraça nem há!
Que coisa gostosa só é cachimbar.
De dia e de noite, tem lua, tem viola.
As coisas de longe vêm logo pra perto.

O rio da gente vai, corre outra vez.


Se ouvem de novo histórias bonitas.
E a vida da gente menina outra vez
ciranda, ciranda debaixo do luar.
Se quer cachimbar, cachimbe sêo moço,
mas tenha cuidado! – O cachimbo de barro
se pode quebrar.
OBAMBÁ É BATIZADO

Pela fé de Zambi te digo:


Obambá é batizado, confirmado, cruzado e coroado.
Dá licença meu pai?
Licença venha
para os alufás de babalau.
Licença tem
o Babá de Olubá.
Licença tem.

Licença têm
cacuriqués, cacuricás.
Licença têm.

Licença tem
babalaô, babalaô.
Licença tem.
Na fé de Zambi te digo:
Obambá é batizado, confirmado e coroado.
Oxóssi está reinando: dá pra ele.
Dá pra o pai-de-sala, dá pra ele.

Ó ocaia dá pra ele.


Na fé de Zambi te digo:
Te vira em meu sangue.
Obambá é batizado, confirmado e coroado.
Dá licença meu pai?
Licença venha para outros bacuros.

Ó ocaia dá pra ele.


Dá licença meu pai?
Ó ocaia, me deixa só com meu santo,
me deixa só,
me deixa só,
dá pra ele
que Obambá é batizado, confirmado, cruzado e coroado.
Oxóssi está reinando: dá pra ele.
POEMA DE ENCANTAÇÃO

Arraial d’Angola de Paracatu,


Arraial de Mossâmedes de Goiás,
Arraial de Santo Antônio do Bambé,
vos ofereço, quibebê, quiabo, quitanda, quitute, quingombô.
Tirai-me essa murrinha, esse gogo, esse urufá,
que eu quero viver molecando, farreando, tocando meus ganzás!

Arroio dos Quilombolas de Palmares,


Arroio do Desemboque do Quizongo,
Arroio do Exu do Bodocô,
vos ofereço maconha de pito, quitunde, quibembe, quingombô.
Assim, sim!
Arraial d’Angola de Paracatu,
Arraial do Campo de Goiás,
Arraial do Exu de Aussá,
vos ofereço quisama, quinanga, quilengue, quingombô.
Tomai acaçá, abará, aberém, abaú!
Assim, sim!
Tirai-me essa murrinha, esse gogo, esse urufá!
Vos ofereço quitunde, quitumba, quelembe, quingombô.
REI É OXALÃ, RAINHA É IEMANJÁ

Rei é Oxalá que nasceu sem se criar.


Rainha é Iemanjá que pariu Oxalá sem se manchar.
Grande santo é Ogum em seu cavalo encantado.
Eu cumba vos dou curau. Dai-me licença angana.
Porque a vós respeito,
e a vós peço vingança
contra os demais aleguás e capiangos brancos,
Agô!
que nos escravizam, que nos exploram,
a nós operários africanos,
servos do mundo,
servos dos outros servos.
Oxalá! Iemanjá! Ogum!
Há mais de dois mil anos o meu grito nasceu!
FOI MUDANDO, MUDANDO

Tempos e tempos passaram


por sobre teu ser.
Da era cristã de 1500
até estes tempos severos de hoje,
quem foi que formou de novo teu ventre,
teus olhos, tua alma?
Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi cristão?

Os modos de rir, o jeito de andar,


pele,
gozo,
coração…
Negro, índio ou cristão?
Quem foi que te deu esta sabedoria,
mais dengo e alvura,
cabelo escorrido, tristeza do mundo,
desgosto da vida, orgulho de branco, algemas, resgates,
[alforrias?
Foi negro, foi índio ou foi cristão?
Quem foi que mudou teu leite,
teu sangue, teus pés,
teu modo de amar,
teus santos, teus ódios,
teu fogo,
teu suor,
tua espuma,
tua saliva, teus abraços, teus suspiros, tuas comidas,
tua língua?
Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi cristão?
JANAÍNA

Janaína vive no rio,


vive no açude,
vive no mar.
Lembrou-se de vir passear:
nas ôndias passou dendê.
As ôndias se acomodaram.
Cavalo-marinho veio
para ela se amontar.
No cavalo se amontou
galopando descuidada,
acordando os afogados,
dando adeus à maré grande.
Botando nome nos peixes,
ouvindo a fala dos búzios.
No ventre de Janaína
as escamas estão brilhando.
Nos olhos de Janaína,
na cauda de Janaína
tem cem doninhas pulando.
Nos peitos de Janaína
tem dois langanhos babando.
Se Janaína sorri
as ôndias ficam banzeiras.
Se Janaína está triste
o mar começa a espumar,
a pegar gente na praia
pra Janaína afundar.
– Janaína dá licença
que eu me afogue no seu mar?
A NOITE DESABOU SOBRE O CAIS

A noite desabou sobre o cais


pesada, cor de carvão.
Rangem guindastes na escuridão.
Para onde vão essas naus?
Talvez para as Índias.
Para onde vão?

Capitão-mor, capitão-mor,
quereis me dizer onde é que fica
a ilha de São Brandão?
A noite desabou sobre o cais
pesada, cor de carvão.
Rangem guindastes na escuridão.
Donde é que vêm essas naus?

Serão caravelas? Serão negreiros?


São caravelas e são negreiros.
Há sujos marujos nas caravelas.
Há estrangeiros que ficam negros
de trabalharem no carvão.
Homens da estiva trabalham, trabalham,
sobem e descem nos porões.
Para onde vão essas naus?

Saltam emigrantes embuçados,


mulheres, crianças na escuridão.
De onde vem essa gente?
Não há mais terras de Santa Cruz gente valente!

Ó indesejáveis qual o país,


qual o país que desejais?
Como é o nome dessas naus
que não se lê na escuridão?
Vão descobrir o Preste João?
Na minha geografia existe apenas
perdido no mar o cabo Não.

A noite desabou sobre o cais


pesada, cor de carvão.

Essas naus vão para o Congo?


Castelo de Sagres ficou aonde?
Capitão-mor onde é o Congo?
Será no leste, no mar tenebroso?
Capitão-mor perdi-me no mar.
Onde é que fica a minha ilha?

Para onde vão os degredados,


os que vão trabalhar dentro da noite,
ouvindo ranger esses guindastes?
Capitão-mor que noite escura
desabou sobre o cais,
desabou nesse caos!
FLORIANO, PADRE CÍCERO, LAMPIÃO

Sobre as caatingas, caapoeiras,


ipueiras,
e serrotes, e sertões
e caapões,
e planícies e vales e araxás;
sobre os curibocas sertanejos,
vaqueiros e cafuzos nordestinos:
– a espada, a roupeta, o clavinote
Floriano, Padre Cícero, Lampião.

O País olha esses três.

Lampião – bêbedo, os 100 cabras bêbedos


e a fama de Lampião fazendo medo.
E crioulas, matutas, sertanejas
estupradas, servindo cachaça
aos heróis – cabras;
proibidas de chorar
vendo o pai e vendo o irmão
mortos, no chão…
Fazendas incendiadas
roças devastadas,
coronéis reféns,
Paulo Afonso,
Água Branca,
Olhos-d’água das Flores
invadidas,
arrasadas.

Alagoas,
Rio Grande do Norte,
Paraíba,
Ceará,
Piauí,
Pernambuco…
e o herói mangando deles.
E os vaqueiros de Euclides da Cunha
tremendo de medo.
A polícia assustada,
as cidadezinhas com os braços para o ar
se deixando desonrar,
saquear, matar.

Vamos rezar pelos defuntos.


Padre Cícero Romão.
Benditos, novenas, romarias,
fartum de Santa missão:
o Juazeiro engordando malucos,
feridentos,
beatos,
cangaceiros,
elegendo deputados,
combatendo revoltosos,
municiando criminosos,
gemendo ladainhas,
abençoando Lampião.

Floriano, Padre Cícero, Lampião.

O País olha esses três…

Floriano!

Em mil oitocentos e noventa e tantos


(nem me lembro)
20 governadores depostos.
Prisão.
Revolução.

E um homem sozinho
defende a maloca.
Oferecem-lhe um dia
fortunas em troca das terras natais,
responde-lhes lento:
– “Quando deixar a presidência,
faça meia volta!”
A espada, a roupeta, o clavinote.
Floriano, Padre Cícero, Lampião.

O País olha esses três.

O primeiro morreu para sempre talvez,


mas para que o Nordeste se repita
e a semente fecunda não se esgote:
Canudos, Bom Jesus, Pedra Bonita.
Padre Cícero Romão,
Virgulino Ferreira Lampião!
QUANDO ELE VEM

Quando ele vem,


vem zunindo como o vento,
como mangangá, como capeta,
como bango-balango, como marimbondo.
Donde que é que ele vem?
Vem de Oxalá, vem de Oxalá,
vem do oco do mundo,
vem do assopro de Oxalá,
vem do oco do mundo.
Quer é comer.
Quer é caruru de peixe,
quer é efó de inhame,
quer é oguedé de banana,
quer é olubó de macaxeira,
quer é pimenta malagueta.
Quando ele chega, tudo fica banzando à toa,
esbodegado, enquizilado, enguiçado, enfezado.
Quando ele entra,
dá vontade na gente de embrenhar-se no mato,
de esparramar-se no chão,
de encalombar o rosto com as mãos,
de amunhecar no cansanção,
de esbanguelar os dentes nas pedras,
virar pé-de-vento,
sumir no assopro de Oxalá.
E dentro do assopro de Oxalá
virar cochicho nos ouvidos dela,
xodozar todo o santo dia,
catar cafunés invisíveis,
rolar dentro das suas anáguas,
bambeando o corpo dela,
babatando sem rumo,
amuxilado,
acuado diante das suas mungangas,
engambelado, tatambeado, fumado.
XANGÔ[*]

Na noite, aziaga, na noite sem fim,


quibundos, cafuzos, cabindas, mazombos
mandingam Xangô.
Oxum! Oxalá. Ô! Ê!

Dois feios calungas – Taió e Oxalá rodeados de contas,


contas, contas, contas, contas.
No centro o Oxum!

Oxum! Oxalá. Ô! Ê!
Na noite aziaga, na noite sem fim
cabindas, mulatos, quibundos, cafuzos,
aos tombos, gemendo, cantando, rodando.
Senhor do Bonfim! Senhor do Bonfim!
Oxum! Oxalá. Ô! Ê!

Sinhô e Sinhá num mêis ou dois mêis se há de casá!


Mano e Mana! Credo manco!

No centro o Oxum.
Que dois bonequinhos na rede tão bamba
Ioiô e Iaiá!
Minhas almas
santas benditas
aquelas são
do mesmo Senhor;
todas duas
todas três
todas seis
e todas nove!
Santo Onofre,
São Gurdim,
São Pagão,
Anjo Custódio,
Monserrate,
Amém,
Oxum!

Na noite aziaga, na noite sem fim


recende o fartum. Recende o fartum.
Senhor do Bonfim! Senhor do Bonfim!
Oxum! Ô! Ê!

Redobram o tantã, incensam maconha!
Sorri Oxalá!
E a preta mais nova com as pernas tremendo,
no crânio um zunzum,
no ventre um chamego
de cabra no cio… Ê! Ê!
Meu São Mangangá
Caculo
Pitomba
Gambá-marundu
Gurdim
Santo Onofre
Custódio
Ogum.

Minhas almas
santas benditas
aquelas são
do mesmo Senhor
todas duas
todas três
todas nove
o mal seja nela
casado com ele.
São Marcos, S. Manços
com o signo-de-salomão
com Ogum-Chila na mão
com três cruzes no surrão
S. Cosme! S. Damião!
Credo
Oxum-Nila
Amém.

* Segunda versão.
COMIDAS

Comer efó,
pimenta, jiló!
Iaiá me coma,
sou quimbombô!
Cobrei sustância
com mocotó!
Iaiá me diga,
nessa comida
você botou
mulata em pó?

Iaiá me coma
sou quimbombô!

Ai Bahia de Todos os Santos,


até nos pecados das comidas,
você botou nome santo?

Papos de anjo,
Peitinhos de freira,
Quindins-de-convento,
Fatias-da-sé!

Ai! Bahia de Todos os Santos,


o poema das suas comidas
foi São Benedito quem lhe ensinou?

Baba de moça,
Olho de sogra,
Levanta-marido,
Fatias-paridas,
Trouxinhas, Suspiros,
e Mimos-do-céu!
Bahia, estas comidas têm mandinga!
Bahia, esse tempeiro tem mocô!
Lá vem tabuleiro!
Cocadas, pipocas!
Lá vem verdureiro:
Pimenta, jiló!
Lá vem Frei Tomé:
Barriga de freira,
Toicinho do céu!

Bênção, Frei Tomé!


Moqueca, dendê,
Arroz com efó,
Pimenta, jiló!

Me coma Iaiá
que eu sou quimbombô!
que eu sou quimbombô!

Lá vem tabuleiro
de amendoim!
Comidas gostosas
mexidas por mim!

Me compre Iaiá
por São Bom Jesus
Senhor do Bonfim!
CALABAR

Domingos Fernandes Calabar


eu te perdoo!
Tu não sabias
decerto o que fazias
filho cafuz
de sinhá Ângela do Arraial do Bom Jesus.

Se tu vencesses Calabar!
Se em vez de portugueses,
– holandeses!?
Ai de nós!
Ai de nós sem as coisas deliciosas
que em nós moram:
redes,
rezas,
novenas,
procissões –
e essa tristeza, Calabar,
e essa alegria danada, que se sente
subindo, balançando, a alma da gente.
Calabar, tu não sentiste
essa alegria gostosa de ser triste!
INVERNO

Zefa, chegou o inverno!


Formigas-de-asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Lama e mais lama,
chuva e mais chuva, Zefa!
Vai nascer tudo, Zefa!
Vai haver verde,
verde do bom,
verde nos galhos,
verde na terra,
verde em ti, Zefa,
que eu quero bem!
Formigas-de-asas e tanajuras!
O rio cheio,
barrigas cheias,
mulheres cheias, Zefa!
Águas nas locas,
pitus gostosos,
carás, cabojes,
e chuva e mais chuva!
Vai nascer tudo:
milho, feijão,
até de novo
teu coração, Zefa!
Formigas-de-asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Chuva e mais chuva!
Vai casar tudo,
moça e viúva!
Chegou o inverno!
Covas bem fundas
pra enterrar cana;
cana caiana e flor de Cuba!
Terra tão mole
que as enxadas
nela se afundam
com olho e tudo!
Leite e mais leite
pra requeijões!
Cargas de imbu!
Em junho o milho,
milho e canjica
pra São João!
E tudo isto, Zefa…
E mais gostoso
que isso tudo:
noites de frio,
lá fora o escuro,
lá fora a chuva,
trovão, corisco,
terras-caídas,
corgos gemendo,
os caborés gemendo,
os caborés piando, Zefa!
Os cururus cantando, Zefa!
Dentro da nossa
casa de palha:
carne de sol
chia nas brasas,
farinha-d’água,
café, cigarro,
cachaça, Zefa…
… rede gemendo…

Tempo gostoso!
Vai nascer tudo!
Lá fora chuva,
chuva e mais chuva,
trovão, corisco,
terras-caídas
e vento e chuva,
chuva e mais chuva!

Mas tudo isso, Zefa,


vamos dizer,
só com os poderes
de Jesus Cristo!
PRA DONDE QUE VOCŠ ME LEVA

Julião se apoderou da melodia às 10 horas da noite em pleno jazz. O tema é só pretexto


porque o mágico Julião – transformou o saxofone e está transformando a gente. Tudo é
ritmo binário como as pernas, os braços, os olhos, os dois corações de Julião. Então o ritmo
e a melodia principiaram deveras organizando um chulear de batuque e canto rotundo de
cortar coração. No cume da voz está Gêge – filha de Ogum deitada se balançando; nas
outras partes sonoras há outros deuses aquentando uns aos outros. Nisso o canto esguincha
do saxofone como um repuxo vermelho. Julião dobra o saxofone na pança confundindo-o
com o esôfago, os olhos esbugalhados, a alma inocente subindo a Escada de Jacó para dentro
de Deus. Julião treme recebendo intuições, amolengando entre uma nota e outra o feitiço
pendurado no pescoço.
Pulam de dentro do escuro do saxofone mucamas lindíssimas para cada um dos fulanos,
porém o poder da música é tão lavado e tão branco, é tão estrela-d’alva que as ditas nem se
atrevem a se amulherar com eles. Julião está reluzente que nem esfregado com óleo de
andiroba, cada vez mais requebrado, mais impoluto e transparente, as teclas fechando as
válvulas de seu corpo banzeiro, o canto se espraiando unânime, parece que tem carajuru na
face, o funil do aparelho está espraiado como sua boca branca, um estenderete só.
Ciscar no murundu!
Chupar caxundé!
Farrambambear por esse mundo!
Mulatear pelas senzalas brancas!
Mocar com a ocaia dos outros!
Tudo isso eram gritos sinceros, mas sem maldade, porque tudo estava peneirado,
sessado pela água amandigada da música.
Pra donde que você me leva, poesia-uma-só? Pra donde que você me leva, mãe-d’água de
uma só cacimba, Janaína de um só mar, Pedra-Pemba de um só altar?
MADORNA DE IAIÁ

Iaiá está na rede de tucum.


A mucama de Iaiá tange os piuns,
balança a rede,
canta um lundum
tão bambo, tão molengo, tão dengoso,
que Iaiá tem vontade de dormir.

Com quem?

Ram-rem.

Que preguiça, que calor!


Iaiá tira a camisa,
toma aluá,
prende o cocó,
limpa o suor,
pula pra rede.

Mas que cheiro gostoso tem Iaiá!


Que vontade doida de dormir…

Com quem?

Cheiro de mel da casa das caldeiras!


O saguim de Iaiá dorme num coco.

Iaiá ferra no sono,


pende a cabeça,
abre-se a rede,
como uma ingá.

Para a mucama de cantar,


tange os piuns,
cala o ram-rem,
abre a janela,
olha o curral:
– um bruto sossego no curral!

Muito longe uma peitica faz si-dó…


si-dó… si-dó… si-dó…

Antes que Iaiá corte a madorna,


a moleca de Iaiá
balança a rede,
tange os piuns,
canta um lundum
tão bambo,
tão molengo,
tão dengoso,
que Iaiá sem se acordar,
se coça,
se estira
e se abre toda, na rede de tucum.
Sonha com quem?
PAI JOÃO

Pai João secou como um pau sem raiz. –


Pai João vai morrer.
Pai João remou nas canoas. –
Cavou a terra.
Fez brotar do chão a esmeralda
Das folhas – café, cana, algodão.
Pai João cavou mais esmeraldas
Que Paes Leme.
A filha de Pai João tinha um peito de
Turina para os filhos de ioiô mamar:
Quando o peito secou a filha de Pai João
Também secou agarrada num
Ferro de engomar.
A pele de Pai João ficou na ponta
Dos chicotes.
A força de Pai João ficou no cabo
Da enxada e da foice.
A mulher de Pai João o branco
A roubou para fazer mucamas.
O sangue de Pai João se sumiu no sangue bom
Como um torrão de açúcar bruto
Numa panela de leite. –
Pai João foi cavalo pra os filhos do ioiô montar.
Pai João sabia histórias tão bonitas que
Davam vontade de chorar.

Pai João vai morrer.


Há uma noite lá fora como a pele de Pai João.
Nem uma estrela no céu.
Parece até mandinga de Pai João.
SANTA RITA DURÃO

Durão! que apelido bom para um caboclo pachola,


caboclo de bagaceira ou cangaceiro do sertão,
capaz de bancar Caramuru no bando de Lampião!

Mas teu Brasil, CARAMURU, não tem sertão,


nem sul, nem norte, nem no teu mato
há catolé, oiticoró, cabaço de marimba, barbatimão!

Nas tuas roças não tem banana-samburá,


não tem mandioca-gomo-roxo, não tem feijão mulatinho,
não tem nada, Sêo Durão!

Nos teus caminhos não há malmequeres,


flor-de-relógio, vassoura-de-botão,
não há, Sêo Durão,
essa florzinha espia-caminho que moça não pode ver!

As tuas semanas-santas não têm flores-de-quaresma


para alegrar Nossa Senhora que perdeu Nosso Senhor!
As tuas frutas são como essas frutas de cera
(enfeites de certas mesas).

As tuas caatingas não têm burras-leiteiras


que dão leite,
não têm pau-sangue que verte sangue,
que nem cabocla, todas as luas,
não têm peitinhos de jaracatiás,
não têm beijos de maracujás-de-estalo,
não têm imbés
chupando troncos de baraúnas tão grossas,
tão pretas como pretas-minas!

E os teus quintais não têm, plantado


num caco de panela,
um pé de saudade roxa, pra o enterro dos manezinhos
que se não morressem (quem sabe, Sêo Durão?),
poderiam ser cangaceiros do grupo de Lampião.
E agora,

agora vão ser anjinhos pra glória de Deus!


Amém!
JOAQUINA MALUCA

Joaquina Maluca, você ficou lesa


não sei por que foi!
Você tem um resto de graça menina,
na boca, nos peitos,
não sei onde é…

Joaquina Maluca, você ficou lesa,


não é?
Talvez pra não ver
o que o mundo lhe faz.
Você ficou lesa, não foi?
Talvez pra não ver o que o mundo lhe fez.
Joaquina Maluca, você foi bonita, não foi?
Você tem um resto de graça menina
não sei onde é…

Tão suja de vício,


nem sabe o que o foi.
Tão lesa, tão pura, tão limpa de culpa,
nem sabe o que é!
MARIA DIAMBA

Para não apanhar mais


falou que sabia fazer bolos:
virou cozinha.
Foi outras coisas para que tinha jeito.
Não falou mais:
Viram que sabia fazer tudo,
até molecas para a Casa-Grande.
Depois falou só,
só diante da ventania
que ainda vem do Sudão;
falou que queria fugir
dos senhores e das judiarias deste mundo
para o sumidouro.
OLÁ! NEGRO

Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos


e a quarta e a quinta gerações de teu sangue sofredor
tentarão apagar a tua cor!
E as gerações dessas gerações quando apagarem
a tua tatuagem execranda,
não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!
Pai-João, Mãe-Negra, Fulô, Zumbi,
negro-fujão, negro cativo, negro rebelde,
negro cabinda, negro congo, negro ioruba,
negro que foste para o algodão de U.S.A.,
para os canaviais do Brasil,
para o tronco, para o colar de ferro, para a canga
de todos os senhores do mundo;
eu melhor compreendo agora os teus blues
nesta hora triste da raça branca, negro!

Olá, Negro! Olá, Negro!

A raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro!


E és tu que a alegras ainda com os teus jazzes,
com os teus songs, com os teus lundus!
Os poetas, os libertadores, os que derramaram
babosas torrentes de falsa piedade
não compreendiam que tu ias rir!

E o teu riso, e a tua virgindade e os teus medos e a tua bondade


mudariam a alma branca cansada de todas as ferocidades!

Olá, Negro!

Pai-João, Mãe-Negra, Fulô, Zumbi


que traíste as Sinhás nas Casas-Grandes,
que cantaste para o Sinhô dormir,
que te revoltaste também contra o Sinhô;
quantos séculos há passado
e quantos passarão sobre a tua noite,
sobre as tuas mandingas, sobre os teus medos, sobre tuas alegrias!

Olá, Negro!

Negro que foste para o algodão de U.S.A.


ou que foste para os canaviais do Brasil,
quantas vezes as carapinhas hão de embranquecer
para que os canaviais possam dar mais doçura à alma humana?
Olá, Negro!
Negro, ó antigo proletário sem perdão,
proletário bom,
proletário bom!
Blues,
Jazzes,
songs,
lundus…Apanhavas com vontade de cantar,
choravas com vontade de sorrir,
com vontade de fazer mandinga para o branco ficar bom,
para o chicote doer menos,
para o dia acabar e negro dormir!
Não basta iluminares hoje as noites dos brancos com teus
[jazzes,
com tuas danças, com tuas gargalhadas!
Olá, Negro! O dia está nascendo!
O dia está nascendo ou será a tua gargalhada que vem vindo?

Olá, Negro!
Olá, Negro!
SOBRE ESTA EDIÇÃO

A presente edição reproduz todos os poemas e ilustrações da primeira, publicada em 1947


sob o selo da Revista Acadêmica. A explicação torna-se necessária pois Jorge de Lima
selecionou nada menos de quinze poemas da mesma temática presentes em seus títulos
anteriores, agregando-os a um outro conjunto de 24. É o caso de “O medo”, “Bahia de todos
os santos”, “Floriano, Padre Cícero, Lampião”, “Calabar”, “Pai João” (Poemas, 1927);
“Diabo brasileiro”, “Essa negra fulô”, “Mês de maio”, “Comidas”, “Inverno”, “Madorna de
Iaiá”, Santa Rita Durão” e “Joaquina Maluca” (Novos poemas, 1929); “Nordeste” (Poemas
escolhidos, 1932) e “A noite desabou sobre o cais” (Tempo e eternidade 1935). Como observou
Otto Maria Carpeaux na introdução à Obra poética de Jorge de Lima (Rio de Janeiro: Editora
Getulio Costa, 1950), essa gênese dá ao livro “caráter de antologia”, sendo que o autor
modificou sensivelmente alguns dos poemas entre a primeira publicação e a de Poemas negros.
Nas edições que reúnem a obra poética do escritor alagoano, tais poemas permaneceram em
seus livros de origem e não se repetiram, naturalmente, no conjunto publicado pela Revista
Acadêmica.
A Cosac Naify agradece ao Museu Lasar Segall, na pessoa da pesquisadora Vera
d’Horta e de seu atual diretor, Jorge Schwartz; a Cristina Antunes, da Biblioteca Brasiliana
Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo; a Augusto Massi e a Vagner Camilo, da
FFLCH-USP .
OS DESENHOS DE LASAR SEGALL
PARA POEMAS NEGROS
Vera d’Horta

Jorge de Lima sempre cercou suas publicações de especial cuidado estético. Não por acaso
várias de suas obras surgiram associadas a imagens visuais criadas por ele mesmo ou por
outros artistas. Em 1927, o livro de poemas O mundo do menino impossível, em edição
artesanal de trezentos exemplares, foi ilustrado pelo autor e colorido por seu irmão
Hildebrando de Lima. O poeta também ilustrou a edição especial do Livro de sonetos (1949),
e de As ilhas (1952) pelas edições Hipocampo. A seu pedido, Manoel Bandeira, ilustrador
pernambucano e homônimo do poeta, executou a capa dos Poemas escolhidos (1932). Tomás
Santa Rosa ilustrou o romance surrealista O anjo (1934), e fez as capas de A túnica inconsútil
(1938), do romance A mulher obscura (1939) e da Vida de Santo Antônio (1947). As
fotomontagens legendadas de Jorge de Lima, que têm existência como poemas plásticos
independentes, foram apresentadas em 1939 por Mário de Andrade, no artigo “Fantasias
de um poeta”, e reunidas em 1943 no álbum A pintura em pânico, com prefácio de Murilo
Mendes. O poema “Essa negra Fulô”, de 1928, foi reproduzido na Revista Acadêmica, em
maio de 1943, ao lado dos desenhos de Di Cavalcanti. Invenção de Orfeu saiu em 1952 pela
editora Livros de Portugal, do Rio de Janeiro, com capa e organização gráfica de Fayga
Ostrower.
No caso da edição de luxo dos Poemas negros, que a editora Revista Acadêmica publicou
em 1947, com 39 poemas e prefácio de Gilberto Freyre, as ilustrações foram
encomendadas a Lasar Segall, com intermediação do jornalista e editor Murilo Miranda.
Tudo indica que os desenhos que o artista fizera para o álbum Mangue (1943) foram uma
convincente credencial para o convite, como se depreende da leitura da correspondência
entre Segall e Jorge de Lima. Assim, o judeu russo de Vilna foi o escolhido para dialogar
com aqueles versos que tinham a negritude como tema principal.
Desde que veio para o Brasil, em fins de 1923, decidido a inventar nos trópicos uma
vida nova, Segall mostrou uma curiosa simbiose com o negro e o mulato brasileiros. Ele
produziu vários autorretratos em que se colocava na pele de um mulato, reafirmando assim
sua identificação com o país de adoção – Encontro, pintura de 1924, é o primeiro deles e,
baseado em fotografia feita ainda na Alemanha, é o único que aceitaria o rótulo de “realista”,
mas há outros de 1930, 1933 e 1935. Nas cartas que envia aos companheiros que ficaram
na Europa, em diversas ocasiões, ele fala de sua entrega apaixonada à terra e ao povo
brasileiro. Tipos de negros também se tornaram personagens principais de muitas de suas
obras, como é o caso das pinturas Menino com lagartixas (1924), Morro vermelho (1926),
Bananal (1927), Perfil de Zulmira (1928), Dois nus (1930), Mãe negra (1930), e também de
aquarelas como Mãe negra entre casas (1930), dos desenhos Cabeça de preta (c. 1925) e Velho
ex-escravo (1925) ou das xilogravuras Cabeça de negro (1929) e Baile de negros (1930), para
dar alguns exemplos.
O convite para que colaborasse na edição de Poemas negros foi feito a Segall em 1943,
mas os desenhos só foram entregues a Murilo Miranda três anos depois. Em carta com data
de 6 de janeiro de 1944 (a data inscrita é 1943, mas a leitura do documento permite
concluir que houve um lapso comum em inícios de ano), Jorge de Lima pedia que Segall
mandasse as ilustrações, ficando claro que o assunto já era tratado pelos dois antes da virada
do ano. Nessa carta, o escritor dizia ter recebido o álbum Mangue, também publicado pela
editora Revista Acadêmica, elogiando o trabalho gráfico. Dizia ainda que seus Poemas negros
eram muito aguardados e que o prefácio de Gilberto Freyre já estava em suas mãos.
Portanto, quando perguntavam a respeito da publicação, respondia que “está tudo
dependendo do Segall”.[1] Na resposta que escreve no dia 23 desse mesmo janeiro, Segall
agradece os elogios para o álbum Mangue e diz que não sabia da urgência das ilustrações, mas
que se dedicaria ao trabalho, empenhado em penetrar no espírito da poesia, para fazer
justiça “a seus individualíssimos e magníficos ritmos”. Temia, no entanto, que a tarefa nem
sempre seria fácil,
[…] devido em parte a seu emprego de termos regionais, muitas vezes estranhos para mim, apesar de eu lhes sentir a
musicalidade. Mas já sinto estar vencendo as dificuldades e vou me meter ao trabalho com toda a vontade, esperando
conseguir um resultado interessante.[2]comentário

Em correspondência de 10 de fevereiro de 1944, o poeta reafirmava que tinha pressa em


receber os desenhos e publicar o livro, pois estava se candidatando à vaga de Antônio
Joaquim Pereira da Silva na Academia Brasileira de Letras, contando ainda com a adesão de
Segall à sua campanha, quem sabe falando com simpatia sobre seu nome a algum acadêmico
paulista com quem tivesse relações. Manuel Bandeira, em crônica de Andorinha, andorinha
(1966), fala dessa fixação frustrada de Jorge de Lima pela ideia de ingressar na ABL, à qual
concorreu sem sucesso por quatro vezes. Essa pretensão foi censurada por amigos como
Georges Bernanos, que chamava as academias de criadouros de “tartufos em busca de elogio
oficial”.[3]
Acredito que ainda não tenha sido estudada, em toda sua dimensão, a importância do
papel desempenhado por Murilo Miranda no estabelecimento das relações de Lasar Segall
com o ambiente cultural do Rio de Janeiro, principalmente na década de 1940. A pesquisa
no arquivo pessoal do artista[4] traz vários indicadores nesse sentido. À frente da editora
Revista Acadêmica (R. A. – editora) e do periódico de mesmo nome, Murilo foi figura
central na divulgação cotidiana do nome e da obra de Segall na imprensa carioca e ponte com
os escritores e artistas da capital do país. É vultosa a correspondência entre os dois nesse
período em que Murilo foi uma espécie de embaixador de Segall no Rio. Além de ter
publicado o álbum Mangue (dezembro de 1943), o jornalista editou um número especial da
Revista Acadêmica em homenagem a Segall (junho de 1944), com mais de cem artigos
assinados por escritores nacionais e estrangeiros e recheado de reproduções de sua obra.
Jorge de Lima é autor de um dos textos, que Segall considerou “formidável […], notável
mesmo. Aliás, não se estranha, devido ao grande talento dele”.[5] Além disso, Murilo se
movimentava à vontade junto ao poder oficial, criando um eficiente meio de campo com o
então Ministério da Educação e Saúde Pública, nas figuras do ministro Gustavo Capanema e
principalmente de seu chefe de gabinete, o poeta Carlos Drummond de Andrade, antes e
durante a organização da grande retrospectiva Segall no Museu Nacional de Belas Artes
(maio de 1943).
A propósito dos temores revelados pelo artista em relação à encomenda recebida, Jorge
de Lima argumentou que, para quem fez os desenhos de Mangue, ela seria de execução muito
fácil. E explicou que
[…] o assunto deve ser apenas a representação do negro em todos os ambientes em que demorou desde a sua vinda
para o Brasil, isto é: o negro (quando digo o negro, digo negra também, não fazendo distinção de sexo) nos navios
negreiros, milhares de cabindas, de guinés, de todas as tribos africanas apinhados nos porões dos veleiros; o negro nas
senzalas; a negrinha bonitinha nas casas-grandes, um perigo de tentação para o branco português; o velho negro Pai-
João; o negro rebelado refugiado nas serras guerreando o branco; a sereia negra que habita o mar; o negro feiticeiro;
cenas de macumba; a negrinha penteando a sinhá branca nas redes; a negra vendedora de doces; a negra amamentando
o menino branco; a negra contando histórias nos terreiros das casas brancas, etc., etc.[6]

As situações que reproduzo aqui, sublinhadas, são as que aparecem grifadas a lápis por
Segall no documento original, destacando seguramente o que lhe despertou maior empatia
(navios negreiros, porões dos veleiros, a negrinha bonitinha nas casas-grandes, cenas de
macumba, a negrinha penteando a sinhá branca nas redes, a negra amamentando o menino
branco) e deixando de lado as expressões mais regionais ou folclóricas (o velho negro Pai-
João, o negro feiticeiro, a sereia negra que habita o mar) ou de cunho político e rebelde (o
negro rebelado refugiado nas serras guerreando o branco). No canto inferior esquerdo dessa
carta, Segall escreveu a grafite: “Senzalas (Negerhof)” – tradução literal para o alemão do
termo que lhe devia ser estranho.
Em agosto de 1944, Murilo insiste com Segall para trazer os desenhos de Jorge de
Lima: “O homem está apressadíssimo, e eu queria ver se publico logo o livro”.[7] Quase dois
anos depois, em 9 de abril de 1946, Segall finalmente informa ao poeta que enviou a Murilo,
nessa data, doze desenhos “para os seus admiráveis poemas negros” e que pediu ao editor
que os publicasse em um formato maior do que o anteriormente previsto. “Fazer uma coisa
boa”, diz ele, esperando que o amigo, a um só tempo poeta e artista plástico, “não esteja
descuidando da arte”.[8]
Os desenhos originais usados na edição dos Poemas negros foram para o Rio de Janeiro e
não voltaram – provavelmente ficaram na Revista Acadêmica ou com o próprio Murilo
Miranda. Não era raro que trabalhos de ilustração se perdessem nas gavetas das redações. O
Museu Lasar Segall tem hoje em seu acervo dez estudos prévios, mas não as ilustrações
finais.

Todos esses trabalhos – os estudos e as ilustrações publicadas – foram produzidos por um


traço amoroso que percorre sem pressa as figuras arredondadas. Como nos desenhos de
Mangue, os corpos femininos se oferecem distraídos, há neles uma calma sensualidade. Em
um dos desenhos (p. 29), a jovem negra é uma tentação explícita para as mãos masculinas
que avançam em sua direção – mãos que podem ser lidas como as do branco português ou do
próprio artista. Como sugerido pelo poeta, as mulheres negras estão na rede (p. 99),
abanam a senhora branca, penteiam seus cabelos (p. 26 ), estão rodeadas por crianças (ao
lado), – em todos esses desenhos respira-se um intenso erotismo. Os desenhos são
sintéticos, sugerem as figuras de modo igualmente poético. Já os homens se envolvem em
lutas, tendo como cenário o fundo cadenciado das montanhas (ao lado), fumam seus
cachimbos em roda, se encontram na música das violas ou se amontoam nos porões dos
navios negreiros, em grupos opressivos (p. 77). Na ilustração do poema “A noite desabou
sobre o cais”, a figura imponente do homem negro se recorta contra as geometrias do navio
ao fundo (p. 74), que lembra outra embarcação, a grande tela Navio de emigrantes, que Segall
pintou entre 1939 e 1941. E a semelhança sem dúvida não é fortuita, há aí, mais uma vez,
uma proposital e simbólica aproximação entre o negro e o emigrante, unidos pelo mesmo
destino incerto – “Para onde vão essas naus?”, pergunta o poema de Jorge de Lima. Segall
concentrou, nesse desenho, o caráter ideológico de seu trabalho como ilustrador dos Poemas
negros, ao juntar, em um mesmo personagem, o papel de vítima e de líder da embarcação.
Essa figura central, que lembra ainda a cabeça expressionista do negro da tela Bananal e o
comandante de uma das gravuras da série Emigrantes, é ao mesmo tempo carga do navio
negreiro e seu capitão-mor, deixando claro que Segall se colocava ao lado da temerária
liderança dos excluídos.
Esboços de desenhos não incluídos na edição de 1947 (Arquivo Museu Lasar Segall / Museu Lasar Segall / Ibram –
MinC).
1 Carta de Jorge de Lima a Lasar Segall, Rio de Janeiro, 06/01/1943. Arqui- vo Lasar Segall / Museu Lasar Segall /
Ibram-MinC.
2 Carta de Lasar Segall para Jorge de Lima, São Paulo, 23/01/1944. Arquivo Lasar Segall / Museu Lasar Segall / Ibram-
MinC.
3 Manuel Bandeira apud Fábio de Souza Andrade, O engenheiro noturno: a lírica final de Jorge de Lima. São Paulo: Edusp,
1997, p. 70.
4 O Arquivo Lasar Segall, com mais de oito mil registros, está disponível para consulta pela internet
(<museusegall.org.br/als>). O projeto de sistematização e digitalização do arquivo pessoal do artista, que tornou possível
sua divulgação na web, teve apoio da Fapesp durante o ano de 2011.
5 Carta de Lasar Segall para Murilo Miranda, São Paulo, 03/10/1943. Arquivo Lasar Segall / Museu Lasar Segall / Ibram-
MinC.
6 Carta de Jorge de Lima para Lasar Segall, Rio de Janeiro, 10/02/1944. Arquivo Lasar Segall / Museu Lasar Segall /
Ibram-MinC.vera d’horta
7 Carta de Murilo Miranda para Lasar Segall, Rio de Janeiro, 02/08/1944. Arquivo Lasar Segall / Museu Lasar Segall /
Ibram-MinC.
8 Carta de Lasar Segall para Jorge de Lima, São Paulo, 09/04/1946. Arquivo Lasar Segall / Museu Lasar Segall / Ibram-
MinC.
JORGE DE LIMA NO CONTEXTO DA
POESIA NEGRA AMERICANA
Vagner Camilo

Era a negra Fulô que nos chamava


de seu negro vergel […]
canções de lavadeira ao pé da fonte,
era a fonte em si mesma, eram nostálgicas
emanações de infância e de futuro,
era um ai português desfeito em cana.

Carlos Drummond de Andrade,


“Conhecimento de Jorge de Lima”

Poemas negros sai em 1947, reunindo textos já publicados e outros inéditos, datados de
1927[1] até cerca de 1940. “Pode-se pensar”, com Alexandre Eulalio,
[…] que a edição promovida pela Revista Acadêmica de Murilo Miranda tenha sido inspirada pelo aparecimento em
1946, em Buenos Aires, do Mapa de la poesía negra americana, compilado, prefaciado e anotado pelo poeta cubano
Emilio Ballagas, autor do Cuaderno de poesía negra (1934) e, ao lado de Nicolás Guillén e Manuel del Cabral, um dos
estabilizadores da poesia afro-antilhana (“Essa negra Fulô” em edição bilíngue é a única peça brasileira da coletânea).
[2]

O presente ensaio se propõe a desdobrar essa breve observação de Eulalio sobre o contexto
de publicação do livro de Jorge de Lima, historiando, primeiramente, a formação e a
consolidação do cânone da poesia afro-americana para, em seguida, examinar sua
repercussão no contexto brasileiro dos anos 1930 e 1940 e, em particular, na Revista
Acadêmica, responsável pela edição do livro. Em seguida, busca-se considerar a inserção dos
Poemas negros em tal contexto, examinando seu alcance crítico e suas contradições
ideológicas.

A CONSOLIDAÇÃO DO CÂNONE DA POESIA AFRO-


AMERICANA

De fato, é nos anos 1940 que se dá essa consolidação e o citado Mapa de 1946 é apenas uma
entre outras coletâneas publicadas nessa década, que parece confirmar a previsão de Arturo
Torres-Rioseco, quando anunciava, em 1942, a chegada definitiva de um novo movimento
na literatura latino-americana, com a emergência de um gênero por ele considerado
altamente original: o verso negro – “poesia sobre temas negros, usando ritmos negros e
composta por membros tanto da raça africana quanto da europeia”.[3]
Essa consolidação pressupõe um processo de formação que remete às décadas
anteriores. O próprio autor do Mapa já havia publicado, um ano depois de seu Cuaderno de
versos folclóricos, a Antología de poesía negra hispano-americana (1935), que responde,
juntamente com a Antología de la poesía negra americana (1936), de Ildefonso Pereda Valdés, e
a Órbita de la poesía afrocubana 1928-1937 (1938), de Ramón Guirao, pelos momentos
decisivos da formação do cânone da poesia negra. As três obras encerram um longo
processo de colonialismo literário europeu (até então responsável pela elaboração desse
gênero de antologia) e abrem “um novo e fundamental capítulo na poesia afro-hispânica: a
codificação semioficial do afro-cubanismo”.[4]
Importa lembrar, com Edward Mullen, que o afro-cubanismo, esse movimento das artes e
letras caribenhas, se origina de uma redescoberta da herança africana da região durante os
anos de 1920 e guarda certos paralelos com o Harlem

Renaissance nos Estados Unidos.[5] O estímulo inicial para a literatura negra nas Antilhas,
diz ele, é a descoberta das formas musicais populares e da arte africana por artistas europeus
do pós-guerra (Picasso, Apollinaire, Stravinski), embora já houvesse antes um interesse
dessa ordem entre os caribenhos, datado da chegada dos escravos no século XVI e
manifestado literariamente no romance antiescravista do século XIX, culminando com a
publicação de Los negros brujos (1906), do etnólogo cubano Fernando Ortiz. O movimento
se desenvolve em duas fases: a primeira, marcada pela participação exclusiva de intelectuais
brancos que produzem uma visão altamente pitoresca e exterior da cultura negra; e a
segunda, caracterizada pela representação mais séria da experiência negra por escritores
como Nicolás Guillén e Regino Pedroso. A trajetória inteira da voga afro-cubana está
refletida na obra do primeiro, que evolui do cômico e do folclórico para uma preocupação
com temas e formas mais universais. O principal período de atividade do afro-cubanismo foi
entre 1926 e 1938, sendo, depois de 1940, gradativamente incorporado na corrente geral
da literatura caribenha.[6]

De acordo ainda com Miguel Arnedo,[7] a busca por uma nova definição de identidade
cultural nos anos 1920 pelos intelectuais cubanos é uma resposta à crescente dominação
dos Estados Unidos em todos os aspectos da vida na ilha. Influenciados pelos movimentos
artísticos negro e primitivista, da Europa e dos Estados Unidos, os literati da nação logo
voltam sua atenção às tradições afro-cubanas, tidas como únicas e exclusivas da cultura
local em grande parte preservadas das influências norte-americanas, sendo fonte
particularmente adequada à produção de formas literárias nacionalistas. Assim, entre 1928
e 1938, forma-se o movimento poético afro-cubano, que pode ser entendido, segundo
Kutzinski, como parte de um discurso de mestizaje, fundamental para a construção da
identidade nacional cubana desde os escritos de José Martí, que, por meio da noção de
nuestra América mestiça, buscou convencer os cubanos de todas as cores a lutar em conjunto
para a independência, promovendo uma imagem de unidade racial capaz de neutralizar o
temor dos brancos de que, em uma Cuba independente, sem proteção da Espanha, os negros
se rebelassem para assumir o domínio da Isla.
Tal como seu reverenciado herói nacional, os intelectuais cubanos dos anos 1920 e
1930 também passam a crer na cooperação entre brancos e negros como pré-condição
indispensável à autonomia do país. Depois da independência (1902), o referido temor
persiste e é visto como a principal desculpa para a ocupação norte-americana da ilha. Por
isso, a solidariedade entre todos os setores da população reaparece como imprescindível à
completa autonomia do país. Os afro-cubanistas creem que reforçar a união entre brancos e
negros é o melhor meio de fazer com que estes últimos se sintam parte do povo oprimido de
Cuba, desencorajando assim sua mobilização e ganhando seu apoio à causa nacionalista.
Como se vê no programa da Sociedad de Estudios Afrocubanos, resumo
fidedigno da ideologia dos afro-cubanistas, estes supõem que tal união pode ser alcançada
caso se traga à tona formas culturais mulatas, resultado da coexistência de negros e brancos
ao longo de toda a história cubana.[8] Principal defensor dessa abordagem, Ortiz acredita
que as formas culturais verdadeiramente nacionais são produto da incorporação de
elementos africanos e espanhóis. Ele se refere, em geral, a todo poema afro-cubanista como
mulato, produto desse processo que simboliza a unidade cultural, mas reconhece alguns
como sendo mais autenticamente mulatos do que outros, uma vez que não se trata apenas de
empregar a afro-cultura cubana como tema, e sim como um instrumento por meio do qual se
altera as altas formas literárias. Uma dificuldade óbvia enfrentada pelos afro-cubanistas é a
incorporação formal, que requer claramente certo grau de proficiência em tais tradições
culturais, sendo que a maioria deles não é oriunda dos setores em que elas são cultivadas.
Muitos pertencem à classe média e são educados dentro dos padrões da cultura dominante,
como é o caso do próprio Ballagas, José Zacarias Tallet e Alejo Carpentier.
Voltando ainda às três antologias fundadoras,[9] importa observar que a de Ballagas (a
primeira impressa e, por isso, um paradigma para esse gênero de publicação) reúne dezesseis
poetas e um compositor de cinco países (Cuba, Porto Rico, Argentina, Uruguai e Espanha),
num total de 54 poemas organizados por gênero e tendência, em que predominam os
cubanos modernos. Desse modo, a despeito da abrangência do título, trata-se mais de uma
antologia limitada à poesia cubana dos anos 1920 e princípios de 1930, do que uma amostra
trans-histórica da poesia negra, além de incluir apenas três poetas que podem ser
considerados negros (Guillén, Ignacio Villa e Marcelino Arozarena). Viviana Gelado
chama a atenção para a referência explícita na antologia à raça dos poetas selecionados,
dado que expõe “a persistência no campo intelectual cubano desta categoria (sete anos
depois da distinção traçada por Mariátegui e Ortiz entre os conceitos de “raça” e “cultura” e
da substituição da primeira pela segunda)”.[10] A antologia traz ainda um importante
prefácio “que é ao mesmo tempo uma justificativa para e uma explicação sobre o conteúdo
do livro”,[11] em que Ballagas identifica três direções da poesia moderna, a pura, a folclórica
e a social, das quais a segunda é vista como a mais eficaz para descrever e interpretar os
aspectos característicos da vida na América. Mas, se privilegia o passado folclórico de
Cuba, o antologista rejeita a então inusitada voga do primitivismo europeu pelo caráter
turístico e anistórico com que a arte africana é flagrada pela “baedeker” e pela “kodak” de
Blaise Cendrars, Paul Morand, Gómez de la Serna e outros. Em seus comentários finais,
Ballagas define o conteúdo de sua antologia como sendo não a reunião de uma poesia feita
por negros, mas sim uma poesia mulata, algumas vezes composta por brancos, o que reflete o
legado cultural trazido pela população negra a Cuba.
O autor da segunda antologia, o uruguaio Pereda Valdés, partilha com Ballagas uma
condição similar de intelectual branco, oriundo da classe média e, profissionalmente,
professor universitário, que já publicara antes poemas sobre folclore e cultura negra (alguns
até em formas dialetais). Sua antologia vem depois, paradoxalmente, a servir de modelo ao
próprio Ballagas no Mapa de 1946. Nela, se reconhece a influência de livros fundamentais à
formação do cânone da poesia negra norte-americana, como o de Countee Cullen e o de
James Weldon Johnson, este último evocado por Gilberto Freyre no prefácio dos Poemas
negros.[12] A antologia reúne 29 poetas de seis países: Estados Unidos, Haiti, Argentina,
Cuba, Uruguai e Brasil (incluindo, neste último caso, poemas de Silva Alvarenga, Luís
Gama, Francisco Otaviano, Tobias Barreto e Cruz e Souza). Os Estados Unidos recebem
cobertura mais completa, privilegiando-se os poetas do Harlem Renaissance (Sterling
Brown e Langston Hughes à frente). Embora tenda, no caso dos poetas de língua
espanhola, a privilegiar os de Cuba e Porto Rico, Pereda Valdés rejeita o nacionalismo
literário que enforma o trabalho de Ballagas, assumindo uma orientação mais universalista e
tornando-se, assim, o protótipo para antologias posteriores.
A passagem do afro-cubano para afro-hispânico já tinha começado. Além disso, banindo o pitoresco dos poemas
folclóricos (alguns dos quais ele mesmo havia escrito), dotou o volume com um senso de seriedade e compromisso
social jamais visto até então.[13] […] Graças à ampliação dos recortes histórico e geográfico de sua seleção, Pereda
recupera para o corpus da “poesia negra” do continente ao cubano do século XIX, Plácido e (mesmo que se possa
questionar seus critérios) a produção brasileira. Ainda em relação a Ballagas, Pereda é mais explícito ao assinalar a
sobredeterminação do econômico sobre o psicológico como tônica entre os poetas norte-americanos, mesmo que
desta maneira reafirme um dos estereótipos “diferenciadores” da produção poética “negra” do “norte” e o “sul” do
continente.
Ao emitir, por fim, um juízo de valor comparativo desses dois grandes âmbitos culturais, a produção norte-
americana lhe parece superior à latino-americana, na qual ressalta, não obstante, a excepcional riqueza de tonalidades
e registros presentes na poesia do cubano Nicolás Guillén, e o “contraste mulato” entre a “exuberância retórica” e o
“soluço eriçado de asperezas” do brasileiro Cruz e Souza.[14]

Organizada de acordo com critérios históricos mais definidos, a terceira antologia, de


Ramón Guirao, é a mais ambiciosa: além dos antecedentes folclóricos (em sua maioria,
anônimos dos séculos XVIII e XIX), o livro apresenta poemas retirados da obra de treze
poetas cubanos e do compositor Ignacio Villa (vulgo Bola de Nieve). Guirao é também um
intelectual branco que havia publicado versos afro-cubanos e foi solidário com a população
negra do país. Seu poema “Bailadora de rumba”, escrito em dialeto, é considerado o
primeiro poema afro-cubano publicado na ilha. Por colecionar obras de um movimento já
então chegando ao fim, ele opta pela abrangência histórica como um de seus objetivos. Na
introdução, sem desconsiderar os antecendentes do século XVII, afirma que a constituição de
um cânone da poesia afro-hispânica como uma produção de matizes diversos ocorre entre as
décadas de 1920 e 1930.
Nesse sentido, o marco inicial do debate em torno do surgimento da poética afro-cubana, de acordo com Guirao, está
constituído pelo debate político aberto pela criação relativamente recente do regime republicano em Cuba, pela
paradoxal sujeição econômica aos interesses de outra nação (que fazem com que o regime colonial e as práticas
semiescravistas se prolonguem sob novas formas) e pela ânsia de afirmar, nesse contexto complexo, o surgimento de
uma nacionalidade. Para a definição dessa nova poética, e retomando uma tradição recente, mas já consagrada e
sedimentada, Cuba conta com um corpus científico (construído por Fernando Ortiz), um corpus poético (reunido […]
por Ballagas e Juan Ramón Jiménez, e comentado criticamente por Marinello) e um contato efetivo (material e
histórico) com o “homem negro”.
Essas premissas básicas servem a Guirao para questionar os valores falsos ou encobridores de interesses coloniais
do negrismo primitivista europeu; para situar a produção afro-cubana no continente como “feito parcial [de]
categoria universal” […]; e para afirmar, em última instância, como havia proposto Marinello, o caráter genuinamente
nacional dessa produção. […] Dotada de elementos positivos (como a persistência da anedota e o uso da jitanjáfora e
da onomatopeia), “nem sempre antipoéticos”, e de outros mais questionáveis (como as atitudes “demasiadamente
elementares ou infantis, […] caricaturescas”), a “poesia afro-cubana” é já imprescindível “no embasamento da futura
poesia cubana integral”, posto que não lhe faltam nem a perspectiva histórica que lhe dá sua tradição folclórica, nem a
projeção de futuro que lhe dá a exploração de uma “lírica bilíngue de espanhol e dialetos africanos” e de um molde
métrico de invenção afro-cubana: o son.[15]

Quando publica sua Órbita, embora Guirao veja o verso afro-cubano já como um dado
histórico, um momento congelado na história literária, o interesse pela cultura negra e a sua
expressão literária no mundo hispânico passa a crescer de forma constante nas próximas
décadas. Algumas mudanças fundamentais têm lugar, no entanto, no modo como os
antologistas vêm a lidar com seu material. A visão centrada no Caribe do primeiro Ballagas e
Guirao é gradualmente substituída por antologias que ressaltam a relação coextensiva de
escritores negros e não negros que buscam poetizar a experiência negra e explorar os
padrões comuns partilhados pelos padrões míticos da diáspora negra. Livros como os de
José Sanz y Diaz, Lira negra (1945), de Juan Felipe Torufio, Poesia negra: ensaio e antologia
(1953), de Simón Latino, La poesía negra (1956), e o citado Mapa de 1946 de Emilio
Ballagas, revelam uma ambição verdadeiramente continental ao reunirem amostras de
poetas de todas as Américas. Para todos esses autores, coloca-se a questão da autenticidade
(“podem brancos escrever poesia negra?”), concluindo-se que a experiência americana da
mestiçagem cultural fornece a resposta: “não se trata aqui de poesia negra em toda sua
pureza, mitologia e originalidade africana”, diz o mesmo Ballagas, mas sim “poesia de
contraste e assimilação de culturas; uma suma de poesia afro-americana cujo caráter é o de
ser uma arte de relação”.[16] A inclusão de novos poetas, alguns dos quais negros, como
Candelario Obeso e Jorge Artel, também é um aspecto importante dessas antologias.
Nesse repasse já bastante extenso das principais antologias que definiram o cânone da
poesia negra, cabe, por último, falar desse Mapa em que Jorge de Lima é incluído, com seu
poema “Essa negra Fulô”. Sem mais, recorro a passagens da análise de Gelado sobre tal
antologia de 1946:
Ilustrado por Ravenet, pintor já consagrado nessa temática, o Mapa está organizado por países e regiões (Estados
Unidos, México e América Central, as Antilhas e a América do Sul) e inclui uma seção dedicada à poesia de motivo
negro escrita por espanhóis entre os séculos XVII e XX. […] [A] maior parte da produção em inglês (o slang), francês
(o créole) e português aparece na língua original, além de traduzida para o espanhol; assim como aparecem as versões
publicadas em inglês e português do poema. […] Uma vez estabelecido o cânone […], Ballagas poderá ocupar-se de
selecionar com o objetivo de expor uma diversidade de acentos, em correspondência com a diversidade racial e
cultural do continente […] estabelecendo analogias entre a produção de diversos países. […] As linhas de análise
desenvolvidas por Ballagas na introdução levam-no à conclusão de que “é improcedente o emprego da expressão
‘tema negro’ para caracterizar essa poesia”. E também (corrigindo Guirao?), que a diversidade de acentos em
consequência da “mestiçagem” e da “interculturação” é tão grande que tampouco pode falar-se de “um modo único”
[…]. Por outro lado, ainda que afirme na introdução que “a poesia mulata tem dado mostras muito estimáveis dentro
da arte popular e da arte culta”, na nota que precede os “cantos anônimos” cubanos esclarece: “nossa intenção mais
que folclórica é culta, ainda que nem sempre tenhamos podido dar em cada país com a nota mais espiritual” […].
Consequentemente, é possível afirmar que tanto Ballagas, como Guirao e Pereda Valdés entendem o popular como
folclórico (o popular já estilizado e, de certa forma, cristalizado no passado) e o incorporam como dado da tradição,
como antecedente. No caso de Ballagas, em especial, sua opção pelo registro culto se relaciona, em parte, com sua falta
de perspectiva histórica no tratamento dos materiais recompilados, mas sobretudo com uma tomada de posição
deliberada. Como seus contemporâneos Carpentier e Mário de Andrade, que defenderão um aproveitamento
sinfônico do material popular e folclórico no âmbito musical, Ballagas não só não romperá com a distinção entre alta
cultura e cultura popular, mas também adotará uma posição favorável à primeira.[17]

É ainda Gelado quem chama a atenção para o “silêncio absoluto do movimento de


vanguarda cubano”, bem como das introduções do Mapa e demais antologias aqui
comentadas, sobre o “primitivismo nova-iorquino (de corte muito semelhante ao europeu)”.
Nota igualmente que a incorporação da produção dos poetas afro-americanos vai se fazer
“sem menções claras ou enfáticas ao movimento do Harlem Renaissance nem às diferenças
político-ideológicas que distinguiriam uma proposta da outra”.[18] A partir daí, conclui que
[…] a “omissão” é altamente significativa, pois a produção em terra ianque de uma poesia que expressa como poucas a
raiz trágica do afro-americano é o primeiro exemplo citado por Marinello em seu artigo pioneiro […]. Essas opções
me parecem índices claros da desconfiança e paralela ineficácia prática com que, no plano político, a elite caribenha
trata, nesse período, do imperialismo norte-americano, e do esforço persistente dos poetas e intelectuais vinculados
ao movimento de vanguarda para avaliar essa produção estética separada do contexto político (premissa absurda no
que se refere aos poetas do Harlem Renaissance). Em tal sentido, a acuidade com que se questiona no âmbito afro-
hispânico o primitivismo europeu, como modismo que encobre a expansão dos impérios coloniais, aparece,
paradoxalmente, sob a forma de silêncio em relação ao teor e função estético-ideológica do primitivismo norte-
americano.[19]

Partindo deste último comentário, é curioso pensar (nos próprios termos de Gelado, mas
num contexto literário bem diverso) as condições de produção e as sobredeterminações
ideológicas dos Poemas negros de Jorge de Lima, cuja concepção é fruto do confronto entre a
poesia negra praticada até então pelo poeta alagoano e moldada pelas concepções de
Freyre; o tratamento dado ao tema pelo Modernismo em diálogo com as vanguardas
europeias; e certa recepção da poesia afro-cubana (em especial Guillén) e do Harlem
Renaissance (com destaque para Hughes) por ocasião da composição do livro de 1947. Para
isso, seria preciso ainda rastrear indícios dessa recepção no contexto literário brasileiro da
época. Na impossibilidade de uma contextualização mais ampla, vou circunscrevê-la ao
debate presente na Revista Acadêmica, que responde, afinal, pela publicação dos Poemas
negros.

A REVISTA ACADÊMICA E O CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DOS


POEMAS NEGROS
Registre-se, antes, algo do contato de Jorge com um dos antologistas hispano-americanos
mencionados atrás: Pereda Valdés, que manteve intensas relações com o Brasil. Há uma
carta de Ildefonso Pereda Valdés a Jorge, reproduzida no Jornal de Alagoas de 17 abril de
1928, em que o uruguaio registra o recebimento e a leitura dos Poemas (1927) que Jorge de
Lima lhe enviou e sobre o qual dirá: “[r]esumiendo: su libro es uno de los más hermosos que
he recebido del Brasil”.[20] Destaca ainda no livro, “por afinidad negreira”, o poema “Xangô”,
prometendo traduzi-lo para a sua Antología negra, que preparava para o ano seguinte, assim
como prometia enviar ao poeta alagoano, proximamente, um livro que então elaborava e que
também se chamaria… Poemas negros! Ao que parece, Pereda Valdés não chegou a incluir uma
tradução de “Xangô” nessa que deve ser sua Antología de la poesía negra americana de 1936.
Das antologias inventariadas, Jorge de Lima só apareceria mesmo com “Essa negra Fulô” no
Mapa de Ballagas, dez anos depois.
Passando agora ao debate em torno da poesia negra norte-americana nas páginas da
Revista Acadêmica, vale lembrar que ele se inscreve numa tendência maior dos anos 1930,
que assistem à projeção dos estudos afro-brasileiros, às comemorações do cinquentenário
da abolição em 1938 e a outros acontecimentos relevantes. A ênfase dada aos estudos afro-
brasileiros à época leva, inclusive, Caio Julio César Tavares, em artigo estampado no
número 18 da revista, a responder ao que então já se denomina, “meio sério, meio rindo”, de
“mania” do negro ou “moda” desses estudos. Indignado, contra-ataca Tavares:
Ora não há moda sem causas profundas. Simular a inexistência de causas para evitar os resultados que elas
condicionam é o processo habitual e antigo dos que não desejam tantas causas profundas…[21]

Na verdade, além dos contos, poemas e ensaios especificamente literários publicados na


Revista Acadêmica, há estudos de natureza antropológica, sociológica e histórica que
envolvem diretamente o negro, a exemplo das colaborações de Arthur Ramos (o psiquiatra,
folclorista, antropólogo e etnólogo, idealizador da teoria da democracia racial, a qual
voltaria a despontar no prefácio de Freyre aos Poemas negros), mas incluindo ainda nomes
menos lembrados como Sergio A. Vieira (“A questão das raças”, n. 42, fev. 1939) e
Reginaldo Guimarães (“Notas sobre o culto de Oxalá”, n. 17), além da republicação do
estudo de Alberto Torres, “Em prol de nossas raças” (n. 35, maio 1938). Destaque-se,
ainda, uma entrevista feita com o Franklin E. Frazier, sociólogo e chefe da seção de
Ciências Sociais da Howard University (Washington, DC), de passagem pelo Rio de
Janeiro, na companhia de outro antropólogo afro-americano, Turner (da Universidade de
Fisk, Nashville, Tennessee), a caminho da Bahia onde permanece por cinco meses, com uma
bolsa da Fundação Guggenheim, desenvolvendo pesquisa sobre sua especialidade: “a família
negra como um meio de estudar o processo de assimilação racial” (“Sobre o negro nos
Estados Unidos”, n. 52). Na entrevista, Frazier fala sobre a situação educacional,
profissional e econômica do negro nos Estados Unidos; elogia os avanços dos estudos afro-
brasileiros, vendo neles um meio de aproximar ainda mais brasileiros e norte-americanos.
Destaca, nesse sentido, o trabalho de Donald Pierson, na Escola Livre de Sociologia e
Política de São Paulo, com estudo então inédito sobre as religiões negras, desenvolvido por
dois anos na Bahia. Indagado pelos editores da revista a respeito das diferenças e
semelhanças entre o negro americano e o brasileiro, Frazier estabelece duas oposições
bastante representativas que repercutem também no plano da arte e da literatura, e contra as
quais parece se voltar Gilberto Freyre no prefácio ao Poemas negros:
Nos Estados Unidos, a existência de uma “linha de cor” tem tendido para criar uma solidariedade entre os negros e os
de sangue misturado, o que tornou a raça negra extremamente “race conscious”. A imputação de inferioridade racial
estimulou os negros a vencer as suas incapacidades. No Brasil parece-me não existir esta solidariedade racial e esta
consciência de raça, e os de sangue misturado, mulatos e pardos, não se unem muito aos realmente negros. Se existisse
uma “linha de cor” aqui no Brasil, evidentemente ela se manifestaria por meios muito sutis e é baseada mais em
preferências e antipatias pessoais do que em práticas institucionalizadas.
A segunda observação diz respeito aos negros puros e aos de sangue misturado. Nos Estados Unidos, bem como no
Brasil, os mulatos e outros tipos de sangue misturado são encontrados em maior número nas classes mais altas do que
os negros puros. Parece-me que apesar das diferenças na situação racial dos dois países, o mesmo processo de seleção é
responsável pela situação. Nos dois países, os de sangue misturado têm tido assim mais facilidade para ascensão na
pirâmide social do que os de sangue inteiramente negro. Nos Estados Unidos, porém, grandes massas de negros puros
estão recebendo educação completa e assim se elevando a camadas sociais mais altas (R.A., n. 52).posfácio

Os editores concluem a entrevista notando que, pelas palavras do entrevistado, é possível


depreender com facilidade, segundo eles, a grande evolução que vinha experimentando a
situação do negro norte-americano, sobretudo com Roosevelt, cuja esposa pode ser
considerada
[…] uma das maiores advogadas da igualdade de direitos para pretos e brancos na grande democracia americana,
dando o mais completo apoio a todos os empreendimentos neste sentido […]. A sombra de Lincoln se confunde com
a presença de Roosevelt” (R.A., n. 52).

Quanto aos estudos históricos publicados na Revista Acadêmica, são exemplo a resenha do
livro de Aderbal Jurema sobre as “Insurreições negras no Brasil” (n. 14); o “Panorama da
escravidão”, de Nelson Werneck Sodré (n. 34, abr. 1938); as “Juntas de alforria”, de Artur
Ramos (n. 33); a reprodução de trechos de O abolicionismo de Nabuco (n. 35) e de
documentos históricos como uma “Escritura de venda e escravos” (n. 24-25).
Somem-se, também, notícias sobre acontecimentos políticos e culturais ligados à cultura
africana, como a de José Bezerra Gomes, no número 14 (1935), sobre o 1º. Congresso
Afro-Brasileiro de 1934 no Recife, sob liderança de Freyre que,
[…] entre outros serviços, elucidou o erro em que muita gente caía de ver o negro através do escravo e separou um do
outro mostrando que, embora escravizado e oprimido pelo branco, o negro não perdeu as suas características de raça,
não deixou de conservar suas tradições e costumes, herdados e trazidos da África distante e livre.

Acrescente-se a este inventário a nota sobre o “Antirracismo em Lima”, discutindo a


proposta de Cuba na conferência de Lima e a posição do Brasil, estampada no número 35,
bem como a notícia sobre a “Conferência Panamericana”, em dezembro de 1938, no número
41, das quais se pode ainda aproximar os comentários do já citado Caio Júlio Tavares sobre
os “Estudos afro-brasileiros” (R.A., n. 21).
Fazendo a passagem dos estudos histórico-sociológicos para os artístico-literários, a
Revista Acadêmica traz um ensaio do mesmo Aderbal Jurema sobre “O negro na América”,
que parte do livro de Benjamin Brawley (A Short History of the American Negro), a fim de
tratar, historicamente, do
[…] formidável esforço que o negro norte-americano fez para quebrar as cadeias da escravidão. Aliás, no país mais
democrata das Américas, a luta de classes e de raças assumi[u] e ainda continua a assumir proporções épicas. O negro
dos Estados Unidos, nas suas manifestações de rebeldia, foi mais radical do que o afro-brasileiro. Isto se explica
diante da maior segregação que ele sofria, o que contribuiu, de maneira evidente, para o desenvolvimento de uma
cultura própria. Daí o nível intelectual do negro da América do Norte ser superior ao da América do Sul, onde a
miscigenação quase que aboliu as fronteiras culturais (R.A., n. 11, 1935).posfácio

Jurema fala, ainda, das insurreições dos negros norte-americanos (similares às que
ocorreram na Bahia no século XIX, mas mais organizadas que estas); dos versos exemplares
de Hughes em “Eu também sou a América” e dos blues como protesto contra os sofrimentos
diários. Desmistifica a imagem que então se fazia do Harlem como paraíso negro (segundo
os Paul Morand da literatura de viagem), argumentando com o jornalista Erwin Kirsch que
empresas importantes, cinemas, cabarés, transportes e casas de jogos e bebidas do Harlem
são de propriedade branca.
Pode-se concluir deste depoimento que o Harlem é mais um meio comercial que os homens brancos usam para
explorar os sentimentos estéticos e a força física dos negros, chamando a atenção dos viajantes requintados e
desenvolvendo, assim, a indústria do turismo (R.A., n. 11, 1935).

Passando à produção artístico-literária “negra” estampada na revista, vale registrar o


destaque dado ao estudo de Mário de Andrade sobre o Aleijadinho, como a resenha de
Múcio Leão no número 18. Quanto aos contos e poemas de temática negra, destaque-se a
reprodução de “Pai contra mãe” (n. 45) em homenagem ao centenário de Machado de
Assis; a publicação de “Foi sonho”, de Mário de Andrade (n. 15); a de “Senzala”, de
Odorico Tavares; de “O quilombo de Manoel Congo”, de Marcos (na verdade, Carlos
Lacerda), no número 11; de alguns poemas de Hughes (“Suicídio”, no número 14, e “Casa
no mundo”, no número 43), que a Revista Acadêmica foi a primeira a traduzir aqui, e do
poema de Frank Marshall Davis (“Que queres, América?”, na versão de Abelardo Araújo
Jurema e Odorico Tavares). Há a publicação dos poemas do próprio Jorge de Lima: o
“Banguê” (que integraria os Poemas negros), a republicação de “Essa negra Fulô”, com
ilustrações de Di Cavalcanti, e a versão para o inglês de “Cantigas” (“Songs”) feita por Ruth
M. Anderson para integrar uma antologia a ser publicada pela Hispanic Society of America
e que é reproduzida no número 49 da revista com uma bela ilustração de Santa Rosa.
O número 52 traz também o texto (em espanhol) de um postal enviado a Jorge por
Waldo Frank, reiterando o elogio a Poemas depois de relido:

New York, 15-10-40


Querido Jorge de Lima:
Hace tempo, le agradecí el envio de su hermoso libro de Poemas.
Hoy, le doy outra vez mis gracias, porque acabo de re-leerlos.
Su amigo y Hermano
Waldo Frank

Vale, aliás, uma observação sobre Frank, esse “autoproclamado profeta da totalidade
cultural do hemisfério”. A expressão é de Vera Kutzinski, ao examinar as viagens de
“redescoberta da América” descritas por esse intelectual nova-iorquino outsider, socialista,
defensor de uma política de alianças culturais ou união intelectual continental, concebendo,
assim, “uma espécie de cosmopolitismo hemisférico”. Kutzinski detém-se, em especial, no
contato de Frank, na Argentina, com Victoria Ocampo e a Sur, supondo que, talvez por
meio dele, tenha-se dado o interesse pela poesia de Langston Hughes, traduzida para essa
revista primeiramente por Jorge Luis Borges. O contato com as Poesias de Jorge de Lima
pode ser resultado não só do ideal panamericano do autor de Our America, America Hispana e
South American Journey (que visitou o Brasil duas vezes), mas também de seu vivo interesse
pela cultura afro-americana, que, sempre segundo Kutzinski,
[…] o levou a apoiar, notadamente seu amigo Jean Toomer, ao mesmo tempo que se mostra muito à vontade para
ignorar contribuições culturais afro-americanas ao ‘Todo’ multitudinário hemisférico que ele imaginou com a ajuda
de Whitman.[22]

Ainda na mesma Revista Acadêmica, e passando aos estudos literários, há um artigo de


Amadeu Amaral, “A literatura da escravidão”, em que, partindo de um comentário sobre o
machadiano “Caso da vara”, atribui retroativamente, com base em Melo Morais e José
Veríssimo, o título de “tradutor ou principal introdutor do negro em nossa literatura” ao
poeta maranhense Trajano Galvão (1830-1864), mas reivindicando que esse título seja
repartido com “o paulista José Bonifácio, o moço, que desde 1850 se interessava pela sorte
dos escravos, com acentos de que só talvez se encontre a consonância, mais tarde, em
Castro Alves” (n. 57, ago. 1941, e n. 58, out. 1941). Mas os dois ensaios de maior
interesse na revista, para nossos propósitos, são o de Gilda de Mello e Souza (que então
assinava o nome de solteira) e o de Aida Cometa Manzoni.
Em “Poesia negra norte-americana”, Gilda Moraes Rocha reconhece a “enorme
distância que separa essa atual Renascença Negra de qualquer das manifestações poéticas
anteriores”, na medida em que reflete “muito mais profundamente o sentimento íntimo da
raça”. Não recorrendo mais à “eclosão da poesia melodramática e exibicionista, descuidada
na forma, tão frequente pela época da abolição, ou ao pitoresco superficial e gracioso das
poesias de dialeto”, a
[…] poesia negra hoje em dia atravessa, ao contrário, um período de construção consciente cujo objetivo principal é,
como proclama o Manifesto redigido por Langston Hughes, realizar corajosamente as personalidades de cor,
indiferentes ao público branco ou negro.

Gilda Moraes Rocha, entretanto, adverte:


[…] essa atual poesia negra que Alain Locke considera a melhor representação artística do negro do mundo só foi
possível devido à experiência poética que a precedeu e a um momento social particular que permitiu ao negro sua
plena realização. O período anterior à Renascença – esse longo período que vai do aparecimento de Phillis Wheatley,
na segunda metade do século XVIII, até o começo deste século – foi um período preparatório em que o negro
assimilou as características da América branca, enriquecendo-as com a sua contribuição peculiar à civilização
americana […]. Foi uma época de “capitalização de energias” em que recolheu dentro de si as reações produzidas pelo
contato duma cultura que não era a sua e de uma sociedade que o excluía do seu convívio. A revolta do povo
oprimido, o sentimento de injustiça, a fuga no “humour”, a exaltação religiosa, a interpretação ingênua da Bíblia, a
deformação do inglês, tudo isto que o negro iria mais tarde transformar em elementos característicos de sua poesia já
se encontra delineado […]. Mas o negro que se preparava para lançar à América sua mensagem teve que esperar um
momento oportuno. Este se apresentou quando a grande migração do Sul para o Norte, onde as fábricas o atraíam,
chamou a atenção sobre ele, e obrigou o branco a encará-lo como um agente livre que promoveu melhores
oportunidades, como uma força social e econômica de extrema importância (R.A., n. 59, jan. 1942).

A ensaísta dá destaque, no Harlem Renassaince, a figuras importantes como James Weldon


Johnson, Claude McKay, Jean Toomer, Countee Cullen, Sterling Brown e, sobretudo,
Langston Hughes, observando que, com “poucas exceções, são quase todos aventureiros
que desprezam a burguesia e os preconceitos e adotam uma atitude feroz diante da
sociedade” (R.A., n. 59, jan. 1942). São, fundamentalmente, mais artistas que os poetas
anteriores, pois não se contentam apenas em explorar seus sentimentos, mas também a
técnica poética:
Enquanto a antiga escola do dialeto seguia só o que lhe ditava o ouvido, Sterling Brown, Lucy Williams e Langston
Hughes estudam minuciosamente o sotaque do meio descrito e conseguem efeitos que não derivam apenas do inglês
estropiado, mas do próprio sentimento da raça que aí se expressa (R.A., n. 59, jan. 1942).

O mesmo destaque dado por Gilda Moraes Rocha à poesia negra de Langston Hughes e do
Harlem Renaissance está no ensaio de Aida Manzoni, que entretanto busca ampliar seu
escopo com a pretensão de cobrir a produção afro-poética de toda a América.
Publicado, antes, em Nosotros (Buenos Aires, n. 44 e 45, a. 4, 2ª. época, nov.-dez.
1939), “Trajetória do negro na poesia da América” saiu em duas partes, nos números 51
(set. 1940) e 60 (maio 1942). Manzoni começa com uma afirmação discutível ao destacar o
privilégio dos Estados Unidos de ter trazido o negro à poesia e reconhece em Vachel
Lindsay o primeiro a se ocupar do tema, com seu The Congo (1915), embora logo em seguida
afirme (meio confusamente) que, antes de esse poeta branco se sentir
[…] atraído pelo exotismo do filho da África, aparecem nos Estados Unidos os primeiros poetas de cor que cantam
como tal. É uma mulher, Phillis Wheatley, uma escrava africana, a primeira expressão poética da raça. Seus poemas
datam de 1770.

Em seguida, evoca Paul Laurence Dunbar e, entre outros tantos “expoentes de valor”,
James Weldon Johnson, que influenciaria muitos “poetas de cor” e, em 1922, organizaria
uma antologia de poesia negra norte-americana, reunindo a produção de uma centena de
nomes. Na época que lhe é contemporânea, Manzoni destaca Countee Cullen, que, afora
seus três volumes de poesia, também publicou uma antologia; Richard Bruce e Streling
Brown, de quem um crítico de valor afirmou que “ninguém penetrou mais profundamente na
canção negra”. Mas, sem dúvida alguma, o mais famoso e justamente celebrado é Langston
Hughes, que estreia em 1926 com The Weary Blues:
Até então, ninguém interpretara assim a alma da raça, dando uma autêntica expressão a sua dor de escravos e
despertando a consciência de sua condição social. Ninguém, até então, trouxera a tão alto grau de universalidade o
tema negro, e dera à poesia tal sentido revolucionário e tão intenso calor humano. Sem sentimentalismos ridículos
nem falsos alardes de rebeldia; com voz serena, consciente da missão que lhe cabe desempenhar, cantara primeiro a
raça oprimida para ampliar depois a sua mensagem a todos os humilhados e ofendidos (R.A., n. 51, set. 1940).

Repetiu-se na Europa a acolhida favorável que a literatura norte-americana dispensara a


Langston Hughes. “Um pouco por exotismo e também obedecendo a uma imperiosa
necessidade de evasão, os povos do Ocidente procuram na arte negra os novos elementos
que eles são incapazes de criar” (R.A., n. 60, maio 1942). Assim, antes de passar à poesia
negra latino-americana, Manzoni detém-se um pouco na exploração da temática negra na
Europa, tanto nas artes plásticas (cubismo, Picasso, Braque, Derain e outros “fauves”, todos
precedidos por Gauguin, além da apologia feita por Apollinaire no conhecido prefácio a um
álbum de esculturas negras em que acentua sua predileção por essa arte), quanto na
literatura, começando com a Anthologie Nègre, um “interessante resumo do folclore africano”
de Blaise Cendrars, e enumerando ainda Paul Morand (Paris-Tombouctou e Magie Noire),
André Gide (Voyage au Congo) e Paul Reboux (Romulus Coucou), entre outros escritores de
prestígio. Manzoni nota que o negro, nessas obras, “é um personagem pitoresco, figura
artística e não realidade humana. Porque a esses escritores ele não interessa em sua condição
social, mas como elemento exótico, pela riquíssima seiva que traz” (R.A., n. 60, maio 1942).
No entanto, reconhece que, embora essa visão do negro seja absolutamente exterior, sua
importância é considerável porque influi de maneira poderosa sobre a literatura dos povos
latino-americanos. Afirma, em seguida, que
[…] as letras da América Latina foram enriquecidas pela contribuição de alguns poetas de cor desde o século XVIII.
Os nomes do mexicano José Vasconcelos, o negrinho poeta, o primeiro homem de cor que canta no continente; o dos
cubanos Gabriel de la Concepción Valdés, Juan Francisco Manzano, Agustin Baldomero Rodriguez, Ambrosio
Echemendia e Antonio Medina, e o dos brasileiros Silva Alvarenga e Cruz e Sousa são expoentes de autêntico valor
literário. Mas todos eles esqueceram, nos seus escritos, a cor da própria pele. Não foram intérpretes de sua raça. Ao
adquirirem um grau de cultura superior, igualaram-se aos brancos e cantaram como eles (R.A., n. 60, maio 1942).

Reconhece, ainda, que no século XIX o tema da escravidão ocupou os poetas latino-
americanos, a exemplo, de um ponto de vista absolutamente romântico, do cubano José
Maria de Heredia, Domingo del Monte, outros tantos cubanos, além do dominicano
Francisco del Monte (mas não chega a citar Castro Alves). Nota, entretanto, que em todos
esses poetas, “o negro foi utilizado como elemento exótico. […] Por isso, essas obras nada
têm a ver com a poesia negra que irá surgir no século XX” (R.A., n. 60, maio 1942), na qual
destaca Ramón Guirao, Alejo Carpentier, o porto-riquenho Luis Palés Matos, José Zacarías
Tallet, Emilio Ballagas e, acima desses e outros tantos, Guillén:
Nicolás Guillén ocupa na poesia afro-antilhana o mesmo lugar que Langston Hughes na poesia negra norte-americana.
[…] Mulatos ambos, chegaram ao tema negro por um imperativo de seu próprio sangue […]. Como Langston
Hughes, ele compreendeu que o homem de cor não é apenas elemento estético valioso, espetáculo digno de
consideração artística, mas também realidade humana, homem sujeito a uma servidão iníqua que oprime há séculos
(R.A., n. 60, maio 1942).

Esse alinhamento dos dois poetas passa a figurar como parâmetro na superação, em direção
ao social, da visão exterior e exótica do negro. No caso de Guillén, embora não haja, como
ocorreu com Hughes, a tradução de seus poemas na Revista Acadêmica, sabe-se da
repercussão de sua obra, sobretudo por ocasião de sua estada no Brasil no mesmo ano da
publicação dos Poemas negros (1947). Sobre essa repercussão, diz Vera Lins:
Manuel Bandeira faz um discurso em sua homenagem na Academia Brasileira de Letras, na quinta-feira, 20 de
novembro, e é respondido pelo cubano, que fala de Castro Alves e Machado. O discurso é reproduzido no Jornal do
Comércio no domingo, dia 23, e depois publicado nos Cadernos de Cultura do MEC, de 1954, De poetas e poesia.
Drummond traduzira seu poema “Sones” (“Sons”) no meio da página do Diário Carioca no ano anterior
(27/01/1946), entre uma crônica de Bandeira e uma crítica de Antonio Bento sobre Graciliano Ramos e
Leskoschek. Numa nota apresentando o poeta, vê nele traços de Villon e Baudelaire e diz que deu foros literários à
canção folclórica. Jorge de Lima escreve sobre ele em O Globo (03/11/1947). José Lins do Rego também, dois
artigos no mesmo jornal (30/10 e 03/11/1947) e Álvaro Moreyra, na Tribuna Popular (09/02/1948). Guillén
hospeda-se na casa de Portinari, visita o ateliê de Flávio de Carvalho. Sérgio Milliet, crítico e poeta, fala dele no
Estado de São Paulo (05/12/1947), traduzindo-lhe alguns versos do poema “West Indies Ltd.”, comenta sua obra
reunida, El son entero, dizendo que combina folclore com um lirismo requintado. Mas em Santos cancelam uma
apresentação sua, é proibido de falar. Ainda Murilo Araújo escreve sobre ele o artigo “A revolta que canta”, na revista
Leitura, em 1962, quando passa de novo pelo Brasil e é lançada em português sua Antologia poética, traduzida por Ari
de Andrade, pela Editora Leitura. Neste número, a revista publica também um texto seu, curto e em prosa:
“Impressões do Brasil”, escrito na volta da última viagem, em que conta sobre conversas e contatos com brasileiros na
ruas, nos táxis.[23]

Creio que esses dois parâmetros, representados pela poesia de Guillén e pela de Hughes, à
luz da consolidação do cânone da poesia afro-hispânica e afro-americana, atuaram de forma
decisiva na reconfiguração da poesia negra de Jorge de Lima, no sentido de aprofundar sua
visada social, superando, assim, a dimensão de exterioridade e exotismo dos primeiros
livros, e buscando, quem sabe, pleitear com isso maior inserção no debate internacional
sobre o tema (embora, em princípio, sua ambição com o livro não fosse além do mecanismo
mais convencional de consagração local, como se verá). Talvez haja algo mais do que mera
pretensão provinciana de Freyre no prefácio aos Poemas negros, quando fala, meio
hiperbolicamente, de Jorge de Lima como alguém “em quem a América inteira sente um
poeta largamente seu pela cordialidade crioula e pelo lirismo cristão, franciscano, fraternal
[…]”.[24]

GÊNESE, CONCEPÇÃO E IDEOLOGIA DOS POEMAS


NEGROS

Sabe-se, por meio de carta datada de 10 de fevereiro de 1944 e endereçada por Jorge de
Lima a Lasar Segall, solicitando agilidade na preparação das ilustrações que acompanhavam
a primeira edição de Poemas negros, que o poeta alagoano tinha pressa em publicar o livro
principalmente por causa de sua candidatura à ABL. Diz na carta já estar de posse do prefácio
de Gilberto Freyre, que fora “publicado mesmo na Argentina” – o que, aliás, prova que os
Poemas negros já estavam prontos àquela altura, embora só dado à estampa três anos depois.
Devido a essa urgência, Jorge de Lima afirmava que ele mesmo publicaria o livro se Murilo
Miranda não o pudesse lançar.[25]
Assim, se um dos editores da Revista Acadêmica, Lúcio Rangel, ao resenhar o Anchieta de
Jorge de Lima no número 8, desacreditava do boato, que então circulava, de que o poeta
alagoano tivesse escrito o livro resenhado para entrar na Academia, porque o resenhista
julgava-o incapaz de tal aspiração, anos depois, a referida carta a Segall atestava, com todas
as letras, o quanto o poeta se empenhava em pleitear a vaga de Pereira da Silva na ABL, agora
com a publicação dos Poemas negros.
A escolha de Segall para ilustrar o livro se deve a razões evidentes. O pintor editara,
pela mesma Revista Acadêmica em 1943, um álbum com a série Mangue, contendo 42
pranchas, uma litografia e três xilogravuras assinadas pelo artista. O volume trazia estudos
sobre o pintor, de autoria de Mário de Andrade, de Manuel Bandeira e do próprio Jorge de
Lima. Em homenagem a Segall, fora ainda dedicado um número inteiro da revista (o número
64), com reproduções de alguns de seus trabalhos, inclusive um de temática negra: “Mãe
preta”. E no número 66, a Revista Acadêmica trazia a tradução de uma resenha estampada na
Gazette de Beaux Arts, de Nova York, de autoria de Robert C. Smith (diretor da Biblioteca
do Congresso de Washington), sobre o álbum segalliano de 1943.
Mas é de se supor que a escolha do ilustrador se explique também pelo mesmo motivo
que levou Domingo Ravenet a ser chamado para ilustrar o livro de Emilio Ballagas: assim
como o ilustrador cubano do Mapa de la poesía negra americana (e quem sabe por inspiração
dessa antologia, em que se publicara “Essa negra Fulô”), Segall já se destacara na figuração
dessa ordem de tema. E digo figuração pensando justamente no período de tensão e crise
por que passara o artista plástico nos anos 1920, quando compôs os retratos negros
contrastando “a captação das figuras em chave ‘realista’, o modulado escultórico delas e a
ocupação quase sempre abstrata do fundo, com um denso sentido ornamental”.[26] É o que se
pode observar em quadros como Mulato I, Mulata com criança, Morro vermelho, Perfil de
Zulmira e Bananal, entre outros, em que se evidenciam a tendência maior do pintor em
conferir às figuras retratadas o estatuto mais de tipos do que de individualidades. Esse
aspecto não escapou ao poeta alagoano, como se vê na referida carta a Segall:
Creio que V. já está ambientado com os poemas. Demais: o assunto deve ser apenas a representação do negro em
todos os ambientes em que demorou desde sua vinda para o Brasil, isto é: o negro (quando digo o negro, digo negra
também, não fazendo distinção de sexo) nos navios negreiros, milhares de cabindas, de guinés, de todas as tribos
africanas apinhados nos porões dos veleiros; o negro nas senzalas; a negrinha bonitinha nas casas-grandes, um perigo
de tentação para o branco português; o velho negro Pai-João; o negro rebelado refugiado nas serras guerreando o
branco; a sereia negra que habita o mar; o negro feiticeiro; cenas de macumba; a negrinha penteando a sinhá branca
nas redes; a negra vendedora de doces; a negra amamentando o menino branco; a negra contando histórias nos
terreiros das casas brancas etc. etc.
Como vê, os assuntos são numerosos, objetivos, e para V. que realizou todos os negros e negras do “Mangue”,
facílimos de execução.

Jorge de Lima fala dos seres que povoam seu universo afro-poético em termos de
personagens (e situações) típicas, equiparáveis ao universo pictórico de Segall (não só os
óleos sobre tela, mas também os grafites sobre papel), embora no caso de Poemas negros
várias delas oscilem entre o tipo e a individualidade, incluindo-se aquelas que são evocadas
pela memória da infância do poeta, como Celidônia, Zefa lavadeira, Maria Diamba e
Benedito Calunga.
Não bastasse o privilégio das ilustrações de Segall, tão afinado com esse universo
temático, a edição numerada de Poemas negros traz ainda o referido prefácio daquele cujo
pensamento, afinal de contas, havia atuado, em boa medida, na gênese desses mesmos
versos.
O prefácio de Freyre interessa por mais de um motivo, além do que revela, é claro, sobre
a poesia negra de Jorge de Lima. Primeiramente, o prefácio surpreende por não ostentar a
antiga animosidade para com o modernismo paulista. Talvez a distância no tempo e a morte
então recente do grande líder modernista paulista, Mário de Andrade, em 1945, tenham
contribuído para essa mudança de atitude. Rompe-se, assim, com a imagem do líder
pernambucano empenhado em reivindicar a todo custo não só a maior importância, como
também a plena autonomia do movimento regionalista do Nordeste, sobretudo em relação a
possíveis influências provenientes do modernismo paulista – visto como produto da
emulação europeia e, portanto, longe das nossas raízes autênticas. Tamanho empenho já foi
interpretado como decorrência do ressentimento pela perda do poder econômico e político
da região nordestina justamente em benefício do Centro-Sul e, em especial, São Paulo.
Buscava-se, assim, de modo agônico, uma compensação, no plano da cultura, a essa perda,
reivindicando para o nordeste o papel de depositário das raízes mais autenticamente
brasileiras, porque não sujeito, como o Centro-Sul, às influências vindas de fora.[27]
Sem deixar de insistir na importância e na distinção de “um movimento nordestino de
renovação das letras, artes e cultura brasileira”, o fato é que o prefácio de Freyre fala agora
em termos de troca, de reciprocidade. Uma via de mão dupla entre o modernismo paulista e
o “movimento do Nordeste”, definido (numa humildade meio retórica, que pode parecer
irônica ao se referir metaforicamente às contribuições culturais provenientes de cada uma
dessas regiões em termos de parentela e relações assimétricas de classe…) como uma espécie
de “parente pobre”, capaz entretanto, no dizer de Freyre,
[…] de dar ao [parente] rico valores já quase despercebidos de outras partes do Brasil e necessitados apenas de novos
estímulos vindos do Sul e do estrangeiro para se integrarem no conjunto de riqueza circulante e viva constituída por
elementos genuinamente brasileiros, essenciais ao desenvolvimento da nossa cultura em expressão honesta do nosso
éthos, da nossa história e da nossa paisagem e em instrumento de nossas aspirações e tendências sociais como povo
tanto quanto possível autônomo e criador.[28]

Essa influência é reconhecida, inclusive e sobretudo, em uma das expressões mais autênticas
desse movimento nordestino: a poesia afro-nordestina do autor de “O mundo do menino
impossível”.
Afora a atitude em face do modernismo, o prefácio também surpreende pelo modo
como Freyre se empenha em preservar Jorge de Lima da pecha de exotismo e “gulodice de
pitoresco”, bem como poupar a perspectiva adotada pelo poeta da acusação de exterior e
distanciada por falar a partir de outro lugar social e da condição de branco (ainda que se trate
de um poeta mulato…), que vimos também definir o teor do debate sobre a poesia afro-
antilhana (e mais ainda das vanguardas europeias) em confronto com a afro-americana. É o
que se nota em trechos como este do prefácio, onde o reconhecimento da herança africana
do poeta não o faz perder de vista seu lugar de classe:
Entre tais “gulosos de pitoresco” estaria Jorge de Lima: sua poesia afro-nordestina: poesia que não é a de um
indivíduo socialmente oprimido pela condição de descendente de africano ou de escravo: a única que para os
inimigos do “pitoresco” justificaria uma poesia, uma literatura, uma música, ou uma pintura brasileira, voltada com
simpatia para o negro, o índio ou o mestiço.
[…] Jorge de Lima não nos fala dos seus irmãos, descendentes de escravos, com resguardos profiláticos de poeta
arrogantemente branco, erudito, acadêmico, a explorar o pitoresco do assunto com olhos distantes de turista ou de
curioso. De modo nenhum. Seu verbo se faz carne: carne mestiça. Seu verbo de poeta se torna carnalmente mestiço
quando fala de “democracia”, de “comidas”, de “Nosso Senhor do Bonfim”, embora a metade aristocrática desse
nordestino total, de corpo colorido por jenipapo e marcado por catapora, não esqueça que a “bisavó dançou uma valsa
com D. Pedro II”, nem que “o avô teve banguê”.[29]

Por último, Freyre rompe certo consenso em torno do confronto entre a poesia negra do
Brasil e a dos Estados Unidos, discordando que esta, por ser feita pelos próprios negros,
apresente alguma superioridade ou vantagem (se é possível colocar a questão nesses termos)
em relação à primeira, feita sobretudo por brancos (numa atitude claramente paternalista,
embora não se reconheça como tal). A seu ver, a poesia afro-americana, justamente porque
feita por negros, revelaria um caráter segregacionista e ressentido, hostil em relação ao
branco, ao passo que a brasileira seria produto do fraternalismo e da democracia, de que é
exemplo a obra de, entre outros, Castro Alves, Ascenso Ferreira, do próprio Mário de
Andrade e, é claro, de Jorge de Lima. Nas palavras do prefaciador:
Não há felizmente no Brasil uma “poesia africana” como aquela, nos Estados Unidos, de que falam James Weldon
Johnson e outros críticos: poesia crispada quase sempre em atitude de defesa ou de agressão; poesia quase sempre em
dialeto meio cômico para os brancos, para os ouvidos dos brancos, mesmo quando mais amargos ou tristes os assuntos.
O que há no Brasil é uma zona de poesia mais colorida pela influência do africano: um africano já muito dissolvido em
brasileiro. Uma zona a que estão ligados, pela sua formação regional, alguns dos nossos escritores e poetas mais
rigorosamente brancos e aristocráticos: os pernambucanos Joaquim Nabuco e Manuel Bandeira, por exemplo. O que
mostra que não é o sangue que aguça sozinho nos poetas ou escritores a sensibilidade a assuntos com os quais eles
podem identificar-se só pelo poder de empatia, só por transfusão de cultura. Ao contrário: o sangue às vezes faz que
os mestiços se afastem dos assuntos africanos com excessos felinos de dissimulação e pudor. O caso de Machado de
Assis.[30]

Não é preciso ir muito longe para perceber o quanto Freyre segue na contramão de
interpretações mais consensuais, que mostram a supremacia da poesia norte-americana
justamente porque escrita por aqueles que falam de dentro, vivendo a fundo o drama da
exploração e da marginalização e fazendo convergir o racial e o social, de que é exemplo
sobretudo Hughes e os demais nomes do Harlem Renaissance, ao lado dos quais só se
aproximariam mesmo afro-hispânicos do porte de Guillén. Vimos exemplos desse
consenso, com os estudos de Gilda de Moraes Rocha e de Aida Cometa, dos quais
poderíamos ainda aproximar os comentários de Aderbal Jurema. Isso sem falar no modo
como Frazier fundamenta esse segregacionismo, invertendo-o positivamente numa “linha
de cor” que garantiu aos afro-americanos a “race conscious” que faltava ao afro-brasileiros.
Freyre enfatiza, ainda no prefácio, como a poesia afro-nordestina de Jorge “leva sem
nenhum rancor nem ranger de dentes o cristianismo para o campo específico das relações
fraternais dos brancos com os povos de cor”.[31] Reitera o quanto o “poder transfusivo” de
se identificar com “o gênio do lugar”, atribuído pelo mesmo James Weldon Johnson ao
descendente de africano, se verificou mais no Brasil que em qualquer outro lugar:
Aqui sangue africano e seiva americana cedo se confundiram na transfusão, a ponto de haver observadores argutos –
desde Bates e Wallace a Waldo Frank – a quem os descendentes de africanos dão a impressão de mais filhos da terra do
que os indígenas[…][32]

Parecendo ora separar cultura de raça, ora confundi-las, o prefaciador insiste no caráter
mestiço ou mulato da poesia de Jorge de Lima, embora essa concepção não caminhe em
direção à radicalidade assumida no contexto afro-cubano e na poesia afro-antilhana, com
todas as suas implicações histórico-políticas, como forma de afirmação identitária e
resistência contra a dominação ianque, conforme vimos também na primeira parte deste
ensaio.
Uma ênfase tamanha na mestizaje levaria, inclusive, Hughes, ao traduzir para o inglês os
poemas criollos de Nicolás Guillén, a operar cautelosamente, por meio de disjunções das
experimentações vanguardistas-surrealistas, o virtual apagamento da herança africana como
ingrediente ativo na miscigenação, de modo a induzir os leitores dos Estados Unidos a
desconectar o hibridismo cultural da mistura racial, num contexto afinal tão marcado por
verdadeira fobia com relação aos amálgamas raciais como o norte-americano.[33]
Passando, enfim, do prefácio de Freyre aos Poemas negros de Jorge de Lima, é
impressionante notar o quanto leitor e mentor intelectual encontram-se na nostalgia do
banguê e das relações cordiais por ele engendradas, em oposição à usina; no mito da
democracia racial; ou mesmo no “estilo franciscano” da lírica limiana. Além disso, é possível
reconhecer em muitos poemas um movimento solidário em direção ao negro – ressaltado,
aliás, pelo próprio prefaciador –, que, sem refutar de todo, tende todavia a relativizar o
famigerado compromisso de classe da ótica de Freyre (ótica da “casa-grande”, como se
costuma dizer) e dos que se orientaram por ela.

Vejamos alguns desses aspectos ressaltados pelo prefaciador, a começar pela tão polêmica
democracia racial.
Se, de acordo com Hermano Vianna, o mito da democracia racial imputado a Freyre é
expressão completamente ausente em Casa-grande & senzala, sendo uma atribuição mal-
intencionada resultante de uma “leitura apressada, tendenciosa ou burra”,[34] o fato é que, no
referido prefácio, ela figura com todas as letras. Figuração, aliás, das mais problemáticas,
tanto para o prefaciador quanto para o poeta – autor de um poema negro justamente
intitulado “Democracia”.
Entre parêntesis, vale lembrar que mais ou menos pela mesma época da publicação de
Poemas negros, o mito volta a aparecer em outros escritos freyrianos. Emília Viotti da Costa
observa que, na série de conferências proferidas nos Estados Unidos e publicadas em Nova
York em 1945, sob o título Brazil: an Interpretation (a tradução brasileira é de 1947), o
antropólogo pernambucano
[…] descreveu o idílico cenário da democracia racial brasileira. Embora reconhecesse que os brasileiros não foram
inteiramente isentos de preconceito racial, Freyre argumentava que a distância social, no Brasil, fora o resultado de
diferenças de classe, bem mais do que de preconceitos de cor ou raça. Como os negros brasileiros desfrutavam de
mobilidade social e oportunidades de expressão cultural, não desenvolveram uma consciência de serem negros da
mesma forma que seus congêneres norte-americanos. Freyre também apontou o fato de que, no Brasil, qualquer
pessoa que não fosse obviamente negra era considerada branca. Expressou a convicção de que os negros estavam
rapidamente desaparecendo no Brasil e incorporando-se ao grupo branco. E foi além disso. Censurou os que se
inquietavam com os possíveis efeitos negativos do amálgama étnico e reafirmou a confiança na capacidade social e
intelectual do mulato. Foi no processo de miscigenação que Freyre julgou terem os brasileiros descoberto o caminho
para escapar dos problemas raciais que atormentavam os norte-americanos.[35]

Viotti da Costa observa que o quadro de relações sociais concebido por Freyre era opinião
difundida não só entre a elite branca, mas entre muitos negros. De modo que, vinte anos
depois, os revisionistas foram recebidos com suspeita, ressentimento ou mesmo indignação,
inclusive “acusados de inventar um problema social que não existia no Brasil”,[36] quando
afirmavam que os negros, apesar de não “legalmente discriminados, foram ‘natural’ e
informalmente segregados”, permanecendo, assim, em posições subalternas, sem
possibilidade de ascensão social. Ao longo do ensaio, Viotti da Costa cuida ainda de
problematizar as hipóteses vigentes sobre a emergência do mito da democracia racial, para
sustentar que seu processo de formalização encontra-se no sistema de clientela e
patronagem (do mesmo modo como sua crítica tem a ver com a gradual derrocada de tal
sistema, com o desenvolvimento de um sistema competitivo).[37]
Estabelecendo a ponte entre os comentários de Emília Viotti da Costa e o prefácio de
Freyre, é importante notar que, para ele, a democracia tipicamente brasileira serviria de
inspiração ao anseio de democratização mais ampla que marcaria o final da Segunda Guerra,
como se vê na seguinte passagem:
Pois não nos faltam hoje romancistas e poetas novos que encarnam com esplendor tendência já tão brasileira e
socialmente significativa como nenhuma outra para o futuro do resto da América: para o futuro de todos os países na
fase atual de desejo de democratização inteira, e não apenas política, das relações entre os homens e entre os povos.[38]

Sobre esse contexto do segundo pós-guerra, Viotti da Costa registra que, com a vitória dos
aliados sobre o nazismo, o “racismo” foi “derrotado” nos campos de batalha. Em alguns
anos, segundo a tese de Thomas Skidmore por ela mencionada, os norte-americanos
[…] moveram-se em direção à integração, os brasileiros não puderam mais se referir à odiosa instituição da
segregação, ou aos horrores dos linchamentos nos Estados Unidos. […] Na suposição de que a experiência dos
brasileiros poderia oferecer ao resto do mundo uma lição ímpar de “harmonia” nas relações entre as raças, a Unesco
fomentou uma série de projetos de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil.[39]

O prefácio de Freyre parece ser tributário de seu esforço para promover internacionalmente
essa “lição ímpar” (assim como as referidas conferências proferidas nos Estados Unidos e
outros estudos da mesma época). Por conta da amizade intelectual que sempre o uniu a Jorge
de Lima, pode-se supor que os próprios Poemas negros vinham contribuir para essa
promoção, ilustrando a suposta “harmonia” racial brasileira como modelo para o resto do
mundo – logo desmentida pelos resultados de tais pesquisas patrocinadas pela Unesco.[40]
Ainda com relação ao prefácio de Poemas negros, importa observar que a referência
explícita ao mito da democracia racial tende a amenizar um pouco o peso de seu
comprometimento ideológico quando Freyre especifica a natureza dessa democracia, que
nada tem de ingenuamente igualitária, pois ele fala, de forma diferenciada, em “contato
democratizante dos brancos e degradante dos negros”… É bem verdade que nos versos do
justamente intitulado “Democracia”, em diálogo com Whitman (cuja obra é concebida pelo
poeta alagoano da mesma perspectiva de Freyre),[41] Jorge de Lima não chega a sinalizar
esse duplo movimento, na medida em que ressalta apenas o que resultou da mistura para o
branco (no caso, para o próprio sujeito lírico), ou seja, a dissolução do eu lírico para melhor
amar “em todas as línguas de branco, de mouro ou de pagão”. Apesar disso, pode-se dar
crédito a esse empenho amoroso e solidário, pois outros poemas do livro tratarão de
confirmá-lo ao flagrar a realidade do negro por uma ótica que se poderia dizer mais próxima
à da senzala. Isso, é claro, sem se confundir com ela – o que, mais do que ingênuo, seria
ideologicamente comprometedor –, pois Jorge de Lima tem consciência da realidade e da
distância social de sua condição. Como bem nota o prefaciador, “a metade aristocrática
desse nordestino total, de corpo colorido por jenipapo e marcado por catapora, não
[esquece] que ‘a bisavó dançou uma valsa com D. Pedro II’, nem que ‘o avô teve banguê’”.[42]
Por vezes, é fato, essa metade aristocrática parece avultar e comprometer a ótica por que
é flagrada a realidade do negro, tal como ocorre no poema justamente intitulado “Banguê”,
correspondente em verso ao romance homônimo de Lins do Rego. Em meio a um verdadeiro
ubi sunt, a evocação nostálgica dos banguezinhos da infância – feita, inclusive, pela ótica
infantil, visível no uso recorrente dos diminutivos –, temos uma visão paternalista,
condescendente e festiva do negro entregue a momentos de ócio e à bebida em meio à lida,
que encontra respaldo em Freyre e Lins do Rego ao caracterizar as relações cordiais de
senhores e cabras do eito nos engenhos, por oposição às usinas.
Todavia, por mais nostálgico e comprometido que seja, esse retrato do trabalho negro
no engenho também não deixa de ser um modo de resistência à ética protestante do
trabalho, na esteira da preguiça ingênita celebrada pelo Macunaíma de Mário de Andrade e
pelos demais modernistas do Sul – conforme sinalizou Roberto Schwarz, ao tratar da
“visão desideologizada do esforço” em Machado de Assis e no grupo de 1922. Ora, essa
ética protestante comparece nos versos de “Banguê”[43] associada à Usina Leão, “triste
como uma igreja sem sino”, como “um templo evangélico”. Assim como, nela, o cozinhador
Mister Cox “tira da cana o que a cana não pode dar / e […] não deixa nem bagaço / com um
tiquinho de caldo / para as abelhas chupar”; também ela extrai o prazer e a “alegria das
bagaceiras”, traduzidas nas “cantigas da boca da moenda” entoadas pelos cabras do eito, nas
sestas em meio à lida dos “bebedores de resto de alambique”, nas missas e feiras
domingueiras em torno à capela do velho banguê. Isso, certamente, pela disciplina austera
da ética protestante associada ao trabalho.[44]
Nessa oposição marcante ao protestantismo e à ética que ele impõe não só ao trabalho,
mas a toda a existência regida pela observância daquele princípio de constância que,
segundo Edmund Leites, resume a totalidade da visão de mundo protestante, é ainda
possível reconhecer a presença sorrateira de Freyre. Isso pensando não só na formação
protestante do antropólogo de Apipucos, com a qual ele viria se desencantar depois, o que
acabaria por levá-lo a conceber, segundo Freston, “uma teoria do Brasil baseada
precisamente no que poderá ter sido o centro de seu conflito com o protestantismo. Pois
nada mais distante da moral sexual protestante do que a prática sexual do português
desgarrado nos trópicos”.[45] É possível pensar ainda, e principalmente, na interpretação de
Ricardo Benzaquen de Araújo, para quem o protestantismo é uma presença em negativo que
atravessa todo o opus magnum de Freyre. Basta apenas, diz ele,
[…] que nos lembremos, por exemplo, da vigorosa afirmação da magia, do ócio e de todos os tipos de excesso,
particularmente os sexuais, para que se confirme que estamos realmente diante de uma civilização povoada pelo
pecado, o exato oposto, por conseguinte, daquele ideal de perfeição terrena, fundado no elogio do trabalho
sistemático, da ética, do isolamento e do autocontrole que a doutrina puritana costuma pregar.[46]

Todas essas considerações vão encontrar ressonância no poema de Jorge de Lima.


Mas, à exceção dessa ótica comprometedora por que é figurado o negro em “Banguê”, há
mais de um poema do livro de 1947 em que a distância de classe do neto do senhor de
engenho não impede aquele movimento solidário referido anteriormente. Essa ótica
fraterna já havia sido assinalada de passagem por Alfredo Bosi a propósito do poema que dá
fecho à coletânea (“Olá! Negro”), observando, inclusive, que ela irmana a poesia negra à
bíblico-cristã de Jorge de Lima na “assunção das dores do oprimido, socialismo inerente a
toda interpretação radical dos Evangelhos”.[47] E será evidenciando essa “cordialidade
crioula”, cristã ou, mais especificamente, “franciscana”,[48] que Freyre buscará rebater a
acusação de gulodice de pitoresco, endereçada aos poemas afro-nordestinos de Jorge de Lima
por aqueles que, segundo o prefaciador, são os
[…] menos autorizados para fazê-la, tal a sua pobreza de experiência genuinamente brasileira; pois são cosmopolitas
pouco sensíveis aos característicos mais profundos da vida, do passado e da paisagem das nossas várias regiões;
geômetras que desconhecem as intimidades de nossa paisagem humana.[49]

Por mais relevantes que pareçam os argumentos de Freyre, não se pode deixar de considerar
que certa concessão ao pitoresco foi reconhecida até mesmo por admiradores confessos de
Jorge de Lima como Alexandre Eulalio, talvez tendo em mente a perspectiva por vezes
exterior do negro ou, quem sabe, o gosto pelos grandes mosaicos obtidos à custa da
enumeração,[50] pois já se observou que ela se esgota com frequência no gosto exótico pela
enfiada de nomes bantos e bundos de comidas, lugares, mitos e feitiços. Seja como for, a dita
concessão ao pitoresco, nem sempre devidamente precisada pelos críticos, não chega a
comprometer o conjunto da coletânea, e se faz sentir sobretudo nos poemas mais antigos –
nos quais a visão distanciada, objetiva e por vezes brejeira do negro pelo branco que fala de
outro lugar social não acaba, entretanto, por abolir a notação sociologicamente precisa.
Já nos poemas posteriores que constituem, de fato, a parte nova da antologia de 1947,
podemos ver como a ação do tempo – a par daquela interiorização progressiva que, segundo
Waltensir Dutra,[51] marca, no geral, a trajetória poética de Jorge de Lima – favoreceu a
adoção de uma perspectiva mais aprofundada e de uma atitude solidária referida aqui. Para
melhor apreendê-las, vale a pena confrontar alguns poemas mais antigos com outros mais
recentes que tratam exatamente dos mesmos temas, como se Jorge de Lima buscasse retomá-
los para mais aprofundá-los.
Esse aprofundamento poderia, em dada medida, ser também considerado na reescrita de
um poema como “Xangô”,[52] saudado por Pereda Valdés na referida carta, que não deve ter
atentado para o que havia de comprometedor em tais versos. A versão final desse poema,
que consta do livro de 1947, foi vista como uma tentativa de apagar alguns traços de sujeira
e animalidade, demasiadamente fortes, na descrição da macumba, presentes na primeira
versão de Poemas (1927). Fica, no entanto, a dúvida levantada por Rodolfo Ilari: “[…] se a
intenção era apagar tais traços, por que fazer figurar as duas versões na obra completa,
quando poderia ter substituído uma pela outra?”.[53] Seja como for, o fato é que esses traços
de sujeira e animalidade aparecem ainda, de forma mais ou menos ambígua, em dois ou três
outros poemas, representando, sem dúvida, a dimensão comprometedora das figurações
mais antigas do negro em Jorge de Lima.posfácio
Mais interessante, entretanto, me parece flagrar o aprofundamento de visão e o gesto
solidário em poemas como “História” quando confrontado com o antológico “Essa negra
Fulô” do livro anterior, que dá a impressão de saltar diretamente das páginas de Casa-grande
& senzala. Apesar das imagens afins, especialmente no que toca à sedução do sinhô pela
negra e à vingança da sinhá enciumada, a perspectiva brejeira com que Lima enfocava Fulô é
aqui abandonada em favor da ótica solidária, irmanada ao sofrimento da ex-princesa
africana, adquirida por um “caco de espelho”, deflorada pelo capitão, possuída pelos
marinheiros e ferrada com uma âncora nas ancas, durante a travessia para o Brasil, onde
elevou em vão a voz em nagô para Oxalá, surdo a seus apelos. O que parece significativo em
poemas como “História” é o modo como o enfoque lírico de Jorge de Lima, sem dispensar a
notação direta e objetiva, tende a privilegiar os mecanismos compensatórios, acionados
imaginariamente pelo negro na tentativa de evadir-se vicariamente (ao menos) do horror de
sua condição, à qual não faltam, bem o sabemos, requintes de perversidade de que Casa-
grande & senzala é pródigo em exemplos, a despeito da “visão edulcorada da colonização”
em que insistem muitos de seus leitores. Tais mecanismos traduzem-se ora na religião, na
magia e nas mandingas, como ocorrem no próprio “História”, em “Xangô”, “Quando ele
vem”, entre outros; ora no fumo (maconha), como no mesmo “Xangô” e “Cachimbo do
sertão”. Podem, ainda, assumir formas mais elaboradas, inclusive artisticamente, de que é
exemplo a música, em sua riqueza e variedade de ritmos, como se vê em poemas como “Pra
donde que você me leva” e “Olá! Negro”. (Essa articulação da herança africana com a
música revela, talvez, o esforço de Jorge de se aproximar daquele traço marcante afim aos
weary blues de Hughes e os poemas-son de Guillén.)
Mas há ainda formas extremadas de evasão e alienação, como a loucura de “Maria
Diamba”, falando só diante da ventania que vem do Sudão:

Para não apanhar mais


falou que sabia fazer bolos:
virou cozinha.
Foi outras coisas para que tinha jeito.
Não falou mais:
Viram que sabia fazer tudo,
até molecas para a Casa-Grande.
Depois falou só,
só diante da ventania
que ainda vem do Sudão;
falou que queria fugir
dos senhores e das judiarias deste mundo
para o sumidouro.[54]

Precursor de “Maria Diamba”, “Joaquina Maluca” já tateava também, nos anos 1920, as
causas e o significado da leseira da negra, embora de maneira ainda um tanto dubitativa e
comprometida pela já mencionada visão moral de sujeira e vício. Não deixava, entretanto,
de eximi-la de qualquer culpa:

Joaquina Maluca, você ficou lesa


não sei por que foi!
Você tem um resto de graça menina,
na boca, nos peitos,
não sei onde é…

Joaquina Maluca, você ficou lesa,


não é?
Talvez pra não ver
o que o mundo lhe faz.
Você ficou lesa, não foi?
Talvez pra não ver o que o mundo lhe fez.
Joaquina Maluca, você foi bonita, não foi?
Você tem um resto de graça menina
não sei onde é…

Tão suja de vício,


nem sabe o que o foi.
Tão lesa, tão pura, tão limpa de culpa,
nem sabe o que é! [55]

Mas, quando nem mesmo a loucura é suficiente para aliviar os padecimentos da realidade
aviltante, resta a decisão trágica que corresponde à derradeira forma de evasão: a morte,
representada pelo afogamento de Celidônia, a “linda moleca ioruba” de “Ancila negra”, que
foi babá de Jorge na infância e com quem – como de praxe – parece ter despertado para o
sexo, conforme sugerem alguns dos versos. A curiosa ênfase na necessidade de “recalque”,
reiterada no poema e associada à lembrança da morte de Celidônia, talvez se justifique pelo
fato de ela ter-se tornado verdadeira “obsessão durante toda a vida [do poeta], em particular
no final, nas insônias trazidas pela doença”, segundo depoimento do amigo e confidente
José Fernando Carneiro.[56]
Isso, entretanto, não explica tudo. Tamanha ênfase parece atender à necessidade de
aplacar a consciência dolorosa de uma culpa de classe, própria do neto de senhor de
engenho, que se sente responsável pela morte da moleca, para quem essa era a única forma
de fuga e libertação de sua condição – e sabe-se do número considerável de suicídios entre os
negros mergulhados no banzo. Nesse sentido, as duas últimas estrofes do poema são mais
significativas:

Há muita coisa a recalcar e esquecer:


o dia em que te afogaste,
sem me avisar que ias morrer,
negra fugida na morte,
contadeira de histórias do teu reino,
anjo negro degredado para sempre,
Celidônia, Celidônia, Celidônia!

Depois: nunca mais os signos do regresso.


Para sempre: tudo ficou como um sino ressoando.
E eu parado em pequeno,
mandingando e dormindo,
muito dormindo mesmo. [57]

Diante de poemas como esse, torna-se, mesmo, difícil falar da adoção de uma perspectiva
exterior e puramente pitoresca, obrigando-nos a dar alguma razão a Freyre. Mesmo que não
correspondam à maior parte da coletânea, eles acabam, com certeza, por impor aos
intérpretes mais consequentes certa cautela na acusação em bloco de gulodice de pitoresco.
Um derradeiro confronto poderia ser estabelecido entre o mais antigo “Cantigas” e o
posterior “Zefa lavadeira”, um dos três poemas em prosa do livro, que é, na verdade, um
trecho poético desentranhado do romance de Jorge de Lima, A mulher obscura (1939),
exemplo do constante reaproveitamento e ressignificação da própria obra que se estende até
o último livro do poeta alagoano (Invenção de Orfeu). Tanto um quanto outro versam sobre
um tema caro à lírica de Jorge de Lima, embora recorrente na nossa tradição: a imagem das
lavadeiras durante ou depois da lida.
Na verdade, o primeiro retrata mais as cantigas melancólicas entoadas pelas lavadeiras
pensativas durante o trabalho e que, pela sua beleza e leveza, têm o poder de lavar “as almas
dos pecadores”. Ou melhor, de lavar “as almas negras” que “pesam tanto” e “são tão sujas
como a roupa”. Já em “Zefa lavadeira”, vemos o poeta espreitando o banho da lavadeira,
após a faina (como o faria em outro poema em prosa do livro, na companhia de um amigo de
infância). O quadro é traçado com a delicadeza da mão de um mestre – maestria de poeta-
pintor –, num crescendo de erotismo que acompanha as rotas da mão de Zefa pelo corpo
moreno até chegar ao sexo, no qual, diz o fecho do poema, “a África parece dormir o sono
temeroso de Cam”:
Depois de lavar a roupa dos outros, Zefa lava a roupa que a cobre no momento. Depois, deixa-a corando sobre o
capim. Então Zefa lavadeira ensaboa o seu próprio corpo, vestido do manto de pele negra com que nasceu. Outras
Zefas, outras negras vêm lavar-se no rio. Eu estou ouvindo tudo, eu estou enxergando tudo. Eu estou relembrando a
minha infância. A água, levada nas cuias, começa o ensaboamento; desce em regatos de espuma pelo dorso, e some-se
entre as nádegas rijas. As negras aparam a espuma grossa, com as mãos em concha, esmagam-na contra os seios
pontudos, transportam-na, com agilidade de símios, para os sovacos, para os flancos; quando a pasta branca de sabão
se despenha pelas coxas, as mãos côncavas esperam a fugidia espuma nas pernas, para conduzi-la aos sexos em que
a África parece dormir o sono temeroso de Cam.[58]

O confronto entre ambos os poemas parece revelar um ganho para “Zefa lavadeira”, no
sentido do aprofundamento de visão e do abandono daquela imagem comprometedora de
sujeira, que ainda surge de forma ambígua em “Cantigas”, embora ressurja a comparação
infeliz com os símios. Não bastasse, desponta ainda um comprometimento de outra ordem,
que diz respeito à explicação mítico-cristã da escravidão.
Na evocação do mito bíblico de Cam,[59] Jorge de Lima foi antecedido, entre outros, por
Castro Alves – a quem, vale lembrar, o poeta alagoano dedicaria uma espécie de biografia em
versos, bem ao sabor do cancioneiro popular. A menção ao mito em “Vozes d’África” foi
objeto de uma análise arguta de Alfredo Bosi, que nela reconheceu um “arcaísmo de
perspectiva” e uma contradição de base no projeto libertário do nosso poeta dos escravos,
na medida em que, ao explicar o fenômeno total do cativeiro como produto de uma culpa
exemplarmente punida, acabava por justificá-la. Como lembra o crítico,
A referência à sina de Cam circulou reiteradamente entre os séculos XVI, XVII e XVIII, quando a teologia católica
ou protestante se viu confrontada com a generalização do trabalho forçado nas economias coloniais. O velho mito
serviu então ao novo pensamento mercantil, que o alegava para justificar o tráfico negreiro, e ao discurso
salvacionista, que via na escravidão um meio de catequizar populações antes entregues ao fetichismo ou ao domínio
do Islão. Mercadores e ideólogos religiosos do sistema conceberam o pecado de Cam e a sua punição como o evento
fundador de um sistema imutável.[60]

Por mais paradoxal que pareça, foi justamente com o mito da danação de Cam e seus
descendentes que o vate libertário de 1868 deu forma poética às suas “Vozes d’África”.
Vozes de uma África que, através da prosopopeia, alcança o estatuto de um ser individual,
ao qual se une a voz do poeta para, juntos, sofrerem e suplicarem, impotentes, a um deus
absconditus num céu deserto. “Aqui triunfa o absurdo de um castigo por uma culpa remota:
daí a tragicidade da situação de um continente inteiro à mercê de uma cólera onipotente” de
um “Deus terrível”, inamovível diante dos apelos de uma raça que, sem mesmo saber o
motivo de sua pena, vê-se irremediavelmente sujeita ao efeito do anátema que “se reproduz
de geração em geração, de tal modo que a sequência dos tempos […] em nada altera a
intensidade da maldição original”.[61] Assim, ao inscrever o destino dos africanos na esfera
do mito, o nosso poeta da abolição acabava, por mais contraditório que pareça, por reiterar
e justificar o irremediável da condição escrava.
O mito de Cam seria ainda retomado em outro momento excepcional da nossa tradição
poética oitocentista, também examinado por Bosi:[62] o poema em prosa “O emparedado”
com que Cruz e Souza dá fecho às suas Evocações de 1898. Mas agora a naturalização
mítico-cristã é posta em questão pelo desdobramento do eu lírico que fala efetivamente da
perspectiva trágica do negro. Na constante alternância das vozes, o eu lírico, que se
desdobra num outro, dialeticamente, repõe e nega a ideologia que parece nascer da própria
subjetividade, para problematizar não só a visão naturalizadora do mito, mas também das
teorias cientificistas em voga, que reiteram a inferioridade africana, conforme explica
Simone Rufinoni:
A culpa do sujeito, “nefando Crime”, é a de ser um artista que pertence a uma raça considerada bárbara. O parentesco
com Satã conduz ao pecado primordial: haver afrontado o poder, acreditando na força do sujeito e saber-se fadado ao
fracasso. A culpa imeditável aponta para o paroxismo que advém do mito bíblico dos filhos de Cam e a culpa
resultante do conhecimento do mal. […] Apesar do tom confessional o texto afasta-se do puro relato autobiográfico
devido ao diálogo que se estabelece entre o eu e o outro. O movimento que alterna a voz na primeira e na segunda
pessoa desvela um percurso reflexivo que permite reconhecer em si os traços da ideologia que o excluiu. O sujeito
lírico revela-se um duplo: ele é o poeta que padeceu os tormentos de sua cor e ele é aquele que observou o percurso
do poeta. O movimento de duplicação permite que se observe o outro em si: reconhece em si as marcas da ideologia
oficial e a partir daí cunha sua resposta contraideológica. E a resposta do eu dá-se por meio da introjeção dilacerante
dos valores de uma sociedade que o excluiu. O poeta encarna satanicamente o discurso cientificista da época, que
considerava o negro um ser inferior, fadado a permanecer na barbárie. O discurso cientificista é encarnado e
dialetizado em seguida […].[63]

É bem verdade que, mesmo depois dessa versão dilacerada de Cruz e Sousa, a explicação
mítico-bíblica da escravidão voltaria a fazer nova aparição. Assim, sete anos após a
“emancipação” escrava de 1888, Modesto Brocos, com a Redenção de Cã (1895), faz
literalmente figurar, no canto esquerdo da tela, uma velha negra com os braços erguidos para
o céu em agradecimento a Deus por uma graça tardiamente recebida, que, decerto, não deve
corresponder à lei Áurea. Muito provavelmente, a emancipação redentora vem associada às
teses de branqueamento então correntes, representado por toda a descendência mestiça da
ex-escrava (filha, genro e neto), que ocupa o centro e o lado direito da tela.
O que espanta, na verdade, é que, após ainda essa versão dilacerada de Cruz e Souza e,
em polo oposto, essa representação redentora, ideologicamente condenável, Jorge de Lima
viesse, quase cinco décadas mais tarde, a incorrer no risco do arcaísmo de perspectiva que já
era problemático em Castro Alves. Embora não haja, em “Zefa lavadeira”, a contradição de
base do poema do vate baiano, entre o anseio libertário e a naturalização mítica da
escravidão, esta tende, entretanto, a ser perpetuada: uma vez fecundado, o ventre de Zefa
fará despertar a antiga maldição que paira sobre sua raça, justificando o horror da condição a
que se encontra relegada. E como outras tantas Zefas vêm se juntar a ela, “vêm lavar-se no
rio”, reitera-se, por essa multiplicação, a extensão do anátema para toda a raça. Nesse
sentido, a perspectiva cristã de Jorge de Lima se, por um lado, possibilita a atitude fraterna,
franciscana em relação à dor do negro, tão louvada por Freyre, por outro ameaça fazê-lo
descambar para a aceitação conformista dessa mesma dor expiatória. E, com isso, ao
que parece, o poeta se afasta da lição do mestre de Apipucos que, de acordo com Benzaquen
de Araújo, furtou-se por completo à explicação mítico-cristã da escravidão.[64]
Lidos à luz da consolidação do cânone da poesia afro-antilhana e da recepção local da
poesia de Hughes e Guillén, bem como do debate sobre seu alcance fundamentalmente
social, creio que podemos compreender melhor a razão e o sentido da mudança operada na
poesia afro-nordestina de Jorge de Lima, bem como a contribuição relevante trazida pelos
Poemas negros, apesar das contradições assinaladas.[65]

1 Alguns poemas já haviam sido recolhidos em coletâneas anteriores: Poemas (1927), Novos poemas (1929) e Poemas
escolhidos (1932). Todas as menções feitas aos poemas de Jorge de Lima referem-se à edição das Poesias completas (Rio de
Janeiro / Brasília: José Aguilar / inl, 1974).
2 Alexandre Eulalio, Escritos. Campinas / São Paulo: Editora da Unicamp / Editora da Unesp, 1992, p. 481.
3 Nas décadas seguintes, a terminologia de Torres-Rioseco se modifica, com negro sendo substituído por variantes, como
negroide, negrista, afro-cubana, mulata, até culminar, nos anos 1970, no termo afro-hispânico para referir amplamente a
literatura escrita por ou sobre os afrodescendentes do mundo falante de espanhol. Cf. Edward Mullen, “The Emergence of
Afro-Hispanic Poetry: Some Notes on Canon Formation”. Hispanic Review, n. 4, v. 56, University of Pennsylvania
Press, outono 1988, p. 435.
4 Id., ibid., p. 435.
5 Vera M. Kutzinski fala em interconexão entre o New Negro Renaissance que “ocorreu mais ou menos ao mesmo tempo
que o movimento afro-antilhano, o indigenismo haitiano e fenômenos artísticos similares através das Américas hispânicas”,
vendo-os, assim, “partes móveis de um fenômeno mais amplo”. Cf. V. M. Kutzinski, The Worlds of Langston Hughes:
Modernism and Translation in the Americas. Ithaca / Londres: Cornell University Press, 2012.
6 E. Mullen, op. cit., pp. 442-43.
7 Todo este parágrafo é uma retomada do que vem exposto em Miguel Arnedo, “‘Afrocubanista’ Poetry and Afro-Cuban
Performance”. The Modern Language Review, n. 4, v. 96, out. 2001, pp. 1-4.
8 A Sociedad de Estudios Afrocubanos, fundada em 1936, é presidida por Fernando Ortiz e inclui entre seus membros os
afro-cubanistas Emilio Ballagas, Ramón Guirao, Nicolás Guillén e Marcelino Arozarena.
9 Retomo aqui, em síntese, os comentários feitos por Mullen, no ensaio citado, e de Viviana Gelado, “Primitivismo y
vanguardia: las antologías de ‘poesía negra’ hispanoamericana en las décadas del 30 y del 40”. Tinkuy, n. 13. Montreal:
Section d‘Études hispaniques Université de Montréal, jun. 2010. Disponível no seguinte endereço eletrônico:
<dialnet.unirioja.es/servlet/fichero_articulo?codigo=3304240&orden=0>.
10 Id., ibid., p. 91.
11 Id., ibid., p. 91.
12 Prefácio publicado na primeira edição de Poemas negros e reproduzido neste volume, pp. 9-16.
13 E. Mullen, op. cit., p. 445.
14 V. Gelado, op. cit., p. 95.
15 Id., ibid., pp. 96-97.
16 Emilio Ballagas, Mapa de la poesía negra americana. Buenos Aires: Pleamar, 1946, pp. 8-9.
17 Id., ibid., pp. 100-01.
18 Id., ibid., p. 101.
19 Id., ibid., pp. 101-02.
20 Carta reproduzida e traduzida por Gênese de Andrade em Teresa: revista de literatura brasileira, n. 3. São Paulo: dlcv-usp
(Área de Literatura Brasileira) / Editora 34, 2002, pp. 64-65.
21 A Revista Acadêmica não traz em geral o número de página e nem todos os números indicam, precisamente, o mês e o
ano de publicação. A nota bibliográfica será feita de forma abreviada, r.a., no corpo do texto, seguida do número do
exemplar e da indicação do mês e do ano quando houver. Consultamos todos os números da revista constantes do acervo
do ieb-usp.
22 V. M. Kutzinski, op. cit., pp. 94-98.vagner camilo
23 Vera Lins, “Nicolás Guillén: as Elegias antilhanas e a poesia em dilaceramento”. Revista Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea, Brasília, n. 29, v. 0, jan. 2011, p. 100. Disponível em: http://www.gelbc.com.br/
pdf_revista/2906.pdf>.
24 Neste volume, p. 12.
25 Carta publicada em Teresa, op. cit., p. 61
26 Tadeu Chiarelli, “Segall realista: algumas considerações sobre a pintura do artista”. Catálogo da exposição Segall realista.
São Paulo: Centro Cultural fiesp/ Galeria de Arte do Sesi, 29 jan. a 16 mar. 2008, p. 23.
27 Cf. José Maurício G. de Almeida, A tradição regionalista no romance brasileiro: 1857-1945. Rio de Janeiro: Topbooks,
1999; e Moema Selma D’Andrea, A tradição re(des)coberta: Gilberto Freyre e a literatura regionalista. Campinas: Editora da
Unicamp, 1992.
28 Neste volume, p. 9.
29 Neste volume, pp. 11 e 14-15.
30 Neste volume, pp. 15-16.
31 Neste volume, p. 10.
32 Neste volume, p. 13.
33 Vale notar que a categoria mulato foi retirada do censo dos Estados Unidos em 1910, de modo a se evitar, pelo menos
oficialmente, a verdadeira fobia política que as imagens de amálgama racial eram capazes de gerar ainda nos anos 1940. A
introdução de Hughes a Cuba libre de Guillén tenta justamente, como demonstrou Kutzinski, apaziguar essas ansiedades e
fobias sociais, tanto entre leitores euro-americanos quanto afro-americanos, separando de modo cuidadoso a mulattoness
literária de Guillén, com seu “ritmo acentuado de África”, de sua suposta “ascendência mestiça”, que é menos uma evasão
retórica do que o seu “imiscuir-se na política”. Nota ainda Kutzinski: “Ao contrário do dialeto negro em suas manifestações
oral e escrita, a prática linguística do que Guillén chama de criollo e suas representações literárias são […] um
reconhecimento da mestiçagem e das incertezas sociais e linguísticas que ela produz, como uma realidade histórica
incontornável no cerne da cultura cubana. Num ambiente cultural e político como o norte-americano do pós-guerra, ainda
imerso em binarismos raciais e ansiedades sobre casamentos interraciais – isto ainda bem antes de a última lei de
antimiscigenação ser revogada na Virgínia –, a própria ideia de conceder, e ainda de celebrar, o impacto da mistura racial na
cultura nacional teria sido um anátema para as sensibilidades sociais vigentes em ambos os lados da fronteira da cor. Incluir
em Cuba libre proeminentemente traduções em dialeto negro americano foi um compromisso tanto de atenuar angústias
internas sobre a política racial desagradável, quanto foi planejado para dissipar o medo de ameaças externas”. Vera M.
Kutzinski, “Fearful Asymmetries: Langston Hughes, Nicolás Guillén, and Cuba Libre”. Diacritics, n. 3-4, v.
34, The Johns Hopkins University Press, outono-inverno 2004, pp. 112-42.34 Hermano Vianna, “Equilíbrio de
antagonismos”. Folha de S. Paulo, Mais!, 12/03/2000, p. 21.
35 Emília Viotti da Costa, Da Monarquia à República (Momentos Decisivos). São Paulo: Editora Unesp, 1999, pp. 365-66.
36 Id., ibid., p. 367.vagner camilo
37 Id., ibid., pp. 378 e 382.
38 Gilberto Freyre, neste volume, pp. 10-11.
39 E. Viotti da Costa, op. cit., p. 371.
40 Id., ibid., p. 372. O primeiro dos estudos que resultaram dessa pesquisa foi Race and Class in Rural Brazil, editado por
Charles Wagley, com fotografias de Pierre Verger e publicado em 1952. No prefácio à segunda edição norte-americana do
livro (pela Unesco International Documents Service, Columbia University Press, 1963), vêm arrolados os demais títulos
que se seguiram a esse.
41 Sobre a leitura que Freyre faz da obra do “camarada Whitman”, em conferência datada da mesma época de Poemas
negros, diz Michel Riaudel: “Em um prefácio tão modesto quanto o título de sua coletânea […] (Talvez poesia, Rio de
Janeiro, 1962), [Freyre] reivindica o mérito de ter iniciado diversos amigos à poesia norte-americana, incluindo o próprio
Manuel Bandeira. E de precisar, a respeito de seus próprios versos, ‘evidentemente maus’, que eles exprimissem ‘seus
sonhos antes sociológicos à la Whitman ou à la Vachel Lindsay do que puramente líricos, com relação ao Brasil do seu
tempo de jovem’. Sua conferência de 1947, verdadeiro hino ao ‘mais cordial dos americanos de todas as Américas e de
todos os tempos: [o] camarada Whitman’, lança luz sobre o que pode ter prendido sua atenção em Leaves of Grass. Fora de
sintonia com os modernistas de São Paulo, o pernambucano Gilberto Freyre opõe à concepção igualitarista dos paulistas
no que diz respeito à nação sua leitura positiva da história colonial e uma ambição reconciliadora quase messiânica em que o
povo americano (e em particular o brasileiro) é então o portador do futuro do mundo: ‘A América já não é só paisagem […
ela] é cada dia mais um centro de humanidade criadora e, sob alguns aspectos, o centro da humanidade criadora’. Ora
Whitman encarna, justamente, a seus olhos ‘o americano saído da classe média que nem se revoltou contra a classe média
nem se limitou como poeta a ser de uma classe ou de uma raça ou mesmo de um sexo’. Essa voz pioneira, de um socialismo
mais ‘ético’ do que ‘científico’, escreve Gilberto Freyre, está de acordo com a aventura mestiça lusotropical, das mais
oportunas, visto que ‘tudo indica que nossa época deve ser uma época de síntese ou de combinação de valores diversos que
aos olhos dos homens do século passado pareceram irreconciliáveis. Socialismo com personalismo. Cristianismo com
marxismo. Intelectualismo com intuitivismo’. Whitman é habitado por um ‘sentido personalista e fraternalista da vida e da
comunidade’ e torna-se sob a pena de Gilberto Freyre uma espécie de franciscano estendendo seu ‘fraternalismo
democrático […] além dos homens: à água, ao fogo, aos animais, às árvores’ e se revoltando ‘poeticamente contra os
excessos hebraica ou feudalmente paternalistas dentro da Igreja”. Michel Riaudel, “Walt Whitman et le Brésil”. Europe, n.
990, out. 2011 (tradução livre). Não é preciso muito esforço para perceber, a partir dessa síntese precisa de Riaudel, o
quanto os Poemas negros de Jorge de Lima, e em particular “Democracia”, desdobram poeticamente essa leitura freyriana de
Whitman.
42 Neste volume, p. 15.
43 Neste volume, pp. 30-33.
44 Cf. Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira / Thomson Learning, 2001.
45 Apud Ricardo Benzaquen de Araújo, Guerra e Paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1994, p. 100.
46 Id., ibid., p. 101.
47 Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 503.
48 E eis outro traço afim à ótica de Freyre, que inclusive reconheceu nesse fraternalismo franciscano, uma forma de
resistência ao autoritarismo patriarcal (cf. R. B. de Araújo, op. cit.). Ele comparece, entre outros momentos de sua obra, no
ensaio sobre Whitman, uma das referências para a poesia de Jorge – que chega a evocá-lo explicitamente como o
interlocutor ideal de “Democracia”. Esse interesse partilhado pelo grupo em torno de Gilberto Freyre far-se-ia ainda
sentir, de forma literariamente mais produtiva, no estilo humilde (sermo humilis) da lírica bandeiriana (cf. Davi Arrigucci
Jr., Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990). No caso de Jorge, o
franco interesse por S. Francisco comparecerá em mais de um poema e em uma biografia para crianças (Vida de S. Francisco
de Assis).
49 Neste volume, p.11.
50 O uso e o sentido das enumerações na poesia de Jorge de Lima foram examinados em perspectivas diversas por Ledo
Ivo, “Rol de insulíndias”, in Poesia observada. São Paulo: Duas Cidades, 1978; e Roger Bastide, “Doçura do leite das
negras”. Letras e Artes, São Paulo, 22/02/1948.
51 Cf. introdução à obra completa de Jorge de Lima (op. cit.).
52 Neste volume, pp. 84-87.
53 Rodolfo Ilari,“Os Poemas negros de JL”. Nossa América, São Paulo, nov.-dez. 1991, pp. 9-13.
54 Neste volume, p. 108.
55 Neste volume, p. 107.
56 Apud R. Ilari, op. cit.
57 Neste volume, p. 53.
58 Neste volume, p. 44.
59 Como se deve saber, trata-se de um dos filhos de Noé, que, ao ver a nudez do pai embriagado e denunciá-la aos irmãos,
foi reduzido à condição de escravo destes por maldição paterna. À descendência camita, correspondente ao povo africano,
caberia expiar a culpa de seu antepassado, reduzida à condição escrava.
60 Alfredo Bosi, Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 258.
61 Id., ibid., pp. 258-59.
62 Id., ibid., pp. 163-85.
63 Simone Rossinetti Rufinoni, “Visionarismo satânico no poema em prosa de Cruz e Sousa: trabalho poético e
marginalidade”. Teresa: revista de literatura brasileira, n. 1. São Paulo: dlcv-usp (Área de Literatura Brasileira) / Editora 34,
2000, p. 175.
[Publicados em duas partes na revista Estudos Avançados, 26 (76), 2012 e 27 (77), 2013, respectivamente pp. 255-72 e
pp. 299-318. Revistos e refundidos para esta edição.]
64 R. B. de. Araújo, op. cit., pp. 54-57.
65 Vale lembrar que quatro anos depois da publicação dos Poemas negros, Drummond, que saudaria Jorge de Lima em
versos de Fazendeiro do ar, embora jamais concebesse uma poesia centrada no assunto das relações inter-raciais, viria a se
ocupar do tema (que despontava em “Iniciação amorosa”, de Alguma poesia) no excepcional “Canto negro” de Claro enigma
(1951), de forma dilacerada pela dor, amargura e rancor que permeiam tais relações. Valeria o confronto com os Poemas
negros de Jorge de Lima, que registro aqui apenas como proposta de análise futura.
INDICAÇÕES DE LEITURA

BASTIDE, Roger. “A incorporação da poesia africana à poesia brasileira”, in Poetas do Brasil. São Paulo: Edusp/ Duas
Cidades, 1997, pp. 17-55.
CAMILO, Vagner. “Notas sobre os Poemas negros e o diálogo poético de Jorge de Lima e Gilberto Freyre”, in Ethel
Volfzon Kosminsky, Claude Lépine & Fernanda Arêas Peixoto (orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru: Edusc,
2003, pp. 347-59.
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. O nordeste e o negro na poesia de Jorge de
Lima. Salvador: Fundação das Artes, 1990.
ILARI, Rodolfo. “Os Poemas negros de Jorge de Lima”. Nossa América, São Paulo, nov.-dez. 1991, pp. 8-13.
LEITE, Sebastião Uchôa. “Presença negra na poesia brasileira moderna”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, Rio de Janeiro, n. 25, 1997, pp. 112-57.
SCHWARTZ, Jorge. “Lasar Segall: um ponto de confluência de um itinerário afro-latino-americano nos anos 1920”, in
Fervor das vanguardas – arte e literatura na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, pp. 69-95.
© Cosac Naify, 2014
© Herdeiros de Jorge de Lima, 2014
© Ilustrações: Lasar Segall

Prefácio de Gilberto Freyre licenciado por Fundação Gilberto Freyre.

Agradecemos a Cristina Antunes, da Biblioteca Guita e José Mindlin.


APOIO Museu Lasar Segall

1ª edição eletrônica, 2014

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


COLEÇÃO JORGE DE LIMA

Coordenação
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
LUÍS BUENO
MILTON OHATA

Coordenação editorial MILTON OHATA


Assistente editorial LIVIA LIMA
Revisão CECÍLIA FLORESTA e ANA LIMA CECÍLIO
Projeto gráfico original FLÁVIA CASTANHEIRA

Adaptação e coordenação digital ANTONIO HERMIDA


Produção de ePub EQUIRETECH
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Lima, Jorge de [1895-1953]


Poemas negros: Jorge de Lima
Prefácio: Gilberto Freyre
Posfácio: Vagner Camilo
Comentário: Vera D’Horta
Ilustrações: Lasar Segall
São Paulo: Cosac Naify, 2014
14 ils.

ISBN COSAC NAIFY 978-85-405-0890-3


ISBN EDITORA JATOBÁ 978-85-99786-09-3 [IMPRESSO]

1. Poesia brasileira I. Título.

821.134.3 (81) CDD 869.1


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Este e-book foi projetado e desenvolvido em novembro de 2014, com base na
1ª edição impressa, de 2014.

FONTES FLEISCHMANN e FAKT

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