leveza de pensamento
Roxane Helena Rodrigues ROJO
Sei que não é nada original tramar o tema deste capítulo a partir de um texto transcrito
de conferências ou lições inacabadas, proferidas por Calvino quinze anos antes da virada de
milênio. No entanto, foi para mim impossível resistir à sugestão, feita pelo autor no texto
citado, de “uma constante antropológica” na ligação que ele vê entre “a levitação desejada e
a privação sofrida”. Irresistível porque essa ligação me remete diretamente à visão que tenho
da Lingüística Aplicada e dedicarei estecapítulo a explicar porque vejo este campo de estudos
e pesquisas como o resultado do nexo entre a privação social sofrida e a levitação teórica
desejada.
Para quem não conhece a lição ou conferência sobre a Leveza, resumo algumas idéias
de Calvino. O autor vai semeando seu texto de entidades imponderáveis, levíssimas – figuras
suspensas no ar: as mensagens do A.D.N., os impulsos neurônicos, os quarks, os neutrinos, os
bits, o sonho da Rainha Mab (a parteira das fadas), as ninfas, as dríades, os elfos, as fadas, os
gênios da lâmpada, tapetes e cavalos voadores, a levitação xamânica, as bruxas e feiticeiras
voando em vassouras ou em veículos ainda mais leves como espigas ou palhas de milho, os
heróis dos contos maravilhosos voando através do espaço no dorso de um cavalo ou de um
pássaro... Todos convocados para sustentar, em sua leveza de vôo, a tese (densa) de uma
constante antropológica – perpetuada na literatura – entre esta levitação imaginária e a
privação sofrida.
Por exemplo, Calvino lembra que as bruxas voavam à noite, em seus veículos leves
(vassouras, cubas), nas cidades em que a mulher suportava o fardo mais pesado de uma vida
1
de limitações; que o xamã anula o peso de seu corpo e voa a um outro mundo, a um outro
nível de percepção, onde pode encontrar forças para enfrentar a precariedade da existência da
tribo (“a seca, as doenças, o influxo maligno”) e para modificar esta realidade; que Mercúcio
e seu sonho da Rainha Mab, pleno de leveza, entram em cena sob o pano de fundo de uma
época que não difere muito da nossa: cidades ensangüentadas de disputas violentas e
insensatas (Capuleto/Montecchio); liberação sexual (Aia) que não consegue se tornar modelo
do amor universal; experiências científicas levadas a efeito com otimismo generoso (Frei
Lourenço), mas sobre as quais não se tem certeza se serão usadas para a vida ou para a morte.
Por tudo isso, Calvino está convicto, assim como eu, de que uma boa bagagem para
levarmos conosco ao próximo milênio é a “leveza do pensamento”, que o acervo literário ou
os livros de sua biblioteca ilustram bem. Com essa noção do autor de “leveza do pensamento”
associada à privação sofrida quero reler o que a literatura brasileira sobre o campo das
investigações e estudos em Lingüística Aplicada (LA) tem chamado de transdisciplinaridade
(de Paschoal & Celani, 1992; Celani, 1998; Kleiman, 1998; Moita-Lopes, 1998; Signorini,
1998; Signorini & Cavalcanti, 1998). Com isso, tentarei sustentar que a LA mais recente –
em especial, em sua vertente sociocultural ou sócio-histórica – tem buscado e praticado uma
“leveza de pensamento” que a torna capaz, como o xamã, de tentar enfrentar e modificar a
precariedade da existência em sociedade ou a privação sofrida por sujeitos, comunidades,
instituições.
1
Ver, a respeito, Celani (1992, 1998), Moita Lopes (1996, 1998), Kleiman (1992, 1998).
2
outras disciplinas seus fundamentos e métodos. No caso da perspectiva sócio-histórica ou
sociocultural, é na psicologia social marxista de Vygotsky e de seus seguidores que
pesquisadores em LA, voltados sobretudo para as políticas lingüísticas e o ensino de línguas,
vão buscar seus instrumentos iniciais de reflexão2.Os efeitos epistemológicos destes
movimentos de apropriação sucessiva e variada são visíveis: se, por um lado, os diversos
fundamentos – psicológicos, psicolingüísticos, sociológicos e lingüísticos – adotados pelos
pesquisadores no campo nos últimas décadas tornam possível falar de sucessivas noções de
sujeito (biológico, psicológico, social, discursivo) subjacentes às investigações, por outro
lado, a noção de historicidade (do objeto, do sujeito) não pode ser colocada senão
recentemente, quando da emergência dessas pesquisas de fundamento discursivo e sócio-
histórico.
Se, no início da década de 1990, era possível a Kleiman apontar a ausência quase total
de pesquisas que investigassem o impacto da escrita na sociedade e os processos de
letramento; o desenvolvimento de currículos e programas bidialetais que fossem
2
Ver, a respeito, Rojo (2001a).
3
Veja-se, por exemplo, em Kleiman (1998), uma excelente análise, levada a efeito de um ponto de vista
epistemológico, das pesquisas brasileiras em leitura.
4
Genético está aqui sendo entendido num sentido vygotskiano, a meu ver isento de teleologia, em que investigar
discursos e processos implica em reconstituir sua história e gênese, seja em termos de discursos incorporados
e ressignificados, seja em termos de processos transformados, mas sempre na direção do atual para o
histórico.
3
"culturalmente sensíveis"; a interação em sala de aula; a construção de conhecimento na aula
de português como língua materna - LM (textual, lingüístico ou metalingüístico) e a educação
bidialetal ou bicultural, hoje, quase todos esses temas e objetos de investigação estão
incluídos dentre as principais linhas de pesquisa dos principais centros de pesquisa e estudos
pós-graduados em LA do país. Mesmo temas e objetos não mencionados por Kleiman em
1992, tais como as práticas de linguagem em contextos institucionais outros que não o
educacional, tais como a empresa; as várias clínicas (fonoaudiológica, (psico-)pedagógica,
psicanalítica); contextos de aprendizagem não escolares; instituições políticas e estatais; o
papel das trocas lingüísticas na constituição das identidades (de sexualidade, raça, gênero etc.)
têm emergido como temáticas importantes – senão privilegiadas – na área.
A partir das mudanças históricas dos últimos 10 anos, a discussão tendeu a deslocar-se
cada vez mais, portanto, para a especificidade do(s) objeto(s) da área de LA e para o seu
caráter transdisciplinar. Embora não haja muito consenso hoje sobre o caráter inter, multi ou
5
Ainda segundo Kleiman (1992: 33), "...a dependência da disciplina teórica impede o desenvolvimento e
pesquisa de temas que surgem das interações escolares, da experiência do ensino/aprendizagem, favorecendo,
ao mesmo tempo, a reduplicação de pesquisas com temáticas que já são foco de desenvolvimento em outras
áreas".
6
É neste sentido que encaramos afirmações como a de Celani (1992: 21) de que "...está claro para os que hoje
militam na LA no Brasil que, embora a linguagem esteja no centro da LA, esta não é necessariamente
dominada pela Lingüística (...) [mas] se relaciona com um número aberto de disciplinas relacionadas com a
linguagem, entre as quais estaria a Lingüística, em pé de igualdade, conforme a situação, com a Psicologia, a
Antropologia, a Sociologia, a Pedagogia ou a tradução."
7
Mais adiante, neste texto, exploraremos como a perspectiva sócio-histórica, esboçada na LA na década de 80,
contrói seus próprios objetos, unidades de análise e métodos, de maneira a constribuir, principalmente, para a
superação das privações sofridas pela educação lingüística e pelos letramentos no Brasil atual.
4
transdisciplinar do fazer do lingüista aplicado – dissensos que comentarei mais adiante -, creio
que hoje podemos afirmar um consenso mais maduro da comunidade de LA sobre o que é
fazer LA.
“A LA caracteriza-se pela expansão dos dados que estuda, das disciplinas-fonte e das
metodologias, em função da necessidade de entendimento dos problemas sociais de
comunicação em contextos específicos (o seu objeto abrangente) que procura resolver
(o seu objetivo abrangente).” (Kleiman, 1998: 55)
e, finalmente,
5
“Os lingüistas aplicados parecem estar dando uma resposta clara contra a tradicional
divisão do trabalho entre teoria e prática, que estaria baseada na relevância social e
não em valores como a superioridade da produção de teoria.” (Kleiman, 1998: 72)
Já não se busca mais “aplicar” uma teoria a um dado contexto para testá-la. Também
não se trata mais de explicar e descrever conceitos ou processos presentes em determinados
contextos, sobretudo escolares, à luz de determinadas teorias emprestadas, como foi feito com
os processos (processamentos) em leitura e produção de textos, ou com a interação em sala de
aula enquanto (tipo de) conversação, ou com a interlíngua enquanto processo de projeção de
LM sobre a língua estrangeira (LE). A questão é: não se trata de qualquer problema –
definido teoricamente –, mas de problemas com relevância social suficiente para exigirem
respostas teóricas que tragam ganhos a práticas sociais e a seus participantes, no sentido de
uma melhor qualidade de vida, num sentido ecológico.
6
3. Como fazer Lingüística Aplicada? Um dissenso da comunidade
Como vimos, nos últimos 10 anos, a discussão tendeu a deslocar-se cada vez mais para
a especificidade do(s) objeto(s) da área de LA – onde já se construiu algum consenso – e para
o seu caráter transdisciplinar. Duas vertentes de elaboração têm se sobressaído nesta última
discussão: as tentativas de definição da transdisciplinaridade e os apelos ao pós-moderno.
Tentando contribuir dentro da lógica da primeira vertente, quero defender/redefinir a
transdisciplinaridade como a leveza de pensamento necessária para compreender, interpretar
e interferir nas realidades complexas representadas pelas práticas sociais situadas. É minha
opinião que a densidade, a relevância e, muitas vezes, a urgência dos problemas postos para a
LA (o peso da privação sofrida) exigem uma leveza de pensamento capaz de articular, de
maneira dialógica e eficaz, os saberes de referência necessários a sua interpretação e
resolução.
No início dos anos 90, a transdisciplinaridade era encarada no sentido adotado por
Serrani (1990), apud Kleiman (1992: 29), "...o objeto de estudo atravessa as fronteiras das
disciplinas, as quais não participam, aditivamente, como meras fornecedoras de subsídios".
Posteriormente, outros pesquisadores, por exemplo, Moita Lopes (1998), salientam o caráter
diferente dos modos de produzir conhecimento inter e transdisciplinar, entendendo como
interdisciplinar o sentido dado por Serrani a transdisciplinar. Para Moita Lopes, a
transdisciplinaridade só é possível em trabalhos de investigação realizados por uma equipe de
pesquisadores provenientes de várias áreas de investigação.
Modernismo Pos-modernismo
Forma (conjuntiva, fechada) Antiforma (disjuntiva, aberta)
Design Acaso
7
Hierarquia Anarquia
Produto/Trabalho acabado Processo/performance/happening
Distância Participação
Construção/síntese Desconstrução/antítese
Paradigma Sintagma
Origem/causa Diferença/traço
Determinação Indeterminação
A publicação brasileira mais recente sobre o assunto (Signorini & Cavalcanti (orgs),
1998) traz um texto de Signorini (1998) em que a autora discute em profundidade essa
reconstituição da multiplicidade e da complexidade do objeto como condição da redefinição
do campo da LA. Partindo dessas mesmas constatações de que a LA hoje tem definido seu
objeto “...não mais em função do campo epistemológico da(s) disciplina(s) de referência [...],
[Signorini] descreve a necessária reconstituição do objeto no campo aplicado através de uma
reinserção deste objeto nas redes de práticas, instrumentos e instituições que lhe dão
sentido no mundo social” (op. cit., p. 13, ênfase adicionada). Neste processo, os “percursos
transdisciplinares de investigação” têm gerado "configurações teórico metodológicas
próprias", segundo a autora, "não coincidentes nem redutíveis às contribuições das
disciplinas de referência", em muito devidos à introdução do fator sociopolítico no estudo da
comunicação verbal em diferentes contextos institucionais ou culturais.
8
–Em especial, é claro, em perquisa sócio-histórica.
8
em que agem, através da mediação da linguagem, tem sido inclusive apontado como sendo
central em paradigmas contemporâneos das Ciências Humanas e Sociais como um todo
(Bronckart et al., 1996).
Por outro lado, é importante ressaltar, com Signorini (1998), que essas novas
configurações teórico-metodológicas, embora dialógicas, são “próprias”, "não coincidentes
nem redutíveis às contribuições das disciplinas de referência". Isto é, são articuladas a partir
de um ponto de vista e de uma apreciação valorativa únicos sobre o objeto de investigação
(que antes defini como suscitado por uma privação sofrida), em relação ao qual as
configurações dos saberes ou teorias de referência constituem como que um excedente de
visão, embora “apropriadas” (num sentido não só bakhtiniano do termo). E é justamente para
construir essa articulação do ponto de vista e da apreciação valorativa sobre o problema ou
sobre o objeto que se faz necessária uma leveza do pensamento, que vem sendo chamada de
“transdisciplinaridade”, ancorada no peso do objeto. É preciso agora, no início deste novo
milênio, começarmos a discutir que gênero de teorias – leves e transdisciplinares – estamos
elaborando, cada um de nós, de maneira a sabermos o que estamos levando, enfim, a garupa
em nossas vassouras.
Tomarei aqui meu trabalho da década de 909 como um caso de elaboração sócio-
histórica em LA10. Este baseia-se num ponto de vista segundo o qual a sócio-construção da
ação e da linguagem é fundamentalmente determinada pela sócio-história das interações e das
atividades de linguagem em que sujeitos em constituição estão e estiveram imersos.
Diferentes matrizes de atividade e diferentes atividades de linguagem (Schneuwly, 1988),
ligadas à construção de diferentes gêneros do discurso, terão efeitos diversos na constituição
das formas de ação e das formas de dizer a ação (linguagem) (Bronckart, 1997). Embora
essa seja uma posição largamente aceita no paradigma sócio-histórico de
investigação (social, psicológica, psicolingüística), ela não deixa de envolver
algumas questões de fundo, ainda em elaboração por diferentes enfoques: a relação
entre ação, linguagem e pensamento; a interseção entre as práticas sociais e as
9
Refiro-me aqui à pesquisa, subsidiada pelo CNPq de 1991 a 1994, intitulada Letramento e desenvolvimento de
linguagem escrita: Construção social, ensino e aprendizagem de língua escrita. Para maior detalhamento dos
resultados, ver Rojo (1996; 1998; 1999a; 1999b; 2001b).
10
Versão anterior desta discussão pode ser vista em Revista D.E.L.T.A., 15(2): 237-267. SP: LAEL, PUC-SP.
9
práticas individuais; o mecanismo de apropriação das práticas sociais por sujeitos
em processo de constituição.
Não por acaso, dois dos grandes autores fundadores desta reflexão – Vygotsky e
Bakhtin e seu círculo –, num momento inicial de seu trabalho (Vygotsky, 1924; Volochínov,
1929), fazem referência à noção de “psicologia do corpo social” (Plekhánov, 1922) como um
extrato de análise intermediário, entre a Sociologia e a Psicologia, a um só tempo, locus e
mecanismo de reprodução e refração do macro-social no micro-psicológico. No dizer de
Volochínov (1929: 41),
“... A essência deste problema liga-se à questão de saber como a realidade (a infra-
estrutura) determina o signo; como o signo reflete e refrata a realidade em
transformação [...] A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas,
mais efêmeras das mudanças sociais. O que chamamos de psicologia do corpo
social e que constitui, segundo a teoria de Plekhánov e da maioria dos marxistas,
uma espécie de elo de ligação entre a estrutura sócio-política e a ideologia no
sentido estrito do termo (ciência, arte, etc.), realiza-se, materializa-se, sob a forma
de interação verbal.”
Ambos fazem intervir – entre as relações econômicas infra-estruturais das forças
produtivas e a situação político-social e as várias ideologias que refletem e refratam
superestruturalmente este contexto em suas características – um outro nível: o do contexto
psíquico do homem social (Vygotsky, 1924) ou o da psicologia do corpo social (Volochínov,
1929). Ambos, portanto, admitem a necessidade de um tipo social de Psicologia para dar
conta da dinâmica humana de perpetuação/mudança das estruturas sociais. Ou ainda, dito de
outro modo, para dar contar da apropriação, por parte do indivíduo humano, das práticas
sociais (die Praxis) em circulação na situação social mais ampla.
Também não por acaso, ambos colocam na interação social, cujo corpo é o signo ou
a palavra, a materialidade deste extrato necessário. Volochínov (1929: 42), neste ponto,
vai além da reflexão de Vygotsky (1924), na medida em que indica caminhos de
operacionalização desta reflexão:
“... A psicologia do corpo social deve ser estudada de dois pontos de vista
diferentes: primeiramente, do ponto de vista do conteúdo, dos temas que aí se
encontram atualizados num dado momento do tempo; e, em segundo lugar, do
ponto de vista dos tipos e formas de discurso através dos quais estes temas tomam
forma, são comentados, realizam-se, são experimentados, são pensados, etc.”
10
Portanto, investigar esse ponto de interseção entre o individual e o social é refletir sobre como
as formas de ação e interação social humanas (atividades de linguagem ou discursos) são
capazes de multiplicar e reproduzir temas e formas discursivas que refratam e refletem formas
possíveis em situações sócio-históricas dadas; em momentos sócio-político-ideológicos
determinados11.
O curioso, entretanto, é que nenhum dos dois autores manteve o foco neste ponto
fugidio de interseção entre o sócio-político (macro) e o psicológico (micro). O Círculo de
Bakhtin vai centrar seu foco principal na Arte Literária, monumento ideológico, artefato
macro-social. Vygotsky e seu círculo concentrarão a atenção na construção psicológica do
propriamente humano na pessoa – o pensamento verbal –, a partir de métodos de pesquisa
decididamente psicológicos. Poderíamos fazê-lo, como é tendência do Círculo de Bakhtin, a
partir do macro-social e, mantendo em foco as condições sócio-históricas de engendramento,
analisarmos a materialização numa obra ou na obra de um autor.
No entanto, em minha pesquisa, intentei fazê-lo a partir do micro-psicológico, mais
especificamente, do ponto de vista da construção da linguagem, da ação e da pessoa social, na
criança em constituição. A partir de uma análise de processos micro-psicológicos de
construção da ação e da linguagem por crianças de diferentes inserções socioculturais,
busquei fazer inferências a respeito dos construtos e dos efeitos macro-sociais por eles
determinados e deles determinantes. Eram questões centrais que norteavam o trabalho: Que
diferença pode haver entre crianças, de inserção sociocultural diferenciada, que participam
diferentemente de padrões interacionais ou jogos de linguagem diversos? Como interpretar
estas diferenças do ponto de vista da construção da linguagem, da ação e do sujeito? Qual o
impacto social de desenvolvimentos humanos tão diferenciados?
Como mencionei, para responder a essas questões, é preciso, num primeiro momento,
elaborar instrumentos de análise desses processos adequados a esse foco, i.e., instrumentos de
análise que possam articular o macro-social ao micro-psicológico, sem perda de nenhuma das
duas faces dessa articulação. Dito de outro modo, instrumentos de análise que seriam próprios
de uma psicologia do corpo social.
Vygotsky (1927: 283) afirmava que
11
E aqui, é importante notar a relação desta posição com a posterior Teoria dos Gêneros, na obra mais tardia de
Bakhtin (1952-53/1979).
11
dominâmo-los, modificâmo-los, eliminamos os conceitos inúteis e criamos outros
novos. Já no primeiro estágio de elaboração científica do material empírico, o
emprego de conceitos implica uma crítica aos próprios conceitos da perspectiva
dos fatos e permite que conceitos sejam comparados entre si e que alguns deles
sejam modificados.”
Este era, para ele, o modo dialético de se fazer ciência. E, na posição aqui esboçada,
esta dinâmica de reconstrução, de re-articulação e ressignificação dos conceitos e
interpretações (leveza de pensamento) não parte de uma aplicação do conceito a dados
empíricos, como sugere o início da fala de Vygotsky, mas do objeto de estudo, da
problemática situada que demanda efetividade de interpretação (privação sofrida), que, ela
própria, convoca não só os conceitos necessários, de várias áreas, como também os tipos de
revisão e re-articulação exigidos pela própria situação do problema.
"...Esse método não constitui uma análise verdadeira, útil para a solução de
problemas concretos: ao contrário, leva à generalização. Nós o comparamos à análise da
12
água em hidrogênio e oxigênio - que só pode resultar em descobertas aplicáveis a toda a
água existente na natureza, de uma gota de água da chuva ao Oceano Pacífico. [...] Tentemos
uma nova abordagem da questão, substituindo a análise em elementos pela análise em
unidades, cada uma das quais retendo, de forma simples, todas as propriedades do todo."
Aí reencontramos, a partir das leituras que Vygotsky faz de Spinoza, toda uma perspectiva
monista, contraposta, de saída, aos dualismos idealistas, racionalistas e estruturalistas12.
12
Ver, a respeito, Bronckart (1997).
13
Neste trecho de seu texto (p.324s), Lucien Sève (1974), comentando uma citação de Marx, afirma que, por um
lado, trata-se, do lado das realidades econômicas, do funcionamento e da reprodução das relações sociais,
funcionamento e reprodução que, do lado dos indivíduos, aparecem como ‘matrizes de atividade’. O autor
precisa ainda mais, dizendo que ser um capitalista ou um proletário numa sociedade capitalista é, pois,
completamente diverso de conformar-se a modelos culturais ou desempenhar um papel social por
‘necessidade de resposta afetiva’ ou por qualquer outra motivação psicológica que emane do indivíduo;
trata-se, ao contrário, de matrizes de atividade necessárias que imprimem aos indivíduos caracteres sociais
objetivamente determinados. Essas matrizes de atividade necessárias distinguem-se profundamente, ainda,
dos modelos culturais e dos papéis, pois estas não têm em si mesmas a forma psicológica, mas determinam
somente as formas e os conteúdos sociais da atividade individual, que deve por elas passar (ênfase
adicionada).
14
Aqui, o autor tenta retrabalhar a difícil noção de internalização em Vygotsky (1930: 61), definida como a
reconstrução interna de uma operação externa, que se dá na interação social. Esta noção foi depois tratada
pelos vygotskianos através da noção marxista e bakhtiniana de apropriação contraposta a alienação – trazer
para si, tornar próprio, o discurso que antes era alheio. Claramente, a noção envolve outro conceito difícil: o
13
Para Schneuwly (1988), matrizes sociais de atividade são unidades de análise de uma
psicologia do corpo social. A atividade, seja ela exterior ou interior, tem sempre um aspecto
interno e um aspecto externo, concernente, este último, à articulação com a realidade material
e social na qual essa se desenvolve; melhor dizendo, com a realidade material socialmente
mediatizada e formatada, com as práticas sociais regulando a relação de uma sociedade com a
natureza. Ainda segundo o autor, é justamente tarefa do materialismo histórico e de uma
teoria da ideologia definir as relações sociais fundamentais e seu funcionamento. Esse é, para
ele, um nível sociológico de análise completamente diverso daquele da atividade situada ao
nível do indivíduo e da pessoa (psicológico).
Para o autor, há necessariamente um lugar de articulação entre as relações sociais e a
atividade. Poderíamos dizer que, para ele, o mecanismo de funcionamento de uma psicologia
do corpo social seria justamente o das matrizes de atividade. Trata-se do mesmo esforço de
articulação entre o estrato sociológico e o estrato psicológico de análise, entre infra-estrutura e
superestrutura, que fazem, tanto Vygotsky (1924) como Volochínov (1929), a partir da noção
de psicologia do corpo social. Também, como aponta o próprio Schneuwly (1988: 24), é o
mesmo esforço de articulação presente nas noções de enunciação e enunciado de Bakhtin
(1981: 289), quando este se propõe a distinguir, na situação material de produção do
enunciado, cinco tipos de relação de comunicação social – pelas quais poderíamos classificar
os gêneros – definidos ali por sua instituição de base: a relação artística, as relações de
produção, as relações de negócios (burocráticas), as relações cotidianas e as relações
ideológicas strictu senso, na propaganda, no jornalismo, na escola, na ciência, na filosofia.
Assim, a meu ver, juntas, as noções de matriz de atividade, de atividade de linguagem e de
gênero do discurso têm, a um só tempo, a vantagem de fazer a ligação diretamente entre as
condições sociais de produção de uma dada atividade e sua formatação discursiva (teoria de
gêneros) e de estarem baseadas na visão marxista do sujeito social.
Uma terceira vantagem deste tipo de abordagem, agora já no campo mais psicológico,
está na proposta implícita de um vínculo social indissolúvel entre ação-linguagem-
pensamento (ou cognição). Ao se falar de “tipos de atividades”, dentre eles as “atividades de
linguagem”, regidos por “matrizes sócio-ideológicas de atividade”, reenfoca-se também as
relações ação/linguagem: linguagem passa a ser vista como forma de ação e ação não se
constitui fora de um universo discursivo (cf., a respeito, Bronckart, 1997). Reenfocando a
de discurso interno e alguns vygotskianos brasileiros, como é o caso de Smolka e de Morato, têm tratado o
tema a partir do conceito de memória discursiva.
14
linguagem como atividade humana, Bronckart (1992: 30) encara a atividade de linguagem
(“activité langagière”) como ‘práticas verbais’ articuladas às diversas formas de ação
humana. Para o autor, trata-se de [...] aplicar a este objeto um procedimento de interpretação
destinado a explicar suas formas de organização e suas condições de funcionamento.
Trabalhando com o conceito filosófico de jogos de linguagem (Wittgenstein, 1953),
Bronckart (1992: 20-21) crê, ele também, que há uma equivalência entre a noção
wittgensteiniana de jogos de linguagem e a noção de discurso em algumas correntes
lingüísticas e psicolingüísticas. Bronckart aponta aqui, especificamente, a teoria da
enunciação bakhtiniana e a importante noção de gêneros (primários e secundários), o que
combina bastante bem com a posição que vimos desenvolvendo até aqui neste artigo, ou seja,
a de que articular um ponto de vista sócio-histórico sobre o objeto em estudo exige a leveza
de pensamento que convoca conceitos e construtos de diferentes disciplinas (no caso aqui,
filosofia, sociologia e política, psicologia, análise de discurso, teoria da enunciação) que não
serão meramente colados ao acaso, para produzir uma análise em níveis (sociológico,
psicológico, discursivo), mas que se redefinem como diferentes facetas de um mesmo objeto
sob interpretação: a atividade de linguagem que, situada, se dá como enunciados em gêneros.
A meu ver, é justamente a partir do conceito wittgensteiniano de jogo de linguagem
que uma tal releitura pode ser articulada. Na sessão 7 das Investigações Filosóficas, onde
Wittgenstein introduz a noção de jogo de linguagem, os seguintes aspectos são delineados15:
• o termo jogo de linguagem designa o complexo que consiste, a um só tempo, em
atividade (die Praxis) e uso de linguagem16;
• a atividade de treinamento que antecede o jogo de linguagem mencionado no §2 é ela
própria um jogo de linguagem17;
• a distinção entre palavra e sentença é delineada com referência ao uso. Pode-se
distinguir entre ordenar (na atividade de construção, por exemplo) e nomear ou
repetir (na atividade de aprendizagem). Logo, ”slab” é usado como palavra na
atividade de nomeação e como sentença imperativa na atividade de construção;
15
Ver, a respeito, Baker & Haker (1980).
16
”In the practice of the use of language [grifo nosso] (2) one party calls out the words, the other acts on them”
(Wittgenstein, 1953: 5e).
17
” We can also think of the whole process of using words in (2) as one of those games by means of which
children learn their native language. I will call these games ‘language games’ and will sometimes speak of a
primitive language as a language-game [...] I shall also call the whole, consisting of language and the action
into which it is woven, the ‘language-game’.” (Wittgenstein, 1953: 5e). Aqui se encontra tematizado o
aspecto fundamental da “aquisição” da linguagem, muito importante em minha pesquisa.
15
• constituem o contexto do jogo: (a) participantes (construtor e ajudante; adulto e
criança); (b) atividades essenciais sem as quais o jogo não pode ser jogado
(atividades de construção); (c) objetos essenciais (materiais de construção);
• o jogo deve ser considerado como um todo.
Torna-se claro que este conceito, assim definido, preserva as especificidades acima
apontadas (compatíveis com o paradigma sócio-histórico) de se encarar o jogo de linguagem
como:
• unidade material, histórica e monista de análise da linguagem, i.e., como prática (Praxis);
• como prática dialógica;
• como prática formatada18;
além de especificar a diferença e ao mesmo tempo a relação entre os jogos de linguagem de
aprendizagem e de uso da linguagem e de considerar um contexto enunciativo de jogo.
Por outro lado, o jogo pode também ser tomado como unidade de análise monista
(material, histórica e dialética) da construção da linguagem, na medida em que a relação entre
os diferentes jogos no recorte diacrônico do desenvolvimento (relação inter-jogos) e a relação
de diferentes jogos dentro de um jogo, num recorte sincrônico do desenvolvimento (relação
intra-jogo), poderiam ser encarados como a dinâmica e como os motores deste mesmo
desenvolvimento.
Esses aspectos favorecem, portanto, que se tome a unidade jogo de linguagem como a
unidade de análise básica dos dados de construção da linguagem pela criança. Nessa
perspectiva, os gêneros do discurso da teoria bakhtiniana seriam jogos de linguagem
(regrados e formatados). Mais que isso, os gêneros cotidianos familiares dialógicos (Bakhtin,
1952-53), que criariam as condições de possibilidade de emergência dos gêneros
propriamente ditos (primários ou secundários), seriam eles mesmos – para além de gêneros
primários cotidianos – jogos de linguagem no duplo sentido wittgensteiniano: jogos de
construção ou de treinamento e jogos de linguagem propriamente ditos. Como tal, seriam
responsáveis tanto pela constituição das formas de ação (ação teleológica, Bronckart, 1997);
como por sua normalização (ação normativa, Bronckart, 1997); como, ainda, por suas
possibilidades de enunciação.
“Os gêneros, e mais particularmente os gêneros primários, são o nível real com o
qual a criança é confrontada nas múltiplas práticas de linguagem. Eles
18
Isto é, que exige atividades essenciais sem as quais o jogo não pode ser jogado, apresentando um formato
típico deste jogo. Mais tarde, como veremos adiante, Bruner (1975), tratando dos jogos de linguagem na
aquisição, vai demominar este aspecto formats.
16
instrumentalizam a criança (é claro que aqui se coloca todo o problema do ensino
e do desenvolvimento; e o problema das interações sociais para a aprendizagem)
e permitem-lhe agir eficazmente em novas situações (o instrumento se torna
instrumento de ação). Os gêneros se complexificam e tornam-se instrumentos de
construções novas, mais complexas. Como pensar mais precisamente esta
complexificação? Pensamos poder fazê-lo reinterpretando a noção de gêneros
secundários proposta por Bakhtin. [...] Os gêneros secundários introduzem uma
ruptura importante [...] Portanto, há aqui encontro, às vezes conflito,
contradição, tensão entre duas „lógicas“, entre duas „relações“, entre dois
„sistemas“, que são a verdadeira fonte de desenvolvimento. É exatamente isto
que Vygotsky chamou a lei da zona proximal (ou próxima) de desenvolvimento
(Schneuwly, Moro & Rodriguez, no prelo).” (Schneuwly, 1994: 30-33)19.
Portanto, a noção bakhtiniana de gênero (primário e secundário) do discurso pode
ela também ser uma unidade de análise monista, no sentido vygotskiano. Entretanto, o
problema não é pequeno:
• muito do que se passa na construção inicial da linguagem e dos gêneros primários é pura
ação ou atividade (cf. Cordeiro (1998), a respeito), ação interpretada discursivamente pelo
outro, sim, mas ainda assim, ação;
• muitos desses jogos serão base para gêneros primários no sentido bakhtiniano
(ordem/obediência; pergunta/réplica, no diálogo familiar); outros voltam-se para outras
construções lingüísticas, como a da nomeação ou a da frase, e, feito isso, desaparecem
19
A relação que Schneuwly aqui estabelece entre a construção dos conceitos cotidianos e sistemáticos em
Vygotsky e os gêneros primários e secundários em Bakhtin, pode, neste contexto, ser repensada na direção
dos “processos holísticos e práticos de construção” e dos “processos analíticos e re-organizativos de
reconstrução”.
17
transmutados em outros jogos mais próximos da construção de gêneros (já secundários,
como o jogo de contar); outros ainda, desaparecem sem deixar traços;
Baseada, então, na discussão teórica brevemente exposta acima, na análise dos dados
dos trabalhos de 90, examinei as matrizes de atividade relacionadas às atividades de
linguagem (jogos de linguagem) e os gêneros do discurso que circulavam nas interações
familiares e escolares com crianças, tanto na sua relação com a emergência das ações
propriamente ditas (atividades de linguagem teleológicas) e com sua regulação (atividades de
linguagem normativas), como na sua relação com as formas de dizer as ações, nos relatos e
nos contos de fadas, com especial ênfase na análise das diferentes formas de construção da
transitividade verbal e dos diversos papéis temáticos por ela regidos (objeto, beneficiário,
dativo, locativo etc.).
Os resultados mostraram processos diversos de construção da ação e da linguagem.
Um processo fundado principalmente na construção de gêneros primários, dialogais e onde as
narrativas estão quase ausentes, que deixa maior lugar à construção e normalização de ações
variadas e apresenta uma interface relevante tanto com os relatos de ação em curso como com
os jogos de papéis, no caso da criança de periferia. No entanto, nesse caso, a construção
inicial das formas de dizer a ação (transitividade e papéis temáticos) é limitada.
Um segundo processo, no caso da criança de camada média urbana letrada, está
fundado sobretudo nas narrativas de contos de fadas: centrado em certas formas da ação e
numa negociação tutorial intensiva das formas de dizer a ação no plano enunciativo da
narrativa disjunta20, esse processo leva a uma construção complexa e mais tematizada tanto da
transitividade como dos papéis temáticos, além, naturalmente, da construção da nomeação.
Para maior clareza, vejamos dois exemplos de interações típicas das amostras de cada
criança:
20
Isto é, a narrativa que não está numa relação de conjunção com o mundo atual, com o aqui e o agora, mas que
se passa num outro mundo possível, disjunto do mundo atual. Trata-se do dito eixo da referencialidade dos
discursos (Bronckart, Schneuwly et al., 1985). Um exemplo de narrativa conjunta é o relato de ação em curso
(por exemplo, Ana Maria Braga ensinando uma receita na TV) e um exemplo de narrativa disjunta, que cria
um mundo possível não atual – a ficção – é o conto de fadas.
18
Exemplo 121:
Mãe: (Joga a bola no chão). Vamos lá! Mostra pra V., sua prima.
V.: Chuta, P.! Chuta pra ela pegar a bola! Chuta a bola! Chuta! Chuta!
Criança: (Chuta a bola).
Mãe: Goooool! Corre! Vai lá pegar a bola!
Criança: (Vai correndo buscar a bola).
V.: Chuta! Chuta!
Mãe: Faz gol! Faz! Vamos fazer gol!
Criança: (Chuta a bola). Gooool!!!
Mãe: Chuta! Chuta! Chuta lá a bola!
Criança: (Chuta a bola).
Mãe: Isso! Assim...
Criança: (Pega a bola e vai para os fundos).
Exemplo 222:
Mãe: (Apontando para ilustração no livro). Quem é este?
Criança: É... O... Ussinho...
Mãe: Vai papá.
Criança: Ele vai papá, ele.
Mãe: Hum.. já sentou pra papá. O que ele vai papá? E aqui, que que é isso? (Apontando para a
ilustração).
Criança: Ele vai papá. (Apontando no livro).
Mãe: E isso aqui, que que é? (Apontando ilustração no livro).
Criança: É, é, é... Casaco.
Mãe: Não! É ovo.
Criança: É ovo.
Mãe: Ovo. Ele vai papá ovo. Humm.. Que ovinho gostoso!... (Virando a página). E depois,
que que ele tá fazendo? (Apontando a ilustração no livro).
Criança: Eu viu ele.
Mãe: Não! Bebeu água. Bebeu suco. (Vira a página). Ele tá papando? (Apontando a
ilustração).
Criança: Ele tá papando.
Mãe: O quê? O que que é isto? (Indicando a ilustração do livro).
Criança: É bola.
Mãe: Não! É maçã.
Criança: É maçãaa!
Mãe: Humm! Tá papando maçã.
Criança: Ele tá papando maçã. (...)
21
Criança P. de 2 anos e 1 mês, criada na periferia da cidade de São Paulo, menina, primogênita de mãe diarista
e pai atendente de balcão (açougue), alfabetizados, mas cuja família privilegia o oral para atividades práticas
que poderiam, em outro tipo de letramento, tomar por base a escrita (orientar-se no espaço da cidade,
memorizar listas e números etc.).
22
Criança H. de 2 anos e 3 meses, criada em bairro de camada média alta da cidade de São Paulo, 5ª filha
(caçula) de mãe e pai professores universitários (Ciências Humanas), cujo cotidiano é permanentemente
tramado por atividades letradas de tipo variado.
19
especifique a inserção de cada criança no exemplo 1 e no 2 Ver notas e q vc analise aqui
mostrando as diferenças Está nos dois parágrafos anteriores aos exemplos.). Mostraram
também como se articula, na cotidianidade, o maquinário que faz (re)constituir e funcionar
aquilo que os autores marxistas chamaram de psicologia do corpo social ou ideologia do
cotidiano, aquele
“...domínio da palavra exterior e interior desordenada e não fixada num sistema,
que acompanha cada um de nossos atos ou gestos e cada um de nossos estados de
consciência...” (Volochínov, 1929: 118)
Talvez estejamos tratando de psicologia dos corpos sociais: os dados fazem pensar
num comportamento arraigado e diferenciado em diferentes extrações sociais. Talvez seja
muito mais (ou muito menos) complexo do que isto: idiossincrasias de núcleos familiares de
relações pessoais mãe-criança, ou, de fato, regularidades de matrizes de atividade de grupos
sociais diferenciados podem estar intervindo.
Essas respostas só poderiam ser dadas pela intensificação de pesquisas de mesmo tipo
com sujeitos pertencentes a diversificadas extrações de classe, no caso brasileiro. Claro está,
com a inserção em novos grupos, provocada pela escolarização, muito pode ter mudado no
rumo de constituição desses sujeitos, embora as pesquisas sobre letramento e escolarização
apontem para a preferência geral dada pelo universo escolar às capacidades que estão sendo
construídas no segundo processo de construção da linguagem, que, então, favoreceria
possibilidades de sucesso escolar (Lahire, 1993).
Em todo caso, estes resultados levam-me a reafirmar pelo menos duas idéias: em
primeiro lugar, é possível fazer uma psicologia (e uma lingüística) do cotidiano, no sentido
articulado por Vygotsky e pelo círculo de Bakhtin. Em segundo lugar, reafirmo a idéia de que
a Teoria de Gêneros de Bakhtin pode ser um poderoso instrumental para a compreensão e
explanação desta sócio-construção. A releitura da noção de gênero bakhtiniana proposta por
Schneuwly (1994), que atribui aos gêneros o estatuto de (mega) instrumentos – no sentido
vygotskiano e marxista do termo – para a construção da linguagem, pode aqui, não só
contribuir, como também ser estendida para a construção das formas de agir e de ser em
sociedade.
Sem nenhuma dúvida, toda construção relevante posterior na direção dos gêneros
secundários, públicos e letrados, em geral viabilizada pela escola, estará baseada nesssas
construções primitivas e delas dependerá, para sucesso ou fracasso. Mais que isso, essas
construções escolares operam em bases semelhantes: reencontrei, mais recentemente, a
necessidade de um quadro de categorias (ou unidades) de análise semelhantes, ao analisar as
20
interações em sala de aula de diversas disciplinas do Ensino Fundamental23, quando se coloca
em foco a questão de como as trocas orais em sala de aula constituem o (que antes já foi e
depois voltará a ser) texto escrito em gênero secundário.
Em síntese
Neste sentido, um caminho, que tentei esboçar aqui, é, como diz Calvino, levar a
leveza do pensamento em nossa bagagem deste milênio. Leveza de pensamento necessária
para livrar-se da significação de origem do conceito em sua área e para ressignificá-lo a partir
das exigências do objeto. Isso torna um estudo transdisciplinar e não meramente
aplicacionista ou interdisciplinar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
23
Ver, a respeito, Rojo (1997; 2001c). Refiro-me, aqui, à pesquisa, apoiada pela FAPESP de 1999 a 2001, dentro
da linha de fomento MEP-FAPESP, intitulada Práticas de linguagem no Ensino Fundamental: Circulação e
21
_____ (1981) La structure de l’énoncé. In T. Todorov, Bakhtine. Le Principe Dialogique.
Paris: Seuil.
Bronckart, J-P. (1992) El discurso como acción: Por un nuevo paradigma psicolingüístico.
Anuario de Psicología, 54 (3): 3-48. Universitat de Barcelona.
Bruner, J. S. (1975) The ontogenesis of speech acts. Journal of Child Language, 3: 1-19.
Calvino, I. (1988) Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Cia das Letras, 2ª
edição brasileira, trad. de Ivo Barroso, 1994.
22
Holmes, J. (1992) Research and the postmodern condition. In M. S. de Paschoal & A. A.
Celani (orgs) (1992): 37-49. São Paulo: EDUC/PUC-SP.
23
Literacy and Others Forms of Mediated Action, 1ª ed., Madrid: Aprendizaje S.L.,
197-202.
_____ (1996) A emergência da ”coesão” narrativa: "E daí" em narrativas infantis. Revista
D.E.L.T.A., 12(1): 57-86. SP: PUC-SP/EDUC.
____ (1999a) Agir, obéir, parler des actions: Le role des interactions familiales pour la
construction dês actions, du langage et du sujet social. Cahier de la Section des
Sciences de l’Éducation, 91: Pratiques langagiéres et didactique des langues: 57-
82. Genève: FAPSE/UNIGE.
_____ (2001a) A Teoria dos Gêneros em Bakhtin: Construindo uma perspectiva enunciativa
para o ensino de compreensão e produção de textos na escola. In B. Brait (org)
Estudos Enunciativos no Brasil: História e Perspectivas, pp. 163-186. Campinas:
Pontes.
24
_____ (1994) Genres et types de discours: Considérations psychologiques et ontogénétiques.
In Y. Reuter (ed) (1994) Les Interactions Lecture-Écriture, pp.155-174. Bern: Peter
Lang. Traduzido em R. H. R. Rojo. & G. S. Cordeiro (orgs/trads) (2004) Gêneros
Orais e Escritos na Escola. Trabalhos de Schneuwly, Dolz e colaboradores.
Campinas: Mercado de Letras.
25