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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

JÚLIO DE MESQUITA FILHO


INSTITUTO DE ARTES

MARCOS FRANCISCO NERY FERREIRA

A metáfora do Bogatyr:
O corpo acrobata e a cena russa do início do século XX

São Paulo
2011
2

MARCOS FRANCISCO NERY FERREIRA

A metáfora do Bogatyr:
O corpo acrobata e a cena russa no início do século XX

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes do Instituto de Artes da
Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho como requisito para obtenção
do título de Mestre em Artes.
Área de Concentração: Artes Cênicas

Orientador: Prof. Dr. Mario Fernando


Bolognesi
Coorientadora: Profa. Dra. Maria Thais Lima
Santos

Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do


Estado de São Paulo (FAPESP)

São Paulo
2011
3

Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de


Artes da UNESP

(Fabiana Colares CRB 8/7779)

Ferreira, Marcos Francisco Nery


F383m A metáfora do bogatyr : o corpo acrobata e a cena russa no
início do século XX / Marcos Francisco Nery Ferreira. - São Paulo :
[s.n.], 2011.
182 f.

Bibliografia
Orientador: Prof. Dr. Mário Fernando Bolognesi
Coorientadora: Maria Thais Lima Santos
Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual
Paulista, Instituto de Artes.

1. Circo. 2. Teatro – Rússia. I. Meierhold, Vsévolod E . II.


Maiakóvski, Vladimir. III. Bolognesi, Mario Fernando. IV. Santos,
Maria Thais Lima. V. Universidade Estadual Paulista, Instituto de
Artes. VI. Título

CDD – 792
4

MARCOS FRANCISCO NERY FERREIRA

A metáfora do Bogatyr:
O corpo acrobata e a cena russa no início do século XX

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes


da Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Artes.
Área de Concentração: Artes Cênicas

Aprovado em 14 de junho de 2011.

Banca Examinadora

Prof. Mario Fernando Bolognesi – Orientador


Doutor em Artes pela Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

Profa. Ângela de Castro Reis


Doutora em Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Universidade Federal da Bahia

Profa. Lúcia Regina Vieira Romano


Doutora em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho
5

À Mônica Garrido, minha mãe, por tudo.


6

AGRADECIMENTOS

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo apoio oferecido a
este projeto durante o período de 2010 e 2011.

Ao querido Mario Fernando Bolognesi, por me trazer a São Paulo, por toda a confiança,
disponibilidade, parceria circense e pela belíssima orientação.

À Maria Thais, pelo nosso encontro, pela imprescindível (co)orientação, pela nossa parceria, e
por compartilhar comigo a paixão por Meierhold. Durante esta pesquisa, ela ocupou o lugar
de mestra.

À minha musa, amiga e parceira Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de Memória do


Circo, por me receber em São Paulo com tanto carinho e amor. A ela devo grande parte de
minhas conquistas paulistanas.

Aos amigos queridos Ângela de Castro Reis e Daniel Marques da Silva, professores da
Universidade Federal da Bahia, responsáveis por minha formação artística.

À circense doutora Ermínia Silva, que me possibilitou importantes momentos de reflexão


intelectual sobre o circo.

À professora Dra. Eliene Benício, pelas discussões sobre o circo e pela generosidade ao
disponibilizar informações e material de consulta que enriqueceram esta pesquisa.

À minha conterrânea Marina Sarno, que conheci em São Paulo e que imediatamente me deu
acolhida. Ela teve uma grande importância nesse período, acompanhando a minha trajetória,
conversando sobre arte e estando sempre disposta a ajudar, ouvir e rir.

A Arthur Iraçu, Ênio Freitas, Evandro Passos, Ricardo Ribeiro e Luiza Christov, meu clã da
Unesp. Nós confirmamos a hipótese de que a mesa de bar ainda é o melhor lugar para
discussões acadêmicas. E muito especialmente a Thais Carvalho Hércules, irmã paulistana,
com quem pude compartilhar diversos momentos de alegria, angústia e “prazer”.

À equipe da peça Mistério-Bufo do Rio de Janeiro, pela recepção, pelo carinho e pela
oportunidade de acompanhar diariamente o processo de criação do espetáculo, inspirando-me
momentos de grandes reflexões sobre o trabalho artístico. Especialmente aos atores Raquel
Karro, Thierry Tremouroux e Carolina Virgüez; e à dramaturga Rosyane Trotta, parceira de
todos os momentos durante este período, pelos grandiosos debates sobre teatro e pela tradução
de um dos textos anexo.

À Gabriela Itocazzo e Roberto Mallet pela ajuda nas traduções dos textos de Meierhold; à
Nilce Xavier pela revisão de texto; e à Nadine Camacho, pela tradução do resumo para a
língua inglesa.

À “família Garrido” que me deu régua e compasso. Obrigado a Miguel, Gabriel, Lili (em
memória), Alda, Cristina, Adriana, Andréa e a Pat, que me ensinou a dar minha primeira
estrela na acrobacia.
7

À Greice Gobbi, fisioterapeuta, e a Akira Sato, quiropraxista, por suas mãos de santo.
Agradeço a generosidade com que me receberam e por toda ajuda na minha recuperação.

À Clarisse Zarvos, atriz e parceira carioca, que me transformou enquanto artista.

À Natália Siufi, amiga muito querida, pela disponibilidade em me ajudar sempre que precisei
desde que cheguei a São Paulo.

Aos amigos e mestres da Escola Nacional de Circo, Rio de Janeiro, por compartilharem
comigo os seus preciosos saberes sobre circo, arte e vida.

Aos colegas do Centro de Formação Profissional em Artes Circenses (CEFAC), que


estimularam minhas reflexões teóricas através do treinamento acrobático. Especialmente a
Angel Andricain, Yanet Batista, Rodrigo Matheus, Erica Stoppel, Carlos Sugawara, Ana
Maíra Favacho e Maíra Onaga.

E muito, muito especialmente a Celso Sim, que canta Maiakóvski e foi minha grande
inspiração e baluarte durante esse percurso de pesquisa e arte.

Este trabalho é resultado da colaboração de amigos, amores, família, professores, alunos e


parceiros artísticos que estiveram comigo na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Axé para todos!


8

No chão, sim, é que tropeças.


Jean Genet
9

RESUMO

O objetivo desta pesquisa é abordar as potencialidades cênicas do corpo acrobata durante o

início do século XX na Rússia. Para tanto, foram adotadas como referência as

experimentações cênicas do encenador e pedagogo Vsévolod Emilievitch Meierhold,

consolidadas nas duas encenações de Mistério-Bufo (1918 e 1921), dramaturgia de Vladímir

Maiakóvski. No primeiro capítulo, O pensamento russo e o desejo do corpo acrobata: final

do século XIX e início do XX, o intuito é contextualizar e fundamentar a aproximação das

artes circenses e teatrais na Rússia em tal período. O capítulo aborda o pensamento russo e o

ideal de “novo homem”, que encontrou sua expressão nas artes e na literatura. As atividades

de Meierhold e Maiakóvski estão atreladas a essa conjuntura. No segundo capítulo, O corpo

acrobata na pedagogia de V. E. Meierhold, o objetivo é abordar o trabalho pedagógico

meierholdiano nos anos que antecederam a Revolução de 1917, sob a ótica do processo de

“cirquização” do teatro. A obra de Meierhold apresenta um vasto material de investigação

sobre o assunto e engendra não só transformações no espetáculo teatral como influencia

diversos grupos e artistas do período. Por fim, no terceiro capítulo, A “cirquização” do

teatro: Mistério-Bufo (1918 e 1921), de Meierhold-Maiakóvski, procurou-se analisar a

condição do corpo acrobata na obra e nas encenações. Detecta-se nos espetáculos princípios e

procedimentos experimentados por Meierhold nos anos pré-revolucionários, bem como a

apropriação e utilização de elementos circenses. Este trabalho revela que, na Rússia, grande

parte dos artistas e intelectuais se voltou para as atividades circenses no início do século XX,

já que nesse momento havia o desejo do “novo homem”, o herói eslavo harmônico e belo. A

destreza, o vigor e a audácia do acrobata casa perfeitamente com tal ideia e, não por acaso, os

procedimentos acrobáticos influenciam a cena russa nesse período.


10

Palavras-chave: Circo. Teatro Russo. Vsévolod E. Meierhold. Vladímir Maiakóvski.

Mistério-Bufo.
11

ABSTRACT

The scope of this work is to discuss the acrobatic body‟s scenic potentialities during the

beginning of the 20th century in Russia. To this end, it was adopted as a reference the scenic

experimentations from the theater director and educator Vsevolod Emilievitch Meyerhold,

which are consolidated in both staging of Mistery-Bouffe (1918 and 1921), dramaturgy of

Vladimir Mayakovsky. In the first chapter, The Russian thought and the desire of the

acrobatic body: end of 19th century and beginning of 20th century, the purpose is to

contextualize and base the approach of the circus and theater arts in Russia in the mentioned

period. The chapter addresses the Russian thought and the “new man” ideal, which has found

its expression in the arts and literature. The activities of Meyerhold and Mayakovsky are

coupled to this conjuncture. The second chapter, The acrobatic body in the pedagogy of V.

E. Meyerhold, the purpose is to address the meyerholdian pedagogical work during the years

that precede the Russian Revolution of 1917, from the perspective of the “circus-becoming”

theater. Meyerhold‟s play shows a vast material of research about the subject and engenders,

not only transformations in the theatrical play, but it also influences various groups and artists

from that age. Finally, in the third chapter, The “cirquization” of the theater: Mystery-

Bouffe (1918 and 1921), of Meyerhold-Mayakovsky, it was attempted to analyze the

acrobatic body condition in the play and staging. There are in the plays principles and

procedures already experimented by Meyerhold during the pre-Revolutionary years, as well

as the ownership and usage of circus elements. This work reveals that in Russia, the majority

of artists and the intelligentsia were focused on the circus activities in the beginning of the

20th century, since in that moment there was the desire of a “new man”, the harmonic and

attractive Slav hero. The acrobatic dexterity, strength and audacity match perfectly with this

idea and, not by chance, the acrobatic procedures influence the Russian scene in that period.
12

Keywords: Circus. Russian Theatre. Vsevolod E. Meyerhold. Vladimir Mayakovsky.

Mistery-Bouffe.
13

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Saltando de uma barra horizontal, fotografado por Aleksandr

Rodchenko..................................................................................................................................8

Figura 2 Ilya Muromets, obra de Viktor Vasnetsov, 1914 ..............................................16

Figura 3 Bogatyrs, obra de Viktor Vasnetsov, pintada em 1898. Da esquerda para

direita: Dobryna Nikitch, Ilya Muromets e Alyosha Popovich ...............................................22

Figura 4 The Mower, obra de Kazimir Malévich, 1914 ................................................. 27

Figura 5 Viatcheslav Ivánov, por Konstantin Somov, 1906 .......................................... 34

Figura 6 Vladímir Maiakóvski e o seu traje futurista na década de 1910 ...................... 44

Figura 7 O cubo-futurista David Burliuk de rosto pintado ............................................ 44

Figura 8 Vladímir Maiakóvski, 1918 ............................................................................. 51

Figura 9 Anatolii Durov, o pai ....................................................................................... 62

Figura 10 Vsévolod E. Meierhold, em figurino de Pierrot de A Barraca de Feira. Retrato

de N. Ulianov, 1908-1908 ....................................................................................................... 70


14

Figura 11 Vsévolod E. Meierhold, 1905 .......................................................................... 73

Figura 12 O encenador Vsévolod E. Meierhold e seu pseudônimo Dr. Dappertutto. Obra

de Boris Grigoriev, 1916 ......................................................................................................... 81

Figura 13 Cartaz de Vladímir Maiakóvski para o espetáculo Mistério-Bufo, 1918 ...... 111

Figura 14 Cartaz anunciando as apresentações do espetáculo Mistério-Bufo em 1918,

direção de V. E. Meierhold ................................................................................................... 134

Figura 15 Desenho de V. Maiakóvski para o figurino dos “Puros”. Espetáculo Mistério-

Bufo, 1918, direção de V. E. Meierhold ................................................................................ 137

Figura 16 Desenho de V. Maiakóvski para o figurino dos “Impuros”. Espetáculo

Mistério-Bufo, 1918, direção de V. E. Meierhold ................................................................. 137

Figura 17 Cenário de Anton Lavinsky para a segunda versão do espetáculo Mistério-

Bufo, 1921, direção de V. E. Meierhold ................................................................................ 142

Figura 18 Figurinos desenhados por V. Kissielióv para a segunda versão do espetáculo

Mistério-Bufo, 1921, direção de V. E. Meierhold ................................................................. 143

Figura 19 Desenho do palhaço acrobata Vitáli Lazárienko na década de 1920 ............ 146

Figura 20 Circo, de Aleksandr Shevchenko, 1913 ........................................................ 157


15

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................16

1. O PENSAMENTO RUSSO E O DESEJO DO CORPO ACROBATA: FINAL DO

SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX................................................................................... 27

1.1. A ambição dos simbolistas russos .............................................................................. 32

1.2. A bofetada dos cubo-futuristas no gosto do público .................................................. 42

1.3. À imagem e semelhança do homem russo: o acrobata ............................................... 59

2. O CORPO ACROBATA NA PEDAGOGIA DE V. E. MEIERHOLD ................ 70

2.1. Apontamentos sobre as experiências pedagógicas do Dr. Dapertutto ........................ 79

2.2. O treinamento do ator no Estúdio de Meierhold ......................................................... 88

2.3. Viva o malabarista! (1917) ........................................................................................ 103

3. A “CIRQUIZAÇÃO” DO TEATRO: MISTÉRIO-BUFO (1918 E 1921), DE

MEIERHOLD-MAIAKÓVSKI ............................................................................. 111

3.1. Novos rumos a partir de 1917 na Rússia ................................................................... 115

3.2. Na cena revolucionária: Mistério-Bufo (1918 e 1921) .............................................. 130

3.3. O desvendamento do Bogatyr ................................................................................... 148

4. CONCLUSÃO ......................................................................................................... 157

5. BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 163

6. ANEXOS ................................................................................................................. 169


16

INTRODUÇÃO

iiiiiiiiii!!!
Piolim
17

“Eu não confio em um acrobata intelectual!”.

Com estas palavras, ainda recém-chegado à cidade de São Paulo em 2009, fui recebido

por Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de Memória do Circo. Situado na Galeria

Olido, em frente ao Largo Paissandú, esse espaço tão desejado por alguns pesquisadores e

artistas circenses preparava-se para abrigar inicialmente o acervo de dois importantes circos

brasileiros: Nerino e Garcia, quando o conheci. No ano de 2010, após sua inauguração, o

Centro de Memória do Circo afirma-se como um espaço de grande importância em prol da

preservação da tradição circense no Brasil por possuir exposições relevantes, promover

palestras, debates, cursos, além de incentivar a pesquisa e apoiar artistas, trupes e grupos.

Parafraseando a expressão “acrobata intelectual” de Tamaoki, não é comum entre os

artistas circenses brasileiros a reflexão teórica sobre sua prática. Um olhar menos atento

chamaria de desinteresse, condenaria a ignorância de tais artistas e classificaria o circo, como

acontece muitas vezes, como uma atividade “menor” no universo dos espetáculos. Por um

lado, trata-se realmente de uma verdadeira falta de consciência do valor que esses sujeitos

possuem sobre suas próprias histórias; por outro, a arte do picadeiro é um saber que foi

desenvolvido de forma empírica durante anos e sua aprendizagem acontece de forma

processual, a partir de uma disciplina rígida. O treinamento implica a construção de uma

corporeidade específica por meio da repetição e prática diária de exercícios. Este último

aspecto, em especial, reflete a grande dificuldade deste pesquisador, que enfrenta o desafio de

conciliar as atividades acrobáticas e cênicas com o rigor de uma investigação acadêmica

acerca dos seus procedimentos de expressão.

Exponho outra dificuldade com a interjeição do Palhaço Piolim, usada como epígrafe

desta introdução, que reflete a sua angústia diante da responsabilidade que assumiu para

escrever uma crônica de circo. No meu caso, aproprio-me da expressão piolinesca para

declarar meus apuros ao assumir uma pesquisa acadêmica e escrever uma dissertação de
18

mestrado. Eu, que recentemente terminara uma universidade de teatro sem escrever sequer um

trabalho de conclusão de curso, e investido exaustivamente no meu aprimoramento enquanto

artista circense.

Cabe ressaltar aqui que o treinamento acrobático exige um grau de dedicação elevado

para a conquista da execução precisa de movimentos. O tempo que se presta aos ensaios está

intimamente ligado ao desempenho, ou seja, quanto maior o investimento, muito maior a

probabilidade de uma qualidade técnica melhor das atividades. O fato é que não existe uma

forma ponderada de se tornar acrobata, pois para a obtenção de um nível adequado e seguro é

imprescindível o domínio do corpo, conquista que se processa em uma rotina diária de treino

e preparo físico.

De antemão, portanto, este trabalho é fruto de uma inquietação. O desejo de apropriar-

me da linguagem do circo resultou em uma itinerância típica dos artistas circenses, que

percorrem diversas cidades, buscando estratégias de sobrevivência, tanto de si quanto de sua

arte.

Durante minha formação acadêmica, no curso de Interpretação Teatral da Universidade

Federal da Bahia, foram poucos os conteúdos vistos que contemplavam determinados

aspectos que, aos meus olhos, eram imprescindíveis para a formação corporal do ator. No

entanto, ao entrar por debaixo da lona e me colocar em contato com o universo do picadeiro

pude, logo, perceber um tipo de espetáculo que afirma o corpo por meio da beleza, força e

rigor. Ansiava desde então construir um corpo acrobata e, para isso, não tive escolha a não ser

“fugir” com o circo. Assim, nos anos da Escola de Teatro conciliava a formação de ator com a

de circense na Escola Picolino de Artes do Circo, em Salvador, investindo em acrobacias,

equilíbrios, malabares e aéreos. Contudo, na excitação para consolidar uma formação mais

sólida em uma modalidade específica, deixei a Bahia, dois meses após o espetáculo de

formatura da UFBA, e fui morar no Rio de Janeiro para cursar o nível técnico em artes
19

circenses na Escola Nacional de Circo (ENC). Isso somente foi possível após ser aprovado

nos exames de seleção que realizei paralelamente aos ensaios no último semestre da

universidade. Na ENC, deparei-me com o cotidiano da lona e conheci verdadeiros “mestres”:

os professores.

Tais pedagogos, a maior parte de idade já bastante avançada, são portadores do “notório

saber”1 e, em sua totalidade, membros de famílias nomeadas “tradicionais”, sem formação

vinculada a instituições formais. Eles se comportam como a memória e a história do circo

brasileiro e, assim sendo, não hesitam em relatar os fatos de suas vidas, famílias, as relações

entre circenses, o trabalho no picadeiro, seus sonhos e desejos. São tratados com admiração e

respeito pelos alunos, transmitindo os seus saberes de forma exclusivamente oral e prática,

conforme aprenderam dentro da estrutura familiar circense, na qual a técnica é passada de pai

para filho. Se eles merecem o título de “tradicionais” é exatamente por isso, por sua estrutura

de transmissão do conhecimento, e dessa maneira a Escola Nacional de Circo limita-se ao

aprendizado puramente técnico. Os professores reproduzem o que seus pais lhe ensinaram,

isto é, um repertório de técnicas.

Em constante e permanente reinvenção, a arte circense difunde-se, interfere e aglutina-

se às formas cênicas contemporâneas. A inclinação atual para o novo, a utilização de um

arsenal tecnológico no palco, a busca por linguagens híbridas e a espetacularização das obras

dão suporte a esse investimento e a esse mecanismo de apropriação das atividades do

picadeiro, de modo que diversos artistas de outras áreas vão buscar no circo uma formação

complementar para sua prática, enriquecendo suas habilidades. Para todos os efeitos, se a

princípio eu poderia almejar o treinamento circense apenas como possibilidade de ampliar o

meu vocabulário corporal, isto rapidamente foi convertido para o anseio de consolidar e

encarnar as proezas de um corpo acrobata e fazer-me um trapezista.

1
Notório Saber, expressão utilizada pelas universidades brasileiras para qualificar o professor que não
possui título de doutor, mas possui conhecimento equivalente.
20

Para seguir o aperfeiçoamento enquanto acrobata aéreo e conectá-lo às minhas

experiências com teatro e dança, percebi a importância da reflexão teórica sobre os

procedimentos de expressão cênica do intérprete. Por já conhecer os terrenos acadêmicos, o

retorno à universidade era a alternativa mais estável para o desenvolvimento da pesquisa

pretendida. O lugar onde acreditava que poderia ampliar meu repertório enquanto intérprete

era São Paulo e, por esse motivo, ingressei no Programa de pós-graduação em Artes da

Universidade Estadual Paulista (UNESP), espaço onde encontrei apoio e pude aprofundar as

questões do circo.

A acrobacia caracteriza-se pela coexistência de três fatores relevantes: destreza física,

beleza e risco. Ao se contrapor às ações cotidianas, a sua execução gera no espectador uma

percepção por meio dos sentidos. No circo, o corpo é a matriz do espetáculo, seja no campo

do sublime, no caso dos acrobatas, ou do grotesco, explícito no tipo do palhaço. Neste, a

comicidade física está fundamentada no diálogo entre a interpretação e as proezas acrobáticas,

apoiando-se no jogo de improviso baseado em elementos prévios como o roteiro de entradas,

por exemplo, que indica uma série de situações cômicas que têm como eixo a fala ou a ação

corporal. Ele é uma figura de importância durante o espetáculo circense, “[...] o corpo do

palhaço é disforme, permeado de trejeitos, e busca a ênfase no ridículo, através da exploração

dos limites, deficiências e aberrações.”2 Ele está em oposição à experiência sensorial

produzida pelos acrobatas e, portanto, ao estimular o relaxamento no espectador, por meio do

riso, amplifica as sensações provocadas pelo número de risco.

O termo “acrobata” é proveniente do grego akrobate, ou seja, “aquele que anda na ponta

dos pés”. É o sujeito que rompe as fronteiras do próprio corpo, com agilidade e potência, e se

atreve a transcender a condição humana. Seu território é contaminado pelo risco, isto é, o jogo

do artista com uma possível morte e que ao ultrapassá-la incita a vertigem no espectador.

2
BOLOGNESI, Mário. Palhaços. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 198.
21

Neste lugar reside o corpo acrobata, que se utiliza de tal conjuntura para obter a poesia que

por séculos povoa o imaginário do homem.

Sob este prisma, a relação entre o pensamento russo e as manifestações circenses é de

fundamental importância, pois engendra transformações significativas no campo das artes.

Para esta pesquisa especificamente, há o interesse no que se refere à simbiose entre palco

teatral e picadeiro, tendo em vista a crise que as formas teatrais, no início do século XX,

atravessavam na Rússia. Em oposição à representação cunhada no domínio da palavra,

diversos diretores e encenadores recorreram ao campo da tradição popular e da teatralidade e

geraram novos paradigmas técnicos-éticos-expressivos para o intérprete. A cena exigia um

“novo ator” e uma “nova forma” para esse novo teatro. Nesse contexto, portanto, surge a

figura ímpar de Vsévolod Emilievitch Meierhold, que utilizando o pseudônimo Dr. Dapertutto

durante os anos de 1910, lançou-se em experimentações, reflexões e amadurecimento dos

fundamentos da sua prática teatral. As vozes deste diretor contribuíram significativamente

para as transformações das artes teatrais na Rússia, como também, atravessaram todo o século

XX e seguem nos dias de hoje.

No movimento de retorno à tradição russa surgem os personagens condutores desta

pesquisa: os Bogatyrs (Богатыри), heróis defensores da Rússia, retratados como figuras

fascinantes dotadas de muita força física, alguns até mesmo com energia divina, e que

lutavam contra poderes reais ou imaginários. A maioria das histórias dos Bogatyrs gira em

torno da época do príncipe Vladimir I de Kiev (958-1015) e se presume que alguns deles eram

figuras históricas, enquanto outros eram puramente fictícios, originados da mitologia pagã

eslávica. A palavra Bogatyr não é de origem russa; ela provavelmente veio do turco arcaico e

significa “guerreiro valente”. Esses homens são conhecidos como os heróis eslavos que

aparecem nos poemas épicos chamados Bylinas (былина), cujo nome procede da palavra
22

“быль”, que significa “aquilo que ocorreu de verdade”. Inicialmente, elas eram histórias

contadas oralmente e, assim, sofriam exageros quando passavam de uma pessoa para outra.

A lista de nomes dos Bogatyrs é extensa, entretanto, um de seus principais personagens

é Ilya Muromets3, que é considerado um dos maiores entre todos os heróis, dotado de poderes

excepcionais, integridade física e espiritual e que luta em defesa do território e do povo russo.

Atualmente, na Rússia, a palavra Bogatyr é bastante utilizada para nomear clubes de esportes

ou forças militares. Reconhecemos aqui que o vigor, a potência e a destreza destes heróis se

aproximam das qualidades do corpo acrobata.

3. Bogatyrs, por Viktor Vasnetsov, 1898. Na imagem: Dobryna Nikitch (esq.), Ilya Muromets (centro) e
Alyosha Popovich (dir.).

3
Ilya Muromets é um dos principais heróis épicos da Rússia junto de Dobrynya Nikitich e Aliocha
Popovich. Acredita-se que Ilya possui um protótipo real que viveu no século XII. Em certos contos, Ilya até os
33 anos aparece como portador de uma doença que o deixou paralisado, quando recebe milagrosamente uma
cura de anciãos. A versão do conto épico “Svyatogor e Ilya de Murom”, relata que Svyatogor era mestre de Ilya
e quando morreu soprou em seu aprendiz o espírito heróico e ofereceu sua espada mágica, a qual somente
pessoas muito especiais poderiam portar. Ele ganha uma força excepcional, sobre-humana, e é incumbido de
servir o príncipe Vladimir. No caminho de sua missão Ilya é avisado de que encontrará uma pedra muito pesada
que deverá deslocar para encontrar os elementos necessários para um herói: cavalo, armas e armadura. Ilya
Muromets serviu durante muito tempo o exército do Príncipe Vladimir e protegeu toda a Rússia. Algumas teorias
afirmam que este personagem foi um guerreiro que viveu no século XII, e no final de sua vida se converteu em
monge, Ilya Pechorsky, que foi beatificado como um santo menor da Igreja Ortodoxa em 1643.
23

Em minha trajetória artística o que estimulava a prática eram as possibilidades

expressivas do corpo para a cena, assim como a valorização do movimento como elemento

fundamental para o teatro, a descoberta da fisicalidade como lugar de criação, até o

surgimento da Biomecânica, exercícios cênicos como recurso pedagógico de formação para o

ator, realizados durante as pesquisas empreendidas por Meierhold, somadas à sua paixão

declarada pelo circo. Tudo isto era bastante sedutor para mim, estudante de um curso

universitário de interpretação cuja formação se baseava na eterna oposição entre o Sistema

realista-naturalista de Stanislávski e o modelo de atuação brechtiana.

A escolha do tema para esta investigação parte da intenção russa de “cirquização” 4 do

teatro, tendo em vista as possibilidades expressivas do corpo acrobata. Nesse sentido, a

relação entre prática artística e pedagógica encontrada nas experimentações pré-

revolucionárias de Meierhold, bem como a sua parceria com o poeta cubo-futurista Vladímir

Maiakóvski fundamentam esta pesquisa. Antes de tudo, além do interesse teórico, tal estudo

decorre da necessidade de uma reflexão sobre os procedimentos de composição cênica,

intrínsecos à prática artística.

Para possibilitar a compreensão da apropriação da linguagem circense, foi eleito como

objeto de estudo desta investigação o espetáculo Mistério-Bufo, dramaturgia de Maiakóvski.

Logo após a Revolução russa de 1917, sob direção de Meierhold, a primeira versão desta obra

foi apresentada no ano de 1918, com tropeços e dificuldades; em 1921, em comemoração ao

aniversário da Revolução, estreia a segunda versão em meio a protestos da intelligentsia. Essa

montagem, além de relevar os procedimentos da poética meierholdiana desenvolvida ao longo

dos anos 1910, em suas duas versões se cercou das atividades circenses como possibilidade

expressiva em relação ao jogo cênico.

4
Cf. AMIARD-CHEVREL, Claudine. La cirquisation du théâtre chez Maiakovski. In: Du cirque au
théâtre. Lausanne: L‟Âge D‟Homme, 1983, p. 103-120.
24

Para os contornos desta pesquisa, daremos atenção à Rússia da virada do século XIX

para o XX, até o ano de 19215. Tal recorte histórico não tem a pretensão de fixar e enrijecer o

fenômeno de estudo, mas aprofundar a confluência entre arte circense e teatral, pois o olhar se

refere ao fazer artístico concreto, ou seja, a apropriação do corpo acrobata no trabalho do ator

meierholdiano. Para tanto, procuramos investir no cruzamento entre as fontes literárias,

constituídas por uma bibliografia referente ao período russo estudado, e material teórico

de/sobre Meierhold-Maiakóvski.

De certa forma, estive em um lugar privilegiado no percurso da investigação. Foi de

fundamental importância o diálogo acadêmico estabelecido com os orientadores Mario

Fernando Bolognesi e Maria Thais Lima Santos. Muito além da categoria de orientador e

coorientadora, eles foram verdadeiros parceiros. A experiência teórica-prática de Mario

Bolognesi acerca da arte circense foi complementada pela perspectiva do saber-fazer teatral

de Maria Thais. Além disso, tendo contato direto com aquele país e com a tradição eslava,

Maria Thais é estudiosa do teatro russo e, em especial, das atividades de Meierhold como

encenador e pedagogo e vem atuando como diretora-pedagoga da Moscow Theatre School of

Dramatic Arts, dirigida por Anatoli Vassiliev. Ainda em relação às artes dramáticas na

Rússia, o professor Mario Bolognesi tem um vasto estudo sobre este campo, bem como sobre

a obra do cubo-futurista Vladímir Maiakóvski e o circo soviético.

A estrutura para esta dissertação foi pensada em três capítulos: O pensamento russo e o

desejo do corpo acrobata: final do século XIX e início do XX; O corpo acrobata na

pedagogia de V. E. Meierhold; A cirquização do teatro: Mistério-Bufo (1918 e 1921), de

Meierhold-Maiakóvski.

A partir do aprofundamento do fenômeno em estudo observamos que a Revolução de

1917, além de ser um marco na história da Rússia, é um divisor de águas no que diz respeito

5
A relação entre o circo e o teatro será desdobrada por outros criadores nas décadas posteriores dentro e
fora da Rússia. No teatro alemão, por exemplo, elementos do circo, do teatro de feira e do cabaré terão grande
importância na prática artística de Erwin Piscator (1893-1966) e Bertold Brecht (1898-1956).
25

às aproximações entre o circo e o teatro. Se a partir dos anos 1920 a cena teatral ganha

concretamente uma perspectiva mais acrobática, isto só é possível pelas experiências das

décadas anteriores. Assim, as atividades de Meierhold nos anos de 1910, como também a

importância do espetáculo Mistério-Bufo, em 1918 e 1921, estão imersas nesta conjuntura.

Para a construção de uma abordagem mais objetiva, optamos por um recorte sobre tal período

para contextualizar e elucidar determinadas questões referentes à pesquisa. O primeiro

capítulo, O pensamento russo e o desejo do corpo acrobata: final do século XIX e início

do XX, trata da percepção dos artistas, poetas e intelectuais russos em relação ao acrobata.

Notamos que a alusão a esta figura circense possui uma forte carga poética e se expressa

inicialmente pelo viés dos simbolistas, potencializando-se e alastrando-se, em seguida, com a

vanguarda cubo-futurista por meio do ideal de homem embutido na cultura eslava.

O segundo capítulo, O corpo acrobata na pedagogia de V. E. Meierhold, refere-se às

aproximações entre o teatro e as atividades do picadeiro no início do século XX. Dentre as

experiências realizadas destaca-se, sobremaneira, a prática do encenador e pedagogo

Vsévolod Emilievitch Meierhold nos anos 1910. A paixão deste pelo circo, a valorização do

corpo do ator, bem como do movimento expressivo para cena, em oposição à atuação realista-

naturalista e intimamente conectados com o seu tempo, são fatores que proporcionaram a

criação de uma pedagogia de formação para o “novo ator” que o “novo teatro” russo exigia. A

vocação experimental vivenciada no Estúdio da Rua Borondiskaia entre 1913 e 1916 forneceu

a Meierhold a escolha de fontes e o estabelecimento de princípios que o conduziram à

maturidade artística nas décadas posteriores e à formulação da Biomecânica, uma espécie de

treinamento para capacitar o ator revolucionário. Neste universo, observamos o desejo de

apropriação do corpo acrobata para a arte do ator em articulação a outros fenômenos que

determinaram a criação de uma polifonia teatral. A influência do circo é tão presente em suas
26

atividades que se destaca o texto escrito pelo mesmo, e que serviu de base para estudos: Viva

o malabarista! (1917).

O capítulo três, A “cirquização” do teatro: Mistério-Bufo (1918 e 1921), de

Meierhold-Maiakóvski, propõe uma abordagem sobre a montagem dirigida por Vsévolod

Meierhold e texto de Vladímir Maiakóvski. A parceria entre o encenador e o poeta russo

resultou em duas versões desta obra; a primeira ocorreu no ano de 1918 e a segunda em 1921.

Influenciado particularmente pelo Balagan, teatro de feira russo, e pelo circo, Maiakóvski

escreve esta comédia versificada em alusão à Revolução de 1917 na Rússia. É um espetáculo-

chave para o ambiente no qual foi encenado, um grito revolucionário em prol do operário e à

utopia do mundo futuro. Reconhecemos nessa obra a polifonia na arte do ator a partir das

investigações meierholdianas experimentadas nos anos de 1910.

Por meio desta pesquisa foi possível detectar a maneira como o teatro russo se apropriou

da imagem do acrobata nas primeiras décadas do século XX. E, principalmente, foi possível

reconhecer que tal perspectiva provocou profundas alterações no espetáculo, repercutindo

ainda na cena contemporânea.


27

CAPÍTULO I

O pensamento russo e o desejo do corpo acrobata: final do século XIX


e início do XX.

Amo o circo e seus artistas,


estes homens que serenamente arriscam sua vida a cada dia.
Máximo Gorki
28

O polonês Walicki6, responsável por valiosos estudos sobre a cultura na Rússia, afirma

que, naquele país, o pensamento teria sido edificado por meio de uma singular fertilização de

influências e ideias. Ele considera que os fatores que auxiliaram na construção da cultura

russa, em contraste com a história dos países europeus, foram: a rápida modernização de uma

grande nação comprimida num curto período de tempo; a curiosa coexistência de elementos

arcaicos e modernos na estrutura social e no modo de pensar; o rápido influxo de influências

externas e a resistência a elas; o impacto na elite intelectual das realidades sociais e das ideias

da Europa ocidental, além da constante redescoberta das tradições nativas e das realidades

sociais.

No entanto, para o intelectual polonês, o “atraso” russo, segundo os moldes ocidentais,

deveria ser encarado como uma grande vantagem, na medida em que as experiências vividas

pela Europa poderiam ser apropriadas pelos russos, de modo que eles pudessem fugir

simultaneamente dos erros europeus. A Rússia, portanto, estava destinada “a resolver a

maioria dos problemas sociais, a aperfeiçoar a maioria das ideias que tinham surgido em

sociedades mais antigas”7. Dessa forma, a fé ortodoxa se impõe contra o racionalismo

excessivo da cultura ocidental, a qual provoca a ruptura da personalidade de cada sujeito.

Se cada visão de mundo se relaciona a um determinado tipo de filosofia sobre o homem

e a sociedade, segundo Walicki, não significa que ela esteja confinada às questões históricas e

sociais, mas que o raciocínio é governado pelo próprio gênero humano, refletindo algumas

formas de leis que comandam o mundo. É dessa maneira que o pensamento russo se vê no

esforço de suportar a confluência entre o conjunto de ideias vindo da Europa Ocidental, por

um lado, e da sua própria realidade e tradição nacional, por outro. A Rússia, geograficamente,

6
WALICKI, Andrezej apud FRANK, Joseph. Pensamento Russo: o caminho para a Revolução. In Pelo
prisma russo: ensaio sobre literatura e cultura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992, p. 63.
7
TCHAADÁIEV, Piotr apud FRANK, Joseph. Ibid., p. 68.
29

caracteriza-se como um país de fronteira e retrata a simbiose entre a cultura ocidental e a

oriental.

No final do século XIX floresceu “a procura por alguma definição da „singularidade‟

sociocultural da Rússia em relação à Europa”8; o ideal ortodoxo e as tradições populares

próprias do país também foram usadas contra a tutela ocidental. Contudo, no mesmo período

a Rússia vivia também uma revitalização do idealismo metafísico, que entende a realidade

como constituída ou dependente do espírito ou das ideias, e que se desenvolveu à sombra da

maré predominante do pensamento social.

Strada9 observa que a cultura russa esteve pressionada por um poder anacrônico e

corrupto, profundamente ligado aos seus privilégios e, portanto, todo o seu drama resulta de

uma consciência lúcida das contradições e dilacerações da civilização e de uma limitada

possibilidade de efetuar uma ação histórica renovadora. Um movimento de oposição

subversivo tinha profundas raízes intelectuais e remotas na tradição da intelectualidade radical

e revolucionária, e encontrava em amplas massas, a maior parte camponesa, o seu potencial

terreno de expansão posterior. Nesse sentido, para aqueles revolucionários, cuja esfera

cultural era essencialmente anticzarista, predominava o desejo de uma revolução democrática

que oferecesse a todos a possibilidade de uma vida política livre e de uma justa renovação

social.

O fato é que na virada do século XIX para o XX houve um grande desenvolvimento em

diversos campos da cultura, que foi fortalecida por ideias e personalidades modernas. Moscou

e São Petersburgo, em especial, experimentam uma época de renascimento, no qual as

atividades artísticas e literárias adquirem um caráter criativo espantoso. Por serem criadas em

“conexão tão íntima com o pensamento russo, foi também porque esse pensamento era ele

8
Ibid., p. 75.
9
STRADA, Vittorio. Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”. In: HOBSBAWN, Eric (Org.).
História Social do Marxismo: o marxismo na época da terceira internacional: a URSS da construção do
socialismo ao stalinismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 110. (v. IX)
30

mesmo tão amplamente focalizado nas preocupações políticas e socioculturais que ocupavam

todo o cidadão russo pensante”10, de modo que arte e literatura também estavam vinculadas a

uma fase de grandes dificuldades de mudança e renovação.

Como reconhece Ivanov11, a arte, nesse sentido, é o espaço cultivado para a

transformação do indivíduo e um dos mecanismos por meio do qual o Divino se manifestaria

no espaço e no tempo – as duas outras formas são a religião e a filosofia. Em tal período, ela

se caracteriza por meio da criação em liberdade de espírito e, igualmente, como forma de

expressão da sociedade; fazendo resvalar os sentidos mais intrínsecos da época em que foi

gerada. O entendimento da função utilitária da arte é substituído pelo irracionalismo

metafísico, entrelaçando-se, assim, com a “vida” do seu povo.

Houve algo de único na Rússia no início do século XX que esteve diretamente ligado,

por um lado, à rápida e ainda assim parcial modernização do final do século XIX e, por outro,

à insistência de inserção do capitalismo na sua economia, às novas fortunas individuais

acumuladas e ao patrocínio para as artes. Agrega-se também a estes fatores a abertura da

cultura tradicional às ideias modernas ocidentais e à tendência de idealização e utopia – em

oposição à ação, ao ato. Tudo isso cria condições particulares para a repercussão das

manifestações culturais, que adaptaram os modelos europeus às exigências da produção

efervescente do período. Nesse contexto de florescimento e explosão, desenvolveram-se

brilhantes proposições criativas, tão logo as recentes conquistas científicas e a renovação das

ideias artísticas procuraram respostas na filosofia e na exposição de teorias sobre a vida na

arte. Neste ambiente, surgem as gerações que cultivarão a semente de uma revolução política,

social e cultural.

10
FRANK, J. Op. cit., p. 62.
11
IVANOV, V. Duas forças no simbolismo moderno. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.; SILVA, N.
(Org.). Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 198.
31

A arte dramática não está excluída desse processo e afirma-se como “uma das formas de

expressão artística mais inovadora e mais significativa na Rússia” 12. Isso ocorre, em um

primeiro momento, por causa das transformações provocadas pela estética realista-naturalista

advindas da dramaturgia de Anton Tchékov (1860-1904) e das encenações do Teatro de Arte

de Moscou (TAM), sob a direção de Constantin Stanislávski (1863-1938). Em um segundo

momento, no limiar do século XX, a rejeição a este modelo de arte provoca o surgimento de

uma estrutura dramática inovadora e de um “novo drama”. As formas teatrais, assim,

reconhecem a crise que o teatro atravessava, “muitos diretores almejavam redescobrir um

novo teatro, a palavra de ordem era re-teatralizar o teatro”13.

Dedicadas à renovação da arte cênica, as pesquisas de Vsévolod Emilievitch Meierhold,

nascido na cidade de Penza no dia 28 de janeiro de 1874, contribuem significativamente para

as transformações de parte do teatro russo. Ele trabalhou por cinco anos como ator nas

atividades do TAM concebido por Stanislávski e por Vladímir Nemiróvitch-Dântchenko

(1858-1943), contudo, ao discordar dos princípios deles, rompe com este modelo e inicia a

busca de seus próprios caminhos, em direção oposta à do TAM. No centro de suas

preocupações está a formação do próprio ator, investindo na elaboração de paradigmas ético-

expressivos relativos a uma nova pedagogia14. Como será visto mais adiante, o contato com a

efervescente produção artística e literária do período contribui, sobremaneira, para a

constituição do que viria a ser o seu projeto teatral.

A teatralidade é o mote das pesquisas cênicas dos inovadores da arte teatral no início do

século XX na Rússia. Os artistas acreditavam que as expressões da cultura popular e a

tradição artística, especialmente a teatral, seriam as grandes fontes para reteatralizar a cena.

12
CAVALIERE, Arlete. Teatro Russo: percurso para um estudo da paródia e do grotesco. São Paulo:
Humanitas, 2009, p. 223.
13
CHAVES, Yedda Carvalho. A biomecânica como princípio constitutivo da arte do ator. 2001. Tese
(Mestrado em Artes – Artes Cênicas) Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2001, p.1.
14
Ibid.
32

Historicamente, no início do século XX, com a Revolução de 190515, quando a energia dos

trabalhadores se concentrou no intento de derrubar o regime do czar e culminou no massacre

dos manifestantes, explodiu na Rússia uma grande revolução artística. Uma parcela

significativa da classe trabalhadora empreendeu uma mobilização que atraiu a participação de

muitos artistas, de modo que a ação política e cultural do proletariado casava exatamente com

o desejo de um “novo homem”.

Nesse contexto, surge o personagem-chave para conduzir esta pesquisa, que encontra

sua expressão no circo, no teatro e no balé: o Bogatyr, herói dos mitos eslavos, descrito nos

poemas russos como um personagem fascinante de grande estatura e força mágica cavalar.

1.1. A ambição dos simbolistas russos

Tudo está em harmonia e respira um no outro.


Georges Nivat 16

Nas últimas décadas do século XIX na Rússia, grupos de artistas e poetas são

responsáveis por um conjunto de reformas que impregnará fortemente as manifestações

culturais das primeiras décadas do século XX. Os esforços de autores como Aleksandr Blok,

Andriéi Biéli, Dmitri Merejkóvski, Viatcheslav Ivánov e Nikolai Berdiáev caracterizam a

geração simbolista russa e garantem sua projeção internacional. Essa rica pluralidade de

poetas divide-se em múltiplas correntes ideológicas e oferece à literatura contribuições

significativas. Por estarem fundamentados em diferentes atividades criadoras, dos mais

15
Este período será mais bem analisado no Capítulo III desta pesquisa.
16
NIVAT, Georges. O simbolismo russo em busca do paraíso original. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE,
A.; SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 43.
33

variados “estilos”, Tolmatchov17 interpreta o simbolismo como princípio de movimento e

mais precisamente como efervescência da cultura, e reconhece a dificuldade de compreensão

do seu fundo “culturológico”, seus limites e conteúdo.

Em contraposição rígida ao positivismo e ao naturalismo18, as manifestações do

simbolismo russo tinham como grande semelhança o ideal da “arte pela arte”, trazendo para a

literatura a contaminação e o enraizamento poético em reação à concepção de mundo

altamente racionalista e empírica proclamada pelos positivistas. A ênfase, por outro lado, está

nas experiências particulares do próprio artista, ou seja, o mundo expressa-se por sua

subjetividade e possibilidades. A crença está na autofundamentação do “eu” preenchida pela

autorrepresentação. Se a criação individual como equivalente da vida é realizada em

linguagem pessoal, é a partir desta que o artista cria ou aproxima-se da realidade, voltando-se

para si mesmo cada vez mais profundamente. Ainda para Tolmatchov, o simbolismo do

século XIX formula grandes exigências para a criação verbal, ao inexprimível, o que resulta

no desejo do poeta de colocar-se inteiro na sua obra, bem como na visão da literatura como

conhecimento e autoconhecimento. Isso revela um “eu” que estabelece uma autorreferência e

valoriza a experiência pessoal do artista, logo, “o mundo, antes escapadiço, ao passar pelo

filtro da sua energética pessoal (sangue, nervos, hereditariedade) recebe um relevo igualmente

individual, expressa-se, recebe uma corporeidade específica nas palavras” 19.

É por meio da manifestação da própria subjetividade que o artista adota uma atitude

mística em relação ao mundo. Na poesia, por exemplo, em linhas gerais o que predomina em

certas obras é o vazio, o tédio ou a resignação, enfatizando o silêncio, o tom estático,

vagaroso, e, principalmente, o culto à morte. Esta deve ser entendida como um desejo
17
TOLMATCHOV, Vassíli. Sobre as fronteiras do Simbolismo. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.;
SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 18.
18
Ambas as correntes, positivistas e naturalistas, em linhas gerais, propõem a existência humana por meio
de valores completamente humanos, afastando radicalmente a teologia e a metafísica. Fundamentados nas
descobertas científicas do século XIX, o positivismo surgiu como desenvolvimento sociológico do iluminismo,
das crises da sociedade e moral do fim da Idade Média e do nascimento da sociedade industrial – processos que
tiveram como marco a Revolução Francesa (1789-1799).
19
Ibid., p. 23.
34

profundo do indivíduo de conectar-se com a divindade, por um sentimento religioso, que se

manifestará nas atividades artísticas transubstanciada em experiência mística. Dessa maneira,

é negada a realidade terrestre em favorecimento da realidade divina.

A atitude da criação artística perante a vida, assim como a percepção religiosa da

própria vida, é adotada como pressuposto filosófico pelo simbolismo russo. Segundo a

concepção dos próprios simbolistas, existe um elo íntimo entre o princípio da arte como

conhecimento e os seus aspectos formais. Em outras palavras, “a teoria simbolista revoga o

dualismo de forma e conteúdo, de signum e signatum. O signo adquire, ele mesmo, seu

próprio significado e deve ser considerado juntamente com o conteúdo que reflete” 20.

Estabelecem-se, então, os contornos de uma nova realidade cuja criação tem um caráter

primariamente criativo, livre e religioso.

5. Viatcheslav Ivánov, por Konstantin Somov, 1906

Ivánov21 afirma que a verdadeira arte simbolista toca na área da religião, pois esta é,

antes de qualquer coisa, o sentimento de ligação entre tudo o que existe e o sentido da vida,

ou seja, uma conexão e o conhecimento da realidade. Para ele, o supremo ensinamento do

artista está em não impor sua vontade na superfície das coisas, mas em profetizar e anunciar

20
ANDRADE, Homero Freitas de. Breves noções sobre o simbolismo na Rússia. In: VÁSSINA, E.;
CAVALIERE, A.; SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 153.
21
IVANÓV, Viatcheslav. Duas forças do simbolismo moderno. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.;
SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 198 e 199.
35

algo próximo da vontade sagrada das essências: ser uma espécie de portador da revelação

divina. A ambição simbolista é, portanto, a recriação de uma arte total e religiosa.

A aproximação desses autores com o romantismo alemão estimula o desejo de superar

as fronteiras entre as linguagens artísticas. Os simbolistas encontram no ideal artístico

wagneriano o ponto forte para legitimar “o sonho de destruir os limites”22.

No teatro, por exemplo, não há dúvidas de que a concepção da cena como espaço de

colaboração entre as diversas linguagens artísticas teve suas raízes no simbolismo, cuja

influência marcou os encenadores modernos em contraponto aos procedimentos naturalistas.

Richard Wagner (1813-1833), compositor, músico e poeta nascido na Alemanha, aplicou a si

mesmo os princípios da teoria do gênio de Schopenhauer – na qual gênio é a pessoa em que o

intelecto prevalece sobre a vontade mais do que na pessoa mediana – e definiu-se como

criador de uma obra de arte resultante da fusão de diferentes linguagens. O compositor

alemão, sustentando-se neste pensamento, elabora o conceito de Gesamtkunstwerk (obra de

arte total), que é esclarecido a partir da seguinte reflexão:

Dei-me conta, na realidade, de que precisamente onde uma das artes alcança seu
limite insuperável, a outra começa imediatamente a funcionar no seu campo de ação
com a exatidão mais rigorosa; e que, consequentemente, mediante esta união íntima
destas duas artes, uma poderia expressar de maneira mais satisfatória o que não
poderia de nenhum modo expressar por si mesma; e que, pelo contrário, toda a
intenção de oferecer com os meios de uma delas o que só poderia ser oferecido
apenas pelas duas juntas, inevitavelmente produzem, a princípio, obscuridade e
confusão, em seguida, a degeneração e a corrupção de cada arte em particular 23.

A luta contra o egoísmo tinha sido um dos argumentos lançados por Wagner para

validar o término da separação entre as atividades artísticas e sua fusão em uma preconizada e

idealizada única obra de arte total. O compositor foi uma importante referência para os

simbolistas russos que retiraram ferramentas poderosas para as devidas reformas estéticas, por

22
NIVAT, G. Op. cit., p. 38.
23
Esta passagem encontra-se no texto de Charles Baudalaire: “Richard Wagner e Tannhäuser em Paris”.
Wagner escreve uma carta a Berlioz na qual explica a necessidade de algo mais do que a simples colaboração
entre as artes. O trecho citado foi retirado de: SÁNCHEZ, José A. (Ed.). La escena moderna. Madrid: Ediciones
Akal, 1999, p. 16.
36

almejar incondicionalmente a explosão dos limites. Caracterizado como o verdadeiro artista

que associava poesia, drama, música e cenografia, Wagner materializou a realização exata das

percepções sensoriais almejadas pelos poetas simbolistas.

A força da música de Wagner equivalia ao nível do auditório, a intoxicação de uma


orgia de haxixe. Estimulava a imaginação, lançando a mente em um estado de sonho
como o que conduz à clarividência. E como com o haxixe, a intoxicação produzia
um estado de sinestesia, assim como o som sugeria a cor”.24

A aspiração pela combinação entre as manifestações artísticas, aliando som, cor e

pensamento, possibilita à percepção sinestésica uma mistura em maior escala dos estímulos

sensoriais. E sua ativação visa alcançar a natureza, as energias e as potencialidades primeiras,

penetrando no êxtase, um encontro com Deus. Agrega-se a tal conjunto o princípio da síntese

das artes e, logo, forma-se o ponto de ligação pelo ato religioso, retornando outra vez a ideia

de que a arte transcorre da coesão entre a ação religiosa e a mágica. É preciso extrapolar,

então, seus muros, assim como os da vida, na busca do êxtase. Nivat, sobre este aspecto,

esclarece:

[...] existe, na busca infinita de todos os modos de ser do simbolismo russo, uma
religiosidade pouco crística, uma religiosidade baseada mais no esforço incessante
dos modos do ser humano a perseverar em seu ser, a produzir o ser. A síntese das
artes é uma modalidade dessa produção indefinida e infinita do ser sempre mais no
plano do fenômeno. E essa produção empurra sempre mais os limites da arte, apaga-
os, amalgama-os25.

O destaque agora é dado ao valor absoluto da arte e à sua não dependência. Por meio do

contato com o “pessimismo” da filosofia de Nietzsche26 e da ideia de subjetivismo27, a arte se

impõe como lugar de transcendência e superação deste isolamento. Logo, o processo de

24
BALAKIAN, Anna. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 40.
25
NIVAT, G. Op. cit., p. 40.
26
Friedrich Nietzsche (1844-1900) filósofo alemão que acredita em um pessimismo dionisíaco. Para
Dioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e da volta. Em
outras palavras, em lugar do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou vão, o homem descobre no eterno
retorno a plenitude de uma existência ritmada pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do
sofrimento, do bem e do mal. A obra de Nietzsche vai ser uma importante referência para os simbolistas russos.
27
Biély chama atenção para a visualização dos limites da realidade do mundo exterior e argumenta: “E se as
fronteiras da visibilidade objetivamente dada são instáveis, estamos então condenados ao subjetivismo”. BIÉLY,
Andriéi. Simbolismo e arte contemporânea russa. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.; SILVA, N. (Org.). Op.
cit., p. 252.
37

criação artística é enfatizado como expressão máxima da subjetividade a partir da observação

de uma realidade percebida pelo artista por meio da sua própria vivência. Isso também

enfatiza um olhar artístico sobre a vida: “a minha vivência transforma o mundo;

aprofundando-me, eu me aprofundo na arte; a arte é, ao mesmo tempo, a arte da vivência e a

arte das imagens”28.

O teatro, com efeito, representa um local privilegiado, tomado como o meio expressivo

mais poderoso entre todas as artes. Para os simbolistas russos, o palco não se limita apenas a

um lugar de entretenimento, ele é um espaço de conexão entre os homens e de transformação

de suas vidas. Nos termos de Ivánov, a representação teatral é vista como uma verdadeira

“ação coletiva”, cujas proposições solicitam o retorno às manifestações teatrais tradicionais

baseadas nos ritos religiosos, tragédias clássicas e mistérios medievais. Esta ideia, “mais do

que uma ação teatral, constitui um novo culto, não celebrado na Igreja, mas ainda cristão na

sua essência”29.

A rejeição ao modelo naturalista se processa particularmente pela recusa ao ilusionismo,

que separa o artista da realidade “superior” e “incontestável”. O “novo teatro” deve oferecer

uma espécie de “re-união” entre o ator e o espectador através da supressão da caixa cênica. A

intenção é recuperar o espaço, conforme o modelo cênico dos teatros gregos, e promover uma

espécie de ritual. Para tanto, associa o coro, a música e o grupo de dançarinos por meio de

uma reunião e comunhão coletiva, entre todos os envolvidos, almejando a purificação

irracional e elementar. O teatro, em escala global, situa-se como principal expoente de uma

revolução cultural.

Na cena do teatro simbolista russo, as experiências do encenador V. E. Meierhold se

expressam de maneira significativa. Em 1905, ao se transferir para São Petersburgo, ele se

aproxima ainda mais dos simbolistas e chega a frequentar, às quartas-feiras, “A Torre”, um

28
Ibid.
29
RUDNÍTSKI, K. Russian & Soviet Theatre. London: Thames and Hudson, 1988, p. 9.
38

espaço de encontro entre poetas, críticos e filósofos, organizado por Ivánov. Nas reuniões, um

dos temas difundidos era a transformação necessária e possível da religião e da Igreja pela

arte teatral, pois Ivánov reconhecia que a humanidade tinha perdido a fé.

O desprezo pelos procedimentos da cena naturalista ganha forma no projeto de criação

de um teatro nomeado de “As Tochas” (Fákely), em janeiro de 190630. Além de participar do

planejamento daquele teatro, Meierhold esboça importantes formulações teóricas sobre o

teatro, em sua essência, a partir de suas encenações no período de 1905 a 1912. Tais

concepções meierholdianas possuem um íntimo vínculo com o ideário de Ivánov e com o

princípio da “convenção consciente” associada a outro importante nome da poesia simbolista,

Valiéri Briussov. Este último solicita o abandono do conceito de verdade, imposto pelo

naturalismo da cena contemporânea, postulando a convenção consciente31.

Meierhold é convidado por seu antigo mestre e diretor do Teatro de Arte de Moscou,

Constantin Stanislávski, para reger o Teatro-Estúdio, fundado em 5 de maio de 1905 e

também conhecido pelo nome de Teatro-Estúdio da Rua Povarskáia. O intento de ambos os

diretores era a renovação da arte dramática através da experimentação de novas formas e

procedimentos de interpretação cênica em oposição ao virtuoso naturalismo e à “simplicidade

natural” da atuação do TAM. Tal “estúdio teatral” foi nomeado pelo próprio Meierhold e

desde o início já revelava as distintas perspectivas artísticas entre os dois diretores.

Stanislávski admitia as limitações da cena naturalista e buscava a inovação da arte dramática,

porém dando continuidade às conquistas alcançadas pelo TAM. Meierhold, por outro lado,

criticava severamente o teatro realista-naturalista e afirmava sua superação pelas “novas”

experiências cênicas. No entanto, apesar das falas parecerem diferentes, ambos os

encenadores visavam a descoberta de novas formas e procedimentos para a arte do teatro que

30
Ibid.
31
Estas noções serão também recuperadas no capítulo II.
39

estivessem em confluência com o ideário do drama simbolista cuja obra era reconhecida como

um novo tipo de drama.

Data deste período a formulação de uma das chaves da sua poética teatral: o princípio

de “estilização”, elaborado em sua fase simbolista.

Por “estilização” entendo não a reprodução exata do estilo desta época ou daquele
acontecimento, como fazem os fotógrafos com suas fotos. O conceito de estilização
está, na minha opinião, indissoluvelmente ligado à ideia de convenção, de
generalização e de símbolo. „Estilizar‟ uma época ou um fato significa exprimir
através de todos os meios de expressão a síntese interior de uma época ou de um
fato, reproduzir os traços específicos ocultos de uma obra de arte 32.

Para obter tal qualidade recorrerá à tradição dos teatros de feira da cultura popular russa,

à Commedia dell‟Arte e ao circo, como também ao corpo do ator e seus movimentos plásticos.

Durante esse período, Meierhold encenará diversos espetáculos de autores simbolistas como

Maurice Maeterlinck e Aleksander Blok33.

Umas das mais significativas contribuições dos simbolistas russos são as

experimentações e transformações da linguagem poética. Tais poetas garantem a projeção

internacional da poesia russa ao retomar temas e questões universais, conferindo um lugar de

destaque à técnica poética. Em relação a esse conjunto de fatores, pode-se afirmar que a

crença na cognição expressada pela arte é um ponto crucial da teoria do simbolismo, que

recruta o modelo intuicionista do conhecimento como método único, criador e ativo que

permite construir outro tipo de realidade, avessa a positivista, e concede à poesia lírica o seu

modo mais elevado de expressão. Associa, para isso, o símbolo não somente a um mecanismo

universal da literatura, como também à ideia de apreensão da essência do mundo pelo artista.

É por meio dele que o poeta cria e materializa imagens, revelando o caráter criativo ao propor

32
MEYERHOLD, V. apud CAVALIERE, Arlete. Op. cit., 2009, p. 240.
33
Existem diversos trabalhos que aprofundam o período simbolista de Meierhold. Para informações
acerca desta fase: GUINSBURG, Jacó. Stanislavski e Meierhold. In: Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo:
Perspectiva, 2001, cap. 1, p. 3 a 93. SANTOS, Maria Thais Lima. Na cena do Dr. Dapertutto. São Paulo:
Perspectiva, 2010. CAVALIERE, Arlete. O simbolismo no teatro russo nos inícios do século XX: faces e
contrafaces. Op. cit, 2009, p. 223 a 262.
40

um vínculo real entre todas as coisas. Dessa forma, pela constituição de novas imagens, é que

se desenvolverá a nova linguagem.

A palavra cria um terceiro mundo, o mundo dos símbolos sônicos, por meio dos
quais se iluminam os mistérios tanto do mundo estabelecido fora de mim, como os
encerrados em mim; [...]. No som recria-se um novo mundo, nos limites do qual eu
me sinto criador da realidade; então, começo a nomear os objetos, isto é, a recriá-los
novamente para mim34.

Em tal perspectiva, a função do som está conectada com a própria natureza das

palavras; ele é o próprio símbolo e reflete duas realidades paralelas: material e espiritual,

oferecendo significados aos elementos. A poesia simbolista, assim, era completamente

conduzida pelo sentido da musicalidade, porém a ideia de “poesia enquanto música”, em

linguagem poética, refere-se a associações sonoras. Por exemplo, houve diversas

experimentações com a estrutura fonêmica, rítmica e morfológica, explorando as diversas

sonoridades da língua russa por meio da poesia.

Cabe ressaltar que todo este conjunto de reformas só foi possível porque a geração

simbolista na Rússia fazia parte da chamada intelligentsia, grupo formado por uma classe

social privilegiada, composta por aristocratas, famílias de intelectuais e negociantes bem-

sucedidos, a maior parte com uma educação em filologia bem desenvolvida. Esta geração

aprofunda as experimentações linguisticas e redefine a função individual do poeta, que se

apresenta como “gênio”, cujo olhar para o mundo é através de uma janela que o coloca acima

da realidade e da multidão.

Isto explica a valorização exacerbada da literatura e da poesia entre os simbolistas. O

real é idealizado pelo próprio artista e se manifesta por meio do conhecimento intuitivo, tendo

em vista a subjetividade do criador, visionário da realidade suprema. A poesia é encarada

como a fonte do conhecimento. Por outro lado, de modo paradoxal, este mesmo grupo de

intelectuais, letrados, idealiza as manifestações populares. Por exemplo, o desejo de criar uma

34
BIÉLI apud POMORSKA, Krystyna. Formalismo e Futurismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972,
p. 84 e 85.
41

arte sintética, que se aproprie de todos os campos da criação (religião, filosofia, música,

arquitetura, dança, pintura, teatro), refere-se às linguagens que circulam entre uma pequena

elite intelectual russa. Não há uma apropriação concreta da cultura popular, mas sim uma

abordagem poética provocada por sua idealização.

O que se observa é que a aproximação com a cultura popular, e nesse caso com o circo,

é carregada de sentido poético e metafísico. Isto ocorre porque é preconizado pelos

simbolistas que o ideal de beleza e perfeição, associados ao divino, podem estar encarnados

na figura do acrobata do picadeiro. Assim, aponta-se uma identificação entre o poeta, o

sacerdote e o mágico, que deseja hipnotizar o leitor pela construção de imagens através de

símbolos; e o virtuosismo do acrobata, que magnetiza e fascina o público pela superação dos

limites humanos. Outro ponto relacionado a esta leitura é o “culto à morte”, proclamado pelo

poeta simbolista, e a iminência dela no picadeiro. A ideia de risco e morte materializados no

número do acrobata, como também o estado de solidão que encarna durante o

desenvolvimento do espetáculo, está ligada a todas as características já vistas que marcam a

subjetividade e o “ego-lírico” do poeta.

Cavaliere35 aponta que há uma espécie de simbiose entre artistas e o pensamento

filosófico deste período que pode ser expressa por meio de pontos em comum. São eles: a luta

de ambos contra o positivismo; a busca de novos valores do inacessível, do invisível, do

desconhecido e de outros mundos em oposição à banalidade da realidade; reinterpretação de

escritores da tradição ocidental e eslava; e o desejo de criar uma arte sintética que englobe as

diversas linguagens. “Desse procedimento mágico integrador advém, certamente, o culto

simbolista pela síntese das artes e o diálogo intertextual com o passado” 36, que se propagam,

portanto, simultaneamente na música, pintura, poesia e teatro.

35
CAVALIERE, Arlete. Op. cit., 2009, p. 234-235.
36
Ibid.
42

O poeta Aleksandr Blok, por exemplo, em sua obra Balagántchik (A barraquinha da

feira), está “encharcado de paródia e sarcasmo, penetra de modo profundo na crítica aos temas

e procedimentos explorados pelo simbolismo russo e pelo próprio Blok, de cujo esgotamento

a mordacidade blokiana parece querer zombar”37. Para isso, o dramaturgo se apropria da

tradição popular e alegoriza a cena com “efeitos circenses”. Não foi à toa que Meierhold

encenou este texto em 1906, amparado em seus experimentos simbolistas “e, ao mesmo

tempo, também na sua própria transgressão, [...] anunciando as experiências estéticas do

teatro russo de vanguarda”38.

Sem dúvida, é no simbolismo que tem início o processo de aproximação entre o circo e

o teatro associados ao pensamento da síntese entre as artes proclamada por Wagner e

absorvida na Rússia. O olhar simbolista para as atividades do picadeiro irá motivar toda uma

próxima geração de poetas e artistas que tornará este fenômeno mais concreto e complexo.

A forte influência simbolista só se extingue na Rússia em meados de 1920 quando a sua

poesia se engaja cada vez mais no misticismo filosófico e perde, paulatinamente, a simpatia

entre os poetas mais jovens. No entanto, a partir da conjuntura social, cultural e política que

deu impulso ao seu surgimento, associado à atitude inovadora de sua prática e aos auxílios à

linguagem poética, o simbolismo pode ser identificado como a escola que exerceu uma

função importante no desenvolvimento do movimento modernista russo. As propostas

revolucionárias da vanguarda russa que segue não seriam as mesmas sem as reformas

simbolistas.

1.2. A bofetada dos cubo-futuristas no gosto do público

37
Ibid., p. 242.
38
Ibid., p. 241.
43

Na noite de 4 de fevereiro de 1912, depois do concerto de Rakhmáninov, carregado de

uma “insuportável chatura melodizada”, Vladímir Maiakóvski escapa para a saída do salão e,

em seguida, sai David Burliuk; juntos vão a “vadiar”.

Uma noite memorabilíssima. Conversa. Da chatura rakhmaninoviana, passamos à da


Escola, e da escolar a toda chatura clássica. Em David havia a ira de um mestre que
ultrapassara seus contemporâneos, em mim – o patético de um socialista, que
conhecia o inevitável da queda das velharias. Nascera o futurismo russo 39.

Assim Maiakóvski apresenta em sua autobiografia, intitulada Eu Mesmo, o surgimento

da vanguarda futurista russa. Depois de “noites de lírica”, nos fins de 1912, surge o famoso

manifesto coletivo Pochchótchina obchchéstvienomu vkússu (Uma bofetada no gosto do

público) que leva a assinatura do grupo de poetas: David Burliuk, Alekséi Krutchônikh,

Vielimir Khliébnikov e Vladímir Maiakóvski. Neste manifesto, as declarações expostas

relatam em termos muito extremos um forte protesto contra o simbolismo, além de desprezar

os clássicos e a velha ordem como, por exemplo, Puchkin, Tolstói e Dostoiévski, e também os

valores artísticos predominantes no passado. Vários debates e diversas polêmicas

acompanham a notícia de tal manifesto que foi seguido por outras publicações. O futurismo,

assim, adensava-se na Rússia, conquistando cada vez mais espaço e agregando figuras

fascinantes.

Embora preferissem o termo cunhado por Kliébnikov, budietliánie – a partir do futuro

do verbo ser (byt) – em referência ao artista como o homem do futuro, que enfatizava o

sentido existencial deste movimento40, este grupo de artistas e poetas assumia uma postura

desafiadora, rostos pintados e vestimentas extravagantes, exaltando o movimento e a

máquina. Maiakóvski, por exemplo, em seus trajes de “abelha”, usava uma blusa amarelada

com grandes listras pretas e a sua figura “parece assemelhar-se aos heróis desdenhosos e

39
MAIAKÓVSKI apud SCHNAIDERMAN, Boris. A poética de Maiakóvski. São Paulo: Perspectiva,
1971, p. 93.
40
O termo “futuristy” (futuristas) tinha um caráter pejorativo e era utilizado por quem criticava o
movimento, entretanto, apesar de não concordarem com tal denominação, os seus artistas e poetas acabaram por
aceita-la e assumi-la.
44

tenebrosos dos filmes de seriados, dos cinedramas daqueles tempos” 41. Levando o futurismo

para o público, proclamavam que arte e vida deveriam desprender-se das convenções para

contaminar todas as camadas da cultura.

6. Vladimir Maiakóvski 7. David Burliuk

Para esta pesquisa, um dos dados mais relevantes é a característica singular da

vanguarda moderna russa em relação à apropriação da tradição em diálogo com a ruptura.

Entre os futuristas, em especial Maiakóvski, há uma reivindicação autêntica pela tradição

russa. Conforme dito anteriormente, a arte e a literatura eram cultivadas como lugar de

transformação e transcendência, bem como espaços comprometidos com seu povo,

pensamento e cultura. Além disso, as manifestações artísticas populares, em especial o circo,

habitam o imaginário dos artistas e poetas deste período e se expressarão concretamente em

suas práticas. Portanto, essas relações e experiências serão destrinchadas ao longo deste

estudo, tendo como suporte o pensamento russo da época.

Na Europa Ocidental, o ano de 1909 teve início com o abalo provocado pelo primeiro

manifesto futurista divulgado no jornal Le Figaro, em Paris, por seu escritor, o poeta italiano

Filippo Tommaso Marinetti. Ele contrapunha-se aos velhos valores artísticos, aos significados

cunhados nas Artes e nas Academias Literárias e propunha a abolição do culto ao passado. O

41
RIPELLINO, A. M. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 22.
45

grito do poeta italiano glorificava a guerra, bem como o militarismo patriótico, em oposição

ao comércio das artes e a veneração da tradição. Marinetti foi influenciado por Alfred Jarry e

seu Ubu Rei apresentado no Théâtre de l‟Ouevre de Lugné-Pöe, em Paris. Um espetáculo

absurdo e burlesco que tinha como modelo as farsas nas quais o poeta francês participara em

seus tempos de escola e as peças de marionetes produzidas por ele. Marinetti, que viveu em

Paris de 1893 a 1896, ao retornar à Itália percebe a convulsão política em que está

mergulhado seu país e inicia suas experimentações artísticas. Além do que, nota as

possibilidades de usar a agitação pública e a integração do ideário futurista de reformulação

artística junto à inquietação sobre a polêmica do nacionalismo e do colonialismo. Em algumas

cidades na Itália, os artistas estavam empenhados a favor de uma interferência contra a

Áustria. Marinetti organiza, assim, o primeiro Sarau Futurista na cidade de Trieste em 12 de

janeiro de 1910, ponto estratégico no conflito entre Itália e Áustria.

A modernidade urbana, para os futuristas italianos, é o espaço em que se encontra o

ideal de beleza: o poste com luz elétrica e o automóvel são respectivamente o símbolo e a

expressão poética da nova época. A cidade moderna é encarada como um organismo

mecânico e elétrico, e é nela que está toda a potência para aniquilar o velho e construir o

futuro, com toda a brutalidade das guerras e revoluções que alteraram a História. O

nacionalismo imperialista, o militarismo, o ódio ao passado, a exaltação da violência e da

guerra somados ao encanto pela modernidade, então, são fatores importantes para o progresso

social e refletem seu universo ideológico.

Os futuristas na Itália elaboram diversos manifestos entre 1910 e 1913 acerca das

diferentes modalidades artísticas, assim, uma de suas contribuições mais significativas foi a

utilização das atividades cênicas como meio objetivo de aproximar o público de suas ideias.

Nesse contexto, Marinetti impõe ao teatro a tarefa de orientar-se por meio da originalidade e

inovação.
46

O enaltecimento do teatro de variedades sustentava-se, principalmente, pela mistura em

uma mesma forma cênica, de diversas manifestações: cinema, dança, música, acrobacia e

esquetes de palhaço. No entanto, há outros fatores igualmente importantes como a não

existência de um roteiro pré-estabelecido, a constante participação do espectador, as

simultaneidades da ação e a fácil compreensão dos acontecimentos e problemas políticos.

Nesse sentido, esta forma de cabaré esteve associada à nova estética das cidades modernas de

ritmo frenético; assim, como declara no Manifesto do Teatro de Variedades:

O teatro de variedades oferece uma maior limpeza dentre todos os espetáculos, por
seu dinamismo de forma e de cor (movimentos simultâneos de malabaristas,
bailarinas e ginastas, tendas multicoloridas, piruetas de dançarinos que trotam sobre
a ponta dos pés). Com seu ritmo de dança acelerada e arrebatadora, o Teatro de
Variedades arranca, por força de seu torpor as almas mais lentas e as obriga a correr
e a saltar42.

O resultado não será visível apenas na representação, mas também no cotidiano e nas

atividades destes artistas e poetas, por meio do caráter ruidoso ditado pelo movimento, em

atitude de choque e diálogo com o público. Sendo assim, o emprego desses elementos

impregnará fortemente as peças do Teatro Sintético, proposto por Marinetti a partir de 1915.

Como explica o manifesto, o termo “Sintético”, “quer dizer, brevíssimo. Comprimir em

poucos minutos, em poucas palavras e em poucos gestos inumeráveis situações, sentimentos,

ideias, sensações, fatos e símbolos”43. A intenção é apresentar a velocidade e a sensibilidade

lacônica futurista, ao jogar com as convenções teatrais em associação com as outras

disciplinas artísticas, arrancando os espectadores do caráter passivo típico do teatro realista.

Depois das experiências realizadas pelo Teatro Sintético, há um esgotamento das

tendências inovadoras do futurismo italiano, “as invenções sequentes seriam basicamente

novas combinações que teriam como fundamento este teatro anterior e as criações essenciais

das outras áreas, como o dinamismo plástico e a arte do rumor, além, evidentemente, do

42
Cf. MARINETTI, Filippo T. El teatro de Variedades (1913). In: SANCHÉZ, op. cit., p. 116.
43
Cf. CORRA, Emilio S. B. e MARINETTI. El Teatro Futurista Sintético (1915). Ibidem, p. 122.
47

paroliberismo”44. A companhia do Teatro da Surpresa, projetada em 1921, por exemplo, tinha

à frente o ator e empresário Rodolfo De Angelis e contava com Marinetti e Francesco

Cangiulo – estes dois últimos escrevem o manifesto O Teatro da Surpresa –, além de quatro

atrizes, três atores, uma criança, dois dançarinos, um acrobata e um cachorro. Este teatro

pretendia oferecer uma demasiada importância ao elemento “surpresa” cuja relevância para as

artes era fundamental, expondo em cena uma sequência de acontecimentos imprevisíveis com

o objetivo de provocar no público a risada, o estupor e as vaias. Para isso, seus fundadores

propõem a combinação do Teatro Sintético, declamações dinâmicas, danças, poemas,

discussões musicais, “além de toda a fisicofolia de um café-concerto futurista, com

participação de ginastas, atletas, ilusionistas, excêntricos, prestidigitadores” 45.

Existem diversas semelhanças e aproximações entre os futuristas da Itália e os da

Rússia, especificamente. No campo das artes dramáticas, nota-se a apropriação do sentido de

teatralidade e a conjugação das artes ditas “menores” em cena. Mas que fique claro que as

atividades poéticas, o programa estético e o ideal político dos futuristas russos não seguem o

modelo italiano. Humphreys46 alerta que o termo “futurismo” na Rússia deve ser utilizado

com cautela, visto que a questão do intercâmbio cultural é particularmente importante, pois

envolve o problema mais amplo de “Oriente” e “Ocidente”, de “oriental” e “ocidental”. Sendo

assim, uma das formas como os futuristas russos e outros vanguardistas de Moscou e São

Petersburgo, os dois principais centros artísticos, encaravam seu engajamento no modernismo

e na modernidade foi o estabelecimento de um compromisso forte com o conceito de “Rússia”

e de sua própria língua, o que torna impossível a simples reação ou imitação pura e ingênua

das normas e contornos do futurismo italiano.

44
GARCIA, Silvana. As trombetas de Jericó: teatro das vanguardas históricas. São Paulo: Hucitec, 1997,
p. 39.
45
Ibid., p. 39.
46
HUMPHREYS, Richard. Futurismo. Tradução: Luiz Antonio Araújo. São Paulo: Cosac & Naify,
2000, p. 58.
48

Ao desembarcar na cidade de Moscou, em 1914, Marinetti, sob uma grande publicidade,

insulta os eventos públicos, Tolstói, Kremlin e a arte russa. Se por um lado a reação do grande

público foi de entusiasmo pelas ideias do futurista italiano, por outro, alguns artistas

manifestaram uma grande hostilidade. O tom dessa resistência pode ser visto em algumas

palavras redigidas pelos escritores russos Velimir Khliébnikov e Benedikt Livshits, antes de

uma das palestras de Marinetti: “Hoje, alguns nativos e a colônia italiana às margens do Neva

[...] prostram-se diante de Marinetti, traindo os primeiros passos da arte russa no caminho da

liberdade e da honra e colocando o nobre pescoço da Ásia sob o jugo da Europa”47.

Seria um verdadeiro equívoco afirmar que não houve influência e diálogos entre o

futurismo italiano e o futurismo na Rússia. De certa maneira, a difusão das teorias futuristas

foi acatada neste país com grande rapidez desde a publicação, e tradução para o russo, do

Primeiro Manifesto Futurista de Marinetti em 1909. No entanto, o líder futurista italiano não

conseguiu compreender o complexo caráter altamente criativo da vanguarda russa, nem a

natureza singular do seu pensamento e cultura, entre as revoluções de 1905 e 1917. O sentido

de nação dos artistas russos era estranho aos vizinhos ocidentais, pois retratava as

especificidades dos seus elementos culturais e de uma fase de particular desenvolvimento

social e industrial. Além do que, na prática poética, o tom de paganismo eslavo nos versos de

Khlebnikov e a aversão pela guerra, presente igualmente em Maiakóvski, acentua o anti-

imperialismo e incita uma revolta social. Desse modo, o resultado era uma concepção da

modernidade, de futuro e do novo, muito diferente do pensamento italiano, e tudo isso estava

intimamente ligado às atividades dos artistas e poetas russos.

Se os futuristas na Rússia tinham um desprezo intenso pelo passado, tanto do regime

czarista como das linguagens e instituições artísticas e literárias, tal postura não se aplica em

relação às tradições populares. Há na vanguarda um pensamento de reprocessamento da

47
KHLEBNIKOV e LIVSHITS apud HUMPHREYS. Op. cit., p. 59.
49

cultura popular, entremeada de “primitivismos” e temas asiáticos, contaminada pelo

paganismo eslavo, recuperando os ícones religiosos e ortodoxos, pictogramas e arte infantil,

típicas de um mundo proletário e rural. Poetas e pintores compartilhavam de um gosto pela

temática arcaica, oferecendo constantemente referências de grande entusiasmo ao primitivo.

Embora o grupo futurista na Rússia tenha se organizado na base de grande repúdio ao

acúmulo de misticismo e filosofia do simbolismo, nota-se que as características citadas acima

também estão presentes no ideário do futurismo organizado nos fins do século XIX sendo,

inclusive, um dos fatores que diferencia os futuristas russos dos seus correlativos italianos.

Em confluência a tais elementos encontra-se o violento influxo do cubismo, que abalou

o conjunto da arte contemporânea ao considerar a “forma” como questão artística básica. A

cultura russa, do início do século XX, buscava manter-se em contato com as tendências dos

vizinhos ocidentais e, assim, em 1908-1909 foram organizadas exposições de importantes

pintores contemporâneos europeus, o que permitiu a apropriação dos princípios e técnicas

cubistas no país. É imprescindível mencionar também a forte ligação entre futuristas russos e

a pintura, ao contrário da inclinação dos simbolistas à música. A própria formação das

lideranças da vanguarda russa moderna demonstra uma “vivência pictórica” significativa:

Maiakóvski, por exemplo, “estudara com os pintores Jukóvski e Kélin, antes de ingressar na

mesma Escola, e depois desenharia cartazes, ilustrações e capas de seus livros, figurinos para

peças, etc.”48. Tudo isso legitima o grito inicial dos futuristas: o desejo da revolução da forma,

que na literatura, por exemplo, era o próprio tema e o ponto de desenvolvimento.

O futurismo russo se articulou em dois grupos principais: o ego-futurismo e o cubo-

futurismo. O primeiro foi fundado em novembro de 1911 por Ígor Sievieriánin e “retomava

fórmulas decadentistas já esgotadas” 49, sua cultura poética baseava-se nos moldes do fim do

século XIX. O fundador do ego-futurismo era conhecido por seus poemas pretensiosos e

48
SCHNAIDERMAN. Op. cit., p. 27 e 28.
49
RIPPELINO, Op.cit., p. 14.
50

afetados, cheios de palavras estrangeiras, “de expressões do „beau monde‟, de termos de

perfumaria”50. Apesar de poucos elementos em comum com o futurismo, os versos de

Sievieriánin e seus seguidores possuem uma musicalidade sugestiva e hipnótica,

especialmente quando se refere ao ritmo dos automóveis, influenciando diretamente poetas do

seu tempo, inclusive Maiakóvski.

Por outro lado, o cubismo foi assimilado tão radicalmente pela vanguarda russa que a

própria denominação do movimento ficou conhecida como cubo-futurismo. A técnica de

decomposição plástica cubista, que oferece outras percepções e pontos de vista ao fragmentar

as formas, mantendo o equilíbrio no espaço, foi incorporada e harmonizada à excitação

cinética do futurismo através dos pintores russos desse período. Logo, a pintura é tomada

como modelo e oferece à poesia “uma escabrosa sequência de torções e desmoronamentos”51.

Khliébnikov declara em 1912: “Nós queremos que a palavra siga audaciosamente as pegadas

da pintura”52.

Em oposição à concepção de beleza, de vocalismo, de liquidez, da poesia culta, dos

contornos do verso, da teoria da inspiração e do conceito do poeta gênio, tão marcantes dos

simbolistas, “o ponto principal da estética futurista foi a teoria da palavra em seu aspecto

sonoro, como único material e tema da poesia”53. A pesquisa linguística valorizava o estudo

do som e do seu padrão sonoro para a reformulação radical do poema. Carregada de

neologismos, por meio da análise e da decomposição das palavras, e distanciando-se das

metáforas do simbolismo, os cubo-futuristas cunham a “linguagem transracional”, o zaúmniki,

cuja prática

se dá na concretude do mundo da produção. Daí receber privilégio o ritmo: a poesia


acompanha o ritmo frenético das cidades e das fábricas. Contudo, o ritmo e a

50
Ibid.
51
Ibid., p. 33.
52
Ibid., p. 32.
53
PORMORSKA. Op. cit., p. 102.
51

sonoridade não obedecem a padrões de extrema abstração, pois para os cubo-


futuristas, não há desconexão entre os problemas formais do som e o seu sentido 54.

Verifica-se que não há absolutamente oposição entre o conteúdo e a forma, já que

ambos estão no mesmo patamar. Dessa maneira, o conceito de zaúm não está limitado à pura

experiência poética, excluindo qualquer intenção social, e tampouco se caracteriza como uma

língua sem sentido. É por meio desta zona de criatividade “transracional” que os futuristas

russos levam ao máximo as experiências sonoras e, assim, a poesia impõe violentamente sua

linguagem, dotada de força expressiva para aniquilar os valores anteriores.

Nas considerações finais sobre a análise literária e a literatura produzida nesse período,

Pomorska55 afirma que o simbolismo russo prepara o caminho para a orientação sonora do

futurismo. O primeiro investe na aproximação com a música – “poesia como música” – e nas

nuances dos versos, auxiliando a destruição da “poesia como pensamento em imagens”; os

futuristas, por sua vez, descartam-se da carga mítica e subjetiva dos seus antecessores e

colocam em seu lugar uma abordagem poderosamente técnica.

8. Vladímir Maiakóvski, 1918

54
BOLOGNESI, Mario Fernando. Tragédia: uma alegoria da alienação. 1987. Dissertação (Mestrado em
Artes) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 89.
55
POMORSKA. Op. cit., p. 163.
52

O futurismo russo deixa marcas em toda obra de Maiakóvski, que utiliza os princípios

deste movimento durante sua trajetória, enfatizando o vínculo entre o poeta e a vanguarda do

seu país56. As relações entre os dois são extensas e bastante complexas, não sendo a pretensão

desta pesquisa tal análise. No entanto, é necessário ater o olhar sobre certos aspectos da sua

poesia e nos procedimentos artísticos que irão modificar a cena teatral russa até por volta do

ano de 1921, ano de estreia da segunda versão de Mistério-Bufo, um marco na cena do

período e que é objeto de estudo desta investigação.

Maiakóvski investe na criatividade com o jogo de palavras e o investimento exaustivo

na renovação da linguagem poética, com o objetivo de ultrapassar a palavra em si própria e

aplicá-las ao contexto social de seu tempo. Sendo assim, no ambiente caótico em que a Rússia

estava mergulhada, a sua poesia expressou potencialmente os temas revolucionários, algo que,

entretanto, o diferencia dos outros poetas zaúmniki para quem o material linguístico era tema

propriamente dito. Desse modo, o universo poético proposto por Maiakóvski apresenta

elementos sobre arte e revolução, revolta e fé na vida, alternando os aspectos trágicos e

cômicos e visando a expressividade. Os elementos que compõem a sua poesia ganham

proporções deformadas, dilatando-se, e “o que mais encanta nas líricas de Maiakóvski é a

vertiginosa abundância de imagens, que parecem números extravagantes, truques de

prestidigitador. [...] Agitados por choques e contorções, os versos parecem encartuchar-se

como por um espasmo”57.

Ele emprega exaustivamente em seus poemas a técnica cubista da imagem deslocada,

para possibilitar outras percepções do objeto a partir da sua visualização sobre outras

perspectivas; e, sobretudo, realiza experiências com as palavras, rimas e versos, explorando

incessantemente as possibilidades da língua russa, desautomatizando-a. Para isso introduz a

linguagem das ruas, com sua riqueza e criatividade, e também, elementos estranhos e

56
Ibid., p. 157.
57
Idem, ibidem, p. 29.
53

inusitados para o poema visando certo estranhamento. O seu desejo é tornar a percepção do

fenômeno mais nítido e reinventar a palavra tornando-a materialmente tangível, como

queriam os futuristas. “Unicamente nós somos a face do nosso tempo”, proclama Maiakóvski

em A bofetada no gosto do público58, demonstrando seu ideal de colocar a poesia a serviço do

seu povo paralelamente ao questionamento do poeta na sociedade.

Eu
à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas.
Às parlengas poéticas estou acostumado,
Eu ainda falo versos e não fatos.
Porém se eu falo
“A”
este “a”
é uma trombeta-alarma para a humanidade
Se eu falo
“B”
é uma nova bomba na batalha do homem. 59

Aspectos importantes sobre as faces de Maiakóvski podem ser retirados do poema De V

Internacional. Bolognesi60 chama atenção ao fato do poeta-operário trabalhar as palavras com

a precisão das fórmulas científicas, como se quisesse fazer confluir à atividade poética as

conquistas das revoluções científicas da virada do século XIX para o XX 61. Por outro lado, o

poema exemplifica a penetração da poesia no seio social, proclamando uma nova maneira de

viver, uma arte e uma ciência nova, que complementem as mudanças iniciadas pela

Revolução. Outro elemento que ainda pode ser observado, nas partes finais do poema citado

acima, é a utilização da poesia como arma para a luta revolucionária.

Verifica-se que a intenção de Maiakóvski, de modo geral, é a apropriação ampla dos

procedimentos futuristas para a construção de uma arte socialista que dificilmente poderia ser

58
In: TALES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro; apresentações dos
principais poemas metalingüísticos, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972.
Pretópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p. 165 e 166.
59
MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. Tradução: Augusto Campos. São Paulo Perspectiva, 2008, p. 94.
60
BOLOGNESI, Op. cit., 1987, p. 85.
61
Desde a segunda metade do século XIX, arte e ciência se aproximam cada vez mais. Para mais detalhes
sobre isso, bem como sobre a repercussão no campo artístico, consultar: Ibid., p. 86-88.
54

produzida com o uso dos antigos procedimentos. Por meio da “racionalização do irracional”62,

o poeta acreditava “que a coincidência entre arte revolucionária e estado revolucionário é tão

natural e harmoniosa como um simples acorde musical”63.

Já no campo das artes cênicas, em torno de 1910, houve um forte empreendimento em

rejeição à literatura, principalmente a clássica, por parte de seus inovadores. Na verdade,

inicia-se um grande repúdio, em geral, à palavra escrita. As diversas teorias que surgem

pretendem justificar a libertação do ator em relação ao texto. O teatro da época aspirava

libertar-se das palavras, logo, as ações mudas eram atrativas, pois ofereciam autonomia e

valorizavam as especificidades da expressão teatral. O que se nota, na cena pré-revolucionária

russa, é que a teoria acompanhou a prática.

A vanguarda teatral russa busca elevar um elemento-chave que guiará as suas pesquisas

cênicas do período, e a mesma que Marinetti almejava incessantemente em suas

experimentações cênicas futurista: a teatralidade. O retorno a ela parecia ser a única saída para

o teatro na Rússia e sua libertação de todas as amarras da cena realista-naturalista. Contra o

culto da verossimilhança e do psicologismo, nasce uma corrente que proclama a primazia

teatral em si: Nicolai Evreinov, Aleksander Taírov e Vsévolod Meierhold são nomes

relevantes para cena nos anos de 1910.

Nicolai Evreinov (1879-1953) dedica-se a encontrar o que julga ser essencial às artes

cênicas: os verdadeiros princípios da teatralidade, que deveria estar intimamente entrelaçada

com a vida social. Para ele era imprescindível vincular as ideias teatrais nas expressões mais

significativas da sua história, ou seja, na época em que “elas se caracterizaram justamente por

se apresentar como puro jogo cênico de comediantes, sem qualquer tentativa de mimeses

mecânica ou cópia naturalista da vida”64. Em seu programa concebido para um Teatro Antigo,

por exemplo, propunha o estudo teórico e prático sobre “todas as épocas particularmente

62
JAKOBSON, Roman. A geração que esbanjou seus poetas. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 22.
63
POMORSKA. Op. cit., p. 157.
64
GUINSBURB, J. Op. cit., p. 130.
55

teatrais”, voltando-se no primeiro momento para o teatro medieval francês, seguindo para o

teatro espanhol do Século de Ouro, depois para a Commedia dell‟Arte, passando do teatro de

Shakespeare ao teatro popular alemão.

Guinsburg65 afirma que o Teatro Antigo, além de atualizar as soluções e realizações

cênicas de outros períodos, procurou fazê-lo tendo em vista o que era, aos olhos de seus

inspiradores, o fator primordial do teatro, o jogo do ator. Evreinov pretendia devolver a

liberdade da atuação e da expressão, vital ao comediante, a partir do restabelecimento dos

meios de comunicação entre palco e plateia, por meio da eliminação de obstáculos materiais

do teatro. O objetivo era restituir ao espectador a participação efetiva e espontânea da

representação e, assim, “o Teatro Antigo não foi um museu do teatro, mas um museu da

teatralidade e durou o suficiente para evidenciar que a essência da teatralidade está na relação

entre a cena e o espectador, e o espectador e a cena”66.

Na série dedicada ao teatro francês medieval, o drama litúrgico Trois Mages teve

prólogo de Evreinov. Já no ciclo de encenações dedicado ao Século de Ouro Espanhol, ele

encenou as obras El Purgatorio de San Patricio, de Calderón; El Gran Duque de Moscovia y

Emperador Perseguido e Fuente Ovejuna, ambas de Lope de Vega; e Marta la Piedosa, de

Tirso de Molina67.

O ator e diretor russo Aleksander Taírov (1885-1950) se esforçou para preservar seu

teatro como um lugar de experimentação cênica. Para isso, ele parte do pressuposto de que

arte e vida são nitidamente distintas, “pois embora possam coincidir aqui ou ali, cada qual

postula um tipo específico de verdade e, na maioria das vezes, „o que é verdade na vida não o

é na arte, e a verdade artística soa falsa na vida‟.”68

65
Ibid., p. 133.
66
EVREINOV, Nicolás. El teatro en la vida. Buenos Aires: Ediciones Leviatan, 1956, p. 10.
67
Mais detalhes em: EVREINOV, N. Op. cit.
68
GUINSBURG. Op. cit., p. 154.
56

Para Sanchéz69, a intenção de Taírov é apartar-se tanto do teatro naturalista (dominado

pela literatura) como do “teatro de estilo” (dominado pela pintura) ao propor uma via

intermediária e mostrando seu interesse em localizar o ator no centro da criação cênica, longe

tanto do psicologismo como do mecanicismo da estilização. Não há sentido, para o diretor

russo, em submeter a criação dramática à mimese realista nem ao puro formalismo, isto

significa que a preocupação com a forma não implica a rejeição da emoção no palco.

A arte teatral é seriamente afetada em seu âmago se a cena se converte em sério


painel para o exercício de um pincel diretorial de composições plásticas. [...] a força
vital da operação artística no teatro é desviada da fonte própria e o trabalho do ator,
em sua função central na metamorfose cênica, sofre um processo de esvaziamento e
estiolamento, que lhe consome a dinamicidade e lhe achata a corporeidade,
convertendo a figuração em “mancha pictórica” de um arranjo espetacular, de
dominante cenografia, cujo elemento básico de construção teatral é o do efeito de
exposição decorativa e não da representação dramática 70.

A trajetória artística de Taírov é rica e complexa, no entanto, cabe aqui ressaltar as suas

tentativas de uma prática teatral fundamentada no estilo sintético. Para ele o ator deveria ser

um bailarino, palhaço, cantor e mímico. A sua pesquisa teatral se baseava no âmbito das

expressões artísticas populares, da Commedia dell‟Arte e dos mistérios medievais. Para

Taírov, “a síntese na qual a teatralidade é restaurada de um modo pleno e orgânico [...], só se

efetua quando a caixa cênica dá relevo à criatividade do comediante, no que ele tem de

espontâneo como espírito imaginante e controlado como corpo atuante. [...] um virtuose do

corpo, da voz e da elocução.”71.

Em Moscou, no ano de 1914, Taírov prova tais procedimentos no espetáculo Sakuntala,

dramaturgia hindu, escrita no século V a.C., adaptada pelo simbolista russo Balmont. Em

1915, ele dá continuidade às suas experimentações com a montagem de As Bodas de Fígaro,

de Beaumarchais. Esta última, como reconhecia o próprio diretor, “carregava o selo da

69
SANCHÉZ, J. Op. cit., p. 314.
70
GUINSBURG. Op. cit., p. 155-156.
71
Ibid., p.158.
57

„estilização‟, sob cujo verniz era difícil distinguir os lineamentos de novos ritmos e formas

cênicas que haviam sido incorporadas à encenação em vários lugares” 72.

De um lado, Evreinov afirma que o teatro em si é pura convenção, desde a decoração do

edifício até o público, propondo a teatralização do teatro, em uma cena essencialmente

convencional, sugerida “pela mímica, pelos gestos e pelo movimento” 73. Taírov procura a

“teatralidade pura”, mais preocupado com o estético do que com o cultural na atuação

sintética do ator, “cujo „gesto emotivo‟, materialização do virtuosismo mímico, rítmico,

acrobático, vocal, etc., e da fantasia criadora, é concebido coreograficamente, como no

balé”74. No entanto, como será visto nos capítulos seguintes, Vsévolod Meierhold, “o Picasso

do palco”75, proclama a teatralidade, recupera a tradição teatral e coloca o movimento cênico

em primeiro plano, utilizando tais procedimentos como “meios capazes de expressar a

emoção em formas coletivamente apreensíveis, isto é, comunicantes e funcionais do ponto de

vista político e ideológico”.76

No entanto, a teatralidade não era apenas um desejo de diretores e encenadores. Em

Teatro, Cine e Futurismo (1913)77, Maiakóvski declara: “Está claro que antes da nossa

chegada, o teatro não existia enquanto arte independente. Nota-se acaso na história as marcas

de tal existência? Sem dúvida!” E para comprovar refere-se ao teatro de Shakespeare que

expunha as convenções cênicas e exaltava a teatralidade. Mais adiante declara a repulsa ao

teatro que se “dedica a representação fotográfica da vida” 78 e exemplifica pela arte do ator

shakespeareano, “no qual os movimentos mais poderosos da alma não se exprimem mediante

palavras, mas sim mediante a entonação e atitudes livres e rítmicas. Não importa que as

palavras não tivessem sentido preciso ou que as atitudes fossem improvisadas”. Nesse
72
TAÍROV apud GUINSBURG. Op. cit., p. 166.
73
EVREINOV, N. Op.cit., p. 45.
74
GUINSBURG. Op. cit., p. 212.
75
Ibid.
76
Ibid.
77
Cf. MAIAKÓVSKI, V. Escritos sobre Teatro. In: SANCHÉZ, op. cit., p. 279-282.
78
No caso ao teatro naturalista cuja expressão mais significativa era representada pelo Teatro de Arte de
Moscou, sob a direção de Constantin Stanislávski.
58

contexto, a síntese entre o moderno e o tradicional é fator essencial nas peças de Maiakóvski.

Para aniquilar qualquer tentativa de psicologismos na cena, o poeta explora ao máximo as

formas do teatro da tradição popular: o circo, as manifestações dos barracões de feira, o

vaudeville, o teatro de variedades etc.

Schnaiderman79 ao discutir as relações entre Maiakóvski e a tradição refere-se de

imediato à contradição existente entre o futurista, que reagia com furor aos clássicos, que

pregava a destruição dos museus e pinacotecas, e o respeito que devotava à manifestação

popular, à arte russa tradicional, etc. No entanto, não se deve diminuir a atitude iconoclasta do

poeta que erguia seu sarcasmo e rebeldia necessária e fecunda contra as artes dos salões e

contra a glorificação do clássico na qualidade de modelos obrigatórios, mostrando o que havia

de frágil e ultrapassado neles.

Nas tentativas de apropriação do novo, tendo como baluarte as experimentações do

passado, além de esbofetear o chamado bom senso burguês e depreciar o realismo, temas

característicos dos cubo-futuristas; por volta da década de 1910, Maiakóvski adota também o

ideário revolucionário dos proletários e camponeses. E tal posição acentua-se principalmente

com a Revolução de 1917, quando seus temas voltam-se para a situação da Rússia, do

operário e de aspectos essenciais do socialismo: a revolução política e social do período

estava refletida, assim, na revolução das artes, em especial, a teatral. Em suas obras cênicas

isto se expressa por meio da ação e do espetáculo buscando a totalidade da vida,

fundamentando-se nos princípios da teatralidade.

É explícita a clara e vasta aproximação entre este conjunto de ideias e os experimentos

cênicos de Marinetti. Ambos os futurismos, o russo e o italiano, afirmam a necessidade de

aproximar o teatro do music hall, das variedades e feiras, bem como do circo – seus palhaços,

seus acrobatas, trapezistas e funâmbulos que fascinam e provocam o público com seus truques

79
SCHNAIDERMAN, B. Op. cit., p. 47.
59

e maravilhas. Além disso, o princípio wagneriano de obra de arte total também é recuperado

nesse momento: a utilização de múltiplas linguagens na cena futurista, pela colaboração

independente de diferentes artistas, gera grandes níveis de radicalismo cênico.

Na Rússia, a excitação da vanguarda pelas atividades do picadeiro encontra seus

fundamentos no futurismo italiano e nas ideias revolucionárias, já que estas estimularam as

transformações do espetáculo, “quer seja porque colocou a política como uma necessidade

cotidiana de debate, compreensão e superação, quer seja porque acirrou os contrastes entre as

tarefas práticas, no âmbito do social e do econômico, e as práticas artísticas diversas”80. No

entanto, toda a efervescente e complexa aproximação entre o circo e o teatro está intimamente

conectada à ideia de “um homem novo” dotado de vigor físico que iria elevar-se da terra, em

ascensão.

1.3. À imagem e semelhança do homem russo: o acrobata.

O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem,


uma corda sobre o abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar
a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. O
que há de grande, no homem, é ser parte, e não meta: o que pode
amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso. [...] Amo
aqueles que, para ser ocaso e sacrifício, não procuram, primeiro, um
motivo atrás das estrelas, mas se sacrificam à terra, para que a terra,
algum dia, se torne do super-homem.
Friedrich Nietzsche81

Em oposição ao “homem supérfluo”, figura característica do alienado e estagnado

intelectual da nobreza fundiária personificado pela literatura russa, encontra-se o retrato do

“novo homem”, dotado de grande força moral, dedicado a uma prática em benefício social.

80
BOLOGNESI, Mário Fernando. As cidades de Maiakóvski. In: Urdimentos Revista de Estudo Pós-
Graduados em Artes Cênicas. Florianópolis: UDESC/CEART, 2004, v. 1, n. 6, p. 41.
81
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010, p. 38-39.
60

Assim, o ideal de caráter deste personagem todo-poderoso é composto pela “mobilização dos

seus recursos pessoais no cumprimento de um único objetivo, sempre público, a rejeição sem

questionamento das atividades privadas do homem comum, e a disposição de suportar

qualquer sacrifício”82. Tal homem novo e revolucionário contaminou o pensamento do início

do século XX e influenciou diversas manifestações artísticas e culturais do período.

Com o advento da Revolução de 1917 e o estabelecimento do poder socialista soviético,

em associação a outros elementos, como o Proletkult83, o ideal de homem, como potência

revolucionária estabelecida, torna-se símbolo da Revolução. As experiências artísticas da

década de 1920 exaltam ao máximo a força e eficácia deste sujeito que supera o poder das

máquinas. Tudo isso se materializa no conjunto de saltos, flexões, voos, simulações, vigor

físico dos acrobatas, trapezistas e circenses que eram verdadeiras fontes para artistas e

intelectuais que expressavam o pensamento da época.

O apelo ao circo ocorre precisamente porque ele goza da licença de perturbar e parodiar

os gêneros convencionais por meio das ações vertiginosas, das feéricas acrobacias e

caracteriza um tipo de espetáculo, semelhante às exibições e debates da vanguarda futurista:

que poderiam causar surpresa ou entristecer, entreter ou alienar, baseando-se em seu eclético

arsenal de instrumentos e narrativas de caráter improvisacional. O circo e outras formas de

“magia” desfrutavam uma ampla popularidade na Rússia no início do XX, como, por

exemplo: a trupe de circo Ciniselli, os palhaços Anatolii Durov e Ivan Kozlov, além do

mágico Leoni cujo pseudônimo era V. Larionov84.

Na Rússia dos anos de 1910, novas formas de entretenimento em massa se propagaram,

incluindo o circo profissional – que frequentemente recebia italianos, turcos e ciganos – e a

82
Cf. MATHEWSON, Rufus apud FRANK. A busca de um herói positivo. Op. cit., p. 84.
83
Contração de Cultura Proletária, em russo: Proletarskaia Kultura. Organização de origem independente
e grande base popular, estabelecida em 1917, que deposita seu interesse na proposta de traçar uma cultura
revolucionária para a massa de operários.
84
Para orientar uma investigação pormenorizada sobre o trabalho destes e de outros artistas circenses que
tiveram repercussão neste período, consultar: LITÓVSKI, A. (org.). El Circo Soviético. Moscú: Editorial
Progreso, 1975.
61

indústria cinematográfica85. Assim, tais mudanças forneceram para o público um conjunto de

recriações e “ilusões”86, o que tornou cada vez mais complexo o vínculo entre a “magia” e as

possibilidades de avanço tecnológico. Na verdade, a realização daquela “fábrica de sonhos”87,

antes e depois de 1900, ocorre paralelamente ao desenvolvimento de outros e pragmáticos

encantos, como o telefone, o fonógrafo, o refrigerador a gás e demais aparelhos mecânicos e

eletrônicos que “realizavam milagres”. Estas invenções foram apropriadas imediatamente

pelo circo no início do século XX88.

Alguns “truques” – levitações, decapitações, serrar uma mulher ao meio, figurinos,

pintura de rosto, ventriloquismo, adivinhações – puderam ser associados não apenas ao circo

russo, mas também ao movimento modernista, e paralelismos podem ser observados entre tais

elementos. As roupas extravagantes e faces pintadas dos palhaços estão refletidas nas pinturas

de rosto de David Burliuk e outros cubo-futuristas; a cartola e as vestes coloridas do palhaço

Anatolii Durov89 são elogiadas e imitadas por Burliuk e Maiakóvski; o divertido poema de

Kliébnikov, Zakliatie smekhom (Encantação pelo riso, 191090), pode ter inspirado a leitura

“Sobre o riso”, texto proferido por Durov para público de circo. Tudo isso sugere uma grande

simbiose pela qual os futuristas russos, por meio da renovação da linguagem verbal e das artes

visuais, podem ter se apropriado da arte dos ventríloquos, por exemplo, para elaborar os

conceitos de deslocamento e recriação das palavras.

85
BOWLT, Jonh E. Moscow and St. Petersburg in Russia’s Silver Age. Londres: Thames and Hudson,
2008, p. 284-286.
86
Em russo, a palavra “mágico” equivale a illiuzionist, os primeiros cinemas em russo se chamavam
illiuziony.
87
Ibid., p. 286.
88
Ibid.
89
A família Durov, na Rússia, é formada por palhaços satíricos e homens de intensa atividade social. Seus
artistas inovadores transformaram a arte circense e ajudaram a elevar a qualidade do circo russo. Buscaram em
seus números novos enredos e novas formas interpretativas. Anatolii Durov, palhaço, domador, acrobata,
prestidigitador e “um magnífico recitador de monólogos” foi um dos principais agentes para estas mudanças. Ver
mais em: DMÍTRIEV, Y. Los Durov. In: LITÓVSKI, A. (Org.). Op. cit., p. 7-19.
90
In: Poesia Moderna Russa. Tradução: Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.118 e 119.
62

9. Anatolli Durov, palhaço e domador de animais

Um dado interessante é que na Rússia, em 1912, o pintor Ivan Miasoedov, filho do

renomado pintor realista do século XIX, Grigorii Miasoedov, publica o Manifesto do

Nudismo. Nele declara que o corpo nu era superior ao corpo vestido e, assim, o pintor tinha

numerosas fotografias nudistas dele próprio. Depois da Revolução de Outubro, o nudismo

russo recebeu uma justificativa ideológica quando, em 1922, os primeiros nudistas soviéticos

organizaram a “Semana do Corpo Nu”, em Moscou, declarando que o nudismo era a prática

mais democrática de se vestir, pois excluía qualquer possibilidade de hierarquia social

determinada pelas vestimentas. Alguns artistas aplicaram em suas atividades tais costumes e

fizeram emergir experimentos físicos para o novo século. O culto ao fisiculturismo, aos

acrobatas e às artes marciais espelhava-se nas obras de pintores como Kazimir Malévitch91

que retratava os robustos camponeses russos92.

A matriz dos números acrobáticos do circo, a sua matéria principal, é o corpo, o corpo

em risco, ou seja, “em desequilíbrio”93. A arte de se inserir na área do perigo pode ser

simbólico (no caso da queda da bola de um malabarista) ou, como acontece na maior parte das

vezes, real e vital. A vida de um trapezista, que se lança em movimentos vertiginosos do

91
Kazimir Malévitch (1878-1935), pintor nascido em Kiev, Ucrânia. Muda-se para Moscou em 1904 onde
começa a Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura. Exerce importante influência no modernismo russo e
colabora com os cubo-futuristas. Trabalha com Maiakóvski e Krutchônikh. Em 1913, desenha o cenário e o
figurino para a ópera futurista Vitória sobre o Sol. Inspirado no cubismo é um dos inventores da arte não
figurativa que, em 1915, chamava-se Suprematismo. A famosa tela Quadrado negro sobre fundo branco, pintada
em 1913 e 1915, constitui uma radical ruptura com as atividades artísticas da época.
92
BOWLT. Op. cit., p. 292.
93
GOUDARD, Philippe. Estética do risco: do corpo sacrificado ao corpo abandonado. In: WALLON,
Emmanuel (org). O circo no risco da arte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 25.
63

trapézio no alto da cúpula do circo, é posta em jogo na cena e a iminência da morte não é

simbólica, mas uma possibilidade constante em todas as acrobacias que só se realiza a partir

da alteração do equilíbrio que impulsiona a ação do acrobata. Entende-se pela ideia do artista

em desequilíbrio:

Diante das diversidades de suas habilidades, o artista de circo se expõe


deliberadamente ao desequilíbrio. Esse jogo entre o controle e a queda impõe que se
corra o risco, tanto físico quanto estético. Ele exibe uma instabilidade dos corpos e
dos objetos que remete a um modo de vida precário, mas também ao frágil estatuto
da arte94.

No circo, a interpretação depende intimamente da potencialidade física do intérprete e

as proezas são o seu baluarte; assim sendo, suas características básicas estão pautadas na

realização de um ato supostamente impossível e na superação do natural. É nesse campo que

se delimita o extraordinário. Se no circo o efeito cênico está fundamentado no corpo humano,

a execução dessas ações inconcebíveis no cotidiano pauta-se em uma educação corporal de

apurado requinte técnico, visando afetar diretamente os sentidos dos espectadores. O intenso

regime de treinamento do acrobata para obtenção da força e da técnica capazes de transgredir

os limites físicos almeja a vertigem e assume o risco como princípio do circo.

Bolognesi95 chama atenção para o fato de que essas sensações, no espetáculo circense,

são experimentadas porque o desempenho artístico dos acrobatas não se dá por símbolos ou

metáforas. O sentido é oriundo do corpo e é encontrado na performance em si mesma, no

momento único de sua duração. A “representação” do artista, ao demonstrar e vivenciar em

público suas habilidades, não se remete a nenhuma realidade exterior e ausente.

Representação e vida fundem-se no mesmo ato e como espetáculo representa aquilo que são.

Tudo isso só é possível pela tensão gerada entre o equilíbrio e desequilíbrio provocados pelo

corpo acrobata.

94
WALLON, Emmanuel. Op. cit., p. 23.
95
BOLOGNESI, Mario Fernando. O circo civilizado. In: SIXTH INTERNATIONAL CONGRESS OF
THE BRAZILIAN STUDIES ASSOCIATION, 2002, Georgia (EUA). Anais eletrônicos da BRASA VI.
Atlanta: BRASA VI, 2002. Disponível em:
<http://sitemason.vanderbilt.edu/files/cvBvB6/Bolognesi%20Mrio%20Fernando.pdf> Acesso em: 12 mai. 2010.
64

A transposição dos limites da condição humana associada à energia física, robustez,

intensidade e poder desenvolve a força, necessidade vital do corpo acrobata. Tais elementos

visam consolidar a regularidade da execução por meio da precisão, almejando a perfeição e a

segurança dos gestos. Com o domínio da técnica para a execução, o acrobata cria “a ilusão do

risco e a ilusão da experiência de superação da morte”96 e exerce sobre o público o fascínio e

vertigem tão aguardados. O circo cumpre, portanto, uma de suas funções: entreter e gerar

beleza, ao adotar, sobretudo, o corpo como centro e espetáculo.

As atividades circenses vinculavam-se às manifestações culturais e artísticas de tradição

popular e por ser uma arte que expõe os riscos e os limites humanos deixou marcas profundas

no imaginário do homem. Na Rússia, por intermédio do apoio do czar e por influência dos

espetáculos apresentados pelos moços de cavalaria franceses, fundou-se, em 1868, o primeiro

Circo que, em seu tempo, era um dos maiores e mais suntuosos. No século XIX o modelo de

circo fixo – não itinerante, por causa de todos os seus aparelhos, máquinas e operações

específicas – invade São Petersburgo e oferece às artes cênicas a reposição do corpo humano

como fator espetacular. No início do século XX, o espetáculo circense cumpria alguns dos

principais tópicos da luta poética da vanguarda modernista: abolição dos limites entre as

linguagens artísticas, a valorização da tradição e cultura popular, a afirmação de uma imagem

de homem que sobrepõe e vence as fronteiras do possível, como também a exaltação do

corpo. Após a Revolução de 1917, o circo é estatizado e passa por um período de conservação

e atualização. Adota-se o modelo de circo internacional, com representantes de diversas

famílias e artistas de países diferentes, o que proporciona uma expansão de mercado e a sua

valorização pela grande massa de espectadores97.

96
GUZZO, Marina Souza Lobo. Risco como estética, corpo como espetáculo. São Paulo: Annablume,
2009, p. 118.
97
COSTA, Eliene Benício Amâncio. Saltimbancos Urbanos: a influência do circo na renovação do teatro
brasileiro nas décadas de 80 e 90. Tese de Doutorado (ECA-USP), 1999, p. 59-60. (v. I)
65

Não foi apenas privilégio do circo a irrupção deste homem poderoso, dotado de extremo

vigor físico: a cultura esportiva, por exemplo, desenvolveu-se a partir da Revolução.

Obviamente, tudo está aliado à perspectiva de um extremo rigor técnico, exaltado durante as

revoluções científicas do século XIX. No campo das artes, os Ballets Russos e as

transformações da dança expressam perfeitamente toda esta conjuntura.

Paralelamente ao movimento de decadência na França, o ballet na Rússia contou com o

apoio e patrocínio dos czares que incentivaram a vinda de coreógrafos e intérpretes franceses

e italianos, contribuindo para o grande desenvolvimento da dança. Rapidamente o gosto do

público ficou cada vez mais apurado, o que determinou também o grau de formação dos

artistas russos na Escola Imperial cujo curso para bailarinos era de dez anos em regime de

internato. Coube ao francês Marius Petipa (1818-1910) a concepção do repertório que

glorifica o ballet russo na segunda metade do século XIX, marcando o período de seu reinado.

O contexto histórico na Rússia favorecia tais mudanças, assim, os ballets russos adquiriram

prestígio político, pois eram exibidos com orgulho pelos czares como troféu da coroa.

Contudo, os ballets não eram uma simples diversão do império, eles também estavam

conectados à vida do povo, assim como acontecia com as outras artes e com a literatura.

Petipa esforçou-se ao máximo para desenvolver os aspectos técnicos da dança que exigiam

um impressionante padrão de execução, o que o levou a importar bailarinas italianas para

aprimorar a qualidade técnica. Incorporou os procedimentos da escola francesa ao

virtuosismo, velocidade e exteriorização típicos da Itália, transmutando essas características

ao temperamento russo, apto a fundir contradições. Logo surgiram bailarinos tecnicamente

primorosos; os passos executados caracterizavam-se pelo extremo de sua beleza formal, de

proezas físicas, carregados de forte carga poética, apresentando ao homem uma imagem

idealizada de si. Data desta ocasião, a incorporação da acrobacia nos movimentos de dança,

criticada por alguns puristas como “truque circense”: as “levantadas soviéticas” – pela qual
66

um bailarino levanta sua partner com uma das mãos – ou os 32 fouettès consecutivos,

executados em passos acrobáticos pela italiana Pierina Legnani.

No início do século XX, intelectuais, músicos, artistas e escritores estavam em

efervescência questionadora em busca de renovação e autenticidade; a dança é parte disto.

Serguei Pavlovitch Diaghilev (1872-1929), integrante desse grupo, concentrou forças e

explodiu as regras arcaicas que regiam a dança. Um traço importante neste russo foi o

empenho em valorizar a tradição de seu país, apesar de privilegiar o grupo modernista e

absorver as novas correntes da arte com facilidade. Diaghilev foi convidado a levar uma

mostra da arte russa a Paris, estreando como empresário por volta de 1908. Na mesma

ocasião, acertou levar também um ballet àquela capital. Apesar das dificuldades, pelo

confronto com seus inimigos, Diaghilev, em ímpeto revolucionário, derruba as barreiras e

insistindo na dança como ponto de encontro entre todas as artes, apresenta na França, em

1909, um repertório composto por uma ópera e quatro ballets. O impacto foi forte: a ousadia

dos cenários, a inovação coreográfica, a admirável música de Igor Stravinsky e a revitalização

da dança masculina renderam os parisienses à expressão e às sapatilhas russas. O alto nível

técnico dos bailarinos e certo atletismo existente na dança, em movimentos acrobáticos,

impressionaram o público europeu. O carisma, a agilidade e os “pés alados”, conforme

escreviam os críticos, de Vaslav Nijinsky, colaborador de Diaghilev, como também de outros

dançarinos russos, devolveram à dança o seu caráter viril.

Diaghilev, em parceria com seus colaboradores, provocou uma verdadeira revolução na

dança, orientando os seus novos caminhos na Europa. Ele queria exprimir a vibração da alma

russa em suas obras, por meio da recuperação de contos medievais, do ambiente das feiras e
67

seus tipos populares, como também a partir da concepção de libretos em torno de um rito

tribal, ambientado na Rússia pagã e primitiva.98

A acrobacia, assim, contamina as diversas linguagens artísticas. O jogo acrobático visa

preencher o espaço pelo corpo físico do homem, tendo em vista as distâncias, os pesos e a

superação dos seus limites. Tal preenchimento é feito concretamente por meio dos gestos,

saltos, equilíbrios, voos e força. A execução perfeita, segura e precisa provém de uma prática

elaborada com disciplina e exaustão de um treinamento que oferece vigor ao corpo. O

domínio da técnica impecável possibilita o controle do tempo futuro no que diz respeito à

segurança. Cabe ao sujeito que a executa o aperfeiçoamento da habilidade que o conduzirá à

maestria, nesta não pode haver falhas. O corpo acrobata, portanto, desafia o seu

posicionamento no espaço e sugere a potência de superioridade humana, que ao deter mais

habilidades e probabilidade de ações, visões e experimentações, personifica o ideal do homem

russo do início do século XX: harmônico, audacioso e revolucionário.

O corpo acrobata é aquele que assume o risco como princípio, encarando-o como

imprescindível, real e vital para provocar a sensação de vertigem no público, de proximidade

com os limites humanos. Cabe frisar que a utilização desta fisicalidade é permeada de alta

carga poética, definindo pela expressividade de seus gestos a busca para a transformação da

condição do homem. Ao estar em desequilíbrio e ser desafiado pelo espaço, ele propõe outras

maneiras de posicionar o seu corpo, o que é encarado como potência para, assim, executar

perfeitamente o salto, movimento ou voo.

Se “os primeiros circenses eram exímios caçadores, ágeis, fortes, de grande pontaria e

de muito bom humor”99, reconhece-se, portanto, que o acrobata recupera a imagem do

bogatyr e aproxima-se deste “novo homem”, que representa a materialização da

98
Mais detalhes sobre os ballets russos de Diaghilev e Nijinsky em: PORTINARI, Maribel. Do
romantismo à Revolução de Diaghilev. In: História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, cap. III, p.
81-130.
99
CASTRO, Alice Viveiros de. A arte do insólito. Revista Continente Cultural. Pernambuco, ed. 77,
maio 2007.
68

transcendência humana em coerência com as forças naturais, da física. Dessa forma, a

imagem do acrobata permeia o pensamento russo e excita a admiração ao retratar o corpo

desprovido de barreiras, o corpo potente, o corpo em liberdade que realiza ações

extraordinárias, não naturais, carregadas de encanto e beleza.

Antes mesmo de alguns vizinhos europeus, o circo russo já vivia um período de

teatralização e intensa politização, sendo reorganizado sob o controle do Estado. O momento

histórico era de guerra civil, por isso, a mola propulsora para as reformas artísticas era a

Revolução. As preocupações com a política e o ideal revolucionário provocaram mudanças no

espetáculo e a necessidade de discussão era constante. Aliava-se a isto o desejo de uma

poética inovadora e crível, por meio do rompimento com as formas artísticas que não

estivessem a serviço da Revolução. O objetivo era “politizar a arte e a principal opção para se

alcançar essa meta se deu em torno da transformação e da superação das técnicas naturalistas,

aliadas aos temas que a nova sociedade impingia” 100.

O teatro, por outro lado, recorria ao imaginário circense para estimular as manifestações

dramáticas. O intercâmbio entre as duas linguagens, durante o período, e sua aplicação na

cena também já se revelava. O retorno à teatralidade e à tradição popular conduz a

experimentações pedagógicas para a formação do ator em consonância com as aspirações da

revolução inspirado no potencial do “novo homem”. Nesse sentido, os anos de 1920 expõem

uma prática teatral fortemente enraizada nas atividades do picadeiro, revelando uma história

complexa e muita controversa a partir do resultado das experiências pré-revolucionárias e a

posterior formação dos grupos teatrais de agitação e propaganda (agit-prop) com profunda

base acrobática101.

100
BOLOGNESI, Mario Fernando. Op. cit., 2004, p. 41.
101
Para mais detalhes sobre este período consultar: GARCIA, Silvana. A matriz histórica do teatro de
natureza política. Ibid., p. 1-45
69

As experimentações pedagógicas, que antecedem a Revolução de 1917, de Vsévolod

Emilievitch Meierhold inserem-se nesse contexto, e, não por acaso, o circo, a grande paixão

do encenador, exerce uma grande influência em toda sua trajetória artística.


70

CAPÍTULO II

O corpo acrobata na pedagogia de V. E. Meierhold.

É preciso que aqueles que se dedicam a todos os gêneros da arte,


ao teatro, às variedades e ao circo, se unam em um trabalho
em comum e todos juntos, o menos separados possível,
se aproximem do público.
Vsévolod Emilievitch Meierhold.
71

Para Ripellino102 é das premissas proclamadas por Marinetti que deriva o entusiasmo da

vanguarda cubo-futurista pelos artistas circenses. Tanto o Manifesto do Teatro de Variedades

(1913) como o Manifesto do Teatro Futurista Sintético (1915) solicitavam a aproximação

entre o teatro de prosa e o music hall, pois este parecia mais adequado aos futuristas pelo

ritmo veloz da época. Dentre os procedimentos cênicos utilizados pelo poeta italiano, a

provocação do público com “maravilhas e truques”, por meio de acrobacias e “fisicofolias”,

era um importante recurso ao opor a ação à atuação psicológica. Isso pode ser ilustrado pelo

seguinte trecho retirado dos seus escritos de 1913:

Fomentar de todas as maneiras o gênero dos palhaços e dos excêntricos americanos,


seus efeitos de grotesco exultante, de dinamismo espantoso, suas piadas grosseiras,
suas enormes brutalidades, seu paletó com surpresas e suas calças profundas como
um porão de barco, de onde surgirá, com mil outras coisas, a grande hilaridade
futurista que deve rejuvenescer a face do mundo 103.

Muitos dos artistas cênicos e poetas russos do período, que se apoiavam na tese de

Marinetti, tinham experiência com a arte pictórica ou fizeram parcerias com pintores

futuristas. Iúri Ánienov, por exemplo, em setembro de 1919, no Teatro Ermitage, em

Petrogrado, representou a comédia O Primeiro Destilador, de L. Tolstói. A cena do inferno

prestava-se a “bizarras invenções”104 e foi reestruturada numa sequência de números de music

hall. Participaram da montagem dois artistas de circo: um palhaço acrobata, que interpretou o

Bufão do Diabo ancião, e o “Homem-Borracha”, no papel de Diabo vertical.

V. E. Meierhold, em suas experiências no Teatro-Estúdio, já adotava como um dos seus

pilares a perspectiva pictórica – a outra era o texto. Cabia ao diretor articular a dramaturgia

em cena para o sucesso da obra artística e ao intérprete a execução de suas ideias. Nesse

102
RIPELLINO, Angelo Maria. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1971,
p.140.
103
Fomentar por todos los medios el género de los clowns e los excéntricos americanos, sus efectos de
grotesco exultante, de dinamismo espantoso, sus groseras ocurrencias, sus enormes brutalidades, sus chalecos
com sorpresas y sus pantalones profundos como bodegas de barco, de donde surgirá con otras mil cosas la gran
hilaridad futurista que debe rejuvenecer la faz del mundo. MARINETTI, Fillipo T. El teatro de Variedades
(1913). In: SÁNCHEZ, José A. (Ed.). La escena moderna. Madrid: Ediciones Akal, 1999, p. 119.
104
RIPELLINO. Op. cit., 1971, p. 141.
72

sentido, a expressividade do corpo do ator, pela primeira, vez era cultivada e aproximava-se

da linguagem da pintura, tomando-a como base. Inspirado pelos pintores primitivos “a

„estatuária plástica‟ foi experimentada, não como cópia das pinturas, mas a partir da

imaginação criativa do diretor que pretendia concentrar o ator – física e mentalmente –

através das poses, do desenho do gesto e da ênfase do perfil do corpo”.105

Guinsburg106 considera, por exemplo, que a proposta de atuação para o espetáculo A

Morte de Tintagiles, de Maurice Maeterlinck, dirigido por Meierhold durante o período,

deveria integrar-se ao fundo cenográfico de tal modo que o intérprete perderia a sua espessura

e se converteria numa espécie de massa ou mancha de cor a diferenciar-se unicamente pelo

décor107. O desenho rítmico e plástico do gesto “cristalizaria a música de uma recitação

friamente orgiástica”108, logo, o corpo do ator estaria caracterizado como “[...] uma estatuária

cênica que trouxesse não só pelo dito mas sobretudo pelo não dito, pelas áreas de sombra e

silêncio, os signos conotativos dos mistérios inefáveis” 109.

Fundado também por Constantin Stanislávski, a liquidação do Estúdio, localizado na

Rua Povárskaia, aconteceu em virtude do desacordo entre os projetos teatrais de ambos os

diretores. As discordâncias sobre os fundamentos da arte teatral; o pensamento

stanislavskiano, sempre em torno da representação mimética, em contraposição aos novos

procedimentos técnicos meierholdianos, assim, “entre a exposição ao natural da vida do

105
THAIS, Maria. Na cena do Dr. Dapertutto. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 23.
106
GUINSBURG, Jacó. Stanislavski, Meierhold & Cia. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 26.
107
Tais proposições também são adequadas aos trabalhos de dois revolucionários da cenografia do século
XX: Adolphe Appia (1862-1928) e Edward Gordon Craig (1872-1966). Em linhas gerais, o primeiro foi
influenciado pela obra de Richard Wagner e constata que a cenografia deveria ser um complexo sistema de
volumes e formas reais que conduz incessantemente o corpo do ator a achar soluções expressivas e plásticas. A
teoria cenográfica de Appia se baseia essencialmente em princípios arquitetônicos. Craig, que também é
influenciado pelas ideias de Wagner, privilegia a estruturação arquitetônica do espaço. Meierhold, que foi
influenciado por Craig, reconhece na Revista Teatral da Sociedade de Literatura e Arte, publicada em São
Petersburgo, em 1909-1910, o quão importante são as experiências cênicas de Craig. Para mais detalhes, ver:
THAIS, Maria. Op. cit., p. 272-287.
108
GUINSBURG. Op. cit., p. 26.
109
Ibid.
73

homem e a iluminação simbólica de seu mundo não podia haver conciliação estética e

composição teatral satisfatória”110.

Após essas experiências, Meierhold percebe que não era possível reconstruir um novo

teatro nos moldes da atuação pregada pela escola naturalista do Teatro de Arte de Moscou. E,

conforme aponta Maria Thais111, é neste período que ele muda a perspectiva sobre o trabalho

do ator e desenvolve a concepção de uma escola. O ator não era mais visto como um

intérprete das ideias do diretor, mas como criador, e cabia a este último a responsabilidade de

prepará-lo.

O trabalho com a dramaturgia simbolista de Maeterlinck ofereceu a Meierhold o suporte

para a criação de uma nova técnica cênica. Os textos do autor não pressupõem uma

associação com a vida cotidiana e a categoria de ação é definida como uma ocorrência no

mais íntimo do personagem, e não mais em acontecimentos exteriores a ele. Tais teses

ganham vida em cena por meio da pausa, dos silêncios e, especialmente, nas formas e nos

movimentos plásticos. A partir daí surgem os moldes para a expressão do ator e, portanto, “o

novo teatro nasce da literatura”.112

11. Vsévolod E. Meierhold, 1905

110
Ibid., p. 29.
111
THAIS, Maria. Op. cit., p. 28.
112
MEIERHOLD, V. E. Sobre o teatro. In: THAIS, Maria. Op. cit, p. 212.
74

Em 1906, Meierhold aceita o convite da atriz Vera Komissarjérvskaia, intérprete

feminina consagrada nos palcos russos, para dirigir a sua companhia. A atriz aspirava ao

repertório do teatro simbolista, pois acreditava que este seria o teatro do ator, do espírito livre.

A parceria Meierhold-Komissarjérvskaia, num primeiro momento, parecia perfeita:

Pois se ali estava, de um lado, um encenador, que recusando-se a tomar a


plausibilidade mimética da ação e a ilusão da realidade na moldura cênica como
condições fundantes da representação teatral, atrevia-se a propor uma decidida
reelaboração formal da pesada materialidade do palco e do corpo do ator,
precisamente a partir de seus elementos inerentes, para o resgate de sua
expressividade poético-dramática no tablado e de seu poder de conjuração cênica
das vicissitudes da alma na sondagem existencial e na transcendência espiritual, que
a arte simbolista anelava comunicar.113

A atriz estava disposta a entregar-se por completo aos procedimentos meierholdianos e,

deste encontro, quatro obras que combinaram o anseio de ambos foram produzidas: Irmã

Beatriz, A Barraca de Feira, O casamento de Zobeida e A vitória da Morte. Tais encenações

simbolistas mudaram os rumos da cena russa, já que investiram na aproximação entre palco e

plateia, bem como no desenvolvimento de ações no proscênio e a utilização de uma

cenografia sugestiva, na qual os elementos eram reduzidos ao mínimo necessário.

As inovações cênicas de Meierhold, por meio de tais princípios e pela estilização, eram

um meio de educar o ator e apresentavam uma nova abordagem ao seu trabalho. Solicitava o

cumprimento de novas tarefas, controlou o seu comportamento e a sua natureza criativa,

almejando que o ator chegasse às motivações interiores por meio de uma interpretação que

fosse satisfatória ao esboço externo da cena, realizado pelo diretor. A trajetória visual e

estética adotada pelo encenador russo oferecia ao intérprete um corpo dotado ora por uma

atitude pictórica, ora por uma atitude escultural. Descobre, então, um princípio criativo: “o da

composição cênica, da encenação, como um procedimento pedagógico” 114.

Os procedimentos estéticos simbolistas foram explorados com maestria na encenação do

espetáculo A Barraca de Feira, de Aleksandr Blok. A montagem “marca o início de uma nova

113
GUINSBURG, J. Op. cit., p. 37.
114
KRASOVSKII, I. M. apud THAIS, Maria. Op. cit., p. 35.
75

época no teatro russo”115. A cena “é irrompida por uma quente rajada de clowniere metafísica,

de burlesco devassador”116, utilizando máscaras da Commedia dell‟Arte117 italiana e

mesclando aos seus semblantes algumas figuras distritais da Rússia. Cabe considerar aqui a

atuação de Meierhold como Pierrô, fundamentada na agilidade acrobática e numa qualidade

vocal sussurrada, amparada por sua aptidão mimética. É relevante apontar também que, nesta

obra, “junto com a noção de teatralidade, transformou-se também a perspectiva do eixo da

cena”118. Há os primeiros contornos de um teatro que seria realizado a partir do ator, e não da

literatura, e que deveria ser encarado com um acontecimento estético e artístico.

Os conflitos ocasionados pelas diferenças de temperamento, pelo fracasso econômico,

pela crítica, pela autonomia da direção e, especialmente, o choque das tradições teatrais tão

distintas explodiu o projeto comum entre Meierhold-Komissarjévskaia em 1907. Podem ser

levantadas considerações importantes do percurso artístico do encenador russo até então, em

referência ao desejo de Briússov119: “Da verdade inútil das cenas contemporâneas clamo à

115
RIPELLINO, Angelo Maria. O truque e a alma. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 114.
116
Ibid.
117
Historicamente, somente no século XVIII a Commedia dell‟Arte passou a ser reconhecida por este nome
e antes de tudo significa uma comédia encenada por atores profissionais, associados por meio de um estatuto
próprio de regras, pelo qual os cômicos empenhavam-se em respeitar-se e proteger-se reciprocamente. Segundo
Dario Fo o termo “arte” corresponde a ofício. A Commedia dell‟Arte não tem sua origem na literatura de textos,
mas na prática artística, baseando-se no ajuste entre diálogo e ação, monólogo falado e gesto executado, e nunca
unicamente na pantomima. O enredo possui discursos ligeiros e alegres, não premeditado, mas espontâneo, com
frases postas de maneira inesperada e com metáforas despropositadas, como se fossem ditas para insinuar
assuntos diferentes para parecer tudo uma grande confusão. Os personagens são estereótipos fixos e geralmente
usam máscaras e o ator é o próprio autor, diretor, montador, fabulista que possui uma bagagem grande de
situações, diálogos, gags, ladainhas, arquivadas na memória para serem utilizadas no momento certo. Além
disso, o cômico dell‟Arte é dotado de uma multiplicidade técnica: ele canta, toca instrumentos, dança, domina
truques acrobáticos e de equilíbrio, é malabarista , prestidigitador, mágico, etc. Ver mais detalhes em: FO, Dario.
Manual mínimo do ator. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.
118
THAIS, Maria. Op. cit., p. 37.
119
Meierhold teve contato com diversos artistas e intelectuais, grande parte formadora do simbolismo
russo, que desejavam devolver ao teatro a grandeza sacra perdida, assim como compartilhavam da ideia da
superação dos princípios realistas-naturalistas. Briússov, intelectual que lutou contra as teses do Naturalismo,
escreveu em 1902 o texto Uma Verdade Inútil cujas proposições prezam por uma obra de arte que manifeste toda
a interioridade do artista. Formula a teoria apoiada nas tradições do teatro antigo, que chamava Teatro de
Convenção. Era frequentador das reuniões de Ivánov em sua “Torre”.
76

convenção consciente do teatro antigo”120, Meierhold adota, como procedimento cênico

elementar, a convenção121.

A convenção consciente como método artístico de criação, proposta por Briússov,


introduziu uma divisão fundamental na organização do pensamento meierholdiano:
de um lado, os artistas criadores de uma arte permanente (poetas, escultores, pintores
e compositores) e, de outro, os de quem é exigido retomar sua obra para torná-la
acessível (atores, encenadores, músicos, dançarinos). O problema da convenção em
Meierhold oscilou nestes dois campos: o da composição da obra e o da execução. 122

O teatro da “Convenção Consciente” preza por uma cena em que o palco desça ao nível

da orquestra, eliminando a ribalta, e solicita a potência expressiva do ritmo da dicção e do

movimento por meio de uma representação em que a palavra e o gesto sejam guiados cada

qual por seu ritmo próprio, que podem ou não coincidir. O espectador participa do ato criador

do espetáculo juntamente com as figuras do dramaturgo, do encenador e do ator. Este não se

esquece por um só instante da sua ação de compor um quadro no palco e que dispõe plástica e

ritmicamente na cena a sua tela ou as linhas e as massas da corporificação teatral expressiva e

significativa123. Meierhold deseja afirmar a teatralidade em oposição ao teatro naturalista e

certifica-se de que a apropriação de elementos poéticos, musicais, plásticos e simbólicos não

estão de acordo com as tentativas de encantamento da realidade pela ilusão.

Ao declarar que “no teatro de Convenção, a técnica luta contra o procedimento de

ilusão. O teatro não tem necessidade da ilusão, esse sonho apolíneo” 124, Meierhold busca

exaltar no espectador a “embriaguez dionisíaca” como a fonte renovadora das artes cênicas.

Sendo assim, o “acento deve recair na composição, estilo, forma, ritmo, movimento, saltação

120
Apud MEIERHOLD. In: THAIS, Maria. Op. cit., p. 231.
121
Convenção: “conjunto de pressupostos ideológicos e estéticos, explícitos ou implícitos, que permitem o
espectador a receber o jogo do ator e a representação. A convenção é o contrato firmado entre autor e público,
segundo o qual o primeiro compõe e encena a sua obra de acordo com normas conhecidas e aceitas pelo
segundo. A convenção compreende tudo aquilo sobre o que plateia e palco devem estar de acordo para que a
ficção teatral e o prazer do jogo dramático se produzam”. Para mais detalhes, ver: PAVIS, Patrice. Dicionário de
teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 71.
122
THAIS, Maria. Op. cit., p. 47.
123
GUINSBURG, J. Op. cit., p. 62.
124
MEIERHOLD. THAIS, Maria. Op. cit., p. 237.
77

(dança, mímica, pantomima), arquitetura”125. O teatro torna-se dinâmico e assim deve

comportar-se até o fim. Dessa maneira, “o teatro deve desvelar definitivamente sua essência

dinâmica; e, assim, deve deixar de ser „teatro‟ no sentido de „espetáculo‟. Queremos nos unir

para criar, para „agir‟ em conjunto e não somente contemplar”126.

Esse pensamento foi orientado por uma tendência cada vez mais forte de retorno às

antigas fontes teatrais. O desejo era recuperar as experiências com a tradição dos teatros

populares, dos barracões de feira, da Commedia dell‟Arte e das atividades circenses, pois tais

gêneros afirmam a comunicação não essencialmente verbal e eclética. O intérprete de certas

práticas teatrais, até o século XVIII, por exemplo, sabia dançar, cantar, dominava as

disciplinas acrobáticas, proferia textos dos quais poderia ser autor.

Após o período com a companhia da atriz Vera Komissarjévskaia, Meierhold concilia

simultaneamente duas atividades teatrais: em 1908, foi convidado por Vladimir Teliakovski 127

para dirigir os Teatros Imperiais, onde desenvolveu a prática oficial até 1917 e, paralelo a isto,

aperfeiçoou seu trabalho experimental ao exercitar e utilizar procedimentos pedagógicos para

a formação do novo intérprete. Reconhece-se que Meierhold, de 1908 até o final da vida,

reflete uma formação para o ator e, portanto, sua atividade como encenador está atrelada a um

projeto pedagógico.

Como diretor dos Teatros Imperiais, encenou sua primeira ópera, Tristão e Isolda

(1909), entre outras produções como, por exemplo, Don Juan (1910) e Orfeu (1911).

Observa-se aqui um fator importante na montagem no Teatro Aleksandrinskii, do espetáculo

Don Juan de Molière. Tal obra, para Maria Thais128, sintetiza uma vertente importante para

este período: o retorno às tradições. A cena era reconstruída de acordo com os princípios do

teatro de máscara, na tentativa da não recuperação histórica e sem recorrer à máscara

125
GUINSBURG, J. Op. cit.,
126
MEIERHOLD. THAIS, Maria. Op. cit, p. 234.
127
Vladimir Teliakovski (1861-1924) diretor dos Teatros Imperiais de São Petersburgo de 1901 a 1917.
128
THAIS, Maria. Op. cit., p.50.
78

tradicional. A sua utilização definia um estilo de atuação, por exigir a expressão do

movimento e do gesto, além da palavra. Portanto, a recriação de Don Juan se estabelecia

como “uma partitura cênica semelhante a um balé e seus traços de comédia popular, não

impediam a rigorosa formalização da encenação”129. Data também do período a noção de uma

escritura cênica para o desenvolvimento do drama, fundamentada no roteiro de ações.

A Rússia, durante o período, segue mergulhada numa intensa efervescência artística e

cultural, conforme apontado no capítulo anterior. Nessa época, cresce o número de grupos de

artistas dispostos a renovar a arte do seu país e também o interesse pelos gêneros teatrais

populares como uma alternativa poderosa para combater as formas artísticas estabelecidas.

Paralelamente a esta reivindicação pela tradição, afirma-se a “pompa da „obra de arte

total‟”130 e a influência de Richard Wagner é cada vez mais sentida desde o início do século

XX,

Na medida em que o desenvolvimento da arte da encenação aprofundou a unidade


do espetáculo, pressupondo uma relação de interdependência entre todos os seus
componentes. O diálogo com as artes intermediárias foi consciente e constitui o
problema principal da criação, e nenhum grande homem de teatro do século XX
escapou do confronto com as teorias de Wagner.131

Nesse ambiente, o projeto teatral meierholdiano é imprescindível para o entendimento

da conjugação entre estes elementos e as transformações da cena teatral russa. Nas

experimentações cênicas vividas na primeira década do século XX, esboçam-se

paulatinamente as matrizes teóricas que articulam o pensamento entre encenação e pedagogia.

Meierhold, como encenador, elabora em sua obra um sistema próprio de representação “em

que a encenação era „o próprio local de aparecimento do sentido da obra teatral‟ e o

espectador só tinha „acesso à peça por intermédio desta leitura do encenador‟”.132

129
Ibid.
130
PICON-VALLIN, Beatrice. A cena em ensaios. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 1.
131
THAIS, Maria. Op. cit., p. 48.
132
Ibid., p.73.
79

Nesta pesquisa, destaca-se um elemento-chave: a questão do movimento cênico como

expressão do ator na composição do espetáculo. Para formação do intérprete e do seu trabalho

corporal, Meierhold recupera os princípios da tradição do teatro e adota os procedimentos

circenses como um elemento indispensável. Trata-se de conferir ao ator, por meio das

atividades do picadeiro, “a obrigação de adquirir o saber, a técnica e a disciplina que lhe

faltam no início do século na Europa”133. Metaforicamente, há o desejo de igualar o ator à

imagem do Bogatyr, trazendo em si “a vontade de esculpir um „corpo maravilhoso‟ a partir de

seu corpo cotidiano”134. O caminho a ser realizado por Meierhold, a partir das experiências

acumulada ao longo de sua carreira artística, previa a criação de condições para o

desenvolvimento de suas descobertas.

2.1. Apontamentos sobre as experiências pedagógicas do Dr. Dapertutto

Para proteger-se do impedimento de exercer uma prática artística concomitante às

atividades do Teatro Imperial, Meierhold assume o pseudônimo de Dr. Dapertutto,

personagem extraído do conto de Hoffman135 Die Abenteuer der Sylvester-Nacht. Apesar de

vincular-se ao ideal do herói romântico, aventureiro e poeta, Dappertutto (ou o Doutor

Emtodaparte) evidencia um caráter moderno pela sua personalidade diabólica e charlatã. É

esta figura que transita nos cabarés teatrais e encena pantomimas e paródias, revelando suas

experimentações, enquanto as grandiosas encenações meierholdianas surgem na cena

imperial.
133
PICON-VALLIN, Beatrice. A arte do teatro: entre a tradição e a vanguarda: Meyerhold e a cena
contemporânea. Organização de Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto: Letra e Imagem, 2006,
p. 28.
134
Ibid.
135
E. T. A. Hoffman (1776-1822) escritor, compositor, caricaturista e pintor alemão. Dedicou-se à
literatura e às artes. Em 1813 entra em contato com o grupo do romantismo ao se fixar em Berlim. No
romantismo alemão foi o mestre da literatura fantástica e influencia sobremaneira o teatro russo pré-
revolucionário.
80

A dupla personalidade do encenador se desenvolveu ao longo dos anos, em um


trânsito permanente entre os dois mundos, o oficial e o experimental. Doutor
Dapertutto brinca, arrisca, experimenta, prova. O encenador Meierhold age com
ponderação, com clareza de objetivo, com fundamento. O Doutor Dapertutto
improvisa, o encenador Meierhold arranca cada espetáculo de um rigoroso plano,
traçado com precisão. [...] Doutor Dapertutto propõe a ideia do novo teatro e, sem
protelar, o executa com liberdade, não evitando extremos. O encenador Meierhold,
que comunga e encarna as mesmas ideias, as contorna solidamente, definitivamente,
irrefutavelmente. Doutor Dapertutto faz com desembaraço o esboço da maturidade
criativa do encenador Meierhold 136.

As atividades pedagógicas de Meierhold nascem da dificuldade de materializar suas

ideias para a cena. Durante sua trajetória, ele detecta a impossibilidade de estabelecer um

novo teatro regido pelas antigas normas, devido ao choque com os atores pertencentes à outra

tradição teatral: seja dos princípios naturalistas do Teatro de Arte de Moscou, ou do teatro

clássico russo.

Em setembro de 1913, na cidade de São Petersburgo, o encenador dá início às

atividades do Estúdio da Rua Troitskaya nº 18, que funcionava durante quatro dias na semana

das 16 às 19 horas. Era cobrada uma pequena taxa dos estudantes, que cobria as despesas de

funcionamento. Muitos deles, entretanto, não tinham experiência prévia com atuação e no

grupo do qual participavam havia estudantes universitários, estudiosos de teatro, arquitetos,

artistas de diversas áreas, músicos e críticos. O Estúdio, de fato, não funcionava como uma

escola dramática, mas sim como um laboratório para uma grande experiência coletiva em que

Meierhold foi envolvido em um processo de aprendizagem junto de seus alunos137.

136
THAIS, Maria. Op. cit., p. 81 e 82.
137
BRAUM, Edward. Meyerhold – A revolution in theatre. London: Methuen, 1995, p. 126 e 127.
81

12. Vsévolod Meierhold / Dr. Dappertutto, por Boris Grigoriev, 1916

Em 1914, o Estúdio é transferido para a nova sede, na Rua Borondiskaia nº 6, na Casa

dos Engenheiros das Vias de Comunicação do Município de São Petersburgo. A mudança

possibilitou a ampliação do espaço e permitiu ao encenador a criação de melhores condições

para o trabalho criativo. O salão do prédio, por exemplo, era ocupado com um pequeno palco

e uma plateia para, aproximadamente, trezentos espectadores. Neste espaço, portanto,

Meierhold se depara com problemas elementares sobre a constituição da cena e do trabalho do

ator, ou seja, “experimenta uma transformação radical, não apenas dos meios e procedimentos

técnicos que utiliza com o ator, mas, principalmente, na correspondência destes com a

composição da cena”138.

É relevante apontar, neste contexto, a publicação da revista Luibov k Triom Apelsiam, O

Amor das Três Laranjas – A Revista do Dr. Dapertutto, que relatava a sua prática cênica no

138
CARREIRA, André; NASPOLINI, Marisa (Org.). Meyerhold: experimentalismo e vanguarda. Rio de
Janeiro: E-papers, 2007, p. 58.
82

Estúdio de 1914 a 1916. Ademais, descrevia o conteúdo das disciplinas e seus orientadores,

bem como a estrutura e organização das aulas, a ocupação do espaço, os exercícios, a sua

ficha técnica, etc. O nome da revista foi dado por Vladimir Nikolaievitchii Soloviov 139 e

sintetizava “os temas que predominariam na revista: a obra de Hoffmann e de Carlo Gozzi e

os procedimentos cênicos do teatro de máscara italiano”140.

A poética de Carlo Gozzi 141 conduziu o olhar meierholdiano sobre o ator e sua técnica

pela perspectiva do cômico dell‟Arte. A obra do dramaturgo italiano desejava representar o

mundo como um lugar festivo, cheio de imaginação, ilusão, encantamento, e não um espelho

fiel da realidade. A apropriação daquele universo garante o retorno aos fundamentos do teatro

e suas convenções, já que não havia a premissa de uma aproximação política, histórica ou

sociológica, mas sim teatral. Em verdade, a Commedia dell‟Arte conduziu tematicamente a

revista O Amor das Três Laranjas, pois fez parte do conteúdo do curso teórico e prático do

Estúdio e era assunto de muitos artigos críticos e de reconstrução histórica.

A apropriação das tradições do teatro pretendia reconstruir uma “versão, uma

interpretação bastante mitificada”142 e não recuperar uma verdade histórica. Por intermédio

dos estudos das técnicas tradicionais, o novo comediante não apenas era conduzido ao

domínio técnico, mas seria capaz de reconhecer sua capacidade criativa. Nesse sentido, os

integrantes do Estúdio de Meierhold deveriam recuperar o verdadeiro sentido da linguagem

teatral ao vivenciar a prática da Commedia dell‟Arte, por exemplo, os princípios que

fundamentam as leis do teatro, e, especialmente, o treinamento crítico, já que este admitiria a

articulação das ideias para a cena. Ao afirmar o estatuto artístico da arte do ator, articulando o

139
Soloviov (1887-1941) colaborou com a publicação da Revista O Amor das Três Laranjas e foi o
responsável pelos estudos da técnica cênica da Commedia dell‟Arte no Estúdio da R. Borondskáia em São
Petersburgo. Com vinte e quatro anos estudava filologia.
140
THAIS, Maria. Op. cit., p. 81.
141
C. Gozzi (1720-1806) é dramaturgo, nascido em Veneza na Itália. Escreve obras para trupes de
Commedia dell‟Arte. Em 1761 lança a comédia “O Amor das Três Laranjas”, marcada pelo encantamento e
magia, semelhante aos contos de fadas. Esta fábula dá o nome à Revista do Doutor Dapertutto.
142
THAIS, Maria. Op. cit., p. 87
83

discurso teórico às atividades práticas do Estúdio, a Revista, ainda, coloca a figura do ator

popular como o principal personagem de suas reflexões.

Soloviov foi o responsável pela classe da Commedia italiana e sua trajetória artística

está aliada a Meierhold desde 1911. Este, ao conjugar a aprendizagem teórica, que precedia as

atividades práticas, pôde criar as bases para o seu trabalho posterior. O encenador russo foi

orientado à reflexão crítica do movimento cênico e a elaboração de exercícios e pantomimas

para as suas aulas, construídos a partir de roteiros da Commedia, acompanhados por música.

Tudo isso permitia detectar as capacidades expressivas de cada estudante, o que legitima,

portanto, o valor pedagógico desta técnica cênica.

Para Maria Thais “é impossível compreender o projeto pedagógico meierholdiano no

período sem os aportes teóricos de Soloviov” 143. Ele entendia o estudo da técnica italiana

como um meio, que através do aprendizado de elementos cênicos diversos, oferecia ao

comediante um determinado modelo de composição da improvisação. Para isso, como na

comédia improvisada, o ator deveria encontrar as emoções por meio da ação corporal,

adotando como viés as características previamente conhecidas das personagens, em

contraponto à motivação psicológica. A expressividade, basicamente, estaria no domínio do

gesto, das poses, da coordenação do movimento do seu corpo no lugar onde a ação é

provocada.

As aulas de Soloviov recorriam ao jogo de máscaras para revelar a personalidade física

e psíquica dos estudantes e, assim, ressaltar suas habilidades e precisão corporal, a capacidade

de manipulação dos objetos, bem como a composição das personagens. Nota-se que, neste

contexto, os alunos assimilavam um treinamento por meio de passos, saltos, “cambalhotas e

golpes de espátula, trambolhões, balbúrdias, trancos, chutes”144. Esta aproximação técnica

143
Ibid., p. 117.
144
RIPPELINO. Op. cit., 1996, p. 147.
84

típica dos comediantes e saltimbancos da Commedia dell‟Arte encontra um forte ponto de

confluência com a arte dos acrobatas circenses. Para Pavis:

O saltimbanco era um artista popular que, nas praças públicas, quase sempre em
cima de um tablado, fazia demonstrações de habilidades físicas, de acrobacias, de
teatro improvisado, antes de vender ao público objetos variados, pomadas ou
medicamentos. [...] São os representantes de um teatro não literário, popular e
assumidamente satírico e político. [...] O espetáculo dos saltimbancos, na maior
parte das vezes, é baseado numa performance física, e não na produção de um
sentido textual ou simbólico. Os procedimentos se baseiam numa habilidade física
ou burlesca. 145

A revista O Amor de Três Laranjas aponta a relevância das técnicas circenses,

enquanto recurso de formação para o ator, nas experimentações do Estúdio da Rua

Borondiskaia. Na edição de 1915, nos livros 1-2-3, p. 79, é publicada uma parte da

monografia de K. Miklachévskii: “Sobre os elementos acrobáticos dos Comediantes

dell‟Arte”. O artigo expõe os “indícios da utilização de elementos acrobáticos na commedia e

sua função educativa como treinamento para a destreza corporal do ator, na medida em que “a

habilidade acrobática contribui para a glória do ator, em pé de igualdade com os outros

elementos”146. Miklachévskii relata como certos comediantes italianos conseguiram conservar

as habilidades acrobáticas até o século XVIII. Atores como Menichelli, que podia fazer todas

as espécies de truques no arame, ou Fiorilli, em idade avançada era convocado para realizar

números acrobáticos de bofetadas no parceiro, ou mesmo Biancolelli, que “fazia quase todos

os saltos, saltos mortais, truques de destreza, de força e de escada de mão que fazem os

saltimbancos”147.

Em outra edição da revista, do mesmo ano, livros 4-5-6-7, são anunciados os artigos:

“O Arlequim Russo”, de M. Briankii, e “Sobre os Circos Provincianos”, de A. Rikov. Ambos

145
PAVIS, Patrice. Op. cit., p. 349.
146
THAIS, Maria. Op. cit., p. 92.
147
WALLON, Emmanuel (Org.). O circo no risco da arte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p.
127.
85

“identificam, na história teatral russa, aspectos da tradição popular e procedimentos cênicos

semelhantes aos da commedia italiana”148.

É no Estúdio da Rua Borondiskaia que o Dr. Dapertutto começou estabelecer as bases

para o seu programa de treinamento para o ator. Este “segue concretamente as pegadas dos

atores do passado, para garantir a exatidão do seu caminhar (no sentido próprio e figurado)

ulterior, autônomo e firme”149, e, assim, é idealizado como aquele que deveria tomar para si

os padrões históricos abordados e arquitetar uma gestualidade convencional, por meio da

disciplina e da máxima concentração, ao mesmo tempo livre e inventiva. O Estúdio

apresentava um caráter laboratorial para experimentações de aprendizagem coletiva e ao

utilizar os procedimentos de diferentes tradições teatrais priorizava o movimento como a

matriz da atuação.

A divisão das atividades cênicas do Estúdio era composta por três disciplinas de base:

História da Técnica Cênica da Commedia dell‟Arte, ministrada por Soloviov; Leitura Musical

do Drama, oferecida por M. Gnessin; e Movimento para a Cena, a cargo de Meierhold. Além

disso, havia um grupo de orientadores que desempenhava diferentes funções como, por

exemplo, assistentes ou responsáveis por disciplinas específicas. É o caso de Aleksandr

Chekrygin, dançarino do Teatro Marinsky, que ministrou aulas de dança; Giacomo,

responsável pelas performances circenses; e Donat Donato, professor de acrobacia150.

No Estúdio, as referências às artes do picadeiro são constantes. Meierhold era

declaradamente um apaixonado pelo circo e com frequencia esclarecia aos seus alunos os

fundamentos do trabalho dos acrobatas, malabaristas, equilibristas e palhaços. Na grande sala

do Estúdio, um quadro com a temática circense era utilizado por ele para evidenciar as

habilidades de tais artistas, que dominam ao mesmo tempo acrobacia, música e a palavra.

148
Ibid., p. 93.
149
PICON-VALLIN, Beatrice. Op. cit., p. 56.
150
GORDON, Mel e LAW, Ana. Meyerhold, Einsenstein and biomechanics: actor training in
revolutionary Russia. Berkeley California: Mc Farland & Company, 1996, p. 24.
86

Outro elemento que revela o grande interesse do encenador por este tipo de linguagem é o

fato de ele, quase todas as noites, levar seus aprendizes aos pequenos circos de São

Petersburgo.

Meierhold oferecia um grande mérito à arte dos palhaços e solicitava aos seus alunos

que observassem com atenção tais artistas que possuíam um encanto próprio e simplicidade

nas evoluções do picadeiro, relacionando-se com grande satisfação com os demais intérpretes

e espectadores. Há registro de circenses que visitaram o Estúdio. O palhaço Donato, por

exemplo, pertencente a uma tradicional família de circo, era um dos frequentadores e chegou

a ministrar aulas de acrobacia.

É interessante observar que os trabalhos realizados em 1915 e 1916 151, em parceria

com tais colaboradores, refletem o interesse de Meierhold em aperfeiçoar o corpo do ator. Ele

recomendava a prática do esporte como necessária para todos e o aprimoramento na esgrima,

na dança, no atletismo e na música como obrigatórios. Para o estudo da Técnica dos

Movimentos Cênicos, classe ministrada pelo próprio encenador, recomendava atividades

como tênis, arremesso de disco e vela. Sem contar que “circo e teatro” era um dos temas das

palestras realizadas, que tinham por finalidade valorizar a autonomia dos elementos teatrais.

No primeiro ano de funcionamento do Estúdio não existia provas de admissão e a

maioria dos alunos não possuía experiência cênica. Um dos critérios de permanência neste

ambiente devia-se à capacidade de realização das indicações dos professores pelos recém-

matriculados. A este respeito, Meierhold tinha um papel de grande influência, apesar de

contar com colaboradores importantes, pois a entrada e a continuação de um estudante eram

definidas sob sua ótica, considerando o aproveitamento que ele esperava. Isto afirma que a

pedagogia meierholdiana se dirigia à cena, “pois os escolhidos eram alunos que denotavam

capacidade criativa e de aprendizado técnico, destinado a plasmar um ideal cênico e a

151
MEYERHOLD, V. O Amor de Três Laranjas – Livro 1,2,3 e 4-5-6, 1915 e Livro 2-3, 1916. In: THAIS,
Maria. Op. cit., p. 415-437.
87

compreender intelectualmente seus requisitos”152. No decorrer dos anos, Meierhold foi

maturando as normas de ingresso e, em 1916, esboçou uma organização mais rigorosa.

A princípio, aqueles que desejassem entrar no Estúdio no ano letivo de 1916-1917

seriam reunidos em dois grupos, devendo submeter-se a uma prova de seleção: os que já

faziam parte, porque ingressaram em anos anteriores, e ainda não haviam recebido o diploma

de fim de curso; e os que entravam pela primeira vez. Além de uma entrevista preparatória, os

ingressantes deveriam demonstrar algum conhecimento de musicalidade e algum nível de

flexibilidade corporal, realizando exercícios de ginástica, acrobáticos ou trechos de

pantomimas que contivessem truques acrobáticos. Era observado ainda o talento mimético

pela representação de uma cena sem palavras sobre um tema qualquer, logo, a mise-en-scène

seria instituída e as principais técnicas demonstradas por Meierhold. Outros atributos também

eram requeridos: a clareza da dicção, o conhecimento da teoria de versificação, bem como de

outras linguagens artísticas e suas criações (pintura, escultura, poesia e dança). Por fim, era

necessário responder as perguntas do curso escolar, que visava conferir o conhecimento da

história do drama.

Era intensa a circulação de artistas-colaboradores no Estúdio, adeptos do programa

estabelecido por Meierhold e que não necessariamente exerciam uma atividade sistemática. O

aspecto que chamava atenção neste espaço eram as particularidades do ensino, pelo fato de

não haver escola na Rússia que reunisse e ensinasse disciplinas como ali: relacionava matérias

das outras artes do corpo, balé clássico e moderno, esgrima, circo, mímica, de modo que

ampliasse as habilidades e, assim, “tornasse o ator não só um ator dramático, mas um

acrobata, um músico, um iluminador, ou seja, que o ator fosse o dono, com total poder sobre o

palco”.153

152
THAIS, Maria. Op. cit., p.103.
153
A. DIEITCH apud THAIS, Maria. Ibid. p. 105.
88

O que pode ser reconhecido até aqui é o interesse meierholdiano em elaborar a

teatralidade em torno do próprio ator, concebido como criador. A pretensão em estabelecer

tanto o valor artístico do teatro quanto a sua autonomia em relação às outras artes e à

literatura, afirma a liberdade criativa do ator, que não deveria imitar nem recriar, mas criar e

compor. A ideia de liberdade pressupõe obediência e disciplina em relação à estrutura do

espetáculo e leva à compreensão de que a relação entre tais aspectos aparentemente

antagônicos tinha como objetivo “definir a máxima correspondência cênica entre o previsto e

o improvisado”154.

Surge, nesse panorama, o “novo ator” para um “novo teatro”, cuja natureza possuía

um cunho artificial, explicitamente teatral, intrínseco à linguagem artística. Em estratégia de

luta ao psicologismo, o corpo e sua expressividade são preocupações fundamentais para este

tipo de intérprete e isso é explícito nas aulas de Meierhold, Técnica de Movimentos Cênicos,

ministradas no Estúdio. É durante este período que ele elabora um tipo de treinamento para o

movimento cênico do ator, que proporcionará a construção de um corpo de teatro.

A formação do novo ator é um tema recorrente nos artigos e nas pesquisas de

Vsévolod Meierhold durante todo o seu percurso enquanto artista. Em tal contexto, as

investigações teóricas no campo da fisiologia e da psicologia da criação cênica, da formação

do ator e do seu treinamento profissional, bem como os trabalhos técnicos sobre os

personagens, levaram o encenador-pedagogo russo “à criação de um sistema global sobre os

princípios de atuação”155. Tal processo estende-se para além dos anos 1920, tanto em suas

encenações, como nas experiências de seus discípulos.

2.2. O treinamento do ator no Estúdio de Meierhold

154
V. Tcherbakov apud THAIS, Maria. Op. cit., p. 106.
155
MEYERHOLD, V. L’Attore Biomeccanico. Trad. e notas de Fausto Malcovati. Milano: Feltrinelli,
1997, p.17.
89

Não sabemos o que pode um corpo156.

Picon-Vallin157 lembra que as revoluções teatrais no início do século XX no ocidente

colocam como centro de suas investigações aqueles que dão vida ao edifício teatral, o ator. O

desenvolvimento da encenação e a necessidade de uma preparação do ator fora das

instituições oficiais dos fins do século XIX provocaram uma reflexão sobre a pedagogia,

sobre a escola, sobre o ensino e o exercício, como também sobre o processo criativo.

Meierhold surge neste ambiente como um dos primeiros a conduzir tal reflexão ao basear o

teatro por meio da revalorização da arte e do ofício do ator, buscando uma teatralidade não

cotidiana.

Os movimentos teatrais de pesquisa, nesse momento, têm como meta preparar os

atores para o trabalho no palco. Eles são educados para aprofundar seu esquema corporal,

exercitar e dominar seus gestos e movimentos para estar na cena. As práticas visam afastar os

automatismos físicos habituais, psíquicos e sociais do intérprete, favorecem a luta contra os

padrões de comportamento impostos pela sociedade aos homens e mulheres, além de auxiliar

a compreensão das leis do movimento e expressividade cênica, e ajudam a se liberar do corpo

cotidiano para apropriar-se de um corpo de teatro.

Para Romano158, as técnicas do corpo, em qualquer sociedade, reúnem os modos como

o homem usa o corpo. Tal utilização é um fenômeno social complexo presente nas condutas

mais “habituais”, físicas ou fisiológicas, cognitivas, psicológicas e sociológicas. Cada técnica

possui sua forma determinada, assim como cada atitude do corpo muda de sociedade para

sociedade e mesmo de sexo para sexo. Dessa maneira, a natureza do processo de educação, o

156
DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
157
PICON-VALLIN, Beatrice. Op. cit., 2008, p. 62.
158
ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: o teatro físico. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 178.
90

treinamento, caracteriza a técnica ao adaptar o próprio corpo para o uso dele e solicita,

sobretudo, disciplina e continuidade sistemática.

A partir do treinamento corporal, acontece a transição de um corpo “comum” para


um corpo “diferenciado”, no mesmo sujeito. [...] A articulação dos meios pelo
artista, selecionados num repertório de signos, organizados em operações várias
vezes repetidas e conduzindo a uma configuração, determinará – num recorte
temporal, supondo um processo acumulativo, mas nem sempre numa lógica direta de
causa/efeito – uma transformação de qualidades, perceptível em maior ou menor
grau nas manifestações do próprio corpo.159

O treinamento do ator poderia ser definido como um conjunto de exercícios ou, nas

palavras de Ruffini, “o processo artificial por intermédio do qual o ator se adapta ao meio-

cena”160. Ele seria ainda um trabalho coerente realizado de maneira contínua, prolongada e

independente – pelo menos a princípio – da composição de um espetáculo em que o ator

esteja envolvido durante o mesmo período. O treinamento diz respeito ao “meio-cena”,

porém, na prática pode fazer parte ou ser a preparação do espetáculo, pois não há um processo

de adaptação para o meio cênico estabelecido – o que existe apenas é “a necessidade e a

lógica de tal processo: sabe-se em direção a que objetivo ele deve tender, ignora-se de que

modo e segundo quais modalidades deve-se alcançá-lo”161.

Meierhold investe em uma técnica de representação baseada no corpo do ator. No

período do Estúdio, o movimento cênico é o elemento fundamental do teatro e o meio de

expressão do intérprete para a composição de uma obra teatral. Não é possível dissociar as

afirmações deste encenador do contexto da vanguarda histórica russa das primeiras décadas

do século XX e em diálogo intrínseco com o contexto histórico, político, social e cultural

daquele momento. Os atores meierholdianos, com formação e aperfeiçoamento contínuo no

Estúdio, “estão em relação com a formação e o aperfeiçoamento do homem, individual e

159
Ibid., p. 180.
160
RUFFINI, Franco. Le Milieu-scène: pré-expression, énergie, présence. In: L’Energie de l’acteur,
Bouffonneries, n. 15-16. Lectoure, 1987, p. 47.
161
Ibid., p. 48.
91

social que ele é, ele lhe atribui a obrigação de ser „um homem excepcional‟ (expressão dos

anos 1910)”162.

A busca meierholdiana em compreender as leis do teatro, que são opostas às da vida,

coloca em evidência o corpo. O apuramento da corporeidade do ator se dá pelos exercícios

que recuperam a tradição do teatro, ao movimento que se define em estreita relação com o

espaço em que ele se encontra, com a manipulação de objetos (flexíveis ou rígidos, reais ou

imaginários) e em acompanhamento musical. Para alcançar a desejada teatralidade, por meio

da técnica do ator, ele adota como procedimento a exclusão da palavra como meio expressivo,

pois assim seria possível captar da obra uma expressividade centralizada. Meierhold justifica

a sua importância em 1914:

A relação com o movimento como fenômeno sujeito às leis da forma na arte. O


movimento como o mais potente meio de expressão na criação do espetáculo teatral.
O papel do movimento cênico é mais importante que de outros elementos teatrais.
Eliminando-se a palavra, o figurino do ator, o palco cênico, o edifício teatral e os
bastidores, deixando-se somente o ator e a sua arte do movimento, o teatro
continuará sendo teatro: o ator comunicará seu pensamento ao espectador por meio
do seu movimento, do seu gesto, da sua mímica – o principal edifício para o ator –
qualquer praça sem construção, onde ele pode construir e firmar o que desejar, como
desejar e tão rapidamente como sua liberdade o permitir 163.

A disciplina que Meierhold ministrava no Estúdio da Rua Borondiskaia não por acaso

chamava-se Técnicas de Movimento Cênico. Meierhold descobriu no corpo do ator um

instrumento de criação e constrói os exercícios a partir da relação entre o gesto e o

movimento. O curso tinha um caráter exclusivamente prático e estava conectado a todas as

outras matérias do Estúdio. Assim, balizado nos aspectos técnicos e nas ideias teóricas,

experimentava estes componentes em função da composição cênica. Entre os temas

abordados encontra-se, por exemplo, o ritmo como base do movimento cênico, o domínio do

corpo no espaço, a musicalidade no melodrama, o circo e a Commedia dell‟Arte.

162
PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2006, p. 27.
163
MEYERHOLD, V. O Amor de Três Laranjas, livro 2, 1914. In: THAIS, Maria. Op. cit., p. 398-399.
92

Um componente importante já presente no Estúdio é a atenção que Meierhold dá à

gestualidade do ator oriental, com a sua abstração perfeita, sua definição rítmica de ambientes

espaciais, nos limites entre a dança e o teatro. O ator desejado por ele deveria possuir aptidões

corporais semelhantes ao intérprete japonês, pelo simples fato de ser, na perspectiva de

Meierhold, acrobata e dançarino. Apoiando-se em suas próprias habilidades, assim como os

orientais, o ator meierholdiano “deve reunir todos os modelos históricos para uma

gestualidade longe do cotidiano, livre e criativo, ao desafiar as leis da natureza, mas obrigado

a uma absoluta disciplina, a uma absoluta concentração”164.

O treinamento técnico do intérprete no Estúdio, fundamentado na arte do movimento e

do gesto, era realizado e organizado pelo encenador. Dessa maneira, o jogo de improvisações

com objetos induzia o ator ao desenho de movimentos cênicos em complexos percursos no

espaço, como uma coreografia. Tais procedimentos ajudavam o ator na descoberta de um

vocabulário expressivo “próximo ao virtuosismo do ator oriental com objetos, ou à agilidade e

influência dos malabaristas”165. Meierhold pedia ao estudante que “ande expressivamente,

com a ponta dos pés en-dehors e saltitando sem parar, de modo que esteja sempre pronto a

reagir rapidamente aos parceiros”166. Reconhece-se aí um princípio da arte do acrobata, que se

torna mais explícito quando associado à etimologia da palavra cujo significado diz respeito

àquele que anda sobre a ponta dos pés.

Junto à V. Soloviov, Meierhold planejou uma série de dezesseis estudos167, extraídos

de varias culturas teatrais e captados das diversas fontes da tradição, incluindo a Commedia

dell‟Arte, o teatro oriental e o circo. Esses estudos, concebidos e desenvolvidos com a

colaboração de seus alunos, tem o objetivo de ensinar aos estudantes um número de princípios

164
MALCOVATI, Fausto. Op. cit., p. 8-9.
165
THAIS, Maria. Op. cit., p. 147.
166
PICON-VALLIN, Beatrice. Op. cit., 2006, p. 55.
167
Para Maria Thais, a palavra “estudo” tem uma rica tradição no teatro russo e não é possível precisar
quem estabeleceu o conceito. O mesmo termo é utilizado em grande escala por Meierhold, em francês Étude, no
período das experiências pedagógicas no Estúdio da Rua Borondiskaia. Pode ser definido como “uma
improvisação dentro de uma estrutura”. In: Op. cit. P. 148.
93

específicos do movimento cênico, como, por exemplo, a lei de Guglielmo Ebreo di Pesaro 168,

segundo o partiere di terreno, ou seja, a repartição do terreno, a habilidade de avaliar o

espaço onde se vai evoluir; como se mover em certos padrões (círculo, quadrado ou

triângulo); como a alternância dos números pares e ímpares afeta o estilo de interpretação; a

relação entre movimentos e as configurações das plataformas de representação ou dos limites

do proscênio; as tradicionais “acrobacias adequadas para o teatro”, implicando o contraste

entre as realidades de espaço e tempo no palco e na vida; a relação entre as bases métricas da

música e do movimento (abarcando a ideia das pausas no movimento); trabalho com os

objetos de cena; e, de um modo genérico, os efeitos da interpretação no espectador (a

diferença entre grandes e pequenos gestos)169.

Os estudos foram criados a partir de uma ação dramática real, retirada de temas ou

argumentos cotidianos, ou alguma obra literária, e incluem atividades corporais – quedas,

saltos, corridas e bofetadas – recursos de acrobacia e malabarismo. O ator, ao articular as

ações corporais em uma situação mais complexa, como estratégia de desenvolvimento de um

roteiro, transformava o estudo em pantomima.

Apresentados publicamente em 12 de fevereiro, 2 e 29 de março de 1915, junto de

outras pantomimas e esquetes, os estudos lançaram as bases para o que finalmente se tornou a

Biomecânica. Embora a única documentação detalhada que exista sobre os estudos sejam as

descrições das aulas de Meierhold e Soloviov na Revista O Amor de Três Laranjas e aqueles

poucos demonstrados em 1915, os títulos e as genéricas descrições abaixo fornecem algumas

informações sobre a sua possível utilização na formação do ator:

1. Duas Cestas ou Quem Levou a Melhor sobre Quem. Um estudo composto de

“acrobacias adequadas ao teatro”.

168
Guglielmo Ebreo de Pesaro (1420-1484) coreógrafo italiano. Lutou não só para a reforma do balé da
corte, mas, sobretudo, para completar o processo de sublimação dos gestos e posturas que se tornaria marca
registrada da dança de corte européia dos dois séculos seguintes. É autor do Tratado sobre a dança.
169
GORDON, Mel. Meyerhold‟s Biomechanical. In: The Drama Review (T57), março de 1973, p. 73-88.
94

2. Dois Malabaristas, uma Velha Mulher com a Cobra, e o Clímax Sangrento sob

o Pavilhão. Pantomima composta por Meierhold e Soloviov.

3. Ofélia. Um estudo retirado de uma cena da loucura em Hamlet.

4. A História da Pajem Que Foi Fiel ao Seu Mestre e de Outros Eventos Dignos

de Apresentação. Um estudo tratado no estilo de uma história sentimental, na antiga história

do século XVII (apresentado no palco principal; exercício em câmera lenta).

5. Arlequim, o Vendedor de Pauladas. Uma pantomima no estilo da arlequinada

francesa de 1850. (“acrobacias adequadas ao teatro”).

6. Fragmentos de uma Peça Chinesa – “A Mulher-Gato, a Ave, e a Cobra”. Uma

pantomima de Meierhold e Soloviov (A utilização das convenções da cena chinesa que

poderiam ser interpretadas por Carlo Gozzi; o uso da mise-en-scène para criar a ilusão de mais

personagens dos que realmente aparecem de fato).

7. As Duas Esmeraldinas. Um esquete do enredo da Commedia dell‟Arte.

8. Collin Maillard. Um estudo realizado de perfil, nas formas das pinturas de

Lancret.

9. Os Prestidigitadores Ambulantes. Uma pantomima no estilo das representações

populares da antiga Veneza do século XVIII. (Uso de audiência no palco para guiar as

emoções da audiência real; atuação em dois níveis; “acrobacias adequadas ao teatro”).

10. De Cinco Cadeiras a uma Quadrilha. Um estudo de Meierhold e Soloviov no

formato da década de 1840.

11. O Padeiro e o Limpador de Chaminé. Um estudo.

12. A Perda da Bolsa.

13. O Cabo.

14. Três Deles


95

15. Três Laranjas, o Telescópio Astrológico, ou A Que o Amor de Alguém para o

Mestre do Palco Pode Conduzir. Uma bufonada circense. (uso de objetos de cena para

truques; “acrobacias adequadas ao teatro”).

16. Como Eles Realizaram as suas Intenções.170

Por meio dos dezesseis estudos, Meierhold tentou criar um treinamento limitado e

preciso que abrangesse todas as situações expressivas fundamentais que o ator encontraria no

palco. Esses estudos dizem respeito precisamente à fase pré-revolucionária meierholdiana e

ao seu trabalho no Estúdio, associado a uma síntese dos elementos das convenções teatrais,

portanto, diferem da Biomecânica de um modo puramente funcional. É interessante perceber

a utilização dos procedimentos circenses em alguns dos estudos da época e, não obstante, eles

estarão presentes nos futuros exercícios biomecânicos.

Um aspecto relevante é a chegada de Valery Inkizhinov 171 no Estúdio da Rua

Borondiskaia, em outubro de 1916. Sem dúvida ele desempenhou um papel importante no

início do que viria a tornar-se a “Biomecânica de Meierhold”. Uma das alunas do Estúdio,

Aleksandra Smirnova-Iskander, recorda: “Ele cativou a todos nós, e especialmente a

Meierhold, com o seu virtuosismo acrobático e plasticidade técnica. A flexibilidade e a

destreza dos seus movimentos demonstravam uma naturalidade espantosa, lembrando a

plasticidade de um tigre, ou de um gato” 172. Junto a Inkizhinov, Meierhold pôde trabalhar

vários exercícios baseados no jogo acrobático, que julgava ser um elemento indispensável pra

o ator.

Picon-Vallin173 comenta que nas experiências meierholdianas dos anos 1910

predominam simultaneamente uma concepção romântica e uma científica do ator e de sua

atuação, que se abrem a uma busca da forma, um controle técnico cujos princípios são visíveis

170
GORDON E LAW. Op. cit., p. 25.
171
Valery Inkizhinov (1895-1973) foi ator e colaborador de Meierhold. Mais tarde se tornou professor de
Biomecânica do Laboratório Estadual Superior de Teatro (GVTM).
172
Ibid. p. 26
173
PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2006, p. 57.
96

num corpo treinado em diversas modalidades esportivas e acrobáticas e organizado nas aulas

de movimento cênico. Nessa prática, solicita-se constantemente do corpo artificial uma linha

dupla de comportamento no ritmo e no desenho do espaço, bem como nos temas e estilos: a

disposição espacial, em níveis distintos dos planos materiais de apresentação (praticáveis,

escadas), e disposição poética dos contrastes, a busca do tragicômico.

O termo “Biomecânica” define uma espécie de treinamento para o movimento cênico,

e apenas foi utilizado por Meierhold nos anos de 1920, em seu Laboratório de Técnicas do

Ator. Os exercícios biomecânicos concentraram as pesquisas desenvolvidas desde os anos de

1910 sobre a dança e a arte do ator por meio das experimentações com a Commedia dell‟Arte.

Além disso, o treinamento biomecânico gestou-se a partir de um estudo iconográfico e

bibliográfico do teatro oriental, da observação e da análise dos grandes atores dos teatros

ocidentais de sua época, como também por meio da observação das técnicas das diferentes

disciplinas circenses.

Duas premissas são indispensáveis para compreender qualquer coisa sobre a


Biomecânica: em primeiro lugar não é um “sistema” de representação, mas um
treinamento global do ator em função de um momento sucessivo que é a recitação e
em segundo lugar não nasce no início dos anos vinte (quando foi cunhado o termo),
mas afunda suas raízes nos primeiros experimentos pedagógicos meierholdianos, em
particular nas atividades do Estúdio da Rua Borondiskaia 174.

Em sua busca renovadora, Meierhold não sistematizou um método único de sua

prática pedagógica. Isto denuncia a impossibilidade atual de uma análise conclusiva sobre sua

obra, apontando diversas lacunas relativas à perspectiva do trabalho do ator. No entanto, o não

estabelecimento por Meierhold de um modelo exclusivo da atividade teatral se opõe também à

produção de Stanislávski acerca da prática do ator. Este último elabora um Sistema de

Atuação baseado nos moldes realistas-naturalistas, experimentados ao longo de sua trajetória

artística. Contudo, no final de sua vida, Stanislávski, adotando como referência suas

174
MALCOVITI, Fausto. Op. cit., p. 8.
97

descobertas sobre a ação e a fisicalidade na interpretação, reformula os princípios de seu

Sistema175.

A concepção meierholdiana da Biomecânica não sofreu grandes alterações ao longo

de sua trajetória artística e parecia ser ao mesmo tempo grandiosa e modesta. Por um lado,

assegurava que o domínio deste treinamento permitia que o intérprete adquirisse as

habilidades essenciais para o movimento cênico e, por outro, “ele relegava suas próprias aulas

de Biomecânica, em sua Oficina, a um „status‟ semelhante ao dos outros estudos de

movimento corporal que ali eram ensinados, tais como acrobacia, dança moderna e
176
„eurhythmics‟” . A palavra Biomecânica reflete o ardor revolucionário com paixão por

todos os termos tecnológicos e está intimamente conectada às metodologias científicas que

então predominavam na indústria e na cultura, bem como na psicologia e educação da Rússia.

Três componentes, consequentemente, são enxertados no tronco da velha matriz simbolista,

que também permanece central: o taylorismo, a reflexologia e o produtivismo177.

O Taylorismo – elaborado por Frederick Winslow Taylor (1856-1915), nos primeiros

anos de 1910 – caracteriza-se pelos estudos científicos dos processos de trabalho, da

racionalização do tempo por meio dos movimentos corporais dos trabalhadores das indústrias,

levados ao máximo da economia. Descartava-se, portanto, movimentos supérfluos e

desajeitados que desqualificavam o trabalho. A Reflexologia é resultado dos estudos do

psicólogo americano William James (1842-1910), que investiga a natureza mais íntima das

emoções e conclui que a consciência emocional e seus transitórios estados estavam ligados

diretamente à estrutura física do corpo, logo, a maneira como o corpo responde aos estímulos

é pela emoção, que precede a percepção mental dela. James fala: “Vejo um urso, antes tremo,

depois tenho medo”, substituindo por “Vejo um urso, antes tenho medo, depois tremo”.

175
Ver mais em: STANISLÁVSKI, Constantin. Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1989.
176
GORDON, M. Op. cit.
177
Ibid. p. 9.
98

Vladímir Bekhterev (1857-1927) complementa estas referências afirmando que todo

comportamento do homem pode ser explicado pelo padrão de reflexos produzidos pelas

condições externas do seu sistema nervoso. Já o Produtivismo inspira a famosa frase da

Biomecânica: N = A1 + A2, na qual N simboliza o ator, que organiza o próprio material; o A1

é justamente o construtor que ordena e concebe todas as funções da realização do projeto; A2,

contudo, é o corpo do ator que organiza e dá ordens ao A1. Tal formulação, alegoricamente,

almeja uma liberdade de criação que deve ser conquistada pelo ator, por meio de um intenso

processo de treinamento.

A Biomecânica coloca em primeiro plano a compreensão da atividade psicofísica do

ator, cujo pensamento, segundo tal concepção, é submetido à plasticidade. Primeiro surge o

movimento, mesmo se imperceptível, e, ao final, a palavra, existindo a necessidade da

emoção, para tornar possível a comunicação. Nessa lógica, é por meio de uma boa posição do

corpo no espaço e no tempo que é possível o aparecimento da emoção e da entonação:

Pensamento  Movimento  Emoção  Palavra.

Tal princípio estava concatenado à excitabilidade dos reflexos, uma capacidade

importante que o ator deve possuir ao reduzir ao máximo o tempo de passagem pelos

elementos citados acima. Os aspectos da excitabilidade dos reflexos constituem os elementos

de interpretação do ator que são formados por três momentos preciosos: em primeiro lugar a

Intenção, seguido pela Realização e, por fim, a Reação.

A intenção é a percepção intelectual de uma tarefa recebida externamente (autor,


diretor, iniciativa pessoal do ator). A realização é o ciclo dos reflexos miméticos e
vocais (o adjetivo mimético indica todos aqueles movimentos que surgem da
periferia do corpo do ator, e também do ator no espaço). A reação é a diminuição da
vontade que foi satisfeita pela realização dos reflexos miméticos e vocais e coincide
178
com a preparação de uma nova intenção.

178
CHAVES, Yedda Carvalho. A biomecânica como princípio constitutivo da arte do ator. 2001. Tese
(Mestrado em Artes – Artes Cênicas) Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2001, p. 59.
99

Tudo isso só é possível a partir do uso correto de um corpo treinado. Dessa maneira,

a Biomecânica deveria instruir o “novo ator” nos elementos essenciais do movimento cênico.

No entanto, Meierhold esperava que seus praticantes fossem além do virtuosismo técnico. Ele

afirmava a necessidade de vincular o processo à ideia da emoção, da vida. O gesto preciso e a

correta adequação do corpo no espaço influi sobre a emoção: “Quando nós falamos da

fisiologia dos movimentos, não podemos considerar os movimentos físicos sem os

mecanismos internos, isto é, do sistema nervoso no seu complexo” 179. Um arriscado

movimento acrobático não é o suficiente, dizia Meierhold: “através do salto deve-se passar

alguma outra coisa de conhecido para todos, de conhecido no profundo, deve-se passar a

vida”.180

No que concerne aos procedimentos técnicos e expressivos, detecta-se uma série de

Estudos Biomecânicos, semelhantes àqueles praticados no Estúdio, uma composição cênica

extraída das atividades do circo, da dança e do teatro – uma espécie de ginástica cênica –, que

permite construir um novo repertório para o ator, partindo da decomposição do movimento,

sem perder de vista a sua expressividade. Há o conhecimento, no entanto, de 13 destes

estudos que foram descritos por Mel Gordon 181 a partir de relatos de participantes e

observadores da oficina de interpretação de Meierhold. São eles: Disparando o Arco; Atirando

a Pedra, A Bofetada no Rosto; Golpe com a Adaga; Construindo a Pirâmide; Golpe com os

Pés; O Salto Sobre o Peito; Soltando o Peso; O Cavalo e o Cavaleiro; Passando uma Rasteira;

Carregando o Saco; O Salto pelas Costas; O Círculo.

Baseando-se no pensamento formalista182 do período, Meierhold buscava por meio

desta ginástica para a cena a organização do “material”, representado pelo corpo do ator, para

179
MEYERHOLD, V. Relação sobre o sistema e os métodos de interpretação no Instituto de História das
Artes de Leningrado, 192. In: MALCOVATI, F. Op. cit., p. 20.
180
Ibid., p. 13.
181
GORDON, M. Op. cit.
182
A teoria formalista na cena russa abarcou, conforme esboçado no capítulo anterior, muitos tipos de
teatro que dividiam princípios específicos não somente sobre a encenação, mas sobre cenografia. Meierhold
100

transformar sua maneira de se movimentar no palco. Para isso o ator deveria dispor de uma

gama de habilidades técnicas e, portanto, ter a capacidade de organizar a si próprio. A arte da

atuação possui a peculiaridade e a dificuldade de que “o ator é, ao mesmo tempo, material e

organizador do material. O ofício do ator é uma coisa complicada. A todo o instante o ator é

compositor”183.

Assim, Chaves184 reconhece que a discussão proposta por Meierhold oferece

demasiada relevância à corporeidade: do corpo que é visto enquanto matéria para a

composição – significante cênico –, do corpo que readquire a sua autonomia cênica –

enquanto organizador do próprio material –, do corpo que deixa de ser apenas “um corpo”

para reafirmar a sua função cívica, princípio ético, e que fundamenta a filosofia, tanto ética

como estética do ator meierholdiano.

Meierhold, como já apontado, não publicou um sistema fechado sobre a Biomecânica.

Ele escrevia trabalhando, experimentando, falando, caminhando: “mas seu livro sobre a

Biomecânica permaneceu em suas páginas mentais”185. Tais pesquisas apresentam alguns dos

princípios da Biomecânica, a partir do material recolhido pelo colaborador e instrutor M.

Koreniev, no Curso de Biomecânica, desenvolvido entre 1921-1922186. Naquele conjunto

complexo de elementos, pode-se identificar princípios elementares que regem o treinamento

de um acrobata circense.

De antemão, o primeiro princípio da Biomecânica revela que toda ela fundamenta-se

na lei segundo a qual “se a ponta do nariz se move, todo o corpo também se move. Todo o

corpo participa do movimento do menor órgão. Deve-se, antes de tudo, encontrar a

adere ao trabalho baseado nas tipologias dos personagens, fincados nas expressões populares. Outra referência
importante que o formalismo russo abarca é o conceito de estrutura, que também caracteriza o pensamento sobre
o corpo. É necessário não só colocar no primeiro plano esta estrutura rítmica como dominante, como também,
deformar a palavra, desprovendo-a de significados semânticos, formatando-as em uma sonoridade específica e
em componente pictórico.
183
MEYERHOLD, V. Princípios da Biomecânica. In: MALCOVATI, F. Op. cit., p. 77. Ver Anexo I desta
pesquisa.
184
CHAVES, Yedda C. Op. cit., p. 45.
185
MALCOVOTI, V. Op. cit., p. 7.
186
Ver Anexo I, p. 169-175.
101

estabilidade do corpo. À menor tensão, todo o corpo reage”187. É imprescindível para a

realização de qualquer ação acrobática a tonificação das partes do corpo. Todas elas atuam no

movimento, o que garante a precisão, o virtuosismo e a expressividade do salto. Todo o corpo

deve atuar em um salto mortal, porque o “abandono” de qualquer parte durante o movimento

custaria a vida do acrobata.

Meierhold solicita de seus atores a extrema racionalização do gesto, já que “A

biomecânica não tolera nada de casual, tudo deve ser feito conscientemente, com cálculo. A

todo o momento o ator deve estabelecer e saber à perfeição em que posição se encontra seu

corpo.”188. Na acrobacia, é essencial pensar o rolamento, o salto ou a pirueta antes e durante a

execução. Isso para qualquer correção da postura corporal durante o seu desenvolvimento,

possibilitando o seu reparo e o aumento da expressividade. Paralelamente a todos esses

elementos, o acrobata deve estar consciente de cada parte do corpo em relação ao espaço,

onde colocar a mão e o pé durante a execução do movimento, se a perna está esticada, onde e

como cair, quantos passos caminhar para realizar o salto. O cálculo deve ser preciso e, para

tal, é solicitada algo semelhante a uma “calma imperturbável” e “perfeito equilíbrio”, já que

“os requisitos básicos da Biomecânica são a coordenação no espaço e em cena” 189.

Em relação aos procedimentos citados, o rakursy solicita do ator a consciência do que

se está mostrando em cena, por meio da plasticidade que os corpos assumem. O jogo do

rakursy é justamente esta habilidade de colocar e deslocar o corpo no espaço cênico, ou seja,

as variações visuais da forma que o corpo assume numa determinada posição para o

espectador. Assim como para o acrobata, que a todo o momento revela diversas perspectivas

do seu corpo colocado em situação pouco comum ao espectador, o ator meierholdiano “deve

dar conta imediatamente de cada mudança de posição do seu corpo em cada mínima parte” 190.

187
Ver Anexo I, p. 169.
188
Ver Anexo I, p. 173.
189
Ver anexo I, p. 170.
190
Ver anexo I, p. 171.
102

O acrobata deve possuir um amplo domínio do corpo e isto é consolidado por meio do

seu treinamento e exercícios de preparo físico. Uma boa condição física regulamenta a boa

atuação do circense. Por outro lado, Meierhold requer do ator que cada tarefa venha

programada com precisão em conexão ao espaço cênico para que o movimento esteja

rigorosamente organizado. Isto, para o encenador, afirma a ideia segundo a qual “o

fundamento do nosso sistema de interpretação é a condição física do material sobreposto ao

treinamento”191.

A severa economia de movimentos e o controle do corpo são primordiais ao acrobata

e ao ator meierholdiano. De modo algum se deve esgotar toda a reserva de material – o corpo

– de que se dispõe, o que implica uma precisão e agilidade característica do corpo acrobático.

Ao organizar o próprio material, é necessário o reconhecimento “das próprias possibilidades e

todos os expedientes técnicos dos quais dispõe para realizar um dado propósito” 192. A

Biomecânica tem um princípio segundo o qual “o corpo é a máquina, o ator é o mecânico”193.

A noção do otkaz194, fundamental no trabalho da Biomecânica, pode ser entendida

como um movimento que tem seu ponto de partida no sentido contrário ao seu

desenvolvimento e tem como objetivo preparar o ator para a execução da ação. Em paralelo,

os movimentos acrobáticos se fundamentam neste princípio. Para a realização de um flic-

flac195, por exemplo, o acrobata deve primeiro flexionar joelhos e tronco, deslocando seu

centro de gravidade para baixo, para criar as alavancas para o salto. O princípio da oposição,

otkaz, na Biomecânica tem uma função ampla e complexa e, portanto, indispensável ao ator

meierholdiano, visto que, “é a recusa da própria expressividade inerente do puro automatismo,

191
Ver anexo I, p. 172.
192
Ver anexo I, p. 174.
193
Ver anexo I, p. 175.
194
Em russo significa recusa.
195
Flic-Flac é um movimento preparatório para acrobacias. O ginasta leva os braços ao solo ao mesmo
tempo em que seus pés deixam o solo, usando um grande impulso dos ombros. Pode ser executado para a frente
ou para trás
103

e que necessita de uma constante vigilância e principalmente da contínua possibilidade de

freio”196.

Não é ingênuo o olhar de Meierhold em relação às técnicas circenses. O sonho de um

ator dotado de uma polivalência técnica, articulada em função da cena, pretendia consolidar

uma atuação sintética. O ator como um dançarino, um acrobata, um malabarista do palco. O

ator, que num primeiro momento deveria voltar-se para fora do teatro (para o equilibrista,

palhaços, trapezistas... para os artistas de circo) e adquirir os saberes, técnicas e disciplina que

lhe falta. Esculpir, portanto, um corpo maravilhoso:

O teatro começará a se tornar algo de grande quando o ator dotar de uma nova forma
o material que lhe foi dado, uma nova forma que a natureza não deu ao homem e
que só o ator pode criar em si, cinzelar e mostrar. Se o ator observasse mais amiúde
197
o trabalho do acrobata!

2.3. Viva o Malabarista! (1917)198

Meierhold era um apaixonado declarado pelo circo. Se no Estúdio da Rua

Borondiskaia nos anos de 1910 ele já levava, como exposto anteriormente, os alunos quase

todas as noites aos pequenos circos de São Petersburgo, na década seguinte sua evolução

teatral passa pelas atividades do picadeiro, pelo teatro de praça pública que, como será visto

mais adiante, o novo contexto político e social russo passa a defender e desenvolver. Dois

meses antes de outubro de 1917, o encenador russo se questiona: “Por que então vocês,

acrobatas russos, não vão à direção deste povo que tanto lhes espera?”199

Depois da derrubada da autocracia do Czar Nicolau II, em fevereiro de 1917, a Rússia

enfrentava tentativas de estabelecimento de uma República de cunho liberal. É sobre tal

ambiente de grandes estremecimentos políticos que Meierhold opõe-se ao “teatro literário”,

196
CHAVES, Yedda C. Op. cit., p. 131.
197
MEYERHOLD apud PICON-VALLIN. Op. cit., 2006, p. 28.
198
Texto originalmente escrito por V. E. Meierhold e publicado na Revista Eho Cirka, n. 3, p. 3, em agosto
de 1917, não reeditado. Ver tradução para o português em Anexo II, p. 176-181.
199
Ver Anexo II, p. 180.
104

fundamentado no psicologismo da cena naturalista e aprisionado na estreita caixa cênica. O

encenador defendia o teatro popular e o circo, que ao romper com o edifício teatral deveria

ganhar as ruas. O teatro desejado por ele quer ficar “mais próximo do circo encarado sob o

ângulo do feito esportivo do que da magia das máscaras” 200. Isso porque o tempo era outro,

não viviam mais “em tempos de decadência de espírito, em tempos de desesperança”201 e,

assim, a recuperação do circo deve-se por seu apelo ao seu dinamismo, ao gosto do risco, pela

flexibilidade e habilidade do corpo humano que triunfa sobre qualquer limitação ou bloqueio

– o acrobata como o super-homem, o Bogatyr.

Em agosto de 1917, Meierhold publica Viva o Malabarista!. Em linhas gerais, neste

artigo, consagrado aos artistas do picadeiro, ele descreve uma multidão de espectadores, em

um grande tédio, perante o “jorro impetuoso de palavras derramadas”202 por um orador

partidário de Lênin. Enquanto isso, do outro lado da rua, um malabarista cativa toda atenção

do público com o seu rato adestrado, espadas, mágicas, argolas e firulas. Instala-se uma zona

repartida em dois mundos completamente distintos: o do orador e o seu comício e o do

malabarista de rua com suas habilidades vertiginosas. Sem dúvidas, para Meierhold, é a força

deste circense que encanta o público e vence o declamador. A nova época exige audácia e

uma coragem imensa, o povo russo carece de distração: “Veja como seu público (os de teatro

de inverno) se entedia, como se convalesce, como ele parece esperar alguma coisa”203. Um

público que esmagado pelo tédio não conhece mais a alegria. Meierhold vê nas manifestações

circenses a possibilidade de fazer fluir no homem “dentre o nosso sangue o doce veneno da

audácia”204.

Este artigo traduz ainda, uma ode ao balagan, que siginifica “barraca de feira de

atrações” em russo, que antes de 1917 tinha por consequência leveza contundente, formas de

200
PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2008, p. 7.
201
Ver Anexo II, p. 178.
202
Ver Anexo II, p. 176.
203
Ver Anexo II, p. 179.
204
Ver Anexo II, p. 179.
105

concisão modernas, virtuose corporal, rejeição à predominância da palavra e magia. O

balagan oferecia a Meierhold a liberdade artística tão desejada, bem como representava a

imagem dual da condição humana. Quando criança, ele frequentou as barracas de Penza, sua

cidade natal, que o marcaram profundamente. Nota-se, portanto, a utilização do recurso em

suas obras, sobretudo, nos anos de 1920, “com suas marionetes em tamanho natural, seus

malabaristas orientais, Kalmouks (povo de origem mongol) mudos com serpentes amestradas,

realejos com papagaios, ou ainda passos de gigante em que os jovens voam pelos ares” 205.

A origem do termo “Balagan” é tártara, e na Rússia simboliza a barraca montada em

dias festivos, em terrenos baldios e relativos às feiras nas cidades e nos burgos, onde podem

ser vistos acontecimentos completamente fora do comum. Ela era apenas uma parte de uma

tradição cultural popular russa que incluía bazares e bufões, trovadores, vendedores

ambulantes e charlatões, além de brinquedos de parques de diversão (carrossel, rodas-gigantes

e balanços). Por volta do século XIX, no entanto, muito dessas características desapareceram,

ou melhor, fundiram-se com o circo, às viagens dos prestidigitadores, ao marketing das pulgas

e, ulteriormente, ao cinema206.

Nesses espaços eram apresentadas todas as formas de arte do espetáculo: o “teatro de

bichos”, realizado por domadores, exibição de animais de circo e combate entre animais; o

“teatro mágico”, com seus prestidigitadores, ilusionistas, hipnotizadores, autômatos,

exibidores de monstros e figuras bizarras; o “teatro dramático”, feito por atores ou

marionetes; e demonstração de habilidades ou de força humana, malabaristas, funâmbulos e

acrobatas. Em muitos aspectos, tais diversões eram cópias dos modelos das feiras da Europa

Ocidental, mas tudo o que veio do exterior foi imbuído das especificidades do “espírito

russo”207.

205
PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2008, p. 3.
206
BOWLT, Jonh E. Moscow and St. Petersburg in Russia’s Silver Age. Londres: Thames and Hudson,
2008, p. 262.
207
Ibid., p. 262.
106

As formas do teatro de balagan, desenvolvidas a partir da passagem dos atores italianos

na Rússia, conserva o tom sintético, em espetáculos curtos entre cinco e dez números. Picon-

Vallin208 ainda afirma que opera entre eles uma fusão mais estreita, graças aos atores que são

também acrobatas, funâmbulos, mágicos, engolidores de fogo e palhaços, sendo na agitação e

balbúrdia das grandes feiras que são representados seus dramas.

No fim do século XIX esse formato de teatro esbarra no desprezo da intelligentsia

liberal que se dedica à criação de “teatros populares”, com fins didáticos e que se direcionava

para as classes de menor renda. Estes espetáculos gratuitos favorecem a marginalização dos

balagany, achatados por uma cultura dominante que vigia e censura. Nesse sentido, se por um

lado desaparecem as barracas de feira de atrações, por outro, conforme visto no capítulo

anterior, o circo passa por um período de incorporação de artistas e técnicas, englobando um

grande número de atores do balagan, enquanto outros mudam para os parques de diversão.

Também nessa época, apesar de sufocado por estes teatros “populares”, o balagan “reaparece

nos artistas, no âmbito de uma visão estética que se interessa por suas figuras exóticas numa

óptica „retrô‟, historicizante, estilizada”209.

No pensamento meierholdiano, o balagan torna-se aos poucos um conceito de trabalho

que universaliza de maneira heterogênea as formas de expressão da cultura popular, seja o

circo, as variedades, a Commedia dell‟Arte, a pantomima. Elas são entendidas como

fundamentais e extremamente necessárias para erguer o teatro do futuro, adotando como

pilares o tradicional ofício do ator e, simultaneamente, a nova concepção do encenador

relativa à composição e cujos procedimentos Meierhold experimentava no Estúdio. Nasce aí

um teatro que instiga à ação, à luta, e renova as energias do público para as dificuldades da

vida cotidiana.

208
PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2008, p. 3.
209
Ibid.
107

Como declara ainda Picon-Vallin210, a palavra cirkizacija (“cirquização”) foi inventada

em russo nesta época. Ela foi proclamada por toda a escola meierholdiana, especialmente após

1917, exaltando em primeiro lugar toda a alegria do picadeiro que devolveria para o palco o

regozijo, a satisfação e o heroísmo. O desejo era injetar no teatro os “sumos vivificantes” do

circo. A imagem do artista circense como fonte do renascimento, aquele que salta e não cai, o

corpo superpoderoso, que encarna o espírito revolucionário. Embriagado deste pensamento,

em novembro de 1920, Meierhold recomenda instalar trapézios em cena para que acrobatas

pudessem trabalhar.

Esta ideia de fonte de renascimento reflete o princípio material e corporal que é

apreendido como universal e popular pelo pensamento de Bakhtin:

O porta-voz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico isolado
nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolução cresce e
se renova constantemente. Por isso o elemento corporal é tão magnífico, exagerado e
infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e afirmativo. [...] A abundância e a
universalidade determinam por sua vez o caráter alegre e festivo (não cotidiano) das
imagens referentes à vida material e corporal. O princípio material e corporal é o
princípio da festa, do banquete, da alegria, da “festança” 211.

Tudo isso revela um procedimento chave presente no teatro popular e no circo, que vai

contaminar a vanguarda russa e o teatro meierholdiano, o grotesco212:

A imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de transformação, de


metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento
e da evolução. A atitude em relação ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo
(determinante) indispensável da imagem grotesca. Seu segundo ato indispensável,
que decorre do primeiro, é a sua ambivalência: os dois polos da mudança – o antigo
e o novo, o que morre e o que nasce, o princípio e o fim da metamorfose – são
expressados (ou esboçados) em uma ou outra forma. 213

210
Ibid., p. 7
211
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François
Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 1993, p. 17.
212
O grotesco no teatro de Meierhold é um procedimento de grande complexidade. Ele o reconhece como
uma etapa fundamental no princípio de estilização, que adota o método rigorosamente sintético. O grotesco cria
o sentido de inverossimilhança ao associar os polos contrários e ao exacerbar conscientemente as contradições.
Meierhold afirma: “O essencial no grotesco é a constante tendência que o artista tem em transportar o espectador
de um plano, apenas alcançado, para um outro plano, absolutamente imprevisível e inesperado”. MEYERHOLD,
V. La Rivoluzione Teatrale. Tradução e organização de Giovanni Crino. Roma: Editori Riuniti, 1962, p. 123.
213
Ibid., p. 21-22
108

Esta lógica enfatiza a vontade do rompimento do teatro dramático, por Meierhold,

por meio da restauração de uma atuação sintética, audaciosa, corajosa, repleta de alegria e

consciente de suas habilidades. Para tanto, solicita o retorno do teatro de feira, exige o

aparecimento do Petrouchka214 e do Teatro de Marionetes. E, especialmente, propõe para os

artistas de circo que eles ofereçam a sua arte “a estes que têm sede do seu excentrismo, que

desejam o canto do seu corpo maleável, que param à sua frente, suplicando para que lhes

deem um espetáculo, apesar de todo seu tédio na reza para o pão de cada dia?”215

Meierhold se empenhou em criar uma nova cultura corporal o ator por meio das

técnicas circenses; seu desejo era desenvolver o ator acrobata, malabarista, equilibrista, o ator

dançarino, músico embutido de uma polivalência técnica como os intérpretes orientais. E em

sua empreitada, buscava estruturar não só um corpo saudável, ágil, habilidoso, forte e

audacioso, como também uma mente equilibrada. Em 15 de maio de 1919, afirma:

O circo é uma casa onde a arte da educação física, da beleza física, eleva-se em
grande altura. [...] Um corpo saudável, um espírito também saudável... Quanto mais
intensa é a luta espiritual que é preciso sustentar, tanto maior é a força física que se
necessita. Organizaremos escolas de onde sairão corpos belos e cheios de ânimo, um
rosto radiante216.

Reconhece-se aí o desejo de elevar o intérprete ao patamar do “homem novo”,

engajado na luta revolucionária. A construção do corpo esportivo e subversivo viria por meio

do processo de “cirquização” que ganha potência nos anos 1920, porém afunda suas raízes nas

décadas precedentes. A virtuose, a força e a precisão do jogo físico do acrobata, sem qualquer

trato psicológico, abrem espaço para a criatividade corporal do novo ator. Meierhold

reconhecia nos artistas de circo a multiplicidade de técnicas, visto que cada um possui

214
Petrouchka é um ballet cuja música foi composta pelo russo Igor Stravinsky e coreografado por Michel
Fokine. A história é sobre um fantoche tradicional russo, Petrouchka, feito de palha e com um saco de serragem
como corpo, que acaba por tomar vida e ter a capacidade de amar. O teatro de marionetes era uma referência
importante para Meierhold na medida em que colabora para a expressividade do gesto, precisão, beleza do
movimento e síntese em oposição à psicologia das personagens.
215
Ver Anexo II, p. 181.
216
MEIERHOLD apud FEVRALSKI, A. Meyerhold y el circo. In: El circo soviético. Organização: A.
Litovski. Moscú: Editorial Progreso, 1975, p. 319.
109

competências e habilidades múltiplas como a música, a dança, a mímica, a palavra. Nesse

sentido, Meierhold requer um ator que volte a ser acrobata, tanto no nível da formação como

no da criação.

A polifonia teatral experimentada pelo encenador russo, “no qual os elementos que

compunham a cena perdiam sua função ilustrativa e ganhavam autonomia, podendo inclusive

divergir”217, sugere ao ator que se transformasse também em instrumento cênico polifônico.

De fato, o discurso cênico de Meierhold no período solicitava a coexistência de contrários, a

junção de planos, a justaposição. Contaminado pelas ideias do simbolismo e da tradição

teatral, ele requeria uma cena constituída por pequenas estruturas independentes, que quando

organizados pelo encenador, ordenavam uma complexa partitura cênica, embriagada de

diversidade e, portanto, polifônica.

A organização dos estudos e pantomimas no Estúdio demonstrava que o processo de


elaboração e criação das cenas realizava-se em um sistema de decomposição de
partes. Ao separar cada seguimento da estrutura cênica, Meierhold descobriu a
possibilidade de existência simultânea e de independência dos planos. A pantomima
e a música, coincidentes ou não, corriam em um plano paralelo e formavam o que
ele denominou polifonia218.

As habilidades circenses era um dos recursos expressivos para tal mudança e pode ser

visto não só como procedimento técnico durante a formação do ator, mas também exposto em

cena, a exemplo de suas encenações dos anos de 1920. Descobrindo a importância do

treinamento atlético para o ator, aproximando-os aos funâmbulos e acrobatas, ele anuncia a

Biomecânica.

Goethe dizia que o ator devia assemelhar-se a um funâmbulo. Claro, não entendia
dizer que um ator que interpretasse Hamlet devesse dançar sobre uma corda. Mas, é
justamente em virtude dele poder assemelhar-se a um boneco, fantoche, que ele
pode obter efeitos que outro ator nunca obteria 219.

217
THAIS, Maria. Op. cit., p. 154.
218
Ibid., p. 169.
219
MEYERHOLD, V.E. Aulas no GVYTM, 1921. In: MALCOVATI, F. Op.cit., p. 61
110

Tudo isso é resultado de uma investigação nos anos de 1910 que prenuncia as

realizações de Meierhold durante o período soviético. Por outro lado, o encontro com

Vladímir Maikóvski possibilita um grande amadurecimento cênico para o encenador, pois

eram muitas as suas afinidades artísticas, estéticas, políticas e ideológicas. Com Mistério-

Bufo, escrito por Maiakóvski, em 1918, Meierhold “encontra, enfim, uma expressão concreta

da Revolução”220 e pode experimentar as pesquisas sobre a ideia da polifonia do teatro

formuladas por ele durante o período no Estúdio da Rua Borondiskaia.

220
PICON-VALLIN, Beatrice. Vsevolod Meyerhold, Escrits sur le theater, vol. II. Paris: La Cité –
L‟Age d‟homme, 1975, p. 9.
111

CAPÍTULO III

A “cirquização” do teatro: Mistério-Bufo (1918 e 1921), de


Meierhold-Maiakóvski.

Queria que o palco fosse tão estreito como a corda de um equilibrista:


isto tiraria de muitos tolos o desejo de ir pra cena.
Aleksander Taírov
112

Até aqui esta pesquisa mapeou a aproximação entre o circo e as demais linguagens

artísticas na Rússia, desde a virada do século XIX para o XX até os anos que antecederam a

Revolução de 1917. O movimento simbolista desenvolvido naquele país é uma referência

imprescindível, pois engendrou modificações literárias e artísticas que reverberam no

pensamento russo e, particularmente, serviu de suporte para as experimentações da vanguarda

cubo-futurista. Movimento que foi embebido pelo ideal do “homem novo”, que já se

enraizava na sociedade eslava pré-revolucionária, conforme visto nos capítulos anteriores, e

se tornou símbolo da Revolução, a partir de 1917.

O teatro de vanguarda desenvolvido na Rússia orientou-se pela abstração221,

experimentada tanto na dramaturgia quanto na cena. Isto ocorreu em reação ao naturalismo e

se acentuou a partir de 1917. Toda esta renovação que se processou nas linguagens artísticas

foi sugada pela cena pós-revolucionária, que resultou numa junção de novas propostas e

práticas teatrais. Os primeiros anos após a Revolução Russa, portanto, foram regidos “sob o

signo do antirrealismo no teatro, e todas as novas tendências concebidas no período pré-

revolucionário se desenvolveram e se intensificaram depois de 1917”222.

Reconhece-se que, nos anos de 1920, tendo em vista as experiências artísticas das

décadas anteriores, houve uma vasta apropriação e utilização das artes circenses pela cena

teatral223. O encenador Vsévolod Meierhold não ficou alheio a isso. Mesmo antes da

221
A arte abstrata tende a eliminar a relação entre a realidade e a tela, entre planos e linhas, as cores e a
significação que esses componentes podem suscitar no espírito. Neste caso, a acepção do quadro depende
intimamente da cor e da forma, elementos de maior expressividade, quando o artista rompe com os elos que
conectam a sua obra à realidade percebida ou visível, ela passa a ser abstrata. O pintor russo Wassily Kandinsky
(1866-1944), por exemplo, queria pintar sentimentos, desejos e paixões da alma. Ele oferecia mais valor ao
espiritual das coisas do que o modo como elas são vistas e assumiu o princípio de liberdade do artista para
expressar sentimentos interiores.
222
CAVALIERI, Arlete. O teatro de Maiakóvski: mistério ou bufo?. In: Teatro Russo: percurso para um
estudo da paródia e do grotesco. São Paulo: Humanitas, 2009, p. 266.
223
É extensa a lista de encenadores que utilizaram os procedimentos circenses para composição das suas
obras. Um dos casos são os espetáculos dirigidos por Sierguéi Radlov, no Teatro da Comédia Popular, em 1920-
1922, que utilizavam artistas de circo em suas encenações, como o acrobata A. Serge Aleksandrov, por exemplo,
que em A macaca delatora interpretava a macaca, pendurado no trapézio, e na perseguição final subia ao topo da
sala balançando sobre os espectadores. Cabe mencionar também que neste Teatro apresentavam-se “comédias de
circo” (“tzírkovie comiédii”) como: O filho adotivo, O amor e o ouro e O Sultão e o Diabo. Dentre outras
experiências, destacam-se as de Grigóri Kózintzev e Leonid Trauberg cujos espetáculos se apoiavam no credo do
113

Revolução, o circo já era uma de suas paixões – vale ressaltar as referências ao picadeiro no

Estúdio da Rua Borondiskaia – ;“depois de 1917 muitos momentos de sua evolução teatral

passam pelo circo, pelo teatro de praça pública, que o novo contexto político e social deve

defender”224. O encontro com Vladímir Maiakóvski, em cujas obras “o que chama mais

atenção é sempre a feliz junção das experiências modernas com a tradição do teatro

popular”225, possibilitou o aperfeiçoamento e o aprofundamento de tais elementos a partir de

uma dramaturgia.

Em dezembro de 1913, Meierhold assistiu à performance, em São Petersburgo, da

primeira peça de Maiakóvski, intitulada Vladímir Maiakóvski: uma tragédia, e, sem dúvida,

detectou afinidades com a obra vista. Meierhold, ao longo de sua carreira, esteve interessado

no trabalho de novos dramaturgos. Apesar de sua grande admiração por Aleksandr Blok, foi

com Maiakóvski que o diretor estabeleceu a relação mais frutífera, e, ainda que esta parceria

tenha produzido apenas três espetáculos nos anos de 1920, ela pode ser considerada como

fundamental para o contexto artístico da época226. Não se sabe precisar se foi no ano de 1915

ou 1916 que os dois se encontraram, quando Maiakóvski frequentou o Estúdio da Rua

Borondiskaia, onde lia seus poemas para os estudantes. Em 1917, a amizade amadureceu, pois

como declarava o próprio Meierhold havia uma concordância imediata entre ambos sobre

questões políticas, que ganhava uma importância primordial.

O fato é que as convicções artísticas de Maiakóvski concordavam com as de Meierhold,

por exemplo, os dois também admiravam os excêntricos do circo, os acrobatas e os gêneros de

excêntrico americano; eles organizaram, em 1922, o Estúdio Dramático FEKS, a Fábrica do Ator Excêntrico que
visava “[...] transformar o teatro numa síntese de rixas, algazarras, acrobacias, perseguições, num jogo de
incessantes transformações „tchetchotka‟ (dança rítmica, espécie de „ponta e salto‟) como base do novo ritmo”.
Ver mais em: RIPELLINO, Angelo Maria. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1971,
p. 144.
224
PICON-VALLIN, Beatrice. Vsevolod Meyerhold, Escrits sur le theater, vol. II. Paris: La Cité –
L‟Age d‟homme, 1975, p. 8.
225
RIPELLINO. Op. cit., 1971, p. 224-225.
226
Esta pesquisa não pretende deter-se e analisar extensamente a parceria entre Meierhold e Maiakóvski,
bem como as obras produzidas. Há diversos estudos sobre isto. Ver mais em: LEACHED, Robert. Meyerhold
and Maiakovsky. In: Vsevolod Meyerhold. New York: University of Cambridge, 1989, p. 152-167.
114

feira. Nota-se que grande parte da atividade teatral do poeta cubo-futurista desenvolve-se

segundo a prática meierholdiana. Ainda para Ripellino227, as comédias de Maiakóvski

coincidem com as experimentações do encenador russo na impostação política, nos paradoxos

grotescos, na partição mecânica dos personagens em heróis e clowns, nos trechos polêmicos,

na tendência a dilatar hiperbolicamente as cerimônias, o ritual de um dado ambiente.

Durante a década de 1910, Meierhold e Maiakóvski estão imersos num complexo

momento histórico na Rússia, abordado nos capítulos anteriores, e vinculados às pesquisas

estéticas do período no que diz respeito às investigações e experiências inovadoras em poesia,

pintura e teatro. Esses dois artistas russos, junto a outro grupo de artistas, poetas, pintores,

músicos e diretores de teatro também buscavam a transformação nas artes, motivados pela

efervescência do contexto revolucionário.

Em Maiakóvski, como relata Cavalieri228, o vigor e entusiasmo criativo convergiam,

particularmente, para a busca incessante de uma inovação estética e artística capaz de

expressar a conjuntura da sua época e de contribuir de modo fundamental para a criação de

um novo mundo que, então, surgia a partir da recém-criada sociedade soviética. A sua

personalidade não só como artista, mas como homem de seu tempo, converteu-se quase num

emblema da Revolução Russa de 17, já que o poeta se considerava um artista do povo

operário e à serviço do poder do proletariado.

O ano de 1917 é um claro divisor de águas para a Rússia. No que se refere aos caminhos

desta pesquisa, não se pode desconsiderar a repercussão deste período na política, na cultura e

na arte russa e, sobretudo, na trajetória artística de Meierhold-Maiakóvski. Enquanto diretor

no Teatro Imperial, por exemplo, Meierhold acolhe a Revolução de braços abertos, pois

“sempre teve uma percepção muito aguda, muito espontânea dos acontecimentos, e é nisto

227
Ibid., p. 234.
228
CAVALIERI, Arlete. Op. cit., 2009, p. 263.
115

que podemos ver seu maior engajamento” 229. Neste movimento, em 1918, com colaboração

de Maiakóvski, o encenador leva à cena Mistério-Bufo, a primeira peça soviética, em que os

atores são palhaços e acrobatas.

Mistério-Bufo é um elemento-chave para esta pesquisa, pois não só se verifica nesse

espetáculo a expressão dos princípios meierholdianos experimentados no Estúdio da Rua

Borondiskaia, como também se reconhece a imagem do Bogatyr ao revelar em cena o corpo

acrobata e outros procedimentos circenses.

No entanto, para se chegar a tal momento, de antemão cabe abordar historicamente um

primeiro e importante ponto de transformação que desencadeará as análises que se seguem.

3.1. Os novos rumos a partir de 1917 na Rússia

Troa na praça o tumulto!


Altivos píncaros – testas!
Águas de um novo dilúvio
lavando os confins da terra.230

A partir do século XV, a Rússia adotou o regime político czarista, de caráter despótico,

que se converteu em poder onipresente e decisivo. O czar (ou tzar), monarca autocrata,

governava amparado socialmente pela nobreza rural. O Estado regido pelo czarismo foi

formado originalmente por Ivan, o Grande; Basílio III e Ivan, o Temível; entre 1462 e 1584,

sendo que o último coroou-se imperador supremo e intitulou-se “czar autocrata eleito por

Deus”.

A sociedade russa foi obrigada a unir-se em torno do czar para defender sua terra natal

e, assim, o que restava era aceitar a organização do regime. O século XIX prenunciava

229
PICON-VALLIN, Beatrice. Op. cit., 1975, p. 7.
230
Nossa marcha, 1917. In: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. Tradução: Haroldo de Campos. São
Paulo: Perspectiva, 2008, p. 83.
116

revoltas contra o poder; dentre elas, a geração da intelligentsia, marcada pela tomada de

consciência e pela propagação do desejo de transformação. Foram necessárias várias décadas

para que ela vencesse.

Ferro231 afirma que por muito tempo o atraso econômico e as tentativas fracassadas de

revolução constituíram outros tantos obstáculos à transformação da sociedade. Imobilizados

em sua situação, os trabalhadores da cidade ou do campo eram animados por uma consciência

revolucionária mais viva que em outros países. Como tinha chegado tarde à cidade, a classe

operária, “marcada na carne pelo longo martirológio do campo russo” 232, permanecia como se

estivesse em solo estrangeiro, em sua grande maioria fora do centro da povoação,

participando do movimento das greves, manifestações e das repressões.

Uma grande parte do povo russo opunha-se ao sistema de governo dos seus dirigentes

e reconhecia a necessidade de derrubar o czarismo – “era para ele um dever tão sagrado como

a defesa da pátria”233. Foi sob tal perspectiva que, em 1905, brotou uma grande sublevação

que teria por objetivo fundar uma nova sociedade. Elaborou-se uma petição234 ao czar Nicolau

II, organizada pelo padre Gapon235, em nome dos trabalhadores urbanos e rurais, para ser

entregue no Palácio de Inverno, acompanhada de uma manifestação pública. Em 9 de janeiro

de 1905, os manifestantes pacíficos, operários e suas famílias, ao se dirigirem ao Palácio,

foram “metralhados à queima-roupa por milhares de soldados. Durante a noite, trens repletos

231
FERRO, Marc. A revolução russa de 1917. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 16
232
Ibid.
233
Ibid., p. 15.
234
Neste documento exigiam liberdade de imprensa, tanto falada quanto escrita, bem como liberdade de
associação sindical; direito de greve; o desapossamento de grandes latifúndios em virtude das comunidades
camponesas; educação gratuita e obrigatória; convocação de uma Assembleia Constituinte; 8 horas de jornada de
trabalho.
235
Padre George Gapon (1870-1906) padre cristão ortodoxo russo, quem liderou a manifestação de janeiro
de 1905. Depois da repressão do czar aos manifestantes, o padre Gapon redigiu um documento pedindo-lhe
perdão; o czar, em troca, pediu que ele informasse à Okharana (polícia secreta) tudo o que soubesse sobre o
Partido Socialista Revolucionário, no passado e suas relações atuais, pois sabia que o padre tinha envolvimento
com este grupo. Gapon foi enforcado por trabalhadores, membros do partido, que descobriram a delação.
117

de cadáveres conduziam-nos aos bosques, para enterrá-los em valas comuns abertas às

pressas”236. Este dia entrou para história como o Domingo Sangrento.

No dia seguinte houve greve geral e, em São Petersburgo, entre janeiro e fevereiro

funda-se o primeiro Soviet, resultado de um movimento recíproco entre os trabalhadores com

o objetivo de arcar com o período da greve. Outros Soviets surgiram pelo país, o que garantia

uma ação social estável e segura. Em outubro de 1905 ocorre uma greve geral nacional na

Rússia, estruturada pelos Soviets, movimento operário e comitês de fábrica. O regime czarista

reage e há prisões em massa de opositores e o desaparecimento dos Soviets. Uma insurreição

armada é organizada pelos operários de Moscou, mas, em dezembro de 1905, ela é destruída

pelo exército.

Nesse contexto, é imprescindível mencionar a formação de dois grupos políticos de

ações determinantes para a Revolução. Tais facções, resultantes do Partido Operário Social-

Democrata237, foram dividas em duas correntes distintas num dos congressos do partido, em

1903, com o objetivo de criar uma organização unida. Na ocasião, um jovem intelectual

utilizando o pseudônimo de Lênin238 expôs suas posições políticas: somente a classe operária,

juntamente com o campesinato, forçaria a burguesia a realizar a Revolução e, uma vez

derrotado o czarismo, poderia ser instituído um governo provisório e centralizado. Lênin teve

o apoio da maioria, mas logo o grupo se dividiu em dois: o que obteve o maior número de

votos sobre a questão da estrutura partidária foi chamado de bolcheviques239 (majoritários); o

236
TRAGTENBERG, Maurício. A Revolução Russa. São Paulo: Editora Unesp, 2007, p.81.
237
O Partido Operário Social-Democrata foi fundado em 1898 para reunir as diversas organizações
revolucionárias em um mesmo partido. Seus membros estavam vinculados às teorias de Karl Marx (1818-1883)
e Friedrich Engels (1820-1895) e acreditavam que o proletário concentrava o real potencial da revolução. Ver
mais sobre este partido e a organizações dos demais em: Ibid., p. 83-86.
238
Nome de nascimento Vladimir Ilyitch Ulianov (1870-1924), depois chamado de Vladimir Ilyitch Lenin.
Foi um dos chefes de Estado da Rússia e revolucionário. Foi também um dos responsáveis pela Revolução Russa
de 1917. Influenciou teoricamente os Paridos Comunistas pelo mundo, o que resultou na criação de uma corrente
intitulada leninismo.
239
Os bolcheviques eram liderados por Lênin e seus personagens fundamentais eram Trotski, Lunatcharski,
Kamenev, Zinoviev, Radek. Eles defendiam que os trabalhadores somente chegariam ao poder por meio da luta
revolucionária. “Paz imediata e revolução socialista mundial eram seus objetivos principais. No plano interno,
implantação da ditadura do proletariado, dominação dos Soviets e sindicatos e dissolução da Constituinte”. Ver
mais em: Ibid., p. 86.
118

outro, a minoria, foi chamado de mencheviques240 e era liderado por Julius Martov (1873-

1923).

Depois das experiências de 1905, Nicolau II recuou e prometeu reformas no país ao

convocar eleições para a Duma241 (parlamento), que estava subordinada aos poderes do czar e

tinha caráter consultivo. Outro fato importante que antecede a Revolução de 1917 ocorreu em

1914, quando a Rússia envolveu-se na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e sofreu uma

grande derrota no combate contra os alemães. A Rússia não estava preparada para enfrentar

uma guerra de longa duração e por não possuir um corpo suficiente de oficiais de reserva, o

exército sofreu uma desintegração considerável e logo os soldados russos, descontentes com o

seu governo, não viam motivos para seguir com a guerra. “A miséria e a fome levavam esse

soldado, filho de camponês ou camponês, a lutar pela paz e pela terra. Soldados se

amotinando contra oficiais, marinheiros contra seus comandantes e operários contra

patrões”242. As greves recomeçavam com proporções extraordinárias. A fome nas cidades, a

pobreza, a diminuição do poder de compra, a repressão provocavam no povo um sentimento

de descontentamento cada vez mais profundo.

O governo já não era capaz de deter a onda de insatisfação. Em fevereiro de 1917, os

grevistas saíram em passeata com o apoio dos bolcheviques e quase todas as fábricas entraram

em greve. Numa das marchas de operários em direção ao centro, oficiais atacaram e

dispararam contra os manifestantes, que fugiram. No entanto, o movimento dos soldados

coincidia com o ímpeto dos revoltosos e ambos se organizaram contra os oficiais. Em 27 de

240
Os mencheviques, liderados por Martov, Martinov e Axelrod, defendiam que os trabalhadores podiam
conquistar o poder participando normalmente das atividades políticas. Pregavam que o início efetivo da ação
revolucionária só seria possível com o desenvolvimento capitalista e o surgimento de suas contradições. Depois
da experiência de 1905, os mencheviques tiravam a conclusão de que “era necessário ajudar a burguesia a
derrubar o czarismo e, por isto, não cumpria „assustá-la‟. Posteriormente, se deveria preparar o caminho para
uma revolução socialista e prevenir toda a tentativa da burguesia de praticar uma política antioperária”. Ver mais
em: FERRO, Marc. Op. cit., p. 20.
241
Ver mais sobre o papel da Duma no processo revolucionário em: Ibid., p. 26-30.
242
TRAGTENBERG. Op. cit., p. 87.
119

fevereiro, operários e soldados formaram uma passeata, tomaram as armas e invadiram o

Palácio de Inverno. Puseram fim, em 5 dias, ao reino dos Romanov.

O czar e a autocracia foram derrubados por um movimento popular. O novo

governo243, provisório e burguês, é estabelecido e chefiado por Kerenski, membro da Duma e

líder dos Soviets244, e conta com o apoio dos mencheviques, que não vislumbravam outra

alternativa. Para este grupo não era possível lutar imediatamente pelo socialismo, e não apoiar

o novo governo significava o retorno do czar. Na contramão deste pensamento, Lênin, em

exílio na Suíça, já observava as consequências negativas do capitalismo em toda a Europa e

como elas se manifestaram com a Primeira Guerra Mundial 245. Com a notícia da queda do

czar, Lênin volta a Petrogrado, é ovacionado pelos operários e declara “todo poder aos

Soviets”.

A volta de Lenin a Petrogrado, em 13 de abril de 1917, foi imediatamente seguida da


publicação de suas “Teses de Abril”, que estabeleceram a estratégia da Revolução de
Outubro, proclamando a transição desde “a primeira etapa da revolução que
ofereceu o poder à burguesia” à “sua segunda etapa, que haveria de colocar o poder
na mão do proletariado e das camadas mais pobres do campesinato”246.

A burguesia, no novo governo, adota o comportamento de classe dirigente e pretendia

atingir seus próprios objetivos, “que quase sempre eram opostos aos das classes populares.

[...] a classe burguesa não pretendia deixar declinar o esforço da guerra, opondo-se por isto à

primeira das reivindicações operárias, as oito horas. Dizia-se também incapacitada para elevar

243
Não é interesse desta pesquisa analisar exaustivamente os processos da Revolução de 1917, que foram
demasiadamente complexos, mas contextualizar o período e as principais mudanças que transformaram a arte
russa e o teatro de Meierhold. Sobre o estabelecimento e o regime do Governo Provisório, após a Revolução de
Fevereiro, ver: Ibid., 34-83.
244
Nesta ocasião, os Soviets estavam presentes por toda a Rússia e eram quase todos dirigidos por
socialistas moderados (mencheviques, socialistas-revolucionários). Eles julgavam que a Revolução era
essencialmente burguesa e consideravam que qualquer participação no poder seria prematura. A função dos
Soviets era fiscalizar a ação governamental, para que ela exercesse as reformas democráticas que consolidaria,
mais tarde, o regime socialista. Os bolcheviques, minoritários, optaram qualificar os Soviets como um gérmen do
futuro Estado Socialista.
245
Para Carr, Lênin era um discípulo de Marx e, nas vésperas da Revolução, sua contribuição à economia
do socialismo foi uma exaustiva e minuciosa análise da última fase da economia capitalista. Ver mais sobre os
programas que influenciaram a economia socialista russa em: CARR, E. H. Historia de la Rusia Soviética: La
Revolución Bolchevique (1917-1923) – El orden econômico. Madrid: Alianza Universidade, 1987, p. 15-38.
246
Ibid., p. 37.
120

os salários e contrária aos comitês de fábricas”247. Lênin esperava a oportunidade precisa para

atacar o Governo Provisório e pensava em termos concretos da Revolução Russa, em um país

com uma esmagadora maioria de camponeses, que desejavam uma distribuição melhor das

terras e a erradicação da fome248, além disso, o povo russo esperava uma reação do governo

contra a guerra mundial, um dos principais problemas da Revolução.

O processo de desintegração do Estado Russo continuou e com o descontentamento do

operariado as teses defendidas por Lênin tiveram grande repercussão. Assim, o partido

bolchevique foi ganhando cada vez mais espaço entre operários das grandes fábricas,

camponeses e soldados249. Diante de tal cenário, Lênin recebeu ordem de prisão e buscou

refúgio na Finlândia; entrementes, o general Kornilov tentou armar um golpe de Estado para

restabelecer o czarismo. O Governo Provisório buscou o apoio dos Soviets e dos bolcheviques

capazes de fazer frente à contrarrevolução. Com a vitória sobre Kornilov, o prestígio popular

bolchevique aumentou e Lênin, em 12 de setembro, escreveu uma carta intitulada “Os

bolcheviques devem tomar o poder”, explicitando os seus argumentos250.

Os trabalhadores, por meio dos Soviets, bem como soldados e marinheiros,

manifestaram sua adesão aos bolcheviques. Eles formavam a Guarda Vermelha e assumiram o

controle sem encontrar resistência. No dia 24 de outubro, somente o Palácio de Inverno

resistia aos manifestantes, mas logo Kerenski deixou a capital. No dia seguinte, o governo foi

derrubado e os bolcheviques marcharam e tomaram o Palácio de Inverno.

O novo Congresso de Soviets foi aberto e os bolcheviques foram eleitos como

representantes do Congresso. Lênin, Trotski e Lunatcharski surgiram como chefes da

Revolução. Um decreto bolchevique eliminou os latifúndios, terras foram distribuídas para os

camponeses e Lênin obteve o apoio esmagador dos operários, que passaram a ter o controle

247
FERRO. Op. cit., p., 44.
248
CARR. Op. cit., p. 38.
249
O historiador Marc Ferro chama esta recuperação da personalidade do partido bolchevique de processo
de bolchevização. Ver em: FERRO. Op. cit., p. 81-83.
250
Ver mais em: Ibid., p. 85-88.
121

das fábricas. Outro elemento significante foi a saída da Rússia da Guerra Mundial pelo

Tratado de Brest-Litóvski251 e a institituição da ditadura do partido de Lênin em nome do

socialismo.

A Rússia estava fora da Guerra Mundial, entretanto, de 1918 a 1921, o país viveu uma

guerra civil: de um lado o exército branco, composto por ex-generais czaristas e republicanos

liberais contrarrevolucionários; de outro, e na defensiva, o exército vermelho com a adesão

dos operários e camponeses. Além disso, cerca de 14 nações estrangeiras – Estados Unidos,

Inglaterra e Japão, por exemplo – ainda se posicionaram contra o governo bolchevique e

enviaram tropas para ocupar a Rússia. Foi criado um “cordão sanitário” pelos países que iam

de encontro ao regime socialista com o objetivo de sufocá-lo economicamente. A Rússia, que

já estava arrasada e pobre, com a guerra civil ficou em uma situação caótica.

Para esta pesquisa, interessa apontar particularmente as repercussões da Revolução na

esfera cultural. Strada252 revela que se houve oposição dos intelectuais à Revolução de

Outubro, ela foi feita em nome de uma revolução democrática, em favor da Revolução de

Fevereiro que abrira os horizontes de uma nova esperança de vida na Rússia. Para este

historiador foi “precisamente na vida cultural que todas as contradições imanentes da

revolução bolchevique iriam se revelar desde o início com particular clareza, já que foi

própria dessa revolução a defasagem entre o dizer e o fazer”253.

Na época pós-revolucionária que se esboçou a partir de então, as formas e os

objetivos da vida política e intelectual da cultura russa sofreram uma transformação

251
Ver mais em: Ibid., p. 92-94.
252
STRADA, Vittorio. Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”. In: HOBSBAWN, Eric (Org.).
História Social do Marxismo: o marxismo na época da terceira internacional: a URSS da construção do
socialismo ao stalinismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 110. (v. IX)
253
Cf.: Ibid. Sobre isto, Strada compara o artigo “Os bolcheviques devem tomar o poder”, escrito por
Lênin nas vésperas da Revolução em setembro de 1917, com a sua posterior declaração: “Somente o nosso
Partido, depois de tomar o poder, pode garantir a convocação da Assembleia Constituinte; e, depois de ter
tomado o poder, ele acusará os outros partidos de terem protelado indefinidamente a convocação e provocará a
acusação”. Aqui, Strada aponta que Lênin subordina as reivindicações democráticas a “seu específico
socialismo, entendido antes de mais nada como conquista do poder pelo partido, e que faz daquelas
reivindicações um instrumento desta conquista” (Ibid., p. 110-111).
122

perceptível e abafaram aquela continuidade e liberdade que possibilitaram à política e à

cultura um vigoroso trabalho em conjunto, realizado ao mesmo tempo por colaboração mútua

e autonomia. Após a Revolução de Outubro, o elo estabelecido entre cultura e sociedade no

contexto pré-revolucionário254 se modificou, ou seja,

[...] se quebra e é substituído por uma relação de subordinação da cultura à política


(uma política, obviamente, monopolizada por um só partido dotado de absoluto
poder estatal); e, por outro, a vida artístico-literária perde gradualmente, mas de
modo seguro, sua ligação criadora com a cultura, a qual é invadida por uma única
ideologia, a marxista, inicialmente ainda em parte ligada ao marxismo “tradicional”,
pré-revolucionário, mas depois cada vez mais fechada em sua esquematicidade e
pobreza intelectual (o “marxismo-leninismo”)255.

Neste sentido, a vida cultural sofreu com a perda crescente de valores, de filósofos, de

economistas, de historiadores, etc., que abandonaram o país ou foram submetidos à censura.

Por outro lado, a arte e a literatura estabeleceram-se como o centro de “atividade espiritual do

país”256, e por consequência o foco de atenção do governo: elas eram manifestações

“populares” e ao mesmo tempo alusivas e matizadas, logo, passíveis de serem utilizadas como

meio de comunicação para amplas camadas da sociedade. O investimento na arte e na

literatura pelo governo, portanto, justificou-se como possibilidade de verificação e influência

por aqueles que estão no poder.

É nesse contexto de uma Moscou em guerra civil que o teatro encontrou o terreno

fértil pra prosperar257:

Anos de teatromania. Como células enlouquecidas, multiplicavam-se os círculos, os


pequenos palcos, os estúdios, os laboratórios dramáticos. Nas festas, até mesmo as
praças transformavam-se em teatro, enfeitando-se de painéis e marchetes pintados
em cores berrantes. Faltava tecido para os vestidos, mas todo diretor sempre acabava
conseguindo desencavar preciosos veludos e brocados para os figurinos. À noite, as
“largas goelas dos teatros” (como se lê num verso de Mandelstam) derramavam

254
Na época pré-revolucionária a vida cultural da sociedade se conectava intimamente à vida política e
social no seu conjunto. Sobre este assunto ver o capítulo I desta pesquisa.
255
Ibid., p. 112.
256
Ibid.
257
Não é objetivo deste momento da pesquisa realizar o mapeamento da produção teatral russa que emerge
com a Revolução de 1917. Sobre este assunto consultar: RUDNÍTSKI, K. Russian & Soviet Theatre. London:
Thames and Hudson, 1988. Outro estudo, em português, que pode se mencionado aqui sobre o assunto:
GARCIA, Silvana. A matriz histórica do teatro de natureza política. In: Teatro da Militância: a intenção do
popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 1-45.
123

sobre as ruas desertas, entre gelo, na escuridão, multidões “tétrico-jocosas” de


espectadores258.

Após a Revolução, ainda no ano de 1917, Lênin assinou o decreto de Sovnarkom

(Conselhos de Comissários do Povo) e fundou o Comissariado do Povo para a Educação, o

Narkompros259; elegeu Anatoli Lunatcharski (1875-1933) como o primeiro comissário do

povo e transferiu o controle da vida teatral para o Estado. O mundo artístico se divide em

agora em dois campos. Uma parte era composta pelo grupo da vanguarda futurista, que se

dedicou às tarefas imediatas da Revolução, articulando sua arte às atividades de propaganda e

divulgação dos ideais revolucionários. As experimentações pré-revolucionárias do futurismo

com a cultura popular e com a linguagem poética e pictórica foram utilizadas para a criação e

confecção de panfletos e cartazes. Do outro lado estavam os homens que afirmavam a

impossibilidade de separar as artes e a sociedade, sua psicologia, seu passado e seu caráter

nacional.

Diante de tal panorama, o encenador Vsévolod Meierhold, particularmente,

aproximou-se das ideias futuristas e, ao mesmo tempo, defendeu uma prática artística

separada do Estado.

Eu tenho falado entre a separação da arte e do Estado (é o interesse da arte ao redor


do mundo, é o interesse da Rússia inteira). Este comentário foi transformado pelo
cronista do “Rietch” [jornal burguês contrarrevolucionário], que conclui que era
“uma rejeição à Russia”. Minha proposta foi de afirmar a independência da arte
sobre a política, para impulsionar a criação de uma Comuna mundial de artistas,
única instituição capaz, sob o meu ponto de vista, de salvar o patrimônio artístico da
destruição e de assegurar uma autêntica liberdade aos criadores. Pensei que isto
fosse interpretado como um “apelo ao internacionalismo” 260.

Meierhold esperava que o Governo Bolchevique fosse continuar com a política de não

intervenção nas artes, como aconteceu após a Revolução de Fevereiro com o Governo

Provisório. Os grandes artistas da vanguarda, de Blok a Maiakóvski, alimentaram-se desta

258
RIPELLINO, Angelo Maria. O truque e a alma. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 191.
259
Instituído em 27 de outubro de 1917, o Narkompros foi o departamento soviético responsável pela
administração da educação pública e pela grande maioria das matérias relativas à cultura.
260
“Pis‟mo Vs. Mejerhol‟da”, Petrogradskaja vecernjaja pocta, 12/5/1917. In: ABENSOUR. Op. cit., p.
276.
124

utopia de uma arte livre, que poderia ser dirigida diretamente ao povo e, com isso, assegurar o

seu desenvolvimento espiritual261.

Meierhold, a convite de Maiakóvski e outros poetas futuristas, apresentou uma

exposição, em forma de manifesto, sobre o tratamento do teatro contemporâneo. Na ocasião,

ele colocou-se como defensor do pensamento da vanguarda cubo-futurista e esta seria uma

saída para o “retorno ao „anarquismo místico‟ de sua juventude. Ele compartilhou com

Maiakóvski a ilusão que a rebelião anarquista e a rebelião das formas estavam operantes e

alinhadas com a revolução política e social em curso”262.

Dois campos de reivindicação passaram a ter o apoio das autoridades

simultaneamente: de um lado, a vanguarda; do outro, opostos às pretensões meierholdianas,

estavam os defensores do teatro como suporte político. Meierhold entende rapidamente que

será excluído se ele não se integrar ao Estado, “a máquina de decisões que está tomando

lugar”. Nessa fase de grande turbulência no seu país, ele compreendeu que é melhor participar

do poder do que ter de sofrer passivamente aos seus caprichos.

Em Petersburgo foi realizada a primeira conferência com o objetivo de discutir a

reorganização das artes. Lunatcharski convidou em torno de 120 artistas, dentre eles Blok,

Maiakóvski e Meierhold. Segundo Braun263, pode-se argumentar que Meierhold esteve

simplesmente utilizando a Revolução para propagar suas próprias reformas. A cautela, porém,

utilizada pela grande maioria dos participantes era significativa: o poder bolchevique ainda

não estava estabilizado e uma declaração de solidariedade, por alguns que estavam na

conferência, elevou-se a um perigoso ato de confiança em favor do partido revolucionário.

Meierhold foi um deles, e o único a se mostrar partidário de uma renovação imediata, de uma

atualização política de repertório.

261
ABENSOUR. Op. cit.
262
Ibid., p. 280.
263
BRAUN, Edward. Meyerhold on theatre. London: Methuen Drama, 1998, p. 160.
125

Em 1918 foi fundado o TEO264 (Seção Teatral junto ao Narkompros). Meierhold

ocupou a vice-direção, tornando-se responsável pela seção de história do teatro, repertório e

pedagogia; ele se dedicou às atividades de formação teatral e aprofundou as experiências do

Estúdio da Rua Borondiskaia, lecionando cursos bimestrais em São Petersburgo. O “Curso de

Ensino de Encenação para Instrutores”, organizado por ele mesmo, foi destinado à formação

de encenadores, e contou com ex-colaboradores do seu Estúdio com o propósito de expandir

estes experimentos. Meierhold explicava que o desenvolvimento de espetáculos de amadores,

nas usinas, nas aldeias e nos quartéis impunha uma rápida formação de encenadores

competentes e motivados por sentimentos revolucionários265.

Meierhold organizou também a “Escola para o Treinamento dos Atores”. Chaves 266

identifica que naquele momento a questão, para ele, não se tratava mais do “novo ator”, mas

sim do “homem teatral total”, orgânico e polivalente. O programa da Escola foi escrito em

1918 e apresentava grandes afinidades com o aquele escrito cinco anos antes para o Estúdio

da Rua Borondiskaia, como, por exemplo, as disciplinas ensinadas: Técnicas de Movimento

Cênico, Pantomima e Commedia dell‟Arte. No entanto, houve uma importante diferença entre

os programas do Estúdio e os do ano de 1918: em 1913 havia o desejo de experimentar novas

formas, novas técnicas de improvisação, ou averiguar a validade, a contemporaneidade de

formas teatrais antigas; em 1918, Meierhold propunha oferecer uma preparação profissional

para as novas gerações de atores e, especialmente, estabelecer uma educação polivalente das

artes teatrais.

264
O Conselho Teatral, vinculado ao Narkompros, foi criado em Petersburgo e iniciou suas atividades em
19 de janeiro de 1918 sob direção de Olga Davydovna Kameneva, e Meierhold era um de seus membros. O
Conselho Teatral tinha como ação conduzir o proletário ao teatro, ajudar os teatros provinciais e fiscalizar os
teatros provados, controlar a autonomia dos teatros nacionais e requerer a renovação do repertório em função da
nova ordem política e social. Tal Conselho não durou muito tempo e em junho de 1918 deu lugar ao TEO.
265
É possível encontrar anotações do próprio Meierhold sobre as suas aulas no “Curso de Encenação”, no
período de 1918-1919 em: PICCON-VALLIN, Beatrice. Vsevolod Meyerhold. France: Actes Sud – Papiers /
CNSAD, 2005.
266
CHAVES, Yedda Carvalho. A biomecânica como princípio constitutivo da arte do ator. 2001. Tese
(Mestrado em Artes – Artes Cênicas) Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2001, p. 15.
126

Os objetivos dos cursos foram expostos por Meierhold da seguinte maneira:

Até hoje artistas e técnicos têm oferecido o próprio trabalho ao teatro como forma de
preparação desenvolvida fora dos teatros; até hoje eles têm trabalhado
independentemente um do outro, e eles têm trazido para o teatro cada um as suas
próprias exigências, literárias para os diretores, artísticas para os cenógrafos,
técnicas para os operários, costureiras, etc. A ideia dos organizadores destes cursos é
colocada da seguinte maneira: tudo o que é feito em teatro deve ser submetido às
leis, as exigências, às necessidades do teatro. Em teatro não deve haver lugar para
uma arte nascida fora do teatro, com outros objetivos que não sejam aqueles do
teatro. O teatro deve utilizar todas as artes de modo autônomo, mas não deve ser um
lugar onde literatos, técnicos e artistas mostrem as próprias habilidades. Hoje o
teatro deve criar os próprios artistas e os próprios técnicos. É a necessidade de um
trabalho coletivo de artistas e técnicos das várias especialidades que levaram à
fundação destes cursos especializados para a formação de diretores, cenógrafos,
etc.267

Meierhold, neste discurso, revela as diferenças da sua prática artística antes e depois

de 1917. Após a Revolução Bolchevique, o encenador entende a arte como um instrumento de

organização no mundo, e o teatro posto para a construção da sociedade. Para Meierhold, a

questão que se colocava no momento era o pensamento do homem na sociedade, adotando

como referência o homem de teatro.

No final de 1918, Meierhold abandonou a direção dos Teatros Imperiais, que se

encontravam num clima de tensão e de dificuldade após a Revolução268. No verão de 1919,

enfraquecido por uma grave infecção na garganta e pelo excesso de trabalho, a fim de se

tratar, Meierhold saiu de Petrogrado e partiu para Yalta, onde recebeu tratamento para

tuberculose e permaneceu isolado pela guerra civil. Com dificuldades chegou a Novorossíski,

outra cidade sitiada mais ao norte, onde viviam alguns de seus familiares. Por causa de

denúncias, Meierhold foi preso pelos contrarrevolucionários como favorecedor dos

bolcheviques e passou quatro meses na prisão, até o momento em que conseguiu escapar do

fuzilamento com a chegada do Exército Vermelho. Meierhold uniu-se, então, ao partido

267
MEIERHOLD apud CHAVES. Op. cit., p. 15.
268
O clima neste período é de protestos por algumas pessoas de teatro contra as decisões tomadas por
Lunatcharski. Ver mais sobre a condição dos Teatros Imperiais e a reação da comunidade teatral no ano de 1917
em: ABENSOUR, Gérard. Les théâtres impériaux et les événements d‟octobre 1917. In: Vsévolod Meyerhold
ou l’Invention de la mise em scène. Paris: Foyard, 1998, p. 273-276.
127

comunista e foi nomeado por Lunatcharski como diretor do TEO, posição que ocupará até

1921.269

Encarnando o contexto revolucionário da época e a partir dos fatos ocorridos no verão

de 1919, houve uma mudança na postura de Meierhold, descrita por Rippelino 270 nas

seguintes palavras:

Meyerhold aterrizou em Moscou como um demônio rebelde e briguento. Os lábios


apertados, o olhar sombrio, usava um gasto sobretudo de soldado com um revólver à
cintura, um cachecol de lã vinho, botas enfaixadas de soldado, um barrete de estrela
vermelha. Uma nova transformação? O Dr. Dapertutto deixara de vestir casaca e
cartola, para camuflar-se nas vestes de um comissário político. [...] Mais tarde,
porém, meditando, se percebe que aquela mutação é, no fundo, uma lógica
consequência de seu percurso anterior, de sua precedente trajetória em ziguezague.
De suas aspirações remotas.

O encenador Meierhold, em tal ambiente revolucionário, desejou que o teatro se

transformasse em “tribuna de propaganda, falando a linguagem abrasada da revolução” 271. Os

espetáculos que ele vislumbrou seguiram os moldes do comunismo e propagavam os

acontecimentos imediatos da Rússia em alvoroço. Assim, a prática teatral estaria submersa na

dinâmica revolucionária e refletindo o propósito do proletariado. No entanto, equivalente ao

movimento cubo-futurista272, Meierhold, ao fundir-se neste contexto, “não renunciava às

audácias das experimentações nem nunca teria consentido em humilhar a essência da arte.” 273

Em 1919, ele escreveu:

Estamos certos em convidar os cubistas para trabalhar conosco, pois precisamos de


cenários que se assemelhem àqueles contra os quais estaremos nos colocando
amanhã. Queremos que nosso cenário seja um tubo de ferro do mar aberto ou
alguma coisa construída pelo novo homem. [...] Montaremos um trapézio e nele
colocaremos nossos acrobatas, que com os seus corpos expressarão a própria

269
Lunatcharski, dois anos mais tarde da fundação do TEO, nomeou Meierhold como diretor, como prova
de admiração e confiança. O encenador exerceu tal função até o ano de 1921, quando os discursos políticos de
Meierhold foram ficando mais extremistas e Lunatcharski ordenou o fechamento do seu teatro, o RSFSR I
(República Socialista Federativa Soviética Russa). O Comissário do Povo declara: “Seus pontos de vista
extremistas são incompatíveis com o ponto de vista administrativo do Estado”.
270
RIPELLINO. Op. cit., 1996, p. 252.
271
Ibid.
272
Os poetas e pintores da vanguarda cubo-futurista foram os primeiros a se identificar com a Revolução e
foram por um breve tempo seus porta-vozes “oficiais”. Grande parte deles torna-se devoto às tarefas imediatas
da revolta, conferindo suas artes às práticas de propaganda e divulgação da causa revolucionária.
273
Ibid.
128

essência de nosso teatro revolucionário e nos lembrarão que estamos tendo prazer
nesta luta em que nos engajamos274.

O objetivo de Meierhold era criar o teatro revolucionário na Rússia revolucionária. Ele

foi encarregado também da direção do Primeiro Teatro República Socialista Federativa

Soviética Russa (RSFSR I), onde realizou, em 1920, o “Outubro Teatral”, cujo programa,

como o próprio nome sugere, propunha uma “revolução” teatral que deveria seguir

diretamente os princípios da revolução social, destruindo radicalmente a velha arte e

construindo em suas ruínas a arte nova. Desde a queda do czarismo, os revolucionários

argumentavam que os velhos teatros, em sua opinião “feudal” e “burguês”, deveriam também

ser derrubados. Para os revolucionários, era um grave erro o governo proteger estes teatros

hostis ao proletário.

Meierhold publicou críticas e outros artigos polêmicos no jornal Vestnik teatra

(Mensageiro teatral), que se tornou o arauto do “Outubro Teatral”. Antes de Meierhold

assumir a direção do TEO, este jornal se contentava em publicar informações genéricas sobre

os últimos acontecimentos teatrais no mundo. Depois de nomeado diretor, os artigos

ganharam imediatamente um tom agudo, até mesmo agressivo: o termo “guerra civil no

teatro” era utilizado, bem como uma e outra vez apareceu o termo “front teatral”. Vestinik

teatra alegava que os velhos teatros foram simplesmente “ninhos de recreação”, abrigos para

aparentes ou ocultos inimigos da Revolução, e sustentou que a própria Revolução não iria

tolerar a existência de tais “ninhos” por muito tempo. Na publicação do jornal, em 1920, nº

76-77, Meierhold declarou:

O Outubro Teatral é um fenômeno gigantesco: inclui a revolução dos teatros


profissionais, a criação de Ateliês de dramaturgia, de encenação e de representação,
as experiências no domínio do teatro amador do Exército Vermelho que representa
uma liga interessante de trabalhadores e camponeses, e inclui enfim a revolução e o
aperfeiçoamento dos teatros da província 275.

274
MEIERHOLD apud GOLBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
275
In: PICON-VALLIN. Op. cit., 1975, p. 10.
129

O “Outubro Teatral” declarou guerra aos personagens não políticos presente na antiga

cena artística russa e solicitou a mais rápida e completa renovação das artes teatrais, de cima

para baixo. Os revolucionários desejavam que o palco cênico se transformasse em plataforma

para as ideias revolucionárias, onde fosse celebrada a vitória do proletário.

Os revolucionários declaravam que era necessário para o teatro sair de sua caixa

cênica, abandonar suas telas pintadas e seu psicologismo gerador de ilusões. No entanto,

embora fosse fácil proclamar os princípios do “Outubro Teatral” na teoria, na realidade

revelou-se uma enorme dificuldade para se opor a arte dos antigos teatros com as novas

formas de teatralidade. As tentativas dos revolucionários de encontrar uma linguagem comum

com os novos públicos nem sempre foram bem-sucedidas276.

Gradualmente, Meierhold vai compreendendo que era mais fácil proclamar o

“Outubro Teatral” do que implementá-lo. As ideias do movimento do Comitê Central das

Organizações Culturais, Proletkult277, sobre a “invenção” das formas artísticas sem

precedentes não obteve a simpatia de Meierhold por um simples motivo: ele, como diretor

teatral, não percebeu a realidade por detrás disto. Para ele, os propositores do Proletkult

tinham uma imaginação muito distante da prática e por desapontamento o encenador os

deixou de lado. Meierhold, portanto, “não poderia habitar este reino dos inteligentes, das

construções verbais, ele queria dirigir produções”278.

Para Picon-Vallin279, a atitude de Meierhold perante os acontecimentos de Outubro,

antes de ser uma imediata adesão ideológica, foi uma adesão de ordem artística. A Revolução

vai lhe permitir realizar o autêntico teatro de feira e aprofundar suas experimentações sobre a

276
Sobre isto, ver mais detalhes em: RUDNITSKY. Op. cit., p. 59-64.
277
Para o grupo do Proletkult o passado deveria ser abandonado para a criação e prosperidade de uma nova
cultura, não burguesa, para o proletário. No entanto, eles não apresentaram uma ideia clara para oferecer em
detrimento do que chamavam de “velho”. No teatro, o Proletkult propunha a substituição das obras burguesas,
“velhas”, por espetáculos de “massa”, de agitação e propaganda, e pelo desejo de encontrar formas novas para os
conteúdos revolucionários seu percurso se encontra com o da vanguarda cubo-futurista.
278
Ibid., p. 60.
279
PICON-VALLIN. Op. cit., 1975, p. 7.
130

teatralidade. “Meierhold sente que vai poder chegar enfim a sua plena medida, começar uma

nova aventura artística que prolongará suas pesquisas pré-revolucionárias”280.

A produção artística de Meierhold se tornou mais complexa com os novos rumos de

1917281, o que só foi possível graças às experimentações cênicas pré-revolucionárias. Naquele

ano, depois da Revolução de Fevereiro, ele já publicava o texto “Viva o Malabarista”, e

solicitava o renascimento do circo e a presença do teatro de feira, que o contexto

revolucionário deve defender e desenvolver. Neste ambiente foi encenada, por duas vezes, a

obra Mistério-Bufo, em parceria com o Maiakóvski, cujos atores clowns e acrobatas

materializaram o ideal revolucionário, o homem total e polifônico.

3.2. Na cena revolucionária: Mistério-Bufo (1918 e 1921)

Não há mais tolos boquiabertos,


esperando a palavra do “mestre”.
Dai-nos camaradas, uma arte nova
– nova –
que arranque a república da escória 282.

Meierhold e Maiakóvski se reencontraram na turbulência dos acontecimentos do ano

de 1917. Porém, agora eles estavam sob o regime bolchevique e ambos unidos pelo mesmo

desejo de transformar o mundo. Em 27 de setembro de 1918, o poeta leu pela primeira vez aos

amigos, na presença de Lunatcharski e Meierhold, sua nova peça que relata – com audácia,

280
Ibid.
281
De 1918 a 1921, o encenador Meierhold dirige Mistério-Bufo (1918 e 1921) e As auroras (1920). Esta
pesquisa não tem quaisquer pretensões de dar conta da produção artística meierholdiana após a Revolução de
Outubro. Sobre isto já existe uma grande bibliografia escrita, como por exemplo, as obras de: ABENSOUR, G.
Op. cit., 1998. PICCON-VALLIN, B. Op. cit., 1975. RIPELLINO. Op. cit., 1996. RUDNITSKY, K. Op. cit.,
1988. O que é relevante pra esta pesquisa são os avatares da prática artística de Meierhold e a relação com o
espetáculo Mistério-Bufo, obra investigada aqui, e o corpo acrobata.
282
Ordem nº 2 ao exército das artes, 1921. In: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Op. cit., Tradução: Haroldo de
Campos. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 93.
131

grosseria, blasfêmia e alegria – a história de uma revolução popular em estilo de desenho

animado. Seduzido pela inventividade revelada, Meierhold ansiosamente propôs encená-la e,

assim, apresentou o seu autor: “Camaradas, vocês conhecem Goethe, vocês conhecem

Puchkin, bom, deixe-me apresentar-lhes o maior poeta dos tempos modernos: Vladímir

Vladimirovitch Maiakóvski”283.

No município de Levshov, região de Petrogrado, em sua datcha, casa de campo, em

pleno verão de 1918, Maiakóvski escreveu a peça em versos, Mistério-Bufo (Mistéria-Buf),

projetada para comemorar o primeiro aniversário da Revolução. Esta obra levava o seguinte

subtítulo: retrato heroico, épico e satírico de nossa época, desvendando seu elevado cunho

político e o acelerado ritmo futurista “expresso na liberdade formal que os acontecimentos de

Outubro imprimiram em sua pesquisa teatral”284. O próprio dramaturgo definiu esta obra

como uma mescla entre o “sagrado”, pelos aspectos grandiosos da revolução, e o “burlesco”,

pelo que há de ridículo nela.

Mistério-Bufo apresenta a luta de classes na Rússia e deposita na Revolução de

Outubro as expectativas por uma sociedade mais justa. A obra narra a trajetória política dos

operários em direção à Terra Prometida, uma intrépida viagem rumo à cidade do futuro. O

tom é festivo, e expressa o entusiasmo do poeta Maiakóvski pelo proletário. De um lado, sete

pares de “Puros”, burgueses exploradores: um francês gordo, um australiano com a sua

esposa, um oficial italiano, outro oficial alemão, um mercador-valentão russo, o Negus

abissínio, um chinês, um persa bem-nutrido, um rajá hindu, um paxá turco, um Pope, um

americano e um estudante; e, de outro, os “Impuros”, proletários explorados: um limpa-

chaminés, um lanterneiro, um chofer, uma costureira, um mineiro, um carpinteiro, um peão,

283
ABENSOUR. Op.cit., p. 283.
284
CAVALIERE, Arlete. Op. cit., p. 278. Cabe esclarecer que as pesquisas teatrais de Maiakóvski se
integram de maneira orgânica às convicções, preocupações e princípios de ordem moral, social, política, estética
ou poética que ele expressa em momentos diferentes e formas diferentes nas suas variadas formas de expressão
(poemas, textos, manifestos, cartazes de propaganda, etc.) submetidas à complexidade dos reveses históricos e
artísticos que marcaram seu tempo.
132

um criado, um sapateiro, um ferreiro, um padeiro, uma lavadeira e dois esquimós (pescador e

caçador).

Os espaços de ação são “O universo todo”, uma Arca, o Inferno, o Paraíso e a Terra

Prometida. Numa grande metáfora, Maiakóvski descreveu a Revolução como um dilúvio que

se abateu sobre o planeta Terra. Após este acontecimento, “Puros” e “Impuros” de todos os

lugares do mundo se agrupam no polo ártico, o único espaço ainda não inundado. No entanto,

como o alagamento também ameaça o polo, uma arca é construída e todos começam a

navegar rumo ao Monte Ararat. Enquanto os “Impuros” não estão presentes, os “Puros”,

famintos, organizam um golpe de Estado, proclamando o Negus da Abissínia como seu

soberano. Ao perceber que este se comporta como um comilão descontrolado, os “Puros”

decretam o fim da autocracia e atiram o seu rei no mar, aliando-se aos outros para

coletivamente instituir a República Democrática. Mesmo assim não há mudanças no modo de

organização dos “Puros” e “Impuros” na arca. O primeiro grupo, que possui a comida, obriga

o segundo ao serviço. É nessa situação que os “Impuros”, descontentes com o novo governo,

arremessam os burgueses ao mar e seguem ao Monte Ararat.

Mineiro – Camaradas!
O que é isso!
Antes tudo devorava uma só boca e agora o nosso um batalhão
emborca.
Aconteceu que a República, horra é o mesmo tzar, só que de cem bocas.

Francês (esgravatando os dentes) – Vocês estão esquentando demais. Prometemos e


dividimos em partes iguais:
para um – a rosca, para outro – o buraco dela.
A república democrática é assim que se revela.

Mercador – Então precisa alguém ficar com as sementes – não é a melancia para
todos os dentes.

Impuros – Nós vamos mostrar a vocês a luta de classes! Em frente! 285

Na viagem a fome se torna o grande problema para os “Impuros”, até o momento

da chegada do Homem Simplesmente, o mais comum dos homens, que caminha sobre as

285
MAIAKÓVSKI, Vladimir. Mistério-Bufo: um retrato heróico, épico e satírico da nossa época.
Tradução de Dmitri Beliaev. São Paulo: Musa Editora, 1998, p. 135.
133

águas como numa alucinação e anuncia um lugar onde “o doce trabalho não caleja as mãos. O

trabalho floresce como rosa na palma da mão”286, a Terra Prometida é apresentada e passa ser

o objetivo de chegada, um paraíso para os proletários, ou seja, um Estado Utópico é

anunciado.

Os “Impuros”, motivados pelas palavras, saem da arca, sobem em árvores,

ultrapassam as nuvens e passam pelo inferno, onde encontram Diabos e o Belzebu, e seguem

em busca de alimentos, chegando ao Paraíso. Aí estão grupos monótonos de anjos, figuras

decorativas de Rousseau, Tolstói e Matusalém. Os “Impuros” fogem destes lugares e se

deparam com os portões da Terra Prometida. As portas se abrem e as ferramentas vêm ao

encontro dos “Impuros” para servi-los, trazendo alimentos para recepcioná-los. No final,

todos cantam o Hino à Comuna287.

Maiakóvski realizou uma leitura da peça junto dos atores do Teatro

Aleksandrinskii, enquanto Meierhold explicava o plano de montagem do espetáculo e

Malévitch, a cenografia288. A obra provocou uma rejeição violenta pela maior parte do elenco,

não somente pela contaminação dos princípios futuristas em contraponto à visão conservadora

dos “velhos” atores, mas, sobretudo, porque Mistério-Bufo parecia simbolizar a invasão do

bolchevismo no seio do Teatro Alexandrinskii, bem como uma agressão ao sentimento

religioso, que chocava particularmente o elenco. Muitos deles “faziam o sinal da cruz,

perturbados por aquela mistura de religioso e blasfemo”289.

A encenação não ocorreria, evidentemente, no espaço do Teatro Alexandrinskii,

nem no picadeiro do Circo Moderno, que foi concedido por Mária Fiódorovna Andriéiva, que

dirigia a presidência dos espetáculos da Comuna de Petrogrado. Ela teve a autorização

286
Ibid., p. 163.
287
Este Hino cantado pelos “Impuros” pode ser encontrado em: Ibid., p. 265-267.
288
Malévitch combina em seu cenário estruturas arquitetônicas e painéis decorativos. Um grande globo
azul indicava a Terra, outras formas cúbicas assinalavam a arca. O paraíso era caracterizado por tons cinzas e
alinhavam bolas de nuvens multicores, já o inferno era uma sala gótica vermelha e verde. A Terra Prometida era
designada por uma grande tela suprematista, um amplo arco e a armação de uma máquina.
289
RIPELLINO, A. M. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 86.
134

retirada, em virtude das péssimas condições da estrutura local. Com a intervenção de

Lunatcharski, foi cedida para a montagem a sede do Teatro do Drama Musical por três dias: 7,

8 e 9 de novembro de 1918. A apresentação foi preparada às pressas, com poucos ensaios, e

se limitou a poucos dias em virtude das críticas violentas e sob a acusação de ser

inconveniente para as massas. Dois dias antes da estreia do espetáculo, Lunatcharski escreveu

o artigo “Espetáculo Comunista” para o jornal e declarou: “A única peça que foi idealizada

com a influência de nossa revolução e portanto possui o seu carimbo de tom maior, de

entusiasmo, de ousadia é o Mistério-Bufo de Maiakóvski”290.

14. Cartaz anunciando as apresentações do espetáculo Mistério-Bufo em 1918.

O curioso é que para a montagem foram convidados atores por intermédio de

jornais, o “Apelo aos Atores”, assinado por Maiakóvski e outros colaboradores:

Camaradas atores! Vocês são obrigados a marcar a grande festa da revolução com
um espetáculo revolucionário. Vocês devem encenar Mistério-Bufo, um retrato
heroico, épico e satírico de nossa época, feito por Vladimir Maiakóvski. Venham
todos no domingo, dia 13 de outubro, na sala do colégio Tenishevski (Mohovaia,
33). O autor lerá o Mistério, o diretor exporá o plano de encenação, o pintor
mostrará os figurinos, e aqueles de vocês que arderem por fazer este trabalho serão o
elenco. O Bureau Central de Petrogrado para os Festejos oferece todos os recursos

290
In: MAIAKÓVSKI. Op. cit., 1998, p. 8.
135

necessários para a realização do Mistério. Todos ao trabalho! O tempo é caro.


Somente os camaradas que desejarem participar da encenação são solicitados a vir.
O número de lugares é limitado.

A aproximação da obra aos Mistérios Medievais291 reforça a proposta alegórica,

personagens e espaços metafísicos, mistura entre o solene e o cômico através da aproximação

com os temas bíblicos. Mistério-Bufo está imerso em personagens e citações de cunho

religioso para instalar um diálogo intrínseco com a tradição da cultura russa, neste caso, com

zombaria e escárnio. Percebe-se o grande número de referências à religião, já que o autor

efetua uma reversão iconoclasta sobre esta problemática ao recuperar a tradição russa e

transformá-la em agitação antirreligiosa e política. Isto pode ser observado no surgimento do

personagem do Homem Simplesmente, interpretado pelo próprio Maiakóvski no espetáculo

dirigido por Meierhold, que como um “Cristo Anarquista” 292 profere seu sermão da montanha

em tons surrealistas, incitando a lucidez e rejeitando toda a autoridade estabelecida.

Meu paraíso é para todos,


exceto para os pobres de espírito
de tantas quaresmas inchados como a lua gigante.
É mais fácil um camelo passar de uma agulha o buraco estrito, do que chegar a mim
tal elefante!
Até mim –
quem cravou tranquilamente o facão
e deixou o corpo do inimigo com uma canção!
(...)
Venham todos, quem não é mula de carga, todo aquele que está desesperado no
limite seu,
saiba:
é pra ele –
o meu reino do céu293.

Como afirma Abensour294, o poeta apresentava a Revolução como um fenômeno

cósmico, um dilúvio que faz emergir a arca da salvação que conduzirá os condenados à Terra

291
Os Mistérios Medievais são dramas medievais religiosos, registrados do século XIV ao século XVI.
Eles colocam em cena acontecimentos bíblicos ou da vida dos santos, que são representados nas festas religiosas
por atores amadores, principalmente mímicos e menestréis, em palcos simultâneos. As apresentações dos
Mistérios normalmente duram muitos dias e a conexão entre os seus episódios e espaços cênicos geralmente é
feita através da figura do narrador. Os Mistérios foram proibidos pela Igreja que se espantou com o grau de
burlesco, grosseria, comicidade e zombaria, que eram expressos através do grotesco.
292
ABENSOUR. Op. cit., p. 284.
293
MAIAKÓVSKI, Op. cit., 1998, p. 165.
294
ABNSOUR. Op. cit.
136

Prometida, lugar de reconciliação do homem com ele mesmo e com a natureza. Os artistas da

revolução aderiram à revolta não pela determinação da luta de classes, mas pelos horrores da

guerra.

Cavaliere295 chama atenção para a base paródica do texto, em que se inscrevem

inversões cômicos-grotescas de toda a ordem: procedimentos dramáticos-cênicos dos

mistérios medievais edificantes, com seus temas e episódios bíblicos, que interagem de forma

festiva e espetacular com “máscaras-caricaturas”, que possuem o caráter vital, luminoso e ágil

do teatro popular com sua mistura de assuntos sacros e profanos, a linguagem dos trocadilhos

e da linguagem irreverente. Outra característica relevante da estrutura dramatúrgica é a

dualidade que contrapõe dois mundos e dois tempos: o último se estabelece pela imposição do

novo sobre o velho, e aparece de forma esquemática para por em evidência o conflito entre as

diferentes máscaras sociais: o embate entre os puros e os impuros.

Essas figuras carnavalizadas conformam uma estranha alegoria teatral capaz de


incluir no espaço cênico o paraíso, o inferno e a Terra Prometida, e de justapor a luta
de classes e a revolução do proletariado (os impuros) e seus oponentes, burgueses
redondos e balofos [...], à imagem do dilúvio universal e à construção da arca de
Noé, referência ao livro bíblico de Moisés (Gênesis), numa alusão parodística ao
cataclismo revolucionário que transformara os destinos da Rússia. 296

Muitos dos elementos de Mistério-Bufo se aproximam dos teatros de feira russo, o

balagan: as cenas curtas destacadas como vinhetas, o desenvolvimento rítmico das falas, a

agilidade verbal dos diálogos dos personagens, bem como a própria estrutura espetacular.

Justamente pela grande popularidade das atrações do balagan, Maiakóvski recorre a tais

procedimentos para oferecer a este texto a inflexão de formas tradicionais íntimas ao

proletariado, às pessoas de baixa renda e incultas, que lotavam os teatros.

Rippelino297 relata que para a construção do episódio do inferno, o autor recordou-

se das pantomimas do balagan. Quando foi encomendado o texto, Maiakóvski entrou em

295
CAVLIERE, Arlete. Op. cit., p. 280-281.
296
Ibid., p. 281-282.
297
RIPELLINO. Op. cit., 1986, p. 82.
137

contato com um diretor de espetáculos de teatro de feira e observou detidamente uma maquete

do inferno que o último modelava. Um enorme demônio barrigudo de cuja goela escancarada

saltavam diabinhos de malha vermelha e tridente era uma figura característica do inferno, que

cravado na terra engolia os malvados, soltando fumaça das narinas e das orelhas. Os diabos de

Maiakóvski, portanto, seriam provenientes dos teatros e estampas populares.

15. Figurinos desenhados por Maiakóvski para os Puros, 1918

16. Figurinos desenhados por Maiakóvski para os Impuros, 1918

As aspirações de Maiakóvski se encontravam com as de Meierhold, que viu, nesta

obra, a possibilidade de realizar o teatro que desejava, um teatro que educa e diverte o
138

público: ele formulou e iniciou um tipo de concepção muito viva sobre a arte teatral e sobre a

própria arte e convidou a todos para participar das atividades de criação artística (autor,

atores, cenógrafo, músico e encenador) de modo a realizar trabalhos em conjunto. Pela

primeira vez, Meierhold partilhou sua visão com um autor que foi, ao mesmo tempo, ator e

assistente de direção. Ele deixou aos cuidados de Maiakóvski o trabalho de iniciar os atores às

particularidades da dicção rítmica dos seus versos, que quebravam decisivamente com a

pronúncia do verso musical russo.

A genialidade do discurso verbal dos versos maiakovskianos em Mistério-Bufo é

construída pelas próprias falas sobre um vivo jogo de discussões, de trocadilhos e de recursos

fonéticos. O autor de Mistério-Bufo constrói os diálogos por meio da linguagem versificada e

colorida dos heróis presentes que caracterizam e identificam os diferentes tipos sociais, como

a linguagem do povo nas ruas que se opõe de forma libertina ao discurso oficial, às palavras

de ordem da época política. A matéria verbal do futurismo concorda com a do teatro popular.

As críticas foram violentas e cruéis para a primeira versão de Mistério-Bufo, pois

seus adversários protestavam contra a intervenção da política no teatro e chegaram a afirmar

que a obra não era adequada aos proletários. Maiakóvski era acusado de ser ininteligível para

o novo público, marca que foi recorrente ao longo de sua carreira enquanto poeta.

Em outubro de 1920, com os caminhos estabelecidos pela Revolução, Maiakóvski

reescreveu Mistério-Bufo sob forte influência das suas experiências adquiridas na ROSTA

(Agência Telegráfica Russa)298. Consciente das transformações na Rússia nos últimos anos,

Maiakóvski ponderou que a obra deveria ser remexida, retocada, adaptada às circunstâncias

298
Com a transferência para Moscou em 1919, Maiakóvski trabalhou na Agência Telegráfica Russa
(ROSTA), permanecendo aí de outubro daquele ano até fevereiro de 1922, confeccionando cartazes políticos,
acompanhados de vinhetas e comentários versificados. Os cartazes, expostos nas janelas das lojas, chamavam
atenção nas ruas de Moscou pelas suas cores vivas e versos intensos em contraste com uma Moscou coberta de
neve e sob guerra. Os desenhos pintados nos cartazes da ROSTA receberam os nomes de “janelas” (okna). As
janelas de Maiakóvski retratavam uma Rússia atordoada pela guerra civil, pelas epidemias, pela rebeldia, abatida
pela perseguição dos contrarrevolucionários e pelo caos econômico. Os tipos representados por Maiakóvski
nestas janelas se desdobram nos personagens dos “Puros” e dos “Impuros”, de um lado pretensiosos burgueses e,
de outro, majestosos operários.
139

recentes. Ele manteve-se fiel ao partido bolchevique, reforçou a sátira ao pequeno-burguês e

aprofundou a imagem de pureza dos operários revolucionários.

Mistério-Bufo é o caminho. O caminho da revolução. Ninguém profetizará com


precisão quais montanhas a mais teremos de explodir, nós que estamos indo por este
caminho. Hoje arrebenta os tímpanos a palavra. Lloyd-George, mas amanhã seu
nome será esquecido pelos próprios ingleses. Hoje aspira à comuna a vontade dos
milhões, mas dentro de uma meia centena de anos, pode ser que em um ataque
contra planetas longínquos se atirem encouraçados aéreos da comuna:
É por isto que, tendo mantido o caminho (a forma), eu novamente mudei partes da
paisagem (o conteúdo).
No futuro, todos que encenarem, desempenharem os papéis, lerem e imprimirem o
Mistério-Bufo, mudem o conteúdo, – façam ele ficar contemporâneo, hodierno, do
momento299.

Existem diferenças significativas entre as duas versões escritas. Na segunda versão de

Mistério-Bufo, o dramaturgo atualizou o texto, enriquecendo-o de dados políticos, acentuando

a característica antirreligiosa, abrangendo os recentes fatos históricos e a conjuntura do

momento, como, por exemplo, a guerra civil, a interferência de países ocidentais, a falta de

alimentos, o racionamento, etc. Tais assuntos eram discutidos insistentemente em suas

“janelas” do ROSTA. Maiakóvski também substituiu alguns personagens: o mercador russo

transformou-se em um especulador; o francês se tornou Clemenceau, o estudante e o oficial

italiano viraram um diplomata e Lloyde George; o alemão militar se converteu num burguês

de Berlim. Foram incluídos no grupo dos “Puros” a Mulher das Caixas de Papelão, uma

versão da Mulher Histérica, que frequentemente troca de opinião, o intelectual fútil e tagarela

e o Conciliador Menchevique, que sempre acabava apanhando nas tentativas de conciliar os

antagonistas. Do lado dos “Impuros” entraram o Soldado Vermelho e o Maquinista,

substituindo outros operários. O Homem Simplesmente se converteu na figura do herói

utópico o Homem do Futuro, que expurga os bons costumes e afirma que o puritanismo

recuperou a supremacia na terra dos soviets. Os “Puros” reaparecem no Inferno, após serem

atirados fora da arca.

299
MAIAKÓVSKI. Op. cit., 1998, p. 7.
140

Há alterações na estrutura dramatúrgica do texto. O primeiro e o segundo quadros da

versão de 1918 transformaram-se, respectivamente, no 3º ato e no Inferno; e no 4º ato e no

Paraíso. Do terceiro quadro foi extraído para a segunda versão um 6º ato, a Terra Prometida.

Foi incluído um ato novo, o 5º, que descreve o País das Ruínas 300, esta seria uma “tentativa de

propaganda industrial dramatizada”301 que “espelha a luta do governo soviético contra a crise

econômica”302. No final do texto, os “Impuros” cantam alegremente a “Internacional”303.

Meierhold, entusiasmado com a nova versão, decidiu fazer a remontagem. Em 29 de

dezembro de 1920, Maiakóvski leu a peça aos atores do Teatro RSFSR I304 e os ensaios

começaram no dia 5 de janeiro de 1921, com a participação ativa do poeta. Assim, a aliança

entre o encenador e o dramaturgo foi novamente selada no combate simultâneo sobre o texto e

a forma de encená-lo305.

Na preparação para a representação surgiram protestos, essencialmente, de escritores

marxistas que denunciaram ao Comitê Central do Partido que tal obra era incompreensível

para os proletários, pois estava contaminada do pensamento anarquista. Maiakóvski, então,

começou a visitar diversos bairros de Moscou e Petrogrado, onde relia o texto em comícios e

assembleias, para verificar que a sua obra não era apenas bem compreendida, como era bem

aceita pelo operariado. Foi organizado em janeiro de 1921, pelo Teatro RSFSR I, um debate

sobre o tema “É preciso encenar Mistério-Bufo?”, com a presença de representantes do

partido que, por fim, enfatizaram o conteúdo proletário da comédia e orientou que

prosseguissem os ensaios e a representação nos palcos russos em função do 1º de maio.

300
Quando os “Impuros” chegam ao País das Ruínas, pilhas de fragmentos e restos de objetos obstruem
seu caminho. Os objetos sepultados gemem abaixo dos detritos e, assim, os proletários cavam e retiram uma
locomotiva e um barco. Surge alegoricamente a Ruína, velha, repugnante e imperiosa, juntamente com o seu
bando indisciplinado de indolentes e tratantes, semelhante aos Mistérios Medievais. Os “Impuros” a enxotam,
reanimam a locomotiva e o barco com carvão e gasolina e seguem para a Terra Prometida.
301
RIPELLINO. Op. cit., 1986, p. 97.
302
Ibid.
303
O poema “Internacional” pode ser encontrado em: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Mistério-Bufo. Tradução
de Lila Guerrero. Buenos Aires: Editorial Platina, 1958, p. 194.
304
Este Teatro foi inaugurado em 7 de novembro de 1920 com a montagem de As auroras, de Verhaeren,
encenada por Meierhold.
305
Ver mais em: ABENSOUR. Op. cit., p. 308.
141

Maiakóvski assim se expressou: “Abrindo caminho entre delongas, odes, estorvos

burocráticos, obtusidade, represento a segunda variante de Mistério-Bufo”306.

O espetáculo, sob a direção de Vsévolod Meierhold, estreou no dia 1º de maio de

1921, no Teatro da RSFSR I. O sucesso foi tão grande que Mistério-Bufo teve apresentações

diárias até o final da sua temporada, em 7 de julho de 1921.

O encenador aboliu a caixa cênica, utilizou os princípios formais do cubo-futurismo e

toda a ideia de cenário servia como pano de fundo para a ação dos atores, a valorização de seu

jogo e a libertação de seu corpo “por meio de pantomimas acrobáticas que desenham os

hábeis movimentos de todos aqueles clowns grotescos” 307. Os cenógrafos Anton Lavinsky,

escultor, e Vladimir Khrakovsky, pintor, montaram uma grande construção que se

assemelhava com as linhas de uma arca. O ato do paraíso acontecia quase no ar, num tipo de

toldo, que continha duas escadas que se ligavam ao chão. Neste lugar, no nível dos

espectadores, um globo terrestre coberto por um sistema de sinais geográficos se destacava.

Era deste aparato, também, que pulavam os demônios na cena do inferno. Nesta versão, as

estruturas arquitetônicas substituíam os painéis de fundo e em certos momentos a ação se

colocava por entre o público. Como afirma Rudnitsky, a interação entre ator e público

alcançou o máximo de liberdade e facilidade. As experimentações no Estúdio da Rua

Borondiskaia finalmente tinham produzido resultados. As tentativas praticadas anteriormente

nos experimentos cênicos, através de hipóteses, suposições e incertezas, de repente se

tornaram coerentes e não apenas possíveis, como essenciais308.

306
In: RIPELLINO. Op. cit, 1986, p. 100.
307
CAVALIERE. Op. cit., 2009, p. 283.
308
Ver mais em: RUDNITSKY. Op. cit., p. 62.
142

17. Cenário para segunda versão de Mistério-Bufo, 1921

Os figurinos ficaram a cargo de V. Kissielióv, que utilizou tecidos ornados com jornal.

Os “Impuros” não utilizavam maquiagem e vestiam blusões de trabalho de cor azul: a

composição era pálida e monótona. Em contraposição, os “Puros” possuíam o tom dos

cartazes satíricos, “janelas”, e da extravagância circense para oferecer ao espetáculo o caráter

alegre, festivo e ruidoso. Os demônios do 3º ato com rabos, chapéu-coco e couraças pareciam

verdadeiros palhaços. Destaque seja dado também para Igor Ilínski, que fez seu primeiro

grande sucesso no papel do Conciliador. O ator utilizava-se em cena de mímicas clownescas

para representar o personagem político do menchevique. De peruca avermelhada, barbudo,

com os olhos espantados e arregalados, agitando um guarda-chuva aberto com a mão

esquerda como se manipulasse um objeto circense e com a direita tentava freneticamente

fechar o casaco aberto pelo vento. Lunatcharski, que ainda não sabia o nome de Ilínski,

comentou: “O ator que faz o menchevique é brilhante”309.

309
Ibid., p. 63.
143

18. Desenhos para o figurino da segunda versão de Mistério-Bufo. Na imagem um Puro e um Impuro.

O espetáculo não escapou a polêmicas. Para Ripellino310, como na primeira redação,

também agora a marcada tendência política despertou o sentimento de ódio nos intelectuais de

direita, enquanto a novidade da forma se opõe a mesquinhez dos funcionários do partido. Foi

quando Mistério-Bufo, no dia 24 de junho, foi apresentado no Primeiro Circo Estadual de

Moscou, “em honra ao III Congresso do Comintern, na versão alemã de Rita Rait, que

trabalhava com Maiakóvski na ROSTA”311.

Meierhold admirava particularmente Maiakóvski, “ele tinha o comando sobre o

teatro”312 e acreditava que o poeta “era brilhante no campo da composição” 313. Maiakóvski

oferecia ao encenador as formas teatrais que se conectavam, através de suas convicções

particulares, às exigências de sua época. Na segunda versão de Mistério-Bufo, os elementos

circenses são muito mais ressaltados do que na primeira, ao mesmo tempo atualizando a peça

e fazendo dela uma espécie de revista política. As utilizações dos procedimentos do circo,

particularmente, interessam a esta pesquisa.

Cavaliere314 define o espetáculo Mistério-Bufo como uma “comédia clownesca”,

contaminada de máscaras circenses. Ela aponta que o prólogo da segunda variante, por

exemplo, é inspirado nas apresentações do circo ambulante e dos teatros de feira ao expor, em

310
RIPELLINO. Op. cit., 1986, p. 102.
311
Ibid.
312
RUDNITSKY. Op. cit., p. 62.
313
Ibid.
314
CAVALIERE. Op. cit., 2009, p. 279-280.
144

síntese didática e jocosa, a estrutura da peça em argumento, tema e constituição de cada ato. O

prólogo perde a agilidade política da primeira versão, e mantém a sua polêmica vivacidade no

domínio estético, proclamando uma reforma no campo das artes por meio da teatralidade.

Para outros teatros a representação carece de importância:


para eles a cena é como olhar um buraco da fechadura.
E a gente, sentado corretamente ou inclinado,
contempla uma fatia de vida alheia.
Contempla e vê fungar sobre sofás tias Manias e tios Vânias.
Para nós não interessam tios nem tias,
tios e tias vocês encontrarão em casa.
Também nós mostraremos a vocês a verdadeira vida,
Porém transformada pelo teatro num espetáculo surpreendente 315.

Maiakóvski declara, com o trecho citado acima, sua oposição ao realismo e,

especificamente, aos princípios das peças representadas pelo Teatro de Arte de Moscou 316,

que, para ele, é uma instituição que se opõe a causa revolucionária da época, que exclui o

proletário e afirma a burguesia. O próprio poeta esclareceu a dualidade entre o sério e o

cômico, a tradição e a modernidade ao explicar o título da peça no programa do espetáculo

que foi encenado no ano de 1921:

Mistério-Bufo é a nossa grande revolução, condensada em versos e em ação teatral.


Mistério: aquilo que há de grande na revolução. Bufo: aquilo que há nela de ridículo.
Os versos de Mistério-Bufo são as epígrafes dos comícios, a gritaria das ruas, a
linguagem dos jornais. A ação de Mistério-Bufo é o movimento de massa, o conflito
de classes, a luta das ideias: a miniatura do mundo entre as paredes do circo 317.

A estrutura dramatúrgica se assemelha ao espetáculo circense 318: sucessão de cenas

rápidas, breves diálogos, cenas bem definidas pelos grupos de personagens, os temas

abordados e os espaços da ação, além do tom cômico-satírico e dos efeitos espetaculares.

315
MAIAKÓVSKI. Op. cit., 1958, p. 62.
316
No prólogo de Mistério-Bufo, Maiakóvski se refere diretamente à montagem do espetáculo “Tio Vânia”,
de Anton P. Tchekov, encenado por Constantin Stanislávski no Teatro de Arte de Moscou pela primeira vez em
1899.
317
Ibid., p. 278-279.
318
Esta semelhança não é casual, pois nas comédias de Maiakóvski, que inclusive conviveu com muitos
circenses, um ponto comum é a utilização de procedimentos do picadeiro e muitos personagens clownescos. O
poeta russo, que desejava recitar seus versos na garupa de um elefante, encara o circo como um “espetáculo
terrestre, sem subentendimentos simbólicos, e propôs-se infundir-lhe os esquemas e os phatos do cartaz,
transformando os palhaços em máscaras sociais”, retirando o cunho metafísico retratado pelos poetas
simbolistas.
145

Estes elementos estão interligados por um fio condutor cuja temática política conecta todos os

acontecimentos da peça, a luta de classes universal e a revolução mundial, associadas às

circunstâncias imediatas da época. Nota-se, também, que os espaços de desenvolvimento da

trama parecem concebidos na perspectiva de uma pantomima circense: são simples na sua

construção, necessitando de poucas transformações, e utilizam materiais que solicitam do

intérprete a demonstração de suas habilidades corporais.

A introdução de aparelhos próprios do circo impôs a realização de exercícios

acrobáticos, como, por exemplo, o momento em que os “Puros”, no 1º ato, descem

rapidamente pelos meridianos e paralelos do globo terrestre. O palhaço-acrobata Vitáli

Lazárienko319, que desempenhou um dos diabos, descia por uma longa corda executando

diversos truques acrobáticos. Sobre o desempenho desses artistas, Valeri Sisóev, que

interpretou o Homem do Futuro, escreveu: “Lazárienko, iluminado por um refletor vermelho,

realizou arriscados truques em um trapézio. Por exemplo, se sentava no trapézio, balançando-

se nele e mexendo os braços, logo em seguida, se deixava cair, mantendo-se preso aos

ângulos do trapézio com a ponta dos pés” 320. Também as nuvens de balão do Paraíso foram

utilizadas para malabarismos e saltos. Em Mistério-Bufo os jogos cênicos estabelecidos com

ou sem acessórios foram sempre sustentados por uma intenção precisa. As acrobacias e as

manipulações de objetos estavam de acordo com as cenas de palhaço, ou a representação

excêntrica de números, e serviu para ridicularizar a religião, o capitalismo estrangeiro e a

319
Vitáli Lazárienko, palhaço e acrobata russo, aderiu ao movimento cubo-futurista antes mesmo do ano de
1917, inclusive fazendo parte do filme Quero ser um futurista, e participando das manifestações do 1º de maio
em grandes pernas de pau. Dedicado à vida política russa, ele reagia com sagacidade aos acontecimentos de sua
época, ganhando inclusive destaque nas “janelas” do ROSTA. Para Ripellino, pela rapidez imediata jornalística e
a matéria polêmica, a arte de Lazárieko concordava plenamente com as aspirações de Maiakóvski. Palhaço e
poeta conviviam juntos numa forte amizade e de seus encontros, nos primeiros anos soviéticos, escreve
Lazárienko: “Maiakóvski interessava-se muito pelo circo e conversava frequentemente comigo, sugerindo-me
temas e deixas. Vinha encontrar-me no camarim nos intervalos. Ressaltando os méritos e os defeitos, aprovava a
tendência dos meus números e elogiava-me, sobretudo, porque no meu repertório havia muita sátira política e de
costumes. Naqueles dias de fato muitos dos „importantes‟ do circo, para não se comprometer politicamente,
recorriam a „eternos‟, fora do tempo e do espaço... Encontrei um apoio constante em Maiakóvski. Infelizmente
não tomei nota dos temas que ele me fornecia: os fatos de então envelheciam depressa, passando de moda, eu
mudava sempre de repertório e nunca me ocorreu, confesso, que em seguida tudo aquilo teria tamanha
importância”. In: RIPELLINO. Op.cit., 1986, p. 216.
320
FEVRALSKI, A. Meyerhold y el circo. In: El circo soviético. Moscú: Editorial Progreso, 1975, p. 321.
146

literatura clássica. Uma das atrações favoritas das pantomimas de circo, o episódio aquático,

foi revivida e apresentada como o dilúvio da revolução que invade o globo terrestre 321.

19. Vitáli Lazárienko

Meierhold valorizou na encenação o caráter circense até mesmo na concepção dos

personagens. O grupo de “Impuros” foi abordado como máscaras sérias; eles eram circenses,

apresentados como acrobatas para realçar sua engenhosidade, sua destreza, seu vigor e suas

habilidades corporais: eles estavam mais próximos dos heróis retratados nas pinturas da

época. Maiakóvski apresentou os “Impuros” com desenhos cuja concepção cubista enfatizava

corpos poderosos, resistentes e fortes proletários. No texto, encontra-se uma passagem para

ilustrar tal situação: no momento em que todos discutem a questão da fome, o Ferreiro fala:

Não vamos é parar no meio do caminho.


O consumido pelos afogados não vai poder voltar.
Agora, só há uma coisa pra gente poder lutar,
que a força não se esgote até chegarmos ao Ararat.
Mesmo que as tempestades nos batam,
e o calor nos asse e mate,
mesmo que passemos fome –
vamos nos olhos dela olhar,
e comeremos só a espuma do mar.
Mas aqui em troca somos os senhores de tudo!322

321
AMIARD-CHEVREL, Claudine. La cirquisation du théâtre chez Maiakóvski. In: Du cirque au
théâtre. Lausanne: L‟Âge D‟Homme, 1983, p. 108.
147

Por outro lado, os “Puros” foram projetados pelo dramaturgo por meio de desenhos

em formato circular: barrigas enormes identificam este grupo de aproveitadores, enquanto a

cabeça e os corpos circulares contrastam com os membros finos, enfatizando o aspecto

grotesco. O comportamento deste grupo de opressores se assemelha ao dos palhaços: eles

tentam parecer espertos e inteligentes, porém falham em seus planos e terminam sempre nas

piores condições, além disso, eles usam trocadilhos verbais e recebem tapas e pontapés.

Mesmo representados como inimigos da classe operária, eles são tratados como palhaços

tanto pelo texto proferido como pelo comportamento físico, caracterizado pelos ridículos

jogos cênicos entre os personagens, acrobacias cômicas, brigas, quedas, etc.

Tais características que distinguem os “Puros” dos “Impuros” são extremamente

importantes para esta investigação, pois, além de demonstrar concretamente a simbiose entre

palco e picadeiro, elas revelam concretamente em cena o personagem principal desta

pesquisa: o Bogatyr.

Para o povo russo, o que emergia da Revolução de 1917 era a esperança de se

construir uma nova sociedade. Assim, tanto bolcheviques quanto mencheviques concordavam

que a classe operária era a única força com que a revolução poderia contar. Esta pesquisa

reconhece, portanto, que quem melhor encarnaria a metáfora do Bogatyr, para artistas, poetas

e intelectuais, era o proletário. Do ponto de vista artístico, a vanguarda interpretava a vitória

da classe operária como o desmoronamento do realismo e do tradicionalismo, fundamentado

no individualismo burguês e egoísta. Em Mistério-Bufo, a potência do Bogatyr é revelada no

grupo dos “Impuros”, cujo corpo acrobata, forte, resistente, veloz e disciplinado expressa todo

o poder revolucionário, definindo o desejo de homem total, orgânico e polifônico.

322
MAIAKÓVSKI. Op. cit., 1958, p. 117.
148

3.3. O desvendamento do Bogatyr

Olha,
em meus grandes olhos
abertos como o pórtico duma catedral.
Homens!
Amados e não amados
conhecidos e desconhecidos,
desfilai por este pórtico num vasto cortejo!
O homem
livre –
de que vos falo –
virá,
acreditai,
acreditai-me!323

Para Amiard-Chevrel324, se a vanguarda teatral russa almejava ardentemente a

teatralização do teatro reconhece-se, também, o seu desejo de “cirquização” dos espetáculos,

sua reconstrução de acordo com o modelo e os princípios da arte do picadeiro. O elemento

formal essencial pelo qual se manifesta a teatralidade, a exibição espetacular do artista em

cena, e a sua linha resultante fundamental, a paródia exagerada, são conservados pelo circo

em uma forma intangível. A exibição espetacular e a paródia, para Meierhold e Maiakóvski,

são os princípios fundamentais encontrados nas atividades circenses. A parceria entre o

encenador e o poeta desenvolveu esta prática com maestria, particularmente em seu primeiro

espetáculo Mistério-Bufo. Entretanto, isso somente foi possível pelas experiências pré-

revolucionárias de Meierhold no Estúdio da Rua Borondskaia.

Meierhold e Maiakóvski, assim como grande parte dos futuristas russos, tinham

grande atração pelas atividades circenses, pois um motivo fundamental era que a estrutura de

tal espetáculo ignora a lógica psicológica, busca a máxima expressividade e apresenta um

ritmo dinâmico. A rejeição do público burguês e o desejo do poeta e do encenador a favor de

uma criação artística para o proletário oferecem um ímpeto excepcional a esta revolução das

323
Dedicatória. In: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Vida e poesia. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 96.
324
AMIARD-CHEVREL. Op. cit., p. 104.
149

estruturas poéticas, nascida antes mesmo da revolução política, conforme visto no decorrer

desta pesquisa. O circo foi reconhecido pelos revolucionários como um espetáculo puro,

material, submisso a um extremo rigor e profissionalismo, exemplo de um alegre

desenvolvimento dos corpos e do heroísmo (habita a região do risco, afrontando

permanentemente as dificuldades e o perigo), produzindo efeitos espetaculares, ultrapassando

os seus limites e oferecendo ao homem a condição de superioridade.

Particularmente, Meierhold privilegiou as atividades circenses em 1918 enquanto

esteve ligado ao TEO. Foi notável sua preocupação em estabelecer uma educação básica para

as escolas de artes circenses, que formariam instrutores cuja atuação por distintos lugares da

Rússia organizariam grupos desportivos com o objetivo de criar uma nova cultura física. Em

1919, em uma reunião da Seção Teatral da Direção de Arte do Congresso de Instrução Extra-

Escolar de toda a Rússia, ele anunciava a ideia de que um corpo belo conduz à saúde do

espírito, pois “quanto mais intensa for a luta espiritual que é preciso sustentar, tanto maior é a

força física que se necessita. Construiremos escolas das quais sairão um corpo belo e vivo e

um rosto radiante”325.

Por outro lado, os planos de Meierhold em relação ao circo não se limitavam a este

prisma, eles iam muito além. O encenador defendia que a reinvenção do circo deveria partir

do empenho dos próprios artistas circenses. Em 17 de fevereiro de 1919, ele manifestou

publicamente estas ideias no debate sobre a exposição do encenador Nikolai Foregger 326 sobre

325
FEVRALSKI. Op. cit, p. 319.
326
Nikolai Foregger chegou a Moscou em 1916 saído de Kiev, cidade onde nascera. Foi fascinado pelas
grandes discussões pela mecanização e abstração da arte e do teatro, e ampliou isto para que fossem incluídas na
dança. Ele estudou os gestos cênicos e movimentos da dança, procurando os meios físicos para a reflexão das
concepções visuais da vanguarda pré-revolucionária. Estes estudos foram desenvolvidos em Petrogrado em seu
Estúdio. É sua a teoria do “tafiatrenage”, uma espécie de treinamento que, apesar de nunca ter sido codificado,
foca na relevância da técnica para o desenvolvimento físico e psicológico do intérprete. Foregger buscava com
isto um novo sistema de dança e de treinamento físico, referindo-se sempre ao circo, “irmão-siamês” do teatro,
na tentativa de consolidar novas modalidades de expressão “teatro-circo”. Encenou espetáculos como: Os
gêmeos (1920), O rapto das crianças (1922), Danças mecênicas (1923).
150

O Renascimento do Circo327, lido na União Internacional dos Artistas de Circo, existente na

época.

Na ocasião, Foregger via o circo como o reino da destreza e “eloquência do corpo” e

defendia a união entre as linguagens circenses e teatrais como uma nova modalidade de

espetáculo. “Para ele, não há fronteiras entre o circo e o teatro. O teatro e o circo são irmãos

siameses. Os elementos teatrais irrompem no circo, e o circo aspira impregnar com seus

sortilégios o domínio do teatro”328. O que este encenador propôs, na verdade, foi uma grande

reforma no circo, que supostamente conhecia a “crise” que o teatro passava época. Ele

convida, para isto, artistas ligados ao teatro para conceber pantomimas para o picadeiro e

espetáculos extraordinários, em tom feérico, bem como novos figurinos, música poderosa e

dinâmica, aprimoramento da cenografia, etc. Para Foregger, portanto, a reforma do circo

somente seria possível pelos homens de teatro e por fim o que ocorreria era “de um lado, o

teatro do drama, „o teatro das grandes paixões‟, do outro, o circo, „teatro da alegria

despreocupada‟. E a conclusão conduzia ao sonho de um teatro-circo”329.

Meierhold, por outro lado, criticou violentamente o sonho de um “teatro-circo” de

Foregger, e defendeu a independência entre ambas as linguagens, já que “o circo não deve ser

reconstruído por princípios que lhe sejam estranhos”330. Tanto o circo como o teatro deveriam

se desenvolver em consonância com as suas especificidades arquitetônicas, podendo cada

uma delas utilizar princípios e procedimentos da outra, porém conservando a independência

necesessária. Para ele, “as criações dos mestres do circo e as dos mestres do teatro realizam-se

e devem realizar-se no contexto das particularidades arquiteturais de dois espaços cênicos

diferentes e de acordo com leis que estão longe de serem idênticas”331.

327
Texto retirado do livro: PICON-VALLIN, Beatrice . Op. cit., 1975. Ver tradução para o português em
Anexo III desta pesquisa, p. 182-184.
328
Ver anexo III, p. 182.
329
Ver anexo III, p. 182.
330
Ver anexo III, p. 182.
331
Ver anexo III, p. 183.
151

Deve-se olhar com atenção o posicionamento de Meierhold sobre essa questão.

Segundo ele, o circo, “nas mais teatrais das épocas teatrais” 332, contribuiu para o

florescimento do teatro, especificamente na Commedia dell‟Arte italiana e no antigo Japão.

Entretanto, no ambiente russo revolucionário, os atores e encenadores do teatro dramático

nada tinham a oferecer aos artistas circenses. Nesse sentido, as ideias meierholdianas

asseguravam que o ator teatral é quem deveria aprender com os artistas do picadeiro, pois “se

o teatro contemporâneo deve se impregnar de elementos acrobáticos, isto não quer dizer

absolutamente que se deva fundir as representações de circo e de teatro em um espetáculo de

um novo tipo”333.

Para esta pesquisa, mais do que a discussão entre a fusão do circo e do teatro em um

espetáculo único, discussão inclusive que ganhará mais força na década de 1920, interessa

aqui a abordagem sobre o ideal de homem contida no pensamento destes artistas.

Bogdanov334, importante filósofo russo que influenciou intelectuais, políticos e artistas da

Rússia no início do século XX, afirmava que o entendimento do homem como um ser

desenvolvido e total, não embrionário e fracionado, ainda não fora alcançado, mas estava

próximo e seu perfil já “se desenha claramente no horizonte” 335. Para ele a “cultura

proletária”336 tinha a tarefa de favorecer o aparecimento deste homem, “ou, se se quer do

Homem (ou do Super-Homem), e de antecipar a sua formação já no presente”337.

Na Rússia revolucionária, o lugar de destaque foi dado ao proletário, o herói coletivo,

retratado pela vanguarda. Este movimento lutou exaustivamente por uma nova conformação

do homem, fortemente marcado pelo ideal socialista marxista, da não alienação da matéria e

332
Ver anexo III, p. 183.
333
Ver anexo III, p. 183.
334
STRADA, Vittorio. Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”. In: HOBSBAWN, Eric (Org.).
História Social do Marxismo: o marxismo na época da terceira internacional: problemas da cultura e da
ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 124.
335
Ibid.
336
Segundo Bogdanov, a noção de “cultura proletária” tinha um significado global, que abrangia todos os
aspectos da vida social e individual, já que o seu objetivo era a formação do homem. Sobre isto, ver mais
detalhes na parte dedicada à “Cultura proletária e revolução cultural” em: Ibid., p. 125- 129.
337
Ibid.
152

do espírito. Jakobson338 afirma que, em Maiakóvski, a materialização deste homem que

surgirá no futuro virá revestida de músculos e para o ato revolucionário se faz necessária a

“revolução do espírito”, para uma nova organização da vida, de uma nova arte e de uma

ciência nova.

Pode-se afirmar que o circo seria um dos espaços possíveis para a formação deste

modelo de homem, já que retomou no período suas especificidades de arte do corpo, que

eleva o homem à condição de superioridade. Isso foi possível graças à implementação de uma

rede de ensino e propagação das redes circenses, pelo próprio governo soviético, que tinha

como suporte ideológico a busca de um corpo belo e extremamente saudável, encarnando a

ideia de homem proclamada por Bogdanov.

Tal pensamento é claramente detectado na exposição de Meierhold, pois ele defendia

que o próprio artista deveria escolher os caminhos que desejava seguir, teatro ou circo. Na

contramão de Foregger, ele acreditava que o aspirante deveria passar primeiramente por

alguma escola que tornasse seu corpo mais flexível, cheio de vigor e belo, que o

disponibilizasse para qualquer tipo de atuação. O circo, assim, seria uma arma de combate aos

procedimentos realistas-naturalistas e para tal seria necessário a criação de uma “escola

artística e acrobática”

cujo programa deve ser construído de tal forma que o aluno, ao final dos estudos,
seja um adolescente são, hábil, forte, arrebatado, pronto a fazer uma escolha de
acordo com a sua vocação: o trabalho de circo, ou o teatro de tragédia, da comédia,
do drama339.

A formação deste artista se aproxima do ideal do bogatyr. Fevralski340 reconheceu que

Meierhold acreditava que o domínio dos fundamentos acrobáticos é imprescindível para o

desempenho físico do ator, bem como, quando conveniente, era necessário levar para cena

certos elementos da arte circense. Isto porque Meierhold estava localizado no momento de

338
JAKOBSON, Roman. A geração que esbanjou seus poetas. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 14-21.
339
Ver Anexo III, p. 184.
340
FEVRALSKI. Op. cit., p. 320.
153

valorização da cultura do movimento cênico e da educação do artista, este deveria dominar

perfeitamente seu corpo, em função da criação de uma arte teatral capaz de cumprir as

complexas e variadas tarefas que pregava a revolução. Ele, em toda sua atividade pedagógica

(desde o período como o Dr. Dapertutto) e em sua obra como encenador, “procurou sempre

encarnar a realidade destes princípios”.

Cabe recordar que cabia a Meierhold a preparação técnica do seu ator, que se baseava

primordialmente no aperfeiçoamento da linguagem corporal. O pedagogo acreditava que a

arte do movimento demandava precisão, agilidade, leveza e ritmo e, para tal, induziu o ator ao

desenho do movimento cênico, à percepção do espaço e ao descobrimento de um vocabulário

– próximo ao virtuosismo e agilidade do acrobata ou a fluência do malabarista. As diversas

disciplinas do Estúdio da Rua Borondiskaia, portanto, tinham duas funções primordiais: a

formação técnica do comediante e, ao mesmo tempo, sua transformação em um inventor, ou

seja, além de o ator concentrar uma polivalência técnica era necessário reunir uma

criatividade ampla. “Visto que o intérprete meierholdiano é, ao mesmo tempo, um acrobata e

um cantor, um jongleur e um bailarino, um atleta e um orador, aspirava-se inventar novas

formas que abolissem as fronteiras que delimitam as pretensões especializadas” 341.

Encontram-se aí alguns dos princípios sobre a polifonia que rege o ator meierholdiano.

Como foi visto anteriormente, o encenador procurou dotar o ator de múltiplos recursos

expressivos e orientá-lo também como um instrumento polifônico. Para Maria Thais342, a

formação deste tipo de ator pretendia torná-lo sujeito, uma voz autônoma que pudesse gerar,

através de seus movimentos e de sua fala, planos independentes que dialogariam entre si na

simultaneidade da cena. E ainda assim, este mesmo ator deveria se comunicar com os outros

elementos cênicos: a cenografia e objetos, o espaço cênico, outros atores, o texto, a música,

etc. O princípio da polifonia regeu os espetáculos meierholdianos, conforme visto, por

341
ROUBINE, Jean-Jacques apud THAIS, Maria. Na cena do Dr. Dapertutto. São Paulo: Perspectiva,
2010, p. 46.
342
Ibid., p. 169-170.
154

exemplo, na análise de Mistério-Bufo. Verifica-se que para a construção desta obra exigia-se

“um ator adestrado, capaz não só de reproduzir o movimento convencionado pela encenação,

mas, sobretudo, de criar”343.

Um paralelo pode ser traçado em relação ao artista circense e o seu caráter polifônico.

Longe de ser apenas um espetáculo de entretenimento, o espetáculo circense manifesta-se

como resultado de um rigoroso e complexo processo de formação artística e foi estruturado a

partir da ideia de fusão ou da mistura de linguagens artísticas. É para fundamentar estas

questões que surge o conceito de teatralidade circense344. Para ela, este termo engloba as

mais diversificadas formas de expressão artística que compõem o espetáculo do circo e,

portanto, é expressa e constituída por qualquer apresentação, seja acrobática, seja a

performance dos palhaços, a representação teatral, etc. Afinal ela é composta pela ação de

conjugar todos os componentes de seu espetáculo: o controle de um aparelho, gestos,

movimentos, coreografia, a comunicação não verbal com o público, maquiagem, roupa,

música, iluminação e a relação com as outras representações envolvidas.

Os artistas que compõem o espetáculo circense, os palhaços – herdeiros diretos dos

cômicos que habitavam as feiras, festas profanas ou religiosas –, os funâmbulos, os paradistas

e os saltimbancos, todos eles reuniam em suas práticas a teatralidade, destreza corporal,

mímica, dança, música e a palavra. Cabe frisar que o circo consolida-se, no final da primeira

metade do século XIX na Europa, como um lugar de múltiplas linguagens artísticas, que

implicava um agrupamento de saberes que determinavam novas formas de organização e

produção do espetáculo: acrobacias, magia, animais, números aéreos, show de variedades,

representações teatrais com pantomimas e entradas de palhaço com ou sem texto. Esse tipo de

343
Ibid., p. 160.
344
SILVA, Ermínia. Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo:
Altana, 2007, p. 20-21.
155

espetáculo, carregado de multiplicidade, foi o que migrou pelos países europeus, “marcando

relações plurais com as realidades culturais e sociais de cada região ou país” 345.

Este conjunto de elementos revela a noção de polifonia, pois os artistas circenses, além

de combinar as diversas habilidades físicas acrobáticas, o canto, a dança e a representação

teatral, também aproveitavam os assuntos dos jornais, revistas e folhetins, assimilando os

temas que faziam parte da localidade onde estavam, e montavam pantomimas que seriam

representadas sob a lona. Os artistas reelaboravam os textos da apresentação para incorporar

as particularidades das situações locais e, assim, configuravam novas versões para o

espetáculo.

Os artistas das mais diferentes origens e experiências – homens e mulheres –, com


suas representações teatrais, gestuais e musicais, ao trabalharem no espaço que
combinava picadeiro e palco, consolidavam o intercâmbio de sabres e técnicas que
esboçavam um novo tipo de atuação. A interação das técnicas espetaculares entre o
teatro e o circo – a crescente busca pelo domínio e utilização da mímica pelo ator da
época; a pista circular que aproximava a ação do espectador; o palco unido ao
círculo por rampas laterais, que se levantavam como uma plataforma e todo o
maquinário necessário para isso; o pano de boca, que permanecia fechado durante as
apresentações das provas circenses e, quando iniciava a pantomima com um quadro
no picadeiro, descobria uma cenografia, que “respondia cânones ilusionistas do
momento: fortalezas, bosques, lagos, marinas, etc., pintados sobre a tela e
iluminados por lamparinas”, os mesmos artistas saltando no solo ou em cavalos e
representando as pantomimas, intercalando arena e palco, esboçavam também a
formação de um novo campo de trabalho e um novo tipo de profissional. 346

Esta reflexão conduz ao processo de aprendizagem do artista circense que

cotidianamente ia se qualificando para exercer tarefas, pois no circo ninguém nasce trapezista,

ninguém nasce palhaço, equilibrista ou malabarista. Foi determinante para a formação do

artista circense a noção de sintonia e contemporaneidade entre as diversas expressões

culturais, uma vez que era o próprio circense que deveria dirigir e produzir seus espetáculos e

necessitava ter abertura para se atualizar e se transformar. Por este prisma, a constituição do

espetáculo, que aliava destreza física, comicidade, musicalidade, dança e representação

345
Ibid., p. 52.
346
Ibid., p. 81
156

teatral, consolidava o “conjunto de expressões daquela teatralidade, que definia o circo como

um espaço polissêmico e polifônico”347.

Os palhaços raramente eram apenas palhaços. O palhaço tinha outras técnicas, podia
ser a música, a acrobacia, o malabarismo, ser amestrador de animais. Meu pai
sempre dizia que não se começava sendo palhaço; isso vinha depois. A primeira
coisa era aprender um ofício, uma técnica. E com a vida, com a experiência do
contato humano, e com o gosto de ter contato humano, lentamente a técnica ia se
tornando menos importante, e o mais importante ficaria sendo a personalidade 348.

347
Ibid., p. 281.
348
BASSI, Leo apud SILVA, Ermínia. Op. cit., p. 129-130.
157

CONCLUSÃO

O circo é o melhor lugar do mundo!


Constantin Stanislávski
158

Esta pesquisa revelou que do final do século XIX até os anos que antecederam a

Revolução de 1917, na Rússia, a imagem do artista circense povoou o imaginário de

intelectuais, artistas e poetas, influenciando as formas de expressão artística e literária do

período. Fruto da inquietação de todo um momento histórico, o país vive um momento de

florescimento cultural que possibilitou o aparecimento de gerações que provocaram

importantes transformações literárias e artísticas, bem como desenvolveram uma revolução

social, política e cultural. Nesse contexto, o desejo do “novo homem”, um super-homem,

influenciou o pensamento dos artistas e intelectuais russos e encontrará expressão nas

linguagens artísticas. Destacou-se, neste estudo, que o corpo acrobata se aproximaria da

concepção de tal Homem, e pelo fato da tradição eslava ser um traço tão peculiar do povo

russo recuperou-se a figura do Bogatyr.

O simbolismo que se desenvolveu na Rússia na virada do século XIX para o XX é o

primeiro movimento que fomenta a recriação de uma arte total e religiosa, o desejo de superar

as fronteiras entre as linguagens artísticas. No entanto, a aproximação com o circo por parte

dos simbolistas ocorre no sentido poético e idealizado, não havendo de fato uma apropriação.

As reformas do simbolismo preparam o caminho para o desenvolvimento da vanguarda

futurista russa, que também se unificaram em protesto contra seus antecessores.

As experimentações da vanguarda cubo-futurista foram radicais em relação às artes.

Uma característica particular deste movimento foi a reivindicação da autêntica tradição eslava

em diálogo com a ruptura das convenções e o seu alastramento para todos os setores da

cultura. As atividades circenses ganharam grande relevância nas práticas dos poetas e pintores

da vanguarda, pois se aproximam sobremaneira de seus objetivos. No que diz respeito à

vanguarda teatral, por exemplo, a teatralidade foi adotada como mote e o circo exerceu uma

extraordinária influência sobre as atividades de encenadores e dramaturgos em reação violenta

aos procedimentos realistas-naturalistas.


159

Vladímir Maiakóvski, poeta cubo-futurista, foi destacado em virtude de sua

significativa contribuição à arte e literatura russa, e, particularmente, por seu interesse pela

cultura popular e pelo circo. Ele convivia com artistas do picadeiro e adota em diversas obras

elementos do universo circense, conforme visto no texto Mistério-Bufo, encenado em duas

versões, em 1918 e 1921.

O encenador e pedagogo russo Vsévelod Emilievitch Meierhold foi um elemento-

chave desta pesquisa: com ele a aproximação com as atividades circenses ocorre devido ao

resgate da tradição russa e do seu particular interesse pelo picadeiro. O encenador adota como

referência para o modelo do “novo ator” a arte dos atores ambulantes, malabaristas,

equilibristas, acrobatas, ilusionistas, palhaços e cômicos, característicos do balagan e que

habitavam as ruas e praças. Meierhold faz uma ode a este universo no texto Viva o

Malabarista!, em 1917. Tais procedimentos puderam ser experimentados por Meierhold

como procedimento pedagógico nos anos de 1910 no Estúdio da Rua Borondiskaia, já que

também artistas de circo, cada um possuindo habilidades múltiplas, foram convidados para

ensinar aos alunos técnicas de palhaço, a arte de saltar e de fazer malabares.

Após a Revolução de 1917, com a transformação do ideal de homem russo e o desejo

de uma arte engajada, acentua-se a simbiose entre palco teatral e picadeiro. Neste movimento,

os artistas de circo são até mesmo convidados para participar de espetáculos no palco do

recém-criado teatro soviético, um exemplo célebre é a representação de Vitáli Lazárienko no

espetáculo Mistério-Bufo. Meierhold exalta o circo como uma escola de saúde, destreza,

disciplina e beleza, bem como reconhece no artista do picadeiro a sua multiplicidade artística,

a sua polifonia. Ele manifestou publicamente estas ideias no debate sobre a exposição de

Nikolai Foregger sobre O Renascimento do Circo, no ano de 1919.

Mistério-Bufo, espetáculo encenado em duas versões em 1918 e em 1921, resultado da

parceria entre Meierhold e Maiakóvski, é considerado um marco para a Rússia Soviética. Em


160

tal obra localizam-se os procedimentos pedagógicos desenvolvidos por Meierhold na época

pré-revolucionária, as experimentações futuristas de Maiakóvski e a apropriação do circo

como elemento fundamental da encenação.

O circo foi reconhecido pelos intelectuais russos como um lugar de desenvolvimento e

aprimoramento do corpo, oferecendo ao homem o lugar de herói ao produzir efeitos

espetaculares, ultrapassando seus limites e o elevando a condição de superioridade. Além da

exigência da proeza corporal, conquistada por meio de treinamento e preparo físico intensivo,

que é marca do artista circense, é possível identificar nesta figura a capacidade de diálogo

com outras linguagens artísticas. Ele é reconhecido como criador e agente de sua obra, capaz

de se relacionar com as outras áreas artísticas, dotado de pluralidade técnica, pois disto

dependia a sua sobrevivência e a do próprio circo. Essa tendência, portanto, converge para a

polifonia do próprio circense.

Na Rússia, grande parte dos artistas se volta para o circo no início do século XX. O

interesse por esta atividade não é casual, pois neste momento há o sonho pelo homem

harmônico do futuro e nele tudo deve ser belo. O acrobata causa admiração pela força,

destreza e ousadia, qualidades ligadas ao ideal do novo homem russo. Eles identificavam no

circo o espírito de camaradagem e de solidariedade, pois como relatou um acrobata a Máximo

Gorki (1869-1936): “Nosso trabalho é tão perigoso que temos que proteger uns aos outros” 349.

Para este dramaturgo, os artistas circenses não pareciam homens comuns no seu

comportamento e na sua conduta.

O fato é que a lona foi um espaço aberto à pluralidade de gêneros e de linguagens; é

extensa a lista de companhias que buscam referências para suas obras em outras disciplinas 350.

A linha divisória entre os circenses e as outras expressões artísticas não estão bem definidas e,

349
LÉBEDEVA A. Maximo Gorki y el circo. In: El circo Soviético. Moscú: Editorial Progreso, 1975, p.
306.
350
Para ilustrar este contexto, pode-se citar as famosas companhias: Cirque Plume, Archaos, The 7 fingers,
La Fura dels Baus. No Brasil: Intrépida Trupe, La Mínima, Circo Mínimo e Teatro de Anônimo.
161

numa outra perspectiva, para alguns atores de teatro, dos cabarés e music halls, por exemplo,

o circo também era um espaço de trabalho. Sobre esta simbiose afirma Barbey d‟Aurevilly 351:

O Circo [...] é o teatro dos pintores, dos escultores e dos poetas que amam a beleza e
que querem realizá-la em suas obras. [...] É o teatro da beleza e das forças plásticas e
visíveis, que nunca são discutidas, pois a beleza intelectual e moral são discutidas,
miseravelmente contestadas, mas a beleza física não se discute. Ela se impõe! O
Circo, mais estético que dramático, tem seu tipo de patético e de emoção como tem
seu tipo de beleza. [...] O Circo é o único teatro onde a perfeição é obrigatória. [...]
Mas no circo, onde a arte tem a dignidade do perigo, se o ator ou a atriz, cuja pessoa
é o papel todo e mesmo a peça inteira, não são seguros de si – se eles fazem um
falso movimento, se eles se distraem, durante um instante de esquecimento, uma
fadiga momentânea –, eles arriscam a se quebrarem!... O corpo, que como o espírito
tem suas falhas, se paga aqui de modo terrível... No Circo, a mediocridade é de
súbito ameaçada a romper seu pescoço – que deliciosa perspectiva! – enquanto nos
outros teatros ela se espreguiça vocês sabem com que ar! Ela se porta muito bem e
não arrisca absolutamente nada.

O circo povoa o imaginário do povo pela sua capacidade de produzir eventos

sinestésicos extraordinários. Os vertiginosos, belos e matematicamente exatos movimentos

dos acrobatas expressam a sua excelente preparação técnica, valentia e primor artístico. Ainda

no circo encontra-se o grande poder de síntese. Aí reside a extraordinária amplitude e

variedade de meios expressivos capazes de transmitir pensamentos audazes e oferecer

liberdade à fantasia do espectador. Criam-se, a partir disso, imagens de grande heroísmo e ao

mesmo tempo patéticas, isto é, a morte e o sorriso, o perigo, o risco e o cômico, a farsa.

Meierhold, por exemplo, tinha consciência do grande alcance e da popularidade das

artes circenses. Ele considerava o circo um espaço de valentia, audácia, destreza e beleza do

corpo humano, o circo era visto como um modelo de educação da cultura física do homem,

necessária para o desenvolvimento físico e espiritual da pessoa que trabalha, luta e porta

elevados valores culturais. Este pensamento emparelha-se com o ideal do “novo homem” e

não por acaso após o ano de 1917 os procedimentos acrobáticos invadiram a cena soviética.

Por outro lado, não é à toa que após a Revolução de 1917 o circo russo se desenvolve

sobremaneira e passa a ser um dos focos de investimento do governo soviético, que

implementa uma rede de educação e difusão das artes circenses. O circo encontra o terreno

351
BARBEY D‟AUREVILLY, Jules. Le cirque. In: Théâtre contemporain, 1881-1883. Paris: Stock,
1896, p. 23-25.
162

fértil para o seu florescimento ao retomar, assim, a especificidade das artes do corpo, que

eleva o homem à condição de superioridade. Data deste período a famosa disciplina e técnica

russa do circo e a sua propagação e influência nos países ocidentais. No entanto, não é

possível realizar tal abordagem sem mencionar o uso ideológico do circo pelos soviéticos. A

situação na Rússia em 1929, após a queda de Lênin, era a da ditadura implantada por Josef

Stálin (1878-1953); o governo investiu na imagem do proletário vigoroso e sadio e, assim,

acolheu o circo como ponto importante na sua política cultural, porque ele exaltava

perfeitamente o exemplo da supremacia do corpo ao formar, sob a sua cúpula, novos bogatyrs

à serviço do Estado Socialista Soviético.

Mas esta já é outra história...


163

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em: 12 mai. 2010.
169

ANEXOS

ANEXO I

V. E. MEIERHOLD, CURSO DE BIOMECÂNICA, 1921-22352

Material recolhido por M. Korenev

Tradução353: Rosyane Trotta

Princípios da Biomecânica

1.

Toda a biomecânica é fundada sobre o princípio segundo o qual se a ponta do nariz se move,

todo o corpo se move junto.

Todo o corpo participa do movimento do menor órgão. Deve-se, antes de tudo, encontrar a

estabilidade do corpo. À menor tensão, todo o corpo reage.

2.

Fixar um tema no exercício é uma necessidade difícil de dispensar. Com um tema fixado,

interpretar torna-se muito mais fácil para o corpo. Todavia, é necessário não se deixar levar

pelo tema e evitar interpretá-lo.

É preciso prestar a máxima atenção a cada elemento do exercício. Só assim se obtém um

trabalho cuidado nos mínimos detalhes.


352
In: L’Attore Biomeccanico. Trad. e notas de Fausto Malcovati. Milano: Feltrinelli, 1997, p. 76-79.
353
A tradução realizada por Rosyane Trotta teve finalidade instrumental para o grupo de estudos sobre
Meierhold no Rio de Janeiro, no período de outubro de 2009.
170

3.

Na fase de controle do trabalho, todos aqueles que participaram do exercício devem

demonstrar haver assimilado o método e compreendido as indicações.

[...]

5.

Cada movimento em biomecânica é composto de três momentos: a) intenção; b) equilíbrio; c)

execução.

[...]

8.

Os requisitos básicos da biomecânica são a coordenação no espaço e em cena, a capacidade

de encontrar o próprio centro em meio a um grupo em movimento, a capacidade de adaptação,

o cálculo e o golpe de vista preciso.

9.

A emissão vocal – indicador do grau de reatividade – deve ser sempre um fundamento

técnico. Ela só pode se oferecer quando tudo está em tensão, quando o material técnico está

completamente organizado.

10.

Calma imperturbável e perfeito equilíbrio são condições imprescindíveis de um trabalho de

boa qualidade.

[...]
171

14.

Cada ator deve possuir um equilíbrio convincente, certa quantidade de posições e diversos

rakursy que o permitam manter o equilíbrio. Cada um deve procurar sozinho o equilíbrio

necessário a cada momento específico.

15.

[...] deve dar conta imediatamente de cada mudança de posição do corpo em cada mínima

parte.

16.

O gesto é o resultado do trabalho de todo o corpo. O gesto é sempre o resultado do que o ator

traz na sua bagagem técnica.

17.

A reatividade nasce no decorrer do trabalho como resultado do uso correto de um material

sobreposto a um bom treinamento.

18.

Cada forma de arte implica a organização de um material. Para organizar a si próprio, o ator

deve dispor de uma gama vastíssima de meios técnicos.

A peculiaridade, e também a dificuldade, da arte atorial está no fato de que o ator é, ao mesmo

tempo, material e organizador do material. O ofício do ator é uma coisa complicada. A todo

instante o ator é compositor.


172

19.

Uma dificuldade da arte atorial esta em conciliar com extremo rigor todos os elementos do

trabalho.

20.

O fundamento do nosso sistema de interpretação é a condição física do material sobreposto ao

treinamento. Durante a execução, cada tarefa vem programada com precisão em relação ao

espaço cênico; todos os movimentos do ator, até mesmo os reflexos, devem ser sempre

rigorosamente organizados.

[...]

23.

Em cada exercício coletivo o indivíduo deve renunciar de uma vez por todas ao eterno desejo

de todo ator: tornar-se solista.

[...]

25.

É importante que qualquer exercício seja executado de forma precisa, não apenas no sentido

da fluência do trabalho, mas também da beleza exterior (“parad”), da utilização do espaço

cênico, do efeito e assim por diante.

26.

Toda ação do ator tem a sua beleza exterior (“parad”).

[...]
173

28.

Toda forma de arte se baseia na sua autolimitação. A arte é, sempre e antes de tudo, uma luta

contra o material.

29.

Não se pode dar liberdade ao movimento. Deve-se, ao contrário, manter uma severa economia

de movimentos. É assim que se avalia a adequação do diretor e do ator.

30.

Piano e forte são sempre relativos. O público na sala deve sempre ter a impressão de que uma

reserva de material permanece não utilizada. O ator não deve em hipótese alguma esgotar toda

a reserva de material de que dispõe. Até mesmo o gesto mais explícito deve deixar a

possibilidade de alguma coisa ainda mais explícita.

[...]

32.

A biomecânica não tolera nada de casual, tudo deve ser feito conscientemente, com cálculo. A

todo o momento o ator deve estabelecer e saber à perfeição em que posição se encontra seu

corpo e utilizar desenvoltamente cada parte para colocar em prática seu propósito.

33.

Lei geral do teatro: quem dá livre saída ao próprio temperamento no início do trabalho,

inevitavelmente o esgotará antes de chegar ao fim e arruinará toda a interpretação.

34.
174

É inadmissível qualquer ligeireza no plano técnico. Você só se sente completamente à

vontade quando o material é desenvolvido do ponto de vista técnico e testado em um sólido

treinamento. Apenas então se pode abrir caminho àquilo que chamamos reatividade, caso

contrário, o trabalho seria arruinado.

35.

Durante o exercício, todas as emoções são apenas esboçadas, limitando-se a indicar com

precisão onde e quando deve acontecer uma explosão. Um choro não adequadamente

preparado do ponto de vista técnico faz com que se perca inevitavelmente o equilíbrio e

depois é preciso procurá-lo de novo, o que equivale a partir do zero.

[...]

37.

Para um ator, o controle do corpo está sempre em primeiro lugar. Não é a imagem que conta,

mas a bagagem do material técnico. O ator é um homem que organiza sem cessar o próprio

material. Deve conhecer de cor a gama das próprias possibilidades e todos os expedientes

técnicos dos quais dispõe para realizar um dado propósito. A capacidade profissional de um

ator é diretamente proporcional ao número das combinações possíveis da bagagem dos seus

meios técnicos.

[...]

43.

[...] A condição descontrolada da pessoa com os nervos à flor da pele é inadmissível.

44.
175

Primeiro princípio da biomecânica: o corpo é a máquina, o ator é o mecânico.

(A numeração é casual, nota de M. Korenev.)


176

ANEXO II

VIVA O MALABARISTA! (1917), Vsévolod Meierhold

Vejamos aqui algo do qual fui testemunha um dia, em Petrogrado 354, na época das

primeiras intervenções dos partidários de Lênin: na entrada da avenida Kamenoostroviski, a

multidão cercava (hoje como ontem) a tribuna do Hotel Kchesinski e bebia avidamente as

palavras do orador de serviço que discursava, contra o conjunto de balaústres de um balcão

decadente, como um Petrouchka355, que parecia tão bem que nada poderia arrancar dali seus

desocupados, vindos de uma periferia longínqua de uma capital de conto de fadas.

Ora, no mais grosseiro jorro impetuoso de palavras derramadas pelo orador

desprendido, do outro lado da avenida, próximo da estátua de Steregouchtchi, chega um

malabarista, membro de uma trupe chinesa ambulante356. O Chinês apresenta um pequeno

picadeiro, uma “roda do diabo” que um rato adestrado faz girar. Apelando ao socorro de uma

feitiçaria de uma boneca de madeira (“Andriouchka”), o Chinês murmura obscuras

lamentações, exibe uma bola de trapos, e a faz saltar magicamente de uma tigela a outra,

354
São Petersburgo ou Sampetersburgo - г, Sankt-Peterburg em russo) é uma cidade
federal da Rússia localizada às margens do rio Neva, na entrada do Golfo da Finlândia, no Mar Báltico. Os
outros nomes da cidade foram Petrogrado , 1914–1924) e Leninegrado , 1924–1991).
É frequentem
). Fundada pelo czar Pedro, o Grande, em 27 de maio de 1703, serviu de capital do Império Russo por
mais de duzentos anos (1713–1728 e 1732–1918). São Petersburgo deixou de ser a capital em 1918, após a
Revolução Russa de 1917. É a segunda maior cidade da Rússia e a quarta da Europa (em território) atrás de
Moscou, Londres e Paris. São Petersburgo é um dos maiores centros culturais da Europa e um importante porto
russo no Mar Báltico.
355
Petrouchka (Francês: Pétrouchka; Russo: Петрушка) é um ballet cuja música foi composta pelo
russo Igor Stravinsky e coreografado por Michel Fokine. A história é sobre um fantoche tradicional russo,
Petrushka, feito de palha e com um saco de serragem como corpo, que acaba por tomar vida e ter a capacidade
de amar, uma história que se assemelha superficialmente àquela de Pinocchio.
356
Em 1917, haviam muitos Chineses e Japoneses nos circos de Moscou: no Circo Nikitine, em outubro 1917,
"Tsao-San", trupe de artistas japoneses; no Circo Salomonski, no mesmo ano, estão os "Van Khoun-Dji", da
celebre trupe chinesa. Nos anuncios do Eco do Circo (L'Echo Du Cirque), 1917, n° 5, fala-se também de
"Imasaki", trupe japonesa onde trabalham do mesmo modo Chineses e Coreanos, sob pseudonimos japoneses
(citação da tradução do francês).
177

engole uma bola de vidro e a faz reaparecer ora pela orelha, ora pelo cotovelo. O Chinês

mostra, sem esconder nada, a solda de doze círculos de aço que tem diante de si, depois ele as

toca com suas mãos hábeis, e a dúzia de argolas tilinta bem alta no ar, agrupando-se em uma

única corrente. O que se passou? Cada argola penetrou uma à outra por uma abertura

invisível? Ou temos bem aqui uma magia diabólica?

O prestidigitador vindo do Oriente é rodeado de soldados e alunos, de idosos

respeitáveis e de crianças, de dandies357 e de cozinheiras. Dentro do chapéu do Chinês voam

bilhetes rasgados, imundos. A multidão se diverte, aplaude, e depois segue alegre para o

trabalho. Perdendo-se em inúmeros percursos pela rua.

Quanto ao observador que aqui está por acaso dentro dessa zona violentamente

dividida em dois mundos, num lugar de duplo bombardeamento – esse do orador que tem seu

comício, e esse do malabarista de rua –, está curioso para saber qual dos dois vai lhe

conquistar. Ele ignora o resultado do jogo de ontem, e ele não prevê o de amanhã: mas hoje é

o malabarista quem ganha, quem vence este jogo entre o leninista e o Chinês.

Viva o Malabarista!

Eu gostaria de perguntar a vocês, vocês que trabalham sobre o picadeiro, a vocês, sim,

artistas de circo, se conhecem sua força.

Eu sei que a resposta será “sim”. Vocês têm o direito de responder assim (e somente

assim). Então, permita-me outra questão: por que não ajudam ao seu povo?

Se me perguntassem de quais distrações precisam nosso povo, agora, nesses dias em

que a Rússia se mostra ao mundo redimida de suas correntes, eu responderia sem hesitar: ele

tem necessidade de distração que apenas a arte do circo pode lhe trazer.

Quando um homem, em pânico, foge do seu dever, quando o bacilo da covardia –

como o bacilo da peste –, arranca as pessoas, por rebanhos inteiros, da arena da luta pela

357
Um dandie (dandy, origem inglesa) é um homem de extrema elegância e muito refinado, mas também
de um espírito afetado e impertinente. Termo proveniente do movimento “dandismo” dos fins do século XVIII
da Inglaterra.
178

honra; quando a força de caráter está quase em via de extinção, é preciso oferecer ao púbico

uma vanguarda capaz de difundir o eficaz contágio de uma coragem imensa.

Glória à revolução que reduz a censura à fumaça! Mas qual censura dever-se-ia

instituir hoje? Essa que saberia estritamente interditar qualquer arte que gotejaria na nossa

vida o definhamento da vontade. Desde que a liberdade da palavra foi adquirida, uma

completa desordem se instala na cena, os atores começam a apresentar peças outrora proibidas

pela censura, e cegos pela faixa vermelha do veto do censor, ele apenas viram essas peças

representando o aspecto miserável de nossa cinzenta vida, nossa vida cotidiana, nada além do

nosso cotidiano; eles não pensaram que essas obras tinham sido encenadas em tempos de

decadências do espírito, em tempos de desesperanças.

O que pensam disso? Se ele ousasse arriscar sua vida por um looping, este aviador a

quem a estreia atraiu se, no teatro, nossos atores tivessem-lhe apresentado no dia anterior um

espetáculo de mais de três horas: uma peça à moda num ambiente “panpsicológico”? Ele

nunca teria conseguido! Quando então hesitava, achou ajuda levando-o a decidir arriscar sua

vida? Apenas com vocês, senhores prestidigitadores, equilibristas, saltadores e trapezistas de

alto voo!

Pequenas taças de porcelanas dispostas sobre um palco, o Chinês pega o palco em suas

mãos e enfia sua cabeça embaixo de um praticável de 6,50 metros de altura; dá piruetas no ar,

a venda já sobre seus pés e mostrando ao público a porcelana intacta. “O homem sem nervos”

dá um salto arriscado para trás do alto de uma pirâmide de mesas, sem deixar sua cadeira e,

colocando-se de pé, sorri para público que o aplaude.

O palhaço-saltador projeta seu corpo do alto de um trampolim, do alto de uma

pirâmide de garotos do picadeiro, consegue repetir seu número inúmeras vezes. O salto

arriscado sobre cavalos montados sem preparo... Os acrobatas dos “Quatro diabos”... Esse que

é endurecido pelo amor ao circo completa a lista desses números vertiginosos que nem sequer
179

podem se inscrever na memória de nossos aviadores. Agora que os aviadores giram ao redor

dos tetos de nossas casas, quando a velocidade atinge quase 120 km/h para que se viva sem

vegetar, em meio à resplandecência do sol, para criar uma vida feliz, uma vida forte, o homem

deve saber o que é a audácia.

Mas junto a quem aprender esta arte: criar e viver dentro da audácia?

Junto a vocês, senhores circenses.

Esse que voa ao som de uma doce valsa, bem ao alto da cúpula do circo, não sabe o

que é o medo da morte.

Convide-nos rápido ao seu “espaço de criação”, rápido, faça fluir dentre o nosso

sangue o doce veneno da audácia!

Leve-nos a ver vosso trabalho, a cada dia, a cada novo dia.

Mas por que a porta de nossos circos continua condenada às tábuas pregadas?

Condenados pelas sólidas partes dos teatros de inverno, eis uma explicação: As

pessoas em férias (que é seu próprio público) devem viver dentro de suas datcha358. Seu

público que é a “intelligentsia” de prudência excessiva precisa de audácia para terminar de

morrer?

Trabalhadores do circo, eu lhes chamo, eu lhes questiono; pois todo seu público está

presente. Veja os domingos e os feriados, os sábados e as vésperas de festas, ele está aqui, nas

praças e nas ruas da cidade, dia e noite.

Veja como seu público se entedia, como se convalesce, como ele parece esperar

alguma coisa. Esmagado de tédio, esta multidão rói as sementes de girassol (eis a sua única

distração), ela desaprendeu a rir e apenas sorri raramente quando diante de si vem este artista

358
Do russo ( ) datcha é o nome para fazenda, casa de campo ou mansão, para ser usada no verão e
primavera. Muito comuns na Rússia, pessoas que moram nas grandes cidades costumam ir para suas datchas nas
férias. Algumas ficam à beira de rios ou lagos, outras em colinas e outras em meio a bosques, mas sempre em
locais abertos com paisagens ricas, utilizada sempre como casa de veraneio.
180

estranho, esse malabarista Chinês com seus ratos e suas espadas, seus malabares e suas facas e

seu “Andriouchka”.

Por que então vocês, acrobatas russos, não vão à direção deste povo que tanto lhes

espera?

Por que não temos mais nas praças acrobatas voadores? Por que não temos mais circos

ambulantes, ao exemplo desses que se instalaram facilmente nas praças dos mercados em

nossas pequenas cidades de província como Kouznetz ou Belebei-Aksakov, ou nas cidades de

água da Finlândia e os fiordes noruegueses359 se protegendo das chuvas nórdicas pela

cobertura de telhados impermeáveis?

Oh, onde está o balagan360 russo? Onde se esconde Petrouchka? Por onde passaram os

garotos equilibristas que andavam pelos corredores – não faz nem tanto tempo –, e que

esticavam diante de nossos pés os tapetes que teciam? Onde estão os teatros de marionetes?

Onde estão as pantomimas com as cozinheiras e os Indianos, com os acrobatas dos papéis

femininos?

Eu vi ontem no cinema Os Mistérios de Nova Iorque361. O filme é construído

inteiramente sobre as bases do excentrismo circense. Retirem desse filme americano todos os

truques acrobáticos e nada restará dele além de uma bola de sabão. Eu vi também o público de

Moscou forçando a porta do cinema. Querem saber por quê? Eu respondo: para ver a luta,

para ver a vitória do vale-tudo sobre o medroso. Eu tenho certeza, pois dentro desse filme, o

encenador energético não quis experimentar nenhum motivo estético.

Tenho uma pergunta, e tenho uma proposta.

359
Fiorde é uma grande entrada do mar em volta de altas montanhas rochosas. Localizam-se
principalmente na costa oeste da península escandinava e têm origem na erosão das montanhas por causa do
gelo.
360
Teatro de Feira em Russo.
361
Les Mystères de New York (The exploits of Elaine) é um seriado em preto e branco de Louis Gasnier
de 1915.
181

Por que então vocês, gente do circo, não se apressam a propor sua arte a estes que têm

sede do seu excentrismo, que desejam o canto do seu corpo maleável, que param à sua frente,

suplicando para que lhes deem um espetáculo, apesar de todo seu tédio na reza para o pão de

cada dia?

Digam-me por que cedem seu espetáculo ao cinema ávido que se nutre de seu cardápio

com a única diferença que os pratos são falsificados pelas histórias de “mão misteriosa” e

outras idiotas invenções de hábeis fabricantes de cinema do mercado americano?

(Tradução para o português de Gabriela Itocazzo

da versão em francês de Beatrice Picon-Vallin.

Eco do Circo, n° 3, agosto de 1917, p.3)


182

ANEXO III

O RENASCIMENTO DO CIRCO (1919)

No dia 17 de fevereiro, na sala da União Internacional dos Artistas de Circo, N.

Foregger fez uma exposição sobre o tema “O renascimento do circo”. Para ele, não há

fronteiras entre o circo e o teatro. O teatro e o circo são “irmãos siameses”. Elementos teatrais

irrompem no circo, e o circo aspira impregnar com seus sortilégios o domínio do teatro.

Foregger lembrou que na Espanha do século XVII, um cão adestrado passeava entre os

espectadores no teatro, e que na época elisabetana um funâmbulo fazia a ligação entre os atos

de Hamlet. Foregger conclama os atores, cenógrafos e encenadores contemporâneos a

trabalhar no circo, reino da destreza e da “eloquência do corpo”. O circo também conhece a

mesma “crise” sobre a qual debatemos violentamente, há pouco tempo, a propósito do teatro.

Também no circo é tempo de começar a empreender reformas. Foregger convidou os homens

de teatro contemporâneos a criar para o picadeiro “milhares de pantomimas e espetáculos

feéricos extraordinários”, uma música potente e dinâmica, um figurino novo, a aperfeiçoar o

cenário, pintar as celas dos cavalos, etc. Acredita que somente os homens de teatro são

chamados a reformar os espetáculos de circo. No final da exposição, tínhamos a seguinte

situação: de um lado, o teatro do drama, “teatro das grandes paixões”, do outro, o circo,

“teatro da alegria despreocupada”. E a conclusão terminava no sonho de um teatro-circo.

A exposição do camarada Foregger suscitou uma violenta crítica do camarada

Meierhold que interveio como contraditor único. Segundo o camarada Meierhold, o circo não

deve ser reconstruído sobre princípios que lhe sejam estranhos. Sua reforma deve nascer do

interior, ou seja, dos esforços dos próprios artistas de circo, pois não há e nem deve haver
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teatro-circo. Esses dois elementos existem e devem existir cada um por si: circo e teatro. As

criações dos mestres do circo e as dos mestres do teatro realizam-se e devem realizar-se no

contexto das particularidades arquiteturais de dois espaços cênicos diferentes e de acordo com

leis que estão longe de serem idênticas.

A bem dizer, o teatro e as variedades, introduzindo no circo alguns de seus elementos,

fizeram e ainda fazem muito mal à prosperidade da arte do circo enquanto tal. A bem dizer, o

circo, nas mais teatrais das épocas teatrais, contribuiu fortemente para a prosperidade da arte

teatral enquanto tal (particularmente no antigo Japão, e na Itália da época da commedia

dell'arte). Entretanto, para reformar tanto o circo contemporâneo quanto o teatro

contemporâneo, é necessário criar condições tais que a arte do circo e a arte do teatro possam

desenvolver-se cada uma em seu campo, seguindo linhas paralelas, e não secantes.

Sabemos, disse o contraditor, o que aconteceu recentemente, quando Moissi e Iurev

introduziram-se na pista circular do picadeiro. O circo, sem que se saiba porque, permaneceu

inativo enquanto aconteciam as representações trágicas, mas os espetáculos dirigidos sobre o

picadeiro pelos encenadores da moda revelaram-se indignos de serem apresentados sob o

capitel de um circo, que exige de todos que ali entram uma maestria particular.

Como fazer então?

Os artistas de circo não têm nada a aprender nem com os atores nem com os

encenadores do teatro dramático. Se o teatro contemporâneo deve se impregnar de elementos

acrobáticos, isto não quer dizer absolutamente que se deva fundir as representações de circo e

de teatro em um espetáculo de um novo tipo, em um espetáculo de teatro-circo à Foregger.

Esta proposição sabe-a amadorismo.

Sim, o ator contemporâneo deve lembrar-se constantemente que Motchalov,

evidentemente, havia compreendido de certa forma os segredos da acrobacia, pois era capaz

de maravilhar o público e os críticos de sua época com seus saltos excepcionais no teatro na
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cena do canto do galo, em Hamlet. É preciso lembrar constantemente ao ator de hoje que o

teatro do antigo Japão não permitia que ninguém se tornasse ator trágico sem ter passado

primeiro pelas escolas de acrobacia e de dança.

E o camarada Meierhold coloca uma tese oposta à de Foregger: não é com um teatro-

circo que devem sonhar os reformadores contemporâneos do circo; mas que, antes que o

artista escolha um desses caminhos, teatro ou circo, ele deve passar desde sua primeira

infância por uma escola especial que o ajudará a tornar seu corpo flexível, belo e vigoroso; e

isto não somente para o salto-mortale, mas para qualquer papel trágico (recordemos o jogo de

Sadda Yacco e de Ganako).

O ator contemporâneo que morre em cena utiliza a convulsão, ato curto, tedioso e

pouco expressivo, de um naturalismo assaz primitivo. Mas eis como morria em cena um ator

do antigo teatro chinês: ferido no coração, o ator projetava seu corpo no ar como um

equilibrista, e somente depois dessa “brincadeira própria ao teatro” ele se permitia desabar

como um bloco sobre o espaço cênico.

O camarada Meierhold acha que é necessário criar uma espécie de escola artística e

acrobática, cujo programa deve ser construído de tal forma que o aluno, ao final dos estudos,

seja um adolescente são, flexível, hábil, forte, arrebatado, pronto a fazer uma escolha de

acordo com sua vocação: o trabalho no circo, ou o teatro da tragédia, da comédia, do drama.

(Tradução para o português de Roberto Mallet

da versão original em PICON-VALLIN, Beatrice.

Vsevolod Meyerhold, Escrits sur le theater,

vol. II. Paris: La Cité – L‟Age d‟homme, 1975.)

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