Publicidade Infantil
1. Publicidade e hipervulneráveis:
limitar, proibir ou regular?
Advertising and the hipervulnerable: to limit, ban or
regulate?
LUCIA ANCONA LOPEZ DE MAGALHÃES DIAS
Sumário:
• 1. Notas introdutórias
• 2. Hipervulneráveis
• 3. Do arcabouço jurídico vigente e suas implicações. Conceito de abusividade.
Autorregulamentação. Casuística
• 4. Conclusões: limitar, proibir ou regular?
• Referências bibliográficas
Abstract:
The article provides an in-depth analysis of the legal framework and Case Law
applicable to advertising directed to the socalled hipervulnerable consumers. The author
aims to develop objective criteria for identifying and preventing possible abuses.
Desde logo, pergunta-se: seria mesmo o caso de limitar, proibir ou regular a publicidade
direcionada aos hipervulneráveis, notadamente às crianças, ou o nosso atual arcabouço
jurídico já conteria soluções para a efetiva tutela desse público-alvo, restando
necessário, portanto, apenas um maior adensamento da Lei posta?
2. Hipervulneráveis
A vulnerabilidade é condição intrínseca a todo e qualquer consumidor, por ser este a
parte mais fraca da relação de consumo (art. 4.º, I, do CDC). Aliás, o direito do
consumidor foi posto em virtude do próprio reconhecimento dessa vulnerabilidade na
nossa sociedade.
Contudo, mostra a experiência que certa categoria de pessoas merece atenção ainda
mais detida. São os chamados hipervulneráveis, assim compreendidos aqueles que, por
ostentarem uma condição específica (i.e., crianças, idosos, analfabetos, portadores de
enfermidade ou deficiência), apresentam uma vulnerabilidade agravada.1
O idoso, por sua vez, ao contrário da criança, apresenta idade avançada.4 Sua
vulnerabilidade agravada decorre, por conseguinte, de dois aspectos principais: “a) a
diminuição ou perda de determinadas aptidões físicas ou intelectuais que o torna mais
suscetível e débil em relação à atuação negocial dos fornecedores; b) a necessidade e
catividade em relação a determinados produtos ou serviços no mercado, que o coloca
numa relação de dependência em relação aos seus fornecedores”.5
Nesse passo, não há dúvida de que eventual publicidade que se aproveite da condição
do idoso poderá ser igualmente qualificada como abusiva.6
À luz desses consumidores, e, aqui, especialmente das crianças – objeto deste artigo
específico –, cumpre-nos analisar o arcabouço jurídico vigente, sua interpretação e
aplicação e, por conseguinte, sua completude (ou não) para a solução dos possíveis
abusos verificados na comunicação publicitária direcionada às crianças.
3. Do arcabouço jurídico vigente e suas implicações.
Conceito de abusividade. Autorregulamentação.
Casuística
Em matéria de publicidade, nosso ordenamento jurídico contém diversas permissões e
restrições expressas.
Especificamente em relação à interpretação do art. 37, § 2.º, do CDC, cumpre notar que
tal dispositivo, por apresentar carga semântica vasta e flexível, introduz nas relações de
consumo verdadeira cláusula geral de não abusividade, delegando-se ao julgador
preencher tal indeterminabilidade à luz do exame do caso concreto. Cumpre-lhe, pois,
avaliar e definir as situações de abusividade direcionada às crianças (i.e., quando elas
exploram a deficiência de julgamento e experiência da criança), em verdadeiro
adensamento do grupo de mensagens que podem ser qualificadas como ilícitas quando
examinadas a partir da ótica desse público-alvo específico.
O Anexo H do mesmo CBARP, por sua vez, contém diretrizes quanto à publicidade de
alimentos19 e, especificamente em relação a essa publicidade direcionada às crianças, o
código ético determina ainda que: (i) o uso de personagens ou apresentadores do
universo infantil seja feito apenas nos intervalos comerciais (tendo em vista a
incapacidade da criança em diferenciar a mensagem de caráter publicitário do conteúdo
editorial da programação infantil); (ii) não se utilize de crianças excessivamente gordas
ou magras em suas publicidades; e (iii) que se abstenha de qualquer estímulo imperativo
de compra ou consumo.
Ainda no que tange ao estudo das normativas envolvendo o tema, cumpre notar que,
tanto no Brasil quanto no mundo, as normas relacionadas à publicidade infantil
caminham para um sistema misto, de autorregulamentação combinada com restrições
objetivas e pontuais – sendo, pois, a proibição total dessa publicidade a absoluta
exceção.23
Diante das normativas existentes, pode-se concluir, assim, que o Brasil não dispõe de
arcabouço jurídico omisso ou de alguma forma obsoleto em relação às normas de
proteção à criança quanto aos efeitos da publicidade. Tal arcabouço pode e deve ser
ainda melhor testado pela jurisprudencia, recebendo até eventuais incrementos pontuais,
a partir de fundadas discussões entre o setor, os orgãos públicos interessados e a
sociedade civil.24 Não se está diante de um quadro de anomia legislativa, mas, talvez,
de pouca aplicação de um importante arsenal de normas já existentes.
Destarte, uma aplicação mais intensa (e melhor) do art. 37, § 2.º, do CDC somente
ocorrerá a partir da propositura de boas demandas e demonstração no caso concreto da
nocividade da publicidade.33
Há muitas dúvidas, ou pelo menos não há qualquer certeza, de que em uma sociedade
tão complexa como a nossa a criança deixará de ser alcançada pela publicidade, mesmo
no caso de proibição/banimento. Em uma sociedade de consumo altamente marcada
pela conectividade e tecnologia, com produtos (jogos eletrônicos, músicas, roupas,
brinquedos, acessórios de toda sorte etc.) que chegam às mãos das crianças pelos mais
diferentes canais – muitas vezes por iniciativa dos próprios pais (e.g., quem já não
flagrou a clássica cena de uma criança de três anos totalmente absorvida pelo tablet do
pai no banco de um shopping center?) –, seria praticamente impossível imaginar que
nossas crianças deixarão de ser impactadas por estímulos publicitários. Não se pode
esquecer também que em uma economia, como a brasileira, em que parte importante
dos mercados apresenta players na total informalidade, parece impossível imaginar a
efetividade de uma proibição/banimento da publicidade.
Por outro lado, há certeza de que uma excessiva ingerência do Estado na tutela do
consumidor resultará na total substituição da lei à liberdade do indivíduo. Reconhecer-
se-á a priori ser o cidadão incapaz de tomar suas próprias decisões – tanto em relação a
si mesmo quanto no que se refere aos seus filhos, em privação ao livre acesso à
informação de produtos e serviços, ou pior: em total negação à própria capacidade do
cidadão de figurar como agente transformador de uma sociedade.
Uma saída regulatória drástica também não nos parece trazer maior benefício para a
aplicação da lei. Uma regulamentação preventiva e dinâmica, sabemos, já existe e é
exercida pelo Conar, no âmbito da autorregulamentação. Ao lado disso, temos o
mencionado art. 37, § 2.º, do CDC, que apresenta amplo campo de punição. Se tais
normas, legais e autorregulamentares, não se mostraram até o momento suficientes, será
que devemos ter mais regulamentação? Para atividades dinâmicas, como a publicidade,
parece-nos complexo trabalhar no chamado campo da regulação forte, sendo muito mais
recomendável a construção de uma aplicação intensa e com qualidade. De mais a mais,
no caso de uma regulamentação ainda mais forte e minudente, quem exerceria essa
constante avaliação? Esse papel de órgão regulador? E quem constantemente faria a
revisão da regulamentação para que possamos ter um arcabouço não burocrático e
conectado com as demandas da sociedade?
Assim sendo, sem prejuízo de constantes debates e saudáveis discussões que até podem
desaguar em medidas legislativas específicas por meio de lei federal,35 parece-nos que,
do ponto de vista técnico-normativo e da efetividade, o caminho do adensamento de
aplicação do CDC precisa ser radicalmente aprofundado, tanto quanto iniciativas e
campanhas de fortalecimento do papel da família como vetor educacional primário ao
consumo responsável e à identificação de situações que colocam nossas crianças em
zona de risco.
Referências bibliográficas
CAMPOS, Maria Luiza de Sabóia. Publicidade: responsabilidade civil perante o
consumidor. São Paulo: Cultural Paulista, 1996.
DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e direito. 2. ed. São Paulo: Ed.
RT, 2013.
MARQUES, Claudia Lima. Publicidade e infância: sugestões para a tutela legal das
crianças consumidoras. In: ALVAREZ, Ana Maria Blanco Montiel et al. Publicidade e
proteção da infância. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
______; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São
Paulo: Ed. RT, 2012.
MARTINEZ, Wladmir Novaes. Comentários ao Estatuto do Idoso. São Paulo: Ed. LTr,
2004.
MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013.
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