A metáfora do Bogatyr:
O corpo acrobata e a cena russa do início do século XX
São Paulo
2011
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A metáfora do Bogatyr:
O corpo acrobata e a cena russa no início do século XX
São Paulo
2011
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Bibliografia
Orientador: Prof. Dr. Mário Fernando Bolognesi
Coorientadora: Maria Thais Lima Santos
Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual
Paulista, Instituto de Artes.
CDD – 792
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A metáfora do Bogatyr:
O corpo acrobata e a cena russa no início do século XX
Banca Examinadora
AGRADECIMENTOS
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo apoio oferecido a
este projeto durante o período de 2010 e 2011.
Ao querido Mario Fernando Bolognesi, por me trazer a São Paulo, por toda a confiança,
disponibilidade, parceria circense e pela belíssima orientação.
À Maria Thais, pelo nosso encontro, pela imprescindível (co)orientação, pela nossa parceria, e
por compartilhar comigo a paixão por Meierhold. Durante esta pesquisa, ela ocupou o lugar
de mestra.
Aos amigos queridos Ângela de Castro Reis e Daniel Marques da Silva, professores da
Universidade Federal da Bahia, responsáveis por minha formação artística.
À professora Dra. Eliene Benício, pelas discussões sobre o circo e pela generosidade ao
disponibilizar informações e material de consulta que enriqueceram esta pesquisa.
À minha conterrânea Marina Sarno, que conheci em São Paulo e que imediatamente me deu
acolhida. Ela teve uma grande importância nesse período, acompanhando a minha trajetória,
conversando sobre arte e estando sempre disposta a ajudar, ouvir e rir.
A Arthur Iraçu, Ênio Freitas, Evandro Passos, Ricardo Ribeiro e Luiza Christov, meu clã da
Unesp. Nós confirmamos a hipótese de que a mesa de bar ainda é o melhor lugar para
discussões acadêmicas. E muito especialmente a Thais Carvalho Hércules, irmã paulistana,
com quem pude compartilhar diversos momentos de alegria, angústia e “prazer”.
À equipe da peça Mistério-Bufo do Rio de Janeiro, pela recepção, pelo carinho e pela
oportunidade de acompanhar diariamente o processo de criação do espetáculo, inspirando-me
momentos de grandes reflexões sobre o trabalho artístico. Especialmente aos atores Raquel
Karro, Thierry Tremouroux e Carolina Virgüez; e à dramaturga Rosyane Trotta, parceira de
todos os momentos durante este período, pelos grandiosos debates sobre teatro e pela tradução
de um dos textos anexo.
À Gabriela Itocazzo e Roberto Mallet pela ajuda nas traduções dos textos de Meierhold; à
Nilce Xavier pela revisão de texto; e à Nadine Camacho, pela tradução do resumo para a
língua inglesa.
À “família Garrido” que me deu régua e compasso. Obrigado a Miguel, Gabriel, Lili (em
memória), Alda, Cristina, Adriana, Andréa e a Pat, que me ensinou a dar minha primeira
estrela na acrobacia.
7
À Greice Gobbi, fisioterapeuta, e a Akira Sato, quiropraxista, por suas mãos de santo.
Agradeço a generosidade com que me receberam e por toda ajuda na minha recuperação.
À Natália Siufi, amiga muito querida, pela disponibilidade em me ajudar sempre que precisei
desde que cheguei a São Paulo.
Aos amigos e mestres da Escola Nacional de Circo, Rio de Janeiro, por compartilharem
comigo os seus preciosos saberes sobre circo, arte e vida.
E muito, muito especialmente a Celso Sim, que canta Maiakóvski e foi minha grande
inspiração e baluarte durante esse percurso de pesquisa e arte.
RESUMO
artes circenses e teatrais na Rússia em tal período. O capítulo aborda o pensamento russo e o
ideal de “novo homem”, que encontrou sua expressão nas artes e na literatura. As atividades
meierholdiano nos anos que antecederam a Revolução de 1917, sob a ótica do processo de
condição do corpo acrobata na obra e nas encenações. Detecta-se nos espetáculos princípios e
apropriação e utilização de elementos circenses. Este trabalho revela que, na Rússia, grande
parte dos artistas e intelectuais se voltou para as atividades circenses no início do século XX,
já que nesse momento havia o desejo do “novo homem”, o herói eslavo harmônico e belo. A
destreza, o vigor e a audácia do acrobata casa perfeitamente com tal ideia e, não por acaso, os
Mistério-Bufo.
11
ABSTRACT
The scope of this work is to discuss the acrobatic body‟s scenic potentialities during the
beginning of the 20th century in Russia. To this end, it was adopted as a reference the scenic
experimentations from the theater director and educator Vsevolod Emilievitch Meyerhold,
which are consolidated in both staging of Mistery-Bouffe (1918 and 1921), dramaturgy of
Vladimir Mayakovsky. In the first chapter, The Russian thought and the desire of the
acrobatic body: end of 19th century and beginning of 20th century, the purpose is to
contextualize and base the approach of the circus and theater arts in Russia in the mentioned
period. The chapter addresses the Russian thought and the “new man” ideal, which has found
its expression in the arts and literature. The activities of Meyerhold and Mayakovsky are
coupled to this conjuncture. The second chapter, The acrobatic body in the pedagogy of V.
E. Meyerhold, the purpose is to address the meyerholdian pedagogical work during the years
that precede the Russian Revolution of 1917, from the perspective of the “circus-becoming”
theater. Meyerhold‟s play shows a vast material of research about the subject and engenders,
not only transformations in the theatrical play, but it also influences various groups and artists
from that age. Finally, in the third chapter, The “cirquization” of the theater: Mystery-
acrobatic body condition in the play and staging. There are in the plays principles and
as the ownership and usage of circus elements. This work reveals that in Russia, the majority
of artists and the intelligentsia were focused on the circus activities in the beginning of the
20th century, since in that moment there was the desire of a “new man”, the harmonic and
attractive Slav hero. The acrobatic dexterity, strength and audacity match perfectly with this
idea and, not by chance, the acrobatic procedures influence the Russian scene in that period.
12
Mistery-Bouffe.
13
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Rodchenko..................................................................................................................................8
Figura 13 Cartaz de Vladímir Maiakóvski para o espetáculo Mistério-Bufo, 1918 ...... 111
Figura 19 Desenho do palhaço acrobata Vitáli Lazárienko na década de 1920 ............ 146
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................16
INTRODUÇÃO
iiiiiiiiii!!!
Piolim
17
Com estas palavras, ainda recém-chegado à cidade de São Paulo em 2009, fui recebido
Olido, em frente ao Largo Paissandú, esse espaço tão desejado por alguns pesquisadores e
artistas circenses preparava-se para abrigar inicialmente o acervo de dois importantes circos
brasileiros: Nerino e Garcia, quando o conheci. No ano de 2010, após sua inauguração, o
palestras, debates, cursos, além de incentivar a pesquisa e apoiar artistas, trupes e grupos.
artistas circenses brasileiros a reflexão teórica sobre sua prática. Um olhar menos atento
acontece muitas vezes, como uma atividade “menor” no universo dos espetáculos. Por um
lado, trata-se realmente de uma verdadeira falta de consciência do valor que esses sujeitos
possuem sobre suas próprias histórias; por outro, a arte do picadeiro é um saber que foi
corporeidade específica por meio da repetição e prática diária de exercícios. Este último
aspecto, em especial, reflete a grande dificuldade deste pesquisador, que enfrenta o desafio de
Exponho outra dificuldade com a interjeição do Palhaço Piolim, usada como epígrafe
desta introdução, que reflete a sua angústia diante da responsabilidade que assumiu para
escrever uma crônica de circo. No meu caso, aproprio-me da expressão piolinesca para
declarar meus apuros ao assumir uma pesquisa acadêmica e escrever uma dissertação de
18
mestrado. Eu, que recentemente terminara uma universidade de teatro sem escrever sequer um
artista circense.
Cabe ressaltar aqui que o treinamento acrobático exige um grau de dedicação elevado
para a conquista da execução precisa de movimentos. O tempo que se presta aos ensaios está
probabilidade de uma qualidade técnica melhor das atividades. O fato é que não existe uma
forma ponderada de se tornar acrobata, pois para a obtenção de um nível adequado e seguro é
imprescindível o domínio do corpo, conquista que se processa em uma rotina diária de treino
e preparo físico.
me da linguagem do circo resultou em uma itinerância típica dos artistas circenses, que
arte.
aspectos que, aos meus olhos, eram imprescindíveis para a formação corporal do ator. No
entanto, ao entrar por debaixo da lona e me colocar em contato com o universo do picadeiro
pude, logo, perceber um tipo de espetáculo que afirma o corpo por meio da beleza, força e
rigor. Ansiava desde então construir um corpo acrobata e, para isso, não tive escolha a não ser
“fugir” com o circo. Assim, nos anos da Escola de Teatro conciliava a formação de ator com a
equilíbrios, malabares e aéreos. Contudo, na excitação para consolidar uma formação mais
sólida em uma modalidade específica, deixei a Bahia, dois meses após o espetáculo de
formatura da UFBA, e fui morar no Rio de Janeiro para cursar o nível técnico em artes
19
circenses na Escola Nacional de Circo (ENC). Isso somente foi possível após ser aprovado
nos exames de seleção que realizei paralelamente aos ensaios no último semestre da
os professores.
Tais pedagogos, a maior parte de idade já bastante avançada, são portadores do “notório
brasileiro e, assim sendo, não hesitam em relatar os fatos de suas vidas, famílias, as relações
entre circenses, o trabalho no picadeiro, seus sonhos e desejos. São tratados com admiração e
respeito pelos alunos, transmitindo os seus saberes de forma exclusivamente oral e prática,
conforme aprenderam dentro da estrutura familiar circense, na qual a técnica é passada de pai
para filho. Se eles merecem o título de “tradicionais” é exatamente por isso, por sua estrutura
aprendizado puramente técnico. Os professores reproduzem o que seus pais lhe ensinaram,
arsenal tecnológico no palco, a busca por linguagens híbridas e a espetacularização das obras
picadeiro, de modo que diversos artistas de outras áreas vão buscar no circo uma formação
complementar para sua prática, enriquecendo suas habilidades. Para todos os efeitos, se a
meu vocabulário corporal, isto rapidamente foi convertido para o anseio de consolidar e
1
Notório Saber, expressão utilizada pelas universidades brasileiras para qualificar o professor que não
possui título de doutor, mas possui conhecimento equivalente.
20
pretendida. O lugar onde acreditava que poderia ampliar meu repertório enquanto intérprete
era São Paulo e, por esse motivo, ingressei no Programa de pós-graduação em Artes da
Universidade Estadual Paulista (UNESP), espaço onde encontrei apoio e pude aprofundar as
questões do circo.
beleza e risco. Ao se contrapor às ações cotidianas, a sua execução gera no espectador uma
percepção por meio dos sentidos. No circo, o corpo é a matriz do espetáculo, seja no campo
por exemplo, que indica uma série de situações cômicas que têm como eixo a fala ou a ação
corporal. Ele é uma figura de importância durante o espetáculo circense, “[...] o corpo do
O termo “acrobata” é proveniente do grego akrobate, ou seja, “aquele que anda na ponta
dos pés”. É o sujeito que rompe as fronteiras do próprio corpo, com agilidade e potência, e se
atreve a transcender a condição humana. Seu território é contaminado pelo risco, isto é, o jogo
do artista com uma possível morte e que ao ultrapassá-la incita a vertigem no espectador.
2
BOLOGNESI, Mário. Palhaços. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 198.
21
Neste lugar reside o corpo acrobata, que se utiliza de tal conjuntura para obter a poesia que
Para esta pesquisa especificamente, há o interesse no que se refere à simbiose entre palco
teatral e picadeiro, tendo em vista a crise que as formas teatrais, no início do século XX,
“novo ator” e uma “nova forma” para esse novo teatro. Nesse contexto, portanto, surge a
figura ímpar de Vsévolod Emilievitch Meierhold, que utilizando o pseudônimo Dr. Dapertutto
para as transformações das artes teatrais na Rússia, como também, atravessaram todo o século
fascinantes dotadas de muita força física, alguns até mesmo com energia divina, e que
lutavam contra poderes reais ou imaginários. A maioria das histórias dos Bogatyrs gira em
torno da época do príncipe Vladimir I de Kiev (958-1015) e se presume que alguns deles eram
figuras históricas, enquanto outros eram puramente fictícios, originados da mitologia pagã
eslávica. A palavra Bogatyr não é de origem russa; ela provavelmente veio do turco arcaico e
significa “guerreiro valente”. Esses homens são conhecidos como os heróis eslavos que
aparecem nos poemas épicos chamados Bylinas (былина), cujo nome procede da palavra
22
“быль”, que significa “aquilo que ocorreu de verdade”. Inicialmente, elas eram histórias
contadas oralmente e, assim, sofriam exageros quando passavam de uma pessoa para outra.
é Ilya Muromets3, que é considerado um dos maiores entre todos os heróis, dotado de poderes
excepcionais, integridade física e espiritual e que luta em defesa do território e do povo russo.
Atualmente, na Rússia, a palavra Bogatyr é bastante utilizada para nomear clubes de esportes
ou forças militares. Reconhecemos aqui que o vigor, a potência e a destreza destes heróis se
3. Bogatyrs, por Viktor Vasnetsov, 1898. Na imagem: Dobryna Nikitch (esq.), Ilya Muromets (centro) e
Alyosha Popovich (dir.).
3
Ilya Muromets é um dos principais heróis épicos da Rússia junto de Dobrynya Nikitich e Aliocha
Popovich. Acredita-se que Ilya possui um protótipo real que viveu no século XII. Em certos contos, Ilya até os
33 anos aparece como portador de uma doença que o deixou paralisado, quando recebe milagrosamente uma
cura de anciãos. A versão do conto épico “Svyatogor e Ilya de Murom”, relata que Svyatogor era mestre de Ilya
e quando morreu soprou em seu aprendiz o espírito heróico e ofereceu sua espada mágica, a qual somente
pessoas muito especiais poderiam portar. Ele ganha uma força excepcional, sobre-humana, e é incumbido de
servir o príncipe Vladimir. No caminho de sua missão Ilya é avisado de que encontrará uma pedra muito pesada
que deverá deslocar para encontrar os elementos necessários para um herói: cavalo, armas e armadura. Ilya
Muromets serviu durante muito tempo o exército do Príncipe Vladimir e protegeu toda a Rússia. Algumas teorias
afirmam que este personagem foi um guerreiro que viveu no século XII, e no final de sua vida se converteu em
monge, Ilya Pechorsky, que foi beatificado como um santo menor da Igreja Ortodoxa em 1643.
23
expressivas do corpo para a cena, assim como a valorização do movimento como elemento
ator, realizados durante as pesquisas empreendidas por Meierhold, somadas à sua paixão
declarada pelo circo. Tudo isto era bastante sedutor para mim, estudante de um curso
revolucionárias de Meierhold, bem como a sua parceria com o poeta cubo-futurista Vladímir
Maiakóvski fundamentam esta pesquisa. Antes de tudo, além do interesse teórico, tal estudo
Logo após a Revolução russa de 1917, sob direção de Meierhold, a primeira versão desta obra
dos anos 1910, em suas duas versões se cercou das atividades circenses como possibilidade
4
Cf. AMIARD-CHEVREL, Claudine. La cirquisation du théâtre chez Maiakovski. In: Du cirque au
théâtre. Lausanne: L‟Âge D‟Homme, 1983, p. 103-120.
24
Para os contornos desta pesquisa, daremos atenção à Rússia da virada do século XIX
para o XX, até o ano de 19215. Tal recorte histórico não tem a pretensão de fixar e enrijecer o
fenômeno de estudo, mas aprofundar a confluência entre arte circense e teatral, pois o olhar se
refere ao fazer artístico concreto, ou seja, a apropriação do corpo acrobata no trabalho do ator
constituídas por uma bibliografia referente ao período russo estudado, e material teórico
de/sobre Meierhold-Maiakóvski.
Fernando Bolognesi e Maria Thais Lima Santos. Muito além da categoria de orientador e
Bolognesi acerca da arte circense foi complementada pela perspectiva do saber-fazer teatral
de Maria Thais. Além disso, tendo contato direto com aquele país e com a tradição eslava,
Maria Thais é estudiosa do teatro russo e, em especial, das atividades de Meierhold como
Dramatic Arts, dirigida por Anatoli Vassiliev. Ainda em relação às artes dramáticas na
Rússia, o professor Mario Bolognesi tem um vasto estudo sobre este campo, bem como sobre
A estrutura para esta dissertação foi pensada em três capítulos: O pensamento russo e o
desejo do corpo acrobata: final do século XIX e início do XX; O corpo acrobata na
Meierhold-Maiakóvski.
1917, além de ser um marco na história da Rússia, é um divisor de águas no que diz respeito
5
A relação entre o circo e o teatro será desdobrada por outros criadores nas décadas posteriores dentro e
fora da Rússia. No teatro alemão, por exemplo, elementos do circo, do teatro de feira e do cabaré terão grande
importância na prática artística de Erwin Piscator (1893-1966) e Bertold Brecht (1898-1956).
25
às aproximações entre o circo e o teatro. Se a partir dos anos 1920 a cena teatral ganha
concretamente uma perspectiva mais acrobática, isto só é possível pelas experiências das
décadas anteriores. Assim, as atividades de Meierhold nos anos de 1910, como também a
Para a construção de uma abordagem mais objetiva, optamos por um recorte sobre tal período
capítulo, O pensamento russo e o desejo do corpo acrobata: final do século XIX e início
do XX, trata da percepção dos artistas, poetas e intelectuais russos em relação ao acrobata.
Notamos que a alusão a esta figura circense possui uma forte carga poética e se expressa
Vsévolod Emilievitch Meierhold nos anos 1910. A paixão deste pelo circo, a valorização do
corpo do ator, bem como do movimento expressivo para cena, em oposição à atuação realista-
naturalista e intimamente conectados com o seu tempo, são fatores que proporcionaram a
criação de uma pedagogia de formação para o “novo ator” que o “novo teatro” russo exigia. A
vocação experimental vivenciada no Estúdio da Rua Borondiskaia entre 1913 e 1916 forneceu
apropriação do corpo acrobata para a arte do ator em articulação a outros fenômenos que
determinaram a criação de uma polifonia teatral. A influência do circo é tão presente em suas
26
atividades que se destaca o texto escrito pelo mesmo, e que serviu de base para estudos: Viva
o malabarista! (1917).
resultou em duas versões desta obra; a primeira ocorreu no ano de 1918 e a segunda em 1921.
Influenciado particularmente pelo Balagan, teatro de feira russo, e pelo circo, Maiakóvski
chave para o ambiente no qual foi encenado, um grito revolucionário em prol do operário e à
utopia do mundo futuro. Reconhecemos nessa obra a polifonia na arte do ator a partir das
Por meio desta pesquisa foi possível detectar a maneira como o teatro russo se apropriou
da imagem do acrobata nas primeiras décadas do século XX. E, principalmente, foi possível
CAPÍTULO I
O polonês Walicki6, responsável por valiosos estudos sobre a cultura na Rússia, afirma
que, naquele país, o pensamento teria sido edificado por meio de uma singular fertilização de
influências e ideias. Ele considera que os fatores que auxiliaram na construção da cultura
russa, em contraste com a história dos países europeus, foram: a rápida modernização de uma
grande nação comprimida num curto período de tempo; a curiosa coexistência de elementos
externas e a resistência a elas; o impacto na elite intelectual das realidades sociais e das ideias
da Europa ocidental, além da constante redescoberta das tradições nativas e das realidades
sociais.
deveria ser encarado como uma grande vantagem, na medida em que as experiências vividas
pela Europa poderiam ser apropriadas pelos russos, de modo que eles pudessem fugir
maioria dos problemas sociais, a aperfeiçoar a maioria das ideias que tinham surgido em
e a sociedade, segundo Walicki, não significa que ela esteja confinada às questões históricas e
sociais, mas que o raciocínio é governado pelo próprio gênero humano, refletindo algumas
formas de leis que comandam o mundo. É dessa maneira que o pensamento russo se vê no
esforço de suportar a confluência entre o conjunto de ideias vindo da Europa Ocidental, por
um lado, e da sua própria realidade e tradição nacional, por outro. A Rússia, geograficamente,
6
WALICKI, Andrezej apud FRANK, Joseph. Pensamento Russo: o caminho para a Revolução. In Pelo
prisma russo: ensaio sobre literatura e cultura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992, p. 63.
7
TCHAADÁIEV, Piotr apud FRANK, Joseph. Ibid., p. 68.
29
oriental.
próprias do país também foram usadas contra a tutela ocidental. Contudo, no mesmo período
a Rússia vivia também uma revitalização do idealismo metafísico, que entende a realidade
Strada9 observa que a cultura russa esteve pressionada por um poder anacrônico e
corrupto, profundamente ligado aos seus privilégios e, portanto, todo o seu drama resulta de
terreno de expansão posterior. Nesse sentido, para aqueles revolucionários, cuja esfera
que oferecesse a todos a possibilidade de uma vida política livre e de uma justa renovação
social.
diversos campos da cultura, que foi fortalecida por ideias e personalidades modernas. Moscou
atividades artísticas e literárias adquirem um caráter criativo espantoso. Por serem criadas em
“conexão tão íntima com o pensamento russo, foi também porque esse pensamento era ele
8
Ibid., p. 75.
9
STRADA, Vittorio. Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”. In: HOBSBAWN, Eric (Org.).
História Social do Marxismo: o marxismo na época da terceira internacional: a URSS da construção do
socialismo ao stalinismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 110. (v. IX)
30
mesmo tão amplamente focalizado nas preocupações políticas e socioculturais que ocupavam
todo o cidadão russo pensante”10, de modo que arte e literatura também estavam vinculadas a
no espaço e no tempo – as duas outras formas são a religião e a filosofia. Em tal período, ela
expressão da sociedade; fazendo resvalar os sentidos mais intrínsecos da época em que foi
Houve algo de único na Rússia no início do século XX que esteve diretamente ligado,
por um lado, à rápida e ainda assim parcial modernização do final do século XIX e, por outro,
oposição à ação, ao ato. Tudo isso cria condições particulares para a repercussão das
brilhantes proposições criativas, tão logo as recentes conquistas científicas e a renovação das
arte. Neste ambiente, surgem as gerações que cultivarão a semente de uma revolução política,
social e cultural.
10
FRANK, J. Op. cit., p. 62.
11
IVANOV, V. Duas forças no simbolismo moderno. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.; SILVA, N.
(Org.). Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 198.
31
A arte dramática não está excluída desse processo e afirma-se como “uma das formas de
expressão artística mais inovadora e mais significativa na Rússia” 12. Isso ocorre, em um
primeiro momento, por causa das transformações provocadas pela estética realista-naturalista
momento, no limiar do século XX, a rejeição a este modelo de arte provoca o surgimento de
as transformações de parte do teatro russo. Ele trabalhou por cinco anos como ator nas
(1858-1943), contudo, ao discordar dos princípios deles, rompe com este modelo e inicia a
expressivos relativos a uma nova pedagogia14. Como será visto mais adiante, o contato com a
A teatralidade é o mote das pesquisas cênicas dos inovadores da arte teatral no início do
tradição artística, especialmente a teatral, seriam as grandes fontes para reteatralizar a cena.
12
CAVALIERE, Arlete. Teatro Russo: percurso para um estudo da paródia e do grotesco. São Paulo:
Humanitas, 2009, p. 223.
13
CHAVES, Yedda Carvalho. A biomecânica como princípio constitutivo da arte do ator. 2001. Tese
(Mestrado em Artes – Artes Cênicas) Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2001, p.1.
14
Ibid.
32
Historicamente, no início do século XX, com a Revolução de 190515, quando a energia dos
dos manifestantes, explodiu na Rússia uma grande revolução artística. Uma parcela
muitos artistas, de modo que a ação política e cultural do proletariado casava exatamente com
Nesse contexto, surge o personagem-chave para conduzir esta pesquisa, que encontra
sua expressão no circo, no teatro e no balé: o Bogatyr, herói dos mitos eslavos, descrito nos
poemas russos como um personagem fascinante de grande estatura e força mágica cavalar.
Nas últimas décadas do século XIX na Rússia, grupos de artistas e poetas são
culturais das primeiras décadas do século XX. Os esforços de autores como Aleksandr Blok,
geração simbolista russa e garantem sua projeção internacional. Essa rica pluralidade de
15
Este período será mais bem analisado no Capítulo III desta pesquisa.
16
NIVAT, Georges. O simbolismo russo em busca do paraíso original. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE,
A.; SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 43.
33
simbolismo russo tinham como grande semelhança o ideal da “arte pela arte”, trazendo para a
altamente racionalista e empírica proclamada pelos positivistas. A ênfase, por outro lado, está
nas experiências particulares do próprio artista, ou seja, o mundo expressa-se por sua
linguagem pessoal, é a partir desta que o artista cria ou aproxima-se da realidade, voltando-se
para si mesmo cada vez mais profundamente. Ainda para Tolmatchov, o simbolismo do
século XIX formula grandes exigências para a criação verbal, ao inexprimível, o que resulta
no desejo do poeta de colocar-se inteiro na sua obra, bem como na visão da literatura como
valoriza a experiência pessoal do artista, logo, “o mundo, antes escapadiço, ao passar pelo
filtro da sua energética pessoal (sangue, nervos, hereditariedade) recebe um relevo igualmente
É por meio da manifestação da própria subjetividade que o artista adota uma atitude
mística em relação ao mundo. Na poesia, por exemplo, em linhas gerais o que predomina em
vagaroso, e, principalmente, o culto à morte. Esta deve ser entendida como um desejo
17
TOLMATCHOV, Vassíli. Sobre as fronteiras do Simbolismo. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.;
SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 18.
18
Ambas as correntes, positivistas e naturalistas, em linhas gerais, propõem a existência humana por meio
de valores completamente humanos, afastando radicalmente a teologia e a metafísica. Fundamentados nas
descobertas científicas do século XIX, o positivismo surgiu como desenvolvimento sociológico do iluminismo,
das crises da sociedade e moral do fim da Idade Média e do nascimento da sociedade industrial – processos que
tiveram como marco a Revolução Francesa (1789-1799).
19
Ibid., p. 23.
34
própria vida, é adotada como pressuposto filosófico pelo simbolismo russo. Segundo a
concepção dos próprios simbolistas, existe um elo íntimo entre o princípio da arte como
dualismo de forma e conteúdo, de signum e signatum. O signo adquire, ele mesmo, seu
próprio significado e deve ser considerado juntamente com o conteúdo que reflete” 20.
Estabelecem-se, então, os contornos de uma nova realidade cuja criação tem um caráter
Ivánov21 afirma que a verdadeira arte simbolista toca na área da religião, pois esta é,
antes de qualquer coisa, o sentimento de ligação entre tudo o que existe e o sentido da vida,
artista está em não impor sua vontade na superfície das coisas, mas em profetizar e anunciar
20
ANDRADE, Homero Freitas de. Breves noções sobre o simbolismo na Rússia. In: VÁSSINA, E.;
CAVALIERE, A.; SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 153.
21
IVANÓV, Viatcheslav. Duas forças do simbolismo moderno. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.;
SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 198 e 199.
35
algo próximo da vontade sagrada das essências: ser uma espécie de portador da revelação
No teatro, por exemplo, não há dúvidas de que a concepção da cena como espaço de
colaboração entre as diversas linguagens artísticas teve suas raízes no simbolismo, cuja
intelecto prevalece sobre a vontade mais do que na pessoa mediana – e definiu-se como
Dei-me conta, na realidade, de que precisamente onde uma das artes alcança seu
limite insuperável, a outra começa imediatamente a funcionar no seu campo de ação
com a exatidão mais rigorosa; e que, consequentemente, mediante esta união íntima
destas duas artes, uma poderia expressar de maneira mais satisfatória o que não
poderia de nenhum modo expressar por si mesma; e que, pelo contrário, toda a
intenção de oferecer com os meios de uma delas o que só poderia ser oferecido
apenas pelas duas juntas, inevitavelmente produzem, a princípio, obscuridade e
confusão, em seguida, a degeneração e a corrupção de cada arte em particular 23.
A luta contra o egoísmo tinha sido um dos argumentos lançados por Wagner para
validar o término da separação entre as atividades artísticas e sua fusão em uma preconizada e
idealizada única obra de arte total. O compositor foi uma importante referência para os
simbolistas russos que retiraram ferramentas poderosas para as devidas reformas estéticas, por
22
NIVAT, G. Op. cit., p. 38.
23
Esta passagem encontra-se no texto de Charles Baudalaire: “Richard Wagner e Tannhäuser em Paris”.
Wagner escreve uma carta a Berlioz na qual explica a necessidade de algo mais do que a simples colaboração
entre as artes. O trecho citado foi retirado de: SÁNCHEZ, José A. (Ed.). La escena moderna. Madrid: Ediciones
Akal, 1999, p. 16.
36
que associava poesia, drama, música e cenografia, Wagner materializou a realização exata das
pensamento, possibilita à percepção sinestésica uma mistura em maior escala dos estímulos
penetrando no êxtase, um encontro com Deus. Agrega-se a tal conjunto o princípio da síntese
das artes e, logo, forma-se o ponto de ligação pelo ato religioso, retornando outra vez a ideia
de que a arte transcorre da coesão entre a ação religiosa e a mágica. É preciso extrapolar,
então, seus muros, assim como os da vida, na busca do êxtase. Nivat, sobre este aspecto,
esclarece:
[...] existe, na busca infinita de todos os modos de ser do simbolismo russo, uma
religiosidade pouco crística, uma religiosidade baseada mais no esforço incessante
dos modos do ser humano a perseverar em seu ser, a produzir o ser. A síntese das
artes é uma modalidade dessa produção indefinida e infinita do ser sempre mais no
plano do fenômeno. E essa produção empurra sempre mais os limites da arte, apaga-
os, amalgama-os25.
O destaque agora é dado ao valor absoluto da arte e à sua não dependência. Por meio do
24
BALAKIAN, Anna. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 40.
25
NIVAT, G. Op. cit., p. 40.
26
Friedrich Nietzsche (1844-1900) filósofo alemão que acredita em um pessimismo dionisíaco. Para
Dioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e da volta. Em
outras palavras, em lugar do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou vão, o homem descobre no eterno
retorno a plenitude de uma existência ritmada pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do
sofrimento, do bem e do mal. A obra de Nietzsche vai ser uma importante referência para os simbolistas russos.
27
Biély chama atenção para a visualização dos limites da realidade do mundo exterior e argumenta: “E se as
fronteiras da visibilidade objetivamente dada são instáveis, estamos então condenados ao subjetivismo”. BIÉLY,
Andriéi. Simbolismo e arte contemporânea russa. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.; SILVA, N. (Org.). Op.
cit., p. 252.
37
de uma realidade percebida pelo artista por meio da sua própria vivência. Isso também
O teatro, com efeito, representa um local privilegiado, tomado como o meio expressivo
mais poderoso entre todas as artes. Para os simbolistas russos, o palco não se limita apenas a
de suas vidas. Nos termos de Ivánov, a representação teatral é vista como uma verdadeira
baseadas nos ritos religiosos, tragédias clássicas e mistérios medievais. Esta ideia, “mais do
que uma ação teatral, constitui um novo culto, não celebrado na Igreja, mas ainda cristão na
sua essência”29.
que separa o artista da realidade “superior” e “incontestável”. O “novo teatro” deve oferecer
uma espécie de “re-união” entre o ator e o espectador através da supressão da caixa cênica. A
intenção é recuperar o espaço, conforme o modelo cênico dos teatros gregos, e promover uma
espécie de ritual. Para tanto, associa o coro, a música e o grupo de dançarinos por meio de
irracional e elementar. O teatro, em escala global, situa-se como principal expoente de uma
revolução cultural.
28
Ibid.
29
RUDNÍTSKI, K. Russian & Soviet Theatre. London: Thames and Hudson, 1988, p. 9.
38
espaço de encontro entre poetas, críticos e filósofos, organizado por Ivánov. Nas reuniões, um
dos temas difundidos era a transformação necessária e possível da religião e da Igreja pela
arte teatral, pois Ivánov reconhecia que a humanidade tinha perdido a fé.
teatro, em sua essência, a partir de suas encenações no período de 1905 a 1912. Tais
Valiéri Briussov. Este último solicita o abandono do conceito de verdade, imposto pelo
Meierhold é convidado por seu antigo mestre e diretor do Teatro de Arte de Moscou,
natural” da atuação do TAM. Tal “estúdio teatral” foi nomeado pelo próprio Meierhold e
porém dando continuidade às conquistas alcançadas pelo TAM. Meierhold, por outro lado,
encenadores visavam a descoberta de novas formas e procedimentos para a arte do teatro que
30
Ibid.
31
Estas noções serão também recuperadas no capítulo II.
39
estivessem em confluência com o ideário do drama simbolista cuja obra era reconhecida como
Data deste período a formulação de uma das chaves da sua poética teatral: o princípio
Por “estilização” entendo não a reprodução exata do estilo desta época ou daquele
acontecimento, como fazem os fotógrafos com suas fotos. O conceito de estilização
está, na minha opinião, indissoluvelmente ligado à ideia de convenção, de
generalização e de símbolo. „Estilizar‟ uma época ou um fato significa exprimir
através de todos os meios de expressão a síntese interior de uma época ou de um
fato, reproduzir os traços específicos ocultos de uma obra de arte 32.
Para obter tal qualidade recorrerá à tradição dos teatros de feira da cultura popular russa,
à Commedia dell‟Arte e ao circo, como também ao corpo do ator e seus movimentos plásticos.
Durante esse período, Meierhold encenará diversos espetáculos de autores simbolistas como
destaque à técnica poética. Em relação a esse conjunto de fatores, pode-se afirmar que a
crença na cognição expressada pela arte é um ponto crucial da teoria do simbolismo, que
recruta o modelo intuicionista do conhecimento como método único, criador e ativo que
permite construir outro tipo de realidade, avessa a positivista, e concede à poesia lírica o seu
modo mais elevado de expressão. Associa, para isso, o símbolo não somente a um mecanismo
universal da literatura, como também à ideia de apreensão da essência do mundo pelo artista.
É por meio dele que o poeta cria e materializa imagens, revelando o caráter criativo ao propor
32
MEYERHOLD, V. apud CAVALIERE, Arlete. Op. cit., 2009, p. 240.
33
Existem diversos trabalhos que aprofundam o período simbolista de Meierhold. Para informações
acerca desta fase: GUINSBURG, Jacó. Stanislavski e Meierhold. In: Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo:
Perspectiva, 2001, cap. 1, p. 3 a 93. SANTOS, Maria Thais Lima. Na cena do Dr. Dapertutto. São Paulo:
Perspectiva, 2010. CAVALIERE, Arlete. O simbolismo no teatro russo nos inícios do século XX: faces e
contrafaces. Op. cit, 2009, p. 223 a 262.
40
um vínculo real entre todas as coisas. Dessa forma, pela constituição de novas imagens, é que
A palavra cria um terceiro mundo, o mundo dos símbolos sônicos, por meio dos
quais se iluminam os mistérios tanto do mundo estabelecido fora de mim, como os
encerrados em mim; [...]. No som recria-se um novo mundo, nos limites do qual eu
me sinto criador da realidade; então, começo a nomear os objetos, isto é, a recriá-los
novamente para mim34.
Em tal perspectiva, a função do som está conectada com a própria natureza das
palavras; ele é o próprio símbolo e reflete duas realidades paralelas: material e espiritual,
Cabe ressaltar que todo este conjunto de reformas só foi possível porque a geração
simbolista na Rússia fazia parte da chamada intelligentsia, grupo formado por uma classe
sucedidos, a maior parte com uma educação em filologia bem desenvolvida. Esta geração
apresenta como “gênio”, cujo olhar para o mundo é através de uma janela que o coloca acima
da realidade e da multidão.
real é idealizado pelo próprio artista e se manifesta por meio do conhecimento intuitivo, tendo
como a fonte do conhecimento. Por outro lado, de modo paradoxal, este mesmo grupo de
intelectuais, letrados, idealiza as manifestações populares. Por exemplo, o desejo de criar uma
34
BIÉLI apud POMORSKA, Krystyna. Formalismo e Futurismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972,
p. 84 e 85.
41
arte sintética, que se aproprie de todos os campos da criação (religião, filosofia, música,
arquitetura, dança, pintura, teatro), refere-se às linguagens que circulam entre uma pequena
elite intelectual russa. Não há uma apropriação concreta da cultura popular, mas sim uma
O que se observa é que a aproximação com a cultura popular, e nesse caso com o circo,
simbolistas que o ideal de beleza e perfeição, associados ao divino, podem estar encarnados
sacerdote e o mágico, que deseja hipnotizar o leitor pela construção de imagens através de
símbolos; e o virtuosismo do acrobata, que magnetiza e fascina o público pela superação dos
limites humanos. Outro ponto relacionado a esta leitura é o “culto à morte”, proclamado pelo
filosófico deste período que pode ser expressa por meio de pontos em comum. São eles: a luta
escritores da tradição ocidental e eslava; e o desejo de criar uma arte sintética que englobe as
simbolista pela síntese das artes e o diálogo intertextual com o passado” 36, que se propagam,
35
CAVALIERE, Arlete. Op. cit., 2009, p. 234-235.
36
Ibid.
42
feira), está “encharcado de paródia e sarcasmo, penetra de modo profundo na crítica aos temas
e procedimentos explorados pelo simbolismo russo e pelo próprio Blok, de cujo esgotamento
tradição popular e alegoriza a cena com “efeitos circenses”. Não foi à toa que Meierhold
encenou este texto em 1906, amparado em seus experimentos simbolistas “e, ao mesmo
Sem dúvida, é no simbolismo que tem início o processo de aproximação entre o circo e
absorvida na Rússia. O olhar simbolista para as atividades do picadeiro irá motivar toda uma
próxima geração de poetas e artistas que tornará este fenômeno mais concreto e complexo.
poesia se engaja cada vez mais no misticismo filosófico e perde, paulatinamente, a simpatia
entre os poetas mais jovens. No entanto, a partir da conjuntura social, cultural e política que
deu impulso ao seu surgimento, associado à atitude inovadora de sua prática e aos auxílios à
linguagem poética, o simbolismo pode ser identificado como a escola que exerceu uma
revolucionárias da vanguarda russa que segue não seriam as mesmas sem as reformas
simbolistas.
37
Ibid., p. 242.
38
Ibid., p. 241.
43
uma “insuportável chatura melodizada”, Vladímir Maiakóvski escapa para a saída do salão e,
da vanguarda futurista russa. Depois de “noites de lírica”, nos fins de 1912, surge o famoso
público) que leva a assinatura do grupo de poetas: David Burliuk, Alekséi Krutchônikh,
relatam em termos muito extremos um forte protesto contra o simbolismo, além de desprezar
os clássicos e a velha ordem como, por exemplo, Puchkin, Tolstói e Dostoiévski, e também os
acompanham a notícia de tal manifesto que foi seguido por outras publicações. O futurismo,
assim, adensava-se na Rússia, conquistando cada vez mais espaço e agregando figuras
fascinantes.
do verbo ser (byt) – em referência ao artista como o homem do futuro, que enfatizava o
sentido existencial deste movimento40, este grupo de artistas e poetas assumia uma postura
máquina. Maiakóvski, por exemplo, em seus trajes de “abelha”, usava uma blusa amarelada
com grandes listras pretas e a sua figura “parece assemelhar-se aos heróis desdenhosos e
39
MAIAKÓVSKI apud SCHNAIDERMAN, Boris. A poética de Maiakóvski. São Paulo: Perspectiva,
1971, p. 93.
40
O termo “futuristy” (futuristas) tinha um caráter pejorativo e era utilizado por quem criticava o
movimento, entretanto, apesar de não concordarem com tal denominação, os seus artistas e poetas acabaram por
aceita-la e assumi-la.
44
tenebrosos dos filmes de seriados, dos cinedramas daqueles tempos” 41. Levando o futurismo
para o público, proclamavam que arte e vida deveriam desprender-se das convenções para
russa. Conforme dito anteriormente, a arte e a literatura eram cultivadas como lugar de
suas práticas. Portanto, essas relações e experiências serão destrinchadas ao longo deste
Na Europa Ocidental, o ano de 1909 teve início com o abalo provocado pelo primeiro
manifesto futurista divulgado no jornal Le Figaro, em Paris, por seu escritor, o poeta italiano
Filippo Tommaso Marinetti. Ele contrapunha-se aos velhos valores artísticos, aos significados
cunhados nas Artes e nas Academias Literárias e propunha a abolição do culto ao passado. O
41
RIPELLINO, A. M. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 22.
45
grito do poeta italiano glorificava a guerra, bem como o militarismo patriótico, em oposição
ao comércio das artes e a veneração da tradição. Marinetti foi influenciado por Alfred Jarry e
absurdo e burlesco que tinha como modelo as farsas nas quais o poeta francês participara em
seus tempos de escola e as peças de marionetes produzidas por ele. Marinetti, que viveu em
Paris de 1893 a 1896, ao retornar à Itália percebe a convulsão política em que está
mergulhado seu país e inicia suas experimentações artísticas. Além do que, nota as
ideal de beleza: o poste com luz elétrica e o automóvel são respectivamente o símbolo e a
mecânico e elétrico, e é nela que está toda a potência para aniquilar o velho e construir o
futuro, com toda a brutalidade das guerras e revoluções que alteraram a História. O
guerra somados ao encanto pela modernidade, então, são fatores importantes para o progresso
Os futuristas na Itália elaboram diversos manifestos entre 1910 e 1913 acerca das
diferentes modalidades artísticas, assim, uma de suas contribuições mais significativas foi a
utilização das atividades cênicas como meio objetivo de aproximar o público de suas ideias.
Nesse contexto, Marinetti impõe ao teatro a tarefa de orientar-se por meio da originalidade e
inovação.
46
uma mesma forma cênica, de diversas manifestações: cinema, dança, música, acrobacia e
Nesse sentido, esta forma de cabaré esteve associada à nova estética das cidades modernas de
O teatro de variedades oferece uma maior limpeza dentre todos os espetáculos, por
seu dinamismo de forma e de cor (movimentos simultâneos de malabaristas,
bailarinas e ginastas, tendas multicoloridas, piruetas de dançarinos que trotam sobre
a ponta dos pés). Com seu ritmo de dança acelerada e arrebatadora, o Teatro de
Variedades arranca, por força de seu torpor as almas mais lentas e as obriga a correr
e a saltar42.
O resultado não será visível apenas na representação, mas também no cotidiano e nas
atividades destes artistas e poetas, por meio do caráter ruidoso ditado pelo movimento, em
atitude de choque e diálogo com o público. Sendo assim, o emprego desses elementos
impregnará fortemente as peças do Teatro Sintético, proposto por Marinetti a partir de 1915.
novas combinações que teriam como fundamento este teatro anterior e as criações essenciais
das outras áreas, como o dinamismo plástico e a arte do rumor, além, evidentemente, do
42
Cf. MARINETTI, Filippo T. El teatro de Variedades (1913). In: SANCHÉZ, op. cit., p. 116.
43
Cf. CORRA, Emilio S. B. e MARINETTI. El Teatro Futurista Sintético (1915). Ibidem, p. 122.
47
Cangiulo – estes dois últimos escrevem o manifesto O Teatro da Surpresa –, além de quatro
atrizes, três atores, uma criança, dois dançarinos, um acrobata e um cachorro. Este teatro
pretendia oferecer uma demasiada importância ao elemento “surpresa” cuja relevância para as
artes era fundamental, expondo em cena uma sequência de acontecimentos imprevisíveis com
o objetivo de provocar no público a risada, o estupor e as vaias. Para isso, seus fundadores
teatralidade e a conjugação das artes ditas “menores” em cena. Mas que fique claro que as
atividades poéticas, o programa estético e o ideal político dos futuristas russos não seguem o
modelo italiano. Humphreys46 alerta que o termo “futurismo” na Rússia deve ser utilizado
com cautela, visto que a questão do intercâmbio cultural é particularmente importante, pois
assim, uma das formas como os futuristas russos e outros vanguardistas de Moscou e São
e de sua própria língua, o que torna impossível a simples reação ou imitação pura e ingênua
44
GARCIA, Silvana. As trombetas de Jericó: teatro das vanguardas históricas. São Paulo: Hucitec, 1997,
p. 39.
45
Ibid., p. 39.
46
HUMPHREYS, Richard. Futurismo. Tradução: Luiz Antonio Araújo. São Paulo: Cosac & Naify,
2000, p. 58.
48
insulta os eventos públicos, Tolstói, Kremlin e a arte russa. Se por um lado a reação do grande
público foi de entusiasmo pelas ideias do futurista italiano, por outro, alguns artistas
manifestaram uma grande hostilidade. O tom dessa resistência pode ser visto em algumas
palavras redigidas pelos escritores russos Velimir Khliébnikov e Benedikt Livshits, antes de
uma das palestras de Marinetti: “Hoje, alguns nativos e a colônia italiana às margens do Neva
[...] prostram-se diante de Marinetti, traindo os primeiros passos da arte russa no caminho da
Seria um verdadeiro equívoco afirmar que não houve influência e diálogos entre o
futurismo italiano e o futurismo na Rússia. De certa maneira, a difusão das teorias futuristas
foi acatada neste país com grande rapidez desde a publicação, e tradução para o russo, do
Primeiro Manifesto Futurista de Marinetti em 1909. No entanto, o líder futurista italiano não
natureza singular do seu pensamento e cultura, entre as revoluções de 1905 e 1917. O sentido
de nação dos artistas russos era estranho aos vizinhos ocidentais, pois retratava as
social e industrial. Além do que, na prática poética, o tom de paganismo eslavo nos versos de
imperialismo e incita uma revolta social. Desse modo, o resultado era uma concepção da
modernidade, de futuro e do novo, muito diferente do pensamento italiano, e tudo isso estava
czarista como das linguagens e instituições artísticas e literárias, tal postura não se aplica em
47
KHLEBNIKOV e LIVSHITS apud HUMPHREYS. Op. cit., p. 59.
49
também estão presentes no ideário do futurismo organizado nos fins do século XIX sendo,
inclusive, um dos fatores que diferencia os futuristas russos dos seus correlativos italianos.
cultura russa, do início do século XX, buscava manter-se em contato com as tendências dos
cubistas no país. É imprescindível mencionar também a forte ligação entre futuristas russos e
Maiakóvski, por exemplo, “estudara com os pintores Jukóvski e Kélin, antes de ingressar na
mesma Escola, e depois desenharia cartazes, ilustrações e capas de seus livros, figurinos para
peças, etc.”48. Tudo isso legitima o grito inicial dos futuristas: o desejo da revolução da forma,
futurismo. O primeiro foi fundado em novembro de 1911 por Ígor Sievieriánin e “retomava
fórmulas decadentistas já esgotadas” 49, sua cultura poética baseava-se nos moldes do fim do
século XIX. O fundador do ego-futurismo era conhecido por seus poemas pretensiosos e
48
SCHNAIDERMAN. Op. cit., p. 27 e 28.
49
RIPPELINO, Op.cit., p. 14.
50
Por outro lado, o cubismo foi assimilado tão radicalmente pela vanguarda russa que a
decomposição plástica cubista, que oferece outras percepções e pontos de vista ao fragmentar
cinética do futurismo através dos pintores russos desse período. Logo, a pintura é tomada
Khliébnikov declara em 1912: “Nós queremos que a palavra siga audaciosamente as pegadas
da pintura”52.
contornos do verso, da teoria da inspiração e do conceito do poeta gênio, tão marcantes dos
simbolistas, “o ponto principal da estética futurista foi a teoria da palavra em seu aspecto
sonoro, como único material e tema da poesia”53. A pesquisa linguística valorizava o estudo
cuja prática
50
Ibid.
51
Ibid., p. 33.
52
Ibid., p. 32.
53
PORMORSKA. Op. cit., p. 102.
51
ambos estão no mesmo patamar. Dessa maneira, o conceito de zaúm não está limitado à pura
experiência poética, excluindo qualquer intenção social, e tampouco se caracteriza como uma
língua sem sentido. É por meio desta zona de criatividade “transracional” que os futuristas
russos levam ao máximo as experiências sonoras e, assim, a poesia impõe violentamente sua
Nas considerações finais sobre a análise literária e a literatura produzida nesse período,
Pomorska55 afirma que o simbolismo russo prepara o caminho para a orientação sonora do
futurismo. O primeiro investe na aproximação com a música – “poesia como música” – e nas
futuristas, por sua vez, descartam-se da carga mítica e subjetiva dos seus antecessores e
54
BOLOGNESI, Mario Fernando. Tragédia: uma alegoria da alienação. 1987. Dissertação (Mestrado em
Artes) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 89.
55
POMORSKA. Op. cit., p. 163.
52
O futurismo russo deixa marcas em toda obra de Maiakóvski, que utiliza os princípios
deste movimento durante sua trajetória, enfatizando o vínculo entre o poeta e a vanguarda do
seu país56. As relações entre os dois são extensas e bastante complexas, não sendo a pretensão
desta pesquisa tal análise. No entanto, é necessário ater o olhar sobre certos aspectos da sua
poesia e nos procedimentos artísticos que irão modificar a cena teatral russa até por volta do
aplicá-las ao contexto social de seu tempo. Sendo assim, no ambiente caótico em que a Rússia
estava mergulhada, a sua poesia expressou potencialmente os temas revolucionários, algo que,
entretanto, o diferencia dos outros poetas zaúmniki para quem o material linguístico era tema
propriamente dito. Desse modo, o universo poético proposto por Maiakóvski apresenta
para possibilitar outras percepções do objeto a partir da sua visualização sobre outras
linguagem das ruas, com sua riqueza e criatividade, e também, elementos estranhos e
56
Ibid., p. 157.
57
Idem, ibidem, p. 29.
53
inusitados para o poema visando certo estranhamento. O seu desejo é tornar a percepção do
queriam os futuristas. “Unicamente nós somos a face do nosso tempo”, proclama Maiakóvski
Eu
à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas.
Às parlengas poéticas estou acostumado,
Eu ainda falo versos e não fatos.
Porém se eu falo
“A”
este “a”
é uma trombeta-alarma para a humanidade
Se eu falo
“B”
é uma nova bomba na batalha do homem. 59
a precisão das fórmulas científicas, como se quisesse fazer confluir à atividade poética as
conquistas das revoluções científicas da virada do século XIX para o XX 61. Por outro lado, o
poema exemplifica a penetração da poesia no seio social, proclamando uma nova maneira de
viver, uma arte e uma ciência nova, que complementem as mudanças iniciadas pela
Revolução. Outro elemento que ainda pode ser observado, nas partes finais do poema citado
procedimentos futuristas para a construção de uma arte socialista que dificilmente poderia ser
58
In: TALES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro; apresentações dos
principais poemas metalingüísticos, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972.
Pretópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p. 165 e 166.
59
MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. Tradução: Augusto Campos. São Paulo Perspectiva, 2008, p. 94.
60
BOLOGNESI, Op. cit., 1987, p. 85.
61
Desde a segunda metade do século XIX, arte e ciência se aproximam cada vez mais. Para mais detalhes
sobre isso, bem como sobre a repercussão no campo artístico, consultar: Ibid., p. 86-88.
54
produzida com o uso dos antigos procedimentos. Por meio da “racionalização do irracional”62,
o poeta acreditava “que a coincidência entre arte revolucionária e estado revolucionário é tão
inicia-se um grande repúdio, em geral, à palavra escrita. As diversas teorias que surgem
libertar-se das palavras, logo, as ações mudas eram atrativas, pois ofereciam autonomia e
A vanguarda teatral russa busca elevar um elemento-chave que guiará as suas pesquisas
experimentações cênicas futurista: a teatralidade. O retorno a ela parecia ser a única saída para
teatral em si: Nicolai Evreinov, Aleksander Taírov e Vsévolod Meierhold são nomes
Nicolai Evreinov (1879-1953) dedica-se a encontrar o que julga ser essencial às artes
com a vida social. Para ele era imprescindível vincular as ideias teatrais nas expressões mais
significativas da sua história, ou seja, na época em que “elas se caracterizaram justamente por
se apresentar como puro jogo cênico de comediantes, sem qualquer tentativa de mimeses
mecânica ou cópia naturalista da vida”64. Em seu programa concebido para um Teatro Antigo,
por exemplo, propunha o estudo teórico e prático sobre “todas as épocas particularmente
62
JAKOBSON, Roman. A geração que esbanjou seus poetas. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 22.
63
POMORSKA. Op. cit., p. 157.
64
GUINSBURB, J. Op. cit., p. 130.
55
teatrais”, voltando-se no primeiro momento para o teatro medieval francês, seguindo para o
teatro espanhol do Século de Ouro, depois para a Commedia dell‟Arte, passando do teatro de
cênicas de outros períodos, procurou fazê-lo tendo em vista o que era, aos olhos de seus
meios de comunicação entre palco e plateia, por meio da eliminação de obstáculos materiais
representação e, assim, “o Teatro Antigo não foi um museu do teatro, mas um museu da
teatralidade e durou o suficiente para evidenciar que a essência da teatralidade está na relação
Na série dedicada ao teatro francês medieval, o drama litúrgico Trois Mages teve
Tirso de Molina67.
O ator e diretor russo Aleksander Taírov (1885-1950) se esforçou para preservar seu
teatro como um lugar de experimentação cênica. Para isso, ele parte do pressuposto de que
arte e vida são nitidamente distintas, “pois embora possam coincidir aqui ou ali, cada qual
postula um tipo específico de verdade e, na maioria das vezes, „o que é verdade na vida não o
65
Ibid., p. 133.
66
EVREINOV, Nicolás. El teatro en la vida. Buenos Aires: Ediciones Leviatan, 1956, p. 10.
67
Mais detalhes em: EVREINOV, N. Op. cit.
68
GUINSBURG. Op. cit., p. 154.
56
pela literatura) como do “teatro de estilo” (dominado pela pintura) ao propor uma via
intermediária e mostrando seu interesse em localizar o ator no centro da criação cênica, longe
russo, em submeter a criação dramática à mimese realista nem ao puro formalismo, isto
significa que a preocupação com a forma não implica a rejeição da emoção no palco.
A trajetória artística de Taírov é rica e complexa, no entanto, cabe aqui ressaltar as suas
tentativas de uma prática teatral fundamentada no estilo sintético. Para ele o ator deveria ser
um bailarino, palhaço, cantor e mímico. A sua pesquisa teatral se baseava no âmbito das
efetua quando a caixa cênica dá relevo à criatividade do comediante, no que ele tem de
espontâneo como espírito imaginante e controlado como corpo atuante. [...] um virtuose do
dramaturgia hindu, escrita no século V a.C., adaptada pelo simbolista russo Balmont. Em
69
SANCHÉZ, J. Op. cit., p. 314.
70
GUINSBURG. Op. cit., p. 155-156.
71
Ibid., p.158.
57
„estilização‟, sob cujo verniz era difícil distinguir os lineamentos de novos ritmos e formas
convencional, sugerida “pela mímica, pelos gestos e pelo movimento” 73. Taírov procura a
“teatralidade pura”, mais preocupado com o estético do que com o cultural na atuação
balé”74. No entanto, como será visto nos capítulos seguintes, Vsévolod Meierhold, “o Picasso
Teatro, Cine e Futurismo (1913)77, Maiakóvski declara: “Está claro que antes da nossa
chegada, o teatro não existia enquanto arte independente. Nota-se acaso na história as marcas
de tal existência? Sem dúvida!” E para comprovar refere-se ao teatro de Shakespeare que
teatro que se “dedica a representação fotográfica da vida” 78 e exemplifica pela arte do ator
shakespeareano, “no qual os movimentos mais poderosos da alma não se exprimem mediante
palavras, mas sim mediante a entonação e atitudes livres e rítmicas. Não importa que as
palavras não tivessem sentido preciso ou que as atitudes fossem improvisadas”. Nesse
72
TAÍROV apud GUINSBURG. Op. cit., p. 166.
73
EVREINOV, N. Op.cit., p. 45.
74
GUINSBURG. Op. cit., p. 212.
75
Ibid.
76
Ibid.
77
Cf. MAIAKÓVSKI, V. Escritos sobre Teatro. In: SANCHÉZ, op. cit., p. 279-282.
78
No caso ao teatro naturalista cuja expressão mais significativa era representada pelo Teatro de Arte de
Moscou, sob a direção de Constantin Stanislávski.
58
contexto, a síntese entre o moderno e o tradicional é fator essencial nas peças de Maiakóvski.
imediato à contradição existente entre o futurista, que reagia com furor aos clássicos, que
popular, à arte russa tradicional, etc. No entanto, não se deve diminuir a atitude iconoclasta do
poeta que erguia seu sarcasmo e rebeldia necessária e fecunda contra as artes dos salões e
passado, além de esbofetear o chamado bom senso burguês e depreciar o realismo, temas
característicos dos cubo-futuristas; por volta da década de 1910, Maiakóvski adota também o
com a Revolução de 1917, quando seus temas voltam-se para a situação da Rússia, do
estava refletida, assim, na revolução das artes, em especial, a teatral. Em suas obras cênicas
aproximar o teatro do music hall, das variedades e feiras, bem como do circo – seus palhaços,
seus acrobatas, trapezistas e funâmbulos que fascinam e provocam o público com seus truques
79
SCHNAIDERMAN, B. Op. cit., p. 47.
59
e maravilhas. Além disso, o princípio wagneriano de obra de arte total também é recuperado
transformações do espetáculo, “quer seja porque colocou a política como uma necessidade
cotidiana de debate, compreensão e superação, quer seja porque acirrou os contrastes entre as
entanto, toda a efervescente e complexa aproximação entre o circo e o teatro está intimamente
conectada à ideia de “um homem novo” dotado de vigor físico que iria elevar-se da terra, em
ascensão.
“novo homem”, dotado de grande força moral, dedicado a uma prática em benefício social.
80
BOLOGNESI, Mário Fernando. As cidades de Maiakóvski. In: Urdimentos Revista de Estudo Pós-
Graduados em Artes Cênicas. Florianópolis: UDESC/CEART, 2004, v. 1, n. 6, p. 41.
81
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010, p. 38-39.
60
Assim, o ideal de caráter deste personagem todo-poderoso é composto pela “mobilização dos
seus recursos pessoais no cumprimento de um único objetivo, sempre público, a rejeição sem
década de 1920 exaltam ao máximo a força e eficácia deste sujeito que supera o poder das
máquinas. Tudo isso se materializa no conjunto de saltos, flexões, voos, simulações, vigor
físico dos acrobatas, trapezistas e circenses que eram verdadeiras fontes para artistas e
O apelo ao circo ocorre precisamente porque ele goza da licença de perturbar e parodiar
os gêneros convencionais por meio das ações vertiginosas, das feéricas acrobacias e
que poderiam causar surpresa ou entristecer, entreter ou alienar, baseando-se em seu eclético
“magia” desfrutavam uma ampla popularidade na Rússia no início do XX, como, por
exemplo: a trupe de circo Ciniselli, os palhaços Anatolii Durov e Ivan Kozlov, além do
82
Cf. MATHEWSON, Rufus apud FRANK. A busca de um herói positivo. Op. cit., p. 84.
83
Contração de Cultura Proletária, em russo: Proletarskaia Kultura. Organização de origem independente
e grande base popular, estabelecida em 1917, que deposita seu interesse na proposta de traçar uma cultura
revolucionária para a massa de operários.
84
Para orientar uma investigação pormenorizada sobre o trabalho destes e de outros artistas circenses que
tiveram repercussão neste período, consultar: LITÓVSKI, A. (org.). El Circo Soviético. Moscú: Editorial
Progreso, 1975.
61
recriações e “ilusões”86, o que tornou cada vez mais complexo o vínculo entre a “magia” e as
pintura de rosto, ventriloquismo, adivinhações – puderam ser associados não apenas ao circo
russo, mas também ao movimento modernista, e paralelismos podem ser observados entre tais
elementos. As roupas extravagantes e faces pintadas dos palhaços estão refletidas nas pinturas
Anatolii Durov89 são elogiadas e imitadas por Burliuk e Maiakóvski; o divertido poema de
Kliébnikov, Zakliatie smekhom (Encantação pelo riso, 191090), pode ter inspirado a leitura
“Sobre o riso”, texto proferido por Durov para público de circo. Tudo isso sugere uma grande
simbiose pela qual os futuristas russos, por meio da renovação da linguagem verbal e das artes
visuais, podem ter se apropriado da arte dos ventríloquos, por exemplo, para elaborar os
85
BOWLT, Jonh E. Moscow and St. Petersburg in Russia’s Silver Age. Londres: Thames and Hudson,
2008, p. 284-286.
86
Em russo, a palavra “mágico” equivale a illiuzionist, os primeiros cinemas em russo se chamavam
illiuziony.
87
Ibid., p. 286.
88
Ibid.
89
A família Durov, na Rússia, é formada por palhaços satíricos e homens de intensa atividade social. Seus
artistas inovadores transformaram a arte circense e ajudaram a elevar a qualidade do circo russo. Buscaram em
seus números novos enredos e novas formas interpretativas. Anatolii Durov, palhaço, domador, acrobata,
prestidigitador e “um magnífico recitador de monólogos” foi um dos principais agentes para estas mudanças. Ver
mais em: DMÍTRIEV, Y. Los Durov. In: LITÓVSKI, A. (Org.). Op. cit., p. 7-19.
90
In: Poesia Moderna Russa. Tradução: Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.118 e 119.
62
Nudismo. Nele declara que o corpo nu era superior ao corpo vestido e, assim, o pintor tinha
russo recebeu uma justificativa ideológica quando, em 1922, os primeiros nudistas soviéticos
organizaram a “Semana do Corpo Nu”, em Moscou, declarando que o nudismo era a prática
determinada pelas vestimentas. Alguns artistas aplicaram em suas atividades tais costumes e
fizeram emergir experimentos físicos para o novo século. O culto ao fisiculturismo, aos
acrobatas e às artes marciais espelhava-se nas obras de pintores como Kazimir Malévitch91
A matriz dos números acrobáticos do circo, a sua matéria principal, é o corpo, o corpo
em risco, ou seja, “em desequilíbrio”93. A arte de se inserir na área do perigo pode ser
simbólico (no caso da queda da bola de um malabarista) ou, como acontece na maior parte das
91
Kazimir Malévitch (1878-1935), pintor nascido em Kiev, Ucrânia. Muda-se para Moscou em 1904 onde
começa a Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura. Exerce importante influência no modernismo russo e
colabora com os cubo-futuristas. Trabalha com Maiakóvski e Krutchônikh. Em 1913, desenha o cenário e o
figurino para a ópera futurista Vitória sobre o Sol. Inspirado no cubismo é um dos inventores da arte não
figurativa que, em 1915, chamava-se Suprematismo. A famosa tela Quadrado negro sobre fundo branco, pintada
em 1913 e 1915, constitui uma radical ruptura com as atividades artísticas da época.
92
BOWLT. Op. cit., p. 292.
93
GOUDARD, Philippe. Estética do risco: do corpo sacrificado ao corpo abandonado. In: WALLON,
Emmanuel (org). O circo no risco da arte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 25.
63
trapézio no alto da cúpula do circo, é posta em jogo na cena e a iminência da morte não é
simbólica, mas uma possibilidade constante em todas as acrobacias que só se realiza a partir
da alteração do equilíbrio que impulsiona a ação do acrobata. Entende-se pela ideia do artista
em desequilíbrio:
as proezas são o seu baluarte; assim sendo, suas características básicas estão pautadas na
apurado requinte técnico, visando afetar diretamente os sentidos dos espectadores. O intenso
Bolognesi95 chama atenção para o fato de que essas sensações, no espetáculo circense,
são experimentadas porque o desempenho artístico dos acrobatas não se dá por símbolos ou
Representação e vida fundem-se no mesmo ato e como espetáculo representa aquilo que são.
Tudo isso só é possível pela tensão gerada entre o equilíbrio e desequilíbrio provocados pelo
corpo acrobata.
94
WALLON, Emmanuel. Op. cit., p. 23.
95
BOLOGNESI, Mario Fernando. O circo civilizado. In: SIXTH INTERNATIONAL CONGRESS OF
THE BRAZILIAN STUDIES ASSOCIATION, 2002, Georgia (EUA). Anais eletrônicos da BRASA VI.
Atlanta: BRASA VI, 2002. Disponível em:
<http://sitemason.vanderbilt.edu/files/cvBvB6/Bolognesi%20Mrio%20Fernando.pdf> Acesso em: 12 mai. 2010.
64
intensidade e poder desenvolve a força, necessidade vital do corpo acrobata. Tais elementos
segurança dos gestos. Com o domínio da técnica para a execução, o acrobata cria “a ilusão do
vertigem tão aguardados. O circo cumpre, portanto, uma de suas funções: entreter e gerar
popular e por ser uma arte que expõe os riscos e os limites humanos deixou marcas profundas
no imaginário do homem. Na Rússia, por intermédio do apoio do czar e por influência dos
Circo que, em seu tempo, era um dos maiores e mais suntuosos. No século XIX o modelo de
circo fixo – não itinerante, por causa de todos os seus aparelhos, máquinas e operações
específicas – invade São Petersburgo e oferece às artes cênicas a reposição do corpo humano
como fator espetacular. No início do século XX, o espetáculo circense cumpria alguns dos
principais tópicos da luta poética da vanguarda modernista: abolição dos limites entre as
corpo. Após a Revolução de 1917, o circo é estatizado e passa por um período de conservação
famílias e artistas de países diferentes, o que proporciona uma expansão de mercado e a sua
96
GUZZO, Marina Souza Lobo. Risco como estética, corpo como espetáculo. São Paulo: Annablume,
2009, p. 118.
97
COSTA, Eliene Benício Amâncio. Saltimbancos Urbanos: a influência do circo na renovação do teatro
brasileiro nas décadas de 80 e 90. Tese de Doutorado (ECA-USP), 1999, p. 59-60. (v. I)
65
Não foi apenas privilégio do circo a irrupção deste homem poderoso, dotado de extremo
Obviamente, tudo está aliado à perspectiva de um extremo rigor técnico, exaltado durante as
apoio e patrocínio dos czares que incentivaram a vinda de coreógrafos e intérpretes franceses
público ficou cada vez mais apurado, o que determinou também o grau de formação dos
artistas russos na Escola Imperial cujo curso para bailarinos era de dez anos em regime de
glorifica o ballet russo na segunda metade do século XIX, marcando o período de seu reinado.
O contexto histórico na Rússia favorecia tais mudanças, assim, os ballets russos adquiriram
prestígio político, pois eram exibidos com orgulho pelos czares como troféu da coroa.
Contudo, os ballets não eram uma simples diversão do império, eles também estavam
conectados à vida do povo, assim como acontecia com as outras artes e com a literatura.
Petipa esforçou-se ao máximo para desenvolver os aspectos técnicos da dança que exigiam
proezas físicas, carregados de forte carga poética, apresentando ao homem uma imagem
idealizada de si. Data desta ocasião, a incorporação da acrobacia nos movimentos de dança,
criticada por alguns puristas como “truque circense”: as “levantadas soviéticas” – pela qual
66
um bailarino levanta sua partner com uma das mãos – ou os 32 fouettès consecutivos,
explodiu as regras arcaicas que regiam a dança. Um traço importante neste russo foi o
absorver as novas correntes da arte com facilidade. Diaghilev foi convidado a levar uma
mostra da arte russa a Paris, estreando como empresário por volta de 1908. Na mesma
ocasião, acertou levar também um ballet àquela capital. Apesar das dificuldades, pelo
insistindo na dança como ponto de encontro entre todas as artes, apresenta na França, em
1909, um repertório composto por uma ópera e quatro ballets. O impacto foi forte: a ousadia
dança, orientando os seus novos caminhos na Europa. Ele queria exprimir a vibração da alma
russa em suas obras, por meio da recuperação de contos medievais, do ambiente das feiras e
67
seus tipos populares, como também a partir da concepção de libretos em torno de um rito
preencher o espaço pelo corpo físico do homem, tendo em vista as distâncias, os pesos e a
superação dos seus limites. Tal preenchimento é feito concretamente por meio dos gestos,
saltos, equilíbrios, voos e força. A execução perfeita, segura e precisa provém de uma prática
domínio da técnica impecável possibilita o controle do tempo futuro no que diz respeito à
maestria, nesta não pode haver falhas. O corpo acrobata, portanto, desafia o seu
O corpo acrobata é aquele que assume o risco como princípio, encarando-o como
com os limites humanos. Cabe frisar que a utilização desta fisicalidade é permeada de alta
carga poética, definindo pela expressividade de seus gestos a busca para a transformação da
condição do homem. Ao estar em desequilíbrio e ser desafiado pelo espaço, ele propõe outras
maneiras de posicionar o seu corpo, o que é encarado como potência para, assim, executar
Se “os primeiros circenses eram exímios caçadores, ágeis, fortes, de grande pontaria e
98
Mais detalhes sobre os ballets russos de Diaghilev e Nijinsky em: PORTINARI, Maribel. Do
romantismo à Revolução de Diaghilev. In: História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, cap. III, p.
81-130.
99
CASTRO, Alice Viveiros de. A arte do insólito. Revista Continente Cultural. Pernambuco, ed. 77,
maio 2007.
68
histórico era de guerra civil, por isso, a mola propulsora para as reformas artísticas era a
poética inovadora e crível, por meio do rompimento com as formas artísticas que não
estivessem a serviço da Revolução. O objetivo era “politizar a arte e a principal opção para se
alcançar essa meta se deu em torno da transformação e da superação das técnicas naturalistas,
O teatro, por outro lado, recorria ao imaginário circense para estimular as manifestações
revolução inspirado no potencial do “novo homem”. Nesse sentido, os anos de 1920 expõem
uma prática teatral fortemente enraizada nas atividades do picadeiro, revelando uma história
posterior formação dos grupos teatrais de agitação e propaganda (agit-prop) com profunda
base acrobática101.
100
BOLOGNESI, Mario Fernando. Op. cit., 2004, p. 41.
101
Para mais detalhes sobre este período consultar: GARCIA, Silvana. A matriz histórica do teatro de
natureza política. Ibid., p. 1-45
69
Emilievitch Meierhold inserem-se nesse contexto, e, não por acaso, o circo, a grande paixão
CAPÍTULO II
Para Ripellino102 é das premissas proclamadas por Marinetti que deriva o entusiasmo da
entre o teatro de prosa e o music hall, pois este parecia mais adequado aos futuristas pelo
ritmo veloz da época. Dentre os procedimentos cênicos utilizados pelo poeta italiano, a
era um importante recurso ao opor a ação à atuação psicológica. Isso pode ser ilustrado pelo
Muitos dos artistas cênicos e poetas russos do período, que se apoiavam na tese de
Marinetti, tinham experiência com a arte pictórica ou fizeram parcerias com pintores
hall. Participaram da montagem dois artistas de circo: um palhaço acrobata, que interpretou o
pilares a perspectiva pictórica – a outra era o texto. Cabia ao diretor articular a dramaturgia
em cena para o sucesso da obra artística e ao intérprete a execução de suas ideias. Nesse
102
RIPELLINO, Angelo Maria. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1971,
p.140.
103
Fomentar por todos los medios el género de los clowns e los excéntricos americanos, sus efectos de
grotesco exultante, de dinamismo espantoso, sus groseras ocurrencias, sus enormes brutalidades, sus chalecos
com sorpresas y sus pantalones profundos como bodegas de barco, de donde surgirá con otras mil cosas la gran
hilaridad futurista que debe rejuvenecer la faz del mundo. MARINETTI, Fillipo T. El teatro de Variedades
(1913). In: SÁNCHEZ, José A. (Ed.). La escena moderna. Madrid: Ediciones Akal, 1999, p. 119.
104
RIPELLINO. Op. cit., 1971, p. 141.
72
sentido, a expressividade do corpo do ator, pela primeira, vez era cultivada e aproximava-se
„estatuária plástica‟ foi experimentada, não como cópia das pinturas, mas a partir da
deveria integrar-se ao fundo cenográfico de tal modo que o intérprete perderia a sua espessura
friamente orgiástica”108, logo, o corpo do ator estaria caracterizado como “[...] uma estatuária
cênica que trouxesse não só pelo dito mas sobretudo pelo não dito, pelas áreas de sombra e
105
THAIS, Maria. Na cena do Dr. Dapertutto. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 23.
106
GUINSBURG, Jacó. Stanislavski, Meierhold & Cia. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 26.
107
Tais proposições também são adequadas aos trabalhos de dois revolucionários da cenografia do século
XX: Adolphe Appia (1862-1928) e Edward Gordon Craig (1872-1966). Em linhas gerais, o primeiro foi
influenciado pela obra de Richard Wagner e constata que a cenografia deveria ser um complexo sistema de
volumes e formas reais que conduz incessantemente o corpo do ator a achar soluções expressivas e plásticas. A
teoria cenográfica de Appia se baseia essencialmente em princípios arquitetônicos. Craig, que também é
influenciado pelas ideias de Wagner, privilegia a estruturação arquitetônica do espaço. Meierhold, que foi
influenciado por Craig, reconhece na Revista Teatral da Sociedade de Literatura e Arte, publicada em São
Petersburgo, em 1909-1910, o quão importante são as experiências cênicas de Craig. Para mais detalhes, ver:
THAIS, Maria. Op. cit., p. 272-287.
108
GUINSBURG. Op. cit., p. 26.
109
Ibid.
73
homem e a iluminação simbólica de seu mundo não podia haver conciliação estética e
Após essas experiências, Meierhold percebe que não era possível reconstruir um novo
teatro nos moldes da atuação pregada pela escola naturalista do Teatro de Arte de Moscou. E,
conforme aponta Maria Thais111, é neste período que ele muda a perspectiva sobre o trabalho
do ator e desenvolve a concepção de uma escola. O ator não era mais visto como um
intérprete das ideias do diretor, mas como criador, e cabia a este último a responsabilidade de
prepará-lo.
para a criação de uma nova técnica cênica. Os textos do autor não pressupõem uma
associação com a vida cotidiana e a categoria de ação é definida como uma ocorrência no
mais íntimo do personagem, e não mais em acontecimentos exteriores a ele. Tais teses
ganham vida em cena por meio da pausa, dos silêncios e, especialmente, nas formas e nos
movimentos plásticos. A partir daí surgem os moldes para a expressão do ator e, portanto, “o
110
Ibid., p. 29.
111
THAIS, Maria. Op. cit., p. 28.
112
MEIERHOLD, V. E. Sobre o teatro. In: THAIS, Maria. Op. cit, p. 212.
74
feminina consagrada nos palcos russos, para dirigir a sua companhia. A atriz aspirava ao
repertório do teatro simbolista, pois acreditava que este seria o teatro do ator, do espírito livre.
deste encontro, quatro obras que combinaram o anseio de ambos foram produzidas: Irmã
simbolistas mudaram os rumos da cena russa, já que investiram na aproximação entre palco e
As inovações cênicas de Meierhold, por meio de tais princípios e pela estilização, eram
um meio de educar o ator e apresentavam uma nova abordagem ao seu trabalho. Solicitava o
almejando que o ator chegasse às motivações interiores por meio de uma interpretação que
fosse satisfatória ao esboço externo da cena, realizado pelo diretor. A trajetória visual e
estética adotada pelo encenador russo oferecia ao intérprete um corpo dotado ora por uma
atitude pictórica, ora por uma atitude escultural. Descobre, então, um princípio criativo: “o da
espetáculo A Barraca de Feira, de Aleksandr Blok. A montagem “marca o início de uma nova
113
GUINSBURG, J. Op. cit., p. 37.
114
KRASOVSKII, I. M. apud THAIS, Maria. Op. cit., p. 35.
75
época no teatro russo”115. A cena “é irrompida por uma quente rajada de clowniere metafísica,
mesclando aos seus semblantes algumas figuras distritais da Rússia. Cabe considerar aqui a
vocal sussurrada, amparada por sua aptidão mimética. É relevante apontar também que, nesta
cena”118. Há os primeiros contornos de um teatro que seria realizado a partir do ator, e não da
pela crítica, pela autonomia da direção e, especialmente, o choque das tradições teatrais tão
referência ao desejo de Briússov119: “Da verdade inútil das cenas contemporâneas clamo à
115
RIPELLINO, Angelo Maria. O truque e a alma. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 114.
116
Ibid.
117
Historicamente, somente no século XVIII a Commedia dell‟Arte passou a ser reconhecida por este nome
e antes de tudo significa uma comédia encenada por atores profissionais, associados por meio de um estatuto
próprio de regras, pelo qual os cômicos empenhavam-se em respeitar-se e proteger-se reciprocamente. Segundo
Dario Fo o termo “arte” corresponde a ofício. A Commedia dell‟Arte não tem sua origem na literatura de textos,
mas na prática artística, baseando-se no ajuste entre diálogo e ação, monólogo falado e gesto executado, e nunca
unicamente na pantomima. O enredo possui discursos ligeiros e alegres, não premeditado, mas espontâneo, com
frases postas de maneira inesperada e com metáforas despropositadas, como se fossem ditas para insinuar
assuntos diferentes para parecer tudo uma grande confusão. Os personagens são estereótipos fixos e geralmente
usam máscaras e o ator é o próprio autor, diretor, montador, fabulista que possui uma bagagem grande de
situações, diálogos, gags, ladainhas, arquivadas na memória para serem utilizadas no momento certo. Além
disso, o cômico dell‟Arte é dotado de uma multiplicidade técnica: ele canta, toca instrumentos, dança, domina
truques acrobáticos e de equilíbrio, é malabarista , prestidigitador, mágico, etc. Ver mais detalhes em: FO, Dario.
Manual mínimo do ator. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.
118
THAIS, Maria. Op. cit., p. 37.
119
Meierhold teve contato com diversos artistas e intelectuais, grande parte formadora do simbolismo
russo, que desejavam devolver ao teatro a grandeza sacra perdida, assim como compartilhavam da ideia da
superação dos princípios realistas-naturalistas. Briússov, intelectual que lutou contra as teses do Naturalismo,
escreveu em 1902 o texto Uma Verdade Inútil cujas proposições prezam por uma obra de arte que manifeste toda
a interioridade do artista. Formula a teoria apoiada nas tradições do teatro antigo, que chamava Teatro de
Convenção. Era frequentador das reuniões de Ivánov em sua “Torre”.
76
elementar, a convenção121.
O teatro da “Convenção Consciente” preza por uma cena em que o palco desça ao nível
movimento por meio de uma representação em que a palavra e o gesto sejam guiados cada
qual por seu ritmo próprio, que podem ou não coincidir. O espectador participa do ato criador
esquece por um só instante da sua ação de compor um quadro no palco e que dispõe plástica e
ilusão. O teatro não tem necessidade da ilusão, esse sonho apolíneo” 124, Meierhold busca
exaltar no espectador a “embriaguez dionisíaca” como a fonte renovadora das artes cênicas.
Sendo assim, o “acento deve recair na composição, estilo, forma, ritmo, movimento, saltação
120
Apud MEIERHOLD. In: THAIS, Maria. Op. cit., p. 231.
121
Convenção: “conjunto de pressupostos ideológicos e estéticos, explícitos ou implícitos, que permitem o
espectador a receber o jogo do ator e a representação. A convenção é o contrato firmado entre autor e público,
segundo o qual o primeiro compõe e encena a sua obra de acordo com normas conhecidas e aceitas pelo
segundo. A convenção compreende tudo aquilo sobre o que plateia e palco devem estar de acordo para que a
ficção teatral e o prazer do jogo dramático se produzam”. Para mais detalhes, ver: PAVIS, Patrice. Dicionário de
teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 71.
122
THAIS, Maria. Op. cit., p. 47.
123
GUINSBURG, J. Op. cit., p. 62.
124
MEIERHOLD. THAIS, Maria. Op. cit., p. 237.
77
comportar-se até o fim. Dessa maneira, “o teatro deve desvelar definitivamente sua essência
dinâmica; e, assim, deve deixar de ser „teatro‟ no sentido de „espetáculo‟. Queremos nos unir
Esse pensamento foi orientado por uma tendência cada vez mais forte de retorno às
antigas fontes teatrais. O desejo era recuperar as experiências com a tradição dos teatros
populares, dos barracões de feira, da Commedia dell‟Arte e das atividades circenses, pois tais
práticas teatrais, até o século XVIII, por exemplo, sabia dançar, cantar, dominava as
simultaneamente duas atividades teatrais: em 1908, foi convidado por Vladimir Teliakovski 127
para dirigir os Teatros Imperiais, onde desenvolveu a prática oficial até 1917 e, paralelo a isto,
a formação do novo intérprete. Reconhece-se que Meierhold, de 1908 até o final da vida,
reflete uma formação para o ator e, portanto, sua atividade como encenador está atrelada a um
projeto pedagógico.
Como diretor dos Teatros Imperiais, encenou sua primeira ópera, Tristão e Isolda
(1909), entre outras produções como, por exemplo, Don Juan (1910) e Orfeu (1911).
Don Juan de Molière. Tal obra, para Maria Thais128, sintetiza uma vertente importante para
este período: o retorno às tradições. A cena era reconstruída de acordo com os princípios do
125
GUINSBURG, J. Op. cit.,
126
MEIERHOLD. THAIS, Maria. Op. cit, p. 234.
127
Vladimir Teliakovski (1861-1924) diretor dos Teatros Imperiais de São Petersburgo de 1901 a 1917.
128
THAIS, Maria. Op. cit., p.50.
78
como “uma partitura cênica semelhante a um balé e seus traços de comédia popular, não
cultural, conforme apontado no capítulo anterior. Nessa época, cresce o número de grupos de
artistas dispostos a renovar a arte do seu país e também o interesse pelos gêneros teatrais
populares como uma alternativa poderosa para combater as formas artísticas estabelecidas.
total‟”130 e a influência de Richard Wagner é cada vez mais sentida desde o início do século
XX,
Meierhold, como encenador, elabora em sua obra um sistema próprio de representação “em
129
Ibid.
130
PICON-VALLIN, Beatrice. A cena em ensaios. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 1.
131
THAIS, Maria. Op. cit., p. 48.
132
Ibid., p.73.
79
circenses como um elemento indispensável. Trata-se de conferir ao ator, por meio das
seu corpo cotidiano”134. O caminho a ser realizado por Meierhold, a partir das experiências
esta figura que transita nos cabarés teatrais e encena pantomimas e paródias, revelando suas
imperial.
133
PICON-VALLIN, Beatrice. A arte do teatro: entre a tradição e a vanguarda: Meyerhold e a cena
contemporânea. Organização de Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto: Letra e Imagem, 2006,
p. 28.
134
Ibid.
135
E. T. A. Hoffman (1776-1822) escritor, compositor, caricaturista e pintor alemão. Dedicou-se à
literatura e às artes. Em 1813 entra em contato com o grupo do romantismo ao se fixar em Berlim. No
romantismo alemão foi o mestre da literatura fantástica e influencia sobremaneira o teatro russo pré-
revolucionário.
80
ideias para a cena. Durante sua trajetória, ele detecta a impossibilidade de estabelecer um
novo teatro regido pelas antigas normas, devido ao choque com os atores pertencentes à outra
tradição teatral: seja dos princípios naturalistas do Teatro de Arte de Moscou, ou do teatro
clássico russo.
atividades do Estúdio da Rua Troitskaya nº 18, que funcionava durante quatro dias na semana
das 16 às 19 horas. Era cobrada uma pequena taxa dos estudantes, que cobria as despesas de
funcionamento. Muitos deles, entretanto, não tinham experiência prévia com atuação e no
artistas de diversas áreas, músicos e críticos. O Estúdio, de fato, não funcionava como uma
escola dramática, mas sim como um laboratório para uma grande experiência coletiva em que
136
THAIS, Maria. Op. cit., p. 81 e 82.
137
BRAUM, Edward. Meyerhold – A revolution in theatre. London: Methuen, 1995, p. 126 e 127.
81
para o trabalho criativo. O salão do prédio, por exemplo, era ocupado com um pequeno palco
ator, ou seja, “experimenta uma transformação radical, não apenas dos meios e procedimentos
técnicos que utiliza com o ator, mas, principalmente, na correspondência destes com a
composição da cena”138.
Amor das Três Laranjas – A Revista do Dr. Dapertutto, que relatava a sua prática cênica no
138
CARREIRA, André; NASPOLINI, Marisa (Org.). Meyerhold: experimentalismo e vanguarda. Rio de
Janeiro: E-papers, 2007, p. 58.
82
Estúdio de 1914 a 1916. Ademais, descrevia o conteúdo das disciplinas e seus orientadores,
bem como a estrutura e organização das aulas, a ocupação do espaço, os exercícios, a sua
ficha técnica, etc. O nome da revista foi dado por Vladimir Nikolaievitchii Soloviov 139 e
sintetizava “os temas que predominariam na revista: a obra de Hoffmann e de Carlo Gozzi e
A poética de Carlo Gozzi 141 conduziu o olhar meierholdiano sobre o ator e sua técnica
mundo como um lugar festivo, cheio de imaginação, ilusão, encantamento, e não um espelho
fiel da realidade. A apropriação daquele universo garante o retorno aos fundamentos do teatro
e suas convenções, já que não havia a premissa de uma aproximação política, histórica ou
revista O Amor das Três Laranjas, pois fez parte do conteúdo do curso teórico e prático do
interpretação bastante mitificada”142 e não recuperar uma verdade histórica. Por intermédio
dos estudos das técnicas tradicionais, o novo comediante não apenas era conduzido ao
domínio técnico, mas seria capaz de reconhecer sua capacidade criativa. Nesse sentido, os
articulação das ideias para a cena. Ao afirmar o estatuto artístico da arte do ator, articulando o
139
Soloviov (1887-1941) colaborou com a publicação da Revista O Amor das Três Laranjas e foi o
responsável pelos estudos da técnica cênica da Commedia dell‟Arte no Estúdio da R. Borondskáia em São
Petersburgo. Com vinte e quatro anos estudava filologia.
140
THAIS, Maria. Op. cit., p. 81.
141
C. Gozzi (1720-1806) é dramaturgo, nascido em Veneza na Itália. Escreve obras para trupes de
Commedia dell‟Arte. Em 1761 lança a comédia “O Amor das Três Laranjas”, marcada pelo encantamento e
magia, semelhante aos contos de fadas. Esta fábula dá o nome à Revista do Doutor Dapertutto.
142
THAIS, Maria. Op. cit., p. 87
83
discurso teórico às atividades práticas do Estúdio, a Revista, ainda, coloca a figura do ator
Soloviov foi o responsável pela classe da Commedia italiana e sua trajetória artística
está aliada a Meierhold desde 1911. Este, ao conjugar a aprendizagem teórica, que precedia as
atividades práticas, pôde criar as bases para o seu trabalho posterior. O encenador russo foi
para as suas aulas, construídos a partir de roteiros da Commedia, acompanhados por música.
Tudo isso permitia detectar as capacidades expressivas de cada estudante, o que legitima,
período sem os aportes teóricos de Soloviov” 143. Ele entendia o estudo da técnica italiana
comédia improvisada, o ator deveria encontrar as emoções por meio da ação corporal,
gesto, das poses, da coordenação do movimento do seu corpo no lugar onde a ação é
provocada.
e psíquica dos estudantes e, assim, ressaltar suas habilidades e precisão corporal, a capacidade
de manipulação dos objetos, bem como a composição das personagens. Nota-se que, neste
143
Ibid., p. 117.
144
RIPPELINO. Op. cit., 1996, p. 147.
84
O saltimbanco era um artista popular que, nas praças públicas, quase sempre em
cima de um tablado, fazia demonstrações de habilidades físicas, de acrobacias, de
teatro improvisado, antes de vender ao público objetos variados, pomadas ou
medicamentos. [...] São os representantes de um teatro não literário, popular e
assumidamente satírico e político. [...] O espetáculo dos saltimbancos, na maior
parte das vezes, é baseado numa performance física, e não na produção de um
sentido textual ou simbólico. Os procedimentos se baseiam numa habilidade física
ou burlesca. 145
Borondiskaia. Na edição de 1915, nos livros 1-2-3, p. 79, é publicada uma parte da
sua função educativa como treinamento para a destreza corporal do ator, na medida em que “a
as habilidades acrobáticas até o século XVIII. Atores como Menichelli, que podia fazer todas
as espécies de truques no arame, ou Fiorilli, em idade avançada era convocado para realizar
números acrobáticos de bofetadas no parceiro, ou mesmo Biancolelli, que “fazia quase todos
os saltos, saltos mortais, truques de destreza, de força e de escada de mão que fazem os
saltimbancos”147.
Em outra edição da revista, do mesmo ano, livros 4-5-6-7, são anunciados os artigos:
145
PAVIS, Patrice. Op. cit., p. 349.
146
THAIS, Maria. Op. cit., p. 92.
147
WALLON, Emmanuel (Org.). O circo no risco da arte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p.
127.
85
para o seu programa de treinamento para o ator. Este “segue concretamente as pegadas dos
atores do passado, para garantir a exatidão do seu caminhar (no sentido próprio e figurado)
ulterior, autônomo e firme”149, e, assim, é idealizado como aquele que deveria tomar para si
matriz da atuação.
A divisão das atividades cênicas do Estúdio era composta por três disciplinas de base:
História da Técnica Cênica da Commedia dell‟Arte, ministrada por Soloviov; Leitura Musical
do Drama, oferecida por M. Gnessin; e Movimento para a Cena, a cargo de Meierhold. Além
disso, havia um grupo de orientadores que desempenhava diferentes funções como, por
declaradamente um apaixonado pelo circo e com frequencia esclarecia aos seus alunos os
do Estúdio, um quadro com a temática circense era utilizado por ele para evidenciar as
habilidades de tais artistas, que dominam ao mesmo tempo acrobacia, música e a palavra.
148
Ibid., p. 93.
149
PICON-VALLIN, Beatrice. Op. cit., p. 56.
150
GORDON, Mel e LAW, Ana. Meyerhold, Einsenstein and biomechanics: actor training in
revolutionary Russia. Berkeley California: Mc Farland & Company, 1996, p. 24.
86
Outro elemento que revela o grande interesse do encenador por este tipo de linguagem é o
fato de ele, quase todas as noites, levar seus aprendizes aos pequenos circos de São
Petersburgo.
Meierhold oferecia um grande mérito à arte dos palhaços e solicitava aos seus alunos
que observassem com atenção tais artistas que possuíam um encanto próprio e simplicidade
nas evoluções do picadeiro, relacionando-se com grande satisfação com os demais intérpretes
exemplo, pertencente a uma tradicional família de circo, era um dos frequentadores e chegou
com tais colaboradores, refletem o interesse de Meierhold em aperfeiçoar o corpo do ator. Ele
como tênis, arremesso de disco e vela. Sem contar que “circo e teatro” era um dos temas das
palestras realizadas, que tinham por finalidade valorizar a autonomia dos elementos teatrais.
maioria dos alunos não possuía experiência cênica. Um dos critérios de permanência neste
ambiente devia-se à capacidade de realização das indicações dos professores pelos recém-
definidas sob sua ótica, considerando o aproveitamento que ele esperava. Isto afirma que a
pedagogia meierholdiana se dirigia à cena, “pois os escolhidos eram alunos que denotavam
151
MEYERHOLD, V. O Amor de Três Laranjas – Livro 1,2,3 e 4-5-6, 1915 e Livro 2-3, 1916. In: THAIS,
Maria. Op. cit., p. 415-437.
87
seriam reunidos em dois grupos, devendo submeter-se a uma prova de seleção: os que já
faziam parte, porque ingressaram em anos anteriores, e ainda não haviam recebido o diploma
de fim de curso; e os que entravam pela primeira vez. Além de uma entrevista preparatória, os
pantomimas que contivessem truques acrobáticos. Era observado ainda o talento mimético
pela representação de uma cena sem palavras sobre um tema qualquer, logo, a mise-en-scène
seria instituída e as principais técnicas demonstradas por Meierhold. Outros atributos também
outras linguagens artísticas e suas criações (pintura, escultura, poesia e dança). Por fim, era
história do drama.
estabelecido por Meierhold e que não necessariamente exerciam uma atividade sistemática. O
aspecto que chamava atenção neste espaço eram as particularidades do ensino, pelo fato de
não haver escola na Rússia que reunisse e ensinasse disciplinas como ali: relacionava matérias
das outras artes do corpo, balé clássico e moderno, esgrima, circo, mímica, de modo que
acrobata, um músico, um iluminador, ou seja, que o ator fosse o dono, com total poder sobre o
palco”.153
152
THAIS, Maria. Op. cit., p.103.
153
A. DIEITCH apud THAIS, Maria. Ibid. p. 105.
88
tanto o valor artístico do teatro quanto a sua autonomia em relação às outras artes e à
literatura, afirma a liberdade criativa do ator, que não deveria imitar nem recriar, mas criar e
antagônicos tinha como objetivo “definir a máxima correspondência cênica entre o previsto e
o improvisado”154.
Surge, nesse panorama, o “novo ator” para um “novo teatro”, cuja natureza possuía
luta ao psicologismo, o corpo e sua expressividade são preocupações fundamentais para este
tipo de intérprete e isso é explícito nas aulas de Meierhold, Técnica de Movimentos Cênicos,
ministradas no Estúdio. É durante este período que ele elabora um tipo de treinamento para o
Vsévolod Meierhold durante todo o seu percurso enquanto artista. Em tal contexto, as
princípios de atuação”155. Tal processo estende-se para além dos anos 1920, tanto em suas
154
V. Tcherbakov apud THAIS, Maria. Op. cit., p. 106.
155
MEYERHOLD, V. L’Attore Biomeccanico. Trad. e notas de Fausto Malcovati. Milano: Feltrinelli,
1997, p.17.
89
colocam como centro de suas investigações aqueles que dão vida ao edifício teatral, o ator. O
instituições oficiais dos fins do século XIX provocaram uma reflexão sobre a pedagogia,
sobre a escola, sobre o ensino e o exercício, como também sobre o processo criativo.
Meierhold surge neste ambiente como um dos primeiros a conduzir tal reflexão ao basear o
teatro por meio da revalorização da arte e do ofício do ator, buscando uma teatralidade não
cotidiana.
atores para o trabalho no palco. Eles são educados para aprofundar seu esquema corporal,
exercitar e dominar seus gestos e movimentos para estar na cena. As práticas visam afastar os
padrões de comportamento impostos pela sociedade aos homens e mulheres, além de auxiliar
o homem usa o corpo. Tal utilização é um fenômeno social complexo presente nas condutas
possui sua forma determinada, assim como cada atitude do corpo muda de sociedade para
sociedade e mesmo de sexo para sexo. Dessa maneira, a natureza do processo de educação, o
156
DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
157
PICON-VALLIN, Beatrice. Op. cit., 2008, p. 62.
158
ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: o teatro físico. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 178.
90
treinamento, caracteriza a técnica ao adaptar o próprio corpo para o uso dele e solicita,
O treinamento do ator poderia ser definido como um conjunto de exercícios ou, nas
palavras de Ruffini, “o processo artificial por intermédio do qual o ator se adapta ao meio-
cena”160. Ele seria ainda um trabalho coerente realizado de maneira contínua, prolongada e
porém, na prática pode fazer parte ou ser a preparação do espetáculo, pois não há um processo
lógica de tal processo: sabe-se em direção a que objetivo ele deve tender, ignora-se de que
expressão do intérprete para a composição de uma obra teatral. Não é possível dissociar as
afirmações deste encenador do contexto da vanguarda histórica russa das primeiras décadas
159
Ibid., p. 180.
160
RUFFINI, Franco. Le Milieu-scène: pré-expression, énergie, présence. In: L’Energie de l’acteur,
Bouffonneries, n. 15-16. Lectoure, 1987, p. 47.
161
Ibid., p. 48.
91
social que ele é, ele lhe atribui a obrigação de ser „um homem excepcional‟ (expressão dos
anos 1910)”162.
que recuperam a tradição do teatro, ao movimento que se define em estreita relação com o
espaço em que ele se encontra, com a manipulação de objetos (flexíveis ou rígidos, reais ou
da técnica do ator, ele adota como procedimento a exclusão da palavra como meio expressivo,
pois assim seria possível captar da obra uma expressividade centralizada. Meierhold justifica
A disciplina que Meierhold ministrava no Estúdio da Rua Borondiskaia não por acaso
outras matérias do Estúdio. Assim, balizado nos aspectos técnicos e nas ideias teóricas,
abordados encontra-se, por exemplo, o ritmo como base do movimento cênico, o domínio do
162
PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2006, p. 27.
163
MEYERHOLD, V. O Amor de Três Laranjas, livro 2, 1914. In: THAIS, Maria. Op. cit., p. 398-399.
92
gestualidade do ator oriental, com a sua abstração perfeita, sua definição rítmica de ambientes
espaciais, nos limites entre a dança e o teatro. O ator desejado por ele deveria possuir aptidões
orientais, o ator meierholdiano “deve reunir todos os modelos históricos para uma
gestualidade longe do cotidiano, livre e criativo, ao desafiar as leis da natureza, mas obrigado
do gesto, era realizado e organizado pelo encenador. Dessa maneira, o jogo de improvisações
com a ponta dos pés en-dehors e saltitando sem parar, de modo que esteja sempre pronto a
torna mais explícito quando associado à etimologia da palavra cujo significado diz respeito
de varias culturas teatrais e captados das diversas fontes da tradição, incluindo a Commedia
colaboração de seus alunos, tem o objetivo de ensinar aos estudantes um número de princípios
164
MALCOVATI, Fausto. Op. cit., p. 8-9.
165
THAIS, Maria. Op. cit., p. 147.
166
PICON-VALLIN, Beatrice. Op. cit., 2006, p. 55.
167
Para Maria Thais, a palavra “estudo” tem uma rica tradição no teatro russo e não é possível precisar
quem estabeleceu o conceito. O mesmo termo é utilizado em grande escala por Meierhold, em francês Étude, no
período das experiências pedagógicas no Estúdio da Rua Borondiskaia. Pode ser definido como “uma
improvisação dentro de uma estrutura”. In: Op. cit. P. 148.
93
específicos do movimento cênico, como, por exemplo, a lei de Guglielmo Ebreo di Pesaro 168,
espaço onde se vai evoluir; como se mover em certos padrões (círculo, quadrado ou
triângulo); como a alternância dos números pares e ímpares afeta o estilo de interpretação; a
entre as realidades de espaço e tempo no palco e na vida; a relação entre as bases métricas da
Os estudos foram criados a partir de uma ação dramática real, retirada de temas ou
outras pantomimas e esquetes, os estudos lançaram as bases para o que finalmente se tornou a
Biomecânica. Embora a única documentação detalhada que exista sobre os estudos sejam as
descrições das aulas de Meierhold e Soloviov na Revista O Amor de Três Laranjas e aqueles
168
Guglielmo Ebreo de Pesaro (1420-1484) coreógrafo italiano. Lutou não só para a reforma do balé da
corte, mas, sobretudo, para completar o processo de sublimação dos gestos e posturas que se tornaria marca
registrada da dança de corte européia dos dois séculos seguintes. É autor do Tratado sobre a dança.
169
GORDON, Mel. Meyerhold‟s Biomechanical. In: The Drama Review (T57), março de 1973, p. 73-88.
94
2. Dois Malabaristas, uma Velha Mulher com a Cobra, e o Clímax Sangrento sob
4. A História da Pajem Que Foi Fiel ao Seu Mestre e de Outros Eventos Dignos
poderiam ser interpretadas por Carlo Gozzi; o uso da mise-en-scène para criar a ilusão de mais
Lancret.
populares da antiga Veneza do século XVIII. (Uso de audiência no palco para guiar as
13. O Cabo.
Mestre do Palco Pode Conduzir. Uma bufonada circense. (uso de objetos de cena para
Por meio dos dezesseis estudos, Meierhold tentou criar um treinamento limitado e
preciso que abrangesse todas as situações expressivas fundamentais que o ator encontraria no
ao seu trabalho no Estúdio, associado a uma síntese dos elementos das convenções teatrais,
a utilização dos procedimentos circenses em alguns dos estudos da época e, não obstante, eles
início do que viria a tornar-se a “Biomecânica de Meierhold”. Uma das alunas do Estúdio,
vários exercícios baseados no jogo acrobático, que julgava ser um elemento indispensável pra
o ator.
atuação, que se abrem a uma busca da forma, um controle técnico cujos princípios são visíveis
170
GORDON E LAW. Op. cit., p. 25.
171
Valery Inkizhinov (1895-1973) foi ator e colaborador de Meierhold. Mais tarde se tornou professor de
Biomecânica do Laboratório Estadual Superior de Teatro (GVTM).
172
Ibid. p. 26
173
PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2006, p. 57.
96
num corpo treinado em diversas modalidades esportivas e acrobáticas e organizado nas aulas
de movimento cênico. Nessa prática, solicita-se constantemente do corpo artificial uma linha
dupla de comportamento no ritmo e no desenho do espaço, bem como nos temas e estilos: a
e apenas foi utilizado por Meierhold nos anos de 1920, em seu Laboratório de Técnicas do
1910 sobre a dança e a arte do ator por meio das experimentações com a Commedia dell‟Arte.
bibliográfico do teatro oriental, da observação e da análise dos grandes atores dos teatros
ocidentais de sua época, como também por meio da observação das técnicas das diferentes
disciplinas circenses.
prática pedagógica. Isto denuncia a impossibilidade atual de uma análise conclusiva sobre sua
obra, apontando diversas lacunas relativas à perspectiva do trabalho do ator. No entanto, o não
artística. Contudo, no final de sua vida, Stanislávski, adotando como referência suas
174
MALCOVITI, Fausto. Op. cit., p. 8.
97
Sistema175.
de sua trajetória artística e parecia ser ao mesmo tempo grandiosa e modesta. Por um lado,
habilidades essenciais para o movimento cênico e, por outro, “ele relegava suas próprias aulas
movimento corporal que ali eram ensinados, tais como acrobacia, dança moderna e
176
„eurhythmics‟” . A palavra Biomecânica reflete o ardor revolucionário com paixão por
racionalização do tempo por meio dos movimentos corporais dos trabalhadores das indústrias,
psicólogo americano William James (1842-1910), que investiga a natureza mais íntima das
emoções e conclui que a consciência emocional e seus transitórios estados estavam ligados
diretamente à estrutura física do corpo, logo, a maneira como o corpo responde aos estímulos
é pela emoção, que precede a percepção mental dela. James fala: “Vejo um urso, antes tremo,
depois tenho medo”, substituindo por “Vejo um urso, antes tenho medo, depois tremo”.
175
Ver mais em: STANISLÁVSKI, Constantin. Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1989.
176
GORDON, M. Op. cit.
177
Ibid. p. 9.
98
comportamento do homem pode ser explicado pelo padrão de reflexos produzidos pelas
é justamente o construtor que ordena e concebe todas as funções da realização do projeto; A2,
contudo, é o corpo do ator que organiza e dá ordens ao A1. Tal formulação, alegoricamente,
almeja uma liberdade de criação que deve ser conquistada pelo ator, por meio de um intenso
processo de treinamento.
ator, cujo pensamento, segundo tal concepção, é submetido à plasticidade. Primeiro surge o
emoção, para tornar possível a comunicação. Nessa lógica, é por meio de uma boa posição do
importante que o ator deve possuir ao reduzir ao máximo o tempo de passagem pelos
de interpretação do ator que são formados por três momentos preciosos: em primeiro lugar a
178
CHAVES, Yedda Carvalho. A biomecânica como princípio constitutivo da arte do ator. 2001. Tese
(Mestrado em Artes – Artes Cênicas) Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2001, p. 59.
99
Tudo isso só é possível a partir do uso correto de um corpo treinado. Dessa maneira,
a Biomecânica deveria instruir o “novo ator” nos elementos essenciais do movimento cênico.
No entanto, Meierhold esperava que seus praticantes fossem além do virtuosismo técnico. Ele
correta adequação do corpo no espaço influi sobre a emoção: “Quando nós falamos da
movimento acrobático não é o suficiente, dizia Meierhold: “através do salto deve-se passar
alguma outra coisa de conhecido para todos, de conhecido no profundo, deve-se passar a
vida”.180
extraída das atividades do circo, da dança e do teatro – uma espécie de ginástica cênica –, que
estudos que foram descritos por Mel Gordon 181 a partir de relatos de participantes e
a Pedra, A Bofetada no Rosto; Golpe com a Adaga; Construindo a Pirâmide; Golpe com os
Pés; O Salto Sobre o Peito; Soltando o Peso; O Cavalo e o Cavaleiro; Passando uma Rasteira;
desta ginástica para a cena a organização do “material”, representado pelo corpo do ator, para
179
MEYERHOLD, V. Relação sobre o sistema e os métodos de interpretação no Instituto de História das
Artes de Leningrado, 192. In: MALCOVATI, F. Op. cit., p. 20.
180
Ibid., p. 13.
181
GORDON, M. Op. cit.
182
A teoria formalista na cena russa abarcou, conforme esboçado no capítulo anterior, muitos tipos de
teatro que dividiam princípios específicos não somente sobre a encenação, mas sobre cenografia. Meierhold
100
transformar sua maneira de se movimentar no palco. Para isso o ator deveria dispor de uma
organizador do material. O ofício do ator é uma coisa complicada. A todo o instante o ator é
compositor”183.
enquanto organizador do próprio material –, do corpo que deixa de ser apenas “um corpo”
para reafirmar a sua função cívica, princípio ético, e que fundamenta a filosofia, tanto ética
Ele escrevia trabalhando, experimentando, falando, caminhando: “mas seu livro sobre a
Biomecânica permaneceu em suas páginas mentais”185. Tais pesquisas apresentam alguns dos
de um acrobata circense.
na lei segundo a qual “se a ponta do nariz se move, todo o corpo também se move. Todo o
adere ao trabalho baseado nas tipologias dos personagens, fincados nas expressões populares. Outra referência
importante que o formalismo russo abarca é o conceito de estrutura, que também caracteriza o pensamento sobre
o corpo. É necessário não só colocar no primeiro plano esta estrutura rítmica como dominante, como também,
deformar a palavra, desprovendo-a de significados semânticos, formatando-as em uma sonoridade específica e
em componente pictórico.
183
MEYERHOLD, V. Princípios da Biomecânica. In: MALCOVATI, F. Op. cit., p. 77. Ver Anexo I desta
pesquisa.
184
CHAVES, Yedda C. Op. cit., p. 45.
185
MALCOVOTI, V. Op. cit., p. 7.
186
Ver Anexo I, p. 169-175.
101
realização de qualquer ação acrobática a tonificação das partes do corpo. Todas elas atuam no
deve atuar em um salto mortal, porque o “abandono” de qualquer parte durante o movimento
biomecânica não tolera nada de casual, tudo deve ser feito conscientemente, com cálculo. A
todo o momento o ator deve estabelecer e saber à perfeição em que posição se encontra seu
execução. Isso para qualquer correção da postura corporal durante o seu desenvolvimento,
elementos, o acrobata deve estar consciente de cada parte do corpo em relação ao espaço,
onde colocar a mão e o pé durante a execução do movimento, se a perna está esticada, onde e
como cair, quantos passos caminhar para realizar o salto. O cálculo deve ser preciso e, para
tal, é solicitada algo semelhante a uma “calma imperturbável” e “perfeito equilíbrio”, já que
se está mostrando em cena, por meio da plasticidade que os corpos assumem. O jogo do
rakursy é justamente esta habilidade de colocar e deslocar o corpo no espaço cênico, ou seja,
as variações visuais da forma que o corpo assume numa determinada posição para o
espectador. Assim como para o acrobata, que a todo o momento revela diversas perspectivas
do seu corpo colocado em situação pouco comum ao espectador, o ator meierholdiano “deve
dar conta imediatamente de cada mudança de posição do seu corpo em cada mínima parte” 190.
187
Ver Anexo I, p. 169.
188
Ver Anexo I, p. 173.
189
Ver anexo I, p. 170.
190
Ver anexo I, p. 171.
102
O acrobata deve possuir um amplo domínio do corpo e isto é consolidado por meio do
seu treinamento e exercícios de preparo físico. Uma boa condição física regulamenta a boa
atuação do circense. Por outro lado, Meierhold requer do ator que cada tarefa venha
programada com precisão em conexão ao espaço cênico para que o movimento esteja
treinamento”191.
e ao ator meierholdiano. De modo algum se deve esgotar toda a reserva de material – o corpo
– de que se dispõe, o que implica uma precisão e agilidade característica do corpo acrobático.
todos os expedientes técnicos dos quais dispõe para realizar um dado propósito” 192. A
como um movimento que tem seu ponto de partida no sentido contrário ao seu
desenvolvimento e tem como objetivo preparar o ator para a execução da ação. Em paralelo,
flac195, por exemplo, o acrobata deve primeiro flexionar joelhos e tronco, deslocando seu
centro de gravidade para baixo, para criar as alavancas para o salto. O princípio da oposição,
otkaz, na Biomecânica tem uma função ampla e complexa e, portanto, indispensável ao ator
191
Ver anexo I, p. 172.
192
Ver anexo I, p. 174.
193
Ver anexo I, p. 175.
194
Em russo significa recusa.
195
Flic-Flac é um movimento preparatório para acrobacias. O ginasta leva os braços ao solo ao mesmo
tempo em que seus pés deixam o solo, usando um grande impulso dos ombros. Pode ser executado para a frente
ou para trás
103
freio”196.
ator dotado de uma polivalência técnica, articulada em função da cena, pretendia consolidar
ator, que num primeiro momento deveria voltar-se para fora do teatro (para o equilibrista,
palhaços, trapezistas... para os artistas de circo) e adquirir os saberes, técnicas e disciplina que
O teatro começará a se tornar algo de grande quando o ator dotar de uma nova forma
o material que lhe foi dado, uma nova forma que a natureza não deu ao homem e
que só o ator pode criar em si, cinzelar e mostrar. Se o ator observasse mais amiúde
197
o trabalho do acrobata!
Borondiskaia nos anos de 1910 ele já levava, como exposto anteriormente, os alunos quase
todas as noites aos pequenos circos de São Petersburgo, na década seguinte sua evolução
teatral passa pelas atividades do picadeiro, pelo teatro de praça pública que, como será visto
mais adiante, o novo contexto político e social russo passa a defender e desenvolver. Dois
meses antes de outubro de 1917, o encenador russo se questiona: “Por que então vocês,
acrobatas russos, não vão à direção deste povo que tanto lhes espera?”199
196
CHAVES, Yedda C. Op. cit., p. 131.
197
MEYERHOLD apud PICON-VALLIN. Op. cit., 2006, p. 28.
198
Texto originalmente escrito por V. E. Meierhold e publicado na Revista Eho Cirka, n. 3, p. 3, em agosto
de 1917, não reeditado. Ver tradução para o português em Anexo II, p. 176-181.
199
Ver Anexo II, p. 180.
104
encenador defendia o teatro popular e o circo, que ao romper com o edifício teatral deveria
ganhar as ruas. O teatro desejado por ele quer ficar “mais próximo do circo encarado sob o
ângulo do feito esportivo do que da magia das máscaras” 200. Isso porque o tempo era outro,
assim, a recuperação do circo deve-se por seu apelo ao seu dinamismo, ao gosto do risco, pela
flexibilidade e habilidade do corpo humano que triunfa sobre qualquer limitação ou bloqueio
artigo, consagrado aos artistas do picadeiro, ele descreve uma multidão de espectadores, em
partidário de Lênin. Enquanto isso, do outro lado da rua, um malabarista cativa toda atenção
do público com o seu rato adestrado, espadas, mágicas, argolas e firulas. Instala-se uma zona
malabarista de rua com suas habilidades vertiginosas. Sem dúvidas, para Meierhold, é a força
deste circense que encanta o público e vence o declamador. A nova época exige audácia e
uma coragem imensa, o povo russo carece de distração: “Veja como seu público (os de teatro
de inverno) se entedia, como se convalesce, como ele parece esperar alguma coisa”203. Um
público que esmagado pelo tédio não conhece mais a alegria. Meierhold vê nas manifestações
circenses a possibilidade de fazer fluir no homem “dentre o nosso sangue o doce veneno da
audácia”204.
Este artigo traduz ainda, uma ode ao balagan, que siginifica “barraca de feira de
atrações” em russo, que antes de 1917 tinha por consequência leveza contundente, formas de
200
PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2008, p. 7.
201
Ver Anexo II, p. 178.
202
Ver Anexo II, p. 176.
203
Ver Anexo II, p. 179.
204
Ver Anexo II, p. 179.
105
balagan oferecia a Meierhold a liberdade artística tão desejada, bem como representava a
imagem dual da condição humana. Quando criança, ele frequentou as barracas de Penza, sua
suas obras, sobretudo, nos anos de 1920, “com suas marionetes em tamanho natural, seus
malabaristas orientais, Kalmouks (povo de origem mongol) mudos com serpentes amestradas,
realejos com papagaios, ou ainda passos de gigante em que os jovens voam pelos ares” 205.
dias festivos, em terrenos baldios e relativos às feiras nas cidades e nos burgos, onde podem
ser vistos acontecimentos completamente fora do comum. Ela era apenas uma parte de uma
tradição cultural popular russa que incluía bazares e bufões, trovadores, vendedores
e balanços). Por volta do século XIX, no entanto, muito dessas características desapareceram,
ou melhor, fundiram-se com o circo, às viagens dos prestidigitadores, ao marketing das pulgas
e, ulteriormente, ao cinema206.
bichos”, realizado por domadores, exibição de animais de circo e combate entre animais; o
acrobatas. Em muitos aspectos, tais diversões eram cópias dos modelos das feiras da Europa
Ocidental, mas tudo o que veio do exterior foi imbuído das especificidades do “espírito
russo”207.
205
PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2008, p. 3.
206
BOWLT, Jonh E. Moscow and St. Petersburg in Russia’s Silver Age. Londres: Thames and Hudson,
2008, p. 262.
207
Ibid., p. 262.
106
na Rússia, conserva o tom sintético, em espetáculos curtos entre cinco e dez números. Picon-
Vallin208 ainda afirma que opera entre eles uma fusão mais estreita, graças aos atores que são
liberal que se dedica à criação de “teatros populares”, com fins didáticos e que se direcionava
para as classes de menor renda. Estes espetáculos gratuitos favorecem a marginalização dos
balagany, achatados por uma cultura dominante que vigia e censura. Nesse sentido, se por um
lado desaparecem as barracas de feira de atrações, por outro, conforme visto no capítulo
grande número de atores do balagan, enquanto outros mudam para os parques de diversão.
Também nessa época, apesar de sufocado por estes teatros “populares”, o balagan “reaparece
nos artistas, no âmbito de uma visão estética que se interessa por suas figuras exóticas numa
um teatro que instiga à ação, à luta, e renova as energias do público para as dificuldades da
vida cotidiana.
208
PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2008, p. 3.
209
Ibid.
107
em russo nesta época. Ela foi proclamada por toda a escola meierholdiana, especialmente após
1917, exaltando em primeiro lugar toda a alegria do picadeiro que devolveria para o palco o
circo. A imagem do artista circense como fonte do renascimento, aquele que salta e não cai, o
em novembro de 1920, Meierhold recomenda instalar trapézios em cena para que acrobatas
pudessem trabalhar.
O porta-voz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico isolado
nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolução cresce e
se renova constantemente. Por isso o elemento corporal é tão magnífico, exagerado e
infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e afirmativo. [...] A abundância e a
universalidade determinam por sua vez o caráter alegre e festivo (não cotidiano) das
imagens referentes à vida material e corporal. O princípio material e corporal é o
princípio da festa, do banquete, da alegria, da “festança” 211.
Tudo isso revela um procedimento chave presente no teatro popular e no circo, que vai
210
Ibid., p. 7
211
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François
Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 1993, p. 17.
212
O grotesco no teatro de Meierhold é um procedimento de grande complexidade. Ele o reconhece como
uma etapa fundamental no princípio de estilização, que adota o método rigorosamente sintético. O grotesco cria
o sentido de inverossimilhança ao associar os polos contrários e ao exacerbar conscientemente as contradições.
Meierhold afirma: “O essencial no grotesco é a constante tendência que o artista tem em transportar o espectador
de um plano, apenas alcançado, para um outro plano, absolutamente imprevisível e inesperado”. MEYERHOLD,
V. La Rivoluzione Teatrale. Tradução e organização de Giovanni Crino. Roma: Editori Riuniti, 1962, p. 123.
213
Ibid., p. 21-22
108
por meio da restauração de uma atuação sintética, audaciosa, corajosa, repleta de alegria e
consciente de suas habilidades. Para tanto, solicita o retorno do teatro de feira, exige o
artistas de circo que eles ofereçam a sua arte “a estes que têm sede do seu excentrismo, que
desejam o canto do seu corpo maleável, que param à sua frente, suplicando para que lhes
deem um espetáculo, apesar de todo seu tédio na reza para o pão de cada dia?”215
Meierhold se empenhou em criar uma nova cultura corporal o ator por meio das
técnicas circenses; seu desejo era desenvolver o ator acrobata, malabarista, equilibrista, o ator
sua empreitada, buscava estruturar não só um corpo saudável, ágil, habilidoso, forte e
O circo é uma casa onde a arte da educação física, da beleza física, eleva-se em
grande altura. [...] Um corpo saudável, um espírito também saudável... Quanto mais
intensa é a luta espiritual que é preciso sustentar, tanto maior é a força física que se
necessita. Organizaremos escolas de onde sairão corpos belos e cheios de ânimo, um
rosto radiante216.
engajado na luta revolucionária. A construção do corpo esportivo e subversivo viria por meio
do processo de “cirquização” que ganha potência nos anos 1920, porém afunda suas raízes nas
décadas precedentes. A virtuose, a força e a precisão do jogo físico do acrobata, sem qualquer
trato psicológico, abrem espaço para a criatividade corporal do novo ator. Meierhold
reconhecia nos artistas de circo a multiplicidade de técnicas, visto que cada um possui
214
Petrouchka é um ballet cuja música foi composta pelo russo Igor Stravinsky e coreografado por Michel
Fokine. A história é sobre um fantoche tradicional russo, Petrouchka, feito de palha e com um saco de serragem
como corpo, que acaba por tomar vida e ter a capacidade de amar. O teatro de marionetes era uma referência
importante para Meierhold na medida em que colabora para a expressividade do gesto, precisão, beleza do
movimento e síntese em oposição à psicologia das personagens.
215
Ver Anexo II, p. 181.
216
MEIERHOLD apud FEVRALSKI, A. Meyerhold y el circo. In: El circo soviético. Organização: A.
Litovski. Moscú: Editorial Progreso, 1975, p. 319.
109
sentido, Meierhold requer um ator que volte a ser acrobata, tanto no nível da formação como
no da criação.
A polifonia teatral experimentada pelo encenador russo, “no qual os elementos que
compunham a cena perdiam sua função ilustrativa e ganhavam autonomia, podendo inclusive
teatral, ele requeria uma cena constituída por pequenas estruturas independentes, que quando
As habilidades circenses era um dos recursos expressivos para tal mudança e pode ser
visto não só como procedimento técnico durante a formação do ator, mas também exposto em
treinamento atlético para o ator, aproximando-os aos funâmbulos e acrobatas, ele anuncia a
Biomecânica.
Goethe dizia que o ator devia assemelhar-se a um funâmbulo. Claro, não entendia
dizer que um ator que interpretasse Hamlet devesse dançar sobre uma corda. Mas, é
justamente em virtude dele poder assemelhar-se a um boneco, fantoche, que ele
pode obter efeitos que outro ator nunca obteria 219.
217
THAIS, Maria. Op. cit., p. 154.
218
Ibid., p. 169.
219
MEYERHOLD, V.E. Aulas no GVYTM, 1921. In: MALCOVATI, F. Op.cit., p. 61
110
Tudo isso é resultado de uma investigação nos anos de 1910 que prenuncia as
realizações de Meierhold durante o período soviético. Por outro lado, o encontro com
eram muitas as suas afinidades artísticas, estéticas, políticas e ideológicas. Com Mistério-
Bufo, escrito por Maiakóvski, em 1918, Meierhold “encontra, enfim, uma expressão concreta
220
PICON-VALLIN, Beatrice. Vsevolod Meyerhold, Escrits sur le theater, vol. II. Paris: La Cité –
L‟Age d‟homme, 1975, p. 9.
111
CAPÍTULO III
Até aqui esta pesquisa mapeou a aproximação entre o circo e as demais linguagens
artísticas na Rússia, desde a virada do século XIX para o XX até os anos que antecederam a
cubo-futurista. Movimento que foi embebido pelo ideal do “homem novo”, que já se
se acentuou a partir de 1917. Toda esta renovação que se processou nas linguagens artísticas
foi sugada pela cena pós-revolucionária, que resultou numa junção de novas propostas e
práticas teatrais. Os primeiros anos após a Revolução Russa, portanto, foram regidos “sob o
Reconhece-se que, nos anos de 1920, tendo em vista as experiências artísticas das
décadas anteriores, houve uma vasta apropriação e utilização das artes circenses pela cena
teatral223. O encenador Vsévolod Meierhold não ficou alheio a isso. Mesmo antes da
221
A arte abstrata tende a eliminar a relação entre a realidade e a tela, entre planos e linhas, as cores e a
significação que esses componentes podem suscitar no espírito. Neste caso, a acepção do quadro depende
intimamente da cor e da forma, elementos de maior expressividade, quando o artista rompe com os elos que
conectam a sua obra à realidade percebida ou visível, ela passa a ser abstrata. O pintor russo Wassily Kandinsky
(1866-1944), por exemplo, queria pintar sentimentos, desejos e paixões da alma. Ele oferecia mais valor ao
espiritual das coisas do que o modo como elas são vistas e assumiu o princípio de liberdade do artista para
expressar sentimentos interiores.
222
CAVALIERI, Arlete. O teatro de Maiakóvski: mistério ou bufo?. In: Teatro Russo: percurso para um
estudo da paródia e do grotesco. São Paulo: Humanitas, 2009, p. 266.
223
É extensa a lista de encenadores que utilizaram os procedimentos circenses para composição das suas
obras. Um dos casos são os espetáculos dirigidos por Sierguéi Radlov, no Teatro da Comédia Popular, em 1920-
1922, que utilizavam artistas de circo em suas encenações, como o acrobata A. Serge Aleksandrov, por exemplo,
que em A macaca delatora interpretava a macaca, pendurado no trapézio, e na perseguição final subia ao topo da
sala balançando sobre os espectadores. Cabe mencionar também que neste Teatro apresentavam-se “comédias de
circo” (“tzírkovie comiédii”) como: O filho adotivo, O amor e o ouro e O Sultão e o Diabo. Dentre outras
experiências, destacam-se as de Grigóri Kózintzev e Leonid Trauberg cujos espetáculos se apoiavam no credo do
113
Revolução, o circo já era uma de suas paixões – vale ressaltar as referências ao picadeiro no
Estúdio da Rua Borondiskaia – ;“depois de 1917 muitos momentos de sua evolução teatral
passam pelo circo, pelo teatro de praça pública, que o novo contexto político e social deve
defender”224. O encontro com Vladímir Maiakóvski, em cujas obras “o que chama mais
atenção é sempre a feliz junção das experiências modernas com a tradição do teatro
uma dramaturgia.
primeira peça de Maiakóvski, intitulada Vladímir Maiakóvski: uma tragédia, e, sem dúvida,
detectou afinidades com a obra vista. Meierhold, ao longo de sua carreira, esteve interessado
no trabalho de novos dramaturgos. Apesar de sua grande admiração por Aleksandr Blok, foi
com Maiakóvski que o diretor estabeleceu a relação mais frutífera, e, ainda que esta parceria
tenha produzido apenas três espetáculos nos anos de 1920, ela pode ser considerada como
fundamental para o contexto artístico da época226. Não se sabe precisar se foi no ano de 1915
Borondiskaia, onde lia seus poemas para os estudantes. Em 1917, a amizade amadureceu, pois
como declarava o próprio Meierhold havia uma concordância imediata entre ambos sobre
excêntrico americano; eles organizaram, em 1922, o Estúdio Dramático FEKS, a Fábrica do Ator Excêntrico que
visava “[...] transformar o teatro numa síntese de rixas, algazarras, acrobacias, perseguições, num jogo de
incessantes transformações „tchetchotka‟ (dança rítmica, espécie de „ponta e salto‟) como base do novo ritmo”.
Ver mais em: RIPELLINO, Angelo Maria. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1971,
p. 144.
224
PICON-VALLIN, Beatrice. Vsevolod Meyerhold, Escrits sur le theater, vol. II. Paris: La Cité –
L‟Age d‟homme, 1975, p. 8.
225
RIPELLINO. Op. cit., 1971, p. 224-225.
226
Esta pesquisa não pretende deter-se e analisar extensamente a parceria entre Meierhold e Maiakóvski,
bem como as obras produzidas. Há diversos estudos sobre isto. Ver mais em: LEACHED, Robert. Meyerhold
and Maiakovsky. In: Vsevolod Meyerhold. New York: University of Cambridge, 1989, p. 152-167.
114
feira. Nota-se que grande parte da atividade teatral do poeta cubo-futurista desenvolve-se
grotescos, na partição mecânica dos personagens em heróis e clowns, nos trechos polêmicos,
pintura e teatro. Esses dois artistas russos, junto a outro grupo de artistas, poetas, pintores,
músicos e diretores de teatro também buscavam a transformação nas artes, motivados pela
um novo mundo que, então, surgia a partir da recém-criada sociedade soviética. A sua
personalidade não só como artista, mas como homem de seu tempo, converteu-se quase num
O ano de 1917 é um claro divisor de águas para a Rússia. No que se refere aos caminhos
desta pesquisa, não se pode desconsiderar a repercussão deste período na política, na cultura e
no Teatro Imperial, por exemplo, Meierhold acolhe a Revolução de braços abertos, pois
“sempre teve uma percepção muito aguda, muito espontânea dos acontecimentos, e é nisto
227
Ibid., p. 234.
228
CAVALIERI, Arlete. Op. cit., 2009, p. 263.
115
que podemos ver seu maior engajamento” 229. Neste movimento, em 1918, com colaboração
A partir do século XV, a Rússia adotou o regime político czarista, de caráter despótico,
que se converteu em poder onipresente e decisivo. O czar (ou tzar), monarca autocrata,
governava amparado socialmente pela nobreza rural. O Estado regido pelo czarismo foi
formado originalmente por Ivan, o Grande; Basílio III e Ivan, o Temível; entre 1462 e 1584,
sendo que o último coroou-se imperador supremo e intitulou-se “czar autocrata eleito por
Deus”.
A sociedade russa foi obrigada a unir-se em torno do czar para defender sua terra natal
e, assim, o que restava era aceitar a organização do regime. O século XIX prenunciava
229
PICON-VALLIN, Beatrice. Op. cit., 1975, p. 7.
230
Nossa marcha, 1917. In: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. Tradução: Haroldo de Campos. São
Paulo: Perspectiva, 2008, p. 83.
116
revoltas contra o poder; dentre elas, a geração da intelligentsia, marcada pela tomada de
Ferro231 afirma que por muito tempo o atraso econômico e as tentativas fracassadas de
em sua situação, os trabalhadores da cidade ou do campo eram animados por uma consciência
revolucionária mais viva que em outros países. Como tinha chegado tarde à cidade, a classe
operária, “marcada na carne pelo longo martirológio do campo russo” 232, permanecia como se
Uma grande parte do povo russo opunha-se ao sistema de governo dos seus dirigentes
e reconhecia a necessidade de derrubar o czarismo – “era para ele um dever tão sagrado como
a defesa da pátria”233. Foi sob tal perspectiva que, em 1905, brotou uma grande sublevação
que teria por objetivo fundar uma nova sociedade. Elaborou-se uma petição234 ao czar Nicolau
II, organizada pelo padre Gapon235, em nome dos trabalhadores urbanos e rurais, para ser
foram “metralhados à queima-roupa por milhares de soldados. Durante a noite, trens repletos
231
FERRO, Marc. A revolução russa de 1917. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 16
232
Ibid.
233
Ibid., p. 15.
234
Neste documento exigiam liberdade de imprensa, tanto falada quanto escrita, bem como liberdade de
associação sindical; direito de greve; o desapossamento de grandes latifúndios em virtude das comunidades
camponesas; educação gratuita e obrigatória; convocação de uma Assembleia Constituinte; 8 horas de jornada de
trabalho.
235
Padre George Gapon (1870-1906) padre cristão ortodoxo russo, quem liderou a manifestação de janeiro
de 1905. Depois da repressão do czar aos manifestantes, o padre Gapon redigiu um documento pedindo-lhe
perdão; o czar, em troca, pediu que ele informasse à Okharana (polícia secreta) tudo o que soubesse sobre o
Partido Socialista Revolucionário, no passado e suas relações atuais, pois sabia que o padre tinha envolvimento
com este grupo. Gapon foi enforcado por trabalhadores, membros do partido, que descobriram a delação.
117
No dia seguinte houve greve geral e, em São Petersburgo, entre janeiro e fevereiro
o objetivo de arcar com o período da greve. Outros Soviets surgiram pelo país, o que garantia
uma ação social estável e segura. Em outubro de 1905 ocorre uma greve geral nacional na
Rússia, estruturada pelos Soviets, movimento operário e comitês de fábrica. O regime czarista
armada é organizada pelos operários de Moscou, mas, em dezembro de 1905, ela é destruída
pelo exército.
ações determinantes para a Revolução. Tais facções, resultantes do Partido Operário Social-
Democrata237, foram dividas em duas correntes distintas num dos congressos do partido, em
1903, com o objetivo de criar uma organização unida. Na ocasião, um jovem intelectual
utilizando o pseudônimo de Lênin238 expôs suas posições políticas: somente a classe operária,
derrotado o czarismo, poderia ser instituído um governo provisório e centralizado. Lênin teve
o apoio da maioria, mas logo o grupo se dividiu em dois: o que obteve o maior número de
236
TRAGTENBERG, Maurício. A Revolução Russa. São Paulo: Editora Unesp, 2007, p.81.
237
O Partido Operário Social-Democrata foi fundado em 1898 para reunir as diversas organizações
revolucionárias em um mesmo partido. Seus membros estavam vinculados às teorias de Karl Marx (1818-1883)
e Friedrich Engels (1820-1895) e acreditavam que o proletário concentrava o real potencial da revolução. Ver
mais sobre este partido e a organizações dos demais em: Ibid., p. 83-86.
238
Nome de nascimento Vladimir Ilyitch Ulianov (1870-1924), depois chamado de Vladimir Ilyitch Lenin.
Foi um dos chefes de Estado da Rússia e revolucionário. Foi também um dos responsáveis pela Revolução Russa
de 1917. Influenciou teoricamente os Paridos Comunistas pelo mundo, o que resultou na criação de uma corrente
intitulada leninismo.
239
Os bolcheviques eram liderados por Lênin e seus personagens fundamentais eram Trotski, Lunatcharski,
Kamenev, Zinoviev, Radek. Eles defendiam que os trabalhadores somente chegariam ao poder por meio da luta
revolucionária. “Paz imediata e revolução socialista mundial eram seus objetivos principais. No plano interno,
implantação da ditadura do proletariado, dominação dos Soviets e sindicatos e dissolução da Constituinte”. Ver
mais em: Ibid., p. 86.
118
outro, a minoria, foi chamado de mencheviques240 e era liderado por Julius Martov (1873-
1923).
convocar eleições para a Duma241 (parlamento), que estava subordinada aos poderes do czar e
tinha caráter consultivo. Outro fato importante que antecede a Revolução de 1917 ocorreu em
1914, quando a Rússia envolveu-se na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e sofreu uma
grande derrota no combate contra os alemães. A Rússia não estava preparada para enfrentar
uma guerra de longa duração e por não possuir um corpo suficiente de oficiais de reserva, o
exército sofreu uma desintegração considerável e logo os soldados russos, descontentes com o
seu governo, não viam motivos para seguir com a guerra. “A miséria e a fome levavam esse
soldado, filho de camponês ou camponês, a lutar pela paz e pela terra. Soldados se
grevistas saíram em passeata com o apoio dos bolcheviques e quase todas as fábricas entraram
240
Os mencheviques, liderados por Martov, Martinov e Axelrod, defendiam que os trabalhadores podiam
conquistar o poder participando normalmente das atividades políticas. Pregavam que o início efetivo da ação
revolucionária só seria possível com o desenvolvimento capitalista e o surgimento de suas contradições. Depois
da experiência de 1905, os mencheviques tiravam a conclusão de que “era necessário ajudar a burguesia a
derrubar o czarismo e, por isto, não cumpria „assustá-la‟. Posteriormente, se deveria preparar o caminho para
uma revolução socialista e prevenir toda a tentativa da burguesia de praticar uma política antioperária”. Ver mais
em: FERRO, Marc. Op. cit., p. 20.
241
Ver mais sobre o papel da Duma no processo revolucionário em: Ibid., p. 26-30.
242
TRAGTENBERG. Op. cit., p. 87.
119
líder dos Soviets244, e conta com o apoio dos mencheviques, que não vislumbravam outra
alternativa. Para este grupo não era possível lutar imediatamente pelo socialismo, e não apoiar
como elas se manifestaram com a Primeira Guerra Mundial 245. Com a notícia da queda do
czar, Lênin volta a Petrogrado, é ovacionado pelos operários e declara “todo poder aos
Soviets”.
atingir seus próprios objetivos, “que quase sempre eram opostos aos das classes populares.
[...] a classe burguesa não pretendia deixar declinar o esforço da guerra, opondo-se por isto à
primeira das reivindicações operárias, as oito horas. Dizia-se também incapacitada para elevar
243
Não é interesse desta pesquisa analisar exaustivamente os processos da Revolução de 1917, que foram
demasiadamente complexos, mas contextualizar o período e as principais mudanças que transformaram a arte
russa e o teatro de Meierhold. Sobre o estabelecimento e o regime do Governo Provisório, após a Revolução de
Fevereiro, ver: Ibid., 34-83.
244
Nesta ocasião, os Soviets estavam presentes por toda a Rússia e eram quase todos dirigidos por
socialistas moderados (mencheviques, socialistas-revolucionários). Eles julgavam que a Revolução era
essencialmente burguesa e consideravam que qualquer participação no poder seria prematura. A função dos
Soviets era fiscalizar a ação governamental, para que ela exercesse as reformas democráticas que consolidaria,
mais tarde, o regime socialista. Os bolcheviques, minoritários, optaram qualificar os Soviets como um gérmen do
futuro Estado Socialista.
245
Para Carr, Lênin era um discípulo de Marx e, nas vésperas da Revolução, sua contribuição à economia
do socialismo foi uma exaustiva e minuciosa análise da última fase da economia capitalista. Ver mais sobre os
programas que influenciaram a economia socialista russa em: CARR, E. H. Historia de la Rusia Soviética: La
Revolución Bolchevique (1917-1923) – El orden econômico. Madrid: Alianza Universidade, 1987, p. 15-38.
246
Ibid., p. 37.
120
os salários e contrária aos comitês de fábricas”247. Lênin esperava a oportunidade precisa para
com uma esmagadora maioria de camponeses, que desejavam uma distribuição melhor das
terras e a erradicação da fome248, além disso, o povo russo esperava uma reação do governo
operariado as teses defendidas por Lênin tiveram grande repercussão. Assim, o partido
bolchevique foi ganhando cada vez mais espaço entre operários das grandes fábricas,
camponeses e soldados249. Diante de tal cenário, Lênin recebeu ordem de prisão e buscou
refúgio na Finlândia; entrementes, o general Kornilov tentou armar um golpe de Estado para
restabelecer o czarismo. O Governo Provisório buscou o apoio dos Soviets e dos bolcheviques
capazes de fazer frente à contrarrevolução. Com a vitória sobre Kornilov, o prestígio popular
manifestaram sua adesão aos bolcheviques. Eles formavam a Guarda Vermelha e assumiram o
resistia aos manifestantes, mas logo Kerenski deixou a capital. No dia seguinte, o governo foi
camponeses e Lênin obteve o apoio esmagador dos operários, que passaram a ter o controle
247
FERRO. Op. cit., p., 44.
248
CARR. Op. cit., p. 38.
249
O historiador Marc Ferro chama esta recuperação da personalidade do partido bolchevique de processo
de bolchevização. Ver em: FERRO. Op. cit., p. 81-83.
250
Ver mais em: Ibid., p. 85-88.
121
das fábricas. Outro elemento significante foi a saída da Rússia da Guerra Mundial pelo
socialismo.
A Rússia estava fora da Guerra Mundial, entretanto, de 1918 a 1921, o país viveu uma
guerra civil: de um lado o exército branco, composto por ex-generais czaristas e republicanos
dos operários e camponeses. Além disso, cerca de 14 nações estrangeiras – Estados Unidos,
enviaram tropas para ocupar a Rússia. Foi criado um “cordão sanitário” pelos países que iam
já estava arrasada e pobre, com a guerra civil ficou em uma situação caótica.
esfera cultural. Strada252 revela que se houve oposição dos intelectuais à Revolução de
Outubro, ela foi feita em nome de uma revolução democrática, em favor da Revolução de
Fevereiro que abrira os horizontes de uma nova esperança de vida na Rússia. Para este
revolução bolchevique iriam se revelar desde o início com particular clareza, já que foi
251
Ver mais em: Ibid., p. 92-94.
252
STRADA, Vittorio. Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”. In: HOBSBAWN, Eric (Org.).
História Social do Marxismo: o marxismo na época da terceira internacional: a URSS da construção do
socialismo ao stalinismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 110. (v. IX)
253
Cf.: Ibid. Sobre isto, Strada compara o artigo “Os bolcheviques devem tomar o poder”, escrito por
Lênin nas vésperas da Revolução em setembro de 1917, com a sua posterior declaração: “Somente o nosso
Partido, depois de tomar o poder, pode garantir a convocação da Assembleia Constituinte; e, depois de ter
tomado o poder, ele acusará os outros partidos de terem protelado indefinidamente a convocação e provocará a
acusação”. Aqui, Strada aponta que Lênin subordina as reivindicações democráticas a “seu específico
socialismo, entendido antes de mais nada como conquista do poder pelo partido, e que faz daquelas
reivindicações um instrumento desta conquista” (Ibid., p. 110-111).
122
cultura um vigoroso trabalho em conjunto, realizado ao mesmo tempo por colaboração mútua
Neste sentido, a vida cultural sofreu com a perda crescente de valores, de filósofos, de
Por outro lado, a arte e a literatura estabeleceram-se como o centro de “atividade espiritual do
“populares” e ao mesmo tempo alusivas e matizadas, logo, passíveis de serem utilizadas como
É nesse contexto de uma Moscou em guerra civil que o teatro encontrou o terreno
254
Na época pré-revolucionária a vida cultural da sociedade se conectava intimamente à vida política e
social no seu conjunto. Sobre este assunto ver o capítulo I desta pesquisa.
255
Ibid., p. 112.
256
Ibid.
257
Não é objetivo deste momento da pesquisa realizar o mapeamento da produção teatral russa que emerge
com a Revolução de 1917. Sobre este assunto consultar: RUDNÍTSKI, K. Russian & Soviet Theatre. London:
Thames and Hudson, 1988. Outro estudo, em português, que pode se mencionado aqui sobre o assunto:
GARCIA, Silvana. A matriz histórica do teatro de natureza política. In: Teatro da Militância: a intenção do
popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 1-45.
123
povo e transferiu o controle da vida teatral para o Estado. O mundo artístico se divide em
agora em dois campos. Uma parte era composta pelo grupo da vanguarda futurista, que se
com a cultura popular e com a linguagem poética e pictórica foram utilizadas para a criação e
impossibilidade de separar as artes e a sociedade, sua psicologia, seu passado e seu caráter
nacional.
aproximou-se das ideias futuristas e, ao mesmo tempo, defendeu uma prática artística
separada do Estado.
Meierhold esperava que o Governo Bolchevique fosse continuar com a política de não
intervenção nas artes, como aconteceu após a Revolução de Fevereiro com o Governo
258
RIPELLINO, Angelo Maria. O truque e a alma. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 191.
259
Instituído em 27 de outubro de 1917, o Narkompros foi o departamento soviético responsável pela
administração da educação pública e pela grande maioria das matérias relativas à cultura.
260
“Pis‟mo Vs. Mejerhol‟da”, Petrogradskaja vecernjaja pocta, 12/5/1917. In: ABENSOUR. Op. cit., p.
276.
124
utopia de uma arte livre, que poderia ser dirigida diretamente ao povo e, com isso, assegurar o
ele colocou-se como defensor do pensamento da vanguarda cubo-futurista e esta seria uma
saída para o “retorno ao „anarquismo místico‟ de sua juventude. Ele compartilhou com
Maiakóvski a ilusão que a rebelião anarquista e a rebelião das formas estavam operantes e
estavam os defensores do teatro como suporte político. Meierhold entende rapidamente que
será excluído se ele não se integrar ao Estado, “a máquina de decisões que está tomando
lugar”. Nessa fase de grande turbulência no seu país, ele compreendeu que é melhor participar
reorganização das artes. Lunatcharski convidou em torno de 120 artistas, dentre eles Blok,
simplesmente utilizando a Revolução para propagar suas próprias reformas. A cautela, porém,
utilizada pela grande maioria dos participantes era significativa: o poder bolchevique ainda
não estava estabilizado e uma declaração de solidariedade, por alguns que estavam na
Meierhold foi um deles, e o único a se mostrar partidário de uma renovação imediata, de uma
261
ABENSOUR. Op. cit.
262
Ibid., p. 280.
263
BRAUN, Edward. Meyerhold on theatre. London: Methuen Drama, 1998, p. 160.
125
Ensino de Encenação para Instrutores”, organizado por ele mesmo, foi destinado à formação
nas usinas, nas aldeias e nos quartéis impunha uma rápida formação de encenadores
Meierhold organizou também a “Escola para o Treinamento dos Atores”. Chaves 266
identifica que naquele momento a questão, para ele, não se tratava mais do “novo ator”, mas
sim do “homem teatral total”, orgânico e polivalente. O programa da Escola foi escrito em
1918 e apresentava grandes afinidades com o aquele escrito cinco anos antes para o Estúdio
Cênico, Pantomima e Commedia dell‟Arte. No entanto, houve uma importante diferença entre
formas teatrais antigas; em 1918, Meierhold propunha oferecer uma preparação profissional
para as novas gerações de atores e, especialmente, estabelecer uma educação polivalente das
artes teatrais.
264
O Conselho Teatral, vinculado ao Narkompros, foi criado em Petersburgo e iniciou suas atividades em
19 de janeiro de 1918 sob direção de Olga Davydovna Kameneva, e Meierhold era um de seus membros. O
Conselho Teatral tinha como ação conduzir o proletário ao teatro, ajudar os teatros provinciais e fiscalizar os
teatros provados, controlar a autonomia dos teatros nacionais e requerer a renovação do repertório em função da
nova ordem política e social. Tal Conselho não durou muito tempo e em junho de 1918 deu lugar ao TEO.
265
É possível encontrar anotações do próprio Meierhold sobre as suas aulas no “Curso de Encenação”, no
período de 1918-1919 em: PICCON-VALLIN, Beatrice. Vsevolod Meyerhold. France: Actes Sud – Papiers /
CNSAD, 2005.
266
CHAVES, Yedda Carvalho. A biomecânica como princípio constitutivo da arte do ator. 2001. Tese
(Mestrado em Artes – Artes Cênicas) Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2001, p. 15.
126
Até hoje artistas e técnicos têm oferecido o próprio trabalho ao teatro como forma de
preparação desenvolvida fora dos teatros; até hoje eles têm trabalhado
independentemente um do outro, e eles têm trazido para o teatro cada um as suas
próprias exigências, literárias para os diretores, artísticas para os cenógrafos,
técnicas para os operários, costureiras, etc. A ideia dos organizadores destes cursos é
colocada da seguinte maneira: tudo o que é feito em teatro deve ser submetido às
leis, as exigências, às necessidades do teatro. Em teatro não deve haver lugar para
uma arte nascida fora do teatro, com outros objetivos que não sejam aqueles do
teatro. O teatro deve utilizar todas as artes de modo autônomo, mas não deve ser um
lugar onde literatos, técnicos e artistas mostrem as próprias habilidades. Hoje o
teatro deve criar os próprios artistas e os próprios técnicos. É a necessidade de um
trabalho coletivo de artistas e técnicos das várias especialidades que levaram à
fundação destes cursos especializados para a formação de diretores, cenógrafos,
etc.267
Meierhold, neste discurso, revela as diferenças da sua prática artística antes e depois
enfraquecido por uma grave infecção na garganta e pelo excesso de trabalho, a fim de se
tratar, Meierhold saiu de Petrogrado e partiu para Yalta, onde recebeu tratamento para
tuberculose e permaneceu isolado pela guerra civil. Com dificuldades chegou a Novorossíski,
outra cidade sitiada mais ao norte, onde viviam alguns de seus familiares. Por causa de
bolcheviques e passou quatro meses na prisão, até o momento em que conseguiu escapar do
267
MEIERHOLD apud CHAVES. Op. cit., p. 15.
268
O clima neste período é de protestos por algumas pessoas de teatro contra as decisões tomadas por
Lunatcharski. Ver mais sobre a condição dos Teatros Imperiais e a reação da comunidade teatral no ano de 1917
em: ABENSOUR, Gérard. Les théâtres impériaux et les événements d‟octobre 1917. In: Vsévolod Meyerhold
ou l’Invention de la mise em scène. Paris: Foyard, 1998, p. 273-276.
127
comunista e foi nomeado por Lunatcharski como diretor do TEO, posição que ocupará até
1921.269
de 1919, houve uma mudança na postura de Meierhold, descrita por Rippelino 270 nas
seguintes palavras:
audácias das experimentações nem nunca teria consentido em humilhar a essência da arte.” 273
269
Lunatcharski, dois anos mais tarde da fundação do TEO, nomeou Meierhold como diretor, como prova
de admiração e confiança. O encenador exerceu tal função até o ano de 1921, quando os discursos políticos de
Meierhold foram ficando mais extremistas e Lunatcharski ordenou o fechamento do seu teatro, o RSFSR I
(República Socialista Federativa Soviética Russa). O Comissário do Povo declara: “Seus pontos de vista
extremistas são incompatíveis com o ponto de vista administrativo do Estado”.
270
RIPELLINO. Op. cit., 1996, p. 252.
271
Ibid.
272
Os poetas e pintores da vanguarda cubo-futurista foram os primeiros a se identificar com a Revolução e
foram por um breve tempo seus porta-vozes “oficiais”. Grande parte deles torna-se devoto às tarefas imediatas
da revolta, conferindo suas artes às práticas de propaganda e divulgação da causa revolucionária.
273
Ibid.
128
essência de nosso teatro revolucionário e nos lembrarão que estamos tendo prazer
nesta luta em que nos engajamos274.
Soviética Russa (RSFSR I), onde realizou, em 1920, o “Outubro Teatral”, cujo programa,
como o próprio nome sugere, propunha uma “revolução” teatral que deveria seguir
argumentavam que os velhos teatros, em sua opinião “feudal” e “burguês”, deveriam também
ser derrubados. Para os revolucionários, era um grave erro o governo proteger estes teatros
hostis ao proletário.
assumir a direção do TEO, este jornal se contentava em publicar informações genéricas sobre
ganharam imediatamente um tom agudo, até mesmo agressivo: o termo “guerra civil no
teatro” era utilizado, bem como uma e outra vez apareceu o termo “front teatral”. Vestinik
teatra alegava que os velhos teatros foram simplesmente “ninhos de recreação”, abrigos para
aparentes ou ocultos inimigos da Revolução, e sustentou que a própria Revolução não iria
tolerar a existência de tais “ninhos” por muito tempo. Na publicação do jornal, em 1920, nº
274
MEIERHOLD apud GOLBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
275
In: PICON-VALLIN. Op. cit., 1975, p. 10.
129
O “Outubro Teatral” declarou guerra aos personagens não políticos presente na antiga
cena artística russa e solicitou a mais rápida e completa renovação das artes teatrais, de cima
Os revolucionários declaravam que era necessário para o teatro sair de sua caixa
cênica, abandonar suas telas pintadas e seu psicologismo gerador de ilusões. No entanto,
revelou-se uma enorme dificuldade para se opor a arte dos antigos teatros com as novas
precedentes não obteve a simpatia de Meierhold por um simples motivo: ele, como diretor
teatral, não percebeu a realidade por detrás disto. Para ele, os propositores do Proletkult
deixou de lado. Meierhold, portanto, “não poderia habitar este reino dos inteligentes, das
antes de ser uma imediata adesão ideológica, foi uma adesão de ordem artística. A Revolução
vai lhe permitir realizar o autêntico teatro de feira e aprofundar suas experimentações sobre a
276
Sobre isto, ver mais detalhes em: RUDNITSKY. Op. cit., p. 59-64.
277
Para o grupo do Proletkult o passado deveria ser abandonado para a criação e prosperidade de uma nova
cultura, não burguesa, para o proletário. No entanto, eles não apresentaram uma ideia clara para oferecer em
detrimento do que chamavam de “velho”. No teatro, o Proletkult propunha a substituição das obras burguesas,
“velhas”, por espetáculos de “massa”, de agitação e propaganda, e pelo desejo de encontrar formas novas para os
conteúdos revolucionários seu percurso se encontra com o da vanguarda cubo-futurista.
278
Ibid., p. 60.
279
PICON-VALLIN. Op. cit., 1975, p. 7.
130
teatralidade. “Meierhold sente que vai poder chegar enfim a sua plena medida, começar uma
revolucionário deve defender e desenvolver. Neste ambiente foi encenada, por duas vezes, a
de 1917. Porém, agora eles estavam sob o regime bolchevique e ambos unidos pelo mesmo
desejo de transformar o mundo. Em 27 de setembro de 1918, o poeta leu pela primeira vez aos
amigos, na presença de Lunatcharski e Meierhold, sua nova peça que relata – com audácia,
280
Ibid.
281
De 1918 a 1921, o encenador Meierhold dirige Mistério-Bufo (1918 e 1921) e As auroras (1920). Esta
pesquisa não tem quaisquer pretensões de dar conta da produção artística meierholdiana após a Revolução de
Outubro. Sobre isto já existe uma grande bibliografia escrita, como por exemplo, as obras de: ABENSOUR, G.
Op. cit., 1998. PICCON-VALLIN, B. Op. cit., 1975. RIPELLINO. Op. cit., 1996. RUDNITSKY, K. Op. cit.,
1988. O que é relevante pra esta pesquisa são os avatares da prática artística de Meierhold e a relação com o
espetáculo Mistério-Bufo, obra investigada aqui, e o corpo acrobata.
282
Ordem nº 2 ao exército das artes, 1921. In: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Op. cit., Tradução: Haroldo de
Campos. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 93.
131
assim, apresentou o seu autor: “Camaradas, vocês conhecem Goethe, vocês conhecem
Puchkin, bom, deixe-me apresentar-lhes o maior poeta dos tempos modernos: Vladímir
Vladimirovitch Maiakóvski”283.
projetada para comemorar o primeiro aniversário da Revolução. Esta obra levava o seguinte
subtítulo: retrato heroico, épico e satírico de nossa época, desvendando seu elevado cunho
Outubro imprimiram em sua pesquisa teatral”284. O próprio dramaturgo definiu esta obra
como uma mescla entre o “sagrado”, pelos aspectos grandiosos da revolução, e o “burlesco”,
Outubro as expectativas por uma sociedade mais justa. A obra narra a trajetória política dos
operários em direção à Terra Prometida, uma intrépida viagem rumo à cidade do futuro. O
tom é festivo, e expressa o entusiasmo do poeta Maiakóvski pelo proletário. De um lado, sete
283
ABENSOUR. Op.cit., p. 283.
284
CAVALIERE, Arlete. Op. cit., p. 278. Cabe esclarecer que as pesquisas teatrais de Maiakóvski se
integram de maneira orgânica às convicções, preocupações e princípios de ordem moral, social, política, estética
ou poética que ele expressa em momentos diferentes e formas diferentes nas suas variadas formas de expressão
(poemas, textos, manifestos, cartazes de propaganda, etc.) submetidas à complexidade dos reveses históricos e
artísticos que marcaram seu tempo.
132
caçador).
Os espaços de ação são “O universo todo”, uma Arca, o Inferno, o Paraíso e a Terra
Prometida. Numa grande metáfora, Maiakóvski descreveu a Revolução como um dilúvio que
se abateu sobre o planeta Terra. Após este acontecimento, “Puros” e “Impuros” de todos os
lugares do mundo se agrupam no polo ártico, o único espaço ainda não inundado. No entanto,
como o alagamento também ameaça o polo, uma arca é construída e todos começam a
navegar rumo ao Monte Ararat. Enquanto os “Impuros” não estão presentes, os “Puros”,
decretam o fim da autocracia e atiram o seu rei no mar, aliando-se aos outros para
organização dos “Puros” e “Impuros” na arca. O primeiro grupo, que possui a comida, obriga
o segundo ao serviço. É nessa situação que os “Impuros”, descontentes com o novo governo,
Mineiro – Camaradas!
O que é isso!
Antes tudo devorava uma só boca e agora o nosso um batalhão
emborca.
Aconteceu que a República, horra é o mesmo tzar, só que de cem bocas.
Mercador – Então precisa alguém ficar com as sementes – não é a melancia para
todos os dentes.
da chegada do Homem Simplesmente, o mais comum dos homens, que caminha sobre as
285
MAIAKÓVSKI, Vladimir. Mistério-Bufo: um retrato heróico, épico e satírico da nossa época.
Tradução de Dmitri Beliaev. São Paulo: Musa Editora, 1998, p. 135.
133
águas como numa alucinação e anuncia um lugar onde “o doce trabalho não caleja as mãos. O
trabalho floresce como rosa na palma da mão”286, a Terra Prometida é apresentada e passa ser
anunciado.
ultrapassam as nuvens e passam pelo inferno, onde encontram Diabos e o Belzebu, e seguem
encontro dos “Impuros” para servi-los, trazendo alimentos para recepcioná-los. No final,
Malévitch, a cenografia288. A obra provocou uma rejeição violenta pela maior parte do elenco,
não somente pela contaminação dos princípios futuristas em contraponto à visão conservadora
dos “velhos” atores, mas, sobretudo, porque Mistério-Bufo parecia simbolizar a invasão do
religioso, que chocava particularmente o elenco. Muitos deles “faziam o sinal da cruz,
nem no picadeiro do Circo Moderno, que foi concedido por Mária Fiódorovna Andriéiva, que
286
Ibid., p. 163.
287
Este Hino cantado pelos “Impuros” pode ser encontrado em: Ibid., p. 265-267.
288
Malévitch combina em seu cenário estruturas arquitetônicas e painéis decorativos. Um grande globo
azul indicava a Terra, outras formas cúbicas assinalavam a arca. O paraíso era caracterizado por tons cinzas e
alinhavam bolas de nuvens multicores, já o inferno era uma sala gótica vermelha e verde. A Terra Prometida era
designada por uma grande tela suprematista, um amplo arco e a armação de uma máquina.
289
RIPELLINO, A. M. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 86.
134
Lunatcharski, foi cedida para a montagem a sede do Teatro do Drama Musical por três dias: 7,
se limitou a poucos dias em virtude das críticas violentas e sob a acusação de ser
inconveniente para as massas. Dois dias antes da estreia do espetáculo, Lunatcharski escreveu
o artigo “Espetáculo Comunista” para o jornal e declarou: “A única peça que foi idealizada
com a influência de nossa revolução e portanto possui o seu carimbo de tom maior, de
Camaradas atores! Vocês são obrigados a marcar a grande festa da revolução com
um espetáculo revolucionário. Vocês devem encenar Mistério-Bufo, um retrato
heroico, épico e satírico de nossa época, feito por Vladimir Maiakóvski. Venham
todos no domingo, dia 13 de outubro, na sala do colégio Tenishevski (Mohovaia,
33). O autor lerá o Mistério, o diretor exporá o plano de encenação, o pintor
mostrará os figurinos, e aqueles de vocês que arderem por fazer este trabalho serão o
elenco. O Bureau Central de Petrogrado para os Festejos oferece todos os recursos
290
In: MAIAKÓVSKI. Op. cit., 1998, p. 8.
135
religioso para instalar um diálogo intrínseco com a tradição da cultura russa, neste caso, com
efetua uma reversão iconoclasta sobre esta problemática ao recuperar a tradição russa e
dirigido por Meierhold, que como um “Cristo Anarquista” 292 profere seu sermão da montanha
cósmico, um dilúvio que faz emergir a arca da salvação que conduzirá os condenados à Terra
291
Os Mistérios Medievais são dramas medievais religiosos, registrados do século XIV ao século XVI.
Eles colocam em cena acontecimentos bíblicos ou da vida dos santos, que são representados nas festas religiosas
por atores amadores, principalmente mímicos e menestréis, em palcos simultâneos. As apresentações dos
Mistérios normalmente duram muitos dias e a conexão entre os seus episódios e espaços cênicos geralmente é
feita através da figura do narrador. Os Mistérios foram proibidos pela Igreja que se espantou com o grau de
burlesco, grosseria, comicidade e zombaria, que eram expressos através do grotesco.
292
ABENSOUR. Op. cit., p. 284.
293
MAIAKÓVSKI, Op. cit., 1998, p. 165.
294
ABNSOUR. Op. cit.
136
Prometida, lugar de reconciliação do homem com ele mesmo e com a natureza. Os artistas da
revolução aderiram à revolta não pela determinação da luta de classes, mas pelos horrores da
guerra.
mistérios medievais edificantes, com seus temas e episódios bíblicos, que interagem de forma
festiva e espetacular com “máscaras-caricaturas”, que possuem o caráter vital, luminoso e ágil
do teatro popular com sua mistura de assuntos sacros e profanos, a linguagem dos trocadilhos
dualidade que contrapõe dois mundos e dois tempos: o último se estabelece pela imposição do
novo sobre o velho, e aparece de forma esquemática para por em evidência o conflito entre as
balagan: as cenas curtas destacadas como vinhetas, o desenvolvimento rítmico das falas, a
agilidade verbal dos diálogos dos personagens, bem como a própria estrutura espetacular.
Justamente pela grande popularidade das atrações do balagan, Maiakóvski recorre a tais
295
CAVLIERE, Arlete. Op. cit., p. 280-281.
296
Ibid., p. 281-282.
297
RIPELLINO. Op. cit., 1986, p. 82.
137
contato com um diretor de espetáculos de teatro de feira e observou detidamente uma maquete
do inferno que o último modelava. Um enorme demônio barrigudo de cuja goela escancarada
saltavam diabinhos de malha vermelha e tridente era uma figura característica do inferno, que
cravado na terra engolia os malvados, soltando fumaça das narinas e das orelhas. Os diabos de
obra, a possibilidade de realizar o teatro que desejava, um teatro que educa e diverte o
138
público: ele formulou e iniciou um tipo de concepção muito viva sobre a arte teatral e sobre a
própria arte e convidou a todos para participar das atividades de criação artística (autor,
primeira vez, Meierhold partilhou sua visão com um autor que foi, ao mesmo tempo, ator e
assistente de direção. Ele deixou aos cuidados de Maiakóvski o trabalho de iniciar os atores às
particularidades da dicção rítmica dos seus versos, que quebravam decisivamente com a
construída pelas próprias falas sobre um vivo jogo de discussões, de trocadilhos e de recursos
colorida dos heróis presentes que caracterizam e identificam os diferentes tipos sociais, como
a linguagem do povo nas ruas que se opõe de forma libertina ao discurso oficial, às palavras
de ordem da época política. A matéria verbal do futurismo concorda com a do teatro popular.
que a obra não era adequada aos proletários. Maiakóvski era acusado de ser ininteligível para
o novo público, marca que foi recorrente ao longo de sua carreira enquanto poeta.
reescreveu Mistério-Bufo sob forte influência das suas experiências adquiridas na ROSTA
(Agência Telegráfica Russa)298. Consciente das transformações na Rússia nos últimos anos,
Maiakóvski ponderou que a obra deveria ser remexida, retocada, adaptada às circunstâncias
298
Com a transferência para Moscou em 1919, Maiakóvski trabalhou na Agência Telegráfica Russa
(ROSTA), permanecendo aí de outubro daquele ano até fevereiro de 1922, confeccionando cartazes políticos,
acompanhados de vinhetas e comentários versificados. Os cartazes, expostos nas janelas das lojas, chamavam
atenção nas ruas de Moscou pelas suas cores vivas e versos intensos em contraste com uma Moscou coberta de
neve e sob guerra. Os desenhos pintados nos cartazes da ROSTA receberam os nomes de “janelas” (okna). As
janelas de Maiakóvski retratavam uma Rússia atordoada pela guerra civil, pelas epidemias, pela rebeldia, abatida
pela perseguição dos contrarrevolucionários e pelo caos econômico. Os tipos representados por Maiakóvski
nestas janelas se desdobram nos personagens dos “Puros” e dos “Impuros”, de um lado pretensiosos burgueses e,
de outro, majestosos operários.
139
momento, como, por exemplo, a guerra civil, a interferência de países ocidentais, a falta de
italiano viraram um diplomata e Lloyde George; o alemão militar se converteu num burguês
de Berlim. Foram incluídos no grupo dos “Puros” a Mulher das Caixas de Papelão, uma
versão da Mulher Histérica, que frequentemente troca de opinião, o intelectual fútil e tagarela
utópico o Homem do Futuro, que expurga os bons costumes e afirma que o puritanismo
recuperou a supremacia na terra dos soviets. Os “Puros” reaparecem no Inferno, após serem
299
MAIAKÓVSKI. Op. cit., 1998, p. 7.
140
Paraíso. Do terceiro quadro foi extraído para a segunda versão um 6º ato, a Terra Prometida.
Foi incluído um ato novo, o 5º, que descreve o País das Ruínas 300, esta seria uma “tentativa de
propaganda industrial dramatizada”301 que “espelha a luta do governo soviético contra a crise
dezembro de 1920, Maiakóvski leu a peça aos atores do Teatro RSFSR I304 e os ensaios
começaram no dia 5 de janeiro de 1921, com a participação ativa do poeta. Assim, a aliança
entre o encenador e o dramaturgo foi novamente selada no combate simultâneo sobre o texto e
a forma de encená-lo305.
marxistas que denunciaram ao Comitê Central do Partido que tal obra era incompreensível
começou a visitar diversos bairros de Moscou e Petrogrado, onde relia o texto em comícios e
assembleias, para verificar que a sua obra não era apenas bem compreendida, como era bem
aceita pelo operariado. Foi organizado em janeiro de 1921, pelo Teatro RSFSR I, um debate
partido que, por fim, enfatizaram o conteúdo proletário da comédia e orientou que
300
Quando os “Impuros” chegam ao País das Ruínas, pilhas de fragmentos e restos de objetos obstruem
seu caminho. Os objetos sepultados gemem abaixo dos detritos e, assim, os proletários cavam e retiram uma
locomotiva e um barco. Surge alegoricamente a Ruína, velha, repugnante e imperiosa, juntamente com o seu
bando indisciplinado de indolentes e tratantes, semelhante aos Mistérios Medievais. Os “Impuros” a enxotam,
reanimam a locomotiva e o barco com carvão e gasolina e seguem para a Terra Prometida.
301
RIPELLINO. Op. cit., 1986, p. 97.
302
Ibid.
303
O poema “Internacional” pode ser encontrado em: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Mistério-Bufo. Tradução
de Lila Guerrero. Buenos Aires: Editorial Platina, 1958, p. 194.
304
Este Teatro foi inaugurado em 7 de novembro de 1920 com a montagem de As auroras, de Verhaeren,
encenada por Meierhold.
305
Ver mais em: ABENSOUR. Op. cit., p. 308.
141
1921, no Teatro da RSFSR I. O sucesso foi tão grande que Mistério-Bufo teve apresentações
toda a ideia de cenário servia como pano de fundo para a ação dos atores, a valorização de seu
jogo e a libertação de seu corpo “por meio de pantomimas acrobáticas que desenham os
hábeis movimentos de todos aqueles clowns grotescos” 307. Os cenógrafos Anton Lavinsky,
assemelhava com as linhas de uma arca. O ato do paraíso acontecia quase no ar, num tipo de
toldo, que continha duas escadas que se ligavam ao chão. Neste lugar, no nível dos
Era deste aparato, também, que pulavam os demônios na cena do inferno. Nesta versão, as
colocava por entre o público. Como afirma Rudnitsky, a interação entre ator e público
306
In: RIPELLINO. Op. cit, 1986, p. 100.
307
CAVALIERE. Op. cit., 2009, p. 283.
308
Ver mais em: RUDNITSKY. Op. cit., p. 62.
142
Os figurinos ficaram a cargo de V. Kissielióv, que utilizou tecidos ornados com jornal.
alegre, festivo e ruidoso. Os demônios do 3º ato com rabos, chapéu-coco e couraças pareciam
verdadeiros palhaços. Destaque seja dado também para Igor Ilínski, que fez seu primeiro
fechar o casaco aberto pelo vento. Lunatcharski, que ainda não sabia o nome de Ilínski,
309
Ibid., p. 63.
143
18. Desenhos para o figurino da segunda versão de Mistério-Bufo. Na imagem um Puro e um Impuro.
também agora a marcada tendência política despertou o sentimento de ódio nos intelectuais de
direita, enquanto a novidade da forma se opõe a mesquinhez dos funcionários do partido. Foi
Moscou, “em honra ao III Congresso do Comintern, na versão alemã de Rita Rait, que
teatro”312 e acreditava que o poeta “era brilhante no campo da composição” 313. Maiakóvski
circenses são muito mais ressaltados do que na primeira, ao mesmo tempo atualizando a peça
e fazendo dela uma espécie de revista política. As utilizações dos procedimentos do circo,
contaminada de máscaras circenses. Ela aponta que o prólogo da segunda variante, por
exemplo, é inspirado nas apresentações do circo ambulante e dos teatros de feira ao expor, em
310
RIPELLINO. Op. cit., 1986, p. 102.
311
Ibid.
312
RUDNITSKY. Op. cit., p. 62.
313
Ibid.
314
CAVALIERE. Op. cit., 2009, p. 279-280.
144
síntese didática e jocosa, a estrutura da peça em argumento, tema e constituição de cada ato. O
prólogo perde a agilidade política da primeira versão, e mantém a sua polêmica vivacidade no
domínio estético, proclamando uma reforma no campo das artes por meio da teatralidade.
especificamente, aos princípios das peças representadas pelo Teatro de Arte de Moscou 316,
que, para ele, é uma instituição que se opõe a causa revolucionária da época, que exclui o
rápidas, breves diálogos, cenas bem definidas pelos grupos de personagens, os temas
315
MAIAKÓVSKI. Op. cit., 1958, p. 62.
316
No prólogo de Mistério-Bufo, Maiakóvski se refere diretamente à montagem do espetáculo “Tio Vânia”,
de Anton P. Tchekov, encenado por Constantin Stanislávski no Teatro de Arte de Moscou pela primeira vez em
1899.
317
Ibid., p. 278-279.
318
Esta semelhança não é casual, pois nas comédias de Maiakóvski, que inclusive conviveu com muitos
circenses, um ponto comum é a utilização de procedimentos do picadeiro e muitos personagens clownescos. O
poeta russo, que desejava recitar seus versos na garupa de um elefante, encara o circo como um “espetáculo
terrestre, sem subentendimentos simbólicos, e propôs-se infundir-lhe os esquemas e os phatos do cartaz,
transformando os palhaços em máscaras sociais”, retirando o cunho metafísico retratado pelos poetas
simbolistas.
145
Estes elementos estão interligados por um fio condutor cuja temática política conecta todos os
trama parecem concebidos na perspectiva de uma pantomima circense: são simples na sua
Lazárienko319, que desempenhou um dos diabos, descia por uma longa corda executando
diversos truques acrobáticos. Sobre o desempenho desses artistas, Valeri Sisóev, que
se nele e mexendo os braços, logo em seguida, se deixava cair, mantendo-se preso aos
ângulos do trapézio com a ponta dos pés” 320. Também as nuvens de balão do Paraíso foram
ou sem acessórios foram sempre sustentados por uma intenção precisa. As acrobacias e as
319
Vitáli Lazárienko, palhaço e acrobata russo, aderiu ao movimento cubo-futurista antes mesmo do ano de
1917, inclusive fazendo parte do filme Quero ser um futurista, e participando das manifestações do 1º de maio
em grandes pernas de pau. Dedicado à vida política russa, ele reagia com sagacidade aos acontecimentos de sua
época, ganhando inclusive destaque nas “janelas” do ROSTA. Para Ripellino, pela rapidez imediata jornalística e
a matéria polêmica, a arte de Lazárieko concordava plenamente com as aspirações de Maiakóvski. Palhaço e
poeta conviviam juntos numa forte amizade e de seus encontros, nos primeiros anos soviéticos, escreve
Lazárienko: “Maiakóvski interessava-se muito pelo circo e conversava frequentemente comigo, sugerindo-me
temas e deixas. Vinha encontrar-me no camarim nos intervalos. Ressaltando os méritos e os defeitos, aprovava a
tendência dos meus números e elogiava-me, sobretudo, porque no meu repertório havia muita sátira política e de
costumes. Naqueles dias de fato muitos dos „importantes‟ do circo, para não se comprometer politicamente,
recorriam a „eternos‟, fora do tempo e do espaço... Encontrei um apoio constante em Maiakóvski. Infelizmente
não tomei nota dos temas que ele me fornecia: os fatos de então envelheciam depressa, passando de moda, eu
mudava sempre de repertório e nunca me ocorreu, confesso, que em seguida tudo aquilo teria tamanha
importância”. In: RIPELLINO. Op.cit., 1986, p. 216.
320
FEVRALSKI, A. Meyerhold y el circo. In: El circo soviético. Moscú: Editorial Progreso, 1975, p. 321.
146
literatura clássica. Uma das atrações favoritas das pantomimas de circo, o episódio aquático,
foi revivida e apresentada como o dilúvio da revolução que invade o globo terrestre 321.
personagens. O grupo de “Impuros” foi abordado como máscaras sérias; eles eram circenses,
apresentados como acrobatas para realçar sua engenhosidade, sua destreza, seu vigor e suas
habilidades corporais: eles estavam mais próximos dos heróis retratados nas pinturas da
época. Maiakóvski apresentou os “Impuros” com desenhos cuja concepção cubista enfatizava
corpos poderosos, resistentes e fortes proletários. No texto, encontra-se uma passagem para
ilustrar tal situação: no momento em que todos discutem a questão da fome, o Ferreiro fala:
321
AMIARD-CHEVREL, Claudine. La cirquisation du théâtre chez Maiakóvski. In: Du cirque au
théâtre. Lausanne: L‟Âge D‟Homme, 1983, p. 108.
147
Por outro lado, os “Puros” foram projetados pelo dramaturgo por meio de desenhos
tentam parecer espertos e inteligentes, porém falham em seus planos e terminam sempre nas
piores condições, além disso, eles usam trocadilhos verbais e recebem tapas e pontapés.
Mesmo representados como inimigos da classe operária, eles são tratados como palhaços
tanto pelo texto proferido como pelo comportamento físico, caracterizado pelos ridículos
importantes para esta investigação, pois, além de demonstrar concretamente a simbiose entre
pesquisa: o Bogatyr.
construir uma nova sociedade. Assim, tanto bolcheviques quanto mencheviques concordavam
que a classe operária era a única força com que a revolução poderia contar. Esta pesquisa
reconhece, portanto, que quem melhor encarnaria a metáfora do Bogatyr, para artistas, poetas
grupo dos “Impuros”, cujo corpo acrobata, forte, resistente, veloz e disciplinado expressa todo
322
MAIAKÓVSKI. Op. cit., 1958, p. 117.
148
Olha,
em meus grandes olhos
abertos como o pórtico duma catedral.
Homens!
Amados e não amados
conhecidos e desconhecidos,
desfilai por este pórtico num vasto cortejo!
O homem
livre –
de que vos falo –
virá,
acreditai,
acreditai-me!323
cena, e a sua linha resultante fundamental, a paródia exagerada, são conservados pelo circo
encenador e o poeta desenvolveu esta prática com maestria, particularmente em seu primeiro
espetáculo Mistério-Bufo. Entretanto, isso somente foi possível pelas experiências pré-
Meierhold e Maiakóvski, assim como grande parte dos futuristas russos, tinham
grande atração pelas atividades circenses, pois um motivo fundamental era que a estrutura de
uma criação artística para o proletário oferecem um ímpeto excepcional a esta revolução das
323
Dedicatória. In: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Vida e poesia. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 96.
324
AMIARD-CHEVREL. Op. cit., p. 104.
149
estruturas poéticas, nascida antes mesmo da revolução política, conforme visto no decorrer
desta pesquisa. O circo foi reconhecido pelos revolucionários como um espetáculo puro,
esteve ligado ao TEO. Foi notável sua preocupação em estabelecer uma educação básica para
as escolas de artes circenses, que formariam instrutores cuja atuação por distintos lugares da
Rússia organizariam grupos desportivos com o objetivo de criar uma nova cultura física. Em
1919, em uma reunião da Seção Teatral da Direção de Arte do Congresso de Instrução Extra-
Escolar de toda a Rússia, ele anunciava a ideia de que um corpo belo conduz à saúde do
espírito, pois “quanto mais intensa for a luta espiritual que é preciso sustentar, tanto maior é a
força física que se necessita. Construiremos escolas das quais sairão um corpo belo e vivo e
um rosto radiante”325.
Por outro lado, os planos de Meierhold em relação ao circo não se limitavam a este
prisma, eles iam muito além. O encenador defendia que a reinvenção do circo deveria partir
publicamente estas ideias no debate sobre a exposição do encenador Nikolai Foregger 326 sobre
325
FEVRALSKI. Op. cit, p. 319.
326
Nikolai Foregger chegou a Moscou em 1916 saído de Kiev, cidade onde nascera. Foi fascinado pelas
grandes discussões pela mecanização e abstração da arte e do teatro, e ampliou isto para que fossem incluídas na
dança. Ele estudou os gestos cênicos e movimentos da dança, procurando os meios físicos para a reflexão das
concepções visuais da vanguarda pré-revolucionária. Estes estudos foram desenvolvidos em Petrogrado em seu
Estúdio. É sua a teoria do “tafiatrenage”, uma espécie de treinamento que, apesar de nunca ter sido codificado,
foca na relevância da técnica para o desenvolvimento físico e psicológico do intérprete. Foregger buscava com
isto um novo sistema de dança e de treinamento físico, referindo-se sempre ao circo, “irmão-siamês” do teatro,
na tentativa de consolidar novas modalidades de expressão “teatro-circo”. Encenou espetáculos como: Os
gêmeos (1920), O rapto das crianças (1922), Danças mecênicas (1923).
150
época.
defendia a união entre as linguagens circenses e teatrais como uma nova modalidade de
espetáculo. “Para ele, não há fronteiras entre o circo e o teatro. O teatro e o circo são irmãos
siameses. Os elementos teatrais irrompem no circo, e o circo aspira impregnar com seus
sortilégios o domínio do teatro”328. O que este encenador propôs, na verdade, foi uma grande
reforma no circo, que supostamente conhecia a “crise” que o teatro passava época. Ele
convida, para isto, artistas ligados ao teatro para conceber pantomimas para o picadeiro e
espetáculos extraordinários, em tom feérico, bem como novos figurinos, música poderosa e
somente seria possível pelos homens de teatro e por fim o que ocorreria era “de um lado, o
teatro do drama, „o teatro das grandes paixões‟, do outro, o circo, „teatro da alegria
Foregger, e defendeu a independência entre ambas as linguagens, já que “o circo não deve ser
reconstruído por princípios que lhe sejam estranhos”330. Tanto o circo como o teatro deveriam
necesessária. Para ele, “as criações dos mestres do circo e as dos mestres do teatro realizam-se
327
Texto retirado do livro: PICON-VALLIN, Beatrice . Op. cit., 1975. Ver tradução para o português em
Anexo III desta pesquisa, p. 182-184.
328
Ver anexo III, p. 182.
329
Ver anexo III, p. 182.
330
Ver anexo III, p. 182.
331
Ver anexo III, p. 183.
151
Segundo ele, o circo, “nas mais teatrais das épocas teatrais” 332, contribuiu para o
nada tinham a oferecer aos artistas circenses. Nesse sentido, as ideias meierholdianas
asseguravam que o ator teatral é quem deveria aprender com os artistas do picadeiro, pois “se
o teatro contemporâneo deve se impregnar de elementos acrobáticos, isto não quer dizer
um novo tipo”333.
Para esta pesquisa, mais do que a discussão entre a fusão do circo e do teatro em um
espetáculo único, discussão inclusive que ganhará mais força na década de 1920, interessa
Rússia no início do século XX, afirmava que o entendimento do homem como um ser
desenvolvido e total, não embrionário e fracionado, ainda não fora alcançado, mas estava
próximo e seu perfil já “se desenha claramente no horizonte” 335. Para ele a “cultura
retratado pela vanguarda. Este movimento lutou exaustivamente por uma nova conformação
do homem, fortemente marcado pelo ideal socialista marxista, da não alienação da matéria e
332
Ver anexo III, p. 183.
333
Ver anexo III, p. 183.
334
STRADA, Vittorio. Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”. In: HOBSBAWN, Eric (Org.).
História Social do Marxismo: o marxismo na época da terceira internacional: problemas da cultura e da
ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 124.
335
Ibid.
336
Segundo Bogdanov, a noção de “cultura proletária” tinha um significado global, que abrangia todos os
aspectos da vida social e individual, já que o seu objetivo era a formação do homem. Sobre isto, ver mais
detalhes na parte dedicada à “Cultura proletária e revolução cultural” em: Ibid., p. 125- 129.
337
Ibid.
152
surgirá no futuro virá revestida de músculos e para o ato revolucionário se faz necessária a
“revolução do espírito”, para uma nova organização da vida, de uma nova arte e de uma
ciência nova.
Pode-se afirmar que o circo seria um dos espaços possíveis para a formação deste
modelo de homem, já que retomou no período suas especificidades de arte do corpo, que
eleva o homem à condição de superioridade. Isso foi possível graças à implementação de uma
rede de ensino e propagação das redes circenses, pelo próprio governo soviético, que tinha
que o próprio artista deveria escolher os caminhos que desejava seguir, teatro ou circo. Na
contramão de Foregger, ele acreditava que o aspirante deveria passar primeiramente por
alguma escola que tornasse seu corpo mais flexível, cheio de vigor e belo, que o
disponibilizasse para qualquer tipo de atuação. O circo, assim, seria uma arma de combate aos
artística e acrobática”
cujo programa deve ser construído de tal forma que o aluno, ao final dos estudos,
seja um adolescente são, hábil, forte, arrebatado, pronto a fazer uma escolha de
acordo com a sua vocação: o trabalho de circo, ou o teatro de tragédia, da comédia,
do drama339.
desempenho físico do ator, bem como, quando conveniente, era necessário levar para cena
certos elementos da arte circense. Isto porque Meierhold estava localizado no momento de
338
JAKOBSON, Roman. A geração que esbanjou seus poetas. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 14-21.
339
Ver Anexo III, p. 184.
340
FEVRALSKI. Op. cit., p. 320.
153
perfeitamente seu corpo, em função da criação de uma arte teatral capaz de cumprir as
complexas e variadas tarefas que pregava a revolução. Ele, em toda sua atividade pedagógica
(desde o período como o Dr. Dapertutto) e em sua obra como encenador, “procurou sempre
Cabe recordar que cabia a Meierhold a preparação técnica do seu ator, que se baseava
arte do movimento demandava precisão, agilidade, leveza e ritmo e, para tal, induziu o ator ao
seja, além de o ator concentrar uma polivalência técnica era necessário reunir uma
Encontram-se aí alguns dos princípios sobre a polifonia que rege o ator meierholdiano.
Como foi visto anteriormente, o encenador procurou dotar o ator de múltiplos recursos
formação deste tipo de ator pretendia torná-lo sujeito, uma voz autônoma que pudesse gerar,
através de seus movimentos e de sua fala, planos independentes que dialogariam entre si na
simultaneidade da cena. E ainda assim, este mesmo ator deveria se comunicar com os outros
elementos cênicos: a cenografia e objetos, o espaço cênico, outros atores, o texto, a música,
341
ROUBINE, Jean-Jacques apud THAIS, Maria. Na cena do Dr. Dapertutto. São Paulo: Perspectiva,
2010, p. 46.
342
Ibid., p. 169-170.
154
exemplo, na análise de Mistério-Bufo. Verifica-se que para a construção desta obra exigia-se
“um ator adestrado, capaz não só de reproduzir o movimento convencionado pela encenação,
Um paralelo pode ser traçado em relação ao artista circense e o seu caráter polifônico.
questões que surge o conceito de teatralidade circense344. Para ela, este termo engloba as
performance dos palhaços, a representação teatral, etc. Afinal ela é composta pela ação de
mímica, dança, música e a palavra. Cabe frisar que o circo consolida-se, no final da primeira
metade do século XIX na Europa, como um lugar de múltiplas linguagens artísticas, que
representações teatrais com pantomimas e entradas de palhaço com ou sem texto. Esse tipo de
343
Ibid., p. 160.
344
SILVA, Ermínia. Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo:
Altana, 2007, p. 20-21.
155
espetáculo, carregado de multiplicidade, foi o que migrou pelos países europeus, “marcando
relações plurais com as realidades culturais e sociais de cada região ou país” 345.
Este conjunto de elementos revela a noção de polifonia, pois os artistas circenses, além
temas que faziam parte da localidade onde estavam, e montavam pantomimas que seriam
espetáculo.
cotidianamente ia se qualificando para exercer tarefas, pois no circo ninguém nasce trapezista,
culturais, uma vez que era o próprio circense que deveria dirigir e produzir seus espetáculos e
necessitava ter abertura para se atualizar e se transformar. Por este prisma, a constituição do
345
Ibid., p. 52.
346
Ibid., p. 81
156
teatral, consolidava o “conjunto de expressões daquela teatralidade, que definia o circo como
Os palhaços raramente eram apenas palhaços. O palhaço tinha outras técnicas, podia
ser a música, a acrobacia, o malabarismo, ser amestrador de animais. Meu pai
sempre dizia que não se começava sendo palhaço; isso vinha depois. A primeira
coisa era aprender um ofício, uma técnica. E com a vida, com a experiência do
contato humano, e com o gosto de ter contato humano, lentamente a técnica ia se
tornando menos importante, e o mais importante ficaria sendo a personalidade 348.
347
Ibid., p. 281.
348
BASSI, Leo apud SILVA, Ermínia. Op. cit., p. 129-130.
157
CONCLUSÃO
Esta pesquisa revelou que do final do século XIX até os anos que antecederam a
concepção de tal Homem, e pelo fato da tradição eslava ser um traço tão peculiar do povo
primeiro movimento que fomenta a recriação de uma arte total e religiosa, o desejo de superar
as fronteiras entre as linguagens artísticas. No entanto, a aproximação com o circo por parte
dos simbolistas ocorre no sentido poético e idealizado, não havendo de fato uma apropriação.
Uma característica particular deste movimento foi a reivindicação da autêntica tradição eslava
em diálogo com a ruptura das convenções e o seu alastramento para todos os setores da
cultura. As atividades circenses ganharam grande relevância nas práticas dos poetas e pintores
vanguarda teatral, por exemplo, a teatralidade foi adotada como mote e o circo exerceu uma
significativa contribuição à arte e literatura russa, e, particularmente, por seu interesse pela
cultura popular e pelo circo. Ele convivia com artistas do picadeiro e adota em diversas obras
chave desta pesquisa: com ele a aproximação com as atividades circenses ocorre devido ao
resgate da tradição russa e do seu particular interesse pelo picadeiro. O encenador adota como
referência para o modelo do “novo ator” a arte dos atores ambulantes, malabaristas,
habitavam as ruas e praças. Meierhold faz uma ode a este universo no texto Viva o
como procedimento pedagógico nos anos de 1910 no Estúdio da Rua Borondiskaia, já que
também artistas de circo, cada um possuindo habilidades múltiplas, foram convidados para
de uma arte engajada, acentua-se a simbiose entre palco teatral e picadeiro. Neste movimento,
os artistas de circo são até mesmo convidados para participar de espetáculos no palco do
espetáculo Mistério-Bufo. Meierhold exalta o circo como uma escola de saúde, destreza,
disciplina e beleza, bem como reconhece no artista do picadeiro a sua multiplicidade artística,
a sua polifonia. Ele manifestou publicamente estas ideias no debate sobre a exposição de
exigência da proeza corporal, conquistada por meio de treinamento e preparo físico intensivo,
que é marca do artista circense, é possível identificar nesta figura a capacidade de diálogo
com outras linguagens artísticas. Ele é reconhecido como criador e agente de sua obra, capaz
de se relacionar com as outras áreas artísticas, dotado de pluralidade técnica, pois disto
dependia a sua sobrevivência e a do próprio circo. Essa tendência, portanto, converge para a
Na Rússia, grande parte dos artistas se volta para o circo no início do século XX. O
interesse por esta atividade não é casual, pois neste momento há o sonho pelo homem
harmônico do futuro e nele tudo deve ser belo. O acrobata causa admiração pela força,
destreza e ousadia, qualidades ligadas ao ideal do novo homem russo. Eles identificavam no
Gorki (1869-1936): “Nosso trabalho é tão perigoso que temos que proteger uns aos outros” 349.
Para este dramaturgo, os artistas circenses não pareciam homens comuns no seu
extensa a lista de companhias que buscam referências para suas obras em outras disciplinas 350.
A linha divisória entre os circenses e as outras expressões artísticas não estão bem definidas e,
349
LÉBEDEVA A. Maximo Gorki y el circo. In: El circo Soviético. Moscú: Editorial Progreso, 1975, p.
306.
350
Para ilustrar este contexto, pode-se citar as famosas companhias: Cirque Plume, Archaos, The 7 fingers,
La Fura dels Baus. No Brasil: Intrépida Trupe, La Mínima, Circo Mínimo e Teatro de Anônimo.
161
numa outra perspectiva, para alguns atores de teatro, dos cabarés e music halls, por exemplo,
o circo também era um espaço de trabalho. Sobre esta simbiose afirma Barbey d‟Aurevilly 351:
O Circo [...] é o teatro dos pintores, dos escultores e dos poetas que amam a beleza e
que querem realizá-la em suas obras. [...] É o teatro da beleza e das forças plásticas e
visíveis, que nunca são discutidas, pois a beleza intelectual e moral são discutidas,
miseravelmente contestadas, mas a beleza física não se discute. Ela se impõe! O
Circo, mais estético que dramático, tem seu tipo de patético e de emoção como tem
seu tipo de beleza. [...] O Circo é o único teatro onde a perfeição é obrigatória. [...]
Mas no circo, onde a arte tem a dignidade do perigo, se o ator ou a atriz, cuja pessoa
é o papel todo e mesmo a peça inteira, não são seguros de si – se eles fazem um
falso movimento, se eles se distraem, durante um instante de esquecimento, uma
fadiga momentânea –, eles arriscam a se quebrarem!... O corpo, que como o espírito
tem suas falhas, se paga aqui de modo terrível... No Circo, a mediocridade é de
súbito ameaçada a romper seu pescoço – que deliciosa perspectiva! – enquanto nos
outros teatros ela se espreguiça vocês sabem com que ar! Ela se porta muito bem e
não arrisca absolutamente nada.
dos acrobatas expressam a sua excelente preparação técnica, valentia e primor artístico. Ainda
mesmo tempo patéticas, isto é, a morte e o sorriso, o perigo, o risco e o cômico, a farsa.
artes circenses. Ele considerava o circo um espaço de valentia, audácia, destreza e beleza do
corpo humano, o circo era visto como um modelo de educação da cultura física do homem,
necessária para o desenvolvimento físico e espiritual da pessoa que trabalha, luta e porta
elevados valores culturais. Este pensamento emparelha-se com o ideal do “novo homem” e
não por acaso após o ano de 1917 os procedimentos acrobáticos invadiram a cena soviética.
Por outro lado, não é à toa que após a Revolução de 1917 o circo russo se desenvolve
implementa uma rede de educação e difusão das artes circenses. O circo encontra o terreno
351
BARBEY D‟AUREVILLY, Jules. Le cirque. In: Théâtre contemporain, 1881-1883. Paris: Stock,
1896, p. 23-25.
162
fértil para o seu florescimento ao retomar, assim, a especificidade das artes do corpo, que
eleva o homem à condição de superioridade. Data deste período a famosa disciplina e técnica
russa do circo e a sua propagação e influência nos países ocidentais. No entanto, não é
possível realizar tal abordagem sem mencionar o uso ideológico do circo pelos soviéticos. A
situação na Rússia em 1929, após a queda de Lênin, era a da ditadura implantada por Josef
acolheu o circo como ponto importante na sua política cultural, porque ele exaltava
perfeitamente o exemplo da supremacia do corpo ao formar, sob a sua cúpula, novos bogatyrs
BIBLIOGRAFIA
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v. 77, maio/ 2007.
GORDON, Mel. Meyerhold‟s biomechanical. The Drama Review, New York University/
School of Arts, v. 17, n. 1 (T57), p. 73-88, mar/ 1973
4. INTERNET
ANEXOS
ANEXO I
Princípios da Biomecânica
1.
Toda a biomecânica é fundada sobre o princípio segundo o qual se a ponta do nariz se move,
Todo o corpo participa do movimento do menor órgão. Deve-se, antes de tudo, encontrar a
2.
Fixar um tema no exercício é uma necessidade difícil de dispensar. Com um tema fixado,
interpretar torna-se muito mais fácil para o corpo. Todavia, é necessário não se deixar levar
3.
[...]
5.
execução.
[...]
8.
9.
técnico. Ela só pode se oferecer quando tudo está em tensão, quando o material técnico está
completamente organizado.
10.
boa qualidade.
[...]
171
14.
Cada ator deve possuir um equilíbrio convincente, certa quantidade de posições e diversos
rakursy que o permitam manter o equilíbrio. Cada um deve procurar sozinho o equilíbrio
15.
[...] deve dar conta imediatamente de cada mudança de posição do corpo em cada mínima
parte.
16.
O gesto é o resultado do trabalho de todo o corpo. O gesto é sempre o resultado do que o ator
17.
18.
Cada forma de arte implica a organização de um material. Para organizar a si próprio, o ator
A peculiaridade, e também a dificuldade, da arte atorial está no fato de que o ator é, ao mesmo
tempo, material e organizador do material. O ofício do ator é uma coisa complicada. A todo
19.
Uma dificuldade da arte atorial esta em conciliar com extremo rigor todos os elementos do
trabalho.
20.
treinamento. Durante a execução, cada tarefa vem programada com precisão em relação ao
espaço cênico; todos os movimentos do ator, até mesmo os reflexos, devem ser sempre
rigorosamente organizados.
[...]
23.
Em cada exercício coletivo o indivíduo deve renunciar de uma vez por todas ao eterno desejo
[...]
25.
É importante que qualquer exercício seja executado de forma precisa, não apenas no sentido
26.
[...]
173
28.
Toda forma de arte se baseia na sua autolimitação. A arte é, sempre e antes de tudo, uma luta
contra o material.
29.
Não se pode dar liberdade ao movimento. Deve-se, ao contrário, manter uma severa economia
30.
Piano e forte são sempre relativos. O público na sala deve sempre ter a impressão de que uma
reserva de material permanece não utilizada. O ator não deve em hipótese alguma esgotar toda
a reserva de material de que dispõe. Até mesmo o gesto mais explícito deve deixar a
[...]
32.
A biomecânica não tolera nada de casual, tudo deve ser feito conscientemente, com cálculo. A
todo o momento o ator deve estabelecer e saber à perfeição em que posição se encontra seu
corpo e utilizar desenvoltamente cada parte para colocar em prática seu propósito.
33.
Lei geral do teatro: quem dá livre saída ao próprio temperamento no início do trabalho,
34.
174
treinamento. Apenas então se pode abrir caminho àquilo que chamamos reatividade, caso
35.
Durante o exercício, todas as emoções são apenas esboçadas, limitando-se a indicar com
precisão onde e quando deve acontecer uma explosão. Um choro não adequadamente
preparado do ponto de vista técnico faz com que se perca inevitavelmente o equilíbrio e
[...]
37.
Para um ator, o controle do corpo está sempre em primeiro lugar. Não é a imagem que conta,
mas a bagagem do material técnico. O ator é um homem que organiza sem cessar o próprio
material. Deve conhecer de cor a gama das próprias possibilidades e todos os expedientes
técnicos dos quais dispõe para realizar um dado propósito. A capacidade profissional de um
ator é diretamente proporcional ao número das combinações possíveis da bagagem dos seus
meios técnicos.
[...]
43.
44.
175
ANEXO II
Vejamos aqui algo do qual fui testemunha um dia, em Petrogrado 354, na época das
multidão cercava (hoje como ontem) a tribuna do Hotel Kchesinski e bebia avidamente as
decadente, como um Petrouchka355, que parecia tão bem que nada poderia arrancar dali seus
picadeiro, uma “roda do diabo” que um rato adestrado faz girar. Apelando ao socorro de uma
lamentações, exibe uma bola de trapos, e a faz saltar magicamente de uma tigela a outra,
354
São Petersburgo ou Sampetersburgo - г, Sankt-Peterburg em russo) é uma cidade
federal da Rússia localizada às margens do rio Neva, na entrada do Golfo da Finlândia, no Mar Báltico. Os
outros nomes da cidade foram Petrogrado , 1914–1924) e Leninegrado , 1924–1991).
É frequentem
). Fundada pelo czar Pedro, o Grande, em 27 de maio de 1703, serviu de capital do Império Russo por
mais de duzentos anos (1713–1728 e 1732–1918). São Petersburgo deixou de ser a capital em 1918, após a
Revolução Russa de 1917. É a segunda maior cidade da Rússia e a quarta da Europa (em território) atrás de
Moscou, Londres e Paris. São Petersburgo é um dos maiores centros culturais da Europa e um importante porto
russo no Mar Báltico.
355
Petrouchka (Francês: Pétrouchka; Russo: Петрушка) é um ballet cuja música foi composta pelo
russo Igor Stravinsky e coreografado por Michel Fokine. A história é sobre um fantoche tradicional russo,
Petrushka, feito de palha e com um saco de serragem como corpo, que acaba por tomar vida e ter a capacidade
de amar, uma história que se assemelha superficialmente àquela de Pinocchio.
356
Em 1917, haviam muitos Chineses e Japoneses nos circos de Moscou: no Circo Nikitine, em outubro 1917,
"Tsao-San", trupe de artistas japoneses; no Circo Salomonski, no mesmo ano, estão os "Van Khoun-Dji", da
celebre trupe chinesa. Nos anuncios do Eco do Circo (L'Echo Du Cirque), 1917, n° 5, fala-se também de
"Imasaki", trupe japonesa onde trabalham do mesmo modo Chineses e Coreanos, sob pseudonimos japoneses
(citação da tradução do francês).
177
engole uma bola de vidro e a faz reaparecer ora pela orelha, ora pelo cotovelo. O Chinês
mostra, sem esconder nada, a solda de doze círculos de aço que tem diante de si, depois ele as
toca com suas mãos hábeis, e a dúzia de argolas tilinta bem alta no ar, agrupando-se em uma
única corrente. O que se passou? Cada argola penetrou uma à outra por uma abertura
bilhetes rasgados, imundos. A multidão se diverte, aplaude, e depois segue alegre para o
Quanto ao observador que aqui está por acaso dentro dessa zona violentamente
dividida em dois mundos, num lugar de duplo bombardeamento – esse do orador que tem seu
comício, e esse do malabarista de rua –, está curioso para saber qual dos dois vai lhe
conquistar. Ele ignora o resultado do jogo de ontem, e ele não prevê o de amanhã: mas hoje é
o malabarista quem ganha, quem vence este jogo entre o leninista e o Chinês.
Viva o Malabarista!
Eu gostaria de perguntar a vocês, vocês que trabalham sobre o picadeiro, a vocês, sim,
Eu sei que a resposta será “sim”. Vocês têm o direito de responder assim (e somente
assim). Então, permita-me outra questão: por que não ajudam ao seu povo?
que a Rússia se mostra ao mundo redimida de suas correntes, eu responderia sem hesitar: ele
tem necessidade de distração que apenas a arte do circo pode lhe trazer.
como o bacilo da peste –, arranca as pessoas, por rebanhos inteiros, da arena da luta pela
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Um dandie (dandy, origem inglesa) é um homem de extrema elegância e muito refinado, mas também
de um espírito afetado e impertinente. Termo proveniente do movimento “dandismo” dos fins do século XVIII
da Inglaterra.
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honra; quando a força de caráter está quase em via de extinção, é preciso oferecer ao púbico
Glória à revolução que reduz a censura à fumaça! Mas qual censura dever-se-ia
instituir hoje? Essa que saberia estritamente interditar qualquer arte que gotejaria na nossa
vida o definhamento da vontade. Desde que a liberdade da palavra foi adquirida, uma
completa desordem se instala na cena, os atores começam a apresentar peças outrora proibidas
pela censura, e cegos pela faixa vermelha do veto do censor, ele apenas viram essas peças
representando o aspecto miserável de nossa cinzenta vida, nossa vida cotidiana, nada além do
nosso cotidiano; eles não pensaram que essas obras tinham sido encenadas em tempos de
O que pensam disso? Se ele ousasse arriscar sua vida por um looping, este aviador a
quem a estreia atraiu se, no teatro, nossos atores tivessem-lhe apresentado no dia anterior um
espetáculo de mais de três horas: uma peça à moda num ambiente “panpsicológico”? Ele
nunca teria conseguido! Quando então hesitava, achou ajuda levando-o a decidir arriscar sua
alto voo!
Pequenas taças de porcelanas dispostas sobre um palco, o Chinês pega o palco em suas
mãos e enfia sua cabeça embaixo de um praticável de 6,50 metros de altura; dá piruetas no ar,
a venda já sobre seus pés e mostrando ao público a porcelana intacta. “O homem sem nervos”
dá um salto arriscado para trás do alto de uma pirâmide de mesas, sem deixar sua cadeira e,
pirâmide de garotos do picadeiro, consegue repetir seu número inúmeras vezes. O salto
arriscado sobre cavalos montados sem preparo... Os acrobatas dos “Quatro diabos”... Esse que
é endurecido pelo amor ao circo completa a lista desses números vertiginosos que nem sequer
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podem se inscrever na memória de nossos aviadores. Agora que os aviadores giram ao redor
dos tetos de nossas casas, quando a velocidade atinge quase 120 km/h para que se viva sem
vegetar, em meio à resplandecência do sol, para criar uma vida feliz, uma vida forte, o homem
Mas junto a quem aprender esta arte: criar e viver dentro da audácia?
Esse que voa ao som de uma doce valsa, bem ao alto da cúpula do circo, não sabe o
Convide-nos rápido ao seu “espaço de criação”, rápido, faça fluir dentre o nosso
Mas por que a porta de nossos circos continua condenada às tábuas pregadas?
Condenados pelas sólidas partes dos teatros de inverno, eis uma explicação: As
pessoas em férias (que é seu próprio público) devem viver dentro de suas datcha358. Seu
morrer?
Trabalhadores do circo, eu lhes chamo, eu lhes questiono; pois todo seu público está
presente. Veja os domingos e os feriados, os sábados e as vésperas de festas, ele está aqui, nas
Veja como seu público se entedia, como se convalesce, como ele parece esperar
alguma coisa. Esmagado de tédio, esta multidão rói as sementes de girassol (eis a sua única
distração), ela desaprendeu a rir e apenas sorri raramente quando diante de si vem este artista
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Do russo ( ) datcha é o nome para fazenda, casa de campo ou mansão, para ser usada no verão e
primavera. Muito comuns na Rússia, pessoas que moram nas grandes cidades costumam ir para suas datchas nas
férias. Algumas ficam à beira de rios ou lagos, outras em colinas e outras em meio a bosques, mas sempre em
locais abertos com paisagens ricas, utilizada sempre como casa de veraneio.
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estranho, esse malabarista Chinês com seus ratos e suas espadas, seus malabares e suas facas e
seu “Andriouchka”.
Por que então vocês, acrobatas russos, não vão à direção deste povo que tanto lhes
espera?
Por que não temos mais nas praças acrobatas voadores? Por que não temos mais circos
ambulantes, ao exemplo desses que se instalaram facilmente nas praças dos mercados em
Oh, onde está o balagan360 russo? Onde se esconde Petrouchka? Por onde passaram os
garotos equilibristas que andavam pelos corredores – não faz nem tanto tempo –, e que
esticavam diante de nossos pés os tapetes que teciam? Onde estão os teatros de marionetes?
Onde estão as pantomimas com as cozinheiras e os Indianos, com os acrobatas dos papéis
femininos?
inteiramente sobre as bases do excentrismo circense. Retirem desse filme americano todos os
truques acrobáticos e nada restará dele além de uma bola de sabão. Eu vi também o público de
Moscou forçando a porta do cinema. Querem saber por quê? Eu respondo: para ver a luta,
para ver a vitória do vale-tudo sobre o medroso. Eu tenho certeza, pois dentro desse filme, o
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Fiorde é uma grande entrada do mar em volta de altas montanhas rochosas. Localizam-se
principalmente na costa oeste da península escandinava e têm origem na erosão das montanhas por causa do
gelo.
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Teatro de Feira em Russo.
361
Les Mystères de New York (The exploits of Elaine) é um seriado em preto e branco de Louis Gasnier
de 1915.
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Por que então vocês, gente do circo, não se apressam a propor sua arte a estes que têm
sede do seu excentrismo, que desejam o canto do seu corpo maleável, que param à sua frente,
suplicando para que lhes deem um espetáculo, apesar de todo seu tédio na reza para o pão de
cada dia?
Digam-me por que cedem seu espetáculo ao cinema ávido que se nutre de seu cardápio
com a única diferença que os pratos são falsificados pelas histórias de “mão misteriosa” e
ANEXO III
Foregger fez uma exposição sobre o tema “O renascimento do circo”. Para ele, não há
fronteiras entre o circo e o teatro. O teatro e o circo são “irmãos siameses”. Elementos teatrais
irrompem no circo, e o circo aspira impregnar com seus sortilégios o domínio do teatro.
Foregger lembrou que na Espanha do século XVII, um cão adestrado passeava entre os
espectadores no teatro, e que na época elisabetana um funâmbulo fazia a ligação entre os atos
mesma “crise” sobre a qual debatemos violentamente, há pouco tempo, a propósito do teatro.
cenário, pintar as celas dos cavalos, etc. Acredita que somente os homens de teatro são
situação: de um lado, o teatro do drama, “teatro das grandes paixões”, do outro, o circo,
Meierhold que interveio como contraditor único. Segundo o camarada Meierhold, o circo não
deve ser reconstruído sobre princípios que lhe sejam estranhos. Sua reforma deve nascer do
interior, ou seja, dos esforços dos próprios artistas de circo, pois não há e nem deve haver
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teatro-circo. Esses dois elementos existem e devem existir cada um por si: circo e teatro. As
criações dos mestres do circo e as dos mestres do teatro realizam-se e devem realizar-se no
contexto das particularidades arquiteturais de dois espaços cênicos diferentes e de acordo com
fizeram e ainda fazem muito mal à prosperidade da arte do circo enquanto tal. A bem dizer, o
circo, nas mais teatrais das épocas teatrais, contribuiu fortemente para a prosperidade da arte
contemporâneo, é necessário criar condições tais que a arte do circo e a arte do teatro possam
desenvolver-se cada uma em seu campo, seguindo linhas paralelas, e não secantes.
introduziram-se na pista circular do picadeiro. O circo, sem que se saiba porque, permaneceu
capitel de um circo, que exige de todos que ali entram uma maestria particular.
Os artistas de circo não têm nada a aprender nem com os atores nem com os
acrobáticos, isto não quer dizer absolutamente que se deva fundir as representações de circo e
evidentemente, havia compreendido de certa forma os segredos da acrobacia, pois era capaz
de maravilhar o público e os críticos de sua época com seus saltos excepcionais no teatro na
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cena do canto do galo, em Hamlet. É preciso lembrar constantemente ao ator de hoje que o
teatro do antigo Japão não permitia que ninguém se tornasse ator trágico sem ter passado
E o camarada Meierhold coloca uma tese oposta à de Foregger: não é com um teatro-
circo que devem sonhar os reformadores contemporâneos do circo; mas que, antes que o
artista escolha um desses caminhos, teatro ou circo, ele deve passar desde sua primeira
infância por uma escola especial que o ajudará a tornar seu corpo flexível, belo e vigoroso; e
isto não somente para o salto-mortale, mas para qualquer papel trágico (recordemos o jogo de
O ator contemporâneo que morre em cena utiliza a convulsão, ato curto, tedioso e
pouco expressivo, de um naturalismo assaz primitivo. Mas eis como morria em cena um ator
do antigo teatro chinês: ferido no coração, o ator projetava seu corpo no ar como um
equilibrista, e somente depois dessa “brincadeira própria ao teatro” ele se permitia desabar
O camarada Meierhold acha que é necessário criar uma espécie de escola artística e
acrobática, cujo programa deve ser construído de tal forma que o aluno, ao final dos estudos,
seja um adolescente são, flexível, hábil, forte, arrebatado, pronto a fazer uma escolha de
acordo com sua vocação: o trabalho no circo, ou o teatro da tragédia, da comédia, do drama.