Desde os anos 60, o tema da memória vem merecendo destaque cada vez maior
nos estudos sobre as cidades, numa perspectiva de abordagem que se
contrapõe ao pensamento e prática do Movimento Moderno Internacional,
especialmente no que se refere ao descaso em relação às características
históricas, geográficas e culturais que dão identidade ao lugar. Tal
perspectiva vem reavivando o interesse sobre a obra de alguns pensadores,
entre os quais Walter Benjamin, que privilegiava a leitura do texto
inscrito nas cidades. Para Benjamin, cujo olhar tem-se mostrado uma das
chaves de interpretação mais fecundas sobre a sociedade moderna, a
memória é constituída de impressão, de experiência e sua importância e
significado especial estão no fato de que ela é o que nós retemos e o que
nos dá a nossa dimensão de sentido no mundo (2).
Como ilustra Maria Alice Rezende de Carvalho, “uma praça das grandes
manifestações políticas, uma esquina boêmia, um ponto da praia com seu
velho pier, um Café centenário, um edifício bisonho que parece ter
resistido ao ímpeto destrutivo da moderna linguagem arquitetônica são os
fundamentos dessa cidade análoga”, que se repõe insistentemente, mesmo
que a cidade real se altere (3). Um dos aspectos fundamentais na vida de
uma cidade, portanto, é o conjunto de recordações que dela emergem: a
memória urbana é a realidade que marca nossa própria fugacidade na
história, ao mesmo tempo em que anuncia a possibilidade de transcendermos
nossa temporalidade individual.
Numa crítica ao modelo de habitat das grandes cidades modernas, nas quais
predomina uma paisagem “oniricamente incompleta” de edifícios verticais e
ausência da natureza, Bachelard, reportando-se a Paris, nos diz que lá
“não existem casas. Em caixas superpostas vivem os habitantes da grande
cidade”. E nessas caixas anônimas, identificadas apenas pelo número da
rua e o algarismo do andar, “as peças se amontoam e a tenda de um céu sem
horizontes encerra a cidade inteira”. Acresce-se a isso a “falta de
cosmicidade da casa das grandes cidades. As casas ali já não estão na
natureza. As relações da moradia com o espaço tornam-se artificiais. Tudo
é máquina e a vida íntima foge por todos os lados. ‘As ruas são como
tubos onde os homens são aspirados’(Max Picard)” (8).
Mais contemporaneamente, Marc Augé, em oposição ao conceito
de lugarassociado à tradição antropológica de uma cultura localizada no
tempo e no espaço, emprega a idéia de não-lugares referindo-se aos
espaços destituídos de identidade e história, verdadeiros espaços do
anonimato, resultantes do processo de mundialização que vem conformando o
que ele chama de uma supermodernidade. No cerne desta abordagem, destaca-
se a idéia de que a megalópole segue um princípio de intencionalidade de
descaracterização e assepsia em relação ao passado e aos traços de
identidade local. Referindo-se ao caráter cada vez mais artificial e
museulógico do centro monumental de Paris (onde “mora-se cada vez
menos”), Augé identifica o sinal de uma mudança mais geral na França: “a
relação com a história que povoa nossas paisagens talvez esteja em vias
de estetizar-se e, simultaneamente, dessocializar-se e artificializar-
se”. Comparando o centro de Paris com os das cidades francesas mais
modestas e até das aldeias, ele afirma que nelas “o centro da cidade é um
lugar ativo, realmente. (...) Em intervalos semanais regulares (o domingo
e o dia de feira), o centro ‘se anima’, e é uma reclamação freqüentemente
dirigida às cidades novas, originárias de projetos de urbanismo ao mesmo
tempo tecnicistas e voluntaristas, não oferecerem um equivalente aos
lugares de vida produzidos por uma história mais antiga e lenta, onde os
itinerários singulares se cruzam, onde se trocam palavras e se esquecem
as solidões por um instante, na porta da igreja, da prefeitura, na porta
do café, na padaria: o ritmo meio preguiçoso e a atmosfera propícia à
conversa da manhã de domingo são sempre uma realidade contemporânea da
França provinciana” (9).
Tomando Los Angeles como paradigma, Mike Davis, numa alusão às reformas
haussmanianas em Paris, assinala o caráter “contra-revolucionário” dos
projetos de revitalização dos centros das cidades norte-americanas.
Referindo-se à reurbanização do centro de Los Angeles, o autor demonstra
que “várias grandes empresas foram convencidas a construir novas sedes na
área do centro da cidade na década de 1960”, após uma “desapropriação
generalizada dos bairros da classe trabalhadora pobre”, configurando um
espaço completamente elitizado e desertificado (26). Na visão de Davis, a
maior parte das intervenções contemporâneas nas áreas centrais das
grandes cidades reflete, cada vez mais, a escalada da especulação
financeira internacional, produzindo apenas enclaves de arranha-
céus/fortalezas ou megaestruturas que incorporam espaços pseudopúblicos e
pseudonaturais. São complexos com pretensões de auto-suficiência,
totalmente isolados por vias expressas e protegidos por fossos e muros de
concreto, com o objetivo de impedir o acesso de indesejáveis populações
oriundas dos bairros de baixa renda, com é o caso do Hotel Bonaventure,
de Portman, construído com o objetivo de alojar minorias abastadas de
trabalhadores assalariados e executivos que optam em morar no centro da
cidade (27).
notas
1
Versão revisada do segundo capítulo da tese de doutorado O Lugar do Centro nas
Metrópoles Contemporâneas: O Caso de São Paulo, PUC-SP, 2000.
2
Ver, a esse respeito, AGGIO, Sandra Mara, Cidade e Memória em Walter Benjamimin
revista Caramelo , n◦ 8, São Paulo: FAU-USP, nov./95, pp. 153 – 162.
3
CARVALHO, Maria Alice Rezende de, Quatro Vezes Cidade, Rio de Janeiro: Sette
Letras, 1994, p. 96.
4
ALBANO, C. e WERNECK, N., "Anotações sobre Espaço e Vida Cotidiana" in Espaço &
Debates, n°17, São Paulo: NERU, 1986, pp. 33-43.
5
Na condição de mônada, a passagem aparece para Benjamin como o embrião da
modernidade: síntese da Paris do século XIX, assim como Paris representa a
síntese da modernidade oitocentista. Cf. ROUANET, S. P., "As Passagens de
Paris" in As Razões do Iluminismo, São Paulo: Cia. das Letras, 1987, p.52.
6
BACHELARD, Gaston, A Poética do Espaço, São Paulo: Martins Fontes, 1993, pp.25
e 26.
7
Idem, pp.28, 29 e 31.
8
Idem, pp. 44-45.
9
AUGÉ, Marc, Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade,
Campinas/São Paulo: Papirus, 1994, pp. 63-69.
10
A Carta de Atenas foi o documento resultante do CIAM IV, realizado em 1933,
cujo tema foi A Cidade Funcional. As idéias de Le Corbusier foram hegemônicas
neste Congresso e nortearam as propostas de um modelo de cidade organizada
racionalmente segundo as quatro funções-chave da vida urbana: habitação,
trabalho, circulação e lazer.
11
Neste momento o livro do arquiteto austríaco Camillo Sitte, A Construção da
Cidade segundo seus Princípios Artísticos, do final do século XIX, até então
rechaçado pelo Movimento Moderno como o principal portador de uma visão
urbanística antimoderna, volta a ser valorizado.
12
BERMAN, M., Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade, São
Paulo: Cia. das Letras, 1986.
13
É também de autoria de Moses a via expressa conhecida como Radial Leste, que
rasgou ao meio, no final dos anos 50, os tradicionais bairros operários
paulistanos Brás e Moóca.
14
BERMAN, M., op. cit., p.305.
15
Idem, p.306.
16
O caso de Bolonha é, até hoje, uma referência exemplar entre as várias
experiências de recuperação de áreas centrais. O seu sucesso deve-se,
fundamentalmente, ao fato de a administração da cidade ter-se pautado por
mecanismos de descentralização, não apenas burocrática como também política,
que garantiram a participação da população, organizada em “comissões
urbanísticas de bairro”, durante todo o processo de elaboração e implantação do
plano. Cf. CERVELLATI, P. L. e SCANAVINI, R., Bolonha: politica e metodologia
del restauro nei centri storici, Bolonha: Il Mulino, 1973.
17
VENTURI, Robert, Complejidad y Contradición en la Arquitetura, Barcelona: Ed.
Gustavo Gilli, 1972.
18
Segundo David Harvey, “as peculiaridades do pós-modernismo devem ser vistas
como sintomas e expressões de um dilema novo e historicamente original, dilema
que envolve a nossa inserção como sujeitos individuais num conjunto
multidimensional e complexo de realidades radicalmente descontínuas, cujas
estruturas vão dos espaços ainda sobreviventes da vida privada burguesa ao
descentramento inimaginável do próprio capitalismo global, incluindo tudo o que
há entre eles. Nem mesmo a relatividade einsteiniana nem os múltiplos mundos
subjetivos dos modernistas mais antigos conseguem dar qualquer configuração
adequada a esse processo, que, na experiência vivida, se faz sentir pela
chamada morte do sujeito ou, mais exatamente, pelo descentramento e dispersão
esquizofrênicos e fragmentados deste último...” (HARVEY, David. Condição pós-
moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 8ª ed. São Paulo:
Edições Loyola,1999:274)
19
ROWE, C. e KOETTER, F., Collage city, Cambridge: MIT Press, 1978.
20
ROSSI, Aldo, A Arquitetura da Cidade, São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 185.
21
FRAMPTON, Kenneth, História Crítica de la Arquitetura Moderna, Barcelona: Ed.
G. Gilli, 1981.
22
GRACIA, F. de, Construir en lo Construído. La Arquitetura como Modificacion,
Madrid, 1996, p.310 (T. da A.).
23
SUBIRATS, E., “Arquitetura e poesia: dois exemplos latino-americanos”
in Vanguarda, Mídia, Metrópoles, São Paulo: Studio Nobel, 1993, 73-88.
24
Idem, ibidem.
25
DAVIS, Mike. “O renascimento urbano e o espírito do pós-modernismo” in Kaplan,
Ann. O Mal-Estar no Pós-Modernismo, São Paulo, Ed. Zahar, 1993, pp.106-116.
26
DAVIS, Mike, Cidade de Quartzo, São Paulo: Scritta Ed., 1993.
27
SARLO, B., Cenas da Vida Pós-Moderna, Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, pp.13 a 15.
28
Idem, pp. 17 e 18.
29
ORTEGOSA, Sandra Mara, “A negação da cidade” in revista Opinião PUC-SP, n° 12,
São Paulo: PUC-SP, Nov/99. p.5.
30
HOLSTON, James, A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia, São
Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.316.
sobre o autor
Sandra Mara Ortegosa é arquiteta urbanista e cientista social pela USP, mestre
e doutora em antropologia pela PUC-SP