RESENHAS
não se mostrava um ator político ordi- tado por algo inexplicável, mágico –
nário. Tanto o repertório político então como resume um assentado: “a gente
acionado quanto suas expressões de lu- sente na carne a coisa”. Uma reflexão
ta não se davam no mundo tradicional maussiana a respeito desse fenômeno
da política, mundo este associado no não é apenas adequada, como necessá-
senso comum a regras burocráticas, a ria. É um outro marchante que nos leva
concepções iluministas conformadoras a concluir: “fizemos o ato mais para nós
do Estado-nação, a noções de direito e mesmos”.
cidadania e, ainda, ao clientelismo – es- A Marcha é, portanto, um exercício
sa prática “tradicional brasileira”. de compreensão, para o nativo, para a
É nesse sentido que a abordagem etnógrafa e para todos nós. Uma com-
performativa utilizada pela autora se preensão que se dá com a travessia, co-
mostra adequada para interpretar tal mo na costura mimética feita a cada
fenômeno. A etnografia da Marcha ex- passo entre campo e cidade, intercala-
pande e caracteriza de um modo novo o dos pelos marchantes. Dessa costura
universo da política. Mesmo sendo de nasce mais do que um texto, mas uma
caráter proposicional e planejado, o espécie de colcha de retalhos, que cada
efeito (perlocucionário) do ato ou da pa- marchante levou consigo até Brasília e
lavra proferida na Marcha ultrapassa de lá para o mundo – uma mensagem
seu sentido referencial. A Marcha pas- de todos para todos. O marchante é o
sou a ser muito mais que um mero ca- mensageiro, o bardo. Nesse ponto pa-
minhar. Entrelaçando esses vínculos, rece residir a força simbólica da cami-
Christine Chaves oferece-nos um qua- nhada (:100).
dro minucioso da organização da Mar- Christine Chaves convence-nos da
cha e, tangencialmente, do próprio importância da etnografia pela qualida-
MST. Vemos um exército que se esten- de peculiar do seu trabalho de campo: o
de em fileiras pelo campo de batalha. deslocamento simultâneo de nativos e
Próximos ao front – não por acaso as pe- antropóloga. Outro aspecto fundamen-
rigosas BRs –, os soldados; longe dali, tal dessa construção etnográfica é o uso
nas funções de estratégia, os coman- dos diários escritos por dois marchantes,
dantes desse movimento. Os soldados José e Antônio. As vozes e versões dos
lutavam por bandeiras que levavam três são confrontadas, sobrepostas, dan-
consigo, à frente do grupo, durante to- do ao texto uma densidade concreta de
do o percurso: a bandeira do MST e a múltiplas vozes e sentidos. Através dos
bandeira do Brasil. Uniformizados, de diários, somos conduzidos a experiên-
bonés, camisetas, sandálias havaianas cias de toda ordem e assim passamos a
e capas amarelas para enfrentar as chu- ouvir a voz da “massa”, também cha-
vas, esses soldados sabiam que “um mada, em momentos de crise, de lúm-
passo a mais era um passo a menos” pen, pela própria “direção” da Marcha.
(:94) rumo à vitória. Essas animosidades se traduzem em
Entretanto, como se esses sinais não uma guerra de habitus. A maioria dos
lhes bastassem, encenavam todos os marchantes era acampada e não assen-
dias a sua “mística”, essa concepção tada. Sua formação ainda não estava
nativa que a autora trata de desvendar. completa: a Marcha era o rito de passa-
A mística atualiza-se em forma de atos gem necessário para tal. Muitos, porém,
rituais, sendo também um sentimento. não suportaram as agruras do caminho,
Através dela o indivíduo se sente inci- como ilustra um sem-terra: “a maldade
200 RESENHAS
dos amigos”. As demandas por água, luta que nitidamente não era apenas
comida, fumo e havaianas foram sendo dos sem-terra.
silenciadas à medida que o medo toma- Como vemos, o texto de Christine
va seu lugar entre os marchantes. Quan- Chaves – e dos outros marchantes, An-
to mais próximos de seu objetivo final, tônio e José – coloca-nos em contato
a chegada a Brasília, mais eles recea- com os elementos usados nas místicas e
vam um desfecho funesto. O silêncio im- em protestos às ações governamentais.
perava no fim da Marcha. Como resu- Estes são levados a falar por si. À beira
miu magistralmente um marchante: “no da estrada, a bandeira do MST é ani-
combate não se conversa: é a morte”. mada, tornada uma espécie de ventrílo-
Ao longo do caminho, marchantes fo- quo e se põe a falar de seus anseios. Es-
ram expulsos, por indisciplina – asso- sa mágica simpática, no sentido preco-
ciada em geral ao consumo excessivo nizado por Frazer, se dá de forma seme-
de álcool – ou pela suspeita mais grave lhante em outras ocasiões. Os marchan-
de se tratar de infiltrados. Essas deci- tes, por exemplo, atearam fogo em um
sões eram tomadas em assembléias e boneco do Ministro Jobim e em um ou-
levadas a cabo pelos marchantes res- tro do Tio Sam. Quando em Brasília, os
ponsáveis pela segurança. Somente sem-terra ainda destroçaram o Ministro
quando da expulsão dos infiltrados es- Jungman e o Presidente Cardoso, arre-
tes eram entregues à polícia. messando-lhes raízes de mandioca. Co-
Por fim, destaco dois episódios para mo bem sugere a autora: “o rito é o cria-
sintetizar a chegada triunfal da Marcha dor da força e do poder mágico, isto é,
Nacional a Brasília, descrita com minú- da crença coletiva que, justamente por
cia por Christine Chaves. Os “combali- ser coletiva, é dotada da noção de po-
dos marchantes”, alquebrados depois der eficiente” (:87). Ao presidente não
da longa travessia, protagonizaram um restou outra alternativa do que ir “se
episódio de valor simbólico inestimável queixar ao Papa”, em uma viagem que
para a compreensão do significado da fez ao Vaticano durante o período da
Marcha. Ao longo dos milhares de qui- Marcha, já que os bispos locais já ha-
lômetros caminhados, os sem-terra vi- viam manifestado seu apoio aos mar-
ram seus corpos se esvaecerem. Porém, chantes, em carta da CNBB.
como se todo esse sacrifício não bastas-
se, chegando à cidade, com os pés em
carne viva, os marchantes ainda se diri- DAMATTA, Roberto e SOÁREZ, Elena.
giram a um hemocentro local para doar 1999. Águias, Burros e Borboletas: Um
seu sangue! Passado esse sacrifício co- Estudo Antropológico do Jogo do Bi-
letivo, no dia 19 de abril, dois dias após cho. Rio de Janeiro: Rocco. 197 pp.
o assalto à capital federal, viram tom-
bar, queimado nas ruas do Plano Piloto,
um índio Pataxó Hã-Hã-Hãe. Aqueles Amir Geiger
que ainda estavam acampados em Bra- Doutor pelo PPGAS-MN-UFRJ
sília encenaram um ato público repu-
diando o assassinato de Galdino Jesus “Aqui, como lá, cada instante sofre do
dos Santos. Ao vasto repertório da Mís- passado e do futuro. Está claro que a
tica dos sem-terra se acrescia mais um tradição e o progresso são dois grandes
triste fato. A revolta de todos se conver- inimigos do gênero humano.” Esta é a
teu então em energia social para uma agridoce conclusão de Paul Valéry a
RESENHAS 201
servação abre a análise substantiva que teio dentro dos limites do Zoológico – o
autora e autor apresentam, e fica logo animal marcado no ingresso de entrada
claro que não se trata de acrescentar deveria corresponder àquele escolhido
mais um tema ou objeto à lista das tare- pessoalmente pelo barão – logo se tor-
fas acadêmicas. Notar tal lacuna do nou um jogo, com a introdução da pos-
pensamento social é pôr em questão to- sibilidade de escolher o “bicho que vai
do um sistema estruturado de represen- dar”, isto é, de ter palpites e apostar em
tações sobre o Brasil, e estudar o jogo determinado resultado do sorteio, e sem
do bicho (por exemplo) torna-se equi- para isso ser necessário freqüentar o
valente a criticar o imaginário quiméri- Jardim Zoológico, graças a uma rede
co dos projetos nacionais. No centro (ainda descentralizada) de intermediá-
dessa crítica, há uma percepção antro- rios ou bookmakers e de agentes finan-
pológica que tem caráter de ruptura: ciadores independentes, que “banca-
“os bichos são mais importantes do que vam” as apostas. Desse modo, coetânea
os bicheiros”. Isso significa quebrar com à modernização e ao igualitarismo re-
os sociologismos ou economicismos re- publicano recém-implantados, aparece
dutores e adotar a perspectiva maussia- uma possibilidade formal de ascensão
na da totalidade do fato social, da im- social, cuja concretização no entanto é
plicação do jurídico, religioso e econô- buscada, não pelo trabalho (desvalori-
mico com o morfológico, o estético, o zado numa sociedade marcadamente
expressivo. Mas está em jogo também escravocrata), mas com recurso a uma
uma espécie de “fato interpretativo to- série de figuras extraídas do domínio
tal”, que abrange os vários planos do natural (os bichos). Esse quadro inicial
estudo e remete a uma solidariedade já fornece a imagem-mestra do livro: a
forte, na qual o objeto escolhe o méto- modernidade domesticadora, que põe
do: a ousadia ou ao menos o inconfor- os animais selvagens dentro de jaulas e
mismo do princípio proposto (“os bichos os expõe para o lazer e instrução gerais,
são mais importantes”) decorre dire- produz também a contrapartida primiti-
tamente e é a expressão teorizada da va desse movimento, pondo os bichos
consciência adquirida no trabalho de (selvagens e domésticos) à solta no
campo, conforme mostra Elena Soárez “imaginário urbano” da capital.
em seu relato de pesquisa. O livro se de- Lembrando o “aspecto de chance e
senvolve como uma demonstração de de surpresa” de um golpe republicano
que é possível corresponder à exigên- de reduzida participação popular, e o
cia nativa de uma antropologia cosmo- despreparo da sociedade profunda-
lógica e não sociológica do Brasil. mente hierárquica em relação ao igua-
O primeiro capítulo traz uma histó- litarismo formal do mercado regulador,
ria mais que elucidativa do desenvolvi- DaMatta e Soárez sublinham o resulta-
mento do jogo do bicho, nascido no iní- do perverso do processo: uma desigual-
cio da República sob a forma de simples dade a grassar sem limites, como “lei
evento promocional do Jardim Zoológi- do mais forte” que recebe a aceitação
co fundado por um nobre do Império, o tradicionalmente herdada/devotada à
barão de Drummond, em Vila Isabel, velha ordem, sem dar em troca nenhu-
bairro por ele construído em terrenos de ma ordenação simbólica. À formaliza-
sua propriedade. O rapidíssimo sucesso ção republicana de uma ordem capi-
da promoção engendrou modificações talista se associou uma febre de rique-
significativas: o que era um simples sor- za desmesurada, sem lastro econômico
RESENHAS 203
gação entre duas ordens incomensurá- pensam entre si, mas “jogam” com os
veis. “O mundo dos bichos procede iso- acontecimentos humanos e falam de um
lando o fato e prescindindo da cadeia país peculiar, onde a modernidade ain-
[evolucionista, historicizante] de acu- da não se separou da tradição e o atraso
mulações”; toma os eventos “como ‘si- se consolida a golpes de progresso.
nais’ ou ‘mensagens’ referidas a um có-
digo de palpites – fontes ocultas de ri-
queza e felicidade” e acredita ser possí- VALE, Alexandre Fleming Câmara.
vel “transformar probabilidade em des- 2000. No Escurinho do Cinema: Cenas
tino e evento em estrutura” (:158-159). de um Público Implícito. São Paulo/
Finalmente, o “Palpite Inicial”, assi- Fortaleza: AnnaBlume/Secretaria de
nado por DaMatta e que funciona como Cultura e Desporto do Estado do Cea-
introdução ao livro, pode ser lido como rá. 178 pp.
o “arremate” que também é, e como
transfiguração do argumento. Trata-se
de perceber em tudo aquilo que parece Horacio Federico Sívori
em nós “resistir” a um processo civiliza- Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ
tório pela via econômica modernizante,
não a marca da barbárie inerradicável, Para entender a dinâmica da recepção
mas uma alternativa de civilização. Tra- dos gêneros pornográficos torna-se
ta-se também de atentar para a mons- chave a noção de espaço de exibição.
truosidade do capitalismo aqui implan- No cinema pornô, o filme vira pano de
tado como parte do “conjunto de insti- fundo do cenário público da platéia, on-
tuições exógenas que aqui chegaram de amiúde passa a ter lugar uma outra
sob a bandeira de serem apenas instru- cena. A sociabilidade homossexual mas-
mentos tecnicamente neutros de mo- culina e travesti, essa outra cena, em
dernização”, mas que “invariavelmen- uma sala de exibição de cinema porno-
te assumem expressões locais e ga- gráfico, é o assunto do livro de Alexan-
nham novos significados” (:36). Trata- dre Fleming Câmara Vale, originalmen-
se, enfim – unamos primitivismo e críti- te elaborado como dissertação de mes-
ca cultural –, de desmistificar o capita- trado em sociologia, em 1997, na Uni-
lismo selvagem para remiticizar o ca- versidade Federal do Ceará. A partir de
pitalismo dos selvagens. “De fato, en- uma pesquisa etnográfica feita em For-
quanto Freud, em Viena, descobria e taleza entre 1995 e 1996, Vale desven-
buscava exorcizar a irracionalidade dos da os segredos do escurinho do cinema
sonhos [...] tomando-os como ‘via régia’ para o olhar antropológico e insere-os
para o estudo do inconsciente, no Rio na topografia sociossexual do espaço
de Janeiro o barão de Drummond fazia urbano contemporâneo.
justo o oposto, convocando o universo A história dos variados usos sociais
onírico como parte de uma loteria po- dos espaços de exibição cinematográfi-
pular que destemidamente reintegrava ca desde a chegada dessa tecnologia a
o ‘primitivo’ e o mágico com o racional Fortaleza na passagem do século XIX
e o utilitário” (:31). O totemismo do bi- para o XX e uma informada reflexão so-
cho é, portanto, o operador crítico de bre a pornografia, “gênero feito para
nossa inconsistente ordem racional. Eis excitar”, servem de introdução para o
uma moral possível desse livro fabulo- objeto da análise etnográfica: as práti-
so, onde, com efeito, os bichos não se cas, universo de valores e ideologias se-
RESENHAS 205
xuais dos travestis e outros freqüenta- room Trade: Impersonal Sex in Public
dores que faziam do cinema Jangada Places (1975 [1970]), e a recente cole-
sua “casa”, “alpendre”, “quintal”, “fa- ção, Public Sex, Gay Space, organizada
culdade”, “escola” até seu fechamento por W. Leap (1999).
em 1996. A partir da migração do “ci- No capítulo I, “O Cinema Jangada
nema familiar” para o shopping e da como Lugar de Investigação”, Vale es-
consolidação do mercado gay em áreas tabelece as condições de existência
mais “nobres” da cidade, Vale acha sen- desse espaço legítimo e liminar no pro-
tido histórico na confluência entre o pro- cesso de especialização das salas desti-
cesso de especialização do segmento nadas ao gênero pornô como uma espé-
pornô do circuito de salas de exibição cie de gueto desviante, que acompanha
cinematográfica e a reterritorialização, a especificação e territorialização dos
no centro da cidade, dos encontros en- prazeres da platéia masculina. O capí-
tre travestis e homens de verdade, bi- tulo II, “Os Sentidos do Escuro ou No
chas e bofes. Uma combinação singu- Escurinho dos Sentidos: Platéias, Trans-
larmente articulada de fontes tão hete- gressão e Gêneros”, relata a constitui-
rogêneas torna o produto interessante ção do escurinho do cinema como zona
tanto para os leitores não iniciados na moral, palco de transgressões e lugar
temática abordada quanto para aqueles de socialização da sexualidade, desde a
que vão comparar seus achados e inter- chegada das salas de exibição em For-
pretações com a recente bibliografia taleza. Resulta esclarecedora a seg-
brasileira e internacional sobre cinema mentação progressiva das salas segun-
e pornografia, sociabilidade homosse- do gêneros cinematográficos e platéias,
xual masculina e prostituição travesti. com produtos e espaços qualitativa-
Respondendo provavelmente à or- mente diferenciados para o público bur-
ganização da tese acadêmica, a obra guês e popular, masculino e feminino.
está dividida em capítulos e subseções, O capítulo III, “O Cine Jangada no
separando os argumentos mais “teóri- Circuito Exibidor: Um Divisor de Águas”,
cos” dos achados da pesquisa e relatan- situa o pornô e o Jangada na história do
do com detalhe a construção do objeto circuito exibidor local e particularmen-
de estudo. Essa construção do texto lem- te na história do empório de exibição ci-
bra uma outra etnografia de uma zona nematográfica de alcance nacional do
moral urbana, também publicada após grupo Severiano Ribeiro. De sala fami-
ser apresentada como dissertação de liar destinada a filmes cult, passa pelo
mestrado, O Negócio do Michê (1987), “bangue-bangue, kung fu e chancha-
de N. Perlongher, com cuja obra o tra- das” para acabar (literalmente) com o
balho de Vale guarda parentesco explí- pornô como “peça de resistência” em
cito. Outra referência central é o traba- épocas de crise do mercado cinemato-
lho de A. Leite, Fortaleza e a Era do Ci- gráfico. Introduz-se no final do capítulo
nema (1995), que forneceu o rico veio III a pergunta sobre a disponibilidade
documental (jornalístico e visual) da particular desse “gênero feito para ex-
pesquisa histórica, base dos capítulos II citar”, para a mobilização dos especta-
e III. A exploração de Vale merece ser dores para atividades bem diferencia-
inscrita na incipiente produção socioló- das do assistir passivo ao filme familiar.
gica e antropológica sobre o “sexo pú- O ritual do cinema pornô diferencia-se
blico”, da qual vêm à memória o traba- radicalmente do ritual burguês da ida
lho inaugural de L. Humphreys, Tea- ao cinema como marca de distinção. Ao
206 RESENHAS
VARGAS, Eduardo Viana. 2000. Antes dem hoje ser considerados metáforas
Tarde do que Nunca: Gabriel Tarde e a “cansadas”, Vargas mostra que as ten-
Emergência das Ciências Sociais. Rio de sões inerentes a essas formulações já se
Janeiro: Contra Capa Livraria. 280 pp. revelavam em seu processo de emer-
gência. O universo conceitual formula-
do por Tarde poderia fornecer novas
Cecília Campello do Amaral Mello perspectivas para uma sociologia ou an-
Mestranda, PPGAS-MN-UFRJ tropologia contemporâneas interessadas
em explorar essas tensões e neutralizar
Como um autor conhecido e atuante em o poder explicativo das dicotomias clás-
seu tempo, dono de um sistema de pen- sicas (como indivíduo x sociedade) ou
samento próprio e singular, pode ser de categorias substancializadas (como a
esquecido? O que está em jogo quando própria noção de indivíduo).
se excluem determinados autores de A primeira parte do livro trata dos
um campo de investigação? O que faz embates e agenciamentos políticos e in-
com que determinadas idéias sejam re- telectuais que permearam o processo
calcadas no processo de institucionali- de emergência das ciências sociais na
zação de uma disciplina? Fruto de uma França em fins do século XIX; a segun-
dissertação de mestrado defendida no da aborda o “encantamento de idéias”
PPGAS-MN-UFRJ em 1992, Antes Tar- de Tarde em sua singularidade e diver-
de do que Nunca aborda essas ques- sidade. Essa organização do livro, privi-
tões, tendo como vetor analítico a traje- legiando a separação entre as idéias do
tória e as idéias de Gabriel Tarde (1843- autor e o campo de disputas político-
1904), “um intelectual que estabeleceu institucionais de sua produção, escapa
os princípios […] de toda uma sociolo- ao duplo risco de apoio excessivo no
gia das nuanças, dos detalhes e dos re- contexto – o que pode desfocar as idéias
lacionamentos infinitesimais, de uma – ou de assunção das idéias como reali-
microssociologia heterogênea” (:24); dades em si mesmas, referidas a um
um “crítico à reificação dos sujeitos co- contexto indeterminado. É possível es-
letivos e à naturalização dos fenômenos colher entre “mergulhar” diretamente
macrossociais” (:33). O grande mérito nas idéias de Tarde ou se aproximar
desse livro é trazer à tona a força e a be- tendo um quadro referencial prévio.
leza do sistema de pensamento de Ga- Nos capítulos “No Começo, a Intri-
briel Tarde, ativamente esquecido e re- ga” e “Uma Multiplicidade de Agen-
legado a um plano secundário na histó- ciamentos”, Eduardo Vargas remete a
ria da disciplina; mas também se pode Michel Foucault, focalizando as rela-
afirmar, por outro lado, que as contri- ções entre os acontecimentos e não os
buições do livro superam as por si só acontecimentos em si mesmos; as des-
instigantes idéias e os princípios do pró- continuidades e não a coerência dos
prio Tarde. Temos aí um relato consis- eventos políticos e intelectuais da épo-
tente do processo de emergência das ca. O autor apropria-se assim, ainda
ciências sociais na França, assim como que com certa reserva, da “sociologia da
uma análise heterodoxa do pensamen- produção intelectual” de Pierre Bour-
to de Durkheim, contemporâneo e prin- dieu, privilegiando os processos e as
cipal opositor de Tarde. disputas e não a “emergência” pura e
Se termos como “sociedade”, “ano- simples das ciências sociais. Vargas a-
mia” ou “representação coletiva” po- nuncia uma análise micropolítica, aten-
RESENHAS 209