* Transcrito posteriormente em O Jornal, Rio de Janeiro, 22/11/1953, sob o título “Jorge de Lima e os seus Poemas
negros”.
POEMAS NEGROS
NORDESTE
Só tem olhos,
só tem sombra.
Babau!
Não é jimbo,
não é muçum,
não é sariema.
Que é que é Janjão?
É a Estrela-do-mar que quer me afogar.
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
– Vai forrar a minha cama,
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
“Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou.”
Fulô? Ó Fulô?
(Era a fala da Sinhá
chamando a Negra Fulô.)
Cadê meu frasco de cheiro
que teu Sinhô me mandou?
Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê meu lenço de rendas
cadê meu cinto, meu broche,
cadê meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou.
Ah! foi você que roubou.
Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê, cadê teu Sinhô
que nosso Senhor me mandou?
Ah! foi você que roubou,
foi você, negra Fulô?
Mês de maio!
Ai! mês bem feito
que tem o dia primeiro
pra ser Dia do Trabalho.
Era princesa.
Um libata a adquiriu por um caco de espelho.
Veio encangada para o litoral,
arrastada pelos comboieiros.
Peça muito boa: não faltava um dente
e era mais bonita que qualquer inglesa.
No tombadilho o capitão deflorou-a.
Em nagô elevou a voz para Oxalá.
Pôs-se a coçar-se porque ele não ouviu.
Navio guerreiro? não; navio tumbeiro.
Depois foi ferrada com uma âncora nas ancas,
depois foi possuída pelos marinheiros,
depois passou pela alfândega,
depois saiu do Valongo,
entrou no amor do feitor,
apaixonou o Sinhô,
enciumou a Sinhá,
apanhou, apanhou, apanhou.
Fugiu para o mato.
Capitão do campo a levou.
Pegou-se com os orixás:
fez bobó de inhame
para Sinhô comer,
fez aluá para ele beber,
fez mandinga para o Sinhô a amar.
A Sinhá mandou arrebentar-lhe os dentes:
Fute, Cafute, Pé-de-pato, Não-sei-que-diga,
avança na branca e me vinga.
Exu escangalha ela, amofina ela,
amuxila ela que eu não tenho defesa de homem,
sou só uma mulher perdida neste mundão.
Neste mundão.
Louvado seja Oxalá.
Para sempre seja louvado.
O MEDO
O bicho Carrapatu,
o negro velho do surrão
– foi o medo que passou.
A gente rezava.
O medo tremia o queixo da gente,
mas lá ia…
No tempo do cólera,
morreu gente como bala.
Na seca de 77 não ficou raiz de imbu…
As pedras do rio tinham letreiros de botijas
que ninguém descobriu.
E os pares passeiam,
parece que dançam,
que dançam ciranda,
em torno do Rei.
QUICHIMBI SEREIA NEGRA
Benedito Calunga
calunga-ê
não pertence ao papa-fumo,
nem ao quibungo,
nem ao pé de garrafa,
nem ao minhocão.
Benedito Calunga
calunga-ê
não pertence a nenhuma ocaia nem a nenhum tati,
nem mesmo a Iemanjá,
nem mesmo a Iemanjá.
Benedito Calunga
calunga-ê
não pertence ao Senhor
que o lanhou de surra
e o marcou com ferro de gado
e o prendeu com lubambo nos pés.
Benedito Calunga
pertence ao banzo
que o libertou,
pertence ao banzo
que o amuxilou,
que o alforriou
para sempre
em Xangô.
Hum-Hum.
LADEIRA DA GAMBOA
Bahia,
eu te olho e te ouço
de bordo do meu itazinho pulador,
e sob a mesma noite que nos cobre,
eu sinto o contato de teus membros morenos
e procuro com as mãos, com os lábios,
tudo o que é bom de cingir e beijar!
Em casa de Laécio não havia álbuns. A família de meu companheiro de infância parecia não
ter tradição nem história. Lembro-me que um dia, perguntando-lhe como se chamava seu
avô, ele me disse:
– Morreu há muito tempo. Não me lembro como era, mas papai deve saber. Um dia
pergunto.
Recordo, porém, que era, de todos os meus amigos, o que mais me atraía.
Talvez não fosse o companheiro em si, em quem, já por aquele tempo, percebia uma
capacidade de mentir maior que a de todos os meus outros camaradas, e uma grande
habilidade de surrupiar nossos objetos escolares, selos, estampas e brinquedos. Talvez o que
me atraía para Laécio fosse a sua chácara, a sua grande chácara onde devia existir a Árvore
do Bem e do Mal, chácara tão tentadora para mim.
Os fundos davam para o rio. Um dia, Laécio me chamou para assistir o banho de umas
negras. O espetáculo que se me oferecia não me deixou nenhuma impressão menos pura.
As negras estavam ali tomando banho, negras novas do Caípe que se lavavam debaixo
dos ramos das ingazeiras arriadas sobre as águas. Abriam bandós com os cacos de pente de
chifre, e como não dispunham de espelhos, ajudavam-se na toalete.
As molecas eram bonitas, ágeis e puras. Eu estava, apenas, encantado de ver corpos
negros, tão diferentes dos brancos, embelezando-se ligeiros, antes de entrar nágua.
Reparava que aquele banho era diferente do banho de umas parentas, que me deixaram uma
vez esperando por elas, na beira do rio. As brancarronas se penteavam depois do banho,
cuidadosas, com a toalha sobre os ombros, debaixo dos cabelos soltos. Mas as molecas
podiam, com uma ligeireza espantosa, se coçar, espenujar, separar com os cacos de pente o
cabelo lanzudo, mergulhar na água transparente e sair outra vez sem que o cabelo se
desmanchasse; a água não lhes alterava a beleza. O contraste daqueles corpos pretos e
luzidios sobre a areia das margens ou sob a espuma do sabão me impressionou bastante.
Nunca tinha visto espuma sobressair tanto, correndo ligeira nas costas escuras ou descendo
entre os seios espigados pelo ventre abaixo. Mais ligeiros que a espuma, eram os seus braços
harmoniosos. Algumas com a cara ensaboada, sem abrir os olhos para evitar a espuma,
aparavam-na antes que ela se perdesse no chão. A espuma grossa voltava outra vez para
debaixo das axilas ou dos ombros, esmagada de novo pelas esguias mãos. Outras se
ajudavam no ensaboamento esfregando as costas das companheiras ou os lugares que os
braços não atingiam. Achei lindas as negras. Achei-as ágeis, diferentes. Mas Laécio me
advertira que era proibido vê-las assim nuas; e se elas soubessem que nós as espreitávamos
no banho, contariam a nossos pais e estes ralhariam conosco e seríamos castigados.
CACHIMBO DO SERTÃO
Licença têm
cacuriqués, cacuricás.
Licença têm.
Licença tem
babalaô, babalaô.
Licença tem.
Na fé de Zambi te digo:
Obambá é batizado, confirmado e coroado.
Oxóssi está reinando: dá pra ele.
Dá pra o pai-de-sala, dá pra ele.
Capitão-mor, capitão-mor,
quereis me dizer onde é que fica
a ilha de São Brandão?
A noite desabou sobre o cais
pesada, cor de carvão.
Rangem guindastes na escuridão.
Donde é que vêm essas naus?
Alagoas,
Rio Grande do Norte,
Paraíba,
Ceará,
Piauí,
Pernambuco…
e o herói mangando deles.
E os vaqueiros de Euclides da Cunha
tremendo de medo.
A polícia assustada,
as cidadezinhas com os braços para o ar
se deixando desonrar,
saquear, matar.
Floriano!
E um homem sozinho
defende a maloca.
Oferecem-lhe um dia
fortunas em troca das terras natais,
responde-lhes lento:
– “Quando deixar a presidência,
faça meia volta!”
A espada, a roupeta, o clavinote.
Floriano, Padre Cícero, Lampião.
Oxum! Oxalá. Ô! Ê!
Na noite aziaga, na noite sem fim
cabindas, mulatos, quibundos, cafuzos,
aos tombos, gemendo, cantando, rodando.
Senhor do Bonfim! Senhor do Bonfim!
Oxum! Oxalá. Ô! Ê!
No centro o Oxum.
Que dois bonequinhos na rede tão bamba
Ioiô e Iaiá!
Minhas almas
santas benditas
aquelas são
do mesmo Senhor;
todas duas
todas três
todas seis
e todas nove!
Santo Onofre,
São Gurdim,
São Pagão,
Anjo Custódio,
Monserrate,
Amém,
Oxum!
Minhas almas
santas benditas
aquelas são
do mesmo Senhor
todas duas
todas três
todas nove
o mal seja nela
casado com ele.
São Marcos, S. Manços
com o signo-de-salomão
com Ogum-Chila na mão
com três cruzes no surrão
S. Cosme! S. Damião!
Credo
Oxum-Nila
Amém.
* Segunda versão.
COMIDAS
Comer efó,
pimenta, jiló!
Iaiá me coma,
sou quimbombô!
Cobrei sustância
com mocotó!
Iaiá me diga,
nessa comida
você botou
mulata em pó?
Iaiá me coma
sou quimbombô!
Papos de anjo,
Peitinhos de freira,
Quindins-de-convento,
Fatias-da-sé!
Baba de moça,
Olho de sogra,
Levanta-marido,
Fatias-paridas,
Trouxinhas, Suspiros,
e Mimos-do-céu!
Bahia, estas comidas têm mandinga!
Bahia, esse tempeiro tem mocô!
Lá vem tabuleiro!
Cocadas, pipocas!
Lá vem verdureiro:
Pimenta, jiló!
Lá vem Frei Tomé:
Barriga de freira,
Toicinho do céu!
Me coma Iaiá
que eu sou quimbombô!
que eu sou quimbombô!
Lá vem tabuleiro
de amendoim!
Comidas gostosas
mexidas por mim!
Me compre Iaiá
por São Bom Jesus
Senhor do Bonfim!
CALABAR
Se tu vencesses Calabar!
Se em vez de portugueses,
– holandeses!?
Ai de nós!
Ai de nós sem as coisas deliciosas
que em nós moram:
redes,
rezas,
novenas,
procissões –
e essa tristeza, Calabar,
e essa alegria danada, que se sente
subindo, balançando, a alma da gente.
Calabar, tu não sentiste
essa alegria gostosa de ser triste!
INVERNO
Tempo gostoso!
Vai nascer tudo!
Lá fora chuva,
chuva e mais chuva,
trovão, corisco,
terras-caídas
e vento e chuva,
chuva e mais chuva!
Com quem?
Ram-rem.
Com quem?
Olá, Negro!
Olá, Negro!
Olá, Negro!
Olá, Negro!
SOBRE ESTA EDIÇÃO
Jorge de Lima sempre cercou suas publicações de especial cuidado estético. Não por acaso
várias de suas obras surgiram associadas a imagens visuais criadas por ele mesmo ou por
outros artistas. Em 1927, o livro de poemas O mundo do menino impossível, em edição
artesanal de trezentos exemplares, foi ilustrado pelo autor e colorido por seu irmão
Hildebrando de Lima. O poeta também ilustrou a edição especial do Livro de sonetos (1949),
e de As ilhas (1952) pelas edições Hipocampo. A seu pedido, Manoel Bandeira, ilustrador
pernambucano e homônimo do poeta, executou a capa dos Poemas escolhidos (1932). Tomás
Santa Rosa ilustrou o romance surrealista O anjo (1934), e fez as capas de A túnica inconsútil
(1938), do romance A mulher obscura (1939) e da Vida de Santo Antônio (1947). As
fotomontagens legendadas de Jorge de Lima, que têm existência como poemas plásticos
independentes, foram apresentadas em 1939 por Mário de Andrade, no artigo “Fantasias
de um poeta”, e reunidas em 1943 no álbum A pintura em pânico, com prefácio de Murilo
Mendes. O poema “Essa negra Fulô”, de 1928, foi reproduzido na Revista Acadêmica, em
maio de 1943, ao lado dos desenhos de Di Cavalcanti. Invenção de Orfeu saiu em 1952 pela
editora Livros de Portugal, do Rio de Janeiro, com capa e organização gráfica de Fayga
Ostrower.
No caso da edição de luxo dos Poemas negros, que a editora Revista Acadêmica publicou
em 1947, com 39 poemas e prefácio de Gilberto Freyre, as ilustrações foram
encomendadas a Lasar Segall, com intermediação do jornalista e editor Murilo Miranda.
Tudo indica que os desenhos que o artista fizera para o álbum Mangue (1943) foram uma
convincente credencial para o convite, como se depreende da leitura da correspondência
entre Segall e Jorge de Lima. Assim, o judeu russo de Vilna foi o escolhido para dialogar
com aqueles versos que tinham a negritude como tema principal.
Desde que veio para o Brasil, em fins de 1923, decidido a inventar nos trópicos uma
vida nova, Segall mostrou uma curiosa simbiose com o negro e o mulato brasileiros. Ele
produziu vários autorretratos em que se colocava na pele de um mulato, reafirmando assim
sua identificação com o país de adoção – Encontro, pintura de 1924, é o primeiro deles e,
baseado em fotografia feita ainda na Alemanha, é o único que aceitaria o rótulo de “realista”,
mas há outros de 1930, 1933 e 1935. Nas cartas que envia aos companheiros que ficaram
na Europa, em diversas ocasiões, ele fala de sua entrega apaixonada à terra e ao povo
brasileiro. Tipos de negros também se tornaram personagens principais de muitas de suas
obras, como é o caso das pinturas Menino com lagartixas (1924), Morro vermelho (1926),
Bananal (1927), Perfil de Zulmira (1928), Dois nus (1930), Mãe negra (1930), e também de
aquarelas como Mãe negra entre casas (1930), dos desenhos Cabeça de preta (c. 1925) e Velho
ex-escravo (1925) ou das xilogravuras Cabeça de negro (1929) e Baile de negros (1930), para
dar alguns exemplos.
O convite para que colaborasse na edição de Poemas negros foi feito a Segall em 1943,
mas os desenhos só foram entregues a Murilo Miranda três anos depois. Em carta com data
de 6 de janeiro de 1944 (a data inscrita é 1943, mas a leitura do documento permite
concluir que houve um lapso comum em inícios de ano), Jorge de Lima pedia que Segall
mandasse as ilustrações, ficando claro que o assunto já era tratado pelos dois antes da virada
do ano. Nessa carta, o escritor dizia ter recebido o álbum Mangue, também publicado pela
editora Revista Acadêmica, elogiando o trabalho gráfico. Dizia ainda que seus Poemas negros
eram muito aguardados e que o prefácio de Gilberto Freyre já estava em suas mãos.
Portanto, quando perguntavam a respeito da publicação, respondia que “está tudo
dependendo do Segall”.[1] Na resposta que escreve no dia 23 desse mesmo janeiro, Segall
agradece os elogios para o álbum Mangue e diz que não sabia da urgência das ilustrações, mas
que se dedicaria ao trabalho, empenhado em penetrar no espírito da poesia, para fazer
justiça “a seus individualíssimos e magníficos ritmos”. Temia, no entanto, que a tarefa nem
sempre seria fácil,
[…] devido em parte a seu emprego de termos regionais, muitas vezes estranhos para mim, apesar de eu lhes sentir a
musicalidade. Mas já sinto estar vencendo as dificuldades e vou me meter ao trabalho com toda a vontade, esperando
conseguir um resultado interessante.[2]comentário
As situações que reproduzo aqui, sublinhadas, são as que aparecem grifadas a lápis por
Segall no documento original, destacando seguramente o que lhe despertou maior empatia
(navios negreiros, porões dos veleiros, a negrinha bonitinha nas casas-grandes, cenas de
macumba, a negrinha penteando a sinhá branca nas redes, a negra amamentando o menino
branco) e deixando de lado as expressões mais regionais ou folclóricas (o velho negro Pai-
João, o negro feiticeiro, a sereia negra que habita o mar) ou de cunho político e rebelde (o
negro rebelado refugiado nas serras guerreando o branco). No canto inferior esquerdo dessa
carta, Segall escreveu a grafite: “Senzalas (Negerhof)” – tradução literal para o alemão do
termo que lhe devia ser estranho.
Em agosto de 1944, Murilo insiste com Segall para trazer os desenhos de Jorge de
Lima: “O homem está apressadíssimo, e eu queria ver se publico logo o livro”.[7] Quase dois
anos depois, em 9 de abril de 1946, Segall finalmente informa ao poeta que enviou a Murilo,
nessa data, doze desenhos “para os seus admiráveis poemas negros” e que pediu ao editor
que os publicasse em um formato maior do que o anteriormente previsto. “Fazer uma coisa
boa”, diz ele, esperando que o amigo, a um só tempo poeta e artista plástico, “não esteja
descuidando da arte”.[8]
Os desenhos originais usados na edição dos Poemas negros foram para o Rio de Janeiro e
não voltaram – provavelmente ficaram na Revista Acadêmica ou com o próprio Murilo
Miranda. Não era raro que trabalhos de ilustração se perdessem nas gavetas das redações. O
Museu Lasar Segall tem hoje em seu acervo dez estudos prévios, mas não as ilustrações
finais.
Poemas negros sai em 1947, reunindo textos já publicados e outros inéditos, datados de
1927[1] até cerca de 1940. “Pode-se pensar”, com Alexandre Eulalio,
[…] que a edição promovida pela Revista Acadêmica de Murilo Miranda tenha sido inspirada pelo aparecimento em
1946, em Buenos Aires, do Mapa de la poesía negra americana, compilado, prefaciado e anotado pelo poeta cubano
Emilio Ballagas, autor do Cuaderno de poesía negra (1934) e, ao lado de Nicolás Guillén e Manuel del Cabral, um dos
estabilizadores da poesia afro-antilhana (“Essa negra Fulô” em edição bilíngue é a única peça brasileira da coletânea).
[2]
O presente ensaio se propõe a desdobrar essa breve observação de Eulalio sobre o contexto
de publicação do livro de Jorge de Lima, historiando, primeiramente, a formação e a
consolidação do cânone da poesia afro-americana para, em seguida, examinar sua
repercussão no contexto brasileiro dos anos 1930 e 1940 e, em particular, na Revista
Acadêmica, responsável pela edição do livro. Em seguida, busca-se considerar a inserção dos
Poemas negros em tal contexto, examinando seu alcance crítico e suas contradições
ideológicas.
De fato, é nos anos 1940 que se dá essa consolidação e o citado Mapa de 1946 é apenas uma
entre outras coletâneas publicadas nessa década, que parece confirmar a previsão de Arturo
Torres-Rioseco, quando anunciava, em 1942, a chegada definitiva de um novo movimento
na literatura latino-americana, com a emergência de um gênero por ele considerado
altamente original: o verso negro – “poesia sobre temas negros, usando ritmos negros e
composta por membros tanto da raça africana quanto da europeia”.[3]
Essa consolidação pressupõe um processo de formação que remete às décadas
anteriores. O próprio autor do Mapa já havia publicado, um ano depois de seu Cuaderno de
versos folclóricos, a Antología de poesía negra hispano-americana (1935), que responde,
juntamente com a Antología de la poesía negra americana (1936), de Ildefonso Pereda Valdés, e
a Órbita de la poesía afrocubana 1928-1937 (1938), de Ramón Guirao, pelos momentos
decisivos da formação do cânone da poesia negra. As três obras encerram um longo
processo de colonialismo literário europeu (até então responsável pela elaboração desse
gênero de antologia) e abrem “um novo e fundamental capítulo na poesia afro-hispânica: a
codificação semioficial do afro-cubanismo”.[4]
Importa lembrar, com Edward Mullen, que o afro-cubanismo, esse movimento das artes e
letras caribenhas, se origina de uma redescoberta da herança africana da região durante os
anos de 1920 e guarda certos paralelos com o Harlem
Renaissance nos Estados Unidos.[5] O estímulo inicial para a literatura negra nas Antilhas,
diz ele, é a descoberta das formas musicais populares e da arte africana por artistas europeus
do pós-guerra (Picasso, Apollinaire, Stravinski), embora já houvesse antes um interesse
dessa ordem entre os caribenhos, datado da chegada dos escravos no século XVI e
manifestado literariamente no romance antiescravista do século XIX, culminando com a
publicação de Los negros brujos (1906), do etnólogo cubano Fernando Ortiz. O movimento
se desenvolve em duas fases: a primeira, marcada pela participação exclusiva de intelectuais
brancos que produzem uma visão altamente pitoresca e exterior da cultura negra; e a
segunda, caracterizada pela representação mais séria da experiência negra por escritores
como Nicolás Guillén e Regino Pedroso. A trajetória inteira da voga afro-cubana está
refletida na obra do primeiro, que evolui do cômico e do folclórico para uma preocupação
com temas e formas mais universais. O principal período de atividade do afro-cubanismo foi
entre 1926 e 1938, sendo, depois de 1940, gradativamente incorporado na corrente geral
da literatura caribenha.[6]
De acordo ainda com Miguel Arnedo,[7] a busca por uma nova definição de identidade
cultural nos anos 1920 pelos intelectuais cubanos é uma resposta à crescente dominação
dos Estados Unidos em todos os aspectos da vida na ilha. Influenciados pelos movimentos
artísticos negro e primitivista, da Europa e dos Estados Unidos, os literati da nação logo
voltam sua atenção às tradições afro-cubanas, tidas como únicas e exclusivas da cultura
local em grande parte preservadas das influências norte-americanas, sendo fonte
particularmente adequada à produção de formas literárias nacionalistas. Assim, entre 1928
e 1938, forma-se o movimento poético afro-cubano, que pode ser entendido, segundo
Kutzinski, como parte de um discurso de mestizaje, fundamental para a construção da
identidade nacional cubana desde os escritos de José Martí, que, por meio da noção de
nuestra América mestiça, buscou convencer os cubanos de todas as cores a lutar em conjunto
para a independência, promovendo uma imagem de unidade racial capaz de neutralizar o
temor dos brancos de que, em uma Cuba independente, sem proteção da Espanha, os negros
se rebelassem para assumir o domínio da Isla.
Tal como seu reverenciado herói nacional, os intelectuais cubanos dos anos 1920 e
1930 também passam a crer na cooperação entre brancos e negros como pré-condição
indispensável à autonomia do país. Depois da independência (1902), o referido temor
persiste e é visto como a principal desculpa para a ocupação norte-americana da ilha. Por
isso, a solidariedade entre todos os setores da população reaparece como imprescindível à
completa autonomia do país. Os afro-cubanistas creem que reforçar a união entre brancos e
negros é o melhor meio de fazer com que estes últimos se sintam parte do povo oprimido de
Cuba, desencorajando assim sua mobilização e ganhando seu apoio à causa nacionalista.
Como se vê no programa da Sociedad de Estudios Afrocubanos, resumo
fidedigno da ideologia dos afro-cubanistas, estes supõem que tal união pode ser alcançada
caso se traga à tona formas culturais mulatas, resultado da coexistência de negros e brancos
ao longo de toda a história cubana.[8] Principal defensor dessa abordagem, Ortiz acredita
que as formas culturais verdadeiramente nacionais são produto da incorporação de
elementos africanos e espanhóis. Ele se refere, em geral, a todo poema afro-cubanista como
mulato, produto desse processo que simboliza a unidade cultural, mas reconhece alguns
como sendo mais autenticamente mulatos do que outros, uma vez que não se trata apenas de
empregar a afro-cultura cubana como tema, e sim como um instrumento por meio do qual se
altera as altas formas literárias. Uma dificuldade óbvia enfrentada pelos afro-cubanistas é a
incorporação formal, que requer claramente certo grau de proficiência em tais tradições
culturais, sendo que a maioria deles não é oriunda dos setores em que elas são cultivadas.
Muitos pertencem à classe média e são educados dentro dos padrões da cultura dominante,
como é o caso do próprio Ballagas, José Zacarias Tallet e Alejo Carpentier.
Voltando ainda às três antologias fundadoras,[9] importa observar que a de Ballagas (a
primeira impressa e, por isso, um paradigma para esse gênero de publicação) reúne dezesseis
poetas e um compositor de cinco países (Cuba, Porto Rico, Argentina, Uruguai e Espanha),
num total de 54 poemas organizados por gênero e tendência, em que predominam os
cubanos modernos. Desse modo, a despeito da abrangência do título, trata-se mais de uma
antologia limitada à poesia cubana dos anos 1920 e princípios de 1930, do que uma amostra
trans-histórica da poesia negra, além de incluir apenas três poetas que podem ser
considerados negros (Guillén, Ignacio Villa e Marcelino Arozarena). Viviana Gelado
chama a atenção para a referência explícita na antologia à raça dos poetas selecionados,
dado que expõe “a persistência no campo intelectual cubano desta categoria (sete anos
depois da distinção traçada por Mariátegui e Ortiz entre os conceitos de “raça” e “cultura” e
da substituição da primeira pela segunda)”.[10] A antologia traz ainda um importante
prefácio “que é ao mesmo tempo uma justificativa para e uma explicação sobre o conteúdo
do livro”,[11] em que Ballagas identifica três direções da poesia moderna, a pura, a folclórica
e a social, das quais a segunda é vista como a mais eficaz para descrever e interpretar os
aspectos característicos da vida na América. Mas, se privilegia o passado folclórico de
Cuba, o antologista rejeita a então inusitada voga do primitivismo europeu pelo caráter
turístico e anistórico com que a arte africana é flagrada pela “baedeker” e pela “kodak” de
Blaise Cendrars, Paul Morand, Gómez de la Serna e outros. Em seus comentários finais,
Ballagas define o conteúdo de sua antologia como sendo não a reunião de uma poesia feita
por negros, mas sim uma poesia mulata, algumas vezes composta por brancos, o que reflete o
legado cultural trazido pela população negra a Cuba.
O autor da segunda antologia, o uruguaio Pereda Valdés, partilha com Ballagas uma
condição similar de intelectual branco, oriundo da classe média e, profissionalmente,
professor universitário, que já publicara antes poemas sobre folclore e cultura negra (alguns
até em formas dialetais). Sua antologia vem depois, paradoxalmente, a servir de modelo ao
próprio Ballagas no Mapa de 1946. Nela, se reconhece a influência de livros fundamentais à
formação do cânone da poesia negra norte-americana, como o de Countee Cullen e o de
James Weldon Johnson, este último evocado por Gilberto Freyre no prefácio dos Poemas
negros.[12] A antologia reúne 29 poetas de seis países: Estados Unidos, Haiti, Argentina,
Cuba, Uruguai e Brasil (incluindo, neste último caso, poemas de Silva Alvarenga, Luís
Gama, Francisco Otaviano, Tobias Barreto e Cruz e Souza). Os Estados Unidos recebem
cobertura mais completa, privilegiando-se os poetas do Harlem Renaissance (Sterling
Brown e Langston Hughes à frente). Embora tenda, no caso dos poetas de língua
espanhola, a privilegiar os de Cuba e Porto Rico, Pereda Valdés rejeita o nacionalismo
literário que enforma o trabalho de Ballagas, assumindo uma orientação mais universalista e
tornando-se, assim, o protótipo para antologias posteriores.
A passagem do afro-cubano para afro-hispânico já tinha começado. Além disso, banindo o pitoresco dos poemas
folclóricos (alguns dos quais ele mesmo havia escrito), dotou o volume com um senso de seriedade e compromisso
social jamais visto até então.[13] […] Graças à ampliação dos recortes histórico e geográfico de sua seleção, Pereda
recupera para o corpus da “poesia negra” do continente ao cubano do século XIX, Plácido e (mesmo que se possa
questionar seus critérios) a produção brasileira. Ainda em relação a Ballagas, Pereda é mais explícito ao assinalar a
sobredeterminação do econômico sobre o psicológico como tônica entre os poetas norte-americanos, mesmo que
desta maneira reafirme um dos estereótipos “diferenciadores” da produção poética “negra” do “norte” e o “sul” do
continente.
Ao emitir, por fim, um juízo de valor comparativo desses dois grandes âmbitos culturais, a produção norte-
americana lhe parece superior à latino-americana, na qual ressalta, não obstante, a excepcional riqueza de tonalidades
e registros presentes na poesia do cubano Nicolás Guillén, e o “contraste mulato” entre a “exuberância retórica” e o
“soluço eriçado de asperezas” do brasileiro Cruz e Souza.[14]
Quando publica sua Órbita, embora Guirao veja o verso afro-cubano já como um dado
histórico, um momento congelado na história literária, o interesse pela cultura negra e a sua
expressão literária no mundo hispânico passa a crescer de forma constante nas próximas
décadas. Algumas mudanças fundamentais têm lugar, no entanto, no modo como os
antologistas vêm a lidar com seu material. A visão centrada no Caribe do primeiro Ballagas e
Guirao é gradualmente substituída por antologias que ressaltam a relação coextensiva de
escritores negros e não negros que buscam poetizar a experiência negra e explorar os
padrões comuns partilhados pelos padrões míticos da diáspora negra. Livros como os de
José Sanz y Diaz, Lira negra (1945), de Juan Felipe Torufio, Poesia negra: ensaio e antologia
(1953), de Simón Latino, La poesía negra (1956), e o citado Mapa de 1946 de Emilio
Ballagas, revelam uma ambição verdadeiramente continental ao reunirem amostras de
poetas de todas as Américas. Para todos esses autores, coloca-se a questão da autenticidade
(“podem brancos escrever poesia negra?”), concluindo-se que a experiência americana da
mestiçagem cultural fornece a resposta: “não se trata aqui de poesia negra em toda sua
pureza, mitologia e originalidade africana”, diz o mesmo Ballagas, mas sim “poesia de
contraste e assimilação de culturas; uma suma de poesia afro-americana cujo caráter é o de
ser uma arte de relação”.[16] A inclusão de novos poetas, alguns dos quais negros, como
Candelario Obeso e Jorge Artel, também é um aspecto importante dessas antologias.
Nesse repasse já bastante extenso das principais antologias que definiram o cânone da
poesia negra, cabe, por último, falar desse Mapa em que Jorge de Lima é incluído, com seu
poema “Essa negra Fulô”. Sem mais, recorro a passagens da análise de Gelado sobre tal
antologia de 1946:
Ilustrado por Ravenet, pintor já consagrado nessa temática, o Mapa está organizado por países e regiões (Estados
Unidos, México e América Central, as Antilhas e a América do Sul) e inclui uma seção dedicada à poesia de motivo
negro escrita por espanhóis entre os séculos XVII e XX. […] [A] maior parte da produção em inglês (o slang), francês
(o créole) e português aparece na língua original, além de traduzida para o espanhol; assim como aparecem as versões
publicadas em inglês e português do poema. […] Uma vez estabelecido o cânone […], Ballagas poderá ocupar-se de
selecionar com o objetivo de expor uma diversidade de acentos, em correspondência com a diversidade racial e
cultural do continente […] estabelecendo analogias entre a produção de diversos países. […] As linhas de análise
desenvolvidas por Ballagas na introdução levam-no à conclusão de que “é improcedente o emprego da expressão
‘tema negro’ para caracterizar essa poesia”. E também (corrigindo Guirao?), que a diversidade de acentos em
consequência da “mestiçagem” e da “interculturação” é tão grande que tampouco pode falar-se de “um modo único”
[…]. Por outro lado, ainda que afirme na introdução que “a poesia mulata tem dado mostras muito estimáveis dentro
da arte popular e da arte culta”, na nota que precede os “cantos anônimos” cubanos esclarece: “nossa intenção mais
que folclórica é culta, ainda que nem sempre tenhamos podido dar em cada país com a nota mais espiritual” […].
Consequentemente, é possível afirmar que tanto Ballagas, como Guirao e Pereda Valdés entendem o popular como
folclórico (o popular já estilizado e, de certa forma, cristalizado no passado) e o incorporam como dado da tradição,
como antecedente. No caso de Ballagas, em especial, sua opção pelo registro culto se relaciona, em parte, com sua falta
de perspectiva histórica no tratamento dos materiais recompilados, mas sobretudo com uma tomada de posição
deliberada. Como seus contemporâneos Carpentier e Mário de Andrade, que defenderão um aproveitamento
sinfônico do material popular e folclórico no âmbito musical, Ballagas não só não romperá com a distinção entre alta
cultura e cultura popular, mas também adotará uma posição favorável à primeira.[17]
Partindo deste último comentário, é curioso pensar (nos próprios termos de Gelado, mas
num contexto literário bem diverso) as condições de produção e as sobredeterminações
ideológicas dos Poemas negros de Jorge de Lima, cuja concepção é fruto do confronto entre a
poesia negra praticada até então pelo poeta alagoano e moldada pelas concepções de
Freyre; o tratamento dado ao tema pelo Modernismo em diálogo com as vanguardas
europeias; e certa recepção da poesia afro-cubana (em especial Guillén) e do Harlem
Renaissance (com destaque para Hughes) por ocasião da composição do livro de 1947. Para
isso, seria preciso ainda rastrear indícios dessa recepção no contexto literário brasileiro da
época. Na impossibilidade de uma contextualização mais ampla, vou circunscrevê-la ao
debate presente na Revista Acadêmica, que responde, afinal, pela publicação dos Poemas
negros.
Quanto aos estudos históricos publicados na Revista Acadêmica, são exemplo a resenha do
livro de Aderbal Jurema sobre as “Insurreições negras no Brasil” (n. 14); o “Panorama da
escravidão”, de Nelson Werneck Sodré (n. 34, abr. 1938); as “Juntas de alforria”, de Artur
Ramos (n. 33); a reprodução de trechos de O abolicionismo de Nabuco (n. 35) e de
documentos históricos como uma “Escritura de venda e escravos” (n. 24-25).
Somem-se, também, notícias sobre acontecimentos políticos e culturais ligados à cultura
africana, como a de José Bezerra Gomes, no número 14 (1935), sobre o 1º. Congresso
Afro-Brasileiro de 1934 no Recife, sob liderança de Freyre que,
[…] entre outros serviços, elucidou o erro em que muita gente caía de ver o negro através do escravo e separou um do
outro mostrando que, embora escravizado e oprimido pelo branco, o negro não perdeu as suas características de raça,
não deixou de conservar suas tradições e costumes, herdados e trazidos da África distante e livre.
Jurema fala, ainda, das insurreições dos negros norte-americanos (similares às que
ocorreram na Bahia no século XIX, mas mais organizadas que estas); dos versos exemplares
de Hughes em “Eu também sou a América” e dos blues como protesto contra os sofrimentos
diários. Desmistifica a imagem que então se fazia do Harlem como paraíso negro (segundo
os Paul Morand da literatura de viagem), argumentando com o jornalista Erwin Kirsch que
empresas importantes, cinemas, cabarés, transportes e casas de jogos e bebidas do Harlem
são de propriedade branca.
Pode-se concluir deste depoimento que o Harlem é mais um meio comercial que os homens brancos usam para
explorar os sentimentos estéticos e a força física dos negros, chamando a atenção dos viajantes requintados e
desenvolvendo, assim, a indústria do turismo (R.A., n. 11, 1935).
Vale, aliás, uma observação sobre Frank, esse “autoproclamado profeta da totalidade
cultural do hemisfério”. A expressão é de Vera Kutzinski, ao examinar as viagens de
“redescoberta da América” descritas por esse intelectual nova-iorquino outsider, socialista,
defensor de uma política de alianças culturais ou união intelectual continental, concebendo,
assim, “uma espécie de cosmopolitismo hemisférico”. Kutzinski detém-se, em especial, no
contato de Frank, na Argentina, com Victoria Ocampo e a Sur, supondo que, talvez por
meio dele, tenha-se dado o interesse pela poesia de Langston Hughes, traduzida para essa
revista primeiramente por Jorge Luis Borges. O contato com as Poesias de Jorge de Lima
pode ser resultado não só do ideal panamericano do autor de Our America, America Hispana e
South American Journey (que visitou o Brasil duas vezes), mas também de seu vivo interesse
pela cultura afro-americana, que, sempre segundo Kutzinski,
[…] o levou a apoiar, notadamente seu amigo Jean Toomer, ao mesmo tempo que se mostra muito à vontade para
ignorar contribuições culturais afro-americanas ao ‘Todo’ multitudinário hemisférico que ele imaginou com a ajuda
de Whitman.[22]
O mesmo destaque dado por Gilda Moraes Rocha à poesia negra de Langston Hughes e do
Harlem Renaissance está no ensaio de Aida Manzoni, que entretanto busca ampliar seu
escopo com a pretensão de cobrir a produção afro-poética de toda a América.
Publicado, antes, em Nosotros (Buenos Aires, n. 44 e 45, a. 4, 2ª. época, nov.-dez.
1939), “Trajetória do negro na poesia da América” saiu em duas partes, nos números 51
(set. 1940) e 60 (maio 1942). Manzoni começa com uma afirmação discutível ao destacar o
privilégio dos Estados Unidos de ter trazido o negro à poesia e reconhece em Vachel
Lindsay o primeiro a se ocupar do tema, com seu The Congo (1915), embora logo em seguida
afirme (meio confusamente) que, antes de esse poeta branco se sentir
[…] atraído pelo exotismo do filho da África, aparecem nos Estados Unidos os primeiros poetas de cor que cantam
como tal. É uma mulher, Phillis Wheatley, uma escrava africana, a primeira expressão poética da raça. Seus poemas
datam de 1770.
Em seguida, evoca Paul Laurence Dunbar e, entre outros tantos “expoentes de valor”,
James Weldon Johnson, que influenciaria muitos “poetas de cor” e, em 1922, organizaria
uma antologia de poesia negra norte-americana, reunindo a produção de uma centena de
nomes. Na época que lhe é contemporânea, Manzoni destaca Countee Cullen, que, afora
seus três volumes de poesia, também publicou uma antologia; Richard Bruce e Streling
Brown, de quem um crítico de valor afirmou que “ninguém penetrou mais profundamente na
canção negra”. Mas, sem dúvida alguma, o mais famoso e justamente celebrado é Langston
Hughes, que estreia em 1926 com The Weary Blues:
Até então, ninguém interpretara assim a alma da raça, dando uma autêntica expressão a sua dor de escravos e
despertando a consciência de sua condição social. Ninguém, até então, trouxera a tão alto grau de universalidade o
tema negro, e dera à poesia tal sentido revolucionário e tão intenso calor humano. Sem sentimentalismos ridículos
nem falsos alardes de rebeldia; com voz serena, consciente da missão que lhe cabe desempenhar, cantara primeiro a
raça oprimida para ampliar depois a sua mensagem a todos os humilhados e ofendidos (R.A., n. 51, set. 1940).
Reconhece, ainda, que no século XIX o tema da escravidão ocupou os poetas latino-
americanos, a exemplo, de um ponto de vista absolutamente romântico, do cubano José
Maria de Heredia, Domingo del Monte, outros tantos cubanos, além do dominicano
Francisco del Monte (mas não chega a citar Castro Alves). Nota, entretanto, que em todos
esses poetas, “o negro foi utilizado como elemento exótico. […] Por isso, essas obras nada
têm a ver com a poesia negra que irá surgir no século XX” (R.A., n. 60, maio 1942), na qual
destaca Ramón Guirao, Alejo Carpentier, o porto-riquenho Luis Palés Matos, José Zacarías
Tallet, Emilio Ballagas e, acima desses e outros tantos, Guillén:
Nicolás Guillén ocupa na poesia afro-antilhana o mesmo lugar que Langston Hughes na poesia negra norte-americana.
[…] Mulatos ambos, chegaram ao tema negro por um imperativo de seu próprio sangue […]. Como Langston
Hughes, ele compreendeu que o homem de cor não é apenas elemento estético valioso, espetáculo digno de
consideração artística, mas também realidade humana, homem sujeito a uma servidão iníqua que oprime há séculos
(R.A., n. 60, maio 1942).
Esse alinhamento dos dois poetas passa a figurar como parâmetro na superação, em direção
ao social, da visão exterior e exótica do negro. No caso de Guillén, embora não haja, como
ocorreu com Hughes, a tradução de seus poemas na Revista Acadêmica, sabe-se da
repercussão de sua obra, sobretudo por ocasião de sua estada no Brasil no mesmo ano da
publicação dos Poemas negros (1947). Sobre essa repercussão, diz Vera Lins:
Manuel Bandeira faz um discurso em sua homenagem na Academia Brasileira de Letras, na quinta-feira, 20 de
novembro, e é respondido pelo cubano, que fala de Castro Alves e Machado. O discurso é reproduzido no Jornal do
Comércio no domingo, dia 23, e depois publicado nos Cadernos de Cultura do MEC, de 1954, De poetas e poesia.
Drummond traduzira seu poema “Sones” (“Sons”) no meio da página do Diário Carioca no ano anterior
(27/01/1946), entre uma crônica de Bandeira e uma crítica de Antonio Bento sobre Graciliano Ramos e
Leskoschek. Numa nota apresentando o poeta, vê nele traços de Villon e Baudelaire e diz que deu foros literários à
canção folclórica. Jorge de Lima escreve sobre ele em O Globo (03/11/1947). José Lins do Rego também, dois
artigos no mesmo jornal (30/10 e 03/11/1947) e Álvaro Moreyra, na Tribuna Popular (09/02/1948). Guillén
hospeda-se na casa de Portinari, visita o ateliê de Flávio de Carvalho. Sérgio Milliet, crítico e poeta, fala dele no
Estado de São Paulo (05/12/1947), traduzindo-lhe alguns versos do poema “West Indies Ltd.”, comenta sua obra
reunida, El son entero, dizendo que combina folclore com um lirismo requintado. Mas em Santos cancelam uma
apresentação sua, é proibido de falar. Ainda Murilo Araújo escreve sobre ele o artigo “A revolta que canta”, na revista
Leitura, em 1962, quando passa de novo pelo Brasil e é lançada em português sua Antologia poética, traduzida por Ari
de Andrade, pela Editora Leitura. Neste número, a revista publica também um texto seu, curto e em prosa:
“Impressões do Brasil”, escrito na volta da última viagem, em que conta sobre conversas e contatos com brasileiros na
ruas, nos táxis.[23]
Creio que esses dois parâmetros, representados pela poesia de Guillén e pela de Hughes, à
luz da consolidação do cânone da poesia afro-hispânica e afro-americana, atuaram de forma
decisiva na reconfiguração da poesia negra de Jorge de Lima, no sentido de aprofundar sua
visada social, superando, assim, a dimensão de exterioridade e exotismo dos primeiros
livros, e buscando, quem sabe, pleitear com isso maior inserção no debate internacional
sobre o tema (embora, em princípio, sua ambição com o livro não fosse além do mecanismo
mais convencional de consagração local, como se verá). Talvez haja algo mais do que mera
pretensão provinciana de Freyre no prefácio aos Poemas negros, quando fala, meio
hiperbolicamente, de Jorge de Lima como alguém “em quem a América inteira sente um
poeta largamente seu pela cordialidade crioula e pelo lirismo cristão, franciscano, fraternal
[…]”.[24]
Sabe-se, por meio de carta datada de 10 de fevereiro de 1944 e endereçada por Jorge de
Lima a Lasar Segall, solicitando agilidade na preparação das ilustrações que acompanhavam
a primeira edição de Poemas negros, que o poeta alagoano tinha pressa em publicar o livro
principalmente por causa de sua candidatura à ABL. Diz na carta já estar de posse do prefácio
de Gilberto Freyre, que fora “publicado mesmo na Argentina” – o que, aliás, prova que os
Poemas negros já estavam prontos àquela altura, embora só dado à estampa três anos depois.
Devido a essa urgência, Jorge de Lima afirmava que ele mesmo publicaria o livro se Murilo
Miranda não o pudesse lançar.[25]
Assim, se um dos editores da Revista Acadêmica, Lúcio Rangel, ao resenhar o Anchieta de
Jorge de Lima no número 8, desacreditava do boato, que então circulava, de que o poeta
alagoano tivesse escrito o livro resenhado para entrar na Academia, porque o resenhista
julgava-o incapaz de tal aspiração, anos depois, a referida carta a Segall atestava, com todas
as letras, o quanto o poeta se empenhava em pleitear a vaga de Pereira da Silva na ABL, agora
com a publicação dos Poemas negros.
A escolha de Segall para ilustrar o livro se deve a razões evidentes. O pintor editara,
pela mesma Revista Acadêmica em 1943, um álbum com a série Mangue, contendo 42
pranchas, uma litografia e três xilogravuras assinadas pelo artista. O volume trazia estudos
sobre o pintor, de autoria de Mário de Andrade, de Manuel Bandeira e do próprio Jorge de
Lima. Em homenagem a Segall, fora ainda dedicado um número inteiro da revista (o número
64), com reproduções de alguns de seus trabalhos, inclusive um de temática negra: “Mãe
preta”. E no número 66, a Revista Acadêmica trazia a tradução de uma resenha estampada na
Gazette de Beaux Arts, de Nova York, de autoria de Robert C. Smith (diretor da Biblioteca
do Congresso de Washington), sobre o álbum segalliano de 1943.
Mas é de se supor que a escolha do ilustrador se explique também pelo mesmo motivo
que levou Domingo Ravenet a ser chamado para ilustrar o livro de Emilio Ballagas: assim
como o ilustrador cubano do Mapa de la poesía negra americana (e quem sabe por inspiração
dessa antologia, em que se publicara “Essa negra Fulô”), Segall já se destacara na figuração
dessa ordem de tema. E digo figuração pensando justamente no período de tensão e crise
por que passara o artista plástico nos anos 1920, quando compôs os retratos negros
contrastando “a captação das figuras em chave ‘realista’, o modulado escultórico delas e a
ocupação quase sempre abstrata do fundo, com um denso sentido ornamental”.[26] É o que se
pode observar em quadros como Mulato I, Mulata com criança, Morro vermelho, Perfil de
Zulmira e Bananal, entre outros, em que se evidenciam a tendência maior do pintor em
conferir às figuras retratadas o estatuto mais de tipos do que de individualidades. Esse
aspecto não escapou ao poeta alagoano, como se vê na referida carta a Segall:
Creio que V. já está ambientado com os poemas. Demais: o assunto deve ser apenas a representação do negro em
todos os ambientes em que demorou desde sua vinda para o Brasil, isto é: o negro (quando digo o negro, digo negra
também, não fazendo distinção de sexo) nos navios negreiros, milhares de cabindas, de guinés, de todas as tribos
africanas apinhados nos porões dos veleiros; o negro nas senzalas; a negrinha bonitinha nas casas-grandes, um perigo
de tentação para o branco português; o velho negro Pai-João; o negro rebelado refugiado nas serras guerreando o
branco; a sereia negra que habita o mar; o negro feiticeiro; cenas de macumba; a negrinha penteando a sinhá branca
nas redes; a negra vendedora de doces; a negra amamentando o menino branco; a negra contando histórias nos
terreiros das casas brancas etc. etc.
Como vê, os assuntos são numerosos, objetivos, e para V. que realizou todos os negros e negras do “Mangue”,
facílimos de execução.
Jorge de Lima fala dos seres que povoam seu universo afro-poético em termos de
personagens (e situações) típicas, equiparáveis ao universo pictórico de Segall (não só os
óleos sobre tela, mas também os grafites sobre papel), embora no caso de Poemas negros
várias delas oscilem entre o tipo e a individualidade, incluindo-se aquelas que são evocadas
pela memória da infância do poeta, como Celidônia, Zefa lavadeira, Maria Diamba e
Benedito Calunga.
Não bastasse o privilégio das ilustrações de Segall, tão afinado com esse universo
temático, a edição numerada de Poemas negros traz ainda o referido prefácio daquele cujo
pensamento, afinal de contas, havia atuado, em boa medida, na gênese desses mesmos
versos.
O prefácio de Freyre interessa por mais de um motivo, além do que revela, é claro, sobre
a poesia negra de Jorge de Lima. Primeiramente, o prefácio surpreende por não ostentar a
antiga animosidade para com o modernismo paulista. Talvez a distância no tempo e a morte
então recente do grande líder modernista paulista, Mário de Andrade, em 1945, tenham
contribuído para essa mudança de atitude. Rompe-se, assim, com a imagem do líder
pernambucano empenhado em reivindicar a todo custo não só a maior importância, como
também a plena autonomia do movimento regionalista do Nordeste, sobretudo em relação a
possíveis influências provenientes do modernismo paulista – visto como produto da
emulação europeia e, portanto, longe das nossas raízes autênticas. Tamanho empenho já foi
interpretado como decorrência do ressentimento pela perda do poder econômico e político
da região nordestina justamente em benefício do Centro-Sul e, em especial, São Paulo.
Buscava-se, assim, de modo agônico, uma compensação, no plano da cultura, a essa perda,
reivindicando para o nordeste o papel de depositário das raízes mais autenticamente
brasileiras, porque não sujeito, como o Centro-Sul, às influências vindas de fora.[27]
Sem deixar de insistir na importância e na distinção de “um movimento nordestino de
renovação das letras, artes e cultura brasileira”, o fato é que o prefácio de Freyre fala agora
em termos de troca, de reciprocidade. Uma via de mão dupla entre o modernismo paulista e
o “movimento do Nordeste”, definido (numa humildade meio retórica, que pode parecer
irônica ao se referir metaforicamente às contribuições culturais provenientes de cada uma
dessas regiões em termos de parentela e relações assimétricas de classe…) como uma espécie
de “parente pobre”, capaz entretanto, no dizer de Freyre,
[…] de dar ao [parente] rico valores já quase despercebidos de outras partes do Brasil e necessitados apenas de novos
estímulos vindos do Sul e do estrangeiro para se integrarem no conjunto de riqueza circulante e viva constituída por
elementos genuinamente brasileiros, essenciais ao desenvolvimento da nossa cultura em expressão honesta do nosso
éthos, da nossa história e da nossa paisagem e em instrumento de nossas aspirações e tendências sociais como povo
tanto quanto possível autônomo e criador.[28]
Essa influência é reconhecida, inclusive e sobretudo, em uma das expressões mais autênticas
desse movimento nordestino: a poesia afro-nordestina do autor de “O mundo do menino
impossível”.
Afora a atitude em face do modernismo, o prefácio também surpreende pelo modo
como Freyre se empenha em preservar Jorge de Lima da pecha de exotismo e “gulodice de
pitoresco”, bem como poupar a perspectiva adotada pelo poeta da acusação de exterior e
distanciada por falar a partir de outro lugar social e da condição de branco (ainda que se trate
de um poeta mulato…), que vimos também definir o teor do debate sobre a poesia afro-
antilhana (e mais ainda das vanguardas europeias) em confronto com a afro-americana. É o
que se nota em trechos como este do prefácio, onde o reconhecimento da herança africana
do poeta não o faz perder de vista seu lugar de classe:
Entre tais “gulosos de pitoresco” estaria Jorge de Lima: sua poesia afro-nordestina: poesia que não é a de um
indivíduo socialmente oprimido pela condição de descendente de africano ou de escravo: a única que para os
inimigos do “pitoresco” justificaria uma poesia, uma literatura, uma música, ou uma pintura brasileira, voltada com
simpatia para o negro, o índio ou o mestiço.
[…] Jorge de Lima não nos fala dos seus irmãos, descendentes de escravos, com resguardos profiláticos de poeta
arrogantemente branco, erudito, acadêmico, a explorar o pitoresco do assunto com olhos distantes de turista ou de
curioso. De modo nenhum. Seu verbo se faz carne: carne mestiça. Seu verbo de poeta se torna carnalmente mestiço
quando fala de “democracia”, de “comidas”, de “Nosso Senhor do Bonfim”, embora a metade aristocrática desse
nordestino total, de corpo colorido por jenipapo e marcado por catapora, não esqueça que a “bisavó dançou uma valsa
com D. Pedro II”, nem que “o avô teve banguê”.[29]
Por último, Freyre rompe certo consenso em torno do confronto entre a poesia negra do
Brasil e a dos Estados Unidos, discordando que esta, por ser feita pelos próprios negros,
apresente alguma superioridade ou vantagem (se é possível colocar a questão nesses termos)
em relação à primeira, feita sobretudo por brancos (numa atitude claramente paternalista,
embora não se reconheça como tal). A seu ver, a poesia afro-americana, justamente porque
feita por negros, revelaria um caráter segregacionista e ressentido, hostil em relação ao
branco, ao passo que a brasileira seria produto do fraternalismo e da democracia, de que é
exemplo a obra de, entre outros, Castro Alves, Ascenso Ferreira, do próprio Mário de
Andrade e, é claro, de Jorge de Lima. Nas palavras do prefaciador:
Não há felizmente no Brasil uma “poesia africana” como aquela, nos Estados Unidos, de que falam James Weldon
Johnson e outros críticos: poesia crispada quase sempre em atitude de defesa ou de agressão; poesia quase sempre em
dialeto meio cômico para os brancos, para os ouvidos dos brancos, mesmo quando mais amargos ou tristes os assuntos.
O que há no Brasil é uma zona de poesia mais colorida pela influência do africano: um africano já muito dissolvido em
brasileiro. Uma zona a que estão ligados, pela sua formação regional, alguns dos nossos escritores e poetas mais
rigorosamente brancos e aristocráticos: os pernambucanos Joaquim Nabuco e Manuel Bandeira, por exemplo. O que
mostra que não é o sangue que aguça sozinho nos poetas ou escritores a sensibilidade a assuntos com os quais eles
podem identificar-se só pelo poder de empatia, só por transfusão de cultura. Ao contrário: o sangue às vezes faz que
os mestiços se afastem dos assuntos africanos com excessos felinos de dissimulação e pudor. O caso de Machado de
Assis.[30]
Não é preciso ir muito longe para perceber o quanto Freyre segue na contramão de
interpretações mais consensuais, que mostram a supremacia da poesia norte-americana
justamente porque escrita por aqueles que falam de dentro, vivendo a fundo o drama da
exploração e da marginalização e fazendo convergir o racial e o social, de que é exemplo
sobretudo Hughes e os demais nomes do Harlem Renaissance, ao lado dos quais só se
aproximariam mesmo afro-hispânicos do porte de Guillén. Vimos exemplos desse
consenso, com os estudos de Gilda de Moraes Rocha e de Aida Cometa, dos quais
poderíamos ainda aproximar os comentários de Aderbal Jurema. Isso sem falar no modo
como Frazier fundamenta esse segregacionismo, invertendo-o positivamente numa “linha
de cor” que garantiu aos afro-americanos a “race conscious” que faltava ao afro-brasileiros.
Freyre enfatiza, ainda no prefácio, como a poesia afro-nordestina de Jorge “leva sem
nenhum rancor nem ranger de dentes o cristianismo para o campo específico das relações
fraternais dos brancos com os povos de cor”.[31] Reitera o quanto o “poder transfusivo” de
se identificar com “o gênio do lugar”, atribuído pelo mesmo James Weldon Johnson ao
descendente de africano, se verificou mais no Brasil que em qualquer outro lugar:
Aqui sangue africano e seiva americana cedo se confundiram na transfusão, a ponto de haver observadores argutos –
desde Bates e Wallace a Waldo Frank – a quem os descendentes de africanos dão a impressão de mais filhos da terra do
que os indígenas[…][32]
Parecendo ora separar cultura de raça, ora confundi-las, o prefaciador insiste no caráter
mestiço ou mulato da poesia de Jorge de Lima, embora essa concepção não caminhe em
direção à radicalidade assumida no contexto afro-cubano e na poesia afro-antilhana, com
todas as suas implicações histórico-políticas, como forma de afirmação identitária e
resistência contra a dominação ianque, conforme vimos também na primeira parte deste
ensaio.
Uma ênfase tamanha na mestizaje levaria, inclusive, Hughes, ao traduzir para o inglês os
poemas criollos de Nicolás Guillén, a operar cautelosamente, por meio de disjunções das
experimentações vanguardistas-surrealistas, o virtual apagamento da herança africana como
ingrediente ativo na miscigenação, de modo a induzir os leitores dos Estados Unidos a
desconectar o hibridismo cultural da mistura racial, num contexto afinal tão marcado por
verdadeira fobia com relação aos amálgamas raciais como o norte-americano.[33]
Passando, enfim, do prefácio de Freyre aos Poemas negros de Jorge de Lima, é
impressionante notar o quanto leitor e mentor intelectual encontram-se na nostalgia do
banguê e das relações cordiais por ele engendradas, em oposição à usina; no mito da
democracia racial; ou mesmo no “estilo franciscano” da lírica limiana. Além disso, é possível
reconhecer em muitos poemas um movimento solidário em direção ao negro – ressaltado,
aliás, pelo próprio prefaciador –, que, sem refutar de todo, tende todavia a relativizar o
famigerado compromisso de classe da ótica de Freyre (ótica da “casa-grande”, como se
costuma dizer) e dos que se orientaram por ela.
Vejamos alguns desses aspectos ressaltados pelo prefaciador, a começar pela tão polêmica
democracia racial.
Se, de acordo com Hermano Vianna, o mito da democracia racial imputado a Freyre é
expressão completamente ausente em Casa-grande & senzala, sendo uma atribuição mal-
intencionada resultante de uma “leitura apressada, tendenciosa ou burra”,[34] o fato é que, no
referido prefácio, ela figura com todas as letras. Figuração, aliás, das mais problemáticas,
tanto para o prefaciador quanto para o poeta – autor de um poema negro justamente
intitulado “Democracia”.
Entre parêntesis, vale lembrar que mais ou menos pela mesma época da publicação de
Poemas negros, o mito volta a aparecer em outros escritos freyrianos. Emília Viotti da Costa
observa que, na série de conferências proferidas nos Estados Unidos e publicadas em Nova
York em 1945, sob o título Brazil: an Interpretation (a tradução brasileira é de 1947), o
antropólogo pernambucano
[…] descreveu o idílico cenário da democracia racial brasileira. Embora reconhecesse que os brasileiros não foram
inteiramente isentos de preconceito racial, Freyre argumentava que a distância social, no Brasil, fora o resultado de
diferenças de classe, bem mais do que de preconceitos de cor ou raça. Como os negros brasileiros desfrutavam de
mobilidade social e oportunidades de expressão cultural, não desenvolveram uma consciência de serem negros da
mesma forma que seus congêneres norte-americanos. Freyre também apontou o fato de que, no Brasil, qualquer
pessoa que não fosse obviamente negra era considerada branca. Expressou a convicção de que os negros estavam
rapidamente desaparecendo no Brasil e incorporando-se ao grupo branco. E foi além disso. Censurou os que se
inquietavam com os possíveis efeitos negativos do amálgama étnico e reafirmou a confiança na capacidade social e
intelectual do mulato. Foi no processo de miscigenação que Freyre julgou terem os brasileiros descoberto o caminho
para escapar dos problemas raciais que atormentavam os norte-americanos.[35]
Viotti da Costa observa que o quadro de relações sociais concebido por Freyre era opinião
difundida não só entre a elite branca, mas entre muitos negros. De modo que, vinte anos
depois, os revisionistas foram recebidos com suspeita, ressentimento ou mesmo indignação,
inclusive “acusados de inventar um problema social que não existia no Brasil”,[36] quando
afirmavam que os negros, apesar de não “legalmente discriminados, foram ‘natural’ e
informalmente segregados”, permanecendo, assim, em posições subalternas, sem
possibilidade de ascensão social. Ao longo do ensaio, Viotti da Costa cuida ainda de
problematizar as hipóteses vigentes sobre a emergência do mito da democracia racial, para
sustentar que seu processo de formalização encontra-se no sistema de clientela e
patronagem (do mesmo modo como sua crítica tem a ver com a gradual derrocada de tal
sistema, com o desenvolvimento de um sistema competitivo).[37]
Estabelecendo a ponte entre os comentários de Emília Viotti da Costa e o prefácio de
Freyre, é importante notar que, para ele, a democracia tipicamente brasileira serviria de
inspiração ao anseio de democratização mais ampla que marcaria o final da Segunda Guerra,
como se vê na seguinte passagem:
Pois não nos faltam hoje romancistas e poetas novos que encarnam com esplendor tendência já tão brasileira e
socialmente significativa como nenhuma outra para o futuro do resto da América: para o futuro de todos os países na
fase atual de desejo de democratização inteira, e não apenas política, das relações entre os homens e entre os povos.[38]
Sobre esse contexto do segundo pós-guerra, Viotti da Costa registra que, com a vitória dos
aliados sobre o nazismo, o “racismo” foi “derrotado” nos campos de batalha. Em alguns
anos, segundo a tese de Thomas Skidmore por ela mencionada, os norte-americanos
[…] moveram-se em direção à integração, os brasileiros não puderam mais se referir à odiosa instituição da
segregação, ou aos horrores dos linchamentos nos Estados Unidos. […] Na suposição de que a experiência dos
brasileiros poderia oferecer ao resto do mundo uma lição ímpar de “harmonia” nas relações entre as raças, a Unesco
fomentou uma série de projetos de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil.[39]
O prefácio de Freyre parece ser tributário de seu esforço para promover internacionalmente
essa “lição ímpar” (assim como as referidas conferências proferidas nos Estados Unidos e
outros estudos da mesma época). Por conta da amizade intelectual que sempre o uniu a Jorge
de Lima, pode-se supor que os próprios Poemas negros vinham contribuir para essa
promoção, ilustrando a suposta “harmonia” racial brasileira como modelo para o resto do
mundo – logo desmentida pelos resultados de tais pesquisas patrocinadas pela Unesco.[40]
Ainda com relação ao prefácio de Poemas negros, importa observar que a referência
explícita ao mito da democracia racial tende a amenizar um pouco o peso de seu
comprometimento ideológico quando Freyre especifica a natureza dessa democracia, que
nada tem de ingenuamente igualitária, pois ele fala, de forma diferenciada, em “contato
democratizante dos brancos e degradante dos negros”… É bem verdade que nos versos do
justamente intitulado “Democracia”, em diálogo com Whitman (cuja obra é concebida pelo
poeta alagoano da mesma perspectiva de Freyre),[41] Jorge de Lima não chega a sinalizar
esse duplo movimento, na medida em que ressalta apenas o que resultou da mistura para o
branco (no caso, para o próprio sujeito lírico), ou seja, a dissolução do eu lírico para melhor
amar “em todas as línguas de branco, de mouro ou de pagão”. Apesar disso, pode-se dar
crédito a esse empenho amoroso e solidário, pois outros poemas do livro tratarão de
confirmá-lo ao flagrar a realidade do negro por uma ótica que se poderia dizer mais próxima
à da senzala. Isso, é claro, sem se confundir com ela – o que, mais do que ingênuo, seria
ideologicamente comprometedor –, pois Jorge de Lima tem consciência da realidade e da
distância social de sua condição. Como bem nota o prefaciador, “a metade aristocrática
desse nordestino total, de corpo colorido por jenipapo e marcado por catapora, não
[esquece] que ‘a bisavó dançou uma valsa com D. Pedro II’, nem que ‘o avô teve banguê’”.[42]
Por vezes, é fato, essa metade aristocrática parece avultar e comprometer a ótica por que
é flagrada a realidade do negro, tal como ocorre no poema justamente intitulado “Banguê”,
correspondente em verso ao romance homônimo de Lins do Rego. Em meio a um verdadeiro
ubi sunt, a evocação nostálgica dos banguezinhos da infância – feita, inclusive, pela ótica
infantil, visível no uso recorrente dos diminutivos –, temos uma visão paternalista,
condescendente e festiva do negro entregue a momentos de ócio e à bebida em meio à lida,
que encontra respaldo em Freyre e Lins do Rego ao caracterizar as relações cordiais de
senhores e cabras do eito nos engenhos, por oposição às usinas.
Todavia, por mais nostálgico e comprometido que seja, esse retrato do trabalho negro
no engenho também não deixa de ser um modo de resistência à ética protestante do
trabalho, na esteira da preguiça ingênita celebrada pelo Macunaíma de Mário de Andrade e
pelos demais modernistas do Sul – conforme sinalizou Roberto Schwarz, ao tratar da
“visão desideologizada do esforço” em Machado de Assis e no grupo de 1922. Ora, essa
ética protestante comparece nos versos de “Banguê”[43] associada à Usina Leão, “triste
como uma igreja sem sino”, como “um templo evangélico”. Assim como, nela, o cozinhador
Mister Cox “tira da cana o que a cana não pode dar / e […] não deixa nem bagaço / com um
tiquinho de caldo / para as abelhas chupar”; também ela extrai o prazer e a “alegria das
bagaceiras”, traduzidas nas “cantigas da boca da moenda” entoadas pelos cabras do eito, nas
sestas em meio à lida dos “bebedores de resto de alambique”, nas missas e feiras
domingueiras em torno à capela do velho banguê. Isso, certamente, pela disciplina austera
da ética protestante associada ao trabalho.[44]
Nessa oposição marcante ao protestantismo e à ética que ele impõe não só ao trabalho,
mas a toda a existência regida pela observância daquele princípio de constância que,
segundo Edmund Leites, resume a totalidade da visão de mundo protestante, é ainda
possível reconhecer a presença sorrateira de Freyre. Isso pensando não só na formação
protestante do antropólogo de Apipucos, com a qual ele viria se desencantar depois, o que
acabaria por levá-lo a conceber, segundo Freston, “uma teoria do Brasil baseada
precisamente no que poderá ter sido o centro de seu conflito com o protestantismo. Pois
nada mais distante da moral sexual protestante do que a prática sexual do português
desgarrado nos trópicos”.[45] É possível pensar ainda, e principalmente, na interpretação de
Ricardo Benzaquen de Araújo, para quem o protestantismo é uma presença em negativo que
atravessa todo o opus magnum de Freyre. Basta apenas, diz ele,
[…] que nos lembremos, por exemplo, da vigorosa afirmação da magia, do ócio e de todos os tipos de excesso,
particularmente os sexuais, para que se confirme que estamos realmente diante de uma civilização povoada pelo
pecado, o exato oposto, por conseguinte, daquele ideal de perfeição terrena, fundado no elogio do trabalho
sistemático, da ética, do isolamento e do autocontrole que a doutrina puritana costuma pregar.[46]
Por mais relevantes que pareçam os argumentos de Freyre, não se pode deixar de considerar
que certa concessão ao pitoresco foi reconhecida até mesmo por admiradores confessos de
Jorge de Lima como Alexandre Eulalio, talvez tendo em mente a perspectiva por vezes
exterior do negro ou, quem sabe, o gosto pelos grandes mosaicos obtidos à custa da
enumeração,[50] pois já se observou que ela se esgota com frequência no gosto exótico pela
enfiada de nomes bantos e bundos de comidas, lugares, mitos e feitiços. Seja como for, a dita
concessão ao pitoresco, nem sempre devidamente precisada pelos críticos, não chega a
comprometer o conjunto da coletânea, e se faz sentir sobretudo nos poemas mais antigos –
nos quais a visão distanciada, objetiva e por vezes brejeira do negro pelo branco que fala de
outro lugar social não acaba, entretanto, por abolir a notação sociologicamente precisa.
Já nos poemas posteriores que constituem, de fato, a parte nova da antologia de 1947,
podemos ver como a ação do tempo – a par daquela interiorização progressiva que, segundo
Waltensir Dutra,[51] marca, no geral, a trajetória poética de Jorge de Lima – favoreceu a
adoção de uma perspectiva mais aprofundada e de uma atitude solidária referida aqui. Para
melhor apreendê-las, vale a pena confrontar alguns poemas mais antigos com outros mais
recentes que tratam exatamente dos mesmos temas, como se Jorge de Lima buscasse retomá-
los para mais aprofundá-los.
Esse aprofundamento poderia, em dada medida, ser também considerado na reescrita de
um poema como “Xangô”,[52] saudado por Pereda Valdés na referida carta, que não deve ter
atentado para o que havia de comprometedor em tais versos. A versão final desse poema,
que consta do livro de 1947, foi vista como uma tentativa de apagar alguns traços de sujeira
e animalidade, demasiadamente fortes, na descrição da macumba, presentes na primeira
versão de Poemas (1927). Fica, no entanto, a dúvida levantada por Rodolfo Ilari: “[…] se a
intenção era apagar tais traços, por que fazer figurar as duas versões na obra completa,
quando poderia ter substituído uma pela outra?”.[53] Seja como for, o fato é que esses traços
de sujeira e animalidade aparecem ainda, de forma mais ou menos ambígua, em dois ou três
outros poemas, representando, sem dúvida, a dimensão comprometedora das figurações
mais antigas do negro em Jorge de Lima.posfácio
Mais interessante, entretanto, me parece flagrar o aprofundamento de visão e o gesto
solidário em poemas como “História” quando confrontado com o antológico “Essa negra
Fulô” do livro anterior, que dá a impressão de saltar diretamente das páginas de Casa-grande
& senzala. Apesar das imagens afins, especialmente no que toca à sedução do sinhô pela
negra e à vingança da sinhá enciumada, a perspectiva brejeira com que Lima enfocava Fulô é
aqui abandonada em favor da ótica solidária, irmanada ao sofrimento da ex-princesa
africana, adquirida por um “caco de espelho”, deflorada pelo capitão, possuída pelos
marinheiros e ferrada com uma âncora nas ancas, durante a travessia para o Brasil, onde
elevou em vão a voz em nagô para Oxalá, surdo a seus apelos. O que parece significativo em
poemas como “História” é o modo como o enfoque lírico de Jorge de Lima, sem dispensar a
notação direta e objetiva, tende a privilegiar os mecanismos compensatórios, acionados
imaginariamente pelo negro na tentativa de evadir-se vicariamente (ao menos) do horror de
sua condição, à qual não faltam, bem o sabemos, requintes de perversidade de que Casa-
grande & senzala é pródigo em exemplos, a despeito da “visão edulcorada da colonização”
em que insistem muitos de seus leitores. Tais mecanismos traduzem-se ora na religião, na
magia e nas mandingas, como ocorrem no próprio “História”, em “Xangô”, “Quando ele
vem”, entre outros; ora no fumo (maconha), como no mesmo “Xangô” e “Cachimbo do
sertão”. Podem, ainda, assumir formas mais elaboradas, inclusive artisticamente, de que é
exemplo a música, em sua riqueza e variedade de ritmos, como se vê em poemas como “Pra
donde que você me leva” e “Olá! Negro”. (Essa articulação da herança africana com a
música revela, talvez, o esforço de Jorge de se aproximar daquele traço marcante afim aos
weary blues de Hughes e os poemas-son de Guillén.)
Mas há ainda formas extremadas de evasão e alienação, como a loucura de “Maria
Diamba”, falando só diante da ventania que vem do Sudão:
Precursor de “Maria Diamba”, “Joaquina Maluca” já tateava também, nos anos 1920, as
causas e o significado da leseira da negra, embora de maneira ainda um tanto dubitativa e
comprometida pela já mencionada visão moral de sujeira e vício. Não deixava, entretanto,
de eximi-la de qualquer culpa:
Mas, quando nem mesmo a loucura é suficiente para aliviar os padecimentos da realidade
aviltante, resta a decisão trágica que corresponde à derradeira forma de evasão: a morte,
representada pelo afogamento de Celidônia, a “linda moleca ioruba” de “Ancila negra”, que
foi babá de Jorge na infância e com quem – como de praxe – parece ter despertado para o
sexo, conforme sugerem alguns dos versos. A curiosa ênfase na necessidade de “recalque”,
reiterada no poema e associada à lembrança da morte de Celidônia, talvez se justifique pelo
fato de ela ter-se tornado verdadeira “obsessão durante toda a vida [do poeta], em particular
no final, nas insônias trazidas pela doença”, segundo depoimento do amigo e confidente
José Fernando Carneiro.[56]
Isso, entretanto, não explica tudo. Tamanha ênfase parece atender à necessidade de
aplacar a consciência dolorosa de uma culpa de classe, própria do neto de senhor de
engenho, que se sente responsável pela morte da moleca, para quem essa era a única forma
de fuga e libertação de sua condição – e sabe-se do número considerável de suicídios entre os
negros mergulhados no banzo. Nesse sentido, as duas últimas estrofes do poema são mais
significativas:
Diante de poemas como esse, torna-se, mesmo, difícil falar da adoção de uma perspectiva
exterior e puramente pitoresca, obrigando-nos a dar alguma razão a Freyre. Mesmo que não
correspondam à maior parte da coletânea, eles acabam, com certeza, por impor aos
intérpretes mais consequentes certa cautela na acusação em bloco de gulodice de pitoresco.
Um derradeiro confronto poderia ser estabelecido entre o mais antigo “Cantigas” e o
posterior “Zefa lavadeira”, um dos três poemas em prosa do livro, que é, na verdade, um
trecho poético desentranhado do romance de Jorge de Lima, A mulher obscura (1939),
exemplo do constante reaproveitamento e ressignificação da própria obra que se estende até
o último livro do poeta alagoano (Invenção de Orfeu). Tanto um quanto outro versam sobre
um tema caro à lírica de Jorge de Lima, embora recorrente na nossa tradição: a imagem das
lavadeiras durante ou depois da lida.
Na verdade, o primeiro retrata mais as cantigas melancólicas entoadas pelas lavadeiras
pensativas durante o trabalho e que, pela sua beleza e leveza, têm o poder de lavar “as almas
dos pecadores”. Ou melhor, de lavar “as almas negras” que “pesam tanto” e “são tão sujas
como a roupa”. Já em “Zefa lavadeira”, vemos o poeta espreitando o banho da lavadeira,
após a faina (como o faria em outro poema em prosa do livro, na companhia de um amigo de
infância). O quadro é traçado com a delicadeza da mão de um mestre – maestria de poeta-
pintor –, num crescendo de erotismo que acompanha as rotas da mão de Zefa pelo corpo
moreno até chegar ao sexo, no qual, diz o fecho do poema, “a África parece dormir o sono
temeroso de Cam”:
Depois de lavar a roupa dos outros, Zefa lava a roupa que a cobre no momento. Depois, deixa-a corando sobre o
capim. Então Zefa lavadeira ensaboa o seu próprio corpo, vestido do manto de pele negra com que nasceu. Outras
Zefas, outras negras vêm lavar-se no rio. Eu estou ouvindo tudo, eu estou enxergando tudo. Eu estou relembrando a
minha infância. A água, levada nas cuias, começa o ensaboamento; desce em regatos de espuma pelo dorso, e some-se
entre as nádegas rijas. As negras aparam a espuma grossa, com as mãos em concha, esmagam-na contra os seios
pontudos, transportam-na, com agilidade de símios, para os sovacos, para os flancos; quando a pasta branca de sabão
se despenha pelas coxas, as mãos côncavas esperam a fugidia espuma nas pernas, para conduzi-la aos sexos em que
a África parece dormir o sono temeroso de Cam.[58]
O confronto entre ambos os poemas parece revelar um ganho para “Zefa lavadeira”, no
sentido do aprofundamento de visão e do abandono daquela imagem comprometedora de
sujeira, que ainda surge de forma ambígua em “Cantigas”, embora ressurja a comparação
infeliz com os símios. Não bastasse, desponta ainda um comprometimento de outra ordem,
que diz respeito à explicação mítico-cristã da escravidão.
Na evocação do mito bíblico de Cam,[59] Jorge de Lima foi antecedido, entre outros, por
Castro Alves – a quem, vale lembrar, o poeta alagoano dedicaria uma espécie de biografia em
versos, bem ao sabor do cancioneiro popular. A menção ao mito em “Vozes d’África” foi
objeto de uma análise arguta de Alfredo Bosi, que nela reconheceu um “arcaísmo de
perspectiva” e uma contradição de base no projeto libertário do nosso poeta dos escravos,
na medida em que, ao explicar o fenômeno total do cativeiro como produto de uma culpa
exemplarmente punida, acabava por justificá-la. Como lembra o crítico,
A referência à sina de Cam circulou reiteradamente entre os séculos XVI, XVII e XVIII, quando a teologia católica
ou protestante se viu confrontada com a generalização do trabalho forçado nas economias coloniais. O velho mito
serviu então ao novo pensamento mercantil, que o alegava para justificar o tráfico negreiro, e ao discurso
salvacionista, que via na escravidão um meio de catequizar populações antes entregues ao fetichismo ou ao domínio
do Islão. Mercadores e ideólogos religiosos do sistema conceberam o pecado de Cam e a sua punição como o evento
fundador de um sistema imutável.[60]
Por mais paradoxal que pareça, foi justamente com o mito da danação de Cam e seus
descendentes que o vate libertário de 1868 deu forma poética às suas “Vozes d’África”.
Vozes de uma África que, através da prosopopeia, alcança o estatuto de um ser individual,
ao qual se une a voz do poeta para, juntos, sofrerem e suplicarem, impotentes, a um deus
absconditus num céu deserto. “Aqui triunfa o absurdo de um castigo por uma culpa remota:
daí a tragicidade da situação de um continente inteiro à mercê de uma cólera onipotente” de
um “Deus terrível”, inamovível diante dos apelos de uma raça que, sem mesmo saber o
motivo de sua pena, vê-se irremediavelmente sujeita ao efeito do anátema que “se reproduz
de geração em geração, de tal modo que a sequência dos tempos […] em nada altera a
intensidade da maldição original”.[61] Assim, ao inscrever o destino dos africanos na esfera
do mito, o nosso poeta da abolição acabava, por mais contraditório que pareça, por reiterar
e justificar o irremediável da condição escrava.
O mito de Cam seria ainda retomado em outro momento excepcional da nossa tradição
poética oitocentista, também examinado por Bosi:[62] o poema em prosa “O emparedado”
com que Cruz e Souza dá fecho às suas Evocações de 1898. Mas agora a naturalização
mítico-cristã é posta em questão pelo desdobramento do eu lírico que fala efetivamente da
perspectiva trágica do negro. Na constante alternância das vozes, o eu lírico, que se
desdobra num outro, dialeticamente, repõe e nega a ideologia que parece nascer da própria
subjetividade, para problematizar não só a visão naturalizadora do mito, mas também das
teorias cientificistas em voga, que reiteram a inferioridade africana, conforme explica
Simone Rufinoni:
A culpa do sujeito, “nefando Crime”, é a de ser um artista que pertence a uma raça considerada bárbara. O parentesco
com Satã conduz ao pecado primordial: haver afrontado o poder, acreditando na força do sujeito e saber-se fadado ao
fracasso. A culpa imeditável aponta para o paroxismo que advém do mito bíblico dos filhos de Cam e a culpa
resultante do conhecimento do mal. […] Apesar do tom confessional o texto afasta-se do puro relato autobiográfico
devido ao diálogo que se estabelece entre o eu e o outro. O movimento que alterna a voz na primeira e na segunda
pessoa desvela um percurso reflexivo que permite reconhecer em si os traços da ideologia que o excluiu. O sujeito
lírico revela-se um duplo: ele é o poeta que padeceu os tormentos de sua cor e ele é aquele que observou o percurso
do poeta. O movimento de duplicação permite que se observe o outro em si: reconhece em si as marcas da ideologia
oficial e a partir daí cunha sua resposta contraideológica. E a resposta do eu dá-se por meio da introjeção dilacerante
dos valores de uma sociedade que o excluiu. O poeta encarna satanicamente o discurso cientificista da época, que
considerava o negro um ser inferior, fadado a permanecer na barbárie. O discurso cientificista é encarnado e
dialetizado em seguida […].[63]
É bem verdade que, mesmo depois dessa versão dilacerada de Cruz e Sousa, a explicação
mítico-bíblica da escravidão voltaria a fazer nova aparição. Assim, sete anos após a
“emancipação” escrava de 1888, Modesto Brocos, com a Redenção de Cã (1895), faz
literalmente figurar, no canto esquerdo da tela, uma velha negra com os braços erguidos para
o céu em agradecimento a Deus por uma graça tardiamente recebida, que, decerto, não deve
corresponder à lei Áurea. Muito provavelmente, a emancipação redentora vem associada às
teses de branqueamento então correntes, representado por toda a descendência mestiça da
ex-escrava (filha, genro e neto), que ocupa o centro e o lado direito da tela.
O que espanta, na verdade, é que, após ainda essa versão dilacerada de Cruz e Souza e,
em polo oposto, essa representação redentora, ideologicamente condenável, Jorge de Lima
viesse, quase cinco décadas mais tarde, a incorrer no risco do arcaísmo de perspectiva que já
era problemático em Castro Alves. Embora não haja, em “Zefa lavadeira”, a contradição de
base do poema do vate baiano, entre o anseio libertário e a naturalização mítica da
escravidão, esta tende, entretanto, a ser perpetuada: uma vez fecundado, o ventre de Zefa
fará despertar a antiga maldição que paira sobre sua raça, justificando o horror da condição a
que se encontra relegada. E como outras tantas Zefas vêm se juntar a ela, “vêm lavar-se no
rio”, reitera-se, por essa multiplicação, a extensão do anátema para toda a raça. Nesse
sentido, a perspectiva cristã de Jorge de Lima se, por um lado, possibilita a atitude fraterna,
franciscana em relação à dor do negro, tão louvada por Freyre, por outro ameaça fazê-lo
descambar para a aceitação conformista dessa mesma dor expiatória. E, com isso, ao
que parece, o poeta se afasta da lição do mestre de Apipucos que, de acordo com Benzaquen
de Araújo, furtou-se por completo à explicação mítico-cristã da escravidão.[64]
Lidos à luz da consolidação do cânone da poesia afro-antilhana e da recepção local da
poesia de Hughes e Guillén, bem como do debate sobre seu alcance fundamentalmente
social, creio que podemos compreender melhor a razão e o sentido da mudança operada na
poesia afro-nordestina de Jorge de Lima, bem como a contribuição relevante trazida pelos
Poemas negros, apesar das contradições assinaladas.[65]
1 Alguns poemas já haviam sido recolhidos em coletâneas anteriores: Poemas (1927), Novos poemas (1929) e Poemas
escolhidos (1932). Todas as menções feitas aos poemas de Jorge de Lima referem-se à edição das Poesias completas (Rio de
Janeiro / Brasília: José Aguilar / inl, 1974).
2 Alexandre Eulalio, Escritos. Campinas / São Paulo: Editora da Unicamp / Editora da Unesp, 1992, p. 481.
3 Nas décadas seguintes, a terminologia de Torres-Rioseco se modifica, com negro sendo substituído por variantes, como
negroide, negrista, afro-cubana, mulata, até culminar, nos anos 1970, no termo afro-hispânico para referir amplamente a
literatura escrita por ou sobre os afrodescendentes do mundo falante de espanhol. Cf. Edward Mullen, “The Emergence of
Afro-Hispanic Poetry: Some Notes on Canon Formation”. Hispanic Review, n. 4, v. 56, University of Pennsylvania
Press, outono 1988, p. 435.
4 Id., ibid., p. 435.
5 Vera M. Kutzinski fala em interconexão entre o New Negro Renaissance que “ocorreu mais ou menos ao mesmo tempo
que o movimento afro-antilhano, o indigenismo haitiano e fenômenos artísticos similares através das Américas hispânicas”,
vendo-os, assim, “partes móveis de um fenômeno mais amplo”. Cf. V. M. Kutzinski, The Worlds of Langston Hughes:
Modernism and Translation in the Americas. Ithaca / Londres: Cornell University Press, 2012.
6 E. Mullen, op. cit., pp. 442-43.
7 Todo este parágrafo é uma retomada do que vem exposto em Miguel Arnedo, “‘Afrocubanista’ Poetry and Afro-Cuban
Performance”. The Modern Language Review, n. 4, v. 96, out. 2001, pp. 1-4.
8 A Sociedad de Estudios Afrocubanos, fundada em 1936, é presidida por Fernando Ortiz e inclui entre seus membros os
afro-cubanistas Emilio Ballagas, Ramón Guirao, Nicolás Guillén e Marcelino Arozarena.
9 Retomo aqui, em síntese, os comentários feitos por Mullen, no ensaio citado, e de Viviana Gelado, “Primitivismo y
vanguardia: las antologías de ‘poesía negra’ hispanoamericana en las décadas del 30 y del 40”. Tinkuy, n. 13. Montreal:
Section d‘Études hispaniques Université de Montréal, jun. 2010. Disponível no seguinte endereço eletrônico:
<dialnet.unirioja.es/servlet/fichero_articulo?codigo=3304240&orden=0>.
10 Id., ibid., p. 91.
11 Id., ibid., p. 91.
12 Prefácio publicado na primeira edição de Poemas negros e reproduzido neste volume, pp. 9-16.
13 E. Mullen, op. cit., p. 445.
14 V. Gelado, op. cit., p. 95.
15 Id., ibid., pp. 96-97.
16 Emilio Ballagas, Mapa de la poesía negra americana. Buenos Aires: Pleamar, 1946, pp. 8-9.
17 Id., ibid., pp. 100-01.
18 Id., ibid., p. 101.
19 Id., ibid., pp. 101-02.
20 Carta reproduzida e traduzida por Gênese de Andrade em Teresa: revista de literatura brasileira, n. 3. São Paulo: dlcv-usp
(Área de Literatura Brasileira) / Editora 34, 2002, pp. 64-65.
21 A Revista Acadêmica não traz em geral o número de página e nem todos os números indicam, precisamente, o mês e o
ano de publicação. A nota bibliográfica será feita de forma abreviada, r.a., no corpo do texto, seguida do número do
exemplar e da indicação do mês e do ano quando houver. Consultamos todos os números da revista constantes do acervo
do ieb-usp.
22 V. M. Kutzinski, op. cit., pp. 94-98.vagner camilo
23 Vera Lins, “Nicolás Guillén: as Elegias antilhanas e a poesia em dilaceramento”. Revista Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea, Brasília, n. 29, v. 0, jan. 2011, p. 100. Disponível em: http://www.gelbc.com.br/
pdf_revista/2906.pdf>.
24 Neste volume, p. 12.
25 Carta publicada em Teresa, op. cit., p. 61
26 Tadeu Chiarelli, “Segall realista: algumas considerações sobre a pintura do artista”. Catálogo da exposição Segall realista.
São Paulo: Centro Cultural fiesp/ Galeria de Arte do Sesi, 29 jan. a 16 mar. 2008, p. 23.
27 Cf. José Maurício G. de Almeida, A tradição regionalista no romance brasileiro: 1857-1945. Rio de Janeiro: Topbooks,
1999; e Moema Selma D’Andrea, A tradição re(des)coberta: Gilberto Freyre e a literatura regionalista. Campinas: Editora da
Unicamp, 1992.
28 Neste volume, p. 9.
29 Neste volume, pp. 11 e 14-15.
30 Neste volume, pp. 15-16.
31 Neste volume, p. 10.
32 Neste volume, p. 13.
33 Vale notar que a categoria mulato foi retirada do censo dos Estados Unidos em 1910, de modo a se evitar, pelo menos
oficialmente, a verdadeira fobia política que as imagens de amálgama racial eram capazes de gerar ainda nos anos 1940. A
introdução de Hughes a Cuba libre de Guillén tenta justamente, como demonstrou Kutzinski, apaziguar essas ansiedades e
fobias sociais, tanto entre leitores euro-americanos quanto afro-americanos, separando de modo cuidadoso a mulattoness
literária de Guillén, com seu “ritmo acentuado de África”, de sua suposta “ascendência mestiça”, que é menos uma evasão
retórica do que o seu “imiscuir-se na política”. Nota ainda Kutzinski: “Ao contrário do dialeto negro em suas manifestações
oral e escrita, a prática linguística do que Guillén chama de criollo e suas representações literárias são […] um
reconhecimento da mestiçagem e das incertezas sociais e linguísticas que ela produz, como uma realidade histórica
incontornável no cerne da cultura cubana. Num ambiente cultural e político como o norte-americano do pós-guerra, ainda
imerso em binarismos raciais e ansiedades sobre casamentos interraciais – isto ainda bem antes de a última lei de
antimiscigenação ser revogada na Virgínia –, a própria ideia de conceder, e ainda de celebrar, o impacto da mistura racial na
cultura nacional teria sido um anátema para as sensibilidades sociais vigentes em ambos os lados da fronteira da cor. Incluir
em Cuba libre proeminentemente traduções em dialeto negro americano foi um compromisso tanto de atenuar angústias
internas sobre a política racial desagradável, quanto foi planejado para dissipar o medo de ameaças externas”. Vera M.
Kutzinski, “Fearful Asymmetries: Langston Hughes, Nicolás Guillén, and Cuba Libre”. Diacritics, n. 3-4, v.
34, The Johns Hopkins University Press, outono-inverno 2004, pp. 112-42.34 Hermano Vianna, “Equilíbrio de
antagonismos”. Folha de S. Paulo, Mais!, 12/03/2000, p. 21.
35 Emília Viotti da Costa, Da Monarquia à República (Momentos Decisivos). São Paulo: Editora Unesp, 1999, pp. 365-66.
36 Id., ibid., p. 367.vagner camilo
37 Id., ibid., pp. 378 e 382.
38 Gilberto Freyre, neste volume, pp. 10-11.
39 E. Viotti da Costa, op. cit., p. 371.
40 Id., ibid., p. 372. O primeiro dos estudos que resultaram dessa pesquisa foi Race and Class in Rural Brazil, editado por
Charles Wagley, com fotografias de Pierre Verger e publicado em 1952. No prefácio à segunda edição norte-americana do
livro (pela Unesco International Documents Service, Columbia University Press, 1963), vêm arrolados os demais títulos
que se seguiram a esse.
41 Sobre a leitura que Freyre faz da obra do “camarada Whitman”, em conferência datada da mesma época de Poemas
negros, diz Michel Riaudel: “Em um prefácio tão modesto quanto o título de sua coletânea […] (Talvez poesia, Rio de
Janeiro, 1962), [Freyre] reivindica o mérito de ter iniciado diversos amigos à poesia norte-americana, incluindo o próprio
Manuel Bandeira. E de precisar, a respeito de seus próprios versos, ‘evidentemente maus’, que eles exprimissem ‘seus
sonhos antes sociológicos à la Whitman ou à la Vachel Lindsay do que puramente líricos, com relação ao Brasil do seu
tempo de jovem’. Sua conferência de 1947, verdadeiro hino ao ‘mais cordial dos americanos de todas as Américas e de
todos os tempos: [o] camarada Whitman’, lança luz sobre o que pode ter prendido sua atenção em Leaves of Grass. Fora de
sintonia com os modernistas de São Paulo, o pernambucano Gilberto Freyre opõe à concepção igualitarista dos paulistas
no que diz respeito à nação sua leitura positiva da história colonial e uma ambição reconciliadora quase messiânica em que o
povo americano (e em particular o brasileiro) é então o portador do futuro do mundo: ‘A América já não é só paisagem […
ela] é cada dia mais um centro de humanidade criadora e, sob alguns aspectos, o centro da humanidade criadora’. Ora
Whitman encarna, justamente, a seus olhos ‘o americano saído da classe média que nem se revoltou contra a classe média
nem se limitou como poeta a ser de uma classe ou de uma raça ou mesmo de um sexo’. Essa voz pioneira, de um socialismo
mais ‘ético’ do que ‘científico’, escreve Gilberto Freyre, está de acordo com a aventura mestiça lusotropical, das mais
oportunas, visto que ‘tudo indica que nossa época deve ser uma época de síntese ou de combinação de valores diversos que
aos olhos dos homens do século passado pareceram irreconciliáveis. Socialismo com personalismo. Cristianismo com
marxismo. Intelectualismo com intuitivismo’. Whitman é habitado por um ‘sentido personalista e fraternalista da vida e da
comunidade’ e torna-se sob a pena de Gilberto Freyre uma espécie de franciscano estendendo seu ‘fraternalismo
democrático […] além dos homens: à água, ao fogo, aos animais, às árvores’ e se revoltando ‘poeticamente contra os
excessos hebraica ou feudalmente paternalistas dentro da Igreja”. Michel Riaudel, “Walt Whitman et le Brésil”. Europe, n.
990, out. 2011 (tradução livre). Não é preciso muito esforço para perceber, a partir dessa síntese precisa de Riaudel, o
quanto os Poemas negros de Jorge de Lima, e em particular “Democracia”, desdobram poeticamente essa leitura freyriana de
Whitman.
42 Neste volume, p. 15.
43 Neste volume, pp. 30-33.
44 Cf. Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira / Thomson Learning, 2001.
45 Apud Ricardo Benzaquen de Araújo, Guerra e Paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1994, p. 100.
46 Id., ibid., p. 101.
47 Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 503.
48 E eis outro traço afim à ótica de Freyre, que inclusive reconheceu nesse fraternalismo franciscano, uma forma de
resistência ao autoritarismo patriarcal (cf. R. B. de Araújo, op. cit.). Ele comparece, entre outros momentos de sua obra, no
ensaio sobre Whitman, uma das referências para a poesia de Jorge – que chega a evocá-lo explicitamente como o
interlocutor ideal de “Democracia”. Esse interesse partilhado pelo grupo em torno de Gilberto Freyre far-se-ia ainda
sentir, de forma literariamente mais produtiva, no estilo humilde (sermo humilis) da lírica bandeiriana (cf. Davi Arrigucci
Jr., Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990). No caso de Jorge, o
franco interesse por S. Francisco comparecerá em mais de um poema e em uma biografia para crianças (Vida de S. Francisco
de Assis).
49 Neste volume, p.11.
50 O uso e o sentido das enumerações na poesia de Jorge de Lima foram examinados em perspectivas diversas por Ledo
Ivo, “Rol de insulíndias”, in Poesia observada. São Paulo: Duas Cidades, 1978; e Roger Bastide, “Doçura do leite das
negras”. Letras e Artes, São Paulo, 22/02/1948.
51 Cf. introdução à obra completa de Jorge de Lima (op. cit.).
52 Neste volume, pp. 84-87.
53 Rodolfo Ilari,“Os Poemas negros de JL”. Nossa América, São Paulo, nov.-dez. 1991, pp. 9-13.
54 Neste volume, p. 108.
55 Neste volume, p. 107.
56 Apud R. Ilari, op. cit.
57 Neste volume, p. 53.
58 Neste volume, p. 44.
59 Como se deve saber, trata-se de um dos filhos de Noé, que, ao ver a nudez do pai embriagado e denunciá-la aos irmãos,
foi reduzido à condição de escravo destes por maldição paterna. À descendência camita, correspondente ao povo africano,
caberia expiar a culpa de seu antepassado, reduzida à condição escrava.
60 Alfredo Bosi, Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 258.
61 Id., ibid., pp. 258-59.
62 Id., ibid., pp. 163-85.
63 Simone Rossinetti Rufinoni, “Visionarismo satânico no poema em prosa de Cruz e Sousa: trabalho poético e
marginalidade”. Teresa: revista de literatura brasileira, n. 1. São Paulo: dlcv-usp (Área de Literatura Brasileira) / Editora 34,
2000, p. 175.
[Publicados em duas partes na revista Estudos Avançados, 26 (76), 2012 e 27 (77), 2013, respectivamente pp. 255-72 e
pp. 299-318. Revistos e refundidos para esta edição.]
64 R. B. de. Araújo, op. cit., pp. 54-57.
65 Vale lembrar que quatro anos depois da publicação dos Poemas negros, Drummond, que saudaria Jorge de Lima em
versos de Fazendeiro do ar, embora jamais concebesse uma poesia centrada no assunto das relações inter-raciais, viria a se
ocupar do tema (que despontava em “Iniciação amorosa”, de Alguma poesia) no excepcional “Canto negro” de Claro enigma
(1951), de forma dilacerada pela dor, amargura e rancor que permeiam tais relações. Valeria o confronto com os Poemas
negros de Jorge de Lima, que registro aqui apenas como proposta de análise futura.
INDICAÇÕES DE LEITURA
BASTIDE, Roger. “A incorporação da poesia africana à poesia brasileira”, in Poetas do Brasil. São Paulo: Edusp/ Duas
Cidades, 1997, pp. 17-55.
CAMILO, Vagner. “Notas sobre os Poemas negros e o diálogo poético de Jorge de Lima e Gilberto Freyre”, in Ethel
Volfzon Kosminsky, Claude Lépine & Fernanda Arêas Peixoto (orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru: Edusc,
2003, pp. 347-59.
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. O nordeste e o negro na poesia de Jorge de
Lima. Salvador: Fundação das Artes, 1990.
ILARI, Rodolfo. “Os Poemas negros de Jorge de Lima”. Nossa América, São Paulo, nov.-dez. 1991, pp. 8-13.
LEITE, Sebastião Uchôa. “Presença negra na poesia brasileira moderna”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, Rio de Janeiro, n. 25, 1997, pp. 112-57.
SCHWARTZ, Jorge. “Lasar Segall: um ponto de confluência de um itinerário afro-latino-americano nos anos 1920”, in
Fervor das vanguardas – arte e literatura na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, pp. 69-95.
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