Projeto Revisoras
Sabrina nº 1200
Resumo
CAPÍTULO I
Dean torceu os cabelos batidos pelo vento e prendeu-os dentro da gola alta
do suéter que vestira sobre duas blusas de moletom. Ajustando as luvas
continuou puxando a lona pelo convés bem encerado do Lorelei
— É você, não é? O visitante indesejado segurava uma cópia do
Providencie Journal, o a edição era do dia dezenove de março. Dean sabia
disse porque reconhecia a primeira página do dia anterior. O artigo recebera
o título de "Herói Tímido de Portsmouth" o exibia duas fotos dele. A primeira
fora tirada algum tempo atrás, quando posara com o uniforme da
Aeronáutica, que não vestiu há quatro anos. A segunda, tirada no dia anterior,
durante a invasão da imprensa, mostrava um homem com o rosto virado para o
lado oposto da câmera, os cabelos longos escondendo seus traços e uma das
mãos erguidas numa tentativa frustrada de afugentar o fotógrafo.
Sem interromper o trabalho, ele disse:
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— Creio que não entendeu. Estou lhe dando um milhão de dólares. Livres de
impostos.
— Em troca do quê? De uma entrevista para uma rede nacional de tevê que
vai acabar com minha privacidade? — Concluída a tarefa de remover a lona,
ele girou os ombros e alongou os braços.
— Não sou repórter, Kettering. Sou advogado. — Walsh tirou do bolso
interno do paletó um cartão de apresentação e aproximando-se do barco,
ofereceu-o a Dean, que limitou-se a ler o nome do homem e sua profissão:
advogado.
Percebendo que ele não pegaria o cartão, Walsh guardou-o no bolso.
— Represento a avó de uma daquelas crianças que tirou da água alguns dias
atrás. Agatha Pierce Campbell, da Newport Campbells, conhecida por sua
obra filantrópica que...
— Eu sei quem é.
— A sra. Campbell quer expressar sua imensa gratidão por ter salvo a vida de
seu neto. Ela me pediu para vir até aqui e lhe entregar este cheque de um
milhão de dólares. — Walsh estendeu o envelope verde. — Já cuidei de todos
os aspectos legais e fiscais. Só preciso de sua assinatura em alguns
documentos, e então será um milionário. Nada mal para quem passou dez
minutos congelando o traseiro na água gelada.
Dez minutos? Levara dias para livrar-se do frio que parecia ter penetrado cm
seus ossos.
Dean olhou para o envelope com a testa franzida. Aquilo não podia ser
verdade.
— Escute — Walsh abotoou o sobretudo com os dedos trêmulos e
avermelhados —, falando em congelar, não estou vestido para o clima daqui.
Por que não faz um favor a nós dois e pega esteve envelope de uma vez? Por
favor!
Depois de um instante de hesitação, Dean saltou para o píer, tomou o
envelope da mão do advogado e abriu-o. Dentro dele havia um cheque de um
milhão de dólares em seu nome.
— Qual é o truque?
— Não há nenhum truque. — Walsh retirou meia dúzia de formulários e uma
caneta da pasta. — Só precisa assinar estes papéis é o dinheiro será seu. É
um presente, Kettering. Só precisa decidir como vai gastá-lo.
Um milhão de dólares! Não seria rico, de acordo com os padrões atuais, mas
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teria uma posição de conforto e estabilidade. Se havia uma coisa em sua vida
que mudaria, se pudesse, era a constante necessidade de arranjar dinheiro
para manter o Lorelei à tona e garantir sua sobrevivência. Normalmente, no
verão, o movimento não era ruim. Mas aquela época do ano era dura; toda vez
que o dinheiro começava a minguar, era obrigado a redigir mais um artigo em
sua velha máquina de escrever.
Não. Não era só isso. Havia, algo mais que mudaria, se pudesse. Ou melhor,
algo que teria feito diferente seis anos atrás. Um engano que teria evitado
para não ter de carregar para sempre uma lembrança que o envergonhava.
Não era só o que fizera naquela noite distante que o enchia de remorso. Era o
efeito que causara em todos aqueles anos desde então. Era ter de viver
sabendo que tipo de homem era, um homem capaz de prometer ao melhor
amigo em seu leito e morte que protegeria sua esposa, e depois...
Dean passou a mão na cabeça ignorando George Walsh, que ainda segurava os
papéis e a caneta.
Oh, aquela noite, a noite que lamentava ter vivido, embora ainda acordasse
eventualmente suando e arfando, murmurando o nome de Laura depois de tê-
la visto em sonho.
Havia aquela noite, e os seis anos desde então, seis longos anos durante os
quais tentara esquecer a promessa que fizera a Will Sweeney depois de um
caminhão bomba ter destruído o acampamento em Dhahran e aberto um
buraco no peito de Will.
— Eu vou cuidar dela — ele jurara, disposto a cumprir o juramento. Afinal,
Laura havia sido sua amiga desde o primeiro ano em Rutgers, como Will. Dean
pretendia cuidar para que ela estivesse sempre amparada, para que tivesse
sempre um teto sobre a cabeça e dinheiro suficiente para suprir suas
necessidades, para que nenhum mal a afligisse. Mas Will confiara no homem
errado.
Durante seis anos a deixara sozinha, negligenciado a promessa por não ser
capaz de encará-la depois daquela noite. Dissera a si mesmo que só estava
agindo pelo bem dela, mas, francamente, se não houvesse metido os pés pelas
mãos, poderia ter ficado perto de Laura garantindo sua segurança e seu
conforto, cumprindo a promessa que fizera a Will. Estaria agindo, não apenas
torcendo para que ela estivesse bem.
E ela estava bem, ela e a filha, de acordo com o detetive particular que
contratara havia dois anos. Laura complementava a renda do seguro e da
pensão de militar pintando paisagens marítimas, mas o rendimento dessa
atividade era modesto e esporádico. Dean sabia que dinheiro era uma
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pessoalmente?
— Sim, eu tenho certeza.
— Bem... — Walsh guardou o envelope na pasta e fechou-a. — Foi um prazer,
Kettering — disse antes de partir.
Dean pegou a carteira do bolso traseiro da calça jeans e dela retirou uma
antiga fotografia que mantinha guardada em um compartimento prototor. Era
um retrato de Laura e Will vestidos para o casamento. Will, elegante e
Orgulhoso em seu uniforme azul; Laura, mais encantadora que nunca naquele
vestido simples e branco, os cabelos cor de mel adornados por uma singela
coroa de margaridas. A mãe de Will tentara convencê-la a encomendar um
arranjo de orquídeas, lírios ou flores do campo, argumentando que margaridas
não tinham aquele ar de sofisticação que ela gostaria de dar à cerimônia.
Laura havia respondido que ela não tinha o ar de sofisticação tão desejado
pela futura sogra, e que por isso ficaria com as margaridas, suas preferidas.
Naquele dia ela estivera linda como uma princesa encantada, uma criatura de
conto de fadas. Sua alegria havia sido quase dolorosa de testemunhar. Dean
nunca havia sentido um vazio tão grande.
Ele guardou a foto na carteira e colocou-a novamente no bolso.
Um milhão de dólares. Não era o bastante. Mas era tudo o que tinha.
— Está perdido?
O jovem mensageiro do serviço expresso federal sorriu, apesar do ar de
estranheza.
— O que disse, senhora?
— Precisa de ajuda? — Laura nunca vira um mensageiro federal na região do
velho chalé de pedras que chamava de lar havia cinco anos. Notando o
envelope na mão do rapaz, insistiu: — Que endereço está procurando?
— Este aqui, senhora. Cliffside Drive, número sete. Laura franziu a testa ao
ver seu nome e endereço escritos no envelope. O remetente era um homem
chamado George Walsh, advogado, segundo as informações contidas na
película plástica que envolvia o envelope. O endereço de onde partira a
correspondência ficava em Newport, Rhode Island.
— Deve haver algum engano.
— Laura Sweeney? É esse seu nome?
— Sim, sou eu, mas...
— Então não há nenhum engano. Assine aqui, por favor. — Depois de entregar
uma caneta e o recibo, ele sentiu o aroma que brotava da cozinha do chalé e
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respirou fundo.
— Hmmm... Que delícia!
— Estamos fazendo biscoitos de aveia. Quer um?
— Com passas?
— Sim.
— Não, obrigado.
— Ora, entrega federal! — A melhor amiga de Laura, Kay, surgiu na porta
brandindo uma espátula. Com os cabelos prematuramente grisalhos e os
vestidos amplos de estampas indianas que gostava de usar, Kay parecia uma
bruxa da idade média. — Quem mandou?
Laura encolheu os ombros enquanto assinava o recibo.
— Um advogado de Rhode Island.
— Não aceite! Aposto que está sendo processada!
— Kay, francamente! Quem estaria me processando?
— Como posso saber? Hoje em dia as pessoas processam por qualquer coisa.
O mundo está cheio de malucos.
— Ninguém melhor do que você para saber... — Laura recebeu o envelope e
fechou a porta. — Como vou abrir esta coisa? — perguntou, notando que a
película transparente de proteção era lacrada.
— Há uma lingüeta que você deve puxar para rasgar no lugar picotado e... Oh,
esqueça! Eu cuido disso — Kay decidiu, tomando o envelope da mão dela. —
Você cuida dos biscoitos. A última forma quase queimou.
Na cozinha aconchegante, Laura encontrou a filha, Janey, aproximando-se do
forno com seu enorme avental e as pantufas de cabeça de dinossauro.
— Aonde vai, mocinha? Você sabe que não pode aproximar-se do forno. — Ela
abriu a porta e pegou as luvas térmicas.
— Mas, mãe, eu já sou uma mocinha! Você mesma acabou de dizer. Tenho
cinco anos.
— Quase. — Janey completaria cinco anos no dia de Ano-Novo. — Precisa de
mais experiência e muitos aniversários antes de obter minha permissão para
mexer no forno quente. Agora afaste-se, enquanto tiro os biscoitos daqui.
— Nunca posso fazer nada. — Janey cruzou os braços e fez uma careta
zangada franzindo a testa e lançando o lábio inferior para a frente.
— Você misturou a massa. — Laura retirou a bandeja de biscoitos quentes c a
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cozinha foi invadida pelo aroma de canela e açúcar. — E foi responsável pelo
teste de sabor da primeira forma. Vou permitir que experimente um biscoito
desta também, assim que estiverem mais frios.
Kay entregou na cozinha segurando o envelope e uma carta.
— Laura, veja só isto! Um sujeito chamado Dean Kettering está enviando um
mil...
Laura derrubou a forma e alguns biscoitos caíram no chão; a maioria se
quebrou.
Janey assustou-se.
Laura olhou para a amiga como se não acreditasse no que acabara de ouvir.
— Você disse Dean Kettering?
— Exatamente. Laura estendeu a mão.
— Dê-me isso aqui... — Impaciente, arrancou as luvas, jogou-as sobre a mesa
e pegou os papéis.
Kay entregou-os com ar confuso. Depois pegou as luvas e foi recolher os
biscoitos do chão.
— Janey, por que não recolhe os biscoitos quebrados em uma vasilha para que
possamos jogá-los aos pássaros?
— Quem é Dean Kettering? — A menina perguntou enquanto recolhia os
farelos.
Kay deixou a forma sobre a pia e olhou para Laura com uma sobrancelha
erguida, como se repetisse a pergunta de Janey.
— Ele é... — Oh, Deus! Laura respirou fundo e forçou um sorriso para a filha.
— Ele é um velho amigo... de seu pai. E meu também.
Os olhos azuis da criança tornaram-se ainda mais amistosos Kay sabia por
quê. Tendo nascido muito depois do atentado terrorista que havia tirado a
vida de Will Sweeney, Janey raramente ouvia as palavras "seu pai". Fanática
por honestidade, Laura evitava pronunciá-las. Dizê-las naquele momento,
naquela situação em particular, era quase um castigo.
— Laura, você está bem?
— O que foi, mamãe?
— Eu... Não foi nada, querida. Estou bem. — Ela leu a breve mensagem de
George Walsh explicando que Dean Kettering o incumbira de enviar o cheque
de um milhão de dólares. O documento fora emitido em nome de Dean
Kettering e endossado em seu nome, e o valor...
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aparecera ali no chalé em seu uniforme da força aérea carregando uma caixa
com os objetos pessoais de Will.
— Não voltou a vê-lo depois disso? — perguntou Kay. Laura desviou o olhar e
fez um movimento negativo com a cabeça.
— Por que não? Se eram tão bons amigos...
— Janey, devolva-me esse cheque. — Laura arrancou o documento da mão da
menina. — Não posso ficar com ele. Tenho de devolvê-lo.
— Bem, talvez deva fazer uma pequena investigação. Às vezes é melhor
examinar os dentes do cavalo que ganhamos. Precisa descobrir o que esse
sujeito está querendo. Ninguém dá um milhão de dólares a alguém que não vê
há seis anos. O que ele pode estar tramando? Talvez tenha de devolvê-lo, mas
se o homem ganhou na loteria, ou...
— Não. Não posso aceitar esse dinheiro sob nenhuma condição. Não seria
certo.
— O que há de errado em aceitar um presente? Isto é, desde que conheça as
intenções do sujeito. Não vai querer dever favores a algum maluco que
ressurgiu do passado só por causa de um punhado de moedas. Mas se ele não
tem segundas intenções...
— Esqueça — Laura anunciou decidida.
— Vai devolver o milhão de dólares, mamãe?
— Sim, querida, é o que vou fazer.
— Mas se tivesse um milhão de dólares, poderia comprar o barco do sr. Hale.
Você disse que, se pudesse, compraria aquele barco para sairmos juntos
velejando. Você disse.
— Meu bem... — Laura balançou a cabeça com impaciência. — Você não
entenderia. E um assunto de adultos.
— Eu entendo coisas de adultos — Kay protestou. — Por que não me explica?
— Porque a questão é pessoal.
— Escute, não precisa decidir nada agora. —- Kay pegou o cheque da mão
dela. — Telefone para o homem. Descubra por que ele...
Laura agarrou o cheque de volta.
— Não preciso refletir, e não tenho a menor intenção de restabelecer
contato com Dean Kettering. Não quero o dinheiro, e está acabado.
— Essa mulher que estou ouvindo... é a mesma que ontem reclamava por ter
de contar moedas e fazer cálculos? Há quanto tempo não vende uma tela,
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CAPÍTULO II
— Jean! — Laura exclamou, surpresa. Não o via desde que ele e Will
embarcaram para a Arábia Saudita em janeiro. Dean não pudera comparecer
ao funeral de Will.
Ele tirou os óculos e guardou-os no bolso interno do paletó.
— Olá, Lorelei!
Lorelei. O apelido que ele havia criado na universidade.
— Lorelei era uma sereia — Dean explicara. — Ela escovava os cabelos e
entoava uma canção que atraía os barcos para a destruição nos rochedos. —A
partir do desprezo pela instituição do casamento, ele criara a piada sobre
Laura ter usado seus encantos de sereia para atrair Will Sweeney para a
doce vida doméstica, um destino ainda pior do que aquele encontrado pelos
marinheiros fascinados por Lorelei.
Dean deixou a caixa no chão da varanda e foi ajudá-la com a caixa e o
cavalete.
— O que é isso? — Laura perguntou, curiosa, no alto da escada, os olhos fixos
na caixa de papelão.
Dean pegou a embalagem e colocou-a sob um braço, o mesmo em que
equilibrava o cavalete.
— São algumas das coisas de Will. Cartas, objetos pessoais... Achei que
gostaria de guardá-los.
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Mas Will havia partido, e ela estava sozinha outra vez. Era assustador.
— Laura? — Os dedos de Dean tocavam seu rosto. — Você está bem?
Ela abriu os olhos e se deparou com a expressão preocupada do velho amigo.
Perturbada, assentiu e afastou-se.
— Sim, estou bem. Apenas um pouco... surpresa. Não o esperava.
— Eu teria telefonado, se houvesse um telefone. Quer que eu vá embora?
— Não.
— Vim de carro. Sei que o chalé é um refúgio em que prefere ficar sozinha.
Se quiser...
— Não, Dean. — Ela tocou seu braço, mas interrompeu o contato em seguida.
— Estou feliz por ter vindo. É bom ter companhia depois de um período
prolongado de solidão. Venha, vamos entrar. Insisto no convite para o jantar.
A refeição foi silenciosa, diferente de todos os encontros anteriores, quando
costumavam rir e fazer piadas que divertiam Will. Era isso, Laura decidiu.
Will não estava mais ali para completá-los. Sem ele para servir de platéia e
afastar o perigo representado pelos sentimentos que vibravam sob a
superfície, Laura e Dean não sabiam como interagir.
Depois do jantar, ela lavou os pratos e ele os enxugou, guardando-os sem
nenhuma dificuldade. Haviam passado muitos finais de semana naquele chalé
durante os anos de universidade, e Dean conhecia cada recanto da casa.
Sem levantar os olhos da pia, ela perguntou:
— Tem um lugar para passar a noite?
— Não.
— Pode ficar aqui. O colchão no quarto de hóspedes é velho e pouco
confortável, mas os lençóis estão limpos e passados. Ainda me lembro de
como costumava se queixar daquele colchão.
— Isso foi antes de conhecer os da força aérea. De qualquer maneira, acho
melhor ir procurar outro lugar para passar a noite. Não quero incomodar.
— Não está incomodando.
— Eu sei que estou.
A voz baixa soava estranha como um presságio.
Laura levantou a cabeça e descobriu que Dean estava muito próximo,
observando seus gestos com ar grave. Assustada, enxugou as mãos no avental
e saiu da cozinha dizendo:
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moral. Ele já havia tido outros dois filhos com mulheres diferentes, e teve
outros depois do casamento com minha mãe.
— Por acaso foram os milhões dos Southampton?
— Bingo! O homem tinha gostos caros e precisava de uma fonte de renda para
sustentá-los. Enquanto esteve casado com minha mãe, ele comprou dois jatos,
três casas e pelo menos uma dúzia de carros esportivos, todos italianos, sem
mencionar as toneladas de diamantes e pedras preciosas que minha mãe nunca
chegou a ver. O que não gastou, ele perdeu nas roletas de Monte Cario e Las
Vegas. E quando o dinheiro acabou, o canalha fugiu para a Europa e se casou
com uma baronesa, deixando minha mãe destituída.
— E a família não a ajudou em nada?
— Oh, sim, eles nunca a deixaram passar necessidades. Meus avós a
deserdaram quando ela anunciou a gravidez e a decisão de casar-se com meu
pai, mas permitiram que mamãe e eu fôssemos morar em um apartamento em
Westhampton depois da conclusão do divórcio. No entanto, eles nunca a dei-
xaram esquecer o gesto de caridade. E nunca permitiram que eu esquecesse
que o sangue daquele bastardo corria em minhas veias. Durante minha
adolescência, cada vez que eu cometia um erro, eles me faziam lembrar que o
problema era o caráter duvidoso que eu havia herdado de meu pai.
— Era melhor nem ter conhecido seus avós.
— Não. Eles estavam certos. Quero dizer, eram cruéis, mas nunca foram
estúpidos. Tinham olhos e orelhas. Eu estava sempre me destacando do grupo
da pior maneira possível, agindo como o degenerado incorrigível. Só me
acalmava quando estava velejando. Meus amigos permitiam que eu tirasse
seus barcos do galpão onde eles eram guardados, e logo aprendi a manejá-los.
Mas, em terra seca, eu era uma espécie de imã para encrencas. Cheguei a ser
preso uma vez por desordem e embriaguez.
— Sério? Eu nunca soube disso.
— Foi meu único desencontro com a lei, mas sempre odiei viver dentro dos
limites. Era como se um impulso me levasse a ultrapassá-los, a fazer tudo à
minha maneira, mesmo que para isso tivesse de prejudicar ou magoar outras
pessoas.
— Isso não significa que é como seu pai.
— Não? A genética é uma teoria fundamentada, Laura. Sob a aparência mais
jovem, sou exatamente como meu pai, egoísta e sem objetivos.
Laura esvaziou a garrafa e deixou-a sobre a rocha.
— Estou confusa. Afinal, o que suas supostas falhas de caráter têm a ver com
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Ele a segurou pelos braços, puxou-a para mais perto e afagou suas costas
através da jaqueta. O calor provocado pelo contato acelerou sua pulsação,
deixando-a ofegante.
Dean puxou sua cabeça de encontro ao ombro e apoiou o queixo sobre seus
cabelos. As mãos deixaram de acariciar suas costas. Ele apenas a abraçava,
amparando e protegendo, aquecendo e confortando.
Laura retribuiu o abraço numa resposta que era conseqüência de instinto e
necessidade. Sentiu o movimento do queixo sobre sua cabeça e um roçar
muito leve que só podia ser um beijo.
Um beijo casto. Amistoso. Quase fraternal. E mesmo assim...
Perturbada, disse:
— É melhor voltarmos, Dean. Já é tarde, e...
— E você está com frio. — Ele suspirou. — Sim, eu sei. — Depois de um
instante de hesitação, Dean soltou-a e olhou em volta.
Laura pegou a garrafa vazia. Voltaram para o chalé em silêncio.
Laura ficou acordada até tarde. Passava da meia-noite, e ainda podia ouvir os
passos de Dean pela casa, primeiro no quarto de hóspedes, depois na sala.
Quando ouviu a porta dos fundos se abrindo, ela se levantou e abriu à cortina
para vê-lo na praia, parado de frente para o mar. A brasa alaranjada indicava
que estava fumando. Dean seguiu em frente, e ela o perdeu de vista.
Era quase uma hora quando ouviu os passos novamente no interior do chalé,
atravessando a cozinha, subindo a escada e entrando no quarto. Gavetas se
abrindo, cabides sendo, empurrados no armário...
Os passos pararam no corredor na frente de seu quarto, mas, em seguida,
continuaram e desceram a escada. Laura levantou-se, vestiu o robe sobre a
camisola de flanela e abriu a porta a tempo de vê-lo ainda no meio da escada.
Ele se virou para encará-la. Vestindo a mesma roupa de antes, levava a valise
em uma das mãos e o cabide com o uniforme na outra.
Mesmo na penumbra, era possível ver o pesar em seus olhos além daquele
distanciamento que ela aprendera a reconheceu e odiar ao longo dos anos.
— Ia partir sem dizer adeus?
— Não queria acordá-la.
— E como não gosta de escrever, achou melhor não deixar um bilhete.
— Laura...
— Diz que está se esforçando para mudar, para melhorar, mas ainda é capaz
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Projeto Revisoras
CAPÍTULO III
— Qual deles você prefere? — Kay jogou as três fitas de vídeo sobre o sofá
da pousada. A Blue Mist, única hospedaria além de um hotel de quinta
categoria no subúrbio da cidade, estava sempre lotada no verão. Durante o
inverno, por outro lado, o local ficava vazio. Todas as noites de quinta-feira,
de novembro a maio, eram dedicadas ao cinema na casa de Kay. Às nove, Laura
punha Janey na cama no quarto Rosa, o preferido da menina, e depois ia para
a cozinha com Kay preparar pipocas. As duas amigas abriam uma garrafa de
vinho, escolhiam unia fita na vasta coleção da dona da pousada e sentavam-se
para assistir ao filme. No início, Laura costumava acordar a filha para levá-la
para casa, mas depois decidira simplesmente deixá-la dormindo na casa de tia
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Projeto Revisoras
Kay. Depois do café, ela ia buscar a menina para levá-la a pré-escola que ela
freqüentava às segundas, quartas e sextas.
— Laura? Não vai escolher o filme?
— Como devo proceder para enviar uma encomenda pelo Expresso Federal?
— Por que quer saber?
— Porque amanhã vou devolver o cheque para o advogado que o enviou e...
— Não! — Kay abandonou as fitas e sentou-se ao lado da amiga.
— Sim. É a única atitude correta nesse caso. — E a mais sensata também.
— Escute, sei que existe algo de misterioso entre você e esse sujeito, e
também sei que considera errado aceitar o dinheiro, embora não entenda por
quê. Mas o cheque chegou esta manhã. Ainda não teve tempo para pensar e...
— Sim, eu tive. — Laura bebeu alguns goles do vinho.
— Não refletiu sobre o significado desse cheque na vida de Janey.
— Agora está jogando sujo, Kay. E adotando uma estratégia que não é tão
astuta quanto pode imaginar. Vou devolver o cheque.
— Por que tanta pressa? Não quer conversar com o tal Dean Kettering e
descobrir por que ele mandou o dinheiro? Quero dizer, se ele não espera nada
em troca, e se essa quantia caiu do céu...
— Não poderia conversar com Dean, mesmo que quisesse. Não sei onde ele
vive.
— Em Newport, Rhode Island, provavelmente. Afinal, ele contratou um
advogado de lá para enviar o cheque. Por que não telefona para o homem na
segunda-feira e tenta convencê-lo a fornecer o endereço do cliente?
— Porque já decidi devolver o cheque amanhã mesmo e...
— Laura, posso ligar meu computador e localizar Dean Kettering em cinco
minutos, se quiser.
— Não quero.
— Não está curiosa sobre o paradeiro desse homem? Quero dizer, ele sabe
onde você mora.
— Sim, ele sabe tudo sobre esta casa, porque costumava vir para cá comigo e
com Will quando o chalé ainda era a residência de verão de vovó Jane.
— Certo. Mas como ele sabe que agora você mora aqui? Deve ter feito uma
investigação sobre sua vida. Agora é sua vez.
Determinada, Kay levantou-se e atravessou a sala para ir sentar-se à mesa
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Projeto Revisoras
CAPÍTULO IV
Laura parou no píer gelado ao vê-lo. Um marinheiro que era quase uma réplica
de Popeye havia indicado o caminho até o barco de Dean, o Lorelei.
Lorelei? Não tinha importância. Dean sempre havia gostado das antigas
lendas. Não devia ver significados onde eles não existiam.
Ele se virou e notou sua presença, mas só a reconheceu quando ela baixou o
capuz que protegia sua cabeça do vento frio.
Vários segundos se passaram. Dean soltou a ferramenta com que removia o
gelo do convés da embarcação e afastou os cabelos do rosto.
— Laura? — murmurou atônito.
Ela assentiu.
— Céus... É você, Lorelei?
Ainda podia fugir. Não era tarde demais. Devia devolver o cheque e ir
embora.
Removendo a luva da mão direita, ela retirou o envelope do bolso da jaqueta.
— Vim para devolver algo que não me pertence. Por favor, fique com isto. —
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 33
Projeto Revisoras
Sem esperar por uma resposta, ele passou pela porta certo de que seria
seguido. No instante seguinte estavam acomodados em outra cabine mais
aquecida e bastante aconchegante. Havia uma pequena lareira em um canto e
um aquecedor portátil à querosene em outro.
— Todo o conforto do lar. — Dean empurrou a máquina de escrever, o maço
de cigarros e um bloco de anotações para o canto da mesa, abrindo espaço
para as canecas de café. — O esforço para manter esta banheira aquecida é
constante.
— Posso imaginar. Enfrento uma luta parecida no chalé.
— Ainda está tentando sobreviver com aquele fogão velho que era de sua
avó?
— Sim.
— Não deve ser fácil manter toda a casa aquecida com aquela coisa.
— Não me importo de manter o fogo aceso. O que me incomoda é ter de
passar todo o inverno cortando lenha. Minhas mãos estão tão calejadas, que
fico espantada quando ainda encontro bolhas em meus dedos. A propósito...
como soube que estou morando no chalé de minha avó?
— Você... não me contou que havia sido beneficiada pelo testamento dela?
— Não. E nem poderia, porque só soube do testamento depois que ela morreu.
Foi no verão depois de... depois da morte de Will.
— Como ela morreu?
— Vovó Jane sofreu um infarto. E você está mudando de assunto.
— Deve ter sido duro perder sua avó logo depois de ter perdido o marido.
E o bebê... O primeiro bebê. Mas a única pessoa que soubera sobre o aborto
havia sido a avó.
— Eu sobrevivi.
— Porque é forte e corajosa. Sempre admirei sua capacidade de enfrentar
todos os problemas sem sucumbir.
— Pois não seria capaz de viver como você. Como consegue passar o inverno
aqui? Não tem claustrofobia?
— Não. Esta é minha caverna. Passo o inverno aqui dentro hibernando, e
recupero o tempo perdido com a chagada da primavera.
— Trabalha oferecendo passeios fretados aos turistas, não é?
— Sim, todos os anos, quando volto das Bermudas.
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Projeto Revisoras
— Bermudas?
— É para lá que vou no final de maio. Passo duas semanas mergulhando só para
afastar as lembranças do inverno.
— Tem uma tripulação?
— Oh, não! Sou só eu no veleiro. Depois da viagem retorno para cá e faço
fretamentos diários até o final do verão.
— Nunca se sente solitário?
— Nunca gostei de grandes multidões. E você? Não sente solidão?
De repente a cabine parecia ainda menor.
— Não... não realmente.
— Há alguém em sua vida?
— Um homem? Não. Continuo sendo a mesma Laura caseira e pacata de
sempre. Mas isso não significa que esteja sozinha. Minha melhor amiga mora
na casa ao lado, e nós nos encontramos todos os dias. Ela é psicóloga, mas
decidiu que não acredita mais nas velhas teorias e abriu uma pousada. Lem-
bra-se da velha casa dos Sullivan?
— Aquela monstruosidade vitoriana?
— Exatamente. Kay comprou o imóvel e transformou-o na Blue Mist, uma
pousada encantadora que está sempre lotada no verão.
— Acho que também me tornei caseiro. Com a vida que levo e o lugar onde
moro, é impossível manter muitas atividades sociais.
Aquela era sua maneira de dizer que não havia ninguém em sua vida? E por que
queria que ela soubesse que estava sozinho?
Laura gostaria de não estar tão satisfeita com a revelação.
Dean sentou-se em um sofá de dois lugares e convidou-a a fazer o mesmo. Ela
preferiu remover as revistas empilhadas sobre uma cadeira e acomodar-se
nela. A revista no topo da pilha possuía um artigo de capa chamado
"Explorando o Atlântico". O autor era Dean Kettering.
— Não posso criticá-la por preferir manter distância. Sempre soube cuidar
de si mesma, enquanto eu... Eu sou apenas um grande e insolúvel problema. Já
aprendi a conviver com isso. Mesmo assim, não entendo por que tem de
devolver o cheque.
— Desista, Dean. Não vai me fazer mudar de idéia.
— Por favor! Deixe-me fazer ò que é certo ao menos uma vez.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 36
Projeto Revisoras
Laura tentou interromper o contato, mas os dedos em torno dos dela eram
como faixas de aço.
— Eu... não preciso desse dinheiro.
— A Laura que conheci não teria dito uma mentira tão óbvia.
Sabia que estava vermelha, mas fez questão de encará-lo.
— Você não é o único que desenvolveu maus hábitos.
— Desista. Sei que odeia mentir e não é capaz de dizer uma mentira de
maneira convincente. Você precisa do dinheiro.
— Mas não vou aceitá-lo. .
— Nem mesmo por Jane?
— Quem?
— Sua Filha.
— O nome dela é Janey. Como soube que tenho uma filha?
— Eu...
— A verdade, Dean. Quero ouvir apenas a verdade. Ele respirou fundo.
— Há dois anos contratei um detetive particular para localizá-la. Queria
saber como estava, onde vivia, esse tipo de coisa.
— Por quê?
— Porque precisava saber que estava bem.
— Quando alguém quer ter notícias de um velho amigo, normalmente o
procura e pergunta pessoalmente.
Dean encarou-a com aquela expressão distante que ela aprendera a odiar.
— Não sou como as outras pessoas.
— É tão diferente que não pode usar um telefone, ou escrever algumas
linhas...
— Laura, você me conhece. Não costumo escrever algumas linhas. Vivo
sozinho e isolado, porque sempre que me aproximo de alguém, acabo causando
apenas a infelicidade de outras pessoas. Devia saber disso melhor do que
ninguém. Laura desviou os olhos dos dele, o rosto ardendo por conta da
humilhação.
— Por favor, fique com o dinheiro — ele insistiu.
— Não.
— Se não quer o dinheiro por você, aceite-o por Janey.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 38
Projeto Revisoras
Janey é justamente a razão pela qual não posso aceitá-lo . Mas não podia
revelar a verdade. Nem agora, nem nunca.
— Não, Dean. Sei que não vai entender, mas... Não vou ficar com seu dinheiro.
Não posso.
Dean fechou os olhos por um instante, respirando fundo como se tentasse
manter a paciência. Quando voltou a abri-los, ele a fitou em silêncio
examinando cada traço de seu rosto. Os olhos, o queixo, a boca... As mãos que
seguravam as dela eram calejadas, e ele usou a ponta de um dedo para tocar
sua face.
— Janey é parecida com você? Ou herdou os traços de Will?
— Ela... Comigo. — Era difícil não se deixar perturbar pelo calor daquela mão,
pelo aroma que ainda era tão familiar e sedutor, mesmo depois de seis anos.
— Nesse caso, ela deve ser linda. — Lentamente, Dean tocou seus cabelos
numa carícia singela.
Laura fechou os olhos, tentou controlar a respiração e manter-se firme,
assustada com a força da atração que ainda sentia por ele, mesmo depois de
tudo que haviam vivido.
Dean não era como ela, ou como Will, ou como qualquer outra pessoa. Pelo
contrário. Era uma criatura solitária que só respondia a si mesmo, uma
espécie de animal selvagem que estava sempre evitando seus semelhantes,
que jamais poderia ser domesticado ou treinado para viver no mundo de
Laura. Tudo o que era mais importante para ela, especialmente os laços mais
sagrados da família e do matrimônio, Dean menosprezava.
Dean Kettering era a personificação da palavra problema, como ele mesmo
dizia. Sempre soubera disso e, no fundo, havia sido justamente essa
característica que a fascinara, além de amedrontá-la.
— Ela tem seus olhos? — ele perguntou.
— Não. — Ela tem os seus. — Agora tenho do ir.
— Laura...
— Deixe-me ir. — Usando de força física, ela interrompeu o contato e seguiu
para o convés. — Não posso ficar aqui.
Dean levantou-se de um salto e agarrou-a pelo braço antes que ela pudesse
passar pela porta.
— Não faça isso. Não precisa fugir de mim, Laura. Prometo que a deixarei...
— Solte-me, Dean!
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 39
Projeto Revisoras
— Assim que concordar com minha proposta. Fique com o dinheiro, e nunca
mais voltarei a incomodá-la. Eu juro.
Ela fechou os olhos. Tudo o que ouvia era a respiração ofegante ecoando a
dela. Sentia o peito musculoso pressionado contra suas costas e as mãos em
seus braços como cabos de aço.
— É isso que quer, não? — ele persistiu com tom resignado porém ressentido.
— Espera que eu desapareça de uma vez por todas?
Por que se sentia culpada, se os seis anos de afastamento haviam sido obra
dele mesmo? Depois daquela noite inesquecível, fora ele quem desaparecera
sem deixar pistas.
Ah, mas a situação era muito mais complexa do que parecia. Se sentia culpa,
era porque escondia dele a verdade sobre Janey. Mesmo tendo bons motivos
para omitir certos fatos, não podia evitar o remorso de guardar tão
importante segredo.
E, tendo em vista esse segredo, não podia aceitar o dinheiro de Dean. Seria
injusto, desonesto e impróprio.
— Fique com o dinheiro. Ela balançou a cabeça.
— Seria melhor para todos se você me deixasse ir embora. Por favor...
— Por que não me deixa tomar ao menos uma atitude decente? Não posso
desfazer aquela noite... ou o que fiz...
— Não! — Laura virou-se para encará-lo. — Nada poderá apagar aquela noite.
— A imagem de Janey ainda estava nítida em sua mente quando, naquela
manhã, ela havia acenado da varanda de Kay em suas pantufas de dinossauro e
seu pijama de ursos. — Na verdade, eu não a apagaria nunca, mesmo que
pudesse.
A afirmação deixou-o sem fala.
Laura ergueu a mão e tocou seu rosto.
— Adeus, Dean. — Antes de vestir a jaqueta, ela pegou o cheque no bolso e
deixou-o sobre o balcão.
Depois saiu sem olhar para trás.
CAPÍTULO V
Dean olhou para o envelope sobre o balcão. Dentro dele havia um cheque de
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 40
Projeto Revisoras
havia parado de girar. Alegria e medo o invadiram. Sabia que ela agia impelida
pela solidão e pela dor da perda, que ainda não pensara nas conseqüências do
que fazia...
E mesmo assim a tomara nos braços para mais um beijo apaixonado. A cama
do quarto estava desarrumada, e então caíram sobre o colchão tomados por
um fogo que nada poderia debelar. Fizeram amor como dois adolescentes
dominados pelos hormônios, e atingiram juntos um clímax intenso e
arrebatador. Depois, quando finalmente voltara ao mundo real e recuperara o
ritmo normal da respiração, Dean percebera que ela chorava baixinho.
— Laura? — chamara, assustado, apoiando o peso do corpo em um cotovelo.
Ela havia virado o rosto para esconder as lágrimas, mas os soluços abafados
sacudiam seu corpo. — Meu Deus, Laura! — Apavorado, ele se levantara e
fechara a calça que nem chegara a despir. Depois abaixara a camisola de
flanela para cobri-la e ainda usara o robe para garantir uma dose extra de
modéstia.
Ela se encolhera e, deitada de lado, escondera o rosto entre as mãos.
Dean fora forçado a testemunhar a conseqüência imediato de seu ato
egoísmo. Transformara sua bela e forte Lorelei em uma sombra, em um
fantasma da mulher que um dia ela havia sido.
— Oh, Laura... — Deitado ao lado dela, ele a abraçara apertado. — Eu sinto
muito. A culpa é toda minha.
Laura balançara a cabeça e dissera alguma coisa incompreensível. Dean não
precisava entender as palavras para compreender sua angústia. Ela sentia que
havia traído Will.
Se alguém o traíra, esse alguém fora ele. Dois meses antes, Will Sweeney
morrera nos braços de Dean depois de pedir que ele cuidasse de Laura, que a
protegesse contra todos os males e perigos.
— Eu vou cuidar dela, meu irmão — Dean conseguira responder com a voz
embargada.
No entanto, fora procurá-la enquanto ela se escondia para cuidar da própria
dor e... E ela se sentia culpada?
— Não chore, Laura, por favor. A culpa é toda minha.
Passara algum tempo ali deitado, abraçando-a e murmurando pedidos de
desculpas, até que ela se tornou mais pesada em seu ombro, sinal de que havia
adormecido. Tomando cuidado para não acordá-la, colocou um travesseiro sob
sua cabeça, cobriu seu corpo com a colcha e desceu.
Na varanda, acendeu um cigarro e ficou encostado em uma coluna enquanto
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 42
Projeto Revisoras
fumava.
Feliz agora, Dean Kettering, seu grande cretino? Não havia arrumado
nenhuma grande confusão recentemente, e então teve de destruir a paz de
Laura!
Ela jamais o perdoaria. Sabia disso. Ela piedosa e compreensiva, mas
valorizava a fidelidade acima de tudo, mais uma prova de sua integridade de
caráter.
Laura jamais o perdoaria por ter tirado proveito de um modelo de
vulnerabilidade, por tê-la seduzido enquanto ela ainda chorava a morte de
Will. Ela o convidara para ficar, mas não tinha importância. Laura não sabia o
que estava fazendo, porque tivera o julgamento prejudicado pelo pesadelo
que enfrentava.
Apesar do desejo que os envolvera, da aflição com que ela correspondera a
cada carícia, sabia que não era ele o verdadeiro objeto de seu desejo. Laura
ansiava por afeto, conforto, por companhia, calor humano.
Dean sempre soubera disso em algum nível, mas não se detivera. O desejo por
ela havia sido mais forte do que tudo, dominando-o, privando-o do pouco
escrúpulo que possuía. Não tivera nem mesmo a decência de protegê-la.
Levava sempre preservativos na carteira. Podia ter usado um deles, mas, pela
primeira vez na vida, entregara-se ao instinto sem pensar em mais nada.
E Laura também não se preocupara com isso.
Sentia-se vulnerável e confusa. Tinha o dever moral de protegê-la, de manter
todas as coisas em seus devidos lugares, mas fracassara na missão confiada
pelo amigo.
Desapontara Will.
Depois de fumar o cigarro e apagá-lo no pedregulho espalhado pelo quintal,
Dean entrou e olhou através da sala de estar para o solário, onde Laura
deixara a imensa tela por terminar.
O céu de tempestade e as ondas gigantescas haviam sido como um grito de
dor, um reflexo direto do estado emocional da pintora. E isso havia sido antes
de Dean ter acrescentado mais um ingrediente à mistura.
Prometera cuidar de Laura, mas só havia piorado tudo para ela. O que fizera
naquela noite tornaria ainda maior sua dor. Jamais mudaria. Mesmo quando
suas intenções eram boas, acabava sempre criando problemas.
A caixa que o levara até ali fora deixada aberta sobre a grande bancada de
trabalho e, curioso, ele se aproximara para verificar se Laura já havia
examinado o conteúdo. Havia uma folha de papel aberta sobre todos os
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 43
Projeto Revisoras
CAPITULO VI
lareira que...
— Fiz a pergunta a ele. — Laura deu um passo na direção de Dean. — O que
faz aqui?
— Mamãe, este é o homem que mandou o cheque de um milhão...
— Eu sei quem ele é, Janey. Fui visitar o sr. Kettering para devolver o cheque.
— Você devolveu o dinheiro? Mas... e o barco do sr. Hale?
— Janey, por favor! Estou conversando com...
— Podemos conversar enquanto comemos — Kay sugeriu, colocando o prato de
panquecas na mão de Dean. — Importa-se de levá-las para a mesa? Vou
buscar o café e o bacon. Janey, você leva o suco. E você. Laura...
— Vou matá-la por isso.
— Tudo bem, mas deixe-me comer primeiro. Estou faminta!
— Que história é essa sobre um barco? — Dean perguntou depois de devorar
o último pedaço de panqueca.
Como notara o silêncio persistente da amiga e vizinha, Kay respondeu por ela.
— Laura está interessada em um barco usado.
— É um Precision 18! Raleigh Hale decidiu vendê-lo — Janey explicou
entusiasmada de seu lugar na cabeceira da mesa. — O barco tem cinco anos
de idade, como eu. Mas mamãe diz que não podemos comprá-lo.
— Um Precision 18 é um belo barco. Quanto ele está pedindo?
— Ele é Raleigh Hale, da família dos Hale, fundadores de Hale's Point, uma
cidade perto daqui. E não importa quanto Raleigh está pedindo pelo barco,
porque...
— Oito mil e setecentos dólares — Janey interrompeu novamente. — Mamãe
diz que poderíamos consertar a varanda, o telhado e uma centena de outras
coisas com esse dinheiro.
Se o tivéssemos, é claro.
— Que tragédia ter de fazer tal escolha — opinou Dean.
— Tragédia seria não ter comida para pôr na mesa Ou um teto sobre nossas
cabeças — Laura corrigiu. — Não ter um barco é algo muito mais simples de
resolver.
— Mas por que tem de viver sem um barco?
— Eu sabia. Por isso veio até aqui, não é? Para convencer-me a ficar com
aquele cheque.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 48
Projeto Revisoras
— Não. Você já disse que não vai aceitar o dinheiro, e acredito no que diz.
— Então, o que veio fazer aqui?
— Para dizer a verdade, estava me sentindo um pouco claustrofóbico depois
de ter passado todo o inverno naquele barco. Durante sua visita há alguns
dias... Desculpe, não devia ter chamado nosso encontro de visita. Sei que não
foi essa sua intenção. Enfim, você mencionou uma amiga que havia
transformado a velha casa dos Sullivan em pousada Blue Mist..., Gostei do
nome. É convidativo, sugestivo...
— Acha mesmo? — Kay sorriu satisfeita.
— Pelo amor de Deus — Laura resmungou irritada entro um gole e outro de
café.
— Tomei providências para deixar alguém cuidando do Lorelei, aluguei um jipe
e vim até aqui.
— Quanto tempo pretende ficar? — Kay virou-se para alcançar a caixa de
vitaminas que mantinha sobre o armário.
— Não costumo fazer planos. Algumas semanas, talvez mais...
— Mais? — Laura gritou.
— Não tenho nada para fazer em Portsmouth antes do final de maio, época
em que costumo partir para as Bermudas. Disponho de dois meses para fazer
o que bem entender. — Deixando a xícara de café sobre a mesa, Dean tirou o
maço de cigarros do bolso e serviu-se de um deles.
Janey arregalou os olhos.
— Você fuma?
— Não em minha pousada — Kay anunciou, alinhando os comprimidos e
tabletes ao lado do copo de suco. — Lamento, Dean, mas a Blue Mist é zona
de preservação de oxigênio. Vai ter de fazer sua fumaça fedorenta lá fora.
— Não devia fumar. — Janey olhava para o maço sobre a mesa como se
estivesse diante de uma serpente venenosa. — A srta. Doyle disse que o
cigarro mata as pessoas.
— A srta. Doyle é a professora da pré-escola — Laura explicou. — Janey,
termine seu suco. Não é bonito censurar um adulto, mesmo que ele esteja
errado.
— Tudo bem. — Dean guardou o maço de cigarros. — A srta. Doyle tem razão,
Janey. Fumar é um hábito terrível.
— Então, por que você fuma?
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 49
Projeto Revisoras
— Porque tenho esse hábito desde os treze anos. Não é fácil abandonar um
antigo vício, mesmo sabendo que ele é ruim para a saúde.
— Eu sei. Chupei o dedo desde que era bebê, mas estava ficando com os
dentes tortos e tive de parar. Quase fiquei maluca! — Janey exclamou com
um suspiro aborrecido, certamente imitando um adulto. — Mas com o tempo
foi ficando mais fácil, e agora nem penso em pôr o dedo na boca. Quase
nunca...
— Estou orgulhoso de você — Dean elogiou-a.
— Por que não pára de fumar? Eu ficaria orgulhosa de você.
— Não é tão fácil. Fumo há muitos anos, quase desde sempre!
— Eu chupei o dedo durante toda minha vida, mesmo quando ainda estava na
barriga da minha mãe. Ela viu no... no... Como é mesmo o nome daquele filme,
mamãe?
— Ultra-sonografia — Laura respondeu sorrindo.
— Ela tem razão — Kay opinou depois de engolir todas as vitaminas com suco
de laranja.
— Devia tentar parar. Eu sei que pode. Um dia de cada vez...— A menina
recitou com ar solene, repetindo os conselhos de Laura e sua teoria dos doze
passos, uma técnica com a qual conseguira ajudar a menina a superar o hábito
de chupar o dedo.
Dean riu, parecendo muitos anos mais jovem do que no dia em que Laura fora
procurá-lo em Portsmouth.
— Tudo bem, eu vou tentar.
— De verdade?
— De verdade. Agora beba seu suco.
— Dean — Kay chamou depois de fechar a caixa de vitaminas —, estava
falando sério sobre ficar até o final de maio?
— Estava.
— Vai passar dois meses aqui? — Laura persistiu. —Talvez. Algum problema?
Laura olhou para Janey e sentiu o peito oprimido.
— Posso conversar com você em particular, Dean? — perguntou, empurrando a
cadeira para levantar-se.
— É claro que sim. Por que não vamos dar uma volta na praia?
— Por que veio? — Laura repetiu a pergunta depois de percorrerem um bom
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 50
Projeto Revisoras
trecho da praia. A neve cobria a areia e tornava-se mais esparsa perto das
ondas.
— Você já fez essa mesma pergunta moia dúzia do vezes.
— E ainda não obtive uma resposta satisfatória. nos dois sabemos que não
veio até aqui, e por dois meses...
— Talvez.
— Sim, talvez, só por ter gostado do nome Blue Mist. Tem algum motivo
oculto.
— Eu?
— Dean, por favor...
— Ela é ótima! Divertida, inteligente, espirituosa...
— Sim, também gosto muito dela. Kay é minha melhor amiga, mas nem por
isso...
— Não me refiro a Kay. Estou falando de Janey. — Ele tirou o maço de
cigarros do bolso. — É teimosa, tem opinião... Como o pai.
Laura parou e encarou-o com as mãos na cintura.
— O que está fazendo?
— Acendendo um cigarro.
— Não prometeu a Janey que tentaria parar?
— Sim, mas aquilo foi...
— O quê? Uma mentira?
— Eu disse a ela que tentaria parar porque... bem... Porque quis ser gentil.
— Porque quis silenciá-la. Você mentiu para encerrar um assunto que o
incomodava.
— Pelo amor de Deus, Laura!
— Não gosto que mintam para minha filha. Dean suspirou.
— Eu devia saber. Você sempre foi um modelo de honestidade. Está bem,
conseguiu me convencer. — Ele entregou o maço de cigarros. — Faça-me o
favor de livrar-se deles, sim?
— Está falando sério? Vai mesmo parar?
— Não quero ser acusado de enganar uma criança inocente. Laura guardou o
maço no bolso da jaqueta e encarou-o.
— Muito bem. O que veio fazer aqui? Vou continuar perguntando até
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 51
Projeto Revisoras
CAPÍTULO VII
tênis.
— Estava fazendo a mesma coisa há cinco minutos. Já escovou os dentes?
Silêncio.
— Pelo menos lavou o rosto e penteou os cabelos?
— Vou fazer tudo isso agora.
— A culpa é sua — Laura acusou a amiga. Kay havia sugerido que Janey seria
mais auto-suficiente se pudesse arrumar-se sozinha todas as manhãs.
— Tenha paciência. É preciso tempo para romper velhos hábitos. Mais tarde
vai me agradecer.
— Amarre esses tênis agora! — Laura gritou autoritária. — E depois vá para o
banheiro escovar os dentes, lavar o rosto e pentear os cabelos. Depressa, ou
tia Kay irá embora sem você. — Ela bebeu um gole do café e olhou para Kay.
— Obrigada por ter oferecido carona a caminho da biblioteca.
— Por nada. Sei como é quando está se dedicando a uma nova tela.
Interromper o trabalho quebra o encanto.
Laura começava um grande retrato de Janey, uma pintura que ela iniciara às
cinco daquela manhã tendo por base os desenhos feitos havia duas semanas,
quando a menina adormecera no sofá da sala vestida com um pijama de
dinossauros e abraçada a um bicho de pelúcia igualmente assustador. Havia
transferido o esboço para a tela e composto as cores que pretendia usar.
Agora estava aperfeiçoando alguns tons mais difíceis, como o rosado das
faces da filha adormecida.
— Quase sofri um infarto quando vi Dean ao lado de Janey em sua cozinha.
Não acredito que tenha alugado um quarto para ele sem falar comigo. Por que
não telefonou?
— Porque você teria exigido que eu o mandasse embora.
— Exatamente.
— Achei melhor hospedá-lo e despertar sua raiva do que tentar convencê-la a
aprovar minha decisão, o que não iria acontecer. Eu teria alugado o quarto da
mesma maneira, e você teria ficado ainda mais furiosa.
— Sabe de uma coisa, Kay? Às vezes você é muito aborrecida.
— Você me ama assim mesmo.
— Sempre. Exceto quando a odeio. É uma pena que o solo esteja gelado
demais para enterrar um corpo, ou eu me sentiria tentada a usar aquele meu
novo machado.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 54
Projeto Revisoras
— Alguém já pensou nisso. — Kay olhou pela enorme janela que ocupava um
dos lados do solário.
Laura seguiu a direção dos olhos da amiga e viu a pilha de madeira que ela
encomendara na semana anterior. Uma montanha de toras se equilibrava de
forma precária no quintal, alcançando a estatura de um homem adulto. Talvez
mais. Certamente mais do que a estatura do homem que organizava as toras
com uma das mãos enquanto segurava o machado com a outra.
Dean. Laura resmungou um palavrão que Janey jamais ouviria de sua boca.
Dean usava os cabelos soltos naquela manhã, e o vento frio o castigava
enquanto ele erguia o machado para reduzir o tamanho dos pedaços de
madeira. O suéter de lã azul era grande e confortável, mas não escondia os
ombros largos e os braços poderosos que as mangas arregaçadas exibiam.
Kay riu e bebeu um gole de café.
— A paisagem dessa janela ficou muito mais interessante.
— O que ele está fazendo?
— Cortando sua madeira.
— Porquê?
— Porque esse é um trabalho que você detesta, e ele gosta de manter-se
ocupado. Assim não pensa nos cigarros. Foi o que ele me disse hoje cedo.
— Sabia que ele viria aqui cortar minha madeira e não me disse nada?
Kay arregalou os olhos com falso espanto.
— Eu não comentei que ele planejava fazer esse favor monumental?
— Você entendeu, Kay. Está cansada de saber que não quero nenhuma
aproximação com esse homem.
— Tudo o que sei é que ele a deixa tão nervosa que já ameaçou sua melhor
amiga com uma faca, um machado e um... Qual é o nome dessa coisa que tem
na mão?
Laura arremessou a espátula do outro lado da sala e proferiu mais um
palavrão.
— Felizmente ainda tenho alguns neurônios e todos os dedos.
— O que quer dizer com isso?
— Não sou nenhuma estúpida, Laura. Sei fazer contas, desde que o resultado
não seja superior a dez. O número de meses entre o dia dois de abril de
1995, quando Dean veio visitá-la, e primeiro de janeiro de 1996, quando Janey
nasceu, é...
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 55
Projeto Revisoras
— Ele sempre me conheceu bem, Kay. Sempre soube que sou mulher de um
homem só, alguém cujo maior sonho é cuidar de uma família e de um lar. Ele
vivia dizendo que sexo é só uma maneira de obter satisfação física, que a
monogamia é uma invenção das mulheres para manter os homens...
— Sim, sim, sim, o discurso de todo universitário que quer parecer livre e
moderno. Está dizendo que ele acreditava que você viveria pendurada nele,
caso ele ficasse por perto?
— É isso. E ele tinha razão, porque eu teria mesmo me apegado a ele. —
Sempre fora apegada a Dean.
— O que fez quando descobriu que estava grávida?
— Chorei. Só uma vez, mas durante horas. Sempre quis ter filhos, mas as
circunstâncias não podiam ser piores. Depois... Não sei, devem ter sido os
hormônios, a endorfina... O fato é que me acalmei e aceitei minha nova
condição. Havia um bebê dentro de mim. O homem que o colocara ali estava
longe de ser a escolha ideal, mas aquele era meu bebê. Um filho que eu queria
e amava.
— Entendo. Não consigo imaginá-la lamentando alguma coisa por muito tempo.
Não faz parte da sua natureza.
— O único problema era ter de contar a verdade a vovó Jane, mas ela faleceu
antes que eu tivesse coragem para falar.
O chalé e o dinheiro que ela deixou para mim em testamento foram minha
salvação. Pude dedicar-me à pintura como trabalho e como um meio de
manter-me inteira, livre da insanidade e...
— Nunca pensou em procurar por Dean e falar sobre o bebê?
— Pensei. Acreditava que ele tinha o direito de saber, e então tentei localizá-
lo na Força Aérea, mas eles não me deram nenhuma informação. Esperava que
um dia ele entrasse em contato comigo, mas... Ele nunca me procurou.
— Ah...
— Foi quando você se mudou para cá, quando eu já estava prestes a ter o
bebê, que finalmente desisti de procurá-lo. Passei a pensar que meu bebê
estaria melhor sem um pai do que com alguém que não quisesse viver conosco.
Ela merecia mais do que isso. Nós merecíamos mais...
— Devia ter se esforçado mais para encontrá-lo. Dean podia mudar de idéia
quando soubesse sobre o bebê. Talvez houvesse até se casado com você.
— Digamos que ele houvesse feito o que está dizendo, apesar de ser uma
atitude contrária a sua natureza. Dean Kettering não teria ficado conosco
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 59
Projeto Revisoras
por muito tempo. E um pai que abandona a família como se fosse algo sem
importância é pior do que não ter nenhum pai porque o abandono deixa
cicatrizes profundas em uma criança. O próprio Dean é prova disso.
— E por isso ainda se recusa a contar a ele, mesmo depois de ele ter
restabelecido contato?
— Sim, e por isso não posso aceitar aquele dinheiro. Não seria correto tomar
um milhão de dólares de alguém de quem guardo um segredo tão importante.
E se revelasse a verdade, estaria abrindo uma série de novas e terríveis
possibilidades. Ele estaria em cena, seria o pai de Janey...
— Laura, ele é o pai de Janey.
— Você entendeu o que eu quis dizer. Ele seria uma figura paterna. Seria
importante para ela. Depois desapareceria levando o equilíbrio da vida de
minha filha, e eu ficaria com a amarga missão de juntar os pedaços. Não,
obrigada.
— Talvez não esteja dando muito crédito a esse homem. Apesar de tudo, ele
parece ser um bom sujeito.
— Um sujeito perigoso. — Laura olhou para a tela onde o tom forte de rosa
cobria parte do rosto de Janey. A menina parecia uma palhaça, e ela tentou
remover a tinta com a espátula. O resultado foi ainda pior. Lá fora, Dean
continuava cortando a madeira com determinação e afinco, movendo o corpo
com aquele ar viril que sempre a fizera tremer por dentro.
— Bem, ele pode ser rebelde, impulsivo, auto-suficiente demais, mas isso não
quer dizer que seja perigoso.
— Para mim ele é. — Laura molhou um pano em terebintina e limpou o que
ainda restava da tinta na tela.
— Agora entendo. O problema é que você gosta dessa atmosfera de rebeldia
e instabilidade.
— O quê? Meu objetivo é segurança e compromisso, lembra?
— E homens rebeldes. Ou melhor, um certo homem rebelde. É claro que a
escolha não se dá em um nível consciente. Você acredita preferir um homem
correto, doce e pacato, um desses pais perfeitos que cortam a grama aos
domingos, recebem seus pagamentos no fim do mês e ouvem a estação de
música clássica, e de certa forma é isso que quer. Mas naquele recanto
secreto da alma onde se escondem os mistérios de uma mulher, onde moram
seus desejos mais verdadeiros... O que você quer é rock and roll.
Laura jogou o pedaço de pano na lata de lixo reservada para os inflamáveis e
limpou as mãos no avental de brim que sempre usava sobre as roupas.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 60
Projeto Revisoras
Carregando o pincel com uma mistura de tintas mais claras, ela retomou o
trabalho de pintar o rosto de Janey.
— Para alguém que diz ter deixado de acreditar nas velhas teorias, você
ainda sabe como atormentar alguém com suas conclusões psicológicas.
— Foi só uma observação. Se é uma conclusão psicológica que quer, aí vai. O
motivo pelo qual considera Dean perigoso, e portanto a impede de aceitar seu
dinheiro ou revelar a verdade sobre Janey, apesar desse seu fetiche por
honestidade, é seu medo secreto dessa atração poderosa que sente por ele.
Tem medo de ser correspondida em seus sentimentos, o que a levaria a
atirar-se nos braços dele e...
— E arrepender-me até o final de meus dias — Laura concluiu. —
Especialmente se Janey ficar traumatizada por causa do meu egoísmo, por
ter sido estúpida a ponto de aceitá-lo em nossas vidas. Não, Kay, a situação
não é tão simples quanto pode imaginar. O que devo dizer a Janey? Querida,
seu pai nunca foi meu marido, mas ele era o melhor amigo do homem com
quem me casei?
— Ela tem o direito de saber.
— Está brincando! Não, Kay, Janey estará melhor sem saber sobre... Janey! —
Estivera tão envolvida na conversa que havia esquecido o horário da pré-
escola. — Meu Deus! São quase nove horas! Ela vai se atrasar para o passeio!
— Jogando o pincel sobre a bancada, Laura saiu do solário e correu para a
escada. — Janey! — Enquanto gritava, ela subia aos saltos.
— Janey, você está pronta? — Ao abrir a porta do banheiro, Laura deparou-
se com a imagem da filha sobre seu banquinho de madeira, os braços
mergulhados até os cotovelos na pia cheia de água espumante. Ela ainda não
havia lavado o rosto nem penteado os cabelos. — Janey! O que está fazendo?
— Lavando minha coleção de botões.
— Pelo amor de Deus! — Laura pegou a escova da prateleira e começou a
pentear os cabelos louros e emaranhados da filha.
— Pegue a toalha e enxugue as mãos e os braços.
— Mas meus botões estão...
— Agora!
— Ai! — Janey queixou-se enquanto obedecia. — Está puxando meu...
— Fique quieta. Devia estar pronta para sair, mas preferiu ficar brincando.
Agora vai se atrasar para o passeio com a escola.
— Posso ao menos enxugar meus botões? — A menina perguntou enquanto
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 61
Projeto Revisoras
CAPÍTULO VIV
— A tela é maravilhosa.
— O quê? Oh, o retrato... Ainda não está pronto. Na verdade, mal comecei o
trabalho. O resultado final será bem diferente do que está vendo.
— Eu sei. — Sorrindo, Dean virou-se e a viu parada na porta com os braços
cruzados sobre o avental manchado de tinta. Ela prendera os cabelos com
uma daquelas coisas estranhas cheias de garras, mas mechas rebeldes ainda
emolduravam o rosto de pele translúcida. — Conseguiu capturá-la numa pose
natural, rotineira, e é isso que torna o trabalho tão especial. É Janey, uma
criança de verdade, não um modelo idealizado. Você não perdeu o dom,
Lorelei.
— Obrigada — ela respondeu constrangida.
— Desde quando começou a retratar pessoas? — Dean havia notado dez ou
doze telas enfileiradas contra uma das paredes. Mais da metade era
composta por retratos, quase todos de Janey. Antes Laura costumava pintar
apenas o oceano, às vezes uma paisagem simples ou uma natureza-morta.
— Eu... comecei quando Janey nasceu. À primeira vez que a desenhei foi no
hospital, horas depois do parto. — Ela apontou para um quadro pendurado
sobre a bancada.
Dean sorriu ao perceber que o desenho emoldurado fora feito com caneta
esferográfica sobre um guardanapo de papel com o timbre do hospital. Laura
havia capturado com perfeição a imagem da recém-nascida dormindo, o
polegar inserido na boca, os cabelos espetados lembrando o tão famoso estilo
de Sid Vicious.
— É surpreendente que tenha tido inspiração num momento tão... singular. O
parto deve ter sido fácil.
— Sim, embora tenha sido longo. Trinta e oito horas.
— Trinta e...? Meu Deus! Deve ter sido... — O quê? Doloroso? Solitário?
Assustador? — Eu sinto muito, meu bem. Eu... Havia alguém...? — Por que era
tão difícil? Porque sentia vergonha. Devia ter estado ao lado dela, mas havia
preferido fugir. — Sei que sua avó já havia falecido. Alguém ficou com você?
— Kay. Eu a conhecia havia um mês e meio, mas nos tornamos amigas
imediatamente. Ela foi maravilhosa. Esteve comigo o tempo todo, e os
médicos a admitiram até mesmo na sala de parto. Quanto aos quadros,
continuei pintando paisagens, mesmo no inverno, porque é com elas que ganho
a vida. Mas também pinto Janey, e essas telas eu jamais venderia. São todas
minhas.
— É mais interessante do que um álbum cheio de fotos.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 63
Projeto Revisoras
— Oh, mas eu também tenho as fotos. Janey é... o centro da minha vida. Seu
nascimento mudou tudo.
Um silêncio profundo caiu sobre eles. Dean bebeu um gole de café e olhou em
volta, analisando o estúdio improvisado que havia mudado tão pouco em seis
anos, um lugar que tinha o cheiro e a aparência de sua Lorelei.
Sua Lorelei... Desde quando ela havia sido dele?
Desde sempre.
— Posso me sentar um pouco? — ele perguntou. — Volte à pintura, se quiser.
Não quero interferir no seu trabalho. Vou terminar meu café e descansar um
pouco, e depois estarei fora daqui.
— Certo... Está bem.
Dean permaneceu sentado na espreguiçadeira no canto do solário, observando
enquanto ela aplicava a tinta rosada na tela. Quando voltou a falar, Laura
perguntou há quanto tempo ele morava no Lorelei.
— Há quatro anos. Desde que saí da Força Aérea.
— Você costumava dizer que acabaria sendo expulso ou condenado à corte
marcial. Suponho que nada disso tenha acontecido.
— Não. Eles nunca deram muita importância à minha rebeldia, porque sempre
me mantive dentro dos limites, embora os questionasse. Na verdade, estava a
um passo do posto de capitão quando decidi sair.
— E por que saiu? — Laura inspecionou a tela com ar crítico.
— A situação nunca foi perfeita para mim. Você sabe disso. E depois do que
aconteceu com Will... Bem, depois daquilo comecei a contar os dias. Tudo o
que queria era ser livre e não dever satisfações a ninguém além de mim
mesmo.
Laura trocou de pincel e continuou trabalhando, misturando o tom rosado ao
da pele até obter a coloração perfeita de um rosto saudável.
— Você tornou-se um ermitão — disse. — Kay e eu tivemos muito trabalho
para encontrá-lo. Não tem e-mail, o telefone não consta do catálogo, não tem
endereço fixo...
— Mantenho uma caixa postal em Portsmouth, mas tudo o que encontro nela é
uma pilha de publicidade inútil. Não gosto da idéia de possuir coisas que só
complicam a vida, como telefone e computador.
—- Aposto que não tem carro. Disse que alugou um jipe para chegar aqui.
Como se locomove em terra firme?
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 64
Projeto Revisoras
Dean pensou um pouco e concluiu que seu maior problema era encontrar uma
forma de atender ao último pedido do melhor amigo. Precisava cuidar de
Laura. Poderia usar aquela quantia para fazer como Will havia pedido, mesmo
que ela não o aceitasse diretamente.
— Muito bem. — Ele pegou o envelope, dobrou-o ao meio e guardou-o no bolso.
— Você venceu. Vou depositar o cheque ainda hoje.
Os olhos cor de âmbar buscaram os dele e, astutos, tentaram ler além das
palavras. -— Eu venci? Assim?
— Assim. Simples, não? — Dean respondeu sorrindo.
CAPÍTULO IX
— Você está com febre alta. Tem um termômetro? — Segurando sua mão, ele
a levou para o quarto deixando o boné no console do corredor.
— Sim, no armário do banheiro, mas não creio que esteja tão doente. Não
posso estar. Tenho coisas para fazer.
— É claro. Vá para a cama e vamos medir sua temperatura. Depois falaremos
sobre todas as coisas que tem para fazer.
Dean ajudou-a a despir o roupão e deixou-o aos pés da cama. Laura começou a
tremer imediatamente. Ele a fez deitar-se e puxou as cobertas sobre seu
corpo.
— Volto num minuto — disse, deixando o quarto. Segundos depois retornava
com o termômetro digital. — Abra a boca — pediu, sentando-se na beirada da
cama para inserir o instrumento entre seus lábios.
Enquanto esperava, Dean notou os retratos de Janey nas paredes, as
almofadas que sobreviviam desde os tempos de Jane, a avó de Laura, o papel
de parede desbotado e as cortinas de renda, a velha cama de casal. Laura
tentou imaginar se ele estava lembrando a última vez em que estivera naquele
quarto, naquela cama.
Os olhos encontraram os dela, e ela soube que era exata-mente nisso que
Dean pensava.
Bip.
Ele retirou o termómetro de sua boca e franziu a testa diante da medida.
— Trinta e nove ponto dois. Você não tem só um resfriado.
— Oh, não... Marie, a vendedora da loja de materiais para pintura em Hale's
Point, não estava se sentindo muito bem quando estive lá há dois dias. Ela
comentou que toda a família estava na cama por causa de uma fortíssima
gripe.
— Foi a Hale Point na quinta-feira?
— Sim.
— Eu também.
— Para quê?
— Falaremos sobre isso mais tarde. Bem, você está com uma gripe violenta. E
melhor levá-la ao médico.
— É um vírus, Dean. Minha médica não vai poder fazer nada por mim.
— Tem razão. Mas precisa de alguma coisa que faça baixar sua temperatura,
muito líquido e repouso. Vai ter de esquecer todas aquelas coisas que tinha
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 70
Projeto Revisoras
para fazer.
— Impossível. Tenho de ir buscar Janey na casa de Danielle e terminar sua
fantasia para a peça da igreja amanhã. Depois disso...
— Ei, ei, vamos devagar. Precisa ir buscá-la na casa de quem?
— Danielle, a amiga que a convidou para dormir. Fiquei de ir buscá-la às onze
horas.
— Eu vou.
—De jeito nenhum.
— Laura...
— Por favor, Dean. Eu cuidava de tudo muito bem antes de você aparecer por
aqui com seu cheque de um milhão de dólares e sua boa vontade inesgotável.
Para sua informação, não preciso de ajuda nem quero sua ajuda. Minha vida
era perfeita sem você.
— Tem certeza, Lorelei?
Ela fechou os olhos e sentiu o ardor provocado pela febre.
— Tenho.
— Pois a minha vida... — Ele tocava seu rosto com as pontas dos dedos.—
Quero dizer, é satisfatória, mas às vezes sinto que falta alguma coisa.
Quando acordo no meio da noite e começo a pensar nisso... acabo sempre
pensando em você, imaginando o que teria acontecido se as coisas fossem
diferentes e...
— Isaura! — A voz de Kay precedeu a batida da porta da cozinha. — Está em
casa? Vou à cidade. Precisa de alguma coisa?
Abrindo os olhos, ela encheu os pulmões para responder, mas Dean pousou um
dedo sobre seus lábios.
— É melhor não forçar a garganta. — E virou o rosto para a porta. — Ela está
aqui em cima, Kay. Pode trazer um copo com água e um analgésico?
Houve uma pausa.
— Laura se machucou?
— Não, mas está doente. — Olhando para Laura, ele afagou seus cabelos e
notou que ela fechava os olhos. — Isso mesmo. Relaxe. Precisa ficar na cama
e ser servida e bem tratada até melhorar. Onde fica a casa de Danielle?
Laura abriu os olhos e suspirou exasperada.
— Já disse que não. Não posso permitir que faça tudo isso por mim.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 71
Projeto Revisoras
— Está insinuando que vai sair de casa para ir buscar sua filha com mais de
trinta e nove graus de febre? Sem carro?
— Não. Kay pode cuidar disso.
— O que eu posso fazer? — Kay perguntou ao entrar no quarto com a água e
os comprimidos. Na bandeja também havia uma laranja e uma fatia generosa
do pão de banana passa que Laura preparara no dia anterior. — Meu Deus,
você está horrível!
— Eu sei. — Com esforço e a ajuda de Dean, sentou-se na cama e apoiou-se
nos travesseiros que ele colocou em suas costas.
— Ela está com uma gripe terrível.
— Notei que não estava muito bem ontem à tarde. Tome isto — Kay ordenou,
colocando dois comprimidos na mão dela e oferecendo a água. — O que quer
que eu faça?
— Pode ir buscar Janey na casa de Danielle às onze horas?
— É claro que sim. Estava com você ontem à noite quando a deixamos lá, não?
— Eu disse a ela que eu iria buscar Janey, mas Laura recusa todas as minhas
ofertas de ajuda.
— Ela não sabe o que é bom para ela. Laura tem sorte em ter amigos
prestativos.
— Kay...
— Danielle mora naquela casa enorme de tijolos vermelhos na esquina da
Spencer com a Main. Vai encontrar o lugar com facilidade — ela disse a Dean.
Laura fechou os olhos e pôs o braço sobre a testa.
— Odeio vocês dois.
Sorrindo, ele afastou os cabelos que caíam sobre seu rosto.
— Agora que resolvemos esse aspecto do problema, o que foi que disse sobre
uma peça na igreja amanhã?
— Não sei. Esqueci. Deve ser a febre.
— A sala de Janey na escola dominical vai encenar uma peça sobre a vida de
Moisés para a congregação durante o serviço de amanhã. — Kay começou a
descascar a laranja. — Janey será a filha do faraó, a que encontra o bebê
Moisés no cesto.
— A fantasia dela ainda não está pronta — disse Laura.
— Só o arranjo de cabeça. — Kay ajudara a amiga a criar o elaborado figurino
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 72
Projeto Revisoras
Agora vou limpar aquela bagunça lá fora antes de ir buscar Janey. Oh, e se
alguém da Manson's Aquecimento e Ar Condicionado vier me procurar
enquanto eu estiver fora, peça para esperar até...
— Ei, ei, devagar! — Laura exclamou, sentindo a cabeça girar e doer. — Por
que alguém da Manson's viria procurá-lo aqui?
— Por nada. Eu encomendei um forno elétrico e uma rede de canos para o
aquecimento central.
— O quê?
— Até que enfim! — Kay aplaudiu.
— Dean, você não vai comprar um forno elétrico para a minha casa! Está
ouvindo? Não vou aceitar!
— Como já está nervosa... — Ele retirou do bolso da calça alguns papéis
dobrados. — Você queria saber o que fui fazer em Hale Point no outro dia.
— O que quer que seja, não quero. Não aceito.
— Dê-me isso. — Kay arrancou os papéis das mãos dele.
— Não vê o que ele está fazendo? — Laura perguntou á amiga. — É claro que
sim. Como não aceitou o cheque do um milhão de dólares, ele está usando o
dinheiro para comprar coisas do que você precisa. — Ela examinou o
documento. — Ou que você quer muito!
— O que é isso?
— Estou saindo — Dean avisou apressado. —Não deixe que ela fique muito
agitada, Kay. Laura precisa descansar.
Sorrindo, Kay entregou os papéis à amiga.
— Aí estão os documentos do barco de Raleigh Hale.
— Ah, pelo amor de Deus! — Ignorando o título, Laura caiu sobre os
travesseiros è fechou os olhos. — Não posso aceitar!
— É tarde demais para isso. O título de propriedade está em seu nome. O
barco já é seu.
— Não posso acreditar que esteja apoiando as atitudes daquele maluco!
— E eu não posso acreditar que esteja tentando afugentar um homem lindo,
decente e generoso que, por acaso, também é o pai de sua filha.
— Lamento que tenha chegado a essa conclusão. Espero que Janey nunca
desconfie disso.
— Você devia contar a ela. Janey tem o direito de saber quem é o pai, e Dean
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 74
Projeto Revisoras
tem o direito de saber que tem uma filha. Ele se sente ligado à menina, Laura!
É evidente. Não se sente culpada por esconder a verdade?
— E claro que sim! A culpa está me devorando. Mas já discutimos esse
assunto. Dean não nasceu para ser pai.
— Ele vai levá-la à igreja amanhã! O que pode ser mais paternal?
— Não estou dizendo que ele é incapaz de representar o papel de pai. No
entanto, mais cedo ou mais tarde, a novidade vai se esgotar e ele irá embora.
Vai ser difícil para Janey quando Dean desaparecer. Pense em como será pior
se ela souber que ele é seu verdadeiro pai. Além do mais, pode imaginar uma
explicação razoável para os fatos? Ela acredita que é filha de Will. Se contar
a verdade agora, Janey jamais entenderá por que a escondi por tanto tempo.
— É claro que ela vai entender. Ninguém melhor do que as crianças para
compreender que a vida às vezes torna-se difícil e complicada. Elas sabem
tudo sobre situações delicadas e decisões dolorosas. Diga apenas que precisa
conversar, que tem algo importante para contar e seja clara. Janey
entenderá tudo.
— Está assumindo novamente aquele ar de terapeuta familiar, srta. Não-
Acredito-Mais-Em-Psicologia.
— É difícil superar um velho hábito.
CAPITULO X
— Quem disse que é o único que pode mudar com a idade? — Laura ajeitou
mais uma tira de papel sobre a estrutura de arame. — Então, vai levantar vela
no final de maio?
— Gostaria de ir antes, mas as temperaturas são muito baixas em New
England antes desse período. Na verdade, o clima é frio e úmido até que se
possa atravessar o Golfo.
— De quanto tempo precisa para concluir a viagem?
— Sozinho? Uma semana de Portsmouth ao Porto de Saint George. Menos se
não houver muito vento e eu tiver de usar o motor, mais se o tempo for
desfavorável.
— Não imagino enfrentar uma viagem dessa sozinha.
— E eu não consigo imaginá-la tropeçando em outras pessoas. Prefiro a
companhia do piloto automático. —Ultimamente chegara a imaginar como
seria velejar em companhia de Laura. Não seria tão ruim tropeçar nela de vez
em quando...
— Não sente solidão quando está no meio do oceano sem nenhuma companhia?
— Mas eu tenho companhia. Ela só não é humana. Na última vez encontrei um
cardume de golfinhos; e uma baleia escoltou meu barco até bem perto da
entrada do porto.
— Uma baleia? Puxa, eu adoraria ter visto isso! -— Laura mergulhou uma tira
de papel na vasilha no mesmo instante em que Dean trabalhava. Ela se
assustou quando as mãos se tocaram.
Dean segurou seu pulso antes que ela pudesse se afastar.
— Eu teria adorado se você estivesse lá. Vermelha, Laura desviou os olhos
dos dele.
— Eu... pensei que não gostasse de ter outras pessoas a bordo.
— Você não é uma pessoa qualquer. É especial, porque... porque aprecia coisas
que nem todos sabem apreciar. Por isso suas pinturas são tão poderosas e
envolventes. É capaz de ver além da superfície. Enxerga a essência das
coisas, as verdadeiras cores da natureza e dos seres humanos.
Laura tentou encerrar o contato, mas ele a segurava com firmeza.
— Depois de cruzar o Golfo, a água se torna tão azul que é como olhar para
uma piscina. Você adoraria. Poderia levar suas tintas e suas telas...
— Dean...
— E não acreditaria no brilho das estrelas sem as luzes artificiais. Costumo
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 78
Projeto Revisoras
você... Mas o inevitável não pode ser negado. Ninguém pode escapar do
destino.
— Às vezes é preciso escapar.
— Por que insiste em afastar-me de você? Por que não aceita o dinheiro e me
deixa ficar perto de você? São seis anos, Laura! Will morreu. Eu estou aqui.
— Por quanto tempo?
A pergunta o pegou de surpresa. Dean ficou quieto, pensativo.
— Com ou sem ligação, jamais viveremos juntos. O problema não é Will. Já
disse, a situação é complicada.
— Por que não tenta explicar?
— Não posso. Sei que não entenderia...
— Foi o que disse em Portsmouth. Por que não tenta?
— Já disse que não posso!
— Por que não? O que está escondendo de mim, Laura?
— Por favor, Dean...
Ele a segurou pelos ombros e notou as lágrimas correndo por seu rosto.
— Oh, meu Deus...
— Por favor... Eu não posso... — Soluços a sacudiam. — Não posso explicar.
— Tudo bem, tudo bem... — Dean aninhou a cabeça dela em seu peito. — Não
tenho o direito de pressioná-la.
— Não me peça para explicar — da soluçou, agarrando sua camiseta.
— Não vou pedir mais nada. Prometo.
—- Eu sinto muito, Dean. Sinto de verdade.
— Você não tem nada de que desculpar-se.não tem o que lamentar.
— Gostaria de poder concordar com você.
CAPÍTULO XI
Está atrasada! — Kay exclamou ao ver Laura entrando na pousada. Ela passara
a tarde cuidando de Janey e arrumando as malas para a viagem anual de
férias que fazia com a mãe antes do início da temporada de turismo em Port
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 80
Projeto Revisoras
acontecer.
— Foi errado.
— Dean...
— Você chorou de arrependimento. Ficou devastada!
— Chorei ainda mais na manhã seguinte, quando acordei e descobri que havia
ido embora. Também me senti culpada, Dean, mas nunca pensei que aquela
noite foi um erro. Foi... complicado. Só isso.
— Agora entendo o que diz, mas na época era diferente. Senti que havia
cometido um engano imperdoável, e o sentimento cresceu depois que
encontrei aquela carta. Achei que estaria melhor longe de mim.
—Por isso desapareceu?
— Para protegê-la de mim. Mas depois recebi aquele cheque de um milhão de
dólares, e agora... Agora estou aqui. Durante esses seis anos, pensei em você
todos os dias, imaginando como seria sua vida e a minha se tudo houvesse... se
as coisas fossem diferentes. Você... pensou em mim?
— Sim... muito.
— Quando eu for embora, vai sentir minha falta? Ele iria embora. Sempre
soubera disso.
— Sim, eu sentirei sua falta. A porta da cozinha se abriu. — Vocês dois...
Laura escapou do abraço e deu as costas para Dean.
— Não sinto cheiro de pipoca — Kay apontou. — O que estavam... — Ela parou
e cobriu a boca com a mão. — Dean! O que aconteceu com seu cabelo?
— Mudei de estilo.
Depois do filme, Dean se ofereceu para carregar Janey até a casa de Laura.
Como chovia muito e ela teria de levar o guarda-chuva emprestado por Kay,
Laura aceitou a oferta. Em casa, os dois colocaram a menina na cama e
desceram em silêncio até o hall.
— Obrigada — ela murmurou sem encará-lo.
— Por nada. Acho que já vou...
— Quer um café, ou outra bebida qualquer?
— Café seria ótimo.~ Obrigado. No entanto, acho que devia tirar esse suéter
ensopado antes de ir para a cozinha.
— Tem razão. Sua blusa também está molhada.
Ele a despiu e deixou-a no chão do hall. Laura fez o mesmo com o suéter.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 84
Projeto Revisoras
CAPÍTULO XII
— Sempre fui maluco por você — Dean confessou mais tarde, quando ainda
estavam abraçados sob o cobertor de lã que havia sido de vovó Jane. — Cada
vez que olhava para você, tinha a sensação de que meu peito explodiria de
dor. Ao mesmo tempo, sentia uma enorme alegria sempre que estávamos
juntos. Sabia que você amava Will, mas não conseguia sufocar meus
sentimentos. Eu a amava, Laura. Mas não podia fazer nada, porque temia ma-
goar Will e ofendê-la.
— Não teria me ofendido com uma declaração sincera. Pelo contrário. Nós
teríamos conversado e esclarecido a situação. Talvez houvesse sido melhor
assim.
— Não. Nunca tive coragem para confessar meu vergonhoso segredo. Sonhar
com a namorada do melhor amigo... Além do mais, não queria sua piedade.
— Eu não teria sentido pena de você.
— Mesmo assim, sempre fomos opostos. Você é o tipo de mulher que faz um
homem traçar planos, pensar em acomodar-se... Se ele for do tipo que um dia
pode acomodar-se com alguém.
— O que você nunca foi. Sempre disse que o casamento era a maior farsa
perpetrada contra os homens em nome da civilização.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 85
Projeto Revisoras
— Eu dizia coisas estúpidas. Sabia que seria um péssimo marido, e por isso
tentava me justificar.
— Você não é tão ruim quanto pensa. Cometeu alguns enganos, é verdade...
— Enganos? Cometi erros terríveis! Feri muita gente, especialmente você,
quando a abandonei sem dizer adeus. Deve ter me odiado. Não posso criticá-
la por nunca ter me procurado.
— Mas eu tentei! A força aérea recusou-se a revelar seu endereço.
— Porque eu estava na unidade de inteligência anti-terrorismo. Por que
tentou me encontrar, depois de tudo que fiz?
Boa pergunta. E agora, o que diria a Dean?
— Eu... não importa.
— E importante para mim. Pelo menos saberei que não me despreza. Ou
tentou encontrar-me só para dizer tudo o que pensava a meu respeito?
— Não. — A princípio acreditara que ele tinha o direito de saber sobre o
bebê, mas depois de seis anos... Seguiram caminhos distintos, e a vida de
Dean jamais poderia acomodar uma esposa e uma filha.
— Você... pensou que pudéssemos ter uma chance juntos? Queria fazer uma
tentativa? Não imagina como isso teria mo feito feliz, mesmo sabendo que
seria um engano.
— Também não foi nada disso. Naquela manha, quando descobri que havia
partido, soube que jamais haveria unia chance para nós.
— Ah... eu sabia que havia estragado tudo.
— Eu só... queria conversar com você. Havia algo que eu queria dizer.
— O que era?
Se revelasse a verdade, tudo mudaria. Ele seria parte de sua vida e da vida
de Janey. E nesse momento de satisfação e intimidade, ansiava por poder
dizer que ele era o pai de sua filha.
Mas o que sentiria depois, quando Dean começasse a contar os dias para
deixar Port Liv e içar velas para as Bermudas?
Não. Precisava de tempo e distanciamento para pensar e tomar uma decisão
racional.
— Não me lembro mais — mentiu. — Não devia ser nada importante.
— Deve ter parecido importante.
— Foi há muito tempo. Nada mais é como antes.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 86
Projeto Revisoras
— Algumas coisas não mudaram. Você ainda é a única. Sempre foi e sempre
será. A única mulher que jamais amei, ou que amarei.
Laura estava dormindo. Apesar de toda a alegria que conhecera em seus
braços, algumas coisas ainda permaneciam inalteradas em sua mente. Podia
pensar em aceitar compromisso e casamento, embora as idéias ainda fossem
assustadoras, mas não desistiria do plano de abrir uma poupança para Janey.
E o fato de Laura opor-se brutalmente ao plano o intrigava. Prometera não
pressioná-la nem pedir-lhe explicações, mas nunca havia dito que desistiria do
projeto. Só precisava da certidão de nascimento para concluir a primeira
etapa.
Devagar, levantou-se e ajeitou o cobertor de lã em torno dela. Por onde
começaria a busca? Pensou na sala de estar e em todos os móveis, sofá, mesa
de café, poltronas, televisão... nenhum lugar que pudesse servir de
esconderijo para um documento importante.
Silencioso, atravessou o corredor descalço e foi até a cozinha. As gavetas e
os armários continham apenas utensílios e mantimentos. O estúdio de Laura
também não continha nada de interessante. Talvez no quarto... Sim, lembrava-
se de ter visto uma escrivaninha com gavetas no quarto de Laura.
Determinado, foi até lá e acendeu a luz antes de acomodar-se na cadeira
estofada deixada diante da escrivaninha. Havia papéis em todas as gavetas.
Contas a pagar, contas pagas, correspondência, recibos de vendas dos
quadros, documentação fiscal, cartões comerciais...
Na gaveta mais alta havia um envelope com o nome de Janey. Dentro dele
Dean encontrou a carteira de vacinas, um punhado de fotografias, uma delas
de um exame de ultra-sonografia, a carta que Laura enviara para o marido
contando sobre a gravidez. Dean releu a mensagem que o enchera de
desespero seis anos antes.
"Lembra-se daquela noite em que acabamos esquecendo de tudo?... A data
prevista é sete de outubro, dia do aniversário de sua irmã Bridget."
Sete de outubro?
Intrigado, Dean reviu as fotos e deteve-se em uma delas. Laura posava para
uma escultura de neve que Kay concluía no quintal de sua pousada. Grávida, ela
ria como se estivessem se divertindo muito. A cena de inverno era típica do
final de novembro.
Não fazia sentido. A menos que Janey já houvesse nascido e, por brincadeira,
ela tivesse usado travesseiros para forjar a imensa barriga.
Era isso. Tinha de ser. Estava certo de que era isso.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 87
Projeto Revisoras
CAPÍTULO XIII
— É uma metáfora.
— Entendi. O sr. Kettering criou asas e voou, mas ainda não se deu conta do
que aconteceu. É isso?
— Exatamente. Por que mais ele escreveria um bilhete tão gentil?
Sim... Por quê?
Por que ele escreveria um bilhete?
— Mamãe? Do que está rindo?
— O quê? Oh, de nada, querida...
— Está sorrindo como se pensasse em algo engraçado...
— Não é engraçado. É... — Laura encheu os pulmões de ar e soltou-o devagar.
— Por favor, diga a Janey que a amo. E se algum dia decidir contar a verdade,
quero que saiba que ficarei muito feliz. Muito feliz. — Janey? Há algo que
quero lhe contar... Algo muito importante.
— Dean Kettering? — O velho marinheiro parecido com Popeye encarou-a. —
Ele partiu.
— Oh, não! — Tivera de adiar a viagem a Portsmouth até que Kay retornasse
da Grécia, porque não pudera simplesmente abandonar a pousada. E não
queria levar Janey com ela. A situação era delicada demais para envolver nela
uma criança de cinco anos.
Se Dean tivesse telefone, poderia ter falado com ele há dias.
— Kettering saiu daqui há quase dois meses. Depois voltou com um corte de
cabelo engraçado e começou a agir de maneira estranha, carregando o Lorelei
como se tivesse de zarpar para não morrer. Ele me deu dinheiro para ajudá-
lo, porque tinha pressa, e todos por aqui sabem que Kettering prefere fazer
tudo sozinho. Comprei sessenta e um galões de diesel, seis de querosene, dois
de...
— Está bem, obrigada. Já entendi. Quando ele partiu?
— Quarta-feira. Vinte e três de maio.
— Há cinco dias. E ele disse que levaria uma semana para chegar ao destino.
— Se o tempo estiver bom. Imagino que a viagem será mais longa por causa
daquelas tempestades que estão caindo sobre o Atlântico.
— Tempestades?
— O boletim de ontem mencionava ondas gigantescas. Um barco está
desaparecido. Disse a Kettering que ainda era cedo para içar vela, mas ele
não quis me ouvir. Se sabe rezar, é melhor pedir por seu amigo.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 92
Projeto Revisoras
CAPÍTULO XIV
— Os que estão sentados à direita da aeronave logo terão uma bela vista das
Bermudas — o piloto anunciou entusiasmado.
Laura respirava fundo e mantinha os olhos fixos no encosto da poltrona da
frente.
— Fique calma, mãe. A aeromoça disse que vamos aterrissar logo.
Aterrisagens e decolagens. É quando acontecem os maiores desastres.
— Veja! — Janey apontou para a janela. — Lá está!
— Não quero olhar.
— Por favor, mamãe! É tão lindo!
Engolindo o medo, Laura virou o rosto para a janela e viu o cenário mais lindo
que um ser humano podia imaginar. Como um colar de esmeraldas, o mar das
Bermudas se estendia sob a aeronave fascinante e imponente.
Nove dias se passaram desde que Dean zarpara de Portsmouth. Presumindo
que ele houvesse vencido as tempestades, não seria difícil encontrá-lo. Os
barcos que chegavam ao porto de Saint George tinham de obter uma
autorização para permanecerem ancorados, e Dean morava em seu barco.
Lorelei devia estar ancorado no lado norte da ilha, porção reservada para as
embarcações particulares estrangeiras. Como reservara acomodações para
ela e a filha naquele mesmo local, logo poderia encontrar todas as respostas
para os seus problemas.
No táxi dirigido por um motorista simpático e risonho, Janey começou a
tomar conhecimento das maravilhas locais.
— Está ouvindo esse barulho, mamãe? O moço disse que são sapos! Podemos
vê-los?
— Agora não, docinho. Não viemos até aqui para ver sapos. — Eu sei. Viemos
ver meu pai!
Uma hora mais tarde, Laura já sabia que o Lorelei não estava na área
reservada aos barcos particulares de estrangeiros. Também não encontraram
a embarcação na alfândega e, apreensiva, Laura sugeriu que fossem almoçar,
tentando disfarçar o medo causado pela possibilidade de Dean não ter
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superado às tempestades.
Tomaram uma sopa de frutos do mar em um restaurante do porto e, depois da
refeição, retornaram à busca. Laura percebeu que seu nervosismo começava a
afetar Janey. Precisavam de um pouco de distração, ou a tensão alcançaria
níveis insuportáveis.
De volta à praça central da cidade de Saint George, passearam e conheceram
locais históricos. Quando se preparavam para voltarem ao hotel, já no final da
tarde, a chuva começou a cair forte e as reteve no centro histórico. Laura
buscou abrigo em um edifício muito antigo protegido por um toldo, e ainda
estava parada segurando a mão de Janey quando ouviu uma voz conhecida em
meio ao grupo de turistas reunidos no espaço apertado.
— Laura? Dean!
Ela se virou e o viu.
— Oh, meu Deus! Laura... — Ele a tomou nos braços e beijou-a. Depois de
alguns instantes, Laura Sentiu a mão puxando suas roupas molhadas.
— Mamãe, todos estão olhando!
A multidão ria e aplaudia. Dean interrompeu o beijo e olhou em volta como se
despertasse de um transe.
— Laura... — murmurou aturdido. — Não acredito que esteja mesmo aqui. E
Janey...
— Você beijou minha mãe! — A menina riu.
— Sim, e vou beijá-la outras vezes.
A tempestade diminuía de intensidade, e pouco depois os turistas voltavam à
praça onde o sol brilhava novamente.
Dean, Laura e Janey também deixaram o abrigo.
— Dean, o que aconteceu? Está ferido! — Havia um corte em sua testa e um
hematoma em seu queixo.
— Digamos que passei por maus momentos no mar. Cheguei há pouco mais de
uma hora, e o Lorelei vai precisar de reparos. Mas podia ter sido pior.
— Ouvi as notícias sobre as tempestades. Fiquei aflita quando chegamos e
não vi o barco.
— É verdade — Janey confirmou. — Ela tentou fingir que estava calma, mas
não me convenceu.
— Lamento que tenha se preocupado por mim. Afinal... o que faz aqui?
Antes que Laura pudesse responder, Janey disparou:
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FIM