Autor
CLARK DARLTON
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Depois da longa viagem pela eternidade, o espírito de
Ellert revive seu cadáver.
A superioridade deles era tamanha que preferiu não oferecer a menor resistência. Os
planadores foram chegando às dezenas e pousaram no chão duro e pedregoso do deserto.
Apontaram os canhões energéticos para a íngreme encosta, atrás da qual estava escondido
o laboratório subterrâneo do cientista.
Por meio das telas de televisão, observou-os e ficou quebrando a cabeça,
imaginando como fora descoberto. O esconderijo fora muito bem escolhido, e ninguém, a
não ser ele mesmo, sabia de sua existência.
Suas reflexões foram subitamente interrompidas, quando os microfones externos
levaram as vozes dos atacantes para dentro do laboratório. Os sons não seriam
perceptíveis a qualquer ouvido humano, pois ficavam acima das freqüências audíveis.
Mas ele, que estava sendo procurado e acabara de ser encontrado, entendia o que diziam.
— Você está cercado, Onot! Se vier à superfície, sem armas, ouviremos o que tem a
dizer. Caso contrário nós o mataremos e destruiremos seu laboratório.
Onot sentia-se abatido. Bem que desconfiara. No passado, sua vida não correra
conforme desejava. Muitas vezes fizera coisas que ele mesmo julgava incompreensíveis e
agira contrariamente às suas convicções. Às vezes procedera como se fosse inimigo de
seu povo e amigo dos inimigos mais perigosos. Foi exclusivamente por sua culpa que os
robôs de guerra dos atacantes destruíram o grande centro de computação e,
posteriormente, também o centro científico espacial.
— Irei — disse para dentro de um microfone e olhou em torno, um pouco triste.
Encontrava-se num gigantesco recinto de pedra, que há tempos fora aberto na
montanha por meio de grandes armas energéticas. O único caminho que levava à
superfície era um corredor estreito. Ali ficava seu laboratório secreto, onde costumava
trabalhar sempre que precisava de tranqüilidade e solidão. E, como fosse o cientista mais
competente de seu povo, fizera algumas invenções importantes.
Mas, naquele momento, tudo isso estaria esquecido. A única coisa que importava
era a traição. A traição cometida por ele.
Passou a mão pela junta disforme do outro braço. Ali sentiu uma saliência
minúscula, que nenhuma outra pessoa notaria. Com uma ligeira pressão do dedo, ativou a
bateria celular do minúsculo transmissor escondido sob a pele.
Por um momento, Onot refletiu sobre o motivo por que possuía esse transmissor e a
pessoa à qual poderia dirigir o pedido de socorro transmitido. Mas finalmente cobrou
ânimo e caminhou em direção à porta, a fim de entregar-se aos policiais.
Nesse meio tempo, os ocupantes dos planadores se haviam espalhado a fim de
cercar a encosta. Outros aviões se encontravam no céu colorido, prontos a apoiar a ação
de surpresa contra o cientista rebelde. Não eram seres humanos. Suas figuras quadráticas
e grosseiras erguiam-se a quase três metros sobre as duas pernas que antes pareciam
colunas. A pele sem pêlos parecia feita de couro grosso e cobria todo o corpo. A cabeça
esférica tinha quase cinqüenta centímetros de diâmetro, e nela havia quatro olhos que
permitiam uma visão de ao menos trezentos graus. Nariz e orelhas não haviam.
Os druufs descendiam de insetos, mas não se percebiam muitos sinais disso. De
qualquer maneira, eram ultrafonadores. As ondas que levavam as mensagens eram
transmitidas por emissoras orgânicas e captadas por receptores do mesmo tipo. O que
ainda chamava a atenção eram os braços disformes, em cujas extremidades se viam dedos
finamente articulados, que não guardavam qualquer proporção com o corpo gigantesco.
Na rocha surgiu uma fenda. Onot saiu para o platô. Abriu os braços, para mostrar
que não trazia nenhuma arma. Em seu rosto lia-se certa perplexidade, misturada talvez
com uma pequena dose de curiosidade.
— Aqui estou. O que querem de mim?
Um tenente da polícia saiu do abrigo, com a arma de radiações apontada para o
cientista.
— Quer dizer que está disposto a entregar-se?
— Por que você acha que estou à sua frente? — respondeu Onot em tom irônico.
O oficial fez um sinal para seus homens.
— Revistem-no — gritou.
Não encontraram nada; não notaram o pequeno transmissor.
— Poderia informar de que sou acusado? — perguntou Onot.
O tenente ficou devendo a resposta.
— Oportunamente você saberá. Mas desde já posso dizer-lhe uma coisa: será muito
difícil você limpar-se da pecha da traição. Devemos agradecê-lo pela destruição de nosso
centro de computação. Mas isso foi apenas o primeiro passo. O centro espacial... ora, já
basta! Siga-me.
Onot parecia querer dizer alguma coisa, mas resolveu ficar quieto. Seguiu o tenente
com a boca triangular firmemente cerrada. Olhou para o céu e notou que o sol já se
encontrava no poente. Dali a pouco, seria noite.
Era um gigantesco sol vermelho que se encontrava acima das colinas próximas e
derramava sua luz sobre a paisagem desolada. Mas este sol não estava só. A seu lado via-
se um pequeno companheiro esverdeado, quase oculto pela luz vermelha.
Depois de um vôo de pouco menos de uma hora, os planadores policiais pousaram
no espaçoporto da capital. Um veículo blindado levou Onot ao edifício em que
funcionava o Supremo Tribunal.
O cientista teve oportunidade de observar os arredores através de uma janela
pequena. Ficou espantado ao constatar que a maior parte dos edifícios apresentava sérios
danos. Alguns deles haviam sido destruídos por completo e desmoronaram. Havia bairros
inteiramente arrasados.
Um confuso sentimento de culpa começou a dominar sua mente. Porém tal
sentimento logo foi superado por uma voz interna, tranqüilizadora. Tal voz lhe dizia que
era totalmente inocente.
A voz interior...?
Onot procurou lembrar-se do que sabia dela, mas sua memória falhou por completo.
Havia alguma coisa; tinha uma lembrança confusa, mas por mais que se esforçasse, não
seria capaz de dizer o que era. Alguém estava com ele, mas não podia vê-lo nem senti-lo.
Parecia despertar de um sonho, quando mãos rudes agarraram seus braços e o
arrastaram para fora do carro. Encontrava-se numa área cercada por altos muros.
— Deixe os sonhos para depois — disse o tenente em tom irônico. Parecia ter-se
esquecido de que o cientista facilitara seu trabalho ao entregar-se sem oferecer a menor
resistência. — As celas são silenciosas e bastante solitárias.
— Obrigado — respondeu Onot, ainda distraído.
Levaram-no por uma série de enormes corredores. Passou por numerosas portas e,
finalmente, desceu ao subsolo. Quando a porta da cela se fechou e ele se viu só, suspirou
aliviado. Talvez lhe dessem tempo para refletir calmamente.
No teto do recinto sem janela, havia uma grade; pertencia ao sistema de
condicionamento de ar. Era possível que atrás dela estivesse escondida uma objetiva de
televisão. Num dos cantos havia uma cama estreita, e, ao lado da mesma, uma mesa e
uma cadeira. Era só.
Onot sentou-se. Apoiou a cabeça nas mãos e procurou recapitular o passado. Fazia
tanto tempo, mais de cem ou duzentos dias. Aliás, já não tinha uma idéia precisa de nada.
Antigamente fora Onot, um homem afamado, o cientista mais competente dos druufs.
Presenteara-os com numerosas invenções.
Invenções...?
Onot foi recuperando a esperança. Quer dizer que ainda sabia disso! Lembrou-se do
último trabalho por ele realizado. Montara o estabilizador estrutural na grande estação
espacial. Esta sua invenção mais recente era um aparelho único. Também poderia ser
designado como paralisador do tempo. Permitia a criação de um campo em que o tempo
ficava parado.
O paralisador do tempo...? Onot teve a impressão de que a escuridão, que cercava os
acontecimentos pelos quais pretendiam responsabilizá-lo, estava cedendo. Talvez, se sua
memória voltasse a funcionar, ele conseguisse encontrar a explicação.
Mas quando de repente tornou a sentir aquelas fortes dores de cabeça, perdeu as
esperanças. Sabia que essa dor de cabeça era seu pior inimigo. Quando ela surgia, por
vezes tinha a impressão de que a voz interior lhe falava. Lembrou-se de que, certa vez,
soubera quem era essa voz, mas agora não se lembrava mais.
Talvez mais tarde conseguisse lembrar-se.
***
***
Onot passou dois dias e três noites em sua cela, sem que ninguém se interessasse por
ele. Um guarda silencioso trazia-lhe a comida e não respondia às perguntas que fazia.
A memória foi voltando lentamente.
Até então o cientista ainda não se dera conta de que estava atacado de amnésia. Era
bem verdade que se esquecera, apenas, de uma ou outra coisa. No passado, especialmente
quando o centro de computação foi destruído pelos robôs inimigos, agira de forma
estranha. E não sabia explicar por que agira assim, mas ainda se lembrava de que ele o
fizera.
Encontrava-se numa tremenda confusão mental. Seus pensamentos esforçavam-se
para traçar uma linha reta, entre o presente e os acontecimentos do passado, mas não
conseguiram. Teve a impressão de que inexplicáveis véus se interpunham entre os
acontecimentos, impedindo-o de olhar para trás. E as dores de cabeça voltaram a tornar-
se insuportáveis.
Sabia perfeitamente que se encontrava numa armadilha. Seria responsabilizado por
coisas das quais não se lembrava.
Será que realmente fora ele quem causara a destruição do grande centro de
computação subterrâneo? E, em caso afirmativo, por que teria feito isso? Por que havia
permitido que os robôs inimigos penetrassem no centro de computação?
De repente, teve a impressão de que poderia tocar o passado com as mãos. Mas
quando estendeu as mesmas, o passado desapareceu, outra vez, atrás dos véus. Até
parecia que alguém o arrastara para longe. Alguém...?
De súbito, Onot lembrou-se de que alguém desempenhara um papel importante.
Alguém que não podia ver, mas ouvir. Alguém que se encontrava perto dele. Ou melhor,
dentro dele.
Isso mesmo; agora sabia. Ao amanhecer do terceiro dia, Onot começou a lembrar-
se.
Naquela oportunidade, uma voz lhe dirigira a palavra. Parecia vir do nada, mas
estava falando dentro dele... e para ele. Era uma voz clara e apavorante. Afirmara que já
há anos habitava seu corpo e controlava seu trabalho. E essa voz ainda lhe dissera que foi
só, graças a ela, que Onot se tornou o maior cientista de seu povo.
Onot levantou-se e caminhou nervosamente de um lado para outro. Cinco passos
para um lado, cinco passos para outro lado. A voz...
Ela ainda lhe dissera que teria de fazer o que mandava. Precisava obedecer-lhe,
fossem quais fossem as ordens transmitidas. E lembrou-se de que essa voz lhe ordenara
que cometesse a traição. Sim, foi ele mesmo quem ligou o receptor do transmissor, a fim
de que os robôs inimigos pudessem penetrar no centro de computação. E fez isso
unicamente porque a voz o exigira.
Onot voltou a sentar-se.
Quando falasse a respeito da voz, será que o juiz acreditaria? Ou será que
consideraria aquilo uma desculpa barata, uma elucubração de um cérebro doentio?
Onot já parecia ouvir as estrondosas gargalhadas que fariam retumbar a sala de
sessões. Os druufs eram seres frios e calculistas. Não acreditavam em vozes ou
fantasmas.
Onot continuou a revirar suas recordações.
Aquela voz não lhe dissera também que, quando ela o abandonasse, teria de morrer?
Pois bem. Ela já o abandonara há muito tempo, mas continuava vivo. E, além disso, a
memória dos acontecimentos estava voltando aos poucos. Talvez tudo isso acabasse bem,
desde que conseguisse convencer os juizes de que era inocente. Instalaria outro centro de
computação e montaria outro paralisador do tempo. Teria oportunidade de reparar os
erros do passado.
Naquela oportunidade, a voz lhe dissera ser um espírito que perdera o corpo.
Encontrara um novo abrigo no interior de Onot. O espírito e o intelecto de Onot, assim
prosseguira a voz, não deveriam resistir às suas ordens, mas deveriam cumpri-las.
Onot obedecera por ter sido obrigado a isso, e ainda porque, no momento, não tivera
a menor idéia do que estava acontecendo com ele. Sob o ponto de vista moral não era
culpado dos crimes pelos quais o acusavam. Mas face às leis impiedosas de Druufon as
coisas poderiam ser diferentes.
— Voltei a recuperar o domínio de meu espírito e, com isso, de meu corpo —
balbuciou Onot. — Ninguém manda em mim. Construirei uma arma para os druufs, com
a qual nós poderemos conquistar o Universo. Afinal, sou Onot, o cientista! O tempo...
quais serão os acontecimentos que este ainda reserva para mim? Se quiser, posso inverter
o fluxo do tempo. E eu o farei para anular os acontecimentos do passado. Descobrirei o
dono daquela voz e o matarei, antes que seu espírito abandone meu corpo. A Terra foi sua
pátria, e haveremos de descobrir onde fica esse planeta. Alguns dos nossos já estiveram
lá. Se você me ouve, voz, responda. Confesse que sou mais forte que você...
Suas reflexões foram interrompidas, quando o guarda abriu a portinhola e olhou
para dentro da cela. Após isso, a portinhola foi fechada de novo.
Onot encostou-se à parede.
“A voz não está mais aqui”, pensou numa disposição eufórica. “Antigamente
bastava que dedicasse a menor idéia à rebelião, para que ela se fizesse ouvir e me
ameaçasse. Fazia com que ficasse com dor de cabeça e me martirizava. Afastava meus
pensamentos e transformava-me num escravo. Mas hoje...”
Não; a voz não estava mais com ele.
Finalmente chegara a hora pela qual ansiara por tanto tempo. Viu o passado
nitidamente desenhado. Poderia explicar tudo ao juiz... mas seria necessário que este
acreditasse em suas palavras.
Subitamente, teve a impressão de levar uma forte pancada; tudo parecia desmoronar
em torno dele. A voz falou silenciosamente:
— Você está enganado, Onot! Ainda estou aqui. Mas é bem possível que, dentro em
breve, você fique só... completamente só. Quando isso acontecer, você talvez irá desejar
que eu volte.
Muito assustado, Onot prestou atenção à voz. Mas esta encerrou a fala.
***
***
***
No momento certo, o Capitão Marcel Rous mandou colocar um dos transmissores
em recepção. A essa hora, a Drusus devia estar materializando-se em algum lugar, nas
proximidades do funil de descarga, que separava o Universo einsteiniano do plano
temporal dos druufs, e Rhodan certamente estaria entrando na estação de remessa do
transmissor de matéria.
Parado à frente da porta gradeada, Rous estava aguardando o chefe. A luz verde
estava acesa, mas por enquanto não se via o menor sinal de Rhodan.
A luz começou a oscilar. Os primeiros impulsos expedidos pela Drusus estava
chegando. O transmissor acabara de ser acionado. E então — subitamente, sem a menor
transição — o vulto de um homem surgiu no interior da área cercada pelas grades. Saiu
do nada e materializou-se de um instante para outro.
Rhodan abandonou a jaula e apertou a mão do Capitão Rous.
— Meteu-me um susto daqueles, capitão. Como foi que o Marechal Freyt acabou
recebendo esse aviso?
Estavam caminhando pelo corredor, em direção à cabina em que residia o
comandante da base. Antes que chegassem aos aposentos de Rous, este disse:
— Assim que recebi o pedido de socorro de Ellert, enviei uma mensagem de
emergência à Ohio, que é nossa nave de ligação estacionada junto ao funil. Suponho que
esta a tenha transmitido imediatamente ao Marechal Freyt, que por sua vez entrou em
contato com o senhor. De qualquer maneira, a rapidez com que hoje em dia as notícias
correm pela Via Láctea é verdadeiramente espantosa.
Abriu a porta e deixou que Rhodan passasse à sua frente. Só depois que os dois
estavam sentados perto de uma bojuda garrafa colocada sobre a mesa, Rhodan perguntou:
— O que aconteceu com Ellert?
Rous enfiou a mão no bolso e tirou um pedaço de papel.
— É a primeira mensagem radiofônica que recebemos de Druufon.
Rhodan leu a mensagem de Ellert devagar e com o maior cuidado. Quando colocou
o papel na mesa, parecia muito pensativo.
— Quer dizer que realmente agarraram Onot, e Ellert já não tem possibilidade de
abandonar o corpo em que está hospedado, para voltar à Terra. Não teremos outra
alternativa senão levar seu corpo para Druufon. Bem, não será nada fácil. Ainda bem que
dispomos de bastante tempo. Alguns dias ainda se passarão, até que o inquérito esteja
concluído e o processo contra Onot seja iniciado.
Rous sacudiu a cabeça. Empalidecera um pouco.
— Neste meio tempo, recebemos outra mensagem de Ellert, Sir. Receio que o
tempo de que podemos dispor seja muito escasso. Já faz duas horas que Onot se encontra
diante da Corte Suprema.
Rhodan fitou-o com uma expressão de perplexidade.
— E só agora o senhor vem me dizer isso?
O capitão não respondeu. Rhodan inclinou-se para a frente e colocou a mão direita
sobre seu braço.
— O que diz a segunda mensagem, Rous? Seria capaz de fornecer-me o texto
integral?
— Sei de cor, Sir. Ellert avisou que foram buscar Onot na prisão e o colocaram
diante da Corte. Mal e mal lhe restam forças para obrigar Onot a fazer determinadas
declarações. Diz que, no seu íntimo, o quadrático cientista está disposto a revelar toda
verdade aos juizes. Ellert tenta impedir que isso aconteça. Não sabe por quanto tempo
ainda agüentará. Se for obrigado a abandonar o cérebro e o corpo de Onot, não saberá
para onde ir. Para sair de Druufon, precisaria de forças. E estas lhe faltam.
Rhodan fez um gesto de assentimento.
— Imagino perfeitamente o que acontecerá se ele for obrigado a abandonar Onot,
sem que disponha da necessária energia. É possível que, se isso acontecer, perca o
controle direcional do tempo e volte a mergulhar no fluxo temporal que o arrastou até
aqui. Face a isso, pelo menos já sabemos que a permanência no presente exige um certo
dispêndio de energia. É estranho, mas nunca pensei nisso.
Levantou a cabeça e fitou diretamente os olhos de Rous.
— Devemos agir imediatamente. Mais tarde poderemos filosofar. Voltarei para
bordo da Drusus, mas permanecerei nas proximidades de Hades. Se houver algum ataque,
conte comigo. Se Onot acabar falando...
Levantou-se e esperou que Rous abrisse a porta à sua frente. Enquanto caminhavam
em direção aos transmissores, prosseguiu:
— Se chegar outra mensagem de Ellert, avise imediatamente.
— Certo Sir — prometeu Rous.
Rhodan voltou a virar o rosto para ele antes de desmaterializar-se.
Dali a um segundo, saiu do receptor instalado a bordo da Drusus e, apressado,
dirigiu-se à estação de hiper-rádio da nave.
Suas instruções foram rápidas e precisas, como sempre acontecia, quando o destino
da Terra ou da Galáxia estava em jogo.
***
Até mesmo pelo aspecto exterior, o Marechal Freyt tinha certa semelhança com
Perry Rhodan. E, tal qual o administrador, recebera a ducha celular no planeta artificial
Peregrino. Esse tratamento prolongava a vida e, por isso, o processo de envelhecimento
foi detido. Naquele princípio de tarde, o movimento era enorme na central de emergência
de Terrânia. As hipermensagens das naves estacionadas no espaço chegavam quase a
cada hora que passava. Agora, que a posição galáctica da Terra já era conhecida, não
havia motivo para maiores cuidados.
Acontece que todas as comunicações que iam chegando eram indiferentes para
Freyt. Aguardava uma determinada notícia, muito embora apenas pudesse imaginar qual
seria o conteúdo. Porém, Rhodan submeteu-o a uma espera prolongada.
Muito nervoso, estava sentado no seu gabinete. Seu corpo magro estava
ligeiramente inclinado, mas isso acontecia antes por hábito que por fraqueza. À sua volta,
os aparelhos de comunicação ameaçavam esmagá-lo. Em todos os lugares se viam telas,
quadros de comando e cabos. A partir daquele recinto, podia controlar não apenas o
planeta Terra, mas todo o sistema solar e uma gigantesca frota espacial.
Freyt transmitira para Rhodan, que se encontrava em Árcon, a mensagem
radiofônica recebida de Hades. Sabia que uma decisão era iminente. Como sua mente
possuísse uma elevada capacidade de combinar os fatos, tomara suas precauções e
avisara o Professor Haggard e também o Dr. Jamison. Os dois médicos permaneciam em
suas residências, à espera do momento em que teriam de entrar em ação.
Entrar em ação...?
Freyt sacudiu a cabeça e disse, para si mesmo, ser um pessimista.
“As coisas não devem estar tão ruins assim para Ellert”, pensou. “O peregrino do
tempo acabará encontrando o caminho para a Terra, quando isso se tornar necessário.”
Encontraria mesmo?
Uma luz acendeu-se. Era a sala de rádio.
Era apenas um aviso de um couraçado que fora transferido de posição.
Mais uma vez, nada! A espera começava a tornar-se insuportável.
Porém, no momento em que finalmente a sala de hiper-rádio chamou e transmitiu a
mensagem direta de Rhodan para a residência de Freyt, de um instante para outro, o
marechal virou a calma em pessoa.
A tela oval iluminou-se. Nos primeiros segundos, os contornos do rosto de Rhodan
eram um pouco apagados, mas logo tornaram-se nítidos. Reconhecia-se perfeitamente
todas as linhas. As hiperondas possibilitavam o contato direto e imediato a uma distância
de vários anos-luz.
— Até parece que tanto o senhor como eu esperávamos esta palestra, marechal.
— É verdade, Perry.
Numa ligação direta desse tipo, tinha-se a impressão de estar sentado à frente do
interlocutor, na mesma sala. Se não fosse assim, Freyt não chamaria Perry de você.
Quando se encontravam em público, até mesmo os velhos amigos costumavam
resguardar a imagem da disciplina.
— Qual é sua posição? Ainda Árcon?
— Não. Hades. Encontro-me na Drusus, a um ano-luz do sistema dos druufs. Ellert
enviou outra mensagem. Não está em condições de abandonar o corpo de Onot por um
tempo mais prolongado, sem que corra um grave perigo. Onot encontra-se diante da
Corte de Justiça, onde está sendo processado por traição. Ellert se esforça para evitar que
faça uma confissão, cujas conseqüências poderão ser desastrosas a todos nós. Só vejo
uma salda para esse impasse. O cadáver de Ellert deve ser retirado imediatamente do
mausoléu e levado para Hades. O resto poderá ser arranjado depois.
— Era o que eu imaginava! — exclamou Freyt. — Haggard e Jamison estão de
prontidão. Quando será?
Um sorriso surgiu no rosto de Rhodan.
— A semelhança entre nós não se limita ao aspecto exterior, Micha — seu rosto
voltou a tornar-se sério. — Será imediatamente! Tome todas as providências para que
tenham o maior cuidado quando estiverem lidando com o corpo. Ambos os médicos
deverão acompanhá-lo e não tirarão os olhos do mesmo. Você vai providenciar tudo?
— Eu mesmo levarei Ellert, Perry. Rhodan fitou-o com uma expressão de
perplexidade.
— Você é meu representante. Quem...?
— Em poucas horas, tudo estará resolvido. Mercant cuidará dos assuntos mais
importantes. Acho que tem capacidade para isso.
— Também acho. Está bem, Micha. Espero-o.
— Conte comigo — disse Freyt e fez um sinal para o amigo.
A tela escureceu de um instante para o outro quando, depois das últimas instruções
de Rhodan, a ligação foi interrompida.
Por um segundo, Freyt manteve-se imóvel em sua poltrona, mas logo seu corpo
adquiriu vida. Mercant foi informado sobre a situação, os dois médicos receberam ordem
para dirigir-se ao mausoléu, deram-se instruções para que o cruzador ligeiro C-13 fosse
preparado para a decolagem e solicitaram-se vários planadores.
Dali a dez minutos, Freyt pousou no deserto, junto à pirâmide erguida sobre o
túmulo de Ellert. Haggard a Jamison já o esperavam. As sentinelas, que mantinham
guarda ininterruptamente no local, mantiveram-se imóveis. Seus rostos continuaram
impassíveis.
O professor Haggard, um dos amigos mais antigos de Rhodan e que também
recebera a ducha celular, foi ao encontro de Freyt a passos largos.
— O que houve? O cadáver de Ellert pegou um resfriado?
Haggard era conhecido por suas brincadeiras grosseiras mas todo mundo sabia que,
com elas não pretendia ofender ninguém.
— Ou será que quer praticar a ressurreição? — prosseguiu.
— Talvez sejam ambas as coisas, em certo sentido — respondeu Freyt e apertou a
mão do amigo. Cumprimentou o Dr. Jamison numa atitude um pouco mais reservada,
mas não menos amável. — Acabo de receber instruções de Perry Rhodan para retirar o
corpo de Ellert do mausoléu e levá-lo para Hades. No caso, o termo cadáver não me
parece adequado, meu caro Haggard.
— Hein? — fez o professor. — Para Hades? Por quê?
— Porque Ellert já não está em condições de percorrer o longo caminho para a
Terra. Só por isso. Sei perfeitamente como entrar no túmulo. Será que os senhores
médicos poderiam ter a gentileza de acompanhar-me?
Passou entre as duas sentinelas, tocou a parede lisa da pirâmide com a mão
espalmada, empurrou-a de um lado para o outro, como se estivesse procurando alguma
coisa... e de repente ouviu-se um ruído.
O solo do deserto abriu-se, pondo à mostra uma escada, que conduzia para as
profundidades.
— É por aqui que temos de descer — explicou o marechal. Caminhou à frente dos
outros.
A segunda porta foi mais fácil de ser aberta e, depois disso, surgiu à frente deles a
câmara mortuária propriamente dita, na qual o corpo imorredouro do teletemporário jazia
há setenta anos, aguardando o momento em que o espírito retornasse a ele.
O Marechal Freyt fitou os complicados instrumentos que desencadeariam o alarma
ao menor sinal de vida de Ellert. O espelho à frente da boca do “morto” não estava
embaçado. O ar daquele recinto quadrático parecia abafado, muito embora tivesse sido
renovado ininterruptamente nos últimos sete decênios.
Os três homens levaram algum tempo para perceber que o rosto de Ellert estava
mudado. As faces estavam encovadas, os olhos jaziam no fundo das órbitas negras e a
pele brilhava numa tonalidade azulada.
O professor Haggard apontou com a mão trêmula para o vulto magro, cujos
contornos se desenhavam abaixo do tecido.
— É o início da decomposição...!
O Marechal Freyt teve a impressão de que seu coração ia parar.
Será que tudo fora em vão? Há setenta anos Ellert procurava seu corpo, e agora, que
finalmente o tinha encontrado, talvez já fosse tarde. Era bem verdade que Ellert poderia
assumir outro corpo, mas...
— Temos de apressar-nos! — disse com a voz apagada e virou-se para a parede, a
fim de desligar os instrumentos que Rhodan lhe descrevera. — Jamison, ajude Haggard a
levar Ellert para cima.
“Tomara que não estejam carregando realmente um cadáver”, pensou um tanto
desesperado.
3
***
A esfera tinha cinqüenta centímetros de diâmetro, era leitosa como uma tela de TV e
flutuava no centro da sala.
Perry Rhodan, Bell e o Coronel Sikermann, comandante da Drusus, estavam
sentados perto dela e observavam os acontecimentos transmitidos por Harno. Tais
acontecimentos se desenrolavam no planeta Druufon.
Harno, que se tornara membro regular do Exército de Mutantes, podia “ver”
qualquer ponto do Universo e, em sua superfície, a visão se tornava perceptível aos olhos
humanos. Além disso, sabia transmitir expressões verbais por via telepática, mesmo a
seres que não possuíssem o dom da telepatia.
E foi assim que os três homens puderam assistir ao ato judicial, que estava sendo
realizado em Druufon.
Rhodan disse:
— Ellert está travando uma luta desesperada contra Onot, que vem se tornando cada
vez mais forte. Quem dera que conhecêssemos as causas de sua debilidade progressiva.
Nesse caso, talvez poderíamos fazer alguma coisa para combatê-la. Harno, será que você
não nos poderia dar alguma informação a este respeito?
O ser esférico mantinha-se imóvel no ar. Compreendera a pergunta e respondeu por
via telepática:
— Ellert é um espírito sem corpo. Só um corpo consegue manter-se no presente; um
espírito não está preso ao tempo nem ao espaço. É como se fosse um homem agarrado a
uma pedra, no meio de uma violenta correnteza, e que tem de segurar-se com toda força
para não ser carregado pela água. Se sua força diminuir, acabará se soltando e será
arrastado. Já faz alguns anos que Ellert se segura na pedra representada por Onot.
Rhodan fez um gesto de assentimento.
— Compreendo; naturalmente a explicação é figurada. Gostaria de saber o que
podemos fazer.
Harno respondeu:
— Só há um meio. Ellert tem de regressar a seu corpo. Por enquanto ainda pode
realizar o salto... talvez. Do contrário terá de permanecer, para sempre, no interior de
Onot, não como dominador, mas como o subconsciente reprimido do druuf. Seria um
destino nada agradável.
— Muitos seres vivos têm um subconsciente — interveio Bell. — Será que dali se
deve concluir...
— Não tire conclusões apressadas — advertiu Harno. — Todo e qualquer ser
orgânico inteligente tem um espírito, uma alma. E esta alma é dupla; só isso. O intelecto
que se mantém na superfície corresponde ao que costumamos chamar de inteligência,
enquanto o adversário reprimido é o subconsciente.
— Quer dizer que essa situação não se compara com o estado em que Ellert se
encontraria depois de derrotado?
— Será que eu afirmei isso?
— Tive essa impressão.
— Se fosse assim, todo homem possuiria duas almas, dois intelectos.
Rhodan achou preferível interromper o debate. Se Harno começava a filosofar,
ninguém podia prever quando iria terminar.
— Talvez seja isso mesmo — disse e viu os dois druufs levarem Onot. — Seria bom
se pudéssemos aproveitar a pausa. Freyt deverá chegar dentro em breve.
A superfície de Harno modificou-se. Figuras coloridas correram sobre seu corpo
esférico e aos poucos foram-se unindo num quadro.
Era o espaço cósmico. Milhões de estrelas tornavam o infinito num veludo negro
coberto de brilhantes. Visto a uma distância maior, o veludo pareceria branco.
Uma pequena esfera flutuava perto de outra, quinze vezes maior.
— É a Ohio e nós — disse Rhodan. — Freyt ainda não chegou. Pela mensagem que
recebemos, já deveria...
Enquanto Rhodan ainda falava, um pequeno cruzador da frota materializou-se a
menos de dois segundos-luz. Deslocava-se a uma velocidade vertiginosa, porém o
televisor vivo, Harno, mostrou-o e penetrou em seu interior.
— É Freyt — disse Rhodan com um suspiro de alívio, enquanto via a nave reduzir a
velocidade e descrever uma curva ampla, para voltar ao ponto em que emergira do
hiperespaço. — Harno, daqui em diante você vigiará Onot ininterruptamente e me
avisará, assim que o druuf seja levado para ser submetido ao exame médico. É bem
possível que não tenhamos mais muito tempo.
Sem responder nada, Harno subiu ao teto e tornou-se menor. A imagem projetada
em sua superfície apagou-se. O Coronel Sikermann também se levantou, de maneira lenta
e compenetrada.
Os três saíram da cabina, a fim de preparar a ação que se aproximava.
***
O Marechal Freyt não perdeu muito tempo com os cumprimentos. Mal o cruzador
entrou no gigantesco hangar da Drusus, uma abertura surgiu no ventre do pequeno
veículo espacial e uma pequena rampa desceu.
Um carro apareceu. Era a maça. Via-se o corpo de um homem, coberto de panos
brancos. Freyt, Haggard e Jamison seguiram-no. Logo que chegaram ao lado do carro,
Rhodan veio correndo e apertou a mão de Freyt.
— Vejo que trabalhou depressa, Freyt. Como está Ellert?
O Marechal respondeu com a voz preocupada:
— Não sei. Não gostei do seu aspecto. Nem Haggard. A pele já assumiu uma cor
azulada em todas as regiões do corpo.
Naquele momento Eric Manoli, médico e amigo de Rhodan, chegou ao hangar.
Ouvira as últimas palavras do colega.
— Vejo que a alma continua a manter uma ligação com o corpo, mesmo que se
encontre longe — disse, enquanto cumprimentava os três homens. — Ellert constitui a
melhor prova disso.
— Como?
Manoli lançou um olhar de surpresa para Haggard.
— Acho que é muito simples. Antigamente, o espírito de Ellert enviava uma
pequena fração de sua energia ao corpo, vencendo o espaço e o tempo, a fim de fazê-la
chegar ao túmulo situado na Terra. Atualmente, esse espírito está muito fraco. Suas
forças estão desgastadas. Seu subconsciente, ou seja lá que nome se queira dar a isso, não
dispõe mais de nenhuma energia. O corpo abandonado começa a morrer.
Fora mais ou menos o que Harno exprimira, sem saber das palavras de Manoli.
— Por que o espírito de Ellert está ficando fraco? — perguntou Rhodan.
— Porque o de Onot está ficando mais forte — respondeu Manoli.
Rhodan preferiu não fazer outras perguntas. Aproximou-se do carro e levantou os
panos. No momento em que viu o rosto de Ellert levou um susto. Os olhos fechados
pousavam profundamente nas covas negras. A pele era de um azul esmaecido.
Durante setenta anos, o corpo de Ellert não sofrerá qualquer modificação. Parecia
que o teletemporário apenas dormia, mas agora o repouso estava chegando ao fim. O
corpo de Ellert já tinha o aspecto de um organismo morto.
Rhodan controlou-se e ordenou:
— Reginald Bell me substituíra no comando da Drusus. Ras Tschubai e Gucky me
acompanharão. Sim, você também, Manoli. Vamos a Hades. E levaremos o corpo de
Ellert.
Bell esteve a ponto de dizer alguma coisa, mas preferiu ficar calado. Talvez o rosto
de Rhodan lhe dissesse que qualquer tentativa de fazê-lo mudar de opinião estava
condenada ao fracasso. Sikermann limitou-se a acenar, concordando. Freyt parecia
desapontado.
— Será que há tanta pressa?
— Infelizmente sim. De qualquer maneira, agradeço-lhe por ter agido tão depressa.
Se tivermos êxito, provavelmente deveremos agradecer isso à sua ação rápida. Volte à
Terra. Espero que em breve voltemos a nos encontrar.
As despedidas foram curtas. Dali a dez minutos, Rhodan, Ras Tschubai, o
teleportador africano e o rato-castor Gucky já se encontravam na jaula do transmissor. O
carro com o corpo moribundo dirigiu-se também para o aparelho. A porta fechou-se atrás
de Manoli. Uma luz verde acendeu-se, indicando que o receptor fora ligado em Hades.
Rhodan moveu a alavanca do aciona-dor e teve a impressão de que nada estava
mudando, ao menos no interior do transmissor. No entanto, tudo já estava modificado.
Bell, que se encontrara ao lado do aparelho, desapareceu de repente. No lugar dele, surgiu
Marcel Rous, que aguardava a expedição. O capitão abriu apressadamente aporta da
jaula.
— Chegou rápido demais, Sir! — exclamou em tom de alívio. — Recebemos outro
pedido de socorro irradiado pelo transmissor de Ellert. Infelizmente não temos nenhuma
possibilidade de enviar-lhe uma mensagem. Seu minúsculo transmissor não está acoplado
a qualquer receptor.
— Daqui a pouco estabeleceremos contato pessoal com ele — disse Rhodan,
enquanto dois homens, dirigidos por Manoli, empurravam para fora do transmissor o
carro com o corpo de Ellert. — Prepare uma das gazelas para mim, capitão. Uma nave de
reconhecimento de longo curso é o veículo que melhor se presta aos nossos objetivos.
— Irá com a tripulação?
— Não; apenas com um piloto. A empresa é um tanto perigosa, e quero que o risco
seja o menor possível. Somos poucos, e assim é bem melhor.
— Nesse caso sugiro o Tenente Werner Mundi.
— O húngaro?
— É austríaco, Sir. É um piloto muito competente. Acho que poderá confiar nele.
— É o que preciso, Rous. Pois bem. Diga a Mundi que decolaremos dentro de meia
hora. Ainda preciso mandar levar algumas coisas para a gazela.
A nave de reconhecimento tinha a forma de um disco de trinta metros de diâmetro.
O bojo, medido de pólo a pólo, era de dezoito metros. Além de desenvolver a velocidade
da luz, as gazelas eram capazes de realizar hipersaltos até uma distância de cinco anos-
luz.
O Tenente Mundi estava sentado na poltrona do piloto, diante dos controles, e
aguardava instruções. Seu rosto rosado e amável não era nada magro e irradiava simpatia.
Quando falava inglês, seu sotaque gentil revelava às primeiras palavras onde estivera seu
berço.
Ras Tschubai e Gucky também se acomodaram na sala de comando. Mantiveram-se
em silêncio, pois não estavam gostando da tarefa que tinham diante de si. Os riscos eram
demais, e não havia a menor indicação concreta de que conseguiriam fugir pela segunda
vez de Druufon.
Rhodan e Manoli foram os últimos a entrarem na sala de comando da gazela, que
ainda continuava estacionada no hangar subterrâneo da base de Hades. Antes, Perry
providenciara para que uma grande caixa de equipamentos de combate do Serviço de
Segurança Solar fosse colocada no compartimento de carga. Além de armas portáteis,
havia bombas-relógio, material de sabotagem e, além de outras coisas, alimentos e
medicamentos. Ao lado da caixa, encontrava-se o carro com o corpo de Ellert.
— Saia de Hades, Tenente Mundi, e dirija-se a Druufon à velocidade da luz. A
transição só deverá ser realizada, quando eu der ordem para isso.
Mundi respondeu com um sorriso amável e transmitiu ao pessoal que se encontrava
na comporta da base subterrânea as instruções necessárias à decolagem. Dali a alguns
segundos, o disco, sustentado pelos campos antigravitacionais, foi subindo lentamente e,
aumentando de velocidade, passou pela galeria e dirigiu-se à superfície de Hades. As
comportas abriram-se diante dele, e a gazela precipitou-se em direção ao céu escuro de
Druufon, para logo a seguir desaparecer em meio às estrelas.
***
***
Antes de mais nada, Ellert pensou nas anotações relativas à hiperpropulsão linear
que Onot trazia no bolso. Sabia que dispunha de energia suficiente para abandonar o
corpo de Onot, sem que isso representasse qualquer perigo para ele. Porém não tinha a
menor idéia da distância que poderia percorrer nos seus saltos. E se não possuísse forças
para penetrar logo num outro corpo...
Nem se atreveu a pensar nas conseqüências. Mais uma vez, teria de realizar uma
peregrinação imaterial pela eternidade.
— Está bem, Onot — comunicou depois de algum tempo ao druuf. — Se quiser
obedecer-me, tentaremos juntos pregar uma peça ao juiz. Evitarei que você seja
submetido a exame médico, e farei com que mais tarde, quando eu o tiver abandonado,
ninguém lhe possa fazer nada.
— Como pretende fazer isso?
— Eu lhe darei uma nova memória, que corresponderá à antiga e permitirá que
você conserve sua personalidade. Porém não me conhecerá mais. Será como se nunca
tivesse existido para você. E, quando se encontrar diante do juiz, dirá a verdade. Os
detectores de mentiras poderão provar isso. Você deixará de ser um traidor.
A idéia de uma nova memória não era muito simpática para Onot, mas teve a
percepção lógica de que, para ele, não havia solução melhor.
— Estou de acordo — disse.
— Daqui a uma hora será noite. Hoje não virão buscá-lo mais. Fugiremos de noite.
Procuraremos chegar a seu velho laboratório nas montanhas, onde poderemos
“equipar-nos”. Talvez até lá consiga descobrir onde estão meus amigos. Assim que eu os
encontrar, você estará livre. Quando voltar a enfrentar o juiz, estará “equipado” com
sua nova memória.
Onot não se sentia muito à vontade dentro da sua grossa pele.
— Por que irei fugir se devo voltar a apresentar-me?
— Para provar sua boa vontade e sua consciência tranqüila. Garanto-lhe que isso
bastará para convencê-los.
— Como faremos para sair da prisão?
— Deixe isto por minha conta, meu caro Onot.
O druuf deu-se por satisfeito. Deitou sobre a cama e, seguindo a ordem de Ellert,
procurou dormir.
Assim que fechou os olhos e relaxou um pouco, Ellert fez a primeira tentativa.
Mais uma vez, viu Onot deitado a seus pés, enquanto ele mesmo flutuava livremente
no espaço, sem corpo e sem peso. Atravessou o teto e viu-se no interior de outra cela. Um
druuf acorrentado estava deitado no chão, dormindo. Tudo indicava que não recebera um
tratamento tão bom quanto o de Onot; provavelmente não era nenhum célebre cientista.
Ellert preferiu não escolher essa pobre criatura como objeto de suas experiências.
Seria preferível escolher algum druuf que estivesse em liberdade.
Sem a menor dificuldade, atravessou as paredes e viu-se no corredor. Naturalmente
seria fácil “desaparecer” pura e simplesmente. Mas nesse caso, Onot continuaria no
interior da cela e, com ele, as importantes anotações que, só em último caso, estaria
disposto a abandonar. Era claro que poderia procurar diretamente o presidente da Corte e
influenciá-lo, mas teve a impressão de que isso seria muito arriscado. Um insignificante
guarda que cometesse um erro não despertaria muito interesse. Mas se além de Onot
também o juiz mais graduado sofresse uma perturbação de suas faculdades mentais, o
fato não poderia deixar de provocar suspeitas.
Devia-se ter a impressão de que Onot fugira de forma natural.
Ellert desceu através do soalho e chegou ao corredor que levava à cela de Onot. Já
estava em condições de regular à vontade a velocidade de seu “vôo”, e tinha certeza de
que conseguiria vencer distâncias maiores. No entanto, ainda não arriscaria um salto que
o levasse de um planeta a outro.
O plano temporal dos druufs se adaptara até certo ponto ao Universo einsteiniano,
mas tal proximidade não duraria muito. Dentro de alguns meses, os dois planos temporais
voltariam a afastar-se e as diferenças nas dimensões temporais aumentariam, até que o
tempo do Universo dos druufs corresse novamente setenta e duas mil vezes mais devagar
que, por exemplo, o da Terra. Atualmente só corria duas vezes mais devagar. Como os
druufs fossem grandes e pesados, quase não se notava essa diferença. Além disso, Ellert
já se acostumara ao aspecto daqueles seres lerdos, sem lembrar-se constantemente de que,
para eles, o tempo fluía apenas à metade da velocidade do tempo dos terranos.
Sentiu os pensamentos de um druuf que se aproximava.
Um homem, ou qualquer outro ser corpóreo, sem dúvida se sentiria inclinado a
esconder-se. Mas Ellert não era um homem sob esse ponto de vista. Continuou onde
estava, pois nenhum ser poderia encontrá-lo, caso ele não quisesse.
O druuf dobrou a esquina do corredor. Ellert já sabia que era o guarda que levava o
jantar de Onot.
“É uma boa oportunidade de experimentar duas coisas ao mesmo tempo”, pensou
Ellert muito satisfeito.
Poderia ver como Onot se comportaria, enquanto não estava submetido à sua
influência e, ao mesmo tempo, tentaria assumir o corpo do guarda.
O druuf forneceu, em primeiro lugar, o alimento dos prisioneiros que se
encontravam do outro lado do corredor. Finalmente, chegou à porta atrás da qual ficava a
cela de Onot. Abriu a portinhola e colocou uma tigela sobre a tábua.
— Sua comida, Onot — disse e esperou, até que o prisioneiro se aproximasse da
porta. — Tudo preparado para a noite?
Ao que parecia, Onot estava dormindo, pois levou quase trinta segundos para chegar
à porta e poder dar uma resposta.
— Tudo em ordem — respondeu. Pegou a tigela e voltou à cama. Não emitiu um
único impulso que pudesse ser interpretado como uma intenção de trair Ellert.
O guarda fechou a portinhola e afastou-se, arrastando os pés.
Ellert seguiu-o — em sentido figurado — até a sala dos guardas. Mais dois guardas
estavam lá e se preparavam para passar a noite. Atrás da sala havia uma grade metálica
que fechava um corredor. Ellert sabia que a galeria terminava na sala de controle, onde
todos os visitantes eram examinados por meio de raios capazes de detectar a presença de
armas ou ferramentas. Além disso, naquela sala ficavam os registros. Todos os
prisioneiros eram registrados eletronicamente, na entrada e na saída.
Ellert deixou os três guardas entregues a si mesmos, depois de descobrir que eram
os únicos funcionários a tirarem plantão noturno no interior da prisão propriamente dita.
Havia apenas mais um druuf junto à saída, que controlava a porta eletrônica.
Quando voltou a sentir a presença de Ellert, Onot pouco se sentiu surpreso.
— Fez uma excursão? — perguntou, enquanto comia o resto do mingau que lhe
haviam servido. — Acho que a comida de prisão é ruim em qualquer lugar do Universo.
Se não estivesse com fome...
— Você tem de conservar as forças — advertiu Ellert. — Andei examinando a
situação. Acho que a fuga não seria difícil. Não se esqueça de que a escapada deve
parecer inteiramente normal. E tem de ser realizada hoje, pois amanhã será tarde —
nem desconfiava de quanto essa opinião era correta. — Daqui a algumas horas, quando a
cidade estiver dormindo, assumirei um guarda e voltarei. Assim que este abrir a porta,
você o derruba com uma pancada. Acha que será capaz disso?
Onot colocou a tigela embaixo da cama.
— Acredito que sim. É verdade que sou contrário a todo e qualquer tipo de
violência. Porém, na situação em que me encontro, vejo-me obrigado a abandonar certos
princípios. O que poderei usar como arma?
— Infelizmente não lhe posso dar nenhuma arma. Acho que você poderá quebrar a
perna dessa cadeira. Vamos preparar tudo.
A cadeira parecia muito frágil, mas não era. Onot teve de fazer um esforço tremendo
para arrancar uma perna da mesma, que representava uma arma respeitável.
— É claro que poderia fazer com que um guarda lhe desse uma arma de radiações,
mas nesse caso sua fuga se tornaria misteriosa, e é o que não deve acontecer. Deve
parecer uma fuga inteiramente normal.
Onot estendeu-se na cama. Colocou a perna da cadeira ao seu lado.
— Pronto; podemos começar. É uma pena que não exista outro meio de convencer o
presidente da Corte de Justiça.
— Quando estiver na hora, eu o acordarei — disse Ellert, sem dar atenção à
observação que Onot acabara de fazer. — Durma um pouco.
Passado algum tempo, Onot adormecera. Ficara livre da carga de angustia que
pesava sobre ele. Já não via o futuro com tamanho desespero.
Ellert também descansou, muito embora, em seu caso, não se pudesse falar em sono.
O sono é um fenômeno orgânico. Até mesmo o espírito que se encontra dentro de um
corpo adormecido apenas está descansando. O espírito nunca dorme.
As horas foram passando. Ellert não “pensava”, e foi por isso que Gucky não
conseguiu captar seus impulsos. Eram muito débeis para que alguém pudesse detectá-los.
E mais tarde, Gucky desistira de captá-los.
Lá fora já era noite. Ellert teve vontade de sair numa excursão, mas a fraqueza, que
acabara de vencer, fê-lo desistir desse intento. Quem lhe garantiria que a mesma não
poderia voltar? De qualquer maneira, a experiência do fim da tarde lhe infundira nova
coragem.
Olhou para o relógio de Onot. Era meia-noite.
O cientista estava mergulhado num sono profundo. Ellert quase chegou a ter pena de
acordá-lo, mas Onot devia estar preparado, quando o guarda aparecesse.
— Está na hora, Onot! Acorde!
Onot despertou ao primeiro impulso. Ergueu-se e olhou em torno, como se tivesse
de fazer um esforço para lembrar-se de onde estava. Finalmente recuperou a memória.
Pôs a mão na perna da cadeira.
— Já está chegando?
— Não, mas vou buscá-lo e faço-o entrar. Quando isso acontecer, derrube-o. Não
bata com muita força, para não matá-lo.
— Infelizmente não tenho nenhuma experiência nessa área — respondeu Onot e
piscou os quatro olhos.
Ellert teria sorrido, se fosse capaz disso. Como não era, despediu-se com um
impulso amável e desprendeu-se do corpo de Onot. Dali a um segundo, já estava
atravessando o comprido corredor e chegou à sala dos guardas. Um dos druufs estava
deitado num leito e dormia. Os outros dois — inclusive o guarda que cuidava de Onot —
achavam-se sentados junto a uma mesa e Jogavam. Por não conhecer o jogo, Ellert
compreendeu que talvez seria obrigado a introduzir uma pequena modificação em seus
planos.
Penetrou sem a menor dificuldade no cérebro do druuf e assumiu-lhe a consciência,
desligando-a e vedando-o com um bloco amnésico. O que o guarda passou a pensar e
fazer, dali em diante, não resultava de sua vontade e, mais tarde, não se lembraria disso.
Quando acordasse no interior da cela de Onot, não saberia dizer como fora parar lá.
Ellert contemplou o homem que estava sentado à sua frente através dos olhos do
guarda.
— É sua vez! — disse em tom enérgico.
Era fácil dizer isso. Mas esse estranho jogo não constituía a especialidade de Ellert.
Porém, de repente, encontrou uma saída. Levantou o braço e olhou para o relógio —
o relógio do guarda.
Levantou-se.
— Daqui a pouco, continuaremos nosso jogo. Tenho de fazer uma ronda — o
adormecido centro de memória do guarda lhe dera essa informação. — Já passou da hora.
— Até parece que isso é muito importante. Você não costuma ser assim...
— Mas hoje sou — respondeu Ellert e saiu da sala.
Percebeu que o outro druuf ficou um tanto desconfiado, mas não se preocupou com
isso. Mesmo que mais tarde o colega do guarda declarasse que este tivera um
comportamento estranho, tal fato não provocaria maiores suspeitas. Além disso, o guarda
não teria interesse em fazer alarde de sua impontualidade.
Ellert — ou seja, o guarda — foi andando pelo corredor, em direção à cela de Onot.
Tirou do bolso uma chave, consistente numa combinação eletrônica, enfiou-a na fenda e
a ligou.
A porta da cela de Onot abriu-se imediatamente. O guarda entrou, sem desconfiar de
nada. Ellert viu Onot de pé ao lado da cama, segurando a perna da cadeira com ambas as
mãos. Parecia hesitar. Talvez preferisse esperar até que Ellert se encontrasse novamente
em seu corpo, o que evidentemente seria um absurdo, pois Ellert não sentiria qualquer
dor física, caso não quisesse.
— Bata logo! — fez o guarda dizer.
Por um instante divertiu-se com o rosto atoleimado de Onot. Mas logo abaixou-se
— em sentido figurado — pois Onot deu um enorme salto em sua direção, brandindo a
perna da cadeira. Atingiu a parte posterior do crânio do guarda.
Enquanto o druuf caía ao chão, Ellert abandonou-o e penetrou em Onot.
— Muito bem, amigo. Este não acordará antes do amanhecer.
Onot colocou, cautelosamente, a perna da cadeira no chão.
— Será que ele tem uma arma?
Naturalmente, Ellert não se lembrara disso. Na sala dos guardas, havia armas em
abundância. Mas também havia um druuf que queria continuar seu jogo.
— Ainda arranjaremos uma arma, Onot. Faço votos de que nunca tenhamos
necessidade de usá-la. Vá andando!
Ao que parecia, Onot gastara toda a coragem no golpe que desferira no guarda.
Agora não lhe sobrara muita. Hesitou.
— O que devo fazer se aparecer alguém?
— Deixe isso por minha conta, Onot. Vamos logo; não podemos perder tempo.
O druuf obedeceu. Saiu para o corredor e foi caminhando em direção à sala dos
guardas. Ellert correu à sua frente e “assumiu” o guarda que estava sentado à mesa.
Aplicou-lhe um bloqueio amnésico e ordenou-lhe que fosse dormir.
Dali a dois minutos, quando Onot entrou na sala dos guardas, viu os dois homens
deitados em suas camas. Não se mexiam, pois dormiam profundamente. Ellert sabia que,
a essa hora, nem mesmo um tiro de canhão seria capaz de despertá-los.
— Ali na parede há armas — disse a Onot. — Entre elas há alguns radiadores de
choque de grande alcance. Acho que você deveria pegar um deles. Posteriormente, isso
servirá de prova de seu ânimo pacífico, que você poderá apresentar, quando estiver de
novo à frente do juiz.
— Nem me fale nisso! — disse Onot em tom indignado e pegou uma das armas.
Como cientista que era, naturalmente tinha algum conhecimento desses artefatos
eletrônicos e sabia quais eram as funções que desempenhavam. Examinou a carga e
colocou a arma no cinto de sua capa.
— E agora? — perguntou, em tom mais confiante.
— Muito bem — disse Ellert. — Passe por essa porta. Atrás dela fica a sala de
controle e, também, a saída.
Evidentemente, Ellert não tinha qualquer influência sobre o cérebro eletrônico.
No dia seguinte, quando lhe indagassem sobre a fuga de um preso, o guarda diria
simplesmente que Onot passara sozinho na barreira; ninguém se encontrava em sua
companhia.
Chegaram à saída sem quaisquer problemas.
Ellert correra à frente e “assumira” o guarda postado ali. Onot não teve a menor
dificuldade em deixá-lo inconsciente com um disparo de sua arma. O druuf atingido
levaria pelo menos cinco horas para acordar.
— Ótimo — disse Ellert muito satisfeito, quando viu o guarda caído atrás da mesa.
— Aperte o botão que se encontra junto ao videofone. É ele que aciona o portão.
Onot começou a divertir-se com a fuga. Ninguém contestaria que se tratava de um
acontecimento fora do comum. Dispunha de um auxiliar valiosíssimo. Se estivesse só,
nunca se teria arriscado a fugir, e muito menos conseguiria.
— No espaçoporto estão estacionados os táxis planadores. Pegaremos um e
voaremos ao laboratório nas montanhas. Uma vez lá, veremos o que podemos fazer.
— Pegar um planador? O espaçoporto está sempre vigiado.
Ellert riu em silêncio, mas Onot percebeu perfeitamente.
— Você acaba de ver quanto vale um guarda. Eles não nos causarão problemas.
Neste ponto, Ellert tinha razão, mas havia um detalhe que o mutante desconhecia...
Todo guarda estava equipado com um aparelho de controle positrônico, parecido
com uma minúscula câmara fotográfica. No centro de controle do edifício do tribunal, um
técnico estava sentado à frente de uma parede coberta por centenas de pequenas telas.
Cada uma dessas telas exibia exatamente o quadro que o portador do respectivo aparelho
de controle focalizava.
E, numa das telas, o técnico vira uma cela em cujo interior um druuf — segundo a
tabela, era o preso Onot — golpeou o guarda com uma perna de cadeira. Deu o alarma
geral.
***
***
— Fugiu — informou Gucky, depois de ter encontrado Rhodan num ponto mais
distante, no fundo de uma pequena depressão. — Ellert deve ter desempenhado um papel
importante nisso. Como faremos para encontrá-lo?
Sentado sobre uma grande pedra, Rhodan começava a sentir frio. Já por duas vezes
usara sua arma de radiações para aquecer uma pedra do tamanho de uma cabeça humana,
que foi usada como fogueira sem brilho. Mas isso não resolveria o problema por muito
tempo. De qualquer maneira, a incerteza, onde estaria Ellert? Era mais inquietante que a
friagem noturna de um mundo estranho.
— Gucky, para onde iria se estivesse no lugar de Ellert? Você deve partir do
pressuposto de que seus amigos o procurarão e de que esses amigos dispõem de recursos
extraordinários.
O rato-castor sentou-se sobre a larga cauda. Dirigiu os olhos para o céu, como se
esperasse que as estrelas lhe dessem uma resposta.
— Iria a um lugar facilmente atingível, que meus amigos conhecessem.
— Pois bem. E qual é o lugar que tanto Onot, como Ellert e eu conhecemos?
Gucky deixou de interessar-se pelas estrelas.
— O antigo laboratório secreto, situado a setecentos quilômetros ao leste da capital!
— subitamente levantou-se e, arrastando os pés, caminhou em direção a Rhodan. — Se
sabemos disso tão bem, o que estamos esperando?
— Ainda estou refletindo para descobrir qual é o objetivo que Ellert pretende atingir
com a fuga. Se está em condições de convencer Onot, também deve dispor de bastante
energia para adquirir sua independência e sair à nossa procura. Deve saber que estamos a
caminho. Por que expõe Onot a um risco sem a menor necessidade e também a si
mesmo? Por que está desperdiçando seu tempo?
— É verdade. Também tenho a impressão de que há um mistério nisso — confessou
Gucky. — Mas estou disposto a apostar minha cabeça contra o chinelo do pé direito de
Bell de que Ellert tem um motivo sério para trazer o tal do Onot à nossa presença.
Rhodan fez um gesto quase imperceptível de assentimento. Também já lhe ocorrera
isso.
— Ellert não é capaz de transportar qualquer tipo de matéria. Para fazê-lo, tem de
recorrer a Onot. Suponho que queira trazer-nos algo por intermédio do cientista. De
qualquer maneira, não temos nada a perder se dermos uma olhada no laboratório. Acho
que serei capaz de encontrá-lo.
Gucky parecia perscrutar a noite.
— Uma coisa é certa: Ellert ainda não está no laboratório. Não consigo captar seus
impulsos mentais. Ainda se encontra entre a cidade e as montanhas. Tomara que não
tenha a intenção de fazer Onot percorrer essa distância a pé. Com a velocidade que esses
hipopótamos sabem desenvolver, isso seria uma perspectiva nada agradável.
— Vamos ficar nas proximidades do laboratório — respondeu Rhodan. — Ou será
que você tem uma sugestão melhor?
Gucky fez seu dente roedor brilhar à luz das estrelas.
— No momento não...
Dali a alguns segundos, a pedra, que se desaquecia na depressão junto à montanha,
estava abandonada.
A tal pedra passou a constituir o único sinal de que por ali houvera criaturas vivas.
***
Neste exato momento, o Dr. Eric Manoli estava prestes a fazer uma descoberta.
Acordara há meia hora e conversava um pouco com Ras Tschubai. O Tenente
Mundi dormia na poltrona do piloto.
— O senhor acredita que eles encontrarão Ellert?
Manoli não sabia o que dizer. Sentia-se cansado e abatido.
— Só podemos fazer votos de que isso aconteça. Do contrário não saberei como
arranjar um corpo para Ellert. Sob o ponto de vista ético, seria um crime reprimir o
intelecto de alguém para dar lugar a Ellert.
Deixaram que Mundi continuasse a roncar suavemente e saíram da sala de comando.
O caminho até a enfermaria não era longo. Um minuto depois de terem terminado a
palestra entraram no recinto de paredes brancas.
Manoli fechou a porta atrás de si, dirigiu-se à cama em que Ellert estava deitado e
levantou o lençol.
Fitou o rosto pálido e imóvel, no qual não se via mais nada da coloração azul.
Levou quase dez segundos para compreender a modificação.
— Não é possível! — exclamou.
Depois de algum tempo, soltou o lençol, que voltou a cobrir o corpo imóvel. O rosto
ficou à mostra.
— Um processo de decomposição biológica não pode ser invertido. O corpo estava
morrendo, e agora parece reviver.
Seguindo um súbito impulso, inclinou o corpo e colocou o ouvido sobre o peito de
Ellert. Voltou a erguer-se e sacudiu a cabeça.
— Não, não está vivo. Ellert ainda não voltou ao corpo que lhe pertence. Com os
mil demônios, por que será? Se não encontrar uma explicação, acabarei enlouquecendo.
Ras Tschubai manteve uma calma espantosa.
— Não sou médico e por isso não posso dar-me ao luxo de formular um juízo sobre
o assunto. Pelo que diz, o processo sofreu uma inversão. Talvez seja possível examinar os
dados teóricos também em sentido inverso.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Manoli em tom de perplexidade.
— É isso. Pelo que o senhor disse, a coloração azul do corpo provinha do fato de
que o espírito de Ellert estava muito fraco para irradiar certas energias que fornecem
impulsos vitais ao corpo separado no tempo e no espaço. Se agora o processo de
decomposição foi detido e até se observa uma revitalização, devemos concluir
logicamente que o espírito de Ellert voltou a irradiar energias excedentes, talvez sem se
dar conta disso.
Manoli parecia adquirir vida. Acenou fortemente com a cabeça, mas não tirou os
olhos do rosto de Ellert.
— Deve ser isso, Ras. É verdade que a explicação não resolve o problema, mas ao
menos ganhamos algum tempo. O mais importante é que Rhodan seja informado da nova
situação. Se por acaso Gucky estiver prestando atenção aos nossos pensamentos, Perry
será avisado.
— É bem provável que o rato-castor ouça nossas palavras e pensamentos, se é que
tem tempo — disse Ras com um sorriso. — Ele o faria pela curiosidade que lhe é
peculiar.
Manoli concordou com um gesto tranqüilizador.
Nem ele nem Ras Tschubai poderiam imaginar que, naquele momento, Gucky
estava sem tempo para ouvir os pensamentos de ambos.
***
***
Quando a dor leve da rematerialização cessou, nem mesmo a posição das estrelas
mudou. Era bem verdade que a sombra negra, que se encontrava a seu lado, havia
desaparecido. Gucky calculara o salto de tal forma que não pararam junto ao laboratório,
mas a algumas centenas de metros, em pleno deserto.
— Cuidado! — cochichou o rato-castor, sem fazer o menor movimento com o
corpo. — Há uma porção de druufs nas proximidades. São policiais e estão vigiando o
laboratório de Onot.
Rhodan compreendeu imediatamente e também se manteve quieto. Em torno deles
reinava a escuridão. Mais adiante, ao norte, o horizonte parecia mais elevado; eram as
montanhas. Ao pé da encosta, Rhodan viu uma luz débil e movente. Provavelmente
pertencia a algum druuf que controlava os guardas.
Gucky confirmou a suposição de Rhodan.
— Cercaram o laboratório e querem prender os amigos de Onot.
Enquanto Gucky controlava os impulsos mentais que o atingiam, mantiveram-se em
silêncio por algum tempo.
As unidades estacionadas junto ao laboratório ainda não tinham a menor idéia de
que Onot se dirigiria justamente para lá, e por isso ninguém pensava nessa possibilidade,
nem na fuga já realizada.
Foi por isso que, depois de “ouvir” atentamente por cerca de dez minutos, Gucky
disse a Rhodan:
— Acho que não adianta ficarmos sentados aqui. Quem sabe quanto tempo Onot
levará para chegar até este local. Só mesmo se conseguisse apoderar-se de um avião, e
isso me parece pouco provável. De qualquer maneira, ele, ou Ellert, não será tolo a ponto
de cair nas mãos desta gente. Ellert fará um reconhecimento do terreno, descobrirá a
força policial... e fugirá para outro lugar.
— Isso parece bastante lógico — admitiu Rhodan. — O que devemos fazer?
— Você faz essa pergunta a mim? — Gucky parecia espantado. — Minha sugestão
é a seguinte: levo-o de volta para a gazela e, depois, irei só à cidade para dar uma olhada.
Talvez encontre alguma pista.
Rhodan refletiu um pouco e respondeu:
— De acordo.
Quando materializaram-se na sala de comando da gazela, só Mundi se encontrava
ali.
No corredor, Rhodan encontrou-se com Manoli e Ras Tschubai.
E foi assim que soube da grande novidade.
Infelizmente, isso aconteceu com alguns segundos de atraso, pois Gucky já se
encontrava a caminho...
***
***
Neste meio tempo, Gucky saltara para a cidade. Com alguns saltos ligeiros,
transportou-se ao edifício da Corte. Encontrou um ótimo esconderijo no gabinete do
chefe de polícia. Os druufs eram grandes, e logicamente seus móveis também o eram.
Gucky, porém, era de estatura pequena. Ninguém notou sua presença atrás do arquivo.
Descobriu que Onot conseguira fugir pela segunda vez, e soube que se haviam
desencontrado por uma questão de segundos. O relato transmitido pelo oficial da tropa,
estacionada junto ao laboratório, tornou Gucky ciente de que Onot conseguira por alguma
forma inexplicável obrigar Rambos a não voar para a cidade. O planador que levara o
prisioneiro desaparecera.
O chefe de polícia voltou a dar o alarma, que desta vez se dirigiu à vigilância aérea
do planeta. Em todos os pontos de Druufon, os aparelhos automáticos de rastreamento
foram ligados. Esquadrilhas de caças levantaram vôo e começaram a vasculhar
sistematicamente a superfície do planeta. Nada lhes escaparia; nem mesmo um planador.
E nem uma gazela!
Gucky reconheceu imediatamente o perigo que os ameaçava. Além disso, já ouvira
bastante. Ellert estava fugindo, sem saber que as pessoas que vinham em seu socorro
estavam bem próximas.
Teleportou-se de volta para a gazela.
— Ora, Gucky. O que aconteceu? — perguntou Rhodan.
— Agora, que estamos todos reunidos, posso contar. Quero evitar repetições. Ellert,
ou Onot voltou a fugir. Encontra-se no ar com um planador no qual viajam ao lado de
quatro druufs. Ninguém sabe que direção tomou. Há um alarma aéreo que atinge todo o
planeta, e este está sendo vasculhado. Seremos descobertos.
Rhodan lançou um olhar ligeiro para Manoli.
— Ao que parece, Ellert está retomando suas atividades — disse depois de algum
tempo e, em breves palavras, explicou a Gucky o que havia acontecido. — Já dispõe de
energias excedentes que lhe permitem abastecer seu corpo, embora, talvez, nem desconfie
disso. Talvez consiga encontrar-nos.
— Eu deveria encontrá-lo! — disse Gucky e lançou um olhar triste para o teto,
como se esperasse auxílio de cima. — Se ele não se esforçar, nunca conseguirei encontrá-
lo. Por que não deixa Onot de lado e nos procura?
— Já conversamos sobre este ponto — observou Rhodan. — Deve ter seus motivos.
Além disso... o que está havendo com você, Gucky?
Todo mundo fitou o rato-castor, que continuava a olhar para o teto. Fechou os olhos,
como se tivesse de “escutar” atentamente. Depois de algum tempo, piou em tom
exaltado:
— Nunca mais quero comer uma única cenoura, se esse não for Ellert. Está a menos
de três quilômetros acima de nós, voando velozmente para o leste.
— É o planador! — exclamou Rhodan.
— Isso mesmo; o planador com o qual fugiu. Vou saltar para junto dele.
Antes que Rhodan ou qualquer outra pessoa pudesse dizer alguma coisa, Gucky
desapareceu. No mesmo instante, surgiu na cabina do planador, onde Ellert realizava suas
experiências com Onot e os outros druufs.
Ellert viu Gucky com vinte olhos ao mesmo tempo, mas enxergou-o uma única vez.
Cinco fluxos mentais dirigiram-se para o rato-castor. Todos eles continham um
único pensamento:
— Gucky!
— Ellert, qual desses hipopótamos é você? Qual deles é Onot?
Mais uma vez, a resposta quintuplicada foi transmitida por via telepática:
— Onot é o que está sentado entre os guardas. Agora preciso distribuir-me. Não
posso permanecer exclusivamente no interior dele. Os druufs desconfiariam. Mas da
forma que estão as coisas, eles o esquecerão. Onde está a nave?
— Você se refere à nossa nave? Está lá embaixo, nas montanhas. Os druufs deram o
alarma. Temos de dar o fora antes que seja tarde. Você pode vir comigo?
— Não posso abandonar Onot — Ellert hesitou um pouco. — Posso, sim. Ponha a
mão no bolso direito de Onot, Gucky. Você encontrará uma folha de metal. Sim, é isso.
Pegue-a e cuide bem dela. São os dados sobre o hiperpropulsor linear. O que foi que
você disse? Alarma?
— Isso mesmo: alarma de âmbito planetário. Ninguém atravessará o dia de amanhã,
sem ser submetido a um controle. E o que se dirá então de uma nave não registrada junto
aos druufs? Saltarei de volta para nossa gazela. Rhodan veio pessoalmente para buscá-lo.
Venha comigo!
— Aguarde um instante, Gucky. Eu o acompanharei; dentro de você. Apenas quero
apagar as lembranças de Onot. Eu lhe prometi que faria isso.
Gucky olhou em torno. O piloto dirigia o veículo aéreo imperturbavelmente para o
leste, em direção ao sol que nasceria dali a pouco. Rambos, que estava sentado a seu lado,
examinava os controles com os olhos inexpressivos. Foi o que o intelecto remanescente
de Ellert lhe ordenou. Os dois sargentos não faziam o menor movimento. Onot também
se manteve imóvel. Ficou com os olhos fechados. Quando voltasse a abri-los, não saberia
mais nada daquele estranho amigo chamado Ellert.
— Salte assim que Onot abrir os olhos — disse Ellert silenciosamente. — Nesse
mesmo instante, retirarei meu espírito de dentro de todos os druufs. Não demore, pois o
Tenente Rambos é um sujeito muito ágil. Ele o mataria imediatamente.
Gucky concentrou-se. Não tirou os olhos do rosto de Onot. Por mais que se
esforçasse para perceber a presença espiritual de Ellert, não notou nada. O teletemporário
mantinha-se em atitude neutra.
Finalmente Onot abriu os olhos e viu-o.
Gucky saltou.
7
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