Rio de Janeiro
jan./mar. 2012
Max Fleiuss e Ricardo Levene: Diálogos sobre
o Ibero-americanismo e a Escrita da História no Brasil e na Argentina
209
Resumo: Abstract:
Neste artigo analisamos o desenvolvimento The objective of this article is to analyze the
do ibero-americanismo e da integração entre development of Iberian Americanism and the
Brasil e Argentina no início do século XX por integration between Brazil and Argentina in the
historiadores ligados ao Instituto Histórico e early Twentieth Century, by historians of the
Geográfico Brasileiro e à Junta de Historia y Brazilian Historic and Geographic Institute and
Numismática Americana em Buenos Aires. Par- the Junta de Historia y Numismatica Americana
timos das correspondências trocadas entre dois in Buenos Aires. The starting point will be the
de seus principais representantes, Max Fleiuss e correspondence between their foremost repre-
Ricardo Levene, durante as décadas de 1920 e sentatives, Max Fleiuss and Ricardo Levene,
1940, a fim de observar como a escrita da his- over the period 1920s – 1940s. The purpose is
tória se tornou um ponto de reflexão conjunto to observe how history writings became an issue
gerando consequências práticas para a transfor- of joint reflection, generating practical conse-
mação do presente e a projeção do futuro. Por quences in transforming the present and project-
meio de diálogos intelectuais e de um processo ing the future. These intellectual dialogues, and
de circulação cultural e de ideias foi promovida a process of cultural and ideological dissemina-
a revisão e a reinterpretação da história destes tion, helped promote the revision and historical
países na busca por alternativas que rompessem reinterpretation of both countries, in the search
com a desqualificação herdada do passado colo- for alternatives to escape the disqualification in-
nial. Deste processo de produção dialógica do herited from their colonial past. The dialogues
conhecimento histórico surgem projetos cultu- on historical knowledge produced interesting
rais e políticos interessantes não apenas para as cultural and political projects, not only for the
instituições históricas em questão, mas também historical institutions involved, but for the Bra-
para os governos brasileiro e argentino. Dentre zilian and Argentinian governments as well. A
os aspectos valorizados por esta revisão histó- new, positive, vision of the Iberian colonialism
rica está a releitura positiva do colonialismo resulting in the re-approach with former me-
ibérico, o que resulta na reaproximação com as tropolis, Portugal and Spain, was to come out of
antigas metrópoles, Portugal e Espanha. Pelas this historical revision. Through the letters from
cartas de Fleiuss e Levene, vemos como o inter- Fleiuss and Levene, we see how the interchange
câmbio foi visto naquele período como forma de was then viewed as a rupture from the isolation
ruptura com o isolamento e o desconhecimento and unawareness that affected countries from
que atingiam os países ibero-americanos. Iberian America.
Palavras-chave: Max Fleiuss; Ricardo Leve- Keywords: Max Fleiuss; Ricardo Levene; In-
ne; Integração; Ibero-americanismo; Escrita da tegration; Iberian Americanism; History writ-
História. ings.
5 – TODOROV, Tzvetan. Nous et les autres. La réflexion française sur la diversité hu-
maine. Paris: Éditions du Seuil, 1989, 538p. Do mesmo autor, ver: A vida em comum: En-
saio de antropologia geral. Tradução: Denise Bottmann; Eleonora Bottmann. Campinas:
Papirus, 1996, 175p.
6 – GINZBURG, Carlo. História da Arte Italiana. In: GINZBURG, C.; CASTELNUO-
VO, E. e PONI, C. (org). A Micro-história e outros ensaios. Tradução: Antonio Narino.
SP: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1989, pp. 5-93. Para uma discussão metodológica
sobre circulação cultural e de ideias a partir da rede de sociabilidade de Joaquim Nabuco
e dos historiadores Ricardo Levene, Max Fleiuss, Rafael Altamira e Fidelino de Figuei-
redo, ver: NEDER, Gizlene e BARCELOS, Ana Paula. Intelectuais, circulação de ideias
e apropriação cultural. Anotações para uma discussão metodológica. Passagens. Revista
Internacional de História Política e Cultura Jurídica. V. 1, n. 1, janeiro-julho de 2009, pp.
29-54.
Buenos Aires desde 1915 até sua morte, em 1959, além de seu presidente
entre 1927 e 1931 e 1934 e 1938. Foi também um dos principais líderes
da Nova Escola Histórica, movimento de renovação historiográfica de
grande importância na profissionalização do campo na Argentina. Segun-
do Fernando Devoto, seus princípios foram baseados no “renascimento
dos estudos históricos a partir das regras da crítica histórica e das disci-
plinas auxiliares, nas que [Bartolomé] Mitre haveria sido o precursor”13.
Preocupação vinculada à necessidade de legitimação do historiador pro-
fissional no país e que resultará em uma geração seguinte de historiadores
pautados na pesquisa com fontes documentais e no rigor metodológico.
O movimento defendia ainda uma visão nacionalista e americanista de
história interessante à integração ibero-americana da qual tratamos. No
Brasil, Fleiuss também se via inserido neste contexto de profissionaliza-
ção e busca por legitimação do campo. Como afirma Ângela de Castro
Gomes14, no início do século XX, os historiadores contavam ainda com
pouca produção e o pequeno respaldo do IHGB que então se expandia
pelo país. Da mesma forma que na Argentina, a autora lembra que o histo-
riador passava a ser identificado pela pesquisa documental, como aquele
que assim produz um trabalho diferenciado da filosofia e da literatura. O
IHGB, ao mesmo tempo em que tentava se adaptar ao regime republica-
no, teve importante atuação neste período de profissionalização.
Tanto o Instituto quando a Junta, que foram desde suas criações (do
IHGB em 1838 e da Junta em 1893) diretamente vinculados ao poder
político, tiveram estas relações acentuadas a partir da década de 1930
24 – Ver: Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 31 de março de 1925.
Acervo: IHGB.
25 – Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 22 de outubro de 1925. Acer-
vo: IHGB. No original: “Considero que su obra es una de las más vigorosas constitucio-
nes para el estudio de la historia civil de América. Su amplio criterio de pensador que ha
examinado los antecedentes constitucionales y políticos del Brasil, se pone en evidencia
en este libro admirable por su forma y fondo”.
26 – Ibidem. No original: “[...] como alto ideal que debe solidarizar cada vez más los
pueblos hermanos de América”.
27 – Carta de Max Fleiuss a Ricardo Levene (cópia). Rio de Janeiro, 31 de outubro de
1925. Acervo: IHGB.
28 – Ibidem.
29 – Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 8 de janeiro de 1934. Acervo:
IHGB. No original: “[...] con su alta investidura y sus prestigios personales”.
30 – Ibidem. No original: “Deseamos establecer relaciones estables y regulares con todas
las instituciones científicas y literarias, publicaciones oficiales y no oficiales y autores de
su país”.
31 – Ibidem. No original: “Aspiramos, en la medida de nuestra fuerza, que el iberoameri-
canismo no sea una frase retórica sino una realidad viva. Urge romper el aislamiento in-
telectual en que viven la mayoría de los países del continente e iniciar una era de mutua y
fecunda penetración espiritual. A este propósito responde la iniciativa de la Universidad
de La Plata. Anhelamos convertir a la Biblioteca Central en un logar del iberoamericano,
36 – Nela Levene instrui Fleiuss a enviar seu trabalho até o dia 31 de maio próximo, indí-
cio da datação da correspondência.
37 – Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 1937. Acervo: IHGB. No ori-
ginal: “Trátase de un momento de excepcional significado para la cultura de América. En
sus Estados, autoridades y hombres de estudio, se ocupan preferentemente en estrechar
sus relaciones intelectuales. La Historia es el género científico, filosófico y literario que
tiene brillante tradición en este Continente. Ahora asistimos a un nuevo florecimiento,
con el esplendor de instituciones y academias y aparición de historiadores representati-
vos de la cultura de cada uno de los Estados”.
38 – Carta de Max Fleiuss a Ricardo Levene (cópia). Acervo: IHGB. A cópia da carta não
se encontra datada, mas supomos que tenha sido enviada em dezembro de 1937, já que é
uma resposta à carta de Levene enviada no dia 2 de dezembro de 1937.
39 – Ver: Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 2 de dezembro de 1937.
Acervo: IHGB.
40 – Ver: Carta de Ricardo Levene a Max Fleiuss. Buenos Aires, 23 de dezembro de 1937.
Acervo: IHGB.
41 – Em carta de 8 de maio de 1938 Fleiuss chega a cobrar de Levene a tradução argentina
do seu livro. Diz: “E quando pensa que será traduzido o meu trabalho sobre o Brasil?”.
Carta de Max Fleiuss a Ricardo Levene. Rio de Janeiro, 8 de maio de 1938. Acervo:
IHGB.
42 – Segundo Victor Tau Anzoátegui, entre 1937 e 1949, período de duração do empre-
endimento, foram traduzidas 10 obras pela Biblioteca de Autores Brasileiros traduzidos
ao Castelhano. Dentre elas não consta nenhuma de Max Fleiuss. De autoria dos compo-
nentes da chamada “trindade do Silogeu” apenas o trabalho “O Imperador Dom Pedro II
e o Instituto Histórico” de Afonso Celso foi traduzido. Ver: ANZOÁTEGUI, Victor Tau.
Ricardo Levene y la Biblioteca de Autores Brasileños traducidos al Castellano. Academia
Portuguesa de História. IV Congresso das Academias de História Ibero-Americana. V. II.
Lisboa, 6 a 13 de novembro de 1994, pp. 705-719.
43 – Ver: Carta de Max Fleiuss a Ricardo Levene. Rio de Janeiro, 28 de dezembro de
As cartas aqui citadas não foram as únicas trocadas entre Max Fleiuss
e Ricardo Levene. Muitos foram os assuntos tratados por eles ao longo
de mais de duas décadas. Além dos que já citamos, incluindo o frequente
intercâmbio de publicações, encontramos comentários relativos às suas
próprias obras e a artigos publicados em periódicos e, até mesmo, cartões
e correspondências breves de cumprimentos por aniversários e festas de
fim de ano, além de votos de recuperação em períodos de enfermidade.
Deste modo, é desenhado um contato pessoal e profissional que traz em
seu cerne toda uma perspectiva de integração ibero-americana a partir do
diálogo entre Brasil e Argentina. Diálogos intelectuais e empreendimen-
tos no campo historiográfico são utilizados como forma de projetar um
futuro pacífico e integrado para os países da América Ibérica. Por meio
da correspondência depositada no IHGB, expectativas e prognósticos de
futuro são registrados por estes historiadores que percebiam na reciproci-
dade cultural e intelectual alternativas ao presente conflituado e marcado
pelo isolamento. Daí sua importância em uma análise que se propõe a
pensar o papel dos diálogos intelectuais na construção do ibero-america-
nismo e na revisão da escrita da história no início do século XX.
53 – O Barão do Rio Branco presidiu o IHGB entre 1908 e 1912, ano da sua morte. Con-
vidado a assumir o cargo por Fleiuss, esforçou-se em minimizar o afastamento do país em
relação às repúblicas vizinhas herdado do período monárquico, colocou o Brasil em posi-
ção de liderança nos assuntos ibero-americanos e buscou projetá-lo diante da comunidade
internacional. Sua influência é fundamental na ampliação do contato do Instituto com ou-
tras instituições ibero-americanas. A própria nomeação de Levene como sócio do IHGB,
referida neste artigo, e a organização do Congresso de História da América de 1922 são
reflexos da política do Barão no Instituto iniciada em 1908. Sobre a atuação do Barão no
IHGB e seu papel na aproximação da instituição com o Itamaraty, ver: GUIMARÃES,
Da Escola Palatina ao Silogeu..., op. cit. Para uma análise da política externa do Barão,
sobretudo na aproximação com os países ibero-americanos e sua atuação na construção
da ideia de americanidade, ver: SILVA, Daniella Amaral Diniz da. Alteridade e idéia de
nação na passagem à modernidade: o círculo Rio Branco no Brasil – ‘Ubique Patriae
Memor’. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008, 184p.
fortalecimento diante do Outro. Por fim, podemos afirmar que por mais
que haja diferenças ideológicas e conjunturais, hoje quando o Itamaraty
defende a unidade e o diálogo com os países vizinhos – em especial com
a Argentina, aproximação considerada necessária para o êxito do Merco-
sul – está buscando num passado não muito distante referências para sua
política externa. Seu discurso é em parte fruto do investimento feito nas
primeiras décadas do século passado em torno do intercâmbio político,
econômico, cultural e intelectual. Intercâmbio no qual a história, ainda
percebida como a mestra da vida, se tornou, como afirmamos logo no
início deste artigo, objeto de reflexão e instrumento privilegiado de ação
sobre o presente e o futuro.
Referências Bibliográficas
Fontes:
Callen personas cuando hablen pueblos. A Nação, 11 de outubro de 1933.
Conferências, Congressos e Acordos Internacionais. Acervo: Arquivo Histórico
do Itamaraty.
Atas do Congresso Internacional de História da América (1937). Buenos Aires:
Academia Nacional de la Historia, 1938. Acervo: Biblioteca, Museo y Archivo
Dr. Ricardo Levene (Biblioteca Nacional de Maestros), Buenos Aires.
Bibliografia:
ANZOÁTEGUI, Victor Tau. Ricardo Levene y la Biblioteca de Autores Brasi-
leños traducidos al Castellano. Academia Portuguesa de História. IV Congresso
das Academias de História Ibero-Americana. V. II. Lisboa, 6 a 13 de novembro
de 1994, pp. 705-719.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. Tradução: Introdução,
organização e seleção de Sérgio Miceli. 5ª Ed. SP: Ed. Perspectiva, 2003, 361p.
______. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens
simbólicos. Tradução: Maria da Graça Setton; Guilherme Teixeira. 2ª Ed. SP:
Zouk, 2004, 219p.
______. O poder simbólico. Tradução: Fernando Thomaz. 12ª Ed. RJ: Bertrand
Brasil, 2009, 311p.
CATTARUZZA, Alejandro e EUJANIAN, Alejandro. Políticas de la historia.
Argentina 1860-1960. Buenos Aires: Alianza, 2003, 270p.
CHARTIER, Roger (org). La correspondance: Les usages de la lettre au XIXe
siècle. Paris: Fayard, 1991, 462p.
DEVOTO, Fernando (org.). La historiografía argentina en el siglo XX. Buenos
Aires: Editores de América Latina, 2006, 378p.
FERES JR., João. A história do conceito de ‘Latin America’ nos Estados Unidos.
Bauru/SP: EDUSC, 2005, 317p.
GAUCHET, Marcel. La condition historique. Entretiens avec François Azouvi et
Sylvain Piron. Paris: Gallimard, 2008, 482p.
GINZBURG, Carlo. História da Arte Italiana. In: GINZBURG, C.;
CASTELNUOVO, E. e PONI, C. (org.). A Micro-história e outros ensaios.
Tradução: Antonio Narino. SP: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1989, pp. 5-93.
GOMES, Angela de Castro. História e Historiadores. RJ: FGV, 1996, 220p.