TEORIA DA HISTÓRIA
Uma teoria da história como ciência
Reitor
Zaki Akcl Sobrinho
~
- - - U FP I ~
Teoria da Históri a: Uma teo ria da his tô ria como ciência
Capitulo V:
precisam
h. • · ser - resolvidas
. discursivamente. A racionalidad, e d a narrativa
. Metodologia - as regras do método histórico
1st~r_ica nao se rest~mge, todavia, a isso. Existem práticas discursivas
tam em em outras dimensões de sua constituição de sentido, nas uais
se enunciam pre'.rnsões de plausibilidade que podem ser resolvid;s de
acordo
.· com
. cntenos. específicos de se ntido · Em t empo.. no centro da
~ac1onalidade especificamente cú;ntífica estão os procedimentos metó-
'.cos do pe_nsamento histórico. E por eles que as categorias, as tipolo-
gias,
e 1· · e os conceitos adquirem sentido e pode m desenvo1ver sua
as teonas
1orça exp 1cat1va.
)(, i 1
Teoria da Históda: Uma teoria da história como (10 11 c.. 1a
Teoria da História: Uma teoria da história como ciência
. _.. ··a também põe questões que não procedem da vida prúcio,
Para se responder adequadamente a essa pergunta seria totalmente mais, a _1enc1 .. . .
mas que resultam de um interesse cognitivo d1sta'.1c1ado. .• . .
equivocado tomar como medida uma ciência altamente desenvolvida,
A segunda propriedade essencial, compartilhada pela_ ci~~c1a .d.1
que seja vista como especialmente científica, como por exemplo, a física
história com todas as demais ciências, é uma relação, por_ pnnopio, io111
ou a biologia, e medir a ciência da história por elas. Uma comparação
a ex nência. Essa relação se caracteriza por duas propnedades: (a) no
desse tipo acaba conduzindo sempre (por motivos lógicos) a resultados
negativos. Ao invés disso, as diferenças das disciplinas o:i instituições
. bP: ecifico da ciência, as experiências históricas
am 1to esp E
são expandiJ;1,
l - com I ex
e aprof.rndadas, ilimitadamente, pela pesquisa. ssa r~ açao . ·, -
estabelecidas para a produção de conhecimento (que se autoproclama .• . . . l 'm do que é usual fora do maneJ0 profissional do
"ciência") podem ser escrutinadas a partir de caracterizações comuns, a penenaa vai mmto a e d ·
ponto de aparecem como configurações distintas de um mesmo "espíri- passa de, humano. Para tanto, é preciso, por certo, que (b) .º ,~ªs:a .o, vi~'
to científico" comum. vente e influente nas orientações culturais do presente, sep O~Jet1vado
e transformado, metodicamente, no acervo de informaçõ~s. obtidas sobre
/ Esse espírito aparece em determinadas características do saber e
do conhecimento. Ofereço aqui uma lista das mais importantes. f;atos. (eab _ do s,1txr
e ressaltar que a possibilidade de recuperar a fact1c1dade _
empírico na vivacidade da lembrança histór'.ca é outra questa~ - _quesca~
Características determinantes do conhecimento cient~fico. O primeiro essa qu~ vai além da metodologia da pesquisa, alcançando os pr oblem .,~
ponto a chamar a atenção é a constatação genérica de uma terminologia básic:is da apresentação historiográfica) . . ..
conceituai especializada. Ela sempre impressiona os leigos, quando não Um terceiro elemento essencial do pensamento histónco espcu~-
lhes causa estranheza. Trata-se da utilização de construtos cognitivos camente científico é seu caráter procedimental enquanto argumm/11(,10.
fundados em procedimentos abstrativos. Esses procedimentos abstra- Suas pretensões de validade têm, por princípio, de (poder) ser fünda-
tivos podem - embora não necessariamente tenham de - conduzir a mentadas. Essas fundamentações se dão de modo .argumen~at1vo em
teorias explícitas. Necessitam, contudo, determinar o manej~· das ma· práticas discursivas.!ais práticas podem s~r _evidenciadas na lmguaµ;~ni-
térias tratadas. Abstração significa ~scapar da imediatez daE impressões especiajzada utilizada aqui e analisadas (criticamente) quanto a _seu teo1
das experiências, mas exclusivamente com o fito de conhecê-las melhor. metódi:o. As linguagens especializadas, malgrado todas su_as ddcrc1?'~:
Se textos historiográficos forem comparados com os que são típicos possuem determinadas propriedades cogn~tivas comuns: tem de possu11
de outras ciências, como as matemáticas, por exemplo, chama logo a coerência lógica e consistência formal-rac1onal.
atenção a presença, nos primeiros, de um grau comparativamente me-
nor de terminologia conceituai especializada. A historiografia não tem Ciência como pesquisa. Essas três propriedades convergem nu'.1:·'
como deixar de utilizar intensamente a linguagem dominante na cultu- quarta: a pesquisa regulada metodicamente, enquanto processo cogn 1r_1 -
ra histórica de seu tempo, praticada fora dos discursos das disciplinas vo. De for ma breve e simples: ciência é método. Ela_ submete o pens.1-
especializadas. Isso decorre do fato de os princípios da constituição de mento a uma regulação, com a qual é possível produzir sempre um '.1'.>vo
sentido, determinantes do pensamento histórico, conectarem o conhe- saber. P. pesquisa metódica habilita a ciência para o progres~o cognitivo.
cimento científico diretamente com a vida prática. Se o conhecimento Com esse caráter metódico, 0 saber especificamente cie.nt'.fico adquire
histórico cientifico, pela linguagem, se apartasse totalmente dessa práxis, aindc. mais uma propriedade: a controlabilidade intmub1ettva. I sso v,1le
perderia sua relação com a prática, a qual é elemento essencial de um também para O conhecimento histórico, embora este dependa de modo
conhecimento significativo. Por outro lado, o caráter científico da ciên- todo particular da subjetividade daqueles que se servem dele (que que-
cia da história surge e decai também em função da sua capacidade de rem sabê-lo). De quem se trate, a cada vez, tem menos a ver com~ que
se distanciar das questões que lhe são postas pela vida no mundo. Esse hcmens têm em comum enquanto sujeitos, mas com o que os_di~t'.n -
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distanciamento tem o sentido de proporcionar que se possa responder gue em suas vidas concretas e na respectiv~ dinâ_mica: O saber h1sron.:o
a tais questões (ou, em termos mais comedidos, que se possa contribuir possui a faculdade de distinguir, constitumdo 1dent1dades._ Isso levou,
para uma resposta) de modo particularmente objetivo, desembaraçado com demasiada frequência, a que o saber histórico só fosse tido por ver-
da pressão exercida pelas carências históricas de orientação. Além do
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i
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Teor ia da História: Uma teoria d a his tória como ciência Teoria da História: Uma teoria da história como c:énc1,1
<ladeiro por aqueles a que se dirige ou que deles se servem 169. Foi atribu- conhecimento fundamentável. Tal itinerário pode ser assim descrito: no
ído a tal pensamento um partidarismo (ou posicionamento) fu ndame n- início, está a pergunta histórica e, no final, a resposta a essa pergunta. O
tal, em direta contradição com o entendimento usual de objetividade, primeiro passo do pensamento histórico consiste em extrair perguntas
que restringiria fortemente suas pretensões de validade, se é que não as das orientações temporais prévias da vida prática acuai e do acervo de
prejudicaria de vez 170 • Objetividade histórica, contudo, é outra coisa. Ou conhecimento histórico disponível - perguntas que podem ser posras ã
seja: é uma determinada forma de tornar efetiva a subjetividade peculiar experiência histórica e respondidas a partir dela. No final, tem -se a res-
capaz de distinguir sujeitos, ou seja, de não excluí-los, mas de levá- los em posta às perguntas. Esse final seria, por certo, a apresentação históri ca.
conta. A peculiaridade dessa relação subjetiva consiste no fato de ela Essa apresentação não pertenceria, então, ao processo de pesquisa? Cer-
efetivar-se de modo plenamente reconstituível, vinculando-se, portanto, tamente o pensamento histórico se completa na apresentação, na for-
discursivamente a fundamentos (ou ao menos se apresentando como matação de seus resultados de pesquisa. Por outro lado, a apresentação
fundamentável). Essa relação pode ser trabalhada argumentadamente não obedece, primariamente, a critérios cognitivos. Ela não é regulada
/ por todos a quem o saber histórico diz respeito. metodicamente como a pesquisa. Ela pressupõe a pesquisa, mas não a
Com as propriedades anteriormente mencionadas (terminologia inclui enquanto tal. Ela predispõe a pesquisa na perspectiva da apresen-
conceituai, relação com a experiência, caráter argumentativo e pesqui- tabilidade de seus resultados, embora não seja parte da própria pesquisa,
sa regulada rnetodiçarnente), o saber histórico produzido nos processos mas, antes, um modo de lidar com os resultados da pesquisa. Faz senti-
lnvestlgativo~ da ciência da história adquire um caráter especificamente do, por conseguinte, malgrado a íntima relação de interdependência da
clent{fim Por tal a ciência da história é efetivamente umá ciência, Essa pesquisa e da apresentação, distingui-las metodologicamente.
quaÍidade não lhe deve ser subtraída pelo tato de olitras ciências ressal- O pensamento histórico, em sua configuração científica (ou seja:
tarem ser a história peculiar e diversificada. como processo de pesquisa), consiste em um procedimento cognitivo
que começa com uma pergunta. Ele faz essa pergunta aos dados empíri-
2. A unidade do método histórico cos, nos quais o passado está presente; obtém desses dados informações
sobre o que, onde, como e porque foi o caso no passado. Em seguida,
O método histórico é a suma de todas as regras que determinam organiza essas informações em um contexto de acontecimentos, que
o pensamento histórico enquanto processo de pesquisa. Pesquisa guiada explica os acontecimentos particulares em sua sequência tempor,11. O
P,ºr regras confore ao conhecimento histórico justamente aquela capa~ final desse procedimento é aberto. Ele só se completa na representação
cidade de t'undamentar que o caracteriza como ciência. Dificilmente se natrativa desse contexto temporal, em consequência da pesquisa.
pode pôr em dúvida a existência de tais regras, Menos diretamente per- O método histórico é a regulação desse processo cognitivo, que.
ceprível é, todavia, a existência de uma correlação sistemática entre essas torna seus procedimentos cognitivos (ou etapas reflexivas) particulares
regras que se possa chamar de "o método histórico", (distinguíveis artifiçialmente uns dos outros) reconstituíveis, controlá-
Em que consiste essa unidade? "Método" significa, originalmente, veis e, com isso, criticáveis. Esse método pode ser explicitado enquanto
"caminho". Tomando-se essa acepção do termo, a unidade do método unidade das três formas de pensamento ou estratégias cognitivas: hrn-
consistiria no itinerário a ser percorrido pelo pensamento, a fim de obter rística, critica e interpretação.
Essa é a "metodologia" tradicional da ciência da história, tal como
16,9 _ É assim para Droysen,cuja teo ria da história eu cito sempre como u m paradigma. A proble-
desenvolvida inicialmente pela Sistemática de Droyscn171 e tornada en-
mat,ca fundamental desse tipo de entendimento da objetividade fo i ressaltada po r Wilfri ed Nippel tão canônica por Bernhcim 172 e outros autores.
de forma bem clara (Das jomhend, Vtr,t,hm, die Obj,kt iv itiit de, H istoril,m und di,• Funl,tion d,·r
Archive, p. 337-377). Ver também (com uma análise bem mais diferenciada): RIES, K. (Org.)./ohw11,
Guitav Droyun.
17 1 DRO YSEN ,J. G . Hi,torik, cd. Leyh, p. 65- 28], 399 -406. Nesta vcrs;io,orii-:in.il, ,J;, ,.,.,
t«>ri.,
170 O texto clássico a esse respeito é BEARD, C. A. 7hat noble drram, p. 74-87. Pctcr Novick rc· da históri:.t, D roy~cn ninda ind ufo. :i :iprcscnta ç:io (;,1podci..'-'.is) no do m ínio da pcsc1uis:1. N,ts vasfü:s
tomou ess.1 argumen tação e buscou torná -la plausível mediante uma investigação cmpirirn de grande posterior~:;, Droysen passaria a tratar ;t :iprcscnrnç:lo tomo opcr:u.;:i.o :i parte, ~ob o titu lo de "Tópi<.";1".
por te: NOVlCK. P. 7hnt Nobl, D ream. Fica a ques tão de se sa ber se os resultados dcss;1 p«quisa 172 BERNHEIM , E. Lchrb11,h ,1,.,. H ütoriuhm M,•thod,· 1111d d,•,- G,·.,d,i.-hophilo,oph,,· (c11j.1 pri·
também perte ncem ao "sonho"ou se pretende m ter alt,'1.Jma validade. meir;1 cdiç:io cm Lcip1.ig, 1889, sc intitulav~: 1-thrhurh drr Hirtori,rhn, Mtthodt') ,
170 1/1 1
Teoria da História: Uma teor ia dê:! hi5tófla como (H' !\c.w
172
Teoria da Históri a: Uma teoria da histôria como ciên cia
Teoria da História: Uma teoria da história como ciência
com efeito, ser elencados, tanto de forma positiva como negativa. Ne- nos assim chamados vestígios ou fon tes. Seria, porém, um equívoco de
gativamente, a pergunta histórica deve ser submetida à exigência de consequências fatais para as historiadoras e os historiadores considerar
inovação. Ela tem de ser libertada da inércia impositiva das questões esse estar dado corno a única forma em que o passado está presente.
habituais, da obrigação de obedecer às rotinas consagradas de pesquisa. O passado já está presente, de maneira altamente eficaz e vivaz, nas
Ela deve estar aberta ao fascínio do inaudito, do estranho, do intrigante circunstâncias do próprio pensamento histórico, enquanto resultado de
nunca antes examinado, do enigma do óbvio - enfim, deve estar aberta evoluções passadas. Isso vale também para todas as formas da lembrança
a tudo o que esteja além dos campos já apreendidos pela pesquisa da e da memória. Essa presença vivaz do passado, contudo, não é a em pi ria
experiência histórica. a que se dirige a pergunta histórica. Empiria é o passado objetivado.
Dito de maneira drástica, o passado vivo nas circunstâncias da vida pre-
Três regras da heuristica. Essa regra heurística da desregulação pode
sente teria de ser morto metodicamente, para poder ser visto enquanto
levar, facilmente, a um perguntar histórico puramente arbitrário. Um
passado. Só assim o passado aparece, tanto em sua diferença temporal
tolo sempre pode perguntar muitíssimo mais do que é capaz de respon-
quanto na especificidade e diferenciação com respeito ao presente. Heu-
der, Evita-se, porém, tal tolice ao vincular a pergunta histórica a dois
risticamente, o passado vira "coisa", conteúdo material da manifestação
critérios metódicos positivos: (a) o valor de inovação de uma pergunta
empírica da vida humana passada. Ele só se torna objeto de pesquisa em
histórica não é medido por o quão além vai do saber histórico já acu-
sua forma coisificada. O perguntar histórico da heurística tem de proce-
mulado, Trata-se, antes, de que dimensões e conteúdos empíricos do
der a essa objetivação (ou seja: haver-se com a poeira dos arquivos), sem
passado são abertos e apreendidos, e que significado essas dimensões e
o que respostas pertinentes não serão obtidas.
conteúdos possuem para a satisfação das ca~ências de orientação que o
pensamento histórico suscita no mundo em que vivem os historiadores. A regulabilidade do perguntar. A pesquisa histórica cuida dessa ma-
(b) Tal produtividade do perguntar, naturalmente, não é possível sem se terialidade do saber e do conhecimento. Na tradição da teoria da histó-
levar em consideração o saber histórico acumulado. Inovação não signi- ria, isso fica claro em muitos manuais antigos de metodologia, em cujo
fica, por certo, ignorância dos acervos disponíveis do saber, mas reflexão início logo aparece a classificação de todos _?S materiais possíveis em
sobre o ainda-não-sabido. Isso supõe familiaridade com o estado da arte que o passado está empiricamente presente. E enganoso, porém, come-
da pesquisa tematicamente pertinente assim como com as concepções çar metodicamente uma pesquisa pela operação de coligir e percorrer
teóricas e procedimentos metódicos que lhe subjaz. material das fontes 175 • O que é fonte depende, pura e simplesmente, do
A regra negativa, que se abre ao espaço indisponível das intuições, que eu quero saber. E o que eu quero saber depende, por sua vez, de
ganha duas regras positivas. Uma faz reconhecer a força mobilizadora minhas perguntas. Reguladas metodicamente, as perguntas se tornam
dessas intuições surgidas das carências de intuição e das experiências da problematizações explicitadas. Sua plausibilidade pode ser controlada
contingência do tempo atual: pergunta de modo que tuas pesquisas le- de dupla maneira: de um lado, pela carência de orientação do presente
vem a resultados que correspondam às carências i11satisfeitas de orienta- e, de outro, pelo acervo de saber acumulado. As perguntas históricas n.io
ção de teu tempo. (Lacunas não são impulsos de pesquisa especialmente podem ficar aquém do atual acervo acumulado, Elas têm de ir além dele,
inovadores). A outra regra articula a força mobilizadora das intuições mas não em uma direção qualquer, mas na forma de contemporaneidade
disponíveis com o acervo de manifestações empíricas do !<assado huma- sensi bilizada e de conjecturas concretas. É isso uma regra metódica?
no: dirige tuas perguntas históricas originadas na carência de orientação Se "regra" significa que os historiados se obrigam a satisfazer uma ca-
do presente de modo que possam ser respondidas pela pesquisa. Isso quer rência de orientação que lhes é repassada (seja lá por quem for), isso
dizer que perguntas históricas têm de tornar as fontes acessíveis (de fa- seria heuristicamente contraprodu tivo. Isso confütaria com a obrigação,
zê-las falar). Uma pergunta histórica tem de desembocar em um movi- anteriormente enunciada, de libertar o pergu ntar histórico da press.io
mento de busca, que se dirige ao material no qual o passado está presente. conformista das rotinas consagradas, e submeteria a pesquisa histórica
a um partidarismo politicamente organizado, contdrio à ciência. Por
O que significa empiria? O termo "material" designa um modo de-
terminado de o passado estar presente: seu estar dado empiricamente
175 Ver, por exemplo. HOWELL, M . PREVENJER, W. /,lh 1u111t dti 1 /iJtorik.-r.1.
1 17 4 17S
Teoria da História: Uma te oria da h istória como c1enc1~
Teoria da História: Uma teoria da história como ciência
outro lado, a produtividade de uma problematizaçto histórica específica sentido. Com iss:> não é só o olhar a ser dirigido a fatos novos, mas cks
não é desregrada, pois ela pode ser discutid::.. Para tal discussão, são de- mesmos ::.parecem em luz nova. O próprio olhar é modificado.
terminantes critérios de coerência que dizem respeito à relação de cada
, problematização com o acervo de saber da espeóalidade e, além dele, b) Descobrir: a resposta da empiria
com a cultura histórica do tempo e da vida. Em sua segunda etapa, heurística diz respeito à "descoberta" (heu-
A plausibilidade de uma problematização histórica se baseia em reka, em grego, significa: descobri, achei, encontrei). Para poder descobrir,
sua capacidade discuniva. A garantia metódica éessa capacidade está é necessádo primeiramente buscar. (Sempre é possív~l topar co1:1 d:dos;
em que as perguntas ?Ostas se referem explicitamente ao discurso es- não obstante é bem necessário haver começado a caminhar). Assim e que
pecializado respectivo e podem ser fundamentadas (críticamente) com pertencem à heurística as regulações que dizem respeit~ à ~roduti~idade
respeito ao saber atual e ao desafio de ir além dele. ; sso assegura que não do perguntar histórico e à plausibilidade das problemat1zaçoes h1storicas.
se fiquem aquém dos padrões de capacidade discursiva das problemati- No inícic- da pesquisa está o esclarecimento metódico do que deve ser
zações já alcançados no espaço público interno da especialidade. Esses sabido. A pesqui.5a ficaria suspensa no ar, se em seguida n_ã~-passasse ao
padrões também podem ser superados. Para tanto, necessita-se estabe- esclarecimento metódico do que pode ser sabido. A heunstJCa torna-se,
lecer relações entre os discursos especializados e a cultura histórica, que dessarte, 0 método da descoberta das fontes, cujo conteúdo informativo é
determinam, por princípio, as possibilidades e os l:mítes discursivos da neceEsário e suficiente para responder às perguntas histó ricas post.1s, para
consciência histórica, Problematizações históricas, que vão além desses a solução dos problemas históricos formulados.
limites e tencionam expandir essas possibilidades e que podem tornar Com essa etapa operativa da pesquisa, a heurística passa cio reino
plausível tal intenção pela crítica dos resultados cognitivos obtidos até etéreo (embora também intelectual) das perguntas inovadoras e das con-
agora, caracterizam-se por uma alta produtividade heurística. jecturas bem fundadas ao vasto reino terra a terra da documentação, c~m
Problematizações particulares podem surgir também a partir de suas muitas disciplinas especializadas, as quais possuem, para a pesquisa
constelações interdisciplinares. Os problemas e os conhecimentos de ou- histórica, o estatuto de disciplinas auxiliares indispensáveis (por exemplo:
tras ciências, que se ocupam do homem e de seu mJndo, têm condições a arq·Jivo:ogia). O (sempre crescente) potencial dos apoios técnicos _p,1rn
de provocar a heurística da ciência da história e mesmo, eventualmente, descobrir o material pertinente das fontes só é menosprezado por histo-
de influenciá-la maciçamente. Isso vale, em tempoi recentes, sobretudo riadores cujas re,postas empíricas são ruins demais para a elevada arte
para a etnologia176 • Anteriormente, valia para as ciências sociais, a socio- do pergunt.ar historicamente. O profissionalismo e~pe:i_alizado se revela,
logia e a economia. Todas propiciaram novas perspectivas históricas. porém, apenas quando a formulação de perguntas h1sroncas se fn n~ ~10-
No passo em direção à empiria do passado, as perguntas e proble· rizonte das respostas possíveis e com sentido. Boas pergu'.1:as lmromas
matizações históricas demonstram sua fertilidace heurística ao assumir conduzer:1 à apreensão do conteúdo informativo dos resqu1c1os do passa-
a forma (regulada metodicamente) de conjecturas (hipóteses) funda· do ainda subsistentes e que podem dizer o que, quando, onde, corno e por
mentadas. Nessa forma, o questionamento da he:Jrística que vai além do qu~ ;l.l.~o iu:ont~ççµ, P~rn rnmo, 11sm r(lsqµ jçíqs ~ev~m ser col_etr1dos, l:xa-
status atual conecta-se sistematicamente com o acervo de saber prévio, rninados e preparados, sistematicamente, para uso na pesquisa. Trata-~e
cuja. expansão e aprofundamento objetiva promover. Esse acervo é ex· de operações het:rísticas, que transformam a produtividade do perguntar
pandido quando as perguntas deixam intactos o acervo de saber prévio histó:ico na plausibiltdade das respostas recheadas empiricamente.
e as estratégias cognitivas que o embasam. Esse acervo é aprofundado
quando as perguntas problematizam e modificam as estratégias cogniti- e) Tradição e vestígio
vas, e quando organizam os acervos de saber em conjuntos históricos de
Para a pesquisa histórica, possui significado decisivo o que seja
historicamente relevante em meio à grande vastidão do que ainda resrn
do passado humano. Segundo que critérios são obtidos e avaliados os
176 Ver o artigo clássico de 1-:itns Medick: "Missio nare im Ruderboot> Ethnologische Erkcnnt-
niswcisen ais Herausforderung ar, dic Sozij lgeschichtc", p. 295-3 l 9.
1 /1
1 176
Teori;i da Historia: Uma ti-)oria dà história como ciência
1"<-odil d.'.l His1ória: Uma tco f i,'l dJ h1•,ton il como ( 1<'nci<1
dados das fontes que informam sobre o especificamente histórico do A distinção entre tradição e vestígio é relativa. A pesquisa vive <la
passado humano~
convicção que, por princípio, todas as tradições, mediante os acervos de
1
Na heurística, esse problema é debatido na distinção entre tradição fontes, possuem caráter de vestígio, ou seja: apresentam-se cm forma
e vestígio, como qualificação dos acervos de fon tes. As fontes possuem material-objetiva, e podem ser examinadas, nessa fo rma, de acordo com
a qualidade de vestígio quando sua manifestação do passado se dá não os critérios da pertinência empírica. Inversamente, todos os vestígios
intencionalmente, ou seja, não está dotada de produções específicas de dão testemunho dos sujeitos que os deixaram ou que, pelo menos, os
sentido que poderiam ser incorporadas no conteúdo significativo da lem- marcaram de alguma maneira. Sem ser relacionados ,\s detcrmina~·ôcs
brança futura (por exemplo, restos de lixo, que testemunham os hábitos de sentido relevantes para o agir desses sujeitos, tais vestígios não são
alimentares). Ao revés, as fontes possuem a qualidade de tradição quando historicamente qualificáveis.
essas características de sentido já lhe foram incutidas intencionalmente A pesquisa histórica lida com essa tensão heurística prévia entre
(po~ exemplo, monumentos ou relatos históricos). Vestígios são extrínse- sentido e faro, entre significado e experiência, no trabalho com as fonrcs .
cos ~s determinações de sentido com as quais processos temporais foram Não são as fontes que decidem sobre que história pode ser escrita cm
qualificados como histórias, median te interpretação histórica, Tradições resposta significativa a cada pergunta histórica. O critério de sentic!o ín-
contêm em si ou sustentam essas determinações de sentido. Vestígios são sito à pergunta histórica precede todas as informações das fontes. E esse
traços da vida passada; tradições são suas pegadas, que çond1.1zem ao pre- critério que decide a qualidade informativa que as fontes podem ter. Por
sente, não por mera cronologia, mas intelectualmente. Sem os elementos outro lado, a heurística direciona a presunção de sentido da pcrgunu
do tradicional (vale dizer: como simples vestígio), as manifestações do histórica aos acervos de fontes do passado humano de modo a dotar ;1
passado são sem sentido. Com esses elementos, elas se apresentam corno respectiva resposta de todas as qualidades expcricnciais de que as fontes
portadoras de significado para a orientação temporal no presente. dispõem - ou seja: de modo a ser formulada na fo rma de um saber his-
. , :ossib'./i~ades e limite.r dos elementos prévios de sentido. Por princípio, tórico empiricamente bem fundamentado .
cntenos prev1os de sentido são dados à pesquisa histórica. Com eles, as
experiências do passado são int~rpretadas e, mediante essa interpretação, 4. Crítica
transformadas em história(s). E tarefa da pesquisa tornar empiricamen-
te plausíveis essas determinações de sentido de processos temporais e as A crítica das fontes é a primeira etapa de tal s,tbcr empíriço. Clil
dotar da fo rça de convencimento da experiência trabalhada. A distinção consiste no procedimento de pesquisa pelo qual ~t! PPfêm, il pill'rir dn~
heurística entre tradição e vestígio lida com as possibilidades e os limites resquícios do passado, informações co nfiáveis e controh\vds sobre u
de tal dotação empírica e da consolidação dos contextos históricos de que, quando, onde, como e (dentro de certos limites) porque foi o ClSlJ.
sentido. Segundo a direção tomada pela pergunta histórica, a mescla de Depois de a heurística reu nir o acervo de fo ntes (com sua complcx,1
trad ição e vestígio no corpus das fontes varia. Caso se trate de extrair da qualidade de tradição/vestígio) relevantes para a resposta ;'t pergunta
experiência do passado potenciais de sentido para a orientação existen- histórica, começa - com a crítica das fontes - sua avaliação. Os fatos do
cial no presente, trabalha-se empiricamente com as tradições. Caso se passado são extraídos, controladamente, de suas manifcstaçôes empíri-
tratr, inversamente, de distanciamento crítico de modelos históricos de cas no presente.
orientação, culturalmente influentes, ou de abertura de novas possibili- A crítica das fon tes pode ser dividida em três procedimento, me-
dades de determ inação temporal de sentido da vida prática, prevalece tódicos:
a gu:1lidade de vestígio da experiência histórica que ainda não tenha 1. A Cl'{tica externa das fontes investiga o caráter de fonte de um
sido absorvida nos elementos prévios de sentido. As fontes man ifest:101, estado de coisas. Ela esclarece a guestão quanto a se um determinado
então, fatos cujo sentido ainda tem de ser descoberto interpretativa- vestígto é ou não fonte; por exemplo: se se está diante de uma falsifi -
mcn te, enqu anto no primeiro caso as fontes dão testemunho do sen tido cação. A expressão chíssic,1"crítica da autenticidade" diz bem do que se
enquanto faro. trata aqui. Não deve negligenciar, contudo, que mesmo falsificaçêlcs s:io
fontes, embora não no sentido que aparentam ser. Antes, elas reveLirn
Teoria da História: Uma teoria da históna corno ciência Teoria da História: Urna teoria d.J hístório r(11n0 r :i'"'nc-i;\
o que tentam esconder ou camuflar (algo sobre intenções de seus auto- nado às culturas (sobrariam apenas lutas interculturais pelo poder). No
res, estratégias de engodo ou fraude, critérios específicos de um tempo entanto, a acuidade crítica dessa postura volta-se contra si mesma. Pois
quanto à plausibilidade, dentre outros). so::ne que experiência se poderia basear alguém ao buscar tornar enu nci-
2. A cr(tica interna das fontes, após ter sido constatado o caráter de ávc:is discursivamente as diferenças culturais no conhecimento histórico
fonte do material sob exame, investiga a qualidade de suas informações. mediante recurso a critérios transculturais de validade e, simultaneamen -
Isso se dá de acordo com dois critérios distintos: proximidade ~empo- te, rejeitar pretensões ilegítimas de dominação;, Se a objetividade da ex-
ral e possibilidade objetiva. Ambos os critérios servem para estipular as periência histórica for dissolvida no interminável jogo dos signific;\ntcs,
estimativas de probabilidade. A proximidade temporal possJi sigr.ificado ce,sam de existir acontecimentos constatáveis no passado, desaparecendo
especial no âmbito de uma estratégia de pesquisa que busque docu- qualquer controle experiencial dos enunciados históricos. O passado se
mentar eventos e cadeias de eventos. Como se sabe, a connabilidade da dissolve na perspectividade de sua consideração 178 .
lembrança decresce com o afastamento temporal do lembrado. Assim, Tendo em vista esse argumento, cumpre identificar e analisar te-
em princípio, a plausibilidade de uma documentação aumenta com a oricamente certas tendências de desenvolvimento transculturais mesmo
proximidade com o tempo do documentado. Na edição crbca de relatos qLando, na definição de fontes e no manejo destas, se recorre a modos
e documentos, a ciência da história desenvolveu uma sofisticada arte de de pensamento culturalmente específicos. Tais tendênci as abrangen tes
reconstrução de textos originais a partir de versões tardias e, não raro, pc-dem ser valorizadas como pressupostos de uma comunicação in ter-
divergentes. cultural produtiva e, naturalmente, também çdtica 179 , O mesmo pode
3. O critério da possibilidade objetiva controla o te::,r das fontes se: feito com o manejo da multiplicidade de perspectivas históricas . En-
quanto a sua coerência com o saber histórico comprovado e, para além qLanto sobrar alguma coisa do passado nas perspectivas, estas podc111 ,er
dele, com os acervos cognitivos empíricos de outros saberes atuais. Sa- comparadas entre si e postas cri ricamente em relação.
be-se que as fontes podem estar marcadas por um entendime:ito da
Agregados complexos de fatos. As operações da crítica extern,1 e in-
realidade totalmente distinto daquele dos historiadores que co:n elas
te: na das fontes, amplamente valorizadas e expostas pelas metodologias
trabalham. Para a plausibilidade do que uma fonte relata como fato, é
tradicionais da pesquisa histórica 180 , são seguidas por uma terceira, c:a -
decisivo, no caso de dúvida, não o que diz a fonte, mas a compreensão
da realidade pelo historiador. racterística da pesquisa histórica moderna: a constituição de agreg11do.r
complexos de fatos . Trata-se de reconstl'uir fatos a partir de informações
. ,? c;ue éreal? É um problema ontológico de primeira ordem, para a das fontes. Esses fatos, enquanto tais, não estão diretame nte docume n-
h1stona, saber se o entendimento de realidade no presente não deve ser, tados nas fontes , pois como fatos não estão situados no ho rizon te de
por sua vez, historicizado. Se a resposta for um sim incondicional, e se te:11po das fontes, sendo reconstruídos apenas a posteriori, com base cm
adem~is histori~i.zação for entendida corno relativização das prN~1Hõc~ ()!emento~ i~Plado~ das informações das fontes, Trata-se então de fa ros
de validade, a cntica das fontes como operação metódica do conhecimew d~ ordem ~\.lperior, obtidos rneçliante pro,edimento~ arn1líticos de pes-
to históri co seria apenas perda de tempo. A passagem do mito à história gc.isa (em particular mediante métodos de quantificação), como Ltx;1s de
seria assim radicalmente cancelada. No marco da crítica pó,-coloüu da natalidade, taxas de crescimento do produto interno bruto, ciclos ag d -
ideologia, esse fundame nto epistemológico da crítica das fontes é visto rios, fatores mentais de uma cultura política e assim por diante.
como dependente das culturas 177• Ele representaria uma forma pérfida
de dominação ocidental, resultante do processo de moderni-zaçâo, sobre Ciências auxiliares. A ciência da história reuniu, para o pro..:cdi-
outras fo rm as históricas de pensar. Com esse argumento, suprime-se, de m::nto da crítica das fontes, um rico arsenal de procedim entos mctódi-
maneira relativista, o controle da experiência no conhecimento histórico.
Não haveria mais então um discurso histórico especializado supraorde- 178 Ver, por exemplo, GOERTZ, H.-J. Umi,ha,' Gmhichtc; GOERTZ, 1-!.-J. MI,,, lounm .c·n
vor de;· Vtrgangeuhell wisun? Paul Valéry und dic Konst rukti\'it:ir der Gcsl'.hic:htc hcutr.:, p. 692· 7Uú;
tambérn do mesmo ,,utor: Ge.rchichte - E,ftlhnmg mtd WiHr.11.nh,ii, p. 19. 47
J7C/ Ver RÜSEN,J. l¾s ist Gmhichte? Versuch c inc r Synthcsc, p. 134 ct scq.
177 Ver, por exemplo, SETH, S. Rea,011 or Rcmo11i11g? C'lio ar SivaP, p. 85 -101. 180 Ver, por exemplo, FEDER, A . Lt'hrhuch der hiitoriJdw1A1l'thodd; HAl I ER, V\/. t:·i,!fi,/i , 1,n.~ 111
dtlS Stz.;dium der GPscbichte.
1 180
Teori a da Histof'ia: Umr! teori,1 d,1 h1 st órit1 ro1110 c1<>ru r,1
Teoria d~ Hist ória: Uma teoria da história como ciênci a
'
que exami na o conteúdo informativo de documentos, da genealogia, qu e do passado. A crítica das fontes nem sempre produz bct1c1dadcs p_u.us
esclarece os vínculos de parentesco, e de heráldica, esfragística e numis- (e quanto mais remotos os fatos estiverem, no tempo, tanto mais d1hul):
ou sep: · ·111 f.011- 11-\r·o
, r -es sob1·c o oue ocorreu exatamente onde, exaurncntc
mática, que tornam inteligível a "linguagem" particular dos brasões, dos ·1 _ ~
selos e das moedas. Tome-se ademais a geografia histórica, que obtém quando, exatamen te assim ou ex,ltamentc por que rnuo. E m ge ral, ,,
das fontes informações sobre dados espaciais. As técnicas modernas de exame crítico dos enunciados das fontes produ'.i'. apenas um sc\ber exa ru
pesquisa da quantificação elevam a estatístíça ao nível de uma impor- sobre O que e com que grau de certeza (ou seja: com base e1~ que d,1dos
tante ciência auxiliar. Com sua ajuda a crítica das fontes pode obter da- empíricos e n,l forma de que controles) podemos saber ou nao. .
dos quantitativos. Acresça-se a todas essas ciências um grande número O outro aspecto diz respeito à medida da objetividade ,tlcu1~·,1vel
de outras ciências, cujos acervos de saber e estratégias de pesquisa são pela crítica das fontes . No fluxo de informações que _corre das to_nrcs
utilizados pela crítica das fontes. Em princípio, todas as demais ciên- para os que pe rguntam historicamente, constatam-se ratos c~n.t1>~Livc1:
cias podem ~er utilizadas como auxiliares da ciência da história, qL1ando pela crítica das fontes (com graus diferentes de certeza). Su,\ htctirnLldc
disponibilizem procedimentos mediante ôs quais se possá111 extrair con· é contudo, abstrata, pois ela não atinge diretamente os contextos h1s-
tcúdos factuais do material histórico (assim, por exemplo, a biologia, a t~ricos específicos subsistentes entre os fatos particulares. O trabalho
físka e a astronomia para estabelecer dados cronológicos ou a genética de pesquisa propriamente bistó~ico, a interpretação, l:UC rcpous·,\ _,~lbl'C
para determinar relações de parentesco en tre povos) 181 , 0
trabalho prévio d~. crítica das fontes, tem esses contextos p ,lt ob,1 etu.
Q.11anto cu saiba, não existe uma metodologia da crítica das fontes, O wrdter histórico dos.fatos. Os fatos ob tidos pela crític:1 _das fo n-
organizada sistematicamente e tão completa quanto possível, que cor- tes ainda não possuem, cm sua pura facticidade, caráter espcc1hc:rncmc
responda à prática atual da pesquisa da ciência da história. Isso se deve histórico. Tornam-se históricos ,\penas quando postos. cm rebçao _com
ao fato de a ciência moderna da história ter desenvolvido estratégias de ou tros fatos , cm contexto tempo ral cotn sentido e signific:ido. Adqu m.:rn
pesquisa para obter informações extremamente diferenciadas, que não sua historicidade de duas maneiras: por sua posição no ordcnamen~o
podem ser facilmente sistematizadas - diversamente dos procedimentos
com outros f.atos e por SLl"" posiç'io , no âmbito . de uma rcprcse nraçao
canônicos do século XIX para o trabalho com as fontes. As estratégias do fluxo temporal que abrange o presente e o rutura. Po_de_-sc cha '.n_ar
modernas se referem a diversos gêneros de fonte, que vão do li.xo dos a primeira historicidade de objetiva, e a segun~a ele subJet1:·,1.. D cusi-
homens primitivos até a entrevista de um contemporâneo, da análise do vo é que ambas constituem aquilo que é espec1firnmente h1swn~o. 11('.
pólen de resquícios arqueológicos até a autobiografia de protagonistas acontecimento factual do passado. Por esse motivo, os modos an,Üit tLO e
de e~entos do passado, de fotografias aéreas de antigas ocupações hu - · t.1co de pensame
,· 11 to pertencem , insc1Jaravclmente, ao processo
hennencu . .
manas até levantamentos de opinião e motores de busca da internet. Em · · de con hec·1n1e11 to 1~-1· Pertence ·10
.1stonco · contexto cronológico- . ob1 .-ct1vo
h
princípio, todos esses procedimentos podem ser descritos como formas . b·t·
a exp 11ca d d do posrerior nclo
11 a e r
·rntc
'
rior. Esse c,idter cxp!tc, nvo do
de obtenção e garantia de fatos, cujo conhecimento é necessário para se
poder responder empiricamente uma pergunta histórica.
181 Q,1anto ,i gené tica, ver Ci\VALLI-SFORZA, L. L. C,m·, Vo/kcr un,/ Sprmhm.
Teoria da História: Uma t e:>ria da histôri a como ciência
Teoria da Históric1: U ma t eoria da hi stória como ciPn<;.1
contexto temporal dos fatos históricos lança a p:mte entre essas duas textos temporais com os quais a pergunta histórica pode ser respondida .
dimensões: a objetiva e a subjetiva (em outras palavras: entre o tem- Em toda pergunta histórica se encontra (no modo de urna conjectura)
po natural e o temFO cultural) 183 . A determinação desse contexto não é a represen:ação de um processo temporal que abrange os fa tos parti1.:u-
mais assunto da crítica das fontes, mas da interpretação. lares, ou seja: a ideia de uma possível história. A pesquisa transfornrn
essa ideia de uma possível história em uma história real. A crítica das
5. Interpretação fontes fornece os "materiais de construção" dessa realidade. A interpre-
nção, enfim, monta esses materiais de construção (para ficar com essa
. A '.nt_erpretação é uma operação da pesquisa histórica que, de forma oetáfora) de tcordo com determinados projetos de construção da rca-
mtersu~;ettvamente rontrolável, conecta osfatos dc·pa;sado obtidospela criti- Ldade histórica. Projetos de construção são representações de processos
ca d~sfo~tes em sequências temporais, as quais estão inve;ti1as de uma jimção temporais abrangentes, nos quais os fatos podem ser inseridos~O modo
exfltcatzva e podem ser apresentadas como histó11·as. E, pois, somente da contex:calização, operado pela interpretação, é narrativo. Exploran-
a mtcrpretação que torna históricos os fatos. Os contextos históricos do ainda a :nesma metáfora, pode-se dizer que o narrar é o cimento da
n~s quais se encontram os fatos obtidos r.ietodicamente junto às fontes: obra. É precis,:i, contudo, lembrar que o resultado da interpretação nfo
n.ªº podem ser apreendidos das fon tes enquanto tais, pois as fontes não é a pura e sim?les ratificação empírica da ideia de uma possível hist~ria
te_m c.omu saber o ~ue ocorreu depois delas. Com o que testemunham, desenvolvida construtivamente. Regra geral, ocorre aqui uma modifica -
1~ao tem como manifestar o que, historicamente, vem a ser perguntado. ção de cal monta que, ao cabo da interpretação, emergem elementos que
Esse contexto só pode ser percebido f'ost festum, mas não pode ser do- ;;; abordagem cor.jectural das fontes não pode antecipar nem imaginar.
cumentado in actu. A contextualização, todavia, não é apenas acrescida Prodc.zido interpretativamente pela pesquisa, o saber histórico
aos _faros de fora para dentro, pois estes já lhe são inerentes, posto que acerca dos :ontextos temporais dos fatos obtidos pela crítica das fontes
se. situar~ semp~e. em um acontecimento temporal abrangente. A in - rem de pcder ,er narrado na forma de histórias. Se assim é, põe-se enciio
te1 pretaçao se dmge a esse acontecimento. Ela não tem como o obter naturalmente a pergunta: o que há propriamen te de pesqu isa na inte r-
dos fatos, pois estes estão conectados de inúmeras maneiras com outros pretação? O que torna uma interpretação histórica controlável? Não é a
fatos. º:11ªªP~:ensão a~rangente de todc.s as conexôes é impossível (e mera facticidãde dos fatos elaborados interpretativamente (e, com isso,
'.nes~10 111desepvel). A Interpretação filtra apenas ::>s contextos que sc- tornados h;stóricos), pois - como se disse - a crítica das fontes e a cons-
Jªm importantes para a resposta à pergunta posta historicamente. :atação me tódica dos fatos ainda não dizem respeito a seus contextos
O entendiment::> pré-moderno da ciência da h:stória viu esse traba- especificamer.te históricos.
lho de c~nexão na própria historiografia, no processo de escrever histórias.
A ~uestao da m:todí-zação foi posta tamb-~m no âmbi to desse processo, Jl forma met6dica do usr; interpretativo da teoria. O processo de co-
Metodo era, entao, fcrma de apresentação, Seu critério determinante era '.lexão interpretativa é regulado metodicamente quando a representação
a inteligibilidade e a aplicabilidade (moral) da apresentaçã01s4. determinante de um contexto temporal abrangente pode ser relacion;1-
:la, de rn:meira controlável, às informações obtidas das fontes. Isso só
_A construçtio do conhecimento histórico, Com a cier,tificização do co- funciona se e~sa representação tor explicitada corno elemento do saber e
nhec1me~to histórico, a operação de pesqcisa da interpretação se insere relacionada, enquanto construto intelectivo específico, aos fatos particu-
entre a cnt1ca das fon tes (desenvolvida metodicamente desde O início da lares. Ne~.s1 relação, ela adquire, com respeito aos fatos, um status teórico
I~ade_Mo~ema, com as técnicas dá~ciências atL"l'.iliares) e a formatação :: explicafi<vo. Esse status consiste em que essa representação do pro1.:esso
hi 5 ronogra.fica d~ ~aber histórico. Como foi dito, a interpretação consis- temporal, com respeito aos momentos temporais cristalizados nos fatos,
te em obter, empmcamente, a partir das informações das fon tes, os con- formula algo ge nérico, que se concretiza nos fatos. No processo intelec-
tual de tal particularização, os fatos nada perdem de sua fac ticidadc, mas
133 Ver p. ~ocr SC<j . só então se temam fatos históricos - adquirem historicidade como quali-
184 Um exemplo nor,ivcl disso é .i obra de Jean Bodin· "Methodus -·d facilcm h"
·,- · " d · 156 (BOD · ' ·
·
1storiaru111 cog- dade temponJ própria. São assim carregados do sentido e do signific1do
111 ,oncm , e 6 IN,J. M,thodfor th, Emy Compre/Jemion ~iHi:tor_v).
que possuem no contexto narrativo de uma história.
18/,
Teori a da Historia'. Urna teoria dn hi stàr\a corn o c1 ~11 c1r1
Teoria da História: Uma teoria da história como ciência
Uso narrativo da teoria. O método da interpretação histórica pode ral coerentemente narrável. As representações de sequências temporais,
ser descrito como um processo, no qual as representações das sequências aqui determinantes, são explicitadas como construtos narrativos teori -
temporais, em contraste com os fatos obtidos pela crítica das fontes, záveis. Naturalmente, o uso de tais construtos se situa no contexto co-
são explicitadas como elementos gerais e abrangentes do saber ("abran- municativo de urna argumentação, na qual eles são relacionados a outros
gendo" igualmente os fatos) 185 • Elas são, simultaneamente, relacionadas construtos semelhantes. A interpretação é sempre - para usar um con-
aos fatos, de maneira que estes se conectam em um processo temporal ceito da teoria da literatura - "intertextual", ou seja, ela se refere a outras
pleno de experiência. A interpretação é uma operação complexa de pes- interpretações e adquire, nessa relação e por ela, seu sentido histórico
quisa, na qual os contextos históricos são teorizados e os fatos obtidos particular e sua capacidade func ional na cultura histórica.
pela crítica das fontes, historicizados. Nesse processo, as representações
interpretativas das sequências temporais não absorvem a unicidade e
6. Da interpretação à representação
particularidade dos fatos, não os dissolvem em uma regularidade legal
abstrata universal. Antes, elas colocam em evidência a qualidade tempo- A interpretação histórica desemboca em uma fo rma de saber, n,t
ral dos fatos, justamente o que é histórico neles. Teorias históricas de- qual a facticidade do acontecimento passado se torna narrável; ou seja,
sempenham uma função particularizadora no processo da interpretação. estende-se na forma de apresentação de uma história. As duas coisas não
Com elas pode-se estabelecer o que, dos fatos do passado, é típico ou podern ser separadas, exata e absolutamente, em sua sequêncin (como a
próprio de determinado tempo. metodologia tradicional, por exemplo, a de Bernheim, costumava fazer).
A forma metódica do uso interpretativo da teoria e da historiciza- Mesmo assim, trata-se de dois processos distinguíveis. A interpretação é
ção teórica dos fatos do passado ainda não está suficientemente expli- um processo cognitivo genuíno e, enquanto tal, também regulável metodi-
cada, de maneira sistemática, quanto à regulação que lhe serve de base. camente. A representação, por sua vez, obedece a critérios que não são pu-
ramente cognitivos. Por tal razão, para analisá-la a teoria da história pre-
As representações abrangentes das sequências temporais, com as
cisa recorrer não só aos critérios de um método de pesquisa, mas também
quais os contextos históricos são obtidos e tornados plausíveis, mediante 1
a critérios "literários" (poéticos, estéticos e l'etóricos) da produção de textos 1° .
a pesquisa nas informações das fontes, são tonstrutos narrativos, tramas 181'
de narrutivas. Seu emptego 11a opeta~ão de ptsqulM da lnterpretaçao A conexão abrangente entre as duas operações é a trama, ou seja,
pode ser qualificado como uso narrativo da teoria. Até o presente, con- a representação da sequência temporal que a interpretação utiliza no
tudo, o trabalho com elementos teóricos do saber, na pesquisa histórica, procedimento metódico da explicação interpretativa de ocorrências his-
ainda não adquiriu o status de um procedime11to metódico padronizado. tóricas concretas e que, na apresentação, toma a forma de uma história
Em vez disso, ainda se trabalha com representações implícitas de contex- narrada. Nos debates recentes da teoria da história, a d imensão cogni ti-
tos temporais abrangentes, historicamente explicados. Enquanto preva- va dessa forma organizacional da narrativa histórica mal foi levada em
lecer esse procedimento, a interpretação e sua regulação metódica per- conta. Não resta dúvida, contudo, de que toda interpretação histórica
manecerão um problema em aberto. Isso não quer dizer, naturalmente, de acontecimento passado se dá em ámbito interpretativo que po de ser
que os critérios determinantes de tal ou qual interpretação histórica não explicitado e analisado criticamente corno construto cognitivo (e é isso
poss:.im ser controlados criticamente quanto a sua consis tênci a interna, à o que ocorre, argumentadamente, nos discursos especializados d~s his-
medida e intensidade de sua relação com a experiência e à sua capacidade toriadoras e dos historiadores). Qie forma historiográfica essa grade
de inserir fatos em contextos históricos plausíveis (explicativos). analítica assume não decorre ob rigatoriamente de sua estrutura cogn iti-
va, nem de sua função interpretativa. Esse quadro pode se r explicitado e
Também estas considerações sobre o método histórico são "mo -
fundamentado reflexivamente, mas também pode ficar escondido como
nológicas". Trata-se da lógica do pr~cedimento pel0 qual uma cadeia de
implicação de um duto narrativo. Merece então questionamento pró-
informações cronologicamente ordenadas se torna um contexto tempo-
185 A teoria da ciência fala de "covering laws", com as quais a sequ ência de fatos obtida pcb
18i A dife rença emrc intcrprct:u;,1o e rcprcscm,h;ão e a pL'l·ullari(bdc.: dcst;\ s:"w t r ;1t-.1d:1~ (Otll
pc~quisa adquin: caráter explícativo.
ri gor por ANKERSMIT, F. J\'li-11 11i11x, ~/i·111h, a ud Nc:frd1tl' ;,, l/1Jtori1·,t! R1·t r( l'mt,11io11.
186 Em inglês no original: p/01, (N.T)
)86
Teoria da História: Uma teoria da história como ciência
Capitulo VI:
prio e investigação, saber se e como o conhecimento h istórico ob:idc Tó pica - formas e processos da historiografi a
pela pesquisa deve evidenciar ou não os traços do; procedimentos me-
tódicos de que é tributário.
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