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arquitextos ISSN 1809-6298

112.07 ano 10, set. 2009

Cidade e memória: do urbanismo “arrasa-quarteirão” à


questão do lugar (1)
Sandra Mara Ortegosa

Galerie Vivienne, Paris século XIX


[http://www.conexaoparis.com.br/2007/07/14/galerie-vivienne-charme-
das-passagens-cobertas/]

Desde os anos 60, o tema da memória vem merecendo destaque cada vez maior
nos estudos sobre as cidades, numa perspectiva de abordagem que se
contrapõe ao pensamento e prática do Movimento Moderno Internacional,
especialmente no que se refere ao descaso em relação às características
históricas, geográficas e culturais que dão identidade ao lugar. Tal
perspectiva vem reavivando o interesse sobre a obra de alguns pensadores,
entre os quais Walter Benjamin, que privilegiava a leitura do texto
inscrito nas cidades. Para Benjamin, cujo olhar tem-se mostrado uma das
chaves de interpretação mais fecundas sobre a sociedade moderna, a
memória é constituída de impressão, de experiência e sua importância e
significado especial estão no fato de que ela é o que nós retemos e o que
nos dá a nossa dimensão de sentido no mundo (2).

A arquitetura e os lugares da cidade constituem o cenário onde nossas


lembranças se situam e, na medida em que as paisagens construídas fazem
alusão a significados simbólicos, elas estão evocando narrativas
relacionadas às nossas vidas. Assim, a maneira como interpretamos nossas
experiências no espaço converte-se em nossa realidade e possibilita-nos
dar significado ao nosso mundo físico. Com o passar do tempo, uma
constelação de signos se estratificam na memória coletiva constituindo
uma cidade análoga.

Como ilustra Maria Alice Rezende de Carvalho, “uma praça das grandes
manifestações políticas, uma esquina boêmia, um ponto da praia com seu
velho pier, um Café centenário, um edifício bisonho que parece ter
resistido ao ímpeto destrutivo da moderna linguagem arquitetônica são os
fundamentos dessa cidade análoga”, que se repõe insistentemente, mesmo
que a cidade real se altere (3). Um dos aspectos fundamentais na vida de
uma cidade, portanto, é o conjunto de recordações que dela emergem: a
memória urbana é a realidade que marca nossa própria fugacidade na
história, ao mesmo tempo em que anuncia a possibilidade de transcendermos
nossa temporalidade individual.

Essa segunda dimensão da cidade imprime a determinados espaços físicos


que a conformam, a capacidade de falar pelo todo. Assim como podemos
encontrar constelações históricas específicas que assumem o caráter
de mônadas em relação ao presente, também nas cidades existem
determinados lugares cuja compreensão transcende os seus limites pela
capacidade de iluminar o todo. São lugares que apresentam uma força de
representação simbólica capaz de despertar ilhas de afetividade em seus
habitantes e de expressar com particular clareza as relações com o todo,
assumindo a condição de espaços-síntese (4). Na visão benjaminiana, cada
presente possui uma reserva de passados intactos, sob a forma de
constelações históricas específicas, que podem ser resgatadas pelo
historiador para delas extrair o genuinamente novo. A decifração das
diversas camadas de escritura desse imenso palimpsesto impresso na cidade
objetiva a construção de sentido do presente: a promessa do novo situa-se
no passado, enquanto produto de um trabalho processual de construção,
aberto para o leque de possíveis que ele encerra.

Nestes termos, proteger a memória significa proteger o passado, o


presente e o futuro. Cabe a cada presente resgatar o próprio passado,
arrebatando-o ao esquecimento e revelando os possíveis futuros que ele
comportava. Ao extrair-se o passado do continuum da história, sob a forma
de mônada, ele torna possível a legibilidade do todo. É este o sentido
exato que Benjamin deu a esse termo referindo-se às Passagens de Paris:
um fragmento do real que abre a via a uma interpretação completa do todo
(5).

Em A Poética do Espaço, Gaston Bachelard discorre a respeito das imagens


que emergem do “fundo poético do espaço da casa”, afirmando que “é
exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas como
devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós”. Para
ele, “todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa” e
sua preciosidade está na proteção que ela oferece ao sonhador, na paz de
se poder devanear, permitindo que pensamentos e experiências deste
devaneio produzam “valores que marcam o homem em sua profundidade”. Um
espaço feliz é um lugar que provoca, pacífica e espontaneamente, uma
sensação de acolhimento, instigando a troca e a criação, e despertando
uma ligação afetiva em quem nele vive, pela memória que persiste nas
pedras, solidificando imagens, identidades e signos (6).

Na visão de Bachelard, a lembrança tem função primordial no espaço,


atribuindo-lhe a condição de âncora da memória: “o inconsciente permanece
nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem
espacializadas”. Todos os espaços com os quais estabelecemos uma relação
de intimidade adquirem “valores oníricos consoantes”. São justamente as
lembranças localizadas na região da intimidade que nos dão o sentido de
valorização dos aposentos, praças, ruas, edifícios e paisagens que
constituem patrimônios da história da humanidade, de uma determinada
sociedade ou das histórias íntimas e individuais. Os devaneios suscitados
pelas lembranças convidam-nos à imaginação e provocam transformações nas
profundezas do ser. A ausência de possibilidade de devanear gera, ao
contrário, o estreitamento da imaginação e a acomodação em relação à
realidade. Em outras palavras: a ausência do sonho, do devaneio, impede a
construção de utopias. É neste sentido, e não como tentativa de um
resgate de um tempo perdido ou de uma cultura já morta, que a preservação
da arquitetura e dos ambientes urbanos adquire importância (7).

Numa crítica ao modelo de habitat das grandes cidades modernas, nas quais
predomina uma paisagem “oniricamente incompleta” de edifícios verticais e
ausência da natureza, Bachelard, reportando-se a Paris, nos diz que lá
“não existem casas. Em caixas superpostas vivem os habitantes da grande
cidade”. E nessas caixas anônimas, identificadas apenas pelo número da
rua e o algarismo do andar, “as peças se amontoam e a tenda de um céu sem
horizontes encerra a cidade inteira”. Acresce-se a isso a “falta de
cosmicidade da casa das grandes cidades. As casas ali já não estão na
natureza. As relações da moradia com o espaço tornam-se artificiais. Tudo
é máquina e a vida íntima foge por todos os lados. ‘As ruas são como
tubos onde os homens são aspirados’(Max Picard)” (8).
Mais contemporaneamente, Marc Augé, em oposição ao conceito
de lugarassociado à tradição antropológica de uma cultura localizada no
tempo e no espaço, emprega a idéia de não-lugares referindo-se aos
espaços destituídos de identidade e história, verdadeiros espaços do
anonimato, resultantes do processo de mundialização que vem conformando o
que ele chama de uma supermodernidade. No cerne desta abordagem, destaca-
se a idéia de que a megalópole segue um princípio de intencionalidade de
descaracterização e assepsia em relação ao passado e aos traços de
identidade local. Referindo-se ao caráter cada vez mais artificial e
museulógico do centro monumental de Paris (onde “mora-se cada vez
menos”), Augé identifica o sinal de uma mudança mais geral na França: “a
relação com a história que povoa nossas paisagens talvez esteja em vias
de estetizar-se e, simultaneamente, dessocializar-se e artificializar-
se”. Comparando o centro de Paris com os das cidades francesas mais
modestas e até das aldeias, ele afirma que nelas “o centro da cidade é um
lugar ativo, realmente. (...) Em intervalos semanais regulares (o domingo
e o dia de feira), o centro ‘se anima’, e é uma reclamação freqüentemente
dirigida às cidades novas, originárias de projetos de urbanismo ao mesmo
tempo tecnicistas e voluntaristas, não oferecerem um equivalente aos
lugares de vida produzidos por uma história mais antiga e lenta, onde os
itinerários singulares se cruzam, onde se trocam palavras e se esquecem
as solidões por um instante, na porta da igreja, da prefeitura, na porta
do café, na padaria: o ritmo meio preguiçoso e a atmosfera propícia à
conversa da manhã de domingo são sempre uma realidade contemporânea da
França provinciana” (9).

A questão da memória e do lugar e a reformulação de paradigmas no campo


da arquitetura e do urbanismo

Quando se examina o resultado das diversas experimentações do Movimento


Moderno na arquitetura e no urbanismo, o que se destaca é que a herança
moderna é marcada por um rastro de intervenções com características
homogeneizadoras, que rechaçam qualquer perspectiva de continuidade
histórica. A própria noção de modernismo/modernidade e sua identificação
com a estratégia de vanguardismo, pressupõem oposição frontal ao passado
e induzem o conflito formal permanente. Um dos exemplos mais conhecidos é
o Plan Voisin de Paris (1925), de autoria de Le Corbusier, que nega
radicalmente a tipologia arquitetônica e urbana preexistente, contrapondo
uma ordem estruturante euclidiana, numa das manifestações mais claras de
ruptura com a cidade tradicional e sua base figurativa, mediante uma
solução calcada nos modelos abstratos.

Em contraposição à concepção modernista de cidade, especialmente na sua


vertente haussmann-corbusiana, começa a ganhar espaço na Europa e Estados
Unidos a partir dos anos 50, uma série de propostas baseadas numa visão
crítica contra a paisagem funcionalista e os espaços desérticos
resultantes da estandardização na sociedade de massas, numa perspectiva
de revalorização dos elementos vernaculares e tradicionais da cidade.
Vale lembrar que o rompimento com o racionalismo funcionalista propugnado
pela Carta de Atenas (11) deu-se no interior do próprio CIAM (Congresso
Internacional de Arquitetura Moderna). Em 1951, o CIAM VIII, realizado na
Inglaterra, teve como tema O coração da cidade: por uma vida mais humana
da comunidade. Em 1953, no CIAM IX, realizado na França, manifesta-se uma
preocupação central com a questão da identidade dos espaços da cidade. A
relação entre a forma física e as necessidades de ordem social e
psicológica tornou-se tema do CIAM X, último encontro dos CIAM, realizado
em Dubrovnik, em 1955. O grupo responsável pela sua organização,
conhecido como Team X, opunha aos esquemas cartesianos derivados do
zoneamento da cidade funcional, as categorias mais fenomenológicas
de casa, rua, bairro e cidade.

De meados da década de 60 em diante, esta revisão das doutrinas legadas


pelo Movimento Internacional Moderno abre espaço para novas formulações:
uma produção literária crítica passa a advogar um novo respeito pelas
necessidades subjetivas e a redescoberta dos símbolos culturais no
ambiente construído. A questão da permanência dos elementos
arquitetônicos e dos traçados urbanos, o interesse pelo simbólico e pelo
arquetípico, como aspectos de fundamental importância para a memória
coletiva e subjetiva, adquirem centralidade, expressando-se politicamente
na cidade pelos movimentos sociais engajados na luta pela preservação de
lugares significativos.

A visão comunitária de um espaço urbano re-humanizado, preconizada por


Camillo Sitte (12) em sua crítica à paisagem moderna de Viena, terá
importante repercussão em nossos dias através do clássico “Morte e Vida
das Grandes Cidades Norte-americanas”, de Jane Jacobs, publicado em 1961.
Jacobs argumentava que os paradigmas mecanicistas e redutivos do
urbanismo modernista produziam espaços urbanos fisicamente limpos e
ordenados, mas social e espiritualmente mortos; e que, para Le Corbusier
e a maior parte dos arquitetos da vanguarda modernista, a rua era vista
apenas como uma “fábrica de tráfego”, o que resultou na demolição de
diversos bairros para a abertura de vias expressas, implantação de
projetos de renovação urbana e outras obras públicas. Em “Tudo que é
sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade” (13), Marshall Berman
relata a destruição do Bronx, onde viveu sua infância, quando Robert
Moses, no final dos anos 50 e início dos 60, rasga o bairro ao meio com
uma via expressa, desalojando cerca de 60 mil pessoas. Robert Moses, o
grande construtor de vias expressas em Nova York durante 40 anos,
representou o clímax do modernismo aplicado à cidade (14).

Jacobs, talvez a mais famosa crítica do urbanismo modernista, demonstrou


os efeitos destrutivos do planejamento racional centralizado sobre a vida
urbana, defendendo a preservação das relações comunitárias e dos espaços
urbanos personalizados. Para ela, a resposta à falta de animação e
vitalidade das ambiências urbanas resultantes do planejamento
funcionalista deveria ser buscada num planejamento na escala humana, no
qual os marcos e as referências culturais, e os locais de encontro dariam
sustentação às associações intersubjetivas e a um sentido de lugar. A
diversidade de pessoas e usos era um de seus princípios cardeais, em
contraposição aos usos urbanos segregados pelo zoneamento funcional da
cidade.

Esta conclusão é decorrente, em larga medida, de sua própria experiência


cotidiana na Hudson Street, onde morava em Nova York, observando a
movimentação dos vizinhos e estranhos, cuja diversidade e variados ritmos
de tempo-espaço definiam uma característica “ecologia e fenomenologia das
calçadas” (15). Do ponto de vista político, ela advogou um método
participativo que preconizava uma comunicação direta entre a vida
cotidiana e a prática do planejamento.

Como ressalta Berman, “a ação e o pensamento de Jacobs anunciaram uma


grande onda de ativismo comunitário e uma grande irrupção de ativistas em
todas as dimensões da vida política” (16). A partir de então, a luta pela
preservação de lugares significativos para a população avançou nas
principais cidades do mundo por uma década ou mais, conquistando alguns
resultados importantes: planos de vias expressas foram derrubados,
projetos de renovação urbana foram rejeitados ou redefinidos, áreas
históricas foram preservadas, ruas foram recuperadas para usos mais
nobres que o tráfego exclusivo de veículos.

Neste quadro, o plano de preservação e reabilitação do centro histórico


de Bolonha, implantado a partir de 1969, aparece como uma das mais
importantes experiências européias e expressão emblemática de uma nova
visão de urbanismo, rompendo definitivamente com a idéia da preservação
entendida como um simples problema de “cenografia urbana” aliada a
adaptações funcionais (17).

A partir dos anos 70, a perda da identidade cultural e o empobrecimento


do ambiente urbano provocado pelos códigos redutivos da arquitetura
contemporânea tornaram-se objeto de preocupação cada vez maior. Contra a
uniformização, emerge um renovado interesse pela especificidade do
regional e dos estilos históricos, e pela diversidade das subculturas
urbanas. A supressão do contexto local e da cultura, e a imposição da
uniformidade como meio de se alcançar a universalidade encontra uma
reação explicitada no léxico pós-moderno, pela valorização do contexto,
da diversidade, do sentido do lugar, da experiência, do cotidiano e da
cultura (18). Em oposição à visão globalizante e unificadora propugnada
pela vanguarda modernista, delineiam-se novos códigos formais que
convertem a fragmentação da configuração urbana num valor positivo: o
pluralismo, em oposição à rigidez dos modelos estabelecidos pelo
funcionalismo, e a valorização das particularidades regionais e dos
conceitos de lugar/identidade, em oposição ao princípio da tabula rasa na
produção ex-niilo de um novo espaço. A cidade-colagem, resultante da
somatória de diferentes estratégias de intervenção no espaço urbano, e
a revitalização urbana, no lugar dos procedimentos de renovação urbana,
transformam-se em princípios-chave nas práticas urbanísticas
contemporâneas.

A obra “Complejidad y Contradición en La Arquitetura” (1972), de Robert


Venturi (19), constitui um dos marcos na formulação do repertório das
correntes pós-modernas. Venturi opõe-se de forma radical à monotonia do
racionalismo funcionalista, defendendo a complexidade, as contradições, a
riqueza formal, a ambigüidade, o híbrido, o distorcido, o vernacular e o
irregular. Colin Rowe (20) - um dos defensores dessa concepção - adota,
em “Collage City” (1978), a Villa de Adriano como referência na proposta
de uma cidade resultante de uma colagem de utopias pretéritas: a cidade
bricolage. Numa reação à larga escala do movimento moderno, as
intervenções pontuais e fragmentárias, bastante freqüentes na atualidade,
fundamentam-se no princípio da multiplicidade. Como pano de fundo dessa
visão, subjaz um reconhecimento implícito na inevitabilidade da
fragmentação da forma urbana na cidade contemporânea.

Outra referência teórica importante – “A Arquitetura da Cidade” (1971),


de Aldo Rossi -, apresenta uma teoria geral da cidade, fundamentada
precisamente na análise da cidade histórica. Em contraposição ao
urbanismo “arrasa-quarteirão”, emerge a noção de lugar ou genius loci –
conceito teórico-filosófico que se refere a um campo perceptivo
resultante, na definição de Rossi, da “relação singular e, ao mesmo
tempo, universal entre certa situação local e as construções existentes
naquele lugar” (21).

Kenneth Frampton, também presente neste debate, desenvolve a teoria


dolugar em contraposição à idéia de totalidade, norteadora do ideário de
proposições da cidade modernista. Para ele, o espaço não deve ser tratado
como algo abstrato, mas sim como o lugar de habitar dos homens. Tomando
essa acepção de Heidegger, formula a proposta de um regionalismo
crítico,no qual a questão do lugar é pensada a partir de suas
significações e referências históricas, geográficas e culturais.
Apresentando-se como uma alternativa de resistência contra o mito do
progresso da vanguarda moderna, mas contrapondo-se também ao mito de
retorno às realidades pré-industriais, presente em algumas formulações
pós-modernas, o regionalismo crítico se propõe pensar o particular em
função do universal. Neste sentido, trata-se de um movimento que se opõe
ao crescente domínio da globalização cultural e tecnológica sobre as
diversas formas de manifestação das culturas regionais, preconizando o
cultivo de uma cultura resistente, portadora de identidade (22).

Verifica-se, assim, no desenho urbano, a transição da grade cubista do


urbanismo moderno para o que os geógrafos e arquitetos têm chamado de
o sentido do lugar – formas construídas que sugerem e evocam associações
simbólicas. A preservação histórica passa a ocupar um lugar fundamental
na revitalização das áreas centrais nas políticas urbanas em curso no
mundo inteiro. A ênfase dos projetos recai sobre a preservação das
características do contexto histórico e cultural do lugar através da
revitalização e reciclagem da arquitetura e espaços urbanos
preexistentes.

A arquitetura contextual é definida por Francisco de Gracia, como sendo


“aquela que, sem utilizar os recursos da mímesis superficial nem a
analogia direta, estabelece uma rara simbiose com o contexto”, mediante a
construção de nexos figurativos com o entorno e de critérios definidos
pelas próprias características do lugar, mas com a marca de seu tempo.
Dessa maneira, mesmo que toda intervenção resulte numa modificação
do locus, o que está em questão para a arquitetura contextualista é a
possibilidade de “transferir para o futuro os valores da cidade antiga,
sem renunciar à própria sincronia histórica” (23).

No Brasil, um dos exemplares mais emblemáticos dessa tentativa de


expressão de uma arquitetura do lugar é o Centro de Lazer SESC Fábrica da
Pompéia, projetado por Lina Bo Bardi no final dos anos 70. A antiga
fábrica do final do século XIX foi transformada num centro de produção de
cultura e de lazer mediante algumas intervenções mínimas, acrescentando
um novo significado ao local, ao mesmo tempo em que preserva a memória de
uma atividade que teve presença marcante na vida dessa região. Na
avaliação de Eduardo Subirats, esse projeto - expressão de uma visão
de cultura enquanto convívio e não como espetáculo midiático - manifesta
uma vontade poética de transformar a realidade local à medida que busca
criar um espaço aberto às mais diversas formas de manifestação artística
e cultural da comunidade (24).

Num outro bairro industrial vizinho à Pompéia, a Barra Funda, localiza-se


o monumental conjunto arquitetônico do Memorial da América Latina,
projetado por Niemeyer em 1989, a partir de uma concepção arquitetônica e
urbanística marcadamente abstrata. Como aponta Subirats, o Memorial da
América Latina, embora se apresente na perspectiva de criação de um
espaço simbólico da resistência dos povos latino-americanos, não procura
estabelecer nexos com o entorno existente, comportando-se “como um corpo
estranho que, em duelo desigual, se confronta energicamente com a
paisagem urbana” (25).

O caráter excludente e estetizante das intervenções urbanísticas


contemporâneas

A partir dos anos 80, diversos locais com significados simbólicos e


determinados atributos de urbanidade, tornam-se objeto de intervenções
urbanísticas, passando a ser ocupados, quase que com exclusividade, pelas
classes médias e altas. Esse processo, denominado gentrification pelos
sociólogos norte-americanos, é provocado pela elevação do valor dos
imóveis e aluguéis que, expulsando os antigos moradores dessas áreas,
elimina a diversidade social e cultural e leva à formação de guetos de
elites. Paradoxalmente, a política de preservação dos centros históricos,
bairros e vizinhanças, como forma de resistência às intervenções
modernizantes acaba resultando, na maior parte dos casos, no crescimento
de mecanismos elitistas de apropriação do espaço.

Tomando Los Angeles como paradigma, Mike Davis, numa alusão às reformas
haussmanianas em Paris, assinala o caráter “contra-revolucionário” dos
projetos de revitalização dos centros das cidades norte-americanas.
Referindo-se à reurbanização do centro de Los Angeles, o autor demonstra
que “várias grandes empresas foram convencidas a construir novas sedes na
área do centro da cidade na década de 1960”, após uma “desapropriação
generalizada dos bairros da classe trabalhadora pobre”, configurando um
espaço completamente elitizado e desertificado (26). Na visão de Davis, a
maior parte das intervenções contemporâneas nas áreas centrais das
grandes cidades reflete, cada vez mais, a escalada da especulação
financeira internacional, produzindo apenas enclaves de arranha-
céus/fortalezas ou megaestruturas que incorporam espaços pseudopúblicos e
pseudonaturais. São complexos com pretensões de auto-suficiência,
totalmente isolados por vias expressas e protegidos por fossos e muros de
concreto, com o objetivo de impedir o acesso de indesejáveis populações
oriundas dos bairros de baixa renda, com é o caso do Hotel Bonaventure,
de Portman, construído com o objetivo de alojar minorias abastadas de
trabalhadores assalariados e executivos que optam em morar no centro da
cidade (27).

Outra tendência urbanística que vem se disseminando nessas últimas três


décadas, são as edges cities - cidades criadas à margem das principais
cidades norte-americanas. As edges cities concentram edifícios de
escritórios erguidos em centros empresariais, áreas de
moradia, shoppingse áreas de lazer, de forma que seus moradores não
precisem se deslocar para os centros das cidades. Não se trata, no
entanto, de um fenômeno apenas norte-americano. Também nas metrópoles
brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, vêm proliferando
desde os anos 70, ao lado dos shopping-centers, os “condomínios fechados”
como opção de moradia para as classes mais abastadas. No Rio de Janeiro,
por exemplo, a Barra da Tijuca, com seus inúmeros condomínios
fechados, shoppings e edifícios altíssimos, de padrão arquitetônico
americanizado, é o paraíso dos novos ricos da cidade.

Tanto as edges cities, como os shoppings, os hipermercados, os


condomínios fechados, os centros empresariais e as megaestruturas de
múltiplas funções refletem a tendência atual de fragmentação urbana,
resultante da tentativa de negação da cidade existente e da substituição
dos centros tradicionais, através da configuração de espaços regidos sob
a lógica da especulação imobiliária e da segregação. A visão de uma
cidade sem centro, dividida por muralhas invisíveis, mas claramente
definidas pelas crescentes desigualdades sócio-econômicas, culturais,
étnicas e raciais, é cada vez mais concreta. Em muitas cidades já não se
pode sequer identificar um centro, entendido como “um lugar geográfico
preciso, marcado por monumentos, cruzamentos de certas ruas e avenidas,
teatros, cinemas, restaurantes, confeitarias, ruas de pedestres, anúncios
luminosos cintilando no líquido também luminoso e metálico que banha os
edifícios”, como assinala Beatriz Sarlo. A própria idéia de centro é cada
vez mais vaga: “Los Angeles (essa imensa cidade sem centro) não é tão
incompreensível, como foi nos anos sessenta”. Tomando como referência o
caso de Buenos Aires, Sarlo chama atenção para o fato de que o “processo
de angelização” está se tornando um fenômeno cada vez mais comum nas
cidades latino-americanas: “as distâncias se encurtaram, não só porque a
cidade deixou de crescer, mas porque as pessoas já não se deslocam por
ela de ponta a ponta. Os bairros ricos configuraram seus próprios
centros, mais limpos, mais ordenados, mais bem vigiados, mais iluminados
e com ofertas materiais e simbólicas mais variadas”. O protótipo desse
mundo asséptico e seguro é o shopping center: “simulacro de cidade de
serviços em miniatura, onde todos os extremos do urbano foram liquidados”
(28).

Neste sentido, o shopping talvez seja um modelo miniaturizado da


realização mais plena do capitalismo ou, na acepção de Walter Benjamin,
uma mônada da pós-modernidade. Semelhante, como diz Sarlo, a uma “cápsula
espacial acondicionada pela estética do mercado”, que mantém “uma
relaçãoindiferente com a cidade à sua volta: essa cidade é sempre o
espaço externo, sob a forma de autopista ladeada por favelas, avenida
principal, bairro suburbano ou rua de pedestres. (...) No shopping, não
só se anula o sentido de orientação interna, como desaparece por completo
a própria geografia urbana”, assim como a noção do tempo, a distinção
entre o dia e a noite, e as variações climáticas. A concepção
arquitetônica dos shoppings vem, aliás, adquirindo o status de
referencial paradigmático para as diversas megaestruturas urbanas que
proliferam na paisagem de nossas cidades. Assim como as passagens e
galerias comerciais da Paris do século XIX eram, para Benjamin, o embrião
da cidade moderna do século XX, nos shoppings pode-se antever “um
‘protótipo premonitório do futuro’: shoppings cada vez mais extensos, dos
quais nunca se precise sair, como se fossem uma fábrica flutuante. Já são
assim alguns hotéis-shoppings-spas-centros culturais de Los Angeles e, é
claro, Las Vegas. São aldeias shoppings, museus-shoppings, bibliotecas e
escolas-shoppings, hospitais-shoppings” (29).

Esse mesmo paradigma, elevado a uma dimensão exponencial, está presente


no Maharish São Paulo Tower - uma versão pós-moderna do urbanismo
“arrasa-quarteirão” que um grupo de empresários do setor imobiliário
pretendia erigir no centro de São Paulo. O polêmico caso desse
megaedifício de múltiplas funções - uma gigantesca torre piramidal com
510 metros de altura e 108 andares, que iria aterrissar em pleno Parque
D. Pedro II -, é uma das expressões máximas da tentativa de criação de
uma cidadela intramuros (30). A estimativa era de que em torno de 100 mil
pessoas iriam circular por essa versão indiana da “Torre de Babel”
diariamente. Nele previa-se a instalação de um mix de funções que ia
desde uma área residencial, hotéis, escritórios, comércio, uma faculdade
védica, serviços diversificados, atividades culturais e de lazer, um
grande centro de convenções e exposições, estações de trem, metrô e
ônibus. Seria possível nascer, crescer, estudar, praticar esportes,
trabalhar, adoecer, fazer compras, namorar, casar, procriar e morrer, sem
que precisassem por os pés para fora da “pirâmide”. Felizmente para os
paulistanos, com o término da gestão Pitta, este assustador casulo
futurista foi abortado.

A guisa de conclusão podemos afirmar que, se por um lado, as críticas do


pensamento pós-moderno no que se refere às questões da memória e da
identidade na arquitetura e urbanismo modernistas são bastante legítimas,
por outro, suas soluções de projeto ainda estão muito distantes de
atingir o ambicioso programa emancipatório a que se propôs. A ênfase nas
intervenções pontuais, em muitos casos de caráter meramente cenográfico,
e a supervalorização da fachada dos edifícios, evidencia que tais
soluções ainda são de ordem essencialmente estética e mercadológica,
integradas aos códigos culturais e exigências da sociedade capitalista de
consumo. O que parece ser inegável, portanto, é que a necessidade de se
refundir o funcional e o simbólico nas ambiências urbanas, de forma a
repor as significações que o progresso unidimensional da modernidade
erradicou, continua sendo um dos maiores desafios no campo do urbanismo.

notas

1
Versão revisada do segundo capítulo da tese de doutorado O Lugar do Centro nas
Metrópoles Contemporâneas: O Caso de São Paulo, PUC-SP, 2000.

2
Ver, a esse respeito, AGGIO, Sandra Mara, Cidade e Memória em Walter Benjamimin
revista Caramelo , n◦ 8, São Paulo: FAU-USP, nov./95, pp. 153 – 162.

3
CARVALHO, Maria Alice Rezende de, Quatro Vezes Cidade, Rio de Janeiro: Sette
Letras, 1994, p. 96.

4
ALBANO, C. e WERNECK, N., "Anotações sobre Espaço e Vida Cotidiana" in Espaço &
Debates, n°17, São Paulo: NERU, 1986, pp. 33-43.

5
Na condição de mônada, a passagem aparece para Benjamin como o embrião da
modernidade: síntese da Paris do século XIX, assim como Paris representa a
síntese da modernidade oitocentista. Cf. ROUANET, S. P., "As Passagens de
Paris" in As Razões do Iluminismo, São Paulo: Cia. das Letras, 1987, p.52.

6
BACHELARD, Gaston, A Poética do Espaço, São Paulo: Martins Fontes, 1993, pp.25
e 26.
7
Idem, pp.28, 29 e 31.

8
Idem, pp. 44-45.

9
AUGÉ, Marc, Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade,
Campinas/São Paulo: Papirus, 1994, pp. 63-69.

10
A Carta de Atenas foi o documento resultante do CIAM IV, realizado em 1933,
cujo tema foi A Cidade Funcional. As idéias de Le Corbusier foram hegemônicas
neste Congresso e nortearam as propostas de um modelo de cidade organizada
racionalmente segundo as quatro funções-chave da vida urbana: habitação,
trabalho, circulação e lazer.

11
Neste momento o livro do arquiteto austríaco Camillo Sitte, A Construção da
Cidade segundo seus Princípios Artísticos, do final do século XIX, até então
rechaçado pelo Movimento Moderno como o principal portador de uma visão
urbanística antimoderna, volta a ser valorizado.

12
BERMAN, M., Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade, São
Paulo: Cia. das Letras, 1986.

13
É também de autoria de Moses a via expressa conhecida como Radial Leste, que
rasgou ao meio, no final dos anos 50, os tradicionais bairros operários
paulistanos Brás e Moóca.

14
BERMAN, M., op. cit., p.305.

15
Idem, p.306.

16
O caso de Bolonha é, até hoje, uma referência exemplar entre as várias
experiências de recuperação de áreas centrais. O seu sucesso deve-se,
fundamentalmente, ao fato de a administração da cidade ter-se pautado por
mecanismos de descentralização, não apenas burocrática como também política,
que garantiram a participação da população, organizada em “comissões
urbanísticas de bairro”, durante todo o processo de elaboração e implantação do
plano. Cf. CERVELLATI, P. L. e SCANAVINI, R., Bolonha: politica e metodologia
del restauro nei centri storici, Bolonha: Il Mulino, 1973.

17
VENTURI, Robert, Complejidad y Contradición en la Arquitetura, Barcelona: Ed.
Gustavo Gilli, 1972.

18
Segundo David Harvey, “as peculiaridades do pós-modernismo devem ser vistas
como sintomas e expressões de um dilema novo e historicamente original, dilema
que envolve a nossa inserção como sujeitos individuais num conjunto
multidimensional e complexo de realidades radicalmente descontínuas, cujas
estruturas vão dos espaços ainda sobreviventes da vida privada burguesa ao
descentramento inimaginável do próprio capitalismo global, incluindo tudo o que
há entre eles. Nem mesmo a relatividade einsteiniana nem os múltiplos mundos
subjetivos dos modernistas mais antigos conseguem dar qualquer configuração
adequada a esse processo, que, na experiência vivida, se faz sentir pela
chamada morte do sujeito ou, mais exatamente, pelo descentramento e dispersão
esquizofrênicos e fragmentados deste último...” (HARVEY, David. Condição pós-
moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 8ª ed. São Paulo:
Edições Loyola,1999:274)

19
ROWE, C. e KOETTER, F., Collage city, Cambridge: MIT Press, 1978.

20
ROSSI, Aldo, A Arquitetura da Cidade, São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 185.

21
FRAMPTON, Kenneth, História Crítica de la Arquitetura Moderna, Barcelona: Ed.
G. Gilli, 1981.

22
GRACIA, F. de, Construir en lo Construído. La Arquitetura como Modificacion,
Madrid, 1996, p.310 (T. da A.).

23
SUBIRATS, E., “Arquitetura e poesia: dois exemplos latino-americanos”
in Vanguarda, Mídia, Metrópoles, São Paulo: Studio Nobel, 1993, 73-88.

24
Idem, ibidem.

25
DAVIS, Mike. “O renascimento urbano e o espírito do pós-modernismo” in Kaplan,
Ann. O Mal-Estar no Pós-Modernismo, São Paulo, Ed. Zahar, 1993, pp.106-116.

26
DAVIS, Mike, Cidade de Quartzo, São Paulo: Scritta Ed., 1993.

27
SARLO, B., Cenas da Vida Pós-Moderna, Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, pp.13 a 15.

28
Idem, pp. 17 e 18.

29
ORTEGOSA, Sandra Mara, “A negação da cidade” in revista Opinião PUC-SP, n° 12,
São Paulo: PUC-SP, Nov/99. p.5.

30
HOLSTON, James, A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia, São
Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.316.

sobre o autor

Sandra Mara Ortegosa é arquiteta urbanista e cientista social pela USP, mestre
e doutora em antropologia pela PUC-SP

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