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À Susana, minha mulher:
PAULOOTERO
por todo o tempo que me deu.
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Março, 2007
DEPÓSITO LEGAL
196393/03
formulado em torno da ideia de que o poder judicial é nulo (v. supra, n.º Impõe o rigor da verdade, porém, que se acrescente que uma tal erup-
4.1.2.): se os juizes são apenas a "boca que pronuncia as palavras da lei", ção geradora do Direito Administrativo pela jurisprudência do Cansei!
então o protagonismo do Cansei! d'Etat na formação do Direito Adminis- d'Etat não foi desacompanhada de uma intervenção a título principal ~..
trativo revela-se completamente desajustado no quadro teórico da separa- poder executivo257 o ~1stema contenc10so do administrador-juiz co. nfiava
~G
ção de poderes252.
;--e · ima palavra decisória sobre a competência do Cansei!
Numa outra perspectiva, aquilo que está causa na intervenção do 'Etat258, criando-se, por esta via indirecta, uma forma sui generis de o
Cansei! d'Etat não é um simples desenvolvimento interpretativo da lei, oder ex~c~tivo· se substit~i!_~~ireJ:!9~/
fazendo um prolongamento da sua letra ou do seu espírito, ou mesmo um ainda mais importante, abnu-se aqm um amplo espaço de construçao pelo
desenvolvimento integrativo de lacunas da lei: ao criar o Direito Adminis- executivo de uma legalidade derrogatória do Direito Comum.
trativo, a jurisprudência do Cansei! d'Etat aquilo que faz é substituir-se ao A ideia clássica de que a Revolução Francesa comportou a instau-
legislador253, agindo no seu lugar ou em vez do parlamento. ração do princípio da legalidade administrativa, tornando o executivo
A circunstância de os membros do Cansei! d'Etat se comportarem subordinado à vontade do parlamento expressa através da lei, assenta num
como se fossem o próprio legislador na produção do ordenamento jurídico- mito repetido por sucessivas gerações: a criação do Direito Administrativo
-administrativo, além de traduzir uma postura em que o juiz administrativo pelo Cansei! d'Etat, passando a Administração Pública a pautar-se por
não decide numa posição externa às normas que aplica, antes se coloca normas diferentes daquelas que regulavam a actividade jurídico-privada,
como definidor normativo de condutas da Administração activa254, apli- não foi um produto da vontade da lei, antes se configura como uma inter-
cando ao caso concreto a própria normatividade que vai construindo, deter- venção decisória autovinculativa do executivo sob proposta do Cansei!
mina uma outra contradição face ao princípio da separação de poderes255. d'Etat259
Com efeito, postulando a separação de poderes que a elaboração de A génese do Direito Administrativo em França, revelando-se viola-
n01mas se insere no âmbito da actividade legislativa, a criação do Direito dora de alguns dos postulados nucleares do princípio da separação de
Administrativo por via jurisprudencial comporta um rude golpe no pri- poderes, não se mostra consentânea com uma visão do poder executivo
mado do poder legislativo e na supremacia do parlamento: as regras e os subordinado ao poder legislativo, à lei e ao parlamento: a legalidade admi-
p1incípios gerais que estiveram na génese do Direito Administrativo, mui- nistrativa produzida pelo Cansei! d'Etat é rebelde ao parlamento, alheia à
tos deles em rotura com a normatividade do Direito Comum e outros lei e contrária à supremacia do poder legislativo, pois encontra no poder
consagrando soluções para questões que nunca antes tinham recebido executivo a sua força jurídica.
tratamento normativo, foram todos produzidos à margem da vontade geral Nestes termos, se na interpretação francesa da separação de poderes
expressa pela lei do parlamento, derrogando todos os postulados teóricos "julgar a Administração ainda é administrar", a criação do Direito Admi-
de Rousseau e de Montesquieu sobre a matéria, revelando uma até então nistrativo pelo Cansei! d'Etat vem dizer-nos que em França também
insuspeita e desconhecida supremacia da jurisprudência. "legislar para a Administração já é administrar".
Não surpreende que se afirme, por conseguinte, que "se há uma «con-
~ ~ ~·~e~e ~ação
cepção francesa de separação de poderes», ela comporta a atribuição do
poder legislativo em matéria administrativa à jurisdição administrativa'i'25 9 do Direito Administrativo, cfr. MARIA DA GLÓRIA FERREIRA
2 PINTO DIAS GARCIA, Da Justiça ... , p. 315.
~
~
e,7\ Cfr. MARIA DA GLÓRIA FERREIRA PINTO DIAS GARCIA, Da Justiça ... , p. 316.
Neste sentido, cfr. PIERRE DELVOLVÉ, Paradoxes du (ou paradoxes sur le)
príncipe de séparatio11 des autorités administrative et judiciaire, in Mélanges Re11é
258 Para uma caracterização da origem, fundamento e desenvolvimento do sistema
do administrador-juiz, cfr. JACQUES CHEVALLIER, L'Élaboration Historique du Príncipe
de Séparation de la Juridiction Administrative et de l'Ad111i11istratio11 Aclive, Paris, 1970,
Chapus - Droit Administratif, Paris, 1992, p. 144.
pp. 139 ss. -
254 Cfr. ALEJANDRO NrETo, Las Co11tradiccio11es ... , p. 274. 259 Sobre a origem do Conseil d'Etat e as ligações iniciais com a Administração
5
2 5 Cfr. PAULO ÜTERO, Direito Administrativo - Relatório, 2ª ed., p. 227. activa, cfr., por todos, JACQUES CHEVALLIER, L'Élaboration ... , pp. 102 ss.; FRANÇOIS BUR-
256 Cfr. PIERRE DELVOLVÉ, Paradoxes... , p. 144.
DEAU, Histoire du Droit Administratif, Paris, 1995, pp. 66 ss.
273
§ 9. º Condicionantes da sistematicidade do Direito Administrativo
272 Legalidade e Administração Pública
-membros, convertendo o juiz em revisor dos Tratados em matéria de deli- (B) ILUSÃO GARANTÍSTICA DA GÉNESE DO DIREITO ADMINISTRATIVO
mitação das competências comunitárias271.
Pode mesmo dizer-se, parafraseando Prosper Wei1272, que alguns dos 9.1.4. Conhecedores de que em França a jurisdição administrativa
mais importantes princípios gerais de Direito Comunitário foram "segre- precedeu o Direito Administrativo, pois "este não teria visto a luz do dia"
gados" pelo Tribunal de Justiça como uma glândula segrega a sua hormona, se não fosse o papel do Cansei! d'Etat276, foi-se desenvolvendo uma visão
fazendo hoje parte do acquis communautaire273 e, num contexto de "ma- garantística sobre a origem e a função do Direito Administrativo: trata-se
nutenção da integralidade do acervo comunitário"274, integram as ordens de um Direito que "nasce quando o Poder aceita submeter-se ao Direito"277,
jurídicas dos Estados-membros. representando um milagre cada dia renovado 278, e chegando a afirmar-se
Neste último sentido, e sem prejuízo de um notório refrear do "acti- que "o Direito Administrativo não é o Direito da Administração mas o
vismo judicial" comunitário após Masstricht275, a legalidade administra- Direito contra a Administração"279.
tiva dos diferentes Estados-membros não pode deixar de conhecer a Todavia, a criação de uma jurisdição administrativa própria, subtraindo
influência da jurisprudência comunitária na formulação de novas regras e a resolução dos litígios jurídico-administrativos aos tribunais comuns,
de novos princípios jurídicos integrantes da "Comunidade de Direito" . íJ ªº-~8.'1.r:_de alicerçada na ideia de_gue "julgar a Administraçã~ind~-· é
subjacente à União Europeia, ganhando aqui o Direito Administrativo da ·. '. :, r
1
ª_omiriEtrar", ~º teve qualquer intuito garantístico, antes se bas~2 ll_n(l
Europa Continental uma dimensão que já havia esquecido da sua herança , ·'. ~~ desco~olucionário.s_f[~~C:~~e~_1.!!!'él_Q~.!!il:>.1:1:n~dic;iAis~
francesa pretoriana. · \'--Z 1 pretendendo impedir que o espÍ!Í_!:o de hostilidade reinante nesses últimos
O moderno Direito Administrativo continua, deste modo, a assentar \ '8 / contra a Kev~Jfuiit~e a lil~~r~ãi!~ -~-~a~ç:_ã9 ~-ªs_:aiit6-rida<leilictmi-
numa concorrência de produção normativa entre órgãos legislativos, admi- "~ _ J!~s revoh1~ionárias2so.
nistrativos e jurisdicionais: a separação de poderes parece revelar-se aqui '---") A invocação do--nncípio da separa ão de oderes foi um simples
~xt<:}_ · ª!ª que, visando UE). objecti".o po!í_t~creto de g-ªl".ª!!.tiE__l.11!1
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particularmente hostil a um monopólio do poder legislativo na produção
da legalidade administrativa. efecrrvõaf~ento d~~fera d~ liberdade decisória d-ª Adl!llnisti:_açíip
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Pública, ---------
tornando a sua actividade imune a qualquer controlo judicial, se
construísse um modelo de contencioso em que a Administração se julgaria
a ela própria: h~ _aqui_tU!!~ perfeita continuidade en~r~_QJUOcl~lo__Qt< _CQ!l-
trolo administrativo adoptadÕ-pefilRévolüÇao.Fàmcesa e aquele que vigo-
ravano-A11cten-Régime2&l-; pois, tal como Tocquevi1re-a:fínnãva, "nesta
27l Para uma análise da evolução da jurispmdência comunitária sobre esta última matéria ~apenas- ~nGontrálll{)S a fórmula; ao Antigo Regime pertence a
matéria, cfr., por todos, MARIA LUÍSA DUARTE, A Teoria ... , pp. 292 ss. ideia" 282.
272 ln O Direito Administrativo, p. 15.
2 276 Cfr. PROSPER WEIL, 0 Direito Administrativo, p. 15.
73 Sobre a expressão e o conteúdo da ideia de "adquirido comunitário", cfr. FAUSTO
DE QUADROS, Direito das Comunidades Europeias e Direito Internacional P1íblico - 277 Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso ... , I, p. 148.
Contributo para o estudo da natureza jurídica do Direito Comunitário Europeu, Lisboa, 278 Neste sentido, cfr. PROSPER WEIL, O Direito Administrativo, pp. 7 e 10.
1984, pp. 234 ss. 279 A frase é de ALEJANDRO NIETO Garcia, cit. por MARIA DA GLÓRIA FERREIRA
274 Cfr. TUE, artigo 2.º, parágrafo 5.º. PINTO DIAS GARCIA, Da Justiça... ' p. 316.
Para um desenvolvimento do princípio do respeito pelo acervo comunitário, cfr. 280 Neste sentido, cfr. ANDRÉ DE LAUBABERE I JEAN-CLAUDE VENEZIA I YVES GAU-
MARIA LufsA DUARTE, Direito da União ... , pp. 213 ss. DEMET, Traité de Droit Administratif, I, 11ª ed., Paris, 1990, p. 248; JACQUES CHEVALLIER,
275 Neste sentido, sublinhando a contenção do Tribunal de Justiça na sequência do L'Élaboration ... , pp. 72 ss.
Tratado de Masstricht, cfr. MARIA LufsA DUARTE, A Teoria... , pp. 303 ss.; IDEM, A 28[ Neste sentido, cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, Para um Co11te11cioso Adminis-
Comissão das Comunidades Europeias e os limites aos seus poderes: Quem guarda a trativo dos Particulares - Esboço de uma teoria subjectivista do recurso contencioso de
guardiã dos Tratados?, in MARIA LufsA DUARTE, Estudos... , p. 74; IDEM, Direito da anulação, Coimbra, 1989, p. 27.
União ... , p. 166. 282 Cfr. ALEXIS DE TocQUEVILLE, o Antigo ... ' p. 64.
§ 9. º Condicionantes da sistematicidade do Direito Administrativo 277
276 legalidade e Administração Pública
Sabedores de que a criação de um sistema contencioso assente no A "fuga" do poder executivo ao controlo pelos tribunais judiciais, se
postulado de que "julgar a Administração ainda é administrar", enquanto alicerçada em razões políticas e justificada por uma sui generis visão do
expressão de uma Administração que se julga a si própria, mais não princípio da separação de poderes (v. supra, n.º 9.1.4.), acabou por com-
representa do que a recuperação de uma herança directamente proveniente portar efeitos limitativos das garantias contenciosas dos administrados
do Ancien Régime, pode bem imaginar-se que só por um equívoco estare- que, por esta via, se encontraram privados no seu relacionamento litigioso
mos aqui perante um modelo dotado de uma função ou natureza garan- com a Administração Pública do arsenal de meios processuais que o
tística: o sistema contencioso do administrador-juiz não surge para garan- Direito Comum lhes conferia.
tir os particulares contra a Administração, antes tem a sua origem histórica Neste último sentido, se é verdade que o Direito Administrativo
pautada pela preocupação de o poder executivo se subtrair aos tribunais e, substantivo nasceu da actividade do Cansei! d'Etat, não é menos certo que
neste exacto sentido, ~~i~s qu~()S_j)~t"tic:l!l~m se a "fuga" do poder executivo ao controlo pelo poder judicial, comportando
S!Jbmetessem o controlo da actividade administrativa a um poder equidis- uma imediata deITogação dos meios processuais do Direito Comum ao
abertura a outros vícios, cfr. JACQUES CHEVALLIER, L'Élaboratio11 .. ., pp. 176 ss. Substituição .. ., 1, pp. 38-39; IDEM, Revolução .. ., pp. 640-641.
__ ,
278 Legalidade e Administração Pública § 9. º Condicionantes da sistematicidade do Direito Administrativo 279
Existe aqui um verdadeiro equívoco histórico: utiliza-se o dogma da órgãos administrativos de controlo, um único aspecto parece perturbar a
separação de poderes para, num primeiro momento, excluir a actividade "tranquilidade" da imunidade decisória do executivo: a sujeição da sua
administrativa do controlo pelos tribunais judiciais, criando-se dentro da actividade às mesmas normas substantivas que pautam a actuação dos
própria Administração órgãos de controlo que, num segundo momento, particulares.
invocando uma vez mais a separação de poderes, são tratados como tribu- A gestação de um complexo normativo regulador da actividade
nais para permitir agora que não exerçam sobre os outros órgãos da Admi- administrativa pelo Conseil d'Etat torna-se uma inevitabilidade lógica de
nistração poderes de injunção e de substituição que se teriam de considerar um executivo que "foge" ao controlo dos tribunais e que concentra em si
legítimos entre órgãos situados no interior da Administração Pública. a última palavra sobre a validade dos seus próprios actos: como poderia o
Integrando os órgãos do contencioso administrativo na Administra- executivo considerar os seus actos de autoridade válidos se os mesmos
ção Pública e sujeitando-os, contraditoriamente, a aspectos do regime tivessem sujeitos ao Direito Comum? Como seria possível explicar a
funcional dos tribunais, neutralizam-se quaisquer possíveis efeitos da sua admissibilidade jurídica de uma conduta administrativa que, se fosse
intervenção fiscalizadora, tal como antes já igual intuito político havia sujeita às mesmas normas que pautam a actividade dos particulares, se
afastado os tribunais judiciais do controlo da actividade administrativa288: deveria considerar inválida291? ·
a instrumentalização do princípio da separação de poderes revela aqui Eis o núcleo central de interrogações a que o nascimento do Direito
todas as suas potencialidades na implementação de uma política de reforço Administrativo veio dar resposta.
e imunidade do poder executivo. Transformado o administrador-juiz em criador da norma que, num
Por outro lado, além de se desenvolver durante todo o século XIX momento imediatamente subsequente, irá aplicar, verifica-se que o surgi-
uma normatividade processual que mostra o quanto tem de mitológica a mento do Direito Administrativo ocorre num cenário em que o executivo
ideia de igualdade das partes no âmbito do contencioso administrativo, decide em causa própria os litígi~ entre a Administração e os adminis-
registando-se que ainda no final do século XX os particulares se defron- trados, definindo também as regras materiais reguladoras da decisão do
tavam (e se defrontam) com diversos obstáculos processuais289, verifica-se litígio.
que os órgãos contenciosos se encontram desprovidos de quaisquer pode- O Direito Administrativo nasce "estigmatizado" por uma genérica
res executivos contra a Administração Pública, sabendo-se que ainda hoje suspeita de parcialidade292, tal como a criação de uma jurisdição no interior
o problema tem especial sensibilidade no âmbito da execução das senten- da própria Administração, integrando juízes sem autonomia ou indepen-
ças dos tribunais administrativos, designadamente em casos da sua inexe- dência face ao poder executivo, suscita idêntica apreensão: juiz adminis-
cução ilícita pelos órgãos administrativos. trativo e Direito Administrativo partilham uma origem alheia ao princípio
Ultrapassados na actualidade os sistemas do administrador-juiz e da da imparcialidade.
jurisdição delegada, não pode deixar de se salientar que mesmo perante Num outro sentido, tal como o monarca absoluto podia derrogar a lei
um "sistema de jurisdição judicial"29o o acatamento voluntário pelos na sua aplicação concretá, observa-se que o modelo francês de justiça
órgãos administrativos das sentenças dos tribunais administrativos se
revele ainda, esse sim, um milagre cada dia renovado. 291 Os exemplos da autotutela declarativa, da autotuela executiva e do exercício de
um poder genérico de modificação unilateral dos contratos por parte da Administração
9.1.6. Perante um poder executivo que afasta os tribunais do seu Pública mostram-se ilustrativos de uma conduta que, se fosse adoptada pelos particulares,
controlo em nome da separação de poderes e que, uma vez mais em nome segundo as regras do Direito Comum, se teria de considerar inválida.
da separação de poderes, trata de neutralizar a intervenção dos próprios 292 Sobre a imparcialidade, apesar de não se referir à situação concreta da Admi-
nistração Pública, sublinhando, todavia, que traduziria um venire contrafactum proprium
o poder político definir por via normativa os direitos e obrigações dos cidadãos e do
288 Cfr. PAULO ÜTERO, Revolução.. ., p. 641. Estado e "depois arrogar-se o direito de ser ele próprio a julgar os litígios concretos sobre
289 Neste sentido, cfr. JOSÉ CARLOS VrnrRA DE ANDRADE, A Justiça.. ., pp. 50 e 51. tais direitos e obrigações'', JoÃO BAPTISTA MACHADO, lntrodução ao Direito e ao Dis-
290 Sobre o respectivo conceito, cfr. PAULO ÜTERO, Revolução.. ., p. 632.
curso Legitimador, 3ª Reimp., Coimbra, 1989, p. 148.
280 Legalidade e Administração Pública 9. º Condicionantes da sistematicidade do Direito Administrativo 281
administrativa permite que o executivo derrogue as normas do Direito civil dos órgãos do poder executivo e a institucionalização de um meca-
Comum293, fazendo o Conseil d'Etat produzir em sua substituição um nismo de garantia administrativa295 - isto independentemente do próprio
novo conjunto de regras e de princípios gerais reguladores da actividade posicionamento privilegiado da Administração Pública no contexto das
administrativa - o Direito Administrativo. normas processuais do contencioso administrativo (v. supra, n.º 9.1.5.) -,
Pode agora dizer-se que a génese do Direito Administrativo se revela completavam o quadro material de um Direito Administrativo que se ia
marcada por uma clara tendência violadora da igualdade: a actuação da formando em sentido derrogatório ao Direito Comum e, sobretudo, recheado
Administração Pública passa a encontrar-se sujeita, por decisão do poder de prerrogativas especiais de autoridade perante os particulares.
executivo e sem qualquer intervenção do legislativo, a uma normatividade É a existência de prerrogativas especiais de autoridade, segundo se
que, sendo diferente do Direito Comum que rege as relações entre os pode extrair da jurisprudência do Conseil d' Etat e do Tribunal des conflits
particulares, vai sendo elaborada pelos próprios órgãos de controlo admi- sobre a delimitação da competência entre o juiz administrativo e o juiz de
nistrativo sempre em momento cronológico posterior à actividade que é Direito comum, que funciona como "a causa e a medida da independência_
desenvolvida pelos órgãos da "Administração activa" e que está a ser do direito administrativo" 296: o Direito Administrativo começou por ser
sujeita a controlo num caso concreto, servindo de critério aferidor da um Direito de prerrogativas especiais da Administração297.
validade a posteriori da conduta administrativa. Só por manifesta ilusão de óptica ou equívoco se poderá vislumbrar
No quadro de um sistema em que a explicação da origem do Direito uma génese garantística no Direito Administrativo: o Direito Adminis-
Administrativo se encontra na necessidade de criar um grupo de normas trativo surge como o Direito da Administração Pública298 e não como o
especificamente reguladoras da actividade do poder executivo, afastando- Direito dos administrados299.
-se a aplicação do Direito Comum de natureza substantiva - tal como já
antes, num momento imediatamente anterior, se haviam afastado os meios
processuais comuns de reacção contra as decisões administrativas -, come-
çam a desenhar-se os contornes materiais de um novo ramo de Direito Histoire .. ., pp. 79 ss.
'
295 Sobre a génese da garantia administrativa em França, cfr. FRANÇOIS BuRDEAU,
9.1.7. Não obstante se reconhecer que a evolução recente do Direito provocado, paralela e paradoxalmente, um curioso fenómeno de tentativa
Administrativo durante o século XX é marcada por uma permanente preo- de "fuga" da Administração Pública para o Direito Privado, procurando,
cupação de garantia das posições jurídicas subjectivas dos administrados deste modo, iludir as vinculações que o Direito Administrativo foi criando
e de limitação dos poderes de autoridade da actuação administrativa, não ao longo do século XX à actuação administrativa.
se pode esquecer, porém, a ausência de um tal propósito no início de toda Existe aqui, por isso mesmo, um desenvolvimento contraditório do
esta caminhada histórica: o Direito Administrativo começou por significar Direito Administrativo300: enquanto que, por um lado, se aumentam as
uma "fuga" da Administração Pública ao Direito Comum. garantias dos particulares, impedindo que o Direito Administrativo seja
A alegada "fuga" da Administração Pública do século XX para o Di- visto como um simples repositório de prerrogativas de autoridade, a
reito Privado, tentando um desesperado reencontro com o Direito Comum Administração tenta, por outro lado, "escapar" a um grau mais elevado de
perdido pelo Cansei! d'Etat no século XIX, traduz a resposta de uma respeito por essas garantias que se encontram consagradas em normas
Administração que, procurando iludir hoje as vinculações "asfixiantes" administrativas, passando a pautar a sua actuação em amplos sectores por
existentes no Direito Administrativo, busca no seu retorno ao Direito regras e princípios alheios ao Direito Administrativo que, deste jeito, vê
Comum encontrar a liberdade perdida pela evolução de um Direito Admi- reduzido o seu campo regulador da actividade administrativa.
nistrativo das prerrogativas de autoridade e da liberdade de decisão, à data
do seu nascimento, para um Direito Administrativo que se desenvolveu 9.2.2. A Administração Pública regressou no século XX ao Direito
em termos limitativos da liberdade administrativa e garantísticos dos Privado para, beneficiando dos princípios da liberdade e da igualdade que
administrados. 0 caracterizam30l, desenvolver a sua actividade sem as limitações decor-
Este último aspecto torna já visível, aliás, uma das vertentes do rentes de um Direito Administrativo cadaNez mais "aitilhado" de vincula-
desenvolvimento contraditório do Direito Administrativo, o qual será ções e de garantias dos administrados.
objecto de investigação imediata. Nem se diga que a opção pelo Direito Privado, apesar de ser moti-
vada pelo intuito de evitar a sujeição da Administração Pública às vincula-
ções mais apertadas do Direito Administrativo, pode ser compensada pela
9.2. Desenvolvimento contraditório do Direito Administrativo renúncia às prerrogativas de autoridade que a legalidade administrativa lhe
confere e que se encontram alheias no Direito Privado: num Estado de
(A) AUMENTO DAS GARANTIAS E FUGA ÀS VINCULAÇÕES Direito democrático, nem a Administração pode ter o poder discricionário
de renunciar às prerrogativas que lhe foram confiadas para prosseguir o
9.2.1. Se a "fuga" do poder executivo ao Direito Comum represen- interesse público, nem a "dispensa" de sujeição às vinculações se pode
tou, num primeiro momento, o surgimento de um Direito Administrativo traduzir no exercício de um poder administrativo autónomo.
pouco sensível às garantias dos administrados, traduzindo a génese de uma Pretendendo realizar alienações patrimoniais sem as restrições do
normatividade marcada pelas ideias de parcialidade e desigualdade (v. Direito Público, efectuar despesas sem controlo financeiro do Tribunal de
supra, n. º 9.1.6.), o certo é que o desenvolvimento do Direito Adminis- Contas ou à margem das normas orçamentais e da legislação específica
trativo tem revelado um aumento significativo da vertente garantística a sobre despesas públicas, contratar sem se submeter às limitações decor-
nível material e processual: a história da evolução do Direito Adminis- rentes das regras da contratação pública, admitir pessoal fora do regime
trativo pode bem ser resumida na crescente importância dos direitos geral do concurso para o recrutamento e sel~cção de pessoal para a Admi-
subjectivos e dos interesses legítimos dos particulares na limitação da
300 Cfr. PAULO ÜTERO, Direito Administrativo - Relatório, 2ª ed., p. 229.
actividade administrativa e no controlo contencioso das decisões admi-
301 Sublinhando estes aspectos como caracterizadores do Direito Privado, isto por
nistrativas. oposição às ideias de autoridade e competência que se encontram subjacentes ao Direito
Um tal reforço da vertente garantística do Direito Administrativo, Público, cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA / SOFIA GALVÃO, Introdução ao Estudo do
compmtando um renovado leque de limitações ao agir administrativo, tem Direito, 4ª ed., Lisboa, 1998, p. 259; GIUSEPPE UGO RESCIGNO, Corso ... , pp. 683 ss.