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INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

ANA PAULA BARCELOS RIBEIRO DA SILVA

MAX FLEIUSS E RICARDO LEVENE:


DIÁLOGOS SOBRE O
IBERO-AMERICANISMO E A
ESCRITA DA HISTÓRIA NO BRASIL E
NA ARGENTINA

SILVA, Ana Paula Barcelos Ribeiro da


MAX FLEIUSS E RICARDO LEVENE:
DIÁLOGOS SOBRE O IBERO-AMERICANISMO E A
ESCRITA DA HISTÓRIA NO BRASIL E NA ARGENTINA
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 173(454): 209-236, jan./mar. 2012

Rio de Janeiro
jan./mar. 2012
Max Fleiuss e Ricardo Levene: Diálogos sobre
o Ibero-americanismo e a Escrita da História no Brasil e na Argentina
209

Max Fleiuss e Ricardo Levene: Diálogos sobre o


Ibero-americanismo e a Escrita da História no
Brasil e na Argentina
Max Fleiuss and Ricardo Levene: Dialogs on Iberian
Americanism and History writings in Brazil and in
Argentina
Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva 1

Resumo: Abstract:
Neste artigo analisamos o desenvolvimento The objective of this article is to analyze the
do ibero-americanismo e da integração entre development of Iberian Americanism and the
Brasil e Argentina no início do século XX por integration between Brazil and Argentina in the
historiadores ligados ao Instituto Histórico e early Twentieth Century, by historians of the
Geográfico Brasileiro e à Junta de Historia y Brazilian Historic and Geographic Institute and
Numismática Americana em Buenos Aires. Par- the Junta de Historia y Numismatica Americana
timos das correspondências trocadas entre dois in Buenos Aires. The starting point will be the
de seus principais representantes, Max Fleiuss e correspondence between their foremost repre-
Ricardo Levene, durante as décadas de 1920 e sentatives, Max Fleiuss and Ricardo Levene,
1940, a fim de observar como a escrita da his- over the period 1920s – 1940s. The purpose is
tória se tornou um ponto de reflexão conjunto to observe how history writings became an issue
gerando consequências práticas para a transfor- of joint reflection, generating practical conse-
mação do presente e a projeção do futuro. Por quences in transforming the present and project-
meio de diálogos intelectuais e de um processo ing the future. These intellectual dialogues, and
de circulação cultural e de ideias foi promovida a process of cultural and ideological dissemina-
a revisão e a reinterpretação da história destes tion, helped promote the revision and historical
países na busca por alternativas que rompessem reinterpretation of both countries, in the search
com a desqualificação herdada do passado colo- for alternatives to escape the disqualification in-
nial. Deste processo de produção dialógica do herited from their colonial past. The dialogues
conhecimento histórico surgem projetos cultu- on historical knowledge produced interesting
rais e políticos interessantes não apenas para as cultural and political projects, not only for the
instituições históricas em questão, mas também historical institutions involved, but for the Bra-
para os governos brasileiro e argentino. Dentre zilian and Argentinian governments as well. A
os aspectos valorizados por esta revisão histó- new, positive, vision of the Iberian colonialism
rica está a releitura positiva do colonialismo resulting in the re-approach with former me-
ibérico, o que resulta na reaproximação com as tropolis, Portugal and Spain, was to come out of
antigas metrópoles, Portugal e Espanha. Pelas this historical revision. Through the letters from
cartas de Fleiuss e Levene, vemos como o inter- Fleiuss and Levene, we see how the interchange
câmbio foi visto naquele período como forma de was then viewed as a rupture from the isolation
ruptura com o isolamento e o desconhecimento and unawareness that affected countries from
que atingiam os países ibero-americanos. Iberian America.
Palavras-chave: Max Fleiuss; Ricardo Leve- Keywords: Max Fleiuss; Ricardo Levene; In-
ne; Integração; Ibero-americanismo; Escrita da tegration; Iberian Americanism; History writ-
História. ings.

1 – Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: anapau-


labarcelos@gmail.com

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Nas primeiras décadas do século XX a história assumiu importante


papel na integração ibero-americana. Por meio de iniciativas, sobretudo
de historiadores, políticos e intelectuais brasileiros e argentinos, foram
desenvolvidos diálogos que a tomavam como objeto de reflexão e instru-
mento de ação sobre o presente e o futuro. Isto em um período de profis-
sionalização e legitimação do campo historiográfico em ambos os países.
Estes diálogos envolveram os rumos da escrita da história no período e as
relações de alteridade centrais na ruptura com a desqualificação de países
marcados pelo passado colonial e pela miscigenação. Para Reinhart Ko-
selleck2, em meio a expectativas e prognósticos de futuro, é possível que
presente, passado e futuro se encontrem, gerando, assim, uma relação de
reciprocidade entre estas esferas. Utilizando-o como inspiração teórica,
podemos dizer que no contexto de guerras e mudanças políticas e sociais
da primeira metade do século XX, no Brasil e na Argentina, a história
foi relida e reinterpretada como forma de criar alternativas aos dilemas
presentes. Este período trouxe conflitos e desafios diante dos quais a es-
crita da história foi percebida como pacificadora e conciliadora, propondo
interpretações do passado com efeitos concretos e subjetivos na compre-
ensão do presente e na projeção do futuro. É então que ocorrem os pri-
meiros congressos de história nacional e da América, que é desenvolvido
o próprio campo da história da América e que são realizados empreendi-
mentos de caráter integracionista que tinham como objetivo a revisão e o
conhecimento mútuo da história dos países ibero-americanos.

Historiadores brasileiros e argentinos assumiram, em larga medi-


da, a liderança destes projetos de releitura da história, concretizando-os
através da troca de livros e publicações e do intercâmbio cultural e in-
telectual que visava aproximar professores, pesquisadores e instituições
históricas. Aprofundar-se não apenas no estudo do próprio passado, mas
também na trajetória do país vizinho, além de fortalecer a nacionalida-
de, integraria estes países com histórias próximas, mas que demandavam
maior conhecimento mútuo. Para muitos historiadores e intelectuais da
2 – KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos his-
tóricos. Tradução: Wilma Patrícia Maas; Carlos Almeida Pereira. RJ: Contraponto: PUC-
Rio, 2006. 368p.

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o Ibero-americanismo e a Escrita da História no Brasil e na Argentina

época, a falta de diálogo mantinha a América Ibérica isolada e distante.


Fortalecer a integração ibero-americana seria um caminho possível para
a ruptura com o isolamento interno, o fortalecimento na busca por reco-
nhecimento e legitimidade e a construção de alternativas ao conflituado
contexto europeu. Portanto, identificamos no período em questão uma
proposta integracionista, ligada aos interesses dominantes, que tinha na
escrita da história uma das suas principais preocupações. Proposta que
gerou alguns frutos, mas foi praticamente apagada após a Segunda Gran-
de Guerra, com o imperialismo norte-americano e as sucessivas ditaduras
na região, e somente voltou a ganhar força na década de 1990 com proje-
tos como o Mercosul e a Unasul.

Diante da necessidade de possibilitar e legitimar estes projetos in-


tegracionistas, a história passou por um processo de ressignificação no
Brasil e na Argentina, sobretudo entre a década de 1910 e o final da déca-
da de 1940. Neste processo, foi projetada uma integração baseada na cor-
dialidade, na solidariedade e na reciprocidade que deveria ser expandida
para os demais países da América Ibérica. Possuindo características de
desqualificação em razão do colonialismo, era preciso conferir contornos
positivos à própria história, valorizá-la, qualificá-la de modo a fazer as
“futuras gerações” conhecerem-na e dela se orgulharem. Rever a histó-
ria era uma medida necessária para a “educação das futuras gerações”3,
expressão utilizada pelo jornal brasileiro A Nação em 1933, por ocasião
da assinatura do Convênio de Revisão dos Textos de Ensino de História e
Geografia4 entre os governos de Getúlio Vargas e Agustín Justo. Era pre-
ciso ainda situar a história ibero-americana no mundo, não como inferior
ou secundária, mas como parte da história europeia, já que a região fora

3 – Callen personas cuando hablen pueblos. A Nação, 11 de outubro de 1933. Conferên-


cias, Congressos e Acordos Internacionais. Acervo: Arquivo Histórico do Itamaraty.
4 – O convênio propunha a revisão dos textos de ensino de História e Geografia para
que fossem retirados quaisquer aspectos que pudessem estimular conflitos entre os países
ibero-americanos. Na revisão deveriam ser respeitados os princípios da generalidade, da
cordialidade, da solidariedade, do idealismo, da americanidade e da veracidade. Embora
iniciado pelos governos brasileiro e argentino, o convênio ganhou projeção ibero-ameri-
cana de modo que em 1945 Bolívia, Chile, Peru, Colômbia, Paraguai, Uruguai e Repúbli-
ca Dominicana já haviam aderido ao empreendimento.

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colonizada durante as expansões dos séculos XV e XVI. Assim, os ibero-


americanos pertenceriam a uma matriz ibérica, seriam parte direta da his-
tória da Europa, o que é uma forma de dizer que somos também europeus,
herdeiros diretos da “civilização” europeia. Visão que interessou a muitos
historiadores, em especial aqueles ligados ao pensamento católico-liberal
ou conservador.

Através desta visão seria possível construir uma alternativa à des-


qualificação que dificultava a conquista de reconhecimento e legitimida-
de pelos países ibero-americanos. Afinal, como lembra Tzvetan Todorov5,
a legitimidade do Nós é conquistada a partir da relação com o Outro que
nos avalia. É necessário construir uma autoimagem favorável diante de
nós mesmos e do grupo no qual nos inserimos. Esta demanda por auto-
qualificação favoreceu a reaproximação com as antigas metrópoles, Por-
tugal e Espanha, em oposição ao afastamento que caracterizou o período
pós-independência. Daí a ampliação dos diálogos entre ex-colônias – que
tentavam se aproximar entre si mesmas – e ex-metrópoles de modo a res-
saltar as matrizes ibéricas e católicas da região. A ênfase nestas matrizes
europeias e no catolicismo suavizaria as características desqualificado-
ras, promoveria a unidade e combateria a expansão do protestantismo
norte-americano na região. Configura-se, portanto, um processo de cir-
culação cultural e de ideias, tal como apontado por Carlo Ginzburg6, que
envolve Brasil, Argentina e suas ex-metrópoles, produzindo efeitos inte-
gracionistas que alcançam o próprio campo historiográfico. A escrita da

5 – TODOROV, Tzvetan. Nous et les autres. La réflexion française sur la diversité hu-
maine. Paris: Éditions du Seuil, 1989, 538p. Do mesmo autor, ver: A vida em comum: En-
saio de antropologia geral. Tradução: Denise Bottmann; Eleonora Bottmann. Campinas:
Papirus, 1996, 175p.
6 – GINZBURG, Carlo. História da Arte Italiana. In: GINZBURG, C.; CASTELNUO-
VO, E. e PONI, C. (org). A Micro-história e outros ensaios. Tradução: Antonio Narino.
SP: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1989, pp. 5-93. Para uma discussão metodológica
sobre circulação cultural e de ideias a partir da rede de sociabilidade de Joaquim Nabuco
e dos historiadores Ricardo Levene, Max Fleiuss, Rafael Altamira e Fidelino de Figuei-
redo, ver: NEDER, Gizlene e BARCELOS, Ana Paula. Intelectuais, circulação de ideias
e apropriação cultural. Anotações para uma discussão metodológica. Passagens. Revista
Internacional de História Política e Cultura Jurídica. V. 1, n. 1, janeiro-julho de 2009, pp.
29-54.

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o Ibero-americanismo e a Escrita da História no Brasil e na Argentina

história ganha, então, novos sentidos a partir da produção dialógica do


conhecimento.

Falamos em integração ibero-americana, e não latino-americana, a


fim de enfatizar estes objetivos de reaproximação entre antigas colônias
e metrópoles. Além disso, adotamos o termo sob inspiração de Richard
Morse, para “realçar a herança ideológica e institucional que o Novo
Mundo recebeu das nações que lhe deram origem”7. Referimo-nos, as-
sim, às Américas que experimentaram o colonialismo português e espa-
nhol. Ressignificado ao longo do tempo, no final do século XIX e início
do XX, o conceito de América Latina representava atraso, catolicismo e
conservadorismo clerical. Segundo João Feres Jr.8, seu desenvolvimento
se deu em um contexto de afirmação do imperialismo norte-americano.
Daí o olhar desqualificador em torno da região marcada pelo colonialis-
mo ibérico. Se hoje o conceito de América Latina nos remete à esquerda
política e às discussões sobre autonomia da região é porque no segundo
pós-guerra, como apontam Gizlene Neder e Gisálio Cerqueira Filho9, so-
freu um deslizamento empreendido, em especial, pelo campo literário.
Por isto, ao tratarmos das propostas integracionistas desenvolvidas pe-
los historiadores que trabalhamos, utilizamos o termo América Ibérica
ou Ibero-América, apropriado pelos interesses dominantes como forma
de qualificar seus países a partir de um estreito vínculo, reconstruído e
revalorizado pela escrita da história, com Portugal e Espanha. Era preciso
obter autonomia, mas sem esquecer as raízes históricas que lhes conferi-
riam reconhecimento e legitimidade.

Estas informações nos permitem melhor compreender os diálogos


desenvolvidos pelos sujeitos históricos a serem analisados neste artigo.
Diálogos que, tendo como eixo central a escrita da história, contribuí-

7 – MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. Tradu-


ção: Paulo Neves. SP: Companhia das Letras, 1988, 190 p., p. 14.
8 – FERES JR., João. A história do conceito de ‘Latin America’ nos Estados Unidos.
Bauru/SP: EDUSC, 2005. 317p.
9 – NEDER, Gizlene e CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Sobre o conceito de América La-
tina: Uma proposta para repercutir nos festejos do bicentenário. Pilquen. Sección Ciencias
Sociales, Dossier Bicentenario, Año XII, n. 12, 2010, pp. 1-7.

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ram para a aproximação entre Brasil e Argentina e, a partir daí, para a


integração ibero-americana. Por meio da troca de correspondências, Max
Fleiuss e Ricardo Levene planejaram viagens ao país vizinho, organiza-
ram congressos, divulgaram as atividades das instituições históricas que
representavam e defenderam a reaproximação entre seus países e deles
com as antigas metrópoles. Atuaram diretamente no processo de inte-
gração ao qual nos referimos de modo a assumirem por várias décadas,
principalmente entre 1920 e o final dos anos 1940, a liderança em pro-
jetos e empreendimentos com este objetivo. Como membros do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro e da Junta de Historia y Numismática
Americana organizaram os Congressos de História da América de 1922,
no Rio de Janeiro, e de 1937, em Buenos Aires, e participaram da Revisão
dos Textos de Ensino de História e Geografia, em 1933, e da formação das
Bibliotecas de Autores Brasileiros traduzidos ao Castelhano e de Autores
Argentinos traduzidos ao Português10, em 1937 e 1938, dentre outras ini-
ciativas de aproximação intelectual.

Max Fleiuss foi secretário perpétuo do IHGB e juntamente com Ben-


jamin Franklin de Ramiz Galvão e Afonso Celso de Assis Figueiredo li-
derou e renovou o Instituto entre as décadas de 1910 e 1930, sem perder
os vínculos com o passado e a tradição. Formavam o que Lúcia Gui-
marães chama “a trindade do Silogeu”11. Nela Fleiuss era considerado o
secretário dedicado e assíduo que atuava como “uma espécie de ponto de
intercessão”12 entre monarquistas e republicanos de forma a equilibrar os
conflitos internos. Ricardo Levene, por sua vez, foi membro da Junta de

10 – A Biblioteca de Autores Brasileiros traduzidos ao Castelhano teve suas bases de-


finidas na visita de Levene ao Brasil entre julho e agosto de 1936, sendo iniciada logo
no ano seguinte. Com financiamento do governo argentino, o empreendimento acabou
influenciando o Itamaraty na criação da Biblioteca de Autores Argentinos traduzidos ao
Português a partir de 1938. As obras traduzidas teriam finalidade pacifista e seriam distri-
buídas entre bibliotecas públicas e professores argentinos de ensino primário, secundário
e universitário. Assim, alcançariam projeção por toda a América Ibérica e fariam parte da
formação de crianças e jovens. Seus objetivos, portanto, situavam-se na construção de um
futuro pacífico na região.
11 – GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto His-
tórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). RJ: Museu da República, 2007, 248p., p. 59.
12 – Ibidem, p. 49.

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Buenos Aires desde 1915 até sua morte, em 1959, além de seu presidente
entre 1927 e 1931 e 1934 e 1938. Foi também um dos principais líderes
da Nova Escola Histórica, movimento de renovação historiográfica de
grande importância na profissionalização do campo na Argentina. Segun-
do Fernando Devoto, seus princípios foram baseados no “renascimento
dos estudos históricos a partir das regras da crítica histórica e das disci-
plinas auxiliares, nas que [Bartolomé] Mitre haveria sido o precursor”13.
Preocupação vinculada à necessidade de legitimação do historiador pro-
fissional no país e que resultará em uma geração seguinte de historiadores
pautados na pesquisa com fontes documentais e no rigor metodológico.
O movimento defendia ainda uma visão nacionalista e americanista de
história interessante à integração ibero-americana da qual tratamos. No
Brasil, Fleiuss também se via inserido neste contexto de profissionaliza-
ção e busca por legitimação do campo. Como afirma Ângela de Castro
Gomes14, no início do século XX, os historiadores contavam ainda com
pouca produção e o pequeno respaldo do IHGB que então se expandia
pelo país. Da mesma forma que na Argentina, a autora lembra que o histo-
riador passava a ser identificado pela pesquisa documental, como aquele
que assim produz um trabalho diferenciado da filosofia e da literatura. O
IHGB, ao mesmo tempo em que tentava se adaptar ao regime republica-
no, teve importante atuação neste período de profissionalização.

Tanto o Instituto quando a Junta, que foram desde suas criações (do
IHGB em 1838 e da Junta em 1893) diretamente vinculados ao poder
político, tiveram estas relações acentuadas a partir da década de 1930

13 – DEVOTO, Fernando. Introducción. In: DEVOTO, Fernando (org.). La historiografía


argentina en el siglo XX. Buenos Aires: Editores de América Latina, 2006, 378p., p. 7. No
original: “[...] renacimiento de los estudios históricos a partir de las reglas de la crítica
histórica y de las disciplinas auxiliares, en las que Mitre habría sido el precursor”. No
trecho citado Devoto se refere ao historiador argentino Bartolomé Mitre. Fundador da
Junta em 1893, Mitre defendia desde a segunda metade do século XIX a necessidade
de aproximação entre Brasil e Argentina. Sua perspectiva foi relida por Ricardo Levene
no período trabalhado neste artigo como forma de legitimar suas ações integracionistas.
Lembramos apenas que ele não apresentava a visão simpática ao colonialismo espanhol
defendida posteriormente por Levene. Precursor do campo historiográfico na Argentina, o
pensamento de Mitre foi fundamental em sua fase de profissionalização.
14 – GOMES, Ângela de Castro. História e Historiadores. RJ: FGV, 1996, 220p.

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com o final do governo Uriburu na Argentina e o início do período Vargas


no Brasil. Escrever a história nacional conferindo-lhe caráter de verdade
a partir da pesquisa documental era exigência obrigatória para o esta-
belecimento e a manutenção do prestígio intelectual destas instituições
diante das mudanças políticas. O mecenato de Vargas ao IHGB, apontado
por Lúcia Guimarães15, e a própria oficialização da Junta de Buenos Ai-
res como Academia Nacional de la Historia em 1938 através de decre-
to assinado pelo Presidente Justo, inscreviam-se em um contexto de uso
da história como legitimação das ações governamentais e de busca pela
formação da unidade e da consciência nacional em sociedades marcadas
pela imigração e pela multiplicidade étnica. No caso argentino, Alejandro
Cattaruzza16 lembra que, para os historiadores desta geração, sobretudo
– mas não apenas – para a Nova Escola Histórica, a profissionalização, a
objetividade e a especialização seriam as bases de uma produção histórica
relacionada aos interesses estatais, principalmente na década de 1930, e
favoreceriam o conhecimento da nação e o sentimento de pertencimento
a ela. Deste modo, a história possuía um amplo espaço de atuação que
produzia efeitos diretos na sociedade. Processo iniciado desde 1910 com
o centenário da independência argentina, acontecimento no qual a Junta
esteve bastante envolvida. Foi representando estas instituições – o IHGB
e a Junta –, em um período crucial para o campo historiográfico em seus
países, que Fleiuss e Levene se corresponderam, em especial a partir da
organização do Primeiro Congresso de História da América em 1922.

No acervo do IHGB encontramos três pastas apenas de cartas troca-


das por Fleiuss e Levene entre as décadas de 1920 e 1940. A maior parte
delas refere-se aos Congressos de História da América de 1922 e 1937 e
às atividades do Instituto e da Junta. Por meio delas podemos observar
cerca de 20 anos de um relacionamento pessoal e intelectual que explicita
o investimento de historiadores do período no desenvolvimento de um
campo ainda em formação. Como um evento de grande importância para
15 – GUIMARÃES, Da Escola Palatina ao Silogeu..., op. cit.
16 – CATTARUZZA, Alejandro. Por una historia de la historia. In: CATTARUZZA, Ale-
jandro e EUJANIAN, Alejandro. Políticas de la historia. Argentina 1860-1960. Buenos
Aires: Alianza, 2003, 270p.

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o campo, o Congresso de 1922 exigiu empenho destes historiadores mais


de um ano antes de sua realização. Em abril de 1921 Levene já escrevia
a Fleiuss agradecendo e aceitando o convite para compor sua comissão
organizadora. Na carta se refere ao Congresso como “de grande signifi-
cação para as relações intelectuais dos povos do Novo Mundo”17. A par-
tir daí Levene, em nome da Junta (da qual se tornaria presidente apenas
em 1927), se envolveu intensamente com a intelectualidade brasileira na
concretização deste projeto de aproximação intelectual. Provavelmente a
visibilidade internacional então adquirida contribuiria anos depois para a
conquista do mais alto posto da Junta de Historia y Numismática Ameri-
cana. Em agosto de 1922, Levene escrevia a Fleiuss para comunicar sua
chegada ao Rio de Janeiro no dia 5 de setembro. Na carta comunica ainda
a nomeação de Fleiuss, Ramiz Galvão, Afonso Celso, Alfredo Bernardes
da Silva e Basílio de Magalhães, todos membros do IHGB, como sócios
correspondentes da Junta designados em sessão especial. Ação estimula-
da pelo clima intelectual que envolvia a organização do Congresso. Co-
menta ainda o entusiasmo e a adesão da Junta ao evento, descrito como
obra “fecunda e sólida” a ser realizada como celebração do centenário da
independência brasileira. Em suas palavras:
A Junta de História e Numismática, na sessão em que se nomeiam
os sócios correspondentes no Brasil, expressa sua mais entusiasma-
da adesão à obra, fecunda e sólida, do ilustre Instituto Histórico e
Geográfico e formula votos pelo êxito do grande Congresso de His-
tória Americana que se realizará por ocasião do centenário do país
irmão.18

Após a realização do Congresso em setembro de 1922, as cartas


prosseguem com referências a ele e aos resultados positivos para a escrita
17 – Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 18 de abril de 1921. Acervo:
IHGB. No original: “[...] de gran significación para las relaciones intelectuales de los
pueblos del Nuevo Mundo”.
18 – Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 21 de agosto de 1922. Acervo:
IHGB. No original: “La Junta de Historia y Numismática, en la sesión en que se nombran
a los socios correspondientes en Brasil, expresa su más entusiasta adhesión a la obra,
fecunda y sólida, del ilustre Instituto Histórico y Geográfico y formula votos por el éxito
del gran Congreso de Historia Americana que se realizará con motivo del centenario del
pais hermano.”

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Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva

da história na Ibero-América. No dia 22 de outubro, Levene agradece a


acolhida calorosa que encontrou no Rio de Janeiro e as doações de livros
feitas por Fleiuss para a Universidade de La Plata, diz ainda esperar o
colega brasileiro em Buenos Aires. Dele se despede como “seu invariável
amigo”19. No mês seguinte, Levene escreve outra carta na qual lamenta
que por uma enfermidade Fleiuss não tenha podido visitar Buenos Aires
e lembra que ele era muito esperado na Junta e na Universidade de La
Plata. Neste período de cerca de dois meses após o Congresso de História
da América, Fleiuss já havia conseguido a aprovação, dentre os mem-
bros do IHGB, do nome de Levene para sócio correspondente da institui-
ção. Assim, o remetente aproveita a ocasião para agradecer a nomeação
e sugerir os nomes de mais dois historiadores argentinos para sócios do
Instituto: Martiniano Leguizamón e Luís María Torres que, segundo Le-
vene, “são dois altos expoentes do estado atual dos estudos históricos na
Argentina”20. Sobre o Instituto, Levene afirma nunca esquecê-lo “porque
nessa Casa passei momentos gratíssimos ao meu espírito”21.

As cartas continuam nos anos seguintes evidenciando a troca de li-


vros, artigos de periódicos, edições da revista do IHGB e do Boletim da
Junta e outras publicações em geral. Em outubro de 1924, por exemplo,
Levene agradece o envio por Fleiuss do livro Páginas de História de
autoria do historiador brasileiro. Para Levene, nele Fleiuss “revela seu in-
cessante e fecundo trabalho intelectual”22. Complementa dizendo: “Neste
novo livro não apenas aparece a garra do historiador, mas também a do
pensador.”23 Um ano depois, Levene também envia uma de suas obras a
Fleiuss. Trata-se de “História do Direito Indiano”, trabalho até hoje con-
19 – Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 22 de outubro de 1922. Acer-
vo: IHGB. No original: “[...] su invariable amigo”.
20 – Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 20 de novembro de 1922.
Acervo: IHGB. No original: “[...] son dos altos exponentes del estado actual de los estu-
dios históricos en la Argentina”.
21 – Ibidem. No original: “[...] porque en esa Casa he pasado momentos gratísimos para
mi espíritu”.
22 – Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 11 de outubro de 1924. Acer-
vo: IHGB. No original: “[...] revela su incesante y fecunda labor intelectual”.
23 – Ibidem. No original: “En este nuevo libro no solo aparece la garra del historiador,
sino la del pensador también”.

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o Ibero-americanismo e a Escrita da História no Brasil e na Argentina

siderado referência para o campo da história do direito – inaugurado por


Levene – na Argentina. Diz esperar ansiosamente a avaliação de Levene
sobre o trabalho24. Ainda no mesmo ano, Levene elogia a “História Ad-
ministrativa do Brasil” que recebera um tempo antes. Seus comentários
sobre a obra são bastante elogiosos:
Considero que sua obra é uma das mais vigorosas constituições para
o estudo da história civil da América. Seu amplo critério de pensador
que examinou os antecedentes constitucionais e políticos do Brasil, é
posto em evidência neste livro admirável por sua forma e fundo.25

Na mesma carta diz também ter recebido o exemplar da revista do


IHGB sobre o Congresso de História da América, afirmando ser a publi-
cação fruto da perseverança de Fleiuss no valor da cultura “como alto ide-
al que deve solidarizar cada vez mais os povos irmãos da América”26. A
esta carta, Fleiuss responde no dia 31 do mesmo mês. De forma bastante
afetuosa, Fleiuss diz a Levene: “A sua carta de 22 de outubro expirante,
hontem recebida, é, como as anteriores, prova da sua benevolencia, fruc-
to, por certo, de uma amizade que muito me honra e á qual retribúo de
inteiro coração.”27 Comenta que o exemplar de “História Administrativa
do Brasil” foi enviado a Levene pelo editor a seu pedido e complementa
dizendo que “nem era possivel esquecer, ao distribuil-a quem, por seus
meritos intellectuaes e affectivos, tanto vale para mim”28. Envia recomen-
dações à esposa de Levene e a colegas argentinos membros da Junta de
Historia y Numismática Americana, como o historiador conservador ca-
tólico Rómulo Carbia, um dos seus mais conhecidos representantes.

24 – Ver: Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 31 de março de 1925.
Acervo: IHGB.
25 – Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 22 de outubro de 1925. Acer-
vo: IHGB. No original: “Considero que su obra es una de las más vigorosas constitucio-
nes para el estudio de la historia civil de América. Su amplio criterio de pensador que ha
examinado los antecedentes constitucionales y políticos del Brasil, se pone en evidencia
en este libro admirable por su forma y fondo”.
26 – Ibidem. No original: “[...] como alto ideal que debe solidarizar cada vez más los
pueblos hermanos de América”.
27 – Carta de Max Fleiuss a Ricardo Levene (cópia). Rio de Janeiro, 31 de outubro de
1925. Acervo: IHGB.
28 – Ibidem.

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Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva

A troca de correspondências entre os historiadores permanece no


restante da década de 1920 e durante a década de 1930. Em 1934 o as-
sunto em questão é a organização de uma bibliografia sobre a História
da América que deveria ser divulgada entre as instituições históricas e
as bibliotecas brasileiras e argentinas (sendo expandida posteriormente
para outros países ibero-americanos). O projeto é enviado a Fleiuss por
Levene em janeiro deste ano com a ideia inicial de criar uma Seção Ibero-
americana na Biblioteca Central da Universidade de La Plata. Levene
solicita a contribuição de Fleiuss “com sua alta investidura e seus pres-
tígios pessoais”29 para o sucesso da iniciativa. Uma destas contribuições
seria a divulgação do empreendimento no Brasil. Levene fala também da
importância da troca de publicações entre os países: “Desejamos estabe-
lecer relações estáveis e regulares com todas as instituições científicas e
literárias, publicações oficiais e não oficiais e autores do seu país.”30 Em
seguida, apresenta importantes considerações sobre o ibero-americanis-
mo que, segundo ele, precisava ser uma “realidade viva” para romper
com o isolamento intelectual dos países do continente. Defende, assim,
um diálogo mútuo e recíproco no qual os livros e a história exerceriam
papel central:
Aspiramos, na medida de nossa força, que o ibero-americanismo não
seja uma frase retórica, mas sim uma realidade viva. Urge romper o
isolamento intelectual em que vivem a maioria dos países do con-
tinente e iniciar uma era de mútua e fecunda penetração espiritual.
A este propósito responde a iniciativa da Universidade de La Plata.
Almejamos converter a Biblioteca Central em um lugar do ibero-
americanismo, onde não falte nenhuma manifestação elevada de suas
letras e ciências.31

29 – Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 8 de janeiro de 1934. Acervo:
IHGB. No original: “[...] con su alta investidura y sus prestigios personales”.
30 – Ibidem. No original: “Deseamos establecer relaciones estables y regulares con todas
las instituciones científicas y literarias, publicaciones oficiales y no oficiales y autores de
su país”.
31 – Ibidem. No original: “Aspiramos, en la medida de nuestra fuerza, que el iberoameri-
canismo no sea una frase retórica sino una realidad viva. Urge romper el aislamiento in-
telectual en que viven la mayoría de los países del continente e iniciar una era de mutua y
fecunda penetración espiritual. A este propósito responde la iniciativa de la Universidad
de La Plata. Anhelamos convertir a la Biblioteca Central en un logar del iberoamericano,

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Max Fleiuss e Ricardo Levene: Diálogos sobre
o Ibero-americanismo e a Escrita da História no Brasil e na Argentina

Ao pedido de contribuição de Levene, Fleiuss responde no dia 19 de


janeiro de 1934 dizendo que já se empenha nesta ideia há alguns anos,
especialmente após o Congresso de História da América de 1922. Chega
a reivindicar para si a iniciativa quando a partir deste ano o IHGB dirigira
aos ministros da Instrução Pública de todos os países ibero-americanos a
sugestão do estabelecimento de uma bibliografia americana “no intuito
de ampliar tanto quanto possivel o conhecimento reciproco dos povos
americanos [...]”32. Ao apelo do IHGB, segundo ele fruto da sua sugestão,
teriam atendido vários governos ibero-americanos. Agora, a contribuição
da Universidade de La Plata seria, em sua opinião, “um dos mais podero-
sos elementos”33 para a formação dessa bibliografia geral que o Instituto
almejava há mais de 10 anos. Assim, garante o apoio incondicional do
IHGB ao projeto. Todo este investimento seria relevante e necessário,
porque “do conjunto de tão nobres esforços, o iberoamericanismo deixará
de ser uma phrase rhetorica, cristalizando-se numa bella realidade”34.

Não obstante, será por ocasião do Segundo Congresso de História da


América, desta vez realizado em Buenos Aires, e das comemorações do
centenário do IHGB em 1938 que este diálogo entre historiadores voltará
a se intensificar. Em fevereiro de 1937 é a vez de Fleiuss ser convidado
por Levene a participar da organização do Congresso. Convocado a ser
relator do tema “Conceito e integração da História da América” informa
aceitar a proposta que, como vemos, já revela bastante do incentivo des-
tes historiadores, reunidos então pela segunda vez, no desenvolvimento
de propostas de integração a partir da história35. A valorização do papel da

donde no falte ninguna manifestación elevada de sus letras y ciencias”.


32 – Carta de Max Fleiuss a Ricardo Levene. Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 1934. Acer-
vo: IHGB.
33 – Ibidem.
34 – Ibidem.
35 – Ver: Carta de Max Fleiuss a Ricardo Levene (cópia). Rio de Janeiro, 2 de fevereiro
de 1937. Acervo: IHGB. Dentro desta proposta de tema integracionista, Fleiuss apre-
sentou no Segundo Congresso de História da América o trabalho intitulado “Conceito
e Interpretação da História da América e Técnica da Bibliografia e dos Arquivos”. Ver:
Atas do Congresso Internacional de História da América (1937). Buenos Aires: Academia
Nacional de la Historia, 1938. Acervo: Biblioteca, Museo y Archivo Dr. Ricardo Levene
(Biblioteca Nacional de Maestros), Buenos Aires.

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Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva

história na integração da região se encontra presente em outra das cartas


de Levene, sem data precisa, mas também do início do ano de 193736,
na qual o historiador ressalta a importância dos estudos históricos para a
América e aponta o momento em que vivia como excepcional para o for-
talecimento do campo. As palavras de Levene devem ser reproduzidas:
Trata-se de um momento de excepcional significado para a cultura
da América. Em seus Estados, autoridades e homens de estudo, se
ocupam preferentemente em estreitar suas relações intelectuais. A
História é o gênero científico, filosófico e literário que tem brilhante
tradição neste Continente. Agora assistimos a um novo florescimento,
com o esplendor de instituições e academias e o aparecimento de his-
toriadores representativos da cultura de cada um dos Estados.37

A fala de Levene é sintomática do momento de revisão e valorização


da história nas primeiras décadas do século XX, sobretudo por sua capa-
cidade de integração dos diferentes países americanos. Não encontramos
outras correspondências anteriores ao Congresso realizado em julho de
1937, apenas algumas a ele posteriores quando pouco se comenta seus
resultados, talvez ofuscados por um novo assunto que envolveria estes
historiadores no ano seguinte: o centenário do Instituto Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro.

Na Argentina, por decreto do Presidente Justo, como sabemos empe-


nhado nos projetos de integração com o Brasil, foram programadas dife-
rentes homenagens à instituição brasileira. A notícia é dada por Levene a
Fleiuss em dezembro de 1937. Muito satisfeito, Fleiuss responde logo em
seguida, dizendo que o ato de Justo o impressionou e teve grande reper-
cussão no Brasil. Em sua definição, o decreto “foi um gesto bellissimo,

36 – Nela Levene instrui Fleiuss a enviar seu trabalho até o dia 31 de maio próximo, indí-
cio da datação da correspondência.
37 – Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 1937. Acervo: IHGB. No ori-
ginal: “Trátase de un momento de excepcional significado para la cultura de América. En
sus Estados, autoridades y hombres de estudio, se ocupan preferentemente en estrechar
sus relaciones intelectuales. La Historia es el género científico, filosófico y literario que
tiene brillante tradición en este Continente. Ahora asistimos a un nuevo florecimiento,
con el esplendor de instituciones y academias y aparición de historiadores representati-
vos de la cultura de cada uno de los Estados”.

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Max Fleiuss e Ricardo Levene: Diálogos sobre
o Ibero-americanismo e a Escrita da História no Brasil e na Argentina

de verdadeira estima internacional”38. Na mesma carta em que notifica


Fleiuss do decreto assinado por Justo, Levene ainda aproveita para pedir
ao colega brasileiro uma lista com todos os argentinos que discursaram
no IHGB ao longo da sua história. O plano era que estes discursos fos-
sem reunidos em um volume a ser publicado em meio às homenagens
previstas para o ano seguinte39. No mesmo mês, sem ter recebido resposta
de Fleiuss, Levene volta a solicitar a lista de argentinos participantes do
IHGB e, principalmente, os discursos e conferências por eles proferidos
na instituição. Diz ainda que criou uma comissão especial na Junta de
Historia y Numismática Americana para tratar das comemorações do cen-
tenário do IHGB. A Biblioteca de Autores Brasileiros traduzidos ao Cas-
telhano, iniciada em 1937, também é assunto na carta. Levene promete
que a próxima obra traduzida pelo projeto seria “Apostilas de História do
Brasil” de autoria de Max Fleiuss40. Promessa que provavelmente não foi
cumprida, mesmo diante das cobranças de Fleiuss41, já que não encontra-
mos notícias de nenhuma tradução castelhana do seu referido trabalho42.
A esta carta, Fleiuss responde no dia 28 de dezembro agradecendo a pro-
messa da tradução e informando que em uma semana enviaria os discur-
sos solicitados por Levene43. Mas, pelo que pudemos perceber, sua espera

38 – Carta de Max Fleiuss a Ricardo Levene (cópia). Acervo: IHGB. A cópia da carta não
se encontra datada, mas supomos que tenha sido enviada em dezembro de 1937, já que é
uma resposta à carta de Levene enviada no dia 2 de dezembro de 1937.
39 – Ver: Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 2 de dezembro de 1937.
Acervo: IHGB.
40 – Ver: Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 23 de dezembro de 1937.
Acervo: IHGB.
41 – Em carta de 8 de maio de 1938 Fleiuss chega a cobrar de Levene a tradução argentina
do seu livro. Diz: “E quando pensa que será traduzido o meu trabalho sobre o Brasil?”.
Carta de Max Fleiuss a Ricardo Levene. Rio de Janeiro, 8 de maio de 1938. Acervo:
IHGB.
42 – Segundo Victor Tau Anzoátegui, entre 1937 e 1949, período de duração do empre-
endimento, foram traduzidas 10 obras pela Biblioteca de Autores Brasileiros traduzidos
ao Castelhano. Dentre elas não consta nenhuma de Max Fleiuss. De autoria dos compo-
nentes da chamada “trindade do Silogeu” apenas o trabalho “O Imperador Dom Pedro II
e o Instituto Histórico” de Afonso Celso foi traduzido. Ver: ANZOÁTEGUI, Victor Tau.
Ricardo Levene y la Biblioteca de Autores Brasileños traducidos al Castellano. Academia
Portuguesa de História. IV Congresso das Academias de História Ibero-Americana. V. II.
Lisboa, 6 a 13 de novembro de 1994, pp. 705-719.
43 – Ver: Carta de Max Fleiuss a Ricardo Levene. Rio de Janeiro, 28 de dezembro de

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Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva

foi ainda bastante prolongada de modo que em maio de 193844 Fleiuss


lhe escrevia dizendo estar complementando-os para em breve enviá-los a
Buenos Aires.

As cartas aqui citadas não foram as únicas trocadas entre Max Fleiuss
e Ricardo Levene. Muitos foram os assuntos tratados por eles ao longo
de mais de duas décadas. Além dos que já citamos, incluindo o frequente
intercâmbio de publicações, encontramos comentários relativos às suas
próprias obras e a artigos publicados em periódicos e, até mesmo, cartões
e correspondências breves de cumprimentos por aniversários e festas de
fim de ano, além de votos de recuperação em períodos de enfermidade.
Deste modo, é desenhado um contato pessoal e profissional que traz em
seu cerne toda uma perspectiva de integração ibero-americana a partir do
diálogo entre Brasil e Argentina. Diálogos intelectuais e empreendimen-
tos no campo historiográfico são utilizados como forma de projetar um
futuro pacífico e integrado para os países da América Ibérica. Por meio
da correspondência depositada no IHGB, expectativas e prognósticos de
futuro são registrados por estes historiadores que percebiam na reciproci-
dade cultural e intelectual alternativas ao presente conflituado e marcado
pelo isolamento. Daí sua importância em uma análise que se propõe a
pensar o papel dos diálogos intelectuais na construção do ibero-america-
nismo e na revisão da escrita da história no início do século XX.

Lembramos que o trabalho com correspondências exige o olhar aten-


to às questões que envolvem a própria subjetividade do indivíduo. Afinal,
elas auxiliam na construção da rede de sociabilidade na qual se inserem
remetente e destinatário e em sua legitimidade no campo intelectual. Por
isto, ao lermos as correspondências recebidas ou enviadas por alguém,
trabalhamos com a construção de sua memória, como lembra Jacques
Le Goff45, com a imagem de si que será construída para as futuras gera-
ções. Ademais, ao lermos cartas, telegramas e cartões assinados por inte-
1937. Acervo: IHGB.
44 – Ver: Carta de Max Fleiuss a Ricardo Levene. Rio de Janeiro, 28 de maio de 1938.
Acervo: IHGB.
45 – LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas: Uni-
camp, 1990, 541p.

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Max Fleiuss e Ricardo Levene: Diálogos sobre
o Ibero-americanismo e a Escrita da História no Brasil e na Argentina

lectuais devemos observar que ali estão incluídas deliberações, projetos


de construção da própria imagem, objetivos de ascensão profissional e
pessoal... Enfim, questões que, evidentemente, relativizam o que é dito
neste diálogo entre intelectuais. Roger Chartier vê as cartas como fontes
privilegiadas em que o sentimento, a efusão e a comunicação de si mesmo
e de sua própria verdade se apresentam. São, assim, a expressão de uma
subjetividade que se confia a um interlocutor que irá nos avaliar. Desta
avaliação, pessoal e profissional, dependem a imagem de si e a busca por
reconhecimento e legitimidade. Daí a necessidade de cuidado metodoló-
gico ao analisarmos as falas de intelectuais movidos por disputas, egos,
vaidades e afetos. Misturam-se características de um ser humano, múlti-
plo e ambíguo, e de um profissional em busca de ascensão.

Nas palavras de Chartier: “Livre e codificada, íntima e pública, numa


tensão entre o segredo e a sociabilidade, a carta, melhor que qualquer ou-
tra expressão, associa o vínculo social e a subjetividade.”46 O autor ainda
lembra, analisando as mudanças nas práticas historiográficas, as possibi-
lidades abertas a partir da análise de correspondências, pois apresentam,
muitas vezes inconscientemente, aquilo que se pretende esconder e mas-
carar. Segundo ele, duas realidades podem ser acessadas a partir delas.
Uma é social, relaciona o indivíduo ao meio no qual se inscreve, à família
e às redes de parentesco. A outra é uma realidade mais secreta que per-
mite que duas pessoas dividam emoções e sentimentos, expressem suas
paixões, frustrações e sonhos. Deste modo, laços sociais são formulados
a partir de um gesto subjetivo. Por esta razão, ao utilizarmos como fonte
as cartas trocadas entre Fleiuss e Levene alertamos para a inserção destes
indivíduos nas trocas simbólicas que desenvolveram com seu ambiente
profissional e nos laços sociais que construíram. Isto porque, como afirma
Pierre Bourdieu47, a legitimidade do intelectual, ou do artista, consiste em
46 – CHARTIER, Roger (org). La correspondance: Les usages de la lettre au XIXe siè-
cle. Paris: Fayard, 1991, 462 p., p. 9. No original : “Libré et codifiée, intime et publique,
tendue entre secret et sociabilité, la lettre, mieux qu’aucune autre expression, associe le
lien social et la subjetivité. Chaque groupe vit et formule à sa manière ce problématique
équilibre entre le moi intime et les autres”.
47 – BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos
bens simbólicos. Tradução: Maria da Graça Setton; Guilherme Teixeira. SP: Zouk, 2004,

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 173 (454):209-236, jan./mar. 2012 225


Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva

possuir um capital simbólico; em ter seu nome conhecido e reconhecido


diante de um campo cujo habitus e linguagem específicos precisa alcan-
çar.

Podemos dizer, no entanto, que nas cartas em questão está presente


mais do que a necessidade de reconhecimento individual. Encontramos
aqui a tentativa de construção da legitimidade de um campo que naque-
le período se profissionalizava. Partes importantes deste campo, Max
Fleiuss e Ricardo Levene contribuíram por meio da aproximação pessoal
e profissional com seu desenvolvimento e consolidação em um contex-
to de conflitos nacionais e internacionais e mudanças políticas e sociais.
Além das questões subjetivas inerentes às correspondências, como aponta
Chartier, vemos a construção de possibilidades profissionais para aqueles
que trabalhavam com a escrita da história, sobretudo da história da Amé-
rica, área que naquele período apenas começava a ser elaborada. Nes-
te aspecto situa-se a relevância da leitura destas cartas para uma análise
sobre o ibero-americanismo e as propostas de integração entre Brasil e
Argentina nas primeiras décadas do século XX. Ibero-americanismo que,
como observamos pelas próprias palavras de Fleiuss e Levene, era fun-
damental para a ruptura com o isolamento que envolvia historicamente a
região.

Cabe ainda situar as correspondências aqui trabalhadas e as pro-


postas integracionistas nelas presentes em um período de passagem à
modernidade tanto no Brasil quanto na Argentina. Para Giacomo Mar-
ramao48, o futuro é consequência das vontades políticas manifestadas no
presente e projetado de acordo com os múltiplos interesses nele contidos.
Assim, relativizar o tempo histórico e perceber os entrelaçamentos entre
presente, passado e futuro é um exercício importante na elaboração de
um debate sobre a escrita da história no período em questão. Isto porque
219p. Do mesmo autor: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução: Fernando
Thomaz. 12ª Ed. RJ: Bertrand Brasil, 2009, 311p e A Economia das Trocas Simbólicas.
Tradução: Introdução, organização e seleção de Sérgio Miceli. 5ª ed. SP: Ed. Perspectiva,
2003, 361p.
48 – MARRAMAO, Giacomo. Poder e Secularização: As categorias do tempo. Tradu-
ção: Guilherme Alberto Gomes de Andrade. SP: Unesp, 1995, 347p.

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Max Fleiuss e Ricardo Levene: Diálogos sobre
o Ibero-americanismo e a Escrita da História no Brasil e na Argentina

modernizar é olhar para o presente, para perceber suas demandas, e para


o futuro, a fim de construir prognósticos e perceber possibilidades que
podem ou não vir a se concretizar. Estas esferas, portanto, se encontram
numa perspectiva de tempo histórico que envolve Fleiuss e Levene. Eles
pretendiam estudar e escrever a história; reuniam-se em associações e
academias com esta finalidade; correspondiam-se entre si utilizando-a,
dentre outros assuntos, como temática; propunham-se a pensar novas ba-
ses para a pesquisa histórica com ênfase no trabalho em arquivos; e, em
especial, pretendiam que ela servisse de laço de solidariedade entre os
países ibero-americanos, com ênfase na relação entre Brasil e Argentina.
Ao fazerem isto, olhavam para o passado, mas seus objetivos, na verdade,
encontravam-se no presente e no futuro.

A história ajudaria a projetar o porvir. Neste sentido, identificamos


na releitura da história desenvolvida em conjunto por Brasil e Argentina
(também em diálogo com suas antigas metrópoles) uma tensão entre a
história pós-iluminista trabalhada por Reinhart Koselleck49, voltada para
a construção do progresso, para a qual ser moderno significava transfor-
mar e não aprender com o passado, e outra ainda marcada pelo aprendi-
zado que poderia trazer para o presente e o futuro. Ou seja, no contexto
ibero-americano, ao menos no Brasil e na Argentina, muitos historiadores
ainda viviam a história mestra da vida a qual, segundo o próprio Ko-
selleck, teria sido enfraquecida pelo Iluminismo. Porém, ela mesma era
utilizada como forma de produzir inovações políticas, ou apenas acomo-
dações e adaptações, diante do contexto da modernidade. Para estes his-
toriadores, ligados à produção de uma história pretendidamente oficial,
moderno era conjugar tradição e modernidade; história que ensina atra-
vés de exemplos, mas que também deve ser esquecida em alguns pontos
e reinterpretada em outros. História que, mesmo trazendo em seu bojo
muito de uma concepção de mestra da vida, precisa de objetividade, do-
cumentos e crítica das fontes neste período de profissionalização e busca
de cientificidade. Serve, assim, à unidade e à coesão social. Afinal, estas
tensões historiográficas são inerentes a um contexto conflituado e mar-

49 – KOSELLECK, Futuro Passado, op. cit.

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Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva

cado pela imigração, pelo encontro de diferentes valores sociais, e, nas


décadas de 1920 e 1930 em ambos os países, por governos autoritários e
pela recuperação das relações entre Igreja e Estado que contrapôs tradi-
ção e modernidade, fé e razão.

Diferenciando a noção de tempo das sociedades religiosas e das


históricas, Marcel Gauchet observa que as religiosas, marcadas por uma
ideia de passado fundador, percebem uma identificação direta entre pre-
sente, passado e futuro. As históricas, ao contrário, separam estas dimen-
sões como garantia do progresso, do desenvolvimento futuro, da não per-
manência de um passado concluído. Para Gauchet, o mundo religioso,
pré-Revolução Francesa, é substituído na segunda metade do século
XVIII pelo mundo da história, tendo como base a ideia de progresso. A
história, portanto, é construída a partir de uma lógica religiosa. De acordo
com o autor, no caso da Alemanha de Hegel, “a ideia de história vai se de-
finir a partir de esquemas religiosos”50. Lá, ela teria encontrado seu apoio
inicial em reflexões teológicas. Gauchet defende que, ao reunir progresso
e religião, a história permite conjugar “[...] a continuidade e a novidade,
o avanço e a conservação. Ela abre caminho às conquistas da razão e das
Luzes, mas integrando-as ao quadro em que são desenvolvidas”51. Assim,
ela seria capaz de unir a sabedoria da tradição aos princípios racionais do
progresso. Na Alemanha, Gauchet acredita que foi alcançada, por Hegel,
a aliança entre a religião e a razão, tarefa na qual os franceses teriam fa-
lhado. Por isto, “é do casamento filosófico da tradição e do progresso que
nasce a ideia de história em sua acepção contemporânea”52.

Acreditamos que historiadores como Fleiuss e Levene, que vemos


neste artigo terem promovido a integração entre Brasil, Argentina e suas
50 – GAUCHET, Marcel. La condition historique. Entretiens avec François Azouvi et
Sylvain Piron. Paris: Gallimard, 2008. p. 310, 482p. No original: “[...] l’idée d’histoire va
se définir à partir de schèmes religieux”.
51 – Ibidem, p. 313. No original: “L’idée d’histoire fournit précisément la formule synthé-
tique qui permet de tenir ensemble la continuité et la nouveauté, l’avancement et la con-
servation. Elle donne le moyen de faire place aux conquêtes de la raison et des Lumières,
mais en les integrant dans le cadre ou elles se sont développées”.
52 – Ibidem, pp. 315-316. No original: “C’est de ce mariage philosophique de la tradition
et du progrès que naît l’idée d’histoire dans son acception contemporaine”.

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Max Fleiuss e Ricardo Levene: Diálogos sobre
o Ibero-americanismo e a Escrita da História no Brasil e na Argentina

antigas metrópoles, estão ainda muito vinculados à identificação direta


entre presente, passado e futuro, ou seja, ao que Gauchet identifica como
uma visão de tempo religiosa. Para eles, a história ensina e, mesmo que
não possa ser repetida, deve fornecer subsídios para o presente e o futuro
das nações ibero-americanas em formação. Daí que, para estes indivíduos
oriundos de sociedades ibéricas, a história permaneça a mestra da vida.
Nestas sociedades, ainda marcadamente religiosas, os vínculos entre his-
tória e religião são muitos. A busca de um passado fundador ibérico que
gere união entre ex-colônias e ex-metrópoles, base da ideia de ibero-ame-
ricanismo, encontra raízes numa noção de tempo religiosa que disputa
espaço com uma ideia de história como progresso. Este conflito se torna
evidente no início do século XX quando a inserção destes países na mo-
dernidade contrapõe, política e ideologicamente, visões mais progressis-
tas e outras mais tradicionais e conservadoras. O processo de integração
que analisamos, ao defender uma história que ensine e forme as futuras
gerações, que construa a paz e a unidade regional, que conjugue tradição
e modernidade está vinculado a uma visão de tempo religiosa.

Cabe destacar que o olhar destes historiadores sobre a modernidade


no Brasil e na Argentina, evidentemente, não é único. Tratamos aqui de
historiadores relacionados a importantes instituições históricas, ligados
aos interesses dominantes, liberais conservadores que conjugavam valo-
res tradicionais e modernos, católicos ou parte de uma rede de sociabili-
dade católica... Enfim, vinculados a uma visão de modernidade que con-
sideramos conservadora ao pôr em destaque, pragmaticamente ou não,
as marcas da formação histórica ibérica e católica nas sociedades ibero-
americanas. Daí o retorno ao passado colonial e sua releitura qualificada
no início do século XX. Porém, esta é uma visão dentre muitas outras que
expressaram os conflitos e as incertezas de uma geração de intelectuais
que se inseria num contexto de transformações políticas e sociais. Algu-
mas mais progressistas, outras mais conservadoras, outras conjugando
estes dois aspectos, o fato é que foram muitas as propostas de leitura do
passado tanto no Brasil quanto na Argentina. A proposta de ibero-ame-
ricanismo de Fleiuss e Levene é apenas uma delas aqui privilegiada por

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Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva

expor as tensões entre tradição e modernidade e entre liberalismo e con-


servadorismo em sociedades de formação ibérica que almejavam inser-
ção na modernidade. Estes eram problemas inerentes ao contexto no qual
atuaram, escreveram e dialogaram pessoalmente ou por correspondência.
Os projetos conjuntos em torno da escrita da história se encontravam en-
volvidos por estas tensões fortemente presentes em seus países. Tensões
que impunham desafios à construção e à legitimação de suas identidades
nacionais e, mais ainda, de uma identidade ibero-americana.

Conforme apontamos, vários foram os problemas comuns que envol-


veram a escrita da história no Brasil e na Argentina no período. A profis-
sionalização e a institucionalização do campo, a formação da consciência
nacional, a pesquisa documental, a organização de arquivos, os estudos
de história nacional, as relações com o poder político, o retorno ao pas-
sado colonial, a releitura positiva do papel das metrópoles ibéricas, os
entrelaçamentos entre liberalismo e conservadorismo, as marcas de uma
história ainda mestra da vida... Enfim, uma série de questões que geraram
afinidades entre indivíduos como Fleiuss e Levene e instituições como o
IHGB e a Junta de Historia y Numismática Americana favorecendo os
diálogos em torno do pensamento histórico. Trata-se de um período de
mudanças no campo historiográfico e de modernização das instituições
históricas. Trata-se, ao mesmo tempo, de um contexto histórico e político
conflituado interna e externamente no qual se experimentou a queda das
antigas estruturas de poder oligárquicas, o surgimento de governos radi-
cais, a crise do liberalismo e a ascensão das ideias nacionalistas; além da
Primeira e da Segunda Guerra, da Guerra Civil Espanhola e dos gover-
nos fascistas na Península Ibérica. A necessidade de adaptação e a busca
por alternativas futuras foram comuns a muitos dos indivíduos que vive-
ram esta época. Esta busca conjunta por um caminho a seguir diante das
transformações da modernidade acabou envolvendo diretamente a escrita
da história e a própria integração entre Brasil e Argentina. A passagem
à modernidade gerou a necessidade de integração entre esferas comple-
mentares.

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Max Fleiuss e Ricardo Levene: Diálogos sobre
o Ibero-americanismo e a Escrita da História no Brasil e na Argentina

Para a construção do ibero-americanismo defendido por historiado-


res do IHGB e da Junta, a importância destes diálogos intelectuais e cul-
turais era inegável. Fazer circular o conhecimento era também parte das
estratégias integracionistas que envolviam a escrita da história. Portanto,
era preciso divulgar o que era produzido no país a fim de construir uma
imagem aceita, reconhecida e legitimada internacionalmente, tanto pe-
los países vizinhos quanto por interlocutores europeus. Neste sentido, o
trabalho conjunto do Itamaraty com o IHGB, iniciado desde a década de
1910 sob influência do Barão do Rio Branco53, foi de grande importância
na divulgação do que era então produzido no país e no favorecimento das
relações com os países vizinhos, sobretudo com a Argentina. Daí o envio
de obras, publicações e fontes sobre a história do Brasil para instituições
estrangeiras e o apoio institucional a iniciativas como a Revisão dos Tex-
tos e as Bibliotecas de Autores. Para historiadores como Levene e Fleiuss,
ligados de alguma forma a instituições como o IHGB e o Itamaraty, a
modernidade não permitia o distanciamento e demandava a revisão de um
passado por muito tempo visto como inimigo. O enfrentamento deste pas-
sado perpassava diretamente a releitura da história capaz de transformá-lo
em vetor de autoqualificação e de construção de possibilidades de futu-
ro para a América Ibérica. Um futuro que não significasse condenação,
como percebia o olhar positivista e evolucionista predominante no final
do século XIX.

53 – O Barão do Rio Branco presidiu o IHGB entre 1908 e 1912, ano da sua morte. Con-
vidado a assumir o cargo por Fleiuss, esforçou-se em minimizar o afastamento do país em
relação às repúblicas vizinhas herdado do período monárquico, colocou o Brasil em posi-
ção de liderança nos assuntos ibero-americanos e buscou projetá-lo diante da comunidade
internacional. Sua influência é fundamental na ampliação do contato do Instituto com ou-
tras instituições ibero-americanas. A própria nomeação de Levene como sócio do IHGB,
referida neste artigo, e a organização do Congresso de História da América de 1922 são
reflexos da política do Barão no Instituto iniciada em 1908. Sobre a atuação do Barão no
IHGB e seu papel na aproximação da instituição com o Itamaraty, ver: GUIMARÃES,
Da Escola Palatina ao Silogeu..., op. cit. Para uma análise da política externa do Barão,
sobretudo na aproximação com os países ibero-americanos e sua atuação na construção
da ideia de americanidade, ver: SILVA, Daniella Amaral Diniz da. Alteridade e idéia de
nação na passagem à modernidade: o círculo Rio Branco no Brasil – ‘Ubique Patriae
Memor’. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008, 184p.

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Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva

As cartas trocadas entre Fleiuss e Levene neste período ilustram os


diálogos intelectuais elaborados a partir de objetivos integracionistas. As-
sim, possuem um sentido político que só pode ser compreendido se as
percebemos inseridas no contexto de construção do ibero-americanismo e
reaproximação com as antigas metrópoles que aqui apontamos. Estas cor-
respondências são apenas parte, embora bastante simbólica, de todo um
projeto defendido por políticos e intelectuais liberais conservadores em
busca de uma história oficial que amenizasse as características de desqua-
lificação herdadas de um passado que mais constrangia do que orgulhava.
Isto em um período de profissionalização do campo historiográfico, con-
forme já dissemos repetidas vezes. Vemos como a formação deste campo
no Brasil deve ser complexificada e pensada a partir dos muitos vieses e
dos diferentes objetivos políticos e ideológicos que o envolviam. Vemos
também como é em busca de sentido para os rumos da intelectualidade
no início do século XX que estes historiadores pensam não a história, mas
sim com a história. Afinal, como afirma Carl Schorske54, pensar com a
história implica vê-la como processo, como dinâmica, em constante mo-
vimento de acordo com o contexto no qual é retomada. Aqui o estudo do
passado é diretamente influenciado pelas problemáticas contemporâneas
ao historiador. É a partir de demandas presentes que Fleiuss e Levene
estudam a história.

Não é por acaso que, como vimos, Levene manifestava a Fleiuss em


1934 seu desejo de que o ibero-americanismo se tornasse “uma realidade
viva” e permitisse a ruptura com “o isolamento intelectual em que vive a
maioria dos países do continente”. Muito mais do que uma opinião pesso-
al, sua fala expressava interesses institucionais e governamentais. Repre-
sentava ainda projetos políticos iniciados por Brasil e Argentina e amplia-
dos por toda a América Ibérica até a Segunda Grande Guerra. A partir daí
o imperialismo norte-americano e as ditaduras militares implantadas na
região nos anos 1960 e 1970 os enfraqueceram, já que o isolamento limita
as possibilidades de ação, transformação, superação da desqualificação e

54 – SCHORSKE, Carl. Pensando com a história: Indagações na passagem para o moder-


nismo. Tradução: Pedro Maia Soares. SP: Companhia das Letras, 2000, 282p.

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Max Fleiuss e Ricardo Levene: Diálogos sobre
o Ibero-americanismo e a Escrita da História no Brasil e na Argentina

fortalecimento diante do Outro. Por fim, podemos afirmar que por mais
que haja diferenças ideológicas e conjunturais, hoje quando o Itamaraty
defende a unidade e o diálogo com os países vizinhos – em especial com
a Argentina, aproximação considerada necessária para o êxito do Merco-
sul – está buscando num passado não muito distante referências para sua
política externa. Seu discurso é em parte fruto do investimento feito nas
primeiras décadas do século passado em torno do intercâmbio político,
econômico, cultural e intelectual. Intercâmbio no qual a história, ainda
percebida como a mestra da vida, se tornou, como afirmamos logo no
início deste artigo, objeto de reflexão e instrumento privilegiado de ação
sobre o presente e o futuro.

Referências Bibliográficas
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Buenos Aires, 21 de agosto de 1922.
Buenos Aires, 22 de outubro de 1922.
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Buenos Aires, 23 de dezembro de 1937.

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Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva

Cartas de Max Fleiuss a Ricardo Levene (Acervo: IHGB):


Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1925.
Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 1934.
Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 1937.
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Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1937.
Rio de Janeiro, 28 de maio de 1938.

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Texto apresentado em maio/2011. Aprovado para publicação em


julho/2011.

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