DOSSIÊ
do envolvido com o crime1
Partindo do trabalho etnográfico e entrevistas grupais com jovens de duas favelas cariocas, o artigo pro-
blematiza a categoria envolvido-com (retirada da linguagem cotidiana) o crime e suas serventias, como um
dispositivo de controle social itinerante que fabrica fronteiras móveis que desigualam os desiguais. Isso
evidencia como essa noção tem sido mobilizada na distribuição seletiva de vigilância e de punição das
juventudes da periferia. Discutem-se suas funcionalidades na regulação das trajetórias e percursos identi-
tários, evidenciando a trama de rotulações que põe em operação deslizamentos de sentido entre as noções
de “bandido” e “vulnerável”. Analisa-se o acionamento de moralidades que justificam a gerência de si dos
favelados. Revela uma ambição de tutela policial maximizada pelo apetite de criminalização não só dos
indivíduos, mas também de seus vínculos sociais.
Palavras-chave: Envolvimento. Juventudes. Controle social. Vigilância. Vulnerabilidade social.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792018000100007 99
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Uma novidade: navegadores para dispositivos situado ao longe, através de lembranças anun-
móveis previnem o usuário quanto a “pôr sua ciadas em formato de lead de jornal: “Corpo de
vida em risco, entrando errado na comunida- motorista do Uber foi encontrado na favela”;
de”. Uma justificativa: “o aplicativo está man- “Guerra de facções deixou 8 mortos aqui”; “Tu-
dando não subir não”. Uma frustração: mais rista italiano foi assassinado deste lado ao en-
uma corrida cancelada! Na quarta tentativa, trar por engano”. Chamadas de capa saltavam
entre dedos cruzados e mensagens trocadas no em fila da sua boca e faziam um coreográfico
WhatsApp sobre a dificuldade de chegar, ocorre looping de ameaças por sobre nossas cabeças.
o aceite do motorista do 99 Taxi: “É perigoso, Repetições, em voz gutural e solene, empres-
mas te levo lá”. Partiu Santa Teresa. Partiu Falet. tavam dramaticidade aos enunciados. E lhes
Comunidade adentro, inaugura-se um conferiam um estatuto de verdade, repercussi-
silêncio pontuado pelos PM (policiais milita- va e trágica, tão bastante de si que não se dei-
res) com fuzis na divisa do morro e entremeado xaria relativizar pelos fatos e contextos que lhe
por falas monossilábicas. Percurso acima, sob deram causa. Uma aflição em ritmo crescente
tensão: será que vai dar para entrar e sair? O transbordava a cada ruela virada, reverberan-
que vem pela frente? Confronto armado? Bala do a convicção de que o GPS “joga você, sem
perdida? Blitz policial? Barreira do tráfico? A querer, lá dentro da favela”. Mas, como se tra-
reputação partilhada sobre o território-favela tava de querer estar no Falet, toda atenção se
revela-se por meio de imagens negativas que voltou para achar o “Instituto”10 o mais rápido
tomam a mente de imediato e de modo díspar. possível e encerrar a corrida da agonia.
Cliques sucessivos de uma memória social que Chegamos sãos e salvos ao local de en-
se faz desiludida para melhor servir à gestão contro com os jovens. Resultado provável,
pragmática do desengano (Muniz; Mello, 2015; porém menos rendoso à economia política da
Nora, 1993; Pollak, 1989). Um efeito de cálculo insegurança, fundamentada na disseminação
para manejar com um presente em desencan- de ameaças difusas, que serve a propagação
to, percebido como se estivesse sob ataque do de ondas de agravamento do temor (Muniz;
imprevisto. Um presente refém da provisorie- Mello, 2015; Taussig, 1993). Esse modo reper-
dade, que emerge da violência vista “por quem cutido de se constituir um discurso de verda-
não é daqui” como subterrânea e latente, e que de põe em operação a conversão da chance
se acredita sedimentar o chão da favela. Vio- objetiva de vitimização em perigo simbólico
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a realidade mais concreta. Revela-se uma en- experimentar a cidade e expandir horizontes,
grenagem de ocultações do alcance explicativo é preciso aprender a escapulir dos aparatos de
das associações enviesadas efetuadas entre fa- controle que inscrevem (re)destinações no cor-
vela, juventude pobre e violência. po e na alma dos indivíduos da favela, assim
Nas falas de boas vindas, os respon- como introduzem cláusulas de barreira para a
sáveis pelos projetos sociais explicitam que mobilidade social e cláusuras na memória de
aguardavam preocupados a chegada dos pro- grupo. Evidencia-se o rendimento dessas má-
fessores. “Já estava preparado para descer e quinas de dar flagrantes, que descobrem quem
pegar vocês lá embaixo”, esclarece um deles. estaria fora do seu lugar, e plantam estratage-
Momento ritual de empatia pela vivência par- mas para confirmar, recobrindo esse mesmo
tilhada de percalços comuns: lugar estigmatizado como verdadeiro.
imagine o que é a gente passar por isto todo dia! Eles Eu passei uma situação com um amigo, quando a
falam que não dá para levar nem pegar. Não importa gente ia para praia, porque eles posam de riquinhos,
se é uma idosa, um morador carregando compra. O são todos playboys, e eu estava lá com eles e aí eles
jeito é dar o endereço lá debaixo e subir de carona, foram parados, aí mostrou a identidade e (a polícia)
de van ou de moto-taxi. olhou: Pode ir, pode ir! Eu fiquei parada assim: “Ah,
se fosse no morro, ia tomar muita [...] (Moça do Falet).
Uma lição dolorosamente aprendida pe-
los moradores de favela: para fazer uso do di- Vigiar para produzir controle sobre as
reito de ir e vir, é fundamental saber manobrar, mudanças de status quo e as tentativas reali-
desde cedo, com os dispositivos internaliza- zadas pelos jovens de favela. Vigiar para de-
dos de discriminação socioespacial (Goffman, tectar jogos de aparência (Bourdieu, 2007),
1988; Wacquant, 2001). Ao longo dos cami- desmascarar e devolver ao lugar social de ori-
nhos da mobilidade social, muitos são os pe- gem aqueles que conseguem saltar por sobre
dágios montados para conferir os passaportes as cercas andarilhas da polícia e de outros me-
sociais dos moradores de favela em seus deslo- canismos de vigilância, correção e contenção
camentos físicos e simbólicos pela cidade. seletivas (Foucault, 1999).
Vamos fazer uma comparação, que se um dos envol-
Pegar um táxi, a gente faz várias tentativas antes de
vidos na investigação da Lava Jato for surpreendido
pegar o taxi. É na quarta ou quinta. E agora o Uber
com bandido, vai dizer que não é nada demais, sim-
também não quer subir, tanto para pegar a gente
plesmente um encontro para tomar um café e nada
aqui como para levar para outro lugar. Só lá embai-
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ao trajeto que fizemos para chegar aos pontos de alarme com olhos mágicos detecta: “Gente
de encontro. E não há nada de extraordinário de fora subindo”. Percebe-se a presença disper-
ou de exótico nisso. Nunca esteve em cartaz, no sa de vigilantes ocultos em estado de atenção.
mundo real, aquela imagem folclórica de fave- Portas, janelas e cortinas cerradas apontam
la animada, com gente pobre e feliz, colocando para a primeira linha de manutenção do ar re-
seus costumes em exibição para passantes e tu- frigerado, um alívio de primeira necessidade
ristas (Freire-Medeiros, 2009). propiciado, em boa medida, pelo gato de luz.13
As almas residentes no Rio de Janeiro, Portas, janelas e cortinas entreabertas, somen-
familiarizadas com temperaturas elevadas, ad- te um pouco ou de quando em vez, indicam
quirem a prática de procurar sombra e água a primeira linha de defesa da privacidade, da
fresca na rua, no trabalho ou em casa. Porém reserva dos dados pessoais e da vida privada,
o peso do ar sobre nossas cabeças, especial- ali em situação continuada de escassez.
mente no Alemão, parecia muito maior do que No interior das favelas, a habilidade de
o barômetro seria capaz de medir. A pressão um mortal para gerenciar sua exposição e o
da atmosfera era de outra natureza: um estado acesso dos outros à informação sobre si pode
de vigília entre os que por lá vivem e circu- corresponder à delicada arte de autopolicia-
lam. O céu é sentido como um teto de chumbo mento. Para muitos, o simples estender do bra-
rebaixado. E o chão parecia se levantar com ço em uma janela ou na laje pode alcançar o
erupções de um subterrâneo de práticas ile- interior da casa do vizinho. Com uma curta mi-
gais e clandestinas. Negócios mais ou menos rada, desinteressada, enquadra-se a intimidade
tolerados pelos guardiões da Pena e da Espada alheia no sofá da sala ou na cama de casal. Pare-
do Estado, mais ou menos visíveis aos olhos ce ser preciso se esforçar bastante para não ficar
da sociedade. E que chegam à superfície como sabendo o que acontece ao lado e ao redor. Do
um magma composto de traição, vingança, contrário, acaba-se como plateia diária da vida
acertos de conta, alianças, patrocínio de even- cotidiana da vizinhança, tornando-se, de algum
tos, promoção de festejos, agrados e outros modo, afetado, enredado e, por fim, envolvido-
“fechamentos”,12 Um clima de ressaca física -com, querendo ou não, com o que acontece na
e moral sinalizava que, de véspera, ocorrera, favela para dentro. E isso vai das desavenças
como de hábito, a combinação da fúria de uma domésticas, passando pelo que acontece nas
provocação armada com o som de uma festa, festas e comemorações, chegando até os movi-
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posta por constrangimentos, como as formas de parte como rumores e disseminadas por toda
ocupação urbana e de dominação ali existentes. gente como boatos (Elias; Scotson, 2000). Can-
Como não se ver envolvido? Assiste-se saço e ironia misturam-se ao ter de depor, mais
a uma teatralidade elevada ao seu exagero, até uma vez e de novo, sobre as mesmas questões
naquelas atitudes mais simples, de pouca im- para os mesmos interrogadores, os PMs da pro-
portância. Tem-se a impressão de que o recurso ximidade indesejada por eles próprios e pelos
à encenação exasperada de si mesmo (Foucault, moradores da favela (Muniz; Mello, 2015).
1988), acionado pelos moradores de favela, ser-
Eu ia de moto e aí veio a viatura e parou na minha
ve como uma escaramuça na administração dos
frente e já veio atrás de mim, apontando a arma e
conflitos diante de um expectador-censor à es-
falando encosta aí, tá vindo da onde? Tá indo pra
preita de um vacilo. Qualquer vacilo que sirva onde? Estou indo para casa agora e ele: “Ah tá” e
como alegação moral para aplicar alguma puni- olhou na minha cara (Rapaz do Falet).
ção por apenas “ser cria da comunidade”. Essa
encenação aprisiona as expectativas de quem A batalha de palavras entre interrogado
vigia ao estereótipo desenhado, produzindo al- (favelado) e interrogador (polícia) constitui-se
guma distância protetora entre a personagem como uma gincana discursiva, cínica e arris-
querida como mais verdadeira e a encenação de cada, em que o sujeito perseguido liberta-se
seu papel como menos real. de sua situação de caça, matando as charadas
Nas favelas visitadas, não se tem como sobre sua perseguição. Nela se espera que os
experimentar plenamente, com tão curta dis- suspeitos de sempre – “freios de camburão” –
tância física e moral, o anonimato cosmopolita reproduzam pantomimas indicando subservi-
no espaço público e a discrição polida no es- ência ou formas de deferência que reiterem o
paço privado. Ambos creditados ao comporta- lugar autoritário de autoridade e respostas en-
mento civilizado vindo de fora (Elias, 1994). saiadas do tipo bypass para o mesmo repertório
Entre um e outro, tem-se uma mistura do que batido de perguntas. Está indo para onde? Está
é privado e do que é comum. Sua manobra é vindo de onde? Está fazendo o que aqui? O que
particularizada, caso a caso, segundo um có- você tem aí na mochila? Quem é o chefe do
digo de conduta que dá conta do que deve ser tráfico? Jogo de abordagens para marcar e fazer
segredado e do que se pode explicitar. Na fave- não esquecer quem tem o mando, quem está
la, tudo se viu ou ouviu dizer. Mas as frases so- no controle da situação. Aprende-se a ter um
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bre o que se sabe são estrategicamente ditas de cuidado com a palavra. Um cuidado para se
maneira a revelar sem se comprometer. Cami- preservar protegendo, mesmo que a contragos-
nha-se na corda bamba das circunstâncias, do to, os autores da ação de censura ou da caçada
que é contingente, por meio do uso cauteloso à palavra autorizada (Bourdieu, 2008). Quem
e relativizado da categoria “depende”. Depen- são? Os governantes dos silêncios de fala que
de do que se fala, para quem se fala, de quem exercem o recurso da coerção armada sobre
se fala, do lugar de onde se fala, do momento a linguagem das palavras e dos corpos, uma
para se falar. Enfim, “tudo tem um depende”, manobra tática para reafirmar seu domínio e
um calcular milimétrico e exaustivo, para na- que contam com olheiros vindos de dentro de
vegar na circunstância e tentar seguir à risca o comunidades populares. Poder de ordenação
traçado fugaz das cercas – e podem ser várias sobre o que pode ser dito pelo poder das armas
– que circunscrevem os limites do que pode que dobram as línguas e silenciam condutas.
ser conversado. “Disseram aí que foram eles”. Eles quem? PM
Observa-se o acionamento de retóricas ou bandido? Frases com sujeitos ocultos e in-
defensivas, constituídas sob um clima de ame- determinados buscam afastar o risco iminente
aças estendidas que estão no ar, vindas de toda de se ver confundido com um delator. Mas po-
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dem trazer para mais perto a acusação, sempre diante das variadas formas sofridas de assédio
presente, de ser envolvido-com o crime. Daí para contar uma verdade, constituir uma pro-
frases sob censura, “papos retos” que mais pa- va, no limite, contra o seu próprio lugar social
recem acrobacias linguísticas, da “arte de falar e seu próprio mundo. A desconfortável posi-
e não dizer”. ção de testemunha tem esse rendimento como
fonte ambulante e ambígua de informação a
– P. Esses que morreram eram moradores?
ser extorquida (Amorim; Kant de Lima; Men-
– R. Todos moradores. Foi no mesmo dia, mas não
des, 2005; Foucault, 2008). Uma serventia que
foi no mesmo momento.
– P. Qual foi a explicação que eles deram? traz consigo a possibilidade, calculada como
– R. Não tem explicação. uma acusação iminente, de ser taxado como
– P. Porque eles morreram? delator da palavra maldita que não devia ter
– R Porque eles quiseram matar. sido falada, sob qualquer custo. Testemunha
– P. Eles poderiam ser chamados de “envolvidos”?
e X9 (alcaguete) são dois lados de um mesmo
– R. Alguns poderiam ser chamados de “envolvi-
lugar de risco ali latente: aquele de se ver e ser
dos”, agora não posso te afirmar. Tinha um que eu
tenho certeza que não era, era moto-táxi. (Conversa reconhecido como envolvido-com alguém, com
com Rapaz do Falet). alguma situação, com alguma coisa.
Ser um jovem de favela é saber ver para
O largo uso feito das reticências e das não ser visto, é conhecer bem para não ser re-
referências de duplo sentido tanto sinaliza que conhecido. Resistir para sobreviver, diante do
se tem algo escondido por detrás da fala, quan- medo de sobrar frente ao medo de morrer (No-
to indica que o falante pode “ter algo a escon- vaes, 2006). Isso significa conseguir atravessar
der”. O ato de fala, em si mesmo, é um ato sob as camadas de vigilância (Baumann, 2014) que
vigilância. Nesse cenário, em que se apresen- se sobrepõem e geram um efeito cumulativo
tam proximidades apriorísticas com pessoas, de controle. Não se trata apenas dos controles
situações e lugares, e, até bem pouco tempo, a verticais exercidos pela polícia ou pelo crime
proximidade forçada da UPP, negocia-se diante e que vivificam relações assimétricas de po-
de intimidades impostas: saber demais da vida der. Mas de outros deles, aqueles exercidos
na favela é sinal de perigo, saber de menos horizontalmente, entre os próprios moradores,
também. Em uma realidade vivida em estado visitantes, prestadores de serviço, etc. Uma as-
presente de atenção, saber corresponderia a similação da autovigilância para dentro, para
esconder, esconder corresponderia a dever sa-
redor. Todo mundo precisa vigiar quem vigia. O Envolvido é cria da comunidade. Ele se envolve,
Um mundo em estado de alerta, conformado mas a gente não discrimina.
por testemunhas oculares, em que se viven- Envolvido? Tá do lado, tá no meio, tá perto, parou
ciam relações nuas sob os holofotes das ferra- para falar e o X9 tirou uma foto, tá envolvido. Aqui
mentas de controle social. Com seus bastido- é visto e lá fora é mais visto.
res crus escancarados, sem lugar de descanso Aqui a gente sabe quem é envolvido ou não. O X9
com olhos fechados, os moradores de favela foi lá em casa, me filmou. Ele não é porra nenhuma.
colocam-se à flor de sua pele. Principalmente (Rapazes e moças do Complexo do Alemão).
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dágios sociais móveis. Funciona como um caiu no gosto do senso comum. Envolvido-com
dispositivo itinerante de incriminação. Prome- tem sido acionada, nos diversos ambientes e
te, no imediato de seu acionamento, oferecer contextos sociais, para antecipar o julgamen-
conforto emocional e proteção moral àqueles to de políticos e empresários relacionados aos
situados como estabelecidos (Becker, 2008), ao escândalos de corrupção, e para orientar as es-
definir uma linha de justificação causal entre tratégias de comunicação social da Policia Fe-
o passado, o presente e o futuro dos sujeitos deral, da Justiça e da Corte Suprema.14 É tam-
apreendidos em sua rede classificatória. Esta bém acionada para predizer e justificar o juízo
é uma categoria acusatória a serviço da produ- final desejado para as personagens cotidianas
ção de controles estendidos e de vigilâncias di- relatadas nos casos de criminalidade violenta
fusas, cuja virtude primeira é ir cada vez mais noticiados nas mídias e redes sociais. É, ainda,
além, em sua disposição classificatória: envol- mobilizada para antever o tipo de sanção es-
vido pode ser um efeito passageiro, um estado, perada para as personagens de novelas, séries,
uma etapa, uma condição, um destino. E pode etc. que, de algum modo, romperam com a ex-
muito mais, já que busca avançar da intenção pectativa social pretendida como hegemônica.
expressa e consciente até o desejo implícito e É suficiente conjecturar sobre a possibi-
inconsciente dos indivíduos sob incriminação. lidade de alguma interação para que se possa
Caminha-se de uma reação natural do instinto constituir uma convicção sobre a existência de
até a manifestação cultural da vontade, ofere- algum envolvimento, cujo sinal negativo apon-
cendo matizes que se encaixem em cada situ- ta, quando por menos, para um risco passível
ação em que a categoria é acionada. Por isso, de salvação e, quando por muito, para uma
se ouve dizer que o “meio onde vivem” faz ameaça a ser eliminada. Vai-se da imposição
dos jovens pobres “bandidos natos”, ou vulne- corretiva ao extermínio. Onde exista alguma
ráveis com um suscetível “pé na criminalida- intriga, picuinha ou divergência, pode-se fa-
de”. Em defesa da sociedade, o que importa é zer aparecer quem está envolvido com quem
apreender, isto é, aprender a saber aprisionar ou com alguma coisa. Envolvido-com traz um
os indivíduos aqui e ali, em seus próprios mo- lastro de verdade percebida como mais ver-
vimentos, deslocando-os, fazendo-os circular dadeira, uma vez que essa categoria não se
por entre confinamentos provisórios e sob os restringe a rotular indivíduos, mas incorpora,
radares situacionais de controle social. sobretudo, suas relações. A engrenagem do
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vido em uma narrativa que ambiciona acertar do como uma arbitrariedade é tênue, e tende a
sempre, porque se funda num truísmo cuja deslocar-se conforme as barganhas do sentido
engenhosidade está em colocar-se a serviço do de autoridade e das formas de seu exercício.
controle e da vigilância. Em termos instrumentais, o substituto prag-
Tal como elucidado por Macedo (2015), mático do tipo penal “associação criminosa”,
a tradução normativa de uma agenda pública no presente das práticas policiais, é o “envol-
corresponde à construção de um consenso téc- vimento”, que varia quanto à sua natureza e
nico-político que não só reduz a problemática grau para também ser abrangente. Pode-se di-
ao que é conveniente ao status quo do mundo zer que a construção social do envolvido é um
legal, como também retrata uma defasagem empreendimento moral da lei equacionada, no
temporal em relação à produção acadêmi- asfalto e na favela, ponderado pelas distintas
ca sobre a questão positivada em lei. Não foi razões que nos atravessam: as razões etárias,
diferente com as recentes mudanças na nos- de cor, de gênero, de classe, de renda, e as que
sa legislação penal que, segundo a autora, se mais servirem para desigualar os desiguais.
apoiam na criminologia da “defesa social”, há Cada vez mais onipresente nas repre-
muito já refutada pela reflexão crítica do direi- sentações sobre as causas e consequências das
to penal e pelas perspectivas contemporâneas “violências” e da “criminalidade”, o constructo
das ciências sociais. Uma mudança foi a alte- envolvimento explora as ambiguidades, o “lusco-
ração do Art. 288 do Código Penal Brasileiro, -fusco” das interações e dos marcadores sociais,
proposta pela lei 12.850 de 2013. Substituiu-se produzindo, simultaneamente, enquadramentos
“quadrilha ou bando” por “associação crimino- fugidios e estanques. Pode ser compreendido
sa”, com a seguinte redação: como um novo modo de rotulação que recicla as
ideologias sobre as classes perigosas (Chalhoub,
Associação criminosa
Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas,
1996) e parcela da juventude pobre. Estar ou
para o fim específico de cometer crimes: ser envolvido pode aparecer como um momen-
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos to passageiro ou uma identidade substantiva,
Parágrafo único. A pena aumenta-se até a metade se permitindo a proliferação de gradações que vi-
a associação é armada ou se houver a participação vificam estereótipos e preconceitos conforme o
de criança ou adolescente (Brasil, 2013, grifo nosso).
sujeito e a situação. Põe em circulação desliza-
A nova tipificação criminal é mais mentos entre os estados provisórios (“estar en-
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expediente de tomada de assalto por dentro da seus inimigos está. O controle armado da PM
linguagem, como agradaria a Foucault (1998), e do tráfico, por meios distintos, partilha de
revelando resistência onde há poder. Uma es- uma mesma lógica: produzir envolvimentos
tratégia de manipulação da identidade dete- que promovam alianças, mesmo forçadas, que
riorada, como compreenderia Goffman (1998), possam contribuir para a estabilização de seu
demonstrando a existência do poder dos fracos. poder no território-favela.
A incorporação e o uso de alegorias que A cartografia dos lados para onde olhar
apontam para práticas discriminatórias, exclu- (ou não) e se mover (ou não) implica trafegar
dentes e desiguais correspondem a um apren- em várias direções, da maior ou menor proxi-
dizado realizado pelos jovens quando de sua midade. Envolve tensões entre esses polos e di-
inserção no mundo dos projetos sociais. Esse lemas nas escolhas do tipo de distanciamento
léxico está na linguagem autorizada, falada e possível a ser representado diante de um con-
escrita, dos operadores sociais. É parte da tex- texto de ameaças latentes e da violência como
tualidade das políticas sociais e da contextua- um horizonte. Isso é mais perceptível quando
lização de seus conteúdos voltados para a fave- os entrevistados aludem às redes de convivên-
la. São palavras-ação que emprestam visibili- cia na favela e, por sua vez, aos princípios de
dade a causas, registram processos de luta e de amizade que, em certas circunstâncias, são de-
construção de legitimidade para o seu ingresso votados aos chamados “bandidos”, nas localida-
na agenda pública. Constituem uma forma de des onde ocorre o crime-negócio (Zaluar, 2004).
socialização política no manejo das rotulações. O sentido da amizade como sinal de pro-
As experiências com a rotulação de en- ximidade é realçado e possibilita a coreogra-
volvido-com emergem em um interjogo que fia de práticas performáticas que encenam, in
estabelece alianças de ocasião entre jovens e acto, lealdades possíveis em uma arena de vi-
os conduz a ter de elaborar uma cartografia gilâncias horizontalizadas: saudações longas,
dos lados para poder transitar pelas cancelas toques em partes do corpo, olhares confirma-
da PM e dos traficantes. Ela se traduz em di- dores, sorrisos abertos, acenos manuais. Tais
versas manobras realizadas pelos territórios indícios, estampados no corpo, se prestam ao
físicos e simbólicos na busca da adequada reconhecimento público da existência de uma
distância para dentro. Entre os moradores da ligação privada. Nasceram no mesmo lugar,
favela, revela-se o cálculo estratégico sobre os se conhecem desde crianças, estudaram jun-
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face aos desafios que enfrentam: medo de mor- riscos e perigos que atinge determinadas pes-
rer, medo de sobrar!16 soas e grupos frente a outros. Evoca a mesma
A categoria envolvido-com traz consigo conotação negativa, ainda que menos orien-
uma engenhosidade cuja eficácia se distingue tada para uma perspectiva individualizante,
da categoria classe perigosa. Sua modernidade aliviando sua carga moral. Assim, o candidato
está na manifestação gerencial de um individu- ideal dos projetos sociais – um recurso profi-
alismo de mercado. Através dela se consegue o lático à criminalidade (ainda que implícito) –
que nem Cesare Lombroso imaginava em sua não deve “ser envolvido” com ações crimina-
ambição de classificar o tipo criminoso: pôr no lizáveis. Mas, é desejável que o candidato seja
banco dos réus a própria interação social. Por classificado como em “situação de vulnerabili-
meio da noção envolvido-com ambiciona-se dade” ao envolvimento, para justificar as ini-
criminalizar os indivíduos e sua transitividade ciativas construídas para sua inclusão. É como
entre realidades sociais. se o atributo envolvido-com remetesse a uma
Se, por um lado, envolvido-com aparece questão individual e a vulnerabilidade reco-
nhecesse o caráter estrutural do desvio ou do
16
Sobre estilos de masculinidade e seus dispositivos invi-
síveis, ver: Cecchetto (2004). comportamento desviante. Não é à toa que os
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Os jovens seguem abrindo brechas nas ELIAS, N; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os
outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma
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224p.
da arte, da religião, da tecnologia e da inserção
FELTRAN, G. Transformações sociais e políticas nas
em projetos sociais. Constroem seus caminhos periferias de São Paulo. In:_ROLNIK, Raquel; FERNANDES,
Ana (Org.). Cidades. Rio de Janeiro: Funarte, 2016. p. 1-21.
sempre alertas, para nem estar perto nem lon- (Coleção ensaios brasileiros contemporâneos).
Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 82, p. 99-116, Jan./Abr. 2018
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“BASTA TÁ DO LADO” – A CONSTRUÇÃO SOCIAL ...
Based on the ethnographic work and group En se basant sur les travaux ethnographiques et
interviews with young people from two Rio de les interviews de groupe avec des jeunes de deux
Janeiro favelas, this article problematizes the favelas de Rio de Janeiro, l’article pose le problème
category ‘involved-with (taken from the everyday de la catégorie mêlé au (extrait du langage courant)
language) crime and its services’, as a fluid social crime et à ses services , en tant que dispositif de
control device that creates moving borders which contrôle social itinérant qui édifie des frontières
serve to “unequalize” the unequal. This shows how mobiles qui inégalent les inégaux. Cela montre
this notion has been mobilized in the selective bien comment cette notion a été mobilisée dans
distribution of surveillance and punishment la distribution sélective de la vigilance et de la
of youths in the suburbs. Its functionalities are punition des jeunes de la périphérie. L’article
discussed in the regulation of trajectories and présente ses fonctionnalités dans la régulation des
identity paths, highlighting a profiling web that trajectoires et des parcours identitaires en mettant
ends up blurring the meaning between the notions en évidence toute une série d’étiquetages qui
of “criminal” and “vulnerable.” The activation of entrainent des glissements de sens entre les notions
moralities that justify the self-management of the de “bandit” et de “vulnérable”. Il analyse la mise
favela inhabitants is analyzed. It reveals an ambition en place de moralités qui justifient la gestion des
of police custody maximized by the appetite for habitants des favelas par eux-mêmes. Il révèle une
criminalization not only of individuals, but also of ambition de tutelle policière maximisée par l’appétit
their social relations. de criminalisation, non seulement des individus
mais aussi de leurs liens sociaux.
Keywords: Involvement. Youths. Social control. Mots-clés: Implication. Jeunesses. Contrôle social.
Surveillance. Social vulnerability. Surveillance. Vulnérabilité sociale.
Fátima Regina Cecchetto – Doutora em Saúde Coletiva. Pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz,
Professora do programa de Pós Graduação da Escola Nacional de Saúde Pública (FIOCRUZ). Publicações
Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 82, p. 99-116, Jan./Abr. 2018
recentes: Homicídios no Rio de Janeiro, Brasil: uma análise da violência letal, com CARDOSO,
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Violências percebidas por homens adolescentes na interação afetivo-sexual em dez cidades brasileiras,
com OLIVEIRA, QUEITI BATISTA MOREIRA; NJAINE, KATHIE; MINAYO, MARIA CECÍLIA DE SOUZA.
In: Interface (Botucatu. Online), v. 20, p. 853-864, 2016.
Jacqueline de Oliveira Muniz – Antropóloga. Doutora em Ciência Política. Professora Adjunta do
Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF). Integrante do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Organizadora, com Eduardo Paes-Machado, do Dossiê Policiamento
e Polícia, Caderno CRH 60, v.23, n. 60 – set/dez. 2010. Publicações recentes: Nem tão perto, nem tão longe:
o dilema da construção da autoridade policial nas UPPs, com Kátia Sento Sé Melo. In: Civitas: Revista de
Ciências Sociais (Impresso), v. 15, p. 44-65, 2015; Moralidades entrecruzadas nas UPPs: Uma narrativa
policial, com Elizabete Albernaz. In: Cadernos Ciências Sociais, v. II, p. 113-149, 2015.
Rodrigo de Araujo Monteiro – Sociólogo. Doutor em Saúde Coletiva, Professor Adjunto de Sociologia
do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenador do
Laboratório de Pesquisa e Ensino de Ciências Sociais (LAPECS). Publicações recentes: “A pacificação e
suas tramas: conflitos em torno da construção de normas sociais em duas favelas cariocas”. In Sistema
Penal &Violência: V. 7, n. 2, p. 127-136, dez. 2015; “As UPPs e o Espaço Urbano: conflitos, política
pública e violência”. In: John Gledhill; Maria Gabriela Hita; Mariano Perelman. (Org.). Disputas em torno
do espaço urbano. 1ed.Salvador: EDUFBA, 2017, v. 1, p. 237-262.
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