Key words: Violence; Poverty; Criminality; temente publicados, não contabilizam as víti-
Migration mas, e sim os registros (num mesmo registro
As estatísticas de mortalidade por causas pode haver várias vítimas), fazendo com que os
externas compiladas pelo Ministério da Saúde dados policiais sobre homicídios estejam subes-
constituem-se em uma importante fonte para o timados.
estudo da violência no Brasil. São dados ofi- Existe, porém, com o uso de dados de
ciais, como os das Polícias Estaduais, e têm a mortalidade, um problema na comparação entre
vantagem de serem centralizados e divulgados os Estados. No Rio de Janeiro, com freqüência,
a cada ano, permitindo uma comparação nacio- muitos médicos têm se omitido a declarar o
nal. homicídio, mesmo quando a ficha policial
Além disso, são baseados em declarações de admite a suspeita, para não se implicarem
óbito, de preenchimento obrigatório, que regis- juridicamente. A atribuição de códigos aos
tram todas as mortes provocadas por meios óbitos por acidentes e violências faz com que
externos ou violentos. O registro policial de muitos homicídios sejam agrupados como
homicídios nem sempre é preciso, pois este mortes por “outras violências e lesões que se
requer uma investigação que nem sempre é ignora se foram acidental ou intencionalmente
feita, especialmente quando a vítima é pobre e infligidas”. Em 1989, o Estado do Rio de
preta. Além disso, os números oficiais, desde a Janeiro registrou 53,64% do total de óbitos
década de 80, inclusive os dados mais recen- classificados nesta rubrica em todo o país. Por
isso, os números de homicídios foram somados
aos de “outras violências”, para fins de com-
1
paração nos comentários e análises que se
Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier, 524, seguem.
Pavilhão João Lira, 7º andar, Bloco E, Rio de Janeiro, As causas externas ocupam o terceiro lugar
RJ, 20559-900, Brasil. entre os 17 capítulos da Classificação Inter-
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 213-217, 1994 213
Zaluar, A. et al.
nacional de Doenças da Organização Mundial ticamente, para 55,19. A conclusão óbvia, visto
da Saúde, perdendo apenas para as doenças do que os suicídios são muito poucos, é que os
aparelho circulatório e para as neoplasias. Nos acidentes são mais numerosos nestes dois
anos 90, no Rio de Janeiro, as causas externas Estados, especialmente no último, do que no
já ocupam o segundo lugar. Constata-se, tam- primeiro. São Paulo desce de 91,64 para 35,44;
bém, que essas mortes violentas estão atingindo Alagoas, de 71,38 para 35,19; Mato Grosso do
principalmente homens jovens entre 14 e 29 Sul, de 89,83 para 36,30: Pernambuco, de 79,42
anos, na proporção média de 8 homens para para 49,26; Paraná, de 69,32 para 18,54; Santa
cada mulher em todo o Brasil. No Rio de Catarina, de 71,57 para 13,27. Os lanterninhas
Janeiro, em 1990, esta proporção era de mais continuam sendo os mais pobres e de povoa-
de 10 homens para cada mulher e em alguns mento mais antigo do país, justamente aqueles
municípios da Baixada Fluminense, de 15 que levavam a fama por estarem na região do
homens para cada mulher. É o quadro de um país onde tradicionalmente os conflitos interpes-
país em guerra. soais se resolveriam à moda sertaneja e senho-
O mapa das mortes violentas no país vem a rial da violência costumeira. São eles os Esta-
derrubar vários mitos ainda correntes, que já dos do Maranhão, Bahia, Ceará e Rio Grande
fazem parte daquelas “verdades” que, de tão do Norte.
“sabidas”, nem mais são discutidas. No município do Rio de Janeiro, em 1989,
A primeira refere-se à correlação entre a taxa por homicídios e outras violências cai
pobreza e violência. Em 1989 os três Estados para 77,41 por cada 100.000 habitantes. São
que apresentavam taxas de mortalidade violenta Paulo faz o caminho inverso: a taxa de mortali-
bem acima dos demais, com cerca de 140 dade pelas mesmas causas é maior na Capital,
mortes violentas por cada 100.000 habitantes, onde atinge 45,05. Já a capital de Roraima, Boa
eram Roraima, Rio de Janeiro e Rondônia, dois Vista, apresenta uma taxa ainda mais alta do
deles Estados novíssimos, de ocupação recente que a do Estado líder das mortes violentas,
e crescimento populacional acelerado nos anos indicando que não é tanto no local do garimpo
80 (em torno de 9 pontos); o outro, um dos ou no campo que se dá o conflito, mas na
mais antigos, com um crescimento populacional maior cidade do Estado, onde deveriam funcio-
de apenas 1,13%, um dos menores do país. nar suas instituições democráticas, teoricamente
Num segundo patamar, beirando a taxa de 100 concebidas para evitar que os conflitos interpes-
mortes violentas por cada 100.000 habitantes, soais terminem em violência. Porto Velho,
estavam Mato Grosso, São Paulo, Goiás e Mato capital de Rondônia, volta a se equiparar ao Rio
Grosso do Sul, estados estes que mostraram de Janeiro, com 74,95, o que significa dizer que
maior pujança na agroindústria e no enriqueci- a violência, neste Estado, também tem um
mento por atividades produtivas no país. Junto cenário urbano. As capitais com menores taxas
à média nacional de mortes violentas ficaram são as de Santa Catarina, Amapá, Piauí, Minas
Santa Catarina, Alagoas, Paraná e Acre, dois Gerais, Bahia, Ceará, Mato Grosso, Paraná e
estados da rica Região Sul de onde partiram Maranhão, com taxas em torno de 20. Entre
muitos migrantes com destino às Regiões estas capitais estão algumas das mais ricas e
Centro-Oeste e Norte, bem como um estado da das mais pobres do país.
pobre Região Nordeste, injustamente famoso As progressivas dificuldades resultantes da
pela violência que nele existiu no passado. Bem crise econômica e da pobreza dela decorrente
abaixo das médias nacionais, para abalar as não poderiam, pois, explicar o destaque adqui-
convicções dos dogmáticos, estão os Estados rido pelo Rio de Janeiro, no cenário nacional,
mais pobres do país: Maranhão, Piauí, Ceará, justamente nas mortes e nos crimes violentos,
Rio Grande do Norte, Pará, Paraíba e Bahia. O ou seja, nos crimes contra a pessoa, os menos
gráfico dos Estados modifica-se quando se explicáveis pela pobreza. A proporção de
excluem os acidentes e os suicídios: Roraima pobres, aliás, só aumentou a partir de 1988,
continua liderando a taxa de mortalidade, com quando os números dos homicídios já haviam
107,30, enquanto o Rio de Janeiro baixa a sua duplicado. A equiparação do Rio de Janeiro
taxa para 94,63 e Rondônia, ainda mais drama- com Roraima e Rondônia sugere que mais
214 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 213-217, 1994
Violência x Pobreza x Criminalidade x Migração
importante é a existência das frentes de expan- serviu como álibi para que continuassem a agir
são agrícolas e do garimpo, bem como do os responsáveis pelas atividades claramente
tráfico de drogas, cujas atividades estimulam a ilegais e discriminatórias contra aqueles que,
competição individual desenfreada, com pouco estes sim, o Estado deveria defender e tratar em
ou nenhum limite institucional nas conquistas e centros de saúde: os jovens, especialmente os
na resolução dos conflitos interpessoais. No Rio mais pobres, que continuam sendo extorquidos
de Janeiro, “frentes de expansão” artificiais, e criminalizados pelo uso de drogas e que, por
decorrentes de escolhas político-institucionais, isso, acabam nas mãos de traficantes e assal-
apareceram num espaço urbano densamente tantes. Alguns destes jovens foram também as
povoado, através de práticas aprovadas e es- vítimas de chacinas, as quais, quando esclareci-
timuladas pelos governos. A opção pelas in- das, exibiram seus reais motivos: a cobrança de
vasões dos terrenos públicos nas favelas como “dívidas” ou a divisão do butim entre policiais
“política habitacional” criou, nestas, uma ver- corruptos e eles. Mais do que os grupos de
dadeira indústria, assim como um mercado extermínio, são os grupos de extorsão que
imobiliário dos quais poucos se beneficiaram, fazem a festa do crime organizado e criam o
especialmente os que acumularam as funções de ambiente de um autêntico e assustador faroeste
grileiros e cabos eleitorais, transformando e urbano numa metrópole acuada pelo medo e
tensionando as relações sociais dentro de aglo- dividida pelas quadrilhas que se guerreiam entre
merações irregulares cada vez mais compactas. si.
A ocupação das principais ruas da cidade pela A segunda “verdade” refere-se ao impacto da
“camelotagem” informal e ilegal misturou uma migração interna, especialmente para o Sul do
saída para o desemprego com o crime organiza- país, no desencadeamento da violência nas
do, este ainda mais patente nos ferros-velhos e metrópoles brasileiras. Entretanto, entre os
ourivesarias, que viraram centros de receptação movimentos migratórios mais surpreendentes do
e de organização do crime. Mas foi principal- país, e que fazem cair por terra quaisquer
mente o tráfico de drogas e de armas que teorias culturalistas ou racistas para explicar a
penetrou com incrível facilidade no segundo violência, aquele que levou um número es-
principal centro urbano do país, o maior respon- timado de 1,5 milhões de agricultores do inte-
sável pelo sofrimento de todos os seus morado- rior do Estado do Paraná para outros Estados da
res — ricos, remediados e pobres. Um erro de Federação, durante o período 1980-1986, prin-
diagnóstico que apenas repetiu os dogmas de cipalmente em direção a Rondônia, é um dos
teorias sociológicas vulgares da pobreza e da campeões da violência no Brasil. Já a capital do
urbanização acelerada, aliado à incompreensão Estado, Curitiba, que provavelmente recebeu a
dos mecanismos institucionais e societários do maior parcela do outro milhão de pessoas que
crime organizado que atravessa classes e não se deslocou para áreas urbanas do próprio
sobrevive sem apoio institucional das agências Estado, apresentou uma das taxas de homicídio
estatais incumbidas de combatê-lo, iniciou a mais baixas da Federação, indicando que a
catástrofe sanitária na mais internacional explicação para tão inusitado fato pode estar
metrópole brasileira. Num segundo momento, a justamente nas atividades e nos equipamentos
catástrofe continuou, porque confiou-se, sem institucionais encontrados no ponto final da
reformas nem críticas, numa polícia implicada migração, mais do que no movimento migrató-
com o crime organizado e baseada em táticas rio propriamente dito ou na etnia dos migrantes.
repressivas da população pobre já há muito Caem por terra, assim, as explicações repeti-
condenadas. Foram essas escolhas político-insti- das ad nauseam acerca do migrante rural tradi-
tucionais, bem como a facilidade subseqüente cional, miserável e inadaptado às grandes cida-
que as atividades ilegais encontraram para des, epitomizado em livros, novelas e filmes, e
proliferar nesta grande metrópole que a des- ainda hoje parte do imaginário da população do
tacaram entre as outras do país. A corrupção Sul do país, como o personagem central da
policial teve no mesmo dogma a justificativa violência urbana, em especial o morador das
para não ser punida: o problema era sempre e favelas do Rio de Janeiro e o nordestino que
unicamente “social”. Assim, o reducionismo vive em São Paulo. Estamos diante de novos
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Violência x Pobreza x Criminalidade x Migração
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