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DIREITO E COMPAIXÃO

Discursos de (des)legitimação do poder punitivo estatal

Tiago Joffily
2

Se acredita nessas histórias, você é um tolo. Se não acredita, é um perverso.

Rabi de Tanzer
3

Agradecimentos
4

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 06

CAPÍTULO 1 – UMA NECESSÁRIA DELIMITAÇÃO DO TEMA 09

1.1 O que se entende por legitimação 09

1.2 Poder punitivo ou direito penal 16

1.3 Âmbito da investigação 18

CAPÍTULO 2 – OS FINS DO DIREITO PENAL 21

2.1 Origens do poder punitivo 21

2.2 O Iluminismo e a descoberta do homem 23


2.2.1 As mudanças de paradigma na transição do Estado absoluto
ao Estado liberal 23
2.2.2 A exigência de justificação racional para o exercício
do poder punitivo estatal 25
2.2.3 O “direito penal clássico” e as doutrinas fundadas na pessoa humana 27
2.2.4 A pena como prevenção negativa e o bem jurídico
como direito individual 29
2.2.5 Doutrina da retribuição moral absoluta de Kant 32

2.3 A estabilização do Estado moderno e o distanciamento


da pessoa humana 36
2.3.1 O direito penal moralista e a pena como prevenção
especial positiva 37
2.3.2 A pena como retribuição puramente jurídica e o Estado
como titular de bens jurídicos 43

2.4 A crítica do pensamento hegemônico burguês 46

2.5 O positivismo lógico-normativo e a consolidação do paradigma


dogmático de ciência penal 49

2.6 O pós-Modernismo e a ética dos direitos fundamentais 53


2.6.1 A crise dos paradigmas da ciência moderna 53
2.6.2 O homem como razão última do Estado substancial de direito 57

CAPÍTULO 3 – ESTRATÉGIAS DE (DES)LEGITIMAÇÃO


DO PODER PUNITIVO 66

3.1 (I)legitimidade quanto aos fins 67


5

3.1.1 Doutrinas absolutas da pena 68


3.1.1.1 Doutrina da retribuição puramente jurídica 68
3.1.1.2 O funcionalismo sistêmico 69
3.1.1.3 Doutrina da retribuição puramente moral 76

3.1.2 O direito penal voltado para as conseqüências e as doutrinas


teleológicas legitimadoras 79

3.1.3 O direito penal do mais fraco 90

3.1.4 Sistemática teleológica de um direito penal limitador 92

3.2 (I)legitimidade quanto aos meios 95

3.2.1 Aportes da criminologia da reação social 96


3.2.1.1 Funções manifestas da pena 106
3.2.1.2 Funções latentes da pena 112

3.2.2 Doutrinas negativas da pena 115


3.2.2.1 O abolicionismo penal 117
3.2.2.2 Doutrina materialista/ dialética da pena 119
3.2.2.3 Estratégia limitadora do poder punitivo 120

CAPÍTULO 4 – UMA OUTRA FUNDAMENTAÇÃO POSSÍVEL


PARA O DIREITO PENAL LIMITADOR 123

4.1 Por uma ética da solidariedade 123

4.2 O modelo restaurativo de justiça criminal 125

4.3 A Constituição de 1988, os Juizados Especiais Criminais e


a justiça restaurativa no Brasil 133

CONCLUSÃO 141

REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS 145


6

INTRODUÇÃO

O texto que ora se apresenta ao público corresponde, na sua maior parte, à


dissertação de mestrado que defendemos no ano de 2007 na Faculdade de Direito da
UERJ, perante banca examinadora composta pelos eminentes professores Juarez
Tavares (orientador), Heitor Costa Júnior e Juarez Cirino dos Santos.
O texto original recebeu novo título e sofreu algumas pequenas alterações, de
modo a incorporar ou melhor refutar algumas das críticas apresentadas pelos
examinadores. Além disso, foi acrescentado, ao final do trabalho, um último subcapítulo
versando sobre os Juizados Especiais Criminais e o modelo restaurativo de justiça
criminal, que na dissertação original recebeu apenas menção como artigo autônomo,
pendente de publicação.
A proposta da pesquisa desenvolvida era de sistematizar e analisar os vários
discursos de legitimação e deslegitimação do poder punitivo, tomando por base as
doutrinas da pena e do bem jurídico-penal.
A definição do tema escolhido para a estréia na vida acadêmica não foi produto
de uma escolha que se possa dizer livre. A indagação sobre os fundamentos de
legitimidade do poder punitivo estatal sempre nos pareceu um pressuposto lógico para
qualquer reflexão mais ou menos séria em matéria penal, já que a abordagem de
qualquer assunto jurídico nessa área específica exige do investigador um mínimo
conhecimento e um claro posicionamento sobre os fins a que se destina esse grave
instrumento de intervenção pública na esfera individual.
Parece verdadeiramente temerário que qualquer pessoa, antes mesmo de saber
exatamente para onde está indo, passe a decidir se irá a pé, de carro ou de avião. Da
mesma forma, transferida essa perplexidade para o âmbito do direito penal, é
igualmente incrível que alguém, antes mesmo de saber para que serve o poder punitivo,
passe a discutir sobre as formas mais adequadas e eficientes de seu exercício,
debruçando-se sobre problemas puramente dogmáticos como se eles nenhuma relação
tivessem como o mundo das coisas.
Infelizmente, nossa tradição positivista nos acostumou a manter distância das
questões filosóficas, identificando nesta seara um terreno pantanoso, de onde nenhum
conhecimento concreto pode ser extraído. Não obstante, mais perigoso do que enfrentar
temas sobre os quais nós juristas não estamos acostumados a tratar é a postura autista de
7

permanecer atado ao mundo ilusório das leis positivadas, sem que nos preocupemos
com a ilegitimidade ética de determinados comandos normativos, nem com as
conseqüências funestas que sua aplicação prática pode ensejar.
Em que pesem os graves riscos que a empreitada apresenta para alguém
acostumado a lidar apenas com as técnicas de interpretação da lei, assumimos, desde o
primeiro capítulo, o compromisso de só aceitar como fundamento de legitimação do
Estado (e de suas várias formas de manifestação) critérios de avaliação extra ou
metajurídicos, sejam eles exclusivamente valorativos, sejam também de ordem fática,
de maneira que, ao longo da pesquisa, muito mais se recorreu aos conhecimentos
advindos da filosofia e das ciências sociais do que propriamente do direito, ao menos da
forma como este é tradicionalmente concebido pela academia brasileira.
Ainda no capítulo inaugural, tratamos de outros dois pressupostos
metodológicos da pesquisa: primeiro, distinguindo direito penal de poder punitivo, o
que nos pareceu fundamental para evitar antecipações conclusivas indesejáveis; depois,
identificando nos institutos jurídicos da pena e do bem jurídico os pontos de contato do
direito com os fundamentos externos de legitimação do poder estatal, de forma que é
sobre eles que recaiu preferencialmente nosso foco de atenção.
A abordagem dos vários discursos que trataram do problema da legitimação do
poder punitivo — assunto sobre o qual discorremos ao longo de todo o segundo capítulo
— foi feita, na medida do possível, de acordo com o desenrolar histórico dos fatos, pois
nos parece que a identificação do contexto político, econômico e social em que foram
cunhadas cada uma das doutrinas da pena e as respectivas teorias do bem jurídico é de
suma importância para entender os objetivos que elas perseguem e, com isso, chegar-se
aos fundamentos éticos que lhes dão sustentação.
Partindo do pressuposto de que a dignidade da pessoa humana é — como
acreditamos ter demonstrado ao longo da obra — o fundamento axiológico de todos os
Estados de direito contemporâneos, dividimos o terceiro capítulo em duas partes. Na
primeira, analisamos a compatibilidade, ou não, das doutrinas da pena (e do bem
jurídico) com o fim último de concretização dos direitos fundamentais, de maneira a
determinar — já desde de um ponto de vista exclusivamente valorativo — quais delas
podem ser reputadas legítimas e quais não podem ser acolhidas sem que se coloque em
sério risco o princípio maior da dignidade da pessoa humana. Na segunda, buscamos o
auxílio da criminologia para verificar se, na prática, o poder punitivo estatal cumpre
efetivamente as funções protetivas que lhe são atribuídas pelas doutrinas relativas da
8

pena, ou se, ao contrário, os custos de seu exercício são superiores aos benefícios
alcançados.
Como contraponto ao senso comum, que leva a acreditar que o poder punitivo é
instrumento imprescindível de qualquer Estado, seja ele democrático ou totalitário,
abordamos também as doutrinas que defendem a deslegitimação daquela forma de
intervenção pública, apresentando seus principais aspectos distintivos e explicitando seu
objetivo abolicionista comum.
Ao final do trabalho, no quarto e último capítulo, já tomando partido em favor
dessas correntes deslegitimadoras do poder punitivo estatal, apresentamos uma outra
proposta sobre o tema, esperando servir de contribuição para o debate sobre questão tão
fundamental quanto intrincada da filosofia do direito penal.
9

CAPÍTULO 1 – UMA NECESSÁRIA DELIMITAÇÃO DO TEMA

Tendo em vistas as muitas vertentes jusfilosóficas que dão amparo aos diversos
discursos de legitimação ou deslegitimação do poder punitivo estatal, é preciso, antes de
passarmos propriamente ao estudo do tema proposto, estabalecer alguns pressupostos
teóricos, de modo a evidenciar a metodologia utilizada na pesquisa e estabalecer alguns
conceitos básicos.

1.1 O que se entende por legitimação

De início, é preciso esclarecer que ao tratarmos da legitimação do poder punitivo


estamos nos referindo, prioritariamente, ao problema da justificação ou legitimação
externa dessa forma de manifestação estatal, partindo, num primeiro momento, da
metodologia utilizada por Luigi Ferrajoli, em sua obra maior (“Direito e Razão: teoria
do garantismo penal”)1.
De acordo com a lição do jusfilósofo italiano, é possível tratar a pergunta sobre o
“por que punir” sob dois aspectos: um assertivo (“por que existe a pena ou por que se
pune?”) e outro prescritivo (“por que se deve punir?”). No primeiro sentido, o problema
do “por que” da pena é um problema fático, que admite respostas de caráter empírico
verificáveis e falsificáveis, ou seja, suscetíveis de serem consideradas verdadeiras ou
falsas. No segundo sentido, o problema apresenta cunho filosófico, admitindo apenas
respostas de caráter ético-político formuladas através de proposições normativas, e,
enquanto tais, nem verdadeiras nem falsas, mas apenas justas ou injustas2.

1
A idéia de que o direito não pode se legitimar a partir de si mesmo, exigindo sempre fundamentos
externos ao ordenamento jurídico, é dominante no pensamento filosófico contemporâneo, conforme se
tentará demonstrar ao longo do trabalho. Nesse mesmo sentido: “A legitimação do Estado e do
ordenamento jurídico é o processo de julgamento de suas qualidades e de sua validade ética”, de modo
que “exige sempre a procura de uma razão existente fora do sistema jurídico, o qual não se pode legitimar
a si próprio” (TORRES, Ricardo Lobo. A legitimação dos Direitos Humanos e os Princípios da
Ponderação e da Razoabilidade. In Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.
398-400).
2
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.
260.
10

No aspecto assertivo, é possível dividir ainda as investigações sobre os


fundamentos do direito penal (ou do poder punitivo) entre: i) problemas de ordem
histórica e sociológica, relacionados à verificação fática sobre “por que existe o
fenômeno da pena e quais as suas conseqüências”; e ii) problemas de ordem jurídica,
relacionados à verificação sobre “se e por que existe o dever jurídico da pena” ,
considerado apenas o direito positivo.
Para evitar confusões, Ferrajoli propõe o uso de termos diversos para cada uma
das acepções possíveis em torno do estudo da legitimidade do poder punitivo,
distinguindo, primeiro, entre “legitimação” e “explicação”, e depois, entre “explicação
de uso histórico ou sociológico” e “explicação de uso jurídico”.

“Será útil, para evitar confusões, utilizar três palavras diversas para designar
estes três significados do termo “por que”, correspondentes aos três pontos de
vista em torno ao direito (...), quais sejam: a palavra função, para indicar-lhe
os usos descritivos de tipo histórico ou sociológico; a palavra motivação, para
indicar-lhe os usos descritivos de tipo jurídico e, por derradeiro, a palavra
finalidade, para indicar-lhe os usos normativos de tipo axiológico.
Correlatamente, empregarei duas palavras diversas para diverso estatuto
epistemológico das respostas admitidas pelas diversas ordens de questões.
Direi que são teorias ou explicações, sejam elas jurídicas ou sociológicas, as
respostas às questões sobre a motivação jurídica das penas e sobre as funções
por estas efetivamente desenvolvidas, ao passo que serão doutrinas
axiológicas ou de justificação as respostas às questões ético-filosóficas sobre a
finalidade (ou finalidades) que o direito penal e as penas devem ou deveriam
perseguir”3.

Traçada essa premissa, e respeitando-se a Lei de Hume4, somente “critérios de


avaliação moral, políticos ou utilitários de tipo extra ou metajurídico”, ou seja,
“princípios normativos externos ao direito positivo”, podem justificar ou legitimar o
3
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.
260. Os mesmos critérios são válidos para os estudos relativos ao bem jurídico, conforme esclarecerá
Ferrajoli mais adiante em sua obra (p. 376 e seguintes).
4
“Por ‘Lei de Hume’ entende-se a tese segundo a qual não podem derivar logicamente conclusões
prescritivas ou morais de premissas descritivas ou fáticas, nem inversamente” (FERRAJOLI, Luigi.
Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr,
Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 193).
11

direito penal e suas diversas formas de expressão. “Critérios de avaliação jurídicos ou,
mais especificamente, intrajurídicos”, por sua vez, só podem levar a um juízo de
validade do direito positivo, e nunca a uma conclusão sobre o caráter justo ou injusto de
determinada norma positivada5. Dito de outra forma: assim como uma norma jurídica
não pode ser considerada válida porque de acordo com um juízo moral prevalente, ela
também não pode ser tida por justificada somente por estar em conformidade com o
restante do ordenamento jurídico.
Há que se alertar, contudo, que essa separação rigorosa entre direito e moral,
oriunda da escola analítica italiana, da qual Ferrajoli é o maior herdeiro, apresenta-se
atualmente um tanto quanto enfraquecida em razão dos movimentos constitucionalistas
do pós-Segunda Guerra Mundial, que introduziram diretamente nos textos das
Constituições contemporâneas regras e princípios impregnados de valores éticos ou
morais a serem considerados, tanto na produção legislativa, quanto na interpretação do
ordenamento jurídico em vigor6.
Esse assunto será objeto de maior atenção mais à frente (vide item 2.6.2, infra),
no entanto, tal referência é importante para esclarecer que num Estado constitucional
(ou substancial) de direito as normas jurídicas, para serem consideradas legítimas, têm
que estar, a um só tempo, em conformidade com os valores ético-morais da pessoa
humana e com os princípios e regras constitucionais que as positivou.

5
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.
260.
6
“Hoy (…) la actitud de los iuspositivistas parece haber cambiado; por poner un solo ejemplo, el mayor
heredero contemporáneo de la escuela analítica italiana, Luigi Ferrajoli, no concibe tanto la validez de las
normas (infraconstitucionales) como pertenencia formal al ordenamiento, sino como la conformidad
material con la Constitución. Incluso iuspositivistas como Hart han acabado por aceptar al menos parte de
las críticas de Dworkin, adhiriéndose a lo que ahora se conoce corrientemente como iuspositivismo débil
o inclusivo (soft o inclusive positivism): posición que ha encontrado un éxito incomparablemente superior
a la posición contraria, el hard o exclusive positivism defendido por Joseph Raz. El positivismo inclusivo
tiene asumida la tesis que siempre ha distinguido al iuspositivismo del iusnaturalismo: la negación de una
conexión (identificativa) necesaria entre Derecho y moral, considerados conceptualmente distintos entre
sí. El iuspositivismo inclusivo, por otra parte, debilita esta tesis: la moral, a pesar de ser diferente o
distinguible frente al Derecho positivo, podría ser contingentemente incluida; el Derecho positivo bien
podría remitir a valores morales, como muestra de forma paradigmática la Constitución de los Estados
Unidos. Ahora bien, el neoconstitucionalismo se distingue precisamente del iuspositivismo inclusivo en
cuanto hace suya la tesis iusnaturalista de la conexión (identificativa) necesaria entre Derecho y moral;
pero se diferencia del iusnaturalismo tradicional, y se acerca al iuspositivismo inclusivo, en cuanto sitúa
tal conexión en el nivel de los principios fundamentales o constitucionales, que desde siempre es el
campo de reflexión del constitucionalismo.” (BARBERIS, Mauro. Neoconstitucionalismo, democracia e
imperialismo moral. In Carbonell, Miguel (org). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta,
2005. p. 263-264).
12

Sem prejuízo, além de estar amparado em critérios de ordem axiológica, internos


e/ou externos, para que o direito (ou o poder estatal) seja considerado legítimo é preciso
um mínimo de amparo fático nas suas proposições.
De maneira geral, questões relacionadas ao direito (ou ao poder) como ele é
(sentido assertivo) em nada podem interferir na aferição da legitimidade, ou não, da
doutrina de justificação utilizada para dizer como ele deve ser (sentido prescritivo).
Ainda adotando a classificação de Luigi Ferrajoli, “doutrinas de justificação” são
“discursos normativos sobre a justificação, vale dizer, sobre os objetivos justificantes” 7.
Se estes objetivos se realizam, ou não, na prática, isto já é assunto estranho à doutrina
de justificação em si, que se esgota na validade ético-política dos objetivos por ela
eleitos. A verificação empírica da satisfação desses objetivos justificantes é, ao
contrário, um problema de “justificação” propriamente dita, entendida esta como sendo
“os discursos assertivos acerca da correspondência (ou não correspondência) entre as
finalidades normativamente assumidas e as funções assertivamente explicadas e
reconhecidas”8.

“Deste fato deriva que a argumentação de um determinado objetivo como


justificante do direito penal, se é válido para sufragar uma doutrina normativa
de justificação do direito penal, não comporta, de outra parte, que o objetivo
conferido seja concretamente satisfeito e o direito penal justificado. E ainda,
mas inversamente, a afirmação de que tal objetivo não é satisfeito constitui
uma crítica que se dirige ao direito penal e não à doutrina normativa de
justificação, às práticas punitivas – legislativa e judiciárias -, enquanto
desatendem às finalidades que as justificam, e não aos seus modelos
justificativos. Se as normas nada nos dizem sobre aquilo que de fato acontece,
os fatos também nada nos dizem sobre os valores das normas”9.

7
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.
262.
8
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.
262.
9
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.
262.
13

O próprio autor italiano, no entanto, reconhece que há ao menos uma situação


em que a verificação (assertiva) da justificação dos objetivos selecionados a partir de
critérios ético-políticos (prescritivos) será determinante para a própria legitimidade da
doutrina de justificação. Isso se daria, segundo Ferrajoli, “quando o fato indicado como
justificante é irrealizável empiricamente”10, do que seriam exemplos as “doutrinas que
conferem à pena a finalidade retributiva de reparar o delito passado ou o objetivo
preventivo de impedir qualquer delito futuro, ou seja, objetivos manifestamente
inatingíveis”11. É que, nestes casos, não se estaria diante de doutrinas propriamente
ditas, mas sim de “ideologias viciadas pela falácia normativista, e, considerando que a
condição de sentido de qualquer norma é a possibilidade alética de que esta seja
observada (além de violada), se esclarecemos que a finalidade prescrita não pode ser
materialmente realizada e ainda assim assumimos a sua possível realização como
critério normativo de justificação, isto significa que a tese da possível realização,
contraditória com aquela da impossibilidade de realização, derivou da norma, violando
a Lei de Hume”12.
De nossa parte, entendemos que a interferência da realidade empírica sobre as
doutrinas (prescritivas) de justificação da pena não deve se limitar apenas a estas
situações extremas13. Com efeito, seguindo a lição de Winfried Hassemer, partimos do
pressuposto de que, toda vez que uma doutrina de justificação da pena estiver amparada
em fins utilitários, transferindo para o campo fático a responsabilidade sobre o caráter
justo dos valores em que funda o exercício do poder punitivo, então a legitimação dessa
atividade estatal dependerá também, necessariamente, da demonstração empírica da

10
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.
263.
11
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.
263.
12
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.
263.
13
Da mesma opinião é Elena Larrauri: “Entiendo como un avance de la teoría de Ferrajoli que no declare
la pena justificada hasta que no se pruebe empíricamente la correspondencia entre el fin que debe servir y
la función que efectivamente cumple, superando con ello la creencia de que basta la alegación de la
prevención de delitos para creer que la pena está justificada (falacia normativista)” (LARRAURI, Elena.
Criminología critica: abolicionismo y garantismo. Disponível na Internet:http://www.poder-
judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm. Acesso em 21 de março de 2007).
14

possibilidade de que aquelas funções preventivas que se atribui à reprimenda criminal


sejam passíveis de realização prática.14
É como diz Arthur Kaufmann: o simples consenso ou convergência sobre
determinados valores como legítimos não é suficiente para justificar a atividade estatal
se as conseqüências fáticas que teoricamente legitimariam aquela finalidade como justa
não se verificam na prática. Em termos finalísticos, a solução encontrada pelo Barão de
Münchhausen em suas aventuras para salvar um homem de afundar-se no pântano —
puxar-se pelos próprios cabelos — seria perfeitamente legítima, pois o valor
fundamental da vida estaria, ao menos em tese, assegurado. No entanto, é inequívoco
que os meios por ele sugeridos são absolutamente inidôneos e, a se fiar exclusivamente
nessa sugestão, muitas vidas se perderiam15. O mesmo raciocínio pode ser aplicado na
tarefa de legitimação externa do poder punitivo, pois, ainda que pareça justo lançar mão
da pena para proteger direitos fundamentais de terceiros, essa conclusão só poderá ser
aceita na prática caso se consiga demonstrar que a incriminação de condutas e a punição
dos responsáveis efetivamente previnem a ocorrência de novos delitos.
Ressalte-se que não vemos nisso nenhuma confusão metodológica entre ser e
dever ser, entre fato e valor, entre direito e moral, senão uma decorrência lógica do
próprio valor utilitário que dá embasamento às doutrinas relativas da pena e do bem
jurídico como objeto de proteção penal. Se o próprio valor moral afirma que só é justa a
intervenção estatal que traga benefícios práticos aos cidadãos, a perquirição sobre a
ocorrência, ou não, desses benefícios é condição de legitimação axiológica e não
simplesmente fática.16

14
“El derecho penal tiene también que recuperar su credibilidad y su prestigio ante los ciudadanos, a los
que no debe engañar con falsas promesas. Ello supone que continúe y se intensifique la investigación de
los efectos reales de la intervención jurídico-penal, y significa que no se pretenden consecuencias que no
pueden ser constatadas y que en los programas de decisión se tengan en cuenta las consecuencias
accesorias desfavorables. Un derecho penal legitimado por las consecuencias no puede sustraerse a la
legitimación. En mi opinión, un derecho penal que no utiliza el concepto de consecuencia como una
simples estrategia simbólica, sino que lo elabora metodológicamente y del modo más honesto posible,
vuelve en muchos ámbitos a la legitimación input” (HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y
responsabilidad. Tradução de Francisco Muñoz Conde e María Del Mar Dínaz Pita. Santa Fé de Bogotá:
Temis, 1999. p. 13).
15
KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In KAUFMANN,
Arthur; HASSEMER, Winfried (orgs). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. p. 198 e ss.
16
Muito diferente seria se sustentássemos que, em razão do poder punitivo incidir seletivamente sobre as
parcelas mais pobres da população, seria justa uma doutrina de justificação da pena fundada na diferença
de classes. Neste caso, estaríamos derivando de uma constatação fática, por si só, a justiça de determinado
juízo valorativo, o que efetivamente violaria a Lei de Hume. Da mesma forma, parece correto afirmar que
um juízo valorativo, apenas porque teoricamente justo, não é suficiente para afirmar que ele efetivamente
se verifica na prática. No entanto, se a justiça desse valor está condicionada à eficiência prática dos
15

Assim, chega-se, por outras vias, à mesma conclusão que já havia alcançado o
professor Miguel Reale por meio de sua teoria tridimensional específica, segundo a
qual o direito é composto por três elementos distintos e dialéticos: fato, valor e norma.
A diferença fundamental é apenas metodológica. Enquanto defende-se, aqui, que a
legitimação do ordenamento jurídico e da atuação estatal decorre de “critérios de
avaliação moral, políticos ou utilitários de tipo extra ou metajurídico” (princípio da
secularização), desde que confirmados empiricamente quando a doutrina de justificação
assim o exigir, Reale sustenta que só pode ser chamada de direito a norma jurídica em
vigor que seja, ao mesmo tempo, justa e eficaz17. Ou seja, o próprio direito seria
composto de elementos éticos, fáticos e normativos, de maneira que a invalidade de
qualquer deles levaria, conseqüentemente, à invalidade do direito mesmo, internamente.
Não obstante a dupla via de acesso ao problema da legitimação do direito e de
suas formas de expressão, optou-se por seguir, ainda que de forma não muito ortodoxa,
o método neoconstitucionalista (ou garantista) de Ferrajoli18, em razão de sua maior
atualidade e da facilidade que proporciona ao processo de diferenciação das diversas
correntes que tentaram explicar os fundamentos do exercício do poder estatal, e em
especial do poder punitivo, ao longo da história.
No decorrer do trabalho, portanto, se utilizará o termo legitimação como
sinônimo de justificação externa, ou seja, como exigência de legitimação a partir de
“critérios de avaliação moral, políticos ou utilitários de tipo extra ou metajurídico”,
estejam eles positivados ou não na Constituição pátria, e desde que suas funções
(quando elas existirem) sejam passíveis de realização prática.

objetivos propostos, parece que a exigência de que tais funções se realizem é condição de validade do
próprio juízo prescritivo, não havendo aí qualquer violação, mas sim reforço, da Lei de Hume.
17
“Em resumo, são três os aspectos essenciais da validade do Direito, três os requisitos para que uma
regra jurídica seja legitimamente obrigatória: o fundamento, a vigência, e a eficácia, que correspondem,
respectivamente, à validade ética, à validade formal ou técnico-jurídica e à validade social” (REALE,
Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 115).
18
“O principal pressuposto metodológico de uma teoria do garantismo reside na separação entre direito e
moral, e mais em geral entre ser e dever ser (...). Esta separação, elaborada nas origens do Estado de
direito do pensamento iluminista, deve ser por esta tornada como tema em todo o seu alcance –
epistemológico, teórico e político – como objeto privilegiado de investigação nos diversos níveis da
análise jurídica: a meta-jurídica, da relação entre direito e valores ético-políticos externos; a jurídica, da
relação entre princípios constitucionais e leis ordinárias e entre leis e suas aplicações; e a sociológica, da
relação entre direito e seu conjunto e práticas efetivas” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do
garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio
Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 686).
16

1.2 Poder punitivo ou direito penal

É comum entre aqueles que se debruçam sobre os problemas essenciais do


direito penal a afirmação de que a legitimação/deslegitimação do poder punitivo
confunde-se com a legitimação/deslegitimação do próprio Estado, haja vista ser a
repressão penal a forma mais grave de intervenção pública sobre os direitos
fundamentais do indivíduo19.
Tal afirmativa, no entanto, apesar de corrente, parece já partir do pré-conceito de
que o exercício do poder punitivo é inerente e necessário à própria concepção de
Estado, antecipando, de certa forma, a resposta que se dará à questão da
(des)legitimação daquele. Afinal, se negar legitimidade ao exercício do poder punitivo é
negar legitimidade ao Estado, todos aqueles que levam a sério o famoso conselho de
Radbruch20 estariam, na verdade, defendendo uma sociedade anárquica e não um Estado
democrático de direito21.
Há nessa forma de colocar a questão uma aparente confusão entre o que
acontece na prática e aquilo que se busca com a aplicação do direito, entre o ser e o
dever ser, o que impede a priori a construção de propostas normativas que visem à
superação das atuais formas punitivas de “solução” dos conflitos.
Para evitar esse círculo vicioso, Zaffaroni et al baseiam todo seu raciocínio na
distinção fundamental entre poder punitivo e direito penal, designando com o primeiro

19
“O problema da legitimação ou justificação do direito penal, conseqüentemente, ataca, na raiz, a
própria questão da legitimidade do Estado, cuja soberania, o poder de punir, que pode chegar até ao ius
vitae ac necis, é, sem sombra de dúvida, a manifestação mais violenta, mais duramente lesiva aos
interesses fundamentais do cidadão e, em maior escala, suscetível de degenerar-se em arbítrio”
(FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.
168). Em igual sentido: “(...) os limites entre ambas as ciências sociais (ciência política e ciência jurídico-
penal) parecem ser quase imaginários, pois se aquela responde(ria) ao momento da formulação do
exercício do poder, esta funda(ria) sua nascente nos modelos explicativos e justificadores do exercício da
violência legítima organizada” (CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2003. p. 119).
20
“A melhor reforma do direito penal não consiste em sua substituição por um direito penal melhor, mas
sua substituição por uma coisa melhor que o direito penal” (apud BARATTA, Alessandro. Criminologia
Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos
Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 222).
21
Definitivamente, não é isso que sustentam os partidários das doutrinas negativas da pena; pelo menos,
não todos eles: “(...) convém observar que as atuais posições abolucionistas não são necessariamente
anarquistas, pois a identificação do poder punitivo com a totalidade da coação jurídica não é outra coisa
senão a expressão de uma confusão conceitual, que só se justifica pelo apressuramento ou onipotência
penalística ou panpenalismo” (ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p. 647- 648).
17

o “exercício do poder coativo do estado em forma de pena”, expressão direta do Estado


de polícia não contido pelo Estado de direito, e com o segundo “o ramo do saber
jurídico que, mediante a interpretação das leis penais, propõe aos juízes um sistema
orientador de decisões que contém o poder punitivo, para impulsionar o progresso do
estado constitucional de direito”22.
Feita essa distinção, pode-se dizer que a tradicional equiparação do problema da
legitimação/deslegitimação do direito penal ao problema da legitimação/deslegitimação
do próprio Estado só é necessariamente verdadeira se entendido aquele como sinônimo
de poder punitivo. Tidos o poder punitivo e o direito penal como coisas distintas, a
deslegitimidade de um não leva necessariamente à deslegitimação do outro. Senão, pode
ocorrer justamente o contrário. Conforme sugerem Zaffaroni et al, é exatamente a
deslegitimidade do primeiro (poder punitivo) que legitima o Estado a lançar mão do
direito penal para limitá-lo.
A questão fundamental, portanto, não reside na legitimidade ou não do direito
penal em si, tal como colocado por muitos. Se o direito penal tem por finalidade garantir
a liberdade dos indivíduos, sua legitimação está desde logo assegurada, pois a proteção
dos direitos fundamentais é o valor (positivado, aliás) que permeia todo o ordenamento
jurídico23. Caso, para tal finalidade, o Estado passe a se valer de instrumentos
repressivos que atinjam direitos fundamentais de terceiros, caberá então a ele
demonstrar a legitimidade de tal proposta (exercício do poder punitivo)24, apresentando
as razões éticas ou utilitárias dessa decisão política e comprovando empiricamente que
os eventuais objetivos práticos perseguidos (funções) são realizáveis. A eventual
carência de justificações para o exercício do poder punitivo, a demonstrar sua
ilegitimidade, por óbvio não levará nem à extinção do Estado, nem ao desaparecimento
do direito penal, senão a uma maior exigência de intervenção destes como forma de
proteger o indivíduo do arbítrio do Estado de polícia25.

22
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 40.
23
“(...) é preciso ressaltar que a garantia e o exercício da liberdade individual não necessitam de qualquer
legitimação, em face de sua evidência. A liberdade individual decorre necessariamente do direito à vida e
está consagrada nos pactos internacionais e nas constituições democráticas” (TAVARES, Juarez. Teoria
do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 162).
24
“O que necessita de legitimação é o poder de punir do Estado, e esta legitimação não pode resultar de
que ao Estado se lhe reserve o direito de intervenção. Isto seria falsear o problema, porque justamente
aquele que está precisando legitimar sua força – o Estado – é que se autoconfere direitos e por isso se
autolegitima” (TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p.
162).
25
A diferenciação entre Estado de direito e Estado de Polícia é outro ponto central da obra de Zaffaroni:
“O estado de direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e opõe-se ao estado de
18

Em resumo: o que está a exigir legitimidade é a utilização de meios repressivos


violentos pelo Estado, o que se denomina poder punitivo, e não necessariamente o
direito penal. Se e em que medida esses meios repressivos são justificáveis a partir de
“critérios de avaliação moral, políticos ou utilitários de tipo extra ou metajurídico”, bem
como da verificação de sua realizabilidade prática, é o que se buscará esclarecer ao
deste livro.

1.3 Âmbito da investigação

Antes de passar à análise do tema proposto propriamente dito, é preciso fazer


mais um esclarecimento, contudo.
Por estar o problema da legitimação/deslegitimação do poder punitivo
relacionado a aspectos não exclusivamente legais, mas principalmente a questões de
ordem axiológica e, por vezes, fáticas, cabe esclarecer quais pontos da teoria geral do
direito penal têm relação com essas áreas do conhecimento, de modo que sobre eles
recairá, prioritariamente, nossa atenção.
O primeiro e mais evidente tema do direito penal que está relacionado à
(des)legitimidade do poder punitivo estatal é o da teoria (rectius, doutrina) da pena.
Como visto acima, a pena (e a medida de segurança) nada mais é do que a expressão
jurídica do poder punitivo, de modo que é no estudo das diversas doutrinas já
construídas para legitimar ou deslegitimar a pena que se deverá buscar, antes de tudo, a
justificação ou não da intervenção repressiva estatal.
Mesmo para aqueles autores que não distinguem entre poder punitivo e direito
penal, tomando as expressões como sinônimas, é corrente a identificação do problema
da justificação da intervenção repressiva estatal com a questão da justificação da pena
mesma. Nas palavras de Santiago Mir Puig, “se está justificado castigar ou impor

polícia, onde todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam. O princípio do
estado de direito é atacado, por um lado, como ideologia que mascara a realidade de um aparato de poder
a serviço da classe hegemônica e defendido, por outro, como uma realidade bucólica com alguns defeitos
conjunturais. Considerando a dinâmica da passagem do estado de polícia ao estado de direito, é possível
sustentar uma posição dialética: não há estados de direito reais (históricos) perfeitos, mas apenas
estados de direito que contêm (mais ou menos eficientemente) os estados de polícia neles enclausurados
(ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 41).
19

medidas de segurança é porque é necessário realizar os objetivos que se atribuem à pena


e às medidas de segurança”26.
Exatamente por isso, nossa atenção ao longo da obra se deterá, em especial, na
análise das diversas doutrinas positivas e negativas da pena27, buscando, por meio delas,
encontrar os mais variados argumentos e correntes existentes sobre a (des)legitimação
do poder punitivo.
Igualmente, e ainda que de forma não tão evidente, a teoria (rectius, doutrina) do
bem-jurídico também está intimamente relacionada à questão da (des)legitimação do
poder punitivo. Afinal de contas, o próprio conceito de crime decorre da opção política
do legislador de sancionar determinada conduta com uma pena. De outro lado, a
imposição legal de pena é, por definição, o que caracteriza a conduta como criminosa,
de modo que os poderes públicos de incriminar e de punir não podem existir um sem o
outro, estando umbilicalmente vinculados28.
Da mesma forma que existem doutrinas positivas e negativas da pena, haverá
igualmente doutrinas do bem jurídico que se prestam à legitimação do poder
incriminador, sustentando inclusive ser este um dever do Estado, e doutrinas que
buscam, ao contrário, limitar a incriminação de condutas.
As recentes tendência teleológicas da teoria do delito demonstram bem a
vinculação existente entre as doutrinas do bem jurídico e da pena29, conforme ressaltado
por seu principal defensor:

“Se o direito penal tem que servir à proteção subsidiária de bens jurídicos e
conseqüentemente ao livre desenvolvimento do indivíduo, assim como à
manutenção de uma ordem social baseada nesse princípio, então esse
instrumento só serve para limitar, em determinado momento, quais condutas

26
PUIG, Santiago Mir. Introducción a las bases del derecho penal. Buenos Aires: Julio César Faria
Editor, 2002. p. 98.
27
Utiliza-se aqui a classificação adotada por Zaffaroni et al (ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal
brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003), no sentido de que, às teorias (ou doutrinas) que buscam
legitimar o poder punitivo estatal, chamadas positivas, contrapõem-se as teorias (ou doutrinas) negativas,
caracterizadas pelo discurso crítico às funções tradicionalmente atribuídas à pena com vistas a justificar o
exercício daquele poder.
28
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 44.
29
“En efecto, en una estructura de tipo teleológico-funcional surge claramente una estrecha correlación
dialéctica de las implicaciones relativas a la conformación de ilícito y sanción. Por lo tanto, no parece
deseable una consideración separada de los dos aspectos, por cuanto las exigencias que determinan su
modo de ser resultan natural y/o funcionalmente incidentes sobre ambos planos” (MOCCIA, Sergio. El
derecho penal entre ser y valor: función de la pena y sistemática teleológica. Trad. Antonio Bonanno.
Buenos Aires: Julio César Faria Editor, 2003. p. 181).
20

pode o Estado incriminar. Sem embargo, com isto não se está definindo, por si
só, de que maneira a pena deve funcionar para cumprir a missão do Direito
penal. A resposta a esta pergunta virá da teoria sobre o fim da pena, que,
certamente, sempre estará relacionada com o fim subjacente do Direito penal
(algo que com muita freqüência não se toma suficientemente em
consideração)”30.

É com razão, portanto, que Nilo Batista assevera que conhecer as finalidades do
direito penal é “conhecer os objetivos da criminalização de determinadas condutas
praticadas por determinadas pessoas e os objetivos das penas e outras medidas jurídicas
de reação ao crime”31. Em outras palavras, para saber se a intervenção punitiva estatal é
ou não legítima é preciso indagar sobre a legitimidade, ao mesmo tempo, do ato de
incriminar e do ato de punir, o que obriga a abordagem no presente estudo, ainda que en
passant, também das principais doutrinas já desenvolvidas sobre o bem jurídico-penal.

30
ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general, tomo I. Tradução de Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel
Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2003. p. 81.
31
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 23.
21

CAPÍTULO 2 – OS FINS DO DIREITO PENAL

2.1 Origens do poder punitivo

A resposta social à prática de condutas lesivas aos interesses individuais e


coletivos remonta aos primórdios da civilização. Mesmo nas primeiras sociedades
primitivas, onde o poder ainda estava pulverizado entre os seus componentes32, já
existiam mecanismos de resposta àqueles que afrontavam as regras fundamentais de
convívio pacífico e harmônico.
A esse tempo, contudo, o sistema de reação ao conflito seguia um modelo de
solução entre as partes, fundado essencialmente no restabelecimento da harmonia social
e na manutenção da coesão do grupo. A palavra de ordem era apaziguar o conflito,
superando-o. A vítima e o agressor eram os protagonistas desse processo, tanto do
conflito em si, quanto da busca de uma solução para ele.
É apenas a partir do estabelecimento de uma instância de poder político
destacada dos membros da comunidade que o conflito, até então intersubjetivo, começa
a receber a intervenção do poder central, até o ponto de a vítima ser totalmente subtraída
do processo, que passa a se desenvolver unicamente entre o Estado e o infrator,
verticalizando-se.
Essa transição, usualmente descrita de forma linear e evolutiva, não segue um
caminho constante e tranqüilo. Ao contrário, ela é caracterizada por muitas idas e
vindas, períodos de grande fortalecimento do poder central e confisco do papel da
vítima, seguidos de períodos de retomada da importância dos valores comunitários,
onde as soluções construídas de forma solidária prevalecem sobre a pura imposição de
uma verdade unilateral33.

32
É exatamente a inexistência de um órgão separado e verticalizado de poder político que diferencia, ao
juízo de Pierre Clastres, as sociedades primitivas das demais: “Sociedade sem Estado, sociedade sem
classes: assim a antropologia enuncia as determinações que fazem que uma sociedade possa ser dita
primitiva. Sociedade, portanto, sem órgão separado do poder político, sociedade que impede, de maneira
deliberada, a divisão do corpo social em grupos desiguais e opostos: ‘A sociedade primitiva admite a
penúria para todos, mas não a acumulação por alguns’” (CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência.
Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac e Naify, 2004. p. 185).
33
“Mirando a história dos programas criminalizantes, sem partir de preconceitos evolucionistas, é
possível observar que, ao longo de milênios, vem surgindo uma linha demarcatória entre modelos de
reação aos conflitos: um, o de solução entre as partes; o outro, o de decisão vertical ou punitivo. A linha
divisória passa, portanto, pela posição da vítima, o que, necessariamente, concede uma função ao
22

O que se pode perceber de forma mais ou menos nítida é que a maior


concentração do poder político nas mãos de alguns leva a um correspondente
afastamento entre o conceito artificial de crime e a idéia original de conflito, ou seja,
cada vez mais é possível encontrar condutas consideradas criminosas em fatos que em
nada correspondem à primitiva noção de divergência entre duas ou mais pessoas. A
definição do fato tido por criminoso fica a cargo de um juízo de valor exclusivo do
governante, que o exerce da forma que melhor lhe convém ― via de regra, da forma
que se lhe apresenta mais útil para o aumento e conservação de seu próprio poder.
Assim é que após a queda do Império Romano predominou na Europa, até o
fortalecimento dos Estados absolutistas, o modelo de solução do conflito entre as
partes34, onde a ofensa dava lugar à inimizade entre ofensor (e sua família) e ofendido (e
sua família), podendo esta ser solucionada através da composição, pelo duelo ou, ainda,
pela ordália (julgamento de Deus).
Com o surgimento de um poder central verticalizante, a partir do século XII,
começou a haver uma apropriação do direito de vingança privada pelo senhor, ao

processado e ao apenado. Muito pouca coisa obteremos ao estudarmos as penas no código de Hamurabi,
no de Manu ou no Antigo Testamento, se perdermos de vista essa linha que separa a pessoa (ser humano)
do objeto (coisa). No modelo de partes há duas pessoas que protagonizam o conflito (a que lesiona e a
que sofre a lesão) para o qual se procura uma solução. No punitivo, a vítima fica de lado, ou seja, não é
considerada pessoa lesionada, mas sim um signo da possibilidade de intervenção do poder das agências
do sistema penal (que intervém quando quer, assim como atua sem levar em conta a vontade do lesionado
ou vítima). O pretexto de limitar a vingança da vítima ou de suprir sua debilidade serve para descartar sua
condição de pessoa, para tirar-lhe humanidade. A invocação à dor da vítima não é senão uma
oportunidade para o exercício de um poder que a respectiva seletividade estrutural torna bitolado e
arbitrário” (ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.
384).
34
“Na Alta Idade Média não havia muito espaço para um sistema de punição estatal. Tanto a lei do feudo
quanto a pena pecuniária (penance) constituíam essencialmente um direito que regulava as relações entre
iguais em status e em bens. (...) As relações entre o guerreiro senhor feudal e seus servos tinham um
caráter tradicional, correspondente a uma determinada relação legal. Estas condições tendiam a prevenir
tensões sociais e prover coesão, características desse período. (...) A preservação da paz era, portanto, a
preocupação primordial do direito criminal. Como resultado desse método de arbitragem privada, optava-
se pela imposição de fianças” (RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social.
Trad. Gislene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 23). Nesse mesmo sentido, a opinião de Elena
Larrauri: “Siguiendo a Hespanha (1990:181) me parece que el término de ‘venganza privada’ es inapropiado
para describir la época previa a la formación del Estado Moderno. Por ‘venganza privada’ parece aludirse al
poder de la víctima, del ofendido. Sin embargo, la carácterística del poder punitivo en la Edad Media es su
dispersión en un conjunto de poderes, repartidos entre los distintos señores feudales, la Iglesia, la comunidad
local, el padre de familia o el ejercito. Reducir estos poderes penales dispersos al título de venganza privada
no permite comprender como funcionan los poderes punitivos en una época previa a la aparición del Estado
moderno” (LARRAURI, Elena. Criminología critica: abolicionismo y garantismo. Disponível na
Internet:http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm. Acesso em
21 de março de 2007).
23

argumento de que as condutas que afetassem a ordem pública não representariam ofensa
apenas à vítima, mas principalmente ao soberano35.
Nessa transição teve papel central a Igreja Católica que, através da Inquisição,
sistematizou, pela primeira vez, as regras de criminalização, investigação e punição das
condutas contrárias aos interesses dos soberanos e da Santa Sé. Conforme lembrado por
Zaffaroni et al, o Malleus Maleficarum ou Martelo das Feiticeiras, escrito pelos
inquisidores Heinrich Kraemer e James Sprenger, em 1487, “é a obra teórica
fundacional do discurso legitimador do poder punitivo na etapa de sua consolidação
definitiva, pois constitui o primeiro modelo integrado de criminologia e criminalística
com direito penal e processual penal” 36.
A confusão entre direito (delito) e moral (pecado) é, nesse ponto, absoluta.
Sendo a Igreja a única e legítima intérprete dos valores divinos e o soberano o próprio
representante de Deus na Terra, crime passa a ser tudo aquilo que estas instituições
definem como demoníaco e perverso, em contraposição ao santo e puro. O mundo
adquire uma condição puramente maniqueísta, de modo que criminosos não são mais
aqueles que simplesmente desrespeitaram as regras de conduta social, mas verdadeiros
anti-Cristos, cuja alma só pode ser salva por meio do fogo ardente das fogueiras.

2.2 O Iluminismo e a descoberta do homem

2.2.1 As mudanças de paradigma na transição do Estado absoluto para o Estado liberal

35
Na verdade, como alertam Rusche e Kirchheimer, esse era apenas um dos fatores que levaram à
substituição de um modelo de partes para um modelo punitivo, todos muito mais ligados à idéia de
concentração do poder político do que à contenção de uma suposta situação de violência generalizada:
“Havia três forças principais contra o caráter privado do direito penal dos primórdios do medievo e que o
transformaram num instrumento de dominação. Primeiro, o crescimento proeminente da função
disciplinar do senhor feudal contra todos que estavam em situação de subordinação econômica. O único
limite ao exercício desse poder disciplinar era a reclamação jurisdicional de um outro senhor feudal. Em
segundo lugar, a luta das autoridades centrais para fortalecer sua influência através da extensão de seus
direitos judiciais. Não importa muito para o declínio do direito penal privado se a tendência na direção da
centralização foi adotada pela realeza, como na Inglaterra e na França, ou por príncipes, como na
Alemanha. O terceiro e mais importante fator a destacar era o interesse fiscal, comum às autoridades de
todo tipo. A administração do direito penal, como veremos adiante, provou ser uma fonte frutífera de
receita, e, até bem pouco tempo, muito melhor do que encargos fiscais” (RUSCHE, Georg;
KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. Trad. Gislene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p.
25).
36
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 511.
24

Se remonta aos primeiros grupamentos sociais a ocorrência de respostas contra a


prática de condutas lesivas aos interesses de algum ou muitos membros da coletividade,
a exigência teórica de justificação racional para a repressão estatal em matéria criminal
só se estabeleceu efetivamente a partir do advento do Estado moderno, quando se
atribuiu ao indivíduo direitos face ao governante, que já não podia mais escudar seu
arbítrio atrás de explicações meramente místicas ou religiosas.
A constatação de que a Terra não é o centro do Universo (Copérnico) e de que o
homem, por conseqüência, não é a imagem e semelhança de Deus, conforme também
comprovado pela chegada de Colombo à América — onde se verificou a existência de
sociedades não pautadas pela divisão de classes —, levou ao questionamento sobre os
fundamentos da realidade servil existente na Europa até o século XV37.
O paradigma da racionalidade objetivista, fundada em idéias exteriores,
anteriores e superiores ao homem como justificativa para a explicação da realidade —
na Antigüidade, o cosmos, e na Idade Média, Deus — deu lugar a um novo paradigma,
que caracterizaria a Idade Moderna e que perdura, de certa forma, até os nossos dias: o
da racionalidade subjetivista, que adota a idéia de ser humano como sujeito ativo do
conhecimento que estabelece a realidade38.
O conhecimento verdadeiro, portanto, só pode ter um e apenas um ponto de
partida: o homem. Segundo a máxima daquele que é considerado o pai do racionalismo
moderno: “penso, logo existo” (Cogito, ergo sum), ou seja, é exatamente a reflexão
humana sobre suas próprias indagações que confirma a existência do real39. Para René
Descartes (1596-1650), até mesmo a prova da existência divina decorreria de um
processo racional dedutivo, conforme demonstrado em sua Meditação Terceira (De
Deus; que Ele existe).
Mesmo para os empiristas ingleses, discípulos de Francis Bacon (1561-1626),
que refutavam o método racionalista cartesiano, preferindo atingir o conhecimento a

37
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 22.
38
AMARAL, Thiago Bottino do. Ponderação de normas em matéria penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007. p. 2.
39
“Se da máxima incerteza desponta uma primeira certeza – ‘Se duvido, penso’ –, esta é ainda, contudo,
uma certeza a respeito da própria subjetividade (‘penso’). Nada fica até aí garantido a respeito de
qualquer realidade subsistente. Todavia, já é um primeiro elo na cadeia de razões – e basta uma primeira
certeza plena para que a ‘ordem natural’, como numa progressão matemática, faça jorrar luz sobre o que
até então permanecia desconhecido. A dinâmica inerente às séries de termos dispostos racionalmente
(como as progressões matemáticas) leva à inevitável explicação do que está contido no ‘Se duvido,
penso’. Leva ao cogito: ‘Penso, logo existo’ (Cogito, ergo sum)” (René Descartes: Coleção Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. XIX).
25

partir da experiência, por indução40, eram os sentidos humanos que levariam à verdade,
de modo que o homem continuava servindo de base para toda e qualquer tentativa de
explicar o mundo.
E o homem, de fato, combinando os métodos racionalista dedutivo e empírico
indutivo, chegou a descobertas surpreendentes ainda no século XVII, o que garantiu que
a transição de uma sociedade fortemente teocêntrica para uma sociedade eminentemente
antropocêntrica se fizesse de forma avassaladora e irreversível, passando o pensamento
científico a dominar todos os ramos do conhecimento humano41.

2.2.2 A exigência de justificação racional para o exercício do poder punitivo estatal

Com a estabilização dos paradigmas do racionalismo subjetivista e do


cientificismo, o exercício do poder punitivo — que já havia sido monopolizado pelo
Estado há séculos — passou a exigir justificação mais profunda do que a mera
referência à violação da vontade divina. Colocado o homem, e não mais Deus, como
centro do universo, todas as explicações anteriores para justificar a existência de uma
sociedade dividida entre predestinados porta-vozes da lei divina e meros súditos foram
se tornando insuficientes. Afinal, já havia se verificado, em razão da expansão marítima,
a existência de outras formas de sociedade, onde todo homem podia manter seu “estado
original de liberdade”.
De fato, o tema da liberdade como característica inata do ser humano tem
inegável influência das grandes conquistas marítimas operadas ao final do século XV e

40
O método indutivo, formulado por Francis Bacon (1561-1626), parte do pressuposto de que o
conhecimento verdadeiro só pode ser atingido a partir da percepção que o homem tem dos fenômenos
sensíveis. Assim, “partindo-se dos fatos concretos, tais como se dão na experiência, ascende-se às formas
gerais, que constituem suas leis e causas” (Francis Bacon: Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril
Cultural, 1979. p. XVIII).
41
“Utilizando a metodologia indutiva (defendida por Descartes), a experimentação e a observação (como
sustentavam os empiristas), o físico Isaac Newton promoveu uma verdadeira revolução científica ao
enunciar e demonstrar a existência de ‘leis naturais, universais, atemporais, racionais e objetivas’ que
explicariam todas as relações físicas do mundo em que vivemos. Newton realizava as experiências para
identificar as causas dos fenômenos obtendo as conclusões por meio de um raciocínio indutivo. As causas
eram assumidas como verdadeiras até que outra experiência demonstrasse que estavam erradas.
Estabeleceu-se uma lógica segundo a qual é a partir das causas dos fenômenos que estes são explicados e
demonstrados” (AMARAL, Thiago Bottino do. Ponderação de normas em matéria penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007. p. 5).
26

foi criteriosamente eleito pelos pensadores do Iluminismo como principal bandeira do


movimento de transferência de poder da nobreza decadente para a burguesia emergente.
A fim de questionar a concepção organicista da sociedade, onde todo o poder
ficava nas mãos da nobreza, dada sua ascendência divina, empenharam-se os iluministas
em criar um novo paradigma social, baseado no modelo contratualista, de modo que
também a classe burguesa pudesse desempenhar algum papel político (e não apenas
econômico) no Estado.
Atribui-se a John Locke (1632-1704) a elaboração da tese que previa, no estado
de natureza, o homem como titular de direitos fundamentais, o que asseguraria uma
convivência pacífica e completamente livre a todos. Nesse contexto, teria sido apenas a
título de custódia que os cidadãos entregaram o poder governamental nas mãos de seus
representantes, podendo reassumir sua autoridade em caso de violação daqueles direitos
naturais por parte dos governantes.
Do outro lado, numa tentativa de conciliar as mudanças sociais e filosóficas com
a manutenção da forma absolutista de Estado, formulou Thomas Hobbes (1588-1679) a
tese segundo a qual o estado de natureza seria concebido como o estado de guerra, onde
nenhum direito individual poderia ser respeitado, motivo por que firmaram os homens
acordo em que depositaram seu poder na pessoa do soberano, a quem cabia impor a paz
mediante a determinação do que seria, ou não, proibido. Seja como fosse, diante do
risco de retorno ao estado de selvageria, qualquer forma de governo desempenhada pelo
soberano, ainda que despótica, seria melhor do que arriscar a quebra do contrato.
As transformações sociais geradas pela Revolução Industrial, com a formação de
classes operárias nos novos centros urbanos e a decadência do antigo sistema de
servidão, que dava sustentação à classe nobre, garantiram o sucesso da tese defendida
pelos iluministas, dando azo a grandes mudanças políticas, em especial na França, onde
as idéias contratualistas de Rousseau serviram de fundamento teórico para a revolução
de 1789.
Mas as luzes não se limitaram à reestruturação do poder político-representativo,
tendo os estudiosos da época também se preocupado em racionalizar o exercício da
faceta mais sensível da atividade estatal: o poder punitivo.
Horrorizados com a possibilidade de serem também submetidos aos rigores da
Santa Inquisição, os iluministas passaram a buscar justificativas racionais para a
aplicação de penas aos criminosos, bem como mecanismos de limitação do poder
27

punitivo exercido pelo Estado, do qual começavam a participar de forma cada vez mais
ativa.
O direito penal idealizado pelos iluministas, portanto, tinha, como objetivo
declarado frear as inúteis e cruéis penas corporais aplicadas antes do aperfeiçoamento
da noção de pessoa humana como titular de direitos perante o Estado e, como objetivo
real, esvaziar o poder punitivo que estava concentrado nas mãos da nobreza decadente42.

2.2.3 O “direito penal clássico” e as doutrinas fundadas na pessoa humana

Nunca existiu propriamente uma “escola penal clássica”. Esse foi, na verdade, o
nome atribuído por Enrico Ferri a todo pensamento penal anterior ao positivismo
sociológico italiano43. De qualquer forma, costuma-se dividir os pensadores penais da
Ilustração em dois grandes grupos: o da etapa preparatória ou político-criminal do
racionalismo, dentre os quais se destaca Beccaria, e o da etapa posterior, construtiva do
sistema, da qual são representativas as obras de Carrara, na Itália, e de Feuerbach, na
Alemanha44.
Na primeira etapa, que se encarregou de construir os alicerces Políticos-
filosóficos do direito penal liberal, os teóricos dos setecentos e oitocentos se valeram do
mesmo conceito de contrato social que referendou a ascensão social burguesa. Enquanto
o Estado Absolutista era eminentemente organicista, pré-definido por Deus e

42
“El surgimiento de una nueva clase social poderosa y en desarrollo, como era la de los industriales y
comerciantes, en competencia con la establecida – nobleza y clero –, determinó que la primera procurase
debilitar por todos los medios el poder de la vieja clase punitivo, que era una de sus principales armas de
dominación. Este esfuerzo se tradujo en un discurso penal reductor y en menor medida en cambios en la
realidad operativa del poder punitivo, que no dejó de ejercerse selectivamente y de modo que fuese
funcional al crecimiento y expansión de la nueva clase social” (ZAFFARONI, Eugenio Raul. El enemigo
en el derecho penal. Buenos Aires: Ediar, 2006. p. 43).
43
“(...) a maior invenção de Ferri – pelo menos quanto ao êxito que perdura até hoje, sendo ratificada
como verdade incontestável – foi a invenção de uma inexistente escola clássica do direito penal,
supostamente integrada por todos os autores não-positivistas, fundada por Beccaria e capitaneada por
Carrara. Essa escola abrangeria toda a Europa e estaria formada por pensadores iluministas de todas as
nacionalidades, revolucionários franceses, idealistas alemães, aristotélicos e tomistas, criticistas e
kantianos, hegelianos, krausistas etc. Tal escola – repetimos – jamais existiu, mas para Ferri foi cômodo
impor um rótulo comum a todos os penalistas que não compartilhavam seus pontos de vista. Essa
invenção não passou de uma atitude autoritária de quem considerava ser o único dono da verdade
científica, e caracterizava por metafísicos, pré-cientistas ou clássicos aqueles que não haviam alcançado
os níveis de sua verdade. Embora hoje se continue fazendo referência a uma escola clássica como
antagônica à escola positivista, o certo é que a primeira só existiu na cômoda rotulação autoritária de
Ferri” (ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 576).
44
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 533.
28

insuscetível de qualquer tipo de mudança, um Estado fundado na noção de contrato, ao


revés, seria necessariamente cambiável, dependendo exclusivamente da livre
manifestação da vontade humana.
Aí, portanto, a chave da teorização contratualista: os homens são livres para
contratar, com direitos anteriores ao da sociedade e que não podem ser negados por esta.
No campo penal, “o contrato social simbolizaria o ato de alienação da liberdade
individual ao Estado em troca de segurança, sendo que o conjunto destas ‘pequenas
porções de liberdade’ fundamentaria o ius puniendi”45.
O fundamento legitimador do poder punitivo seria, portanto, a necessidade de
proteção das liberdades das quais os indivíduos não abriram mão, sendo exatamente
essa a tarefa delegada ao Estado46. De um modelo de criminalização essencialmente
religioso, tal como verificado no período da Inquisição, passa-se a um modelo laico, que
opera a rigorosa separação entre o que é direito (delito) e o que é moral (pecado),
ficando o próprio Estado adstrito às regras legais por ele mesmo editada com base no
contrato. É o que Luigi Ferrajoli denominou de “modelo paleo-iuspositivista do Estado
constitucional de Direito (ou Estado legal)”, que surge com o nascimento do Estado
moderno como monopólio da produção jurídica47.
O poder do governante, que durante o período anterior chegara ao ápice do
absolutismo, começa a ser limitado pela produção legislativa formal. Se, antes do
Iluminismo, o direito era produto exclusivo das elaborações doutrinárias e
jurisprudenciais, com a Modernidade, é a forma legal que conferirá legitimidade à
norma, dela não podendo se afastar nem mesmo o governante. O princípio da legalidade
surge, portanto, exatamente como uma forma de limitar o poder do Rei e da Igreja de
dizer o direito válido conforme seus próprios critérios de justiça e racionalidade48.
Toda a construção filosófica do Iluminismo se prende, grosso modo, em dois
pontos principais: por um lado, busca monopolizar nas mãos de um Estado laico o
exercício do poder punitivo, de modo a que não se retornasse à situação pré-contratual
de luta de todos contra todos; por outro, tenta limitar o próprio poder político do Estado,

45
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 45.
46
“O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo
exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; é
uma usurpação e não mais um poder legítimo” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. de
Flório de Angelis. São Paulo: Edipro, 1997. p. 17).
47
FERRAJOLI, Luigi. Neoconstitucionalismo, democracia e imperialismo moral. In Carbonell, Miguel
(org). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2005. p. 14)
48
FERRAJOLI, Luigi. Neoconstitucionalismo, democracia e imperialismo moral. In Carbonell, Miguel
(org). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2005. p. 15.
29

restringindo seu uso aos fins e meios acordados no contrato. É exatamente essa a
ideologia acolhida e sistematizada pelos representantes do que se denominou
posteriormente de direito penal liberal ou “escola penal clássica”.

2.2.4 A pena como prevenção negativa e o bem jurídico como direito individual

Além do racionalismo e do cientificismo, outra característica comum ao


pensamento moderno, especialmente para os adeptos do método empirista, é o
utilitarismo, caracterizado pelo critério axiológico de tomar a validade de todo e
qualquer fenômeno exclusivamente em função das melhores ou piores conseqüências
que produz para o bem-estar humano49.
A filiação a esse tipo de valoração utilitária é patente na obra de Beccaria50
(1738-1794), que aderia à paixão da época pela matemática, combinando-a ao desejo
burguês por segurança: “se os cálculos exatos pudessem aplicar-se a todas as
combinações obscuras que fazem os homens agir, seria mister procurar fixar uma
progressão de penas correspondente à progressão dos crimes”51.
No entanto, foi Jeremy Bentham (1748-1832) quem, algumas décadas mais
tarde, seguindo a concepção contratualista de Hobbes, que negava qualquer direito
subjetivo anterior ao Estado, levou às últimas conseqüências o pensamento utilitarista.
Segundo a visão de Bentham, o único critério para estabelecer quando um fato
deveria ser considerado delito era a pura utilidade de fazê-lo, a qual seria aferida através
de um simples cálculo: devia-se medir o grau de prazer que aquela conduta provocava
em seu autor e o grau de dor por ela causado aos demais, ou seja, o grau de utilidade era
o lucro em felicidade.

49
OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Social do Século XX.
Tradução de Eduardo Francisco Alves e Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. p. 785.
50
“Percorrendo a história, veremos que as leis, que deveriam ser convenções feitas livremente entre
homens livres, não foram, na maioria das vezes, mais que o instrumento das paixões da maioria, ou o
produto do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana, que
tenha sabido dirigir todas as ações da sociedade com esse único fim: todo o bem-estar possível para a
maioria” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. de Flório de Angelis. São Paulo: Edipro,
1997. p. 13).
51
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. de Flório de Angelis. São Paulo: Edipro, 1997. p.
67.
30

Para dar utilidade máxima à pena a ser imposta, Bentham idealizou duas
engenhocas: a primeira delas era uma máquina de flagelação, consistente em uma roda
que movesse corpos elásticos como junco, diante da qual seria colocado o condenado, o
qual receberia tantas chibatadas quantas voltas fossem ordenadas pelo juiz; já a segunda
recebeu o nome de “panóptico”, e consistia num estabelecimento carcerário formado
por um edifício radial, com pavilhões provenientes de uma sede comum, de onde se
conseguiria, mediante emprego de apenas um único vigilante, o máximo de controle,
com o mínimo de esforço, de toda a atividade diária do preso, qual seja, o treinamento
disciplinar para a produção industrial.
Tudo ficava reduzido, em última instância, à análise dos benefícios práticos dos
atos realizados. Assim, se o exercício do poder punitivo estatal, segundo a concepção
iluminista, tinha o propósito de garantir a segurança dos contratantes originários, a pena
só seria legítima se conseguisse prevenir a ocorrência de novos delitos. Afinal, como
ressaltava Beccaria, “o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem
desfazer um crime que já foi cometido. (...) Os castigos têm por fim único impedir o
culpado de ser nocivo futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do
crime”52.
Não é a toa que a maioria dos autores da etapa sistemática da impropriamente
chamada “escola penal clássica”, desenvolveram doutrinas de justificação da pena a
partir de critérios estritamente utilitários, as quais foram posteriormente classificadas
como teorias relativas53.
Na Alemanha, Paul Johan Anselm Ritter Von Feuerbach (1775-1833) foi quem
desenvolveu a principal e mais conhecida doutrina da prevenção geral negativa,
atribuindo à pena a função de coação psicológica de potenciais delinqüentes, de modo

52
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. de Flório de Angelis. São Paulo: Edipro, 1997. p.
46.
53
“Em oposição às absolutas, as teorias relativas são marcadamente teorias finalistas, já que vêem a pena
não como um fim em si mesmo, mas como um meio a serviço de determinados fins; considerando-a, pois,
utilitariamente. Fim da pena, em suas várias versões, é a prevenção de novos delitos, seja em caráter
geral, atuando sobre a generalidade dos seus destinatários, seja em caráter especial, dirigida a atuar sobre
o ânimo daqueles que tenham incorrido na prática de crime. No primeiro caso (de prevenção geral), fala-
se de prevenção geral-positiva, se se concebe a pena como instrumento de fortalecimento dos valores
ético-sociais veiculados pela norma, e de prevenção geral-negativa, se se pretende simplesmente
desencorajar a generalidade de pessoas da prática de delitos; no segundo caso, fala-se de prevenção
especial, porque se persegue, por meio da pena, a neutralização do delinqüente, inibindo-o da prática de
futuros delitos” (QUEIROZ, Paulo. Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do
sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 35).
31

que o resultado da atuação repressiva coincidisse com a finalidade utilitarista do


Estado54.
Distanciando-se da fundamentação puramente ético-religiosa do período
inquisitorial, bem como da fundamentação ético-racional pura de Kant (vide item 2.2.5,
infra), Feuerbach mantém-se fiel, na fundamentação da pena, à idéia iluminista de
separação rigorosa entre a esfera jurídica e a esfera moral: “a pena civil não pode ser a
pena moral, de modo que pelo Estado (bem como por ninguém, salvo por Deus) não
pode ser punida qualquer ação contrária ao dever, simplesmente porque é contrária ao
dever; o princípio supremo para tudo o que é direito requer apenas que a liberdade de
cada um coexista com a liberdade dos outros”55.
Para esse importante autor alemão, que semeou as bases do direito penal como
hoje o conhecemos, o delito tem por causa ou motivação psicológica a “sensualidade”,
assim entendida como todo o prazer que impulsiona o homem a cometer a ação. Contra
esse impulso, portanto, deveria corresponder um contra-impulso, que é a dor infligida
pela pena. O cálculo racional do prazer proporcionado pelo impulso da sensualidade em
relação à dor decorrente da sanção criminal funcionaria sobre a comunidade jurídica
como uma espécie de “coação psicológica”, intimidando ou contramotivando os
indivíduos a praticarem o delito. O objetivo prático (função) da norma é, pois, a
intimidação geral por meio da anulação do impulso da sensualidade, móvel, a seu ver,
de todas as ações delituosas56.
Mantendo coerência com a finalidade de prevenção geral negativa que atribuía à
pena, Feuerbach foi quem cunhou a idéia inicial de bem jurídico, transpondo o princípio
da alteridade, próprio do contrato social, para o campo do direito penal. Deste modo, só
haveria delito no caso de lesão a direito individual do ofendido de exercer sua própria
liberdade em face da ação de outrem, e nunca na hipótese de mera violação de um dever
imposto pelo Estado57.

54
“FEUERBACH define con suma claridad la relación entre finalidad utilitarista del Estado y finalidad
de la pena. ‘El objetivo del Estado es la libertad cambiante de todos los ciudadanos o, en otros términos,
asegurar esa condición en la cual cada uno puede ejercer sus derechos completamente al resguardo de las
ofensas. Cada ofensa contradice la naturaleza y el objetivo del consorcio civil y, para la realización de
este objetivo, es necesario que en el Estado no se verifique ofensa alguna’.” (MOCCIA, Sergio. El
derecho penal entre ser y valor: función de la pena y sistemática teleológica. Trad. Antonio Bonanno.
Buenos Aires: Julio César Faria Editor, 2003. p. 39).
55
FEUERBACH. Apud MOCCIA, Sergio. El derecho penal entre ser y valor: función de la pena y
sistemática teleológica. Trad. Antonio Bonanno. Buenos Aires: Julio César Faria Editor, 2003. p. 41.
56
QUEIROZ, Paulo. Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. Belo
Horizonte: Del Rey, 2001. p. 36.
57
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 183.
32

Atribuindo ao delito o conteúdo de violação de direito subjetivo da vítima,


Feuerbach resgatou, de certa forma, a noção originária de conflito intersubjetivo, que
caracterizava as condutas socialmente negativas anteriores à apropriação do poder
punitivo pelo Estado. O delito pressupunha um estado de igualdade de direitos de
liberdade entre o autor e a vítima, sendo certo que a prática delituosa representava
exatamente a quebra dessa estabilidade. Com isso, subordinava-se o conceito de delito a
um princípio material – a preservação da liberdade individual – independentemente dos
fins políticos do Estado58. Refutava-se, por um lado, a existência de um Estado como
sujeito de direitos, senão como instrumento criado para fortalecer os direitos dos
cidadãos (contrato social), de modo que o delito servia como uma forma de delimitação
da incriminação ao arbítrio estatal, restrita às hipóteses de violação do direito subjetivo
e, conseqüentemente, de efetiva danosidade social59. Por outro lado, havendo violação a
direito de liberdade da vítima, legitimada estaria a intervenção estatal, com a finalidade
de prevenir a ocorrência de novos fatos lesivos60.
Contemporâneo de Feuerbach e também discípulo de Kant, Karl Ludwig Von
Grolman (1775-1829), mantendo a separação entre direito e moral, prefere atribuir à
pena a função de neutralizar aquele que, com sua ação anterior, já demonstrou ser uma
ameaça concreta de futuras violações aos direitos dos demais contratantes.
Para Grolman, em razão da máxima kantiana de não usar o indivíduo como meio
para a consecução de fins de interesse coletivo, a pena não poderia atuar como “coação
psicológica” daqueles que nenhuma violação tinham praticado. De acordo com sua
doutrina preventiva especial negativa, somente o autor de uma verdadeira violação da
lei jurídico-penal poderia ser atingido pelos efeitos da pena, que não teria nenhuma
função ressocializadora, mas apenas de intimidação e neutralização individual61.

2.2.5 Doutrina da retribuição moral absoluta de Kant: um caso a parte

58
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 183.
59
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 183.
60
Essa dupla função, legitimadora e limitadora, da tese defendida por Feuerbach é ressaltada por Sergio
Moccia: “Como se puede advertir, su teorización se preocupa, por un lado, de salvaguardar con una
eficiente teoría de la pena las exigencias de defensa social del delito; por el otro, de garantizar el máximo
de autonomía al individuo contra indebidas intromisiones heterónomas, con una clara y bien definida
legislación, dirigida al castigo de los hechos antijuridicos, reconocibles exteriormente y no de meros
estados subjetivos al deber” (MOCCIA, Sergio. El derecho penal entre ser y valor: función de la pena y
sistemática teleológica. Trad. Antonio Bonanno. Buenos Aires: Julio César Faria Editor, 2003. p. 44).
61
MOCCIA, Sergio. El derecho penal entre ser y valor: función de la pena y sistemática teleológica.
Trad. Antonio Bonanno. Buenos Aires: Julio César Faria Editor, 2003. p. 49.
33

Paralelamente à corrente utilitarista encabeçada por Beccaria, mais ligada ao


empirismo baconiano, destacou-se durante o século XVIII outro filósofo cuja obra é
decisiva para a formação e desenvolvimento do pensamento moderno. Trata-se de
Immanuel Kant (1724-1804), sempre apontado como o maior representante das
doutrinas absolutas da pena62.
Kant, talvez, tenha sido o pensador do iluminismo que mais avançou na
separação entre direito e moral, influenciando, de uma ou de outra maneira, todos
aqueles que o sucederam.
No entanto, ao contrário de Beccaria, Kant mais se aproximava da orientação
racionalista cartesiana63, e, muito embora admitisse que o conhecimento se inicie pela
experiência, isto é, pelo uso de nossos sentidos, ele não pode limitar-se a isso, pois os
sentidos nos transmitem uma imagem deformada ou incompleta das coisas por eles
apreendidas. Ao conhecimento verdadeiro, que ultrapassa o nível empírico e que deve
estar fundado exclusivamente na razão, Kant dá o nome de conhecimento puro ou a
priori; enquanto o conhecimento derivado dos sentidos seria chamado de impuro ou a
posteriori64.
Tal abstração, no entanto, não se limitava às questões relacionadas ao
conhecimento em si mesmo (teórico ou descritivo), produto da razão pura, mas também
ao conhecimento sobre as regras (prescritivas) válidas para o comportamento humano,
aferíveis pela razão prática. Tanto a razão pura, quanto a razão prática, para que

62
“As teorias absolutas, assim chamadas em contraposição às teorias relativas, ou finalistas da pena,
recebem tal denominação por verem, embora sob perspectivas distintas e sob uma também distinta
argumentação, a pena como um fim em si mesmo, pena que, quer como realização da justiça, quer como
expiação de um mal, quer por razões de outra índole, se justifica pura e simplesmente pela verificação de
um fato criminoso, cuja punição se impõe categoricamente; independendo, pois, de considerações finais”
(QUEIROZ, Paulo. Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. Belo
Horizonte: Del Rey, 2001. p. 17).
63
É essa, pelo menos, a percepção de Comparato sobre o método de produção do conhecimento
desenvolvido por Kant (COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo
moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 287). De acordo com a visão autorizada de Höffe,
no entanto, Kant não seguia nem uma linha empirista (Bacon), nem uma linha racionalista (Descartes):
“No decorrer do auto-exame, a razão rejeita o racionalismo porque o pensamento puro não é capaz de
conhecer a realidade. Porém, a razão rejeita também o empirismo. É verdade que Kant admite que todo
conhecimento começa com a experiência; mas não resulta disso, como supõe o empirismo, que o
conhecimento provenha exclusivamente da experiência. Pelo contrário, mesmo o conhecimento empírico
se mostra impossível sem fontes independentes da experiência” (HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad.
Christian Viktor Hamm e Valério Rohden. Martins Fontes: São Paulo, 2005. p. 39). Nesse mesmo
sentido, TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 51.
64
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 287.
34

pudessem levar ao conhecimento verdadeiro (conhecimento puro), deveriam partir de


raciocínios a priori65. E é exatamente isso que Kant tenta fazer em seus “Fundamentos
para uma Metafísica dos Costumes”, apontando a “vontade moralmente boa” como
fundamento racional a priori de toda e qualquer ética: “aquilo que é ilimitadamente
bom não é de modo algum relativo, mas simples ou absolutamente bom”.
Ao contrário dos representantes da “escola penal clássica”, Kant rejeita qualquer
critério utilitário para determinar o que seja moralmente válido ou inválido. O que é
“verdadeiramente bom” deve ser praticado não pelas vantagens ou prazeres sensíveis
que proporciona ao homem, mas apenas porque foi assim revelado pela razão. O
“simplesmente bom” é, a partir de seu conceito, isento de toda condição limitante,
portanto incondicionado; ele é bom em si e sem ulterior objetivo66.
Para determinar o que, afinal, deveria ser considerado “ilimitadamente bom”,
Kant irá recorrer ao conceito de dever, que pode ser dividido entre dever moral e dever
jurídico. O cumprimento do primeiro decorreria exclusivamente do reconhecimento
racional da natureza ilimitadamente boa daquela imposição moral, de modo que não
haveria qualquer necessidade de estímulo externo para que fosse observado pelo homem
virtuoso. Aquilo que é verdadeiramente bom, e logo válido para todos os homens em
todos os tempos, deve ser cumprido, não pelas vantagens que esse cumprimento traz
para o indivíduo (reconhecimento público, sentimento nobre, etc), mas sim pelo fato de
ser moralmente correto, sendo desnecessário qualquer tipo de coação ou recompensa
externa para estimular o homem num ou noutro sentido. O sujeito cumpre a lei moral
por dever de consciência, simplesmente.
Para o cumprimento do dever jurídico, por outro lado, não se exigiria a
conformidade interna da vontade do sujeito com aquilo que determina a norma. Desta
forma, pouco importa para o direito o motivo que levou o indivíduo a observar o dever
legal que lhe é imposto. Se agiu por motivo nobre ou egoísta, se vislumbrava vantagens
práticas na observância da lei ou prejuízos graves no seu cumprimento, isso é
irrelevante para determinar se o dever jurídico foi ou não satisfeito.

65
“A razão prática não é nenhuma outra que a razão teórica; só há uma razão, que é exercida ou prática
ou teoricamente. De modo geral, a razão significa a faculdade de ultrapassar o âmbito dos sentidos, da
natureza. A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento é o uso teórico, na ação é o uso prático da
razão. Com a separação entre o uso teórico e prático da razão, Kant reconhece a distinção de Hume entre
proposições descritivas e proposições prescritivas” (HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. Christian
Viktor Hamm e Valério Rohden. Martins Fontes: São Paulo, 2005. p. 188).
66
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valério Rohden. Martins Fontes:
São Paulo, 2005. p. 191.
35

Para coroar essa rígida distinção entre direito e moral, Kant vai designar de
imperativo categórico o “critério supremo de ajuizamento da moralidade”67, que servirá
para orientar as máximas ou representações subjetivas do dever, as quais nascem em
todas as consciências. A forma fundamental de qualquer dever moral, portanto, é a
seguinte: “Age somente de acordo com aquela máxima mediante a qual possas ao
mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”.
Por outro lado, os deveres jurídicos, como parte da técnica, dizem respeito
unicamente aos meios aptos à consecução de determinados fins, sem que esses fins
sejam necessariamente racionais e bons. Tais deveres configurariam, então, imperativos
hipotéticos, cuja validade se encontra subordinada a um pressuposto limitante, não
valendo para todas as pessoas em todos os tempos como regra absoluta e necessária.
Ao tratar do direito penal mais especificamente, no entanto, Kant parece
confundir a distinção entre direito e moral que ele mesmo convencionou, chegando a
resultados desastrosos68.
Nesse ponto, Kant equipara a lei penal à mais típica expressão da lei moral, o
imperativo categórico: “A lei penal é um imperativo categórico; e infeliz é aquele que se
aventura pelo tortuoso caminho do utilitarismo, buscando encontrar algo que, pela
vantagem que possa obter, retire do culpado, no todo ou em parte, as penas que ele
merece”69.
Equiparando a lei penal ao imperativo categórico, Kant acaba reconhecendo que
a pena é algo “ilimitadamente bom”, válido para todos os homens em todos os tempos, e
que deve ser aplicada independentemente de qualquer benefício prático que se possa
atingir, por simples constatação racional. Tanto assim que, mesmo em uma situação
limite, onde a comunidade inteira de uma pequena ilha estivesse a ponto de se dissolver,
com o consenso de todos, que partiriam rumo a outras bandas, o último assassino que
estivesse no cárcere deveria ser primeiramente morto, “a fim de que cada um sofresse a
pena de seu crime e que o crime de homicídio não recaísse sobre o povo que viesse a se

67
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valério Rohden. Martins Fontes: São
Paulo, 2005. p. 197.
68
“(...) según un modo común a los sostenedores de una teoría penal absoluta, vienen a confundir-se
inopinadamente perspectivas éticas y jurídicas, con implicaciones muy peligrosas respecto de la tutela de
la libertad individual. En Kant – que había realizado con admirable claridad la distinción entre legalidad y
moralidad y, por ende, entre derecho y moral – es muy clara esta confusión de los dos planos respecto de
la teoria de la retribuición” (MOCCIA, Sergio. El derecho penal entre ser y valor: función de la pena y
sistemática teleológica. Trad. Antonio Bonanno. Buenos Aires: Julio César Faria Editor, 2003. p. 33)
69
KANT, Immanuel. Princípios metafísicos del derecho. Tradução de Francisco Ayala. Buenos Aires:
Editorial Americalee, 1943. p. 172.
36

descuidar da tarefa de impor este castigo: pois, do contrário, poderia ser considerado
cúmplice desta violação pública à justiça”70.
Na tentativa de manter-se fiel à máxima segundo a qual se deve tratar o homem
sempre como um fim em si mesmo e nunca como um meio71, Kant chegou a resultado
teórico que nenhum raciocínio a priori poderia conduzir: a natureza ilimitadamente boa
da punição72. Realmente, as teorias preventivas gerais negativas tão em voga à época
reduziam, inevitavelmente, o homem a um meio para atingir o resultado de maior
segurança reclamado pela burguesia, privando-o da sua inviolável dignidade, o que para
Kant era a priori injusto. No entanto, a aplicação pura e simples do talião a toda e
qualquer violação da lei penal, independentemente das conseqüências funestas que essa
conduta poderia trazer, também não corresponde a um ideal de justiça universal, nem no
período iluminista, nem na atualidade, conforme se voltará a discutir mais à frente (item
3.1.1.3, infra).

2.3 A estabilização do Estado moderno e o distanciamento da pessoa humana

Se à época da transição do Antigo Regime para o Estado Moderno os pensadores


ilustrados dividiam suas atenções entre a necessidade de, ao mesmo tempo, legitimar e
limitar o poder punitivo, após a estabilização da burguesia como classe social
dominante, essa última preocupação foi paulatinamente desaparecendo. É que a classe
hegemônica já não necessitava mais impor limites à nobreza, cuja influência na
sociedade industrial foi minguando até ficar reduzida a um papel puramente decorativo.
Como visto acima, durante o Estado absolutista o poder punitivo havia sido
naturalizado com base no discurso da origem divina, de modo que não pudesse ter sua
legitimidade questionada pelos súditos, sob pena de colocar-se em dúvida a própria
existência de Deus, o que configurava crime (pecado) punível com a fogueira. Essa
imutabilidade da estrutura do poder punitivo foi fortemente abalada pela concepção
70
KANT, Immanuel. Princípios metafísicos del derecho. Tradução de Francisco Ayala. Buenos Aires:
Editorial Americalee, 1943. p. 174.
71
“Age de forma a tratar a humanidade, não só em tua própria pessoa, mas na pessoa de qualquer outro,
ao mesmo tempo como uma finalidade e jamais como um meio”.
72
A própria etimologia do vocábulo “pena”, seja pela raiz grega (poinē), seja pela raiz latina (poena),
revela que o fenômeno está diretamente associado à idéia de “punição, sofrimento, dor”, que é o exato
oposto de bom (HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 2.174).
37

contratualista do Estado defendida pelos iluministas, que, como criação artificial


humana, poderia assumir a forma que o próprio homem, através de sua razão,
determinasse.
No entanto, uma vez estabilizada a burguesia no poder, não tardou para que
aquele discurso revolucionário e crítico assumisse novamente ares de instrumento
estabilizador da ordem, conferindo-se à sociedade a concepção de organismo natural e
ao Estado o status de expressão máxima do “espírito ético”. A dupla função
legitimadora e limitadora identificada no pensamento ilustrado, dá lugar, então, ao
discurso da defesa social pura e simples.

2.3.1 O direito penal moralista e a pena como prevenção especial positiva

A já conhecida divisão entre empiristas e racionalistas, verificada na etapa


anterior e representada idealmente pelos trabalhos de Beccaria e Kant, respectivamente,
irá novamente distinguir as duas principais correntes que servirão de sustentação ao
novo Estado burguês.
Para os adeptos do método empírico de conhecimento, o caminho escolhido para
a naturalização do Estado industrial moderno será aberto pela teoria evolucionista de
Darwin (1809-1882), que, combinada com o positivismo de Herbet Spencer (1820-
1903), levará à formação da “escola positiva” de Lombroso e Ferri, em contraposição ao
que este último denominou de “escola penal clássica” do período iluminista73.
A idéia básica do positivismo era a de trazer para as ciências humanas os
mesmos métodos de investigação que tinham provado ser tão bem-sucedidos no estudo
da natureza, a saber: a observação, a experimentação e a comparação. Através desses

73
“Os postulados da Escola Positiva, em contraposição aos da Escola Clássica, podem ser sintetizados
desta maneira: o delito é concebido como um fato real e histórico, natural, não como uma fictícia
abstração jurídica; sua nocividade deriva não da vida social, que é incompatível com certas agressões que
põem em perigo suas bases; seu estudo e compreensão são inseparáveis do exame do delinqüente e da sua
realidade social; interessa ao positivismo a etiologia do crime, isto é, a identificação das suas causas como
fenômeno, e não simplesmente a sua gênese, pois o decisivo será combatê-lo em sua própria raiz, com
eficácia e, sendo possível, com programas de prevenção realistas e científicos; a finalidade da lei penal
não é restabelecer a ordem jurídica, senão combater o fenômeno social do crime, defender a sociedade; o
positivismo concede prioridade ao estudo do delinqüente, que está acima do exame do próprio fato, razão
pela qual ganha particular significação os estudos tipológicos e a própria concepção do criminoso como
subtipo humano, diferente dos demais cidadãos honestos, constituindo esta diversidade a própria
explicação da conduta delitiva” (MOLINA, García-Pablos de. Criminologia. São Paulo: RT, 2000. p.
176).
38

recursos, acreditava-se poder explicar qualquer fenômeno, físico ou social, inclusive o


“por quê do exercício do poder punitivo” de uns em relação aos outros.
Assim como se tinha recorrido aos povos sem divisão de classes do Novo
Mundo para fundar a teoria do contrato social à época da primeira expansão marítima,
foi mais uma vez a comparação entre o europeu e o selvagem que inspirou o novo
discurso que legitimaria o exercício do poder punitivo.
Comparando o cérebro de homens de diferentes etnias, Joseph Arthur de
Gobineau havia chegado, já em 1853, à conclusão de que existia uma relação entre o
volume daquele órgão e o grau de civilização da pessoa, demonstrando, desta forma,
cientificamente (observação, experimentação e comparação), que não existia igualdade
entre as raças humanas74. Por óbvio, os espécimes mais evoluídos (ou ainda não
completamente degenerados)75 corresponderiam a uma raça ariana superior, que havia
se concentrado e ainda se encontrava no centro e no norte da Europa76.
A superioridade “empiricamente comprovada” do homem europeu, coincidência
ou não, foi o discurso apropriado para legitimar “componentes difíceis de
compatibilizar: liberalismo econômico, controle sem limite das classes perigosas,
neocolonialismo, oligarquias nos países dependentes e, ao mesmo tempo, a
deslegitimação da escravatura, e tudo por intermédio da ciência”77.
No entanto, foi Cesare Lombroso (1835-1909), um médico, antropólogo e
político italiano, quem escreveu a obra considerada fundacional da criminologia
científica: “O homem delinqüente”, publicado no ano de 1878.
Em sua pesquisa supostamente científica, Lombroso analisou milhares de
delinqüentes vivos e mortos (autópsias), sempre adotando a cautela de descrever apenas
sujeitos já considerados culpados pelos órgãos julgadores. Privilegiando sempre os
aspectos físicos, o médico italiano chegou à conclusão de que havia seis tipos distintos
de delinqüentes: o criminoso nato (atávico), o louco moral (doente), o epilético, o louco,
o ocasional e o passional. De acordo com seu ponto de vista, “o delinqüente padece de
uma série de estigmas degenerativos comportamentais, psicológicos e sociais (fronte
esquiva e baixa, grande desenvolvimento dos arcos supraciliais, assimetrias cranianas,

74
Daí o título de sua principal obra: “Essai sur l´inégalité des races humaines”.
75
Diz-se que o racismo de Gobineau era pessimista, pois acreditava que, em razão da miscigenação das
raças, tão comum nas colônias, o ser humano seguia um inevitável processo involutivo. Não é por outro
motivo que se atribui a ele a seguinte frase: “Eu não acredito que viemos do macaco, mas creio que
estamos indo nessa direção”.
76
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 570.
77
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 571.
39

fusão dos ossos altas e occipital, grande desenvolvimento das maçãs do rosto, orelhas
em forma de asa, tubérculo de Darwin, uso freqüente de tatuagens, notável
insensibilidade à dor, instabilidade afetiva, uso freqüente de um determinado jargão,
altos índices de reincidência, etc)”78.
Apesar de ser um grande observador, Lombroso não desconfiou de que os traços
físicos e comportamentais que identificavam os grupos por ele investigados pudessem
ser resultado dos critérios de seleção das pessoas tidas por criminosas, tal como
demonstraria um século mais tarde a teoria do labeling aproach (vide item 3.2.1, infra),
e não de características comuns a todo e qualquer delinqüente. Na verdade, não era o
europeu delinqüente que apresentava uma fisionomia próxima a dos selvagens menos
evoluídos, senão o processo policial de identificação e prisão das pessoas tidas por
perigosas que incidia prioritariamente sobre esse grupo79, num fenômeno análogo ao
constatado por Jock Young nas prisões norte-americanas dos dias atuais80.
A tipologia puramente fisionomista de Lombroso (fator individual) foi acrescida
de fatores físicos (clima, estações, temperatura, etc) e sociais (densidade da população,
família, moral, religião, educação, etc) na sociologia positivista de Enrico Ferri (1856-
1929), que pugnava pela substituição do direito penal por medidas de prevenção diretas.
Sua tese é a seguinte: “o delito é um fenômeno social, com uma dinâmica própria e
etiologia específica, na qual predominam os fatores ‘sociais’. Em conseqüência, a luta e
a prevenção do delito devem ser concretizadas por meio de uma ação realista e
científica dos poderes públicos que se antecipe a ele e que incida com eficácia nos

78
MOLINA, García-Pablos de. Criminologia. São Paulo: RT, 2000. p. 179.
79
“A polícia selecionava pessoas com essas características e as prendia, e Lombroso verificava os presos
que as possuíam. A conclusão de Lombroso assinalava que tais características eram a causa do delito
quando, na realidade, eram apenas a causa da prisionização. E como havia menos mulheres presas,
segundo a hierarquização biológica, concluía-se que, na mulher, a prostituição atuava como um
equivalente do delito” (ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro:
Revan, 2003. p. 574).
80
Na verdade, esse tipo de discurso eminentemente racista, apesar de estar em desconformidade com o
valor da dignidade humana adotado de forma praticamente unânime, ao menos sob o ponto de vista
formal, por todos os países ocidentais da atualidade, influenciou de tal forma o pensamento moderno que
ainda hoje continuam surgindo e se expandindo teorias inequivocamente filiadas ao mesmo modelo de
criminologia etiológica. Exemplo caricato disso é o livro de Charles Murray e Richard Herrnstein, que
abriu caminho para a doutrina da “tolerância zero” nos Estados Unidos da América, produto dos altos
investimentos feitos por organizações supostamente de cunho científico (think tanks) como o Manhattan
Institute e a Heritage Foundation, que vêm financiando e divulgando, “desde o início dos anos noventa,
pesquisas acadêmicas conservadoras que fundamentam e buscam legitimar as práticas das políticas
neoliberais”. Em “The Bell Curve: Intelligence and Class Structure in American Life”, os autores
sustentam que “todas as ‘patologias sociais’ que atingem a contemporânea sociedade urbana norte-
americana se concentram nas partes mais baixas da população, por estas terem um baixo coeficiente de
inteligência” (DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e Segurança: entre pombos e falcões. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 56 e ss.).
40

fatores (especialmente nos fatores sociais) criminógenos que o produzem, nas mais
diversas esferas (econômica, política, científica, legislativa, religiosa, familiar,
educativa, administrativa, etc), neutralizando-os”81.
De acordo com essa concepção positivista, o livre-arbítrio que caracterizava a
noção de delito para os autores do paradigma contratualista é completamente rechaçado.
O delinqüente, na qualidade de ser inferior, incompleto e doente, seria absolutamente
incapaz de se autodeterminar, de modo que passa a ser de todo inútil qualquer tentativa
de influenciar a formação de sua vontade através da intimidação gerada pela aplicação
da pena (doutrina da prevenção geral e especial negativas).
Por outro lado, a doutrina retributiva de Kant é reputada por demais metafísica,
não se prestando à intervenção higienizadora pretendida pelos positivistas, eis que
critérios puramente morais não se ajustam às exigências da nova ciência empírica e
eficientista.
É assim que vão surgir as doutrinas da pena fundadas na idéia de ressocialização
daqueles delinqüentes que são passíveis de serem corrigidos e de eliminação daqueles
que, devido ao seu grau de desenvolvimento muito baixo, sequer podem ser adestrados
para um convívio social civilizado. Nesse contexto, ganha relevo a classificação
tipológica criada por Lombroso e desenvolvida por Ferri, pois ela facilita o trabalho
tanto do juiz, quanto dos agentes penitenciários, que viriam a ser chamados por
Foucault de “ortopedistas da alma”.
Com a transferência do objeto de estudo da conduta criminosa para o homem
criminoso, a ciência jurídica é relegada a saber de segunda categoria e passa a ser
considerada mero apêndice das ciências médicas, biológicas, antropológicas, sociais,
etc.
Para salvar algum espaço para a atuação do jurista, Franz Von Liszt (1851-1919)
concebe a chamada “ciência total do direito penal”, que se encarregaria de três tarefas
investigativas: a) criminológica – seria a verdadeira, que tinha função científica ou de
indagação das causas do delito e do efeito das penas; b) político-criminal – seria a tarefa
valorativa, que surgia como resultado da científica; c) direito penal (dogmática) – seria a
pedagógica, que consistia em pôr limites à política criminal.
Distinguindo criminologia de direito penal, Liszt consegue, ainda que
parcialmente, resgatar a importância prática desse ramo do conhecimento. Para o autor

81
MOLINA, García-Pablos de. Criminologia. São Paulo: RT, 2000. p. 183.
41

alemão, o direito penal constituiria a “Carta Magna do delinqüente” contra as investidas


da política criminal. No entanto, sendo esta determinada pelas descobertas
verdadeiramente científicas realizadas pela criminologia etiológica, era inevitável que a
pena criminal, como expressão do poder (política) e não do direito, tivesse como
finalidade a realização da mesma função preventiva especial delineada pelos membros
da escola positiva italiana. Assim é que, “se os princípios da punibilidade deveriam
determinar-se segundo os princípios liberais do Estado de Direito exatamente como
sempre expôs a Escola Clássica”, uma vez “constatada a punibilidade através do
‘método jurídico’, a sanção deveria medir-se exclusivamente pelas necessidades
sociais”82.
Atento, portanto, aos ensinamentos da criminologia positivista e utilizando-se da
tipologia correspondente, Liszt vai identificar em seu famoso Programa de Marburgo
três funções básicas para pena privativa de liberdade, de acordo com as características
pessoais de cada grupo de delinqüente: ocasionais, adaptáveis e inadaptáveis.

“Conforme a natureza e a extensão do mal da pena, diferente pode ser o centro


de gravidade do efeito exercido sobre o delinqüente pela execução penal.
a) a pena pode ter o fim de converter o delinqüente em um membro útil à
sociedade (adaptação artificial). Podemos designar como intimidação ou
emenda o efeito que a pena visa, conforme se tratar, em primeiro lugar, de
avigorar as representações enfraquecidas que refreiam os maus instintos ou de
modificar o caráter do delinqüente;
b) a pena pode ter por fim tirar perpétua ou temporariamente ao delinqüente
que se tornou inútil à sociedade a possibilidade material de perpetrar novos
crimes, segregá-lo da sociedade (seleção artificial). Costuma-se dizer que
neste caso o delinqüente é reduzido ao estado de inocuidade
(Unschädlichmachung)”83.

Não obstante essa roupagem supostamente científica, direito e moral voltam a


ficar tão entrelaçados quanto no período da Santa Inquisição, com a simples diferença
de que, agora, não mais o satânico, mas o selvagem (o anti-social), era o mal a ser
extirpado. Pouca diferença faz se a pena será executada por um padre ou pelo psiquiatra,

82
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 72.
83
LISZT, Franz von. Tratado de direito penal. Campinas: Russel, 2003. p. 144.
42

o que aproxima essa doutrina da fase inquisitiva medieval é a idêntica tendência de


estabilização do poder através do controle das classes consideradas perigosas, seja por
critérios pretensamente religiosos, seja por critérios de risível cientificidade84.
A precariedade dos argumentos científicos que legitimariam o exercício do
poder punitivo em Liszt se repete na doutrina do bem jurídico por ele desenvolvida para
justificar a ação incriminadora do Estado.
Da mesma forma que a noção de delito foi cunhada com base em observações
empíricas, que revelaram a existência de seres subdesenvolvidos propensos à prática de
condutas criminosas, Lizst defendia que o bem jurídico penal não é criado pelo
legislador, mas sim identificado por ele no cenário social (como condições da vida) e,
posteriormente, protegido mediante a norma penal85. Portanto, “é a vida, e não o
Direito, que produz o interesse” a ser tutelado pelo Estado, “mas só a proteção jurídica
converte o interesse em bem jurídico”86. Exatamente por conta disso, ressalta Juarez
Tavares que há que se distinguir, no pensamento de Von Liszt, duas situações:

“A primeira diz respeito à origem do bem jurídico, isto é, do interesse; a outra,


às razões da própria incriminação. Assim, por um lado, manifesta VON LISZT
o entendimento de que o interesse, que vai dar lugar ao bem jurídico, é pré-
existente ao conteúdo da norma; a esta cabe apenas acolhê-lo como seu objeto
de proteção, em se tratando de uma condição vital da comunidade estatal. Por
outro lado, não indica o porquê da escolha, por parte do legislador, daquele e
não de outros interesses como bens jurídicos, sendo-lhe indiferente, portanto,
as razões da incriminação. Esta é a crítica que lhe faz HASSEMER, para quem
esta posição demonstra sua filiação à estrutura positivista, que aceita
empiricamente, a existência do interesse, sem qualquer consideração de valor
acerca de sua significação e da legitimidade do Estado de levá-lo à categoria
de bem jurídico. Este segundo significado do bem jurídico, embora possa ser
respaldado, hipoteticamente, como experiência jurídica, assinala, por
excelência, uma visão normativa de sua realidade, porque se desgarra de seu

84
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.
218.
85
PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 33.
86
LISZT, Franz von. Tratado de direito penal. Campinas: Russel, 2003. p. 139.
43

substrato empírico e abre caminho à sua criação a partir de um ato de


autoridade”87.

No final das contas, assim como inexistia fundamento científico para a


identificação do delinqüente nato, não passando os esforços teóricos da criminologia
positivista de uma maneira de encobrir a natureza eminentemente seletiva e
discriminatória do poder punitivo, a escolha dos bens jurídicos a serem tutelados pela
norma penal também não tinha amparo empírico algum, estando integralmente
submetida ao arbítrio do Estado-legislador, que, em épocas de consolidação do poder,
tende a voltar sua fúria repressiva sobre os grupos que oferecem maior risco à sua
perpetuação.

2.3.2 A pena como retribuição puramente jurídica e o Estado como titular dos bens
jurídicos

Outra linha de pensamento que deu sustentação a uma concepção organicista da


sociedade burguesa é tributária do idealismo romântico de Georg Friedrich Wilhelm
Hegel (1770-1831), que via no Estado não um simples instrumento de realização dos
fins dos indivíduos, mas um valor ético em si mesmo, ou seja, para ele o Estado “é a
manifestação suprema do Espírito no seu devir histórico e por tanto é ele mesmo o fim
último ao qual os indivíduos estão subordinados”88.
Hegel teve o mérito de incluir na investigação filosófica racionalista o fator
historicidade, o que o afastou consideravelmente das idéias de Kant, muito embora
ambos sejam apontados como os principais representantes das doutrinas absolutas da
pena.
Como já visto anteriormente (item 2.2.5, supra), Kant considerou o direito penal
(rectius, poder punitivo) um imperativo categórico, acreditando que a retribuição pura e
simples do mal causado pelo crime pelo mal infligido através da pena seria algo

87
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 188.
88
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p.
224.
44

“ilimitadamente bom”, ou seja, um juízo moral determinado a priori pela razão, eis que
válido universalmente para qualquer pessoa, em qualquer época.
Para Hegel, contudo, a sociedade só pode ser compreendida de modo concreto
no tempo e no espaço, e não de forma abstrata, como nas concepções tradicionais de um
direito natural, sempre igual a si mesmo89. Segundo o filósofo alemão, não existem,
como em Kant, dois mundos separados (dualismo metódico), um impuro e outro puro,
um real e outro ideal, um correspondente ao ser e o outro correspondente ao dever-ser.
Na verdade, existe apenas um mundo (monismo metódico), o mundo do espírito, e é em
direção a ele que a sociedade concreta evolui, de acordo com um determinado esquema
em constante progresso, consubstanciado na famosa dialética hegeliana: tese, antítese e
síntese90.
Nesta evolução, a sociedade não estaria entregue à atuação obscura de um
qualquer espírito do povo, sob pena de ser transformada em vítima e não senhora de seu
próprio destino. A história, em Hegel, tem que se consumar lógica e necessariamente
segundo a lei da razão, cuja expressão máxima seria o Estado.

“O Estado, como realidade da vontade substancial que tem a consciência de si


individual elevada a sua universalidade, é o racional em si e para si. Esta
unidade substancial, como fim absoluto e imutável de si mesma, é onde a
liberdade alcança o mais alto direito frente aos indivíduos, cujo dever supremo
é o de ser membros do Estado”91.

Quanto ao problema da justificação do poder punitivo especificamente, a


legitimidade de seu exercício decorreria da própria certeza de que tudo que advém do
Estado é expressão do “espírito ético”92 e, logo, justo. Desta forma, a pena, como

89
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 313.
90
KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In KAUFMANN,
Arthur; HASSEMER, Winfried (orgs). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. p. 104.
91
HEGEL, Guillermo Frederico. Líneas Fundamentales de la filosofía del derecho. Tradução de Angélica
Mendoza de Montero. Buenos Aires: Claridad, 1937. p. 220, §258: “El Estado, como la realidad de la
voluntad sustancial que posee en la conciencia de sí individual elevada a su universalidad, es lo racional
en sí y para sí. Esta unidad sustancial como absoluto e inmóvil fin de sí misma, es donde la libertad
alcanza el más alto derecho frente a los individuos, cuyo deber supremo es el de ser miembros del
Estado”.
92
“El Estado es la realidad de la Idea ética; es el Espíritu ético en cuanto voluntad patente, clara para sí
misma, sustancial, que se piensa y se sabe, y que cumple lo que él sabe y cómo lo sabe. En lo Ético, el
45

resposta absoluta, não representaria o mal que se opõe ao delito, tal como defendido por
Kant, mas sim a restauração positiva do direito, que se daria por meio da negação (pena)
de sua negação (crime).

“Nesta discussão o que interessa unicamente é que o delito deve negar-se não
como a produção de um mal, senão como a vulneração do direito como direito,
e essa é a existência que tem o delito, e que deve ser anulada; ela é o
verdadeiro mal que deve ser arrancado e o ponto essencial é onde essa
existência esteja. Enquanto os conceitos sobre esse ponto não estejam
claramente determinados, deverá dominar a desordem na consideração da
pena”93.

A elevação do Estado à condição de “realidade da idéia ética” teve


conseqüências sensíveis também na doutrina do bem-jurídico, que refletiria a idéia
organicista de sociedade hegeliana, onde o indivíduo somente existe enquanto membro
do Estado. Como conseqüência direta disso, “a essência do delito era para Hegel uma
lesão à eticidade, alcançada no estado e não nas ações que consistem em vontade
subjetiva”94. Numa frase: o titular dos bens jurídicos era única e exclusivamente o
Estado, e nunca os indivíduos.
Essa noção de bem jurídico como direito ou interesse exclusivamente estatal foi
desenvolvida no campo jurídico por Karl Binding (1841-1920), que, não por mera
coincidência, é considerado um dos maiores propulsores da teoria absoluta da pena de
viés hegeliano.
Binding travou com Von Liszt famoso duelo na Alemanha da segunda metade
do século XIX, que ficou conhecido como a “luta das escolas”, quando se enfrentaram o
“positivismo jurídico”, de um lado, e a “criminologia positivista”, de outro95. Como

Estado tiene su existencia inmediata y en la conciencia de sí del individuo, en su conocer y actividad tiene
su existencia mediata, e esta conciencia de sí, por medio de los sentimientos, tiene su libertad sustancial
con él, como su esencia, fin y producto de su actividad” (HEGEL, Guillermo Frederico. Líneas
Fundamentales de la filosofía del derecho. Tradução de Angélica Mendoza de Montero. Buenos Aires:
Claridad, 1937. §257).
93
HEGEL, Guillermo Frederico. Líneas Fundamentales de la filosofía del derecho. Tradução de Angélica
Mendoza de Montero. Buenos Aires: Claridad, 1937. §99.
94
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 556.
95
Arthur Kaufmann divide o positivismo jurídico em dois grandes campos, segundo a distinção entre
dever-ser e ser, do dualismo metódico: “(...) de um lado, temos o positivismo lógico normativo,
direcionado para o dever-ser, para a norma; aqui, apenas é considerada a estrutura formal das normas, não
o seu conteúdo (Kant!); a configuração mais importante deste positivismo encontramo-la na ‘teoria pura
46

principal representante da primeira corrente, Binding defendia a tese da pena como


retribuição, ao mesmo tempo em que reduzia o conceito de bem jurídico a tudo aquilo
que o legislador entendesse como tal96. Diferentemente de Liszt, portanto, que tentava
esconder as decisões políticas do legislador sob o manto pseudocientífico das
verificações empíricas, Binding reconhecia que a função incriminadora era ditada
exclusivamente pelo juízo ético que o próprio Estado fazia de si mesmo, ao passo em
que a punição se impunha exclusivamente para reafirmar a existência e o funcionamento
do organismo estatal, de forma absoluta.

2.4 A crítica ao pensamento hegemônico burguês

A exata compreensão da força e influência dos interesses burgueses na


formação do pensamento moderno não pode ser alcançada sem que se faça, pelo menos,
uma breve referência à obra de Karl Marx (1818-1883).
Com efeito, a análise descritiva que Marx fez da sociedade burguesa oitocentista
foi fundamental para explicitar o caráter interessado de muitas das teses supostamente
científicas que buscavam legitimar o exercício do poder em benefício de alguns, ainda
que sob a promessa de servir igualmente a todos.

do direito’ de Hans Kelsen. Do outro lado, está o positivismo empiricista, o qual se ocupa do ser, dos
fatos jurídicos; de entre estes, a psicologia jurídica trata dos fatos subjetivos (Bierling, entre outros), a
sociologia jurídica trata dos objetivos (com raízes em Rudolf v. Jhering e, sobretudo, em Max Weber)”
(KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In KAUFMANN,
Arthur; HASSEMER, Winfried (orgs). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. p.120). A noção de bem jurídico, por sua vez, “varia, conforme essas duas vertentes do
positivismo. Segundo o positivismo jurídico, somente a lei expressa os objetos jurídicos, porque encerra a
vontade declarada do estado. O bem jurídico se reduz, aqui, a um elemento da própria norma, que tanto
pode ser sua finalidade quanto a ratio de seu sistema. Representante deste posicionamento é BINDING.
Segundo o positivismo sociológico ou naturalista, derivado, por desdobramento, da escola histórica, o
direito tem sua fonte não apenas na lei, mas principalmente no costume, ou no espírito do povo, como
sintetizador de uma vontade geral, ao estilo contratualista ou organicista. A noção de bem jurídico como
interesse juridicamente protegido, tal como na proposta de VON LISZT, é produto dessa idéia privatística
dominante no século passado, que se intrometeu na formulação da teoria do injusto desde VON
JHERING e constituía um pressuposto indeclinável também do desenvolvimento da vida material”
(TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 187).
96
“Para Binding, bem jurídico é tudo aquilo que, aos olhos do legislador, tem valor como condição de
vida da comunidade jurídica, e, para cuja manutenção, a sociedade, também a critério do legislador, tem
interesse em proteger de lesões, ou perigos, por meio de suas normas” (PASCHOAL, Janaína Conceição.
Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p.
30).
47

Apesar de se utilizar o método dialético hegeliano, Marx nega que a realidade


fosse produto de uma evolução histórica dirigida pelo espírito, e menos ainda que o
Estado fosse a concretização máxima desse ideal ético. Para ele é a estrutura econômica
da sociedade, como sua única base real, que servirá de mola mestra da história,
condicionando todas as manifestações culturais, políticas e intelectuais. Visto por outro
ângulo, todos os discursos políticos, jurídicos ou sociais nada mais são do que
estratégias de combate das diferentes classes na luta pelo domínio dos meios de
produção97. Assim, o ideal não é mais do que o material convertido e traduzido pela
inteligência humana98.
A teoria do contrato social, a filosofia utilitarista e até mesmo a Declaração dos
Direitos do Homem nada mais seriam do que tentativas da classe burguesa de
transformar os seus próprios interesses em interesses comuns de toda a sociedade, com
vistas a conferir-lhes caráter de universalidade e assim legitimá-los como os únicos
razoáveis99. Na prática, contudo, somente uma pequena parcela dos homens é de fato
cidadã; apenas os que são proprietários podem gozar efetivamente do direito de
liberdade conferido teoricamente a todos, de modo que a transição do feudalismo para a
época moderna, longe de ter significado a alforria da classe servil, representou na

97
“O que prova a história das idéias, senão que a produção espiritual se transforma com a transformação
da produção material? As idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da classe dominante.
(...) Quando o mundo antigo estava em declínio, as religiões antigas foram vencidas pela religião cristã.
Quando as idéias cristãs cederam lugar, no século XVIII, às idéias das Luzes, a sociedade feudal travava a
sua luta de morte com a burguesia então revolucionária. As idéias de liberdade de consciência e liberdade
religiosa exprimiam apenas, no domínio do conhecimento, o império da livre concorrência” (MARX,
Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de José Paulo Neto. São Paulo:
Cortez, 1998. p. 28).
98
KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In KAUFMANN,
Arthur; HASSEMER, Winfried (orgs). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. p. 108.
99
Nesse exato sentido, a crítica feita por Marx contra Jeremy Bentham e sua filosofia utilitarista: “Se
queremos, por exemplo, saber o que é útil a um cão, temos que conhecer antes a sua natureza. Essa
natureza não pode ser inferida do princípio de utilidade. Do mesmo modo, para julgar todas as ações,
movimentos, relações etc. do homem pelo princípio da utilidade, temos de nos ocupar, antes, com a
natureza humana em geral e ainda com a natureza humana historicamente modificada em cada época.
Bentham não faz cerimônia. Com a mais ingênua simplicidade, supõe que o burguês moderno,
especialmente o burguês da Inglaterra, é o ser humano normal. O que é útil a essa normalidade humana e
a seu mundo, é útil de maneira absoluta. Por esse padrão julga o passado, o presente e o futuro. A religião
cristã, por exemplo, é útil porque condena, no plano religioso, os mesmos delitos que o código penal pune
no domínio jurídico. A crítica da arte é prejudicial porque perturba a admiração das pessoas honestas por
Martin Tupper etc. Com idéias desse jaez, nosso valoroso homem, cuja divisa é nulla dies sine línea,
escreveu montanhas de livros. Se eu tivesse a coragem de meu amigo H. Heine, chamaria Jeremias de
gênio da estupidez humana” (apud COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no
mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 351).
48

verdade um agravamento de sua posição de inferioridade, agora na condição de


proletariado100.
Toda forma de poder amparada no direito e exercida pelo Estado seria, portanto,
mero instrumento de dominação de classe, que desapareceria, pura e simplesmente, na
medida em que o proletariado vencesse a luta travada com a burguesia. Desse embate
direto resultaria, na concepção de Marx, a “ditadura do proletariado”, como síntese e
fim de todas as lutas de classes. E com o fim das lutas de classes, com o despontar da
“sociedade sem classes”, também o direito e o Estado se tornariam supérfluos, eis que
os homens já viveriam em perfeita harmonia101.
Não havia razão, assim, para que Marx se detivesse no problema da
(des)legitimação do poder punitivo ou do direito penal, uma vez que este estava, na
verdade, condicionado a questões econômicas infra-estruturais e não podia ser
solucionado sem que se chegasse ao fim da história102, quando a igualdade material faria
sumir todo e qualquer problema social, inclusive o da criminalidade. Tanto a função
estatal incriminadora, quanto a função punitiva, eram conseqüências naturais do sistema
capitalista e continuariam existindo (legitimamente ou não) enquanto este não fosse
superado pelo socialismo. Nas palavras de um dos prinicipais juristas do marxismo:

100
“(...) enquanto o direito das antigas ordens ou estamentos feudais unia os homens na sucessão
ininterrupta das gerações, como membros de uma mesma comunidade, para a vida e para a morte, a
propriedade (rectius, a propriedade do direito burguês) separa definitivamente os indivíduos uns dos
outros, tanto os proprietários entre si, quanto eles em relação aos que não conseguiram adquirir a
propriedade; os quais, por isso mesmo, perdem a própria posse de suas vidas, tornam-se despossuídos.
Com efeito, a essência da propriedade privada, como paradigma dos direitos reais na sociedade burguesa,
é bem o seu caráter exclusivo: o proletariado está legalmente autorizado a usar, gozar e dispor da coisa
que lhe é própria como bem entender, e excluir desse uso, gozo e disposição (o abusus romano, isto é, a
alienação ou consumo integral da coisa) todos os demais sujeitos de direito. É esta, frisou Marx, a
verdadeira e fundamental liberdade burguesa. Quando as declarações de direitos da Revolução Francesa
definem a liberdade como ‘o poder de fazer tudo o que não causa prejuízo a outrem’, elas estabelecem
logicamente entre os indivíduos limites intransponíveis, como as linhas divisórias que demarcam terrenos
contíguos” (COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 339).
101
KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In KAUFMANN,
Arthur; HASSEMER, Winfried (orgs). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. p. 108.
102
É essa, aliás, a conclusão a que chega Pasukanis ao desenvolver sua teoria geral do direito marxista:
“As teorias do direito penal que deduzem os princípios da política penal a partir dos interesses do
conjunto da sociedade são deformações conscientes da realidade. ‘O conjunto da sociedade’ só existe na
imaginação dos juristas; só existem, de fato, classes com interesses opostos, contraditórios. Todo sistema
histórico e determinado de política penal traz a marca dos interesses da classe a qual serve. O senhor
feudal executava o camponês insubmisso e os citadinos que se opunham à sua dominação. Na idade
Média todo indivíduo que quisesse exercer uma profissão sem ser membro de uma corporação era
considerado fora da lei; e a burguesia capitalista, tão logo surgiu, declarou criminosos os esforços dos
operários para se reunirem em associações” (PASUKANIS, Eugeny Bronislanovich. A teoria geral do
direito e o marxismo. Tradução de Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar, 1989. p. 152).
49

“Somente o desaparecimento completo das classes permitirá criar um sistema


penal do qual será excluído qualquer elemento de antagonismo de classe. A
questão que se coloca é saber em quais circunstâncias tal sistema penal ainda
será necessário. Se a prática penal do poder de Estado é em seu conteúdo e em
seu caráter um instrumento de defesa da dominação de classe, em sua forma
ela aparece como um elemento de superestrutura jurídica e integra-se no
sistema jurídico como um de seus ramos. Mostramos precedentemente que a
luta aberta pela sobrevivência assume, com a introdução do princípio da
equivalência, forma jurídica. O ato de legítima defesa perde sua característica
de simples defesa e torna-se uma forma de troca, um modo particular de
circulação que encontra seu lugar ao lado da circulação comercial ‘normal’. Os
delitos e as penas transformam-se naquilo que realmente são, ganham
característica jurídica, sobre a base de um contrato. Enquanto esta forma se
conserva, a luta de classe se realiza pelo direito. Inversamente, a própria
denominação ‘direito penal’ perderia todo o sentido se este princípio de
relação de equivalência desaparecesse”103.

2.5 O Positivismo lógico-normativo e a consolidação do paradigma dogmático de


ciência penal

A crítica materialista ao sistema capitalista recebeu como resposta dos juristas a


construção de um muro de contenção entre a realidade e as normas positivadas, com o
que pretendiam impedir qualquer tipo de influência externa sobre o direito, tal como
mais tarde defenderia explicitamente Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito
(1934):

“Desde o ponto de vista da Teoria pura do direto, não importa qual é esse
estado; se em particular tem, como afirma o socialismo, o caráter de
dominação exploradora por parte de uma classe. Pois ela não toma em

103
PASUKANIS, Eugeny Bronislanovich. A teoria geral do direito e o marxismo. Tradução de Paulo
Bessa. Rio de Janeiro: Renovar, 1989. p. 153.
50

consideração o fim que é perseguido e alcançado com a ordem jurídica, senão


a ordem jurídica em si mesma; e não o considera com relação a esse fim, nem
também como causa possível de determinado efeito – pois a relação de meio a
fim é somente um caso particular da relação de causalidade –, senão a
legalidade normativa própria de seu substrato de sentido”104.

No final das contas, como se acabou percebendo, as diferenças entre a


criminologia positivista e o positivismo jurídico não eram propriamente de fundo, mas
apenas de método, sendo certo que ambas as disciplinas buscavam, em essência,
fundamentos que legitimassem o controle social por meio do direito penal, de modo a
estabilizar o poder nas mãos da burguesia já hegemônica105.
A originária luta entre as escolas penais foi, assim, se convertendo numa divisão
de trabalho científico, com a consolidação tanto da criminologia etiológica, quanto da
dogmática jurídica, como saberes autônomos, embora num primeiro momento
continuassem marchando funcionalmente num ritmo compassado106.
Curiosamente, foi um retorno ao dualismo metódico kantiano, operado pela
Escola Sudoccidental alemã, que terminou por estabelecer essa diferença metodológica
e, conseqüentemente, por dar uma fundamentação científica à dogmática penal.
Partindo da rigorosa separação entre ser e dever ser, os neokantianos defendiam
a existência de dois tipos de ciência distintos: as ciências da natureza e as ciências da
cultura. Enquanto as primeiras se preocupariam apenas com a descrição dos fatos como
eles se apresentam na natureza, objetivamente, as últimas se encarregariam de
compreender estes mesmos fatos a partir de sua dimensão axiológica, ou seja, porquanto
impregnados de valores107.

104
KELSEN, Hans. La teoría pura del derecho: introducción a la problemática científica del derecho.
Tradução de Jorge G. Tejerina. Buenos Aires: Losada, 1946. p. 61.
105
“Como se vê, as diferenças entre ambos os autores, que deram lugar à famosa ‘luta de Escolas’, eram
mais de terminologia que de conteúdo. O que Von Liszt pretendia com a sua tipologia de autores era a
‘inocuização’ daqueles que considerava incorrigíveis; o que Binding defendia com o seu Direito penal
retributivo era exatamente o mesmo, mas exasperando a gravidade da pena, apoiando a mais contundente
reação penal (a prisão perpétua ou mesmo a pena de morte) em uma maior culpabilidade do sujeito ou em
idéias abstratas, de nobreza e exaltação do conceito de pena. Mas a finalidade última é em ambos os
autores a mesma e, aliás, bastante clara” (MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o direito penal
de seu tempo. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 11)
106
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à
violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. p. 99.
107
GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Conceito e método da ciência do direito penal. Tradução de José
Carlos Gobbis Pagliuca. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 39.
51

Dos fatos descritos pelas ciências da natureza não seria possível chegar a
qualquer conclusão sobre como as coisas deveriam ser, pois jamais alguma coisa será
justa apenas porque é ou foi, ou mesmo só porque será108. Com isso, se demonstrava a
impossibilidade de compreensão do direito penal a partir da antropologia ou da
sociologia positivistas.
Por outro lado, sendo impossível determinar-se a priori o que deveria ser
considerado justo, fazia-se necessário que alguém determinasse o que deve ser
conforme ao direito, ficando a cargo da ciência jurídica exatamente a tarefa de
compreender, a partir de juízos valorativos, o conteúdo do direito positivo. É que, para
os neokantianos, as normas penais seriam expressão cega do complexo cultural do qual
emanariam os valores apreendidos pelo legislador, de modo que o objeto da
investigação axiológica continuava incidindo exclusivamente sobre a lei, tal como
sempre defendido pelo positivismo jurídico109.
Assim, apesar de originado de uma corrente crítica do positivismo científico, o
neokantismo terminou fortalecendo o positivismo jurídico lógico-normativo, ao
reconhecer na lei o único dado da experiência a ser valorado e compreendido pela
ciência do direito. A partir desse ponto, a tarefa de legitimar o poder punitivo ficou tão
simplificada que até mesmo fugiu ao interesse dos juristas. Afinal, bastava tomar as
disposições legais como dados da realidade e incorporá-las ao discurso como tal para
chegar-se à demonstração científica de que a pena se prestava às finalidades retributivas
ou preventivas que se desejasse110.

108
RADBRUCH. Apud ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle
da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. p. 109.
109
“El concepto de ‘realidad’ aprehensible por la ciencia del derecho era para los neokantianos idéntico al
positivista. La diferencia se hallaba en la cabeza del sujeto, encargado según el neokantismo, de aportar al
proceso de conocimiento jurídico su significado de valor. Los neokantianos ‘complementaron’, pues el
positivismo jurídico no modificando lo objetivo, sino añadiéndole lo subjetivo. Tal coincidencia de
partida con el positivismo no era casual. De la misma forma que KANT había querido construir una teoría
del conocimiento científico admisible para el empirismo, el neokantismo buscó una fundamentación
epistemológica de las ciencias del espíritu – y del derecho – que satisficiese al positivismo. Pretendió
‘superarlo’ sin contradecirlo, para lo cual se limitó a ‘completarlo’ subjetivamente, en el sentido
indicado” (PUIG, Santiago Mir. Introducción a las bases del derecho penal. Buenos Aires: Julio César
Faria Editor, 2002. p. 219).
110
“A arbitrária seleção de dados da realidade permitiu ao neokantismo legitimar o poder punitivo por
meio da prevenção geral, da especial ou de ambas, apelar para penas e medidas, distingui-las
artificialmente, aceitar o duplo binário ou o sistema vicariante ou as duas coisas etc., desde que as
disposições legais fossem tomadas como dados da realidade e incorporadas ao discurso em tal condição.
Nada impedia que os neokantianos criassem novos conceitos, quando necessários para explicar a lei, nem
tampouco construíssem conceitos jurídicos como falseta de qualquer dado da realidade, com o que
podiam mudar o mundo segundo as necessidades legitimadoras” (ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito
penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 618).
52

O mesmo raciocínio vale para o problema do bem jurídico, que o neokantiano


Edmund Mezger equiparava ao valor cultural expresso na norma penal, pouco se
importando acerca da efetiva legitimidade (a partir de critérios de utilidade ou justiça)
da indicação desde ou daquele bem como objeto de pretensa proteção do direito. Nesse
sentido, o pensamento neokantiano em nada se distinguia do “ideário positivista, que
trabalha com os dados existentes na ordem jurídica, sem questioná-los”111.
Não é com surpresa, portanto, que a dogmática jurídico-penal tenha se dedicado
muito mais ao desenvolvimento de aspectos técnicos relacionados à teoria analítica do
delito do que às questões eminentemente filosóficas concernentes às doutrinas da pena e
do bem jurídico. No período da República de Weimar, entre as duas Grandes Guerras,
enquanto o mundo se afundava em uma inédita crise de valores e paradigmas, a ciência
jurídica permanecia alheia a tudo que se passava a sua volta, “cultivando a Dogmática
jurídico-penal l´art pour l´art, afastando-se bastante da realidade política, social e
econômica que lhes coube viver, e deixando, de certo modo, com as suas requintadas
elucubrações teóricas, a porta aberta à terrível besta do nacional-socialismo, que não
quiseram ou não souberam ver como o verdadeiro inimigo da dignidade humana”112.
Na verdade, mesmo após a derrocada do nazismo, ainda demorou tempo
considerável para que as ciências penais começassem a se afastar do paradigma
positivista lógico-normativo, abrindo-se para uma nova busca de legitimação externa.
Ainda que apontado por alguns como uma teoria limitadora dos abusos políticos-
criminais nazistas, eis que ancorado verdadeiramente em conceitos ontológicos 113, o
finalismo de Hans Welzel inegavelmente colaborou para o prolongamento dessa
situação de completa separação entre o direito positivo e seus fundamentos externos
empíricos ou axiológicos114, ao estabelecer como missão do direito penal a proteção dos

111
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 190.
112
MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo. Tradução de Paulo
César Busato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 29.
113
É a opinião de Zaffaroni, por exemplo, expressa no prefácio à primeira edição da obra de Juarez
Tavares (Apud TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p.
19).
114
“Que o assunto mais emocionante para penalistas, lecionando entre os escombros fumacentos do pós-
guerra, fosse a polêmica causalismo-finalismo, é verdadeiramente de estarrecer. Tantas violações de
velhos e bons princípios liberais; tantos oportunismos teóricos, com tantas adesões; tantas criminalizações
do ser e do pensar; tantas sentenças e tantos assassinatos sem elas; tanta privação de liberdade, tanta
vigilância; tantos campos, tantas mortes, tanta violência. Quando, anteriormente, houve tanta pena, com
todos os seus adereços institucionais e teóricos intervindo num projeto político imperialista? E não
obstante, o melhor a fazer era discutir causalismo e finalismo?! Esta foi talvez a maior demonstração de
força que o neokantismo deu” (BATISTA, Nilo. Novas tendências do direito penal. Rio de Janeiro:
Revan, 2004. p. 17).
53

valores ético-sociais elementares, e só reflexamente a proteção dos bens jurídicos


concretos.
Para Welzel, a punição criminal, antes de prevenir a ocorrência de novos delitos
por meio da intimidação da coletividade ou da ressocialização do criminoso,
desempenharia a função positiva de fortalecimento da fidelidade geral à norma jurídica,
assegurando a vigência inquebrantável dos valores éticos considerados elementares para
o convívio social115. A finalidade da pena seria de prevenção, mas não de condutas que
lesionem ou ponham em risco um determinado bem da vida; na verdade, o papel da
incriminação e da punição penais seria muito mais amplo, servindo antes como critério
normativo de orientação dos cidadãos (prevenção geral positiva), para que incorporem
em suas consciências e nos seus projetos de ação a obediência ao dever como
pressuposto indispensável à manutenção dos valores ético-sociais elementares, assim
considerados aqueles relativos à pessoa, ao patrimônio, à família e ao Estado116.
Tal como em Hegel, e de resto em todas as doutrinas de cunho mais ou menos
positivista-normativo, o finalismo welzeliano acaba retirando toda a importância do
conceito de bem jurídico, que deixa de ser visto como objeto material da norma
incriminadora, sobre o qual deve recair necessariamente a conduta tida por criminosa,
para se confundir com a própria idéia de dever, expressa pura e simplesmente no
próprio mandado proibitivo legal117.

2.6 O Pós-Modernismo e a ética dos direitos fundamentais

2.6.1 A crise dos paradigmas da ciência moderna

Se, nem a limitada abertura do direito a valores proposta pelos neokantianos,


nem o recurso à ontologia sugerida por Welzel foram capazes de superar o modelo
positivista que dominava as ciências jurídicas, a alteração dos paradigmas teve que

115
QUEIROZ, Paulo. Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal.
Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 42.
116
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 192.
117
Por isso, “é fácil compreender porque [Welzel] trata a questão do bem jurídico [e também a da pena]
de modo secundário, como um desdobramento ora naturalístico, ora normativo dos valores ético-sociais”
(TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 193).
54

partir das próprias ciências naturais, que nas primeiras décadas do século XX já
apresentavam os importantes sinais de mudança.
Com efeito, as descobertas da física de grandes distâncias (astronomia) operadas
por Einstein e da física de micro distâncias (quântica) operadas por Heisenberg e Bohr
demonstraram, por um lado, que não existem tempo e espaço absolutos como imaginado
por Newton, sendo impossível comprovar a universalidade dos fenômenos, eis que a
simultaneidade só pode ser verificada dentro de um mesmo sistema de referência118; e,
por outro lado, que não existe objetividade livre da interferência do observador, de
modo que os resultados de qualquer pesquisa científica serão, na melhor das hipóteses,
uma mera aproximação do que existe na natureza, uma probabilidade, e nunca um
retrato objetivo e neutro daquilo que é efetivamente observado119.
Mais recentemente, o físico-químico Ilya Prigogine demonstraria que, além de
relativo, o tempo é também irreversível, pois, de acordo com sua “teoria das estruturas

118
“Einstein constitui o primeiro rombo no paradigma da ciência moderna, um rombo, aliás, mais
importante do que o que Einstein foi subjectivamente capaz de admitir. Um dos pensamentos mais
profundos de Einstein é o da relatividade da simultaneidade. Einstein distingue entre a simultaneidade de
acontecimentos presentes no mesmo lugar e a simultaneidade de acontecimentos distantes, em particular
de acontecimentos separados por distâncias astronômicas. Em relação a estes últimos, o problema lógico
a resolver é o seguinte: como é que o observador estabelece a ordem temporal de acontecimentos no
espaço? Certamente por medições da velocidade da luz, partindo do pressuposto, que é fundamental à
teoria de Einstein, que não há na natureza velocidade superior à da luz. No entanto, ao medir a velocidade
numa direção única (de A a B), Einstein defronta-se com um círculo vicioso: a fim de determinar a
simultaneidade dos acontecimentos distantes é necessário conhecer a velocidade; mas para medir a
velocidade é necessário conhecer a simultaneidade dos acontecimentos. Com um golpe de gênio, Einstein
rompe com este círculo, demonstrando que a simultaneidade de acontecimentos distantes não pode ser
verificada, pode tão-só ser definida” (SOUSA SANTOS, Boaventura de. Um discurso sobre as ciências.
São Paulo: Cortez, 2004. p. 41-42).
119
“Se Einstein relativizou o rigor das leis de Newton no domínio da astrofísica, a mecânica quântica fê-
lo no domínio da microfísica. Heisenberg e Bohr demonstram que não é possível observar ou medir um
objecto sem interferir nele, sem o alterar, e a tal ponto que o objecto que sai de um processo de medição
não é o mesmo que lá entrou. Como ilustra Wigner, ‘a medição da curvatura do espaço causada por uma
partícula não pode ser levada a cabo sem criar novos campos que são bilhões de vezes maiores que o
campo sob investigação’. A idéia de que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja,
que não conhecemos do real senão nossa intervenção nele, está bem expressa no princípio da incerteza de
Heisenberg: não se podem reduzir simultaneamente os erros da medição da velocidade e da posição das
partículas; o que for feito para reduzir o erro de uma das medições aumenta o erro da outra. Este
princípio, e, portanto, a demonstração da interferência estrutural do sujeito no objecto observado, tem
implicações de vulto. Por um lado, sendo estruturalmente limitado o rigor do nosso conhecimento, só
podemos aspirar a resultados aproximados e por isso as leis da física são tão-só probabilísticas. Por outro
lado, a hipótese do determinismo mecanicista é inviabilizada uma vez que a totalidade do real não se
reduz à soma das partes em que dividimos para observar e medir. Por último, a distinção sujeito/ objecto é
muito mais complexa do que à primeira vista pode parecer. A distinção perde os seus contornos
dicotômicos e assume a forma de um continuum” (SOUSA SANTOS, Boaventura de. Um discurso sobre
as ciências. São Paulo: Cortez, 2004. p. 43-45).
55

dissipativas”, o processo de entropia verificável em sistemas abertos se dá de maneira


nunca inteiramente previsível, mas aleatória, sendo também ele produto da história120.
Essas descobertas afetariam de forma significativa os mais variados ramos do
conhecimento ao longo do século XX, e colocaria em dúvida a própria divisão da
ciência em especialidades, seja em função do objeto de estudo, seja em função da
metodologia aplicada.
Afinal, se não era mais possível conhecer a natureza objetiva das coisas, mas
tão-somente as coisas tal como percebidas pelo homem, torna-se ilusória a distinção
entre ciências da natureza e ciências da cultura. O homem está na base de toda e
qualquer tentativa de compreensão ou mesmo de explicação do mundo, de modo que,
como afirma Boaventura de Souza Santos, “todo conhecimento científico é
autoconhecimento”121. Logo, não existe “a verdade” ou “a realidade” a ser “descoberta”
a partir de uma lógica formal, empirista e causal, própria da ciência moderna 122. A
análise das condições sociais, dos contextos culturais e dos valores a eles relacionados
passa a interessar também às ditas ciências exatas, na medida em que o investigador
percebe ser impossível a adoção de uma atitude imparcial e neutra.
O homem é reconduzido ao centro do problema científico, mas não apenas como
observador, e sim também como objeto do conhecimento, já que seus valores,
interesses, preferências e incertezas impregnam toda e qualquer coisa a ser estudada. A
percepção de que experimentos que, a princípio, deveriam ser puramente técnicos e
desinteressados também são capazes de gerar conseqüências sociais gravíssimas, trouxe
a questão ética para dentro das ciências empíricas, de modo que “nunca houve tantos
cientistas-filósofos como actualmente”123.
A experiência catastrófica das duas Guerras Mundiais, por exemplo, seguidas do
macabro espetáculo proporcionado pelo lançamento da bomba atômica sobre as cidades

120
“(...) se dois gases entram em contacto em determinado sistema, a evolução do fluxo de partículas de
um para outro se processa até o instante em que se alcança um estado de equilíbrio ou de ordem, que se
passou a chamar de difusão Maxwell-Boltzmann. Todavia, informa PRIGOGINE que se esses dois gases
forem submetidos a temperaturas diversas, o experimento indica que a sua separação não se processa
dentro de uma perspectiva de reversibilidade, quer dizer, sua evolução de um estado de ordem para um
estado de desordem não se dá na mesma medida originária, o que indica que o contacto inicial e o
processo de entropia produziram um estado de antidifusão. Isto induz a considerar que os fenômenos aqui
observados apresentam características de irreversibilidade, tanto quanto partam da desordem para a ordem
quando vice-versa” (TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey,
2002. p. 90).
121
SOUSA SANTOS, Boaventura de. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2004. p. 83.
122
AMARAL, Thiago Bottino do. Ponderação de normas em matéria penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007. p. 22.
123
SOUSA SANTOS, Boaventura de. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2004. p. 50.
56

de Hiroshima e Nagasaki, serviu de lição inclusive aos cientistas, que se julgavam


alheios a toda e qualquer indagação ética relacionada ao uso prático de suas descobertas
teóricas. Da mesma forma, o fenômeno da industrialização da ciência, que ganhou
escala global a partir, sobretudo, das décadas de trinta e quarenta, terminou por revelar a
faceta destruidora de avanços tecnológicos a serviço exclusivo dos centros de poder
econômico e político, a ponto de iniciarmos o novo milênio sem saber dizer se a
humanidade sobreviverá até o seu final.
Por outro lado, o reconhecimento de que o tempo não é universal e de que os
fenômenos não são reversíveis, mas produto de sua própria história, abalou os pilares
causalistas e deterministas da ciência moderna. O homem já não tem mais controle
absoluto da natureza, que produz eventos imprevisíveis, impossíveis de serem
determinados por leis físicas universais. A própria noção de lei começa a ser
paulatinamente substituída pelas noções de sistema, de estrutura, de modelo e de
processo.
“A formulação das leis da natureza funda-se na idéia de que os fenômenos
observados independem de tudo exceto de um conjunto razoavelmente
pequeno de condições (as condições iniciais) cuja interferência é observada e
medida. Esta idéia, reconhece-se hoje, obriga a separações que, aliás, são
sempre provisórias e precárias uma vez que a verificação da não interferência
de certos factores é sempre produto de um conhecimento imperfeito, por mais
perfeito que seja. As leis têm assim um carácter probabilístico, aproximativo e
provisório, bem expresso no princípio da falsificabilidade de Popper. Mas
acima de tudo, a simplicidade das leis constitui uma simplificação arbitrária da
realidade que nos confina a um horizonte mínimo para além do qual outros
conhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com mais interesse
humano, ficam por conhecer. (...) O declínio da hegemonia da legalidade é
concomitante do declínio da hegemonia da causalidade. (...) Hoje, a
relativização do conceito de causa parte sobretudo do reconhecimento de que o
lugar central que ele tem ocupado na ciência moderna se explica menos por
razões ontológicas ou metodológicas do que por razões pragmáticas. O
conceito de causalidade adequa-se bem a uma ciência que visa intervir no real
57

e que mede o seu êxito pelo âmbito dessa intervenção. Afinal, causa é tudo
aquilo sobre que se pode agir”124.

As causas de um fenômeno qualquer, desta forma, estão muito mais relacionadas


aos fins que se deseja atingir com a utilização do conhecimento do que propriamente
com aquilo que levou à sua ocorrência, pois a multiplicidade dos fatores e a imprecisão
do conhecimento científico permite seja escolhida como causa eficiente exatamente
aquilo que interessa ao patrocinador da pesquisa125. Aliás, essa característica da ciência
pode ser muito bem percebida no campo do direito penal, onde as causas do evento
criminoso e as finalidades da pena sempre foram arbitrariamente selecionadas pelo
legislador.

2.6.2 O homem como razão última do Estado substancial de direito

A Segunda Grande Guerra e os horrores do Estado nazista alemão serviram de


demonstração empírica das conseqüências a que uma dissociação completa entre direito
e justiça poderia levar: se, como defendido pelo positivismo lógico-normativo, a ética
estava limitada àquilo que o Estado afirma como tal, e se, como demonstrado pela
criminologia positivista (Gobineau), a raça ariana possuía realmente veios genéticos
superiores, a implementação de uma política de execução em massa dos grupos sociais
indesejados (negros, judeus, ciganos, etc), tal como a concretizada pelo nazismo
alemão, seria perfeitamente válida e legítima.
Ainda que antes da guerra alguns pudessem confiar cegamente no bom senso do
legislador, relegando a ele a tarefa de definir os fins e os meios legítimos para alcançar a
felicidade de todos, após as experiências totalitárias (em qualquer de suas modalidades:
nazismo, fascismo, stalinismo) não havia mais dúvidas de que a simples vinculação à lei
formal não era suficiente para conter os abusos do poder. Como bem percebeu Chaïm
Perelman:

124
SOUSA SANTOS, Boaventura de. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2004. p. 51-53.
125
“Mesmo os defensores da causalidade, como Mario Bunge, reconhecem que ela é apenas uma das
formas do determinismo e que por isso tem um lugar limitado, ainda que insubstituível, no conhecimento
científico. A verdade é que, sob a égide da biologia e também da microfísica, o causalismo, enquanto
categoria de intelegibilidade do real, tem vindo a perder terreno em favor do finalismo” (SOUSA
SANTOS, Boaventura de. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2004. p. 53).
58

“Enquanto a prática jurídica não estava muito distante dos costumes, dos
hábitos e das instituições sociais e culturais do meio regido por dado sistema
de direito, a concepção positivista do direito podia expressar de modo
satisfatório a realidade do fenômeno jurídico. Mas, com o advento do Estado
criminoso que foi o Estado nacional-socialista, pareceu impossível, mesmo a
positivistas declarados, tais como Gustav Radbruch, continuar a defender a
tese de que a ‘Lei é lei’, e que o juiz deve, em qualquer caso, conformar-se a
ela. Uma lei injusta, dirá Radbruch, não pertence ao direito”126.

Assim é que, ainda na década de 40, novas Constituições foram sendo


promulgadas e, na esteira da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948)127,
traziam expressamente a dignidade da pessoa humana como fundamento de todo e
qualquer Estado de direito e tornavam obrigatório e imediato o respeito aos direitos
fundamentais, que eram invariavelmente arrolados de forma exaustiva128.
De um Estado de direito “débil ou formal”129, onde a única exigência de
legitimação estava no respeito à lei tal como editada pelo poder legislativo (princípio da
legalidade), passava-se a um Estado de direito “forte ou substancial”130, amparado por

126
PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: nova retórica. Tradução de Virginia K. Pupi. São Paulo:
Martins Fontes, 1999. p. 94.
127
Já em seu preâmbulo, a Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece a “dignidade
inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis” como “o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
128
É o exemplo da Constituição da República Federal da Alemanha, de 23 de maio de 1949, que em seu
art. 1º dispõe: “(1) A dignidade da pessoa humana é intangível. Todos os poderes públicos ficam
obrigados a respeitá-la e protegê-la; (2) Em conseqüência, o povo alemão reconhece a pessoa como titular
de direitos invioláveis como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça no mundo;
(3) Os direitos fundamentais a seguir arrolados têm aplicação imediata e vinculam os poderes legislativo,
executivo e judiciário”. Na América Latina, em razão das ditaduras populistas e autoritárias que
sucederam ao período pós-guerra, esse modelo de Constituição rígida e humanitária só seria adotado
algumas décadas mais tarde.
129
“En sentido lato, débil o formal, ‘Estado de Derecho’ designa cualquier ordenamiento en el que los
poderes públicos son conferidos por la ley y ejercitados en las formas y con los procedimientos
legalmente establecidos. En este sentido, correspondiente al uso alemán del término Rechtsstaat, son
Estados de Derecho todos los ordenamientos jurídicos modernos, incluso los más antiliberales, en los que
los poderes públicos tienen una fuente y una forma legal” (FERRAJOLI, Luigi. Neoconstitucionalismo,
democracia e imperialismo moral. In Carbonell, Miguel (org). Neoconstitucionalismo(s). Madrid:
Editorial Trotta, 2005. p. 18).
130
“En un segundo sentido, fuerte o sustancial, ‘Estado de Derecho’ designa, en cambio, sólo aquellos
ordenamientos en los que los poderes públicos están, además, sujetos a la ley (y, por tanto, limitados o
vinculados por ella), no sólo en lo relativo a las formas, sino también en los contenidos” (FERRAJOLI,
Luigi. Neoconstitucionalismo, democracia e imperialismo moral. In Carbonell, Miguel (org).
Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2005. p. 18).
59

uma Constituição rígida131, em que, além da tradicional divisão dos poderes, deveria
estar também assegurado o respeito incondicional aos direitos fundamentais do homem.
Essa transformação, no entanto, apesar de amparada integralmente nas novas
Constituições, não se daria em razão da simples positivação dos valores relacionados à
dignidade da pessoa humana. Realmente, não fosse a profunda alteração dos paradigmas
da ciência moderna e talvez os princípios constitucionais de viés humanitário tivessem
permanecido até os dias atuais como simples declarações de vontade, destituídos de
toda e qualquer força normativa, tal como foram interpretados nas primeiras décadas
que seguiram ao pós-guerra132.
Somente o enfraquecimento, desde as ciências naturais, da convicção de que a
matéria regulada pelas leis não correspondia à realidade mesma, mas apenas a uma
escolha política sobre como se deveria perceber a realidade, permitiu que se
estabelecesse a crítica à supremacia da subsunção do fato à norma, que dominou o
cenário jurídico durante a época Moderna. Já sob a égide do pós-Modernismo, onde as
leis jurídicas (assim como as físicas) não decorriam de simples fenômenos causais, mas
sim de escolhas valorativas, era preciso que também aquelas fossem submetidas aos
princípios constitucionais ligados à pessoa humana.
Assim, ao lado das regras, os princípios passaram a integrar o conjunto das
normas jurídicas e chegaram mesmo a assumir um papel prevalente em relação àquelas,
eis que são tidos como “normas-chave de todo o sistema jurídico; normas das quais se
retirou o conteúdo inócuo de programaticidade, mediante o qual se costumava

131
“La idea de rigidez constitucional, es decir, las garantías jurídicas dirigidas a preservar su contenido
frente a cualquier intento modificador, estimulaba la consideración de que la Constitución poseía unos
rasgos esenciales e inalterables, representados por las libertades que constituían su base y que, por ello, se
denominaban derechos fundamentales. Esos caracteres reflejaban el modelo o la idea del pacto social en
cuanto fundamento de la legitimidad del Estado y condición para que los ciudadanos le presten su
asentimiento. Refiriéndose a esas notas constitutivas ha podido referirse Peter Häberle a unas ‘cláusulas
de eternidad’ de las Constituciones” (PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y
constitucionalismo en la actualidad: ¿continuidad o cambio de paradigma? In Derechos Humanos y
constitucionalismo ante el tercer milenio. Madrid: Marcial Pons, 1996. p. 16).
132
“No plano rigorosamente histórico, entretanto, a influência da ordem político-constitucional de um
determinado Estado em seu sistema penal se revela menos necessariamente condicionante do que, talvez,
se possa pensar. E, de fato, na Itália, a Constituição de 1948 não ocasionou, ainda, a reforma do código
que nasceu sob o regime facista. Na República Federal da Alemanha apenas com o projeto de 1962, que
deveria colmar a grande reforma que começou a viger em 1975, malgrado positivamente pronto para uma
adequação, continua sem cumprimento no sistema penal instaurado com a Constituição de 1949. Na
Espanha depois da mudança constitucional de 1978, constata-se, no campo penal, um fervor de iniciativa
reformista e, se bem que demasiado cedo para apreciá-lo plenamente, não faltam queixas procedentes
quanto à modesta influência da Constituição na transformação do direito penal” (PALAZZO, Francesco
C. Valores constitucionais e direito penal: um estudo comparado. Tradução de Gérson Pereira dos
Santos. Porto Alegre: SAFe, 1989. p. 19-20).
60

neutralizar a eficácia das Constituições em seus valores reverenciais, em seus objetivos


básicos, em seus princípios cardeais”133.
Essa evidente influência valorativa sobre a norma jurídica, que havia sido
negada de forma tão veemente pelos positivistas, vai reacender um amplo debate entre
os filósofos políticos e do direito, preocupados em solucionar a difícil articulação entre
as duas dimensões de um regime democrático liberal: a lógica liberal da liberdade e a
lógica democrática da igualdade ou, em outras palavras, os direitos humanos e a
soberania popular134. O problema ficou reduzido à seguinte indagação central: se o
direito não é apenas um sistema auto-referente de regras jurídicas, de onde ele tira sua
força?
Liberais, comunitários e crítico-deliberativos, para usar a nomenclatura de
Gisele Cittadino, responderão de forma diferente a esta pergunta, mas chegarão todos a
uma mesma conclusão: os direitos humanos135 são, hoje, o fundamento de legitimidade
de todo o ordenamento jurídico136.
De maneira geral, pode-se dizer que liberais como John Rawls e Ronald
Dworkin conferem prioridade à autonomia privada, privilegiando os direitos
fundamentais em relação à soberania popular. Para essa corrente filosófica, o que
caracteriza o direito como justo é a garantia de que os indivíduos possam escolher os
valores morais que pautarão sua convivência de forma livre e autônoma, sem a

133
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 14ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 286.
134
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional
contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 4-5.
135
As expressões direitos humanos e direitos fundamentais têm significados variados para os diferentes
autores. Celso Renato Duvivier de Albuquerque Mello, por exemplo, nega qualquer relevância à
diferenciação, tratando os termos como sinônimos (in Direitos Humanos e Conflitos Armados. Rio de
janeiro: Renovar, 1997, p. 9). Ricardo Lobo Torres fala em direitos humanos como gênero que abrange os
direitos fundamentais: “A expressão Direitos Humanos, por seu turno, tem significado amplo, a admitir a
visão holista, que integra os Direitos declarados nas Constituições nacionais e os proclamados nas
Declarações internacionais, e a tese da indivisibilidade, com a consideração conjunta dos Direitos
Fundamentais, Sociais e Econômicos” (TORRES, Ricardo Lobo. A legitimação dos Direitos Humanos e
os Princípios da Ponderação e da Razoabilidade. In Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p. 4). Já Fábio Konder Comparato prefere seguir a doutrina alemã, tratando de direitos
humanos os valores supra legais, que, ao serem positivados pelo constituinte, passam a se chamar direitos
fundamentais: “(...) a doutrina jurídica alemã estabeleceu a distinção entre direitos humanos
(Menschenrechte) e direitos fundamentais (Grundrechte). Estes últimos são os direitos humanos
reconhecidos como tais pelas autoridades, às quais se atribui o poder político de editar normas no interior
dos Estados, ou no plano internacional: são os direitos humanos positivados nas Constituições, nas leis e
nos tratados internacionais. Segundo essa concepção, os direitos humanos em sentido estrito vigoram
como princípios jurídicos não declarados textualmente em diplomas normativos” (COMPARATO, Fábio
Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.
516). Ao longo da exposição, seguimos o exemplo de Celso Mello e empregamos as duas expressões
indistintamente.
136
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional
contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 8-9.
61

interferência do Estado ou da coletividade. Para tanto, é imprescindível que seus direitos


e liberdades básicos estejam devidamente assegurados pela Constituição, de modo que
todos os cidadãos sejam titulares de igual status político e moral. Assim, se os direitos
fundamentais são uma exigência de justiça, prévia à própria formação do Estado, antes
de configurarem normas jurídicas, eles são princípios que obrigam a uma “leitura moral
da Constituição”137, sempre no sentido de servir como limite material ao poder
governamental e, com isso, preservar o conjunto das liberdades negativas138.
Ao sustentarem, grosso modo, a existência de princípios morais abstratos que
vinculam o constituinte, os adeptos da corrente liberal acabam se expondo às críticas
daqueles que os apontam como meros defensores de um “direito natural moderno”139,
pois retomam o conceito de universalidade já abalado pela crise dos paradigmas da
ciência moderna.
É exatamente por isso que Juarez Tavares, após haver procedido à crítica dos
paradigmas da modernidade, recorre ao pensamento de John Leslie Mackie para apontar
um caminho liberal de estabilização dos direitos fundamentais isento de pressupostos
morais. Negando qualquer interferência valorativa no campo jurídico, Mackie
sustentaria que são os direitos fundamentais historicamente conquistados e positivados
na Constituição que viabilizariam a construção dos valores morais ou éticos, e não o
contrário. Desta forma, o Estado e o direito não estariam legitimados por valores
externos, seja de ordem deontológica, seja de ordem teleológica. Na verdade, a proteção

137
“A leitura moral da Constituição supõe, em primeiro lugar, que os direitos fundamentais nela
estabelecidos devem ser interpretados como princípios morais que decorrem da justiça e da eqüidade e
que fixam limites ao poder governamental. Dworkin parte do pressuposto de que os princípios inscritos
no sistema de direitos constitucionais são provenientes de um ideal político e jurídico, segundo o qual
todos os cidadãos devem ser tratados com igual respeito e consideração. Em segundo lugar, a leitura
moral faz-se necessária seja porque os direitos fundamentais são quase sempre estabelecidos em uma
linguagem abstrata, carente de interpretação, seja porque é a única capaz de solucionar corretamente
conflitos de interesse” (CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da
filosofia constitucional contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 191-192).
138
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional
contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 146-159.
139
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional
contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 158. No entanto, a própria autora ressalta a
impropriedade de se identificar Dworkin como um representante do jusnaturalismo clássico: “Afinal, da
sua postura antipositivista não decorre um compromisso jusnaturalista com a moral objetiva que
pressupõe a existência de princípios universais e inalteráveis que devem apenas ser descobertos pela
razão humana. Os princípios morais não resultam de um processo ‘contemplativo’, mas, ao contrário, de
um processo ‘construtivo’. Com efeito, Dworkin supõe que a argumentação moral constrói historicamente
princípios capazes de justificar as instituições da sociedade, em função dos seus próprios conteúdos e de
sua força argumentativa. Em outras palavras, os elementos essenciais do ordenamento jurídico podem ser
justificados por princípios que decorrem ‘de uma razão historicamente concretizada que se propaga
através da história’” (CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da
filosofia constitucional contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 187).
62

dos requisitos mínimos para o exercício da liberdade individual seria condição


antropológica para uma vida virtuosa, de modo a permitir ao sujeito desenvolver seus
próprios valores e se autodeterminar livremente, de acordo com eles140.
Comunitários como Michael Walzer e Charles Taylor, ao contrário, conferem
prioridade à soberania popular, pois acreditam que a justiça tem diversas formas de se
manifestar, sendo a concepção atual dos direitos fundamentais apenas uma maneira
particular de falar sobre certos valores humanos geralmente aceitos. Desta forma, ainda
que os reconheça como legítimos, exatamente porque produto do consenso social,
Walzer rejeita a perspectiva liberal de ver os direitos fundamentais como valores morais
anteriores ao Estado, e portanto válidos universalmente e de forma absoluta. Muito pelo
contrário, para essa corrente, o sentimento de pertencimento a uma comunidade é
anterior ao processo de atribuição de direitos, de modo que a Constituição é, na verdade,
o projeto comum, elaborado a partir de valores éticos compartilhados e que devem ser
preservados enquanto o grupo político, por sua maioria, assim o decidir. A Constituição,
antes de proteger direitos, é democrática, e visa assegurar, em primeiro lugar, o direito
de todos de participar do debate público. É esse, o direito político, o verdadeiro direito
fundamental a ser resguardado. Assegurado o processo político deliberativo, caberá ao
diálogo social definir o conteúdo substantivo dos outros direitos fundamentais141.
Ainda segundo Gisele Cittadino, a Constituição da República Federativa do
Brasil, de 1988, teria tido forte influência de juristas comunitários142, o que poderia ser
percebido já em seu preâmbulo, quando afirma que o Estado democrático visa assegurar
direitos sociais e individuais “como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos” 143.

140
“Contrariamente, assim, a todas as teorias morais, MACKIE inverte o raciocínio: em vez de fazer
derivar os conceitos jurídicos dos conceitos morais, transforma estes a partir daqueles. Esta filosofia
moral que se sustenta a partir do direito é explicável como uma via alternativa. Diante da negação de uma
moral puramente deontológica ou de uma moral puramente teleológica e diferentemente destas, afirma o
primado do direito sobre as obrigações e os fins. O sistema jurídico, portanto, é o veículo garantidor de
que todas as pessoas possam efetuar as escolhas de sua preferência em face de ideais e fins concorrentes”
(TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 107).
141
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional
contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 159-170
142
“José Afonso da Silva, Carlos Roberto Siqueira Castro, Paulo Bonavides, Fabio Konder Comparato,
Eduardo Seabra Fagundes, Dalmo de Abreu Dallari, Joaquim de Arruda Falcão Neto, dentre outros, são
representantes do que designamos por constitucionalismo ‘comunitário’” (CITTADINO, Gisele.
Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 3ª ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 14-15).
143
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional
contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 44.
63

Não obstante a prevalência da soberania popular sobre os direitos fundamentais


defendida pelos comunitários no campo teórico, na prática essa divergência em relação
à concepção liberal de Estado não traz conseqüências significativas. Afinal, o consenso
hoje é no sentido de elevar a dignidade da pessoa humana — e todos os direitos
fundamentais que lhe dão substância — à categoria de valor supremo do Estado
democrático de direito. É essa, aliás, a opinião do comunitário José Afonso da Silva:

“Poderíamos até dizer que a eminência da dignidade da pessoa humana é tal


que é dotada ao mesmo tempo da natureza de valor supremo, princípio
constitucional fundamental e geral que inspira a ordem jurídica. Mas a verdade
é que a Constituição lhe dá mais do que isso, quando a põe como fundamento
da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de
Direito. Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor
fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito.
Portanto, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da
ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de valor
supremo, porque está na base de toda a vida nacional”144.

No fundo, a principal diferença entre comunitários e liberais é que estes


defendem uma atuação negativa por parte do Estado, no sentido de intervir o mínimo
possível na esfera de liberdade do cidadão, de modo que este possa formar seu juízo
moral de justo e de bem livremente; enquanto que aqueles lutam exatamente por uma
maior atuação positiva do Estado, que teria o dever de concretizar todo o conjunto de
direitos fundamentais, sejam eles de primeira, de segunda ou de terceira geração.
Por fim, os crítico-deliberativos, que têm em Jürgen Habermas seu principal
representante, buscam demonstrar que existe uma relação de co-originalidade entre os
direitos fundamentais e a soberania popular, no sentido de que o direito só estará
legitimado se estiverem garantidas, ao mesmo tempo, as liberdades subjetivas que
asseguram a autonomia privada e a ativa participação dos cidadãos através de sua
autonomia pública145, adotando assim uma posição intermediária entre liberais e
comunitários. Segundo Habermas, a idéia dos direitos humanos não deve ser imposta ao

144
SILVA, José Afonso da. Dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista
de Direito Administrativo nº 212. p. 92.
145
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional
contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 7.
64

legislador soberano apenas como uma barreira externa (posição liberal), nem ser
instrumentalizada como requisito funcional para fins coletivos (posição comunitária).
Na verdade, os direitos humanos corresponderiam aos requisitos mínimos que cidadãos
livres e iguais precisariam se conceder mutuamente a fim de viabilizar o debate
argumentativo que levaria à formação de um consenso possível através do processo
democrático.

“Dessa maneira, a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente.


O nexo interno entre democracia e Estado de direito consiste em que se, por um
lado, os cidadãos só podem fazer uso adequado da sua autonomia pública se
forem suficientemente independentes em virtude de uma autonomia privada
que esteja uniformemente assegurada; por outro, só podem usufruir
uniformemente a autonomia privada se, como cidadãos, fizerem o emprego
adequado dessa autonomia política. Por isso, direitos fundamentais liberais e
políticos são inseparáveis”146.

Independentemente de filiação a qualquer dessas correntes, o que importa


perceber neste momento é que todas elas (liberais, comunitárias e crítico-deliberativas)
assumem compromisso expresso com a sociedade democrática liberal, reconhecendo
como essencial tanto a proteção dos direitos fundamentais, quanto o respeito à soberania
popular, divergindo apenas sobre a eventual prevalência de um elemento sobre o
outro147.
Pois é exatamente dessa concordância havida entre liberais, comunitários e
crítico-deliberativos acerca da supremacia dos direitos fundamentais, seja por se
tratarem de direitos naturais e inatos dos indivíduos, seja por terem sido construídos
pela sociedade em concreto ou mesmo por serem pressupostos necessários de um
discurso comunicativo democrático, que se chegará à conclusão de que nenhum Estado
atual pode ser considerado substancialmente de direito se não garantir o incondicional

146
HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação pelos direitos humanos. In MERLE, Jean-Cristophe;
MOREIRA, Luiz (orgs). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 71-72.
147
“Ressalte-se, desde logo, que há, por parte de liberais, comunitários e crítico-deliberativos, um
compromisso com a sociedade democrática liberal. Em primeiro lugar, todos defendem as instituições do
Estado liberal, ou seja, o império da lei, separação dos poderes e direitos fundamentais, ainda que possam
configurá-las de forma distinta. Ao mesmo tempo, também é evidente o compromisso de todos com a
defesa da democracia, representada pela soberania popular e pela regra da maioria, ainda que aqui
também variem as interpretações” (CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva:
elementos da filosofia constitucional contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 5).
65

respeito aos direitos fundamentais, assim como nenhum será verdadeiramente


democrático se não permitir que o próprio povo, de forma livre e igualitária, estabeleça
os objetivos comuns que querem ver perseguidos.
66

CAPÍTULO 3 – ESTRATÉGIAS DE (DES)LEGITIMAÇÃO DO PODER


PUNITIVO ESTATAL

Partindo da conclusão acima, é possível dar o primeiro passo rumo a uma


tentativa de legitimação/deslegitimação do poder punitivo estatal.
Conforme visto no item 1.1 (supra), a indagação sobre o “por que punir” pode
ser vista sob um aspecto assertivo (“por que existe a pena ou por que se pune?”) e outro
prescritivo (“por que se deve punir?”), sendo certo que é neste último sentido que se
perquirirá sobre a finalidade148 do poder punitivo, com vistas a esclarecer quais valores
fundamentam as doutrinas que tentam justificar a pena e as correlatas doutrinas do bem
jurídico.
Como algumas dessas doutrinas — as chamadas absolutas149 — estão
desvinculadas de qualquer efeito benéfico que a aplicação da pena possa apresentar no
futuro, a análise de sua legitimidade fica restrita ao juízo de compatibilidade, ou não,
entre os valores que as informam e aqueles esposados por um Estado democrático de
direito. É que, se à pergunta sobre o por que se deve punir (qual a finalidade da pena) já
se responde de forma incondicional — punitur, quia peccatum est —, não há razão para
que se investigue as eventuais funções que a pena possa vir a desempenhar na prática.
Afinal, o poder punitivo já estará, desde logo, legitimado. Ou deslegitimado.
As doutrinas relativas150 da pena, de outro lado, por se referirem a fins
utilitários, dependentes de resultados preventivos ulteriores, além da indagação sobre o
caráter justo desses valores (“por que se deve punir”), exige também a verificação
empírica da efetiva realização das funções atribuídas à reprimenda penal para que seja
atingido o objetivo final de prevenir novos delitos (“se de fato se previne”). Desta
forma, ainda que num primeiro momento, à luz do valor maior da dignidade da pessoa

148
Conforme ensinamento de Miguel Reale: “Um fim outra coisa não é senão um valor posto e
reconhecido como motivo de conduta” (REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20ª edição. São Paulo:
Saraiva, 2002. p. 544).
149
Debruçando-se sobre a etnologia do termo, Claus Roxin explica que as teorias absolutas são assim
chamadas exatamente porque os fins sobre os quais se assentam independem de qualquer efeito social
concreto: “Se habla aquí de una teoria ‘absoluta’ porque para ella el fin de la pena es independiente,
‘desvinculado’ de su efecto social (lat. absolutus = desvinculado)” (ROXIN, Claus. Derecho penal, parte
general, tomo I. Tradução de Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de
Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2003. p. 82).
150
Novamente, a análise etnológica realizada por Claus Roxin explica que as teorias relativas assim são
chamadas por se vincularem à realização de determinados resultados preventivos futuros: “es una teoría
‘relativa’, pues se refiere al fin de prevención de delitos (‘relativo’ viene del lat. referre = referirse a)”
(ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general, tomo I. Tradução de Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel
Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2003. p. 85).
67

humana, a finalidade preventiva possa eventualmente ser legitimada, restará ainda,


numa etapa seguinte, verificar se as funções atribuídas à reprimenda penal são
realizáveis na prática. À resposta dada pelos seguidores da doutrina relativa à pergunta
sobre o “por que se deve punir” — punitur, ut ne peccetur —, segue-se outro
questionamento: a punição, de fato, previne novos delitos?
Assim, para facilitar a análise da legitimidade do poder punitivo estatal nesses
dois âmbitos, optamos por separá-los em sub-capítulos distintos. No primeiro (3.1,
infra), tentaremos verificar se os valores adotados por cada uma das doutrinas da pena
vistas até agora, bem como pelas suas versões contemporâneas, estão em conformidade
com o valor maior da dignidade da pessoa humana, de modo a esclarecer se, já quanto
aos fins propostos, esses modelos podem ser considerados legítimos em um Estado que
se quer substancial de direito. No segundo (3.2, infra), analisaremos a contribuição dada
pelos estudos criminológicos de viés crítico, com vistas a esclarecer se, na prática, as
funções geralmente atribuídas à pena criminal são de fato alcançadas ou se, em razão
dos efeitos colaterais perniciosos que sua aplicação implica, somente um discurso
deslegitimador pode atender ao objetivo constitucional de concretização dos direitos
fundamentais.

3.1 (I)legitimidade quanto aos fins

Ao final do capítulo anterior (item 2.6.2, supra), chegou-se à conclusão de que o


Estado, para que possa ser considerado democrático e substancialmente de direito, só
pode ter como fundamento de legitimidade a dignidade da pessoa humana. Por
conseguinte, tanto o poder punitivo, quanto o direito penal, como formas de expressão
estatal, só poderão ser considerados legítimos se forem empregados com a finalidade
última de concretizar, na maior medida possível, os direitos fundamentais expressos na
Constituição.
Na busca por modelos de justificação externa do poder punitivo é possível,
portanto, descartar de plano, a partir de um juízo de avaliação puramente axiológico,
aquelas doutrinas da pena (e do bem jurídico) que coloquem como fundamento da
atuação estatal qualquer valor estranho ao homem em si.
68

3.1.1 Doutrinas absolutas da pena

3.1.1.1 Doutrinas da retribuição puramente jurídica

De pronto, pode-se dizer que todas as formas de positivismo jurídico, seja na sua
vertente extremista, seja na vertente mais moderada151, são ilegítimas quantos aos fins
propostos.
Na vertente extremista, a tese hegeliana (item 2.3.2, supra) segundo a qual o
Estado constituiria a “manifestação suprema do Espírito no seu devir histórico” e,
portanto, “fim último ao qual os indivíduos estão subordinados”, subverte
completamente o quadro de valores adotado pelos atuais Estados democráticos de
direito, colocando o homem como meio para a implementação de objetivos estatais
supremos, o que representa inequívoca afronta ao princípio maior da dignidade da
pessoa humana. Por isso, não são legítimas doutrinas de justificação da pena (leia-se, do
poder punitivo) que se baseiem na simples superioridade ética do direito — porque
editado pelo Estado — em relação à conduta humana que nega sua vigência. Assim
como também não poderão ser tidas como legítimas doutrinas do bem jurídico que
identifiquem o objeto do tipo de injusto com o mero dever de observância da lei
imposto pelo Estado ao cidadão, tal como defendido por Binding.
Esse modelo de justificação do poder punitivo faz tabula rasa do conceito de
alteridade que é, no final das contas, o fundamento de todo o direito e da própria
sociedade152. A idéia de dever, de direito, de culpa, de individualidade, de comunicação,

151
Segundo Norberto Bobbio, o positivismo jurídico (ou lógico-normativo) pode ser dividido em duas
vertentes, conforme sua intensidade: numa versão extremista, o positivismo jurídico estaria fundado na
concepção do Estado ético de Hegel, segundo a qual “o Estado, que é a suprema manifestação de Deus na
História, é portador de uma missão, ou seja, a de realizar a eticidade, que é uma manifestação do espírito
superior não só para o direito, como também para a moral. Estando assim as coisas, agora fica evidente
que as leis, como manifestação de vontade do Estado, possuem sempre um valor ético e exigem, portanto,
a obediência incondicional dos súditos”; numa versão moderada, o positivismo jurídico também “afirma
que o direito tem um valor enquanto tal, independentemente do seu conteúdo, mas não porque (como
sustenta a versão extremista) seja sempre por si mesmo justo (ou com certeza o supremo valor ético) pelo
simples fato de ser válido, mas porque é o meio necessário para realizar um certo valor, o da ordem (e a
lei é a forma mais perfeita de direito, a que melhor realiza a ordem)” (BOBBIO, Norberto. O positivismo
jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 229-230).
152
“A categoria da alteridade mereceria ter-se deslocado da metafísica de Aristóteles para um bairro
central da filosofia do direito, levando consigo a diferença (que não a constitui mas a assinala) e a
diversidade (que, ao romper a identidade, a inaugura)... Porém isso não aconteceu, e até no marco do
direito privado, mediante procedimentos específicos de reificação jurídica, foi possível imaginar relações
69

etc, só existe em função do relacionamento do homem com o outro. Sozinho, o homem


não é ser racional, moral, ético ou justo. Ele sequer é homem153. Exatamente por isso, o
direito, como forma de solução de conflitos intersubjetivos, só existe em razão da
necessidade de superar eventual desentendimento de dois ou mais indivíduos (de carne e
osso) e não em função do homem e de uma abstração criada por ele próprio (o Estado).
Realmente, o Estado não tem existência autônoma e só age em favor (ou
desfavor) dos interesses humanos daqueles que o instituíram. Daí porque, mesmo numa
vertente moderada do positivismo, não se pode admitir como legítima, tampouco, a
defesa da ordem como um valor justo em si mesmo, sem se considerar os fins a que se
presta a aplicação da lei penal, tal como defendido pelos positivistas lógico-normativos
(item 2.5, supra), a partir da influência neokantiana, pois o Estado nunca pode agir (e de
fato nunca age) de forma desinteressada. No final das contas, se a única razão para se
aplicar a lei penal fosse a satisfação do valor ordem, bastaria que se revogassem todas as
normas incriminadoras para que este nunca mais fosse colocado em dúvida, pois não
existiriam mais violações ao direito.

3.1.1.2 O funcionalismo sistêmico

Dentre os representantes contemporâneos dessa linha positivista supostamente


neutra ou asséptica estão todos aqueles que defendem o modelo funcionalista-sistêmico
idealizado por Günther Jakobs.

jurídicas entre um sujeito e uma coisa, suprimindo a alteridade. A criação e o desenvolvimento do Estado,
ou seja, de um direito público (e dentro dele, de um direito penal público) elevou os riscos de reificação
dos sujeitos” (BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan,
2002. p. 22).
153
“Creio que o humano se constitui na história dos primatas bípedes à qual pertencemos, com a origem
da linguagem. E a linguagem se origina em uma certa intimidade do viver cotidiano, no qual esses nossos
antepassados conviviam compartilhando alimentos, na sensualidade, em grupos pequenos, na participação
dos machos na criação das crianças, no cuidado com as crias, nas coordenações de ação que isso implica.
E ali surge a linguagem como um domínio de coordenações consensuais de conduta. Mas é o fundamento
básico do emocionar-se do mamífero e do primata que torna essa convivência possível. A emoção que
torna possível essa convivência é o amor, o domínio de ações que constituem o outro como legítimo outro
na convivência (...)” (MATURANA, R., Humberto. A ontologia da realidade. Organizado por Cristina
Magro, Miriam Garciano e Nelson Vaz. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 46). Obviamente, as
deturpações funcionalista-sistêmicas do conceito de autopoeise cunhado por Maturana não levaram esses
fatores em consideração no momento da construção de uma teoria do direito penal que prescinde do
homem, conforme se verá no item 4.1.1.2, infra.
70

Embora a maior parte dos autores classifique a doutrina da pena de Jakobs


dentre as relativas, principalmente em função da própria denominação adotada por ele
em sua principal obra (Strafrech Allgemeiner Teil154), parece-nos que seu modelo de
“prevenção geral positiva” está muito mais próximo das doutrinas baseadas na pura
retribuição jurídica do que das doutrinas propriamente preventivas, ou seja, daquelas
que vislumbram na pena um instrumento útil para transformação da realidade. Pelo
menos, é essa a impressão que se tem ao ler seus escritos mais recentes155.
Conforme reconhece o próprio Jakobs, todo seu pensamento jurídico-penal
recebe forte influência da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, no campo
sociológico, e da ideologia ético-normativista de Friedrich Hegel, no campo
filosófico156, não sendo de surpreender, portanto, que vários autores espanhóis e alguns
alemães atribuam a ele o qualificativo de “neo-retribucionista”157.
Segundo a concepção original de Luhmann, a sociedade complexa em que
vivemos atualmente seria caracterizada por uma progressiva diferenciação funcional, de
154
Existe tradução para o espanhol, na qual também nos baseamos para a elaboração deste sub-capítulo
(JAKOBS, Günther. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y teoría de la imputación. Tradução
para o espanhol de Joaquin Cuello Contreras e José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. 2ª edição. Madrid:
Marcial Pons, 1997).
155
Quem alerta para o fato da transformação dos conceitos utilizados por Jakobs ao longo do tempo é
Enrique Peñaranda Ramos: “Jakobs não descreveu sempre, do mesmo modo, entranto, a forma pela qual,
mais concretamente, o Direito Penal presta tal garantia à sociedade. Em particular, produziram-se
variações muito significativas no que se refere ao papel que desempenha um elemento particularmente
discutido, o do ‘exercício da fidelidade no Direito’, em sua concepção da prevenção geral (positiva)”
(RAMOS, Enrique Peñaranda et al. Um novo sistema do direito penal: considerações sobre a teoria de
Günther Jakobs. Organização e tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Barueri, SP:
Manole, 2003. p. 1).
156
Geralmente associado exclusivamente ao pensamento luhmanniano, Peñaranda Ramos adverte que a
doutrina da pena de Jakobs tem também forte influência hegeliana, muito embora seja contrário a sua
classificação como retributivista: “A mecânica correlação que geralmente se estabelece entre a construção
da teoria da prevenção geral positiva por parte de Jakobs e a teoria de sistemas resulta inexata pelo fato de
que a Sociologia do Direito de LUHMANN é só um dos materiais do edifício erguido por aquele autor. A
influência, desde logo, existe e nunca foi negada por Jakobs, mas, como ele mesmo se encarregou
recentemente de assinalar, é mais limitada do que em geral se supõe. Junto a essa influência, se manifesta,
abertamente, na concepção da prevenção geral positiva de Jakobs, o influxo, de modo algum menor, de
uma tradição filosófica que remonta, ao menos, até HEGEL, e o de uma corrente de pensamento jurídico-
penal que percorre quase todo o século XIX e, de forma mais oculta, quase subterrânea, chega até nossos
dias” (RAMOS, Enrique Peñaranda et al. Um novo sistema do direito penal: considerações sobre a teoria
de Günther Jakobs. Organização e tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Barueri,
SP: Manole, 2003. p. 15).
157
O termo é usado por Peñaranda Ramos, que elenca os seguintes autores dentre os que classificam a
doutrina da pena de Jakobs como absoluta, e não relativa: J. Bustos/H. Hormazabal, M. García Arán, M.-
Pérez Manzano, F. Morales Prats, J.-Mª Silva Sanches, Arthur Kaufmann, I. Puppe e B. Shünemann
(RAMOS, Enrique Peñaranda et al. Um novo sistema do direito penal: considerações sobre a teoria de
Günther Jakobs. Organização e tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Barueri, SP:
Manole, 2003. p. 15). No Brasil, apesar de econômico nas palavras, Juarez Tavares parece chegar a essa
mesma conclusão: “Embora JAKOBS reconheça que pela sanção penal não se possa assegurar uma
fidelidade cognitiva do autor, engaja-se na teoria de HEGEL e postula a manutenção da pena como forma
simbólica de expressão do ato injusto e como forma de assegurar ao infrator a sua condição de pessoa”
(TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 65/ 66).
71

modo que dentro do sistema social mais abrangente se poderiam identificar diversos
subsistemas autônomos, que deteriam, com exclusividade, o controle operacional sobre
tudo o que ocorre em seu interior.
De acordo com essa forma de ver a sociedade, pode-se dizer que ao direito,
como subsistema do sistema social global, só interessariam os fenômenos que já
estivessem enquadrados e explicados com base no código lícito/ilícito. Ao revés,
qualquer acontecimento que ainda não tivesse sido regulado de acordo com essa
linguagem binária pertenceria ao “meio ambiente” e, sendo externo ao subsistema
jurídico, seria absolutamente irrelevante para ele.
Desta forma, relegando a cada subsistema a tarefa de cuidar dos problemas com
relação aos quais já está preparado para lidar, seria mais fácil reduzir as complexidades
do mundo social, favorecendo a “generalização congruente das expectativas
normativas”. Em outras palavras, o fechamento operativo do subsistema jurídico seria
condição para sua sobrevivência mesma, já que uma eventual abertura não programada
poderia levar a incoerências, contradições e, em última instância, a sérias desilusões
quanto à sua funcionalidade. O subsistema jurídico funcionaria como um filtro: as
questões menos complexas, que se ajustam às generalizações congruentes das
expectativas normativas, seriam admitidas pelas instituições (Poder Judiciário) e
receberiam a valoração já estabelecida pelo sistema; ao passo que as complexidades do
ambiente que não se encaixem nas expectativas normativas generalizáveis e congruentes
seriam simplesmente rejeitadas.
Desta forma, toda e qualquer questão que se coloque em termos de justiça ou
injustiça (que é o código utilizado pelo subsistema moral) é estranha ao direito e não
pode influenciar de modo algum suas decisões. É exatamente por isso que se diz que
esse modelo é autopoético158, pois o contato do subsistema jurídico com seu meio
ambiente se dá de forma absolutamente controlada pelo próprio subsistema, ou seja,

158
Conforme explica Marcelo Neves: “O conceito de autopoiese tem sua origem na teoria biológica de
Maturana e Varela. Etimologicamente, a palavra deriva do grego autos (‘por si próprio’) e poiesis
(‘criação’, ‘produção’). Significa inicialmente que o respectivo sistema é constituído pelos próprios
componentes que ele constrói. Definem-se então os sistemas vivos como máquinas autopoéticas: uma
rede de processos de produção, transformação e destruição de componentes que, através de suas
interações e transformações, regeneram e realizam continuamente essa mesma rede de processos,
constituindo-a como unidade concreta no espaço em que se encontram, ao especificarem-lhe o domínio
topológico de realização. Trata-se, portanto, de sistemas homeostáticos, caracterizados pelo fechamento
na produção e reprodução dos elementos. Dessa maneira, procura-se romper com a tradição segundo a
qual a conservação e a evolução da espécie seriam condicionadas basicamente pelos fatores ambientais.
Ao contrário, sustenta-se que a conservação dos sistemas vivos (indivíduos) fica vinculada à sua
capacidade de reprodução autopoética, que os diferencia em um espaço determinado” (NEVES, Marcelo.
Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 60/ 61).
72

somente à medida que as próprias normas jurídicas se dispõem a regular determinado


dado da realidade é que este passa a ter relevância para o mundo do direito. Antes que
isso ocorra, porém, qualquer fato externo ainda não colocado pelo ordenamento jurídico
no código lícito/ilícito (o desemprego, a fome, a violência, a falência do sistema
carcerário, a idéia de justiça, etc) será simplesmente ignorado pelo direito.

“O direito não extrai sua validade de um imaginário contrato social, de


um idílico consenso comunicativo ou de uma suposta razão natural. Nada
disso. Como sistema auto-referencial – organizado com base num código
comunicativo específico (lícito/ ilícito), que implementa programas
condicionais (do tipo se/ então) e desempenha função infungível
(generalização congruente de expectativas normativas) – o direito
positivo deve resolver, de modo circular, tautológico e paradoxal, o
problema do seu fundamento. O direito positivo não entende outras
razões além daquelas traduzíveis nos termos do seu código, programas e
função. Daí, afirma Garcia Amada, ‘o juiz, por exemplo, não atua em
razão de fins, mas a partir do cumprimento de certas condições iniciais:
as previstas na norma. Para Luhmann, desconhecer este dado e introduzir
elementos teleológicos, cálculos sobre as conseqüências,
discricionariedade judicial, etc, significa bloquear a função do direito
como estabilizador de expectativas, inviabilizar a redução da
complexidade alcançada com a divisão de tarefas entre o legislador e o
aplicador das normas e questionar a autonomia do sistema face aos
demais sistemas, como o político, o econômico, etc”.159

A legitimidade do sistema jurídico é, desta forma, assegurada pelo simples fato


de não poder ser colocada à prova. Com relação às complexidades já estruturadas, o
direito posto deve ser mantido porque só assim se consegue estabilizar as expectativas
normativas. Com relação às complexidades ainda não estruturadas, o direito posto deve
ser igualmente mantido porque estas não lhe interessam e eventuais injustiças existentes
no meio ambiente não podem lhe atingir.

159
CAMPILONGO, Celso Fernades. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max
Limonad, 2002. p. 22.
73

Já segundo a concepção sociológica (puramente descritiva) de Luhmann, como


se vê, a teoria dos sistemas revela nítido caráter conservador, pois assume que são os
próprios detentores do poder (jurídico, econômico, político, etc) os únicos que podem
controlar a admissão, ou não, de determinada pretensão no âmbito de sua esfera de
atuação160. A transposição desse pensamento para o âmbito jurídico, no entanto, vai
produzir resultados ainda mais desastrosos161.
É que, sendo o direito uma ciência prescritiva e não puramente descritiva, a
adoção do pensamento sistêmico no âmbito do direito importará na transformação de
uma simples teoria da sociedade, como ela é, em uma doutrina da sociedade, como ela
deve ser. Ou seja, se Luhmann acreditava que o modelo descritivo por ele proposto era
o que mais se aproximava do que se vê nas sociedades complexas contemporâneas,
independentemente de qualquer avaliação valorativa desse fato162, Jakobs, por sua vez,
transformará esse modelo sociológico no valor de justiça a ser perseguido pelo direito,
defendendo que justa é a preservação do próprio código binário lícito/ilícito,
independentemente de qualquer efeito benéfico que isso possa eventualmente
representar para a sociedade como um todo. Nas palavras do penalista de Bonn:

“Nessa concepção, a pena não é tão-somente um meio para manter a


identidade social, mas já constitui essa própria manutenção. Certamente,

160
Daí porque pertinente a crítica de Heitor Costa Júnior, que considera “evidente o caráter conservador
de tal pensamento social”. Em seu artigo, o penalista carioca transcreve, ainda, trecho da obra de Jürgen
Habermas, de onde se pode extrair o caráter recorrente desse tipo de crítica: “Atrás da intenção de
justificar a redução da complaxidade do mundo esconde-se a inconfessada rendição da teoria à questão da
conformidade com o poder, a apologia do que já existe com vistas à sua manutenção” (COSTA JÚNIOR,
Heitor. Crítica à legitimidade do direito penal funcionalista. Discursos Sediciosos: crime, direito e
sociedade, Rio de Janeiro, ano 5, nos 9 e 10, 2000. p. 97).
161
“A versão mais radicalizada do funcionalismo sistêmico chega a extremos incompatíveis com o estado
de direito, pelo menos em sua transferência para o sistema penal ou nas conseqüências extraídas por
aqueles que o fazem. a) Constitui uma posição que interrompe qualquer diálogo, pois por si só se converte
em um discurso autopoiético: supõe que quem admitir que deva haver poder estatal e que este deva ter
eficácia não pode discutir sua legitimidade, ou seja, que o poder punitivo existe ou não existe e, quando
existe, deve ser aceito e legitimado incondicionalmente, mesmo com suas caracterísitcas negativas. Eis a
expressão máxima daqueles que pretendem que o programa moderno esteja perfeitamente realizado: o
que é e como deve ser ou, em outras palavras, deve ser porque é. Consiste em uma singular interpretação
do princípio hegeliano baseada em leis extraídas da biologia. b) Ao aceitar e legitimar os elementos
estruturalmente negativos do poder punitivo e torná-los positivos por meio da função autopoiética de
equilibrar o sistema, converte-se em uma teoria antiética: o valor supremo é o sistema e todos os demais
valores são meros instrumentos” (ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p. 627).
162
Marcelo Neves lembra, no entanto, que essa pretensão avalorativa da obra de Luhmann não é
reconhecida pelos seus críticos, como por exemplo Habermas, que sequer o classifica “como sociólogo ou
teórico da sociedade, mas sim, contrariando a auto-avaliação deste, como ‘o verdadeiro filósofo’
(1996b:393)” (NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes,
2006. p. 51).
74

pode ser que se vinculem à pena determinadas esperanças de que se


produzam conseqüências de psicologia social ou individual de
características muito variadas, como, por exemplo, a esperança de que se
mantenha ou solidifique a fidelidade ao ordenamento jurídico. Mas a
pena já significa algo independente dessas conseqüências: significa uma
autocomprovação”.163

Como se percebe, apesar de aderir ao pensamento de Luhmann e reconhecer que


o direito pode ter repercussões no sistema social mais abrangente, estabilizando as
expectativas normativas, Jakobs descarta que esse possa ser o fim da sanção penal. Na
sua visão mais recente, a sanção penal “não tem um fim, mas constitui em si mesma a
obtenção de um fim, scil, a constatação da realidade da sociedade sem trocas”164. Para
ele, as chamadas teorias da prevenção geral positiva165 teriam efeito demasiado
psicologizante166 e estariam baseadas em finalidades que fogem à linguagem
(lícito/ilícito) própria do subsistema jurídico. Por isso, “deve-se manter a sanção livre de
todas as adições que parecem impor-se quando se toma em consideração de algum
modo a situação motivacional dos indivíduos”167, ainda que sua aplicação prática possa,
eventualmente, ter alguma influência na conduta futura dos membros da sociedade.
Assim, ao contrário do que sustentam tradicionalmente os seguidores da doutrina
da prevenção geral positiva, não se aplica a pena para reforçar a confiança dos

163
JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Trad. Maurício Antônio Ribeiro Lopes. São Paulo:
Manole, 2003. p. 4.
164
JAKOBS, Günther. Teoria da pena e o suicídio e homicídio a pedido. Trad. Maurício Antônio Ribeiro
Lopes. São Paulo: Manole, 2003. p. 18.
165
Nesse texto mais recente, Jakobs já coloca em dúvida a propriedade de se referir à sua doutrina da
pena como preventiva geral positiva, tal como realizado em seu Tratado (vide nota 157, supra): “A
prevenção geral positiva – se é que se quer fazer uso desse termo – não deve denominar-se prevenção
geral porque garante o genérico, melhor dito, o geral, isto é, a configuração da comunicação; por outro
lado, não se trata de prevenção porque se quer alcançar algo por meio da pena, mas porque esta, como
marginalização do significado da ação em si mesma tem como efeito a vigência da norma” JAKOBS,
Günther. Teoria da pena e o suicídio e homicídio a pedido. Trad. Maurício Antônio Ribeiro Lopes. São
Paulo: Manole, 2003. p. 26/ 27).
166
“O resultado alcançado – a pena como confirmação da configuração da sociedade – tem pontos de
estreito contato com uma teoria recente de acordo com a qual a pena tem a missão preventiva de manter a
norma como esquema de orientação, no sentido de que aqueles que confiam numa norma devem ser
confirmados em sua confiança. Fala-se de prevenção geral positiva – não intimidatória –, é dizer, de uma
confirmação perante todos. Essa teoria da prevenção geral positiva não carece de antecessores, porém, é
próxima, por sua vez, à doutrina de Welzel segundo a qual o Direito Penal tem uma ‘função ético-social’,
que forma ‘o juízo ético-social dos cidadãos’. Não se pretende realizar aqui uma crítica a essas teorias;
porém em sua formulação – e se trata muito mais de questões de configuração que de questões materiais –
chegam a uma configuração demasiado psicologizante” (JAKOBS, Günther. Teoria da pena e o suicídio
e homicídio a pedido. Trad. Maurício Antônio Ribeiro Lopes. São Paulo: Manole, 2003. p. 25).
167
JAKOBS, Günther. Teoria da pena e o suicídio e homicídio a pedido. Trad. Maurício Antônio Ribeiro
Lopes. São Paulo: Manole, 2003. p. 18.
75

indivíduos na validade da norma, ainda que tal efeito possa eventualmente ocorrer no
meio ambiente. Na verdade, o simples ato de aplicar a pena em razão da violação da
norma proibitiva já satisfaz as exigências de justificação do sistema jurídico, pois
confirma sua validade (interna). As influências que o funcionamento do sistema possam
gerar sobre os indivíduos são irrelevantes, pois nada dizem em termos de
licitude/ilicitude. No final das contas, o que interessa para Jakobs é apenas a
“manutenção da vigência da norma”, pouco importando os efeitos práticos que essa
vigência – ou a ausência dela – possa representar para os indivíduos que compõem a
sociedade168.
A proposta do funcionalismo sistêmico, portanto, pode ser situada em algum
lugar entre o asceticismo valorativo de Kelsen (item 2.5, supra) e o idealismo estatal de
Hegel (item 2.3.2, supra), com uma sensível tendência para esse último, conforme
reconhece o próprio Jakobs169.
É que, se por um lado, ele sustenta que o “ponto de partida funcional” não
acrescenta nem retira nada em termos de valores, “uma vez que é neutro”170, por outro
lado, Jakobs não esconde sua predileção (valorativa, é claro) pelas sociedades
hierarquizadas e organizadas de modo funcional, acreditando piamente que o desenrolar
histórico representa uma linha evolutiva, tanto assim que “as sociedades coletivas
organizadas de modo disfuncional desapareceram, como nos ensina a história mais
recente”171. Daí para uma concepção do Estado como “manifestação suprema do
Espírito no seu devir histórico”, tal como defendido por Hegel, não há mais distância
alguma.

168
“A pena é um processo de comunicação, e por isso seu conceito tem de estar orientado em atenção à
comunicação e não deve ser fixado com base nos reflexos ou nas repercussões psíquicas da comunicação.
A confiança na norma ou a atitude conforme o Direito dos cidadãos tão-somente são derivadas da
realidade da sociedade, que é o único decisivo. Pode acontecer que se deseje alcançar determinados
processos psíquicos como conseqüências da comunicação da norma por meio da pena pública, porém não
formam parte do conceito de pena. Este – e isto é o que se tentou demonstrar aqui – se esgota em que a
pena significa a permanência da realidade normativa sem modificações” (JAKOBS, Günther. Teoria da
pena e o suicídio e homicídio a pedido. Trad. Maurício Antônio Ribeiro Lopes. São Paulo: Manole, 2003.
p. 26).
169
“Quanto aos resultados alcançados, o aqui exposto deve seus elementos principais à teoria da pena de
Hegel. Em sua terminologia se diz que a ‘lesão do Direito enquanto Direito’ é ‘nula em si mesma’, aqui
se afirma que a violação da norma não é determinante para a sociedade real. Na obra de Hegel se diz
ademais que a nulidade se mostra na destruição da infração do Direito, aqui se afirma que o caráter não
determinante pode observar-se na exclusão do geral com o infrator da norma” (JAKOBS, Günther. Teoria
da pena e o suicídio e homicídio a pedido. Trad. Maurício Antônio Ribeiro Lopes. São Paulo: Manole,
2003. p. 20/ 21).
170
JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Trad. Maurício Antônio Ribeiro Lopes. São Paulo:
Manole, 2003. p. 14.
171
JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Trad. Maurício Antônio Ribeiro Lopes. São Paulo:
Manole, 2003. p. 19.
76

Mantendo a coerência metodológica, uma vez que a pena não desempenha


funções preventivas, Jakobs propõe a supressão de todo e qualquer conteúdo material
para o conceito de bem jurídico, o qual passa a indicar apenas a violação do dever
expresso na norma. É que, ainda que o bem jurídico possa se mostrar presente em
alguns tipos penais, há outras situações em que a norma limita-se a impor um dever ao
cidadão e sua violação representa idêntica afronta ao funcionamento do sistema jurídico,
razão pela qual deve ser igualmente apenada, independentemente de qualquer lesão a
bens ou valores172. Dessa forma, Jakobs retoma o conceito de bem jurídico cunhado por
Binding e “lembra – apenas lembra – mas já constitui uma trágica lembrança: a Escola
de Kiel, que definia o delito como mera infração de dever”173.
Por tudo, pode-se dizer que o projeto funcionalista de Jakobs, apesar da nova
roupagem sistêmica que recebeu, não é de modo algum original, mas importa em
verdadeira reedição do positivismo lógico-normativo, merecendo, assim, as mesmas
críticas já dirigidas anteriormente aos seguidores dessa corrente (item 3.1.1.1, supra).

3.1.1.3 Doutrina da retribuição puramente moral

Conforme visto no item 2.2.5 (supra), Kant elevou a retribuição ao status de


imperativo categórico, reconhecendo na pena algo “ilimitadamente bom”, universal,
válido para todos os homens em todos os tempos, e que deve ser aplicado
independentemente de qualquer benefício prático que se possa atingir, por simples
constatação racional a priori.
172
“Puede intentarse presentar al Derecho Penal como protección de bienes jurídicos, pero sólo de modo
bastante forzado. El Derecho es la estructura de la relación entre personas, que a su vez pueden
representarse como titulares de determinados roles; la determinación del comportamiento no permitido a
través de diversos institutos de la así llamada teoría de la imputación objetiva – actualmente ampliamente
reconocida – obliga, al tener en cuenta el contexto social, a determinar un rol social incluso para los
deberes negativos. Los deberes positivos (aquellos que derivan de instituciones especiales) son deberes en
roles especiales y no son susceptibles de ser formulados como deberes de respetar bienes existentes. No
existe un limite inamovible entre el bien jurídico y la infracción moral. La doctrina del Derecho Penal
como protección de bienes jurídicos tampoco realiza contribución alguna en la limitación de la
antecipación de la punibilidad; en los delitos contra el medio ambiente conduce a tesis extrañas. Un
contenido genuinamente liberal de esta teoría es mera opción política. La teoría del Derecho Penal como
protección de la vigencia de la norma demuestra su validez especialmente en la teoría de los fines de la
pena: el hecho es una lesión de la vigencia de la norma, la pena es su eliminación” (¿Qué protege el
derecho penal: bienes jurídicos o la vigencia de la norma? Trad. Manuel Cancio Meliá. Mendoza: Cuyo,
2004. p. 63).
173
COSTA JÚNIOR, Heitor. Crítica à legitimidade do direito penal funcionalista. Discursos Sediciosos:
crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, ano 5, nos 9 e 10, 2000. p. 98.
77

A máxima seguida por Kant para chegar a essa conclusão é legitima e talvez seja
mesmo a maior expressão do valor da dignidade da pessoa humana: “Age de modo tal
que uses a humanidade tanto em tua pessoa como na pessoa de todo outro sempre ao
mesmo tempo como fim, jamais simplesmente como meio”174. No entanto, o poder
punitivo, como instrumento de controle social que é, nunca poderá ser entendido como
um fim em si mesmo e nem o próprio Kant conseguiu uma solução satisfatória para essa
questão. Após elevar o homem a um fim em si mesmo (o que é correto), “ele se viu
diante de um problema que, definitivamente, não tem solução: enquanto a coerção que
detém o injusto é justa, a pena posterior, à medida que queira ter algum fim que a
transcenda, torna-se imoral, porque usa o humano como meio”175, e nem mesmo o
recurso à retribuição talional pode esconder esse fato. Apesar de Kant insistir em que a
legitimidade da pena independe de qualquer efeito prático futuro, o certo é que, ao
defender sua aplicação incondicional, acaba usando o poder punitivo como instrumento
de proteção de um simples valor moral, o que coloca o homem novamente como meio
para a obtenção de fins estranhos à sua pessoa176.
Realmente, apesar de fazer parte de nossa tradição romano-cristã a identificação
do valor justiça com a idéia de retribuição do mal com o mal177, não há como afirmar,
juntamente com Kant, que tal paradigma axiológico seja da essência humana e,
portanto, válido universalmente para todos os povos e em todos os tempos178. Na

174
Apud HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valério Rohden. Martins
Fontes: São Paulo, 2005. p. 202.
175
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 521.
176
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 522-523.
177
“(…) a tradição religiosa judaico-cristã occidental apresenta uma imagem retributivo-vingativa da
justiça divina, que talvez constitua a influência cultural mais poderosa sobre a disposição psíquica
retributiva da psicologia popular – portanto, de origem mais social do que biológica” (SANTOS, Juarez
Cirino. Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 454).
178
É exatamente esse, aliás, o alerta feito por Sebastian Scheerer: “En la discusión científica, incluso, es
ahora indiscutido que el Derecho penal y las penas criminales no son, de ningún modo, formas
universales de control social: ‘En las sociedades libres de dominio, que – no se olvide – fueron
características de la mayor parte de la historia de la humanidad, no existen. El control social en ese
contexto no es represivo, sino que se dirige hacia la reinserción del sujeto desviado, reparación de
eventuales daños, restablecimiento del status quo, pacificación y limitación del conflicto. Tan solo con la
aparición de las clases sociales, con la dominación y con la organización estatal de la sociedad se generan
conflictos antagónicos que ya no pueden ser resueltos en el interés de la mayoría de los miembros de la
sociedad, o incluso, del colectivo en su conjunto’. Sin normas o sanciones no puede existir ninguna
sociedad – pero si sin penas criminales. Las normas son algo universal, pero no las normas jurídicas; las
sanciones, pero no las penas; el principio de reciprocidad, pero no la retribución mediante pena; la
adscripción de responsabilidad, pero no la culpabilidad. Hay innumerables ejemplos de sociedades sin
Derecho penal y sin penas criminales – y no cabe imaginar una sociedad mundial sin normas y sanciones,
pero si una sociedad mundial sin Derecho penal y sin penas” (SCHEERER, Sebastian. ¿La pena criminal
como herencia cultural de la humanidad? In Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 13,
nº 57, 2005. p. 110).
78

verdade, conforme bem nota Guadalupe Sanzberro, “não há um ‘modelo’ social


apriosrístico de necessidade de castigo, senão um modelo apreendido”179.
Pois é exatamente isso o que revelam os estudos de antropologia jurídica. Ao
contrário da civilização ocidental moderna, e ao contrário do que acreditava Kant,
algumas sociedades valorizam como virtuoso aquele que sabe resolver seus conflitos
(até mesmo os mais graves) de forma conciliadora, exercendo o direito de perdão, e não
o de vingança, como instrumento de realização da justiça. Conforme relato de Norbert
Rouland, para os Gamos da Etiópia –

“(...) os homens honrados são os que sabem pacificar as brigas: esta arte é um
dos princípios fundamentais da educação gamo. A reparação e a pena são
meios rudimentares de dar fim a um conflito: cumpre sobretudo eliminar suas
causas e os rancores que ocasionou (aliás, expulsam-nos do ventre por vômitos
simulados). Em caso de homicídio, tudo é feito para prevenir as ocasiões de
vingança. Os membros das linhagens envolvidas devem evitar-se, o homicida é
desterrado. Mas o banimento não é definitivo. Prima a reconciliação, e os
parentes da vítima participam dela. O homicida e sua linhagem tomam a
iniciativa enviando seus anciães ao clã da vítima para saber se quer aceitar a
volta do culpado. Quando a resposta é afirmativa, um ritual marca a extinção
do conflito. Um animal é sacrificado, depois o cortam em pedaços e praticam
uma incisão em sua pele. O homicida e o parente mais próximo da vítima
passam então por esse buraco, para marcar seu renascimento para uma nova
ordem”180.

É certo que não vivemos na Etiópia e, muito menos, entre os Gamos. Nossa
sociedade, como sói dizer, é muito mais complexa do que a dos povos considerados
“primitivos” ou chamados indivisos. No entanto, sendo o direito a expressão do que
deve ser e não apenas do que é de fato a vida em sociedade, nada impede ― ao
contrário, recomenda ― que ao invés de cultivar um ideal de justiça meramente
retributiva, baseada na intolerância e na exclusão do indesejável como imperativos de

179
SANZBERRO, Guadalupe Pérez. Reparación y conciliación en el sistema penal. ¿Apertura de una
nueva via?. Granada: Comares, 1999. Apud SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o
novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime. Rio de Janeiro: lumen Juris, 2007. p. 35.
180
ROULAND, Norbert. Nos confins do direito: antropologia jurídica da modernidade. Tradução de
Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.. p. 119.
79

um sistema de valores inflexível, se invista em outras formas de solução das


controvérsias, estimulando o entendimento entre as partes afetadas e buscando, a partir
do diálogo, alternativas criativas à simples punição do autor e ao recorrente
esquecimento da vítima.
Note-se, por oportuno, que a recusa em admitir uma doutrina da pena baseada na
retribuição puramente moral não se dá somente por uma discordância pessoal quanto ao
valor positivo atribuído por Kant ao castigo, mas porque, conforme alerta Roxin, essa
idéia de que se pode compensar ou suprimir um mal (o delito) causando outro mal
adicional (o sofrimento da pena) só pode corresponder a uma crença ou a um ato de fé,
que não pode nunca ser imposto pelo Estado, uma vez que ele já não recebe seu poder
de Deus, mas sim do povo181.

3.1.2 O direito penal voltado para as conseqüências e as doutrinas teleológicas


legitimadoras

O consenso sobre a irracionalidade das doutrinas absolutas da pena e a


influência do novo paradigma constitucionalista de Estado substancial de direito, onde
todas as manifestações do poder público devem estar informadas por valores que
decorram dos direitos fundamentais, fizeram com que a dogmática jurídico-penal
começasse a se afastar da tradição sistemática que vigorava até o início dos anos
sessenta do século passado182.
De uma proposta de ampla e abrangente criminalização, com ênfase na proteção
do Estado e da moralidade, passou-se a uma estreita vinculação do direito penal aos fins
políticos-criminais definidos na Constituição. Afinal, se a verdade não era um objeto a
ser descoberto, mas sim um valor a ser compartilhado, era preciso que também o

181
ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general, tomo I. Tradução de Diego-Manuel Luzón Pena,
Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2003. p. 84.
182
Winfried Hassemer associa essa mudança ao Congresso de professores realizado na cidade de
Hamburgo, em 1964, quando os participantes fizeram críticas viscerais ao projeto de Código Penal
alemão “E 1962”, que, em linhas gerais, mantinha-se fiel ao paradigma retributivista, prevendo: “-
criminalização ampla e abrangente, em interesse da integridade do sistema, com ênfase na proteção do
Estado e da ‘moralidade; - elaboração teórica concentrada nas condições de punibilidade, principalmente
na Parte Geral, em detrimento dos efeitos do Direito Penal (penas e medidas de segurança); -
favorecimento dos tradicionais fins da pena de retribuição e prevenção por intimidação” (HASSEMER,
Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre: FESMP, 1993. p. 25-26).
80

sistema criminal se colocasse a serviço desse objetivo comum. Assim, “alterava-se a


reflexão penal de uma ênfase no input para uma ênfase no output, de uma justificação
do Direito Penal fundada em abstração e sistema para uma justificação pelos efeitos que
possa produzir”183. Enfim, surgia o “direito penal voltado para as conseqüências”.
Claus Roxin pode ser apontado como o precursor dessa nova corrente político-
dogmática, tendo sua obra (“Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal”), publicada
pela primeira vez em 1970, influenciado enormemente os penalistas a partir do final do
século passado.
Segundo a teoria funcionalista-teleológica do delito, o direito penal não deve ser
visto como “barreira intransponível da política criminal”, tal como defendido por Franz
Von Lizst, mas sim como instrumento de realização dessa mesma política estatal. E isto
porque os direitos fundamentais expressos na Constituição vão perdendo, no âmbito de
um Estado social de direito, seu caráter exclusivamente negativo e limitador do poder
punitivo, para assumirem também um viés positivo, no sentido de obrigar o poder
público a garantir a concretização dos direitos individuais e sociais de todos184.
De fato, conforme lembra Ingo Sarlet, a dimensão objetiva dos direitos
fundamentais foi cunhada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da
Alemanha após o advento da Constituição de 1949 e a partir dela se construiu o modelo
de Estado social de direito. O julgamento paradigmático sobre o tema foi proferido já
em 1958 (caso “Lüth”), em que o Tribunal Constitucional Federal alemão consignou
que “os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos
subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público”, tal como é
característico dos Estados liberais, “mas que, além disso, constituem decisões
valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o
ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e

183
HASSEMER, Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre: FESMP, 1993. p. 27.
184
“O positivismo como teoria jurídica caracteriza-se por banir da esfera do direito as dimensões do
social e do político. Exatamente esse pensamento, por LISZT tomado como um óbvio axioma,
fundamenta a oposição entre direito penal e política criminal: o direito penal só será ciência jurídica em
sentido próprio, enquanto se ocupar da análise conceitual das regulamentações jurídico-positivas e da sua
ordenação no sistema. (...) Atualmente, porém, a tarefa da lei não se esgota mais nesta função garantística.
Qualquer jurista sabe, por exemplo, da posição dominante que atingiram no direito administrativo as
formas jurídicas da administração prestadora ao lado da tradicional administração de intervenção, vinda
do século passado; e a doutrina jurídico-administrativa já se pôs em dia com esta realidade. De maneira
análoga deve ser reconhecido também no direito penal – mantendo intocadas e completamente íntegras
todas as exigências garantísticas – que problemas político-criminais constituem o conteúdo próprio
também da teoria geral do delito. O próprio princípio nullum-crimen possui, ao lado de sua função liberal
de proteção, a finalidade de fornecer diretrizes de comportamento; através disto, torna-se ele um
significativo instrumento de regulação social” (ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-
Penal. Tradução de Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 12-15).
81

executivos”185. Os direitos fundamentais, vistos a partir dessa dimensão objetiva, teriam


efeitos irradiantes sobre todo o ordenamento jurídico, obrigando cada um dos ramos do
direito a serem interpretados conforme os valores fundamentais previstos na
Constituição, assim como atribuindo ao Estado um dever de proteção desses mesmos
valores, uma vez que ao indivíduo não seria permitido (nem possível) usar da força para
defendê-los por si mesmo186. Aí, e somente aí, residiria a legitimação do poder punitivo
estatal, ou seja, na proteção subsidiária dos bens jurídicos187 considerados fundamentais
pelo legislador constituinte188.
Assim, se o direito penal se associa ao programa político-criminal do Estado,
sendo também ele instrumento de concretização dos direitos fundamentais, a pena não
pode ter outra finalidade que não a de prevenir a ocorrência de novos delitos189.
Qualquer fundamento puramente retributivo atribuído à reprimenda penal deve ser tido
por absolutamente ilegítimo, visto que amparado em valores estranhos àqueles
esposados pela Constituição.
É exatamente por isso que Roxin, assim como a quase totalidade dos penalistas
contemporâneos de tradição continental, sustenta a insubsistência das doutrinas
absolutas da pena. Pois, se a finalidade de um direito penal constitucionalmente
vinculado é de proteger, ainda que de forma subsidiária, os bens jurídicos fundamentais,
então ele não pode utilizar-se de um modelo punitivo que prescinda, de forma expressa,
de todo e qualquer efeito social.
O direito penal voltado para as conseqüências recorrerá, então, para justificar o
exercício do poder punitivo, às já mencionadas doutrinas relativas da pena, conferindo a

185
SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos
fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Disponível na Internet:
http://www.mundojurídico.adv.br. Acesso em 21 de fevereiro de 2007. p. 20.
186
SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos
fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Disponível na Internet:
http://www.mundojurídico.adv.br. Acesso em 21 de fevereiro de 2007. p. 22.
187
“(...) el concepto material de delito es previo al Código Penal y le suministra al legislador un criterio
políticocriminal sobre lo que el mismo puede penar y lo que debe dejar impune. Su descripción se deriva
del cometido del Derecho penal, que aquí se entiende como ‘protección subsidiaria de bienes jurídicos’
(grifo do autor)” (ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general, tomo I. Tradução de Diego-Manuel
Luzón Pena, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2003. p. 51).
188
“El punto de partida correcto consiste en reconocer que la única restricción previamente dada para el
legislador se encuentra en los principios de la Constitución. Por tanto, un concepto de bien jurídico
vinculante políticocriminalmente sólo se puede derivar de los cometidos, plasmados en la Ley
Fundamental, de nuestro Estado de Derecho basado en la libertad del individuo, a través de los cuales se
le marcan sus límites a la potestad punitiva del Estado” (ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general,
tomo I. Tradução de Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. Madrid: Civitas, 2003. p. 55-56).
189
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1999. p. 96.
82

esta a dupla função de prevenção especial e geral, pois os delitos podem ser evitados
tanto por meio da influência sobre o particular, quanto sobre a coletividade, de modo
que essas duas funções se subordinam ao fim último a que se propõem e são, ao menos
em tese, igualmente legítimas190.
É certo que as doutrinas relativas da pena, ao pretenderem usar o homem como
meio para a consecução de fins preventivos, também estão sujeitas a severas críticas
desde um ponto de vista valorativo. Afinal, ainda que seja eficaz neutralizar, intimidar
ou modificar pessoas para atingir o objetivo de evitar a ocorrência de novos delitos (o
que, como se verá mais à frente, nem sempre é verdadeiro), isso não afasta a
necessidade de se questionar a legitimidade ética dos próprios meios empregados, pois,
como lembra Fábio Konder Comparato:

“(...) a inadequação dos meios aos objetivos visados pode dar-se no terreno dos
valores éticos. Se os meios empregados pelo agente são eticamente
incompatíveis com esses valores finais, o resultado que se tem em vista fica
necessariamente comprometido. É impossível aumentar o grau de honestidade
na vida pública mediante a utilização de procedimentos desonestos. Não é pela
guerra que se cria a paz no mundo”191.

De forma correlata, pode-se dizer que não é possível (nem legítima) a pretensão
de transformar “homens maus” em “homens bons” através do uso da força, pois, de
acordo com o modelo de Estado democrático de direito em que vivemos, onde cada um
deve ser livre para escolher seu próprio estilo de vida, o poder público, por princípio,
não pode impor ao indivíduo qualquer tipo de tratamento ou reeducação segundo seus
próprios padrões de normalidade. O pluralismo e o respeito às diversidades são
condições indispensáveis para uma existência humana digna192.

190
ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general, tomo I. Tradução de Diego-Manuel Luzón Pena,
Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2003. p. 95.
191
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 504.
192
“(…) qualquer tratamento penal voltado para a alteração coercitiva da pessoa adulta com fins de
recuperação ou integração social, não apenas atinge a dignidade do sujeito tratado, mas também um dos
princípios fundamentais do estado democrático de direito, que (...) traduz-se no igual respeito das
diversidades e na tolerância de qualquer subjetividade humana, até mesmo da mais perversa e inimiga,
ainda mais se reclusa ou sujeita ao poder punitivo. Na medida em que seja realizável, a finalidade da
correição coativa da pessoa constitui, portanto, uma finalidade moralmente inaceitável como justificação
externa da pena, além de violar o primeiro direito de todo e qualquer homem, que é a liberdade de ser ele
próprio e de permanecer como é” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal.
83

Os adeptos do direito penal voltado para as conseqüências, no entanto, tentarão


se livrar desse problema com o argumento de que uma função de prevenção especial
positiva só pode ser perseguida caso haja expressa concordância do condenado em
submeter-se ao programa ressocializador. Do contrário, o poder punitivo estará
justificado, exclusivamente, como forma de prevenção geral, positiva ou negativa193.
A própria idéia de prevenção geral, contudo, continua às voltas com uma crítica
dirigida por Hegel a Feuerbach há quase dois séculos, e que até hoje ainda não recebeu
uma resposta à altura: “O direito e a justiça devem manter suas raízes na liberdade de
vontade. Na ameaça não há referência à liberdade, senão à falta de liberdade, como se
dá quando se levanta um bastão para um cachorro. O homem, então, é tratado como se
fosse um cachorro e não segundo sua dignidade, sua liberdade”194.
Realmente, mesmo que seja eficaz a intimidação, é difícil compreender que
possa ser justo que se imponha um mal a alguém para que outras pessoas se omitam de
cometer eventuais delitos. Além disso, se a pena já não tem qualquer relação com a
natureza da conduta praticada pelo agente, mas apenas com aquilo que é preciso para
que a punição deste sirva de exemplo para as demais pessoas, a constante busca por uma
maior efetividade penal pode conduzir o legislador ao trágico ponto de instituir a pena
de morte para todos os crimes, transformando, assim, um Estado que se quer libertário
em um verdadeiro Estado de terror.
Para contornar essa crítica, os penalistas contemporâneos buscarão combinar as
funções preventivas legitimadoras com limites retributivos máximos, de maneira que os
efeitos intimidatórios (e de integração) fiquem bitolados à medida da culpabilidade do
fato praticado pelo agente. Ou seja, o caráter retributivo da pena, tradicionalmente
utilizado nas doutrinas absolutas como fundamento do poder punitivo, passa a ser visto
como um fator limitador da intervenção penal, de modo que o objetivo preventivo não

Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 220).
193
“Si a los fines de la (re)socialización se hace indispensable, en los planos de la legitimidad y de la
eficacia, la libre adhesión del sujeto a la acción de recuperación, se pueden suponer casos de rechazo a
participar en esta última. En tal situación, un derecho penal que se haga cargo de la observancia de los
derechos constitucionales, puestos en tutela de la persona, no pude reaccionar reproponiendo respuestas
sancionadoras rigoristas de tipo represivo-aflictivo, sino sólo tratando de realizar esas condiciones de no
(ulterior) desocialización, normalmente relacionada con la internación en una institución de tipo
carcelario. En relación con estos casos, serán las legítimas exigencias de prevención general las que
justifiquen la sanción penal” (MOCCIA, Sergio. El derecho penal entre ser y valor: función de la pena y
sistemática teleológica. Trad. Antonio Bonanno. Buenos Aires: Julio César Faria Editor, 2003. p. 107-
108).
194
Apud MOCCIA, Sergio. El derecho penal entre ser y valor: función de la pena y sistemática
teleológica. Trad. Antonio Bonanno. Buenos Aires: Julio César Faria Editor, 2003. p. 102-103.
84

ultrapasse a barreira do razoável. É exatamente essa, aliás, a proposta defendida por


Roxin, em sua “teoria unificadora preventiva dialéctica”195.
Nesse modelo de legitimação do poder punitivo estatal, por meio da proteção
subsidiária de bens jurídicos, desempenhará papel de destaque o princípio da
proporcionalidade, pois, ao reconhecer-se o caráter aflitivo e invasivo da pena, somente
se admitirá como legítima sua imposição quando isto for necessário, adequado e
proporcional (strictu senso) para prevenir a ocorrência de novos delitos. É que, diante
do confronto entre o direito de liberdade do autor da infração penal e o direito de
liberdade (nas suas mais diversas expressões) das vítimas em potencial, somente um
juízo de ponderação proporcional poderá dizer se o recurso ao poder punitivo está, ou
não, justificado196. Mariângela Gama de Magalhães Gomes, em sua dissertação, coloca
a questão da seguinte forma:

195
Enquanto as “teorias unificadoras aditivas” ou tradicionais se limitam a reunir em uma mesma
doutrina da pena os fundamentos de justificação das doutrinas relativas e absolutas, sem se preocupar
com a incompatibilidade finalística desses dois modelos, a “teoria unificadora preventiva dialética”
proposta por Roxin combinaria aspectos preventivos legitimadores e aspectos retributivos
deslegitimadores, consistindo, assim, numa reunião entre doutrinas positivas e doutrinas negativas da
pena. Em suas palavras: “Una ‘teoría unificadora aditiva’ (...) no colma las carencias de las diferentes
opiniones particulares, sino que las suma y conduce sobre todo a un ir y venir sin sentido entre los
diferentes fines de la pena, lo cual imposibilita una concepción unitaria de la pena como uno de los
medios de satisfacción social. Por el contrario, la función de una teoría mixta o unificadora capaz de
sostenerse en las condiciones de hoy en día consiste en anular, renunciando al pensamiento retributivo,
los posicionamientos absolutos de los respectivos y, por lo demás, divergentes planteamientos teóricos
sobre la pena; de tal forma que sus aspectos sean conservados en una concepción amplia y que sus
deficiencias sean amortiguadas a través de un sistema de recíproca complementación y restricción. Se
puede hablar aquí de una teoría unificadora preventiva ‘dialéctica’, en cuanto a través de semejante
procedimiento las teorías tradicionales, con sus objetivos antitéticos, se transforman en una síntesis”
(ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general, tomo I. Tradução de Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel
Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2003. p. 94-95).
196
“Minha tese é que, ao estruturar o injusto e a responsabilidade, deve-se buscar um equilíbrio entre a
necessidade interventiva estatal e a liberdade individual. (...) A imputação objetiva, que compõe a espinha
dorsal do injusto jurídico-penal, é portanto uma política criminal traduzida em conceitos jurídicos, que
trabalha fundada numa base empírica e pondera interesses de liberdade e segurança. Também a categoria
da responsabilidade, que se acrescenta à do injusto, fundamenta-se numa ponderação. Mas agora o
problema não é mais a legalidade ou ilegalidade, e sim em que medida se pode manter o interesse estatal
de punir ações ilícitas, que pode facilmente levar a exageros, em limites condizentes com o estado de
direito” (ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar,
2006. p. 70-72). Não obstante, Roxin resiste em utilizar o princípio da proporcionalidade como critério
de ponderação entre prevenção e retribuição (negativa), insistindo que o problema deve ser resolvido
através do princípio da culpabilidade, exclusivamente: “En ocasiones se ha intentado renunciar por
completo al principio de culpabilidad, afectado por su anterior vinculación con la teoría retributiva y por
las controversias filosóficas, y poner en manos del principio de proporcionalidad la necesaria limitación
de la pena. Pero éste no es el camino idóneo para la solución del problema, (…) pues el interés de
prevención se excluye precisamente en la determinación de la magnitud de la pena por el principio de
culpabilidad – debido a su fijación sobre el hecho cometido –, y este efecto limitador de la pena no puede
lograrse por ningún otro principio. El principio de proporcionalidad significa solamente una prohibición
del exceso en el marco de la duración de una sanción determinada sólo preventivamente y ofrece mucho
menos para la limitación de la intervención coercitiva del Estado; por eso no puede reemplazar al
principio de culpabilidad” (ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general, tomo I. Tradução de Diego-
Manuel Luzón Pena, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2003.
85

“A legitimidade do direito e, de maneira especial, do ordenamento penal, num


Estado democrático, é conseqüência da sua conformação à proclamação e à
vigência de determinados valores de índole constitucional, entre eles o valor da
liberdade, genericamente entendida. O princípio da proporcionalidade, então,
derivado do critério democrático de legitimidade do direito, vincula
substancialmente o setor integrado por normas sancionadoras, o que acarreta,
como conseqüência, que certas normas restritivas da liberdade só se justificam
em sua funcionalidade para gerar mais liberdade do que sacrificá-la”197.

De acordo com a citada professora paulista, a aferição da proporcionalidade de


uma norma penal se dá em três níveis complementares. Primeiro — e isso interessa ao
presente sub-capítulo — há que ser valorado se a conduta a ser incriminada revela-se
efetivamente necessária para a proteção dos bens jurídicos. Segundo — e isso será
abordado no sub-capítulo seguinte — deve ser verificado se o meio eleito para atingir o
fim pretendido (proteção de bens jurídicos) é idôneo, ou seja, se ele efetivamente
consegue atingir essa meta. Por fim, constatada a necessidade e idoneidade do poder
punitivo, faltaria demonstrar em que medida seria razoável fazer incidir a intervenção
estatal, de maneira a satisfazer um juízo de proporcionalidade em sentido estrito — esse
último critério está mais relacionado ao problema do quantum de pena que deve ser
estabelecido pelo legislador e, por extrapolar os limites da presente investigação, não foi
objeto de análise específica.
Quanto ao juízo valorativo da necessidade de incriminação, este é normalmente
desdobrado em dois outros.
Antes de tudo, cumpre verificar se o bem jurídico que se pretende tutelar é digno
de proteção por meio de uma intervenção estatal violenta, ou seja, se ele tem igual
status valorativo em relação à liberdade do autor da conduta criminosa, de modo que
entre eles se possa realizar o juízo de proporcionalidade.

p. 102-103). De qualquer forma, parece oportuno analisar a legitimidade das doutrinas relativas da pena a
partir do princípio da proporcionalidade. A uma, porque ele de fato vem sendo empregado, tanto pela
doutrina, quanto pela jurisprudência. A duas, porque ainda que Roxin não o utilize expressamente, o
critério de ponderação entre prevenção e retribuição (negativa) em muito se assemelha ao juízo de
ponderação feito por meio do princípio da proporcionalidade.
197
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 75.
86

Sobre esse assunto, Janaína Conceição Paschoal desenvolveu detalhada tese de


doutorado, publicada sob o título “Constituição, criminalização e direito penal mínimo”,
em que classificou as diversas correntes em dois principais grupos. O primeiro deles
corresponderia àqueles autores que vêem a Constituição como um “limite negativo ao
direito penal”, de modo que o legislador estaria autorizado a criminalizar toda e
qualquer conduta desde que isso não desrespeite frontalmente o texto constitucional.
Desta maneira, ainda que o valor (ou bem) a ser tutelado não esteja expressa ou
implicitamente albergado na Constituição, nada impediria que o Estado tipificasse
condutas contra ele atentatórias. A Constituição não funcionaria, para essa corrente,
como uma carta de valores a nortear a atuação do Estado, inclusive em termos de
política criminal, mas única e exclusivamente como limite negativo à livre atuação do
legislador198. Se não houver desrespeito às regras e princípios constitucionais, não há
impedimento à criminalização das condutas. Já para o segundo grupo, a Constituição
funcionaria como “limite positivo ao direito penal”, de modo que a atuação do
legislador nesta seara estaria vinculada à proteção apenas dos valores reconhecidos
naquele diploma legal como caros a uma determinada sociedade199. Tal corrente, no
entanto, poderia ser dividida em dois subgrupos: o daqueles que vêem o direito penal
como “potencial espelho da Constituição”, entendendo como dignos de proteção
criminal todo e qualquer bem ou valor alçado ao nível constitucional (meio ambiente,
família, taxa de juros, caráter federal do Colégio Pedro II, etc) 200; e o daqueles que
compreendem o direito penal como “instrumento de tutela a direitos fundamentais”,
para quem somente as concretizações dos valores constitucionais expressa ou
implicitamente ligados aos direitos e garantias fundamentais seriam dignas de proteção
através do emprego do poder punitivo estatal201.
Ainda que se reconheça, juntamente com Janaína Paschoal, que a última corrente
por ela apontada é a que mais se ajusta aos fins constitucionais de concretização dos
direitos fundamentais e de respeito à dignidade da pessoa humana202, não há como

198
PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 55-59.
199
PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 59-60.
200
PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 60-63.
201
PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 63-67.
202
PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 68.
87

deixar de observar que mesmo a adoção desse entendimento não é suficiente para
solucionar o difícil conflito instaurado entre a busca de legitimação e a necessidade de
limitação do poder punitivo estatal. É certo que a autora afirma textualmente que cada
uma das correntes analisadas objetiva, em maior ou menor grau, a limitação do poder
punitivo estatal, “pois, como visto, ou se propugna que a criminalização não pode ser
contrária aos valores constitucionais ou que apenas o que está albergado na Constituição
pode ser objeto de proteção penal, ou, ainda, de forma mais restritiva, que apenas o que
é reconhecido pela Constituição como direito fundamental pode ser protegido pelo
Direito Penal”. No entanto, com o simples fato de se assumir que a proteção de direitos
fundamentais das potenciais vítimas, ainda que em hipóteses restritas, é a missão do
poder punitivo, já se está (querendo ou não) legitimando o exercício dessa forma de
intervenção estatal203, e a consideração de um mesmo valor, a um só tempo, como
fundamento e limite de uma dada atividade é sempre problemática.
A saída encontrada pela doutrina de forma amplamente majoritária é o recurso
ao princípio da intervenção mínima ou da ultima ratio, que deveria orientar, num
segundo momento, o juízo de necessidade de intervenção penal, relegado ao legislador
ordinário. Ou seja, mesmo para aqueles bens jurídicos positivados como direitos
fundamentais na Constituição, e ainda quando o próprio texto constitucional invoque
expressamente a criminalização da conduta204, caberia ao legislador averiguar se o

203
“A teoria constitucional do bem jurídico, portanto, assume especial destaque no cenário criminal,
tendo sido construída com a finalidade de delimitar de modo racional o âmbito dentro do qual pode o
direito penal atuar. Pode-se dizer, assim, que a referência ao bem jurídico marca, em primeiro lugar, um
limite ao intervento penal, um critério de legitimação negativa. A orientação dada pelo referido bem
indica a razão inicial, o fundamento necessário da tutela, e não ainda, ao contrário, a necessidade de tutela
penal, uma vez que, quanto a esta, entram em consideração também ulteriores razões e balanceamentos de
interesses quanto à sua posição, extensão e modo, a partir da relação liberdade/autoridade, ou de um
cálculo de custos benefícios. Ocorre, entretanto, que também é possível constatar uma outra função
assinalada ao bem jurídico, que não é mais delimitativa, liberal, mas consiste na fundação de um vínculo
positivo à intervenção penal, capaz de apontar para as hipóteses em que a elevada importância do bem
analisado requer que este seja protegido da maneira mais intensa que a sociedade reconhece. Desse modo,
uma vez que as funções delimitativa e constitutiva não são logicamente separáveis, observa-se que a
polaridade ou tensão interna da teoria do bem jurídico diz respeito, também, à polaridade de funções dos
ordenamentos penais modernos, instrumentos ao mesmo tempo de tutela coercitiva de dados interesses, e
Magna Carta das liberdades individuais” (GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da
proporcionalidade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 94-95).
204
É a posição de Janaína Paschoal, longamente desenvolvida na já referida tese de doutrorado: “Assim,
não importa o que imponha a Constituição, em sendo a intervenção penal uma exceção, se, de uma
análise concreta, aferir-se que a elaboração da norma ou que sua manutenção não são efetivamente
necessárias, não há previsão legal e/ ou constitucional que possa obrigar que a conduta seja incriminada.
Resumindo, em um Estado social e democrático de direito, o legislador sabe o máximo a que pode
chegar, não existindo, no entanto, um mínimo previamente determinado” (PASCHOAL, Janaína
Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2003. p. 148). Em igual sentido, dentre outros: Luigi Ferrajoli (FERRAJOLI, Luigi. Direito e
razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares
88

poder punitivo é realmente o único instrumento disponível para a realização da tarefa


protetiva, de modo que o direito a liberdade do autor da conduta criminosa não seja
preterido sem necessidade205.
Apesar de amplamente aceito, o princípio da intervenção mínima é raramente
empregado na prática e a cotidiana expansão do poder punitivo para solucionar todo e
qualquer problema social é prova mais do que suficiente disso. Com efeito, são de todos
conhecidas as tendências de panpenalização que hoje se testemunha mundo afora, sob o
argumento de proteger os direitos fundamentais da parcela ordeira da sociedade.

“Problemas ambientais, drogas, criminalidade organizada, economia,


tributação, informática, comércio exterior e controle sobre armas bélicas –
sobre estas áreas concentra-se hoje a atenção pública: sobre elas aponta-se uma
‘necessidade de providências’; nelas realiza-se a complexidade das sociedades
modernas e desenvolvidas; delas preferencialmente surgem na luz do dia os
problemas de controle desta sociedade: são áreas ‘modernas’, e delas se
encarrega o atual Direito Penal. Nestas áreas, espera-se a intervenção imediata
do Direito Penal, não apenas depois que se tenha verificado a inadequação de
outros meios de controle não penais. O venerável princípio da subsidiariedade
ou da ultima ratio do Direito Penal é simplesmente cancelado, para dar lugar a
um Direito Penal visto como sola ratio ou prima ratio na solução social de
conflitos: a resposta penal surge para as pessoas responsáveis por estas áreas
cada vez mais freqüentemente como a primeira, senão a única saída para
controlar os problemas”206.

A culpa pela deturpação do princípio da ultima ratio, contudo, não pode ser
atribuída exclusivamente ao legislador, senão também à própria doutrina, pois a tarefa
de equilibrar a crescente demanda por maior segurança207, por um lado, e a proteção dos

e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 412) e Juarez Tavares
(TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 200).
205
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1999. p. 77-78.
206
HASSEMER, Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre: FESMP, 1993. p. 47-48.
207
A constante demanda por mais proteção por meio do poder punitivo decorre, como explica Hassemer,
da crença da maioria (conforme amplamente divulgado pelos meios de comunicação) de que os déficits de
execução “se originariam de uma aplicação insuficiente dos instrumentos penais; eles exigem, por isso,
que se reforcem esses instrumentos e se radicalizem na sua aplicação: mais da mesma coisa. (...) Os
déficits da execução, os quais somente são desconsiderados e entendidos apenas como problemas
quantitativos e provisórios, devem possibilitar, ao longo prazo, no direito penal moderno o fato de que o
89

interesses individuais daquele que a sociedade acredita ter delinqüido, por outro, é
praticamente impossível. Aliás, não custa lembrar que, conforme visto no segundo
capítulo (supra), a história do direito penal é a história do confisco da vítima e da
monopolização do poder punitivo, de modo que já não era sem tempo de perceber que
não se pode mais continuar relegando ao Estado-juiz a missão esquizofrênica de
proteger, num único ato, tanto as potenciais vítimas, quanto os supostos criminosos208.
Não se trata, definitivamente, de um problema novo, eis que o caráter
legitimador, e não apenas limitador, do “direito penal clássico” já fora explicitado por
Foucault há bastante tempo. Aliás, é basicamente disso que trata sua famosa obra
(“Vigiar e Punir”), ou seja, de como a substituição dos suplícios pela pena de prisão não
cumpriu um programa simplesmente humanitário, mas sim um programa de
racionalização (relegitimação a partir de novos argumentos) do poder punitivo, cujos
objetivos primeiros eram: “fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função
regular coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com
uma severidade atenuada, mas punir com mais universalidade e necessidade; inserir
mais profundamente no corpo social o poder de punir”209.

“Nesta perspectiva, as potencialidades ambíguas das promessas dogmáticas


estão inscritas em sua própria gênese, pois o mesmo discurso e instrumental
dogmático declarado ao serviço de uma função instrumental racionalizadora/
garantidora potencializa, contraditoriamente, uma função instrumental de outra

direito penal se recolha a somente funções simbólicas e que ele, por fim, perderá suas funções reais. A
mistura explosiva entre a grande ‘necessidade de atuação’ social, de uma crença disseminada da
eficiência dos instrumentos penais e dos déficits extensos quando do emprego dos instrumentos penais
permitem o surgimento do perigo de que o direito penal se recolha ao engano de que ele poderia
realmente solucionar seus problemas. O direito penal simbólico é, a curto prazo, um alívio, porém, ao
longo prazo ele se torna devastador” (Hassemer. Direito penal libertário. Trad. Regina Greve. Belo
Horizonte: Del Rey, 2007. p. 201-202).
208
Nesse mesmo sentido, o ensaio de Álvaro Pires, com destaque para a seguinte passagem: “En el fondo,
la ‘mentalidad de la línea Maginot’ revela un problema no resuelto de doble personalidad: en una faceta
de nuestra personalidad, no estamos todavía emancipados de las teorías de la pena y tendemos también
todavía a conservar un derecho penal, desde el principio y ante todo, completamente punitivo; pero, en la
otra faceta, deseamos también un verdadero derecho penal moderado y del ciudadano. Y creemos que
oponiendo la tarea de asegurar las garantías jurídicas negativas a la tarea de ‘combatir el crimen’ o de
afirmar en forma abstracta los valores de la pena, podremos resolver nuestro dilema: realizar nuestro ideal
de moderación sin abandonar el proyecto fundador de una justicia casi exclusivamente represiva
delineada por las teorías de la pena. Por una parte, la simple oposición de un fin al otro constituye una
tarea destinada al fracaso. Por otra parte, esta mentalidad de línea Maginot sería, por decirlo de alguna
manera, responsable de un sentimiento de seguridad ilusoria de aquellos y aquellas que se sitúan al
costado de la ‘protección contra el poder del soberano’” (PIRES, Álvaro P. La “línea Maginot” en el
derecho penal: la protección contra el crimen versus la protección contra el príncipe. In Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 12, nº 46, 2004. p. 21-22).
209
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 70.
90

lógica de funcionamento do sistema e a da própria legitimação. (...)


Conseqüentemente, se o Direito Penal moderno e sua Dogmática nascem
reativamente contra os excessos de violência punitiva e déficit de garantismo
da antiga Justiça Penal e, neste sentido, contêm potenciais garantidores do
indivíduo para a moderna Justiça Penal, conformam, ao mesmo tempo, um
novo modelo de controle penal inserido numa nova lógica de dominação”210.

Não é por outro motivo, aliás, que a recorrente proposta dos penalistas liberais
no sentido de retomar os ideais iluministas, por si só, não é suficiente para assegurar o
respeito ao princípio da intervenção mínima, uma vez que este, como se vê, nunca
correspondeu realmente aos anseios de nenhuma doutrina legitimadora do poder
punitivo.

3.1.3 O direito penal do mais fraco

Guardadas as devidas proporções, a crítica vale também para a doutrina


garantista da pena defendida por Luigi Ferrajoli, não obstante se reconheça nela um
histórico avanço no sentido de fundamentar teoricamente a limitação do Estado policial
pelo Estado de direito, rumo a um “direito penal mínimo”.
De acordo com o mencionado autor italiano, a pena cumpriria “uma dupla
função preventiva, tanto uma como a outra negativas, quais sejam a prevenção geral dos
delitos e a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas”211. Assim, enquanto a
primeira função estaria voltada para a proteção das vítimas desprotegidas, cujos direitos
fundamentais estariam expostos à atuação imprevisível do criminoso, a segunda função
cumpriria a tarefa de garantir a este mesmo criminoso, na eventualidade de ele vir a ser
capturado, o recebimento de uma punição o menos aflitiva possível, imposta de forma
racional e limitada pelo Estado e não de forma desproporcional e vingativa pelos
particulares. A proposta seria, em resumo, de uma lei penal que estivesse sempre em

210
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à
violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. p. 258.
211
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002. p. 269.
91

favor do mais fraco e contra o mais forte: “a favor do fraco ofendido ou ameaçado com
o delito, como do fraco ofendido ou ameaçado pela vingança; contra o mais forte, que
no delito é o réu e na vingança é o ofendido ou os sujeitos públicos ou privados que lhe
são solidários”212. Desta maneira, todos direitos fundamentais envolvidos no conflito
estariam sendo protegidos pela intervenção penal estatal: os das vítimas, no momento da
cominação legal, e os do réu, no momento da aplicação concreta da pena. Com isso, se
conseguiria chegar a uma “adequada doutrina de justificação e, conjuntamente, uma
teoria garantista dos vínculos e dos limites –e, conseqüentemente, dos critérios de
deslegitimação – do poder punitivo do Estado”213.
Da mesma forma que aquela defendida por Roxin, a doutrina da pena de
Ferrajoli também pode ser classificada como unificadora214, pois combina elementos
tanto positivos (legitimadores), quanto negativos (deslegitimadores), conferindo, porém,
maior destaque para estes últimos, já que somente “a tutela do inocente e a minimização
da reação ao delito” seria válida “para distinguir o direito penal dos outros sistemas de
controle social – de tipo policialesco ou disciplinar, ou talvez até terrorista – que, de
forma mais ágil e provavelmente mais eficiente, teriam condições de satisfazer o
objetivo da defesa social, em relação ao qual o direito penal mais do que um meio
revela-se um custo, ou ainda, em se desejando, um luxo próprio das sociedades
evoluídas”215.
Ainda assim, por continuar atribuindo ao poder punitivo um papel relevante na
proteção dos direitos fundamentais das vítimas, a doutrina de Ferrajoli não fica de todo
livre das severas críticas trazidas pela criminologia da reação social e pela teoria crítica,
tal como se verá no item 3.2 (infra), motivo pelo qual Baratta definirá este modelo
como “garantismo positivo con dominancia penal”216, em contraposição à sua proposta

212
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002. p. 270.
213
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002. p. 271.
214
Assim o faz Paulo Queiroz (QUEIROZ, Paulo. Funções do direito penal: legitimação versus
deslegitimação do sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 72 e ss.).
215
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002. p. 270.
216
“El derecho penal es aquí definido normativamente como ‘el derecho del más débil’, introduciendo así
la variante del garantismo positivo con dominancia penal, es decir, una variante que implica una larga
utilización del derecho penal, que sería capaz de asegurar la protección de los derechos fundamentales”
(BARATTA, Alessandro. La política criminal y el derecho penal de la Constituición: nuevas reflexiones
92

mais recente de um “garantismo sin dominancia penal”217, ainda não suficientemente


detalhada, mas aparentemente muito próxima do sistema teleológico de direito penal
limitador proposto por Zaffaroni (item 3.1.4, infra).

3.1.4 Sistemática teleológica de um direito penal limitador

Por não confiar que o Estado de polícia seja capaz de cumprir esse compromisso
de intervenção mínima assumido com o Estado de direito218 sem que ocorra uma
transformação social tão profunda que permitisse, até mesmo, a abolição do poder
punitivo219, Zaffaroni prefere manter o conceito de bem jurídico desvinculado de
qualquer tarefa protetiva e, com isso, dá início à construção de uma doutrina puramente
deslegitimadora, afastando-se das atuais tendências unificadoras. Trata-se de doutrina

sobre el modelo Integrado de las ciencias penales. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, São
Paulo, ano 8, nº 29, 2000. p. 48).
217
“En mi propio sentido, el garantismo deberá ser, al contrario, sin dominancia penal (y más
generalmente, no jurídico-estatal), ya que la experiencia nos enseña, lastimosamente, que la función
principal del derecho ha sido siempre la protección de los grupos política y socialmente ‘mas fuertes’”
(BARATTA, Alessandro. La política criminal y el derecho penal de la Constituición: nuevas reflexiones
sobre el modelo Integrado de las ciencias penales. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, São
Paulo, ano 8, nº 29, 2000. p. 48).
218
“En una perspectiva dinámica, el derecho penal del estado de derecho no puede cometer la ingenuidad
de cederle un espacio y menos aún su instrumento orientador al estado de policía, confiando en que éste
se mantendrá en ese ámbito acordado y compartimentalizado. El estado de policía lo aceptaría
complacido, haría todo lo posible por dar un armisticio y hasta juraría con solemnidad que se mantendría
dentro de esos límites bien acotados, pero lo haría sabiendo que la dinámica dialéctica es imparable y que,
en la medida en que ningún imponderable se lo impida y el espacio concreto de poder se lo permita,
seguirá avanzando hasta llegar a una intensidad de despersonalización que sólo deje a las personas que le
molestan (o crea conveniente aniquilar) reducidas a su nuda vita” (ZAFFARONI, Eugenio Raul. El
enemigo en el derecho penal. Buenos Aires: Ediar, 2006. p. 170).
219
“(...) os defensores do direito penal mínimo também propõem um novo modelo de sociedade: se é
inquestionável que o sistema penal não objetiva apenas a repressão, como também – e principalmente – o
exercício de um poder positivo configurador (como demonstra Foucault), a contração do sistema penal
implicaria uma mudança profunda na rede do poder social, que traria consigo um modelo diferente de
sociedade. Na hipótese de se alcançar este modelo e o direito penal mínimo proposto – e, inclusive,
aceitando-se a manutenção deste direito penal mínimo de forma a evitar a vingança e um controle
totalitário por parte dos órgãos executivos de sistema penal – impor-se-á o questionamento da
possibilidade de se neutralizarem esses perigos através de meios que, menos violentos do que a pena,
sejam capazes de resolver os conflitos de forma efetiva. De antemão, não se deve excluir a possibilidade
do modelo de sociedade que – implícita ou explicitamente – corresponda a uma intervenção penal
mínima, e encontrar, finalmente, a forma de resolver os conflitos suprimindo, inclusive, este direito penal
mínimo. Deste ângulo, o direito penal mínimo apresentar-se-ia como um momento do caminho
abolicionista” (ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 105).
93

também teleológica220, mas não com vistas a proteger direitos fundamentais ao custo
desses mesmos direitos, e sim com o objetivo único de expandir cada vez mais o
respeito aos direitos fundamentais de todos, reduzindo, tanto quanto possível, a
violência do sistema penal221. Essa doutrina “teleológica do direito penal limitador”
estaria amparada tanto em fundamentos ético-valorativos, quanto em fundamentos
fáticos, sendo que ambos remeteriam à conclusão de que somente a progressiva
deslegitimação do poder punitivo estatal poderia aumentar o grau de concretização dos
direitos fundamentais de todos.
Restringidos que estamos, por ora, à análise dos pressupostos valorativos (os
pressupostos fáticos serão analisados em seguida), cumpre dizer que o “funcionalismo
limitador” de Zaffaroni estaria fundado exatamente na ética dos direitos fundamentais,
acolhida pela Constituição e pelos tratados internacionais, mas tomada esta como um
mandado de esforço contínuo e dinâmico em direção à máxima concretização da
dignidade da pessoa humana, e não como uma pauta estática de ponderação, onde os
direitos de uma e outra parte (não raro das duas) invariavelmente saem lesados. É que
enquanto as doutrinas legitimadoras do poder punitivo (mesmo nas suas atuais versões
unificadoras) funcionam como limites à busca de soluções pacíficas para os conflitos
intersubjetivos — uma vez que terminam por fortalecer a crença de que o sistema penal
é, ainda que dentro de determinados limites, ferramenta imprescindível para garantir
direitos fundamentais — a doutrina deslegitimadora de Zaffaroni toma esses mesmos
direitos fundamentais efetivamente como princípios222, o que significa que:

220
“Não é possível prescindir-se de um sistema conceitual na elaboração de um direito penal que almeje
cumprir alguma função dentro de um modelo de estado de direito, por ser inadmissível que a
irracionalidade seja fonte de um saber que aspira a uma função racional. a) O sistema demanda uma
decisão política prévia que lhe permita sua construção teleológica baseada em uma função manifesta,
porque, do contrário, seria igualmente irracional (um caminho sem objetivo), violentaria a realidade (ao
pretender que seus conceitos não tenham função política, apenas porque não a expressam) e, além do
mais, seria politicamente negativo (pretenderia servir para qualquer objetivo, incluindo os do estado de
polícia)” (ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.
170).
221
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 170.
222
“Bem examinadas as coisas, aliás, há de se reconhecer que os princípios éticos nada mais são do que a
tradução normativa dos grandes valores da convivência humana. Nessa condição, nunca se pode dizer que
um princípio se acha completamente realizado na vida social. Uma característica essencial dos valores,
como sabido, é a sua transcendência em relação à realidade. Cada valor representa um ideal jamais
atingível em sua plenitude. É ridículo pretender que a justiça será, um dia, plenamente realizada na face
da Terra; ou que determinado país já atingiu um estado de perfeita liberdade, em todos os setores da vida
social, de sorte que nada mais resta fazer para melhorar a condição dos seus cidadãos a esse respeito. Os
princípios éticos, para usarmos expressão cunhada por um jurista, constituem, na verdade, ‘mandamentos
de otimização’ (Optimierungsgebote), e de otimização permanente, jamais acabada” (COMPARATO,
Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras,
2006. p. 511).
94

“(...) o discurso jurídico-penal deve planejar as decisões judiciais, de forma a


que estas possam estender tais princípios até as máximas possibilidades de
realização permitidas pelo poder decisório dessas agências, e que os
“standards” de realização assim obtidos e em permanente ampliação possam
ser convertidos em limites máximos de irracionalidade tolerada (por falta de
poder que a reduza ainda mais) no exercício do poder seletivo (incriminador) e
reativo (que deteriora e condiciona) dos sistemas penais”223.

O princípio da intervenção mínima é, nesse contexto, substituído pelo “princípio


da proporcionalidade mínima da pena com a magnitude da lesão”, o qual não admite a
atribuição de qualquer objetivo protetivo relacionado ao bem jurídico, que passa a servir
apenas como critério de escolha “entre irracionalidades, deixando passar as de menor
conteúdo”. É que as agências jurídicas, enquanto não conseguem suprimir por completo
a incidência do poder punitivo, “devem, pelo menos, demonstrar que o custo em direitos
da suspensão do conflito mantém uma proporcionalidade mínima com o grau da lesão
que tenha provocado”224.
Embora não acredite em pautas éticas que possam vincular o ordenamento
jurídico, mas exatamente no contrário (vide item 2.6.2, supra)225, Juarez Tavares acaba
chegando ao mesmo resultado que o professor argentino, uma vez que os valores
relacionados à dignidade da pessoa humana estão, de qualquer sorte, cristalizados na
Constituição e servem de pauta teleológica para a norma definidora do injusto, que,

223
ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia
Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 235.
224
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 230-231.
225
“Com esse sentido, o sistema jurídico, ao enunciar normas penais, nas quais se definem
comportamentos criminosos e se lhes associam sanções criminais, só pode ser compreendido, como
sistema delimitador, quer dizer, só pode justificar-se na medida em que trace, de maneira precisa e
definitiva, os limites da intervenção estatal no âmbito da liberdade individual, pois só nessa condição é
que estará recuperando a noção de sujeito de direitos e lhe assegurando a condição de pessoa. Isto
implicará, necessariamente, uma outra condição: a norma penal não pode simplesmente ordenar condutas,
como se existira um dever jurídico geral de obediência, quer dizer, a incriminação não pode ter por base
simplesmente a decisão do autor no sentido de certo objetivo, porque isto o situa na condição de
juridicamente obrigado a agir de determinada forma, quando o que se preceitua é justamente o contrário.
Todos têm, em princípio, o direito de agir como bem entendam. Se a norma penal tem caráter delimitador,
constitui uma exigência do sistema jurídico que essa delimitação se consolide num determinado resultado
de dano ou de perigo, único meio possível de destronar do direito penal o sentido privatístico
contratualista que se lhe quer impor” (TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo
Horizonte, Del Rey, 2002. p. 110).
95

“como norma de conduta, deve estar associada a determinada finalidade: a delimitação


do poder de intervenção do Estado”226.

“(...) a proteção de direitos humanos, como condição de defesa individual


perante o Estado despótico, além de ser um programa, é fundamento do próprio
Estado democrático, que se deve, pois, ocupar de garantir a todos o pleno
exercício de seus direitos fundamentais. Isso quer dizer que a legitimidade da
atuação estatal, no sentido de um exercício protetivo, está vinculada a que sua
atuação se faça necessária para impedir a interferência de outrem no exercício
de direitos do próprio indivíduo, o que fundamenta a constituição de um direito
subjetivo desse indivíduo a determinada condição de garantia. Isto não implica,
porém, o uso da pena criminal, pois a função de garantia, impulsionada pelo
exercício de um direito subjetivo do cidadão à proteção jurídica, deve estar de
qualquer modo condicionada à preservação dos direitos humanos, que têm
como princípio primordial a solução pacífica dos conflitos, dando como
conclusão de que a pena não é dotada por si mesma de qualquer legitimidade e
só se justifica na medida da sua extrema necessidade. Quer dizer, inexiste um
dever absoluto de punir. A punição criminal é unicamente uma continência de
ultima ratio. Deve-se concluir, então, que a noção de bem jurídico não pode ser
posta como legitimação da incriminação, mas como sua delimitação, daí
seguindo, no dizer de DOHNA, a necessidade de que seja determinado com
precisão para que possa servir de barreira diante da intencionalidade e da
vacuidade”227.

3.2 (I)legitimidade quanto aos meios

Vistas as coisas da forma acima apresentada, apenas sob o prisma dos juízos
valorativos — que, como ressaltado por Ferrajoli, não podem ser considerados nem
verdadeiros nem falsos, mas apenas justos ou injustos —, a escolha entre um discurso

226
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 180.
227
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2ª edição. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. p. 202.
96

legitimador ou um discurso deslegitimador do poder punitivo estatal pode parecer


apenas um ato de fé, onde a ideologia de cada um desempenharia papel fundamental.
Esse ponto de vista não está de todo equivocado, muito embora seja preciso
alertar que a construção dessas doutrinas da pena e do bem jurídico não foram
desenvolvidas em etapas estanques e sucessivas — considerações valorativas/
considerações fáticas — tal como apresentadas nesse trabalho apenas por questões
didáticas. A construção das doutrinas deslegitimadoras, por exemplo, teve sua origem
nas pesquisas empíricas desenvolvidas pelos criminólogos americanos a partir de 1960,
de modo que foi a verificação de que os fatos não se davam exatamente da maneira
como prometiam os juristas que levou à construção de novas maneiras de entender o
direito e o Estado. Assim, apesar de hoje as doutrinas deslegitimadoras do poder
punitivo sustentarem que a pena criminal sequer é necessária, já que contrária à ética
dos direitos humanos, uma investigação quanto à sua idoneidade para realizar os fins
preventivos dela esperados continua sendo indispensável, pois os resultados encontrados
servirão para demonstrar que as propostas de descriminalização defendidas não são
meras utopias, mas sim decorrência lógica da ineficácia da pena no cumprimento de
suas funções manifestas.
Por outro lado, para os que continuam acreditando no poder punitivo como
instrumento legítimo de proteção de bens jurídicos fundamentais, a demonstração da
idoneidade da pena como meio adequado para atingir o fim desejado é requisito
obrigatório para que sua aplicação seja efetivamente justificada. Afinal, quem “entra em
campo usando como escudo, não importa como, a proteção de bens jurídicos, deve
prever a objeção que se traduz na pergunta: a pretendida proteção será efetivamente
atingida com o emprego de tais instrumentos?”228

3.2.1 Aportes da criminologia da reação social

Assim como o direito, a criminologia também sofreu influência das mudanças


paradigmáticas ocorridas nas ciências ao longo do século XX, e isso pôde ser sentido já

228
HASSEMER, Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre: FESMP, 1993. p. 33.
97

nas primeiras manifestações do interacionismo simbólico, de George Mead, e da


etnometodologia, de Alfred Shutz.
Segundo essas correntes sociológicas, a realidade social não é um dado estanque ou
uma estrutura imutável a ser conhecida e descrita pelo investigador de forma puramente
objetiva. Ao contrário, ela “é constituída por uma infinidade de interações concretas
entre indivíduos, aos quais um processo de tipificação confere um significado que se
afasta das situações concretas e continua a estender-se através da linguagem”229. Sendo
assim, os símbolos atribuídos pelos indivíduos aos objetos (e aos outros indivíduos)
interferem na substância destes e vão lhes conferindo novos significados, num processo
de interação social dinâmico. A realidade, portanto, é “o produto de uma ‘construção
social’, obtida graças a um processo de definição e tipificação por parte de indivíduos e
grupos diversos”230.
Isto posto, ao contrário do que acreditava o tradicional modelo etiológico de
criminologia, desenvolvido segundo a matriz positivista, a criminalidade não é uma
realidade ontológica, pré-constituída ao direito penal, cabendo ao legislador apenas
reconhecê-la e positivá-la. Na verdade, a criminalidade é produto de um processo de
definição e tipificação de condutas como criminosas e de pessoas como delinqüentes,
variando de acordo com os interesses daqueles que detêm o poder de estabelecer os
rótulos. Daí a designação conferida para esse novo paradigma criminológico: labeling
approach (ou teoria do etiquetamento).
Assim, se para a criminologia da defesa social (etiológica231) o objeto de
investigação era o delito tal qual definido pelo legislador e o delinqüente tal qual
selecionado pelo sistema penal, cumprindo ao investigador apenas a tarefa de identificar
as causas dessa realidade ontológica, para a criminologia da reação social (ou labeling
approach) o objeto de investigação será o próprio processo de construção da
criminalidade, que se dá a partir da atribuição a determinadas condutas e a determinados
sujeitos da etiqueta de crime e criminoso, respectivamente.
Os estudos dessa nova linha criminológica se detiveram em três problemas
principais e as observações daí advindas foram suficientemente convincentes para

229
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 87.
230
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 87.
231
Segundo Hassemer, a palavra vem do grego “αιτία” (aitia) = causa (HASSEMER, Winfried.
Introdução aos fundamentos do direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Ed., 2005. p. 120).
98

abalar de forma irreversível as bases da criminologia etiológica. São eles: (i) o problema
da formação da “identidade” desviante, que decorreria do conceito de “desvio
secundário”, cunhado por Edwin Lemert; (ii) o problema da atribuição do status de
criminoso a determinadas pessoas (processo de seleção ou “criminalização
secundária”); e (iii) o problema da definição desta ou daquela (e não outra) conduta
como desviada (“criminalização primária”), que levará ao questionamento sobre a
distribuição desigual do poder na sociedade, abrindo passagem para a transição da
criminologia da reação social (labeling aproach) para a criminologia crítica (ou radical).
Segundo Lemert, uma vez ocorrido o “desvio primário”, a rotulação do indivíduo
como delinqüente leva automaticamente a novos desvios (denominados “secundários”),
em razão da reorganização que aquele sujeito faz de sua atitude em conformidade com o
papel que a sociedade dele espera (o de praticar crimes), de modo que “os desvios
sucessivos à reação social (compreendida a incriminação e a pena) são
fundamentalmente determinados pelos efeitos psicológicos que tal reação produz no
indivíduo objeto da mesma”232. Assim, a reação social, longe de prevenir a
criminalidade e reinserir o desviado, acaba convertendo a pena em uma resposta
intrinsecamente irracional e criminógena, porque exacerba o conflito social em lugar de
resolvê-lo; potencia e perpetua a desviação, consolida o desviado em seu status de
delinqüente e gera os estereótipos e etiologias que se supõem que pretende evitar,
ensejando, deste modo, o lamentável círculo vicioso denominado por Howard Becker de
self-fulfilling prophecy233.
Os resultados desta primeira direção de pesquisa, na criminologia inspirada no
labeling approach, sobre o “desvio secundário” e sobre carreiras criminosas, põem em
dúvida o princípio do fim ou da prevenção e, em particular, a concepção reeducativa da
pena. Na verdade, esses resultados mostram que a intervenção do sistema penal,
especialmente as penas detentivas, antes de terem um efeito reeducativo sobre o
delinqüente determinam, na maioria dos casos, uma consolidação da identidade
desviante do condenado e o seu ingresso em uma verdadeira e própria carreira
criminosa234.

232
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 90.
233
MOLINA, García-Pablos de. Criminologia. São Paulo: RT, 2000. p. 322.
234
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 90.
99

Se o princípio do fim e da prevenção é fortemente abalado pela ocorrência dos


“desvios secundários”, o princípio da igualdade, por sua vez, outro pilar da
criminologia etiológica235, será desmistificado principalmente em razão dos estudos
relacionados ao problema da “criminalização secundária”, o qual segue critérios
inegavelmente discriminatórios de seleção dos desviantes, levando em conta,
principalmente, a classe social que cada um ocupa. O ponto de partida foram os
trabalhos realizados em dois novos campos de investigação: a) criminalidade de
colarinho branco; e b) a cifra negra da criminalidade e a crítica das estatísticas criminais
oficiais.
Duas pesquisas desenvolvidas por Edwin Sutherland, ainda na década de quarenta
do século passado, são apontadas como referência para qualquer estudo nessa seara. A
primeira, publicada no ano de 1940 sob o título “White-Collar Criminality”, mostrava,
com apoio de dados extraídos das estatísticas de vários órgãos americanos competentes
em matéria de economia e comércio, a enorme desproporção entre os altos índices de
infração a normas gerais praticadas neste setor por pessoas colocadas em posição de alto
prestígio social e as baixíssimas taxas de registro de ocorrência policial envolvendo
esses mesmos fatos. No segundo artigo, publicado em 1945, Sutherland, impressionado
com os resultados alcançados no estudo anterior, indagará exatamente se, devido àquela
impunidade verificada, eram os crimes de colarinho branco crimes236. Daí o título por
ele atribuído ao trabalho: “Is ‘White-Collar Crime’ crime?”.

235
Baratta aponta seis princípios que dariam conteúdo à ideologia da defesa social adotada pelo modelo
etiológico de criminologia: a) Princípio da legitimidade – que vendo no Estado a expressão da sociedade,
parte do pressuposto de que ele está desde logo legitimado a reprimir a criminalidade, da qual são
responsáveis determinados indivíduos, por meio de instâncias oficiais de controle social (legislação,
polícia, magistratura, instituições penitenciárias); b) Princípio do bem e do mal – que define o desvio
criminal como um mal e a sociedade constituída como o bem; c) Princípio da culpabilidade – segundo o
qual o delito seria expressão de uma atitude interior reprovável, porque contrária aos valores e às normas,
presentes na sociedade mesmo antes de serem sancionadas pelo legislador; d) Princípio da finalidade ou
da prevenção – que confere à pena a função de prevenir os delitos, através da contramotivação e da
ressocialização do criminoso; e) Princípio da igualdade – que estabelece ser a lei penal igual para todos,
assim como pressupõe que sua violação é comportamento de uma minoria desviante. Desse modo, a
reação penal se aplicaria de forma igual a todas as excepcionais hipóteses de desvio criminal; f) Princípio
do interesse social e do delito natural – pelo qual os interesses protegidos pelo direito penal seriam
interesses comuns a todos os cidadãos (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do
Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro:
Revan, 2002. p. 42). De acordo com autor italiano, os três primeiros princípios teriam sido negados ainda
sob o paradigma etiológico: as teorias psicanalíticas negaram o princípio da legitimidade, as teorias
estrutural-funcionalistas, o princípio do bem e do mal; e as teorias das subculturas criminais, o princípio
da culpabilidade. Já os três últimos foram negados, respectivamente, pela teoria americana do
etiquetamento, pela teoria alemã do etiquetamento e pela sociologia do conflito.
236
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à
violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. p. 261.
100

As pesquisas realizadas sobre a criminalidade de colarinho branco acabaram


colocando em xeque a validade das estatísticas criminais e de sua interpretação para fins
de análise da distribuição da criminalidade nos vários estratos sociais, pois, conforme se
ia percebendo, os números oficiais refletiam apenas os dados (e mesmo assim
imperfeitos) daquela criminalidade identificada e perseguida pelas instâncias oficiais
repressivas e não do problema criminal como um todo.

“De fato, sendo baseadas sobre a criminalidade identificada e perseguida, as


estatísticas criminais, nas quais a criminalidade de colarinho branco é
representada de modo enormemente inferior à sua calculável “cifra negra”,
distorceram até agora as teorias da criminalidade, sugerindo um quadro falso da
distribuição da criminalidade nos grupos sociais. Daí deriva uma definição
corrente da criminalidade como um fenômeno concentrado, principalmente,
nos estratos inferiores, e pouco representada nos estratos superiores e, portanto,
ligada a fatores pessoais e sociais correlacionados com a pobreza, aí
compreendidos, observa Sutherland, a enfermidade mental, o desvio
psicopático, a moradia em slum e a ‘má’ situação familiar”237.

Como se disse, no entanto, mesmo os números relativos à “criminalidade


comum” – aquela preferencialmente selecionada pelo sistema penal – não refletem com
exatidão a realidade do problema estudado, pois apenas uma parcela bem pequena dos
desvios ocorridos em sociedade é efetivamente levada a registro238. Como bem nota
Zaffaroni, “se todos os furtos, todos os adultérios, todas as defraudações, todas as
falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, etc. fossem
concretamente criminalizados, praticamente não haveria habitante que não fosse, por
diversas vezes, criminalizado”239. Definitivamente, ainda que sustentem isso em seu

237
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 102.
238
“Esta é uma característica de todos os sistemas penais. Há uma enorme disparidade entre os números
de situações em que o sistema é chamado a intervir e aquelas em que este tem possibilidades de intervir e
efetivamente intervém. O sistema de justiça penal está integralmente dedicado a administrar uma
reduzidíssima porcentagem das infrações, seguramente inferior a 10%. Esta seletividade depende da
própria estrutura do sistema, isto é, da discrepância entre os programas de ação previstos nas leis penais e
as possibilidades reais de intervenção” (BARATTA. Apud ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão
de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2003. p. 265-266).
239
ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia
Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 26.
101

discurso, as instâncias repressivas estatais não existem para combater a criminalidade


em todos os seus termos. O discurso da “lei e ordem”, da “tolerância zero”, é apenas
uma ilusão de tratamento igualitário para todos. Na prática, os órgãos do sistema penal
não têm capacidade (nem interesse)240 para operar de acordo com essa programação e se
dedicam, exclusivamente, a selecionar aquela parcela da população que se encaixa no
estereótipo do criminoso, em geral: jovem, pobre, negro e favelado.

“Isto significa que imunidade e criminalização (recriadoras de cifras negras


internas ao longo do corredor da delinqüência) são condicionadas por fatores e
variáveis latentes relativas à “pessoa” do autor (e da vítima) que transcendem o
catálogo de elementos legais e oficiais que formalmente vinculam a tomada de
decisões das agências de controle”241.

E isso porque, ao lado das “regras gerais” (ou “superficiais”), que são as
formalmente declaradas pelo ordenamento jurídico e pretensamente aplicadas pelos
órgãos do sistema penal, existem “meta-regras” (ou basic rules), que são regras de
interpretação e aplicação das regras gerais, determinadas pelos estereótipos de
criminalidade produzidos pela sociedade de acordo com um mecanismo de feed-back,
ou seja: os órgãos oficiais de repressão atuam de forma seletiva, transmitindo, assim, à
opinião pública a sensação de que a criminalidade se identifica com determinado grupo
social; essa mesma opinião pública, por sua vez, seguindo a definição corrente de
criminalidade, influencia e orienta a ação dos órgãos oficiais, tornando-a, desse modo,
socialmente seletiva242.

240
“Não há justiça penal destinada a punir todas as práticas ilegais e que, para isso, utilizasse a polícia
como auxiliar, e a prisão como instrumento punitivo, podendo deixar no rastro de sua ação o resíduo
inassimilável da ‘delinqüência’. Deve-se ver nessa justiça um instrumento para o controle diferencial das
ilegalidades. (...) Os juízes são os empregados, que quase não se rebelam, desse mecanismo. Ajudam na
medida de suas possibilidades a constituição da delinqüência, ou seja, a diferenciação das ilegalidades, o
controle, a colonização e a utilização de algumas delas pela ilegalidade da classe dominante”
(FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 234).
241
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à
violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. p. 268.
242
“(...) seguindo as linhas gerais do paradigma da reação social, a criminalidade, como realidade social,
não é uma entidade pré-constituída em relação à atividade judicial, mas uma qualidade (etiqueta) por ela
atribuída a determinados indivíduos. E não apenas pela subsunção de sua conduta num tipo penal de
crime, mas também, e sobretudo, conforme as metarregras básicas (basic rules) de que são portadores.
Em conseqüência, o processo de seleção tende a assegurar a atribuição do status criminal de acordo com
imagens e estereótipos que, deste modo, se perpetuam (modelo do círculo vicioso). Os processos de
criminalização respondem, ademais, ao estímulo da visibilidade diferencial da conduta desviada em uma
sociedade concreta; ou seja, são mais guiados pela sintomatologia do conflito que pela etiologia do
mesmo (visibilidade versus latência)” (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança
102

É irreal, portanto, desde uma concepção interacionista, acreditar que o órgão


julgador possa se restringir à tarefa de subsumir o fato (conduta) à norma (tipo legal), a
fim de determinar se houve ou não crime. Segundo Fritz Sack — precursor do labeling
approach na Alemanha e responsável pela transferência do conceito de meta-regras do
campo jurídico para o sociológico —, o juízo mediante o qual se atribui um fato punível
a uma pessoa não é meramente descritivo, mas sim atributivo, eis que é por meio dele
que se produz “a qualidade criminal desta pessoa, com as conseqüências jurídicas
(responsabilidade penal) e sociais (estigmatização, mudança de status e identidade
social, etc.) conexas”243. Logo, conclui Sack, a criminalidade não é um comportamento
objetivo, que pode ser praticado por qualquer pessoa igualmente, mas um “bem
negativo”, distribuído aos membros da sociedade de forma análoga aos bens positivos
(ou privilégios), seguindo os mesmo critérios de status, carreira, patrimônio, etc244.
Esse processo de “criminalização secundária” seletiva, por meio da aplicação
de “meta-regras”, por seu turno, não faz mais do que confirmar e acentuar o caráter
seletivo do próprio direito penal abstrato, tal como ele se verifica desde o momento da
“criminalização primária”, ou seja, desde a definição das condutas que, em tese, serão
tidas como criminosas. De fato, o poder de definição não decorre de uma realidade
objetiva, ontológica, entre o que é de interesse social e o que é contrário a esse interesse,
não existindo algo como um “delito natural”, que precise apenas ser tipificado por um
legislador neutro. Quanto a isto, basta ver que comportamentos hoje tidos como
socialmente irrelevantes (tais como a bruxaria, o homossexualismo, o casamento inter-
étnico, a simpatia pelos ideais comunistas, p. ex.) já foram considerados crimes
gravíssimos em outros momentos, enquanto que condutas gravemente lesivas ao
harmônico convívio social (v.g., a acumulação, por uma única pessoa, de patrimônio
suficiente para acabar com a miséria de um continente inteiro), além de serem
penalmente atípicas, são estimuladas como virtudes através de todos os meios de
comunicação de massa e, inclusive, ensinadas nas escolas e universidades.

jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2003. p. 277).
243
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 107.
244
“A criminalidade, e de modo mais geral o comportamento desviante, deve ser compreendida como um
processo no qual os partners, de um lado, o que se comporta como desviante, e de outro, o que define este
comportamento como desviante, são colocados um de frente ao outro. (...) Neste sentido, comportamento
desviante é o que os outros definem como desviante. Não é uma qualidade ou uma característica que
pertence ao comportamento como tal, mas que é atribuída ao comportamento” (SACK, Fritz. Apud
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 108).
103

Por detrás desses dois momentos de criminalização (primário e secundário)


umbilicalmente relacionados encontra-se uma questão que as investigações
microssociológicas levadas a termo pela criminologia do etiquetamento já não eram
suficientes para enfrentar245, qual seja: com base em que leis sociais se distribui e se
concentra o poder de definição?
Assim, da mesma forma que a criminologia etiológica já se valia de teorias
macrossociais, tal como o modelo estrutural-funcionalista, que defende a necessidade
orgânica de preservação do sistema penal como forma de evitar situações de anomia, a
criminologia da reação social irá se ancorar no modelo sociológico do conflito, segundo
o qual “as sociedades e as organizações sociais não se mantêm unidas pelo consenso,
mas pela coação, não por um acordo universal, mas pelo domínio exercido por alguns
sobre outros”246, o que permitiu transportar o enfoque antes limitado às estruturas
paritárias dos pequenos grupos e dos processos informais de interações para as
estruturas gerais da sociedade e aos conflitos de interesse e de hegemonia que a
caracterizam247.
É, portanto, a combinação da microssociologia do labeling approach com a
macrossociologia do conflito que possibilitará a desmistificação completa do princípio
do interesse social e do delito natural, o qual, segundo Baratta, estaria assentado em
dois pressupostos básicos da criminologia tradicional: a) a concepção da criminalidade
como qualidade ontológica de certos comportamentos ou indivíduos; b) a
homogeneidade dos valores e dos interesses protegidos pelo direito penal 248. O primeiro
desses pressupostos já havia sido desmentido pelas teorias do etiquetamento (labeling),
que mostraram como o desvio não é algo ontológico, que precede as definições e as
reações sociais, mas uma realidade construída mediante as definições e as reações, e que

245
“Os interacionistas e os etnometodólogos indicam quais são as regras gerais, as regras de base, a
cultura comum que determinam, na interação não oficial, a atribuição da qualidade criminal a certas ações
e a certos indivíduos, mas não pesquisam as condições que dão a estas regras, a esta cultura comum, um
conteúdo determinado, e não outro. (...) Ainda que com o grande mérito de ter, definitivamente, orientado
a atenção da criminologia sobre o processo de criminalização e sobre as relações de hegemonia que o
regulam na sociedade tardo-capitalista, a teoria do labeling permanece, pois, freqüentemente, tanto do
ponto de vista teórico como prático, dentro do sistema sócio-econômico de cuja superfície fenomênica
parte” (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à
sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 115-116).
246
DAHRENDORF, Ralf. Apud BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito
Penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan,
2002. p. 122.
247
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 143.
248
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 118.
104

através delas adquire a qualidade de desviante ou criminosa. O segundo deles será


negado pelas teorias conflituais da criminalidade, para quem: “a) os interesses que estão
na base da formação e da aplicação do direito penal são os interesses daqueles grupos
que têm o poder de influir sobre os processos de criminalização – os interesses
protegidos através do direito penal não são, pois, interesses comuns a todos os cidadãos;
b) a criminalidade, no seu conjunto, é uma realidade social criada através do processo
de criminalização. Portanto, a criminalidade e todo o direito penal têm sempre, natureza
política”249.
Essa percepção — no sentido de que a criminalidade e o direito penal têm
sempre natureza política — será o ponto de mutação da criminologia do etiquetamento a
uma criminologia crítica (ou radical)250, que irá introduzir a teoria marxista numa
ciência até então eminentemente empírica, historicizando, assim, “a realidade
comportamental do desvio” e iluminando “a relação funcional ou disfuncional com as
estruturas sociais, com o desenvolvimento das relações de produção e distribuição”251.
Curiosamente, é esse mesmo processo emancipador sofrido pela criminologia liberal, a
partir da revelação proporcionada pelo marxismo, que será apontado como o maior
responsável pela crise que a criminologia crítica atravessa nos dias atuais252. As diversas
— e muitas vezes conflitantes — interpretações conferidas ao materialismo dialético253,
o recurso a elementos político-ideológicos e o conseqüente afastamento das raízes
interacionistas254, o negativismo gerado pela convicção de que não há alternativas
dentro do sistema capitalista e a descrença quanto à possibilidade de superação desse

249
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 119.
250
“Com as teorias da criminalidade e da reação penal baseadas sobre o labeling approach e com as
teorias conflituais tem lugar, no âmbito da sociologia criminal contemporânea, a passagem da
criminologia liberal à criminologia crítica. Uma passagem (...) que ocorre lentamente e sem uma
verdadeira e própria solução de continuidade” (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica
do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de
Janeiro: Revan, 2002. p. 159).
251
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 160.
252
SWAANINGEN, René Van. Reivindicando a la criminología crítica: justicia social y tradición
europea. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 8, nº 32, 2000. p. 238-239.
253
Com efeito, sob um mesmo rótulo de criminólogos críticos se podem encontrar teóricos defendendo a
imediata abolição do direito penal (abolucionistas), a passagem do modelo econômico capitalista para o
socialismo como única forma de acabar com a criminalidade (idealistas), a redução dos tipos penais às
condutas que efetivamente representem violação a direitos fundamentais do homem (minimalistas), o
alargamento do poder punitivo para abranger todas as condutas habitualmente praticadas pelas classes
hegemônicas em prejuízo da massa despossuída (esquerda punitiva), etc.
254
Isso fica patente a partir do momento em que, acreditando estarem acelerando o processo de justiça
social, alguns criminólogos críticos passam a defender a utilização do poder punitivo, que o
interacionismo já revelara ser ineficiente, para punir aquelas condutas contrárias ao interesses dos menos
favorecidos, inclusive quando praticadas pelo próprio Estado!
105

modelo econômico255, dentre outras causas internas e externas, fizeram com que a
proposta da criminologia crítica fosse praticamente esquecida a partir do final da década
de 80.
De qualquer forma, inobstante o desgaste ideológico do projeto crítico, a
verdade é que a deslegitimação do poder punitivo — tanto nos países centrais, quanto
nos marginais — “não se produziu por efeito das teorias marxistas”, mas sim em função
das “pesquisas interacionistas e fenomenológicas, como o reconhecem e sublinham os
autores que se perfilam entre as diversas correntes marxistas com fundamentação
teórica séria”256. Esse fato, aliás, não é questionado sequer por aqueles que não
compartilham de uma visão propriamente crítica da criminologia:

“Os postulados radicais do labelling approach, por sua inequívoca carga


ideológica, não são, desde logo, majoritariamente compartidos pela doutrina.
Porém, sem embargo, ninguém pode questionar cientificamente algumas das
proposições dos teóricos do controle social, que gozam de amplo consenso na
moderna criminologia. Assim, o componente ‘definitorial’ do delito, a
seletividade e a discricionariedade do controle social, a relevância da própria
reação social para o volume e estrutura da criminalidade”257.

255
“La creencia en el progreso, la ingeniería social e incluso la civilización había disminuido hacia 1980.
Las ilusiones acerca de la posibilidad de cambiar la sociedad se han hecho pedazos, y la creencia en el
mundo justo del futuro es ahora meramente vista como un engaño fundamental. La imagen de la
criminología crítica marxista, particularmente después de la caída del muro de Berlín en 1989, se ha
transformado en algo bastante complicado” (SWAANINGEN, René Van. Reivindicando a la
criminología crítica: justicia social y tradición europea. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, São
Paulo, ano 8, nº 32, 2000. p. 239).
256
ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia
Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 67. Após explicitar os
mecanismos de “satanização” que toda e qualquer crítica deslegitimante do sistema penal sofre na
América Latina, onde tudo o que constitui ou ameaça constituir um contrapoder para a verticalização
militarizada da sociedade é automaticamente tachado de “marxista”, o autor arremata: “Como não podia
deixar de ser, a crítica social ao sistema penal foi ‘denunciada’ como ‘marxista’. Em homenagem ao
mínimo de seriedade que merece a análise de qualquer ideologia, torna-se necessário precisar: a) que a
deslegitimação teórica do sistema penal e a falsidade do discurso jurídico operam de modo irreversível
através da teoria da rotulação que responde ao interacionismo simbólico: b) que a pertinência da crítica à
teoria da rotulação, por parte daqueles que a consideram limitada, em nada diminui seu valor
deslegitimante e demolidor do discurso jurídico-penal, consignando-se que o interacionismo simbólico e a
fenomenologia nada têm a ver com o marxismo e, sim, com o pragmatismo – particularmente de Mead –
e com Husserl” (ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 37).
257
MOLINA, Antonio García-Pablos de. Momento atual da reflexão criminológica. In Revista Brasileira
de Ciências Criminais, São Paulo, ano 1, nº 0, 1993. p. 16.
106

Realmente, ainda que o recurso à teoria política de Marx ajude a entender as


razões pelas quais “150 anos de proclamado fracasso da prisão sejam acompanhados
sempre de sua manutenção”258, o fato é que os resultados alcançados pela teoria da
rotulação e pela sociologia do conflito já eram suficientes para demonstrar que, na
prática, a pena criminal, além de não cumprir suas funções manifestas (aquelas que o
poder punitivo adota em seu discurso oficial), traz em seu encalço funções latentes
(aquelas que não são assumidas expressamente ou que são a todo custo negadas), que,
ao contrário das primeiras, invariavelmente se concretizam.

3.2.1.1 Funções manifestas da pena

De um lado, a função manifesta de prevenção especial positiva é desmistificada


pela verificação do “desvio secundário” provocado pelo processo de etiquetamento.
Mesmo conhecendo as graves lacunas existentes nas estatísticas criminais, é notória a
ineficiência do sistema prisional para os fins de ressocialização do condenado. Nesse
sentido, as altíssimas taxas de reincidência verificadas falam por si só; e não apenas no
Brasil, onde a evidência dos fatos dispensa qualquer comprovação, mas também nos
países ditos do primeiro mundo, onde “as recentes investigações norte-americanas,
escandinavas e britânicas trazem um resultado pouco encorajador: tratando-se da
reincidência, não se obtêm melhores índices em reclusos submetidos a um tratamento
supostamente reabilitador, comparando-os com outros que foram objeto de mera
custódia ou vigilância”259. Como adverte García-Pablos de Molina:

“Pedir uma modificação ‘qualitativa’ da pessoa do delinqüente, ‘um novo


homem’, é, sem dúvida, pedir demasiado. Esperar tal milagre da intervenção
penal é desconhecer as atuais condições de cumprimento da pena privativa de
liberdade e o efeito que esta produz no homem real do nosso tempo segundo a
própria experiência científica. Não parece fácil que o Estado garanta a

258
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 226.
259
MOLINA, Antonio García-Pablos de. Momento atual da reflexão criminológica. In Revista Brasileira
de Ciências Criminais, São Paulo, ano 1, nº 0, 1993. p. 18.
107

ressocialização do condenado, quando não é capaz nem sequer de assegurar


sua vida, sua integridade física, sua saúde”260.

A função preventiva especial negativa (neutralizadora) também não se confirma


na prática. A uma, porque os detentos não deixam de praticar novos delitos enquanto
encarcerados; apenas mudam suas vítimas (outros detentos e agentes penitenciários) ou
seus métodos (uso de telefones celulares para comandar empreitadas criminosas no
exterior dos presídios). A duas, porque o período de prisão não significa mera suspensão
do tempo para quem fica no interior do sistema prisional. Lá dentro, ao invés do
indivíduo aguardar passivamente pelo dia em que será libertado, ele será submetido a
um gradativo e penoso processo de desculturamento, isto é,

“(...) ele sofre progressivamente uma série de rebaixamentos, humilhações,


degradações pessoais e profanações do eu. Esse mecanismo mortificador inicia-
se com o processo de recepção do condenado. Ele passa a ser desculturado,
inicialmente, pela perda do nome e com a atribuição de um número de
prontuário que passará a ser sua nova identidade. Ele será privado de seus
pertences pessoais (roupas, documentos, dinheiro, etc.) e lhe será dado um
uniforme padrão, exatamente igual ao de todos os outros condenados. A partir
daí ele é medido, identificado, fotografado, examinado por um médico para
depois ser lavado, o que simboliza despir-se de sua velha identidade para então
assumir a nova. Muitas vezes esse ritual de passagem será acentuado pela ação
dos condenados que identificarão o novo preso com uma identidade especial,
normalmente por meio de uma tatuagem. Além da deformação pessoal que
decorre do fato de a pessoa perder seu conjunto de identidade (nome, roupa,
maneira de cortar o cabelo, postura que deverá ser “respeitosa”), perderá um
sentido de segurança pessoal que constituirá um fundamento para suas
angústias e seu desfiguramento pessoal. Viverá um ritual diário de medo, pois
terá garantida a sua integridade física. Passará a dar aos superiores respostas
verbais humilhantes, dizendo, por exemplo, um “senhor” a todo momento,
sendo obrigado a baixar a cabeça e colocar as mãos para trás em sinal de
respeito. Se tudo isso não bastasse, passa a ser permanentemente vigiado, seja

260
MOLINA, Antonio García-Pablos de. Momento atual da reflexão criminológica. In Revista Brasileira
de Ciências Criminais, São Paulo, ano 1, nº 0, 1993. p. 18.
108

pelo sistema pan-óptico, seja pelos modernos mecanismos de controle por


câmeras de televisão”261.

Qualquer pessoa que se ajuste a essa rotina não tem mais qualquer condição de
agir como um homem livre. A pretensa função neutralizadora, que se prestaria à simples
tarefa de impedir que o condenado pratique novos delitos enquanto estiver preso, se
revela, na prática, um eficiente instrumento de desumanização, garantindo que o
indivíduo devolvido ao convívio social, após o cumprimento da pena, estará muito mais
propenso à prática de novos delitos do que quando foi privado de sua liberdade. Até
porque, como lembra Cirino dos Santos, o processo de rotulação não termina com o
cumprimento da pena. Após o retorno do condenado prisionalizado para as mesmas
condições sociais adversas em que vivia ele terá que enfrentar um novo fator
estigmatizante: a atitude dos outros.

“A expectativa da comunidade de que o rotulado se comporte como rotulado,


ou seja, que assuma o papel de criminoso praticando novos crimes, fecha as
supostas possibilidades de reinserção social e completa o modelo seqüencial de
formação de carreiras criminosas, realizando a chamada self fulfilling
prophecy, em que o condenado assume as características do rótulo,
concretizando a previsão de auto-realização e confirmando a teoria da
construção da personalidade no processo de interação social”262.

A função manifesta de prevenção geral negativa, por sua vez, torna-se


igualmente irreal a partir do momento em que se percebe, em razão do processo de
“criminalização secundária”, que nem todas as condutas contrárias à lei merecem igual
tratamento por parte do sistema penal.

“A partir da realidade social, pode-se observar que a criminalização


pretensamente exemplarizante que esse discurso persegue, pelo menos quanto
ao grosso da delinqüência criminalizada, isto é, quanto aos delitos com
finalidade lucrativa, seguiria a regra seletiva da estrutura punitiva: recairia
sobre os vulneráveis. Portanto, o argumento dissuasório estaria destinado a

261
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 302-303.
262
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 479.
109

cumprir-se sempre sobre algumas pessoas vulneráveis e estar sempre referido a


delitos que elas costumam cometer. Não obstante, nem mesmo isso seria
verdadeiro, porque, inclusive entre pessoas vulneráveis e relativamente a seus
próprios delitos, a criminalização secundária é igualmente seletiva, brincando
de modo inverso com a habilidade. Uma criminalização que seleciona as obras
toscas não exemplariza dissuadindo do delito, mas sim da inabilidade em sua
execução: estimula o aperfeiçoamento criminal do delinqüente ao estabelecer o
maior nível de elaboração delituosa como regra de sobrevivência para quem
delinqüe. Não tem efeito dissuasivo, mas propulsor de maior elaboração”263.

Realmente, a se acreditar que a tipificação de condutas como crime tenha algum


efeito na motivação do indivíduo, as “cifras negras” verificadas pelas investigações
empíricas deveriam servir como um estímulo, e não como uma barreira, ao desvio, pois
a constatação de que somente eventualmente algumas poucas infrações penais são, de
fato, punidas reforçaria a certeza da impunidade, e não o medo de ser apanhado.
Isso se torna ainda mais revelador à medida que “a pesquisa criminológica
admite que a prevenção geral negativa da ameaça penal poderia ter efeito
desestimulante em crimes de reflexão (crimes econômicos, ecológicos, etc.),
característicos do Direito Penal simbólico, mas não teria qualquer efeito em crimes
impulsivos (violência pessoal ou sexual, por exemplo), próprios da criminalidade
comum”264. Traduzindo: enquanto a punição dos delitos típicos das classes mais
favorecidas não serve de exemplo porque simplesmente não ocorre na prática (esses
crimes não são objeto de seleção pelos órgãos repressivos), o exemplo conferido pela
efetiva punição das condutas típicas das classes selecionadas não serve para prevenir

263
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 117.
264
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 479-
480. Em igual sentido, a lição de Winfried Hassemer: “(...) no âmbito dos delitos cometidos com violência
a capacidade de motivação das normas jurídico-penais poderia ser mínima em face das normas sociais e
das normas éticas. Não se deixa de dar um soco no rosto do vizinho irritante porque o § 223 do StGB
proíbe, não se recua diante do homicídio de um homem face ao § 212 do StGB, mas porque não se pode
ultrapassar o tabu, o qual a norma jurídico-penal construiu com segurança, cuja consolidação porém situa-
se na profundeza da história da vida e da espécie, a qual o Direito Penal não alcança diretamente.
Também no âmbito da criminalidade média e grave contra o patrimônio a capacidade de motivação do
Direito Penal não é perceptível. (...) As carreiras criminais não são iniciadas ou continuadas somente sob
o ponto de vista jurídico-penal; elas são um fenômeno pessoal e um fenômeno social e só então um
fenômeno jurídico-penal. A idéia de que o autor se decide por uma carreira criminal (e, de modo
ponderado, toma como auxílio as cominações penais como meios de decisão) não tem muito a ver com a
realidade” (HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Trad. Pablo Rodrigo
Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005. p. 408-409).
110

porque esses delitos são impulsivos, ou seja, são praticados sem maior reflexão sobre
custos e benefícios.
Conforme noticia Hassemer, as principais investigações sobre o efeito
intimidador (inexistente) da pena de morte nos estados norte-americanos que adotam tal
tipo de punição revelam que, em regra, não se pode motivar o autor punível pelas
cominações penais, senão pela idéia que ele tem sobre suas chances de escapar. Afinal,
para livrar-se da punição mais grave ele só precisaria assassinar sua esposa no Estado
vizinho, em que a pena de morte não é cominada, mas o faz em sua casa, porque não
conta com a possibilidade de vir a ser descoberto265.
De fato, malgrado toda a crença que os juristas nutrem numa sociedade cujos
membros pautem suas condutas exclusivamente em razão do que dispõe a lei positivada
— e, cada dia mais, em razão do que dispõe a lei penal —, a verdade é que nossas vidas
dependem muito menos do que diz o direito do que daquilo que instituem as normas266 e
sanções267 sociais. Como diz Zaffaroni, “é claro que não há convivência humana sem
lei, mas a lei da convivência não é penal, mas sim ético-social e jurídica não-penal”268.
Seria insustentável uma sociedade em que seus membros adotassem como estratégia de
vida a realização de todas as ações que soubessem “não estarem criminalizadas, bem
como as que eles soubessem que não o seriam secundariamente (ou que teriam pouca
probabilidade de sê-lo) por incapacidade operativa das agências do sistema penal”269.
Uma sociedade concebida nesses termos seria altamente improvável, assim como é tida
por improvável a realização de qualquer função preventiva geral em razão da aplicação
da pena criminal.

265
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da
Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005. p. 410.
266
“Exemplos de normas sociais são: as regras de vestuário, em certas ocasiões; proibições de falar muito
alto ou muito baixo, de rir, de cuspir no chão, de dirigir-se ao anfitrião em determinado momento; andar
durante um determinado momento; regras de uso pragmático da linguagem; a ordem de fechar (a porta)
em determinadas situações; a proibição de espancar os próprios filhos” (HASSEMER, Winfried.
Introdução aos fundamentos do direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Ed., 2005. p. 413).
267
“Exemplos de sanções sociais são: a zombaria, o silêncio constrangedor das pessoas presentes após
uma palavra inconveniente; formas de privação de amor pelos pais; nota negativa no boletim escolar;
interrupção das relações sociais, um ‘olhar punitivo’” (HASSEMER, Winfried. Introdução aos
fundamentos do direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Ed., 2005. p. 413).
268
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 118.
269
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 118-119.
111

Tudo isso vale igualmente para a denominada prevenção geral positiva da


pena270, que ganhou força exatamente a partir da constatação de que o efeito
intimidatório não se sustenta perante a realidade social. No fundo, essa e a doutrina da
prevenção geral negativa não diferem muito: enquanto a negativa considera que o medo
provoca a dissuasão, a positiva chega a uma dissuasão provocada pela satisfação de
quem acha que, na realidade, são castigados aqueles que não controlam seus impulsos e,
por conseguinte, acha também que convém continuar controlando-os271.
Embora a substituição de um tipo de prevenção por outro possa servir para dar
mais tempo aos que buscam insistentemente fundamentos para o poder de punir — pelo
menos até que os criminológos verifiquem, tal como ocorreu com a intimidação, que os
efeitos de integração não se verificam na prática272 —, desde logo já é possível antever
que o reforço dos vínculos sociais em razão da aplicação da pena só ocorrerá dentro dos
moldes tortuosos da “criminalização secundária”. Quer dizer, os habitualmente
selecionados continuarão cometendo ilícitos (porque todos cometem), ainda que cientes
da validade da norma (penal) em relação a eles, enquanto que os não-selecionados
também continuarão cometendo ilícitos (porque todos cometem), mas com a absoluta
confiança de que a norma (penal) não vale para eles. Afinal, como ressaltam Zaffaroni
et al:

“O consenso por parte daqueles que exercem poder dentro de uma sociedade
não se produz para fortalecer-lhes valores que negam, mas porque lhes
fortalece a imunidade perante o poder punitivo. Na prática, essa teoria conduz à
legitimação dos operadores políticos que falseiam a realidade e dos operadores
de comunicação que os assistem (vínculo de cooperação por coincidência de
interesses entre operadores de diversas agências do sistema penal), desde que a
população seja levada a acreditar nessa falsa realidade e não exija outras
decisões que desequilibrariam o sistema. Renova-se o despotismo ilustrado em

270
Segundo essa concepção tão em voga nos dias de hoje, e que tem suas origens em Welzel (item 2.5,
supra), a pena presta-se, não à intimidação de potenciais infratores, mas a “infundir, na consciência geral,
a necessidade de respeito a determinados valores, exercitando a fidelidade ao direito; promovendo, em
última análise, a integração social” (QUEIROZ, Paulo. Funções do direito penal: legitimação versus
deslegitimação do sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 40).
271
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 122.
272
Conforme esclarece Hassemer, que (diga-se) adota exatamente essa doutrina da pena: “Ainda é muito
cedo para uma resposta. Os criminólogos começaram justamente com isso [verificação da efetividade da
prevenção por integração] para tratar os fundamentos empíricos da prevenção geral positiva”
(HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da
Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005. p. 427).
112

outros termos: a tirania – que, na velha versão de Hobbes, era preferível ao


caos – é substituída pelo engodo comunicacional, preferível ao desequilíbrio e
à ruptura do sistema. O direito penal converte-se numa mensagem meramente
difusora de ideologias falsas”273.

3.2.1.2 Funções latentes da pena

De outro lado, verifica-se que “a prisão, ao aparentemente ‘fracassar’, não erra


seu objetivo; ao contrário, ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras
uma forma particular de ilegalidade”274. A delinqüência (produto da “criminalização
secundária”) é apenas uma das formas de ilegalidade; ela é a ilegalidade que o sistema
penal selecionou em meio a todas as ilegalidades não estratégicas (evasão escolar,
desemprego, fome, etc.) para a consecução do programa político em curso; um
programa que atualmente — para usar expressão de Loïc Wacquant — se traduz na
tarefa de “criminalização da miséria”275.
Com efeito, o papel do Estado no atual mundo globalizado, ao mesmo tempo em
que é minimizado nas áreas econômica, social e cultural, sofre grande incremento na
área da segurança pública, assumindo o dever de retirar das ruas todas aquelas pessoas
(desviantes em geral) que assustam a confiança dos investidores276. Nos Estados Unidos
da América, por exemplo, paradigma de Estado neoliberal, os níveis de encarceramento
mais do que duplicaram nos últimos quinze anos, saltando de aproximadamente 1

273
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 123.
274
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 230.
275
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Trad. Eliana
Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2ª edição, 2003.
276
“No mundo das finanças globais, os governos detêm pouco mais que o papel de distritos policiais
superdimensionados; a quantidade e qualidade dos policiais em serviço, varrendo mendigos,
perturbadores e ladrões das ruas, e a firmeza dos muros das prisões assomam entre os principais fatores
de ‘confiança dos investidores’ e, portanto, entre os dados principais considerados quando são tomadas
decisões de investir ou de retirar um investimento. Fazer o melhor policial possível é a melhor coisa
(talvez a única) que o Estado possa fazer para atrair o capital nômade a investir no bem-estar dos seus
súditos; e assim o caminho mais curto para a prosperidade econômica da nação e, supõe-se, para a
sensação de bem-estar dos eleitores, é a da pública exibição de competência policial e destreza do estado”
(BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1999. p. 128).
113

milhão de presos, no final da década de 1980, para 2,1 milhões, na última pesquisa
realizada pelo Departamento de Justiça americano277.
A seguinte tabela, apresentada por Jock Young278, apesar de um pouco
desatualizada, é representativa da utilização ideológica dada pelos Estados Unidos da
América ao sistema penal:

Na prisão Sob controle da lei penal


População Total 1 em 35 1 em 37
Homens Negros 1 em 24 1 em 13
Homens negros entre 20 e 29
anos 1 em 9 1 em 3
Tabela: População estadunidense sob controle da lei penal, 1995.

Ou seja, já em 1995, um em cada três homens negros americanos na faixa etária


de 20 a 29 anos de idade já tinha sido selecionado pelo sistema penal, deixando claro
que esse tipo de controle não era mais um fato isolado no histórico de algumas pessoas
desviantes, mas sim acontecimento cotidiano na vida daqueles que compõem a faixa
populacional rotulada como perigosa para os interesses dominantes.
A análise da situação carcerária nos Estados Unidos da América é elucidativa
por tratar-se de verdadeiro paradigma punitivo exportado para praticamente todos os
países do globo terrestre. No Brasil, por exemplo, as mudanças político-econômicas
importadas a partir do Consenso de Washington279 levaram a adoção de modelo
semelhante ao americano, coforme demonstram os dados colhidos pelo Departamento
Penitenciário da União – DEPEN, que registrou a explosão da população carcerária
ocorrida no país entre os anos de 2000 e 2007, quando o total de pessoas encarcerdas

277
HIRSCH, Olivia. Presos Somam 2.1 milhões. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1° de maio de 2005,
Internacional, p. A12.
278
YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade
recente. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Revan, 2002. p. 58.
279
Segundo Noam Chomsky, “o Consenso [neoliberal] de Washington é um conjunto de princípios
orientados para o mercado, traçados pelo governo dos Estados Unidos e pelas instituições financeiras
internacionais que ele controla e por eles mesmos implementados de formas diversas – geralmente, nas
sociedade mais vulneráveis, como rígidos programas de ajuste estrutural. Resumidamente, as suas regras
básicas são: liberação do mercado e do sistema financeiro, fixação dos preços pelo mercado (‘ajuste de
preços’), fim da inflação (‘estabilidade macroeconômica’) e privatização” (CHOMSKY, Noam. “O lucro
ou as pessoas: neoliberalismo e ordem global”, tradução de Pedro Jorgensen Jr., Ed. Bertrand Brasil, 2ª
edição, 2002, p. 22).
114

pulou de 174 mil para 370 mil, sem que tenha havido qualquer variação populacional
significativa280.
A ideologia por trás dos números é a de dar ao direito penal uma utilidade
compatível com o programa econômico neoliberal que conduz os rumos dos Estados
contemporâneos. Se durante o Welfare State a desigualdade social era combatida ou ao
menos minorada através de um regime previdenciário custoso, no pós-modernismo a
desigualdade vem sendo simplesmente escondida atrás dos muros das prisões. Daí
porque perfeitamente coerente afirmar, juntamente com Maria Lúcia Karam, que a um
Estado mínimo de pregação neoliberal corresponde um “simultâneo e incontestável
Estado máximo, vigilante e onipresente, que manipula a distorcida percepção dos riscos,
o medo e os anseios de segurança, que manipula uma indignação dirigida contra os
inimigos e fantasmas produzidos pelo processo de criminalização (...)”281.
“A substituição gradual da regulação previdenciária da pobreza, como resumido
pela análise clássica de Piven e Cloward (1973), por seu tratamento através de um
continuum carcerário-assistencial emergente” é ainda mais evidente se considerarmos a
constatação feita por Loïc Wacquant282 de que “esta extensão vertical do sistema penal
estadunidense (...) ocorreu num período em que os níveis de crime permaneceram
essencialmente inalterados”.
De fato, a mudança ideológica na política criminal americana não tem qualquer
relação com a necessidade de controlar os índices de criminalidade283 e foi viabilizada
economicamente por uma readaptação dos recursos públicos antes destinados aos

280
Os números estão disponíveis na página da Internet do Ministério da Justiça:
http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTB
RIE.htm.
281
KARAM, Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais: A concretização antecipada do poder de punir.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 25-26.
282
WACQUANT, Loïc. O curioso eclipse da etnografia prisional na era do encarceramento de massa. In
Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, ano 8, n° 13, 2004. p. 21.
283
Na verdade, como explica Jock Young, os índices de criminalidade em Nova Iorque começaram a cair
antes mesmo de ter sido colocada em prática a política neoliberal de tolerância zero, sendo certo que
idêntico declínio de criminalidade verificado naquela metrópole foi constatado “em 17 das 25 maiores
cidades dos Estados Unidos no período de 1993-97. Ocorreu em cidades que adotaram explicitamente
políticas menos agressivas (e.g. Los Angeles, logo após os tumultos), em cidades que usam policiamento
orientado para a comunidade, como Boston e San Diego (Pollard, 1997; Currie, 1997ª). Ocorreu onde não
houve nenhuma mudança de policiamento (e.g. Oakland) e mesmo em alguns lugares em que houve uma
redução do número de policiais. Diferentes métodos de polícia parecem associar-se à queda nos crimes
graves (Shapiro, 1997), e a taxa de criminalidade de Nova Iorque começou a cair antes de os novos
métodos de policiamento do comissário Bratton serem instituídos. Além disso, o declínio da
criminalidade ocorreu em cidades industrializadas de todo o mundo, muito antes de a expressão tolerância
zero tornar-se um chavão internacional” (YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente: exclusão social,
criminalidade e diferença na modernidade recente. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Revan, 2002. p.
184-185).
115

programas assistenciais característicos do Estado de bem-estar social, que passaram a


ser direcionados às áreas ligadas ao funcionamento do sistema penal. De acordo com
estudo de Wacquant –

“(...) os Estados Unidos comprimiram os gastos públicos em saúde, previdência


social e educação, enquanto aumentaram os orçamentos e o pessoal da sua
polícia, tribunais e instituições correcionais. O funcionamento das prisões
saltou de 7 bilhões de dólares em 1980 para 44 bilhões em 1997, e o número de
funcionários do sistema de justiça criminal dobrou em duas décadas,
alcançando os 2 milhões, entre os quais 708 mil empregados nas casas de
custódia e prisões, o que faz das burocracias prisionais o terceiro maior
empregador do país, apenas um pouco atrás da rede distribuidora internacional
Wal-Mart (728 mil empregados) e a agência de ‘trabalho temporário’
Manpower (1,6 milhão de empregados)”284.

Daí porque não ser exagero afirmar que o aparente fracasso da pena privativa de
liberdade é, na verdade, pressuposto lógico de uma política econômica que se realiza ao
custo de muitas vidas humanas: o que pode até ser funcional e eficiente, mas certamente
não para os fins declarados de concretização dos direitos fundamentais.

3.2.2 Doutrinas negativas da pena

Diante de todas essas constatações, é perfeitamente compreensível o


questionamento levantado por Baratta em relação ao minimalismo penal proposto por
Ferrajoli, eis que a realização prática daquilo a que o direito penal se propõe na teoria
parece tão ou mais utópica do que a própria substituição do direito penal por algo
melhor:

“Sob esse ponto de vista, a realização de um sistema de regras e de


intervenções públicas que represente os “direitos dos mais fracos” (hoje

284
WACQUANT, Loïc. O curioso eclipse da etnografia prisional na era do encarceramento de massa. In
Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, ano 8, n° 13, 2004. p. 21.
116

novamente proposto por Luigi Ferrajoli como definição normativa do direito


penal, e que é o ponto de referência para a reforma do sistema de justiça
criminal), parece ser menos difícil de alcançar com uma transformação
estrutural deste sistema, que equivale a sua “substituição” por qualquer coisa de
alternativa e de melhor, que com uma “enésima reforma” que reproduza
substancialmente as características (estruturais e de funcionamento), trazendo
como contribuição somente “melhorias” parciais. Naturalmente fica aberta a
questão de como será possível distinguir entre “reforma” e “substituição” do
sistema de justiça criminal. Tal questionamento depende de quais
características estruturais e funcionais sejam assumidas na definição do
“sistema de justiça criminal”, além da definição de conceitos como sanção,
constrangimento, pena e das relações lógicas entre estes. Por isto fica também a
pergunta se o “direito dos mais fracos”, proposto por Ferrajoli, deve ser
interpretado, para retomar a clássica formulação de Radbruch, como um direito
penal melhor (melhor por exemplo do que o atual sistema italiano, que
Ferrajoli submete a uma rigorosa crítica deslegitimadora), ou qualquer coisa
melhor que o direito penal, e não se trata aqui somente de uma questão
terminológica”285.

Esse questionamento — em tudo pertinente — abre espaço para doutrinas da


pena que, ao invés de tentar legitimar o poder punitivo estatal, preferem reconhecer a
histórica incapacidade deste em cumprir uma missão pacificadora. Daí porque são
chamadas “negativas”.
Em poucas linhas, pode-se dizer que as doutrinas negativas da pena concordam
com a necessidade de se abolir toda e qualquer forma de intervenção violenta estatal
sobre o cidadão — ressalvadas as medidas de “coerção direta”286, quando estas se

285
BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do Direito Penal: lineamentos de uma
teoria do bem jurídico. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 2, nº 5, 1994. p. 24.
286
A idéia de “coerção direta” (ou policial) em contraposição a “poder punitivo” é de ZAFFARONI et al,
que vêem na primeira uma forma legítima e racional de “ingerência – na pessoa ou nos bens de um
habitante – para neutralizar um perigo iminente ou interromper uma atividade lesiva em curso”, enquanto
que a segunda seria sempre irracional e ilegítima, eis que a aplicação da pena já não teria qualquer
capacidade de proteger o bem jurídico lesionado, importando em mera imposição inútil de dor. De forma
bem resumida, sustentam os autores ser a coerção direta como que “o estado de necessidade ou a legítima
defesa convertidos em dever jurídico para o funcionário público. A autoridade administrativa competente
tem o dever de intervir e sua coerção está legitimada dentro dos limites assinalados. A partir, porém, do
momento em que cesse o perigo, a coerção passa a ser punitiva, a menos que seja ela mantida para
impedir o retorno imediato da situação perigosa”. É possível que a coerção direta seja executada de
117

mostrarem suficientes e necessárias para por fim a uma conduta violenta em curso. A
diferença principal entre as várias doutrinas negativas está, portanto, na forma e no
momento sugerido por cada uma delas para se atingir o fim comum de superar o modelo
punitivo de intervenção estatal.

3.2.2.1 O abolicionismo penal

Logo em seguida às descobertas trazidas pelas criminologias da reação social e


crítica, começam a surgir, no início dos anos 80, propostas políticos-criminais ajustadas
a essa percepção da realidade. Assim: i) se o crime não é um dado ontológico, mas um
conceito construído para colaborar na rotulação de pessoas previamente selecionada
pelas agências de controle287; ii) se a pena não realiza nenhuma das promessas
preventivas declaradas, mas, pelo contrário, somente reforça a profecia desviante
daqueles que são assim rotulados pelo sistema penal288; iii) se as verdadeiras condutas
socialmente negativas, que não necessariamente se identificam com as condutas
criminosas, ficam simplesmente esquecidas e sem solução concreta, de modo que as
partes envolvidas no conflito não retiram qualquer benefício da aplicação da lei

forma “diferida ou prolongada”, mas desde que a atividade lesiva perdure ao longo do tempo, tal como
ocorre com grupos terroristas, por exemplo. “Deve-se ter presente, porém, que, em qualquer caso, a partir
do momento em que se desbarate a atividade grupal, ou no qual cesse ela espontaneamente ou, por
qualquer razão, seja interrompida sem o perigo de retorno iminente, o poder que continuar sendo exercido
sobre as pessoas envolvidas será poder punitivo e deixará de cumprir uma função limpidamente
determinada” (ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
p. 104-105).
287
O seguinte trecho da obra de Hulsman é elucidativo sobre o ponto de vista abolicionista nesse
particular: “O que há em comum entre uma conduta agressiva no interior da família, um ato violento
cometido no contexto anônimo das ruas, o arrombamento de uma residência, a fabricação de moeda falsa,
o favorecimento pessoal, a recptação, uma tentativa de golpe de Estado etc.? Você não descobrirá
qualquer denominador comum na definição de tais situações, mas motivações dos que nelas estão
envolvidos, nas possibilidades de ações visualizáveis no que diz respeito à sua prevenção ou à tentativa de
acabar com elas. A única coisa que tais situações têm em comum é uma ligação completamente artificial,
ou seja, a competência formal do sistema de justiça criminal para examiná-las. O fato de elas serem
definidas como ‘crimes’ resulta de uma decisão humana modificável (...). Um belo dia, o poder político
pára de caçar as bruxas e aí não existem mais bruxas. (...). É a lei que diz onde está o crime; é a lei que
cria o criminoso” (HULSMAN, Louk e BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas perdidas: o sistema
penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro/ Niterói: Luam, 1993. p. 63-64).
288
Nas palavras de uma das principais representantes do abolicionismo no Brasil: “Todas estas teorias
legitimadoras, fundadas nas inrrealizáveis idéias de retribuição e prevenção, servem para esconder o fato
de que a pena, na realidade, só se explica – e só se pode explicar – em sua função simbólica de
manifestação de poder e em sua finalidade não explicitada de manutenção e reprodução deste poder”
(KARAM, Maria Lúcia. Pela abolição do sistema penal. In PASSETTI, Edson (org.). Curso livre de
abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 82).
118

penal289; então, não há motivo algum para se insistir no funcionamento desse sistema
inútil, que só causa sofrimentos desnecessários, distribuídos de forma injusta, e acarreta
efeitos colaterais graves sobre as pessoas selecionadas.
Principal representante dessa corrente criminológica290, Louk Hulsman sustenta
que são “penas perdidas”291 as punições aplicadas com vistas a fins preventivos que
nunca se realizam, de modo que a única solução possível para o problema seria a
imediata abolição, não apenas da pena, nem do direito penal, mas de todo o sistema de
justiça penal, constituído pela polícia, pelo judiciário, pelo ministério público, etc.
De acordo com Hulsman, essas instituições seriam responsáveis pela construção
(ou reconstrução) da realidade de um modo bastante específico. Sem considerar a
imensa pluralidade de fatores e de sujeitos que concorrem para a ocorrência de um fato
social, os órgãos que compõem o sistema de justiça penal partiriam de um episódio
determinado, precisamente definido no espaço e no tempo, e imobilizariam a ação
naquele momento, dedicando-se, a partir daí, exclusivamente à pessoa a quem passam a
atribuir o comportamento (a causalidade) e a culpa por tal episódio. Como resultado, o
indivíduo é isolado de seu ambiente, dos amigos, da família e, principalmente, do
substrato material de seu mundo. É ainda afastado quem se sente vítima em uma
situação atribuível à ação daquele. Assim, a organização cultural de referência retira,
artificialmente, alguns indivíduos do ambiente que os distingue e separa as pessoas que
se sentem vítimas das pessoas consideradas, nesta ocorrência específica, como
“perpetradores”. Neste sentido, a organização cultural da justiça criminal cria
“indivíduos fictícios” e uma interação “fictícia” entre eles292.

289
“A monopolizadora reação punitiva contra um ou outro responsável por situações conflituosas ou fatos
socialmente negativos, a que se dá a qualificação legal de crimes, gerando a satisfação e o alívio
experimentados com a punição e a conseqüente identificação do inimigo, do mau, do perigoso, não só
desvia as atenções como afasta a busca de outras soluções mais eficazes, dispensando a investigação das
razões ensejadoras daquelas situações negativas, ao provocar a superficial senasação de que, com a
punição, o problema já estará satisfatoriamente resolvido” (KARAM, Maria Lúcia. Pela abolição do
sistema penal. In PASSETTI, Edson (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan,
2004. p. 82).
290
Paulo Queiroz aponta outros autores que também podem ser considerados abolicionistas, tais como
Nils Christie, Thomas Mathiensen, Herman Bianchi, Heinz Steinert, mas ressalta que somente Hulsman
permaneceu, até seu recente falecimento, seguindo firmemente essa posição (QUEIROZ, Paulo. Funções
do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p.
92).
291
Daí o título de seu famoso livro, escrito em parceria com Jacqueline Bernat de Celis e publicado pela
primeira vez em 1982: HULSMAN, Louk e BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas perdidas: o sistema
penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro/ Niterói: Luam, 1993.
292
HULSMAN, Louk. Alternativas à justiça criminal. In PASSETTI, Edson (org.). Curso livre de
abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 45.
119

Dado que essa maneira míope de ver o mundo não seria um simples efeito
colateral verificado em alguns poucos casos levados à intervenção do sistema penal,
mas uma característica do próprio sistema, que não seria passível de ajuste por parte de
seus gestores, sustenta Louk Hulsman que a única alternativa é abrir mão desse tipo de
atividade punitiva e buscar meios alternativos de solução de conflitos, sejam eles de
natureza prevalentemente legal, ou não293.

3.2.2.2 Doutrina materialista/ dialética da pena

Fiel ao discurso crítico de raiz marxista, Juarez Cirino dos Santos entende a pena
como forma de “equivalência jurídica” fundada nas relações de produção das
sociedades capitalistas contemporâneas.

“A estrutura material das relações econômicas do capitalismo se baseia no


princípio da retribuição equivalente em todos os níveis da vida social: do
trabalho pelo salário na produção social de bens ou serviços – apesar da
expropriação de mais-valia; da mercadoria pelo preço na distribuição social de
bens ou serviços – não obstante o lucro etc. Logo as formas jurídicas da
formação social capitalista instituem a retribuição equivalente, no âmbito da
responsabilidade civil, por exemplo, sob a forma de contrato, da indenização
etc; no âmbito da responsabilidade penal, a retribuição equivalente é instituída
sob a forma da pena privativa de liberdade, como valor de troca do crime
medido sob a forma da pena privativa de liberdade, como valor de troca do
crime medido pelo tempo de liberdade suprimida. A retribuição equivalente,
como valor de troca do crime nas sociedades capitalistas, está ligada ao critério
geral do valor da mercadoria, determinado pela quantidade de trabalho social
necessário para sua produção: o tempo médio de dispêndio de energia
produtiva, segundo MARX. A importância da teoria de PASUKANIS está em
situar a retribuição equivalente no fecho da transição histórica do ‘sujeito
zoológico’ da vingança de sangue para o ‘sujeito jurídico’ da pena

293
HULSMAN, Louk. Alternativas à justiça criminal. In PASSETTI, Edson (org.). Curso livre de
abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 52.
120

proporcional: a troca igual exclui a vingança posterior, primeiro pelo talião,


mais tarde pela composição e, finalmente, se consolida como retribuição
equivalente medida pelo tempo de liberdade suprimida – conforme o critério de
valor da sociedade capitalista”294.

Toda e qualquer crítica dirigida à pena privativa de liberdade (e ao próprio


direito penal como um todo), portanto, deve considerar que esse instituto é inerente ao
sistema econômico capitalista e que, por isso, perdurará “enquanto subsistir a sociedade
de produtores de mercadorias – gostemos ou não gostemos disso”295.
Assim, apesar de também ansiar pelo desaparecimento do sistema penal, os
materialistas dialéticos não acreditam que sua abolição possa ser concretizada (e nem
sequer debatida) sem primeiro levar em consideração os fatores infra-estruturais da
sociedade, pois, se por um lado, a pena parece inútil do ponto de vista das funções
declaradas ou manifestas, por outro, ela é extremamente útil do ponto de vista das
funções políticas reais ou latentes, “precisamente porque a desigualdade social e a
opressão de classe do capitalismo é garantida pelo discurso penal da
correção/neutralização individual e da intimidação/reforço da fidelidade jurídica do
povo”296.

3.2.2.3 Estratégia limitadora do poder punitivo

As duas correntes brevemente retratadas acima são importantes marcos teóricos


para o desenvolvimento de uma proposta jurídico-penal mais pragmática, que não
esconde sua simpatia pelo abolicionismo, a longo prazo, e não deixa de reconhecer que
esse objetivo nunca poderá ser alcançado se não se questionar os fundamentos
econômicos que levam a uma sociedade extremamente desigual e injusta.
No entanto, enquanto um e outro objetivo não se realiza, é preciso definir
estratégias para reduzir os danos causados por esse sistema penal seletivo e opressor
desde já. Para tanto, parece oportuna a diferenciação entre poder punitivo e direito penal

294
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.
471/472.
295
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 474.
296
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 474.
121

apresentada por Zaffaroni (vide item 1.2, supra), a qual será de suma importância para
distinguir sua proposta “abolicionista mediata” das demais doutrinas negativas
anteriormente apresentadas.
Embora não desmerecendo a importância do pensamento marxista para a
explicação da realidade social, Zaffaroni prefere dar à dogmática jurídico-penal uma
função realista, que respeite a pauta ética dos direitos fundamentais e que já possa
começar a ser aplicada desde logo, sem que se precise aguardar o utópico advento do
socialismo. Desta forma, propõe o ilustre professor argentino uma “doutrina negativa e
agnóstica da pena”, a demonstrar que o direito penal não possui funções declaradas
preventivas (porque inidôneas) e não compactua com as funções reais do poder punitivo
(seja porque não as conhece, seja porque, quando precisadas, mostram-se contrárias ao
objetivo de proteção dos direitos humanos). Nesse sentido, a pena, como expressão do
poder punitivo, seria somente “uma coerção, que impõe uma privação de direitos ou
uma dor, mas não repara nem restitui, nem tampouco detém as lesões em curso ou
neutraliza perigos iminentes”297.
O que se quer não é a imediata abolição do direito penal, mas somente adequá-lo
a uma função exclusivamente limitadora do poder punitivo, de maneira que, este sim,
possa — ao menos em termos ideais — vir a ser superado algum dia298. Para melhor
ilustrar sua idéia, o autor recorre à analogia feita por Tobias Barreto, ainda no século
XIX, entre a pena criminal e a guerra: primeiro, reconhecendo que “o conceito de pena
não é um conceito jurídico, mas um conceito político”299 e, em seguida, ao recorrer às
considerações de Julio Froebel, concluindo que “quem procura o fundamento jurídico
da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da
guerra”300. Ora, se a pena corresponde à guerra, ambos como formas de exercício do

297
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 99.
298
“(...) não se pode pretender abolir unicamente o ‘direito penal’, sem advogar a abolição de todo o
‘sistema penal’, pois o desaparecimento apenas do primeiro, que nada mais é do que o discurso de
justificação e a pauta do órgão judicial, implicaria somente o cancelamento do poder dos juristas e a
liberação total dos conflitos ao poder dos outros órgãos do sistema penal. Em outros termos, traduziria
apenas uma nova ilusão, muito mais infantil ainda: a de confundir o discurso racionalizador do exercício
do poder do sistema penal com este exercício de poder ou de suprimir o já limitado exercício de poder do
único órgão que pode gerar uma contradição limitadora e, principalmente, afiançadora dentro dos
sistemas vigentes” (ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan,
2003. p. 105).
299
BARRETO, Tobias. Algumas idéias sobre o chamado fundamento do direito de punir. Publicado
como apêndice in Menores e loucos em direito criminal. 2ª edição. Recife: Typographia Central, 1886. p.
143.
300
BARRETO, Tobias. Algumas idéias sobre o chamado fundamento do direito de punir. Publicado
como apêndice in Menores e loucos em direito criminal. 2ª edição. Recife: Typographia Central, 1886. p.
144.
122

poder político, o “direito penal apresenta, nesta linha, um modelo semelhante ao do


direito humanitário, quando se tenta construí-lo a partir de uma teoria negativa de toda
função manifesta do poder punitivo e agnóstica a respeito de sua função latente”301.

“O direito penal tutela bens jurídicos de todos os habitantes à medida que


neutraliza a ameaça dos elementos do estado de polícia contidos pelo estado de
direito. Já o poder punitivo não tutela os bens das vítimas do delito, pois, em
essência, ele é um modelo que não se dedica a isso, mas que, ao contrário,
confisca o direito da vítima: se nenhuma outra área jurídica proporciona essa
tutela, a vítima deve tolerar o resultado lesivo de um conflito que fica sem
solução. As teorias manifestas da pena legitimam, junto ao poder punitivo, a
orfandade da vítima e o conseqüente direito do estado a desprotegê-la. A
invocação da vítima é discursiva, mas o modelo a abandona sem solução. Com
uma teoria negativa da pena sua falta de proteção fica a descoberto, torna-se
evidente que não se tutelam seus direitos e é possível atenuar sua orfandade
jurídica (proibição de dupla vitimização: programar os elementos orientadores
de modo que não agravem e, dentro do possível, aliviem a situação da vítima),
não porém evitar cabalmente seu abandono, porque para isto seria mister
suprimir o modelo punitivo, e o direito penal tem poder apenas para limitá-lo.
Os próprios discursos que proclamam diversos fins manifestos das penas
pretendem disfarçar a desproteção da vítima com algumas pequenas
concessões, em geral mesclando a pena a outros modelos de solução de
conflitos e, além do mais, porque não cancelam o confisco do conflito para não
renunciar ao modelo punitivo, ainda que convenha reconhecer sua importância
paliativa e estimulá-las”302.

A proposta, portanto, é a de adotar-se um modelo de “direito penal mínimo”,


como “passagem ou trânsito para o abolicionismo”, só sendo possível sua completa
supressão quando, utopicamente, já não existirem mais agências estatais executoras da
política criminal repressiva e todos os conflitos puderem ser solucionados por meios
“menos violentos do que a pena”.

301
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 109.
302
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito penal brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 110-111.
123

CAPÍTULO 4 – UMA OUTRA FUNDAMENTAÇÃO POSSÍVEL PARA O


DIREITO PENAL LIMITADOR

4.1 Por uma ética da solidariedade

Visto deste ângulo, como instrumento limitador do poder punitivo ilegítimo,


entendemos que o direito penal pode perfeitamente ser explicado — e até justificado —
a partir da “ética de um mundo solidário”, tal como preconizada por Fábio Konder
Comparato303.
Valendo-se dos ensinamentos da não-violência apregoados por Mahatma
Gandhi, Comparato alerta para a necessidade de “reconstrução ética do mundo”
contemporâneo, como única forma de superar a grande encruzilhada representada pela
força militar, pela dominação tecnológica e pela concentração de poder econômico, de
um lado, e pela dignidade transcendente da pessoa humana, de outro304. O princípio da
dignidade da pessoa humana é, assim, colocado no topo da escala valorativa de uma
concepção ética que se oponha à “progressiva expansão do capitalismo” e ao “código
ético da burguesia empresária” — consistente na “satisfação prioritária do interesse
individual, [n]o espírito de competição, [n]a defesa da liberdade de iniciativa econômica
como algo mais importante que a liberdade política, [n]o predomínio do valor utilidade”
— que “passou a ser inculcado a todas as classes e a todos os povos, como o novo
modelo de virtude”305. Ao invés disso –

“(...) é preciso sustentar, de modo absoluto, que a constituição de uma


comunidade solidária de todos os povos da Terra é um objetivo, não só mais
nobre e digno, como também incontestavelmente mais realista, do que
prosseguir no caminho da globalização capitalista, que só beneficia, e por
pouco tempo, uma minoria forte e rica, e que tende fatalmente, em prazo não

303
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
304
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 407.
305
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 499.
124

muito dilatado, a precipitar a humanidade no abismo da desordem econômica,


da desigualdade social e do conflito generalizado”306.

Do princípio maior da dignidade da pessoa humana decorreriam, de acordo com


Comparato, três valores éticos fundamentais, que estão em permanente “comunhão de
sentidos”. O primeiro deles, a verdade, é pressuposto necessário dos outros dois, a
justiça e o amor, eis que sem aquela é impossível saber se o que se tem por justo
realmente existe como tal ou não307. Já no tocante à relação específica entre justiça e
amor, ela é propriamente indissolúvel. Entre esses valores e princípios éticos não há
concorrência, mas complementaridade. “A justiça tende a se estiolar e, portanto, a
perder sua efetiva vigência, se não for incessantemente aprofundada pelo amor. Este,
por sua vez, descamba para um egoísmo disfarçado, ou um tíbio sentimentalismo, se
não se fundar nas exigências primárias de justiça, das quais representa um
aperfeiçoamento e jamais um sucedâneo”308. Como teria salientado o Mahatma Gandhi,
“a ahimsa ou não-violência nada mais é do que o amor, entendido como um estado
positivo de fazer o bem aos que nos ofendem ou prejudicam. Nessa concepção, a
satyagraha, como disposição interior de amor incondicional à verdade, exige de todos
os que a ela aderem uma ação incessante contra a injustiça, em qualquer de suas
modalidades”309.
Impulsionado por um complexo valorativo como o acima apresentado, somente
uma rigorosa aproximação com a realidade vivida pela maior parte da sociedade
brasileira, de um lado, e uma criteriosa reconstrução do caminho histórico percorrido

306
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 505.
307
Seguidor incondicional da verdade como único caminho para se chegar a Deus, Gandhi afirmava que:
“Se alguém me trouxesse a prova de que Deus mente, ou de que ele se apraz em torturar os seres, eu me
recusaria a adorá-Lo” (Apud COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo
moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 524).
308
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 521. Um exemplo dado por Comparato, mais ligado ao campo do saber
penal, bem distingue os valores complementares da justiça e do amor: “Há situações em que a pessoa vê-
se confrontada a outra, num conflito radical, cuja solução significa a eliminação de uma delas. Em tais
casos, conforme as circunstâncias – legítima defesa ou estado de necessidade, por exemplo – justifica-se
eticamente o homicídio. Ocorre, aqui, uma eventual divergência entre os princípios da justiça e do amor.
Segundo o amor, é preferível deixar-se morrer do que matar. O princípio da justiça, diversamente, aceita
que o sujeito prefira a sua própria vida à do outro. Os Códigos Penais dos mais diversos países declaram
que, nessas circunstâncias extremas, não há crime” (COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral
e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 458).
309
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 521.
125

pelo direito penal, por outro, poderá afinar-se ao valor da verdade preconizado pela
“ética de um mundo solidário”.
A interação dialética entre um conjunto de valores que objetivam a construção
de uma sociedade solidária e uma realidade que escancara os fracassos de uma
concepção puramente punitiva de solução de conflitos, ao mesmo tempo em que acena
com a possibilidade de soluções pacíficas dos mesmos, só pode levar a um ordenamento
jurídico que tenha a dignidade da pessoa humana como pedra de toque e os direitos
fundamentais como garantia mínima para a consecução dos fins da verdade, da justiça e
do amor.
Por incrível que pareça, tudo leva a crer que foi exatamente esta filosofia de
constante expansão do valor justiça pelo valor amor a que foi adotada em nossa
Constituição de 1988.

4.2 O modelo restaurativo de justiça criminal

A atual divisão da ciência penal em duas linhas gerais, como sugere Antonio
Beristain, ajuda a melhor compreender a proposta ora apresentada.
Segundo esse autor espanhol, “a ciência total do direito penal, incluindo a
criminologia, avança por duas auto-estradas (com diversas faixas dentro de cada uma
delas)”310: uma denominada “justiça criminal retributiva”311 e outra denominada
“justiça criminal restaurativa”312.

310
BERISTAIN, Antônio. Nova Criminologia à luz do direito penal e da vitimologia. Trad. Cândido
Furtado Maia Neto. Brasília: UNB, 2000. p. 171.
311
“No modelo retributivo, vimos que há uma ênfase na questão do respeito ao dever para fundamentar a
liberdade como expressão de adesão a uma máxima universal, cujo obstáculo dita a necessidade de
castigo, incondicionalmente. A construção de um sistema e de uma regra aplicável a toda e qualquer
circunstância, independentemente dos objetos externos, dos sentidos, dos desejos, das expectativas,
expressa, inegavelmente, um valor subjacente: o de ordem, controle, fixidez, segurança, colocado de
modo inquestionado como uma verdade por si mesma vigente. A necessidade do castigo, num sistema
como tal, decorre da estruturação rígida de um modelo lógico de concepção da sociedade, fundada em
valores tais que, para fazer valer sua universalidade, qualquer erro ou desvio deve ser extirpado” (MELO,
Eduardo Rezende. Justiça restaurativa e seus desafios histórico-culturais: um ensaio crítico sobre os
fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva. In Revista de
Estudos Criminais, Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais, ano IV, jan./mar. 2006, nº 21. p. 115).
312
“Entendo que a justiça restaurativa nos abre de modos vários a um contrataste radical com esse modelo
[retributivo]. Primeiramente, ela expressa uma outra percepção da relação indivíduo/ sociedade, o que
concerne ao poder: contra uma visão vertical na definição do que é justo, ela dá vazão a um acertamento
horizontal e pluralista daquilo que pode ser considerado justo pelos envolvidos numa situação conflitiva.
Segundo, ela foca nas singularidades daqueles que estão em relação e nos valores que a presidem,
126

O “modelo retributivo de justiça criminal” corresponderia ao direito penal que


vem sendo aplicado tradicionalmente desde o surgimento dos Estados Nacionais
europeus, quando se operou a monopolização do castigo nas mãos do soberano. O
discurso da publicização do crime e da punição como pressupostos de uma pretensa
evolução social, representada pela idéia (nunca demonstrada) de que, com o poder
punitivo nas mãos do Estado, o castigo seria exercido de modo racional e não de modo
vingativo, como seria próprio das sociedades primitivas, levou a uma naturalização da
pena como algo próprio da civilização. A punição, para ser aceitável, teria que advir
exclusivamente do Estado. Por outro lado, para que não houvesse o risco de voltar à
barbárie, à vingança de sangue, o Estado teria que punir o maior número possível de
crimes, de modo que as vítimas satisfizessem seu instinto vingativo.
Assim, em que pese todo o argumento de monopolização do poder punitivo estar
intimamente ligado à pessoa da vítima, uma vez que o Estado somente agiria para evitar
o exercício da vingança pessoal, a verdade é que, com o passar do tempo, a vítima foi
sendo simplesmente esquecida e, com isso, esquecido também o fundamento utilizado
para justificar a publicização do conflito, até o ponto de termos, hoje, inúmeros crimes
sem conflitos subjacentes, como é exemplo a quase totalidade dos crimes de perigo
abstrato.
Corolário desse pensamento punitivo institucionalizado, o princípio da
obrigatoriedade da ação penal é exemplo claro do alijamento da vítima do processo
penal. É com base nesse princípio que se defende que o poder punitivo deve ser
exercido a despeito e até mesmo contra o desejo da vítima de ver o suposto autor do
delito punido pelos seus atos. Ou seja, afirma-se, num primeiro momento, que a vítima,
se agisse em nome próprio, castigaria seu algoz de maneira vingativa e desproporcional,
para, logo em seguida, afirmar-se que pouco importa a percepção que a vítima tem do

abrindo-se, com isso, àquilo que leva ao conflito. Neste duplo contraste, a própria fundação da regra se
apresenta de outro modo, permitindo o rompimento desta cisão entre interioridade e exterioridade que
marca a concepção kantiana e que nos remete à possibilidade de emancipação, com um comprometimento
pessoal nas ações e expressões individuais pela elaboração das questões que se apresentam envolvidas no
conflito. Terceiro, e principalmente, se o foco volta-se mais à relação do que à resposta estatal, a uma
regra abstrata prescritora de uma conduta, o próprio conflito e a tensão relacional ganha um outro
estatuto, não mais como aquilo que há de ser rechaçado, apagado, aniquilado, mas sim como aquilo que
há de ser trabalhado, elaborado, potencializado naquilo que pode ter de positivo, para além de uma
expressão gauche, com contornos destrutivos. Quarto, ao trazer à tona estas singularidades e suas
condições de existência subjacentes à norma, este modelo aponta para o rompimento dos limites
colocados pelo direito liberal, abrindo-nos, para além do interpessoal, a uma percepção social dos
problemas colocados nas situações conflitivas” (MELO, Eduardo Rezende. Justiça restaurativa e seus
desafios histórico-culturais: um ensaio crítico sobre os fundamentos ético-filosóficos da justiça
restaurativa em contraposição à justiça retributiva. In Revista de Estudos Criminais, Instituto
Transdisciplinar de Estudos Criminais, ano IV, jan./mar. 2006, nº 21. p. 117).
127

evento e qual sua pretensão em relação a ele, cabendo obrigatoriamente ao Estado agir
para punir qualquer violação de seus comandos legais.
Com isso, ao invés de arrefecer o clamor por vingança, o Estado acaba por
fomentá-lo, primeiro, ao afirmar que toda pessoa tem em si um instinto punitivo que
deve ser contido, segundo, ao proclamar que esse instinto punitivo só pode ser contido
por meio da punição exemplar de todo aquele que venha cometer delitos.

“Essa lógica, desperta emoções de batalha, de guerra (‘guerra contra o crime’ é


o jargão moderno), as quais reforçam sentimentos de distanciamento e
exclusão, redundando num efeito colateral: o sistema concebido para frear
sentimentos de vingança, acaba por fomentá-los e organizá-los na forma de
resposta legal, devida e necessária. A atitude hostil da justiça, representada
como atitude legal do soberano, oferece aos cidadãos um padrão de
comportamento evidentemente hostil e violento – lembrando aquela função
primordial da justiça –, o qual, mercê da forte carga comunicativa do direito
penal, acabada transmitindo aos consorciados a idéia de que a hostilidade é um
método legítimo para a resolução dos conflitos”313.

Como se percebe, a questão não se limita à desconsideração do papel da vítima


(não obstante seja essa uma característica central do modelo retributivo de justiça
penal), tendo repercussão sobre toda a sociedade, pois a coesão do grupo ao redor da
punição cria uma situação no mínimo insólita: “proporciona um sentimento de
solidariedade no sentido da pena que se opõe à solidariedade em relação às pessoas. A
solidariedade ao redor da pena se dá pelo mesmo mecanismo que impõe a hostilidade
contra o infrator”314. A dissolução dos vínculos sociais é, a partir daí, inevitável, de
modo que o direito, que deveria servir como instrumento de pacificação social, passa a
valer como principal fator de divisão dos membros do grupo, etiquetando as pessoas
como “cidadãos de bem” ou inimigos.
Influenciado pelo discurso crítico, pela criminologia da reação social, pelas
doutrinas negativas da pena, pela vitimologia, pela antropologia jurídica, o “modelo

313
SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de
gestão do crime. Rio de Janeiro: lumen Juris, 2007. p. 41.
314
SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de
gestão do crime. Rio de Janeiro: lumen Juris, 2007. p. 42.
128

restaurativo de justiça criminal” propõe uma verdadeira mudança de paradigma em


relação ao modelo punitivo tradicional315.
Partindo da verificação empírica de que as populações autóctones de
determinados países do Novo Mundo ainda hoje exercem práticas de pacificação social
não punitivas diante dos conflitos vividos por seus membros316, alguns pesquisadores
passaram a questionar o discurso evolutivo-civilizador usado pelo Estado para justificar
o monopólio do castigo e o conseqüente afastamento da vítima do processo penal.
Como explica a criminóloga canadense Mylène Jaccoud, em virtude de seu
modelo de organização social, as sociedades comunais (sociedades pré-estatais
européias e as coletividades nativas) privilegiavam as práticas de regulamento social
centradas na manutenção da coesão do grupo. Nestas sociedades, onde os interesses
coletivos superavam os interesses individuais, a transgressão de uma norma causava
reações orientadas para o restabelecimento do equilíbrio rompido e para a busca de uma
solução rápida para o problema. Embora as formas punitivas (vingança ou morte) não
tenham sido excluídas, as sociedades comunais tinham a tendência de aplicar alguns
mecanismos capazes de conter toda a desestabilização do grupo social317.

315
Não a toa, uma das obras mais referidas entre os autores restaurativos é entitulada “Changing Lenses: a
new focus for crime and justice”. Já há tradução para o português: ZEHR, Howard. Trocando as lentes:
um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008.
316
Um exemplo sempre citado é o da Nova Zelândia, país referencial em tema de justiça restaurativa.
Segundo a criminóloga neozelandesa Gabrielle Maxuel: “Dentro da sociedade Maori, os whanau
(famílias/famílias estendidas) e os hapu (comunidades/ clãs) se reúnem para resolver conflitos e
determinar como lidar com problemas que afetam a família ou a comunidade. Na década de 80, algumas
comunidades ainda realizavam essas práticas e cada vez mais havia solicitações para a justiça marae
dentro das linhas do ‘Aroha’, um programa no Waikato que visava lidar com o histórico de abusos
sexuais em reuniões de whanau/hapu. Naquela década havia uma preocupação crescente entre a
comunidade Maori sobre a forma pela qual as instituições que visavam bem-estar infantil e os sistemas de
justiça juvenil removiam os jovens e as crianças de seus lares, do contato com suas famílias estendidas e
suas comunidades. Também se exigia processos culturalmente apropriados para os Maoris e estratégias
que permitissem às famílias sem recursos a possibilidade de cuidar de suas próprias crianças mais
eficazmente. Como resultado, os responsáveis pela nova legislação voltada às crianças e aos jovens
carentes de cuidado e proteção ou cujo comportamento era considerado anti-social procuraram
desenvolver um processo mais eficiente para os Maoris e outros grupos culturais que desse mais apoio às
famílias e que diminuísse a ênfase nos tribunais e na institucionalização dos jovens infratores. Como
resultado, em 1989 a Nova Zelândia aprovou o Estatuto das Crianças, Jovens e suas Famílias que rompeu
radicalmente com a legislação anterior e que visava responder ao abuso, ao abandono e aos atos
infracionais. A responsabilidade primária pelas decisões sobre o que seria feito foi estendida às famílias,
que receberiam apoio em seu papel de prestações de serviços e outras formas apropriadas de assistência.
O processo essencial para a tomada de decisões deveria ser a reunião de grupo familiar, que visava incluir
todos os envolvidos e os representantes dos órgãos estatais responsáveis (bem-estar infantil para casos de
cuidados e proteção e a polícia nos casos de infrações)” (MAXWELL, Gabrielle. A Justiça Restaurativa
na Nova Zelândia. In SLAKMON, C., De Vitto, R. e GOMES PINTO, R. (orgs). Justiça Restaurativa.
Brasília – DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD,
2005. p. 280).
317
JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa. In
SLAKMON, C., De Vitto, R. e GOMES PINTO, R. (orgs). Justiça Restaurativa. Brasília – DF:
129

Por outro lado, diz a autora, o movimento de centralização dos poderes e o


nascimento das nações estado modernas vão reduzir consideravelmente estas formas de
justiça negociada. O nascimento do Estado coincide com o afastamento da vítima no
processo criminal e com a quase extinção das formas de reintegração social nas práticas
de justiça habitual. Nos territórios colonizados, tornou-se necessária a criação de
nações-estado pelos colonizadores, para a neutralização das práticas habituais através da
imposição de um sistema de direito único e unificador. Mas, “apesar desta imposição,
não foram completamente extintas as práticas tradicionais de resolução dos conflitos
destas sociedades. Aliás, o ressurgimento contemporâneo dos modelos restaurativos nos
estados formados durante um processo de colonização está em parte ligado aos
movimentos reivindicatórios dos povos nativos, que demandaram que a administração
da justiça estatal respeitasse suas concepções de justiça, mas também aos problemas
endêmicos de superpopulação dos nativos nos estabelecimentos penais e sócio-
protetivos”318.
Além das pesquisas etnográficas, teve também forte influência na construção do
discurso restaurativo o movimento de contestação das instituições repressivas surgido
nas universidades americanas no início do século passado, assim como os trabalhos da
escola de Chicago e de criminologia radical que se desenvolveram na universidade de
Berkeley na Califórnia. A contribuição européia ficou por conta de autores como:
Michel Foucault (Vigiar e Punir), Nils Christie (Limits to Pain) e Louk Hulsman (Penas
Perdidas)319.
Também não se deve ignorar a importância que a vitimologia e o movimento de
“exaltação da comunidade” tiveram para a formalização dos princípios da justiça
restaurativa320, em especial a idéia de “reapropriação dos conflitos em favor das partes

Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 163.
Ainda segundo a autora, “os vestígios destas práticas restaurativas, reintegradoras, cons e negociáveis se
encontram em muitos códigos decretados antes da primeira era cristã. Por exemplo, o código de
Hammurabi (1700 a.C. ) e de Lipit-Ishtar (1875 a.C.) prescreviam medidas de restituição para os crimes
contra os bens. O código sumeriano (2050 a.C.) e o de Eshunna (1700 a.C.) previam a restituição nos
casos de crimes de violência (Van Ness e Strong, 1997). Elas podem ser observadas também entre os
povos colonizados da África, da Nova Zelândia, da Áustria, da América do Norte e do Sul, bem como
entre as sociedades pré-estatais da Europa” (p. 164).
318
JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa. In
SLAKMON, C., De Vitto, R. e GOMES PINTO, R. (orgs). Justiça Restaurativa. Brasília – DF:
Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 164.
319
JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa. In
SLAKMON, C., De Vitto, R. e GOMES PINTO, R. (orgs). Justiça Restaurativa. Brasília – DF:
Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 164-165.
320
“Faget (1997) sustenta que três correntes de pensamento favoreceram o ressurgimento da justiça
restaurativa e dos processos que a ela estão associados (em particular a mediação) nas sociedades
130

diretamente envolvidas”, cunhada por Nils Christie e utilizada pelo movimento


restaurativo como ponto central de sua doutrina321.
Ao longo das últimas décadas322, vários programas (mais ou menos)
restaurativos foram postos em prática ao redor do mundo323, primeiro, buscando a
reconciliação entre vítima e ofensor (Victim Offender Reconciliation Program –
VORP), depois, transferindo o foco do debate da conciliação para a mediação (Victim
Offender Mediation – VOM) e, enfim, expandindo o diálogo para os demais
componentes da comunidade, que também são chamados a participar das conferências
restaurativas (Comunity conferencing e Sentencing circles).
Apesar da grande dificuldade em definir com precisão o que se entende por
justiça restaurativa324, uma vez que seu desenvolvimento se ampara muito mais na

contemporâneas ocidentais: trata-se dos movimentos 1) de contestação das instituições repressivas, 2) da


descoberta da vítima e 3) de exaltação da comunidade” JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e
Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa. In SLAKMON, C., De Vitto, R. e GOMES PINTO, R.
(orgs). Justiça Restaurativa. Brasília – DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 164).
321
“O movimento de justiça restaurativa, pode-se argumentar, tem se baseado na idéia de ‘conflitos como
propriedade’ (Christie, 1977) – o objetivo é redistribuir o poder e dispersar a tomada de decisão,
reduzindo as intervenções do sistema e aumentando as intervenções da comunidade. A justiça
restaurativa, neste sentido, trata de mudar o equilíbrio entre o Estado e a sociedade civil em favor desta
última” (FROESTAD, Jan e SHEARING, Clifford. O Modelo Zwelethemba de Resolução de conflitos. In
SLAKMON, C., De Vitto, R. e GOMES PINTO, R. (orgs). Justiça Restaurativa. Brasília – DF:
Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 90).
322
“A justiça restaurativa é, assim, o fruto de uma conjuntura complexa. Diretamente associada, em seu
início, ao movimento de descriminalização, ela deu passagem ao desdobramento de numerosas
experiências-piloto do sistema penal a partir da metade dos anos setenta (fase experimental), experiências
que se institucionalizaram nos anos oitenta (fase de institutionalização) pela adoção de medidas
legislativas específicas. A partir dos anos 90, a justiça restaurativa conhece uma fase de expansão e se vê
inserida em todas as etapas do processo penal” (JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e
Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa. In SLAKMON, C., De Vitto, R. e GOMES PINTO, R.
(orgs). Justiça Restaurativa. Brasília – DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 166).
323
“De inspiração anglo-saxônica, a justiça restaurativa se desenvolveu de uma maneira exponencial em
muitos países do globo. Embora o termo “justiça restaurativa “ seja predominante, outros títulos são
utilizados: alguns autores preferem falar de “justiça transformadora ou transformativa” (ver por exemplo,
Bush e Folger, 1994, Morris em Van Ness e Strong, 1997, p.25 e CDC, 1999), outros falam de” justiça
relacional” (ver Burnside e Baker em Van Ness e Strong, 1997, p.25), de “justiça restaurativa comunal”
(Young em Van Ness e Strong, 1997, pág. 25), de “justiça recuperativa” (ver principalmente Cario, 2003)
ou de “justiça participativa” (CDC, 2003). A diversidade destes títulos é talvez a indicação de que a
justiça restaurativa não é, ou não é mais, o paradigma unificado considerado por seus fundadores nos anos
80” (JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa. In
SLAKMON, C., De Vitto, R. e GOMES PINTO, R. (orgs). Justiça Restaurativa. Brasília – DF:
Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 161).
324
Das muitas definições propostas pelos autores, talvez essa, sugerida por Tony Marshall, seja a que
melhor retrate a idéia: “A justiça restaurativa é um processo através do qual todas as partes interessadas
em um crime específico se reúnem para solucionar coletivamente como lidar com o resultado do crime e
suas implicações para o futuro” (Apud FROESTAD, Jan e SHEARING, Clifford. O Modelo
Zwelethemba de Resolução de conflitos. In SLAKMON, C., De Vitto, R. e GOMES PINTO, R. (orgs).
Justiça Restaurativa. Brasília – DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 77).
131

prática do que em dispositivos legais positivados325, pode-se apontar, juntamente com


Froestad e Shearing326, quatro características básicas para que um determinado modelo
possa ser considerado restaurativo.
Em primeiro lugar, é preciso verificar o “grau de inclusão dos interessados” na
solução do conflito. Programas que “ampliam o círculo” terão uma capacidade maior de
restauração e de solução de problemas do que os programas que limitam a participação.
Em segundo lugar, programas restaurativos devem expandir suas metas para
além da simples reparação do dano específico, buscando também a reintegração dos
infratores de volta à comunidade, abordando problemas estruturais e desigualdades
sociais que causam exemplos de dominação e a eclosão de conflitos, ou visando restituir
o poder à própria comunidade, para aumentar sua capacidade de gerenciamento do
conflito e construção da paz.
Em terceiro lugar, distinguem-se os programas restaurativos por suas
“localizações em relação às bases do poder e controle”. Eles sugerem que as práticas
restaurativas podem ser organizadas ao longo de um contínuo “de programas baseados
na comunidade, onde a responsabilidade, os recursos e o controle de serviços são
investidos na comunidade local e em seus cidadãos”. Exatamente por conta disso, os
programas que são baseados localmente e dirigidos por associações não-governamentais
devem ter maior potencial restaurativo do que os projetos administrados centralmente,
controlados pelo Estado.

325
Não obstante, vários países, em especial aqueles de tradição jurídica escrita (civil law), já têm leis
específicas sobre o funcionamento de práticas restaurativas em seu território, sendo certo que o próprio
Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas aprovou a Resolução nº 2002/12,
consitando todos os países membros a adotar, divulgar e apoiar práticas restaurativas baseadas nos
seguintes conceitos: “1. Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use processos
restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos; 2. Processo restaurativo significa qualquer
processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da
comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime,
geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a
conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles); 3.
Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo. Resultados restaurativos
incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando
atender as necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes, bem assim promover a
reintegração da vítima e do ofensor; 4. Partes significa a vítima, o ofensor e quaisquer outros indivíduos
ou membros da comunidade afetados por um crime que podem estar envolvidos em um processo
restaurativo; 5. Facilitador significa uma pessoa cujo papel é facilitar, de maneira justa e imparcial, a
participação das pessoas afetadas e envolvidas num processo restaurativo”. No Brasil, há em tramitação
no Congresso o Projeto de Lei nº 7.006/2006, que visa regulamentar a aplicação de justiça restaurativa na
esfera criminal. Em alguns estados da federação, já existem alguns projetos institucionais em andamento,
como é o caso do Distrito Federal, onde o Tribunal de Justiça local, através da Portaria conjunta n° 052/
06, instituiu o Programa de Justiça Restaurativa.
326
FROESTAD, Jan e SHEARING, Clifford. O Modelo Zwelethemba de Resolução de conflitos. In
SLAKMON, C., De Vitto, R. e GOMES PINTO, R. (orgs). Justiça Restaurativa. Brasília – DF:
Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005.
132

Por último, os citados autores recorrem às noções de “diálogo respeitoso” e de


“não-dominação” apontadas por Braithwaite327 como valores centrais de todo e qualquer
modelo que se pretenda restaurativo. Nesse sentido, sustenta-se que, não apenas as
vozes dos “proprietários de [um] conflito” significativo sejam ouvidas, mas que a
resolução de problemas deva ser baseada principalmente em relatos de como os
interessados locais experimentam e concebem os conflitos.
Se é verdadeira a assertiva de Nils Christie, no sentido de que “a especialização
na solução de conflitos é o principal inimigo”, então, na medida em que os conflitos são
pré-definidos pelo sistema de justiça criminal e então indicados a programas
restaurativos como “crimes”, a capacidade de tais programas de procurar resultados de
uma maneira aberta, sem constrangimentos será reduzida significativamente.
Além disso, na medida que os profissionais dominam as reuniões restaurativas,
as partes do conflito perdem parte de sua propriedade do problema. Por tais motivos,
assume-se que os programas que priorizam a tomada de decisão com base no
conhecimento local e na capacidade dos envolvidos têm maior potencial restaurativo
que programas nos quais a resolução de problemas está circunscrita por definições e
categorias formuladas em outros lugares, ou que se apóiem em maior grau nas
habilidades de profissionais ou peritos para alcançar soluções.
Ainda que não inteiramente conforme as características acima, o seguinte
quadro, elaborado por Scardaccione, Baldry e Scali328, serve para ilustrar alguns pontos
distintivos fundamentais entre o modelo retributivo (tradicional) e o modelo restaurativo
(alternativo):

Modelo Tradicional Modelo Alternativo


Objeto o crime e seu autor a parte ofendida pelo
crime (e as suas
conseqüências)
verificação da Ressarcimento da vítima
responsabilidade/ (material, moral,
punição do culpado ou simbólico)/ restauração
Objetivos reabilitação do réu da paz jurídica
(mod. Retributivo e
mod. Reabilitativo)

327
O criminólogo australiano John Braithwaite é apontado por muitos como o principal acadêmico
dedicado ao estudo da justiça restaurativa.
328
SCARDACIONE, Gilda, BALDRY, Anna e SCALI, Melania. La mediazone penale. Milão, Giuffré,
1998. Apud SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e
de gestão do crime. Rio de Janeiro: lumen Juris, 2007. p. 17.
133

Ofensa à vítima e/ou à


Crime ofensa contra o Estado comunidade (parte
ofendida pelo crime)
aplicação de pena atividade em favor da
Meios detentiva ou medidas vítima/ solução
alternativas consensual
mediadores: também
Figura Operadores alheios à Justiça/
profissional penitenciários e sociais envolvimento da
comunidade

4.3 A Constituição de 1988, os Juizados Especiais Criminais e a justiça restaurativa no


Brasil

Embora não tenha ficado imune às influências da “justiça criminal retributiva”,


parece que não seria arbitrário afirmar que a Constituição de 1988 elegeu o modelo de
“justiça criminal restaurativa” como objetivo a ser perseguido, tudo com vistas à
formação de um “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.
Como se vê, já em seu preâmbulo, a Carta Política pátria deixou expressa sua
opção pela instituição de um Estado fraterno, fundado na harmonia social e
comprometido com a solução pacífica de todo e qualquer tipo de controvérsia, o que foi
confirmado, aliás, ao serem elencados, em seu art. 3º, os objetivos (leia-se valores)
fundamentais da República Federativa do Brasil.
É esse, portanto, o objetivo positivado pelo legislador constituinte para todo o
ordenamento jurídico pátrio: a solução pacífica das controvérsias, de modo a “construir
uma sociedade livre, justa e solidária”. Note-se que o ideal de solidariedade em que se
funda a República Federativa do Brasil só se compatibiliza com uma busca permanente
pela inclusão de todos no paradigma de identidade nacional, reduzindo as desigualdades
sociais e regionais, bem como erradicando a pobreza e a marginalização, de modo que
134

soluções pacíficas e conciliatórias possam ser encontradas mesmo para as controvérsias


consideradas mais graves.
É claro que o fim eleito pelo constituinte (aliás, único possível para um Estado
que se pretende democrático), como vetor axiológico a ser seguido por toda a nação,
não constitui uma regra jurídica, no sentido biunívoco popularizado por Ronald
Dworkin através do modelo do “tudo ou nada”, mas verdadeiro princípio que deve
informar todas as demais normas jurídicas, ampliando as hipóteses de aplicação
daquelas que privilegiam a solução pacífica das controvérsias e restringindo aquelas que
ainda se fundam no ideal repressivo próprio do sistema penal tradicional. A partir dos
valores constitucionalmente positivados, portanto, pode-se dizer que o ideal
repressivo/retributivo do direito penal e processual penal tradicionais deve tender à
diminuição com o passar do tempo e, em termos ideais (e apenas ideais), à extinção. É o
processo de abertura do valor justiça ao valor amor, tal como preconizado por Gandhi e
sistematizado por Comparato como “ética de um mundo solidário”.
Aliás, uma análise dos dispositivos constitucionais relacionados à matéria
criminal parece confirmar a existência desse vetor axiológico, havendo maior
resistência à solução pacífica dos delitos considerados mais graves (art. 5º, incisos XLII,
XLIII e XLIV, da CR), de um lado, e determinação expressa para que as infrações
penais de menor potencial ofensivo sejam solucionadas, prioritariamente, por meio da
conciliação (art. 98, I, da CR), de outro. O sentido para o qual aponta a seta (→) que
representa graficamente o mencionado vetor axiológico — de uma menor tolerância e
maior punição rumo a uma menor intolerância e maior conciliação — é dado pelos
objetivos fundamentais da solidariedade (art. 3º, I) e da erradicação da marginalização
(art. 3º, III), que conduzem a formas pacíficas de solução das controvérsias
(preâmbulo), haja vista a progressiva construção de uma sociedade fraterna e igualitária.
Tais dispositivos, ao contrário do que possa parecer, não formam um emaranhado de
regras e princípios desconectados, mas verdadeiro sistema de redução permanente dos
mecanismos violentos de solução de conflitos.
A porta de entrada para a justiça restaurativa no Brasil, portanto, não foi aberta
pela edição da Lei n° 9.099/ 95, como sustentam alguns, mas decorre de todo o sistema
principiológico previsto na Constituição de 1988, que instituiu um Estado democrático
de Direito “fundado na harmonia social e comprometido com a solução pacífica das
controvérsias”.
135

Nesse sentido, há que se distinguir claramente o conjunto de regras e princípios


instituídos constitucionalmente, com vistas a reforçar os laços de solidariedade entre os
homens, da regulamentação trazida pela Lei n° 9.099/ 95, nitidamente viciada pelo
ranço retributivista do sistema penal tradicional.
Com efeito, não obstante serem corriqueiros comentários como os de Grinover
et al, no sentido de que “o legislador soube romper os esquemas clássicos do direito
criminal e do processo penal, adotando corajosamente soluções profundamente
inovadoras”329, entendemos que a regulamentação legal do art. 98, inciso I, da
Constituição da República, foi por demais tímida e, até mesmo, indevidamente redutora
do valor pacificador e conciliador adotado pelo legislador constituinte.
Ora, como já defendido acima, não foi o legislador infraconstitucional quem
inovou, mas a própria Constituição da República, ao apontar que mesmo na seara penal
é preciso oxigenar o rígido ideal de justiça retributiva com novas formas de solução
pacífica dos conflitos, cuja implementação fez obrigatória para todas as infrações penais
de menor potencial ofensivo. Eis os exatos termos da previsão constitucional:

“Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os


Estados criarão:

I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e


leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a
execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações
penais de menor potencial ofensivo, mediante procedimentos
oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a
transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de
primeiro grau;”

Diante disso, ainda que se concorde com a crítica formulada por alguns autores
no sentido de que melhor seria a descriminalização mesma de todos os delitos hoje
considerados de menor potencial ofensivo330, o fato é que nem mesmo isso poderia
impedir a abertura do tradicional sistema de direito penal e processual penal ao ideal
conciliador e pacifista dos Juizados Especiais Criminais. De acordo com o sistema de
justiça criminal idealizado pela Constituição da República, se os crimes hoje
considerados de menor potencial ofensivo vierem a ser descriminalizados, outros,
necessariamente, deverão passar a receber idêntico tratamento, sob pena de

329
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei 9.099, de
26.09.1995. São Paulo: Editora RT, 2000. p. 51.
330
Contravenções penais e crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada
ou não com multa, conforme redação dada ao art. 61, da Lei nº 9.099/ 95, pela Lei nº 11.313, de 28.06.06.
136

inconstitucionalidade por omissão, até que mesmo as condutas consideradas mais


gravosas possam ser solucionadas de acordo com o ideal fraterno na direção e sentido
aos quais aponta o vetor axiológico previsto na Carta Política. Essa a primeira
constatação.
A análise do referido dispositivo constitucional revela também que a conciliação
deverá ser buscada no âmbito do Juizado Especial Criminal sempre que isso se mostrar
de fato possível, não podendo o sistema processual penal tradicional ser invocado como
obstáculo para a completa concretização da norma fundamental.
De fato, é inegável que o legislador infraconstitucional, ao regulamentar o art.
98, I, da CR, seguiu, em sua maior parte, o sistema puramente retributivo do processo
penal tradicional, negando-se a admitir que também os delitos de ação penal pública
incondicionada pudessem ser objeto de conciliação entre os sujeitos ativo e passivo da
infração penal. Com isso, maculou o legislador ordinário todo o espírito restaurativo
conferido pela Carta Política aos Juizados Especiais Criminais, interpretando a
Constituição de acordo com o clássico sistema punitivo estatal e não de acordo com os
valores e princípios nela mesma contidos para a solução das infrações de menor
potencial ofensivo.
Com efeito, no âmbito da conciliação — único instituto efetivamente
revolucionário em termos de solução pacífica de controvérsias — a Lei nº 9.099/ 95 em
praticamente nada inovou em relação ao sistema processual penal punitivo, eis que a
vítima e o autor do fato sempre puderam transigir com relação ao exercício do direito de
ação penal de iniciativa privada ou com relação ao direito de representação, sendo a
única diferença prática a previsão expressa, agora, de uma audiência preliminar com
esse desiderato para ambas as hipóteses e não apenas para o procedimento dos crimes de
calúnia e injúria, tal como anteriormente previsto nos artigos 519 e seguintes do Código
de Processo Penal331. Desta forma, a previsão constitucional de uma Justiça
especializada em matéria de infrações de menor potencial ofensivo, pautada nos ideais
restaurativos de conciliação e solução pacífica das controvérsias, em nada terá inovado
no ordenamento jurídico caso se aplique ao pé da letra a Lei nº 9.099/ 95332.

331
A inexistência de um ato processual específico para a realização desse acordo não significa que não
ocorresse na prática, uma vez que a vítima sempre pôde dispor livremente dos direitos de queixa e de
representação, com ou sem acordo prévio com o autor do delito.
332
Em igual sentido, o comentário de Maria Lúcia Karam: “A composição civil disciplinada na Lei 9.099/
95 dá a um antecipado reconhecimento da obrigação de indenizar o efeito de impedir a propositura da
ação penal condenatória, na hipótese de alegada infração penal de menor potencial ofensivo identificável
em fato igualmente configurador do ilícito civil. Em tese, um tal efeito poderia estar a apontar para um
137

A toda evidência, laborou o legislador ordinário em indevida restrição do texto


constitucional, cujos princípios e valores reitores da norma esculpida no art. 98, I, foram
inegavelmente bitolados por uma interpretação impregnada de ideais punitivos, típicos
do sistema penal e processual penal tradicional333.
A Constituição da República ao tratar dos Juizados Especiais Criminais em
momento nenhum restringiu as hipóteses de conciliação aos delitos de ação penal
privada e pública condicionada, tal como seria compatível com a tradicional teoria geral
do processo penal. Ao revés, o Texto Maior expressamente dispõe que as “infrações de
menor potencial ofensivo”, indistintamente, serão objeto de “conciliação, julgamento e
execução” perante os Juizados Especiais Criminais, “permitidos, nas hipóteses
previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de
primeiro grau”.
Como se pode observar, apenas as hipóteses de transação penal — por constituir
esta verdadeira pena criminal e, portanto, estar submetida ao princípio da reserva legal
— poderiam ser delimitadas pelo legislador ordinário, mas nunca os casos de
conciliação, que estaria sempre admitida, desde já, ex vi legis, pelo próprio legislador

protagonismo do ofendido. No entanto, a Lei 9.099/95 quase nada avança neste sentido, pois, conforme
ali regulado, a composição só recebe aquele efeito nas escassas hipóteses em que a demanda veiculadora
da pretensão punitiva devesse ser apresentada em ação penal condenatória de iniciativa do ofendido ou
condicionada a representação por ele formulada” (KARAM, Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais:
a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Editora RT, 2004. p. 49).
333
Na verdade, até mesmo quando tratou da hipótese de conciliação entre as partes, não conseguiu o
legislador ordinário se despir do ranço punitivo do sistema criminal tradicional, prevendo como única
hipótese de acordo a composição civil dos danos. Ocorre que, conforme ensinam os estudiosos dos
modelos conciliatórios, o que se busca por meio dessa alternativa ao modelo punitivo é a restauração da
harmonia social e não a reparação de eventuais danos que uma ou outra parte possa ter sofrido. Neste
caso, a eventual reparação do dano é apenas um dos possíveis meios para se atingir o fim último da
conciliação, e nunca o único deles. Sobre o assunto, precisa é a lição de Bonafé-Schmitt (BONAFÉ-
SCHMITT, Jean-Pierre. La mediation pénale en France et aux États-Unis. Paris: Réseau Européen Droit
et Société, 1998. p. 19): “Em matéria de mediação penal, reparação não se confunde com indenização, e
ela tampouco deve ser entendida como uma sanção, mas sim como uma forma de reinserção dos
envolvidos na comunidade. Sem essa mudança de paradigma, a mediação não passará de mais uma
modalidade de ação penal pública, enquanto que as formas de reparação não representarão nada além de
uma pena acessória dentre aquelas quem compõem o arcabouço sancionatório do modelo punitivista
tradicional”; assim como a de Delmas-Marty: “O processo de mediação, nesse sentido, é mais flexível,
pois o essencial é que se chegue ao acordo, à reconciliação. Certamente, esta pode ser facilitada por uma
reparação prévia do dano, mas distingue-se dela já que pressupõe necessariamente o acordo de todas as
pessoas implicadas, vítimas e delinqüentes, diferentemente da variante civil (...). Na mediação, a
reparação não é senão um meio, já que seu objetivo primordial – mais ambicioso, sem dúvida – é o de
restaurar a harmonia pela reconciliação daqueles que são, no processo clássico, civil ou penal, as ‘partes
adversas’” (DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal; tradução de Denise
Radnovic Vieira. Baueri/ SP: Manole, 2004. p. 174). Exatamente por isso não é raro — mas, ao contrário,
muito comum — que nos Juizados Especiais Criminais sejam formulados acordos que em nada se
assemelham à composição civil dos danos — que muitas vezes sequer existem —, de modo a solucionar a
controvérsia penal e, conseqüentemente, ver declarada extinta a punibilidade da conduta tida por
criminosa.
138

constituinte. É essa, aliás, a linha seguida pelos Juizados Especiais Cíveis, onde apenas
as causas passíveis de serem solucionadas por meio da conciliação foram admitidas na
competência da nova Justiça especial, tudo para que não se desnaturasse o sistema
instituído pela Lei Fundamental334. Neste caso, nas competências do Juizado Especial
Cível foram admitidas apenas as causas que se ajustassem ao ideal conciliador imposto
pela Constituição da República, as demais, por incompatíveis com o novo sistema, não
puderam ser consideradas pelo legislador infraconstitucional como “causas cíveis de
menor complexidade”.
No âmbito penal, por óbvio, igual solução não seria possível, pois até mesmo os
mais insignificantes tipos penais são considerados de ação penal pública incondicionada
pelo legislador. Na verdade, a regra para as condutas tipificadas como criminosas é a da
ação penal pública incondicionada, que só costuma ser excepcionada quando o bem
jurídico afetado é de natureza muito íntima da vítima, de modo que uma intervenção
estatal sem a sua aquiescência poderia trazer resultados sociais ainda mais desastrosos.
Basta ler o totalitário Decreto-lei nº 3.688/ 51 para que se tenha exata noção do que se
diz aqui. Todas as contravenções penais335 ali previstas são de ação penal pública
incondicionada, por força do disposto no art. 17, do referido diploma legal. Assim, a
menos que a Lei nº 9.099/95 tivesse deixado de fora do rol das infrações penais de
menor potencial ofensivo as contravenções penais — o que também levaria à sua
inconstitucionalidade, só que por violação ao princípio da razoabilidade —, não haveria
como impedir a quebra do sistema processual penal tradicional, ao admitir-se que
também os delitos considerados de ação penal de iniciativa pública incondicionada
fossem passíveis de conciliação.

334
Como notou com percuciência Cândido Rangel Dinamarco, mesmo na cláusula de abertura constante
do art. 58, da Lei nº 9.099/ 95, que confere aos Estados a faculdade de estender a possibilidade de
conciliação a causas não abrangidas pelas competências fixadas no art. 3º, daquele mesmo diploma legal,
está ínsita a idéia de que os Juizados Especiais Cíveis não poderão ser palco de questões envolvendo
direitos indisponíveis, devendo tais controvérsias serem solucionadas pela Justiça comum: “Para que
possa haver conciliação entre as partes é necessário que se trate de interesse jurídico-substancial
disponível e por isso, tal como ocorre na conciliação que se procura no processo civil comum, ela só se
admite ‘quando a causa versar sobre direitos disponíveis’ (CPC, art. 331). Como é só nessas hipóteses que
poderá haver as concessões que caracterizam a transação (CC, art. 1.035), segue-se que fora delas a
conciliação é inadmissível e, conseqüentemente, o legislador estadual não poderá levar tão longe a
faculdade que lhe confere o art. 58 da Lei das Pequenas Causas” (DINAMARCO, Cândido Rangel.
Manual dos Juizados Cíveis. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p. 68).
335
Por definição, contravenção penal é aquela infração de tão pouca monta que sequer pode ser
considerada como crime ou delito propriamente. Não há, portanto, diferença substancial entre crime e
contravenção, podendo-se dizer, juntamente com Heleno Cláudio Fragoso, que “esta constitui apenas a
infração penal de menor gravidade, caracterizando-se pela pena cominada ao fato” (FRAGOSO, Heleno
Cláudio. Lições de direito penal, a nova parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 141).
139

Desta forma, não tendo a Constituição da República restringido as hipóteses de


conciliação nos Juizados Especiais Criminais, não poderia o legislador
infraconstitucional fazê-lo, sob pena de afrontar o próprio texto constitucional.
Através da regra contida em seu art. 98, I, a Constituição da República abriu as
portas do sistema jurídico-penal brasileiro ao modelo consensual. No entanto, nem tudo
o que está ali expresso corresponde necessariamente a este mesmo modelo, e foi
exatamente por isso que o legislador constituinte optou por lançar mão de termos
diversos para designar os diferentes institutos da conciliação e da transação.
Como já dito anteriormente, ao tratar da conciliação, a Constituição da
República não deixa qualquer espaço interpretativo para o legislador ordinário, de modo
que sempre caberá conciliação nas hipóteses de infrações de menor potencial ofensivo
levadas a conhecimento dos Juizados Especiais Criminais. Por outro lado, ao dispor
sobre a transação, expressamente condicionou o legislador constituinte sua aplicação às
hipóteses previstas em lei formal, ou seja, submeteu a aplicação daquele instituto ao
princípio da reserva legal.
E nem poderia ser diferente. Conforme posteriormente regulamentado pelo
legislador ordinário, a transação penal importa em aplicação de pena (criminal)
restritiva de direitos ou multa (art. 76, da Lei nº 9.099/ 95), sendo imperativo, por força
do disposto no art. 5º, XXXIX, da própria Constituição da República, que sua
imposição pelo Estado esteja previamente prevista em lei formal.
Diante da clareza normativa e do inegável caráter aflitivo da sanção imposta —
ainda que precedida por desproporcional negociação336 —, não há como deixar de
enxergar a transação penal como verdadeira sanção criminal e, por conseguinte, a
decisão que homologa o “acordo” firmado entre o Ministério Público e o suposto autor
do fato como sentença condenatória.
E se assim é, importa reconhecer que já não estamos mais (ultrapassada a
possibilidade de conciliação) seguindo o modelo consensual próprio da justiça criminal
restaurativa, mas sim, de novo, inserto no vetusto ideal punitivo da justiça criminal
retributiva. A partir desse ponto, ao invés de buscar medidas alternativas ao direito
penal, conseguiu o legislador mais uma vez ampliar o espectro de incidência do poder

336
Negociação que é sempre formulada, “no dizer de Mario Cattaneo, entre quem tem ‘a faca e o queijo
na mão’ (a acusação) e quem substancialmente teme uma chantagem (o réu). Decerto, a ‘chantagem’
claramente surge nas ameaças, para quem se nega a negociar, de um tratamento mais rigoroso, de uma
pena mais severa, do risco de um cálculo errado, do estrépito que se anuncia avir do processo
regularmente desenvolvido até o julgamento” (KARAM, Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais: a
concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Editora RT, 2004. p. 39).
140

punitivo, distanciando-se dos ideais iluministas de intervenção mínima e ultima ratio e


aderindo integralmente ao paradigma capitalista de maior efetividade com economia de
meios337.

337
É o que nota, com percuciência, Maria Lúcia Karam, que se nega a engrossar as fileiras daqueles que
se entusiasmaram com o pseudo caráter libertário da nova lei: “O procedimento abreviado, visando obter
a definição antecipada do processo com a consentida submissão à pena, vem atender a esta economia,
permitindo que o agigantado sistema penal melhor distribua seus recursos disponíveis para o fim de
responder às exigências de sua expansão: mais penas se impõem – já que eliminada a resistência do réu
que poderia resultar na absolvição – e de forma mais econômica, sem gasto de tempo e de atividades que
seria consumido pelo curso normal do processo. No Brasil, não muito tempo depois da criação dos
juizados especiais criminais, já se percebia esta ‘economia’ funcional ao agigantamento do sistema
penal. Em matéria publicada na imprensa em 1997, registrava-se que a criação dos juizados especiais
criminais havia aumentado significativamente a imposição de penas alternativas no país, mas não
implicara redução da população carcerária. Um dos entrevistados, embora entusiasta do suposto caráter
liberalizante da Lei 9.099/95, reconhecia que as punições haviam aumentado sobre uma população de
infratores, que antes não recebia punição efetiva. Era a constatação, no Brasil, no pouco tempo de
aplicação da então nova lei, do que Pavarini menciona como ‘ampliação da rede do controle penal, para
inclusão na área da criminalização secundária do que, de fato, antes lhe escapava” (KARAM, Maria
Lúcia. Juizados Especiais Criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Editora
RT, 2004. p. 38).
141

CONCLUSÃO

Ao encerrar o presente livro, sentimos a obrigação de dizer que não temos (nem
nunca tivemos) qualquer pretensão de apresentar conclusões definitivas sobre tema tão
intrincado e amplo.
Conforme visto ao longo do texto, inúmeros e importantes foram os pensadores
que no curso da história se debruçaram sobre o problema da (des)legitimação do poder
punitivo estatal, de modo que seria por demais leviano acreditar que, ao final de um par
de anos e pouco mais de cem páginas escritas, tivéssemos alcançado a verdade sobre o
assunto. Até porque — e ao menos esta lição levaremos da empreitada realizada — não
existe verdade absoluta, mas apenas verdades construídas pelos próprios homens, a
partir dos valores por eles compartilhados. Nesse sentido, tentamos deixar claro no texto
que os valores que parecem fundamentais para a construção de uma vida solidária são
aqueles relacionados à dignidade da pessoa humana, os quais devem ser buscados
sempre, ainda que isso importe na renúncia a instrumentos pretensamente milagrosos,
que prometem vida melhor a todos ao custo de um “pequeno sofrimento” para alguns
“diferentes”.
Como já dito na introdução, o tema escolhido para a análise é um problema
filosófico, um problema fundamental do direito, que, exatamente por isso, não admite
respostas prontas e acabadas. Por mais avançado que possa parecer o estágio da técnica
em determinado momento, a indagação sobre os fundamentos de legitimidade do poder
punitivo terá sempre pertinência; e foi exatamente isso que nos motivou a enfrentar o
desafio proposto.
Por tudo o que foi dito, as assertivas abaixo relacionadas, menos do que
conclusões propriamente, são apenas singelas tentativas de contribuir, de alguma forma,
para perpetuação do debate.
1. O direito, como toda e qualquer forma de expressão do poder estatal, só se
legitima a partir de critérios de avaliação externos à lei, sejam eles apenas de natureza
ético-moral, ou também de natureza fática, quando os valores adotados assim o
exigirem.
2. O direito penal e o poder punitivo estatal são conceitos distintos, um
representando a intervenção racional por parte do Estado, na tentativa de conter o uso da
142

violência como paliativo para a solução de conflitos intersubjetivos, e o outro


representando a própria intervenção violenta em si.
3. A análise dos critérios de avaliação externos à lei que permitem verificar a
legitimidade, ou não, do poder punitivo e do direito penal devem recair sobre dois
institutos centrais da teoria geral do direito penal: a doutrina da pena e a teoria do bem
jurídico.
4. As várias doutrinas da pena e teorias do bem jurídico por meio das quais se
buscou fundamentar o exercício do poder punitivo ao longo da história moderna, ora se
aproximaram de valores relacionados à pessoa humana, ora se distanciaram desses
objetivos, podendo-se perceber, de maneira geral, que à medida em que se foi
fortalecendo o poder central, mais se afastava a vítima da busca por uma solução
conciliatória para o conflito intersubjetivo.
5. A cada período de estabilização de determinada classe social no poder
correspondeu a elaboração de uma teoria organicista de Estado, sempre na tentativa de
tornar inquestionável a supremacia deste em relação aos indivíduos. Assim, durante o
Antigo Regime, o poder punitivo monopolizado pelo Estado absoluto era naturalizado
em nome da ascendência divina do soberano, enquanto que no Estado Moderno a
atuação repressiva estatal foi elevada à categoria de verdade indiscutível por meio do
discurso científico positivista. Atualmente, nas barras de um neo-liberalismo
globalizado, é o ânimo indomável do mercado financeiro internacional que começa a ser
apresentado como fundamento inabalável de toda e qualquer política governamental.
6. A mudança de paradigmas científicos ocorrida com a passagem ao pós-
modernismo trouxe nova exigência de legitimação do poder punitivo, eis que as
verdades absolutas apresentadas pelo método científico positivista já não serviam mais
para convencer um investigador ciente de suas limitações cognitivas.
7. No campo político, os direitos humanos são hoje objeto de consenso entre
liberais, comunitários e críticos-deliberativos, que identificam nessas normas/ valores o
fundamento de legitimidade do Estado e de todas as suas formas de manifestação.
8. Sendo o poder punitivo e o direito penal manifestações estatais, eles só
poderão ser considerados legítimos se o fundamento de seu exercício estiver de acordo
com os valores relacionados ao princípio da dignidade da pessoa humana, o que permite
rejeitar, de pronto, todas as doutrinas absolutas da pena, assim como as teorias do bem
jurídico que o equiparam a um mero dever, e não a algum bem ou valor fundamental
relacionado ao indivíduo.
143

9. As doutrinas relativas da pena, por sua vez, além das críticas formuladas sobre
a incompatibilidade entre os meios preventivos empregados e o fim último da dignidade
da pessoa humana, são obrigadas a conviver também com a exigência de demonstração
empírica da idoneidade de suas funções manifestas, que devem sempre superar em
benefícios as funções latentes, sob pena de não satisfazerem o princípio da
proporcionalidade entre a prevenção e a retribuição.
10. Já desde um ponto de vista puramente axiológico é possível sustentar-se que
a plena concretização do programa humanitário desenhado pelos direitos fundamentais é
incompatível com uma doutrina da pena que coloque o poder punitivo como
instrumento imprescindível do Estado, ainda que condicionado ao princípio da
intervenção mínima.
11. Analisada a questão da legitimação/ deslegitimação do poder punitivo a
partir das conclusões obtidas pelas pesquisas empíricas realizadas pelos criminólogos da
reação social é possível afirmar que as propostas abolicionistas (em suas diversas
vertentes), ao contrário de estarem dissociadas da realidade, são as únicas que levam a
sério os custos inequívocos de um modelo repressivo seletivo e ineficiente.
12. Dentre todas as doutrinas negativas da pena, entendemos que aquela
defendida por Zaffaroni é a que apresenta maior capacidade de realização prática
imediata, permitindo a paulatina expansão do modelo conciliatório imposto pela ética
dos direitos fundamentais e a conseqüente redução do modelo punitivo que já
acompanha a humanidade por vários séculos.
13. Seguindo a idéia central do modelo proposto por Zaffaroni, propomos uma
nova maneira de fundamentar a legitimidade de um direito penal limitador do poder
punitivo, reconhecendo em vários dispositivos da Constituição de 1988 um programa
axiológico de expansão do modelo de “justiça criminal restaurativa”, em detrimento do
violento modelo de “justiça criminal retributiva”.
14. Os Juizados Especiais Criminais, nesse sentido, só podem ser considerados
porta de entrada para o modelo restaurativo no Brasil se respeitada a sistemática
principiológica constitucional e não as regras ampliadoras do poder punitivo, tais como
previstas na Lei n° 9.099/ 95.
Por fim, retornando ao ponto de partida e à nossa indagação inicial, concluímos
que se, por um lado, o poder punitivo não encontra fundamento de validade externo ao
ordenamento jurídico e, portanto, não pode ser considerado legítimo, por outro lado, o
144

direito penal não deixa de exercer importante papel no controle da violência irracional
exercida pelo Estado.
Visto dessa forma, como limitação ao poder punitivo, podemos dizer que o
direito penal satisfaz as duas exigências para de justificação externa a que
condicionamos a análise da legitimidade, ou não, do ordenamento jurídico (vide item
1.1, supra). Num primeiro momento, pode-se dizer que o instrumento jurídico que se
preste a limitar a inflição de dor a uma pessoa (ainda que tachada de criminosa) está em
conformidade com os direitos fundamentais e, portanto, amparado nos valores éticos
compartilhados por nossa sociedade e positivados na forma de princípios na
Constituição da República e nos Tratados Internacionais. Em seguida, verifica-se que
esse instrumento, de fato, pode realizar as funções a que se propõe, pois a simples não
aplicação de pena uma pessoa que seja já é suficiente para demonstrar que o sofrimento
foi limitado.
145

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