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MANA 7(2):195-217, 2001

RESENHAS

AIGLE, Denise, BRAC DE LA PERRIÈRE, limitam à velha fronteira entre o tran-


Benédicte e CHAUMEIL, Jean-Pierre se xamânico e a possessão: cultos “ne-
(orgs.). 2000. La Politique des Esprits. gros”, norte-africanos e brasileiros es-
Nanterre: Société d’Éthnologie. 443 tão presentes no livro. Tampouco admi-
pp. tem barreiras entre o feiticeiro e o pro-
feta – os capítulos sobre os Meo e os Ti-
kuna expõem a extensa afinidade es-
Oscar Calavia condida sob essa oposição, o que exige
Professor, UFSC um exercício cuidadoso para destrinchá-
los – nem, é claro, entre magia e reli-
Como indica R. Hamayon no seu prefá- gião: o xamã, tão hábil para tomar as for-
cio, o xamanismo desempenha hoje o mas de uma onça ou de um cervo, o se-
papel que outrora correspondeu ao to- rá do mesmo modo para tomar a de um
temismo ou ao animismo: representar a sacerdote, e as práticas extáticas podem
alteridade no seu conjunto, abranger to- ser flagradas no coração mesmo do cris-
da manifestação simbólica do pré-mo- tianismo, do budismo ou do islamismo.
derno, do pré-lógico e do pré-literário. Especialistas de três grandes áreas
Porém, à diferença do totemismo e do – o Sudeste Asiático budista, a América
animismo, o xamanismo destaca-se pe- tropical católica e a Ásia Central muçul-
la agência, pela capacidade dialógica e mana, com duas excursões ao sufismo
transcodificadora. O xamã é um primi- negro-africano, em Marrocos e nos su-
tivo à altura dos tempos. búrbios de Paris – mostram-nos a vitali-
Longe de rasgar as vestes perante dade de uma prática que não há muito
essa estratégia dos espíritos, longe de imaginávamos refugiada nos confins da
exigir conceitos rigorosos, os organiza- Amazônia. Nada impediria que outras
dores do livro – fruto de um colóquio ce- regiões do planeta, ou que os neoxamãs
lebrado em Chantilly, em 1997 – embar- europeus e americanos – aos quais se
cam numa acepção extremamente am- fazem alusões esparsas –, viessem se
pla de xamanismo, que se dá ao luxo de juntar ao festim. A principal limitação
ignorar todos os limites que classica- de La Politique des Esprits é exatamen-
mente serviam para defini-lo. Não se te essa falta de limites: saindo de toda
detêm na fidelidade à prática ou à ideo- parte é difícil chegar a alguma. À obra
logia da caça: alguns capítulos, como o não falta um certo ar de miscelânea: há
dedicado aos Puyuma de Taiwan, des- disquisições sobre a eficácia simbólica
crevem uma transição institucional e ou sobre as organizações dualistas que
simbólica em direção a um xamanismo buscam revisar o argumento lévi-straus-
agricultor e feminino. Também não se siano num ambiente transcultural, ou
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identificar variantes no xamanismo dos Ao lado desse panorama pós-peres-


povos Jê; há análises de mitos, rituais e troika, o caso sul-americano parece ofe-
escrituras sagradas; há histórias de vida recer um repertório mais clássico, ins-
de xamãs buriatos ou uzbekos e sur- crevendo-se numa tradição já longa de
veys da atividade xamânica nas imen- estudos sobre missões e sobre religiões
sas extensões da Ásia Central. O livro indígenas que combina a etnografia e o
poderia muito bem ser considerado uma exame das fontes documentais e que
apologia do sincretismo, esse termo des- experimenta um certo auge em países
terrado com uma certa má-fé do voca- como o Brasil, onde a história indígena
bulário antropológico atual. Vários ca- é uma disciplina relativamente jovem.
pítulos fazem uso dele, ou o trazem à Paradoxalmente, as frias sociedades
discussão, e quase todos se debruçam ameríndias, protagonistas de uma longa
com cupidez sobre o encontro de pan- queda-de-braço com uma religião uni-
teões, de cosmologias e de retóricas, e versalista, têm permitido uma reflexão
sobre a homologia que permite esse co- detalhada e profunda sobre esse tipo de
mércio. Ou então se deliciam nessas pi- embate, ao qual se reintegram agora
torescas justaposições que conformam sociedades, como as da antiga URSS ou
o neo-exótico, como o hotel parisiense as da península da Indochina, que es-
usado pelos marabutos imigrados como tão de volta de ciclos candentes de mu-
sucedâneo do deserto ou as explicações dança revolucionária. Há de um lado ao
científicas de um eclipse integradas no outro do globo ecos dignos de atenção.
mito cosmogônico Tsachila. É o caso da Coréia, onde uma antiga
Entretanto, as preocupações cultu- convivência entre o budismo e o xama-
ralistas estão sem dúvida em segundo nismo se vai deteriorando porque o bu-
plano. No primeiro, está a tenaz disputa dismo quer se livrar de contágios “ar-
por poder e legitimidade em meio a caicos” para enfrentar a irresistível as-
campos religiosos recém-criados. O nú- censão de um cristianismo moderniza-
cleo da coletânea mais propício a uma dor. Situação que contrasta com a da
leitura literal do seu título mantém-nos América do Sul, onde o catolicismo pro-
imersos no espetáculo da história re- cura a aliança ou a cooptação simbólica
cente, abordando as relações do xama- dos mundos afro ou indígena perante a
nismo com o comunismo ou o islamis- ameaça comum dos pentecostais de ori-
mo, ou com ambos, bem como com suas gem norte-americana.
reações à queda de um e à ascensão do Há, aliás, dados suficientes de que a
outro. Em geral, o velho xamanismo se expansão protestante pode não ser nem
sai muito bem. Mostra-se, por exemplo, uma variante especialmente etnocida
mais hábil que o budismo para dar uma do cristianismo – como quem se encon-
resposta simbólica aos horrores do regi- tra no raio de ação do catolicismo costu-
me khmer ou às exigências do novo re- ma denunciar –, nem o passo irreversí-
gime de mercado. Põe também em cir- vel rumo à modernidade que auguram
culação versões alternativas, de sabor outras análises (o capítulo dedicado à
inevitavelmente “reacionário”, da his- Guatemala tem algo a dizer nesse sen-
tória recente de países como Camboja tido). A boa saúde do xamanismo em
ou Laos – e a conquista do poder pelo lugares tão distantes tende a mostrar,
Pathet Lao pode ser vista, assim, como caso seja ainda necessário, que o de-
uma invasão da cidade pelos toscos es- sencantamento do mundo foi um exor-
píritos das montanhas. cismo ineficaz, e que os ditames sobre a
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“trivialização” ou a “mercantilização” CHAVES, Christine Alencar. 2000. A


do xamanismo atual podem ser, por sua Marcha Nacional dos Sem-Terra: Um
vez, expedientes forçados para resgatar Estudo sobre a Fabricação do Social.
a honra da modernidade. La Politique Rio de Janeiro: Relume-Dumará/UFRJ.
des Esprits não cai nas armadilhas da 446 pp.
autenticidade, e evita, a todo momento,
distinções dúbias entre xamanismos tra-
dicionais e reinventados. Este é mais Antonádia Monteiro Borges
um dos seus méritos. Doutoranda, UnB
A variedade do livro, sem dúvida
um dos seus atrativos, é em certo senti- A Marcha Nacional dos Sem-Terra: Um
do ilusória. Variados são os cenários e Estudo sobre a Fabricação do Social é
os nomes dos protagonistas; variados uma versão revista da tese de doutora-
são, até certo ponto, os estilos de antro- do da antropóloga Christine Alencar
pologia que nos guiam através de cada Chaves, defendida na Universidade de
uma das regiões – quanto ao cerne da Brasília. Na esteira de uma produção
questão, todavia, a diversidade é muito acadêmica voltada à compreensão an-
pouca. Parece que, por mais heterogê- tropológica dos fenômenos políticos, o
neos que sejam os xamanismos e as re- presente estudo singulariza-se como et-
ligiões mundiais, as modalidades do nografia de um ritual. Partindo de per-
seu encontro se distribuem pelo mundo guntas sociológicas clássicas – como
sem atender a latitudes e longitudes. As efetivamente o social é fabricado? On-
três regiões percorridas são exemplos e de se fundam as representações so-
não variantes de uma mesma situação. ciais? –, a autora sustenta uma resposta
Talvez essa indiscriminação seja resul- certeira, não menos canônica: através
tado de opções mais ou menos cons- de ações sociais ou, mais precisamente,
cientes dos autores: a ênfase está nos através de atos de sociedade.
momentos de “negociação”, aqueles O ato em questão é a Marcha Na-
em que, por assim dizer, os espíritos po- cional pela Reforma Agrária, Emprego
dem tomar a iniciativa e fazer sua polí- e Justiça, conhecida como “a Marcha
tica. Poucos capítulos, no entanto, di- do MST”. A Marcha seria “uma forma
zem alguma coisa sobre o campo reli- social elementar”, que a autora procura
gioso em que essa política acontece, ou compreender a partir de uma aborda-
sobre as eventuais especificidades de gem performativa, isto é, por meio da
cada religião universalista no seu trato análise antropológica de rituais. Partin-
com os fantasmas atávicos. A guerra e a do de São Paulo, Governador Valadares
repressão ficam demasiadamente à mar- e Cuiabá, três colunas, formadas por
gem. A caça ao bruxo é parte essencial pessoas de diversas procedências, per-
da história das religiões, agora não me- correram durante dois meses ininter-
nos que no passado, mas aparece escas- ruptos o longo caminho que as separa-
samente na coletânea, mais interessada va da capital federal. Em 17 de abril de
em demonstrar a sua ineficácia a longo 1997, os peregrinos em fileiras chega-
prazo. A persistência de velhas práticas ram a Brasília. Sem-terras, desempre-
e de velhos pleitos é, quem iria imagi- gados e injustiçados de toda ordem se
nar, a notícia. uniam como marchantes em uma cru-
zada política sem precedentes. A data
escolhida marcava um ano de luto pela
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morte de dezoito trabalhadores no mas- Essas imagens próprias de uma ma-


sacre de Eldorado dos Carajás. Cami- triz cristã, atualizadas através do catoli-
nhantes seculares, cujo solo moral se- cismo popular, são exploradas ao máxi-
gundo a autora é a nação, encontravam mo pela autora. A Marcha é um rito de
na Marcha a oportunidade de criar e re- sacralização do MST, de redenção do
criar seus lugares no mundo, para além sem-terra. Com perspicácia, Christine
de onde partiram. constrói o primeiro capítulo como uma
É sobre o ritual dessa travessia que espécie de gênese da Marcha, com seis
se debruça Christine Chaves. A autora dias de peregrinação e um sétimo de
acompanha os passos trilhados por cen- descanso e redenção. A redenção é com-
tenas de homens e algumas dezenas de provada pelo saldo mostrado aos mar-
mulheres entre a Praça da Sé (SP) e a chantes através do apoio de outros tra-
Praça dos Três Poderes (Brasília). Na balhadores, dos comunicados do pró-
Marcha, acompanhando um grupo pa- prio MST e das notícias desabonadoras
ranaense, ou fora dela, a etnógrafa pro- veiculadas nos meios de comunicação.
cura atentar para o que se passa nas es- Na primeira semana, as agruras da via-
tradas, nos acampamentos diários, nos gem ainda não haviam se mostrado por
comícios e também para o que ocorre completo. Caminhando no populoso Es-
em outras tribunas: na mídia, no gover- tado de São Paulo, os sem-terra ainda
no e nas coordenações centrais do Mo- não tinham se deparado com os terrí-
vimento dos Trabalhadores Rurais Sem veis problemas que se abateriam sobre
Terra (MST). a Marcha, problemas que também se-
Sintetizando uma caminhada de riam uma síntese extrema e trágica das
gerações, a Marcha ainda expressava, condições de vida de todos os que nela
metonimicamente, as experiências de estavam representados.
acampamento e assentamento por que Além disso, os sem-terra marchan-
passaram muitos dos marchantes: cada tes e a Marcha em si eram índices que
dia era também “um ensaio e uma re- apontavam também para os interpre-
petição, em ponto menor, da própria tantes, para a multidão que os via pas-
Marcha nacional” (:91). A autora inclui sar. Qualquer um, o morador da cidade
a participação na Marcha como uma fa- do interior ou o editor do grande jornal
ceta do processo de formação dos sem- metropolitano, todos que observavam
terra. Os marchantes foram escolhidos os passantes, mais ou menos distantes,
em assembléia, nas suas regiões de ori- dirigiam seu olhar para a terra, para pés
gem, por serem considerados militantes que pisavam o chão. A terra tornava-se
qualificados para o que se tinha como um símbolo comum, mesmo que com
um sacrifício. As assembléias, como ve- sentidos distintos: “a Marcha inteira co-
mos em todo o livro, são espaços sociais municava” (:71).
legítimos para a efervescência e a va- A multiplicidade de interpretações
zão de juízos morais. Tratava-se, por- fazia com que o símbolo terra se desdo-
tanto, de eleitos que em holocausto se- brasse em outro: a luta. Em torno da ter-
riam oferecidos em nome do sagrado – ra lutavam diversos setores e havia ló-
sendo este relativo ora à terra, ora ao gicas distintas dentro de um mesmo gru-
próprio MST. Como em um rito de pas- po. Valores seculares, como a democra-
sagem, esses homens e mulheres, cober- cia, conviviam e também entravam em
tos de chagas e júbilo, retornariam aos conflito com outros atemporais, como a
seus, como peregrinos contemplados. providência divina. Para a autora, o MST
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não se mostrava um ator político ordi- tado por algo inexplicável, mágico –
nário. Tanto o repertório político então como resume um assentado: “a gente
acionado quanto suas expressões de lu- sente na carne a coisa”. Uma reflexão
ta não se davam no mundo tradicional maussiana a respeito desse fenômeno
da política, mundo este associado no não é apenas adequada, como necessá-
senso comum a regras burocráticas, a ria. É um outro marchante que nos leva
concepções iluministas conformadoras a concluir: “fizemos o ato mais para nós
do Estado-nação, a noções de direito e mesmos”.
cidadania e, ainda, ao clientelismo – es- A Marcha é, portanto, um exercício
sa prática “tradicional brasileira”. de compreensão, para o nativo, para a
É nesse sentido que a abordagem etnógrafa e para todos nós. Uma com-
performativa utilizada pela autora se preensão que se dá com a travessia, co-
mostra adequada para interpretar tal mo na costura mimética feita a cada
fenômeno. A etnografia da Marcha ex- passo entre campo e cidade, intercala-
pande e caracteriza de um modo novo o dos pelos marchantes. Dessa costura
universo da política. Mesmo sendo de nasce mais do que um texto, mas uma
caráter proposicional e planejado, o espécie de colcha de retalhos, que cada
efeito (perlocucionário) do ato ou da pa- marchante levou consigo até Brasília e
lavra proferida na Marcha ultrapassa de lá para o mundo – uma mensagem
seu sentido referencial. A Marcha pas- de todos para todos. O marchante é o
sou a ser muito mais que um mero ca- mensageiro, o bardo. Nesse ponto pa-
minhar. Entrelaçando esses vínculos, rece residir a força simbólica da cami-
Christine Chaves oferece-nos um qua- nhada (:100).
dro minucioso da organização da Mar- Christine Chaves convence-nos da
cha e, tangencialmente, do próprio importância da etnografia pela qualida-
MST. Vemos um exército que se esten- de peculiar do seu trabalho de campo: o
de em fileiras pelo campo de batalha. deslocamento simultâneo de nativos e
Próximos ao front – não por acaso as pe- antropóloga. Outro aspecto fundamen-
rigosas BRs –, os soldados; longe dali, tal dessa construção etnográfica é o uso
nas funções de estratégia, os coman- dos diários escritos por dois marchantes,
dantes desse movimento. Os soldados José e Antônio. As vozes e versões dos
lutavam por bandeiras que levavam três são confrontadas, sobrepostas, dan-
consigo, à frente do grupo, durante to- do ao texto uma densidade concreta de
do o percurso: a bandeira do MST e a múltiplas vozes e sentidos. Através dos
bandeira do Brasil. Uniformizados, de diários, somos conduzidos a experiên-
bonés, camisetas, sandálias havaianas cias de toda ordem e assim passamos a
e capas amarelas para enfrentar as chu- ouvir a voz da “massa”, também cha-
vas, esses soldados sabiam que “um mada, em momentos de crise, de lúm-
passo a mais era um passo a menos” pen, pela própria “direção” da Marcha.
(:94) rumo à vitória. Essas animosidades se traduzem em
Entretanto, como se esses sinais não uma guerra de habitus. A maioria dos
lhes bastassem, encenavam todos os marchantes era acampada e não assen-
dias a sua “mística”, essa concepção tada. Sua formação ainda não estava
nativa que a autora trata de desvendar. completa: a Marcha era o rito de passa-
A mística atualiza-se em forma de atos gem necessário para tal. Muitos, porém,
rituais, sendo também um sentimento. não suportaram as agruras do caminho,
Através dela o indivíduo se sente inci- como ilustra um sem-terra: “a maldade
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dos amigos”. As demandas por água, luta que nitidamente não era apenas
comida, fumo e havaianas foram sendo dos sem-terra.
silenciadas à medida que o medo toma- Como vemos, o texto de Christine
va seu lugar entre os marchantes. Quan- Chaves – e dos outros marchantes, An-
to mais próximos de seu objetivo final, tônio e José – coloca-nos em contato
a chegada a Brasília, mais eles recea- com os elementos usados nas místicas e
vam um desfecho funesto. O silêncio im- em protestos às ações governamentais.
perava no fim da Marcha. Como resu- Estes são levados a falar por si. À beira
miu magistralmente um marchante: “no da estrada, a bandeira do MST é ani-
combate não se conversa: é a morte”. mada, tornada uma espécie de ventrílo-
Ao longo do caminho, marchantes fo- quo e se põe a falar de seus anseios. Es-
ram expulsos, por indisciplina – asso- sa mágica simpática, no sentido preco-
ciada em geral ao consumo excessivo nizado por Frazer, se dá de forma seme-
de álcool – ou pela suspeita mais grave lhante em outras ocasiões. Os marchan-
de se tratar de infiltrados. Essas deci- tes, por exemplo, atearam fogo em um
sões eram tomadas em assembléias e boneco do Ministro Jobim e em um ou-
levadas a cabo pelos marchantes res- tro do Tio Sam. Quando em Brasília, os
ponsáveis pela segurança. Somente sem-terra ainda destroçaram o Ministro
quando da expulsão dos infiltrados es- Jungman e o Presidente Cardoso, arre-
tes eram entregues à polícia. messando-lhes raízes de mandioca. Co-
Por fim, destaco dois episódios para mo bem sugere a autora: “o rito é o cria-
sintetizar a chegada triunfal da Marcha dor da força e do poder mágico, isto é,
Nacional a Brasília, descrita com minú- da crença coletiva que, justamente por
cia por Christine Chaves. Os “combali- ser coletiva, é dotada da noção de po-
dos marchantes”, alquebrados depois der eficiente” (:87). Ao presidente não
da longa travessia, protagonizaram um restou outra alternativa do que ir “se
episódio de valor simbólico inestimável queixar ao Papa”, em uma viagem que
para a compreensão do significado da fez ao Vaticano durante o período da
Marcha. Ao longo dos milhares de qui- Marcha, já que os bispos locais já ha-
lômetros caminhados, os sem-terra vi- viam manifestado seu apoio aos mar-
ram seus corpos se esvaecerem. Porém, chantes, em carta da CNBB.
como se todo esse sacrifício não bastas-
se, chegando à cidade, com os pés em
carne viva, os marchantes ainda se diri- DAMATTA, Roberto e SOÁREZ, Elena.
giram a um hemocentro local para doar 1999. Águias, Burros e Borboletas: Um
seu sangue! Passado esse sacrifício co- Estudo Antropológico do Jogo do Bi-
letivo, no dia 19 de abril, dois dias após cho. Rio de Janeiro: Rocco. 197 pp.
o assalto à capital federal, viram tom-
bar, queimado nas ruas do Plano Piloto,
um índio Pataxó Hã-Hã-Hãe. Aqueles Amir Geiger
que ainda estavam acampados em Bra- Doutor pelo PPGAS-MN-UFRJ
sília encenaram um ato público repu-
diando o assassinato de Galdino Jesus “Aqui, como lá, cada instante sofre do
dos Santos. Ao vasto repertório da Mís- passado e do futuro. Está claro que a
tica dos sem-terra se acrescia mais um tradição e o progresso são dois grandes
triste fato. A revolta de todos se conver- inimigos do gênero humano.” Esta é a
teu então em energia social para uma agridoce conclusão de Paul Valéry a
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propósito das (in)comunicabilidades en- de articulação e passagem entre as duas


tre Oriente e Ocidente; era o início de ordens dilemáticas – sociedade tradicio-
outro século e fazia sentido associar pa- nal e nação moderna – que nos consti-
ralelamente entre si os primeiros termos tuem. Poderíamos assim ver no livro
de cada dicotomia, supondo-as funda- prosseguimento de obras anteriores.
mentais para a idéia de civilização. Cá Sua origem parece pedir tal leitura: é a
entre nós, neste “Ocidente ao ocidente dissertação de mestrado de Elena Soá-
do Ocidente” (parafraseando Álvaro de rez, defendida no PPGAS/Museu Na-
Campos), essa dualidade persistiu co- cional, e que DaMatta, seu orientador,
mo enigma da autodecifração brasilei- reapresenta com uma camada suple-
ra: sofremos de tradição e de progresso, mentar de comentários e ênfases, refor-
e nenhum deles pôde, sozinho, forne- ços e reafirmações de posições anteri-
cer-nos modelo de redenção. As obras ores, novos diálogos com a literatura de
de Roberto DaMatta tornaram-se uma ciências sociais, tudo acompanhado de
referência quanto a esse nosso drama uma nova fornada saída de sua usina de
da dualidade, e o livro sobre jogo do bi- insights em Niterói. O leitor avisado,
cho, escrito em parceria com Elena Soá- aliás, acreditará perceber, em diversas
rez, não foge à regra. Exercitando o ma- instâncias, as costuras do texto, os pon-
nejo de funcionalismos e estruturalis- tos em que se dão as intervenções do
mos como ascese (e por vezes tour de professor sobre a narrativa e as obser-
force) de um ofício ético de estranha- vações da discípula. Reconhecerá en-
mento e relativização, ele se mantém tão, no estudo de mais essa instituição
fiel à sua discreta radicalidade de an- popular brasileira (ao lado de carnavais,
tropólogo e crítico cultural, capaz de re- malandros e heróis), o pretexto da já co-
correr a um “nosso” (re)conhecimento nhecida e reincidente elaboração matti-
do outro para esconjurar os pretensos ana a respeito do Brasil. Nesse quadro,
críticos ou reformadores do famigerado por assim dizer, paradigmático – uma
“país que não é sério”, os ressentidos de investigação de base a fundamentar
sua própria condição periférica, os in- reaplicações de uma teoria original; o
sensíveis ou mesmo cínicos em relação objeto tornado em índice, “marca regis-
ao país que insistem em julgar como trada” da condição brasileira –, teríamos
meio culturalmente inóspito à grande no livro uma ilustração do que seria uma
civilização – em três palavras: o (impor- escola damattiana, tivesse o próprio Ro-
tado) etnocentrismo interno circulante. berto optado por uma posição menos li-
Com seu status ambíguo de prática minar em nossa antropologia. Mas essa
arraigada/difundida e de atividade proi- impressão de déjà vu teórico e descos-
bida/estigmatizada, seu lugar de char- tura textual não está à altura dos signi-
neira entre o empreendimento capita- ficados envolvidos.
lista e a parasitação e corrupção do Es- “É surpreendente constatar que o
tado, sua face dupla de “vício” e de “jo- jogo do bicho não aparece como objeto
go inocente”, o jogo do bicho parece de de investigação em nenhuma das inter-
fato apontar para alguns de nossos im- pretações clássicas do Brasil, o que con-
passes, e demandar análise. Chega a firma o cisma ideológico que, entre nós,
ser surpreendente que não tenha mais separa as instituições construídas e nu-
cedo se incorporado à galeria das insti- tridas pelo povo e os fatos e idéias que
tuições-chave estudadas por DaMatta, as elites assumem como sérias e dignas
aquelas nas quais se dão as operações de reflexão intelectual” (:101). Esta ob-
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servação abre a análise substantiva que teio dentro dos limites do Zoológico – o
autora e autor apresentam, e fica logo animal marcado no ingresso de entrada
claro que não se trata de acrescentar deveria corresponder àquele escolhido
mais um tema ou objeto à lista das tare- pessoalmente pelo barão – logo se tor-
fas acadêmicas. Notar tal lacuna do nou um jogo, com a introdução da pos-
pensamento social é pôr em questão to- sibilidade de escolher o “bicho que vai
do um sistema estruturado de represen- dar”, isto é, de ter palpites e apostar em
tações sobre o Brasil, e estudar o jogo determinado resultado do sorteio, e sem
do bicho (por exemplo) torna-se equi- para isso ser necessário freqüentar o
valente a criticar o imaginário quiméri- Jardim Zoológico, graças a uma rede
co dos projetos nacionais. No centro (ainda descentralizada) de intermediá-
dessa crítica, há uma percepção antro- rios ou bookmakers e de agentes finan-
pológica que tem caráter de ruptura: ciadores independentes, que “banca-
“os bichos são mais importantes do que vam” as apostas. Desse modo, coetânea
os bicheiros”. Isso significa quebrar com à modernização e ao igualitarismo re-
os sociologismos ou economicismos re- publicano recém-implantados, aparece
dutores e adotar a perspectiva maussia- uma possibilidade formal de ascensão
na da totalidade do fato social, da im- social, cuja concretização no entanto é
plicação do jurídico, religioso e econô- buscada, não pelo trabalho (desvalori-
mico com o morfológico, o estético, o zado numa sociedade marcadamente
expressivo. Mas está em jogo também escravocrata), mas com recurso a uma
uma espécie de “fato interpretativo to- série de figuras extraídas do domínio
tal”, que abrange os vários planos do natural (os bichos). Esse quadro inicial
estudo e remete a uma solidariedade já fornece a imagem-mestra do livro: a
forte, na qual o objeto escolhe o méto- modernidade domesticadora, que põe
do: a ousadia ou ao menos o inconfor- os animais selvagens dentro de jaulas e
mismo do princípio proposto (“os bichos os expõe para o lazer e instrução gerais,
são mais importantes”) decorre dire- produz também a contrapartida primiti-
tamente e é a expressão teorizada da va desse movimento, pondo os bichos
consciência adquirida no trabalho de (selvagens e domésticos) à solta no
campo, conforme mostra Elena Soárez “imaginário urbano” da capital.
em seu relato de pesquisa. O livro se de- Lembrando o “aspecto de chance e
senvolve como uma demonstração de de surpresa” de um golpe republicano
que é possível corresponder à exigên- de reduzida participação popular, e o
cia nativa de uma antropologia cosmo- despreparo da sociedade profunda-
lógica e não sociológica do Brasil. mente hierárquica em relação ao igua-
O primeiro capítulo traz uma histó- litarismo formal do mercado regulador,
ria mais que elucidativa do desenvolvi- DaMatta e Soárez sublinham o resulta-
mento do jogo do bicho, nascido no iní- do perverso do processo: uma desigual-
cio da República sob a forma de simples dade a grassar sem limites, como “lei
evento promocional do Jardim Zoológi- do mais forte” que recebe a aceitação
co fundado por um nobre do Império, o tradicionalmente herdada/devotada à
barão de Drummond, em Vila Isabel, velha ordem, sem dar em troca nenhu-
bairro por ele construído em terrenos de ma ordenação simbólica. À formaliza-
sua propriedade. O rapidíssimo sucesso ção republicana de uma ordem capi-
da promoção engendrou modificações talista se associou uma febre de rique-
significativas: o que era um simples sor- za desmesurada, sem lastro econômico
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nem construtividade social, em que o Uma afirmação inteiramente conforme


enriquecimento é dos ricos – portanto, à visão mattiana já conhecida e sedi-
um “mero” jogo de especulação. A pia- mentada, mas que traz, como elemento
da então corrente – “Que bicho deu?”, menos usual, uma disposição primitivis-
“Deu Deodoro!” – é muito mais do que ta levada a sério. Se os bichos, de um
sátira: propõe, com fina ironia, uma ponto de vista que aceita a história, são
“desbestialização” por bicho interpos- metáfora e sintoma de nosso capitalis-
to, e de lambuja pontua a selvageria da mo selvagem, eles não são menos devo-
modernização. “Sob a capa da passivi- radores dela, de um ponto de vista sis-
dade o povo lê o que vem de cima como têmico. O capítulo 2, leva às últimas
um teatro de ‘bichos’” (:99). conseqüências metodológicas e teóricas
O jogo do bicho, portanto, como sin- o espírito da entropologia estrutural: os
toma; donde também os bichos como bichos são mais importantes que os bi-
metáfora: o capítulo 3 se debruça sobre cheiros porque o palpite (cuja lógica de
o sistema dos 25 animais, classificando- formação e de aplicação é aí analisada)
os segundo os atributos comumente as- funciona como máquina de esfriar a his-
sociados a eles na elaboração das apos- tória. Os bichos são acionados (nos so-
tas – originadas tipicamente de “palpi- nhos, nas associações de idéias etc.)
tes”, isto é, de eventos e circunstâncias por uma série de operações nada mo-
submetidos a uma lógica da abdução dernas, parentes não só do totemismo,
(que autora e autor não chegam a men- como das artes divinatórias e dos ritos
cionar diretamente). Dessa interpreta- sacrificiais. Mais que antimoderna, essa
ção não poderia deixar de resultar um proliferação mítico-imaginária seria
“retrato cultural”, uma evidenciação de “transmoderna”, na medida em que
relações constituídas nos mais diversos “canibaliza” os valores, crenças e axio-
campos sociais. O capítulo se desenvol- mas básicos do sistema (enriquecimen-
ve num terreno movediço, em que as to individual por vias racionalizadas, re-
estruturações correm o risco de afrou- lação instrumental com a natureza etc.).
xar-se em petições de princípio e amor Recusando interpretações evolucio-
à simetria. Não é no entanto menos ne- nistas e adaptativistas (sobrevivência,
cessário à economia geral do estudo, e “resíduo animista”, na opinião de Gil-
funciona perfeitamente – talvez não co- berto Freyre; reencenação secundária
mo acesso a um modelo estrutural, pois do bandeirantismo, do enriquecimento
nem parece ser essa a intenção, e sim rápido e fácil, segundo Viana Moog),
como demonstração do poder da hipó- autora e autor mostram que no centro
tese central. da prática do jogo há uma operação ati-
Essa hipótese central reaparece ao va – cognitiva, cosmológica – de leitura
longo do livro; ei-la, numa de suas ver- do mundo. O palpite não é recurso ins-
sões: “O jogo do bicho é um sistema trumental e quase aleatório para a apos-
classificatório de caráter totêmico que, ta no jogo; esta última é que é uma for-
paradoxalmente, surge no mundo urba- ma de dar peso e conseqüências mate-
no e caracteriza um processo de moder- riais (no limite, a mudança das condi-
nização singular e contraditório, por ções econômicas e de classe) a um ou-
não se conformar aos padrões deriva- tro sentido construído. Apostar dinheiro
dos da experiência inglesa, francesa ou no jogo é portanto um “sacrifício totê-
americana, que até hoje são tomados mico” em sentido quase literal; é empe-
como universais e exemplares” (:38-39). nhar-se ou entregar-se como elo de li-
204 RESENHAS

gação entre duas ordens incomensurá- pensam entre si, mas “jogam” com os
veis. “O mundo dos bichos procede iso- acontecimentos humanos e falam de um
lando o fato e prescindindo da cadeia país peculiar, onde a modernidade ain-
[evolucionista, historicizante] de acu- da não se separou da tradição e o atraso
mulações”; toma os eventos “como ‘si- se consolida a golpes de progresso.
nais’ ou ‘mensagens’ referidas a um có-
digo de palpites – fontes ocultas de ri-
queza e felicidade” e acredita ser possí- VALE, Alexandre Fleming Câmara.
vel “transformar probabilidade em des- 2000. No Escurinho do Cinema: Cenas
tino e evento em estrutura” (:158-159). de um Público Implícito. São Paulo/
Finalmente, o “Palpite Inicial”, assi- Fortaleza: AnnaBlume/Secretaria de
nado por DaMatta e que funciona como Cultura e Desporto do Estado do Cea-
introdução ao livro, pode ser lido como rá. 178 pp.
o “arremate” que também é, e como
transfiguração do argumento. Trata-se
de perceber em tudo aquilo que parece Horacio Federico Sívori
em nós “resistir” a um processo civiliza- Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ
tório pela via econômica modernizante,
não a marca da barbárie inerradicável, Para entender a dinâmica da recepção
mas uma alternativa de civilização. Tra- dos gêneros pornográficos torna-se
ta-se também de atentar para a mons- chave a noção de espaço de exibição.
truosidade do capitalismo aqui implan- No cinema pornô, o filme vira pano de
tado como parte do “conjunto de insti- fundo do cenário público da platéia, on-
tuições exógenas que aqui chegaram de amiúde passa a ter lugar uma outra
sob a bandeira de serem apenas instru- cena. A sociabilidade homossexual mas-
mentos tecnicamente neutros de mo- culina e travesti, essa outra cena, em
dernização”, mas que “invariavelmen- uma sala de exibição de cinema porno-
te assumem expressões locais e ga- gráfico, é o assunto do livro de Alexan-
nham novos significados” (:36). Trata- dre Fleming Câmara Vale, originalmen-
se, enfim – unamos primitivismo e críti- te elaborado como dissertação de mes-
ca cultural –, de desmistificar o capita- trado em sociologia, em 1997, na Uni-
lismo selvagem para remiticizar o ca- versidade Federal do Ceará. A partir de
pitalismo dos selvagens. “De fato, en- uma pesquisa etnográfica feita em For-
quanto Freud, em Viena, descobria e taleza entre 1995 e 1996, Vale desven-
buscava exorcizar a irracionalidade dos da os segredos do escurinho do cinema
sonhos [...] tomando-os como ‘via régia’ para o olhar antropológico e insere-os
para o estudo do inconsciente, no Rio na topografia sociossexual do espaço
de Janeiro o barão de Drummond fazia urbano contemporâneo.
justo o oposto, convocando o universo A história dos variados usos sociais
onírico como parte de uma loteria po- dos espaços de exibição cinematográfi-
pular que destemidamente reintegrava ca desde a chegada dessa tecnologia a
o ‘primitivo’ e o mágico com o racional Fortaleza na passagem do século XIX
e o utilitário” (:31). O totemismo do bi- para o XX e uma informada reflexão so-
cho é, portanto, o operador crítico de bre a pornografia, “gênero feito para
nossa inconsistente ordem racional. Eis excitar”, servem de introdução para o
uma moral possível desse livro fabulo- objeto da análise etnográfica: as práti-
so, onde, com efeito, os bichos não se cas, universo de valores e ideologias se-
RESENHAS 205

xuais dos travestis e outros freqüenta- room Trade: Impersonal Sex in Public
dores que faziam do cinema Jangada Places (1975 [1970]), e a recente cole-
sua “casa”, “alpendre”, “quintal”, “fa- ção, Public Sex, Gay Space, organizada
culdade”, “escola” até seu fechamento por W. Leap (1999).
em 1996. A partir da migração do “ci- No capítulo I, “O Cinema Jangada
nema familiar” para o shopping e da como Lugar de Investigação”, Vale es-
consolidação do mercado gay em áreas tabelece as condições de existência
mais “nobres” da cidade, Vale acha sen- desse espaço legítimo e liminar no pro-
tido histórico na confluência entre o pro- cesso de especialização das salas desti-
cesso de especialização do segmento nadas ao gênero pornô como uma espé-
pornô do circuito de salas de exibição cie de gueto desviante, que acompanha
cinematográfica e a reterritorialização, a especificação e territorialização dos
no centro da cidade, dos encontros en- prazeres da platéia masculina. O capí-
tre travestis e homens de verdade, bi- tulo II, “Os Sentidos do Escuro ou No
chas e bofes. Uma combinação singu- Escurinho dos Sentidos: Platéias, Trans-
larmente articulada de fontes tão hete- gressão e Gêneros”, relata a constitui-
rogêneas torna o produto interessante ção do escurinho do cinema como zona
tanto para os leitores não iniciados na moral, palco de transgressões e lugar
temática abordada quanto para aqueles de socialização da sexualidade, desde a
que vão comparar seus achados e inter- chegada das salas de exibição em For-
pretações com a recente bibliografia taleza. Resulta esclarecedora a seg-
brasileira e internacional sobre cinema mentação progressiva das salas segun-
e pornografia, sociabilidade homosse- do gêneros cinematográficos e platéias,
xual masculina e prostituição travesti. com produtos e espaços qualitativa-
Respondendo provavelmente à or- mente diferenciados para o público bur-
ganização da tese acadêmica, a obra guês e popular, masculino e feminino.
está dividida em capítulos e subseções, O capítulo III, “O Cine Jangada no
separando os argumentos mais “teóri- Circuito Exibidor: Um Divisor de Águas”,
cos” dos achados da pesquisa e relatan- situa o pornô e o Jangada na história do
do com detalhe a construção do objeto circuito exibidor local e particularmen-
de estudo. Essa construção do texto lem- te na história do empório de exibição ci-
bra uma outra etnografia de uma zona nematográfica de alcance nacional do
moral urbana, também publicada após grupo Severiano Ribeiro. De sala fami-
ser apresentada como dissertação de liar destinada a filmes cult, passa pelo
mestrado, O Negócio do Michê (1987), “bangue-bangue, kung fu e chancha-
de N. Perlongher, com cuja obra o tra- das” para acabar (literalmente) com o
balho de Vale guarda parentesco explí- pornô como “peça de resistência” em
cito. Outra referência central é o traba- épocas de crise do mercado cinemato-
lho de A. Leite, Fortaleza e a Era do Ci- gráfico. Introduz-se no final do capítulo
nema (1995), que forneceu o rico veio III a pergunta sobre a disponibilidade
documental (jornalístico e visual) da particular desse “gênero feito para ex-
pesquisa histórica, base dos capítulos II citar”, para a mobilização dos especta-
e III. A exploração de Vale merece ser dores para atividades bem diferencia-
inscrita na incipiente produção socioló- das do assistir passivo ao filme familiar.
gica e antropológica sobre o “sexo pú- O ritual do cinema pornô diferencia-se
blico”, da qual vêm à memória o traba- radicalmente do ritual burguês da ida
lho inaugural de L. Humphreys, Tea- ao cinema como marca de distinção. Ao
206 RESENHAS

longo da sua especialização, o roteiro cas e, principalmente, nas aparências


pornô teria adquirido características es- corporais” (:100). Esta cartografia dese-
tereotípicas – rítmicas, temáticas, ape- jante operaria inclusive nas sensações
lativas – que converteriam a ação fílmi- corporais, imprimindo nas classifica-
ca em um ritual replicável ou ainda ções certo valor energético, como no ca-
complementável. O pornô geraria uma so do silêncio como marca de masculi-
disposição específica possibilitada pe- nidade, que garantiria tanto a não-iden-
las regras desse ritual; mas a atividade tificação como homossexual quanto a
na sala de exibição não dependeria, es- própria excitação sexual. “Para deter-
tritamente, do “estímulo” do filme: os minados espectadores, mediar lingüis-
homens que freqüentavam o Jangada ticamente uma ‘pegação’ seria, em de-
descobriram redes de sociabilidade di- terminados casos, inviabilizar alguns
ferenciadas, onde a performance cine- contatos anônimos e efêmeros que ti-
matográfica era acompanhada por ou- nham lugar no interior da sala. O silên-
tras performances, materiais mas não cio poderia ser tanto condição de possi-
menos imaginárias, na platéia: “[…] vo- bilidade para não ter que aderir ao có-
cê ia lá e realizava, quem era voyeur se digo quanto garantia de excitação se-
realizava, quem gostava de transar com xual” (:100-101, ênfases minhas). Este
quatro ou cinco homens se realizava, achado, ilustrado na conduta comple-
quem gostava de policial militar se rea- mentar de bichas e bofes e de travestis
lizava, lá era, como se diz, um cinema e clientes, resulta esclarecedor para en-
de fantasias”, enuncia um entrevistado tender as trocas e a circulação de valor
(:80). no campo homossexual. Evidencia-se a
O percurso histórico e conceitual disputa do significado do público no
precedente situa o espaço e o público “cinema de pegação”: o lugar público
da exibição pornográfica em uma pers- intensificaria, para alguns freqüentado-
pectiva cultural e histórica. O capítulo res, as possibilidades do prazer sexual,
IV, “No Escurinho Urbano do Janga- enquanto para outros a presença de es-
da”, justificadamente o mais extenso, é pectadores inibiria e reorientaria os en-
fruto de um trabalho de campo etnográ- contros sexuais para lugares mais pri-
fico no cinema Jangada. Na descrição vados. Para outros, ainda, a atividade
densa da sociabilidade no interior do sexual se torna afirmação de privacida-
Jangada, que dá conta da proliferação de, mesmo no espaço público.
de gêneros e papéis sexuais nas práti- Atenção especial merecem as tra-
cas dos freqüentadores, Vale apela à vestis que achavam no Jangada um es-
noção deleuziana de código-território, paço protegido para a prática da prosti-
utilizada também por Perlongher em tuição. Em paradoxo com o senso co-
sua etnografia da prostituição masculi- mum que associa passividade ao femi-
na em São Paulo. Da mesma forma que nino e atribui masculinidade ao “ativo”,
entre os michês paulistanos de Perlon- no cinema pornô são as travestis que
gher, a trama classificatória enuncia desempenham um papel ativo, circu-
“uma espécie de plano de uma ‘carto- lando à procura de clientes, mas tam-
grafia do código-território existencial’ bém na exibição conspícua da sua mon-
que ‘pairava’ sobre a cabeça dos espec- tagem para o resto das bichas, em con-
tadores-atores. Verbalizado por alguns, traste também com a outra face do mes-
silenciado por outros, esse modelo era mo paradoxo, a passividade dos machos
posto nos atos, nas condutas, nas práti- sentados nas poltronas. Elas gostam de
RESENHAS 207

provocá-los, excitá-los, “dar um close” não substituirá o ritual público do cine-


neles. Nessa performance, as travestis ma; de outro, as lutas simbólicas na to-
contestam a apropriação masculina do pografia sexual da cidade e no campo
espaço do cinema como sítio de trocas homossexual excedem o espaço do es-
privadas, portanto não poluídas pelo es- curinho do cinema. Nas páginas da
tigma do “sexo público”, da visibilida- “Conclusão” do livro, Vale prevê, como
de do (homo)sexual. As travestis reivin- efeito da extinção dessa grande sala, a
dicam esse espaço como simultanea- invisibilização (ou ainda a desaparição)
mente público e íntimo, tanto que se re- da sociabilidade que ali tinha lugar, ao
ferem a ele como “escola” e “casa”, re- se redirecionar o tipo de exibição e de
criando na platéia, nos corredores e no troca sexual que tivera lugar nesse lo-
pátio traseiro hábitos que evocam aque- cal para uma rede de pequenos (menos
les espaços. Embora restringidos à so- comunitários, mais individualizantes)
cialização travesti nesse espaço particu- “cinevídeos”, onde a sociabilidade do
lar, os achados de Vale enriquecem o Jangada não teria espaço para se de-
conhecimento sobre as vidas desse gru- senvolver. Esta afirmação contradiz os
po e vêm ampliar o diálogo iniciado pe- achados da etnografia do Jangada, por-
las etnografias de H. Silva, Travesti: A quanto desconsidera a agência especí-
Invenção do Feminino (1993), N. De fica e ubíqua das travestis, bichas, gays,
Oliveira, Damas de Paus: O Jogo Aber- bofes, machos e “homens de verdade”,
to dos Travestis no Espelho da Mulher à qual também respondem mudanças
(1994) e D. Kulick, Travesti: Sex, Gen- tais como a ampliação ou redução de
der and Culture among Brazilian Trans- um circuito de exibição. No relato da
gendered Prostitutes (1998), que reali- desaparição do Jangada constata-se um
zam discussões aprofundadas e polêmi- certo tom nostálgico, que evoca a voz
cas sobre os significados de ser travesti. dos antigos freqüentadores do cinema
Na reconstrução histórica que serve logo após seu desaparecimento. Ro-
de marco à etnografia, a reconversão do mantiza-se o passado idealmente co-
cinema Jangada para o gênero porno- munitário da vida doméstica no pátio
gráfico, sua abertura para a prostituição do Jangada, enquanto o cinevídeo apa-
travesti e o subseqüente fechamento da garia essa dimensão do cotidiano ho-
sala são explicados no contexto de ten- mossexual, silenciando os travestis e
dências globais à especialização do neutralizando a tensão “implícito/explí-
centro das cidades como zona moral e à cito” que se produz (produzia, segundo
desaparição das grandes salas de exibi- Vale) na contraposição entre a gritante
ção pelo efeito de substituição da proje- performance travesti e o silêncio dos es-
ção na grande tela pela tecnologia digi- pectadores machos. O relato nostálgico
tal. Atravessada por esses dois proces- e a retórica que apresenta as travestis
sos, a conjuntura do período estudado como vítimas da história produzem tam-
por Vale aparece como “divisora de bém um efeito positivo: ao ler o presen-
águas” na história do circuito exibidor te de desorganização e predizer o futu-
local. Mas o horizonte dessa transfor- ro, essa retórica fala também de como o
mação excede os limites empíricos da Jangada é reconstruído e vivido na me-
pesquisa: de um lado, o efeito de subs- mória e de apropriações ainda insuspei-
tituição é uma hipótese ainda não com- tadas do espaço pós-Jangada.
provada e é possível argumentar que a
imagem digital perfeita na TV familiar
208 RESENHAS

VARGAS, Eduardo Viana. 2000. Antes dem hoje ser considerados metáforas
Tarde do que Nunca: Gabriel Tarde e a “cansadas”, Vargas mostra que as ten-
Emergência das Ciências Sociais. Rio de sões inerentes a essas formulações já se
Janeiro: Contra Capa Livraria. 280 pp. revelavam em seu processo de emer-
gência. O universo conceitual formula-
do por Tarde poderia fornecer novas
Cecília Campello do Amaral Mello perspectivas para uma sociologia ou an-
Mestranda, PPGAS-MN-UFRJ tropologia contemporâneas interessadas
em explorar essas tensões e neutralizar
Como um autor conhecido e atuante em o poder explicativo das dicotomias clás-
seu tempo, dono de um sistema de pen- sicas (como indivíduo x sociedade) ou
samento próprio e singular, pode ser de categorias substancializadas (como a
esquecido? O que está em jogo quando própria noção de indivíduo).
se excluem determinados autores de A primeira parte do livro trata dos
um campo de investigação? O que faz embates e agenciamentos políticos e in-
com que determinadas idéias sejam re- telectuais que permearam o processo
calcadas no processo de institucionali- de emergência das ciências sociais na
zação de uma disciplina? Fruto de uma França em fins do século XIX; a segun-
dissertação de mestrado defendida no da aborda o “encantamento de idéias”
PPGAS-MN-UFRJ em 1992, Antes Tar- de Tarde em sua singularidade e diver-
de do que Nunca aborda essas ques- sidade. Essa organização do livro, privi-
tões, tendo como vetor analítico a traje- legiando a separação entre as idéias do
tória e as idéias de Gabriel Tarde (1843- autor e o campo de disputas político-
1904), “um intelectual que estabeleceu institucionais de sua produção, escapa
os princípios […] de toda uma sociolo- ao duplo risco de apoio excessivo no
gia das nuanças, dos detalhes e dos re- contexto – o que pode desfocar as idéias
lacionamentos infinitesimais, de uma – ou de assunção das idéias como reali-
microssociologia heterogênea” (:24); dades em si mesmas, referidas a um
um “crítico à reificação dos sujeitos co- contexto indeterminado. É possível es-
letivos e à naturalização dos fenômenos colher entre “mergulhar” diretamente
macrossociais” (:33). O grande mérito nas idéias de Tarde ou se aproximar
desse livro é trazer à tona a força e a be- tendo um quadro referencial prévio.
leza do sistema de pensamento de Ga- Nos capítulos “No Começo, a Intri-
briel Tarde, ativamente esquecido e re- ga” e “Uma Multiplicidade de Agen-
legado a um plano secundário na histó- ciamentos”, Eduardo Vargas remete a
ria da disciplina; mas também se pode Michel Foucault, focalizando as rela-
afirmar, por outro lado, que as contri- ções entre os acontecimentos e não os
buições do livro superam as por si só acontecimentos em si mesmos; as des-
instigantes idéias e os princípios do pró- continuidades e não a coerência dos
prio Tarde. Temos aí um relato consis- eventos políticos e intelectuais da épo-
tente do processo de emergência das ca. O autor apropria-se assim, ainda
ciências sociais na França, assim como que com certa reserva, da “sociologia da
uma análise heterodoxa do pensamen- produção intelectual” de Pierre Bour-
to de Durkheim, contemporâneo e prin- dieu, privilegiando os processos e as
cipal opositor de Tarde. disputas e não a “emergência” pura e
Se termos como “sociedade”, “ano- simples das ciências sociais. Vargas a-
mia” ou “representação coletiva” po- nuncia uma análise micropolítica, aten-
RESENHAS 209

ta a uma “multiplicidade de agencia- tantes para o processo de instituição da


mentos”, em busca da detecção dos sociologia como disciplina: a crença em
efeitos de poder centralizadores do dis- uma ordem social como totalidade su-
curso sociológico clássico constituintes pra-individual, a tendência à especia-
da ortodoxia durkheimiana. Para tanto, lização e a luta pela sua conservação
destaca a relativa dispersão dos autores através da ordenação e equilíbrio de
e discursos sociológicos na segunda suas funções. O autor aponta também
metade do século XIX na França, de- para outros signos que denotariam a in-
marcando as tentativas de articulação e tensificação do investimento político
os diversos projetos concorrentes à dé- nos saberes sobre o social, tais como as
marche durkheimiana, organizados em disputas intra-universitárias e interdis-
torno de diferentes associações ou es- ciplinares, visíveis através dos pertenci-
colas responsáveis pela construção e mentos e colaborações nas inúmeras re-
problematização desse novo domínio vistas especializadas e sociedades to-
de saberes sobre o “social”. madas pela “febre” de tematização do
Nos capítulos “Mudanças Ambiva- social, cuja dinâmica vai, aos poucos,
lentes”, “Quando Saber também É Po- definindo o distanciamento entre os dis-
der” e “A Panacéia Pedagógica”, o au- cursos “prático-profissionais” e os dis-
tor procura articular as inquietações cursos “científicos”.
morais e políticas da época com a estru- Em “Durkheim e o Domínio da So-
turação de um critério propriamente ciologia”, Vargas discute as diferenças
científico de validade dos discursos so- entre as trajetórias de Durkheim e Tar-
ciológicos. Há um investimento político de, confrontando a conquista tardia de
na produção de novos saberes-poderes titulações de prestígio do primeiro e a
relativos ao “social” ao qual a sociolo- carreira “meteórica” e bem-sucedida
gia e a pedagogia de Durkheim se ade- do último – que, em 1899, já é profes-
quam perfeitamente dada sua declara- sor-titular do Collège de France. Apesar
da preocupação em sanar os suposta- do percurso acadêmico relativamente
mente graves problemas sociais e mo- conturbado do “pai da disciplina”, Var-
rais da sociedade francesa. Assim, essa gas demonstra, a partir de Karady, co-
sociologia vai definindo os critérios de mo se produz um movimento de organi-
cientificidade que, mais tarde, se torna- zação profissional e consolidação uni-
rão hegemônicos – racionalismo, rigor versitária lado a lado à representação
metodológico, objetividade, especiali- da sociologia de inspiração durkhei-
zação –, demarcando suas fronteiras miana como um grupo “coeso”, apesar
disciplinares, distanciando-se da psico- das tensões internas ao grupo. Seguin-
logia, da filosofia e da literatura e cons- do implicitamente a crítica de Tarde,
truindo, desse modo, uma “zona onto- Vargas faz uma análise refinada dos
lógica específica do social” (:81). princípios subjacentes ao vocabulário
Nos dois capítulos seguintes, Var- durkheimiano clássico, a começar pela
gas apresenta as continuidades presen- noção do social como realidade sui ge-
tes na formalização dos saberes sobre o neris, ou, visto de outro modo, da socie-
social que se organizam em torno de dade como artefato conceitual.
um “paradigma organicista”. O autor Em “Biografia e Espectrografia de
assinala que a metáfora do organismo, Tarde”, após uma apresentação da tra-
produto de um empréstimo às ciências jetória e das condições de produção da
naturais, traz efeitos de poder impor- obra de Tarde, o autor sugere que o an-
210 RESENHAS

tidogmatismo de Tarde sempre pairou se estrutura situacional e temporalmen-


como um “fantasma” sobre Durkheim, te, isto é, na simultaneidade das convic-
uma vez que apontava para as tensões ções e das paixões” (:212). As crenças e
inerentes às noções mais caras a este os desejos seriam fluxos que cruzam em
último. Em “Uma Sociologia das Nuan- todas as direções os domínios molares e
ças”, Vargas revela os três grandes moleculares, articulando o infra-indi-
golpes que a crítica de Tarde desfere vidual dos “detalhes infinitesimais” ao
contra todas as formas de mecanicis- domínio supra-individual das represen-
mo e organicismo do arcabouço teóri- tações, concepção que dissolve a linha
co durkheimiano. Em primeiro lugar, tão bem traçada por Durkheim demar-
Tarde rompe com a dicotomia livre-ar- cando o social e o individual.
bítrio/determinismo, propondo que ca- No capítulo intitulado “Princípios
da ordem de determinismo intervém Cosmológicos”, verifica-se como Tarde
fortuitamente sobre outra, produzindo afirma simultaneamente o acaso e a ne-
encontros-acidentes e, assim, propa- cessidade: o real é apenas um caso do
gando as diferenças. Em segundo lugar, possível, um fragmento do realizável;
Tarde questiona o estatuto propriamen- está por definição em excesso. Note-se
te ontológico do indivíduo, assumindo que as potencialidades não atualizadas
uma noção extremamente plástica do continuam a existir virtualmente e a
sujeito humano – “a grande questão, afetar o que realmente existe: “no real,
[…] não é saber se o indivíduo é livre ou há séries causais múltiplas e indepen-
não, mas se o indivíduo é real ou não” dentes. Se, dentro de cada uma delas,
(:195). Ademais, recusa o olhar unitário tudo é rigorosamente determinado, no
que busca representações totalizantes, real essas séries se encontram contínua
como a noção de sociedade ou de re- e inexoravelmente, e seus encontros
presentação coletiva que, para Tarde, nada têm de determinado: eles são for-
não são categorias explicativas. Pelo tuitos, situacionais e atuais” (:215). O
contrário, é a própria noção de socieda- segundo princípio cosmológico é a afir-
de ou a “similitude de milhões de ho- mação da diferença como definidora da
mens” que precisa ser explicada. Dessa existência humana e social, na qual o
forma, Tarde desnaturaliza as seme- lugar da identidade seria mínimo. Se-
lhanças sociais, buscando o mundo dos gundo Tarde, haveria uma tendência
fenômenos elementares, infinitesimais, (que Vargas qualifica de antropocêntri-
definidos pela diversidade. Para ele, as ca) de “imaginar homogêneo tudo o
formas sociais não mudariam do mais que nós ignoramos”.
simples para o mais complexo (o que Os dois últimos capítulos dessa par-
seria um “erro evolucionista”); a com- te (“A Trama Conceitual” e “Os Proces-
plexidade é inerente ao social e a mu- sos de Subjetivação”) apresentam a di-
dança seria a passagem de uma ordem nâmica das microrrelações de repeti-
de diferenças para outra. ção, oposição e adaptação e seus corre-
Em “O Estatuto do Social”, enten- latos sociológicos (imitação, hesitação e
de-se o que, para Tarde, seria o princí- invenção) e clínicos (o sonâmbulo, o tí-
pio subjacente constituinte da vida so- mido e o louco), isto é, as forças plásti-
cial: uma distribuição mutante de certa cas e funcionais que, a partir da cone-
soma de crenças e de desejos – “a uni- xão dos múltiplos fluxos de crenças e
dade das relações sociais não é dada a desejos, a um só tempo constituem e
priori […], ela é sempre contingente e movem a vida social.
RESENHAS 211

Ao retirar as idéias de Tarde do es- tante. Mediação, Cultura e Política é o


paço das virtualidades não realizadas, último deles, organizado pelo próprio
Eduardo Vargas convida-nos a refletir Velho e por Karina Kuschnir, uma ex-
sobre os “desencontros” ou descontinui- aluna sua. O livro é o resultado de um
dades entre as idéias de um autor e os seminário realizado em 2000, no âmbito
limites formais criados por determina- do projeto de pesquisa “Mediação e Ci-
das tradições disciplinares, revelando- dadania na Sociedade Brasileira”, coor-
nos uma imensidão de possíveis a se- denado por Velho no PPGAS-MN-UFRJ.
rem, a qualquer momento, reatualiza- Os artigos foram divididos em três blo-
dos e reinseridos nos debates contem- cos temáticos e comentados, respecti-
porâneos das ciências sociais. Essa so- vamente, por Luiz Fernando Dias Duar-
ciologia “andarilha” pode, no entanto, te, Celso Castro e Myriam Lins de Bar-
ser entendida, ainda hoje, como um de- ros, em intervenções que não explicam
safio à captura disciplinar, uma vez que nem repetem o que acabamos de ler,
se define pela afirmação da multiplici- mas iluminam certos aspectos dos tex-
dade e da diversidade enquanto tais, e tos, levando-nos da etnografia a novos
pela mistura entre psicologia, ciência, li- diálogos teóricos.
teratura e filosofia – mistura à primeira Articulando-se em torno da idéia da
vista improvável, porém fascinante, e mediação, o livro aponta para a neces-
que cabe aos leitores desvendar. sidade de deixarmos de pensar somen-
te os extremos irreconciliáveis da cultu-
ra brasileira, seus mundos à parte (ricos
VELHO, Gilberto e KUSCHNIR, Karina e pobres, Zona Sul e Zona Norte), e pas-
(orgs.). 2001. Mediação, Cultura e Polí- sarmos a enfocar os agentes sociais que
tica. Rio de Janeiro: Aeroplano. 344 pp. transitam entre os dois pólos, contra-
bandeando idéias, estilos de vida, práti-
cas sociais, objetos. Nos termos de Ve-
Carmen Rial lho, os go-betweens: “Os indivíduos, es-
Professora, UFSC pecialmente em meio metropolitano,
estão potencialmente expostos a expe-
Bons antropólogos, o Brasil tem muitos. riências muito diferenciadas, na medi-
Felizmente. Mas antropólogos que te- da em que se deslocam e têm contato
nham feito escola, que constituam em com universos sociológicos, estilos de
torno de si grupos formados por outros vida e modos de percepção da realida-
antropólogos, esses são bem mais raros. de distintos e mesmo contrastantes. Ora,
Gilberto Velho é um deles. Doutorado certos indivíduos mais do que outros
pela USP, consolidou a antropologia ur- não só fazem esse trânsito mas desem-
bana no país (ou a antropologia das so- penham o papel de mediadores entre
ciedades complexas moderno-contem- diferentes mundos, estilos de vida e ex-
porâneas, como ele prefere), inspirando periências” (:20). Para além de serem fi-
trabalhos que perscrutam nossas cida- guras mercurianas, prontas à comuni-
des, etnografias ousadas que desven- cação, essas personagens são capazes
dam um Brasil bem mais heterogêneo de vivenciar esses dois lados da vida ur-
do que outros grandes intérpretes fa- bana. E porque o trânsito muitas vezes
ziam pensar. requer poder, são vistas como autênti-
De tempos em tempos, aparece um cos xamãs (idéia presente no comentá-
livro novo, numa produção fértil e cons- rio de Luiz Fernando Dias Duarte). De
212 RESENHAS

fato, a idéia de mediadores já aparecia rangolés” (:31). Vianna, através de arti-


em trabalhos anteriores de Velho (como gos de jornais, cartas e outras fontes,
Projeto e Metamorfose, de 1994, por conta a história desse artista de van-
exemplo). Aqui, no entanto, esses bro- guarda que sobe o morro da Mangueira
kers ganham a centralidade da obra. em busca de inspiração, se apaixona
Gilberto Velho assina a apresenta- pela vida cotidiana que encontra, e ali
ção, juntamente com Karina Kuschnir, se estabelece. O artigo aborda, como
além de um dos quinze capítulos do li- pano de fundo, um momento de grande
vro. São textos claros e simples que ebulição na arte brasileira e de apro-
evocam os inspiradores da antropologia fundamento da relação cultura popu-
da comunicação cultural que a obra lar/cultura da elite, com as discussões
propõe: Weber, Simmel e, principal- travadas entre os representantes dos
mente, Schutz. Os indivíduos são as uni- CPCs (Centro Populares de Cultura) da
dades mínimas significativas de uma UNE (União Nacional dos Estudantes),
sociedade onde aparecem diferencia- do teatro de Arena e show Opinião.
ções não presentes em sociedades tra- Um movimento inverso ao de Oitici-
dicionais. “Ressalte-se que em qualquer ca é estudado por Letícia Vianna, no ar-
sociedade, por mais aparentemente tigo que percorre a trajetória do rei (e
simples, há diferenciação e desconti- inventor) do baião, Luiz Gonzaga. En-
nuidade em termos de papéis sociais e tre o final da Segunda Guerra e meados
planos de realidade. No entanto, nas dos anos 50, vemos Gonzaga tocando
sociedades tribais e tradicionais, reli- nas esquinas do Mangue, em gafieiras,
gião, família e parentesco, trabalho e dormindo no morro de São Carlos, par-
guerra imbricam-se de tal forma que a ticipando no programa de Ari Barroso,
diferenciação em domínios não se apre- na rádio Tupi e, enfim, em salões como
senta, em geral, de modo nítido” (:16). o Copacabana Palace, consolidando o
Os mediadores aceleram a comunica- baião na mídia. “A música era (e é) um
ção, são intermediários entre mundos lugar privilegiado para a construção e
diferenciados, tradutores das diferen- afirmação de identidades regionais e
ças culturais. O estudo de biografias e nacionais. E o baião apareceu como
de trajetórias individuais foi o recurso música regional que trazia um sertão
utilizado para falar desses tradutores brasileiro para o cenário da música na-
culturais. cional” (:63), como a música caipira tra-
O primeiro bloco do livro trata dos zia a roça, e o samba “o Brasil urbani-
mediadores no campo da arte, música zado, trabalhador e bem-humorado”. O
e literatura. Traz artigo de Hermano baião era “representante do sertão”,
Vianna, que revela o encontro do morro mas feito no Rio “por nordestinos de ca-
e do asfalto na década de 60 através de madas populares e médias imigrados
“um artista carioca de 28 anos, chama- para o sul” que se integravam na indús-
do Hélio Oiticica, egresso dos embates tria cultural. Com um texto atrativo e ri-
intelectuais/estéticos do concretismo e co em informações, Letícia nos fala das
do neoconcretismo, [que] havia tido a muitas invenções de nordestinidade
petulância de trazer para o museu uma adotadas por Gonzaga, como o chapéu
ala de passistas da favela e da escola de de couro e a roupa de cangaceiro. A pe-
samba Mangueira para apresentar, em netração da música nordestina entre as
seus corpos e em estandartes, suas no- camadas médias cariocas também é te-
vas obras, intituladas justamente de Pa- ma de Roberta Ceva no capítulo “Forró
RESENHAS 213

e Mediação Cultural na Cidade do Rio tos da elite de um Brasil profond, no


de Janeiro”, onde vemos sua retomada concurso de vontades encarnado em
hoje por estudantes cariocas. Ludovico, e na vitória da moderniza-
Adriana Facina percorre as referên- ção, materializada em uma nova cida-
cias usuais da antropologia urbana de: Goiânia.
(Simmel, Escola de Chicago de Park e Andrea Moraes abre o último bloco
Wirth) para chegar à cidade da literatu- (bem caracterizado nos comentários de
ra e especialmente a Nelson Rodrigues, Myriam Barros como tematizando a hie-
que “toma o Rio de Janeiro como o pró- rarquia) colocando em pauta um tema
prio mundo, como um laboratório onde incontornável para a pesquisa na cida-
são produzidos e testados sua visão de de brasileira hoje: o do medo. O texto
mundo, sua concepção acerca da natu- percorre o cotidiano de mulheres da ter-
reza humana, seus preceitos ético-mo- ceira idade, seus trajetos na cidade e as
rais, ou seja, tudo aquilo que informa estratégias de evitação dos supostos pe-
sua dramaturgia e que pretende uni- rigos urbanos: a evitação de lugares iso-
versal” (:95). Nelson Rodrigues recria o lados, mas também os de multidão, dos
Rio enquanto um mundo imaginado, caixas-eletrônicos, dos suspeitos que
onde áreas de anonimato (como o Cen- conseguem identificar graças a uma ca-
tro e a Zona Sul da cidade) contrapõem- pacidade de observação que desenvol-
se a territórios onde predominam rela- vem com a experiência. Claudia Rezen-
ções pessoais que “definem e classifi- de, com “Entre Mundos: Sobre Amiza-
cam os tipo que nela residem”. de, Igualdade, e Diferença”, debruça-
A predominância da “pessoaliza- se sobre as relações entre empregadas
ção” no Brasil mereceu já uma vasta li- e patroas, ora tensas e conflituosas, ora
teratura. Mas, como isso efetivamente de “amizade”, onde está presente de
se realiza? Os capítulos do segundo blo- modo permanente o processo de afir-
co fornecem exemplos, atuais e do pas- mação de distinções sociais. Rezende
sado, de inúmeras relações sociais pes- conclui que “Ser amiga para elas é mais
soalizadas na esfera pública em geral, um adjetivo – a patroa amiga, a empre-
aí incluída a política. Karina Kuschnir gada amiga – do que uma forma subs-
estuda a trajetória biográfica de um po- tantiva de relação” (:257). “Sobre Agra-
lítico do Partido dos Trabalhadores, ori- decimentos e Desagrados: Trocas Mate-
ginário da Zona Sul e defensor das co- riais, Relações Hierárquicas e Senti-
munidades carentes, revelando-o como mentos”, de Maria Claudia Coelho, des-
um mediador, interessado em estabele- creve esse “fato social total” que é o pre-
cer “pontes de comunicação entre os sente, com exemplos esclarecedores dos
universos pelos quais transita”, entre o padrões de intercâmbio entre patroas e
poder público e a população. Alessan- empregadas, reveladores de algumas
dra Barreto, num artigo que dá conta de relações hierárquicas no Brasil de hoje
uma pesquisa ainda em andamento, (a patroa que se ofende pelo presente
aborda a associação de moradores e caro dado pela empregada; a emprega-
amigos do Leblon. Já Cristina Patriota da que pede dinheiro e recebe CDs).
de Moura opta por um político conheci- Por fim, a empregada também está pre-
do, Pedro Ludovico, o interventor de sente no último capítulo, “O Doutor e a
Getulio Vargas no Estado de Goiás. É Pomba-Gira. Um Estudo de Caso da Re-
toda a história recente da era Vargas lação entre Psiquiatria e Umbanda”, as-
que vislumbramos através dos confli- sinado por Patricia Guimarães.
214 RESENHAS

Entre os momentos mais fortes do li- WACQUANT, Loïc. 1999. As Prisões da


vro estão os comentários que fecham os Miséria. Paris: Raisons d’Agir. 190 pp.
blocos. Luiz Fernando Dias Duarte res-
salta a opção analítica dos autores em
torno de um grande divisor (“erudito e Sérgio Paulo Benevides
popular, individualista e hierárquico, Mestre pelo PPGAS-MN-UFRJ
Zona Sul e Zona Norte, grande tradição
e pequena tradição, cidade e sertão, as- Examinar uma política pública não é ta-
falto e morro”), evocando o romantismo refa livre de dificuldades. Muitas vezes
como iniciador dessa abordagem do so- é difícil determinar seu impacto, verifi-
cial a partir de metades complementa- car que efeitos tem sobre o problema
res. Duarte usa a metáfora da capilari- que se tinha proposto resolver, quais
zação para afirmar que a cultura brasi- são suas conseqüências indiretas. No
leira teria buscado, até os anos 60, refe- entanto, talvez a primeira dificuldade
rências na cultura popular, e a partir daí seja anterior a tudo isso. Porque é ne-
se voltado para o exterior (o que seria cessário, sobretudo, perceber que tam-
evidente na música, com a Bossa Nova bém a caracterização de um determina-
e os movimentos musicais posteriores). do problema faz parte da construção de
Outro comentarista, Celso Castro, uma política.
além de sublinhar a presença da cidade É dessa premissa que parte Loïc
e da política no segundo bloco, age ele Wacquant em As Prisões da Miséria, ao
mesmo como um mediador, aproximan- examinar a orientação de repressão ao
do os conceitos de “campo de possibi- crime que resultou naquilo que o livro
lidade” e de “projeto” dos termos de chama de “Estado penal”. A definição
Maquiavel, fortuna e virtú: “[...] metade da própria violência a ser combatida é
de nossa existência é determinada pela parte essencial da formulação da estra-
fortuna, por aquilo que não controla- tégia para combatê-la. E, percebendo-
mos; a outra metade pela virtú, a res- se isso, pode-se ir mais longe: se o pro-
ponsabilidade inalienável que nos cabe blema de que se fala explicitamente
por nossas ações” (:211). não é um simples dado, anterior à polí-
Vários dos autores reunidos aqui su- tica adotada para solucioná-lo, mas
biram o morro, aplicando às classes po- criado no seio dela, o que, então, moti-
pulares conceitos teóricos forjados no va a construção de tal política?
estudo das classes médias. Fornecem Trata-se de um projeto: uma forma
assim uma ponte entre dois campos que de velar os efeitos de uma outra políti-
tradicionalmente têm sido estudados de ca, dessa vez uma política econômico-
forma estanque, a partir de referências social que marginaliza uma parcela da
teóricas distintas. Os autores de Media- população. Ao mesmo tempo, é tam-
ção, Cultura e Política, nesse sentido, bém uma maneira de reeducar os seg-
são eles também mediadores, servindo mentos mais baixos do mercado de tra-
como comunicadores entre, pelo me- balho para as novas regras do jogo –
nos, esses dois campos da antropologia. empregos menos seguros, com condi-
ções mais precárias. O crescimento do
Estado penal acompanha, conforme o
argumento de Wacquant, a tão aclama-
da retirada do Estado da economia, bem
como a diminuição dos recursos desti-
RESENHAS 215

nados a programas sociais. E a articula- aspectos. Primeiro, não se está falando


ção desses três elementos – ampliação de uma tendência genérica apenas tan-
do sistema penal, liberalização econô- gível. Ao contrário, identificam-se os
mica e abandono ou redução das políti- autores e difusores dessa voga, como
cas sociais – faz parte de um programa William Bratton, ex-chefe da polícia da
que, a partir do thatcherismo britânico cidade de Nova Iorque, ou Charles
e do governo Ronald Reagan nos Esta- Murray, James Q. Wilson e George Kel-
dos Unidos, se desenvolveu na América ling, que, conforme Wacquant, produzi-
do Norte, para depois alçar vôo em di- ram textos importantes para a dissemi-
reção à Europa e à América Latina, se- nação de tais idéias. Segundo, esse dis-
não a outras regiões também. curso não é apenas falatório inócuo,
Wacquant recompõe o trajeto do mas incorpora mesmo a produção de
discurso de defesa das estratégias coer- tristes resultados, como o aumento da
citivas sobre a delinqüência que resul- população carcerária americana: “[...]
taram no desenvolvimento de um Esta- em 1975, o número de detidos havia
do penal e acompanha as conseqüên- caído para 380.000 [...]. Dez anos mais
cias dessa política em um livro que po- tarde, a quantidade de prisioneiros sal-
deríamos chamar de “engajado”. Não tou para 740.000, antes de ultrapassar
nos deixemos contaminar imediata- 1,5 milhão em 1995 para depois atingir
mente por idéias negativas que porven- dois milhões no fim de 1998 [...].” (:72)
tura nos pareçam ligadas a essa palavra A difusão da defesa do uso de estra-
e que poderiam servir para desqualifi- tégias coercitivas contra os pequenos
car o minucioso trabalho que Wacquant crimes como forma de combater a vio-
nos apresenta. As Prisões da Miséria é lência em geral baseia-se na dissemi-
engajado não por ser tendencioso – ca- nação da idéia-chave da política conhe-
racterística que lhe seria injusto atribuir cida como “tolerância zero”: para cor-
–, mas por apresentar-se clara e aberta- tar o mal pela raiz seria necessário re-
mente como uma intervenção em um primir até os menores delitos, as “inci-
debate político. E esse é um grande mé- vilidades” que perturbam o “bom cida-
rito seu, porque com isso trata tal deba- dão”. Resultado: monta-se um aparato
te como uma questão que vai muito repressor policial-penal que acaba por
além da escolha técnica da melhor es- criminalizar a miséria. Note-se que, pa-
tratégia para a resolução de um proble- ra isso, a “segurança” é definida em
ma social dado como evidente. termos estritos. Não se está preocupado
Inicialmente, a questão é desnatu- em assegurar condições de salário, saú-
ralizar um certo discurso a respeito do de etc. à população citadina em geral.
que se identifica como “a delinqüên- Nem, por outro lado, se adota a mesma
cia”, “a violência urbana”, “as incivili- estratégia de intolerância com, por e-
dades” que seriam ao mesmo tempo xemplo, os crimes de colarinho-branco.
causa e resultado dessa violência e “as Em Manhattan, na administração
áreas sensíveis”, bairros pobres e “de- do prefeito Rudolph Giuliani, forjam-se
gradados”, onde esse “mal das grandes os argumentos que justificam a constru-
cidades” é gerado. Tal discurso localiza ção de um Estado policial-penal – com
na “excessiva generosidade” das políti- as conseqüências práticas desse mode-
cas sociais e na tolerância com os pe- lo apontadas por Wacquant: por exem-
quenos delitos a origem da violência. É plo, o aumento do efetivo policial a pon-
importante ressaltar neste ponto dois to de se ultrapassar o número de 46.000
216 RESENHAS

empregados em 1999 (38.600 deles, lo menos um ano de prisão, e um latino,


agentes uniformizados); isto, à custa de uma chance em seis, contra uma chance
uma redução do número de empregos em 23 para um branco.” (:86) Assim,
no setor de serviços sociais, que, no mais de um terço dos negros que têm
mesmo ano, baixou para apenas 13.400 entre 18 e 29 anos nos Estados Unidos
empregados. De fato, a criminalidade está sob a ação do sistema policial-pe-
diminuiu nos últimos anos, mas isso nal de alguma forma – efetivamente
tanto em Nova Iorque quanto em outras presos ou, por exemplo, sob liberdade
cidades americanas que não aplicaram condicional. E não porque os negros te-
a mesma política, conhecida em muitos nham uma inclinação maior para o cri-
lugares como de “tolerância zero”, mas me. Estima-se que eles representem
que, ironicamente, é chamada pelas au- 13% do total de consumidores de dro-
toridades locais de programa de “quali- gas – e, no entanto, compõem mais de
dade de vida”. Ironicamente porque es- um terço das pessoas detidas e três
sa “qualidade de vida” resultou, por quartos das pessoas presas por violação
exemplo, na criação de uma Unidade das leis antinarcóticos. Essa constatação
de Luta contra os Crimes de Rua, res- se torna mais assustadora quando lem-
ponsável pela detenção, em dois anos, bramos que, em geral, os que respon-
de mais de 45.000 pessoas por simples dem ao sistema penal não podem votar
suspeição – em 37.000 casos não havia, – uma nova forma de exclusão de qua-
desde o início, motivo algum que justi- dros votantes três décadas depois de se
ficasse as detenções e, em mais 4.000, aprovar a legislação de direitos civis que
os processos não foram levados adian- estendeu o direito de voto aos negros.
te. Integrantes dessa mesma unidade Ou seja: a “qualidade de vida” do Esta-
policial foram os responsáveis, em 1999, do penal americano é para poucos.
pelo assassinato do imigrante guineen- O objetivo do livro de Wacquant é
se Amadou Diallo, de 22 anos, morto poder servir de referência onde quer
com 42 tiros, que gerou uma série de que se apresentem discussões acerca
protestos contra a política do prefeito de políticas que tomem como modelo o
Giuliani. Protestos que, por sua vez, fo- desenvolvimento do Estado penal ame-
ram tratados novamente como caso de ricano. No entanto, As Prisões da Misé-
polícia e assim reprimidos. ria estende-se, sobretudo, a um debate
Conforme uma pesquisa citada por europeu. E a Grã-Bretanha herdeira do
Wacquant, quase 80% dos homens jo- thatcherismo é identificada como a
vens negros e latinos de Nova Iorque fo- grande porta de entrada da estratégia
ram presos e revistados ao menos uma policial-penal de exclusão dos “indese-
vez. Tristemente, o caso Diallo não era o jáveis” na Europa Ocidental – estraté-
primeiro exemplo de brutalidade poli- gia que se amplia em direção à Suécia,
cial – em 1998, o imigrante haitiano Ab- Holanda, Bélgica, Espanha, Itália e
ner Louima havia sido submetido a tor- França. O resultado é muito semelhan-
turas sexuais em uma delegacia do te: aumento notável da população car-
Brooklin. E o que ocorre em Nova Ior- cerária e incremento predominante de
que é apenas um exemplo daquilo que negros e estrangeiros (ou filhos de es-
se dá no plano nacional: “Em probabili- trangeiros) – turcos e marroquinos, por
dade acumulada sobre a duração de exemplo – entre os presos.
uma vida, um homem negro tem mais Essa estratégia policial-penal, por-
de uma chance em quatro de purgar pe- tanto, não é exatamente um meio de
RESENHAS 217

garantir o cumprimento das regras para


o bom funcionamento da sociedade, co-
mo se poderia pensar de uma perspec-
tiva que se ocupasse essencialmente do
caráter normativo dos fenômenos so-
ciais. Conforme a perspectiva sobre a
qual Wacquant trabalha, trata-se de um
instrumento de construção de uma de-
terminada política aliada à generaliza-
ção da insegurança salarial e social, um
instrumento para encerrar a pobreza,
para excluir os indesejáveis. E também,
aliada à defesa da idéia de que qual-
quer emprego é melhor que nenhum, a
criminalização da miséria contribui pa-
ra conformar o trabalho a uma situação
de precariedade que ascendeu com o
neoliberalismo em seu caminho para
sepultar o keynesianismo e outras op-
ções mais à esquerda.
Ainda que servisse apenas para
montar esse quadro geral a respeito das
políticas de repressão ao crime nos Es-
tados Unidos e na Europa, o livro de
Wacquant já seria de considerável im-
portância. No entanto, pode-se ir além,
uma vez que em As Prisões da Miséria
há também uma forma de examinar po-
líticas públicas – uma forma preciosa-
mente exemplar, porque ultrapassa o
olhar ingênuo, porque percebe que os
alvos declarados da estratégia a ser
analisada são também parte dela, e por-
que, assim, pode passar às questões se-
guintes, sobre a extensão das conse-
qüências de tais políticas, livre da mio-
pia que sempre se apresenta como risco
diante de temas como esse ao qual
Wacquant se dedica.

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